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CLÍNICA MÉDICA

Alergia e imunologia
Alergia alimentar 6
Reações adversas às drogas 10
Rinossinusite alérgica 16
Urticária e angioedema 21

Clínica médica – ambulatório


Aconselhamento para hábitos de vida saudáveis 27
Atenção domiciliar 37
Avaliação periódica de saúde 38
Avaliação perioperatória 45
Interconsulta 70
Tabagismo 71

Clínica médica – pronto-socorro


Anafilaxia 82
Crise asmática 86
Doença pulmonar obstrutiva crônica exacerbada 93
Hipoglicemia e hiperglicemia 100
Infecção do trato urinário 107
Insuficiência renal aguda 116
Insuficiência respiratória aguda 127
Intoxicações exógenas agudas 131
Pneumonias 147
Urgências e emergências no hepatopata 158
Urgências e emergências oncológicas 171
Urgências e emergências relacionadas ao álcool 194
Tromboembolismo pulmonar 200
Trombose venosa profunda 206

Clínica médica – terapia intensiva


Controle glicêmico 210
Distúrbios do equilíbrio acidobásico 213
Distúrbios do equilíbrio hidroeletrolítico 219

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Hipotensão e choque 238
Infecção de cateteres intravasculares 249
Profilaxia de úlcera de estresse 258
Profilaxia de trombose venosa profunda 259
Sedação e analgesia 264
Sepse e choque séptico 272
Síndrome do desconforto respiratório agudo 277
Ventilação mecânica 281

Cardiologia
Suporte básico de vida 290
Suporte avançado de vida 294
Cuidados pós- parada cardiorrespiratória 302
Bradicardia 305
Taquicardia 313
Dor torácica 329
Síndromes coronarianas 336
Crise hipertensiva 350
Dislipidemia 356
Doença coronária crônica 368
Doenças da aorta torácica 374
Endocardite infecciosa 382
Hipertensão arterial sistêmica 388
Insuficiência cardíaca 403
Insuficiência cardíaca descompensada 423
Miocardiopatias 431
Pericardiopatias 436
Síncope 441
Valvopatias 446

Endocrinologia
Diabetes mellitus 456
Hiperaldosteronismo primário 474
Hiperparatireoidismo primário 480
Hipertireoidismo 486
Hipófise 499
Hipoparatireoidismo 522
Hipotireoidismo 529
Insuficiência adrenal 535
Neoplasias endócrinas múltiplas 540
Tumores supra-renais 543
Tumores da tireoide 556

Epidemiologia
Erros sistemáticos 564
Anormalidade 567

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Diagnóstico 570
Freqüência 573
Risco 576
Prognóstico 582
Tratamento 586
Prevenção 591
Acaso 597
Causa 601
Medicina baseada em evidências 604
Como ler um artigo científico 608
Estudos de não-inferioridade 610

Gastroenterologia
Câncer colo-retal 615
Cirrose hepática 626
Constipação intestinal 631
Diarreia crônica e má-absorção intestinal 638
Dispepsia 644
Doença do refluxo gastroesofágico 649
Doença inflamatória intestinal 654
Doenças hepáticas autoimunes 664
Doenças hepáticas metabólicas 669
Gastrite e doença ulcerosa péptica 674
Hepatites 681
Nutrição enteral e parenteral 701
Pancreatite crônica 709
Tumores hepáticos 714

Geriatria
Avaliação global do idoso 725
Principais síndromes geriátricas 727
Promoção do envelhecimento saudável 730

Ginecologia
Câncer de mama 733

Hematologia
Alterações trombóticas e anticoagulação 743
Anemias 750
Coagulopatias e doenças plaquetárias 779
Diagnóstico laboratorial das alterações da hemostasia 794
Hemocomponentes e reações transfusionais 799
Hemocromatose 810
Leucemias 813
Linfomas 824
Mielofibrose primária 838

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Mieloma múltiplo e doenças relacionadas 841
Policitemia vera 850
Porfirias 853
Síndromes mielodisplásicas 856
Trombocitemia essencial 861

Moléstias infecciosas
Dengue 864
Doença de Chagas 870
Doenças sexualmente transmissíveis com manifestações cutâneas 876
Esquistossomose 887
Febre amarela 891
Infecção pelo HIV e síndrome da imunodeficiência adquirida 894
Infecções oportunistas 914
Leishmaniose visceral 922
Leptospirose 927
Malária 931
Mononucleose infecciosa 936
Parasitoses intestinais 939
Toxoplasmose 949
Tuberculose 955

Nefrologia
Alterações tubulares renais 971
Doença renal crônica 981
Glomerulopatias 993
Manifestações renais das doenças sistêmicas 1004
Nefrite intersticial aguda 1024
Nefrolitíase 1026

Neurologia
Cefaleia 1034
Coma 1048
Delirium 1060
Distúrbios cognitivos 1064
Distúrbios do movimento 1078
Doença cerebrovascular 1089
Epilepsia e crise epiléptica 1108
Esclerose múltipla 1119
Infecções do sistema nervoso central 1132
Miastenia gravis 1150
Neuropatias periféricas 1160
Vertigem 1172

Oncologia
Dor e opioides 1179

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Pneumologia
Asma 1187
Câncer de pulmão 1198
Doença pulmonar obstrutiva crônica 1206
Fibrose cística 1218
Nódulo pulmonar solitário 1224
Teste de função pulmonar 1227

Psiquiatria
Transtornos ansiosos 1232
Transtornos da sexualidade 1241
Transtornos do humor 1248

Reumatologia
Artrite reumatoide 1258
Doença mista do tecido conjuntivo 1265
Esclerose sistêmica 1271
Espondiloartropatias 1278
Gota 1289
Lúpus eritematoso sistêmico 1293
Miopatias inflamatórias idiopáticas 1301
Osteoartrose 1306
Osteoporose 1312
Vasculites sistêmicas 1322

Urologia
Câncer de próstata 1336

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ALERGIA ALIMENTAR
Conceitos
Reação adversa a alimentos é qualquer resposta anormal do organismo causada
pela ingesta de um alimento. As reações adversas a alimentos são inicialmente divididas
em tóxicas e não-tóxicas. As reações tóxicas dependem de fatores inerentes aos
alimentos, como as toxinas produzidas na sua deterioração, afetando qualquer indivíduo
que ingere o alimento em quantidade suficiente. As reações não-tóxicas dependem da
suscetibilidade individual e podem ser divididas em reações imunomediadas,
denominadas alergia alimentar, e não-imunomediadas, denominadas intolerância
alimentar. Atualmente, tem sido sugerido o termo hipersensibilidade alimentar para
abranger tanto as reações imunomediadas, chamadas de hipersensibilidade alimentar
alérgica, quanto as não-imunomediadas, chamadas de hipersensibilidade alimentar não-
alérgica. A intolerância alimentar pode decorrer de deficiências enzimáticas, como na
intolerância à lactose, reatividade anormal a certas substâncias presentes nos alimentos,
como os aditivos alimentares, ou mecanismos desconhecidos. A alergia pode ter
mecanismo imunológico mediado ou não-mediado por IgE.

Epidemiologia
A prevalência estimada de reações adversas a alimentos é de 12-20% em adultos.
Entretanto, quando se considera apenas a prevalência da alergia alimentar, a estimativa
cai para 6-8% em lactentes e até 4% nos adultos, com predomínio em atópicos.

Etiologia
Alergia alimentar é caracterizada por início imediato dos sintomas quando o
mecanismo é mediado por IgE, reprodutibilidade e independência em relação à
quantidade ingerida, sendo raro o envolvimento de mais de três alimentos em um mesmo
indivíduo. Qualquer alimento pode causar alergia alimentar, mas, apesar disso, um
pequeno número de alimentos é responsável pela maioria das reações alérgicas induzidas
por alimentos. Leite, ovo, soja, trigo, amendoim e milho correspondem a cerca de 90%
das reações de hipersensibilidade em crianças, enquanto peixe, crustáceos, amendoim,
milho e castanhas correspondem a cerca de 85% das reações de hipersensibilidade em
adolescentes e adultos. Tem sido observado um aumento nas reações alérgicas a frutas,
como kiwi e mamão papaia, e sementes, como papoula, gergelim e canola.
Na intolerância alimentar, o intervalo entre a ingesta e o início dos sintomas pode
ser longo, com duração de horas, os sintomas podem não ser reproduzidos em exposições
posteriores, há dependência em relação à quantidade ingerida e a participação de
múltiplos alimentos é mais comum. Os alimentos mais comuns envolvidos são aqueles
com ação farmacológica, como alimentos com tiramina (queijos, vinho tinto) e alimentos
liberadores de histamina (chocolate, morango, tomate, abacaxi, etanol, suínos), aditivos
alimentares e lactose.

Fisiopatologia
A alergia alimentar pode envolver um mecanismo mediado por IgE, não-mediado

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por IgE ou mais de um mecanismo imunológico.
Em pacientes geneticamente predispostos, a falha no desenvolvimento ou a
quebra do mecanismo de tolerância oral resulta em produção excessiva de anticorpos IgE
específicos para determinado alimento. Após a sensibilização, os anticorpos circulam
pelo organismo e ligam-se a receptores de alta afinidade em mastócitos e basófilos. Nos
próximos contatos com o alérgeno, este une-se à IgE que se ligou aos mastócitos e
basófilos, promovendo a liberação de mediadores, como histamina, prostaglandinas e
leucotrienos, que são os responsáveis pelas manifestações clínicas. Estas reações
geralmente ocorrem dentro de minutos a até duas horas após a ingesta do alimento.
Reações não-mediadas por IgE geralmente manifestam-se com sintomas
gastrointestinais. São diagnosticadas pela boa resposta à eliminação do alérgeno da dieta.
Algumas doenças necessitam de biópsia. Evidências sugerem que estas reações sejam
mediadas por células, com reação de hipersensibilidade do tipo IV. Embora raras, reações
de hipersensibilidade tipos II e III também já foram descritas.

Quadro clínico
Manifestações clínicas cutâneas são as mais comuns, sobretudo prurido, urticária
e angioedema, que geralmente ocorrem até duas horas após a ingesta ou o contato com o
alimento. Embora seja comum, a ausência de sintomas cutâneos não exclui a
possibilidade de o alimento estar induzindo anafilaxia. A exacerbação da dermatite
atópica grave também é comum, embora a relação causa-efeito não seja tão clara.
Manifestações clínicas gastrointestinais aparecem em segundo lugar em
frequência nas manifestações de alergia alimentar e incluem náusea, vômitos, dor
abdominal e diarreia, que podem ocorrer isoladamente. Na síndrome de alergia oral
ocorre prurido com ou sem angioedema de lábios, língua e palato. Esofagite e
gastroenterite eosinofílicas podem ter mecanismo mediado por IgE, não-mediado por IgE
ou ambos e são caracterizadas por infiltração da parede de esôfago, estômago ou intestino
por eosinófilos e, frequentemente, eosinofilia periférica. Os sintomas de esofagite
eosinofílica são semelhantes aos da doença do refluxo gastroesofágico, mas não ocorre
resposta ao tratamento com inibidores de bomba de prótons e pró-cinéticos e a pHmetria
é normal. Enteropatias induzidas por proteína acometem principalmente lactentes,
manifestando-se na maioria das vezes por diarreia com ou sem muco e sangue, anemia e
déficit de crescimento.
Manifestações clínicas respiratórias isoladas são raras e incluem coriza, prurido
nasal, broncoespasmo e edema de laringe.
Os alimentos são causas comuns de anafilaxia. Os pacientes podem apresentar
manifestações cutâneas, respiratórias, gastrointestinais e cardiovasculares, como
hipotensão, síncope, arritmias e choque. Anafilaxia induzida por alimento dependente de
exercício é uma síndrome em que os sintomas somente ocorrem se determinado alimento
é ingerido duas a seis horas antes do exercício físico.

Diagnóstico e avaliação complementar


A história clínica é a peça-chave da investigação. No exame físico, deve-se dar
atenção aos sinais de atopia, desnutrição e outras doenças não-alérgicas.
Os testes cutâneos de leitura imediata representam um método rápido para avaliar
a sensibilização a alimentos específicos. A técnica escolhida é a puntura (prick test), visto

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que os testes intradérmicos com alimentos são contraindicados pelo risco de reações
graves. Considera-se o teste positivo quando o alérgeno alimentar gera uma pápula pelo
menos 3mm maior que o controle negativo. O valor preditivo negativo dos testes
cutâneos é superior a 95% e, portanto, resultados negativos contribuem muito para afastar
a possibilidade de alergia alimentar. Em algumas situações, resultados positivos são
aceitos como confirmatórios quando combinados a uma história clara e recente de
anafilaxia.
Pesquisa in vitro de IgE específica por meio do RAST vem perdendo espaço para
métodos quantitativos, que apresentam maior acurácia. Apesar de menor sensibilidade e
maior custo em relação aos métodos cutâneos, a pesquisa de IgE específica in vitro
apresenta algumas vantagens, como possibilidade de realização em pacientes com
dermografismo ou lesões extensas de pele, não envolver risco de reação e ausência de
necessidade de suspender anti-histamínicos. Os resultados são expressos em seis classes e
valorizados como positivos a partir da classe 2. A positividade não confirma o
diagnóstico, mas reforça a hipótese clínica e orienta a escolha do alimento a ser
posteriormente avaliado por meio de dieta de restrição ou prova de provocação.
As dietas de restrição consistem na exclusão sistemática do alimento identificado
através de anamnese e/ou diário alimentar e na observação de melhora clínica. A dieta de
exclusão, como instrumento diagnóstico, não deve se estender além do tempo mínimo
necessário, ao redor de duas a quatro semanas, para evitar comprometimento do estado
nutricional. Excepcionalmente, como nas gastroenteropatias alérgicas, pode ser
necessário um tempo maior de dieta, ao redor de oito semanas. As dietas devem ser
cuidadosamente planejadas para a adequação nutricional.
Provas de provocação oral consistem na administração fracionada do alimento
suspeito, em doses crescentes, sob supervisão médica. São considerados positivos quando
reproduzem os sintomas relatados na anamnese. A escolha do alimento para realização da
provocação oral é determinada pela história clínica, pela pesquisa de IgE específica in
vivo ou in vitro ou pela dieta de restrição. A quantidade de alimento, o intervalo entre as
doses e o tempo de observação são determinados pela história do paciente. O teste de
provocação oral pode ser aberto, simples cego ou duplo cego controlado com placebo. Os
indivíduos com história de anafilaxia grave somente devem ser submetidos a provas de
provocação quando a anamnese e os exames complementares são pouco consistentes ou
insuficientes para revelar a correlação do alimento com o quadro clínico.

Tratamento
O alimento deve ser excluído totalmente da dieta, enfatizando a necessidade de
estar alerta para o risco de exposição acidental. A exclusão do alimento envolve
obrigatoriamente a restrição de qualquer fonte alimentar que contenha a proteína
alergênica. O paciente deve ser orientado para realizar leitura de rótulos, evitar situações
de alto risco (buffets) e reconhecer precocemente os sintomas alérgicos.
O paciente também deve ser orientado a evitar alimentos que apresentem
reatividade cruzada com o alimento ao qual ele é alérgico. A restrição de alimentos como
leite, ovo e trigo envolve o risco de déficit nutricional e, dessa forma, torna necessária a
orientação nutricional adequada. A suplementação de vitaminas e cálcio pode ser
necessária.
Anti-histamínicos podem melhorar os sintomas cutâneos mediados por IgE, mas

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não bloqueiam as reações sistêmicas. O medicamento chave no tratamento de uma reação
alérgica alimentar anafilática é a Adrenalina, com 0.3-0.5mL de solução 1:1000 por via
intramuscular. Deve ser prescrito e orientado o uso de Adrenalina para auto-injeção para
os pacientes que tenham risco de anafilaxia induzida por alimento.
As alergias alimentares a leite de vaca, ovo, trigo e soja geralmente apresentam
desenvolvimento de tolerância até os cinco anos de idade. Por outro lado, as alergias a
castanhas, amendoim e frutos do mar tendem a ser persistentes. O diagnóstico de
tolerância deve ser feito questionando-se sempre sobre o surgimento ou não de sintomas
nos escapes da dieta ou pela reintrodução periódica do alimento por meio da provocação
oral.
Na imunoterapia convencional, o risco de efeitos adversos foi considerado
inaceitável. Alguns estudos demonstraram que a imunoterapia com extrato de pólen para
rinite foi eficaz no controle de sintomas de alergia alimentar a frutas por existir reação
cruzada entre alguns pólens e frutas.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 7: alergia e imunologia clínica, doenças da pele, doenças infecciosas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

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REAÇÕES ADVERSAS ÀS DROGAS
Conceitos
A Organização Mundial da Saúde define reação adversa à droga como qualquer
efeito não terapêutico decorrente do uso de um fármaco nas doses habitualmente
empregadas para prevenção, diagnóstico ou tratamento de doenças.
As reações adversas às drogas são classificadas como previsíveis ou
imprevisíveis, sendo que o primeiro grupo está relacionado a efeitos diretos do
medicamento, que podem ocorrer em qualquer indivíduo, como superdosagem, efeitos
colaterais, efeitos secundários e interações medicamentosas. As reações imprevisíveis,
por sua vez, são aquelas que não estão relacionadas diretamente aos efeitos da droga,
como intolerância, idiossincrasia e hipersensibilidade.
Denomina-se hipersensibilidade qualquer reação iniciada por um estímulo
definido e que possa ser reproduzida. As reações de hipersensibilidade às drogas podem
ser subdivididas em alérgicas, mediadas por um mecanismo imunológico, e não-
alérgicas, desencadeadas por outros mecanismos.

Epidemiologia
Estima-se que as reações adversas às drogas ocorram em 15-30% dos pacientes
internados e 5% dos pacientes ambulatoriais. De todas as reações adversas, 10-15%
correspondem às reações de hipersensibilidade.

Fisiopatologia
Uma vez que o medicamento se comporte como um antígeno, seja pela sua
própria natureza proteica, como no caso da Insulina e da Estreptoquinase, seja pela
conjugação com proteínas do plasma, como no caso da Penicilina, ele pode desencadear
qualquer um dos quatro mecanismos de hipersensibilidade descritos por Gell & Coombs.
Tipo Mecanismo Exemplo
I - Imediata IgE, mastócitos e basófilos Anafilaxia, urticária, angioedema, asma
II - Citotóxica IgM e IgG, complemento, Citopenias, nefrites, pneumonites
fagocitose
III - Imunocomplexos IgM e IgG, complemento, Doença do soro, febre, urticária,
fagocitose glomerulonefrite, vasculites
IV - Tardia
IVa Th1, ativação de macrófagos Dermatite de contato
IVb Th2, linfócitos B, mastócitos e Exantema maculopapular com eosinofilia,
eosinófilos DRESS
IVc Linfócitos T CD4 + e CD8 + Exantema bolhoso maculopapular,
necrólise epidérmica tóxica
IVd Células T, neutrófilos Pustulose exantemática
No entanto, grande parte das reações de hipersensibilidade é considerada não-
alérgica por não haver participação direta do sistema imune. Os mecanismos que
envolvem a maioria dessas reações ainda são desconhecidos ou pouco elucidados.
Algumas drogas, como a Codeína, a Morfina e os contrastes iodados, podem provocar a
desgranulação direta dos mastócitos e dos basófilos, liberando os mediadores
inflamatórios que provocam reações clinicamente semelhantes às do tipo I.

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O Ácido Acetilsalicílico e os anti-inflamatórios não-hormonais, por meio de sua
ação inibitória na via da ciclo-oxigenase, podem promover modificações no metabolismo
do ácido araquidônico, que se desvia para a via da lipo-oxigenase. Dessa forma, uma
série de mediadores é produzida, como os leucotrienos, com quadro inflamatório que
pode se manifestar clinicamente por asma, angioedema e urticária, também semelhantes
às reações do tipo I.

Quadro clínico
O quadro clínico das reações de hipersensibilidade às drogas é muito variado,
podendo simular, praticamente, todas as doenças e síndromes conhecidas. As
manifestações cutâneas são as mais comuns, tanto de forma isolada quanto em associação
às manifestações sistêmicas. As erupções por drogas podem variar de um simples eritema
benigno e transitório até formas mais graves, como a síndrome de Stevens-Johnson e a
síndrome de Lyell ou necrólise epidérmica tóxica.
As erupções exantemáticas ou máculo-papulares são as manifestações cutâneas
mais frequentes das reações adversas a drogas. A erupção inicia-se, em geral, entre o
quarto e o décimo-quarto dias de tratamento ou até um ou dois dias após o seu término.
Prurido e febre baixa podem acompanhar o quadro cutâneo, desaparecendo após alguns
dias. O diagnóstico diferencial das reações exantemáticas por drogas inclui as erupções
virais, as erupções tóxicas, a reação enxerto versus hospedeiro aguda, a síndrome de
Kawasaki e a doença de Still. As drogas mais relacionadas com esse tipo de manifestação
são o Alopurinol as aminopenicilinas, as cefalosporina, os anticonvulsivantes e os
antibióticos do grupo das sulfonamidas.
A urticária caracteriza-se por placas e/ou pápulas eritematosas transitórias, com
prurido importante. Em até metade dos casos, está associada a angioedema, surgindo de
alguns minutos a poucas horas após a administração do medicamento. Os antibióticos e
os relaxantes musculares estão entre as principais causas de urticária e angioedema por
um mecanismo mediado por IgE, enquanto que os anti-inflamatórios não-hormonais são
as causas mais comuns por um mecanismo não-mediado por IgE.
A pustulose exantemática aguda generalizada caracteriza-se por pequenas pústulas
em grande quantidade, que aparecem sobre uma área de eritema, predominantemente em
pescoço, axilas, tronco e extremidades superiores. Não é raro o surgimento de
leucocitose, neutrofilia, hipocalcemia e insuficiência renal, que são transitórios. O tempo
entre a administração da droga e o surgimento das lesões é relativamente curto, menor do
que dois dias. A erupção dura alguns dias e é seguida de descamação superficial. As
principais drogas relacionadas ao quadro são as aminopenicilinas e o Diltiazem. Os
critérios diagnósticos incluem erupção pustular aguda, febre superior a 38º C, neutrofilia
com ou sem eosinofilia leve, pústulas subcórneas ou intra-epidérmicas na biópsia de pele
e resolução espontânea em menos de quinze dias.
O eritema fixo por drogas caracteriza-se por uma ou poucas placas eritêmato-
edematosas arredondadas e bem delimitadas, algumas vezes com bolha no centro da
lesão. Pode ocorrer em qualquer parte do corpo e envolver mucosas, sobretudo lábios e
genitais. A erupção involui em alguns dias, com uma lesão residual acastanhada, que
pode ser reativada no mesmo local após uma nova exposição à droga envolvida. Esse
quadro está relacionado, com frequência, ao uso de derivados da fenazona, sulfonamidas,
barbituratos, Fenolftaleína, tetraciclinas e Carbamazepina.

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A síndrome de hipersensibilidade induzida por drogas (DRESS) é uma reação
aguda e grave definida pela presença de envolvimento multi-sistêmico e eosinofilia.
Clinicamente, manifesta-se por febre, erupção cutânea importante, aumento de
linfonodos, alteração de função hepática e renal e acometimento pulmonar ou cardíaco,
com anormalidades hematológicas, sobretudo eosinofilia e linfocitose. Essa síndrome foi
descrita inicialmente com drogas anticonvulsivantes, como Carbamazepina, Fenitoína e
Fenobarbital. Posteriormente, um quadro semelhante foi observado com uma grande
variedade de drogas, como Alopurinol, Dapsona, Minociclina e Nevirapina. Os sintomas
aparecem, em geral, entre duas e seis semanas após o início do tratamento, evoluindo de
forma favorável após a suspensão da droga.
A síndrome de Stevens-Johnson, caracterizada por descolamento da epiderme em
menos de 10% da superfície corporal, e a necrólise epidérmica tóxica, caracterizada por
descolamento da epiderme em mais de 30% da superfície corporal, são reações graves
decorrentes do uso de drogas, com baixa incidência e alta mortalidade. Alguns autores
sugerem que as duas afecções sejam variantes de uma mesma doença e que o eritema
multiforme major, com lesões em alvo e bolhosas envolvendo extremidades e mucosas,
deva ser considerado separadamente, uma vez que está mais relacionado a infecções,
especialmente pelo herpes-vírus. Febre, irritação nos olhos e dor à deglutição podem
preceder os sintomas cutâneos em um a três dias. As lesões na pele inicialmente
aparecem no tronco e, em seguida, espalham-se por face, pescoço e porção proximal dos
membros superiores, com menor acometimento de membros inferiores, embora possam
ocorrer lesões nas regiões palmar e plantar logo no início do quadro. Eritema e erosões
em olhos, boca e mucosa genital estão presentes em mais de 90% dos casos. O epitélio do
trato respiratório está envolvido em um quarto dos casos de necrólise epidérmica tóxica,
podendo também ocorrer acometimento gastrointestinal. Inicialmente, as lesões são
eritematosas ou máculo-purpúricas, de tamanho e forma irregular, com tendência a
coalescer. Conforme o envolvimento epidérmico progride, ocorre necrose das lesões e a
epiderme começa a descolar-se da derme, com a formação de bolhas e presença do sinal
de Nikolsky. O uso de medicamentos está relacionado a até metade dos casos de
síndrome de Stevens-Johnson e a cerca de 80% dos casos de necrólise epidérmica tóxica,
sendo antibióticos do grupo das sulfonamidas, anticonvulsivantes aromáticos, anti-
inflamatórios não-hormonais, Alopurinol e Nevirapina os mais frequentes.

Diagnóstico e avaliação complementar


O diagnóstico de uma reação adversa à droga deve se basear, principalmente, na
anamnese e no exame físico. A história clínica inclui a relação de todas as drogas
utilizadas pelo paciente no momento da reação e nos dias que antecederam o quadro. Em
geral, a droga introduzida mais recentemente é a droga envolvida. Quando um paciente
está em tratamento com inúmeras drogas e apresenta uma reação adversa, as drogas de
uso esporádico são, em geral, as mais implicadas. De acordo com as manifestações
clínicas, é possível suspeitar de mais de uma droga.
Quando a história e o exame físico não são suficientes para a determinação da
droga envolvida, testes in vivo e in vitro podem ajudar a afastar ou confirmar as drogas
suspeitas. A escolha do teste ou do exame a ser realizado depende, basicamente, do
mecanismo suspeito para aquele tipo de reação. Cada caso deve ser analisado de forma
isolada. A avaliação do risco-benefício do procedimento deve ser sempre considerada.

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Os testes cutâneos de leitura imediata, como o teste de puntura e o teste intra-
dérmico, avaliam, de forma indireta, a presença de IgE específica, sendo indicados para a
investigação das reações imediatas mediadas por IgE. O teste de puntura é a forma mais
fácil e segura de testar uma reação imediata por droga, mas a sua sensibilidade é
moderada. Embora o teste intradérmico seja mais sensível, existe um risco maior de
reação irritativa e, portanto, resultado falso-positivo, além da possibilidade de reação
anafilática. Visto que grande pare das drogas utilizadas apresenta baixo peso molecular, o
teste torna-se praticamente inviável para a maior parte dos medicamentos, uma vez que
não se conhece o mecanismo exato pelo qual formam um antígeno completo e provocam
as reações. Além disso, grande parte das reações é não-alérgica e, portanto, não há IgE
específica para ser detectada pelos testes. Atualmente, os testes cutâneos de leitura
imediata podem ser indicados para avaliação de reações imediatas provocadas por
penicilinas, relaxantes musculares, Insulina, Protamina, Heparina, Estreptoquinase e
Quimiopapaína. Indicações comuns para a realização dos testes de puntura e testes
intradérmicos incluem anafilaxia, broncoespasmo, conjuntivite, rinite, urticária e
angioedema.
Os anestésicos locais são, com frequência, considerados responsáveis por uma
série de reações anafiláticas, sobretudo em consultórios de dentistas, que não seriam
mediadas por IgE. Nos casos suspeitos, a conduta prevê identificar o anestésico utilizado
e substituí-lo por outro de um grupo diferente. Os anestésicos do grupo amida não
apresentam reação cruzada entre si.
Embora ainda não se tenha sensibilidade e especificidade determinadas, o teste de
contato pode ser muito útil para as reações tardias às drogas. As grandes vantagens são a
segurança e a possibilidade de utilização da droga em sua forma comercial. Deve ser
realizado até seis meses após a reação e com a maior concentração da droga disponível
comercialmente, diluída em 30% de vaselina ou água. Podem ocorrer testes falso-
positivos, sendo necessária correlação clínica. Indicações comuns para a realização do
teste de contato incluem pustulose exantemática aguda generalizada, dermatite de
contato, eritema multiforme, erupção exantematosa, erupção fixa por droga, reações
fotoalérgicas, vasculite leucocitoclástica, síndrome de Stevens-Johnson e necrólise
epidérmica tóxica.
Quando os testes cutâneos não são conclusivos ou não estão disponíveis, o
diagnóstico definitivo de uma reação de hipersensibilidade pode ser feito com o teste de
provocação, que consiste em administrar a droga suspeita ou uma droga relacionada ao
paciente que apresentou a reação. Deve ser sempre realizado por um médico especialista
e experiente, em um ambiente hospitalar preparado para um atendimento de emergência.
Indicações incluem excluir a reação de hipersensibilidade em pacientes com história não-
sugestiva de hipersensibilidade à droga e em pacientes com sintomas inespecíficos,
fornecer drogas farmacologicamente e estruturalmente não-relacionadas e seguras em
casos de hipersensibilidade comprovada, excluir reatividade cruzada de drogas
relacionadas em casos de hipersensibilidade comprovada e estabelecer o diagnóstico em
pacientes com história sugestiva de reação adversa às drogas e testes negativos, não
conclusivos ou indisponíveis.
Embora não estejam disponíveis para a prática clínica, os testes in vitro
apresentam grande potencial para auxiliar no diagnóstico das reações adversas às drogas,
uma vez que não oferecem qualquer tipo de risco para o paciente.

Pedro Kallas Curiati 13


O teste de linfoproliferação ou teste de transformação de linfócitos mede a
proliferação de linfócitos T em resposta a um estímulo in vitro. A técnica mais utilizada é
a incorporação da 3H-timidina. A sensibilidade do teste varia de 60% a 70% e a
especificidade média é de 85%.
O teste de ativação de basófilos consiste na quantificação de alterações fenotípicas
em basófilos do sangue periférico. Pela citometria de fluxo, é possível analisar
quantitativamente a expressão de marcadores de ativação na superfície do basófilo após a
provocação com algum antígeno. O teste deve ser realizado preferencialmente de seis
semanas a doze meses após o evento agudo, podendo sofrer interferência durante o uso
de glicocorticoides e outros imunossupressores ou imunomoduladores, incluindo anti-
IgE.

Tratamento
A primeira medida a ser tomada no tratamento de qualquer suspeita de reação
adversa às drogas é a eliminação de todas as drogas suspeitas. Alguns autores sugerem
até o uso de plasmaférese para os casos graves em uma tentativa de eliminar os
metabólitos da droga causadora e as citocinas inflamatórias envolvidas na fisiopatologia
da reação, embora esse tipo de conduta mais agressiva não tenha demonstrado um
benefício evidente.
Se o paciente estiver utilizando inúmeras drogas, deve-se eliminar as menos
necessárias e as mais prováveis e avaliar os riscos e os benefícios da suspensão das
demais drogas.
O tratamento farmacológico deve ser sempre orientado de acordo com o quadro
clínico. Reações imediatas mais brandas, como a urticária não-extensa ou o angioedema
palpebral, em geral, respondem bem apenas com anti-histamínicos anti-H1 por via oral.
Por outro lado, reações mais graves, como anafilaxia, requerem um tratamento de
urgência, sendo necessárias medidas como manutenção das vias aéreas, Adrenalina

Pedro Kallas Curiati 14


intramuscular, anti-histamínicos anti-H1 e anti-H2, drogas beta-adrenérgicas e
corticosteroides. Para o tratamento das reações tardias, como o rash cutâneo, a droga de
escolha deve ser sempre o corticosteroide, podendo ser de uso tópico ou sistêmico, de
acordo com a extensão das lesões. No entanto, na síndrome de Stevens-Johnson e na
necrólise epidérmica tóxica, o uso dos corticosteroides ainda é muito controverso. A
profilaxia com antibióticos também é uma conduta que deve ser evitada, devendo-se
optar pela antibioticoterapia quando houver evidência de infecção. Embora os dados
sugiram que a imunoglobulina intravenosa possa ser uma opção no tratamento da
necrólise epidérmica tóxica, os resultados ainda são conflitantes e qualquer benefício em
termos de mortalidade parece ser pequeno. Uma opção interessante para o tratamento da
necrólise epidérmica tóxica é a Ciclosporina, que, em comparação a controles históricos,
demonstrou uma diminuição no tempo de reepitelização e menor progressão da doença,
sem aumento da incidência de sepse, devendo o tratamento ser mantido por duas a três
semanas ou até que ocorra reepitelização total.
Esquemas profiláticos com corticoides e anti-histamínicos são indicados para
pacientes que apresentaram reações adversas aos contrastes radiológicos.
A dessensibilização ou indução de tolerância a determinada droga é um
procedimento que pode ser realizado em situações específicas, como na ausência de
alternativas terapêuticas à droga que provocou a reação. Exemplos de indicações são
gestante com sífilis e reação à Penicilina, diabéticos tipo I com reação à Insulina e
pacientes oncológicos com reação aos quimioterápicos.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 7: alergia e imunologia clínica, doenças da pele, doenças infecciosas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 15


RINUSSINUSITE ALÉRGICA
Conceito
A rinite se caracteriza por intenso processo inflamatório da mucosa nasal. Os
termos rinite e sinusite são habitualmente empregados em separado, mas, não havendo
limites histológicos ou barreiras anatômicas definidas entre a mucosa nasal e a dos seios
paranasais, pode-se empregar o termo rinossinusite para os processos inflamatórios
difusos que acometem o nariz.

Epidemiologia
A rinossinusite alérgica é causada pela interação de fatores genéticos com fatores
ambientais, sendo mais frequente em indivíduos com antecedentes familiares de atopia,
sem preferência por sexo ou raça. Pode iniciar-se em qualquer faixa etária, porém é mais
frequente em crianças e adolescentes. Existem evidências de forte associação entre asma,
rinite e sinusite com pólipos nasais.

Fisiopatologia
O ar inspirado é veículo de inúmeras substâncias, como os alérgenos ambientais,
que, em indivíduos geneticamente predispostos, levam à formação de anticorpos IgE.
Incluem ácaros, fungos, barata, pólen e epitélio, saliva e urina de animais. Os odores
fortes e a fumaça de cigarro constituem os principais irritantes inespecíficos,
desencadeando os sintomas através de mecanismos não imunológicos.
A resposta inflamatória na reação de hipersensibilidade tipo I de Gell e Coombs
envolve uma fase de sensibilização, em que ocorre o reconhecimento antigênico e a
produção de IgE específica, que se liga a receptores de mastócitos, e uma fase efetora,
dividida em imediata e tardia, na qual o contato com o alérgeno leva à desgranulação de
mastócitos com liberação de vários mediadores responsáveis pelos sintomas.

Quadro clínico
O processo inflamatório da mucosa nasal se traduz clinicamente por prurido nasal
intenso, espirros em salva, obstrução nasal e coriza. O paciente pode apresentar, ainda,
lacrimejamento e prurido ocular, no conduto auditivo, no palato e na faringe.
Os sinais e sintomas podem se manifestar de forma sazonal ou perene, de acordo
com os alérgenos envolvidos.
Estigmas de atopia incluem prega transversa sobre o nariz, cianose da região
periorbital, linhas de Dennie-Morgan, fácies alongada e respiração bucal.
Nos quadros agudos, os sinais e sintomas mais comuns de acometimento dos seios
paranasais são dor na arcada dentária superior, dor ou pressão facial, congestão nasal,
obstrução nasal, secreção nasal e pós-nasal, hiposmia ou anosmia, febre, cefaleia,
halitose, fadiga, otalgia, tosse e irritação faríngea.

Classificação das rinites – Allergic Rhinitis and its Impact on Asthma (ARIA)
Intermitente quando sintomas menos frequentes do que quatro dias por semana ou
com duração inferior a quatro semanas. Persistente quando sintomas com frequência

Pedro Kallas Curiati 16


igual ou superior a quatro dias por semana e duração igual ou superior a quatro semanas.
Leve quando sono e atividades diárias normais, sem incômodo para o paciente.
Moderada a grave quando interferência em sono ou atividades diárias ou sintomas
incômodos.

Classificação das rinossinusites – I Consenso Brasileiro sobre Rinossinusites


Rinossinusite aguda é caracterizada por sintomas de início súbito, com duração de
até quatro semanas, desaparecendo completamente após o tratamento.
Rinossinusite subaguda é caracterizada por continuação de uma rinossinusite
aguda, diagnosticada após a quarta semana de evolução, com sintomas podendo durar até
doze semanas.
Rinossinusite crônica é caracterizada por persistência dos sinais e sintomas por
mais de doze semanas.
Rinossinusite recorrente é caracterizada por sinais e sintomas consistentes com
rinossinusite aguda, sendo que cada episódio dura de sete a vinte e oito dias, com quatro
ou mais episódios por ano, em média, e ausência completa de sintomas entre eles, mesmo
sem nenhum tipo de tratamento.
Rinossinusite complicada é caracterizada por complicação local, orbitária,
intracraniana ou sistêmica.

Exames complementares
Para estabelecer a etiologia alérgica da rinite, é importante documentar a
sensibilização alergênica, ou seja, a presença de anticorpos IgE contra alérgenos
ambientais. Essa avaliação pode ser feita in vitro através da dosagem sérica de IgE
específica ou in vivo através de testes cutâneos ou provas de provocação nasal.
Hemograma pode revelar eosinofilia, dosagem de IgE sérica total pode revelar
níveis elevados e citologia nasal pode revelar aumento de eosinófilos na mucosa.
Feito o diagnóstico de rinite, recomenda-se que os pacientes com doença
persistente sejam avaliados para asma através de história clínica, exame físico e, se
possível, espirometria antes e após o uso de broncodilatador.
A endoscopia nasal está recomendada em todos os pacientes com queixas nasais.
Nos casos mais complicados, podem ser utilizados métodos de imagem. A
radiografia simples dos seios paranasais apresenta valor diagnóstico limitado, sendo seu
uso controverso e discutível. A tomografia computadorizada deve ser solicitada em
rinossinusites que não estejam evoluindo bem com o tratamento adequado, em quadros
crônicos e recorrentes, nas complicações ou quando houver indicação cirúrgica. A
ressonância nuclear magnética tem valor importante nas complicações regionais e
intracranianas, bem como no diagnóstico diferencial de neoplasias e na suspeita de
sinusite fúngica.

Diagnóstico
Anamnese detalhada e exame físico minucioso são a base para o diagnóstico de
qualquer doença alérgica, sendo que os exames complementares importantes para o
diagnóstico etiológico.

Diagnóstico diferencial

Pedro Kallas Curiati 17


Rinites Rinites não alérgicas
alérgicas Eosinofílicas Outras
História clínica Antecedentes familiares +++ - -
Início dos sintomas Infância Fase adulta Infância/fase
adulta
Alérgenos +++ + 0/+
Irritantes +++ ++ +++
Fatores climáticos +++ + +++
Sintomas Obstrução +++ ++ +++
Coriza +++ +++ +++
Prurido +++ +++ 0
Espirros +++ +++ +/++
Sinais Mucosa Pálida azulada Pálida Rósea
azulada
Pólipos Raros Frequentes Raros
Exames Teste cutâneo + - -
complementares Citológico nasal - eosinófilos ++ +++ 0

Tratamento
Além de sensibilizar indivíduos predispostos, a exposição aos alérgenos pode
desencadear sintomas e promover a exacerbação da rinite, de modo que reduzi-la deve
sempre fazer parte do tratamento das alergias respiratórias. De fato, medidas de controle
ambiental podem contribuir para a diminuição da necessidade de outras intervenções.
O corticosteroide tópico nasal é a medicação de escolha para o tratamento de
manutenção da rinite alérgica. Seu uso regular é bastante eficaz na redução de coriza,
espirros, prurido e, principalmente, congestão nasal. Embora o início da ação não seja
imediato, pode-se observar melhora dos sintomas após seis a oito horas, atingindo seu
efeito pleno em alguns dias. Os efeitos colaterais são mínimos e, geralmente, locais,
como ressecamento da mucosa, sensação de queimação e sangramento discreto. No
entanto, a associação com corticosteroide inalatório, especialmente em criança, pode
aumentar o risco de efeitos colaterais sistêmicos.
Droga Apresentação Posologia
Dipropionato de 50mcg/jato e 100mcg/jato Dose inicial de 400mcg/dia fracionada em duas a
Beclometasona quatro doses ao dia
Budesonida 32mcg/jato, 50mcg/jato, Dose inicial de 200-256mcg/dia fracionada em
64mcg/jato e 100mcg/jato duas doses e manutenção com menor dose efetiva
Acetonido de 50mcg /jato e 55mcg/jato Dose inicial de 200-220mcg/dia, não fracionada, de
Triancinolona preferência pela manhã e manutenção com 100-
110mcg/dia
Propionato de 50mcg/jato Dose inicial de 200mcg/dia, não fracionada, de
Fluticasona preferência pela manhã, não devendo exceder
400mcg/dia
Furoato de 50mcg/jato Dose inicial de 200mcg/dia, não fracionada, de
Mometasona preferência pela manhã, e manutenção com
100mcg/dia
A utilização de corticosteroides sistêmicos raramente é necessária e deve ser
restrita a casos graves e refratários ao tratamento em virtude do elevado risco de efeitos
colaterais. Os mais indicados são a Prednisona e a Prednisolona, administrados por
períodos curtos. O uso de corticosteroides de depósito não tem indicação no tratamento
de rotina da rinite alérgica.

Pedro Kallas Curiati 18


Os anti-histamínicos são a opção de escolha para alívio das exacerbações ou para
o tratamento dos pacientes com sintomas leves e/ou intermitentes. Podem ser
administrados por via intranasal ou oral, com alívio de prurido, espirros e coriza. Quanto
aos efeitos colaterais, a sonolência é uma manifestação comum dos anti-histamínicos
clássicos ou de primeira geração, sendo menos importante nos anti-histamínicos não
clássicos, de segunda geração. A taquifilaxia é um fenômeno observado com o uso
contínuo. O Cetotifeno é uma medicação sistêmica com ação anti-inflamatória e anti-
histamínica que apresenta resultados satisfatórios, especialmente em crianças com rinite e
asma associadas, constituindo tratamento profilático a ser usado por no mínimo doze
semanas. Metabólitos ativos que oferecem melhor perfil de segurança incluem
Desloratadina, Fexofenadina e Levocabastina.
Droga Apresentação Posologia
Cototifeno Comprimidos de Um comprimido de 2mg de noite ou um comprimido de 1mg
(Zaditen®) liberação lenta de duas vezes ao dia com as refeições
2mg Em pacientes susceptíveis a sedação, recomenda-se aumentar
Comprimido sulcado lentamente a dose durante a primeira semana
de 1mg
Xarope com
1mg/5mL
Loratadina Comprimidos de Dose de 10mg uma vez ao dia juntamente com os alimentos
10mg
Xarope com
5mg/5mL
Desloratadina Comprimidos de 5mg Dose de 5mg uma vez ao dia, independentemente da
(Desalex®) alimentação
Fexofenadina Cápsulas de 60mg e Dose de 120mg uma vez ao dia ou 60mg duas vezes ao dia,
(Allegra®) de 120mg preferindo-se 60mg uma vez ao dia em caso de disfunção
renal
Levocabastina 0.5mg/mL spray nasal Dose de duas aplicações em cada narina duas vezes ao dia,
(Livostin®) podendo aumentar frequência até três a quatro vezes ao dia
conforme a gravidade dos sintomas
Os descongestionantes são disponíveis para uso oral e intranasal. Agonistas α-
adrenérgicos, causam vasoconstrição e levam a diminuição da congestão nasal, sem
efeito sobre prurido, espirros e rinorréia. A absorção sistêmica é mínima, mas a utilização
não deve se estender por mais do que três a cinco dias, já que pode causar rinite
medicamentosa com congestão rebote. Os efeitos adversos incluem irritação,
ressecamento e sangramento nasal, podendo, algumas vezes, interferir nos níveis de
pressão arterial e intraocular. Devem ser prescritos com cautela em portadores de
arritmias, coronariopatia, hipertensão arterial, glaucoma, hipertireoidismo, diabetes
mellitus e hipertrofia prostática. A associação com anti-histamínicos pode ser útil nos
pacientes com rinite alérgica que exibem congestão nasal pronunciada, particularmente
no controle das crises alérgicas. Não há indicação no tratamento de manutenção a longo
prazo.
Droga Apresentação Posologia
Cloridrato de Nafazolina (Sorine®) Solução nasal com Duas a quatro gotas em cada narina
0.5mg/mL quatro a seis vezes ao dia
Oximetazolina (Afrin® 12 horas adulto) Solução nasal com Duas a três atomizações em cada
0.5mg/mL narina de 12/12 horas
Fexofenadina associada a 60mg/120mg 60mg/120mg duas vezes ao dia
Pseudoefedrina (Allegra D®)

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Loratadina associada a Pseudoefedrina 5mg/120mg 5mg/120mg duas vezes ao dia
(Claritin D®)
Loratadina associada a Pseudoefedrina 10mg/240mg 10mg/240mg uma vez ao dia
(Claritin D 24 horas®)
Os antileucotrienos, desenvolvidos inicialmente para o tratamento da asma,
mostraram bons resultados clínicos no controle da rinite alérgica. O bloqueio dos
receptores celulares de leucotrienos alivia primariamente o sintoma de obstrução, com
ação mínima no controle de rinorréia, espirros e prurido nasal. Há efeito modesto como
droga única no tratamento da rinite alérgica, com efeito aditivo na eficácia quando do uso
em associação com outros agentes terapêuticos.
Os estabilizadores de mastócitos inibem a desgranulação dessas células e,
consequentemente, a liberação dos mediadores inflamatórios, embora com eficácia bem
inferior à os corticosteroides tópicos nasais. O Cromoglicato é uma medicação bastante
segura e que está indicada para uso intranasal em rinites leves. A posologia com dose
fracionada em quatro a seis vezes por dia dificulta a adesão.
O tratamento antimicrobiano das rinossinusites geralmente é realizado baseando-
se nos dados microbiológicos de trabalhos na literatura. Deve-se considerar a gravidade
da doença, o risco de complicações e o uso recente de antibióticos. O tempo de
tratamento deve ser de dez a quatorze dias. Os agentes infecciosos mais comuns nas
rinossinusites agudas são S. pneumoniae, H. influenza e M. catarrhalis. Nos quadros
crônicos, deve-se considerar S. aureus, estafilococos coagulase negativos e anaeróbios,
com tratamento estendido por três a quatro semanas.
Omalizumabe é um anticorpo monoclonal anti-IgE que forma complexos com a
IgE sérica livre, bloqueando a sua interação com mastócitos e basófilos e diminuindo o
nível de IgE livre na circulação. Atualmente, sua indicação está reservada para casos
selecionados de asma grave, como coadjuvante. Seu uso na rinite alérgica tem sido
investigado, com resultados promissores.
A imunoterapia alérgeno-específica consiste na administração de extratos de
alérgenos purificados e padronizados por via subcutânea. O objetivo do tratamento é a
modificação da resposta imune ao futuro contato com o alérgeno. Atualmente, é a única
forma de tratamento que proporciona melhora em longo prazo das doenças alérgicas,
mantida mesmo após a interrupção. Está indicada em pacientes selecionados e que
apresentem anticorpos IgE específicos a alérgenos clinicamente relevantes.
Nas rinossinusites alérgicas, não existe indicação de tratamento cirúrgico, que
deve ser considerado no caso de complicações de rinossinusites agudas recorrentes e
rinossinusite crônica após falha do tratamento clínico.

Leve intermitente Moderada a grave intermitente Leve persistente Moderada a grave persistente
Controle ambiental
Descongestionante intranasal por período inferior a dez dias ou oral
Anti-histamínico intranasal ou oral
Corticoide intranasal
Cromoglicato intranasal
Imunoterapia alérgeno específica

Bibliografia
Clínica Médica, volume 7: alergia e imunologia clínica, doenças da pele, doenças infecciosas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 20


URTICÁRIA E ANGIOEDEMA
Definições
A urticária é uma dermatite bem delimitada caracterizada por pápulas
eritematosas, geralmente pruriginosas, com diâmetro de alguns milímetros a poucos
centímetros. As urticas podem ser reproduzidas por injeção intradérmica de mediadores
vasoativos comuns aos mastócitos. São fugazes e não deixam sequelas.
O angioedema é caracterizado por edema da derme profunda e do tecido celular
subcutâneo, podendo atingir mucosas e submucosas, com predomínio em mãos, pés,
genitália, pálpebras, lábios, laringe e trato gastrointestinal.

Etiologia
Reações adversas a drogas, como anti-inflamatórios não-hormonais, Ácido
Acetilsalicílico, Dipirona, antibióticos betalactâmicos, sulfas, anestésicos, contrastes
iodados e inibidor da enzima de conversão da angiotensina.
Reações alérgicas a alimentos, como peixes, frutos do mar, oleaginosas, leite, ovo,
trigo e soja.
Reações adversas a aditivos alimentares, como corantes, conservantes e
antioxidantes.
Picadas de insetos, como vespas, abelhas e formigas.
Estímulos físicos.
Angioedema hereditário.
Doenças mediadas por complexos imunes, como urticária da doença do soro.
Doenças mediadas por auto-anticorpos, como lúpus eritematoso sistêmico.
Doenças linfoproliferativas e autoimunes que levem a deficiência adquirida do
inibidor de C1q-esterase.
Angioedema e urticária idiopáticos.

Epidemiologia
Cerca de 50% dos pacientes apresentam apenas urticária, 10% apenas angioedema
e 40% urticária com angioedema simultaneamente. Há uma prevalência maior em
mulheres e adultos jovens.

Fisiopatologia
O mastócito é a célula mais importante na fisiopatologia de qualquer tipo de
urticária e/ou angioedema. A desgranulação do mastócito pode ocorrer por mecanismos
imunológicos, como pela fixação de IgE específica para um determinado antígeno aos
receptores de alta afinidade dos mastócitos. Várias drogas, como Vancomicina,
Polimixina B, opiáceos e contrastes iodados, podem desgranular diretamente o mastócito
sem a participação de mecanismos imunológicos. O principal mediador liberado é a
histamina.

Classificação

Pedro Kallas Curiati 21


Urticárias
As urticárias são classicamente divididas em agudas, quando a duração das lesões
é inferior a seis semanas, surgindo logo após a exposição ao fator desencadeante, e
crônica, quando a duração das lesões é superior a seis semanas, podendo estar presente
diariamente e muitas vezes sem um agente etiológico aparente.
Outro tipo de urticária é aquela desencadeada por algum tipo de estímulo físico,
podendo ser dividida em:
- Urticária factícia ou dermográfica, precedida por prurido e desencadeada pelo
ato de coçar;
- Urticária tardia de pressão, com lesões dolorosas que surgem quatro a oito horas
após o estímulo em locais de apoio;
- Urticária ao calor, com aparecimento das lesões após contato com objetos
quentes;
- Urticária ao frio, geralmente idiopática, podendo estar associada a doenças
autoimunes, neoplasias e infecções, como HIV, hepatites, sífilis e mononucleose;
- Urticária solar, induzida pela radiação ultravioleta, com acometimento de áreas
expostas à luz;
- Urticária colinérgica, desencadeada por aumento da temperatura corpórea
relacionado a exercício físico, estresse emocional ou aquecimento passivo;
- Urticária de contato, com aparecimento da urtica no local onde houve contato
com o agente causador;
- Urticária aquagênica, que ocorre após o contato com água a qualquer
temperatura;
- Urticária vibratória, com aparecimento de prurido e urticas em áreas expostas a
estímulos vibratórios;

Angioedema associado a urticária


Angioedema agudo é caracterizado por duração inferior a seis semanas e na
maioria das vezes tem causa estabelecida.
Angioedema crônico é caracterizado por duração superior a seis semanas. Está
associado, na maioria das vezes, com a urticária crônica, quase sempre sem história
familiar relatada.
Angioedema adquirido é caracterizado por deficiência quantitativa ou funcional
do inibidor C1q-esterase, que pode ser causada por ativação exagerada do sistema
complemento por autoanticorpos ou por catabolismo dos componentes do complemento
pela doença primária. Há associação com diferentes doenças, como leucemia linfocítica,
linfomas, macroglobulinemia, mieloma, crioglobulinemia essencial, neoplasia e doenças
autoimunes.

Angioedema não associado a urticária


Angioedema hereditário, doença autossômica dominante com penetrância variável
que se inicia geralmente na infância. Está relacionado a deficiência quantitativa ou
funcional do inibidor C1q-esterase. Cursa com angioedema recorrente, que pode ser
desencadeado sem causa aparente ou por trauma, estresse emocional e mudanças bruscas
de temperatura. A frequência das crises é variável, podendo ocorrer anualmente e, até
mesmo, diariamente. Há história de acometimento de vários membros da mesma família,

Pedro Kallas Curiati 22


sem associação com urticária.
Angioedema pelo inibidor da enzima de conversão da angiotensina é raro e não
existe diferença em relação aos outros angioedemas. Em mulheres, pode ocorrer o
envolvimento do trato gastrointestinal. Os sintomas podem se iniciar semanas ou anos
após o início do tratamento, com resolução 24-48 horas após a suspensão da droga.

Quadro clínico

Angioedema
O angioedema em geral é pouco pruriginoso e caracteriza-se por edema agudo da
cor da pele ou eritematoso em regiões de pele mais fina. Pode ser doloroso e progredir
lentamente nas primeiras 36 horas, desaparecendo no final do terceiro dia. O uso de
contraceptivos combinados orais e o período pré-menstrual são condições exacerbadoras,
enquanto que gestação e menopausa são condições protetoras.
Alterações sutis da tonalidade vocal, rouquidão e disfagia são pródromos da
obstrução parcial ou total das vias aéreas superiores por edema de laringe.
Sinais e sintomas mais comuns de acometimento do trato gastrointestinal incluem
dor abdominal em cólica difusa, vômitos e diarreia aquosa. Obstrução intestinal
transitória pode ser confundida com abdômen agudo obstrutivo e tem resolução
espontânea. Volvo e intussuscepção podem complicar o edema intestinal. Podem ocorrer
também ascite, com hemoconcentração e choque hipovolêmico, além de pancreatite
aguda e hipersecreção gástrica.
Outros sintomas menos comuns, como retenção urinária, dor pleurítica e tosse
podem ocorrer. Edema cerebral pode ocasionar cefaleia, tontura e hemiplegia.

Urticária
As pápulas da urticária são lisas, róseas ou avermelhadas e, às vezes, com um halo
claro central ou adquirindo forma serpiginosa. Têm duração média de doze horas,
durando menos de vinte e quatro horas. Na maioria das vezes são extremamente
pruriginosas. A urticária pode ou não ser acompanhada por angioedema e as lesões
podem ser isoladas, espalhadas ou generalizadas.
Pápulas urticariformes que duram mais de vinte e quatro horas, doloridas, pouco
pruriginosas, que deixam sequelas tipo hiperpigmentação e que não respondem
adequadamente ao tratamento padrão devem levar ao diagnóstico diferencial com
vasculite.

Exames laboratoriais

Pedro Kallas Curiati 23


Hemograma, função hepática, função renal, dosagem de hormônios tireoidianos,
autoanticorpos e marcadores tumorais devem ser solicitados de acordo com a suspeita
clínica.
Na urticária, são recomendados alguns testes específicos para cada subtipo.
Pesquisa de infestações parasitárias e doenças infecciosas crônicas persistentes é
relevante na investigação de urticária crônica. Em caso de urticária crônica de difícil
controle, refratária ao tratamento convencional, pode-se optar pela biópsia de pele.
Os exames recomendados para o diagnóstico do angioedema são os mesmos da
urticária crônica e devem incluir a dosagem de CH50, C1, C2, C3, C4, C1q e inibidor de
C1q-esterase.

Diagnóstico diferencial
O diagnóstico clínico da lesão urticariforme não é difícil, porém presença de
outras lesões associadas, ausência de prurido cutâneo e refratariedade ao tratamento
convencional sugerem diagnósticos alternativos.

Tratamento

Urticária
O ideal é que os pacientes sejam orientados a excluir os estímulos e/ou fatores
desencadeantes da urticária, evitando a ingesta de aditivos alimentares e substituindo as
drogas suspeitas. As doenças associadas devem ser tratadas de acordo.
As urticárias agudas podem ser bem controladas com o uso de anti-histamínicos,
como Loratadina, apresentada na forma de comprimidos de 10mg, com 10mg uma vez ao
dia, Desloratadina, apresentada na forma de comprimidos de 5mg, com 5mg uma vez ao
dia, Fexofenadina, apresentada na forma de comprimidos de 120mg e 180mg, com
180mg uma vez ao dia, Cetirizina, apresentada na forma de comprimidos de 10mg, com

Pedro Kallas Curiati 24


10mg uma vez ao dia, e Hidroxizina, apresentada na forma de comprimidos de 25mg,
com 25-100mg duas a quatro vezes ao dia, e corticosteroides sistêmicos, como
Prednisona 40mg uma vez ao dia por quatro dias e Prednisolona 50mg uma vez ao dia
durante três dias, de acordo com a intensidade do quadro clinico. A associação de
Ranitidina 150mg duas vezes ao dia consiste em opção terapêutica.
Nas urticárias crônicas, em geral não se consegue encontrar a etiologia, sendo
necessário o uso de drogas por longos períodos. A primeira escolha é, sem dúvida, o anti-
histamínico. Quando ele não consegue controlar sozinho a urticária, podem ser usadas
outras drogas em associação ou como segunda escolha.
Os pacientes com urticária crônica com teste do auto-soro positivo e/ou
intolerância a aspirina podem ser beneficiados com o uso de antileucotrienos, como
Montelukaste, apresentado na forma de comprimidos de 10mg, com 10mg uma vez ao
dia, em associação com anti-histamínicos. Embora os corticosteroides sistêmicos sejam
muito eficazes no tratamento das urticárias, os efeitos colaterais de seu uso crônico
superam os benefícios.

Angioedema hereditário
Deve-se educar o paciente sobre a doença, evitando fatores que podem
desencadear as crises de angioedema, como mudanças bruscas de temperatura, traumas e
estresse emocional.
Na fase aguda, é necessário suporte de emergência, com intubação orotraqueal ou
traqueostomia para suporte ventilatório, acesso venoso, fluidos e medidas básicas de
emergência quando houver comprometimento de vias aéreas e hipotensão. Como uma
crise aguda de angioedema hereditário pode simular choque e/ou anafilaxia de outra
etiologia, podem ser utilizadas drogas como Adrenalina, anti-histamínicos e
corticosteroides, embora não haja comprovação da eficácia.
O tratamento de escolha é a reposição do próprio inibidor da C1q-esterase
(C1INH), quando disponível, na dose de 500-1000U por via intravenosa. O início de ação
ocorre em trinta a sessenta minutos, com remissão do edema dentro de duas a três horas,
sendo completa após 24 horas. Nos casos mais graves, a dose pode ser repetida. Plasma
Fresco Congelado consiste em segunda opção, quando não estiver disponível o
concentrado de C1INH, na dose de 1-2 unidades por dia por até dois dias, com risco de
exacerbação paradoxal da crise devido ao fato de o próprio plasma fornecer mais
complemento, o que pode intensificar o processo inflamatório.
Para a profilaxia de longa duração, são utilizados os andrógenos atenuados, que,
no fígado, estimulam a produção do inibidor da C1q-esterase. Comercialmente no Brasil
dispõe-se do Danazol, apresentado na forma de comprimidos de 50mg, 100mg e 200mg,
com dose de 50-400mg/dia fracionada em duas tomadas diárias, e do Estanazolol, com
dose de 1-4mg/dia. Esses andrógenos devem ser utilizados na menor dose necessária para
a remissão dos sintomas. Os efeitos adversos mais frequentes são hipertensão arterial,
amenorreia, virilização e colestase. A hepatite necrotizante é a complicação mais grave,
porém rara. Os pacientes devem ser seguidos ambulatorialmente e, a cada seis meses,
devem ser monitorizados função renal, função hepática, função tireoidiana, lípides,
amilase e ultrassonografia de abdômen.
Outra opção para profilaxia de longa duração é o uso de anti-fibrinolíticos, que
inibem a plasmina e bloqueiam a fibrinólise e a formação de fragmentos C2b, evitando a

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ativação da cascata do complemento e, consequentemente, a liberação de mediadores
inflamatórios. Podem ser utilizados o Ácido Épsilon-Aminocapróico, apresentado na
forma de comprimidos de 500mg, com dois a quatro comprimidos três a quatro vezes ao
dia, e o Ácido Tranexâmico, apresentado na forma de comprimidos de 250mg, com dois
a três comprimidos duas a três vezes ao dia. Os efeitos colaterais mais comuns são
náusea, vômitos, cefaleia, tontura e hipotensão postural. Há contraindicação em caso de
hipersensibilidade ao medicamento, gravidez, doença renal e predisposição a trombose.
A profilaxia de curta duração está indicada nos procedimentos de alto risco, como
cirurgias, procedimentos odontológicos e uso de contraste iodado. Se possível, deve-se
usar o concentrado purificado do C1INH uma hora antes do procedimento. O plasma
fresco é uma alternativa quando não se tem o C1INH, com duas unidades uma hora antes
do procedimento. Outra opção são os andrógenos atenuados usados três a cinco dias antes
do procedimento em doses duas a três vezes maiores que a dose de manutenção do
paciente.
Devem ser evitados contraceptivos combinados orais em associação com
fibrinolíticos devido ao risco de trombose. Também devem ser evitados inibidores da
enzima de conversão da angiotensina, que podem ser substituídos por antagonistas do
receptor da angiotensina II. Pode ser útil a vacinação contra o vírus da hepatite B.

Angioedema adquirido
O tratamento do angioedema adquirido baseia-se, fundamentalmente, no controle
da doença primária que causa a redução do inibidor da C1q-esterase. O concentrado de
C1INH pode ser utilizado nas crises, porém o seu benefício não será completo, pois há
autoanticorpos que rapidamente inativarão sua ação.
O tratamento do quadro agudo alérgico pode ser conduzido com antagonista H1,
associação de antagonistas H1 de classes diferentes ou associação de antagonistas H1 e
H2, além de glicocorticoides. Em caso de risco de comprometimento da via aérea, pode-
se administrar Adrenalina por via intramuscular, o que não surtirá efeito em caso de
angioedema mediado por bradicinina.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 7: alergia e imunologia clínica, doenças da pele, doenças infecciosas. – Barueri, SP: Manole, 2009.
An overview of angioedema: Clinical features, diagnosis and management. Clifton O Bingham. UpToDate, 2011.

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ACONSELHAMENTO PARA
HÁBITOS SAUDÁVEIS
Aconselhamento

Conceito
O aconselhamento é entendido como o uso de técnicas apropriadas que estimulem
a adesão à prática preventiva e de promoção da saúde. Trata-se de parte integrante e
fundamental de qualquer consulta médica.

Modelo Transteórico
O Modelo Transteórico é um método integrado de mudança comportamental
fundamentado no processo de decisão do indivíduo. Envolve emoções, cognições,
comportamentos e auto-avaliação. Postula a mudança como um processo envolvendo
cinco fases.
Pré-contemplação é o estágio em que o indivíduo não tem intenção de mudar em
um futuro próximo, habitualmente nos próximos seis meses. Nessa fase, a intervenção
mais efetiva é a informação de boa qualidade sobre os riscos do hábito ou comportamento
não-saudável.
Contemplação é estágio em que o indivíduo apresenta intenção de mudar nos
próximos seis meses. Para pessoas em fase de contemplação, devem ser enfatizados os
ganhos com a mudança e deve ser reforçada a capacidade para tal apesar das dificuldades
e dos fracassos anteriores.
Preparação é o estágio em que o indivíduo está pronto para efetuar a mudança
comportamental em um futuro próximo, habitualmente nos próximos trinta dias. Ao
médico, cabe suprir as necessidades práticas do paciente que estejam ao seu alcance,
ajudando-o a superar barreiras e propondo comportamentos facilitadores ou atividades
que desviem a atenção do hábito que será mudado.
Manutenção é o estágio em que o indivíduo trabalha para prevenir recaídas. São
necessárias ações de cautela.
A regressão ocorre quando o indivíduo migra para uma fase anterior do ciclo de
mudança. A recaída tende a ser regra quando se atinge a fase de ação para a maioria das
mudanças comportamentais. A grande maioria dos indivíduos retorna para as fases de
contemplação e preparação.

Modelo cognitivo-comportamental
A terapia cognitiva pode ser definida como um processo cognitivo de investigação
empírica, verificação da realidade e resolução de problemas entre o paciente e o
terapeuta. Proporciona um modelo para o entendimento dos distúrbios psicológicos que
se propõe a tratar, assim como um plano claro dos princípios gerais e dos procedimentos
do tratamento. Em outras palavras, sustenta que comportamentos, afetos, sensações
físicas e reações ao ambiente estão sustentados por pensamentos e crenças adquiridos ao
longo da existência. O foco central está na possibilidade de auxiliar o paciente a

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identificar e modificar seus pensamentos disfuncionais automáticos.
A teoria comportamental aplicada à medicina e à saúde ajuda a compreender
melhor os automatismos e a manutenção de certos hábitos em troca de recompensas.
O modelo cognitivo-comportamental ajuda o paciente a reconhecer padrões de
pensamento deformado e de comportamento disfuncional através de discussão
sistemática e tarefas comportamentais cuidadosamente estruturadas. Grande parte da
abordagem baseia-se no presente, sem levar em conta eventos do passado remoto.
Concentra-se na oportunidade de uma nova aprendizagem adaptativa na produção de
mudanças fora do ambiente clínico. A solução de problemas constitui parte importante do
aconselhamento.
Mudanças efetivas e persistentes dependem de informação de boa qualidade, alto
nível de motivação, habilidades pessoais e oportunidade.

Preceitos básicos
Definir com o indivíduo os fatores de risco prioritários e as intervenções mais
adequadas para cada um.
Manter um nível ideal de comunicação com a pessoa, levando em conta
diferenças de linguagem.
Informar a real necessidade da prevenção ou da promoção da saúde, abordando
inclusive crenças e aspectos culturais.
Esclarecer adequadamente as vantagens e desvantagens das medidas e dos
procedimentos recomendados.
Obter o comprometimento da pessoa com o processo de mudança que se pretende
iniciar ou dar continuidade e começar a agir o mais cedo possível.
Planejar programas de curto, médio e longo prazo, conforme a escala de
prioridades definida ao longo das consultas médicas.
Negociar metas conjuntas que sejam realistas e viáveis na prática, reforçando
positivamente mesmo os pequenos ganhos.
Propor planos de trabalho factíveis, de evolução progressiva, que sejam flexíveis
para o caso de necessitarem de modificação.
Implantar um sistema de monitoramento do progresso e de antecipação de
retrocessos eventuais.

Método PANPA
Pergunte a todo o paciente sobre os seus hábitos. Nessa fase, o objetivo é coletar,
selecionar e analisar informações que estejam implicadas no processo de decisão de
mudar.
Aconselhe, selecionando com o sujeito inicialmente um dos hábitos que será o
foco.
Negocie sempre. Muitas das estratégias sugeridas em livros, manuais, cursos,
congressos e até mesmo contatos informais servem para estimular a criatividade do
profissional e do paciente.
Prepare o momento de mudar ou adotar um novo hábito, oferecendo as diversas
possibilidades para chegar ao comportamento desejado, ressaltando vantagens e
desvantagens a partir das necessidades do sujeito.
Acompanhe o processo de mudança do cliente, estabelecendo um meio de

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monitorar os efeitos das ações isoladas e da intervenção como um todo. Nesse período,
em que as mudanças já estão em curso, é essencial prevenir recaídas.

Atividade física
O aconselhamento para atividade física regular é recomendado para todos visando
melhorar o nível de saúde e reduzir os riscos. Segundo uma definição clássica, atividade
física é qualquer movimento corporal produzido pela musculatura esquelética que resulte
em gasto de energia. Já o exercício é o tipo de atividade física que é desenvolvido de
modo planejado, estruturado e repetitivo com o objetivo de melhoria ou manutenção do
condicionamento ou da aptidão física, habilidade individual de realizar atividade física,
que tem como componentes as resistências cardiorrespiratória e muscular, a força
muscular, a flexibilidade e a composição corporal.
A observação de uma redução da mortalidade geral entre os praticantes de
atividade física regular está bem estabelecida. Exercícios aeróbicos levam a redução dos
níveis de pressão arterial sistólica e diastólica, colesterol total, LDL-colesterol e
triglicérides, além de aumento dos níveis de HDL-colesterol. A prática de atividade física
regular também diminui o risco de diabetes mellitus tipo 2, cânceres em geral,
especialmente câncer de cólon, obesidade e quedas. Está associada a aumento e
manutenção da massa óssea e sensação geral de bem estar, com aumento da autoestima e
da qualidade do sono, com efeitos benéficos sobre a saúde mental.
Entre as estratégias úteis para o aumento dos níveis de prática de atividade física
em diferentes grupos da população estão campanhas comunitárias que utilizam meios de
comunicação locais, previsão de programas estruturados para a prática de atividades
físicas em escolas e universidades, criação de redes sociais envolvendo instituições
comunitárias dedicadas ao apoio a iniciativas de mudanças do comportamento sedentário,
ampliação e melhoria dos espaços públicos disponíveis para a prática de esportes,
caminhadas e práticas corporais diversas.
Deve-se estimar o nível de atividade física ideal para cada pessoa a cada
momento, identificar as principais barreiras encontradas para a sua realização e fornecer
as informações adequadas sobre os seus benefícios. É necessário ajudar cada um a
encontrar o tipo de exercício que mais se adapte ao seu perfil e à sua rotina diária, com
vistas à melhora da saúde e ao aumento da adesão à prática regular.
A maior parte das pessoas pode iniciar a prática de atividade física moderada sem
a necessidade de avaliação clínica e exames complementares prévios, desde que de forma
gradual e com atenção para o surgimento de sinais e sintomas não usuais. Avaliação
médica mais aprofundada está indicada, para auxiliar a definição do programa de
atividades mais apropriado, no caso de alto risco para doença coronariana, com sintomas
sugestivos de afecções cardíacas, pulmonares ou metabólicas e, ainda, no caso de homens
com idade superior a quarenta anos e mulheres com idade superior a cinquenta anos que
pretendam praticar atividades de maior intensidade. Neste caso, a avaliação pode incluir
exames complementares, como teste de esforço.
Pessoas sedentárias devem ser incentivadas a incorporar atividade física regular
na vida diária, com meta em curto prazo de atingir nível de atividade ligeiramente
superior ao basal. Como meta de longo prazo, propõe-se a prática de exercícios físicos
aeróbicos regulares de intensidade moderada, como caminhar rápido, correr, pedalar e
nadar, com duração de trinta minutos por sessão, pelo menos cinco dias por semana. A

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duração diária total pode ser atingida pela soma de períodos menores de atividade, sem
prejuízo para o resultado pretendido. Concomitantemente, deve-se desenvolver e manter
a força muscular e a flexibilidade das articulações.
A atividade física moderada é aquela em que há consumo de cerca de quatro a
sete calorias por minuto ou cerca de três a seis equivalentes metabólicos, que consistem
no consumo de oxigênio para produção de energia de um adulto em repouso. Como
orientação prática, pode-se indicar a utilização do cálculo aproximado da frequência
cardíaca máxima subtraindo-se a idade do indivíduo de 220, com manutenção da
frequência cardíaca durante a atividade entre 65% e 80% do valor calculado.
Como regra geral, exercícios vigorosos devem ser desencorajados. As pessoas
interessadas em praticar exercícios intensos devem ser objeto de orientação especializada
e acompanhamento periódico.
O aconselhamento para a prática de atividade física deve incluir, ainda,
informações relativas à forma mais apropriada para a prática do exercício, como horários,
locais, roupas, calçados, acessórios de proteção, alimentação e hidratação.
O risco de agravos aumenta com a prática de atividades com maior intensidade e
duração e na presença de condições favorecedoras, como lesões pré-existentes e
obesidade. A prática de atividades moderadas parece conferir alguma proteção em
relação ao risco para lesões, mediada pelo aumento da força muscular, do equilíbrio e do
controle neuromuscular.
Contraindicações relativas para a prática de atividade física incluem hipertensão
arterial sistêmica grave não tratada ou descontrolada, estenose aórtica moderada, estenose
subaórtica moderada, arritmias supraventriculares, aneurisma ventricular, ectopia
ventricular frequente ou complexa, cardiomiopatia, doença metabólica não controlada,
como diabetes mellitus e afecções tireoidianas, anormalidade eletrolítica, doença
infecciosa crônica ou recorrente, doença reumatológica, neuromuscular ou osteomuscular
que é exacerbada pelo exercício e gravidez complicada. Contraindicações absolutas para
a prática de atividade física incluem infarto agudo do miocárdio recente, angina instável,
taquicardia ventricular ou outras arritmias de risco, aneurisma dissecante de aorta,
estenose aórtica grave, miocardite ou pericardite suspeitadas ou em atividade,
tromboflebite, trombo intra-cardíaco, embolia sistêmica ou pulmonar recente e infecção
aguda.

Alimentação
Dieta e exercício devem ser dimensionados de modo a manter o peso desejado por
meio do equilíbrio entre ingesta calórica e dispêndio energético.
Todos os indivíduos devem limitar a ingesta de gordura, especialmente saturada, e
colesterol, dando preferência a frutas, verduras, legumes e grãos contendo fibras. É
recomendada a redução da gordura total ingerida para até 30% do total de calorias, da
gordura saturada para menos de 10% do total de calorias e do colesterol para menos de
300mg/dia. Azeite e óleos vegetais são fontes mais saudáveis de gorduras.
A base da ingesta proteico-calórica diária deve ser o consumo variado de peixes,
aves sem pele, carnes magras, grãos, cereais, legumes, verduras e frutas. Gorduras
saturadas, frituras, massas e produtos adoçados com açúcar devem ser evitados ao
máximo.
Mulheres devem ser encorajadas a consumir quantidades de cálcio adequadas para

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a idade, com 1220-1550mg/dia até os 25 anos, 1000mg/dia dos 25 aos 50 anos e 1000-
1500mg/dia após a menopausa, através da ingesta de leite desnatado e seus derivados,
verduras, legumes e frutas.
A equipe de atenção primária à saúde deve estar preparada a obter uma história
alimentar completa, identificar as barreiras a serem superadas para a mudança de hábito
alimentar, e oferecer orientação suficiente para a implantação de um plano nutricional,
com seleção e preparo de alimentos. Caso isto não ocorra, deve-se recorrer a especialistas
qualificados, como os nutricionistas.

Gorduras
Tipo de gordura Fonte Estado em Efeito sobre o
temperatura colesterol comparado
ambiente aos carboidratos
Monoinsaturada Azeite de oliva, azeitonas, óleo de Líquidas Abaixam LDL e
Apresenta somente canola, amendoim, castanhas, aumentam HDL
uma ligação dupla amêndoas, abacate

Poli-insaturada Óleos de milho e soja, peixes Líquidas Abaixam LDL e


Apresenta duas ou aumentam HDL
mais ligações duplas
Saturada Leite, manteiga, queijos, sorvete, Sólidas Aumentam LDL e
Não apresenta carne vermelha, coco HDL
ligações duplas
"Trans" Margarinas, gordura vegetal Sólidas ou semi- Aumentam LDL
O hidrogênio fica na hidrogenada, óleo vegetal sólidas
posição "trans" parcialmente hidrogenado, biscoitos
amanteigados

O LDL-colesterol tende a se depositar na parede dos vasos, onde interage com


radicais livres e transforma-se em LDL-oxidado, que lesa a parede arterial e causa
obstrução do vaso. O HDL-colesterol, por outro lado, recolhe o excesso de colesterol da
parede dos vasos e o transporta para o fígado, além de auxiliar a síntese hepática de
outras lipoproteínas.
O consumo de ovos caiu devido ao alto teor de colesterol na gema. Novos
estudos, entretanto, mostraram que o consumo de uma gema por dia aumenta muito
pouco o colesterol, com incremento no risco de doença cardiovascular de cerca de 10%.
Os ovos são ricos em gordura poliinsaturada, ácido fólico e vitamina B.
Omega-3 é um subtipo de gordura poli-insaturada com benefícios extremamente
importantes. Existe nos peixes, nas nozes e nos óleos de canola e de soja. Tem uma ação
protetora na mortalidade por doença cardiovascular em função de propriedade anti-
arritmogênica. Apesar de não diminuir a prevalência de doença cardiovascular, diminui a
incidência de morte súbita por arritmias nos pacientes que já apresentam alteração
estrutural cardíaca.

Carboidratos
Os carboidratos complexos, ricos em amido, como arroz, pão, macarrão e batatas,
são rapidamente quebrados no organismo e transformados em glicose. Ocorre um
aumento rápido dos níveis glicêmicos após a ingesta desses alimentos e um pico de

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liberação de insulina, com queda nos níveis glicêmicos e fome. Por esse motivo, batatas,
arroz, macarrão e pão são alimentos com índices glicêmicos tão elevados quanto os
açúcares livres.
Os carboidratos que devem compor a base da pirâmide alimentar são os que
provêm de alimentos integrais como o arroz integral, o macarrão integral e as fibras
integrais. Os carboidratos de alimentos integrais fazem os níveis glicêmicos subir
lentamente, de modo que os níveis de insulina também sobem lentamente e a fome
demora mais tempo para aparecer.
Dietas ricas em carboidratos diminuem os níveis de HDL-colesterol e aumentam
triglicérides e os picos de insulina, com maior risco de diabetes.
Os carboidratos da dieta também podem ser provenientes de frutas, verduras e
grãos, com a vantagem do maior consumo de fibras. As fibras no trato gastrointestinal
retêm açúcares e gorduras, que deixam de ser absorvidos na sua presença e são
eliminados nas fezes.

Proteínas
As proteínas da dieta podem ter origem em fontes animais e vegetais. Proteínas
completas são aquelas que contêm todos os aminoácidos necessários para a confecção de
uma nova proteína. As proteínas de origem animal tendem a ser completas, enquanto que
as de origem vegetal tendem a ser incompletas. Portanto, as pessoas que comem proteínas
vegetais devem ingerir uma grande variedade de alimentos de modo a ingerir todos os
aminoácidos necessários.
Apesar dessa desvantagem, as proteínas de origem vegetal apresentam grandes
vantagens em relação às de origem animal, já que elas contêm uma quantidade muito
menor de gorduras e uma quantidade muito maior de fibras.
Os processos de cozimento da carne, como o fritar e o grelhar, aumentam o risco
de câncer pela produção de aminas heterocíclicas, um grupo de carcinógenos.
Os estudos mostram que populações com alto consumo de proteínas de origem
vegetal provindas das nozes, das frutas e de verduras apresentam menos doença
cardiovascular. Entretanto, as nozes também são calóricas e não devem ser ingeridas em
excesso. A grande utilização de proteínas de origem vegetal regadas com azeite de oliva é
um dos segredos do perfil saudável e saboroso da dieta do Mediterrâneo.
Dietas ricas em proteínas estão associadas à osteoporose pelo aumento da
excreção de cálcio. A substituição de carboidratos por proteínas faz aumentar os níveis
séricos de HDL.

Frutas e verduras
Um consumo elevado de frutas e verduras diminui a prevalência de doenças
cardiovasculares e câncer, reduz os níveis pressóricos e protege contra a catarata, a
degeneração macular e a diverticulite.
Nenhum estudo provou até hoje que substituir frutas e verduras por cápsulas das
várias vitaminas nelas contidas tenha qualquer efeito benéfico na proteção dessas
doenças. Isso porque parece haver uma interação entre os componentes de frutas e
verduras que só ocorre quando eles são ingeridos juntos.

Cálcio

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O cálcio da alimentação deve provir de verduras do gênero das Crucíferas, como
brócolis, couve, repolho e couve-flor. Ao contrário do que se diz, o cálcio das verduras
também é bem absorvido e repõe as necessidades diárias.
Não há uma relação direta entre ingesta de cálcio e diminuição de fraturas. Ao
contrário, países com elevado consumo de cálcio na dieta apresentam prevalência mais
elevada de fraturas.
O excesso de consumo de leite e derivados como fonte de cálcio tem várias
desvantagens, como o ganho de peso e a intolerância à lactose. O excesso de cálcio
parece ter uma associação ainda pouco elucidada com os cânceres de próstata e de ovário.
A prevenção da osteoporose é feita na adolescência e no adulto jovem que pratica
atividade física de rotina. Além disso, a osteoporose parece ser muito mais prevalente em
países do hemisfério norte, onde há uma exposição muito menor ao sol. Atualmente,
embora ainda inconclusivas, algumas pesquisas sugerem o papel da ingesta de vitamina
D e de vitamina K na prevenção da osteoporose.

Tabagismo
É recomendado o aconselhamento visando a cessação do uso de todas as formas
de tabaco para pessoas de qualquer faixa etária.
Grávidas e pais fumantes devem ser informados quanto aos possíveis efeitos
deletérios do tabagismo sobre a saúde fetal e das crianças.
A prescrição de medicamentos é recomendada como tratamento adjuvante para
pacientes selecionados.
As estratégias que podem aumentar a aderência dos pacientes são conselhos
diretos e sugestões, reforços e lembretes, material de promoção da saúde, programas
comunitários, terapia medicamentosa e mensagens contra o início do uso do tabaco.

Sono
Medidas de higiene do sono incluem sair da cama no mesmo horário de manhã
todos os dias, independentemente de quanto tempo de sono foi obtido durante a noite,
deitar apenas quando estiver com sono e usar a cama e o quarto somente para dormir e
para atividade sexual, evitar café, chá, chocolate, refrigerantes a base de cola, álcool,
nicotina e medicamentos com cafeína por cerca de oito horas antes de dormir, evitar
refeições pesadas e excesso de líquidos antes de dormir, evitar cochilos durante o dia,
praticar atividade física no máximo quatro horas antes de deitar, de preferência ao ar
livre, procurar exposição solar logo após levantar e no final da tarde, tomar banho quente
de quinze a vinte minutos duas horas antes de dormir, ingerir um lanche com leite e/ou
derivados e carboidrato antes de dormir e manter horários constantes para dormir e
acordar mesmo nos finais de semana. Se não conseguir dormir, deve-se levantar da cama
depois de dez minutos, ir para outro ambiente e só retornar novamente para dormir.

Álcool e drogas
Pessoas com sinais de abuso ou uso perigoso de álcool ou drogas ilícitas devem
ser orientadas e aconselhadas, com discussão do risco de acidentes e problemas médicos
e psiquiátricos, estímulo direto para redução do consumo e programação de consultas
para acompanhamento regular. Pacientes com evidência de dependência devem ser
encaminhados para tratamento com especialistas ou programas comunitários sempre que

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possível.

Atividade sexual

Prevenção de doenças sexualmente transmissíveis


Todos devem ser informados sobre os fatores de risco para doenças sexualmente
transmissíveis e aconselhados sobre medidas efetivas para reduzi-los. A abordagem deve
se basear nos hábitos sexuais e no uso de álcool e drogas.
A história deve incluir número e natureza dos parceiros sexuais, antecedentes de
doenças sexualmente transmissíveis, uso de preservativos e práticas de alto risco. O
aconselhamento é direcionado para manutenção de relações preferencialmente
monogâmicas com parceiro não portador de doença sexualmente transmissível, uso
regular de preservativo de borracha e cuidado no contato sexual com parceiros casuais ou
indivíduos de alto risco.
Pessoas que mantenham contato com parceiros de alto risco, casuais ou
sabidamente portadores de doença sexualmente transmissível, devem ser aconselhados a
evitar sexo anal e a usar preservativos em todos os tipos de relações.
Mulheres devem ser informadas de alternativas de prevenção de doenças
sexualmente transmissíveis quando os parceiros masculinos se negam a usar
preservativos, como o uso de preservativo feminino.
Durante o aconselhamento, deve-se enfatizar que o uso de álcool e drogas pode
levar a comportamento sexual de alto risco. Usuários de drogas devem ser encaminhados
para centros especializados e orientados a evitar o compartilhamento de seringas e
agulhas.
Usuários de drogas devem ser informados quanto à necessidade de fazer sorologia
para o vírus da imunodeficiência humana, ao uso regular de preservativos com parceiros
casuais ou fixos e aos cuidados na preparação e com o equipamento de injeção de drogas.

Prevenção de gravidez não desejada


Aconselhamento sobre planejamento familiar é recomendado para mulheres e
homens em situação de risco para gravidez não desejada, principalmente jovens e
adolescentes, devendo ser baseado em história cuidadosa que inclua atividade sexual, uso
atual ou passado de contraceptivos, nível de preocupação com a gravidez, antecedente de
gravidez indesejada e risco de doenças sexualmente transmissíveis.
Instruções claras devem ser dadas a respeito dos métodos anticoncepcionais.
Hormônios, diafragma, dispositivo intrauterino e preservativos de borracha devem ser
recomendados como os métodos mais efetivos na prevenção de gravidez em pessoas
sexualmente ativas. A satisfação e a aderência ao método escolhido devem ser
monitoradas.
Médico, pais e adolescentes devem ser encorajados a manter discussão aberta a
respeito do desenvolvimento sexual e de métodos efetivos de prevenção da gravidez
indesejada. As atitudes em relação ao assunto devem ser exploradas entre os jovens que
ainda não mantêm atividade sexual como forma de antecipar suas futuras necessidades.
Em algum momento, adolescentes devem ser consultados sem a presença dos pais.

Acidentes e violência

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Veículos
Deve-se aconselhar regularmente quanto ao uso de cintos de segurança para
motoristas e passageiros, mesmo que o veículo disponha de air bag. Bebês e crianças
pequenas devem ser transportados em assentos de segurança compatíveis com a idade e o
tamanho, sempre no banco traseiro. Passageiros não devem ser transportados nas áreas de
carga a menos que haja assentos e cintos de segurança.
Motociclistas e ciclistas devem ser aconselhados a usar capacetes de segurança.
Deve-se aconselhar quanto aos riscos de conduzir veículos sob o efeito de álcool,
drogas ilícitas ou medicamentos, assim como de ser transportado por alguém que esteja
sob o efeito dessas substâncias. Adolescentes e adultos jovens, em particular, devem ser
estimulados a evitar o uso de álcool ou outras drogas antes de conduzir veículos.
Com relação à prevenção de acidentes com pedestres, principalmente crianças,
pode-se orientar o uso de roupas coloridas e brilhantes, além de cuidados especiais
durante deslocamentos em vias públicas.

Atividades domésticas e recreativas


É recomendado o aconselhamento de pais sobre medidas que reduzam o risco de
acidentes não intencionais provocados por incêndios domiciliares, queimaduras por água
quente, afogamento, ciclismo, armas de fogo e quedas.
Usuários de álcool ou drogas ilícitas devem ser identificados e aconselhados a
evitar ciclismo, natação, esportes aquáticos, manipulação de arma de fogo e fumo na
cama.
Adolescentes e adultos, inclusive idosos, devem receber orientação para prevenir
acidentes domésticos ou em atividades recreativas. Deve-se atentar para a possibilidade
de crianças e idosos estarem sendo vítimas de negligência, abuso ou violência em casa.
Pais, avós e outros responsáveis por crianças em casa devem ser orientados a
guardar medicamentos, substâncias tóxicas e fósforos em locais seguros. Devem ser
aconselhados, também, a manter o número do telefone de uma central de intoxicações à
mão.
Ciclistas, condutores de motos de baixa potência e pais devem ser aconselhados a
respeito da importância do uso de capacetes e a evitar a circulação em local de trânsito
pesado de veículos.
As famílias e responsáveis por condomínios devem ser aconselhados a proteger
piscinas com cercas, janelas e balcões com grades ou redes e escadas com portões
removíveis.
A manutenção de arma de fogo em casa deve ser desestimulada. Em caso de não
adesão, deve-se orientar guardar descarregada e em local pouco acessível.
O aconselhamento de idosos ou de seus responsáveis sobre medidas que reduzam
o risco de quedas, incluindo a prática de exercício físico, a intervenção em fatores de
risco modificáveis e o monitoramento e ajuste de medicação, é recomendado.

Violência juvenil
Em situações de alta prevalência de violência, os médicos devem perguntar aos
jovens a respeito de comportamento violento, uso de álcool e drogas e disponibilidade de
revólveres e outras armas de fogo. Os indivíduos identificados como de alto risco de

Pedro Kallas Curiati 35


violência devem ser informados a respeito da associação entre ferimentos, fácil acesso a
armas e intoxicação por álcool e drogas ilícitas.

Higiene bucal
Todos devem ser orientados a adotar escovação e uso de fita dental após cada
refeição. Pelo menos uma das sessões de escovação diária, de preferência a última antes
de dormir, deve ser minuciosa e demorada a ponto de deixar todas as superfícies
dentárias lisas. A língua também deve ser higienizada com a escova, seu cabo ou espátula
apropriada todos os dias.
Deve-se orientar dieta não cariogênica, pobre em sacarose, com três refeições
regulares, espaçadas de várias horas, evitando ingerir alimentos e bebidas nos intervalos.
Recomenda-se evitar tabaco e bebidas alcoólicas, além de realizar avaliação
odontológica regularmente, a cada seis a doze meses.
Pais devem ser encorajados a supervisionar a escovação dos filhos e a quantidade
de creme dental utilizada e limpar externamente os dentes ou mesmo as gengivas de
crianças muito pequenas.
O uso de mamadeira na cama deve ser desestimulado.

Exposição a radiação ultravioleta


As pessoas devem ser aconselhadas a evitar a exposição direta a raios ultravioleta
para prevenir o câncer de pele.
Recomenda-se evitar exposição direta à luz solar pelo menos entre 10:00 e 16:00,
usar roupas leves e chapéus durante exposição à luz solar, permanecer à sombra ou em
locais protegidos e, no caso de se expor diretamente, espalhar bloqueador solar pelo
corpo com frequência.
O fator de proteção solar do bloqueador deve ser escolhido de acordo com o tipo
de pele, o nível da insolação do dia e o tempo da exposição. De modo geral, deve-se optar
por protetores com, no mínimo, fator de proteção solar 15.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 1: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da mulher,
envelhecimento e geriatria, medicina laboratorial na prática médica. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Roteiro de procedimentos básicos. Mário Ferreira Júnior, Ana Claudia Camargo, Milton de Arruda Martins. Centro de Promoção de
Saúde – CPS, Serviço de Clínica Médica Geral, HCFMUSP, 2010.

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ATENÇÃO DOMICILIAR
Atenção domiciliar é termo genérico que envolve ações de promoção à saúde,
como prevenção, tratamento e reabilitação de doenças, desenvolvidas em domicílio.
Visita domiciliar é atendimento realizado por agente de saúde, profissional de
saúde ou equipe de saúde no domicílio do paciente com o objetivo de detectar potenciais
fatores de risco que possam comprometer seu estado de saúde, bem como avaliar os
recursos ambientais e/ou familiares disponíveis para a promoção de saúde.
Assistência ou atendimento domiciliar é conjunto de atividades de caráter
ambulatorial, programadas e continuadas, desenvolvidas em domicílio. Trata-se de
proposta de caráter amplo que inclui a visita periódica de profissionais e a realização, no
domicílio, de variados procedimentos e diferentes ações. A necessidade de equipamentos
específicos relacionados ao quadro clínico do paciente restringe-se àqueles que podem
ser manipulados pelo cuidador.
Internação domiciliar é conjunto de atividades prestadas no domicílio e
caracterizadas pela atenção em tempo integral ao paciente complexo e com necessidade
de tecnologia especializada. No Sistema Único de Saúde, as prioridades no atendimento
são idosos, portadores de doenças crônico-degenerativas agudizadas, portadores de
doenças que necessitem de cuidados paliativos e portadores de incapacidade funcional
provisória ou permanente. Os critérios de exclusão são necessidade de ventilação
mecânica, monitorização contínua, enfermagem intensiva, demanda potencial de
realização de vários procedimentos diagnósticos em sequência com urgência, uso de
medicação complexa com efeitos colaterais potencialmente graves ou de difícil
administração, tratamento cirúrgico em caráter de urgência e falta de cuidador contínuo.
Serviços de Atenção Domiciliar privados, na modalidade internação domiciliar, podem
atender pacientes que necessitem de tecnologia especializada, como ventilação mecânica.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 1: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da mulher,
envelhecimento e geriatria, medicina laboratorial na prática médica. – Barueri, SP: Manole, 2009.

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AVALIAÇÃO PERIÓDICA DE
SAÚDE
Conceito
A avaliação periódica de saúde pode ser definida como um exame completo de
saúde com objetivo de prevenção. O Centro de Promoção de Saúde do HC-FMUSP
recomenda frequência anual a partir dos cinquenta anos de idade. Abaixo dessa idade, a
frequência pode ser menor, conforme a necessidade e a possibilidade de acesso do
cliente.

Anamnese
Identificação com ênfase especial em idade, gênero, procedência, ocupação, local
de trabalho e moradia.
Pesquisa de hábitos, comportamentos e estilo de vida:
- Quantidade e qualidade da dieta habitual, especificando tipo de alimento,
modo de preparo, frequência, horário e local das refeições, assim como
facilidades e dificuldades encontradas no dia-a-dia;
- Tarefas cotidianas em casa e no trabalho que envolvem atividade física,
além de tipo, frequência, duração e intensidade das sessões específicas de
exercícios, com as facilidades e dificuldades encontradas;
- Tabagismo atual ou prévio, tipo de produto, quantidade diária, duração
do hábito e tentativa prévia de cessação;
- Fatores causais de ansiedade ou depressão nas tarefas diárias ou nas
relações interpessoais e formas encontradas para enfrenta-los;
- Número de horas, qualidade e rituais diários dedicados ao sono e às
atividades de lazer;
- Quantidade e frequência de consumo de substâncias causadoras de
dependência e possíveis complicações;
- Prática sexual, ocorrência de comportamento sexual de risco associado a
abuso de álcool e hábito de uso de preservativo de borracha ou de outros
dispositivos para prevenção de gravidez e de doenças sexualmente
transmissíveis;
- Risco de acidentes, com informação sobre cuidados ao volante, uso de
capacetes, uso de cintos de segurança, proteção em janelas e vãos de
escada em casa, existência de piso ou calçado antiderrapante, prática de
atividades de lazer nas quais acidentes são frequentes e antecedente de
acidente envolvendo abuso de álcool;
- Risco de violência, com informação sobre fácil acesso a armas de fogo
em casa, envolvimento em ambientes em que o uso de armas ou
comportamento violento é comum e antecedente de violência envolvendo
abuso de álcool;
- Higiene bucal, com informação sobre frequência e duração das
escovações dentárias, uso de pasta e fio dental e periodicidade das

Pedro Kallas Curiati 38


avaliações odontológicas;
- Exposição a raios ultravioleta, com informação sobre exposição
desprotegida ao Sol, sua frequência e seus horários habituais;
Inquérito sobre antecedentes mórbidos familiares, com ênfase em diabetes
mellitus tipo 2, hipertensão arterial sistêmica, dislipidemia, doença coronária precoce
entre parentes de primeiro grau e cânceres, particularmente de próstata, cólon e mama.
Levantamento de exames subsidiários feitos de rotina.
Histórico vacinal.

Physical Activity Readiness Questionnaire (PAR-Q)


Alguma vez um médico lhe disse que você tem algum problema de origem cardíaca e que SIM NÃO
você só pode se exercitar sob orientação médica?
Você sente dor no peito quando pratica atividade física? SIM NÃO
No mês passado, você teve dor no peito quando estava praticando atividade física? SIM NÃO
Você perde seu equilíbrio por causa de tontura ou já perdeu a consciência? SIM NÃO
Você tem algum problema ósseo ou articular que poderia piorar com a alteração da sua SIM NÃO
atividade física?
Seu médico está lhe prescrevendo alguma medicação para sua pressão arterial ou para seu SIM NÃO
coração?
Você sabe de algum motivo de saúde que lhe impediria de realizar atividade física? SIM NÃO
Se todas as respostas forem negativas, o indivíduo pode iniciar atividade física
leve a moderada. Em caso de algum item ser positivo, é recomendada orientação por
profissional competente.

Questionário de Fagerström
Quanto tempo depois de acordar você fuma o seu primeiro cigarro?
0. Após 60 minutos;
1. 31-60 minutos;
2. 6-30 minutos;
3. Nos primeiros 5 minutos;
Você encontra dificuldade para evitar fumar em lugares onde é proibido, como igreja, local de trabalho,
cinema e shopping?
0. Não;
1. Sim;
Qual é o cigarro do dia que lhe traz mais satisfação?
0. Qualquer um;
1. O primeiro da manhã;
Quantos cigarros você fuma por dia?
0. 10 ou menos;
1. 11-20;
2. 21-30;
3. 31 ou mais;
Você fuma mais frequentemente no período da manhã?
0. Não;
1. Sim;
Você fuma mesmo estando doente a ponto de ficar acamado na maior parte do tempo?
0. Não;
1. Sim;
0-2 pontos indicam dependência muito baixa. 3-4 pontos indicam dependência
baixa. 5 pontos indica dependência média. 6-7 pontos indicam dependência elevada. 8-10
pontos indicam dependência muito elevada.

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Perguntas de rastreamento de depressão
Nas duas últimas semanas, você tem se sentido para baixo, deprimido, sem
esperança?
Nas últimas duas semanas, você tem sentido pouco prazer ou interesse nas coisas?

Questionário CAGE
C (cut) Já passou pela sua cabeça que você precisa parar de beber?

A (annoyed) As pessoas têm aborrecido você criticando-o por beber?

G (guilty) Alguma vez você se sentiu culpado pelo tanto que bebe ou bebeu?

E (eye- Alguma vez você teve que tomar alguma bebida logo cedo de manhã para acalmar os
opener) nervos ou espantar a ressaca?

Exame físico
O exame físico é um complemento importante da anamnese, principalmente
quando se buscam sinais que ajudem no diagnóstico de determinada doença. Não existe
evidência que justifique a realização de exame físico completo em pessoa assintomática
submetida a uma avaliação periódica de saúde.
No exame físico com enfoque preventivo, os procedimentos que apresentam
melhor evidência de benefício para mudar a evolução natural das doenças, com impacto
positivo na duração e na qualidade de vida das pessoas, são:
- Medida da pressão arterial;
- Medida de peso e altura para cálculo do índice de massa corpórea;
- Medida da circunferência abdominal, com risco aumentado se superior a
102cm em homens e 88cm em mulheres;
- Teste da acuidade visual com tabela de Snellen para pessoas com idade
superior a 65 anos, esperando-se que o paciente identifique
adequadamente a maioria dos símbolos até a linha 0.6;
Podem ser incluídos no exame físico, pela sua relativa simplicidade técnica,
apesar de insuficiente evidência científica sobre efetividade:
- Exame da pele com o propósito de identificar lesões malignas ou pré-
malignas;
- Exame da cavidade bucal com o objetivo de identificar lesões malignas
ou pré-malignas;
- Palpação abdominal para detecção de aneurisma de aorta abdominal em
homens com 60 anos de idade ou mais e história pregressa ou atual de
tabagismo;

Parâmetros para classificação dos níveis de pressão arterial


Classificação Pressão sistólica (mmHg) Pressão diastólica (mmHg)
Ótima < 120 < 80
Normal < 130 < 85
Limítrofe 130-139 85-89
Hipertensão estágio 1 140-159 90-99

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Hipertensão estágio 2 160-179 100-109
Hipertensão estágio 3 ≥ 180 ≥110
Hipertensão sistólica isolada ≥ 140 < 90

Parâmetros para classificação do índice de massa corpórea


Classificação Índice de massa corpórea (kg/m2)
Baixo peso < 18.5
Peso adequado 18.5-24.9
Sobrepeso 25.0-29.9
Obesidade grau I 30.0-34.9
Obesidade grau II 35.0-39.9
Obesidade grau III ≥ 40

Exames subsidiários
Além das informações obtidas na anamnese e no exame físico, o médico conta
com o apoio de exames subsidiários para o rastreamento de doenças.

Exames subsidiários para rastreamento de doenças na população geral


Colesterol total, HDL-colesterol e LDL-colesterol para homens com idade
superior a 35 anos e mulheres com idade superior a 45 anos a cada três a cinco anos.
Glicemia de jejum para homens e mulheres com idade superior a 45 anos a cada
três a cinco anos.
Colpocitologia oncótica para mulheres que tenham colo do útero a partir do início
da vida sexual e até os sessenta anos de idade, inicialmente a cada ano e, no caso de dois
exames consecutivos normais, a cada três anos.
Mamografia para mulheres com idade entre 40 e 49 anos a cada dois anos e para
mulheres com idade entre 50 e 69 anos anualmente. Mulheres com idade superior ou
igual a 70 anos podem ser submetidas a mamografia em caso de expectativa de vida
superior a dez anos.
Pesquisa de sangue oculto nas fezes para homens e mulheres com idade superior a
50 anos anualmente.
Densitometria óssea para mulheres com idade superior a 65 anos anualmente.

Exames subsidiários para rastreamento de doenças em populações de risco


Mamografia a partir dos 40 anos anualmente para mulheres com parentes de
primeiro grau com história de câncer de mama ou em uso de terapia de reposição
hormonal. Em caso de risco de câncer de mama superior ou igual a 20% com base em
cálculo através de instrumentos padronizados, recomenda-se aconselhamento genético
para avaliar a probabilidade de mutação BRCA e decidir por opções de manejo, podendo-
se realizar rastreamento intensivo a partir dos 25 anos de idade com mamografia e
ressonância nuclear magnética de mamas anualmente e exame clínico semestral.
Pesquisa de sangue oculto nas fezes anualmente e colonoscopia a cada cinco anos
para indivíduos a partir de 40 anos de idade com parentes de primeiro grau com história
de câncer colo-retal ou polipose adenomatosa familiar. Colonoscopia, a critério médico,
para indivíduos de qualquer idade com antecedentes pessoais de pólipo adenomatoso,
câncer colo-retal ou doença inflamatória intestinal.
Colesterol total, HDL-colesterol e LDL-colesterol a critério médico para pessoas

Pedro Kallas Curiati 41


com história de hipercolesterolemia familiar, hipertensão arterial sistêmica, diabetes
mellitus ou obesidade, independentemente de gênero e idade.
Glicemia de jejum, a critério médico, para pessoas com antecedente de
hipertensão arterial sistêmica ou obesidade, independentemente de gênero e idade.
Urina tipo I, a critério médico, para pessoas com antecedente de diabetes mellitus,
independentemente de gênero e idade.
Exame de fundo e olho, a critério médico, para pessoas com antecedente de
diabetes mellitus, independentemente de gênero e idade.
Eletrocardiograma de esforço antes de iniciar atividade física intensa para
indivíduos a partir dos 40 anos de idade e com pelo menos dois fatores de risco para
doença cardiovascular.
Ultrassonografia de aorta abdominal para homens tabagistas atuais ou prévios
com idade superior a 60 anos.
Densitometria óssea para mulheres na pós-menopausa com fatores de risco para
osteoporose.
Reações sorológicas para sífilis para pessoas, e seus parceiros sexuais, que trocam
sexo por dinheiro ou drogas, possuem outras doenças sexualmente transmissíveis ou
mantêm contato sexual com portadores de sífilis.
Bacterioscopia ou cultura para gonococo para pessoas que troquem sexo por
dinheiro ou drogas, que tiveram dois ou mais parceiros sexuais no último ano, que
apresentem episódios repetidos de infecção gonocócica ou cujo(s) parceiro(s) tenha(m)
múltiplos contatos sexuais.
Sorologia para HIV para homens que fizeram sexo com homens após 1975 e
indivíduos que receberam transfusões de sangue frequentes, que são ou foram usuários de
drogas injetáveis, que trocam sexo por dinheiro ou drogas, que tenham múltiplos contatos
sexuais com pessoas diferentes ou desconhecidas, que procuram atendimento para
tratamento de doenças sexualmente transmissíveis ou cujos parceiros sexuais tenham
sorologia positiva.
PPD para portadores do HIV ou de outras condições médicas de risco ou
associadas à tuberculose, indivíduos que mantêm contato íntimo com portadores
suspeitos ou conhecidos de tuberculose, profissionais de saúde, pessoas sem acesso à
assistência médica, população de baixa renda, etilistas, usuários de droga injetável e
institucionalizados em geral.
Teste do sussurro, audioscopia e audiometria tonal para pessoas com idade
superior a 65 anos com sinais exteriores de dificuldade auditiva.

Exames subsidiários para rastreamento de doenças relacionadas ao trabalho


Avaliação clínica é indicada anualmente para todo trabalhador com idade inferior
a 18 anos ou superior a 45 anos, assim como para portadores de doenças crônicas ou
trabalhadores submetidos a riscos de doenças relacionadas ao trabalho. Para os restantes,
a frequência exigida é bienal.
Audiometria tonal é indicada na admissão, no sexto mês de trabalho, anualmente e
na demissão para trabalhadores expostos a ruído acima do limite de tolerância,
caracterizado por dose equivalente a 85dB por oito horas para ruído contínuo ou 120dB
para ruído de impacto durante as atividades diárias de trabalho.
Radiografia simples do tórax:

Pedro Kallas Curiati 42


- Indicada na admissão e anualmente para trabalhadores expostos a
aerodispersóides que causem fibrose pulmonar durante as atividades
diárias de trabalho;
- Indicada na admissão e a cada dois anos para trabalhadores expostos, por
mais de 15 anos, a aerodispersóides que não causem fibrose pulmonar
durante as atividades diárias de trabalho;
- Indicada na admissão e a cada três anos para trabalhadores expostos por
menos de 15 anos a aerodispersóides que não causem fibrose pulmonar
durante as atividades diárias de trabalho;
Espirometria é indicada na admissão e a cada dois anos para trabalhadores
expostos a aerodispersóides que causem ou não fibrose pulmonar durante as atividades
diárias de trabalho.
Radiografias das articulações coxofemorais e escapuloumerais são indicadas na
admissão e anualmente, para trabalhadores submetidos a pressões acima de 1 ATM
durante as atividades de trabalho.
Hemograma completo com plaquetas é indicado na admissão e semestralmente,
para trabalhadores expostos a radiação ionizante ou a benzeno durante as atividades de
trabalho.
Testosterona total ou plasmática livre, LH e FSH são indicados para homens
expostos ao risco de absorção de hormônios sexuais femininos durante as atividades de
trabalho.

Aconselhamento
O aconselhamento visando a adoção de hábitos de vida mais seguros e saudáveis é
um componente básico da avaliação periódica de saúde.

Quimioprofilaxia

Vacinas
Em geral, algumas situações devem ser observadas:
- Indicação universal, de acordo com a faixa etária;
- Indicação restrita a determinados grupos de risco;
- Disponibilidade do imunógeno na rede pública;
A lista mínima de vacinas indicadas para adultos, conforme o Setor de
Imunizações do HC-FMUSP, é a seguinte:
- Dupla do adulto (dT), com reforço a cada dez anos, para indivíduos já
imunizados contra tétano e difteria ou esquema completo com três doses
(0-2-6 meses) para os não imunizados;
- Hepatite B, com três doses (0-2-6 meses), para os indivíduos jovens com
até 24 anos não imunizados e para grupos de risco;
- MMR, com imunização contra sarampo, caxumba e rubéola, em dose
única, para indivíduos de qualquer idade não imunizados;
- Pneumocócica 23-valente, em dose única, indicada para pessoas com
idade acima de sessenta anos ou portadores de doença cardíaca ou
respiratória crônica, diabetes mellitus dependente de Insulina ou asplenia
anatômica ou funcional, com revacinação após cinco anos em pessoas com

Pedro Kallas Curiati 43


idade superior a 65 anos em que a primeira dose foi aplicada antes dos 65
anos, asplenia anatômica ou funcional e imunodepressão;
- Influenza, com dose anual indicada para pessoas com idade acima de 60
anos ou portadores de doenças crônicas, doenças metabólicas incluindo
diabetes mellitus, hemoglobinopatias, imunossupressão ou disfunção
renal, além de seus contactantes;
- Febre amarela, com reforço a cada dez anos, indicada para pessoas que
residem ou viajam em regiões endêmicas;
Estimula-se também que o médico promotor de saúde conheça as particularidades
das novas vacinas e as recomendações para viajantes e pessoas de grupos de risco.
A vacina tetravalente contra o HPV (Gardasil®) tem como alvo os tipos 16 e 18,
que causam aproximadamente 70% dos cânceres cervicais e 50% das lesões pré-
malignas, e os tipos 6 e 11, que causam 90% das verrugas genitais. A vacina bivalente
(Cervarix®) tem como alvo apenas os tipos 16 e 18. A imunização é mais efetiva em
indivíduos que ainda não foram infectados pelo HPV, ou seja, antes do início da vida
sexual. Em função de ação eminentemente preventiva e não terapêutica, não ocorre
prevenção de doença relacionada aos tipos de vírus com os quais o indivíduo vacinado já
está infectado. Recomenda-se a imunização rotineira de meninas com idades entre onze e
doze anos, podendo-se adiantar para os nove anos de idade. Também é recomendada a
imunização de mulheres com idade entre treze e vinte e seis anos não vacinadas
previamente. A vacina quadrivalente pode ser administrada para homens com nove a
vinte e seis anos de idade. Gardasil® deve ser administrada no tempo zero e após dois e
seis meses, enquanto que Cervarix® deve ser administrada no tempo zero e após um e
seis meses.

Medicamentos profiláticos
Ácido Acetilsalicílico é indicado para profilaxia de doença cardiovascular em
indivíduos com risco cardiovascular aumentado, como hipertensos, diabéticos,
dislipidêmicos, tabagistas ou com antecedente familiar de doença coronariana precoce. A
recomendação quanto à dose é de 100mg/dia.
A utilização de drogas para redução do colesterol é recomendada para pessoas que
não apresentam boa resposta às modificações alimentares e à prática de atividade física.
Dentre as vitaminas, o Ácido Fólico (B9), componente do complexo B, é
recomendado para mulheres gestantes antes do início da gravidez e até o final do
primeiro trimestre.
A indicação de terapia de reposição hormonal de rotina não é recomendada.
Porém, todas as mulheres interessadas ou já em uso devem receber informação atualizada
sobre riscos e eventuais benefícios.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 1: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da mulher,
envelhecimento e geriatria, medicina laboratorial na prática médica. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Roteiro de procedimentos básicos. Mário Ferreira Júnior, Ana Claudia Camargo, Milton de Arruda Martins. Centro de Promoção de
Saúde – CPS, Serviço de Clínica Médica Geral, HCFMUSP, 2010.
Recommendations for the use of human papillomavirus vaccines. UpToDaTe. 2011.
Screening for breast cancer. UpToDate. 2011.

Pedro Kallas Curiati 44


AVALIAÇÃO PERIOPERATÓRIA
Risco cardiovascular

História clínica
Idade, gênero, tipo sanguíneo, sorologia positiva para vírus C e aceitação de
transfusão de hemocomponente.
Doença de base que indicou o procedimento cirúrgico.
Antecedentes cirúrgicos e anestésicos.
Comorbidades, como cardiopatias graves (insuficiência cardíaca avançada,
doença arterial coronária e arritmias sintomáticas e/ou com repercussão hemodinâmica),
doença vascular periférica, insuficiência renal, doença vascular cerebral, diabetes
mellitus, hepatopatia, distúrbios hemorrágicos, distúrbios da tireoide e doença pulmonar
crônica.
Capacidade funcional.
Fatores de risco para cardiopatias.
Uso de marca-passo ou cardiodesfibrilador implantável.
Uso de medicamentos, drogas, fitoterápicos, álcool e drogas ilícitas.
Informações do cirurgião sobre urgência, risco e local do procedimento,
disponibilidade de Unidade de Terapia Intensiva, suporte técnico de pessoal e
equipamentos, tipo de anestesia, tempo cirúrgico, necessidade de transfusão e comissão
de controle de infecção hospitalar.
Dúvidas do paciente e de seus familiares com relação ao procedimento e seus
riscos. Ciência e acordo quanto ao risco e aos benefícios dos procedimentos. Ciência de
que o risco cirúrgico não se limita ao transoperatório e, eventualmente, haverá
necessidade de acompanhamento tardio. Ciência de que as complicações não se limitam
ao sistema cardiovascular.

Exame físico
Os objetivos são identificar cardiopatia pré-existente ou potencial, definir
gravidade e estabilidade da cardiopatia e identificar eventuais comorbidades.

Exames subsidiários
A indicação de exames pré-operatórios deve ser individualizada conforme as
doenças e comorbidades apresentadas pelos pacientes, assim como o tipo e o porte da
cirurgia proposta. Para procedimentos de baixo risco em pacientes de baixo risco clínico,
a operação poderia ser realizada sem exames pré-operatórios. Para os outros tipos de
procedimentos cirúrgicos e outros perfis de risco de pacientes, não há indicação da
realização rotineira de exames pré-operatórios em pacientes assintomáticos.
Eletrocardiograma é recomendado para pacientes com história e/ou anormalidades
ao exame físico sugestivas de doença cardiovascular, episódio recente de dor torácica
isquêmica, alto risco cardíaco, diabetes mellitus, obesidade e/ou idade superior a quarenta
anos. Também deve ser realizado em pacientes que serão submetidos a operação vascular
e em pacientes com pelo menos um fator de risco cardiovascular que serão submetidos a

Pedro Kallas Curiati 45


operação de risco intermediário.
Radiografia de tórax é recomendada para pacientes com história e/ou
anormalidades ao exame físico sugestivas de doença cardiorrespiratória, idade superior a
quarenta anos e/ou intervenção de médio a grande porte programada.
Hemograma completo é recomendado para pacientes com história de anemia,
outra doença hematológica ou doença hepática, suspeita clínica de anemia ao exame
físico, intervenção de médio a grande porte programada com previsão de necessidade de
transfusão de hemocomponente, doença crônica associada a anemia e/ou idade superior a
quarenta anos.
Testes da coagulação são recomendados para pacientes com uso de medicação
anticoagulante, insuficiência hepática, distúrbios da coagulação e/ou intervenção de
médio a grande porte programada.
Dosagem da creatinina sérica é recomendada para pacientes com nefropatia,
diabetes mellitus, hipertensão arterial sistêmica, insuficiência hepática, insuficiência
cardíaca, intervenção de médio a grande porte e idade superior a quarenta anos.
Teste de gravidez deve ser realizado em todas as mulheres em idade fértil.

Etapas da avaliação perioperatória


Verificar as condições clínicas do paciente.
Avaliar a capacidade funcional. A capacidade de andar por dois quarteirões no
plano ou carregar duas sacolas de compras por um lance de escadas corresponde a
aproximadamente 4 MET.
Índice de atividade de Duke
Taxa de equivalência Tipo de atividade
metabólica (MET)
Excelente, superior a 7 MET Futebol, natação e tênis
Moderado, 4-7 MET Corridas de curtas distâncias, caminhadas com velocidade de
6.4km/hora
Ruim, inferior a 4MET Pouca atividade, caminhadas curtas (dois quarteirões) com velocidade
de no máximo 4.8km/hora
Desconhecido -
Estabelecer o risco cardíaco intrínseco relacionado ao tipo de procedimento.
Alto, superior ou igual a 5% Intermediário, superior ou igual a 1% e Baixo, inferior a 1%
inferior a 5%
Cirurgias vasculares arteriais Endarterectomia de carótida e correção Procedimentos
periféricas, da aorta e de grandes endosvascular de aneurisma de aorta endoscópicos
vasos abdominal Procedimentos
Cirurgias de urgência ou Cirurgia de cabeça e pescoço superficiais
emergência Cirurgias intraperitoneais e intratorácicas Cirurgias
Cirurgias prolongadas com grande Cirurgias ortopédicas oftalmológicas
perda de fluido ou sangue Cirurgias urológicas e ginecológicas Cirurgia de mama
Cirurgia
ambulatorial
Decidir sobre a necessidade de testes para avaliação complementar.
Avaliar a terapêutica que está sendo empregada, corrigir a posologia e as classes
de drogas cardiovasculares empregadas, adicionar novos medicamentos e orientar o
manejo perioperatório dos medicamentos em uso.
Avaliar a necessidade de procedimentos invasivos, como angioplastia e cirurgia
cardíaca.

Pedro Kallas Curiati 46


Efetuar acompanhamento perioperatório. Considerar necessidade de
monitorização eletrocardiográfica e dosagens laboratoriais de marcadores de injúria
miocárdica, corrigir distúrbios hidroeletrolíticos, identificar e tratar anemia, infecção e
insuficiência respiratória e considerar profilaxia para tromboembolismo pulmonar.
Planejar a terapêutica a longo prazo.

Diretrizes de avaliação e cuidados perioperatórios para cirurgia não-cardíaca do grupo


de avaliação perioperatória do HC-FMUSP
Em caso de operação de emergência, a avaliação pré-operatória tem a finalidade
apenas de traçar uma estratégia para controle clínico perioperatório dos fatores de risco e
fazer busca ativa de eventos cardiovasculares.
Em caso de condição cardiológica instável, como angina de classes III e IV,
infarto do miocárdio com menos de trinta dias de evolução, insuficiência cardíaca de
classe funcional IV ou com piora recente, distúrbios do ritmo, como bloqueio
atrioventricular avançado, bradicardia sintomática e taquicardia supraventricular com
frequência cardíaca superior a 100bpm, ou valvopatia severa, como estenose aórtica
grave e estenose mitral sintomática, deve-se avaliar e tratar a afecção cardiológica antes
de operações eletivas.
Em caso de operação de baixo risco ou capacidade funcional boa, superior ou
igual a 4 MET, sugere-se realizar avaliação clínica e tratar possíveis doenças existentes,
com realização da operação independentemente de o paciente ser de baixo, intermediário
ou alto risco.
Em caso de operação de risco intermediário a alto e capacidade funcional
desconhecida ou inferior a 4MET, sugere-se avaliação dos fatores definidos por Lee, que
incluem doença arterial coronariana, com ondas Q no eletrocardiograma, sintomas de
isquemia miocárdica, exame complementar positivo para isquemia miocárdica e/ou uso
de nitrato, insuficiência cardíaca congestiva, com sintomas clínicos e/ou radiografia de
tórax com congestão pulmonar, doença cerebrovascular, diabetes mellitus dependente de
Insulina e creatinina superior a 2mg/dL. Na ausência de fatores de risco, pode-se
proceder diretamente para a operação, exceto se cirurgia vascular. Na presença de um ou
mais fatores de risco em pacientes que serão submetidos a operação de risco
intermediário ou em caso de cirurgia vascular com até dois fatores de risco, pode-se
proceder diretamente para a operação, sendo recomendado controle de frequência
cardíaca com β-bloqueador em caso de uso regular ou mais de um fator de risco
cardiovascular, introdução de estatina (Atorvastatina 20mg/dia) em caso de operação
vascular e manutenção de Ácido Acetilsalicílico em caso de uso regular, principalmente
se doença coronária ou operação vascular, devendo-se considerar teste não-invasivo para
isquemia se houver sintomas de doença arterial coronária. Na presença de três ou mais
fatores de risco em pacientes que serão submetidos a operação vascular, recomenda-se
controle de frequência cardíaca com β-bloqueador, Atorvastatina 20mg/dia, Ácido
Acetilsalicílico e teste não-invasivo para isquemia se for mudar conduta.

Fluxograma para avaliação perioperatória - II Diretriz de Avaliação Perioperatória da


Sociedade Brasileira de Cardiologia

Etapa I – Excluir condições cardíacas agudas

Pedro Kallas Curiati 47


Se angina instável, infarto agudo do miocárdio, choque cardiogênico, edema
agudo dos pulmões, bradiarritmia grave ou taquiarritmia grave, o paciente tem risco
muito elevado e a operação não-cardíaca deve, sempre que possível, ser cancelada e
reconsiderada somente após estabilização cardíaca.

Etapa II – Estratificar o risco conforme algoritmo de preferência


Algoritmo de Lee
Variáveis Classe Número de Risco
de risco variáveis (%)
- Operação intraperitoneal, intratorácica ou vascular suprainguinal; I 0 0.4
- Doença arterial coronariana, com ondas Q no eletrocardiograma, II 1 0.9
sintomas de isquemia miocárdica, exame complementar positivo para III 2 7.0
isquemia miocárdica e/ou uso de nitrato; IV 3 ou mais 11.0
- Insuficiência cardíaca congestiva, com sintomas clínicos e/ou
radiografia de tórax com congestão pulmonar;
- Doença cerebrovascular;
- Diabetes mellitus dependente de Insulina;
- Creatinina pré-operatória superior a 2mg/dL;

Algoritmo do American College of Physicians (ACP)


Fator de risco Pontos Interpretação
Infarto do miocárdio há menos de seis 10 - Se pontuação superior ou igual a 20, alto risco, superior
meses a 15%;
Infarto do miocárdio há mais de seis 5 - Se 0-15 pontos, avaliar número de variáveis de Eagle e
meses Vanzetto para discriminar risco baixo de risco
Angina classe III 10 intermediário;
Angina classe IV 20 - Variáveis de Eagle e Vanzetto incluem idade superior a
Edema agudo de pulmão na última 10 70 anos, história de angina, diabetes mellitus, ondas Q
semana no eletrocardiograma, história de insuficiência cardíaca,
Edema agudo de pulmão há mais de 5 história de infarto do miocárdio, alterações isquêmicas
uma semana de ST e hipertensão arterial sistêmica com sobrecarga
Suspeita de estenose de aorta crítica 20 ventricular esquerda importante;
Ritmo não-sinusal ou ritmo sinusal 5 - Se no máximo uma variável, risco baixo, inferior a 3%;
com extra-sístoles supraventriculares - Se duas ou mais variáveis, risco intermediário, de 3-
no eletrocardiograma 15%;
Mais de cinco extra-sístoles 5
ventriculares no eletrocardiograma
Idade superior a 70 anos 5
Cirurgia de emergência 10
PaO2 inferior a 60mmHg, PaCO2 5
superior a 50mmhg, potássio inferior
a 3.0mEq/L, uréia superior a
50mg/dL, creatinina superior a
3.0mg/dL ou paciente restrito ao leito

Etapa III – Conduta


Algoritmo de Lee - Classes I e II Diretamente à operação
Algoritmo do American College of
Physicians – Risco baixo

Pedro Kallas Curiati 48


Algoritmo de Lee - Classes III e IV Teste funcional de isquemia, se for mudar conduta, em caso de
com insuficiência cardíaca ou angina cirurgia vascular ou de médio risco
classe funcional I ou II
Algoritmo do American College of
Physicians – Risco intermediário
Algoritmo de Lee - Classes III e IV Sempre que possível, adiar operação até estabilizar a condição
com insuficiência cardíaca ou angina cardíaca e, se a natureza do risco for isquêmica, realizar
classe funcional III ou IV cineangiocoronariografia
Algoritmo do American College of Pós-operatório em unidade de terapia intensiva, manutenção da
Physicians – Risco alto monitoração eletrocardiográfica por 72 horas e dosagem seriada
de marcadores de necrose miocárdica

Avaliação perioperatória suplementar


A função ventricular esquerda pode ser avaliada com acurácia semelhante por
inúmeros exames subsidiários, como ecocardiografia transtorácica e transesofágica,
ventriculografia radioisotópica, ressonância magnética e tomografia cardíaca com
múltiplos detectores. Usualmente, a ecocardiografia bidimensional é o exame escolhido,
por sua grande disponibilidade, além de permitir avaliação detalhada da estrutura e da
dinâmica das válvulas ou da presença de hipertrofia ventricular. Deve ser realizada em
pacientes com suspeita de valvopatias com manifestações clínicas importantes, em
avaliação pré-operatória para transplante hepático e/ou com insuficiência cardíaca sem
avaliação prévia da função ventricular. Pode ser realizada em pacientes que serão
submetidos a operações de alto risco ou a cirurgia bariátrica. A avaliação da função
ventricular esquerda obtida de rotina no pré-operatório não é recomendada.
A avaliação de isquemia miocárdica no contexto perioperatório é realizada por
meio de uma prova funcional com estresse farmacológico ou físico associada a um
método de imagem. A cintilografia de perfusão miocárdica com Dipiridamol,
Dobutamina ou estresse físico e o ecocardiograma de estresse com Dobutamina têm
excelentes taxas de acurácia, com alto valor preditivo. Os pacientes submetidos a alguma
forma de avaliação funcional nos dois últimos anos, sem alterações na sintomatologia e
sem piora na capacidade funcional desde então, não necessitam repetir o teste. O mesmo
conceito se aplica aos pacientes com revascularização miocárdica completa, cirúrgica ou
percutânea, realizada há mais de seis meses e menos de cinco anos, estáveis clinicamente.
Cintilografia de perfusão miocárdica ou ecocardiograma de estresse devem ser realizados
em pacientes com risco intermediário de complicações e programação de cirurgia
vascular e podem ser realizados em pacientes com risco intermediário de complicações e
programação de operação de risco intermediário e em pacientes com baixa capacidade
funcional em programação de operação de risco intermediário a alto. Cintilografia de
perfusão miocárdica com Dipiridamol é preferida em pacientes com arritmias cardíacas
ou aneurisma de aorta sintomático ou com grande diâmetro. Ecocardiograma com
Dobutamina é preferido em pacientes com distúrbio ventilatório obstrutivo ou estenose
de carótidas severa. A cineangiocoronariografia e a angiotomografia de coronárias não
são substitutos para a cintilografia de perfusão miocárdica ou o ecocardiograma com
estresse e não devem ser realizados rotineiramente na avaliação de pacientes com risco
intermediário. O teste ergométrico convencional não apresenta boa acurácia em relação
aos outros testes associados a um método de imagem e apresenta limitações nos pacientes
com alterações no eletrocardiograma basal, tais como bloqueios de ramo, sobrecargas
ventriculares e alterações de repolarização ventricular. Entretanto, em um grupo seleto de

Pedro Kallas Curiati 49


pacientes que consegue atingir 85.0% da frequência cardíaca prevista, o resultado do teste
tem um valor preditivo negativo alto e permite a avaliação objetiva da capacidade
funcional.
A monitoração eletrocardiográfica contínua por meio do Holter é um método que
avalia presença e complexidade de arritmias atriais e ventriculares, além de identificar
alterações dinâmicas do segmento ST compatíveis com isquemia miocárdica. Na
avaliação pré-operatória, sua utilização raramente é útil, já que os pacientes com suspeita
de cardiopatia isquêmica serão preferencialmente avaliados por outros métodos e, aqueles
com suspeita de arritmias graves e/ou sintomáticas, possivelmente já o teriam realizado
previamente. A principal aplicação do Holter no contexto perioperatório está na
monitoração de possíveis eventos isquêmicos que ocorrem no intra e, principalmente, no
pós-operatório, devendo ser avaliada a sua utilização nos pacientes considerados de risco
intermediário ou alto de eventos isquêmicos.
Angiografia coronária é um procedimento diagnóstico invasivo bem estabelecido,
permitindo a visualização da anatomia coronária e da função ventricular, mas raramente é
indicada para avaliação de risco em cirurgias não cardíacas. Em pacientes portadores de
isquemia miocárdica, as indicações de cateterismo cardíaco pré-operatório e
revascularização são similares às indicações de angiografia em outras situações. O
adequado controle e o tratamento da isquemia antes do procedimento cirúrgico, tanto do
ponto de vista médico como por intervenção, são recomendados sempre que a cirurgia
não-cardíaca puder ser postergada. O cateterismo cardíaco deve ser realizado na presença
de síndromes coronárias agudas, angina estável não-controlada com medicação e
pacientes portadores de angina estável com disfunção ventricular esquerda. Na suspeita
de doença coronária baseada em testes não-invasivos, como o teste ergométrico,
cintilografia do miocárdio ou ecocardiografia de estresse pela Dobutamina, o cateterismo
deve ser indicado quando forem demonstradas áreas moderadas a grandes de isquemia
induzida e/ou características de alto risco. Na presença de testes não-invasivos
inconclusivos e alta probabilidade de doença coronária, o cateterismo pode ser indicado
antes de cirurgias de alto risco. Pacientes com indicação de cirurgia vascular e alta
probabilidade de doença arterial coronária podem eventualmente ter o cateterismo
indicado mesmo na ausência de testes não-invasivos.
Nos últimos anos, diversos estudos na literatura mostraram que a dosagem de
níveis de BNP ou NT-proBNP no pré-operatório pode auxiliar na identificação de
pacientes de risco para complicações e eventos cardiovasculares pós-operatórios.

Avaliação específica

Hipertensão arterial sistêmica


Se a pressão arterial não está controlada e existe tempo para tal, a terapêutica deve
ser otimizada para reduzir os níveis pressóricos. Hipertensão arterial sistêmica em
estágios I e II não se associa de forma independente a eventos cardíacos perioperatórios.
As medicações anti-hipertensivas devem ser mantidas no pré-operatório, inclusive
no dia da operação.
Se o paciente está com a pressão elevada e não há tempo para o controle efetivo,
deve-se utilizar bloqueador β-adrenérgico de curta ação, como Esmolol, para evitar a
elevação da pressão no ato da intubação. Nos pacientes em que o β-bloqueador está

Pedro Kallas Curiati 50


contraindicado, a Clonidina por via oral pode ser usada.
A hipocalemia, se presente, deve ser corrigida antes da operação.
O reinício da terapêutica anti-hipertensiva no pós-operatório, de preferência a que
o paciente utilizava antes da cirurgia, deve ser realizado o mais rápido possível.
A otimização da volemia deve ser realizada durante todo o perioperatório.

Insuficiência cardíaca congestiva


Pacientes com sintomas de insuficiência cardíaca devem ser avaliados com
relação a etiologia e repercussão funcional da disfunção miocárdica.
O tratamento deve estar otimizado previamente à cirurgia, mantendo as
medicações no perioperatório, inclusive no dia da cirurgia.
Os agentes anestésicos depressores da contratilidade miocárdica devem ser
evitados.
O manejo de volume deve ser criterioso e, nos portadores de função cardíaca
criticamente deprimida, o uso de monitoração invasiva pode ser útil tanto no intra-
operatório como no pós-operatório imediato.
Agonistas beta-adrenérgicos devem ser evitados nos pacientes com
miocardiopatia hipertrófica.
Pacientes em classe funcional III/IV devem ter a operação eletiva adiada até
otimização da medicação e melhora dos sintomas, se possível.

Valvopatias
Pacientes portadores de valvopatia com indicação de tratamento intervencionista
valvar devem, prioritariamente, ser submetidos a tratamento cardíaco e, posteriormente, à
cirurgia não-cardíaca proposta.
Pacientes com valvopatia sintomática que serão submetidos à cirurgia não-
cardíaca devem estar com o tratamento comportamental e medicamentoso otimizado.
Lesões regurgitativas são compensadas com administração de vasodilatadores e
diuréticos. Estenose mitral beneficia-se de betabloqueio e diuréticos. Estenose aórtica é
de difícil manejo medicamentoso, podendo-se usar diuréticos, porém medicações
vasodilatadoras devem ser prescritas com cautela pelo risco de baixo débito e síncope.
O manejo da volemia e o controle hidroeletrolítico devem ser rigorosos em
portadores de valvopatia importante. Em pacientes com estenose aórtica importante,
deve-se evitar raquianestesia pela vasodilatação consequente.
Monitoração com pressão arterial invasiva pode ser usada em portadores de
valvopatia importante.
Não há indicação de betabloqueador, estatinas ou nitroglicerina de rotina em
portadores de valvopatia.
Todos os pacientes portadores de valvopatias devem ser avaliados quanto a
necessidade de profilaxia para endocardite infecciosa.
Todos os pacientes portadores de valvopatia ou prótese valvar que fazem
anticoagulação oral contínua devem ser avaliados quanto a necessidade de ajustes e ponte
de anticoagulação com Heparina no perioperatório. Caso haja disfunção de prótese, deve-
se conduzir o caso conforme portador de valvopatia nativa equivalente.
Pacientes com estenose aórtica importante, assintomática, em programação de
operações não-cardíacas de risco intermediário a alto, deverão ser submetidos ao

Pedro Kallas Curiati 51


tratamento intervencionista da valvopatia antes da operação não-cardíaca.

Arritmias cardíacas
Na avaliação pré-operatória dos indivíduos que já apresentam antecedente de
arritmias cardíacas, deve-se primordialmente definir a presença ou não de sintomas e a
associação com doença cardíaca estrutural e dano funcional, especialmente a doença
coronária e as várias formas de insuficiência cardíaca. Eventualmente, arritmias são
encontradas em eletrocardiograma de rotina durante a avaliação pré-operatória. A
presença de extra-sístoles ventriculares, mesmo as formas repetitivas e frequentes, em
indivíduos assintomáticos e sem cardiopatia estrutural, não implica maior risco.
Entretanto, em pacientes sintomáticos e/ou portadores de cardiopatias associadas
(isquemia miocárdica, disfunção ventricular), uma avaliação pré-operatória mais
minuciosa faz-se necessária, objetivando, essencialmente uma melhor estratificação e
reconhecimento da extensão do comprometimento.
Em portadores de fibrilação atrial permanente, recomenda-se o controle da
frequência cardíaca de repouso para valores inferiores a 90bpm, uma vez que o estresse
perioperatório implica em risco de aumento da frequência cardíaca e sintomas
relacionados.
A utilização de betabloqueadores, como Metoprolol 100mg/dia, no perioperatório
de cirurgias reconhecidamente relacionadas a uma alta incidência de fibrilação atrial,
como as cirurgias torácicas, relaciona-se a uma menor frequência desta arritmia, sem
implicar efeitos colaterais significativos.
Deve ser fortemente considerada a avaliação do cardiologista antes da operação
em caso de sintomas relacionados a baixo débito ou quadro sincopal na presença de
cardiopatia estrutural associada a comprometimento da função sistólica ventricular
esquerda e/ou isquemia miocárdica, sintomas relacionados a taquiarritmias em portadores
de síndrome de pré-excitação ventricular, sintomas relacionados a taquiarritmias,
sintomas relacionados a baixo débito em idosos com frequência cardíaca inferior a
50bpm, paciente assintomático com fibrilação atrial permanente e paciente assintomático
com alta densidade de arritmias ventriculares isoladas ou repetitivas em associação com
doença cardíaca estrutural.

Distúrbios de condução
Pré-síncope, síncope, fraqueza e dispneia podem ser decorrentes de quadros de
bloqueio atrioventricular de segundo grau do tipo II, avançado ou total. Nessas situações,
uma propedêutica mais complexa faz-se necessária para uma adequada avaliação do risco
perioperatório e a instituição da terapêutica adequada, incluindo o implante de marca-
passo cardíaco.
Deve ser fortemente considerada a avaliação do cardiologista antes da operação
em caso de bloqueio atrioventricular de alto grau, bloqueio atrioventricular de baixo risco
associado a sintomas de baixo débito, bloqueio trifascicular ou bloqueio bifascicular com
sintomas de baixo débito.

Marca-passo
O marca-passo e os eletrodos são susceptíveis a infecções oriundas de outros
focos do organismo e mesmo de manipulações cirúrgicas de qualquer natureza. Para

Pedro Kallas Curiati 52


minimizar o risco de complicações, recomenda-se, se possível, aguardar até o final do
segundo mês do implante para realizar a cirurgia eletiva.
Os marca-passos que estão no final de vida devido ao desgaste avançado da
bateria deverão ser substituídos por unidades novas e mais modernas antes de cirurgias
eletivas.
Para cirurgias eletivas, os pacientes deverão também passar por uma avaliação
junto ao médico que acompanha o controle do aparelho, o qual fará uma completa
verificação do sistema de estimulação, determinando a necessidade de uma programação
especial e emitindo um relatório com os cuidados que deverão ser tomados pelo cirurgião
e anestesista e com a descrição dos possíveis comportamentos durante a intervenção
cirúrgica. Normalmente, a maior preocupação consiste naqueles pacientes que serão
submetidos a operações de grande porte, com o uso do bisturi elétrico. Em tais casos,
deverá ser realizada uma programação de segurança, sempre em uma unidade de
avaliação de marca-passos e por um médico habilitado. Se não for possível substituir o
bisturi elétrico pelo ultrassônico, o relatório deverá conter pelo menos as recomendações
descritas abaixo:
- Realizar monitoração cardiológica contínua com eletrocardiograma e
oxímetro de pulso;
- Usar bisturi elétrico bipolar e, na impossibilidade, usar o bisturi unipolar,
colocar o eletrodo dispersivo (placa do bisturi) longe do marca-passo e
perto do campo cirúrgico, aplicar uma camada fina e homogênea de pasta
eletrolítica em toda a sua superfície e preparar bem a pele na região,
eliminando oleosidades através da aplicação de álcool-éter no local;
- Aterrar bem o aparelho de bisturi, conectando-o a um bom fio terra;
- Usar o bisturi elétrico o mínimo possível e por intervalos curtos e
irregulares;
- Caso ocorra bradicardia ou taquicardia durante a aplicação do bisturi
elétrico, colocar um ímã sobre o marca-passo, somente nos momentos da
aplicação do bisturi elétrico, retirando-o logo em seguida;
O paciente deverá ser orientado a retornar à clínica de avaliação do marca-passo
após o período de recuperação pós-operatória para que a programação normal do gerador
seja restabelecida e para que as funções do marca-passo sejam reavaliadas.

Cardiodesfibrilador implantável
A complexidade e a diversidade de comportamento dessas próteses e o risco de
arritmias graves durante a operação, além da possibilidade da interação com
interferências eletromagnéticas, como as do bisturi elétrico, levam-nos a recomendar que
seja considerada, sempre que possível, a presença do especialista junto com o
equipamento de programação do cardiodesfibrilador implantável, na sala de operação,
permitindo o ajuste do mesmo durante a intervenção e de acordo com as necessidades
metabólicas do paciente.
A função antitaquicardia deverá ser desligada e o paciente devidamente
monitorado. Ao desligar essa função, o paciente estará desprotegido, e o médico deverá
estar preparado para tratar uma arritmia de alto risco, por meio de um desfibrilador
externo e de drogas aplicáveis. O uso de drogas antiarrítmicas poderá também ser
necessário. Não raramente e de acordo com a orientação do especialista, esse tipo de

Pedro Kallas Curiati 53


paciente necessitará de unidade de terapia intensiva no pós-operatório, onde permanecerá
monitorado na fase crítica, principalmente enquanto a função antitaquicardia estiver
desligada.

Procedimentos odontológicos
Embora bacteremia seja comumente relatada durante a realização de
procedimentos odontológicos, ocorre com frequência similar durante higiene oral e
mastigação. Por esse motivo, é recomendável, quando possível, a averiguação da saúde
bucal, com eliminação dos focos infecciosos e controle intensivo de higiene, dos
pacientes internados, cardiopatas ou não, previamente a procedimentos cirúrgicos,
visando a diminuir complicações perioperatórias.
Em pacientes cardiopatas, o uso de pequena quantidade de anestésicos locais com
vasoconstritor para procedimentos odontológicos é seguro e deve ser preferido em
relação ao uso de anestésicos locais sem vasoconstritor.
Em pacientes em anticoagulação oral, avaliação do tempo de protrombina deve
ser realizada pelo menos 24 horas antes do procedimento odontológico e, se a Razão
Normatizada Internacional (RNI) for inferior a 3.0, não será necessário suspender o uso
da medicação em caso de procedimentos cirúrgicos simples, como extração de até três
dentes, cirurgia gengival e raspagem periodontal. Quando o RNI foi superior ou igual a
3.0 ou os procedimentos cirúrgicos planejados forem de maior extensão, será necessário
discutir com o médico responsável.
O uso de Ácido Acetilsalicílico não deve ser interrompido para procedimentos
odontológicos.
Os antibióticos habitualmente utilizados na profilaxia de endocardite infecciosa,
como Amoxaxilina e Eritromicina, podem interferir no metabolismo de anticoagulantes
orais, devendo-se orientar os pacientes quanto ao possível aumento de sangramento e
fazer controle de RNI se necessário. Não é necessária a alteração do regime de
anticoagulante quando for utilizada dose única de antibiótico profilático.
Pacientes cardiopatas controlados, sob medicação otimizada, podem ser
submetidos a procedimento odontológico com segurança com os cuidados habituais de
rotina.

Pacientes de alto risco


É importante conhecer o prognóstico da doença de base, em especial para os
pacientes com alto risco de complicações cardiovasculares no ambiente perioperatório.
Tais informações devem ser solicitadas ao cirurgião que solicitou a avaliação.
Contraindica-se a operação não-cardíaca em situações nas quais existem
informações objetivas de que o risco de complicações cardiovasculares graves, como
morte cardíaca, infarto não-fatal e acidente vascular cerebral, supera o risco de morte pela
doença de base.
Na avaliação de risco cirúrgico, é imperativo também dispor das variáveis
relacionadas à instituição de saúde onde será feito o procedimento.

Medidas para redução do risco cirúrgico

β-bloqueadores

Pedro Kallas Curiati 54


Devem receber β-bloqueadores no perioperatório pacientes com isquemia
miocárdica sintomática ou revelada por prova funcional candidatos a operações
vasculares arteriais ou não-vasculares, pacientes que já fazem uso regular da medicação e
pacientes com risco cardíaco intermediário candidatos a operações vasculares. Podem
receber β-bloqueadores no perioperatório pacientes com risco cardíaco intermediário
candidatos a operações não-vasculares.
O momento de início deve ser o mais precoce possível, para que haja tempo hábil
para avaliar a resposta hemodinâmica de cada paciente, evitando bradicardia e
hipotensão. Devem ser prescritas doses baixas, com titulação progressiva até frequência
cardíaca de 55-65bpm, sem hipotensão, com pressão arterial sistólica superior a
100mmHg. A medicação deve ser mantida por trinta dias após a operação. Durante todo o
período perioperatório, deve ocorrer monitoração frequente de frequência cardíaca e
pressão arterial. Caso seja detectada frequência cardíaca inferior a 50bpm ou pressão
arterial sistólica inferior a 100mmHg, β-bloqueador deve ser suspenso temporariamente
até que o equilíbrio hemodinâmico e cronotrópico seja restabelecido. A suspensão de β-
bloqueadores no perioperatório de pacientes que os recebem cronicamente está
relacionada a importante aumento da mortalidade pós-operatória.

Estatinas
Devem receber estatinas no perioperatório pacientes que serão submetidos a
operações vasculares, pacientes com doença arterial coronária conhecida e pacientes que
já faziam uso regular da medicação. Podem receber estatinas no perioperatório pacientes
de alto risco.
A introdução de Atorvastatina 20mg ou Sinvastatina 40mg em pacientes que serão
submetidos a operações vasculares deve ser feita, de preferência, duas semanas antes do
procedimento, com manutenção durante trinta dias. Após esse tempo, a dose deve ser
ajustada para a meta de LDL-colesterol de cada paciente. A suspensão de estatina no
perioperatório em pacientes que fazem uso crônico é um preditor independente de
eventos cardiovasculares após operações vasculares. Por outro lado, as evidências sobre o
uso de estatinas para a prevenção de complicações cardiovasculares em operações não-
vasculares são fracas.
O uso de estatinas no perioperatório é seguro. Embora pacientes que usam estatina
apresentem um nível de creatino-fosfoquinase (CPK) basal mais elevado, a ocorrência de
elevação maior que cinco vezes o seu valor de referência ou de rabdomiólise é rara.

α2-agonistas
Os α2-agonistas modulam a resposta das catecolaminas à cirurgia e à anestesia,
diminuindo a liberação de noradrenalina, a pressão arterial e a frequência cardíaca.
Devem receber Clonidina no perioperatório pacientes com doença arterial coronária
conhecida que serão submetidos a operações vasculares e que apresentam
contraindicação ao uso de β-bloqueadores.

Bloqueadores de canais de cálcio


O uso de bloqueadores de canais de cálcio para prevenção de eventos
cardiovasculares no perioperatório de operações não-cardíacas não está recomendado.

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Antiagregantes plaquetários
As evidências atuais sugerem que, de fato, ocorre aumento de até 50% na taxa de
sangramentos perioperatórios em pacientes em uso de Ácido Acetilsalicílico. Por outro
lado, não ocorre aumento da taxa de sangramentos graves, exceto em neurocirurgias e
ressecção transuretral de próstata, exemplo de procedimento sem hemostasia primária.
Por outro lado, tienopiridínicos estão relacionados a aumento expressivo do risco
perioperatório.
Pacientes com doença arterial coronária em programação de operações não-
cardíacas devem manter uso do Ácido Acetilsalicílico em dose reduzida para 75-
100mg/dia, exceto em caso de neurocirurgia ou ressecção transuretral de próstata.
Pacientes em uso de dupla antiagregação por angioplastia com stent recente, deve-
se manter uso de Ácido Acetilsalicílico em todo período perioperatório, suspender o
tienopiridínico cinco dias antes da operação e reintroduzir o mais precoce possível,
idealmente antes que o paciente complete dez dias da suspensão.
Paciente em antiagregação somente com tienipiridínico e proposta de operação de
risco moderado a alto de sangramento, deve-se suspender o uso cinco dias antes.
Em procedimentos com baixo risco de sangramento, recomenda-se a manutenção
de dupla antiagregação em pacientes com angioplastia com stent recente e do
tienopiridínico em pacientes que não podem fazer uso de Ácido Acetilsalicílico.

Revascularização miocárdica
A revascularização miocárdica pode excepcionalmente ser indicada antes da
operação não-cardíaca, com o objetivo de reduzir o risco cardiovascular perioperatório.
Entretanto, as evidências são desfavoráveis à utilização dessa estratégia rotineiramente.
Pacientes que foram submetidos à angioplastia com stent farmacológico devem
receber Clopidogrel durante um ano, de forma que, nos casos de angioplastia para
pacientes com operação não-cardíaca programada para o próximo ano, não se deve
utilizar stent farmacológico. Nessas situações, a depender da premência cirúrgica, as
opções de tratamento percutâneo são utilização de stent convencional ou mesmo
angioplastia sem stent.
Deve ser realizada revascularização do miocárdio, cirúrgica ou percutânea, em
pacientes com indicação de revascularização do miocárdio, independentemente do
contexto perioperatório, em programação de operações não-cardíacas eletivas, pacientes
com evidência, durante avaliação perioperatória, de grandes áreas isquêmicas, baixo
limiar para isquemia e anatomia coronária de alto risco, como lesão de tronco de
coronária esquerda ou obstrução triarterial associada a disfunção ventricular, e pacientes
sem marcadores funcionais ou anatômicos de alto risco de complicação cardíaca
perioperatória, porém com indicação de revascularização miocárdica, antes de operações
não-cardíacas de risco intermediário a alto. Pode ser realizada revascularização do
miocárdio, cirúrgica ou percutânea, em pacientes sem marcadores funcionais ou
anatômicos de alto risco de complicação cardíaca perioperatória, porém com indicação de
revascularização miocárdica, antes de operações não-cardíacas de baixo risco.
Revascularização do miocárdio não é recomendada em pacientes com necessidade de
operação não-cardíaca de emergência, independentemente da gravidade dos sinais e
sintomas de obstrução coronária, e em pacientes com grave limitação prognóstica por
condições extracardíacas, em que se planeja procedimento cirúrgico não-cardíaco

Pedro Kallas Curiati 56


paliativo.
Intervalos preconizados entre a revascularização miocárdica e a operação não-cardíaca
Tipo de revascularização Intervalo mínimo Intervalo ideal
Cirúrgica Variável conforme condições do 30 dias
paciente
Angioplastia sem stent 7 dias 14 dias
Angioplastia com stent convencional 14 dias Superior a seis
semanas
Angioplastia com stent Um ano Indefinido
farmacológico

Profilaxia para tromboembolismo venoso


A adequada profilaxia do tromboembolismo venoso no espectro da avaliação
perioperatória envolve o conhecimento detalhado dos fatores de risco de cada paciente e
dos riscos inerentes ao procedimento cirúrgico.
Risco baixo em cirurgia de pequeno porte e cirurgia de médio porte em pacientes
com idade inferior a quarenta anos sem outros fatores de risco. Risco moderado em
cirurgia de médio porte em pacientes com idade entre quarenta e sessenta anos sem
fatores de risco adicionais e em pacientes com idade inferior a quarenta anos com outros
fatores de risco. Risco alto em cirurgia de grande porte ou em cirurgia de médio porte em
pacientes com idade superior a sessenta anos ou em pacientes com idade entre quarenta e
sessenta anos com outros fatores de risco adicionais. Risco altíssimo em cirurgia em
pacientes com múltiplos fatores de risco, artroplastia de quadril ou joelho e cirurgia para
tratamento de fratura de quadril.
Nível de risco Opções de profilaxia sugeridas
Risco baixo (inferior a 10%): Deambulação precoce e intensiva
- Pequenas cirurgias em
pacientes que deambulam;
- Pacientes clínicos que
deambulam;
Risco moderado a alto (10- Enoxaparina 20-40mg uma vez ao dia por via subcutânea, Dalteparina
40%): 5000UI uma vez ao dia por via subcutânea, Tinzaparina 4500UI uma vez
- Maior parte das cirurgias ao dia por via subcutânea, Heparina Não-Fracionada 5000UI de 12/12 a
gerais, ginecológicas e 8/8 horas por via subcutânea ou Fondaparinux 2.5mg uma vez ao dia por
urológicas abertas; via subcutânea (em indivíduos com peso superior a 50kg) até que o
- Pacientes clínicos restritos paciente possa deambular
ao leito ou gravemente Se alto risco de sangramento, profilaxia mecânica, com compressão
doentes; pneumática intermitente e/ou meias elásticas
Risco altíssimo (40-80%): Enoxaparina 40mg uma vez ao dia por via subcutânea, Dalteparina
- Artroplastia de joelho ou 5000UI uma vez ao dia por via subcutânea, Tinzaparina 4500UI uma vez
quadril; ao dia por via subcutânea, Fondaparinux 2.5mg uma vez ao dia por via
- Correção de fratura de subcutânea (em indivíduos com peso superior a 50kg) ou Warfarina em
quadril; dose suficiente para RNI 2.0-3.0 até a alta hospitalar ou, para pacientes
- Grandes traumas; selecionados de mais alto risco, como aqueles submetidos a grandes
- Lesão espinhal; cirurgias ortopédicas ou oncológicas com intuito curativo, até 28 dias
após a alta hospitalar
Se alto risco de sangramento, profilaxia mecânica, com compressão
pneumática intermitente e/ou meias elásticas
Nas grandes cirurgias ortopédicas, a Heparina de Baixo Peso Molecular pode ser
iniciada 12 horas antes ou 12-24 horas após o procedimento e o Fondaparinux pode ser
iniciado 6-24 horas após o procedimento.

Pedro Kallas Curiati 57


Em cirurgias do sistema nervoso central, deve-se preferir profilaxia mecânica em
pacientes sem fatores de risco adicionais para tromboembolismo venoso e associação de
profilaxia mecânica com método farmacológico em paciente com múltiplos fatores de
risco, com início 48-72 horas após a operação.
No pré-operatório de cirurgia bariátrica, pode-se utilizar doses maiores de
Heparina de Baixo Peso Molecular, com Enoxaparina 40mg de 12/12 horas por via
subcutânea, ou de Heparina Não-Fracionada, com 7500UI de 8/8 horas por via
subcutânea.
Deve-se avaliar a função renal quando for considerar o uso e a dose de Heparina
de Baixo Peso Molecular, Fondaparinux ou outro agente antitrombótico excretado pelos
rins, principalmente em indivíduos idosos, diabéticos ou com alto risco de sangramento.
Nessas circunstâncias, deve-se evitar o uso de antitrombótico com metabolização renal,
utilizar doses menores ou monitorar o nível sérico.
Há benefício do uso de métodos de profilaxia mecânica em pacientes de alto risco
de sangramento como adjuvante à profilaxia anticoagulante.
O Dabigatran é uma nova droga que age na inibição direta da enzima trombina,
responsável pela conversão de fibrinogênio em fibrina na cascata da coagulação. Sua
vantagem estaria em ser uma droga de uso oral que pode ser utilizada em única dose
diária, sem a necessidade de monitoração de seu efeito. Contudo, não possui antídotos
disponíveis. Seu uso encontra-se aprovado como uma opção à Heparina de Baixo Peso
Molecular na prevenção do tromboembolismo venoso em adultos submetidos à cirurgia
eletiva de prótese de joelho e quadril. O uso deve ser iniciado uma a quatro horas após a
cirurgia, com 110mg. Depois, deve-se continuar com dose padrão de 220mg uma vez ao
dia por 28-35 dias nas cirurgias de prótese de quadril e 10 dias nas cirurgias de prótese de
joelho. Em pacientes com disfunção renal moderada, pacientes com idade superior a 75
anos e naqueles recebendo Amiodarona, preconiza-se reduzir a dose padrão para
150mg/dia e a dose inicial para 75mg.

Anticoagulação
O manejo de pacientes em uso de anticoagulantes no perioperatório depende do
risco do paciente apresentar, neste período, eventos tromboembólicos ao descontinuar o
anticoagulante e do risco de sangramento, caso a anticoagulação seja mantida. A
anticoagulação no perioperatório está associada a um aumento de 3.0% de sangramentos
graves. Há um consenso que RNI inferior a 1.5 não está associado a sangramento no
perioperatório.
A anticoagulação deve ser suspensa para realização de alguns exames
endoscópicos, como endoscopia digestiva alta e colonoscopia.
Risco de eventos tromboembólicos
Alto Próteses mecânicas mitrais, aórticas antigas ou associadas a acidente isquêmico transitório
ou acidente vascular cerebral isquêmico nos últimos seis meses
Fibrilação atrial com CHADS2 superior ou igual a 5 associada a doença valvar ou acidente
vascular cerebral nos últimos três meses
Tromboembolismo venoso nos últimos três meses ou associado a deficiência de proteína C,
proteína S ou antitrombina ou presença de anticorpo antifosfolípide

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Intermediário Próteses mecânicas aórticas com fibrilação atrial, acidente vascular cerebral ou acidente
isquêmico transitório antigos, idade superior a 75 anos, insuficiência cardíaca, hipertensão
arterial sistêmica ou diabetes mellitus
Fibrilação atrial com CHADS2 de 3-4
Tromboembolismo venoso nos últimos 3-12 meses, trombofilias leves, como mutações
heterozigóticas do fator V de Leiden ou do fator II, tromboembolismo venoso recorrente ou
neoplasia ativa
Baixo Próteses mecânicas aórticas sem fatores de risco para acidente vascular cerebral
Tromboembolismo venoso há mais de 12 meses, sem outros fatores de risco
CHADS2: insuficiência cardíaca (1 ponto), hipertensão arterial sistêmica (1 ponto), idade superior a 75 anos
(1 ponto), diabetes mellitus (1 ponto), acidente vascular cerebral ou acidente isquêmico transitório (2
pontos).
Procedimentos de baixo risco de sangramento incluem cirurgia de catarata,
operações dermatológicas menores e operações dentárias, como higiene, extração
simples, restauração e procedimentos endodônticos e protéticos. Devem ser realizados
com INR próximo de 2.0, sem necessidade de interrupção da anticoagulação.
Em pacientes de baixo risco para tromboembolismo, deve-se interromper a
Warfarina cinco dias antes da operação e aguardar RNI inferior a 1.5 para realização do
procedimento. No pré-operatório, pode ser usada Heparina Não-Fracionada ou Heparina
de Baixo Peso Molecular em dose profilática, se indicado, enquanto RNI estiver inferior
a 2.0. No pós-operatório, se indicado, reiniciar Heparina Não-Fracionada ou Heparina de
Baixo Peso Molecular e reiniciar Warfarina doze a quatorze horas após o procedimento.
Em pacientes de alto risco para tromboembolismo, deve-se interromper a
Warfarina cinco dias antes da operação, iniciar Heparina Não-Fracionada ou Heparina de
Baixo Peso Molecular em dose plena quando RNI inferior a 2.0, aguardar RNI inferior a
1.5 para realização do procedimento e suspender Heparina Não-Fracionada intravenosa
quatro horas antes do procedimento e Heparina de Baixo Peso Molecular subcutânea 24
horas antes do procedimento. No pós-operatório, reiniciar Heparina Não-Fracionada ou
Heparina de Baixo Peso Molecular, reiniciar Warfarina doze a quatorze horas após o
procedimento e suspender a medicação parenteral somente quando RNI estiver dentro da
faixa terapêutica.
Em pacientes de risco intermediário para tromboembolismo, podem ser seguidas
as orientações tanto para o alto como para o baixo risco, a critério do médico assistente.
Em procedimentos de baixo risco de sangramento, deve-se realizar a operação
com RNI dentro da faixa terapêutica, não sendo necessária a suspensão da
anticoagulação. Se RNI superior a 3.0, deve-se descontinuar o anticoagulante por um a
dois dias antes da cirurgia e reiniciar na noite depois da cirurgia.
Em procedimentos de urgência, deve-se suspender a droga anticoagulante,
administrar Vitamina K1 2.5-5.0mg por via intravenosa e repor fatores deficientes com
concentrado de complexo protrombínico ou plasma fresco congelado.

Profilaxia para endocardite infecciosa


Profilaxia para endocardite infecciosa deve ser realizada em pacientes com risco
elevado de endocardite infecciosa grave e que serão submetidos a procedimentos
odontológicos de alta probabilidade de bacteremia significativa, pacientes com valvopatia
ou cardiopatia congênita que não se enquadram como de risco elevado de endocardite
infecciosa grave e que serão submetidos a procedimentos odontológicos de alta
probabilidade de bacteremia significativa e pacientes com risco elevado para endocardite

Pedro Kallas Curiati 59


infecciosa grave e que serão submetidos a procedimentos gênito-urinários,
gastroinestinais, esofágicos ou do trato respiratório superior associados a lesão mucosa.
Profilaxia para endocardite infecciosa pode ser realizada em pacientes com
valvopatia ou cardiopatia congênita que não se enquadram como de risco elevado de
endocardite infecciosa grave e que serão submetidos a procedimentos odontológicos de
menor probabilidade de bacteremia significativa e pacientes com valvopatia ou
cardiopatia congênita que não se enquadram como de risco elevado de endocardite
infecciosa grave e que serão submetidos a procedimentos gênito-urinários,
gastrointestinais, esofágicos ou do trato respiratório superior associados a lesão mucosa
Pacientes com risco de adquirir endocardite infecciosa grave incluem aqueles com
prótese cardíaca valvar, valvopatia corrigida com material protético, antecedente de
endocardite infecciosa, valvopatia adquirida após transplante cardíaco, cardiopatia
congênita cianogênica não-corrigida, cardiopatia congênita cianogênica corrigida com
lesão residual e cardiopatia congênita corrigida com material protético.
Os procedimentos odontológicos de maior risco para bacteremia incluem
colocação subgengival de fibras ou fitas com antibióticos, exodontias, implantes ou
reimplantes dentários, operações endodônticas ou peridônticas, colocação de bandas
ortodônticas e operações com sangramento significativo.
Embora a indicação de profilaxia antimicrobiana para endocardite infecciosa antes
de procedimentos que envolvam o trato gastrointestinal ou geniturinário tenha sido
abolida das sugestões da American Heart Association, há a indicação de manutenção da
profilaxia para tais procedimentos em nosso meio.
Esquemas medicamentosos de profilaxia para endocardite infecciosa antes de
procedimentos dentários incluem Amoxacilina 2g por via oral, Clindamicina 600mg por
via oral, Cefalexina 2g por via oral, Azitromicina 500mg por via oral, Claritromicina
500mg por via oral, Ampicilina 2g por via intravenosa ou intramuscular, Cefazolina 1g
por via intravenosa ou intramuscular, Ceftriaxone 1g por via intravenosa ou
intramuscular e Clindamicina 600mg por via intravenosa ou intramuscular. A medicação
oral deve ser ingerida uma hora antes do procedimento, enquanto que a medicação
parenteral deve ser infundida trinta minutos antes do procedimento.
Esquemas medicamentosos de profilaxia para endocardite infecciosa antes de
procedimentos gênito-urinários e gastrointestinais incluem Ampicilina 2g associada a
Gentamicina 1.5mg/kg por via intravenosa e Vancomicina 1g associada a Gentamicina
1.5mg/kg por via intravenosa. Deve-se fazer reforço da Ampicilina com 1g por via
intravenosa seis horas após o procedimento.

Controle glicêmico
No pré-operatório de pacientes ambulatoriais, deve-se solicitar glicemia de jejum
e hemoglobina glicada para todos os diabéticos, solicitar glicemia de jejum para aqueles
sem história de diabetes mellitus e manter glicemia de jejum de 90-130mg/dL, glicemia
pós-prandial de 70-180mg/dL e hemoglobina glicada inferior a 7.0%. A individualização
de metas deve ser considerada para idosos, portadores de insuficiência cardíaca, crianças
e gestantes. Não há evidência suficiente que embase o adiamento de cirurgia eletiva com
base no valor da glicemia de jejum e da hemoglobina glicada.
No pré-operatório de pacientes internados, deve-se monitorizar a glicose capilar
de diabéticos, avaliar hemoglobina glicada de diabéticos realizada ambulatorialmente e

Pedro Kallas Curiati 60


manter glicemia de jejum de 70-140mg/dL e glicemias aleatórias inferiores a 180mg/dL e
evitar variabilidade, com picos e vales. As metas podem ser diferentes em subgrupos
específicos, tais como gestantes, idosos, indivíduos com comorbidades severas e
portadores de insuficiência cardíaca. Em pacientes usuários de hipoglicemiantes orais
com hemoglobina glicada superior ou igual a 9.0%, deve-se considerar adiar a cirurgia ou
controlar de forma breve com Insulina, consulta com especialista e monitorização de
glicose capilar. Em pacientes usuários de Insulina, a glicose capilar deve ser aferida antes
das refeições e ao dormir.
Biguanidas devem ser suspensas 24-48 horas antes da operação, sulfoniluréias de
primeira geração (Clorpropamida) devem ser suspensas 48-72 horas antes da operação,
sulfoniluréias de segunda e terceira gerações (Glicazida, Glibenclamida, Glipizida e
Glimepirida) devem ser suspensas no dia da operação, Tiazolidinedionas devem ser
suspensas no dia da operação, Acarbose deve ser suspensa 24 horas antes da operação e
glinidas devem ser suspensas no dia da operação. Insulinas NPH, Detemir e Glargina
podem ter a dose noturna mantida, sendo administrado pela manha dois terços da dose se
operação no primeiro horário, metade da dose se operação pela manhã e um terço da dose
se operação de tarde. Insulinas Rápida ou Ultrarrápida devem ter as doses prandiais fixas
suspensas, com esquema escalonado conforme glicose capilar durante o jejum.
Os portadores de diabetes devem ser preferencialmente operados no primeiro
horário do dia, especialmente os usuários de insulina. No dia da cirurgia, deve-se evitar
hipoglicemias e variabilidade glicêmica, monitorar a glicemia capilar a cada seis horas
em pacientes usuários de hipoglicemiantes orais e a cada quatro horas em usuários de
insulina e manter glicemia de 100-180mg/dL. Se glicemia abaixo de 100mg/dL, deve-se
instalar aporte de glicose com 5-10g/hora. No HC-FMUSP, sugere-se instalar aporte de
glicose com 5-10g/hora durante todo o período de jejum, uma vez que o jejum aumenta a
resistência periférica à ação da Insulina, além de realizar controle de glicose capilar a
cada duas horas durante cirurgias de risco intermediário a alto.
No intraoperatório, a administração venosa de Insulina oferece vantagens sobre
sua aplicação subcutânea por ter absorção mais previsível e possibilidade de ajustes mais
rápidos para controle glicêmico mais seguro e efetivo. Uma outra solução contendo
dextrose com eletrólitos pode ser administrada concomitantemente com objetivo de
prevenção de hipoglicemia e hipocalemia.
Até que mais estudos sejam realizados e mais evidências estejam disponíveis para
se entender melhor qual é a mais adequada meta terapêutica para o controle glicêmico no
período pós-operatório de pacientes submetidos a cirurgias não-cardíacas, recomenda-se
que os pacientes sejam individualmente avaliados e que, de maneira geral, um valor ao
redor de 140 mg/dL seja considerado uma meta razoável. A indicação, no entanto, para
início da terapia com insulina intravenosa ocorre somente para pacientes internados em
unidades de terapia intensiva e cujos valores glicêmicos sejam superiores a 180mg/dL.
Para pacientes submetidos a cirurgias eletivas, sem complicações e com pós-
operatório não realizado em unidades de terapia intensiva, habitualmente não há
necessidade de controle glicêmico com Insulina intravenosa, devendo-se fazer uso do
mesmo esquema hipoglicemiante prévio à cirurgia.

Monitorização perioperatória
Durante o período perioperatório, deve-se otimizar a oferta de oxigênio tecidual

Pedro Kallas Curiati 61


com o objetivo de adequar a perfusão tissular e evitar a ocorrência de disfunção orgânica.
Estratégia visando a oferta excessiva de oxigênio deve ser evitada, pois não resulta em
prevenção da disfunção orgânica. A reposição volêmica no perioperatório deve ser
cuidadosa e baseada em metas continuamente avaliadas, preferencialmente por meio de
parâmetros dinâmicos, como a variação da pressão de pulso, que deve ser inferior a 13%,
a variação do volume sistólico, o ganho no índice cardíaco e a melhora dos parâmetros de
perfusão tecidual, como a saturação venosa central de oxigênio, o lactato e o excesso de
bases.
A otimização da oferta de oxigênio deve ser realizada por meio de avaliação
adequada do estado volêmico do paciente, desafiando o sistema cardiovascular com
provas volêmicas e reavaliações contínuas. A utilização de inotrópicos, como a
Dobutamina e a Dopexamina, no perioperatório do paciente de alto risco está indicada em
casos de não adequação da oferta de oxigênio da relação oferta-consumo quando a
volemia está ajustada. Devem ser iniciadas doses baixas e o paciente deve estar
monitorizado quanto a ocorrência de efeitos adversos, tais como isquemia e taquicardia.
A transfusão de hemácias deve ser realizada no paciente de alto risco em situações de
hipóxia tecidual ou desequilíbrio entre oferta-consumo de oxigênio.
Deve-se evitar uma estratégia liberal de reposição de fluidos no perioperatório,
uma vez que esta está associada a pior morbimortalidade. A reposição fluida pode ser
feita com cristaloides ou coloides, não havendo diferenças significativas entre estes. Em
situações de reposição volêmica maciça, com volumes superiores a 60mL/kg, recomenda-
se a utilização de amidos de menor peso molecular (Tetrastarch) e/ou Albumina em
associação aos cristaloides, desde que não haja contraindicações aos mesmos.

Anestesia
O uso da anestesia regional pressupõe maior estabilidade hemodinâmica e está
associado a excelente analgesia intra e pós-operatória, menor incidência de eventos
tromboembólicos, menor incidência de complicações respiratórias e, segundo alguns
estudos, menor recorrência de tumores e menor mortalidade. Devem ser consideradas
sempre as contraindicações ao bloqueio neuroaxial, como coagulopatia, plaquetopenia e
instabilidade hemodinâmica. O uso da anestesia combinada pode resultar em utilização
de menores doses de anestésicos venosos, menor tempo de anestesia e melhor analgesia.
Recomenda-se que a indução anestésica seja sempre realizada de forma lenta e
segura, evitando-se instabilidade hemodinâmica. Em pacientes com comprometimento da
função renal, a substituição do Midazolam por Propofol ou Etomidato, a substituição do
Fentanil por Remifentanil ou Sufentanil em baixas doses e a não utilização de relaxantes
musculares de eliminação renal permitem uma recuperação anestésica mais rápida. Em
pacientes com instabilidade hemodinâmica ou com reduzida reserva cardiovascular, a
Quetamina e o Etomidato devem ser os agentes de escolha para indução anestésica por
menor interferência hemodinâmica, apesar do uso do Etomidato poder estar associado a
ocorrência de insuficiência adrenal. Deve ser ressaltado que o Propofol está
contraindicado nos pacientes com instabilidade hemodinâmica ou reduzida reserva
cardiovascular por estar associado a hipotensão intraoperatória, choque e acidose
metabólica.
A ocorrência de hipotermia intraoperatória está relacionada ao aumento da
resposta ao estresse, à hipertensão e à ocorrência de eventos isquêmicos miocárdicos,

Pedro Kallas Curiati 62


resultando em aumento da morbimortalidade cirúrgica.
A Nitroglicerina intraoperatória deve ser utilizada apenas para controle pressórico
em pacientes coronariopatas, sem o objetivo de prevenção de isquemia perioperatória.
A comparação das diferentes modalidades ventilatórias no intraoperatório não
demonstrou benefício de uma técnica em relação à outra. Recomenda-se a utilização de
volume corrente de 8-10mL/kg na modalidade volume controlado ou pico/platô de
pressão inspiratória suficiente para manter este mesmo volume na modalidade pressão
controlada. A aplicação de PEEP durante anestesia geral é recomendada por associar-se à
melhora da oxigenação e prevenção da formação de atelectasias. A utilização das
manobras de recrutamento é prática recomendada no intraoperatório com o objetivo de
evitar o colapso alveolar. Na indução anestésica, recomenda-se a utilização de fração
inspirada de oxigênio de 1.0 para assegurar oxigenação adequada para a realização da
intubação. Na manutenção da anestesia, deve-se utilizar fração inspirada de oxigênio
suficiente para manter a saturação de oxigênio acima de 98.0%. O desmame da
ventilação mecânica pode ser realizado utilizando-se pressão de suporte ventilatório ou
ventilação mandatória intermitente sincronizada.
A obtenção de analgesia pós-operatória adequada associa-se à otimização da
função pulmonar pós-operatória. Manobras pós-operatórias para aumentar os volumes
pulmonares médios, como ventilação com pressão positiva intermitente, exercícios de
respiração profunda, espirometria de incentivo e fisioterapia respiratória, são
comprovadamente associadas à redução de complicações pós-operatórias.

Transfusão de hemocomponentes
Pacientes com hemoglobina inferior ou igual a 7.0g/dL assintomáticos e sem
doença cardíaca isquêmica de base devem receber concentrados de hemácias. Nos casos
de insuficiência coronariana aguda recomenda-se manter a hemoglobina entre 9.0g/dL e
10.0g/dL.
Transfusão de plaquetas deve ser realizada para qualquer procedimento cirúrgico
quando a contagem plaquetária for inferior a 50000/mm3 e para as intervenções
neurológicas e oftalmológicas quando a contagem plaquetária for inferior a 100000/mm3.

Cessação do tabagismo
Pacientes internados devem ser ativamente abordados quanto ao antecedente e
status tabágico. Fumantes devem ser indagados quanto à intenção de parar de fumar e
sobre sintomas de abstinência nicotínica. Terapia de reposição de nicotina deve ser
iniciada em tabagistas internados que experimentem sintomas de abstinência. Pacientes
tratados durante a internação devem ser seguidos, por pelo menos um mês após a alta,
para manterem-se abstinentes.
Cessação do tabagismo reduz complicações cirúrgicas e clínicas e pacientes em
avaliação pré-operatória devem ser estimulados a cessar o tabagismo independentemente
do intervalo de tempo até a intervenção cirúrgica. A intervenção terapêutica deve sempre
incluir a abordagem cognitivo-comportamental associada ou não ao tratamento
farmacológico.

Síndromes coronarianas agudas no perioperatório


Pacientes com estimativa de risco cardíaco perioperatório intermediário a alto de

Pedro Kallas Curiati 63


natureza isquêmica, devem permanecer monitorizados em unidades semi-intensivas ou de
terapia intensiva com eletrocardiograma e dosagem de troponina diariamente até o
terceiro dia pós-operatório. Se a dosagem de troponina não estiver disponível,
recomenda-se a substituição por curva de CKMB/CPK, com dosagens de 8/8 horas.
O ecocardiograma, cada vez mais disponível nos dias atuais, também se constitui
ferramenta de auxílio diagnóstico. Apesar de o achado de exame normal não excluir o
diagnóstico, a presença de uma nova alteração da contratilidade segmentar em pacientes
com suspeita de isquemia miocárdica corrobora o diagnóstico. Além disso, também pode
fornecer dados indiretos para diagnósticos alternativos, como embolia pulmonar e
insuficiência cardíaca de origem não-isquêmica.
O diagnóstico de infarto agudo do miocárdio perioperatório é baseado em
elevação ou queda típicas de troponina, ausência de diagnóstico alternativo e pelo menos
um dentre sinais e sintomas compatíveis com isquemia, ondas Q patológicas novas ou
alterações sugestivas de isquemia no eletrocardiograma e alteração segmentar nova ou
presumivelmente nova no ecocardiograma.
O tratamento do infarto agudo do miocárdio sem supradesnivelamento do
segmento ST requer, inicialmente, correção de fatores desencadeadores e que possam
perpetuar o processo isquêmico. Portanto, correção de anemia, hipovolemia e oscilações
pressóricas são as medidas primordiais a serem adotadas nessa situação. Adicionalmente
e de forma coerente com a fisiopatologia do evento, a estabilização da placa coronária
deve ser considerada medida importante no tratamento. Ácido Acetilsalicílico e
anticoagulação devem ser iniciados, caso não haja contraindicação. Apesar de não existir
estudo comparando os diversos meios de anticoagulação no período perioperatório, é
prudente dar preferência ao uso da Heparina Não-Fracionada, uma vez que sua meia vida
é menor e seus efeitos podem ser rapidamente revertidos caso ocorra sangramento. De
forma análoga ao tratamento do evento isquêmico fora do contexto perioperatório,
aconselha-se analgesia com nitratos e/ou Morfina, além do uso de β-bloqueadores,
inibidores da enzima conversora da angiotensina e estatinas. Prefere-se estratificação de
risco invasiva e precoce, antes da alta hospitalar.
O infarto agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST ocorre
em uma minoria dos casos e pressupõe oclusão total da artéria coronária, requerendo
intervenção imediata. Diferentemente do infarto agudo do miocárdio não-relacionado a
intervenções cirúrgicas, a terapia trombolítica é fortemente contraindicada no contexto
perioperatório devido ao risco proibitivo de sangramento. Dessa forma, a angiografia
coronária com angioplastia primária é o tratamento de escolha para tais pacientes. Essa
estratégia é segura e factível naqueles pacientes considerados sem contraindicações à
terapêutica com Heparina e antiagregantes plaquetários, que são requeridos durante e
após o procedimento, respectivamente.
A elevação isolada de troponina é um evento frequente no pós-operatório, não
configurando síndrome coronariana aguda, porém apresentando implicações prognósticas
a longo prazo.

Risco pulmonar
Os eventos pulmonares mais frequentes são pneumonia, insuficiência respiratória
aguda, ventilação mecânica prolongada, broncoespasmo, atelectasia e descompensação
da doença pulmonar de base.

Pedro Kallas Curiati 64


AVALIAÇÃO DO RISCO PULMONAR
Fatores de risco Pontos
Procedimentos Operação de aneurisma de aorta abdominal 15
Operação torácica 14
Operação abdominal alta 10
Operação de cabeça e pescoço 8
Neurocirurgia 8
Anestesia geral 4
Operação vascular arterial 3
Operação de emergência 3
Transfusão de cinco ou mais concentrados de hemácias 3
Idade (anos) Superior ou igual a 80 17
70-79 13
60-69 9
50-59 4
Grau funcional Dependente 10
Parcialmente dependente 6
Disfunções orgânicas Diminuição de 10% do peso nos últimos seis meses 7
Doença pulmonar obstrutiva crônica 5
Acidente vascular cerebral 4
Diminuição da consciência 4
Uréia inferior a 16mg/dL 4
Uréia superior a 60mg/dL 3
Uso crônico de corticoide 3
Uréia entre 44mg/dL e 60mg/dL 2
Hábitos Tabagismo 3
Etilismo, com ingesta de duas doses por dia 2
ESTRATIFICAÇÃO DO RISCO PULMONAR
Total de pontos Tipo de classe Risco pulmonar
0-15 I Baixo
16-25 II Baixo
26-40 III Intermediário
41-55 IV Alto
Superior a 55 V Alto
Outros fatores de risco para complicações pulmonares incluem síndrome da
apneia obstrutiva do sono, hipertensão arterial pulmonar, insuficiência cardíaca e
hipoalbuminemia.
Indicações de espirometria no pré-operatório incluem tosse, dispneia ou
intolerância a exercício de causa incerta, doença pulmonar obstrutiva não-compensada e
programação de ressecção pulmonar.
As manobras de expansão pulmonar correspondem à principal intervenção
perioperatória para pacientes com alto risco de complicações pulmonares, devendo o
treinamento do paciente iniciar no período pré-operatório. Deve-se também compensar
doença pulmonar pré-existente e tratar infecções no período pré-operatório. A analgesia
adequada é fundamental para diminuir as complicações pulmonares. Analgesias regional,
controlada pelo paciente e multimodal são técnicas efetivas. Também se recomenda parar
de fumar, limitar a cirurgia a um período inferior a três horas quando possível, preferir
anestesia epidural ou peridural, evitar uso de bloqueadores neuromusculares de ação
longa e preferir via laparoscópica quando possível. Usar pressão positiva contínua em
vias aéreas nas primeiras seis horas após a extubação de pacientes que apresentam

Pedro Kallas Curiati 65


hipoxemia diminui as taxas de reintubação, sepse e pneumonia. Pode-se considerar o uso
de corticosteroides em pacientes com asma ou doença pulmonar obstrutiva crônica
sintomáticos no pós-operatório, com Prednisona ou Metilprednisolona 0.5mg/kg/dia.

Risco renal
A insuficiência renal aguda no pós-operatório é definida como uma significativa
diminuição na taxa de filtração glomerular que ocorre no período de até duas semanas
após a cirurgia. Pode ser pré-renal, renal ou pós-renal.
Os pacientes com disfunção renal crônica e aqueles submetidos a operações de
aorta são de alto risco para o desenvolvimento de insuficiência renal aguda no pós-
operatório. Outras condições importantes para o desenvolvimento de insuficiência renal
aguda no pós-operatório incluem idade avançada, obesidade, operações de alto risco,
operações de emergência, doença vascular periférica, doença hepática e doença pulmonar
obstrutiva crônica.
No HC-FMUSP, utiliza-se algoritmo (Kheterpal et al, 2009) em que são incluídos
como fatores de risco cirurgia intraperitoneal, insuficiência renal leve, caracterizada por
creatinina 1.2-1.9mg/dL, ou moderada, caracterizada por creatinina superior ou igual a
2mg/dL, ascite, insuficiência cardíaca congestiva, cirurgia de emergência, idade superior
ou igual a 56 anos, hipertensão arterial sistêmica, sexo masculino e diabetes mellitus em
uso de medicação oral ou de Insulina. Os pacientes são estratificados em classe I, com até
dois fatores, associada a baixo risco de insuficiência renal aguda, ao redor de 0.2%, classe
II, com três fatores, associada a baixo risco de insuficiência renal aguda, ao redor de
0.8%, classe III, com quatro fatores, associada a moderado risco de insuficiência renal
aguda, ao redor de 1.8%, classe IV, com cinco fatores, associada a alto risco de
insuficiência renal aguda, ao redor de 3.3%, e classe V, com seis ou mais fatores,
associada a alto risco de insuficiência renal aguda, ao redor de 8.9%.
A proteção renal perioperatória sustenta-se em hidratação adequada, devendo-se
manter o volume plasmático e evitar hipotensão, diminuição do débito cardíaco, drogas
nefrotóxicas e uso indiscriminado de diuréticos. A correção das doses das medicações de
acordo com a função renal, em especial dos antibióticos, é de razoável importância.
Pacientes dialíticos devem ser submetidos a sessão de diálise no dia anterior ao da
cirurgia, com avaliação dos eletrólitos no dia da cirurgia. Em pacientes com necrose
tubular aguda, deve-se tomar cuidado com hipervolemia, que pode desencadear
complicações pulmonares, como congestão e pneumonia. Em caso de procedimento
endovascular ou de radiologia intervencionista, pode-se indicar para pacientes diabéticos
e/ou com disfunção renal crônica o uso de Soro Fisiológico 1mL/kg/hora por via
intravenosa 12 horas antes e 12 horas após o procedimento e de N-Acetilcisteína 1200mg
por via oral ou intravenosa de 12/12 horas 24 horas antes e 24 horas após o
procedimento. Alternativamente, pode-se substituir a infusão de Soro Fisiológico por
infusão de Bicarbonato de Sódio a 8.4% 150mL diluído em Soro Glicosado a 5% 850mL,
com 3mL/kg/hora durante uma hora antes do procedimento e 1mL/kg/hora durante seis
horas após o procedimento.

Risco adrenal
O aumento dos níveis de cortisol durante o estresse agudo é uma importante
resposta protetora. Entretanto, o estresse metabólico causado pelo ato cirúrgico pode

Pedro Kallas Curiati 66


precipitar insuficiência adrenal aguda em indivíduos com distúrbios clínicos e subclínicos
que acometam o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal e os resultados podem ser
catastróficos, determinando complicações múltiplas e até mesmo a morte do paciente.
Deve-se desconfiar do diagnóstico de insuficiência adrenal se, no intra-operatório
ou pós-operatório, houver hipotensão ou choque não-explicado ou refratário a volume e
drogas, discrepância entre a gravidade da doença e o estado do paciente, febre alta sem
causa aparente ou que não responde à terapia antibiótica, alterações mentais não-
explicadas, apatia ou depressão sem distúrbio psiquiátrico específico. Em tais casos,
deve-se tratar como insuficiência adrenal aguda e obter confirmação posterior.
Fatores de risco para insuficiência adrenal incluem tumores hipofisários,
radioterapia da região hipofisária, intervenção cirúrgica hipofisária prévia, pós-operatório
de cirurgia para tratamento de doença de Cushing, pós-operatório de adrenalectomia
bilateral, uso crônico de corticoide, diabetes mellitus tipo 1 ou outras doenças autoimunes
e quadro clínico sugestivo, com escurecimento da pele, fraqueza, fadiga, náusea, vômitos,
depressão, hipotensão, distúrbios hidroeletrolíticos, hipoglicemia e febre. Considera-se
uso crônico de corticoide mais de 7.5mg/dia de Prednisona por mais de trinta dias nos
últimos seis a doze meses ou mais de 20mg/dia de Prednisona por mais de três semanas.
Recomenda-se confirmar o diagnóstico por meio de testes apropriados para
pacientes de risco para insuficiência adrenal e considerar acompanhamento conjunto com
endocrinologista. Em caso de necessidade de confirmação laboratorial do diagnóstico,
recomenda-se o uso de Dexametasona, que não interfere com os resultados. Em caso de
coexistência de hipotireoidismo não tratado, deve-se corrigir primeiro a insuficiência
adrenal.
Não há necessidade de suplementação de mineralocorticoides, pois as doses de
corticoide para suplementação no estresse cirúrgico possuem atividade
mineralocorticoide. Não há necessidade de doses elevadas de suplementação de
corticoides para prevenção de insuficiência adrenal aguda. Doses elevadas podem
aumentar a chance de complicações, tais como hipertensão e descompensação de diabetes
mellitus.
Em caso de cirurgias eletivas, recomenda-se o uso, além da dose usual,
preferencialmente administrada pela manhã, de Hidrocortisona 25mg por via intravenosa
antes da indução anestésica em caso de pequenos procedimentos, como hernioplastia,
50mg por via intravenosa antes da indução anestésica e 25mg por via intravenosa de 8/8
horas durante 24 horas em caso de estresse cirúrgico moderado, como colecistectomia,
artroplastia e revascularização de membro inferior, e 100mg por via intravenosa antes da
indução anestésica e 50mg por via intravenosa de 8/8 horas durante 24 horas, com
redução da dose em 50% ao dia até os níveis de manutenção, em caso de estresse
cirúrgico acentuado, como em revascularização miocárdica, proctocolectomia total e
esofagectomia com gastrectomia. 5mg de Prednisona correspondem a 4mg de
Metilprednisolona, 20mg de Hidrocortisona e 0.75mg de Dexametasona.

Risco hepático
A avaliação do risco cirúrgico em pacientes com doença hepática abrange a
severidade da doença hepática, a urgência da cirurgia, a disponibilidade de alternativas à
cirurgia e a ocorrência de comorbidades clínicas. Após a classificação de risco, o
avaliador deverá decidir com a equipe a relação entre risco e benefício do procedimento.

Pedro Kallas Curiati 67


A compensação do paciente antes da operação e o planejamento adequado do ato
cirúrgico são fundamentais para diminuir as complicações.
Contraindicações à cirurgia eletiva incluem hepatite aguda ou fulminante, hepatite
alcoólica, hepatite crônica severa, insuficiência hepática CHILD C e/ou com MELD
superior a 15, coagulopatia severa e manifestações extra-hepáticas severas de doença
hepática, como hipoxemia, miocardiopatia e insuficiência renal aguda. Pacientes com
cirrose hepática CHILD A e/ou com MELD inferior a 10 ou doença hepática crônica leve
a moderada sem cirrose, como hepatite crônica leve a moderada, doença hepática
gordurosa, hepatite autoimune, hemocromatose e doença de Wilson, geralmente toleram
bem abordagem cirúrgica, mas o tratamento clínico deve ser otimizado no período pré-
operatório. A indicação cirúrgica deve ser individualizada, abrangendo risco cirúrgico,
cenário clínico e tipo de procedimento, em pacientes com cirrose hepática CHILD B e/ou
com MELD 10-15, sempre com avaliação e manejo pré-operatórios abrangentes,
excetuando-se ressecção hepática extensa e cirurgia cardíaca, em que os riscos são mais
elevados.
Em pacientes elegíveis, deve-se considerar se a cirurgia eletiva pode ser adiada
até a realização do transplante hepático.
Além da avaliação do risco cirúrgico, os pacientes com doença hepática conhecida
devem ser avaliados quanto à presença de icterícia, coagulopatia, ascite, distúrbios
hidroeletrolíticos, disfunção renal e encefalopatia, que demandam tratamento específico
antes da intervenção cirúrgica.
Em caso de tempo de protrombina elevado, é razoável tentar correção com
vitamina K e plasma fresco congelado para atingir tempo de protrombina dentro de três
segundos acima do limite superior da normalidade. Tempo de sangramento prolongado
pode ser tratado com Desmopressina (DDAVP). Técnica cirúrgica otimizada e
manutenção de pressão venosa central baixa podem reduzir as perdas sanguíneas.
Ascite deve ser tratada agressivamente para prevenir deiscência de ferida
operatória e herniação de parede abdominal. Em pacientes com edema periférico, podem
ser usados diuréticos, enquanto que em pacientes sem edema periférico ou em caso de
tempo insuficiente para uso da terapia diurético pode-se drenar a ascite completamente
durante a laparotomia.
Distúrbios hidroeletrolíticos, particularmente hipocalemia e alcalose metabólica,
devem ser corrigidos para reduzir o risco de arritmias cardíacas e encefalopatia hepática.
A função renal deve ser avaliada com dosagem de uréia e creatinina séricas.
Pacientes com varizes gastroesofágicas devem receber profilaxia adequada.
Suporte nutricional perioperatório pode reduzir o risco de complicações e a
mortalidade. Recomenda-se oferecer dieta com 1.2 vezes o gasto energético basal diário,
30-35% de gordura, 50-55% de carboidratos e 1g/kg/dia de proteína.
Em pacientes com icterícia obstrutiva, recomenda-se evitar hipovolemia, corrigir
distúrbio de coagulação quando necessário, administrar Lactulose ou Ácido
Ursodeoxicólico, evitar drenagem transparieto-hepática e evitar drogas nefrotóxicas e
hepatotóxicas.

Classificação de Child
Critério 1 ponto 2 pontos 3 pontos Classificação
Encefalopatia hepática Ausente Grau I e II Grau III e IV Child A quando até 6 pontos.
Ascite Ausente Fácil controle Refratária Child B quando 7-9 pontos.

Pedro Kallas Curiati 68


Bilirrubina (mg/dL) <2 2-3 >3 Child C quando 10-15 pontos.
Albumina (g/dL) >3.5 2.8-3.5 <2.8
RNI <1.7 1.7-2.3 >2.3

Classificação da American Society of Anesthesiology (ASA)


Classe Estado físico Estado funcional
1 Saudável Consegue andar dois quarteirões no plano ou subir um
lance de escadas
Pouca ou nenhuma ansiedade
2 Doença sistêmica leve a moderada, Consegue andar dois quarteirões no plano ou subir um
adequadamente controlada com lance de escadas, mas terá que parar após em função de
medicação, sem limitação funcional cansaço
ASA 1 com ansiedade extrema, medo, gestação ou
alergia ativa
3 Doença sistêmica severa com limitação Consegue andar dois quarteirões no plano ou subir um
funcional lance de escadas, mas terá que parar durante em função
de cansaço
4 Doença sistêmica severa incapacitante Não consegue andar dois quarteirões no plano ou subir
com ameaça constante à vida um lance de escadas, tendo que parar em função de
cansaço, que está presente mesmo durante repouso
5 Paciente moribundo sem expectativa de -
sobreviver 24 horas sem a operação
6 Morte encefálica -
E Sufixo utilizado para indicar cirurgia de qualquer classe em caráter de emergência

Risco de sangramento
A história de sangramento é o melhor indicador de sangramento no intra-
operatório. Fatores de risco maiores incluem sangramento em operação prévia,
sangramento menstrual e/ou obstétrico, epistaxe, história familiar de sangramento, uso de
Ácido Acetilsalicílico e/ou anti-inflamatório não-hormonal, contagem sanguínea
anormal, doença hepática, doença renal, doença hematológica e doença reumatológica.
Fatores de risco menores incluem etilismo e uso de drogas ilícitas.
No exame físico, petéquias podem estar associadas a plaquetopenia ou disfunção
plaquetária, equimoses podem estar associadas a doença adquirida ou hereditária que
predispõe sangramento, icterícia pode estar associada a doença hepática, artrite pode estar
associada a amiloidose ou hemofilia, dor óssea pode estar associada a mieloma ou
leucemia, espessamento de língua e pele pode estar associado a amiloidose e
hepatoesplenomegalia pode estar associada a doença hematológica ou hepática.

Bibliografia
Gualandro DM, Yu PC, Calderaro D, Marques AC, Pinho C, Caramelli B, et al. II Diretriz de Avaliação Perioperatória da Sociedade
Brasileira de Cardiologia. Arq Bras Cardiol 2011; 96(3 supl.1): 1-68.
Clínica Médica, volume 1: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da mulher,
envelhecimento e geriatria, medicina laboratorial na prática médica. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Preoperative medical evaluation of the healthy patient. Gerald W Smetana. UpToDate, 2011.
Estimation of cardiac risk prior to noncardiac surgery. Jonathan B Shammash et al. UpToDate, 2011.
Management of cardiac risk for noncardiac surgery. Jonathan B Shammash et al. UpToDate, 2011.
Evaluation of preoperative pulmonary risk. Gerald W Smetana. UpToDate, 2011.
Assessing surgical risk in patients with liver disease. Lawrence S Friedman. UpToDate, 2012.
Prevention of venous thromboembolic disease in surgical patients. Graham F Pineo. UpToDate, 2011.
The surgical patient taking glucocorticoids. Gail A Welsh, Ellen F Manzullo and Lynnette K Nielman. UpToDate, 2012.
Cuidados clínicos perioperatórios. Prof. Dr. Fábio Santana Machado. Disciplina de Clínica Geral da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo.

Pedro Kallas Curiati 69


INTERCONSULTA
No HC-FMUSP, convencionou-se chamar de interconsulta a situação em que a
resposta do médico consultado muda a conduta ou o prognóstico do paciente e de
encaminhamento quando a consulta é importante, mas a resposta não altera as condutas
adotadas. Existem diferentes rotinas, com alguns hospitais em que é permitido ao médico
consultado fazer prescrições e solicitar exames e outros hospitais em que a prescrição e a
solicitação de exames são sugeridas pelo consultado.
Nas enfermarias, é comum haver pacientes internados que precisam de múltiplos
especialistas para sua condução, principalmente em hospitais terciários. Muitas vezes, as
interconsulta acabam se tornando situações de acompanhamento conjunto. Cabe ao
clínico, principalmente nos locais onde é o médico responsável pelos pacientes, a
interlocução das diversas subespecialidades para a condução de pacientes complexos,
com acometimento de múltiplos órgãos e sistemas.
Interconsultas também são cruciais para pacientes ambulatoriais, tanto para
responder questões específicas como para acompanhamento conjunto. A dinâmica das
solicitações ambulatoriais é diferente daquela relacionada aos pacientes internados, com
tempos diferentes para solicitação e atendimento.
Fatores que facilitam a aceitação das recomendações do consultor incluem
resposta rápida, número limitado de recomendações, identificação de recomendações
importantes, foco nos pontos principais, uso de linguagem direta, especificação de
medicações, uso e dosagem, retornos frequentes e contato verbal direto.
Recomenda-se ao solicitador que faça um breve resumo do caso, tentando apontar
a relevância da questão, seja objetivo na pergunta a ser feita, forneça informações para
contato e, caso queira acompanhamento conjunto, especifique. Recomenda-se ao
consultor que determine a questão e responda-a prontamente, refaça a história clínica e o
exame físico, verifique os exames laboratoriais, seja específico, inclua detalhes das
medicações indicadas, preveja intercorrências e sugira como contorna-las, seja educado
na resposta e retorne para verificar se as recomendações foram aceitas.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 1: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da mulher,
envelhecimento e geriatria, medicina laboratorial na prática médica. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 70


TABAGISMO
Conceito
Tabagismo é um distúrbio mental comportamental e a dependência ao tabaco
consiste em conjunto de fenômenos comportamentais, cognitivos e fisiológicos que se
desenvolve após uso repetido e que tem como características forte desejo de fumar,
dificuldade em controlar o uso, persistência no uso a despeito de consequências nocivas,
tolerância à nicotina e estado de abstinência. Os sintomas de abstinência incluem fissura,
irritabilidade, ansiedade, alterações do sono, bradicardia, desconforto abdominal,
dificuldade de concentração, depressão, anedonia, aumento do apetite e ganho de peso.
Todos os produtos derivados do tabaco são nocivos. Tabaco é mais nocivo
queimado que aspirado ou mascado. Cigarros regulares, cigarros mentolados, cigarros
com teores baixos de nicotina e alcatrão, narguilé e cachimbo causam danos semelhantes,
relacionados com o tempo de tabagismo, a carga tabágica, expressa em anos/maço, e a
intensidade da inalação. O consumo de cigarros com filtros ou o uso de piteiras também
não reduz os efeitos.

Doenças relacionadas ao tabagismo


Doenças cardiovasculares, como doença arterial coronariana, doença isquêmica
cerebral, aneurisma de aorta, doença arterial periférica, arritmias cardíacas, morte súbita e
disfunção erétil.
Doenças respiratórias, como câncer de pulmão, enfisema pulmonar, bronquite
crônica, bronquiolite, asma, rinossinusite, pneumonia e tuberculose.
Doenças neoplásicas, como cânceres de pulmão, cavidade oral, nasofaringe,
orofaringe, hipofaringe, cavidade nasal, seios paranasais, laringe, esôfago, estômago,
pâncreas, fígado, rim, ureter, bexiga urinária, colo do útero e medula óssea (leucemia
mieloide aguda).
Doenças do trato gastrointestinal, como doença do refluxo gastro-esofágico,
doença ulcerosa péptica e infecção por H. pylori.
Doenças oftalmológicas, como catarata.
Afecções materno-infantis, como abortamento, parto prematuro, morte súbita da
criança e doenças respiratórias do recém-nascido.
Complicações cirúrgicas.
Osteoporose.

Sinergismo com outros agentes


Tabagismo e exposição ocupacional a asbesto, níquel, radônio e arsênico
apresentam efeito sinérgico para câncer de pulmão.
Tabagismo e etilismo apresentam efeito sinérgico para cânceres de cavidade oral,
faringe, laringe e esôfago.
Tabagismo e papilomavírus humano (HPV) apresentam efeito sinérgico para
câncer de colo de útero.
Mulheres fumantes com mais de 35 anos de idade e que fazem uso de medicação
anticoncepcional apresentam maior risco de infarto do miocárdio e de doença

Pedro Kallas Curiati 71


cerebrovascular.

Fatores de risco entre fumantes


Além das características individuais e de fatores sinérgicos, os principais fatores
associados ao risco de desenvolvimento de doenças e de morte nos fumantes são o tempo
ente a iniciação e a cessação, a quantidade de cigarros por dia e a carga tabágica.

Benefícios da cessação do tabagismo


Parar de fumar é a medida mais eficaz e de maior impacto na redução da
morbidade, da mortalidade e da progressão de doenças relacionadas ao tabaco.
Os principais benefícios em curto prazo são redução da frequência cardíaca e da
pressão arterial, melhor controle da asma, normalização da agregação plaquetária,
redução ou normalização de marcadores inflamatórios, redução dos níveis de monóxido
de carbono e carboxi-hemoglobina, melhora do olfato e do paladar, melhora da ventilação
e da circulação pulmonar, redução da tosse, redução do risco de infecções, alívio da
congestão nasal, diminuição da fadiga e da dispneia e redução do risco cirúrgico.
O principal benefício em longo prazo traduz-se na redução da morbidade e da
mortalidade. A cessação até os cinquenta anos de idade reduz o risco de morte por câncer
de pulmão pela metade e, se ocorrer até os trinta anos, o risco iguala-se ao de um não
fumante. O risco de infarto do miocárdio diminui pela metade após um ano e se iguala ao
de um não fumante em dez anos. Parar de fumar aos sessenta, cinquenta, quarenta e trinta
anos de idade representa um ganho de, respectivamente, três, seis, nove e dez anos na
expectativa de vida, com relação aos indivíduos que persistem fumando. O risco de
ocorrência de outros cânceres, como de colo de útero, pâncreas, cavidade oral, esôfago,
bexiga, rins e sangue tende e se igualar ao de não fumantes após cinco a dez anos. Parar
de fumar reduz os sintomas respiratórios, a hiper-responsividade brônquica e o declínio
excessivo da função pulmonar.
O risco isolado de complicações obstétricas fica próximo ao de não fumantes se o
tabagismo for interrompido até o final do primeiro trimestre da gestação. O risco
cirúrgico no indivíduo sem outras comorbidades se iguala ao do não fumante após três
meses. Quanto maior o período de cessação antes da cirurgia, menor o risco intra-
operatório e pós-operatório, sendo que período de cessação pré-operatório curto não
aumenta o risco pós-operatório.

Tabagismo passivo
A exposição à fumaça do tabaco ambiental produz tanto efeitos agudos como
crônicos, sendo a dose equivalente mais nociva que a fumaça inalada diretamente.

Avaliação clínica
História do uso de tabaco, com idade de início, número de cigarros fumados por
dia, tentativas de cessação, tratamentos anteriores com ou sem sucesso, recaídas e
prováveis causas, sintomas de abstinência, exposição passiva ao fumo, formas de
convivência com outros fumantes e fatores associados, como café após as refeições,
conversas telefônicas, bebida alcoólica e ansiedade.
Grau de dependência, com teste de Fagerström para dependência à nicotina. Uma
pontuação superior a seis indica que provavelmente o paciente terá síndrome de

Pedro Kallas Curiati 72


abstinência ao deixar de fumar.
Questionário de Fagerström para avaliação da dependência de nicotina
• Quanto tempo depois de acordar você fuma o seu primeiro cigarro?
0. Após 60 minutos;
1. 31-60 minutos;
2. 6-30 minutos;
3. Nos primeiros 5 minutos;
• Você encontra dificuldade para evitar fumar em lugares onde é proibido, como igreja, local de
trabalho, cinema e shopping?
0. Não;
1. Sim;
• Qual é o cigarro do dia que lhe traz mais satisfação?
0. Qualquer um;
1. O primeiro da manhã;
• Quantos cigarros você fuma por dia?
0. 10 ou menos;
1. 11-20;
2. 21-30;
3. 31 ou mais;
• Você fuma mais frequentemente no período da manhã?
0. Não;
1. Sim;
• Você fuma mesmo estando doente a ponto de ficar acamado na maior parte do tempo?
0. Não;
1. Sim;
Conclusão: 0-2 pontos indicam dependência muito baixa; 3-4 pontos indicam dependência baixa; 5
pontos indica dependência média; 6-7 pontos indicam dependência elevada; 8-10 pontos indicam
dependência muito elevada;
Grau de motivação, com estágio motivacional conforme o modelo transteórico
comportamental. Na pré-contemplação, não há intenção de parar, nem mesmo uma crítica
a respeito do conflito envolvendo o comportamento de fumar. Na contemplação, há
conscientização de que fumar é um problema, mas há ambivalência quanto à perspectiva
de mudança. Na preparação, o paciente aceita escolher uma estratégia para realizar a
mudança de comportamento. Na ação, o paciente pára de fumar, ou seja, toma a atitude
que concretiza a mudança de comportamento. Na manutenção, o paciente deve aprender
estratégias para prevenir a recaída e consolidar os ganhos obtidos durante a fase de ação,
podendo ocorrer a finalização do processo de mudança ou a recaída.
Atividade física habitual e oscilações do peso corporal.
Sintomas, como tosse, expectoração, sibilância, dispneia, dor torácica,
palpitações, claudicação intermitente, tontura e desmaios. Doenças prévias ou atuais que
possam interferir no curso ou no manejo do tratamento, como lesões orais, úlcera péptica,
hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus, cardiopatias, transtornos psiquiátricos,
uso de álcool e/ou outras drogas, pneumopatias, epilepsia, acidente vascular encefálico,
dermatopatias, câncer, nefropatias, hepatopatias e história de convulsão.
Levantamento dos medicamentos que possam interferir no manejo do tratamento,
como antidepressivos, inibidores da monoamino-oxidase, Carbamazepina, Cimetidina,
barbitúricos, Fenitoína, antipsicóticos, Teofilina, corticosteroides sistêmicos,
Pseudoefedrina, hipoglicemiante oral e Insulina.
Alergias de qualquer etiologia.
Situações que demandam cautela, como gravidez, amamentação, infarto agudo do

Pedro Kallas Curiati 73


miocárdio, acidente vascular encefálico recente e arritmias graves. Recomenda-se cautela
também com adolescentes e idosos.
Problemas de saúde familiares, principalmente aqueles relacionados ao tabagismo,
em especial a existência de outros fumantes que convivam com o paciente.

Avaliação complementar
A rotina básica inclui radiografia de tórax, espirometria pré-broncodilatador e
pós-broncodilatador, eletrocardiograma, hemograma completo e bioquímica sérica e
urinária. Medidas do monóxido de carbono no ar expirado e da cotinina urinária, sérica
ou salivar são úteis na avaliação e no seguimento do fumante e devem ser utilizadas,
quando disponíveis.

Marcadores de exposição
Para o monitoramento de pacientes em ambulatórios de cessação de tabagismo, o
marcador mais empregado, por apresentar resultado imediato, pela facilidade e pelo baixo
custo, é o monóxido de carbono no ar exalado, medido em equipamento portátil por meio
de expiração lenta e completa após uma respiração máxima seguida de pausa inspiratória
de quinze a vinte segundos. Sua meia-vida é de uma hora em situação de atividade física,
de duas a quatro horas em atividade normal e de até seis horas em repouso. Um indivíduo
que não fumou nas últimas 24 horas pode apresentar monóxido de carbono no ar exalado
normal, ou seja, inferior a 10ppm, habitualmente inferior a 6ppm. Poluição do ar, asma e
doença pulmonar obstrutiva crônica podem aumentar os níveis de monóxido de carbono
exalado, habitualmente sem ultrapassar 10ppm, exceto em situações de poluição em
ambientes fechados ou durante exposição em via de grande tráfego.
Para avaliação de tabagismo passivo, o marcador mais empregado é a dosagem de
cotinina no soro, na urina ou na saliva. Da nicotina absorvida, 90% é metabolizada, sendo
70-80% transformada em cotinina, que possui meia-vida de 16-18 horas, não sendo
influenciada pela poluição do ar. Indivíduos não fumantes apresentam cotinina sérica de
1ng/mL, enquanto que em fumantes varia de 10ng/mL a 300ng/mL, a depender da
quantidade de cigarros por dia. A concentração urinária é de cerca de cinco a dez vezes o
valor plasmático.

Tratamento
No atendimento ao tabagista, é importante avaliar o desejo de parar de fumar e
sugerir, aos que ainda não estejam motivados, pensar no assunto a cada consulta no
serviço de saúde. Vale explicar os malefícios relacionados ao cigarro e que em qualquer
tempo existem benefícios para a saúde e para a qualidade de vida ao parar de fumar.
Uma vez que o paciente manifeste o desejo de parar de fumar, ou seja, que passe
das fases pré-contemplativa, sem interesse, e contemplativa, em que pensa sobre os
malefícios do hábito, para a fase de ação, deve-se avaliar a carga tabágica, a presença de
comorbidades, a concomitância de outras dependências, o uso de medicações, a
convivência com fumantes na residência e no trabalho e o grau de dependência. Também
é importante identificar os fatores associados aos momentos em que acende o cigarro,
bem como alertar sobre sintomas de abstinência que podem ocorrer com a interrupção e
que, com o passar das semanas, reduzem de intensidade e frequência.
O tratamento do tabagista pode ser individual ou em grupo. É recomendável que

Pedro Kallas Curiati 74


seja multidisciplinar, pois orientação nutricional, sobre atividade física e comportamental
é importante. A maioria dos fumantes em tratamento apresentam recaídas, que ocorrem,
em sua maioria, no primeiro ano. Recomendam-se retornos uma a duas semanas após a
data programada para parar de fumar.

Intervenção psicológica e comportamental


Programas estruturados de auto-ajuda com materiais impressos podem aumentar a
chance de fumantes pararem de fumar, mas seu efeito é discreto.
Aconselhamento por telefone pode ser empregado para reforçar o aconselhamento
pessoal individual ou substituí-lo.
Advertência breve com curtas abordagens realizadas por médicos ou enfermeiras
informando o fumante sobre os malefícios do tabaco, motivando-o a parar e auxiliando-o
na tentativa aumentam, embora discretamente, a chance de parar de fumar.
Aconselhamento comportamental individual em sessões específicas entre o
profissional e o paciente aumenta a chance de cessação e existe relação entre dose e
resposta ao tratamento.
Aconselhamento comportamental em grupo apresenta resultado superior às outras
abordagens. Os objetivos são avaliar os motivos relacionados aos comportamentos dos
membros do grupo, fornecer oportunidade para um aprendizado social, produzir
experiências emocionais e fornecer informações. Pode ser conduzido por profissional
facilitador, como educador, médico, psicólogo, enfermeiro ou ex-fumante que tenha tido
sucesso com o programa.
Intervenção em pacientes fumantes ou que pararam de fumar durante a internação,
realizada durante o período de hospitalização e com seguimento mínimo de um mês após
a alta hospitalar, aumenta a chance de cessação.

Intervenções motivacionais
Os métodos baseados na terapia comportamental cognitiva são fundamentais na
abordagem do fumante em todas as situações clínicas, mesmo quando é necessário apoio
medicamentoso. O fumante deve se sentir acolhido pelo médico, que deve abordá-lo com
empatia, respeito e confiança.
A terapia comportamental cognitiva deve ser oferecida tanto no atendimento
individual quanto em grupo. Os atendimentos devem ser estruturados com periodicidade
semanal no primeiro mês após a parada, quinzenal até completar a abordagem intensiva,
que geralmente dura três meses, e, finalmente, mensal até completar um ano. Material de
apoio deve ser preparado e fornecido aos pacientes para reforçar as orientações, tomando-
se como modelo as cartilhas elaboradas pelo Instituto Nacional do Câncer para o
programa nacional de controle do tabagismo.
Os fumantes pré-contemplativos devem ser estimulados a pensar em parar de
fumar. É preciso informá-los sobre os malefícios do tabagismo, os benefícios de parar e
os riscos para a saúde dos que convivem com ele. Os fumantes contemplativos devem ser
encorajados a marcar uma data dentro de trinta dias para parar, se possível. Devem
identificar os motivos que os levam a fumar e como poderão vencê-los. Nas consultas
subsequentes, é preciso voltar a tocar no assunto até que estejam decididos a parar de
fumar.
Quando o paciente entra na fase de preparação, deve-se estimular a definição

Pedro Kallas Curiati 75


imediata da data de parada. Um plano de ação deve ser desenhado com o paciente,
avaliando os motivos que o levam a fumar e traçando estratégias para que ele resista ao
desejo e aprenda a viver sem o cigarro. A partir da data escolhida, o fumante deve se
afastar de tudo que lembre o hábito, como maços de cigarro, cinzeiros, isqueiros, café e
álcool.
Orientações para resistir ao desejo de fumar e controlar a fissura incluem evitar
café e, caso não consiga, mudar o local com frequência, escovar os dentes imediatamente
após as refeições, ter sempre à mão alguma alternativa de passatempo, beber água ou
suco nas reuniões demoradas, mascar ou mordiscar bastões de canela, cenoura ou erva-
doce, dar preferência a atividades em ambientes livres de tabaco, procurar detalhes e
conversas que distraiam do cigarro nos ambientes onde se fuma, recusar cigarros
oferecidos e solicitar compreensão e ajuda de quem ofereceu, quebrar rotinas associadas
ao tabagismo, trocando poltronas de lugar e procurando alguém para conversar quando
estiver sozinho, ocupar-se com desenhos e rabiscos enquanto fala longamente ao
telefone, fugir da ociosidade através atividades constantes, como arrumar a bagunça de
casa e lavar o carro, pensar em outras coisas através de técnicas de relaxamento e
respiração profunda e lembrar sempre o lado positivo de não fumar para hálito, dentes e
saúde em geral.
Fumantes em manutenção devem ser monitorados quanto aos progressos e
dificuldades enfrentados através de consultas e/ou contatos telefônicos para prevenção da
recaída. O paciente precisa se conscientizar de que o tabagismo é uma doença crônica e
que não deve acender um cigarro ou dar uma tragada, pois poderá voltar a fumar.
Para evitar recaída, o paciente deve ser estimulado a identificar as situações
rotineiras que o colocam em risco de fumar e a traçar estratégias para enfrentar essas
situações. Se, por acaso, a recaída acontecer, ela deverá ser aceita pelo profissional sem
críticas, mantendo a atmosfera de confiança e apoio já demonstrada anteriormente.
O treinamento de habilidades para a solução de problemas visa reconhecer as
situações de risco para fumar e desenvolver estratégias para superá-las, qualquer que seja
o estágio motivacional do fumante. A abordagem intensiva, que implica contato pessoal e
reiterado, é a melhor oportunidade para trabalhar essas estratégias.
O fumante deve aprender a reconhecer os sintomas e a duração da abstinência e se
preparar para enfrentá-los, especialmente nos primeiros dias sem fumar. O principal
deles, a fissura, caracterizada por desejo imperioso de fumar, costuma ceder entre um e
cinco minutos, sendo importante desenvolver uma estratégia substitutiva até que o
sintoma passe.
O apoio social consiste em reforçar as motivações para parar, fortalecer as
vantagens da cessação, aumentar a auto-eficácia, combater crenças e racionalizações em
torno do consumo, prevenir problemas residuais da cessação, como aumento ponderal,
irritabilidade e humor negativo, e apoiar o fumante a resolver a ambivalência se a
motivação declinar.
O suporte social através de amigos e familiares é fundamental na resistência ao
tabaco. Os ambientes livres de tabaco no trabalho e em casa e o estímulo para que outros
fumantes busquem ajuda para a cessação contribuem positivamente para fortalecer a
recuperação.

Método PANPA – Pergunte/ Aconselhe/ Negocie/ Prepare/ Acompanhe

Pedro Kallas Curiati 76


Pergunte a todo paciente: “Você fuma?” ou “Você continua fumando?”, “Há
quanto tempo?”, “Com que idade começou?”, “Quantos cigarros você fuma por dia em
média?”, “Quanto tempo após acordar você fuma o seu primeiro cigarro?”, “Você está
interessado em parar de fumar?”, “Você já tentou parar de fumar antes?”, “O que
aconteceu?”. A intenção das perguntas é permitir uma estimativa para o risco de
desenvolvimento de doença relacionada ao tabagismo, assim como para o grau de
dependência da nicotina. Nesta etapa, é importante criar uma atmosfera de confiança com
o cliente.
Aconselhe todos os fumantes a deixarem de fumar. Pesquisas comprovam que o
aconselhamento individual feito pelo médico é um bom incentivo para largar o cigarro.
Mitos devem ser quebrados, como "poucos cigarros não fazem mal à saúde", "cigarros
com baixos teores são menos prejudiciais", "existe uma quantidade segura de cigarros" e
"já é tarde para parar de fumar". É importante, neste momento, tentar identificar o nível
de motivação do cliente, através do estágio de comportamento em que se encontra. Em
seguida, deve-se personalizar a mensagem, com incentivo para a mudança de estágio,
principalmente, da pré-contemplação para a contemplação e desta para ação.
Informações específicas sobre os efeitos negativos do tabagismo na saúde atual e futura
podem ser dadas, porém, impacto maior é obtido com o realce dos benefícios da parada,
como a melhora da qualidade de vida. É importante evitar juízos de valor, censuras ou
críticas.
Negocie. É necessário assumir uma postura de negociação para que ambos se
certifiquem que a forma de enfrentamento poderá ser colocada em prática. Em alguns
casos vale a pena utilizar técnicas de dramatização ou visualização a fim de identificar
com mais clareza as possíveis barreiras que aparecerão e então negociar o que for melhor
para o cliente, na realidade em que se encontra.
Prepare todos os clientes motivados para o momento de parar de fumar, de acordo
com o estágio evolutivo em que se encontram. Para os que estão prontos e preparados
para parar, sugere-se marcar uma data imediatamente e um plano de ação que envolva
mudanças da rotina diária, com quebra de antigos hábitos e modificação de locais e
mobília onde o paciente costuma fumar, alimentação equilibrada pobre em calorias,
exercícios físicos regulares, ingesta adequada de líquidos e leitura de material de auto-
ajuda. Se a fase é de contemplação ou preparação, pode-se pensar em marcar uma data
dentro de trinta a sessenta dias, com este período para redução progressiva dos cigarros
fumados por dia, para reflexão sobre o hábito de fumar, os motivos facilitadores e as
formas possíveis para interceptá-los e para leitura de material de auto-ajuda. É bom
lembrar que o local de atendimento dos fumantes deve desencorajar o tabagismo não só
através de cartazes e avisos, como pela eliminação de cinzeiros, revistas, propagandas e
outros utensílios que induzam ao consumo de cigarros. Ao fumante devem ser
amplamente informados os sintomas esperados com a cessação do hábito. Tosse pode
aparecer ou piorar temporariamente, existe a possibilidade de ganho de peso, em geral ao
redor de 3-5kg, e surgem momentos de fissura. Em paralelo, devem ser oferecidas
orientações sobre como superar estas dificuldades, com um redirecionamento de conduta
e um posicionamento mais positivo frente a adversidades como, por exemplo, as
situações estressantes. Mais uma vez, o apoio de familiares e amigos pode ser a chave de
uma tentativa bem-sucedida.
Acompanhe todos os clientes que pararam de fumar, com consultas de retorno a

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partir da data de abandono. As duas primeiras semanas são as mais importantes, pois
neste período o cliente sente com maior intensidade os sintomas da abstinência de
nicotina, e é nesta fase que ocorre a maioria dos insucessos. Uma ou duas consultas
dentro deste intervalo são, portanto, recomendadas. Após a quinzena inicial, o cliente
deve ser estimulado a voltar todo mês até os três primeiros meses serem completados, no
sexto mês e após um ano de abstinência. Todas as ocorrências, facilidades, dificuldades e
sintomas devem ser monitorados, sempre com uma atitude positiva. É importante motivar
o cliente, reconhecer seu esforço e parabenizá-lo pelo sucesso. Todo ex-fumante deve
permanecer atento, mesmo diante de situações aparentemente controladas, pois a
dependência de nicotina pode retornar caso volte a fumar. Assim, faça-o relembrar que
deverá evitar dar uma tragada ou mesmo acender um cigarro, pois poderá voltar a fumar.
Para prevenir recaídas, é importante identificar as situações de alto risco e agir de forma a
enfrentá-las. As estratégias consistem, basicamente, em evitar, escapar, distrair e adiar.
Deve-se evitar festas, ingesta de álcool, cafezinho e encontro com fumantes pelo menos
durante as primeiras semanas de parada. Se isso não for possível, pode-se tentar evitar
salas onde se fuma mais ou reuniões estressantes, por exemplo. Distrair-se, com desvio
do foco de atenção para uma mudança de tarefa, pensamento ou lugar. No caso da
“fissura”, uma técnica simples é adiar a recaída e esperar que essa vontade intensa de
fumar passe, o que costuma ocorrer em poucos minutos. A recaída, quando ocorrer, deve
ser aceita sem críticas, mas deve ser objeto de análise a fim de identificar suas causas e
circunstâncias. O cliente deve ser estimulado a tentar novamente, desta vez com um
plano de ação melhor estruturado.

Tratamento farmacológico
Muitos pacientes motivados a cessar o tabagismo podem se beneficiar do uso de
uma ou mais modalidades de tratamento farmacológico. Em populações especiais, como
gestantes, lactantes, adolescentes e fumantes de menos de dez cigarros por dia, o esforço
deve ser concentrado na terapia comportamental.
A terapia de reposição de nicotina, a Bupropiona e a Vareniclina são consideradas
drogas de primeira linha, enquanto que a Nortriptilina e a Clonidina são os fármacos de
segunda linha no tratamento.

Reposição de nicotina
A terapia de reposição de nicotina tem como objetivo a substituição da nicotina do
cigarro por meio de doses menores e seguras, reduzindo a fissura e outros sintomas de
abstinência. Todas as formas são eficazes na cessação do tabagismo, podendo
praticamente dobrar a taxa de cessação no longo prazo quando comparadas ao placebo. A
reposição de nicotina pode ser feita com o emprego de apresentação de liberação lenta,
como o adesivo, ou de apresentação de liberação rápida, como a goma de mascar, a
pastilha, o comprimido sublingual, o spray nasal e a inalação oral, sendo as formas mais
utilizadas e disponíveis no Brasil a goma de mascar e o adesivo. A eficácia das diferentes
apresentações é equivalente, mas a adesão ao tratamento é maior com o adesivo. As
apresentações de liberação rápida de nicotina são mais efetivas no controle da fissura,
porém, apresentam maior risco de dependência.
Quanto ao adesivo, recomenda-se iniciar com uma dose de 21mg/dia durante
quatro a oito semanas e a seguir reduzir a dose para 14mg/dia durante duas a quatro

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semanas e, por fim, 7mg/dia durante mais duas semanas. O adesivo deve ser colocado
pela manhã, após o banho, em área coberta sem pelos, entre o pescoço e a cintura, e
substituído na manhã seguinte, com rodízio entre os locais de aplicação. Pacientes com
elevada dependência ou fumantes de trinta ou mais cigarros por dia podem necessitar de
dosagem maior, como 28mg/dia ou 35mg/dia. O uso de adesivos na dose de 42mg parece
seguro para fumantes que consomem grande número de cigarros. Doses maiores que
0.5mg/kg/dia devem ser evitadas. Estão disponíveis adesivos de 21mg/dia, 14mg/dia e
7mg/dia. O principal efeito colateral é a irritação da pele produzida pela substância
adesiva, que, na maioria dos casos, é leve e suportável. Superdosagem, embora rara, é
mais comum com adesivo, sendo os sintomas mais prevalentes diarreia, tontura, náusea,
vômitos, salivação, palidez, dor abdominal, sudorese, tremores, sensação de cansaço,
insônia e sonolência, que podem ocorrer também como manifestação da abstinência da
droga. O tratamento se faz com a interrupção do medicamento e medidas de suporte.
A goma de mascar tem apresentação de 2mg e 4mg. Deve ser empregada uma
goma a cada uma a três horas, dependendo do número de cigarros fumados por dia, até
um máximo de 24 por dia, durante dois meses, com redução progressiva durante um mês.
A goma deve ser mascada durante trinta minutos, mantendo-a na boca entre os intervalos
de mastigação. Pode ser usada como complemento ao adesivo ou às outras drogas nos
momentos de fissura. Pacientes com dificuldade em parar de fumar usando apenas goma
ou adesivo devem associar as duas formas. Deve-se evitar consumo de soda, café, cerveja
e bebidas ácidas quinze minutos antes e durante o uso da goma para evitar prejuízo da
absorção da nicotina pela mucosa. Efeitos adversos incluem aftas, salivação, soluços,
dispepsia, irritação faríngea, dor na articulação têmporo-mandibular, dentes amolecidos,
cefaleia e náusea.
A reposição de nicotina pode ser usada em cardiopatas, idosos e pneumopatas,
sendo a principal contraindicação o infarto do miocárdio recente, há menos de quinze
dias, embora fumar seja mais nocivo que usar apenas nicotina. Contraindicações relativas
incluem acidente vascular cerebral isquêmico recente, arritmia cardíaca grave e angina
instável.
A interrupção do tabagismo deve ser programada a partir do primeiro dia de início
da reposição ou três a cinco dias após, como forma de adaptação, ganho de confiança na
droga e redução do estresse. Não existem evidências de efeitos adversos relevantes em
indivíduos que fazem tratamento com reposição de nicotina em goma ou adesivo e
fumam concomitantemente, embora a nicotinemia seja maior no grupo com uso de
adesivo, cuja absorção é fixa.
O uso combinado de duas formas de reposição aumenta a taxa de sucesso. Sugere-
se o uso de adesivo, tendo a goma como suporte para momentos de fissura.
A reposição de nicotina em gestantes deve ser avaliada individualmente, uma vez
que a fumaça do cigarro possui outros componentes tóxicos além da nicotina.

Bupropiona
O Hidrocloreto de Bupropiona de liberação prolongada é uma droga
antidepressiva e antagonista não-competitiva do receptor de nicotina, que age inibindo a
ação noradrenérgica no sistema nervoso central. Reduz a recaptação de serotonina e,
sobretudo, noradrenalina e dopamina nas sinapses, prolongando seus efeitos, reduzindo
os sintomas de abstinência e possibilitando melhor controle sobre a vontade de fumar.

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Seus efeitos independem dos fumantes apresentarem história de depressão.
A apresentação comercial é na forma de comprimidos de 150mg, sendo
recomendada a dosagem de um comprimido por dia durante três dias e depois um
comprimido duas vezes por dia, com intervalo nunca inferior a oito horas, evitando-se
tomar a segunda dose após as dezoito horas pelo elevado risco de insônia.
Os efeitos colaterais mais frequentes são boca seca, cefaleia, dermatite,
convulsões, insônia e elevação da pressão arterial. Dose de 150mg/dia é preferida para
pacientes idosos, com disfunção hepática ou renal ou baixo peso.
A interrupção do tabagismo deve ser programada após sete a quatorze dias de uso
da medicação. A duração do tratamento é de oito a doze semanas, podendo variar
conforme o paciente.
A Bupropiona possui meia-vida de vinte horas e é metabolizada no fígado pelo
sistema P450, de modo que interage com antidepressivos tricíclicos, antidepressivos
inibidores seletivos da recaptação da serotonina, β-bloqueadores, antiarrítmicos e
antipsicóticos. A metabolização é pela isoenzima CYP2B6, que pode ser afetada por
drogas como Cimetidina, Valproato de Sódio e Ciclofosfamida. Contraindicações
incluem história atual ou pregressa de epilepsia, bulimia, anorexia nervosa, distúrbio
bipolar ou insuficiência hepática severa, além de uso concomitante com inibidores da
monoamino-oxidase. Há boa tolerância em pacientes com doenças cardiovasculares
estáveis e com doença pulmonar obstrutiva crônica. Deve ser usada com cautela em
paciente que apresenta redução do limiar para convulsões, como aqueles com antecedente
de trauma de crânio, etilismo, uso de droga antipsicótica, diabetes mellitus em uso de
hipoglicemiante oral ou Insulina, uso de Teofilina, uso de antidepressivo e uso de
corticoterapia sistêmica.
Em fumantes pesados, a combinação de Bupropiona com o adesivo de nicotina
pode aumentar a eficácia.

Vareniclina
Agonista parcial dos receptores nicotínicos α4β2. Possui efeito dual, agonista e
antagonista, pois, por apresentar alta afinidade com o receptor, reduz, por competição, a
ligação da nicotina, mas induz uma baixa estimulação a esses receptores, liberando
menos Dopamina na área tegmental ventral do cérebro, reduzindo a sensação de prazer ao
fumar e os sintomas de abstinência da nicotina. As taxas de abstinência são mais elevadas
que aquelas obtidas com o uso de Bupropiona.
Os efeitos colaterais mais frequentes são cefaleia, insônia, sonhos anormais e
náusea. Seu uso não é recomendado em indivíduos com menos de dezoito anos,
gestantes, lactantes e associação com reposição de nicotina. Embora mais raros, outros
efeitos adversos descritos incluem tentativa de suicídio, suicídio, tremores e agitação.
Contraindicações incluem hipersensibilidade à Vareniclina e insuficiência renal grave.
A dose recomendada é de 0.5mg/dia durante três dias, 0.5mg duas vezes ao dia
pelos próximos três dias e, a partir de então, 1mg duas vezes ao dia durante doze semanas
a seis meses. Deve-se programar a data para parar de fumar no décimo dia do início do
uso. A apresentação existe na forma de comprimidos de 0.5mg e de 1mg.

Nortriptilina
Nortriptilina é um antidepressivo tricíclico com evidências de que aumenta as

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chances de parar de fumar. É recomendada a dose de 75-100mg/dia, devendo ser iniciado
o tratamento com 25mg/dia, com aumentos progressivos a cada três ou quatro dias. Por
possuir meia-vida longa, ao redor de dezessete horas, pode ser empregada em dose única
diária, preferencialmente a noite.
Seus efeitos adversos são boca seca, sonolência, taquicardia, obstipação, queda de
pressão em posição ortostática, tontura, sedação, náusea e retenção urinária, com
tolerância inferior à das outras drogas para tratamento do tabagismo. Antes do início do
uso, deve ser realizado eletrocardiograma para afastar bloqueio atrioventricular e
síndrome do QT longo. Contraindicações incluem infarto agudo do miocárdio, arritmias
cardíacas, insuficiência hepática, epilepsia, psicose e lactação.
Deve-se programar a interrupção do tabagismo vinte dias depois de iniciado o uso
da droga. A apresentação existe na forma de comprimidos de 10mg, 25mg, 50mg e 75mg.
O uso combinado com o adesivo e o uso prolongado por doze meses após a
cessação com reposição de nicotina tem efeito benéfico aditivo.

Clonidina
Agonista alfa-adrenérgico que pode ser empregado em caso de impossibilidade ou
intolerância às drogas anteriores. A dosagem recomendada é de 0.2-0.4mg/dia em dose
única ou, preferencialmente, a cada doze horas, com duração de três a dez semanas.
Deve-se iniciar com 0.1mg/dia e aumentar progressivamente a cada três a quatro dias.
Quando são empregadas doses elevadas, a interrupção deve ser feita com redução gradual
da dose.
Boca seca, sedação, tontura, sonolência, obstipação e distúrbios da ereção são os
principais efeitos colaterais e geralmente limitam o seu uso. Não é indicado o uso em
gestantes e lactantes. Deve-se programar a interrupção do tabagismo após três dias do
início do uso da droga.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 1: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da mulher,
envelhecimento e geriatria, medicina laboratorial na prática médica. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Diretrizes para cessação do tabagismo. Reichert J, Araújo AJ, Gonçalves CMC, Godoy I, Chatkin JM, Sales MPU et al. J Bras
Pneumol. 2008;34(10):845-880.
Roteiro de procedimentos básicos. Mário Ferreira Júnior, Ana Claudia Camargo, Milton de Arruda Martins. Centro de Promoção de
Saúde – CPS, Serviço de Clínica Médica Geral, HCFMUSP, 2010.
Treating Smokers in the Health Care Setting. Michael C Fiore and Timothy B Baker. N Engl J Med 2011;365:1222-31.

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ANAFILAXIA
Definições
Anafilaxia é definida como reação sistêmica aguda grave, potencialmente fatal,
decorrente da ação de mediadores inflamatórios liberados por mastócitos e basófilos
ativados após contato com substância causadora específica. Geralmente consiste em
manifestação imunológica de hipersensibilidade tipo I, mediada por IgE. Quando a base
imunológica da síndrome não pode ser evidenciada, o termo anafilactoide costuma ser
utilizado.

Epidemiologia
Alguns fatores de risco têm sido descritos, como atopia. Asma está associada a
maior gravidade.

Etiologia
Anafilaxia imunológica mediada por IgE, que pode ser causada por drogas, como
antibióticos, trombolíticos e Insulina, alimentos, como leite, ovo, trigo, soja, amendoim,
castanhas, peixe, crustáceos, sementes, frutas e verduras, venenos de cobra, aranha e
insetos, como abelha, vespa e formiga, líquido seminal, látex e imunobiológicos, como
extratos alergênicos e anticorpos monoclonais.
Anafilaxia imunológica não-mediada por IgE, que pode ser causada por ativação
do complemento, como em uso de hemoderivados e membranas de diálise, ativação
direta de mastócitos, como em uso de contrastes radiológicos, relaxantes musculares,
opiáceos e Vancomicina, e aumento de bradicinina, como em uso de inibidores de enzima
de conversão da angiotensina e anti-inflamatórios não-hormonais.
Anafilaxia não-imunológica ou reação anafilactoide, que pode ser causada por
frio, calor, atividade física e radiação ultravioleta.
Mecanismo desconhecido, como em uso de quinolonas e Fluoresceína.
Anafilaxia idiopática.

Quadro clínico
As manifestações clínicas de anafilaxia refletem a ação dos mediadores
inflamatórios liberados, principalmente a histamina, nos diferentes órgãos e tecidos. Os
sintomas iniciam-se em minutos a poucas horas, em geral cinco a trinta minutos após a
exposição ao agente causal. Os órgãos envolvidos e a gravidade da reação variam.
Fatores como antecedente de asma e velocidade rápida de progressão dos sintomas estão
relacionados a reações anafiláticas mais graves. Nem sempre os sintomas são imediatos e,
quando surgem após duas horas, denomina-se anafilaxia tardia. Existem também reações
bifásicas, que incidem em até 20% dos casos de anafilaxia e são caracterizadas pelo
recrudescimento de sintomas após algumas horas da resolução da fase imediata. Não há
fatores preditivos e a maioria das reações bifásicas ocorre dentro das primeiras oito horas.
Destacam-se o acometimento cutaneomucoso, respiratório, cardiovascular e
gastrointestinal.
As manifestações cutaneomucosas incluem rubor, prurido, urticária, angioedema,

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palidez, sudorese e cianose de extremidades.
As manifestações respiratórias podem refletir envolvimento laríngeo, pulmonar ou
nasal. No caso de a laringe estar acometida, pode-se observar prurido e aperto na
garganta, disfagia, disfonia, estridor e tosse seca. O acometimento de vias aéreas
inferiores pode cursar com dispneia, opressão torácica, tosse e sibilância. O
acometimento nasal pode cursar com prurido, espirros, coriza e congestão. Propedêutica
armada pode revelar hipoxemia e redução do pico de fluxo expiratório.
As manifestações cardiovasculares incluem hipotensão, tontura, fraqueza, síncope
e choque anafilático. Também pode ocorrer descompensação de doenças cardíacas
subjacentes.
As manifestações gastrointestinais incluem náusea, vômitos, diarreia e dor
abdominal em cólica.
Outras manifestações incluem contrações uterinas, convulsões, sensação de morte
iminente, perda de controle esfinctérico, alteração visual e zumbido.

Critérios diagnósticos
O diagnóstico de anafilaxia é eminentemente clínico. A anafilaxia é altamente
provável quando pelo menos um dos três critérios for satisfeito.
1. Doença de início agudo, em minutos a horas, com envolvimento de pele,
mucosa ou ambas e pelo menos um dentre comprometimento respiratório, redução da
pressão arterial e sintomas associados a disfunção terminal de órgão, como hipotonia,
síncope e incontinência.
2. Ocorrem rapidamente, minutos a horas após a exposição a provável alérgeno
para determinado paciente, dois ou mais dentre envolvimento de pele, mucosa ou ambas,
comprometimento respiratório, redução da pressão arterial, sintomas associados a
disfunção terminal de órgão e sintomas gastrointestinais persistentes.
3. Redução da pressão arterial superior a 30% em relação ao basal ou abaixo de
90mmHg após contato com alérgeno conhecido para determinado paciente.

Exames complementares
As dosagens de triptase e de histamina séricas podem ser úteis, particularmente
nos casos duvidosos, desde que disponíveis.
Outras investigações podem ser realizadas, envolvendo pesquisa in vitro de IgE
específica, testes cutâneos e testes de provocação.

Diagnóstico diferencial
Anafilaxia causada por excesso endógeno da produção de histamina, como em
mastocitose sistêmica, urticária pigmentosa, leucemia basofílica e cisto hidático.
Síndromes que abrangem rubor, como tumor carcinoide, pós-menopausa, uso de
álcool, carcinoma medular de tireoide e epilepsia.
Choques circulatórios de outras etiologias.
Doenças não-orgânicas, como transtorno do pânico, síndrome de Münchausen,
histeria e disfunção de prega vocal.
Angioedema adquirido ou hereditário.
Feocromocitoma.
Síndrome red-man por Vancomicina.

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Epilepsia.

Tratamento
As condutas podem variar na dependência da gravidade.
Quando procurado pelo paciente após uma reação anafilática, o principal objetivo
do alergista é determinar a causa da reação e orientar os pacientes e os familiares a evitar
futuras exposições. Além disso, o paciente deve ser orientado a reconhecer sinais e
sintomas precoces de anafilaxia e a agir conforme plano de ação por escrito para
emergências.
O passo inicial no tratamento da anafilaxia é a avaliação rápida do quadro geral do
paciente, da permeabilidade das vias aéreas e do estado de consciência. Qualquer
comprometimento na permeabilidade das vias aéreas deve ser resolvido imediatamente.
Deve-se avaliar também a necessidade de oxigênio suplementar. A pressão arterial e a
frequência de pulso devem ser prontamente verificadas. O paciente deve ser colocado em
posição supina para favorecer o retorno venoso.
A Adrenalina é a principal medicação e deve ser prescrita o mais precocemente
possível. A via de administração principal é a intramuscular em vasto lateral da coxa.
Não há contraindicação absoluta ao uso na anafilaxia. A via intravenosa é utilizada nos
casos mais graves, como iminência de parada cardiorrespiratória, choque anafilático e
refratariedade ao tratamento inicial, desde que haja acesso imediatamente disponível. Os
intervalos de aplicação variam de cinco a quinze minutos conforme a gravidade do
quadro clínico, o nível de resposta à aplicação anterior e o aparecimento de efeitos
colaterais. A Adrenalina auto-injetável deve ser recomendada para os casos com história
prévia de reações sistêmicas graves e com grande risco de novas exposições.
Via Adultos
Intramuscular - Concentração 1:1000, com ampola padrão de 1mg/1mL;
- Dose de 0.3-0.5mL, que corresponde a 0.3-0.5mg;
Intravenosa - Concentração 1:10000, com ampola padrão de 1mg/1mL diluída em 9mL de Soro
Fisiológico;
- Dose de 0.1-0.3mL em infusão lenta em cinco minutos;
Intravenosa - Diluição de 1mL (1mg) em 250mL de solução, com 4mcg/mL;
contínua - Infunsão em bomba de infusão contínua com 1-4mcg/minuto;
O uso de anti-histamínicos pode ser útil como tratamento adjuvante. Uma
combinação de antagonistas H1 e H2 parece ser superior ao uso de antagonista H1
isoladamente. A via de administração pode ser parenteral ou oral, embora a via parenteral
seja mais indicada no contexto de emergência. Em adultos, preconiza-se Difenidramina
25-50mg por via intravenosa ou intramuscular até de 4/4 horas em associação com
Ranitidina 50mg por via intravenosa diluída em até 20mL de Soro Glicosado a 5% com
infusão em cinco minutos até de 8/8 horas.
O choque pode ser provocado pelo desvio de líquidos do meio intravascular para
o extravascular, sendo necessária geralmente a infusão de grandes volumes de solução
coloide ou cristaloide, com cerca de um a dois litros de Ringer Lactato ou Soro
Fisiológico rapidamente. Nos pacientes em uso de β-bloqueadores, o volume de infusão
deve ser maior, ao redor de cinco a sete litros, até a estabilização.
O papel dos corticosteroides no tratamento da anafilaxia não está bem
estabelecido. Entretanto, considerando seus efeitos nas outras doenças alérgicas, o seu
uso está indicado.

Pedro Kallas Curiati 84


Via Adultos
Intravenosa Metilprednisolona 125mg até de 6/6 horas ou doses equivalentes de outras drogas.
Oral Prednisona 1mg/kg até de 6/6 horas.
Indivíduos em uso de β-bloqueadores que não respondem à Adrenalina podem
precisar de Glucagon, com dose inicial de 1-5mg por via intravenosa. Nos casos de
bradicardia, pode-se usar Atropina na dose de 0.3-0.5mg por via intravenosa a cada dez
minutos até um máximo de 2mg.
Alta hospitalar é considerada após controle clínico satisfatório, monitorização
adequada por período de oito a doze horas e orientações quanto à prevenção de novos
episódios. Dependendo da causa, a necessidade de dessensibilização ou imunoterapia
alérgeno-específica deve ser considerada. Também é necessário que o paciente seja
referenciado a um médico especialista. Combinação de corticosteroides e anti-
histamínicos na alta hospitalar durante três a quatro dias é recomendada.

Bibliografia
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva Martins,
Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole, 2008.
Clínica Médica, volume 7: alergia e imunologia clínica, doenças da pele, doenças infecciosas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

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CRISE ASMÁTICA
Definição
A asma é uma doença inflamatória crônica e intermitente das vias aéreas,
caracterizada por exacerbações de dispneia, tosse, sibilos e opressão torácica por
hiperresponsividade das vias aéreas.

Etiologia e fisiopatologia
A exacerbação aguda da asma pode ser precipitada por vários desencadeantes,
como exposição a alérgenos, poluição atmosférica, exercício físico, mudanças climáticas,
estresse emocional, uso de drogas como Ácido Acetilsalicílico e β-bloqueadores, rinite,
sinusite, refluxo gastro-esofágico e infecção por agentes como rinovírus, vírus influenza,
vírus sincicial respiratório, M. pneumoniae e C. pneumoniae.

Quadro clínico
Uma história breve e direcionada deve ser realizada em todos os pacientes com o
objetivo de determinar o início e a gravidade dos sintomas, os fatores desencadeantes, as
medicações em uso, as características das exacerbações anteriores e a presença de
doenças concomitantes. O exame físico deve incluir frequência respiratória, uso de
musculatura acessória, frequência cardíaca, pulso paradoxal e ausculta pulmonar.
Indicam maior risco de evolução desfavorável história prévia de intubação ou
necessidade de internação em unidade de terapia intensiva, uso crônico de corticosteroide
por via oral, rápida piora clínica, história prévia de exacerbações graves de aparecimento
súbito, poucos sintomas apesar de grave broncoespasmo, sintomas predominantemente
noturnos, duas ou mais internações hospitalares em menos de um ano, três ou mais visitas
ao pronto atendimento em menos de um ano, hospitalização ou visita ao departamento de
emergência há menos de um mês, uso de mais de dois frascos de β2-agonista no mês,
comorbidade com doença cardiovascular e/ou doença pulmonar obstrutiva crônica,
doença psiquiátrica, problemas psicológicos, uso de drogas ilícitas, baixo nível
socioeconômico e acompanhamento ambulatorial inadequado.

Exames complementares
O diagnóstico é clínico e os principais sintomas são dispneia, opressão torácica e
sibilância. Os exames complementares podem ajudar a classificar a gravidade da doença
e sugerir complicações e fatores precipitantes. Os principais são o teste de função
pulmonar, a oximetria de pulso, a gasometria arterial e a radiografia de tórax.
As medidas de função pulmonar com volume expiratório forçado no primeiro
segundo (VEF1) ou pico de fluxo expiratório (PFE) permitem uma avaliação mais
objetiva da obstrução ao fluxo aéreo e caracterizam melhor o evento agudo, já que os
sinais e sintomas clínicos não possuem boa acurácia para estabelecer a gravidade da asma
aguda.
Oximetria de pulso deverá ser avaliada em todos os pacientes e tem como objetivo
identificar aqueles mais graves, com saturação inferior a 90%, bem como orientar o
tratamento com oxigênio suplementar, que visa saturação periférica de oxigênio superior

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a 92%.
Radiografia de tórax é indicada na ausência da melhora esperada com o
tratamento, na indicação de internação hospitalar ou na suspeita de pneumonia,
pneumotórax ou derrame pleural.
Gasometria arterial raramente é necessária e deve ser colhida quando houver
hipoventilação, ausência de resposta ao tratamento inicial, VEF1 ou PFE inferiores a 30-
50% do predito para idade, sexo e altura, desconforto respiratório importante ou
saturação periférica de O2 inferior a 90%.
Hemograma pode ser necessário para avaliar sinais sugestivos de infecção em
doentes febris e com expectoração purulenta. Eletrólitos séricos são necessários nos
doentes com indicação de internação. Eletrocardiograma é importante se doença cardíaca,
doença pulmonar obstrutiva crônica, idade superior a cinquenta anos ou suspeita de
isquemia aguda.

Classificação
Leve Moderada Grave Falência
respiratória
iminente
Dispneia Com atividade Com a fala Em repouso
Discurso Sentenças Frases Palavras Incapaz de falar
Posição do Capaz de deitar Prefere sentar Incapaz de deitar
corpo
Frequência Aumentada Aumentada Superior a 30ipm
respiratória
Uso de Ausente ou leve Frequente ou Presente Movimento
musculatura acentuado abdominal
acessória paradoxal
Ruídos Sibilos moderados Sibilos altos Sibilos altos na Pouco fluxo
adventícios do meio para o durante toda a inspiração e na aéreo e sibilos
final da expiração expiração expiração ausentes
Frequência Inferior a 100bpm 100-120bpm Superior a 120bpm Bradicardia
cardíaca relativa
Pulso Inferior a 10mmHg 10-25mmHg Superior a 25mmHg Ausência
paradoxal
Estado mental Pode estar agitado Normalmente Normalmente agitado Confuso ou
agitado entorpecido
Pico de fluxo Superior a 80% 60-80% Inferior a 60% ou Inferior a 60%
expiratório resposta à terapia dura
menos de duas horas
Sat. O2 Superior a 95% 91–95% Inferior a 91%
PaO2 Normal Superior a Inferior a 60mmHg
60mmHg
PaCO2 Inferior a 45mmHg Inferior a Superior ou igual a
45mmHg 45mmHg

Diagnóstico diferencial
O diagnóstico diferencial inclui obstrução de vias aéreas superiores, disfunção de
glote, doença endobrônquica, como tumor, estenose ou corpo estranho, insuficiência
cardíaca congestiva descompensada, estenose mitral, pneumonia eosinofílica, vasculites

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sistêmicas, tumor carcinóide, tromboembolismo pulmonar e doença pulmonar obstrutiva
crônica. Churg-Strauss cursa com vasculite, infiltrado intersticial e eosinofilia.

Tratamento da crise asmática


Manutenção de oxigenação adequada, melhora da obstrução ao fluxo aéreo,
controle da inflamação nas vias aéreas e prevenção de recaídas futuras devem ser os
objetivos do tratamento de todos os pacientes com exacerbação aguda da asma.
Sedação é contraindicada.

Oxigênio
O objetivo da suplementação é manter a saturação de oxigênio superior a 92%.

β2-agonistas de curta duração


Bronco-dilatadores mais eficientes nas crises, usados em todos os pacientes no
tratamento dos sintomas agudos. Relaxam a musculatura brônquica, aumentam o fluxo
aéreo e diminuem os sintomas
A terapia inalatória é tão efetiva quanto a sistêmica e tem como vantagem rápido
início de ação, inferior a cinco minutos, e menos efeitos colaterais. Indica-se
administração intravenosa para pacientes que não conseguem inalar a medicação, como
os moribundos ou com tosse excessiva.
O uso de nebulímetros pressurizados com espaçador, quando comparado à
nebulização com oxigênio, tem início de ação mais rápido e maior efeito bronco-
dilatador. No entanto, a nebulização é a via com maior eficiência em crianças pequenas,
agitadas ou com crises graves.
A posologia do Fenoterol e do Salbutamol é inalação de 2-4 jatos ou inalação com
10-20 gotas em 3-5mL de Soro Fisiológico a cada quinze a vinte minutos na primeira
hora. A seguir, deve-se reavaliar e ajustar a frequência de inalações com base no estado
do doente.
O uso diário sistemático não é recomendado. O uso superior a um nebulímetro por
mês ou a resposta reduzida indicam necessidade de aumentar o tratamento de base. A
administração 20 minutos antes de exercício previne asma por ele desencadeada.
Os efeitos colaterais são dependentes da dose e incluem taquicardia, palpitação,
ansiedade, hipocalemia e tremores. Raramente, podem ocorrer arritmias, dor torácica e
isquemia miocárdica.
Nenhum estudo demonstrou vantagem da via parenteral quando comparada com a
via inalatória. Os produtos disponíveis são o Salbutamol e a Terbutalina, ambos com
500mcg/mL. Há incidência significativamente maior de efeitos colaterais, como acidose
lática, hipocalemia e taquiarritmias, sem melhora de parâmetros clínicos ou funcionais.
Recomenda-se considerar seu uso apenas em doentes graves e com ausência de resposta à
terapia inalatória ou em doentes que acabam de chegar ao pronto socorro com
broncoespasmo muito grave enquanto a solução inalatória é preparada. A dose
intramuscular ou subcutânea é de 150-250mcg e pode ser repetida após quinze a vinte
minutos.

Anticolinérgicos
Reduzem a hipersecreção de muco, revertem o broncoespasmo e são alternativa

Pedro Kallas Curiati 88


para os pacientes com intolerância aos β2-agonistas.
O efeito bronco-dilatador do Brometo de Ipratrópio (Atrovent®) é menor do que o
alcançado com o uso dos β2-agonistas. Entretanto, sua utilização em conjunto por via
inalatória cursa com efeito sinérgico, melhora da função pulmonar e diminuição da
necessidade de internação hospitalar, o que é útil para crises moderadas a graves. A dose
preconizada é de 40 gotas (5mg) a cada vinte minutos na primeira hora.
Podem ser usados para reverter broncoespasmo causado por β-bloqueadores.

Corticoides sistêmicos
O corticoide sistêmico deve ser utilizado em todos os pacientes com exacerbação
aguda da asma, excetuando-se apenas os casos de broncoespasmo leve. O início de ação é
lento, não havendo diferença entre a administração oral e a intravenosa.
Devem estar disponíveis em casa para pacientes com asma moderada a grave, pois
há benefício com a administração precoce.
Preconiza-se ataque com Prednisona 1-2mg/kg/dia, geralmente 40-80mg, em uma
a duas doses, durante 7-14 dias.
Opções para as crises graves:
- Hidrocortisona com dose de ataque de 200-300mg por via intravenosa e
manutenção com 100-200mg de 6/6 horas, com máximo de 800mg/dia;
- Metilprednisolona com dose de ataque de 40mg por via intravenosa
manutenção com 40mg de 6/6 horas, com máximo de 160mg/dia;

Inibidores da fosfodiesterase
Raramente utilizados porque têm pouco benefício e risco de toxicidade.
Drogas incluem Metilxantinas, como a Aminofilina.
Efeitos colaterais incluem arritmias e convulsões.

Sulfato de Magnésio
Causa bronco-dilatação adicional e melhora a função pulmonar, com redução da
necessidade de internação em crises graves.
Preconiza-se Sulfato de Magnésio a 10% 20mL diluído em Soro Fisiológico 100-
200mL por via intravenosa em 20 minutos. Estudo recente evidenciou maior benefício na
nebulização de Salbutamol em solução com magnésio em comparação com Soro
Fisiológico.
Não foram demonstrados efeitos colaterais significativos.

Ventilação não invasiva


Pode-se iniciar teste com Continuous Positive Airway Pressure (CPAP) de
5cmH2O ou com Bilevel Positive Airway Pressure (BiPAP), em que preconiza-se
Inspiratory Positive Airway Pressure (IPAP) de 10cmH2O e Expiratory Positive Airway
Pressure (EPAP) de 5cmH2O.

Intubação orotraqueal
Indicações incluem hipercapnia e hipoxemia refratárias, instabilidade
hemodinâmica, diminuição do nível de consciência, bradicardia e fadiga da musculatura
respiratória.

Pedro Kallas Curiati 89


Sequência rápida de intubação:
- Acesso venoso de grosso calibre e monitorização de ritmo cardíaco,
pressão arterial e saturação periférica de oxigênio;
- Material preparado, com aspirador, laringoscópio, tubo orotraqueal e cuff
testados;
- Pré-oxigenação com O2 a 100% por alguns minutos com dispositivo
bolsa-valva-máscara;
- Medicação pré-intubação, com analgesia e sedação;
- Considerar o uso de bloqueador neuromuscular, como a Succinilcolina
1.0-2.0mg/kg;
Deve-se usar cânula endotraqueal de maior calibre, superior ou igual a 8 se
possível, para obter menor resistência das vias aéreas e maior facilidade para remover
secreção.
Devido ao frequente surgimento de hipotensão arterial durante a intubação
orotraqueal, preconiza-se a utilização de drogas sedativas com menor efeito vasoplégico,
como Quetamina 1.5-2.0mg/kg por via intravenosa com velocidade de 0.5mg/kg/minuto.
Outras opções incluem Midazolam 0.1-0.3mg/kg por via intravenosa e Propofol
1.5mg/kg por via intravenosa, ambos com ação hipotensora e necessidade de reposição
agressiva de volume.
Os parâmetros ventilatórios preconizados incluem modo pressão controlada,
frequência respiratória de 6-12ipm, volume corrente (VT) de 6mL/kg, pressão de platô
inferior a 35cmH2O, relação entre inspiração e expiração inferior a 1 para 2, PEEP de
5cmH2O e FiO2 para saturação periférica de oxigênio superior a 90%. No modo volume
controlado, preconiza-se alto fluxo inspiratório, com 60-80L/minuto, e curva de fluxo
descendente.
Em caso de auto-PEEP, medido durante pausa expiratória, deve-se aumentar o
tempo expiratório por meio de aumento do fluxo ou redução do tempo inspiratório, com
volume corrente e frequência respiratória baixos. É necessário manter PEEP inferior ao
auto-PEEP para facilitar o disparo do ventilador.
Embora hipercapnia seja tolerada, procura-se manter o pH superior a 7.2.

Indicações de tratamento em unidade de terapia intensiva


Asma grave sem melhora com o tratamento inicial.
Confusão mental ou diminuição do nível de consciência.
Saturação inferior a 90% persistente.
PaCO2 superior a 45mmHg.

Considerações
Em pacientes com má percepção dos sintomas, deve-se guiar o tratamento pela
função pulmonar. Em pacientes com asma de difícil controle, deve-se considerar má-
adesão, técnica inadequada de uso do dispositivo, sinusite e refluxo gastro-esofágico. Em
pacientes com crises graves, o tratamento ambulatorial deve abranger, no mínimo, o
mesmo que aquele preconizado para a asma persistente moderada. Após uma
exacerbação, retorno deve ser marcado em duas a quatro semanas.

Conduta e tratamento no pronto atendimento

Pedro Kallas Curiati 90


Avaliação e tratamento na primeira hora.
Avaliação inicial com história e exame físico, VEF1 ou PFE, oximetria de pulso e
gasometria arterial se VEF1 inferior a 30% ou crise grave.
Se crise leve, preconiza-se duas a três inalações com 10 gotas de Fenoterol em 3-
5mL de Soro Fisiológico e alta com orientações, podendo-se considerar o uso de
corticoide oral.
Se crise moderada a grave, preconiza-se inalação com 10-20 gotas de Fenoterol e
40 gotas de Brometo de Ipratrópio em 3-5mL de soro fisiológico a cada quinze a vinte
minutos, reavaliação clínica após cada inalação, reavaliação de VEF1 ou PFE após uma
hora e Prednisona 40-80mg por via oral ou Metilprednisolona 40-80mg por via
intravenosa.
Boa resposta se VEF1 ou PFE superiores ou iguais a 70% do esperado, paciente
estável por uma hora após a abordagem inicial, exame físico normal, ausência de dispneia
e saturação de oxigênio superior a 90%. A conduta prevê alta hospitalar.
Resposta incompleta quando VEF1 ou PFE inferiores a 60% e saturação de
oxigênio sem melhora, com persistência de sinais e sintomas leves a moderados. Deve-se
avaliar solicitação de exames, como eletrólitos, hemograma e radiografia do tórax. A
conduta prevê manter o paciente na sala de pronto-atendimento com inalações com β2-
agonista e Brometo de Ipratrópio a cada 60 minutos, cateter nasal de oxigênio,
Prednisona 40-60mg por via oral e monitorização do PFE e da saturação periférica de
oxigênio. Se boa resposta, a conduta prevê alta hospitalar. Se ausência de melhora, a
conduta prevê internação hospitalar.
Resposta inadequada quando VEF1 ou PFE inferiores a 30% do esperado com
sintomas graves, como sonolência e confusão mental, e gasometria com PaCO2 superior a
45mmHg e PaO2 inferior a 60mmHg. A conduta prevê internação hospitalar, geralmente
em unidade de terapia intensiva, e considerar intubação orotraqueal.
Alta hospitalar prevê inalação com β2-agonista, corticoide oral por cinco a
quatorze dias, corticoide inalatório associado para asma persistente, retorno ambulatorial
breve e orientações sobre a doença, como uso correto do nebulímetro, plano de ataque
nas crises domiciliares e causas de descompensação. Fatores que ajudam na decisão
correta por alta hospitalar incluem VEF1 ou PFE superiores a 80%, capacidade de
deambular sem dispneia, uso de medicação inalatória em espaços maiores do que três a
quatro horas, ausência de medicações parenterais, compreensão do uso das medicações e
acompanhamento ambulatorial breve.
Internação hospitalar prevê inalações com β2-agonista e Brometo de Ipratrópio a
cada 1-2 horas, cateter nasal de oxigênio, corticoide sistêmico por via intravenosa,
Sulfato de Magnésio por via intravenosa, monitorização de VEF1 ou PFE e saturação
periférica de oxigênio e avaliação da necessidade de cuidados intensivos, intubação
orotraqueal e ventilação mecânica. Deve-se avaliar solicitação de exames, como
eletrólitos, hemograma e radiografia do tórax.
Em caso de parada cardiorrespiratória iminente, preconiza-se sala de emergência,
preparar material para intubação orotraqueal com cânula 8.5-9.0, monitorização, obter
acesso venoso, oferecer suporte de oxigênio e administrar medicações sem retardar a
intubação orotraqueal, com Metilprednisolona 40-80mg por via intravenosa, Terbutalina
0.25mg por via subcutânea, Sulfato de Magnésio a 10% 20mL em 100mL de Soro
Fisiológico por via intravenosa e inalação contínua com Fenoterol 10 gotas e Ipratrópio

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40 gotas em 5mL de Soro Fisiológico.
Se alteração do nível de consciência, bradicardia ou iminência de parada
cardiorrespiratória, proceder com sedação adequada, bloqueio neuromuscular, intubação
orotraqueal e ventilação controlada com baixo volume corrente, frequência respiratória
de 6-12ipm e Positive End-Expiratory Pressure (PEEP) de 80% do auto-PEEP.

Complicações da crise asmática


As complicações da crise asmática incluem insuficiência respiratória aguda,
morte, atelectasia, pneumotórax, enfisema subcutâneo e/ou de mediastino e cor
pulmonale.

Bibliografia
Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 5. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2010.
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva Martins,
Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole, 2008.
Global Strategy for Asthma Management and Prevention. Global Initiative for Asthma. 2009.

Pedro Kallas Curiati 92


DOENÇA PULMONAR
OBSTRUTIVA CRÔNICA
EXACERBADA
Doença pulmonar obstrutiva crônica
A doença pulmonar obstrutiva crônica é caracterizada por limitação progressiva
ao fluxo aéreo que não é totalmente reversível. Está associada a uma resposta
inflamatória anormal dos pulmões a partículas ou gases nocivos. Há redução do volume
expiratório forçado no primeiro segundo (VEF1) para menos de 80% do predito após o
uso de bronco-dilatador ou da relação do VEF1 sobre a capacidade vital forçada (CVF)
para menos de 70%. Outras alterações incluem aumento do volume residual e da
capacidade residual funcional, progressiva disfunção diafragmática por retificação da
cúpula, aumento da capacidade pulmonar total, redução da capacidade vital,
vasoconstrição arterial pulmonar, aumento da pressão arterial pulmonar, hipoxemia,
hipercapnia, caquexia e aumento dos níveis de catecolaminas, renina e aldosterona.
O tabagismo ativo e passivo é o principal agente etiológico. Outros fatores
envolvidos incluem inalação de partículas ambientais, como dióxido de enxofre, cádmio
e aquelas relacionadas ao cozimento em locais fechados, predisposição genética, como na
deficiência de α1-antitripsina, e hiperresponsividade das vias aéreas, principalmente
relacionada à exposição a tabaco e outros insultos ambientais.
Enfisema pulmonar é caracterizado por aumento dos espaços aéreos distais aos
bronquíolos terminais, acompanhado de destruição de suas paredes, sem fibrose
significativa e de caráter permanente. Bronquite crônica é caracterizada por tosse
produtiva por mais de três meses durante dois anos consecutivos. A tosse ocorre por
hipersecreção de muco, podendo não haver obstrução ao fluxo aéreo.
Classificação ambulatorial da obstrução ao fluxo aéreo em pacientes estáveis
Classificação Espirometria
I – Leve VEF1/CVF<70% e VEF1≥80%
II – Moderada VEF1/CVF<70% e 80% >VEF1≥50%
III – Grave VEF1/CVF<70% e 50% >VEF1≥30%
IV – Muito VEF1/CVF<70% e VEF1<30% ou 50% >VEF1≥30% em vigência de falência respiratória
grave crônica, caracterizada por PaO2<60mmHg e/ou PaCO2>50mmHg
A exacerbação é definida como um evento no curso natural da doença pulmonar
obstrutiva crônica caracterizado por piora em dispneia, tosse e/ou expectoração em
relação ao basal, com início agudo.

Etiologia
Infecções, mudanças climáticas, poluição atmosférica, má-aderência ao
tratamento e aumento da carga tabágica são alguns dos fatores desencadeantes da
exacerbação da doença pulmonar obstrutiva crônica.
Estima-se que infecções sejam a causa mais frequente de exacerbação, com 70%
de etiologia bacteriana e 30% de etiologia viral. As bactérias envolvidas com maior
prevalência são Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenzae e Moraxella

Pedro Kallas Curiati 93


catarrhalis. Pacientes mais graves, com comorbidades importantes ou com exacerbadores
frequentes costumam infectar-se por bactérias de maior patogenicidade, como
Pseudomonas sp.

Fisiopatologia
Há infecção do paciente por uma cepa diferente daquela com a qual ele é
colonizado, com piora dos sintomas e da função pulmonar. Ocorre aumento do número
de eosinófilos nas vias aéreas, com boa resposta ao uso de corticoides.

Diagnóstico e classificação
Os três critérios diagnósticos cardinais são aumento da dispneia, aumento da
produção de escarro e mudança no aspecto do escarro para purulento. Frequentemente, o
quadro clínico também é caracterizado por aumento da frequência ou da intensidade da
tosse
Exacerbação leve é caracterizada pela presença de um critério cardinal e de outro
achado adicional, como infecção de vias aéreas superiores, febre sem causa aparente,
sibilos, piora da tosse e aumento superior a 20% da frequência respiratória ou da
frequência cardíaca.
Exacerbação moderada é caracterizada pela presença de dois critérios cardinais e
exacerbação grave é caracterizada pela presença de três critérios cardinais. Ambas devem
ser tratadas com antibióticos.

Quadro clínico
Apontam para doença pulmonar obstrutiva crônica sibilos, expiração prolongada,
diminuição dos murmúrios vesiculares, aumento do diâmetro ântero-posterior do tórax,
taquipneia, taquicardia, roncos difusos, crepitações e bulhas cardíacas abafadas. Apontam
para hipertensão arterial pulmonar edema de membros inferiores, hepatomegalia, bulha
pulmonar hiperfonética e palpável e sopro de insuficiência tricúspide. Podem estar
presentes ingurgitamento das veias do pescoço na inspiração, denominado sinal de
Kussmaul, cianose e pletora.
Baqueteamento digital não constitui sinal de doença pulmonar obstrutiva crônica
e, se presente, pode indicar doenças associadas, como câncer de pulmão e abscesso
pulmonar.

Exames complementares
Radiografia do tórax geralmente é normal, sendo útil para o diagnóstico
diferencial. Evidencia bolhas de enfisema, retificação do diafragma, aumento dos espaços
retroesternal e retrocardíaco, aumento dos espaços intercostais e sinais de hipertensão
pulmonar. Áreas de enfisema são comuns nos lobos superiores e a presença em lobos
inferiores ocorre na deficiência de alfa-1-antitripsina.
Oximetria de pulso é indicada sempre se disponível. Gasometria arterial é
indicada quando saturação periférica de O2 inferior a 90% ou diminuição do nível de
consciência.
Eletrocardiograma é indicado quando houver pulso arrítmico, discrepância entre
frequência cardíaca e pulso periférico, dor precordial, palpitação, síncope ou congestão
pulmonar. Evidencia sobrecarga de câmaras direitas, arritmia cardíaca e/ou isquemia

Pedro Kallas Curiati 94


miocárdica.
Provas de função pulmonar são úteis para o diagnóstico da doença pulmonar
obstrutiva crônica leve a moderada e para avaliar gravidade e reversibilidade. VEF1
normal exclui o diagnóstico. O valor no pronto-socorro é incerto.
Dosagem de níveis séricos de α1-antitripsina é indicada em doentes com idade
inferior a cinquenta anos, antecedentes familiares de doença pulmonar obstrutiva crônica,
doença predominantemente em bases pulmonares e ausência de antecedente de tabagismo
ativo e passivo.
Dosagem de enzimas cardíacas é utilizada para diagnóstico diferencial com
infarto agudo do miocárdio. D-dímero e angiotomografia computadorizada helicoidal são
utilizados para diagnóstico diferencial com tromboembolismo pulmonar. Tomografia
computadorizada de tórax é utilizada para diagnóstico de bronquiectasia e avaliação de
grandes bolhas de enfisema. Cultura do escarro com antibiograma é indicada para
identificar o agente se não houver resposta ao tratamento antibiótico inicial. Hemograma
pode identificar policitemia. Avaliação bioquímica pode ser indicada para detectar
distúrbios hidroeletrolíticos, diabetes mellitus e/ou desnutrição.

Diagnóstico diferencial
O diagnóstico diferencial inclui asma, insuficiência cardíaca, pneumonia,
arritmias, derrame pleural, tromboembolismo pulmonar, câncer de pulmão, tuberculose,
bronquiectasias, bronquiolite obliterante, panbronquite difusa e pneumotórax.

Tratamento

Objetivos
Melhorar a oxigenação do paciente e manter saturação periférica de oxigênio
superior a 92%.
Diminuir a resistência das vias aéreas com o uso de bronco-dilatadores, corticoide
e fisioterapia respiratória.
Melhorar a função da musculatura respiratória através de suporte ventilatório não-
invasivo, nutrição adequada e ventilação mecânica.

Bronco-dilatadores
Os bronco-dilatadores trazem melhora significativa da dispneia e do
broncoespasmo. Recomenda-se a associação de β2-agonistas com anticolinérgicos por via
inalatória.
Preconiza-se Salbutamol ou Fenoterol 10 gotas (2.5g) em 3-5mL de Soro
Fisiológico, com inalações a cada 15-20 minutos até três doses e, a seguir, aumento
gradual do intervalo entre as doses até estabilização. O uso de Salbutamol spray 400mcg
(4 puffs) em bomba com espaçador é alternativa aceitável.
Recomenda-se iniciar com β2-adrenérgico e adicionar o Brometo de Ipatrópio 20-
40 gotas em cada inalação se ausência de melhora, mas pode-se iniciar com a associação
em caso de exacerbação grave. Se paciente sem necessidade de internação, deve-se
iniciar ou aumentar a frequência de uso de β2 agonista de curta duração e/ou Brometo de
Ipatrópio.
Xantinas são utilizadas a critério médico.

Pedro Kallas Curiati 95


Corticosteroides
Os corticoides sistêmicos estão indicados em exacerbações de doença pulmonar
obstrutiva crônica atendidas em serviços de emergência. Quanto ao corticoide inalatório,
não há recomendação.
Preconiza-se Prednisona 30-40mg/dia por via oral durante 7-10 dias após a alta do
pronto-socorro. Em doentes graves, deve-se preferir Metilprednisolona 1mg/kg por via
intravenosa de 6/6 horas durante três dias e continuação com regime por via oral.

Antibióticos
Uso controverso, uma vez que nem sempre a causa da descompensação é infecção
bacteriana, há resistência aos antibióticos epidemiologicamente comprovados e existem
efeitos negativos do uso rotineiro de drogas de amplo espectro.
Antibióticos são usados em exacerbações moderadas ou graves de doença
pulmonar obstrutiva crônica, desde que na presença de expectoração purulenta. Em
pacientes com necessidade de ventilação mecânica invasiva ou não-invasiva, recomenda-
se também a prescrição de antibióticos.
No Brasil, Amoxacilina, Sulfametoxazol-Trimetoprim e Doxicilina eram as
drogas mais indicadas. Em função da crescente resistência dos agentes, está indicada a
introdução de Macrolídeo, como a Azitromicina 500mg por via oral uma vez ao dia e
Claritromicina 500mg por via oral ou intravenosa de 12/12 horas, ou de Quinolona
respiratória, como a Levofloxacina 500mg por via oral ou intravenosa uma vez ao dia. A
administração deve ser feita por via parenteral no quadro grave, podendo-se optar pela
associação de Cefalosporina de 3ª geração, como Ceftriaxone 1g por via intravenosa de
12/12 horas, com Macrolídeo. Deve-se considerar cobertura para Pseudomonas sp. A
duração da antibioticoterapia é de cinco a sete dias.

Oxigênio
Suporte de oxigênio é indicado para exacerbações com saturação periférica de O2
inferior a 90%. Deve-se administrar O2 suplementar com baixos fluxos para manter
saturação superior a 90-92%.
Há risco de piora da acidose respiratória e da hipercapnia em doença pulmonar
obstrutiva crônica grave se O2 em altos fluxos. Nessa situação, saturação periférica de
oxigênio de 88-90% pode ser suficiente, pois o aumento do oxigênio inibe o centro
respiratório.
Recomenda-se a coleta de gasometria arterial após trinta a sessenta minutos do
início da suplementação de oxigênio para avaliar a retenção de CO2, os níveis de pH e os
níveis de bicarbonato. pH inferior a 7.35 com pCO2 superior a 45mmHg e frequência
respiratória superior a 25ipm é indicação de suporte ventilatório, que pode ser invasivo
ou não-invasivo.

Ventilação não-invasiva
Indicações incluem insuficiência respiratória aguda, piora ou ausência de melhora
da dispneia, uso de musculatura acessória, movimento abdominal paradoxal, acidose
moderada a grave e frequência respiratória superior a 25ipm.
Deve ser usada precocemente nesse grupo de pacientes, idealmente iniciada ainda

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no pronto socorro, com redução da mortalidade, da taxa de intubação orotraqueal e do
tempo de internação hospitalar.
O aparelho é conectado ao paciente por meio de uma máscara facial. Preconiza-se
modo Bi-level Positive Airway Pressure (BIPAP) com Expiratory Positive Airway
Pressure (EPAP) de 5cmH20 e Inspiratory Positive Airway Pressure (IPAP) para volume
corrente de 5-6mL/kg.
Contraindicações:
- Parada respiratória ou cardiorrespiratória;
- Instabilidade hemodinâmica, com hipotensão, infarto agudo do
miocárdio ou arritmias graves;
- Incapacidade de proteger as vias aéreas, com vômitos, diminuição do
nível de consciência e/ou agitação psicomotora;
- Secreção excessiva de vias aéreas com risco de aspiração;
- Queimaduras, lesões de pele em face e tumores craniofaciais;
- Cirurgia recente otorrinolaringológica, esofágica ou gástrica;
A falência da ventilação não invasiva é caracterizada por frequência respiratória
superior a 30-35ipm, pH inferior a 7.25 após duas horas, piora progressiva do nível de
consciência ou necessidade de fração inspirada de oxigênio superior a 60%.

Ventilação mecânica invasiva


Deve ser instituída nos casos de doença pulmonar obstrutiva crônica exacerbada
que não responderam ou que apresentam contraindicação ao uso de ventilação não-
invasiva. As principais indicações são grave dispneia com uso de musculatura acessória e
movimento abdominal paradoxal, frequência respiratória superior a 35ipm, hipoxemia
ameaçadora à vida, com PaO2 inferior a 40mmHg ou PaO2/FiO2 inferior a 200, acidose
grave, com pH inferior a 7.25, hipercapnia grave, com PaCO2 superior a 60mmHg,
parada cardiorrespiratória, instabilidade hemodinâmica, confusão mental e sonolência.
O ajuste do aparelho prevê volume corrente de 5-6mL/kg, frequência respiratória
de 6-12ipm, PEEP próximo do auto-PEEP (80%), tempo inspiratório curto e tempo
expiratório suficiente para zerar o fluxo expiratório. Outra medida importante é a
hipercapnia permissiva, em que são toleradas pressões parciais de CO2 altas desde que o
pH permaneça superior a 7.1.

Indicações de internação hospitalar


As indicações para admissão hospitalar em exacerbação de doença pulmonar
obstrutiva crônica incluem doença avançada, dispneia intensa, hipoxemia refratária,
hipercapnia com acidose, cianose de início recente, cor pulmonale de início recente,
ausência de resposta adequada ao tratamento no pronto socorro, comorbidades graves e
não controladas, arritmias de início recente, suporte domiciliar inadequado e idade
avançada.
As indicações para admissão em unidade de tratamento intensivo incluem
dispneia severa com ausência de resposta adequada ao tratamento inicial, rebaixamento
do nível de consciência, hipoxemia persistente ou progressiva, hipercapnia persistente ou
progressiva, acidose persistente ou progressiva, necessidade de ventilação mecânica
invasiva ou não invasiva e instabilidade hemodinâmica com necessidade de drogas
vasoativas.

Pedro Kallas Curiati 97


Alta hospitalar
Necessidade de inalação em intervalos iguais ou superiores a quatro horas.
Capacidade de andar, comer e dormir sem dispneia significativa.
Estabilidade por seis a doze horas com base em sintomas e oximetria.
Comorbidades estáveis e controladas.
Compreensão da prescrição e capacidade para segui-la.
Suporte social e domiciliar adequados.

Conduta
1. Ao receber paciente com dispneia, aumento da expectoração e/ou escarro que
se torna purulento:
- Classificar a exacerbação em leve, moderada ou grave;
- Realizar exame físico, aferição de sinais vitais e oximetria de pulso;
- Investigar fatores precipitantes;
2. a) Se doente estável, realizar radiografia do tórax e considerar outros exames
complementares. A conduta inicial prevê:
- Inalação com 10 gotas de β2-agonista de 20/20 minutos na 1ª hora;
- Associar 40 gotas de Ipatrópio em cada inalação se houver exacerbação
grave ou pouca melhora com β2-agonista;
- Prednisona 30-40mg por via oral ou Metilprednisolona 1mg/kg por via
intravenosa;
- Oxigênio 1-3L/minuto se saturação periférica de O2 inferior a 90%, com
coleta de gasometria arterial após trinta a sessenta minutos;
- Considerar antibioticoterapia;
Se resposta favorável às medicações, a conduta prevê alta hospitalar com inalação
de 4/4 horas e Prednisona 30-40mg/dia por 7-10 dias. Deve-se evitar antibioticoterapia
para exacerbação leve e prescrever se exacerbação moderada a grave. Deve-se indicar
vacinação para pneumococo e influenza.
Se exacerbação moderada a grave com pouca melhora inicial, a conduta prevê:
- Ventilação não-invasiva;
- Manter corticoide intravenoso de 6/6 horas;
- Inalação a cada 1-2 horas, com menor frequência se melhora clínica;
- Associar antibioticoterapia;
- Considerar internação hospitalar;
- Considerar unidade de terapia intensiva se não houver melhora;
2. b) Se doente instável, com sonolência ou confusão mental, iminência de parada
cardiorrespiratória, grave insuficiência respiratória, hipotensão e/ou arritmia grave, a
conduta prevê intubação orotraqueal.
3. Em qualquer dos momentos, considerar:
- Monitorizar fluidos, eletrólitos e nutrição;
- Profilaxia de trombose venosa profunda com Heparina subcutânea;
- Identificar e tratar comorbidades e/ou fatores precipitantes, como
insuficiência cardíaca congestiva, diabetes mellitus, pneumonia, arritmias,
pneumotórax e outros;
- Acompanhar de perto a evolução do doente;

Pedro Kallas Curiati 98


Bibliografia
Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 5. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2010.
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva Martins,
Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole, 2008.
Global Strategy for the Diagnosis, Management, and Prevention of Chronic Obstructive Pulmonary Disease. Global Initiative for
Chronic Obstructive Lung Disease. 2009.

Pedro Kallas Curiati 99


HIPOGLICEMIA E HIPERGLICEMIA
Hipoglicemia

Definições
A hipoglicemia, com exceção dos pacientes diabéticos, é uma condição incomum
e deve ser prontamente identificada e corrigida, pois é potencialmente fatal.
Para que se confirme o diagnóstico de hipoglicemia, é necessário que haja
glicemia inferior a 70mg/dL, sintomas de hipoglicemia e melhora dos sintomas após a
administração de glicose.

Etiologia e fisiopatologia
De maneira geral, a hipoglicemia ocorre pelo desequilíbrio entre a produção dos
hormônios hipoglicemiantes, como a insulina, e dos hormônios hiperglicemiantes, como
o glucagon, as catecolaminas, o hormônio de crescimento e o cortisol.
As respostas hormonais precedem o aparecimento de sintomas de hipoglicemia.
Hipoglicemias de repetição podem alterar o limiar de surgimento dos sintomas.
O diabetes mellitus e o seu tratamento representam a principal causa de
hipoglicemia.
Em pacientes com insulinoma, mesmo em vigência de hipoglicemia, observam-se
níveis de insulina e peptídeo C acima do esperado. Já na hipoglicemia factícia, decorrente
do uso de Insulina exógena, o peptídeo C estará suprimido. No uso de Sulfoniluréia ou
Glinidas, o peptídeo C eleva-se e pode haver dificuldade no diagnóstico diferencial com
insulinoma.
Outras causas incluem insuficiência adrenal, etilismo, hepatopatia, sepse, jejum,
inanição, insuficiência renal crônica e grandes tumores.

Quadro clínico
Manifestações neurológicas incluem cefaleia, sonolência, tontura, ataxia, astenia,
dificuldade de concentração, lentificação do pensamento, confusão mental, irritabilidade,
alterações de comportamento, déficits neurológicos focais, convulsões e coma.
Manifestações adrenérgicas incluem palpitações, taquicardia, ansiedade, tremores,
sudorese, fome e parestesias. Idosos com diabetes mellitus de longa data podem não
apresentar sintomas adrenérgicos, o que retarda o diagnóstico da hipoglicemia e aumenta
o risco de sequelas neurológicas permanentes.
Deve-se sempre pensar em hipoglicemia em todo doente com alteração
neurológica no pronto-socorro.

Exames complementares
Além da glicemia, deve-se avaliar função renal e ficar atento para causas
subjacentes. Em não-diabéticos, outros exames poderão ser úteis de acordo com a
suspeita clínica, como função hepática, eletrólitos, cortisol sérico basal, insulina e
peptídeo C.
Teste de jejum prolongado tem duração de até 72 horas. Durante o teste é

Pedro Kallas Curiati 100


permitida apenas a ingesta de líquidos livres de calorias e de cafeína. O paciente não
deverá permanecer o tempo todo em repouso. Durante esse período, a glicemia, a
insulina, o peptídeo C e a pró-insulina devem ser mensurados periodicamente. O teste é
interrompido se a glicemia for menor do que 45mg/dL, o paciente apresentar sintomas de
hipoglicemia ou o tempo de jejum chegar a 72 horas.

Tratamento
Em qualquer doente que
chegue ao pronto-socorro com
agitação, confusão mental, coma
ou mesmo déficit neurológico
localizatório, deve-se
imediatamente verificar a
glicose capilar. Quanto mais
precocemente for corrigida uma
hipoglicemia, menor a chance de
sequelas neurológicas.
Confirmada a
hipoglicemia, deve-se infundir
60-100mL de Soro Glicosado a
50% por via intravenosa.
Em doentes sem acesso
venoso, pode-se fazer Glucagon
1.0-2.0mg por via subcutânea ou
intramuscular, embora seu efeito
seja fugaz e ineficaz em segunda
dose, pois depleta todo o estoque
de glicogênio hepático. Pode-se
prever uma ausência de resposta
em desnutridos ou hepatopatas.
Se a hipoglicemia é
pouco sintomática, pode-se
tentar glicose pela via oral
através da ingesta de algum
carboidrato de rápida absorção.
Em pacientes diabéticos
com uso de Insulina, sem causa
aparente de hipoglicemia, deve-se sempre investigar insuficiência renal, pois indica
redução da dose da medicação.
Em doentes desnutridos, hepatopatas ou etilistas, deve-se prescrever Tiamina
junto com a glicose para prevenir o surgimento de encefalopatia de Wernicke-Korsakoff.
Aplica-se 100mg de Tiamina por via intravenosa ou intramuscular juntamente com a
glicose.

Hiperglicemias

Pedro Kallas Curiati 101


Definições
Cetoacidose diabética é definida pela presença de glicemia superior a 250mg/dL,
pH arterial inferior a 7.3 e cetonúria fortemente positiva. Se disponível, a dosagem
arterial de cetoácidos é um melhor critério.
Estado hiperosmolar hiperglicêmico é definido pela presença de glicemia superior
a 600mg/dL, pH arterial superior a 7.3 e osmolalidade sérica efetiva estimada superior a
320mOsm/kg.

Epidemiologia
A mortalidade da cetoacidose diabética é muito pequena e depende
fundamentalmente da causa precipitante. No estado hiperosmolar hiperglicêmico, a
mortalidade é maior e se deve principalmente à idade avançada dos pacientes e à alta
frequência de comorbidades.

Classificação (American Diabetes Association)


Parâmetros Cetoacidose diabética Estado hiperosmolar
Leve Moderada Grave hiperglicêmico
Glicemia (mg/dL) >250 >250 >250 >600
pH arterial 7.25- 7.00-7.24 <7.00 >7.30
7.30
Bicarbonato sérico 15.0- 10.0-14.9 <10.0 >18.0
(mEq/L) 18.0
Cetonúria Positiva Positiva Positiva Fracamente positiva
Cetonemia Positiva Positiva Positiva Fracamente positiva
Osmolalidade efetiva Variável Variável Variável >320mOsm/kg
Ânion gap >10 >12 >12 Variável
Nível de consciência Alerta Alerta ou Estupor ou Estupor ou coma
sonolento coma

Etiologia e fisiopatologia
Em ambas as afecções, ocorre uma redução da secreção de insulina como
mecanismo central. Na cetoacidose diabética, há sobreposição com aumento de
hormônios contrarreguladores, como glucagon, cortisol, catecolaminas e hormônios de
crescimento. No estado hiperosmolar hiperglicêmico há uma produção suficiente de
insulina para suprimir a produção de glucagon e, dessa forma, não ocorre produção de
corpos cetônicos.
Os fatores precipitantes incluem infecções, tratamento irregular,
primodescompensação, afecções abdominais, doenças vasculares, medicações e drogas,
gestação, cirurgia e trauma.

Quadro clínico

Cetoacidose diabética
Ocorre principalmente em um subgrupo de população mais jovem, com média
etária entre 20 e 29 anos, embora possa ocorrer nos dois extremos de idade.
Muitas vezes o início é abrupto, mas os doentes podem apresentar pródromos com
duração de dias com poliúria, polidipsia, polifagia e mal-estar indefinido.
O doente irá apresentar-se, na grande maioria das vezes, desidratado, podendo

Pedro Kallas Curiati 102


estar hipotenso e taquicárdico, embora possa eventualmente estar com extremidades
quentes e bem perfundidas por ação de prostaglandinas.
Sinais relacionados com a acidose incluem taquipnéia, respiração de Kusmaull e
hálito cetônico.
O doente normalmente encontra-se alerta.
Dor abdominal é um achado muito característico e tende a melhorar muito com a
hidratação inicial do doente.
Febre não é frequente e mesmo na sua ausência não é possível descartar que o
fator precipitante seja infeccioso.

Estado hiperosmolar hiperglicêmico


A faixa etária é maior, com predomínio após os 40 anos.
O quadro clínico é mais insidioso, com sintomas relacionados a poliúria,
polidipsia, astenia e desidratação durante dias a semanas.
Há dificuldade de acesso à água por limitações físicas, idade avançada e/ou
doenças neurológicas.
A desidratação é bem mais acentuada.
Há rebaixamento do nível de consciência devido à hiperosmolaridade. Sintomas
localizatórios do sistema nervoso central, como convulsões e déficits focais, podem
ocorrer em parte dos casos, com necessidade de investigação com exames de
neuroimagem.

Exames complementares
Devem ser solicitados para todos os doentes com descompensação diabética
grave, além da medida de glicose capilar (Dextro®):
- Gasometria com potássio;
- Eletrólitos, com dosagem de potássio, sódio, cloro, magnésio e fósforo
séricos;
- Hemograma, que pode revelar leucocitose com desvio à esquerda mesmo
sem infecção;
- Glicemia;
- Urina tipo I e cetonúria, com dosagem sérica de cetoácidos se disponível;
- Eletrocardiograma, com busca de achados de hipercalemia e isquemia;
- Radiografia de tórax;
Outros exames podem ser necessários de acordo com a suspeita clínica.

Diagnóstico diferencial
Envolve a busca de fatores precipitantes e a diferenciação de outras causas de
acidose, dor abdominal e rebaixamento do nível de consciência.

Tratamento
Os princípios do tratamento são procurar e tratar os fatores precipitantes, corrigir
o déficit hídrico, corrigir a hiperglicemia e corrigir os déficits eletrolíticos.

Hidratação
Fase de expansão rápida com 15-20mL/kg/hora (1000-1500mL/hora) de Soro

Pedro Kallas Curiati 103


Fisiológico na ausência de disfunção cardíaca.
Após a correção da hipotensão, manutenção da hidratação com 250-500mL/hora
de soro. A escolha da concentração dependerá do sódio corrigido, calculado com a
fórmula Na+ medido + 1.6[(glicemia – 100)/100]. Se maior do que 135mEq/L prescrever
NaCl a 0.45% e se menor do que 135mEq/L prescrever Soro Fisiológico.
Quando a glicemia atingir 200mg/dL na cetoacidose diabética ou 300mg/dL no
estado hiperosmolar hiperglicêmico, deve-se continuar a hidratação, mas agora associada
à glicose, mantendo 150-250mL/hora de uma solução de NaCl a 0.45% com glicose,
preparada com 22mL de NaCl a 20% (77mEq) em um litro de Soro Glicosado a 5% ou
10%.

Insulinoterapia
Exceto nos casos de hipocalemia, a insulinoterapia é realizada de forma
concomitante com a hidratação. Antes de iniciar a infusão no paciente, deve-se desprezar
cerca de 50mL da solução no equipo para saturar a ligação da insulina ao sistema, já que
é adsorvida ao plástico.
Apenas prescrever Insulina se o potássio sérico inicial for maior do que
3.3mEq/L. Se o potássio sérico for menor do que 3.3mEq/L, prescrever 1000mL de Soro
Fisiológico com 25mEq/L de potássio, o que equivale a 10mL de KCl a 19.1%, em uma
hora e dosar novamente após o término da infusão.
Ataque com dose de 0.10U/kg de Insulina Regular em bolus por via intravenosa.
Manutenção com dose de 0.10U/kg/hora em bomba de infusão contínua, com solução
preparada com 50U de Insulina Regular e 500mL de Soro Fisiológico (0.1U/mL).
Monitorização com glicose capilar de hora em hora. A taxa ideal de queda da
glicemia é 50-75mg/dL. Se redução inferior ao ideal, deve-se aumentar a taxa de infusão.
Se redução superior ao ideal, deve-se reduzir a taxa de infusão.
Quando a glicemia atingir 200mg/dL na cetoacidose diabética ou 300mg/dL no
estado hiperosmolar hiperglicêmico, pode-se reduzir a Insulina Regular intravenosa para
0.02-0.05U/kg/hora, com ajustes para manter glicemia de 150-200mg/dL na cetoacidose
diabética e 250-300mg/dL no estado hiperosmolar hiperglicêmico.
Suspender a infusão contínua de insulina quando houver controle do fator
precipitante, glicemia inferior a 200mg/dL e dois dentre pH superior a 7.30, ânion gap
inferior ou igual a 12mEq/L e bicarbonato superior ou igual a 15mEq/L. A negativação
da cetonúria não é critério para resolução da cetoacidose. Os cuidados antes da suspensão
da Insulina Regular intravenosa incluem prescrever 10U por via subcutânea, iniciar a
alimentação por via oral e aguardar uma hora antes de desligar a bomba.

Reposição de potássio
Habitualmente, o potássio sérico inicial é normal ou aumentado. Entretanto, o
déficit corporal de potássio é grande, em torno de 3-6mEq/kg de peso. Com hidratação,
reposição de Insulina, correção da acidose e correção da hipovolemia, haverá diminuição
drástica do potássio sérico. Por esse motivo, deve-se dosá-lo a cada duas a quatro horas e
repô-lo de forma agressiva. A primeira dosagem de potássio deve ser feita na gasometria,
imediatamente à chegada do doente.
Se dosagem sérica de potássio inferior a 3.3mEq/L, não prescrever a dose inicial
de Insulina, repor 20-30mEq de potássio em um litro de Soro Fisiológico em uma hora e

Pedro Kallas Curiati 104


dosá-lo logo após, iniciando a infusão de Insulina apenas quando o potássio sérico for
superior a 3.3mEq/L.
Se dosagem sérica de potássio de 3.3-5.2mEq/L, repor potássio desde a chegada
ao pronto-socorro com 20-30mEq para cada litro de qualquer soro infundido.
Se dosagem sérica de potássio superior a 5.2mEq/L, não se deve repor o eletrólito.

Reposição de Bicarbonato de Sódio


Quando pH superior ou igual a 6.9:
- Não repor Bicarbonato de Sódio;
Quando pH menor do que 6.9:
- Bicarbonato de Sódio a 8.4% 100mL diluído em 400mL de Água
Destilada, com infusão intravenosa em duas horas;
- Medir o pH arterial após a infusão e prescrever mais Bicarbonato de
Sódio até que o pH esteja acima de 7.0;

Reposição de fósforo
Indicada quando dosagem sérica inferior a 1mg/dL ou na vigência de disfunção de
ventrículo esquerdo, arritmias cardíacas ou achados de hemólise ou rabdomiólise.
Preconiza-se acrescentar 20-30mEq/L de Fosfato de Potássio em cada litro de
solução administrada para reposição de fluidos.

Cuidados
Avaliar eletrólitos, função renal e glicemia a cada duas a quatro horas até que o
doente esteja estável.
Após a resolução do estado hiperosmolar hiperglicêmico ou da cetoacidose
diabética, prescrever dieta por via oral ou enteral em pacientes com sequelas neurológicas
graves, continuar a administração de Insulina Regular por via intravenosa e adicionar
Insulina Regular por via subcutânea conforme glicose capilar. Desligar a bomba de
infusão apenas após uma a duas horas da aplicação da Insulina Regular por via
subcutânea. Iniciar esquema de Insulina com múltiplas doses.
Se estabilidade, transferir para enfermaria.

Complicações
Hipoglicemia é a principal complicação do tratamento.
Hipocalemia pode aparecer após a instituição do tratamento com Insulina.
Edema cerebral é complicação rara.
Síndrome do desconforto respiratório agudo.
Tromboembolismo pulmonar é complicação relativamente frequente em doentes
com estado hiperosmolar hiperglicêmico, mas é rara em doentes com cetoacidose
diabética.
Congestão pulmonar por sobrecarga hídrica.
Dilatação gástrica aguda é consequência de neuropatia autonômica e pode ser
tratada com passagem de sonda naso-gástrica.
Mucormicose é infecção fúngica que atinge principalmente os seios da face e
ocorre pela alteração do metabolismo de ferro que atinge esses doentes durante o
episódio de cetoacidose. Trata-se de condição muito grave e rara, mas com grande

Pedro Kallas Curiati 105


letalidade.
Alcalose metabólica paradoxal pode ainda ocorrer durante o tratamento.

Bibliografia
Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 5. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2010.
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva Martins,
Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole, 2008.
Hyperglycemic Crises in Adult Patients With Diabetes. DIABETES CARE, VOLUME 32, NUMBER 7, JULY 2009.

Pedro Kallas Curiati 106


INFECÇÃO DO TRATO URINÁRIO
Definição
A infecção do trato urinário é definida como a presença de micro-organismo
patogênico em urina, uretra, bexiga, rim ou próstata.
É classificada como não-complicada quando ocorre em paciente com estrutura e
função do trato urinário normal e é adquirida na comunidade. Já a infecção do trato
urinário complicada é associada a obstrução, como hipertrofia prostática benigna, litíase
urinária e estenose da junção uretero-piélica, alteração anátomo-funcional, como bexiga
neurogênica, refluxo vesico-ureteral, nefrocalcinose e divertículos vesicais, sonda vesical
de demora, cateter duplo J ou derivação ileal. Doenças sistêmicas, como diabetes mellitus
e transplante renal, também caracterizam infecção do trato urinário complicada.

Epidemiologia
As infecções do trato urinário manifestam-se em qualquer idade, havendo,
contudo, uma maior prevalência desse problema em crianças com até seis anos de idade,
mulheres jovens com vida sexual ativa e adultos idosos.
Em recém-nascidos, cerca de 75% das infecções do trato urinário ocorrem em
crianças do sexo masculino e instalam-se por via hematogênica. Em crianças com mais
de três meses de idade, cerca de 90% das infecções do trato urinário manifestam-se no
sexo feminino e podem causar cicatrizes renais quando associadas a refluxo vésico-
ureteral.
Em homens adultos jovens, as infecções do trato urinário são muito raras e,
quando ocorrem, estão quase sempre associadas a anomalias urinárias estruturais. Por
outro lado, na faixa etária acima dos 60 anos, existe um aumento gradual da incidência,
que se relaciona com quadros de obstrução ou colonização prostática.

Etiologia e fisiopatologia
As infecções do trato urinário instalam-se quase sempre pela ascensão de
bactérias a partir do intróito vaginal nas mulheres e do meato uretral ou próstata em
homens. São causadas, em geral, por bactérias Gram-negativas aeróbias presentes na
flora intestinal.
Existe nítido predomínio de Escherichia coli nas infecções agudas sintomáticas,
enquanto que nas infecções crônicas adquiridas em ambiente hospitalar ou relacionadas
com anomalias estruturais do trato urinário é maior a incidência de Klebsiella sp, Proteus
sp, Pseudomonas sp, Enterobacter sp e Gram-positivos, como Staphylococcus
saprophyticus e Enterococcus sp, assim como de resistência aos antimicrobianos de uso
habitual.
A grande prevalência de infecção do trato urinário em idosos é, quase sempre, de
natureza multifatorial. A presença de doenças associadas, como diabetes mellitus,
cistocele, obstrução prostática e afecções neurológicas, além de reduzir a resistência
imunológica, pode prejudicar o esvaziamento vesical e favorecer a colonização do trato
urinário. Nas pacientes idosas, a ausência de estrógenos acompanha-se de
desaparecimento de lactobacilos vaginais e, consequentemente, de maior propensão para

Pedro Kallas Curiati 107


colonização local por enterobactérias patogênicas.

Achados clínicos
Cerca de 85% das infecções do trato urinário agudas sintomáticas prevalecem em
crianças e mulheres jovens. Esses quadros manifestam-se sob a forma de envolvimento
do trato urinário superior, referido como pielonefrite aguda, ou sob a forma de infecção
que atinge o trato urinário inferior, referida como cistite.
Clinicamente, os quadros de cistite acompanham-se de disúria, polaciúria ou
urgência miccional e, ocasionalmente, hematúria terminal. Normalmente, não há febre ou
hipotermia, exceto em idosos, que também podem apresentar alterações do
comportamento e/ou do nível de consciência. Por outro lado, nos pacientes com
pielonefrite aguda, prevalecem dor lombar, febre, calafrios, astenia, náusea e vômitos, ou
seja, manifestações de caráter sistêmico. Pacientes com cateteres urinários de demora
geralmente não apresentam sinais e sintomas de infecção do trato urinário, devendo-se
investigar sempre que houver manifestações sistêmicas compatíveis com infecção.
30% das pielonefrites não apresentam manifestações típicas.

Infecção urinária assintomática


Ocorre em 1-5% das meninas e cerca de 20% das mulheres idosas.
Causada por cepas de bactérias menos virulentas.
Em geral, não se acompanha de implicações clínicas ou repercussões estruturais
sobre o trato urinário, exceto em mulheres grávidas, nas quais aumenta o risco de
pielonefrite e parto prematuro, e crianças com menos de um ano de idade, nas quais pode
favorecer o aparecimento de cicatrizes renais.

Infecção urinária recorrente


A reinfecção, responsável por cerca de 90% dos quadros recorrentes, traduz uma
nova infecção causada por agente diferente do inicial. Já a persistência bacteriana é
caracterizada por infecção causada pelo mesmo micro-organismo, não erradicado com o
tratamento, correspondendo a 10% das infecções urinárias recorrentes.
As reinfecções bacterianas resultam de nova exposição do paciente a um fator
predisponente externo. Os quadros de persistência bacteriana relacionam-se a tratamento
medicamentoso incorreto, anomalias estruturais ou funcionais do trato urinário, corpos
estranhos e focos crônicos de infecção renal ou prostática.
Na prática clínica, infecção do trato urinário recorrente é arbitrariamente definida
como persistência bacteriana quando a cepa identificada é a mesma e a recorrência ocorre
dentro de duas semanas do término do tratamento da infecção anterior.

Infecção urinária em idosos


Os quadros de bacteriúria assintomática crônica do idoso não se acompanham
habitualmente de consequências significativas para seus portadores.
As infecções sintomáticas manifestam-se tanto por quadros irritativos vesicais
como por pielonefrite.

Disúria-polaciúria bacteriana
Quadros de disúria e polaciúria acompanhados de cultura de urina negativa

Pedro Kallas Curiati 108


ocorrem com frequência em mulheres e costumam representar situação de difícil
abordagem.
Quando essas manifestações são instaladas de forma abrupta, são rotuladas de
síndrome uretral aguda e podem resultar de infecções por número reduzido de bactérias
Gram-negativas ou infecções por S. saprophyticus, que não é identificado por meios de
cultura de urina habituais, infecção uretral por Chlamydia trachomatis ou Neisseria
Gonorrhoeae e vaginites agudas por herpesvírus ou Candida albicans.

Exames complementares
A possibilidade de existir infecção urinária deve ser cogitada quando testes
químicos ou análise microscópica da urina apresentam-se alterados. O diagnóstico
definitivo, contudo, só deve ser firmado por meio de estudos bacteriológicos, com cultivo
da urina em meios específicos.
Todos os pacientes com quadro clínico de infecção do trato urinário devem ter seu
diagnóstico confirmado por meio da urocultura, exceto mulheres jovens com leucocitúria
confirmada por fitas reagentes ou análise do sedimento urinário. As indicações de cultura
urinária em mulheres jovens são sintomas atípicos, suspeita de infecção complicada,
falência terapêutica inicial e sintomas que recorrem em menos de um mês após o
tratamento de uma infecção do trato urinário.

Fitas reagentes
As fitas reagentes detectam esterase leucocitária, indicativa de leucocitúria
significativa, e nitrito, presente em caso de infecção por enterobactérias. Têm baixo custo
e praticamente afastam a presença de infecção quando negativas em paciente com
sintomatologia incaracterística. Entretanto, pacientes com sintomatologia sugestiva de
infecção do trato urinário e fita reagente negativa devem ter amostra de urina submetida a
análise de sedimento e/ou cultura para confirmação diagnóstica.

Sedimento urinário
O aumento do número de leucócitos na urina representa indício objetivo de
infecção urinária. Leucocitúria significativa é caracterizada por contagem igual ou
superior a 10000/mL ou 10/campo. Contudo, cerca de 20% dos pacientes com infecção
comprovada podem apresentar contagem normal de leucócitos, que ocorre,
principalmente, em pacientes com bacteriúria assintomática. Da mesma forma,
leucocitúria significativa pode surgir na ausência de infecção do trato urinário em
pacientes com tuberculose urogenital, litíase urinária, nefrite intersticial, neoplasias e
candidíase urinária.
A presença de cilindros leucocitários sugere pielonefrite. Nessa situação o pH
urinário geralmente é alcalino.
Hematúria, quando presente, geralmente é discreta. Proteinúria costuma ser
discreta e variável.
A presença de bactérias é frequente, mas precisa ser confirmada por cultura
urinária.

Cultura de urina
A cultura de urina representa o método mais preciso para definir a presença de

Pedro Kallas Curiati 109


infecção urinária e o resultado do estudo deve ser considerado positivo quando são
isolados mais de 100000 unidades formadoras de colônia por mL de urina colhida do jato
médio. A punção supra-púbica representa outra forma de se obter urina para cultura e o
crescimento de qualquer número de unidades formadoras de colônia na urina colhida por
esse método caracteriza a existência de infecção do trato urinário. Em alguns casos, a
ausência de bacteriúria não afasta o diagnóstico.
Em pacientes com cateteres vesicais de demora, recomenda-se, sempre que
possível, a coleta da amostra de urina após a troca do cateter. Quando não é possível a
remoção e/ou a troca do cateter, a amostra não deve ser coletada do saco coletor.
Toda mulher que se apresente com sintomas de infecção do trato urinário e
leucocitúria significativa deve ser considerada portadora de infecção urinária se a urina
de jato médio revelar mais de 1.000 unidades formadoras de colônia por mL de urina.
Resultados falso-positivos podem ocorrer quando a urina é contaminada no
momento da coleta por fluido vaginal ou secreção uretral. Nesses casos, costumam ser
isolados germes saprófitas ou mais de um agente bacteriano.
Resultados falso-negativos são observados quando o paciente fez uso recente de
antimicrobianos, quando existem focos infecciosos renais fechados, nos casos de
prostatite aguda ou quando o paciente apresenta infecção causada por S. saprophyticus,
que exige meios especiais de cultura.
Urocultura de controle deve ser solicitada após uma a duas semanas do tratamento
em mulheres grávidas, suspeita de infecção do trato urinário complicada ou infecções de
repetição.

Estudos de imagem
Os exames de imagem são indicados em caso de suspeita ou diagnóstico de
infecção do trato urinário complicada ou recorrente para identificação de anormalidades
predisponentes.
Ultrassonografia é utilizada para identificação de cálculos, rins policísticos,
coleções e abscessos. Tomografia computadoriza é utilizada para descartar a presença de
cálculo perinefrético e tem maior sensibilidade na identificação de cálculos.
Uretrocistografia miccional é indicada em paciente transplantado renal com infecção do
trato urinário recorrente para afastar refluxo vesicoureteral, mas não deve ser realizada na
fase aguda da infecção do trato urinário, devendo ser postergada por pelo menos quatro
semanas após a cura. Urografia excretora também não deve ser realizada na fase aguda da
infecção do trato urinário pelo risco de nefrotoxicidade pelo contraste e pode fornecer
informações como duplicidade calicial, estenose de junção uretero-piélica, adequação do
esvaziamento vesical, cálculos urinários e hidronefrose. Cistoscopia é indicada em
pacientes idosos e transplantados renais com infecção do trato urinário recorrente e
hematúria para afastar neoplasia de bexiga, devendo ser realizada com urina estéril e/ou
após profilaxia antibiótica.

Tratamento
O tratamento das infecções do trato urinário deve ser feito com drogas que
atingem níveis terapêuticos adequados tanto no sangue quanto na urina e que sejam ativas
contra os germes Gram-negativos.
Agentes antimicrobianos como a Ampicilina, as cefalosporinas de primeira

Pedro Kallas Curiati 110


geração e a associação Sulfametoxazol-Trimetoprim, bastante utilizados e eficientes até
há alguns anos, acompanham-se, no momento, de elevada frequência de resistência
bacteriana quando testadas in vitro contra os germes causadores de infecção do trato
urinário. Por isso, devem ser evitados nas infecções cujo tratamento está sendo instituído
empiricamente, sem auxílio de antibiograma.
Para o tratamento sintomático em pacientes com disúria importante, pode-se
associar Fenazopiridina 200mg por via oral a cada oito horas por um a dois dias.

Tratamento das pielonefrites


Pacientes com pielonefrite aguda não-complicada devem ser internados para
início de terapia parenteral quando incapacitados de ingerir líquidos e medicações ou
apresentarem episódios recorrentes de vômitos, quando houver dúvidas quanto ao
diagnóstico ou a adesão ao tratamento e quando houver sinais de sepse grave. Após 48
horas do início da terapia intravenosa, pode-se passar para esquema antibiótico oral caso
haja sinais de melhora clínica do paciente. Caso não ocorra melhora clínica após 72 horas
de antibioticoterapia adequada, deve-se realizar exame de imagem para afastar obstrução
do trato urinário e abscessos.
Nos casos de pielonefrites, o tratamento deve ser realizado com agentes mais
potentes, que alcançam níveis teciduais bactericidas:
- Aminoglicosídeos, como Gentamicina 80mg por via intravenosa ou
intramuscular a cada seis a oito horas e Amicacina 500mg por via
intravenosa ou intramuscular a cada doze horas;
- Cefalosporinas de 3ª geração, como Ceftriaxone 1g por via intravenosa
ou intramuscular a cada 12 horas;
O advento de novas gerações de quinolonas com elevada concentração tecidual,
como o Ciprofloxacino, o Levofloxacino e o Gatifloxacino, permite que os casos menos
graves de pielonefrite possam ser tratados por via oral:
- Ciprofloxacino 500mg por via oral a cada 12 horas ou 200-400mg por
via intravenosa a cada 12 horas;
- Levofloxacino 500-750mg por via oral ou intravenosa a cada 24 horas;
- Gatifloxacino 400mg por via oral a cada 24 horas;
Quanto ao tempo de tratamento, os quadros de pielonefrite devem ser tratados em
duas fases. A primeira delas, de erradicação, é feita com agentes mais potentes fornecidos
por sete a quatorze dias e a segunda, de profilaxia ou supressão, é administrada por um a
seis meses com o objetivo de eliminar bactérias remanescentes, frequentemente presentes
no tecido renal ou prostático. De uma maneira geral, a erradicação é feita com
antibióticos ou quimioterápicos mais potentes, utilizados em dose plena, e a supressão é
realizada com quimioterápicos orais, fornecendo-se um terço ou um quarto da dose
normal em uma tomada diária, como Sulfametoxazol/Trimetoprim 400mg/80mg por dia,
Nitrofurantoína 100mg por dia ou Cefalexina 250mg por dia.

Tratamento das cistites


As cistites agudas, que não se acompanham de invasão tissular bacteriana, podem
ser tratadas com agentes orais, preferencialmente aqueles de eliminação ativa na urina.
Na ausência de teste de sensibilidade, as drogas antimicrobianas mais recomendadas são
a Norfloxacino 400mg por via oral a cada 12 horas ou o Ácido Pipemídico 400mg por via

Pedro Kallas Curiati 111


oral a cada 12 horas, bastante ativos contra enterobactérias, eliminadas ativamente na
urina, de fácil administração e desprovidas de efeitos colaterais significativos. Quando
houver a presença de cocos Gram-positivos sugestivos de enterococos, pode-se associar
Ampicilina 500mg por via oral a cada 6 horas ou Amoxacilina 500mg por via oral a cada
8 horas. Outras opções incluem Nitrofurantoína 100mg por via oral a cada 12 horas e
Sulfametoxazol/Trimetoprim 800mg/160mg por via oral a cada 12 horas.
O tratamento das cistites agudas era feito, no passado, por sete a dez dias, mas
vários estudos demonstraram que, em casos não complicados, os índices de cura mantêm-
se quando o tratamento é realizado com dose única. A administração da medicação em
doses plenas por três a cinco dias, preferida por alguns, preserva as vantagens da
terapêutica de curta duração, parece ser um pouco mais eficiente que o tratamento em
dose única e reduz eventual desconfiança na eficácia do tratamento.
Na ausência de testes de sensibilidade, o tratamento com dose única pode ser feito
com Sulfametoxazol/Trimetoprim 1600mg/320mg, Norfloxacino 1200mg, Ácido
Pipemídico 1200mg ou Fosfamida-Trometamol 3g, que pode ser empregado na gravidez,
sem riscos para o feto. Esse esquema deve ser evitado em pacientes com pielonefrite,
mulheres idosas, gestantes, crianças e casos com alterações estruturais do trato urinário.
Quando reinfecções surgem com frequência igual ou maior a duas em seis meses
ou três em doze meses, deve-se instituir tratamento profilático prolongado após a cura do
quadro agudo, que deve ser confirmada com urocultura. Preconiza-se
Sulfametoxazol/Trimetoprim 200mg/40mg, Nitrofurantoína 100mg, Cefalexina 250mg,
Ácido Pipemídico 200mg ou Norfloxacino 200mg fornecidos uma vez ao dia, de
preferência durante a noite, por 6-12 meses. Alternativamente, pode-se orientar esquema
pós-coito, com os mesmos agentes, que deverão ser tomados após o intercurso sexual,
conforme a frequência e o padrão das recorrências, além da preferência da paciente.
Mulheres com infecções do trato urinário recorrentes devem ser orientadas quanto a
estratégias comportamentais que podem reduzir a incidência dessas infecções, como
evitar uso de espermicidas como método anticoncepcional, ingerir mais líquidos,
aumentar a frequência das micções e urinar logo após o coito e/ou antes de se deitar. Há
possível benefício com suco e cápsulas de cranberry. Em mulheres na menopausa e sem
contraindicações, recomenda-se a utilização de cremes vaginais com estrógenos.
O tratamento da cistite aguda na mulher idosa deve ser feito por sete a quatorze
dias. Nesse grupo, o emprego de estrógenos, tópicos ou por via oral, tem sido
recomendado para prevenir a recorrência de infecção do trato urinário. É importante que
as pacientes idosas sejam alertadas para a natureza rebelde dessas infecções e para sua
tendência à recorrência.
Em pacientes com cateteres com cateteres vesicais de demora, recomenda-se,
além da antibioticoterapia guiada por culturas e antibiogramas, a remoção do cateter de
demora e a realização de cateterização intermitente até a resolução da infecção ou troca
por um novo cateter vesical de demora.

Infecções urinárias no homem


Homens adultos com infecção do trato urinário sintomática febril e ausência de
anomalias urinárias apresentam frequentemente focos prostáticos, responsáveis pelo
quadro. Nesses pacientes, torna-se necessária a erradicação da infecção prostática, o que
é quase sempre difícil em virtude da baixa penetração dos agentes antibacterianos nessa

Pedro Kallas Curiati 112


glândula.
Sob o ponto de vista clínico, apenas Sulfametoxazol/Trimetoprim, Ciprofloxacino
e Levofloxacino atingem concentrações terapêuticas razoáveis na próstata e, por isso,
devem ser escolhidos para o tratamento das infecções locais menos graves. Nos casos
agudos e sintomáticos, com bacteremia e manifestações urinárias proeminentes, a
inflamação prostática facilita a penetração de outros antibióticos e, por isso, deve-se
administrar Ceftriaxone ou Amicacina inicialmente, em dose única ou habitual, por 3-7
dias.
Os pacientes com prostatite bacteriana devem ser tratados, após a fase aguda, de
forma continuada por quatro a doze semanas com agentes orais.

Infecções assintomáticas
O tratamento das infecções do trato urinário assintomáticas é sempre difícil, já
que a bacteriúria raramente é erradicada de forma permanente. Existe, no momento,
tendência de não se tratar tais casos rotineiramente.
Bacteriúria assintomática em mulheres grávidas e pacientes que serão submetidos
a procedimentos urológicos com sangramento mucoso apresenta implicações mais
relevantes, com indicação de rastreamento e tratamento.

Infecções urinárias na gravidez


As infecções do trato urinário na gestação não exercem efeitos nefastos diretos
sobre o feto, mas aumentam as chances de parto prematuro quando se manifestam sob a
forma de pielonefrite aguda.
Penicilinas, cefalosporinas e a associação Fosfomicina-Trometamol podem ser
utilizadas com segurança durante a gestação e representam os agentes de primeira escolha
nessas circunstâncias.
As opções incluem Ampicilina 500mg por via oral a cada seis ou oito horas
durante sete a quatorze dias, Cefalexina 500mg por via oral a cada seis ou oito horas
durante sete a quatorze dias e Cefazolina 1-2g por via intravenosa a cada seis horas por
sete a dez dias. Fosfomicina-Trometamol em dose única de 3g por via oral é
particularmente indicada em mulheres grávidas com cistite aguda por ser bastante atuante
contra a maioria dos Gram-negativos e ser administrada de maneira mais cômoda.
Nos casos de infecções mais graves ou resistentes a esses agentes, pode-se
recorrer ao emprego de Aminoglicosídeos e de Ceftriaxone, cujos efeitos colaterais para
o feto são desprezíveis em caso de administração por menos de oito dias.
Nas gestantes com infecções do trato urinário recorrentes, a prevenção das
infecções pode ser feita com Cefalexina 250mg por via oral a cada 12 horas ou com
Nitrofurantoína 100mg por via oral a cada 12-24 horas, fornecidos continuamente desde
o início da gravidez. A Nitrofurantoína deve ser suspensa nas últimas quatro semanas de
gestação.

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Pedro Kallas Curiati 114
Bibliografia
Clínica Médica, volume 3: doenças hematológicas, oncologia, doenças renais e genitourinárias. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva Martins,
Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole, 2008.
Urologia Básica: Curso de Graduação Médica. Miguel Srougi, José Cury. . 1ª edição. Barueri, São Paulo. Manole, 2006.
Acute uncomplicated cystitis and pyelonephritis in women. Thomas M Hooton. UpToDate, 2011.
Acute uncomplicated cystitis, pyelonephritis, and asymptomatic bacteriuria in men. Thomas M Hoorton. UpToDate, 2011.
Approach to the adult with asymptomatic bacteriuria. Thomas Fekete and Thomas M Hooton. UpToDate, 2011.
Recurrent urinary tract infections in women. Thomas M Hooton. UpToDate, 2011.

Pedro Kallas Curiati 115


INSUFICIÊNCIA RENAL AGUDA
Definições
A insuficiência renal aguda ou, segundo terminologia mais atual, lesão renal
aguda, é uma síndrome caracterizada pela queda abrupta, em horas ou dias, da taxa de
filtração glomerular, com retenção de escórias do metabolismo nitrogenado, como uréia e
creatinina, e distúrbios dos equilíbrios acidobásico e hidroeletrolítico.
Podem ocorrer redução do volume urinário, acúmulo de líquidos sob a forma de
edema, perda da capacidade de diluir e concentrar urina, perda da capacidade de regular o
equilíbrio acidobásico e dificuldade de manter o balanço dos níveis de potássio, sódio,
magnésio, cálcio e fósforo.

Critérios diagnósticos
O diagnóstico prevê aumento abrupto, em 48 horas, e absoluto da creatinina,
superior ou igual a 0.3mg/dL, aumento percentual da creatinina, superior ou igual a 50%
ou oligúria, caracterizada por débito urinário inferior a 0.5mL/kg/hora, por seis horas.
Também aceita-se aumento da creatinina sérica superior ou igual a uma vez e meia em
sete dias.
Aumento da Redução da taxa de Débito urinário
creatinina sérica filtração glomerular
estimada
Estágio 50% 25% Inferior a 0.5mL/kg/hora por seis horas
I
Estágio 100% 50% Inferior a 0.5mL/kg/hora por doze horas
II
Estágio 200% 75% Inferior a 0.5mL/kg/hora por vinte e
III quatro horas ou anúria por doze horas

Etiologia e fisiopatologia

Azotemia pós-renal
Caracteriza-se por obstáculo ao fluxo urinário, com aumento da pressão de
filtração. Apesar de presente em apenas 5% dos casos de insuficiência renal aguda, deve
ser sempre excluída rapidamente já que seu potencial de reversibilidade é inversamente
proporcional ao seu tempo de duração.
Principais causas:
- Obstrução ureteral e pélvica intrínseca por coágulos, cálculos e infecções
fúngicas ou bacterianas;
- Obstrução ureteral e pélvica extrínseca por hiperplasia prostática
benigna, câncer de próstata, tumores ginecológicos, tumores metastáticos,
fibrose retroperitoneal ou ligadura inadvertida dos ureteres;
- Obstrução vesical por cálculos, coágulos, hipertrofia prostática benigna,
neoplasia prostática maligna ou carcinoma da bexiga;
- Bexiga neurogênica;
- Obstrução uretral por estreitamentos, cicatrizes ou fimose;
A causa mais comum é a obstrução do colo vesical, que ocorre geralmente em

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pacientes idosos com doença prostática, bexiga neurogênica ou sob terapia com agentes
anticolinérgicos.

Azotemia pré-renal
Caracterizada por diminuição da perfusão renal e manutenção da integridade
tissular, com rápida reversão se a causa subjacente à diminuição do fluxo sanguíneo for
corrigida. Ocorre em 55-60% dos casos.
Existe um contínuo entre a azotemia pré-renal e a necrose tubular aguda
isquêmica. A transição da primeira condição, reversível, para a última, de insuficiência
renal estabelecida, se dá pelo prejuízo suficientemente grande do fluxo sanguíneo renal,
com a morte de células tubulares renais.
Principais causas:
- Redução do volume intravascular por hemorragias, perdas gastro-
intestinais, perdas renais ou perdas insensíveis;
- Redução do débito cardíaco por infarto agudo do miocárdio, arritmias,
hipertensão arterial maligna, tamponamento cardíaco, miocardiopatias,
disfunções valvares, hipertensão pulmonar, tromboembolismo pulmonar
ou ventilação com pressão positiva;
- Redução do volume arterial efetivo e/ou redução do fluxo plasmático
renal por insuficiência cardíaca congestiva, hipoalbuminemia, perdas para
o terceiro espaço, vasodilatação sistêmica ou ação de agentes externos,
como inibidores do sistema renina-angiotensina;

Insuficiência renal aguda intrínseca ou renal


Causada por doenças que acometem o parênquima renal, com lesão tissular.
Representa 35-40% dos casos de insuficiência renal aguda e 90% decorrem de causas
isquêmicas ou tóxicas de necrose tubular aguda.
Não há avidez pelo sódio, com uma excreção elevada de sua carga filtrada. A
perda da capacidade de concentração da urina determina uma aproximação da
osmolalidade urinária com a plasmática.
Vários compostos químicos podem causar queda abrupta do ritmo de filtração
glomerular diretamente através de vasoconstrição renal, efeito observado com os
contrastes radiológicos e com a Ciclosporina. Outros compostos promovem lesão tubular
por agressão tóxica direta, com destruição celular semelhante à provocada por isquemia
prolongada.
Principais causas de necrose tubular aguda:
- Isquemia secundária à hipoperfusão renal;
- Toxinas e medicamentos, como aminoglicosídeos, anti-fúngicos
(Anfotericina B), imunossupressores (Ciclosporina), antivirais (Aciclovir),
quimioterápicos (Cisplatina), venenos, anti-inflamatórios não-hormonais,
contrastes radiológicos, endotoxinas bacterianas e solventes orgânicos;
- Toxinas endógenas como em rabdomiólise, hemólise, hiperuricemia e
mieloma múltiplo;
Outras causas de insuficiência renal aguda intrínseca ou renal:
- Nefrite intersticial por uso de medicamentos, como Penicilinas,
Cefalosporinas, Rifampicina, diuréticos e anti-inflamatórios não-

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hormonais, doenças autoimunes, como lúpus eritematoso sistêmico,
síndrome de Sjögren e doença mista do tecido conjuntivo, infecções, como
pielonefrite, infiltrações, como linfomas, leucemias e sarcoidose, ou
rejeição celular aguda pós-transplante;
- Doenças vasculares inflamatórias, como glomerulonefrite necrotizante
pauci-imune, poliarterite nodosa, granulomatose de Wegener e doença do
soro, microangiopáticas, como síndrome hemolítico-urêmica, púrpura
trombocitopênica trombótica, síndrome HELLP, hipertensão arterial
maligna, esclerodermia e doença aterotrombótica, ou macrovasculares,
como estenose de artérias renais, aneurismas e displasias;
- Glomerulopatias, como as pós-infecciosas, as glomerulonefrites
membrano-proliferativas e as glomerulonefrites rapidamente progressivas;

Achados clínicos
A sintomatologia é muito variável e a insuficiência renal aguda pode ser
assintomática ou diagnosticada em exames de triagem para pacientes que procuram o
serviço de emergência pelos mais diversos motivos.
Aproximadamente 50% dos casos têm a forma não-oligúrica. Os pacientes que
evoluem com insuficiência renal aguda oligúrica têm maior probabilidade de
apresentarem complicações metabólicas mais intensas, com pior prognóstico.
Alguns pacientes apresentam um quadro clínico mais intenso relacionado à
insuficiência renal aguda, denominado síndrome urêmica e caracterizado por distúrbios
neurológicos, com irritabilidade, sonolência, confusão mental, convulsões e/ou coma,
cardiovasculares, com pericardite, tamponamento pericárdico e/ou arritmias, pulmonares,
com congestão pulmonar, pneumonias e/ou pleurite, digestivos, com inapetência, náusea,
vômitos, gastrite, úlceras pépticas e/ou enterocolite, e hematológicos, com anemia,
alterações da função de linfócitos e neutrófilos e/ou defeitos plaquetários.

Sinais e sintomas
Sistema cardiovascular:
- Hipervolemia pode manifestar-se através de hipertensão leve, congestão
pulmonar incipiente com estertoração basal, derrame pleural, ascite e,
finalmente, edema agudo pulmonar e insuficiência respiratória aguda;
- Arritmias secundárias a distúrbios dos equilíbrios hidroeletrolítico e
acidobásico;
- Desidratação, hipotensão, choque e parada cardiorrespiratória;
Sistema respiratório:
- Taquipnéia e respiração profunda, acidótica;
Sistema neurológico:
- Sinais de hipocalcemia, como parestesias periorais, cãibras, confusão
mental, sinal de Chvostek, sinal de Trousseau e tetania espontânea;
- Sinais secundários à uremia, como confusão, sonolência, convulsões e
coma;
Sistema digestório:
- Vômitos intensos, hemorragia digestiva, soluços, dor à palpação do
abdômen e massas palpáveis;

Pedro Kallas Curiati 118


Sistema urinário:
- Anúria em doentes com obstrução urinária ou arterial bilateral;
- Poliúria em doentes com insuficiência renal aguda relacionada a drogas
como Lítio, aminoglicosídeos e contraste radiológico;
- Oligúria em doentes com insuficiência renal aguda relacionada a drogas
como anti-inflamatórios não-hormonais;
- Alternância entre anúria e diurese em casos de obstrução urinária de
caráter intermitente;
- Anúria de instalação abrupta em gestante ou puérpera por necrose
cortical bilateral;
- Bexiga palpável;
Tegumento:
- Palidez cutâneo-mucosa e sangramentos espontâneos em gengiva e pele;
- Lesões cutâneas em doenças autoimunes, endocardite e gota;
- Exantema máculo-papular em nefrite intersticial por hipersensibilidade a
drogas;

Exames laboratoriais
Níveis de uréia aumentados acompanham a diminuição do fluxo urinário nas
condições de baixo volume intravascular efetivo, como na insuficiência cardíaca e no uso
de diuréticos. Também podem ser encontrados em condições associadas a um aumento de
sua produção hepática, como na ingesta proteica aumentada, sangramento intestinal,
estados hipercatabólicos, hipertermia e trauma muscular. Medicações associadas à
elevação da uréia incluem os corticoides e a Tetraciclina.
A função renal é comumente monitorada através das variações diárias da
creatinina sérica. No entanto, esta apresenta limitações como parâmetro do ritmo de
filtração glomerular, pois seu nível sérico depende não só da depuração urinária, mas
também da sua taxa de produção, do seu volume de distribuição e da sua excreção pelas
células do túbulo renal proximal. Podem ocorrer interferências na técnica laboratorial da
dosagem de creatinina por substâncias cromógenas presentes no plasma. O uso de
Cefalosporinas pode elevar falsamente o valor da creatinina sérica em até 20% e os
doentes ictéricos apresentam valores falsamente baixos.
O clearance de creatinina pode ser calculado com a fórmula [creatinina urinária
(mg/dL) x volume urinário (mL/minuto)] / creatinina plasmática (mg/dL). O ritmo de
filtração glomerular estimado pode ser calculado com a fórmula {[140 – idade] x peso
(kg) x 0.85 (se mulher)} / [72 x creatinina plasmática (mg/dL)].
Na insuficiência renal aguda pré-renal, a função tubular está preservada e é
responsiva ao estímulo dos sistemas poupadores de sódio. Já na necrose tubular aguda, a
reabsorção de sódio está prejudicada. A creatinina é reabsorvida em muito menor
quantidade do que o sódio em ambas as condições, o que permite a estimativa da fração
de excreção de sódio (FENa+) através da fórmula (sódio urinário x creatinina plasmática
x 100) / (sódio plasmático x creatinina urinária). Cautela em algumas situações:
- FENa+ baixa não é exclusividade de insuficiência renal aguda pré-renal,
podendo ser encontrada quando a filtração glomerular está reduzida, mas a
função tubular foi preservada, como em glomerulonefrites agudas,
vasculites, obstruções do trato urinário, nefropatia pós-contraste iodado,

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mioglobinúria, hemoglobinúria e sepse;
- Em doentes com insuficiência renal crônica, o acréscimo de uma
insuficiência renal aguda pré-renal pode não resultar numa FENa+ baixa;
- Administração de Manitol, diuréticos de alça ou soluções salinas
precedendo em horas a coleta de urina para cálculo da FENa+ dificulta a
interpretação dos resultados, já que o sódio urinário tende a ser maior e a
urina menos concentrada;
- Doentes com insuficiência renal aguda pré-renal secundária a vômitos ou
a sucção de sonda naso-gástrica também podem ter uma FENa+ aumentada
devido à bicarbonatúria;
O cálculo da fração de excreção de uréia (FEu) permite detectar a manutenção da
função tubular mesmo quando foram administrados diuréticos. Uma FEu inferior a 35%
sugere vasoconstrição renal como a causa da azotemia.
Análise da urina por fitas:
- Pesquisa de sangue;
- Dosagem de proteínas;
Análise microscópica da urina:
- Leucócitos, eosinófilos e hemácias;
- Cilindros hialinos são formados apenas por proteínas de Tamm-Horsfall,
visíveis em casos de desidratação, exercício físico intenso ou associação
com proteinúria glomerular;
- Cilindros hemáticos indicam origem glomerular, como no caso das
glomerulonefrites e vasculites;
- Cilindros leucocitários indicam inflamações parenquimatosas;
- Cilindros granulares são formados por células epiteliais tubulares, restos
celulares associados a debris característicos de doentes com necrose
tubular aguda;
- Cilindros lipóides são observados quando ocorre proteinúria maciça,
como no caso da síndrome nefrótica;
- Pesquisa de cristais com microscopia de luz polarizada, utilizada para
determinar a presença de cristais de ácido úrico, é dado importante no
diagnóstico da insuficiência renal aguda por lise tumoral após
quimioterapia;
- Pesquisa de cristais de oxalato de cálcio, que sugerem intoxicação por
solventes orgânicos;
Hiponatremia é uma complicação frequente, sendo, em geral, decorrente do
aumento relativo ou absoluto de água livre.
A hipercalemia é comum e potencialmente fatal.
Acidose metabólica com aumento do ânion gap é frequentemente encontrada.
Hiperuricemia leve, de 12-15mg/dL, é frequente na insuficiência renal aguda.
Níveis mais elevados sugerem que a produção aumentada de ácido úrico pode estar
envolvida, como na síndrome da lise tumoral.
Hiperfosfatemia, com valores de 6-8mg/dL, é frequente na insuficiência renal
aguda. Hiperfosfatemia grave pode ser observada em doentes hipercatabólicos ou quando
a insuficiência renal aguda associa-se a quadros de intensa destruição celular. Depósitos
metastáticos de fosfato de cálcio podem levar a hipocalcemia.

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A hipocalcemia assintomática é comum, mas pode ser grave, com prolongamento
do intervalo QT no eletrocardiograma, e ser responsável por arritmias cardíacas, além de
espasmos musculares, como o laringoespasmo.
A hipermagnesemia leve é vista em insuficiência renal aguda oligúrica e reflete a
perda da capacidade de excretar a quantidade de magnésio ingerida. A hipomagnesemia
pode ocasionalmente complicar a insuficiência renal aguda não-oligúrica associada à
Cisplatina ou à Anfotericina B.
Anemia ocorre rapidamente na insuficiência renal aguda em função de inibição da
eritropoiese, hemólise, sangramentos, hemodiluição e redução da meia-vida média dos
glóbulos vermelhos. Pode ocorrer prolongamento do tempo de sangramento
secundariamente a leve plaquetopenia, disfunção plaquetária ou anormalidade dos fatores
de coagulação.
Achados da doença de base incluem hipercalcemia no mieloma múltiplo, aumento
significativo da CPK na rabdomiólise e eosinofilia nas nefrites intersticiais.
Avaliação de doenças sistêmicas e glomerulares pode ser feita com provas de
atividade inflamatória, pesquisa de marcadores imunológicos, avaliação da atividade do
sistema do complemento, sorologias e procura de focos infecciosos.

Exames de imagem
Avaliação complementar radiológica pode útil na avaliação de obstrução do trato
urinário, cálculos, massas renais, patologias com características radiológicas específicas,
patência de artérias e veias renais com análise de fluxo, presença de refluxo vésico-
ureteral e bexiga neurogênica.
Radiografia de abdômen pode revelar cálculos. Ultrassonografia é o exame de
escolha e pode mostrar obstrução do trato urinário, alterações parenquimatosas, presença
de cistos e rins de tamanho aumentado, como ocorre em mieloma múltiplo, amiloidose e
diabetes mellitus. Outros exames incluem tomografia computadorizada,
angiorressonância e cintilografia.

Biópsia renal
Em geral não é necessária, mas pode estabelecer o diagnóstico e guiar a
terapêutica quando foram excluídas as causas pré-renais e pós-renais, com diagnóstico
presumido de insuficiência renal aguda por doença renal intrínseca não-relacionada a
isquemia ou a toxinas.
Pode ser indicada precocemente, de um a cinco dias, na suspeita de doença
sistêmica, como vasculite, de glomerulonefrite aguda, como no lúpus eritematoso
sistêmico, e de nefrite intersticial aguda, de necrose cortical bilateral ou na ausência de
diagnóstico provável. Também está indicada se não for observada melhora após quatro a
cinco semanas de tratamento na necrose tubular aguda.

Diagnóstico diferencial
Renal
Necrose Nefrite
Pré-renal Pós-renal Glomerulonefrite
tubular intersticial
aguda
aguda aguda

Pedro Kallas Curiati 121


Etiologia Má- Obstrução Isquemia, Pós-infecciosa, Reações
perfusão do trato nefrotoxinas doenças do colágeno alérgicas,
renal urinário medicações
Relação sérica Superior Superior a Inferior a 40:1 Superior a 40:1 Inferior a 40:1
uréia/creatinina a 40:1 40:1
Sódio urinário Inferior a Variável Superior a 20 Inferior a 20 Variável
(mEq/L) 20
Osmolalidade Superior Inferior a 250-300 Variável Variável
urinária a 500 400
(mOsm/kg)
FENa+ (%) Inferior a Variável Superior a 1 Inferior a 1 Variável
1
Densidade Superior Variável Inferior a Variável Variável
urinária a 1.020 1.010
FEuréia (%) Inferior a - - - -
35
Cilindros Hialinos Cristais Granulosos Eritrocitários Eosinófilos
Diagnóstico diferencial com insuficiência renal crônica é baseado em exames
antigos, tamanho renal, hiperparatireoidismo secundário, anemia e hipofosfatemia. O rim
pode não apresentar dimensões reduzidas em afecções crônicas como diabetes,
amiloidose, mieloma múltiplo e doença policística.

Tratamento
Antes de tratar a insuficiência renal aguda, a anamnese, o exame físico e a
avaliação laboratorial, se possível antes de qualquer intervenção, devem ter definido se a
insuficiência renal aguda é pré-renal, pós-renal ou diretamente relacionada ao
parênquima.
As medidas terapêuticas iniciais priorizam a correção da volemia, o equilíbrio
eletrolítico e o controle de manifestações ligadas às urgências dialíticas.
Na insuficiência renal aguda pós-renal, a rápida desobstrução do trato urinário é
fundamental. Sondagem vesical e procedimentos descompressivos não devem ser
postergados.
Na insuficiência renal aguda parenquimatosa, além de medidas gerais, a pesquisa
da causa desencadeante é mandatória. O controle do fator desencadeante ou agravante, a
manutenção do equilíbrio metabólico e o uso criterioso, quando não a proscrição, de
agentes nefrotóxicos são metas obrigatórias. Medicamentos devem ser corrigidos
conforme o clearance estimado. Particularmente em relação à necrose tubular aguda
secundária à precipitação de sedimentos, sendo a rabdomiólise patologia de destaque,
além da manutenção da homeostase, a hidratação agressiva e precoce é a medida de
maior impacto.
O distúrbio eletrolítico mais grave e que requer maior agressividade no
diagnóstico é a hipercalemia.
A hipocalcemia, embora comum, não requer tratamento imediato nos pacientes
assintomáticos. Nos pacientes com manifestações clínicas administra-se Gluconato de
Cálcio a 10% 10-20mL por via intravenosa em vinte minutos.
Usualmente a hiperfosfatemia pode ser controlada com uso de cálcio oral.
A acidose metabólica isolada secundária à insuficiência renal aguda não costuma
ser grave, sem necessidade de tratamento caso o bicarbonato sérico seja superior a

Pedro Kallas Curiati 122


15mEq/L ou o pH seja superior a 7.2.
O uso de Dopamina, sob a denominação de “dose renal”, não deve ser realizado,
pois estudos clínicos não mostram evidência de qualquer efeito na melhora ou no
prognóstico da insuficiência renal aguda.
Em geral, a primeira abordagem ao paciente hipervolêmico é a utilização de
diuréticos. Nesse contexto, mesmo em caso de baixas taxas de filtração glomerular, pode
ocorrer resposta a doses elevadas de diuréticos de alça, como 1-3mg/kg/hora de
Furosemida. No entanto, o uso prolongado de diuréticos deve ser desencorajado.
A oferta de fluidos é tipicamente restrita a 1.0-1.5 litros por dia para pacientes
anúricos ou oligúricos não-dialíticos.
Pacientes em diálise devem receber 1.0-1.5g/kg/dia de proteínas. Nos pacientes
que não estejam em diálise, o aporte proteico deve ser restrito a 0.6g/kg/dia.

Manejo dialítico

Indicação
Uma vez que estratégias conservadoras tenham falhado em manter homeostase
minimamente aceitável ou quando as denominadas urgências dialíticas, como acidose
refratária, hipercalemia refratária, hipervolemia refratária, disnatremia de difícil correção
e uremia, se apresentam, faz-se necessário o emprego de terapia substitutiva renal. Fora
das emergências dialíticas, não há pontos de consenso pragmático em torno do momento
de iniciar tratamento dialítico. Aceita-se, porém, que níveis de uréia acima de 180mg/dL
e níveis de creatinina acima de 8mg/dL indicam processo dialítico.

Mecanismos
Difusão corresponde à passagem de soluto através de uma membrana
semipermeável, de acordo com o seu gradiente de concentração, e depende da
temperatura, da área da superfície de troca, da difusibilidade do soluto através da
membrana e da espessura da membrana.
Convecção é o transporte de soluto através de uma membrana semipermeável
junto ao solvente, subordinado ao gradiente de pressão transmembrana, e depende de taxa
de ultrafiltração, permeabilidade da membrana e concentração do soluto no plasma.
Ultrafiltração é a separação do plasma do sangue total pela passagem por uma
membrana semipermeável na qual se aplica um gradiente pressórico.
Adsorção é a separação do soluto em decorrência de sua ligação a sítios presentes
na membrana semipermeável.

Métodos dialíticos intermitentes


De forma geral, a diálise pode ser confeccionada de forma intermitente, contínua
ou híbrida. Há maior tolerância hemodinâmica nos métodos contínuos e menor taxa de
sangramento nos métodos intermitentes.
A diálise peritoneal é caracterizada por fácil manejo, baixo custo, boa
tolerabilidade em indivíduos com instabilidade hemodinâmica e ausência de necessidade
de circulação extracorpórea e anticoagulação. No entanto, causa restrição ventilatória,
apresenta elevado risco de infecção e perfuração de alças e o clearance obtido poder ser
insuficiente para a gravidade do doente. Geralmente é realizada através de cateter de

Pedro Kallas Curiati 123


Tenckhoff. Contraindicações incluem cirurgia abdominal recente de grande porte, fístula
peritônio-pleural, peritonite e infecção de parede abdominal.
Hemodiálise intermitente, também denominada hemodiálise clássica, é muito
empregada e requer acesso vascular venoso que permita alto fluxo de sangue, sendo
preferida a veia jugular em virtude de menor taxa de estenoses. As principais vantagens
são alta eficiência, curta duração, ao redor de quatro horas, baixo custo e possibilidade de
ser realizada sem anticoagulação. As principais desvantagens são má tolerância em
pacientes hemodinamicamente instáveis e limitação para a retirada de grandes volumes.
A retirada de fluidos ocorre por difusão.
Em situações de emergência, como no edema agudo de pulmão e na hipercalemia,
dá-se preferência para a técnica hemodialítica clássica por tratar-se de procedimento com
alta eficiência em curto espaço de tempo. Doentes com instabilidade hemodinâmica,
quando dispõem de mais tempo para correção dos distúrbios metabólicos, não se tratando
de pós-operatórios abdominais, podem ser submetidos a diálise peritoneal com cateter
rígido à beira do leito ou através do implante, por punção cirúrgica, do cateter Tenckhoff.

Métodos dialíticos contínuos


Terapia de substituição renal contínua é qualquer circuito extracorpóreo para
substituir a função renal durante um período prolongado.
Hemofiltração arteriovenosa contínua (CAVH) é realizada através do implante de
dois cateteres, um arterial e um venoso, com o sangue sendo impulsionado pela pressão
arterial do paciente através de um circuito extracorpóreo com filtro de membrana
altamente permeável. O ultrafiltrado produzido é reposto, parcial ou totalmente, com
solução balanceada. Os solutos são retirados por convecção.
Hemofiltração venovenosa contínua (CVVH) é realizada através de cateter venoso
com duplo lúmen, com necessidade de bomba rolete para a circulação do sangue. O filtro
tem alta permeabilidade e é necessária a reposição de fluidos. Remove moléculas de peso
molecular maior e há potencial benefício na remoção de mediadores inflamatórios na
síndrome da resposta inflamatória sistêmica. O mecanismo básico é convecção.
Ultrafiltração lenta contínua (SCUF) pode ser realizada por acesso arteriovenoso
ou venovenoso com bomba rolete. A membrana normalmente tem alta permeabilidade. O
mecanismo básico é a convecção. Há retirada apenas de volume, sem clearance de
solutos. Geralmente é adjuvante à diálise. A principal desvantagem é risco de acidose
metabólica por perda de bicarbonato.
Hemodiafiltração venovenosa contínua (CVVHDF) é realizada com a adição de
dialisato em contracorrente ao fluxo de sangue no circuito de hemofiltração venovenosa
contínua. A remoção de solutos ocorre por convecção e difusão, com aumento
significativo da eficácia do procedimento.
Hemodiafiltração arteriovenosa contínua (CAVHDF) é realizada com a adição de
dialisato em contracorrente ao fluxo de sangue no circuito de hemofiltração arteriovenosa
contínua. A remoção de solutos ocorre por convecção e difusão, com aumento
significativo da eficácia do procedimento.
Hemodiálise arteriovenosa contínua (CAVHD) é realizada através de membrana
de baixa permeabilidade, não havendo necessidade de reposição de fluidos. O dialisato
circula em sentido de contracorrente em relação ao fluxo de sangue, ocorrendo transporte
de solutos predominantemente por difusão.

Pedro Kallas Curiati 124


Hemodiálise venovenosa contínua (CVVHD), também conhecida como
“hemolenta”, é o método mais lento frequentemente utilizado pela simplicidade do
equipamento, podendo ser realizada apenas com uma bomba rolete, sem necessidade de
reposição. O clearance pode ser aumentado pela administração de maiores volumes de
dialisato. Vantagens incluem boa tolerância em pacientes instáveis, menor risco de edema
cerebral e retirada gradual e contínua de grandes quantidades de volume. Desvantagens
incluem necessidade frequente de anticoagulação, baixa eficiência e alto custo. A retirada
de solutos ocorre por difusão.
Na diálise de alto fluxo contínua (CHFD), a remoção de solutos é dependente do
tipo de membrana utilizada. No caso de membranas de alto fluxo, os solutos são
removidos por convecção e difusão. A taxa de ultrafiltração é limitada por um sistema de
controle com ultrafiltração retrógrada, sem necessidade de reposição pós-dilucional.
Hemodiálise estendida diária (EDD) utiliza máquinas de hemodiálise clássica com
controle de ultrafiltração, sendo os fluxos de sangue e de banho menores que aqueles
empregados na hemodiálise clássica. Constitui terapêutica híbrida, na qual os princípios
dos métodos contínuos e intermitentes se mesclam. É realizada diariamente por períodos
de 6-8 horas, com fluxo de sangue mais baixo. As vantagens incluem tolerância em
pacientes críticos, uso de baixos fluxos de sangue e dialisado e possibilidade de
realização sem anticoagulação. Desvantagens incluem capacidade limitada na remoção de
líquidos e intolerância em pacientes com instabilidade hemodinâmica grave.

Acesso vascular
Os cateteres são preferencialmente feitos de material biocompatível, flexível,
resistente à invasão bacteriana e de fácil manuseio. Aqueles com único lúmen são
utilizados para métodos arteriovenosos, como CAVH, CAVHD e SCUF. Hemodiálise
clássica, CVVH, CVVHD e CVVHDF necessitam, para sua realização, de cateter duplo
lúmen, uma vez que o sangue é impulsionado através de bomba rolete.
Para pacientes agudos, são utilizados cateteres semi-rígidos, sendo a maioria de
poliuretano. O comprimento do cateter é variável. Aqueles de curta permanência, sem
túnel, para inserção em veia subclávia direita ou veia jugular interna direita, não devem
ter mais do que 15cm, aqueles colocados no lado esquerdo não devem ter mais do que
20cm e aqueles posicionados em veia femoral podem ter 24cm ou mais.

Anticoagulação
O método ideal de anticoagulação é aquele que oferece melhor patência dos filtros
dialisadores, sem, no entanto, aumentar o risco de hemorragias ou comprometer o
equilíbrio metabólico do paciente. A técnica de avaliação do efeito anticoagulante deve
ser simples e segura, existindo, idealmente, um antídoto à disposição.
A Heparina ainda é o método mais utilizado. No entanto, a incidência de pacientes
com alta probabilidade de sangramento dificulta o seu uso. Mais recentemente, o uso de
Citrato Trissódico assumiu papel de destaque na anticoagulação em pacientes críticos. A
principal vantagem é ser regional, ou seja, com apenas o sistema extracorpóreo
permanecendo anticoagulado. O citrato quela os íons cálcio e interfere negativamente nas
vias intrínseca e extrínseca da cascata da coagulação. Na linha de devolução do sangue
são adicionados sais de cálcio em concentrações elevadas, com inativação do efeito do
citrato para o paciente. Há risco de alcalose metabólica e hipernatremia, com necessidade

Pedro Kallas Curiati 125


de ajuste da solução de reposição.
Critérios de alto risco para anticoagulação incluem contagem de plaquetas inferior
a 60.000/mm3, tempo de tromboplastina parcial ativada superior a 60 segundos, Razão
Normatizada Internacional superior para protrombina superior a 2, coagulação
intravascular disseminada, insuficiência hepática grave e pós-operatório imediato.

Profilaxia de insuficiência renal aguda


Manter uma pressão arterial média adequada e euvolemia, corrigir imediatamente
hipotensão, evitar o uso de medicações nefrotóxicas e contraste radiológico e corrigir a
dosagem de drogas em pacientes com lesão renal já estabelecida constituem condutas
básicas que devem ser lembradas para prevenir a ocorrência ou o agravamento da
insuficiência renal aguda.

Insuficiência renal aguda induzida por contraste


Os principais fatores de risco são diabetes mellitus, taxa de filtração glomerular
estimada inferior a 60mL/minuto/1.73m2, razão entre albumina e creatinina urinárias
superior a 30g/mg, hipertensão arterial sistêmica, antecedente de doença renal estrutural,
insuficiência cardíaca congestiva, hipovolemia, hipotensão arterial sistêmica, síndrome
de êmbolos de colesterol, uso de grande volume de contraste e uso de drogas
nefrotóxicas, como Aminoglicosídeos e anti-inflamatórios não-hormonais.
Expansão volêmica é o principal método. Recomenda-se Soro Fisiológico com
100mL/hora ou 1mL/kg/hora por via intravenosa durante 12 horas antes e 12 horas após o
procedimento. Hidratação com Bicarbonato de Sódio 8.4% 150mL e Soro Glicosado a
5% 850mL, com 3mL/kg/hora da solução uma hora antes do procedimento e
1mL/kg/hora durante o procedimento e por seis horas após o mesmo reduz a incidência
de nefropatia induzida por contraste e constitui alternativa potencialmente mais benéfica
que a hidratação com Soro Fisiológico.
A menor dose possível deve ser utilizada e de preferência contraste de baixa
osmolaridade não-iônico, desde que não Iohexol.
Hemofiltração, com troca de fluido 1000mL/hora, sem perdas, pode ser iniciada
4-8 horas antes do uso do contraste e mantida após o mesmo, por 18-24 horas em
pacientes com maior risco de nefropatia induzida por contraste.
N-Acetilcisteína 600-1200mg por via oral de 12/12 horas 24 horas antes e 24
horas após o procedimento. Outra opção é 1200mg por via intravenosa uma hora antes e
de 12/12 horas nas 48 horas após, mas existem menos evidências de benefício e maior
risco de reação anafilática.
Deve-se suspender o uso de Metformina 48 horas antes do procedimento
diagnóstico em função do risco de acidose lática.

Bibliografia
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Medicina Intensiva Baseada em Evidências. Luciano César Pontes de Azevedo. Editora Atheneu, 2009.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva Martins,
Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole, 2008.
Definition of acute kidney injury (acute renal failure). Paul M Palevsky. UpToDate, 2011.
Diagnostic approach to the patient with acute or chronic kidney disease. Theodore W Post, Burton D Rose. UpToDate, 2011.
Renal replacement therapy (dialysis) in acute kidney injury (acute renal failure) in adults: Indications, timing, and dialysis dose. Paul
M Palevsky. UpToDate, 2011.
Prevention of contrast-induced nephropathy. Michael R Rudnick, James A Tumlin. UpToDate, 2011.

Pedro Kallas Curiati 126


INSUFICIÊNCIA RESPIRATÓRIA
AGUDA
Definições
Insuficiência respiratória aguda é a incapacidade do sistema respiratório de
atender as demandas metabólicas de oxigênio do organismo ou de eliminação do gás
carbônico, com instalação aguda.
É possível determinar dois grandes grupos de situações:
- Insuficiência respiratória aguda tipo I ou hipoxêmica, caracterizada por
PaO2 inferior a 60mmHg e com redução de 15mmHg em relação ao basal;
- Insuficiência respiratória aguda tipo II ou hipercápnica, caracterizada por
PaCO2 superior a 50mmHg e pH inferior a 7.30;

Etiologia e fisiopatologia
A hipoxemia tem como principal causa a inadequação do balanço entre ventilação
e perfusão pulmonar, com perfusão de áreas alveolares parcialmente ventiladas. Sabe-se
que o ajuste da perfusão pulmonar é complexo e baseia-se em vasoconstrição hipóxica.
Outras causas de hipoxemia são alteração da capacidade difusional do oxigênio pela
membrana alvéolo-capilar, elevadas altitudes e hipoventilação alveolar.
Shunt verdadeiro ocorre quando o sangue passa do leito venoso para o arterial
sem circular pelos pulmões, como em comunicação interventricular e fístula
arteriovenosa. Efeito shunt, muito mais frequente, ocorre quando o sangue circula pelos
pulmões e não é oxigenado. Qualquer afecção que cause colapso ou preenchimento
alveolar pode gerar efeito shunt, como atelectasia, edema agudo de pulmão, pneumonia e
hemorragia alveolar.
Na insuficiência respiratória do tipo hipercápnica, a elevação da PaCO2 pode ser
decorrente da diminuição da frequência respiratória ou do volume corrente ou, ainda, do
aumento do espaço morto fisiológico. As causas pulmonares e cardíacas são as mais
comuns, mas doenças neuromusculares e sistêmicas também podem causar falência
respiratória.
Espaço morto ocorre quando há unidades alveolares ventiladas, porém não
perfundidas. Especialmente importante em situações de redução aguda do débito
cardíaco, com aumento do dióxido de carbono arterial e hipoxemia.
Na cidade de São Paulo, em ar ambiente, é possível usar a fórmula P(A-a)O2 = 130
– (PaO2 + PaCO2) para calcular o gradiente alvéolo-arterial de oxigênio. O valor normal
do gradiente é inferior a 20mmHg e implica que a hipoxemia é decorrente
exclusivamente da diminuição da pressão alveolar de oxigênio por hipoventilação e
hipercapnia. Quando superior a 20mmHg, há alterações no processo de oxigenação, que
podem ou não estar associados a hipoventilação alveolar.

Achados clínicos
As manifestações clínicas de desconforto respiratório incluem uma infinidade de
sinais e sintomas clínicos com intensidade também bastante variável, a depender da

Pedro Kallas Curiati 127


reserva fisiológica, do tempo de instalação e da compensação:
- Antecedentes de doenças cardíacas ou pulmonares, tabagismo, tosse,
febre e sibilância;
- Alteração do nível de consciência, com agitação ou sonolência;
- Evidência de aumento do trabalho respiratório, com uso de musculatura
acessória à respiração, taquipnéia, hiperpneia e respiração paradoxal;
- Cianose;
- Sinais de descarga adrenérgica, como sudorese, taquicardia e
hipertensão;
- Roncos, sibilos, estertores crepitantes e diminuição localizada do
murmúrio vesicular;

Exames complementares
O diagnóstico de insuficiência respiratória geralmente é suspeitado por sinais de
desconforto respiratório. É, portanto, clínico e confirmado pela oximetria de pulso ou
pela gasometria.
A oximetria de pulso é um recurso muito útil por não ser invasiva, oferecer
resultado imediato e contínuo e ser uma medida direta. Sua acurácia é muito boa quando
saturação de hemoglobina superior a 70%. Podem interferir nos resultados má-perfusão
periférica, anemia, arritmias cardíacas, movimentação e esmalte de unhas.
A gasometria arterial, apesar de mais invasiva e de não oferecer resultado tão
imediato, é mais completa, pois permite avaliação não só da hipoxemia, mas também da
ventilação alveolar pela mensuração do CO2 e do estado metabólico pela mensuração do
pH.

Tratamento
O paciente com queixa de dispneia ou desconforto respiratório apresentando-se ao
setor de emergência deve ser prontamente avaliado, pois a insuficiência respiratória não-
corrigida pode rapidamente evoluir para parada respiratória. O objetivo principal é
corrigir hipoxemia e, em algumas situações especiais, a hipercapnia.
Quando houver sinais de nítido desconforto respiratório, o paciente deve ser
levado para a sala de emergência e rapidamente monitorizado com monitor cardíaco,
pressão arterial intermitente e oximetria de pulso. Se a oximetria de pulso revelar
porcentagem de hemoglobina saturada por oxigênio no sangue periférico inferior a 94%,
oxigênio suplementar deve ser oferecido imediatamente por cateter, máscara, dispositivos
especiais ou ventilação mecânica não-invasiva com um ou dois níveis de pressão. Em
caso de rebaixamento do nível de consciência com escala de coma de Glasgow inferior
ou igual a oito, instabilidade hemodinâmica ou risco eminente de parada
cardiorrespiratória, com respiração agônica e bradicardia, deve-se proceder
imediatamente com intubação orotraqueal. Se for possível, logo na entrada, uma amostra
de sangue arterial deve ser coletada para dosagem dos gases, antes da suplementação de
O2, mas em nenhum caso sua coleta deve retardar a correção de hipoxemia identificada
pela oximetria de pulso. Deve ser obtido acesso venoso de grosso calibre,
preferencialmente em veias antecubitais, com coleta de amostra para análise laboratorial.
Pacientes com diagnóstico de doença pulmonar obstrutiva crônica e suspeita de
retenção crônica de CO2 devem receber oxigênio suplementar com cautela e

Pedro Kallas Curiati 128


monitorização com gasometria arterial para avaliar hipercapnia, objetivando-se saturação
de hemoglobina de 88-92%. A suspeita de hipercapnia não deve impedir a suplementação
de oxigênio, pois a hipoxemia é muito mais deletéria para o organismo do que a
hipercapnia.
O tratamento adequado da insuficiência respiratória aguda deve ser específico
para cada caso e a quantidade de intervenções e possibilidades é muito grande. Ofertar
oxigênio em abundância faz aumentar o gradiente de difusão da luz alveolar para os
capilares, com consequente tendência de correção da hipoxemia. No entanto, essa é uma
maneira inespecífica de resolver a situação e a busca da causa, com instituição de
tratamento adequado, nunca deve ser esquecida.
Cateter nasal é sistema de baixos fluxos, de 0.5-4.5 litros por minuto, com FiO2
não determinável, estimada com um acréscimo de 3% para cada litro por minuto em
relação aos 21% do ar ambiente. Útil em casos em que a hipoxemia é leve ou naqueles
em que o processo fisiopatológico exige baixos fluxos de oxigênio, como na doença
pulmonar obstrutiva crônica.
Máscara facial é dispositivo adequado para os casos em que são necessários altos
fluxos de oxigênio, com 10-15L/minuto. Podem ser acoplados acessórios específicos,
como válvulas de Venturi, que são estruturas capazes de aumentar o fluxo ofertado, assim
como determinar a FiO2 oferecida. Já o acoplamento a um reservatório de oxigênio às
máscaras permite oferecer altos fluxos com FiO2 a 100%.
Além da oxigenioterapia, intervenções mais avançadas são eventualmente
necessárias, dentre as quais a ventilação mecânica.
Após a estabilização inicial, deve-se proceder com anamnese e exame físico
minuciosos, gasometria arterial radiografia de tórax e, se necessário, outros exames para
definir a etiologia do quadro e seu tratamento específico.

Pedro Kallas Curiati 129


Bibliografia
Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 5. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2010.
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva Martins,
Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole, 2008.

Pedro Kallas Curiati 130


INTOXICAÇÕES EXÓGENAS
AGUDAS
Etiologia e fisiopatologia
As intoxicações podem ocorrer por via oral, ocular, dermatológica ou inalatória.
Os casos mais significativos em adultos que chegam ao pronto-socorro são por tentativa
de suicídio e o modo de intoxicação é a ingesta oral.
Também poderá ocorrer abuso, que consiste em usar um medicamento em dose
maior do que a recomendada para obter um efeito mais rápido.
Outra causa de intoxicação aguda é o uso de múltiplas drogas ou a metabolização
diminuída.

Achados clínicos
A história e o exame físico são extremamente importantes na avaliação inicial e
no manejo da intoxicação exógena.
Os sinais vitais, como frequência cardíaca, frequência respiratória, pulso e
temperatura, devem ser anotados no prontuário e reavaliados periodicamente. Deve-se
medir a saturação arterial de oxigênio, a glicose capilar e o nível de consciência de
acordo com a escala de coma de Glasgow.
Particular atenção deve ser dada aos sistemas cardiovascular, respiratório e
neurológico. Todas as alterações oculares devem ser registradas.
É importante investigar se há doenças prévias que possam alterar o tratamento ou
aumentar a gravidade da intoxicação.
O paciente e a família podem fornecer informações acerca de medicamentos
ingeridos, hora e dia da ingesta e se a ingesta foi acidental ou intencional.
Os achados da história e do exame físico podem classificar os doentes em
síndromes, o que permite sugerir a etiologia e guiar a terapêutica.

Tóxicos com início de ação retardado


Todo emergencista deve ter em mente a possibilidade de tóxicos com início de
ação retardado ao tratar pacientes com intoxicação exógena aguda. Nesse caso, o paciente
pode chegar ao pronto-socorro estável e, após algumas horas, evoluir rapidamente com
várias complicações.
Os principais agentes são drogas antitumorais, Digoxina, metais pesados,
Acetaminofen, tetracloreto de carbono, Colchicina, etilenoglicol, metanol, salicilatos e
medicamentos de liberação lenta, como Teofilina, Carbamazepina, Fenitoína e Lítio.

Pedro Kallas Curiati 131


Manifestações clínicas Tóxicos mais prováveis
Síndrome Ansiedade, sudorese, taquicardia, hipertensão e pupilas midriáticas. Podem Anfetaminas, efedrina, cocaína, derivados de ergotamina,
adrenérgica ocorrer dor precordial, infarto do miocárdio, emergência hipertensiva, hormônio tireoidiano e inibidores da monoamina oxidase.
acidente vascular cerebral e arritmias. Complicações incluem hipertermia,
rabdomiólise e convulsões. Deve-se atentar para sítios de punção venosa
para uso de drogas.
Síndrome Pode manifestar-se semelhante à intoxicação com hiperatividade Atropina, Brometo de Ipratrópio, antidepressivos tricíclicos,
anticolinérgica adrenérgica, com pupilas midriáticas, taquicardia, tremor, agitação, anti-histamínicos H1, anti-parkinsonianos, como Biperideno
estimulação do sistema nervoso central e confusão mental. Pode ser e Benztropina, relaxantes musculares, como Orfenadrina,
diferenciada por diminuição de ruídos intestinais, retenção urinária, pele Cicloenzaprina e Isomepteno, antiespasmódicos, como
seca, quente e avermelhada e pupila bem dilatada com mínima resposta à Escopolamina e Hioscina, e neurolépticos.
luz. Complicações incluem convulsões, hipertermia e insuficiência Os neurolépticos de primeira geração abrangem as
respiratória. Fenotiazinas, que incluem Clorpromazina, Levopromazina e
Flufenazina, e as butirofenonas, que incluem o Haloperidol.
Os neurolépticos de segunda geração incluem Clozapina,
Olanzapina, Quetiapina, Risperidona, Ziprasidona e
Amisulprida.
Síndrome Quadro muito típico com bradicardia, miose, hipersalivação, diarreia, Carbamatos (“chumbinho”), Fisostigmina, organofosforados
colinérgica vômitos, broncorreia, lacrimejamento, sudorese intensa e fasciculações. e Pilorcapina.
Complicações incluem parada cardiorrespiratória, insuficiência respiratória,
convulsões e coma.
Síndrome Pouco frequente, pode-se confundir com outros estimulantes do sistema Fenciclidina e Ácido Lisérgico (LSD).
dissociativa nervoso central, com taquicardia, hipertensão, tremor, midríase e
(alucinógeno) hipertermia. Podem ocorrer desorientação, alucinações auditivas e visuais,
sinestesias e labilidade do humor.
Síndrome com Bradipneia, hipoatividade, rebaixamento do nível de consciência, coma, Opióides quando pupilas muito mióticas.
hipoatividade insuficiência respiratória, hipercapnia, aspiração, coma e morte. Álcool, anticonvulsivantes e benzodiazepínicos quando
pupilas não-mióticas.
Acidose Taquipneia intensa, dispneia, bradicardia e hipotensão. Acetona, Ácido Valpróico, cianeto, etanol, formaldeído,
metabólica grave e Evidências gasométricas. Outros exames auxiliares incluem lactato arterial, etilenoglicol, Metformina, monóxido de carbono e
persistente ânion gap, gap osmolar, urina tipo I, dosagem sérica dos tóxicos e pesquisa salicilatos.
de cristais de oxalato na urina.
Síndrome Dispneia, taquipnéia, cefaleia, confusão mental, labilidade emocional, Cianetos, inalantes, gases, vapores e monóxido de carbono.
asfixiante náusea e vômitos. Complicações incluem edema cerebral, coma, depressão
respiratória, hipotensão, arritmias e edema pulmonar. Sinais clínicos
incluem papiledema e ingurgitamento venoso no fundo do olho.

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Pedro Kallas Curiati
Síndrome Convulsão. Antidepressivos tricíclicos, β-bloqueadores, bloqueadores
convulsiva dos canais de cálcio, cocaína, fenotiazinas, inseticidas,
organofosforados, Isoniazida, Lítio, monóxido de carbono,
salicilatos e Teofilina.
Síndrome Bradicardia, hipotensão e vômitos. Amiodarona, β-bloqueadores, bloqueadores de canais de
bradicárdica cálcio, carbamatos, digitálicos e organofosforados.
Síndrome Alteração da coagulação 24-72 horas após a ingesta, com sangramento em Antagonistas de vitamina K e Varfarina Sódica.
hemorrágica pele, mucosas, trato gastrointestinal, sistema nervoso central, cavidades e
articulações.
Síndrome Taquicardia, hipotensão e pele quente em caso de vasodilatadores. Bloqueadores α e β adrenérgicos, bloqueadores de canais de
simpaticolítica Bradicardias em caso de agentes inotrópicos e/ou cronotrópicos negativos. cálcio e Clonidina.
Pode haver rebaixamento do nível de consciência. Há pouca alteração do
sistema nervoso central e profunda alteração cardiovascular.
Síndrome de Agitação, sudorese, tremor, taquicardia, taquipneia, midríase, ansiedade e Álcool etílico, antidepressivos, cocaína, fenobarbital,
abstinência confusão. Difícil diferenciar se é excesso da droga ou abstinência. hipnótico-sedativos e opióides.
Complicações incluem alucinações, convulsões e arritmias.
Síndrome de Icterícia, colúria, hipoalbuminemia, coagulopatia, encefalopatia hepática, Acetaminofen, Rifampicina e Pirazinamida.
insuficiência acidose, insuficiência renal e aumento de transaminases.
hepática aguda

133
Pedro Kallas Curiati
Exames complementares
Na grande maioria das intoxicações nenhum exame adicional é necessário.
Entretanto, em pacientes sintomáticos, com comorbidades significativas, em que a
identidade da substância ingerida é desconhecida, com potencial significativo de
toxicidade sistêmica ou ingesta intencional, recomenda-se a coleta de exames gerais,
como hemograma, glicemia, eletrólitos, gasometria, função hepática, função renal e
urina tipo I. Outros exames complementares incluem eletrocardiografia, radiografia de
tórax, lactato arterial, gap osmolar, corpos cetônicos e cristais de oxalato na urina.
Eventualmente, a dosagem das substâncias tóxicas pode ser necessária através de
testes quantitativos ou de testes qualitativos, conhecidos como screening toxicológico,
que têm maior utilidade quando a substância ingerida é desconhecida, em casos de
ingesta de múltiplas substâncias e quando os achados clínicos não são compatíveis com
a história. No entanto, o valor é limitado na maior parte dos pacientes, uma vez que o
tratamento é de suporte e geralmente não é influenciado pela identificação do agente
ingerido. A dosagem sérica quantitativa, por sua vez, será útil em situações em que
exista uma relação entre nível sérico, toxicidade e tratamento.

Diagnóstico diferencial
Qualquer doença de manifestação aguda entra no diagnóstico diferencial de uma
intoxicação exógena aguda. Da mesma forma, em qualquer paciente que chega ao
pronto-socorro com uma doença aguda, deve-se incluir intoxicação exógena no
diagnóstico diferencial. A intoxicação exógena pode ser confundida com várias doenças
ou com elas coexistir.

Tratamento
De maneira geral, deve-se tratar pacientes com intoxicação exógena aguda da
mesma maneira que outras doenças ameaçadoras à vida, seguindo os princípios do
suporte avançado de vida. Preconiza-se avaliar a perviedade das vias aéreas e proceder
com intubação orotraqueal se necessário, avaliar a ventilação e fornecer oxigênio e
ventilação mecânica se necessário, e avaliar frequência cardíaca, pressão arterial e
perfusão periférica e introduzir uso de marca-passo ou drogas vasoativas se necessário.
A seguir, deve-se proceder com exame neurológico e avaliar nível de consciência, sinais
autonômicos, pupilas e presença de sinais localizatórios.
Os princípios gerais do manejo de uma intoxicação exógena são reconhecer uma
intoxicação, identificar o tóxico, avaliar o risco da intoxicação, avaliar a gravidade do
paciente e estabilizá-lo clinicamente, diminuir a absorção do tóxico, aumentar a
eliminação do tóxico e prevenir nova exposição.
Se a intoxicação ocorreu através da pele, devem ser retiradas todas as roupas do
paciente e devem ser removidos todos os resíduos, com lavagem copiosa da pele. Se a
intoxicação ocorreu por via ocular, deve-se lavar os olhos com soro fisiológico e
solicitar avaliação imediata do oftalmologista. A maioria das intoxicações, contudo,
envolve o trato gastro-intestinal e as medidas possíveis são lavagem gástrica, carvão
ativado, irrigação intestinal, hiper-hidratação e alcalinização da urina. A indução de
vômitos não é mais recomendada em pronto-socorro.
É importante lembrar que na grande maioria dos pacientes que procuram o
pronto-socorro com uma intoxicação exógena, tudo o que é necessário é um detalhado
exame físico e uma observação cuidadosa. Algumas vezes, especialmente na primeira
hora da ingesta e quando a substância é potencialmente tóxica ou desconhecida, pode-se
indicar lavagem gástrica e/ou carvão ativado. Muito menos comum é a necessidade de
procedimentos dialíticos.

Pedro Kallas Curiati 134


Lavagem gástrica
O método preconizado prevê a passagem de uma sonda orogástrica de grosso
calibre, a colocação do paciente em decúbito lateral esquerdo com a cabeça em nível
discretamente inferior ao corpo, a administração de pequenos volumes de soro
fisiológico através da sonda (100-250mL) e a manutenção da sonda aberta em posição
inferior ao paciente. Depois disso, é necessário aguardar o retorno do conteúdo gástrico
no intuito de remover substâncias tóxicas presentes no estômago. Devem ser realizadas
sucessivas lavagens até que o conteúdo gástrico não mais retorne.
Após sessenta minutos da ingesta, raramente há indicação de lavagem gástrica.
Complicações não são frequentes, mas podem piorar o prognóstico do paciente.
Incluem aspiração, hipóxia, laringoespasmo com necessidade de intubação orotraqueal,
laceração de vias aéreas, lesão esofágica, perfuração gástrica, hemorragia, mediastinite,
indução de reflexo vagal e vômitos. O risco é maior em pacientes agitados.
A lavagem gástrica não deve ser indicada de rotina. Seu uso é recomendado nas
intoxicações exógenas quando o tempo de ingesta for menor do que uma hora, a
substância for potencialmente tóxica ou desconhecida e não houver contraindicações.
Contraindicações:
- Rebaixamento do nível de consciência com perda dos reflexos de
proteção das vias aéreas, situação em que é necessária intubação do
paciente antes de realizar a lavagem gástrica;
- Ingesta de substâncias corrosivas, como ácidos ou bases;
- Ingesta de hidrocarbonetos;
- Risco de hemorragia ou perfuração do trato gastro-intestinal em função
de cirurgia recente ou doenças pré-existentes;

Carvão ativado
A dose recomendada é de 1g/kg. Deve-se diluir o carvão em água, Soro
Fisiológico ou catárticos, como Manitol e Sorbitol, geralmente 8mL de solução para
cada grama de carvão.
Geralmente, após duas horas da ingesta, o carvão é ineficaz.
Complicações são raras, especialmente quando o carvão é usado sem sonda
orogástrica. As principais são aspiração, vômitos, constipação e obstrução intestinal.
Contraindicações:
- Rebaixamento do nível de consciência com perda dos reflexos de
proteção das vias aéreas, situação em que é necessária intubação do
paciente antes do uso do carvão;
- Substâncias corrosivas, como ácidos ou bases;
- Hidrocarbonetos;
- Risco de hemorragia ou perfuração do trato gastro-intestinal em função
de cirurgia recente ou doenças pré-existentes;
- Ausência de ruídos hidroaéreos ou obstrução intestinal;
- Substâncias que não são adsorvidas pelo carvão, como álcool, metanol,
etilenoglicol, cianeto, ferro, lítio e flúor;
Carvão ativado em múltiplas doses é utilizado quando não houver
contraindicação e a intoxicação for grave ou potencialmente grave. Os principais
tóxicos em que há benefício são antidepressivos tricíclicos, Fenobarbital, Ácido
Valpróico, Carbamazepina, Teofilina e substâncias de liberação entérica ou prolongada.
Nessa situação, preconiza-se 0.25-0.50g/kg de 4/4 a 6/6 horas.

Pedro Kallas Curiati 135


Irrigação intestinal
Uma solução é administrada através de sonda naso-gástrica, habitualmente a
uma taxa de 1.500-2.000mL/hora, com o objetivo de ser recuperada por via retal e, com
isso, promover uma limpeza mecânica do trato gastro-intestinal. A solução mais
utilizada é o Polietilenoglicol, que tem composição osmótica e eletrolítica semelhante
ao plasma.
Muito raramente esse método é usado para diminuir a absorção de tóxicos. É útil
para indivíduos que ingeriram grandes doses de ferro ou outros metais pesados e para
expelir pacotes ingeridos por pessoas para o tráfico de drogas. Com exceção dessas
recomendações, não é preconizado o uso rotineiro.

Diurese forçada
Hiper-hidratação com 1.000mL de soro fisiológico a cada seis ou oito horas em
adultos. Pode-se aumentar o volume até alcançar um débito urinário de 100-
400mL/hora.
Deve-se atentar para a sobrecarga de volume e a congestão pulmonar.
Os principais tóxicos que têm sua excreção aumentada com essa modalidade
terapêutica são álcool, brometo, cálcio, flúor, Lítio, potássio e Isoniazida.

Alcalinização da urina
Consiste em manter o pH urinário superior a 7.5.
Deve-se preparar uma solução com 850mL de Soro Glicosado a 5% e 150mL de
Bicarbonato de Sódio a 8.4%, que alcaliniza a urina e tem concentração fisiológica de
sódio. Se não houver contraindicação, infundir um litro dessa solução a cada seis a oito
horas e monitorizar o pH urinário.
A alcalinização da urina aumenta a excreção de Fenobarbital, salicilatos,
Clorpropamida, flúor, Metotrexato e sulfonamidas.

Métodos dialíticos
Hemodiálise clássica é o método mais usado e disponível, embora existam a
hemofiltração e a hemoperfusão.
Apesar de raramente ser necessária, a diálise tem importante papel em algumas
intoxicações exógenas e pode salvar a vida do paciente.
Princípios para a indicação de diálise:
- A intoxicação é grave ou tem um grande potencial de gravidade, como
nos pacientes que continuam a piorar apesar do suporte agressivo;
- Intoxicação grave e paciente com disfunção na metabolização do tóxico
por insuficiência hepática e/ou renal;
- Pacientes ainda estáveis, mas com concentração sérica de um
determinado tóxico potencialmente fatal ou com capacidade de causar
lesões graves ou irreversíveis;
- O tóxico é significativamente retirado do paciente com a diálise;
Hemodiálise retira barbitúricos, bromo, etanol, etilenoglicol, Hidrato de Cloral,
Lítio, metais pesados, metanol, Procainamida, salicilatos e Teofilina. Hemoperfusão
retira Ácido Valpróico, barbitúricos, Carbamazepina, Cloranfenicol, Disopiramida,
Fenitoína, Meprobamato, Paraquat, Procainamida e Teofilina.

Tratamento das emergências relacionadas a tóxicos específicos

Acetaminofen

Pedro Kallas Curiati 136


Em doses terapêuticas, o Paracetamol tem absorção rápida, pico sérico em
quatro horas e é metabolizado a produtos não-tóxicos. Entretanto, quando ingerido em
grandes doses, acima de 140mg/kg de peso, pode levar à necrose hepática.
Nas primeiras duas a quatro horas da intoxicação por Acetaminofen, ocorrem
sintomas inespecíficos, como náusea, vômitos, palidez e sudorese. Em fase mais tardia
após 24 a 48 horas, em caso de ingesta maciça, o paciente pode evoluir com necrose
hepática e manifestar dor no hipocôndrio direito, hepatomegalia, icterícia, distensão
abdominal, vômitos e insuficiência renal. Pode haver evolução para insuficiência
hepática com necessidade de transplante. Achados laboratoriais habituais incluem
aumento de transaminases e bilirrubinas e prolongamento do tempo de protrombina.
O carvão ativado deve ser utilizado e não diminui a eficácia do antídoto.
Preconiza-se N-Acetilcisteína por via oral com 140mg/kg de ataque e 70mg/kg de 4/4
horas até 17 doses, com maior eficácia se iniciada nas primeiras oito a dez horas após a
ingesta, e contactar equipe de transplante hepático em caso de hepatite fulminante.
Deve-se obter a concentração sérica do Paracetamol nas primeiras 24 horas e, se não for
tóxica, suspender o antídoto.

Ácidos e álcalis
Os corrosivos são substâncias com pH ácido, como ácido sulfúrico e hipoclorito,
ou básico, como o hidróxido de sódio contido na soda cáustica. Na fase aguda, há dor,
eritema, disfonia, salivação excessiva, disfagia, dor abdominal e vômitos.
Exames complementares incluem hemograma, coagulograma, função renal,
eletrólitos, gasometria, radiografia de tórax, radiografia de abdômen e endoscopia
digestiva alta precoce, seis a vinte e quatro horas após a exposição. Dilatação
terapêutica de esôfago na endoscopia inicial é de grande risco e deve ser evitada.
Lavagem gástrica e carvão ativado são contraindicados. Hidratação rigorosa,
correção dos distúrbios eletrolíticos, uso de antieméticos, uso de bloqueadores H2 ou de
bomba de prótons e analgesia são medidas importantes. Em lesões por álcalis com risco
de estenose, pode haver benefício com o uso de Metilprednisolona 1-2mg/kg de 6/6
horas, com doses decrescentes durante quatorze dias. O uso de antibióticos de amplo
espectro é controverso. As estenoses devem ser tratadas por dilatação endoscópica três a
quatro semanas após a ingesta, se possível com stents. Casos mais graves podem
necessitar de correção cirúrgica.

Anticolinérgicos
Lavagem gástrica na primeira hora de ingesta seguida da administração de
carvão ativado, que pode ser usado após a primeira hora da ingesta devido à
hipomotilidade de todo o trato gastrointestinal. Benzodiazepínicos são úteis para a
agitação psicomotora. Medidas gerais incluem resfriamento do corpo e hidratação.
Existe um antídoto, a Fisostigmina, mas raramente é necessário o seu uso. Essa
droga é administrada com dose de 1-2mg por via intravenosa em dois a cinco minutos,
que pode ser repetida. Não deve ser usada em convulsões ou coma e é contraindicada se
houver distúrbios da condução cardíaca.
Em função de seus efeitos sobre a membrana celular, os antidepressivos
tricíclicos podem prolongar o intervalo QRS, com arritmias potencialmente fatais.
Outros sinais eletrocardiográficos incluem onda R em avR maior que 3mm e onda R em
avR maior que a onda S. Prefere-se o uso de carvão ativado em múltiplas doses, diálise
não é efetiva e, em caso de presença de distúrbios de condução e arritmias, deve-se
administrar Soro Glicosado a 5% 850mL com Bicarbonato de Sódio a 8.4% 150mL por
via intravenosa em bomba de infusão contínua com velocidade inicial de 200-

Pedro Kallas Curiati 137


300mL/hora e monitorização do pH sérico, que deverá ser mantido acima de 7.5.
Arritmia ventricular que não responde à alcalinização pode responder à Lidocaína.
Em caso de intoxicação por neuroléptico, deve-se evitar o uso de Fisostigmina.
Reações extrapiramidais agudas respondem aos anti-muscarínicos, como Difenidramina
e Benztropina, com possibilidade de repetição após vinte minutos.

Anticonvulsivantes
Os mais frequentes são Fenobarbital, Fenitoína, Carbamazepina, Ácido
Valpróico e Clonazepam, todos com excelente absorção oral. É comum o uso de
preparações de liberação prolongada, que podem retardar o início das manifestações
tóxicas.
Todos atuam primariamente causando depressão do sistema nervoso central.
Causam alterações das funções cerebelares e vestibulares, o que pode causar ataxia,
nistagmo, diplopia, borramento visual, tontura, voz empastada, tremores, náusea e
vômitos. Posteriormente, pode ocorrer evolução para coma e depressão respiratória. Em
concentrações séricas muito altas, podem causar convulsões.
Carvão ativado é o método de escolha para descontaminação do trato
gastrointestinal e pode ser usado em múltiplas doses. Medidas de suporte são essenciais
e incluem intubação orotraqueal quando indicada, reposição volêmica e uso de drogas
vasoativas quando indicadas e tratamento de convulsões com interrupção da droga e uso
de benzodiazepínico por via intravenosa. Diálise pode ser útil quando houver
intoxicação grave, com concentrações séricas muito altas ou que continua a piorar a
despeito do uso de medidas habituais, podendo ser indicada em caso de ingesta de
Fenobarbital, Ácido Valpróico e Carbamazepina.
No caso de intoxicação por Carbamazepina, na presença de distúrbios do ritmo
cardíaco, pode-se usar Bicarbonato de Sódio. No caso de intoxicação por Fenobarbital,
recomenda-se alcalinizar a urina para aumentar a excreção.

Antidepressivos serotoninérgicos
Medicamentos seguros, com necessidade de grandes doses para evoluir com
intoxicação.
Os achados mais frequentes são náusea, vômito, dor abdominal, diarreia,
agitação, alteração do nível de consciência, confusão mental, convulsões, coma, tremor,
incoordenação, hiperreflexia, mioclonias, rigidez, diaforese, febre, flutuação da pressão
arterial, midríase, salivação, calafrios e taquicardia. Complicações incluem hipertermia,
acidose lática, insuficiência renal aguda, insuficiência hepática, rabdomiólise, síndrome
da angústia respiratória aguda e coagulação intravascular disseminada.
Preconiza-se lavagem gástrica e carvão ativado na primeira hora da ingesta.
Medidas de suporte são essenciais. Bloqueio da serotonina é realizado com
Ciproheptadina 4-8mg por via oral a cada duas a quatro horas, com máximo de 32mg ao
dia, ou Clorpromazina 50-100mg por via intravenosa lentamente, com máximo de
400mg ao dia e risco de hipotensão.

β-bloqueadores
As manifestações clínicas incluem náusea, vômitos, pele fria e pálida,
bradicardia, hipotensão, convulsões e depressão do sistema nervoso central, podendo
surgir broncoespasmo em asmáticos. Anormalidades metabólicas incluem hipercalemia,
hipoglicemia e, eventualmente, acidose metabólica com aumento de lactato devido à
hipotensão.
Lavagem gástrica pode potencializar a hipotensão devido à estimulação

Pedro Kallas Curiati 138


colinérgica, mas não é contraindicada. O carvão ativado é o método de escolha para
descontaminação do trato gastrointestinal, especialmente na primeira hora desde a
ingesta. Se insuficiência respiratória, deve-se proceder com suplementação de oxigênio
e ventilação mecânica conforme a necessidade. Se hipotensão e bradicardia, deve-se
proceder com Atropina, marca-passo e drogas vasoativas conforme a necessidade. Se
hipoglicemia, deve-se administrar Soro Glicosado a 50% por via intravenosa.
O antídoto é o Glucagon, disponível em ampolas de 1mL com 1mg/mL apenas
para uso parenteral. A dose inicial é de 5mg, podendo ser repetida logo após. Se houver
boa resposta, a manutenção é feita em bomba de infusão contínua com 1-5mg/hora.
Em casos mais graves, há relatos da eficácia de solução polarizante e mesmo
Gluconato de Cálcio.

Simpaticomiméticos
O paciente deve ser mantido bem hidratado e não deve usar medicamentos de
ação cardiovascular prolongada, pois após o efeito da cocaína, em duas a quatro horas,
tende a surgir hipotensão. Carvão ativado raramente é usado devido à intoxicação
ocorrer por via parenteral ou inalatória na maioria dos casos. Benzodiazepínicos são as
drogas de escolha, podendo ser associadas Nitroglicerina em edema agudo de pulmão e
síndromes coronarianas agudas, Nitroprussiato de Sódio em outras emergências
hipertensivas e Lidocaína em taquicardia ventricular e fibrilação ventricular. Deve-se
evitar o uso isolado de β-bloqueadores.

Inseticidas organofosforados e carbamatos


A intoxicação pode ocorrer através do contato acidental de pele e olhos com os
inseticidas ou pela sua ingesta na tentativa de suicídio, com síndrome colinérgica
dramática. Organofosforados causam inibição irreversível da enzima acetilcolinesterase
e seus efeitos podem durar semanas a meses, enquanto que carbamatos causam inibição
reversível da acetilcolinesterase e seus efeitos raramente ultrapassam quarenta e oito
horas.
Todas as roupas do paciente devem ser retiradas e o mesmo deve ser submetido
a exaustiva lavagem para descontaminação da pele. Para intoxicação por via oral,
indica-se lavagem gástrica na primeira hora seguida de carvão ativado. As
complicações, que incluem insuficiência respiratória e convulsões, devem ser tratadas.
A Atropina age como antagonista dos receptores muscarínicos e deve ser
iniciada na dose de 1-2mg por via intravenosa para intoxicações leves a moderadas e 2-
5mg por via intravenosa para intoxicações graves, podendo ser repetida várias vezes, a
cada cinco a quinze minutos, até que as secreções brônquicas e outras secreções sejam
controladas. Taquicardia não é contraindicação ao uso, pois pode dever-se a hipóxia ou
a estimulação simpática. Doses diárias de 100mg ou mais podem ser necessárias.
A Pralidoxima regenera a acetilcolinesterase, tem sinergismo com a Atropina e
tem sua maior indicação na intoxicação por organofosforados, com os objetivos de
inibir os efeitos tóxicos que envolvem os receptores nicotínicos. A dose é de 1-2g
diluídos em 150-250mL de Soro Fisiológico, com infusão lenta em quinze a trinta
minutos. Se houver resposta incompleta, pode-se repetir a dose após trinta minutos. A
depender da gravidade, administra-se dose de manutenção a cada seis horas ou infusão
contínua de 500mg/hora.

Isoniazida
Em doses tóxicas, inibe a síntese de GABA, em que a Piridoxina ou Vitamina
B6 é cofator de enzima-chave.

Pedro Kallas Curiati 139


As manifestações se iniciam após trinta minutos da ingesta e incluem náusea,
vômitos, tontura, disartria, letargia e confusão mental. Em casos mais graves ocorre
coma, depressão respiratória e convulsões. O diagnóstico pode ser confirmado pela
dosagem sérica de Isoniazida.
O tratamento prevê lavagem gástrica na primeira hora seguida de carvão ativado,
tratamento das convulsões com benzodiazepínicos e Fenobarbital e Vitamina B6 5mg
por via intravenosa em cinco minutos. Hemodiálise é útil e pode ser indicada em casos
muito graves.

Lítio
A intoxicação por lítio afeta primariamente os rins e o sistema nervoso central.
Em caso de intoxicação leve, com litemia de 1.2-2.5mEq/L, há náusea, vômitos,
diarreia, letargia, fadiga e tremores finos. Em caso de intoxicação moderada, há
hipertensão, taquicardia, confusão mental, agitação, disartria, nistagmo, ataxia,
síndromes extrapiramidais, movimentos coreicos e atetose. Em caso de intoxicação
grave, com litemia superior a 3.5mEq/L, há desidratação severa, diabetes insipidus
nefrogênico, fraqueza, hipotireoidismo, arritmia cardíaca, leucocitose, insuficiência
renal aguda, bradicardia, hipotensão, hipertermia, convulsões e coma.
Avaliação complementar pode revelar leucocitose, hiperglicemia, albuminúria,
glicosúria e diabetes insipidus nefrogênico adquirido. O eletrocardiograma pode revelar
taquicardia ou bradicardia sinusal, achatamento ou inversão de onda T, prolongamento
do intervalo QT e bloqueio atrioventricular.
A conduta prevê internação hospitalar e suporte clínico. Lavagem gástrica na
primeira hora desde a ingesta não é indicada e carvão ativado não adsorve o Lítio e não
deve ser usado. Deve-se corrigir déficit de água e sal. Pode ser necessário tratar
convulsões, rebaixamento do nível de consciência, hipotensão e arritmias. Nas arritmias
refratárias, pode-se usar Sulfato de Magnésio intravenoso. É importante aumentar a
excreção renal de Lítio com expansão volêmica e alcalinização da urina. A hemodiálise
tem grande eficácia em baixar rapidamente as concentrações séricas do Lítio e deve ser
indicada em casos graves

Metanol e etilenoglicol
Intoxicação por metanol ou etilenoglicol deve sempre entrar no diagnóstico
diferencial de pacientes graves sem diagnóstico óbvio e que apresentam acidose
metabólica grave. Além da gasometria arterial, deve-se solicitar função renal e hepática,
eletrólitos, glicemia, lactato arterial, dosagem sérica de cetonas, medida direta da
osmolaridade sérica, dosagem sérica de tóxicos, urina tipo 1, pesquisa de cristais na
urina, eletrocardiografia e radiografia de tórax.
A lavagem gástrica deve ser indicada apenas na primeira hora da ingesta. Carvão
ativado não adsorve esses tóxicos. Suporte clínico é essencial e deve-se proceder com
intubação orotraqueal, reposição volêmica, uso de drogas vasoativas e tratamento de
convulsões conforme a necessidade. Em casos graves, uma vez feita a suspeita clínica,
devem ser colhidas amostras para diagnóstico, com dois frascos de 10mL com
Heparina, para que o antídoto seja iniciado imediatamente, antes da confirmação.
Os antídotos são Álcool Etílico intravenoso e Fomepizol, indisponível em nosso
meio. O Álcool a 100% é disponível em ampolas de 10mL e deve ser diluído em
proporção de uma para dez partes de Soro Glicosado, com administração inicial de
10mL/kg da solução obtida e manutenção com 1-2mL/kg/hora da solução obtida. O
ideal é alcançar uma concentração sérica de Etanol superior a 100mg/dL e manter até
que as concentrações dos tóxicos estejam em níveis seguros, abaixo de 10mg/dL.

Pedro Kallas Curiati 140


Hemodiálise baixa rapidamente as concentrações do Metanol, do Etilenoglicol e
dos metabólitos, além de corrigir a acidose, sendo indicada em acidose refratária, piora
do quadro clínico apesar do tratamento intoxicação grave, insuficiência renal no caso do
etilenoglicol e concentrações séricas potencialmente letais, acima de 50mg/dL.

Raticidas
Têm efeito semelhante ao das substâncias anticoagulantes. Antagonizam a
vitamina K e ocasionam hemorragia visceral e muco-cutânea quando ingeridos em
grande quantidade. Geralmente os sintomas se iniciam doze horas após a ingesta. O
paciente não poderá receber alta antes da análise de seu coagulograma, especialmente
do tempo de protrombina.
Preconiza-se descontaminação do trato gastrointestinal com lavagem gástrica e
uso de carvão ativado na primeira hora desde a ingesta. Uso de Plasma Fresco
Congelado intravenoso deverá ser indicado no sangramento maciço. Recomenda-se o
uso de Vitamina K, preferencialmente intravenosa, podendo também ser intramuscular
ou subcutânea, com dose de 10-20mg, sendo os efeitos na coagulação mais tardios.

Salicilatos
Sintomas incluem náusea, vômitos, sudorese, taquicardia, febre, letargia,
confusão mental e alcalose respiratória. Ocorre evolução para desidratação, acidose
metabólica com aumento do ânion gap e cetose. Em casos graves evolui com depressão
respiratória, coma, convulsões, edema pulmonar e cerebral e colapso cardiovascular.
Deve-se solicitar salicilemia.
Preconiza-se lavagem gástrica nas primeiras horas, seguida de carvão ativado em
múltiplas doses. Há risco de hipoglicemia, sendo possível que o paciente necessite de
grandes doses de glicose. Hidratação vigorosa com alcalinização está indicada. Pode-se
administrar Vitamina K por via intravenosa se houver tempo de protrombina
prolongado.
Recomenda-se monitorização e correção de sódio, potássio, cálcio, estado
acidobásico, volemia e débito urinário.
Hemodiálise pode ser indicada em pacientes graves, com piora do quadro clínico
apesar das medidas terapêuticas habituais ou com níveis séricos maiores que 100mg/dL.

Tratamento das emergências relacionadas a cenários clínicos específicos

Bradicardia com alteração hemodinâmica


Carbamato e organofosforados respondem muito bem à Atropina. Deve-se
iniciar com doses de 1-5mg por via intravenosa, com possibilidade de repetição várias
vezes. Em algumas situações, o paciente pode demandar a prescrição de Pralidoxima,
regenerador da colinesterase, com 1-2g em Soro Fisiológico 250mL por via intravenosa
em trinta minutos.
Digoxina pode causar bradicardia, arritmias ventriculares e mesmo bloqueio
atrioventricular. Os exames complementares incluem hemograma, função renal,
gasometria, eletrólitos e dosagem sérica de digital. O tratamento prevê lavagem gástrica
na primeira hora, carvão ativado em múltiplas doses, correção de distúrbios eletrolíticos
e suporte cardiovascular. Em caso de bloqueio atrioventricular e bradicardia com
instabilidade hemodinâmica, preconiza-se expansão volêmica, Atropina, drogas
vasoativas e marca-passo transcutâneo ou mesmo transvenoso. Em caso de taquicardias,
preconiza-se Fenitoína, Lidocaína ou Amiodarona, com uso de choques inicialmente de
menor energia, com 50J, se for realizada desfibrilação. O antídoto é o anticorpo anti-

Pedro Kallas Curiati 141


Digoxina, que deve ser usado em todas as arritmias potencialmente graves. 40mg de
anticorpo neutralizam 0.6mg de Digoxina, de modo que em intoxicação aguda
preconiza-se 200-600mg de anticorpo e em intoxicação crônica prefere-se 40-160mg de
anticorpo, com administração em quinze a trinta minutos se houver pulso ou em bolus
na parada cardiorrespiratória. As doses podem ser repetidas, se necessário. Em situações
de bradicardia não responsiva ao marca-passo, podem ser usadas doses altas de drogas
com atividade β-agonista, como a Dopamina.
Em caso de falha no uso de Atropina, β-bloqueadores podem responder ao
Glucagon com dose de ataque de 5mg por via intramuscular ou intravenosa e dose de
manutenção de 1-5mg/hora por via intravenosa, com monitorização de glicemia e uso
de Insulina se necessário. Eventualmente, pode haver resposta a drogas com atividade
β-agonista.
Bloqueadores dos canais de cálcio, especificamente Verapamil e Diltiazem,
podem responder a Gluconato de Cálcio a 10% com 10mL administrados por via
intravenosa em dois minutos. A dose pode ser repetida mais quatro vezes consecutivas
e, se houver boa resposta, a manutenção é feita em bomba de infusão contínua com
0.2mL/kg/hora, com no máximo 10mL/hora. Em casos refratários, pode-se acrescentar
Glucagon e solução polarizante.

Taquicardia com alteração hemodinâmica


Síndrome anticolinérgica aguda pode necessitar de Fisostigmina, mas raramente
é necessário usá-la.
Em intoxicação por catecolaminérgicos, como anfetamina e cocaína, o
tratamento inicial é com benzodiazepínico, como Lorazepam ou Diazepam. Devem-se
usar doses sucessivas até o paciente ficar calmo, mas com cuidado para evitar depressão
significativa do nível de consciência. Raramente, podem ser necessários antagonistas
catecolaminérgicos mistos, como o Labetalol. Recomenda-se que seja evitado o uso de
β-bloqueadores puros, como o Propranolol, pois podem aumentar paradoxalmente a
pressão arterial.
Deve-se evitar o uso de medicações de ação rápida, como Adenosina, e
cardioversão elétrica, em razão de alta taxa de recidiva da arritmia em taquicardias
induzidas por tóxicos.

Depressão do centro respiratório


Como regra geral, avaliar a necessidade de intubação precocemente em
pacientes com incapacidade de proteger as vias aéreas ou escala de coma de Glasgow
inferior ou igual a 8. No entanto, em duas situações pode não ser necessária a intubação
orotraqueal.
Rebaixamento do nível de consciência com pupilas mióticas pode ser decorrente
de opióides. Descontaminação do trato gastrointestinal deverá ser feita com cautela caso
haja rebaixamento do nível de consciência, mas indica-se lavagem gástrica na primeira
hora desde a ingesta seguida de carvão ativado, que pode ser utilizado em múltiplas
doses nos casos graves. Deve-se providenciar aquecimento passivo ou mesmo ativo e
repor a volemia. Rebaixamento do nível de consciência, hipoventilação e bradipneia
podem responder ao antídoto, mas não se deve hesitar em proceder imediatamente com
intubação orotraqueal para proteger as vias aéreas. Preconiza-se Naloxona 0.4mg por
via intravenosa, intramuscular ou subcutânea lentamente, com possibilidade de
repetição a cada três minutos até dose máxima de 10mg. Infusão contínua pode ser
considerada em pacientes que estão necessitando de doses frequentes, com velocidade
de infusão correspondente a metade da dose em que foi obtida resposta terapêutica por

Pedro Kallas Curiati 142


hora diluída em Soro Fisiológico. Complicações do uso dessa droga são raras e incluem
edema pulmonar, arritmias, agitação e abstinência.
Rebaixamento do nível de consciência em intoxicação por benzodiazepínicos é
uma intoxicação comum no nosso meio e de maior gravidade com o uso de medicações
de ação rápida. Os pacientes manifestam uma síndrome depressora do sistema nervoso
central, com sonolência excessiva, depressão respiratória, hipotensão, hipotermia e
coma. O suporte clínico é essencial e não se deve hesitar em proteger as vias aéreas
quando necessário. A lavagem gástrica na primeira hora da intoxicação seguida de
carvão ativado é recomendada. Se houver rebaixamento significativo ou incapacidade
de proteção de vias aéreas, administrar Flumazenil, apresentado na forma de ampolas de
5mL com 0.1mg/mL. Preconiza-se 0.2mg por via intravenosa em trinta a sessenta
segundos e repetir a dose a cada minuto até uma dose de 1mg. O objetivo não é deixar o
paciente totalmente acordado, mas apenas conseguir adequado reflexo de deglutição.
Pode-se optar por manutenção com infusão contínua de 0.1-0.4mg/hora para evitar
intubação orotraqueal em paciente com ingesta de pequenas doses, geralmente
iatrogênica. As complicações do uso dessa droga são raras e incluem convulsões e grave
síndrome de abstinência, tendo seu uso contraindicado em pacientes com história de
convulsões ou uso de anticonvulsivantes.

Emergências hipertensivas
O tratamento de escolha prevê a associação de benzodiazepínicos aos
medicamentos habituais, como o Nitroprussiato de Sódio. Raramente pode ser
necessário o Labetalol. β-bloqueadores puros são contraindicados, ao menos quando
usados isoladamente.
Na maioria das vezes, com controle da agitação do paciente, a pressão arterial
tende à normalidade.

Síndromes coronarianas agudas


O tratamento é semelhante ao descrito para emergências hipertensivas, com uso
de benzodiazepínico e Nitroglicerina.
Se houver elevação do segmento ST sem reversão com o uso de Nitroglicerina,
deve-se realizar uma cineangiocoronariografia imediatamente. Se não estiver disponível
e não houver hipertensão grave, pode-se tentar trombólise química.

Prolongamento do intervalo QT
O tratamento consiste em carga de sódio e alcalinização da urina. Preconiza-se a
administração de Bicarbonato de Sódio 1-2mEq/kg em trinta a sessenta minutos, com
solução de manutenção para pH sérico superior a 7.5. A velocidade de infusão
dependerá do estado cardiovascular prévio e da monitorização do pH, com cerca de 3-4
litros ao dia de solução de 150mL Bicarbonato de Sódio a 8.4% com 850mL de Soro
Glicosado a 5%.
O paciente deve ser mantido no serviço de emergência com monitorização do
ritmo cardíaco e eletrocardiograma seriado.

Hipotensão
Imediatamente fornecer cristalóide em dois acessos calibrosos. Se persistir a
hipotensão, iniciar drogas vasoativas.
Uma fraca evidência suporta o uso de Dopamina como medicação inicial. Caso o
paciente persista hipotenso, deve-se iniciar Noradrenalina.
Em algumas situações, deve-se proceder ao tratamento da causa de base.

Pedro Kallas Curiati 143


Caso o tóxico em questão tenha antídoto, ele deve ser imediatamente prescrito,
como Gluconato de Cálcio para intoxicação por antagonista de cálcio e Glucagon para
intoxicação por β-bloqueador.
Se a causa for bradicardia refratária ou bloqueio atrioventricular de terceiro grau,
considere marca-passo imediatamente.

Taquicardia ventricular monomórfica e fibrilação ventricular


Desfibrilar qualquer taquicardia ventricular sem pulso ou fibrilação ventricular.
Se o paciente apresentar uma taquicardia ventricular monomórfica e permanecer
hemodinamicamente estável, deve-se prescrever antiarrítmico.

Taquicardia ventricular polimórfica ou torção das pontas


Desfibrilação imediata se paciente sem pulso central.
Correção imediata de hipoxemia, hipocalemia e hipomagnesemia.
Sulfato de Magnésio 1-2g por via intravenosa em 5-10 minutos mesmo que a
concentração sérica de magnésio não esteja baixa.
Lidocaína pode ser indicada.
Aumento da frequência cardíaca acima daquela apresentada pelo paciente com
marca-passo ou Isoproterenol.

Parada cardiorrespiratória
Das causas de parada cardiorrespiratória, aquelas relacionadas às intoxicações
têm um melhor prognóstico.
Se taquicardia ventricular sem pulso ou fibrilação ventricular, proceder com
desfibrilação imediata. No suporte avançado de vida, após vinte a trinta minutos de
reanimação, suspender os esforços, exceto se houver evidência de viabilidade cerebral,
o que é muito raro. No entanto, em parada cardiorrespiratória relacionada a
intoxicações, os esforços podem ser prolongados, principalmente quando houver
hipotermia.
Não realizar provas clínicas de morte nem eletroencefalograma na vigência de
uma intoxicação aguda, pois não têm valor.

Insuficiência respiratória
Muitas vezes, uma máscara ou um cateter de oxigênio é tudo o que é necessário.
No entanto, em caso de hipóxia persistente, recomenda-se suporte ventilatório.
Em pacientes com intoxicação por monóxido de carbono, o oxímetro de pulso
pode mostrar uma saturação de oxigênio normal em doente com grave hipoxemia.
Não postergar intubação orotraqueal quando necessária, como em convulsões
reentrantes, incapacidade de proteger vias aéreas e hipoxemia refratária a oxigênio por
máscara.
Insuficiência respiratória ocorre mais frequentemente por edema pulmonar não
cardiogênico, ocasionado por opióides, organofosforados, cianeto, monóxido de
carbono, salicilatos e hipnótico-sedativos.

Rebaixamento do nível de consciência


Realizar imediatamente uma medida de glicose capilar. Se houver hipoglicemia,
prescrever Glicose a 50%.
Fornecer oxigênio e manter a saturação periférica superior a 92%.
Avaliar se é possível utilizar um antídoto. Considere o uso de Naloxona quando
houver rebaixamento com pupilas mióticas.

Pedro Kallas Curiati 144


Se o paciente não conseguir proteger as vias aéreas ou escala de coma de
Glasgow for igual ou inferior a 8, sem possibilidade de uso de antídoto, deve-se realizar
intubação orotraqueal e ventilação mecânica.

Hipoglicemia
Administrar solução de glicose intravenosa na presença de hipoglicemia,
caracterizada por glicose capilar inferior a 70mg/dL. A dose recomendada é de 60-
100mL de glicose a 50%. Devem ser prescritos 100mg de Tiamina por via
intramuscular concomitante à glicose em pacientes desnutridos e etilistas.
Glucagon 1mg por via intramuscular pode ser usado quando não se consegue
rapidamente um acesso venoso.

Convulsões induzidas por tóxicos


Deve-se ter muito cuidado com lesões em sistema nervoso central, como
traumas, hematomas e acidente vascular encefálico, em pacientes com convulsões,
mesmo com conhecida intoxicação.
Convulsão induzida por tóxico geralmente é mais difícil de controlar. A
medicação inicial, durante a convulsão, é Diazepam 5-10mg por via intravenosa, com
possibilidade de repetição várias vezes. O próximo passo é a prescrição de Fenobarbital
10-20mg/kg por via intravenosa lentamente para um controle mais prolongado e, se
convulsões recidivantes, manutenção com 100mg ao dia e monitorização do nível
sérico.
Se o tóxico em questão tiver antídoto, esse deve ser iniciado imediatamente,
exceto se houver contraindicação. Um exemplo é a intoxicação por Isoniazida, em que o
uso da Vitamina B6 5mg por via intravenosa em cinco minutos e com repetição após
meia hora será essencial para cessar as crises convulsivas.
A Fenitoína é menos útil para o tratamento de convulsões relacionadas a
intoxicações.
Sempre excluir hipoglicemia como causa potencial das crises convulsivas e
corrigir a glicemia rapidamente se este for o diagnóstico. Síndrome de abstinência
também deve ser considerada como causa de convulsão inexplicável.
O surgimento de crises convulsivas em pacientes que ingeriram muito Lítio ou
salicilatos pode indicar que a concentração sérica dessas drogas está em níveis tóxicos e
deve-se indicar hemodiálise.

Hipotermia e hipertermia
Hipotermia e hipertermia podem ser tratadas com aquecimento ou resfriamento
externo passivos, respectivamente. Em emergências hipertérmicas, como overdose de
cocaína ou anfetamina, medidas agressivas de resfriamento podem ser salvadoras de
vida.

Antídotos
Tóxico Antídoto
Acetaminofen N-Acetilcisteína por via oral, com dose de ataque de 140mg/kg e manutenção
com 70mg/kg de 4/4 horas até completar 72 horas
Anticoagulantes Vitamina K 10-20mg por via intravenosa ou intramuscular e Plasma Fresco
cumarínicos Congelado se sangramento maciço
Anticolinérgicos Fisostigmina 1-2g por via intravenosa em 2-5 minutos, podendo ser repetida a
dose

Pedro Kallas Curiati 145


Antidepressivos Bicarbonato de Sódio a 8.4% 150mL em Soro Glicosado a 5% 850mL em bomba
tricíclicos de infusão contínua com velocidade de infusão inicial de 300mL/hora para
manter pH sérico superior a 7.5 com controle gasométrico constante quando ECG
com QRS alargado
Antidepressivos Ciproheptadina 4-8mg por via oral a cada duas a quatro horas, com no máximo
serotoninérgicos 32mg em vinte e quatro horas, ou Clorpromazina 50-100mg por via intravenosa
lentamente, com máximo de 400mg em vinte e quatro horas e risco de hipotensão
Benzodiazepínicos Flumazenil 0.2mg por via intravenosa a cada minuto, com dose máxima de 1mg
β-bloqueadores Glucagon com dose de ataque de 5mg por via intramuscular ou intravenosa e
dose de manutenção de 1-5mg/hora por via intravenosa em bomba de infusão
contínua
Bloqueadores de Gluconato de Cálcio a 10% 10mL em Soro Fisiológico 100mL por via
canais de cálcio intravenosa em dois minutos. A dose pode ser repetida mais quatro vezes
consecutivas e se houver boa resposta a manutenção é feita em bomba de infusão
contínua com 0.2mL/kg/hora, no máximo 10mL/hora.
Carbamato Atropina 1-2mg por via intravenosa para intoxicações leves a moderadas e 2-5mg
por via intravenosa para intoxicações graves, podendo ser repedida várias vezes a
cada cinco a quinze minutos, e Pralidoxima 1-2g em Soro Fisiológico 250mL por
via intravenosa em trinta minutos, com possibilidade de nova dose após trinta
minutos se resposta incompleta e manutenção de 6/6 horas
Cianeto Hidroxicobalamina
Cocaína Labetalol, benzodiazepínicos
Digoxina Anticorpo anti-Digoxina 200-600mg em intoxicação aguda e 40-160mg em
intoxicação crônica
Inseticida Atropina 1-2mg por via intravenosa para intoxicações leves a moderadas e 2-5mg
organofosforado por via intravenosa para intoxicações graves, podendo ser repedida várias vezes a
cada cinco a quinze minutos, e Pralidoxima 1-2g em Soro Fisiológico 250mL por
via intravenosa em trinta minutos, com possibilidade de nova dose após trinta
minutos se resposta incompleta e manutenção de 6/6 horas
Isoniazida Piridoxina (B6) 5mg por via intravenosa em cinco minutos, com repetição da
dose após trinta minutos
Metais pesados EDTA e Deferoxamina (ferro)
Metanol e Álcool etílico a 100% diluído em proporção de uma parte para dez com Soro
etilenoglicol Glicosado, com 10mL/kg de ataque e 1-2mL/kg/hora de manutenção por via
intravenosa
Monóxido de Oxigênio a 100%
carbono
Opióides Naloxona 0.4mg por via intravenosa de 3/3 minutos, com dose máxima de 10mg

Bibliografia
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.

Pedro Kallas Curiati 146


PNEUMONIA
Pneumonia adquirida na comunidade

Definição
A pneumonia adquirida na comunidade é um processo infeccioso agudo
pulmonar que acomete pacientes fora do ambiente hospitalar ou pacientes
hospitalizados com manifestações em até 48 horas da internação hospitalar.

Etiologia e epidemiologia
Streptococcus pneumoniae é o agente mais frequente em indivíduos com
pneumonia adquirida na comunidade, independentemente da idade e da presença de
fatores de risco para infecção por outros agentes. O segundo agente etiológico em
frequência depende dos métodos diagnósticos utilizados, das características do paciente
e das variações sazonais. Os germes atípicos, que incluem Mycoplasma pneumoniae,
Chlamydophila pneumoniae e Legionella pneumophila, causam pneumonia em todas as
idades e em associação com todas as comorbidades. Vírus também são isolados com
frequência. Uma parcela dos pacientes pode ter infecção mista, com pior prognóstico.
O risco de infecção por bacilos Gram-negativos entéricos é maior em caso de
institucionalização em casa de repouso, doença cardiopulmonar de base, múltiplas
comorbidades médicas e terapia antimicrobiana de amplo espectro recente. O risco de
infecção por Pseudomonas aeruginosa é maior em caso de doença pulmonar
parenquimatosa, como bronquiectasia e fibrose cística, uso de corticosteroide superior a
10mg de Prednisona ao dia por longo tempo, uso de antibiótico de amplo espectro por
mais de sete dias no último mês, neutropenia, imunossupressão e internação nos últimos
sete dias. Pacientes com escores PORT III, IV e V têm risco aumentado de infecção por
esses agentes.
O risco de infecção por Haemophilus influenzae é maior em caso de doença
pulmonar obstrutiva crônica e tabagismo.
O risco de infecção por S. pneumoniae resistente à Penicilina é maior em caso de
idade superior a 65 anos, uso de β-lactâmico nos últimos três meses, etilismo, múltiplas
comorbidades e doenças imunossupressoras. O pneumococo é considerado sensível em
caso de concentração inibitória mínima inferior a 0.06mcg/mL, de resistência
intermediária (20-25%) em caso de concentração inibitória mínima de 0.12-
1.00mcg/mL e de alta resistência (5%) em caso de concentração inibitória mínima
superior a 2.00mcg/mL. O germe de alta resistência à Penicilina costuma ser resistente à
maioria dos outros antibióticos, como Macrolídeos, Tetraciclinas, Cotrimoxazol e
Cefalosporinas, mas mantém sensibilidade a Vancomicina, às novas Quinolonas
respiratórias, à Quinupristin/Dalfopristin e à Linezolide. A resistência do S. pneumoniae
a Macrolídeos tem permanecido estável, mas há temor de que o uso disseminado dessa
classe deva aumentar o perfil de resistência em um futuro próximo.
O risco de infecção por anaeróbios é maior em caso de etilismo, doenças
neurológicas, distúrbios da deglutição, rebaixamento do nível de consciência,
convulsão, obstrução brônquica e dentes em péssimo estado.

Quadro clínico
Pneumonia deve fazer parte do diagnóstico diferencial em todos os pacientes que
procuram o pronto-atendimento referindo tosse, febre, expectoração, dor torácica e

Pedro Kallas Curiati 147


dispneia. No entanto, nem os achados de história nem os de exame físico conseguem
uma boa acurácia diagnóstica.
Os principais sintomas são febre, que pode estar ausente em idosos,
imunossuprimidos e pacientes com comorbidades graves, tosse, que pode ser seca ou
produtiva, com escarro branco, purulento ou hemoptoico, dor torácica ventilatório-
dependente, dispneia, calafrios, cefaleia, vômitos, diarreia, mialgia, artralgias, fadiga e
queda do estado geral. Os principais sinais são taquipnéia, taquicardia, hipotensão,
crepitações localizadas, macicez à percussão do tórax e atrito pleural.
Em indivíduos idosos, imunocomprometidos ou com doença de base grave o
limiar para que o diagnóstico seja considerado é menor, com indicação mais liberal de
radiografia de tórax.

Diagnóstico
O diagnóstico é realizado com base em dois ou mais sintomas clínicos
associados a infiltrado pulmonar de início recente e/ou alterações do exame pulmonar,
como murmúrio vesicular diminuído, estertores crepitantes, pectorilóquia e aumento do
frêmito toracovocal. O diagnóstico radiológico é feito por meio de radiografia de tórax
em duas incidências, póstero-anterior e perfil.

Exames complementares
Pacientes com suspeita de pneumonia devem ser submetidos a radiografia de
tórax, que poderá ser útil não só para confirmar uma consolidação parenquimatosa e
afastar outras causas para os sintomas do paciente, mas também para fornecer
informações importantes, como presença de cavitação, presença de derrame pleural e
número de lobos acometidos. O exame também pode ser indicado para avaliar pacientes
que não melhoram após três ou quatro dias de antibioticoterapia. Recomenda-se que
pacientes com queixas respiratórias significativas e com radiografia de tórax normal,
especialmente se neutropênicos, desidratados ou com história e exame físico muito
sugestivos, sejam submetidos a uma nova radiografia em 24-48 horas.
Não necessitam de exames adicionais aqueles pacientes com idade inferior a 50
anos classificados como PORT I na ausência de insuficiência cardíaca, câncer, doença
hepática, insuficiência renal, doença cerebrovascular e alterações marcantes no exame
físico, como confusão mental recente, frequência cardíaca superior a 125bpm,
frequência respiratória superior a 30ipm, pressão arterial sistólica inferior a 90mmHg e
temperatura superior a 40º C ou inferior a 35º C.
Os exames iniciais para aqueles pacientes que não se enquadram nos critérios
anteriormente descritos incluem hemograma, uréia, creatinina, sódio, potássio, glicose e
saturação periférica de oxigênio por oximetria de pulso. Gasometria arterial deve ser
colhida apenas se houver hipoxemia, com saturação periférica de oxigênio inferior a
90%, insuficiência respiratória ou suspeita de hipercapnia em paciente com doença
pulmonar obstrutiva crônica. Pacientes com fatores de risco ou achados clínico-
radiológicos atípicos devem ser submetidos a sorologia para o HIV após esclarecimento
e consentimento. Pacientes PORT II não necessitam de outros exames.
Em pacientes classificados como PORT III, IV ou V, deve-se acrescentar à
avaliação complementar coloração pelo Gram do escarro, dois pares de hemoculturas de
sítios diferentes, pesquisa de antígenos urinário de Legionela e pneumococo e dosagem
de proteína C reativa ou pró-calcitonina. Sorologias para C. pneumoniae, M.
pneumoniae, Coxiella burnetti, fungos e vírus não são indicadas de rotina e, em geral,
não mudam a conduta.
Broncoscopia com lavado broncoalveolar não é necessária na grande maioria

Pedro Kallas Curiati 148


dos pacientes imunocompetentes com pneumonia adquirida na comunidade, tendo
maior utilidade em pacientes internados que não responderam à terapêutica empírica
inicial. Reação em cadeia da polimerase não deve ser usada de rotina em razão do alto
custo e das dificuldades técnicas, com maior utilidade para pesquisa de germes atípicos.
Imunofluorescência direta do escarro pode ser útil na pesquisa de germes atípicos, mas
em razão de custo e dificuldades técnicas não é recomendada de rotina. Pesquisa de
bacilo álcool-ácido resistente e cultura de micobactérias no escarro não devem ser
solicitadas de rotina, sendo reservadas para pacientes com quadro clínico e radiográfico
sugestivo de tuberculose. Ultrassonografia de tórax deve ser solicitada para avaliar
suspeita de loculação do derrame pleural, para guiar toracocentese quando a punção
inicial não for bem sucedida e para identificar derrame pleural pequeno. Tomografia
computadorizada de tórax tem maior sensibilidade e especificidade que a radiografia de
tórax para avaliação de doenças pulmonares e pleurais, mas em função de custo e
disponibilidade seu uso deve ser restrito para a avaliação de derrames pleurais
complicados e de quadros clínicos ou radiológicos atípicos, como aqueles em que há
suspeita de neoplasia, abscesso, cavitação, infecção fúngica ou corpo estranho. O uso de
exames diagnósticos para pesquisa de vírus baseados em reação em cadeia da
polimerase incluindo adenovírus, influenza, parainfluenza, metapneumovírus e vírus
sincicial respiratório pode eliminar o uso desnecessário de antibióticos. Pacientes com a
possibilidade de infecção por H1N1 devem receber associado aos antibióticos o
Oseltamivir na dose de 75mg por via oral de 12/12 horas durante cinco dias.
Todos os pacientes com pneumonia adquirida na comunidade que apresentarem
derrame pleural com mais de 10mm em radiografia de tórax em decúbito lateral com
raios horizontais devem ser submetidos a toracocentese. Após a coleta do líquido
pleural, deve-se solicitar no sangue desidrogenase lática, proteínas totais e frações e
glicose e no líquido pleural desidrogenase lática, proteínas totais e frações, glicose,
celularidade total e diferencial, Gram, cultura e pH. Em caso de suspeita de tuberculose,
podem ser acrescentados pesquisa de bacilo álcool-ácido resistente, cultura para
micobactérias e dosagem de adenosina deaminase no líquido pleural.

Estratificação de risco

CURB-65
Os fatores são confusão mental, uréia superior a 43mg/dL, frequência
respiratória superior ou igual a 30ipm, pressão sistólica inferior a 90mmHg ou diastólica
inferior ou igual a 60mmHg e idade superior ou igual a 65 anos.
Pacientes com zero ou um fator podem ser tratados ambulatorialmente. Pacientes
com dois ou mais fatores devem ser internados. Pacientes com três ou mais fatores
devem ser internados em unidade de terapia intensiva.

Escore de PORT
Características Pontos
Fatores demográficos
Idade (homem) Número de anos
Idade (mulher) Número de anos – 10
Institucionalizado em casa de repouso Número de anos + 10
Comorbidades
Câncer ativo ou diagnosticado no último ano +30
Cirrose ou hepatite crônica ativa +20
Insuficiência cardíaca +10
Doença cerebrovascular +10

Pedro Kallas Curiati 149


Insuficiência renal +10
Exame físico
Confusão mental ou coma de início com a pneumonia +20
Frequência respiratória superior a 30ipm +20
Pressão arterial sistólica inferior a 90mmHg +20
Temperatura inferior a 35º C ou superior a 40º C +15
Frequência cardíaca superior a 125bpm +10
Laboratório e radiografia
pH inferior a 7.35 +30
Uréia superior a 60mg/dL +20
Sódio inferior a 130mEq/L +20
Glicemia superior a 250mg/dL +10
Hematócrito inferior a 30% +10
PaO2 inferior a 60mmHg ou saturação de O2 inferior a 90% +10
Derrame pleural +10

Escala Pontos Local de Antibiótico sugerido


de tratamento
risco
PORT I Ausência Ambulatorial Primeira opção constitui o uso de Macrolídeo ou de
de Amoxacilina 500mg por via oral de 6/6 horas ou 875mg
preditores por via oral de 12/12 horas. Alternativa em casos especiais
inclui o uso de Quinolona com espectro
antipneumocócico.
PORT Inferior a Ambulatorial Primeira opção constitui o uso de Macrolídeo. Alternativa
II 71 em casos especiais inclui o uso de Quinolona com
espectro antipneumocócico.
PORT 71-90 Breve estadia no Primeira opção constitui o uso de Macrolídeo, com
III pronto-atendimento primeira dose administrada no pronto-atendimento por via
e alta hospitalar se intravenosa. Segunda opção constitui o uso de Quinolona
estabilidade com espectro antipneumocócico. Alternativa constitui o
uso de Ceftriaxone 1g por via intravenosa de 12/12 horas
associado a Macrolídeo ou a Doxiciclina 100mg por via
oral de 12/12 horas.
PORT 91-130 Internação Quinolona com espectro antipneumocócico ou
IV hospitalar Ceftriaxone 1g por via intravenosa de 12/12 horas
associado a Macrolídeo ou a Doxiciclina 100mg por via
oral de 12/12 horas.
PORT Superior a Internação Primeira opção constitui o uso de Ceftriaxone 1g por via
V 130 hospitalar, sendo intravenosa associado a Macrolídeo,
considerada Alternativa constitui o uso de Quinolona com espectro
unidade de terapia antipneumocócico.
intensiva
Existem exceções que podem tornar as recomendações inválidas. Situações
especiais incluem alergia ou intolerância aos antibióticos de primeira escolha.
Quinolonas com espectro expandido antipneumocócico incluem Gatifloxacino,
Levofloxacino 500mg por via oral ou intravenosa uma vez ao dia e Moxifloxacino.
Opções de Macrolídeos incluem Azitromicina 500mg uma vez ao dia por via oral e
Claritromicina 500mg por via oral ou intravenosa de 12/12 horas.

SMART-COP
Infiltrado em mais de um lobo pulmonar vale 1 ponto, PaO2 inferior a 60mmHg
ou saturação periférica de oxigênio inferior a 90% vale 2 pontos, albumina inferior a
3.4mg/dL vale 1 ponto, pressão arterial sistólica inferior a 90mmHg vale 2 pontos,
confusão mental vale 1 ponto, frequência respiratória superior a 30ipm vale 1 ponto,
frequência cardíaca superior a 125bpm vale 1 ponto e pH inferior a 7.34 vale 1 ponto.

Pedro Kallas Curiati 150


Pacientes com escore maior ou igual a 3 provavelmente necessitam de
internação em unidade de terapia intensiva.

Diagnóstico diferencial
Os diagnósticos diferenciais mais frequentes incluem traqueobronquite, sinusite,
embolia pulmonar, edema pulmonar cardiogênico e não cardiogênico, câncer de
pulmão, tuberculose e bronquiectasia.
Doenças menos frequentes incluem pericardite, dor muscular, vasculite,
linfangite carcinomatosa, bronquiolite obliterante, pneumonite por hipersensibilidade,
corpo estranho, aspiração química, doenças ocupacionais, pneumonia eosinofílica,
lúpus, hemorragia alveolar, Hantavirus, sarcoidose, pneumonite por radiação, proteinose
alveolar, síndrome torácica aguda e anormalidades pulmonares congênitas.
Doenças pulmonares relacionadas ao HIV incluem pneumocistose, linfoma,
micobacteriose, histoplasmose, criptococose e citomegalovirose.

Tratamento

Local
Devem ser internados no hospital pacientes com escores PORT IV e V, com
breve estada no pronto-atendimento em caso de PORT III. Em função de aumento do
risco de morte, deve-se considerar internar pacientes com comorbidades, alterações
marcantes no exame físico, alterações marcantes nos exames complementares,
problemas sociais e PaO2 inferior a 60mmHg.
A decisão por internação em unidade de terapia intensiva é baseada na presença
de um critério maior ou de dois critérios menores dentre aqueles definidos por Ewig. Os
critérios maiores incluem choque séptico e necessidade de ventilação mecânica. Os
critérios menores incluem envolvimento de dois ou mais lobos, pressão arterial sistólica
inferior a 90mmHg e relação PaO2/FiO2 inferior a 250.

Antibioticoterapia
O ideal é iniciar a antibioticoterapia em até quatro horas da chegada ao pronto-
atendimento.
Situações não contempladas nos escores de PORT incluem risco aumentado para
infecção por Pseudomonas aeruginosa, pneumonia aspirativa, uso de drogas ilícitas,
etilismo, deficiência mental, graves problemas sociais e doenças neuromusculares.
A antibioticoterapia pode ser adaptada ao agente etiológico isolado. H.
influenzae é sensível a Azitromicina, Cefuroxima, Cefalosporinas de 3ª geração,
Quinolonas respiratórias e Amoxacilina-Clavulanato. Germes atípicos são sensíveis a
Tetraciclina, Doxiciclina, Macrolídeos e Quinolonas respiratórias. Bacilos Gram-
negativos normalmente são sensíveis a Cefalosporinas de 3ª geração e a Quinolonas
respiratórias. Pseudomonas aeruginosa é sensível a Cefepime, Imipenem, Meropenem e
Piperacilina/Tazobactam em monoterapia ou associados a Ciprofloxacina ou
Amicacina. Dependendo do padrão de sensibilidade local, a P. aeruginosa pode ser
sensível a Ceftazidime. Raramente, pode ser necessária Polimixina em germes
multirresistentes.
A duração do tratamento é de sete dias no paciente ambulatorial, sete a quatorze
dias no paciente internado e quatorze a vinte e um dias em caso de infecção por
Legionella sp.
Em pacientes PORT V, o consenso brasileiro sugere o uso de β-lactâmico, como
a Cefalosporina de 3ª geração, em associação com Quinolona respiratória. Opções de

Pedro Kallas Curiati 151


antimicrobianos em pneumonias adquiridas na comunidade graves com risco para P.
aeruginosa incluem Cefepime 2g por via intravenosa de 12/12 horas, Ceftazidime,
Imipenem, Meropenem ou Piperacilina/Tazobactam 4g/500mg por via intravenosa de
8/8 horas associados a Ciprofloxacina em altas doses de 400mg por via intravenosa de
8/8 horas, Amicacina associada a antibiótico com cobertura contra P. aeruginosa e a
Macrolídeo e Aztreonam associado a Levofloxacina em altas doses de 750mg/dia por
via intravenosa.
Pneumonia aspirativa ocorre quando bactérias da orofaringe atingem as vias
aéreas distais e levam a infecção do parênquima pulmonar. Os principais agentes são S.
pneumoniae, H. influenzae, S. aureus e bacilos Gram-negativos. Predomina em idosos e
geralmente há uma condição de base que predispõe à aspiração, como sequela de
acidente vascular cerebral, doença neurológica, alcoolismo e rebaixamento do nível de
consciência. Em pacientes sem fatores de risco, o tratamento prevê uso de Ceftriaxone
2g por via intravenosa uma vez ao dia ou Quinolona com espectro antipneumocócico.
Em pacientes com grave doença periodontal, escarro pútrido, pneumonia grave,
alcoolismo, instabilidade hemodinâmica ou imagem de abscesso à radiografia, o deve-se
associar uma medicação específica contra anaeróbios, como Clindamicina ou
Metronidazol.
A pneumonia aspirativa deve ser diferenciada da pneumonite química, em que
há aspiração pulmonar de conteúdo gástrico estéril e lesão pulmonar aguda química,
com resposta inflamatória, podendo ocorrer após crises convulsivas, intubação
orotraqueal ou vômitos. Pode ocorrer em qualquer idade, com predomínio em adultos
jovens. O quadro clínico é de início rápido, com tosse, dispneia, hipoxemia,
broncoespasmo e taquipnéia, muitas vezes com necessidade de suporte ventilatório. Em
geral, não implica obrigatoriamente em antibioticoterapia, consistindo a conduta inicial
em suporte clínico por 24-48 horas. A persistência ou a piora dos sintomas implica em
diagnóstico presuntivo de pneumonia aspirativa bacteriana.
Os critérios de alta hospitalar são nível de consciência adequado, estabilidade
respiratória e hemodinâmica por mais de 24 horas, ausência de sinais de toxemia,
ausência de febre há mais de 24 horas, melhora dos parâmetros laboratoriais e
capacidade de tomar antibióticos orais e manter adequada hidratação e nutrição.

Complicações
A resposta esperada é uma melhora clínica progressiva em 24-72 horas. Na
presença de melhora importante do estado geral, no terceiro ou quarto dias de
tratamento o paciente pode receber alta para continuar o tratamento por via oral, desde
que na ausência de contraindicação.
Pacientes que não melhoram no terceiro dia ou que pioram nas primeiras 48
horas:
- A bactéria é resistente, como pneumococo de alta resistência,
estafilococo resistente e pseudomonas;
- A doença não é causada por bactéria, podendo ser vírus, fungos,
micobactérias, pneumocistose ou nocardia;
- A doença não é pneumonia, podendo ser insuficiência cardíaca, embolia
pulmonar ou infarto agudo do miocárdio;
- Há uma complicação da pneumonia, como empiema, endocardite,
pericardite, abscesso hepático ou esplênico, meningite ou pioartrite;
- A pneumonia descompensa uma doença de base ou uma intercorrência
clínica faz o paciente piorar, como doença pulmonar obstrutiva crônica,
infarto agudo do miocárdio, acidente vascular cerebral e embolia

Pedro Kallas Curiati 152


pulmonar;
- A pneumonia leva a disfunção de órgãos, mesmo com antibiótico
adequado, com insuficiência renal, coagulopatia choque e síndrome da
angústia respiratória do adulto;
A regra geral é de não mudar o antibiótico nas primeiras 72 horas, exceto em
pacientes graves que continuam a piorar e se não houver um fator do hospedeiro. Ao
mudar o esquema antibiótico, deve-se colher o maior número possível de espécimes
para cultura, pesquisar Legionella sp, investigar focos metastáticos de infecção, avaliar
disponibilidade de lavado broncoalveolar e reavaliar se o diagnóstico é mesmo de
pneumonia.
A resolução radiológica ocorre em média após trinta dias, não estando indicada
radiografia de controle após o tratamento.

Vacinação
A vacina pneumocócica é baseada na cápsula de 23 sorotipos de pneumococo,
com boa relação custo-efetividade e proteção em mais de 75% dos pacientes. As
principais indicações são idade superior a 65 anos, doenças crônicas, como insuficiência
cardíaca, doença pulmonar obstrutiva crônica, diabetes mellitus, insuficiência renal
crônica, alcoolismo, hepatopatia, esplenectomia, asplenia funcional e fístula liquórica, e
imunossupressão, como em infecção pelo HIV, leucemia, linfoma, mieloma, uso de
drogas mielossupressoras e uso de corticoide a longo prazo. Preconiza-se dose única em
indivíduos com idade superior a 65 anos. Pacientes que receberam a vacina antes dos 65
anos podem receber segunda dose quando atingirem essa faixa etária, desde que
respeitado intervalo de cinco anos. Uma segunda dose pode ser administrada após cinco
anos da primeira dose em imunossuprimidos, asplênicos, infectados pelo HIV, com
insuficiência renal crônica e com doenças linfoproliferativas.
A vacina contra influenza tem indicações semelhantes à vacina pneumocócica,
além de presidiários, funcionários da saúde e indivíduos institucionalizados. A
administração é anual.

Pneumonia hospitalar

Definição
Pneumonia hospitalar ou nosocomial é aquela que ocorre após 48 horas de
internação ou em pacientes com internações recentes nos últimos noventa dias por mais
de 48 horas.

Etiologia e epidemiologia
Os fatores de risco incluem idade superior a 70 anos, restrição ao leito, doença
pulmonar obstrutiva crônica, cirurgia torácica ou abdominal em andar superior, uso de
sonda naso-gástrica, uso prévio de antibióticos, diálise crônica, doenças ou medicações
imunossupressoras e uso de antiácidos e antagonistas H2, broncoscopia recente,
rebaixamento do nível de consciência, internação em unidade de terapia intensiva,
internação prévia recente e origem em hospital-dia ou home care.
Os micro-organismos mais comuns são bacilos Gram-negativos aeróbios, como
Pseudomonas aeruginosa, Acinetobacter baumanii, Enterobacter sp, Klebsiella
pneumoniae, Escherichia coli, Serratia marcescens, Stenotrophomonas maltophilia,
Proteus sp e Haemophilus influenzae, Streptococcus pneumoniae, Enterococcus sp,
Staphylococcus aureus e Legionella sp. A infecção raramente é polimicrobiana ou
fúngica.

Pedro Kallas Curiati 153


A invasão do trato respiratório inferior ocorre por aspiração, por inalação de
aerossóis contaminados ou, menos frequentemente, por via hematogênica de outro foco
infeccioso ou de translocação bacteriana intestinal.
Há maior risco de infecção por S. aureus em pacientes com diabetes mellitus,
com insuficiência renal, principalmente se uso de cateter de hemodiálise, comatosos,
vítimas de traumatismo crânio-encefálico, que fazem uso prolongado de corticosteroides
e com longa permanência em ventilação mecânica.
Há maior risco de infecção por P. aeruginosa em pacientes com doença
estrutural broncopulmonar, com uso prévio de antibiótico e corticosteroide em altas
doses e com longa permanência em ventilação mecânica.
Há maior risco de infecção por fungos em pacientes com diabetes mellitus,
imunossuprimidos, neutropênicos, em uso de nutrição parenteral e com uso de
antibióticos e corticosteroide em altas doses.

Diagnóstico
O diagnóstico é baseado em associação de dados clínicos e laboratoriais, como
febre ou hipotermia, leucocitose ou leucopenia, aparecimento ou piora de secreção
pulmonar, sinais de insuficiência respiratória, surgimento ou agravamento de infiltrado
alveolar e/ou de broncograma aéreo.

Avaliação complementar
Culturas devem ser colhidas o mais precocemente possível e de preferência antes
do início do tratamento antibiótico. Recomenda-se a obtenção de duas amostras de
hemocultura periférica. Culturas quantitativas de secreção de via aérea inferior devem
ser solicitadas em casos graves, em pacientes sem melhora clínica, em falhas
terapêuticas e/ou em pacientes que necessitarem de intubação orotraqueal. O aspirado
traqueal deve ser coletado apenas em pacientes que necessitarem de intubação
orotraqueal, com melhor custo-benefício do que os demais métodos. Considera-se ponto
de corte para positividade de cultura mais de 105 unidades formadoras de colônia por
mL em aspirado traqueal, mais de 104 unidades formadoras de colônia por mL em
lavado broncoalveolar e mais de 103 unidades formadoras de colônia por mL em
escovado protegido.
Tomografia computadorizada de tórax pode ser utilizada em casos em que não
houver melhora clínica e/ou na suspeita de infecções fúngicas e complicações, como
empiemas, abscessos, cavitações, pneumotórax, derrame pleural loculado ou
espessamento pleural.

Tratamento
Os pacientes que podem apresentar pior evolução e prognóstico devem ser
identificados e tratados em unidade de terapia intensiva.
A administração de antibióticos deve ser inicialmente intravenosa e empírica,
direcionada para os agentes mais comuns e para o perfil de sensibilidade do setor do
hospital em que o paciente está internado. O tempo de tratamento deve ser o menor
possível, variando de sete a quatorze dias de acordo com a melhora clínica e o agente
infeccioso. Há possibilidade de suspensão se mais de 48 horas afebril, contagem de
leucócitos com normalização, estabilidade hemodinâmica e relação PaO2/FiO2
adequada. Há tendência de tratamento mais prolongado, por quatorze dias, nos pacientes
com Pseudomonas aeruginosa ou Acinetobacter baumanii.
A rotação de antibioticoterapia empírica e o descalonamento baseado em
antibiograma reduzem a incidência de bactérias resistentes. O uso de cobertura para

Pedro Kallas Curiati 154


anaeróbios em pneumonias aspirativas está indicado apenas nos pacientes etilistas ou
com má condição dentária.
Na ausência de uso prévio de antibiótico em indivíduos com menos de cinco dias
de internação, as opções de antibioticoterapia para a pneumonia nosocomial incluem
Ceftriaxone e Levofloxacina, com associação de Clindamicina em pacientes
previamente etilistas ou com má-condição dentária quando aspirativa. Em caso de uso
prévio de antibiótico e/ou mais de cinco dias de internação, prefere-se o uso de
Cefepime ou Piperacilina/Tazobactam, sendo associada Vancomicina em caso de
inastabilidade hemodinâmica.

Prevenção
A principal medida é manter a cabeceira elevada.

Pneumonia associada à ventilação mecânica

Definição
Pneumonia associada à ventilação mecânica é aquela que se desenvolve após 48
horas de intubação traqueal e ventilação mecânica.

Classificação
Precoce, com menos de 72 horas de ventilação mecânica.
Tardia, com mais de 72 horas de ventilação mecânica. Geralmente evolui para
sepse grave e choque séptico.

Etiologia
Os principais micro-organismos variam de acordo com presença de
comorbidades, causa de internação, uso prévio de antibióticos, flora hospitalar e tempo
de ventilação mecânica invasiva.
Os principais agentes relacionados à pneumonia associada à ventilação mecânica
precoce são H. influenzae, enterobactérias multissensíveis e cocos Gram-positivos,
como S. pneumoniae e S. aureus sensível à Oxacilina.
Os principais agentes relacionados à pneumonia associada a ventilação mecânica
tardia são P. aeruginosa, Acinetobacter baumanii, Klebisiella pneumoniae com β-
lactamase de espectro expandido (ESBL), Serratia marcescens com β-lactamase de
espectro expandido (ESBL) e S. aureus resistente à Oxacilina (MRSA). As infecções
podem ser também polimicrobianas.
Nos últimos anos vem aumentando a incidência de agentes multirresistentes,
principalmente os Gram-negativos. Os fatores de risco são ventilação invasiva
prolongada, por mais de sete dias, uso de antibiótico de amplo espectro nos últimos
quinze dias, alta frequência de agentes resistentes na unidade, diálise crônica e doenças
ou medicações imunossupressoras.

Fatores de risco
Os principais fatores de risco são decúbito elevado a menos de 30º, presença de
sonda naso-gástrica, uso de protetores gástricos, síndrome do desconforto respiratório
agudo, aspiração traqueal, uso excessivo de sedativos e bloqueadores neuromusculares,
baixa pressão do cuff de tubos traqueais, inferior a 20cmH2O, uso prévio de antibióticos,
história prévia de doença pulmonar obstrutiva crônica, sexo masculino, idade superior a
sessenta anos, comorbidades graves e má-higiene oral.

Pedro Kallas Curiati 155


Diagnósticos
O diagnóstico é baseado na presença de um novo infiltrado pulmonar ou na piora
de infiltrado prévio em associação a pelo menos dois dentre febre ou hipotermia,
leucocitose ou leucopenia, piora da relação PaO2/FiO2 e secreção traqueal purulenta.
É necessária a coleta de material do trato respiratório inferior para cultura. A
secreção pode ser colhida por broncoscopia, que propicia escalonamento mais rápido e
culturas mais precisas, mas é invasiva, menos disponível e não melhora a mortalidade, o
tempo de internação e a duração da ventilação mecânica. As amostras devem
preferencialmente ser colhidas antes do início ou da mudança da antibioticoterapia, mas
a coleta não deve retardar o tratamento. Considera-se ponto de corte para positividade
de cultura mais de 105 unidades formadoras de colônia por mL em aspirado traqueal,
mais de 104 unidades formadoras de colônia por mL em lavado broncoalveolar e mais
de 103 unidades formadoras de colônia por mL em escovado protegido.
O paciente pode apresentar também outros sinais indiretos, como aumento da
frequência respiratória e do volume minuto, diminuição do volume corrente, redução da
complacência pulmonar e maior necessidade de suporte ventilatório e/ou fração
inspirada de oxigênio.

Diagnóstico diferencial
Os principais diagnósticos diferenciais são pneumonia aspirativa, atelectasia,
embolia pulmonar, síndrome do desconforto respiratório agudo, hemorragia alveolar,
contusão pulmonar, infiltrado tumoral, pneumonite por radioterapia, pneumonite por
drogas, pneumonite por hipersensibilidade e bronquiolite obliterante.

Tratamento
Momento do Sem uso prévio de antibióticos Com uso prévio de antibióticos
diagnóstico Estável Instabilidade Estável Instabilidade
clinicamente hemodinâmica e/ou clinicamente hemodinâmica e/ou
respiratória respiratória
Precoce Ceftriaxone ou Ceftazidima ou Cefepime ou Ceftazidima ou
Quinolona Cefepime ou Piperacilina/ Cefepime e
respiratória Piperacilina/ Tazobactam Vancomicina
Tazobactam e
Vancomicina
Tardio Ceftazidima ou Ceftazidima ou Ceftazidima ou Ceftazidima ou
Cefepime ou Cefepime ou Cefepime ou Cefepime ou
Piperacilina/ Carbapenem e Carbapenem e Carbapenem e
Tazobactam Vancomicina Vancomicina Vancomicina
O tempo de tratamento varia de sete a quatorze dias de acordo com a melhora
clínica e o agente infeccioso, com tendência para mais tempo nos pacientes com
Pseudomonas aeruginosa ou Acinetobacter baumanii e menos tempo nos pacientes com
os demais agentes.
Mudanças na antibioticoterapia empírica reduzem a incidência de bactérias
resistentes, assim como o descalonamento de acordo com o antibiograma. A evolução
do quadro clínico e os resultados das culturas de secreções pulmonares podem orientar a
pesquisa de diagnósticos diferenciais, a retirada ou manutenção do tratamento e o
descalonamento ou escalonamento da antibioticoterapia.
A associação de antibioticoterapia inalatória pode ser utilizada em pacientes em
ventilação mecânica intubados ou traqueostomizados por sete a quatorze dias. Devem
ser realizadas aspiração traqueal e nebulização com broncodilatador vinte minutos antes
da administração da antibioticoterapia inalatória, com Fenoterol 5-10 gotas e Brometo
de Ipratrópio 20-30 gotas em Soro Fisiológico 5mL. O fluxo do nebulizador deve ser

Pedro Kallas Curiati 156


mantido em 8 litros por minuto durante a administração da antibioticoterapia, que dura
de quinze a vinte minutos. As principais drogas utilizadas são Colistina 150mg em Soro
Fisiológico 5mL via nebulizador de 12/12 horas, Amicacina 400mg em Soro
Fisiológico 5mL via nebulizador de 12/12 horas, Gentamicina 80mg em Soro
Fisiológico 5mL via nebulizador de 12/12 a 8/8 horas e Vancomicina 120mg em Soro
Fisiológico 5mL via nebulizador de 8/8 horas.

Bibliografia
Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 5. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2010.
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.

Pedro Kallas Curiati 157


URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS NO
HEPATOPATA
A cirrose caracteriza-se pela substituição da arquitetura normal do fígado, que
apresenta, em geral, fibrose difusa e formação de nódulos regenerativos de vários
tamanhos. Fibrogênese e regeneração são componentes da resposta cicatricial
desencadeada por vários tipos de agressão de natureza e causas diversas e, na sua
maioria, de evolução crônica. A doença hepática alcoólica e as hepatites virais B e C
são as etiologias mais frequentes.
O transplante de fígado ainda é o único tratamento definitivo para os pacientes
com insuficiência hepática crônica, que frequentemente necessitam de cuidados
intensivos por complicações específicas, como encefalopatia hepática, síndrome
hepatorrenal, peritonite bacteriana espontânea e hemorragia digestiva alta. De maneira
geral, essas afecções são consequência do desenvolvimento de hipertensão portal ou da
falência do parênquima hepático.
Os pacientes com insuficiência hepática crônica podem ser classificados por
Child-Pugh ou MELD.

Classificação de Child-Pugh Turcotte para pacientes cirróticos


Critério 1 ponto 2 pontos 3 pontos
Encefalopatia hepática Ausente Grau I e II Grau III e IV Child A quando até 6 pontos.
Ascite Ausente Fácil controle Refratária Child B quando 7-9 pontos.
Bilirrubina (mg/dL) <2 2-3 >3
Albumina (g/dL) >3.5 2.8-3.5 <2.8
Child C quando 10-15 pontos.
RNI <1.7 1.7-2.3 >2.3

Model for End-Stage Liver Disease (Meld)


Classificação de gravidade da doença utilizada atualmente para determinar a
posição na lista de transplante. Calculado através da fórmula 9.6 x loge(creatinina em
mg/dL) + 3.8 x loge(bilirrubinas em mg/dL) + 11.2 x loge(RNI) + 6.4. Deve-se
arredondar para valor inteiro.
Comparado à classificação de Child, possui maior acurácia em predizer
mortalidade em três meses.

Encefalopatia hepática

Definição
A encefalopatia hepática é definida como um distúrbio na função do sistema
nervoso central que se instala como consequência da doença hepática.

Etiologia e fisiopatologia
O mecanismo fisiopatológico ainda não foi totalmente determinado e,
provavelmente, é multifatorial. A encefalopatia hepática na cirrose é secundária ao
comprometimento do clearance hepático de produtos tóxicos do intestino capazes de
determinar efeitos deletérios na função cerebral.
Embora muitos fatores tenham sido responsabilizados na fisiopatologia da
encefalopatia hepática, atualmente a inter-relação entre amônia, resposta inflamatória e
auto-regulação da hemodinâmica cerebral parece ser o mais importante.

Pedro Kallas Curiati 158


Classificação
Tipo A – Encefalopatia associada com insuficiência hepática aguda fulminante.
Tipo B – Encefalopatia associada com shunt porto-sistêmico na ausência de
doença hepática intrínseca (bypass).
Tipo C – Encefalopatia associada com cirrose e hipertensão portal:
- Episódica precipitada, espontânea ou recorrente;
- Persistente leve, grave ou dependente de tratamento;
- Mínima;

Formas clínicas
Espectro de anormalidades neuropsiquiátricas em doentes com disfunção
hepática após a exclusão de outras doenças neurológicas.
Em pacientes com sinais e sintomas mínimos, geralmente as alterações são
documentadas apenas em testes neuropsiquiátricos. Essa é a forma mais frequente de
distúrbio e é denominada encefalopatia hepática mínima.
A forma episódica é caracterizada por manifestações clínicas ao longo de um
período de tempo curto, flutuando em gravidade. Nessa situação, os episódios cursam
com reconhecimento, na encefalopatia hepática precipitada, ou não, na encefalopatia
hepática espontânea, dos fatores precipitantes. Natureza recorrente se dois episódios
ocorrem no período de um ano.
A forma persistente é caracterizada por déficit neurológico que não reverte
completamente. Inclui distúrbios cognitivos que determinam repercussão no
desempenho das funções sociais e ocupacionais, com um grau menor ou maior de
comprometimento da autonomia do indivíduo.
Na insuficiência hepática fulminante, a instalação do quadro confusional agudo
pode ser acompanhada de edema cerebral, inclusive com evolução para herniação
cerebral e morte, o que raramente ocorre na cirrose.

Achados clínicos
Alterações no padrão do sono, com inversão do ciclo sono-vigília, insônia ou
sonolência excessiva.
Alteração do estado de consciência, com desorientação têmporo-espacial,
confusão, sonolência, letargia e coma.
Manifestações psíquicas, com mudança repentina ou gradativa da personalidade,
como apatia, euforia, agressividade, excitação e comportamento inadequado.
Achados neurológicos, como asterixis ou flapping, hiperreflexia e, menos
comumente, postura de descerebração transitória. Déficits neurológicos focais podem
estar presentes em alguns doentes, mas as manifestações neurológicas geralmente são
difusas.

Fatores precipitantes
Aumento da carga de nitrogênio por hemorragia digestiva, insuficiência renal,
aumento da ingesta protéica e/ou constipação.
Alterações hidroeletrolíticas, como hiponatremia, hipocalemia, hipovolemia,
hipóxia e/ou alcalose metabólica.
Desidratação.
Medicações e drogas, como benzodiazepínicos, excesso de diuréticos, narcóticos
e etanol.
Causas variadas, como peritonite bacteriana espontânea, outras infecções, shunts

Pedro Kallas Curiati 159


porto-sistêmicos (TIPS), cirurgia, evolução da doença e lesão hepática adicional de
etiologia viral, isquêmica, medicamentosa ou tóxica.

Graduação clínica
O sistema mais amplamente usado e aceito é baseado nos critérios de West
Haven, que podem ser associados ao uso da escala de coma de Glagow nos doentes que
apresentam estágios avançados de encefalopatia hepática.
Grau Características
0 Encefalopatia hepática mínima, com ausência de evidências clínicas
I Períodos insignificantes de comprometimento da consciência, déficits de atenção, dificuldade
para somar ou subtrair, sonolência excessiva, insônia ou inversão do padrão de sono, euforia ou
depressão
II Letargia ou apatia, desorientação no tempo e no espaço, comportamento inadequado,
comprometimento da fala, asterixis
III Rebaixamento do nível de consciência, estupor, fala incompreensível, hiperreflexia
IV Coma

Exames complementares
O diagnóstico é clínico e apoia-se no desenvolvimento de manifestações
neurológicas compatíveis em doentes com cirrose ou shunt porto-sistêmico.

Avaliação geral do doente


Necessária em todos os doentes.
Hemograma, coagulograma, função renal, glicemia, eletrólitos e gasometria. A
dosagem de amônia sérica pode auxiliar no diagnóstico.

Busca de fatores precipitantes


Quase sempre necessário, embora a solicitação de exames deva se guiar pelos
achados clínicos.
Paracentese diagnóstica com cultura e contagem de polimorfonucleares em
doentes sem causa óbvia, mesmo sem dor abdominal ou febre.
Os outros exames incluem enzimas hepáticas, radiografia de tórax,
eletrocardiograma, urina tipo I, urocultura, hemoculturas, eletrocardiograma e
endoscopia digestiva alta.

Diagnóstico diferencial
Raramente necessário. Deve-se guiar pelos achados clínicos.
Ultrassonografia ou tomografia computadorizada abdominal podem ser úteis em
pacientes cuja paracentese não revelou peritonite bacteriana espontânea ou sugeriu
peritonite segundária.
Tomografia computadorizada ou ressonância magnética de crânio são úteis
sobretudo no diagnóstico diferencial de lesões intracranianas e são recomendadas para
excluir anormalidades estruturais em doentes com sinais neurológicos focais,
encefalopatia grave, sinais de trauma crânio-encefálico, ausência de fatores
precipitantes ou sem melhora após início de tratamento adequado. A ressonância
magnética revela hipersinal em T1 nos núcleos da base dos pacientes com encefalopatia
hepática.
Líquor é útil na suspeita de encefalite ou meningite. Podem ser necessários
plasma e/ou plaquetas antes da coleta.
Eletroencefalograma pode sugerir doenças como estado de mal-epiléptico ou

Pedro Kallas Curiati 160


encefalite herpética. As alterações não são específicas na encefalopatia hepática e
incluem ritmo lento com ondas trifásicas.
Dosagem sérica de tóxicos.

Diagnóstico diferencial
Distúrbios hidro-eletrolíticos, hipoglicemia, uremia ou intoxicações.
Doenças intracranianas ou neuropsiquiátricas.
Síndrome de abstinência alcoólica ou síndrome de Wernicke-Korsakoff.
Asterixis pode estar presente em uremia, hipercapnia, intoxicação por Fenitoína
e hipomagnesemia.

Tratamento
A encefalopatia hepática é um indício de doença hepática avançada, que possui
como tratamento definitivo o transplante hepático, principalmente em pacientes
refratários, sem fatores desencadeantes e sem resposta à terapia medicamentosa.

Suporte clínico
Estabilizar clinicamente o doente, proteger as vias aéreas, expandir a volemia,
oferecer suporte de oxigênio se houver hipoxemia, monitorizar e obter acesso venoso
calibroso.
Devem-se suspender os diuréticos, sobretudo nos pacientes desidratados e/ou
com distúrbios hidro-eletrolíticos, e evitar o uso de benzodiazepínicos, que podem
precipitar ou acelerar a progressão da encefalopatia hepática.
Haloperidol é a droga de escolha para pacientes agitados que requeiram medidas
farmacológicas.

Redução da produção e da absorção de amônia


Lavagem naso-gástrica pode ser realizada em pacientes com sangramento
digestivo alto.
Limpeza de cólon é útil em doentes com constipação. Preconiza-se enema com
200-300mL de Lactulose em 700-800mL de solução para uso retal, como Soro
Fisiológico, água, Glicerina ou Manitol. Deve ser retido por no mínimo 30 minutos e
repetido se necessário.
Metanálises recentes questionam a eficácia da Lactulose. Entretanto, junto com a
correção dos fatores precipitantes, constitui uma ferramenta útil no manejo da
encefalopatia hepática. A dose varia de 20mL a 40mL de 8/8 a 4/4 horas, com aumento
progressivo se necessário. O objetivo é promover duas a três evacuações pastosas ao
dia. Efeitos colaterais incluem cólica abdominal, diarreia e flatulência.
Antibióticos diminuem a flora intestinal e podem ser indicados em doentes que
não melhoram com o tratamento inicial. Incluem Neomicina 1.0-1.5g de 6/6 horas, que
tem como maior inconveniente o risco de nefrotoxicidade, e Metronidazol 250-500mg
de 8/8 horas, que é uma opção em doentes com lesão renal de base, mas pode causar
grave neuropatia periférica. Rifaximina é um antibiótico oral praticamente não
absorvido, com dose de 550mg de 12/12 horas, que deve ser usado nos casos de
encefalopatia crônica ou naqueles em que a encefalopatia foi revertida, podendo ser
associado à Lactulose, com redução do risco de novos episódios.
Doentes com encefalopatia grave, graus III e IV, têm risco de aspiração e,
portanto, deve-se suspender a dieta oral e introduzir dieta enteral. A atual recomendação
é de dieta com conteúdo normal de proteínas, preferencialmente derivadas de vegetais,
com predomínio de aminoácidos ramificados em detrimento dos aromáticos.

Pedro Kallas Curiati 161


Correção dos fatores precipitantes
O curso clínico da encefalopatia hepática pode ser interrompido na maioria dos
pacientes por meio do controle dos fatores precipitantes. Avaliação cuidadosa deve ser
realizada para determinar a presença de hipovolemia, constipação, sangramento gastro-
intestinal, hipocalemia e/ou alcalose metabólica, hipóxia, uso de sedativos,
hipoglicemia, infecção e shunt porto-sistêmico.

Peritonite bacteriana espontânea

Definição
A peritonite bacteriana espontânea constitui infecção bacteriana de líquido
ascítico previamente estéril, na ausência de foco intra-abdominal de infecção. Trata-se
de uma das infecções mais comuns nos pacientes cirróticos com ascite, com grande

Pedro Kallas Curiati 162


morbidade e mortalidade.

Etiologia e fisiopatologia
A combinação de hipertensão portal e vasodilatação arterial esplâncnica leva a
acúmulo de fluidos na cavidade peritoneal.
A ascite dos pacientes cirróticos e de crianças com síndrome nefrótica é
particularmente vulnerável a peritonite bacteriana espontânea, enquanto que as
decorrentes de carcinomatose peritoneal ou de insuficiência cardíaca raramente se
infectam espontaneamente.
Uma baixa concentração de proteínas no líquido ascítico, especialmente abaixo
de 1.0g/dL, aumenta o risco de peritonite bacteriana espontânea.
Bactérias aeróbias Gram-negativas, como Escherichia coli e Klebsiella
pneumoniae, e Streptococcus pneumoniae são os micro-organismos isolados com maior
frequência. Acredita-se que tais bactérias entéricas atravessam a mucosa intestinal até os
linfonodos mesentéricos e caem na circulação diretamente ou através do ducto torácico,
com bacteremias transitórias que levam à infecção da ascite. A presença de flora
polimicrobiana sugere peritonite secundária.

Achados clínicos
O quadro clínico costuma ser frustro e inespecífico. Cerca de 10-30% dos casos
são assintomáticos no momento do diagnóstico. Frequentemente, a peritonite bacteriana
espontânea apresenta-se através de piora da função renal ou de início de encefalopatia
hepática. Por esse motivo, paracentese diagnóstica é recomendada sempre que houver
deterioração clínica de um cirrótico com ascite.
Quando presentes, os sintomas mais comuns são febre, dor abdominal,
encefalopatia hepática, diarreia, íleo adinâmico, choque e hipotermia. Sinais clássicos
de peritonite são incomuns.

Fatores predisponentes
Os fatores predisponentes para o desenvolvimento de peritonite bacteriana
espontânea incluem doença hepática avançada, proteínas totais no líquido ascítico
inferiores a 1g/dL, sangramento gastro-intestinal agudo, infecção urinária,
procedimentos invasivos e episódio prévio.

Exames complementares
O diagnóstico é feito mediante a análise do líquido ascítico. Avalia-se
rotineiramente contagem de células com diferencial, albumina e cultura e
opcionalmente glicose, desidrogenase lática, amilase, Gram, adenosina deaminase,
citologia oncótica e triglicérides. O procedimento é seguro, mesmo na presença de
coagulopatia, com taxas de complicações muito baixas.
Indicações de paracentese:
- Cirróticos com ascite internados no hospital por qualquer razão;
- Chegada ao pronto-atendimento com encefalopatia hepática ou piora da
função renal;
- Pacientes com ascite que desenvolvem durante a hospitalização
sintomas e sinais locais sugestivos de peritonite, sepse, encefalopatia
hepática ou piora da função renal sem um fator predisponente claro;
- Todos os pacientes com ascite que apresentem sangramento gastro-
intestinal, antes da administração de antibióticos profiláticos;
Dez a trinta por cento dos pacientes apresentam culturas negativas do líquido

Pedro Kallas Curiati 163


ascítico. Deve-se inocular 20mL de líquido ascítico em frascos de hemocultura, 10mL
em aeróbio e 10mL em anaeróbio.
Os exames complementares ainda incluem hemoculturas de sangue periférico,
hemograma, coagulograma, proteína total e frações, eletrólitos séricos e função renal.
Outros exames podem ser solicitados com base na suspeita clínica de condições
associadas. Imagem do abdômen é indicada na suspeita de peritonite bacteriana
secundária.

Critérios diagnósticos
O melhor critério diagnóstico de peritonite bacteriana espontânea é a presença de
contagem de polimorfonucleares igual ou superior a 250/mm3 no líquido ascítico.
Devem representar o tipo celular dominante e, na presença de líquido hemorrágico,
sugere-se diminuir um polimorfonuclear para cada 250 hemácias.
Peritonite bacteriana espontânea clássica é responsável por aproximadamente
dois terços das infecções do líquido ascítico. É caracterizada por contagem de
polimorfonucleares igual ou superior a 250/mm3 e cultura do líquido ascítico positiva
para um único agente.
Ascite neutrocítica cultura-negativa é caracterizada por contagem de
polimorfonucleares igual ou superior a 250/mm3 e cultura do líquido ascítico negativa.
Deve ser tratada como peritonite bacteriana espontânea clássica em função de evolução
e prognóstico semelhantes.
Bacteriascite não-neutrocítica monobacteriana representa uma colonização do
líquido ascítico por bactérias na ausência de reação inflamatória do fluido peritoneal.
Caracterizada por contagem de polimorfonucleares inferior a 250/mm3 e cultura do
líquido ascítico positiva para um único agente. Recomenda-se a realização de uma nova
paracentese, haja vista que até 40% desses pacientes evoluem com peritonite bacteriana
espontânea. Tratamento será indicado apenas se a nova contagem revelar contagem de
polimorfonucleares igual ou superior a 250/mm3.
Peritonite bacteriana secundária ocorre por perfuração ou inflamação aguda de
órgãos intra-abdominais. Sua diferenciação deve ser feita em razão da rápida
deterioração clínica, mesmo com antibioticoterapia, sem a necessária abordagem
cirúrgica. Deve-se suspeitar de peritonite secundária sempre que a cultura identificar
mais de um germe, especialmente anaeróbios e fungos, ou houver uma resposta
inadequada a antibióticos em pacientes inicialmente classificados como peritonite
bacteriana espontânea. O diagnóstico é sugerido por coloração pelo Gram com flora
mista, glicose inferior a 50mg/dL, concentração de proteínas superior a 1g/dL e
desidrogenase lática acima do limite superior de normalidade para o nível sérico. Pode
haver uma maior acurácia para o diagnóstico quando se incorpora antígeno
carcinoembrionário superior a 5ng/mL e fosfatase alcalina superior a 240U/L no líquido
ascítico. Quando persiste dúvida, deve-se coletar o líquido ascítico após 48 horas de
tratamento, com aumento da contagem de polimorfonucleares na peritonite bacteriana
secundária e diminuição na peritonite bacteriana espontânea. Nesses casos, o paciente
deve ser submetido a tomografia computadorizada de abdômen com contraste oral e
retal hidrossolúvel, ser avaliado pela equipe cirúrgica e ter ampliada a cobertura
antibiótica para anaeróbios com Metronidazol.

Diagnóstico diferencial
Deve-se diferenciar a peritonite bacteriana espontânea de peritonite bacteriana
secundária, neoplasias abdominais, ascite pancreática, tuberculose peritoneal e ascite
causada por fungos.

Pedro Kallas Curiati 164


Tratamento

Antibioticoterapia
Cefotaxime é a medicação mais estudada para o tratamento da peritonite
bacteriana espontânea. O tratamento é feito com 2g de 8/8 horas por via intravenosa
durante cinco dias, exceto se o paciente não evoluir bem. Da mesma forma, Ceftriaxone
é útil, com a vantagem de ter menor custo e melhor posologia, com 1-2g por via
intravenosa uma vez ao dia
Outras opções incluem Amoxacilina/Clavulanato 1.2g de 8/8 horas por via
intravenosa durante dois dias e 625mg de 8/8 horas por via oral durante seis a doze dias,
Ofloxacina 400mg de 12/12 horas por via oral durante oito dias e Ciprofloxacina 200mg
de 12/12 horas por via intravenosa durante dois dias e 500mg de 12/12 horas por via
oral durante cinco dias.

Albumina
A disfunção renal ocorre em aproximadamente um terço dos pacientes com
peritonite bacteriana espontânea.
A administração de Albumina na dose de 1.5g/kg nas primeiras seis horas do
diagnóstico e na dose de 1g/kg em quatro a seis horas no terceiro dia de tratamento
reduziria a incidência de disfunção renal e a mortalidade intra-hospitalar.
Estudos recentes sugerem que apenas um subgrupo dos pacientes com peritonite
bacteriana espontânea realmente se beneficia da Albumina, podendo-se restringir a sua
indicação para aqueles com creatinina sérica superior a 1mg/dL, uréia superior a
60mg/dL ou bilirrubina total superior a 4mg/dL.

Resposta ao tratamento
A resolução é obtida em 90% dos casos com suporte clínico, antibioticoterapia e
Albumina.
Não há necessidade de paracentese de controle de tratamento, exceto em
pacientes que não melhoram com o tratamento ou que pioram apesar do tratamento.
Nesses casos, uma paracentese deve ser feita após 48 horas de tratamento e uma queda
da contagem de polimorfonucleares do líquido ascítico maior que 25% sugere terapia
apropriada.

Profilaxia de peritonite bacteriana espontânea


Os pacientes cirróticos com peritonite bacteriana espontânea devem receber
profilaxia por tempo indeterminado. As opções são Norfloxacina 400mg uma vez ao dia
e Ciprofloxacina 750mg uma vez por semana.
Pacientes com cirrose avançada, com ascite e que são levados ao pronto-
atendimento com hemorragia digestiva devem ser submetidos a paracentese. Se houver
peritonite bacteriana espontânea, tratar conforme descrito. Se não houver peritonite
bacteriana espontânea, deve ser instituída profilaxia, pois até 50% desses pacientes
podem desenvolver essa afecção. A escolha é Norfloxacina por via oral com 400mg de
12/12 horas durante sete dias ou Ceftriaxone 1-2g uma vez ao dia. É importante lembrar
que, se não houver líquido ascítico puncionável, também deve ser prescrita a profilaxia.
Em pacientes com ascite com menos de 1g/dL de proteínas os resultados da
profilaxia são mais controversos, sem indicação rotineira.

Pedro Kallas Curiati 165


Síndrome hepatorrenal

Definição
Síndrome hepatorrenal é o desenvolvimento de insuficiência renal funcional em
pacientes com insuficiência hepática aguda ou crônica, que apresentam hipertensão
portal e ascite. Um importante fator de risco é a peritonite bacteriana espontânea, maior
responsável pela falência renal em cirróticos.

Classificação

Pedro Kallas Curiati 166


O tipo 1 é caracterizado por rápida progressão da falência renal, evolução em
menos de duas semanas e nível de creatinina sérica superior a 2.5mg/dL ou clerance de
creatinina inferior a 20mL/minuto. O prognóstico é extremamente ruim e a média de
sobrevida é de aproximadamente duas semanas sem tratamento.
O tipo 2 é caracterizado por falência renal de instalação mais lenta e creatinina
sérica superior a 1.5mg/dL ou clearance de creatinina menor que 40mL/minuto.
Apresenta melhor prognóstico.

Etiologia e fisiopatologia
A vasoconstrição renal reversível e a hipotensão arterial leve são as marcas da
síndrome hepatorrenal. É importante lembrar que os rins são histologicamente normais e
sua função tubular ainda está preservada no momento do diagnóstico, com ávida
retenção de sódio e oligúria.
Enquanto o paciente cirrótico está compensado do ponto de vista hemodinâmico,
há um balanço entre a vasodilatação esplâncnica, mediada principalmente pela liberação
de óxido nítrico, e a vasoconstrição sistêmica. Com a progressão da doença, a
capacidade renal de fluxo plasmático regular através de estímulos vasodilatadores é
perdida por diminuição da atividade das prostaglandinas. O rim passa a ser cada vez
mais dependente da pressão de perfusão sistêmica, que diminui progressivamente.

Achados clínicos
O achado clínico dominante é a redução do débito urinário. É extremamente
difícil diferenciar a síndrome hepatorrenal de insuficiência renal aguda pré-renal
associada a um quadro séptico ou de hipovolemia. Portanto, uma prova de volume, com
1.5L de Soro Fisiológico ou 1g/kg de Albumina, se faz necessária em todos os pacientes
para corroborar o diagnóstico.
Geralmente há uma complicação aguda sobreposta, sendo as principais:
- Ingesta de álcool em grande quantidade recentemente, com hepatite
alcoólica;
- Dor abdominal, febre e vômitos, com peritonite bacteriana espontânea;
- Melena ou hematêmese, com hemorragia digestiva alta;
- Infecções não-relacionadas diretamente com doença hepática,
principalmente pulmonar e do trato urinário;
- Retirada de grande quantidade de líquido ascítico recentemente,
geralmente acima de 5 litros, sem reposição de Albumina;

Exames complementares
Nenhum exame laboratorial confirma o diagnóstico com certeza. As alterações
laboratoriais são características da insuficiência hepática crônica descompensada
associada à insuficiência renal de padrão pré-renal. Em virtude da baixa reserva
funcional, esses pacientes podem apresentar rápida deterioração clínica com graves
distúrbios hidro-eletrolíticos e acidobásicos, indicando pior prognóstico e menor
resposta à terapêutica.
Recomenda-se avaliação da função renal e dos eletrólitos à chegada e
diariamente, avaliação do fígado tanto por exames séricos, como enzimas hepáticas e
testes de função, como por ultrassonografia, paracentese com pesquisa de peritonite
bacteriana espontânea, culturas de sangue e urina, radiografia de tórax, endoscopia
digestiva na suspeita de hemorragia, ultrassonografia de vias urinárias e biópsia renal na
suspeita de doença renal intrínseca. Proteinúria significativa, superior a 500mg/dia, e
anormalidades do sedimento urinário sugerem lesão renal parenquimatosa e não

Pedro Kallas Curiati 167


síndrome hepatorrenal.
As alterações mais frequentes são hiponatremia, aumento de uréia e creatinina,
hipercalemia e acidose metabólica, sódio urinário inferior a 10mEq/L e fração de
excreção de sódio muito menor do que 1%, marcadores de insuficiência hepática e
ultrassonografia com rins normais e ausência de distúrbios pós-renais.

Critérios diagnósticos
Recentemente, um workshop propôs novos critérios para o diagnóstico de
síndrome hepatorrenal:
-Cirrose com ascite;
- Creatinina sérica superior ou igual a 1.5mg/dL;
- Ausência de melhora com reposição volêmica com 1g/kg/dia de
Albumina, com no máximo 100g/dia, por dois dias consecutivos;
- Ausência de choque;
- Ausência de uso de drogas nefrotóxicas;
- Ausência de doença renal parenquimatosa, evidenciada por proteinúria
superior a 500mg/dia, hematúria superior a 50 células por campo ou
ultrassonografia renal anormal;
O conceito novo exclui o clearance de creatinina, aceita infecções para o
diagnóstico e utiliza a albumina como reposição volêmica, além de eliminar os critérios
diagnósticos menores.

Diagnóstico diferencial
Outras causas de insuficiência renal aguda, especialmente necrose tubular aguda.
Causas pré-renais, como hipovolemia e baixo débito cardíaco.
Causas pós-renais, como uropatia obstrutiva.

Tratamento
O tratamento de escolha é o transplante hepático. Todo o restante do tratamento
de suporte deve ser orientado na tentativa de minimizar a disfunção de órgãos em
preparação para o transplante.
Estudos têm demonstrado uma resposta favorável a vasoconstritores arteriolares
associados à Albumina, com 1g/kg no primeiro dia e 20-40g/dia a partir de então. A
Terlipressina, análogo de vasopressina, tem melhor performance hemodinâmica e
segurança e é responsável por diminuição dos níveis séricos de creatinina e aumento do
débito cardíaco, da pressão arterial média e do clearance de creatinina, com 0.5mg por
via intravenosa de 6/6 a 4/4 horas, com dose máxima de 2mg de 4/4 horas.
Alternativamente, Norepinefrina pode ser utilizada por via intravenosa na dose de 8-
50mcg/minuto.
Uma abordagem prática com bom custo-benefício é manter o tratamento até que
seja atingido um nível de creatinina de 1.5mg/dL ou até melhora de pelo menos 50% no
clearance de creatinina.
Métodos dialíticos não têm evidência de impacto na sobrevida e só devem ser
usados como suporte ao candidato ao transplante. Raciocínio análogo se aplica aos
shunts porto-cavais realizados por técnicas minimamente invasivas (TIPS).

Tratamento da síndrome hepatorrenal tipo 1


Considerar a possibilidade de transplante hepático.
Prescrever Terlipressina 0.5-2.0mg de 4/4 horas e Albumina 20-40g/dia por, no
mínimo, 5 dias.

Pedro Kallas Curiati 168


Considerar TIPS se não houver resposta aos vasoconstritores.
Indicar diálise se necessário.
Outras medidas incluem restrição hídrica, restrição de sódio, suporte clínico e
tratamento de complicações.

Tratamento da síndrome hepatorrenal tipo 2


Considerar a possibilidade de transplante hepático.
Paracentese de grande volume com reposição de Albumina se ascite com
desconforto ou insuficiência respiratória.
Restrição hídrica se sódio inferior a 120-125mEq/L.
Restrição de sódio para 40-80mEq/dia.
Considerar prescrever Terlipressina e Albumina antes do transplante.

Complicações
Infecções bacterianas graves, peritonite bacteriana secundária e pneumonia.
Complicações da insuficiência renal aguda, como hipercalemia grave, acidose
metabólica grave, hipervolemia e edema agudo de pulmão.
Hiponatremia com disfunção neurológica.
Hemorragia digestiva.
Encefalopatia hepática.

Prevenção
Considerando a elevada incidência de síndrome hepatorrenal após episódio de
peritonite bacteriana espontânea, é importante lembrar da evidência para o uso de
Albumina associada a antibiótico no tratamento desta afecção, com 1.5g/kg em seis
horas no primeiro dia e 1g/kg em quatro a seis horas após 48 horas de tratamento, por
via intravenosa. Recentemente, sugeriu-se limitar o uso de Albumina a pacientes com
creatinina superior a 1mg/dL ou bilirrubina superior a 4mg/dL.
A Albumina também deve ser utilizada como expansor plasmático após
paracentese com retirada de mais de 5 litros de líquido ascítico, com 8-10g de Albumina
para cada litro retirado.

Pedro Kallas Curiati 169


Bibliografia
Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 5. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2010.
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.

Pedro Kallas Curiati 170


URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS
ONCOLÓGICAS
Neutropenia febril

Definição
Febre é definida como temperatura oral superior ou igual a 38.3º C, persistência
de temperatura oral superior a 38.0º C por mais de uma hora ou temperatura axilar
superior ou igual a 37.8º C. Neutropenia é definida por contagem de neutrófilos inferior
a 500/mm3 ou entre 500/mm3 e 1000/mm3 com tendência à queda nas próximas 48
horas.
Se à admissão no serviço de saúde o paciente não possui resultado de
hemograma para confirmação de neutropenia ou se após a coleta existe previsão de
demora para a obtenção do resultado, o paciente pode ser considerado neutropênico se
recebeu quimioterapia nas últimas seis semanas. Se a neutropenia não for confirmada,
deve-se reavaliar a prescrição de antimicrobianos. O nadir geralmente ocorre doze a
quatorze dias após o primeiro dia do esquema de quimioterapia.

Etiologia e fisiopatologia
Apesar de no passado a maioria dos casos de neutropenia febril ser causada por
bacilos Gram-negativos, atualmente a maior prevalência é de agentes Gram-positivos,
dentre os quais grande parte é resistente à Oxacilina, com sensibilidade apenas a drogas
como Vancomicina, Teicoplanina e Linezolida. As infecções por estes agentes são de
curso indolente e por esse motivo habitualmente não são contempladas na terapêutica
empírica inicial, uma vez que alguns dias de retardo no início da cobertura específica
não alterariam a mortalidade.
A despeito da prevalência maior dos Gram-positivos, são os Gram-negativos que
geram a maioria dos quadros de sepse grave e choque séptico, que aparecem poucas
horas após o episódio inicial de febre e que são evitados com a rápida introdução de
terapia antimicrobiana.
Os agentes Gram-negativos mais comumente relacionados a infecções em
neutropênicos febris são bacilos entéricos, como Escherichia coli e Klebsiella spp, além
de Pseudomonas spp. Dentre os agentes Gram-positivos, os mais frequentes são
Staphylococcus spp, Streptococcus spp, Enterococcus spp e Corynebacterium spp. Em
pacientes com neutropenia prolongada, com duração superior a cinco dias, aumenta a
incidência de infecções fúngicas, causadas principalmente por Candida spp e
Aspergillus spp.
Alguns achados clínicos podem estar relacionados com agentes patológicos
infrequentes. Abscesso perianal, foco infeccioso dentário, infecção gengival ou sinais de
irritação peritoneal são indicativos de infecção por anaeróbios. Sinusite com secreção
negra, lesões cutâneas eritematosas com necrose e hemorragia alveolar são sugestivos
de infecção por fungos filamentosos.

Quadro clínico
A queixa principal é de febre e a frequência de sintomas e sinais associados é
baixa em função de menor resposta inflamatória. Exame físico completo deve ser
realizado, com particular atenção aos sítios mais comuns de infecção, que incluem

Pedro Kallas Curiati 171


cavidade oral, faringe, trato gastrointestinal, pulmão, períneo, região perianal, pele,
fundo de olho e sítios de inserção de cateteres. O toque retal não é recomendado em
razão do risco de translocação bacteriana.
Sinais como dor e vermelhidão cutâneos, mesmo que discretos, devem ser
valorizados e considerados como provável celulite. Meningites podem ocorrer sem
pleocitose. Infecção do trato urinário pode ocorrer sem piúria.

Exames complementares
Os exames complementares objetivam a pesquisa etiológica, a definição do
prognóstico e a monitorização da toxicidade do tratamento.
Exames iniciais incluem hemograma, eletrólitos, função renal, enzimas
hepáticas, par de hemoculturas periféricas e de todas as vias do cateter, se presente,
colhidas antes da administração de antibióticos, radiografia de tórax na presença de
sintomas respiratórios e cultura de qualquer outro material de sítio suspeito de estar
envolvido na infecção. Tomografia computadorizada de cortes finos de pulmão e de
seios da face deve ser realizada em casos de neutropenia grave, caracterizada por menos
de 100 neutrófilos por mm3 durante período superior a sete dias, já que parcela
significativa de pacientes com radiografia de tórax normal apresentará evidência de
broncopneumonia. Punção liquórica é indicada na vigência de alteração do nível de
consciência. Pesquisa de Clostridium difficile nas fezes é indicada na vigência de
diarreia.
Exames seriados de controle incluem hemograma diário, par de hemoculturas
periféricas se febre, com no máximo um por dia, e função renal, eletrólitos e enzimas
hepáticas a cada três dias. A frequência de repetição dos exames de controle, bem como
a realização de outros exames complementares, dependem da situação clínica do
paciente e de sua evolução.
Quando disponíveis, culturas quantitativas têm valor prognóstico. A diferença de
tempo de crescimento entre as amostras colhidas no sangue periférico e no cateter
venoso central pode identificar infecção do acesso central em caso de mesmo agente
infeccioso e crescimento no mínimo duas horas antes no cateter.
A indicação de lavado nasal é controversa, mas fornece perfil de colonização útil
nas neutropenias prolongadas.
Recomenda-se a coleta de urina 1 e urocultura, mas a utilidade é duvidosa.

Diagnóstico diferencial
A neutropenia ocorre por diminuição da produção, granulopoiese ineficaz,
desvio para endotélio vascular e destruição periférica. As causas adquiridas incluem
infecções, como rickettsiose, medicações, como Clozapina, tionamidas e Sulfassalazina,
e doenças autoimunes, como o lúpus eritematoso sistêmico e a síndrome de Felty. As
causas congênitas incluem a síndrome de Chediaki-Higashi, a síndrome Schwachman-
Diamond-Oski e a neutropenia cíclica, que ocorre em intervalos usualmente de vinte e
um dias e é associada a infecções de cavidade oral. Outro grupo de doenças causadoras
de neutropenia são as da medula óssea, como anemia aplástica, mielodisplasia,
leucemias e aplasia pura da série branca. Pacientes com neutropenia benigna crônica ou
hiperesplenismo permanecem meses com contagens de neutrófilos abaixo de 200/mm3 e
permanecem livres de infecção.
Possíveis causas não-infecciosas de febre em neutropênicos são tumores, efeitos
adversos de medicamentos e reações transfusionais.

Prognóstico

Pedro Kallas Curiati 172


Os critérios propostos pela Infectious Diseases Society of America para bom
prognóstico incluem neutrófilos acima de 100/mm3, monócitos acima de 100/mm3,
radiografia de tórax normal, função hepática normal, função renal normal, neutropenia
com duração inferior ou igual a sete dias, ausência de infecção de cateter, evidência de
recuperação medular, neoplasia em remissão, temperatura inferior a 39º C, bom estado
mental, bom estado geral, ausência de dor abdominal e ausência de sinais de gravidade
gerais.
Critérios de alto risco incluem neutropenia com duração prevista superior a sete
dias, uso de Alemtuzumab nos últimos dois meses, hospitalização no momento de
aparecimento da febre, neoplasia maligna não-controlada ou progressiva, elevação de
transaminases acima de cinco vezes o limite superior da normalidade, disfunção renal
com taxa de filtração glomerular estimada inferior a 30mL/minuto, escore de risco
MASCC inferior a 21 e presença de comorbidades médicas, como instabilidade
hemodinâmica, mucosite oral ou gastrointestinal com interferência na deglutição ou
diarreia severa, sintomas gastrointestinais, incluindo dor abdominal, náusea, vômitos e
diarreia, alterações neurológicas ou do estado mental novas, infecção de cateter
intravascular, hipoxemia ou infiltrado pulmonar novo, doença pulmonar subjacente e
infecção complexa no momento da admissão, como infecção visceral, sepse, infecção de
partes moles com diâmetro superior a 5cm e infecção necrotizante de partes moles de
qualquer diâmetro.

Escore de risco MASCC (Multinational Association for Supportive Care in Cancer)


Característica Pontos
Intensidade dos sintomas 5 se sintomas ausentes ou leves
3 se sintomas moderados a graves
0 se sintomas graves ou paciente
moribundo
Ausência de hipotensão, com pressão arterial sistólica superior a 5
90mmHg
Ausência de doença pulmonar obstrutiva crônica 4
Portador de tumor sólido ou portador de neoplasia hematológica sem 4
infecção fúngica prévia
Ausência de desidratação que necessite de hidratação intravenosa 3
Não hospitalizado no momento de aparecimento da febre 3
Idade inferior a 60 anos 2
O risco é definido pela somatória dos pontos, com risco alto quando escore
inferior a 21 e baixo quando escore igual ou superior a 21 pontos. A separação dos
pacientes em diferentes grupos de risco é fundamental para a tomada de decisões
terapêuticas quanto à intensidade do tratamento e à necessidade de terapia hospitalar.

Tratamento
A antibioticoterapia empírica deve ser iniciada imediatamente após o primeiro
pico febril, com intervalo máximo de sessenta minutos entre a admissão do paciente e o
início da administração da medicação. No caso de dúvidas quanto à presença de
neutropenia ou febre, a administração imediata e empírica de antibiótico é a conduta
com menor risco de complicação e maior benefício para o paciente, devendo ser
mantida até que adequada observação clínica e os resultados de exames laboratoriais
esclareçam o diagnóstico. Pacientes neutropênicos afebris com novos sinais e/ou
sintomas consistentes com infecção devem ser avaliados e manejados como se
estivessem febris.
A terapia empírica inicial deve conter um antibiótico ou uma associação de
antibióticos com boa atividade contra Pseudomonas sp, como Ceftazidima 2g por via

Pedro Kallas Curiati 173


intravenosa de 8/8 horas, Cefepime 2g por via intravenosa de 8/8 horas,
Piperacilina/Tazobactam 4.5g por via intravenosa de 6/6 horas, Imipenem 500mg por
via intravenosa de 6/6 horas e Meropenem 1g por via intravenosa de 8/8 horas, com
início imediatamente após a coleta de culturas e dentro de sessenta minutos da admissão
hospitalar. Mesmo quando o patógeno é conhecido, o esquema antibiótico deve prover
cobertura de amplo espectro pela possibilidade de outros patógenos associados. Deve-se
aguardar no mínimo 72 horas antes de associar novos antibióticos ao esquema inicial, a
não ser que haja evidente deterioração clínica, identificação de agente resistente à droga
utilizada ou presença de fatores de risco para infecção por agentes Gram-positivos, em
que há indicação de associação de Vancomicina 1g por via intravenosa de 12/12 horas.
Esses fatores incluem cultura com Gram-positivo em identificação, infecção de pele ou
partes moles, mucosite severa em paciente em uso prévio de profilaxia com
fluorquinolona sem atividade contra Streptococcus sp e terapia empírica atual com
Ceftazidima, suspeita de infecção relacionada a cateter venoso central, instabilidade
hemodinâmica, pneumonia e colonização por Staphylococccus aureus resistente a
Oxacilina, S. pneumoniae resistente a Penicilina ou a Ceftriaxone ou enterococo
resistente a Ampicilina. Alternativamente, pode-se utilizar Linezolida 600mg por via
intravenosa de 12/12 horas para cobrir agentes Gram-positivos. Úlceras orais podem ser
causadas por herpes simples ou Candida spp, sendo recomendada a adição de Aciclovir
e/ou Fluconazol. Cobertura contra anaeróbios deve ser incluída em caso de mucosite
necrotizante, sinusite, celulite periodontal, celulite peri-retal, infecção intra-abdominal,
infecção pélvica e/ou bacteremia anaeróbia.
Nos pacientes de alto risco, recomenda-se monoterapia por via intravenosa intra-
hospitalar, preferencialmente com Cefepime, visto que tem ação similar contra Gram-
negativos quando comparado a Ceftazidima e a carbapenêmicos e possui ação superior
contra Gram-positivos, especialmente S. viridans, devendo-se evitar monoterapia com
Ceftazidima, que está associada a maior risco de desenvolvimento de cepas
multirresistentes. Pacientes alérgicos a Penicilina com história de reação de
hipersensibilidade imediata não devem receber beta-lactâmicos ou carbapenêmicos,
podendo-se recomendar Ciprofloxacina associada a Clindamicina ou Aztreonam
associado a Vancomicina.
O paciente deve ser posteriormente seguido com reavaliações frequentes, em que
novamente exame físico, história clínica e exames complementares são repetidos. A
antibioticoterapia deve ser reavaliada objetivamente sempre que surgirem achados
novos ou empiricamente a cada 24 horas a partir do terceiro dia. Alguns recomendam o
uso de dieta sem alimentos crus por causa da presumida quebra de barreira intestinal,
com risco aumentado de infecções. Em caso de instabilidade hemodinâmica após as
doses iniciais do tratamento antimicrobiano empírico, deve-se ampliar a cobertura para
bactérias Gram-negativas resistentes, bactérias Gram-positivas, bactérias anaeróbias e
fungos.
Caso seja identificado o possível foco infeccioso, o regime antibiótico deve ser
adequado para essa condição. A adequação do esquema terapêutico para o foco
infeccioso implica ampliar, se necessário, a cobertura antimicrobiana para os patógenos
do foco, mantendo-se sempre cobertura de amplo espectro para tratamento de outros
agentes.
Em parcela significativa dos pacientes a terapia inicial apresenta falha, definida
na maioria dos estudos como persistência da febre. Nesses casos, a depender das
condições clínicas do paciente, da duração da neutropenia e do resultado das culturas
obtidas, outros antibióticos podem ser necessários e sua escolha deve ser sempre
baseada na frequência dos agentes encontrados localmente e no perfil de sensibilidade

Pedro Kallas Curiati 174


aos antimicrobianos.
Se o paciente permanecer febril e sem sinais de melhora após 4-7 dias de terapia
antimicrobiana de amplo espectro, a instituição de terapia antifúngica empírica está
indicada, sendo preferida classe de medicação diferente daquela usada para profilaxia.
Para adequada cobertura de leveduras e fungos filamentosos devem ser utilizados
antifúngicos de amplo espectro de ação, como Caspofungina 70mg por via intravenosa
no primeiro dia e 50mg por via intravenosa uma vez ao dia a partir de então,
Anfotericina B 5mg/kg por via intravenosa uma vez ao dia e Voriconazol 6mg/kg por
via intravenosa de 12/12 horas no primeiro dia e 4mg por via intravenosa de 12/12 horas
a partir de então. Em pacientes que não receberam profilaxia anti-fúngica e não
apresentam sítio evidente de infecção fúngica, prefere-se o uso de Caspofungina, uma
vez que Candida spp será agente etiológico mais provável. Em pacientes com nódulos
pulmonares ou infiltrado pulmonar, infecção fúngica invasiva deve ser suspeitada, com
a avaliação abrangendo broncoscopia, lavado broncoalveolar com culturas, colorações e
teste de galactomanana e início simultâneo de terapia empírica antifúngica, sendo
preferidos Anfotericina B e Voriconazol, uma vez que aspergilose é a infecção invasiva
fúngica mais frequente em neutropênicos. Em caso de mucormicose, deve-se preferir
Anfotericina B, pois Voriconazol não tem atividade contra os agentes causadores dessa
infecção.
Durante a avaliação do paciente que persiste febril apesar da terapêutica
adequada, deve-se considerar alguns fatores associados à persistência da febre, como
efeito colateral de antibióticos, foco infeccioso fechado e presença de infecção de
cateter central.
Quando nenhuma fonte infecciosa foi identificada e as culturas apresentaram
resultado negativo, o momento para descontinuar o uso de antibióticos é usualmente
dependente da resolução da febre e da evidência clara de recuperação medular. Se o
paciente estiver afebril há pelo menos dois dias e com contagem de neutrófilos superior
a 500/mm3 com tendência de ascensão, a antibioticoterapia pode ser suspensa. Uma
abordagem alternativa em pacientes que persistem neutropênicos prevê continuar o
tratamento até um curso apropriado ter sido concluído e os sinais e sintomas de infecção
estarem resolvidos, com introdução de profilaxia com fluorquinolona até que ocorra a
recuperação medular.
O uso de fatores de crescimento hematopoiético, como o fator estimulador de
colônias de granulócitos humanos metionil recombinante não-glicosado, também
denominado Filgrastima (Granulokine®), apresentado em frascos com 30MU (300mg),
durante episódios de neutropenia febril pode promover a diminuição do tempo de
neutropenia e do tempo de internação hospitalar, mas não está relacionado a diminuição
da mortalidade. Excetuando-se situações clínicas particulares, como nos casos de
infecção grave não-controlada em pacientes com retardo na recuperação medular ou
anemia aplástica grave, os fatores de crescimento não devem ser utilizados
rotineiramente. No entanto, hematologistas e oncologistas utilizam normalmente dose
de 0.5MU/kg/dia (5mg/kg/dia) até reversão da neutropenia com o argumento de que
favoreceria a aplicação, sem atraso, do próximo ciclo de quimioterapia, permitindo
benefício secundário.
Todos os pacientes considerados de baixo risco podem receber antibióticos por
via oral ambulatorialmente após período breve de observação intra-hospitalar ou
internação de curta duração. O regime empírico inicial recomendado envolve a
combinação de fluorquinolona, como Ciprofloxacino 750mg por via oral de 12/12 horas
e Levofloxacino 750mg por via oral uma vez ao dia, com beta-lactâmico, como
Amoxacilina/Clavulanato 500mg/125mg por via oral de 8/8 horas. Pacientes em uso de

Pedro Kallas Curiati 175


esquema profilático anti-bacteriano com fluoroquinolona devem receber terapia
empírica inicial intravenosa semelhante àquela recomendada para pacientes de alto
risco, que poderá ser administrada em Hospital-Dia. Em pacientes com alergia a
Penicilina, pode-se utilizar Clindamicina 300mg por via oral de 6/6 horas ou, se
considerado seguro o uso de cefalosporina, Cefixima 400mg por via oral uma vez ao
dia. Recomenda-se monitorizar o paciente por pelo menos quatro horas após a dose
inicial da antibioticoterapia antes de dar alta para casa. Pacientes considerados elegíveis
para manejo ambulatorial devem ter acesso a atenção médica 24 horas por dia, sete dias
por semana, e devem estar aptos a se dirigir a serviço médico no prazo de uma hora em
caso de piora clínica. Recidiva da febre ou novos sinais de infecção indicam
necessidade de admissão hospitalar para terapia intravenosa. Persistência da febre além
do tempo médio esperado de defervescência de dois dias indica necessidade de
reavaliação quanto a necessidade de modificar o esquema terapêutico. Se o paciente
estiver afebril há pelo menos dois dias e com contagem de neutrófilos superior a
500/mm3 com tendência de ascensão, a antibioticoterapia pode ser suspensa. Entre os
pacientes que persistem neutropênicos, a terapia antimicrobiana deverá ser mantida até
que sejam completados cinco a sete dias sem febre.

Algoritmos

Pedro Kallas Curiati 176


Síndrome da veia cava superior

Definição
A síndrome da veia cava superior resulta de obstrução ao fluxo sanguíneo na
veia cava superior por invasão ou compressão externa relacionadas a processos
patológicos envolvendo pulmão direito, linfonodos ou outras estruturas mediastinais ou
por trombose.

Fisiopatologia

Pedro Kallas Curiati 177


Conforme progride a obstrução ao fluxo sanguíneo na veia cava superior,
colaterais venosas são formadas, estabelecendo novos trajetos para o retorno venoso ao
átrio direito, que se dilatam ao longo de semanas. A velocidade de instalação dos sinais
e dos sintomas depende da velocidade com que ocorre a obstrução. O edema intersticial
em cabeça e pescoço é visualmente chamativo, mas geralmente cursa com pouca
repercussão clínica. Edema cerebral pode ocorrer, com risco de isquemia, herniação e
morte. O débito cardíaco pode apresentar redução transitória relacionada, com
normalização do retorno venoso relacionada a aumento da pressão venosa e à formação
de colaterais venosas.

Etiologia
Na era prévia ao uso de antibióticos, aneurismas de aorta torácica relacionados à
sífilis terciária, mediastinite fibrosante e outras complicações de infecções não-tratadas
eram causa frequente de síndrome da veia cava superior. Subsequentemente, neoplasias
malignas se tornaram a principal causa. Mais recentemente, a incidência de síndrome da
veia cava superior por trombose tem aumentado, em grande parte pelo aumento do uso
de dispositivos intravasculares, como cateteres e marca-passos.
Das doenças oncológicas que mais comumente levam à obstrução do fluxo da
veia cava superior, destacam-se os cânceres de pulmão, seguidos pelos linfomas
envolvendo o mediastino, em particular os linfomas não-Hodgkin agressivos. Outras
neoplasias mediastinais primárias que podem provocar a síndrome são os timomas, os
tumores de células germinativas, os mesoteliomas e os tumores sólidos com metástases
linfonodais mediastinais, dentre os quais destacam-se os cânceres de mama.
Até metade dos casos de síndrome da veia cava superior não-secundários a
neoplasia maligna são atribuíveis a mediastinite fibrosante, cuja principal causa é
resposta imunológica excessiva contra infecção prévia por Histoplasma capsulatum.
Outras infecções que podem estar associadas a mediastinite fibrosante incluem
tuberculose, actinomicose, aspergilose, blastomicose e filaríase. Nocardiose pode causar
síndrome da veia cava superior por disseminação por contiguidade a partir de foco
pulmonar, pleural ou cutâneo de infecção.
Fibrose vascular local pós-radiação deve fazer parte do diagnóstico diferencial.

Quadro clínico
Os sinais e sintomas dependem da velocidade de instalação da obstrução. Na
maior parte dos casos, há progressão das manifestações ao longo de algumas semanas e
então ocorre melhora progressiva relacionada à formação de colaterais venosas.
Os principais sinais e sintomas são dispneia, edema facial, sensação de peso no
segmento cefálico, tosse, edema de membros superiores, dor torácica, disfagia,
circulação venosa colateral no pescoço e na parede do tórax, pletora e cianose, que
tendem a piorar com o decúbito ou com a inclinação anterior do tronco. Pacientes com
edema cerebral podem apresentar cefaleia, confusão mental ou coma.
Outras manifestações, ainda que relacionadas predominantemente à doença de
base, também podem ser encontradas, como síndrome de Horner, paralisia das cordas
vocais e paralisia do nervo frênico.

Exames complementares
Exames complementares são sempre necessários para confirmação diagnóstica e
para orientar a escolha do melhor método para estabelecer a etiologia do processo.
Radiografia de tórax pode revelar massas torácicas, alargamento mediastinal e
derrame pleural. Tomografia computadorizada de tórax pode auxiliar na avaliação de

Pedro Kallas Curiati 178


massas pulmonares, linfonodomegalias mediastinais e, embora com limitações,
complacência da veia cava superior. Ressonância nuclear magnética pode ser utilizada
para a determinação mais precisa das lesões intratorácicas e/ou para a avaliação do
fluxo da veia cava superior. Venografia fornece informações sobre a extensão da
obstrução e a eventual presença de trombo, podendo ser útil para o planejamento do
tratamento.
O diagnóstico etiológico pode ser obtido por vários métodos, a depender da
localização da massa tumoral e da presença de outros sítios envolvidos. Devem ser
preferidos inicialmente procedimentos com baixo índice de complicações, como biópsia
de linfonodos cervicais ou supraclaviculares, toracocentese diagnóstica e avaliação
citológica de escarro, a depender do caso. A avaliação da medula óssea por biópsia ou
aspirado é útil quando há suspeita de infiltração medular por linfoma não-Hodgkin ou
câncer de pulmão de células não-pequenas.
Na ausência de outros sítios envolvidos e nos casos em que os métodos menos
invasivos forem insuficientes para o diagnóstico, outros procedimentos podem ser
necessários, como biópsia percutânea transtorácica guiada por tomografia
computadorizada ou ressonância nuclear magnética, endoscopia digestiva alta ou
broncoscopia com biópsia guiada por ultrassonografia, mediastinoscopia com biópsia e,
em último caso, toracotomia.

Classificação
Grau Categoria Caracterização
0 Ausência de Obstrução ao fluxo sanguíneo na veia cava superior diagnosticada através de
sintomas exame radiológico, mas sem sintomas
1 Leve Edema em cabeça ou pescoço, cianose, pletora
2 Moderada Edema em cabeça ou pescoço com prejuízo funcional, como disfagia leve,
tosse, prejuízo leve a moderado da movimentação da cabeça, da mandíbula ou
dos olhos e distúrbios visuais
3 Grave Edema cerebral leve a moderado, com cefaleia e/ou tontura, edema laríngeo
leve a moderado e/ou redução da reserva cardiovascular, com síncope após
inclinar o corpo para frente
4 Ameaçadora à Edema cerebral significativo, com confusão mental e/ou obnubilação, edema
vida laríngeo significativo, com estridor, e/ou comprometimento hemodinâmico
significativo, com síncope, hipotensão e/ou disfunção renal
5 Fatal Morte
Cada sinal ou sintoma deve ser secundário à síndrome da veia cava superior para
fazer parte da classificação.

Tratamento
Em pacientes estáveis, é fundamental para uma decisão terapêutica adequada o
correto diagnóstico etiológico da doença de base. Medidas gerais de suporte, que podem
melhorar o conforto do paciente durante a investigação diagnóstica, incluem repouso no
leito com a cabeceira elevada, administração de oxigênio e dieta pobre em sódio. O uso
de diuréticos é controverso. Glicocorticoides podem ser utilizados em caso de
neoplasias responsivas, como linfoma e timoma.
Nos casos induzidos pela implantação de cateteres venosos centrais, além da
retirada do cateter, deve ser introduzida anticoagulação sistêmica.
A escolha da modalidade terapêutica depende do tipo de tumor, da gravidade dos
sintomas, das modalidades terapêuticas previamente utilizadas e do intervalo de tempo
tolerado para o início da resposta. Em caso de neoplasia maligna sensível a
quimioterapia sistêmica, recomenda-se o uso do esquema quimioterápico recomendado
para o tipo histológico específico, com colocação de stent em caso de sintomatologia

Pedro Kallas Curiati 179


severa. Em caso de câncer de pulmão de células não-pequenas, sugere-se a colocação de
stent para alívio de sintomas e, a seguir, radioterapia, que pode fazer parte de
abordagem terapêutica combinada. Em caso de doença progressiva ou recorrente,
sugere-se a colocação de stent para alívio de sintomas.
Em caso de estridor relacionado a obstrução de via aérea central ou edema
laríngeo severo ou de coma relacionado a edema cerebral, configura-se emergência
clínica, sendo necessário tratamento imediato com colocação de stent e radioterapia para
prevenir falência respiratória e morte.
Após a implantação de stent, pode-se utilizar anticoagulação em longo prazo
com Warfarina 1mg/dia, mantendo INR inferior a 1.6, ou anti-agregação plaquetária
dupla com Clopidogrel e Ácido Acetilsalicílico durante três meses. Em caso de
radioterapia de emergência por obstrução de via aérea central, sugere-se curso breve de
corticosteroide em alta dose.

Algoritmo

Síndrome da lise tumoral

Definições
Síndrome da lise tumoral é uma emergência oncológica causada por lise tumoral

Pedro Kallas Curiati 180


massiva com liberação de grandes quantidades de potássio, fosfato e ácidos nucleicos
para a circulação sistêmica.

Etiologia e fisiopatologia
O catabolismo dos ácidos nucleicos leva a hiperuricemia e a excreção aumentada
de ácido úrico pode resultar em precipitação nos túbulos renais e disfunção renal aguda.
Hiperfosfatemia com hipocalcemia secundária e depósito de fosfato de cálcio nos
túbulos renais também pode causar disfunção renal aguda. Também pode ocorrer
precipitação no coração, com arritmias cardíacas.
A síndrome da lise tumoral ocorre com maior frequência após o início de terapia
citotóxica em pacientes com linfomas de alto grau, particularmente o linfoma de
Burkitt, e leucemia linfoblástica aguda, mas pode ocorrer espontaneamente, em
associação com outras abordagens terapêuticas, como anticorpos monoclonais,
radioterapia e glicocorticoides, e em associação com outros tipos de neoplasia que
tenham alta taxa de proliferação celular, grande massa tumoral e/ou alta sensibilidade à
quimioterapia. Indicam grande massa tumoral bulky com diâmetro superior a 10cm,
contagem de leucócitos superior a 50.000/mm3, desidrogenase lática sérica superior a
duas vezes o limite superior da normalidade, infiltração visceral e envolvimento de
medula óssea. Outros fatores predisponentes incluem hiperuricemia e/ou
hiperfosfatemia prévias ao tratamento quimioterápico, doença renal prévia, exposição
prévia a agentes nefrotóxicos, oligúria e/ou urina ácida, desidratação, depleção volêmica
e hidratação inadequada durante o tratamento.

Quadro clínico
As manifestações clínicas da síndrome da lise tumoral refletem as anormalidades
metabólicas associadas e incluem náusea, vômitos, diarreia, anorexia, letargia,
hematúria, insuficiência cardíaca, arritmias cardíacas, convulsões, cãibras, tetania,
síncope e morte súbita. Dor em flanco pode ocorrer em caso de litíase urinária.

Exames complementares
A avaliação de pacientes com risco de síndrome de lise tumoral prevê controle
de peso, débito urinário e níveis séricos de sódio, potássio, fósforo, cálcio, ácido úrico,
ureia, creatinina e desidrogenase lática. Além disso, os pacientes deverão ser
submetidos na avaliação inicial a radiografia de tórax, eletrocardiograma e urina tipo 1.

Diagnóstico
O diagnóstico de síndrome da lise tumoral laboratorial é baseado na presença de
duas ou mais alterações metabólicas relacionadas à síndrome de três dias antes até sete
dias após o início de quimioterapia. São considerados ácido úrico com aumento superior
a 25% em relação ao basal ou valores acima de 8mg/dL, potássio com aumento superior
a 25% em relação ao basal ou valores acima de 6mEq/L, fósforo com aumento superior
a 25% em relação ao basal ou valores acima de 4.5mEq/L e cálcio com decrescimento
superior a 25% em relação ao basal ou valores abaixo de 7mg/dL.
O diagnóstico de síndrome da lise tumoral clínica é definido pela associação do
quadro laboratorial com pelo menos um dentre nível sérico de creatinina superior ou
igual a uma vez e meia o limite superior da normalidade, arritmia cardíaca, morte súbita
ou crise convulsiva, desde que não atribuíveis ao agente terapêutico utilizado.

Classificação da gravidade
Complicação Grau

Pedro Kallas Curiati 181


0 1 2 3 4 5
Creatinina Inferior a uma Uma vez e Superior a uma vez e Superior a três Superior a seis Morte
vez e meia o meia o limite meia e inferior a três vezes e inferior a vezes o limite
limite superior da vezes o limite superior da seis vezes o limite superior da
superior da normalidade normalidade superior da normalidade
normalidade normalidade
Arritmia Ausente Intervenção Intervenção clínica não- Presença de Ameaça à vida, Morte
cardíaca não indicada urgente indicada sintomas e controle com insuficiência
clínico insuficiente cardíaca,
ou controle com hipotensão,
dispositivo, como síncope e/ou
desfibrilador choque
Crise Ausente - Crise convulsiva Crise convulsiva Crise convulsiva Morte
convulsiva generalizada única, crises com alteração da de qualquer tipo
convulsivas bem consciência, crise prolongada,
controladas com convulsiva com repetitiva ou
anticonvulsivantes ou controle precário, difícil de
crises convulsivas focais crises convulsivas controlar, como
motoras sem generalizadas estado de mal
interferência nas reentrantes apesar epiléptico e
atividades básicas de vida de intervenção epilepsia
diária clínica intratável

Diagnóstico diferencial
O diagnóstico diferencial é com outras causas de insuficiência renal, como
desidratação, uso de medicações nefrotóxicas, quadros infecciosos graves, compressão
renal ou infiltração direta do parênquima renal.

Estratificação de risco
A identificação de pacientes de alto risco e a instituição rápida de medidas
preventivas constitui a parte mais importante do tratamento.
Estão incluídos no grupo de risco alto para síndrome da lise tumoral, superior a
5%, pacientes com leucemia de Burkitt, linfoma de Burkitt estágios III ou IV, linfoma
de Burkitt estágios I ou II com desidrogenase lática superior ou igual a duas vezes o
limite superior da normalidade, leucemia linfoblástica aguda com contagem de
leucócitos superior ou igual a 100.000/mm3 e/ou desidrogenase lática superior ou igual
a duas vezes o limite superior da normalidade, leucemia mieloide aguda com contagem
de leucócitos superior ou igual a 100.000/mm3, linfoma linfoblástico estágios III ou IV,
linfoma linfoblástico estágios I ou II com desidrogenase lática superior ou igual a duas
vezes o limite superior da normalidade, leucemia/linfoma de células T com
desidrogenase lática acima do limite superior da normalidade e massa tumoral bulky,
linfoma difuso de grandes células B com desidrogenase lática acima do limite superior
da normalidade e massa tumoral bulky, linfoma de células T periférico com
desidrogenase lática acima do limite superior da normalidade e massa tumoral bulky,
linfoma transformado com desidrogenase lática acima do limite superior da normalidade
e massa tumoral bulky, linfoma de células do manto com desidrogenase lática acima do
limite superior da normalidade e massa tumoral bulky e doença de risco intermediário
com disfunção renal ou ácido úrico, potássio ou fósforo acima do limite superior da
normalidade. É recomendada hidratação intravenosa agressiva e o uso profilático de
Rasburicase em detrimento do Alopurinol antes do início do tratamento quimioterápico,
exceto em caso de deficiência de G6PD.
Estão incluídos no grupo de risco intermediário para síndrome da lise tumoral,
de 1-5%, pacientes com leucemia/linfoma de células T com desidrogenase lática acima
do limite superior da normalidade e sem massa tumoral bulky, linfoma difuso de
grandes células B com desidrogenase lática acima do limite superior da normalidade e
sem massa tumoral bulky, linfoma de células T periférico com desidrogenase lática
acima do limite superior da normalidade e sem massa tumoral bulky, linfoma

Pedro Kallas Curiati 182


transformado com desidrogenase lática acima do limite superior da normalidade e sem
massa tumoral bulky, linfoma de células do manto com desidrogenase lática acima do
limite superior da normalidade e sem massa tumoral bulky, linfoma de Burkitt estágios I
ou II com desidrogenase sérica inferior a duas vezes o limite superior da normalidade,
leucemia linfoblástica aguda com contagem de leucócitos inferior a 100.000/mm3,
leucemia mieloide aguda com contagem de leucócitos de 25.000-100.000/mm3,
leucemia mieloide aguda com desidrogenase lática superior ou igual a duas vezes o
limite superior da normalidade e contagem de leucócitos inferior a 25.000/mm3, linfoma
linfoblástico estágios I ou II com desidrogenase sérica inferior a duas vezes o limite
superior da normalidade, leucemia linfocítica crônica ou linfoma linfocítico pequeno
tratados com Fludarabina, Rituximab ou Lenalidomida e/ou com contagem de
leucócitos superior a 50.000/mm3 e raros tumores sólidos bulky com alta sensibilidade à
quimioterapia, como neuroblastoma, tumores de células germinativas e câncer de
pulmão de células pequenas. Geralmente utiliza-se Alopurinol ao invés de Rasburicase
para a profilaxia de síndrome da lise tumoral na ausência de hiperuricemia prévia ao
tratamento quimioterápico. Alternativamente, pode ser administrada dose única de
Rasburicase.
Estão incluídos no grupo de risco baixo para síndrome da lise tumoral, inferior a
1%, pacientes com leucemia mieloide aguda com desidrogenase lática inferior a duas
vezes o limite superior da normalidade e contagem de leucócitos inferior a 25.000/mm3,
leucemia linfocítica crônica ou linfoma linfocítico pequeno não tratados com
Fludarabina ou Rituximab e com contagem de leucócitos inferior a 50.000/mm3,
mieloma múltiplo, leucemia mieloide crônica, outros linfomas não-Hodgkin sem
critérios para risco intermediário ou alto com desidrogenase lática dentro dos limites da
normalidade e outros tumores sólidos. Geralmente recomenda-se hidratação, mas não a
administração de agentes para prevenção de hiperuricemia.

Prevenção
Hidratação intravenosa agressiva é indicada para todos os pacientes de risco
intermediário a alto para síndrome da lise tumoral com o objetivo de aumentar o débito
urinário e reduzir o risco de precipitação de ácido úrico nos túbulos renais. Pode levar a
sobrecarga volêmica potencialmente grave em pacientes com antecedente de disfunção
renal e/ou cardíaca. Preconiza-se 2-3L/m2/dia, com monitorização do débito urinário,
que deve ser mantido em 80-100mL/m2/hora. Diuréticos podem ser utilizados para
manter o débito urinário, se necessário, mas geralmente são dispensados em pacientes
com funções renal e cardíaca normais. Potássio e cálcio não devem ser incluídos na
solução utilizada, ao menos inicialmente.
O papel da alcalinização da urina com Acetazolamida ou Bicarbonato de Sódio
não está claro e é controverso, com indicação de Bicarbonato de Sódio atualmente
apenas em caso de acidose metabólica.
Alopurinol, apresentado na forma de comprimidos de 100mg e 300mg, preferido
em pacientes de risco intermediário sem hiperuricemia, é análogo da hipoxantina que
inibe de forma competitiva a xantina-oxidase e bloqueia o metabolismo da hipoxantina
e da xantina, metabólitos dos ácidos nucleicos, em ácido úrico. Reduz de maneira
efetiva a formação de ácido úrico e reduz a incidência de uropatia obstrutiva em
pacientes com neoplasias malignas e risco de síndrome da lise tumoral. No entanto, não
atua em hiperuricemia pré-existente e causa aumento dos níveis de hipoxantina e
xantina, que são menos solúveis que o ácido úrico, com risco de precipitação nos
túbulos renais e disfunção renal aguda apesar de hidratação e alcalinização da urina.
Apresenta interação com diversos fármacos, incluindo Ciclofosfamida, Metotrexato,

Pedro Kallas Curiati 183


Ampicilina e diuréticos tiazídicos. A dose usual é de 100mg/m2 de 8/8 horas por via
oral, com máximo de 800mg/dia e redução em 50% em caso de insuficiência renal.
Alternativamente, em pacientes que não podem receber medicação oral, pode ser
administrado por via intravenosa com dose de 200-400mg/m2 por dia em dose única ou
fracionada em três vezes, com máximo de 600mg/m2 ao dia. O tratamento geralmente é
iniciado 24-48 horas antes da indução da quimioterapia e deve ser continuado por três a
sete dias ou até normalização dos níveis séricos de ácido úrico e de outros marcadores
laboratoriais de lise tumoral, como desidrogenase lática.
Uma abordagem alternativa ao Alopurinol é a Rasburicase, preferida em
pacientes de alto risco ou com ácido úrico sérico superior ou igual a 8mg/dL,
apresentada na forma de frasco-ampola com 1.5mg, que catalisa a oxidação do ácido
úrico para alantoína, muito mais hidrossolúvel. É bem tolerada, rapidamente reduz os
níveis séricos de ácido úrico e é efetiva na prevenção e no tratamento da síndrome da
lise tumoral. Preconiza-se dose de 0.2mg/kg por via intravenosa uma vez ao dia durante
cinco a sete dias. Alternativamente, pode-se utilizar dose única de 0.15mg/kg em
pacientes de risco intermediário e de 0.2mg/kg em pacientes de risco alto, com
continuidade do tratamento com Alopurinol, monitorização dos níveis séricos de ácido
úrico e novas doses de Rasburicase em caso de recorrência da hiperuricemia. Efeitos
adversos incluem anafilaxia, hemólise, hemoglobinúria, metahemoglobinemia e
interferência com a mensuração do ácido úrico sérico. Há contraindicação em gestantes,
lactantes e pacientes com deficiência de G6PD.
Pacientes de risco alto devem ter leito de unidade de terapia intensiva de
retaguarda antes do início da quimioterapia e devem ser submetidos a avaliação quanto
a parâmetros clínicos e laboratoriais de síndrome da lise tumoral quatro a seis horas
após o início da quimioterapia. Todos os pacientes em uso de Rasburicase devem ter os
níveis séricos de ácido úrico dosados quatro a seis horas após o início da quimioterapia
e a cada seis a doze horas a partir de então e até a normalização dos níveis séricos de
desidrogenase lática e ácido úrico. Pacientes de risco intermediário devem ser
monitorizados por pelo menos 24 horas após o término da quimioterapia. Se
Rasburicase não for utilizada inicialmente, os níveis séricos dos eletrólitos, ácido úrico,
creatinina e desidrogenase lática devem ser avaliados oito horas após a quimioterapia.
Após 72 horas da indução da quimioterapia, o risco de síndrome da lise tumoral é muito
baixo.

Tratamento
Unidade de terapia intensiva.
Monitorização cardíaca contínua.
Controle de diurese e balanço hídrico.
Dosagem de eletrólitos, creatinina e ácido úrico a cada quatro a seis horas.
Correção de distúrbios eletrolíticos específicos, como hipercalemia,
hiperfosfatemia e hipocalcemia sintomática, que deve ser tratada, se possível, após
correção da hiperfosfatemia para evitar precipitação.
Rasburicase 0.2mg/kg por via intravenosa uma vez ao dia.
Hidratação intravenosa associada ou não a diurético de alça.
Terapia de substituição renal, quando indicada, como em caso de oligúria severa
ou anúria, hipercalemia persistente e hipocalcemia sintomática induzida por
hiperfosfatemia.

Algoritmo

Pedro Kallas Curiati 184


Síndrome da hiperviscosidade
Constitui um grupo de condições patológicas em que o fluxo de sangue está
prejudicado. Na maioria dos casos, está relacionada a condição neoplásica ou
paraneoplásica. As manifestações geralmente são tromboembólicas, mas podem ocorrer
eventos hemorrágicos. O comprometimento do leito arterial é maior do que o
comprometimento do leito venoso.
Aumento do hematócrito e/ou agregação anormal das hemácias são causados por
desidratação, policitemia vera, situações relacionadas a hipoxemia, como doença
pulmonar obstrutiva crônica, síndrome da hipoventilação e altitudes elevadas, situações
relacionadas a aumento da produção de eritropoietina, como neoplasia renal, rins
policísticos, carcinoma hepatocelular, tumor adrenal e uso de andrógenos, condições de
deformação e fluxo alterados das hemácias, como anemia falciforme e formação de
rouleaux no mieloma múltiplo, e uso de eritropoietina exógena. O tratamento prevê a
redução do hematócrito com hidratação, oxigenação adequada, tratamento da causa de
base e sangria, se necessário.
Aumento do número de leucócitos e/ou alteração na sua forma são causados por
leucemias agudas ou crônicas e linfomas não-Hodgkin com alto grau de diferenciação,

Pedro Kallas Curiati 185


principalmente na presença de processos inflamatórios. Hiperleucocitose é definida por
contagem de leucócitos superior a 50.000-100.000/mm3, enquanto que leucostase,
também denominada hiperleucocitose sintomática, é emergência médica comumente
identificada em pacientes com leucemia mieloide aguda ou com leucemia mieloide
crônica em crise blástica, sendo caracterizada por sintomas de hipoperfusão tecidual.
Devido às características anatômicas do leito vascular do pulmão e do cérebro, estes são
os órgãos mais atingidos, com hipoxemia, dispneia, infiltrado pulmonar intersticial ou
alveolar bilateral, alterações visuais, cefaleia, vertigem, zumbido, instabilidade da
marcha, confusão mental, sonolência, crise convulsiva e, ocasionalmente, coma.
Manifestações menos comuns incluem sinais eletrocardiográficos de isquemia
miocárdica ou sobrecarga ventricular direita, disfunção renal aguda, priapismo,
isquemia aguda de membro e isquemia intestinal. Alterações laboratoriais incluem
pressão parcial de oxigênio subestimada em função da elevada atividade metabólica das
células neoplásicas, com melhor avaliação através de oximetria de pulso, contagem de
plaquetas superestimada por fragmentos de blastos na avaliação automatizada, com
melhor avaliação através de contagem manual, níveis séricos de potássio
superestimados, com melhor avaliação através de amostras plasmáticas heparinizadas,
coagulação intravascular disseminada e síndrome da lise tumoral espontânea. As opções
terapêuticas incluem leucoaférese e quimioterapia, que abrange Hidroxiuréia e
quimioterapia indutora de remissão. Ambas as abordagens permitem redução rápida da
contagem de leucócitos circulantes, mas a quimioterapia é a única com evidência de
melhora da sobrevida. Hidroxiuréia é apresentada na forma de comprimidos de 500mg,
com dose de 50-100mg/kg/dia, geralmente 2-4g de 12/12 horas, que deve ser mantida
até que a contagem de leucócitos seja inferior a 50.000/mm3. Leucoaférese é
contraindicada em pacientes com leucemia promielocítica por poder piorar a
coagulopatia associada a esse tipo de leucemia. Sugere-se iniciar tratamento com
quimioterapia indutora de remissão em associação com profilaxia para síndrome da lise
tumoral nos indivíduos com hiperleucocitose sintomática ou assintomática. Em
indivíduos com hiperleucocitose assintomática nos quais a quimioterapia indutora de
remissão deve ser postergada, sugere-se o uso de Hidroxiuréia em associação com
profilaxia para síndrome da lise tumoral. Em indivíduos com hiperleucocitose
sintomática nos quais a quimioterapia indutora de remissão deve ser postergada, sugere-
se o uso de Hidroxiuréia, profilaxia para síndrome da lise tumoral e leucoaférese para
reduzir ou estabilizar a contagem de leucócitos circulantes. Transfusão de concentrado
de hemácias deve ser postergada, se possível, até a contagem de blastos ser reduzida,
ou, quando urgente, deve ser infundida lentamente ou durante sessão de leucoaférese,
sendo encorajado o uso de medidas para promover a hidratação e desencorajado o uso
de diuréticos. A contagem de plaquetas deve ser mantida superior a 20.000-30.000/mm3
até a redução da contagem de leucócitos circulantes e a estabilização clínica pelo risco
de hemorragia intracraniana. Coagulação intravascular disseminada, quando presente,
também deve ser tratada.
Trombocitose está associada a eventos trombóticos e hemorrágicos. A trombose
é mais frequente nas trombocitoses secundárias a doenças mieloproliferativas do que
nas trombocitoses reacionais a hemorragias, traumas e infecções. O local mais comum
de comprometimento é o leito arterial do cérebro, com acidente isquêmico transitório ou
acidente vascular encefálico. Outros sítios incluem retina, com amaurose fugaz ou
cegueira, coração, com infarto agudo do miocárdio, mesentério, com isquemia
intestinal, e artérias periféricas, com isquemia de membros. O tratamento prevê o uso de
agentes antiplaquetários, como Ácido Acetilsalicílico, Ticlopidina e Clopidogrel.
No caso da presença de paraproteínas, frequente principalmente no mieloma

Pedro Kallas Curiati 186


múltiplo e na macroglobulinemia de Waldenström, além do aumento da viscosidade,
ocorrem alterações da função hemostática, com aumento dos tempos de coagulação e de
sangramento por alteração da função plaquetária. As manifestações mais frequentes são
neurológicas e visuais, podendo ocorrer também náusea, vômitos e eventos
hemorrágicos. O tratamento prevê plasmaférese.

Compressão medular neoplásica

Definição
A compressão medular é complicação comum de neoplasias malignas e causa
dor e déficits neurológicos potencialmente irreversíveis. Qualquer indentação
identificada por métodos radiológicos no saco dural é considerada evidência de
compressão medular.

Etiologia
Tumor metastático de qualquer sítio primário pode produzir compressão
medular, principalmente aqueles com disseminação para a coluna vertebral. As causas
mais frequentes de compressão medular neoplásica são câncer de pulmão, câncer de
mama e mieloma múltiplo. Os tumores com maior incidência de compressão medular
são mieloma múltiplo, linfomas de Hodgkin e não-Hodgkin e câncer de próstata.

Quadro clínico
Uma vez que o principal determinante da eficácia do tratamento é o estado
neurológico do paciente no momento da intervenção, o objetivo deve ser estabelecer o
diagnóstico antes do desenvolvimento de dano à medula espinal.
Dor geralmente é o primeiro sintoma e frequentemente é intensa, localizada no
dorso e progressiva, eventualmente com piora relacionada a decúbito dorsal. Dor
presente apenas à movimentação sugere instabilidade da coluna vertebral, com possível
indicação cirúrgica. Com o passar do tempo, a dor pode adquirir padrão radicular, com
irradiação à movimentação da coluna ou à manobra de Valsalva. Piora abrupta da dor
pode indicar fratura patológica. Dor referida é pouco comum, mas pode dificultar o
diagnóstico.
Fraqueza está presente em parcela significativa dos pacientes ao diagnóstico e
tende a ser relativamente simétrica. Quando a lesão ocorre acima do cone medular, a
fraqueza ocorre por disfunção corticoespinal, com padrão piramidal típico, com
hiperreflexia abaixo do nível da compressão e sinal de Babinski. Quando a lesão ocorre
na cauda equina, a fraqueza é associada a reflexos tendíneos diminuídos nas pernas.
Lesão epidural lateralmente localizada pode afetar preferencialmente uma raiz nervosa e
produzir uma radiculopatia isolada ou sobreposta. A progressão dos déficits motores
cursa com fraqueza progressiva seguida por perda da função da marcha e paralisia.
Alterações sensitivas são menos comuns que alterações motoras, mas estão
presentes na maior parte dos pacientes ao diagnóstico. Quando um nível espinal
sensitivo está presente, a compressão medular tipicamente se situa um a cinco níveis
acima. O fenômeno de Lhermitte, caracterizado por sensação de eletricidade descendo a
medula espinal com a flexão do pescoço, pode ser encontrado em esclerose múltipla,
mielopatia espondilótica cervical, neurotoxicidade induzida por Cisplatina, mielopatia
induzida por radiação, trauma cervical e, raramente, neoplasia epidural ou subdural. A
perda sensitiva pode ocorrer com distribuição radicular.
Disfunção vesical e intestinal relacionada a compressão medular geralmente é
manifestação tardia. Neuropatia autonômica se apresenta comumente com retenção

Pedro Kallas Curiati 187


urinária.
Ataxia da marcha em um contexto de dor lombar deve levantar a suspeita de
compressão medular.

Avaliação complementar
Ressonância nuclear magnética de todo o saco dural é a modalidade preferida
para a avaliação inicial de paciente com suspeita de compressão medular.
Mielografia, às vezes combinada com tomografia computadorizada após a
introdução de agente contrastado, era frequentemente utilizada em pacientes com
suspeita de compressão medular antes da disseminação do uso da ressonância nuclear
magnética. Mielografia por tomografia computadorizada é amplamente utilizada para
planejar o tratamento radiocirúrgico.
Radiografia simples de coluna vertebral é o método mais simples e pode ser útil
em pacientes com dor no dorso em caso de identificação de colapso de corpo vertebral
ou erosão de pedículo. No entanto, há risco de resultados falso-negativos, não devendo
ser utilizada como método de rastreamento de compressão medular.
Cintilografia óssea é mais sensível que a radiografia simples para a detecção de
metástases ósseas e permite avaliar com um único estudo todo o esqueleto. No entanto,
o resultado pode ser negativo em caso de neoplasias sem aumento do fluxo sanguíneo
ou formação óssea, como é o caso do mieloma múltiplo. Além disso, não identifica
compressão medular.

Diagnóstico diferencial
Dor musculoesquelética, abscesso epidural, metástases ósseas sem compressão
medular, metástases intramedulares, metástases leptomeníngeas, acometimento de
plexos nervosos pela neoplasia maligna, mielopatia por radiação, hemangiomas
cavernosos epidurais, hematomas epidurais, meningiomas, neurofibromas,
hematopoiese extra-medular, gota, artrite reumatoide e sarcoidose.

Tratamento
Os objetivos do tratamento são controle da dor, prevenção de complicações e
preservação ou melhora da função neurológica. O principal fator prognóstico isolado
para recuperação da capacidade de deambular após o tratamento é o estado neurológico
no momento da intervenção.
O manejo inclui administração imediata de glicocorticoides seguida por cirurgia
ou radioterapia. A maior parte dos pacientes necessita de analgesia adequada, muitas
vezes com o uso de opioides. Não há necessidade de que o paciente seja mantido
confinado no leito. Em caso de imobilidade e ausência de sangramento ativo ou outras
contraindicações, deve ser iniciada quimioprofilaxia para trombose venosa profunda. O
uso de compressão pneumática intermitente ou meias elásticas constitui alternativa para
os pacientes nos quais a quimioprofilaxia for contraindicada. Obstipação deve ser
manejada.
Em pacientes com déficit neurológico severo, sugere-se o uso de glicocorticoide
em dose alta, com Dexametasona 96mg por via intravenosa em bolus, 24mg por via
intravenosa de 6/6 horas durante três dias e, após, desmame ao longo de dez dias. Em
pacientes com déficit neurológico mínimo, sugere-se glicocorticoide em dose moderada,
com Dexametasona 10mg por via intravenosa em bolus, 4mg por via intravenosa de 6/6
horas e desmame gradual quando o tratamento definitivo estiver encaminhado. Não é
necessário o uso de glicocorticoide em pacientes com lesões epidurais pequenas e
exame neurológico normal.

Pedro Kallas Curiati 188


A escolha da modalidade de tratamento definitivo depende de múltiplos fatores,
incluindo a presença de instabilidade espinal, grau de compressão da medula espinal e
sensibilidade relativa do tumor à radioterapia.
Os principais fatores preditivos de instabilidade espinal são subluxação ou
translação, progressão de deformidade, destruição facetaria bilateral e padrão das
alterações neurológicas com a movimentação. Em caso de instabilidade espinal, é
necessária estabilização com fixação cirúrgica ou reparo vertebral percutâneo.
Abordagem cirúrgica com laminectomia não apresenta vantagem em relação ao
uso isolado de radioterapia e pode piorar a instabilidade espinal. Já ressecção radical
com estabilização seguida de radioterapia aumenta a chance de o paciente recuperar
e/ou manter a capacidade de deambular em relação ao uso isolado de radioterapia.
Pacientes com instabilidade espinal não-candidatos a cirurgia radical e sintomáticos
podem se beneficiar de técnicas minimamente invasivas, como a vertebroplastia e a
cifoplastia seguidas de radioterapia, desde que não haja doença epidural ou fragmentos
ósseos na medula espinal. Em caso de disseminação sistêmica extensa, com estado
funcional ruim e expectativa de sobrevida de poucos meses, prefere-se radioterapia
isolada para paliação dos sintomas.
Radioterapia externa é terapia definitiva apropriada para pacientes considerados
não-candidatos a abordagem cirúrgica e com tumores relativamente sensíveis à
irradiação. Também é indicada após cirurgia descompressiva. Para pacientes com
expectativa de vida limitada, um curso breve de radioterapia externa permite paliação
satisfatória, sem os inconvenientes de um curso mais prolongado de tratamento. Para
pacientes com história natural mais prolongada, doença oligometastática sem
envolvimento visceral, progressão lenta dos déficits motores e diagnóstico histológico
de mieloma múltiplo, linfoma ou câncer de mama, pode haver benefício com curso mais
prolongado de radioterapia externa. Para pacientes com estabilidade espinal e tumores
considerados relativamente resistentes à irradiação, como câncer de células renais e
melanoma, sem evidência de compressão medular de alto grau, sugere-se radioterapia
estereotáxica ao invés de radioterapia externa, pois permite aplicação de doses maiores
com menos efeitos colaterais.
Nos pacientes com tumor sensível a quimioterapia, como linfomas de Hodgkin e
não-Hodgkin, neuroblastoma, tumor de células germinativas e câncer de mama, a
terapia sistêmica consiste em opção atrativa por permitir tratar simultaneamente doença
situada em outros órgãos. Pacientes com câncer de próstata e câncer de mama também
se beneficiam de tratamento hormonal.
As opções para casos de recorrência de compressão medular neoplásica incluem
radioterapia estereotáxica, radioterapia convencional, cirurgia e quimioterapia.

Algoritmo

Pedro Kallas Curiati 189


Obstrução intestinal maligna

Definição
Obstrução intestinal maligna é definida por evidência clínica, incluindo
anamnese, exame físico e avaliação radiológica, de obstrução intestinal após o
ligamento de Treitz em paciente com câncer primário intra-abdominal incurável ou
câncer primário extra-abdominal associado a disseminação intraperitoneal.

Epidemiologia e etiologia
10-28% dos pacientes com câncer colo-retal desenvolvem obstrução intestinal
maligna durante o curso da doença, enquanto que 20-50% dos pacientes com câncer de
ovário apresentam sintomas de obstrução intestinal. O envolvimento intestinal por
câncer metastático comumente ocorre na forma de carcinomatose peritoneal difusa, mas
metástase gastrointestinal isolada pode ocorrer em até 10% dos casos. Câncer de mama
e melanoma são as neoplasias extra-abdominais que causam com maior frequência
obstrução intestinal maligna.

Quadro clínico
Pacientes com obstrução intestinal maligna geralmente descrevem um padrão de
piora gradual dos sintomas, com episódios de cólica abdominal, náusea, vômitos e
distensão abdominal, que se tornam mais frequentes e prolongados até a ocorrência de
obstrução completa.
Obstrução gástrica ou de intestino delgado proximal cursa com vômito aquoso
ou bilioso, com pouco ou nenhum odor e em grande quantidade, além de dor peri-

Pedro Kallas Curiati 190


umbilical de início precoce com cólica intermitente de curta duração e anorexia. Pode
não ocorrer distensão abdominal.
Obstrução de intestino delgado distal ou intestino grosso cursa com vômito
particulado, fétido, com pequeno volume, podendo estar ausente, além de dor visceral
profunda com intervalo prolongado entre os episódios de cólica e distensão abdominal.
Pode não ocorrer anorexia.

Avaliação complementar
Apesar de a localização da obstrução algumas vezes poder ser determinada pelo
quadro clínico, recomenda-se a realização de exame radiológico, preferencialmente
tomografia computadorizada de abdômen. Ressonância nuclear magnética também pode
ser usada.
Radiografia simples de abdômen em posição supina e ortostática é realizada
quando houver suspeita de obstrução de intestino delgado para documentar dilatação de
alças intestinais, nível líquido ou ambos. Radiografia contrastada de abdômen ajuda a
avaliar dismotilidade, local da obstrução e extensão da obstrução. Estudos contrastados
retrógrados, transretais, servem para excluir obstrução isolada ou concomitante do
intestino grosso.
Tomografia computadorizada de abdômen é útil para avaliar a extensão global
da doença, realizar estadiamento e decidir quanto à melhor abordagem terapêutica
dentre cirurgia, endoscopia e uso paliativo de medicamentos. No entanto, carcinomatose
pode não ser identificada.
Uma vez que o local da obstrução for identificado, estudos endoscópicos podem
ser úteis para elucidar a causa da obstrução e também para tratar o paciente, como em
caso de inserção de stent.

Tratamento
Na avaliação inicial, é necessário excluir causas agudas de obstrução intestinal e
emergência cirúrgica. Deve ser realizada ressuscitação volêmica para repor perdas
relacionadas aos vômitos. Sonda nasogástrica pode ser instalada para descomprimir o
intestino proximal e aliviar os sintomas.
Cirurgia pode ser benéfica em pacientes selecionados. Existem numerosas
opções disponíveis. Em caso de obstrução distal, ostomia pode ser criada com o
segmento do cólon não comprometido. Ostomia proximal tende a apresentar débito
elevado e pode causar distúrbios do equilíbrio hídrico, o que deve ser considerado caso
seja planejada ostomia em jejuno proximal. Fatores que devem ser considerados na
decisão terapêutica incluem idade, estado nutricional, estado funcional, comorbidades,
tratamento oncológico prévio e programado, saúde psíquica e rede de suporte social.
Pacientes com ascite persistente apresentam resultado cirúrgico ruim. Obstrução
intestinal maligna secundária a carcinomatose peritoneal difusa responde mal ou mesmo
não responde à intervenção cirúrgica.
Obstrução da via de saída gástrica e/ou do intestino delgado proximal é
complicação comum em pacientes com câncer de pâncreas, estômago distal, vesícula
biliar e vias biliares, podendo também resultar de metástases de neoplasias extra-
abdominais, como câncer de pulmão e mama. Atualmente são obtidos bons resultados
quanto ao alívio da obstrução e à redução dos sintomas com a inserção endoscópica de
stent metálico auto-expansível ou gastrostomia percutânea para drenagem. Ambas as
abordagens são particularmente úteis em pacientes com prognóstico limitado em curto
prazo. Complicações tardias da inserção endoscópica de stent metálico auto-expansível
incluem impactação de comida, obstrução por crescimento tumoral e migração. Os

Pedro Kallas Curiati 191


pacientes melhores candidatos à inserção endoscópica de stent metálico auto-expansível
são aqueles com tumor de pequena extensão, ponto único de obstrução no piloro ou no
duodeno proximal, funcionalidade intermediária a alta e sobrevida esperada superior a
trinta dias. Derivação de trânsito cirúrgica é preferida em pacientes com boa
funcionalidade, doença lentamente progressiva e sobrevida esperada superior a sessenta
dias. Em caso de obstrução em jejuno distal ou múltipla, há menor taxa de sucesso com
inserção endoscópica de stent metálico auto-expansível e deve-se considerar
intervenção cirúrgica ou gastrostomia percutânea para drenagem. Pacientes com
funcionalidade ruim, doença rapidamente progressiva, carcinomatose peritoneal, ascite
da malignidade, sobrevida esperada inferior a trinta dias ou múltiplos pontos de
obstrução são melhores manejados com medicação para paliação de sintomas ou
inserção de gastrostomia percutânea para drenagem.
O manejo endoscópico de obstrução colo-retal maligna com inserção de stent
metálico auto-expansível cursa com elevada taxa de sucesso técnico e de alívio dos
sintomas, que em muitos pacientes é duradouro. Reestenose, no entanto, é comum,
geralmente causada por crescimento tumoral, e pode ser manejada com inserção de
outro stent, dilatação endoscópica ou ablação com laser.
Tratamento sintomático farmacológico deve ser usado em pacientes inoperáveis
com o objetivo de aliviar dor abdominal contínua e cólica intestinal, reduzir os vômitos
para um nível aceitável para o paciente, ao redor de uma a duas vezes por dia, sem o uso
de sonda nasogástrica, aliviar a náusea e permitir alta hospitalar para cuidado domiciliar
ou em instituição de longa permanência.
A administração de analgésico, predominantemente opioides fortes, conforme as
recomendações da Organização Mundial da Saúde, permite o alívio da dor na maior
parte dos pacientes. A dose deve ser titulada conforme o efeito obtido, sendo preferida a
administração parenteral, idealmente com infusão subcutânea ou intravenosa contínua.
A via transdérmica consiste em alternativa aceitável. Se a cólica persistir apesar do uso
de opioide forte, deve-se associar Brometo de N-Butilescopolamina, apresentado na
forma de ampolas de 20mg/1mL, com dose diária de 40-120mg em infusão subcutânea
ou intravenosa contínua ou em bolus com três administrações diárias.
Náusea e vômitos podem ser manejados com drogas que reduzem as secreções
do trato gastrointestinal, como Brometo de N-Butilescopolamina e Octreotide, análogo
de somatostatina, e/ou com drogas anti-eméticas com ação no sistema nervoso central.
Octreotide é apresentado na forma de ampolas de 0.05mg/mL, 0.1mg/mL e 0.5mg/mL,
com diluição em Soro Fisiológico e dose de 0.2-0.9mg/dia em infusão subcutânea ou
intravenosa contínua ou em bolus com três administrações diárias. Dentre as drogas
antieméticas, a Metoclopramida deverá ser utilizada em pacientes com obstrução parcial
e sem cólica abdominal. Neurolépticos utilizados pelo efeito anti-emético incluem
Haloperidol, apresentado na forma de ampolas de 5mg/1mL, que pode ser administrado
com dose de 3-15mg/dia em infusão subcutânea contínua ou em bolus com três
administrações diárias, e Clorpromazina, apresentada na forma de ampolas de
25mg/5mL, que pode ser administrada com dose de 50-100mg a cada oito horas por via
subcutânea.
Octreotide pode ser administrado em associação com Morfina, Brometo de N-
Butilescopolamina ou Haloperidol na mesma seringa de infusão.
Corticosteroides, como Dexametasona 4mg por via intravenosa de 6/6 horas e
Metilprednisolona 1-4mg/kg/dia por via intravenosa uma vez ao dia ou por via
subcutânea com administração duas vezes ao dia durante cinco dias, podem reduzir o
edema inflamatório peri-tumoral e aumentar a absorção de sal e água.
A maior parte dos pacientes com obstrução intestinal maligna apresentam

Pedro Kallas Curiati 192


desidratação, mas a intensidade dos sintomas independe da quantidade de fluidos
administrados por via oral ou parenteral. Além disso, hidratação excessiva pode levar a
aumento das secreções intestinais. A administração de 1.0-1.5 litros por dia de solução
contendo eletrólitos e glicose por hipodermóclise ou via intravenosa pode ser útil para
prevenir sintomas relacionados a desequilíbrio metabólico.

Bibliografia
Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 5. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2010.
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
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Alessandra Casuccio and Salvatore Mangione. Journal of Pain and Symptom Management. Vol. 33 No. 2 February 2007.

Pedro Kallas Curiati 193


URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS
RELACIONADAS AO ÁLCOOL
Define-se abuso de álcool quando existe um padrão desadaptado de consumo,
com prejuízo significativo manifestado em um período de doze meses através de falha
em realizar obrigações no trabalho, em casa ou na escola, uso recorrente em situações
perigosas, problemas legais relacionados ao álcool e/ou uso contínuo a despeito de
problemas pessoais ou sociais relacionados.
A dependência de álcool é definida por padrão desadaptado de consumo, com
prejuízo significativo manifestado em um período de doze meses por três ou mais dentre
tolerância, abstinência, uso de doses maiores e por períodos mais prolongados do que o
planejado, desejo persistente ou tentativas sem sucesso de parar ou reduzir o uso, grande
tempo despendido na obtenção, no uso ou na recuperação do uso, perda ou diminuição
das atividades sociais, recreativas ou ocupacionais e uso continuado a despeito do
conhecimento dos problemas físicos e psicológicos associados ao álcool.

Intoxicação aguda pelo álcool

Fisiopatologia
O álcool causa alterações no sistema nervoso central que podem variar de
agitação a coma. Não há correlação precisa entre o nível sérico de álcool e as
manifestações neurológicas.

Achados clínicos e diagnóstico diferencial


Em intoxicações leves a moderadas, predominam manifestações cerebelares,
como ataxia, nistagmo e alterações da fala, náusea, taquicardia e labilidade do humor.
Casos graves podem apresentar períodos de estupor alternados com agressividade,
presença de olhar não-conjugado, discursos incoerentes e respiração profunda. Pode
ocorrer amnésia durante o período de intoxicação. O hálito etílico é comum, porém não
é encontrado em todos os casos.
O exame físico deve ser direcionado para detectar traumatismos, infecções
respiratórias, instabilidade hemodinâmica e arritmias cardíacas.
O diagnóstico deve ser revisto quando houver grande divergência entre o nível
sérico do etanol e o quadro clínico do paciente ou quando não houver melhora com a
eliminação. Intoxicações concomitantes devem ser lembradas.

Exames complementares
O único exame complementar fundamental para as intoxicações alcoólicas leves
a moderadas é a dosagem da glicose capilar, devido ao risco aumentado de
hipoglicemia.
Fatores de complicação:
- Indícios de complicação traumática;
- Indícios de complicação clínica;
- Indícios de concomitância de outras substâncias;
Em geral, os pacientes com fatores de complicação devem ser internados e
adequadamente avaliados com radiografia de tórax, eletrocardiograma, hemograma,
enzimas hepáticas, amilase, função renal, eletrólitos, gasometria, creatinofosfoquinase,

Pedro Kallas Curiati 194


urina I e pesquisa de cetonúria. Em caso de suspeita de concomitância de outras
substâncias, deve-se solicitar dosagem sérica de tóxicos.
Dosagem sérica de álcool deve ser reservada para casos de intoxicação grave ou
dúvida diagnóstica.

Tratamento
A abordagem inicial deve ser a mesma de qualquer paciente grave, seguindo as
avaliações primária e secundária do suporte avançado de vida.
Não há nenhuma evidência que justifique a administração rotineira de glicose
intravenosa. Entretanto, a intoxicação alcoólica aguda aumenta o risco de hipoglicemia,
com indicação de realização de dosagem de glicose capilar em todos os pacientes.
Caso haja hipoglicemia ou não seja possível realizar a dosagem de glicose
capilar, deve-se prescrever 50-100g de glicose em associação com 100mg de Tiamina.
O tratamento básico consiste em suporte clínico e depende da presença ou
ausência de complicações clínicas ou cirúrgicas. Pacientes com intoxicação leve a
moderada, glicose capilar normal, ausência de fatores de complicação e adequado
suporte social devem ser liberados sem necessidade de outras medidas diagnósticas ou
terapêuticas. Os demais pacientes poderão receber uma hidratação com reposição
eletrolítica de acordo com o quadro clínico e com o resultado dos exames
complementares solicitados.
Os pacientes alcoolistas devem receber suplementação de vitamina B1 (Tiamina)
por via oral, com 100-300mg/dia, ou parenteral, com 100mg por via intravenosa ou
intramuscular uma a duas vezes por dia.

Cetoacidose alcoólica
O paciente se apresenta após um período de ingesta alcoólica seguido de
abstinência e diminuição da ingesta alimentar. Os sintomas mais comuns são náusea,
vômitos e dor abdominal. Hálito cetônico, taquicardia, desidratação e respiração de
Kusmaull também podem estar presentes. Febre geralmente está ausente, mesmo em
vigência de infecção concomitante.
Acidose com ânion gap aumentado está presente, podendo associar-se à alcalose
metabólica secundária aos vômitos e/ou alcalose respiratória. Hipoglicemia ou até
discreta hiperglicemia podem estar presentes. Sódio, potássio, cálcio, fósforo e
magnésio estão diminuídos.
A hidratação deve ser o tratamento inicial, devendo ser vigorosa e associada ao
controle glicêmico e à reposição eletrolítica necessária. Existem evidências de resolução
mais rápida da acidose com o uso de solução salina com glicose, sem alteração de
mortalidade. Outras medidas devem incluir a administração de Tiamina para prevenção
de encefalopatia de Wernicke. A hipofosfatemia que se desenvolve com a correção da
acidose é quase universal, mas somente precisa ser corrigida se nível sérico inferior a
1mg/dL e/ou presença de sintomas.

Hipoglicemia relacionada ao álcool


A hipoglicemia de jejum relacionada ao álcool é a mais comum e sua
fisiopatologia envolve desnutrição, diminuição das reservas de glicogênio e
comprometimento da neoglicogênese.
O quadro clínico se caracteriza por alteração do nível de consciência e liberação
simpática, com ansiedade, tremores, sudorese e palpitações. Pode ocorrer hipotermia.
Os níveis séricos de glicose geralmente são inferiores a 40mg/dL e os níveis
séricos de etanol podem ser baixos. O lactato geralmente está aumentado pelo desvio do

Pedro Kallas Curiati 195


metabolismo do piruvato.
Os erros de medidas obtidas com fitas reagentes não são raros. Dessa forma, em
todos os pacientes com suspeita de hipoglicemia, deve-se administrar rapidamente 50-
100mL de Soro Glicosado a 50% em associação com 100mg de Tiamina. A seguir, o
paciente pode ser mantido com infusão lenta de Soro Glicosado e controle seriado da
glicemia.

Síndrome de Wernicke-Korsakoff
Conjunto de alterações neurológicas decorrentes da deficiência de tiamina.
A doença de Wernicke é definida classicamente pela presença da tríade de
anormalidades oculomotoras, com nistagmo, paralisia do nervo abducente e paralisia do
olhar conjugado, que podem manifestar-se de forma aguda ou subaguda e ocorrer
isoladamente ou, mais frequentemente, em combinação. A síndrome de Korsakoff é um
distúrbio neuropsiquiátrico em que a memória retrógrada e anterógrada está afetada de
forma desproporcional às demais funções cognitivas.
Em pacientes alcoólatras e desnutridos, a amnésia de Korsakoff está geralmente
associada à doença de Wernicke. Portanto, o termo encefalopatia de Wernicke é
utilizado para descrever o conjunto de sintomas que abrange oftalmoparesia, nistagmo
horizontal ou vertical, ataxia cerebelar e estado confusional agudo. Quando este
conjunto de sintomas associa-se a um defeito persistente de memória, utiliza-se o termo
síndrome de Wernicke-Korsakoff. Além da tríade clássica, os pacientes podem
apresentar desnutrição calórico-proteica, neuropatia periférica e hipotermia.
Não há exames laboratoriais específicos para o diagnóstico. A deficiência de
tiamina pode ser detectada pela dosagem laboratorial, exame desnecessário para o
diagnóstico e para o tratamento. Exames de imagem não são necessários para todos os
pacientes e não devem retardar o tratamento.
A encefalopatia de Wernicke é considerada uma emergência médica e o seu
tratamento consiste na administração imediata de Tiamina 50-100mg por via
intravenosa ou intramuscular. Como a absorção intestinal é errática em pacientes
etilistas e desnutridos, o uso de Tiamina por via oral deve ser evitado na fase inicial do
tratamento. A reposição de Tiamina impede a progressão da doença e reverte as lesões
que ainda não progrediram para alterações estruturais fixas. A reversão do estado
confusional agudo permite a melhor caracterização dos distúrbios de memória.

Síndrome de abstinência
A síndrome da abstinência alcoólica inclui dois componentes:
- Cessação ou redução no uso crônico de grande quantidade de álcool;
- Presença de dois ou mais dos sintomas de abstinência, que incluem
ansiedade, agitação psicomotora, náusea ou vômitos, insônia, tremor nas
mãos, alucinações visuais, auditivas ou táteis transitórias, convulsões
tônico-clônicas generalizadas e hiperatividade autonômica, manifesta por
sudorese, taquicardia e hipertensão sistólica;
Em média, os sintomas de abstinência podem começar de cinco a dez horas após
a última dose, com pico entre 48 e 72 horas, desaparecendo em cinco a quatorze dias.
Delirium tremens é complicação grave com início abrupto de desorientação, confusão,
ideação paranoide, ilusões, alucinações especialmente visuais, sinais importantes de
ativação adrenérgica e febre.
É importante lembrar que na grande maioria dos casos os indivíduos entram em
abstinência em razão de complicações médicas que os impedem de ingerir álcool, como
vômitos e dor abdominal, ou que dificultam o acesso ao álcool, como trauma crânio-

Pedro Kallas Curiati 196


encefálico, acidente vascular cerebral e sepse. Dessa forma, é importante realizar uma
minuciosa história e um detalhado exame físico na busca de complicações. Exames
complementares serão solicitados de acordo com as hipóteses clínicas e incluem
hemograma, glicemia ou glicose capilar, função renal, eletrólitos séricos, transaminases,
função hepática, amilase e lipase, urina tipo 1, eletrocardiograma e radiografia de tórax.
Tomografia computadorizada de crânio fica reservada para pacientes confusos, com
convulsões parciais ou generalizadas reentrantes, história de trauma crânio-encefálico
ou déficit neurológico focal ao exame físico.
Situações associadas à abstinência alcoólica incluem trauma crânio-encefálico,
acidente vascular cerebral, meningite, encefalite, síndrome coronariana aguda,
insuficiência cardíaca, pneumonia, infecção urinária, otite, sinusite, abscesso
periodontal, gastroenterocolite, celulite, endocardite, hepatite alcoólica, pancreatite
aguda, hiperglicemia, hipoglicemia, insuficiência renal aguda, anemia megaloblástica e
hemorragia digestiva.
Diagnósticos diferenciais incluem abstinência de benzodiazepínicos, opióides e
barbitúricos, intoxicação aguda por cocaína, anfetamina, ecstasy, ácido lisérgico,
Fenciclidina e anticolinérgicos, meningite, encefalite, hipoglicemia, hiperglicemia,
encefalopatia hepática, hipóxia, uremia, tireotoxicose, feocromocitoma, trauma crânio-
encefálico, hemorragia intracraniana, esquizofrenia e transtorno bipolar.
Os objetivos gerais do tratamento são fornecer suporte clínico, manter o paciente
em estado confortável, calmo e acordado, prevenir sintomas graves e complicações
agudas e evitar sequelas crônicas.
Benzodiazepínicos são a principal classe de medicação para controle dos
sintomas de abstinência e reduzem a incidência de convulsões e delirium. A
administração por via oral é a prioridade, desde que o paciente seja capaz de ingerir a
medicação. A via intravenosa é preferida para o paciente agitado, confuso ou com
vômitos. Na abstinência leve a moderada sem vômitos, preconiza-se Diazepam 5-10mg
por via oral de 8/8 a 6/6 horas, com ajustes após as primeiras doses e diminuição rápida
e progressiva nos dias subsequentes até descontinuação. Na abstinência grave, com
paciente muito agitado, confuso, com vômitos intensos ou com complicação médica ou
cirúrgica, a via de escolha é a parenteral com Dizepam 5-10mg por via intravenosa
lentamente e repetição a cada trinta minutos a uma hora a depender da resposta, com o
objetivo de deixar o paciente calmo e evitar rebaixamento do nível de consciência. Em
condições ideais, o paciente deve ser avaliado a cada hora, com doses adicionais de
acordo com os achados clínicos.
Carbamazepina apresenta maior utilidade em abstinência leve a moderada, com
bom perfil de toxicidade, bom efeito anticonvulsivante, ausência de depressão do
sistema nervoso central e ausência de potencial para abuso. A administração é por via
oral. Iniciar com 200-400mg de 12/12 horas, podendo chegar a 1200-1600mg/dia. Na
presença de hepatite alcoólica associada, deve-se evitar o uso.
Neurolépticos reduzem sinais e sintomas de abstinência, mas são menos efetivos
que os benzodiazepínicos na prevenção de delirium e reduzem o limiar convulsivo.
Podem ser usados em associação com os benzodiazepínicos em pacientes extremamente
agitados e com muitas alucinações, especialmente após as primeiras 24-48 horas de
abstinência.
Deve-se prescrever Tiamina 300-600mg/dia por via oral ou 100-200mg/dia por
via intramuscular ou intravenosa. Outras vitaminas devem ser prescritas de acordo com
os achados clínicos, como Ácido Fólico se anemia megaloblástica e Niacina se pelagra.
Magnésio e potássio devem ser repostos em caso de baixos níveis séricos.

Pedro Kallas Curiati 197


Conduta
Na abstinência leve, com ausência de complicações clínicas e bom suporte
familiar, preconiza-se Diazepam 10mg por via oral no pronto-socorro e Carbamazepina
200mg por via oral de 12/12 horas para casa, com consulta ambulatorial precoce.
Na abstinência moderada a grave, preconiza-se inicialmente suporte clínico com
tratamento de emergências, coleta de exames, radiografia de tórax e eletrocardiograma.
O tratamento inicial prevê local calmo, silencioso e pouco iluminado, avaliação da
glicose capilar, Tiamina 100mg por via intramuscular ou intravenosa, hidratação,
correção de distúrbios hidroeletrolíticos, Diazepam 5-10mg por via oral ou intravenosa
a cada hora conforme os sintomas e pesquisa de condições associadas.

Neuropatia periférica
Não há consenso quanto à etiologia da neuropatia periférica alcoólica, se
secundária a distúrbio nutricional ou ao efeito tóxico do álcool. Ocorre devido à
degeneração axonal e da bainha de mielina de nervos sensitivos, motores e
autonômicos.
As manifestações são geralmente simétricas e predominantemente distais e
incluem dormência, parestesias, dor, cãibras e fraqueza. Ao exame neurológico,
identifica-se fraqueza muscular distal com comprometimento mais intenso dos membros
inferiores, dor à palpação profunda dos músculos dos pés e das panturrilhas e abolição
dos reflexos profundos dos membros inferiores, além de combinações variáveis de
perda da sensibilidade superficial e profunda.
O tratamento inclui nutrição adequada, rica em vitaminas do complexo B, e
analgésicos.

Miopatia alcoólica aguda


Geralmente ocorre em etilista crônico após a ingesta de grande quantidade de
álcool. A fisiopatologia envolve efeito direto no metabolismo da célula muscular, bem
como na estrutura e na função da membrana celular.
Casos leves podem se manifestar como elevação assintomática de enzimas
musculares. Indivíduos mais gravemente comprometidos apresentam dor, cãibras,
edema e fraqueza muscular. O envolvimento é generalizado, mas o acometimento dos
músculos da panturrilha é característico.
Pode haver elevação acentuada dos níveis de creatinofosfoquinase,
mioglobinúria e insuficiência renal. A biópsia, quando realizada, revela necrose das
fibras musculares com áreas de regeneração.
A miopatia alcoólica aguda é geralmente uma doença autolimitada, com
recuperação completa em dias a semanas após a interrupção do uso do álcool. O
tratamento inicial consiste na correção de arritmias cardíacas, insuficiência renal e
condições capazes de potencializar a lesão muscular, como hipocalemia,
hipofosfatemia, delirium tremens e convulsões.

Cardiomiopatia alcoólica
Ocorre mais comumente em homens de trinta a cinquenta e cinco anos de idade
com história de mais de dez anos de consumo excessivo de álcool. Mulheres etilistas, no
entanto, desenvolvem lesão miocárdica com uso de doses cumulativas de álcool
inferiores.
A instalação dos sintomas é geralmente insidiosa e muitas vezes precedida por
uma fase subclínica com disfunção sistólica e diastólica do ventrículo esquerdo. Se o
consumo de álcool não é interrompido, desenvolve-se quadro de insuficiência cardíaca

Pedro Kallas Curiati 198


franca. Ao exame físico, observa-se pressão de pulso diminuída.
A abstinência total nas fases iniciais da doença pode levar à resolução das
manifestações de insuficiência cardíaca, com normalização das dimensões das câmaras
cardíacas.
O tratamento dos episódios agudos de descompensação da insuficiência cardíaca
é semelhante ao da cardiomiopatia dilatada idiopática. No entanto, devido à
possibilidade de beribéri concomitante, recomenda-se a administração de Tiamina nos
casos mais graves.

Beribéri
As alterações fisiológicas da doença cardíaca por deficiência de tiamina se
diferenciam da cardiomiopatia alcoólica pela existência de um estado hiperdinâmico,
caracterizado por diminuição da resistência vascular periférica, aumento do débito
cardíaco, taquicardia e falência biventricular. O exame físico caracteriza-se pelo
alargamento da pressão de pulso.
Os exames laboratoriais devem demonstrar redução da concentração de tiamina
sérica ou redução da atividade de transcetolase eritrocitária.
O tratamento consiste em administração de dose inicial de Tiamina de 100mg
por via intravenosa e manutenção com 25mg/dia por via oral durante uma a duas
semanas. Melhora da congestão pulmonar, restabelecimento da diurese, diminuição da
frequência cardíaca e regressão da cardiomegalia podem ocorrer em 12-48 horas. A
reversão aguda da vasodilatação pode precipitar estado de baixo débito cardíaco, de
modo que recomenda-se a administração concomitante de diuréticos e digitálicos.

Alterações hematológicas
Anemia geralmente é macrocítica por interferência do álcool no metabolismo do
folato, mas outras causas e padrões podem ocorrer. O tratamento da macrocitose com ou
sem anemia é a abstinência, mas a melhora laboratorial demora dois a quatro meses.
Leucopenia por diminuição do número de neutrófilos pode ocorrer.
A principal causa de trombocitopenia é o hiperesplenismo, mas efeito tóxico
direto também ocorre. Após um período de abstinência combinado com melhora do
estado nutricional, frequentemente ocorre um período de trombocitose rebote.

Bibliografia
Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 5. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2010.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.

Pedro Kallas Curiati 199


TROMBOEMBOLISMO
PULMONAR
Definições
A embolia pulmonar é uma situação clínica em que há deslocamento de um
trombo formado no sistema venoso profundo, que atravessa as câmaras direitas do
coração e impacta na circulação pulmonar, com obstrução de consequências variáveis.

Etiologia e fisiopatologia
O trombo causador da embolia pulmonar geralmente origina-se do sistema
venoso profundo das extremidades inferiores. Entretanto, o trombo pode ser formado
nas veias pélvicas, nas veias renais, nos membros superiores e nas câmaras direitas do
coração. Quanto à impactação do trombo, pode ocorrer desde o tronco da artéria
pulmonar até o nível arteriolar.
Fatores de risco primários incluem hiper-homocisteinemia, fator V de Leiden,
deficiência de proteína S, deficiência de proteína C, síndrome do anticorpo anti-
fosfolípide, gene mutante da protrombina, deficiência de anti-trombina, desordens do
plasminogênio, desfibrinogenemias e aumento dos fatores VII e VIII.
Os principais fatores de risco secundários incluem cirurgia de quadril, cirurgia
de joelho, traumatismo de membros inferiores, cirurgia abdominal de grande porte,
câncer abdômino-pélvico ou metastático, pós-operatório em unidade de terapia
intensiva, restrição ao leito, puerpério, parto cesariano, gravidez tardia e trombose
venosa profunda prévia. Outros fatores de risco secundários incluem insuficiência
cardíaca, doenças mieloproliferativas, cardiopatia congênita, doença pulmonar
obstrutiva crônica, doença neurológica com déficits, estados de hiperviscosidade,
anticoncepcional oral ou reposição hormonal, obesidade, cateter venoso central,
síndrome nefrótica, diálise crônica e doença inflamatória intestinal.

Achados clínicos
A embolia pulmonar geralmente apresenta-se de forma inespecífica, o que
dificulta o diagnóstico. A apresentação depende do tamanho do trombo, da localização e
do estado cardiorrespiratório prévio do paciente, podendo variar de colapso circulatório
a quadro de dispneia com dor torácica tipo pleurítica.
Os principais sintomas, em ordem decrescente de frequência, são dispneia, dor
pleurítica, tosse, edema em membro inferior, dor na perna, hemoptise, palpitações,
sibilância e dor precordial. Os principais sinais, em ordem decrescente de frequência,
são taquipnéia, estertores, taquicardia, B4, P2 hiperfonética, trombose venosa profunda,
diaforese, temperatura superior a 38.5º C e sibilos.
Infarto pulmonar ocorre em apenas 10% dos casos e é mais frequente em
pacientes com cardiopatias e pneumopatias crônicas.

Classificação

Classificação antiga
Embolia pulmonar maciça é caracterizada por quadro de choque ou hipotensão
arterial, não sendo causada por arritmia, hipovolemia ou sepse.
Embolia pulmonar submaciça é caracterizada por presença de disfunção

Pedro Kallas Curiati 200


ventricular direita pelo ecocardiograma, mas sem choque ou hipotensão.
Embolia pulmonar não-maciça é caracterizada pela ausência das características
anteriores.

Classificação atual
Embolia pulmonar de alto risco, com risco de morte precoce superior a 15%, é
caracterizada por hipotensão ou choque. Indica-se trombólise ou embolectomia em
casos selecionados.
Embolia pulmonar de não-alto risco é subdividida em risco intermediário, com
risco de morte precoce de 3-15%, caracterizado por ausência de hipotensão e choque e
por presença de disfunção de ventrículo direito ou de lesão miocárdica, indicando-se
internação hospitalar, e risco baixo, com risco de morte precoce inferior a 1%,
caracterizado por ausência de hipotensão, choque, disfunção de ventrículo direito e
lesão miocárdica, indicando-se alta hospitalar precoce ou tratamento domiciliar. Os
principais marcadores de maior mortalidade na embolia pulmonar de não-alto risco são
relação entre os diâmetros do ventrículo direito e do ventrículo esquerdo superior a 0.9
em tomografia computadorizada ou superior ou igual a 0.9 em ecodopplercardiografia,
elevação de troponina e elevação de BNP.

Exames complementares
Os principais exames para a hipótese de tromboembolismo pulmonar são
radiografia de tórax, eletrocardiograma, ecocardiograma e D-dímero, enquanto que os
principais exames diagnósticos são cintilografia pulmonar, tomografia helicoidal de
tórax, ressonância magnética e arteriografia pulmonar.
O primeiro passo é o estabelecimento de uma probabilidade pré-teste. O escore
mais utilizado é o de Wells, com alta probabilidade se sete ou mais pontos,
intermediária probabilidade se dois a seis pontos e baixa probabilidade se zero ou um
pontos. Considera-se tromboembolismo pulmonar improvável quando pontuação igual
ou inferior a 4 e provável quando pontuação superior a 4.
Critérios Pontos
Suspeita de trombose venosa profunda 3.0
Diagnóstico alternativo menos provável que tromboembolismo pulmonar 3.0
Frequência cardíaca superior a 100bpm 1.5
Imobilização ou cirurgia nas quatro semanas anteriores 1.5
Trombose venosa ou embolia prévia 1.5
Malignidade 1.0
Hemoptise 1.0
Apesar de os achados nas radiografias de tórax serem inespecíficos, apenas 12%
delas são normais na embolia pulmonar. Atelectasias e alterações parenquimatosas,
como consolidações e áreas de hipoperfusão pulmonar ou oligoemia (sinal de
Westermark), são os achados mais comuns. Derrames pleurais são encontrados em até
47% dos pacientes. Podem estar presentes também elevação diafragmática, imagens
cuneiformes (sinal de Hamptom), aumento da área cardíaca e aumento do tronco da
artéria pulmonar e seus ramos (sinal de Palla).
As principais alterações eletrocardiográficas são bloqueio de ramo direito,
desvio do eixo elétrico para a direita, padrão S1Q3T3 e inversão da onda T nas
derivações precordiais de V1 a V4.
A gasometria arterial é de baixa especificidade e moderada sensibilidade para o
diagnóstico de tromboembolismo pulmonar. Pode-se calcular o gradiente alvéolo-
arteriolar de oxigênio com a fórmula 130 – (PaCO2 + PaO2), que quando superior a

Pedro Kallas Curiati 201


15mmHg indica distúrbio da troca gasosa.
Mais de 80% dos pacientes com tromboembolismo documentado têm
anormalidades no ecocardiograma, como disfunção ou aumento do ventrículo direito,
insuficiência tricúspide, alterações de mobilidade da parede miocárdica e visualização
de trombos intracavitários. O exame é muito útil para afastar diagnósticos diferenciais,
como infarto agudo do miocárdio, endocardite, pericardite, tamponamento e dissecção
aguda de aorta. É também importante nos casos de embolia maciça, em que o
diagnóstico presuntivo rápido se faz necessário para justificar o uso de terapia
trombolítica.
A utilidade clínica do D-dímero é limitada pela baixa especificidade de um
resultado positivo, com influência de situações como inflamação, trauma e cirurgia. No
entanto, apresenta elevado valor preditivo negativo, com utilidade para afastar a doença
tromboembólica em pacientes com baixa probabilidade clínica frente a um resultado
negativo, desde que o método utilizado seja o ELISA.
Troponina pode estar elevada em 30-50% dos pacientes com embolia pulmonar
moderada a grande, com pouca utilidade no diagnóstico e correlação com pior
prognóstico. Peptídeo natriurético cerebral (BNP) também não tem valor no
diagnóstico, mas está relacionado ao prognóstico e à gravidade da falência ventricular
direita.
O diagnóstico de trombose venosa profunda através de Doppler de membros
inferiores pode evitar a realização de exames para identificar trombo na circulação
pulmonar, já que a conduta terapêutica é semelhante à da embolia pulmonar.
A cintilografia de ventilação e perfusão é provavelmente o teste usado com
maior frequência no Mundo para o diagnóstico de embolia pulmonar e se baseia na
presença de falhas perfusionais e avaliação ventilatória normal. As maiores
desvantagens do método são limitações em relação a pacientes com pneumopatias
parenquimatosas prévias e/ou doenças cardiopulmonares difusas, perda de sensibilidade
para êmbolos menores, indisponibilidade em vários centros, ausência de cobertura fora
do horário comercial e perda de sensibilidade na presença de infarto pulmonar ou
atelectasia.
A angiotomografia computadorizada de tórax com injeção de contraste
intravenoso apresenta boa acurácia, custo relativamente baixo e possibilidade de
investigação de outros diagnósticos diferenciais, com morbidade relacionada apenas à
infusão do contraste. A maior crítica ao método é a perda de sensibilidade para trombos
subsegmentares, embora se questione o real significado clínico desses trombos menores.
Arteriografia pulmonar ainda é o exame padrão-ouro no diagnóstico da embolia
pulmonar e permite a realização de manometria da artéria pulmonar. No entanto, trata-
se de exame invasivo e cerca de 10-20% dos pacientes não conseguem realizá-lo devido
a fatores como plaquetopenia, alergia ao contraste, insuficiência renal, insuficiência
cardíaca grave e mau estado geral. Está reservada para pacientes com alta probabilidade
clínica e que não tenham o diagnóstico confirmado em nenhum outro método menos
invasivo.
Ecocardiograma transesofágico é indicado para detecção de disfunção de
ventrículo direito em paciente instável com risco de vida imediato. Estabelece o
diagnóstico na presença de trombose venosa profunda.

Diagnóstico diferencial
O diagnóstico diferencial inclui pneumonia ou traqueobronquite, asma,
exacerbação da doença pulmonar obstrutiva crônica, infarto agudo do miocárdio, edema
agudo de pulmão, ansiedade, dissecção de aorta, tamponamento pericárdico, câncer de

Pedro Kallas Curiati 202


pulmão, hipertensão pulmonar idiopática, fratura de costela, pneumotórax, costocondrite
e dor osteomuscular.

Tratamento

Medidas gerais
Em casos com estabilidade clínica, deve-se preocupar com o início do
tratamento específico, que se dá basicamente com a anticoagulação dos pacientes.
Analgesia e suplementação de oxigênio muitas vezes são necessárias.
Nos casos de embolia maciça, a conduta terapêutica inicial tem por objetivo a
estabilidade hemodinâmica, oferecendo, se necessário, suporte farmacológico com
agentes vasoconstritores e inotrópicos. Nos pacientes hipotensos, a administração de
cristalóides é a conduta inicial, podendo-se abrir mão das aminas vasopressoras nos
casos refratários à reposição volêmica. Por vezes, a estabilização só ocorre após o
tratamento com trombolíticos.
O suporte ventilatório requer o cuidado de usar os menores níveis pressóricos
necessários para a oxigenação, uma vez que a pressurização diminui o retorno venoso e
piora o choque.

Anticoagulação
Enquanto se aguarda os resultados dos exames empregados, deve-se iniciar a
anticoagulação em todos os pacientes com tromboembolismo pulmonar provável.
Heparina Não-Fracionada deve ser administrada em infusão contínua por via
intravenosa para menor ocorrência de sangramentos e maior estabilidade dos níveis
séricos em relação à administração intermitente, sendo preferida em pacientes de alto
risco. A estratégia recomendada é uma dose de ataque de 80U/kg seguida de dose de
manutenção de 18U/kg/hora, com ajuste do ritmo de infusão de acordo com o tempo de
tromboplastina parcial ativada, que deve ser mantido com R entre 1.5 a 2.5 ou uma e
meia a duas vezes o valor de entrada. Recomenda-se repetição a cada 6 horas até
estabilização em três medidas. O tempo de tratamento deve ser, no mínimo, de cinco
dias e interrompido quando o controle do tratamento com anticoagulante oral estiver
estável por pelo menos dois dias, com RNI entre 2 e 3.
Heparina de Baixo Peso Molecular não necessita de bomba de infusão e de
controle de coagulograma, salvo em situações de insuficiência renal ou obesidade, em
que se deve dosar a atividade anti-Xa como monitorização. Em casos de choque e
instabilidade hemodinâmica, em função de perfusão periférica instável, essa classe de
droga também não é recomendada por ser administrada por via subcutânea e com
absorção errática. As principais drogas dessa classe são a Enoxaparina, que pode ser
administrada com 1mg/kg a cada 12 horas ou 1.5mg/kg uma vez ao dia, e a Dalteparina,
que pode ser administrada com 200UI/kg uma vez ao dia, ambas por via subcutânea. O
tempo de tratamento se assemelha ao da Heparina não-fracionada. A dose deve ser
reduzida a 75% em idosos e a 50% em pacientes com clearance de creatinina inferior a
30mL/minuto.
Esquema alternativo para uso de Heparina Não-Fracionada por via subcutânea
prevê solução de 20000U/mL ou 25000/mL, dose inicial de 333U/kg e manutenção com
250U/kg de 12/12 horas, sem necessidade de controle do coagulograma, desde que
creatinina inferior ou igual a 2.3mg/dL.
Contraindicações absolutas ao uso de Heparina incluem sangramento ativo,
plaquetopenia grave e acidente vascular encefálico, cirurgia ocular ou cirurgia do
sistema nervoso central nos últimos 7-14 dias. Os efeitos podem ser antagonizados com

Pedro Kallas Curiati 203


o uso de Protamina por via intravenosa muito lentamente, apresentada na forma de
ampolas de 1mL e de 5mL, com 10mg/mL e 1mL para cada 10000UI de Heparina. Caso
a concentração de Heparina não seja determinada, não se recomenda administrar mais
do que 1mL. Em caso de administração intravenosa de Heparina, deve-se considerar a
quantidade circulante com base na infusão das últimas quatro horas e tendo em vista
uma meia vida de uma hora.
Fondaparinux é um inibidor direto do fator Xa também usado por via subcutânea
uma vez ao dia e sem necessidade de monitorização, embora não deva ser usado em
pacientes com clearance de creatinina inferior a 30mL/minuto. Para indivíduos com
peso de 50-100kg, a dose preconizada é de 7.5mg. Em caso de peso menor do que 50kg,
prefere-se 5mg, enquanto que indivíduos com peso superior a 100kg devem receber
10mg.
A Warfarina é um anticoagulante oral que inibe os fatores dependentes da
vitamina K e as proteínas C e S. O pico de ação não ocorre antes de 36-72 horas após a
administração da droga, com reajuste em média após cinco dias. Por essa razão, a
Heparina deve ser mantida até a estabilização do controle da anticoagulação com a
Warfarina, que se dá quando a RNI do tempo de protrombina se mantiver entre 2.0 e
3.0. A dose inicial deve ser de 5mg ao dia e deve ser iniciada no primeiro dia de
tratamento com Heparina. A duração do tratamento com a Warfarina depende dos
fatores de risco e da possibilidade de serem eliminados.
Dabigatran, inibidor direto da trombina, pode ser utilizado na dose de 150mg por
via oral de 12/12 horas, sem necessidade de coleta de sangue para monitorização de
RNI.
Cenário Tempo de anticoagulação oral
Tromboembolismo pulmonar com causa reversível, como pós- Mínimo de três meses
operatório
Tromboembolismo pulmonar idiopático Mínimo de seis a doze meses
Tromboembolismo pulmonar e trombose venosa profunda recorrentes Tempo indeterminado
ou com causa irreversível, como neoplasia e síndrome do anticorpo
antifosfolípide

Trombolíticos
O respaldo da literatura para utilização de agentes trombolíticos é para a embolia
pulmonar maciça, ou seja, embolia pulmonar com instabilidade hemodinâmica. Na
embolia submaciça, com disfunção de ventrículo direito sem instabilidade, não há
estudos que mostrem a superioridade da terapia trombolítica em relação à convencional
com Heparina em relação à mortalidade. Nesses casos, deve-se ponderar risco potencial
de hemorragia, tamanho da embolia, doença de base e marcadores de lesão.
Preconiza-se Estreptoquinase intravenosa com dose inicial de 250.000UI em
trinta minutos e manutenção com 100.000UI/hora durante 24 horas ou 1.500.000UI em
duas horas. Outra opção é Alteplase (Rt-PA) 100mg por via intravenosa em duas horas,
com 10% em bolus administrado em 1-2 minutos e o restante em 120 minutos, em
associação com Heparina Não-Fracionada.
A janela terapêutica é de 14 dias a partir do evento agudo, embora o principal
benefício seja nas primeiras 72 horas.
Contraindicações absolutas para o uso de trombolíticos na embolia pulmonar
incluem acidente vascular cerebral hemorrágico, neoplasia do sistema nervoso central,
trauma ou cirurgia do sistema nervoso central há menos de dois meses, sangramento
interno ativo ou há menos de seis meses e uso prévio de Estreptoquinase para
reutilização da droga. Contraindicações relativas incluem hipertensão arterial não-
controlada, acidente vascular cerebral isquêmico há menos de dois meses, sangramento

Pedro Kallas Curiati 204


gastrointestinal há menos de dez dias, plaquetopenia e cirurgia, biópsia ou punção de
vasos não-compressíveis há menos de dez dias.

Embolectomia cirúrgica
Indicações incluem embolia maciça com risco de vida imediato e
contraindicação absoluta para trombólise ou ausência de resposta à terapia trombolítica.
Os melhores resultados são observados em casos de obstrução quase total do
tronco da artéria pulmonar ou de seus ramos principais.

Filtro de veia cava


Indicações:
- Pacientes com tromboembolismo pulmonar ou trombose venosa
profunda agudas e com contraindicação absoluta à terapia anticoagulante;
- Pacientes com eventos tromboembólicos recorrentes a despeito da
terapia anticoagulante adequada;
- Alguns pacientes sobreviventes de embolia maciça, para os quais um
novo evento pode ser fatal;
- Interrupção da anticoagulação por sangramento ou para cirurgia vital ao
paciente;

Bibliografia
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.
Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 5. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2010.
Treatment of lower extremity deep vein thrombosis. Gregory YH Lip, Russell D Hull. UpToDate, 2011.

Pedro Kallas Curiati 205


TROMBOSE VENOSA PROFUNDA
Introdução e definições
A trombose venosa profunda é uma afecção caracterizada pela formação aguda
de trombos no sistema venoso profundo. As principais complicações são a embolia
pulmonar e a insuficiência venosa crônica.
A trombose venosa profunda proximal envolve as veias poplíteas, femorais e
ilíacas, enquanto a doença distal envolve as veias da perna.

Etiologia e fisiopatologia
Para o desenvolvimento da trombose venosa profunda, são necessárias estase
sanguínea, lesão endotelial e hipercoagulabilidade, que em conjunto recebem a
denominação de tríade de Virchow.
Fatores de risco primários incluem hiper-homocisteinemia, fator V de Leiden,
deficiência de proteína S, deficiência de proteína C, síndrome do anticorpo
antifosfolípide, gene mutante da protrombina, desordens do plasminogênio e
desfibrinogenemias, deficiência de anti-trombina e aumento dos fatores VII e VIII.
Os principais fatores de risco secundários incluem cirurgia de quadril, cirurgia
de joelho, traumatismo de membros inferiores, cirurgia abdominal de grande porte, pós-
operatório em unidade de terapia intensiva, restrição ao leito, puerpério, cesária,
gravidez tardia, trombose prévia e câncer abdominal, pélvico ou metastático.
Outros fatores de risco secundários incluem insuficiência cardíaca, doenças
mieloproliferativas, cardiopatia congênita, doença pulmonar obstrutiva crônica, doença
neurológica com disabilidade, estados de hiperviscosidade, anticoncepcional oral ou
reposição hormonal, obesidade, cateter venoso central, síndrome nefrótica, diálise
crônica e doença inflamatória intestinal.

Achados clínicos
Quando presente, a dor é o principal sintoma, está presente ao repouso e piora
com movimento.
O exame físico deve ser realizado em todos os pacientes com queixas nos
membros inferiores e diariamente em pacientes acamados por qualquer causa, mesmo
que assintomáticos. Os principais sinais encontrados são trajetos venosos por dilatação
de veias superficiais colaterais, cianose, palidez, edema de subcutâneo, edema muscular,
dor à palpação dos trajetos venosos e dor à dorsiflexão do pé com a perna estendida,
conhecida como sinal de Homans. Podem estar presentes febre e taquicardia.
Flegmasia alba dolens é quadro decorrente de trombose do segmento
iliofemoral, caracterizado por dor, edema e palidez no membro acometido. Há
vasoespasmo e diminuição dos pulsos no membro acometido.
Flegmasia cerúlea dolens é quadro decorrente da trombose da totalidade ou
quase totalidade das veias do membro inferior, caracterizado por dor excruciante e
edema intenso, com evolução rápida para cianose e resfriamento. Os dedos tornam-se
quase pretos, com bolhas de conteúdo sero-hemorrágico, e os pulsos distais diminuem.

Escore de Wells
Sinal ou sintoma Pontos
Câncer ativo 1
Paralisia ou imobilização recente 1
Restrição ao leito por mais de três dias ou cirurgia de grande porte há menos de quatro semanas 1

Pedro Kallas Curiati 206


Processo inflamatório localizado no trajeto venoso 1
Edema na perna 1
Circunferência da panturrilha acometida 3cm maior do que a da panturrilha assintomática 1
Diagnóstico alternativo com igual ou maior probabilidade do que trombose venosa profunda -2
Há baixa probabilidade quando escore igual ou inferior a 0, média probabilidade
quando escore de 1-2 e alta probabilidade quando escore superior ou igual a 3.

Exames complementares
O D-dímero é um exame limitado pela baixa especificidade de um resultado
positivo, estando sujeito à interferência de diversas situações. Porém, torna-se relevante
por sua alta sensibilidade e pelo alto valor preditivo negativo. Assim, se o D-dímero por
ELISA for negativo em paciente com probabilidade baixa de trombose venosa profunda,
pode-se considerar afastado o diagnóstico.
A ultrassonografia com Doppler vem se firmando como método de escolha para
o diagnóstico de trombose venosa profunda. O diagnóstico é feito pelos achados de
compressibilidade anormal da veia, fluxo anormal, presença de banda ecogênica e
alteração anormal do diâmetro durante a manobra de Valsalva.
A flebografia ou venografia convencional foi considerada por muitos anos o
padrão-ouro para o diagnóstico de trombose venosa profunda. Não é mais recomendada
como exame inicial em função de invasibilidade, uso de contraste nefrotóxico e risco de
complicações inerentes ao método. Seu uso está restrito a alguns pacientes com
probabilidade alta de doença nos quais os exames não invasivos apresentaram resultado
inconclusivo.
A venografia por ressonância magnética possui a mesma acurácia que a
venografia convencional. Dessa forma, pode ser uma boa alternativa para os pacientes
que necessitam de venografia, mas apresentam insuficiência renal ou alergia a contraste
iodado.
O principal uso da venografia por tomografia computadorizada é nos casos em
investigação de tromboembolismo pulmonar. Em um mesmo exame de tomografia
computadorizada, faz-se a avaliação das artérias pulmonares e das veias dos membros
inferiores.

Diagnóstico diferencial
São diversas as patologias que apresentam os sinais e sintomas sugestivos de
trombose venosa profunda. Os principais diagnósticos diferenciais são infecções de
subcutâneo em fase inicial, ruptura muscular, ruptura de cisto de Baker, miosite,
vasculites cutâneas e linfedema.

Tratamento
O objetivo do tratamento da trombose venosa profunda dos membros inferiores é
prevenir a ocorrência de embolia pulmonar e aliviar a estase venosa.
A medida terapêutica mais conhecida é a posição de Trendelemburg, que
promove a diminuição do volume do membro em três a quatro dias através da
estimulação da circulação colateral ou da própria fibrinólise espontânea, que ocorre em
até 30% dos casos nas primeiras horas.
Analgésicos e anti-inflamatórios não-hormonais podem ser ministrados como
sintomáticos. Tão logo se obtenha o alívio da dor e do edema, estimula-se a
deambulação do paciente e o uso de meias elásticas.
Paralelamente a tais medidas, são administrados anticoagulantes com o objetivo
de impedir a progressão do trombo, diminuir o risco de embolia pulmonar e melhorar o

Pedro Kallas Curiati 207


quadro clínico.
Meias elásticas devem ser utilizadas precocemente na vigência de trombose
venosa profunda e usadas por até dois anos após o episódio trombótico.

Tratamento anticoagulante
As heparinas têm ação imediata após a administração, com inibição da trombina
e do fator X ativado, enquanto os anticoagulantes orais têm sua ação mais lenta, com
inibição da síntese dos fatores dependentes de vitamina K, os fatores II, VII, IX e X. O
tratamento deve ser iniciado com Heparina e anticoagulante oral simultaneamente,
sempre que possível.
A utilização concomitante se faz necessária até o momento em que o
anticoagulante oral atinja seu pleno efeito. A Heparina é mantida por no mínimo 5 dias,
até o tempo de protrombina atingir níveis terapêuticos, com INR entre 2 e 3 por dois
dias. Durante a gestação, deve ser usada apenas Heparina.
A Heparina Não-Fracionada deve ser infundida por via intravenosa, com dose
inicial e manutenção em infusão contínua. A dosagem deve ser corrigida pelo R do
TTPA a cada 6 horas até dois resultados consecutivos entre 1.5 e 2.5.
A Heparina de Baixo Peso Molecular apresenta maior biodisponibilidade pela
via subcutânea, menor risco de trombocitopenia, resposta anticoagulante altamente
correlacionada com o peso corpóreo, possibilidade de doses fixas sem necessidade de
monitorização e possibilidade de tratamento ambulatorial. Preconiza-se Enoxaparina
1mg/kg em duas doses diárias ou 1.5mg/kg em dose única diária. Em pacientes com
clearance de creatinina inferior a 30mL/minuto preconiza-se dose única diária de
1mg/kg, esquema que não deve ser utilizado em pacientes com insuficiência renal
crônica dialítica. A monitorização com fator Xa é necessária em pacientes com peso
superior a 120-150kg, com insuficiência renal crônica ou gestação.
As complicações relacionadas ao uso de Heparina incluem sangramentos,
plaquetopenia e osteoporose. É necessária a dosagem de plaquetas duas vezes por
semana e considera-se plaquetopenia induzida por Heparina quando queda das plaquetas
em 50% ou queda das plaquetas para nível inferior a 100000/mm3.
Os anticoagulantes orais são antagonistas competitivos da vitamina K. Os
dicumarínicos, como a Varfarina, não agem sobre os fatores já circulantes, mas sobre
aqueles que estão sendo sintetizados no fígado. Para a manutenção do tempo de
protrombina e do INR em nível terapêutico, deve-se administrar esse medicamento
sempre no mesmo horário e nas mesmas condições. Outra particularidade se aplica ao
paciente com deficiência de vitamina C.
As complicações do uso de anticoagulantes orais são hemorragia, reação
alérgica e necrose hemorrágica de pele e tecido celular subcutâneo. A reversão do efeito
anticoagulante é feita com a administração de vitamina K 5mg por via intravenosa ou
10mg por via subcutânea ou oral, sendo necessárias 24-36 horas para normalizar a
coagulação. Em pacientes com necessidade de correção imediata, orienta-se a
administração de plasma fresco congelado na dose de 10-15mL/kg, com repetição a
cada 6-8 horas se necessário.
O anticoagulante oral deve ser usado por um período prolongado, que varia de
acordo com a causa da trombose venosa profunda, sua extensão e história prévia da
doença, confirmada com exame de imagem. O tratamento pode durar de três meses a,
até mesmo, por toda a vida.

Tratamento trombolítico
O tratamento trombolítico deve ser considerado em pacientes com sintomas

Pedro Kallas Curiati 208


exuberantes, como flegmasia cerúlea dolens ou trombose iliofemoral maciça. No
entanto, sugere-se solicitar antes da trombólise uma avaliação da cirurgia vascular.

Interrupção da veia cava inferior


A inserção de um filtro em veia cava inferior é indicada geralmente em pacientes
com:
- Contraindicação absoluta à anticoagulação;
- Embolia pulmonar recente a despeito de anticoagulação adequada;
- Antecedente de tromboendarterectomia ou embolectomia pulmonar;

Bibliografia
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.
Clínica Médica, volume 3: doenças hematológicas, oncologia, doenças renais e genitourinárias. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 209


CONTROLE GLICÊMICO
Contexto
A hiperglicemia é frequente em pacientes críticos, diabéticos ou não, e associa-
se a complicações neurológicas e infecciosas e a disfunção mitocondrial, o que parece
ser um fator importante na disfunção de múltiplos órgãos e sistemas.

Objetivos glicêmicos do paciente internado


Em caso de doença crítica, preconiza-se alvo de 140-180mg/dL, com todas as
glicemias inferiores a 200mg/dL.
Em caso de doença não-crítica, preconiza-se glicemia pré-prandial inferior a
140mg/dL e glicemia pós-prandial inferior a 180mg/dL, com todas as glicemias
inferiores a 180mg/dL. Podem ser utilizados alvos mais rigorosos nos pacientes que
apresentam bom controle domiciliar.
Em pacientes terminais ou com muitas comorbidades, alvos maiores são
tolerados.

Medicamentos
Em unidade de terapia intensiva, preconiza-se Insulina por via intravenosa, que é
a forma mais efetiva de alcançar o alvo glicêmico. Em internação hospitalar de paciente
não-crítico, é permitido o uso de Insulina por via subcutânea.
O uso hospitalar das biguanidas é limitado pelo risco de acidose lática,
complicação potencialmente fatal. Fatores de risco incluem insuficiência renal,
hipoperfusão tecidual, idade avançada e doença pulmonar. Em caso de exame
contrastado ou pequeno procedimento, recomenda-se suspender 24 horas antes. Em
unidade de terapia intensiva ou situações que aumentem o risco de insuficiência renal
ou cardíaca, recomenda-se suspender. A reintrodução pode ser feita quando a
administração oral for viável e quando as funções hepática e renal estiverem estáveis.
Sulfoniluréias estão relacionadas a risco aumentado de hipoglicemia. Ajuste de
dose rápido não é factível para atingir alvo em pacientes internados. Em caso de exames
e pequenos procedimentos, recomenda-se suspender no dia e reintroduzir após. Em caso
de cirurgia, internação clínica ou internação em unidade de terapia intensiva,
recomenda-se suspender. A reintrodução pode ser feita quando a administração oral for
viável e quando as funções hepática e renal estiverem estáveis.
As glitazonas apresentam poucos efeitos adversos agudos, mas aumentam o
volume intravascular, com descompensação de insuficiência cardíaca. Não apresentam
benefício de controle imediato de glicemia. Em caso de pequenos procedimentos e
cirurgias, recomenda-se suspender no dia. Em caso de internação clínica ou internação
em unidade de terapia intensiva, recomenda-se suspender. A reintrodução pode ser feita
quando a administração oral for viável e quando as funções hepática e renal estiverem
estáveis.
As glinidas apresentam menor tempo de ação, com menor risco de hipoglicemia
e maior ação no pós-prandial.
Acarbose é pouco potente e apresenta efeitos colaterais gastrointestinais
indesejáveis.
Gliptinas apresentam menor risco de hipoglicemia, mas são pouco potentes.

Administração de Insulina por via subcutânea

Pedro Kallas Curiati 210


Perfil de ação das Insulinas subcutâneas
Tipo Início de ação Pico Duração
Regular 30-60 minutos 2-4 horas 6-8 horas
Lispro, Aspart e Glulisine 5-15 minutos 1-2 horas 4-6 horas
NPH 1-2 horas 5-7 horas 13-18 horas
Glargina 1-2 horas Sem pico 18-24 horas
Detemir 1-2 horas Discreto pico após 2 horas 12-24 horas

Insulinoterapia fisiológica
Insulina basal deve corresponder a metade da dose total diária. Opções incluem
NPH em regime de múltiplas doses, Glargina ou Determir em dose única, Insulina
Regular em regime de múltiplas doses e Insulina de infusão contínua subcutânea.
Insulina prandial deve corresponder a metade da dose total diária. Opções
incluem Insulina Regular e análogos de Insulina ultra-rápida. A administração é
realizada antes do café da manhã, antes do almoço e antes do jantar ou ao deitar. O
aporte calórico pode ser proveniente de Soro Glicosado, nutrição enteral, nutrição
parenteral e refeição oral.
O bolus de Insulina pré-prandial pode ser baseado em doses fixas ou baseado em
contagem de carboidratos e fator de correção. Em média, administra-se 1 UI de Insulina
para cada 10-25g de carboidratos ingeridos e considera-se fator de correção com 1U de
Insulina para diminuir 30-100mg/dL de glicose capilar acima do objetivo glicêmico.
Como exemplo de uso de fórmula para cálculo da dose de correção, que será
acrescida à dose relativa à contagem de carboidratos, em caso de objetivo glicêmico de
100mg/dL, fator de correção de 40mg/dL para cada 1UI de Insulina e escala de glicemia
de 70-140mg/dL, a fórmula de correção será glicemia atual – 100 / 40.

Protocolo de bomba de infusão contínua de Insulina

Protocolo preconizado pela Disciplina de Emergências Clínicas do HC-FMUSP


As indicações incluem cetoacidose diabética, estado hiperglicêmico
hiperosmolar, doença crítica, perioperatório de paciente com diabetes mellitus, parto e
pulso de corticoterapia. Deve-se iniciar sempre que glicemia superior a 180mg/dL, com
o objetivo de mantê-la inferior a 180mg/dL.
Dilui-se 100UI de Insulina Regular em 100mL de Soro Fisiológico.
Inicia-se a infusão intravenosa se glicose capilar superior a 180mg/dL com
2mL/hora ou se glicose capilar superior a 200mg/dL com 4mL/hora.
Deve-se realizar aferição da glicose capilar de 1/1 hora até estabilização dos
níveis glicêmicos e de 2/2 horas a partir de então.
Se glicose capilar inferior a 70mg/dL, a bomba de infusão deve ser desligada,
Soro Glicosado a 50% 40mL deve ser administrado por via intravenosa, a equipe
médica deve ser avisada e nova aferição da glicose capilar deve ser realizada após uma
hora. Se glicose capilar de 71-150mg/dL, a bomba de infusão deve ser desligada e nova
aferição da glicose capilar deve ser realizada após uma hora. Se glicose capilar de 151-
180mg/dL, a velocidade de infusão deve ser mantida. Se glicose capilar superior a
180mg/dL, a velocidade de infusão deve ser aumentada em 2mL/hora.
É necessário manter sempre aporte calórico dos pacientes. Se paciente em jejum,
deve-se administrar Soro Glicosado a 5% 100mL/hora concomitantemente.
Não se deve interromper a infusão contínua intravenosa até que a Insulina
administrada por via subcutânea comece a agir. A dose total diária corresponde a

Pedro Kallas Curiati 211


aproximadamente 80% da quantidade de Insulina necessária em 24 horas.

Protocolo preconizado pela Disciplina de Endocrinologia do HC-FMUSP


Algoritmo A Algoritmo B Algoritmo C Algoritmo D
Glicose U/hora Glicose U/hora Glicose U/hora Glicose U/hora
capilar capilar capilar capilar
(mg/dL) (mg/dL) (mg/dL) (mg/dL)
Se glicose capilar inferior a 70mg/dL, há hipoglicemia
70-139 0 70-139 0 70-139 0 70-139 0
140-169 0.5 140-169 1.0 140-169 1.5 140-169 3.0
170-199 0.8 170-199 1.5 170-199 2.0 170-199 4.0
200-229 1.2 200-229 2.0 200-229 3.0 200-229 5.0
230-259 1.5 230-259 2.0 230-259 4.0 230-259 6.0
260-289 2.0 260-289 3.0 260-289 5.0 260-289 8.0
290-319 2.5 290-319 3.0 290-319 6.0 290-319 10.0
320-349 3.0 320-349 4.0 320-349 7.0 320-349 12.0
350-379 3.5 350-379 4.0 350-379 8.0 350-379 14.0
Superior a 380 4.0 Superior a 380 6.0 Superior a 380 12.0 Superior a 380 16.0
Deve-se iniciar com algoritmo A ou B e realizar controle glicêmico de 1/1 hora.
Se diminuição da glicose capilar é inferior a 60mg/dL, deve-se mudar para o
próximo algoritmo. Se glicose capilar inferior a 100mg/dL em duas medidas ou queda
superior a 100mg/dL, deve-se voltar para o algoritmo anterior. Se paciente em jejum,
deve-se administrar Soro Glicosado a 5% 100mL/hora concomitantemente.

Bibliografia
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Glycemic Control in the ICU. Brian P. Kavanagh and Karen C McCowen. N Engl J Med 2010;363:2540-6.
Curso de insulinoterapia hospitalar. NEAD – Núcleo de Excelência em Atendimento ao Paciente Diabético da Unidade de Diabetes
do Serviço de Endocrinologia e Metabologia da DCM-1 do Hospital das Clínicas da Daculdade de Medician da USP.

Pedro Kallas Curiati 212


DISTÚRBIOS DO EQUILÍBRIO
ACIDOBÁSICO
Definições
Acidemia é definida como pH inferior a 7.35 na gasometria.
Alcalemia é definida como pH superior a 7.45 na gasometria.
Acidose é processo patológico em que há excesso de ácido ou falta de base.
Tende a baixar o pH, mas ele pode ser normal quando há associação de distúrbios.
Alcalose é processo patológico em que há excesso de base ou falta de ácido.
Tende a aumentar o pH, mas ele pode ser normal quando há associação de distúrbios.

Valores de referência
pH 7.40 ± 0.05 Saturação de O2 95-98%
pO2 80-100mmHg Ânion gap 10 ± 2mEq/L
pCO2 40 ± 5mmHg ∆AG / ∆HCO3- 1.0-1.6
[HCO3-] 24 ± 2mEq/L Osmolaridade estimada 290 ± 5mOsm/kg de H2O
Base excess 0 ± 2mEq/L Gap osmolar Até 10mOsm/kg

Etiologia e fisiopatologia
Para a manutenção do equilíbrio acidobásico e de um pH constante, necessita-se
de um adequado funcionamento dos rins, para eliminação dos ácidos fixos, e dos
pulmões, para eliminação do dióxido de carbono.
Desvios do pH afetam o desempenho orgânico e tecidual. Nesse sentido, existem
sistemas-tampão, que são sistemas químicos que tendem a manter o pH constante,
apesar da adição de ácidos ou bases ao meio interno. O principal tampão do extracelular
é o bicarbonato-ácido carbônico e o principal tampão do intracelular é o fosfato.
Os distúrbios podem ser respiratórios Distúrbios pH HCO3- pCO2
e/ou metabólicos. Cada distúrbio acidobásico Acidose metabólica ↓ ↓ ↓
simples leva à resposta compensatória que tende Alcalose metabólica ↑ ↑ ↑
a manter o pH o mais próximo do normal, porém Acidose respiratória ↓ ↑ ↑
Alcalose respiratória ↑ ↓ ↓
sem conseguir normalizá-lo.
A compensação respiratória de um distúrbio metabólico começa em minutos e
está completa em horas, enquanto que a resposta metabólica completa para um distúrbio
respiratório leva de três a cinco dias. Dessa forma, a compensação metabólica de
distúrbios respiratórios tem uma fase aguda, de pequena monta, dependente unicamente
dos sistemas-tampão, e uma fase crônica, dependente da excreção renal de ácido.
Habitualmente, em um distúrbio respiratório agudo, o bicarbonato não varia mais do
que 3-5mEq/L.

Distúrbios acidobásicos simples e mistos


Distúrbio simples corresponde, por definição, à anormalidade inicial e à sua
resposta compensatória esperada. Distúrbio misto, metabólico e respiratório, ocorre, por
definição, quando o grau de compensação não é adequado ou quando a resposta é maior
do que a esperada.
Resposta compensatória nos distúrbios simples:
Fórmulas para distúrbios metabólicos
Acidose metabólica pCO2 = [(HCO3- x 1.5) + 8] ± 2
Alcalose metabólica ∆pCO2 = 0.6 x ∆HCO3-

Pedro Kallas Curiati 213


Fórmulas para distúrbios respiratórios
Acidose respiratória aguda ∆HCO3- = 0.1 x ∆pCO2
Alcalose respiratória aguda ∆HCO3- = 0.2 x ∆pCO2
Acidose respiratória crônica ∆HCO3- = 0.4 x ∆pCO2
Alcalose respiratória crônica ∆HCO3- = 0.5 x ∆pCO2
∆ é a variação entre o valor normal e o valor encontrado na gasometria atual.

Associação de distúrbios metabólicos


Os doentes que procuram o pronto-atendimento frequentemente apresentam
mais de um distúrbio metabólico. Para essa interpretação, utiliza-se o conceito de ânion
gap, que parte do princípio da eletro-neutralidade, calculado através da fórmula [Na+ -
(Cl- + HCO3-)]. Como o sódio excede a soma das principais cargas aniônicas, tem-se o
hiato iônico, cujo valor normal varia em torno de 8-12mEq/L.
Em uma acidose metabólica, tem-se uma diminuição do bicarbonato, o que só
poderá ocorrer se houver aumento do cloro ou do ânion-gap. Dessa forma, há dois tipos
de acidose metabólica, a acidose hiperclorêmica e a acidose por ânion-gap. Na vigência
de um ânion-gap aumentado, especialmente quando superior a 25mEq/L, pode-se
assumir a existência de uma acidose metabólica por aumento de ânion-gap.
Dessa forma, utiliza-se a relação entre delta ânion-gap (∆AG) e delta
bicarbonato (∆HCO3-) para o diagnóstico da ocorrência de mais de um distúrbio
metabólico:
- Quando ∆AG / ∆HCO3- entre 1 e 2, toda a variação do bicarbonato é explicada
pela variação do ânion gap e tem-se uma acidose metabólica com ânion gap
aumentado, isoladamente;
- Quando ∆AG / ∆HCO3- superior a 2, a variação do ânion gap é duas vezes
maior do que a variação do bicarbonato e há, além da acidose por aumento do
ânion gap, um outro distúrbio metabólico que está aumentando o bicarbonato,
ou seja, uma alcalose metabólica associada;
- Quando ∆AG / ∆HCO3- inferior a 1, a variação do bicarbonato é maior que a
variação do ânion gap e pode-se diagnosticar a presença associada de acidose
metabólica com ânion gap normal e acidose metabólica com ânion gap
aumentado;
Se hipoalbuminemia, deve-se corrigir o valor do ânion gap pela fórmula AG
corrigido = AG + 2.5 x (4.0 – albumina sérica).

Exames complementares
Dependem da história, do exame físico e das hipóteses diagnósticas. Entretanto,
alguns exames úteis para a correta interpretação dos distúrbios acidobásicos são:
- Gasometria e lactato arteriais;
- Sódio, potássio e cloro séricos;
- Glicemia;
- Função renal;
- Cetoácidos na urina e/ou no sangue;
Em algumas circunstâncias podem ser solicitados cálculo direto da osmolaridade
sérica e perfil toxicológico.

Abordagem sistemática dos distúrbios acidobásicos


Avaliar qual o distúrbio primário através de pH, bicarbonato, pCO2 e base
excess.
Avaliar se o distúrbio é simples ou misto.
Calcular o ânion gap e o ∆AG / ∆HCO3-.

Pedro Kallas Curiati 214


Na suspeita de intoxicação exógena, calcular o gap osmolar:
- Osmolaridade estimada = (2 x Na+) + (uréia / 6) + (glicose / 18);
- Gap osmolar = osmolaridade medida – osmolaridade estimada;
Conferir se o achado é compatível com o quadro clínico.

Acidose metabólica
Inicialmente, deve-se calcular o ânion gap sérico.
O ânion gap urinário ajuda na diferenciação entre as acidoses metabólicas com
ânion gap normal. Funciona como uma estimativa da excreção renal de NH4+, que é
excretado como NH4Cl, com aumento do cloro urinário e ânion gap urinário negativo,
entre -20mEq/L e -50mEq/L. Em outras palavras, quando o rim não é a causa primária
da acidose metabólica, excreta ácido na vigência de acidose, como seria de se esperar.
Nas acidoses hiperclorêmicas de origem renal, portanto, o ânion gap urinário é positivo,
indicando um defeito na excreção renal de amônio.
A acidose tubular renal, por definição, é uma síndrome clínica caracterizada por
hipercloremia, acidose metabólica e prejuízo da acidificação urinária desproporcionais
ao déficit de filtração glomerular. Os tipos I, distal, e II, proximal, podem ser
congênitos ou adquiridos e associam-se a baixos níveis de potássio. O tipo IV é
adquirido e relacionado a hipoaldosteronismo hiporreninêmico.

Acidose com ânion gap normal ou hiperclorêmica


Perda gastrointestinal de bicarbonato:
- Diarreia;
- Fístula ou drenagem intestinal do intestino delgado;
- Resinas de troca aniônica, como a Colestiramina;
- Ingesta de Cloreto de Cálcio ou de Cloreto de Magnésio;
Perda renal de bicarbonato ou falta de excreção renal de ácido:
- Acidose tubular renal;
- Diuréticos poupadores de potássio;
- Inibidores da anidrase carbônica;
Outros, como recuperação de cetoacidose, acidose dilucional e nutrição
parenteral.

Acidose com ânion gap aumentado


Produção ácida aumentada:
- Cetoacidose diabética, alcoólica ou por jejum;
- Acidose lática;
- Intoxicações exógenas com gap osmolar presente, como aquelas por
metanol e etilenoglicol;
- Intoxicação exógena com gap osmolar ausente, como aquelas por
salicilatos;
Falência da excreção de ácido:
- Insuficiência renal aguda;
- Insuficiência renal crônica;

Tratamento
Graus leves de acidose metabólica são agudamente bem tolerados. Entretanto,
em maior intensidade, com pH inferior a 7.10, a contratilidade miocárdica é diminuída e
ocorre diminuição da resistência periférica.
O tratamento da acidose metabólica dependerá da causa. Exceto em situações de

Pedro Kallas Curiati 215


insuficiência renal ou quando ocorre perda renal ou fecal de álcalis, o uso de
Bicarbonato de Sódio e de outros alcalinizantes é cercado de controvérsias.
O tratamento com álcali nos casos graves é feito com Bicarbonato de Sódio
intravenoso. Deve-se lembrar que a solução de Bicarbonato de Sódio a 8.4% contém
1mEq/mL de Na+ e de HCO3-. Como regra geral, considera-se que se pH inferior a 7.10
e HCO3- inferior a 8mEq/L deve-se repor bicarbonato, não mais do que 50-100mEq ou
1mEq/kg numa infusão ao longo de duas a três horas.
Geralmente considera-se 0.6 x peso (kg) x (24 - HCO3-) o déficit total de
bicarbonato, mas nunca é reposto por completo. Deve-se aumentar o bicarbonato para 8
ou 10mEq/L ou o pH para 7.15 ou 7.20.
Na cetoacidose diabética, a base do tratamento é a Insulina, que permitirá o
metabolismo dos cetoácidos retirados e impedirá a formação de novos cetoácidos. Os
déficits de água, sódio e potássio também devem ser corrigidos. O uso de Bicarbonato
de Sódio tem a seguinte indicação:
- Se pH inferior a 6.9, administrar 100mEq diluídos em 400mL de Água
Destilada por via intravenosa em duas horas;
A cetoacidose alcoólica resulta da combinação entre jejum e efeito direto do
álcool na inibição da neoglicogênese hepática. Ocorre em alcoolistas que param de
beber após uma grande ingesta de etanol. O indivíduo não se alimenta por um misto de
saciedade, êmese e dor abdominal. Do ponto de vista metabólico, leva a distúrbios
mistos, com acidose metabólica, alcalose metabólica por vômitos e alcalose respiratória
por hiperventilação. O tratamento consiste na reposição de volume, carboidrato,
potássio, Tiamina e outros déficits vitamínicos, além de, eventualmente, magnésio e
fósforo.
Na acidose lática, o tratamento é baseado em suporte hemodinâmico e
respiratório, além do tratamento da causa de base da acidose. O uso de Bicarbonato de
Sódio é muito controverso e deve ser restrito a situações de acidose muito grave, com o
uso da regra geral sem nunca ultrapassar a reposição de 1-2mEq/kg.
O tratamento da intoxicação por metanol inclui o uso de bloqueadores
metabólicos, hemodiálise para remoção da droga e reposição de Bicarbonato de Sódio e
de Ácido Fólico. O Etanol e o Fomepizol funcionam como bloqueadores metabólicos.
O tratamento da intoxicação por salicilatos prevê o uso de carvão ativado na
primeira hora da intoxicação para diminuir a absorção adicional da droga e a
alcalinização do sangue com Bicarbonato de Sódio, se necessário, para manter o pH
entre 7.45 e 7.50, o que evita a difusão dos salicilatos para o cérebro. Hemodiálise é
indicada nos casos graves.

Alcalose metabólica
Etiologia:
- Contração de volume, como em vômitos, sonda naso-gástrica aberta,
adenoma viloso dos cólons, uso de diuréticos, estados edematosos,
depleção de potássio ou magnésio, recuperação de acidose metabólica,
síndrome de Bartter, síndrome de Gitelman e uso de ânions não
absorvíveis como Penicilina e Carbenicilina;
- Expansão de volume com renina alta, como em estenose de artéria renal
e hipertensão acelerada maligna, e com renina baixa, como em
hiperaldosteronismo primário, síndrome de Cushing, síndrome de Liddle
e defeitos enzimáticos adrenais hereditários;
- Carga exógena de base, como em uso de Bicarbonato, Citrato, Acetato,
antiácidos e resina de troca aniônica;

Pedro Kallas Curiati 216


Na prática clinica, as alcaloses metabólicas mais graves são associadas à
contração de volume por perda de ácido gástrico ou pela administração de diuréticos de
alça e tiazídicos, denominadas cloreto-sensíveis. Nas alcaloses cloreto-resistentes,
chamam a atenção a hipertensão e a hipocalemia.
Alcalemia grave, com pH superior a 7.60, pode levar a sintomas neurológicos,
como cefaleias, tetania, convulsões, letargia e coma. Há predisposição a arritmias,
especialmente em doentes com cardiopatia de base. A alcalemia deprime a respiração,
com hipercapnia e possível ocorrência de hipóxia, além de prejuízo agudo da liberação
de oxigênio pela hemoglobina nos tecidos.
Como em todo distúrbio acidobásico, é primordial o tratamento da doença de
base. Em algumas situações, especialmente quando ocorre alcalose mista, o pH pode
elevar-se muito e a própria alcalose pode constituir-se em uma emergência. Nesses
casos, com a ocorrência de convulsões e arritmias ventriculares, recomenda-se
intubação, sedação e hipoventilação controlada.
Podem-se infundir soluções acidificantes, embora isso raramente seja necessário.
A simples reposição de volume, suspensão de diurético e introdução de inibidores de
secreção ácida gástrica costumam ser suficientes para o controle da alcalose metabólica.

Acidose respiratória
Acidose respiratória aguda frequentemente é uma urgência médica.
Mecanismos:
- Neuromuscular, como em deformidade da caixa torácica, distrofias
musculares, miastenia gravis e poliomielite;
- Pulmonar, como em barotrauma, doença pulmonar obstrutiva crônica e
síndrome da angústia respiratória aguda;
- Rebaixamento do nível e consciência, como em acidente vascular
encefálico, infecção e uso de anestésicos, Morfina e benzodiazepínicos;
- Vias aéreas, como em asma e obstrução;
- Hipercapnia permissiva;
- Hipoventilação;
- Obesidade;
Deve-se tratar a causa de base.

Alcalose respiratória
Raramente ocorre pH superior a 7.55 e, consequentemente, manifestações graves
geralmente estão ausentes. A exceção é a síndrome de ansiedade e hiperventilação.
Causas:
- Ação no sistema nervoso central, como ansiedade, acidente vascular
encefálico, dor, febre, meningite, trauma e tumores;
- Hipóxia, como ocorre em altas altitudes, anemia grave, aspiração,
edema pulmonar e pneumonia;
- Estímulo dos receptores torácicos, como ocorre em hemotórax, derrame
pleural, embolia pulmonar e insuficiência cardíaca congestiva;
- Efeito hormonal, como ocorre na gravidez e no uso de progesterona;
- Hiperventilação mecânica;
Deve-se tratar a causa de base.

Bibliografia
Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 5. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2010.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,

Pedro Kallas Curiati 217


2008.

Pedro Kallas Curiati 218


DISTÚRBIOS DO EQUILÍBRIO
HIDROELETROLÍTICO
Hiponatremia

Conceito
A hiponatremia é definida como sódio sérico inferior a 135mEq/L

Etiologia e fisiopatologia

Hiponatremia isotônica
Pseudo-hiponatremia ou hiponatremia isotônica pode ocorrer em graves
hipertrigliceridemias ou quando há substancial quantidade de paraproteínas no sangue.
Ocorre apenas com o uso de equipamentos de espectrofotometria de chama, que
detectam apenas o sódio em fase aquosa. Não ocorre com o uso de equipamentos com
eletrodos íon-específicos.

Hiponatremia hipertônica
Em indivíduos com hiperglicemia ou uso de Manitol intravenoso, o aumento da
osmolaridade ocasiona perda de sódio através de diurese osmótica e translocação de
água do intracelular para o extracelular, com hiponatremia hipertônica. Há componente
translocacional, podendo-se corrigir o sódio com a fórmula Na+ corrigido = Na+
medido + 1.6 x [(glicemia – 100) / 100]. Mensurações do sódio por ionometria não
apresentam essa distorção.

Hiponatremia hipotônica
Deve-se buscar sinais de aumento do volume do espaço extracelular, como
ascite e edema de membros inferiores, que podem indicar hiponatremia hipotônica
hipervolêmica. As principais causas são insuficiência cardíaca, insuficiência hepática,
insuficiência renal e síndrome nefrótica. Quanto menor o sódio, pior o prognóstico do
paciente.
Sinais ou sintomas de desidratação indicam hiponatremia hipotônica
hipovolêmica. O paciente pode perder sódio pelos rins, com sódio urinário superior a
20mEq/L, como em uso de diuréticos, hiperglicemia com diurese osmótica,
insuficiência adrenal, nefropatia perdedora de sal e acidose tubular renal, ou apresentar
perdas extra-renais, com sódio urinário inferior a 10mEq/L, como em diarreia, vômitos,
hemorragia, esmagamento muscular, queimaduras e perda de fluidos para o terceiro
espaço em pancreatite, obstrução intestinal e peritonite.
Em caso de hiponatremia com volemia normal, ou seja, na ausência de estado
edematoso ou de desidratação, há hiponatremia hipotônica euvolêmica. Se houver
possibilidade de hipotireoidismo, deve-se dosar hormônio tireo-estimulante (TSH) e T4
livre. Se houver possibilidade de insuficiência adrenal, em pacientes com dor
abdominal, hipotensão, vômitos, escurecimento da pele e/ou hiponatremia acompanhada
de hipercalemia, deve-se internar o paciente e investigar. Se houver possibilidade de
transtorno psiquiátrico, deve-se investigar a ocorrência de polidipsia primária,
caracterizada por ingesta compulsiva de muitos litros de água. Deve-se ainda considerar
a possibilidade de infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) e de uso de

Pedro Kallas Curiati 219


diurético tiazídicos. Na ausência de diagnóstico através das etapas anteriores, é provável
que haja síndrome de secreção inapropriada do hormônio antidiurético, cujas principais
causas são doenças do sistema nervoso central, como acidente vascular cerebral,
hemorragia intracraniana, lesões intracranianas com efeito de massa, trauma crânio-
encefálico, afecções neurodegenerativas e afecções inflamatórias, doenças pulmonares,
como insuficiência respiratória aguda, ventilação mecânica, tuberculose e abscesso
pulmonar, cânceres, como os de pulmão, mediastino, rins, mama, próstata e pâncreas,
além dos linfomas e sarcomas, e pós-operatório, especialmente em associação com
vômitos e dor. As principais características da síndrome são hiponatremia euvolêmica,
uréia e creatinina normais, concentração sérica de sódio baixa e urina concentrada e
hipertônica, com sódio urinário superior a 20mEq/L.
Deve-se detalhar todas as medicações que o paciente usa, já que podem causar
hiponatremia diuréticos tiazídicos, antipsicóticos, antidepressivos tricíclicos,
tetracíclicos e atípicos, inibidores da recaptação de serotonina, estabilizadores do
humor, anticonvulsivantes, benzodiazepínicos, opióides, Clorpropamida, Clofibrato,
Ciclofosfamida e Vincristina, em que frequentemente a hiponatremia é hipotônica
normovolêmica, com síndrome de secreção inapropriada do hormônio antidiurético.
Nesses casos, o risco de hiponatremia é maior no início do tratamento e não depende da
dose do medicamento. A normalização do sódio habitualmente ocorre em quinze dias,
mas pode demorar mais se houver comorbidades.
A síndrome cerebral perdedora de sal é uma condição clínica não-totalmente
compreendida do ponto de vista de sua patogênese. Ocorre mais comumente após
hemorragia subaracnóide, principalmente em associação com vasoespasmo cerebral,
embora também possa ocorrer em associação com neoplasias intracranianas e
meníngeas e no trauma crânio-encefálico grave. A manifestação mais comum é a
poliúria, acompanhada de intensa natriurese, osmolalidade urinária elevada,
osmolalidade plasmática baixa, hipovolemia e sede. Geralmente é autolimitada, com
duração de cerca de três semanas e alta morbidade e mortalidade.

Quadro clínico
Sintomas sistêmicos incluem fraqueza, adinamia, anorexia, fadiga, vômitos e
mal-estar. Manifestações neurológicas costumam ser progressivas e dependem do valor
do sódio sérico e da velocidade de instalação, com sonolência, confusão, convulsões e
coma. Outros sinais e sintomas dependem da etiologia da hiponatremia.
O grau de sintomatologia vai depender não só do nível sérico do sódio, mas,
principalmente, da rapidez com que se instalou o distúrbio.

Avaliação complementar
Além do sódio sérico, do sódio urinário e da glicemia, outros exames podem ser
necessários para o diagnóstico da causa da hiponatremia, como medida direta da
osmolaridade plasmática, dosagem de hormônio tireo-estimulante (TSH) e T4 livre,
dosagem de cortisol sérico basal e após estimulação com cortrosina (ACTH),
radiografia ou tomografia computadorizada de tórax e tomografia computadorizada de
crânio.

Diagnóstico diferencial
Podem simular hiponatremia intoxicações exógenas agudas, hipoglicemia,
hipóxia, hematoma subdural crônico, epilepsia, tumores do sistema nervoso central,
acidente vascular cerebral, sepse e hipercalcemia.

Pedro Kallas Curiati 220


Tratamento
Os princípios do tratamento da hiponatremia incluem suporte clínico, tratamento
da causa de base e aumento do sódio sérico com cautela mediante fórmula de correção.
Hiponatremias de início recente, há menos de 48 horas, podem e devem ser corrigidas
rapidamente, enquanto que distúrbios de maior duração ou de duração não conhecida
devem ser corrigidos lentamente.
Em estados edematosos, quando o paciente está assintomático do ponto de vista
neurológico, o tratamento consiste em restrição hídrica, com 800-1000mL/dia. Se
necessário, pode-se associar Furosemida, pois a diurese induzida é hipo-osmolar, com
perda maior de água do que de sódio, já que a restrição hídrica isolada está relacionada
a correção lenta do sódio, inferior a 1.5mEq/L/dia.
Em pacientes com hiponatremia associada a perda de volume, a prioridade é a
infusão de Soro Fisiológico até que seja restaurada boa perfusão periférica e renal.
Habitualmente, nesses casos, a hiponatremia resulta de secreção máxima de hormônio
antidiurético induzida pela hipovolemia.
Na síndrome da secreção inapropriada de hormônio antidiurético, o rim
apresenta enorme capacidade de excretar sódio e, dessa forma, além de soro
hipertônico, pode ser necessário associar Furosemida para aumentar a excreção de água
livre. Também é descrito nesses casos o uso de Carbonato de Lítio, Demeclociclina e
Fludrocortisona.
Na síndrome cerebral perdedora de sal, a vigorosa infusão de Soro Fisiológico é
necessária para impedir a hipovolemia. A medida do sódio urinário ajuda a programar a
reposição do sódio ao longo do dia e geralmente há a necessidade de infusão de soro de
manutenção com maior oferta de sódio, superior a 150mEq/L, e/ou de oferta de Cloreto
de Sódio pelo trato gastrointestinal. Como medida adjuvante pode-se tentar a associação
de Fludrocortisona.

Fórmula de correção
A variação esperada do sódio sérico com um litro de qualquer solução pode ser
calculada com a fórmula ∆[Na+] = ([Na+] infusão – [Na+] doente) / (água corporal
total + 1).
A preparação utilizada é o Cloreto de Sódio (NaCl) a 3%, com 513mEq/L de
sódio, que pode ser elaborado com 150mL de NaCl a 20% diluído em 850mL de Soro
Glicosado a 5% ou Água Destilada. Já a água corporal total depende do sexo e da idade:
População Água corporal total (peso em Kg)
Homem jovem, com idade inferior a 65 anos Peso x 0.6
Homem idoso, com idade igual ou superior a 65 anos Peso x 0.5
Mulher jovem, com idade inferior a 65 anos Peso x 0.5
Mulher idosa, com idade igual ou superior a 65 anos Peso x 0.45
Recomenda-se variação máxima de 0.5-1.0mEq/L/hora e máximo de 12mEq/L
em 24 horas, com aumento do sódio sérico em 3mEq/L nas primeiras três horas de
tratamento e em mais 9mEq/L nas próximas vinte e uma horas, além de restrição
hídrica, Furosemida intravenosa, avaliação da necessidade de bloqueio do hormônio
antidiurético e tratamento da causa de base.

Complicações
A complicação mais temível é a desmielinização osmótica do sistema nervoso,
central, pontina e extra-pontina, relacionada ao aumento rápido iatrogênico do sódio
sérico. Há maior risco relacionado a mulheres jovens, em que a excreção de osmóis é

Pedro Kallas Curiati 221


dificultada pela ação do estrógeno, hipóxia concomitante, pós-operatório, etilismo e
doença neurológica estrutural prévia. O quadro clínico é caracterizado por tetraparesia
espástica, paralisia pseudobulbar, com mutismo, disartria e disfagia, labilidade
emocional, agitação, paranoia, depressão, coma, alterações pupilares, ataxia,
parkinsonismo e incontinência urinária, que se manifestam dois a seis dias após a
correção da hiponatremia. O curso clínico geralmente é bifásico, com melhora
neurológica transitória relacionada à correção rápida do sódio sérico e sinais de
mielinólise em dois a seis dias. Eventualmente o curso é monofásico. As sequelas mais
comuns são espasticidade, disartria e déficit de memória. Não há correlação entre o
tamanho das lesões e a gravidade da doença. A ressonância nuclear magnética tem
maior sensibilidade que a tomografia computadorizada e as primeiras imagens podem
levar mais de sete dias para surgir. Pode haver aumento de proteínas no líquor e
lentificação generalizada no eletroencefalograma. O tratamento é apenas de suporte. O
principal fator determinante é a variação do sódio nas primeiras 24 horas de tratamento,
mais do que a variação em períodos menores de tempo.

Hipernatremia

Conceito
Hipernatremia é definida como uma concentração sérica de sódio superior a
145mEq/L.

Etiologia e fisiopatologia
As principais causas de hipernatremia são medicamentos, como diuréticos de
alça, Lítio, Anfotericina B, Foscarnet e Demeclociclina, alterações eletrolíticas, como
hipercalcemia e hipocalemia, hiperglicemia com diurese osmótica e perda de água,
doença renal intrínseca com perda de água livre, fase poliúrica da necrose tubular
aguda, perdas pelo trato gastrointestinal, como vômitos, diarreia, fístulas e sonda naso-
gástrica, perdas pela pele, como em queimadura ou sudorese excessiva, e diabetes
insípidus, que pode ser central ou nefrogênico.
Dentre as causas de hipernatremia, deve-se atentar para o diabetes insípidus. A
principal característica é a perda de água livre pelos rins pela falta absoluta de
vasopressina ou pela resistência tubular à sua ação. Há aumento do sódio plasmático e
inapropriada urina hipotônica. O diabetes insípidus pode ser de etiologia idiopática,
central, como em trauma crânio-encefálico, tumores do sistema nervoso central, cistos,
histiocitose, tuberculose, sarcoidose, aneurismas, meningite, encefalite, linfoma,
encefalopatia anóxica, lúpus eritematoso sistêmico, granulomatose de Wegener e
síndrome de Guillain-Barré, ou nefrogênica, congênita ou adquirida, como em
hipercalcemia, hipocalemia, doença cística medular, obstrução crônica baixa de vias
urinárias com hidronefrose, necrose tubular aguda, anemia falciforme, sarcoidose,
amiloidose e uso de Carbonato de Lítio, Demeclociclina, Foscarnet, Anfotericina B,
aminoglicosídeos, Cisplatina e Rifampicina.

Quadro clínico
O achado clínico predominante costuma ser profunda desidratação, com
mucosas ressecadas. A hipernatremia ocasiona sede intensa, fraqueza muscular,
confusão mental, déficit neurológico focal, convulsões e coma. As alterações osmóticas
desencadeadas pela hipernatremia no sistema nervoso central podem ocasionar ruptura
vascular, sangramento cerebral, hemorragia subaracnóidea e sequela neurológica
permanente. Deve-se ter cautela ao atribuir déficits neurológicos localizatórios a

Pedro Kallas Curiati 222


hipernatremia, situação na qual tomografia computadorizada de crânio é mandatória.
Osmolaridade plasmática superior a 320mOsm/L está relacionada a confusão
mental, superior a 340mOsm/L está relacionada a coma e superior a 360mOsm/L está
relacionada a apneia.

Avaliação complementar
O diagnóstico é feito com a dosagem sérica do sódio. Outros exames deverão ser
solicitados de acordo com a hipótese diagnóstica, como osmolalidade sérica,
osmolalidade urinária, glicemia, potássio sérico, cálcio sérico e tomografia
computadorizada de crânio.

Diagnóstico diferencial
A hipernatremia costuma ocorrer em indivíduos que não têm ou não conseguem
ter acesso à água, seja por doença neurológica prévia, seja porque o quadro atual é
doença grave ou doença neurológica ativa.
Em caso de volume extracelular aumentado, deve-se considerar o uso excessivo
de Bicarbonato de Sódio. Em caso de volume extracelular normal ou diminuído, deve-se
avaliar a osmolalidade urinária e o débito urinário. Se urina hipotônica, com
osmolalidade inferior a 250mOsm/L, há diabetes insípidus e o teste com vasopressina
poderá causar aumento da osmolalidade urinária em caso de etiologia central e mínima
alteração da osmolalidade urinária em caso de etiologia nefrogênica. Se urina
concentrada e com débito urinário inferior a 500mL/dia, deve-se considerar perdas pelo
trato gastrointestinal, perdas insensíveis e falta de acesso à água.

Tratamento
O tratamento da hipernatremia tem como objetivos hidratar o paciente, manter a
volemia, corrigir a instabilidade hemodinâmica, evitar a redução rápida e brusca do
sódio e tratar a causa de base. O uso de fórmulas para correção do sódio simplifica o
manejo do paciente, já que permite o cálculo da variação esperada do sódio com um
litro de qualquer solução.
Em pacientes hipovolêmicos, a prioridade é a infusão de Soro Fisiológico até a
estabilização hemodinâmica, com pressão arterial e pulso adequados. Após a
estabilização hemodinâmica, deve-se iniciar o uso de soro hipotônico.
O tratamento do diabetes insípidus central consiste na reposição nasal de
Desmopressina (DDAVP), com 10mcg de 8/8 horas, início de ação em uma hora e
efeito por até seis horas. Na impossibilidade de administração intranasal, utiliza-se
apresentação parenteral, com 4mcg/mL, início de ação em trinta minutos e dose de 1-
2mcg por via subcutânea ou intravenosa até de 8/8 horas.

Fórmula de correção
A variação esperada do sódio sérico com um litro de qualquer solução pode ser
calculada com a fórmula ∆[Na+] = ([Na+] infusão – [Na+] doente) / (água corporal
total + 1). As preparações utilizadas são o Soro Glicosado, com zero de sódio, o Cloreto
de Sódio a 0.9% ou Soro Fisiológico, com 154mEq/L de sódio e o Cloreto de Sódio a
0.45% ou Soro ao Meio, com 77mEq/L de sódio. Recomenda-se variação máxima de
0.5-1.0mEq/L/hora e máximo de 12mEq/L em 24 horas.

Hipocalemia

Conceito

Pedro Kallas Curiati 223


Hipocalemia é definida como uma concentração sérica de potássio inferior a
3.5mEq/L.

Etiologia e fisiopatologia
Diminuição da ingesta isoladamente é causa rara.
Translocação do extracelular para o intracelular pode ocorrer em alcalose
metabólica, uso de medicações como Insulina, β-adrenérgicos, Teofilina, Cafeína,
Vitamina B12 e Ácido Fólico, paralisia periódica hipocalêmica e tireotoxicose.
Perdas pelo trato gastrointestinal ocorrem através de diarreia e vômitos.
Perdas renais são responsáveis pela maioria dos casos de hipocalemia crônica e
podem estar associadas a medicamentos, como diuréticos de alça e tiazídicos, estados
associados a hiperaldosteronismo e hipertensão arterial, como hiperaldosteronismo
primário, estenose de artéria renal, hipertensão acelerada maligna, síndrome de Cushing,
hiperfunção do néfron distal ou síndrome de Liddle e deficiência congênita da enzima
11β hidroxiesteroide desidrogenase, e estados associados a hiperaldosteronismo sem
hipertensão arterial, como síndrome de Bartter e hipovolemia absoluta ou relativa.
Outras causas incluem Anfotericina B, Penicilina em altas doses e sudorese
excessiva.

Quadro clínico
As manifestações clínicas dependem da gravidade da hipocalemia, da velocidade
de instalação da hipocalemia e das doenças de base. Nas hipocalemias mais graves, com
potássio sérico inferior a 2.5mEq/L, podem ocorrer fraqueza generalizada passível de
progredir até tetraplegia flácida, rabdomiólise, íleo paralítico, poliúria decorrente de
tubulopatia e distúrbios do ritmo cardíaco, com extra-sístoles e arritmias.

Exames complementares
As alterações eletrocardiográficas podem ser sutis e incluem ondas U,
achatamento da onda T, depressão do segmento ST, arritmias, principalmente em
cardiopatas e usuários de digitálicos, atividade elétrica sem pulso e assistolia.
Excreção urinária de potássio inferior a 15mEq/dia indica origem extra-renal,
como em sudorese, vômitos e diarreia, enquanto que excreção urinária de potássio
superior a 15mEq/dia indica perda renal de potássio, que pode ser por alteração tubular
ou por hiperaldosteronismo.
Nos casos de perda renal de potássio, o gradiente transtubular de potássio pode
ser calculado com a fórmula (K+ urinário / K+ sérico) / (osmolalidade urinária /
osmolalidade sérica). Quando inferior a 2 indica diurese osmótica, nefropatia perdedora
de sal ou uso atual de diuréticos. Quando superior a 4 na vigência de acidose metabólica
indica cetoacidose diabética, uso de Anfotericina ou acidose tubular renal tipo 1 ou 2.
Quando superior a 4 na vigência de alcalose metabólica indica hiperaldosteronismo,
síndrome de Liddle, deficiência de 11β hidroxiesteroide desidrogenase,
hipomagnesemia, abuso de diuréticos ou síndrome de Bartter.
Deve-se solicitar magnésio sérico.
Acidose metabólica pode indicar perda de potássio pelo trato gastrointestinal.
Alcalose metabólica pode indicar excesso de diuréticos em tempo remoto ou vômitos.
Outros exames deverão ser solicitados de acordo com a suspeita clínica e
incluem aldosterona sérica e atividade de renina plasmática, que podem ser úteis em
caso de hiperaldosteronismo primário, estenose de artéria renal e síndrome de Liddle,
Doppler de artérias renais, que pode ser útil na suspeita de estenose de artéria renal, e
dosagem de hormônio tireo-estimulante (TSH) e de T4 livre, que pode ser útil na

Pedro Kallas Curiati 224


suspeita de tireotoxicose.

Diagnóstico diferencial
Inclui o diagnóstico das condições que podem levar à hipocalemia e das
condições que podem simular hipocalemia em indivíduos com potássio sérico normal.

Tratamento
O tratamento da hipocalemia abrange suporte clínico, tratamento da doença de
base e reposição de potássio.
O grau de depleção de potássio corporal é variável, mas, como regra geral, para
cada 1mEq/L de redução na concentração sérica há um déficit corporal total de 150-
400mEq. Por esse motivo, após a correção da concentração sérica do potássio, é
necessária a manutenção da reposição durante vários dias a várias semanas.
Cloreto de Potássio (KCl) xarope a 6% contém 12mEq de potássio em 15mL,
com dose usual de 10-20mL por via oral após as refeições, três a quatro vezes ao dia.
Cloreto de Potássio (KCl) xarope a 10% contém 13mEq de potássio em 10mL. Cloreto
de Potássio (KCl) comprimido de 600mg contém 8mEq de potássio, com dose usual de
1-2 comprimidos por via oral após as refeições, três a quatro vezes ao dia. Cloreto de
Potássio (KCl) a 19.1% contém 2.5mEq/mL de potássio, com ampolas disponíveis de
10mL e administração por via intravenosa.
A via oral é prioritária em função da segurança. Deve-se evitar o uso de potássio
intravenoso quando a concentração sérica for superior a 3mEq/L. Soluções de potássio
muito concentradas devem ser evitadas, pois podem causar flebite, sendo recomendada
concentração máxima em veia periférica de 40mEq/L e em veia central de 60mEq/L. A
velocidade ideal para reposição intravenosa de potássio é de 5-10mEq/hora e a
velocidade máxima para reposição intravenosa de potássio é 20-30mEq/hora. Em
situações de hipocalemia, deve-se evitar repor potássio em soluções com glicose, que
estimula a liberação de Insulina e pode piorar a hipocalemia. Após a normalização do
potássio, deve-se continuar a reposição por via oral por dias a semanas.

Complicações
Aquelas relacionadas ao tratamento incluem hipercalemia iatrogênica,
sobrecarga de volume, edema pulmonar e flebite.

Hipercalemia

Conceito
Hipercalemia é definida pela concentração sérica de potássio superior a 5mEq/L.

Etiologia e fisiopatologia
Deve-se sempre estar atento para a possibilidade de uma pseudo-hipercalemia,
que pode estar associada a coleta inadequada, com agulha fina, garroteamento firme,
tubo a vácuo e demora para o processamento da amostra, ou a estados com aumento do
número de células hematológicas, como leucocitose, poliglobulias e trombocitose. Se
houver suspeita, deve ser colhida uma nova amostra de sangue fresco heparinizado com
técnica rigorosa para evitar hemólise.
Acidose metabólica promove um deslocamento do potássio intracelular para o
meio extracelular.
Aumento da ingesta pela dieta raramente causa hipercalemia, mas pode ter um
papel importante se houver associação com insuficiência renal ou uso de agentes que

Pedro Kallas Curiati 225


retenham potássio.
Os medicamentos mais frequentemente associados à hipercalemia incluem anti-
inflamatórios não-hormonais, antagonistas de receptores da angiotensina II, como
Losartan, Valsartan, Irbesartan e Candesartan, β-bloqueadores, diuréticos poupadores de
potássio, como Amilorida, Espironolactona e Triantereno, inibidores da enzima
conversora da angiotensina, como Captopril, Enalapril, Linisopril, Fosinopril e
Ramipril, suplementos de potássio, digitálicos, Succinilcolina, Heparina,
Sulfametoxazol-Trimetoprim, Ciclosporina e Pentamidina.
Algumas situações estão associadas a quebra ou lise celular, como em
rabdomiólise, hemólise e lise tumoral espontânea ou associada ao início de
quimioterapia. A hipercalemia também pode estar associada a excreção prejudicada de
potássio, como em insuficiência renal e estados de hipoaldosteronismo. Este pode estar
relacionado a destruição da mácula no túbulo renal distal com hiporreninemia, como em
diabetes mellitus, nefropatias intersticiais e uso de anti-inflamatórios não-hormonais, ou
a destruição da glândula supra-renal, como em autoimunidade, tuberculose, infecções
fúngicas, infecções virais, necrose e iatrogenia.
O aumento do aporte pode estar relacionado a dieta parenteral e a iatrogenia.

Quadro clínico
As manifestações clínicas são inespecíficas e podem se confundir com a própria
doença de base, com fraqueza, adinamia, insuficiência respiratória, parestesias, fraqueza
muscular, diminuição de reflexos, paralisia flácida ascendente, extra-sístoles, bloqueio
atrioventricular, fibrilação ventricular e assistolia. Manifestações específicas de cada
doença podem estar sobrepostas.

Avaliação complementar
O eletrocardiograma pode ser muito útil. As principais alterações incluem onda
T apiculada, achatamento da onda P, prolongamento do intervalo PR, alargamento do
complexo QRS, ritmo idioventricular, formação de onda sinusoidal, fibrilação
ventricular e assistolia.
Outros exames deverão ser solicitados de acordo com a suspeita clínica, como
função renal, gasometria e urina I para identificar causa renal, glicemia e cetonúria para
identificar descompensação diabética, creatinofosfoquinase para identificar
rabdomiólise e exames de função adrenal para identificar síndrome de Addison.

Diagnóstico diferencial
Inclui o diagnóstico das condições que podem levar a hipercalemia e das
condições que podem simular hipercalemia em indivíduos com potássio sérico normal.

Tratamento
O tratamento depende da severidade da hipercalemia e da condição clínica do
paciente. Promovem translocação do potássio do extracelular para o intracelular β2
agonista inalatório, Bicarbonato de Sódio e solução polarizante. Promovem diminuição
do potássio corporal diurético de alça, como a Furosemida, resinas trocadoras de íons,
como a Sulfona Poliestireno de Cálcio (Sorcal), e métodos dialíticos. Promove
estabilização elétrica do miocárdio sem alterar o potássio sérico Gluconato de Cálcio.
A Sulfona Poliestireno de Cálcio (Sorcal) não é absorvida e pode causar
constipação. Recomenda-se que seja diluída com um laxante, como Manitol ou Sorbitol.
A via preferencial é a oral, mas se houver vômitos pode-se utilizar a via retal com
enema de retenção, em que a dose é dobrada.

Pedro Kallas Curiati 226


O Bicarbonato de Sódio é menos eficaz quando há insuficiência renal crônica e
pode causar sobrecarga de volume, já que para cada 1mEq de bicarbonato há 1mEq de
sódio. Há benefício apenas em hipercalemia com acidose associada.
Leve Moderada Grave
5-6 mEq/L 6.1- Superior a
7.0mEq/L 7mEq/L
Furosemida 1mg/kg por via intravenosa até de 4/4 Possível Possível Possível
horas
Sorcal 30g diluído em Manitol a 10-20% 100mL Sim Sim Sim
de 8/8 a 4/4 horas
Pode-se dobrar a dose se necessário
Inalação com β2-agonista, como Em geral não há Sim Sim
Fenoterol ou Salbutamol, com 10 gotas até de 4/4 necessidade
horas
Solução polarizante com Insulina Regular 10U e Em geral não há Sim Sim
50g de glicose (500mL de Soro Glicosado 10% ou necessidade, mas
100mL de Soro Glicosado a 50%) por via pode ser prescrita
intravenosa até de 4/4 horas, com cuidado com
hipoglicemia
Bicarbonato de Sódio 1mEq/kg por via intravenosa Em geral não é Em geral não Em geral
lento até de 4/4 horas indicado é indicado não é
Pouco útil na insuficiência renal pela sobrecarga de indicado
volume, mas pode ser mais útil na rabdomiólise
Diálise Em geral não é Pode ser Pode ser
Hemodiálise é mais eficaz. indicado indicada indicada
Gluconato de Cálcio a 10% é indicado quando houver qualquer alteração
eletrocardiográfica compatível com hipercalemia, independentemente do nível sérico do
potássio. Entretanto, não deve ser prescrito profilaticamente. Dilui-se 10-20mL de
Gluconato de Cálcio a 10% em 100mL de Soro Fisiológico ou Soro Glicosado e
infunde-se em dois a cinco minutos. O eletrocardiograma deve ser repetido após a
infusão e, se persistirem as alterações, a medicação deverá ser repetida. A duração varia
de trinta a sessenta minutos, com proteção do miocárdio contra arritmias mais graves.

Complicações
Aquelas associadas ao tratamento da hipercalemia incluem hipoglicemia ou
hiperglicemia, sobrecarga de volume, edema agudo de pulmão e diarreia.

Hipocalcemia

Conceito
A hipocalcemia é definida como cálcio total inferior a 8.5mg/dL ou cálcio
ionizado inferior aos limites da normalidade. A hipoalbuminemia pode levar a
mensuração de cálcio total diminuída e, por esse motivo, a concentração do cálcio
sérico deve ser ajustada para a concentração de albumina através da fórmula Ca++
corrigido = Ca++ medido + [(4 – albumina) x 0.8].

Etiologia e fisiopatologia
Dentre as principais causas de hipocalcemia destacam-se alcalose, sepse,
hipoparatireoidismo primário, hipoparatireoidismo pós-cirúrgico, pseudo-
hipoparatireoidismo, hipomagnesemia, hiperfosfatemia, drogas anticonvulsivantes,
hipovitaminose D, doença hepática crônica, síndrome nefrótica, disfunções tubulares,
raquitismo dependente de vitamina D, pancreatite, metástases osteoblásticas de
carcinoma de próstata e uso de fármacos, como Heparina, aminoglicosídeos,

Pedro Kallas Curiati 227


bifosfonados, Rifampicina, Isoniazida e inibidores da bomba de prótons.

Quadro clínico
A hipocalcemia afeta praticamente todos os órgãos, porém os sintomas são mais
proeminentes nos sistemas neuromuscular e cardiovascular. O início dos sintomas está
mais relacionado com a velocidade da queda da concentração do cálcio do que com os
níveis de cálcio observados. Além disso, o determinante dos sintomas é o cálcio
ionizado.
Nos sistemas neuromuscular e tegumentar, podem ocorrer cãibras, hiperreflexia,
parestesias de extremidades e periorais, tetania, convulsões, laringoespasmo,
broncoespasmo, pele seca, alopecia, alterações dentárias, calcificação dos núcleos da
base, sinal de Chvostek e sinal de Trosseau. O sinal de Chvostek consiste na percussão
do nervo facial em seu trajeto a cerca de 2cm do lobo da orelha, com contrações dos
músculos perilabiais ipsilaterais. O sinal de Trosseau é obtido insuflando o
esfigmomanômetro 20mmHg acima da pressão sistólica por três minutos, com
contração do músculo adutor do polegar, flexão metacarpofalangeana, extensão
interfalangeana e flexão do punho. A hipocalcemia grave também é associada a
papiledema e, ocasionalmente, neurite óptica, que tendem a melhorar com a correção do
distúrbio eletrolítico. Cataratas e, menos frequentemente, ceratoconjuntivite podem
ocorrer.
No sistema cardiovascular pode ocorrer hipotensão refratária, bradicardia,
bloqueio atrioventricular total, arritmias, diminuição da contratilidade cardíaca com
sintomas de insuficiência cardíaca e alargamento do intervalo QT.

Avaliação complementar
Na fase aguda deve-se proceder da mesma forma que na hipercalcemia, com
solicitação dos exames direcionados para a suspeita clínica.
O comportamento dos níveis séricos de fósforo pode auxiliar na identificação da
etiologia da hipocalcemia. A hiperfosfatemia sugere hipoparatireoidismo, pseudo-
hipoparatireoidismo e insuficiência renal, enquanto que a hipofosfatemia é comumente
observada em casos de hiperparatireoidismo secundário por diminuição da produção
renal de calcitriol e em outros distúrbios da vitamina D.
Medidas séricas do PTH podem distinguir os pacientes com hipoparatireoidismo
primário daqueles com pseudo-hipoparatireoidismo.

Diagnóstico diferencial
Abrange tétano, miotonias, hipertermia maligna, distúrbios extrapiramidais,
convulsões e insuficiência cardíaca.

Tratamento
Em todos os casos, deve-se tratar a patologia de base e suspender sempre que
possível os fármacos que induzem hipocalcemia. A hipocalcemia sintomática deve ser
tratada com urgência em virtude da possibilidade de tetania, convulsões, arritmias e
laringoespasmo ou broncoespasmo. Para fins didáticos, a hipocalcemia pode ser
considerada leve quando ocorrer uma queda inferior a 20% do cálcio ionizado sem a
presença de sintomas ou grave quando ocorrer uma queda superior a 20% e/ou a
presença de sintomas. Os demais eletrólitos devem ser avaliados em conjunto e
corrigidos inicialmente, em especial o magnésio e o potássio. Sugere-se a reposição de
2g de Sulfato de Magnésio em 100mL de Soro Fisiológico em dez minutos como
esquema de reposição.

Pedro Kallas Curiati 228


Nos casos leves, preconiza-se Carbonato de Cálcio 1250mg, correspondente a
500mg de cálcio elementar, por via oral duas a três vezes ao dia nas refeições e
Calcitriol 0.25-0.50mcg por via oral uma vez ao dia. Em paciente crítico, prefere-se
monitorizar os níveis séricos a cada seis horas e não tratar.
Nos casos graves deve-se introduzir o tratamento de urgência. A melhor via para
reposição aguda do cálcio é a intravenosa. Preconiza-se ataque com 10-20mL de
Gluconato de Cálcio a 10% em 100mL de solução isotônica por via intravenosa em dez
minutos. Reposições rápidas estão associadas a arritmias e até mesmo parada
cardiorrespiratória. A manutenção é conduzida com 50mL de Gluconato de Cálcio a
10% em 415mL de solução isotônica por via intravenosa em bomba de infusão contínua
com 0.5mg/kg/hora, que corresponde a 0.5mL/kg/hora. Deve-se monitorizar a calcemia
a cada seis horas e, após a normalização dos níveis de cálcio, a reposição por via oral
deve ser iniciada de modo semelhante à terapia crônica, com Carbonato de Cálcio e
Calcitriol concomitantes à redução progressiva da infusão intravenosa.
Raros pacientes com insuficiência renal crônica apresentam hipocalcemia
sintomática e o principal objetivo é prevenir a doença óssea. Inicialmente, deve-se
prescrever um quelante de fósforo, com preferência pelo uso do Carbonato de Cálcio. A
reposição de Vitamina D na forma de Calcitriol também é necessária na grande maioria
dos casos, principalmente se houver hiperparatireoidismo grave associado.

Hipercalcemia

Conceito
Hipercalcemia é definida como cálcio sérico superior a 10.5mg/dL e cálcio
iônico superior ao limite da normalidade.

Etiologia e fisiopatologia
A causa mais comum de hipercalcemia ambulatorial é o hiperparatireoidismo
primário, enquanto que no ambiente hospitalar é a hipercalcemia humoral maligna.
As causas endocrinológicas incluem hiperparatireoidismo primário e secundário,
hipertireoidismo, acromegalia e feocromocitoma.
As neoplasias podem causar hipercalcemia por meio de dois mecanismos
principais:
- Produção de um peptídeo denominado PTH related peptide (PTHrp),
geralmente encontrado em tumores de células escamosas, como os de
pulmão, laringe, esôfago, colo uterino e pele, além de tumores de rins,
bexiga, ovário, endométrio e mama, com a denominação de
hipercalcemia humoral maligna;
- Produção de fatores osteolíticos locais, principalmente no câncer de
mama e no mieloma múltiplo;
Mais raramente, alguns tipos de linfomas podem secretar 1,25 dihidróxi-
vitamina D e outros tumores podem secretar PTH, causando hiperparatireoidismo
ectópico.
Doenças infecciosas granulomatosas, como tuberculose, hanseníase,
histoplasmose e outras doenças fúngicas, assim como condições não-infecciosas
granulomatosas, como sarcoidose, granulomatose de Wegener e granuloma eosinofílico,
são associadas com produção aumentada de 1,25 dihidróxi-vitamina D e, portanto, com
absorção intestinal aumentada de cálcio. Outras causas de hipercalcemia são
imobilização no leito, intoxicação por ingesta de vitamina D durante reposição em doses
inadequadas, uso de diuréticos tiazídicos, tireotoxicose, insuficiência renal crônica, uso

Pedro Kallas Curiati 229


de suplementos de cálcio, Lítio e hipercalcemia hipocalciúrica familiar.

Quadro clínico
Os sintomas são inespecíficos e podem inexistir ou se confundir com os
sintomas de outras patologias. O quadro clínico se torna mais acentuado quando o nível
de cálcio ultrapassa 12mg/dL.
No sistema gastro-intestinal pode ocorrer mal-estar geral, náusea, vômitos,
constipação e pancreatite. Dor abdominal e úlcera gástrica podem estar presentes.
No sistema cardiovascular, pode ocorrer aumento da resistência vascular,
alteração da contratilidade cardíaca com surgimento de arritmias, encurtamento do
intervalo QT e predisposição para intoxicação digitálica.
No sistema renal, pode ocorrer poliúria por ativação do receptor sensor do
cálcio, polidipsia, desidratação e hipovolemia. A excreção aumentada de cálcio
predispõe à litíase renal.
No sistema neurológico, pode ocorrer confusão mental, rebaixamento do nível
de consciência e até coma.

Avaliação complementar
Na avaliação inicial da hipercalcemia, deve-se dosar o cálcio iônico. Se esse
exame não estiver disponível, o cálcio total deve ser avaliado junto com a albumina,
com correção do valor obtido através de fórmula específica (cálcio total em mg/dL =
cálcio total aferido em mg/dL + 0.8 x [3.5 – albumina aferida em g/dL]). A dosagem
alterada do cálcio deve sempre ser repetida para confirmar o diagnóstico e excluir os
erros de análise laboratorial ou de coleta.
No atendimento de urgência, deve-se dosar também potássio, sódio, magnésio,
fósforo, glicose, uréia e creatinina. Deve-se solicitar um eletrocardiograma e outros
exames de acordo com as hipóteses diagnósticas formuladas. Deve-se dosar o
paratormônio, que quando elevado sugere o diagnóstico de hiperparatireoidismo
primário, podendo também corresponder a uso de Lítio e a hipercalcemia hipocalciúrica
familiar. Valores normais de paratormônio indicam a necessidade de pesquisar
eventuais neoplasias ou outras afecções que cursam com hipercalcemia.
História, exame físico, radiografia de tórax, paratormônio, 1,25 dihidróxi-
vitamina D, fosfato e fração de excreção de cálcio apresentam acurácia diagnóstica de
99%. Também podem ser solicitadas radiografias de crânio e ossos longos em caso de
suspeita de mieloma múltiplo e cintilografia óssea em caso de suspeita de outras
neoplasias com metástase óssea.

Tratamento
O tratamento da hipercalcemia consiste na terapêutica específica da doença de
base e na correção da calcemia no serviço de emergência. Na hipercalcemia leve, com
cálcio total entre o limite superior da normalidade e 12mg/dL e cálcio ionizado entre o
limite superior da normalidade e 6mg/dL, geralmente os pacientes são assintomáticos e
o tratamento deve ser direcionado à doença de base, com repetição da dosagem e
monitorização dos níveis séricos. Na hipercalcemia moderada, caracterizada por níveis
séricos de cálcio total de 12-13.9mg/dL e de cálcio ionizado de 6-6.9mg/dL, os
pacientes já apresentam sintomas e deve ser instituída terapêutica específica. Na
hipercalcemia grave, com níveis de cálcio total superiores ou iguais a 14mg/dL e de
cálcio ionizado superiores ou iguais a 7mg/dL, os sintomas são mais pronunciados e
deve ser instituído o tratamento de urgência.
1. Medidas gerais:

Pedro Kallas Curiati 230


- Suspender o uso de fármacos que elevam a calcemia, como diuréticos
tiazídicos, Lítio e vitaminas A e D;
- Restringir a suplementação de cálcio, tanto por via intravenosa como
por via oral;
- Mobilizar o paciente, quando possível;
2. A restauração volêmica visa corrigir a desidratação e garantir a diurese. Deve-
se utilizar solução salina isotônica até a restauração da volemia e a partir de então
avaliar a osmolaridade e os distúrbios eletrolíticos associados para escolher a solução a
ser infundida. Pode-se começar a infusão com 200-300mL/hora com monitorização da
presença de sinais de sobrecarga hídrica, mas a posologia depende do nível de
desidratação e do estado cardiovascular. O alvo é diurese de 100-150mL/hora.
3. Após a expansão volêmica, pode-se estimular a diurese com Furosemida 20-
40mg por via intravenosa a cada 6-12 horas, visando manter o débito urinário em torno
de 100-150mL/hora para espoliar cálcio.
4. Bifosfonados diminuem a liberação de cálcio pelos ossos:
- Pamidronato 60-90mg (1.0-1.5mg/kg) diluído em 250mL de Soro
Fisiológico ou Soro Glicosado a 5% e administrado por via intravenosa
em quatro horas, com ação mais pronunciada cerca de 48 horas após a
administração e possibilidade de repetição a cada 21 dias;
- Zolendronato (Ácido Zolendrônico) 4mg diluído em 100mL de Soro
Fisiológico ou Soro Glicosado a 5% e administrado por via intravenosa
em quinze minutos, com alta potência, redução mais rápida do cálcio e
possibilidade de repetição a cada três a quatro semanas;
5. Calcitonina de salmão 4-8UI/kg por via intramuscular ou subcutânea a cada 8-
12 horas pode ser empregada nos casos graves sintomáticos por causa do seu pico de
ação precoce, em torno de seis horas após a administração. Sua eficácia é limitada a um
período de 48-72 horas pelo surgimento de taquifilaxia.
6. Quando a causa da hipercalcemia é intoxicação por vitamina D, doença
granulomatosa ou doença responsiva a esteroides, como linfoma, mieloma e alguns
casos de câncer de mama metastático, pode-se utilizar Hidrocortisona 100-200mg por
via intravenosa a cada 8-12 horas ou Prednisona 40-100mg por via oral uma vez ao dia
durante cerca de dez dias.
A diálise peritoneal e a hemodiálise sem cálcio no fluido devem ser consideradas
em pacientes refratários a outros tratamentos.
A presença de hipofosfatemia dificulta o tratamento da hipercalcemia. Fósforo
pode ser reposto por via oral ou através de sonda nasogástrica ou nasoenteral com o
objetivo de manter nível sérico de 2.5-3.0mg/dL e o produto cálcio-fósforo inferior a
quarenta.

Hipomagnesemia

Conceito
A hipomagnesemia é definida como magnésio sérico inferior a 1.7mg/dL, sendo
grave quando inferior a 1.2mg/dL.

Etiologia e fisiopatologia
Perdas gastrointestinais, como em drenagem por sonda naso-gástrica
prolongada, vômitos, diarreia aguda ou crônica, má-absorção, esteatorreia, ressecção
intestinal extensa, fístula intestinal, hipomagnesemia intestinal primária, pancreatite
aguda, desnutrição grave e síndrome de realimentação.

Pedro Kallas Curiati 231


Perdas renais, como em administração de fluidoterapia prolongada,
hipervolemia, hipercalcemia com hipercalciúria, depleção de fósforo, correção de
acidose metabólica crônica por desnutrição ou etilismo, diurese osmótica, nefropatia
intersticial, diurese pós-obstrutiva, insuficiência renal aguda em fase poliúrica,
transplante renal, hipomagnesemia renal primária e uso de drogas, que incluem
diuréticos tiazídicos e de alça, aminoglicosídeos, Cisplatina, Anfotericina B,
Ciclosporina A, Foscarnet e Pentamidina.
Causas endocrinológicas, como hiperparatireoidismo, hipertireoidismo,
síndrome da secreção inapropriada do hormônio antidiurético e cetoacidose diabética.
Causas relacionadas à redistribuição, como uso de Epinefrina, síndrome da fome
óssea, transfusão sanguínea excessiva e alcalose respiratória aguda.
Outras causas incluem revascularização do miocárdio, grandes queimaduras e
etilismo.

Quadro clínico
Manifestações do sistema nervoso central incluem confusão, irritabilidade,
delírios, alucinações e rebaixamento do nível de consciência.
Manifestações do sistema neuromuscular incluem tetania, sinal de Chvostek,
sinal de Trosseau, espasmo carpopodal, convulsões generalizadas ou focais,
hiperreflexia, clônus, fasciculação muscular, tremores, fraqueza muscular, dificuldade
nos movimentos finos, insônia, nistagmo, ataxia, vertigem, disartria e movimentos
musculares involuntários atetoides ou coreiformes de extremidades.
Manifestações cardíacas incluem taquicardia sinusal ou nodal, extra-sístoles
ventriculares ou supra-ventriculares, arritmias, depressão do segmento ST e
achatamento ou inversão de onda T.
Manifestações gastrointestinais incluem anorexia, vômitos, íleo paralítico e má-
absorção.
Manifestações eletrolíticas incluem hipocalemia e hipocalcemia.
Outras manifestações incluem incontinência urinária e púrpura.

Tratamento
Devem ser tratados todos os pacientes com manifestações clínicas de
hipomagnesemia ou que apresentem complicações possivelmente decorrentes de déficit
de magnésio, mesmo que o nível sérico não esteja baixo, já que nem sempre reflete o
magnésio corpóreo total. Além disso, é necessário investigar a causa do distúrbio
eletrolítico e enfatizar sua correção sempre que possível.
A reposição por via oral é preferencial, principalmente em pacientes
assintomáticos, já que a infusão aguda de magnésio pode diminuir a reabsorção renal na
alça de Henle. As apresentações orais contém Pidolato de Magnésio, equivalente a
130mg, 5mmol ou 10mEq do elemento, com posologia preconizada de dois a quatro
flaconetes por dia. Não devem ser utilizadas preparações à base de fosfatos. Em caso de
tratamento com Tetraciclinas ou preparações à base de cálcio por via oral, recomenda-se
respeitar intervalo de pelo menos três horas. Pode ocasionar diarreia.
A reposição intravenosa é indicada para hipomagnesemia moderada a grave
sintomática. Se houver hipocalcemia associada, a reposição de magnésio deve ser
mantida por três a cinco dias. Sulfato de Magnésio a 10%, com ampola de 10mL,
contém 0.81mEq/mL. Sulfato de Magnésio a 20%, com ampola de 10mL, contém
1.62mEq/mL. Sulfato de Magnésio a 50%, com ampola de 10mL, contém 4.05mEq/mL.
Preconiza-se infusão de 1-2g de Sulfato de Magnésio por hora durante três a seis horas,
com infusão de manutenção de 0.5-1.0g por hora após o ataque. Nos casos com

Pedro Kallas Curiati 232


arritmias agudas graves, tetania ou convulsões, prefere-se 1-2g de Sulfato de Magnésio
por via intravenosa em cinco minutos e a seguir 0.5-1.0g/hora. O nível sérico deve ser
verificado a cada quatro horas durante a reposição.

Situações específicas
Em caso de tetania, convulsões ou síndromes relacionadas, preconiza-se Sulfato
de Magnésio a 10% 10mL por via intravenosa com velocidade de infusão de
2mL/minuto. Em situações menos urgentes, pode-se utilizar 0.5mEq/kg/dia e,
subsequentemente, 0.2-0.3mEq/kg/dia conforme a resposta clínica.
Em caso de fibrilação ventricular refratária à desfibrilação ou à Amiodarona,
preconiza-se Sulfato de Magnésio a 10% 10-20mL diluídos em Soro Glicosado a 5%
10mL por via intravenosa em bolus, com dose de manutenção de 0.5-1.0g/hora por via
intravenosa, com ajuste conforme os níveis séricos.
Em caso de uso de diurético tiazídico sem possibilidade de suspensão da droga,
pode haver benefício com a associação com diurético poupador de potássio, como
Amilorida.
Em caso de perda intestinal ou renal, são necessários 30-40mEq/dia para obter
resultado terapêutico.
Em caso de cetoacidose diabética, a adição de 2.5mEq por litro de solução
previne o déficit.
Em caso de uso de nutrição parenteral, a adição de magnésio na dose de
0.04mEq/kg/dia já é suficiente para manter os níveis séricos do cátion.
Em caso de eclâmpsia, preconiza-se Sulfato de Magnésio a 20% 20mL por via
intravenosa em 15-20 minutos ou Sulfato de Magnésio a 50% 20mL por via
intramuscular profunda dividido nas duas nádegas.
Em caso de crise asmática, o Sulfato de Magnésio pode ser utilizado de maneira
conjunta com outras terapias, com 25-75mg/kg por via intravenosa em vinte minutos e
dose máxima de 2g. A dose inalatória é de 1.5mL de Sulfato de Magnésio a 10%, com
três inalações com intervalos de vinte minutos.

Complicações
Em doses terapêuticas, o magnésio causa mínimos efeitos colaterais, como calor
e rubor facial. Pode ocorrer hipotensão transitória durante infusões rápidas. Nível sérico
superior a 12mg/dL causa alteração de condução cardíaca, fraqueza muscular, abolição
dos reflexos e insuficiência respiratória. Uma forma simples de monitorizar a toxicidade
é avaliar o reflexo patelar.

Hipermagnesemia

Conceito
Hipermagnesemia é definida como magnésio sérico superior a 2.2mg/dL.

Etiologia e fisiopatologia
Iatrogenia sempre deve ser considerada, principalmente em pacientes
hospitalizados.
Diminuição da filtração glomerular pode ser causada por insuficiência renal
funcional ou orgânica.
Sobrecarga exógena de magnésio pode ser causada por antiácidos, laxantes
(enema de Sulfato de Magnésio), tratamento de eclâmpsia e hemodiálise.
Sobrecarga endógena de magnésio pode ser causada por catabolismo celular e

Pedro Kallas Curiati 233


cetoacidose diabética.
Diminuição da excreção renal de magnésio pode ser causada por
hipotireoidismo, deficiência de mineralocorticoide, hiperparatireoidismo e
hipercalcemia hipocalciúrica familiar.
A hipermagnesemia produz hipoexcitabilidade neuromuscular e pode levar ao
bloqueio da transmissão neuromuscular de maneira semelhante ao curare, com inibição
pré-sináptica da liberação de Acetilcolina. Tal efeito é antagonizado pelo cálcio.

Quadro clínico
Magnésio sérico de 3.6-6.0mg/dL cursa com tendência para hipotensão arterial,
vasodilatação periférica, rubor facial, sensação de calor, sede, náusea e vômitos.
Magnésio sérico de 6.0-8.4mg/dL cursa com sonolência, letargia, disartria e
sedação.
Magnésio sérico de 8.4-12.0mg/dL cursa com hiporreflexia profunda, fraqueza
muscular, paralisia de musculatura esquelética poupando o diafragma, paralisia do
músculo adutor da corda vocal, paralisia de alguns músculos faciais, paralisia de
músculo liso com dificuldade de micção, confusão mental e pupilas dilatadas com
reação diminuída a luz. Eletrocardiograma pode revelar prolongamento do intervalo PR,
alargamento do complexo QRS e aumento da altura da onda T.
Magnésio sérico de 12.0-18.0mg/dL cursa com depressão do centro respiratório,
com períodos de apneia progressivamente mais longos, paralisia muscular, coma e
hipotensão refratária. Eletrocardiograma pode revelar prolongamento dos intervalos PR
e QT, distúrbio de condução intraventricular, bradicardia sinusal, bloqueio
atrioventricular parcial ou completo e aumento da sensibilidade a estímulo vagal.
Magnésio sérico de 18.0-24.0mg/dL cursa com coma, apneia e parada
cardiorrespiratória.

Tratamento
Pacientes com função renal preservada usualmente respondem com a
descontinuidade da suplementação de magnésio sob qualquer forma, sem necessitar de
outras intervenções farmacológicas. Deve-se restringir a administração de magnésio
com identificação e remoção da sobrecarga exógena. Em caso de uso de nutrição
parenteral, o sulfato de magnésio deverá ser removido da composição. Indivíduos que
toleram expansão volêmica devem receber solução salina para facilitar a excreção de
magnésio. Na presença de filtração glomerular diminuída, os diuréticos de alça podem
ser utilizados para inibir a reabsorção de magnésio na alça de Henle.
Deve-se ainda oferecer suporte hemodinâmico e ventilatório para pacientes com
rebaixamento do nível de consciência, hipotensão ou depressão respiratória. Arritmias
cardíacas devem ser monitorizadas continuamente para detecção e tratamento precoce.
Deve-se também pesquisar e tratar distúrbios do cálcio, do fósforo, do potássio e do
sódio.
Em caso de magnésio sérico superior a 8mg/dL, preconiza-se tratamento de
urgência com Gluconato de Cálcio a 10% 10mL diluído em Soro Fisiológico 50mL por
via intravenosa em três minutos, com repetição conforme a evolução do paciente e a
monitorização da calcemia. Hemodiálise é uma opção de tratamento, principalmente em
pacientes com quadros graves e insuficiência renal. É conveniente lembrar que não
existe perigo imediato se os reflexos tendinosos profundos ainda estiverem presentes.

Hipofosfatemia

Pedro Kallas Curiati 234


Conceito
A hipofosfatemia é definida como fosfato sérico inferior a 2.5mg/dL. Não é
comum e acredita-se que pode estar associada a significativa morbidade.

Etiologia e fisiopatologia
Perdas renais secundárias a hipocalcemia, hipomagnesemia, defeito tubular
renal, deficiência de vitamina D, diabetes mellitus, etilismo, hipertireoidismo,
raquitismo hipofosfatêmico, osteomalácia oncogênica ou hipercalcemia humoral.
Diminuição da absorção intestinal secundária a diarreia, vômitos, aspiração
naso-gástrica, má-absorção, intestino curto, antiácidos (Hidróxido de Alumínio),
quelantes (Sucralfate), deficiência de vitamina D, resistência à ação da vitamina D ou
nutrição parenteral com pouco fosfato.
Mudança de compartimento celular secundária a alcalose, administração de
glicose, síndrome de realimentação, administração de Insulina, síndrome da fome óssea,
sepse, tratamento de queimaduras e hipotermia.
Uso de drogas, como diuréticos, β-agonistas, antiácidos, anabolizantes,
glicocorticoides, Calcitonina, salicilatos, Insulina e etanol.

Quadro clínico
Sinais e sintomas ocorrem na vigência de depleção severa, com valores
inferiores a 1mg/dL, e estão relacionados ao déficit de produção energética. Incluem
fraqueza muscular, insuficiência respiratória, insucesso no desmame de ventilação
mecânica, tremores, parestesias, letargia, disfunção renal, disfunção hepática,
hipotensão, insuficiência cardíaca e rabdomiólise.

Avaliação complementar
Abrange dosagem de fósforo, cálcio, magnésio, sódio, potássio e glicose séricos,
avaliação da função renal com uréia e creatinina séricos, detecção de distúrbios do
equilíbrio acidobásico com gasometria arterial e exames direcionados para a causa
específica.

Tratamento
Tratar a causa de base é o principal objetivo, assim como corrigir distúrbios
eletrolíticos associados, especialmente a hipomagnesemia.
Em caso de valores séricos inferiores a 1mg/dL ou de 1-2mg/dL com sintomas
atribuíveis à hipofosfatemia, preconiza-se administração de fósforo por via intravenosa
na dose de 2mg/kg de 6/6 horas até nível sérico superior a 2mg/dL, quando a reposição
oral deve ser iniciada. Se disfunção renal, deve-se diminuir a velocidade de infusão pela
metade, com cautela se hipocalcemia associada. Fosfato de Potássio Monobásico é
apresentado em ampolas de 10mL com 25mg/mL (2.5%) ou 0.18mEq/mL e em ampolas
de 10mL com 200mg/mL (20%) ou 1.47mEq/mL para administração intravenosa.
Fosfato de Sódio e Potássio é apresentado em comprimidos com 250mg de Fósforo para
administração oral, contendo também 298mg de sódio (12.6mEq) e 45mg de potássio
(1.15mEq).
Em casos de déficit crônico, deve-se administrar 1000-1200mg/dia em duas a
três tomadas.

Complicações
Administração intravenosa de fosfato pode levar a hipocalcemia com tetania e
hipotensão e, em caso de hipercalcemia associada, podem ocorrer calcificações extra-

Pedro Kallas Curiati 235


esqueléticas.

Hiperfosfatemia

Conceito
Hiperfosfatemia é definida como fosfato sérico acima de 5mg/dL.

Etiologia e fisiopatologia
Uso de fármacos, como laxantes, enemas, suplementos de fósforo e Vitamina D.
Liberação celular, como em rabdomiólise, hemólise, sepse, acidose,
esmagamentos, hepatite fulminante e lise tumoral.
Excreção renal diminuída, como em insuficiência renal, hipoparatireoidismo,
pseudo-hipoparatireoidismo e acromegalia.

Quadro clínico
O quadro clínico é inespecífico, sendo a maioria das manifestações secundária à
hipocalcemia associada ou à doença de base.
Agudamente, há hipocalcemia, com mialgia, fraqueza muscular, anorexia,
convulsões, tetania e arritmias. Cronicamente, há precipitação de cálcio e fósforo nos
tecidos moles com resposta inflamatória, dano celular e insuficiência de órgãos,
principalmente os rins, além de síndrome do olho vermelho devido à calcificação da
córnea e de deposição periarticular em dedos, costelas e ombros.

Avaliação complementar
Dosagem de eletrólitos séricos, com fósforo, cálcio, magnésio, sódio e potássio.
Avaliação da função renal, com uréia e creatinina séricos.
Avaliação de distúrbios do equilíbrio acidobásico, com gasometria arterial.
Exames direcionados para a causa de base.

Tratamento
O tratamento abrange a abordagem da doença de base, a retirada do fósforo da
circulação, o bloqueio da absorção intestinal e a correção da hipocalcemia associada.
Retira-se o aporte exógeno de fósforo, proveniente de dietas enterais ou
parenterais e de laxantes.
Retira-se o fósforo da circulação através de expansão volêmica e uso de
diuréticos em pacientes com função renal preservada, como Acetazolamida 15mg/kg de
4/4 horas. Deve-se considerar diálise precoce se hiperfosfatemia grave e/ou vigência de
insuficiência renal. Acidose deve ser tratada com o objetivo de deslocar o fósforo para o
meio intracelular. Pode-se administrar solução polarizante na hiperfosfatemia grave.
Usa-se quelantes do fósforo por via oral quando necessário, como Hidróxido de
Alumínio 30-60mL de 6/6 horas, Carbonato de Cálcio 1-2g de 6/6 horas e Sucralfate 1g
de 6/6 horas uma hora antes das refeições ou Sevelamer 800-1600mg/dia administrado
nas refeições, com ajuste da dose de acordo com a fosfatemia.
Trata-se a hipocalcemia associada com administração de cálcio inicialmente por
via intravenosa e depois por via oral. Recomenda-se não administrar por via intravenosa
se o fósforo estiver acima de 7mg/dL em virtude do risco de precipitação no sangue e
nos tecidos.

Bibliografia

Pedro Kallas Curiati 236


Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 5. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2010.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Medicina Intensiva Baseada em Evidências. Luciano César Pontes de Azevedo. Editora Atheneu, 2009.
Hypercalcemia Associated with Cancer. Andrew F Stewart. N Engl J Med 2005;352:373-9.

Pedro Kallas Curiati 237


HIPOTENSÃO E CHOQUE
Conceito
Choque é uma síndrome caracterizada pela incapacidade do sistema circulatório
de fornecer oxigênio aos tecidos, com disfunção orgânica. Hipotensão arterial pode
estar presente, porém não é fundamental para o diagnóstico, devendo-se atentar para
sinais de hipoperfusão tecidual.

Etiologia e fisiopatologia

Choque hipovolêmico
Caracteriza-se por um inadequado débito cardíaco em razão de volume
circulante inadequado. Com a progressão da depressão volêmica ocorre diminuição das
pressões de enchimento das câmaras cardíacas, inicialmente compensada com
taquicardia. Conforme o mecanismo vai sendo superado, os tecidos vão aumentando a
extração de oxigênio, com aumento na diferença entre o conteúdo arterial e venoso de
oxigênio (CA-V) e queda na saturação venosa mista de oxigênio (SVO2). As principais
etiologias são desidratação, hemorragia e sequestro de líquidos.
Classe I Classe II Classe III Classe IV
Perda volêmica Inferior a 750-1500mL ou 1500-2000mL ou 30- Superior a 2000mL
750mL ou 15% 15-30% 40% ou 40%
Frequência Inferior a Superior a Superior a 120bpm Superior a 140bpm
cardíaca 100bpm 100bpm
Pressão arterial Sem alterações Sem alterações Hipotensão Hipotensão
Enchimento Sem alterações Reduzido Reduzido Reduzido
capilar
Frequência Inferior a 20ipm 20-30ipm 30-40ipm Superior a 35ipm
respiratória
Débito urinário Superior a 20-30mL/hora 5-20mL/hora Desprezível
30mL/hora
Nível de Pouco ansioso Ansioso Ansioso e/ou confuso Confuso e/ou
consciência letárgico
Reposição Cristalóides Cristalóides Cristalóides e Cristalóides e
volêmica concentrado de concentrado de
hemácias hemácias

Choque obstrutivo
Definido como choque que ocorre em consequência de uma obstrução mecânica
ao débito cardíaco, com hipoperfusão tecidual. Ocorre no tamponamento cardíaco, em
que sinais clínicos como estase jugular, abafamento de bulhas cardíacas e pulso
paradoxal ajudam no diagnóstico. Outras causas comuns de choque obstrutivo incluem
tromboembolismo pulmonar, pneumotórax hipertensivo e coartação da aorta.

Choque cardiogênico
No choque cardiogênico, o problema se concentra na falência primária da bomba
cardíaca e o diagnóstico é baseado em hipotensão não-responsiva a volume, índice
cardíaco inferior a 2.2L/minuto/m2 e pressão de oclusão da artéria pulmonar superior a
15mmHg. A principal causa de choque cardiogênico é infarto agudo do miocárdio
extenso ou infartos menores em miocárdio previamente comprometido. Complicações
mecânicas, como regurgitação mitral aguda por ruptura de músculo papilar, ruptura do

Pedro Kallas Curiati 238


septo interventricular, ruptura da parede livre do ventrículo esquerdo com
tamponamento cardíaco ou infarto extenso do ventrículo direito, também podem cursar
com choque cardiogênico. Outras causas incluem miocardites agudas, cardiomiopatias
terminais, contusão miocárdica, choque séptico com depressão miocárdica grave,
disfunção após bypass cardiopulmonar prolongado, doenças valvares e cardiomiopatia
hipertrófica obstrutiva.

Choque distributivo
Há má-distribuição de volume, como no choque séptico. Em sua fase inicial,
ocorre resistência vascular sistêmica diminuída, débito cardíaco normal ou aumentado e
pressões de enchimento normais ou um pouco diminuídas. Apesar do débito cardíaco
aumentado, sempre ocorre algum grau de depressão miocárdica, com fração de ejeção
relativamente diminuída. Em fases avançadas, a maior depressão miocárdica mimetiza
choque cardiogênico.
Outras causas de choque distributivo incluem choque anafilático, doenças
endócrinas, como hipocortisolismo e hipotireoidismo, e choque neurogênico, que é uma
disfunção autonômica caracterizada por hipotensão, bradicardia e pele seca.

Quadro clínico
No exame cardiovascular, devem constar, obrigatoriamente, avaliação de
frequência cardíaca e pressão arterial, estase jugular, ausculta cardíaca nos quatro focos
principais, pulsos periféricos, tempo de enchimento capilar e temperatura de
extremidades. Monitorização do débito urinário é um método não-invasivo e fácil para
reconhecer a hipoperfusão tecidual. Oximetria pode revelar hipoxemia.
Enchimento capilar lentificado associado à diminuição da temperatura de
membros é um achado bastante sugestivo de baixo débito cardíaco.
Sistema Sinais de má perfusão periférica
Cardiovascular Hipotensão, taquicardia e/ou acidose metabólica com aumento de lactato arterial
Respiratório Taquipnéia, dispneia e hipóxia
Nervoso central Rebaixamento do nível de consciência e delirium
Urinário Oligúria aguda e aumento de escórias nitrogenadas
Digestório Aumento de bilirrubinas, elevação de enzimas hepáticas, estase e íleo paralítico
Hematológico Coagulação intravascular disseminada

Monitorização não-invasiva
Na prática, quando um indivíduo apresenta-se em condição de choque
circulatório, deve ser monitorizado, no mínimo, com pressão arterial, cardioscópio e
oxímetro de pulso.
Cardioscópio é monitor cardíaco que permite avaliação precisa do ritmo
cardíaco e avaliação grosseira, porém rápida, de eventuais anormalidades na atividade
elétrica cardíaca.
A determinação da pressão arterial é importante pela sua facilidade e
importância na tomada de decisões terapêuticas. Pode ser feita com esfigmomanômetros
comuns ou com modelos automatizados, que podem ser programados para medidas
intermitentes. Para fins de monitorização, prefere-se sempre guiar qualquer terapêutica
pela pressão arterial média, porque é a mesma em qualquer porção do sistema arterial.
Embora não haja consenso, foi demonstrado que valores superiores a 65mmHg são
adequados para manter a perfusão orgânica.
Oxímetro de pulso é utilizado para a determinação da porcentagem de
hemoglobina saturada por oxigênio e avaliação da função de oxigenação pulmonar.

Pedro Kallas Curiati 239


Monitorização invasiva
Quando possível, devem ser associados à monitorização não-invasiva pressão
arterial invasiva, pressão venosa central, porcentagem de hemoglobina saturada por
oxigênio na veia cava superior (ScvO2) e medidas de débito cardíaco. As medidas de
monitorização invasiva são mais fidedignas e, portanto, permitem uma tomada de
decisão mais segura, precoce e adequada.
Através da canulação de uma artéria periférica é possível medir, batimento-a-
batimento, os níveis de pressão arterial do indivíduo e, a partir desse dado, tomar as
medidas clínicas pertinentes, assim como, pela análise da morfologia e das variações
conforme o ciclo respiratório, identificar inadequações da volemia.
A determinação do débito urinário através de sondagem vesical de demora é
bastante útil, pois permite inferir a adequação da perfusão deste órgão.
Pressão venosa central é a pressão medida através de cateter venoso central na
veia cava superior. Na ausência de afecções da valva tricúspide, reflete a pressão
diastólica final do ventrículo direito. Em pacientes sem afecções cardiopulmonares,
pode constituir em um método de avaliação indireta da função cardíaca esquerda.
Apresenta correlação com retorno venoso e, por esse motivo, é utilizada para guiar
estratégias volêmicas. Pacientes que apresentam aumentos da pressão venosa central
com prova de volume sem retorno aos níveis basais podem estar hipervolêmicos ou
apresentar um ventrículo direito pouco complacente.

Cateter de artéria pulmonar (Swan-Ganz)


O cateter de artéria pulmonar (Swan-Ganz) é inserido por uma veia central até
um ramo da artéria pulmonar. As variáveis de pressão que podem ser obtidas incluem
pressão de artéria pulmonar, pressão de oclusão de artéria pulmonar e pressão venosa
central. Já as variáveis derivadas de fluxo incluem débito cardíaco e volume sistólico.
Estudos recentes falharam em demonstrar benefício com o uso, de modo que deve ser
restrito a casos específicos em que exista dúvida sobre o padrão do choque.
A pressão de oclusão da artéria pulmonar, em indivíduos sem alteração de
complacência cardíaca, correlaciona-se com a pressão de enchimento do ventrículo
esquerdo. As tendências dos valores após as intervenções são mais úteis do que os
valores absolutos.
Débito cardíaco caracteriza-se como o produto do volume sistólico (VS) pela
frequência cardíaca (FC). Os três principais determinantes do volume sistólico (VS) são
a pré-carga, a pós-carga e a contratilidade. A pré-carga depende basicamente do volume
sanguíneo circulante, das pressões que interferem no retorno venoso, da resistência
vascular sistêmica e da frequência cardíaca. A pós-carga depende da resistência vascular
sistêmica e, portanto, do tônus dos vasos, podendo variar com a viscosidade sanguínea.
A contratilidade pode ser influenciada por drogas que atuem no inotropismo cardíaco.
Nenhuma terapia guiada pelo débito cardíaco ou pela oferta tecidual de oxigênio provou
benefício.
Índice cardíaco (IC) e índice sistólico (IS) correspondem à medida do débito
cardíaco (DC) e do volume sistólico (VS) ajustados para a área de superfície corpórea
(ASC), conforme as fórmulas IC = DC / ASC e IS = VS / ASC.
A resistência vascular sistêmica pode ser calculada com a fórmula (pressão
arterial média – pressão venosa central) / débito cardíaco. A resistência vascular
pulmonar pode ser calculada com a fórmula (pressão de artéria pulmonar – pressão
capilar pulmonar) / débito cardíaco. Resistências baixas são esperadas nos choques
distributivos e resistências altas são esperadas nos choques cardiogênicos.

Pedro Kallas Curiati 240


Monitorização do transporte de oxigênio
Conteúdo arterial de oxigênio (CaO2) é calculado com a fórmula 1.34 x SaO2 x
Hb + 0.003 x PaO2. Conteúdo venoso de oxigênio (CvO2) é calculado com a fórmula
1.34 x SvO2 x Hb + 0.003 x PvO2.
Oferta de oxigênio indexada é o produto do conteúdo arterial de oxigênio (CaO2)
pelo índice cardíaco (IC) e por dez, de modo a transformar o resultado para
mL/minuto/m2.
A diferença arteriovenosa de oxigênio normal varia de 3.5 a 5.5mL de O2 por dL
de sangue. Estados hiperdinâmicos, como sepse, beribéri e crise tireotóxica, cursam
geralmente com baixos valores de diferença arteriovenosa por baixa extração, ao passo
que estados hipodinâmicos, como disfunção cardíaca ou choque hemorrágico, cursam
com valores elevados.
Consumo de oxigênio indexado (VO2) é a diferença entre o conteúdo arterial e o
conteúdo venoso de oxigênio (CaO2 - CvO2) multiplicada pelo índice cardíaco (IC) e
por dez, de modo a transformar o resultado para mL/minuto/m2.
Saturação venosa mista (SvO2) colhida em um cateter de artéria pulmonar
expressa a reserva venosa de oxigênio em relação à extração dos tecidos periféricos e
correlaciona-se bem com o balanço entre oferta e consumo de oxigênio global. Na
prática, é modulada por porcentagem de hemoglobina saturada por oxigênio no sangue
arterial, consumo de oxigênio, nível de hemoglobina e débito cardíaco. Quando normal,
não indica oxigenação tecidual adequada, já que é uma medida global e não uma
medida de cada região. Quando inferior a 65%, correlaciona-se bem com um balanço
entre oferta e consumo desfavorável.

Valores de referência
Variável Valores normais
Variáveis medidas
Pressão arterial sistêmica Sistólica 90-140mmHg, diastólica 60-
90mmHg
Pressão de artéria pulmonar Sistólica 15-25mmHg, diastólica 6-
12mmHg
Pressão de oclusão da artéria pulmonar 4-12mmHg
Pressão venosa central 0-8mmHg
Pressão parcial de oxigênio no sangue arterial (PaO2) 70-100mmHg
Pressão parcial de dióxido de carbono no sangue arterial 35-50mmHg
(PaCO2)
Débito cardíaco 4-8L/minuto
Porcentagem de hemoglobina saturada por oxigênio no 93-98%
sangue arterial (SaO2)
Porcentagem de hemoglobina saturada por oxigênio no 70-78%
sangue venoso (SvO2)
Pressão parcial de oxigênio no sangue venoso (PvO2) 36-42mmHg
Variáveis calculadas
Pressão arterial média 70-105mmHg
Pressão arterial pulmonar média 9-16mmHg
Índice cardíaco 2.8-4.2L/minuto/m2
Índice de volume sistólico 30-65mL/batimento/m2
Oferta de oxigênio (DO2) 500-650mL/minuto/m2
Consumo de oxigênio (VO2) 110-150mL/minuto/m2
Conteúdo arterial de oxigênio (CaO2) 16-22mL O2/dL
Conteúdo venoso de oxigênio (CvO2) 12-17mL O2/dL
Diferença arteriovenosa de oxigênio (CA-V) 3.5-5.5mL O2/dL

Pedro Kallas Curiati 241


Exames complementares
Lactato é um dos principais itens na monitorização de pacientes críticos, em
especial com sepse grave ou choque séptico e no pós-operatório de alto risco. Pode estar
elevado por aumento de produção, como no metabolismo anaeróbio, por diminuição na
captação, como na insuficiência renal ou hepática, ou por fenômeno de “lavagem”,
quando se restitui a perfusão em pacientes previamente em estado de choque. Não é um
bom indicador de perfusão regional e funciona bem como indicador de gravidade e
mortalidade em pacientes graves. A queda em pelo menos 10% em um intervalo de seis
horas é associada a menor mortalidade em choque séptico ou sepse grave. Apenas
valores arteriais ou venosos centrais devem ser usados para monitorização.
Excesso de bases ou base excess é instrumento utilizado mundialmente,
principalmente na Europa, para avaliar o equilíbrio acidobásico, consistindo na
quantidade de íons H+ que devem ser adicionados em uma solução para que o pH fique
normal. Valores inferiores a -3mmol/L são indicativos de acidose metabólica. O excesso
de lactato pode levar a acidose, consumindo bases no sangue. Os valores do excesso de
bases correlacionam-se bem com a presença e a gravidade do choque. Servem também
para monitorização da reposição volêmica e seus valores se normalizam com a
restauração do metabolismo aeróbio.
Ânion gap é medida indireta através da qual é possível estimar ânions não-
mensuráveis com base em determinações bioquímicas corriqueiras. O cálculo é feito
com a fórmula ânion gap = Na+ - (bicarbonato + Cl-). Na prática, esse valor varia de 8
a 12mEq/L e, naqueles estados com ânion gap alargado, é lícito supor que haja aumento
na concentração de ânions do sistema que não são corriqueiramente dosados, como
lactato, fosfatos, sulfatos, cetoácidos, salicilatos, etanol e outros.
Monitorização de pH intramucoso tem como racional o acometimento precoce
da circulação esplâncnica em pacientes com choque séptico, já que o organismo tende a
manter perfusão em órgãos nobres. O tonômetro é um tubo nasogástrico com um balão
de silicone permeável ao CO2, entrando em equilíbrio com o CO2 da mucosa gástrica. A
acidose intramucosa pode servir como parâmetro de ressuscitação volêmica, apesar de
os valores obtidos poderem diferir dos valores séricos no caso de uso de drogas que
interfiram com o pH, como os antiácidos.
Com o metabolismo anaeróbio, ocorre diminuição no consumo e na captação de
O2 (VO2). Também ocorre uma diminuição na produção de CO2 (VCO2), compensada
parcialmente por um aumento na produção de CO2 pela via anaeróbia. Portanto, o
coeficiente respiratório (VCO2/VO2) aumentará. Essa diferença pode ser medida por um
aumento na diferença entre o CO2 arterial e o CO2 venoso misto.
Leucopenia é mais frequente em infecções graves e imunossupressão,
implicando pior prognóstico.
Hiperglicemia usualmente reflete a ação de hormônios contrarreguladores, como
epinefrina, cortisol e glucagon.
Outros achados laboratoriais se correlacionam com as disfunções orgânicas e
incluem elevação de enzimas hepáticas e bilirrubinas, elevação de escórias
nitrogenadas, hipoxemia e hipocapnia na gasometria, bem como presença de acidose
metabólica.

Tratamento
A busca pelo diagnóstico específico e tratamento adequado do quadro de base é
primordial.
Com base na fórmula DO2 = (VS x FC) x (1.34 x Hb x SaO2 + 0.003 x PaO2):

Pedro Kallas Curiati 242


- Os fatores SaO2 e PaO2 podem ser abordados com suporte de oxigênio e
Positive End-Expiratory Pressure (PEEP);
- Hb pode ser abordada com transfusões sanguíneas;
- FC pode ser abordada com marca-passo, cronotrópicos e outras
intervenções;
- VS pode ser abordado com expansões volêmicas, vasodilatadores,
inotrópicos e outras intervenções;

Medidas iniciais
A avaliação inicial e a monitorização são fundamentais para o manejo dos
indivíduos em choque.
Avaliar responsividade e checar o nível de consciência. Rebaixamento intenso
do nível de consciência normalmente está associado a potenciais riscos de inadequação
da ventilação e da oxigenação. É importante sempre conferir a glicemia.
Avaliar a adequação da ventilação e oferecer assistência ventilatória precoce. O
limiar para intubação orotraqueal deve ser bem baixo.
Monitorizar o paciente e obter um acesso venoso adequado. A partir dos dados
objetivos iniciais, como frequência cardíaca e pressão arterial, é possível traçar uma
estratégia de intervenção que deve, a não ser que haja evidências de hipervolemia,
incluir administração de soluções de expansão do intravascular. As principais
indicações de acesso venoso central são a necessidade de drogas vasoativas e a
monitorização das pressões de enchimento do átrio direito e da porcentagem de
saturação de oxigênio da hemoglobina. O limiar para indicação e aquisição de acesso
venoso central deve ser baixo.

Manejo da volemia
Acesso venoso calibroso deve ser providenciado. Se não for possível conseguir
um acesso periférico, deve ser providenciado um acesso central. A escolha da solução a
ser infundida ainda é tema de controvérsia e nem colóides nem cristaloides parecem ser
superiores um ao outro, porém o custo das soluções cristaloides é bem menor. Durante a
reposição volêmica, é comum o aparecimento de hipotermia, que deve ser prevenida
pelo uso de soluções cristalóides aquecidas.
Cristalóides são soluções com menor potencial expansor e tempo de efeito sobre
a volemia reduzido em relação aos colóides. As soluções mais comumente utilizadas
são o Soro Fisiológico e o Ringer Lactato. Em situações de hipovolemia, empregam-se
bolus de 500-1000mL de uma das soluções em quinze a trinta minutos. Pela sua alta
concentração de cloro, o uso de grandes volumes de solução salina leva à acidose
hiperclorêmica.
Concentrações (mEq/L) Na+ K+ Cl- Ca++ Lactato
Soro Fisiológico 154mEq/L - 154mEq/L - -
Ringer Lactato 130mEq/L 4mEq/L 110mEq/L 3mEq/L 3mEq/L
Colóides apresentam maior potencial expansor e maior tempo de efeito sobre a
volemia, mas também custo mais elevado do que o dos cristalóides. Em situações nas
quais é necessária rápida expansão volêmica, lança-se mão de infusões de 300-500mL
de um colóide sintético, como Amido, Gelatina ou Dextran, ou Albumina a 5%. De
todos os colóides, a Albumina é a que apresenta o melhor perfil de efeitos colaterais,
tendo um pequeno risco de reação anafilática e transmissão de infecções virais.
A pré-carga deve ser aumentada através de reposição volêmica agressiva, visto
que quase sempre há hipovolemia absoluta ou relativa. A quantidade inicial de fluidos
deve ser pelo menos 20mL/kg e deve ser monitorizada pela diminuição da taquicardia,

Pedro Kallas Curiati 243


melhora do volume urinário e recuperação do nível de consciência.
Valores absolutos de pressões de enchimento, como a pressão venosa central
(PVC) e a pressão de oclusão da artéria pulmonar não são bons parâmetros para
monitorizar a reposição volêmica, uma vez que os pacientes críticos têm alteração da
complacência cardíaca. Em pacientes que não estão em ventilação mecânica, existem
evidências de que queda superior ou igual a 1mmHg na pressão venosa central (PVC)
durante a inspiração se correlaciona positivamente com resposta a volume. A variação
da pressão de pulso (∆Pp) é calculada em indivíduo sedado, intubado, em ventilação
mecânica com pressão positiva, com ritmo sinusal, com volume corrente de 8-10mL/kg
e sem esforço aparente em um único ciclo respiratório como a diferença entre a pressão
de pulso máxima (Ppmáx) e a mínima (Ppmin) dividida pela média da pressão de pulso
máxima com a mínima, conforme a fórmula ∆Pp (%) = 100 x (Ppmáx – Ppmin) / [(Ppmáx +
Ppmin) / 2], indicando maior chance de resposta a volume quando superior a 13%.
Elevação passiva de membros inferiores a pelo menos 45º por pelo menos trinta
segundos funciona como uma prova volêmica utilizando o próprio sangue do paciente
represado nos vasos de capacitância, indicando resposta a volume variações do volume
sistólico e/ou do débito cardíaco superiores a 15%. O débito cardíaco pode ser medido
por ecocardiografia, métodos automatizados de análise de contorno de pulso e
termodiluição pelo cateter de artéria pulmonar.

Manejo das vias aéreas e da ventilação


Falência respiratória deve ser tratada, no mínimo, com suplementação de
oxigênio. Todos os pacientes com choque grave devem ser intubados e colocados em
ventilação mecânica para diminuir seu consumo de energia.

Manejo da pós-carga e da contratilidade cardíaca

Agentes vasodilatadores
Pacientes adequadamente ressuscitados do ponto de vista volêmico que se
apresentem normotensos ou hipertensos são candidatos a terapias que interfiram na pós-
carga, princípio que é mais utilizado em casos de choque cardiogênico para facilitar o
trabalho do ventrículo esquerdo. Os vasodilatadores também estão indicados para
pacientes com pressão arterial média superior a 90mmHg em vigência de quadro
séptico. Apresentam início de ação rápido e meia-vida curta.
Nitroglicerina é apresentada na forma de ampola de 5mL ou 10mL com
5mg/mL. A diluição preconizada consiste em 50mg em 240mL de Soro Glicosado a 5%
ou Soro Fisiológico, com concentração de 200mcg/mL e preparação em recipientes de
vidro. Diluição alternativa prevê 100mg em 230mL de Soro Glicosado a 5% ou Soro
Fisiológico, com concentração de 400mcg/mL. A dose recomendada é de 0.05-
5.00mcg/kg/minuto. Pode-se iniciar com 5mcg/minuto e aumentar 5mcg/minuto a cada
três a cinco minutos até 20mcg/minuto e, se não houver resposta, aumentar
10mcg/minuto até 200mcg/minuto. A velocidade de 3mL/hora da diluição recomendada
corresponde a 10mcg/minuto. Age aumentando o óxido nítrico, que ativa GMP cíclico
e, consequentemente, gera perda da capacidade contrátil da musculatura lisa. Sua ação é
vasodilatação predominantemente venosa. Há preferência pelo seu uso em pacientes
com coronariopatia, pois produz vasodilatação das artérias coronárias. Em pacientes
com congestão pulmonar associada a falência cardíaca, deve ser usada nas maiores
doses toleradas, associada a baixas doses de diuréticos. Em pacientes com síndrome
coronariana aguda, deve ser usada nos casos em que há hipertensão, congestão ou dor.
Tolerância hemodinâmica e antianginosa pode surgir em 24-48 horas de administração

Pedro Kallas Curiati 244


contínua e podem ser evitadas garantindo-se intervalo livre de administração de 10-12
horas por dia, sendo recomendada redução gradual da droga. Os efeitos colaterais mais
comuns são cefaleia, hipotensão e taquicardia. Não deve ser usada junto com inibidores
da fosfodiesterase 5, como Sildenafil, Tadalafil ou Vardenafil. A metemoglobinemia é
uma complicação rara, com hipóxia tecidual apesar de débito cardíaco e pressão parcial
de oxigênio adequados, cujo tratamento é Azul de Metileno 1-2mg/kg por via
intravenosa em dez minutos.
Nitroprussiato de Sódio é apresentado na forma de ampola de 2mL com
25mg/mL. A diluição preconizada consiste em uma ampola em 248mL de Soro
Glicosado a 5%, com concentração de 200mcg/mL. Deve ser protegido da luz. A dose
recomendada é de 0.25-10mcg/kg/minuto. Em geral, a dose é aumentada
0.5mcg/kg/minuto, sendo titulada de acordo com efeitos hemodinâmicos e efeitos
colaterais, como cefaleia ou náusea. Causa vasodilatação periférica por ação direta em
musculatura arteriolar e venosa, com aumento do débito cardíaco por reduzir a pós-
carga. Sua ação é potente vasodilatação balanceada arterial e venosa. Droga de escolha
para a maioria das emergências hipertensivas devido ao seu rápido início de ação e sua
curta meia-vida. O possível fenômeno do roubo coronariano não contraindica de forma
absoluta seu uso nas síndromes coronarianas. Podem ocorrer hipotensão excessiva,
cefaleia, palpitações, desorientação e náusea. Não deve ser usado em casos de
coarctação da aorta, shunt arteriovenoso e insuficiência cardíaca de alto débito. O uso
de doses altas por tempo prolongado, superior a 72 horas, principalmente em pacientes
com disfunção renal, aumenta o risco de toxicidade por cianeto ou tiocianato, produtos
derivados do metabolismo da droga. Os níveis de tiocianato devem ser monitorados em
pacientes que apresentem disfunção renal e/ou que façam uso da medicação por mais de
72 horas. A insuficiência renal requer as menores doses possíveis. O tratamento da
intoxicação é realizado com diálise e Hidroxicobalamina.
A pós-carga também pode ser diminuída artificialmente através de balão intra-
aórtico, especialmente usado em infarto agudo do miocárdio e pós-operatório de
cirurgia cardíaca.

Agentes inotrópicos e vasoconstritores


Agentes inotrópicos somente deveriam ser utilizados após a ressuscitação
volêmica ser realizada ou, como uma ponte, enquanto esta é feita e a pressão arterial
está muito baixa.
Dopamina, catecolamina existente no organismo humano e precursora da
Noradrenalina, é apresentada na forma de ampola de 10mL com 5mg/mL. A diluição
preconizada consiste em cinco ampolas em 200mL de Soro Glicosado a 5% ou de Soro
Fisiológico, com concentração de 1000mcg/mL. Diluição alternativa prevê dez ampolas
em 150mL de Soro Glicosado a 5% ou de Soro Fisiológico, com concentração de
2000mcg/mL. Em doses baixas, de 1-4mcg/kg/minuto, apresenta ação em receptores
dopaminérgicos, com aumento do ritmo de filtração glomerular, não demonstrado em
doentes críticos. Em doses intermediárias, de 5-10mcg/kg/minuto, predomina a ação β1-
adrenérgica, com aumento do inotropismo cardíaco e da frequência cardíaca. Em doses
maiores, de 11-20mcg/kg/minuto, predomina a resposta α-adrenérgica, com aumento da
resistência vascular sistêmica e da pressão arterial. Doses maiores do que
20mcg/kg/minuto não se mostraram benéficas e não são recomendadas, sendo
preferíveis outros vasoconstritores. Deve ser administrada em veias centrais para
prevenir a possibilidade de extravasamento. Os efeitos colaterais mais comuns são
extra-sístoles, taquicardia, angina e palpitações.
Dobutamina, uma catecolamina sintética que possui efeitos predominantemente

Pedro Kallas Curiati 245


β-adrenérgicos, com ação cronotrópica e inotrópica positiva, além de discreta
vasodilatação sistêmica facilitadora do trabalho do ventrículo esquerdo, é apresentada
na forma de ampola de 20mL com 12.5mg/mL. A diluição preconizada é de uma
ampola em 230mL de Soro Glicosado a 5%, com concentração de 1000mcg/mL,
constituindo alternativa a diluição de quatro ampolas em 170mL de Soro Glicosado a
5%, com concentração de 4000mcg/mL. A dose recomendada inicial é de
2.5mcg/kg/minuto, com incrementos de 2.5mcg/kg/minuto até uma dose de 15-
20.0mcg/kg/minuto. Indicada em pacientes sépticos com débito cardíaco diminuído
apesar de ressuscitação volêmica adequada e em pacientes com descompensação clínica
de insuficiência cardíaca com evidência de má-perfusão periférica.
Noradrenalina ou Norepinefrina, catecolamina natural com efeitos α e β
adrenérgicos, causadora de intensa vasoconstrição, é apresentada na forma de ampola de
4mL com 1mg/mL. A diluição preconizada é de quatro ampolas em 250mL de Soro
Glicosado a 5%, com concentração de 60mcg/mL. Diluição alternativa prevê quatro
ampolas em 234mL de Soro Glicosado a 5%, com concentração de 64mcg/mL. A dose
recomendada é de 0.05-2.00mcg/kg/minuto. Apresenta ação menor em receptores β1-
adrenérgicos cardíacos, com efeitos menos intensos na frequência e na contratilidade
cardíacas. Ao contrário do que se pensava, nos indivíduos em choque séptico com
volemia adequada, a Noradrenalina pode até melhorar a taxa de filtração glomerular. A
principal indicação é choque séptico. Em indivíduos com descompensação de
insuficiência cardíaca, pode ser combinada a inotrópicos em situações de falência de
bomba associada à hipotensão grave. Não há contraindicação absoluta ao seu uso,
porém, se possível, deve ser evitada em caso de hipovolemia, trombose vascular,
hipóxia grave e hipercapnia.
Vasopressina, com efeito vasoconstritor por ligação direta a receptores da
vasopressina, é apresentada na forma de ampola de 0.5mL, 1mL ou 10mL com
20U/mL. A diluição preconizada é de 20U em 200mL de Soro Glicosado a 5%, com
concentração de 0.1U/mL, ou em 100mL de Soro Glicosado a 5%, com 0.2U/mL. Pode
ser útil no choque séptico refratário à Noradrenalina, com dose recomendada de 0.01-
0.04U/minuto. Na parada cardiorrespiratória, recomenda-se a dose de 40 unidades por
via intravenosa ou intraóssea substituindo a primeira ou a segunda dose de Adrenalina,
podendo ser administrada através da cânula orotraqueal em dose 2.5 vezes maior,
diluída em 10mL de Água Destilada ou Soro Fisiológico. Pode reduzir o débito cardíaco
e a frequência cardíaca, principalmente em altas doses. Deve ser administrada em veia
central devido ao risco e necrose e gangrena em caso de extravasamento. Doses maiores
do que as recomendadas estão associadas a isquemia miocárdica, parada
cardiorrespiratória e redução importante do fluxo hepatoesplênico.
Adrenalina, com atuação em receptores adrenérgicos α, com vasoconstrição
fugaz, β1, com taquicardia, e β2, com vasodilatação e broncodilatação, é apresentada na
forma de ampola de 1mL com 1mg/mL. Em geral, doses mais baixas causam
vasodilatação e doses mais altas causam vasoconstrição. A diluição preconizada é de
seis ampolas em 100mL de Soro Glicosado a 5%, com concentração de 60mcg/mL. Está
indicada em estados de choque refratário e o seu uso pode estar associado a febre,
diminuição do fluxo esplâncnico e hiperlactatemia. A dose recomendada é 1-
4mcg/minuto. Com relação a outras aplicações, na parada cardiorrespiratória,
recomenda-se 1mg em bolus a cada três a cinco minutos, por via intravenosa, seguido
por 20mL de Soro Fisiológico e elevação do membro ou 2.5mg em bolus a cada três a
cinco minutos, via cânula traqueal, seguido por 10mL de Água Destilada ou Soro
Fisiológico. Na bradicardia sintomática ou que gere hipotensão, refratária à Atropina,
recomenda-se 0.5mg em bolus ou em infusão contínua com 2-10mcg/minuto. Para

Pedro Kallas Curiati 246


broncodilatação, recomenda-se 0.3-0.5mL de solução 1:1000 por via subcutânea a cada
vinte minutos, com no máximo três doses, e inalação com 1mg em 10mL de Soro
Fisiológico. Nas reações de hipersensibilidade, recomenda-se 0.3-0.5mL de solução
1:1000 por via intramuscular a cada vinte minutos ou 1mL de solução 1:10000 por via
intravenosa. Em caso de infusão intravenosa contínua, deve ser administrada em veia
central. Em indivíduos hipovolêmicos, pode reduzir o ritmo de filtração glomerular. Os
efeitos adversos mais comuns são arritmias, hipertensão, aumento do consumo
miocárdico de oxigênio, ansiedade e redução do fluxo esplênico.
Inibidores da fosfodiesterase, como Amrinone e Milrinone, causam inotropismo
positivo sem nenhum efeito significativo na frequência cardíaca. Porém, causam intensa
vasodilatação e, portanto, devem ser usados com precaução. Milrinone é apresentado na
forma de ampola de 20mL com 1mg/mL. A diluição preconizada é de 20mg em 180mL
de Soro Fisiológico, com concentração de 100mcg/mL. As principais indicações são
evidência de hipoperfusão periférica com ou sem congestão pulmonar refratária a
vasodilatadores e diuréticos em doses otimizadas e com pressão arterial média
preservada. Pode substituir Dobutamina na ausência de resposta ou em caso de uso
concomitante de β-bloqueadores. Os efeitos colaterais mais comuns são as arritmias
ventriculares. Deve-se evitar o uso em caso de valvopatia pulmonar, valvopatia aórtica
grave, infarto agudo do miocárdio ou qualquer obstrução à saída do ventrículo esquerdo,
assegurar o controle prévio da frequência cardíaca em fibrilação atrial e flutter atrial e
ajustar a dose de acordo coma função renal. A meia vida é de 130 minutos.
Levosimendana é agente inotrópico novo da classe dos sensibilizadores de cálcio
apresentado na forma de ampola de 5mL ou 10mL, com 2.5mg/mL. A diluição
preconizada é de 25mg em 240-250mL de Soro Glicosado a 5%, com concentração de
100mcg/mL. A dose de ataque recomendada é de 12-24mcg/kg em dez minutos e a
manutenção é feita com 0.1-0.2mcg/kg/minuto por 24 horas. Indicada em pacientes com
insuficiência cardíaca grave ou choque cardiogênico, com diminuição de mortalidade
em comparação com a Dobutamina. A medicação não deve ser usada em pacientes com
hipotensão importante, clearance de creatinina inferior a 30mL/minuto, disfunção
hepática grave e histórico de torção das pontas. Os efeitos colaterais mais comuns são
cefaleia e hipotensão.
Em caso de extravasamento de Dopamina, Norepinefrina ou Adrenalina, na
maioria das vezes só é necessária a interrupção da infusão, mas pode ser utilizada
Fentolamina 5mg diluída em 9mL de Soro Fisiológico no local.

Receptores adrenérgicos
Em suma, receptores α-1 adrenérgicos existem nas paredes vasculares, com ação
vasoconstritora, e no coração, com ação inotrópica. Receptores β-1 adrenérgicos
existem no coração e têm ação inotrópica e cronotrópica. Receptores β-2 adrenérgicos
existem nas veias periféricas, com ação vasodilatadora. Receptores de Dopamina
existem em rins, mesentério, coronárias e cérebro.
Agente β-1 β-2 α-1
Norepinefrina ++ - +++
Epinefrina +++ ++ +++
Dopamina +(++) + +(++)
Dobutamina +++ + +

Sedação e bloqueio neuromuscular


Como o choque é definido com base no binômio oferta e demanda, é possível
melhorar a condição clínica de um paciente em choque circulatório diminuindo sua

Pedro Kallas Curiati 247


demanda metabólica, por exemplo, ao minimizar seu consumo cerebral ou da
musculatura respiratória.

Bibliografia
Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 5. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2010.
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.
Fluid Therapy in Resuscitated Sepsis: Less is More. Lakshmi Durairaj and Gregory A Schmidit. CHEST / 133 / 1 / JANUARY,
2008

Pedro Kallas Curiati 248


INFECÇÃO DE CATETERES
INTRAVASCULARES
Epidemiologia
Cateteres intravasculares constituem o principal fator predisponente para
infecção de corrente sanguínea nosocomial.
Fatores predisponentes para infecção de corrente sanguínea nosocomial
relacionados ao hospedeiro incluem doença crônica, transplante de medula óssea,
deficiência imunológica, particularmente neutropenia, desnutrição, nutrição parenteral
total, infecção de corrente sanguínea prévia, extremos etários e perda da integridade da
pele, como em queimaduras.
Fatores predisponentes extrínsecos relacionados a infecção de cateter
intravascular incluem tipo, com maior risco relacionado a cateteres venosos centrais e
cateteres de artéria pulmonar, duração da cateterização, material do qual o cateter é
composto, condições de inserção, cuidados com o sítio de inserção e habilidade do
profissional que instalou o cateter. Conectores com válvulas mecânicas que dispensam o
uso de agulhas para uso do cateter intravascular aumentam o risco de infecções de
corrente sanguínea relacionadas à atenção médica, principalmente em caso de troca
pouco frequente das tampas.
Fontes pouco frequentes de infecção de cateteres intravasculares incluem
disseminação hematogênica a partir de foco infeccioso à distância, autoinfecção a partir
da flora do paciente, geralmente gastrointestinal, e contaminação pelas mãos da equipe
médica durante a inserção ou a manipulação do acesso venoso.
Contaminação do material infundido é causa rara de infecção de corrente
sanguínea nosocomial e é confirmada pelo isolamento de micro-organismo tanto no
sangue periférico como no material infundido. Enterobactérias são usualmente
associadas a infusões glicosadas contaminadas. Fungos, como Candida parapsilosis, são
usualmente associados a infusões de nutrição parenteral hipertônica contaminada.

Microbiologia
Antes da década de 1980, bactérias aeróbias Gram-negativas eram os micro-
organismos predominantemente associados às infecções de corrente sanguínea
nosocomiais. Desde então, bactérias aeróbias Gram-positivas, como estafilococos
coagulase-negativos, S. aureus e enterococos, e Candida spp tiveram sua importância
relativa aumentada. As principais explicações são o maior reconhecimento desses
micro-organismos como patógenos ao invés de contaminantes, o uso de antibióticos de
amplo espectro e o uso crescente de cateteres intravasculares.
Estafilococos coagulase-negativos e S. aureus comumente são originários da
superfície cutânea e se proliferam pela superfície externa do cateter intravascular. As
mãos dos profissionais da área da saúde geralmente contaminam o cateter intravascular
com bactérias aeróbias Gram-negativas durante a inserção ou a manipulação do acesso
venoso.
Pseudomonas aeruginosa é o patógeno isolado com maior frequência em
cateteres intravasculares de pacientes queimados. S. aureus é o patógeno predominante
em infecção de corrente sanguínea relacionada a cateteres intravasculares em pacientes
com sorologia positiva para HIV, o que pode estar relacionado à maior colonização da
pele e da nasofaringe por essa bactéria nessa população. Bactérias Gram-negativas

Pedro Kallas Curiati 249


predominam em pacientes com doenças oncológicas, o que pode estar relacionado a
translocação de bactérias intestinais por alteração da barreira mucosa. Bactérias Gram-
positivas da flora cutânea são responsáveis pela maior parte das infecções de cateter
intravascular de diálise. Bactérias Gram-negativas hidrofílicas, como Pseudomonas spp,
Stenotrophomonas spp, Acinetobacter spp e Serratia marcescens, parecem ser os
patógenos isolados com maior frequência em pacientes com infecção de corrente
sanguínea relacionada a cateteres com válvulas mecânicas que dispensam o uso de
agulhas, sendo sugerido que a exposição aos patógenos ocorra durante o banho.

Quadro clínico
Infecção de corrente sanguínea relacionada a cateter intravascular deve ser
suspeitada quando infecção de corrente sanguínea ocorre em paciente com acesso
venoso central e ausência de outra fonte aparente. Febre é a manifestação clínica mais
comum, porém é pouco específica. Inflamação e secreção purulenta no sítio do cateter
são manifestações mais específicas, porém são menos frequentes. Outras manifestações
clínicas incluem instabilidade hemodinâmica, alteração do nível de consciência,
disfunção do cateter intravascular e sinais clínicos de sepse correlacionados
temporalmente com infusão pelo cateter intravascular.
Também podem ser observadas complicações relacionadas à infecção de
corrente sanguínea, como tromboflebite supurativa, endocardite, osteomielite e infecção
metastática.
Culturas de sangue periférico positivas para estafilococos coagulase-negativos,
S. aureus ou Candida spp na ausência de outra fonte infecciosa identificável deve
aumentar a suspeita de infecção de corrente sanguínea relacionada a cateter
intravascular.
Melhora clínica dentro de 24 horas da remoção do cateter intravascular é
sugestiva de infecção de corrente sanguínea relacionada a cateter intravascular.

Avaliação complementar
Culturas pareadas de sangue obtido de lúmen do cateter intravascular e de veia
periférica devem ser obtidas antes do início da antibioticoterapia. A evidência para
coleta de sangue de cada lúmen, em caso de mais de um lúmen, para o diagnóstico de
infecção de corrente sanguínea relacionada a cateter intravascular, é limitada, devendo
ser realizada apenas quando não é possível obter amostra de sangue de veia periférica.
Nesse caso, duas ou mais amostras devem ser obtidas dos lúmens do cateter
intravascular em momentos diferentes. O mesmo volume de sangue deve ser inoculado
em cada frasco, com identificação adequada do sítio a partir do qual o material foi
obtido.
Culturas de cateter intravascular devem ser realizadas quando o cateter for
removido por suspeita de infecção de corrente sanguínea relacionada. Cateteres venosos
centrais devem ser avaliados através da cultura de segmento de 5cm incluindo sua
ponta em caso de inserção há menos de sete a dez dias. Por outro lado, em caso de
inserção há mais de sete a dez dias, a porção subcutânea deve ser encaminhada para
cultura, uma vez que é mais provável que infecção do sítio de inserção esteja envolvida
na patogênese da infecção de corrente sanguínea. Em caso de dispositivo implantável, a
ponta deve ser encaminhada para cultura mesmo em caso de inserção há mais de dez
dias. De maneira geral, cultura positiva de ponta de cateter intravascular na ausência de
bacteremia não constitui indicação de antibioticoterapia. Cateteres de artéria pulmonar
devem ser avaliados através de cultura do introdutor. Pontas de cateteres com
revestimento antimicrobiano devem ser submetidas a cultura com inibidores específicos

Pedro Kallas Curiati 250


no meio de cultura. Dispositivos subcutâneos para acesso venoso devem ser avaliados
com cultura do material contido no reservatório e da ponta do cateter. Culturas semi-
quantitativas somente devem ser consideradas positivas em caso de crescimento de
micro-organismo único e mais de 15 unidades formadoras de colônia.
O diagnóstico de infecção de corrente sanguínea relacionada a cateter
intravascular requer que seja estabelecida a ocorrência de infecção de corrente
sanguínea e que seja demonstrado que a infecção esteja relacionada ao cateter
intravascular.
A confirmação microbiológica pode ser feita com culturas de sangue obtido
antes do início da antibioticoterapia, com pelo menos um dos seguintes critérios:
- Identificação do mesmo organismo na ponta do cateter e em pelo menos
uma amostra de sangue periférico;
- Identificação do mesmo organismo em pelo menos duas amostras de
sangue, uma obtida de lúmen do cateter e outra obtida de veia periférica
ou de outro lúmen do cateter, com critério quantitativo ou diferença de
tempo para positivação da cultura sugestivos de infecção do cateter
intravascular;
Culturas quantitativas demonstrando contagem de colônias em amostra de
sangue obtida de lúmen do cateter superior ou igual a três vezes a contagem de colônias
em amostra de sangue obtida de veia periférica sugerem infecção do cateter
intravascular. Diferença de tempo para positivação da cultura de amostra de sangue
obtida de veia periférica superior ou igual a duas horas em relação a cultura de amostra
de sangue obtida de lúmen do cateter também sugere infecção do cateter intravascular.
O risco de contaminação e resultado falso-positivo é maior com as culturas de
amostra de sangue obtida de lúmen do cateter, cujo resultado negativo, no entanto,
apresenta elevado poder preditivo negativo.
No contexto de cultura isolada de amostra de sangue positiva para estafilococo
coagulase-negativo, novas amostras de sangue devem ser obtidas a partir de veia
periférica e lúmen do cateter antes do início da antibioticoterapia para confirmar a
ocorrência de infecção de corrente sanguínea e a associação com o cateter intravascular.
No contexto de cultura de amostra de sangue obtida de lúmen do cateter positiva
para estafilococo coagulase-negativo ou bacilo Gram-negativo e amostras de sangue
obtidas de veia periférica concomitantemente negativas, pode haver colonização do
lúmen do cateter, com risco aumentado de infecção subsequente de corrente sanguínea
relacionada a cateter intravascular, especialmente se o cateter intravascular for mantido
no sítio de inserção. Nessa situação, recomenda-se acompanhar o paciente de forma
próxima e obter amostras adicionais de sangue de veia periférica para cultura se
persistirem as manifestações clínicas. No entanto, alguns clínicos preferem remover o
cateter intravascular ou trocá-lo com o uso de fio-guia. Alternativamente, terapia
antibiótica local no lúmen (lock theraphy) durante dez a quatorze dias, sem terapia
sistêmica, pode ser utilizada se a remoção do cateter intravascular não for factível.

Prevenção
Recomenda-se preferir instalar cateter intravascular periférico nas extremidades
superiores em relação às extremidades inferiores e evitar instalar cateter intravascular
venoso central ou de artéria pulmonar em veia femoral.
Recomenda-se substituir ou remover cateter intravascular periférico a cada três a
quatro dias rotineiramente ou antes em caso de flebite ou disfunção. Na ausência de
sítios alternativos, o cateter intravascular periférico pode ser mantido no sítio atual na
ausência de sinais de flebite ou de outras complicações. Quando a adesão à técnica

Pedro Kallas Curiati 251


asséptica não pôde ser garantida, como em situações de emergência, o cateter
intravascular periférico deve ser substituído o quanto antes, com o intervalo em relação
a instalação não devendo ser superior a 48 horas.
Recomenda-se contra a substituição rotineira de cateteres intravasculares
venosos centrais, arteriais pulmonares e arteriais periféricos. Vigilância clínica e
avaliação do sítio de inserção do cateter intravascular em dias alternados devem ser
realizados, com indicação para substituição em caso de secreção purulenta no sítio de
inserção do cateter intravascular de curta permanência ou de instabilidade
hemodinâmica cuja causa suspeitada seja infecção de corrente sanguínea relacionada a
cateter intravascular. Recomenda-se contra o uso de fio-guia para troca de cateteres
intravasculares.
Recomenda-se contra a substituição de cateteres intravasculares venosos centrais
de inserção periférica, que podem ser mantidos no mesmo sítio durante meses.
Sugere-se o uso de cateteres intravasculares venosos centrais impregnados com
antimicrobianos. Não é sugerido o uso de cateteres intravasculares venosos centrais
ligados a heparina puramente para a prevenção de infecção. Apesar de o uso de terapia
antibiótica local no lúmen (lock therapy) reduzir a incidência de infecções, essa técnica
não é atualmente recomendada.
Cuidados recomendados com o cateter intravascular e o sítio de inserção
incluem lavagem das mãos com sabão anti-séptico ou álcool-gel, precaução de barreira
completa durante inserção do cateter intravascular venoso central, incluindo luvas
estéreis, avental cirúrgico estéril, máscara cirúrgica e campo estéril, desinfecção da pele
do paciente com Clorexidina a 2%, que deve secar antes da inserção do cateter
intravascular venoso central, evitar inserção em veia femoral e remoção imediata
quando o uso de cateter intravascular não for mais indicado.
Sugere-se o uso de banho diário com Clorexidina para pacientes internados em
unidade de terapia intensiva.
Sugere-se preferir curativo com gaze ao invés de plástico transparente para
cateteres intravasculares venosos centrais.
Com exceção de cateteres intravasculares venosos centrais utilizados para
terapia dialítica, não recomenda-se o uso de antibióticos tópicos no sítio de inserção por
falta de evidência de benefício e risco de promoção de resistência antimicrobiana e
colonização fúngica.
Recomenda-se substituir os pertuitos de infusão a cada 72 horas a menos que
infecção relacionada ao cateter intravascular seja suspeitada, a cada 24 horas em caso de
infusão de emulsões lipídicas ou hemocomponentes e a cada 6-12 horas em caso de
infusão de Propofol.

Tratamento
De maneira geral, antibioticoterapia sistêmica não é indicada em caso de cultura
de ponta de cateter positiva na ausência de sinais clínicos de infecção, cultura positiva
de amostra de sangue obtida de lúmen do cateter associada a cultura negativas de
amostra de sangue obtida de veia periférica e flebite não associada a infecção.
Em pacientes com infecção de corrente sanguínea relacionada a cateter
intravascular, a remoção deverá ser realizada em caso de sepse grave, instabilidade
hemodinâmica, endocardite, evidência de infecção metastática, tromboflebite supurativa
e/ou bacteremia persistente após 72 horas de antibioticoterapia para a qual o micro-
organismo responsável é suscetível. Cateteres intravasculares de curta permanência,
inferior a quatorze dias, devem ser removidos em caso de infecção de corrente
sanguínea relacionada por S. aureus, enterococos, bacilos Gram-negativos, fungos e

Pedro Kallas Curiati 252


micobactérias. Cateteres intravasculares de longa permanência, superior ou igual a
quatorze dias, devem ser removidos em caso de infecção de corrente sanguínea
relacionada por S. aureus, P. aeruginosa, fungos ou micobactérias. Em caso de infecção
de corrente sanguínea relacionada a cateter intravascular por micro-organismos de baixa
virulência difíceis de erradicar, como Bacillus spp, Micrococcus spp e
Propionibacterium spp, é apropriada a remoção de cateteres intravasculares tanto de
curta permanência como de longa permanência após exclusão de contaminação da
cultura. A remoção do cateter intravascular não é necessária em caso de estabilidade
hemodinâmica em pacientes com febre inexplicada na ausência de comprovação de
infecção de corrente sanguínea e de material endovascular prostético, como valva
cardíaca prostética, marca-passo e enxerto vascular.
Salvação de cateter intravascular de longa permanência infectado por outro
patógeno que não S. aureus, P. aeruginosa, fungo ou micobactéria pode ser tentada. No
entanto, é difícil em caso de micro-organismos de baixa virulência difíceis de erradicar.
Além disso, em caso de infecção por estafilococo coagulase-negativo, a salvação não
influencia a resolução da bacteremia e pode constituir fator de risco para recorrência. Se
for tentada a salvação, medicação antimicrobiana sistêmica e local (lock therapy) poderá
ser administrada através do cateter intravascular colonizado durante todo o tempo de
tratamento, que dependerá do agente etiológico. A terapia antibiótica local no lúmen
(lock therapy) não é recomendada para cateter intravascular de curta permanência, em
que a infecção geralmente é extra-luminal. Duas amostras de cultura de sangue
periférico devem ser obtidas 72 horas após o início da terapia antimicrobiana adequada,
com indicação de remoção do cateter em caso de resultado positivo.
Em circunstâncias nas quais a remoção do cateter intravascular é necessária e há
risco elevado de complicações mecânicas ou hemorrágicas previsto para a reinserção,
troca por fio-guia é aceitável, exceto em caso de sepse. A ponta do cateter removido
deve ser enviada para cultura, com indicação de mudança do sítio de acesso venoso em
caso de resultado positivo.
De maneira geral, terapia antibiótica empírica deve ser instituída antes do
resultado de cultura e antibiograma estar disponível. A escolha inicial depende das
circunstâncias clínicas. Estafilococos coagulase-negativos são os agentes etiológicos
mais comuns e geralmente são resistentes à Oxacilina, com indicação de Vancomicina
como opção inicial. Adição de cobertura empírica para organismos Gram-negativos
depende das circunstâncias individuais e da gravidade da infecção, sendo indicada em
caso de neutropenia ou sepse. Pacientes colonizados por micro-organismos resistentes a
drogas devem ter o esquema de antibioticoterapia empírica selecionado de acordo, com
ajuste conforme resultado de culturas subsequentes. Tratamento empírico para
candidemia relacionada a cateter intravascular com equinocandina, como a
Casponfungina, ou azólico é indicado para pacientes sépticos com fator de risco, como
nutrição parenteral total, uso prolongado de antibióticos de amplo espectro, neoplasia
maligna hematológica, transplante de medula óssea, transplante de órgão sólido,
cateterização femoral e colonização por Candida spp em múltiplos sítios. Se a remoção
do cateter intravascular não for possível, os antibióticos devem ser infundidos através
dele, devendo-se rodiziar o uso dos lúmens.
Após o início da antibioticoterapia empírica, o tratamento deverá ser ajustado
com base nos resultados de cultura e antibiograma. Em geral, infecção de corrente
sanguínea relacionada a cateter intravascular não-complicada pode ser tratada por dez a
quatorze dias, sendo considerado primeiro dia aquele em que as primeiras culturas de
sangue obtido de veia periférica com resultado negativo forem obtidas. A duração do
tratamento poderá ser prolongada para quatro a seis semanas em caso de bacteremia

Pedro Kallas Curiati 253


persistente por mais de 72 horas ou instalação recente de prótese valvar, mesmo em
caso de ausência de evidências de endocardite infecciosa. Em caso de complicações
relacionadas à bacteremia, a duração do tratamento dependerá da natureza da infecção.
A antibioticoterapia em pacientes com suspeita de infecção de corrente
sanguínea relacionada a cateter intravascular pode ser suspensa em caso de culturas de
sangue negativas e ausência de outra fonte infecciosa identificada.
A terapia antibiótica local no lúmen (lock therapy), também denominada selo de
antimicrobianos, deve ter a mesma duração da terapia antibiótica sistêmica. Não é
recomendada em caso de infecção do óstio ou do túnel do cateter intravascular. A
técnica consiste na instilação de concentrações supra-terapêuticas de antibióticos por
horas a dias no lúmen do cateter intravascular. As soluções utilizadas são misturadas
com 50-100UI de Heparina ou Soro Fisiológico, com volume suficiente para preencher
o lúmen do cateter intravascular. A concentração de Heparina indicada nos cateteres
intravasculares de longa permanência é de cerca de 100UI/mL e nos cateteres
intravasculares de diálise é de cerca de 5000UI/mL. Troca deve ser realizada com
intervalo máximo de 24-48 horas. Em cateteres intravasculares de diálise, a instilação da
solução deverá ser realizada após cada sessão de diálise, exceto em caso de sítio
femoral, situação na qual é recomendada a troca da solução a cada 24 horas.
Antimicrobiano Concentração Indicação Observação
Vancomicina 5mg/mL S. aureus ou estafilococo Desaconselha-se a manutenção
coagulase-negativo resistentes à sistemática do acesso venoso
Oxacilina central nas infecções por S.
Tratamento empírico na suspeita aureus
de infecção por bactéria Gram-
positiva
Cefazolina 5mg/mL S. aureus ou estafilococo
coagulase-negativo sensíveis à
Oxacilina
Ceftazidima 0.5mg/mL Bactérias Gram-negativas não- Desaconselha-se a manutenção
fermentadoras sensíveis, como sistemática do acesso venoso
Pseudomonas spp e central nas infecções por P.
Acinetobacter spp aeruginosa
Ciprofloxacino 0.2mg/mL Bactérias Gram-negativas -
sensíveis
Gentamicina 1mg/mL Bactérias Gram-negativas -
sensíveis
Tratamento empírico na suspeita
de infecção por bactérias Gram-
negativas
Ampicilina 10mg/mL Enterococcus spp sensíveis -
Em caso de infecção de corrente sanguínea relacionada a cateter intravascular
com isolamento de estafilococo coagulase-negativo, pode-se utilizar antibioticoterapia
sistêmica durante cinco a sete dias após a remoção do cateter intravascular, mas a
infecção poderá resolver com a remoção do cateter intravascular na ausência de
antibioticoterapia sistêmica. Por esse motivo, na ausência de material endovascular
prostético, alguns especialistas favorecem abrir mão da antibioticoterapia sistêmica a
menos que febre e/ou bacteremia persistam após a remoção do cateter intravascular.
Pacientes com material endovascular prostético devem ser submetidos a remoção do
cateter intravascular e a antibioticoterapia sistêmica durante três semanas caso seja
excluída endocardite bacteriana. Se a salvação do cateter for necessária, recomenda-se
antibioticoterapia sistêmica e local no lúmen (lock theraphy) durante dez a quatorze
dias.
Em caso de infecção de corrente sanguínea relacionada a cateter intravascular

Pedro Kallas Curiati 254


com isolamento de S. aureus, o manejo geralmente envolve a remoção do cateter
intravascular e antibioticoterapia sistêmica. Pacientes em uso empírico de Vancomicina
nos quais for isolado S. aureus sensível a Meticilina devem ter a medicação substituída
por Oxacilina. A duração do tratamento depende da natureza da infecção.
Ecocardiograma transesofágico deve ser realizado em caso de bacteremia por S. aureus
para excluir endocardite infecciosa, preferencialmente cinco a sete dias após o início da
bacteremia, exceto em caso de resolução da febre e da bacteremia dentro de período de
72 horas após a remoção do cateter intravascular e ausência de sinais clínicos de
endocardite infecciosa e de condições predisponentes. Pacientes com complicações
hematológicas, como endocardite com ou sem infecção metastática, devem receber
antibioticoterapia durante quatro a seis semanas. Na ausência de complicações
hematológicas ou fatores de risco, como infecção adquirida na comunidade, material
endovascular prostético, comorbidades relacionadas a imunodepressão, incluindo
diabetes mellitus, uso de medicação imunodepressora e síndrome da imunodeficiência
humana, anormalidade valvular cardíaca, terapia dialítica, tromboflebite supurativa e
atraso para remoção do cateter intravascular, um curso mais breve de antibióticos é
apropriado, devendo ser superior ou igual a quatorze dias. Pacientes com cultura de
ponta de cateter positiva para S. aureus e cultura de sangue de veia periférica negativa
devem ser observados de perto, mas alguns especialistas recomendam antibioticoterapia
durante sete dias. Pacientes com cultura de sangue obtido de lúmen do cateter positiva
para S. aureus e cultura de sangue obtido de veia periférica negativa devem ser
observados de perto, com coleta de culturas adicionais de sangue obtido tanto de lúmen
do cateter como de veia periférica, com a abordagem ótima dos casos em que persistir a
positividade apenas na cultura de sangue obtido de lúmen do cateter atualmente incerta,
devendo-se remover o cateter intravascular se possível ou, caso contrário, colher
culturas adicionais e observar o paciente de perto ou utilizar antibioticoterapia sistêmica
durante quatorze dias. Salvação do cateter intravascular em caso de infecção de corrente
sanguínea relacionada por S. aureus com antibioticoterapia sistêmica e local no lúmen
(lock theraphy) durante quatro semanas apresenta baixa taxa de sucesso.
Em caso de infecção de corrente sanguínea relacionada a cateter intravascular
com isolamento de enterococo, o manejo geralmente prevê remoção do cateter se
possível e antibioticoterapia sistêmica. Salvação do cateter não deve ser tentada em caso
de infecção do sítio de inserção ou do reservatório subcutâneo, tromboflebite
supurativa, sepse, endocardite, bacteremia persistente e infecção metastática. O
antibiótico de escolha, em caso de suscetibilidade, é Ampicilina, com uso de
Vancomicina em caso de resistência à Ampicilina. Linezolida é preferida em caso de
resistência à Ampicilina e à Vancomicina. Em caso de salvação do cateter intravascular,
pode haver benefício com a associação de Gentamicina com a Ampicilina. O risco de
endocardite infecciosa é relativamente baixo em caso de infecção por E. faecium e
maior em caso de infecção por E. faecalis, sendo recomendado realizar ecocardiograma
transesofágico em caso de sinais e sintomas de endocardite infecciosa, bacteremia
persistente ou material endovascular prostético. Antibioticoterapia deve ser
administrada por sete a quatorze dias na ausência de evidência de endocardite bacteriana
ou infecção metastática tanto no contexto de remoção do cateter como no de salvação
do cateter.
Em caso de infecção de corrente sanguínea relacionada a cateter intravascular
com isolamento de bacilo Gram-negativo, o manejo geralmente prevê remoção do
cateter se possível e antibioticoterapia sistêmica. Salvação do cateter não deve ser
tentada em caso de infecção do sítio de inserção ou do reservatório subcutâneo,
tromboflebite supurativa, sepse, endocardite, bacteremia persistente e infecção

Pedro Kallas Curiati 255


metastática. Pacientes críticos, com fatores de risco para infecção por Gram-negativos
com resistência a múltiplas drogas ou com cateter intravascular femoral devem receber
tratamento empírico com carbapenêmico ou com dois antibióticos de diferentes classes
e com ação contra Gram-negativos. Quando a cultura e o antibiograma estiverem
disponíveis, o regime inicial poderá ser adaptado para agente único para o restante do
tratamento, que deverá durar sete a quatorze dias. Em caso de infecção de corrente
sanguínea relacionada a cateter intravascular de longa permanência com bacteremia
persistente ou sepse grave apesar de antibioticoterapia sistêmica e local no lúmen (lock
theraphy), o cateter intravascular deverá ser removido e infecção metastática deverá ser
pesquisada.
Em caso de infecção de corrente sanguínea relacionada a cateter intravascular
com isolamento de Candida spp, o manejo geralmente prevê remoção do cateter se
possível e antibioticoterapia sistêmica.
Em caso de infecção de corrente sanguínea relacionada a cateter intravascular
com isolamento de micro-organismos de baixa virulência difíceis de erradicar, como
Bacillus spp, Micrococcus spp e Propionibacterium spp, a antibioticoterapia de escolha
prevê o uso de Vancomicina, com duração ajustada conforme as circunstâncias clínicas.
Em caso de bacteremia persistente, com culturas repetidamente positivas e/ou
sintomas 72 horas após a remoção do cateter e o início de antibioticoterapia sistêmica
adequada, deve-se suspeitar de tromboflebite supurativa, endocardite infecciosa e
infecção metastática.
Infecção do sítio de inserção de cateteres intravasculares venosos centrais de
curta permanência indica a remoção do cateter, a cultura de sua ponta e a coleta de dois
pares de culturas de sangue, com ao menos uma amostra obtida de veia periférica. Caso
o paciente ainda necessite de acesso venoso central, deve-se instalar novo cateter
intravascular em outro local. Se cultura de ponta de cateter positiva e cultura de sangue
obtido de veia periférica negativa em paciente sem sinais de infecção, deve-se apenas
observar a evolução, exceto em caso de isolamento de S. aureus, situação na qual o
paciente poderá ser tratado por cinco a sete dias conforme o antibiograma. Em pacientes
com doença valvar ou neutropenia e colonização do cateter intravascular venoso central
por S. aureus ou Candida spp, deve-se atentar para sinais de infecção e repetir culturas
de sangue obtido de veia periférica se necessário. Se cultura de ponta de cateter positiva
e cultura de sangue obtido de veia periférica negativa em paciente com sinais sistêmicos
de infecção e sem outro foco, deve-se completar sete dias de antibioticoterapia sistêmica
conforme antibiograma.
Infecção do sítio de inserção ou do túnel de cateteres intravasculares tunelizados
indica a sua remoção, com coleta de secreção para cultura e antibioticoterapia por
período inferior ou igual a sete dias na ausência de infecção de corrente sanguínea.
Infecção do sítio de saída de cateteres intravasculares tunelizados não
complicada, sem sinais de infecção sistêmica, sem secreção purulenta e sem positivação
de culturas de sangue, pode ser manejada com antibióticos tópicos com base no
resultado de culturas, como Mupirocina para S. aureus e Cetoconazol para Candida spp.
Recomenda-se a coleta de dois pares de cultura de sangue, com ao menos uma amostra
obtida de veia periférica. Se não houver melhora ou se houver secreção purulenta,
recomenda-se coleta de secreção para cultura e antibioticoterapia por período inferior ou
igual a sete dias na ausência de infecção de corrente sanguínea. Em caso de falha,
recomenda-se a remoção do cateter intravascular.

Bibliografia
Epidemiology and microbiology of intravascular catheter infections. Robert Gaynes. UpToDate, 2012.

Pedro Kallas Curiati 256


Diagnosis of intravascular catheter-related infections. Jeffrey D Band, UpToDate, 2012.
Prevention of intravascular catheter-related infections. Jeffrey D Band and Robert Gaynes, UpToDate, 2012.
Treatment of intravascular catheter-related infections. Jeffrey D Band, UpToDate, 2012.
Guia de utilização de anti-infecciosos e recomendações para a prevenção de infecções hospitalares / coordenação Anna Sara S.
Levin... [et al]. – 5. Ed. – São Paulo : Hospital das Clínicas, 2011.

Pedro Kallas Curiati 257


PROFILAXIA DE ÚLCERA DE
ESTRESSE
Fatores de risco maiores para úlcera de estresse incluem ventilação mecânica por
mais de 48 horas, coagulopatia, caracterizada por plaquetas abaixo de 50.000/mL,
tempo de tromboplastina parcial ativada acima de duas vezes o limite superior da
normalidade ou Razão Normatizada Internacional superior 1.5, instabilidade
hemodinâmica, queimaduras graves, traumatismo crânio-encefálico, traumatismo
raquimedular e antecedente de úlcera gastrointestinal ou sangramento digestivo no
último ano. Fatores de risco menores incluem sepse, internação prolongada na unidade
de terapia intensiva, com duração superior a uma semana, sangramento gastrointestinal
oculto com duração superior ou igual a seis dias e uso de glicocorticoides. A presença
de um fator de risco maior ou de dois fatores de risco menores indica a instituição de
profilaxia adequada.
O tratamento das condições que promovem a hipoperfusão da mucosa gástrica
auxilia na redução do risco de lesões gástricas.
O papel da nutrição enteral precoce ainda é discutível. A terapia farmacológica
baseia-se em antiácidos, Sucralfato, antagonistas de receptor H2 e inibidores de bomba
de prótons.
Os antiácidos são pouco práticos, pois devem ser administrados de 1/1 hora, com
risco de intoxicação. Sucralfato protege a mucosa gástrica por meio da formação de uma
barreira, com redução na incidência de sangramentos não-complicados. Os antagonistas
de receptor H2 são as medicações com maior embasamento na literatura para profilaxia
de úlceras de estresse, sendo a Ranitidina mais potente que a Cimetidina, além de ter
menos interação medicamentosa e possuir formulação intravenosa. Os inibidores de
bomba de prótons são mais efetivos em elevar o pH mucoso, com eficácia demonstrada
no tratamento de síndromes dispépticas e na profilaxia secundária, mas com menos
evidências para o uso na profilaxia primária.
Medicação Dose habitual
Via enteral Via intravenosa
Hidróxido de Alumínio 30-60mL a cada 1-2 horas -
Sucralfato 1g de 6/6 horas -
Ranitidina 150mg de 12/12 horas 50mg de 8/8 horas
Cimetidina 200-400mg de 12/12 horas 300mg de 6/6 horas
Famotidina 20-40mg/dia -
Omeprazol 20-40mg uma vez ao dia 20-40mg uma vez ao dia
Lansoprazol 15-30mg/dia -
Pantoprazol 40mg/dia 40mg/dia

Bibliografia
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Stress ulcer prophylaxis in the intensive care unit. Gerald L Weinhouse. UpToDate, 2011.

Pedro Kallas Curiati 258


PROFILAXIA DE TROMBOSE
VENOSA PROFUNDA
Pacientes clínicos

Algoritmo para avaliação da necessidade de profilaxia de tromboembolismo venoso em


pacientes clínicos hospitalizados
Todos os pacientes devem ser rotineiramente avaliados.

1. Idade superior ou igual a quarenta anos e mobilidade reduzida, com paciente


deitado ou sentado à beira do leito durante pelo menos metade do dia,
excluído o período de sono?
2. Algum fator de risco?
Fatores de risco para trombose venosa profunda
Acidente vascular cerebral Infecção aguda
Câncer Insuficiência arterial periférica
Catéteres centrais ou de artéria pulmonar (Swan-Ganz) Internação em unidade de tratamento intensivo
Doença inflamatória intestinal Obesidade
Doença reumatológica aguda Paresia ou paralisia recente, imobilização
Gravidez e pós-parto Quimioterapia ou hormonioterapia
História prévia de tromboembolismo venoso Reposição hormonal, contraceptivos orais
Infarto agudo do miocárdio Síndrome nefrótica
Insuficiência cardíaca congestiva classe III ou IV Trombocitopenia induzida por Heparina
Insuficiência respiratória Uso de drogas ilícitas intravenosas
Idade superior ou igual a 55 anos Varizes ou insuficiência venosa crônica
3. Alguma contraindicação?
Contraindicações para profilaxia medicamentosa de tromboembolismo venoso
Sangramento ativo
Úlcera péptica ativa
Hipertensão arterial sistêmica não-controlada, com valores superiores a 180x100mmHg
Coagulopatia, com plaquetopenia ou Razão Normatizada Internacional superior a 1.5
Alergia ou plaquetopenia induzidas por Heparina
Insuficiência renal com clearance de creatinina inferior a 30mL/minuto
Cirurgia craniana ou ocular a menos de duas semanas
Coleta de líquido cefalorraquidiano a menos de 24 horas
4. Se não para uma das duas primeiras perguntas, a conduta prevê orientar
deambulação e reavaliar em dois dias. Se sim para as três perguntas,
introduzir métodos mecânicos, como compressão pneumática intermitente
e/ou meia elástica de compressão gradual, com contraindicação relativa em
caso de insuficiência arterial periférica, e reavaliar em dois dias. Se sim para
as duas primeiras perguntas e não para a terceira pergunta, profilaxia
medicamentosa está indicada.

Profilaxia medicamentosa para tromboembolismo venoso


As opções incluem Heparina de Baixo Peso Molecular, com Enoxaparina 40mg
ou Dalteparina 5000UI uma vez ao dia, Heparina Não-Fracionada, com 5000UI de
12/12 a 8/8 horas, e Fondaparinux, com 2.5mg uma vez ao dia. A via de administração é
a subcutânea. Deve-se manter a medicação escolhida por 6-14 dias ou enquanto persistir
o risco.
Pacientes com menos de 40 anos, mas com fatores de risco adicionais, podem se

Pedro Kallas Curiati 259


beneficiar de profilaxia. Nos casos de acidente vascular encefálico isquêmico, deve-se
excluir hemorragia com tomografia computadorizada ou ressonância magnética. Nos
casos de acidente vascular encefálico hemorrágico, pode-se considerar profilaxia a
partir do décimo dia, após confirmação de estabilidade clínica e tomográfica.

Pacientes cirúrgicos

Risco de tromboembolismo venoso em pacientes cirúrgicos sem profilaxia


Risco baixo em cirurgia de pequeno porte e cirurgia de médio porte em pacientes com
idade inferior a quarenta anos sem outros fatores de risco. Risco moderado em cirurgia de médio
porte em pacientes com idade entre quarenta e sessenta anos sem fatores de risco adicionais e
em pacientes com idade inferior a quarenta anos com outros fatores de risco. Risco alto em
cirurgia de grande porte ou em cirurgia de médio porte em pacientes com idade superior a
sessenta anos ou em pacientes com idade entre quarenta e sessenta anos com outros fatores de
risco adicionais. Risco altíssimo em cirurgia em pacientes com múltiplos fatores de risco,
artroplastia de quadril ou joelho e cirurgia para tratamento de fratura de quadril.

Recomendações para profilaxia de pacientes cirúrgicos


Procedimento e risco individual Recomendações
Cirurgia geral
Cirurgia de pequeno porte em Deambulação precoce, com início, se possível, em menos de 24
paciente com idade inferior a horas
quarenta anos sem outros fatores de
risco
Cirurgia de pequeno porte em Heparina Não-Fracionada 5000UI de 12/12 horas, Heparina de
pacientes com fatores de risco Baixo Peso Molecular uma vez ao dia ou Fondaparinux 2.5mg
adicionais uma vez ao dia por via subcutânea
Cirurgia em pacientes com idade Se alto risco de sangramento, utilizar somente métodos mecânicos
entre quarenta e sessenta anos sem até controle do risco
outros fatores de risco
Cirurgia de grande porte em
pacientes com idade inferior a
quarenta anos sem outros fatores de
risco
Cirurgia em pacientes em pacientes Heparina Não-Fracionada 5000UI de 8/8 horas, Heparina de Baixo
com idade superior a sessenta anos Peso Molecular uma vez ao dia ou Fondaparinux 2.5mg uma vez
ou com outros fatores de risco ao dia por via subcutânea
Cirurgia de grande porte em Em caso de múltiplos fatores de risco, associar métodos
pacientes com idade superior a farmacológicos com métodos mecânicos
quarenta anos ou com outros fatores Se alto risco de sangramento, utilizar somente métodos mecânicos
de risco até controle do risco
Em cirurgias de grande porte por câncer, sugere-se manter a
profilaxia com Heparina de Baixo Peso Molecular por até 28 dias
após a alta
Ginecologia
Cirurgia de pequeno porte, com Deambulação precoce, com início, se possível, em menos de 24
duração inferior ou igual a trinta horas
minutos, por doença benigna, sem
outros fatores de risco
Cirurgia laparoscópica com fatores Heparina Não-Fracionada 5000UI de 8/8 a 12/12 horas ou
de risco adicionais Heparina de Baixo Peso Molecular uma vez ao dia ou métodos
mecânicos
Se alto risco de sangramento, utilizar somente métodos mecânicos
até controle do risco

Pedro Kallas Curiati 260


Cirurgia de grande porte por doença Heparina Não-Fracionada 5000UI de 12/12 horas, Heparina de
benigna sem outros fatores de risco Baixo Peso Molecular uma vez ao dia ou compressão pneumática
intermitente desde antes do início do procedimento e até a
deambulação
Se alto risco de sangramento, utilizar somente métodos mecânicos
até controle do risco
Cirurgia de grande porte por doença Heparina Não-Fracionada 5000UI de 8/8 horas ou Heparina de
maligna com outros fatores de risco Baixo Peso Molecular uma vez ao dia ou compressão pneumática
intermitente desde antes do início do procedimento e até a
deambulação
Em caso de múltiplos fatores de risco, associar métodos
farmacológicos com métodos mecânicos
Em cirurgias por câncer em pacientes com idade superior a
sessenta anos ou com tromboembolismo venoso prévio, sugere-se
manter a profilaxia com Heparina de Baixo Peso Molecular por até
28 dias após a alta
Cirurgia vascular
Cirurgia vascular sem outros fatores Deambulação precoce, com início, se possível, em menos de 24
de risco horas
Cirurgia vascular de grande porte Heparina Não-Fracionada 5000UI de 8/8 horas, Heparina de Baixo
com fatores de risco Peso Molecular uma vez ao dia ou Fondaparinux 2.5mg uma vez
ao dia por via subcutânea
Em caso de múltiplos fatores de risco, associar métodos
farmacológicos com métodos mecânicos
Se alto risco de sangramento, utilizar somente métodos mecânicos
até controle do risco
Urologia
Procedimentos transuretrais Deambulação precoce, com início, se possível, em menos de 24
Cirurgia de pequeno porte horas
Cirurgias abertas ou de grande porte Heparina Não-Fracionada 5000UI de 8/8 a 12/12 horas ou
Heparina de Baixo Peso Molecular uma vez ao dia por via
subcutânea ou métodos mecânicos desde antes do início do
procedimento e até a deambulação
Se alto risco de sangramento, utilizar somente métodos mecânicos
até controle do risco
Cirurgia em pacientes com Heparina Não-Fracionada 5000UI de 8/8 horas ou Heparina de
múltiplos fatores de risco Baixo Peso Molecular uma vez ao dia por via subcutânea e
métodos mecânicos desde antes do início do procedimento e até a
deambulação
Se alto risco de sangramento, utilizar somente métodos mecânicos
até controle do risco
Cirurgia laparoscópica
Cirurgia laparoscópica sem outros Deambulação precoce, com início, se possível, em menos de 24
fatores de risco horas
Cirurgia laparoscópica com outros Heparina Não-Fracionada 5000UI de 12/12 horas, Heparina de
fatores de risco Baixo Peso Molecular uma vez ao dia ou Fondaparinux 2.5mg
uma vez ao dia por via subcutânea ou métodos mecânicos desde
antes do início do procedimento e até a deambulação
Em caso de múltiplos fatores de risco, associar métodos
farmacológicos com métodos mecânicos
Se alto risco de sangramento, utilizar somente métodos mecânicos
até controle do risco
Em cirurgias de grande porte por câncer, sugere-se manter a
profilaxia com Heparina de Baixo Peso Molecular por até 28 dias
após a alta
Cirurgia bariátrica

Pedro Kallas Curiati 261


Cirurgia bariátrica Heparina Não-Fracionada 5000UI de 8/8 horas, Heparina de Baixo
Peso Molecular uma vez ao dia ou Fondaparinux 2.5mg uma vez
ao dia por via subcutânea
Considerar a combinação de profilaxia farmacológica com
compressão pneumática intermitente
Doses mais altas de Heparina Não Fracionada ou de Heparina de
Baixo Peso Molecular podem ser necessárias, como Enoxaparina
30mg de 12/12 horas
Neurocirurgia
Cirurgia intracraniana Heparina Não-Fracionada 5000UI de 8/8 horas ou Heparina de
Baixo Peso Molecular uma vez ao dia por via subcutânea com
início 48-72 horas após a cirurgia ou compressão pneumática
intermitente
Cirurgia em pacientes com Heparina Não-Fracionada 5000UI de 8/8 horas ou Heparina de
múltiplos fatores de risco Baixo Peso Molecular uma vez ao dia por via subcutânea com
início 48-72 horas após a cirurgia e compressão pneumática
intermitente
Trauma
Politrauma Heparina de Baixo Peso Molecular com esquema para alto risco
ou métodos mecânicos em caso de contraindicação ao uso de
anticoagulante
Em caso de múltiplos fatores de risco, associar métodos
farmacológicos com métodos mecânicos
Manter a profilaxia até a alta hospitalar
Em pacientes com alterações graves da mobilidade, manter após a
alta Heparina de Baixo Peso Molecular ou inibidores de vitamina
K
Trauma raquimedular Heparina de Baixo Peso Molecular com esquema para alto risco
assim que a hemostasia for adequada ou compressão pneumática
intermitente associada a Heparina Não Fracionada ou Heparina de
Baixo Peso Molecular por via subcutânea
Ortopedia
Artroplastia total de quadril eletiva Heparina de Baixo Peso Molecular com esquema para alto risco
Artroplastia total de joelho eletiva associada ou não a métodos mecânicos, com primeira dose doze
horas antes da cirurgia ou 12-24 horas após
Outras opções incluem inibidor de vitamina K, iniciada na noite do
pré-operatório ou na noite seguinte do pós-operatório, visando
Razão Normatizada Internacional de 2.0-3.0 e Fondaparinux
2.5mg/dia após pelo menos seis horas da cirurgia, por via
subcutânea
Recomenda-se usar a profilaxia por pelo menos dez dias, podendo-
se estender por 28-35 dias
Cirurgia de fratura Heparina de Baixo Peso Molecular com esquema para alto risco
ou Heparina Não-Fracionada associadas ou não a métodos
mecânicos, com primeira dose doze horas antes da cirurgia ou 12-
24 horas após
Outras opções incluem inibidor de vitamina K, iniciada na noite do
pré-operatório ou na noite seguinte do pós-operatório, visando
Razão Normatizada Internacional de 2.0-3.0 e Fondaparinux
2.5mg/dia após pelo menos seis horas da cirurgia, por via
subcutânea
Recomenda-se usar a profilaxia por pelo menos dez dias, podendo-
se estender por 28-35 dias
Esquema para alto risco com Heparina de Baixo Peso Molecular prevê
1mg/kg/dia de Enoxaparina e fracionamento para aplicação de 12/12 horas, geralmente
com 30mg de 12/12 horas por via subcutânea. Esquema para baixo risco com Heparina
de Baixo Peso Molecular prevê 40mg de Enoxaparina uma vez ao dia por via
subcutânea.

Pedro Kallas Curiati 262


A Enoxaparina geralmente é administrada doze horas antes da cirurgia ou doze a
vinte e quatro horas após. Caso a anestesia para o ato cirúrgico seja por bloqueio
espinhal, deve-se iniciar o uso da medicação uma hora após a punção lombar ter sido
realizada. A Heparina Não-Fracionada é administrada duas horas antes da cirurgia ou
quatro a seis horas após.

Bibliografia
Tromboembolismo Venoso: Profilaxia em Pacientes Clínicos. Projeto Diretrizes. Associação Médica Brasileira e Conselho Federal
de Medicina, 2005.
Prevention of venous thromboembolic disease in medical patients. Graham F Pineo. UpToDate, 2011.
Prevention of venous thromboembolic disease in surgical patients. Graham F Pineo. UpToDate, 2011.
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.

Pedro Kallas Curiati 263


SEDAÇÃO E ANALGESIA
Introdução
A estimulação do sistema nervoso autônomo com liberação de fatores como
catecolaminas, cortisol, glucagon, leucotrienos, prostaglandinas, vasopressina e
endorfina, após injúria, sepse ou cirurgias, é uma resposta ao estresse anteriormente
considerada benéfica. Dados recentes mostram que essa exacerbação pode ser deletéria,
causando isquemia miocárdica, resistência à insulina, imunossupressão e distúrbios da
coagulação. O bem-estar do paciente e o controle da dor e da ansiedade diminuem a
magnitude dessa resposta.
Sedação facilita o cuidado com o paciente, melhora a sincronia do paciente com
o ventilador, reduz o consumo de oxigênio, promove amnésia, induz sono e controla a
agitação.

Definições
Analgesia é definida como ausência ou supressão da sensação de dor,
experiência de caráter sensorial ou emocional associada a uma lesão tecidual real ou
potencial, com diferente limiar de acordo com cada paciente. Não há alteração
intencional do nível de consciência, embora possa ser um efeito colateral de certas
medicações utilizadas.
O conceito de sedação refere-se a alterações do nível de consciência.
Na sedação mínima ou ansiólise, o paciente apresenta resposta normal a
comandos verbais, embora com prejuízo das funções cognitivas e motoras. Não há
comprometimento das funções cardiovascular e respiratória.
Na sedação moderada, o paciente apresenta resposta a comandos verbais com ou
sem estímulo tátil leve, sem prejuízo para a ventilação ou alterações cardiovasculares.
Na sedação profunda não há consciência do meio e ocorre resposta débil apesar
de estímulos dolorosos repetitivos. São necessárias monitorização respiratória e
proteção de vias aéreas. Geralmente não há depressão cardiovascular.
Sedação dissociativa é estado hipnótico induzido pela Quetamina, com profunda
analgesia e amnésia. A proteção das vias aéreas permanece intacta, sem instabilidade
hemodinâmica. Pode ocorrer hipertensão arterial em alguns casos.
Anestesia geral consiste em completa perda de consciência mesmo aos estímulos
dolorosos, com necessidade de monitorização cardíaca e respiratória contínua.
Geralmente utilizada em centro cirúrgico.

Objetivos
Controlar movimentos abruptos e indesejados.
Proporcionar rápido retorno ao estado de consciência.
Minimizar os riscos de eventos adversos relacionados à técnica.
Proporcionar bem-estar ao paciente.

Monitorização
A observação clínica do paciente e as variações de pressão arterial, frequência
cardíaca, agitação e expressão facial permitem uma visão subjetiva do nível de sedação
e analgesia alcançado.
Pode ser tentada uma quantificação da dor por escalas visuais e/ou descritivas
verbais. Dentre as escalas de sedação existentes destacam-se a de Ramsay e a de

Pedro Kallas Curiati 264


sedação-agitação (SAS). Métodos de análise mais complexos, como o Índice Bispectral
(BIS) não são de uso rotineiro.
Escala de Ramsay Escala de sedação-agitação (SAS)
1. Acordado, ansioso e/ou agitado; 7. Agitação perigosa, tenta tirar cateteres e tubo
orotraqueal, tenta sair do leito, agride a equipe de
enfermagem, movimenta-se de um lado para o outro;
2. Acordado, tranquilo, cooperativo e 6. Muito agitado, morde o tubo orotraqueal, necessita de
orientado; restrições, não se acalma apesar de frequentes pedidos e
explicações;
3. Acordado, responde a comandos; 5. Ansioso, levemente agitado, tenta levantar e acalma-se
com orientação verbal;
4. Dormindo, acorda à estimulação auditiva 4. Calmo, cooperativo, desperta facilmente, obedece a
intensa ou à compressão da glabela, com comandos;
abertura ocular; 3. Sedado, difícil de ser acordado, acorda com estímulos
verbais ou táteis e volta a dormir, obedece a comandos
simples;
5. Dormindo, acorda brevemente aos 2. Muito sedado, desperta com estímulos físicos, mas
estímulos, com resposta débil à estimulação não responde a ordens, move-se espontaneamente;
auditiva intensa ou à compressão da glabela;
6. Não acorda; 1. Não despertável, resposta mínima ou ausente a
estímulos ou ordens, não se comunica;
A sedação deve ser titulada através do despertar diário para diminuir a
pneumonia associada à ventilação mecânica, o tempo de ventilação mecânica e o tempo
de internação em unidade de terapia intensiva. Pacientes agitados ou hipoativos devem
ser avaliados quanto à possibilidade de delirium através do Confusion Assessment
Method.

Sedação e analgesia em procedimentos


A técnica de sedação e analgesia em procedimentos no serviço de emergência
orienta a utilização de substâncias com o intuito de permitir a realização de
procedimentos desagradáveis mantendo a função cardiorrespiratória autônoma e o
controle de vias aéreas. As principais etapas são a correta indicação do procedimento, a
realização de monitorização adequada antes, durante e após o procedimento com
pressão arterial não-invasiva, ritmo cardíaco e oximetria de pulso, a definição do nível
de sedação almejado e o uso das drogas mais adequadas e na melhor sequência possível
para a realização do procedimento.

Medicações disponíveis
A via preferencial de uso é a intravenosa por ser menos agressiva e de maior
confiabilidade de efeitos e absorção. A associação de benzodiazepínicos com agentes
opióides é a mais indicada para os procedimentos em geral. A utilização de anti-
inflamatórios não-hormonais e anestesia local são técnicas adjuntas de sedação e
analgesia, com diminuição da necessidade de maiores doses dos medicamentos.
Com o objetivo de melhorar a qualidade da analgesia oferecida, deve-se
antecipar o aparecimento da dor, reconhecer sua presença, quantificar sua intensidade,
tratar adequadamente e, quando possível, eliminar sua causa.

Analgésicos simples
Dipirona deve ser usada preferencialmente por via intravenosa na emergência
para o tratamento de dor leve ou moderada e de febre. O risco de agranulocitose é
extremamente baixo e não justifica a não-utilização, como é feito nos Estados Unidos. É
apresentada na forma de ampolas de 2mL com 500mg/mL. A dose máxima diária é de
6g.

Pedro Kallas Curiati 265


Paracetamol é opção de analgésico simples quando o paciente for alérgico à
Dipirona. Tem apenas apresentação oral e a dose habitual é de 500mg a cada 6 horas. O
consumo crônico e excessivo de álcool pode aumentar o risco de hepatotoxicidade.

Anti-inflamatórios não-hormonais
Podem ser utilizados na emergência no tratamento de dores nas quais há
componente inflamatório, independentemente de sua intensidade. Devem ser utilizados
com precaução na presença de insuficiência renal, doença hepática e insuficiência
cardíaca, principalmente quando houver uso associado de inibidores da enzima
conversora da angiotensina, bloqueadores de receptor de angiotensina II ou diuréticos.
O uso parenteral pode diminuir a lesão mucosa direta, mas os efeitos sistêmicos
permanecem. As doses habituais são Cetoprofeno 100mg por via intravenosa diluído em
Soro Fisiológico 100mL para evitar flebite, com no máximo 300mg/dia, e Tenoxicam
20mg por via intravenosa uma vez ao dia.
Complicações incluem disfunção plaquetária, hemorragia digestiva e
insuficiência renal, principalmente em idosos e em pacientes com doenças associadas.

Benzodiazepínicos
Agentes sedativos de escolha, com efeito amnésico e de relaxamento muscular.
Possuem rápido início de ação e a decisão de qual usar depende do tempo de ação
desejado. Não apresentam propriedades analgésicas.
São antagonizados por Flumazenil 0.2mg (2mL) por via intravenosa de 1/1
minuto, com dose máxima de 1mg (10mL). Uma ampola contém 0.5mg.
Seu metabolismo hepático e sua eliminação renal podem potencializar os efeitos
na insuficiência desses órgãos. Ocasionam repercussão hemodinâmica discreta e são
sinérgicos se utilizados com opióides. O efeito colateral mais deletério é a depressão do
centro respiratório.
Diazepam tem meia-vida de eliminação prolongada e duração de 4-6 horas. O
metabólito pode acumular-se em tratamentos com altas doses, administração crônica,
recém-nascidos, idosos e pacientes com insuficiência renal e/ou hepática. É apresentado
na forma de ampola de 2mL com 5mg/mL. A dose recomendada é de 5-10mg ou 0.2-
0.3mg/kg por via intravenosa, com repetição se necessário.
Midazolam apresenta meia-vida de eliminação curta, de cerca de uma hora e
meia a três horas, e maior potência do que o Diazepam. Seu metabólito ativo pode
acumular-se em alguns casos, com retardo da recuperação. Tem maior solubilidade que
o Diazepam, permitindo diluição e administração intramuscular. As vantagens incluem
amnésia e efeito anticonvulsivante. A principal desvantagem é não proporcionar
analgesia. Pode causar redução do volume corrente e hipotensão. Apresenta início de
ação em trinta a sessenta segundos, com duração do efeito de quinze a trinta minutos. É
apresentado na forma de ampola de 3mL ou de 10mL com 5mg/mL e a dose
recomendada é de 0.1-0.3mg/kg, com diluição de 15mg em Água Destilada 12mL. Em
unidade de terapia intensiva, infusão contínua com dose de ataque de 5.0-7.5mg e
manutenção com 2.0-10.0mg/hora, com diluição de 150mg em Soro Glicosado a 5%
120mL, correspondendo a concentração de 1mg/mL. O despertar pode ser prolongado
ou mesmo imprevisível em caso de uso por mais de 72 horas, insuficiência renal,
insuficiência hepática e faixa etária geriátrica. Trata-se de excelente opção em casos de
agitação psicomotora com violência, com administração por via intravenosa ou
intramuscular, e melhora da performance do controle da agitação quando associado a
Haloperidol.

Pedro Kallas Curiati 266


Opióides
São antagonizados por Naloxone 0.4mg (1mL) por via intravenosa de 3/3
minutos, com dose máxima de 10mg (25mL). Uma ampola contém 1mL com
0.4mg/mL. O antagonista de opióides deve ser usado com cautela em pacientes com uso
prolongado pelo risco de desencadear síndrome de abstinência.
Tramadol é classificado como opióides fraco por apresentar potência menor que
a da Morfina. Entretanto, promove boa analgesia. É um análogo sintético da Codeína
que, além de bloquear receptores opióides, também bloqueia a recaptação de
noradrenalina e serotonina, agindo de forma similar aos antidepressivos tricíclicos,
sendo uma boa opção de droga de manutenção para a dor. Por outro lado, é de risco para
diminuir limiar convulsivo. Os efeitos colaterais mais comuns, como vertigem, náusea e
vômitos, podem ser evitados com adequada diluição da medicação em pelo menos
100mL de Soro Fisiológico e infusão lenta, por via intravenosa, em cerca de trinta
minutos. É apresentado na forma de ampola de 2mL com 50mg/mL, sendo a dose
recomendada de 50-100mg por via intravenosa a cada quatro a seis horas, com máximo
de 400mg em 24 horas. Em pacientes cirróticos ou com clearance de creatinina inferior
a 30mL/minuto, deve-se utilizar 50% da dosagem. Outras formas de apresentação
incluem cápsulas de 50mg e gotas, com aproximadamente 100mg em quarenta gotas,
sendo a biodisponibilidade por via oral maior do que a por via intravenosa.
Morfina é uma droga com bom perfil de segurança, excelente potência
analgésica, baixo risco de indução de dependência e capacidade de titulação de doses.
Tem início de ação em 3-5 minutos, com pico em 30 minutos e meia-vida de duas horas,
sendo amplamente utilizada para controle álgico, com boa tolerância. Seus efeitos
adversos mais comuns são prurido, retenção vesical, constipação, náusea, espasmo do
esfíncter de Oddi, broncoespasmo e, em doses elevadas, depressão do centro
respiratório. É apresentada na forma de ampola de 1mL ou 2mL com 10mg/mL. A
diluição preconizada prevê 10mg em 9mL de Água Destilada para formar solução
decimal com 1mg/mL. A dose recomendada é de 3mg em bolus a cada 5-15 minutos até
o efeito terapêutico desejado ou a dose de 15mg em uma hora. A infusão lenta, em 5-15
minutos, diminui a incidência de hipotensão arterial. Deve-se usar doses menores, de
75% se clearance de creatinina inferior a 50mL/minuto ou de 50% se clearance de
creatinina inferior a 10mL/minuto. Em unidade de terapia intensiva, pode-se preferir
infusão contínua com dose de ataque de 0.05mg/kg ou 3-5mg e manutenção com 1-
5mg/hora, intermitente ou continua, constituindo alternativa custo-efetiva ao Fentanil.
Pode ser administrada por via subcutânea ou oral, sempre de 4/4 horas.
Oxicodona é opióide duas vezes mais potente que a Morfina, com menos efeitos
colaterais em trato digestório e sistema nervoso central. É apresentada na forma de
comprimidos de 10mg, 20mg e 40mg, com intervalo de doze horas entre as doses. Não
pode ser macerada, partida ou triturada pelo risco de absorção intensa.
Metadona é um opióide com bom efeito adicional em dor neuropática, sendo
também uma boa opção para pacientes que desenvolveram taquifilaxia pela Morfina. É
apresentada na forma de comprimidos de 5mg e 10mg, com dose inicial de 2.5-10.0mg
por via oral a cada oito ou doze horas. A potência varia de acordo com a dose de cinco a
dez vezes em relação à Morfina. É muito frequente a necessidade de redução da dose
após três dias pelo acúmulo. Os efeitos colaterais são semelhantes aos da Morfina, com
risco adicional de arritmia relacionada a prolongamento do intervalo QT e maior risco
de acúmulo e depressão do sistema nervoso central.
Meperidina tem menor potência entre os opioides fortes e farmacocinética
semelhante à da Morfina. Os efeitos colaterais mais comuns são prurido,
broncoespasmo, depressão miocárdica e do centro respiratório, excitação, tremores,

Pedro Kallas Curiati 267


mioclonias e convulsões. Não oferece vantagem sobre a Morfina ou o Fentanil, não
sendo recomendado o uso rotineiro. É apresentada na forma de ampolas de 2mL com
50mg/mL. A dose recomendada é de 50-100mg a cada duas horas.
Fentanil geralmente é utilizado pelo seu efeito analgésico. Por ser altamente
lipossolúvel, tem maior potência, início de ação em trinta segundos e tempo de ação de
trinta a sessenta minutos. Não causa liberação de histamina e tem baixa incidência de
depressão miocárdica. Suas piores complicações são depressão respiratória, hipotensão,
bradicardia e rigidez torácica associadas ao uso de doses elevadas e trismo associado a
velocidades de infusão elevadas. Não há alteração de metabolização em pacientes com
insuficiência renal. É apresentada na forma de ampola de 5mL ou de 10mL com
50mcg/mL. A dose recomendada é de 50-100mcg por via intravenosa com
administração lenta. Em unidade de terapia intensiva, pode ser utilizada infusão
contínua com dose de ataque de 1-2mcg/kg e dose de manutenção de 0.5-
5.0mcg/kg/hora, sem diluição. Outra forma de apresentação inclui o adesivo
transdérmico de liberação prolongada por 72 horas contendo 2.5mg, 5.0mg, 7.5mg ou
10mg, correspondentes à liberação de 25mcg/hora, 50mcg/hora, 75mcg/hora e
100mcg/hora de Fentanil.
O emprego de laxativos é recomendado quando se inicia o uso de opióides. O
uso concomitante de analgésicos simples e de anti-inflamatórios não-hormonais pode
diminuir a dose necessária.

Propofol
Agente sedativo hipnótico, ansiolítico e amnésico sem propriedades analgésicas.
Devido a sua titulação dose-efeito equilibrada, tem sido muito utilizado em
procedimentos rápidos, como intubação traqueal e cardioversão. Sua farmacocinética é
pouco alterada na presença de insuficiência renal e/ou hepática. Não produz metabólicos
ativos.
Pode causar hipotensão por depressão miocárdica e vasodilatação, além de
apnéia. A instabilidade hemodinâmica e a depressão respiratória ocorrem em doses
intermitentes em bolus ou em doses elevadas contínuas, principalmente se associação
com opióides para analgesia. Deve-se monitorizar os parâmetros vitais do paciente
durante a infusão.
Diminui a pressão intracraniana e é anticonvulsivante. Por esse motivo, trata-se
da droga de escolha em pacientes com distúrbios neurológicos. Além disso, diminui a
resistência de toda a via aérea.
Apresenta início de ação em quinze a trinta segundos e duração do efeito de até
dez minutos, com recuperação do nível de consciência logo após o término da infusão.
É apresentado na forma de ampola de 20mL com 10mg/mL ou 20mg/mL. A
dose de indução anestésica recomendada é de 1.5-2.5mg/kg por via intravenosa, com
titulação durante a administração na velocidade de 20-40mg a cada dez segundos e
manutenção através de infusão contínua de 4-12mg/kg/hora ou repetidas doses em bolus
de 25-50mg conforme a necessidade clínica. Quando utilizado para promover sedação
em pacientes adultos ventilados mecanicamente na unidade de terapia intensiva,
recomenda-se administração em infusão contínua com 0.3/4.0mg/kg/hora, sem diluição.
Necessita de uma via de administração exclusiva e a infusão prolongada pode
causar Hipertrigliceridemia.

Haloperidol
Anti-psicótico empregado no tratamento de delírio, estados confusionais e
agitação psicomotora, com rápida sedação.

Pedro Kallas Curiati 268


Deve ser associado a analgésicos por não possuir esse efeito. Na agitação
refratária, pode ser associado a benzodiazepínicos.
O início de ação ocorre em 5-20 minutos, com duração de 4-6 horas, Não causa
depressão respiratória ou instabilidade hemodinâmica.
Efeitos adversos incluem manifestações extrapiramidais, síndrome neuroléptica
maligna, prolongamento do intervalo QT e, raramente, torção das pontas.
Deve ser evitado em pacientes com hipertireoidismo ou em uso de Lítio.
O início de ação ocorre em cerca de cinco a vinte minutos, com duração de
quatro a seis horas. É apresentado na forma de ampola de 1mL com 5mg/mL. A dose
recomendada é de 5-10mg a cada 15 minutos, com até três doses, e intervalos de quatro
a oito horas. O uso pode ser intravenoso ou intramuscular quando houver dificuldade de
acesso.

Quetamina
Agente sedativo hipnótico intravenoso de ação curta e com efeito analgésico,
particularmente útil para intervenções em pacientes asmáticos em broncoespasmo.
Opção também em pacientes instáveis hemodinamicamente ou com riscos relacionados
à queda da pressão arterial, como aqueles com traumatismo crânio-encefálico ou com
acidente vascular encefálico. Não diminui o drive respiratório.
Indicada para curativos dolorosos, desbridamento de pacientes queimados e
procedimentos ginecológicos.
Pode aumentar pressão arterial, débito cardíaco, frequência cardíaca e pressão
intracraniana, com elevado risco em síndromes coronarianas, dissecção de aorta e
convulsões. Em caso de alucinações e excitação relacionados ao uso da droga, pode ser
necessária a associação com um benzodiazepínico.
O início de ação ocorre em sessenta segundos e a duração é de dez a vinte
minutos. É apresentada na forma de ampola de 10mL com 50mg/mL. A dose
recomendada é de 1.5-2.0mg/kg por via intravenosa.

Etomidato
Agente sedativo hipnótico intravenoso de ação curta, não analgésico.
Particularmente indicado para intervenções de curta duração, com menos de dez
minutos, procedimentos diagnósticos e intervenções realizadas em ambulatório, quando
se deseja recuperação rápida com boas condições de orientação, deambulação e
equilíbrio.
Não causa instabilidade hemodinâmica, mas pode provocar vômitos, mioclonias
e insuficiência adrenal relativa, principalmente após infusão prolongada. Além disso,
diminui o limiar convulsivo.
Induz hipnose em quinze a quarenta e cinco segundos, com duração de até
quinze minutos.
É apresentado na forma de ampola de 10mL com 2mg/mL. A dose recomendada
é de 0.3mg/kg, não devendo exceder 60mg no total. Em unidade de terapia intensiva,
pode ser utilizada infusão contínua com dose de ataque de 0.2-0.6mg/kg e dose de
manutenção de 5-20mcg/kg/minuto. Contraindicado para sedação contínua.
Como não possui atividade analgésica, é recomendada a administração de 50-
100mcg de Fentanil por via intravenosa, um a dois minutos antes.

Dexmedetomidine (Precedex)
Medicação nova, agonista α2-adrenérgico de ação central, com propriedades
analgésicas e sedativas.

Pedro Kallas Curiati 269


Agente altamente lipofílico com metabolização hepática e metabólitos inativos
excretados pelo rim e pelas fezes.
Os efeitos colaterais mais comuns são hipotensão arterial e bradicardia quando
em infusão contínua e hipertensão arterial quando em bolus. Deve-se reduzir em 30-
40% a dose na presença de insuficiência hepática. Contraindicado em pacientes com
bloqueio atrioventricular de segundo e terceiro graus e na insuficiência cardíaca grave,
com fração de ejeção do ventrículo esquerdo inferior a 30%.
Ampola de 2mL com 100mcg/mL. A diluição preconizada é de uma ampola em
Soro Fisiológico 48mL, com 4mcg/mL. A dose recomendada é ataque de 1mcg/kg em
dez minutos e manutenção de 0.2-0.7mcg/kg/hora. Não deve ser administrado em bolus.

Tiopental
Barbitúrico apresentado na forma de ampola de 20mL com 50mg/mL, com dose
de 3-5mg/kg. As vantagens incluem sedação profunda, diminuição da pressão
intracraniana e efeito anticonvulsivante. Desvantagens incluem hipotensão, depressão
respiratória intensa, efeito cumulativo e flebite em veia periférica.

Bloqueadores neuromusculares
Succinilcolina é o bloqueador neuromuscular despolarizante que apresenta
melhor perfil para uso na situação de emergência em função de seu alto índice de
sucesso em intubação orotraqueal, de sua ação rápida e de sua duração curta, de seis a
dez minutos. Desvantagens incluem risco de hipercalemia com arritmias em pacientes
com insuficiência renal ou síndrome do esmagamento. É apresentada na forma de
ampola de 10mL com 10mg/mL, devendo-se diluir 100mg em Água Destilada 100mL.
A dose recomendada é de 0.6-1.5mg/kg por via intravenosa. Não é recomendado o uso
contínuo.
Rocurônio é opção à Succinilcolina, com efeito mais prolongado. É apresentado
na forma de ampola de 5mL com 10mg/mL. A dose recomendada é de 1.0mg/kg por via
intravenosa. Reversão pode ser conseguida com Neostigmina 0.06-0.08mg/kg por via
intravenosa quando 40% da função já está recuperada.
Pancurônio é o bloqueador neuromuscular de escolha para a maioria das
situações em unidade de terapia intensiva. É apresentado na forma de ampola de 2mL
com 2mg/mL. A dose recomendada é de 0.04-0.10mg/kg. Pode ser usado de forma
intermitente ou contínua e apresenta longa duração, de 60-90 minutos. Desvantagens
incluem efeito vagolítico importante, com taquicardia. Efeito imprevisível em
insuficiência renal e/ou hepática.
Em unidade de terapia intensiva, o uso de bloqueio neuromuscular aumenta a
incidência de polineuropatia do doente crítico e o tempo de ventilação mecânica, sem
evidência de benefício na morbimortalidade nem na diminuição do consumo de
oxigênio. Recomenda-se seu uso nos casos selecionados em que a sincronia entre
paciente e ventilador não é obtida após a otimização da sedação e da analgesia e
eventualmente durante manobras de recrutamento alveolar.

Cardioversão elétrica
Em geral, o paciente apresenta quadro cardiológico de base, com risco de
deterioração miocárdica, e/ou hipotensão. O procedimento é incômodo e gera dor. O
paciente necessita de bom nível de sedação, sendo recomendado Ramsay 5, porém é
necessário manter a estabilidade da via aérea. Após uma cardioversão elétrica bem
sucedida, o paciente não precisa mais de sedação, podendo permanecer acordado.
Deve-se fazer uso de Fentanil 2mcg/kg em dose baixa para analgesia seguido

Pedro Kallas Curiati 270


por um hipnótico, sendo de primeira escolha Etomidato 0.3mg/kg ou a Quetamina
2mg/kg, e de segunda escolha Propofol 2mg/kg, que deve ser evitado em pacientes com
hipotensão. O Midazolam 0.3mg/kg só fica reservado para casos em que não há
disponibilidade de nenhuma das outras drogas.
Muitas vezes o paciente irá precisar de suporte ventilatório, o que provavelmente
não ocorrerá por tempo prolongado, bastando para tanto auxiliá-lo com dispositivo
bolsa-valva-máscara ligado a fonte de oxigênio.

Intubação orotraqueal
A intubação de sequência rápida é a primeira escolha na sala de emergência. A
escolha correta de fármacos proporciona laringoscopia mais fácil, aumenta o sucesso,
diminui a resposta fisiológica com hipotensão e reduz o risco de aspiração pulmonar.
Deve-se estabelecer acesso venoso adequado e monitorização de ritmo cardíaco,
pressão arterial, saturação periférica de oxigênio e nível de consciência. É importante o
posicionamento adequado do paciente, se possível com decúbito elevado para dificultar
a regurgitação e a aspiração de conteúdo gástrico.
É fundamental pré-oxigenar o paciente com calma, mantendo sempre o uso de
dispositivo bolsa-valva-máscara.
O uso de pré-indução com opióides aumenta a chance de sucesso na intubação
orotraqueal por permitir o uso de menores doses do indutor anestésico ao relaxar o
paciente e promover diminuição dos estímulos nocivos. As opções de sedação incluem,
em ordem de preferência, Etomidato 0.3mg/kg, Quetamina 2mg/kg, Propofol 2mg/kg e
Midazolam 0.3mg/kg por via intravenosa. As vias aéreas devem ser protegidas com a
manobra de Sellick.
Bloqueio neuromuscular deve ser usado quando não houver contraindicação. É
importante garantir que o paciente esteja ventilando sem obstrução das vias aéreas, com
expansão torácica bilateral. A seguir, preconiza-se a passagem do tubo, a confirmação
do posicionamento e a realização de cuidados pós-intubação.
Tempos Com Succinilcolina Com bloqueador No estado de mal asmático
neuromuscular não-
despolarizante
Zero Preparação Preparação Preparação
5 minutos Pré-oxigenar com oxigênio a Pré-oxigenar com oxigênio Pré-oxigenar com oxigênio a
100% a 100% 100%
8 minutos Pré-medicar com Fentanil Pré-medicar com Fentanil -
3mcg/kg se necessário 3mcg/kg se necessário
10 Etomidato 0.3mg/kg e Etomidato 0.3mg/kg e Quetamina 1.5mg/kg e
minutos Succinilcolina 1.5mg/kg Roncurônio 1.0mg/kg Succinilcolina 1.5mg/kg
11 minuos Laringoscopia, intubação e Laringoscopia, intubação e Laringoscopia, intubação e
confirmação baseada no CO2 confirmação baseada no confirmação baseada no CO2
exalado CO2 exalado exalado
Pós- Midazolam 0.3mg/kg com ou Midazolam 0.3mg/kg com Midazolam 0.3mg/kg com ou
intubação sem Pancurônio 0.1mg/kg ou ou sem Vecurônio sem Pancurônio 0.1mg/kg ou
Vecurônio 0.1mg/kg 0.1mg/kg Vecurônio 0.1mg/kg

Bibliografia
Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 5. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2010.
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.

Pedro Kallas Curiati 271


SEPSE E CHOQUE SÉPTICO
Definições
Infecção é fenômeno microbiano caracterizado por resposta inflamatória
reacional à presença de micro-organismos ou à invasão de tecidos normalmente estéreis
àqueles micro-organismos.
Síndrome da resposta inflamatória sistêmica (SIRS) é resposta inflamatória
generalizada do organismo a diversos agressores. O diagnóstico depende da presença de
dois ou mais dentre:
- Temperatura superior a 38.3º C ou inferior a que 36.0º C;
- Frequência cardíaca superior a 90bpm;
- Frequência respiratória superior a 20ipm, PaCO2 inferior a 32mmHg ou
necessidade de ventilação mecânica por processo agudo;
- Leucocitose superior a 12.000/mm3, leucopenia inferior a 4.000/mm3 ou
presença de mais de dez por cento de formas imaturas;
Sepse é síndrome da resposta inflamatória sistêmica relacionada a infecção
documentada ou presumida.
Sepse grave é sepse associada a hipoperfusão tecidual (hiperlactatemia),
hipotensão ou disfunção orgânica cardiovascular, neurológica, renal, respiratória,
hepática, hematológica e/ou metabólica.
Choque séptico é sepse com hipotensão e hipoperfusão não-responsivas a
volume e com necessidade de uso de agentes vasopressores.
Síndrome da disfunção de múltiplos órgãos consiste em função orgânica alterada
em pacientes gravemente enfermos, nos quais a homeostase do organismo não pode ser
mantida sem intervenção.

Etiologia
Qualquer organismo pode causar sepse ou choque séptico, incluindo bactérias,
vírus, protozoários, fungos e espiroquetas.
Sempre lembrar das doenças próprias de cada região e próprias do Brasil, como
malária, febre amarela, leptospirose, dengue, arboviroses, hepatite viral, formas agudas
de doenças fúngicas, esquistossomose e doença de Chagas.

Achados clínicos
Em termos hemodinâmicos, a sepse caracteriza-se inicialmente por uma fase
hipodinâmica à custa de redução do volume intravascular e eventualmente depressão
miocárdica. Após ressuscitação, tipicamente ocorre evolução para padrão
hemodinâmico de débito cardíaco elevado e redução da resistência vascular sistêmica
por vasoplegia, com elevação do lactato arterial, redução da perfusão tecidual e
alteração do enchimento capilar. A saturação venosa tipicamente é alta e a presença de
ânions não mensuráveis altera o déficit de base na gasometria arterial.

Exames complementares
Não existe um exame laboratorial específico para o diagnóstico de sepse. Nunca
se deve deixar de avaliar com cuidado e de forma rápida, quase sempre com solicitação
de exames complementares, pacientes em quimioterapia, em uso de corticoide em altas
doses, em uso de imunossupressores, transplantados e com esplenectomia.
A presença de leucopenia, a despeito de ser previamente considerada como um

Pedro Kallas Curiati 272


indício de infecção por Gram-negativo, atualmente é mais correlacionada com infecção
grave e imunossupressão. Esses indivíduos têm ainda frequentemente redução das
contagens plaquetárias, bem como alteração dos tempos de coagulação, com redução do
fibrinogênio e aumento dos produtos de degradação da fibrina, como o dímero-D, o que
indica a presença de coagulopatia de consumo.
A hiperglicemia é achado comum nesses pacientes e usualmente reflete a ação
de hormônios contra-reguladores, como epinefrina, cortisol e glucagon.
Outros achados laboratoriais se correlacionam com as disfunções orgânicas e
incluem elevação de enzimas hepáticas e bilirrubinas, elevação das escórias
nitrogenadas e gasometria com hipoxemia, hipocapnia e acidose metabólica.
A incidência de culturas positivas em pacientes sépticos é de cerca de 45%.
Apesar disso, todos os pacientes sépticos devem ter hemoculturas e outras culturas
guiadas pelo foco colhidas imediatamente após o diagnóstico, pois diversos estudos
demonstram que antibioticoterapia precoce e empírica inicial seguida por ajuste baseado
no resultado de cultura associa-se a redução da mortalidade nesses indivíduos.
Os exames de imagem são úteis no choque séptico para identificar o local de
infecção. Assim, a radiografia de tórax pode demonstrar presença de pneumonia ou
síndrome do desconforto respiratório agudo. A ultrassonografia e a tomografia
computadorizada podem ser úteis para identificar o local da infecção e novas coleções
em pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos prévios.

Tratamento
Indivíduos em sepse grave e choque séptico devem ser conduzidos em unidade
de terapia intensiva ou, em uma fase inicial, em unidades de emergência adequadas para
o seu cuidado, com monitorização eletrocardiográfica e de oximetria de pulso contínuas.
A evolução depende da identificação precoce do quadro, bem como da
precocidade e da eficácia do tratamento adotado na sala de emergência. O tratamento
geral da sepse inclui ressuscitação volêmica precoce guiada por metas,
antibioticoterapia imediata e remoção de focos infecciosos. Quando necessário, o
suporte com drogas vasoativas deve ser instituído.

Princípios no manejo do choque séptico


Instituição de antibioticoterapia precoce e adequada, ainda na primeira hora,
idealmente orientada por pesquisas microbiológicas como culturas e bacterioscopias.
Resolução de processos instalados, localizados e tratáveis por intervenções
médicas, como drenagem de abscessos, desbridamento de tecidos desvitalizados e
retirada de dispositivos infectados, como sondas e cateteres.
Ressuscitação hemodinâmica iniciada prontamente e perseguida vigorosamente,
sendo orientada por metas clínicas e laboratoriais. Medidas de otimização da perfusão
tissular são mais efetivas se introduzidas precocemente.
Monitorização invasiva da pressão arterial é preferida, pois permite medidas
mais acuradas e entendimento batimento-a-batimento dos processos envolvidos na
instabilidade.
Acesso às pressões de enchimento das câmaras cardíacas pode ser obtido através
da cateterização venosa central ou da utilização de cateter de artéria pulmonar, que
pode, ainda, fornecer dados como débito cardíaco e saturação venosa central mista.

Volemia
A medida inicial sempre é a restauração da volemia, conseguida através de
expansão do intravascular com provas de volume, ou seja, infusão rápida de uma

Pedro Kallas Curiati 273


solução de expansão, que pode ser cristalóide ou colóide. Preconiza-se 500-1000mL de
cristalóide ou 300-500mL de colóide a cada 30 minutos. Usualmente utiliza-se um
cristalóide.
A efetividade e a decisão pela continuação ou interrupção da prova volêmica são
baseadas em objetivos, como queda da frequência cardíaca, elevação da pressão arterial,
aumento da diurese e elevação da saturação venosa. Os limites são definidos por
congestão pulmonar e elevação das pressões de enchimento além de valores
predeterminados.

Vasopressores
Terapia com vasopressor deve ser instituída quando a reposição volêmica for
adequada, porém insuficiente para manter a pressão de perfusão. O vasopressor pode ser
necessário transitoriamente para manter a vida ou para manter a perfusão ainda com a
reposição volêmica em curso. Dopamina e Noradrenalina através de cateter venoso
central são eficientes na elevação da pressão arterial, em especial se o indivíduo está
adequadamente ressuscitado do ponto de vista volêmico. Todos os pacientes que
necessitem de vasopressores devem ter um cateter arterial inserido para monitorização
contínua da pressão arterial invasiva.
A Noradrenalina atua em receptores adrenérgicos, principalmente α1 e β1.
Aumenta consistentemente a pressão arterial e parece promover melhora da circulação
esplâncnica. Quando comparada à Dopamina, causa menos taquicardia e menos
alterações endócrinas.
A Dopamina atua em receptores adrenérgicos e dopaminérgicos. Quando
comparada à Noradrenalina, aumenta menos consistentemente a pressão arterial e causa
taquicardia e taquiarritmias. O uso deve ser limitado em pacientes taquicárdicos.
Adrenalina atua em receptores adrenérgicos e é indicada para casos de choque
refratário. O seu uso pode estar associado ao aparecimento de febre, diminuição de
fluxo esplâncnico e hiperlactatemia.
Dobutamina atua predominantemente em receptores adrenérgicos β1 e β2.
Melhora a perfusão esplâncnica e renal. Utilizada em diversas situações clínicas com
ação inotrópica e aumento da perfusão periférica. Aumenta a frequência cardíaca e o
consumo miocárdico de oxigênio, o que limita o uso em pacientes com insuficiência
coronariana. Na presença de hipotensão, deve ser utilizada em associação com
vasopressor.
Os vasodilatadores estão indicados para pacientes com pressão arterial média
superior a 90mmHg em vigência de quadro séptico e têm a vantagem de início de ação
rápido e meia-vida curta. O Nitroprussiato é um vasodilatador balanceado arterial e
venoso, enquanto que a Nitroglicerina tem ação predominantemente venosa.

Ressuscitação volêmica precoce guiada por metas


Essa estratégia baseia-se em um protocolo de condução inicial de doentes com
sepse grave e choque séptico ressuscitados nas primeiras seis horas ainda na sala de
emergência. Os principais critérios de inclusão no protocolo são a presença de critérios
de síndrome da resposta inflamatória sistêmica em associação com pressão arterial
sistólica inferior a 90mmHg após expansão volêmica com 20-30mL/kg de cristaloide
em trinta minutos ou hiperlactatemia.
O tratamento é guiado por metas de pressão venosa central (PVC) de 8-
12mmHg, pressão arterial média (PAM) de 65-90mmHg, débito urinário superior a
0.5mL/kg/hora, lactato inferior a 2mmol/L ou 18mg/dL e saturação venosa central
(ScvO2), tendo como objetivo final uma saturação venosa central (ScvO2) superior a

Pedro Kallas Curiati 274


70% nas primeiras seis horas de tratamento. A monitorização depende da obtenção de
um acesso venoso profundo, como um cateter venoso central.
A primeira estratégia terapêutica é a ressuscitação volêmica com soluções
cristalóides, limitada a valores de pressão venosa central de 8-12mmHg ou sinais de
sobrecarga volêmica. Uma vez atingidos tais valores, a próxima etapa é a manutenção
de uma pressão arterial média adequada, que seria estabilizada com drogas
vasopressoras, como Dopamina ou Norepinefrina, se abaixo de 65mmHg ou reduzida
artificialmente com vasodilatadores, como Nitroglicerina ou Nitroprussiato, se acima de
90mmHg. A etapa seguinte de ajuste da oferta e do consumo de oxigênio é a obtenção
ou manutenção de um hematócrito acima de 30% através da oferta de concentrados de
hemácias aos pacientes até que sejam atingidos esses valores. Uma vez que não houver
indicação de transfusão ou o valor de ScvO2 ainda não tiver sido alcançado, utiliza-se
Dobutamina em infusão contínua com doses crescentes.
A oferta abundante de oxigênio, bem como eventual intubação orotraqueal e
paralisação com o intuito de diminuir a demanda por oxigênio, também fazem parte do
protocolo. Estratégias de aumento do débito cardíaco arbitrariamente a níveis elevados
pré-determinados, com valores supra-normais, não são recomendadas.
Uma vez resolvida a hipoperfusão e na ausência de isquemia miocárdica,
hipoxemia severa, hemorragia aguda, doença cardíaca cianótica e acidose lática,
recomenda-se transfusão sanguínea quando hemoglobina inferior a 7g/dL com o
objetivo de manter alvo de 7-9g/dL em adultos. Esse limiar contrasta com aquele
estabelecido pelo protocolo de Rivers e cols.

Controle de glicemia
Todos os pacientes devem receber aporte nutricional, assim que possível,
preferencialmente por via enteral. Antes, devem receber aporte calórico com glicose
intravenosa para evitar cetose, com 400kcal/dia.
Embora seja conhecida há algum tempo a relação entre taxas elevadas de
glicemia e mortalidade em unidade de terapia intensiva, não há evidência de redução de
mortalidade com controle estrito. Do ponto de vista prático, o protocolo de insulina
regular humana diluído em soro fisiológico em infusão contínua deve ser ajustado de
acordo com a glicemia capilar visando manter níveis inferiores a 180mg/dL, que
parecem ser eficientes em diminuir a ocorrência de hipoglicemia associada ao controle
glicêmico.

Corticoides em baixas doses


A recomendação atual é a administração de Hidrocortisona em bolus intravenoso
de 50mg de 6/6 horas durante sete dias para pacientes em choque séptico com
necessidade crescente de doses de vasopressores.

Proteína C Ativada Humana Recombinante (Drotrecogina α)


Essa substância apresenta atividade anti-inflamatória, anti-trombótica e pró-
fibrinolítica. Do ponto de vista prático, as grandes limitações ao uso são seus potenciais
efeitos adversos, em especial os sangramentos, assim como baixa disponibilidade em
nosso meio e elevado custo.
É indicada em pacientes com sepse grave e APACHE superior a 24 ou que
apresentem duas ou mais disfunções orgânicas há menos de 48 horas. É contraindicada
em pacientes que apresentam sangramento interno, acidente vascular cerebral
hemorrágico há menos de três meses, neurocirurgia ou trauma cranioencefálico há
menos de dois meses, trauma com risco de sangramento grave, cateter epidural, tumor

Pedro Kallas Curiati 275


cerebral, uso concomitante de heparina, hepatopatia grave ou plaquetopenia inferior a
30.000/mm3. Dose de 24mcg/kg/hora durante 96 horas.

Outras medidas
Profilaxia contra trombose venosa profunda através do uso de Heparina e/ou de
dispositivos mecânicos.
Profilaxia contra úlceras de estresse com bloqueador H2 ou bloqueador de
bomba de prótons.
Profilaxia contra pneumonia associada a ventilação mecânica através da
inclinação da cabeça do paciente a 30-45%.
Pacientes que desenvolvem síndrome da angústia respiratória aguda ou lesão
pulmonar aguda devem receber ventilação mecânica com estratégia protetora, que prevê
volume corrente baixo, de 4-6mL/kg, e limite para as pressões de vias aéreas, com
pressão de platô inferior a 30cmH2O.

Conduta
Sala de emergência.
Cabeceira elevada.
Monitorização de débito
urinário, pressão venosa central,
pressão arterial, pulso, perfusão
periférica e saturação periférica de
oxigênio.
Exames laboratoriais, com
hemograma, função renal,
gasometria arterial com lactato e
proteína C reativa.
Antibioticoterapia precoce.
Acesso venoso central.
Ressuscitação hemodinâmica
com expansão volêmica,
vasopressor e inotrópico para
saturação venosa central de
oxigênio superior ou igual a 70%.
Controle de foco infeccioso.
Suporte e tratamento para as
disfunções orgânicas com corticoide
em baixas doses, controle glicêmico
e ventilação mecânica protetora,
com volume corrente inferior ou igual a 6mL/kg e pressão de platô limitada a
30cmH2O.

Bibliografia
Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 5. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2010.
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.
Fluid Therapy in Resuscitated Sepsis: Less is More. Lakshmi Durairaj and Gregory A Schmidit. CHEST / 133 / 1 / JANUARY,
2008

Pedro Kallas Curiati 276


SÍNDROME DO DESCONFORTO
RESPIRATÓRIO AGUDO
Definição antiga - 1994
Insuficiência respiratória de instalação aguda.
Infiltrado pulmonar bilateral na radiografia de tórax.
Pressão de oclusão da artéria pulmonar inferior a 18mmHg ou ausência de sinais
clínicos ou ecocardiográficos de hipertensão atrial esquerda.
Hipoxemia grave, caracterizada por PaO2/FiO2 inferior ou igual a 200. Há lesão
pulmonar aguda quando a relação é inferior ou igual a 300.

Definição nova - 2012


Insuficiência respiratória com instalação dentro do período de uma semana em
relação a insulto clínico conhecido, surgimento de sintomas respiratórios ou
agravamento de sintomas respiratórios.
Opacidades bilaterais na radiografia de tórax ou na tomografia computadorizada
de tórax não-explicadas completamente por derrame pleural, colapso lobar, colapso
pulmonar ou nódulos.
Insuficiência respiratória não-explicada completamente por insuficiência
cardíaca ou sobrecarga hídrica. Há necessidade de avaliação objetiva, como
ecocardiograma, para excluir edema hidrostático quando não for identificado fator de
risco.
PaO2 inferior ou igual a 300mmHg, mas superior a 200mmHg, com pressão
expiratória final positiva superior ou igual a 5cmH2O, caracteriza doença leve. PaO2
inferior ou igual a 200mmHg, mas superior a 100mmHg, com pressão expiratória final
positiva superior ou igual a 5cmH2O, caracteriza doença moderada. PaO2 inferior ou
igual a 100mmHg, com pressão expiratória final positiva superior ou igual a 5cmH2O,
caracteriza doença grave.

Etiologia
Sepse, incluindo pneumonia.
Infecções respiratórias difusas, cujos agentes incluem C. pneumoniae, M.
pneumoniae, citomegalovírus, Leptospira sp, Pneumocystis sp e M. tuberculosis.
Vasculites, capilarites ou hemorragia alveolar, como vasculites com anticorpo
anti-citoplasma de neutrófilo positivo, síndrome do anticorpo antifosfolípide,
crioglobulinemia e lúpus eritematoso sistêmico.
Quadros intersticiais agudos idiopáticos, como pneumonia intersticial aguda,
pneumonia eosinofílica aguda, pneumonite por hipersensibilidade e pneumonia em
organização criptogênicas.
Aspiração de conteúdo gástrico.
Pancreatite grave.
Queimaduras extensas.
Uso de circulação extracorpórea.
Múltiplas transfusões.
Embolia gordurosa.
Trauma.
Quase afogamento.

Pedro Kallas Curiati 277


Inalação tóxica.

Fisiopatologia
Áreas de intenso colapso em regiões gravidade-dependentes.
Áreas mais aeradas para onde é preferencial o fluxo aéreo pela relativa melhor
complacência e potencial hiperdistensão caso os volumes correntes não sejam limitados.
Áreas de interface potencialmente suscetíveis ao processo de abertura e
fechamento cíclico com consequente potencial de dano associado a estratégias de
ventilação mecânica inadequadas.

Achados clínicos
Hipoxemia potencialmente grave.
Tendência a regime de hipertensão no território vascular pulmonar em função de
hipóxia, heterogeneidade regional e vasoconstrição hipóxica, com possibilidade de
falência do ventrículo direito e consequente colapso hemodinâmico.
É possível como manifestação clínica não só a hipoxemia com repercussão em
cada sistema do organismo, como também um padrão hemodinâmico que pode ser
desde indivíduos dependentes de pouco suporte até pacientes dependentes de grandes
volumes de solução de expansão, drogas vasoativas e, eventualmente, suporte
ventilatório invasivo.

Exames complementares
Uma vez suspeitado o diagnóstico, ainda na sala de emergência, deve ser feita a
monitorização do paciente conforme o manejo da insuficiência respiratória aguda:
- História e exame clínico;
- Monitorização cardíaca, de pressão arterial e de oximetria de pulso;
- Radiografia de tórax;
- Coleta de exames gerais a depender dos potenciais diagnósticos
associados e desencadeantes;
- Gasometria arterial;
Conforme a gravidade de cada caso, e já em ambiente de terapia intensiva,
podem ser necessárias medidas adicionais, como uma monitorização hemodinâmica
mais adequada de pressão arterial invasiva, pressões de enchimento das câmaras
cardíacas, pressões do território pulmonar, débito cardíaco e monitorização metabólica
com porcentagem de hemoglobina saturada de oxigênio na veia cava superior e lactato.
Outro exame que pode ser útil é a tomografia computadorizada de tórax. Através
da análise dos cortes tomográficos, é possível estimar o volume de pulmão colapsado e
titular a estratégia ventilatória para homogeneizar esse sistema respiratório.
Mais recentemente tem sido estudado um método para obtenção de imagens
tomográficas dinâmicas através de um dispositivo portátil, a tomografia de
bioimpedância, que permite a avaliação em tempo real da ventilação alveolar, da
presença de áreas de colapso alveolar e da hiperdistensão do parênquima. Permite que,
através do ajuste das pressões do sistema respiratório, estabeleça-se a abertura dessas
áreas ou a minimização do processo de abertura e fechamento cíclico através, por
exemplo, da titulação da Positive End Expiratory Pressure (PEEP) ou da monitorização
da segurança de manobras de recrutamento alveolar.

Diagnóstico diferencial
O principal diagnóstico diferencial clínico-radiológico é com a disfunção
cardíaca do tipo edema agudo de pulmão, caracterizada por hipoxemia e infiltrado em

Pedro Kallas Curiati 278


“asa de borboleta” na radiografia de tórax. A monitorização hemodinâmica, a aquisição
de imagens e a coleta de marcadores séricos podem ajudar na diferenciação, assim como
facilitar o manejo clínico.

Tratamento
A monitorização adequada é muito importante.
Esses pacientes estão sujeitos às complicações inerentes às doenças de base e à
condição aguda. Devem receber os cuidados-padrão como profilaxia de infecções
nosocomiais, especialmente de pneumonia associada a ventilação mecânica, profilaxia
para sangramento em trato gastro-intestinal, profilaxia para trombose venosa profunda,
nutrição precoce e antibioticoterapia adequada quando indicada.
Na fase inicial, o emergencista deve ser agressivo na reposição volêmica, não
devendo tolerar hipotensão. Drogas vasoativas podem ser necessárias e seu uso deve ser
pautado nas necessidades hemodinâmicas e na otimização baseada nas variáveis
metabólicas.
Lesão pulmonar aguda e síndrome do desconforto respiratório agudo não
pressupõem intubação orotraqueal. A princípio, a ventilação não-invasiva pode ter um
papel importante na condução dos casos mais leves. No entanto, essa estratégia acaba
sendo uma exceção em vista de sua ineficiência e das necessidades elevadas em termos
de tempo e pressões por parte dos pacientes.
Existe uma tendência atual de que as estratégias de ventilação mecânica em
lesão pulmonar aguda e síndrome do desconforto respiratório agudo sejam pautadas em
um paradigma de open lung approach, ou seja, a homogeneização do sistema
respiratório através da abertura e manutenção da patência alveolar, evitando-se a
abertura e o fechamento cíclicos e consequente lesão pulmonar induzida pela ventilação
mecânica.

Ventilação protetora
Já está bem estabelecido que os volumes correntes para ventilação desses
pacientes devem ser inferiores a 6mL/kg de peso ideal, com pressões de platô do
sistema respiratório de no máximo 30cmH2O, ainda que para isso seja necessário tolerar
níveis mais elevados de pCO2, conceito conhecido como hipercapnia permissiva.
Sugere-se manter o pH superior a 7.20.
Na tentativa de homogeneização e minimização da abertura e fechamento
cíclicos, pode ser necessária a elevação das pressões basais do sistema através da PEEP,
que deve ser ajustada para valores superiores a 10cmH2O.
O peso ideal pode ser calculado em homens com a fórmula 50 + 0.91 (altura em
centímetros – 152.4) e em mulheres com a fórmula 45.5 + 0.91 (altura em centímetros
– 152.4).

Manobras de recrutamento alveolar


Intervenções normalmente intermitentes em que o sistema respiratório é
submetido por curtos intervalos de tempo a regime de pressões elevadas a fim de
promover a abertura de territórios condensados.
As críticas dessas estratégias são a possibilidade de lesão pulmonar aguda e
comprometimento hemodinâmico, além do caráter efêmero. O recrutamento deve ser
repetido sempre que houver desconexão do circuito do ventilador.

Ventilação em posição prona


Nos casos de hipoxemia refratária, vêm sendo utilizadas manobras de

Pedro Kallas Curiati 279


posicionamento dos pacientes que demonstram benefício de oxigenação, porém com
dados controversos em termos de mortalidade. A ventilação em posição prona é obtida
com o posicionamento do paciente em decúbito ventral, cuidando do apoio para
minimizar o risco de lesões por pressão nas proeminências ósseas, por intervalos de
tempo limitados, de algumas horas durante o dia, de modo que sejam modificadas as
áreas de colapso gravidade-dependentes dos pulmões.

Corticosteróides
Nos casos mais graves ou em que a evolução não é favorável, o uso de
Metilprednisolona em doses por volta de 1-2mg/kg de peso é defensável, apesar de esse
dado ser suportado por evidência não muito sólida.

Bibliografia
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.
Acute Respiratory Distress Syndrome: The Berlin Definition. The ARDS Definition Task Force. JAMA, Published online May 21,
2012

Pedro Kallas Curiati 280


VENTILAÇÃO MECÂNICA
Definições
A ventilação mecânica ou, como seria mais adequado chamarmos, o suporte
ventilatório, consiste em um método de suporte para o tratamento de pacientes com
insuficiência respiratória aguda ou crônica agudizada.
Fração inspirada de oxigênio (FiO2) é a quantidade de oxigênio disponível na
mistura de gases a ser oferecida ao indivíduo em insuficiência respiratória. Pode variar
de 21% a 100%.
A eficiência do sistema em oxigenar o sangue arterial pode ser quantificada
através da relação PaO2/FiO2. Quanto mais baixa, maior a disfunção.
Os principais determinantes da ventilação, conforme a equação do volume-
minuto, são a frequência respiratória e o volume corrente ou tidal volume.
O volume corrente (VT) é o volume aéreo que “circula” pelos pulmões em um
ciclo respiratório e compõe, juntamente com o volume residual e os volumes de reserva
inspiratório e expiratório, a capacidade pulmonar total.

Objetivos
Manter as trocas gasosas, ou seja, corrigir a hipoxemia e a acidose respiratória
associadas à hipercapnia.
Aliviar o trabalho da musculatura respiratória que, em situações agudas de alta
demanda metabólica, está elevado. Reverter ou evitar a fadiga da musculatura
respiratória. Diminuir o consumo de oxigênio e, dessa forma, reduzir o desconforto
respiratório.
Permitir a aplicação de terapêuticas específicas.

Ventilação mecânica não-invasiva

Conceito
Estratégia de suporte ventilatório que permite oferecer altos fluxos de oxigênio
com FiO2 variáveis e ajustáveis, assim como pressão positiva nas vias aéreas através de
dispositivos específicos, como máscaras facial, nasal, full face e helmet.
As vantagens teóricas em relação à ventilação invasiva incluem eliminação das
possíveis complicações associadas com a intubação endotraqueal, diminuição de
infecções relacionadas a aplicação do suporte ventilatório, promoção de maior conforto
ao paciente, preservação dos mecanismos de defesa das vias aéreas, possibilidade de
manutenção da fala e da deglutição e maior flexibilidade para instituição e remoção do
suporte mecânico.

Indicações
Traz benefício em diversas situações bem estabelecidas, como doença pulmonar
obstrutiva crônica descompensada, edema agudo de pulmão, insuficiência respiratória
aguda em imunodeprimidos, como aqueles com síndrome da imunodeficiência
adquirida, transplante de órgãos sólidos e neutropenia, e desmame de ventilação
mecânica. Apesar de não ser recomendado o uso rotineiro, pode haver benefício em
outras situações, como crise de asma, insuficiência respiratória hipoxêmica e cuidados
paliativos. A ventilação mecânica não-invasiva pode prevenir intubação orotraqueal.
Critérios para seleção de pacientes elegíveis:

Pedro Kallas Curiati 281


- Dispneia moderada a grave, acima do padrão usual em pacientes com
insuficiência respiratória crônica, com frequência respiratória superior a
24ipm em pacientes com insuficiência respiratória aguda hipercápnica e
superior a 30-35ipm em pacientes com insuficiência respiratória aguda
hipoxêmica, uso dos músculos acessórios da ventilação e respiração
paradoxal;
- Anormalidades nas trocas gasosas, com PaCO2 superior a 45mmHg e
pH inferior a 7.35 em caso de insuficiência respiratória aguda
hipercápnica ou PaO2/FiO2 inferior a 300 em caso de insuficiência
respiratória aguda hipoxêmica;
As grandes considerações a serem feitas são a eventual não-adaptação da prótese
à face do paciente e a intolerância do paciente à fixação da máscara.
Não se deve usar ventilação não-invasiva em pacientes com parada respiratória
franca ou iminente, rebaixamento do nível de consciência, grande volume de secreção
traqueal, instabilidade hemodinâmica por choque, arritmias graves ou síndrome
isquêmica não-controlada, agitação psicomotora com ausência de colaboração, cirurgias
esofágicas, cirurgias gástricas, necessidade de grandes pressurizações ou trauma,
queimadura ou cirurgia facial.

Abordagem inicial
É importante ressaltar que não se deve retardar uma intubação orotraqueal
indicada. A aplicação de ventilação não-invasiva no ambiente do pronto-socorro
permite estabilização muito mais rápida dos pacientes e pode reduzir a taxa de
intubação e mortalidade em alguns casos.
A falência da ventilação não-invasiva deve ser detectada rapidamente, sendo
necessários monitorização contínua, reajustes baseados na resposta clínica e presença de
profissional treinado. Após trinta minutos, deve-se colher nova gasometria e avaliar
conforto e queda das frequências cardíaca e respiratória.
A piora ou a persistência das anormalidades na condição clínica e/ou nas trocas
gasosas, assim como o surgimento de qualquer contraindicação para o uso de ventilação
não-invasiva, são suficientes para que seja considerada falência, com indicação de
intubação orotraqueal e ventilação invasiva.

Modos ventilatórios
No modo Continuous
Positive Airway Pressure (CPAP) o
indivíduo respira espontaneamente,
porém em relação a uma linha de
base que é a pressão supra-
atmosférica à qual é submetida a
via aérea. Pode ser fornecido por
aparelhos de ventilação mecânica
invasiva, por aparelhos específicos para esse modo ventilatórios ou por simples
geradores ou reguladores de fluxo.
No modo ventilação com
pressão de suporte, com dois níveis
de pressão, o operador programa o
aparelho para fornecer a
pressurização da via aérea em dois
níveis, um na expiração, Expiratory

Pedro Kallas Curiati 282


Positive Airway Pressure (EPAP), e um na inspiração, Inspiratory Positive Airway
Pressure (IPAP). A sensibilidade para o disparo do aparelho pode ser determinada pelo
operador, assim como a fração inspirada de oxigênio. Pode ser fornecido por aparelhos
de ventilação mecânica invasiva ou por aparelhos específicos para esse modo
ventilatório. Os ciclos ventilatórios são ciclados a fluxo, a partir do momento em que o
fluxo inspiratório cai abaixo de níveis pré-fixados, geralmente 25%.
O termo BiPAP® (Bilevel
Positive Airway Pressure) é usado
erroneamente para descrever o modo de
ventilação com pressão de suporte. No
entanto, refere-se a um modo específico
produzido pela Respironics
Corporation, que pode ser descrito
como ventilação controlada à pressão com ventilações espontâneas irrestritas a qualquer
momento do ciclo ventilatório, funcionando como um CPAP com mudança no nível
pressórico ciclada a tempo.
Alguns aparelhos dispõem de controle de frequência respiratória mínima, com
ciclos controlados se o paciente não dispara o ventilador.

Ajustes iniciais no ventilador mecânico


No edema agudo de pulmão, preconiza-se CPAP próxima de 10cmH2O, que
deve ser menor inicialmente para adaptação do paciente à máscara e progressivamente
elevado, observando-se conforto, redução da frequência respiratória e obtenção de
volume corrente de 7-10mL/kg.
Na doença pulmonar obstrutiva crônica, preconiza-se EPAP de 4-6cmH2O e
IPAP que resulte em volume corrente de 7-10mL/kg, devendo ser aumentada ou
diminuída para obter conforto e frequência respiratória inferior a 25ipm.
Na insuficiência respiratória hipoxêmica, preconiza-se CPAP de 8-10cmH2O ou
EPAP de 8-10cmH2O com IPAP que resulte em volume corrente de 7-10mL/kg,
devendo ser aumentada ou diminuída para obter conforto e frequência respiratória
inferior a 25ipm.

Protocolo de iniciação
Avaliação do ambiente adequado para ventilação não invasiva.
Monitorização de ritmo cardíaco, frequência respiratória, pressão arterial e
porcentagem de hemoglobina saturada por oxigênio no sangue periférico.
Posicionamento do paciente com cabeceira elevada a 30º.
Seleção e colocação de interface adequada.
Seleção de ventilador e modo ventilatório adequados.
Aplicação de fixação, com espaço entre a face e a interface de cerca de dois
dedos.
Conexão da interface ao ventilador, que deverá ser ligado a seguir.
Início com baixas pressões em modo espontâneo limitado a pressão, com IPAP
de 8-12cmH2O e EPAP de 3-5 cmH2O.
Aumento gradual da IPAP até nível bem tolerado para atingir alívio da dispneia,
diminuição da frequência respiratória, aumento do volume corrente e boa sincronia
entre paciente e ventilador, geralmente 10-20cmH2O.
Ajuste da EPAP conforme a necessidade individual do paciente e de sua
patologia, geralmente 5-10cmH2O.
Oferta de oxigênio suplementar para porcentagem de hemoglobina saturada por

Pedro Kallas Curiati 283


oxigênio no sangue arterial superior ou igual a 93%.
Pesquisa de vazamentos de ar e reajuste da fixação, se necessário.
Acoplamento de umidificador, se necessário.
Sedação leve, se houver agitação inicial.
Monitorização periódica de sinais vitais e novos ajustes conforme a necessidade.
Gasometria arterial em meia a uma hora e posteriormente conforme a
necessidade.

Ventilação mecânica invasiva

Conceito
Tratamento para os casos mais graves ou refratários de insuficiência respiratória
aguda, com necessidade de ambiente e condutas específicos, já que a instalação de via
aérea avançada, como cânula orotraqueal, cânula nasotraqueal, cricotireoidostomia e
traqueostomia, é procedimento altamente especializado e sujeito a complicações graves.
Frequentemente, é necessária a sedação e eventualmente a paralisação do paciente.

Indicações
O suporte ventilatório invasivo é indicado quando o paciente não é capaz de
realizar trocas gasosas adequadamente, apesar de suplementação de oxigênio.
Indicações de ventilação mecânica invasiva incluem fadiga da musculatura
respiratória, doença neuromuscular, drive ventilatório diminuído, obstrução de vias
aéreas, anormalidades de parede torácica, hipoxemia refratária e trabalho respiratório
excessivo. As situações clínicas em que a intubação e a ventilação mecânica são a
maneira mais segura de garantir a oferta de oxigênio aos tecidos são a parada
respiratória instalada ou iminente, a redução do nível de consciência que ameace a
proteção das vias aéreas e a instabilidade hemodinâmica.

Abordagem inicial
Na maioria das vezes, é necessário avaliar gasometria arterial, radiografia de
tórax, etiologia da insuficiência respiratória, resposta à suplementação de oxigênio e
tratamento específico e resposta à ventilação não-invasiva para decidir pela indicação de
ventilação invasiva. Quando se opta pela ventilação invasiva, deve-se proceder à
intubação orotraqueal, ficando a intubação nasotraqueal e a cricotireoidostomia
reservadas para situações especiais.
É necessário monitorizar pressão arterial, frequência cardíaca, oximetria de
pulso e gasometria arterial, além de confirmar o posicionamento do tubo, obter
radiografia de tórax e examinar cuidadosamente o paciente. Após a estabilização inicial,
novos ajustes devem ser feitos objetivando correção de hipoxemia e/ou hipercapnia.

Modos ventilatórios

Controlado
A característica fundamental desse modo ventilatório é a completa dependência
do indivíduo do aparelho, que controla todo o ciclo respiratório, inclusive a frequência
respiratória. É utilizado quando o drive ventilatório do indivíduo está ausente. O disparo
ocorre exclusivamente por tempo.

Assistido/controlado
Modo ventilatório em que o aparelho fornece um suporte ventilatório

Pedro Kallas Curiati 284


predeterminado, que pode ser complementado conforme a necessidade do indivíduo.
Em outras palavras, combina disparo por tempo com disparo por pressão ou fluxo
através de conceito de trigger, com interação entre o aparelho e o indivíduo. Segundo o
ajuste do operador do aparelho, pode-se determinar o valor limiar para disparo, que
configura a sensibilidade do aparelho.

Ventilação mandatória intermitente sincronizada (SIMV)


No modo SIMV a válvula inspiratória pode ser aberta por vontade do paciente
entre dois ciclos controlados, disparados por tempo, o que permite que ele respire
espontaneamente. Em função da elevada resistência do sistema à respiração espontânea,
é associada uma pressão de suporte ventilatório (PSV), de modo que nos ciclos não-
mandatórios o indivíduo é assistido por um gradiente de pressão com fluxo livre para
facilitar o esforço ventilatório e vencer a resistência imposta pelo espaço-morto do
circuito do ventilador. Estima-se que o valor de pressão de suporte suficiente para
anular a resistência do circuito da maioria dos ventiladores disponíveis comercialmente
é algo por volta de 8cmH2O.
Caso o paciente não atinja o valor pré-determinado de sensibilidade para
disparar o aparelho, este manterá ciclos ventilatórios de acordo com a frequência
respiratória mínima indicada pelo operador.

Espontâneo
Nesse modo o indivíduo controla a frequência respiratória e é oferecido aporte
de oxigênio e, principalmente, pressurização do sistema respiratório. Todos os ciclos
são disparados e ciclados pelo paciente.
No modo pressão de suporte ventilatório, o operador programa o aparelho para
fornecer a pressurização da via aérea em dois níveis, um na expiração, Positive End
Expiratory Pressure (PEEP) ou Expiratory Positive Airway Pressure (EPAP), e um na
inspiração, Inspiratory Positive Airway Pressure (IPAP). A sensibilidade e o disparo do
aparelho podem ser controlados pelo operador, assim como a fração inspirada de
oxigênio. Os ciclos ventilatórios são ciclados a fluxo, a partir do momento em que o
fluxo inspiratório cai abaixo de níveis pré-fixados, geralmente 25%.

Curvas de pressão
À medida que o fluxo de ar adentra o
sistema respiratório, a pressão inspiratória se
eleva, pois é necessária para vencer dois
componentes, um resistivo, devido à
resistência ao fluxo de ar pelas vias aéreas, e
outro elástico, decorrente da distensão dos
pulmões e da parede torácica.
O ponto (1) do gráfico de um ciclo respiratório em modo ventilatório controlado
a volume com pausa inspiratória representa o pico de pressão inspiratória (Ppi) nas vias
aéreas, que sofre interferência tanto do fluxo, com pressão resistiva (Pres), como da
variação de volume, com pressão elástica (Pel). Já o ponto (2) marca a pressão de platô
(Pplatô) das vias aéreas, que representa a pressão de equilíbrio do sistema respiratório, na
ausência de fluxo. Na situação de fluxo zero ou pausa inspiratória, a pressão resistiva é
zero e a pressão observada no sistema (Pplatô) corresponde à soma da Pel do sistema
respiratório com a PEEP.
Equações:
- Ppi = Pres + Pel + PEEP;

Pedro Kallas Curiati 285


- Pres = resistência x fluxo;
- Pel = Pplatô - PEEP = VT / complacência;

Ajustes iniciais no ventilador mecânico


Procedida a intubação orotraqueal e checada a adequação do posicionamento da
cânula orotraqueal, o próximo passo é ajustar o ventilador e, para tanto, é necessário
avaliar a intensidade do suporte ventilatório requerido.
Caso o paciente esteja absolutamente inconsciente e sem tônus ventilatório em
função de sedação ou rebaixamento do nível de consciência, deve-se escolher um modo
assistido/controlado a volume ou pressão, conforme o domínio sobre cada modo, e
ajustar uma frequência respiratória mínima, geralmente em torno de 12-16 ciclos por
minuto. Deve-se oferecer oxigênio em quantidades generosas até que se consiga titular
o valor mais adequado, que é o menor possível para porcentagem de hemoglobina
saturada por oxigênio no sangue arterial adequada. A PEEP deve ser regulada
inicialmente em 5cmH2O, devendo ser reavaliada e adequada conforme a oxigenação.
Caso tenha sido escolhido um modo ventilatório controlado a volume, em que os
ciclos mandatórios são disparados a tempo, limitados a fluxo e ciclados a volume, deve-
se estimar o volume corrente inicial de 6-10mL/kg, preferencialmente mais próximo de
6mL/kg do que de 10mL/kg, e regular o fluxo conforme o esforço inspiratório do
paciente. No caso de optar-se por um modo controlado a pressão, em que os ciclos
mandatórios são disparados por tempo, limitados a pressão e ciclados a tempo, deve-se
escolher um valor de variação de pressão (∆P) que gere um volume corrente adequado
(6-10mL/kg), o que, em condições normais de complacência pulmonar, gira em torno de
12-20cmH2O. O tempo inspiratório deve ser regulado a fim de manter uma relação entre
inspiração e expiração, pelo menos a princípio, fisiológica, ou seja, cerca de 1.0-1.2
segundos para frequências de 12-20 ciclos por minuto.
A FiO2 deve ser inicialmente de 1.00, com titulação feita pela oximetria de pulso
de modo a ofertar o menor valor possível para manter porcentagem de hemoglobina
saturada por oxigênio superior ou igual a de 93%. Dependendo do processo
fisiopatológico envolvido na insuficiência respiratória, pode ser necessária elevação da
pressão do sistema para obtenção de adequada oxigenação. Essa elevação de pressão é
feita em termos de PEEP e, do ponto de vista prático, deve-se elevar seu valor e
reavaliar a oximetria constantemente com cuidado para que a pressurização da caixa
torácica não interfira negativamente no sistema cardiovascular. Pressões de platô de até
35cmH2O não estão associadas a elevação da incidência de barotrauma e há dados que
sugerem que pressões mais altas podem ser seguras, ao menos para manobras de
recrutamento alveolar.
A sensibilidade para disparo dos ciclos deve ser configurada como 1cmH2O ou
2L/minuto.

Recrutamento alveolar
Determinadas patologias ou condições clínicas estão associadas a uma perda da
capacidade funcional de patência alveolar e consequente disponibilidade de unidades
alveolares para a ventilação. Na tentativa de homogeneizar a distribuição aérea nos
pulmões são utilizadas as manobras de recrutamento alveolar, que consistem na
elevação da pressão do sistema.
Existem várias maneiras de recrutar um pulmão doente e elas podem gerar
algum desconforto para o doente, de modo que em boa parte das vezes a tolerância às
manobras pode ser ruim e pode haver necessidade de sedação e, eventualmente, até
paralisação dos pacientes.

Pedro Kallas Curiati 286


Como estratégias ventilatórias de recrutamento, podem ser utilizadas:
- Inversão da relação entre inspiração e expiração, de modo que o pulmão
fica por um período maior em pressão mais alta (Ppi) do que na fase
expiratória (PEEP);
- Recrutamento por tempo, em que estabelece-se uma PEEP elevada e
deixa-se o indivíduo ventilando por período prolongado, de minutos a
horas;
- Recrutamento por escalonamento de pressão, em que submete-se o
indivíduo a PEEP elevada e crescente por intervalos de tempo curto, de
um a dois minutos;
Na prática, PEEP acima de 8-10cmH2O é considerada elevada, mas em
determinadas situações o uso de valores maiores pode ser justificado. Na síndrome do
desconforto respiratório agudo, 16cmH2O é uma boa estimativa de PEEP para ventilar
alguém com hipoxemia grave e, em manobras de recrutamento escalonado, pode-se
iniciar com PEEP de 20cmH2O e alcançar valores de até 45cmH2O com segurança.

Auto-PEEP
Indivíduos que tenham dificuldade no esvaziamento aéreo durante o ciclo
respiratório podem ser submetidos a um acúmulo de volume aéreo represado nos
pulmões, com elevação do volume residual, de maneira automática e oculta, com
possibilidade de graves consequências, desde desconforto respiratório e
dessincronização com o aparelho até barotrauma.
Condições que estão frequentemente associadas ao aparecimento do auto-PEEP
são a taquipnéia, a inadequação da relação entre inspiração e expiração e a obstrução ao
fluxo aéreo, como na asma e na doença pulmonar obstrutiva crônica.
É possível suspeitar de auto-PEEP quando a curva de fluxo do ventilador não
atingir o eixo do valor zero ao final da expiração, o que significa que o sistema ainda
não havia terminado de esvaziar-se. Para medir o auto-PEEP, deve-se proceder com
pausa expiratória de 2-4 segundos e calcular a diferença entre a pressão aferida e a
PEEP, que poderá ser zerada durante a realização da manobra.
O tratamento do auto-PEEP prevê aumentar o valor do fluxo na ventilação com
volume controlado ou diminuir o tempo inspiratório nos modos de pressão controlada.
O tratamento da obstrução é premente e a compensação da taquipnéia diminui o risco de
manifestação desse quadro.

Desmame de ventilação mecânica


Deve-se considerar a extubação quando houver reversão da causa que levou o
paciente à ventilação mecânica, estabilidade hemodinâmica sem drogas vasoativas ou
com Dobutamina em dose inferior a 5mcg/kg/minuto, escala de coma de Glasgow
superior a oito e oxigenação adequada, com relação PaO2/FiO2 superior a 150 com
PEEP inferior a 8cmH2O e FiO2 inferior a 0.40. Distúrbios hidroeletrolíticos, como
aqueles envolvendo potássio, cálcio, magnésio e fósforo, e distúrbios do equilíbrio
acidobásico, como alcalemia, devem ser corrigidos antes do início do desmame.
O desmame pode ser feito com teste de respiração espontânea em tubo T ou
pressão de suporte ventilatório de 6-8cmH2O e PEEP de 3-5cmH2O, que deve ser
repetido diariamente enquanto o paciente preencher os critérios, com duração de 30-120
minutos.
Devem ser constantemente mensurados para avaliar a tolerância do paciente ao
teste de respiração espontânea frequência respiratória, que deve ser inferior a 35ipm,
porcentagem de hemoglobina saturada por oxigênio, que deve ser superior a 90%,

Pedro Kallas Curiati 287


frequência cardíaca, que deve ser inferior a 140bpm, pressão arterial sistólica, que deve
ser de 90-180mmHg, e índice de Tobin, calculado pela divisão da frequência
respiratória pelo volume corrente, que deve ser inferior a 100. Também devem estar
ausentes agitação, sudorese ou alteração do nível de consciência.
Na presença de tolerância ao teste de respiração espontânea, pode-se proceder
com a extubação. Na sua ausência, deve-se reconectar o paciente ao ventilador, permitir
descanso da musculatura e tentar novamente em 24 horas.
Antes da extubação, deve-se avaliar a permeabilidade das vias aéreas em
pacientes de alto risco de edema de glote, como aqueles intubados por mais de dois dias,
com intubação traumática, com aspiração pulmonar ou com uso de tubos de diâmetro
superior a 8mm em homens e 7mm em mulheres, observando-se se há diferença entre o
volume inspirado e expirado após desinsuflar o cuff. Caso não haja vazamento,
recomenda-se o uso de corticosteroide, com Metilprednisolona 20mg de 4/4 horas nas
doze horas que precedem a extubação.
É importante avaliar a eficácia da tosse e a quantidade de secreção.
Em pacientes de alto risco, como aqueles com insuficiência cardíaca, tosse
ineficaz, grande quantidade de secreção, mais de uma comorbidade, falha de extubação
anterior, estridor e, principalmente, hipercapnia, o uso de ventilação não-invasiva
preventiva logo após a extubação reduz o risco de insuficiência respiratória aguda, com
manutenção por no mínimo oito horas nas primeiras quarenta e oito horas. Caso o
paciente desenvolva insuficiência respiratória aguda após a extubação, em até quarenta
e oito horas, deve ser prontamente intubado.
O papel da traqueostomia não está claro, mas recomenda-se sua implementação
precoce por via aberta ou percutânea em pacientes com expectativa de ventilação
mecânica prolongada.

Assincronia com a ventilação mecânica


Em pacientes com assincronia com a ventilação mecânica, recomenda-se
avaliação de causas de aumento do drive respiratório, como febre, dor e agitação, ajuste
do ventilador para evitar pressões de suporte muito altas e para diminuir o trigger se
esforço ineficaz, e cálculo do auto-PEEP.
Secreção pode ser tratada com aspiração e fisioterapia. Sangramento de via aérea
pode ser tratado com aspiração cuidadosa, elevação da PEEP, broncoscopia e/ou
embolização. Deslocamento do tubo, dobra ou auto-extubação podem ser tratados com
avaliação da necessidade de intubação orotraqueal e reintubação conforme a
necessidade. Intubação seletiva pode ser tratada com ajuste na posição da cânula
orotraqueal para 2cm acima da carina, com marca de 23cm na rima labial de homens e
21cm na rima labial de mulheres, aproximadamente. Perda acidental da traqueostomia
pode ser tradada com intubação orotraqueal nos primeiros cinco dias após o
procedimento cirúrgico ou com recolocação se após cinco dias do procedimento
cirúrgico. Vazamento pelo cuff pode ser tratado com reavaliação da posição do tubo e,
se necessário, com troca do tubo. Broncoespasmo pode ser tratado com
broncodilatadores e corticosteroides. Pneumotórax pode ser tratado com toracocentese e
drenagem de tórax. Congestão pulmonar pode ser tratada com aumento da PEEP e
abordagem da causa. Dor pode ser tratada com analgesia. Obstrução de sonda vesical de
demora pode ser tratada com a sua substituição. Mordedura do tubo pode ser tratada
com uso de cânula de Guedel ou de gase. Rigidez torácica induzida por Fentanil pode
ser tratada com suspensão da droga, bloqueadores da junção neuromuscular e Naloxone.
Outras causas de assincronia incluem tromboembolismo pulmonar, atelectasia,
pneumonia associada a ventilação mecânica, instabilidade hemodinâmica, crise

Pedro Kallas Curiati 288


convulsiva, aumento da pressão intra-abdominal, uso de vasodilatadores e infusões
lipídicas, drive ineficaz, fístula aérea, fístula traqueoesofágica, mau funcionamento do
circuito e complicações de procedimentos e intervenções.

Bibliografia
Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 5. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2010.
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.
III Consenso Brasileiro de Ventilação Mecânica. Ventilação mecânica : princípios, análise gráfica e modalidades ventilatórias.
Carlos Roberto Ribeiro de Carvalho, Carlos Toufen Junior, Suelen Aires Franca. J Bras Pneumol. 2007;33(Supl 2):S 54-S 70III.

Pedro Kallas Curiati 289


SUPORTE BÁSICO DE VIDA
Conceito
Os aspectos fundamentais do suporte básico de vida incluem o reconhecimento
imediato da parada cardiorrespiratória, a ativação do sistema de emergência, a
ressuscitação cardiopulmonar inicial e a desfibrilação rápida com desfibrilador externo
automático.
As etapas consistem em uma sequência de avaliações e ações.

Reconhecimento imediato da parada cardiorrespiratória e ativação do sistema de


emergência
Após garantir que o local é seguro, deve-se avaliar a responsividade através de
estímulo tátil nos ombros da vítima e de estímulo verbal. Em caso de adulto não-
responsivo, ou seja, sem movimentos ou resposta a estimulação, deve-se ativar o
sistema de resposta a emergências da comunidade. Se a vítima também apresentar
respiração ausente ou anormal, deve-se assumir que há parada cardiorrespiratória.
Se o provedor de suporte básico de vida estiver sozinho e se deparar com um
caso de parada cardiorrespiratória em que o provável mecanismo subjacente é asfixia,
como em afogamento e em aspiração de corpo estranho, poderá prover cinco ciclos de
ressuscitação cardiopulmonar, com duração aproximada de dois minutos, antes de ativar
o sistema de resposta a emergências.

Avaliação do pulso
Provedores leigos de suporte básico de vida não devem tentar avaliar o pulso
carotídeo e devem assumir que há parada cardiorrespiratória em caso de adulto com
colapso súbito ou não responsivo na ausência de respiração normal. Os profissionais da
área da saúde devem dedicar não mais do que dez segundos à avaliação do pulso
carotídeo e, se não estiverem certos de o haver identificado, deverão assumir que há
parada cardiorrespiratória.

Ressuscitação cardiopulmonar inicial


As compressões torácicas consistem em aplicações rítmicas e firmes de pressão
na metade inferior do esterno. São preconizadas para todos os casos de parada
cardiorrespiratória.
Recomenda-se uma frequência de pelo menos cem compressões torácicas por
minuto, com pelo menos 5cm de profundidade. Deve-se permitir que o tórax retorne ao
estado inicial após cada compressão.
Para maximizar a efetividade, a vítima deve ser posicionada sobre uma
superfície rígida sempre que possível, em posição supina com o provedor de suporte
básico de vida ajoelhado ao lado do tórax da vítima. Utiliza-se a região hipotenar da
mão do braço mais forte, que servirá de base para a compressão cardíaca. A outra mão
deve ser colocada paralelamente sobre a primeira, mantendo-se os cotovelos estendidos,
formando um ângulo de 90º com o plano horizontal.
Quando dois ou mais provedores de suporte básico de vida estão presentes, é
razoável rodiziar a cada dois minutos ou a cada cinco ciclos a função de realizar
compressões torácicas.
A frequência e a duração das interrupções nas compressões torácicas devem ser
minimizadas. Provedores leigos de suporte básico de vida não devem interromper as

Pedro Kallas Curiati 290


compressões torácicas para palpar o pulso carotídeo ou para checar o retorno da
circulação espontânea.

Ventilações de resgate
Uma vez iniciadas as compressões torácicas, um provedor de suporte básico de
vida treinado em ressuscitação cardiopulmonar deverá realizar ventilações de resgate
boca-a-boca ou através de dispositivo bolsa-válvula-máscara. A abertura das vias aéreas
pode ser feita através de elevação da mandíbula e hiperextensão da coluna cervical ou
de tração da mandíbula, preferida apenas na suspeita de lesão cervical. Cada ventilação
de resgate deverá ter a duração de um segundo, com volume suficiente para elevação
visível do tórax. Recomenda-se uma relação de trinta compressões para duas
ventilações.
Se o provedor de suporte básico de vida não for treinado em ressuscitação
cardiopulmonar, deverá proceder apenas com compressões torácicas.
Em caso de adulto com circulação espontânea, evidenciada por pulsos palpáveis
e cheios, que necessite de suporte ventilatório, deve-se administrar ventilações de
resgate a cada cinco ou seis segundos, o que corresponde a dez a doze por minuto.
Posição de recuperação é indicada para adultos não responsivos com respiração
normal e circulação efetiva. Prevê decúbito lateral com o braço inferior posicionado a
frente do corpo.

Desfibrilação rápida com desfibrilador externo automático


Após ser ativado o sistema de resposta a emergências, deve-se pegar um
desfibrilador externo automático se facilmente acessível e próximo. Quando dois ou
mais provedores de suporte básico de vida estiverem presentes, um deverá iniciar as
compressões torácicas enquanto outro deverá ativar o sistema de resposta a emergências
e pegar um desfibrilador externo automático.
O desfibrilador externo automático deverá ser utilizado o mais rápido possível.
Preconiza-se a seguinte sequência:
- Ligar o desfibrilador externo automático;
- Seguir os comandos do desfibrilador externo automático;
- Reiniciar as compressões torácicas imediatamente após o choque e
minimizar as interrupções;

Obstrução de vias aéreas por corpo estranho


Em caso de obstrução moderada de vias aéreas por corpo estranho, se a vítima
tosse de maneira eficaz, não é necessário interferir.
Em caso de sinais de obstrução severa de vias aéreas por corpo estranho, como
estridor, diminuição da responsividade, desconforto respiratório progressivo e tosse
silente, deve-se aplicar rápida sequência de compressões abdominais até o alívio da
obstrução. Se as compressões abdominais não forem efetivas, pode-se tentar
compressões torácicas, que são preferidas em crianças com idade inferior a um ano,
obesos e gestação avançada. Se o paciente se tornar não responsivo, deverá ser
posicionado em superfície rígida, com início imediato da ressuscitação cardiopulmonar
e ativação do sistema de resposta a emergências após dois minutos na ausência de outro
provedor de suporte básico de vida. A cada vez que as vias aéreas forem abertas para a
aplicação de ventilações de resgate, deve-se procurar identificar a presença de objeto na
orofaringe.

Pedro Kallas Curiati 291


Bibliografia
Part 5: Adult Basic Life Support. 2010 American Heart Association Guidelines for Cardiopulmonary Resuscitation and Emergency
Cardiovascular Care. Robert A. Berg, Chair; Robin Hemphill; Benjamin S. Abella; Tom P. Aufderheide; Diana M. Cave; Mary Fran
Hazinski; E. Brooke Lerner; Thomas D. Rea; Michael R. Sayre; Robert A. Swor. Circulation 2010;122;S685-S705.
Destaques das Diretrizes da American Heart Association 2010 para RCP e ACE. American Heart Association 2010.

Algoritmos

Pedro Kallas Curiati 292


Pedro Kallas Curiati 293
SUPORTE AVANÇADO DE VIDA
Vias aéreas

Ventilação com dispositivo bolsa-válvula-máscara


É razoável o uso de fração inalada de oxigênio de 100% durante a ressuscitação
cardiopulmonar.
Ventilação através de dispositivo bolsa-válvula-máscara é método aceitável, mas
não-recomendável para o provedor de suporte avançado de vida que presta assistência
sozinho, situação na qual prefere-se ventilação boca-a-boca ou ventilação boca-máscara.
Quando um segundo provedor estiver disponível, um provedor deverá abrir as vias
aéreas e selar a máscara à face do paciente enquanto o outro deverá comprimir a bolsa.
Deve-se administrar aproximadamente 600mL de volume corrente, que corresponde ao
volume suficiente para provocar uma elevação visível do tórax, em um segundo.
Durante a ressuscitação cardiopulmonar, deve-se administrar duas ventilações após cada
sequência de trinta compressões torácicas.
A aplicação de pressão sobre a cartilagem cricóide pode oferecer alguma
proteção às vias aéreas contra aspiração e distensão gástrica durante a ventilação com
dispositivo bolsa-válvula-máscara. Por outro lado, pode impedir a ventilação e interferir
com a instalação de via aérea supra-glótica ou de intubação orotraqueal.
Para facilitar a ventilação com dispositivo bolsa-válvula-máscara, cânula
orofaríngea pode ser utilizada em pacientes inconscientes e sem reflexo de tosse. Já a
cânula nasofaríngea é melhor tolerada em pacientes com rebaixamento do nível de
consciência menos acentuado, mas deve ser evitada naqueles com lesões craniofaciais
graves.

Ventilação com via aérea avançada


A partir do momento em que for implementada uma via aérea avançada, os
provedores de suporte avançado de vida deverão administrar compressões torácicas
contínuas com uma frequência de no mínimo cem por minuto, sem pausas, e uma
ventilação a cada seis a oito segundos, o que corresponde a oito a dez ventilações por
minuto, com rodízio das funções a cada dois minutos.

Vias aéreas supra-glóticas


Dispositivos de vias aéreas supra-glóticas são destinados a manter as vias aéreas
pérvias e a facilitar a ventilação. Sua implantação não demanda a visualização das
cordas vocais.
O tubo esôfago-traqueal (Combitube) apresenta vantagens semelhantes às do
tubo endotraqueal quando comparado à ventilação com dispositivo bolsa-válvula-
máscara, com isolamento da via aérea, redução do risco de aspiração e ventilação mais
confiável. A confirmação do posicionamento do tubo é essencial.
O tubo laríngeo é mais compacto e de mais fácil aplicação em relação ao tubo
esôfago-traqueal.
A máscara laríngea é um meio de ventilação mais seguro e eficaz do que a
máscara facial, mas não apresenta proteção absoluta contra aspiração.

Intubação endotraqueal
O tubo endotraqueal mantém as vias aéreas patentes, permite a aspiração de

Pedro Kallas Curiati 294


secreções das vias aéreas, permite a oferta de elevada concentração de oxigênio,
consiste em via alternativa para a administração de medicamentos, facilita a
administração de determinado volume corrente e protege as vias aéreas de aspiração.
Indicações incluem inabilidade do provedor em ventilar o paciente inconsciente
adequadamente com dispositivo bolsa-válvula-máscara e ausência dos reflexos de
proteção das vias aéreas em função de coma ou parada cardiorrespiratória.
Imediatamente após a intubação endotraqueal, deve ser realizada uma avaliação
cuidadosa do posicionamento do tubo, o que não requer a interrupção das compressões
torácicas. O exame físico deve revelar expansão torácica bilateral, ausência de sons
ventilatórios no epigástrio e presença de sons ventilatórios nos campos pulmonares. O
risco de posicionamento inadequado do tubo endotraqueal é elevado, especialmente
quando o paciente é movimentado. Mesmo quando o tubo é visto ultrapassando as
cordas vocais e a posição é verificada através da expansão torácica e da ausculta do
epigástrio e dos campos pulmonares, os provedores de suporte avançado de vida devem
obter confirmação adicional com o uso de capnógrafo ou detector colorimétrico de CO2
expirado. Se CO2 não for detectado no ar expirado, recomenda-se o uso de um segundo
método para confirmar o posicionamento endotraqueal do tubo, como a visualização
direta ou o dispositivo de detecção esofágica, que consiste em um bulbo a ser
comprimido e conectado ao tubo.
Após inserir e confirmar o posicionamento do tubo endotraqueal, o provedor de
suporte avançado de vida deve registrar a profundidade em relação à arcada dentária
superior e fixar o tubo para evitar deslocamentos. Monitorização do posicionamento
com capnografia quantitativa contínua em forma de onda é recomendada. Deve-se
submeter o paciente a radiografia simples de tórax para confirmar se a extremidade do
tubo está posicionada superiormente à carina.

Manejo da parada cardiorrespiratória


A parada cardiorrespiratória pode ser causada por quatro ritmos:
- Fibrilação ventricular;
- Taquicardia ventricular sem pulso;
- Atividade elétrica sem pulso;
- Assistolia;
As pausas periódicas na ressuscitação cardiopulmonar devem ter a menor
duração possível e ser indicadas apenas quando necessário para avaliar o ritmo cardíaco,
administrar choque em casos de fibrilação ventricular ou taquicardia ventricular sem
pulso, checar o pulso quando atividade elétrica organizada for detectada e aplicar uma
via aérea avançada.
É encorajada a monitorização e a otimização da qualidade da ressuscitação
cardiopulmonar com base em parâmetros mecânicos, como frequência e profundidade
das compressões torácicas, retorno do tórax à posição de repouso e duração das pausas,
ou, quando possível, em parâmetros fisiológicos, como pressão parcial de dióxido de
carbono no ar expirado, pressão arterial entre as compressões torácicas e porcentagem
de hemoglobina saturada por oxigênio no sangue venoso central. Um aumento abrupto
de qualquer parâmetro fisiológico é um indicador sensível de retorno da circulação
espontânea que pode ser monitorizado sem a interrupção das compressões torácicas.
Na ausência de uma via aérea avançada, uma relação de trinta compressões
torácicas para duas ventilações de resgate é recomendada, com uma frequência de pelo
menos cem compressões torácicas por minuto.
Em adição à ressuscitação cardiopulmonar de alta qualidade, a única terapia
ritmo-específica com diminuição comprovada da mortalidade é a desfibrilação em casos

Pedro Kallas Curiati 295


de fibrilação ventricular ou taquicardia ventricular sem pulso. As outras intervenções
preconizadas para o suporte avançado de vida podem estar associadas a maior taxa de
retorno da circulação espontânea, mas sem evidência de redução da mortalidade. Por
esse motivo, obtenção de acesso vascular, administração de drogas e aplicação de via
aérea avançada não devem causar interrupções significativas nas compressões torácicas
ou atrasar a desfibrilação.
Durante o manejo da parada cardiorrespiratória, o provedor de suporte avançado
de vida deve atentar para as causas tratáveis, que incluem hipóxia, hipovolemia,
acidose, hipocalemia, hipercalemia, hipotermia, intoxicação exógena, tamponamento
cardíaco, pneumotórax hipertensivo, trombose pulmonar e trombose coronariana.
Na maior parte dos casos de parada cardiorrespiratória, o primeiro provedor
deve iniciar a ressuscitação cardiopulmonar com compressões torácicas e o segundo
provedor deve obter ou ligar um desfibrilador, aplicar as pás e checar o ritmo. As pás
devem ser posicionadas no tórax exposto em posição ântero-lateral. A avaliação do
ritmo deve ser breve e, se atividade elétrica organizada for detectada, deve-se checar o
pulso. Em caso de qualquer dúvida com relação a presença do pulso, as compressões
torácicas devem ser reiniciadas imediatamente. Se um monitor cardíaco estiver
conectado ao paciente no momento da parada cardiorrespiratória, o ritmo pode ser
avaliado antes do início da ressuscitação cardiopulmonar.

Fibrilação ventricular e taquicardia ventricular sem pulso


Quando a verificação de ritmo por um desfibrilador externo automático revela
fibrilação ventricular ou taquicardia ventricular, o equipamento prontamente irá ser
carregado, indicar que todos se afastem da vítima e indicar a aplicação do choque, o que
deve ser realizado o mais rápido possível. A ressuscitação cardiopulmonar deve ser
reiniciada imediatamente após a aplicação do choque, sem a avaliação do pulso ou do
ritmo cardíaco, iniciando pelas compressões torácicas e continuando por dois minutos
antes da próxima verificação de ritmo.
Quando a verificação de ritmo por um desfibrilador manual revela fibrilação
ventricular ou taquicardia ventricular, o primeiro provedor deve reiniciar a ressuscitação
cardiopulmonar enquanto o segundo provedor carrega o desfibrilador. Uma vez que o
desfibrilador estiver carregado, a ressuscitação cardiopulmonar deverá ser pausada para
que todos se afastem do paciente e o choque seja aplicado o mais rápido possível pelo
segundo provedor. O primeiro provedor deverá reiniciar a ressuscitação cardiopulmonar
imediatamente após a aplicação do choque, sem a avaliação do pulso ou do ritmo
cardíaco, iniciando pelas compressões torácicas e continuando por dois minutos antes da
próxima verificação de ritmo.
O provedor que oferece compressões torácicas deve ser substituído a cada dois
minutos para minimizar a fadiga.
Se um desfibrilador bifásico estiver disponível, os provedores de suporte
avançado de vida devem usar a dose de energia recomendada pelo fabricante, que varia
de 120J a 200J. Quando esta informação não for conhecida, o provedor deverá utilizar a
dose máxima. Os choques subsequentes devem ter no mínimo a mesma quantidade de
energia, podendo ser considerados níveis mais elevados se disponíveis.
Se um desfibrilador monofásico for usado, os provedores de suporte avançado
de vida devem aplicar um choque inicial de 360J e usar a mesma dose para todos os
choques subsequentes.
Quando a fibrilação ventricular ou a taquicardia ventricular sem pulso persistem
após um choque e um período de ressuscitação cardiopulmonar de pelo menos dois
minutos, uma droga vasopressora pode ser administrada com o objetivo de aumentar o

Pedro Kallas Curiati 296


fluxo sanguíneo para o miocárdio durante a ressuscitação cardiopulmonar e atingir
retorno da circulação espontânea.
Amiodarona é o antiarrítmico de primeira linha durante a ressuscitação
cardiopulmonar, com aumento da taxa de retorno da circulação espontânea. Pode ser
considerada quando a fibrilação ventricular ou a taquicardia ventricular sem pulso são
refratárias a ressuscitação cardiopulmonar, desfibrilação e administração de droga
vasopressora. Se Amiodarona não estiver disponível, o uso de Lidocaína pode ser
considerado. O uso de Sulfato de Magnésio pode ser considerado apenas em caso de
torção das pontas associada com intervalo QT longo.
Se o paciente apresentar retorno da circulação espontânea, a assistência pós-
parada cardiorrespiratória deverá ser iniciada, sendo de particular importância o
tratamento de hipoxemia e hipotensão, o diagnóstico e o tratamento precoces de infarto
agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST e o uso de hipotermia
terapêutica em pacientes comatosos.

Atividade elétrica sem pulso e assistolia


Quando a verificação de ritmo por um desfibrilador externo automático revela
um ritmo não-chocável, a ressuscitação cardiopulmonar deve ser reiniciada
imediatamente, iniciando pelas compressões torácicas e continuando por dois minutos
antes da próxima verificação de ritmo.
Quando a verificação de ritmo por um desfibrilador manual revela atividade
elétrica organizada, o pulso deve ser avaliado e, se detectado, os cuidados pós- parada
cardiorrespiratória devem ser iniciados imediatamente. Em caso de assistolia ou pulso
não-detectado, a ressuscitação cardiopulmonar deve ser reiniciada imediatamente,
iniciando pelas compressões torácicas e continuando por dois minutos antes da próxima
verificação de ritmo.
O provedor que oferece compressões torácicas deve ser substituído a cada dois
minutos para minimizar a fadiga.
Uma droga vasopressora poderá ser administrada assim que for possível com o
objetivo de aumentar o fluxo sanguíneo miocárdico e cerebral durante a ressuscitação
cardiopulmonar e atingir o retorno da circulação espontânea.
Se o paciente apresentar retorno da circulação espontânea, a assistência pós-
parada cardiorrespiratória deverá ser iniciada, sendo de particular importância o
tratamento de hipoxemia e hipotensão, o diagnóstico e o tratamento precoces de
possíveis causas subjacentes e o uso de hipotermia terapêutica em pacientes comatosos.

Medicamentos
Durante a parada cardiorrespiratória, a provisão de ressuscitação cardiopulmonar
de alta qualidade e a rápida desfibrilação são de importância primária, enquanto que a
administração de drogas é de importância secundária.

Tipos de acesso para administração de medicamentos


Após iniciar a ressuscitação cardiopulmonar e administrar choque em caso de
fibrilação ventricular ou taquicardia ventricular sem pulso, os provedores de suporte
avançado de vida podem estabelecer um acesso intravenoso ou intraósseo, desde que
sem interromper as compressões torácicas.
Quando usado acesso vascular periférico, a medicação deve ser administrada sob
a forma de bolus e seguida por 20mL de fluido para facilitar o fluxo para a circulação
central. A breve elevação da extremidade durante e após a administração da droga pode
ser benéfica.

Pedro Kallas Curiati 297


A cânula intraóssea permite acesso a um plexo venoso não-colapsável, com
capacidade de infusão de drogas semelhante à do acesso venoso periférico, sendo
indicada quando este não estiver rapidamente disponível.
O provedor de suporte avançado de vida adequadamente treinado pode
considerar a implantação de um acesso venoso central durante a parada
cardiorrespiratória, exceto em caso de contraindicações. Os benefícios incluem maior
pico de concentração da droga, menor tempo de circulação da droga e monitorização da
porcentagem de hemoglobina saturada por oxigênio no sangue venoso central.
Quando acesso intravenoso ou intraósseo não pode ser obtido, Epinefrina,
Vasopressina e Lidocaína podem ser administrados por via traqueal durante a parada
cardiorrespiratória. A dose ótima das medicações por essa via não é conhecida e
usualmente preconiza-se duas a duas vezes e meia a dose utilizada pela via intravenosa.
A medicação deve ser diluída em 5-10mL de água ou solução salina estéril e injetada
diretamente no tubo endotraqueal.

Vasopressores
Epinefrina produz efeitos benéficos em vítimas de parada cardiorrespiratória
principalmente através da ligação a receptores α-adrenérgicos. É razoável considerar
administrar dose de 1mg por via intravenosa ou intraóssea a cada três a cinco minutos
durante a parada cardiorrespiratória. Doses mais elevadas podem ser necessárias para
tratar situações específicas, como intoxicação por bloqueador de canal de cálcio e β-
bloqueador. Se há demora na obtenção do acesso intravenoso ou intraósseo, a
medicação pode ser administrada por via endotraqueal na dose de 2.0-2.5mg.
Vasopressina é um vasoconstritor periférico, renal e coronariano não
adrenérgico. Como não existem evidências de que seus efeitos sejam diferentes
daqueles da Epinefrina na parada cardiorrespiratória, uma dose de 40 unidades por via
intravenosa ou intraóssea pode substituir a primeira ou a segunda dose de vasopressor
durante o suporte avançado de vida.

Antiarrítmicos
A Amiodarona afeta os canais de sódio, potássio e cálcio, além de apresentar
efeito α-bloqueador e β-bloqueador. Pode ser considerada no tratamento de fibrilação
ventricular e taquicardia ventricular sem pulso não-responsivas a desfibrilação,
ressuscitação cardiopulmonar e terapia vasopressora. Uma dose inicial de 300mg pode
ser seguida por uma dose de 150mg por via intravenosa ou intraóssea.
A Lidocaína é um antiarrítmico alternativo, mas sem evidências de eficácia na
parada cardiorrespiratória, podendo ser considerada quando não houver Amiodarona
disponível. Preconiza-se dose inicial de 1.0-1.5mg/kg por via intravascular. Em caso de
persistência da fibrilação ventricular ou da taquicardia ventricular sem pulso, doses
adicionais de 0.50-0.75mg/kg por via intravascular podem ser administradas a intervalos
de cinco a dez minutos até uma dose máxima de 3mg/kg.
Quando a fibrilação ventricular ou a taquicardia ventricular sem pulso estiverem
associadas a torção das pontas, os provedores de suporte avançado de vida podem
administrar uma dose de 1-2g de Sulfato de Magnésio.

Intervenções não recomendadas


Evidências disponíveis sugerem que o uso rotineiro de Atropina em casos de
atividade elétrica sem pulso e de assistolia tem pouca probabilidade de resultar em
benefício terapêutico.
Em situações especiais durante a ressuscitação cardiopulmonar, como acidose

Pedro Kallas Curiati 298


metabólica pré-existente, hipercalemia e intoxicação por antidepressivos tricíclicos, o
uso de Bicarbonato de Sódio pode ser benéfico, com dose inicial de 1mEq/kg. No
entanto, o uso rotineiro não é recomendado para vítimas de parada cardiorrespiratória.
Administração rotineira de Gluconato de Cálcio na parada cardiorrespiratória
não é recomendada.
Terapia fibrinolítica não deve ser utilizada de forma rotineira na parada
cardiorrespiratória. Quando embolia pulmonar é a causa presumida ou conhecida da
parada cardiorrespiratória, terapia fibrinolítica empírica pode ser considerada.
Quando a parada cardiorrespiratória é associada a perda volêmica extrema, com
sinais de choque circulatório e evolução para atividade elétrica sem pulso, o volume
intravascular deve ser prontamente restabelecido por via intravascular. No entanto, não
há recomendação para a administração rotineira de fluidos.
O uso de marca-passo não é recomendado para uso rotineiro na parada
cardiorrespiratória.
Uma pancada precordial pode ser considerada para reverter taquicardia instável
presenciada e monitorizada quando um desfibrilador não está imediatamente disponível
para uso, mas não deve atrasar manobras de ressuscitação cardiopulmonar e
administração de choque.

Bibliografia
Part 8: Adult Advanced Cardiovascular Life Support. 2010 American Heart Association Guidelines for Cardiopulmonary
Resuscitation and Emergency Cardiovascular Care. Robert W. Neumar, Chair; Charles W. Otto; Mark S. Link; Steven L. Kronick;
Michael Shuster; Clifton W. Callaway; Peter J. Kudenchuk; Joseph P. Ornato; Bryan McNally; Scott M. Silvers; Rod S. Passman;
Roger D. White; Erik P. Hess; Wanchun Tang; Daniel Davis; Elizabeth Sinz; Laurie J. Morrison. Circulation 2010;122;S729-S767.
Destaques das Diretrizes da American Heart Association 2010 para RCP e ACE. American Heart Association 2010.

Pedro Kallas Curiati 299


Algoritmos

Pedro Kallas Curiati 300


Pedro Kallas Curiati 301
CUIDADOS PÓS- PARADA
CARDIORRESPIRATÓRIA
Conceito
Os cuidados pós- parada cardiorrespiratória têm o potencial de aumentar a
chance de sobrevida do paciente com boa qualidade de vida.
Os objetivos iniciais são otimizar a função cardiovascular e a perfusão de órgãos
vitais, transferir o paciente para um hospital com um sistema abrangente de tratamento
pós- parada cardiorrespiratória, que inclui intervenções coronárias, assistência
neurológica, cuidados intensivos e hipotermia, e identificar e tratar causas subjacentes
para prevenir recorrências.
Objetivos subsequentes incluem o controle da temperatura corpórea para
otimizar a sobrevivência e a recuperação neurológica, identificar e tratar síndromes
coronarianas, otimizar a ventilação mecânica para evitar lesão pulmonar aguda, reduzir
o risco de disfunção de múltiplos órgãos e oferecer suporte para a função de órgãos
específicos quando necessário, avaliar objetivamente o prognóstico e assistir os
sobreviventes através de serviços de reabilitação quando necessário.

Cuidados pós- parada cardiorrespiratória


O provedor de ressuscitação cardiopulmonar deve garantir uma via aérea
adequada e oferecer suporte ventilatório imediatamente após o retorno da ventilação
espontânea. Pacientes inconscientes geralmente necessitam de via aérea avançada para
ventilação mecânica. Poderá ser necessário substituir uma via aérea supraglótica usada
na ressuscitação cardiopulmonar inicial por um tubo endotraqueal. O posicionamento da
via aérea avançada pode ser monitorizado, principalmente durante o transporte do
paciente, através de capnografia quantitativa contínua em forma de onda.
A oxigenação do paciente deve ser monitorizada com oximetria de pulso. Apesar
de fração inspirada de oxigênio a 100% ser usada durante a ressuscitação
cardiopulmonar inicial, os provedores de suporte avançado de vida devem titular o
oxigênio inspirado para o menor nível necessário para atingir porcentagem de
hemoglobina saturada por oxigênio igual ou superior a 94% com o intuito de evitar
potencial toxicidade.
Deve-se evitar o uso de faixas circunferenciais ao redor do pescoço, que podem
obstruir o retorno venoso do cérebro. Também recomenda-se a elevação da cabeceira do
leito a 30º se tolerado para reduzir a incidência de edema cerebral, aspiração e
pneumonia associada à ventilação mecânica.
O clínico deve avaliar os sinais vitais e monitorizar a recorrência de arritmias
cardíacas com eletrocardiografia contínua. Acesso intravenoso deve ser obtido se ainda
não estiver disponível. Acessos intraósseos obtidos durante a ressuscitação
cardiopulmonar devem ser prontamente substituídos por acessos intravenosos.
Em caso de hipotensão arterial, com pressão arterial sistólica inferior a
90mmHg, a administração de fluidos em bolus pode ser considerada. Em pacientes que
serão submetidos a hipotermia terapêutica, prefere-se o uso de fluidos resfriados. A
infusão de drogas vasoativas, como Dopamina, Norepinefrina e Epinefrina, pode ser
iniciada se necessário e titulada para atingir uma pressão arterial sistólica superior ou
igual a 90mmHg ou uma pressão arterial média superior ou igual a 65mmHg.
Uma vez que a hipotermia terapêutica é a única intervenção que

Pedro Kallas Curiati 302


comprovadamente melhora a recuperação neurológica, deve ser considerada para
qualquer paciente que não obedece a comandos verbais após o retorno da circulação
espontânea. O paciente deve ser transferido para uma instituição que provê esse tipo de
terapia, além de intervenção coronária percutânea e outras terapias pós- ressuscitação
cardiopulmonar.
A principal causa de parada cardiorrespiratória é a doença cardiovascular com
isquemia coronariana. Dessa forma, um eletrocardiograma de doze derivações deve ser
obtido o quanto antes para a detecção de supradesnivelamento do segmento ST ou de
bloqueio de ramo esquerdo novo ou presumivelmente novo. Quando há elevada
suspeição de infarto agudo do miocárdio, protocolos locais de tratamento e reperfusão
coronária devem ser ativados.
Atenção deve ser dedicada ao tratamento da causa precipitante da parada
cardiorrespiratória após o retorno da circulação espontânea. O provedor de suporte
avançado de vida deve solicitar exames que poderão auxiliar na avaliação do paciente,
sendo importante identificar qualquer precipitante eletrolítico, toxicológico, pulmonar
ou neurológico. As principais causas que devem ser revisadas são hipovolemia,
hipoxemia, acidose, hipercalemia, hipocalemia, hipotermia, intoxicação exógena,
tamponamento cardíaco, pneumotórax hipertensivo, trombose coronária e
tromboembolismo pulmonar.
Após a ressuscitação cardiopulmonar, elevação da temperatura corpórea acima
do normal pode prejudicar a recuperação cerebral, de modo que os provedores de
suporte avançado de vida devem monitorizar a temperatura corpórea e intervir
ativamente para evitar hipertermia.

Avaliação e suporte órgão-específicos


Testes diagnósticos essenciais para os pacientes intubados incluem radiografia
de tórax e gasometria arterial.
Opióides, ansiolíticos e agentes hipnótico-sedativos podem ser utilizados em
diferentes combinações para melhorar a interação entre paciente e ventilador e para
diminuir a liberação de catecolaminas relacionada ao estresse. Se a agitação do paciente
for ameaçadora à vida, bloqueadores neuromusculares podem ser usados por breves
períodos e com adequada sedação. Agentes sedativos devem ser administrados com
cautela e com interrupções diárias para titulação do efeito desejado.
De maneira geral, agentes adrenérgicos não devem ser misturados a Bicarbonato
de Sódio ou outras soluções alcalinas no mesmo acesso intravenoso em função de
evidências de que são inativados em soluções alcalinas. Norepinefrina e outras
catecolaminas que ativam receptores β-adrenérgicos podem causar necrose tecidual em
caso de extravasamento e, por esse motivo, a administração por acesso venoso central é
preferida. Em caso de extravasamento, deve-se infiltrar 5-10mg de Fentolamina diluída
em 10-15mL de solução salina no local o quanto antes.
Estratégias para alcançar controle glicêmico moderado, de 144mg/dL a
180mg/dL, podem ser consideradas em adultos com retorno da circulação espontânea
após parada cardiorrespiratória. Tentativas de controle da glicemia dentro de menor
faixa de valores, de 80mg/dL a 110mg/dL, não devem ser implementadas após parada
cardiorrespiratória em função do risco de hipoglicemia.
Um eletroencefalograma para o diagnóstico de crise epiléptica deve ser realizado
com pronta interpretação assim que possível e deve ser monitorizado frequentemente ou
continuamente em pacientes comatosos após o retorno da circulação espontânea.

Bibliografia

Pedro Kallas Curiati 303


Part 9: Post–Cardiac Arrest Care. 2010 American Heart Association Guidelines for Cardiopulmonary Resuscitation and Emergency
Cardiovascular Care. Mary Ann Peberdy, Co-Chair*; Clifton W. Callaway, Co-Chair*; Robert W. Neumar; Romergryko G.
Geocadin; Janice L. Zimmerman; Michael Donnino; Andrea Gabrielli; Scott M. Silvers; Arno L. Zaritsky; Raina Merchant; Terry L.
Vanden Hoek; Steven L. Kronick. Circulation 2010;122;S768-S786.
Destaques das Diretrizes da American Heart Association 2010 para RCP e ACE. American Heart Association 2010.

Algoritmo

Pedro Kallas Curiati 304


BRADICARDIA
Definição
Bradicardia é definida como alteração do ritmo cardíaco caracterizada por déficit
cronotrópico paroxístico ou persistente, com frequência cardíaca inferior a 60bpm, em
razão de deficiência na geração ou na condução de estímulo elétrico no nó sinusal ou de
modificações na seqüência da ativação atrioventricular.
Geralmente causa sintomas quando a frequência cardíaca é inferior a 50bpm.
Pode ser fisiológica para alguns indivíduos, enquanto que frequência cardíaca acima de
50bpm pode ser inadequada para outros.

Etiologia e fisiopatologia
A disfunção do nó sinusal idiopática ou primária ocorre em razão do
envelhecimento do nó sinusal e da musculatura atrial. As formas secundárias estão
associadas a algumas doenças cardíacas, a doenças com comprometimento cardíaco e a
ação de drogas.
Os bloqueios atrioventriculares podem ser congênitos ou adquiridos, transitórios
ou permanentes. O bloqueio atrioventricular adquirido idiopático ocorre por fibrose
envolvendo o esqueleto cardíaco ou o sistema de condução distal. Outras etiologias
incluem isquemia miocárdica, infecções, traumas e medicações.
A síndrome da hipersensibilidade do seio carotídeo e a síncope
neurocardiogênica também podem levar a bradiarritmias reflexas importantes.

Quadro clínico
Síncope e pré-síncope são as manifestações clínicas mais freqüentes de pacientes
portadores de bradiarritmias agudas paroxísticas e decorrem de hipoperfusão cerebral
transitória. As formas crônicas promovem diminuição do débito cardíaco no repouso e
no exercício, com queixas de dispnéia aos esforços e em repouso, fadiga e angina do
peito.
Os pacientes com síndrome bradi-taqui por disfunção do nó sinusal podem
queixar-se de sintomas referentes aos episódios de bradicardia e palpitações.
O exame físico revela déficit cronotrópico, diferentes intensidades de sopros
regurgitativos pelas valvas atrioventriculares pelo grau de dissincronia entre as câmaras
cardíacas, ondas A proeminentes no pulso venoso periférico e sinais de insuficiência
cardíaca.

Avaliação
Uma vez que hipoxemia é uma importante causa de bradicardia, a avaliação
inicial de qualquer paciente com bradicardia deve ser focada em sinais de aumento do
trabalho respiratório, como taquipnéia, retrações intercostais, retração supraesternal e
respiração paradoxal, e em porcentagem de hemoglobina saturada por oxigênio no
sangue arterial, que pode ser determinada por oximetria de pulso. Se a oxigenação for
inadequada ou o paciente apresentar sinais de aumento do trabalho respiratório, deve-se
prover oxigênio suplementar.
Recomenda-se monitorizar o paciente, avaliar a pressão arterial e estabelecer um
acesso intravenoso. Se possível, um eletrocardiograma de doze derivações deve ser
obtido, com atenção para presença, frequência e morfologia da onda P, intervalo PR,
correlação entre ondas P e complexos QRS e presença de bloqueio de ramo ou de

Pedro Kallas Curiati 305


divisões de ramos. Outros exames poderão ser necessário de acordo com o quadro
clínico do paciente, como eletrólitos, função renal, perfil toxicológico, dosagem de
antiarrítmicos e digoxina, marcadores de necrose do miocárdio e gasometria.
Enquanto o tratamento é iniciado, deve-se avaliar a situação clínica do paciente e
procurar identificar causas reversíveis.
O provedor deve também identificar sinais e sintomas de má-perfusão e
determinar a probabilidade de serem causados pela bradicardia. Sinais e sintomas de
bradicardia podem ser discretos e pacientes assintomáticos ou pouco sintomáticos não
necessariamente devem ser tratados, a menos que haja suspeita de que o ritmo tenderá a
progredir com sintomas ou se tornar ameaçador à vida. Se a bradicardia é suspeita de
causar alteração aguda do nível de consciência, desconforto torácico isquêmico,
insuficiência cardíaca aguda, hipotensão ou outros sinais de choque, sendo considerada
instável, o paciente deve receber tratamento imediato.

Identificação da arritmia
Disfunção do nó sinusal:
- Bradicardia sinusal é caracterizada por eixo normal da onda P e
frequência cardíaca inferior a 60bpm;
- Bloqueios sinoatriais são caracterizados por encurtamento progressivo
do intervalo PP até falha de uma onda ou ausência de ondas P em
intervalos múltiplos do intervalo PP basal;
- Pausa sinusal é caracterizada por pausas na atividade atrial maiores do
que 3 segundos;
- Síndrome bradi-taqui é caracterizada por episódios de fibrilação ou
taquicardia atrial intercalados com pausas sinusais;
Bradicardia atrial é caracterizada por onda P com orientação diferente da onda P
sinusal. Muitas vezes, o foco ectópico é próximo do nó sinusal, sendo difícil a
diferenciação no eletrocardiograma.
Bradicardia juncional é ritmo originado no nó atrioventricular, sem onda P ou
com onda P retrógrada, após o QRS, com orientação invertida.
O bloqueio atrioventricular pode ser causado por distúrbios eletrolíticos,
medicações ou alterações estruturais relacionadas a infarto agudo do miocárdio:
- Bloqueio atrioventricular de primeiro grau é caracterizado por
prolongamento anormal do intervalo PR, com duração superior a 0.20s, e
geralmente é reversível e secundário a fatores extrínsecos ao sistema de
condução;
- Bloqueio atrioventricular de segundo grau Mobitz I (Wenckebach) é
caracterizado por prolongamento progressivo do intervalo PR antes de
uma onda P bloqueada, geralmente associado a complexos QRS estreitos
e muitas vezes reversível e associado a fatores extrínsecos ao sistema de
condução;
- Bloqueio atrioventricular de segundo grau Mobitz II é caracterizado por
intervalo PR fixo antes e após ondas P bloqueadas, geralmente associado
a complexo QRS largo e a lesão irreversível intrínseca ao sistema de
condução;
- No bloqueio atrioventricular tipo 2:1 não ocorrem duas ondas P
conduzidas consecutivas que permitam avaliação da origem do bloqueio,
podendo corresponder a forma atípica de Mobitz I ou a Mobitz II;
- Bloqueio atrioventricular avançado é caracterizado por bloqueio de
mais da metade das despolarizações atriais, com algum grau de

Pedro Kallas Curiati 306


preservação da condução atrioventricular, sendo os intervalos PR sempre
idênticos;
- Bloqueio atrioventricular de terceiro grau é caracterizado por ausência
completa da condução atrioventricular e ritmo de escape distal, com RR
regular, dissociação entre ondas P e complexos QRS e lesão intrínseca ao
sistema de condução, que pode ser irreversível;

Exames complementares

Eletrocardiograma
O eletrocardiograma é o método utilizado na emergência para auxiliar no
diagnóstico das bradiarritmias. O Holter deve ser indicado caso o eletrocardiograma
basal não seja elucidativo.

Tilt table test ou teste de inclinação


O teste de inclinação é utilizado para reproduzir a situação clínica em que
indivíduos suscetíveis desenvolvem vários graus de hipotensão e bradicardia secundária
a um reflexo paradoxal que aumenta o tônus vagal e diminui o tônus simpático.

Compressão do seio carotídeo


Utilizada para diagnóstico da hipersensibilidade do seio carotídeo. É considerada
positiva quando resulta em uma assistolia cardíaca de mais de 3 segundos ou queda da
pressão arterial sistólica de pelo menos 50mmHg.

Estudo eletrofisiológico
Pacientes com síncope de origem indeterminada e portadores de bradicardia
sinusal, distúrbio de condução atrioventricular, cardiopatia estrutural e/ou idade
avançada têm indicação de estudo eletrofisiológico caso os métodos não-invasivos não
tenham sido conclusivos.

Diagnóstico diferencial
Hipoxemia.
Medicamentos, como β-bloqueadores, bloqueadores de canais de cálcio,
antiarrítmicos, antidepressivos tricíclicos e digitálicos.
Distúrbios dos equilíbrios hidroeletrolítico e acidobásico.
Síndrome da hipersensibilidade do seio carotídeo.
Síncope neurocardiogênica.
Isquemia miocárdica.
Cirurgia cardíaca.
Endocardite.
Extensão de calcificação das valvas mitral e aórtica.
Bloqueio atrioventricular total congênito.
Doença de Chagas.
Doença do nó sinusal.
Condicionamento físico.
Sono ou apneia obstrutiva do sono.
Hipertensão intracraniana.
Hipotireoidismo.
Doenças infiltrativas, como amiloidose, sarcoidose e hemocromatose.
Doenças inflamatórias, como vasculites e miocardites.

Pedro Kallas Curiati 307


Tratamento das bradicardias estáveis
Nos pacientes estáveis, não há necessidade de tratamento imediato para elevação
da frequência cardíaca, devendo-se analisar o eletrocardiograma. Se não houver
bloqueio atrioventricular avançado, ou seja, em caso de bloqueio atrioventricular de
primeiro grau ou de bloqueio atrioventricular de segundo grau Mobitz I, é possível
reavaliar a necessidade de tratamento em unidade de emergência, monitorizar o paciente
e solicitar avaliação cardiológica, se necessário. Em caso de bloqueio atrioventricular
avançado, ou seja, bloqueio atrioventricular de segundo grau Mobitz II ou bloqueio
atrioventricular de terceiro grau, deve-se cogitar internação hospitalar para passagem de
eletrodo de marca-passo transvenoso.

Tratamento das bradicardias instáveis

Drogas
Atropina é a droga de primeira linha para a bradicardia aguda sintomática, com
melhora da frequência cardíaca, dos sintomas e dos sinais associados, devendo ser
considerada enquanto se aguarda o marca-passo transcutâneo ou transvenoso.
Apresentada na forma de ampolas de 1mL com 0.25mg ou 0.50mg. A dose
recomendada é 0.5mg a cada três a cinco minutos até uma dose máxima de 3mg. Não há
necessidade de preparo ou diluição. Sua administração não deve atrasar a colocação de
marca-passo em paciente com má-perfusão. Deve ser utilizada com cautela em
pacientes com isquemia miocárdica, uma vez que frequência cardíaca elevada pode
aumentar o tamanho do infarto. A intervenção é ineficaz em pacientes submetidos
previamente a transplante cardíaco e provavelmente será ineficaz em pacientes com
bloqueio atrioventricular de segundo grau Mobitz II ou bloqueio atrioventricular de
terceiro grau.
Apesar de não serem agentes de primeira linha para o tratamento da bradicardia
sintomática, Dopamina, Epinefrina e Isoproterenol são alternativas quando a
bradiarritmia não é responsiva ao tratamento adequado com Atropina ou em
circunstâncias especiais, como intoxicação por bloqueador de canais de cálcio e β-
bloqueadores, em que também pode-se optar pelo uso do Glucagon, apresentado na
forma de frascos com 1mg de pó para injeção, com 2-3mg em trinta minutos e repetição
conforme a necessidade com velocidade de 5mg/hora até estabilização. O uso de
vasoconstritores requer que o paciente seja avaliado quanto à adequação da volemia,
com reposição conforme necessário.
Dopamina é uma catecolamina com ação tanto α-adrenérgica como β-
adrenérgica e pode ser titulada para atuar predominantemente na frequência cardíaca ou
na vasoconstrição. É apresentada na forma de ampola de 10mL com 5mg/mL. A
diluição preconizada consiste em cinco ampolas em 200mL de Soro Glicosado a 5% ou
de Soro Fisiológico, com concentração de 1000mcg/mL. Diluição alternativa prevê dez
ampolas em 150mL de Soro Glicosado a 5% ou de Soro Fisiológico, com concentração
de 2000mcg/mL. Em doses menores, tem efeito mais seletivo inotrópico e cronotrópico,
enquanto que em doses maiores, acima de 10mcg/kg/minuto, também tem efeito
vasoconstritor. Sua infusão é indicada em pacientes com bradicardia sintomática,
principalmente se associada a hipotensão arterial, nos quais Atropina não for apropriada
ou falhar. Deve-se iniciar a infusão com dose de 2-10mcg/kg/minuto e titular conforme
a resposta do paciente.
Epinefrina é uma catecolamina com ação tanto α-adrenérgica como β-
adrenérgica. Sua infusão é indicada em pacientes com bradicardia sintomática,

Pedro Kallas Curiati 308


principalmente se associada a hipotensão arterial, nos quais Atropina não for apropriada
ou falhar. É apresentada na forma de ampola de 1mL com 1mg/1mL. A diluição
preconizada é de seis ampolas em 100mL de Soro Glicosado a 5%, com concentração
de 60mcg/mL. Deve-se iniciar a infusão com dose de 2-10mcg/minuto e titular
conforme a resposta do paciente.
Isoproterenol é um agente β-adrenérgico com efeito em receptores β-1 e β-2,
com efeito cronotrópico e de vasodilatação. A dose recomendada para adultos é 2-
10mcg/minuto, com titulação conforme a frequência cardíaca e o ritmo cardíaco.
Uma vez estabilizada a frequência cardíaca, se houver um bloqueio
atrioventricular avançado, pela maior probabilidade de irreversibilidade, deve-se
programar a passagem de eletrodo de marca-passo provisório transvenoso.

Marca-passo transcutâneo
As principais indicações de marca-passo na sala de emergência incluem
bradicardias sintomáticas com pulso presente, bloqueio atrioventricular de 3º grau com
QRS largo ou escape inferior a 60bpm, bloqueio atrioventricular de 2º grau Mobitz II ou
de 3º grau na presença de infarto agudo do miocárdio de parede anterior, bloqueio de
ramo alternante na presença de infarto agudo do miocárdio e bloqueio bifascicular novo
ou com tempo indeterminado associado a bloqueio atrioventricular de primeiro grau.
Trata-se de medida dolorosa, com necessidade de sedação. A avaliação por
especialista é recomendada. Pulsos elétricos são aplicados através de dois eletrodos
colados na pele do tórax. Os modernos desfibriladores já incluem o marca-passo
transcutâneo, devendo-se trocar o conector do cabo das pás pelo do cabo do marca-
passo.
Os eletrodos são autoadesivos e com gel condutor. A aplicação é muito simples
e rápida, mas exige atenção, já que a posição das pás não pode ser invertida. Para a
colocação dos eletrodos, é necessário realizar a limpeza da pele e a retirada dos pêlos no
local de colocação com o objetivo de diminuir o limiar da estimulação. O eletrodo
negativo deve ser colocado na face anterior do tórax, na região do ápice cardíaco, e o
eletrodo positivo na região infraescapular direita ou esquerda. Se o paciente não puder
ser virado, uma opção inclui colocar uma pá no esterno e outra no ápice cardíaco.
Material de intubação orotraqueal deve estar disponível.
A frequência de disparo de ve ser ajustada para 70-80bpm.
Em geral, inicia-se com 20-30mA e aumenta-se gradualmente até que cada
disparo do marca-passo transcutâneo corresponda a um complexo QRS, o que é
denominado captura elétrica, com pulso femoral palpável, o que é denominado captura
mecânica. O menor nível de energia que conduz todos os pulsos do marca-passo é
denominado limiar de estimulação. Deve-se manter um nível de energia acima do limiar
para que o paciente não perca abruptamente o comando do marca-passo transcutâneo.
Nos pacientes conscientes, a corrente de estimulação deve ser de 5-10mA acima do
limiar de captura mecânica, com a finalidade de diminuir a sintomatologia.
No modo de demanda, o estímulo é disparado apenas quando a frequência
cardíaca estiver abaixo da frequência do marca-passo transcutâneo, evitando
estimulações desnecessárias e a possibilidade do marca-passo transcutâneo aplicar o
estímulo elétrico sobre uma onda T de batimento espontâneo do paciente, com
consequente arritmia ventricular. No modo fixo, o aparelho dispara independentemente
da frequência cardíaca ou dos batimentos espontâneos do paciente, com uso indicado
apenas em situações de transporte ou quando o paciente está muito agitado, situações
em que o marca-passo transcutâneo pode interpretar oscilações ou interferências
musculares como batimentos cardíacos.

Pedro Kallas Curiati 309


Após algumas horas da sua utilização, a eficácia do marca-passo transcutâneo
diminui, devendo-se optar por outro meio de estimulação. Deve ser usado apenas como
ponte até a instalação de outro método.

Marca-passo transvenoso
A sua instalação é mais trabalhosa, depende da experiência do médico e está
sujeita a complicações. O melhor local para realização do procedimento é a sala de
hemodinâmica.
O acesso venoso pelo qual é mais fácil a locação do eletrodo é o jugular direito.
Através de movimentos de rotação e de tentativa e erro, o eletrodo deve passar a valva
tricúspide e ser introduzido até encostar na parede do ventrículo direito, de preferência
próximo da sua ponta, na parede inferior, com um ângulo de aproximadamente 30º com
o plano horizontal.
A energia com que se mantém a estimulação nunca deve ser menor do que três
vezes a do limiar, porque na região em que o eletrodo encontra-se impactado ocorre
uma reação inflamatória que irá dificultar a condução do estímulo após alguns dias.
O marca-passo provisório pode ser passado também sem o auxílio da
radioscopia com o eletrocardiograma, porém com maior dificuldade. Conecta-se o
eletrodo na derivação “V” do eletrocardiograma e monitoriza-se o paciente nessa
derivação.
O paciente deve ser mantido monitorizado para imediata identificação de
qualquer perda de comando do marca-passo transvenoso. Nas primeiras 48 horas,
recomenda-se medir o limiar a cada doze horas, mantendo o gerador com energia três a
cinco vezes acima. Do terceiro ao sétimo dias, a recomendação é uma medida diária e
energia duas a três vezes acima.
As grandes vantagens desse método de estimulação em relação ao marca-passo
transcutâneo são o maior conforto do paciente, que pode movimentar-se livremente já
que o gerador de pulsos tem tamanho reduzido, a ausência de dor e a possibilidade de
uso por até quinze dias. As principais desvantagens são a necessidade de profissional
habilitado para sua passagem, os riscos de infecção, as complicações durante a
passagem e perfurações de vasos ou de câmaras cardíacas.

Marca-passo definitivo
O implante de marca-passo definitivo é indicado nas bradicardias sintomáticas
de causas bem definidas e não-reversíveis ou, ainda, profilaticamente, quando há
necessidade de utilização de medicações que sabidamente exacerbarão algum grau pré-
existente de disfunção do nó sinusal e doença do sistema de condução. O implante
promove melhora dos sintomas relacionados a bradicardias, embora não
necessariamente resulte em aumento na sobrevida. Nos bloqueios atrioventriculares
avançados, o implante de marca-passo definitivo pode constituir terapêutica primordial
para a sobrevida do paciente. Também está indicado na síndrome da hipersensibilidade
do seio carotídeo, na forma cardioinibitória. O papel do marca-passo definitivo nas
síndromes neuromediadas com bradicardias severas e/ou assistolias prolongadas é
controverso, sendo recomendado como adjuvante do tratamento em pacientes com
síncopes recorrentes, pródromos curtos ou ausentes e falha do tratamento clínico.
Os marca-passos podem ser unicamerais ou bicamerais, ou seja, atriais,
ventriculares ou ambos. A seleção do tipo de marca-passo e da programação apropriada
para cada paciente depende da presença ou ausência de anormalidades da condução
atrioventricular, da presença ou ausência de arritmias atriais, da intenção de manter
sincronia atrioventricular e da necessidade de responsividade da frequência.

Pedro Kallas Curiati 310


Atualmente, um código de cinco letras é utilizado como nomenclatura dos
modos de estimulação para os marca-passos cardíacos:
- Câmara(s) estimulada(s), com átrio (A), ventrículo (V) ou ambas (D);
- Câmara(s) sentida(s), com átrio (A), ventrículo (V) ou ambas (D);
- Modo de resposta, em que um batimento espontâneo inibe o marca-
passo (I) ou há resposta dupla (D), na qual um evento sentido no átrio
inibe a estimulação atrial e dispara a estimulação ventricular e um evento
sentido no ventrículo inibe a estimulação artificial ventricular;
- Programabilidade e modulação de frequência, com marca-passo com
frequência adaptativa e frequência modulada (R);
- Funções anti-taquicardia;

Bibliografia
Part 8: Adult Advanced Cardiovascular Life Support. 2010 American Heart Association Guidelines for Cardiopulmonary
Resuscitation and Emergency Cardiovascular Care. Robert W. Neumar, Chair; Charles W. Otto; Mark S. Link; Steven L. Kronick;
Michael Shuster; Clifton W. Callaway; Peter J. Kudenchuk; Joseph P. Ornato; Bryan McNally; Scott M. Silvers; Rod S. Passman;
Roger D. White; Erik P. Hess; Wanchun Tang; Daniel Davis; Elizabeth Sinz; Laurie J. Morrison. Circulation 2010;122;S729-S767.
Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 6. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2011.
Clínica médica, volume 2: doenças cardiovasculares, doenças respiratórias, emergências e terapia intensiva. – Barueri, SP: Manole,
2009.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.
Boletim de Cardiologia para o Internato. Ano 1, número 9. Carlos Pedrotti, Gustavo Hironaka, Leonardo Lopes. Preceptoria de
Cardiologia do Instituto do Coração, 2009.

Pedro Kallas Curiati 311


Algoritmo

Pedro Kallas Curiati 312


TAQUICARDIA
Definição
Taquicardia é definida como uma arritmia com frequência cardíaca superior a
100bpm, mas sintomas usualmente são causados com frequência cardíaca superior ou
igual a 150bpm.

Fisiopatologia
As arritmias cardíacas são originadas por um ou mais mecanismos dentre
automatismo anormal, atividade deflagrada e circuito de reentrada.

Quadro clínico
Esforços devem ser dispendidos para determinar se a taquicardia é a principal
causa dos sintomas apresentados pelo paciente ou se é secundária a uma condição
subjacente. Quando a frequência cardíaca é inferior a 150bpm, é pouco provável que os
sintomas sejam causados primariamente pela taquicardia, exceto em caso de disfunção
ventricular.
Queixas inespecíficas incluem tontura, mal estar e angústia. Queixas sugestivas
de doença cardíaca incluem síncope, dispneia, dor torácica, palpitação e hipotensão.

Classificação das taquiarritmias


As taquiarritmias podem ser classificadas de diferentes maneiras com base em
aparência do complexo QRS, frequência cardíaca e regularidade. Os provedores de
suporte avançado de vida devem estar aptos a diferenciar entre taquicardia sinusal,
taquicardia supraventricular de complexo estreito e taquicardia de complexo largo.
Taquicardias de QRS estreito, com duração inferior a 0.12s, incluem taquicardia
sinusal, fibrilação atrial, flutter atrial, taquicardia por reentrada nodal, taquicardia por
reentrada atrioventricular, taquicardia atrial, taquicardia atrial multifocal e taquicardia
juncional. Em caso de irregularidade, as principais causas são fibrilação atrial e
taquicardia atrial multifocal. Ocasionalmente, o flutter atrial pode ser irregular.
Taquicardias de QRS amplo, com duração igual ou superior a 0.12s, incluem
taquicardia ventricular, fibrilação ventricular, taquicardia supraventricular com
aberrância de condução, taquicardia com pré-excitação ventricular (síndrome de Wolff-
Parkinson-White) e ritmo de marca-passo ventricular.

Algoritmo de Brugada para taquicardias com QRS largo


Existe complexo RS em alguma das derivações do plano horizontal? Se não
existir, o diagnóstico é de taquicardia ventricular.
Se existir, qual é a duração do início da onda R até a porção mais profunda da
onda S? Se este valor for maior do que 100ms, confirma o diagnóstico de taquicardia
ventricular.
Caso contrário, existe dissociação atrioventricular, com maior número de
complexos QRS do que ondas P? Em caso afirmativo, confirma-se o diagnóstico de
taquicardia ventricular.
Entretanto, se houver condução atrioventricular 1:1 ou se a onda P não puder ser
identificada, os critérios morfológicos clássicos para reconhecimento das taquicardias
ventriculares estão presentes? Se sim, está confirmado o diagnóstico de taquicardia
ventricular.

Pedro Kallas Curiati 313


Avaliação inicial
Uma vez que hipoxemia é uma importante causa de taquicardia, a avaliação
inicial de qualquer paciente com taquicardia deve ser focada em sinais de aumento do
trabalho respiratório, como taquipnéia, retrações intercostais, retração supraesternal e
respiração paradoxal, e na porcentagem de hemoglobina saturada por oxigênio no
sangue arterial, que pode ser determinada por oximetria de pulso. Se a oxigenação for
inadequada ou o paciente apresentar sinais de aumento do trabalho respiratório, deve-se
prover oxigênio suplementar.
Deve-se monitorizar o paciente, avaliar a pressão arterial, estabelecer um acesso
intravenoso e colher exames laboratoriais, com hemograma, eletrólitos, função renal e
marcadores de necrose miocárdica. Se possível, um eletrocardiograma de doze
derivações deve ser obtido, desde que não atrase a cardioversão imediata em pacientes
instáveis.
Enquanto o tratamento é iniciado, deve-se avaliar a situação clínica do paciente e
procurar identificar causas reversíveis.
Se os sinais e os sintomas persistirem apesar da provisão de oxigênio
suplementar e suporte para vias aéreas e ventilação, o provedor deve avaliar o grau de
instabilidade do paciente e determinar a relação com a taquicardia.

Tratamento
Se o paciente apresentar sinais de comprometimento cardiovascular relacionado
à frequência cardíaca, como alteração aguda do nível de consciência, desconforto
torácico isquêmico, insuficiência cardíaca aguda, hipotensão e outros sinais de choque,
deve-se proceder com cardioversão sincronizada imediata.
Se o paciente com taquicardia estiver estável, o provedor de suporte avançado de
vida terá tempo de obter um eletrocardiograma de 12 derivações, avaliar o ritmo
cardíaco, determinar se o complexo QRS tem duração superior ou igual a 0.12s e definir
as opções terapêuticas.
Se possível, deve-se estabelecer um acesso intravascular antes da cardioversão e
administrar sedação se o paciente estiver consciente. No entanto, não se deve atrasar a
cardioversão se o paciente estiver extremamente instável. Cardioversão sincronizada é a
administração de choque em sincronia com o complexo QRS, com indicação em
taquicardia supraventricular instável e taquicardia ventricular monomórfica instável.
Quando não for possível sincronizar o choque, deve-se utilizar choque não-sincronizado
de alta energia.
A dose de energia inicial recomendada para a cardioversão de fibrilação atrial
com onda bifásica varia de 120J a 200J, com aumento gradual nos choques
subsequentes em caso de falha. Já a cardioversão de flutter atrial e outras taquicardias
supraventriculares exige menos energia, com um choque inicial de 50-100J sendo
suficiente. A cardioversão com onda monofásica deve ser realizada com dose de energia
inicial de 200J, com aumento gradual nos choques subsequentes em caso de falha.
A taquicardia ventricular monomórfica com pulso responde bem à cardioversão
sincronizada com onda monofásica ou difásica com energia inicial de 100J. Se não
houver resposta ao primeiro choque, é razoável aumentar gradualmente a dose de
energia.
Arritmias com aparência polimórfica do complexo QRS usualmente não
permitem a sincronização, com indicação de choque não-sincronizado de alta energia
semelhante ao preconizado para fibrilação ventricular.

Pedro Kallas Curiati 314


Taquicardia com complexo QRS estreito e ritmo regular
Taquicardia sinusal é comum e geralmente resulta de estímulos fisiológicos,
como febre, anemia, hipotensão e choque. É caracterizada por frequência cardíaca
superior a 100bpm, com limite dependente da idade e calculado com a fórmula 220 –
idade em anos. A abordagem deve ser direcionada para a identificação e o tratamento da
causa subjacente.

Taquicardia supraventricular
O ritmo é considerado supraventricular quando o complexo QRS é estreito, com
duração inferior a 0.12s, ou largo na presença de bloqueio de ramo ou aberrância de
condução dependente da frequência cardíaca.
A maior parte das taquicardias supraventriculares são regulares, causadas por
reentrada e caracterizadas por início e término abruptos. Distinguir as formas de
reentrada que são dependentes do miocárdio atrial, como na fibrilação atrial, daquelas
em que a reentrada é dependente parcialmente ou totalmente do nó atrioventricular,
como na taquicardia supraventricular paroxística, é importante em função de diferente
resposta à terapêutica com diminuição da condução pelo nó atrioventricular.
Um outro grupo de taquiarritmias é referido como taquicardias automáticas,
caracterizadas por início e término graduais, como taquicardia atrial, taquicardia atrial
multifocal e taquicardia juncional. Há maior dificuldade no tratamento, ausência de
resposta à cardioversão e necessidade de controle inicial com drogas que reduzem a
condução pelo nó atrioventricular.
Manobras vagais, como manobra de Valsalva e massagem do seio carotídeo, e
Adenosina são as opções preferidas para terapêutica inicial em caso de taquicardia
paroxística supraventricular estável. Se a taquicardia paroxística supraventricular não
responder às manobras vagais, deve-se administrar 6mg de Adenosina por via
intravenosa na forma de bolus seguido por 20mL de solução salina em uma veia de
grosso calibre. Se o ritmo não reverter em um a dois minutos, deve-se administrar bolus
de 12mg, que pode ser repetido uma vez. Em função do risco de fibrilação atrial de alta
resposta em pacientes com síndrome de Wolff-Parkinson-White, um desfibrilador deve
estar disponível. Como pode causar broncoespasmo, não deve ser usada em paciente
com asma. Deve-se reduzir a dose se infundida em acesso venoso central ou em
pacientes em uso de Dipiridamol ou Carbamazepina. Em pacientes instáveis, a droga
pode ser utilizada enquanto se prepara a cardioversão elétrica.
Efeitos colaterais da Adenosina são comuns e transitórios. Incluem eritema,
dispneia e desconforto torácico. A medicação é segura para gestantes, mas não deve ser
administrada para asmáticos.
Em caso de outras taquicardias supraventriculares, as manobras vagais e a
administração de Adenosina podem diminuir transitoriamente a frequência ventricular e
auxiliar no diagnóstico do ritmo, mas provavelmente não irão reverter a arritmia.
Após a reversão, o paciente deve ser monitorizado para recorrências, que serão
tratadas com Adenosina ou com um bloqueador do nó atrioventricular de longa duração,
como bloqueador de canais de cálcio e β-bloqueador. Se as manobras vagais ou a
administração de Adenosina falharem ou desencadearem outra forma de taquicardia
supraventricular, como fibrilação atrial ou flutter atrial, deve-se considerar tratamento
com um bloqueador do nó atrioventricular de longa duração, como bloqueador de canais
de cálcio não-dihidropiridínicos, como o Diltiazem e o Verapamil, e β-bloqueadores
para controle mais duradouro da frequência ventricular.
O Diltiazem pode ser administrado com dose de 15-20mg (0.25mg/kg) por via
intravenosa em dois minutos. Se necessário, pode ser administrada uma dose adicional

Pedro Kallas Curiati 315


de 20-25mg (0.35mg/kg) em dois a três minutos após quinze minutos. A infusão de
manutenção é feita com 5-15mg/hora, com titulação baseada na frequência cardíaca. A
dose de manutenção oral inicial é de 30mg quatro vezes ao dia, com dose máxima diária
de 360mg, estando disponível na forma de comprimidos de 30mg e 60mg para uso três a
quatro vezes ao dia e de comprimidos de liberação prolongada de 90mg, 120mg e
180mg para uso duas vezes por dia.
O Verapamil pode ser administrado sob a forma de bolus de 2.5-5.0mg por via
intravenosa durante dois minutos, com preferência para administração em três minutos
em pacientes idosos, com novas doses de 5-10mg a cada quinze a trinta minutos na
ausência de resposta terapêutica e de efeitos adversos, até dose total de 20mg. Um
esquema alternativo prevê a administração de doses de 5mg a cada quinze minutos até
dose total de 30mg. Há contraindicação em pacientes com disfunção ventricular ou
insuficiência cardíaca. A dose oral de manutenção é de 240-480mg/dia, estando
disponível na forma de comprimidos de 80mg e 120mg para uso três a quatro vezes por
dia.
As opções de β-bloqueadores incluem Metoprolol, Atenolol, Propranolol,
Esmolol e Labetalol. Efeitos colaterais incluem bradicardia, atraso de condução
atrioventricular e hipotensão. Devem ser usados com cautela em pacientes com doença
pulmonar obstrutiva crônica ou insuficiência cardíaca congestiva. Contraindicações
incluem bloqueio atrioventricular de segundo ou terceiro graus, insuficiência cardíaca
descompensada, hipotensão e presença ou suspeita de Wolff-Parkinson-White.
Propranolol pode ser administrado com dose de 0.5-1.0mg por via intravenosa
lentamente, com repetição após dez minutos se a arritmia persistir ou recorrer,
respeitando dose máxima de 0.1mg/kg. Atenolol pode ser administrado com dose de
5mg por via intravenosa em cinco minutos, com repetição da dose em dez minutos se a
arritmia persistir ou recorrer. Metoprolol pode ser administrado com dose de 5mg por
via intravenosa em um a dois minutos, com repetição conforme a necessidade a cada
cinco minutos até dose máxima de 15mg. Esmolol pode ser administrado com dose
inicial de 500mcg/kg em bolus por via intravenosa em um minuto e dose de manutenção
de 50mcg/kg/minuto por via intravenosa em bomba de infusão contínua, aumentada a
cada dez minutos até 300mcg/kg/minuto se necessário.
Drogas bloqueadoras do nó atrioventricular, como Adenosina, bloqueadores de
canais de cálcio e β-bloqueadores, não devem ser usados em caso de fibrilação atrial ou
flutter atrial com pré-excitação ventricular. Pode-se utilizar, nessa situação, medicações
antiarrítmicas como Amiodarona, Procainamida e Sotalol. No entanto, o seu uso pode
culminar com a reversão da fibrilação atrial ou do flutter atrial, efeito indesejado na
ausência de precauções contra complicações tromboembólicas. Procainamida bloqueia
canais de sódio e de potássio e pode ser administrada com dose de 100mg por via
intravenosa a cada cinco minutos ou 20-50mg/minuto por via intravenosa até supressão
da arritmia, surgimento de hipotensão ou prolongamento do QRS superior a 50%, com
dose máxima cumulativa de 17mg/kg e dose de manutenção de 1-4mg/minuto, devendo
ser evitada em pacientes com intervalo QT longo. Amiodarona bloqueia canais de sódio,
potássio e cálcio e receptores adrenérgicos α e β, podendo ser administrada com dose de
150mg por via intravenosa em dez minutos, com repetição se necessário e infusão de
manutenção com 1mg/minuto durante seis horas (360mg) e 0.5mg/minuto a partir de
então por dezoito horas (540mg), com dose máxima de 2.2g em 24 horas. A
Procainamida é apresentada na forma de ampola de 5mL com 100mg/mL, com diluição
em Soro Glicosado a 5% para concentração de 2-4mg/mL. A Amiodarona é apresentada
na forma de ampola de 3mL com 50mg/mL e deve ser diluída exclusivamente em Soro
Glicosado a 5%, evitando-se concentrações inferiores a 600mg/L.

Pedro Kallas Curiati 316


Taquicardia com complexo QRS largo
Um paciente instável com complexo QRS largo presumivelmente tem uma
taquicardia ventricular, de modo que cardioversão imediata deve ser realizada. Pancada
precordial pode ser considerada para pacientes com taquicardia ventricular instável
presenciada e monitorizada quando um desfibrilador não estiver imediatamente
disponível para uso.
Se o paciente estiver estável, deve-se obter um eletrocardiograma de doze
derivações para avaliar o ritmo e considerar solicitar a avaliação de um especialista. A
seguir, deve-se determinar se o ritmo é regular, como taquicardia ventricular e
taquicardia supraventricular com aberrância de condução, ou irregular, como fibrilação
atrial com aberrância de condução, fibrilação atrial com pré-excitação ventricular e
taquicardia ventricular polimórfica.
Se a etiologia do ritmo não pode ser determinada, a frequência cardíaca é regular
e o QRS é monomórfico, evidências recentes sugerem que Adenosina por via
intravenosa é relativamente segura tanto para o diagnóstico como para o tratamento. As
doses e as precauções são semelhantes às preconizadas para as taquicardias paroxísticas
supraventriculares. No entanto, não deve ser administrada para taquicardia com
complexo QRS largo irregular ou polimórfica em função do risco de degeneração para
fibrilação ventricular. Se a taquicardia for causada por taquicardia supraventricular com
aberrância de condução, ela será transitoriamente lentificada ou convertida para ritmo
sinusal, enquanto que se for causada por taquicardia ventricular, não haverá efeito no
ritmo.
Verapamil é contraindicado para taquicardia com complexo QRS largo, exceto
se conhecida a origem supraventricular.
Se a etiologia provável é taquicardia ventricular, em pacientes estáveis, o
tratamento de escolha é a cardioversão eletiva ou a administração intravenosa de
antiarrítmicos, como Procainamida, Amiodarona e Sotalol. Se a terapêutica
antiarrítmica medicamentosa não for bem sucedida, recomenda-se cardioversão ou
avaliação por especialista. Sotalol bloqueia canais de potássio e receptores β-
adrenérgicos e pode ser administrado com dose de 1.5mg/kg por via intravenosa em
cinco minutos, devendo ser evitado em pacientes com intervalo QT longo. Lidocaína é
considerada droga bloqueadora de canais de sódio de segunda linha e pode ser
administrada na dose de 1.0-1.5mg/kg por via intravenosa em bolus, com possibilidade
de repetição com 0.5-0.75mg/kg a cada cinco a dez minutos até dose máxima de
3mg/kg, sendo a dose de manutenção 1-4mg/minuto.

Taquicardias irregulares – fibrilação atrial


Uma taquicardia irregular de complexo QRS estreito ou largo é muito
provavelmente uma fibrilação atrial sem ou com aberrância de condução,
respectivamente, com resposta ventricular elevada. Outras possibilidades diagnósticas
incluem taquicardia atrial multifocal e taquicardia atrial com extra-sístoles atriais
frequentes. Quando há dúvida quanto ao diagnóstico e o paciente está estável, um
eletrocardiograma de doze derivações com avaliação por especialista é recomendado.
Pacientes hemodinamicamente instáveis devem receber cardioversão elétrica
prontamente. Pacientes mais estáveis requerem controle da frequência ventricular.
Bloqueadores de canais de cálcio e β-bloqueadores são as medicações de escolha.
Digoxina e Amiodarona podem ser utilizadas em pacientes com insuficiência cardíaca,
mas o risco de cardioversão com o uso de Amiodarona deve ser considerado. A
Digoxina tem efeito inotrópico positivo e cronotrópico negativo e pode ser usada com

Pedro Kallas Curiati 317


dose de 8-12mcg/kg, com metade administrada em cinco minutos e o restante em
frações de 25% a cada quatro a oito horas.
Pacientes estáveis com fibrilação atrial de duração superior a 48 horas estão sob
maior risco de eventos cardioembólicos, de modo que cardioversão elétrica ou
farmacológica não deve ser tentada, exceto em caso de instabilidade hemodinâmica.
Uma abordagem alternativa é realizar a cardioversão após anticoagulação com Heparina
e a avaliação com ecocardiografia transesofágica para excluir a presença de trombos
atriais.
Em caso de suspeita de fibrilação atrial com pré-excitação ventricular, um
especialista deverá ser consultado e agentes bloqueadores do nó atrioventricular devem
ser evitados.

Taquicardias irregulares – taquicardia ventricular polimórfica


A taquicardia ventricular polimórfica requer desfibrilação imediata com a
mesma estratégia usada para a fibrilação ventricular.
O tratamento farmacológico para a prevenção de recorrência deve ser
direcionado para a causa subjacente e baseado na presença ou ausência de intervalo QT
longo durante o ritmo sinusal.
Se um intervalo QT longo for identificado durante o ritmo sinusal, como na
torção das pontas, a primeira medida a ser tomada é a suspensão das medicações que
conhecidamente prolongam o intervalo QT. Devem ser corrigidos distúrbios
eletrolíticos e outros desencadeantes.
Taquicardia ventricular polimórfica associada a síndrome do intervalo QT longo
congênito pode ser tratada com marca-passo ou administração intravenosa de Sulfato de
Magnésio ou de β-bloqueadores. Taquicardia ventricular polimórfica associada a
intervalo QT longo adquirido pode ser tratada com administração intravenosa de Sulfato
de Magnésio 1-2g por via intravenosa em quinze minutos.
Na ausência de intervalo QT prolongado, a causa mais comum de taquicardia
ventricular polimórfica é isquemia miocárdica. Nessa situação, Amiodarona intravenosa
pode reduzir a frequência das recorrências. A isquemia miocárdica deverá ser tratada
com administração de β-bloqueadores, devendo-se considerar a cateterização cardíaca
para revascularização primária. Sulfato de Magnésio apresenta baixa probabilidade de
prevenir taquicardia ventricular polimórfica em pacientes com intervalo QT normal,
mas Amiodarona pode ser efetiva.
Outras causas de taquicardia ventricular polimórfica são taquicardia ventricular
catecolaminérgica e síndrome de Brugada, que pode responder a Isoproterenol.

Cardioversão elétrica sincronizada


A cardioversão elétrica sincronizada é definida como a aplicação transtorácica
de um breve pulso de corrente elétrica sincronizada no tempo com o complexo QRS. O
índice de sucesso de reversão para o ritmo sinusal é maior que noventa por cento nos
pacientes com início recente de flutter atrial, fibrilação atrial, taquicardia
supraventricular por reentrada nodal e taquicardia ventricular. É importante, após a
reversão com sucesso para o ritmo sinusal, avaliar a necessidade de drogas
antiarrítmicas específicas para tratamento e prevenção de recorrências.
Se possível, antes da cardioversão elétrica, deve-se garantir acesso venoso,
oxigênio, monitorização, analgesia e sedação, sincronização do aparelho e material
pronto para intubação orotraqueal e ressuscitação cardiopulmonar. Próteses dentárias
móveis devem ser retiradas. Deve-se proceder a tricotomia e a limpeza de pele se forem
necessárias.

Pedro Kallas Curiati 318


Inicialmente deve-se explicar ao paciente o procedimento e sua necessidade,
desde que possível diante da situação clínica. A seguir, preconiza-se o uso de um
sedativo potente e de ação rápida, como Propofol, Etomidato e Midazolam. Estes dois
últimos possuem menor efeito hipotensor e inotrópico negativo, sendo preferidos em
situações de instabilidade hemodinâmica. É recomendado associar um analgésico
potente, como Morfina 1-2mg por via intravenosa ou Fentanil 1-2mcg/kg.
Como a sedação induz diminuição do drive respiratório, é fundamental a
abertura da via aérea e o uso do dispositivo bolsa-válvula-máscara, conhecido como
Ambu®, ligado a uma fonte de oxigênio, para manter ventilação adequada durante o
procedimento. Não se deve esquecer de sincronizar o desfibrilador antes do choque,
aplicar gel condutor nas pás e selecionar a energia adequada. Em muitos aparelhos, o
sincronismo é desativado automaticamente após o primeiro choque pela possibilidade
de o paciente evoluir com taquicardia ventricular.
As pás devem ser apoiadas sobre o tórax do paciente, com uma pá à direita do
esterno, sob a clavícula direita, e a outra junto ao ápice cardíaco, sobre a linha axilar
anterior esquerda. Em pacientes portadores de marca-passo definitivo, deve-se traçar
uma linha imaginária entre o gerador e a extremidade do eletrodo na ponta do ventrículo
direito. Se a linha tiver uma direção semelhante à linha traçada entre as pás do
cardioversor, cogitar outro posicionamento para a pás. Em pacientes em que o
posicionamento das pás no esterno e no ápice cardíaco não é possível, pode ser utilizado
um posicionamento de pás cuja linha seja perpendicular à original. Uma pressão de
13kg deve ser aplicada sobre as pás, o que corresponde ao peso do tronco apoiado.
Nenhum integrante da equipe deve estar encostado no paciente ou na maca do
paciente. Deve-se avisar em vóz alta a eminência de choque. Após o choque, deve-se
confirmar a reversão da arritmia. Após a cardioversão elétrica, deve-se observar o
paciente e oferecer suporte ventilatório e hemodinâmico.

Sedação
Propofol:
- Ampolas de 1%, com 10mg/mL, e ampolas de 2%, com 20mg/mL;
- Dose de 30-50mg por via intravenosa em bolus;
- Em alguns pacientes, pode ser necessário repetir o bolus até doses de
200mg;
- Hipnótico, não é analgésico, mas amnésico, com efeito muito rápido,
raramente causando broncoespasmo;
- Não é drepressor cardiovascular, mas causa hipotensão;
Etomidato:
- Ampolas de 10mL com 2mg/mL;
- Deve-se pré-medicar com 100mcg (2mL) de Fentanil por via
intravenosa;
- Após dois minutos, infundir Etomidato na dose de 20mg (0.3mg/kg) por
via intravenosa em bolus;
- Hipnótico, não-analgésico e não-amnésico;
- Efeito muito rápido, não causa broncoespasmo ou depressão
cardiovascular, mas pode causar mioclonias, antagonizadas pelo uso
concomitante de Fentanil;
Midazolam:
- Ampolas de 3mL com 5mg/mL;
- Doses de 3-5mg (0.1-0.3mg/kg) em bolus, podendo-se repetir até
sedação adequada;

Pedro Kallas Curiati 319


- Hipnótico, causa amnésia, mas não é analgésico;
- Não causa broncoespasmo ou depressão cardiovascular;
- Indução rápida, mas efeito prolongado, por até quatro horas,
parcialmente revertido pelo Flumazenil;

Prescrição
- Jejum;
- Repouso absoluto no leito;
- Monitorização de ritmo cardíaco, pressão arterial e saturação periférica de O2;
- Acesso venoso e coleta de hemograma, sódio e potássio séricos, função renal,
CK-MB e troponina I;
- Midazolam 2mL (10mg) por via intravenosa agora;
- Fentanil 2mL (100mcg) por via intravenosa agora;
- Ventilação com bolsa-válvula-máscara e reservatório de O2 a 10L/minuto;

Abordagem específica por tipo de taquiarritmias

Taquicardia sinusal
Definida como um aumento na frequência sinusal acima de 100bpm. Está
associada a situações de estresse emocional e uso de medicações, mas também pode
refletir doença sistêmica grave.
O mecanismo é estímulo adrenérgico nas células marca-passo.
Diagnóstico baseado em eixo da onda P entre 0 e +90 graus. No plano frontal as
ondas P podem ser negativas em V1 e V2, mas obrigatoriamente positivas de V3 a V6.
O tratamento prevê a identificação da causa associada, com tratamento
específico. Drogas β-bloqueadoras podem ser extremamente úteis para controle de casos
associados a estresse emocional.

Taquicardia sinusal inapropriada


Definida como aumento persistente na frequência cardíaca de repouso
desproporcional a estresse emocional ou físico, patológico.
O mecanismo é automatismo aumentado do nó sinusal ou regulação autonômica
anormal do nó sinusal.
O sintoma predominante é palpitação, mas o paciente pode queixar-se também
de dispnéia e desconforto torácico. Comum em profissionais de saúde e mulheres.
Diagnóstico baseado em presença de taquicardia sinusal persistente ao Holter
com resposta excessiva ao esforço, taquicardia não-paroxística, onda P sinusal e
exclusão de doença sistêmica, doença psiquiátrica ou abuso de droga.
O tratamento prevê o uso de β-bloqueadores associados ou não a bloqueadores
dos canais de cálcio. Modificação sinusal por cateter de ablação pode ser alternativa.

Taquicardia por reentrada nodal


Taquicardia paroxística supraventricular mais comum, sendo mais prevalente em
mulheres.
O mecanismo é reentrada entre duas vias funcionalmente diferentes. A
taquicardia por reentrada nodal comum, com via lenta anterógrada e via rápida
retrógrada, é caracterizada por onda P sobreposta ao QRS ou logo após, no máximo
70ms, negativa nas derivações inferiores (pseudo S) e positiva em V1 (pseudo R). A
taquicardia por reentrada nodal incomum, com via rápida anterógrada e via lenta
retrógrada, é caracterizada por onda P negativa em DIII e aVF e próxima ao QRS

Pedro Kallas Curiati 320


seguinte, com RP maior que PR.
O sintoma mais comum é de palpitação taquicárdica de início súbito precordial
ou, em alguns casos, na região cervical. O batimento cervical justifica-se pelo fato de a
sístole atrial durante a taquicardia ocorrer logo após ou simultaneamente à sístole
ventricular, com as válvulas atrioventriculares ainda fechadas. A crise pode durar de
minutos a várias horas, podendo ocorrer reversão espontânea. É comum a taquicardia
não trazer instabilidade hemodinâmica, mas em pacientes com disautonomia ou
cardiopatia grave, pode causar síncope. Em virtude da distensão atrial, ocorre liberação
de fator natriurético atrial e o paciente pode se queixar de poliúria após a reversão da
crise.
Tratamento:
- Sala de emergência;
- Manobra vagal, Adenosina 6-12mg por via intravenosa em bolus ou
Verapamil 5mg por via intravenosa em dois minutos;
- Diltiazem 120mg com Propranolol 80mg em dose única oral no início
da crise é eficaz para pacientes com crises esporádicas;
- β-bloqueadores e bloqueadores de canais de cálcio para tratamento a
longo prazo;
- Ablação por radiofrequência é indicada nos pacientes que desejam
permanecer sem drogas antiarrítmicas ou naqueles com crises
recorrentes, mal-toleradas ou refratárias ao tratamento clínico, com baixo
risco de bloqueio atrioventricular total e de recorrência;
Pacientes após reversão da taquicardia não necessitam permanecer internados,
assim como não é necessária nenhuma investigação adicional.

Taquicardia por reentrada atrioventricular


Definida como taquicardia que envolve conexões atrioventriculares extranodais,
ou seja, vias anômalas, que podem ser ocultas, com condução retrógrada exclusiva, ou
manifestas, com condução anterógrada e retrógrada, como na síndrome de Wolff-
Parkinson-White. Mais comum em homens na segunda e na terceira décadas de vida.
Os sintomas são bastante similares à taquicardia por reentrada nodal, com
palpitação precordial de início e término súbitos, duração de minutos a horas e
geralmente boa tolerância. Observa-se menos frequentemente palpitação cervical e
poliúria.
O mecanismo é reentrada através de via anômala atrioventricular. Na taquicardia
atrioventricular ortodrômica, forma mais comum de apresentação, a via anômala é
utilizada como componente retrógrado do circuito e a junção atrioventricular como
componente anterógrado, com taquicardia de QRS estreito e onda P após o complexo
QRS, com PR superior a 70ms. Na taquicardia atrioventricular antidrômica, a via
anômala é utilizada como componente anterógrado do circuito e a junção
atrioventricular como componente retrógrado, com taquicardia de QRS largo que ocorre
apenas em pacientes com via anômala manifesta, em que é evidenciado estado de pré-
excitação máxima. A morfologia da onda P durante a taquicardia sugere a localização
da via anômala.
Tratamento:
- Sala de emergência;
- Se QRS estreito, o tratamento é idêntico ao da taquicardia por reentrada
nodal e, na ausência de eletrocardiograma de base, a infusão de
Adenosina e Verapamil é segura desde que haja desfibrilador disponível,
em função do risco de fibrilação atrial que poderia ser conduzida pela via

Pedro Kallas Curiati 321


anômala;
- Na taquicardia por reentrada atrioventricular antidrômica, o bloqueio da
junção atrioventricular interrompe a taquicardia, mas o diagnóstico
eletrocardiográfico inicial é de taquicardia ventricular e o tratamento
deve ser semelhante ao dessa afecção;
- Se eletrocardiograma em ritmo sinusal e ausência de pré-excitação, o
tratamento ambulatorial é igual ao da taquicardia por reentrada nodal,
enquanto que na presença de via anômala manifesta deve-se usar drogas
que prolonguem o período refratário da via anômala, como Propafenona
e Sotalol, ou, como segunda escolha, Amiodarona;
- Ablação por radiofrequência está indicada em todos os pacientes com
via anômala manifesta e é opcional em pacientes com via anômala
oculta;
- Internação hospitalar em caso de arritmia incessante ou fibrilação atrial
conduzida com pré-excitação;
- Todos os casos com pré-excitação devem ser encaminhados para
avaliação por especialista;
Fibrilação atrial conduzida por via anômala é situação com alto risco de morte
súbita e contraindicação para o uso de drogas que diminuam a condução pela junção
atrioventricular, como bloqueadores de canal de cálcio, digitálicos e β-bloqueadores.

Taquicardia juncional não paroxística


Definida como taquicardia incessante com origem na junção atrioventricular ou
no feixe de His.
Mecanismo é automatismo aumentado de foco juncional alto, com fenômeno de
“aquecimento” e de “desaquecimento”. Pode indicar doença associada grave, como
intoxicação digitálica, hipocalemia, isquemia miocárdica, doença pulmonar obstrutiva
crônica e doença inflamatória sistêmica.
O diagnóstico é baseado em taquicardia de QRS estreito, frequência ao redor de
70-120bpm, em que é observada frequência juncional maior do que a frequência sinusal,
com possibilidade de dissociação atrioventricular ou onda P retrógrada.
O tratamento prevê a correção da causa sistêmica associada. Trata-se de afecção
de bom prognóstico, sendo indicada internação conforme a doença de base associada.

Taquicardia atrial
Definida como taquicardia não-dependente da junção atrioventricular e
originada nos átrios.
O mecanismo da taquicardia atrial depende da etiologia. As taquicardias
automáticas podem ser encontradas principalmente em pacientes sem cardiopatia
estrutural, por atividade deflagrada em pacientes com alterações metabólicas e por
reentrada em pacientes com cicatrizes atriais.
Etiologia inclui coração normal, intoxicação digitálica, doença pulmonar
obstrutiva crônica, doença cardíaca orgânica, pós-operatório tardio de cirurgia cardíaca
e displasia atrial.
A apresentação clínica é variável, podendo ser paroxística, sustentada ou não-
sustentada. Aumento gradual da frequência cardíaca no início da taquicardia ou
diminuição gradual pouco antes do término são sugestivos do mecanismo automático. A
queixa principal do paciente é palpitação esporádica com duração variável, algumas
vezes mal-tolerada. A taquicardia atrial persistente apresenta correlação dos sintomas
com a resposta ventricular rápida, dependente da condução pela junção atrioventricular.

Pedro Kallas Curiati 322


Nos casos de resposta ventricular adequada, o paciente pode estar assintomático ou
apenas com palpitações aos esforços.
O diagnóstico é baseado em taquicardia com QRS estreito, geralmente intervalo
RP maior do que intervalo PR e morfologia de P diferente da sinusal, podendo estar
dentro da onda T. A frequência atrial gira ao redor de 150-250 por minuto, com
frequência ventricular dependente do bloqueio dos estímulos no nó atrioventricular.
Diferencia-se do flutter atrial pela linha isoelétrica entre as ondas P. A infusão de
Adenosina pode ser uma manobra útil para visualização das ondas P.
Tratamento:
- Pacientes com instabilidade hemodinâmica relacionada à arritmia
devem ser submetidos a cardioversão elétrica;
- Pacientes hemodinamicamente estáveis com início da taquicardia bem
conhecido e há menos de 48 horas podem ser submetidos a cardioversão
elétrica;
- Se o início da taquicardia for desconhecido, deve-se objetivar o controle
da resposta ventricular, devendo-se descartar a presença de trombo nos
átrios;
- Nos casos de taquicardia atrial automática, a cardioversão raramente
reverte a taquicardia e β-bloqueadores e bloqueadores dos canais de
cálcio intravenosos são indicados;
- Ablação por radiofrequência pode ser indicada independentemente do
mecanismo;
- Internação hospitalar nos casos em que a taquicardia atrial se torna
incessante e não há controle da resposta ventricular;

Taquicardia atrial multifocal


Definida como taquicardia irregular, caracterizada por pelo menos três
morfologias de onda P em frequências diferentes.
O mecanismo é automatismo ou atividade deflagrada. Freqüentemente associada
a doença pulmonar e algumas vezes associada a distúrbio metabólico ou intoxicação
digitálica.
O tratamento prevê a correção do distúrbio respiratório ou da alteração
metabólica. Não está indicado o uso de drogas antiarrítmicas ou cardioversão elétrica.

Flutter atrial
Definido como taquicardia atrial macro-reentrante que apresenta características
eletrocardiográficas típicas. Pode existir em indivíduos com coração normal, mas
também em pacientes com cardiopatia, especialmente naqueles com átrio direito
aumentado.
O mecanismo é macro-reentrada atrial, geralmente envolvendo o anel da valva
tricúspide, mais freqüentemente no sentido anti-horário, com flutter típico. Entretanto, a
reentrada pode se estabelecer no sentido horário, com flutter típico reverso, ou associada
a outras estruturas atriais, como o istmo mitral e as veias cavas, com flutter atípico.
Os pacientes geralmente se apresentam com sintomas agudos de palpitação,
dispnéia, dor precordial e fadiga. Entretanto, pode se manifestar também de maneira
insidiosa com palpitações aos esforços e insuficiência cardíaca progressiva.
Com relação ao diagnóstico, o flutter atrial manifesta-se ao eletrocardiograma
como taquicardia atrial sem linha isoelétrica entre as ondas P. No flutter típico, as ondas
P são regulares, com frequência de 250-350 por minuto, com morfologia típica similar a
“serrilhado”, com ondas P negativas nas derivações inferiores e condução

Pedro Kallas Curiati 323


atrioventricular geralmente na relação 2:1, com frequência cardíaca ao redor de
150bpm.
Tratamento:
- Nos casos de instabilidade hemodinâmica e nos pacientes com início da
crise há menos de 48 horas e sem fatores de risco para desenvolver
trombo atrial, deve ser utilizada a cardioversão elétrica sincronizada com
energia baixa, bifásica, ao redor de 50J;
- Nos pacientes estáveis e com flutter atrial por mais de 48 horas deve-se
controlar a resposta ventricular com o uso de drogas que diminuem a
condução pela junção atrioventricular, como Diltiazem 0.25mg/kg em
dois minutos por via intravenosa, Verapamil 5mg em dois minutos por
via intravenosa ou Metoprolol 5mg em cinco minutos por via
intravenosa, cuja infusão pode ser repetida se não houver controle;
- Em pacientes com insuficiência cardíaca sistólica, deve-se evitar
medicamentos inotrópicos negativos e recomenda-se o uso de
Amiodarona ou de digitálicos;
- A cardioversão do flutter pode ser conduzida após demonstração de
ausência de trombo atrial ou após três semanas de anticoagulação oral
com RNI entre dois e três;
- Após cardioversão, nos casos de recorrência, pode-se utilizar
antiarrítmicos para manutenção do ritmo sinusal;
- Se estáveis, os pacientes não necessitam de internação após episódios
de flutter, devendo ser realizado ecocardiograma ambulatorial para
avaliar a presença e a importância da cardiopatia;
- A ablação por cateter é um procedimento com alto índice de sucesso e
baixo risco que deve ser indicado para os casos com recorrência após o
uso de drogas antiarrítmicas, podendo inclusive ser indicado após
primeiro episódio;

Fibrilação atrial
Arritmia sustentada caracterizada por ativação atrial desorganizada, sem
atividade mecânica atrial efetiva. É classificada atualmente em fibrilação atrial inicial na
primeira detecção da arritmia ou fibrilação atrial crônica, que pode ser paroxística, com
episódios com duração de até sete dias, persistentes, com episódios com duração
superior a sete dias, e permanente, com arritmia documentada de longa data, quando a
cardioversão não foi eficaz ou o médico tomou a decisão de não reverte-la.
Estão envolvidos atividade automática rápida de focos principalmente
relacionados às veias pulmonares e múltiplas áreas de reentrada, que perpetuam a
arritmia.
A apresentação clínica inicial é variável. Os pacientes podem queixar-se de
palpitações ao repouso ou aos esforços, dispnéia e piora da classe funcional da
insuficiência cardíaca. Um evento embólico sistêmico também pode ser a primeira
manifestação. No exame físico, há irregularidade do pulso e variação na intensidade da
primeira bulha.
Eletrocardiograma revela irregularidade de intervalos RR sem evidência de
ativação atrial organizada e regular, com ondas f cuja frequência geralmente é de cerca
de 350-700 por minuto. A investigação complementar inclui eletrocardiograma em
ritmo sinusal, radiografia de tórax, ecocardiograma transtorácico e exames laboratoriais
para descartar distúrbios hidroeletrolíticos e disfunção tireoidiana.
O tratamento é similar ao do flutter atrial se houver instabilidade hemodinâmica.

Pedro Kallas Curiati 324


No caso de pacientes estáveis, as opções incluem:
- Controle de resposta ventricular com β-bloqueador, digital e algumas
vezes Amiodarona quando o tempo da fibrilação atrial não é bem
definido ou nos casos em que se opta por não tentar cardioversão em
função de tentativas prévias ineficazes ou paciente assintomático em
anticoagulação;
- Reversão para ritmo sinusal com cardioversão elétrica ou drogas
antiarrítmicas;
As drogas antiarrítmicas apresentam maior índice de cardioversão quando a
duração da fibrilação atrial é inferior a sete dias. As drogas mais utilizadas e com
eficácia comprovada são Amiodarona, com bolus de 5-7mg/kg em trinta minutos, e
Propafenona, com 600mg por via oral ou 2mg/kg por via intravenosa. Esta deve ser
evitada em pacientes com insuficiência cardíaca sistólica em função de ação
cardiodepressora.
Cardioversão elétrica apresenta alto índice de reversão, mas envolve a
necessidade de jejum e de sedação. O choque pode ser sincronizado com energia inicial
bifásica de 120-200J. Se houver insucesso na reversão, pode ser utilizada energia maior,
pode ser modificada a posição das pás para ântero-posterior e, em caso de recorrência
precoce, pode ser injetada Atropina ou drogas antiarrítmicas que facilitem a manutenção
do ritmo sinusal.
Nos pacientes com fibrilação atrial paroxística e coração normal, o índice de
reversão espontânea é alto, ao redor de 60% em 24 horas. Nesses casos, controlar a
frequência cardíaca e aguardar a reversão espontânea é uma das possibilidades. A outra
é utilizar drogas para encurtar o tempo da crise.
Sempre que se desconhece o tempo de início da fibrilação atrial ou esse tempo é
maior que 48 horas, deve-se investigar a presença de trombo atrial ou anticoagular o
paciente por pelo menos três semanas com RNI entre dois e três para proceder à
cardioversão elétrica ou química. Outra maneira efetiva para realizar a cardioversão é
iniciar anticoagulação e realizar ecocardiograma transesofágico antes da cardioversão
para afastar a presença de trombos. Após cardioversão elétrica com reversão, o paciente
é mantido sob anticoagulação por pelo menos quatro semanas.
Antiarrítmicos podem ser utilizados para manutenção do ritmo sinusal. Na
comparação entre Amiodarona 600mg/dia por uma semana, 400mg/dia por duas
semanas e menor dose de manutenção efetiva a partir de então, Sotalol com dose inicial
de 80mg duas vezes ao dia e possibilidade de uso de doses superiores a 320mg/dia e
Propafenona com dose inicial de 150mg três vezes ao dia e dose máxima de
1200mg/dia, há maior sucesso na manutenção do ritmo sinusal com Amiodarona, mas
os efeitos colaterais do seu uso crônico tornam preferível o uso das outras medicações.
Propafenona não deve ser utilizada em pacientes com cardiopatia isquêmica e o Sotalol
deve ser evitado em pacientes com disfunção ventricular esquerda e asma. Em caso de
cardiopatia estrutural, prefere-se Amiodarona pelo menor risco pró-arrítmico.
Anticoagulação crônica está indicada para os pacientes com fibrilação atrial
crônica e pelo menos um fator de risco para embolia, desde que não haja
contraindicação. Os principais fatores de risco para embolia são doença cardíaca valvar,
acidente vascular cerebral isquêmico prévio, acidente isquêmico transitório prévio,
evento tromboembólico prévio, doença vascular, como aterosclerose em artéria aorta,
idade avançada, hipertensão arterial sistêmica, insuficiência cardíaca, diabetes mellitus,
sexo feminino, doença arterial periférica e doença arterial coronária. O uso de Ácido
Acetilsalicílico na dose de 325mg também reduz o risco, porém em menor intensidade.
CHA2DS2-VASc Escore

Pedro Kallas Curiati 325


Insuficiência cardíaca (congestive heart failure) 1
Hipertensão arterial sistêmica (hypertension) 1
Idade superior ou igual a 75 anos (age) 2
Diabetes mellitus (diabetes mellitus) 1
Acidente vascular cerebral isquêmico prévio, acidente isquêmico transitório prévio ou 2
evento tromboembólico prévio (stroke)
Doença vascular, como infarto do miocárdio prévio, doença arterial periférica e 1
aterosclerose em artéria aorta (vascular disease)
Idade de 65-74 anos (age) 1
Sexo femino (sex category) 1
CONDUTA:
- Escore de 0 – Terapia anti-trombótica não recomendada;
- Escore de 1 – Terapia anti-trombótica recomendada com antiagregante plaquetário ou,
preferencialmente, anticoagulante oral;
- Escore superior ou igual a 2 – Terapia anti-trombótica recomendada com anticoagulação oral,
possivelmente havendo maior benefício com o uso de um dos novos anticoagulantes orais, como
Dabigatran, Rivaroxaban e Apixaban, em relação à Varfarina;
RISCO DE SANGRAMENTO
O risco de sangramento relacionado à anticoagulação oral é avaliado através do acrônimo HAS-BLED,
que abrange pressão arterial sistólica não-controlada superior a 160mmHg (hypertension), disfunção renal
(abnormal), disfunção hepática, acidente vascular cerebral prévio (previous stroke), história de
sangramento ou predisposição a sangramento (bleeding history or predisposition), Razão Normatizada
Internacional lábil (labile international normalized ratios), faixa etária geriátrica (elderly) e uso de drogas
e/ou álcool (drugs), com um ponto para a presença de cada fator de risco. Escore superior ou igual a 3
indica cautela na prescrição de anticoagulação oral.
A ablação cirúrgica da fibrilação atrial está indicada nos pacientes com outra
indicação de cirurgia, especialmente nos casos de valvopatias, com elevado índice de
sucesso.

Taquicardias ventriculares
Seqüência de três ou mais batimentos de origem ventricular, com frequência de
100-250bpm. Quando a frequência cardíaca é inferior a 100bpm, denomina-se ritmo
idioventricular acelerado. Quando a frequência cardíaca é superior a 250bpm e não é
possível identificar uma linha isoelétrica entre os complexos QRS, denomina-se flutter
ventricular. Na fibrilação ventricular os complexos QRS são polimórficos e a frequência
é superior a 300bpm.
Taquicardias ventriculares podem ocorrer em indivíduos com o coração
estruturalmente normal, mas geralmente ocorrem em pacientes com cardiopatias
estruturais. Surgem freqüentemente na fase aguda do infarto do miocárdio.
Embora o mecanismo eletrofisiológico da maior parte das taquicardias
ventriculares recorrentes seja por reentrada relacionada com áreas de cicatrizes, em
alguns casos a deflagração das crises depende de estímulo simpático intenso, processo
inflamatório ou isquêmico, disfunção ventricular acentuada, distúrbios metabólicos ou
ação de drogas antiarrítmicas.
Com relação à morfologia dos complexos QRS, podem ser monomórficas ou
polimórficas. Com relação ao tempo de sustentação, podem ser não-sustentadas, com
mais de três batimentos e duração inferior a 30 segundos, ou sustentadas, com duração
superior a 30 segundos. Com relação à forma de apresentação, podem ser incessantes ou
paroxísticas, que são subdivididas em esporádicas e freqüentes.
As manifestações clínicas dependem de características eletrocardiográficas,
presença de cardiopatia e sua fase de evolução, repercussão hemodinâmica e presença
de possíveis fatores deflagradores transitórios, como drogas, medicamentos e distúrbios
tóxicos e metabólicos. Incluem palpitações taquicárdicas, pré-síncope, dispneia,
síncope, alteração do estado mental, sudorese, exacerbação de insuficiência cardíaca,

Pedro Kallas Curiati 326


angina, choque cardiogênico e parada cardiorrespiratória.
Se taquicardia ventricular monomórfica sustentada mal-tolerada, caracterizada
por nível de consciência diminuído, pressão arterial sistólica inferior a 90mmHg ou
saturação periférica de oxigênio inferior a 90%, preconiza-se cardioversão sincronizada.
Se taquicardia ventricular monomórfica sustentada bem-tolerada, caracterizada
por paciente consciente, pressão arterial sistólica igual ou superior a 90mmHg e
saturação periférica de oxigênio superior a 90%:
- Amiodarona é considerada a droga de primeira escolha, com dose
inicial de 150mg por via intravenosa em dez minutos e manutenção com
1mg/minuto durante seis horas e 0.5mg/minuto durante dezoito horas;
- Infusão suplementar de 150mg de Amiodarona pode ser repetida se
necessário a cada dez minutos para arritmias recorrentes ou resistentes
até a dose máxima endovenosa diária de 2.2g;
- As drogas alternativas são Lidocaína, Procainamida e Sotalol;
- Caso não haja reversão com a primeira droga utilizada, realizar
cardioversão elétrica sincronizada e escalonada com choque bifásico
inicial de 100J e evitar associação de outras drogas antiarrítmicas nessa
fase;
Após o tratamento agudo, o paciente deve ser investigado com Holter de 24
horas, teste de esforço, eletrocardiograma de alta resolução, ecocardiograma e estudo
eletrofisiológico invasivo. As drogas de uso crônico são β-bloqueador, Amiodarona,
Sotalol e Propafenona. Em caso de ineficácia do fármaco e/ou alto risco de morte súbita,
o paciente deve ser avaliado quanto ao benefício de implante de cardiodesfibrilador.
Taquicardias ventriculares polimórficas apresentam-se em surtos recorrentes ou
incessantes e o tratamento farmacológico é determinado pela presença ou ausência de
QT longo durante ritmo sinusal. Caso se observe QT longo durante o ritmo sinusal,
com a denominação de torsades de pointes, a primeira conduta consiste em suspender
todas as medicações que conhecidamente prolonguem o intervalo QT e corrigir eventual
distúrbio hidroeletrolítico e outros fatores precipitantes. O uso de Isoproterenol ou a
estimulação ventricular podem ser efetivos para interromper a torsades de pointes
associada com bradicardia ou drogas que aumentem o intervalo QT. Outra medida
eficaz é a administração intravenosa de magnésio. Já nos pacientes com taquicardia
ventricular polimórfica sem associação com intervalo QT longo, o magnésio não
consiste em uma conduta eficaz e deve-se considerar o uso de Amiodarona intravenosa.
Caso o paciente com taquicardia ventricular polimórfica evolua com
instabilidade hemodinâmica, com alteração do nível de consciência, hipotensão ou
edema pulmonar grave, deve-se providenciar choque dessincronizado de alta energia,
com desfibrilação imediata.
Já nos pacientes com síndrome do intervalo QT longo congênito, a descarga
adrenérgica consiste no principal deflagrador dos episódios. Sedação e β-bloqueadores
são as medidas mais importantes para controle das crises. As drogas antiarrítmicas não
são indicadas, com exceção da Lidocaína, que pode ser efetiva em casos especiais.

Bibliografia
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Pedro Kallas Curiati 327


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Algoritmo

Pedro Kallas Curiati 328


DOR TORÁCICA
Conceito
O diagnóstico deve ser rápido e preciso, objetivando primordialmente
reconhecimento e tratamento das condições que oferecem risco de morte.

Etiologia
Afecções da parede torácica:
- Lesões em costelas, como fraturas, metástases e traumatismos;
- Comprometimento de nervos sensitivos, como no herpes zoster;
- Costocondrite, como na síndrome de Tietze;
- Fibromialgia;
- Síndromes radiculares;
- Dores musculares inespecíficas;
Afecções cardiovasculares, como síndrome coronariana aguda, pericardite,
dissecção de aorta, estenose aórtica e cardiomiopatia hipertrófica.
Afecções do sistema gastrointestinal, como refluxo gastro-esofágico, espasmo
esofágico, úlcera péptica, gastrite, ruptura de esôfago, pancreatite, colecistite aguda e
colangite.
Afecções pulmonares, como pneumotórax, embolia pulmonar, pneumonia e
pleurite.
Afecções psiquiátricas, como transtorno do pânico, transtorno de ansiedade
generalizada, depressão e transtornos somatoformes.
Abscesso subfrênico.

Dor torácica isquêmica


Doentes que procuram o pronto-atendimento com queixa de dor torácica devem
ser submetidos a anamnese e exame físico minuciosos.
A característica anginosa da dor será o dado com maior valor preditivo de
doença coronariana aguda. No entanto, uma parcela significativa dos doentes com
infarto agudo do miocárdio não apresentam dor típica e podem ter como sintomas
apenas desconforto torácico, dor epigástrica, dispneia, confusão mental, vômitos e/ou
diaforese, que são denominados equivalentes isquêmicos. Os doentes que mais
frequentemente têm sintomas atípicos de doença coronariana são os idosos, as mulheres,
os diabéticos e aqueles com doença psiquiátrica de base.
Com relação à descrição da dor torácica, deve-se avaliar qualidade, intensidade,
caráter, localização, duração, irradiação, forma de apresentação, evolução e fatores
desencadeantes, de alívio e de piora.
Na presença de sintomas associados e de fatores de risco para doença arterial
coronariana, devem ser investigados doenças associadas, uso prévio de medicações,
alergia medicamentosa, contraindicações ao uso de anticoagulantes ou trombolíticos e
presença de lesões ateroscleróticas em outras áreas, com claudicação intermitente e/ou
acidente vascular cerebral prévio.
Fatores de risco cardiovascular maiores incluem infarto agudo do miocárdio
prévio, diabetes mellitus e aterosclerose manifesta por claudicação intermitente e/ou
acidente vascular cerebral prévio. Fatores de risco cardiovascular menores incluem
idade superior a 45 anos em homens ou 55 anos em mulheres, tabagismo, hipertensão
arterial sistêmica, dislipidemia, síndrome metabólica e história familiar em homens com

Pedro Kallas Curiati 329


idade inferior a 55 anos e mulheres com idade inferior a 65 anos.

Classificação
Segundo as diretrizes mais atuais, a dor torácica pode ser classificada em quatro
grandes grupos com base na probabilidade de ser anginosa. Para facilitar a abordagem
dos pacientes por médicos com menos experiência, habitualmente utiliza-se um sistema
de pontuação para guiar a classificação.
A pontuação é baseada em três grupos de características da dor:
1. Tipo e localização – Dor em opressão ou aperto, mal caracterizada ou
em queimação aumenta a probabilidade de isquemia, enquanto que dor
do tipo pontada, facada ou rasgada costuma diminuir as chances da dor
ser isquêmica, sendo consideradas típicas as localizações precordial,
retroesternal e epigástrica;
- 2. Irradiações ou sintomas associados – Caracteristicamente, a dor
torácica anginosa irradia para ambos os membros superiores, região
cervical, mandíbula ou dorso, sendo os principais sintomas associados os
autonômicos, como sudorese, palidez e náusea, e os relacionados
diretamente à isquemia, como palpitações e dispneia;
- 3. Fatores de melhora ou piora – A dor anginosa tipicamente piora com
exercício físico, refeição copiosa e estresse emocional e melhora com o
repouso ou após a administração de nitratos;
Classificação da dor torácica:
- A. Dor definitivamente anginosa – Todos os três grupos de
características estão presentes;
- B. Dor provavelmente anginosa – Apenas dois grupos de características
estão presentes;
- C. Dor provavelmente não-anginosa – Apenas um grupo de
características está presente;
- D. Dor definitivamente não-anginosa – Nenhum grupo de
características está presente;

Probabilidade de isquemia miocárdica


Após a classificação da dor torácica, o próximo passo é estimar a probabilidade
de o sintoma ser decorrente de isquemia miocárdica com base em dados de história,
exame físico e eletrocardiograma.
Alta probabilidade:
- Dor definitivamente anginosa;
- Dor provavelmente anginosa;
- Dor provavelmente não-anginosa com exame físico e/ou
eletrocardiograma altamente sugestivos de isquemia, como inversão de
ondas T em parede anterior;
Média probabilidade:
- Dor provavelmente não-anginosa associada a dois ou mais fatores de
risco cardiovascular clássicos ou, isoladamente, a diabetes mellitus,
doença coronariana prévia, acidente vascular cerebral prévio ou
claudicação intermitente;
Baixa probabilidade:
- Dor provavelmente não-anginosa associada a no máximo um fator de
risco cardiovascular, com exceção dos fatores de risco maiores;
- Dor definitivamente não-anginosa;

Pedro Kallas Curiati 330


Conduta
Pacientes com probabilidade alta para síndrome coronariana aguda devem ser
conduzidos segundo o protocolo de síndrome coronariana aguda.
Pacientes com probabilidade intermediária para síndrome coronariana aguda
devem ser conduzidos em unidade de dor torácica com jejum, monitorização de ritmo
cardíaco, pressão arterial, frequência respiratória e saturação periférica de oxigênio,
suporte de oxigênio com cânula nasal a 2L/minuto, reavaliação médica seriada a cada
três horas, eletrocardiograma seriado a cada três horas e dosagem de marcadores de
necrose miocárdica seriada a cada três horas por nove a doze horas. Estratificação não-
invasiva poderá ser realizada no pronto-socorro ou em regime ambulatorial conforme o
caso.
Pacientes de probabilidade baixa para síndrome coronariana aguda demandam
diagnóstico diferencial com outras etiologias de dor torácica.

Outras causas de dor torácica

Outras dores cardiogênicas


Na pericardite, a dor geralmente é pleurítica, retroesternal ou em hemitórax
esquerdo. Piora quando o doente respira, deita ou deglute e melhora com a posição
sentada ou inclinada para frente. Podem surgir febre e atrito pericárdico, frequentemente
precedidos por um quadro gripal. A dor geralmente é mais aguda que a da angina e tem
caráter contínuo. Quando acompanhada de miocardite, podem surgir sintomas de
insuficiência cardíaca. Sintomas sistêmicos eventualmente presentes incluem mialgia,
artralgia e eritema.
Dor torácica semelhante à dor anginosa pode surgir na estenose aórtica e na
miocardiopatia hipertrófica. Sopro ejetivo em foco aórtico e sobrecarga ventricular
esquerda podem surgir nas duas situações.

Dor na dissecção aguda de aorta


A dissecção aguda de aorta é uma doença rara, embora seja uma das mais letais
existentes. Os doentes podem se apresentar com dor torácica isolada ou associada a
outros sinais e sintomas:
- Fáscies de dor, agitação e confusão mental;
- Sudorese profusa e palidez cutânea;
- Hipertensão;
- Diferença pressórica e/ou de pulso entre os membros;
- Insuficiência cardíaca e sopro por insuficiência aórtica aguda;
- Dor abdominal por isquemia mesentérica;
- Choque por tamponamento pericárdico, ruptura da aorta ou
sangramento para pleura ou retroperitônio;
- Oclusão arterial aguda, com isquemia em membros, acidente vascular
cerebral, paraplegia, isquemia renal e infarto agudo do miocárdio;
- Disfagia e rouquidão agudos;
- Síndrome de Horner por compressão do gânglio estrelado;
Costuma ter início súbito e forte intensidade desde o início, podendo ser
insuportável. Quando a dor migra de seu ponto de origem para outros pontos, seguindo
o percurso da aorta, presença de sinais autonômicos, como palidez e sudorese profusa,
deve levantar a suspeita imediata de dissecção aguda da aorta.

Pedro Kallas Curiati 331


Dor de origem pulmonar
Na embolia pulmonar, dispneia é o sintoma mais frequente e a dor torácica
geralmente é súbita. No pneumotórax espontâneo a dor torácica é localizada no dorso ou
nos ombros e acompanhada de dispneia. Pneumotórax hipertensivo pode produzir
insuficiência respiratória e choque.
Dor torácica também pode surgir em doenças do parênquima pulmonar, como
pneumonia, câncer e sarcoidose, com diferentes apresentações. Pode agravar-se com a
respiração e ter sintomas associados, como febre, tosse e fadiga.
Na hipertensão pulmonar, a dor torácica pode ser muito parecida com a angina
típica e pode dever-se a isquemia de ventrículo direito ou dilatação das artérias
pulmonares.

Dor esofágica e gastro-duodenal


Dor em doenças esofágicas pode mimetizar a doença coronariana aguda e
crônica. Doentes com refluxo gastro-esofágico podem apresentar desconforto torácico,
geralmente em queimação, às vezes definido como uma sensação opressiva,
retroesternal ou subesternal, podendo irradiar-se para pescoço, braços e dorso, por vezes
com regurgitação alimentar. A dor pode melhorar com posição ereta, repouso e uso de
nitratos, antiácidos e bloqueador de bomba de prótons.
A dor da úlcera péptica se localiza em região epigástrica ou no andar superior do
abdômen, mas às vezes pode ser referida em região subesternal ou retroesternal.
Geralmente melhora com o uso de antiácidos.
A ruptura de esôfago é grave e pode ser causada por vômitos intensos ou trauma.
A dor é excruciante, retroesternal ou no andar superior do abdômen e geralmente
acompanhada de um componente pleurítico à esquerda. O diagnóstico pode ser sugerido
pela presença de pneumomediastino.

Dor osteomuscular
Geralmente tem características pleuríticas por ser desencadeada ou exacerbada
pelos movimentos dos músculos e/ou articulações. Palpação cuidadosa das articulações
ou dos músculos envolvidos quase sempre reproduz ou desencadeia a dor. Costuma ser
contínua, tem duração de horas a semanas e frequentemente tem uma localização em
área específica. Pode ser agravada com determinadas posições, respiração profunda,
movimento dos braços e rotação do tronco.

Dor psicogênica
Comum no pronto-socorro e costuma acometer doentes com depressão e/ou
transtorno ansioso. A dor costuma ser difusa e imprecisa, podendo estar associada a
utilização abusiva de analgésicos.

Exames complementares
A meta inicial é descartar síndrome coronariana aguda.

Eletrocardiograma
Todo doente com dor torácica na sala de emergência deve ser submetido
imediatamente ao eletrocardiograma. Em razão de sua baixa sensibilidade para o
diagnóstico de insuficiência coronária aguda, nunca deve ser o único exame
complementar utilizado para confirmar ou afastar essa doença.
Será normal na maioria dos doentes e um segundo exame deve ser obtido com
intervalo de no máximo três horas após o primeiro ou a qualquer momento em caso de

Pedro Kallas Curiati 332


recorrência da dor torácica ou surgimento de instabilidade clínica.

Nitrato sublingual
Um dos critérios tradicionalmente usados para o diagnóstico de angina típica é a
melhora da dor com o repouso ou com nitrato. No entanto, estudos recentes não têm
confirmado esse valor diagnóstico.
Não é recomendada a administração de nitrato sublingual antes da realização de
eletrocardiograma, pois doentes com infarto de parede inferior com infarto de ventrículo
direito podem evoluir com choque. O eletrocardiograma pode ser repetido após o uso do
medicamento com o objetivo de detectar alterações dinâmicas.
O alívio da dor pode ocorrer tanto em doença coronariana como em doença não-
coronariana.

Marcadores de necrose do miocárdio


Marcadores de necrose miocárdica devem ser medidos em todos os doentes com
suspeita clínica de síndrome coronariana aguda.
As troponinas cardíacas T e I são os marcadores laboratoriais mais sensíveis e
específicos de lesão miocárdica. Além de diagnósticas, as troponinas têm valor
prognóstico. A melhor conduta prevê a dosagem na internação e repetição após seis a
doze horas do início da dor. A troponina começa a elevar-se em quatro horas, tem pico
em 12-48 horas e permanece aumentada por dez a quatorze dias.
Ocasionalmente, a troponina eleva-se por outra causa que não doença
coronariana aterosclerótica, de modo que isoladamente não faz diagnóstico de infarto.
As principais causas são pericardite, miocardite, embolia pulmonar, insuficiência
cardíaca aguda, choque séptico, doentes críticos, trauma cardíaco, uso de drogas
cardiotóxicas, angioplastia, ablação eletrofisiológica, colocação de marca-passo,
cirurgia cardíaca e insuficiência renal grave.
A mioglobina é o marcador mais precoce disponível. Aumenta em duas a três
horas após o infarto, com pico entre seis e doze horas e normalização em 24 horas. Tem
maior utilidade para excluir infarto precocemente em doentes com dor precordial no
pronto-socorro. Quando há aumento, deve-se confirmar com a troponina. Aumentos
podem ocorrer em outras situações além da doença coronariana aterosclerótica, como
cirurgia, trauma muscular recente, insuficiência renal grave, injeções intramusculares,
cardioversão elétrica, manobras de ressuscitação, miopatias, exercícios físicos
extenuantes, choque circulatório e convulsões.
A CK-MB tem papel possivelmente para diagnosticar reinfarto, já que a
troponina poderá ficar elevada por dez a quatorze dias.

Radiografia simples e tomografia computadorizada de tórax


Radiografia simples de tórax tem maior utilidade em diagnósticos diferenciais de
dor torácica não-isquêmica, enquanto que a tomografia computadorizada de tórax é
mais sensível e específica para o diagnóstico de doenças pleurais, do parênquima
pulmonar e da vasculatura pulmonar, com utilidade no diagnóstico de embolia pulmonar
e dissecção de aorta.

Teste ergométrico
A maior utilidade é descartar doença coronariana significativa em doentes com
dor torácica de baixo risco.

Cintilografia miocárdica de repouso

Pedro Kallas Curiati 333


Exame caro e pouco disponível na maioria dos pronto-atendimentos. Quando
normal, implica baixíssima probabilidade de eventos cardíacos adversos nos próximos
meses. Pode ser útil em pacientes que não podem realizar um teste de esforço.

Ecocardiograma
Um exame normal não deve afastar um infarto agudo do miocárdio ou angina de
alto risco. Ecocardiograma com Dobutamina fica reservado para os casos em que o teste
ergométrico foi inconclusivo ou não pode ser realizado.
Tem grande importância no diagnóstico de várias doenças e é recomendado nos
casos de derrame pericárdico, estenose aórtica e valvopatias, cardiomiopatia hipertrófica
e dissecção de aorta.

Exames radiológicos na dissecção de aorta


Radiografia de tórax raramente é diagnóstica e pode revelar aumento do
mediastino, derrame pleural geralmente à esquerda e sinal do cálcio, caracterizado por
separação da calcificação da íntima de mais de 1cm da borda do arco aórtico. Uma
parcela dos doentes não terá nenhuma alteração radiológica.
Eletrocardiograma é muito inespecífico e pode revelar hipertrofia ventricular
esquerda, infarto de parede inferior ou alterações de repolarização, sendo normal em um
terço dos doentes.
A confirmação diagnóstica imediata é essencial. A tendência é indicar o
ecocardiograma transesofágico para doentes mais graves na sala de emergência e
tomografia helicoidal ou ressonância magnética para os doentes estáveis. Aortografia
pode ser necessária em alguns casos.
Após confirmar o diagnóstico, deve-se definir o tipo e duração da dissecção.

Pedro Kallas Curiati 334


Bibliografia
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.
Boletim de Cardiologia para o Internato. Ano 1, número 2. Carlos Pedrotti, Gustavo Hironaka, Leonardo Lopes. Preceptoria de
Cardiologia do Instituto do Coração, 2009.
Clínica Médica, volume 1: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da
mulher, envelhecimento e geriatria, medicina laboratorial na prática médica. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 5. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2010.

Pedro Kallas Curiati 335


SÍNDROME CORONARIANA
AGUDA
Síndrome coronariana aguda sem supradesnivelamento do segmento ST

Definições
Síndrome coronariana aguda refere-se a uma constelação de sintomas clínicos
que são compatíveis com isquemia aguda do miocárdio.
Angina instável:
- Dor, desconforto torácico ou equivalente;
- Ocorre em repouso ou aos mínimos esforços e dura mais de dez
minutos;
- É severa e de início recente, há dois meses, ou mais intensa, frequente e
prolongada do que anteriormente, ou seja, progressiva;
Infarto agudo do miocárdio sem elevação do segmento ST:
- Dor, desconforto torácico, equivalente ou alterações
eletrocardiográficas compatíveis;
- Elevação dos marcadores de necrose miocárdica;

Etiologia e fisiopatologia
A síndrome coronariana aguda sem elevação de ST tem etiologia multifatorial.
Entretanto, a principal causa é doença aterosclerótica.
Quatro processos fisiopatológicos estão envolvidos:
- Ruptura ou erosão de placa aterosclerótica, com formação de trombo
não-oclusivo e micro-embolização de agregados plaquetários;
- Obstrução dinâmica, com espasmo coronariano ou vasoconstrição;
- Obstrução mecânica progressiva;
- Isquemia secundária a anemia, hipertireoidismo, estenose aórtica, febre,
taquicardia, hipotensão e/ou hipoxemia;

Quadro clínico
A anamnese bem feita é fundamental para o diagnóstico e a estratificação das
síndromes coronarianas. A dor típica é descrita como retroesternal difusa, em aperto,
opressiva, com irradiação para membros superiores, mandíbula, dorso, pescoço ou
epigástrio e acompanhada de palpitação, sudorese fria, dispnéia, tosse, síncope, náusea e
vômitos. Muitas vezes o paciente com isquemia miocárdica se apresenta com
características atípicas. Em alguns casos, o paciente não consegue caracterizar a dor,
mas coloca sua palma da mão contra o centro do tórax, o que é denominado sinal de
Levine.
O início da dor isquêmica é geralmente gradual, com aumento da intensidade
com o tempo. Sua duração entre dez e vinte minutos aponta para uma maior
probabilidade de angina instável, enquanto que duração mais prolongada sugere infarto
agudo do miocárdio. A intensidade da dor torácica não guarda relação com o
diagnóstico.
Principalmente em pacientes idosos, diabéticos, negros e mulheres, o evento
isquêmico pode ocorrer com pouca ou nenhuma sensação de desconforto precordial,
configurando o conjunto dos demais sintomas presentes como equivalente isquêmico.

Pedro Kallas Curiati 336


Os principais fatores de risco para coronariopatia aterosclerótica que devem ser
indagados são idade, dislipidemia, sexo masculino, hipertensão arterial, hipertrofia
ventricular esquerda, história de doença cardiovascular na família em homens com
idade inferior a 55 anos e mulheres com idade inferior a 65 anos, tabagismo, diabetes
mellitus ou resistência insulínica, obesidade, sedentarismo e doença vascular periférica.
O exame físico é frequentemente normal, mas pode revelar achados de grande
valor prognóstico e auxiliar no diagnóstico diferencial da dor torácica. Ele deve ser
realizado simultaneamente à adoção das primeiras medidas para tratamento das
síndromes coronarianas agudas. A quarta bulha é resultante do choque do sangue
ejetado pelo átrio em um ventrículo que não relaxa adequadamente na última fase
diastólica ventricular. Durante um episódio de dor anginosa, podem ser flagrados
estertores crepitantes pulmonares e terceira bulha, sinais de disfunção ventricular
esquerda transitória, bem como sopro sistólico transitório de regurgitação mitral,
resultado da isquemia dos músculos papilares.

Exames complementares
Uma vez tendo entrado no pronto-socorro, o paciente com dor torácica deve
realizar um eletrocardiograma em, no máximo, dez minutos. Devem-se buscar
alterações no segmento ST, ondas T invertidas em duas ou mais derivações contíguas e
ondas Q patológicas. É particularmente importante realizar o exame na presença de
sintomas e a existência de um eletrocardiograma prévio para comparação é bastante útil
em algumas situações.
Também no primeiro instante do atendimento de um paciente com dor torácica
sugestiva de síndrome coronariana aguda faz-se necessária a coleta de amostra
sanguínea para mensuração de marcadores de necrose miocárdica. Os mais importantes
são CK-MB, troponinas e mioglobina. Preferencialmente, CK-MB e troponina devem
ser coletadas na admissão e repetidas com um mínimo de seis horas de dor.
CK-MB é o marcador mais amplamente disponível e pode ser medida a
atividade ou, idealmente, a massa. Quando testada a atividade, é sugerido mensurar
também a CPK total. A CK-MB é menos específica para necrose miocárdica que as
troponinas.
São testadas troponina I e troponina T cárdio-específicas, nenhuma das quais
geralmente é detectada em indivíduos sadios. A elevação tem início aproximadamente
seis horas após o evento isquêmico, com pico nas primeiras 24-48 horas e normalização
dentro de 7-14 dias.
A mioglobina é um marcador pouco específico, mas muito sensível para o
diagnóstico de infarto agudo do miocárdio. Deve ser usada exclusivamente para excluir
infarto agudo do miocárdio e tem particular importância nas primeiras quatro a seis
horas de dor, em que nenhum dos outros marcadores teve tempo de se elevar. Pode ser
detectada tão precocemente quanto duas horas após o início dos sintomas.
Outros exames de urgência incluem hemograma, glicemia, eletrólitos séricos,
função renal, coagulograma, colesterol total e frações, triglicérides, acido úrico e
radiografia de tórax. Deve ser realizado pelo menos um ecocardiograma nas primeiras
24 horas da chegada ao pronto-atendimento e outro na véspera da alta hospitalar.

Risco de eventos combinados


A partir do exame clínico, do eletrocardiograma e dos marcadores enzimáticos, é
possível estabelecer o risco de eventos combinados para o paciente com síndrome
coronariana aguda sem elevação de ST. Na tomada de decisão terapêutica deve ser
levado em conta o risco maior obtido nos dois métodos analisados.

Pedro Kallas Curiati 337


Classificação de Braunwald modificada (InCor-HC-FMUSP)
Alto Intermediário Baixo
Anamnese - Idade superior a 75 anos; - Idade entre 70 e 75 anos; -
- Sintomas de isquemia - Infarto agudo do
progressivos nas últimas 48 miocárdio ou cirurgia de
horas; revascularização
- Diabetes mellitus; miocárdica prévios;
- Uso de Ácido
Acetilsalicílico na última
semana;
- Doença vascular periférica
ou cerebrovascular;
Dor precordial - Dor prolongada, com mais - Dor prolongada, com mais - Sintomas novos ou
de vinte minutos de duração, de vinte minutos de progressivos de
que não cede com repouso e duração, que não cede com angina classe III ou
está presente no momento da repouso, mas não está IV nas últimas duas
avaliação; presente no momento da semanas, sem dor
avaliação; em repouso
- Dor com duração inferior prolongada, mas
a vinte minutos, que não com risco moderado
cede com repouso, aliviada a alto de doença
espontaneamente ou com arterial coronária;
nitrato sublingual;
Exame físico - Edema pulmonar - -
provavelmente relacionado à
isquemia;
- Piora ou surgimento de
regurgitação mitral ou de
estertores pulmonares;
- B3, hipotensão, bradicardia
ou taquicardia;
Eletrocardiograma - Infradesnivelamento do - Inversão da onda T - Normal ou
segmento ST maior ou igual superior a 2mm; inalterado durante o
a 0.5mm associado ou não ao - Ondas Q patológicas; episódio de dor;
episódio anginoso;
- Alteração dinâmica do
segmento ST;
- Bloqueio de ramo novo ou
presumivelmente novo;
- Taquicardia ventricular
sustentada;
Marcadores - Acentuadamente elevados, - Discretamente elevados, - Normais
bioquímicos de acima do percentil 99, que é acima do nível de detecção
necrose o que consta no relatório do e abaixo do percentil 99;
miocárdica laboratório no complexo HC-
FMUSP;

TIMI risk score


Demonstra clara correlação entre o número de pontos e a mortalidade precoce.
Critérios:
- Idade superior ou igual a 65 anos;
- Três ou mais fatores de risco tradicionais de doença arterial coronária;
- Cateterismo prévio com estenose superior ou igual a 50%;
- Desvio do segmento ST superior ou igual a 0.5mm;

Pedro Kallas Curiati 338


- Dois ou mais episódios anginosos em 24 horas;
- Uso de Ácido Acetilsalicílico na última semana;
- Aumento de marcadores de necrose miocárdica;
Se 0-2, risco baixo. Se 3-4, risco intermediário. Se 5 ou mais, risco elevado.

Estratégia de estratificação de risco com exames subsidiários


A estratégia conservadora precoce consiste na realização de teste de isquemia
não-invasivo após a estabilização do quadro clínico, como teste ergométrico,
cintilografia do miocárdio com fármaco ou exercício e ecocardiograma com
Dobutamina. Pacientes de baixo risco podem submeter-se à prova de isquemia após 12-
24 horas livres de sintomas isquêmicos. Pacientes com risco intermediário podem
submeter-se à prova de isquemia após 48-72 horas de tratamento farmacológico, desde
que haja evolução estável sem qualquer sinal de alto risco. Nessa estratégia, a
angiografia é reservada para os pacientes que evoluírem com recorrência de isquemia ou
com teste não-invasivo fortemente positivo, apesar do tratamento anti-isquêmico
otimizado.
A estratégia invasiva precoce consiste na realização de cineangiocoronariografia
percutânea nas primeiras 24-48 horas após a admissão. O benefício dessa estratégia foi
comprovado em pacientes de risco intermediário a alto, com escore de risco TIMI maior
que três pontos. É recomendável a todos os pacientes com síndrome coronariana aguda
sem elevação de ST que sejam classificados como de risco alto e é preferível em todos
aqueles classificados como de risco intermediário. A indicação é de emergência em caso
de isquemia persistente e/ou instabilidade hemodinâmica e de urgência em caso de
isquemia recorrente, evidência eletrocardiográfica ou ecocardiográfica de extensa área
em risco e/ou presença de arritmia ventricular maligna.
Os pacientes classificados como de baixo risco após adequada observação no
pronto-socorro com eletrocardiogramas seriados podem fazer qualquer estratificação
não-invasiva ou mesmo receber alta com seguimento ambulatorial precoce caso não
tenham fatores de risco para doença coronária.

Tratamento

Medidas gerais
Os pacientes devem permanecer em repouso em decúbito horizontal e ser
submetidos a monitorização precoce com eletrocardiograma contínuo na derivação com
maior supradesnivelamento do segmento ST. É recomendada uma sedação leve para
todos os pacientes se não houver contraindicações, preferencialmente com
benzodiazepínicos em dose baixa, como Diazepam 5-10mg por via oral de 8/8 horas.
Síndrome coronariana aguda de baixo risco não precisa necessariamente de
hospitalização. Em caso de risco moderado a alto, preconiza-se internação em unidade
coronariana.

Tratamento anti-isquêmico
A utilização de nitratos permite a redução da pré-carga, da tensão da parede do
ventrículo esquerdo e do consumo de oxigênio pelo miocárdio em função de dilatação
venosa e coronariana. Constituem o grupo de escolha para o controle da dor isquêmica,
da hipertensão e da congestão pulmonar. Dinitrato de Isossorbida (Isordil®) pode ser
administrado inicialmente por via sublingual com dose de 5mg em até três vezes
seguidas com intervalo de cinco minutos. Em seguida, Nitroglicerina (Tridil®) em
solução para infusão intravenosa deve ser iniciada nos pacientes com sintomas

Pedro Kallas Curiati 339


persistentes, com 5-10mcg/minuto e incremento de 10mcg/minuto a cada cinco a dez
minutos até alívio da dor, pressão sistólica inferior a 90mmHg ou diminuição de 30% da
pressão sistólica inicial. Após 24-48 horas, o tratamento intravenoso pode ser
substituído por fármacos orais, com administração assimétrica ao longo do dia no
sentido de evitar tolerância. Nitratos não devem ser usados em pacientes que utilizaram
inibidores da fosfodiesterase para tratamento de disfunção erétil nas últimas 24 horas.
Morfina é um potente analgésico com potencial ação vasodilatadora, sobretudo
no leito venoso. Pode ser utilizada quando há persistência de dor após o uso de nitrato
sublingual e β-bloqueadores. Promove redução da pressão arterial, da pré-carga, do
consumo miocárdico de oxigênio e dos sintomas congestivos, com grande valor se
houver congestão pulmonar associada. Doses de 2-4mg por via intravenosa podem ser
usadas, com bolus adicionais a cada cinco minutos até, no máximo, 25mg. Não deve ser
utilizada em pacientes hipotensos ou bradicárdicos.
Oxigênio deve ser administrado aos pacientes com dispneia, sinais de
insuficiência cardíaca, choque ou porcentagem de hemoglobina saturada por oxigênio
inferior a 94% e titulado para o menor nível necessário. Nos casos em que haja
comprometimento respiratório importante ou colapso hemodinâmico, deve-se optar por
ventilação mecânica não-invasiva através de máscara de Continuous Positive Airway
Pressure (CPAP) ou invasiva através de tubo orotraqueal.
Os β-bloqueadores aumentam o período diastólico e a perfusão coronariana,
diminuem o consumo miocárdio e os sintomas isquêmicos, além de facilitar o controle
da hipertensão e das taquiarritmias associadas à isquemia aguda do miocárdio. Em
pacientes sem contraindicação, a medicação deve ser administrada preferencialmente
por via oral, como Propranolol 20-80mg de 8/8 horas. Em pacientes com sintomas
isquêmicos persistentes e/ou taquicardia, o tratamento pode ser intravenoso com
fármacos de curta duração, como Metoprolol em bolus de 5mg seguido de doses
suplementares a cada 5 minutos até o máximo de 15mg, se necessário, para reduzir a
frequência cardíaca. A medicação por via oral poderá ser introduzida uma a duas horas
após a última dose intravenosa. Não devem ser administrados a pacientes com
broncoespasmo, bradicardia, congestão pulmonar, choque, pressão arterial sistólica
inferior a 90mHg ou com redução de 30mmHg em relação ao basal, bloqueio
atrioventricular de primeiro grau com PR maior que 0.24s ou bloqueio atrioventricular
de segundo e terceiro graus.
Bloqueadores de canal de cálcio devem ser utilizados quando houver
contraindicação aos β-bloqueadores e podem ser úteis como adjuvantes no controle
pressórico. São priorizados os não-diidropiridínicos, como Diltiazem 60-180mg/dia em
duas a três tomadas e Verapamil 80-240mg/dia em duas tomadas. Devem ser evitados
em pacientes com bradicardia ou bloqueio atrioventricular avançado.

Tratamento anti-plaquetário
O Ácido Acetilsalicílico exerce sua ação anti-agregante plaquetária através da
inibição da ciclo-oxigenase-1 (COX-1), com redução da síntese de tromboxano A2.
Deve ser introduzido imediatamente nos casos suspeitos, mesmo antes do diagnóstico,
na dose inicial de ataque de 200-300mg mastigada para absorção bucal. A manutenção
diária é feita com 100mg/dia por via oral em dose única. Deve ser evitado em pacientes
com antecedente de alergia aos salicilatos, úlcera gastro-intestinal com hemorragia ou
outros sangramentos ativos.
O Clopidogrel exerce seu efeito anti-plaquetário através da inibição do receptor
de ADP, o que reduz a ativação e a agregação plaquetárias. É administrado com ataque
de 300mg por via oral e manutenção de 75mg ao dia por um a nove meses. Naqueles

Pedro Kallas Curiati 340


pacientes que possam ter indicação de revascularização cirúrgica do miocárdio e que
serão submetidos a estratificação invasiva precoce é possível adiar a introdução até o
momento da intervenção. Alternativas incluem Prasugrel com dose inicial de 60mg/dia
e manutenção com 10mg/dia e Ticagrelor com dose inicial de 180mg e manutenção com
90mg de 12/12 horas.
Os inibidores da glicoproteína IIbIIIa, como o Tirofiban, inibem o processo de
agregação plaquetária na via final da formação do trombo, com mecanismo mais
potente. O maior benefício ocorre nos pacientes de alto risco nos quais planeja-se
estratificação invasiva precoce para angioplastia. Devem ser associados ao Ácido
Acetilsalicílico e à Heparina. Administração por via intravenosa em bomba de infusão
contínua durante 48 horas, com suspensão oito horas antes em caso de indicação
cirúrgica. Preconiza-se dose de 0.4mg/kg/minuto por trinta minutos e 0.1mg/kg/minuto
a partir de então.

Tratamento anticoagulante
A Heparina Não-Fracionada age como anticoagulante através da aceleração da
ação da anti-trombina circulante, uma enzima proteolítica que inativa os fatores IIa, IXa
e Xa. Sua ação principal é a de evitar a propagação do trombo. É fundamental a
monitorização do tempo de tromboplastina parcial ativada periodicamente e ajuste da
dose de acordo com a relação dos tempos. A administração deve iniciar-se com bolus de
60U/kg, com máximo de 5000U, seguida de 12U/kg/hora (máximo de 1000U/hora) por
via intravenosa em bomba de infusão contínua e titulada para alcançar uma relação
entre 1.5 e 2.5. O tempo de tromboplastina parcial ativada deve ser monitorizado em
três, seis e doze horas após o início da infusão, seis horas após qualquer alteração da
infusão e a cada doze horas a partir de uma dose estável. Deve-se manter a medicação
por dois a cinco dias ou até o momento da revascularização. Durante o tratamento, a
contagem de plaquetas deve ser monitorizada.
A Heparina de Baixo Peso Molecular tem comportamento mais homogêneo,
melhor biodisponibilidade e meia-vida mais longa quando comparada à Heparina Não-
Fracionada. Seu efeito é previsível e reprodutível, não sendo necessário o controle dos
tempos de coagulação rotineiramente, exceto em pacientes com insuficiência renal, com
peso superior a 100kg e idosos, em que pode ser necessária a medida da atividade anti-
Xa para adequar a dose da medicação. Enoxaparina é a droga desse grupo de primeira
escolha, administrada em duas doses diárias de 1mg/kg por via subcutânea de 12/12
horas durante dois a cinco dias ou até o procedimento de intervenção. Pode ser usada
por via intravenosa no momento da angioplastia em pacientes que receberam a última
dose subcutânea há mais de oito horas. Antes de procedimentos cirúrgicos de grande
porte, como revascularização do miocárdio, deve ser suspensa com antecedência
mínima de 12 horas.
Em pacientes em uso crônico de Warfarin não se deve iniciar nenhuma Heparina
até a Razão Normatizada Internacional (RNI) estar menor do que 2.0, com
administração de vitamina K e monitorização diária. O cateterismo poderá ser realizado
quando a RNI for menor do que 1.5.
Em pacientes que desenvolvem plaquetopenia com Heparina, pode-se utilizar
um inibidor direto da trombina, como a Bivalirudina, com dose inicial de 0.1mg/kg em
bolus e manutenção de 0.25mg/kg/hora nas primeiras 24 horas. Fondaparinux é a
escolha em pacientes que serão manejados sem cateterismo, com dose inicial de 2.5mg
por via subcutânea uma vez ao dia, com contraindicação se clearance de creatinina
inferior a 30mL/minuto.

Pedro Kallas Curiati 341


Tratamento adjuvante
Inibidores da enzima de conversão da angiotensina são recomendados em
pacientes portadores de disfunção sistólica do ventrículo esquerdo, hipertensão arterial,
diabetes mellitus ou doença vascular periférica. Na presença de intolerância,
bloqueadores do receptor de angiotensina-II são a opção de escolha.
A maior parte dos pacientes deve ser tratada com alguma estatina no sentido de
alcançar baixos níveis de LDL colesterol. Portadores de doença arterial oclusiva
associada a múltiplos fatores de risco, diabetes mellitus ou síndrome metabólica têm
como meta valores inferiores a 70mg/dL.
É fundamental controle da hipertensão arterial, sendo a meta um nível inferior a
130x80mmHg, controle rigoroso do diabetes, com taxa de hemoglobina glicada inferior
a 7%, atividade física regular, cessação do tabagismo e adoção de dieta saudável rica em
proteínas, carboidratos complexos, grãos, frutas e vegetais e pobre em gorduras
saturadas, colesterol e sal.

Prescrição
- Jejum ou dieta leve após controle consistente da dor;
- Obter acesso venoso calibroso e colher exames laboratoriais;
- Monitorização de ritmo cardíaco, pressão arterial, saturação periférica de
oxigênio e frequência respiratória na sala de emergência;
- Cateter nasal com O2 para porcentagem de hemoglobina saturada por oxigênio
no sangue arterial superior ou igual a 94%;
- Repouso absoluto no leito;
- Diazepam 5-10mg por via oral de 8/8 horas;
- Ácido Acetilsalicílico 200mg por via oral macerado agora e 100mg por via oral
uma vez ao dia;
- Clopidogrel 300mg por via oral agora com 75mg por via oral uma vez ao dia
na ausência de indicação de intervenção coronária percutânea ou 600mg por via oral
agora com 150mg por via oral uma vez ao dia durante uma semana e 75mg por via oral
uma vez ao dia a partir de então em caso de indicação de intervenção coronária
percutânea em pacientes com baixo risco de sangramento, exceto em pacientes com
síndrome coronariana aguda de baixo risco e em pacientes com indicação cirúrgica;
- Enoxaparina 1mg/kg por via subcutânea agora e de 12/12 horas, exceto em
pacientes com síndrome coronariana aguda de baixo risco;
- Dinitrato de Isossorbida 5mg por via sublingual até três doses com intervalo de
cinco minutos a critério médico, exceto se hipotensão arterial, bradicardia, taquicardia
ou infarto de ventrículo direito;
- Nitroglicerina 10mL (50mg) em 240mL de Soro Fisiológico ou Soro Glicosado
a 5% (200mcg/mL) ou Nitroglicerina 20mL (100mg) em 230mL de Soro Fisiológico ou
Soro Glicosado a 5% (400mcg/mL) por via intravenosa em bomba de infusão contínua a
critério médico, com velocidade inicial de infusão de 5-10mcg/minuto e titulação de 5-
10mcg/minuto a três a cinco minutos, em equipo de vidro, exceto se hipotensão arterial
ou infarto de ventrículo direito;
- Morfina 4mg por via intravenosa a critério médico, exceto se infarto de
ventrículo direito;
- Captopril 25mg por via oral de 8/8 horas;
- Propranolol 40mg por via oral de 8/8 horas, exceto se Killip III ou IV;
- Sinvastatina 40mg por via oral uma vez ao dia de noite;
- Tirofibam 50mL (0.25mg/mL) em 200mL de Soro Fisiológico ou Soro
Glicosado a 5% (0.05mg/mL) por via intravenosa em bomba de infusão contínua, com

Pedro Kallas Curiati 342


0.4mcg/kg/minuto durante trinta minutos e 0.1mcg/kg/minuto a partir de então se
síndrome coronariana aguda de alto risco;
- Cineangiocoronariografia em 24-48 horas se síndrome coronariana aguda de
alto risco;
- Hidratação intravenosa contínua com 1mL/kg/hora e N-Acetilcisteína 600-
1200mg por via oral de 12/12 horas até quatro doses se cineangiocoronariografia em
pacientes idosos, com diabetes mellitus ou com disfunção renal;
- Internação hospitalar em Unidade Coronária, exceto em pacientes com
síndrome coronariana aguda de baixo risco;
O introdutor utilizado para o cateterismo deve ser retirado doze horas após a
suspensão da Enoxaparina e seis horas após a suspensão da Heparina Não-Fracionada.
Se o tratamento for cirúrgico, reiniciar a Enoxaparina ou a Heparina Não-Fracionada
após o repouso do membro inferior depois da retirada do introdutor e manter até a
operação. Se o tratamento for clínico, reiniciar a Enoxaparina ou a Heparina Não-
Fracionada após o repouso do membro inferior depois da retirada do introdutor e manter
por 5-7 dias ou até a alta hospitalar.

Infarto agudo do miocárdio com elevação do segmento ST

Definições
Atualmente, o diagnóstico de infarto agudo do miocárdio com ou sem elevação
do segmento ST é realizado sempre que ocorre curva típica nos marcadores bioquímicos
de necrose miocárdica, preferencialmente troponina e CK-MB massa, acompanhada por
pelo menos um dentre sintomas compatíveis com isquemia, desenvolvimento de ondas
Q patológicas no eletrocardiograma e alterações no eletrocardiograma indicativas de
sofrimento miocárdico.

Etiologia e fisiopatologia
O principal mecanismo patogenético de instabilização da placa aterosclerótica,
nas síndromes isquêmicas miocárdicas instáveis, é a ocorrência de rotura e/ou erosão da
placa aterosclerótica, com ativação inflamatória, aumento da agregação plaquetária,
vasoconstrição e trombose intra-luminal da artéria coronária. A oclusão por tempo
prolongado com completa interrupção no fornecimento de nutrientes para uma
determinada região do miocárdio constitui o substrato para o desenvolvimento do
infarto agudo do miocárdio com elevação do segmento ST. A placa vulnerável é
composta por núcleo lipídico grande, capa fibrosa fina, neovascularização aumentada e
conteúdo de colágeno reduzido.

Quadro clínico
Classicamente recomenda-se incluir a possibilidade de infarto agudo do
miocárdio no diagnóstico diferencial de todos os pacientes que apresentam dor acima do
umbigo, principalmente se de forte intensidade. As características de dor torácica típica
no infarto agudo do miocárdio são as mesmas descritas para a síndrome coronariana
aguda sem elevação de ST.
Os principais focos de atenção no exame físico inicial do paciente com infarto
agudo do miocárdio são vias aéreas, respiração circulação, sinais vitais, presença de
estase jugular, presença de estertores crepitantes, presença de terceira bulha, presença de
bradicardia ou taquicardia, piora ou surgimento de sopro mitral, assimetria ou ausência
de pulsos, sinais de choque e sinais sugestivos de acidente vascular encefálico.

Pedro Kallas Curiati 343


Classificações de gravidade da disfunção cardíaca
Classificações clínicas no momento da chegada do paciente ao hospital mostram
clara correlação entre gravidade da disfunção cardíaca e prognóstico a curto e longo
prazos.
Killip & Kimball Forrester Forrester modificada
I – Sem congestão I – Perfusão periférica normal e
pulmonar e sem ausência de congestão pulmonar.
B3. IIa – Perfusão periférica normal e
II – Raros congestão pulmonar presente, sem
estertores dispnéia.
crepitantes, em IIb – Perfusão periférica normal e
menos de 50% do congestão pulmonar presente, com
campo pulmonar, dispnéia.
com B3 audível. III – Perfusão periférica diminuída
III – Edema agudo sem congestão pulmonar.
de pulmão. IV – Perfusão periférica diminuída e
IV – Choque presença de congestão pulmonar.
cardiogênico.

Exames complementares
Eletrocardiograma deve ser realizado idealmente em até dez minutos após a
chegada do paciente no pronto-socorro e repetido periodicamente conforme o caso.
Supradesnivelamento do segmento ST é caracterizado por elevação do ponto J,
localizado entre o complexo QRS e o segmento ST, superior a 0.1mV em relação à
linha de base.
Derivação Região Artéria provável
V1-V2 Septal Descendente anterior
V3-V4 Parede anterior Diagonal
V5-V6 e/ou D1-aVL Parede lateral Circunflexa
D2-D3-aVF Parede inferior Coronária direita
V1 a V6 Anterior extensa Coronária esquerda
V1-V2-V3(imagem espelho), V7-V8 Parede posterior Coronária direita
V1, V3R, V4R Ventrículo direito Coronária direita
O eletrocardiograma deve conter as derivações precordiais direitas, V7 e V8 se
infarto agudo do miocárdio de parede inferior.
Dentre os marcadores bioquímicos de necrose miocárdica, a CK-MB massa é o
marcador de eleição no acompanhamento dos pacientes com infarto agudo do miocárdio
com elevação de ST. É detectada no sangue periférico a partir da terceira ou quarta
horas de evolução e deve ser coletada no momento da chegada do paciente, a cada oito
horas até o pico e a cada doze horas até a normalização. Novas dosagens devem ser
solicitadas sempre que houver suspeita de novo quadro isquêmico. O pico ocorre ao
redor de 24 horas após o evento isquêmico, com normalização nas primeiras 48 horas.
Eletrólitos, glicemia, uréia e creatinina séricas, hemograma, coagulograma e
perfil lipídico devem ser dosados logo após a chegada do paciente ao hospital.
Radiografia de tórax e ecocardiograma, preferencialmente transesofágico, devem
ser solicitados de forma emergencial caso haja suspeita de dissecção aguda da aorta.
Ecocardiograma transtorácico deve ser realizado rotineiramente nas primeiras 24 horas
para análise da área comprometida e da função ventricular e a qualquer momento em
caso de instabilização súbita do quadro clínico ou aparecimento de novos sopros
cardíacos.
Estudo hemodinâmico em pacientes não submetidos à intervenção coronária
percutânea primária é indicado rotineiramente nos pacientes com disfunção ventricular,

Pedro Kallas Curiati 344


complicações mecânicas e/ou isquemia residual espontânea ou detectada após testes
provocadores. Se a indicação for eletiva, sugere-se realizá-lo entre 48 e 72 horas do
início dos sintomas.

Diagnóstico diferencial
Sempre ao se detectar um paciente com quadro clínico compatível com isquemia
aguda e eletrocardiograma normal, deve-se afastar o diagnóstico de dissecção aguda de
aorta por meio de ecocardiograma, tomografia computadorizada ou ressonância
magnética.

Tratamento
Medidas gerais incluem repouso no leito, oxigênio nasal caso a saturação seja
inferior a 94%, acesso venoso, analgesia com Morfina 2-4mg a cada cinco minutos até
dose máxima de 25mg e monitorização eletrocardiográfica contínua.
Todos os pacientes com síndrome coronariana aguda devem receber Ácido
Acetilsalicílico 200mg macerado o mais precocemente possível, até mesmo antes do
eletrocardiograma, seguido de 100mg/dia indefinidamente.
Heparina Não-Fracionada é utilizada rotineiramente na sala de hemodinâmica
quando da realização da angioplastia primária. Nos pacientes submetidos à terapia
fibrinolítica, o uso deve ser mantido por ao menos 48 horas.
Um estudo apontou superioridade da Enoxaparina quando utilizada como
adjuvante dos fibrinolíticos e nessa situação deve ser mantida preferencialmente durante
o tempo de internação ou até o oitavo dia. Em indivíduos com idade inferior a 75 anos,
preconiza-se 30mg por via intravenosa em bolus e manutenção com 1mg/kg por via
subcutânea a cada 12 horas. Em indivíduos com idade superior a 75 anos não é utilizado
bolus inicial e a dose de manutenção deve ser diminuída para 0.75mg/kg por via
subcutânea a cada 12 horas. Em pacientes com clearance de creatinina inferior a
30mL/minuto, independentemente da idade, a dose deve ser de 1mg/kg por via
subcutânea ou 40mg a cada 24 horas. Em caso de terapia fibrinolítica com
Estreptoquinase, o uso de Heparina é indicado apenas se risco de embolia sistêmica,
cujos principais fatores de risco são infarto agudo do miocárdio anterior extenso,
fibrilação atrial, embolia prévia ou trombo em ventrículo esquerdo.
Inibidor da glicoproteína IIbIIIa não tem indicação como adjuvante ao
fibrinolítico e no caso de intervenção coronária percutânea seu uso deve ser
individualizado, com indicação clara em pacientes com grande quantidade de trombo
intra-coronário.

Terapias de recanalização
Critérios para indicação de recanalização coronária:
- Dor sugestiva de isquemia miocárdica aguda com até doze horas de
evolução, não-responsiva ao uso de nitrato, que não precisa estar presente
no momento da avaliação;
- Supradesnivelamento do segmento ST superior a 1mm em pelo menos
duas derivações de mesma parede ou bloqueio de ramo esquerdo novo ou
presumivelmente novo;
Intervenção coronária percutânea primária é o método ideal no infarto agudo do
miocárdio com elevação de ST e deve ser realizada, idealmente, em até 90 minutos após
a chegada do paciente ao hospital. Vantagens incluem alto índice de reperfusão,
menores complicações hemorrágicas, menor mortalidade global, melhor recuperação
ventricular, avaliação anatômica, estratificação de risco e menor tempo de internação

Pedro Kallas Curiati 345


hospitalar. Virtualmente sem contraindicação absoluta. Indicações mandatórias incluem
sinais e/ou sintomas de disfunção ventricular esquerda, contraindicação ao tratamento
fibrinolítico, suspeita de dissecção aguda da aorta e bloqueio atrioventricular total.
Terapia fibrinolítica deve ser implementada nos centros que não dispõem de
hemodinâmica, principalmente nos infartos com até três horas de evolução ou se ocorrer
demora maior que 90 minutos para início da intervenção coronária percutânea primária.
Também favorecem a escolha por terapia fibrinolítica um tempo para transferência do
paciente superior a duas horas, uma diferença superior a sessenta minutos entre o tempo
porta-agulha e o tempo porta-balão e dificuldade de acesso vascular. Deve-se canular
veia superficial do membro superior esquerdo para usar como via de infusão exclusiva
do fibrinolítico. Preconiza-se tPA 15mg em bolus por via intravenosa seguido de
0.75mg/kg (máximo de 50mg) em trinta minutos e 0.50mg/kg (máximo de 35mg) em
sessenta minutos. Estreptoquinase é administrada com dose de 1.500.000 unidades em
100mL de Soro Fisiológico por via intravenosa em trinta a sessenta minutos. Vantagens
incluem baixo custo, facilidade de administração, independência de médico
especializado e facilidade para avaliação dos resultados. Ativador do plasminogênio
tecidual recombinante ou Reteplase (rt-PA) é administrado com dose inicial de 10U em
bolus com infusão em dois minutos e, após trinta minutos, nova dose de 10U. A
Tenecteplase (TNK-tPA) é administrada em dose única, em bolus, baseada no peso
corpóreo, com 30mg se peso inferior a 60kg, 35mg se peso de 60.0-69.9kg, 40mg se
peso de 70.0-79.9kg, 45mg se peso de 80-89.9kg e 50mg se peso igual ou superior a
90kg.
Alguns problemas durante a infusão de Estreptoquinase incluem vômitos, com
indicação de Metoclopramida e ocasionalmente Ondansetrona, hipotensão, com
indicação de evitar Morfina, reduzir temporariamente a infusão da droga e administrar
cristaloide, reações alérgicas leves a moderadas, com indicação de redução temporária
da velocidade de infusão e administração de anti-histamínico e corticoide, e edema de
glote ou choque anafilático, com indicação de suspender a infusão da droga, tratar o
episódio e não mais usá-la.
Contraindicações absolutas para terapia fibrinolítica incluem qualquer
hemorragia cerebral prévia, lesão vascular cerebral conhecida, neoplasia intracraniana
primária ou metastática, acidente vascular cerebral isquêmico há menos de três meses e
há mais de três horas, traumatismo craniano ou facial significativo há menos de um mês,
sangramento gastro-intestinal há menos de um mês, sangramento interno ativo com
exceção de menstruação, suspeita de dissecção de aorta e redução da expectativa de vida
por coma, sepse ou neoplasia.
Contraindicações relativas para terapia fibrinolítica incluem idade funcional
superior a 75 anos, história de hipertensão arterial sistêmica crônica grave e não-
controlada, pressão arterial sistólica superior a 180mmHg ou diastólica superior a
110mmHg apesar do alívio da dor, acidente vascular isquêmico transitório há menos de
seis meses, uso de anticoagulantes dicumarínicos, trauma recente ou cirurgia de grande
porte nas últimas três semanas, ressuscitação cardiopulmonar traumática ou prolongada
por mais de dez minutos, punção vascular não compressível, endocardite infecciosa,
úlcera péptica ativa, doença hepática avançada e gravidez ou parto a menos de um mês.
Especificamente em relação à Estreptoquinase, deve ser considerado o uso prévio dessa
medicação há mais de cinco dias e a menos de dois anos, além de reação alérgica prévia.
Os critérios de reperfusão devem ser avaliados sessenta a noventa minutos após
o término do tratamento fibrinolítico e incluem diminuição ou desaparecimento súbito
da dor torácica, normalização ou redução em pelo menos 50-70% do maior
supradesnivelamento de ST, aparecimento de arritmias de reperfusão, como extra-

Pedro Kallas Curiati 346


sístoles ventriculares e ritmo idioventricular acelerado, e pico precoce de CK-MB até
doze horas a partir da primeira medida. Quando ausentes, deve-se considerar a
indicação de intervenção coronária percutânea de resgate ou salvamento.

Medicamentos coadjuvantes
Nitrato sublingual tem o objetivo de afastar eventual espasmo coronário,
revelado por melhora dos sintomas e da elevação do segmento ST. Administração
intravenosa é indicada no caso de isquemia persistente ou para controle de congestão
pulmonar ou hipertensão arterial, com uso rotineiro nas primeiras 24-48 horas de
evolução. Deve ser evitado em caso de suspeita de infarto de ventrículo direito, assim
como a Morfina.
O uso intravenoso de β-bloqueadores é recomendado rotineiramente em
pacientes não submetidos a recanalização e nos recanalizados que apresentam
taquicardia sinusal não relacionada com descompensação cardíaca, hipertensão arterial
sistêmica ou isquemia persistente. Em ambas as situações, recomenda-se a introdução
da formulação oral na sequência, com manutenção por tempo indefinido, com
frequência cardíaca alvo de 60bpm.
Inibidor da enzima conversora da angiotensina deve ser iniciado nas primeiras
24 horas de evolução em pacientes com infarto da parede anterior, fração de ejeção
ventricular esquerda inferior a 40% e/ou congestão pulmonar. Pode ser substituído por
bloqueador do receptor de angiotensina II em pacientes com intolerância.
Recomenda-se o uso de bloqueador da aldosterona em todo paciente com infarto
agudo do miocárdio sem disfunção renal ou hipercalemia, desde que apresentem fração
de ejeção igual ou inferior a 40% e sintomas de insuficiência cardíaca e/ou diabetes
mellitus.
O Diltiazem é o agente de escolha para pacientes com contraindicação para o
uso de β-bloqueadores ou que apresentem frequência cardíaca elevada ou isquemia
persistente ou recorrente.
Clopidogrel é indicado de forma rotineira para todos os pacientes com infarto
agudo do miocárdio com até 24 horas de evolução.
Os pacientes com LDL acima de 70mg/dL devem iniciar a terapêutica
hipolipemiante com estatina ainda durante a internação.
Anti-inflamatórios não-hormonais não devem ser administrados durante a
hospitalização por aumentarem o risco de morte, reinfarto, hipertensão arterial,
insuficiência cardíaca e ruptura miocárdica.

Prescrição
- Jejum;
- Obter acesso venoso calibroso;
- Cateter nasal com O2 para porcentagem de hemoglobina saturada por oxigênio
no sangue arterial superior ou igual a 94%;
- Monitorização de ritmo cardíaco, pressão arterial, frequência cardíaca e
frequência respiratória na sala de emergência;
- Repouso absoluto no leito;
- Diazepam 5-10mg por via oral de 8/8 horas;
- Ácido Acetilsalicílico 200mg por via oral agora e 100mg por via oral uma vez
ao dia;
- Clopidogrel 300mg por via oral agora com 75mg por via oral uma vez ao dia
em caso de indicação de terapia fibrinolítica ou 600mg por via oral agora com 150mg
por via oral uma vez ao dia durante uma semana e 75mg por via oral uma vez ao dia a

Pedro Kallas Curiati 347


partir de então em caso de indicação de intervenção coronária percutânea em pacientes
com baixo risco de sangramento, exceto em pacientes com indicação cirúrgica;
- Heparina 60U/kg por via intravenosa agora em bolus e 25.000U em 245mL de
Soro Fisiológico por via intravenosa em bomba de infusão contínua com dose inicial de
12U/kg em caso de indicação de intervenção coronária percutânea, durante o
procedimento;
- Enoxaparina 1mg/kg de 12/12 horas por via subcutânea em caso de indicação
de terapia fibrinolítica, exceto Estreptoquinase;
- Captopril 25mg por via oral de 8/8 horas;
- Propranolol 40mg por via oral de 8/8 horas, exceto se Killip III ou IV;
- Sinvastatina 40mg por via oral uma vez ao dia de noite;
- Dinitrato de Isossorbida 5mg por via sublingual até três doses com intervalo de
cinco minutos a critério médico, exceto se hipotensão, taquicardia, bradicardia ou
infarto de ventrículo direito;
- Nitroglicerina 10mL (50mg) em 240mL de Soro Fisiológico ou Soro Glicosado
a 5% (200mcg/mL) ou Nitroglicerina 20mL (100mg) em 230mL de Soro Fisiológico ou
Soro Glicosado a 5% (400mcg/mL) por via intravenosa em bomba de infusão contínua a
critério médico, com velocidade inicial de infusão de 5-10mcg/minuto e titulação de 5-
10mcg/minuto a três a cinco minutos, em equipo de vidro, exceto se hipotensão arterial
ou infarto de ventrículo direito;
- Morfina 4mg por via intravenosa a critério médico, exceto se infarto de
ventrículo direito;
- Alteplase 15mg em bolus por via intravenosa seguido de 0.75mg/kg (máximo
de 50mg) em trinta minutos e 0.50mg/kg (máximo de 35mg) em sessenta minutos ou
preparar para angioplastia primária imediatamente;

Bibliografia
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
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Universidade de São Paulo.
Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 5. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2010.

Algoritmo

Pedro Kallas Curiati 348


Pedro Kallas Curiati 349
CRISE HIPERTENSIVA
Definições
Crise hipertensiva é circunstância clínica associada a elevação rápida e
sintomática da pressão arterial, geralmente com pressão arterial diastólica superior a
120mmHg e risco de morte ou lesão de órgãos-alvo.
As crises hipertensivas podem ser divididas em urgências e emergências
hipertensivas. O reconhecimento de emergências ou urgências hipertensivas depende do
estado clínico do paciente e não do valor absoluto da pressão arterial.
Urgência hipertensiva é uma importante elevação da pressão arterial sem
sintomas graves ou evidências de séria ou progressiva disfunção de órgãos-alvo. Nessa
situação, há indicação de redução da pressão arterial dentro de período variável, de
poucas horas até 48 horas, com medicações de uso oral, a fim de evitar progressão para
complicações mais graves. Quadros que caracterizam urgência hipertensiva incluem
hipertensão acelerada ou maligna, hipertensão perioperatória, pré-eclâmpsia e
hipertensão grave em associação com descompensação aguda de órgãos-alvo sem risco
iminente de morte, como insuficiência cardíaca, angina instável sem dor no momento da
crise hipertensiva, ataque isquêmico transitório, acidente vascular cerebral isquêmico
sem indicação de trombólise e insuficiência renal aguda.
Emergência hipertensiva é definida como uma rápida descompensação da função
de órgãos vitais, como coração, rins, cérebro e vasos, secundária a uma elevação
extrema e inapropriada da pressão arterial, geralmente superior a 180x120mmHg. Nessa
situação, a redução da pressão arterial, com o objetivo de diminuir a morbidade e a
mortalidade, deve ser imediata, com agentes aplicados por via parenteral. Quadros que
caracterizam emergências hipertensivas em pacientes com pressão arterial elevada
incluem hipertensão acelerada ou maligna, encefalopatia hipertensiva, hemorragia
subaracnóide, acidente vascular cerebral hemorrágico, acidente vascular cerebral
isquêmico com indicação de trombólise, eclâmpsia, edema agudo de pulmão, dissecção
de aorta, angina instável com dor no momento da crise, infarto agudo do miocárdio,
epistaxe grave e pós-operatório de revascularização miocárdica ou cirurgia vascular.
Existem algumas situações em que aumentos dos níveis pressóricos
acompanham quadros de estresse psicológico agudo ou dor. Tais situações não
caracterizam crises hipertensivas clássicas e são, por isso, denominadas pseudocrises.
Hipertensão arterial sistêmica crônica não-controlada em pacientes
assintomáticos não-aderentes ao tratamento ou sem diagnóstico prévio deve ser sempre
diferenciada de crise hipertensiva.

Etiologia
Hipertensão arterial sistêmica primária com tratamento inadequado ou má-
adesão terapêutica.
Hipertensão arterial sistêmica secundária não-reconhecida.
Uso de drogas ilícitas ou medicamentos.

Quadro clínico
A adequada caracterização da crise hipertensiva depende de anamnese e exame
físico minuciosos. A pressão arterial deve ser medida de forma adequada, com manguito
proporcional ao tamanho do paciente, em ambiente calmo, mais de uma vez, alternando
os braços e com aparelho calibrado. O paciente deve ser mantido em repouso e posição

Pedro Kallas Curiati 350


adequada. Os níveis pressóricos isoladamente não diferenciam emergência, urgência e
pseudocrise.
É fundamental a realização de exame de fundo de olho no paciente que se
apresenta com suspeita de crise hipertensiva. O achado de hemorragias e exsudatos
caracteriza hipertensão arterial acelerada e a presença de papiledema indica hipertensão
arterial maligna.

Exames complementares
Em todos os pacientes com crises hipertensivas devem ser avaliados
hemograma, uréia e creatinina séricos, sódio e potássio séricos, radiografia de tórax,
eletrocardiograma de doze derivações, glicose capilar e urina tipo I. Conforme a
apresentação clínica, poderão ser necessários marcadores de necrose do miocárdio,
como CK-MB e troponina, marcadores de hemólise, como reticulócitos, haptoglobina,
pesquisa de esquizócitos, bilirrubina indireta e desidrogenase lática, gasometria arterial,
tomografia de crânio sem contraste, punção liquórica, ecocardiografia transtorácica,
ecocardiografia transesofágica, tomografia computadorizada helicoidal,
angiorressonância e arteriografia.
Normotensos prévios desenvolvem encefalopatia com valores pressóricos
menores. Hipertensos crônicos têm maior tolerância a níveis de pressão elevados e são
mais vulneráveis a reduções acentuadas de pressão arterial. Deve-se reduzir a pressão
arterial por etapas, sem normalizar rapidamente.

Tratamento
Em caso de pressão arterial acentuadamente elevada, deve-se avaliar se há lesões
em órgãos-alvo. Quando presentes, o paciente deve ser encaminhado à sala de
emergência e submetido a avaliação primária e secundária do suporte avançado de vida,
com realização dos exames complementares. Na ausência de lesões em órgãos-alvo e de
doenças cardiovasculares ou cerebrovasculares, deve-se tratar a causa de base do
aumento da pressão arterial, administrar analgésicos e tranquilizar e/ou administrar
ansiolítico. Na presença de insuficiência coronária crônica, insuficiência cardíaca
congestiva, aneurisma de aorta ou acidente vascular cerebral prévio, deve-se avaliar a
necessidade de exames complementares, otimizar o tratamento anti-hipertensivo,
medicar por via oral e agendar retorno ambulatorial precoce.

Tratamento das urgências hipertensivas


O tratamento das urgências hipertensivas deve ser iniciado assim que o
diagnóstico é feito e visa a redução da pressão arterial média em 20-25% em até 24-48
horas com medicação por via oral. A terapêutica farmacológica pode ser conduzida
imediatamente ou após um curto período de trinta minutos a duas horas em repouso em
um local silencioso e escuro.
A maioria dos pacientes deve ser internada ou mantida em observação no
serviço de pronto atendimento por alguns dias para realizar tratamento adequado e a alta
hospitalar deve ser baseada em pelo menos seis horas de observação após controle
adequado da pressão arterial, história clínica de pressão arterial previamente controlada,
reconhecimento de causas precipitantes reversíveis, existência de condições para
seguimento ambulatorial apropriado e possibilidade de acompanhamento em curto
período de tempo. Se possível, deve-se manter a medicação previamente utilizada, com
aumento das doses ou acréscimo de outras drogas.
Várias medicações de administração oral têm sido usadas para o tratamento das
urgências hipertensivas, com redução da pressão dentro de minutos a poucas horas.

Pedro Kallas Curiati 351


Eventualmente, em situações especiais, podem ser utilizadas medicações parenterais.
Clonidina é medicação de ação agonista α2-adrenérgica central. Apresenta
rápido início de ação, em 30-60 minutos, e um efeito máximo dentro de duas a quatro
horas. Preconiza-se dose inicial de 0.2mg e manutenção com 0.1mg a cada hora até o
controle da pressão arterial, com dose máxima de 0.6mg.
Captopril é inibidor da enzima conversora da angiotensina e apresenta início de
ação em 15-30 minutos e efeito máximo dentro de uma hora. A administração deve ser
oral na dose de 25mg, com repetição após uma a duas horas. O seu uso tem indicação
mais apropriada em pacientes que apresentam congestão pulmonar importante em
consequência de insuficiência cardíaca congestiva.
O β-bloqueador mais utilizado em urgências hipertensivas é o Propranolol, com
início de ação em 60 minutos e efeito máximo dentro de duas a quatro horas. Inicia-se
com dose oral de 40mg, que pode ser repetida após duas a três horas.
Minoxidil é um vasodilatador arterial potente de ação direta sobre a musculatura
lisa vascular, com início de ação em 30-120 minutos e efeito máximo dentro de duas a
quatro horas. É efetivo na dose de 5-20mg e sempre que possível deve estar associado a
bloqueadores adrenérgicos e diuréticos em função de causar retenção de líquido e
taquicardia. Contraindicado em doença coronariana e dissecção de aorta.
Em algumas urgências hipertensivas principalmente naquelas que cursam com
congestão pulmonar e edema, ou mesmo nos pacientes com insuficiência renal, os
diuréticos de alça, como a Furosemida, são usados com adequada eficácia como droga
auxiliar no controle da pressão arterial. O uso desses diuréticos também é necessário
quando o controle da pressão arterial está sendo feito com vasodilatadores diretos ou
com antagonistas adrenérgicos centrais, casos em que existe retenção de sódio e água. A
dose inicial de Furosemida é de 40mg por via oral ou 20mg por via intravenosa e deve
ser aumentada conforme a necessidade.

Tratamento das emergências hipertensivas


Diferentemente dos pacientes com urgência hipertensiva, que não precisam
necessariamente ser internados e são tratados com medicações orais, os pacientes em
emergência hipertensiva devem ser hospitalizados, inicialmente atendidos na unidade de
emergência e de preferência transferidos para a unidade de terapia intensiva assim que
possível. O objetivo inicial é a redução da pressão arterial média em 20-25% em 30-60
minutos. A administração dos agentes parenterais é mais bem controlada e seus efeitos
são mais previsíveis e rápidos, bem como a cessação de sua ação hipotensora, do que a
dos agentes orais.
Preconiza-se suporte de oxigênio, obtenção de acesso venoso para administração
de drogas vasodilatadoras e monitorização do traçado eletrocardiográfico, da saturação
periférica de oxigênio, da pressão arterial e do estado neurológico. Caso doses elevadas
de vasodilatador venoso sejam necessárias ou as medidas de pressão arterial não-
invasiva não sejam confiáveis, pode ser necessária a monitorização invasiva através de
cateter arterial.
Assim que for obtida a redução da pressão arterial para os níveis desejados,
deve-se iniciar a terapia anti-hipertensiva de manutenção por via oral e reduzir lenta e
gradativamente a velocidade de administração da medicação parenteral.
Nitroprussiato de Sódio é vasodilatador direto arterial e venoso de ação
imediata, em menos de um minuto, e curta duração, de três a cinco minutos. Deve ser
administrado por via intravenosa em bomba de infusão contínua, protegido da luz por
ser fotossensível, com dose inicial de 0.3mcg/kg/minuto e aumento a cada três a cinco
minutos até obtenção da pressão arterial desejada, com dose máxima de

Pedro Kallas Curiati 352


10mcg/kg/minuto. Na prática, dilui-se uma ampola com 50mg em 248mL de Soro
Glicosado a 5%, coloca-se em frasco e equipo protegidos da luz e, através de bomba de
infusão, administra-se 3mL/hora, com medida da pressão arterial a cada dois minutos e
aumento da velocidade de infusão em 1-2mL/hora cada vez que estiver acima do
desejado. Quando alcançada a pressão arterial desejada, pode-se administrar um anti-
hipertensivo oral, preferencialmente de meia-vida curta, para começar a estratégia de
reduzir a velocidade da infusão, idealmente com monitorização invasiva ou com
mensuração não-invasiva a cada dez a vinte minutos.
Nitroglicerina é vasodilatador direto com ação muito mais potente nas veias do
que nas artérias e apresenta início de ação em dois a cinco minutos e duração de três a
dez minutos. Precisa ser administrada em frascos de vidro ou de polietileno e conduzida
por equipo de polietileno. Tem a capacidade de dilatar vasos coronários epicárdicos.
Contraindicada em caso de infarto de ventrículo direito e uso de Sildenafil nas últimas
24 horas. Sua dose inicial é de 5mcg/minuto por via intravenosa, com aumento a cada
cinco minutos enquanto a pressão arterial almejada não for atingida e dose máxima ao
redor de 100-200mcg/minuto. Na prática, dilui-se 50mg em 240mL de Soro Glicosado a
5% ou Soro Fisiológico com os cuidado relacionados ao frasco e ao equipo, inicia-se
administração com 3mL/hora em bomba de infusão contínua e aumenta-se 2mL/hora a
cada cinco minutos até controle pressórico ou surgimento de efeito colateral, como
cefaleia.
β-bloqueadores, como Metoprolol 5mg e Propranolol 1mg, são usados quando a
maior preocupação é com a redução da frequência cardíaca e não com a redução da
pressão arterial. Ambos devem ser administrados por via intravenosa em bolus lento
durante cinco minutos, sem qualquer diluição, podendo ser repetidos teoricamente até
três vezes ou até obtenção da frequência cardíaca alvo. Apresentam início de ação em
cinco a dez minutos e contraindicação em bloqueios atrioventriculares de segundo e
terceiro graus, insuficiência cardíaca descompensada e asma.
Labetalol é bloqueador α e β adrenérgico com dose inicial de 10-20mg em dez
minutos por via intravenosa, com início de ação em cinco minutos e dose máxima de
300mg. Pode-se administrar 10-20mg de 10/10 minutos ou infundir continuamente com
velocidade inicial de 2mg/minuto. Há contraindicação em bloqueios atrioventriculares
de segundo e terceiro graus, insuficiência cardíaca descompensada e asma.
Hidralazina é um vasodilatador arteriolar direto com rápido início de ação, em
cerca de dez minutos, e duração prolongada, de quatro a seis horas. É metabolizada no
fígado e eliminada na urina, de modo que sua dose deve ser reduzida em hepatopatas ou
nefropatas. Pode induzir taquicardia reflexa, o que contraindica seu uso em síndromes
coronarianas agudas e dissecção aguda de aorta. Geralmente é usada nas emergências
hipertensivas em gestantes, em função de sua segurança comprovada para o feto. Sua
dose inicial é de 10-20mg.
Enalaprilato é a forma injetável do Enalapril e atua de forma benéfica na
circulação cerebral.

Conduta específica
No edema agudo de pulmão a anamnese revela paciente angustiado, com
dificuldade para falar e que já apresenta antecedente de algum grau de disfunção
ventricular. Ao exame físico, são encontrados estertores pulmonares crepitantes e baixa
saturação de oxigênio. Podem estar presentes terceira bulha, quarta bulha, estase jugular
e sibilos. Quando disponível, a avaliação complementar prevê a dosagem de peptídeo
natriurético cerebral (BNP), com insuficiência cardíaca improvável quando valores
abaixo de 100pg/mL, incerta quando valores de 100-400pg/mL e provável quando

Pedro Kallas Curiati 353


valores acima de 400pg/mL. O tratamento deve ser feito com Dinitrato de Isossorbida
sublingual, Furosemida intravenosa e Morfina intravenosa em paciente sentado
preferencialmente com as pernas pêndulas para fora da maca. A utilização suplementar
de oxigênio através de suporte ventilatório não-invasivo, como a Continuous Positive
Airway Pressure (CPAP), também é muito útil, uma vez que promove tanto redução do
trabalho respiratório como melhora da hemodinâmica através da diminuição do retorno
venoso. O anti-hipertensivo de escolha é o Nitroprussiato de Sódio, com preferência
pela Nitroglicerina em paciente coronariopata.
Na síndrome coronariana aguda, a anamnese revela dor ou sensação de opressão
precordial que pode ser acompanhada de náusea, dispneia e sudorese fria. Ao exame
físico, os achados propedêuticos são discretos e pode ser auscultada quarta bulha.
Caracterização minuciosa da dor é importante. A avaliação complementar prevê a
realização de dosagem de enzimas cardíacas e cineangiocoronariografia. Utiliza-se
inicialmente Dinitrato de Isossorbida sublingual, seguido de Morfina intravenosa se a
dor não ceder. Após a obtenção de acesso venoso, deve ser administrado β-bloqueador
intravenoso até que a frequência cardíaca seja reduzida e a Nitroglicerina possa ser
administrada continuamente com velocidade titulada para redução da pressão arterial.
Na dissecção aguda de aorta, a anamnese revela dor lancinante, que pode ser
precordial ou irradiada para as costas. Ao exame físico, pode haver assimetria de pulsos
e sopro diastólico em foco aórtico. É fundamental a diferenciação com síndrome
coronariana aguda. A avaliação complementar inclui tomografia computadorizada,
ecocardiograma transesofágico, angiorressonância e/ou angiografia. Deve-se fazer
potente analgesia com Morfina e reduzir a frequência cardíaca para valores em torno de
60bpm com Metoprolol intravenoso. Os níveis de pressão arterial precisam ser
reduzidos para níveis mais baixos do que nas outras afecções, com pressão arterial
sistólica de 100-110mmHg se o paciente tolerar, frequentemente com o uso de
Nitroprussiato de Sódio se as outras duas medicações não forem suficientes. Em caso de
comprometimento coronariano, prefere-se a Nitroglicerina intravenosa. Avaliação
cirúrgica de urgência é necessária e, em caso de instabilidade, a avaliação complementar
é realizada com ecocardiografia na sala de emergência.
Encefalopatia hipertensiva é síndrome cerebral orgânica aguda reversível
resultante de uma ruptura do mecanismo de autorregulação do fluxo cerebral. A
anamnese revela início agudo ou subagudo de letargia, cefaleia, confusão mental,
distúrbios visuais e convulsões. Se não tratada, pode evoluir para hemorragia cerebral,
coma e morte. O exame físico é variável. A avaliação complementar prevê a realização
de tomografia computadorizada para descartar acidente vascular cerebral. A droga de
escolha é o Nitroprussiato de Sódio.
Na hipertensão acelerada ou maligna, a anamnese revela astenia, mal-estar,
oligúria e sintomas cardiovasculares e/ou neurológicos vagos, sendo assintomática em
cerca de 10% dos casos. Há comprometimento renal agudo ou subagudo e ao fundo de
olho são encontrados exsudatos algodonosos, hemorragias ou papiledema. Sintomas
podem incluir também dispneia, edema, palpitações, manifestações de uremia e perda
de peso por catabolismo aumentado de massa muscular. Trata-se de afecção
potencialmente fatal, com 90% de mortalidade em um ano se não tratada. Pode se
apresentar como urgência ou emergência hipertensiva, na dependência dos achados
clínicos e dos exames complementares, com atenção para a presença de perda de função
renal. A maioria dos pacientes com urgência hipertensiva necessita de três ou mais anti-
hipertensivos combinados. Já os pacientes com emergência hipertensiva devem ser
conduzidos com Nitroprussiato de Sódio em administração intravenosa contínua até
queda da pressão arterial média em 20-25% dentro de duas horas, com controle

Pedro Kallas Curiati 354


pressórico gradativo ao longo de dois a três dias com medicações por via oral. A
ausência de retinopatia grau III ou IV exclui o diagnóstico.
No acidente vascular cerebral isquêmico candidato à trombólise ou hemorrágico,
a anamnese revela súbita alteração neurológica, geralmente motora ou sensitiva. Há
alteração ao exame neurológico e deve ser feito diagnóstico diferencial com
hipoglicemia e hiperglicemia. Preconiza-se pressão arterial inferior ou igual a
180x105mmHg em pacientes com acidente vascular cerebral hemorrágico ou acidente
vascular cerebral isquêmico com indicação de trombólise e inferior ou igual a
220x120mmHg em pacientes com acidente vascular cerebral isquêmico sem indicação
de trombólise.
Na eclâmpsia, a anamnese revela gestante após a vigésima semana de gestação
ou puérpera até a sexta semana após o parto com diagnóstico prévio de pré-eclâmpsia e
que desenvolve convulsões. A avaliação complementar prevê o monitoramento fetal.
Pseudocrise hipertensiva é a elevação acentuada da pressão arterial
desencadeada por dor, desconforto, ansiedade e/ou abandono do tratamento, sem
sintomas e lesões em órgãos-alvo novas ou progressivas. Raramente requer tratamento
de emergência ou urgência. Os fatores desencadeantes incluem dor e ansiedade,
suspensão do uso de anestésicos, suspensão do uso de anti-hipertensivos, retenção
urinária, hipercapnia, acidose e hipoglicemia. Preconiza-se tratamento com sintomáticos
e medicação de uso crônico, com diminuição da pressão arterial após tratamento do
fator desencadeante. Não há evidências de que a redução rápida da pressão tem mais
benefícios do que riscos.

Modelo de prescrição para edema agudo de pulmão


- Jejum;
- Obter acesso venoso e colher exames;
- Ventilação não-invasiva com CPAP a 10cmH2O com FiO2 de 100%;
- Monitorização na sala de emergência de pressão arterial, frequências cardíaca e
respiratória, saturação periférica de oxigênio e ritmo cardíaco;
- Dinitrato de Isossorbida 5mg por via sublingual agora e a critério médico;
- Morfina 2-5mg por via intravenosa agora e a critério médico, podendo ser
repetida a cada cinco a trinta minutos;
- Furosemida 40-80mg (0.5-1mg/kg) por via intravenosa agora e a critério
médico;
- Nitroprussiato de Sódio 50mg em Soro Glicosado a 5% 240mL por via
intravenosa em bomba de infusão contínua a critério médico;
- Heparina 5000U por via subcutânea de 8/8 horas;
- Aguarda vaga em unidade de terapia intensiva;

Bibliografia
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.
Boletim de Cardiologia para o Internato. Ano 1, número 7. Carlos Pedrotti, Gustavo Hironaka, Leonardo Lopes. Preceptoria de
Cardiologia do Instituto do Coração, 2009.
Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 5. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2010.

Pedro Kallas Curiati 355


DISLIPIDEMIA
Definição
A hiperlipidemia tem sido definida como valores de colesterol ou triglicérides
acima do percentil 90 ou 95 em relação à população geral.
Dislipidemias que resultam de defeitos genéticos são denominadas primárias.
Quando estão presentes outros fatores que alteram o metabolismo lipídico, como
diabetes mellitus, hipotireoidismo, síndrome nefrótica, tratamento com estrógenos e
consumo de álcool, a dislipidemia é denominada secundária. Frequentemente, em um
mesmo indivíduo, estão presentes causas primárias e secundárias de dislipidemia.

Fatores de risco
Os principais fatores de risco cardiovasculares são sexo masculino, idade maior
ou igual a 45 anos para homens e maior ou igual a 55 anos para mulheres, tabagismo,
hipertensão arterial sistêmica, HDL-colesterol baixo e história familiar de doença
coronariana em parentes de primeiro grau com menos de 55 anos para homens ou
menos de 65 anos para mulheres.
Outros fatores adicionais podem influenciar o risco de desenvolvimento de
doença arterial coronariana. Eles incluem os fatores relacionados ao estilo de vida,
como obesidade, sedentarismo e dieta aterogênica, e os emergentes, como lipoproteína,
homocisteína, glicemia de jejum alterada e evidência de doença aterosclerótica
subclínica. Os fatores de risco relacionados ao estilo de vida devem ser tratados,
enquanto que os emergentes podem ajudar na decisão da agressividade da terapêutica.

Avaliação clínica
A avaliação inicial de um paciente com hiperlipidemia envolve anamnese e
exame clínico detalhados para identificar causas primárias e secundárias. O paciente
deve ser indagado a respeito de história familiar de hiperlipidemia ou doença arterial
coronariana precoce. O exame clínico deve priorizar a avaliação do sistema
cardiovascular e as manifestações de hiperlipidemia.
As lesões associadas geralmente são causadas por dislipidemia primária.
Xantomas tendíneos são depósitos nodulares de colesterol localizados nos tendões de
Aquiles e em outros tendões, como extensores de mãos, joelhos e cotovelos. Xantomas
tuberosos são nódulos subcutâneos localizados em áreas sujeitas a traumatismo, como
cotovelos e joelhos. Xantelasmas são pequenas placas elevadas de cor amarelada
localizadas nas pálpebras acima ou ao redor do epicanto medial e eventualmente podem
ocorrer em indivíduos sem hiperlipidemia devido ao aumento da captação de
lipoproteínas oxidadas por macrófagos.

Avaliação laboratorial
As diretrizes recomendam que todos os indivíduos adultos sejam submetidos a
avaliação do perfil lipídico. Em caso de não haver alteração, os exames devem ser
repetidos após cinco anos.
O perfil lipídico é definido pelas determinações bioquímicas do colesterol total,
do colesterol ligado à HDL ou HDL-colesterol, dos triglicérides e do colesterol ligado à
LDL ou LDL-colesterol após jejum de doze a quatorze horas. O LDL-colesterol pode
ser calculado pela equação de Friedewald, substraindo-se do colesterol total o HDL-
colesterol e um quinto dos triglicérides. Em pacientes com hipertrigliceridemia,

Pedro Kallas Curiati 356


hepatopatia colestática crônica, diabetes mellitus ou síndrome nefrótica, a equação é
imprecisa. A determinação do perfil lipídico deve ser feita em indivíduos com dieta
habitual e estado metabólico e peso estáveis por pelo menos duas semanas antes da
realização do exame. Além disso, deve-se evitar ingesta de álcool e atividade física
vigorosa nas 72 e 24 horas que antecedem a coleta de sangue, respectivamente.
Pacientes com alterações no perfil lipídico devem ter seus exames confirmados
pela repetição de nova amostra. A nova dosagem deverá ser realizada com o intervalo
mínimo de uma semana e máximo de dois meses após a coleta da primeira amostra.
O uso do não-HDL-colesterol tem como finalidade melhorar a quantificação de
lipoproteínas aterogênicas circulantes no plasma de indivíduos com
hipertrigliceridemia.

Classificação
As dislipidemias primárias ou sem causa aparente podem ser classificadas
genotipicamente ou fenotipicamente através de análises bioquímicas.
Na classificação genotípica, as dislipidemias se dividem em monogênicas,
causadas por mutações em um só gene, e poligênicas, causadas por associações de
múltiplas mutações que isoladamente não seriam de grande repercussão.
A classificação fenotípica ou bioquímica considera os valores de colesterol total,
LDL-colesterol, triglicérides e HDL-colesterol. Compreende quatro tipos principais bem
definidos:
- Hipercolesterolemia isolada, caracterizada por elevação isolada do
LDL-colesterol, com dosagem superior ou igual a 160mg/dL;
- Hipertrigliceridemia isolada, caracterizada por elevação isolada dos
triglicérides, com dosagem superior ou igual a 150mg/dL, refletindo o
aumento do volume de partículas ricas em triglicérides, como VLDL,
IDL e quilomícrons;
- Hiperlipidemia mista, caracterizada por valores aumentados de LDL-
colesterol e triglicérides;
- HDL-colesterol baixo, caracterizado por redução do HDL-colesterol,
com dosagem inferior a 40mg/dL em homens e a 50mg/dL em mulheres,
isoladamente ou em associação com aumento de LDL-colesterol ou
triglicérides;

Estratificação do risco
O primeiro passo na estratificação do risco é a identificação de manifestações
clínicas de doença aterosclerótica, como doença coronária manifesta atual ou prévia,
doença arterial cerebrovascular, doença aneurismática ou estenótica da aorta abdominal
ou de seus ramos, doença arterial periférica e doença arterial carotídea com estenose
superior ou igual a 50%, ou de seus equivalentes, como diabetes mellitus tipos 1 ou 2,
que caracterizam alto risco de eventos cardiovasculares.
Os pacientes sem diagnóstico de doença cardiovascular ou de equivalentes e que
apresentam menos de dois fatores de risco são classificados como de baixo risco de
eventos cardiovasculares.
Entre os indivíduos sem doença aterosclerótica significativa e que apresentem
dois ou mais fatores de risco, pode-se estimar pelo Escore de Risco de Framingham
aqueles de risco baixo, com probabilidade inferior a 10% de infarto ou morte por
doença coronária no período de dez anos, e alto, com probabilidade superior a 20% de
infarto ou morte por doença coronária no período de dez anos. Para os indivíduos
identificados pelo Escore de Risco de Framingham como portadores de risco

Pedro Kallas Curiati 357


intermediário, com probabilidade entre 10% e 20% de infarto ou morte por doença
coronária no período de dez anos, maior atenção deverá ser dada aos fatores agravantes,
para aperfeiçoar a acurácia do Escore de Risco de Framingham.
Os pacientes de baixo e médio risco que apresentem fatores agravantes podem
ser classificados em uma categoria de risco acima daquela estimada isoladamente pelo
escore. Fatores agravantes de risco incluem história familiar de doença coronariana
precoce, síndrome metabólica, microalbuminúria ou macroalbuminúria, hipertrofia
ventricular esquerda, insuficiência renal crônica, com creatinina superior ou igual a
1.5mg/dL ou clearance de creatinina inferior a 60mL/minuto, proteína C reativa de alta
sensibilidade superior a 3mg/dL na ausência de etiologia não aterosclerótica e exame
complementar com evidência de doença aterosclerótica subclínica, como escore de
cálcio coronário superior a 100 ou superior ao percentil 75 para idade ou sexo,
espessamento de carótida máximo superior a 1mm e índice tornozelo-braquial inferior a
0.9. A utilização de testes diagnósticos bioquímicos e/ou de exames de imagem para
detecção da aterosclerose subclínica não são preconizados como ferramentas de rotina
na estratificação de risco, mas podem ser incorporados de forma individualizada em
indivíduos que apresentem história familiar de doença aterosclerótica precoce ou que
sejam considerados como de risco intermediário segundo o Escore de Risco de
Framingham.
Os critérios diagnósticos de síndrome metabólica incluem obesidade abdominal,
triglicérides superiores ou iguais a 150mg/dL ou tratamento para hipertrigliceridemia,
HDL-colesterol inferior a 40mg/dL para homens e 50mg/dL para mulheres, pressão
arterial sistêmica sistólica superior ou igual a 130mmHg ou diastólica superior ou igual
a 85mmHg ou tratamento para hipertensão arterial sistêmica e glicemia de jejum
superior ou igual a 100mg/dL ou tratamento para diabetes mellitus. O diagnóstico de
síndrome metabólica inclui a presença de obesidade abdominal, como condição
essencial, e dois ou mais dentre os outros critérios. É considerada obesidade abdominal
em homens cintura superior ou igual a 94cm em brancos de origem europídea e negros,
superior ou igual a 90cm em sul-asiáticos, ameríndios e chineses e superior ou igual a
85cm em japoneses. É considerada obesidade abdominal em mulheres cintura superior
ou igual a 80cm em brancas de origem europídea, negras, sul-asiáticas, ameríndias e
chinesas e superior ou igual a 90cm em japonesas.

Metas terapêuticas e reavaliação do risco


Todos os pacientes com dislipidemia isolada e aqueles com risco cardiovascular
aumentado devem ser orientados para a instituição de medidas não-farmacológicas
relacionadas à mudança do estilo de vida. O tratamento farmacológico deve ser iniciado
naqueles que não atingirem as metas após medidas não-farmacológicas em seis meses se
risco baixo e em três meses se risco intermediário. Nos indivíduos de alto risco as
medidas não-farmacológicas e o tratamento com hipolipemiantes devem ser iniciados
simultaneamente.
Nos pacientes com doença aterosclerótica significativa, de acordo com
evidências atuais, a obtenção do nível de LDL-colesterol igual ou inferior a 70mg/dL
traz redução adicional da incidência de eventos cardiovasculares.
Risco em dez anos Meta terapêutica (mg/dL)
LDL-colesterol Não-HDL-colesterol
Risco baixo, inferior a 10% Inferior a 160 Inferior a 190
Risco intermediário, de 10-20% Inferior a 130 Inferior a 160
Alto risco, superior a 20%, ou Inferior a 100, opcionalmente Inferior a 130, opcionalmente
diabetes mellitus inferior a 70 inferior a 100
Aterosclerose significativa Inferior a 70 Inferior a 100

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As metas de HDL-colesterol são valores superiores ou iguais a 40mg/dL para
homens e superiores a 50mg/dL para mulheres. As metas de triglicérides são valores
inferiores a 150mg/dL.
Em pacientes com níveis de triglicérides elevados, o objetivo primário é atingir o
alvo de LDL-colesterol. Se a concentração de triglicérides permanecer elevada após o
objetivo de LDL-colesterol ter sido alcançado, o não-HDL-colesterol torna-se o alvo
secundário de tratamento. Quando a concentração de triglicérides é superior a
500mg/dL, o objetivo primário do tratamento passa a ser o controle da
hipertrigliceridemia.
Nos pacientes com níveis reduzidos de HDL colesterol, o objetivo primário do
tratamento é a redução do LDL-colesterol. Se a concentração de triglicérides estiver
elevada, após o valor alvo do LDL-colesterol ter sido atingido, o objetivo do tratamento
passa a ser a concentração de não-HDL-colesterol.

Tratamento não farmacológico

Terapia nutricional
As recomendações dietéticas para tratamento das hipercolesterolemias incluem
gordura total com 25-35% das calorias totais, ácidos graxos saturados com 7% ou
menos das calorias totais, ácidos graxos poli-insaturados com 10% ou menos das
calorias totais, ácidos graxos monoinsaturados com 20% ou menos das calorias totais,
carboidratos com 50-60% das calorias totais, proteínas com cerca de 15% das calorias
totais, menos de 200mg/dia de colesterol, 20-30g/dia de fibras e quantidade total de
calorias ajustada para o peso desejável.
Para reduzir a ingesta de colesterol, deve-se diminuir o consumo de alimentos de
origem animal, em especial vísceras, leite integral e seus derivados, embutidos, frios,
pele de aves e frutos do mar, como camarão, ostra, marisco, polvo e lagosta. Para
diminuir o consumo de ácidos graxos saturados, aconselha-se a redução da ingesta de
gordura animal, presente em carnes gordurosas, leite e derivados, polpa e leite de coco e
alguns óleos vegetais, como os de dendê.
Os ácidos graxos insaturados são classificados em duas categorias principais, os
poli-insaturados, representados pelas séries ômega-6 (linoleico e araquidônico) e
ômega-3 (alfalinolênico, eicosapentaenóico-EPA e docosahexaenóico- DHA), e os
monoinsaturados, representados pela série ômega-9 (oleico). O ácido linoleico é
essencial e o precursor dos demais ácidos graxos poli-insaturados da série ômega-6,
cujas fontes alimentares são os óleos vegetais de soja, milho e girassol. A substituição
isocalórica dos ácidos graxos saturados por ácidos graxos poli-insaturados reduz o
colesterol total e o LDL-colesterol plasmáticos. Os ácidos graxos poli-insaturados
possuem o inconveniente de induzir maior oxidação lipídica e diminuir o HDL-
colesterol quando utilizados em grande quantidade. Os ácidos graxos ômega-3 são
encontrados nos vegetais (soja, canola e linhaça) e em peixes de águas frias (cavala,
sardinha, salmão e arenque). Promovem redução dos triglicérides plasmáticos pela
diminuição da síntese hepática de VLDL, podendo ainda exercer outros efeitos
cardiovasculares, como redução da viscosidade do sangue, maior relaxamento do
endotélio e também efeitos antiarrítmicos. Os ácidos graxos monoinsaturados (oléico)
exercem o mesmo efeito sobre a colesterolemia, sem, no entanto, diminuir o HDL-
colesterol e provocar oxidação lipídica. Suas principais fontes dietéticas são o óleo de
oliva, óleo de canola, azeitona, abacate e oleaginosas (amendoim, castanhas, nozes e
amêndoas).
Os ácidos graxos trans são sintetizados durante o processo de hidrogenação dos

Pedro Kallas Curiati 359


óleos vegetais. Aumentam o LDL-colesterol e os triglicérides e reduzem o HDL-
colesterol. A principal fonte é a gordura vegetal hidrogenada, utilizada no preparo de
sorvetes cremosos, chocolates, pães recheados, molhos para salada, sobremesas
cremosas, biscoitos recheados, alimentos com consistência crocante (nuggets, croissants
e tortas), bolos industrializados, margarinas duras e alguns alimentos produzidos em
redes de “fast-foods”. Não há consenso em relação à quantidade máxima permitida na
dieta, mas recomenda-se que a ingesta deva ser menor do que 1% das calorias totais da
dieta.
Fibras são carboidratos complexos classificados de acordo com sua solubilidade.
As fibras solúveis são representadas pela pectina (frutas) e pelas gomas (aveia, cevada e
leguminosas) e reduzem o tempo de trânsito gastrointestinal e a absorção enteral do
colesterol. O farelo de aveia é o alimento mais rico em fibras solúveis e pode, portanto,
diminuir moderadamente o colesterol sanguíneo. As fibras insolúveis não atuam sobre a
colesterolemia, mas aumentam a saciedade, auxiliando na redução da ingesta calórica.
São representadas pela celulose (trigo), hemicelulose (grãos) e lignina (hortaliças). A
recomendação de ingesta de fibra alimentar total para adultos é de 20-30g/dia, 5-10g das
quais devem ser solúveis, como medida adicional para a redução do colesterol.
Os fitosteróis são encontrados apenas nos vegetais e desempenham funções
estruturais análogas ao colesterol em tecidos animais. Reduzem a colesterolemia por
competirem com a absorção do colesterol da luz intestinal. Uma dieta balanceada com
quantidades adequadas de vegetais fornece aproximadamente 200-400mg de fitosteróis
e os níveis plasmáticos variam de 0.3-1.7mg/dL. No entanto, é necessária a ingesta de
2g/dia para a redução média de 10-15% do LDL-colesterol. Os fitosteróis não
influenciam os níveis plasmáticos de HDL-colesterol e de triglicérides. A ingesta de 3-
4g/dia pode ser utilizada como adjuvante ao tratamento hipolipemiante.
A ingesta de proteína da soja (25g/dia) pode reduzir o colesterol plasmático e,
portanto, ser considerada como auxiliar no tratamento da hipercolesterolemia. Os dados
disponíveis são contraditórios quanto aos efeitos sobre triglicérides e HDL-colesterol.
As principais fontes de soja na alimentação são feijão de soja, óleo de soja, queijo de
soja (tofu), molho de soja (shoyo), farinha de soja, leite de soja e concentrado proteico
da soja, que exclui a presença de gorduras, mantendo carboidratos e 75% da sua
composição em proteínas.
Os antioxidantes, dentre eles os flavonoides, presentes na dieta podem
potencialmente estar envolvidos na prevenção da aterosclerose por inibirem a oxidação
das LDL, diminuindo sua aterogenicidade e, consequentemente, o risco de doença
arterial coronária. Os flavonoides são antioxidantes polifenólicos encontrados nos
alimentos, principalmente em verduras, frutas (cereja, amora, uva, morango e
jabuticaba), grãos, sementes, castanhas, condimentos e ervas, e também em bebidas,
como vinho, suco de uva e chá. Não há estudos randomizados, controlados e com
número suficiente de pacientes que demonstrem a prevenção de eventos clínicos
relacionados à aterosclerose com suplementações com antioxidantes.
Pacientes com níveis muito elevados de triglicérides e que apresentem
quilomicronemia devem reduzir a ingesta de gordura total da dieta. Recomenda-se a
ingesta de no máximo 15% das calorias diárias na forma de gordura. Na
hipertrigliceridemia secundária a obesidade ou diabetes mellitus, recomenda-se dieta
hipocalórica, adequação do consumo de carboidratos e gordura, controle da
hiperglicemia e restrição total do consumo de álcool.

Atividade física
A atividade física regular constitui medida auxiliar para o controle das

Pedro Kallas Curiati 360


dislipidemias e tratamento da doença arterial coronária. A prática de exercícios físicos
aeróbios promove redução dos níveis plasmáticos de triglicérides e aumento dos níveis
de HDL-colesterol, porém sem alterações significativas sobre as concentrações de LDL-
colesterol. Indivíduos com disfunção ventricular, em recuperação de eventos
cardiovasculares ou cirurgias ou mesmo com sinais e sintomas com baixas ou
moderadas cargas de esforço, devem ingressar em programas de reabilitação
cardiovascular supervisionado, de preferência em equipe multidisciplinar.
Além da avaliação clínica, deve ser realizado um teste ergométrico ou teste
cardiorrespiratório em esforço (ergoespirometria) para determinação da capacidade
física individual e da intensidade de treinamento a ser preconizada. O programa de
treinamento físico, para a prevenção ou para a reabilitação, deve incluir exercícios
aeróbios, tais como, caminhadas, corridas leves, ciclismo e natação. Os exercícios
devem ser realizados de três a seis vezes por semana, em sessões de duração de trinta a
sessenta minutos. Nas atividades aeróbias, recomenda-se como intensidade a zona alvo
situada em 60-80% da frequência cardíaca máxima, estimada em teste ergométrico. Na
vigência de medicamentos que modifiquem a frequência cardíaca máxima, como os β-
bloqueadores, a zona alvo permanecerá 60-80% da frequência cardíaca máxima obtida
no teste em vigência do tratamento. Quando estiver disponível avaliação
ergoespirométrica, a zona alvo deverá ser definida pela frequência cardíaca situada entre
o limiar anaeróbio e o ponto de compensação respiratória.
O componente aeróbio das sessões de condicionamento físico deve ser
acompanhado por atividades de aquecimento, alongamento e desaquecimento.
Exercícios de resistência muscular localizada podem ser utilizados, com sobrecargas de
até 50% da força de contração voluntária máxima, porém como complemento ao
treinamento aeróbio.

Cessação do tabagismo
A cessação do tabagismo constitui medida fundamental e prioritária na
prevenção primária e secundária da aterosclerose. Entre os métodos de suporte à
cessação, os mais efetivos são abordagem cognitivo-comportamental e farmacoterapia,
nicotínica e não-nicotínica. A terapia de reposição de nicotina está disponível na forma
de adesivos de liberação transdérmica e goma de mascar. Os medicamentos não-
nicotínicos incluem Bupropiona, Nortriptilina, Vareniclina e a Clonidina.

Tratamento medicamentoso
Os hipolipemiantes devem ser empregados sempre que não houver efeito
satisfatório das mudanças de estilo de vida ou impossibilidade de aguardar os efeitos
das mudanças de estilo de vida por prioridade clínica. A escolha da classe terapêutica
está condicionada ao tipo de dislipidemia presente.
Na hipercolesterolemia isolada, os medicamentos recomendados são as estatinas,
que podem ser administradas em associação a Ezetimiba, Colestiramina e,
eventualmente, fibratos ou Ácido Nicotínico.
No tratamento da hipertrigliceridemia isolada são prioritariamente indicados os
fibratos e, em segundo lugar, o Ácido Nicotínico ou a associação de ambos. Pode-se
ainda utilizar o ácido graxo ômega-3 isoladamente ou em associação com os fármacos.
Na hiperlipidemia mista, o nível de triglicérides deverá orientar como o
tratamento farmacológico será iniciado. Caso os níveis de triglicérides estejam acima de
500mg/dL, deve-se iniciar o tratamento com um fibrato, adicionando se necessário
Ácido Nicotínico e/ou ômega-3. Nesta situação, a meta prioritária é a redução do risco
de pancreatite. Após reavaliação, caso haja a necessidade de redução adicional da

Pedro Kallas Curiati 361


colesterolemia, pode-se adicionar uma estatina e/ou outros redutores da colesterolemia.
Nestes casos, deve ser evitado o uso do Genfibrozil em associações entre fibratos e
estatinas. Caso os níveis de triglicérides estejam abaixo de 500mg/dL, deve-se iniciar o
tratamento com uma estatina isoladamente ou associada à Ezetimiba, priorizando-se a
meta de LDL-colesterol e não-HDL-colesterol.
Fibratos e Ácido Nicotínico são as opções disponíveis para tratamento de
indivíduos com HDL-colesterol baixo, particularmente naqueles com aumento dos
triglicérides.

Estatinas
As estatinas são inibidores da HMG-CoA redutase, uma das enzimas chave na
síntese intracelular do colesterol. Sua inibição reduz o conteúdo intracelular de
colesterol e, como consequência, há aumento do número de receptores de LDL nos
hepatócitos, que então removem mais VLDL, IDL e LDL da circulação para repor o
colesterol intracelular. Estes medicamentos reduzem o LDL-colesterol em 15-55% e os
triglicérides em 7-28% e elevam o HDL-colesterol em 2-10%. As estatinas reduzem a
mortalidade cardiovascular, a incidência de eventos isquêmicos coronários agudos, a
necessidade de revascularização do miocárdio e a incidência de acidente vascular
cerebral.
Devem ser administradas por via oral, em dose única diária, preferencialmente à
noite para os fármacos de meia-vida curta ou em qualquer horário para aqueles com
meia-vida maior, como Atorvastatina e Rosuvastatina.
O efeito terapêutico só será mantido com doses diárias, não devendo o fármaco
ser suspenso ou usado em dias alternados, salvo haja efeito colateral ou contraindicação
clínica. Os efeitos adversos são raros durante tratamento com estatinas. Os mais graves,
como hepatite, miosite e rabdomiólise, são observados ainda mais raramente. No
entanto, para identificar possíveis efeitos adversos recomenda-se a dosagem dos níveis
basais de creatinofosfoquinase e de transaminases, especialmente de alanina-
aminotransferase, e a repetição na primeira reavaliação ou a cada aumento de dose.
Recomenda-se monitorização cuidadosa em pacientes que apresentarem dor muscular
e/ou aumento de creatinofosfoquinase de três a sete vezes o limite superior da
normalidade. As estatinas devem ser suspensas caso ocorra um ou mais dentre aumento
progressivo da creatinofosfoquinase, aumento da creatinofosfoquinase acima de dez
vezes o limite superior da normalidade e persistência de sintomas musculares. Nestas
situações, após normalização do distúrbio que levou à suspensão, a mesma estatina com
dose menor pode ser reiniciada ou outra estatina pode ser tentada.
São evidências de hepatotoxicidade icterícia, hepatomegalia, aumento de
bilirrubina direta e aumento do tempo de protrombina. Na ausência de obstrução biliar,
a dosagem da bilirrubina direta é mais acurada que a simples dosagem das
transaminases para identificação e avaliação prognóstica de hepatotoxicidade. Nos casos
com identificação objetiva de hepatotoxicidade, recomenda-se suspensão da estatina e
pesquisa da etiologia. Em pacientes assintomáticos, a elevação isolada de uma a três
vezes o limite superior da normalidade das transaminases não justifica a suspensão do
tratamento com estatina. Caso ocorra elevação isolada e superior a três vezes do limite
superior da normalidade, um novo exame deverá ser feito para confirmação e outras
etiologias avaliadas. Nestes casos, a redução da dose ou suspensão da estatina deverá
ser baseada no julgamento clínico. Não há contraindicação do uso de estatinas em
pacientes com doença hepática crônica. Entretanto, é contraindicado seu uso em
pacientes com hepatopatias agudas.
Fármaco Doses Queda do LDL-colesterol

Pedro Kallas Curiati 362


Sinvastatina 20-80mg 27-42%
Lovastatina 10-80mg 21-41%
Pravastatina 20-40mg 20-33%
Fluvastatina 20-80mg 15-37%
Atorvastatina 10-80mg 37-55%
Rosuvastatina 10-40mg 43-55%

Ezetimiba
A Ezetimiba é um inibidor de absorção do colesterol que atua na borda em
escova das células intestinais inibindo a ação da proteína transportadora do colesterol.
Usada isoladamente, reduz em cerca de 20 % o LDL-colesterol. Entretanto, variações de
resposta podem ocorrer em indivíduos com absorção intestinal de colesterol acima ou
abaixo da média populacional. Tem sido mais frequentemente empregada em
associação com as estatinas, em função da potenciação da redução do colesterol
intracelular.
É recomendado o uso da Ezetimiba isoladamente em casos de intolerância à
estatina e em casos de sitosterolemia. Em associação com estatinas, a Ezetimiba pode
ser usada em casos de elevações persistentes do LDL-colesterol apesar de doses
adequadas de estatinas, em casos de hipercolesterolemia familiar homozigótica ou como
primeira opção terapêutica conforme indicação clínica.
A Ezetimiba é empregada na dose única de 10mg/dia. Pode ser administrada a
qualquer hora do dia, com ou sem alimentação, não interferindo na absorção de
gorduras e vitaminas lipossolúveis. Até o momento, raros efeitos colaterais têm sido
apontados. Por precaução, recomenda-se que ela não seja utilizada em casos de
dislipidemia com doença hepática aguda.

Resinas de troca
São fármacos que reduzem a absorção intestinal de sais biliares e,
consequentemente, de colesterol. Com a redução da absorção, reduz-se o colesterol
intracelular no hepatócito e, por este motivo, aumenta-se o número de receptores de
LDL e a síntese de colesterol. O efeito sobre a colesterolemia é variável, reduzindo em
média 20% dos valores basais de LDL-colesterol. Esse efeito é potencializado pelo uso
concomitante de estatinas. Ocasionalmente pode promover pequena elevação do HDL-
colesterol.
A Colestiramina pode ser usada como adjuvante às estatinas no tratamento das
hipercolesterolemias graves, podendo também ser utilizada em crianças, sendo a única
liberada para mulheres no período reprodutivo sem método anticoncepcional efetivo. É
apresentada em envelopes de 4g e a posologia inicial é de 4g/ dia, podendo-se atingir no
máximo 24g/dia, com doses superiores a 16g/dia dificilmente toleradas. A apresentação
na forma “light” pode melhorar sua tolerância, mas contém fenilalanina, o que restringe
seu uso em portadores de fenilcetonúria. Os principais efeitos colaterais relacionam-se
ao aparelho digestivo, por interferir na motilidade intestinal, com obstipação, plenitude
gástrica, náusea e meteorismo, além de exacerbação de hemorroidas preexistentes.
Raramente, pode ocorrer obstrução intestinal e acidose hiperclorêmica em idosos e
crianças, respectivamente. Diminui eventualmente a absorção de vitaminas
lipossolúveis (A, D, K, E) e de ácido fólico. Suplementação desses elementos a
crianças, ou eventualmente a adultos, pode ser necessária. Entre os efeitos bioquímicos,
verifica-se eventualmente aumento dos triglicérides, secundário ao estímulo à síntese
hepática de VLDL. Como consequência, seu uso deve ser evitado na
hipertrigliceridemia, particularmente se houver níveis acima de 400mg/dL. Qualquer

Pedro Kallas Curiati 363


medicamento concomitante deve ser utilizado uma hora antes ou quatro horas depois da
administração das resinas.

Fibratos
São fármacos derivados do ácido fíbrico que agem estimulando os receptores
nucleares denominados “receptores alfa ativados de proliferação dos peroxissomas”
(PPAR-α). Esse estímulo leva a aumento da produção e ação da lipase lipoprotéica,
responsável pela hidrólise intravascular dos triglicérides, e redução da Apo CIII,
responsável pela inibição da lipase lipoproteica. O estímulo do PPAR-α pelos fibratos
também leva a maior síntese da Apo AI e, consequentemente, de HDL.
Reduzem os níveis de triglicérides em 30-60%, mas a redução será mais
pronunciada quanto maior o valor basal. Aumentam o HDL-colesterol em 7-11%. Sua
ação sobre o LDL-colesterol é variável, podendo diminuí-lo, não modifica-lo ou até
aumentá-lo. Parecem ter efeitos pleiotrópicos, contudo não se conhece a relevância
clínica dos mesmos.
Os fibratos são indicados no tratamento da hipertrigliceridemia endógena
quando houver falha das medidas não-farmacológicas. Quando os triglicérides forem
muito elevados, acima de 500mg/dL, são recomendados inicialmente, junto com as
medidas não farmacológicas. Também podem ser usados no tratamento da dislipidemia
mista com predomínio de hipertrigliceridemia.
É infrequente a ocorrência de efeitos colaterais graves durante tratamento com
fibratos, levando à necessidade da interrupção do tratamento. Podem ocorrer distúrbios
gastrointestinais, mialgia, astenia, litíase biliar, diminuição de libido, erupção cutânea,
prurido, cefaleia e perturbação do sono. Raramente observa-se aumento de enzimas
hepáticas e/ou creatinofosfoquinase, também de forma reversível com a interrupção do
tratamento. Casos de rabdomiólise têm sido descritos com o uso da associação de
estatinas com Genfibrozil. Recomenda-se, por isso, evitar essa associação. É necessária
cautela em caso de doença biliar, uso concomitante de anticoagulante oral, cuja
posologia deve ser ajustada, função renal diminuída e associação com estatinas.
Fármaco Doses Aumento do HDL-colesterol Diminuição dos triglicérides
Bezafibrato 400-600mg/dia 5-30% 15-55%
Ciprofibrato 100mg/dia 5-30% 15-45%
Etofibrato 500mg/dia 5-20% 10-30%
Fenofibrato 250mg/dia 5-30% 10-30%
Genfibrozil 600-1200mg/dia 5-30% 20-60%
O Bezafibrato é apresentado na forma de comprimidos de 200mg para
administração até de 8/8 horas.

Ácido Nicotínico
O Ácido Nicotínico reduz a ação da lipase tecidual nos adipócitos, levando à
menor liberação de ácidos graxos livres para a corrente sanguínea. Como consequência,
reduz-se a síntese de triglicérides pelos hepatócitos.
Reduz o LDL-colesterol em 5-25%, aumenta o HDL-colesterol em 15-35% e
diminui os triglicérides em 20-50%.
Pode ser utilizado em pacientes com HDL-colesterol baixo isolado, mesmo sem
hipertrigliceridemia associada, e como alternativa aos fibratos e às estatinas ou em
associação com esses fármacos em portadores de hipercolesterolemia,
hipertrigliceridemia ou dislipidemia mista. Devido a menor tolerabilidade com a forma
de liberação imediata, com rubor e prurido, e à descrição de hepatotoxicidade com a
forma de liberação lenta, tem sido preconizado seu uso na forma de liberação

Pedro Kallas Curiati 364


intermediária, com melhor perfil de tolerabilidade.
É apresentado na forma de comprimidos de 250mg, 500mg, 750mg e 1000mg.
Deve ser administrado na hora de deitar, junto com algum alimento leve e não
gorduroso. Como os efeitos adversos relacionados, como o rubor facial e o prurido,
ocorrem com maior frequência no início do tratamento, recomenda-se dose inicial de
500mg ao dia e aumento gradual, em geral para 750mg e depois para 1000mg, com
intervalos de quatro semanas a cada titulação de dose, buscando-se atingir 1-2g/dia em
dose única.
O pleno efeito sobre o perfil lipídico apenas será atingido com o decorrer de
vários meses de tratamento. Com a forma de liberação intermediária e o uso de doses
atualmente mais baixas de niacina, outros efeitos como alterações gastrointestinais,
hiperglicemia e hiperuricemia tornaram-se mais raros.

Ácidos graxos ômega 3


Os ácidos graxos omega-3 são derivados do óleo de peixes provenientes de
águas frias e profundas, que reduzem a síntese hepática dos triglicérides. Os mais
importantes são o eicosapentaenoico e o docosahexaenóico. Em altas doses, de 4-
10g/dia, reduzem os triglicérides e aumentam discretamente o HDL-colesterol. Podem,
entretanto, aumentar o LDL-colesterol.
Podem ser utilizados como terapia adjuvante na hipertrigliceridemia ou em
substituição a fibratos, Niacina ou estatinas em pacientes intolerantes.

Bibliografia
IV Diretriz Brasileira Sobre Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose. Departamento de Aterosclerose da Sociedade Brasileira de
Cardiologia. Arquivos Brasileitos de Cardiologia - Volume 88, Suplemento I, Abril 2007.
Clínica médica: diagnóstico e tratamento. Itamar de Souza Santos... [et al.]. São Paulo. Sarvier, 2008.
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

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Escore de Risco de Framingham

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DOENÇA CORONÁRIA CRÔNICA
Conceitos
Doença arterial coronária é caracterizada pelo comprometimento da circulação
coronária com alterações da luz das artérias, podendo levar a prejuízo no fluxo
sanguíneo. Na maioria das vezes, está relacionada a aterosclerose.
Insuficiência coronária é caracterizada pela incapacidade da circulação coronária
em manter o fluxo sanguíneo adequado em todas as condições de demanda de oxigênio.
Isquemia é a expressão da insuficiência da circulação sanguínea coronária no
momento em que ocorre um desequilíbrio entre o consumo e a oferta de oxigênio.

Fisiopatologia
A demanda de oxigênio do miocárdio é determinada por frequência cardíaca,
pressão arterial sistólica, contratilidade e tensão das fibras da musculatura cardíaca.
Dessa forma, condições clínicas que interfiram nesses fatores, tais como exercício,
hipertensão arterial sistêmica, ansiedade, febre, dor, medicamentos vasoativos,
hipertrofia miocárdica e sobrecarga de volume, dentre outras, podem determinar
isquemia miocárdica pelo aumento do consumo de oxigênio.
Isquemia silenciosa é a isquemia sem sintomas concomitantes, detectada por
exames complementares.

Etiologia
A causa mais comum de doença arterial coronariana é a aterosclerose, um
processo imuno-inflamatório desencadeado pela oxidação das lipoproteínas de baixa
densidade (LDL-colesterol) e que ocorre inicialmente na camada subintimal das
artérias. Em associação, ocorrem disfunção endotelial e, consequentemente, redução das
substâncias protetoras produzidas pelo endotélio íntegro, como o óxido nítrico. A
gênese da doença aterosclerótica, assim como a sua gravidade, está intimamente
relacionada à presença de fatores de risco, que incluem hipertensão arterial sistêmica,
diabetes mellitus, resistência insulínica, tabagismo, dislipidemia, história familiar,
sedentarismo e obesidade. Agravantes de risco incluem história familiar de doença
arterial coronária prematura, microalbuminúria, hipertrofia ventricular esquerda,
insuficiência renal crônica, escore de cálcio coronário avaliado por tomografia
computadorizada superior a 400 ou acima do percentil 75 para idade e sexo, espessura
íntima média da carótida avaliada por ultrassonografia superior a 1mm, índice
tornozelo-braquial inferior a 0.9 e proteína C reativa ultra-sensível superior a 3mg/L na
ausência de afecções inflamatórias.
Arterites como arterite de Takayasu, arterite temporal, arterite pelo uso de
cocaína, arterite reumatoide e doença de Kawasaki também podem reduzir a luz das
artérias coronárias.
Alterações da microcirculação, tais como aquelas que ocorrem na hipertrofia
ventricular esquerda e na síndrome X, também podem causar insuficiência coronariana.
A síndrome X é secundária a disfunção endotelial ou alteração do tônus vascular e é
caracterizada por isquemia miocárdica detectada por eletrocardiograma ou cintilografia
de perfusão miocárdica na ausência de lesões obstrutivas das artérias coronárias na
cineangiocoronariografia. Quando ocorrem alterações eletrocardiográficas secundárias a
alterações no tônus vascular coronário, tem-se angina de Prinzmetal.
Outras causas de insuficiência coronariana incluem trajeto anômalo da artéria

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descendente anterior ou da artéria circunflexa esquerda, origem anômala da artéria
coronária esquerda na artéria pulmonar, insuficiência aórtica e estenose aórtica.

Quadro clínico
A maioria dos indivíduos com doença nas artérias coronárias não apresenta
sintomas. A dor pode ser descrita como sensação de asfixia e ansiedade, constrição,
queimação, peso ou aperto. Os locais mais comuns do desconforto são o retroesternal e
o precordial, ocorrendo irradiação para superfície ulnar do antebraço esquerdo, membro
superior direito, dorso, pescoço e, raramente, acima da mandíbula. Pode ocorrer queixa
apenas de dor epigástrica ou desconforto torácico. Os equivalentes anginosos, como
dispneia, tontura, fadiga e eructações também são frequentes, sobretudo em idosos. Os
desencadeantes típicos incluem exercício e estresse emocional, sendo obtido alívio com
repouso e uso de nitratos.
Sinais de disfunção ventricular esquerda, como quarta bulha, podem sugerir
miocardiopatia isquêmica, embora outras doenças cardíacas, como miocardiopatia
valvar, hipertensiva e idiopática, também possam estar relacionadas. Sinais de disfunção
ventricular esquerda transitória durante episódio de dor isquêmica incluem sopro
sistólico de regurgitação mitral, estertores crepitantes pulmonares e terceira bulha. Em
pacientes com angina devido a outras causas que não obstrução coronária por ateromas,
podem ser encontrados sinais específicos do fator causal, como sopro sistólico aórtico
ejetivo em caso de estenose aórtica ou cardiomiopatia hipertrófica, mucosas descoradas
em caso de anemia e sinais de tireotoxicose em caso de hipertireoidismo.

Diagnóstico
Uma descrição detalhada das características da dor e dos fatores de risco de
doença arterial coronariana deve sempre ser obtida, de forma que ao final da anamnese
seja possível classificar em definitivamente anginosa, provavelmente anginosa ou
provavelmente não-anginosa.
O exame clínico é frequentemente normal nos pacientes com angina, não sendo
de grande utilidade no diagnóstico de doença arterial coronariana, mas pode ter achados
de grande valor prognóstico e auxiliar no diagnóstico diferencial da dor torácica.

Graduação da angina de peito pela Canadian Society of Cardiology (CCS)


Classe I quando atividade física habitual, como caminhar ou subir escadas, não
provoca angina, que ocorre com esforços físicos prolongados e intensos.
Classe II quando ocorre discreta limitação para atividades habituais. A angina
ocorre após caminhar dois quarteirões planos ou subir mais de um lace de escadas em
condições normais.
Classe III quando ocorre limitação significativa para as atividades habituais. A
angina ocorre ao caminhar um quarteirão plano ou subir um lance de escada.
Classe IV quando incapacidade de realizar qualquer atividade habitual sem
desconforto. Os sintomas anginosos podem estar presentes no repouso.

Diagnóstico diferencial
Causas cardiovasculares, como doença coronária com ou sem aterosclerose,
doença valvar aórtica, cardiomiopatia hipertrófica ou dilatada, pericardite, dissecção e
aneurisma de aorta, prolapso da valva mitral, tromboembolismo pulmonar e hipertensão
pulmonar.
Causas gastrointestinais, como esofagite, espasmo esofágico, hérnia de hiato,
úlcera péptica, gastrite e colecistite.

Pedro Kallas Curiati 369


Causas neuromusculoesqueléticas, como costocondrite (síndrome de Tietze), dor
de parede torácica, radiculite torácica ou cervical e artropatia de ombro.
Causas torácicas e respiratórias, como pneumotórax, mediastinite, pleurite e
neoplasias.

Exames complementares

Métodos não invasivos


Exames laboratoriais incluem glicemia de jejum, perfil lipídico, hemograma,
função renal, albuminúria e proteína C reativa ultrassensível.
Radiografia de tórax tem a função de avaliar a área cardíaca e auxiliar no
diagnóstico diferencial.
Eletrocardiograma de repouso é normal em aproximadamente 60% dos
portadores de doença coronariana crônica, mesmo naqueles com doença grave. Ondas Q
patológicas, ou seja, ondas Q com mais de 0.03ms de duração ou mais de um quarto do
tamanho do QRS em duas derivações contíguas, confirmam a existência de infarto
pregresso. Alterações do segmento ST e da onda T podem estar presentes, sendo, no
entanto, mais comuns na vigência de isquemia aguda. Distúrbios de condução podem
estar presentes, sobretudo bloqueios de ramo esquerdo e da divisão ântero-superior,
assim como extra-sístoles ventriculares.
Monitorização ambulatorial do eletrocardiograma pode detectar isquemia
miocárdica através do registro de episódios de infra ou supradesnivelamento do
segmento ST, com ou sem manifestação anginosa.
Exercício é um esforço fisiológico comumente utilizado para evidenciar
anormalidades cardiovasculares ausentes no repouso e para determinar a adequação da
função cardíaca. O teste ergométrico tem por objetivo submeter o paciente a esforço
físico programado e personalizado com a finalidade de avaliar as respostas clínica,
hemodinâmica, eletrocardiográfica e metabólica ao esforço. Permite identificar
isquemia miocárdica, arritmias cardíacas e distúrbios hemodinâmicos induzidos pelo
esforço, avaliar a capacidade funcional, avaliar o diagnóstico e o prognóstico das
doenças cardiovasculares, prescrever exercícios, avaliar objetivamente o resultado das
intervenções terapêuticas e demonstrar aos pacientes e familiares suas reais condições
físicas. Os principais critérios para o diagnóstico de isquemia miocárdica são o
infradesnivelamento horizontal ou descendente do segmento ST, atingindo no mínimo
0.1mV 80ms após o ponto J, e o infradesnivelamento ascendente do segmento ST,
atingindo no mínimo 0.15mV 80ms após o ponto J. Parâmetros associados a
prognóstico adverso e doença coronária de múltiplos vasos incluem
infradesnivelamento do segmento ST superior ou igual a 2mm de morfologia
descendente, começando em menos de 6 METs, envolvendo cinco ou mais derivações e
persistindo por cinco ou mais minutos da recuperação, elevação do segmento ST
induzida por esforço, taquicardia ventricular reprodutível sintomática, duração do teste
inferior a 6 METs, incompetência cronotrópica, incapacidade de aumentar a pressão
arterial sistólica para valor igual ou superior a 120mmHg, diminuição sustentada da
pressão arterial sistólica igual ou superior a 10mmHg ou para valores inferiores aos de
repouso durante exercício progressivo, angina induzida pelo esforço e curto tempo para
surgimento da angina. As contraindicações incluem infarto agudo do miocárdio, angina
instável de moderado a alto risco, lesão importante do tronco da artéria coronária
esquerda ou equivalente, hipertensão arterial sistêmica grave, estenose aórtica grave,
pericardite aguda, miocardite aguda e endocardite infecciosa. Distúrbios da condução do
estímulo, bloqueio do ramo esquerdo e alterações do segmento ST em repouso

Pedro Kallas Curiati 370


dificultam a interpretação do exame.
Cintilografia de perfusão miocárdica está indicada para pacientes com
eletrocardiograma anormal e na dificuldade de interpretação do segmento ST, como nos
portadores de hipertrofia de ventrículo esquerdo ou bloqueio de ramo esquerdo e
usuários de drogas digitálicas. Devido ao seu alto custo, seu emprego não é
recomendável para rastreamento de doença arterial coronariana em pacientes com
eletrocardiograma de repouso normal e baixa probabilidade de doença. Para aqueles
indivíduos nos quais não há possibilidade de realização do esforço físico, pode-se optar
pelo estresse farmacológico com vasodilatador, sendo o Dipiridamol e a Adenosina os
mais utilizados, ou pelo estresse com Dobutamina. Indicam alto risco múltiplos defeitos
de perfusão em mais de um território de suprimento arterial, defeitos grandes e intensos
de perfusão, captação pulmonar aumentada do radiofármaco, disfunção sistólica de
ventrículo esquerdo e dilatação transitória do ventrículo esquerdo.
Ecocardiografia de repouso e estresse é um exame valioso na avaliação de
portadores de doença arterial coronariana, pois permite avaliar função ventricular
esquerda, alterações segmentares de contratilidade miocárdica, hipertrofia de ventrículo
esquerdo e valvopatias associadas. As indicações para a realização de ecocardiograma
de estresse são semelhantes às da cintilografia de perfusão miocárdica.
A angiografia por meio da utilização de tomografia computadorizada ultra-
rápida tem alcançado avanços importantes na última década.
A ressonância nuclear magnética apresenta as mesmas funcionalidades do
ecocardiograma e da cintilografia de perfusão miocárdica. Pode ser utilizada para
avaliar a anatomia e a função ventricular em repouso, pesquisar a viabilidade ventricular
em repouso e avaliar função e perfusão miocárdica com estresse farmacológico.

Métodos invasivos
O diagnóstico definitivo, a avaliação anatômica de sua gravidade e suas
repercussões no desempenho cardíaco ainda requerem cateterismo cardíaco,
cineangiocoronariografia e ventriculografia esquerda, que constituem padrão-ouro no
diagnóstico da coronariopatia obstrutiva. São consideradas lesões significativas aquelas
que apresentam obstrução de 50% ou mais do lúmen arterial.
A angiografia coronariana deve ser reservada para pacientes em que o
diagnóstico de coronariopatia obstrutiva permanece duvidoso a despeito do estudo
funcional, há sinais de alto risco nos testes não-invasivos, sintomas permanecem a
despeito da terapia ideal, existe sintomatologia importante com mínimo esforço,
etiologia isquêmica é muito evidente ou é alta a probabilidade de indicação de
revascularização miocárdica.
Pacientes com prognóstico reservado devido a outras doenças clínicas, nos quais
estão descartados procedimentos de revascularização do miocárdio, não devem ser
submetidos a cineangiocoronariografia.

Tratamento clínico
Correção de fatores que podem descompensar o quadro clínico estável dos
pacientes e diminuir o limiar para dor.
Redução de fatores de risco, com abordagem de hipertensão arterial sistêmica,
diabetes mellitus, dislipidemia, obesidade, tabagismo e sedentarismo.
A prática de atividade física reduz a demanda miocárdica de oxigênio e aumenta
a capacidade física ao esforço. Sob supervisão médica, o exercício físico é seguro e
benéfico, sobretudo caminhadas, objetivando um mínimo de trinta minutos três a quatro
vezes por semana.

Pedro Kallas Curiati 371


Ácido Acetilsalicílico deve fazer parte do arsenal terapêutico do coronariopata
na dose de 75-325mg diários, com preferência para baixa dose de 100mg com proteção
entérica. Derivados tienopiridínicos, como o Clopidogrel e a Ticlopidina, são opções de
anti-agregantes plaquetários e devem ser utilizados nos pacientes que não possam
receber o Ácido Acetilsalicílico ou em associação com essa medicação após
angioplastia com stent, durante pelo menos 30 dias em caso de stent não farmacológico.
Dentre os vários agentes hipolipemiantes disponíveis no mercado, sem dúvida
alguma os mais usados são as estatinas. Constituem a melhor opção terapêutica para
controle do LDL-colesterol, visando valores inferiores a 70mg/dL em pacientes de mais
alto risco, porém com baixa eficácia em aumentar o HDL-colesterol e reduzir os
triglicérides, o que pode ser obtido com exercício físico e alimentação saudável. Em
pacientes de alto risco, há benefício do uso de estatinas independentemente dos níveis
iniciais de colesterol plasmático.
Nitratos são agentes farmacológicos capazes de reduzir a pré-carga e a pós-
carga, além de causarem dilatação coronariana. Seu uso é reservado para pacientes com
sintomas a despeito do uso de β-bloqueadores ou na impossibilidade de usar essas
medicações. No portador de doença arterial coronária estável, há indicação para tratar os
episódios de angina. Quando é necessário o uso contínuo, são preferidas as formas oral
e transdérmica. Os efeitos adversos são comuns e incluem cefaleia, rubor facial e
hipotensão. As contraindicações incluem uso de medicações para disfunção erétil.
Fármaco Dose
Propatilnitrato 20-30mg/dia por via oral ou sublingual
Dinitrato de Isossorbida AP 40-120mg/dia por via oral fracionado em duas ou três doses diárias
Mononitrato de Isossorbida 40-120mg/dia por via oral fracionado em duas ou três doses diárias
Nitroglicerina 0.4-0.6mg/hora por 12-14 horas por via transdérmica
β-bloqueadores devem ser sempre prescritos aos pacientes com angina estável,
exceto se alguma contraindicação estiver presente. Os mais utilizados são o Propranolol,
o Metoprolol, o Atenolol e o Bisoprolol. Quando insuficiência cardíaca estiver presente,
deve-se preferir o Carvedilol. Devem ser utilizados com cautela em pacientes com
doença do nó sinusal ou do nó atrioventricular, asma ou doença pulmonar obstrutiva
crônica, insuficiência vascular periférica e diabetes mellitus em uso de Insulina. As
contraindicações incluem broncoespasmo, doença sintomática do sistema de condução
cardíaco e insuficiência cardíaca classe funcional IV. Efeitos adversos incluem fadiga,
depressão e disfunção erétil.
Fármaco Dose
Propranolol 40-240mg/dia fracionado em três a quatro doses diárias
Atenolol 25-100mg/dia em dose única ou fracionado em duas doses diárias
Metoprolol 50-200mg/dia em dose única ou fracionado em duas doses diárias
Bisoprolol 5-20mg/dia em dose única diária
Bloqueadores de canal de cálcio diidropiridínicos, como Nifedipina e
Anlodipina, devem preferencialmente ser usados em concomitância com β-
bloqueadores, uma vez que podem induzir taquicardia reflexa. Têm como principais
efeitos adversos hipotensão postural, rubor facial e edema de membros inferiores. Não
devem ser utilizados em caso de estenose aórtica grave. Já o Verapamil exerce seu
efeito pela dilatação de vasos de resistência, coronários e periféricos, além de reduzir a
condução atrioventricular pelo bloqueio do influxo de cálcio nas células miocárdicas
especializadas do sistema de condução, devendo ser usado com cautela quando
associado a β-bloqueador. Pelo seu efeito inotrópico negativo, pode precipitar
insuficiência cardíaca congestiva em pacientes com disfunção sistólica do ventrículo
esquerdo. Está contraindicado em portadores de doença do nó sinusal, distúrbios da
condução atrioventricular e suspeita de intoxicação digitálica ou por Quinidina. O

Pedro Kallas Curiati 372


Diltiazem exibe propriedades intermediárias entre as diidropiridinas e o Verapamil, com
excelente aceitabilidade. Deve ser usado com cautela em pacientes com disfunção
sistólica do ventrículo esquerdo e evitado em portadores de doença do sistema de
condução cardíaco. Pacientes com limiar anginoso não fixo, em que o componente de
vasoespasmo exerce papel importante, ou angina de Prinzmetal devem utilizar os
bloqueadores de canal de cálcio como droga antianginosa, caso não apresentem
contraindicação.
Fármaco Dose
Nifedipino 30-60mg/dia fracionado em duas a três doses diárias
Anlodipina 5-10mg/dia em dose única ou fracionado em duas doses diárias
Diltiazem 90-480mg/dia fracionado em três a quatro doses diárias
Verapamil 80-240mg/dia fracionado em três a quatro doses diárias
Trimetazidina é fármaco de ação metabólica cuja ação independe de frequência
cardíaca, contratilidade e pressão arterial. Sua eficácia clínica foi comprovada quanto à
tolerância ao exercício. Apresenta excelente tolerabilidade, tendo como único e raro
efeito colateral a dispepsia. A dose preconizada é de um comprimido de 20mg duas a
três vezes ao dia.
Os inibidores da enzima conversora da angiotensina não são antianginosos, mas
apresentam efeitos na redução de eventos cardiovasculares em portadores de doença
arterial coronariana. A recomendação atual é a utilização nos pacientes com doença
arterial coronária e diabetes mellitus e/ou disfunção sistólica do ventrículo esquerdo.

Revascularização miocárdica
A intervenção coronária percutânea, também conhecida como angioplastia
coronária, com ou sem a introdução de próteses (stents), é um método terapêutico
amplamente utilizado para revascularizar o miocárdio isquêmico em pacientes com
estenoses coronárias. A indicação clínica mais comum é a angina do peito, estável ou
não, acompanhada de evidências de isquemia miocárdica. Também pode haver
benefício em pacientes assintomáticos com grande área de miocárdio sob risco ou lesão
proximal na artéria descendente anterior. A intervenção por cateter é mais eficaz no
alívio dos sintomas que o tratamento clínico, mas o valor na prevenção de morte por
causas cardíacas ainda não está completamente estabelecido em determinados
subgrupos de pacientes.
A cirurgia de revascularização miocárdica baseia-se em anastomose entre a
artéria aorta e a artéria coronária por meio de um enxerto. As principais indicações são
estenose do tronco de artéria coronária esquerda, obstrução coronariana triarterial e
angina de difícil controle. Quando há comprometimento da função ventricular, a
cirurgia confere maior benefício que outros tipos de tratamento.
Em suma, pacientes com doença em um ou dois vasos, com função ventricular
global normal ou discretamente comprometida e/ou com lesões anatômicas adequadas
são recomendados, em princípio, para intervenção coronária percutânea. Por outro lado,
pacientes com doença em dois ou três vasos e função ventricular esquerda
comprometida, com fração de ejeção inferior a 45%, com diabetes mellitus, doença no
tronco principal ou outras lesões impróprias para procedimentos endovasculares devem
ser considerados para revascularização cirúrgica como primeira opção.

Bibliografia
Clínica médica: diagnóstico e tratamento. Itamar de Souza Santos... [et al.]. São Paulo. Sarvier, 2008.
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 373


DOENÇAS DA AORTA TORÁCICA
Aneurisma de aorta

Definição
O aneurisma de aorta é uma dilatação irreversível que excede uma vez e meia o
diâmetro normal para idade e peso.
Os diâmetros da aorta aumentam com a idade e variam de acordo com o sexo. O
diâmetro da aorta ascendente em milímetros pode ser calculado com a fórmula 31 +
(0.16 x idade) e da aorta descendente com a fórmula 21 + (0.16 x idade).

Epidemiologia
Cerca de 50-60% dos aneurismas de aorta torácica comprometem a aorta
ascendente, 30-40% comprometem a aorta descendente, 10% comprometem o arco
aórtico e 10% comprometem a porção toracoabdominal. A média de idade no
diagnóstico varia de 59 a 69 anos, com predominância no sexo masculino.

Etiologia e fisiopatologia
Os fatores predisponentes para os aneurismas de aorta incluem tabagismo,
hipertensão arterial, aterosclerose, desordens genéticas, como síndrome de Marfan e
síndrome de Ehler-Danlos, infecções, como sífilis, e doenças congênitas, como valva
aórtica bivalvulada. Pressupõe-se que quanto maior for o aneurisma, maior será o risco
de ruptura.

Quadro clínico
Aproximadamente três quartos dos aneurismas de aorta são assintomáticos.
Quando sintomáticos, podem se manifestar como dor torácica, lombar ou abdominal,
com ou sem instabilidade hemodinâmica. Nas situações de ruptura da aorta, poderão ou
não ocorrer exteriorização do sangramento, tamponamento cardíaco, hemotórax,
hemomediastino, sangramento para o retroperitônio, hematêmese e hemoptise. Quando
houver o comprometimento da valva aórtica com insuficiência valvar, o paciente poderá
apresentar insuficiência cardíaca. Também podem estar presentes manifestações
relacionadas ao efeito de massa da dilatação aneurismática, como síndrome da veia cava
superior, disfagia, insuficiência respiratória e disfonia. Poderão ocorrer fenômenos
embólicos manifestados como acidente vascular cerebral, infarto do miocárdio,
isquemia mesentérica e isquemia de membros. A associação com aneurisma de aorta
abdominal é descrita em 10-20% dos pacientes com aneurismas ateroscleróticos da
aorta ascendente.

Avaliação complementar
Não ocorrem alterações eletrocardiográficas específicas.
Radiografia simples de tórax alterada geralmente é o primeiro indício da doença
da aorta. Na projeção póstero-anterior, a dilatação da aorta produz um contorno convexo
no mediastino superior à direita ou à esquerda, respectivamente, quando houver
dilatação no segmento ascendente ou descendente.
Aortografia é indicada para pacientes com idade superior a 40 anos para afastar
doença coronariana concomitante. Atualmente, retorna como método de imagem de
grande relevância pela possibilidade de tratamento endovascular das doenças da aorta e

Pedro Kallas Curiati 374


de seus ramos. Trata-se de método invasivo que pode acarretar complicações
relacionadas ao uso de cateterização e contraste.
A ecocardiografia fornece avaliação completa em relação às funções sistólica e
diastólica dos ventrículos esquerdo e direito, ao funcionamento das valvas cardíacas, à
espessura da parede do músculo cardíaco, à avaliação de isquemia regional e à presença
de derrame pericárdico.
Tomografia computadorizada é método diagnóstico não-invasivo e de grande
disponibilidade, com rápida execução e possibilidade de reconstrução tridimensional
com alta definição. Avalia estruturas adjacentes à aorta, espessura da parede ventricular,
calcificação de coronárias, derrame pericárdico, dimensões da aorta, presença de
trombos, características da parede da aorta, hematomas, ulcerações e oclusões das
principais ramificações. As desvantagens são a possibilidade de alergia ao contraste e o
risco de insuficiência renal.
A ressonância magnética apresenta indicação semelhante à tomografia
computadorizada, alta definição e possibilidade de reconstrução tridimensional de
imagens. Não expõe o paciente a radiação ionizante nem a administração de contrastes
iodados. As desvantagens estão relacionadas ao custo mais elevado do exame e à
execução demorada. Está contraindicada em pacientes instáveis e portadores de próteses
metálicas.

Tratamento
O tratamento clínico visa a prevenção do crescimento do aneurisma e de suas
complicações, como a rotura e a dissecção. O tratamento medicamentoso objetiva o
rigoroso controle da pressão arterial, da frequência cardíaca e do perfil lipídico, além da
cessação, quando for o caso, do tabagismo. No InCor do HC-FMUSP, β-bloqueadores
são utilizados em todos os pacientes com aneurismas de aorta, salvo no caso de
contraindicação, com o objetivo de promover frequência cardíaca em torno de 60bpm e
pressão arterial sistólica em torno de 120mmHg. Outros fármacos, como os inibidores
da enzima de conversão da angiotensina e as estatinas possuem efeito protetor por
reduzirem o estresse oxidativo. Os pacientes com aneurismas de aorta devem evitar
exercícios isométricos e levantamento de peso. Os exercícios aeróbios geralmente são
seguros, mas deve ser avaliada a resposta da curva pressórica durante a realização com
o objetivo de evitar elevações acima de 180mmHg.
A cirurgia para correção do aneurisma de aorta é profilática para ruptura da
aorta, algumas vezes terapêutica, na vigência de sintomas relacionados, e raramente
paliativa. Os aneurismas de aorta torácica assintomáticos devem ser encaminhados para
tratamento cirúrgico quando seu diâmetro exceder 5cm pela relação entre a baixa
mortalidade do procedimento, inferior a 2%, e o risco de rotura com diâmetros
superiores a esse valor. O advento das próteses endovasculares permitiu, para lesões
específicas, o tratamento com diâmetros menores.
Além do tamanho, a velocidade de crescimento transversal do aneurisma maior
do que 0.5cm em seis meses ou 1cm em um ano é motivo de indicação de tratamento
cirúrgico em pacientes assintomáticos.
Alguns cuidados pré-operatórios devem ser observados nos pacientes com
aneurisma de aorta. Em função do risco de doença pulmonar obstrutiva crônica
associada, recomenda-se avaliação complementar com espirometria e gasometria
arterial. Pacientes com idade superior a 65 anos devem ser submetidos a
ultrassonografia Doppler de carótidas.

Dissecção de aorta

Pedro Kallas Curiati 375


Conceito
A dissecção aórtica é caracterizada pela ruptura da túnica íntima da parede
aórtica, seguida pela penetração de sangue, tipicamente no sentido anterógrado,
clivando longitudinalmente as camadas íntima e média por uma distância variável. Essa
ruptura gera dois lúmens, o verdadeiro, que é circundado pela camada íntima, e o falso,
que é circundado em parte pela camada íntima e em parte pela camada média. De forma
característica, o fluxo é mais lento pelo falso lúmen do que pelo verdadeiro.
Via de regra, a dissecção progride até a emergência de algum importante ramo
arterial e pode ou não envolvê-lo. Algumas regiões da aorta podem ser sede de fraturas
da íntima, vindo a ser pontos de comunicação entre as luzes falsa e verdadeira.
Os pontos em que a dissecção geralmente se inicia são:
- Na aorta ascendente, 2-3cm acima dos óstios das artérias coronárias;
- Na aorta descendente, logo depois da emergência da artéria subclávia
esquerda;
- Em menor proporção, no arco aórtico ou na aorta abdominal;
Com frequência, a dissecção assume forma espiralada. O falso lúmen
comumente é mais calibroso do que o lúmen verdadeiro.

Classificação
As dissecções agudas são aquelas em que o diagnóstico foi estabelecido no
período de duas semanas a partir do início dos sintomas, enquanto que as dissecções
crônicas são aquelas diagnosticadas após esse período.
Classificação de Bakey:
- Tipo I – A dissecção envolve a aorta ascendente, o arco aórtico e a aorta
descendente;
- Tipo II – A dissecção é confinada à aorta ascendente;
- Tipo III – A dissecção é confinada à aorta descendente, distal à
emergência da artéria subclávia esquerda, podendo-se ficar restrita ao
tórax (IIIa) ou progredir até o abdômen (IIIb);
Classificação de Stanford:
- Tipo A – A dissecção envolve a aorta ascendente, não importando se há
extensão além do arco aórtico ou não;
- Tipo B – A dissecção não envolve a aorta ascendente;

Morbidade e mortalidade
Trata-se de doença extremamente letal, com 21% de mortalidade pré-hospitalar e
50% de mortalidade nos indivíduos mantidos sem tratamento nas primeiras 24 horas.
Quando há envolvimento da aorta ascendente, a mortalidade está relacionada a
complicações como tamponamento cardíaco, insuficiência aórtica aguda e
comprometimento do óstio coronário. Nas dissecções que não envolvem a aorta
ascendente, as principais causas de morte são a obstrução de vasos viscerais ou ilíacos e
a ruptura aórtica.

Etiologia e fisiopatologia
A hipertensão arterial encontra-se presente em 70-80% dos casos de dissecção
aórtica, sendo o fator de risco mais prevalente. O consumo de cocaína é causa rara de
dissecção aórtica.
Algumas doenças aórticas são fatores de risco bem estabelecidos:
- Aterosclerose;

Pedro Kallas Curiati 376


- Doenças vasculares hereditárias, como coarctação da aorta e valva
aórtica bicúspide;
- Ectasia no anel aórtico;
- Anormalidades cromossômicas, como as síndromes de Turner e
Noonan;
- Hipoplasia do arco aórtico;
- Doenças inflamatórias, como arterite de células gigantes, arterite de
Takayasu, doença de Behçet e sífilis;
- Doenças do tecido conectivo, como síndrome de Marfan e síndrome de
Ehler-Danlos;
- Trauma torácico fechado em acidentes automobilísticos e quedas de
altura;
- Iatrogenia, em procedimentos endovasculares diagnósticos e
terapêuticos ou após cirurgia de valvas cardíacas ou da aorta;
A síndrome de Marfan é responsável pela maioria dos casos de dissecção aórtica
em pacientes com menos de 40 anos de idade.

Síndromes de má perfusão
O comprometimento dos ramos da aorta em um quadro de dissecção pode
ocorrer por diversos mecanismos e ter gravidade variável, resultando em isquemia dos
órgãos-alvo ou síndrome de má-perfusão. A oclusão de um ramo pode ocorrer pela
propagação da dissecção para dentro de um ramo arterial, com trombose ou estenose.
Entretanto, o principal mecanismo de interrupção do fluxo arterial em um ramo na
dissecção aórtica é a chamada obstrução dinâmica, em que a luz verdadeira colabada é
incapaz de prover volume adequado de sangue aos órgãos por ela irrigados.

Quadro clínico
A dor torácica é o sintoma mais comum, frequentemente descrita como uma
facada que rasga tecidos, com início súbito em sua máxima intensidade. Irradia-se com
frequência para região interescapular, região lombar e até para os membros inferiores. A
localização e a irradiação da dor podem levar à presunção da extensão da dissecção. Dor
precordial está associada à dissecção da aorta ascendente, dor cervical irradiada para
mandíbula está associada à dissecção do arco aórtico e dor interescápulo-umeral com
irradiação lombar se relaciona à dissecção da aorta descendente.
A hipertensão arterial está presente no exame físico inicial em 70% das
dissecções tipo B e em 25-35% das dissecções tipo A, sendo refratária à terapia clínica
inicial em parcela significativa dos casos.
Dispneia pode estar relacionada a insuficiência aórtica aguda e a tamponamento
cardíaco. Síncope pode complicar a apresentação clínica em 5-10% e sua presença pode
indicar tamponamento cardíaco ou envolvimento dos vasos braquiocefálicos.
Déficits nos pulsos periféricos e/ou assimetria da pressão arterial ocorrem em
30-50% dos pacientes com envolvimento do arco aórtico, do segmento toracoabdominal
ou de ambos. Os sintomas de uma síndrome de má-perfusão podem ser proeminentes
nas dissecções aórticas agudas, com infarto agudo do miocárdio, hemiplegia, paresia,
coma, isquemia de membros superiores, paraplegia e dor abdominal.

Exames complementares
A avaliação inicial de um paciente com dor torácica aguda envolve a realização
de um eletrocardiograma, que pode apresentar alterações isquêmicas agudas em cerca
de 20% das dissecções da aorta ascendente, principalmente em território de artéria

Pedro Kallas Curiati 377


coronária direita, além de sobrecarga de ventrículo esquerdo. Os exames laboratoriais
são fundamentais na avaliação das síndromes de má-perfusão com disfunção dos órgãos
associados e da perda sanguínea associada aos casos graves.
A radiografia simples de tórax é um dos exames de imagem de fácil obtenção e
pode caracterizar sinais de dissecção aórtica aguda, como alargamento do mediastino,
sinal do duplo arco aórtico, alargamento difuso da aorta com pouca definição e
irregularidade do contorno, deslocamento medial do anel de calcificação aórtico
superior a 10mm, desvio da traqueia para a direita, derrame pleural, derrame
pericárdico, aumento da área cardíaca e velamento do ápice do pulmão esquerdo.
O diagnóstico é confirmado pela realização de angiotomografia
computadorizada com contraste de aorta ou de ecocardiograma transesofágico,
dependendo da facilidade de realização de cada exame no setor de emergência.
Tomografia computadorizada é o procedimento de imagem mais usado na
detecção e avaliação da dissecção aórtica, com maior limitação diagnóstica na aorta
ascendente. Identifica os dois lúmens e o flap intimal da dissecção. Identifica os sítios
inicial e final, os ramos viscerais comprometidos e os eventuais pontos de reentrada da
falsa luz para a verdadeira. Ainda evidencia eventuais pontos de ruptura e
extravasamento de contraste, quer para a pleura, quer para as vísceras ocas, como
esôfago e duodeno.
Ecocardiograma transesofágico pode ser realizado à beira do leito no paciente
instável com suspeita diagnóstica. Apresenta limitações na avaliação do arco aórtico, da
parte distal da aorta ascendente e da extensão infradiafragmática da dissecção.
Complementa informações fornecidas pela tomografia computadorizada para o
planejamento cirúrgico.
Ressonância magnética, apesar da boa acurácia, possui pouca aplicabilidade em
relação à tomografia computadorizada pelo maior tempo necessário para a realização do
exame e pela dificuldade de monitorização do paciente durante a realização. No entanto,
trata-se do melhor exame.
Aortografia gradativamente foi substituída pelos exames de imagem helicoidais.
Atualmente, não é realizada antes do reparo cirúrgico das dissecções proximais,
podendo ser realizada como parte integrante do tratamento endovascular das dissecções
distais.

Tratamento
O sucesso da terapêutica da dissecção aórtica depende de um diagnóstico rápido
e da correta avaliação da extensão do processo patológico.

Tratamento clínico
A abordagem inicial prevê suporte de oxigênio, monitorização na sala de
emergência ou em unidade de terapia intensiva, acesso venoso, coleta de sangue para
avaliação laboratorial e eletrocardiograma de doze derivações. Deve ser conduzida
avaliação rápida da possibilidade de tamponamento cardíaco, com preferência pelo
tratamento definitivo ao invés da punção pericárdica.
O uso de β-bloqueador visa manter frequência cardíaca de 50-60bpm, se
tolerada. Preconiza-se Metoprolol 5mg por via intravenosa em 3-5 minutos, sendo a
dose máxima aquela que atingir a meta. Se houver contraindicação, podem ser
prescritos Verapamil ou Diltiazem.
Deve-se reduzir a pressão arterial ao menor valor tolerado pelo doente. Se
possível, a pressão arterial sistólica deve ser mantida com valores próximos de
120mmHg através do uso de Nitroprussiato de Sódio por via intravenosa em bomba de

Pedro Kallas Curiati 378


infusão contínua, com velocidade inicial de 0.3-0.5mcg/kg/minuto e aumentos de
0.5mcg/kg/minuto a cada três a cinco minutos. Trata-se de vasodilatador direto arterial e
venoso de ação imediata e curta duração. Deve ser administrado protegido da luz por ser
fotossensível. Na prática, dilui-se uma ampola com 50mg em 248mL de Soro Glicosado
a 5%, coloca-se em frasco e equipo protegidos da luz e, através de bomba de infusão,
administra-se 3mL/hora, com medida da pressão arterial a cada dois minutos e aumento
da velocidade de infusão em 1-2mL/hora cada vez que estiver acima do desejado. Os
vasodilatadores devem ser sempre usados em associação com β-bloqueadores e nunca
em monoterapia. Quando alcançada a pressão arterial desejada, pode-se administrar um
anti-hipertensivo oral, preferencialmente de meia-vida curta, para começar a estratégia
de reduzir a velocidade da infusão, idealmente com monitorização invasiva ou com
mensuração não-invasiva a cada dez a vinte minutos.
Morfina deve ser administrada com doses de 2-4mg por via intravenosa até
analgesia adequada.
Avaliação da equipe de cirurgia cardíaca é mandatória.

Dissecção aguda de aorta tipo A


O risco de ruptura e mortalidade por insuficiência aórtica, tamponamento
cardíaco ou obstrução dos óstios coronários justifica o tratamento cirúrgico em todos os
casos, que deve ser realizado em caráter de emergência.
Em pacientes com dissecção tipo A complicada por má-perfusão, o tratamento
clínico associado à fenestração percutânea por método endovascular pode diminuir o
risco e criar condições para a conduta operatória definitiva.
O tratamento definitivo consiste em ressecção do segmento dissecado e
interposição de prótese de Dacron. Pode haver necessidade de reimplante dos óstios
coronários e correção das lesões da valva aórtica. A mortalidade varia de 10-35%.

Dissecção aguda de aorta tipo B


Prefere-se o tratamento clínico e a cirurgia é reservada para as dissecções
complicadas por isquemia cerebral, de membros superiores ou inferiores, visceral ou
medular. São ainda tratados cirurgicamente os pacientes com dor persistente, aumento
progressivo do diâmetro do falso lúmen ou hemotórax.
A ruptura evidente ou iminente na região proximal da aorta, que raramente
ocorre, é a única indicação de substituição da aorta descendente por enxerto, estando
associada a desafios técnicos significativos pela friabilidade da parede aórtica.
Com relação às síndromes de má-perfusão, os pacientes com dissecção aórtica
tipo B devem ser submetidos a uma intervenção vascular direcionada para cada
complicação. Na presença de isquemia renal ou mesentérica, o paciente deve ser
submetido à fenestração da aorta distal por método endovascular ou convencional.
Em alguns centros, o tratamento por meio do implante de endopróteses no arco
visa estabilizar a progressão da dissecção por fechamento do orifício de entrada, além
de favorecer o fechamento e a trombose do falso lúmen.

Dissecção crônica de aorta


Quando a dissecção de aorta for crônica, as indicações do tratamento cirúrgico
serão as mesmas utilizadas para os aneurismas da aorta.

Prescrição
- Jejum;
- Repouso absoluto no leito;

Pedro Kallas Curiati 379


- Monitorização de ritmo cardíaco, frequências cardíaca e respiratória, pressão
arterial e saturação periférica de oxigênio;
- Cânula nasal com O2 a 2L/minuto;
- Morfina 4mg por via intravenosa agora e a critério médico;
- Metoprolol 5mg por via intravenosa agora e a critério médico, lentamente;
- Nitroprussiato de Sódio 50mg em Soro Glicosado a 5% 248mL por via
intravenosa em bomba de infusão contínua a critério médico;
- Ecocardiograma transesofágico de emergência;
- Consulta de emergência com cirurgião cardíaco;

Evolução e acompanhamento
A principal complicação tardia é a dilatação aneurismática da parede externa da
falsa luz. Tomografias computadorizadas devem ser realizadas um, três, seis, nove e
doze meses após a alta hospitalar e a cada seis a doze meses a partir de então.

Variantes das dissecções da aorta torácica


A violação da túnica íntima da parede aórtica é a característica comum entre a
dissecção aórtica, o hematoma intramural e a úlcera penetrante de aorta, sendo a
apresentação clínica semelhante, com dor torácica súbita em pacientes hipertensos, o
que constitui a chamada síndrome aórtica aguda. São comuns alterações ateroscleróticas
intensas nos pacientes com essas patologias.
O hematoma intramural da aorta torácica caracteriza-se pela ausência de uma
ruptura identificável por meios radiográficos e pela coluna de sangue coagulado entre as
túnicas íntima e média da parede aórtica, de extensão e comprimento variáveis, porém
geralmente mais segmentar do que as dissecções aórticas e não causando oclusão de
seus ramos. Supostamente se inicia pela ruptura dos vasa vasorum.
As úlceras penetrantes em uma placa aterosclerótica da aorta podem causar
hematomas intramurais, dissecções da aorta ou perfuração. Úlceras ateroscleróticas

Pedro Kallas Curiati 380


sintomáticas são mais profundas e envolvem um maior risco de ruptura.
Os pacientes portadores de dissecção atípica da aorta torácica requerem
tratamento à semelhança dos portadores das dissecções clássicas da aorta.

Bibliografia
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.
Boletim de Cardiologia para o Internato. Ano 1, número 3. Carlos Pedrotti, Gustavo Hironaka, Leonardo Lopes. Preceptoria de
Cardiologia do Instituto do Coração, 2009.
Clínica médica, volume 2: doenças cardiovasculares, doenças respiratórias, emergências e terapia intensiva. – Barueri, SP: Manole,
2009.
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.

Pedro Kallas Curiati 381


ENDOCARDITE INFECCIOSA
Definições
A endocardite infecciosa é caracterizada pela infecção da superfície endotelial
do coração, denominada endocárdio. Pode ser visualizada macroscopicamente como
massas amorfas de tamanho variável que contêm plaquetas, fibrina, células
inflamatórias e micro-organismos em seu interior, denominadas vegetações. As valvas
cardíacas são locais preferenciais de acometimento, embora a infecção possa ocorrer em
defeitos do septo, cordas tendíneas ou endocárdio mural.

Etiologia e fisiopatologia
Uma vez que exista circulação sanguínea de patógenos e estes apresentem
capacidade adesiva, sendo o paciente portador de alguma alteração anatômica cardíaca,
cria-se condição para infecção do endotélio cardíaco. Uma deficiência imunológica,
como ocorre em idosos, é mais um fator que colabora para a perpetuação da infecção.
As principais fontes de bacteremia são as infecções de pele, as manipulações
cirúrgicas e, no dia-a-dia, os procedimentos odontológicos.
Os agentes relacionados à endocardite infecciosa são diversos e variam de
acordo com o tipo de população avaliada. De modo geral, agentes etiológicos típicos
são Streptococcus viridans, Streptococcus bovis, Staphylococcus aureus, enterococo
comunitário e bactérias do grupo HACEK, que inclui Haemophilus parainfluenza, H.
aphrophilus, Actinobacillus actinomycetemcomitans, Cardiobacterium hominis,
Eikenella corrodens e Kingella kingae. Outros possíveis agentes incluem
Staphylococcus epidermidis, bactérias Gram-negativas, anaeróbios e fungos.
Endocardite infecciosa causada por enterococos, que é associada a manipulação
do trato gênito-urinário, e Streptococcus bovis, que é associada a malignidade do trato
gastrointestinal e a pólipos colônicos, ocorrem mais frequentemente nos idosos.
Os principais grupos de risco são usuários de droga intravenosa, portadores de
doenças valvares com valvas nativas e portadores de prótese valvar.

Quadro clínico
As manifestações clínicas são variáveis e dependem do grau de acometimento do
coração, da virulência do micro-organismo relacionado à infecção e das comorbidades
do paciente. De modo geral, a infecção pode causar sintomas inespecíficos, como febre,
fadiga, astenia e emagrecimento, com evolução lenta e gradual. Em situações em que
ocorre grande destruição valvar, o paciente apresenta sinais de franca insuficiência
cardíaca.
A evolução lenta ao longo de semanas a meses, com grau discreto de toxicidade,
raramente acompanhada de infecção metastática, caracteriza o quadro da endocardite
infecciosa subaguda, que tem o Streptococcus viridans como principal agente, além de
enterococos, estafilococos coagulase negativos e cocobacilos Gram-negativos. A
evolução fulminante ao longo de dias a semanas para destruição valvar e infecção
metastática, com toxicidade significativa, caracteriza a endocardite infecciosa aguda,
tendo o Staphylococcus aureus como principal patógeno envolvido.
Febre e sopro são encontrados em 85% dos pacientes. O acometimento
neurológico inclui embolização séptica, aneurismas micóticos, meningite e abscessos.
Outros achados secundários a embolização periférica da vegetação ou a deposição de
imunocomplexos são as petéquias em mucosa, os nódulos de Osler, as lesões de

Pedro Kallas Curiati 382


Janeway e as manchas de Roth.

Exames complementares
O exame de fundo de olho deve fazer parte da rotina e permite avaliar sinais
periféricos da endocardite, como as manchas de Roth.
Exames laboratoriais incluem hemograma, função renal, eletrólitos,
coagulograma, provas de atividade inflamatória, fator reumatoide e urina I.
Devem ser colhidos no mínimo três pares de hemocultura, independentemente
da temperatura do doente, com intervalo de no mínimo uma hora e avisar o laboratório
sobre a possibilidade de germes de crescimento lento, como os do grupo HACEK.
Radiografia de tórax pode revelar infiltrado pulmonar correspondente à
embolização séptica quando a endocardite infecciosa acomete as câmaras direitas.
Eletrocardiograma é inespecífico e pode apresentar bloqueio atrioventricular
relacionado à presença de abscessos. Deve ser realizado diariamente durante o
tratamento.
Ecocardiograma é fundamental no diagnóstico de endocardite infecciosa e
fornece dados anatômicos e funcionais. A modalidade transesofágica apresenta
sensibilidade maior na detecção de vegetações, sendo indicada principalmente na
presença de prótese valvar, quando a modalidade transtorácica não consegue imagem de
boa qualidade e em caso de doente com alta suspeita clínica e exame transtorácico
normal. Em indivíduos com alta suspeita clínica e resultado negativo de ecocardiograma
transesofágico, é recomendável a realização de um segundo exame no intervalo de uma
semana. Em caso de ecocardiograma transtorácico positivo e com achados
ecocardiográficos de alto risco, como vegetações móveis ou grandes, insuficiência
valvar, sinais de extensão perivalvar e disfunção ventricular, deve-se realizar
ecocardiograma transesofágico para detectar complicações.
Tomografia computadorizada de crânio é realizada quando existe
comprometimento neurológico por embolização. Angiografia cerebral é indicada na
pesquisa de aneurismas micóticos.

Critérios diagnósticos de Duke modificados


Diagnóstico definitivo por critério patológico se micro-organismos
demonstrados por cultura ou análise histológica de vegetação, êmbolo séptico ou
abscesso cardíaco. Diagnóstico definitivo por critério clínico, usando definições
específicas, se dois critérios maiores, um critério maior e três critérios menores ou cinco
critérios menores.
Diagnóstico possível, usando definições específicas, se um critério maior e um
critério menor ou três critérios menores.
Diagnóstico rejeitado se não preenche critérios para endocardite infecciosa
possível, diagnóstico alternativo sólido, resolução do quadro com quatro dias ou menos
de antibioticoterapia e nenhuma evidência de endocardite infecciosa em cirurgia ou
necropsia com quatro dias ou menos de antibioticoterapia.

Critérios maiores

Pedro Kallas Curiati 383


Hemocultura positiva:
- Micro-organismo típico para endocardite infecciosa em duas amostras
separadas na ausência de outro foco primário;
- Micro-organismo compatível com o diagnóstico de endocardite
infecciosa em culturas persistentemente positivas, isolado em duas
amostras sanguíneas colhidas com intervalo de doze horas ou em todas as
amostras de um total de três ou na maioria de um total de quatro
separadas com um intervalo de pelo menos uma hora entre a primeira e a
última;
- Hemocultura única positiva para Coxiella brunnetti ou títulos de IgG
acima de 1:800;
Evidência de envolvimento endocárdico:
- Ecocardiograma positivo para endocardite infecciosa, com massa
cardíaca oscilante em valva, estruturas de suporte, trajeto de jato
regurgitante ou material implantado na ausência de explicação anatômica
alternativa;
- Ecocardiograma com abscesso ou nova deiscência de prótese;
- Nova regurgitação valvar;

Critérios menores
Predisposição, como condição cardíaca prévia ou uso de droga intravenosa.
Febre superior ou igual a 38º C.
Fenômeno vascular, com embolia em grande artéria, infarto pulmonar séptico,
aneurisma micótico, hemorragia intracraniana, hemorragia conjuntival e lesão de
Janeway.
Fenômeno imunitário, com glomerulonefrite, nódulo de Osler, manchas de Roth
e fator reumatoide positivo.
Evidência microbiológica com hemocultura positiva sem preencher os critérios
maiores ou evidência sorológica de infecção ativa com micro-organismo compatível
com endocardite infecciosa.
Ecocardiograma compatível com endocardite infecciosa, mas sem preencher os
critérios maiores.

Diagnóstico diferencial
Quando a apresentação é inespecífica, síndromes infecciosas devem ser
pesquisadas.
Algumas doenças podem mimetizar a endocardite infecciosa, com destaque para
lúpus eritematoso sistêmico, febre reumática aguda, endocardite trombótica não-
infecciosa, mixoma atrial e anemia falciforme.

Tratamento

Antibioticoterapia
O tratamento depende do micro-organismo, do ambiente e das complicações de
cada paciente. Prevê antibiótico em altas doses e por tempo prolongado.
O início da terapêutica em pacientes com suspeita de endocardite deverá ser
baseado em coleta de hemocultura, identificação do germe e antibiograma. Nos doentes
hemodinamicamente estáveis com suspeita de endocardite subaguda, o tratamento
empírico não diminui as complicações precoces e pode obscurecer o diagnóstico
etiológico por comprometer o resultado das hemoculturas colhidas posteriormente,

Pedro Kallas Curiati 384


sendo prudente retardar o tratamento até que seja identificado o agente etiológico. Em
caso de paciente grave, toxemiado, com doença em estado avançado, após coleta de
pelo menos três pares de hemoculturas, pode-se iniciar a antibioticoterapia. As drogas
de escolha em pacientes com prótese valvar de implantação tardia, doze meses após a
cirurgia, ou valva nativa são Penicilina G Cristalina 4000000UI de 4/4 horas por via
intravenosa ou Ampicilina 2g de 4/4 horas por via intravenosa em associação com
Oxacilina 2g de 4/4 horas por via intravenosa durante quatro a seis semanas e
Gentamicina 1mg/kg de 8/8 horas por via intravenosa nos primeiros 14 dias. Constitui
esquema alternativo Vancomicina 15mg/kg de 12/12 horas por via intravenosa durante
quatro a seis semanas em associação com Gentamicina 1mg/kg de 8/8 horas por via
intravenosa ou intramuscular nos primeiros 14 dias. Em usuários de drogas intravenosas
ou em caso de evidência de acometimento de câmaras direitas, o esquema principal
consiste em Vancomicina 15mg/kg de 12/12 horas por via intravenosa durante quatro a
seis semanas. Após a identificação do micro-organismo, o antibiótico será mantido ou
não, de acordo com o antibiograma.
A endocardite comunitária representa a maior parte dos casos e os agentes mais
prevalentes são os estreptococos. O tratamento inclui Penicilina G Cristalina 4000000UI
de 4/4 horas por via intravenosa ou Ceftriaxone 2g de 24/24 horas por via intravenosa
ou intramuscular durante quatro a seis semanas em associação com Gentamicina
1mg/kg de 8/8 horas por via intravenosa ou intramuscular nos primeiros 14 dias. Em
pacientes alérgicos à Penicilina e ao Ceftriaxone, prefere-se Vancomicina 15mg/kg de
12/12 horas por via intravenosa durante quatro a seis semanas.
Os Staphylococcus sp constituem o segundo grupo mais prevalente em casos de
endocardite comunitária e predominam em usuários de drogas injetáveis. O esquema de
escolha para infecção de valva nativa é Oxacilina 2g de 4/4 horas por via intravenosa
durante seis semanas associada a Gentamicina 1mg/kg de 8/8 horas por via intravenosa
ou intramuscular nos primeiros 3-5 dias. Como opção, pode-se utilizar cefalosporina de
primeira geração, como Cefazolina 2g de 8/8 horas por via intravenosa durante seis
semanas associada a Gentamicina 1mg/kg de 8/8 horas por via intravenosa ou
intramuscular nos primeiros 3-5 dias ou, em caso de germes resistentes, Vancomicina
15mg/kg de 12/12 horas por via intravenosa durante seis semanas. O esquema de
escolha para infecção de valva protética é Oxacilina 2g de 4/4 horas por via intravenosa
ou Vancomicina 15mg/kg de 12/12 horas por via intravenosa e Rifampicina 300mg de
8/8 horas por via oral ou intravenosa durante seis semanas associadas a Gentamicina
1mg/kg de 8/8 horas por via intravenosa ou intramuscular nos primeiros 14 dias.
Os enterococos são germes de baixa sensibilidade à Penicilina G Cristalina e
eventualmente aos aminoglicosídeos, o que prejudica o sinergismo entre os antibióticos.
Apesar disso, utiliza-se Penicilina G Cristalina 4000000UI de 4/4 horas por via
intravenosa ou, preferencialmente, Ampicilina 2g de 4/4 horas por via intravenosa em
associação com Gentamicina 1mg/kg de 8/8 horas por via intravenosa ou intramuscular
durante quatro a seis semanas. Em pacientes alérgicos à Penicilina e ao Ceftriaxone,
prefere-se Vancomicina 15mg/kg de 12/12 horas por via intravenosa em associação com
Gentamicina 1mg/kg de 8/8 horas por via intravenosa ou intramuscular durante seis
semanas. Em caso de enterococo resistente a Gentamicina, Estreptomicina constitui
alternativa.
A endocardite por bacilo Gram-negativo usualmente aparece em indivíduos
susceptíveis, incluindo hospitalizados, imunodeprimidos, usuários de drogas e
portadores de doenças malignas, cateteres ou próteses. A antibioticoterapia depende do
agente e da sensibilidade, incluindo o uso de Ampicilina com aminoglicosídeo e de
cefalosporina de terceira geração com aminoglicosídeo. Na presença de Pseudomonas

Pedro Kallas Curiati 385


sp, a opção inicial é Tobramicina associada a Piperacilina, Ceftazidima ou Cefepime.
A endocardite em prótese valvar é de evolução grave e frequentemente causada
por contaminação intraoperatória. Os principais agentes são S. epidermidis, S. aureus,
bacilo Gram-negativo, fungo e Streptococcus sp. Febre persistente e bacteremia no pós-
operatório são comuns. O prognóstico depende de terapêutica precoce guiada por
antibiograma e uma alternativa é a administração inicial empírica de Vancomicina e
aminoglicosídeo até o isolamento do germe, além da substituição da prótese
contaminada.
O grupo HACEK engloba bactérias de crescimento lento, com necessidade de
longo período de incubação, sendo identificadas em pacientes sob tratamento para
endocardite com cultura supostamente negativa. Preconiza-se Ampicilina/Sulbactam 2g
de 4/4 horas por via intravenosa associada a Gentamicina 1mg/kg de 8/8 horas por via
intravenosa ou intramuscular durante quatro semanas ou Ceftriaxone 2g de 24/24 horas
por via intravenosa ou intramuscular durante quatro semanas.
Os anaeróbios raramente são agentes de endocardite infecciosa, sendo
encontrados quase que exclusivamente em pacientes hospitalizados. Habitualmente são
sensíveis a Penicilina G Cristalina associada a aminoglicosídeo por quatro a seis
semanas. Em caso de isolamento de Bacteroides fragilis, utiliza-se Metronidazol.
A endocardite por fungos é pouco comum e ocorre em pacientes
imunocomprometidos, portadores de cateteres, usuários de droga e portadores de
próteses valvares. Os agentes mais prevalentes são Candida sp e Aspergillus sp. A única
terapêutica comprovadamente eficaz é Anfotericina B. Todos os cateteres sob suspeita
de contaminação devem ser retirados e a troca valvar é invariavelmente necessária.

Evolução
Em geral, a melhora da febre ocorre em cinco a sete dias. Em caso de febre com
duração de mais de sete dias em paciente com antibiótico correto e otimizado,
recomenda-se avaliação para complicações da endocardite infecciosa.
Deve-se colher hemoculturas diariamente até que se tornem estéreis e, a partir de
então, se houver recrudescência do quadro ou após quatro a seis semanas de terapia se o
doente evoluir bem. O tempo para tornar estéreis as culturas varia com o germe.

Tratamento cirúrgico
O tratamento cirúrgico, quando aplicado, deve estar associado à
antibioticoterapia.
Indicações:
- Endocardite em prótese valvar precoce, há menos de dois meses do
implante;
- Insuficiência cardíaca atribuída a disfunção de prótese valvar pela
endocardite infecciosa;
- Endocardite estafilocócica sem resposta à antibioticoterapia;
- Evidência de ruptura valvar, perfuração, abscesso, aneurisma, fístula ou
bloqueio atrioventricular novo;
- Endocardite por Gram-negativo com resposta inadequada à
antibioticoterapia;
- Bacteremia persistente após sete a dez dias de antibioticoterapia
adequada, sem outras infecções que justifiquem o quadro;
- Embolia periférica recorrente apesar da antibioticoterapia adequada;
- Endocardite em prótese valvar tardia com evolução clínica
desfavorável;

Pedro Kallas Curiati 386


Anticoagulação
O uso de anticoagulantes em doentes com endocardite de valva nativa tem sido
associado com hemorragia subaracnóide fatal e outras complicações hemorrágicas, não
estando indicado. Nos casos de endocardite de valva protética, a anticoagulação pode
ser mantida dentro de níveis terapêuticos, desde que o doente não apresente fenômenos
de embolia séptica maiores. Nos portadores de valva protética com acometimento por S.
aureus e com fenômeno embólico recente para o sistema nervoso central, deve-se
avaliar a parada da terapia anticoagulante durante as duas primeiras semanas de
tratamento antimicrobiano.

Complicações
As complicações incluem acometimento valvar, formação de abscessos e
embolização.

Profilaxia
Indicada para pacientes com condições de maior risco que serão submetidos a
intervenções que podem resultar em bacteremia por micro-organismo com potencial
para causar endocardite infecciosa.
Pacientes de maior risco:
- Prótese valvar;
- História prévia de endocardite infecciosa;
- Doença cardíaca congênita cianótica não-corrigida;
- Doença cardíaca congênita reparada completamente com material
protético por via cirúrgica ou endovascular nos últimos seis meses;
- Doença cardíaca congênita reparada com material protético com
defeitos residuais no local ou adjacente ao local da prótese;
- Doença valvar em coração transplantado;
Procedimentos de risco:
- Procedimentos dentários;
- Procedimentos em pacientes com infecção gastro-intestinal ou gênito-
urinária;
- Procedimentos em pele infectada, estrutura da pele ou tecido músculo-
esquelético;
- Cirurgia para colocação de prótese valvar ou material prostético
intravascular ou intracardíaco;
O antibiótico de escolha depende do paciente e do procedimento. Para pacientes
que serão submetidos a procedimentos odontológicos, o regime preferencial é
Amoxacilina 2g por via oral trinta a sessenta minutos antes. Pacientes que não podem
ingerir medicação por via oral podem receber Ampicilina 2g por via intravenosa ou
intramuscular. Em caso de alergia a penicilina, opções incluem Cefalexina 2g por via
oral, Claritromicina 500mg por via oral e Clindamicina 600mg por via oral.

Bibliografia
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.
Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 5. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2010.

Pedro Kallas Curiati 387


HIPERTENSÃO ARTERIAL
SISTÊMICA
Definição
A hipertensão arterial sistêmica é uma condição clínica multifatorial
caracterizada por níveis elevados e sustentados de pressão arterial. Associa-se
frequentemente a alterações funcionais e/ou estruturais dos órgãos-alvo, que incluem
coração, encéfalo, rins e vasos sanguíneos, e a alterações metabólicas, com consequente
aumento do risco de eventos cardiovasculares fatais e não fatais.

Epidemiologia
Os fatores de risco para hipertensão arterial sistêmica incluem idade avançada,
cor não-branca, excesso de peso, ingesta excessiva de sódio, ingesta de álcool por
períodos prolongados de tempo, sedentarismo, herança genética e outros fatores de risco
cardiovascular.

Prevenção primária
As mudanças no estilo de vida são entusiasticamente recomendadas na
prevenção primária da hipertensão arterial sistêmica. As principais recomendações não-
medicamentosas são alimentação saudável, consumo controlado de sódio e de álcool,
ingesta de potássio e combate ao sedentarismo e ao tabagismo.
Para o manejo de indivíduos com comportamento limítrofe da pressão arterial,
recomenda-se considerar o tratamento medicamentoso apenas em condições de risco
cardiovascular global alto ou muito alto.

Diagnóstico
A hipertensão arterial sistêmica é diagnosticada pela detecção de níveis elevados
e sustentados de pressão arterial pela medida casual, que deve ser realizada em toda
avaliação por médicos de qualquer especialidade e demais profissionais da saúde.
A medida da pressão arterial pode ser realizada pelo método indireto, com
técnica auscultatória e uso de esfigmomanômetro de coluna de mercúrio ou aneroide
devidamente calibrado, ou com técnica oscilométrica pelos aparelhos semiautomáticos
digitais de braço validados, estando estes também calibrados.
Na primeira avaliação, as medidas devem ser obtidas em ambos os braços e, em
caso de diferença, recomenda-se utilizar como referência sempre o braço com o maior
valor para as medidas subsequentes. O indivíduo deverá ser investigado para doenças
arteriais se apresentar diferença de pressão entre os membros superiores maior do que
20mmHg para a pressão sistólica e maior do que 10mmHg para a pressão diastólica.
Em cada consulta, deverão ser realizadas pelo menos três medidas, sugerindo-se
intervalo de um minuto entre elas. A média das duas últimas deve ser considerada a
pressão arterial real.
A posição recomendada para a medida da pressão arterial é a sentada. As
medidas nas posições ortostática e supina devem ser feitas pelo menos na primeira
avaliação em todos os indivíduos e em todas as avaliações em idosos, diabéticos,
portadores de disautonomias, etilistas e/ou pacientes em uso de medicação anti-
hipertensiva.
A linha demarcatória que define hipertensão arterial sistêmica considera valores

Pedro Kallas Curiati 388


de pressão arterial sistólica superiores ou iguais a 140mmHg e⁄ou de pressão arterial
diastólica superiores ou iguais a 90mmHg em medidas de consultório. O diagnóstico
deverá ser sempre validado por medidas repetidas, em condições ideais, em pelo menos
três ocasiões.
Novas orientações consideram a utilização da Monitorização Ambulatorial da
Pressão Arterial (MAPA) e da Monitorização Residencial da Pressão Arterial (MRPA)
como ferramentas importantes na investigação de pacientes com suspeita de
hipertensão. Recomenda-se, sempre que possível, a medida da pressão arterial fora do
consultório para esclarecimento do diagnóstico e identificação da hipertensão do avental
branco e da hipertensão mascarada.

Técnica para medida da pressão arterial


1. Explicar o procedimento ao paciente e deixá-lo em repouso por pelo menos cinco minutos em
ambiente calmo.
2. Certificar-se de que o paciente não está com a bexiga cheia, não praticou exercícios físicos nos
últimos sessenta minutos, não ingeriu bebidas alcoólicas, café ou alimentos e não fumou nos
últimos trinta minutos.
3. Posicionar o paciente em posição sentada com pernas descruzadas, pés apoiados no chão e dorso
recostado na cadeira, relaxado. O braço deve estar na altura do coração, livre de roupas, apoiado,
com a palma da mão voltada para cima e o cotovelo ligeiramente fletido.
4. Obter a circunferência aproximadamente no meio do braço, selecionar o manguito de tamanho
adequado e colocá-lo, sem deixar folgas, 2-3cm acima da fossa cubital.
5. Centralizar o meio da parte compressiva do manguito sobre a artéria braquial.
6. Estimar o nível da pressão sistólica pela palpação do pulso radial.
7. Palpar a artéria braquial na fossa cubital e colocar a campânula ou o diafragma do estetoscópio
sem compressão excessiva.
8. Inflar rapidamente até ultrapassar em 20-30mmHg o nível estimado da pressão sistólica, obtido
pela palpação, e proceder à deflação lentamente (2mmHg/segundo).
9. Determinar a pressão sistólica pela ausculta do primeiro som (fase I de Korotkoff), que é em
geral fraco, seguido de batidas regulares, e, após, aumentar ligeiramente a velocidade de
deflação.
10. Determinar a pressão diastólica no desaparecimento dos sons (fase V de Korotkoff), auscultar
cerca de 20-30mmHg abaixo para confirmar e então proceder à deflação rápida e completa.
11. Se os batimentos persistirem até o nível zero, determinar a pressão diastólica no abafamento dos
sons (fase IV de Korotkoff).
12. Sugere-se esperar em torno de 1 minuto para nova medida.
13. Informar os valores de pressões arteriais obtidos para o paciente e anotar os valores exatos e o
braço no qual a pressão arterial foi medida.
População Circunferência do braço Bolsa de borracha
Largura Comprimento
Infantil 16-22cm 9cm 18cm
Adulto pequeno 20-26cm 10cm 17cm
Adulto 27-34cm 12cm 23cm
Adulto grande 35-45cm 16cm 32cm

Classificação de acordo com a medida casual no consultório


Classificação Pressão sistólica Pressão diastólica Seguimento
(mmHg) (mmHg)
Ótima < 120 < 80 -
Normal < 130 < 85 Reavaliar em um ano e estimular
mudanças de estilo de vida
Limítrofe 130-139 85-89 Reavaliar em seis meses e insistir em
mudanças de estilo de vida
Hipertensão estágio 140-159 90-99 Confirmar em dois meses e considerar
1 MAPA/ MRPA

Pedro Kallas Curiati 389


Hipertensão estágio 160-179 100-109 Confirmar em um mês e considerar
2 MAPA/ MRPA
Hipertensão estágio ≥ 180 ≥110 Intervenção medicamentosa imediata
3 ou reavaliar em uma semana
Hipertensão sistólica ≥ 140 < 90 -
isolada
Se as pressões sistólicas ou diastólicas forem de estágios diferentes, o
seguimento recomendado deve ser definido pelo maior nível de pressão.

Monitorização residencial da pressão arterial (MRPA)


A MRPA é o registro da pressão arterial, que pode ser realizado obtendo-se três
medidas pela manhã, antes do desjejum e da ingesta de medicamento, e três medidas à
noite, antes do jantar, durante cinco dias, ou duas medidas em cada sessão, durante sete
dias, realizadas pelo paciente ou por outra pessoa capacitada, durante a vigília, no
domicílio ou no trabalho, com equipamentos validados. Apesar de não haver um
consenso na literatura em relação a critérios de normalidade, são consideradas anormais
medidas acima de 130x85mmHg.

Monitorização ambulatorial da pressão arterial (MAPA) de 24 horas


A MAPA é o método que permite o registro indireto e intermitente da pressão
arterial durante 24 horas ou mais, enquanto o paciente realiza suas atividades habituais
durante os períodos de vigília e de sono. Uma das suas características é a possibilidade
de identificar as alterações do ciclo circadiano da pressão arterial, sobretudo as
alterações durante o sono, que têm implicações prognósticas consideráveis.
Têm-se demonstrado que esse método é superior à medida de consultório em
predizer eventos clínicos. São consideradas anormais as médias de pressão arterial de 24
horas acima de 130x80mmHg, durante a vigília acima de 140x85mmHg e durante o
sono acima de 120x70mmHg.

Hipertensão do avental branco


Há hipertensão do avental branco quando o paciente apresenta medidas de
pressão arterial persistentemente elevadas no consultório e médias de pressão arterial
consideradas normais na MRPA ou na MAPA. Evidências disponíveis apontam para
pior prognóstico cardiovascular em relação aos pacientes normotensos.

Hipertensão mascarada
Há hipertensão mascarada quando o paciente apresenta medidas de pressão
arterial normais no consultório, porém com médias de pressão arterial elevadas na
MAPA durante o período de vigília ou na MRPA. Essa condição deve ser pesquisada
em indivíduos com pressão arterial normal ou limítrofe e mesmo nos hipertensos
aparentemente controlados, mas com sinais de lesões em órgãos-alvo.

Órgãos-alvo da hipertensão arterial sistêmica


Órgão Síndrome clínica Sintomas
Coração Insuficiência Dispneia aos esforços, ortopneia, palpitações, edema de membros
cardíaca inferiores
Insuficiência Dor precordial aos esforços ou desencadeada por estresse emocional
coronária
Rins Insuficiência renal Edema matutino, palidez, anorexia, perda de peso, náusea e vômitos,
noctúria, diminuição do volume urinário
Retina Retinopatia Embaçamento visual, fosfenas, escotomas, diminuição da acuidade
hipertensiva visual, amaurose

Pedro Kallas Curiati 390


Cérebro Doença Diminuição da função cognitiva e da atividade motora, paresia, plegia,
cerebrovascular parestesias

Avaliação clínica
Deve-se obter história clínica completa. Além da medida da pressão arterial, a
frequência cardíaca deve ser cuidadosamente medida, pois sua elevação está relacionada
a maior risco cardiovascular. Para avaliação de obesidade visceral, recomenda-se a
medida da circunferência da cintura, sendo os valores de normalidade adotados 88cm
para mulheres e 102cm para homens.
O exame físico deve ser minucioso e o exame de fundo de olho deve ser sempre
feito ou solicitado na primeira avaliação, em especial em pacientes com hipertensão
arterial sistêmica estágio 3, que apresentam diabetes mellitus ou lesão em órgãos-alvo.
A obtenção do índice tornozelo braquial pode ser útil. As indicações incluem
idade entre 50 e 69 anos e tabagismo ou diabetes mellitus, idade superior ou igual a 70
anos, dor na perna com exercício, alterações dos pulsos em membros inferiores, doença
arterial coronária, carotídea ou renal e risco cardiovascular intermediário. Para o
cálculo, deve-se utilizar os valores de pressão arterial do braço e do tornozelo.
Considera-se normal quando acima de 0.9, obstrução leve quando 0.71-0.90, obstrução
moderada quando 0.41-0.70 e obstrução grave quando 0.00-0.40.

Avaliação complementar
A avaliação complementar básica indicada para todos os pacientes inclui análise
de urina, potássio plasmático, creatinina plasmática com estimativa do ritmo de filtração
glomerular, glicemia de jejum, hemoglobina glicada, colesterol total, HDL-colesterol e
triglicérides plasmáticos, ácido úrico plasmático e eletrocardiograma convencional.
A taxa de filtração glomerular estimada pode ser calculada com a fórmula de
Cockroft-Gault, sendo igual, em mL/minuto, a {[140 – idade] x peso (kg)} / [creatinina
plasmática (mg/dl) x 72] para homens e a 85% do total obtido para mulheres.
Considera-se função renal normal quando igual ou superior a 90mL/minuto sem outras
alterações no exame de urina, disfunção renal estágio 1 quando igual ou superior a
90mL/minuto com alterações no exame de urina, disfunção renal estágio 2 quando 60-
89mL/minuto com alterações no exame de urina, disfunção renal estágio 3 quando 30-
59mL/minuto, disfunção renal estágio 4 quando 15-29mL/minuto e disfunção renal
estágio 5 quando inferior a 15mL/minuto.
Radiografia de tórax é indicada para pacientes com suspeita clínica de
insuficiência cardíaca, quando os demais exames não estão disponíveis, e para avaliação
de acometimento pulmonar e de aorta.
Ecocardiograma é indicado para hipertensos estágios 1 e 2 sem hipertrofia
ventricular esquerda ao eletrocardiograma, mas com dois ou mais fatores de risco
cardiovascular, e hipertensos com suspeita clínica de insuficiência cardíaca.
Microalbuminúria é indicada em pacientes hipertensos, hipertensos com
síndrome metabólica e hipertensos com dois ou mais fatores de risco cardiovascular.
Ultrassonografia de carótida é indicada em pacientes com sopro carotídeo, sinais
de doença cerebrovascular ou doença aterosclerótica em outros territórios.
Teste ergométrico é indicado em suspeita de doença coronariana estável,
diabetes mellitus ou antecedente familiar para doença coronariana em paciente com
pressão arterial controlada.

Estratificação de risco
Para a tomada da decisão terapêutica, é necessária a estratificação do risco

Pedro Kallas Curiati 391


cardiovascular global, que levará em conta, além dos valores de pressão arterial, a
presença de fatores de risco adicionais, de lesões em órgãos-alvo e de doenças
cardiovasculares.
Os fatores de risco cardiovascular adicionais nos pacientes com hipertensão
arterial sistêmica são idade superior a 45 anos para homens e superior a 55 anos para
mulheres, tabagismo, dislipidemia, caracterizada por triglicérides acima de 150mg/dL,
LDL-colesterol acima de 100mg/dL e/ou HDL abaixo de 40mg/dL, diabetes mellitus e
história familiar prematura de doença cardiovascular em homens com menos de 55 anos
ou mulheres com menos de 65 anos. Além dos fatores de risco cardiovascular clássicos,
novos fatores de risco cardiovascular vêm sendo identificados, como glicemia de jejum
alterada, hemoglobina glicada anormal, anormal, obesidade abdominal, pressão de pulso
superior a 65mmHg em idosos, história de pré-eclâmpsia na gestação e história familiar
de hipertensão arterial em hipertensos limítrofes.
Indicam lesões de órgãos-alvo eletrocardiograma com hipertrofia ventricular
esquerda, ecocardiograma com hipertrofia ventricular esquerda, ultrassonografia
Doppler de vasos cervicais com espessura média íntima da carótida superior a 0.9mm
ou presença de placa de ateroma, índice tornozelo-braquial inferior a 0.9, clearance de
creatinina estimado inferior a 60mL/minuto/1.73m2, taxa de filtração glomerular
estimada inferior a 60mL/minuto, microalbuminúria (30-300mg em 24 horas) ou
relação entre albumina e creatinina na urina superior a 30mg/g e velocidade de onda de
pulso superior a 12m/segundo.
Condições clínicas associadas à hipertensão arterial sistêmica incluem doença
cerebrovascular, como acidente vascular encefálico isquêmico ou hemorrágico e
alteração da função cognitiva, doença cardíaca, como infarto do miocárdio, angina,
revascularização miocárdica e insuficiência cardíaca, doença renal, como nefropatia
hipertensiva e déficit importante de função, retinopatia avançada, como hemorragias,
exsudatos e papiledema, e doença arterial periférica.
Classificação da pressão Ótima Normal Limítrofe Estágio 1 Estágio 2 Estágio 3
arterial
Nenhum fator de risco Risco basal Risco basal Risco basal Baixo risco Moderado Alto risco
adicional adicional risco adicional
adicional
1-2 fatores de risco Baixo risco Baixo risco Baixo risco Moderado Moderado Muito alto
adicionais adicional adicional adicional risco risco risco
adicional adicional adicional
3 ou mais fatores de risco Moderado Moderado Alto risco Alto risco Alto risco Muito alto
adicionais, lesão de órgão risco risco adicional adicional adicional risco
adicional adicional adicional
alvo, diabetes mellitus ou
síndrome metabólica
Condições clínicas Muito alto Muito alto Muito alto Muito alto Muito alto Muito alto
associadas risco risco risco risco risco risco
adicional adicional adicional adicional adicional adicional

Decisão terapêutica
A decisão terapêutica deve ser baseada no risco cardiovascular, considerando-se
a presença de fatores de risco, lesão em órgão-alvo e/ou doença cardiovascular
estabelecida e não apenas no nível de pressão arterial.
Categoria de risco Considerar
Sem risco adicional Tratamento não-medicamentoso isolado
Risco adicional baixo Tratamento não-medicamentoso isolado por até seis meses e, se não
atingir a meta, tratamento medicamentoso
Risco adicional médio, alto Tratamento não-medicamentoso associado a tratamento medicamentoso
e muito alto
Em hipertensos estágios 1 e 2 com risco cardiovascular baixo e médio,

Pedro Kallas Curiati 392


recomenda-se meta de valores pressóricos inferiores a 140x90mmHg. Em hipertensos e
indivíduos com pressão arterial limítrofe com risco cardiovascular alto ou muito alto,
indivíduos com três ou mais fatores de risco cardiovascular, indivíduos com síndrome
metabólica, indivíduos diabéticos, indivíduos com lesão em órgão alvo e indivíduos
hipertensos com insuficiência renal com proteinúria superior a 1g/L, recomenda-se meta
de valores pressóricos de 130x80mmHg.

Tratamento não medicamentoso


Perda de peso e da circunferência abdominal correlaciona-se com redução da
pressão arterial e melhora de alterações metabólicas associadas. As metas
antropométricas a serem alcançadas são o índice de massa corpórea inferior a 25kg/m² e
a circunferência abdominal inferior a 102cm para homens e 88cm para mulheres. A
cirurgia bariátrica é considerada tratamento efetivo para obesidade moderada a grave.
O padrão dietético DASH (Dietary Approaches to Stop Hypertension), rico em
frutas, fibras, minerais, hortaliças e laticínios com baixos teores de gordura, tem
importante impacto na redução da pressão arterial sistêmica. Os benefícios têm sido
associados ao alto consumo de potássio, magnésio e cálcio. A dieta do Mediterrâneo
associa-se também à redução da pressão arterial. Dietas vegetarianas são inversamente
associadas com a incidência de doenças cardiovasculares.
As orientações nutricionais devem incluir escolher alimentos que possuam
menor teor de gordura saturada, colesterol e gordura total, como carnes magras, aves e
peixes, utilizando-os em pequena quantidade, comer muitas frutas e hortaliças,
aproximadamente oito a dez porções por dia (uma porção é igual a uma concha média),
incluir duas a três porções de laticínios desnatados ou semidesnatados por dia, preferir
os alimentos integrais, como pães, cereais e massas integrais, comer quatro a cinco
porções de oleaginosas (castanhas), sementes e grãos por semana (uma porção é igual a
1/3 de xícara ou 40 gramas de castanhas, duas colheres de sopa ou 14 gramas de
sementes ou 1/2 xícara de feijões ou ervilhas cozidas e secas), reduzir a adição de
gorduras, utilizar margarina light e óleos vegetais insaturados, como de oliva, soja,
milho e canola, evitar a adição de sal aos alimentos, molhos ou caldos prontos e
produtos industrializados e diminuir o consumo de doces e bebidas com açúcar.
Apesar das diferenças individuais de sensibilidade, mesmo modestas reduções
na quantidade de sal são, em geral, eficientes em reduzir a pressão arterial sistêmica. A
necessidade diária de sódio para os seres humanos é a contida em 5g de cloreto de sódio
ou sal de cozinha, que corresponde a 2g de sódio. Dessa forma, os pacientes devem ser
orientados a ingerir no máximo três colheres de café rasas de sal por dia (3g), além dos
2g de sal dos alimentos.
Observa-se uma discreta redução da pressão arterial sistêmica com a
suplementação de óleo de peixe (ômega 3) em altas doses diárias, predominantemente
em idosos. As principais fontes dietéticas de ácidos graxos monoinsaturados (oleico)
são óleo de oliva, óleo de canola, azeitona, abacate e oleaginosas, como amendoim,
castanhas, nozes e amêndoas.
As fibras são classificadas em solúveis e insolúveis. As solúveis são
representadas pelo farelo de aveia, pela pectina (frutas) e pelas gomas (aveia, cevada e
leguminosas, como feijão, grão-de-bico, lentilha e ervilha). As fibras insolúveis são
representadas pela celulose (trigo), pela hemicelulose (grãos) e pela lignina (hortaliças).
A recomendação de ingesta de fibra alimentar total para adultos é de 20-30g/dia,
devendo ser solúveis 5-10g.
As principais fontes de soja na alimentação são feijão de soja, queijo de soja
(tofu), farinha, leite de soja e concentrado proteico da soja. O molho de soja (shoyu)

Pedro Kallas Curiati 393


industrializado contém elevado teor de sódio, devendo ser evitado.
Em vista da controvérsia em relação à segurança e ao benefício cardiovascular
de baixas doses, assim como da ação nefasta do álcool na sociedade, devemos orientar
àqueles que têm o hábito de ingerir bebidas alcoólicas que não ultrapassem 30g de
etanol ao dia, para homens, equivalente a duas latas (350mL) ou uma garrafa (650mL)
de cerveja, duas taças de 150mL ou uma taça de 300mL de vinho ou duas doses de
50mL ou três doses de 30mL de uísque, vodca ou pinga, de preferência não
habitualmente, sendo a metade dessa quantidade a tolerada para as mulheres. Para
aqueles que não têm o hábito, não se justifica recomendar que o façam.
Para manter boa saúde cardiovascular e qualidade de vida, todo adulto deve
realizar, pelo menos cinco vezes por semana, trinta minutos de atividade física aeróbia
moderada de forma contínua ou acumulada, desde que em condições de realizá-la. A
frequência cardíaca de pico deve ser avaliada por teste ergométrico, sempre que
possível, e na vigência da medicação cardiovascular de uso regular. Na falta deste, a
intensidade do exercício pode ser controlada objetivamente pela ventilação, sendo a
atividade considerada predominantemente aeróbia quando o indivíduo permanecer
discretamente ofegante, conseguindo falar frases completas sem interrupções. Embora
haja possibilidade de erros com a utilização de fórmulas que consideram a idade, na
impossibilidade de utilização da ergometria, pode-se usar a fórmula frequência cardíaca
máxima = 220 – idade, exceto em indivíduos em uso de betabloqueadores e/ou
inibidores de canais de cálcio não di-hidropiridínicos. Durante atividade física
moderada, deve-se manter entre 70% e 80% da frequência cardíaca máxima ou de pico.
Em relação aos exercícios resistidos, recomenda-se que sejam realizados entre duas e
três vezes por semana, por meio de uma a três séries de oito a quinze repetições,
conduzidas até a fadiga moderada, devendo-se parar quando a velocidade de movimento
diminuir. Recomenda-se a avaliação médica antes do início de um programa de
treinamento estruturado e sua interrupção na presença de sintomas. Em hipertensos, a
sessão de treinamento não deve ser iniciada se as pressões arteriais sistólica e diastólica
estiverem superiores a 160 e/ou 105 mmHg, respectivamente.
O uso de pressão positiva contínua nas vias aéreas (CPAP) está indicado para a
correção dos distúrbios ventilatórios e metabólicos da apneia/hipopneia obstrutiva do
sono grave.
A utilização da técnica de respiração lenta, com dez respirações por minuto por
quinze minutos diários, com ou sem o uso de equipamentos, tem mostrado reduções da
pressão arterial sistêmica.
A cessação do tabagismo constitui medida fundamental e prioritária na
prevenção primária e secundária das doenças cardiovasculares e de diversas outras
doenças.

Medicamentos
As evidências provenientes de estudos de desfechos clinicamente relevantes,
com duração relativamente curta, de três a quatro anos, demonstram redução de
morbidade e mortalidade com diuréticos, betabloqueadores, inibidores da enzima de
conversão da angiotensina, bloqueadores do receptor AT1 da angiotensina II e
antagonistas dos canais de cálcio. Esse benefício é observado com a redução da pressão
arterial sistêmica per se e, com base nos estudos disponíveis até o momento, parece não
depender da classe de medicamentos utilizada.
Qualquer medicamento dos grupos de anti-hipertensivos comercialmente
disponíveis, desde que resguardadas as indicações e contraindicações específicas, pode
ser utilizado para o tratamento da hipertensão arterial. Os medicamentos devem ser

Pedro Kallas Curiati 394


utilizados por um período mínimo de quatro semanas, salvo em situações especiais,
antes de aumentar a dose, substituir a monoterapia ou mudar as associações em uso.
Deve ser considerada a associação para os pacientes com hipertensão em estágios 2 e 3
e para os pacientes de alto e muito alto risco cardiovascular, que, na maioria das vezes,
não alcançam a meta de redução da pressão arterial preconizada com a monoterapia.

Diuréticos
O mecanismo de ação anti-hipertensiva dos diuréticos se relaciona inicialmente
aos seus efeitos diuréticos e natriuréticos, com diminuição do volume extracelular.
Posteriormente, após cerca de quatro a seis semanas, o volume circulante praticamente
se normaliza e há redução da resistência vascular periférica. Para uso anti-hipertensivo,
são preferidos diuréticos tiazídicos e similares, em baixas doses. Os diuréticos de alça
são reservados para hipertensão associada a insuficiência renal com taxa de filtração
glomerular abaixo de 30mL/minuto/1.73m2 e/ou a insuficiência cardíaca com retenção
de volume. Em pacientes com aumento do volume extracelular, como em insuficiências
cardíaca e renal, o uso associado de diurético de alça e de diurético tiazídico pode ser
benéfico tanto para o controle do edema quanto da pressão arterial sistêmica,
ressalvando-se o risco maior de eventos adversos. Os diuréticos poupadores de potássio
apresentam pequena eficácia diurética, mas, quando associados aos tiazídicos e aos
diuréticos de alça, são úteis na prevenção e no tratamento de hipocalemia. Seu uso em
pacientes com redução da função renal poderá acarretar em hipercalemia.
Os principais efeitos adversos são hipocalemia, hipomagnesemia e
hiperuricemia. O emprego de baixas doses diminui o risco de efeitos adversos, sem
prejuízo da eficácia anti-hipertensiva, especialmente quando em associação com outros
anti-hipertensivos. Os diuréticos também podem provocar intolerância à glicose,
aumentar o risco do aparecimento do diabetes mellitus e promover aumento de
triglicérides, efeitos esses, em geral, dependentes da dose.
Medicamento Dose diária Fracionamento da
dose
Diuréticos tiazídicos
Clortalidona 12.5-25.0mg Uma vez ao dia
Hidroclorotiazida 12.5-25.0mg Uma vez ao dia
Indapamida 2.5-5.0mg Uma vez ao dia
Indapamida SR 1.5-5.0mg Uma vez ao dia
Diuréticos de alça
Bumetanida Dose mínima 0.5mg e dose máxima variável de acordo com Uma a duas vezes ao
a indicação médica dia
Furosemida Dose mínima 20mg e dose máxima variável de acordo com Uma a duas vezes ao
a indicação médica dia
Piretanida 6-12mg Uma vez ao dia
Diuréticos poupadores de potássio
Amilorida 2.5-10mg Uma vez ao dia
Espironolactona 25-100mg Uma a duas vezes ao
dia
Triantereno 50-100mg Uma vez ao dia

Inibidores adrenérgicos de ação central


Atuam estimulando os receptores alfa-2-adrenérgicos pré-sinápticos no sistema
nervoso central, reduzindo o tônus simpático, como fazem a Alfametildopa, a Clonidina
e o Guanabenzo, e/ou inibindo os receptores imidazolidínicos, como a Moxonidina e a
Rilmenidina. Seu efeito hipotensor como monoterapia é, em geral, discreto. Entretanto,
podem ser úteis em associação com medicamentos de outros grupos, particularmente

Pedro Kallas Curiati 395


quando há evidência de hiperatividade simpática. A experiência favorável em relação à
segurança do binômio materno-fetal faz da Alfametildopa agente de escolha para
tratamento da hipertensão arterial sistêmica em gestantes. Não interferem na resistência
periférica à insulina ou no perfil lipídico.
Os principais efeitos adversos são sonolência, sedação, boca seca, fadiga,
hipotensão postural e disfunção sexual. A Alfametildopa pode provocar ainda, embora
com pequena frequência, galactorreia, anemia hemolítica e lesão hepática, sendo
contraindicada se houver insuficiência hepática. No caso da Clonidina, destaca-se a
hipertensão rebote, quando da suspensão brusca da medicação, e a ocorrência mais
acentuada de boca seca.
Medicamento Dose diária Fracionamento da dose
Alfametildopa 500-1500mg Duas a três vezes ao dia
Clonidina 0.2-0.6mg Duas a três vezes ao dia
Guanabenzo 4-12mg Duas a três vezes ao dia
Moxonidina 0.2-0.6mg Uma vez ao dia
Rilmenidina 1-2mg Uma vez ao dia
Reserpina 12.5-25.0mg Uma a duas vezes ao dia

Betabloqueadores
Seu mecanismo anti-hipertensivo envolve diminuição inicial do débito cardíaco,
redução da secreção de renina, readaptação dos barorreceptores e diminuição das
catecolaminas nas sinapses nervosas. Betabloqueadores de terceira geração, mais
recentes, como o Carvedilol e o Nebivolol, também proporcionam vasodilatação, que,
no caso do Carvedilol, decorre em grande parte do bloqueio concomitante do receptor
alfa-1 adrenérgico e, no caso de Nebivolol, decorre do aumento da síntese e da liberação
endotelial de óxido nítrico. Estudos e metanálises recentes não têm apontado redução de
desfechos relevantes, principalmente acidente vascular encefálico, em pacientes com
idade superior a sessenta anos, situação em que o uso dessa classe de medicamentos
seria reservada para situações especiais, como coronariopatia, disfunção sistólica,
arritmias cardíacas e infarto do miocárdio prévio. Estudos de desfecho com Carvedilol,
Metoprolol, Bisoprolol e, recentemente, Nebivolol têm demonstrado que esses fármacos
são úteis na redução de mortalidade e morbidade cardiovasculares de pacientes com
insuficiência cardíaca, hipertensos ou não, independentemente da faixa etária. O
propranolol se mostra também útil em pacientes com tremor essencial, síndromes
hipercinéticas, cefaleia de origem vascular e hipertensão portal.
Os principais efeitos adversos são broncoespasmo, bradicardia, distúrbios da
condução atrioventricular, vasoconstrição periférica, insônia, pesadelos, depressão
psíquica, astenia e disfunção sexual. Betabloqueadores de primeira e segunda gerações
podem acarretar também intolerância à glicose, diabetes mellitus, hipertrigliceridemia,
elevação do LDL-colesterol e redução do HDL-colesterol. O impacto sobre o
metabolismo da glicose é potencializado quando são utilizados em combinação com
diuréticos. O efeito sobre o metabolismo lipídico parece estar relacionado à dose e à
seletividade, sendo de pequena monta com o uso de baixas doses de betabloqueadores
cardiosseletivos. Diferentemente, betabloqueadores de terceira geração têm impacto
neutro ou até podem melhorar os metabolismos da glicose e lipídico, possivelmente em
decorrência do efeito de vasodilatação com diminuição da resistência à insulina e
melhora da captação de glicose pelos tecidos periféricos. Estudos com o Nebivolol
também têm apontado para uma menor interferência na função sexual, possivelmente
em decorrência do efeito sobre a síntese de óxido nítrico endotelial.
A suspensão brusca dos betabloqueadores pode provocar hiperatividade
simpática, com hipertensão rebote e/ou manifestações de isquemia miocárdica,

Pedro Kallas Curiati 396


sobretudo em hipertensos com pressão arterial sistêmica prévia muito elevada. Devem
ser utilizados com cautela em pacientes com doença vascular de extremidade. Os
betabloqueadores de primeira e segunda gerações são formalmente contraindicados a
pacientes com asma, doença pulmonar obstrutiva crônica e bloqueio atrioventricular de
2º e 3º graus.
Medicamento Dose diária Fracionamento da dose
Atenolol 25-100mg Uma a duas vezes ao dia
Bisoprolol 2.5-10.0mg Uma a duas vezes ao dia
Carvedilol 12.5-50.0mg Uma a duas vezes ao dia
Metoprolol 50-200mg Uma a duas vezes ao dia
Nadolol 40-120mg Uma vez ao dia
Nebivolol 5-10mg Uma vez ao dia
Propranolol 40-240mg Duas a três vezes ao dia
Propranolol LA 80-160mg Uma a duas vezes ao dia
Pindolol 10-40mg Uma a duas vezes ao dia

Alfabloqueadores
Apresentam efeito hipotensor discreto em longo prazo como monoterapia,
devendo, portanto, ser associados com outros anti-hipertensivos. Podem induzir ao
aparecimento de tolerância, o que exige o uso de doses gradativamente crescentes. Têm
a vantagem de propiciar melhora discreta no metabolismo lipídico e glicídico e dos
sintomas de pacientes com hipertrofia prostática benigna.
Os principais efeitos adversos são hipotensão postural, mais evidente com a
primeira dose, sobretudo se a dose inicial for alta, palpitações e, eventualmente, astenia.
Medicamento Dose diária Fracionamento da dose
Doxazosina 1-16mg Uma vez ao dia
Prazosina 1-20mg Duas a três vezes ao dia
Prazosina XL 4-8mg Uma vez ao dia
Terazosina 1-20mg Uma a duas vezes ao dia

Vasodilatadores diretos
Atuam sobre a musculatura da parede vascular, promovendo relaxamento
muscular com consequente vasodilatação e redução da resistência vascular periférica.
São utilizados em associação com diuréticos e/ou betabloqueadores.
Os principais efeitos adversos são retenção hídrica e taquicardia reflexa, que
contraindica o uso como monoterapia.
Medicamento Dose diária Fracionamento da dose
Hidralazina 50-150mg Duas a três vezes ao dia
Minoxidil 2.5-80.0mg Duas a três vezes ao dia

Antagonistas dos canais de cálcio


A ação anti-hipertensiva decorre da redução da resistência vascular periférica
por diminuição da concentração de cálcio nas células musculares lisas vasculares.
Apesar do mecanismo final comum, esse grupo é dividido em três subgrupos, com
características químicas e farmacológicas diferentes, as fenilalquilaminas, as
benzotiazepinas e as di-hidropiridinas. São anti-hipertensivos eficazes e reduzem a
morbidade e a mortalidade cardiovasculares.
Os principais efeitos adversos são cefaleia, tontura, rubor facial e edema de
extremidades, sobretudo maleolar, em geral dose-dependentes. Mais raramente, podem
induzir hipertrofia gengival. Os di-hidropiridínicos de ação curta provocam importante
estimulação simpática reflexa, sabidamente deletéria para o sistema cardiovascular.
Verapamil e Diltiazem podem provocar depressão miocárdica e bloqueio

Pedro Kallas Curiati 397


atrioventricular. Obstipação intestinal é observada, particularmente, com Verapamil.
Medicamento Dose diária Fracionamento da dose
Fenilalquilaminas
Verapamil Retard 120-480mg Uma a duas vezes ao dia
Benzotiazepinas
Diltiazem AP, SR ou CD 180-480mg Uma a duas vezes ao dia
Di-hidropiridinas
Anlodipino 2.5-10.0mg Uma vez ao dia
Felodipino 5-20mg Uma a duas vezes ao dia
Isradipino 2.5-20.0mg Duas vezes ao dia
Lacidipino 2-8mg Uma vez ao dia
Lercanidipino 10-30mg Uma vez ao dia
Manidipino 10-20mg Uma vez ao dia
Nifedipino Oros 30-60mg Uma vez ao dia
Nifedipino Retard 20-60mg Duas a três vezes ao dia
Nisoldipino 5-40mg Uma a duas vezes ao dia
Nitrendipino 10-40mg Duas a três vezes ao dia

Inibidores da enzima de conversão da angiotensina


Agem fundamentalmente pela inibição da enzima conversora da angiotensina,
bloqueando a transformação da angiotensina I em angiotensina II no sangue e nos
tecidos, embora outros fatores possam estar envolvidos. Quando administrados em
longo prazo, retardam o declínio da função renal em pacientes com nefropatia diabética
ou de outras etiologias.
Os principais efeitos adversos são tosse seca, alteração do paladar e, mais
raramente, reações de hipersensibilidade com erupção cutânea e edema angioneurótico.
Em indivíduos com insuficiência renal crônica, podem eventualmente agravar a
hipercalemia. Em pacientes com hipertensão renovascular bilateral ou unilateral
associada a rim único, podem promover redução da filtração glomerular com aumento
dos níveis séricos de ureia e creatinina. Seu uso em pacientes com função renal reduzida
pode causar aumento de até 30% da creatinina sérica, mas em longo prazo prepondera
seu efeito nefroprotetor. Seu uso é contraindicado na gravidez pelo risco de
complicações fetais. Dessa forma, seu emprego deve ser cauteloso e frequentemente
monitorado em adolescentes e mulheres em idade fértil.
Medicamento Dose diária Fracionamento da dose
Benazepril 5-20mg Uma vez ao dia
Captopril 25-150mg Duas a três vezes ao dia
Cilazapril 2.5-5.0mg Uma vez ao dia
Delapril 15-30mg Uma a duas vezes ao dia
Enalapril 5-40mg Uma a duas vezes ao dia
Fosinopril 10-20mg Uma vez ao dia
Lisinopril 5-20m Uma vez ao dia
Perindopril 4-8mg Uma vez ao dia
Quinapril 10-20mg Uma vez ao dia
Ramipril 2.5-10.0mg Uma vez ao dia
Trandolapril 2-4mg Uma vez ao dia

Bloqueadores dos receptores AT1 da angiotensina II


Bloqueadores dos receptores AT1 da angiotensina II antagonizam a ação da
angiotensina II por meio do bloqueio específico de seus receptores AT1. São
nefroprotetores no paciente com diabetes mellitus do tipo 2 com nefropatia estabelecida
ou incipiente. O tratamento com bloqueadores dos receptores AT1 da angiotensina II,
assim como com o uso de inibidores da enzima de conversão da angiotensina, vem

Pedro Kallas Curiati 398


sendo associado a uma menor incidência de novos casos de diabetes mellitus do tipo II.
Apresentam bom perfil de tolerabilidade, sendo relatadas tontura e, raramente,
reação de hipersensibilidade cutânea. As precauções para seu uso são semelhantes às
descritas para os inibidores da enzima de conversão da angiotensina.
Medicamento Dose diária Fracionamento da dose
Candesartana 8-32mg Uma vez ao dia
Irbesartana 150-300mg Uma vez ao dia
Losartana 25-100mg Uma vez ao dia
Olmesartana 20-40mg Uma vez ao dia
Telmisartana 40-160mg Uma vez ao dia
Valsartana 80-320mg Uma vez ao dia

Inibidores diretos da renina


Alisquireno, único representante da classe atualmente disponível para uso
clínico, promove uma inibição direta da ação da renina com consequentemente
diminuição da formação de angiotensina II. Especulam-se ainda outras ações, como
redução da atividade plasmática de renina, bloqueio de um receptor celular próprio de
renina/prorrenina e diminuição da síntese intracelular de angiotensina II. Estudos de
eficácia anti-hipertensiva comprovam sua capacidade em monoterapia de redução da
pressão arterial sistêmica de intensidade semelhante à dos demais anti-hipertensivos.
Estudos clínicos de curta duração indicam efeito benéfico na redução de morbidade
cardiovascular e renal, hipertrofia de ventrículo esquerdo e proteinúria.
Apresentam boa tolerabilidade. Os principais efeitos adversos são exantema,
diarreia, aumento de creatinofosfoquinase e tosse, com incidência inferior a 1%. É
contraindicado o uso na gravidez.
Medicamento Dose diária Fracionamento da dose
Alisquireno 150-300mg Uma vez ao dia

Esquemas terapêuticos
A monoterapia pode ser a estratégia anti-hipertensiva inicial para pacientes com
hipertensão arterial estágio 1 e com risco cardiovascular baixo a moderado. O
tratamento deve ser individualizado e a escolha inicial do medicamento como
monoterapia deve basear-se em capacidade de reduzir morbidade e mortalidade
cardiovasculares, perfil de segurança, mecanismo fisiopatogênico predominante no
paciente a ser tratado, características individuais, doenças associadas e condições
socioeconômicas. Com base nesses critérios, as classes de anti-hipertensivos atualmente
consideradas preferenciais para o controle da pressão arterial em monoterapia inicial são
os diuréticos, os betabloqueadores, os bloqueadores dos canais de cálcio, os inibidores
da enzima de conversão da angiotensina e os bloqueadores do receptor AT1 da
angiotensina II. Alisquireno pode ser considerado como opção para o tratamento inicial
em monoterapia nos pacientes com hipertensão estágio 1 com risco cardiovascular
baixo a moderado, ressalvando-se que até o presente momento não estão disponíveis
estudos que demonstrem redução de mortalidade cardiovascular com o seu uso. A
posologia deve ser ajustada até que se consiga redução da pressão arterial pelo menos a
um nível inferior a 140x90mmHg. Se o objetivo terapêutico não for conseguido com a
monoterapia inicial, três condutas são possíveis. Se o resultado for parcial ou nulo, mas
sem reação adversa, recomenda-se aumentar a dose do medicamento em uso ou associar
anti-hipertensivo de outro grupo terapêutico. Quando não se obtiver efeito terapêutico
na dose máxima preconizada, ou se surgirem eventos adversos não-toleráveis,
recomenda-se a substituição do anti-hipertensivo inicialmente utilizado. Se ainda assim
a resposta for inadequada, devem-se associar dois ou mais medicamentos.

Pedro Kallas Curiati 399


Os afrodescendentes em geral respondem menos à monoterapia com
betabloqueadores, inibidores da enzima de conversão da angiotensina e bloqueadores
dos receptores da angiotensina do que aos diuréticos e antagonistas dos canais de cálcio
di-hidropiridínicos. Em indivíduos com proteinúria, o uso de inibidores da enzima de
conversão da angiotensina está indicado, da mesma forma como ocorre em indivíduos
de cor branca.
Com base em evidências de que em cerca de dois terços dos casos a monoterapia
não é suficiente para atingir as reduções de pressão previstas e diante da demonstração
de que valores da pressão arterial mais baixos, inferiores a 130x80mmHg, podem ser
benéficos para pacientes com características peculiares, como de alto e muito alto risco
cardiovascular, diabéticos, com doença renal crônica e em prevenção primária e
secundária de acidente vascular encefálico, há clara tendência atual para a introdução
mais precoce de terapêutica combinada de anti-hipertensivos como primeira medida
medicamentosa, sobretudo nos pacientes com hipertensão em estágios 2 e 3 e para
aqueles com hipertensão arterial estágio 1, mas com risco cardiovascular alto ou muito
alto. As associações de anti-hipertensivos devem seguir a lógica de não combinar
medicamentos com mecanismos de ação similares, com exceção da combinação de
diuréticos tiazídicos e de alça com poupadores de potássio. Tais associações de anti-
hipertensivos podem ser feitas por meio de medicamentos em separado ou por
associações em doses fixas. As associações reconhecidas como eficazes incluem
diuréticos com outros diuréticos de diferentes mecanismos de ação, diuréticos com
simpatolíticos de ação central, diuréticos com betabloqueadores, diuréticos com
inibidores da enzima de conversão da angiotensina, diuréticos com bloqueadores do
receptor AT1 da angiotensina II, diuréticos com inibidor direto da renina, diuréticos
com bloqueadores dos canais de cálcio, bloqueadores dos canais de cálcio com
betabloqueadores, bloqueadores dos canais de cálcio com inibidores da enzima
conversora de angiotensina, bloqueadores dos canais de cálcio com bloqueadores do
receptor AT1 e bloqueadores dos canais de cálcio com inibidor direto da renina. O
emprego da combinação de betabloqueadores e diuréticos deve ser cauteloso em
pacientes com, ou altamente predispostos a apresentar, distúrbios metabólicos,
especialmente glicídicos. Se o objetivo terapêutico não for conseguido com a
combinação inicial, três condutas são possíveis. Se o resultado for parcial ou nulo, mas
sem reação adversa, recomenda-se aumentar a dose da combinação em uso ou associar
um terceiro anti-hipertensivo de outra classe. Quando não se obtiver efeito terapêutico
na dose máxima preconizada, ou se surgirem eventos adversos não-toleráveis,
recomenda-se a substituição da combinação. Se ainda assim a resposta for inadequada,
devem-se associar outros anti-hipertensivos. Quando já estão sendo usados pelo menos
dois medicamentos, o uso de um diurético é fundamental.
Pacientes aderentes ao tratamento e não-responsivos à tríplice terapia otimizada
que inclua um diurético caracterizam a situação clínica de hipertensão resistente. Nessa
situação clínica, deverá ser avaliada a presença de fatores que dificultam o controle da
pressão arterial, tais como ingesta excessiva de sal, etilismo, obesidade, uso de fármacos
com potencial de elevar a pressão arterial sistêmica, síndrome de apneia obstrutiva do
sono e formas secundárias de hipertensão arterial, procedendo a correção desses fatores.
Se ausentes ou se a pressão arterial sistêmica persistir elevada mesmo após a correção
dos fatores de agravamento do quadro hipertensivo, a adição de Espironolactona e de
simpatolíticos centrais e betabloqueadores ao esquema terapêutico tem-se mostrado útil.
Reserva-se para pacientes que não responderam adequadamente à estratégia proposta a
adição de vasodilatadores diretos como Hidralazina e Minoxidil, que devem ser usados
em combinação com diuréticos e betabloqueadores.

Pedro Kallas Curiati 400


Existem evidências de que, para hipertensos com a pressão arterial controlada, a
prescrição de Ácido Acetilsalicílico em baixas doses, com 75mg/dia, diminui a
ocorrência de complicações cardiovasculares, desde que não haja contraindicação para o
seu uso e que os benefícios superem os eventuais riscos da sua administração.

Hipertensão arterial sistêmica secundária


A hipertensão arterial sistêmica secundária tem prevalência de 3-5%. Antes de
se investigarem causas secundárias, deve-se excluir medida inadequada da pressão
arterial sistêmica, hipertensão do avental branco, tratamento inadequado, não adesão ao
tratamento, progressão das lesões nos órgãos-alvo da hipertensão, presença de
comorbidades e interação com medicamentos.
Achados clínicos Suspeita diagnóstica Estudos diagnósticos
adicionais
Ronco, sonolência diurna, síndrome Apneia obstrutiva do Polissonografia
metabólica sono
Hipertensão resistente ao tratamento, com Hiperaldosteronismo Aldosterona sérica, atividade de
hipocalemia espontânea e/ou com nódulo primário renina plasmática e relação
adrenal aldosterona / atividade de renina
plasmática
Insuficiência renal, doença cardiovascular Doença renal Taxa de filtração glomerular
aterosclerótica, edema, uréia elevada, parenquimatosa estimada, ultrassonografia renal,
creatinina elevada, proteinúria, hematúria pesquisa de microalbuminúria,
pesquisa de proteinúria
Sopro abdominal, edema pulmonar súbito, Doença renovascular Angiografia por ressonância
alteração de função renal por medicamentos magnética ou tomografia
que bloqueiam o sistema renina- computadorizada,
angiotensina, início abrupto da hipertensão ultrassonografia com Doppler,
arterial sistêmica antes dos trinta anos ou cintilografia com Captopril,
após os cinquenta anos, assimetria no arteriografia renal
tamanho renal
Uso de simpaticomiméticos, perioperatório, Catecolaminas em Confirmar normotensão na
estresse agudo, taquicardia excesso ausência de catecolaminas em
excesso
Pulsos femorais reduzidos ou retardados, Coartação da aorta Ultrassonografia com Doppler
radiografia de tórax anormal ou tomografia computadorizada
da aorta
Ganho de peso, fadiga, fraqueza, hirsutismo, Síndrome de Cushing Cortisol urinário de 24 horas e
amenorreia, face em lua cheia, corcova cortisol matinal basal (8:00) e
dorsal, estrias purpúricas, obesidade central e oito horas após administração
hipocalemia de 1mg de Dexametasona as
24:00
Hipertensão paroxística com cefaleia, Feocromocitoma ou Determinações de
sudorese e palpitações paraganglioma catecolaminas e metanefrinas
plasmáticas e de metanefrinas
fracionadas, catecolaminas,
metanefrinas e ácido
vanilmandélico na urina
Fadiga, ganho de peso, perda de cabelo, Hipotireoidismo T4 livre e hormônio
hipertensão diastólica, fraqueza muscular tireoestimulante (TSH)
Intolerância ao calor, perda de peso, Hipertireoidismo T4 livre e hormônio
palpitações, tremor, fadiga, labilidade tireoestimulante (TSH)
emocional, hipertensão sistólica, hipertermia,
exoftalmia, taquicardia, reflexos exaltados
Litíase urinária, osteoporose, depressão, Hiperparatireoidismo Cálcio sérico e paratormônio
letargia, fraqueza muscular (PTH)

Pedro Kallas Curiati 401


Cefaleia, fadiga, problemas visuais, aumento Acromegalia IGF1 e hormônio de
de mãos, pés e língua crescimento basal e durante
teste de tolerância à glicose

Bibliografia
VI Diretrizes Brasileiras de Hipertensão. Rev Bras Hipertens vol.17(1):7-60, 2010.
The Cochrane Review of Sodium and Health. Michael H. Alderman. American Journal of Hypertension. 2011.
Clínica médica, volume 2: doenças cardiovasculares, doenças respiratórias, emergências e terapia intensiva. – Barueri, SP: Manole,
2009.

Pedro Kallas Curiati 402


INSUFICIÊNCIA CARDÍACA
Definição
Síndrome clínica complexa de caráter sistêmico com disfunção cardíaca que
ocasiona inadequado suprimento sanguíneo para atender necessidades metabólicas
tissulares, na presença de retorno venoso normal, ou funcionamento com elevadas
pressões de enchimento. As alterações hemodinâmicas comumente encontradas
envolvem resposta inadequada do débito cardíaco e elevação das pressões pulmonar e
venosa sistêmica.
Na maioria das formas de insuficiência cardíaca, a redução do débito cardíaco é
responsável pela inapropriada perfusão tecidual. No entanto, existem condições nas
quais o débito cardíaco poderá ser normal ou até elevado, como quando a pós-carga está
diminuída ou o metabolismo está aumentado, porém inadequado à demanda metabólica
tecidual, caracterizando insuficiência cardíaca de alto débito. Exemplos incluem
tireotoxicose, fístula arteriovenosa, beribéri, anemia e doença de Paget.
O mecanismo responsável pelos sintomas e sinais clínicos pode ser decorrente
de disfunção sistólica, diastólica ou combinada acometendo um ou ambos os
ventrículos. Clinicamente, a insuficiência cardíaca com manifestação de ventrículo
esquerdo caracteriza-se por sinais e sintomas de congestão pulmonar, enquanto que a
insuficiência cardíaca com manifestação de ventrículo direito manifesta-se por sinais e
sintomas de congestão sistêmica.

Etiologia
A insuficiência cardíaca é a via final comum da maioria das doenças que
acometem o coração. A etiologia abrange doença isquêmica, especialmente na presença
de fatores de risco, angina ou disfunção segmentar, hipertensão arterial, frequentemente
associada a hipertrofia ventricular e a fração de ejeção preservada, doença de Chagas,
especialmente na presença de dados epidemiológicos sugestivos, bloqueio de ramo
direito e bloqueio divisional ântero-superior, cardiomiopatia hipertrófica,
cardiomiopatia dilatada, cardiomiopatia restritiva, displasia arritmogênica do ventrículo
direito, drogas, como bloqueadores de canal de cálcio e agentes citotóxicos
(Doxorrubicina, Adriamicina, Daunorrubicina e Ciclofosfamida), toxinas, como álcool,
cocaína, mercúrio, cobalto e arsênio, doenças endócrinas, como diabetes mellitus,
hipotireoidismo, hipertireoidismo, síndrome de Cushing, insuficiência adrenal,
feocromocitoma e hipersecreção de hormônio de crescimento, desnutrição, como
caquexia, obesidade e deficiências de selênio, tiamina e carnitina, doenças infiltrativas,
como sarcoidose, amiloidose e hemocromatose, doenças extracardíacas, como fístula
arteriovenosa, beribéri, doença de Paget e anemia, doença renal crônica, miocardiopatia
periparto e infecção pelo vírus da imunodeficiência humana.
No Brasil, a principal etiologia é a cardiopatia isquêmica crônica associada a
hipertensão arterial. Em determinadas regiões geográficas do país e em áreas de baixas
condições socioeconômicas, ainda existem formas associadas a doença de Chagas,
endomiocardiofibrose e cardiopatia valvular reumática crônica.

Critérios de Framingham
Critérios maiores incluem dispneia paroxística noturna, distensão das veias do
pescoço, refluxo hepatojugular, pressão venosa central superior a 16cmH2O, estertores
pulmonares, edema agudo de pulmão, cardiomegalia na radiografia de tórax, B3 e perda

Pedro Kallas Curiati 403


de peso superior a 4.5kg em cinco dias em resposta ao tratamento com diuréticos.
Critérios menores incluem edema de tornozelo bilateral, tosse noturna, dispneia
com esforço usual, hepatomegalia, derrame pleural, diminuição na capacidade vital em
um terço do valor máximo registrado e taquicardia, com frequência cardíaca superior a
120bpm.
A presença de dois critérios maiores ou de um critério maior e dois critérios
menores confirmam o diagnóstico de insuficiência cardíaca.

Classificação baseada em sintomas da New York Heart Association


Em que pese a estratificação de sintomas pela classe funcional possuir boa
correlação com prognóstico e qualidade de vida, não é boa a sua relação com a fração
de ejeção. Sua determinação serve para avaliar a resposta terapêutica e contribui para a
determinação do melhor momento para intervenções.
Classe I é caracterizada por ausência de sintomas, como dispneia, durante
atividades cotidianas, sendo a limitação para esforços semelhante à esperada em
indivíduos normais. Classe II é caracterizada por sintomas desencadeados por atividades
cotidianas. Classe III é caracterizada por sintomas desencadeados por atividades menos
intensas do que as cotidianas ou por pequenos esforços. Classe IV é caracterizada por
sintomas em repouso.

Classificação da insuficiência cardíaca baseada na progressão da doença


A estratificação de pacientes com insuficiência cardíaca é medida simples,
baseada em dados de história, e que permite ao profissional de saúde avaliar o momento
evolutivo da doença em que o paciente se encontra, avaliar qualidade de vida e
prognóstico e estabelecer prioridades e linhas terapêuticas. Esta forma de categorização
permite uma compreensão evolutiva da doença e, ainda, serve de base para a
identificação de pacientes com indicação de intervenções predominantemente
preventivas, terapêuticas, especializadas e/ou paliativas.
Estágio A inclui pacientes sob risco de desenvolver insuficiência cardíaca, mas
ainda sem doença estrutural perceptível e sem sintomas atribuíveis à insuficiência
cardíaca. Estágio B inclui pacientes que adquiriram lesão estrutural, mas ainda sem
sintomas atribuíveis à insuficiência cardíaca. Estágio C inclui pacientes com lesão
estrutural e sintomas atuais ou pregressos de insuficiência cardíaca. Estágio D inclui
pacientes com sintomas refratários ao tratamento convencional e que requerem
intervenções especializadas ou cuidados paliativos.

Avaliação inicial
A avaliação inicial do paciente com insuficiência cardíaca tem como objetivo
confirmar o diagnóstico, identificar a etiologia e os possíveis fatores precipitantes,
definir o modelo fisiopatológico, definir o modelo hemodinâmico, estimar o prognóstico
e identificar os pacientes que possam se beneficiar de intervenções terapêuticas
específicas.
Apontam para etiologia isquêmica angina de peito, infarto do miocárdio prévio,
fatores de risco para aterosclerose, área inativa em eletrocardiograma e disfunção
segmentar em ecocardiograma. Na doença de Chagas, podem ser encontrados dados
epidemiológicos sugestivos, como origem ou passagem por zona endêmica, familiares
com a doença, exposição a alimentos potencialmente contaminados, possibilidade de
transmissão materno-fetal e transfusão sanguínea, associados a insuficiência cardíaca de
predomínio direito, bloqueio de ramo direito e bloqueio divisional ântero-superior em
eletrocardiograma e disfunção segmentar de parede inferior, aneurisma de ponta de

Pedro Kallas Curiati 404


ventrículo esquerdo e trombo apical em ecocardiograma. História de hipertensão
arterial, etilismo superior a 90g/dia de álcool, que equivale a oito doses, por período
superior a cinco anos, insuficiência cardíaca de início recente com história de infecção
viral e familiares com cardiomiopatia podem indicar causas específicas para a
insuficiência cardíaca.

História clínica e exame físico


Sintomas incluem dispneia, ortopneia, dispneia paroxística noturna, palpitações,
síncope e dor torácica. Fatores de risco incluem história familiar, diabetes mellitus,
hipertensão arterial, etilismo, tabagismo e dislipidemia. Antecedentes relevantes
incluem infarto do miocárdio e cirurgias ou intervenções cardíacas. Fatores
precipitantes incluem infecção, interrupção de medicação, ingesta hídrica ou salina
excessiva, isquemia miocárdica, embolia pulmonar, insuficiência renal, anemia,
hipertensão arterial, arritmias, álcool e drogas, como anti-inflamatórios, bloqueadores
de canal de cálcio e tiazolidinedionas.
No exame físico, deve-se avaliar estado geral, com peso e enchimento capilar,
pulso, com frequência, ritmo e amplitude, pressão arterial sistólica e diastólica, sinais de
hipervolemia, como estase jugular, edema, crepitações pulmonares, ascite e
hepatomegalia, pulmões, com frequência respiratória, presença de crepitações e sinais
de derrame pleural, e coração, com íctus, presença de terceira e/ou quarta bulha e
presença de sopro cardíaco sugestivo de disfunção valvar. Pressão venosa elevada e B3
são os sinais mais específicos, porém são pouco sensíveis e de reprodutibilidade inter-
observador limitada.

Exames complementares
O eletrocardiograma pode fornecer úteis informações para diagnóstico, etiologia,
prognóstico e tratamento da insuficiência cardíaca. Quando normal, torna o diagnóstico
improvável.
A radiografia de tórax nas incidências póstero-anterior e perfil pode revelar
cardiomegalia, definida como índice cardiotorácico superior a 0.5, e sinais de congestão
pulmonar, como redistribuição vascular para os ápices, edema intersticial e/ou alveolar
e derrame pleural, que são úteis marcadores de disfunção ventricular e/ou elevação das
pressões de enchimento. A relação entre as alterações radiológicas e os dados
hemodinâmicos depende não só da gravidade da disfunção cardíaca, mas também da sua
duração. Os sinais de congestão venosa podem estar ausentes mesmo na presença de
pressões de enchimento elevadas e sinais radiológicos de congestão podem persistir
mesmo quando as alterações hemodinâmicas já foram otimizadas com o tratamento. A
etiologia da insuficiência cardíaca pode ser sugerida pela análise da forma da silhueta
cardíaca, pela presença de calcificação em topografia valvar ou de pericárdio e pela
presença de doença pulmonar.
A avaliação laboratorial inicial inclui eletrólitos, função renal, função hepática,
hormônio tireoestimulante (TSH) e glicemia de jejum. Sorologia para Chagas deve ser
realizada quando houver dados epidemiológicos sugestivos. Anemia, hiponatremia e
alteração da função renal são preditores prognósticos adversos. Hipocalemia é efeito
adverso comum do tratamento com diuréticos e pode causar arritmias fatais e aumentar
o risco de intoxicação digitálica. Por outro lado, hipercalemia pode complicar o
tratamento com inibidores da enzima conversora da angiotensina, bloqueadores dos
receptores da angiotensina, β-bloqueadores e Espironolactona. Elevação de enzimas
hepáticas pode ocorrer em decorrência de congestão e/ou hipoperfusão hepática.
O peptídeo natriurético do tipo B (BNP) é um polipeptídeo liberado pelos

Pedro Kallas Curiati 405


miócitos ventriculares em resposta a sobrecarga de volume, sobrecarga de pressão e
aumento da tensão parietal. Tanto sua forma ativa, o BNP, como o seu bioproduto
inativo, o N-terminal pró-BNP, podem ser confiavelmente dosados. É particularmente
útil para afastar insuficiência cardíaca em função de elevado valor preditivo negativo.
Sofre a influência de diversos fatores, como idade, índice de massa corpórea e função
renal, que podem interferir na sua acurácia diagnóstica, com necessidade de pontos de
corte específicos. A utilização de dois pontos de corte, um com alto valor preditivo
negativo para excluir e outro com alto valor preditivo positivo para confirmar, com uma
faixa intermediária, tem sido recomendada. Existe correlação com a gravidade e o
prognóstico da insuficiência cardíaca.
A ecodopplercardiografia é um método rápido, seguro e largamente disponível
que fornece diversas informações funcionais e anatômicas de grande importância,
devendo ser utilizada na avaliação inicial de todo paciente com insuficiência cardíaca. É
útil na confirmação diagnóstica, na avaliação da etiologia, do modelo fisiopatológico,
do modelo hemodinâmico e do prognóstico e na indicação de possíveis alternativas
terapêuticas. Diversas causas de insuficiência cardíaca podem ser identificadas ou
sugeridas pelo aspecto ecocardiográfico típico. O parâmetro mais importante para
quantificação da função sistólica de ventrículo esquerdo é a fração de ejeção,
fundamental para diferenciar a insuficiência cardíaca diastólica da sistólica e para
definir o tratamento. Deve ser obtida preferencialmente pelo método de Simpson, que
apresenta melhor correlação com a ressonância magnética cardíaca, principalmente em
ventrículos esféricos ou com doença segmentar. Análise da função diastólica do
ventrículo esquerdo, realizada através de fluxo mitral, fluxo de veia pulmonar e doppler
tecidual do anel mitral pode ser de grande utilidade na confirmação diagnóstica de
insuficiência cardíaca diastólica, fornece importante informação prognóstica e ajuda a
diferenciar cardiomiopatia restritiva de pericardite constritiva. Outras informações
hemodinâmicas que apresentam correlação satisfatória com dados invasivos incluem a
medida do débito cardíaco, da pressão venosa sistêmica, das pressões sistólica,
diastólica e média de artéria pulmonar e da resistência vascular pulmonar e sistêmica.
O ecocardiograma transesofágico deve ser indicado para pacientes com janela
acústica transtorácica limitada e em pacientes em que o exame convencional deixa
dúvidas diagnósticas. Em particular, pode ser recomendado para avaliação de próteses
valvulares, de cardiopatias congênitas e da presença de trombos dentro do átrio
esquerdo.
A indicação de cineangiocoronariografia na avaliação etiológica de pacientes
com insuficiência cardíaca é motivo de intenso debate. Entretanto, em pacientes que se
apresentam com quadro clínico de angina pectoris e disfunção ventricular sistólica a
realização é consensual, uma vez que a presença de isquemia e viabilidade miocárdica
são marcadores de potencial indicação de revascularização e reversibilidade da
disfunção contrátil. A mesma linha de raciocínio se aplica a pacientes sem angina típica,
porém com perfil de fatores de risco indicativo de doença arterial coronariana ou para
pacientes com história prévia sugestiva de infarto agudo do miocárdio. Avaliação da
anatomia coronariana também se justifica em pacientes com indicação cirúrgica para
correção de valvulopatias primárias ou secundárias em pacientes com insuficiência
cardíaca com risco de doença coronariana.
Em pacientes nos quais a ecocardiografia em repouso não tenha fornecido
informações suficientes, exames adicionais devem ser realizados, como ecocardiografia
de estresse, imagem por medicina nuclear (SPECT e PET), ressonância magnética
cardíaca e tomografia computadorizada cardíaca. Em particular, nos pacientes
portadores de insuficiência cardíaca crônica secundária à cardiopatia isquêmica, os

Pedro Kallas Curiati 406


métodos de imagem apresentam papel importante não apenas na avaliação da anatomia
coronariana, mas também na avaliação de isquemia e viabilidade miocárdica. Diversos
estudos observacionais sugerem que pacientes com disfunção ventricular esquerda de
etiologia isquêmica com anatomia coronariana passível de revascularização e com
predomínio de viabilidade miocárdica nos exames de avaliação não invasiva apresentam
benefício clínico quando adequadamente revascularizados. Em contrapartida, quando
esses mesmos pacientes não apresentam viabilidade miocárdica significativa, não existe
benefício dos procedimentos de revascularização em reduzir a mortalidade.
O ecocardiograma de estresse pode ser utilizado para avaliar a presença e a
extensão da isquemia miocárdica em pacientes com insuficiência cardíaca crônica e
disfunção ventricular de etiologia isquêmica. Utilizando o estresse físico ou
farmacológico, apresenta acurácia comparável aos demais métodos de avaliação não-
invasiva. A ecocardiografia com baixas doses de Dobutamina também pode ser útil na
avaliação da viabilidade miocárdica. A recuperação inicial da contratilidade regional,
seguida por piora da função segmentar com doses progressivas de Dobutamina, com
resposta bifásica, identifica miocárdio viável e é o preditor mais específico de
recuperação da contratilidade após revascularização, ainda que apresente menor
sensibilidade.
A medicina nuclear com técnicas de SPECT (single photon emission
tomography) pode contribuir na insuficiência cardíaca fundamentalmente através de
avaliação da perfusão miocárdica e avaliação da função ventricular. Na avaliação da
função ventricular, as opções mais utilizadas são o SPECT sincronizado com o
eletrocardiograma (gated-SPECT) e a ventriculografia radioisotópica, esta última
reconhecidamente precisa e um dos padrões de referência para avaliação da função do
ventrículo esquerdo e do ventrículo direito. Cintilografia miocárdica de perfusão com
tálio ou sestamibi é mais frequentemente utilizada no contexto de diagnóstico de doença
arterial coronária, fornecendo informações de isquemia e viabilidade miocárdica, assim
como valiosas informações prognósticas. Pode-se utilizar estresse físico ou
farmacológico, com Adenosina, Dipiridamol ou Dobutamina. A cintilografia com gálio
permite avaliar a presença de inflamação, sendo indicada para pesquisa de miocardite.
A tomografia por emissão de pósitrons (positron emission tomography, PET) é
mais frequentemente indicada na situação de avaliação da viabilidade miocárdica, com a
utilização de 18FDG, sendo considerada uma das técnicas de referência nesta utilização.
A avaliação de isquemia miocárdica utilizando rubídio (82Rb) ou amônia (13N) durante
estresse farmacológico também tem demonstrado alta sensibilidade. A disponibilidade
do método ainda é limitada no nosso meio.
A ressonância magnética cardíaca já foi validada para quantificar os volumes, a
massa e a função tanto do ventrículo esquerdo como do ventrículo direito. Dada a sua
alta resolução espacial e temporal, e devido a sua natureza tridimensional, que a torna
independente de premissas geométricas, a ressonância magnética cardíaca apresenta
excelente acurácia e reprodutibilidade, características especialmente úteis ao
acompanhamento longitudinal dos pacientes portadores de insuficiência cardíaca
crônica. Existem diversas técnicas que permitem a determinação da viabilidade
miocárdica, dentre as quais a avaliação da contratilidade segmentar com Dobutamina
em baixas doses, técnicas de imagem do sódio e análise do perfil metabólico e
energético miocárdico pela espectroscopia. Entretanto, a principal delas é a técnica de
realce tardio. A avaliação da transmuralidade das regiões de necrose e/ou fibrose do
miocárdio permite predizer com excelente acurácia a probabilidade de recuperação da
função regional após a revascularização, seja ela cirúrgica ou percutânea. A avaliação
da viabilidade miocárdica através da técnica do realce tardio apresenta ainda as

Pedro Kallas Curiati 407


vantagens de não exigir o emprego de estresse farmacológico e não envolver o uso de
material radioativo. A técnica de realce tardio pode proporcionar delimitação das
regiões de infarto do miocárdio. Adicionalmente, a ressonância magnética cardíaca com
estresse farmacológico permite determinar se existe ou não isquemia miocárdica
associada.
Na disfunção ventricular de etiologia desconhecida, a exclusão de doença
arterial coronária como causa da disfunção é desejável. A tomografia computadorizada
cardíaca, com o seu reconhecido alto valor preditivo negativo, pode atuar neste cenário
como método alternativo ao cateterismo cardíaco para afastar doença coronariana.
Ainda em situações de insuficiência cardíaca crônica com suspeita clínica ou
laboratorial de doença arterial coronária, a tomografia computadorizada cardíaca pode
auxiliar na busca de presença ou ausência de doença obstrutiva significativa e, portanto,
ajudar a orientar o manejo terapêutico.
Mesmo após excluir as causas mais prevalentes de insuficiência cardíaca
crônica, dentre as quais as etiologias isquêmica, hipertensiva, alcoólica e valvar, uma
parte significativa dos pacientes permanece sem diagnóstico etiológico para seu quadro.
Ademais, muitos deles apresentam insuficiência cardíaca grave e/ou rapidamente
progressiva. Neste cenário, a ressonância magnética cardíaca representa uma
modalidade diagnóstica útil, particularmente devido a sua capacidade de proporcionar
caracterização tecidual. Constitui-se, portanto, em ferramenta na avaliação do
diagnóstico etiológico das mais diversas cardiomiopatias não-isquêmicas
potencialmente causadoras de insuficiência cardíaca crônica, dentre as quais a
cardiomiopatia hipertrófica, as miocardiopatias restritivas, infiltrativas ou de depósito,
as miocardites, a miocardiopatia não compactada, a miocardiopatia siderótica, a
cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito e a cardiomiopatia chagásica.
A biópsia endomiocádica também pode ser útil na avaliação de diversas
miocardiopatias específicas. É importante ressaltar, entretanto, que seu uso não deve ser
indiscriminado. No contexto da insuficiência cardíaca crônica, ela está indicada na
avaliação de pacientes com piora inesperada do seu quadro clínico caracterizada pelo
surgimento de arritmias ventriculares novas e/ou bloqueios atrioventriculares de 2º ou 3º
graus e que não apresentem resposta ao tratamento usual. É utilizada para o diagnóstico
e controle de rejeição em pacientes transplantados. Também está indicada na avaliação
de pacientes com suspeita clínica de doenças infiltrativas, alérgicas ou restritivas de
causa desconhecida.
A utilização de Holter é útil na avaliação de pacientes com suspeita de
cardiomiopatia secundária à taquiarritmias. Na análise de indivíduos com palpitações
e/ou síncopes, pode identificar a presença de arritmias supraventriculares e/ou
ventriculares. Além disso, pode ser considerado como método para documentação de
arritmias ventriculares em candidatos a estudo eletrofisiológico.
O estudo eletrofisiológico não é realizado de rotina na avaliação de pacientes
com insuficiência cardíaca. Em algumas situações, na presença de eletrocardiograma
com suspeita de bloqueio trifascicular, na presença de taquiarritmia supraventricular
sustentada que pode ser gênese do mecanismo da insuficiência cardíaca ou na suspeita
de taquicardia ventricular ramo a ramo, o estudo pode ser recomendado. Também pode
ser indicado em pacientes após infarto do miocárdio com disfunção sistólica grave do
ventrículo esquerdo e com presença de arritmias ventriculares frequentes, que sejam
considerados candidatos ao implante de cardiodesfibriladores.

Seguimento clínico
O seguimento clínico meticuloso dos pacientes é tarefa essencial para monitorar

Pedro Kallas Curiati 408


a evolução do quadro clínico, a resposta ao tratamento instituído e a estratificação
prognóstica da insuficiência cardíaca. Deve ser considerado na decisão da periodicidade
de consultas o estágio da insuficiência cardíaca, o estado funcional das últimas
avaliações, a data da última internação, as comorbidades clínicas e a presença de equipe
multidisciplinar para o atendimento dos pacientes.
Os profissionais de saúde que acompanham pacientes com insuficiência cardíaca
devem a cada consulta investigar sobre os sintomas que ocorrem durante as atividades
do dia-a-dia. A avaliação seriada do estado volêmico é tarefa crucial, devendo-se
mensurar o peso, identificar a presença de hipotensão postural e realizar exame físico
focado para sinais clínicos de congestão pulmonar e periférica. Dentre os diversos sinais
e sintomas da insuficiência cardíaca, turgência jugular, refluxo hepatojugular e
ortopnéia são aqueles de maior acurácia para predizer o estado congestivo e o risco de
eventos cardiovasculares futuros. Deve-se avaliar também a adesão do paciente a
medidas de restrição hídrica e salina.
O monitoramento de eletrólitos séricos e de parâmetros de função renal deve ser
realizado de forma seriada em pacientes com insuficiência cardíaca crônica.
A avaliação seriada e rotineira de parâmetros ecocardiográficos de função
sistólica, como fração de ejeção de ventrículo esquerdo, não é recomendada para
pacientes ambulatoriais e estáveis. Reavaliação ecocardiográfica da fração de ejeção
pode ser útil em pacientes que apresentam alterações importantes no seu estado clínico,
uma vez que melhora ou piora deste marcador pode ter implicações terapêuticas
substanciais. O estudo ecocardiográfico, por outro lado, permite avaliação não invasiva
segura e confiável de diversos parâmetros hemodinâmicos relevantes ao manejo de
paciente com insuficiência cardíaca em nível ambulatorial.

Tratamento não-farmacológico

Dieta
A orientação nutricional tem fundamental importância no tratamento de
pacientes com insuficiência cardíaca, contribuindo para maior equilíbrio da doença,
melhorando a capacidade funcional e a qualidade de vida, com impacto positivo na
morbimortalidade.
Recomenda-se restrição do consumo de sódio para 2-3g/dia, desde que não
comprometa a ingesta calórica, na ausência de hiponatremia, além de restrição hídrica
de acordo com a condição clínica do doente, geralmente 1000-1500mL/dia em pacientes
sintomáticos com risco de hipervolemia. As principais fontes de sódio são sal de adição,
alimentos industrializados e conservas, condimentos em geral, pickles, azeitona,
aspargo, palmito, alimentos panificados, amendoim, grão de bico, semente de abóbora,
salgados, aditivos, como glutamato monossódico, e medicamentos, como antiácidos.
O valor calórico total da dieta deverá ser de 28kcal/kg e 32kcal/kg de peso na
ausência de edema para pacientes com estado nutricional adequado e nutricionalmente
depletados, respectivamente.
A composição da dieta deverá abranger 50-55% de carboidratos, priorizando os
carboidratos integrais com baixa carga glicêmica e evitando os carboidratos refinados,
30-35% de lipídeos, com ênfase nas gorduras monoinsaturadas e poliinssaturadas, em
especial os ácidos graxos da série ômega 3, e níveis reduzidos de gorduras saturadas e
trans, e 15-20% de proteínas, priorizando aquelas de alto valor biológico.
Há a necessidade de completa abstinência do álcool principalmente para
pacientes com miocardiopatia alcoólica, por causar depressão miocárdica e precipitar
arritmias. Entretanto, quantidades limitadas diárias, como 20-30mL de álcool em vinho

Pedro Kallas Curiati 409


tinto, em pacientes estáveis, classes funcionais I ou II, poderiam ser benéficas na
presença de doença coronariana.
Suplemento nutricional é indicado em caso de baixa ingesta alimentar, má
absorção de nutrientes, uso de medicamentos que alteram a síntese ou que aumentam a
excreção de nutrientes e estado de hipercatabolismo. Nos casos de anorexia, refeições
pequenas e frequentes ou até a nutrição enteral provisória podem contribuir para a meta
calórica diária. Pacientes em uso de anticoagulação oral com dicumarínicos devem
evitar a variabilidade de ingestão alimentos ricos em vitamina K, a exemplo de
folhosos.
O paciente deverá ser instruído a verificar diariamente o seu peso. Redução
acima de 6% em seis meses, não planejada, pode ser indicativa de caquexia cardíaca,
assim como o aumento repentino e inesperado de dois ou mais quilos em curto período,
de até três dias, pode indicar retenção hídrica.

Prevenção de fatores agravantes


Os pacientes devem receber vacina contra influenza anualmente e contra
pneumococo a cada cinco anos ou, em caso de insuficiência cardíaca avançada, a cada
três anos, sobretudo em localidades com grandes modificações climáticas entre as
estações do ano, desde que na ausência de contraindicações.
Os pacientes com insuficiência cardíaca devem ser estimulados a suprimir o uso
do tabaco passivo e ativo.
Os anti-inflamatórios não-hormonais devem ser evitados nos portadores de
insuficiência cardíaca Quando o seu uso for imprescindível, há necessidade de maior
vigilância de peso corporal, edema e função renal. Quando a indicação destes agentes
for inevitável, parece que o Naproxeno apresenta maior segurança cardiovascular do
que os inibidores da COX-2 e os outros anti-inflamatórios não-hormonais clássicos,
como o Ibuprofeno e o Diclofenaco.
Deve ser recomendada a abstinência total de drogas ilícitas, sem exceções.
Pacientes com insuficiência cardíaca classe funcional IV devem evitar viagens
aéreas e direção de veículos.
Deve ser recomendada a profilaxia para trombose venosa profunda em pacientes
com insuficiência cardíaca independentemente da classe funcional. Orienta-se uso de
meia-elástica de média compressão para viagens prolongadas, devendo-se avaliar o uso
de Heparina de Baixo Peso Molecular subcutânea profilática quando a duração for
superior a 4 horas.

Suporte psicológico ao paciente e à família


O diagnóstico de uma doença grave e progressiva pode gerar frustrações e
desestruturação psicológica para o paciente e sua família. A adaptação à restrição
funcional é sempre difícil, produzindo sensação de perda que reflete sua nova situação
de vida.

Planejamento familiar
Mulheres com insuficiência cardíaca em classe funcional III e IV devem ser
desaconselhadas a engravidar. Pacientes com insuficiência cardíaca devem receber
orientação sobre planejamento familiar. A orientação sobre os métodos contraceptivos
deve ser individualizada de acordo com etiologia da cardiomiopatia, classe funcional e
biotipo da paciente.

Medidas contra o estresse

Pedro Kallas Curiati 410


A utilização de intervenções comportamentais, tais como técnicas de
relaxamento, meditação e biofeedback no tratamento de pacientes com falência cardíaca
tem recebido pouca atenção até o momento. O estímulo à adoção de medidas contra o
estresse, em sessões individuais ou em grupo, deve fazer parte das orientações não
farmacológicas.

Reabilitação cardíaca
Programas de exercícios físicos ativos em associação com o tratamento
farmacológico otimizado têm sido recomendados para melhorar a condição clínica e a
capacidade funcional de pacientes estáveis em classe funcional II ou III, sendo
considerado custo efetivo. Vários estudos randomizados têm demonstrado que o
treinamento físico pode reduzir sintomas e aumentar a capacidade funcional. Entretanto
exercícios competitivos, extenuantes e puramente isométricos devem ser
desencorajados.
O condicionamento físico deveria ser estimulado para todos pacientes com
insuficiência cardíaca estável que sejam capazes de participar de programa de
treinamento físico. Tradicionalmente, o método utilizado para prescrição de exercício
aeróbico é a caminhada ou o cicloergômetro, mas recentemente a atividade física
intervalada tem sido demonstrada como método efetivo, seguro e bem tolerado em
pacientes com insuficiência cardíaca. A carga de trabalho é realizada em blocos de
menor e maior intensidade, variando de 50% a 80% da frequência cardíaca máxima.
Programas de treinamento físico domiciliar, hidroterapia, yoga, meditação e tai chi
chuan também têm sido propostos alternativamente. Recomenda-se exercício físico
aeróbico três a cinco vezes por semana inicialmente com duração de quinze a vinte
minutos e, se boa tolerância, de trinta minutos, além de exercício de resistência duas a
três vezes por semana com oito a dez repetições para cada grupo muscular e uso de
banda elástica ou peso livre. Deve-se incluir aquecimento, relaxamento e exercícios de
flexibilidade em todas as sessões.
Nos trabalhadores com tarefas laborativas de força, a troca de função deve ser
avaliada de modo individual e periódico e somente após otimização do tratamento
farmacológico e não-farmacológico. Quando a atividade profissional não interferir na
progressão, nos sintomas e na gravidade da doença, a realocação não é necessária. A
individualização de cada paciente dentro de seu contexto deve ser levada em
consideração na tomada de decisão.
A orientação sobre a atividade sexual deve fazer parte da rotina de abordagem
médica para os pacientes com insuficiência cardíaca crônica estável. As recomendações
e esclarecimentos são dados para assegurar a não-progressão dos sintomas. Não há
evidências de que o uso de inibidores orais da fosfodiesterase 5 aumente o risco de
infarto do miocárdio ou estimulem progressão da insuficiência cardíaca, exceto
naqueles pacientes que fazem uso de nitratos, por qualquer via, em que o seu uso tem
contra-indicação formal, pois poderá acarretar hipotensão arterial severa. As
informações a respeito da atividade sexual deverão partir do médico assistente, durante
a consulta médica.
O teste de esforço cardiopulmonar ou ergoespirométrico é uma técnica bem
estabelecida para avaliação da tolerância ao exercício na insuficiência cardíaca. O
consumo de oxigênio de pico (VO2 pico) medido no teste é um marcador prognóstico e
um importante critério na seleção de candidatos para transplante de coração. Além
disso, o teste poderá ajudar no diagnóstico diferencial de dispneia, avaliar a resposta a
intervenções terapêuticas e auxiliar na prescrição de exercício.

Pedro Kallas Curiati 411


Tratamento farmacológico

Inibidores da enzima conversora da angiotensina


As ações que mais imediatamente se associam aos seus efeitos cardiovasculares
resultam da diminuição da formação de angiotensina II e do acúmulo de bradicinina. As
consequências diretas da diminuição da angiotensina II incluem a redução do efeito
vasoconstritor, do efeito retentor de sódio via aldosterona e do efeito trófico na
musculatura lisa de vasos, nas células miocárdicas e nos fibroblastos. Outros efeitos
potencialmente benéficos resultam de diminuição da ativação simpática, restauro de
barorreflexos pela ativação parassimpática, normalização da função do endotélio,
redução do inibidor do ativador do plasminogênio, diminuição da endotelina e da
arginina-vasopressina. O acúmulo de bradicininas, possivelmente, se relaciona à síntese
de prostaglandinas vasodilatadoras e à maior geração de óxido nítrico.
A prescrição de inibidores da enzima conversora da angiotensina é indicada para
todos os pacientes com disfunção sistólica sintomática ou assintomática, salvo
contraindicações, em doses inicialmente baixas e progressivamente aumentadas até a
dose alvo. Os níveis de creatinina e potássio devem ser monitorizados.
São contraindicações para o uso de inibidores da enzima conversora da
angiotensina potássio sérico superior a 5.5mEq/L, estenose de artéria renal bilateral,
história de angioedema documentado com uso prévio, hipotensão arterial sistêmica
sintomática e estenose aórtica grave. Precauções devem ser tomadas em pacientes com
nível de creatinina sérica superior ou igual a 3mg/dL ou hipotensão arterial sistêmica
sistólica persistente inferior a 80mmHg.
Os efeitos adversos mais comumente observados são tosse, hipotensão arterial,
angioedema e insuficiência renal. No caso de tosse, a substituição pelos bloqueadores de
receptor da angiotensina está indicada. A combinação Hidralazina com Isossorbida é
preferencialmente indicada nos casos de insuficiência renal, uma vez que apresenta
benefício comprovado em pacientes com insuficiência cardíaca sistólica. Embora a
hipotensão arterial venha a ser um efeito adverso relativamente comum, somente em
caso de estar associada a sintomas ou piora da função renal é que se torna uma
indicação de redução ou suspensão. Pode-se manter, em doses reduzidas, inibidor da
enzima de conversão da angiotensina ou bloqueador do receptor de angiotensina II
quando houver declínio maior do que 30% na taxa de filtração glomerular estimada ou
potássio superior a 5.5mEq/L, monitorizando função renal e eletrólitos em cinco a sete
dias.
Recomenda-se considerar, quando houver declínio superior a 30% na taxa de
filtração glomerular estimada com a introdução de inibidor da enzima de conversão da
angiotensina ou bloqueador do receptor de angiotensina II, investigação de causas
secundárias, como uso excessivo de diuréticos, hipotensão arterial, uso de contraste ou
drogas nefrotóxicas e presença de doença renovascular.
Droga Dose inicial Dose alvo Frequência
Captopril 6.25mg 50mg 8/8 horas
Enalapril 2.5mg 20mg 12/12 horas
Lisinopril 2.5-5.0mg 40mg 24/24 horas
Perindopril 2mg 16mg 24/24 horas
Ramipril 1.25-2.50mg 10mg 24/24 horas

β-bloqueadores
Os β-bloqueadores apresentam diversas atuações na fisiologia e no metabolismo
do cardiomiócito de pacientes com insuficiência cardíaca em decorrência de sua ação no

Pedro Kallas Curiati 412


antagonismo da atividade simpática, que cronicamente apresenta efeitos deletérios na
função e na geometria ventricular.
As indicações incluem classe funcional II a IV com disfunção sistólica em
associação com inibidor da enzima de conversão da angiotensina ou bloqueador do
receptor de angiotensina II, classe funcional I com disfunção sistólica após infarto
agudo do miocárdio em associação com inibidor da enzima de conversão da
angiotensina ou bloqueador do receptor de angiotensina II e classe funcional II a IV
com disfunção sistólica para monoterapia inicial. Carvedilol, Bisoprolol e Succinato de
Metoprolol são indicados para o tratamento da insuficiência cardíaca com disfunção
sistólica. Nebivolol está indicado para o tratamento da insuficiência cardíaca com
disfunção sistólica em pacientes com idade superior a 70 anos.
O Bisoprolol e o Nebivolol têm maior seletividade β1, seguidos pelo Succinato
de Metoprolol. A ação α-bloqueadora do Carvedilol confere atividade vasodilatadora
moderada e propriedades antioxidantes em nível endotelial. Em função de maior
atuação lipofílica, o Carvedilol apresenta maior efeito sobre o sistema nervoso central e
maior metabolismo hepático, com menor meia vida. O Bisoprolol, o Nebivolol e o
Succinato de Metoprolol apresentam uma atuação lipofílica menor, com reduzida ação
central e menor metabolismo hepático. O Nebivolol apresenta propriedades
vasodilatadoras secundárias ao seu efeito modulador sobre o óxido nítrico. O Carvedilol
pode determinar um remodelamento reverso da função simpática nervosa cardíaca.
Os β-bloqueadores devem ser iniciados em pacientes sem hipotensão
sintomática, com ritmo sinusal ou fibrilação atrial. No uso associado com inibidor da
enzima de conversão da angiotensina ou bloqueador do receptor de angiotensina II,
podem-se iniciar os medicamentos em conjunto. A posologia inicial deve ser com
baixas doses, sendo o ajuste gradual com intervalo de sete a quatorze dias, tendo como
alvo as doses máximas preconizadas para cada droga. Antes de cada ajuste, deve-se
avaliar a tolerância do paciente através de exame clínico e eletrocardiograma, quando
possível. Nestes casos, deve-se verificar o agravamento ou desenvolvimento de
sintomas e sinais de piora do quadro congestivo ou de baixo débito, hipotensão arterial
sintomática ou redução da pressão arterial sistólica abaixo de 85 mmHg, alargamento do
espaço PR acima de 0.28 segundos, bradicardia sinusal com frequência cardíaca inferior
a 60ppm e bloqueio sinoatrial ou atrioventricular avançado.
Na fase inicial da introdução dos β-bloqueadores, cerca de 15% dos pacientes
poderão apresentar algum grau de piora do quadro clínico. No desenvolvimento de
hipotensão arterial, o excesso de diurético ou doses elevadas de vasodilatadores podem
ser os responsáveis. Nestas situações, a prioridade é a manutenção ou aumento da dose
do β-bloqueadores, devendo-se modificar a dose de outros medicamentos. O
desenvolvimento ou agravamento da dispneia e/ou edema usualmente são contornados
com o aumento da dose do diurético. Em outras situações não-toleráveis ou que
determinem risco, como bradicardia importante, alargamento do espaço PR com
bloqueio atrioventricular e hipotensão arterial importante, deve-se reduzir a dose do β-
bloqueador para a posologia anterior ou avaliar a sua suspensão. Em pacientes
internados por insuficiência cardíaca descompensada, não se deve suspender os β-
bloqueadores de uso prévio, exceto na presença de choque cardiogênico, bloqueio
atrioventricular ou sinoatrial avançados ou bradicardia sintomática. Em pacientes com
pressão arterial sistólica inferior a 85mmHg ou com sinais de hipoperfusão periférica,
deve-se reduzir inicialmente a posologia em 50% e reavaliar a resposta.
É permitido o uso de β-bloqueador em pacientes com insuficiência cardíaca e
doença pulmonar obstrutiva crônica, sendo preferível o uso de drogas cardio-seletivas.
Droga Dose inicial Ajuste a cada 7-14 dias Dose alvo Frequência

Pedro Kallas Curiati 413


Bisoprolol 1.25mg 2.5mg, 5.0mg, 7.5mg 10mg 24/24 horas
Nebivolol 1.25mg 2.5mg, 5.0mg, 7.5mg 10mg 24/24 horas
Succinato de 12.5mg 25mg, 75mg, 100mg, 200mg 24/24 horas
Metoprolol 125mg, 150mg
Carvedilol 3.125mg 6.25mg, 12.5mg, 25mg 50mg se peso >85kg 12/12 horas

Bloqueadores dos receptores de angiotensina II


A angiotensina II provoca efeitos adversos em coração, sistema arterial,
glomérulo renal e coagulação. Os bloqueadores do receptor de angiotensina II atuam de
forma seletiva no bloqueio dos receptores do subtipo AT1 da angiotensina II, liberando
a ação AT2, com redução dos níveis de aldosterona e catecolaminas, vasodilatação
arterial e consequente diminuição da resistência vascular periférica. Apresentam ainda,
atividade antiproliferativa, com pouco efeito no cronotropismo e no inotropismo. Não
interferem na degradação da bradicinina, reduzindo a incidência de tosse.
As indicações incluem disfunção sistólica em pacientes intolerantes a inibidor da
enzima de conversão da angiotensina e uso combinado com inibidor da enzima de
conversão da angiotensina em pacientes que persistam sintomáticos a despeito do uso de
terapia otimizada.
O medicamento deve ser iniciado com doses baixas, sendo aumentada
progressivamente, até atingir a dose alvo ou a dose máxima tolerada. A avaliação
clínica deve ser periodicamente realizada, acrescida de avaliação laboratorial com
creatinina e potássio séricos.
Os efeitos adversos mais frequentes são hipotensão arterial, piora da função
renal e hiperpotassemia. O angioedema e a tosse também são observados com uma
frequência menor do que com os inibidores da enzima de conversão da angiotensina.
As contraindicações são semelhantes às dos inibidores da enzima de conversão
da angiotensina.
Droga Dose inicial Dose alvo Frequência
Candesartan 4-8mg 32mg 24/24 horas
Losartan 25mg 50-100mg 24/24 horas
Valsartan 40mg 320mg 12/12 horas

Antagonista da aldosterona
Níveis elevados de aldosterona estimulam a produção de fibroblastos e
aumentam o teor da fibrose miocárdica, perivascular e perimiocítica, provocando
rigidez muscular e disfunção. Além disso, a aldosterona provoca dano vascular por
diminuição da complacência arterial e modula o equilíbrio da fibrinólise por aumentar o
inibidor do ativador do plasminogênio (PAI-1), predispondo a eventos isquêmicos. Pode
ocasionar disfunção de barorreceptores, ativação simpática e agravo da disfunção
miocárdica. Acarreta retenção de sódio e água, determinando perda de potássio e
magnésio. Aumenta a liberação de neuro-hormônio adrenérgico e o risco para arritmias
cardíacas e morte súbita.
Neste grupo de medicamentos, tem-se a Espironolactona, com maior tempo de
uso e estudos que comprovaram sua eficácia, e o Eplerenone, recentemente
comercializado, porém ainda não disponível no Brasil.
A Espironolactona tem eficácia comprovada na redução de mortalidade em
pacientes com classe funcional III a IV e fração de ejeção do ventrículo esquerdo
inferior a 35%. Em pacientes assintomáticos após infarto agudo do miocárdio e com
fração de ejeção do ventrículo esquerdo inferior a 40%, o Eplerenone reduziu
mortalidade geral e cardiovascular, hospitalização e morte súbita.
Pode-se iniciar o tratamento com Espironolactona na dose de 12.5-25.0mg/dia

Pedro Kallas Curiati 414


ou Eplerenone na dose de 25mg/dia, podendo ser aumentada até 50mg/dia em pacientes
com persistência dos sinais e sintomas de congestão. O paciente deve ter os seus níveis
séricos de potássio monitorados semanalmente no primeiro mês do tratamento.
Recomenda-se a redução da dose para 12.5mg/dia ou mesmo em dias alternados de
acordo com os níveis séricos do potássio quando superior a 5mEq./L. A suspensão está
indicada caso potássio superior a 5.5mEq/L.
Hiperpotassemia, ginecomastia e mastalgia são efeitos adversos encontrados
principalmente com Espironolactona. Há contraindicação em caso de creatinina superior
a 2.5mg/dL ou potássio sérico superior a 5.0mEq/L.

Diuréticos
Promovem natriurese, contribuindo para a manutenção e o melhor controle do
estado volêmico.
Os diuréticos tiazídicos bloqueiam o co-transporte de sódio e cloro no começo
do túbulo distal. A ação natriurética é modesta em relação à de outros diuréticos, com
perda da efetividade em pacientes com clearance de creatinina inferior a 30 mL/minuto.
Os principais representantes são a Hidroclorotiazida e a Clortalidona.
Os diuréticos de alça determinam aumento da excreção da carga de sódio e
mantêm sua eficácia, a não ser que a função renal esteja gravemente comprometida. Os
principais representantes dessa classe são a Furosemida e a Bumetamida. Aumentam o
fluxo sanguíneo renal sem aumentar a taxa de filtração, especialmente após
administração intravenosa.
Na insuficiência cardíaca, os diuréticos são raramente utilizados como
monoterapia, sendo de preferência associados com inibidor da enzima de conversão da
angiotensina e β-bloqueador, com indicação em pacientes sintomáticos com sinais e
sintomas de congestão. Os diuréticos de alça são frequentemente utilizados nos
pacientes com classes funcionais mais avançadas em função de maior excreção de água
para o mesmo nível de natriurese, manutenção da eficácia a despeito da disfunção renal
frequentemente observada na insuficiência cardíaca e ação diurética diretamente
relacionada à dose utilizada. Por outro lado, os diuréticos tiazídicos têm sido utilizados
nas formas brandas de insuficiência cardíaca, com boa eficácia na melhora clínica dos
pacientes.
Os seus efeitos sobre a mortalidade não estão bem definidos, em função da
ausência de ensaios clínicos com esta finalidade. A utilização de doses elevadas dos
diuréticos não-poupadores de potássio está associada a aumento da mortalidade em
longo prazo. Devido à falta de evidências clínicas, os diuréticos devem ser evitados em
pacientes com classe funcional I.
O início da terapia com diuréticos deve obedecer a um racional de aumento
progressivo de doses conforme o estado congestivo. Nos pacientes em que há perda
progressiva do efeito diurético com Furosemida, a associação com tiazídicos,
promovendo bloqueio sequencial do néfron, pode levar a aumento do efeito diurético.
De maneira geral, sabe-se que o uso de diuréticos de alça promove ativação
adicional do eixo renina-angiotensina, agravando efeitos neuro-humorais deletérios.
Distúrbios eletrolíticos, como hipocalemia, hipomagnesemia e hiponatremia, e
metabólicos, como hiperglicemia, hiperlipidemia e hiperuricemia, hipovolemia e
ototoxidade são também observados na terapia diurética. Nos pacientes com disfunção
renal subjacente e/ou hipovolemia, o uso de diurético poderá agravar a função renal.
Grupo Droga Dose inicial Dose máxima
diária
Diuréticos de alça Furosemida 20mg de 24/24 a 12/12 horas 600mg
Bumetanida 0.5-1.0mg de 24/24 a 12/12 horas 10mg

Pedro Kallas Curiati 415


Diuréticos tiazídicos Hidroclorotiazida 25mg de 24/24 a 12/12 horas 200mg
Metolazona 2.5mg de 24/24 horas 20mg
Indapamida 2.5mg de 24/24 horas 5mg
Clortalidona 12.5-25.0mg de 24/24 horas 100mg
Diuréticos poupadores de Triantereno 50-75mg de 12/12 horas 200mg
potássio Amilorida 5mg de 24/24 horas 20mg
Espironolactona 12.5-25.0mg de 24/24 horas 50mg

Hidralazina e Nitrato
Os nitratos induzem vasodilatação ao regenerar o radical NO livre ou um
congênere de NO, o S-nitrosotiol (SNO). Doses baixas de Dinitrato de Isossorbida, até
30mg três vezes ao dia, dilatam preferencialmente o sistema venoso. Vasodilatação
arterial é tipicamente associada a doses maiores. A dosagem usual recomendada de
Mononitrato de Isossorbida é de 20-40mg as 8:00 e as 14:00 e de Dinitrato de
Isossorbida é 10-40mg as 8:00, as 14:00 e as 20:00.
Hidralazina é um dilatador seletivo da musculatura arterial. Tem sido descrita
como capaz de prevenir a tolerância ao nitrato. Após titulação progressiva, a dose média
eficaz de manutenção é de 50-75mg de 6/6 horas ou 100mg de 12/12 a 8/8 horas.
As indicações para uso de Hidralazina e nitrato na insuficiência cardíaca crônica
incluem pacientes de qualquer etnia com classe funcional II a III com contraindicação a
inibidor da enzima de conversão da angiotensina e a bloqueador do receptor de
angiotensina II, afrodescendentes com classe funcional III a IV em uso de terapêutica
otimizada e, com menor classe de recomendação, pacientes de qualquer etnia com
classe funcional III a IV em uso de terapêutica otimizada.

Digoxina
A Digoxina está indicada em pacientes com ritmo sinusal ou fibrilação atrial
sintomáticos com terapêutica otimizada e com fração de ejeção do ventrículo esquerdo
inferior a 45% e pacientes com fibrilação atrial assintomáticos com fração de ejeção do
ventrículo esquerdo inferior a 45% para controle de frequência cardíaca. O emprego da
Digoxina se associa à redução de hospitalizações, sem impacto na mortalidade A
suspensão do digital em pacientes com insuficiência cardíaca com fração de ejeção
reduzida pode levar a piora sintomática e aumento nas hospitalizações. Os digitálicos
não estão indicados para o tratamento da insuficiência cardíaca com fração de ejeção
preservada e ritmo sinusal.
O uso da Digoxina está contraindicado em pacientes que apresentem bloqueio
atrioventricular de segundo grau Mobitz II, bloqueio atrioventricular de terceiro grau,
doença do nó sinusal sem proteção de marca-passo e síndromes de pré-excitação. Deve
ser administrada com precaução em idosos, portadores de disfunção renal e pacientes
com baixo peso. Cuidado adicional deve ser tomado em relação a interações
medicamentosas com drogas como Amiodarona, Quinidina, Verapamil, Diltiazem e
quinolonas, que podem elevar os níveis séricos da Digoxina.
A Digoxina é comumente prescrita na dose de 0.125-0.250mg/dia por via oral.
Não há evidência que suporte o uso de doses de ataque ou doses adicionais. A maior
parte dos pacientes deve receber 0.125mg por dia. Em idosos, portadores de
insuficiência renal e pacientes com peso baixo, especialmente mulheres, a dose de pode
ser ainda menor, com 0.125mg em dias alternados.
Pacientes em uso de Digoxina que apresentem distúrbios gastrointestinais, como
anorexia, náusea e vômitos, neurológicos, como confusão mental e xantopsia, ou
cardiovasculares, como bloqueios atrioventriculares, extra-sístoles ventriculares
polimórficas frequentes ou, mais especificamente, taquicardia atrial com bloqueio

Pedro Kallas Curiati 416


atrioventricular variável, devem ter o digital suspenso, pelo menos temporariamente.
Nestes casos, o nível sérico de Digoxina pode ajudar a confirmar o diagnóstico, porém a
conduta de suspender o medicamento não deve ser retardada. Mesmo indivíduos com
nível sérico baixo podem ter intoxicação digitálica, principalmente se houver
hipocalemia ou hipomagnesemia concomitante. O reconhecimento precoce, bem como
ajuste eletrolítico associado à suspensão da Digoxina, normalmente são suficientes para
a reversão do quadro. Em caso de intoxicação potencialmente letal e/ou refratária, caso
esteja disponível, pode-se utilizar anticorpo anti-Fab.

Anticoagulantes e antiagregantes plaquetários


A insuficiência cardíaca é fator de risco para fenômenos tromboembólicos.
As indicações de anticoagulação com cumarínicos, tendo como alvo terapêutico
Razão Normatizada Internacional (RNI) entre 2 e 3, incluem fração de ejeção inferior a
35% em paciente com fibrilação atrial paroxística, persistente ou permanente com pelo
menos um fator de risco adicional dentre hipertensão arterial, idade superior a 75 anos,
diabetes mellitus e acidente vascular cerebral e trombos intracavitários, principalmente
se móveis e/ou pediculados. As indicações de antiagregação plaquetária com Ácido
Acetilsalicílico incluem cardiopatia de etiologia isquêmica com risco de evento
coronariano e contraindicação ao uso de anticoagulante oral. Em caso de fração de
ejeção inferior a 35% em paciente com fibrilação atrial paroxística, persistente ou
permanente sem fatores de risco adicionais, pode-se optar pelo uso de anticoagulante ou
antiagregante plaquetário. Heparina subcutânea profilática é indicada para todos os
pacientes hospitalizados com insuficiência cardíaca, exceto se houver contraindicação.

Antiarrítmicos
Os β-bloqueadores devem ser usados como terapia primária para o tratamento de
arritmias ventriculares e prevenção de morte súbita em pacientes com insuficiência
cardíaca. A eficácia dos demais antiarrítmicos é questionável e cada medicamento tem
risco potencial de efeitos adversos, incluindo a pró-arritmia.
Não há benefício com uso de Amiodarona na prevenção primária quando
comparado ao placebo, independente da etiologia da insuficiência cardíaca. Só deve ser
usada com esse objetivo quando o paciente recusar o uso de cardiodesfibrilador
implantável. Por outro lado, é recomendada como terapia adjunta com β-bloqueadores
em pacientes com disfunção de ventrículo esquerdo com cardiodesfibrilador
implantável que tem episódios repetitivos de taquicardia ventricular ou choques
apropriados. Efetiva contra a maioria das arritmias supraventriculares, inclusive a
fibrilação atrial, a Amiodarona é a droga de escolha para a restauração e manutenção do
ritmo sinusal em pacientes com insuficiência cardíaca, se não houver indicação de
cardioversão elétrica.

Bloqueadores de canal de cálcio


Anlodipina e Felodipina, bloqueadores de canal de cálcio de segunda geração,
têm elevada especificidade no sítio ativo com longa duração de ação e pouco ou
nenhum efeito inotrópico negativo nas doses usuais. Tornam-se, assim, melhor toleradas
do que os outros bloqueadores de canal de cálcio em pacientes com insuficiência
cardíaca. O uso de Anlodipina é associado a maior frequência de edema pulmonar e
periférico e menor incidência de hipertensão arterial e angina. Parecem seguros em
pacientes selecionados com angina e hipertensão como terapia adjuvante aos inibidores
da enzima de conversão da angiotensina e aos β-bloqueadores.

Pedro Kallas Curiati 417


Tratamento cirúrgico
Indicações de revascularização do miocárdio na insuficiência cardíaca crônica:
- Disfunção ventricular esquerda e lesão obstrutiva significativa do
tronco da artéria coronariana esquerda, lesão equivalente de tronco,
caracterizada por estenose superior a 70% em artérias descendente
anterior e circunflexa, ou lesões multiarteriais associadas à estenose da
artéria descendente anterior;
- Disfunção ventricular esquerda com massa significativa de miocárdio
viável, não-contrátil e passível de revascularização;
A cirurgia da válvula mitral, com troca valvar ou plastia, em pacientes com
disfunção ventricular esquerda e grave insuficiência valvar mitral pode aliviar os
sintomas de insuficiência cardíaca em pacientes selecionados. Entretanto, nenhum
estudo controlado avaliou os efeitos dessa terapia na função ventricular e seu impacto
em qualidade de vida e sobrevida.
Os procedimentos de remodelamento cirúrgico do ventrículo esquerdo têm como
objetivo proporcionar auxílio à contração, evitar a progressão da dilatação e corrigir os
efeitos adversos do remodelamento ventricular. Entre esses procedimentos a correção
dos aneurismas do ventrículo esquerdo com a reconstrução ventricular na
cardiomiopatia isquêmica reúne experiência clínica relevante e resultados tardios
consistentes, sendo indicada na presença de insuficiência cardíaca refratária, arritmia
ventricular refratária ou tromboembolismo. Outros procedimentos, como a
ventriculectomia parcial esquerda e a cardiomioplastia dinâmica demonstraram
resultados controversos e não se estabeleceram como procedimentos de abrangência e
fácil aceitação no tratamento da insuficiência cardíaca. Os pacientes com
cardiomiopatia isquêmica, dilatação ventricular e grandes áreas de acinesia podem ser
indicados para cirurgia de reconstrução ventricular quando tiverem indicação
concomitante de revascularização do miocárdio. Nesta situação, também é comum a
necessidade de correção da insuficiência funcional da valva mitral. O implante da
prótese de contenção passiva é responsável pelo remodelamento ventricular e pela
melhora da função sistólica do ventrículo esquerdo, com consequente melhora da
qualidade de vida dos pacientes. Entretanto, este procedimento não parece influenciar a
sobrevivência tardia, devendo ser indicado apenas como terapêutica associada a outras
intervenções cirúrgicas.

Transplante cardíaco
Apesar dos avanços no tratamento clínico da insuficiência cardíaca, o transplante
cardíaco continua sendo reconhecido como a melhor modalidade de tratamento
cirúrgico para a insuficiência cardíaca terminal. Determina um grande impacto no
tratamento e os benefícios incluem melhor qualidade de vida, melhor qualidade de
exercício e maior sobrevida a médio e longo prazos.
Os pacientes candidatos a transplante são aqueles com doença avançada, classe
funcional IV permanente ou III intermitente com IV, com sintomas severos e
incapacitantes, sem alternativa de tratamento e com alta mortalidade em 1 ano. O
tratamento clínico deve ter otimização farmacológica e não-farmacológica. Avaliações
de resistência vascular pulmonar, pressões na artéria pulmonar, e gradiente
transpulmonar devem ser realizadas em todos os potenciais receptores. O teste de
vasorreatividade pulmonar com o emprego de drogas vasodilatadoras, como
Nitroprussiato, óxido nítrico, prostaglandinas e inibidores da fosfodiesterase 5, deve ser
realizado em pacientes com resistência vascular pulmonar acima de 4.5 woods. O
consumo de oxigênio (VO2) obtido no teste cardiopulmonar com o paciente alcançando

Pedro Kallas Curiati 418


o limiar anaeróbico máximo é um marcador prognóstico e tem se mostrado útil como
estratificador de risco e de grande valia como método auxiliar na indicação de
transplante cardíaco em pacientes ambulatoriais. Na presença de um teste
cardiopulmonar submáximo, o equivalente de ventilação do dióxido de carbono
(VE/VCO2) superior a 35 pode auxiliar na indicação de transplante.

Dispositivos de estimulação cardíaca artificial


A utilização de marca-passo convencional atrioventricular, na ausência de
bradiarritmias sintomáticas em pacientes com insuficiência cardíaca se reserva a
situações infrequentes, como nos casos de sintomas consequentes ao acoplamento
atrioventricular anormal resultante de bloqueio atrioventricular de 1º grau ou de 2º grau
do tipo I extremos ou para suporte terapêutico para o uso de β-bloqueadores.
Pacientes com disfunção ventricular grave e estágios de insuficiência cardíaca
avançados e refratários ao tratamento medicamentoso convencional podem se beneficiar
da terapia de ressincronização cardíaca. Esta modalidade da estimulação cardíaca tem o
propósito de corrigir disfunções eletromecânicas em pacientes com insuficiência
cardíaca avançada. Surgiu a partir da observação inicial de que a presença de bloqueio
do ramo esquerdo estaria associada à dissincronismo intra e interventricular e,
consequentemente, comprometimento funcional do miocárdio. Estima-se, além disso,
que mesmo em pacientes sem distúrbios da condução intraventricular, mas com
insuficiência cardíaca, a prevalência de dissincronia intraventricular seja elevada. As
principais indicações são fração de ejeção do ventrículo esquerdo inferior ou igual a
35% com ritmo sinusal, classe funcional III na vigência de tratamento clínico otimizado
e QRS com duração superior a 150ms e fração de ejeção do ventrículo esquerdo inferior
ou igual a 35% com ritmo sinusal, classe funcional III na vigência de tratamento clínico
otimizado, QRS com duração de 120-150ms e comprovação de dissincronismo por
método de imagem.
A morte súbita é responsável por 30-50% dos óbitos dos portadores de
insuficiência cardíaca e cerca de 80% das mortes súbitas são decorrentes de arritmias
ventriculares, como taquicardia ventricular e fibrilação ventricular. Os maiores
preditores de risco para morte súbita são morte súbita recuperada, documentação de um
episódio de taquicardia ventricular sustentada e presença de disfunção ventricular com
fração de ejeção inferior ou igual a 35% em paciente sintomático.
Indicações de cardiodesfibrilador implantável para prevenção secundária de
morte súbita em portadores de disfunção ventricular:
- Pacientes com cardiomiopatia isquêmica, sobreviventes de parada
cardíaca por fibrilação ventricular ou taquicardia ventricular ou de
taquicardia ventricular sustentada com instabilidade hemodinâmica,
excluindo-se alguma causa totalmente reversível;
- Pacientes com cardiomiopatia não-isquêmica ou chagásica,
sobreviventes de parada cardíaca por fibrilação ventricular ou taquicardia
ventricular ou de taquicardia ventricular sustentada com instabilidade
hemodinâmica, excluindo-se alguma causa totalmente reversível;
- Paciente com doença cardíaca estrutural com documentação de
taquicardia ventricular sustentada espontânea estável ou instável;
- Síncope recorrente com indução de taquicardia ventricular sustentada
instável ou fibrilação ventricular no estudo eletrofisiológico invasivo;
A principal indicação de cardiodesfibrilador implantável para prevenção
primária de morte súbita em portadores de disfunção ventricular é cardiomiopatia
isquêmica com infarto do miocárdio com pelo menos seis meses de evolução, fração de

Pedro Kallas Curiati 419


ejeção do ventrículo esquerdo inferior ou igual a 35% e classe funcional II a III na
vigência de tratamento clínico otimizado, sem indicação de revascularização miocárdica
e sem comorbidades importantes.

Abordagem por estágios


O estágio A inclui os pacientes com alto risco de desenvolver insuficiência
cardíaca, porém sem doença cardíaca estrutural ou sintomas. Inclui portadores de
hipertensão arterial, doença aterosclerótica coronariana, diabetes mellitus, obesidade,
etilismo, doença reumática, história familiar e/ou síndrome metabólica, além de
pacientes submetidos à terapia antineoplásica com drogas de potencial cardiotoxicidade.
Dentro das recomendações estabelecidas para estes pacientes, todos os esforços
preventivos devem ser utilizados através de medidas não-farmacológicas, como cessar
tabagismo, reduzir o consumo de álcool, praticar atividade física e realizar dieta
apropriada para a doença de base. Por outro lado, deve-se também exercer a prática
clínica com medidas farmacológicas referendadas nas diferentes diretrizes para as
patologias coexistentes. Alguns estudos randomizados indicam que a intervenção
precoce com inibidor da enzima de conversão da angiotensina ou bloqueador do
receptor de angiotensina II reduz significativamente a ocorrência de insuficiência
cardíaca em pacientes com doença cardiovascular prévia, diabetes mellitus ou
nefropatia e hipertensão arterial. Em uma população de alto risco, igualmente estatina e
antiplaquetários podem mostrar uma redução do desenvolvimento de insuficiência
cardíaca.
O estágio B inclui pacientes que apresentam disfunção ventricular esquerda,
porém sem sintomas da doença. O grande exemplo deste estágio é o de pacientes que
sofrem infarto agudo do miocárdio, normalmente de parede anterior, que evoluem com
disfunção ventricular. Neste estágio, têm se discutido a introdução precoce de drogas
contra o remodelamento, já que poderão interferir na progressão da doença para suas
fases mais avançadas, bem como reduzir a mortalidade, mesmo nesta fase mais inicial.
Estudos confirmam que introdução precoce de inibidor da enzima de conversão da
angiotensina ou bloqueador do receptor de angiotensina II, β-bloqueador e antagonista
de aldosterona reduzem a mortalidade neste grupo de pacientes.
O estágio C inclui pacientes que apresentam disfunção ventricular esquerda e já
estiveram em fase de descompensação da doença. Dentre as medidas não-
farmacológicas, devem ser introduzidas restrição salina e restrição hídrica. Nesta fase,
indicam-se diuréticos para tratamento da retenção hídrica e controle da hipervolemia,
inibidor da enzima de conversão da angiotensina se não houver contraindicação, β-
bloqueador se não houver contraindicação, digitais para controle dos sintomas de
descompensação e Espironolactona para pacientes com função renal preservada e níveis
de potássio sérico adequados. Deve-se sempre atentar para situações que podem agravar
os sintomas e discutir ainda novas abordagens terapêuticas para pacientes que
permanecem descompensados a despeito da máxima otimização medicamentosa, como
a terapia de ressincronização e a implantação de cardiodesfibrilador implantável.
O estágio D inclui os pacientes com insuficiência cardíaca refratária, com
indicação de transplante cardíaco, frequentemente cursando com baixo débito, muitos
dos quais candidatos a assistência circulatória. A abordagem deve levar em
consideração a elevada mortalidade dos pacientes, as frequentes internações hospitalares
e a dificuldade de manutenção de doses efetivas de inibidor da enzima de conversão da
angiotensina e β-bloqueador devido a hipotensão e sinais de baixo débito. O transplante
cardíaco é o tratamento de eleição para pacientes nesta fase, porém ainda há
dificuldades, tais como escassez de órgãos para doação e poucos centros realmente

Pedro Kallas Curiati 420


ativos no Brasil, aptos a realizar o procedimento. Outros procedimentos que devem ser
adotados neste estágio incluem controle da retenção hídrica, encaminhamento para
centros de referência em transplante cardíaco ou clínicas de insuficiência cardíaca,
discussão de opções para cuidados de fim de vida, informação sobre ineficácia de
indicação de cardiodesfibrilador implantável e assistência circulatória em pacientes
selecionados.

Insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada


A insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada representa 50% dos
casos de insuficiência cardíaca. É mais prevalente entre mulheres, idosos e portadores
de hipertensão arterial, hipertrofia ventricular esquerda, diabetes mellitus, obesidade,
doença coronária e fibrilação atrial.
Várias doenças podem ter apresentação clínica semelhante e devem ser incluídas
no diagnóstico diferencial.
O diagnóstico requer a presença simultânea sinais ou sintomas de insuficiência
cardíaca congestiva, fração de ejeção do ventrículo esquerdo normal ou discretamente
reduzida e evidências objetivas de disfunção diastólica do ventrículo esquerdo, com
relaxamento e enchimento anormais, distensibilidade diastólica anormal ou rigidez
diastólica. Estas evidências de disfunção diastólica podem ser obtidas a partir de dados
hemodinâmicos, níveis de peptídeos natriuréticos e dados ecodopplercardiográficos.
Há controvérsia sobre qual fração de ejeção do ventrículo esquerdo deveria ser
adotada como ponto de corte entre fração de ejeção preservada e disfunção sistólica,
podendo ser considerado valor superior ou igual a 50% como preservado.
Três padrões de disfunção diastólica são definidos através da
ecodopplercardiografia:
- Leve, com relaxamento diastólico anormal ou grau I;
- Moderada, com padrão pseudonormal ou grau II;
- Grave, com padrão restritivo ou grau III;
Em pacientes com sintomas de dispneia e sem evidência de congestão o
diagnóstico de insuficiência cardíaca é difícil. Uma estratégia proposta tem sido a
utilização de peptídeos natriuréticos. Níveis de NT-pró BNP inferiores a 120pg/mL ou
de BNP inferiores a 100pg/mL, associados aos dados da ecodopplercardiografia,
excluem o diagnóstico.
A insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada continua sendo pouco
valorizada e seu tratamento ainda empírico. Embora alguns estudos tenham sido
conduzidos para avaliar fármacos no seu tratamento, a maioria deles incluiu um
pequeno número de pacientes ou produziu resultados inconclusivos. Todavia, muitos
dos pacientes com insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada são tratados
com esses fármacos devido a comorbidades, como hipertensão arterial, diabetes
mellitus, fibrilação atrial e doença coronariana.
Na ausência de estudos clínicos aleatorizados com resultados positivos, o
tratamento é baseado no controle dos fatores que influenciam a síndrome e suas
manifestações, como pressão arterial, frequência cardíaca, volemia e isquemia
miocárdica, conhecidos por exercer efeitos importantes no relaxamento ventricular.
Clinicamente, é bastante razoável o tratamento com alvo nos sintomas, principalmente
objetivando a redução das pressões de enchimento ventricular no repouso e no
exercício. Recomenda-se revascularização miocárdica em pacientes com doença arterial
coronária com tratamento clínico otimizado e isquemia sintomática ou demonstrada em
teste de provocação e com efeitos adversos na função cardíaca

Pedro Kallas Curiati 421


Bibliografia
Bocchi EA, Marcondes-Braga FG, Ayub-Ferreira SM, Rohde LE, Oliveira WA, Almeida DR, e cols. Sociedade Brasileira de
Cardiologia. III Diretriz Brasileira de Insuficiência Cardíaca Crônica. Arq Bras Cardiol 2009;93(1 supl.1):1-71.
Clínica médica, volume 2: doenças cardiovasculares, doenças respiratórias, emergências e terapia intensiva. – Barueri, SP: Manole,
2009.

Pedro Kallas Curiati 422


INSUFICIÊNCIA CARDÍACA
DESCOMPENSADA
Conceito
A insuficiência cardíaca aguda é definida como início rápido ou mudança clínica
dos sinais e sintomas de insuficiência cardíaca, resultando na necessidade urgente de
terapia. Pode ser nova ou devido à piora de uma insuficiência cardíaca pré-existente.

Etiologia
Fatores cardiovasculares, como isquemia ou infarto, hipertensão arterial
sistêmica não-controlada, doença valvar primária não-suspeitada, piora da insuficiência
mitral secundária, fibrilação atrial aguda ou não-controlada, arritmias e
tromboembolismo pulmonar.
Fatores sistêmicos, como infecções, febre, anemia, descompensação do diabetes
mellitus, disfunção tireoidiana, insuficiência renal e gravidez.
Fatores relacionados ao doente, como má adesão ao esquema farmacológico, má
adesão à dieta, consumo de álcool, uso de drogas ilícitas e tabagismo.
Fatores relacionados a fármacos, como intoxicação digitálica, uso de drogas que
retém água ou inibem as prostaglandinas, como anti-inflamatórios não-hormonais,
estrógenos, andrógenos, Clorpropamida, Minoxidil e glitazonas, uso de drogas
inotrópicas negativas, como antiarrítmicos do grupo I, antagonistas de cálcio e
antidepressivos tricíclicos, uso de drogas cardiotóxicas, como Adriamicina e
Transtuzumab, automedicação e terapias alternativas.
Fatores relacionados ao sistema de saúde, como falta de acesso à atenção
primária, falta de acesso a medicações efetivas e prescrição inadequada.

Abordagem inicial
Deve-se avaliar de maneira acurada e rápida o estado volêmico do paciente, a
perfusão tecidual e a presença de fatores precipitantes e comorbidades. O local de
atendimento dependerá, sobretudo, do grau de dispneia, do nível de consciência e do
estado geral do doente.
Pacientes nitidamente dispneicos, cianóticos e com má-perfusão periférica
devem ser encaminhados à sala de emergência e colocados em maca específica,
caracterizada por decúbito elevado. A seguir, deve-se proceder com monitorização de
ritmo cardíaco, pressão arterial, frequência respiratória e saturação periférica de
oxigênio, fornecimento de oxigênio suplementar sem causar hiperóxia, obtenção de
acesso venoso, coleta de sangue para análise laboratorial e avaliação da necessidade de
ventilação mecânica invasiva ou não-invasiva.

Avaliação complementar
Eletrocardiograma pode revelar isquemia, sobrecarga de câmaras, sinais de
pericardite e bloqueios.
Radiografia de tórax pode revelar sinais de congestão pulmonar, derrame
pleural, pneumotórax, condensações pulmonares localizadas e hiperinsuflação
pulmonar.
Exames gerais incluem hemograma, sódio, potássio, uréia, creatinina e glicose.
Em casos mais graves, devem ser dosadas enzimas hepáticas, albumina e INR.

Pedro Kallas Curiati 423


Gasometria arterial com lactato e cloro deve ser solicitada para todo paciente com
distúrbio respiratório grave ou sinais de baixo débito. Marcadores de necrose
miocárdica devem ser solicitados para excluir síndrome coronariana aguda como causa
da descompensação cardíaca. Dímero-D pode ser usado conforme o grau de suspeição
de embolia pulmonar.
Os peptídeos natriuréticos (BNP ou NT-proBNP) possuem bom valor preditivo
negativo. BNP inferior a 100pg/mL é sugerido como critério de exclusão, enquanto que
valor acima de 400pg/mL torna o diagnóstico provável. Síndrome isquêmica aguda,
insuficiência renal, fibrilação atrial, doença pulmonar obstrutiva crônica, embolia
pulmonar e idade avançada podem cursar com valores intermediários. Pacientes obesos
deveriam ter valores de corte mais baixos.
O ecodopplercardiograma bidimensional é exame não invasivo, seguro,
reprodutível e amplamente disponível, sendo essencial na avaliação de pacientes com
insuficiência cardíaca aguda.
Raramente são necessárias no pronto-socorro ressonância magnética cardíaca,
prova de função pulmonar, cineangiocoronariografia com ventriculografia, cintilografia
miocárdica, ecocardiografia transesofágica e cateterização de artéria pulmonar. Os mais
importantes marcadores metabólicos nos pacientes com insuficiência cardíaca aguda são
o lactato arterial e a saturação venosa mista de oxigênio (SVO2).

Tratamento
Os objetivos terapêuticos nos doentes que chegam ao pronto-socorro com
insuficiência cardíaca descompensada são reverter as anormalidades hemodinâmicas
agudas, aliviar rapidamente os sintomas, investigar causas tratáveis de descompensação,
evitar a morte a curto prazo e iniciar tratamentos que irão diminuir a progressão da
doença e melhorar a sobrevida a longo prazo.
A abordagem inicial irá depender do grau e do tipo de descompensação da
insuficiência cardíaca. De uma maneira geral, os pacientes podem ser classificados em
quatro subgrupos distintos de acordo com o grau de congestão e de acordo com o grau
de perfusão tecidual.
Evidências de má-perfusão ou baixo débito cardíaco incluem pressão de pulso
reduzida, membros frios e pegajosos, sonolência, hipotensão sintomática, hiponatremia
e piora da função renal. Evidências de congestão ou pressão de enchimento capilar
pulmonar elevada incluem ortopnéia, pressão jugular elevada, B3, edema periférico,
ascite, crepitações e refluxo hepatojugular.
Ausência de sinais de congestão Presença de sinais de congestão
(seco) (úmido)
- Ajuste de medicações por via - Introdução e aumento das doses de diuréticos,
oral para redução de mortalidade e assumindo-se que o paciente já esteja usando
manutenção de estado volêmico inibidor da enzima de conversão da angiotensina;
Boa perfusão estável; - Em casos mais complexos, associação de
periférica - Tratamento da causa de vasodilatadores parenterais;
(quente) descompensação; - Inotrópicos geralmente não são necessários e
podem ser deletérios;
- Observação curta no pronto socorro ou
A internação nos casos mais graves; B

Pedro Kallas Curiati 424


- Esse subgrupo de doentes pode - Geralmente é necessária a suspensão dos
apresentar poucos sintomas; inibidores da enzima de conversão da
- Reposição volêmica pode ser angiotensina e a redução na dose de β-
Perfusão
necessária, com 250mL de Soro bloqueadores, particularmente nos pacientes com
periférica
Fisiológico a critério médico; hipotensão sintomática;
ruim
- É possível o uso isolado de - Muitas vezes vasodilatadores parenterais são
(frio)
vasodilatadores ou a associação suficientes;
com inotrópicos parenterais; - Inotrópicos parenterais podem ser necessários
L por curto período para estabilização; C
No passado, a tendência era de suspender o β-bloqueador na vigência de
qualquer descompensação aguda. Atualmente, a tendência é pela manutenção, salvo em
situações de hipotensão e hipoperfusão graves, como o choque cardiogênico. Até
mesmo durante o tratamento com inotrópicos parenterais pode-se manter o β-
bloqueador, com preferência pelos inibidores da fosfodiesterase, como o Milrinone, e
pela Levosimendana. Pacientes admitidos com piora da perfusão renal podem ser
candidatos à redução nas doses ou mesmo suspensão do uso de inibidores da enzima de
conversão da angiotensina, antagonistas do receptor de angiotensina II e/ou antagonistas
da aldosterona.
Pacientes com importante sobrecarga hídrica requerem terapia com diurético por
via intravenosa e/ou associação de agentes de ação sinérgica.

Medicações

Diuréticos
A presença de congestão é um critério fundamental para o uso de diuréticos,
base do tratamento da insuficiência cardíaca descompensada. Quando administrada por
via intravenosa, a Furosemida causa venodilatação em quinze minutos, diminuindo a
pré-carga tanto do ventrículo direito como do ventrículo esquerdo. Também induz
diurese aproximadamente trinta minutos após a administração, com pico em uma a duas
horas. A dose inicial é de 0.5-1.0mg/kg (40-80mg) por via intravenosa. Pode ser
repetida conforme a resposta do doente. Os principais efeitos colaterais são
hipocalemia, hipomagnesemia, piora da função renal por diurese excessiva,
ototoxicidade e intoxicação digitálica. Quando houver necessidade de diurese adicional
em doentes com piora da função renal, pode-se associar um inotrópico para melhorar a
perfusão renal.

Vasodilatadores
Os vasodilatadores determinam alívio da congestão pulmonar sem comprometer
o volume sistólico ou aumentar o consumo miocárdico de oxigênio, o que é de suma
importância para os pacientes de etiologia isquêmica. Podem aumentar débito cardíaco e
diurese. Têm utilização preferencial nas situações de pressões de enchimento ventricular
elevadas, aumentos significativos na resistência vascular pulmonar e sistêmica e
sobrecarga aguda de volume secundária a lesões valvares regurgitantes. Para serem
usados isoladamente, é necessário que a pressão arterial sistólica sistêmica esteja
adequada e idealmente superior ou igual a 85mmHg para evitar redução da pressão de
perfusão orgânica.
A Nitroglicerina melhora os sintomas de insuficiência cardíaca descompensada,
especialmente nos doentes com insuficiência coronariana aguda concomitante. A
melhora é resultante primariamente da redução da pré-carga através de seu efeito
venodilatador, que é mais precoce e ocorre em doses baixas. Além disso, reduz a pós-
carga e tem efeitos diretos sobre a circulação coronariana, com efeito arteriodilatador

Pedro Kallas Curiati 425


em doses progressivamente mais altas. É apresentada na forma de ampola de 5mL ou
10mL com 5mg/mL. A diluição preconizada consiste em 50mg em 240mL de Soro
Glicosado a 5% ou Soro Fisiológico, com concentração de 200mcg/mL e preparação em
recipientes de vidro. Diluição alternativa prevê 100mg em 230mL de Soro Glicosado a
5% ou Soro Fisiológico, com concentração de 400mcg/mL. A dose inicial por via
intravenosa é de 5-10mcg/minuto, com possibilidade de titulação a cada cinco minutos
até a resposta desejada, com dose máxima variável, geralmente em torno de 100-
200mcg/minuto. Cefaleia é o efeito colateral mais frequente, às vezes associada a
náuseas e vômitos.
O Nitroprussiato é um vasodilatador arterial e venoso, potente redutor da pós-
carga, com utilidade em situações de hipertensão grave e regurgitação valvar grave,
além de também reduzir a pré-carga. é apresentado na forma de ampola de 2mL com
25mg/mL. A diluição preconizada consiste em uma ampola em 248mL de Soro
Glicosado a 5%, com concentração de 200mcg/mL. Deve ser protegido da luz. A dose
inicial é de 0.3-0.5mcg/kg/minuto, com aumentos de 0.5mcg/kg/minuto a cada três a
cinco minutos, até que sejam alcançados os efeitos desejados, com dose máxima de
10mcg/kg/minuto. Aumenta a mortalidade de doentes com infarto agudo do miocárdico
que não apresentam insuficiência cardíaca em virtude de seu alto poder em reduzir a
pós-carga, com fenômeno de roubo coronariano.
A Morfina diminui a pré-carga e, em menor grau, a pós-carga e a frequência
cardíaca. Também diminui a sensação de dispneia e a ativação do sistema nervoso
central. Entretanto, pode causar depressão respiratória e do sistema nervoso central,
além de agravar bradicardia e hipotensão, principalmente em doentes hipovolêmicos. A
dose usual é de 2-5mg por via intravenosa a cada cinco a trinta minutos, com reversão
com o uso de Naloxone.

Inotrópicos
Em pacientes com baixo débito cardíaco, com ou sem congestão, o emprego de
terapia inotrópica pode ser necessário para melhorar a perfusão tecidual e preservar a
função de órgãos vitais. Apesar de essas drogas terem sido usadas efetivamente para
aumentar a perfusão e o débito cardíaco, têm sido associadas a aumento de isquemia e
predisposição a arritmias, com uso de forma intermitente não-recomendado. Os
inotrópicos são mais apropriados para terapia de curta duração em pacientes com rápida
deterioração hemodinâmica, bem como em pacientes com insuficiência cardíaca crônica
e níveis basais elevados de escórias nitrogenadas que não alcançaram diurese
satisfatória apesar do uso de diuréticos de alça e vasodilatadores. São também eficazes
em suporte hemodinâmico temporário em pacientes à espera de transplante cardíaco ou
revascularização ou naqueles em situação de choque cardiogênico. Tais agentes são
divididos em agonistas beta-adrenérgicos, inibidores da fosfodiesterase III e
sensibilizadores de cálcio.
A Dobutamina estimula os receptores adrenérgicos β1 e β2. Efeitos adversos
incluem aumento da frequência cardíaca e aumento do consumo miocárdico de
oxigênio, bem como possível aumento do número de extra-sístoles e episódios de
taquicardia ventricular. Pode ser associada a Dopamina ou Noradrenalina, em situações
extremas, após restabelecimento da volemia e ajuste da terapia inotrópica. Doses
elevadas podem ser necessárias para obtenção do efeito desejado em pacientes em uso
de betabloqueador, o que, no entanto, não consiste em contraindicação ao seu uso. É
apresentada na forma de ampola de 20mL com 12.5mg/mL. A diluição preconizada é de
uma ampola em 230mL de Soro Glicosado a 5%, com concentração de 1000mcg/mL,
constituindo alternativa a diluição de quatro ampolas em 170mL de Soro Glicosado a

Pedro Kallas Curiati 426


5%, com concentração de 4000mcg/mL. A dose recomendada inicial é de
2.5mcg/kg/minuto, com incrementos de 2.5mcg/kg/minuto até uma dose de 15-
20.0mcg/kg/minuto.
O Milrinone, frequentemente denominado inodilatador por suas propriedades
inotrópicas e vasodilatadoras, é um inibidor da fosfodiesterase que aumenta a
contratilidade cardíaca e produz dilatação arterial e venosa por intermédio do aumento
das concentrações intracelulares de AMP cíclico e, consequentemente, de cálcio.
Promove aumento do débito cardíaco e queda da resistência vascular pulmonar e
sistêmica, sem aumentar o consumo miocárdico de oxigênio. Pode ser utilizado em
pacientes em uso prévio de betabloqueadores e naqueles com hipertensão pulmonar. É
possível que haja efeito adverso sobre a mortalidade e que a aplicação para pacientes
portadores de cardiomiopatia isquêmica seja pior do que em outras etiologias. É
apresentado na forma de ampola de 20mL com 1mg/mL. A diluição preconizada é de
uma ampola de 20mL em 180mL de Soro Fisiológico ou Soro Glicosado a 5%, com
concentração de 100mcg/mL. Para se obter solução de 200mcg/mL, basta reduzir o
diluente para 80mL. A dose de ataque é de 50mcg/kg em dez minutos, evitada em caso
de pressão arterial sistólica inferior a 110mmHg, e a dose de manutenção é de 0.375-
0.750mcg/kg/minuto. Em pacientes com comprometimento renal, a dose de ataque deve
ser mantida, mas a taxa de infusão deve ser reduzida conforme o clearance de
creatinina. Deve ser evitado em caso de valvopatia aórtica grave, valvopatia pulmonar
ou qualquer obstrução da saída do ventrículo esquerdo. A meia vida é de 130 minutos.
Clearance de creatinina (mL/minuto) Taxa de infusão (mcg/kg/minuto)
5 0.20
10 0.23
20 0.28
30 0.33
40 0.38
50 0.43
A Levosimendana é um agente que exerce sua ação inotrópica aumentando a
sensibilidade da troponina C ao cálcio já disponível no citoplasma, sem sobrecarga
adicional de cálcio nem incremento do consumo de oxigênio. Ela causa melhora na
contratilidade miocárdica e hemodinâmica em grau comparável ao dos beta-agonistas e
inibidores da fosfodiesterase e possui ação vasodilatadora como resultado da ativação
de canais de potássio ATP-dependentes. É segura e eficaz em diversas etiologias de
insuficiência cardíaca aguda, especialmente em pacientes em uso de betabloqueadores.
É apresentada na forma de ampola de 5mL ou de 10mL com 2.5mg/mL. A diluição
preconizada é de 25mg em 240mL de Soro Glicosado a 5%, com 10mcg/mL. A dose de
ataque é de 12mcg/kg em dez minutos, evitada em caso de pressão arterial sistólica
inferior a 110mmHg, e a dose de manutenção é de 0.05-0.20mcg/kg/minuto durante 24
horas. Os efeitos podem ser notados por até nove dias. O benefício com maior
comprovação ocorre nos pacientes com baixo débito cardíaco após infarto agudo do
miocárdio, sem choque. Os efeitos colaterais mais comuns incluem cefaleia e
hipotensão. Há contraindicação em pacientes com clearance de creatinina inferior a
30mL/minuto, disfunção hepática grave, hipotensão grave e histórico de torção das
pontas.

Profilaxias
Nos pacientes internados, a insuficiência cardíaca descompensada aumenta o
risco de trombose venosa profunda, com indicação de profilaxia medicamentosa.

Conduta

Pedro Kallas Curiati 427


A grande maioria dos doentes com insuficiência cardíaca descompensada no
pronto-socorro pode ser manejada apenas com uma dose de Furosemida por via
intravenosa associada a Captopril por via oral e otimização das medicações de uso
regular.
Se o doente não estiver em uso de um inibidor da enzima de conversão da
angiotensina, ele deve ser iniciado, com dose inicial dependente da pressão arterial.
Dependendo dos sintomas de congestão, a Furosemida pode ter a sua dose elevada.
Se o doente já estiver em uso de inibidor da enzima de conversão da
angiotensina em dose plena, deve-se avaliar a possibilidade de associar Espironolactona
ou β-bloqueador, como Bisoprolol, Carvedilol e Metoprolol.
Sempre que for introduzido um inibidor da enzima conversora da angiotensina
ou Espironolactona, o doente necessita colher um exame de função renal e potássio em
uma a duas semanas.
Orientações gerais devem incluir evitar anti-inflamatórios não-hormonais,
tabagismo, etilismo e excesso de sal.
O retorno deve ser agendado precocemente.

Internação hospitalar
Nível de recomendação classe I:
- Insuficiência cardíaca moderada a grave pela primeira vez;
- Insuficiência cardíaca recorrente complicada por eventos ou situações
clínicas agudas graves;
Doentes admitidos para tratamento de insuficiência cardíaca descompensada
devem receber alta quando estiverem próximos de seu peso seco, com melhora
significativa das alterações hemodinâmicas e sem dispneia de repouso ou aos mínimos
esforços.

Prescrição básica
- Jejum;
- Repouso relativo;
- Decúbito elevado;
- Cânula nasal com O2 a 2L/minuto;
- Captopril 25mg por via oral agora e a critério médico;
- Furosemida 40mg por via intravenosa agora e a critério médico;
- Enoxaparina 40mg por via subcutânea uma vez ao dia;
- Aguarda ecocardiograma, eletrocardiograma e radiografia de tórax;
- Aguarda coleta de exames gerais;

Choque cardiogênico
O choque cardiogênico é um estado de perfusão tecidual inadequado em
decorrência de disfunção cardíaca, com alta mortalidade.
O diagnóstico pode ser feito à beira do leito pela observação de hipotensão
associada a sinais de hipoperfusão tecidual, como oligúria, alterações da consciência e
extremidades frias e mal-perfundidas. É necessário documentar a disfunção miocárdica
e excluir hipovolemia.
Do ponto de vista hemodinâmico, os critérios diagnósticos de choque
cardiogênico são:
- Hipotensão, com pressão arterial sistólica inferior a 90mmHg ou queda
da pressão arterial média superior a 30mmHg, durante trinta minutos ou
mais;

Pedro Kallas Curiati 428


- Índice cardíaco reduzido, inferior a 2.2L/minuto/m2;
- Pressão de oclusão da artéria pulmonar superior a 18mmHg;
Há ainda um subgrupo de doentes que se apresentam no pronto socorro com
insuficiência cardíaca descompensada, porém sem os sinais clássicos de choque
cardiogênico, mas que em avaliação laboratorial minuciosa apresentam hipoperfusão,
com queda da saturação venosa central e aumento do ácido lático.
A principal causa de choque cardiogênico é o infarto agudo do miocárdio
extenso ou infartos menores em um miocárdio previamente comprometido. Além disso,
complicações mecânicas, como regurgitação mitral aguda por ruptura de músculo
papilar, ruptura do septo interventricular, ruptura da parede livre do ventrículo esquerdo
com tamponamento cardíaco ou infarto extenso de ventrículo direito também podem
cursar com choque cardiogênico. Outras causas incluem miocardites agudas,
cardiomiopatias terminais, contusão miocárdica, choque séptico com depressão
miocárdica grave, disfunção miocárdica após bypass cardiopulmonar prolongado,
doenças valvares e cardiomiopatia hipertrófica obstrutiva.
Existem evidências de que uma estratégia invasiva, com vasopressores, balão de
contra-pulsação intra-aórtico, ventilação mecânica e revascularização precoce reduz a
mortalidade.
A avaliação e o tratamento do choque cardiogênico devem ser iniciados
simultaneamente. A abordagem inicial deve incluir administração de volume ao
paciente, exceto se edema pulmonar franco, oximetria de pulso, oxigênio suplementar e
proteção de vias aéreas, sondagem vesical de demora e monitorização do débito
urinário, monitorização eletrocardiográfica do ritmo cardíaco, correção de distúrbios
hidroeletrolíticos e administração de Morfina ou Fentanil se pressão arterial sistólica
muito comprometida. Arritmias e bloqueio atrioventricular total devem ser
imediatamente corrigidos com cardioversão elétrica, antiarrítmicos ou marca-passo.
Doentes com hipoperfusão e volume intravascular adequado, com pressão
capilar pulmonar superior a 15mmHg, têm indicação para o uso de inotrópicos. A
Dobutamina é um β-agonista seletivo, sendo o agente de escolha para doentes com
pressão arterial sistólica superior a 80mmHg, podendo exacerbar a hipotensão e induzir
taquiarritmias. Dopamina ou Noradrenalina devem ser preferencialmente utilizadas em
pacientes com pressão arterial sistólica inferior a 80mmHg. A taquicardia e o aumento
da resistência vascular periférica induzidos pela Dopamina podem aumentar a isquemia
miocárdica. Em casos de hipotensão refratária, a Norepinefrina pode ser necessária para
manter pressão de perfusão tecidual.
Pacientes com síndrome coronariana aguda e choque cardiogênico devem ser
submetidos imediatamente a cineangiocoronariografia.
Na impossibilidade de se estabilizar o choque cardiogênico com drogas, a
instalação de dispositivos de assistência circulatória se faz mandatória, muitas vezes
como ponte para tratamentos definitivos. Eles reduzem o trabalho ventricular e
bombeiam o sangue em direção ao sistema arterial, aumentando o fluxo periférico e aos
órgãos. O balão intra-aórtico é o dispositivo mais difusamente utilizado, notadamente
como adjuvante no tratamento do infarto agudo do miocárdio com elevação do
segmento ST complicado por choque cardiogênico. As complicações mais frequentes
são os eventos tromboembólicos, o sangramento e a infecção. No entanto, hemólise,
plaquetopenia e mau-funcionamento do dispositivo não são raros.

Bibliografia
Montera MW, Almeida RA, Tinoco EM, Rocha RM, Moura LZ, Réa-Neto A, et al. Sociedade Brasileira de Cardiologia. II Diretriz
Brasileira de Insuficiência Cardíaca Aguda. Arq Bras Cardiol.2009;93(3 supl.3):1-65
Clínica médica, volume 2: doenças cardiovasculares, doenças respiratórias, emergências e terapia intensiva. – Barueri, SP: Manole,

Pedro Kallas Curiati 429


2009.
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.

Pedro Kallas Curiati 430


MIOCARDIOPATIAS
Conceito
Heterogêneo grupo de doenças do miocárdio associadas com disfunção
mecânica ou elétrica que usualmente exibem inapropriada hipertrofia ou dilatação
ventricular. Possuem causas diversas, incluindo genéticas. Podem ser confinadas ao
coração ou parte de doenças sistêmicas.

Classificação
As miocardiopatias podem ser classificadas em primárias, de causa genética,
adquirida ou mista, e secundárias, relacionadas a doenças sistêmicas.
Exemplos de miocardiopatias primárias de causa genética incluem a
miocardiopatia hipertrófica, autossômica dominante, a displasia arritmogênica do
ventrículo direito, caracterizada pela substituição de parte do ventrículo direito por
tecido gorduroso, predispondo a arritmias, o ventrículo não-compactado, com
morfologia de “esponja” sobretudo na porção apical da câmara esquerda, as doenças do
sistema de condução, com alargamento do complexo QRS, longas pausas, bradicardias e
síncopes, e as canaliculopatias, como QT longo, QT curto, síndrome de Brugada,
taquicardia polimórfica ventricular catecolaminérgica e fibrilação ventricular idiopática.
Exemplos de miocardiopatias primárias adquiridas incluem a miocardite, que
pode ser secundária a toxinas, álcool, drogas, infecções, hipersensibilidade a drogas e
autoimunidade, a miocardiopatia de Tako-tsubo, em que disfunção ventricular é
acompanhada de aneurisma de ponta de ventrículo, ocorrendo após situação de estresse
e com regressão completa, a miocardiopatia periparto, que se desenvolve entre o último
mês de gravidez e o quinto mês de puerpério, e a taquicardiomiopatia.
Exemplos de miocardiopatias primárias mistas incluem a miocardiopatia
dilatada, que pode se originar tanto de doenças genéticas como de afecções
inflamatórias, infecciosas ou não, e a miocardiopatia restritiva não-hipertrofiada e não-
dilatada.
Exemplos de miocardiopatias secundárias incluem doenças infiltrativas, como
amiloidose, doença de Gaucher, doença de Hurler e doença de Hunter, doenças de
depósito, como hemocromatose, doença de Fabry e desmina, toxicidade relacionada a
drogas, metais pesados e agentes químicos, doenças endomiocárdicas, como
endomiocardiofibrose e síndrome hipereosinofílica (Loeffler), doenças granulomatosas,
como sarcoidose, doenças endócrinas, como diabetes mellitus, hipertireoidismo,
hipotireoidismo e acromegalia, doenças neuromusculares, como ataxia de Friedreich,
neurofibromatose e esclerose tuberosa, doenças por deficiência nutricional, como
beribéri, pelagra, escorbuto e kwashiorkor, doenças autoimunes, como lúpus
eritematoso sistêmico, dermatomiosite e esclerodermia, doenças por distúrbios
eletrolíticos e toxicidade de terapia oncológica, como Doxorrubicina, Ciclofosfamida e
radioterapia.

Miocardiopatia dilatada
Caracterizada pela dilatação das câmaras cardíacas e pelo comprometimento
sistólico de um ou de ambos os ventrículos.
A incidência estimada é de 5-8 casos para 100.000 habitantes por ano.
Embora a causa não seja identificada em muitos casos, um grande número de
doenças específicas do músculo cardíaco podem produzir as manifestações clínicas da

Pedro Kallas Curiati 431


miocardiopatia dilatada. É provável que represente a via final do dano miocárdico
decorrente de grande variedade de mecanismos citotóxicos, metabólicos, imunológicos,
infecciosos e genéticos.
As manifestações clínicas são relacionadas à extensão da dilatação e à
repercussão da disfunção ventricular que ela provoca, sendo usualmente progressivas.
Os principais sintomas são dispneia, ortopneia e intolerância aos esforços, enquanto que
os principais sinais são edema periférico, hepatomegalia e estase jugular. Também
podem estar presentes no exame físico estertores crepitantes pulmonares, terceira bulha
cardíaca e alterações do ritmo cardíaco.
A radiografia de tórax permite identificar área cardíaca aumentada e congestão
pulmonar. A ecocardiografia fornece informações valiosas, como os diâmetros das
cavidades e a fração de ejeção dos ventrículos. Atualmente, a utilização do Doppler
auxilia na mensuração de dissincronias ventriculares. Outros exames complementares,
como cateterismo cardíaco e biópsia endomiocárdica, auxiliam na definição da provável
etiologia e na avaliação do prognóstico da doença.
Preditores de pior prognóstico incluem pressão arterial baixa, frequência
cardíaca elevada, pressão capilar pulmonar aumentada, débito cardíaco reduzido,
resistência vascular aumentada, hipertrofias ventriculares, arritmias ventriculares, BNP
elevado, sódio baixo, ureia elevada, creatinina elevada e ausência de uso de
betabloqueadores.
O tratamento deve ser fundamentado no uso de inibidores neuro-hormonais,
como inibidores do sistema renina-angiotensina-aldosterona, e betabloqueadores, com o
objetivo de prolongar a sobrevida, além de diuréticos e digitálicos, com o objetivo de
reduzir os sintomas. O uso correto dos bloqueadores neuro-hormonais, procurando
atingir as doses-alvo dos medicamentos, modifica a história natural da doença, previne
sua progressão e promove a sua reversão em alguns casos, com redução da morbidade e
da mortalidade. Se a manifestação principal da miocardiopatia for arritmia,
medicamentos específicos e, algumas vezes, desfibriladores implantados, podem ser
necessários para prevenir a principal complicação, a morte súbita.

Miocardiopatia dilatada chagásica


Miocardiopatia dilatada inflamatória infecciosa causada pelo protozoário T.
cruzi. A maioria dos pacientes desenvolve uma forma crônica da miocardiopatia, com
manifestações tromboembólicas, arritmogênicas ou de disfunção ventricular após um
período de fase intermediária no qual alterações eletrocardiográficas não são
acompanhadas de sintomas clínicos.
De maneira geral, a história natural da doença de Chagas pode ser dividida em
forma indeterminada, com reação sorológica positiva e eletrocardiograma e radiografia
de esôfago e cólon normais, forma cardíaca sem cardiomegalia, com alteração no
eletrocardiograma, e forma crônica com cardiomegalia. O acometimento cardíaco na
doença de Chagas é polimórfico, com os pacientes podendo apresentar distúrbio de
condução, arritmia, aneurisma de ponta de ventrículo e disfunção miocárdica,
isoladamente ou em conjunto.
O tratamento etiológico da doença de Chagas ainda não é consensual, mas a
erradicação do agente pode deter ou pelo menos atenuar a evolução da doença.
Atualmente, a medicação utilizada para este fim é o Benzonidazol, com alguns estudos
respaldando sua indicação. Crianças e adultos jovens com a forma indeterminada da
doença devem ser tratados.
O tratamento clínico depende principalmente das manifestações apresentadas
pelos pacientes. Antiarrítmicos específicos, especialmente Amiodarona, anti-

Pedro Kallas Curiati 432


trombóticos, como antiagregantes plaquetários e anticoagulantes, e o tratamento padrão
para miocardiopatia dilatada fazem parte do arsenal terapêutico.

Miocardiopatia hipertrófica
Caracterizada pela presença de hipertrofia inapropriada, que ocorre na ausência
de uma causa aparente, como estenose aórtica ou hipertensão arterial sistêmica, muitas
vezes com o envolvimento predominante do septo ventricular de um ventrículo não-
dilatado.
A prevalência da doença é baixa, atingindo 0.2% da população geral. Pode ser o
distúrbio cardíaco geneticamente transmitido mais comum.
O quadro clínico é caracterizado por rigidez anormal do ventrículo esquerdo,
com comprometimento do relaxamento ventricular e aumento da pressão diastólica final
do ventrículo esquerdo. O sintoma mais comum é dispneia por congestão pulmonar,
mas a maior parte dos pacientes é assintomática, não sendo rara morte súbita como
primeira manifestação clínica. Dor torácica, dispneia e síncope formam tríade
relacionada a mau prognóstico.
A miocardiopatia hipertrófica deve ser investigada em atletas, pois é responsável
pela morte de muitos deles.
O diagnóstico é realizado usualmente por meio de ecocardiograma. O ventrículo
esquerdo se apresenta como uma câmara não-dilatada e hiperdinâmica, que geralmente
apresenta obliteração da via de saída, na ausência de outra doença cardíaca ou sistêmica
relacionada. A ressonância nuclear magnética cardíaca pode ser usada para determinar a
gravidade e a distribuição da hipertrofia ventricular e prover informações sobre as
funções sistólica e diastólica.
As principais características associadas com aumento do risco de morte súbita
são síncope inexplicada, história familiar de morte súbita prematura, taquicardia
ventricular não-sustentada no Holter de 24 horas, comportamento anormal da pressão
arterial em teste de esforço, grave hipertrofia ventricular, idade jovem e arritmias
induzidas em estudo eletrofisiológico, com indicação de avaliação cuidadosa quanto à
necessidade de cardiodesfibrilador implantável. Pacientes com síncope por taquicardia
ventricular ou fibrilação ventricular têm indicação de cardiodesfibrilador implantável.
Betabloqueadores aliviam sintomas como cansaço, dor precordial e dispneia por
reduzirem a frequência cardíaca e a demanda miocárdica de oxigênio. Paradoxalmente,
podem induzir à redução da capacidade de exercício por provocarem incompetência
cronotrópica. Verapamil em doses superiores a 480mg/dia é particularmente útil no
tratamento da dor precordial por reduzir a contratilidade e induzir o relaxamento
ventricular. O uso de Losartan melhora a função cardíaca diastólica pela ação anti-
fibrótica.
O tratamento cirúrgico deve ser considerado para pacientes com gradiente na via
de saída do ventrículo esquerdo superior a 50mmHg e sintomas refratários à medicação
padrão. O procedimento mais comumente adotado, denominado cirurgia de Morrow,
consiste em miectomia septal e resulta em redução significativa do gradiente de saída do
ventrículo esquerdo. Outras opções cirúrgicas incluem o marca-passo de dupla-câmara e
a ablação alcoólica do septo interventricular.

Miocardiopatia restritiva
Caracterizada por intensa rigidez do miocárdio ou do endocárdio, o que provoca
restrição do enchimento, aumento da pressão ventricular com uma pequena mudança de
volume e redução do volume diastólico de um ou ambos os ventrículos, com função
sistólica normal ou próxima do normal.

Pedro Kallas Curiati 433


Pode ser primária ou secundária, como quando o coração é comprometido por
doenças infiltrativas (amiloidose ou sarcoidose) ou de depósito (hemocromatose).
Os sintomas e os sinais estão muito associados ao grau de hipertensão atrial
esquerda, podendo oscilar entre intolerância aos exercícios em casos leves até dispneia
em repouso e manifestações de baixo débito cardíaco. Congestão pulmonar e hepática,
distensão de veias centrais, ascite, edema periférico e anasarca são encontrados em
pacientes com doença avançada. Fibrilação atrial é comum pela distensão atrial.
Arritmias ventriculares e bloqueios cardíacos são causas frequentes de morte.
O método mais prático para o diagnóstico é o ecocardiograma. A ressonância
nuclear magnética e a tomografia computadorizada também são úteis, sobretudo para
excluir as afecções pericárdicas. Além disso, a ressonância nuclear magnética pode
auxiliar na distinção de processos infiltrativos, como amiloidose, de outras formas de
cardiomiopatia. O melhor método para o diagnóstico é o cateterismo cardíaco com
ventriculografia, uma vez que permite avaliar e quantificar o comprometimento
cardíaco direito e esquerdo.
O prognóstico depende essencialmente do estágio em que se encontra a doença,
podendo ser bastante variável.
O tratamento depende do diagnóstico da doença que está promovendo a restrição
cardíaca. Os diuréticos auxiliam na congestão, enquanto os inibidores da enzima de
conversão da angiotensina atuam na disfunção ventricular. Deve-se ter cuidado com o
uso de vasodilatadores pelo risco de hipotensão.
Amiloidose é doença sistêmica caracterizada pelo depósito de fibrilas amiloides
entre as células intersticiais, provocando substituição dos tecidos normais. Pode ser
classificada pelo tipo de proteína depositada. As manifestações mais comuns incluem
síndrome nefrótica, insuficiência renal, insuficiência cardíaca, neuropatia periférica e
hipotensão ortostática. Dor precordial semelhante à angina pode estar presente, ainda
que com coronárias epicárdicas normais, podendo ser explicada pela obliteração arterial
distal por infiltração amiloide. O achado mais característico é o de uma pequena
cavidade ventricular esquerda com marcada espessura miocárdica, associada com
textura anormal, frequentemente descrita como “grânulos cintilantes”. O prognóstico é
usualmente ruim e o tratamento envolve alívio dos sintomas com diuréticos e terapia
específica para a doença de base, fundamentada no uso de quimioterápicos. Digitálicos
devem ser evitados pelo risco de induzir arritmias cardíacas e de agravar a disfunção
diastólica. Também são necessários cuidados na utilização de vasodilatadores, que
podem causar hipotensão.
Endomiocardiofibrose é doença endêmica na África tropical e subtropical,
relativamente frequente no Brasil e um pouco menos frequente no restante da América
do Sul e na Ásia. Envolve ambos os ventrículos em metade dos casos e pode ocorrer no
ápice do ventrículo esquerdo, no aparato subvalvar e no ápice do ventrículo direito. A
síndrome clínica é influenciada pela localização do acometimento cardíaco. A doença
em ventrículo esquerdo resulta em congestão pulmonar, enquanto o acometimento do
ventrículo direito se assemelha à pericardite constritiva. Em geral, as valvas
atrioventriculares se apresentam insuficientes. O diagnóstico pode ser feito por
ecocardiografia, que revela obliteração apical ventricular e dilatação atrial. O
cateterismo cardíaco confirma o padrão hemodinâmico restritivo. O prognóstico é ruim,
com progressão para insuficiência cardíaca ou morte súbita. O comprometimento
isolado do ventrículo esquerdo é relativamente bem tolerado, necessitando de
intervenção quando da presença de insuficiência mitral acentuada. O comprometimento
do ventrículo direito está associado a pior evolução, promovendo deterioração sistêmica
com insuficiência renal e insuficiência hepática. A cirurgia com ressecção da fibrose

Pedro Kallas Curiati 434


modifica substancialmente a evolução dos pacientes e deve ser indicada logo após o
diagnóstico nos casos com comprometimento do ventrículo direito. Excisão da região
fibrosada e correção das regurgitações valvares podem auxiliar no tratamento, embora a
morbidade perioperatória deva ser considerada.

Bibliografia
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 435


PERICARDIOPATIAS
A pericardiopatia é a inflamação da dupla membrana que envolve o coração.
Podem ocorrer derrame, espessamento, retração e calcificação.

Pericardite aguda

Definição
Pericardite aguda é um processo inflamatório que acomete o pericárdio, tendo
como resultado síndrome clínica usualmente composta por dor torácica, atrito de fricção
pericárdica e alterações eletrocardiográficas.

Epidemiologia
A pericardite aguda é o diagnóstico de admissão de 0.1% dos atendimentos
hospitalares e ocorre com maior frequência em homens do que em mulheres.

Etiologia
A causa mais comum de pericardite aguda é a idiopática. Outras causas incluem
infecção bacteriana, viral ou fúngica, infarto agudo do miocárdio, radiação, pós-
operatório de cirurgia cardíaca, trauma torácico perfurante ou cortante, neoplasias
primárias, como mesotelioma e angiossarcoma, e metastáticas, com origem em
pulmões, mamas, ossos, tecido linfoide e melanócitos, doenças do colágeno, como lúpus
eritematoso sistêmico e artrite reumatoide, distúrbios metabólicos, como uremia e
hipotireoidismo, e drogas, como dicumarínicos, Heparina, Penicilina, Fenitoína,
Procainamida, Hidralazina, Minoxidil, Cromolim Sódico, Metisergida e Doxorrubicina.

Quadro clínico
O sintoma mais comum de pericardite é a dor torácica retroesternal intensa,
lancinante, frequentemente irradiada para pescoço, ombros ou costas. A variação da
intensidade da dor com mudanças posicionais é um achado muito característico da
doença, com piora da dor na posição supina e com a inspiração e melhora ao sentar-se e
inclinar-se para frente. Um ruído descrito como raspar, ranger ou friccionar ocorre
devido aos depósitos fibrinosos no espaço pericárdico, com três componentes clássicos
à ausculta cardíaca, o primeiro na sístole atrial, o segundo na sístole ventricular e o
terceiro na fase inicial da diástole ventricular. Ouve-se melhor durante a inspiração no
bordo esternal esquerdo baixo com o paciente inclinado para frente. O ruído pode
desaparecer com o desenvolvimento de derrame pericárdico ou iminente tamponamento
cardíaco.

Tipos específicos de pericardite aguda


A etiologia da pericardite aguda é frequentemente difícil de ser estabelecida e a
pericardite idiopática permanece sendo o diagnóstico mais comum.
Os vírus coxsackie B e echovírus são os agentes mais comuns da pericardite
viral e um aumento de quatro vezes na titulação antiviral é requerido para o diagnóstico.
Os pacientes costumam apresentar pródromos de infecção do trato respiratório superior.
O prognóstico é bom, o curso geralmente é autolimitado e os pacientes podem ser
tratados ambulatorialmente.
Antes do uso de antibióticos, a pneumonia era a primeira causa de pericardite

Pedro Kallas Curiati 436


purulenta. Atualmente, as causas incluem cirurgia torácica, quimioterapia,
imunossupressão e hemodiálise. A apresentação geralmente é aguda, com febre,
calafrios, sudorese noturna e dispneia, mas os sinais clássicos de dor torácica e atrito
pericárdico à ausculta são raros. O tamponamento cardíaco ocorre com frequência e a
mortalidade é alta. Em caso de suspeita, recomenda-se internação hospitalar,
pericardiocentese imediata e prescrição de antibióticos de largo espectro de cobertura
antimicrobiana, que devem ser seguidos por drenagem cirúrgica precoce do pericárdio.
Os sinais na análise do líquido pericárdico que sugerem o diagnóstico são dosagem de
proteínas acima de 6g/dL, dosagem de glicose inferior a 35mg/dL e alta contagem de
leucócitos, de 6000/mm3 a 240000/mm3.
A pericardite tuberculosa ocorre em 1-2% dos casos de tuberculose pulmonar.
Os pacientes com comprometimento imunológico e com sorologia positiva para o vírus
da imunodeficiência humana têm risco aumentado de contrair a doença. Sintomas
inespecíficos, como dispneia, febre, calafrios e sudorese noturna desenvolvem-se
lentamente e atrito pericárdico e dor torácica em geral estão ausentes. O
eletrocardiograma usualmente é inespecífico, mas a radiografia de tórax pode ser útil
quando sinais de tuberculose pulmonar estiverem presentes. Um paciente com suspeita
ou diagnóstico de pericardite tuberculosa deve ser hospitalizado e a terapia contra a
tuberculose deve ser iniciada prontamente. A análise do líquido pericárdico auxilia no
diagnóstico ao revelar nível elevado de proteínas, acima de 6g/dL, e predomínio de
linfócitos. A biópsia pericárdica com teste de reação em cadeia da polimerase é
recomendada em todos os pacientes com suspeita de pericardite tuberculosa, mas
resultado normal não exclui o diagnóstico.
Pericardite urêmica ocorre em 6-10% dos pacientes com insuficiência renal
antes de iniciarem hemodiálise. Níveis séricos de ureia geralmente excedem 60mg/dL.
A elevação típica do segmento ST no eletrocardiograma costuma estar ausente. Derrame
pericárdico hemorrágico devido à diminuição da função plaquetária é comum, apesar do
tamponamento cardíaco ser raro. A pericardite associada à hemodiálise é causada por
sobrecarga de líquido, com fluido geralmente seroso. Em ambas as formas, a
hemodiálise é indicada e normalmente promove melhora em duas semanas.
A pericardite pós-infarto do miocárdio é uma complicação comum e ocorre
precocemente, dentro de três a dez dias após o infarto do miocárdio. A sua presença está
relacionada a grandes áreas infartadas, ocorre com maior frequência em infartos de
parede anterior do que inferior e está associada com maior mortalidade e incidência de
insuficiência cardíaca no primeiro ano de seguimento. O diagnóstico é realizado quando
surgem sintomas ou aparecimento de atrito pericárdico. O derrame pericárdico isolado é
inespecífico. A presença de elevação típica do segmento ST pode dificultar a
identificação de infarto atual do miocárdio concomitante. Achados sugestivos são a
presença de ondas T positivas persistentes no eletrocardiograma por mais de dois dias
pós-infarto ou normalização de ondas T previamente invertidas.
O acometimento pericárdico observado nos casos de neoplasias é comumente
relacionado a metástases. O diagnóstico é baseado na análise citológica do líquido
pericárdico.
A radiação do mediastino pode provocar pericardite precoce ou tardia, isto é,
semanas ou meses após a exposição.
Traumas perfurantes ou cortantes e até mesmo procedimentos minimamente
invasivos, como métodos diagnósticos cardíacos ou cateterismo intervencionista podem
se associar a irritação pericárdica.

Diagnóstico

Pedro Kallas Curiati 437


O diagnóstico da pericardite aguda é feito, em geral, com base em dados
clínicos, como anamnese, exame físico e eletrocardiograma, cuja principal alteração é a
elevação difusa do segmento ST. Exames de imagem, como tomografia
computadorizada, ressonância nuclear magnética ecocardiograma, auxiliam na
identificação do acometimento pericárdico ao identificarem espessamento do pericárdio.

Tratamento
A maioria dos casos de pericardite aguda evolui sem complicações, com curso
autolimitado e possibilidade de tratamento ambulatorial. Indicações de exame de
imagem e internação hospitalar incluem suspeita clínica de grande derrame pericárdico,
instabilidade hemodinâmica, dor torácica importante, dispneia importante, suspeita de
doença de base grave e sinais ou sintomas que sugiram risco de deterioração clínica.
O tratamento medicamentoso da pericardite aguda baseia-se no controle da
doença de base. Anti-inflamatórios não-hormonais, como Indometacina oral, são
efetivos no alívio da dor. Em caso de pericardite recorrente ou se a resposta ao anti-
inflamatório não-hormonal for pequena, Prednisona pode ser iniciada em altas doses e
então retirada, com diminuição de doses em até três semanas. A Colchicina pode ser
efetiva nos casos de síndrome de Dressler refratária ou persistente e na pericardite
idiopática.

Derrame pericárdico
De maneira geral, as causas mais frequentes de um grande derrame pericárdico,
em ordem decrescente de importância, são as neoplasias, as infecções, as doenças do
colágeno e a radioterapia. No Brasil, a tuberculose também deve ser considerada.
O saco pericárdico geralmente contém 15-30mL de líquido. Ele pode acumular
80-200mL agudamente e até 2000mL lentamente. O desenvolvimento de tamponamento
depende mais da velocidade com a qual o acúmulo ocorre do que do tamanho do
derrame.
Normalmente, os sinais de falência diastólica ventricular direita desenvolvem-se
primeiro, seguidos dos sinais de falência diastólica ventricular esquerda. Os sintomas
surgem da compressão das estruturas ao redor do coração, como pulmões, estômago e
nervo frênico, ou da insuficiência cardíaca diastólica e incluem pressão ou dor torácica,
dispneia, náusea, plenitude abdominal e disfagia. A irritação do nervo frênico pode
causar soluços. Nos derrames de pequena monta, o exame físico é pouco característico.
Grandes derrames causam abafamento das bulhas cardíacas e, ocasionalmente, sinal de
Ewart, caracterizado por macicez à percussão, sons de respiração brônquica e aumento
da ressonância do som quando auscultado abaixo do ângulo da omoplata esquerda. Com
o aumento do tamanho do derrame, sinais e sintomas de tamponamento cardíaco podem
ocorrer.
Eletrocardiograma pode revelar baixa voltagem e alternância elétrica se o
derrame é grande. Radiografia de tórax pode revelar cardiomegalia se existe mais que
250mL de líquido no saco pericárdico. Deslocamento do revestimento pericárdico mais
do que 2mm abaixo da borda cardíaca é melhor visualizado na projeção lateral. No
ecocardiograma, o derrame pericárdico causa um espaço livre de ecos entre o pericárdio
visceral e o pericárdio parietal, com a extensão do espaço definindo o tamanho do
derrame.
Pericardiocentese deve ser realizada com propósito diagnóstico para pesquisa da
etiologia e com propósito terapêutico nos grandes derrames quando provocam um pré-
tamponamento ou um tamponamento do coração. Deve-se avaliar se o líquido é
hemorrágico, purulento ou quiloso. A contagem de células sanguíneas vermelhas

Pedro Kallas Curiati 438


superior a 100.000/mm3 é sugestiva de trauma, neoplasia ou embolia pulmonar. Líquido
quiloso implica lesão do ducto linfático torácico por trauma ou infiltração. O líquido
deve ser enviado para contagem de células, coloração de Gram e cultura para bactérias
aeróbias e anaeróbias, citologia, pesquisa e cultura para bacilo da tuberculose, glicose,
proteínas, desidrogenase lática e densidade. Um nível de proteína elevado, superior a
6g/dL, sugere fortemente o diagnóstico de tuberculose, coleção purulenta ou derrame
parapneumônico. Aumento isolado da desidrogenase lática é observado com frequência
nos derrames relacionados a neoplasias. O baixo nível de glicose no líquido pericárdico
pode ser devido a derrame parapneumônico, artrite reumatoide, tuberculose ou
neoplasia. Entretanto, nenhum teste diagnóstico do líquido pericárdico é específico para
derrame associado a síndrome pós-pericardiotomia, pericardite por radiação, pericardite
urêmica, hipotireoidismo ou trauma. Além disso, o poder diagnóstico da análise do
líquido pericárdico e da biópsia é baixo, ao redor de 20%.
Exsudato Transudato
Etiologia Neoplasia, infecção, parainfecção, síndrome Radiação, uremia,
pós-pericardiotomia, doença do tecido hipotireoidismo, trauma
conjuntivo
Densidade (g/mL) > 1,015 < 1,015
Proteínas totais (g/dL) ≥3 <3
Razão entre proteínas no ≥ 0,5 < 0,5
líquido e no soro
Razão entre desidrogenase ≥ 0,6 < 0,6
lática no líquido e no soro
Razão entre glicose no <1 ≥1
líquido e no soro
O tratamento do derrame pericárdico é baseado no controle da doença de base.
Os diuréticos podem ajudar a diminuir a intensidade dos sintomas decorrentes da
sobrecarga de volume, quando presentes. Derrames causando pré-tamponamento ou
tamponamento requerem imediata drenagem. No pós-operatório imediato, tratamento
cirúrgico e drenagem aberta são preferidos por conta da alta incidência de derrames
septados.
A pericardiocentese guiada por ecocardiograma é segura e efetiva e suas
indicações incluem grandes derrames pericárdicos com comprometimento
hemodinâmico, tamponamento cardíaco ou intenção diagnóstica. Após a drenagem, o
seguimento ecocardiográfico está indicado para verificar a ocorrência de reacúmulo de
líquidos ou constrição pericárdica.

Tamponamento cardíaco
O tamponamento cardíaco ocorre quando o acúmulo de líquido no espaço
pericárdico causa um aumento na pressão intrapericárdica com subsequente compressão
cardíaca e comprometimento hemodinâmico. A elevação da pressão intrapericárdica
produz progressiva limitação do enchimento ventricular na diástole, resultando em
baixo débito cardíaco.
Os sintomas resultantes da diminuição do débito cardíaco e da congestão
incluem dispneia, desconforto torácico, fraqueza, agitação, sonolência, oligúria e
anorexia. Se o tamponamento desenvolve-se agudamente, o quadro clínico pode ser
dramático, com morte súbita ou choque.
A combinação dos sinais clássicos conhecidos como tríade de Beck, com
hipotensão, distensão venosa jugular e abafamento das bulhas cardíacas, ocorre em
aproximadamente 10-40% dos pacientes. Taquicardia, taquipneia e hepatomegalia são
comuns. Pulso paradoxal é definido como uma diminuição na pressão arterial sistólica

Pedro Kallas Curiati 439


superior a 10mmHg durante a inspiração, causada por compressão e redução do
enchimento do ventrículo esquerdo devido a um aumento do retorno venoso para o lado
direito do coração, podendo ocorrer em doenças extra-cardíacas, como doença pulmonar
obstrutiva crônica e asma.
Sinais de anormalidade ao eletrocardiograma incluem alternância elétrica e baixa
voltagem. No ecocardiograma, os derrames pericárdicos moderados ou grandes
produzem aumento na compressão e subsequente colapso diastólico das câmaras
cardíacas respeitando a sequencia átrio direito, ventrículo direito e átrio esquerdo. O
sinal ecocardiográfico mais sensível do tamponamento é uma pletora da veia cava
inferior com ausência de colapso inspiratório. No cateterismo do coração direito, o sinal
mais tipicamente encontrado é a equalização das pressões atrial direita média,
ventricular direita, diastólica da artéria pulmonar e capilar pulmonar média.
Os sintomas de tamponamento pericárdico podem mimetizar insuficiência
cardíaca direita, infarto de ventrículo direito, pericardite constritiva e embolia pulmonar.
Os pacientes com pré-tamponamento ou tamponamento requerem imediata
admissão hospitalar e rápida drenagem pericárdica por pericardiocentese. Um cateter de
drenagem deve ser deixado por até 48 horas se a drenagem é pequena ou há
possibilidade de reacúmulo. Se o ecocardiograma de seguimento documentar reacúmulo
de líquidos, uma janela pericárdica deve ser considerada, pois o risco de infecção
associada com a drenagem pericárdica aumenta após 48 horas.

Pericardite constritiva
A pericardite constritiva decorre de um espessamento anormal do pericárdio, que
restringe o enchimento cardíaco e resulta em diminuição do enchimento ventricular e do
débito cardíaco.
A causa mais frequente é a idiopática, embora uma história prévia de pericardite
aguda ou crônica possa ocasionalmente ser extraída. No Brasil, a pericardite tuberculosa
também deve ser considerada.
O evento inicial causador de um processo inflamatório pericárdico crônico
resulta em espessamento fibroso, calcificação do pericárdio e limitação do volume
intrapericárdico, restringindo o enchimento ventricular e diminuindo o débito cardíaco.
Finalmente, insuficiência ventricular direita e esquerda ocorrem.
Os sintomas são frequentemente vagos e seu início é insidioso, incluindo mal-
estar, fadiga e tolerância diminuída ao exercício. Com a progressão da constrição,
sintomas de insuficiência cardíaca direita tornam-se aparentes, com edema periférico,
náusea, desconforto abdominal e ascite, e geralmente precedem sinais de insuficiência
cardíaca esquerda, como dispneia de exercício, ortopneia e dispneia paroxística noturna.
O aumento da pressão de enchimento ventricular causa distensão venosa jugular e sinal
de Kussmaul, com ausência de diminuição inspiratória da distensão venosa jugular. A
ausculta revela sons cardíacos abafados e, ocasionalmente, estalido pericárdico
característico, 60-200mseg após a segunda bulha cardíaca.
O tratamento medicamentoso é pouco efetivo e não modifica a progressão ou o
prognóstico da doença. Diuréticos e dieta hipossódica podem ser prescritos para
pacientes com sintomas de insuficiência cardíaca leve a moderada ou com
contraindicações para a cirurgia. Para a maioria dos pacientes, pericardiectomia é
recomendada.

Bibliografia
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 440


SÍNCOPE
Definições
Define-se síncope como a perda súbita e breve da consciência e do tônus
postural, com recuperação rápida, espontânea e completa. De maneira geral, todas as
formas de síncope cursam com diminuição ou rápida interrupção do fluxo sanguíneo
cerebral.

Etiologia e fisiopatologia
A síncope resulta de um hipofluxo cerebral transitório.
Síncopes neuralmente mediadas são caracterizadas por alterações nos reflexos de
bradicardia e/ou vasodilatação periférica. Incluem a síncope vasovagal, que é a mais
frequente, além da síncope situacional, precipitada por tosse, defecação e/ou micção
com esforço, da síndrome do seio carotídeo, com síncope por hipersensibilidade do seio
carotídeo, e da síncope associada à neuralgia do glossofaríngeo. Outras causas incluem
hipotensão ortostática, arritmias, doença anatômica ou estrutural cardiopulmonar e
afecções cerebrovasculares, como a síndrome do roubo da subclávia. Síncope idiopática
é menos frequente atualmente, em função do desenvolvimento de métodos diagnósticos
mais sofisticados.
Podem simular síncope crise epiléptica, insuficiência vértebro-basilar, ataque
isquêmico transitório de território carotídeo, hipoxemia, hipoglicemia, hiperventilação,
transtornos somatoformes, transtornos de ansiedade e intoxicações exógenas.

Quadro clínico
O racional da abordagem é estimar o risco de a causa da síncope ser cardíaca,
visto que outras causas, incluindo a famosa síncope vasovagal, possuem prognóstico
bastante favorável.
Anamnese e exame físico minuciosos são elementos primordiais na avaliação da
causa da síncope:
- História pessoal ou familiar de doença cardíaca;
- Uso de medicações potencialmente causadoras de síncope, como
bloqueadores de canal de cálcio, β-bloqueadores, α-bloqueadores,
nitratos, antiarrítmicos, diuréticos, antipsicóticos e antieméticos;
- Número de episódios de síncope e seu caráter temporal;
- Fatores precipitantes, especialmente posturais e situacionais;
- Sinais ou sintomas prodrômicos, como sudorese, náusea, vômitos, aura
e sintomas olfativos, visuais ou gustativos;
- Pressão arterial em ambos os membros superiores, tanto na posição
supina como em ortostase;
- Ausculta cardíaca e de sopros carotídeos;
- Exame neurológico;
Hipotensão ortostática indica possibilidade de desidratação, disfunção
autonômica e/ou uso de medicações, como diuréticos e anti-hipertensivos. Íctus
desviado, sopro de regurgitação mitral e B3 indicam a possibilidade de taquicardia
ventricular. Hipotensão e/ou assistolia ventricular durante massagem do seio carotídeo
indicam hipersensibilidade do seio carotídeo. Sopros de ejeção podem indicar obstrução
ao fluxo de saída do ventrículo esquerdo por estenose aórtica ou cardiomiopatia
hipertrófica. Segunda bulha pulmonar palpável ou hiperfonética pode indicar embolia

Pedro Kallas Curiati 441


pulmonar ou hipertensão pulmonar.
Na síndrome do seio carotídeo, que acomete principalmente idosos, a massagem
do seio carotídeo deve ser evitada em caso de doença cerebrovascular conhecida ou
sopro carotídeo.

Exames complementares
O eletrocardiograma tem baixa sensibilidade e a presença de alterações do ritmo
pode elucidar o diagnóstico, definir condutas imediatas ou auxiliar na investigação
futura. Achados sugestivos de síncope induzida por arritmia incluem intervalo QT
longo, QRS largo, bloqueio atrioventricular, pausas sinusais, bradicardia severa, pré-
excitação ventricular, evidência de infarto miocárdico e baixa voltagem, sugestiva de
efusão pericárdica.
Em pacientes com eletrocardiograma normal e sem doença cardíaca, a síncope
neuralmente mediada é a principal hipótese. Doentes com episódio único de síncope e
exame físico e eletrocardiograma normais, sem nenhum achado sugestivo de doença de
base, podem ser acompanhados sem necessidade de investigação diagnóstica adicional.
Outros exames poderão ser necessários, especialmente nos casos de síncopes
recorrentes, episódios graves que levam a lesões ou acidentes e pacientes que exerçam
ocupações de alto risco. Dependendo dos achados, incluindo aqueles do
eletrocardiograma, pode ser necessário indicar testes específicos, como tilt-table test,
ecocardiograma, monitorização contínua do eletrocardiograma por Holter, telemetria ou
dispositivos de longa gravação, testes de isquemia miocárdica, cineangiocoronariografia
e estudo eletrofisiológico.
Algumas situações são consideradas de alto risco para morte súbita e pode ser
necessária a indicação de internação hospitalar para complementação da avaliação:
- História, exame físico ou exames complementares sugerem arritmia
como causa da síncope;
- Síncope em posição supina ou precedida por palpitação, dor torácica ou
dispneia;
- Ocupação de alto risco;
- Faixa etária geriátrica;
- Síncope em “desliga-liga”;
- Síncope relacionada ao esforço;
- Antecedente familiar de morte súbita;
Ecocardiograma é indicado sempre que doença cardíaca estrutural é suspeitada
em pacientes com síncope.
A monitorização eletrocardiográfica é indicada para pacientes com sinais
clínicos ou eletrocardiográficos de síncope secundária a arritmia cardíaca, sendo que a
duração e a técnica devem ser selecionadas com base no risco do paciente e na taxa de
recorrência prevista da síncope. Monitorização eletrocardiográfica intra-hospitalar
imediata é indicada em pacientes de alto risco. Holter é indicado para pacientes com
episódios de síncope ou pré-síncope frequentes, pelo menos uma vez por semana.
Dispositivo de longa gravação implantável é indicado na avaliação de pacientes com
síncope recorrente de origem indeterminada na ausência de critérios de alto risco e de
pacientes com alto risco nos quais avaliação abrangente não permitiu a identificação da
causa da síncope e não direcionou a abordagem para um tratamento específico.
Dispositivo de longa gravação externo pode ser considerado em pacientes com intervalo
entre os sintomas inferior ou igual a quatro semanas.
As principais indicações de estudo eletrofisiológico são a presença de sinais e/ou
sintomas de arritmia em paciente com doença isquêmica do coração e síncope e a falha

Pedro Kallas Curiati 442


dos métodos não-invasivos em identificar a causa da síncope em pacientes com
bloqueio de ramo ou pródromo com palpitações. Também pode ser usado em pacientes
com síndrome de Brugada, caracterizada por bloqueio de ramo direito com elevação do
segmento ST em derivações precordiais, cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo
direito, caracterizada por inversão de onda T em derivações precordiais direitas,
cardiomiopatia hipertrófica e casos selecionados de indivíduos com profissão de alto
risco.

Diagnóstico diferencial
Algumas situações potencialmente catastróficas podem se apresentar com
síncope ou simular síncope. Independentemente da classificação, a presença dos
seguintes achados aponta para gravidade:
- Cefaleia súbita, com ou sem alteração neurológica, pode indicar
hemorragia subaracnóidea;
- Diplopia, disartria e vertigem podem indicar um acidente vascular
cerebral ou uma isquemia transitória do sistema vértebro-basilar;
- Dor torácica pode indicar isquemia miocárdica, embolia pulmonar ou
dissecção aórtica;
- Bradicardia intensa pode indicar bloqueio atrioventricular de alto grau;
- Dor abdominal pode indicar hemorragia digestiva, aneurisma da aorta
abdominal ou gravidez ectópica rota;
- Síncope desencadeada durante exercício físico pode indicar estenose
aórtica ou cardiomiopatia hipertrófica;
Diferenciar síncope de crise epiléptica pode, ocasionalmente, ser difícil.
Sintomas prodrômicos como náusea, vômitos, sudorese e palidez cutânea ocorrem na
síncope. A aura é típica da crise epiléptica. A recuperação da consciência na síncope é
rápida. Desorientação, lentificação ou demora maior do que cinco minutos para
recuperar a consciência são sugestivas de crises epilépticas. Quando é descrita atividade
motora rítmica, o diagnóstico mais provável é de crise epiléptica, porém síncope pode
ser acompanhada por rápidos movimentos similares. Perda de consciência precipitada
por dor ou antecipação de dor, longo tempo em ortostase, trauma, ambientes quentes e
estresse emocional geralmente sugere síncope neuralmente mediada.
Transtornos psiquiátricos podem simular síncope, mas não há perda da
consciência.
A hipotensão ortostática implica falência do sistema nervoso autônomo e
caracteriza-se por redução da pressão arterial sistólica igual ou superior a 20mmHg ou
da pressão arterial diastólica igual ou superior a 10mmHg após três minutos em posição
ortostática depois de repouso de cinco minutos em posição supina. Alternativamente,
pode ocorrer aumento da frequência cardíaca igual ou superior a 20bpm.
O diagnóstico de hipersensibilidade e síndrome do seio carotídeo é sugerido
quando a massagem do seio carotídeo induz assistolia ventricular com duração igual ou
superior a três segundos por parada sinusal e bloqueio atrioventricular e/ou diminuição
da pressão arterial sistólica de 50mmHg ou mais. Está indicada em todos os indivíduos
com idade superior a quarenta anos com síncope de etiologia desconhecida após a
avaliação clínica inicial.
A síncope vasovagal, embora geralmente benigna, pode ser recorrente, com
grande perda funcional e risco de graves lesões e fraturas. A síncope ocorre na posição
ortostática, com fase prodrômica, perda de consciência e período de recuperação. Os
doentes relatam situações que podem precipitar.
As síncopes de causa cardíaca são divididas em arritmias e doenças anatômicas.

Pedro Kallas Curiati 443


Os sintomas irão depender da capacidade de compensação do sistema nervoso
autônomo e do grau de doença aterosclerótica dos vasos do sistema nervoso central.
Taquicardia ventricular é a mais frequente taquiarritmia, enquanto que a síndrome do nó
sinusal e os bloqueios atrioventriculares são as mais frequentes bradiarritmias
associadas à síncope. A maioria dos doentes com síncope cardíaca por arritmia não
apresenta sintomas prodrômicos e o quadro é súbito, o que pode ajudar a diferenciar da
síncope vasovagal. Em doenças cardíacas estruturais, a síncope costuma ser
desencadeada por esforço físico ou vasodilatação arterial secundária a calor ou
medicação. Estenose aórtica é particularmente comum em idosos e a clássica
apresentação envolve surgimento de dispneia, dor torácica e síncope aos esforços.

Tratamento
A síncope não é uma doença, mas a manifestação ou sintoma de algum distúrbio
de base. Dessa forma, a abordagem inicial segue os mesmos princípios do suporte
avançado de vida. Em pacientes estáveis ou após estabilização, o tratamento deverá ser
feito para a causa de base. Entretanto, uma das atitudes de extrema importância é decidir
se o paciente deve ir de alta para o ambulatório ou se deve ser observado na unidade de
emergência ou internado. Os principais indícios de síncope de origem cardíaca, que
geralmente indicam necessidade de internação, são idade igual ou maior do que 45 anos,
antecedente pessoal de doença cardíaca, antecedente familiar de morte súbita, alterações
do eletrocardiograma ou do exame físico sugestivas de doença cardíaca estrutural ou
arritmia, síncope sem pródromos ou com trauma associado, síncope ao exercício e
síncope em posição supina. Em alguns estudos, preferiu-se considerar fator de risco para
síncope de origem cardíaca idade igual ou maior do que 65 anos.
O tratamento da hipotensão ortostática consiste em evitar situações de
vasodilatação periférica ou que dificultam o retorno venoso, como clima e banhos
quentes, exercício isométrico, grandes refeições, hiperventilação e ascensão rápida a
grandes altitudes, permanência em posição ortostática por tempo prolongado sem
movimentos e uso vasodilatadores, diuréticos, antidepressivos tricíclicos e álcool.
O tratamento da hipersensibilidade do seio carotídeo inclui evitar comprimir a
região do seio carotídeo com gravata ou colares, evitar medicamentos que possam
exacerbar a bradicardia e a hipotensão, uso de vasoconstritores ou inibidores da
recaptação de serotonina quando predomina vasodepressão e marca-passo definitivo de
câmara dupla quando predomina a cardioinibição.
O emergencista deve orientar o paciente, caso receba alta hospitalar, sobre os
riscos no trabalho e ao dirigir.
Cardiodesfibrilador implantável é indicado em pacientes com síncope secundária
a taquicardia ventricular sustentada, documentada ou induzida durante estudo
eletrofisiológico, sem causas corrigíveis. Ablação por radiofrequência é efetiva
especialmente em pacientes com taquicardia ventricular monomórfica idiopática do
ventrículo esquerdo ou do ventrículo direito. Indicações de cardiodesfibrilador
implantável que independem do estudo eletrofisiológico incluem fração de ejeção do
ventrículo esquerdo inferior ou igual a 30% com história prévia de infarto do miocárdio
e fração de ejeção do ventrículo esquerdo inferior ou igual a 35% com classe funcional
II ou III da New York Heart Association.
Embora arritmias supraventriculares possam ser tratadas com drogas
antiarrítmicas, a ablação por radiofrequência é a terapia preferida na maior parte dos
casos, especialmente aqueles em que estão envolvidos o nó atrioventricular ou uma via
acessória.
Marca-passo permanente é indicado quando disfunção do nó sinusal ou bloqueio

Pedro Kallas Curiati 444


atrioventricular são documentados como causa da síncope. No entanto, em alguns casos,
o marca-passo pode ser indicado empiricamente quando o eletrocardiograma e o estudo
eletrofisiológico sugerem fortemente uma anormalidade de condução como causa da
síncope, como em disfunção do nó sinusal documentada ou provocada durante estudo
eletrofisiológico e doença bifascicular ou trifascicular documentada no
eletrocardiograma de paciente no qual outras causas de síncope foram excluídas.
Restrições para direção de veículos são indicadas para alguns pacientes com
risco de síncope recorrente.

Bibliografia
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.
Boletim de Cardiologia para o Internato. Ano 1, número 5. Carlos Pedrotti, Gustavo Hironaka, Leonardo Lopes. Preceptoria de
Cardiologia do Instituto do Coração, 2009.
UpToDate, 2011.

Pedro Kallas Curiati 445


VALVOPATIAS
Estenose mitral
A estenose mitral é uma obstrução ao enchimento ventricular esquerdo
resultante de anormalidade estrutural do aparato valvar que impede sua abertura durante
a diástole. Acomete duas vezes mais mulheres do que homens.
A causa mais prevalente é a febre reumática, mas, raramente, a estenose mitral
pode ser congênita.
O principal sintoma é dispneia aos esforços, resultante da complacência
pulmonar reduzida, que pode ser acompanhada por tosse e sibilos. Na obstrução crítica,
os pacientes podem apresentar ortopneia e episódios de edema agudo pulmonar. A
fibrilação atrial ocorre em 30-40% dos pacientes. A hipertensão arterial pulmonar
contribui para a piora da dispneia e, na sua forma mais avançada, causa insuficiência
cardíaca direita, insuficiência tricúspide e hipertensão venosa sistêmica, com ascite,
hepatomegalia, edema periférico e hidrotórax. Hemoptise pode decorrer da ruptura de
veias brônquicas dilatadas, da ruptura de capilares alveolares ou de infarto pulmonar.
Uma parcela dos pacientes apresenta desconforto torácico decorrente de hipertensão
ventricular direita grave ou aterosclerose coronária concomitante. A embolização
sistêmica é causa de considerável morbidade e mortalidade. A endocardite infecciosa é
uma complicação que ocorre mais comumente nas estenoses leves do que nas graves.
Na ausculta cardíaca, observa-se uma primeira bulha hiperfonética. Com a
elevação da pressão pulmonar, o segundo componente da segunda bulha se acentua.
Outros sinais de hipertensão pulmonar incluem encurtamento do desdobramento da
segunda bulha, sopro sistólico de insuficiência tricúspide e sopro de Graham Steell de
regurgitação pulmonar. O estalido de abertura encontrado na estenose mitral resulta da
tensão súbita dos folhetos valvares após a abertura das cúspides. O sopro diastólico
mitral da estenose é um sopro de timbre baixo, melhor ouvido no ápice e com o paciente
em decúbito lateral esquerdo. Embora sua intensidade não apresente correlação com a
gravidade da valvopatia, sua duração no ciclo cardíaco indica a gravidade da estenose
mitral.
A estenose mitral é uma doença contínua, progressiva, habitualmente
consistindo de um curso lento e estável nos primeiros anos, seguido de uma aceleração
progressiva.
O eletrocardiograma é pouco sensível no diagnóstico da estenose mitral leve,
mas nas obstruções moderada e grave pode revelar sinais de sobrecarga atrial esquerda,
fibrilação atrial e sobrecarga ventricular direita. A radiografia de tórax pode evidenciar
aumento do átrio esquerdo, alargamento da artéria pulmonar e, nos casos mais
avançados, aumento de câmaras direitas, congestão peri-hilar, edema intersticial e
cefalização da vasculatura pulmonar. A ecocardiografia, transtorácica ou transesofágica,
é ferramenta indispensável para a avaliação diagnóstica e permite determinar se a
anatomia é favorável à valvoplastia por balão. Cateterismo cardíaco é realizado quando
há discrepância entre achados clínicos e resultados de métodos não invasivos.
CLASSIFICAÇÃO DA GRAVIDADE Leve Moderada Grave
Gradiente médio (mmHg) < 5.0 5.0-10.0 >10.0
Pressão sistólica da artéria pulmonar (mmHg) <30 30-50 >50
Área valvar (cm2) >1.5 1.0-1.5 <1.0
O diagnóstico diferencial deve ser feito com tumores atriais, como o mixoma,
trombos atriais e vegetações de endocardite infecciosa.
Pacientes com estenose mitral devido a doença reumática devem receber

Pedro Kallas Curiati 446


profilaxia para infecções por estreptococos beta-hemolíticos e para endocardite
infecciosa. O tratamento de anemia e de infecções deve ser feito de imediato, dado o
potencial de descompensação da valvopatia. Atividade física vigorosa deve ser evitada
em pacientes sintomáticos.
Em pacientes sintomáticos com estenose mitral e evidência de congestão
pulmonar, melhora considerável pode ser obtida com administração de diuréticos e
restrição salina. Os β-bloqueadores e bloqueadores de canal de cálcio, por exercerem
efeito cronotrópico negativo, podem aumentar a capacidade de exercício por reduzirem
a frequência cardíaca tanto em pacientes com ritmo sinusal como naqueles com
fibrilação atrial. Os digitálicos não alteram a hemodinâmica e, geralmente, não
beneficiam pacientes em ritmo sinusal, mas são úteis na redução da resposta ventricular
na fibrilação atrial e no tratamento de pacientes com disfunção ventricular esquerda e/ou
direita.
A terapia anticoagulante é útil e deve ser indicada para pacientes que já
apresentaram um ou mais episódios de embolia em ritmo sinusal e/ou fibrilação atrial e
pacientes portadores de fibrilação atrial crônica, independentemente do grau de estenose
mitral. Preconiza-se o uso de anticoagulante oral dicumarínico, com INR alvo de 2.0-
3.0.
A valvotomia, que abrange a valvuloplastia mitral percutânea por balão e a
valvotomia cirúrgica, está indicada em pacientes sintomáticos com estenose mitral
moderada a grave e também em pacientes com estenose menos significativa, porém com
sintomas comuns aos exercícios e que, ao praticá-los, apresentam pressão arterial
pulmonar excedendo 60mmHg ou pressão capilar pulmonar superior a 25mmHg.
Avaliação ecocardiográfica cuidadosa deve ser feita antes da indicação da valvuloplastia
mitral percutânea por balão, sendo necessária a exclusão de trombo atrial esquerdo e a
mensuração do escore ecocardiográfico, que avalia rigidez e espessamento dos folhetos
e calcificação valvar e do aparato subvalvar, graduados de um a quatro. Valvas rígidas,
espessas, com calcificação extensa e fibrose subvalvar, com escore superior a 8,
alcançam resultados menos favoráveis. Insuficiência mitral importante caracteriza
contraindicação relativa.
A troca da valva mitral é uma cirurgia realizada nos pacientes com válvulas
muito distorcidas ou calcificadas. Por meio dessa abordagem cirúrgica, a insuficiência
mitral moderada associada pode ser corrigida. A taxa de mortalidade operatória da
substituição mitral gira em torno de 3-8%, devendo ser consideradas a morbidade da
anticoagulação e a deterioração mecânica das biopróteses.

Insuficiência mitral
As estimativas da prevalência da insuficiência mitral são comprometidas pela
presença de sopros benignos em grande proporção de adultos e pelo achado de
regurgitação fisiológica em até 80% da população.
Causas de insuficiência mitral primária ou orgânica incluem degeneração
mixomatosa, doença reumática, endocardite infecciosa, ruptura espontânea de cordas,
doenças vasculares do colágeno e trauma. Causas de insuficiência mitral funcional
incluem doença arterial coronariana, cardiomiopatia hipertrófica, cardiomiopatia
dilatada e dilatação atrial esquerda.
Na insuficiência mitral aguda, os principais achados são dispneia de repouso,
ortopneia e, em alguns casos, sinais e sintomas de baixo débito, com choque
cardiogênico. Por apresentarem átrio de tamanho normal, raramente são encontrados
nesses pacientes sinais de falência ventricular direita, como edema, ascite,
hepatomegalia e hipertensão pulmonar.

Pedro Kallas Curiati 447


A natureza e a gravidade dos sintomas nos pacientes com insuficiência mitral
crônica são resultantes de sua gravidade, de sua velocidade de progressão, do nível de
pressão arterial pulmonar, da presença de fibrilação atrial e das outras doenças
associadas, como outra valvopatia, doença coronariana e cardiomiopatia. Como os
sintomas geralmente não se desenvolvem até que ocorra disfunção ventricular, pode
haver intervalo de muitos anos entre o diagnóstico de insuficiência mitral e o início das
manifestações clínicas.
Quando a função do ventrículo esquerdo está preservada, os pulsos carotídeos
são fortes e o ictus é impulsivo e hiperdinâmico. Com a dilatação ventricular esquerda,
o ictus desloca-se lateralmente. Sinais de hipertensão pulmonar, como hiperfonese do
segundo componente da segunda bulha (P2) e segundo componente da segunda bulha
palpável, podem ser encontrados. Na insuficiência mitral crônica grave, a primeira
bulha é reduzida ou hipofonética. O aumento anormal do fluxo pelo orifício mitral
durante a fase de enchimento rápido associa-se em alguns casos à presença de terceira
bulha, que nesse caso não representa disfunção ventricular. O murmúrio holossistólico
geralmente é constante, suave, de alta intensidade e mais audível no ápice, com
irradiação para axila e região infraescapular esquerda. Há pouca correlação entre a
intensidade do sopro e a gravidade da insuficiência mitral, estando a duração do sopro
cardíaco relacionada à maior gravidade.
Os principais achados eletrocardiográficos são sobrecarga atrial esquerda e
fibrilação atrial, com sobrecarga ventricular esquerda e sobrecarga de câmaras direitas
em menor porcentagem dos casos. A radiografia de tórax habitualmente revela
cardiomegalia com sobrecarga de átrio e ventrículo esquerdos. O ecocardiograma
transtorácico pode demonstrar a insuficiência da valva mitral e estimar sua gravidade. O
ecocardiograma transesofágico pode adicionar acurácia na estimativa da gravidade da
lesão, como também ser útil em demonstrar a causa anatômica da insuficiência mitral.
Cateterismo cardíaco é necessário quando há discrepância entre achados clínicos e de
exames não-invasivos, quando a cirurgia é contemplada em casos com dúvida sobre a
gravidade da regurgitação e quando há necessidade de analisar a extensão e a gravidade
da doença coronariana no pré-operatório.
CLASSIFICAÇÃO DA Leve Moderada Grave
GRAVIDADE
Grau angiográfico 1+ 2+ 3-4+
Área do jato ao Doppler Jato central inferior a - Jato central superior a 40% da área do
4cm2 ou 20% da área átrio esquerdo, que atinge/circunda a
do átrio esquerdo parede do átrio esquerdo
Largura do Doppler vena < 0.30 0.30-0.69 > 0.69
contracta (cm)
Volume regurgitante < 30 30-59 > 59
(mL/batimento)
Fração regurgitante (%) < 30 30-49 >49
Área do orifício < 0.20 0.20-0.39 > 0.39
regurgitante (cm2)
Átrio esquerdo - - Dilatado
Ventrículo esquerdo - - Dilatado
A utilização dos inibidores da enzima de conversão da angiotensina em
pacientes assintomáticos para prevenção da dilatação ventricular esquerda é
controversa. Embora a redução da pós-carga pareça alterar a geometria ventricular de
maneira favorável e reduzir a gravidade da regurgitação em pacientes com
cardiomiopatia dilatada, os efeitos hemodinâmicos são menos claros nos pacientes com
valvopatia mitral primária. Além disso, uma vez que a resposta ventricular à sobrecarga
volêmica é compensatória, o impedimento da adaptação do ventrículo pode ser danoso e

Pedro Kallas Curiati 448


não benéfico. Uma preocupação adicional é que o tratamento medicamentoso possa
mascarar o reconhecimento da disfunção ventricular, resultando na postergação da
indicação cirúrgica. Assim, nos pacientes com regurgitação mitral crônica, o tratamento
medicamentoso visa exclusivamente melhorar a qualidade de vida enquanto se aguarda
o procedimento cirúrgico.
Profilaxia de endocardite é indicada com base em recomendações consensuais.
Em pacientes com valvopatia reumática, também é recomendada profilaxia da febre
reumática. Deve-se também identificar, prevenir e tratar os fatores de risco de doença
coronariana. Se fibrilação atrial estiver presente, tratamento com anticoagulação e
cardioversão ou controle de frequência estão indicados.
As opções cirúrgicas para o tratamento da insuficiência mitral incluem a troca
valvar com ou sem preservação das cordas e o reparo ou plástica da valva mitral. A
prótese valvar pode ser biológica ou mecânica de acordo com as indicações específicas.
As vantagens do reparo ou plástica da valva mitral incluem preservação da continuidade
entre o anel mitral e os músculos papilares, a ausência de necessidade de anticoagulação
e a menor morbidade perioperatória. A mortalidade da plástica mitral é de 1-2%,
enquanto que a da troca valvar é de 5-10%. Alguns fatores predizem a pequena
probabilidade de reparo, como presença de calcificação da válvula, doença reumática e
envolvimento do folheto anterior. A cirurgia está indicada para pacientes com
insuficiência mitral grave e sintomas de insuficiência cardíaca, mesmo que apresentem
fração de ejeção normal ao ecocardiograma, especialmente se a plástica mitral parecer
possível. Em pacientes com insuficiência mitral grave assintomáticos ou sintomáticos
com disfunção ventricular esquerda, o momento cirúrgico é controverso, porém
atualmente recomenda-se a utilização de indicadores ecocardiográficos, como fração de
ejeção do ventrículo esquerdo inferior ou igual a 60% e/ou diâmetro diastólico superior
ou igual a 45mm.

Estenose aórtica
A estenose aórtica caracteriza-se por obstrução ao fluxo de saída do ventrículo
esquerdo.
A causa mais comum dessa lesão é o processo degenerativo, que produz uma
imobilização das cúspides valvares aórticas por calcificação. Tem sido descrito que a
forma degenerativa de estenose aórtica é associada com fatores de risco para
aterosclerose, como tabagismo, hipertensão arterial sistêmica e dislipidemia. Outra
causa frequente de estenose aórtica, a mais comum nos jovens, é a malformação
congênita valvar, como a valva aórtica bicúspide. A estenose aórtica reumática resulta
de aderências e fusão das comissuras e cúspides, estando frequentemente associada a
lesão mitral.
A estenose aórtica tem uma história natural caracterizada por um longo período
de latência de baixa morbidade e mortalidade, durante o qual o paciente é assintomático.
Após o início dos sintomas, a sobrevida média é menor do que três anos. As
manifestações clínicas são angina, síncope, dispneia e insuficiência cardíaca.
O pulso arterial caracteristicamente tem ascensão lenta e é de pequena amplitude
e sustentado, sendo denominado parvus et tardus. O frêmito sistólico pode ser palpado
especialmente com o paciente sentado e durante a expiração, geralmente no segundo
espaço intercostal e frequentemente transmitido até as carótidas. A primeira bulha é
normal e a quarta bulha é proeminente, provavelmente pela contração atrial vigorosa. A
segunda bulha pode apresentar componente único porque o seu primeiro componente
torna-se inaudível pela imobilidade da valva ou porque a sístole ventricular esquerda
prolongada faz com que coincida com o segundo componente. O sopro característico da

Pedro Kallas Curiati 449


estenose aórtica é ejetivo, de pico tardio, melhor ouvido na base do coração e às vezes
transmitido para as carótidas e para o ápice. Em geral, quanto mais grave a estenose,
maior a duração do sopro e mais tardio é seu pico na sístole. Como o débito cardíaco
mantém-se adequado por muitos anos, fadiga, caquexia, cianose periférica e outras
manifestações de baixo débito geralmente não são proeminentes, podendo surgir muito
tarde na evolução. Outros achados na fase avançada incluem fibrilação atrial,
hipertensão pulmonar e hipertensão venosa sistêmica.
A principal alteração eletrocardiográfica é a sobrecarga ventricular esquerda, que
é encontrada em 85% dos casos de estenose aórtica grave. A extensão da calcificação da
valva aórtica no sistema de condução pode causar várias formas e vários graus de
bloqueio atrioventricular e intraventricular em 5% dos pacientes. Normalmente, a
radiografia de tórax não apresenta nenhuma anormalidade, com aumento de câmaras
esquerdas quando há disfunção ventricular associada ou insuficiência aórtica. Dilatação
pós-estenótica da aorta ascendente é comum, assim como o achado de calcificação
aórtica. A ecocardiografia é fundamental para confirmar a presença da estenose aórtica
e determinar a resposta ventricular à sobrecarga de pressão. Em alguns casos, é
necessária a cateterização cardíaca e a angiografia coronária na avaliação inicial, como
quando ocorre discrepância entre achados clínicos e ecocardiográficos e quando há
sintomas e a troca valvar é planejada. O teste ergométrico nos pacientes com estenose
aórtica não é feito rotineiramente, estando contraindicado na presença de sintomas.
CLASSIFICAÇÃO DA GRAVIDADE Leve Moderada Grave
Velocidade do jato (m/s) < 3.0 3.0-4.0 > 4.0
Gradiente médio (mmHg) < 25 25-40 > 40
Área valvar (cm2) > 1.5 1.0-1.5 < 1.0
Índice de área valvar (cm2) - - < 0.6
A antibioticoprofilaxia está indicada na prevenção da endocardite infecciosa.
Nos casos de doença reumática, deve ser feita profilaxia de episódios recorrentes. Não
há tratamento medicamentoso específico para pacientes assintomáticos. Pacientes que
desenvolvem sintomas requerem cirurgia. Em caso de obstrução crítica, deve-se evitar
atividade física vigorosa.
Pacientes com hipertensão arterial sistêmica, fibrilação atrial ou disfunção
ventricular esquerda necessitam de terapia específica com vasodilatadores, diuréticos,
inotrópicos e, eventualmente, agentes com ação cronotrópica negativa. Os
betabloqueadores podem deprimir a função miocárdica e induzir falência ventricular
esquerda, devendo ser evitados. Os diuréticos têm o potencial de causar hipovolemia e,
consequentemente, diminuir a pressão diastólica final do ventrículo esquerdo, reduzir o
débito cardíaco e causar hipotensão ortostática. Vasodilatadores potentes, como os
antagonistas do cálcio dihidropiridínicos podem induzir hipotensão nos pacientes com
estenose aórtica. O Diltiazem parece apresentar o perfil de segurança mais adequado
nesses pacientes. Os digitálicos são indicados se houver aumento do volume ventricular
ou redução da fração de ejeção. Os inibidores da enzima de conversão da angiotensina
também devem ser evitados, principalmente nos pacientes sintomáticos com função
ventricular normal. Fibrilação atrial associada a estenose aórtica ocorre em
aproximadamente 10% dos pacientes, devendo ser de tentada a cardioversão de
imediato.
Na grande maioria dos adultos, a substituição da válvula aórtica é o único
tratamento eficaz para a estenose aórtica sintomática e resulta na melhora clínica e
hemodinâmica dos pacientes, mesmo nos casos com disfunção ventricular. Está
indicada para todos os pacientes sintomáticos com estenose aórtica grave. A indicação
da cirurgia em pacientes assintomáticos é controversa, mas é recomendada em caso de

Pedro Kallas Curiati 450


estenose grave com disfunção ventricular esquerda, hipertrofia ventricular avançada ou
sintomas ao exercício. A troca valvar também é recomendada em pacientes com
estenose moderada a grave que serão submetidos a cirurgia cardiovascular. A
valvuloplastia aórtica por balão é um método alternativo à valvotomia curúrgica,
empregado no tratamento da estenose aórtica em crianças, adolescentes e adultos jovens
com a forma não-degenerativa. Apesar dos resultados desapontadores, a valvotomia
cirúrgica tem seu papel nos pacientes com doença degenerativa que não são candidatos
à cirurgia por choque cardiogênico secundário a estenose aórtica crítica, necessidade de
cirurgia não-cardíaca de emergência e estenose aórtica crítica, insuficiência cardíaca
descompensada de alto risco cirúrgico, gestação e estenose aórtica crítica, comorbidades
e recusa ao tratamento cirúrgico.

Insuficiência aórtica
A insuficiência aórtica pode ser causada por doença primária dos folhetos
valvares ou da parede da raiz aórtica. A doença reumática é causa comum de doença
primária da válvula aórtica que leva a regurgitação. Outras causas incluem estenose
aórtica degenerativa calcificante do idoso, endocardite infecciosa com destruição e
perfuração dos folhetos, valva aórtica bicúspide e deterioração estrutural de bioprótese
aórtica. Causas menos comuns incluem espondilite anquilosante, lúpus eritematoso
sistêmico, artrite reumatoide, síndrome de Reiter, doença de Crohn e defeitos septais
ventriculares. Regurgitação aórtica secundária à dilatação da aorta ascendente pode
estar associada a dilatação aórtica degenerativa, necrose cística da média isolada ou por
síndrome de Marfan, dissecção de aorta, aortite sifilítica, espondilite anquilosante,
artrite psoriática, síndrome de Behçet, arterite de células gigantes e hipertensão arterial
sistêmica. As causas mais comuns de regurgitação aórtica aguda são dissecção de aorta,
endocardite infecciosa e trauma.
No pacientes com regurgitação aórtica crônica, o ventrículo esquerdo dilata-se
gradativamente enquanto o paciente permanece assintomático ou oligossintomático. As
queixas principais são dispneia aos esforços, ortopneia e dispneia paroxística noturna.
Angina é frequente em estágio mais avançado da doença e a presença de síncope é rara.
Pacientes com regurgitação grave comumente queixam-se de desconfortável percepção
do batimento cardíaco e de dor torácica em virtude do impacto do coração contra a
parede torácica.
Em pacientes com regurgitação aórtica crônica grave, pode ser visualizado o
sinal de Musset, que é o batimento da cabeça simultâneo ao batimento cardíaco. Os
pulsos têm a característica de “martelo d’água”, com ascensão abrupta e colapso rápido.
O pulso arterial pode ser proeminente e melhor apreciado pela palpação da artéria radial
com o braço do paciente elevado. O sinal de Traube, também conhecido como pistol
shot, refere-se a sons sistólicos e diastólicos audíveis na artéria femoral. O sinal de
Muller consiste de pulsações sistólicas da úvula e o sinal de Quincke refere-se às
pulsações capilares. A pressão arterial sistólica é elevada e a arterial diastólica é
anormalmente baixa. O impulso apical é difuso e hiperdinâmico, deslocado lateral e
inferiormente. O murmúrio aórtico regurgitante, o principal achado clínico da
regurgitação aórtica, é um som de alta frequência, que começa imediatamente após o
primeiro componente da segunda bulha (A2), melhor audível com o paciente sentado e
com o corpo inclinado para frente. Na regurgitação grave, o sopro tem um pico precoce
e um padrão de decréscimo durante a diástole. A gravidade da lesão correlaciona-se
mais com a duração que com a intensidade do murmúrio.
Os achados eletrocardiográficos da regurgitação crônica são o desvio do eixo
para a esquerda e um padrão de sobrecarga ventricular esquerda. Defeitos de condução

Pedro Kallas Curiati 451


intraventricular ocorrem tardiamente na doença e são sinalizadores de disfunção
ventricular. As alterações encontradas na radiografia de tórax refletem o tempo de
doença e sua gravidade, não sendo possível determinar o estado da função ventricular
esquerda, pois a cardiomegalia é um fator adaptativo. A ecocardiografia é útil para
identificar a insuficiência aórtica, buscar sua causa, avaliar sua repercussão
hemodinâmica e determinar lesões associadas. Cateterização cardíaca e aortografia
estão indicadas quando a avaliação não invasiva é inconclusiva ou discordante com os
achados clínicos.
CLASSIFICAÇÃO DA Leve Moderada Grave
GRAVIDADE
Grau angiográfico 1+ 2+ 3-4+
Largura do jato ao Jato central inferior a 25% da - Jato central superior a 65% da
Doppler largura da via de saída do largura da via de saída do
ventrículo esquerdo ventrículo esquerdo
Largura do Doppler vena < 0.3 0.3-0.6 > 0.6
contracta (cm)
Volume regurgitante < 30 30-59 > 59
(mL/batimento)
Fração regurgitante (%) < 30 30-49 >49
Área do orifício < 0.10 0.10-0.29 > 0.29
regurgitante (cm2)
Ventrículo esquerdo - - Dilatado
No caso da regurgitação aórtica aguda, a intervenção cirúrgica está indicada de
imediato e, enquanto o paciente é preparado, agentes inotrópicos e vasodilatadores
devem ser utilizados, estando contraindicados os β-bloqueadores e o balão de contra-
pulsação aórtica.
Pacientes com regurgitação crônica leve ou moderada que são assintomáticos
com área cardíaca normal ou discretamente aumentada não requerem tratamento e
devem ser seguidos clinicamente com ecocardiograma a cada um ou dois anos.
Pacientes assintomáticos com regurgitação grave com função ventricular normal devem
ser examinados em intervalos de aproximadamente seis meses.
Terapia com agentes vasodilatadores arteriais tem como objetivo melhorar o
volume de ejeção e reduzir o volume regurgitante. Devem ser utilizados para tentar a
melhora hemodinâmica nos pacientes com sintomas de insuficiência cardíaca e
disfunção grave antes da cirurgia de troca valvar, para reduzir a pressão arterial nos
hipertensos assintomáticos com qualquer grau de regurgitação e para prolongar a fase
assintomática compensada em pacientes que têm ventrículos com sobrecarga de volume
e função normal.
A troca valvar aórtica deve ser considerada apenas se a regurgitação é grave. O
tratamento cirúrgico deve ser postergado em pacientes com insuficiência aórtica crônica
grave que são assintomáticos, têm boa tolerância aos exercícios e apresentam fração de
ejeção superior a 50% sem dilatação ventricular acentuada, com diâmetro diastólico
final inferior a 70mm e sistólico final inferior a 50mm. Na ausência de contraindicações
ou comorbidades graves, o tratamento cirúrgico é aconselhável para pacientes
sintomáticos com regurgitação grave. Em pacientes assintomáticos, a troca valvar é
indicada quando a fração de ejeção cai para 50% ou menos em ecocardiograma
seriados.

Estenose tricúspide
A estenose tricúspide é quase sempre de etiologia reumática. Outras causas de
obstrução ao esvaziamento atrial são os tumores atriais, a atresia tricúspide congênita, a
endomiocardiofibrose e a síndrome carcinoide. A maior parte dos pacientes reumáticos

Pedro Kallas Curiati 452


com acometimento tricúspide tem dupla lesão ou apenas insuficiência.
Na presença de ritmo sinusal, a onda de pulso venoso jugular é proeminente e
palpa-se uma pulsação hepática pré-sistólica. Os campos pulmonares são limpos e,
apesar de turgência jugular e ascite, o paciente tem pouca dispneia de decúbito. A
suspeita torna-se mais provável quando um frêmito diastólico que se acentua na
inspiração é palpável na região inferior da borda esternal esquerda. Um estalido de
abertura tricúspide pode estar presente. O sopro diastólico da estenose tricúspide é
melhor audível na parte inferior da borda esternal esquerda, sendo mais suave e de
menor duração que o sopro mitral.
O achado eletrocardiográfico que corrobora a suspeita de estenose tricúspide é a
sobrecarga atrial direita. A alteração radiológica encontrada é o aumento do átrio direito
e, nos casos de estenose mitral associada, aumento do átrio esquerdo sem congestão
pulmonar. A ecocardiografia é utilizada na confirmação do diagnóstico e na
quantificação do gradiente transvalvar e da gravidade da afecção valvar. A principal
característica de gravidade é área valvar menor do que 1cm2.
Embora o tratamento de escolha seja a abordagem cirúrgica, a restrição de sódio
e água e a terapia com diuréticos podem diminuir os sintomas secundários à congestão.
A maioria dos pacientes com estenose tricúspide tem outras valvopatias que necessitam
de correção cirúrgica. O tratamento cirúrgico da estenose tricúspide deve ser feito ao
mesmo tempo que a correção mitral em pacientes com gradiente transvalvar maior que
5mmHg e cujo orifício tricúspide mede menos de 2cm2.

Insuficiência tricúspide
A disfunção da válvula tricúspide pode ocorrer com a válvula normal ou doente.
A causa mais comum de insuficiência tricúspide não é a afecção da válvula
propriamente dita, mas sim a dilatação do ventrículo direito e do anel tricúspide,
causando insuficiência secundária ou funcional Ocorre quando a pressão sistólica do
ventrículo direito excede 55mmHg. Dentre as causas, citam-se a estenose mitral, a
estenose da válvula pulmonar, o infarto do ventrículo direito, a hipertensão pulmonar
primária, o cor pulmonale, a cardiopatia congênita e a cardiomiopatia dilatada com
disfunção do ventrículo direito. A insuficiência tricúspide primária, com acometimento
do aparato valvar, pode ocorrer em valvulite reumática, endocardite infecciosa,
síndrome carcinoide, artrite reumatoide, radioterapia, trauma, síndrome de Marfan,
disfunção de músculos papilares e doenças congênitas, como anomalia de Ebstein.
Na ausência de hipertensão pulmonar, a insuficiência tricúspide habitualmente é
bem tolerada.
As manifestações clínicas incluem edema maciço, ascite, hepatomegalia
congestiva e distensão venosa jugular. Nos portadores de insuficiência tricúspide grave,
são observados perda de peso, caquexia, cianose e icterícia. Fibrilação atrial é comum.
A ausculta revela uma terceira bulha que origina-se do ventrículo direito e
acentua-se à inspiração. Quando a valvulopatia associa-se com hipertensão pulmonar, o
segundo componente da segunda bulha é acentuado e o sopro é holossistólico, sendo
mais intenso no quarto espaço intercostal da região paraesternal. Quando a valvulopatia
não é acompanhada de hipertensão pulmonar, como no trauma e na endocardite, o sopro
é de baixa intensidade e limitado à primeira metade da sístole. O sopro da insuficiência
tricúspide acentua-se durante a inspiração, o que é denominado sinal de Cavallo.
Os achados eletrocardiográficos são inespecíficos, sendo comumente
encontrados bloqueio incompleto do ramo direito, ondas Q em V1 e fibrilação atrial. A
radiografia de tórax pode revelar cardiomegalia com aumento das câmaras direitas,
derrame pleural e evidências de hipertensão atrial direita. A ecocardiografia tem como

Pedro Kallas Curiati 453


objetivos detectar a insuficiência tricúspide, estimar sua gravidade, analisar a pressão da
artéria pulmonar e avaliar a função do ventrículo direito. Geralmente, apenas pressões
da artéria pulmonar superiores ou iguais a 55mmHg são capazes de causar insuficiência
tricúspide com a válvula normal. As principais características de gravidade são largura
de vena contracta superior a 0.7cm e fluxo sistólico reverso em veias hepáticas.
O tratamento baseia-se, fundamentalmente, no estado clínico do paciente e na
etiologia da valvulopatia tricúspide. Na ausência de hipertensão arterial pulmonar, a
insuficiência tricúspide é bem tolerada. Nos pacientes com estenose mitral e hipertensão
pulmonar com dilatação do ventrículo direito e insuficiência tricúspide, o alívio da
estenose mitral e da pressão da artéria pulmonar podem resultar em considerável
redução da insuficiência. O momento da intervenção cirúrgica ainda é controverso,
assim como a técnica. Uma das técnicas mais empregadas atualmente é a anuloplastia
de DeVega, normalmente feita no momento da correção mitral. Quando a doença
orgânica da válvula tricúspide causa insuficiência grave com necessidade de tratamento
cirúrgico, é necessária a troca valvar, dando-se preferência ao implante de bioprótese,
uma vez que o risco de trombose de próteses mecânicas é altíssimo.

Febre reumática
A febre reumática se expressa como uma reação inflamatória que envolve vários
órgãos, principalmente o coração, as articulações e o sistema nervoso central. As
manifestações clínicas da febre reumática seguem-se a uma faringoamigdalite causada
por estreptococos do grupo A, manifestando-se após um período latente de
aproximadamente três semanas. A importância da febre reumática advém de sua
capacidade de causar fibrose das valvas cardíacas, levando a graves alterações
hemodinâmicas e a doença cardíaca crônica.
Repouso no leito geralmente é considerado importante, pois diminui a dor
articular. Pode ser permitido ao paciente a deambulação quando houver remissão da
febre e as provas de fase aguda retornarem ao normal.
Os pacientes devem receber um tratamento com Penicilina por dez dias. Os
alérgicos à Penicilina devem ser tratados com Eritromicina.
Se houver insuficiência cardíaca, devem ser administrados digital, oxigênio,
diuréticos e dieta hipossódica. Os digitálicos devem ser usados com parcimônia, pois a
toxicidade pode ocorrer com dosagens convencionais.
Não há tratamento específico para a reação inflamatória causada pela febre
reumática. Pacientes com cardite leve ou sem cardite habitualmente respondem bem aos
salicilatos, que são particularmente efetivos em aliviar a dor articular, geralmente dentro
de um período de 24 horas. Recomenda-se Ácido Acetilsalicílico 100mg/kg/dia
fracionado em duas a três vezes por dia durante um mês ou até haver diminuição da
atividade inflamatória, clínica e laboratorialmente.
Pacientes com pericardite ou insuficiência cardíaca congestiva respondem mais
prontamente aos corticoides do que aos salicilatos. Recomenda-se Prednisona 1-
2mg/kg/dia, que deve ser continuada por dois a três esses.
A prevenção primária de surtos de febre reumática depende do reconhecimento e
tratamento rápidos da faringoamigdalite. A Penicilina é o agente antimicrobiano de
escolha para o tratamento, exceto em pacientes com história de alergia a Penicilina,
podendo ser administrada por via intramuscular ou oral. A Penicilina G Benzatina
intramuscular é preferida, particularmente para pacientes que dificilmente completarão
dez dias de tratamento por via oral e para aqueles com história familiar de febre
reumática ou doença reumática crônica. A Eritromicina oral é aceitável para pacientes
alérgicos a Penicilina, devendo o tratamento ser prescrito por dez dias. Uma prescrição

Pedro Kallas Curiati 454


de Azitromicina com 500mg no primeiro dia e 250mg por mais quatro dias constitui
opção de segunda linha para pacientes com idade superior ou igual a dezesseis anos.
Pacientes que sofreram um surto prévio de febre reumática e desenvolveram
faringite estreptocócica estão em alto risco para um surto recorrente. A profilaxia
antibiótica contínua garante proteção mais efetiva contra recorrências. Pacientes com
história de cardite reumática devem receber profilaxia antibiótica por longo tempo,
talvez pela vida inteira. A duração da profilaxia é dependente da presença ou não de
sequela valvar e deve continuar mesmo após cirurgia, incluindo implante de próteses
valvares. Pacientes que tiveram febre reumática sem cardite têm risco
consideravelmente menor de acometimento cardíaco em caso de eventual recorrência e,
assim, a profilaxia pode ser cessada após alguns anos. Uma injeção de 1200000UI de
Penicilina G Benzatina a cada três semanas é o regime recomendado para a profilaxia
secundária. A Eritromicina é recomendada para pacientes alérgicos à Penicilina e a
sulfonamidas.
Categoria Duração da profilaxia
Febre reumática com cardite e sequela valvar Pelo menos até os quarenta anos de idade,
algumas vezes pela vida inteira
Febre reumática com cardite sem sequela valvar ou Dez anos ou até os vinte e cinco anos de idade, o
com sequela valvar mínima que for mais longo
Febre reumática sem cardite Cinco anos ou até os dezoito anos, o que for mais
longo

Bibliografia
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 455


DIABETES MELLITUS
Definição
O diabetes mellitus é uma síndrome de etiologia múltipla decorrente da secreção
deficiente de insulina e/ou da resistência à sua ação. Caracteriza-se por níveis de glicose
plasmática elevados e distúrbios do metabolismo de carboidratos, lipídeos e proteínas.

Classificação
Diabetes mellitus tipo 1 resulta de destruição das células β pancreáticas,
geralmente com deficiência absoluta de insulina e tendência para cetose. Pode ter causa
auto-imune ou idiopática.
Diabetes mellitus tipo 2 resulta de deficiência progressiva na secreção de
insulina em um contexto de resistência periférica à ação da insulina. É uma desordem
heterogênea e de etiologia complexa, resultante de influências genéticas e ambientais.
Diabetes mellitus gestacional é aquele diagnosticado durante a gravidez.
Outros tipos específicos de diabetes mellitus incluem defeitos genéticos na
função das células β pancreáticas, defeitos genéticos na ação da insulina, doenças do
pâncreas exócrino (fibrose cística), doenças endócrinas e iatrogenia.

Diagnóstico

Critérios diagnósticos
1. Hemoglobina glicosilada (HbA1c) superior ou igual a 6.5%. O teste deve ser
realizado com método certificado e padronizado.
2. Glicemia de jejum superior ou igual a 126mg/dL. Jejum é definido como
ausência de ingesta calórica por pelo menos oito horas.
3. Teste de tolerância a glicose oral com 75g com glicemia superior ou igual a
200mg/dL após duas horas. O teste deve ser realizado conforme preconiza a
Organização Mundial da Saúde.
4. Glicemia randômica superior ou igual a 200mg/dL em paciente com sintomas
clássicos de hiperglicemia.

Especificações
Na ausência de hiperglicemia inequívoca, os três primeiros critérios devem ser
confirmados com repetição do teste.
Em condições em que a meia-vida dos eritrócitos está alterada, como na
gestação e nas anemias hemolítica e ferropriva, o diagnóstico de diabetes mellitus deve
ser baseado apenas em valores de glicemia.
Em algumas situações, os resultados de dois testes diferentes podem estar
disponíveis para um determinado paciente. Se ambos estiverem acima dos limiares
diagnósticos, confirma-se o diabetes mellitus. Por outro lado, se os resultados forem
discordantes, o teste cujo resultado estiver acima do limiar diagnóstico deverá ser
repetido, confirmando-se o diabetes mellitus em caso de persistência.

Categorias de risco aumentado para diabetes mellitus


Glicemia de jejum de 100-125mg/dL, que configura glicemia de jejum alterada.
Teste de tolerância a glicose oral com 75g com glicemia de 140-199mg/dL após
duas horas, que caracteriza tolerância à glicose oral diminuída.

Pedro Kallas Curiati 456


HbA1c de 5.7-6.4%.

Rastreamento

Diabetes mellitus tipo 1


Geralmente, indivíduos com diabetes mellitus tipo 1 se apresentam com
sintomas agudos e glicemia elevada pouco após a instalação da hiperglicemia. No
entanto, a dosagem de auto-anticorpos contra as ilhotas pancreáticas pode ser apropriada
para o rastreamento em indivíduos de alto risco para diabetes mellitus tipo 1, como
aqueles com episódios prévios transitórios de hiperglicemia ou com antecedente da
doença em familiar de primeiro grau.

Diabetes mellitus tipo 2


1. Adultos com sobrepeso, caracterizado por índice de massa corpórea superior a
25kg/m2, associado a fatores de risco adicionais:
a. Sedentarismo;
b. Familiar de primeiro grau com diabetes mellitus;
c. População étnica de alto risco, como afro-americana, latina, americana
nativa, asiática e das ilhas do pacífico;
d. Diabetes mellitus gestacional ou filho macrossômico;
e. Hipertensão arterial sistêmica;
f. HDL inferior a 35mg/dL e/ou triglicérides acima de 250mg/dL;
g. Síndrome dos ovários policísticos;
h. Categorias de risco aumentado para diabetes mellitus em avaliação
prévia;
i. Outras condições clínicas relacionadas a resistência periférica à ação da
insulina, como obesidade severa e acantose nigricans;
j. Histórico de doença cardiovascular;
2. Na ausência dos critérios anteriores, o rastreamento deverá ser iniciado a partir
dos 45 anos de idade;
3. Glicemia de jejum, teste de tolerância a glicose oral com 75g e HbA1c são
adequados para o rastreamento;
4. Se os resultados forem normais, o (s) teste (s) deve (m) ser repetido (s) com
intervalo de no máximo três anos, levando em consideração o (s) resultado (s)
inicial (is) e o risco;
5. Nos indivíduos identificados como pertencentes a categorias de risco aumentado
para diabetes mellitus, deve-se identificar e, se apropriado, tratar os outros
fatores de risco cardiovascular;

Diabetes mellitus gestacional


O rastreamento de diabetes mellitus gestacional é baseado em fatores de risco e,
quando apropriado, teste de tolerância a glicose oral.
Mulheres com diabetes mellitus gestacional devem ser rastreadas para diabetes
mellitus seis a doze semanas após o parto.

Prevenção
Pacientes com tolerância à glicose diminuída, glicemia de jejum alterada ou
HbA1c de 5.7-6.4% devem ser encaminhados para programa de suporte à perda de peso,
tendo como meta redução de 5-10%, e à prática de atividade física, tendo como meta
pelo menos 150 minutos por semana de atividade aeróbia de intensidade moderada.

Pedro Kallas Curiati 457


Metformina pode ser considerada naqueles com risco elevado de desenvolver
diabetes mellitus, com tolerância à glicose diminuída e glicemia de jejum alterada
acompanhadas de pelo menos um dentre HbA1c superior a 6%, hipertensão arterial
sistêmica, HDL baixo, triglicérides elevados e histórico familiar em parente de primeiro
grau, além de obesidade e idade inferior a 60 anos.
Preconiza-se monitorização anual do desenvolvimento de diabetes mellitus em
indivíduos em categorias de risco aumentado.

Avaliação
Anamnese clínica:
- Idade e características da instalação do diabetes mellitus;
- Educação prévia sobre a doença;
- Esquemas de tratamento prévios e resposta;
- Tratamento atual do diabetes, incluindo medicamentos, orientações
dietéticas, padrão de atividade física, resultado de monitoramento
glicêmico e forma como o paciente usa estes dados;
- Frequência, severidade e causa dos episódios de cetoacidose diabética;
- Frequência, severidade, causa e percepção dos sintomas dos episódios
de hipoglicemia;
- Histórico de complicações microvasculares relacionadas ao diabetes
mellitus, como retinopatia, nefropatia e neuropatia, e macrovasculares,
como doença arterial coronária, doença cerebrovascular e doença arterial
periférica;
- Problemas psicossociais e afecções dentárias;
Exame físico:
- Peso, altura, índice de massa corpórea e pressão arterial com o paciente
deitado, sentado e de pé;
- Fundoscopia, palpação da glândula tireóide e exame da pele para
identificação de acantose nigricans e sítios de aplicação da insulina;
-Exame do pé diabético, com inspeção, palpação dos pulsos pedioso e
tibial posterior, avaliação dos reflexos aquileu e patelar e determinação
da sensibilidade proprioceptiva, palestésica (diapasão de 128Hz) e tátil
(monofilamento de 10g);
Exames laboratoriais:
- HbA1c a cada três meses;
- Perfil lipídico com colesterol total, LDL, HDL e triglicérides
anualmente;
- Testes de função hepática anualmente;
- Albumina urinária e relação entre albumina e creatinina urinárias
anualmente;
- Creatinina sérica e taxa de filtração glomerular estimada anualmente;
- TSH anualmente se diabetes mellitus tipo 1, dislipidemia ou sexo
feminino e idade superior a 50 anos;
- Transglutaminase tecidual, anticorpos anti-endomísio e documentação
de níveis normais de IgA se diabetes mellitus tipo 1, logo após o
diagnóstico, com repetição em caso de déficit de crescimento, baixo
ganho ponderal, perda de peso ou sintomas gastrointestinais;
O diagnóstico etiológico do diabetes mellitus tipo 1 pode ser determinado pela
presença dos anticorpos antipancreáticos. Os marcadores humorais mais frequentes da
agressão imune são o anticorpo anti-insulina (IAA), o anticorpo anti-ilhotas de

Pedro Kallas Curiati 458


Langerhans citoplasmático (ICA), o anticorpo anti-enzima descarboxilase do ácido
glutâmico 65 (anti-GAD65) e o anticorpo antiproteína de membrana com homologia às
tirosino-fosfatases (anti-IA2). Eventualmente, a avaliação da capacidade secretória da
ilhota pode ser feita pela medida dos valores de peptídeo C, com valores de jejum
inferiores a 0.7ng/mL na vigência de glicemias de 100-200mg/dL sendo sugestivos de
grande deficiência de insulina, compatível com o diagnóstico de diabetes mellitus do
tipo 1.
Encaminhamentos:
- Exame oftalmológico anual;
- Planejamento familiar para mulheres em idade reprodutiva;
- Educação sobre autocuidados em diabetes mellitus;
- Exame odontológico;
- Profissional de saúde mental, se indicado;

Controle glicêmico
Existem duas técnicas principais para avaliar a efetividade do plano de manejo
do paciente diabético, o auto-monitoramento da glicose sanguínea ou intersticial e a
dosagem de HbA1c.
Auto-monitoramento da glicose sanguínea:
- Deve ser realizado três ou mais vezes ao dia em pacientes que utilizam
múltiplas doses diárias de Insulina ou sistema de infusão contínua de
Insulina;
- Em pacientes com uso menos frequente de doses de Insulina, terapias
hipoglicemiantes sem doses de Insulina ou tratamento nutricional
isolado, pode ser um guia útil do sucesso do tratamento;
- Medidas pós-prandiais podem ser suficientes para atingir metas de
glicose sanguínea pós-prandial;
- Deve-se garantir que os pacientes recebam instrução inicial e avaliação
continuada da técnica de monitoramento e do uso dos dados obtidos para
ajustar o tratamento, a dieta e a prática de atividade física;
- Pode ser uma ferramenta suplementar em pacientes com baixa
percepção dos sintomas de hipoglicemia e/ou episódios frequentes de
hipoglicemia;
Dosagem de HbA1c:
- Deve ser realizada pelo menos duas vezes ao ano em pacientes que
estão atingindo as metas do tratamento e que têm controle glicêmico
estável;
- Deve ser realizada quatro vezes ao ano em pacientes cujo tratamento
mudou ou que não estão atingindo as metas do tratamento;
Dosagem de frutosamina:
- Reflete o controle glicêmico nas últimas duas a três semanas;
- Indicada em caso de discrepância entre hemoglobina glicada e auto-
monitorização glicêmica, hemoglobinopatias ou alterações na meia-vida
dos eritrócitos e necessidade de avaliação mais rápida do controle
glicêmico após mudança no esquema terapêutico;
- Avaliação prejudicada em caso de hipoalbuminemia;
Metas do tratamento:
- Hb1Ac inferior a 7.0%, que é a principal meta do controle glicêmico;
- Glicose capilar pré-prandial de 70-130mg/dL;
- Pico de glicose capilar pós-prandial, uma a duas horas após a refeição,

Pedro Kallas Curiati 459


inferior a 180mg/dL;
A Disciplina de Endocrinologia do HC-FMUSP preconiza glicose capilar de
jejum de 70-110mg/dL e glicose capilar pós-prandial de 70-140mg/dL.
As metas do tratamento devem ser individualizadas com base em duração do
diabetes mellitus, idade, expectativa de vida, comorbidades, doença cardiovascular
conhecida, complicações microvasculares, percepção dos sintomas de hipoglicemia e
considerações individuais do paciente. Em indivíduos com curta duração do diabetes
mellitus, expectativa de vida alta e ausência de doença cardiovascular, pode-se optar por
metas mais próximas do normal para Hb1Ac. Por outro lado, em indivíduos com
antecedente de hipoglicemia severa, expectativa de vida baixa, complicações
microvasculares e macrovasculares avançadas, comorbidades, longa duração do
diabetes mellitus e dificuldade para atingir as metas usuais, pode-se optar por metas
menos rígidas.
As medidas de glicose sanguínea que são inicialmente o alvo do tratamento no
dia-a-dia são as de jejum e as pré-prandiais. Se a HbA1c persistir acima das metas do
tratamento, as medidas de glicose sanguínea pós-prandiais devem ser abordadas.
Indivíduos com diabetes mellitus internados no hospital e criticamente doentes
devem ter a terapia com Insulina em bomba de infusão iniciada com níveis de glicose
capilar de até 180mg/dL e direcionada para meta geralmente aceita de 140-180mg/dL de
glicose capilar. Em indivíduos não críticos tratados com Insulina subcutânea, a meta de
glicose capilar pré-prandial deve ser inferior a 140mg/dL, com glicose capilar
randômica inferior a 180mg/dL. Monitorização glicêmica e um plano para o tratamento
da hipoglicemia, caracterizada por glicose capilar inferior a 70mg/dL, devem ser
estabelecidos para cada paciente.

Abordagem terapêutica

Abordagem do paciente com diabetes mellitus tipo 1


Uso de múltiplas doses injetáveis de Insulina, com três a quatro injeções por dia
de Insulina basal e prandial, ou de sistema de infusão contínua de Insulina.
Ajuste da Insulina prandial à ingesta de carboidratos, à medida de glicose capilar
pré-prandial e à atividade física antecipada.
Rastreamento de disfunção tireoidiana, deficiência de vitamina B12 e doença
celíaca deve ser considerado com base em sinais e sintomas.

Abordagem do paciente com diabetes mellitus tipo 2


Intervenção no momento do diagnóstico com Metformina e mudanças de estilo
de vida, com tratamento nutricional e prática de atividade física.
Aumento gradual do tratamento com agentes adicionais, incluindo o início
precoce de terapia com Insulina, com o objetivo de atingir e manter os níveis
recomendados de controle glicêmico.
O início de terapia com Insulina no momento do diagnóstico é recomendado
para indivíduos com perda de peso ou outros sintomas e sinais de hiperglicemia severa.

Tratamento nutricional
Indivíduos de categorias de risco aumentado para diabetes mellitus ou com
diabetes mellitus devem receber tratamento nutricional para atingir as metas do
tratamento.
Em indivíduos com sobrepeso ou obesidade, perda de peso modesta reduz a
resistência periférica à ação da insulina. Tanto dietas com baixo teor de carboidratos

Pedro Kallas Curiati 460


como dietas com baixo teor de gorduras podem ser efetivas em curto prazo. Pacientes
em uso de dietas com baixo teor de carboidratos devem ser monitorizados quanto a
perfil lipídico, função renal e, em caso de nefropatia, ingesta proteica. Atividade física e
medidas comportamentais são componentes importantes de programas para perda de
peso e são fundamentais para a manutenção dos resultados alcançados.
Entre os indivíduos de alto risco para diabetes mellitus tipo 2, programas
estruturados com ênfase em mudanças de estilo de vida podem reduzir o risco de
desenvolver a doença e, portanto, são recomendados. De maneira geral, incluem perda
de peso moderada, de 7% do peso corpóreo, atividade física regular, de 150 minutos por
semana, e estratégias dietéticas, como diminuição da ingesta calórica e de gorduras. Os
indivíduos também devem ser encorajados a ingerir fibras alimentares, com 14g para
cada 1000kcal, e alimentos contendo grãos integrais, que devem corresponder a metade
da ingesta de grãos.
Gorduras saturadas devem corresponder a menos de 7% do total de calorias da
dieta. A redução da ingesta de gordura trans diminui o LDL e aumenta o HDL.
O monitoramento da ingesta de carboidratos faz parte da estratégia para que seja
atingido controle glicêmico adequado. Açúcares alcoólicos, como Stevia, e adoçantes
não-nutritivos, como Aspartame e Sucralose, são seguros quando consumidos dentro de
níveis diários aceitáveis. Adultos diabéticos devem limitar a ingesta de álcool a uma
quantidade moderada, que corresponde a uma dose diária para mulheres e a duas doses
diárias para homens.

Cirurgia bariátrica
Cirurgia bariátrica deve ser considerada para adultos com índice de massa
corpórea superior a 35kg/m2 e diabetes mellitus tipo 2, especialmente se esta doença ou
outras comorbidades são de difícil controle com mudanças de estilo de vida e terapia
farmacológica.
Indivíduos com diabetes mellitus tipo 2 que foram submetidos a cirurgia
bariátrica demandam monitoramento médico e suporte para as mudanças de estilo de
vida a longo prazo.

Educação sobre autocuidados em diabetes mellitus


Indivíduos com diabetes mellitus devem receber orientações sobre autocuidados
no momento do diagnóstico e conforme a necessidade a partir de então. Os principais
objetivos são oferecer informações que suportem à tomada de decisões, ensinar
comportamentos de autocuidado, orientar a solução de problemas e estimular a
colaboração ativa com a equipe de atenção à saúde. Devem ser abordados fatores
psicossociais, uma vez que o bem estar emocional está relacionado a melhor
prognóstico.

Atividade física
Indivíduos com diabetes mellitus devem ser orientados a praticar pelo menos
150 minutos por semana de atividade física aeróbia de moderada intensidade. Na
ausência de contraindicações, também é recomendada a prática de exercícios
isométricos três vezes por semana.
Em indivíduos em uso de Insulina ou de drogas que estimulam sua secreção,
recomenda-se a ingesta adicional de carboidratos se a glicose prévia à prática de
atividade física for inferior a 100mg/dL.
Na presença de retinopatia proliferativa ou de retinopatia não-proliferativa
severa, atividade física aeróbia ou isométrica vigorosa pode ser contraindicada pelo

Pedro Kallas Curiati 461


risco de desencadear hemorragia vítrea ou descolamento de retina.
Indivíduos com neuropatia periférica devem ser orientados a usar calçados
adequados e a examinar os pés diariamente em busca de lesões, que, quando presentes,
apontam para a necessidade de restringir a prática de atividade física a modalidades sem
carga.
Indivíduos com neuropatia autonômica devem ser submetidos a avaliação
cardiológica antes de iniciar atividade física mais intensa do que a praticada
habitualmente.

Avaliação e assistência psicossocial


Avaliação da situação psicológica e social deve fazer parte do manejo do
paciente com diabetes mellitus. Inclui impressões em relação a doença, expectativas
relacionadas à assistência médica e ao prognóstico, afeto e humor, qualidade de vida,
histórico psiquiátrico e recursos financeiros, sociais e emocionais.
Em caso de prática inadequada de autocuidados por parte do paciente com
diabetes mellitus, deve-se rastrear problemas psicossociais como depressão, desconforto
relacionado à doença, ansiedade, distúrbios alimentares e déficit cognitivo.

Hipoglicemia
Em indivíduos conscientes com hipoglicemia, 15-20g de glicose é o tratamento
preferencial, apesar de qualquer forma de carboidrato que contenha glicose pode ser
usada. 15g de carboidrato corresponde a uma colher de sopa rasa de açúcar, três balas
de caramelo, 150mL de suco de laranja, 150mL de refrigerante comum ou 1 sachê de
açúcar líquido. Se o auto-monitoramento da glicose sanguínea quinze minutos após o
tratamento revelar persistência da hipoglicemia, o tratamento deve ser repetido. Após a
glicose sanguínea retornar para o normal, os indivíduos deverão consumir uma refeição
ou um lanche para prevenir recorrências.
Glucagon deve ser prescrito para todos os indivíduos com risco significativo de
hipoglicemia severa e os familiares e cuidadores devem ser instruídos quanto à técnica
de aplicação.
Em caso de má-percepção dos sintomas de hipoglicemia ou um ou mais
episódios de hipoglicemia grave, deve-se flexibilizar as metas do tratamento por pelo
menos algumas semanas para reverter parcialmente a má-percepção e para diminuir o
risco de novos episódios no futuro.

Imunização
Todos os pacientes diabéticos com idade superior ou igual a seis meses devem
receber anualmente vacina contra influenza.
Todos os pacientes diabéticos com idade superior ou igual a dois anos devem
receber vacina pneumocócica polissacarídica. Revacinação única é recomendada para
indivíduos com idade superior a 64 anos previamente imunizados quando tinham idade
inferior a 65 anos se a dose foi administrada há mais de cinco anos. Outras indicações
para repetição da dose incluem síndrome nefrótica, doença renal crônica e outras causas
de imunodepressão, como transplante de órgãos.

Hipoglicemiantes orais
A preferência é pela associação de drogas de mecanismos de ação diferentes.
Metformina e tiazolidinedionas podem ser associadas entre si pois têm efeito sinérgico.

Biguanidas

Pedro Kallas Curiati 462


O principal efeito da Metformina é reduzir a produção hepática de glicose e a
glicemia de jejum. Também diminui a absorção intestinal de glicose e o apetite e
aumenta a captação de glicose no músculo e no tecido adiposo. Tipicamente, essa
medicação reduz os níveis de HbA1c em 1.5 pontos percentuais. Também é útil na
prevenção do diabetes mellitus tipo 2 e no tratamento da síndrome dos ovários
policísticos.
A Metformina não é metabolizada, sendo excretada na urina. Geralmente, é bem
tolerada e em monoterapia não é acompanhada por hipoglicemia. Os principais efeitos
adversos são gastrointestinais, como diarreia, náusea, anorexia e desconforto abdominal,
com interferência na absorção de vitamina B12, mas raramente essa droga é associada a
anemia. Está relacionada a estabilidade do peso ou emagrecimento modesto.
Deve-se evitar o uso em etilistas, idosos e pacientes com insuficiência renal,
insuficiência hepática, insuficiência cardíaca e doença pulmonar. Disfunção renal é
considerada uma contraindicação ao uso da Metformina, mas estudos recentes sugerem
que há segurança, exceto se a taxa de filtração glomerular for inferior a 30mL/minuto,
recomendando-se não ultrapassar metade da dose máxima diária se filtração glomerular
de 30-59mL/minuto. A Metformina deve ser suspensa antes de procedimentos
cirúrgicos ou do uso de contrastes iodados e reiniciada dois dias após se a creatinina
sérica estiver normal.
Deve-se iniciar o tratamento com um comprimido de 500mg uma a duas vezes
por dia junto com o café da manhã e/ou o jantar ou um comprimido de 850mg uma vez
por dia. Após 5-7 dias, na ausência de efeitos colaterais gastrointestinais, deve-se
aumentar a dose para um comprimido de 850mg ou dois comprimidos de 500mg duas
vezes ao dia. Em caso de efeitos colaterais gastrointestinais, deve-se diminuir o uso da
medicação para a dose anterior e tentar aumentar novamente no futuro.
Fármaco Dose Fracionamento
Metformina 500-2000mg/dia Uma a três vezes ao dia logo após as refeições

Sulfoniluréias
As sulfoniluréias aumentam a secreção de insulina. Em termos de efetividade,
são semelhantes à Metformina, com redução dos níveis de HbA1c em aproximadamente
1.5 pontos percentuais.
A metabolização das sulfoniluréias é hepática, exceto a Clorpropamida, em que
a excreção é renal. O principal efeito adverso é a hipoglicemia, que pode ser prolongada
e ameaçadora à vida. Quadros severos são mais frequentes na população idosa.
Clorpropamida e Glibenclamida são associadas a risco substancialmente maior de
hipoglicemia do que as sulfoniluréias de segunda geração, como Glicazida, Glimepirida
e Glipizida, que são as drogas preferidas. Além disso, ganho de peso, aproximadamente
ao redor de 2kg, é comum após o início da terapia.
As principais contraindicações são gravidez, lactação, insuficiência hepática e
insuficiência renal. A Clorpropamida também é contraindicada na insuficiência
cardíaca, podendo causar retenção hídrica.
Fármaco Dose Fracionamento
Clorpropamida 125-500mg/dia Uma vez ao dia
Glibenclamida 2.5-20mg/dia Uma a duas vezes ao dia
Glipizida 2.5-20mg/dia Uma a três vezes ao dia
Glicazida 40-320mg/dia Uma a três vezes ao dia
Glicazida MR 30-120mg/dia Uma vez ao dia
Glimepirida 1-8mg/dia Uma a duas vezes ao dia

Glinidas

Pedro Kallas Curiati 463


Estimulam a secreção aguda e rápida de insulina, melhoram o pico de
insulinemia pós-prandial e controlam os picos de hiperglicemia pós-prandial, com
pouco efeito na glicemia de jejum. Apresentam meia-vida mais curta que as
sulfoniluréias e, por esse motivo, devem ser administradas com maior frequência.
Dentre as drogas disponíveis, a Repaglinida é quase tão efetiva quanto a
Metformina e as sulfoniluréias, com redução dos níveis de HbA1c em aproximadamente
1.5 pontos percentuais. Já a Nateglinida é menos efetiva quando usada em monoterapia.
Ambas devem ser administradas de um a trinta minutos antes das três principais
refeições. Se o paciente não se alimentar, não deverá tomar o medicamento.
A metabolização é hepática e a excreção ocorre por via renal, no caso da
Nateglinida, ou pela bile, no caso da Repaglinida. O risco de ganho de peso é
semelhante ao das sulfoniluréias, mas a hipoglicemia pode ser menos frequente. As
glinidas são particularmente seguras em idosos e portadores de hepatopatia e nefropatia
de leve a moderada gravidade. A Nateglinida não tem interação com nenhum
medicamento.
Há contraindicação durante gravidez e lactação.
Fármaco Dose Fracionamento
Repaglinida 0.5-16mg/dia Três vezes ao dia antes das refeições
Nateglinida 120-360mg/dia Três vezes ao dia antes das refeições

Inibidores da α-glicosidase
Os inibidores da α-glicosidase reduzem a digestão de polissacarídeos no
intestino delgado proximal, com redução da glicemia pós-prandial sem causar
hipoglicemia. Melhoram a função das células beta e a resistência à insulina e reduzem a
progressão de intolerantes a glicose para diabetes mellitus tipo 2. São menos efetivos
em reduzir a HbA1c, com aproximadamente 0.5-0.8 pontos percentuais.
Devem ser administrados antes das refeições e não agem em jejum. Má-absorção
e perda de peso não ocorrem, mas comumente há flatulência e sintomas
gastrointestinais, como diarreia, cólica e distensão abdominal. Em caso de hipoglicemia
secundária à associação com secretagogo de insulina, recomenda-se a ingesta de
glicose, frutose e lactose, mas não de sacarose.
A degradação é intestinal pelas amilases do intestino delgado e pelas bactérias.
Pequena fração dos produtos de degradação é absorvida e eliminada na urina.
As contraindicações incluem doenças intestinais, insuficiência renal,
insuficiência hepática e lactação.
Fármaco Dose Fracionamento
Acarbose 50-300mg/dia Três vezes ao dia antes das refeições

Tiazolidinedionas ou glitazonas
As tiazolidinedionas ou glitazonas aumentam a sensibilidade dos tecidos
muscular, adiposo e hepático à insulina endógena e exógena, com redução dos níveis de
HbA1c em aproximadamente 0.5-1.4 pontos percentuais. O efeito pleno ocorre após
quatro a seis meses de uso.
Os principais efeitos adversos são o ganho de peso e a retenção de fluidos, com
edema periférico, anemia dilucional e aumento do risco de insuficiência cardíaca. Efeito
sobre perfil lipídico é vantagem.
As opções disponíveis incluem a Pioglitazona e a Rosiglitazona, atualmente não
recomendada em função de potencial risco cardiovascular associado. A metabolização é
hepática e a excreção é renal no caso da Rosiglitazona e hepática no caso da
Pioglitazona.

Pedro Kallas Curiati 464


As contraindicações incluem insuficiência cardíaca classe funcional III ou IV,
insuficiência hepática e lactação.
Fármaco Dose Fracionamento
Pioglitazona 15-45mg/dia Uma vez ao dia

Análogos de incretinas intestinais


Retardam o esvaziamento gástrico, estimulam a secreção de insulina e inibem a
secreção de glucagon, melhorando o controle da glicemia pós-prandial e a saciedade.
Como a secreção de insulina depende da glicemia, esses agentes raramente causam
hipoglicemia.
Reduzem os níveis de HbA1c em 0.5-1.2% e auxiliam na perda de peso
corpóreo. Podem ser utilizados em monoterapia ou associados a Insulina ou
hipoglicemiantes orais, cuja dose deve ser diminuída.
Fármaco Dose Via
Exenatide 5-10mcg duas vezes ao dia Subcutânea
Liraglutide 0.76mg uma vez ao dia Subcutânea
Vildagliptina 50mg uma a duas vezes ao dia Oral
Sitagliptina 50-100mg uma vez ao dia, 25mg/dia se insuficiência renal Oral
Pranlintide 60-120mcg quinze minutos antes das refeições Subcutânea

Insulina

Insulinização
A Insulina é o tratamento mais antigo disponível, aquele com maior experiência
clínica e também o mais efetivo em reduzir a glicemia. Quando utilizada em doses
adequadas, pode reduzir os níveis de HbA1c para a meta terapêutica ou para valores
próximos desta.
Diferentemente das outras classes de medicamentos, não há dose máxima de
Insulina a partir da qual deixa de haver incremento do efeito terapêutico. Doses
relativamente altas comparadas àquelas utilizadas no diabetes mellitus tipo 1 podem ser
necessárias para superar a resistência periférica à ação da Insulina no diabetes mellitus
tipo 2.

Pedro Kallas Curiati 465


Apesar de a terapia inicial ser destinada a aumentar a oferta de Insulina basal,
geralmente com formas de ação intermediária ou prolongada, pode ser necessário o uso
de administração prandial com formas de ação rápida ou ultra-rápida.
A terapia com Insulina tem efeitos benéficos sobre os níveis de triglicérides e
HDL, especialmente em pacientes com controle glicêmico ruim, mas está associada a
ganho ponderal ao redor de 2-4kg e hipoglicemia, mais frequente em indivíduos com
diabetes mellitus tipo 1. Indicações ao diagnóstico incluem glicemia superior a
270mg/dL, emagrecimento, cetonúria e cetonemia. Indicações ao longo do tratamento
incluem falência de hipoglicemiantes orais, gestação, cirurgias, doenças graves, estado
hiperosmolar hiperglicêmico, insuficiência hepática e insuficiência renal.
Quando a terapia com Insulina exógena é iniciada, o uso de drogas que
estimulam a sua secreção endógena deve ser descontinuado.

Pedro Kallas Curiati 466


A segunda dose de Insulina NPH é indicada quando a glicemia de jejum é
normal e pelo menos uma das glicemias pré-prandiais é superior a 130mg/dL ou quando
a dose de Insulina NPH administrada antes de dormir é superior a 0.5U/kg. Pode-se
fracionar a dose total em partes iguais, com dois terços pela manhã e um terço ao deitar
ou conforme o perfil da automonitorização.
Aferições seriadas da hemoglobina glicada e monitorização domiciliar da
glicemia permitem refinar o controle. As averiguações da glicose capilar em casa pré-
prandiais e uma a duas horas após as refeições, ao deitar e às três horas da madrugada
auxiliam o acerto da dose, previnem as hipoglicemias e melhoram o sentimento de
controle sobre a doença. Após o controle glicêmico adequado, deve-se manter auto-
monitoramento em jejum e uma a duas horas após as refeições, uma a duas vezes por
semana.

Esquema basal-bolus
Simulação do padrão fisiológico de secreção de Insulina pelo pâncreas.
Reposição de Insulina basal com NPH, Glargina ou Detemir visa inibir a produção
hepática de glicose e controlar a glicemia de jejum e entre as refeições. Reposição de
Insulina prandial com Regular, Lispro, Aspart ou Glulisina controla a glicemia durante
o período absortivo. A secreção de insulina prandial pode ser mais bem reproduzida
com Insulina Regular administrada trinta a sessenta minutos antes das refeições
principais ou com Insulina ultra-rápida administrada imediatamente antes das refeições.
A Insulina NPH é administrada duas a quatro vezes ao dia e o seu ajuste deve ser
feito de acordo com a glicemia antes da próxima refeição. Recomenda-se que a última
dose de Insulina NPH do dia seja administrada antes de dormir, aproximadamente oito
horas antes de o paciente acordar. A utilização de doses de NPH antes do jantar pode
provocar hipoglicemia noturna e concentrações reduzidas de Insulina no período do
amanhecer.
A Insulina Detemir pode ser utilizada uma ou duas vezes ao dia. Caso sejam
utilizadas duas doses, a primeira pode ser administrada antes do desjejum e a segunda
antes do jantar ou ao dormir.
Ao substituir a Insulina NPH pela Insulina Glargina, deve-se reduzir a dose
diária em 10-30% e utilizar inicialmente uma aplicação diária. A frequência de
hipoglicemia é menor com a administração pela manhã. Um percentual ainda não
determinado de portadores de diabetes mellitus tipo 1 necessita de duas doses diárias de
Insulina Glargina.
Tipo de Insulina Início de ação Pico de ação Duração da ação
Ultra-rápida Lispro 5-10’ 0.5-1.5 horas 4-6 horas
Aspart 5-10’ 0.5-1.5 horas 4-6 horas
Glulisina 5-10’ 0.5-1.5 horas 4-6 horas
Rápida Regular 0.5-1.0 horas 2-3 horas 4-8 horas
Intermediária NPH 2-4 horas 4-10 horas 10-16 horas
Plana Glargina 2 horas Não tem 24 horas
Detemir 2 horas 6 horas (discreto) 12-24 horas
A dose total diária de Insulina deve ser de 0.4-0.8U/kg/dia, dividida em 50%
basal e 50% prandial. A Insulina prandial é composta por parcela para a refeição,
calculada através de contagem de carboidratos ou em dose fixa, e por parcela para
correção, calculada através de algoritmo ou fórmula.
1U de Insulina é suficiente para 10-20g (15g) de carboidratos. Pode-se utilizar a
fórmula 500 / dose total diária de Insulina para identificar a relação Insulina :
carboidratos. Para o cálculo do bolus, divide-se a contagem de carboidratos pela relação
Insulina : carboidratos.

Pedro Kallas Curiati 467


Correção é dose de Insulina indicada quando os valores de glicemia pré-
prandiais estão fora do alvo ou da meta glicêmica de 70-130mg/dL (100mg/dL). A
sensibilidade do paciente à Insulina é expressa pelo fator de correção ou fator de
sensibilidade à Insulina, que expressa o quanto 1U de Insulina Rápida ou Ultra-räpida
diminui a glicemia em mg/dL, variando de 30mg/dL a 100mg/dL (50mg/dL). Pode-se
utilizar a fórmula 1500 / dose total diária de Insulina para identificar o fator de correção
ou fator de sensibilidade à Insulina. O limite superior da glicemia, a partir do qual será
administrada a parcela para correção, é calculado com a soma do alvo glicêmico com o
fator de correção. Para o cálculo do bolus, divide-se a diferença da glicemia atual em
relação ao alvo glicêmico pelo fator de correção.
Os portadores de diabetes mellitus que realizam exercícios físicos de intensidade
moderada no período pós-prandial devem reduzir a dose de Insulina prandial em 50-
75% para evitar hipoglicemias. Os portadores de diabetes mellitus que realizam
exercícios físicos de intensidade moderada no período pós-absortivo, quatro a seis horas
após a última refeição, devem ingerir 15-20g de carboidrato antes do início.
Recomenda-se ao portador de diabetes mellitus em insulinização intensiva a
medida da glicemia capilar antes das três refeições principais diariamente e duas horas
após as refeições, ao deitar e durante a madrugada uma vez por semana.

Prevenção

Hipertensão arterial sistêmica


A pressão arterial deve ser aferida de maneira rotineira em todas as consultas.
Valores de pressão arterial sistólica superiores ou iguais a 130mmHg ou de pressão
arterial diastólica superiores ou iguais a 80mmHg devem ser confirmados com nova
aferição em um outro dia. Em caso de persistência, confirma-se o diagnóstico de
hipertensão arterial sistêmica. Os objetivos do tratamento são pressão arterial sistólica
inferior a 130mmHg e pressão arterial diastólica inferior a 80mmHg.
Pacientes com pressão arterial sistólica de 130-139mmHg ou pressão arterial
diastólica de 80-89mmHg podem receber tratamento com mudanças de estilo de vida
isoladamente por no máximo três meses. Se os objetivos do tratamento não forem
atingidos, deverão ser adicionados agentes farmacológicos.
Pacientes com pressão arterial sistólica superior ou igual a 140mmHg ou pressão
arterial diastólica superior ou igual a 90mmHg no momento do diagnóstico ou durante o
acompanhamento devem receber tratamento farmacológico em adição ao tratamento
com mudanças de estilo de vida.
Mudanças de estilo de vida para o tratamento da hipertensão arterial sistêmica
incluem perda de peso em caso de sobrepeso, redução da ingesta de sódio, aumento da
ingesta de potássio através de frutas e vegetais, controle da ingesta de álcool e aumento
da prática de atividade física.
O tratamento farmacológico de pacientes com diabetes mellitus e hipertensão
arterial sistêmica deve incluir um inibidor da enzima conversora da angiotensina ou um
antagonista do receptor da angiotensina II. Se necessário para atingir os objetivos do
tratamento, um diurético tiazídico deve ser adicionado para os pacientes com taxa de
filtração glomerular estimada superior ou igual a 30mL/minuto/1.73m2 e um diurético
de alça deve ser adicionado para os pacientes com taxa de filtração glomerular estimada
inferior a 30mL/minuto/1.73m2. A função renal e o nível sérico do potássio devem ser
monitorizados.

Dislipidemia

Pedro Kallas Curiati 468


A maior parte dos indivíduos adultos com diabetes mellitus deve ser avaliada
anualmente com perfil lipídico. Em caso de valores de baixo risco, com LDL inferior a
100mg/dL, HDL superior a 50mg/dL e triglicérides inferiores a 150mg/dL, os exames
podem ser repetidos a cada dois anos.
Para melhorar o perfil lipídico em pacientes com diabetes mellitus, devem ser
recomendadas mudanças de estilo de vida direcionadas para diminuição da ingesta de
gordura saturada, gordura trans e colesterol, aumento da ingesta de ômega 3, fibras
solúveis e esteróis e estanóis vegetais, perda de peso, quando indicada, e aumento da
prática de atividade física.
Terapia com estatinas deve ser adicionada às mudanças de estilo de vida,
independentemente do perfil lipídico, em pacientes diabéticos com doença
cardiovascular ou com idade superior a quarenta anos e um ou mais fatores de risco para
doença cardiovascular além da disglicemia. Em pacientes sem doença cardiovascular,
com idade inferior a quarenta anos ou com idade superior a quarenta anos sem fatores
de risco adicionais para doença cardiovascular, terapia com estatinas deve ser
considerada juntamente com mudanças de estilo de vida se o LDL persistir superior a
100mg/dL. Em caso de múltiplos fatores de risco cardiovascular, mesmo com idade
inferior a quarenta anos, indica-se a terapia com estatinas.
Em indivíduos sem doença cardiovascular, a principal meta é LDL inferior a
100mg/dL. Em indivíduos com doença cardiovascular, níveis mais baixos, inferiores a
70mg/dL, atingidos através do uso de altas doses de estatinas, constituem opção para a
meta do tratamento. Se os pacientes tratados com medicamentos não atingirem os
valores estipulados para o LDL com a dose máxima tolerada, uma redução de 30-40%
em relação ao basal é uma meta alternativa.
Triglicérides inferiores a 150mg/dL e HDL superior a 40mg/dL em homens e
50mg/dL em mulheres são valores desejáveis, mas a terapia guiada por metas de LDL
permanece a estratégia preferida. Niacina é a droga mais efetiva em aumentar o HDL.
Se as metas do tratamento não forem atingidas com a dose máxima tolerada de
estatinas, terapia combinada com outros agentes hipolipemiantes pode ser considerada,
mas não foi avaliada até o momento quanto a melhora do prognóstico cardiovascular e
quanto a segurança. Niacina, Fenofibrato, Ezetimibe e fármacos sequestradores de
ácidos biliares, como a Colestiramina, proporcionam redução adicional do LDL em
relação ao uso isolado de terapia com estatinas. A terapia combinada de estatina com
Niacina ou com fibratos pode ser eficaz no tratamento das três frações lipídicas, mas há
risco aumentado de elevação anormal nos níveis de transaminases, miosite e
rabdomiólise.
Terapia com estatinas é contraindicada durante a gestação.
Em indivíduos que provavelmente têm partículas pequenas de LDL, como os
diabéticos, sugere-se a dosagem de apolipoproteína B e tratamento com meta de valores
inferiores a 90mg/dL em indivíduos sem doença cardiovascular e inferiores a 70mg/dL
em indivíduos com doença cardiovascular.

Agentes anti-plaquetários
Deve-se considerar o uso de Ácido Acetilsalicílico na dose de 75-162mg/dia,
como estratégia de prevenção primária, em indivíduos com diabetes mellitus tipos 1 ou
2 e risco cardiovascular aumentado, superior a 10% em dez anos. Essa faixa de risco
inclui a maior parte dos homens com idade superior a cinquenta anos e das mulheres
com idade superior a sessenta anos que tenham pelo menos um fator maior de risco
cardiovascular adicional, como antecedente familiar de doença cardiovascular,
hipertensão arterial sistêmica, tabagismo, dislipidemia e albuminúria. Não há evidência

Pedro Kallas Curiati 469


suficiente para recomendar o uso de Ácido Acetilsalicílico em indivíduos com diabetes
mellitus tipos 1 ou 2 sem risco cardiovascular aumentado e o julgamento clínico deve
prevalecer em caso de risco cardiovascular intermediário. A medicação é contraindicada
em indivíduos com idade inferior a 21 anos em função do risco de síndrome de Reye.
Deve-se usar Ácido Acetilsalicílico na dose de 75-162mg/dia, como estratégia
de prevenção secundária, em indivíduos com diabetes mellitus e história de doença
cardiovascular. Em caso de alergia documentada ao Ácido Acetilsalicílico, Clopidogrel
deve ser usado.
A combinação de Ácido Acetilsalicílico 75-162mg/dia com Clopidogrel
75mg/dia é razoável por até um ano após episódio de síndrome coronariana aguda.

Tabagismo
Todos os pacientes devem ser aconselhados a cessar o tabagismo.
O aconselhamento sobre cessar o tabagismo e outras formas de tratamento
devem ser incluídos na rotina de cuidados ao paciente diabético.

Manejo de complicações do diabetes mellitus

Doença arterial coronária


Em indivíduos assintomáticos, deve-se avaliar anualmente os fatores de risco
cardiovascular para estratificação do prognóstico em dez anos e tratá-los de acordo.
Em indivíduos com doença cardiovascular conhecida, inibidores da enzima
conversora da angiotensina, Ácido Acetilsalicílico e terapia com estatina, desde que na
ausência de contraindicações, devem ser utilizados para reduzir o risco de eventos
cardiovasculares.
Em indivíduos com infarto do miocárdio prévio, β-bloqueadores devem ser
administrados por pelo menos dois anos após o evento. Há racional para o uso a longo
prazo na ausência de hipertensão arterial sistêmica se a medicação for bem tolerada.
Deve-se evitar o uso de tiazolidinedionas (glitazonas) em indivíduos com
insuficiência cardíaca sintomática. Metformina pode ser utilizada em indivíduos com
insuficiência cardíaca estável se a função renal for normal, mas deve ser evitada em
caso de instabilização ou hospitalização.

Nefropatia
De maneira geral, pode-se reduzir o risco de nefropatia ou diminuir a velocidade
de sua progressão com a otimização do controle glicêmico e do controle pressórico.
O rastreamento de nefropatia prevê a dosagem da albumina urinária anualmente
em indivíduos com diabetes mellitus tipo 1 há pelo menos cinco anos e em indivíduos
com diabetes mellitus tipo 2 a partir do diagnóstico, além da dosagem da creatinina
sérica anualmente em todos os indivíduos com diabetes mellitus. A dosagem da
creatinina sérica deve ser utilizada para calcular a taxa de filtração glomerular estimada
e para estagiar o nível de doença renal crônica, quando presente.
Em função da variabilidade na excreção urinária da albumina, duas a três
amostras coletadas em um período de três a seis meses devem apresentar resultado
anormal para o diagnóstico de nefropatia. Atividade física nas últimas 24 horas,
infecção, febre, insuficiência cardíaca, hiperglicemia acentuada e hipertensão arterial
acentuada podem elevar a excreção urinária de albumina em relação aos níveis basais.
Na ausência de gestação, inibidores da enzima de conversão da angiotensina ou
antagonistas do receptor da angiotensina II devem ser utilizados no tratamento de
indivíduos com microalbuminúria (30-299mg/dia) ou macroalbuminúria (≥300mg/dia).

Pedro Kallas Curiati 470


Se uma classe de medicamentos não for tolerada, deverá ser substituída pela outra.
A redução da ingesta proteica para 0.8-1.0g/kg/dia em indivíduos com diabetes
mellitus nos estágios iniciais da doença renal crônica e para 0.8g/kg/dia em indivíduos
com diabetes mellitus nos estágios tardios da doença renal crônica pode melhorar a
função renal avaliada através de dosagem de albumina urinária e calculo da taxa de
filtração glomerular estimada.
Em caso de uso de inibidores da enzima de conversão da angiotensina,
antagonistas do receptor da angiotensina II ou diuréticos, deve-se monitorizar a
creatinina e o potássio séricos para a detecção de insuficiência renal aguda e
hipercalemia. Monitorização da albumina urinária é recomendada para avaliar a
resposta ao tratamento e a progressão da doença.
Deve-se considerar o encaminhamento para nefrologista quando houver
incerteza quanto à etiologia da doença renal, dificuldade de manejo ou doença renal
avançada.
Estágios da doença renal crônica
Estágio Descrição Taxa de filtração glomerular
(mL/minuto/1.73m2)
1 Lesão renal com taxa de filtração glomerular normal ≥90
ou aumentada
2 Lesão renal com taxa de filtração glomerular 60-89
discretamente diminuída
3 Taxa de filtração glomerular moderadamente 30-59
diminuída
4 Taxa de filtração glomerular severamente diminuída 15-29
5 Insuficiência renal <15 ou diálise

Retinopatia
De maneira geral, pode-se reduzir o risco de retinopatia ou diminuir a velocidade
de sua progressão com a otimização do controle glicêmico e do controle pressórico.
O rastreamento de retinopatia prevê avaliação oftalmológica abrangente anual
com exame de fundo de olho após dilatação pupilar em indivíduos com diabetes
mellitus tipo 1 há pelo menos cinco anos e em indivíduos com diabetes mellitus tipo 2 a
partir do diagnóstico. Avaliação menos frequente, a cada dois ou três anos, pode ser
considerada após um ou mais exames de fundo de olho normais. No entanto, avaliação
mais frequente será necessária em caso de progressão da retinopatia.
Mulheres diabéticas que planejam engravidar ou que engravidaram devem ser
submetidas a avaliação oftalmológica abrangente no primeiro trimestre e aconselhadas
quanto ao risco de desenvolvimento e/ou progressão de retinopatia. Devem ser
submetidas a acompanhamento durante a gestação e o primeiro ano após o parto.
Pacientes com edema macular, retinopatia diabética não-proliferativa severa ou
retinopatia diabética proliferativa devem ser prontamente encaminhados para
oftalmologista experiente.
Fotocoagulação a laser é indicada para reduzir o risco de perda de visão em
pacientes com retinopatia diabética proliferativa de alto risco, edema macular
clinicamente significativo ou retinopatia diabética não-proliferativa severa.
A presença de retinopatia diabética não constitui contraindicação para o uso de
Ácido Acetilsalicílico para proteção cardiovascular, uma vez que a medicação não
aumenta o risco de hemorragia retiniana.

Neuropatia
Todos os indivíduos com diabetes mellitus devem ser rastreados para

Pedro Kallas Curiati 471


polineuropatia distal simétrica no momento do diagnóstico e anualmente a partir de
então através de testes clínicos simples. Avalia-se sensibilidade dolorosa através de
estímulo com agulha, sensibilidade palestésica com diapasão de 128 hertz, sensibilidade
tátil com monofilamento de 10g, sensibilidade térmica com tubos de ensaio com água
gelada e quente, sensibilidade proprioceptiva e reflexos aquileu e patelar. A
sensibilidade tátil é testada no hálux e nas cabeças do primeiro, do terceiro e do quinto
metatarsos, com teste positivo quando mais de dois pontos são insensíveis. Exame
eletrofisiológico raramente é necessário, exceto em situações nas quais a apresentação
clínica é atípica.
A primeira etapa no manejo de pacientes com polineuropatia distal simétrica
deve ser atingir controle glicêmico otimizado e estável. Medicações para o alívio de
sintomas específicos relacionados são recomendadas, uma vez que melhoram a
qualidade de vida dos pacientes. Incluem antidepressivos tricíclicos, como Amitriptilina
10-75mg de noite, Nortriptilina 25-75mg de noite e Imipramina 25-75mg de noite, e
anticonvulsivantes, como Gabapentina 300-1200mg três vezes ao dia e Carbamazepina
200-400mg três vezes ao dia.
O rastreamento de sinais e sintomas de neuropatia autonômica deve ser iniciado
no momento do diagnóstico em pacientes com diabetes mellitus tipo 2 e cinco anos após
o diagnóstico em pacientes com diabetes mellitus tipo 1. As principais manifestações
clínicas são taquicardia ao repouso, intolerância à atividade física, hipotensão
ortostática, constipação, gastroparesia, disfunção erétil, disfunção da sudorese,
disfunção neurovascular e falência autonômica hipoglicêmica. A neuropatia autonômica
cardiovascular é a forma clinicamente mais importante e manifesta-se por frequência
cardíaca superior a 100bpm no repouso e queda na pressão arterial sistólica superior a
20mmHg quando o indivíduo assume a posição ortostática. Gastroparesia deve ser
suspeitada em indivíduos com controle glicêmico errático ou com sintomas do trato
gastrointestinal superior sem outra causa identificada. Exames complementares
especializados raramente são necessários e podem não modificar o prognóstico.
Sintomas de gastroparesia podem ser tratados com mudanças na dieta e agentes
pró-cinéticos, como a Metoclopramida. O tratamento da disfunção erétil pode incluir
inibidores da 5-fosfodiesterase, prostaglandina intrauretral ou injetada nos corpos
cavernosos, dispositivos a vácuo e próteses penianas.

Pé diabético
Todos os indivíduos com diabetes mellitus devem ser submetidos a exame
abrangente dos pés anualmente para identificar fatores de risco preditivos de úlceras e
amputações, como amputação prévia, úlcera prévia, neuropatia periférica,
deformidades, doença vascular periférica, déficit visual, nefropatia diabética, controle
glicêmico ruim e tabagismo. A avaliação deve incluir inspeção, palpação de pulsos e
avaliação da sensibilidade.
Deve ser oferecida educação sobre autocuidados para os pés a todos os
indivíduos com diabetes mellitus.
Abordagem multidisciplinar é recomendada para indivíduos com úlceras nos pés
ou com fatores de risco preditivos de úlceras e amputações.
Indivíduos com antecedente de úlceras e/ou amputações de membros inferiores
ou tabagistas que perderam a sensibilidade protetora e que têm anormalidades
estruturais devem ser encaminhados para especialista em cuidados com os pés para
assistência preventiva e observação cuidadosa.
O rastreamento inicial de doença arterial periférica deve incluir história de
claudicação intermitente e palpação dos pulsos pediosos. Deve-se considerar a avaliação

Pedro Kallas Curiati 472


do índice tornozelo-braquial. Em caso de achados positivos, os indivíduos devem ser
encaminhados para avaliação por cirurgião vascular. Opções terapêuticas incluem
prática de atividade física, uso de medicamentos e cirurgia.

Bibliografia
Standards of Medical Care in Diabetes—2010. American Diabetes Association. Diabetes Care, volume 33, supplement 1,S11-61,
january 2010.
Medical Management of Hyperglycemia in Type 2 Diabetes: A Consensus Algorithm for the Initiation and Adjustment of
Therapy. A consensus statement of the American Diabetes Association and the European Association for the Study of Diabetes.
Diabetes Care, volume 32, number 1, 193-203, january 2009.
Curso de Insulinoterapia Ambulatorial. NEAD – Núcleo de Excelência em Atendimento ao Paciente Diabético da Unidade de
Diabetes do Serviço de Endocrinologia e Metabologia da DCM-1 do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
Curso de Complicações Crônicas do Diabetes - Núcleo de Excelência em Atendimento ao Paciente Diabético da Unidade de
Diabetes do Serviço de Endocrinologia e Metabologia da DCM-1 do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 473


HIPERALDOSTERONISMO
PRIMÁRIO
Definição
O hiperaldosteronismo primário é definido como a produção excessiva e
parcialmente autônoma de aldosterona pelo córtex adrenal.

Fisiologia
Em condições normais, a produção de aldosterona é controlada pelo sistema
renina-angiotensina. A aldosterona age em receptores dos túbulos renais e coletores
renais, promovendo a reabsorção de sódio e a secreção de potássio e íons H+, com
consequente expansão volêmica e supressão da secreção de renina. Essa ação favorece o
desenvolvimento de hipertensão arterial sistêmica, hipocalemia e alcalose metabólica. A
expansão volêmica estimula a produção de fator natriurético, mas este é incapaz de
compensar a ação contínua da aldosterona. Uma resposta vascular anormal a
vasoconstritores endógenos exacerba a hipertensão arterial sistêmica.
A ação da aldosterona não se limita ao epitélio renal. Outros tecidos, como
coração, cérebro e vasos, são capazes de sintetizar aldosterona e também apresentam
receptores de mineralocorticoides, com ação autócrina e parácrina com hipertrofia
ventricular, aumento da fibrose do miocárdio e injúria vascular.

Etiologia
Além do hiperaldosteronismo primário, outras situações clínicas podem
apresentar excesso de mineralocorticoides com níveis reduzidos de renina, como em
hiperplasia adrenal congênita por deficiência de 11-beta-hidroxilase ou 17-alfa-
hidroxilase, deficiência congênita de 11-beta-hidroxiesteroide desidrogenase, ingesta de
alcaçuz e síndrome de Liddle.
As duas principais causas de hiperaldosteronismo primário são adenoma
produtor de aldosterona e hiperplasia adrenal idiopática ou bilateral. Outras
apresentações menos frequentes de hiperaldosteronismo primário são a hiperplasia
adrenal primária unilateral, o carcinoma adrenocortical produtor de aldosterona e as
formas familiares de hiperaldosteronismo, como aldosteronismo supressível por
glicocorticoide, adenoma produtor de aldosterona familiar e hiperplasia idiopática
familiar.

Quadro clínico
Indivíduos com hiperaldosteronismo primário habitualmente apresentam-se com
hipertensão arterial. Os adenomas produtores de aldosterona costumam ser mais
frequentes em pacientes do sexo feminino de meia-idade, enquanto que as hiperplasias
adrenais idiopáticas se apresentam mais em homens com idade mais avançada.
Os sintomas do hiperaldosteronismo primário geralmente são inespecíficos.
Alguns pacientes são assintomáticos, enquanto que outros têm sintomas relacionados à
hipertensão arterial, como cefaleia, ou à hipocalemia, como fraqueza muscular,
paralisia, cãibras, parestesias e, eventualmente, polidipsia, poliúria e arritmias cardíacas.

Avaliação complementar
As alterações laboratoriais sugestivas de hiperaldosteronismo são hipocalemia,

Pedro Kallas Curiati 474


níveis de sódio no limite superior da normalidade ou hipernatremia e tendência para
alcalose metabólica. Existe associação entre hiperaldosteronismo primário e síndrome
metabólica, com resistência à insulina.
A investigação diagnóstica para hiperaldosteronismo primário deve ser
considerada em caso de hipertensão arterial associada a hipocalemia espontânea ou
induzida por baixa dose de diurético, hipertensão arterial refratária, hipertensão arterial
severa, com pressão arterial sistólica superior a 160mmHg e/ou pressão arterial
diastólica superior a 100mmHg, hipertensão arterial associada a incidentaloma adrenal,
hipertensão arterial e antecedente familiar de primeiro grau de hiperaldosteronismo
primário, hipertensão arterial de início precoce ou doença cerebrovascular antes dos
quarenta anos de idade.
O teste mais aceito atualmente para o rastreamento de hiperaldosteronismo
primário é a relação entre a aldosterona plasmática e a atividade de renina plasmática,
que, quando superior a 30ng/dL/ng/mL/hora, com aldosterona plasmática superior a
15ng/dL, é sugestiva de hiperaldosteronismo primário, mas deve ser confirmada.
Resultados falso-positivos podem estar relacionados a anti-hipertensivos, como β-
bloqueador, alfa-metildopa e Clonidina, insuficiência renal crônica, sobrecarga de
potássio e anti-inflamatório não-hormonal. Resultados falso-negativos podem estar
relacionados a diuréticos, principalmente Espironolactona, anti-hipertensivos, como
inibidores da enzima de conversão da angiotensina e bloqueadores do receptor da
angiotensina II, hipocalemia, restrição dietética de sal, gravidez, hipertensão arterial
renovascular e hipertensão arterial maligna. Relação entre aldosterona plasmática e
atividade de renina plasmática inferior a 10ng/dL/ng/mL/hora com elevação tanto de
aldosterona plasmática como de atividade de renina plasmática sugere
hiperaldosteronismo secundário, como na hipertensão arterial renovascular.
A confirmação do diagnóstico de hiperaldosteronismo primário deve ser feita
após a suspensão, por pelo menos duas semanas, de medicações que possam interferir
na avaliação laboratorial. Espironolactona deve ser suspensa por pelo menos seis
semanas. Em caso de necessidade de manter terapia anti-hipertensiva, pode-se preferir o
uso de α-bloqueador, como Doxazosina e Prazosina, ou de bloqueador de canal de
cálcio. A confirmação é baseada no fato de que, no hiperaldosteronismo primário, a
produção de aldosterona é resistente a manobras supressoras do sistema renina-
angiotensina. Pode ser feita com infusão de Soro Fisiológico 2000mL em quatro horas
por via intravenosa no período matinal, sendo considerado positivo o teste se
aldosterona plasmática superior a 5ng/dL ao final da infusão, ingesta de 6-10g de
Cloreto de Sódio durante três a cinco dias para obtenção de níveis de sódio urinário
superiores a 200mEq/dia, sendo considerado positivo o teste se aldosterona urinária
superior a 12mg/dia no final do último dia, ou administração de Fludrocortisona 100mg
de 6/6 horas durante quatro dias, sendo considerado positivo o teste se aldosterona
plasmática superior a 6ng/dL no final do quarto dia. Não é necessário realizar testes
confirmatórios em caso de hipocalemia espontânea, atividade de renina plasmática
indetectável e aldosterona plasmática superior a 30ng/dL.
Uma vez confirmado o hiperaldosteronismo primário, deve-se tentar diferenciar
as duas principais causas, o adenoma produtor de aldosterona e a hiperplasia adrenal
idiopática. Como teste dinâmico de estímulo, propõe-se a realização de teste postural,
em que a dosagem de aldosterona plasmática é feita antes e após duas a quatro horas de
ortostase. Outra ferramenta para o diagnóstico diferencial é o uso de Espironolactona
por um a dois meses, cujo efeito esperado é o desbloqueio da secreção de renina e o
controle pressórico e dos níveis séricos de potássio. Os adenomas produtores de
aldosterona, ao contrário das hiperplasias adrenais idiopáticas, tendem a não responder à

Pedro Kallas Curiati 475


manobra de estímulo do sistema renina-angiotensina, mas respondem a estímulo pelo
ACTH, apresentando ritmo circadiano de secreção de aldosterona similar ao cortisol.
Outros exames laboratoriais auxiliares são a dosagem de 18-hidroxicorticosterona, em
que níveis plasmáticos superiores a 100ng/dL pela manhã sugerem adenoma produtor
de aldosterona, e a dosagem de esteroides híbridos, como 18-hidroxicortisol e 18-
oxocortisol urinários, que se encontram elevados nos adenomas produtores de
aldosterona e nos aldosteronismo supressíveis por glicocorticoide. O uso de
Dexametasona 2mg/dia por três ou mais dias reduz a pressão arterial e normaliza os
níveis de aldosterona plasmática, estabelecendo também o diagnóstico de
aldosteronismo supressível por glicocorticoide.
Exames radiológicos são empregados para localização da hipersecreção
hormonal. Sugere-se a realização de tomografia computadorizada de adrenais. A
ressonância nuclear magnética de adrenais é uma alternativa, sem se mostrar superior,
mas a ultrassonografia não apresenta resolução suficiente para detecção de tumores,
especialmente em pacientes adultos. Na tomografia computadorizada de adrenais,
adenomas geralmente se caracterizam como nódulos superiores a 1cm e as hiperplasias
se caracterizam como adrenais normais ou pouco espessadas. Nódulos superiores a 4cm
sugerem a possibilidade de carcinoma. No entanto, adenomas produtores de aldosterona
podem ser menores que 1cm, não sendo identificados nos exames de imagem, adenomas
produtores de aldosterona podem estar associados a nódulos adrenais não-funcionantes
e hiperplasias adrenais idiopáticas podem apresentar um macronódulo unilateral. O
emprego de cintilografia de adrenais com colesterol marcado pode identificar secreção
adrenal dominante unilateral, com maior sensibilidade e valor preditivo positivo.
O cateterismo das veias adrenais com coleta seletiva de aldosterona é
considerado o padrão-ouro no diagnóstico diferencial de adenoma produtor de
aldosterona e hiperplasia adrenal idiopática. Nesse exame, compara-se a relação entre
aldosterona e cortisol a partir de material simultaneamente coletado nas veias adrenais e
na veia cava inferior, o que permite a correção de possíveis erros de diluição, sendo
considerada adequada a técnica quando o gradiente entre cortisol central e periférico for
superior a dois. Para minimizar eventuais alterações decorrentes da produção endógena
de ACTH, sugere-se a infusão de ACTH sintético durante o exame, com velocidade de
50mg/hora e início trinta minutos antes. O diagnóstico de lateralização da secreção de
aldosterona no adenoma produtor de aldosterona ou na hiperplasia adrenal unilateral é
feito quando o gradiente da relação entre aldosterona e cortisol entre as duas veias
adrenais for superior a quatro e do lado não-dominante em relação à periferia for
inferior a um. Na hiperplasia adrenal idiopática, o gradiente entre aldosterona e cortisol
entre as adrenais é inferior a três e entre cada veia adrenal e a periferia é superior ou
igual a um. Quando o gradiente entre aldosterona e cortisol entre as adrenais for de três
a quatro, a lateralização da secreção é identificada se o gradiente do lado não-dominante
em relação à periferia for inferior a um. Se a tomografia computadorizada de adrenais
mostrar macronódulo unilateral não é necessária a realização de cateterismo de adrenais,
já que o diagnóstico é altamente sugestivo de adenoma produtor de aldosterona.
Entretanto, nos casos em que a tomografia computadorizada não identifica nódulos,
detecta nódulos bilaterais ou visualiza macronódulo unilateral no contexto de teste
postural com incremento da aldosterona plasmática ou de idade superior a quarenta
anos, é preciso realizar o cateterismo de adrenais para diferenciar adenoma produtor de
aldosterona e hiperplasia adrenal idiopática.

Tratamento
A importância do diagnóstico diferencial entre as diversas causas de

Pedro Kallas Curiati 476


hiperaldosteronismo está relacionada à resposta ao tratamento cirúrgico de casos de
adenoma produtor de aldosterona e de hiperplasia adrenal unilateral. Nessas situações, a
adrenalectomia realizada, preferencialmente, por via laparoscópica proporciona
correção da hipocalemia e normalização ou melhora do controle pressórico na maioria
dos pacientes. Pacientes com contraindicações cirúrgicas podem ser tratados
clinicamente ou com embolização arterial do adenoma produtor de aldosterona com
etanol. A ressecção cirúrgica também está indicada em casos de carcinomas adrenais
não-metastáticos. A hiperplasia adrenal idiopática e o aldosteronismo supressível por
glicocorticoide não respondem ao tratamento cirúrgico. O manejo pós-operatório prevê
a dosagem da aldosterona plasmática no dia seguinte à adrenalectomia para avaliação da
cura, a suspensão da suplementação de potássio e do uso de Espironolactona, o ajuste da
dose dos medicamentos anti-hipertensivos, a monitorização do potássio sérico
diariamente durante a internação e semanalmente no primeiro mês após a alta para
pesquisa de hipercalemia relacionada a hipoaldosteronismo transitório, utilização por
curto período de Fludrocortisona se necessário para tratamento de hipercalemia,
monitorização da função renal, já que a correção do hiperaldosteronismo corrige a
hiperfiltração renal e pode desmascarar perda de função renal secundária ao
hiperaldosteronismo, dieta rica em sódio e uso de soluções intravenosas sem potássio,
exceto em caso de hipocalemia.
O tratamento clínico está indicado em manejo pré-operatório de adenoma
produtor de aldosterona e hiperplasia adrenal unilateral para controlar a hipertensão
arterial sistêmica, repor estoques de potássio e evitar hipoaldosteronismo e hipercalemia
no pós-operatório, contraindicação para o tratamento cirúrgico, hiperplasia adrenal
idiopática e aldosteronismo supressível com glicocorticoide. Os pacientes devem ser
orientados a restringir a ingesta de sal para menos de 2g de sódio ao dia para minimizar
a perda de potássio e favorecer o controle pressórico. O tratamento mais eficiente é o
emprego de antagonistas de receptor de mineralocorticoide, sendo a droga mais
utilizada a Espironolactona, apresentada na forma de comprimidos de 25mg e 100mg,
com dose inicial de 12.5-25mg/dia não fracionada junto com alimentos, sendo
recomendado titular a dose a cada duas semanas visando normalização do potássio
sérico e o controle da hipertensão arterial sistêmica, sendo a dose máxima 400mg/dia.
Efeitos colaterais ocorrem principalmente com doses superiores a 100mg/dia e incluem
distúrbios gastrointestinais, fadiga, ginecomastia, diminuição da libido, disfunção erétil
e irregularidade menstrual. A Espironolactona também interage com a Digoxina,
aumentando sua meia-vida, e com anti-inflamatórios não-hormonais e salicilatos, com
interferência no efeito anti-hipertensivo. Eplerenone, apresentado na forma de cápsulas
de 25mg e 50mg, com dose inicial de 25mg duas vezes ao dia e dose máxima de 50mg
duas vezes ao dia, está associado a menos efeitos colaterais endocrinológicos que a
Espironolactona, porém apresenta custo elevado. Outra opção, especialmente quando
houver intolerância à Espironolactona, é utilizar diuréticos poupadores de potássio,
como o Amiloride e o Triantereno, que bloqueiam diretamente os canais epiteliais de
sódio, mas com eficácia inferior. Bloqueadores de canais de cálcio, inibidores da
enzima de conversão da angiotensina e bloqueadores de receptor da angiotensina II,
também auxiliam no tratamento da hipertensão arterial sistêmica. O aldosteronismo
supressível por glicocorticoide, cujo diagnóstico deve ser confirmado com teste
genético, pode ser tratado com Dexametasona 2mg/dia, mas as drogas mencionadas
anteriormente podem ser utilizadas para evitar a supressão do eixo hipotálamo-hipófise-
adrenal.

Algoritmos

Pedro Kallas Curiati 477


Bibliografia
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 478


Clinical features of primary aldosteronism. William F Young, Norman M Kaplan and Burton D Rose. UpToDate, 2012.
Treatment of primary aldosteronism. William F Young, Norman M Kaplan and Burton D Rose. UpToDate, 2012.
Approach to the patient with hypertension and hypokalemia. William F Young, Norman M Kaplan and Burton D Rose. UpToDate,
2012.

Pedro Kallas Curiati 479


HIPERPARATIREOIDISMO
PRIMÁRIO
Definição
O hiperparatireoidismo primário é uma doença primária da glândula paratireoide
decorrente da secreção aumentada ou inadequada de paratormônio, com hipercalcemia
crônica.

Epidemiologia
Pode ocorrer em qualquer idade, mas a incidência é maior após os cinquenta
anos. Predomina no sexo feminino.

Etiologia e fisiopatologia
O hiperparatireoidismo primário pode ser esporádico, como em adenoma,
hiperplasia e carcinoma de paratireoide, ou familiar, como em neoplasias endócrinas
múltiplas I e II, hiperparatireoidismo familiar isolado, hipercalcemia hipocalciúrica
familiar e síndrome de hiperparatireoidismo com tumor de mandíbula.
A causa mais comum é o adenoma esporádico, geralmente único, que representa
85-90% dos casos. O mecanismo fundamental é a perda da auto-regulação das
paratireoides pelo cálcio extracelular. No adenoma, a secreção de paratormônio é
inibida por níveis elevados de cálcio, enquanto que na hiperplasia a secreção de
paratormônio é inibida por níveis normais de cálcio, com perda da auto-regulação em
função do número aumentado de células. Uma causa rara de hiperparatireoidismo
primário é o carcinoma de paratireoide, que corresponde a 1-3% dos casos, com
diagnóstico baseado na presença de pelo menos um dentre invasão de estruturas
contíguas, invasão linfonodal e metástases a distância. As formas familiares
correspondem a 10% dos casos e podem ser isoladas, como na hipercalcemia
hipocalciúrica familiar, ou fazer parte das neoplasias endócrinas múltiplas, em que o
achado histológico costuma ser de hiperplasia difusa das glândulas paratireoides. São
caracterizadas por hipercalcemia severa em cerca de 50% dos casos e acometimento de
múltiplas glândulas paratireóideas em cerca de 75% dos casos, além de alta taxa de
recorrência após ressecção cirúrgica. A síndrome de hiperparatireoidismo com tumor de
mandíbula se caracteriza por tumores da paratireoide associados a fibroma ossificante
da mandíbula, com risco aumentado de carcinoma de paratireoide. Hiperparatireoidismo
leve a moderado ocorre em aproximadamente 5% dos pacientes submetidos a terapia
crônica com Lítio, que reduz a sensibilidade da glândula paratireoide ao cálcio, e
frequentemente persiste após a suspensão da medicação. A história de irradiação
cervical na infância é causa rara de hiperparatireoidismo primário.
Independentemente da etiologia, o aumento do paratormônio sérico resultará em
hipercalcemia ao atuar em várias vias. No osso, promove a reabsorção de cálcio e
fosfato. No rim, determina a reabsorção de cálcio no túbulo distal, mas se a carga
filtrada for maior que a capacidade de reabsorção, ocorrerá hipercalciúria. A elevada
concentração sérica de calcitriol, causada pelo estímulo do paratormônio, pode
contribuir para a hipercalciúria. Ainda no rim, inibe a reabsorção de fosfato,
promovendo hiperfosfatúria e podendo levar a hipofosfatemia. Finalmente, aumenta a
síntese de 1,25 diidroxi-vitamina D, com aumento da absorção intestinal de cálcio.

Pedro Kallas Curiati 480


Quadro clínico
O quadro clínico do hiperparatireoidismo primário pode ser sintomático ou
assintomático.
Atualmente, a forma assintomática está presente em 75-80% dos casos. Queixas
comuns incluem sensação de fraqueza, cansaço fácil, perda de memória e depressão.
Alterações ósseas, com osteíte fibrosa cística, são menos frequentes. O
paratormônio exerce ação catabólica no esqueleto apendicular e anabólica no esqueleto
axial. A perda é maior no osso cortical em relação ao osso esponjoso ou trabecular. As
manifestações clínicas mais comuns são dores ósseas ou articulares, deformidades
ósseas, fraturas patológicas e lesões líticas de tamanhos variados, observadas em geral
nos ossos longos. Na maioria dos pacientes, os tumores ósseos, também conhecidos
como “tumor marrom”, podem ser palpáveis, sobretudo nos ossos longos. Os pacientes
podem, ocasionalmente, ser assintomáticos e ter seu envolvimento ósseo revelado
apenas por radiografia simples, densitometria óssea ou cintilografia óssea.
Geralmente, em associação com as manifestações ósseas, ocorre fraqueza
muscular predominantemente proximal, com maior frequência em membros inferiores,
com dificuldade progressiva para deambulação.
A manifestação renal mais característica do hiperparatireoidismo primário é a
nefrolitíase recorrente, encontrada em até 20% dos casos. O principal mecanismo é a
formação de cristais de oxalato de cálcio, mas em caso de urina discretamente alcalina
pode ser favorecida a precipitação de cristais de fosfato de cálcio. Os pacientes podem
apresentar, também, anormalidades funcionais renais, como incapacidade de
concentração urinária, poliúria, polidipsia e insuficiência renal. Nefrocalcinose também
pode estar presente.
Várias manifestações articulares foram descritas em associação com
hiperparatireoidismo primário, como condrocalcinose, fraturas subcondrais, sinovite
traumática e periartrite calcificada. As queixas digestivas mais comuns são anorexia,
náusea e obstipação intestinal, mas úlcera péptica e pancreatite também podem ocorrer.
No sistema cardiovascular, a hipercalcemia causa redução do intervalo QT, bradicardia
e hipertensão arterial sistêmica. Manifestações neuropsiquiátricas incluem depressão,
alteração de personalidade e alteração de memória.
Não está estabelecida a frequência de hipertensão arterial sistêmica. Os
diuréticos tiazídicos agravam a hipercalcemia dos portadores de hiperparatireoidismo
primário.
Quando o hiperparatireoidismo primário faz parte de outras afecções
endocrinológicas, como as neoplasias endócrinas múltiplas, o quadro clínico dependerá
da doença de base.

Avaliação complementar
O diagnóstico de hiperparatireoidismo primário é baseado em hipercalcemia
associada a concentração sérica de paratormônio aumentada ou não-suprimida. Alguns
pacientes podem ter dosagem de cálcio sérico normal, sendo necessário excluir causas
de hiperparatireoidismo secundário e documentar níveis francamente elevados de
paratormônio. A medida do cálcio ionizado cursa com maior precisão diagnóstica,
especialmente nos pacientes com hipercalcemia intermitente ou falsa normocalcemia
por hipoalbuminemia e acidose. Na avaliação do paciente com hipercalcemia, a
dosagem do paratormônio sérico irá diferenciar o hiperparatireoidismo primário das
hipercalcemias independentes do paratormônio, em que ocorre supressão do hormônio,
com níveis inferiores a 30pg/mL. A dosagem do cálcio na urina de 24 horas deve ser
solicitada a todos os pacientes com hiperparatireoidismo primário e função renal

Pedro Kallas Curiati 481


normal, com hipercalciúria, caracterizada por excreção de cálcio superior a 400mg/dia e
clearance de cálcio em relação ao clearance de creatinina superior a 0.02, em cerca de
40% dos casos e excreção de cálcio dentro dos limites da normalidade na maior parte
dos casos remanescentes. Em caso de excreção de cálcio baixa, inferior a 200mg/dia,
hipercalcemia hipocalciúrica familiar e hiperparatireoidismo associado a deficiência de
vitamina D são as principais possibilidades diagnósticas. A fosfatemia costuma estar no
limite inferior da normalidade, com hipofosfatemia em um terço dos casos.
Ocasionalmente, há hipomagnesemia.
Feito o diagnóstico de hiperparatireoidismo primário, analisa-se o
comprometimento renal e ósseo. Solicita-se ultrassonografia renal para avaliar a
presença de cálculo renal assintomático. Os marcadores de remodelação óssea incluem
fosfatase alcalina e osteocalcina, que estão relacionados à formação óssea, e
interligadores do colágeno tipo 1 (CTx), que estão relacionados à reabsorção óssea. O
paratormônio interfere também no equilíbrio acidobásico, com inibição da reabsorção
de bicarbonato no túbulo proximal, o que pode acarretar no hiperparatireoidismo
primário uma acidose hiperclorêmica. No entanto, esse efeito geralmente é
contrabalanceado pela liberação de álcalis relacionada à reabsorção óssea e pela
reabsorção tubular de bicarbonato relacionada à hipercalcemia. A concentração de 25-
hidróxi vitamina D geralmente está diminuída, sendo os valores mais baixos
encontrados quando o comprometimento ósseo é acentuado. Em pacientes com
hiperparatireoidismo primário e deficiência grave de vitamina D, a hipercalcemia pode
surgir apenas após a reposição dessa vitamina. Eletroforese de proteínas deve ser
realizada em todos os pacientes com hiperparatireoidismo primário em função de relatos
de associação com mieloma múltiplo.
O elemento radiográfico mais importante é uma rarefação óssea em todo o
esqueleto. A lesão patognomônica é a reabsorção subperiostal, observada especialmente
nas falanges, podendo ocasionalmente ser encontrada em outros ossos, como as
clavículas. As áreas líticas, localizadas principalmente nos ossos longos e na pelve,
podem ser preenchidas por tecido fibroso, bastante vascularizado, com acúmulo de
pigmento em caso de hemorragia, o que leva à denominação de “tumores marrons”.
Outras manifestações radiológicas da reabsorção óssea incluem o aspecto em “sal e
pimenta” do crânio e a perda da lâmina dura dos alvéolos dentários.
O mapeamento ósseo com tecnécio-99m, nos casos de hiperparatireoidismo
primário assintomático, não apresenta nenhuma anormalidade cintilográfica. Nos
pacientes com doença óssea do hiperparatireoidismo primário, o aumento de captação
ocorre no crânio e nas lesões ósseas do “tumor marrom”.
O exame de densitometria óssea permite avaliar a massa óssea com maior
precisão, possibilitando detectar variações precoces da massa óssea, bem como servir de
parâmetro evolutivo no processo de mineralização após a retirada da glândula afetada.
Encontra-se redução maior da densidade mineral óssea no terço distal do antebraço e no
quadril. A densitometria óssea também é útil na indicação de cirurgia no
hiperparatireoidismo primário assintomático.
Uma vez confirmado o diagnóstico de hiperparatireoidismo primário, solicitam-
se os exames de imagem para localização pré-operatória das paratireoides patológicas
em pacientes com doença provavelmente em uma única glândula. As técnicas não-
invasivas para a localização da paratireoide anormal incluem ultrassonografia cervical,
cintilografia ou, preferencialmente, SPECT com tecnécio-99m Sestamibi, tomografia
computadorizada cervical e/ou torácica e ressonância nuclear magnética cervical e/ou
torácica. A identificação da paratireoide anormal previamente à cirurgia permite a
exploração cervical unilateral, conhecida como cirurgia minimamente invasiva. As

Pedro Kallas Curiati 482


técnicas invasivas para localização das glândulas paratireoides patológicas são a punção
aspirativa com agulha fina, a arteriografia e a amostra seletiva venosa das concentrações
de paratormônio, com indicação em casos selecionados, como aqueles com cirurgia
cervical prévia ou em que as técnicas não-invasivas cursaram com resultados
inconclusivos. Os exames de imagem, não-invasivos, também são indicados em caso de
necessidade de reoperação, sempre com a combinação de dois métodos.
Teste genético pode ter um papel no manejo do hiperparatireoidismo familiar,
com indicação de monitorização bioquímica e radiológica dos tumores associados
indicada nas neoplasias endócrinas múltiplas I e II e na síndrome de
hiperparatireoidismo com tumor de mandíbula.

Diagnóstico diferencial
Causas de hipercalcemia dependentes de paratormônio incluem
hiperparatireoidismo primário, hipercalcemia hipocalciúrica familiar, síntese ectópica
de paratormônio e tratamento com Lítio. Causas de hipercalcemia independentes de
paratormônio incluem tumor sólido com metástases ósseas, hipercalcemia humoral
maligna, doenças granulomatosas produtoras de vitamina D, intoxicação por vitamina
D, hipertireoidismo, feocromocitoma, insuficiência adrenal, tumores de células das
ilhotas pancreáticas, medicações, como diuréticos tiazídicos, e imobilização.
Neoplasias malignas geralmente já são evidentes clinicamente no momento em
que causam hipercalcemia. Os níveis de paratormônio podem estar elevados em
situações clínicas específicas, como concomitância de hiperparatireoidismo primário e
produção de paratormônio pela neoplasia.
Hipercalcemia hipocalciúrica familiar é causada por uma mutação que inativa o
sensor de cálcio nas glândulas paratireoides e nos rins. História familiar de
hipercalcemia, especialmente em crianças pequenas, e ausência de sintomas e sinais de
hipercalcemia são característicos da doença. O diagnóstico é sugerido por clearance de
cálcio em relação ao clearance de creatinina, com cálculo através da fórmula [(cálcio
urinário de 24 horas/ cálcio sérico)/ (creatinina urinária de 24 horas/ creatinina
sérica)], inferior a 0.01, calciúria de 24 horas inferior a 100mg e presença de história
familiar associada. 15-20% dos pacientes podem ter concentração de paratormônio
discretamente aumentada, com dificuldade no diagnóstico diferencial com
hiperparatireoidismo primário quando associado a deficiência de vitamina D. No
entanto, nesta situação, a reposição de vitamina D aumenta a excreção de cálcio na
urina.
Pacientes em uso de diurético tiazídico e com hipercalcemia devem ter a droga
suspensa, com reavaliação de cálcio sérico e paratormônio dentro de três meses.
Persistência da hipercalcemia com paratormônio no limite superior da normalidade ou
elevado sugere a existência de hiperparatireoidismo primário.
Avaliação de função renal, 25-hidroxi vitamina D e excreção de cálcio pode
ajudar a diferenciar hiperparatireoidismo primário de hiperparatireoidismo secundário
em caso de níveis séricos normais de cálcio. Não é incomum a coexistência de
deficiência de vitamina D e hiperparatireoidismo primário.
Para diferenciar hipervitaminose D de hiperparatireoidismo primário,
tipicamente são dosadas ambas 25-hidroxi vitamina D e 1,25-diidroxi vitamina D.
O diagnóstico diferencial entre hiperparatireoidismo secundário e
hiperparatireoidismo primário associado a deficiência de vitamina D é baseado na
evolução dos parâmetros laboratoriais após a reposição da vitamina.

Tratamento

Pedro Kallas Curiati 483


Não há dúvida quanto à indicação cirúrgica no paciente sintomático. As
indicações cirúrgicas em pacientes com hiperparatireoidismo primário assintomático
visam abranger aqueles com risco de progressão da doença e aqueles que apresentam
manifestações clínicas reversíveis com o tratamento e incluem cálcio sérico 1mg/dL
(0.25mmol/L) ou mais acima do limite superior da normalidade, filtração glomerular
estimada inferior a 60mL/minuto, nefrolitíase, densitometria óssea com T-score inferior
a -2.5 desvios-padrão em coluna lombar, fêmur ou antebraço, fratura patológica,
paciente cujo acompanhamento médico não seja possível ou desejado e idade inferior a
cinquenta anos. O tratamento clínico no hiperparatireoidismo primário é seguro apenas
se for realizado seguimento clínico adequado e prolongado, cujos objetivos incluem
reconhecimento de piora da hipercalcemia, diminuição da massa óssea, piora da função
renal e aparecimento de calculose renal, que indicam tratamento cirúrgico, com
reavaliação a cada seis meses.

Tratamento cirúrgico
A experiência do cirurgião é o fator mais importante na determinação do sucesso
operatório. A cirurgia recomendada para pacientes com exames de imagem sem a
localização de um adenoma da paratireoide e para pacientes com múltiplos adenomas ou
com hiperplasia multiglandular é denominada cirurgia convencional, compreendendo a
exploração cervical bilateral sob anestesia geral, com identificação de todas as
glândulas. Também é preferida em pacientes do sexo masculino com idade inferior a
trinta anos em função do risco aumentado de neoplasia endócrina múltipla nessa
população. Havendo certeza do diagnóstico e não sendo encontradas anormalidades nas
paratireoides cervicais, está indicada a pesquisa da glândula paratireoide no mediastino.
A cirurgia consta da retirada do adenoma e, na hiperplasia associada a neoplasia
endócrina múltipla, paratireoidectomia total seguida de implante de fragmentos no
antebraço para evitar hipoparatireoidismo definitivo.
A localização de um adenoma da paratireoide com cintilografia e
ultrassonografia cervical, associada à monitorização do paratormônio intacto no intra-
operatório, permite, atualmente, a abordagem cirúrgica unilateral das paratireoides, com
incisões menores e anestesia local e/ou regional, denominada cirurgia minimamente
invasiva, com alta hospitalar no mesmo dia. Dessa forma, o cirurgião faz a remoção da
paratireoide hiperfuncionante sem a necessidade de identificar as paratireoides normais.
Após a cirurgia e dependendo do envolvimento ósseo, pode surgir hipocalcemia
sintomática em razão da rápida deposição esquelética de cálcio e fosfato, com
“síndrome da fome óssea”, que pode ser corrigida com administração parenteral de
cálcio. Em pacientes que foram submetidos a reoperação ou paratireoidectomia subtotal,
pode-se desenvolver hipoparatireoidismo definitivo.

Tratamento clínico
Atividade física deve ser encorajada para minimizar reabsorção óssea, assim
como hidratação com pelo menos seis a oito copos de água por dia para minimizar o
risco de nefrolitíase. A alimentação com restrição ou excesso de cálcio deve ser evitada,
recomendando-se dieta com cerca de 1000mg/dia. No entanto, em caso de concentração
sérica de calcitriol elevada, restrição moderada de cálcio na dieta, com ingesta inferior a
800mg/dia, pode ser necessária para evitar exacerbar hipercalcemia. Deve-se manter
ingesta de 400-600UI de vitamina D por dia e repor a vitamina em caso de insuficiência
ou deficiência na avaliação laboratorial. Diurético tiazídico e Lítio não devem ser
utilizados. Em caso de desidratação ou aparecimento de sintoma sugestivo de piora dos
níveis de cálcio, será necessário procurar auxílio médico.

Pedro Kallas Curiati 484


Monitorização periódica é necessária, com história de cólica nefrética, medidas
de cálcio e creatinina séricos anualmente e densitometria óssea em quadril, antebraço e
coluna a cada um a dois anos. Ultrassonografia seriada de rins e vias urinárias não é
recomendada.
O uso de fosfato, embora seja eficiente, pode ocasionar calcificações ectópicas,
devendo ser evitado. Os bifosfonatos também têm sido utilizados, com indicação em
osteopenia ou osteoporose em pacientes não candidatos a terapêutica cirúrgica. Terapia
de reposição hormonal com estrógenos e progestágenos é benéfica em mulheres na pós-
menopausa com hiperparatireoidismo primário por reduzir a reabsorção óssea, mas não
é considerada abordagem de primeira linha em função dos riscos associados. Agentes
calcimiméticos, como Cinacalcet, ativam o sensor de cálcio nas glândulas paratireoides,
com inibição da secreção de paratormônio e redução dos níveis séricos de cálcio, sem
melhora na densidade mineral óssea. A droga geralmente é iniciada com dose de 30mg
uma a duas vezes ao dia, com ajuste conforme os níveis séricos de cálcio. Após
estabilização da dose, os níveis séricos de cálcio devem ser monitorizados a cada dois a
três meses.
A hipercalcemia hipocalciúrica familiar deve ser diferenciada das outras causas
de hiperparatireoidismo primário, uma vez que nessa condição não se recomenda o
tratamento cirúrgico por ausência de benefício, pois não se trata de uma doença da
célula paratireoidiana, sendo decorrente de mutações inativadoras do sensor do cálcio.
Além disso, geralmente a hipercalcemia é discreta, sintomas são discretos quando
presentes e não há lesão em órgãos.

Bibliografia
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Primary Hyperparathyroidism. Claudio Marcocci and Filomena Cetani. N Engl J Med 2011;365:2389-97.
Pathogenesis and etiology of primary hyperparathyroidism. Ghada El-Hajj Fuleihan and Shonni J Silverberg. UpToDate, 2012.
Clinical manifestations of primary hyperparathyroidism. Ghada El-Hajj Fuleihan and Shonni J Silverberg. UpToDate, 2012.
Diagnosis and differential diagnosis of primary hyperparathyroidism. Ghada El-Hajj Fuleihan and Shonni J Silverberg. UpToDate,
2012.
Preoperative localization for parathyroid surgery in patients with primary hyperparathyroidism. Linwah Yip, Shonni J Silverberg
and Ghada El-Hajj Fuleihan.
Management of primary hyperparathyroidism. Shonni J Silverberg and .Ghada El-Hajj Fuleihan.

Pedro Kallas Curiati 485


HIPERTIREOIDISMO E
TIREOTOXICOSE
Hipertireoidismo é hiperatividade tireoidiana, enquanto que tireotoxicose é
síndrome causada por excesso de hormônio tireoidiano.
Há tireotoxicose decorrente de hipertireoidismo em doença de Graves, bócio
multinodular tóxico, adenoma tóxico, tumores trofoblásticos, adenoma hipofisário
produtor de hormônio tireoestimulante (TSH) e resistência ao hormônio tireoidiano. Há
tireotoxicose não associada a hipertireoidismo em tireoidite subaguda, tireoidite de
Hashimoto, tireoidite silenciosa pós-parto ou esporádica, tireoidite induzida por trauma,
tireoidite induzida por radiação, uso de Amiodarona, tireotoxicose factícia, struma
ovarii, metástases funcionantes de carcinoma folicular de tireoide, tecido tireoidiano
ectópico e ingesta de iodo.

Doença de Graves

Definição
A doença de Graves é uma síndrome caracterizada por hipertireoidismo,
dermopatia localizada (mixedema pré-tibial), oftalmopatia, bócio e, raramente
acropaquia (baqueteamento digital).

Epidemiologia e fisiopatologia
Fatores genéticos, ambientais e constitucionais interagem, por mecanismos
desconhecidos, para provocar a doença autoimune. O principal fator causal do
hipertireoidismo na doença de Graves é a autoimunidade relacionada à produção de
anticorpos estimuladores da tireoide, que se ligam diretamente ao receptor de TSH dos
tireócitos. Já o antígeno implicado no processo imunológico da oftalmopatia de Graves
é o receptor de TSH presente nos fibroblastos e nos pré-adipócitos da região orbitária.
A doença de Graves é cerca de dez vezes mais comum em mulheres do que em
homens, o que pode estar relacionado aos efeitos moduladores dos estrógenos no
sistema imunitário. Sugere-se que certos eventos adversos podem desencadear a doença.
O tabagismo tem sido bastante relacionado à ocorrência de oftalmopatia e
hipertireoidismo. Em ambientes com deficiência de iodo, a sua suplementação pode
precipitar a doença de Graves em alguns indivíduos.
A doença de Graves e a tireoidite de Hashimoto podem concentrar-se na mesma
família ou coexistir em um mesmo paciente.

Quadro clínico
A intensidade e a duração da doença e a idade do paciente determinam a
apresentação clínica. Sintomas de hipertireoidismo incluem hiperatividade,
irritabilidade, insônia, ansiedade, intolerância ao calor, sudorese excessiva, palpitações,
fadiga, fraqueza, dispneia ao exercício por exacerbação de asma, perda de peso com
hiperfagia, prurido, sede e poliúria, hiperdefecação, oligomenorreia ou amenorreia,
perda de libido, disfunção erétil, dispepsia e náusea. Sinais de hipertireoidismo incluem
taquicardia sinusal, fibrilação atrial, tremores finos, hipercinesia, hiperreflexia, pele
quente e úmida, eritema palmar, onicólise, queda de cabelos, miopatia proximal,
insuficiência cardíaca de alto débito e paralisia periódica hipocalêmica.

Pedro Kallas Curiati 486


Oftalmopatia clinicamente evidente ocorre em cerca de metade dos pacientes
com doença de Graves, podendo também estar presente em cerca de dez por cento dos
casos de hipotireoidismo autoimune. Sintomas incluem desconforto ocular, sensação de
areia nos olhos, dor retro-ocular, diminuição da acuidade visual, lacrimejamento e
diplopia. Sinais incluem edema periorbitário, retração palpebral, eritema conjuntival,
edema conjuntival, proptose, oftalmoplegia, perda da visão de cores por neuropatia e
papiledema. Há associação com tabagismo.
Dermopatia ou mixedema pré-tibial tem como localização a área pré-tibial e o
dorso dos pés. A lesão é caracterizada pelo espessamento da pele com pápulas ou placas
elevadas hiperpigmentadas violáceas. A deposição de glicosaminoglicanos na derme
dessa região pode promover prurido e, às vezes, dor.
Acropaquia ocorre em cerca de dois por cento dos casos e, assim como a
dermopatia, sugere doença tireóidea autoimune severa.
O bócio da doença de Graves é difuso.

Avaliação complementar
Todos os pacientes apresentam níveis de TSH suprimidos em associação com
níveis elevados de T4 livre. Se o TSH estiver baixo e o T4 livre for normal, sugere-se
dosar o T3 livre.
Em aproximadamente três quartos dos pacientes com doença de Graves são
encontrados anticorpos anti-tireoperoxidase (anti-TPO) e/ou anti-tireoglobulina (anti-
Tg).
A detecção de anticorpo anti-receptor de TSH (TRAb) no soro do paciente com
doença de Graves chega a 99%, porém sua aplicação clínica tem limitações, pois cerca
de 25% dos pacientes com tireoidite de Hashimoto também apresentam TRAb
circulante.
A cintilografia e a captação tireoidianas não são importantes para o diagnóstico
de doença de Graves e devem ser solicitadas em caso de programação de terapia com
iodo radioativo ou suspeita de outras causas de tireotoxicose.
Métodos de imagem ocular podem demonstrar espessamento da musculatura
extra-ocular ou aumento da gordura orbitária mesmo na ausência de sintomas ou sinais
clínicos de oftalmopatia de Graves. A tomografia computadorizada é um dos melhores
exames para visualização da órbita na doença de Graves e deve ser realizada, sempre
que possível, sem o uso de contraste iodado. Já a ressonância nuclear magnética tem
sido utilizada para avaliar tanto o comprometimento muscular como a atividade da
doença. Cintilografia com Octreoscan, derivado sintético de somatostatina marcado com
índio 111, ou com gálio 67 pode ser utilizada para avaliar objetivamente a atividade da
oftalmopatia.

Tratamento

Tratamento farmacológico
As tionamidas Metimazol e Propiltiouracil são os agentes de escolha para o
tratamento da doença de Graves. Metimazol inibe a organificação do iodeto na glândula
tireoide e Propiltiouracil inibe a captação de iodeto pela glândula e, em concentrações
elevadas, bloqueia a enzima 5’-desiodase, que converte T4 a T3 perifericamente.
Os agentes anti-tireoidianos têm efeitos imunossupressores desejáveis no
tratamento da doença de Graves, com diminuição dos títulos de TRAb e de moléculas
imunologicamente importantes, além de diminuição da infiltração linfocítica tireoidiana.
Os indivíduos previamente tratados com Propiltiouracil, quando submetidos ao

Pedro Kallas Curiati 487


tratamento com radioiodo, exibem resistência maior que aqueles medicados com
Metimazol.
Fatores que favorecem a escolha pelo uso de agentes anti-tireoidianos incluem
sexo feminino, idade de vinte a quarenta anos, títulos elevados de anti-TPO, bócio
pequeno, hipertireoidismo moderado e TRAb inferior a 30U/L. Fatores desfavoráveis à
escolha pelo uso de agentes anti-tireoidianos incluem oftalmopatia, bócio volumoso e
paciente jovem.
Raramente são necessárias doses iniciais elevadas de agente anti-tireoidiano. O
Propiltiouracil é apresentado na forma de comprimidos de 100mg e habitualmente
introduzido com dose de 100-150mg de 8/8 horas, reduzida para 50mg de 12/12 a 8/8
horas quando for atingido o eutireoidismo. O Metimazol (Tapazol®) é apresentado na
forma de comprimidos de 5mg e usualmente iniciado com 5-15mg de 12/12 horas,
podendo atingir 30mg de 12/12 horas, com dose de manutenção de 5-10mg/dia.
Recomenda-se o uso do agente anti-tireoidiano por doze a dezoito meses antes
de determinar se houve remissão imunológica.
Efeitos colaterais incluem prurido, reação urticariforme, artralgia, febre, aftas,
náusea e icterícia. Reações graves ocorrem em 0.2-0.5% dos usuários e incluem
agranulocitose, anemia aplástica, vasculite e hepatotoxicidade, especialmente com o
Propiltiouracil. Pode haver reação cruzada entre os agentes anti-tireoidianos.
Propiltiouracil é preferido em relação ao Metimazol durante o primeiro trimestre
de gestação. No entanto, em função do risco de hepatotoxicidade, deve-se considerar
sua substituição por Metimazol durante o segundo ou o terceiro trimestres.

Radioiodo
O tratamento da tireotoxicose com radioiodo é considerado um recurso seguro,
eficiente e com excelente relação custo-benefício, produzindo eutireoidismo em seis a
oito semanas.
Muitos especialistas são favoráveis a essa modalidade como terapia inicial
preferencial em adultos Alguns, entretanto, recomendam tratar o primeiro episódio de
hipertireoidismo da doença de Graves com agente anti-tireoidiano, indicando radioiodo
para hipertireoidismo recorrente e pacientes com idade superior a cinquenta anos, em
função da maior incidência de fibrilação atrial.
O radioiodo deve ser evitado em crianças com idade inferior a sete anos e não
deve ser usado em grávidas e lactantes. As mulheres em idade fértil devem ser
orientadas a evitar a concepção por três a seis meses após o tratamento. A oftalmopatia
pode exacerbar após o radioiodo, especialmente em fumantes, o que pode ser prevenido
com o uso concomitante de corticosteroide, como Prednisona 40mg/dia ou
0.5mg/kg/dia, iniciado no dia seguinte à dose e com redução progressiva durante dois a
três meses. Pacientes alérgicos a contraste iodado geralmente não são alérgicos a
radioiodo.
A administração de agente anti-tireoidiano imediatamente antes ou após o
radioiodo pode reduzir sua eficiência terapêutica, particularmente no caso do
Propiltiouracil, sendo o Metimazol o agente preferido.
Os pacientes com tireotoxicose branda ou moderada podem receber o radioiodo
sem necessitar de pré-tratamento com agente anti-tireoidiano, mas recomenda-se utilizar
um β-bloqueador, como Propranolol 20-80mg de 8/8 a 6/6 horas. Em pacientes muito
tóxicos, especialmente se idosos e portadores de comorbidades, é aconselhável utilizar
agente anti-tireoidiano com o intuito de alcançar estado de eutireoidismo, com
suspensão sete a quatorze dias antes da administração do radioiodo. Se os sintomas de
tireotoxicose persistirem, o uso pode ser retomado, embora com possibilidade de

Pedro Kallas Curiati 488


redução do grau de cura se antes de duas semanas após a dose de radioiodo.
A incidência de hipotireoidismo após dez anos é próxima de 50%,
independentemente da dose utilizada, com 3-5% ao ano a partir de então. Os fatores que
influenciam a resistência ao radioiodo e implicam em dose mais elevada são idade
superior a quarenta anos, sexo feminino, hipertireoidismo severo, bócio com volume
médio ou grande e tratamento prévio com agente anti-tireoidiano, especialmente
Propiltiouracil.
Cerca de 1% dos pacientes submetidos ao radioiodo pode apresentar tireoidite
por radiação cinco a dez dias após o tratamento, com dor na região cervical,
eventualmente associada a tireotoxicose por liberação de hormônios tireoidianos.
Geralmente, os anti-inflamatórios não-hormonais são suficientes para obter analgesia.
Prednisona, com 20-40mg/dia, raramente é necessária.

Cirurgia
Cirurgia na doença de Graves está indicada em casos especiais, como indivíduos
com alergia a tionamidas e impossibilidade de tratamento com radioiodo em função de
gravidez, coexistência de nódulo tireóideo de natureza indeterminada, tireomegalia com
sintomas compressivos, idade muito jovem ou escolha própria.
Quando não há possibilidade de preparo pré-operatório do paciente com agente
anti-tireoidiano para leva-lo ao eutireoidismo, é preconizado o uso de Propranolol
isolado ou em combinação com Iodeto de Potássio ou Ácido Iopanóico.
A incidência das complicações depende, essencialmente, da habilidade do
cirurgião. Hipotireoidismo e hipoparatireoidismo são as possíveis complicações
cirúrgicas e a taxa de mortalidade é inferior a 1% nos grandes centros. Em cerca de um
quarto das cirurgias os pacientes evoluem com hipocalcemia transitória, que pode ser
corrigida com suplementação oral de cálcio e vitamina D. Quando a hipocalcemia é
sintomática ou o cálcio ionizado encontra-se inferior a 4.0mg/dL (2.0mEq/L), a
reposição deve ser intravenosa.

Oftalmopatia
Não há consenso quanto à melhor abordagem terapêutica. Deve-se levar em
consideração a atividade da doença, que pode ser avaliada com base em avaliação
clínica evolutiva e exames de imagem.
Oftalmopatia leve, caracterizada por proptose moderada e retração palpebral,
geralmente requer pequenos cuidados e recomendação quanto a cessação do tabagismo.
Quando há lagoftalmo, deve-se evitar a exposição da esclera e da córnea durante o sono
por meio da oclusão ocular e/ou do uso de pomada ou gel lubrificantes. A oclusão pode
ser realizada com máscaras sem orifícios nos olhos ou prendendo a pálpebra superior na
região malar com micropore adesivo. O uso contínuo de colírios lubrificantes à base de
Metilcelulose a 5% ou a 10% e a utilização de óculos escuros são medidas importantes,
pois geralmente há ressecamento dos olhos e fotofobia. A retração palpebral costuma
melhorar com o controle do hipertireoidismo, podendo-se utilizar colírio de Guanetidina
a 5% ou a 10% quando isso não ocorre, com efeito não duradouro. Recentemente, vem
sendo utilizada a aplicação de toxina botulínica na pálpebra. Quando os métodos
anteriores não corrigirem a retração palpebral, indica-se a correção cirúrgica com
tarsotomia.
Oftalmopatia moderada é caracterizada por processo ativo lentamente
progressivo com predomínio inflamatório, manifestando-se por edema de pálpebra
superior e inferior, hiperemia conjuntival e quemose, sem comprometimento muito
significativo da motricidade ocular extrínseca. Neuropatia óptica com discreta

Pedro Kallas Curiati 489


diminuição da visão pode estar presente. Além dos cuidados preconizados para a
oftalmopatia leve, pode-se obter melhora do edema palpebral com a elevação do
decúbito do paciente durante o sono. As principais opções terapêuticas são radioterapia
isolada e radioterapia precedida por corticoterapia.
Oftalmopatia grave é caracterizada por processo ativo e rapidamente
progressivo, com comprometimento da visão decorrente de neuropatia óptica e/ou lesão
de córnea. Há intenso processo inflamatório, com comprometimento importante de
vários músculos extra-oculares e, frequentemente, aumento da pressão intra-ocular. A
terapia pode ser conduzida de várias formas, geralmente com associação de diferentes
abordagens, como corticosteroides, imunossupressores, descompressão orbitária e
plasmaférese.

Bócio multinodular tóxico (doença de Plummer)


Trata-se da segunda causa mais comum de hipertireoidismo. Incide com maior
frequência em mulheres com idade superior a cinquenta anos.
A formação do bócio multinodular autônomo e, eventualmente, tóxico está
relacionada a heterogeneidade funcional inerente dos nódulos tireóideos, fatores de
crescimento, agentes geradores de bócio, disponibilidade de iodo e anormalidades
genéticas. A tireotoxicose pode ser precipitada pelo aumento da oferta de iodo a
pacientes com bócio multinodular, tanto pela mudança da zona rural para a zona urbana
com maior consumo de alimento rico em iodo e sal iodado como por via medicamentosa
ou contraste iodado, com o fenômeno denominado iodo-Basedow.
O quadro clínico é discreto e a maior parte dos pacientes é assintomática.
Quando presentes, os sintomas têm instalação insidiosa e há predomínio de
manifestações cardíacas, como taquicardia sinusal, fibrilação atrial e insuficiência
cardíaca, possivelmente em função da faixa etária dos indivíduos afetados. Idosos
podem apresentar queixas de fadiga muscular, perda de apetite, cansaço, fraqueza,
inapetência e depressão, o que caracteriza hipertireoidismo apático. O bócio
multinodular tóxico não se associa a oftalmopatia ou dermopatia, mas os bócios tendem
a ser volumosos e podem provocar sintomas compressivos.
A avaliação laboratorial demonstra TSH suprimido e níveis de T3 e T4 livre
normais ou no limite superior da normalidade. A ultrassonografia identifica a presença
de pequenos nódulos não palpáveis e determina suas características. A cintilografia e a
captação tireoidianas com 99mTc, 123I ou 131I são úteis no diagnóstico diferencial do
hipertireoidismo, ajudando a distinguir entre tireoidite, bócio difuso tóxico e bócio
multinodular tóxico, caracterizado por distribuição heterogênea. A tomografia
computadorizada da região cérvico-torácica permite estabelecer a presença de desvio
traqueal e/ou compressão de outras estruturas. A tomografia computadorizada e a
ressonância nuclear magnética de tórax permitem detectar bócios mergulhantes como
achados incidentais.
O uso de contraste iodado deve ser evitado pela possibilidade de induzir
hipertireoidismo em indivíduos portadores de bócio multinodular simples, com efeito
iodo-Basedow.
O tratamento do bócio multinodular tóxico inclui tionamidas, remoção cirúrgica,
ablação com radioiodo e injeção percutânea de etanol. Diferentemente da doença de
Graves, as tionamidas não promovem remissão da doença, sendo utilizadas para
promover o eutireoidismo antes que o paciente seja submetido a cirurgia ou radioiodo,
que constituem modalidades terapêuticas preferenciais.
O 131I é o isótopo de escolha para o tratamento com radioiodo, geralmente sendo
requeridas doses elevadas para o sucesso terapêutico, pois o bócio normalmente é

Pedro Kallas Curiati 490


volumoso. Pode-se utilizar TSH recombinante para estimular a captação do radioiodo e
reduzir a dose fornecida de 131I. Recomenda-se limitar o consumo dietético de iodo sete
dias antes e durante a exposição à radiação para elevar ao máximo o efeito terapêutico.
O paciente deve ser submetido a um pré-tratamento com Metimazol até que seja obtido
o eutireoidismo, podendo descontinuar o uso quando a restrição de iodo for iniciada. O
efeito indesejável do radioiodo é o surgimento de hipotireoidismo.
Tireoidectomia pode ser indicada quando o bócio tem grande volume e provoca
sintomas compressivos e quando o paciente recusa o tratamento com o radioiodo,
podendo-se optar pela remoção total da glândula ou pela remoção parcial. Indica-se o
tratamento pré-operatório com agente anti-tireoidiano, mas não com iodo.

Adenoma tóxico
O adenoma tóxico funcionante autônomo surge de alterações monoclonais em
tireócitos, com aumento da captação de iodo e da síntese de hormônio tireoidiano,
independentemente de TSH. Trata-se da terceira causa de hipertireoidismo, com maior
incidência em mulheres, preferencialmente acima de sessenta anos. Aparentemente, sua
distribuição geográfica tem relação com deficiência de iodo.
A partir de três a quatro centímetros, os adenomas tóxicos são palpáveis e
apresentam produção hormonal suficiente para gerar manifestações clínicas. Os
sintomas são insidiosos em relação à doença de Graves, com predomínio de
acometimento cardiovascular nos pacientes mais idosos e ausência de sinais de
oftalmopatia.
Quando a produção hormonal do nódulo excede o limite normal, o nível de TSH
é suprimido. Adicionalmente à dosagem do T4 livre, é importante determinar T3 e T3
livre, que podem ser secretados primariamente em alguns casos. Os anticorpos contra a
tireoide são negativos. A cintilografia é o procedimento diagnóstico preliminar, em que
o adenoma tóxico surge como área morna ou quente conforme o grau de depressão do
tecido tireóideo adjacente. Assim como em qualquer outra lesão nodular solitária, a
ultrassonografia não acrescenta nenhuma informação ao diagnóstico funcional, podendo
haver aumento da vascularização em nódulos quentes em relação aos nódulos frios.
A doença nodular autônoma pode ainda apresentar-se na forma de
hipertireoidismo subclínico.
As tionamidas levam o paciente ao eutireoidismo, mas com a descontinuidade
do agente a tireotoxicose recidivará. O 131I tem sido usado com sucesso para tratar esses
nódulos. Pelo risco de hipotireoidismo após o radioiodo, pode-se preferir a remoção
cirúrgica do adenoma tóxico. Quando há sinais de compressão ou grande nódulo com
diâmetro superior a 6cm, a nodulectomia ou a lobectomia são os procedimentos
indicados. Injeção percutânea de etanol constitui alternativa em nódulos com volume de
até 30mL, tendo como efeitos adversos possíveis dor local, hematoma, febre,
exacerbação transitória do hipertireoidismo e disfonia temporária.

Tumores trofoblásticos
A mola hidatiforme e o coriocarcinoma constituem a doença trofoblástica
gestacional, que é uma causa rara de hipertireoidismo. Grandes quantidades de
gonadotrofina coriônica são produzidas, com fraca atividade similar à do TSH. O
tratamento da mola com remoção cirúrgica ou do coriocarcinoma com quimioterapia
cura o hipertireoidismo.

Tireotoxicose não-associada ao hipertireoidismo


A tireoidite subaguda, também conhecida como tireoidite de De Quervain,

Pedro Kallas Curiati 491


tireoidite dolorosa, tireoidite de células gigantes e tireoidite granulomatosa, é causada
por comprometimento tireóideo após infecção por vírus do trato respiratório superior. É
mais comum em mulheres, com pico de incidência na quarta e na quinta décadas de
vida, ocorrendo raramente em crianças e idosos. O início pode ser súbito ou gradual,
com dor irradiada para ouvidos, mandíbula e área occipital. A tireoide usualmente
encontra-se endurecida e a dor pode ser desencadeada por movimentação da cabeça ou
deglutição. Sintomas sistêmicos são comuns e podem incluir indisposição geral, febre,
mialgia e cansaço. O episódio de tireoidite geralmente é autolimitado, com início uma a
três semanas após infecção de vias aéreas superiores e duração de seis a doze semanas,
podendo estender-se por até um ano. As manifestações de tireotoxicose, quando
presentes, regridem em cerca de seis semanas. O processo de recuperação glandular
pode passar por fase de hipotireoidismo transitório, que pode perdurar por até dois
meses. A velocidade de hemossedimentação encontra-se bastante elevada durante a fase
aguda, bem como a proteína C reativa. O número de leucócitos está normal ou
levemente aumentado. O nível sérico de anti-TPO habitualmente é normal.
Tireoglobulina pode estar elevada. A captação com radioiodo está caracteristicamente
diminuída. A ultrassonografia com Doppler de tireoide revela parênquima glandular
difusamente hipoecogênico e baixo fluxo, com vascularização normal ou diminuída. A
punção aspirativa por agulha fina identifica as células gigantes características da
tireoidite subaguda. Geralmente, Ácido Acetilsalicílico ou outro anti-inflamatório não-
hormonal aliviam a dor moderada. Para dores mais intensas, pode ser necessário o uso
de glicocorticoide, com Prednisona 20-60mg/dia inicialmente por duas a quatro
semanas, com redução progressiva da dose no transcorrer de quatro a seis semanas. A
dor deve desaparecer em um a dois dias e se isso não acontecer o diagnóstico deve ser
questionado. A tireotoxicose não requer tratamento específico, mas β-bloqueadores,
como Propranolol 40-120mg/dia e Atenolol 25-50mg/dia, podem ser úteis para obter
controle sintomático. O uso de anti-tireoidianos não está indicado. Quando os sintomas
de hipotireoidismo são intensos o uso de Levotiroxina é indicado, com 50-100mcg/dia,
porém de forma temporária, com duração de seis a oito semanas e reavaliação após para
confirmar que a deficiência não é permanente.
Ocasionalmente, a tireoidite de Hashimoto, também denominada tireoidite
crônica ou linfocitária, acompanha-se de tireotoxicose moderada que pode perdurar por
meses, especialmente na fase inicial, com cerca de 40% de evolução para
hipotireoidismo. Os níveis séricos de TSH estão suprimidos e os níveis séricos de
hormônios tireoidianos estão elevados. A inflamação da tireoide provoca liberação de
antígenos na corrente sanguínea, com produção de anticorpos em muitos pacientes. Os
títulos de anti-TPO encontram-se elevados em mais da metade dos casos e de anti-Tg
em cerca de um quarto. Existe forte predomínio no sexo feminino. A maioria dos
pacientes apresenta bócio, classicamente firme, com consistência aumentada, móvel à
deglutição, às vezes acompanhado de dor local e com superfície irregular à palpação.
Ultrassonografia revela padrão heterogêneo predominantemente hipoecogênico e, por
vezes, com pseudonódulos, imagens devidas a alterações inflamatórias locais. A
coexistência com bócio multinodular não é rara, sendo sugerida por glândula
grosseiramente nodular em paciente com hipotireoidismo moderado e títulos de
anticorpos anti-tireoidianos positivos. A punção aspirativa por agulha fina demonstra a
presença de linfócitos, macrófagos, coloide escasso e poucas células epiteliais. Quando
a tireotoxicose ocorre na tireoidite de Hashimoto, costuma ser transitória e não exige
terapia adicional além do uso de β-bloqueadores para alívio dos sintomas. Em caso de
persistência por período superior a três meses, aconselha-se avaliação complementar
para excluir doença de Graves e bócio multinodular tóxico. O tratamento do

Pedro Kallas Curiati 492


hipotireoidismo é feito com administração de Levotiroxina com o objetivo de
normalizar o TSH.
A tireoidite indolor pós-parto, tal como o nome indica, manifesta-se nos
primeiros meses após o parto. É mais frequente nas pacientes com títulos elevados de
anti-TPO durante o primeiro trimestre da gravidez ou imediatamente após o parto e nas
mulheres com outras doenças autoimunes ou antecedente familiar de doença autoimune
da tireoide. A tireoidite pós-parto agravada pelo rebote imunitário que se segue à parcial
supressão imunológica causada pela gravidez precipita a expressão clínica da tireoidite
de Hashimoto anteriormente silenciosa. A maioria das pacientes apresenta um bócio
pequeno e indolor entre o segundo e o sexto meses após o parto. A evolução
classicamente é trifásica, com fase de tireotoxicose com início um a seis meses após o
parto e duração de um a dois meses, fase de hipotireoidismo com início quatro a seis
meses após o parto e duração aproximada de seis meses e, em cerca de 80% dos casos,
recuperação da função tireoidiana dentro de um ano após o parto. O hipotireoidismo
crônico é mais frequente em nulíparas e mulheres com história de abortos repetidos.
Depois do primeiro episódio, há possibilidade significativa de recorrência em gestações
futuras. As dosagens de hormônios tireoidianos, TSH e anticorpos anti-TPO e anti-Tg,
positivos na maioria dos casos, ajudam a confirmar o diagnóstico. A velocidade de
hemossedimentação é normal, o que auxilia na distinção com a tireoidite subaguda. Em
doentes com fase de tireotoxicose evidente, mas sem sinais claros de doença de Graves,
pode-se recorrer à captação com 131I para o diagnóstico diferencial. Após o teste, as
pacientes que estão amamentando devem suspender o aleitamento por no mínimo dois
dias. A fase de tireotoxicose não necessita habitualmente de tratamento. Se os sintomas
forem muito acentuados, podem ser utilizados β-bloqueadores, como Propranolol 20-
40mg duas vezes ao dia, estando os anti-tireoidianos contraindicados. Se a fase de
hipotireoidismo for prolongada ou se a paciente apresentar sintomas, deve ser
administrada Levotiroxina, com suspensão entre o sexto e o nono mês para reavaliação
da necessidade. É necessária reavaliação periódica em função do risco de
desenvolvimento de hipotireoidismo permanente.
A tireoidite indolor esporádica é uma entidade de diagnóstico difícil e ainda mal
caracterizada. Para alguns autores, trata-se de uma forma subaguda da tireoidite
autoimune crônica, sendo ambas caracterizadas por infiltrado linfocítico. Um pequeno
bócio está presente em cerca de metade dos pacientes. O curso clínico é semelhante ao
da tireoidite pós-parto, distinguindo-se dela pela ausência de relação com a gravidez. Os
sintomas são leves na maior parte dos casos. Uma parcela dos pacientes apresenta fase
de hipertireoidismo, que dura em média três a quatro meses, podendo sobrevir fase de
hipotireoidismo e, finalmente, retorno para função normal na maior parte dos pacientes.
Os anticorpos anti-TPO estão presentes em cerca de metade dos casos, geralmente em
títulos mais baixos do que na tireoidite de Hashimoto. Também é possível o uso de
captação de 131I quando o diagnóstico diferencial com doença de Graves é difícil.
Quando necessário, o tratamento do hipertireoidismo sintomático é feito com β-
bloqueadores. O hipotireoidismo é medicado com Levotiroxina de forma semelhante à
preconizada para a tireoidite pós-parto.
A causa mais frequente de tireoidite infecciosa é a infecção bacteriana,
especialmente por Staphylococcus aureus, Streptococcus pyogenes ou Streptococcus
pneumoniae. Outros agentes etiológicos incluem fungos, micobactérias e parasitas.
Ocorre geralmente em pacientes que já têm doença tireoidiana, como câncer de tireoide,
tireoidite de Hashimoto, bócio multinodular e anomalias congênitas da tireoide, e em
pacientes imunossuprimidos, idosos ou debilitados. A tireoidite supurativa bacteriana é
mais frequente em mulheres com idade entre vinte e quarenta anos. Os pacientes

Pedro Kallas Curiati 493


apresentam dor intensa, aguda e unilateral na região anterior do pescoço, com massa
flutuante na região da tireoide e eritema cutâneo. Febre, disfagia e disfonia também
podem estar presentes. Os sintomas podem ser precedidos por uma infecção de vias
aéreas superiores. A apresentação clínica em pacientes com síndrome da
imunodeficiência adquirida tende a ser crônica e insidiosa quando a causa é infecção
por parasita, fungo, micobactéria ou agentes oportunistas, como Pneumocystis carinii. A
velocidade de hemossedimentação está elevada, o leucograma revela leucocitose com
desvio para a esquerda e a avaliação da função tireoidiana geralmente é normal,
podendo ocorrer hipotireoidismo ou hipertireoidismo raramente. Nos pacientes
suspeitos, recomenda-se realizar uma ultrassonografia cervical, que frequentemente
revela a formação de abscesso ou inchaço unilobar. A causa da infecção é determinada
pela punção aspirativa da lesão com obtenção de material para coloração de Gram,
cultura e antibiograma. A cintilografia radioisotópica é desnecessária, exceto nos casos
em que o diagnóstico é duvidoso, revelando geralmente captação diminuída ou ausente
em área no lobo afetado. O tratamento consiste em antibioticoterapia parenteral e
drenagem cirúrgica do abscesso.
Aproximadamente 1% dos pacientes submetidos a terapia actínica para controle
da tireotoxicose desenvolvem tireoidite como consequência da radiação cinco a dez dias
após o procedimento. Os pacientes referem dor na região anterior do pescoço e ocorre
exacerbação da tireotoxicose. O tratamento para alívio da dor é feito com anti-
inflamatórios não-hormonais, raramente sendo necessário utilizar Prednisona 40-
60mg/dia. β-bloqueador é usado com frequência para o controle dos efeitos periféricos
dos hormônios tireoidianos. A glândula desenvolve uma extensa fibrose após período de
seis a dezoito semanas. A tireoidite também poderá ocorrer após radioterapia externa
para tratamento de linfoma ou câncer de cabeça e pescoço. Estão mais propensos a
desenvolver tireoidite pós-radiação externa pacientes jovens, mulheres, pacientes com
hipotireoidismo anterior ao procedimento e pacientes expostos a doses elevadas de
radiação, com manifestação dentro dos primeiros três meses após a radioterapia. Todos
os pacientes antes de serem submetidos a radiação externa no pescoço devem ser
avaliados com níveis séricos de TSH e T4 livre, anti-TPO, anti-Tg e TRAb, com
reavaliação da função tireoidiana um mês após o tratamento e subsequentemente a cada
três a seis meses pelos próximos cinco anos.
O quadro de excesso de ingesta de hormônios tireoidianos prescritos por
profissional pouco habituado a manipular doses adequadas de T3 ou T4 ou voluntária
para obter maior gasto energético para perda ponderal é frequente. O quadro clínico da
tireotoxicose factícia dependerá da quantidade e da duração da ingesta hormonal. O
nível de TSH e a captação com radioiodo estarão suprimidos. Os níveis circulantes de
T4 ou T3 se encontram acima do limite superior da normalidade, mas estarão
deprimidos se houver consumo preferencial de T3 livre. O baixo nível sérico de
tireoglobulina é evidência de que há fonte exógena de hormônio tireoidiano.
Struma ovarii é uma síndrome na qual o ovário ou o pedículo ovariano contêm
tecido tireoidiano ectópico, que eventualmente pode tornar-se hiperativo e resultar em
tireotoxicose. Extremamente rara, com malignidade em cerca de 5% dos casos.
Ressecção cirúrgica é o tratamento de escolha para quadros benignos. Em caso de
doença maligna, que pode ocorrer em cerca de 5% dos casos, com metástases descritas
em fígado e peritônio, o tumor ovariano primário e a tireoide devem ser removidos para
que a terapia com 131I possa ser realizada.
Outra causa de tireotoxicose são as metástases funcionantes de câncer tireóideo,
especialmente em pulmões, mas também em fígado e ossos. O tratamento das
metástases com 131I é efetivo somente após tireoidectomia total.

Pedro Kallas Curiati 494


Em geral, a tireoide pode manter sua função normal mesmo em caso de
exposição a grandes quantidades de iodo. Os indivíduos sob risco de desenvolver
hipertireoidismo causado por iodo incluem os portadores de bócio por deficiência de
iodo, portadores de bócio multinodular não-tóxico e pacientes eutireoideos tratados
previamente com agente anti-tireoidiano por doença de Graves.
A Amiodarona exibe tendência peculiar para provocar disfunção tireóidea,
existindo dois subtipos de tireotoxicose induzida por Amiodarona. O tipo I é encontrado
em indivíduos suscetíveis, portadores de bócio multinodular, adenoma funcionante ou
doença de Graves latente, e desencadeado pelo excesso de iodo. Nesse caso, conforme a
situação cardiológica, a Amiodarona pode ser retirada ou mantida por algum tempo
após a introdução de agente anti-tireoidiano, mas parcela dos pacientes desenvolve
forma refratária de difícil tratamento em que a tireoidectomia pode ser a alternativa
eficaz. O tipo II corresponde a uma forma de tireoidite destrutiva provocada pelo efeito
tóxico direto do fármaco meses ou anos após a sua introdução podendo ocorrer em
indivíduos com glândula previamente normal ou em portadores de tireoidite linfocitária
ou subaguda. Nesse caso, a Amiodarona geralmente pode ser mantida, pois a recidiva da
tireotoxicose é muito rara. O tratamento é feito com glicocorticoides em doses elevadas.
Ultrassonografia com Doppler revela aumento da vascularização no tipo I e redução no
tipo II. Com relação ao hipotireoidismo induzido por Amiodarona, recomenda-se
triagem com anti-TPO e nível sérico de TSH antes do uso da droga e, em caso de
presença dos autoanticorpos, reavaliação da função tireoidiana a cada seis meses.
O Lítio apresenta importantes efeitos tireoidianos inibitórios, comumente
causando hipotireoidismo passageiro ou persistente. Paradoxalmente, seja por efeito
tóxico direto sobre os tireócitos ou por meio do incremento iódico em função da
redução da proteólise da tireoglobulina, induz tireoidite silenciosa e tireotoxicose por
liberação de hormônios tireoidianos. Do ponto de vista preventivo, recomenda-se a
medida de TSH, T4 livre e anticorpos anti-TPO e a realização de ultrassonografia de
tireoide antes do início da terapia. O TSH deverá ser repetido após três meses e a cada
seis a doze meses a partir de então, durante a vigência do tratamento.

Hipertireoidismo subclínico
O hipertireoidismo subclínico é uma síndrome caracterizada pela diminuição do
nível sérico de TSH na presença de concentração sérica normal de T4 livre e T3, em
indivíduos assintomáticos ou minimamente sintomáticos.
Essa síndrome é mais comum em mulheres, idosos e indivíduos com bócio,
antecedente pessoal ou familiar de tireoidopatia, fibrilação atrial e/ou ingesta de
medicamento que contenha iodo, como Amiodarona.
As causas do hipertireoidismo subclínico são as mesmas do hipertireoidismo
clínico e da tireotoxicose, sendo a mais frequente o excesso de ingesta de Levotiroxina
intencional, como no tratamento de pacientes com carcinoma de tireoide, ou não-
intencional, como no tratamento inadequado de pacientes com hipotireoidismo.
Nos pacientes com hipertireoidismo subclínico de causa endógena, o TSH
normaliza-se em cerca de metade dos casos sem que seja instituído qualquer tratamento.
Os pacientes cujo TSH não se normaliza poderão evoluir para hipertireoidismo clínico.
Os pacientes com hipertireoidismo subclínico podem apresentar sinais e
sintomas de excesso de hormônio tireoidiano, com consequente diminuição da
qualidade e vida. Sobre o sistema cardiovascular, os principais efeitos de curto prazo
são taquicardia sinusal, extra-sístoles supraventriculares e fibrilação atrial, enquanto que
os principais efeitos a longo prazo são disfunção diastólica do ventrículo esquerdo e
disfunção sistólica do ventrículo esquerdo durante o esforço. Sobre o metabolismo

Pedro Kallas Curiati 495


mineral ósseo, o hipertireoidismo subclínico aumenta a taxa de remodelação óssea e
provoca um balanço negativo de cálcio, com perda de massa óssea e desenvolvimento
de osteoporose.
Alterações laboratoriais e bioquímicas que ocorrem no hipertireoidismo clínico
também podem ser identificadas no hipertireoidismo subclínico, mas em menor grau de
intensidade. A avaliação complementar ainda inclui cintilografia de tireoide e, nas
mulheres, densitometria óssea. Em caso de áreas focais com captação aumentada de
marcador na cintilografia de tireoide, ultrassonografia pode ser utilizada para identificar
nódulos.
Quando hospitalizados, parte dos pacientes eutireoideos apresenta nível sérico
de TSH alterado de forma transitória, podendo estar diminuído em cerca de dois terços e
aumentado no restante. A síndrome do eutireoideo doente ocorre habitualmente na fase
de recuperação de uma doença grave e consiste em diagnóstico diferencial de
hipotireoidismo subclínico.
Doenças hipotalâmicas e hipofisárias podem causar a diminuição do TSH. A
Dopamina e os glicocorticoides diminuem a secreção do TSH. O Ácido Acetilsalicílico
e a Furosemida inibem a ligação do T4 e do T3 na globulina ligadora da tiroxina (TBG).
Amiodarona pode aumentar a secreção de T4 e T3. A gonadotrofina coriônica estimula
a tireoide, particularmente na paciente que apresenta hiperemese gravídica, com
elevação da secreção de T4 e T3 e supressão do TSH. Em idosos, pode-se encontrar
TSH diminuído como consequência da redução do clearance renal dos hormônios
tireoidianos. Níveis diminuídos de TSH também são descritos em surtos agudos de
doenças psiquiátricas.
As indicações para o tratamento do hipertireoidismo subclínico são faixa etária
geriátrica, sintomas de hipertireoidismo, fatores de risco para doença cardiovascular e
fatores de risco para doença esquelética. Nos pacientes jovens sem fatores de risco é
preconizada apenas reavaliação periódica, sendo opcional a instituição de tratamento se
TSH inferior a 0.1mU/L, com maior recomendação em caso de uma ou mais áreas de
captação aumentada de marcador na cintilografia.
No hipertireoidismo subclínico exógeno, recomenda-se ajustar a dose da
Levotiroxina quando a supressão do TSH não é intencional ou administrar
betabloqueador cardiosseletivo, como o Bisoprolol, durante período inicialmente de seis
meses quando a supressão do TSH é intencional. Mulheres na pós-menopausa com
supressão intencional do TSH devem receber reposição de Cálcio e Vitamina D, além
de serem consideradas para instituição de terapia anti-reabsortiva para prevenir perda
óssea. No hipertireoidismo subclínico endógeno, recomenda-se o uso de anti-tireoidiano
em dosagem suficiente para normalizar o nível sérico de TSH durante período
inicialmente de seis meses ou radioiodo.

Crise tireotóxica
A crise tireotóxica é uma entidade rara com risco de morte.
Doença de Graves é a causa mais frequente de crise tireotóxica, embora também
possa ocorrer no adenoma tóxico e no bócio multinodular tóxico.
A fisiopatologia pode envolver aumento súbito de hormônio tireoidiano liberado
pela glândula por cirurgia tireoidiana, retirada de agente anti-tireoidiano, terapia com
radioiodo, uso de Amiodarona, palpação tireoidiana vigorosa e uso de contrastes
iodados. Outro mecanismo possível é a elevação repentina da disponibilidade do
hormônio tireoidiano livre no organismo pela redução da capacidade de ligação das
proteínas transportadoras de hormônio tireoidiano, como em cirurgia não-tireoidiana,
infecção, acidente vascular cerebral, tromboembolismo pulmonar, trabalho de parto,

Pedro Kallas Curiati 496


cetoacidose diabética, agressão emocional e trauma.
As principais manifestações clínicas são febre elevada, sudorese profusa,
taquicardia, agitação, confusão mental e delírio, com possibilidade de evolução para
estupor e coma. Também podem ocorrer disfunção gastrointestinal e hepática.
O diagnóstico da crise tireotóxica é essencialmente clínico e os resultados das
alterações laboratoriais podem não diferir do hipertireoidismo não-complicado. Devido
à gravidade e ao potencial de letalidade, deve-se colher hemograma, função renal,
enzimas hepáticas, albumina, eletrólitos, glicemia, coagulograma, perfil tireoidiano,
eletrocardiograma e radiografia de tórax. Outros exames deverão ser solicitados de
acordo com os achados clínicos. As alterações mais importantes são aumento de cálcio e
fosfatase alcalina por aumento da atividade osteoclástica, hiperglicemia, leucocitose
mesmo sem evidência de infecção, hipocalemia, aumento de transaminases e
bilurrubinas, taquicardia sinusal, taquiarritmias, TSH indetectável e aumento de T3, T4
e T4 livre, exceto na tireotoxicose por adenoma produtor de TSH. Cintilografia de
tireoide raramente é útil e pode diferenciar a tireotoxicose induzida por Amiodarona em
tipo I e tipo II e sugerir causas de tireotoxicose sem hipertireoidismo.
Critérios diagnósticos para crise tireotóxica
TEMPERATURA Pontos TAQUICARDIA Pontos
37.2-37.7º C 5 99-109bpm 5
37.8-38.2º C 10 110-119bpm 10
38.3-38.8º C 15 120-129bpm 15
38.9-39.3º C 20 130-139bpm 20
39.4-39.9º C 25 ≥ 140bpm 25
≥ 40º C 30 INSUFICIÊNCIA CARDÍACA Pontos
EFEITO NO SISTEMA NERVOSO CENTRAL Pontos Leve, com edema pedal 5
Leve, com agitação 10 Moderada, com roncos pulmonares 10
bibasais
Moderado, com delírio, psicose e/ou letargia 20 Grave, com edema pulmonar 15
extrema
Grave, com convulsões e/ou coma 30 Fibrilação atrial 20
DISFUNÇÃO HEPÁTICA E Pontos HISTÓRIA DE CAUSA Pontos
GASTROINTESTINAL PRECIPITANTE
Moderada, com diarreia, náusea, vômitos e/ou 10 Positiva 10
dor abdominal
Severa, com icterícia de causa indefinida 20
Interpretação:
- Pontuação inferior a 25 pontos indica tireotoxicose não-complicada;
- Pontuação de 25-44 pontos indica crise tireotóxica iminente;
- Pontuação superior a 44 pontos indica crise tireotóxica;
Causas de hiperatividade adrenérgica e/ou hipertermia que fazem parte do
diagnóstico diferencial incluem complicações pós-operatórias em paciente com
hipertireoidismo, sepse, síndrome de abstinência alcoólica, feocromocitoma,
intoxicação aguda catecolaminérgica ou anticolinérgica, hipertemia maligna e síndrome
neuroléptica maligna.
Os pacientes com crise tireotóxica devem ser controlados em unidade de terapia
intensiva com o objetivo de reduzir a exposição do organismo aos hormônios
tireoidianos, promover bloqueio beta-adrenérgico, oferecer medidas de apoio e
identificar e tratar o fator precipitante da descompensação.
Inibição da formação de hormônio tireoidiano pode ser feita com Metimazol
20mg a cada quatro a seis horas por via oral ou sonda nasogástrica ou,
preferencialmente, Propiltiuracil com 600mg de ataque e 400mg a cada oito horas de
manutenção por via oral ou sonda nasogástrica. Inibição da liberação de hormônio
tireoidiano pode ser feita com Lugol 10 gotas três vezes ao dia por via oral ou sonda

Pedro Kallas Curiati 497


nasogástrica, Iodeto de Potássio 5 gotas a cada seis horas por via oral ou sonda
nasogástrica, Iodeto de Sódio 0.5-1.0g por via intravenosa a cada doze horas ou, como
alternativa, Carbonato de Lítio 300mg a cada seis horas por via oral ou sonda
nasogástrica. Para evitar o aumento inicial da síntese e da secreção de hormônios
tireoidianos, o iodo só deve ser prescrito uma a duas horas após a introdução de anti-
tireoidiano. Bloqueio adrenérgico pode ser feito com Propranolol 40-80mg a cada
quatro a seis horas por via oral, Propranolol 0.5-1.0mg a cada cinco a dez minutos por
via intravenosa, Metoprolol 50-100mg a cada doze horas por via oral, Metoprolol 5mg a
cada cinco a dez minutos por via intravenosa, Esmolol 250-500mcg/kg de ataque e 50-
100mcg/kg/minuto de manutenção por via intravenosa ou, como alternativa, Diltiazem
30-60mg a cada quatro a seis horas por via oral ou sonda nasogástrica. Medidas de
suporte incluem Hidrocortisona 300mg de ataque 100mg de 8/8 horas de manutenção
por via intravenosa ou Dexametasona 2mg a cada seis horas por via intravenosa ou oral.
Tratamento da hipertermia pode ser conduzido com Acetaminofen. Correção da
desidratação pode ser feita com reposição de líquidos, incluindo Soro Glicosado a 5%,
eletrólitos e vitaminas. Tratamento da insuficiência cardíaca congestiva pode ser feito
com Digoxina.

Bibliografia
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Emergências clínicas: abordagem prática / Herlon Saraiva Martins.. [et al.]. – 5. ed. ampl. e rev. – Barueri, SP : Manole, 2010.
Manual da residência de terapia intensiva / editores Andréa Remígio Oliveira... [et al.] . 2. ed. – Barueri, SP : Manole, 2011.
Radioiodine Therapy for Hyperthyroidism. Douglas S. Ross. N Engl J Med 2011;364:542-50.

Pedro Kallas Curiati 498


HIPÓFISE
Hipopituitarismo

Definição
Hipopituitarismo é a insuficiência parcial ou completa da secreção de um ou
mais hormônios da hipófise anterior. Pode resultar de doença hipofisária ou
hipotalâmica.

Etiologia
O hipopituitarismo congênito decorre do desenvolvimento anormal da hipófise
por mutações em genes que codificam moléculas sinalizadoras ou fatores de transcrição.
Outras causas de hipopituitarismo com início na infância incluem distúrbios perinatais,
anormalidades no parto, asfixia perinatal, hipoplasia ou aplasia da hipófise e ectopia da
hipófise. Causas de hipopituitarismo com início da vida adulta, adquiridas, incluem
ressecção cirúrgica, radioterapia, traumatismo crânio-encefálico, hipofisite primária,
que pode ser linfocítica, granulomatosa ou xantomatosa, hipofisite secundária, que pode
estar relacionada a sarcoidose, histiocitose X, infecções, granulomatose de Wegener ou
doença de Takayasu, hemocromatose, infecções, como tuberculose, pneumocistose,
histoplasmose, aspergilose, toxoplasmose e citomegalovirose, afecções vasculares,
como síndrome de Sheehan, aneurisma intracraniano, apoplexia hipofisária, diabetes
mellitus, hipotensão arterial, arterite e anemia falciforme, neoplasias, como adenomas
hipofisário, cisto de bolsa de Rathke, cisto dermoide, meningioma, germinoma,
ependimoma, glioma, craniofaringioma, gangliocitoma, leucemias, linfomas e
metástases, afecções funcionais, como restrição calórica, desnutrição, exercícios físicos
excessivos, insuficiência renal, insuficiêncua hepática, hiperprolactinemia,
hipotireoidismo e hipercortisolismo, síndrome da sela vazia e hipopituitarismo
idiopático.

Quadro clínico
As manifestações clínicas do hipopituitarismo são variáveis, muitas vezes
inespecíficas e de início insidioso em função de tipo e severidade da deficiência
hormonal, duração da doença e idade de início. Quando o hipopituitarismo se inicia na
infância, o seu efeito sobre todos os aspectos do desenvolvimento somático é observado,
além dos efeitos das deficiências hormonais específicas. Quando o hipopituitarismo é
secundário a tumores hipofisários de maior volume, sintomas relacionados ao efeito de
massa, como cefaleia e alterações visuais, podem estar presentes. Inicialmente, as
manifestações relacionadas à hipersecreção de prolactina, hormônio do crescimento,
hormônio corticotrófico ou hormônio tireotrófico por um adenoma hipofisário podem
estar presentes. Hiperprolactinemia é um achado comum nos macroadenomas devido à
compressão da haste hipofisária, com comprometimento do tônus inibitório
dopaminérgico. Classicamente, as deficiências hormonais do hipopituitarismo por
compressão hipofisária seguem a sequência hormônio do crescimento, gonadotrofinas,
hormônio tireotrófico e hormônio corticotrófico. A deficiência de prolactina é raramente
encontrada, exceto na síndrome de Sheehan, na qual ocorre deficiência de lactação.
Deficiência de hormônio do crescimento está relacionada a baixa estatura em
crianças, redução da massa muscular e óssea, diminuição da força muscular, aumento da
massa gordurosa visceral, fadiga, aterosclerose precoce e diminuição da qualidade de

Pedro Kallas Curiati 499


vida. Deficiência de hormônio corticotrófico está relacionada agudamente a fadiga,
fraqueza, tontura, náusea, vômitos, hipotensão e hipoglicemia e cronicamente a cansaço,
perda de peso, hipoglicemia e anorexia. Deficiência de hormônio tireotrófico está
relacionada a cansaço, intolerância ao frio, constipação, ganho de peso, pele ressecada,
bradicardia e distúrbios menstruais. Deficiência de gonadotrofinas está relacionada em
crianças a atraso puberal, em mulheres a amenorreia, oligomenorreia, infertilidade,
atrofia mamária, perda da libido, dispareunia, osteoporose e aterosclerose prematura e
em homens a perda da libido, função sexual prejudicada, redução da massa muscular e
óssea, redução da eritropoiese e redução do crescimento de pelos. Deficiência de
prolactina está relacionada a agalactia.

Avaliação complementar
A avaliação da função hipofisária anterior deve ser sempre realizada quando
houver lesão hipotalâmica ou hipofisária e após irradiação craniana. Distúrbios da
função gonadal de etiologia indeterminada, alterações inflamatórias, trauma crânio-
encefálico, doenças granulomatosas, anormalidades do desenvolvimento crânio-facial,
sela vazia e história de hemorragia associada ao parto indicam a investigação da reserva
hormonal da hipófise anterior. A avaliação laboratorial inclui medidas da concentração
basal dos hormônios e da concentração após estimulação da secreção com testes
dinâmicos. O teste combinado é uma forma prática e eficaz de realizar tal investigação.
Consiste na administração de Insulina Regular 0.05-0.1UI/kg por via intravenosa,
hormônio liberador de gonadotrofina (GnRH) 100mcg por via intravenosa e hormônio
liberador de tireotrofina 200mcg por via intravenosa, com dosagens de glicose sérica,
hormônio do crescimento, cortisol, hormônio luteinizante, hormônio folículo-
estimulante e hormônio tireotrófico antes e quinze, trinta, quarenta e cinco, sessenta e
noventa minutos após. Dosagens basais de IGF-1, IGF-BP-3, testosterona no sexo
masculino, estradiol no sexo feminino, T4 livre e sulfato de dehidroepiandrosterona são
indicadas.

Tratamento
O tratamento do hipopituitarismo visa mimetizar a secreção fisiológica dos
hormônios deficientes, amenizando os sintomas decorrentes de cada deficiência e
melhorando a qualidade de vida do paciente. O tratamento da causa básica do
hipopituitarismo deve ser instituído quando necessário.
Em caso de deficiência de hormônio do crescimento em adultos, recomenda-se o
uso de hormônio do crescimento recombinante humano com dose inicial de 0.15-
0.30mg/dia (0.45-0.90UI/dia) por via subcutânea ao deitar e aumento gradual de acordo
com a resposta clínica e bioquímica, com dose de manutenção máxima de 1mg/dia
(3UI/dia). A monitorização tem como marcador bioquímico mais útil o IGF-1, mas
também inclui avaliação de composição corporal, densidade óssea e lípides séricos. Em
caso de deficiência de hormônio corticotrófico em adultos, recomenda-se o uso de
Acetato de Cortisona 25-37.5mg/dia por via oral em duas a três tomadas ou Prednisona
5-7.5mg/dia por via oral em dose única diária, com orientação para uso do dobro da
dose em situações de estresse e preferência por Hidrocortisona 100mg por via
intravenosa em bolus e 50-100mg de 6/6 horas por via intravenosa a partir de então se
crise aguda. Em caso de deficiência de hormônio tireotrófico em adultos, recomenda-se
o uso de Levotiroxina 1-2mcg/kg/dia por via oral, com início da reposição após
avaliação e correção da função da supra-renal, sendo recomendada dose inicial de
25mcg/dia e aumento de 25mcg/dia a cada uma a duas semanas até T4 sérico total e T4
sérico livre dentro dos limites da normalidade. Em caso de deficiência de

Pedro Kallas Curiati 500


gonadotrofinas em adultos, recomenda-se no sexo masculino o uso de Ésteres de
Testosterona 200-250mg por via intramuscular a cada duas semanas, Undecanoato de
Testosterona 1000mg por via intramuscular a cada três meses ou gel transdérmico com
5-10mg/dia, com monitorização baseada nos níveis séricos de testosterona antes e no
dia da próxima aplicação, em hemoglobina e hematócrito a cada três meses após ajuste
de dose e anualmente a partir de então e em densitometria óssea antes do tratamento e a
cada dois anos a partir de então. Em caso de deficiência de gonadotrofinas em adultos,
recomenda-se no sexo feminino o uso de Estrógenos Conjugados 0.6-1.25mg/dia por
via oral, Etinil-Estradiol 10-20mcg/dia por via oral, 17-Beta-Estradiol 1-2mg/dia por via
oral ou gel transdérmico de Estradiol com 0.5-1.0mg/dia em associação com Acetato de
Medroxiprogesterona 5-10mg/dia por via oral, Noretisterona 0.7-1mg/dia por via oral
ou outros agentes progestágenos nos doze primeiros dias do ciclo. A via transdérmica é
preferida para mulheres tabagistas ou que apresentam cefaleia, hipertrigliceridemia,
distúrbios hepato-biliares, doença fibrocística da mama ou tromboembolismo. A única
manifestação conhecida da deficiência de prolactina é a ausência de lactação após o
parto e, até o momento, não há uma opção terapêutica disponível.

Hiperprolactinemia e prolactinomas

Fisiologia
A prolactina é o hormônio hipofisário essencial para a produção de leite no
período puerperal. Exerce diversas ações no sistema reprodutivo, regulando, de forma
negativa, os hormônios hipofisário responsáveis pelo estímulo gonadal. Provavelmente,
também é responsável por ação supressiva na secreção de estrogênio, progesterona e
testosterona pelas gônadas.

Epidemiologia
A hiperprolactinemia é a alteração do eixo hipotálamo-hipofisário mais comum,
sendo motivo frequente de galactorreia e alterações menstruais em mulheres, redução da
potencia sexual em homens e redução da libido e infertilidade em ambos os sexos.

Etiologia
A prolactina pode estar elevada em situações fisiológicas, como gestação,
lactação, atividade física, estímulo mamário e estresse. Fármacos relacionados a
hiperprolactinemia incluem anti-psicóticos, como Fenotiazina, Haloperidol e
Risperidona, pró-cinéticos, como Metoclopramida e Domperidona, antidepressivos,
como Sulpiride, inibidores da monoamina-oxidase, tricíclicos e inibidores seletivos da
receptação de serotonina, opioides, estrogênios, Verapamil e inibidores de protease.
Causas patológicas de hiperprolactinemia incluem afecções hipofisárias, como
prolactinoma, somatotrofinoma, adenoma não-funcionante, doença de Cushing,
metástase, síndrome da sela vazia, cistos selares, doenças infiltrativas (hipofisite,
sarcoidose, tuberculose, histiocitose) e doenças vasculares (aneurisma), afecções
hipotalâmicas, como neoplasias (meningioma, craniofaringioma, glioma, hamartoma),
cistos, doenças infiltrativas (hipofisite, sarcoidose, tuberculose, histiocitose), secção da
haste hipofisária e lesão actínica, hipotireoidismo primário, insuficiência renal crônica,
cirrose hepática, síndrome dos ovários policísticos, lesões da parede torácica e
macroprolactinemia. Quando nenhuma causa é identificada, a hiperprolactinemia é
considerada idiopática.
O prolactinoma é a principal causa patológica de hiperprolactinemia. Trata-se de
tumor monoclonal com patogênese ainda não completamente conhecida. Dentre os

Pedro Kallas Curiati 501


prolactinomas, os microprolactinomas, com diâmetro inferior ou igual a 10mm, são os
mais comuns, diagnosticados principalmente em mulheres, enquanto que a maior parte
dos homens apresenta macroprolactinomas, com diâmetro superior a 10mm. Embora
possam ser diagnosticados em qualquer idade, os prolactinomas são mais prevalentes
entre a terceira e a quarta décadas de vida. Ocorrem em cerca de um quinto dos
pacientes com neoplasia endócrina múltipla do tipo 1.

Quadro clínico
Os sintomas relacionados à hiperprolactinemia dependem, principalmente, da
ação inibitória da prolactina sobre o eixo gonadal e do seu efeito estimulatório sobre a
galactopoese. Os efeitos da hiperprolactinemia sobre a função ovariana têm correlação
com o grau de elevação da prolactina, podendo variar de irregularidade menstrual, com
fase lútea curta, a ciclos anovulatórios e amenorreia. Embora a galactorreia possa
ocorrer sem hiperprolactinemia, é um sintoma comum nessa situação e depende da ação
permissiva do estrogênio, de modo que costuma estar ausente em homens e em
mulheres com hipogonadismo severo ou após a menopausa. Nos homens, a impotência
sexual é a manifestação mais comum. Outros sintomas ligados ao hipogonadismo, como
redução da libido e perda de massa óssea, podem estar presentes. A galactorreia deve
ser sempre pesquisada, visto que sua presença em pacientes do sexo masculino é
praticamente diagnóstica de hiperprolactinemia. Ginecomastia pode ocorrer em cerca de
10% dos pacientes do sexo masculino. Sinais de hipogonadismo, como redução da
barba e dos pelos corporais nos homens e palidez facial e envelhecimento precoce em
ambos os sexos, também podem ser encontrados. Manifestações clínicas decorrentes de
compressão tumoral podem estar presentes nos casos de macroprolactinoma, incluindo
cefaleia, hemianopsia bitemporal, hipopituitarismo e paralisia de nervos cranianos.
Raramente, macroprolactinomas gigantes, com diâmetro superior a 4cm, podem ser
diagnosticados por hidrocefalia ou epilepsia.

Avaliação complementar
A dosagem de prolactina basal geralmente confirma a suspeita clínica de
hiperprolactinemia, sem necessidade de testes dinâmicos. Existe correlação entre o
tamanho do prolactinoma e o nível sérico de prolactina, com valores acima de
250ng/mL sugestivos de macroprolactinoma. A prolactina humana circula em três
isoformas principais, a monomérica, a dimérica e a macroprolactina. A mais comumente
relacionada aos sintomas clássicos de hiperprolactinemia é a prolactina monomérica.
Embora seja dosada, a macroprolactina tem bioatividade reduzida, de modo que
macroprolactinemia deve ser suspeitada e pesquisada em caso de hiperprolactinemia
assintomática. O método de rastreamento mais utilizado é a dosagem de prolactina antes
e após o preparo do soro com polietilenoglicol, que, pela centrifugação, precipita as
moléculas de maior peso molecular. O resultado é avaliado pelo percentual de
recuperação da prolactina no sobrenadante.
Uma vez que a hiperprolactinemia tenha sido diagnosticada, história e exame
físico cuidadosos devem buscar descartar causas secundárias, como uso de fármacos,
hipotireoidismo, síndrome dos ovários policísticos e acromegalia. Podem ser utilizados
exames laboratoriais quando há suspeita de gravidez, insuficiência renal, disfunção
hepática ou hipotireoidismo.
Quando a hiperprolactinemia sintomática for diagnosticada, é mandatória a
investigação de tumor hipofisário por imagem. A ressonância nuclear magnética de
hipófise com Gadolínio é mais eficaz que a tomografia computadorizada de sela túrcica,
devendo ser preferida quando possível. A hiperprolactinemia associada à presença de

Pedro Kallas Curiati 502


tumor hipofisário é sugestiva de prolactinoma. O diagnóstico diferencial com outras
causas de massa hipofisária, como adenoma não-funcionante, craniofaringioma e
meningioma, é importante quando o nível de prolactina for inferior a 150ng/mL em
lesões com tamanho superior a 1cm, visto que a maior parte dos macroprolactinomas
acarreta hiperprolactinemia mais acentuada, exceto em caso de macroprolactinoma
cístico ou apoplexia.
A investigação das outras funções hipofisárias é obrigatória nos casos de
macroprolactinoma para o diagnóstico de hipopituitarismo. Recomenda-se também a
dosagem de IGF-1 para descartar os casos de co-secreção hormonal de hormônio do
crescimento e prolactina, mesmo sem quadro clínico de acromegalia.
Os pacientes com macroprolactinoma em contato íntimo com o quiasma óptico
devem ser submetidos a avaliação neuro-oftamológica completa, com campimetria
visual.
O diagnóstico histológico do prolactinoma é possível apenas nos casos com
indicação cirúrgica. O diagnóstico de carcinoma é possível apenas quando há metástase
fora da região hipotálamo-hipofisária.

Tratamento
A decisão sobre o tipo de tratamento deve ser baseada na etiologia da
hiperprolactinemia. O tratamento das hiperprolactinemias secundárias deve ter como
objetivo a resolução da causa de base, quando possível. Dessa forma, a reposição de
hormônio tireoidiano deve tratar a hiperprolactinemia secundária ao hipotireoidismo, a
ressecção cirúrgica de adenoma hipofisário não-funcionante deve tratar a
hiperprolactinemia secundária à desconexão hipotálamo-hipofisária e a suspensão de
fármacos que causam hiperprolactinemia deve possibilitar que o nível de prolactina
retorne ao normal. Será enfocado a seguir apenas o tratamento dos prolactinomas e da
hiperprolactinemia idiopática.
Os objetivos do tratamento dos prolactinomas são reversão dos sintomas
decorrentes da hiperprolactinemia, resolução dos sintomas e riscos decorrentes da massa
tumoral e prevenção de recidivas.
Dentre as opções terapêuticas atuais, os agonistas dopaminérgicos constituem a
primeira escolha em função de sua eficácia tanto na normalização da prolactina como na
redução tumoral.
A Bromocriptina é apresentada na forma de comprimidos de 2.5mg, com dose
de 2.5-15mg/dia fracionada em duas a três tomadas diárias. Os efeitos colaterais mais
comuns da Bromocriptina são náusea, vômitos, dor abdominal, hipotensão postural,
tontura e congestão nasal, tendo sido descritos raramente depressão, psicose e fibrose
pulmonar. Para melhorar a aderência ao tratamento, a medicação deve ser iniciada de
modo gradual, com meio comprimido na refeição noturna e aumento progressivo
conforme a tolerabilidade até a dose terapêutica, com dose média de 5mg/dia em casos
de microprolactinoma e de 7.5mg/dia em casos de macroprolactinoma. Apesar da
eficácia da Bromocriptina, a maior parte dos pacientes necessita de tratamento em longo
prazo.
A Cabergolina é apresentada na forma de comprimidos de 0.5mg, com dose
usual de 0.5-1.0mg uma ou duas vezes por semana e dose máxima semanal de 7mg,
utilizada em raros casos resistentes. Os efeitos colaterais são semelhantes aos da
Bromocriptina, porém menos frequentes, tratando-se de medicação com maior eficácia e
tolerabilidade. Há controvérsia quanto à associação com risco aumentado de alteração
em válvulas cardíacas, sendo recomendada vigilância com ecocardiograma durante o
tratamento. A possibilidade de suspensão da medicação com manutenção da

Pedro Kallas Curiati 503


normoprolactinemia parece ser maior do que para a Bromocriptina. De modo prático, a
equivalência da dose para a substituição da Bromocriptina por Cabergolina é o número
de comprimidos diários de 2.5mg de Bromocriptina para o número de comprimidos
semanais de 0.5mg de Cabergolina. Dosagens periódicas de prolactina determinam os
ajustes da dose e a sua redução progressiva após a normalização clínica e hormonal.
A Pergolida e a Quinagolida, único não-derivado de ergot, são opções úteis, mas
que não estão disponíveis no Brasil. O mecanismo de ação desses fármacos é a ligação
seletiva a receptores de dopamina subtipo 2.
Os pacientes com boa resposta ao tratamento clínico devem ser encorajados a
manter o tratamento contínuo. Após um a dois anos de tratamento com manutenção da
prolactina normal e confirmação de redução tumoral significativa, pode ser feita uma
tentativa de suspensão do tratamento nos casos com persistência da prolactinemia
normal durante a redução progressiva da dose.
A ressonância nuclear magnética de hipófise deve ser realizada para
acompanhamento dos prolactinomas. Nos microprolactinomas, pode ser repetida apenas
após um ano de tratamento. Nos macroprolactinomas, a primeira imagem de controle do
tratamento clínico depende da gravidade do quadro visual e da melhora visual subjetiva
ou objetiva inicial. Se não houver boa resposta clínica ao tratamento em casos com
perda visual grave e rapidamente progressiva, a imagem pode ser repetida ainda no
primeiro mês para indicação de cirurgia. Na maioria dos casos de macroprolactinomas,
a imagem é repetida no terceiro mês de tratamento e, posteriormente, a cada seis a doze
meses. A ressonância nuclear magnética também deve ser realizada alguns meses após a
suspensão da medicação para confirmar que não houve recidiva do tumor sem elevação
da prolactina.
Embora a definição de resistência aos agonistas dopaminérgicos seja
controversa, a maioria dos autores concorda que ocorre quando não há normalização ou
redução tumoral com doses superiores ou iguais a 15mg/dia de Bromocriptina por pelo
menos três meses de tratamento. Em alguns casos, a resistência pode ser parcial, com
redução da hiperprolactinemia sem normalização dos níveis séricos e sem reversão dos
sintomas ou resposta dissociada com normalização da prolactinemia sem redução
tumoral ou vice-versa. Nesses casos, em que não há resistência absoluta ao tratamento
clínico, mas os objetivos não são atingidos, a substituição do agonista dopaminérgico ou
a realização de cirurgia podem permitir um resultado satisfatório. Raros casos
verdadeiramente resistentes podem cursar com aumento tumoral na vigência de
tratamento com agonista dopaminérgico, devendo-se indicar rapidamente cirurgia e
considerar a possibilidade de carcinoma.
A cirurgia transesfenoidal e a radioterapia são opções, em geral, reservadas para
casos não-responsivos ao tratamento clínico. Indicações para o tratamento cirúrgico de
prolactinoma incluem resistência aos agonistas dopaminérgicos, intolerância persistente
ou falta de aderência ao uso de agonistas dopaminérgicos, apoplexia com sintomas
neuro-oftalmológicos, fístula liquórica e opção do paciente em casos com bom
prognóstico de cura cirúrgica, como aqueles caracterizados por microprolactinoma ou
macroprolactinoma intra-selar com prolactina inferior a 200ng/mL.
A radioterapia constitui a última opção na terapêutica dos prolactinomas, sendo
indicada para o controle do crescimento tumoral, sobretudo em tumores agressivos. A
normalização hormonal pode demorar anos para ser alcançada e é, em geral, precedida
ou acompanhada de hipopituitarismo, sem melhora do hipogonadismo. Está associada a
aumento do risco de acidente vascular encefálico e tumores secundários.

Situações especiais

Pedro Kallas Curiati 504


Na gestação, o seguimento das pacientes deve se basear na avaliação clínica e,
em caso de macroprolactinoma, também no exame neuro-oftalmológico. A dosagem de
prolactina não é útil em razão dos valores altos presentes mesmo em gestações de
mulheres normais. Na suspeita de crescimento tumoral, a realização de ressonância
nuclear magnética de hipófise sem contraste é indicada, de preferência a partir do quarto
mês de gestação. Uma vez que tenha sido constatado um aumento tumoral durante a
gravidez, deve-se introduzir o agonista dopaminérgico imediatamente. Nesses casos, a
Bromocriptina é o fármaco mais recomendado em função de maior evidência de
segurança em relação à Cabergolina, que, no entanto, também parece ser segura. A
resposta ao agonista dopaminérgico deve ser rápida, de horas a poucos dias, sendo
indicada cirurgia transesfenoidal nos casos não-responsivos, somente para
descompressão, preferencialmente no segundo trimestre da gestação.
Recomenda-se o tratamento com agonista dopaminérgico por pelo menos um
ano antes da concepção, devendo-se confirmar, por exame de imagem, se o tumor está
dentro dos limites da sela túrcica. Com base nesses critérios, deve-se suspender o
agonista dopaminérgico logo que a gravidez for confirmada, embora a Bromocriptina
possa ser mantida durante toda a gestação em casos com risco elevado de crescimento
tumoral, como aqueles com invasão de seio cavernoso ou relato de crescimento do
tumor em uma gestação prévia. A amamentação pode ser permitida sem o uso de
agonista dopaminérgico, com exceção de casos em que o tratamento clínico tenha sido
introduzido durante a gestação em decorrência de crescimento tumoral.
A hiperprolactinemia idiopática e o microprolactinoma não necessitam de
tratamento após a menopausa, visto que os sintomas de hipogonadismo não serão
revertidos com a normalização da prolactina. O tratamento poderá ser indicado na
presença de galactorreia persistente ou na tentativa de melhorar a libido. As pacientes
com macroprolactinoma devem manter o tratamento após a menopausa.
Pacientes com microprolactinomas podem fazer uso de contraceptivos orais
hormonais sem restrição. Entretanto, o ideal é que a paciente com amenorreia utilize
contraceptivos de barreira antes de iniciar o uso do contraceptivo oral até a confirmação
de que a redução da prolactina possibilitou a resolução do hipogonadismo
hipogonadotrófico, com dois ou três ciclos menstruais. Nas pacientes com
macroprolactinoma, o uso do contraceptivo oral ou de reposição estrogênica deve ser
iniciado apenas após a confirmação da redução do tumor para os limites da sela túrcica,
com acompanhamento clínico e dos níveis de prolactina para identificar qualquer piora
do controle do tumor.

Acromegalia

Definição
A acromegalia é uma doença crônica debilitante que resulta da exposição a
excesso de hormônio do crescimento após o fechamento epifisário dos ossos longos.
Quando a hipersecreção crônica inicia-se na infância ou na adolescência, previamente à
fusão das epífises, ocorre o gigantismo hipofisário.

Epidemiologia
A doença incide em todas as raças com frequência praticamente igual em
homens e mulheres. Pode ocorrer em qualquer idade, com pico de incidência entre a
terceira e a quinta décadas de vida.

Fisiopatologia

Pedro Kallas Curiati 505


A maior parte dos efeitos deletérios da hipersecreção crônica de hormônio do
crescimento resulta do excesso de IGF-1, seu principal mediador, que determina
proliferação característica de ossos, cartilagens, tecidos moles e órgãos. As alterações
do metabolismo dos carboidratos e a lipólise parecem resultar dos efeitos diretos do
hormônio do crescimento.

Etiologia
Mais de 90% dos casos são esporádicos. Nos casos familiares, os
somatotrofinomas podem se manifestar de forma isolada ou fazer parte de uma
síndrome neoplásica hereditária, como a neoplasia endócrina múltipla tipo 1 e o
complexo de Carney. A acromegalia também pode fazer parte da síndrome de McCune-
Albright, relacionada a mutação pós-zigótica.
Na grande maioria dos casos, a acromegalia é decorrente da hipersecreção direta
de hormônio do crescimento, que, em geral, é proveniente da hipófise. A principal causa
é o adenoma hipofisário secretor de hormônio do crescimento. Causas raras incluem
carcinoma hipofisário e adenoma produtor de hormônio do crescimento localizado fora
da sela túrcica. A produção ectópica de hormônio do crescimento é extremamente rara,
tendo sido descrita em tumores de pulmão, mama, pâncreas, ovário e trato
gastrointestinal, além de linfoma não-Hodgkin. Em pequena parcela dos casos, a
hipersecreção de hormônio do crescimento é secundária à síntese excessiva de
hormônio liberador do hormônio do crescimento por tumores hipotalâmicos, como
gangliocitoma, neurocitoma e hamartoma, ou ectópicos, como tumor carcinoide, tumor
de ilhotas pancreáticas, carcinoma de pulmão de pequenas células, adenoma de supra-
renal, feocromocitoma, carcinoma medular da tireoide, carcinoma de mama e carcinoma
de endométrio.

Patologia
Na maior parte dos casos, o exame anatomopatológico revela adenoma
hipofisário, que pode ser produtor de hormônio do crescimento ou co-secretor de
hormônio do crescimento e prolactina, sendo raros hiperplasia, que pode ser
somatotrófica ou mamossomatotrófica, e carcinoma de hipófise. O carcinoma
hipofisário não apresenta um critério morfológico característico, de modo que o seu
diagnóstico é baseado na ocorrência de metástases para áreas distantes do espaço
subaracnóideo, para o parênquima cerebral e/ou para sítios extra-cranianos.

Quadro clínico
O quadro clínico é sistêmico e de evolução insidiosa, com progressão gradual
dos sinais e sintomas, o que acarreta retardo do diagnóstico. As características clínicas
mais relevantes são o aumento dos tecidos moles e o crescimento ósseo excessivo. O
aumento das extremidades, sobretudo das mãos e dos pés, leva à dificuldade em fechar
as mãos e à necessidade de aumentar progressivamente o tamanho de calçados e anéis.
As alterações crânio-faciais, como proeminência frontal, hipertelorismo, aumento dos
arcos zigomáticos, aumento de orelhas e nariz, lábios grossos, macroglossia,
afastamento dentário, má-oclusão dentária, aumento da protuberância da mandíbula,
macrognatia e prognatismo, tornam os traços faciais rudes, com aspecto típico. Nos
casos de longa evolução, pode haver desenvolvimento de pregas no couro cabeludo.
Acantose nigricans ocorre em parcela dos casos. O aumento das glândulas sebáceas e
sudoríparas da pele determina oleosidade cutânea e transpiração excessiva, muitas vezes
com odor corpóreo desagradável. A hiperidrose, sobretudo nas mãos, é um sinal clínico
frequente e que, em geral, reflete a atividade da doença. Em alguns casos, ocorre

Pedro Kallas Curiati 506


hirsutismo. Papilomas cutâneos podem ocorrer e marcam a presença de pólipos
colônicos.
Os acromegálicos podem apresentar bócio difuso ou nodular, com
hipertireoidismo observado em alguns casos. Hipertireoidismo também pode ocorrer
pela presença de adenoma hipofisário co-secretor de hormônio do crescimento e
hormônio tireotrófico. Na acromegalia, podem ocorrer também outras visceromegalias,
como hepatomegalia, esplenomegalia e pneumomegalia.
Em 30-40% dos pacientes, há hiperprolactinemia, que causa galactorreia,
diminuição da libido e/ou impotência e irregularidades menstruais. Pode resultar de
adenoma co-secretor de hormônio do crescimento e prolactina ou de compressão
tumoral sobre a haste hipotálamo-hipofisária. Hipogonadismo pode ser resultante da
compressão tumoral sobre as células hipofisária normais.
A hipersecreção de hormônio do crescimento determina resistência à ação da
insulina em fígado, músculo e tecido adiposo. Há estímulo para gliconeogênese
hepática, redução da oxidação e captação de glicose pelos tecidos periféricos e lipólise,
com aumento dos níveis de glicose e ácidos graxos livres circulantes. Desenvolve-se
hiperinsulinemia compensatória. Dislipidemia, hipercalcemia, hiperfosfatemia e
hipercalciúria são outras complicações metabólicas que podem ser encontradas.
A artrite degenerativa pode ser extremamente debilitante e de difícil
reversibilidade. A compressão do nervo mediano pode determinar síndrome do túnel do
carpo.
As manifestações cardiovasculares constituem a principal causa de mortalidade.
A hipertrofia ventricular, principalmente do ventrículo esquerdo, é a anormalidade
descrita com maior frequência. Hipertensão arterial sistêmica é observada em cerca de
metade dos pacientes. Doença valvar, principalmente mitral e aórtica, também apresenta
prevalência elevada entre os pacientes. Pode ocorrer doença arterial coronária.
A síndrome da apneia do sono ocorre em cerca de três quartos dos pacientes,
sendo o tipo obstrutivo o mais prevalente.
A participação do hormônio do crescimento e do IGF-1 no desenvolvimento de
neoplasias benignas e malignas deve ser considerada. Ocorre maior incidência de
algumas neoplasias benignas, como bócio atóxico, hiperplasia benigna da próstata,
tumores de mama e pólipos de cólon. Com relação às neoplasias malignas, o carcinoma
de cólon é o câncer que mais se associa à acromegalia, de modo que colonoscopia deve
ser realizada ao diagnóstico e durante o seguimento, de forma individualizada.
As manifestações clínicas secundárias ao efeito compressivo da massa tumoral
sobre as estruturas vizinhas geralmente se correlacionam com o tamanho do tumor e
incluem cefaleia, distúrbios visuais e neurológicos, hipopituitarismo e
hiperprolactinemia por desconexão. A compressão do quiasma óptico pode ocasionar
hemianopsia bitemporal. A invasão do seio cavernoso pode determinar
comprometimento do III, do IV e do VI nervos cranianos, assim como dos ramos
oftálmico e maxilar do V nervo craniano.

Avaliação complementar
A investigação laboratorial visa confirmar a suspeita clínica de acromegalia por
meio da demonstração da hipersecreção de hormônio do crescimento e/ou IGF-1. Na
ausência de fatores que interferem nas dosagens laboratoriais, a acromegalia é excluída
quando o nível sérico randômico de hormônio do crescimento é inferior a 0.4mcg/L e o
IGF-1 é normal para a idade e o sexo. Caso um desses parâmetros esteja alterado, deve-
se proceder à determinação dos níveis de hormônio do crescimento durante o teste de
tolerância à glicose oral. O diagnóstico de acromegalia é estabelecido pela presença de

Pedro Kallas Curiati 507


níveis elevados de IGF-1 em associação com ausência de supressão do hormônio do
crescimento para menos de 1mcg/L quando realizada dosagem por ensaio
imunorradiométrico ou para menos de 2mcg/L quando realizada dosagem por
radioimunoensaio, no teste de tolerância à glicose oral. Situações clínicas que podem
cursar com níveis basais elevados de hormônio do crescimento incluem puberdade
normal, diabetes mellitus descompensado, anorexia nervosa, desnutrição, insuficiência
renal e insuficiência hepática.
A dosagem do IGF-1 sérico é importante tanto para o diagnóstico quanto para a
monitorização da atividade da doença. Ao contrário da secreção pulsátil de hormônio do
crescimento, a produção de IGF-1 é relativamente constante durante o dia, com meia-
vida em torno de 12-16 horas. O nível de IGF-1 pode ser analisado por meio da
dosagem em uma amostra isolada de sangue, refletindo a secreção de hormônio do
crescimento. A presença de níveis elevados de IGF-1 é altamente sugestiva de
acromegalia. Entretanto, os níveis séricos podem se elevar em puberdade, gravidez e
hipertireoidismo e diminuir em diabetes mellitus descompensado, anorexia nervosa,
desnutrição, insuficiência renal, insuficiência hepática, hipotireoidismo e uso de
estrógenos.
No diagnóstico de acromegalia, deve-se levar em consideração o quadro clínico,
a ausência de supressão de hormônio do crescimento no teste de tolerância à glicose oral
e os níveis elevados de IGF-1.
A avaliação da função hipofisária é necessária para pesquisar hipopituitarismo,
hiperprolactinemia e, eventualmente, hipertireoidismo associados. Devem ser realizadas
dosagens de cortisol basal, prolactina, T4 livre, hormônio tireotrófico, hormônio
folículo-estimulante e hormônio luteinizante. Nos pacientes do sexo masculino, também
deve ser dosada a testosterona.
Uma vez confirmada a hipersecreção de hormônio do crescimento, deve-se
pesquisar sua etiologia. Como o adenoma hipofisário representa a causa mais comum,
deve-se realizar exame de imagem, sendo a ressonância nuclear magnética da região
selar o método de eleição. Na maior parte dos casos, observa-se macroadenoma, com
diâmetro superior a 1cm, que, em geral, apresenta extensão para seio cavernoso e/ou
espaço supra-selar. Os microadenomas respondem por menor parcela dos casos e podem
ser invasivos. Raramente, observa-se sela vazia resultante de apoplexia hipofisária. A
radiografia simples de crânio é um complemento útil para a visualização das estruturas
ósseas, incluindo a sela túrcica.
Em caso de suspeita de acromegalia por secreção ectópica de hormônio do
crescimento ou hormônio liberador do hormônio do crescimento, deve-se tentar
localizar o tumor através de tomografia computadorizada ou ressonância nuclear
magnética de tórax e abdômen. Eventualmente, pode ser utilizada cintilografia com
octreotide marcado por radioisótopo.
A radiografia simples das mãos e dos pés pode ser realizada para evidenciar o
aumento das epífises distais em forma de cogumelo, o aumento dos espaços articulares
entre as falanges e o aumento do índice do calcâneo.
O exame neuro-oftalmologico compreende a avaliação da acuidade visual e do
campo visual com a finalidade de identificar comprometimento visual em tumores com
extensão supra-selar.

Tratamento
O tratamento da acromegalia visa normalizar os níveis de hormônio do
crescimento e IGF-1, diminuir e/ou estabilizar o tamanho do tumor, preservar ou
restaurar a função hipofisária normal, prevenir recidivas, melhorar a qualidade de vida e

Pedro Kallas Curiati 508


normalizar a expectativa de vida. O tratamento é indicado para todos os pacientes,
incluindo aqueles assintomáticos ou nos quais a doença parece estar clinicamente
estável. A obtenção de hormônio do crescimento inferior a 2.5ng/mL, hormônio do
crescimento menor que 1ng/mL no teste de tolerância à glicose oral e IGF-1 normal
para idade e sexo têm sido utilizados como critério de controle da doença.
As opções de tratamento incluem remoção cirúrgica, radioterapia e manejo
medicamentoso. A escolha deve ser individualizada e baseada em avaliação clínica,
laboratorial e radiológica e desejo do paciente. As opções de tratamento podem ser
utilizadas de forma isolada ou conjunta.
A cirurgia hipofisária permanece como padrão de referência da terapêutica da
acromegalia pela possibilidade de cura da doença, com resolução rápida da
sintomatologia clínica. A cirurgia transesfenoidal pela via sublabial ou, com maior
frequência, pela via nasal é o método de escolha, exceto para tumores localizados
predominantemente fora da linha média, para os quais indica-se a via transcraniana. A
avaliação hormonal pós-operatória deve ser realizada pela dosagem do hormônio do
crescimento no teste de tolerância à glicose oral e do IGF-1 sérico. Embora os níveis
séricos do hormônio do crescimento diminuam rapidamente após cirurgia com êxito, o
IGF-1 pode permanecer elevado por até três meses. A avaliação da deficiência de outras
funções hipofisárias deve ser realizada precocemente e seis meses após a cirurgia, com
reavaliações posteriores em casos selecionados. A avaliação por meio da ressonância
nuclear magnética é preferencialmente realizada com três a quatro meses. O
hipopituitarismo pós-cirúrgico é raro. Outras complicações incluem diabetes insipidus
transitório ou permanente, síndrome da secreção inapropriada de hormônio anti-
diurético, hemorragia, fístula liquórica e meningite. A recidiva é observada em cerca de
3-10% dos casos após oito a dez anos. A cirurgia é indicada, preferencialmente, como
tratamento primário em pacientes portadores de microadenomas, macroadenomas
ressecáveis e macroadenomas com comprometimento visual e/ou neurológico. Ela
também pode ser considerada mesmo em macroadenomas com poucas chances de
remoção cirúrgica completa com a finalidade de reduzir a massa de tecido tumoral e os
níveis hormonais.
O tratamento clínico inclui medicamentos que inibem a secreção do hormônio
do crescimento, atuando sobre o tumor, e medicamentos que inibem a ação do hormônio
do crescimento. Em geral, o tratamento medicamentoso é considerado a segunda opção
na abordagem da acromegalia, constituindo abordagem adjuvante em casos que a
cirurgia não normaliza os níveis de hormônio do crescimento e IGF-1. No entanto, seu
papel como terapêutica primária deve ser considerado em pacientes cujo risco cirúrgico
seja inaceitável, que recusam cirurgia ou cujos adenomas sejam grandes e invasivos,
com baixa probabilidade de cura cirúrgica, desde que não haja comprometimento visual
ou neurológico.
Os agonistas dopaminérgicos são medicamentos que agem nos receptores
dopaminérgicos D2 expressos em somatotrofos normais e em células tumorais. Na
acromegalia, paradoxalmente, suprimem a liberação do hormônio do crescimento. As
principais drogas do grupo são a Bromocriptina e a Cabergolina, que apresentam
eficácia limitada no tratamento da acromegalia. Constituem alternativas no tratamento
da acromegalia em função de administração oral e menor custo.
Os análogos da somatostatina são medicamentos que apresentam um tempo de
ação mais prolongado e um efeito supressor sobre o hormônio do crescimento mais
potente. Dependendo do perfil de expressão do subtipo de receptor presente no tumor,
os efeitos inibitórios dos análogos da somatostatina sobre a secreção de hormônio do
crescimento e a proliferação celular podem ser limitados e/ou dissociados. O

Pedro Kallas Curiati 509


Octreotídeo é apresentado na forma de frasco-ampola de 0.05mg, 0.1mg e 0.5mg para
administração subcutânea, com dose usual de 0.1-0.2mg três a quatro vezes ao dia, e na
forma de frasco-ampola de 10mg, 20mg e 30mg para administração intra-muscular, com
dose inicial de 20mg a cada 28 dias, que, a depender da resposta hormonal, pode ser
aumentada para 30mg ou reduzida para 10mg a cada quatro semanas. O Lanreotídeo é
apresentado na forma de frasco-ampola de 60mg, 90mg e 120mg para administração
subcutânea profunda, com dose usual de 60-120mg a cada 28 dias. De maneira geral, os
análogos da somatostatina são bem tolerados e têm se mostrado seguros para o uso
prolongado. Os principais efeitos adversos são gastrointestinais, com flatulência, fezes
amolecidas, diarreia, constipação, náusea, vômitos e desconforto abdominal. Litíase
biliar, usualmente assintomática, desenvolve-se em parcela dos pacientes que recebem
tratamento prolongado. Há recomendação para realização de ultrassonografia de vias
biliares antes e após o início do tratamento. A glicemia pode aumentar ou diminuir.
Outros efeitos colaterais menos comuns são reações leves e de curta duração no local da
administração, queda de cabelos transitória, bradicardia sinusal e deficiência de
vitamina B12. O uso dos análogos da somatostatina no preparo pré-operatório visa
redução da massa tumoral e/ou estabilização clínica e metabólica. O emprego dos
análogos da somatostatina como tratamento primário de escolha vem sendo sugerido
para pacientes com tumores volumosos e/ou invasivos sem comprometimento visual ou
neurológico e com baixa probabilidade de cura cirúrgica, pacientes com risco cirúrgico
significativo e pacientes que recusam a abordagem cirúrgica. Em casos com resposta
parcial com os análogos da somatostatina, pode-se tentar a associação com agonistas
dopaminérgicos, especialmente a Cabergolina, e com o antagonista do receptor do
hormônio do crescimento.
O Pegvisomanto é um análogo mutado do hormônio do crescimento humano
obtido por engenharia genética. Funciona como antagonista seletivo do receptor de
hormônio do crescimento. É administrado com dose diária única por via subcutânea.
Não apresenta efeito no tumor hipofisário e, portanto, não inibe o secreção do hormônio
do crescimento nem a progressão tumoral. Dessa forma, os níveis séricos de IGF-1 são
considerados os melhores marcadores para avaliar a eficácia do tratamento. Trata-se de
medicação altamente eficaz e bem tolerada. Os efeitos colaterais mais preocupantes são
hepatotoxicidade, raramente observada, aumento do volume tumoral e deficiência de
hormônio do crescimento em caso de doses excessivas. A monitorização do tamanho
tumoral deve ser realizada por meio de ressonância nuclear magnética de hipófise
inicialmente, após seis meses e, a partir de então, anualmente. O Pegvisomanto tem
indicação terapêutica aprovada para doentes com acromegalia que apresentaram
resposta inadequada à cirurgia e/ou à radioterapia e nos quais um tratamento médico
apropriado com análogo da somatostatina não normalizou as concentrações de IGF-1,
não foi tolerado ou ocasionou piora da tolerância à glicose.
O objetivo do tratamento por irradiação é administrar uma dose tumoricida em
um volume-alvo, sem prejuízo dos tecidos envolventes, para controlar a hipersecreção
hormonal e os efeitos da massa tumoral. Dispõe-se de duas técnicas de radioterapia
externa, a radioterapia externa convencional e a radioterapia conformacional
tridimensional (estereotáxica). O tratamento por irradiação previne o crescimento do
volume tumoral em 90-95% dos casos. As duas principais limitações da radioterapia são
retardo em alcançar controle hormonal e alta incidência de hipopituitarismo.

Doença de Cushing

Definição

Pedro Kallas Curiati 510


A síndrome de Cushing endógena é um estado clínico resultante da secreção
excessiva, persistente e inapropriada de cortisol. Caracteriza-se pela perda do
mecanismo de retroalimentação normal do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal e do ritmo
circadiano de secreção do cortisol.

Epidemiologia
A incidência de doença de Cushing é maior em mulheres e acomete
predominantemente a faixa etária entre vinte e quarenta anos de idade. A síndrome de
Cushing relacionada à produção ectópica de hormônio corticotrófico apresenta discreta
predominância no sexo feminino, com maior incidência entre quarenta e sessenta anos
de idade.

Etiologia
A síndrome de Cushing independente de hormônio corticotrófico abrange
adenoma do córtex adrenal, carcinoma do córtex adrenal, hiperplasia adrenal e síndrome
de McCune-Albright. O cortisol é produzido de maneira autônoma pelo tecido
adrenocortical, com consequente supressão dos níveis de hormônio corticotrófico e
hormônio liberador do hormônio corticotrófico.
A síndrome de Cushing dependente de hormônio corticotrófico abrange a
doença de Cushing, caracterizada por tumor hipofisário produtor de hormônio
corticotrófico, a síndrome do hormônio corticotrófico ectópico, relacionada a carcinoma
pulmonar de pequenas células, carcinoma medular da tireoide, feocromocitoma e
tumores carcinoides de brônquios, timo e pâncreas, e casos com origem desconhecida
do hormônio corticotrófico. É responsável por mais de 80% dos casos nos indivíduos
adultos, com a maior parte decorrente da doença de Cushing. Geralmente, o tumor
hipofisário é um microadenoma, com dimensões inferiores a 10mm. Raramente, os
tumores extra-hipofisários podem produzir hormônio liberador do hormônio
corticotrófico.
De forma infrequente, a doença de Cushing surge como parte da síndrome
neoplasia endócrina múltipla tipo 1, que é definida pela presença de ao menos dois
dentre tumor de paratireoide, tumor de sistema endócrino gastrointestinal e tumor de
hipófise anterior.

Quadro clínico
As manifestações clínicas da síndrome de Cushing incluem, em ordem
decrescente de frequência, obesidade ou ganho de peso com preenchimento das fossas
supraclaviculares e da giba dorsal, pletora facial, face arredondada, diminuição da
libido, pele atrófica, diminuição ou parada do crescimento linear em crianças,
irregularidade menstrual, hipertensão arterial sistêmica, hirsutismo, depressão ou
labilidade emocional, hematomas, intolerância à glicose, fraqueza muscular, estrias
violáceas com tamanho superior a 1cm, osteopenia ou fratura, nefrolitíase, exoftalmo,
diabetes mellitus, cefaleia e hiperpigmentação cutânea. Também podem ocorrer
infecções fúngicas.
Os sinais e sintomas mais específicos incluem miopatia proximal com
concentrações séricas normais de creatinofosfoquinase, pele atrófica, equimoses e
alterações neuropsicológicas. Em crianças, ocorre ganho de peso associado a retardo do
crescimento e da puberdade.

Diagnóstico

Pedro Kallas Curiati 511


Diagnóstico clínico
A primeira etapa no diagnóstico da síndrome de Cushing consiste em afastar o
uso exógeno de glicocorticoides e documentar o hipercortisolismo endógeno. Na
síndrome de Cushing de causa iatrogênica, ou seja, relacionada ao uso crônico de
glicocorticoides de ação prolongada, como Dexametasona e Betametasona, os sinais e
sintomas de hipercortisolismo estão presentes em associação com valores suprimidos de
cortisol e hormônio corticotrófico.

Diagnóstico laboratorial
A secreção aumentada de cortisol pode ser avaliada pela determinação de sua
excreção na urina de 24 horas. Os principais interferentes são Carbamazepina,
Digoxina, Fenofibrato e outros medicamentos que acelerem o metabolismo dos
glicocorticoides. Pacientes com hipercortisolismo podem apresentar valores
discretamente elevados ou mesmo normais, o que justifica a solicitação de pelo menos
três amostras, sempre corrigidas pela excreção de creatinina, para aumentar a
especificidade do diagnóstico.
A perda do ritmo circadiano da secreção de cortisol é a alteração mais precoce
identificada na síndrome de Cushing e pode ser avaliada pelos níveis de cortisol sérico e
salivar à meia-noite. A coleta de amostra salivar é simples. Após higiene e certificação
da ausência de sangue na cavidade oral, um tubo de algodão deve ser mastigado por
dois a três minutos e, posteriormente, colocado em um recipiente apropriado
denominado salivete. A amostra do cortisol salivar é estável em temperatura ambiente
por até sete dias, permitindo que o paciente encaminhe posteriormente ao laboratório.
O teste de supressão com 1mg de Dexametasona à meia-noite, com cortisol
sérico normal esperado pela manhã inferior a 1.8mcgdL, pode apresentar resultados
falso-positivos.
Na síndrome de Cushing cíclica, caracterizada por hipercortisolismo
intermitente, devem ser realizadas coletas seriadas para o diagnóstico e a determinação
da periodicidade da secreção.

Diagnóstico diferencial
Uma vez definida a síndrome de Cushing, o passo seguinte para estabelecer o
diagnóstico diferencial entre suas causas é definir se o hormônio corticotrófico é
detectável ou indetectável no plasma. O manuseio adequado das amostras é
fundamental, pois o hormônio corticotrófico é rapidamente degradado por proteases
plasmáticas em temperatura ambiente, o que pode resultar em valores falsamente
baixos. Os tubos de coleta devem ser de plástico com EDTA e as amostras devem ser
mantidas em gelo, com imediata centrifugação em centrífugas refrigeradas e
congelamento do plasma até a dosagem hormonal. Valores de hormônio corticotrófico
inferiores a 5pg/mL indicam o diagnóstico de síndrome de Cushing independente do
hormônio corticotrófico, enquanto que valores superiores a 15pg/mL indicam o
diagnóstico de síndrome e Cushing dependente do hormônio corticotrófico. Em caso de
valores intermediários, é necessária a realização de testes dinâmicos.
No teste de supressão do cortisol com altas doses de Dexametasona, os
adenomas produtores de hormônio corticotrófico geralmente respondem ao efeito
supressor, enquanto que os tumores que causam síndrome de Cushing com hormônio
corticotrófico ectópico praticamente não respondem ao efeito supressor. Pode ser
utilizada dose de Dexametasona de 8mg à meia-noite.
A ressonância nuclear magnética é o exame indicado para avaliação da região
hipofisária, mas apresenta positividade em apenas uma parcela dos casos de doença de

Pedro Kallas Curiati 512


Cushing.
Diante de testes dinâmicos com acurácia discutível, da elevada prevalência de
incidentalomas hipofisários na população geral e de apenas uma parcela dos casos de
doença de Cushing apresentar alteração em exame de neuroimagem, a determinação do
gradiente de hormônio corticotrófico centro-periferia, por meio do cateterismo bilateral
e simultâneo dos seios petrosos inferiores, torna-se imperativa. Um gradiente basal
superior a dois e/ou após estímulo com hormônio liberador do hormônio corticotrófico
ou Desmopressina (DDAVP) superior a três é compatível com doença hipofisária. Por
outro lado, gradiente inferior a dois é compatível com produção ectópica de hormônio
corticotrófico.
Na síndrome de Cushing dependente de hormônio corticotrófico com imagem
inconclusiva, testes laboratoriais inconclusivos e ausência de gradiente centro-periferia,
a avaliação deve ser complementada com marcadores tumorais, ressonância nuclear
magnética de abdômen, tomografia computadorizada de tórax e cintilografia de
receptores da somatostatina (Octreoscan).

Pseudo-Cushing
O pseudo-Cushing pode ser definido como estado clínico que apresenta algumas
ou todas as características da síndrome de Cushing verdadeira, com evidência
laboratorial de hipercortisolismo, mas com resolução completa após tratamento da
condição primária. Pode ocorrer em pacientes com doenças psiquiátricas, como
síndrome do pânico, transtorno de ansiedade generalizada, alcoolismo e,
principalmente, depressão. O cortisol sérico e salivar à meia noite superior a 7.5mcg/dL
e 0.13mcg/dL, respectivamente, apresenta alta sensibilidade e alta especificidade para o
diagnóstico diferencial entre pseudo-Cushing e síndrome de Cushing.

Tratamento
A cirurgia hipofisária por via transesfenoidal é o procedimento de escolha para o
tratamento da doença de Cushing, tanto pela baixa morbidade como pelos altos índices
de remissão. Quando não houver remissão do hipercortisolismo, o paciente poderá ser
submetido a nova abordagem cirúrgica por via transesfenoidal, porém com menor
possibilidade de cura. Quando não houver imagem compatível com tumor hipofisário,
podem ser preconizadas radioterapia hipofisária associada a medicação que bloqueie a
síntese de cortisol ou adrenalectomia unilateral associada a medicação com ação
adrenolítica.
Do ponto de vista clínico, a remissão é caracterizada por descamação da pele,
artralgia e sinais de insuficiência adrenal, como fraqueza, hipotensão postural e
taquicardia. Do ponto de vista hormonal, há grande controvérsia entre os trabalhos da
literatura. Admite-se que concentrações subnormais de cortisol associadas à necessidade
de reposição de glicocorticoide por longos períodos estão relacionadas a remissões mais
prolongadas. A ausência de resposta do hormônio corticotrófico e/ou do cortisol após
administração de hormônio liberador do hormônio corticotrófico ou Desmopressina
(DDAVP) apresenta valor prognóstico maior que a medida do cortisol sérico basal.
Em caso de insucesso da cirurgia transesfenoidal ou recorrência do
hipercortisolismo após um período de remissão, o tratamento clínico e/ou radioterápico
deverá ser instituído antes da adrenalectomia bilateral, já que o hipercortisolismo
prolongado está associado a alta taxa de mortalidade por infecções oportunistas e
doenças cardiovasculares. Para o tratamento clínico, diversos agentes farmacológicos
têm sido indicados, porém a eficácia é relativa, sobretudo quando o hipercortisolismo é
grave. Estão incluídos entre os fármacos que atuam na região hipotálamo-hipofisária

Pedro Kallas Curiati 513


anti-serotoninérgicos, como a Cipro-heptadina, agonistas dopaminérgicos, como a
Bromocriptina e a Cabergolina, agonistas gabaérgicos, como o Valproato de Sódio, e
análogos da somatostatina, como o Octreotide. As drogas mais efetivas no controle do
hipercortisolismo, no entanto, são as que bloqueiam a síntese adrenal de cortisol, como
Cetoconazol, Fluconazol, Etomidato, Mitotano, Trilostano, Aminoglutetimida e
Metirapona.
A droga que mais tem sido utilizada no controle do hipercortisolismo crônico é o
Cetoconazol, apresentado na forma de comprimidos de 200mg, agente anti-fúngico que
atua interferindo com enzimas do citocromo P450. A grande vantagem é que,
diferentemente das outras drogas bloqueadoras supra-renais, não provoca aumento
significativo da secreção de hormônio corticotrófico, com menor incidência de
hirsutismo e hipertensão arterial. Sabe-se, no entanto, que há efeito anti-androgênico
potente, com risco de hipogonadismo e ginecomastia. Os principais efeitos adversos são
sintomas gastrointestinais e elevação de enzimas hepáticas. As doses efetivas no
controle do hipercortisolismo estão entre 600mg e 1200mg por dia.
O Mitotano é apresentado na forma de comprimidos de 500mg, com dose diária
inicial de 0.5g, que pode atingir 4g por dia em três a quatro tomadas diárias ao longo de
um período de seis a nove meses. É possível que haja necessidade de reposição de
glicocorticoides devido à alteração do metabolismo do cortisol. Os principais efeitos
colaterais são gastrointestinais, como náusea e vômitos. Não é recomendado o uso em
gestantes.
Outra droga utilizada no controle do hipercortisolismo é a Metirapona, que pode
ser utilizada em combinação com o Valproato de Sódio e com radioterapia hipofisária.
Os principais efeitos colaterais são decorrentes do aumento dos andrógenos circulantes,
com hirsutismo, e de 11-desoxicorticosterona, com hipertensão arterial, hipocalemia e
edema periférico.
Existem relatos de que a adrenalectomia unilateral seguida por radioterapia em
pacientes que não obtiveram sucesso cirúrgico apresentaria taxa de remissão similar à
cirurgia hipofisária transesfenoidal, com a vantagem de os pacientes não necessitarem
de reposição contínua de glicocorticoides e apresentarem menor risco de síndrome de
Nelson.
Em casos menos graves, o uso de Cetoconazol associado a radioterapia
hipofisária pode ser suficiente para controle da doença à semelhança do que ocorre com
os pacientes que não obtiveram sucesso pela cirurgia transesfenoidal.

Adenomas hipofisários clinicamente não-funcionantes

Definições
Os adenomas hipofisários clinicamente não-funcionantes dividem com os
prolactinomas a maior prevalência dentre os tumores hipofisários e podem produzir
hormônios ou fatores locais em quantidade suficiente para serem detectados em estudo
imuno-histoquímico, porém insuficiente para mensuração na circulação sistêmica.
Com o desenvolvimento de técnicas cada vez mais sensíveis de imagem, o
diagnóstico incidental de tumores da região selar tornou-se mais frequente. O achado
desses tumores em pacientes com queixas não-relacionadas a eles é denominado
incidentaloma de hipófise, podendo compreender quaisquer tumores hipofisários,
inclusive os clinicamente não-funcionantes.

Epidemiologia
Os adenomas hipofisários clinicamente não-funcionantes incidem

Pedro Kallas Curiati 514


principalmente entre a quarta e a sexta décadas de vida, sem predomínio de sexo. Uma
vez que os sintomas decorrem de efeito de massa ou hipopituitarismo, muitos casos não
são diagnosticados precocemente e, quando o são, os tumores encontram-se com mais
de 1cm no seu maior diâmetro, sendo denominados macroadenomas. Os tumores que
não promovem sintomas em grau suficiente para suscitar uma investigação diagnóstica
são ainda mais frequentes.

Etiologia
Os adenomas clinicamente não-funcionantes representam um grupo heterogêneo
de tumores, uma vez que podem expressar quaisquer hormônios, detectados através de
estudo imuno-histoquímico. Todavia, em sua maioria, expressam gonadotrofinas e,
mesmo entre aqueles com expressão negativa, há RNA mensageiro para gonadotrofinas
e suas subunidades, sugerindo que em grande parte derivam da linhagem gonadotrófica.
Os adenomas clinicamente não-funcionantes podem ocorrer associados à
neoplasia endócrina múltipla tipo 1. Entre os casos não-familiares, diferentemente de
outros tumores, os adenomas hipofisários não foram associados a mutações dos genes
p53 e do retinoblastoma.

Quadro clínico
Sintomas neurológicos incluem cefaleia, defeitos no campo visual,
principalmente hemianopsia bitemporal, paresia de nervos cranianos presentes no seio
cavernoso, como o III, o IV, o VI e os ramos oftálmico e mandibular do V, rinorreia,
convulsões e hidrocefalia.
O crescimento do tumor pode causar compressão da hipófise normal e/ou da
haste hipofisária, causando deficiência de um ou mais hormônios hipofisários. Os
sintomas dependem de qual ou quais setores hipofisários encontram-se deficientes.
Quando há deficiência de mais de dois hormônios hipofisários, utiliza-se o termo pan-
hipopituitarismo.
O hipogonadismo pode ser decorrente da compressão do setor gonadotrófico ou
da hiperprolactinemia secundária à desconexão da haste hipofisária.
Os tumores hipofisários podem apresentar insuficiência vascular relativa durante
seu crescimento, ocasionando apoplexia, ou seja, infarto tumoral. Fatores
desencadeantes incluem trauma, hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus,
cirurgia cardíaca, testes endocrinológicos dinâmicos, radioterapia e anticoagulação. Em
geral, o infarto é hemorrágico e assintomático, sendo diagnosticado pela presença de
sinais de sangramento nos exames de imagem de rotina ou durante cirurgia. Porém, a
apoplexia sintomática é um quadro extremamente grave caracterizado por cefaleia
intensa, vômitos, oftalmoplegia, outros déficits neurológicos e meningismo, sendo
indicado o uso de glicocorticoides. Intervenção cirúrgica transesfenoidal imediata é
indicada em caso de redução do nível de consciência e/ou defeito visual, com grande
chance de reversão se realizada em até oito dias do início do quadro.

Avaliação complementar
Os adenomas clinicamente não-funcionantes podem secretar de forma
aumentada glicoproteínas e subunidades de hormônios glicoproteicos, como subunidade
alfa, beta-FSH, beta-LH, FSH e LH, o que auxiliaria no diagnóstico. No entanto, a
elevação ocorre em poucos casos e, nos pacientes com hipogonadismo, perde o valor.
Cerca de 40% dos casos apresentam resposta paradoxal ao TRH, que ocorre porque os
gonadotrofinomas, e não os gonadotrofos normais, expressam receptores de TRH.
Administra-se 200mcg por via intravenosa e procede-se à coleta de sangue para

Pedro Kallas Curiati 515


dosagem de LH, FSH e suas subunidades nos tempos 0, 15, 30, 45, 60 e 90 minutos. A
definição de resposta paradoxal varia de acordo com o estudo. Para avaliação do
hipopituitarismo, a análise dos hormônios hipofisários basais e, eventualmente, testes
estimulatórios são necessários.
Muitos pacientes, apesar de apresentarem déficit visual, não o referem como
queixa principal, o que interfere no diagnóstico, pois a avaliação objetiva visual é
fundamental para definir a urgência do tratamento inicial, sendo recomendada a
realização rotineira de exame neuro-oftalmológico.
A realização de ressonância nuclear magnética da região selar, sem e com
contraste, em aquisições em T1 e T2, é fundamental para avaliar o tamanho e a
localização do tumor, bem como suas relações com estruturas adjacentes. As
características da lesão devem ser apreciadas para o diagnóstico diferencial com lesões
não-hipofisárias. A tomografia computadorizada está indicada para avaliação de
calcificações na lesão e da integridade da sela túrcica.
A avaliação imuno-histoquímica dos tumores clinicamente não-funcionantes
demonstra que a maior parte deles sintetiza ao menos uma subunidade dos hormônios
glicoproteicos. Com menor frequência, ocorre reatividade a prolactina, GH ou ACTH.
Menos de 30% dos tumores não apresentam qualquer imunorreatividade e são
chamados de null cells.

Tratamento
Uma vez feita a avaliação, define-se a necessidade e a urgência do tratamento,
que dependerá principalmente dos sintomas neuro-oculares. Pacientes com sintomas
neurológicos, hipopituitarismo ou tumores de extensão supra-selar e desejo de
engravidar devem ser tratados.
Cirurgia constitui o tratamento de escolha e o principal objetivo é a
descompressão das vias ópticas e da hipófise normal. Devido ao habitual grande
tamanho dos tumores, sua ressecção cirúrgica completa frequentemente não é possível.
A principal via de acesso para a cirurgia é a transesfenoidal, que apresenta baixa
morbidade e baixa mortalidade. Com menor frequência, a via transcraniana é indicada
para os casos com sela túrcica normal e grande expansão supra-selar. Para pacientes
assintomáticos com microadenomas ou pequenos macroadenomas, a cirurgia não está
necessariamente indicada, podendo ser realizado acompanhamento clínico com exame
neuro-oftalmológico, dosagens hormonais e ressonância nuclear magnética periódicos.
A taxa de recidiva tumoral após a cirurgia é elevada, mas pode ser reduzida se
radioterapia for realizada no pós-operatório. Os pacientes submetidos à cirurgia devem
ser avaliados através de ressonância nuclear magnética três meses após o procedimento.
A radioterapia convencional deve ser fracionada em doses de no máximo
200cGy, com quatro a cinco sessões por semana, perfazendo o total de 4500-5000cGy.
A radiocirurgia é uma modalidade de radioterapia direcionada com precisão
estereotáxica e administrada em única sessão. Apesar de a radioterapia prevenir
recorrência no pós-operatório, os efeitos colaterais não são desprezíveis e incluem
hipopituitarismo, segunda neoplasia e vasculopatia cerebral. Atualmente, indica-se
radioterapia quando houver evidência de recorrência tumoral não curável com
reoperação ou remanescente tumoral pós-operatório de tamanho considerável ou em
crescimento.
O papel da farmacoterapia nos adenomas hipofisários clinicamente não-
funcionantes não é bem estabelecido. Apesar de alguns resultados promissores, a
farmacoterapia ainda constitui uma opção pouco atraente como terapia inicial e deve ser
considerada para os casos com contraindicação cirúrgica, sem cura cirúrgica ou que

Pedro Kallas Curiati 516


aguardam efeito da radioterapia.
Para os pacientes muito idosos, de alto risco cirúrgico ou nos quais cirurgia não
é indicada, a monitorização por exame de imagem deve ser realizada em três, seis e
doze meses e, a seguir, anualmente. Se houver crescimento tumoral significativo, a
indicação cirúrgica deve ser avaliada.

Doenças da hipófise posterior

Diabetes insipidus

Definição
Diabetes insipidus é uma síndrome caracterizada por poliúria hipotônica,
polidipsia e graus variáveis de hipertonicidade plasmática. A densidade e a
osmolalidade urinárias encontram-se em níveis inferiores a 1.010 e 300mOsm/kg,
respectivamente.

Fisiopatologia
Os principais reguladores da secreção da vasopressina são os osmorreceptores e
os receptores de volume ou barorreceptores. Náusea e vômito também são potentes
estimuladores da secreção da vasopressina. Aumentam a liberação da vasopressina
acetilcolina, anestésicos, angiotensina II, barbitúricos, Carbamazepina, drogas beta-
adrenérgicas, histamina, hipercapnia, hipóxia, Metoclopramida, analgésicos opioides,
prostaglandina E2, Vincristina e Ciclofosfamida. Aumentam a ação da vasopressina
anti-inflamatórios não-hormonais, Carbamazepina, Clorpropamida e desidratação
crônica. Reduzem a liberação da vasopressina álcool, drogas alfa-adrenérgicas,
Fenitoína e peptídeo natriurético atrial. Reduzem a ação da vasopressina
Demeclociclina, drogas alfa-adrenérgicas, hipercalcemia, hipocalemia, Lítio, peptídeo
natriurético atrial, prostaglandina E2 e proteína C quinase.
O diabetes insipidus pode ocorrer em decorrência de deficiência parcial ou total
de vasopressina, com diabetes insipidus central, neurogênico ou hipofisário, resistência
renal à ação antidiurética da vasopressina, com diabetes insipidus nefrogênico, bloqueio
da secreção da vasopressina por ingesta excessiva de água, com polidipsia primária, ou
alteração transitória decorrente da metabolização excessiva da vasopressina por enzimas
placentárias, com diabetes insipidus gestacional.
O diabetes insipidus central, neurogênico ou hipotalâmico constitui a etiologia
mais frequente de diabetes insipidus e resulta de deficiência na síntese de arginina-
vasopressina pelos neurônios magnocelulares dos núcleos supra-ópticos e
paraventriculares. Para a instalação do quadro clínico, é necessário que sejam destruídos
mais de 90% dos neurônios hipotalâmicos produtores de vasopressina. Em função disso,
o diabetes insipidus central não pode ser causado por uma lesão da neuro-hipófise, já
que a vasopressina vai continuar a ser sintetizada no hipotálamo e secretada por
terminações neoformadas acima do diafragma selar.

Etiologia
O diabetes insipidus central, neurogênico ou hipotalâmico pode ser congênito,
abrangendo formas autossômicas dominantes, autossômicas recessivas e associadas a
malformações cerebrais, ou adquirido, que pode ser idiopático ou secundário a trauma,
ressecção cirúrgica, tumores, como craniofaringioma, astrocitoma, germinoma,
meningioma, hamartoma, adenoma hipofisário com extensão supra-selar, neoplasia de
haste hipofisária, linfoma e metástases, doenças granulomatosas, como sarcoidose,

Pedro Kallas Curiati 517


histiocitose e tuberculose, doenças autoimunes, como neuro-hipofisite e infundibulite
linfocítica, infecções, como encefalite viral, meningite viral, bacteriana ou fúngica,
toxoplasmose e citomegalovirose, aneurismas, vasculites e malformações.
O diabetes insipidus nefrogênico pode ser congênito, abrangendo formas ligadas
ao cromossomo X, autossômicas dominantes e autossômicas recessivas, ou adquirido,
que pode ser secundário a doenças renais, como insuficiência renal crônica, pielonefrite
crônica, necrose tubular aguda, pós-uropatia obstrutiva, pós-transplante e doença
policística, alterações metabólicas, como hipercalcemia e hipocalemia, efeito de drogas,
como Demeclociclina, Lítio, Cisplatina, Gentamicina, Metoxiflurano, Rifampicina,
contrastes radiológicos, Gliburida, Lobenzarit e Foscarnet, e doenças sistêmicas, como
anemia falciforme, cistinose, sarcoidose, mieloma múltiplo e síndrome de Sjögren.
Polidipsia primária pode ser psicogênica, associada a distúrbio psiquiátrico, ou
dipsogênica, que pode ser idiopática ou secundária a lesão do centro da sede ou efeito
de drogas, como Lítio e Carbamazepina.

Quadro clínico
Poliúria, polidipsia e sede intensa são os principais sintomas de diabetes
insipidus. A hiperosmolaridade e a hipernatremia somente estarão presentes se o
paciente tiver comprometimento do mecanismo de sede, inconsciência ou falta de
acesso a água. Nessas condições, podem ocorrer sintomas neurológicos, como confusão
mental, hipertermia, alterações do equilíbrio e coma.

Avaliação complementar
Indicações de investigação incluem poliúria, com volume urinário superior a
30mL/kg e urina hipotônica, com osmolaridade inferior a 300mOsm/kg e densidade
inferior a 1.010, família com mais de um membro com diabetes insipidus, uso de drogas
que possam alterar a síntese ou a ação da vasopressina, distúrbios eletrolíticos
relacionados à alteração dos mecanismos de concentração urinária e enurese noturna.
Para estabelecer o diagnóstico de diabetes insipidus, é necessário determinar se o
paciente é capaz de concentrar a urina em resposta a um estímulo fisiológico. Se o
paciente apresenta desidratação associada a hipernatremia, o diagnóstico de polidipsia
primária é afastado e se estabelece o diagnóstico de diabetes insipidus decorrente de
defeito na secreção ou na ação da vasopressina. A administração de vasopressina
exógena, como a Desmopressina (DDAVP), permite diferenciar as duas possibilidades.
Pacientes com diabetes insipidus que estão conscientes geralmente apresentam o
mecanismo da sede preservado, o que mantém o sódio plasmático em níveis normais.
Nessa situação, um teste de desidratação ou prova de concentração possibilita o
diagnóstico de diabetes insipidus, além de diferenciar o diabetes insipidus central do
nefrogênico. O objetivo da prova de deprivação hídrica é a avaliação indireta da
secreção da vasopressina por meio da análise da capacidade de concentração urinária
em resposta a um aumento da osmolalidade plasmática, com consequente avaliação da
capacidade de concentração renal em resposta a vasopressina exógena, como a
Desmopressina (DDAVP). Urina concentrada e osmolalidade urinária com aumento
inferior a 10% após a infusão de Desmopressina indicam polidipsia primária. Urina não-
concentrada e osmolalidade urinária com aumento superior a 50% após a infusão de
Desmopressina indicam diabetes insipidus central. Urina não-concentrada e
osmolalidade urinária com aumento inferior a 10% após a infusão de Desmopressina
indicam diabetes insipidus nefrogênico. Urina pouco concentrada e osmolalidade
urinária com aumento de 10-50% após a infusão de Desmopressina indicam diabetes
insipidus parcial, que poderá ser central ou nefrogênico.

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A avaliação radiológica do sistema nervoso central com ressonância nuclear
magnética da região hipotálamo-hipofisária é essencial em todos os pacientes com
diagnóstico de diabetes insipidus central. A neuro-hipófise é visualizada na ressonância
nuclear magnética como um sinal de alta intensidade nas imagens em T1. Esse sinal de
alta intensidade está presente na maioria dos indivíduos normais e ausente na maioria
dos pacientes com diabetes insipidus hipotalâmico.

Tratamento
A maioria dos pacientes tem a sensação de sede normal e é capaz de beber uma
quantidade de água suficiente para manter a hidratação normal. A ingesta de água pode
ser muito grande, causando irritabilidade, problemas de ajuste social e prejuízo no
trabalho. A poliúria de longa duração pode levar a hidronefrose, megaureter e dilatação
de bexiga, porém geralmente sem prejuízo à função renal.
A Desmopressina (DDAVP) é o análogo sintético da vasopressina. Apresenta
uma atividade antidiurética mais prolongada e mais específica que a vasopressina, com
reduzida atividade pressórica. Possui vantagens relacionadas a eficácia, administração
simples, longa duração de ação e efeitos colaterais de pequena gravidade, como
cefaleia, náusea, rubor facial e dores abdominais. As desvantagens incluem alto custo e
grande variação de dose entre os indivíduos, independentemente da altura e do peso. O
início da ação ocorre em aproximadamente uma hora. A Desmopressina está disponível
em nosso meio para administração intra-nasal, oral e intravenosa. A apresentação intra-
nasal existe na forma de spray com 10mcg/puff em frascos de 2.5mL com 100mcg/mL.
A dose média diária em adultos é de 10-20mcg uma a duas vezes ao dia. A dose de
Desmopressina administrada por via oral, apresentada na forma de comprimidos de
0.1mg e 0.2mg, é cerca de dez a vinte vezes maior, devendo-se iniciar o tratamento com
meio comprimido de 0.1mg e aumentar progressivamente até uma dose plena de 0.1-
0.2mg três vezes ao dia. A Desmopressina para uso parenteral é apresentada na forma
de ampolas de 4mcg/1mL, com dose inicial pela via subcutânea de aproximadamente
0.5mcg duas vezes ao dia. Para potencializar os efeitos da vasopressina endógena ou
exógena, podem ser usadas Clorpropamida, Carbamazepina ou Clofibrato.

Síndrome da secreção inapropriada do hormônio antidiurético

Definição
A síndrome da secreção inapropriada do hormônio antidiurético é desencadeada
quando concentrações plasmáticas da vasopressina estão elevadas em situações nas
quais a sua secreção deveria estar suprimida. Essa síndrome tem como manifestação
mais característica a hiponatremia. Trata-se da causa mais comum de hiposmolalidade
euvolêmica.

Fisiopatologia
Em condições fisiológicas, a liberação de vasopressina ocorre quando o
organismo necessita conservar água livre para manter normais a osmolalidade e a
volemia. Na síndrome da secreção inapropriada do hormônio antidiurético, a
vasopressina é secretada continuamente, mesmo na presença de hiponatremia e baixa
osmolalidade plasmática. O excesso de água livre acarreta uma expansão hiposmolar do
líquido extracelular, com consequente edema celular, sem sinais clínicos de edema
periférico. O aumento da filtração glomerular e a diminuição da reabsorção de sódio nos
túbulos proximais renais são os mecanismos regulatórios para o controle da
hipervolemia. A expansão do volume extracelular eleva os níveis do peptídeo

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natriurético atrial, suprime a atividade da renina plasmática e causa um aumento
compensatório da excreção urinária de sódio.

Etiologia
Tumores, como carcinoma pulmonar de pequenas células, mesotelioma, timoma,
carcinoma duodenal, carcinoma pancreático, carcinoma ureteral, carcinoma prostático,
carcinoma uterino, carcinoma de nasofaringe e leucemia.
Doenças neurológicas, como tumores, abscesso cerebral, hematoma subdural,
encefalite, meningite, lúpus eritematoso sistêmico com acometimento do sistema
nervoso central, hemorragia subaracnoide, acidente vascular encefálico isquêmico ou
hemorrágico, trauma, transecção de haste hipofisária e cirurgia transesfenoidal. A
hiponatremia associada com hemorragia intracraniana ou outro grave evento
neurológico pode também ser causada pela síndrome cerebral perdedora de sal, que
pode ser diferenciada da elevação inapropriada da vasopressina por causar depleção
volêmica.
Doenças pulmonares, como tuberculose, pneumonia viral ou bacteriana,
empiema, síndrome da angústica respiratória do adulto, doença pulmonar obstrutiva
crônica e ventilação com pressão positiva.
Drogas, como Carbamazepina, Oxcarbazepina, Clorpropamida, Clofibrato,
Ciclofosfamida, inibidores seletivos da receptação de serotonina, fenotiazinas,
antidepressivos tricíclicos e Nicotina.
Síndrome da imunodeficiência adquirida ou doenças oportunistas, como
pneumocistose e infecções do sistema nervoso central.
Cirurgias abdominais ou torácicas.
Idiopática.

Quadro clínico
A hiponatremia pode se manifestar com sinais sistêmicos, como fraqueza,
adinamia, anorexia, fadiga, vômitos e mal-estar. As manifestações neurológicas, como
sonolência, confusão, convulsão e coma, costumam ser progressivas e dependem da
concentração plasmática de sódio e da velocidade de instalação.
Os pacientes com síndrome da secreção inapropriada de hormônio antidiurético
crônica, em decorrência da retenção hídrica, geralmente ganham 3kg em água corporal.
Entretanto, apesar da expansão volêmica, não desenvolvem edema.

Diagnóstico
Diminuição efetiva da osmolalidade plasmática para menos de 275mOsm/kg,
devendo-se excluir pseudo-hiponatremia e hiperglicemia.
Concentração urinária inapropriada em relação ao nível de osmolalidade
plasmática, com osmolalidade urinária superior a 100mOsm/kg com função renal
normal. Isso não significa necessariamente que a osmolalidade urinária seja maior que a
osmolalidade plasmática, mas que a urina não está diluída em níveis máximos. Quando
a síndrome da secreção inapropriada do hormônio antidiurético é causada por uma
diminuição do limiar de sensibilidade dos osmorreceptores para liberação de hormônio
anti-diurético ante a hiponatremia, a secreção da vasopressina pode estar suprimida caso
a osmolalidade plasmática tenha atingido níveis suficientemente baixos. Dessa forma, a
urina pode apresentar uma osmolalidade não-elevada em virtude da supressão da
vasopressina.
Euvolemia clínica, definida pela ausência de sinais de hipovolemia, como
hipotensão postural, taquicardia e mucosas secas, ou hipervolemia, como edema

Pedro Kallas Curiati 520


subcutâneo e ascite.
Natriurese elevada com ingesta normal de água e sal. Deve-se ressaltar que a
excreção renal de sódio pode diminuir nas situações em que o paciente torna-se
hipovolêmico.
Ausência de outra causa potencial de hiposmolaridade euvolêmica, como
hipotireoidismo, hipocortisolismo e uso de diurético.

Tratamento
O fator etiológico da síndrome da secreção inapropriada do hormônio
antidiurético deve ser identificado e corrigido o mais precocemente possível. Drogas
relacionadas ao aumento dos níveis da vasopressina ou à potencialização da sua ação
devem ser suspensas.
O tratamento básico da síndrome da secreção inapropriada do hormônio
antidiurético crônica é a restrição da ingesta hídrica. Quando não for eficaz para a
correção da hiponatremia, uma alta ingesta de sódio e o uso de diuréticos de alça, como
Furosemida 40mg/dia, podem ser úteis.
Drogas que diminuam a resposta dos ductos coletores à vasopressina podem ser
utilizadas. A Demeclociclina, com 3-5mg/kg a cada oito horas por via oral, é superior
ao Lítio para essa finalidade, porém tem que ser usada com cautela por causa de sua
toxicidade.
Antagonistas seletivos dos receptores V2 ou que bloqueiam os receptores V2 e
V1a da vasopressina constituem uma nova modalidade terapêutica. Produzem uma
diurese de água seletiva sem afetar a excreção de sódio e potássio.
A reposição de sódio somente deverá ser feita nos casos graves, quando ocorrer
depleção aguda do sódio corporal total. Nessas condições, diuréticos de alça, como
Furosemida 2-4mg/kg/dose, podem ser utilizados associados a Soro Fisiológico,
evitando modificações rápidas no equilíbrio hidroeletrolítico. Nos casos graves,
recomenda-se o uso de solução de Cloreto de Sódio a 3%. A velocidade de correção do
sódio deve ser monitorada, de modo que não ocorra um aumento maior que
12mEq/L/dia. Pode ser necessário o uso de Furosemida para aumentar a excreção de
água livre.

Bibliografia
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 521


HIPOPARATIREOIDISMO
Definição
O hipoparatireoidismo é uma doença decorrente de deficiência de secreção ou
resistência à ação do paratormônio, com diminuição das concentrações séricas de cálcio.

Etiologia e fisiopatologia
Independentemente da etiologia, o prejuízo das ações do paratormônio resulta
em reabsorção óssea e tubular de cálcio diminuída e redução na produção de 1,25-
diidroxi-vitamina D, com consequente redução da absorção intestinal de cálcio. A
resultante é uma hipocalcemia que, ao determinar baixa carga filtrável de cálcio,
promove excreção urinária de cálcio diminuída. Na falta de ação do paratormônio,
ocorre também redução do clearance de fosfato e a hiperfosfatemia é um achado
comum.

Deficiência de secreção do paratormônio


Dentre as causas de defeito do desenvolvimento das paratireoides, estão
incluídas doenças com base genética que levam à agenesia ou hipoplasia das
paratireoides. A síndrome de DiGeorge é a mais comum, sendo caracterizada por
prejuízo na formação de timo, paratireoides e sistema cardiovascular, além de
hipoplasia mandibular, fenda palatina e deformidade nasal. Menos comum, a síndrome
de Barakat tem como manifestações principais hipoparatireoidismo, surdez
neurossensorial e displasia renal. Algumas doenças mitocondriais caracterizam-se por
distúrbios neurológicos associados ao hipoparatireoidismo. Também existem causas
genéticas de hipoparatireoidismo isolado.
A destruição das paratireoides pode ser por ablação cirúrgica, infiltração das
paratireoides, doença autoimune e radioterapia da região cervical. O
hipoparatireoidismo pós-operatório geralmente é transitório e os pacientes se recuperam
em um período de três semanas a seis meses. A dosagem seriada de paratormônio e
cálcio sérico permite o diagnóstico precoce do hipoparatireoidismo pós-cirúrgico. A
hipocalcemia pós-operatória pode ser assintomática em parcela significativa dos casos e
é importante diferenciar o hipoparatireoidismo da hipocalcemia decorrente de “fome
óssea”, esperada após algumas cirurgias para tratamento de hiperparatireoidismo
primário. O hipoparatireoidismo por infiltração glandular se deve a deposição de metais
como ferro na hemocromatose e na talassemia e cobre na doença de Wilson, doenças
granulomatosas e neoplasias, com manifestações clínicas quando as quatro glândulas
forem afetadas, situação na qual os sinais e sintomas da doença primária costumam ser
evidentes. Menos comum, o hipoparatireoidismo pode ser decorrente de radiação
extensa da região cervical e do tratamento com iodo radioativo. A paratireoide também
pode ser lesada por mecanismo autoimune de forma isolada ou associada a outras
deficiências endócrinas, situação na qual as manifestações clínicas costumam ser mais
precoces. A síndrome poliglandular autoimune tipo 1 se caracteriza por candidíase
mucocutânea, hipoparatireoidismo e insuficiência adrenal.
As alterações da regulação da secreção do paratormônio podem ser primárias,
quando resultam de problemas relacionados ao sensor do cálcio, ou secundárias, quando
envolvem fatores extrínsecos responsáveis pela redução da secreção do paratormônio,
como hipomagnesemia e hiperparatireoidismo materno. As mutações ativadoras do
sensor de cálcio fazem com que concentrações mais baixas de cálcio ionizado sejam

Pedro Kallas Curiati 522


capazes de reduzir a secreção do paratormônio, com hipocalcemia, hiperfosfatemia,
hipomagnesemia e hipercalciúria. As mutações ativadoras do sensor de cálcio são
transmitidas por herança autossômica dominante e, embora manifestem-se clinicamente
nos primeiros anos de vida, podem ocorrer mais tardiamente também, inclusive na
terceira idade. O desenvolvimento de anticorpos ativadores do sensor de cálcio tem sido
descrito.

Resistência à ação do paratormônio


No pseudo-hipoparatireoidismo, ocorre resistência tecidual às ações biológicas
do paratormônio, que pode ser demonstrada com a análise da excreção urinária de AMP
cíclico e fosfato antes e depois da infusão de paratormônio. De acordo com a resposta à
infusão de paratormônio, o pseudo-hipoparatireoidismo pode ser classificado em tipo 1
quando a excreção de AMP cíclico e fósforo estão prejudicadas em resposta ao
paratormônio e tipo 2 quando a excreção de AMP cíclico é normal, mas a excreção de
fósforo está alterada. Por sua vez, o pseudo-hipoparatireoidismo tipo 1 pode ser
subdividido nos tipos 1A, 1B e 1C.
A história natural do pseudo-hipoparatireoidismo é variável. Embora seja
congênito, a hipocalcemia não está presente ao nascimento e as alterações bioquímicas
ocorrem durante a infância. O declínio da calcemia tem início após os três anos de idade
e precede o aumento do paratormônio.
A subunidade alfa da proteína G estimulatória (Gs-alfa) está acoplada a uma
série de receptores de membrana e, quando ativada pela presença de um ligante
específico, promove a ativação da adenilciclase. A Gs-alfa é um dos produtos do gene
GNAS1 e é geralmente expressa bialelicamente, porém em alguns tecidos, sua
expressão é monoalélica e governada por mecanismo de imprinting. No córtex renal,
por exemplo, a Gs-alfa de origem paterna não é expressa e sua atividade depende da
expressão do alelo de origem materna. Assim, mutações heterozigóticas no alelo
materno, características do pseudo-hipoparatireoidismo tipo 1A, em tecido em que
apenas esse alelo é expresso, são responsáveis por resistência a múltiplos hormônios,
particularmente paratormônio, hormônio tireotrófico, hormônio luteinizante, hormônio
folículo-estimulante e hormônio liberador de hormônio de crescimento. Além das
resistências hormonais, os pacientes com pseudo-hipoparatireoidismo tipo 1A também
apresentam uma série de estigmas somáticos, denominados osteodistrofia hereditária de
Albright, que pode ser herdada separadamente com a denominação de pseudo-pseudo-
hipoparatireoidismo. Os seus estigmas incluem face arredondada, baixa estatura,
obesidade, ossificações subcutâneas e braquidactilia. Postula-se que toda vez que a
herança do alelo mutado for de origem paterna, o quadro clínico esperado será de
pseudo-pseudo-hipoparatireoidismo, uma vez que o produto do alelo materno não estará
comprometido.
No pseudo-hipoparatireoidismo tipo 1B, a resistência ao paratormônio não é
generalizada. Embora haja resistência renal à ação do paratormônio, a preservação da
sua atividade nos ossos pode ser evidenciada clinicamente pela presença de sinais
radiológicos de hiperparatireoidismo. O distúrbio molecular envolvido parece envolver
mutações a montante do locus do GNAS1, em sua região regulatória.
No raro subtipo 1C do pseudo-hipoparatireoidismo, o paciente apresenta quadro
clínico semelhante ao do paciente com pseudo-hipoparatireoidismo tipo 1A, podendo
manifestar, além de hipoparatireoidismo, alterações somáticas compatíveis com
osteodistrofia hereditária de Albright, bem como resistência à ação de outros hormônios
que têm atividade acoplada ao sistema adenilciclase. No entanto, a atividade da Gs-alfa
é normal.

Pedro Kallas Curiati 523


No pseudo-hipoparatireoidismo tipo 2, os pacientes apresentam hipocalcemia
com paratormônio elevado na ausência de estigmas da osteodistrofia de Albright e de
resistência periférica a outros hormônios, com atividade da proteína Gs-alfa normal. A
administração intravenosa de paratormônio é capaz de promover incremento normal do
AMP cíclico urinário, mas a resposta fosfatúrica é reduzida. Esse padrão de resposta
sugere a presença de distúrbio de sinalização intracelular independente da adenilciclase.
Características PHP 1A PHP 1B PHP 1C PHP 2 PPHP
Hipocalcemia Sim Sim Sim Sim Não
Resposta do AMC cíclico urinário ao PTH Não Não Não Sim Sim
Resposta fosfatúrica ao PTH Não Não Não Não Sim
Osteodistrofia hereditária de Albright Sim Não Sim Não Sim
Mutação Gs-alfa Sim Não Não Não Sim
Resistência a outros hormônios Sim Não Sim Não Não

Quadro clínico
O quadro clínico do paciente com hipoparatireoidismo depende da hipocalcemia
e de sintomas e sinais das suas várias etiologias.
As manifestações clínicas da hipocalcemia são relacionadas a um aumento da
excitabilidade neuromuscular. A intensidade dos sintomas varia entre os indivíduos e
depende do grau de hipocalcemia e da velocidade da sua queda. Os sintomas mais
precoces são parestesias em extremidades e região perioral. Com hipocalcemia mais
acentuada, o paciente refere cãibras. Há acentuação do quadro clínico associada a
hiperventilação, como em esforços físicos, uma vez que a alcalose respiratória reduz a
concentração do cálcio ionizado. A manifestação clínica característica da hipocalcemia
aguda é a tetania, que pode ser acompanhada de sudorese, cólicas abdominais, vômitos
e broncoespasmo, provavelmente por disfunção do sistema nervoso autônomo. Em
crianças, o laringoespasmo pode ser a única manifestação de tetania. As convulsões
generalizadas podem ser desencadeadas pela hipocalcemia em pessoas predispostas. O
edema de papila tem sido descrito e, quando associado a quadro convulsivo, pode haver
confusão com tumor cerebral. Os sintomas de tetania podem ainda ser latentes, apenas
desencadeados por manobras, com os sinais de Chvostek e Trousseau.
Quando a hipocalcemia se instala de modo insidioso, costuma haver adaptação
do organismo e os sintomas surgem apenas durante períodos de aumento da demanda de
cálcio, como gestação, lactação, ciclo menstrual e estados de alcalose, ou durante o uso
de agentes que reduzem a calcemia.
Nos pacientes com hipoparatireoidismo crônico, a pele pode ser seca e
descamativa, as unhas, quebradiças, e os cabelos, secos e ásperos. Catarata está presente
em metade dos pacientes não-tratados, com patogênese obscura. Alterações psíquicas,
como labilidade emocional, ansiedade e depressão, podem estar presentes. As
manifestações cardíacas podem ser apenas eletrocardiográficas, como aumento do
intervalo QT, ou clínicas, com arritmias. Na hipocalcemia acentuada, a insuficiência
cardíaca pode se tornar refratária às medidas terapêuticas usuais.
A hiperfosfatemia persistente, associada à hipocalcemia, pode induzir à
calcificação de gânglios da base, que pode ser assintomática ou se manifestar como
parkinsonismo. A hipocalcemia durante o desenvolvimento dos dentes poderá ocasionar
retardo na erupção dos dentes, prejuízo da formação do esmalte, raízes defeituosas e
hipoplasia dos dentes.

Avaliação complementar
A comprovação laboratorial do diagnóstico é feita pela dosagem de cálcio
sérico. A concentração diminuída de cálcio sérico total deve ser interpretada em

Pedro Kallas Curiati 524


conjunto com os níveis de albumina do paciente através da fórmula cálcio total
corrigido em mg/dL = cálcio total em mg/dL + 0.8 x (4 - albumina em g/dL). Outra
opção seria a determinação do cálcio ionizado, que representa o cálcio metabolicamente
ativo.
A investigação laboratorial do paciente com hipocalcemia inclui a avaliação dos
níveis séricos de cálcio total ou ionizado, fósforo, magnésio e paratormônio, da função
renal e dos metabólitos da vitamina D, com calcidiol (25-hidróxi-vitamina D) e
calcitriol (1,25-diidróxi-vitamina D). Também podem ser avaliados amilase e fosfatase
alcalina séricas e cálcio e magnésio urinários. A causa mais frequente de hipocalcemia é
a insuficiência renal crônica, que deve ser pesquisada em todos os pacientes. Em
pacientes com deficiência de vitamina D, a avaliação laboratorial geralmente revela
níveis reduzidos de 25-hidróxi-vitamina D e níveis normais ou aumentados de 1,25-
diidroxi-vitamina D, enquanto que em pacientes com hipoparatireoidismo, a avaliação
laboratorial revela níveis reduzidos de 25-hidróxi-vitamina D e de 1,25-diihidróxi-
vitamina D. A dosagem sérica de magnésio diminuída, associada a hipocalcemia, sugere
hipoparatireoidismo por alteração da regulação da secreção de paratormônio ou por
resistência à sua ação. A hipocalcemia associada a hipofosfatemia e a paratormônio
sérico elevado é encontrada na deficiência de vitamina D, que pode ser causada por
diminuição da síntese ou síndrome de má-absorção. Na insuficiência renal crônica, a
avaliação laboratorial revela níveis reduzidos de ambos os metabólitos da vitamina D e
níveis aumentados de paratormônio em associação com fosfato sérico elevado ou
próximo ao limite superior da normalidade. A dosagem de 1,25-diidroxi-vitamina D
deve ser solicitada se a hipótese for de resistência ao calcitriol ou deficiência da enzima
1 alfa-hidroxilase, como nos raquitismos resistentes à vitamina D tipos 2 e 1,
respectivamente. O diagnóstico de hipoparatireoidismo é baseado em hipocalcemia e
hiperfosfatemia na vigência de função renal preservada.
No hipoparatireoidismo por deficiência da secreção de paratormônio, a dosagem
sérica do paratormônio está diminuída ou no limite inferior da normalidade. A excreção
urinária de cálcio em urina de 24 horas costuma estar reduzida e a relação entre cálcio e
creatinina em amostra isolada apresenta-se diminuída. O paciente com
hipoparatireoidismo por mutação ativadora do sensor de cálcio apresenta quadro
laboratorial muito semelhante ao hipoparatireoidismo por deficiência da secreção de
paratormônio, com hipocalcemia, hiperfosfatemia, creatinina sérica dentro da
normalidade e paratormônio no limite inferior da normalidade, mas com hipercalciúria
relativa ou absoluta. Os exames laboratoriais podem sugerir o diagnóstico quando
associados a história familiar, com herança autossômica dominante. A confirmação é
realizada com o auxílio de biologia molecular.
O pseudo-hipoparatireoidismo caracteriza-se por hipocalcemia, hiperfosfatemia,
creatinina normal e paratormônio aumentado. A calciúria de 24 horas geralmente está
diminuída, assim como a relação entre cálcio e creatinina na amostra isolada. O teste
clássico de infusão de paratormônio para o diagnóstico de pseudo-hipoparatireoidismo é
o teste de Ellsworth-Howard, não realizado na prática. Dosagens séricas de hormônio
tireotrópico, T4 livre, hormônio folículo-estimulante, hormônio luteinizante e esteroides
sexuais devem ser realizadas para a avaliação de outras resistências hormonais. O
diagnóstico diferencial entre os tipos 1A e 1C pode ser realizado em poucos centros pela
medida da atividade da Gs-alfa. Os pacientes com tipo 1B são diagnosticados mediante
marcadores de reabsorção óssea aumentados e radiografia óssea com sinais de
reabsorção óssea.
A avaliação radiológica dos pacientes com hipoparatireoidismo deve incluir
tomografia computadorizada de crânio para pesquisa de calcificações dos núcleos da

Pedro Kallas Curiati 525


base. Radiografia de mãos e pés dos pacientes com pseudo-hipoparatireoidismo deve ser
solicitada para avaliação dos estigmas de Albright.

Diagnóstico diferencial da hipocalcemia


Em caso de paratormônio diminuído, magnésio sérico normal indica
hipoparatireoidismo e magnésio sérico diminuído indica hipomagnesemia.
Em caso de paratormônio aumentado, fósforo sérico aumentado indica pseudo-
hipoparatireoidismo se creatinina sérica normal e insuficiência renal crônica se
creatinina sérica aumentada, enquanto que fósforo sérico diminuído indica má-absorção
intestinal se 25-hidroxi-vitamina D diminuída e raquitismo se 25-hidroxi- vitamina D
normal. O raquitismo pode ser dividido em raquitismo resistente à vitamina D tipo 1 em
caso de calcitriol diminuído e tipo 2 em caso de calcitriol aumentado.

Tratamento
O objetivo do tratamento do hipoparatireoidismo é controlar adequadamente as
manifestações clínicas da doença, mas também evitar o aparecimento de suas
complicações crônicas e, eventualmente, de complicações de seu tratamento. A
hipocalcemia deve ser normalizada.

Hipocalcemia aguda
Os pacientes sintomáticos com tetania, convulsões, intervalo QT prolongado ou
concentrações séricas de cálcio total corrigidas inferiores ou iguais a 7.5mg/dL
requerem a administração intravenosa imediata de cálcio para o desaparecimento dos
sintomas. As soluções disponíveis são Gluconato de Cálcio a 10%, com 90mg de cálcio
por ampola de 10mL, e Cloreto de Cálcio a 10%, com 272mg de cálcio por ampola de
10mL. Comumente utiliza-se 10-20mL de Gluconato de Cálcio a 10% diluído em 50-
100mL de Soro Glicosado a 5% ou Soro Fisiológico. A velocidade de infusão deve ser
lenta, em dez a vinte minutos, com cuidado redobrado em pacientes em uso de
digitálicos, pois a hipercalcemia predispõe a intoxicação digitálica e arritmias. Se
houver persistência da hipocalcemia, pode-se repetir a medicação ou iniciar infusão
intravenosa contínua. Deve-se diluir dez ampolas de Gluconato de Cálcio a 10% em
900mL de Soro Glicosado a 5% e infundir 50mL/hora, que corresponderá a 45mg de
cálcio por hora. Com a monitorização do cálcio sérico, diminui-se a velocidade de
infusão para 25mL/hora quando o cálcio sérico estiver no limite inferior da
normalidade. A solução a ser infundida não pode conter bicarbonato ou fosfato para
evitar a formação de sais insolúveis de cálcio. Soluções com mais de 200mg de cálcio
por 100mL devem ser evitadas pelo risco de flebite. A infusão intravenosa deverá ser
mantida até que o paciente comece a receber regime efetivo de reposição de cálcio e
vitamina D por via oral.
A hipomagnesemia deve ser corrigida com Sulfato de Magnésio ou Cloreto de
Magnésio. Cada ampola de Sulfato de Magnésio a 10% fornece 98mg (8.1mEq) de
magnésio. A injeção intramuscular pode ser dolorosa, dando-se preferência à via
intravenosa. A dose diária pode chegar a 48mEq de magnésio. Sugere-se a reposição de
2g de Sulfato de Magnésio em 100mL de Soro Fisiológico em dez a vinte minutos
como esquema inicial de reposição e a seguir 1g de Sulfato de Magnésio em 100mL em
infusão contínua a cada hora, que deverá ser mantida enquanto a concentração sérica de
magnésio for inferior a 0.8mEq/L, 1mg/dL ou 0.4mmol/L.
Cálcio intravenoso não é recomendado como tratamento inicial para pacientes
com hipocalcemia assintomática e disfunção renal, nos quais a correção da
hiperfosfatemia e da deficiência de calcitriol geralmente são os objetivos primários.

Pedro Kallas Curiati 526


Também não é necessário para hipocalcemia aguda leve.

Hipocalcemia crônica
Medidas gerais incluem correção da hipomagnesemia e do hipotireoidismo,
quando presentes, uma vez que essas condições dificultam o tratamento do
hipoparatireoidismo.
O tratamento da hipocalcemia crônica prevê o uso de sais de cálcio e vitamina
D. O paratormônio 1,34 recombinante humano, quando utilizado, deve ser aplicado por
via intramuscular com dose de 20mcg de 12/12 horas, mas apresenta custo elevado, com
limitação para a aplicação na prática clínica rotineira.
A suplementação oral com 1-3g de cálcio elementar por dia deve ser instituída
em todos os casos. Os sais de cálcio são administrados em doses fracionadas e, nos
casos mais leves, são suficientes para a correção da hipocalcemia. O Carbonato de
Cálcio é o mais utilizado por ser mais facilmente encontrado e mais barato. Cada grama
fornece 400mg de cálcio elementar. Deve ser administrado com as refeições para que
ocorra sua solubilização. A dose, em cada tomada, não deve ultrapassar 1000mg de
cálcio elementar. A absorção do Lactato de Cálcio e do Citrato de Cálcio não é
dependente da acidez gástrica, com uso independente da alimentação.
O ideal é o uso da forma mais ativa da vitamina D, o calcitriol (1,25-diidroxi-
vitamina D3), apresentado na forma de cápsulas de 0.25mcg. Nos casos de
hipoparatireoidismo total e definitivo, a dose varia de 0.5mcg a 2mcg por dia fracionada
em duas tomadas diárias. Essa medicação é eficiente e apresenta baixo risco de
intoxicação por causa da sua meia-vida curta. Alternativamente, utiliza-se Alfacacidiol
(1-alfa-hidróxi-vitamina D3), apresentado na forma de cápsulas de 0.25mcg e 1mcg,
que, após a absorção, é metabolizado no fígado e circula como calcitriol, com dose de 1-
4mcg/dia. Outra forma terapêutica é o uso de vitamina D sob a forma de Colecalciferol
(vitamina D3), mais potente que o Ergocalciferol (vitamina D2), com 25000-
100000UI/dia. No entanto, essa forma depende de uma primeira hidroxilação hepática e
uma segunda hidroxilação renal. Tem como vantagem o custo mais baixo, porém há
maior risco de hipercalcemia e intoxicação em função de meia-vida mais longa.
Sintomas de intoxicação por vitamina D incluem poliúria, polidipsia, constipação
intestinal, anorexia, náusea e vômitos. O pseudo-hipoparatireoidismo geralmente
necessita de dose menor de vitamina D do que o hipoparatireoidismo, com
monitorização do tratamento pela dosagem de paratormônio.
Nos pacientes com hipoparatireoidismo por alteração no sensor de cálcio, o
tratamento tem por objetivo manter o cálcio sérico no limite inferior da normalidade,
tomando-se o cuidado para não agravar a hipercalciúria.
Com o intuito de prevenir as complicações do tratamento, é recomendado o
controle laboratorial mensal nos primeiros meses e a cada três a seis meses após o ajuste
da dose das medicações. O controle laboratorial é realizado com dosagens séricas de
cálcio, fosfato e creatinina e calciúria de 24 horas e em amostra isolada. Em caso de
hipercalciúria, superior ou igual a 300mg/dia, as doses de Carbonato de Cálcio e
Calcitriol deverão ser ajustadas. Na ausência de paratormônio, o cálcio urinário é mais
elevado para determinada concentração sérica de cálcio. Assim, alguns pacientes com
concentração sérica normal de cálcio podem apresentar hipercalciúria. Nessa condição,
associa-se diurético tiazídico, cujo efeito na reabsorção urinária de cálcio é aumentado
com o controle da ingesta de cloreto de sódio. Recomenda-se a realização de
ultrassonografia de rins e vias urinárias a cada dois anos ou anualmente quando houver
história de calculose ou hipercalciúria de difícil controle.
O tratamento do hipoparatireoidismo visa manter o fosfato sérico abaixo de

Pedro Kallas Curiati 527


6mg/dL a fim de evitar calcificações patológicas. A medida inicial consiste na redução
do consumo de alimentos ricos em fosfato, como leite e derivados. Caso haja resistência
da hiperfosfatemia, são utilizados quelantes do fosfato no intestino.

Bibliografia
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Etiology of hypocalcemia in adults. David Goltzman. UpToDate, 2012.
Clinical manifestations of hypocalcemia. David Goltzman. UpToDate, 2012.
Diagnostic approach to hypocalcemia. David Goltzman. UpToDate, 2012.
Treatment of hypocalcemia. David Goltzman. UpToDate, 2012.

Pedro Kallas Curiati 528


HIPOTIREOIDISMO
Hipotireoidismo

Definições
Hipotireoidismo é estado resultante da produção insuficiente de hormônios
tireoidianos. Segundo o momento em que ocorre, pode ser congênito ou adquirido.
Conforme a lesão que o determina, pode ser primário se localização na tireoide,
secundário se localização na hipófise ou terciário se localização no hipotálamo. De
acordo com a sua intensidade, pode ser subclínico ou clínico. Raramente, o
hipotireoidismo decorre de resistência ao hormônio tireoidiano.
Cretinismo é síndrome caracterizada por surdez neurossensorial, retardo mental,
baixa estatura e fácies característica que ocorre em indivíduos portadores de
hipotireoidismo congênito não-tratado.

Epidemiologia
O hipotireoidismo é a alteração funcional endócrina mais comum. Acomete mais
mulheres do que homens e a incidência em ambos os sexos aumenta com a idade.
A instalação de hipotireoidismo pode estar associada a período pós-parto, bócio,
doença nodular tireoidiana, tireoidite prévia, antecedente familiar de doença tireoidiana,
doença autoimune endócrina não-tireoidiana, irradiação cervical externa, cirurgia
tireoidiana, radioiodo, hipertensão pulmonar primária, doenças autoimunes não-
endócrinas e síndromes de Down e Turner.

Etiologia

Hipotireoidismo congênito
A deficiência endêmica de iodo persiste como causa importante de
hipotireoidismo congênito mundialmente. Em regiões de suficiência iódica, a doença
tem caráter esporádico na maior parte dos casos, resultando de disgenesia tireoidiana.
Outras causas incluem defeitos genéticos herdados da síntese hormonal tireoidiana,
resistência ao TSH ou ao hormônio tireoidiano, passagem transplacentária de anticorpos
anti-receptor de TSH (TRAb) da mãe com doença tireoidiana autoimune para o feto e
hemangioma hepático de grande dimensão, com elevada atividade da desiodase tipo 3.

Hipotireoidismo primário adquirido


A tireoidite autoimune, também denominada doença de Hashimoto, é a causa
mais comum de hipotireoidismo adquirido em adultos, com prevalência maior em
mulheres e aumento da incidência com o envelhecimento. Ocorrem infiltração
linfocitária da tireoide e autoanticorpos tireoidianos circulantes, como anti-
tireoperoxidase (anti-TPO), presente em aproximadamente 80% dos pacientes, e anti-
tireoglobulina (anti-Tg), presente em aproximadamente 60% dos pacientes. Existe
predisposição genética de base poligênica complexa e a tireoidite é mais comum em
áreas geográficas com aporte dietético iódico elevado. A tireoide pode não ser palpável
ou encontrar-se difusamente aumentada com consistência firme, contorno irregular e
ausência de nódulos. Raramente, apresenta-se dolorosa e macia. Na variante fibrosa, a
glândula apresenta-se endurecida e bastante aumentada. Os indivíduos afetados podem
apresentar hipotireoidismo, eutireoidismo ou tireotoxicose transitória. O diagnóstico

Pedro Kallas Curiati 529


presuntivo é baseado na presença dos autoanticorpos tireoidianos, que podem não ser
detectados em portadores de hipotireoidismo de longa duração. A doença de Hashimoto
pode encontrar-se associada a outras síndromes de insuficiência endócrina.
O hipotireoidismo primário adquirido pode resultar também de dano tireoidiano
por cirurgia ou irradiação na forma de iodo radioativo para tireotoxicose, radioterapia
externa para tumores malignos de cabeça e pescoço, exposição ambiental acidental a
radioiodo ou imunoglobulina radioiodada para tratamento experimental de câncer. Duas
condições inflamatórias da tireoide, a tireoidite subaguda, também denominada
tireoidite de De Quervain, e a tireoidite silenciosa, também denominada tireoidite pós-
parto, podem levar a hipotireoidismo transitório.
A Talidomida causa hipotireoidismo por mecanismo desconhecido, assim como
o agente retroviral Estavudina. A administração prolongada de iodo na forma de
Amiodarona ou de expectorantes pode inibir a produção hormonal tireoidiana,
particularmente em indivíduos com tireoidite autoimune. O Carbonato de Lítio interfere
na liberação hormonal glandular.
Na hemocromatose, a infiltração tireoidiana pelo ferro pode provocar
insuficiência glandular.
A tireoidite de Riedel, também conhecida como tireoidite fibrosa, é
caracterizada por processo fibrótico de etiologia desconhecida envolvendo a glândula e
os tecidos adjacentes. Trata-se de manifestação local de um processo fibrótico difuso
sistêmico e pode comprometer a tireoide de forma unilateral ou bilateral. Os pacientes
apresentam bócio de consistência extremamente endurecida, pétrea, indolor e móvel
com a deglutição. Os sintomas são decorrentes da compressão e invasão de traqueia e
esôfago. A extensão do processo fibrótico para as paratireoides pode resultar em
hipoparatireoidismo. Os anticorpos anti-TPO estão presentes em dois terços dos
pacientes, sugerindo componente autoimune.

Hipotireoidismo secundário e terciário


As causas mais comuns de hipotireoidismo central são os adenomas hipofisários
e os procedimentos cirúrgicos ou de radioterapia utilizados em seu tratamento. Também
podem ocorrer tumores que invadem o hipotálamo, como germinoma, glioma e
meningioma, ou a haste hipofisária na região supra-selar, como craniofaringioma e
cordoma. Sarcoidose, hemocromatose e histiocitose são capazes de induzir produção
deficiente de hormônio liberador de TSH (TRH). Outras causas de disfunção do
tireotrofócito incluem hipofisite linfocítica, infecção, doença metastática, apoplexia
hipofisária e uso de Bexaroteno, usado no tratamento do linfoma cutâneo de células T.

Quadro clínico
O quadro clínico do hipotireoidismo depende do grau de insuficiência
tireoidiana, da época da vida em que tal deficiência se instalou, do tempo de duração da
disfunção glandular e de fatores individuais. Inclui fadiga e fraqueza, intolerância ao
frio, ganho de peso, obstipação, pele seca e áspera, bradicardia, rouquidão, melancolia e
disfunção cognitiva. Apneia do sono é frequente. Podem ocorrer mialgia, parestesia e
redução sensorial com comprometimento de paladar, audição e olfato. O exame físico
pode revelar pele seca, áspera e fria, queda de cabelos e sobrancelhas, movimentos e
fala lentos, rouquidão, reflexos tendíneos retardados, bradicardia, carotenemia, fácies
mixedematosa, edema periorbitário, edema generalizado que não cede à pressão dos
dedos, macroglossia, hipertensão diastólica, sinais de insuficiência cardíaca, ascite e
galactorreia.
Alterações menstruais podem ocorrer em mulheres com disfunção tireoidiana.

Pedro Kallas Curiati 530


Hiperprolactinemia, anovulação e, possivelmente, deficiência de fase lútea podem
contribuir para a ocorrência de infertilidade.
Pacientes idosos exibem manifestações clínicas menos evidentes que os mais
jovens, enquanto que fumantes tendem a apresentar sinais e sintomas mais evidentes do
que não fumantes.
Manifestações atípicas incluem hipotermia, insuficiência cardíaca, efusão
pericárdica ou pleural, pseudo-obstrução ileal e coagulopatia. Outras manifestações
neurológicas incluem depressão, psicose, ataxia, convulsões e coma.
Em alguns pacientes, podem sobrevir evidências de outros distúrbios autoimunes
não-endócrinos, como vitiligo, gastrite atrófica, anemia perniciosa, esclerose sistêmica e
síndrome de Sjögren. Podem coexistir sinais relativos a outras condições de deficiência
endócrina associadas em caso de síndrome de insuficiência endócrina múltipla, com os
sinais de Chvostek e Trosseau no hipoparatireoidismo e a hiperpigmentação da pele na
insuficiência adrenal.

Avaliação complementar
A ocorrência de resultados anormais em exames rotineiros pode ser o primeiro
indício de deficiência hormonal. São especialmente comuns em pacientes com
hipotireoidismo elevações séricas do colesterol e da homocisteína, podendo ocorrer
também hiponatremia, hiperprolactinemia, hipoglicemia, elevação no nível de
creatinofosfoquinase e hipercarotenemia.
Concentrações elevadas de TSH identificam pacientes com distúrbio primário,
independentemente da causa ou do grau de deficiência. Os níveis normais séricos de
referência vão de 0.5mcU/mL a 4.2mcU/mL, com valor superior a 3mcU/mL podendo
indicar disfunção tireoidiana mínima e risco de progressão para hipotireoidismo.
Quando a elevação do TSH é detectada, o teste deve ser repetido e a concentração sérica
de T4 livre testada. Em portadores de hipotireoidismo central, o TSH sérico pode ser
baixo, normal ou discretamente elevado em concomitância com níveis baixos de T4
livre, sendo indicada avaliação complementar laboratorial e por métodos de imagem.
Pacientes eutireoideos com insuficiência renal, insuficiência adrenal ou hipotermia
podem apresentar elevações modestas dos níveis séricos de TSH. Níveis séricos
elevados de TSH também podem ocorrer em caso de tumores hipofisários secretores de
TSH ou resistência predominantemente hipofisária ao hormônio tireoidiano.
A detecção de auto-anticorpos tireoidianos é útil para confirmação diagnóstica
de tireoidite autoimune.
A demonstração de um padrão ultrassonográfico hipoecogênico, expressando
destruição da arquitetura tecidual folicular causada pelo processo autoimune, pode
ajudar a identificar os pacientes com tireoidite que têm autoanticorpos negativos.

Tratamento do hipotireoidismo primário


O principal objetivo do tratamento do hipotireoidismo é fazer o paciente retornar
ao estado funcional de eutireoidismo o mais rapidamente possível. Deve-se fornecer
hormônio suficiente para que o nível sérico de TSH retorne para os valores de referência
da normalidade.
A medicação de escolha atualmente é a Levotiroxina, apresentada na forma de
comprimidos de 25mcg, 50mcg, 75mcg, 100mcg e 150mcg. Em pacientes adultos
jovens com hipotireoidismo primário, a dose média requerida é 1.6mcg/kg/dia. Idosos
necessitam de menos Levotiroxina que jovens, sendo sugerido 1mcg/kg/dia, de modo
que a reposição deve ser iniciada com doses mais baixas. De maneira geral, pode-se
iniciar com 50mcg/dia em adultos e 25mcg/dia em idosos e pacientes cardiopatas, com

Pedro Kallas Curiati 531


reajuste da dose em 12.5-25mcg/dia a cada quatro a seis semanas conforme níveis
séricos de TSH.
O seguimento é feito com avaliação laboratorial da função tireoidiana após
quatro a seis semanas do início do tratamento ou da titulação da dose da Levotiroxina
para verificar a estabilização dos níveis hormonais. Determinada a dose de manutenção,
que geralmente permanece inalterada, a função tireoidiana deve ser reavaliada a cada
seis a doze meses. Recomenda-se ingerir a medicação com estômago vazio.
Drogas capazes de interferir na absorção da Levotiroxina incluem Sulfato
Ferroso, sequestrantes de sais biliares, como Colestiramina e Colestipol, antiácidos
gástricos, como Hidróxido de Alumínio e Sucralfato, Carbonato de Cálcio,
bloqueadores H2 e inibidores da bomba de prótons. A absorção também é diminuída por
cirurgia de desvio jejuno-ileal, síndrome do intestino curto, cirrose hepática e consumo
excessivo de soja. Drogas como Fenitoína, Rifampicina, Carbamazepina, Fenobarbital e
Sertralina aumentam a metabolização da Levotiroxina. Amiodarona causa conversão
diminuída de T4 a T3.
Reações adversas do tratamento com Levotiroxina incluem tireotoxicose branda
e sintomática, com risco potencial de perda óssea e taquiarritmia atrial,
predominantemente quando a concentração de TSH encontra-se suprimida, inferior a
0.1mcU/mL. Alguns pacientes exibem sintomas simpaticomiméticos agudos após a
instituição da terapia com Levotiroxina, devendo-se reduzir expressivamente a dose do
hormônio e aumentar lentamente até a dose ideal. É habitual a perda de cabelos durante
as primeiras semanas da terapia de reposição.

Hipotireoidismo subclínico
Define-se hipotireoidismo subclínico como uma síndrome caracterizada por
elevação do nível sérico de TSH na presença de níveis séricos normais de hormônios
tireoidianos em indivíduos assintomáticos ou minimamente sintomáticos.
As causas são praticamente as mesmas do hipotireoidismo clínico.
Classificação:
- Grau I é caracterizado por TSH de 4.21mU/L a 6mU/L;
- Grau II é caracterizado por TSH de 6.01mU/L a 12mU/L;
- Grau III é caracterizado por TSH superior a 12mU/L;
Uma proporção substancial dos pacientes que apresentam hipotireoidismo
subclínico desenvolverá hipotireoidismo clínico, estando mais propensos aqueles com
TSH superior a 20mU/L, anti-TPO positivo e etiologia secundária a radioiodo para
tratamento de doença de Graves, radioterapia externa em elevada dose na região do
pescoço ou uso de Lítio.
Os pacientes com hipotireoidismo subclínico são habitualmente assintomáticos.
Quando presentes, os sintomas são inespecíficos e semelhantes aos encontrados nos
pacientes com hipotireoidismo clínico.
As principais consequências adversas do hipotireoidismo subclínico são
elevação do nível sérico de LDL-colesterol, diminuição da contratilidade miocárdica,
disfunção endotelial e aterogênese. Outras consequências adversas incluem transtornos
do humor, disfunção ovulatória com infertilidade, aborto espontâneo, sintomas
neuromusculares, elevação dos níveis séricos de creatinofosfoquinase e mioglobina,
diminuição do desenvolvimento mental de filhos, neuropatia periférica, aumento da
pressão intraocular e diminuição dos reflexos aquileu e estapedial.
Diagnóstico diferencial de hipotireoidismo subclínico inclui síndrome do
eutireoideo doente, surto agudo de doença psiquiátrica, deficiência de glicocorticoide,
insuficiência renal, interferência laboratorial pela presença de anticorpos heterófilos,

Pedro Kallas Curiati 532


reposição inadequada de hormônio no hipotireoidismo clínico, tratamento excessivo do
hipertireoidismo, indivíduos outliers, medicamentos que interferem com a via
dopaminérgica, como Metoclopramida e Domperidona, e medicamentos que causam
aumento transitório do TSH, como Interferon-α peguilhado, Lítio e Amiodarona.
As indicações mais aceitas para tratamento são nível sérico de TSH maior do
que 10mU/L, presença de anticorpos anti-TPO, presença de bócio, melhora de sintomas
inespecíficos com o uso de Levotiroxina, hipercolesterolemia, infertilidade feminina por
disfunção ovariana e gravidez. O objetivo do tratamento é manter o TSH em nível
normal.
Condições com elevada prevalência de hipotireoidismo subclínico em que
recomenda-se determinar o nível sérico de TSH para pesquisar a ocorrência de casos
novos incluem faixa etária geriátrica, sexo feminino e idade superior a 35 anos,
sintomas de hipotireoidismo, bócio, depressão, doenças autoimunes, antecedentes
pessoais ou familiares de doença tireoidiana ou de outra glândula endócrina,
dislipidemia, hiperprolactinemia e alterações cromossômicas, como síndrome de Down
e síndrome de Turner.

Coma mixedematoso
O coma mixedematoso é uma forma grave e potencialmente fatal do
hipotireoidismo inadequadamente tratado em que os mecanismos adaptativos para
manter a homeostase são rompidos.
Ocorre mais comumente em pacientes idosos do sexo feminino com antecedente
de hipotireoidismo e expostos a condições estressantes, como cirurgia e frio intenso.
Outros fatores precipitantes habituais incluem má aderência à reposição com
Levotiroxina, sangramento intestinal, acidente vascular cerebral, insuficiência cardíaca,
infarto agudo do miocárdio, infecção, doença pulmonar, trauma e uso de Amiodarona
ou Lítio. A evolução clínica de letargia para estupor e coma pode ser acelerada por
drogas, especialmente sedativos, narcóticos e antidepressivos.
Os três elementos essenciais para o diagnóstico do coma mixedematoso são
alteração do nível de consciência, termorregulação defeituosa e presença de fatores
precipitantes. Os pacientes podem chegar ao pronto socorro com bradicardia e
hipotensão por redução do volume sanguíneo. Sintomas gastrointestinais podem estar
presentes, como atonia gástrica e diminuição da motilidade intestinal, com íleo
paralítico e megacólon. Há diminuição da resposta respiratória à hipoxemia e à
hipercapnia, com hipoventilação alveolar. Atrofia e perda de massa muscular podem
ocorrer, com elevação de enzimas musculares.
Diante de um paciente com quadro clínico sugestivo de mixedema, devem ser
solicitados exames complementares, embora o tratamento deva ser iniciado
imediatamente, antes do resultado do perfil hormonal. A avaliação complementar
abrange dois pares de hemoculturas, urina tipo 1, urocultura, coleta e análise de material
de outros focos suspeitos, função renal, que pode revelar aumento de creatinina,
eletrólitos séricos, que podem revelar hiponatremia e hipocloremia, gasometria arterial,
que pode revelar hipoxemia e hipercapnia, hemograma, que pode revelar anemia leve
normocrômica normocítica ou macrocítica, enzimas musculares, que costumam estar
elevadas, perfil metabólico, que pode revelar hipercolesterolemia e hipoglicemia, perfil
hormonal, que geralmente revela diminuição dos níveis de T3 e T4 totais, diminuição de
T4 livre e aumento de TSH, exceto no hipotireoidismo central, radiografia de tórax, que
pode revelar derrame pleural, aumento da área cardíaca e, eventualmente, infiltrado
pulmonar precipitante, e eletrocardiograma, que pode revelar baixa voltagem difusa.
Diagnósticos diferenciais incluem intoxicação exógena aguda, hipoglicemia,

Pedro Kallas Curiati 533


hipercalcemia, acidente vascular cerebral, hematoma subdural e hiponatremia.
A maioria dos autores preconiza o uso isolado de T4, que se associa com
menores efeitos adversos. Em idosos e pacientes com doença cardiovascular, deve-se
começar com menor dose. Recomenda-se trocar a via para oral quando o paciente puder
ingerir comprimidos.
Levotiroxina Liotironina (T3) Associação
(T4)
Ataque intravenoso 300-500mcg 10-20mcg 200-300mcg de T4 e 10mcg
de T3
Ataque oral ou por 300-500mcg - -
sonda nasogástrica
Manutenção 50-100mcg/dia 10mcg de 4/4 horas por 24 50-100mcg/dia de T4 e
intravenosa horas e, a seguir, de 8/8 a 6/6 10mcg de 12/12 a 8/8 horas
horas de T3
Manutenção oral ou 100- - -
por sonda nasogástrica 150mcg/dia
Pode haver coexistência de hipocortisolismo associado ao hipotireoidismo. Após
coleta de níveis basais de cortisol sérico e, se possível, realização de teste de cortrosina
para avaliação da reserva adrenal, deve-se iniciar reposição de Hidrocortisona com
100mg de ataque e 50-100mg a cada oito horas por via intravenosa até a melhora clínica
ou a exclusão da insuficiência adrenal pelos níveis de cortisol basal ou após o teste da
cortrosina, com redução progressiva.
Medidas de suporte devem ser adotadas e incluem aquecimento central,
ventilação mecânica, correção da hiponatemia inferior a 120mEq/L, controle glicêmico,
correção da hipovolemia e manutenção da pressão arterial, se necessário com drogas
vasoativas. O evento precipitante deve ser identificado e tratado. Deve-se evitar
aquecimento periférico.

Bibliografia
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Emergências clínicas: abordagem prática / Herlon Saraiva Martins.. [et al.]. – 5. ed. ampl. e rev. – Barueri, SP : Manole, 2010.
Manual da residência de terapia intensiva / editores Andréa Remígio Oliveira... [et al.] . 2. ed. – Barueri, SP : Manole, 2011.

Pedro Kallas Curiati 534


INSUFICIÊNCIA ADRENAL
Definição
A insuficiência adrenal é uma síndrome clínica decorrente de produção de
cortisol deficiente. De acordo com sua origem, pode ser classificada em primária e
secundária.

Etiologia
A insuficiência adrenal primária, também conhecida como doença de Addison, é
caracterizada por deficiência de glicocorticoide, mineralocorticoide e andrógenos.
Trata-se de condição rara, com predominância no sexo feminino, sendo habitualmente
diagnosticada na quarta década de vida. Decorre de doenças que destroem o córtex
adrenal, que alteram o seu desenvolvimento ou que interferem na síntese de esteroides
adrenais. As causas de insuficiência adrenal primária podem ser subdivididas em
adquiridas e genéticas. Geralmente, para que ocorra sintomatologia, deve haver
acometimento das duas adrenais. Dentre as causas adquiridas, incluem-se
autoimunidade, que pode ser esporádica ou associada às síndromes poliglandulares
autoimunes, infecções, como aquelas causadas por micobactérias (tuberculose), fungos
(histoplasmose e paracoccidioidomicose), citomegalovírus e vírus da imunodeficiência
humana, infiltração glandular, como em amiloidose e hemocromatose, neoplasias
malignas, como carcinoma de pulmão, carcinoma de mama, linfoma, melanoma,
carcinoma de estômago e carcinoma de cólon, adrenalectomia bilateral, hemorragia
intra-adrenal, como em sepse (síndrome de Waterhouse-Friderichsen), trauma,
trombocitopenia e uso de anticoagulantes, trombose de veia adrenal, como em
coagulação intravascular disseminada e síndrome do anticorpo antifosfolípide, e
medicamentos, como Cetoconazol, Metirapona, Mitotano, Etomidato, Rifampicina,
Fenitoína e Fenobarbital.
A causa mais frequente de doença de Addison em adultos é a adrenalite
autoimune. A destruição das adrenais por mecanismo autoimune resulta em adrenais
atróficas, com perda da maior parte das células do córtex, usualmente com camada
medular intacta. Em 60-75% dos casos são encontrados anticorpos anti-enzimas
esteroidogênicas, como anti-21-hidroxilase e anti-P450scc. Nas síndromes
poliglandulares autoimunes, as doenças mais comumente associadas à doença de
Addison são, em ordem de frequência, tireoidite de Hashimoto, doença de Graves,
gastrite crônica atrófica, diabetes mellitus do tipo 1, hipoparatireoidismo,
hipogonadismo hipogonadotrófico, vitiligo, alopecia, doença celíaca e anemia
perniciosa. A síndrome poliglandular autoimune do tipo 1, extremamente rara, resulta
de mutações no gene AIRE (autoimune regulator), é herdada com padrão autossômico
recessivo e tem como manifestações mais comuns candidíase mucocutânea,
hipoparatireoidismo e insuficiência adrenal. A síndrome poliglandular autoimune do
tipo 2 ou síndrome de Schmidit é bem mais frequente, resulta de herança autossômica
dominante, predomina em pessoas do sexo feminino com vinte a quarenta anos de idade
e tem como manifestações clínicas mais comuns doença de Addison, doença autoimune
da tireoide e diabetes mellitus do tipo 1. Outras manifestações que podem estar
presentes incluem hipogonadismo hipergonadotrófico, vitiligo, alopecia e síndrome de
má-absorção intestinal.
Dentre as causas genéticas, incluem-se hiperplasia adrenal congênita associada a
insuficiência adrenal, hipoplasia adrenal congênita, adrenoleucodistrofia, deficiência

Pedro Kallas Curiati 535


familiar de glicocorticoide, síndrome de Smith-Lemli-Optiz e síndrome de Kearns-
Sayre. A adrenoleucodistrofia é uma doença de herança recessiva ligada ao X, com
expressão completa apenas no sexo masculino, cuja fisiopatologia está relacionada ao
acúmulo de ácidos graxos de cadeia muito longa na substância branca cerebral e no
córtex adrenal, com disfunção neurológica progressiva e insuficiência adrenal primária.
A hiperplasia adrenal congênita é a principal causa de insuficiência adrenal primária na
infância, com destaque para a deficiência da enzima 21-hidroxilase.
Na insuficiência adrenal secundária, a deficiência é apenas de glicocorticoide e
decorre da produção reduzida do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH), que pode ser
resultante de doença hipofisária ou hipotalâmica. Frequentemente há associação com
deficiência de outros hormônios hipofisários ou hipotalâmicos. A causa mais comum de
insuficiência adrenal secundária é a suspensão abrupta do uso crônico de
glicocorticoides exógenos. Outras causas de insuficiência secundária incluem tumores
de hipófise e hipotálamo, cirurgia e/ou irradiação da hipófise, traumatismo craniano,
apoplexia hipofisária, síndrome de Sheehan, doenças granulomatosas, como
tuberculose, sarcoidose e histiocitose X, hipofisite linfocítica e aneurismas
intracranianos volumosos. As causas genéticas são raras e compreendem mutações em
genes de fatores de transcrição relacionados ao desenvolvimento hipofisário.

Quadro clínico
O quadro clínico da insuficiência adrenal primária está diretamente relacionado
à rapidez e à intensidade do comprometimento adrenal. Os sintomas geralmente
ocorrem quando há destruição de mais de 90% da glândula. Inicialmente, ocorre uma
resposta anormal às situações de estresse, como infecção e trauma. Com a progressão da
destruição do córtex, as manifestações se tornam evidentes independentemente de
situações de estresse. Os sintomas mais comuns são relacionados à deficiência de
glicocorticoide e incluem fadiga, fraqueza, anorexia, letargia, perda de peso, tontura,
náusea, vômito, dor abdominal, febre e hipotensão. Nas mulheres, amenorreia pode
estar presente, especialmente se houver perda de peso importante ou associação com
ooforite autoimune. Dentre as manifestações mais específicas de falência adrenal está a
hiperpigmentação ocasionada pelo aumento da concentração plasmática de ACTH e
MSH, ambos derivados da molécula pró-opiomelanocortina (POMC), que estimulam a
produção de melanina na pele. Tipicamente, ela é observada em áreas expostas, pontos
de pressão, dobras cutâneas e mucosa oral. A deficiência de mineralocorticoide resulta
em hipovolemia, desidratação, hipotensão postural e avidez por sal. Em mulheres, a
deficiência de andrógenos ocasiona diminuição de pelos axilares e pubianos, além de
perda de libido.
As manifestações da insuficiência adrenal secundária diferem daquelas da
doença de Addison em alguns aspectos. Não há hiperpigmentação cutaneomucosa e,
como não há deficiência de mineralocorticoide, não ocorre depleção de volume,
desidratação, avidez por sal e hipercalemia. As manifestações gastrointestinais são
menos comuns. Podem ser observados sintomas relacionados à deficiência de outros
hormônios hipofisários, como LH, FSH, TSH e GH.

Avaliação complementar
Na doença de Addison, os achados bioquímicos mais comuns são hiponatremia,
hipercalemia e azotemia pré-renal. Outros achados incluem hipoglicemia de jejum,
hipoglicemia pós-prandial, hipercalcemia leve a moderada, elevação de transaminases e,
mais raramente, hipomagnesemia. Na insuficiência adrenal secundária, não ocorre
hipercalemia em razão da manutenção da integridade do sistema renina-angiotensina-

Pedro Kallas Curiati 536


aldosterona, porém pode haver hiponatremia.
Um valor de cortisol sérico as oito horas da manhã inferior a 3mcg/dL confirma
o diagnóstico de insuficiência adrenal, assim como um valor superior a 18mcg/dL
praticamente exclui o diagnóstico. De forma semelhante, cortisol salivar matinal
superior a 5.8ng/mL exclui insuficiência adrenal. No entanto, muitas vezes o cortisol
sérico basal está entre esses valores, não permitindo um diagnóstico conclusivo. Nessa
situação, é recomendado o teste de estímulo com ACTH sintético ou teste da
Cortrosina®.
No teste de estímulo com ACTH sintético, o cortisol sérico é colhido antes e
após a administração de 250mcg de ACTH exógeno por via intravenosa ou
intramuscular nos tempos trinta minutos e sessenta minutos. Valores de pico de cortisol
superiores a 18mcg/dL indicam função adrenal normal, enquanto que um pico de
cortisol inferior ou igual a 18mcg/dL indica insuficiência adrenal, mas não discrimina se
é primária ou secundária. O teste da Cortrosina® negativo não exclui a presença de
insuficiência adrenal secundária, que deve ser investigada com teste de tolerância à
insulina e ressonância nuclear magnética de crânio. Em pacientes com suspeita de
deficiência recente de ACTH, como nas duas primeiras semanas após cirurgia
hipofisária, prefere-se o uso de dose baixa de ACTH, com 1mcg, sendo considerada
sugestiva de resposta normal dosagem de cortisol sérico superior a 17mcg/dL nos
tempos vinte ou trinta minutos.
Os níveis de ACTH plasmático na insuficiência adrenal primária estão elevados
e usualmente são superiores a 100pg/mL. Na insuficiência adrenal secundária, tais
níveis encontram-se inferiores a 20pg/mL.
O teste de tolerância à insulina é considerado padrão de referência para o
diagnóstico de insuficiência adrenal secundária de início recente, situação em que o
teste da Cortrosina® pode estar normal. O teste se baseia no fato de que a hipoglicemia
é um potente fator estimulador do eixo hipotálamo-hipófise adrenal. Consiste na
administração de 0.10-0.15UI/kg de Insulina Regular por via intravenosa, com dosagem
de cortisol sérico nos tempos zero, trinta e quarenta e cinco minutos. A glicemia deve
atingir valores inferiores ou iguais a 35mg/dL para o teste ser considerado efetivo.
Considera-se como resposta normal do cortisol um pico superior a 18mcg/dL.
Outros testes diagnósticos incluem dosagem de anticorpos anti-córtex adrenal,
dosagem de ácidos graxos de cadeia muito longa, tomografia computadorizada de
adrenais, radiografia simples de tórax, teste tuberculínico, pesquisa de bacilo álcool-
ácido resistente em escarro, biópsia adrenal guiada por tomografia computadorizada,
ressonância nuclear magnética de região hipotálamo-hipofisária e dosagem de
hormônios hipofisários. Quando é confirmado o diagnóstico de insuficiência adrenal
primária, investigação de deficiência de mineralocorticoide pode ser conduzida com
avaliação de atividade de renina plasmática e dosagem de aldosterona sérica.

Tratamento
A crise adrenal aguda representa uma emergência clínica e deve ser prontamente
tratada sempre que suspeitada. Devem ser colhidos sódio, potássio, cortisol e ACTH
plasmáticos antes da administração parenteral de glicocorticoides. Hidrocortisona deve
ser administrada com dose de ataque de 100mg por via intravenosa em bolus e dose de
manutenção de 50-100mg por via intravenosa a cada seis horas. Em pacientes sem
diagnóstico prévio de insuficiência adrenal, pode-se preferir iniciar o tratamento com
Dexametasona 4mg por via intravenosa em bolus, já que não é medido nos ensaios para
dosagem de cortisol. Pacientes com hipotensão devem receber Soro Fisiológico para
expansão rápida e Soro Glicosado para hipoglicemia. A dose de glicocorticoide

Pedro Kallas Curiati 537


usualmente pode ser diminuída após 24-48 horas, seguida de glicocorticoide e
mineralocorticoide por via oral quando o paciente estiver em condição de se alimentar.
A dose usual de reposição de glicocorticoide oral é de 15-25mg de
Hidrocortisona por dia, dividida em duas tomadas, com dois terços pela manhã e um
terço no início da tarde. Como no Brasil a Hidrocortisona precisa ser manipulada, pois
não existe disponibilidade comercial, outra opção é a Prednisona, na dose de 5-7.5mg
por dia em dose única ou fracionada. A adequação da reposição de glicocorticoide pode
ser avaliada com base em sintomas e ACTH sérico matinal. A dose do
mineralocorticoide Fludrocortisona, apresentado na forma de comprimidos sulcados de
0.1mg, é de 0.05-0.15mg/dia. Dose de 0.05mg/dia pode ser suficiente em pacientes que
fazem uso de Hidrocortisona, já que essa medicação possui efeito mineralocorticoide. A
adequação da reposição de mineralocorticoide é avaliada com base em sintomas,
hipotensão postural, potássio sérico e atividade de renina plasmática. Em caso de
hipertensão essencial, Espironolactona e diuréticos devem ser evitados e pode-se
preferir usar outras medicações e titular as doses Fludrocortisona para valores próximos
do limite inferior terapêutico.
É importante que todo paciente portador de insuficiência adrenal seja orientado
quanto ao risco de crise adrenal na vigência de infecção, cirurgia ou trauma. Na
vigência de infecções sistêmicas, o paciente deve aumentar a dose diária de
glicocorticoide para duas a três vezes a dose habitual durante três dias. Em caso de
cirurgias eletivas, recomenda-se o uso de Hidrocortisona intravenosa, com 100mg na
indução anestésica e 50-100mg a cada oito horas a partir de então, com redução
progressiva a partir do segundo dia, conforme a recuperação do paciente. Atualmente,
preconizam-se doses mais baixas de corticoide no perioperatório, com Hidrocortisona
25mg por via intravenosa no dia da cirurgia em caso de pequenos procedimentos, como
hernioplastia, 50-75mg/dia por via intravenosa de forma fracionada no dia da cirurgia e
no primeiro pós-operatório em caso de estresse cirúrgico moderado, como
colecistectomia e artroplastia e 100-150mg/dia por via intravenosa de forma fracionada
durante dois a três dias em caso de estresse cirúrgico acentuado, como em
revascularização miocárdica. Os pacientes devem portar braceletes ou colares que
identifiquem sua condição e corticoide injetável, como 100mg de Hidrocortisona e 4mg
de Dexametasona, com orientação do paciente e dos familiares para aplicação em caso
de lesão com sangramento substancial, fratura, impossibilidade de ingerir medicação
por via oral em função de náusea e vômitos, sintomas de insuficiência adrenal aguda e
rebaixamento do nível de consciência. Deve-se orientar também a procura por serviço
médico de emergência após o uso da injeção.

Algoritmo

Pedro Kallas Curiati 538


Bibliografia
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Causes of primary adrenal insufficiency (Addison's disease). Lynnette K Nieman. UpToDate, 2012.
Causes of secondary and tertiary adrenal insufficiency in adults. Lynnette K Nieman. UpToDate, 2012.
Lynnette K Nieman. UpToDate, 2012. Lynnette K Nieman. UpToDate, 2012.
Diagnosis of adrenal insufficiency in adults. Lynnette K Nieman. UpToDate, 2012.
Treatment of adrenal insufficiency in adults. Lynnette K Nieman. UpToDate, 2012.

Pedro Kallas Curiati 539


NEOPLASIAS ENDÓCRINAS
MÚLTIPLAS
Neoplasia Sigla Online Glândulas envolvidas Gene
endócrina Mendelian envolvido
múltipla Inheritance in
Man (OMIN)
Neoplasia NEM-1 131100 Paratireoides, hipófise anterior e MEN1
endócrina múltipla pâncreas endócrino
tipo 1 NEM-4 610755 Paratireoides e hipófise anterior CDKN1B
Neoplasia NEM-2A 171400 Tireoide, paratireoides e adrenais RET
endócrina múltipla NEM-2A 171400 Tireoide e paratireoides RET
tipo 2 NEM-2A 171400 Tireoide e adrenais RET
NEM-2B 171400 Tireoide e/ou adrenais associados a RET
anormalidades fenotípicas e
ganglioneuromatose, sem
hiperparatireoidismo
Complexo de CNC 160980 Tireoide, hipófise anterior, adrenais e PRKAR1A
Carrey testículo
Von Hippel VHL 193300 Adrenais e pâncreas endócrino VHL
Lindau
Neurofibromatose NF 162200 Paratireoides, tireoide e adrenais NF1

Neoplasia endócrina múltipla tipo 2


A neoplasia endócrina múltipla tipo 2 é uma endocrinopatia hereditária
transmitida por herança autossômica dominante que envolve carcinoma medular de
tireoide, hiperparatireoidismo primário e feocromocitoma.
Apesar de a prevalência na população ser baixa, o número de indivíduos
afetados por família pode ser expressivo, uma vez que sua penetrância é praticamente
completa ao longo da vida. Assim, diante de cada paciente com carcinoma medular de
tireoide ou feocromocitoma, deve-se levantar a hipótese de ser um caso com NEM-2.
Estima-se que 95% dos casos com NEM-2 possuam mutações germinativas no
proto-oncogene RET, havendo predominância de mutações nos éxons 10 e 11. Há
proliferação tumoral das células derivadas da crista neural, como células C da tireoide,
células principais e oxifílicas das paratireoides, gânglios simpáticos, gânglios
parassimpáticos, gânglios entéricos e trato urogenital.
Recomenda-se realizar a análise de mutação do proto-oncogene RET em todos
os pacientes com hiperparatireoidismo primário antes dos trinta anos de idade,
carcinoma medular de tireoide e/ou feocromocitoma, independentemente de serem
casos aparentemente esporádicos ou familiares.
Há recomendação também para que seja realizada tireoidectomia total
preventiva em todos os portadores de mutação germinativa no proto-oncogene RET,
independentemente do quadro clínico apresentado, preferencialmente antes dos seis
meses de idade em caso de mutações de altíssimo risco, antes dos cinco anos de idade
em caso de mutações de muito alto risco e antes dos dez anos de idade em casos de
mutações de alto risco. A avaliação pré-operatória prevê dosagem de calcitonina,
ultrassonografia cervical e, naqueles com idade superior a cinco anos, tomografia
computadorizada de mediastino. O seguimento pós-operatório prevê dosagem de
calcitonina, dosagem de antígeno carcinoembrionário e ultrassonografia de tireoide a
cada três meses durante um ano e a cada seis meses a partir do segundo ano. O teste de

Pedro Kallas Curiati 540


estímulo de cálcio com dosagem de calcitonina deve ser realizado anualmente.
Na NEM-2, a cirurgia do feocromocitoma deve sempre preceder a ressecção do
carcinoma medular de tireoide a fim de se evitar a ocorrência de crises adrenérgicas no
perioperatório do tumor tireoidiano.
Tratando-se de uma doença tumoral com herança autossômica dominante, após a
identificação de mutação germinativa no proto-oncogene RET, é fundamental a
realização de rastreamento genético de todos os familiares de primeiro grau, pois
apresentam 50% de risco de terem herdado a mesma mutação.
Além dos pacientes com carcinoma medular de tireoide familial, nos quais
mutação germinativa no proto-oncogene RET é encontrada em mais de 95% dos casos,
cerca de 5-7% dos casos com carcinoma medular de tireoide considerados inicialmente
como esporádicos também possuem mutação germinativa no proto-oncogene RET,
assim como cerca de 10% de todos os casos de feocromocitoma considerados
inicialmente como esporádicos.
Além de carcinoma medular de tireoide, feocromocitoma e hiperparatireoidismo
primário, podem ocorrer outros quadros clínicos mais raros na NEM-2, como neuromas
de mucosa, megacólon congênito e líquen cutâneo amiloidótico.

Neoplasia endócrina múltipla tipo 1


A neoplasia endócrina múltipla tipo 1 é clinicamente definida pela presença, em
um mesmo paciente, de tumores em no mínimo duas glândulas relacionadas dentre
paratireoides, hipófise, pâncreas e duodeno endócrino. Trata-se de doença que se
destaca por sua complexidade clínica, pois afeta tanto tecidos endócrinos quanto tecidos
não-endócrinos e apresenta tanto tumores benignos como tumores malignos.
Por desenvolver um quadro de tumores geralmente benignos até a terceira
década de vida, a NEM-1 tende a ser considerada menos agressiva que a NEM-2, mas a
partir da quarta e da quinta décadas de vida há um aumento significativo da penetrância
de tumores malignos, sendo o gastrinoma o mais frequente.
A neoplasia endócrina múltipla tipo 1 familial é transmitida por herança
autossômica dominante de mutações no gene MEN1 e apresenta alta penetrância,
superior a 90%. Cerca de 10% dos casos hereditários resultam de mutações de novo, não
havendo história familiar. Adicionalmente, outro grupo de casos apresentam a NEM-1
esporádica, não-hereditária, com associação de dois tumores relacionados à síndrome
sem a presença de mutação no gene MEN-1 e sem história familiar identificada.
É amplamente conhecido que quanto mais cedo o diagnóstico de NEM-1 for
feito, melhor e mais eficiente poderá ser o tratamento e o seguimento desses casos.
Recomenda-se seguimento clínico periódico com início entre cinco e vinte anos de
idade, conforme os diferentes tumores a serem investigados. O seguimento compreende
testes bioqúimicos anuais, com cálcio, paratormônio, gastrina, glicose, insulina, pró-
insulina, cromogramina, polipeptídeo pancreático, prolactina, IGF-1 e hormônios
adrenais, e exames de imagem a cada três anos, com ultrassonografia endoscópica,
cintilografia com Octreotide, ressonância nuclear magnética de crânio, tomografia
computadorizada de tórax, endoscopia digestiva alta e ressonância nuclear magnética de
abdômen, sendo recomendado para todos os casos diagnosticados com NEM-1 e
também para seus familiares potencialmente sob risco. Os pacientes com
hiperparatireoidismo primário devem ser submetidos a paratireoidectomia total seguida
de auto-implante ou subtotal, além de timectomia preventiva. As cirurgias dos tumores
pancreáticos e duodenais devem ser mais extensas em comparação àquelas realizadas
em casos esporádicos. O rastreamento gênico de familiares assintomáticos é importante
para a identificação de portadores de mutação. Entretanto, a conduta cirúrgica deve ser

Pedro Kallas Curiati 541


baseada em critérios clínicos.
Indicações para análise de mutação do gene MEN1 incluem pacientes-índices
com NEM-1, parentes de primeiro grau de casos-índices de NEM-1 e casos que
apresentem tumores múltiplos de paratireoide antes dos trinta anos de idade ou tumores
neuroendócrinos pancreáticos múltiplos em qualquer idade.

Bibliografia
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 542


TUMORES SUPRA-RENAIS
Incidentaloma adrenal

Definição
Incidentaloma adrenal é definido como lesão adrenal com diâmetro superior a
1cm descoberta em exame radiológico em paciente sem sinal ou sintoma de doença
adrenal.

Epidemiologia
A frequência do incidentaloma adrenal varia de acordo com o tipo e a qualidade
do exame utilizado. Também está associada à idade, com predominância discreta no
sexo feminino.

Etiologia
O incidentaloma adrenal não é uma entidade patológica única, podendo ter
origem primária no córtex ou na medula da adrenal ou ser lesão secundária a processos
extra-adrenais infecciosos ou neoplásicos. As doenças infecciosas, como tuberculose e
blastomicose, já foram mais frequentes e, atualmente, estão se tornando mais raras.
Portanto, quando se está diante de um incidentaloma, a maior preocupação deve ser a de
identificar os principais tumores, que incluem adenoma de córtex, carcinoma de córtex,
feocromocitoma, metástase, mielolipoma, hiperplasia adrenal, ganglioneuroma e cisto
adrenal.
Como as adrenais são intensamente vascularizadas, elas são locais frequentes de
metástases, especialmente de tumores de pulmão e mama e linfoma, embora tumores de
rim, intestino e fígado, leucemia e sarcoma também possam se associar a metástases
adrenais. Em geral, elas ocorrem em pacientes com tumor primário evidente ou com
doença metastática generalizada.
Os mielolipomas são tumores mistos compostos de tecido gorduroso e
hematopoético. Embora sejam, na maioria das vezes, assintomáticos, podem sangrar e
causar dor. São tumores de diagnóstico difícil, identificados em exames radiológicos
pela grande quantidade de gordura tumoral.
A hiperplasia adrenal, em geral, é bilateral.

Avaliação complementar
Na avaliação funcional, deve-se considerar que a maioria dos incidentalomas
corresponde a tumores não-funcionantes e que o restante corresponde a tumores
produtores de cortisol, catecolaminas, aldosterona e, mais raramente, andrógenos. A
investigação laboratorial de feocromocitoma e hiperaldosteronismo primário deve ser
feita pela determinação de metanefrinas e catecolaminas urinárias e/ou plasmáticas e
pela determinação de aldosterona e atividade de renina plasmática, respectivamente. Em
caso de baixa probabilidade de feocromocitoma, prefere-se a avaliação de metanefrinas
e catecolaminas urinárias. O diagnóstico de síndrome de Cushing subclínica é mais
problemático e sua frequência varia de acordo com o método utilizado, sendo as
principais opções o ritmo de cortisol, o nível de ACTH, o nível de sulfato de
dehidroepiandrosterona (DHEAS), a resposta do ACTH ao CRH, o teste de depressão
com 1mg de Dexametasona, o teste de depressão com 2mg, 3mg ou 8mg de
Dexametasona e o cortisol urinário. As várias alterações relacionadas ao

Pedro Kallas Curiati 543


hipercortisolismo subclínico vão se sucedendo na seguinte ordem: perda do ritmo
circadiano de cortisol, supressão do ACTH, supressão da DHEAS, diminuição da
resposta do ACTH ao CRH, perda da supressão do cortisol após doses progressivamente
maiores de Dexametasona e, finalmente, aumento do cortisol urinário. As quatro
primeiras alterações têm alta sensibilidade para o diagnóstico de hipercortisolismo, mas
apresentam baixa especificidade. O aumento do cortisol urinário é um evento tardio no
desenvolvimento do hipercortisolismo subclínico e seria o teste com menor
sensibilidade para o diagnóstico, porém com maior especificidade. O rastreamento do
hipercortisolismo é feito com teste de depressão com doses baixas de Dexametasona,
em que administra-se 1mg de Dexametasona entre 23:00 e 24:00 e colhe-se o cortisol
sérico as 8:00 da manhã seguinte, com resultado considerado positivo se o cortisol
sérico for maior do que 5mcg/dL. Se o rastreamento for positivo, passa-se para a
segunda fase de investigação, que abrange a confirmação e a graduação do
hipercortisolismo, com teste de depressão com 8mg de Dexametasona, cortisol urinário
e determinações do ACTH basal e após CRH e da DHEAS. É discutível se a pesquisa
de hiperandrogenismo é obrigatória em todo caso de incidentaloma adrenal. Considera-
se, por outro lado, que nos tumores com aspecto radiológico sugestivo de malignidade, a
determinação dos andrógenos é obrigatória.
A investigação funcional pode indicar se o tumor é de córtex ou da medula
adrenal e pode sugerir benignidade ou malignidade. Entretanto, se o tumor for não-
funcionante, como ocorre na maioria dos casos, o diagnóstico pré-operatório pode se
basear nas características radiológicas e/ou histológicas do tumor. As ferramentas para o
diagnóstico etiológico incluem tomografia computadorizada ou ressonância nuclear
magnética das adrenais, cintilografia com colesterol marcado, cintilografia com I131-
MIBG, cintilografia com Octreoscan, FDG-PET e punção-biópsia. A avaliação
radiológica tem o objetivo de responder se o tumor é de origem adrenal ou não e se ele é
benigno ou maligno.
Quanto maior o tumor, maior a chance de malignidade. Tumores com alto teor
de gordura e, portanto, coeficiente de atenuação inferior ou igual a 10 unidades
Hounsfield (UH), são benignos, como o adenoma e o mielolipoma, enquanto que
aqueles com coeficiente de atenuação superior a 10 UH podem ou não ser malignos. O
adenoma pobre em gordura tem coeficiente de atenuação alto e não pode ser
diferenciado do carcinoma pela tomografia computadorizada sem contraste, sendo
indicadas tomografia computadorizada com contraste ou ressonância nuclear magnética.
Os tumores benignos do córtex adrenal fazem washout rápido do contraste, isto é,
perdem rapidamente o contraste e têm um coeficiente de atenuação em torno de 30-40
UI após a sua administração. Os carcinomas, os feocromocitomas e as metástases não
clareiam o contraste tão rapidamente e têm um coeficiente de atenuação alto, superior a
40 UH, após a sua administração. A ressonância nuclear magnética também pode
diferenciar os vários tumores porque ela é capaz de detectar o alto teor de gordura dos
adenomas com a utilização do chemical-shift ou a ressonância nuclear magnética fora de
fase, condições em que os tumores com alto conteúdo de gordura perdem o sinal e ficam
escuros. A captação de contraste pelos adenomas é baixa e, nas imagens obtidas em T2,
eles têm brilho fraco, enquanto os carcinomas, os feocromocitomas e as metástases
podem ter um brilho intenso. A cintilografia com colesterol marcado com radioisótopos
é positiva nos adenomas e negativa nos carcinomas. O mapeamento com 131I-MIBG é
utilizado para o diagnóstico de feocromocitoma. O mapeamento com FDG parece ser
bastante promissor no diagnóstico diferencial entre benignidade e malignidade, com o
racional de que os tumores malignos têm maior metabolismo de glicose e, portanto,
captam mais o marcador que os tumores benignos. A presença de calcificações também

Pedro Kallas Curiati 544


sugere carcinoma de adrenal ou metástases.
A probabilidade de feocromocitoma é alta em caso de massa vascularizada,
radiodensa e com washout lento.
A punção aspirativa com agulha fina guiada por tomografia computadorizada
conduz a resultados não-conclusivos em cerca de metade dos casos A única informação
que oferece é se o tumor é de origem adrenal ou extra-adrenal. Não distingue os tumores
benignos dos tumores malignos do córtex adrenal. A sua realização pode ter papel
importante em pacientes oncológicos com incidentaloma adrenal para a identificação de
doença metastática e em pacientes com suspeita de doença inflamatória ou infecciosa da
adrenal. Ela não deve ser realizada em pacientes com suspeita de feocromocitoma pelo
risco de desenvolvimento de crises adrenérgicas potencialmente letais.

Tratamento
Cirurgia é indicada para todos os tumores funcionantes, todos os
feocromocitomas, funcionantes ou não, todos os tumores de tamanho superior ou igual a
4cm e todos os tumores com tamanho inferior a 4cm com características radiológicas de
malignidade. Observação clínica é indicada para os tumores com tamanho inferior a
4cm com características radiológicas de benignidade, podendo-se considerar
adrenalectomia em pacientes jovens com poucas comorbidades, em caso de crescimento
do tumor e em caso de preferência por ressecção. Pela possibilidade de crescimento e de
eventual aquisição de funcionalidade é que se torna necessário o acompanhamento dos
incidentalomas em longo prazo. Não existe transformação de tumor benigno em tumor
maligno. A maioria dos autores concorda que uma segunda avaliação radiológica deva
ser feita em três a seis meses para detectar crescimento rápido do tumor. Alguns autores
consideram investigações radiológicas posteriores desnecessárias, enquanto outros as
recomendam. No HC-FMUSP, tem-se feito reavaliação a cada dois anos até completar
cinco anos e a cada três a cinco anos até completar dez anos. A avaliação funcional com
teste de depressão e com a determinação de cortisol urinário deve ser anual até
completar quatro anos. As vias de acesso cirúrgico mais utilizadas são a laparoscopia, a
lombotomia, a toracofrenolaparotomia e a laparotomia mediana. Considera-se que a
cirurgia laparoscópica deva ser realizada apenas nos pacientes com tumores menores do
que 10cm, preferencialmente com características de benignidade. Cirurgia aberta é
preferida em caso de tumores com invasão local ou vascular, sugestão radiológica de
malignidade, tumores corticais grandes, tumores com produção hormonal mista, história
familiar de feocromocitoma maligno e suspeita de feocromocitoma maligno.
Em pacientes com síndrome de Cushing subclínica que serão submetidos a
adrenalectomia, administração de glicocorticoide no período perioperatório é
recomendada para prevenir insuficiência adrenal, instabilidade hemodinâmica e morte.
Em pacientes com feocromocitoma, bloqueadores α-adrenérgicos devem ser
administrados antes da adrenalectomia.

Bibliografia
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.
The adrenal incidentaloma. William F Young, Norman M Kaplan and Electron Kebebew. UpToDate, 2012.

Feocromocitoma

Definição
O feocromocitoma é um tumor originário das células cromafins da medula
adrenal.

Pedro Kallas Curiati 545


Epidemiologia
O feocromocitoma incide em todas as faixas etárias, embora seja mais frequente
na vida adulta, preferencialmente na quarta e na quinta décadas de vida.

Fisiopatologia
Embora o feocromocitoma seja, na maioria das vezes, um tumor isolado e não
familiar, ele pode se apresentar como componente de doença genética de herança
autossômica dominante com alta penetrância. As síndromes genéticas associadas ao
feocromocitoma são as neoplasias endócrinas múltiplas dos tipos 2A, caracterizada por
carcinoma medular da tireoide, feocromocitoma e hiperplasia de paratireoides, e 2B,
caracterizada por carcinoma medular da tireoide, feocromocitoma e ganglioneuromatose
de mucosa e intestino, a doença de von Hippel-Lindau, caracterizada por
feocromocitoma, hemangioblastoma de sistema nervoso central, angiomas de retina,
carcinoma ou cistos renais, cistos ou tumores neuroendócrinos de pâncreas e
cistoadenoma de epidídimo, a neurofibromatose tipo 1, caracterizada por neurofibromas
de nervos periféricos e manchas café com leite, a síndrome paraganglioma familiar,
caracterizada por paragangliomas cervicais, e o feocromocitoma familiar.

Quadro clínico
A maioria dos sinais e sintomas encontrados é consequência direta dos efeitos
cardiovasculares, metabólicos e viscerais das catecolaminas, com hipertensão arterial
sistêmica associada ou não a outros sintomas dependentes da produção tumoral de
catecolaminas.
Uma parcela dos pacientes manifesta paroxismos adrenérgicos e valores de
pressão arterial normais nos períodos entre as crises. Os principais sintomas durante as
crises são palpitação, cefaleia e sudorese. Outros sintomas e/ou sinais, em ordem
decrescente de frequência, incluem palidez, náusea, dor abdominal, dispneia, tontura,
vômitos, tremores, dor torácica anginosa, embaçamento visual, poliúria pós-crise,
convulsão, rubor facial, dor nucal, urticária, acidente vascular cerebral hemorrágico,
calafrios e dor óssea. Nervosismo e ansiedade são frequentemente relatados durante os
paroxismos. Hiperglicemia também pode ocorrer.
Os paroxismos adrenérgicos ocorrem com frequência variável, esporadicamente
ou várias vezes por dia, com duração variável de minutos a horas, geralmente inferior a
quinze minutos. Embora nem sempre seja possível identificar o agente desencadeante,
as crises podem ser provocadas por palpação abdominal, aumento da pressão
abdominal, micção, estresse emocional e drogas, como Metoclopramida,
quimioterápicos e Glucagon.
Em pacientes assintomáticos, o feocromocitoma pode ser diagnosticado durante
a investigação de incidentaloma, o rastreamento de neoplasias endócrinas múltiplas, o
rastreamento de metástases adrenais e a investigação da síndrome de Cushing.
Pode ocorrer febre acompanhada de reações de fase ativa positivas.
Os feocromocitoma podem, como todos os tumores neuroendócrinos, produzir
outros peptídeos e aminas, incluindo somatostatina, calcitonina, vasopressina, ACTH,
histamina, serotonina, peptídeo intestinal vasoativo (VIP) e interleucinas. A produção
desses compostos pode modular ou mesmo neutralizar o efeito das catecolaminas e
mudar a apresentação clínica do feocromocitoma. Exemplos incluem feocromocitomas
produtores de VIP, que estão associados a quadro de diarreia, hipocalemia, desidratação
e hipotensão arterial, de aminas vasoativas, que provocam quadros alérgicos e tendência
à hipotensão postural, de ACTH, que levam à síndrome de Cushing, de fatores

Pedro Kallas Curiati 546


eritropoéticos, com consequente policitemia, e de paratormônio, com hipercalcemia.
É importante lembrar da associação existente, embora ainda não totalmente
explicada, entre feocromocitoma e calculose biliar.
A apresentação clínica do feocromocitoma hereditário é a mesma do
feocromocitoma esporádico. Entretanto, a idade média de apresentação é menor nos
pacientes com doença de von Hippel-Lindau e síndrome paraganglioma familiar,
intermediária nos pacientes com neoplasias endócrinas múltiplas e maior nos pacientes
com feocromocitomas esporádicos. A bilateralidade do tumor é a regra nos pacientes
com neoplasia endócrina múltipla do tipo 2A, enquanto que o feocromocitoma extra-
adrenal e multifocal é mais frequente nos pacientes com doença de von Hippel-Lindau e
síndrome paraganglioma familiar.
Eletrocardiograma pode revelar alterações da repolarização ventricular e
sobrecarga ventricular esquerda. Fundoscopia pode revelar anormalidades como
aumento do reflexo dorsal e estreitamento arteriolar.

Avaliação complementar
Indicações para investigação bioquímica incluem paroxismos de palpitação,
cefaleia e sudorese com ou sem hipertensão arterial, história familiar de
feocromocitoma, manifestações das síndromes genéticas associadas ao feocromocitoma,
incidentaloma adrenal, crises de hipertensão arterial ou arritmia desencadeadas por
intubação orotraqueal, cirurgia, anestesia ou parto, hipotensão arterial inexplicável após
cirurgia, crises de hipertensão arterial ou paroxismos adrenérgicos desencadeados por
coito, micção, exercícios ou mudança de posição, crises de hipertensão arterial ou
paroxismos adrenérgicos desencadeados pelo uso de β-bloqueadores, antidepressivos
tricíclicos, fenotiazídicos, histamina, glucagon, tiramina, TRH, ACTH e
quimioterápicos, hipertensão arterial com hipotensão postural, hipertensão arterial com
tumor abdominal, hipertensão arterial lábil, hipertensão arterial resistente ao tratamento
e hipertensão arterial com perda de peso.
Os tumores são heterogêneos, com padrões qualitativos variáveis de secreção,
sendo importante que se faça a determinação de pelo menos um metabólito e de pelo
menos uma catecolamina. Nos poucos casos de secreção hormonal episódica, a
determinação das catecolaminas em amostras de urina ou sangue coletadas após a crise
adrenérgica pode ser de grande valor diagnóstico.
Medicações podem interferir nos níveis plasmáticos e urinários das
catecolaminas. Os principais medicamentos que interferem, aumentando os níveis de
catecolaminas e seus metabólitos, são os antidepressivos tricíclicos, os β-bloqueadores e
o Paracetamol. Drogas como Fenoxibenzamina, Levodopa, diuréticos,
descongestionantes nasais, Metildopa e agentes psicoativos, como anfetaminas,
Buspirona, benzodiazepinos e inibidores da monoamino-oxidase, também alteram as
concentrações de catecolaminas circulantes. Todos esses medicamentos devem ser
interrompidos pelo menos duas semanas antes da avaliação laboratorial. Medicamentos
alternativos para tratamento da hipertensão durante a investigação de feocromocitoma
são os bloqueadores de canais de cálcio e os bloqueadores específicos alfa-1.
As determinações mais disponíveis são norepinefrina e epinefrina plasmáticas,
norepinefrina e epinefrina urinárias, metanefrinas urinárias totais ou fracionadas,
metanefrinas plasmáticas fracionadas e ácido vanilmandélico urinário. Recomenda-se,
para melhor acurácia do diagnóstico bioquímico do feocromocitoma, a combinação de
dois métodos, com repetição de cada método pelo menos duas vezes. As amostras
plasmáticas devem ser colhidas em repouso, após vinte minutos da instalação da cânula
intravenosa. As amostras urinárias geralmente são colhidas durante 24 horas, com uso

Pedro Kallas Curiati 547


da dosagem de creatinina urinária para confirmar a qualidade da coleta.
Em raras situações, é necessário recorrer aos testes de supressão ou
provocativos. O teste de supressão mais indicado é o da Clonidina, que tem o objetivo
de detectar produção autônoma e tumoral de catecolaminas, já que a droga inibe a
secreção de catecolaminas pelos neurônios, mas não inibe a secreção de catecolaminas
pelo tumor. Está indicado em pacientes hipertensos, com catecolaminas pouco elevadas
e com diagnóstico clínico duvidoso. Outro procedimento ocasionalmente indicado é o
teste de estímulo com Glucagon. Esse hormônio estimula a produção tumoral de
catecolaminas, mas não atua, de forma significativa, na liberação normal de
catecolaminas. Está indicado nos pacientes com pressão arterial normal e níveis não-
diagnósticos de catecolaminas, mas com quadro clínico sugestivo de feocromocitoma.
Os métodos mais frequentemente utilizados na identificação topográfica do
feocromocitoma são a tomografia computadorizada, a ressonância nuclear magnética e
o mapeamento de corpo inteiro com 131I-meta-iodo-benzilguanidina (131I-MIBG). Os
dois primeiros são extremamente sensíveis na detecção dos tumores adrenais, mas a
ressonância nuclear magnética é superior na localização dos tumores extra-adrenais,
principalmente os intracardíacos. A presença de tumor adrenal em paciente com
diagnóstico bioquímico positivo não implica necessariamente em feocromocitoma,
podendo representar incidentaloma. Em geral, o feocromocitoma, além de ser um tumor
grande, tem aspecto heterogêneo, com captação não-uniforme do contraste. A meta-
iodo-benzilguanidina, pela sua semelhança estrutural com a norepinefrina, é captada e
concentrada nas vesículas adrenérgicas, com maior especificidade do mapeamento em
relação aos outros métodos de imagem. Ocasionalmente, o mapeamento de corpo inteiro
com 131I-MIBG apresentará maior sensibilidade que os outros métodos em caso de
tumores pequenos, com tamanho inferior a 2cm, e multifocais ou metastáticos. Na
avaliação topográfica, deve-se considerar que, embora o feocromocitoma seja um tumor
adrenal em 90% dos pacientes, ele pode se apresentar em localizações extra-adrenais
desde a base do crânio até a pelve.
Recomenda-se a realização do mapeamento com 131I-MIBG antes da cirurgia em
caso de pacientes com tumores adrenais atípicos no exame de ressonância nuclear
magnética e de situações nas quais é mais frequente a ocorrência de tumores múltiplos,
como em pacientes jovens, pacientes com paragangliomas e pacientes com síndromes
genéticas. O mapeamento com 131I-MIBG não é necessário nos pacientes com dados
clínicos e bioquímicos inquestionáveis de feocromocitoma, sem história familiar e com
imagem característica de tumor adrenal na ressonância nuclear magnética.

Tratamento
O tratamento medicamentoso, iniciado sete a quatorze dias antes da cirurgia, tem
como objetivos tratar a hipertensão arterial, evitar a ocorrência de paroxismos e corrigir
eventual hipovolemia. Se a correção da hipovolemia não for feita, os pacientes correm o
risco de desenvolver, após a retirada do tumor e o consequente desaparecimento da
vasoconstrição, hipotensão ou choque hipovolêmico. A vasodilatação provocada pelo
tratamento clínico e a ingesta de dieta rica em sal, iniciada no segundo ou terceiro dia de
tratamento farmacológico, são suficientes para corrigir, de forma mais fisiológica, a
volemia. A administração de volume por via parenteral deve ser feita nos pacientes que
permanecem com hipotensão postural e mantêm hematócrito elevado, apesar do
tratamento clínico.
A droga tradicionalmente recomendada é a Fenoxibenzamina, bloqueador α-
adrenérgico inespecífico, não-competitivo e de ação prolongada. A dose inicial
recomendada é de 10mg uma ou duas vezes ao dia, com aumentos de 10-20mg/dia de

Pedro Kallas Curiati 548


forma fracionada a cada dois a três dias conforme a necessidade. A dose final diária
geralmente varia de 20mg a 100mg. Mais recentemente, têm sido utilizados o Prazosin,
apresentado na forma de cápsulas de liberação prolongada de 1mg, 2mg e 4mg, com
dose inicial de 1mg uma vez ao dia de noite e titulação gradual com aumento a cada três
a sete dias até dose máxima de 20mg uma vez ao dia de noite, e o Doxazosin,
apresentado na forma de comprimidos de liberação controlada de 4mg, com dose inicial
de 4mg uma vez ao dia e dose máxima de 8mg uma vez ao dia, bloqueadores α-1
específicos, competitivos e com tempo de ação mais breve. Causam menos taquicardia
reflexa, permitem ajuste mais rápido da dose e são associados a menor incidência de
hipotensão arterial no pós-operatório imediato. Para reduzir o risco de hipotensão
arterial após a retirada do tumor, a Fenoxibenzamina deve ser suspensa 48 horas antes
do ato cirúrgico e o Prazosin deve ser suspenso 8 horas antes do ato cirúrgico. As metas
do tratamento são pressão arterial inferior a 120x80mmHg com o paciente sentado e
pressão arterial sistólica superior a 90mmHg com o paciente em pé.
Outras drogas podem ser utilizadas, associadas ou em substituição aos
bloqueadores α-adrenérgicos, no manejo clínico e no preparo pré-operatório dos
pacientes com feocromocitoma. Os bloqueadores de canais de cálcio e os inibidores da
enzima de conversão da angiotensina têm se mostrado igualmente eficazes e podem ser
utilizado. Os bloqueadores de canais de cálcio têm a vantagem de não produzirem
hipotensão arterial grave e hipotensão postural, podendo ser utilizados com segurança
nos pacientes com paroxismos adrenérgicos e pressão arterial normal nos períodos entre
as crises. A administração de β-bloqueadores está contraindicada no tratamento inicial
da hipertensão arterial porque o bloqueio do receptor β magnifica a resposta α-
adrenérgica. As indicações para o uso de β-bloqueadores, como o Propranolol, são
persistência ou aparecimento de taquicardia ou arritmias cardíacas, sempre em
associação aos bloqueadores α-adrenérgicos. Pode-se iniciar com 10mg de Propranolol
de 6/6 horas e, se tolerado, substituir por droga de meia vida mais longa com dose não
fracionada, ajustada até meta de frequência cardíaca de 60-80bpm.
O tratamento cirúrgico, com retirada total de todos os focos de tecido tumoral,
constitui o único tratamento definitivo do feocromocitoma. Durante o procedimento
cirúrgico aberto ou, preferencialmente, laparoscópico, pressão arterial média, pressão
venosa central e ritmo cardíaco devem ser continuamente monitorizados. As reações
hipertensivas que ocorrem inevitavelmente durante a manipulação cirúrgica devem ser
tratadas com a infusão intravenosa de drogas de ação imediata, como o α-bloqueador
Fentolamina e o vasodilatador Nitroprussiato de Sódio. A ocorrência de taquicardia e
arritmias deve ser tratada com a administração intravenosa de Propranolol. A
administração de volume, principalmente após a retirada do tumor, deve ser efetuada
quando os níveis de pressão arterial média e de pressão venosa central indicarem
hipovolemia. A maioria dos pacientes com hipotensão no pós-operatório responde bem
à administração de volume, raramente sendo utilizadas drogas vasoativas. Outra
ocorrência possível, mas menos provável, nas primeiras 24-48 horas do pós-operatório,
é a hipoglicemia, decorrente de uma liberação maior de insulina, que, antes da cirurgia,
estava bloqueada pelo efeito das catecolaminas sobre o pâncreas. Dessa forma, deve ser
realizado controle da glicose capilar nas primeiras 48 horas do pós-operatório.
Em pacientes com neoplasia endócrina múltipla tipos 2A e 2B, caracterizada por
comprometimento medular difuso, e evidência radiológica de doença bilateral, sugere-
se adrenalectomia bilateral completa em função do risco de recorrência do
feocromocitoma. Em pacientes com doença de von Hippel-Lindau, caracterizada por
compromedimento medular menos difuso, e evidência radiológica de doença bilateral,
sugere-se adrenalectomia bilateral com preservação da camada cortical e monitorização

Pedro Kallas Curiati 549


bioquímica prolongada.

Evolução e prognóstico
A hipertensão arterial e as crises adrenérgicas devem cessar imediatamente após
a retirada do tumor. Entretanto, a persistência de hipertensão no pós-operatório pode ser
transitória em razão do estoque excessivo de catecolaminas nas terminações
adrenérgicas simpáticas. O controle laboratorial deve ser realizado pelo menos duas
semanas após a retirada do tumor. Decorrido esse prazo, a manutenção da hipertensão
acompanhada de valores elevados de catecolaminas e/ou de seus metabólitos sugere
persistência de focos de tumor, que devem ser explorados preferencialmente pelo
mapeamento de corpo inteiro com 131I-MIBG. Em alguns casos, a hipertensão arterial
persiste sem evidência bioquímica ou radiológica de feocromocitoma residual.
O diagnóstico de doença maligna deve ser feito apenas na presença de
metástases em locais onde normalmente não existe tecido cromafin. Os locais
preferenciais de metástases são linfonodos regionais, osso, fígado e pulmões. Também
pode ocorrer trombose tumoral da veia cava inferior. O tratamento da doença maligna,
com metástases a distância, é problemático. A terapêutica da hipertensão arterial e das
crises adrenérgicas deve ser a mesma recomendada no preparo pré-cirúrgico dos
pacientes. O uso de quimioterápicos, como Ciclofosfamida, Vincristina e Dacarbazina
tem conduzido a resultados duvidosos. Vários centros tem reportado o uso, com relativo
sucesso, do 131I-MIBG, em doses mais elevadas do que aquelas utilizadas na exploração
topográfica do tumor, no tratamento do feocromocitoma metastático. A experiência
clínica com o uso de análogos da somatostatina ainda é muito limitada, mas a
somatostatina marcada com 111In ou 90Ytrium pode ser benéfica. A radioterapia também
tem sido proposta para o tratamento do feocromocitoma maligno, embora a sua eficácia
seja relativa. A ablação com radiofrequência tem se mostrado mais eficaz em alguns
pacientes com metástases ósseas e hepáticas. A evolução clínica dos pacientes com
doença metastática nem sempre é catastrófica, com muitos casos de comportamento
indolente e manutenção de boa condição clínica. A presença de metástases ganglionares
regionais não compromete necessariamente o prognóstico e sua exploração cuidadosa,
por ocasião da retirada do tumor primário, com o objetivo de retirar todos os possíveis
focos de tumor, deve ser efetuada em todos os pacientes. Não há tratamento curativo
para o feocromocitoma maligno, exceto se os sítios acometidos forem passíveis de
ressecção cirúrgica. Dessa forma, a ressecção cirúrgica com finalidade curativa é
recomendada sempre que possível.
Recomenda-se que os pacientes sejam acompanhados nos primeiros dez anos
após a cirurgia do tumor primário com avaliação clínica e determinação de
catecolaminas e/ou seus metabólitos pelo menos uma vez por ano e avaliação
radiológica anualmente durante os primeiros cinco anos e a cada dois a três anos a partir
de então. Após esse período, o controle pode ser mais espaçado ou ser feito quando
houver alguma indicação clínica. Nos pacientes com síndromes genéticas, o
acompanhamento deve ser feito durante toda a vida por causa da maior incidência de
multiplicidade tumoral e do maior risco de recorrência.

Algoritmo

Pedro Kallas Curiati 550


Bibliografia
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Clinical presentation and diagnosis of pheochromocytoma. William F Young and Norman M Kaplan. UpToDate, 2012.
Treatment of pheochromocytoma in adults. William F Young, Norman M Kaplan and Electron Kebebew. UpToDate, 2012.

Tumores supra-renais

Definições
Os tumores primários do córtex supra-renal são classificados como benignos
(adenomas) ou malignos (carcinomas), funcionantes ou não-funcionantes. A distinção
entre tumores benignos e malignos pode ser feita apenas com base em presença de
metástases, recorrência local e invasão de órgãos vizinhos.

Epidemiologia
A incidência de tumores supra-renais aumenta com a idade, com predomínio no
sexo feminino.
Os adenomas não-funcionantes representam a maioria dos tumores supra-renais.
Os carcinomas supra-renais são raros.

Pedro Kallas Curiati 551


Ao contrário dos adenomas, cuja incidência se concentra entre a terceira e a
sexta décadas de vida, nos carcinomas ocorre uma distribuição bimodal, com um pico
antes dos cinco anos de idade e outro entre a quarta e a quinta décadas de vida.

Fisiopatologia
A maioria dos tumores supra-renais é esporádica. Todavia, algumas síndromes
genéticas aumentam o risco de tumorigênese supra-renal, como a síndrome de Li-
Fraumeni, associada a carcinoma de mama, sarcomas, tumores de sistema nervoso
central e leucemias, a síndrome de Beckwith-Wiedemann, associada a macrossomia,
tumor de Wilms, neuroblastoma e hepatoblastoma, e a síndrome neoplasia endócrina
múltipla tipo 1, associada a tumores de paratireoide, pâncreas endócrino e hipófise.

Quadro clínico
Os sintomas dos tumores supra-renais são decorrentes de seu efeito de massa ou
da hipersecreção de hormônios. A dor abdominal pode estar associada a perda de peso e
sintomas gerais em alguns pacientes com carcinomas supra-renais. Os principais locais
de disseminação são fígado, pulmões e linfonodos.

Avaliação complementar
Todos os pacientes devem ser avaliados com glicemia de jejum, potássio sérico,
cortisol sérico, ACTH sérico, cortisol urinário de 24 horas, cortisol sérico de jejum as
8:00 após dose de 1mg de Dexametasona ao deitar, andrógenos adrenais (sulfato de
dehidroepiandrosterona, androstenediona e 17-OH progesterona), estradiol sérico em
homens e mulheres na pós-menopausa, aldosterona plasmática, atividade de renina
plasmática e metanefrinas e catecolaminas urinárias e plasmáticas.
Mais de dois terços dos pacientes com adenomas apresentam evidências
laboratoriais de hipercortisolismo, variando desde secreção subclínica e autônoma de
cortisol a quadros de síndrome de Cushing. Uma minoria dos adenomas secreta
exclusivamente andrógenos, determinando puberdade precoce isossexual independente
de gonadotrofinas em meninos e síndrome virilizante em meninas. Eventualmente, pode
ocorrer secreção concomitante de andrógenos e cortisol por tumores benignos do córtex
supra-renal. Adenomas supra-renais e, raramente, carcinomas, podem secretar
aldosterona, cujo fenótipo resultante é hiperaldosteronismo primário.
A secreção mista é o principal achado laboratorial dos carcinomas supra-renais.
Além do aumento do cortisol e dos andrógenos, que determina síndrome de Cushing
com síndrome virilizante, observa-se também a elevação de precursores da
esteroidogênese supra-renal, como 11-deoxicortisol e 17-alfa-hidroxiprogesterona.
Raramente, observa-se secreção de estradiol, determinando síndromes feminilizantes em
homens e mastalgia e sangramento uterino disfuncional em mulheres, e aldosterona,
determinando hipertensão mineralocorticoide.
Há relatos de hipoglicemia não-mediada por insulina e hiperglobulia como
síndromes paraneoplásicas de carcinomas supra-renais secretores de IGF-2 e
eritropoietina, respectivamente.
Os exames radiológicos representam uma importante ferramenta para o clínico
diferenciar os adenomas dos carcinomas supra-renais. O primeiro dado a ser avaliado é
o tamanho do tumor. Tumores malignos tendem a ser maiores, enquanto os adenomas
costumam apresentar menos de 4cm no maior eixo. Além do tamanho, o grau de
atenuação na tomografia computadorizada pode auxiliar na avaliação. Adenomas são
tumores ricos em gordura intracitoplasmática, o que lhes confere baixa atenuação na
fase pré-contraste da tomografia computadorizada, inferior ou igual a 10 UH. Outros

Pedro Kallas Curiati 552


dados da tomografia computadorizada que podem apontar para o diagnóstico de
malignidade são a presença de calcificações ou áreas grosseiramente heterogêneas, que
representam zonas de hemorragia ou necrose tumoral. A tomografia computadorizada
com contraste iodado intravenoso também fornece subsídios para a distinção da
natureza dos tumores supra-renais. Os adenomas retêm menos contraste que os
carcinomas, com coeficiente de atenuação superior a 40 UH dez a quinze minutos após
a administração de contraste sendo sugestivo de malignidade. A ressonância nuclear
magnética com contraste associada à técnica de deslocamento químico (chemical shift)
oferece a mesma eficácia da tomografia computadorizada na diferenciação de tumores
supra-renais benignos e malignos, também em função do conteúdo lipídico
intracitoplasmático. Tipicamente, os carcinomas apresentam isossinal ao fígado nas
sequencias ponderadas em T1 e hipersinal em T2, sem diminuição do sinal nas
sequências fora de fase. Os adenomas, sobretudo aqueles mais ricos em gordura,
apresentam hipossinal ao fígado em T2 e importante diminuição do sinal nas sequências
fora de fase. Outra aplicação da ressonância nuclear magnética é o estudo da relação dos
tumores supra-renais com os vasos, especialmente a veia cava inferior, já que
carcinomas supra-renais podem invadi-la e produzir trombos que se estendem até o átrio
direito. A medicina nuclear também pode ser empregada na diferenciação entre
adenomas e carcinomas supra-renais, com cintilografia com colesterol marcado e FDG-
PET.

Estadiamento
As tomografias computadorizadas de abdômen e tórax possibilitam a avaliação
de fígado, linfonodos retroperitoneais e pulmões, os principais sítios de metástase. Na
suspeita clínica de acometimento ósseo, imagens direcionadas ou cintilografia óssea
possibilitam o diagnóstico.
European Network for The Study of Adrenal Tumors
- Estágio I – Doença restrita à supra-renal, com tumor inferior ou igual a
5cm;
- Estágio II – Doença restrita à supra-renal, com tumor superior a 5cm;
- Estágio III – Invasão local ou disseminação linfática;
- Estágio IV – Metástases à distância;
Alguns dados macroscópicos podem auxiliar a predizer o comportamento
biológico de um tumor do córtex supra-renal. Peso tumoral superior a 500g, presença de
extensas áreas de necrose ou hemorragia intratumoral, superfície lobulada e presença de
calcificações sugerem malignidade. Microscopicamente, a lista de critérios histológicos
proposta por Weiss e colaboradores pode ajudar na distinção entre adenomas e
carcinomas supra-renais. Os critérios atualizados incluem mais de seis mitoses por
cinquenta campos de grande aumento, células claras compreendendo 25% ou menos do
tumor, mitoses atípicas, necrose e invasão capsular. Cada critério recebe com 0 pontos
quando ausente ou 2 pontos quando presente no caso dos dois primeiros critérios e 1
ponto quando presente no caso dos três últimos critérios. O limiar para malignidade é
pontuação superior ou igual a 3.

Tratamento
O tratamento dos tumores do córtex supra-renal é cirúrgico, com o objetivo de
cura, exceto nos casos de carcinomas com disseminação extensa, nos quais deve-se
preferir oferecer suporte clínico e cuidados paliativos. Pacientes com tumores não-
funcionantes com tamanho inferior a 4cm e aspecto radiológico benigno podem ser
submetidos a tratamento conservador com controle radiológico.

Pedro Kallas Curiati 553


A exérese tumoral pode ser realizada por via laparoscópica ou por via aberta,
com lombotomia ou toracofrenolaparotomia. Os tumores benignos podem ser extirpados
por via laparoscópica, que cursa com menos morbidade e menor tempo de internação.
Os tumores maiores, especialmente se houver possibilidade de carcinoma, devem ser
abordados por via aberta para permitir a retirada em bloco da supra-renal acometida
juntamente com o tecido gorduroso circundante e os linfonodos de drenagem.
Dependendo da extensão tumoral, a cirurgia pode ser ampliada, com a retirada
concomitante de rim, baço e, eventualmente, cauda do pâncreas. Metástases hepáticas
únicas devem ser abordadas. A invasão da veia cava inferior não deve ser considerada
uma metástase, mas uma extensão tumoral. Circulação extra-corpórea pode ser
necessária para a completa remoção cirúrgica do trombo neoplásico.
Todos os adenomas supra-renais são curáveis com a adrenalectomia. Os
pacientes com hipercortisolismo podem apresentar insuficiência supra-renal secundária
por supressão da secreção de CRH e ACTH pelo hipotálamo e pela hipófise,
respectivamente. Essa situação deve ser evitada com a administração de doses de
reposição de glicocorticoide, como Acetato de Cortisona ou Hidrocortisona. Os
pacientes devem receber a reposição com orientação para aumentar a dose em caso de
doenças intercorrentes, trauma ou desidratação até que o eixo hipotálamo-hipófise-
adrenal possa ser avaliado. Hidrocortisona 150-200mg por via intravenosa em infusão
contínua ou fracionada deve ser administrada nas primeiras 24 horas após a indução
anestésica, com doses de 100mg, 75mg e 50mg ao dia nos dias subsequentes. A dose
usual de reposição de glicocorticoide oral é de 15-25mg de Hidrocortisona por dia,
dividida em duas tomadas, com dois terços pela manhã e um terço no início da tarde.
Como no Brasil a Hidrocortisona precisa ser manipulada, pois não existe
disponibilidade comercial, outra opção é a Prednisona, na dose de 5-7.5mg por dia em
dose única ou fracionada. A adequação da reposição de glicocorticoide pode ser
avaliada com base em sintomas e ACTH sérico matinal. Pacientes com síndrome de
Cushing severa e de duração prolongada podem necessitar de reposição supra-
fisiológica durante algumas semanas, com Hidrocortisona 20mg no início da manhã,
10mg no meio da manhã e 10mg no meio da tarde. O desmame é feito com redução de
2.5mg/dia a cada uma a duas semanas. Antes da cirurgia, o hipercortisolismo deve ser
controlado com Cetoconazol 200mg três vezes ao dia por via oral, aumentado para
400mg três vezes ao dia se necessário. A excisão de um adenoma produtor de
aldosterona pode raramente ser seguida de hipercalemia transitória e hiponatremia
discreta, com necessidade de dieta rica em sal com ou sem reposição de
mineralocorticoide por alguns dias a semanas. A dose do mineralocorticoide
Fludrocortisona, apresentado na forma de comprimidos sulcados de 0.1mg, é de 0.05-
0.15mg/dia. Dose de 0.05mg/dia pode ser suficiente em pacientes que fazem uso de
Hidrocortisona, já que essa medicação possui efeito mineralocorticoide.
Para os carcinomas supra-renais, a conduta pode variar de acordo com o
estadiamento. Os pacientes com estágios I, II e III, inicialmente, devem ser tratados com
cirurgia. A decisão de complementar a cirurgia com tratamentos adjuvantes, como
quimioterapia e irradiação do leito tumoral, ainda é um tema controverso. Os casos de
doença metastática, estágio IV, podem ser abordados, inicialmente, com cirurgia
seguida de tratamento adjuvante. Quando a ressecção for impossível, a abordagem deve
ser clínica, com quimioterapia associada ou não a radioterapia paliativa.
O tratamento clínico do carcinoma supra-renal inclui o Mitotano, agente
adrenolítico específico com efeito citotóxico sobre o córtex supra-renal, e a
quimioterapia citotóxica combinada, que abrange Cisplatina, Etoposídeo e
Doxorrubicina. O Mitotano é indicado como tratamento primário em caso de ressecção

Pedro Kallas Curiati 554


cirúrgica incompleta, não-factível ou contraindicada e como tratamento adjuvante em
todos os pacientes submetidos a ressecção cirúrgica, independentemente do
estadiamento e do resultado obtido, com início imediatamente após a cirurgia. O
objetivo deve ser controlar o crescimento tumoral e a hipersecreção hormonal, quando
esta existir. Além da insuficiência supra-renal induzida pelo Mitotano, que deve ser
tratada com glicocorticoides e mineralocorticoides, o medicamento pode causar efeitos
adversos gastrointestinais, metabólicos e neurológicos. O medicamento também
aumenta a metabolização de Cortisol, Dexametasona e Fludrocortisona. Como
tratamento primário, geralmente utiliza-se a dose máxima tolerada, podendo-se atingir
até 10g/dia. Já como tratamento adjuvante, geralmente utiliza-se 1-3g/dia, com
monitorização dos níveis séricos sempre que possível. Geralmente inicia-se com dose de
0.5g/dia fracionada em duas tomadas diárias junto com as refeições e aumenta-se a dose
progressivamente até atingir 2g/dia dentro de duas semanas. Podem ser necessárias
várias semanas para que seja atingido o nível sérico almejado de 14-20mcg/mL. Em
pacientes com doença de maior risco, estágios III e IV, pode-se aumentar mais
rapidamente a dose da medicação até 6g/dia, com avaliação dos níveis séricos a cada
duas a três semanas. A duração do tratamento não é definida para os estágios I e II,
podendo variar de dois a cinco anos. Já nos estágios III e IV, a medicação deverá ser
mantida por toda a vida. A quimioterapia sistêmica é indicada em conjunto com o
Mitotano ou em substituição a ele em pacientes com doença avançada ou recorrente,
mas não há posicionamento adequado a respeito do seu benefício. Da mesma forma, os
dados disponíveis não permitem concluir que haja algum benefício da irradiação
terapêutica profilática do leito operatório, que é indicada de forma adjuvante em caso de
ressecção cirúrgica incompleta ou doença estágio III.

Seguimento
Os adenomas supra-renais são curados após a cirurgia. O seguimento pós-
operatório dos pacientes com tumores secretores de cortisol é fundamental quando
ocorrer insuficiência supra-renal secundária e a reposição com glicocorticoides é
obrigatória até que o eixo hipotálamo-hipófise-supra-renal possa ser reavaliado. Para
adenomas supra-renais, não há necessidade de exames de imagem no seguimento.
Para os carcinomas funcionantes, recomenda-se a avaliação laboratorial com
dosagem dos esteroides supra-renais e dos seus precursores a cada três meses. Contudo,
na maioria dos casos, os exames de imagem são mais sensíveis que as alterações
laboratoriais. Assim, tomografias computadorizadas de abdômen e tórax a cada três a
seis meses são fundamentais nos primeiros dois anos de acompanhamento após a
cirurgia. Depois desse período, a frequência do reestadiamento pode ser diminuída nos
casos sem evidência de recidiva, mas deve ser mantida por pelo menos cinco anos.

Bibliografia
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Clinical presentation and evaluation of adrenocortical tumors. Andre Lacroix. UpToDate, 2012.
Treatment of adrenocortical adenomas. Andre Lacroix. UpToDate, 2012.
Treatment of adrenocortical carcinoma. Diane MF Savarese and Andre Lacroix. UpToDate, 2012.

Pedro Kallas Curiati 555


TUMORES DA TIREOIDE
Epidemiologia
A neoplasia tireoidiana apresenta-se, em geral, como um nódulo da tireoide. Os
nódulos da tireoide são quatro vezes mais frequentes nas mulheres do que nos homens.
Apesar da elevada prevalência, apenas uma pequena parcela é maligna, com risco
semelhante entre nódulos únicos hipofuncionante e bócios multinodulares.
A incidência do câncer da tireoide aumenta com a idade, com frequência duas a
quatro vezes maior em mulheres do que em homens, sendo raro em crianças e
adolescentes. Fatores de risco para malignidade de um nódulo tireoidiano incluem
história pessoal de irradiação da região cervical, história familiar de câncer da tireoide,
sexo masculino e idade inferior a vinte anos ou superior a sessenta anos. Por outro lado,
dor local, sintomas de hipotireoidismo, história familiar de doença nodular benigna da
tireoide e tireoidite de Hashimoto estão associados a processo benigno.

Etiologia e fisiopatologia
Os adenomas da tireoide foliculares são geralmente monoclonais e originam-se
de uma série de estímulos, como radiação ionizante, elevação crônica do hormônio
tireoestimulante (TSH) e oncogenes. A mutação ativadora do receptor do TSH é uma
causa específica de nódulos autônomos isolados ou mesmo de nódulos autônomos
encontrados no bócio multinodular tóxico. Adenomas papilíferos provavelmente são
malignos.
Os tumores malignos da tireoide ocorrem pelo desequilíbrio entre a proliferação
celular e a apoptose. Para que a neoplasia se desenvolva, é necessário que ocorra uma
série de eventos acumulados durante anos. Esses eventos são regulados por uma
quantidade de genes que, ao sofrerem mutações, associam-se ao início da formação do
tumor. A maioria das mutações que ocorrem nos tumores malignos é somática e,
portanto, presente apenas nas células tumorais. Os carcinomas de tireoide incluem o
carcinoma papilífero, o carcinoma folicular, o carcinoma pouco diferenciado, o
carcinoma medular e o carcinoma indiferenciado ou anaplásico.
No carcinoma papilífero ocorrem rearranjos cromossômicos dos genes de
receptores de tirosina-quinase. A etiologia do carcinoma folicular não está tão bem
esclarecida, com algumas alterações genéticas tendo sido evidenciadas.
Os carcinomas papilíferos e foliculares familiares podem estar associados a
síndromes tumorais hereditárias, como polipose adenomatosa familiar, síndrome de
Cowden, síndrome de Werner, complexo de Carney e, possivelmente, síndrome de
Peutz-Jeghers.
O carcinoma medular da tireoide origina-se de células parafoliculares ou células
C. É esporádico em cerca de 75% dos casos e hereditário em cerca de 25% dos casos.
Nestes, trata-se de doença autossômica dominante com alto grau de penetrância e
variabilidade de expressão, podendo fazer parte da síndrome da neoplasia endócrina
múltipla dos tipos IIA ou IIB. O carcinoma medular da tireoide esporádico é uma lesão
única, frequentemente localizada no centro do lobo tireoidiano, enquanto que o
carcinoma medular da tireoide familiar localiza-se, em geral, entre os terços superior e
médio dos lobos tireoidianos, sendo, via de regra, multicêntrico.
O carcinoma pouco diferenciado é tumor de células foliculares com morfologia e
comportamento intermediário entre os carcinomas bem diferenciados e indiferenciados.
A etiologia do carcinoma pouco diferenciado é desconhecida, com alguns casos sendo

Pedro Kallas Curiati 556


originados de carcinoma papilífero ou folicular preexistente. Com relação ao carcinoma
indiferenciado, a maioria revela evidências de um carcinoma diferenciado ou pouco
diferenciado preexistente.
Outras neoplasias tireoidianas malignas incluem linfoma, sarcoma, carcinoma
epidermóide de células escamosas, fibrossarcoma, carcinoma mucoepitelial e
metástases.

Quadro clínico
A grande maioria dos nódulos tireoidianos benignos e malignos é assintomática.
Sintomas locais, como disfagia e disfonia, são raros. Ocasionalmente pode ocorrer
sangramento no interior do nódulo, com aumento súbito de volume e dor local.
Raramente, o paciente apresenta-se com metástase a distância. Nódulo liso, macio e de
fácil mobilização sugere benignidade, enquanto que nódulo firme ou duro, de superfície
irregular e fixo sugere malignidade. Gânglios podem ser palpados nos triângulos
supraclaviculares e nas cadeias cervicais laterais, sugerindo processo maligno.
Os adenomas foliculares crescem lentamente e podem permanecer
assintomáticos por anos. Cerca de dez por cento são hiperfuncionantes, sendo
denominados tóxicos, podendo desencadear hipertireoidismo clínico ou subclínico.
Alguns podem permanecer assintomáticos por anos e, gradativamente, tornarem-se
tóxicos, sobretudo quando ultrapassam 3cm de diâmetro.
O carcinoma papilífero corresponde a 60-70% de todos os tumores malignos da
tireoide, com incidência maior na terceira e na quarta décadas de vidas, assim como no
sexo feminino. O curso da doença é quase sempre indolente, com maior agressividade
em crianças e indivíduos com idade superior a 45 anos. Frequentemente há metástases
para linfonodos cervicais, sem alteração do prognóstico em jovens, mas com maior risco
de recorrência e óbito naqueles com idade superior a 45 anos. As variantes mais
agressivas, como a esclerosante difusa e a de células altas, podem ocasionar metástases
à distância para pulmões e ossos. O prognóstico é excelente.
O carcinoma folicular tem um pico de incidência na quinta década de vida, é
mais comum nas mulheres e corresponde a cerca de um quarto dos casos de carcinoma
de tireoide. Trata-se de tumor de crescimento lento e frequentemente diagnosticado
antes do aparecimento de metástases. A invasão de músculos e/ou traqueia é típica das
formas mais agressivas. Metástases ganglionares não são comuns, sendo mais
frequentes na variante de células oncocíticas, porém há tendência para a ocorrência de
metástases à distância acometendo principalmente pulmão e ossos. A mortalidade dos
carcinomas foliculares minimamente invasivos é baixa, enquanto que a dos
extensivamente invasivos é de cerca de 50%.
O carcinoma pouco diferenciado corresponde a 4-7% dos carcinomas da
tireoide, com frequência maior em mulheres e após os cinquenta anos de idade.
Geralmente apresenta-se como nódulo único e com volume superior a 3cm, com
invasão local, metástase ganglionares e metástases a distância, predominantemente para
pulmão, fígado e ossos. É frequente o relato de crescimento repentino do tumor em uma
tireoide uninodular ou multinodular. A maioria dos pacientes morre nos três primeiros
anos após o diagnóstico.
O carcinoma medular da tireoide esporádico pode surgir em qualquer idade,
porém é encontrado com maior frequência durante a quinta e a sexta décadas de vida. O
diagnóstico geralmente é tardio e o paciente apresenta-se com nódulo único e indolor,
podendo estar associado a acometimento de gânglio cervical. Nos casos familiares, o
diagnóstico é precoce por rastreamento, sem sinais clínicos evidentes, que podem estar
associados a outras patologias, como neuromas, alterações esqueléticas,

Pedro Kallas Curiati 557


feocromocitoma, hiperparatireoidismo, síndrome de Cushing e síndrome
paraneoplásicas. A principal via de disseminação é a linfática, com alta prevalência de
metástases ganglionares regionais. Metástases a distância ocorrem com frequência para
fígado, pulmões, ossos e cérebro. Metástases ocultas constituem a principal causa de
hipercalcitoninemia persistente após tireoidectomia total com esvaziamento cervical.
Carcinomas indiferenciados ou anaplásicos são tumores altamente malignos
compostos parcialmente ou totalmente por células indiferenciadas. Ocorrem geralmente
em pacientes idosos, com maior frequência em mulheres. A mortalidade é muito alta e a
sobrevida raramente ultrapassa seis meses após o diagnóstico. Os pacientes geralmente
apresentam tumores de crescimento muito rápido, podendo ocorrer rouquidão, disfagia,
paralisia de corda vocal, dor cervical e dispneia. As estruturas vizinhas, como músculos,
traqueia, esôfago, nervo laríngeo recorrente e laringe, geralmente são acometidas.
Parcela significativa dos pacientes apresenta metástases à distância no momento do
diagnóstico, com predomínio em pulmões, ossos e cérebro. Metástases ganglionares
podem estar presentes, mas nem sempre são reconhecidas devido à extensa invasão da
região cervical pelo tumor.

Avaliação complementar

Exames laboratoriais
Os testes de função tireoidiana não são de grande valia, pois os pacientes com
nódulos tireoidianos benignos e malignos, em sua maioria, são eutiroidianos. Deve-se
realizar a medida do TSH sérico para identificar pacientes com hipotireoidismo ou
tireotoxicose não suspeitados. Os anticorpos anti-tireoidianos são úteis, principalmente
em mulheres jovens com bócio difuso para o diagnóstico de tireoidite de Hashimoto. O
cálcio sérico e a dosagem de paratormônio são importantes para o diagnóstico de
hiperparatireoidismo na suspeita de nódulo da paratireoide. A tireoglobulina não
diferencia nódulos benignos de malignos, mas a determinação do seu nível sérico antes
da cirurgia é útil para avaliar se o seu valor está compatível com o volume glandular e
nodular, já que valores muito elevados podem sugerir a presença de metástases, também
sendo útil no seguimento de pacientes que foram operados de câncer de tireoide. A
calcitonina é o principal produto secretado pelas células C e é considerado o marcador
bioquímico para diagnóstico e seguimento pós-operatório dos pacientes com carcinoma
medular da tireoide.

Cintilografia
Devido a sua baixa sensibilidade e especificidade, a cintilografia de tireoide é
pouco utilizada na avaliação inicial dos nódulos tireoidianos. As principais indicações
incluem determinar se um nódulo é funcionante em um paciente com hipertireoidismo,
determinar se um nódulo diagnosticado como suspeito para neoplasia folicular pela
punção aspirativa por agulha fina é hiperfuncionante e determinar o estado funcional
dos nódulos em um bócio multinodular.

Ultrassonografia
A ultrassonografia da tireoide, por ser um método simples, não invasivo e
apresentar boa correlação com os aspectos macroscópicos dos nódulos tireoidianos, é
um procedimento recomendado a todos os pacientes com suspeita de um ou mais
nódulos tireoidianos. Nenhum sinal é patognomônico, mas a combinação de algumas
características, como microcalcificações, hipoecogenicidade e contornos irregulares,
aumenta o risco de malignidade de uma lesão. A presença de halo hipoecogênico ao

Pedro Kallas Curiati 558


redor do nódulo tem sido considerada um sinal de benignidade. Cistos tireoidianos são
benignos na maior parte dos casos, podendo corresponder a carcinoma papilífero em
caso de massa sólida com microcalcificações em sua parede. Dessa forma, a
ultrassonografia permite selecionar nódulos para biópsia em uma glândula multinodular.
A classificação ultrassonográfica dos nódulos tireoidianos é baseada em
conteúdo, ecogenicidade, contorno, presença de calcificações, parênquima tireoidiano
adjacente e presença de outras imagens nodulares. Os graus I ou II são considerados
benignos, o grau III é considerado indeterminado e o grau IV é considerado suspeito
para malignidade. Devido ao elevado valor preditivo negativo do método, os nódulos
classificados como benignos podem ser acompanhados clinicamente, podendo-se optar
por punção aspirativa por agulha fina em caso de tamanho igual ou superior a 1cm,
enquanto que aqueles classificados como indeterminados ou suspeitos devem ser
submetidos a punção aspirativa por agulha fina.
O Doppler colorido permite caracterizar o padrão de vascularização dos nódulos
tireoidianos. Nódulos com fluxo predominantemente periférico apresentam maior
probabilidade de benignidade e nódulos com fluxo predominantemente central
apresentam maior probabilidade de malignidade.

Punção aspirativa por agulha fina e análise citológica


A punção aspirativa por agulha fina da tireoide é uma excelente ferramenta
diagnóstica na avaliação inicial de um nódulo tireoidiano, com alta sensibilidade e
especificidade no diagnóstico de tumores malignos. O procedimento, quando realizado
por pessoas com experiência, é bem tolerado e apresenta uma taxa muito baixa de
complicações. O exame imunocitoquímico para tireoglobulina e calcitonina no material
citológico pode ser utilizado no diagnóstico diferencial do carcinoma medular da
tireoide.
A punção aspirativa por agulha fina da tireoide pode ser dirigida pela palpação
ou pela ultrassonografia. Prefere-se o uso do método de imagem em caso de nódulo
não-palpável, predominantemente cístico ou localizado posteriormente à glândula. O
resultado do exame citológico é classificado em benigno, indeterminado, suspeito e
maligno. Nódulos com citologia benigna podem ser observados clinicamente, enquanto
que nódulos com citologia suspeita ou maligna devem ser encaminhados à cirurgia pelo
alto risco de malignidade. A conduta nos nódulos com citologia indeterminada depende
das características ultrassonográficas do nódulo e dos fatores de risco do paciente,
podendo-se optar por observação clínica se tamanho inferior a 3cm e características
ultrassonográficas benignas, mas com recomendação de cirurgia se crescimento durante
o seguimento, diâmetro superior a 3cm ou características ultrassonográficas duvidosas
ou suspeitas.
É recomendável que todos os nódulos com citologia benigna sejam observados
com ultrassonografia seriada seis a dezoito meses após a punção inicial. Se o tamanho
do nódulo se mantiver estável, ou seja, com alteração de volume de até 50% ou
alteração de diâmetro em pelo menos duas dimensões inferior a 20%, o intervalo antes
da próxima avaliação clínica pode ser prolongado, de três a cinco anos. Se houver
evidência de crescimento do nódulo através da palpação ou da ultrassonografia, com
alteração de volume superior a 50% ou alteração de diâmetro em pelo menos duas
dimensões superior ou igual a 20% com aumento mínimo de 2mm em nódulos sólidos
ou na porção sólida de nódulos mistos, a punção deverá ser repetida, preferencialmente
guiada por ultrassonografia.

Outros exames

Pedro Kallas Curiati 559


Ultrassonografia pré-operatória do lobo tireoidiano contralateral e dos
compartimentos cervicais central e laterais é recomendada para todos os pacientes que
serão submetidos a tireoidectomia em função de achados citológicos sugestivos de
malignidade. Linfonodos cervicais suspeitos são arredondados, com ecogenicidade
aumentada e podendo apresentar microcalcificações e conteúdo líquido, enquanto que
linfonodos cervicais reacionais geralmente são hipoecóicos, alongados, finos e com área
ecogênica central que caracteriza o hilo vascular. A punção aspirativa por agulha fina
guiada por ultrassonografia é um método sensível para avaliação de gânglio cervical
suspeito. A dosagem de tireoglobulina no lavado da agulha da punção de linfonodo
cervical tem se mostrado mais sensível que a citologia no diagnóstico de metástase,
principalmente quando existe conteúdo líquido.
Outros métodos de diagnóstico por imagem, como tomografia computadorizada,
ressonância nuclear magnética e tomografia computadorizada por emissão de pósitrons
com fluorodesoxiglicose, não são indicados como exames rotineiros. O seu uso é
limitado aos pacientes com suspeita clínica de metástases a distância. O uso de
contrastes iodados deve ser evitado, pois pode impossibilitar a realização de
procedimentos diagnósticos e terapêuticos com radioiodo por dois a três meses.

Tratamento

Cirurgia
Todo paciente que apresentar alteração da voz ou rouquidão deve ser submetido
a laringoscopia indireta, que também está indicada para pacientes com suspeita de
extensão extra-tireoidiana do tumor.
A cirurgia é o tratamento indicado para todos os carcinomas da tireoide. Para
pacientes com diagnóstico pré-operatório de carcinoma bem diferenciado da tireoide,
recomenda-se a tireoidectomia total ou quase total. A dissecção da cadeia ganglionar
lateral é recomendável sempre que houver linfonodos metastáticos diagnosticados no
pré-operatório. A dissecção do compartimento central também pode ser considerada em
pacientes com carcinoma papilífero ou carcinoma folicular variante de células de
Hürtle, não sendo obrigatória para pacientes com carcinoma folicular.

Para os pacientes com diagnóstico citológico indeterminado para neoplasia


folicular, sem qualquer outro fator de risco de malignidade, a lobectomia com exame de
congelação intraoperatório pode ser a opção inicial. Caso contrário, a tireoidectomia
total deve ser considerada. Em pacientes submetidos à lobectomia, a totalização da
tireoidectomia deve ser realizada naqueles que tiverem diagnóstico anatomopatológico

Pedro Kallas Curiati 560


de carcinoma. Pacientes com carcinomas menores que 1cm, intra-tireoidianos, sem
metástases ganglionares ou a distância não necessitam obrigatoriamente da
complementação cirúrgica.
Cistos tireoidianos recorrentes com citologia benigna devem ser considerados
para injeção percutânea de etanol em caso de sintomas compressivos e
comprometimento estético.
A taxa de complicações cirúrgicas é menor quanto maior a experiência do
cirurgião. A paralisia permanente do nervo laríngeo recorrente é rara, mas a paralisia
temporária é mais frequente, com melhora espontânea em um a seis meses. A
hipocalcemia decorrente do comprometimento das paratireoides ocorre em um terço dos
casos e a persistência após três meses ocorre em uma minoria dos casos. O
hipoparatireoidismo transitório devido a hipomagnesemia pode ocorrer em pacientes
com história de alcoolismo, uso de diurético, perda de peso ou diarreia.

Estadiamento pós-cirúrgico
Três grupos de pacientes com diferentes probabilidades de recorrência e
mortalidade podem ser identificados de acordo com os achados cirúrgicos e
anatomopatológicos. O estadiamento é importante para avaliar a necessidade de
tratamento com radioiodo.
Pacientes de muito baixo risco são aqueles com carcinomas de até 1cm,
unifocais, N0, M0, sem extensão extra-tireoidiana. A ablação com radioiodo não está
indicada, pois acredita-se que esses pacientes foram curados pela cirurgia. Pelo mesmo
motivo, a reposição com Levotiroxina deve manter TSH mensurável dentro da faixa
normal, sem necessidade de terapia supressiva.
Pacientes de baixo risco são aqueles com carcinomas T1bN0M0, T2N0M0 ou
T1 multicêntrico. Existem controvérsias a respeito da indicação de terapia ablativa com
radioiodo.
Pacientes de alto risco são aqueles com carcinomas T3, T4 ou qualquer T com
N1 e/ou M1. Quando o paciente é portador de câncer residual no pescoço, a distância ou
ambos, ou quando a doença persistente é altamente provável, o tratamento com
radioiodo é obrigatório, com aumento do tempo livre de doença e redução da
mortalidade.

Radioiodo
A administração de radioiodo após a cirurgia visa destruir qualquer resíduo de
tecido tumoral ou não-tumoral no leito tireoidiano. O tratamento com radioiodo permite
o acompanhamento do paciente com dosagem de tireoglobulina ou, eventualmente,
pesquisa de corpo inteiro, que deve ser realizada cinco a sete dias após a terapia com
radioiodo, permitindo a detecção de metástases.
O tratamento com radioiodo não está indicado em pacientes de risco muito baixo
e está indicado em caso de presença de metástases ganglionares, extensão extra-
tireoidiana, invasão vascular, tipos histológicos mais agressivos, tumores maiores que
4cm de diâmetro, metástases à distância ou ressecção incompleta do tumor.
É recomendável um preparo adequado com dieta pobre em iodo, com menos de
50mcg/dia, por três semanas antes do procedimento. Os pacientes devem permanecer
sem o hormônio tireoidiano por quatro a cinco semanas para alcançarem níveis de TSH
acima de 30mU/L. O uso de TSH recombinante pode ser usado no preparo do paciente.
A pesquisa de corpo inteiro antes da administração da dose de radioiodo não é
obrigatória, pois apresenta sensibilidade muito baixa e pode diminuir a eficácia da
terapêutica. Pode ser indicada quando não se conhece a extensão da tireoidectomia ou

Pedro Kallas Curiati 561


quando se suspeita de metástases à distância, para planejamento da dose ablativa, sendo
programada a dose terapêutica dentro das primeiras 72 horas após a pesquisa de corpo
inteiro.
A administração de Levotiroxina deve ser retomada no segundo ou terceiro dia
após a administração do radioiodo.

Radioterapia externa
A radioterapia externa é utilizada como tratamento inicial ou de recorrência de
tumores irressecáveis que não captam iodo. Alguns pacientes com doença residual
macroscópica podem se beneficiar da realização de radioterapia externa associada ou
não a terapia com radioiodo.
O tratamento com radioterapia externa também pode ser indicado nos pacientes
com metástases nos ossos e/ou no cérebro.

Quimioterapia
A quimioterapia pode ser uma opção para os pacientes com carcinomas pouco
diferenciados e anaplásicos, porém o seu efeito é limitado e de curta duração.

Rediferenciação
O Ácido Retinóico é um metabólito da vitamina A capaz de induzir a
rediferenciação das células tumorais e o aumento da captação de iodo. Pode ser
administrado na dose de 1.5mg/kg/dia por cinco semanas. O tratamento geralmente é
bem tolerado, com poucos efeitos colaterais.

Terapia supressiva com Levotiroxina


Após o tratamento com radioiodo, a terapia supressiva com Levotiroxina deve
ser iniciada com doses suficientes para manter o TSH inferior ou igual a 0.01mU/L. A
primeira dosagem do TSH deve ser realizada três meses após o início da terapia. Após a
obtenção da dose correta, nova dosagem de tireoglobulina, TSH estimulado e T4 livre
deve ser realizada. Ultrassonografia cervical deve ser repetida a cada seis a doze meses.
Em pacientes de muito baixo risco, considerados curados, a dose de Levotiroxina pode
ser diminuída para manter o TSH entre 0.5mU/L e 1.0mU/L. Em pacientes de baixo a
alto risco que aparentemente se encontram em remissão, a terapia supressiva deve ser
mantida por um período de três anos, com diminuição a partir de então na ausência de
recorrência. A terapia supressiva deve ser mantida em pacientes com doença persistente
desde que não haja contraindicações.
A Levotiroxina deve ser ingerida trinta minutos antes do café-da-manhã com
água em separado dos outros medicamentos para obter ótima absorção.
A tireotoxicose subclínica pode ocasionar complicações cardíacas e perda óssea,
de modo que pacientes idosos e cardiopatas devem ser rigorosamente monitorados.
Na gravidez, a dose de Levotiroxina deve ser ajustada de acordo com a dosagem
do TSH, devendo ser aumentada em 25-50% no primeiro trimestre.

Seguimento
O seguimento a longo prazo dos pacientes com carcinoma bem diferenciado da
tireoide submetidos a tireoidectomia total e a tratamento com radioiodo deve ser
realizado com ultrassonografia cervical e dosagem de tireoglobulina sérica, TSH e T4
livre três meses após a radioiodoterapia. De seis a doze meses depois, deve ser realizada
dosagem de tireoglobulina, anti-tireoglobulina, TSH e T4 livre, além de ultrassonografia
cervical, devendo-se retirar a Levotiroxina quatro semanas antes ou utilizar estímulo

Pedro Kallas Curiati 562


com TSH recombinante. Os pacientes operados que não foram submetidos a
tireoidectomia total e a radioiodoterapia também devem fazer o seguimento com
ultrassonografia cervical e dosagem de tireoglobulina a cada seis a doze meses, porém o
valor de corte da tireoglobulina não é conhecido. O aumento gradativo dos níveis da
tireoglobulina deve ser considerado como indicativo de recorrência da doença.
Os pacientes de baixo a alto risco com pesquisa de corpo inteira negativa após o
tratamento ablativo, tireoglobulina indetectável após o estímulo do TSH e
ultrassonografia cervical negativa para adenomegalia cervical devem fazer seguimento
com os mesmos exames a cada seis meses pelo período de três anos. Se após este
período não apresentarem evidências de recorrência, devem ser considerados de muito
baixo risco, com baixa probabilidade de recorrência.
Os pacientes que apresentarem tireoglobulina detectável e em elevação devem
ser investigados por exames de imagem, como pesquisa de corpo inteiro, tomografia
computadorizada de pescoço e pulmões e ressonância nuclear magnética de ossos e
cérebro. Tomografia por emissão de pósitrons com fluorodesoxiglicose deve ser
realizada nos pacientes com pesquisa de corpo inteira negativa e suspeita de metástase
para o mediastino. Os melhores resultados da tomografia por emissão de pósitrons
também são obtidos com o TSH estimulado. Se não houver evidência de doença, os
pacientes podem ser acompanhados a cada seis a doze meses. Se houver aumento dos
níveis da tireoglobulina, cirurgia deve ser considerada para metástases ressecáveis,
seguida de nova dose de radioiodo.
É importante ressaltar que a tireoglobulina sérica pode permanecer detectável
durante meses após a cirurgia ou o tratamento com radioiodo. É necessária mais de uma
dosagem para confirmar a tendência de aumento ou de queda. Pacientes com níveis de
tireoglobulina de 1-10ng/mL após estímulo com TSH não devem ser considerados
portadores de persistência ou recorrência da doença. Nesses casos, somente o aumento
dos níveis séricos deve ser considerado indicativo de recorrência da doença.
Os gânglios suspeitos devem ser biopsiados para análise citológica e dosagem de
tireoglobulina do material aspirado.

Bibliografia
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Revised American Thyroid Association Management Guidelines for Patients with Thyroid Nodules and Differentiated Thyroid
Cancer. The American Thyroid Association (ATA) Guidelines Taskforce on Thyroid Nodules and Differentiated Thyroid Cancer.
THYROID. Volume 19, Number 11, 2009.

Pedro Kallas Curiati 563


ERROS SISTEMÁTICOS
Desfechos de saúde
Os eventos clínicos de interesse primário na epidemiologia clínica são os
desfechos de saúde de particular interesse para os pacientes e para os que se preocupam
com eles:
- Desenlace ou morte;
- Doença;
- Desconforto;
- Deficiência funcional;
- Descontentamento;

Viés (erro sistemático)


Viés é um processo em qualquer estágio de inferência com tendência a produzir
resultados que se afastem sistematicamente dos valores verdadeiros. É qualquer
tendência na coleta, análise, interpretação, publicação ou revisão dos dados que possa
levar a conclusões que sejam sistematicamente diferentes da verdade.
Erros sistemáticos podem estar presentes em qualquer tipo de investigação, mas
são mais freqüentes nos estudos observacionais, em que há ausência de aleatorização.
Embora dezenas de vieses tenham sido descritos, a maior parte se enquadra em
uma de três categorias:
- Viés de seleção;
- Viés de aferição;
- Viés de confusão;
Comumente não é possível quantificar o viés.

Viés de seleção
O viés de seleção ocorre quando são feitas comparações entre grupos de
pacientes que diferem de outras maneiras que não os principais fatores sob estudo,
maneiras essas que afetam o desfecho.
Os procedimentos utilizados para a seleção de indivíduos a serem investigados
geram estimativas de efeito diferentes das que seriam obtidas na população-alvo. Dessa
forma, a relação entre a exposição e a doença é diferente entre os indivíduos incluídos
no estudo e aqueles elegíveis não incluídos.
Exemplos incluem a avaliação de voluntários e de pacientes referidos para
serviços médicos.
O viés de seleção é debatido principalmente quando os pacientes são escolhidos
para a investigação e é importante no planejamento do estudo.

Viés de aferição
O viés de aferição ocorre quando os métodos de aferição são diferentes entre os
grupos estudados, com erro de classificação dos indivíduos quanto à exposição e/ou à
doença.
Conseqüências diferentes se erro na classificação de um dos eixos (exposição ou
doença) é independente, ou não, da classificação do outro eixo.
Classificação incorreta diferencial ocorre quando a classificação incorreta
depende da classificação do outro eixo. Classificação incorreta não-diferencial ocorre
quando a classificação incorreta independe da classificação do outro eixo.

Pedro Kallas Curiati 564


Classificação incorreta diferencial subestima ou superestima a associação:
- Em estudos caso-controle, em que a informação sobre a exposição é
obtida através de entrevista, os casos podem ter maior lembrança do que
os controles;
- Entrevistador não-cego, também em estudos caso-controle, pode
inquirir casos e controles de maneira diferente;
- Em estudos de coorte, a classificação incorreta diferencial pode ocorrer
na definição do desenvolvimento de doença;
Classificação incorreta não-diferencial tende quase sempre a favor da hipótese
nula:
- Algum grau de classificação incorreta da exposição é praticamente
inevitável em estudos epidemiológicos;
- Respostas socialmente aceitáveis;
- União de categorias diagnósticas;

Viés de confusão
Ocorre quando dois fatores estão associados e o efeito de um se confunde com
ou é distorcido pelo efeito do outro. Mistura de efeitos, com estimativa do efeito do
valor estudado misturado com o efeito de outro fator.
Mais importante em estudos observacionais.
Características de um fator de confusão:
- Associação com a doença e com a exposição em estudo;
- Distorção, com superestimação ou subestimação de um efeito, que
depende da direção das associações da variável de confusão com a
exposição e a doença;
- Fator de risco para a doença, que pode ser apenas um marcador;
- Associado com a exposição em estudo na população-alvo;
- Não ser passo intermediário na cadeia causal entre fator de exposição e
doença;
É necessário tratar do viés de confusão durante a análise dos dados, após as
observações já terem sido feitas.

Acaso
A divergência entre a observação em uma amostra e o valor verdadeiro na
população, devida exclusivamente ao acaso, chama-se variação aleatória.
O acaso pode afetar todos os estágios envolvidos nas observações clínicas.
Ao contrário do viés, que tende a distorcer a situação para uma direção ou outra,
a variação aleatória tem tanta probabilidade de resultar em observações acima do valor
verdadeiro como abaixo. Conseqüentemente, a média de muitas observações não-
enviesadas em amostras tende a se aproximar do valor verdadeiro na população, embora
isso possa não ocorrer com os resultados de amostras pequenas.
O acaso não pode ser eliminado, mas sua influência pode ser reduzida por meio
de um delineamento de pesquisa apropriado, e o efeito remanescente pode ser estimado
pela estatística.

Validade
Redução ou ausência de erro sistemático. Representa o grau de confiança na
conclusão do estudo. Vieses geram a possibilidade de conclusão incorreta ou inválida.
A interpretação de qualquer estudo prevê a avaliação dos vieses que poderiam explicar
os resultados.

Pedro Kallas Curiati 565


A validade interna é o grau em que os resultados de um estudo estão corretos
para a amostra de pacientes sob análise. A validade externa é o grau de veracidade dos
resultados de uma observação em outros cenários, ou seja, a capacidade de
generalização. A validade interna é pré-requisito para a existência de validade externa.

Bibliografia
Fletcher, Robert H. Epidemiologia clínica : elementos essenciais / Robert H. Fletcher, Suzanne W. Fletcher ; tradução Roberta
Marchiori Martins. – 4. Ed. – Porto Alegre : Artmed, 2006.

Pedro Kallas Curiati 566


ANORMALIDADE
Tipos de dados
Os dados nominais ocorrem em categorias sem qualquer ordem inerente.
Quando divididos em duas categorias, são chamados dicotômicos.
Os dados ordinais possuem uma certa ordem inerente, ou hierarquia, mas o
tamanho dos intervalos entre as categorias não é especificado.
Para os dados intervalares, há uma ordem inerente e o intervalo entre os valores
é igual, independentemente de onde estejam na escala. Os dados contínuos podem
assumir qualquer valor em um continuum. Os dados discretos podem assumir somente
valores específicos e são expressos como contagens.

Desempenho das aferições


A validade é o grau em que os dados medem o que eles deveriam medir, ou seja,
a sua acurácia. Viés consiste em falta de validade.
Confiabilidade é o quanto repetidas aferições de um fenômeno estável, por
pessoas e instrumentos diferentes, em diferentes momentos e lugares, têm resultados
semelhantes, ou seja, é a sua reprodutibilidade e precisão. Erro aleatório consiste em
falta de confiabilidade.
Um instrumento demonstra responsividade na medida em que seus resultados se
alteram junto com as condições clínicas que está medindo.

Variação
As aferições clínicas de um mesmo fenômeno podem assumir uma gama de
valores, dependendo das circunstâncias em que ocorrem. A variação global é a soma das
variações relacionadas ao ato de medir, às diferenças biológicas intra-indivíduos de
tempos em tempos e às diferenças biológicas inter-indivíduos.
As diversas fontes de variação são cumulativas.

Distribuições
Os dados medidos em escalas intervalares são freqüentemente apresentados
como uma figura, denominada distribuição de freqüências, que mostra o número ou
proporção de um grupo definido de pessoas que possui os diversos valores da aferição.
Duas propriedades das distribuições são utilizadas para resumi-las:
- Tendência central, que é o centro da distribuição;
- Dispersão, que é o quanto os valores estão afastados do centro;
Distribuições reais são unimodais e grosseiramente em formato de sino.
A distribuição normal, baseada na teoria estatística, descreve a distribuição de
freqüência de aferições repetidas do mesmo objeto físico pelo mesmo instrumento, com
dispersão dos valores secundária apenas à variação aleatória. A curva é simétrica e em
forma de sino.

Pedro Kallas Curiati 567


Expressões de tendência central e dispersão
Expressão Definição Vantagens Desvantagens
Tendência central
Média Soma dos valores para as Adequada para Afetada por valores extremos
observações dividida pelo manipulações matemáticas
número de observações
Mediana Ponto em que o número Não é facilmente Pouco adequada para
de observações acima se influenciada por valores manipulações matemáticas
iguala ao número abaixo extremos
Moda O valor que ocorre com Simplicidade de Algumas vezes não há ou há
maior freqüência significado muitos valores mais
freqüentes
Dispersão
Intervalo de Do valor mais baixo ao Inclui todos os valores Altamente afetado por
variação mais alto em uma valores extremos
distribuição
Desvio- O valor absoluto da Adequado para Para distribuições não-
padrão média das diferenças manipulações matemáticas Gaussianas, não descreve
entre os valores uma proporção conhecida das
individuais e o valor observações
médio
Percentil, A proporção de todas as Descreve a “raridade” de Inadequado para
decil, observações que ficam um valor e não faz manipulações estatísticas
entre valores suposições sobre a forma
quartil especificados de uma distribuição

Critérios para anormalidade


Se não há uma linha divisória nítida entre o normal e o anormal, e os clínicos
podem escolher onde a linha será colocada, três critérios se provaram úteis:
- Ser incomum;

Pedro Kallas Curiati 568


- Estar associado a doenças;
- Ser tratável;

Regressão à média
Pode se esperar que os pacientes que são selecionados porque apresentam um
valor extremo em uma distribuição apresentem valores menos extremos em aferições
subseqüentes.
A prática consagrada de repetir os testes laboratoriais avaliados como anormais e
considerar o segundo resultado como o correto não é apenas pensamento positivo.

Bibliografia
Fletcher, Robert H. Epidemiologia clínica : elementos essenciais / Robert H. Fletcher, Suzanne W. Fletcher ; tradução Roberta
Marchiori Martins. – 4. Ed. – Porto Alegre : Artmed, 2006.

Pedro Kallas Curiati 569


DIAGNÓSTICO
Acurácia do resultado de um teste
A acurácia de um teste é considerada com relação a alguma forma de saber se a
doença está realmente presente ou não, uma indicação mais sólida da verdade
freqüentemente referida como padrão-ouro. Para as doenças que não são auto-limitadas
e que geralmente se tornam evidentes poucos anos após sua descoberta inicial, os
resultados do seguimento podem servir como padrão-ouro.
Os dados sobre os números de verdadeiro-negativos e de falso-negativos gerados
por um teste tendem a ser muito menos completos na literatura médica do que os dados
coletados sobre resultados positivos.
Um problema relacionado é que a avaliação do desempenho de um teste pode
induzir a erros grosseiros se o teste for aplicado apenas a pacientes com a doença ou
queixa, pois os resultados dos testes também são necessários para pacientes que se
acredita não ter a doença.

Sensibilidade e especificidade
Sensibilidade é a proporção de pessoas com a doença que têm um teste positivo.
Um teste sensível raramente deixará passar pessoas que tenham a doença e é muito útil
para o clínico quando o resultado for negativo.
Especificidade é a proporção de indivíduos sem a doença que têm um teste
negativo. Um teste específico raramente classificará de forma errônea as pessoas como
sendo portadoras da doença quando elas não são e é muito útil quando o resultado for
positivo.
Há um balanço entre sensibilidade e especificidade de um teste diagnóstico. Nas
situações em que os dados clínicos assumem uma gama de valores, a localização de um
ponto de corte é uma decisão arbitrária. Como conseqüência, para qualquer resultado do
teste expresso em uma escala contínua, uma característica, como a sensibilidade, pode
ser aumentada somente às custas da outra, a especificidade.
Uma forma de expressar a relação
entre a sensibilidade e a especificidade de
um determinado teste é construir uma
curva ROC (receiver operator
characteristic). Ela é construída por meio
da representação gráfica da taxa de
verdadeiro-positivos (sensibilidade) contra
a taxa de falso-positivos (1 –
especificidade) ao longo de uma faixa de
valores de possíveis pontos de corte. Os
testes com bom poder discriminatório
concentram-se no canto esquerdo superior
da curva ROC. Para eles, à medida que a
sensibilidade vai aumentando
progressivamente, há pouca ou nenhuma
perda na especificidade até que altos níveis de sensibilidade sejam atingidos.
As curvas ROC são especialmente valiosas para comparar testes alternativos
para um mesmo diagnóstico. A acurácia geral de um teste pode ser descrita como a área
sob a curva ROC. Quanto maior for a área, melhor será o teste.

Pedro Kallas Curiati 570


A sensibilidade e a especificidade podem ser descritas de forma inacurada
devido à escolha inadequada do padrão-ouro. Duas outras questões relacionadas à
seleção de doentes e não-doentes também podem afetar profundamente a determinação
da sensibilidade e da especificidade. São elas o espectro dos pacientes em quem o teste
é aplicado e o viés no julgamento do desempenho no teste. A incerteza estatística
também pode levar a estimativas incorretas.
Teoricamente, a sensibilidade e a especificidade de um teste são independentes
da prevalência de indivíduos doentes na amostra em que o teste está sendo avaliado. Na
prática, porém, diversas características dos pacientes, como o estágio e a gravidade da
doença, podem estar relacionadas tanto à sensibilidade e à especificidade de um teste
quanto à prevalência, uma vez que diferentes tipos de pacientes são encontrados em
situações de alta e de baixa prevalência.
Quando a sensibilidade e a especificidade de um teste estão sendo avaliadas, o
resultado do teste não deve fazer parte da informação utilizada para estabelecer o
diagnóstico.

Valor preditivo
A probabilidade da doença, dado o resultado de um teste, é chamada de valor
preditivo do teste. O valor preditivo positivo é a probabilidade de doença em um
paciente com um resultado positivo do teste. O valor preditivo negativo é a
probabilidade de não ter a doença quando o resultado do teste for negativo. A acurácia
é a proporção de todos os resultados do teste, tanto positivos como negativos, que
estejam corretos.
O valor preditivo de um teste não é uma propriedade do teste por si só. Ele é
determinado por sensibilidade e especificidade do teste e pela prevalência na população
sendo testada. A prevalência também é chamada de probabilidade anterior ou pré-teste.
Quanto mais sensível for um teste, maior será seu valor preditivo negativo. Por
outro lado, quanto mais específico for o teste, maior será o valor preditivo positivo.
Os resultados positivos, mesmo para um teste muito específico, quando
aplicados a pacientes com uma baixa probabilidade de ter a doença, serão, em grande
parte, falso-positivos. Por outro lado, os resultados negativos, mesmo para um teste
muito sensível, quando aplicados a pacientes com uma alta probabilidade de ter a
doença, serão, em grande parte, falso-negativos.
Em geral, a prevalência é mais importante do que a sensibilidade e a
especificidade na determinação do valor preditivo.
Os testes diagnósticos têm sua maior utilidade quando a presença da doença não
é muito provável nem muito improvável.

Razões de verossimilhança
As razões de verossimilhança são uma forma alternativa de descrever o
desempenho de um teste diagnóstico.
Uma vez que o uso das razões de verossimilhança depende das chances, para
entendê-las é necessário primeiro distinguir chances de probabilidade. Probabilidade é
utilizada para expressar sensibilidade, especificidade e valor preditivo. As chances, por
outro lado, são a razão de duas probabilidades complementares, a probabilidade de um
evento dividida por 1 menos a probabilidade do evento. As chances e a probabilidade
têm a mesma informação, mas a expressam de forma diferente.
A razão de verossimilhança para um determinado resultado de um teste
diagnóstico é definida como a probabilidade de tal resultado em pessoas com a doença
dividido pela probabilidade do resultado em pessoas sem a doença. Expressa quantas

Pedro Kallas Curiati 571


vezes mais ou menos provável é encontrar um resultado em pessoas doentes, em
comparação com as não-doentes.
Chances = probabilidade do evento / (1 – probabilidade do evento)
Chances pré-teste x razão de verossimilhança = chances pós-teste
A principal vantagem das razões de verossimilhança é que elas possibilitam ir
além da classificação simplória e rudimentar de um resultado de teste como normal ou
anormal, como geralmente é feito quando se descreve a acurácia de um teste diagnóstico
somente em termos de sensibilidade e especificidade.
Uma desvantagem da razão de verossimilhança é o uso de chances e não de
probabilidades.

Bibliografia
Fletcher, Robert H. Epidemiologia clínica : elementos essenciais / Robert H. Fletcher, Suzanne W. Fletcher ; tradução Roberta
Marchiori Martins. – 4. Ed. – Porto Alegre : Artmed, 2006.

Pedro Kallas Curiati 572


FREQUÊNCIA
Prevalência e incidência
As duas medidas básicas de freqüência são a prevalência e a incidência.
Característica Incidência Prevalência
Numerador Novos casos que ocorrem durante um Todos os casos contados em
período de tempo em um grupo um único inquérito ou exame
inicialmente livre da doença de um grupo
Denominador Todas as pessoas suscetíveis sem a Todas as pessoas examinadas,
doença no começo de cada período incluindo casos e não-casos
Tempo Duração do período Um único ponto ou um
período
Como medir Estudo de coorte Estudo de prevalência ou
transversal
Qualquer fator que aumente a duração da doença ou do achado clínico em um
paciente irá aumentar a probabilidade de aquele paciente ser identificado em um estudo
de prevalência.
A relação entre incidência, prevalência e duração da doença em uma situação
estável, em que nenhuma das variáveis se altera muito com o tempo, pode ser estimada
através da fórmula prevalência = incidência X duração média da doença.

Algumas outras taxas


Algumas taxas, como a taxa de fatalidade e a taxa de complicações, são
expressões de eventos ao longo do tempo, mas o período de seguimento fica implícito.
Outras taxas, como a taxa de mortalidade infantil e a taxa de mortalidade
perinatal, são aproximações da incidência, uma vez que as crianças no numerador não
são necessariamente aquelas no denominador.
Taxa de fatalidade Proporção de pacientes que morrem de uma doença
Taxa de complicações Proporção de pacientes que têm uma complicação de uma
doença ou de seu tratamento
Taxa de mortalidade Mortes em um ano de crianças com idade inferior a 1 ano
infantil Nascidos vivos no mesmo ano
Taxa de mortalidade Mortes fetais + mortes neonatais precoces
perinatal (por mil) Mortes fetais + nascidos vivos
* Mortes fetais são consideradas a partir da 28ª semana de gestação e mortes neonatais
precoces são consideradas na primeira semana de vida.

Estudos de prevalência
Nos estudos de prevalência, as
pessoas de uma população são examinadas
para que se verifique a presença da condição
de interesse. Um outro termo empregado é
estudo transversal, porque as pessoas são
estudadas em um corte transversal no tempo.
Vantagens:
- Fornecem informações sobre a distribuição a as características do
evento investigado na população e orienta o médico quanto ao que
esperar em diferentes situações clínicas;

Pedro Kallas Curiati 573


- Contribuem para o estudo da etiologia das doenças;
- As propriedades de um teste diagnóstico, como sensibilidade,
especificidade e razão de verossimilhança, são obtidas através desse tipo
de estudo, assim como as probabilidades pré-teste usadas para escolher e
interpretar os resultados;
- Avaliam as necessidades dos serviços de saúde e guiam o planejamento
em saúde pública;
- Comumente simples, rápidos e de baixo custo, sem seguimento e com
pouca dependência da memória do entrevistado;
Desvantagens:
- Não permitem estabelecer relação temporal entre causa e efeito;
- Pouco úteis se o evento é raro;
- Viés de seleção quando baixa participação;
- Doentes com evolução rápida para cura ou morte podem não ser
identificados;

Estudos de incidência
A população sob investigação em um estudo de incidência é uma coorte,
definida como um grupo de pessoas que têm algo em comum quando são reunidas pela
primeira vez e que são, então, acompanhadas por um período de tempo para que se
verifique o desenvolvimento do desfecho. Por essa razão, os estudos de incidência
também são chamados de estudos de coorte.
Incidência cumulativa é o termo utilizado para descrever a taxa de novos eventos
em um grupo de pessoas de tamanho fixo, com todos os membros sendo observados
durante um período de tempo.
Uma outra abordagem para o estudo da incidência é medir o número de casos
que surgem em uma população em constante mudança, em que as pessoas estão sendo
estudadas e suscetíveis por períodos de tempo variados. A incidência derivada desse
tipo de estudo é chamada de densidade de incidência. Para garantir que a contribuição
dos pacientes individuais seja proporcional ao seu intervalo de seguimento, o
denominador da medida de uma densidade de incidência não é o número de pessoas em
risco por um determinado período de tempo, mas as pessoas-tempo em risco para o
desfecho. A densidade de incidência é expressa como o número de novos casos pelo
total de pessoas-ano em risco.
Uma desvantagem da abordagem que usa pessoas-ano é que ela engloba
diferentes durações de seguimento. Um pequeno número de pacientes acompanhados
por um longo período pode contribuir com a mesma quantidade de pessoas-ano que um
grande número de pacientes acompanhados por período curto.

Interpretação das medidas de freqüência


Definição do numerador:
- Os casos podem ser pessoas na população geral que desenvolvem uma
doença ou pacientes em ambientes clínicos com doença que
desenvolvem um desfecho;
- As taxas podem ser afetadas pela mudança na definição de um caso
com o tempo, pela intensidade dos esforços despendidos para identificar
novos casos e em função de formas melhores de se detectar doença;
Definição do denominador:
- Todos os membros da população devem ser suscetíveis ao desfecho de
interesse;

Pedro Kallas Curiati 574


- A população precisa ser relevante à pergunta que o estudo visa
responder;
- A população precisa ser descrita com um detalhamento suficiente para
permitir o julgamento sobre a quem a taxa se aplica;
- As amostras precisam ser representativas da população de onde foram
originadas;
Amostragem:
- Em uma amostra aleatória simples, cada indivíduo na população tem
uma probabilidade igual de ser selecionado;
- Um termo mais geral, amostra probabilística, é utilizado quando cada
pessoa tem uma probabilidade conhecida, não necessariamente igual, de
ser escolhida;
- Fração amostral é a fração de todos os membros de cada subgrupo
incluído nas amostras e pode variar conforme as escolhas dos
pesquisadores;
As amostras não-aleatórias são comuns nas pesquisas clínicas, embora não
necessariamente representem a população de origem. Elas são as amostras de
conveniência ou disponibilidade.

Distribuição da doença
Uma epidemia é uma concentração de novos casos no tempo. O termo pandemia
é utilizado quando uma doença está especialmente disseminada. A existência de uma
epidemia é reconhecida por uma curva epidêmica, que monitora o crescimento e,
algumas vezes, a queda de casos de uma doença com o passar do tempo em uma
população.
A distribuição geográfica dos casos indica onde uma doença é mais ou menos
importante e fornece indícios para sua causa.
Quando a doença afeta certos tipos de pessoas no mesmo plano temporal e no
mesmo lugar que outras que não são afetadas, isso fornece indícios das causas e orienta
como devem ser direcionadas as estratégias de controle.

Bibliografia
Fletcher, Robert H. Epidemiologia clínica : elementos essenciais / Robert H. Fletcher, Suzanne W. Fletcher ; tradução Roberta
Marchiori Martins. – 4. Ed. – Porto Alegre : Artmed, 2006.

Pedro Kallas Curiati 575


RISCO
Definição
Risco é a probabilidade de que pessoas expostas a certos fatores desenvolvam
uma determinada doença com maior freqüência do que pessoas que não foram expostas.

Fatores de risco
As características associadas com maior risco de ficar doente são chamadas de
fatores de risco. A exposição a um fator de risco significa que uma pessoa, antes de ficar
enferma, entrou em contato com ou manifestou o fator em questão.

Reconhecimento do risco
A dificuldade no reconhecimento do risco pode ser devida a:
- Latência longa de muitas doenças crônicas;
- Exposição freqüente a fatores de risco;
- Baixa incidência de doenças;
- Risco pequeno;
- Risco comum;
- Causas e efeitos múltiplos;

Uso do risco
Na medicina clínica, o conhecimento dos fatores de risco pode ser usado de
diversas formas:
- Os fatores de risco predizem o desenvolvimento futuro de doenças;
- Os fatores de risco podem ou não ser causais;
- Os fatores de risco ajudam a estabelecer a probabilidade pré-teste da
doença para testes diagnósticos;
- Os fatores de risco permitem estratificação da população em programas
de rastreamento;
- A remoção de fatores de risco pode prevenir doenças;

Estudos sobre risco


A forma mais eficaz de determinar se a exposição a um fator de risco potencial
resulta em aumento no risco da doença é conduzir um experimento em que o
pesquisador determina quem será exposto. No entanto, os efeitos da maioria dos fatores
de risco em seres humanos não podem ser analisados com estudos experimentais porque
não seria ético impor possíveis fatores de risco em um grupo de pessoas saudáveis,
porque a maioria das pessoas iria se recusar a ter seu comportamento determinado
durante longos períodos de tempo e porque o experimento teria que continuar por anos.
Os estudos clínicos em que o pesquisador coleta dados simplesmente
observando os eventos à medida que eles ocorrem, sem desempenhar um papel ativo no
que acontece, são chamados estudos observacionais e incluem os estudos de coorte e os
estudos de caso-controle.

Estudos de coorte

Conceito
O termo coorte é utilizado para descrever um grupo de pessoas que têm algo em

Pedro Kallas Curiati 576


comum quando são reunidas e que são observadas por um período de tempo para ver o
que acontece com elas.
Em um estudo de coorte, uma coorte é reunida, sem que nenhuma das pessoas
tenha sofrido o desfecho de interesse, mas podendo vir a sofrer. No momento do
ingresso no estudo, os indivíduos na coorte são classificados de acordo com as
características que podem estar relacionadas ao desfecho. Para cada fator de risco, os
membros da coorte são classificados como expostos ou não-expostos. Todos os
membros da coorte são, então, observados durante algum tempo para verificar quais
deles experimentam o desfecho e as taxas dos desfechos são comparadas entre o grupo
exposto e o não-exposto. Outros nomes para estudos de coorte são estudos longitudinais
e estudos de incidência.

Característica dos estudos de coorte


Independentemente daquilo que os membros de uma coorte têm em comum, as
observações devem satisfazer a três critérios para fornecer informações sólidas sobre o
risco da doença:
- Os indivíduos não podem ter a doença em questão no momento em que
são reunidos;
- Eles devem ser observados durante um período significativo de tempo
na história natural da doença em questão;
- Os membros da coorte precisam ser observados durante todo o tempo
de seguimento;

Tipos de estudo de coorte


Os estudos de coorte podem ser conduzidos de duas formas. A coorte pode ser
reunida no presente e acompanhada em direção ao futuro, com a denominação de estudo
de coorte prospectivo, ou pode ser identificada a partir de registros passados e
acompanhada daquele momento em diante até o presente, com a denominação de estudo
de coorte histórica ou estudo de coorte retrospectivo.
Nos estudos prospectivos, os dados podem ser coletados especificamente para o
propósito do estudo e com total antecipação do que é necessário. É possível, portanto,
evitar vieses que possam comprometer a acurácia dos dados.

Pedro Kallas Curiati 577


Vantagens dos estudos de coorte
Os estudos de coorte sobre risco são os melhores substitutos disponíveis para um
experimento verdadeiro, quando não é possível realizá-lo. Seguem a mesma lógica da
questão clínica.
Única forma de estabelecer a incidência diretamente. A exposição pode ser
obtida sem o viés que poderia ocorrer se o desfecho já fosse conhecido.
Pode avaliar a relação da exposição com várias doenças.
É possível estudar exposições raras.

Desvantagens dos estudos de coorte


Ineficientes, uma vez que é necessário arrolar um número muito maior de
pacientes do que os que sofrem o evento de interesse, com logística difícil e perda de
indivíduos.
Onerosos, devido aos recursos necessários para estudar muitas pessoas ao longo
do tempo. Podem demorar vários anos.
Os resultados não estão disponíveis por um longo período de tempo.
Avaliam a relação entre doença e a exposição a relativamente poucos fatores de
risco. Não podem ser utilizado para doenças raras.
A desvantagem científica mais importante dos estudos observacionais, incluindo
os estudos de coorte, é que eles estão sujeitos a muito mais vieses potenciais do que os
experimentos.

Formas de expressar e comparar riscos


Para comparar os riscos, diversas medidas de associação entre a exposição e a
doença, chamadas de medidas de efeito, são comumente utilizadas.

Risco absoluto
O risco absoluto é a probabilidade de um evento ocorrer em uma população sob
estudo. Seu valor é o mesmo da incidência e os termos são freqüentemente
intercambiáveis.
Incidência = número de casos novos durante um período de tempo / número de
pessoas no grupo.

Risco atribuível
O risco atribuível é a incidência adicional de doença devido à exposição e leva
em consideração a incidência basal da doença por outras causas.
Risco atribuível = incidência em pessoas expostas – incidência em pessoas não
expostas.

Risco relativo
O risco relativo ou a razão de riscos indica quantas vezes é mais provável que as
pessoas expostas se tornem doentes em relação às pessoas não-expostas e expressa a
força da associação entre a exposição e a doença.
Mesmo com um risco relativo grande, o risco atribuível pode ser bem pequeno
se a doença for incomum.
Risco relativo = incidência em pessoas expostas / incidência em pessoas não
expostas.

Risco na população
Esse dado pode informar àqueles responsáveis por políticas de saúde sobre como

Pedro Kallas Curiati 578


estabelecer prioridades para a alocação de recursos. Se um fator de risco relativamente
fraco for muito prevalente em uma comunidade, ele pode ser responsável por mais
doenças do que um fator de risco muito forte, mas raro.
O risco atribuível na população é o produto do risco atribuível pela prevalência
da exposição ao fator de risco em uma população. Ele mede o excesso de incidência da
doença em uma comunidade associado com um fator de risco.
É possível, também, descrever a fração de ocorrência de uma doença em uma
população associada com um fator de risco, isto é, a fração atribuível na população. Ela
é obtida dividindo o risco atribuível na população pela incidência total da doença na
população.

Estudos de caso-controle

Conceito
Duas amostras são selecionadas, uma com pacientes que desenvolveram a
doença em questão e outra com pessoas semelhantes, mas que não desenvolveram a
doença. Os pesquisadores avaliam, então, a freqüência de exposição prévia a um
possível fator de risco nos dois grupos. Os dados resultantes podem ser utilizados para
estimar o risco relativo de doença relacionado ao possível fator de risco.

A palavra controle aparece em outras situações também. Ela é utilizada em


estudos experimentais para se referir a pessoas, bem como a animais, a linhagens
celulares e a material genético, que não sofreram a intervenção do estudo.

Delineamento de estudos de caso-controle


A validade dos estudos de caso-controle depende do cuidado com que os casos e
os controles são selecionados, de como a exposição é medida e de como as variáveis
externas são controladas.
Os casos de um estudo de caso-controle deveriam, de preferência, ser casos
novos ou incidentes e não casos já existentes ou prevalentes. Na melhor das hipóteses, o
estudo deveria incluir todos os casos ou uma amostra representativa de todos os casos
que surgem em uma população definida.
A validade de um estudo de caso-controle depende, acima de tudo, da
capacidade de comparação entre os casos e os controles:

Pedro Kallas Curiati 579


- Para serem comparáveis, os casos e os controles precisam ser membros
da mesma base populacional e ter a mesma oportunidade de exposição;
- A melhor abordagem para satisfazer essas exigências é assegurar-se de
que os controles sejam uma amostra aleatória de todos os não-casos na
mesma população que produziu os casos;
- Os estudos em que os casos e os controles são uma amostragem
completa ou probabilística de uma população definida são chamados de
estudos de caso-controle com base populacional;
- Os casos e os controles devem obedecer aos mesmos critérios para
inclusão no estudo;
- Se nenhum dos grupos-controle parecer ideal, é possível avaliar como a
escolha dos controles afeta os resultados ao selecionar múltiplos grupos-
controle com forças e fraquezas científicas aparentemente
complementares;
- Se algumas características parecem fortemente relacionadas à
exposição ou à doença, de forma que seria necessário certificar-se de que
elas são comparáveis nos casos e nos controles, elas podem ser pareadas;
- A validade dos estudos de caso-controle também depende de se evitar
viés na aferição da exposição;
O viés pode ocorrer de três formas gerais. Primeiro, a própria exposição pode ser
afetada pela presença de doença. Segundo, ter a doença em questão pode afetar a
recordação do paciente em relação à exposição. Terceiro, o viés pode ocorrer porque a
presença de doença também pode afetar a medida ou o registro da exposição.

Controle das variáveis externas


Para dados já coletados, é possível examinar grupos de pacientes que tenham
características comparáveis ou ajustar matematicamente para as diferenças entre casos e
controles.

Vantagens e desvantagens dos estudos de caso-controle


Os estudos de caso-controle têm duas vantagens principais sobre os estudos de
coorte. Em primeiro lugar, é mais eficiente porque contorna a necessidade de coletar
dados em um grande número de pessoas, a maioria das quais não chega a apresentar a
doença. Em segundo, é uma abordagem mais rápida porque não é necessário esperar por
aferições da exposição até que o efeito ocorra. São indispensáveis para se estudar o
risco de doenças incomuns e permitem o estudo de vários fatores de risco.
No entanto, o manejo do viés torna-se uma tarefa mais difícil e, algumas vezes,
coberta de incertezas. Além disso, os estudos de caso-controle produzem apenas uma
estimativa do risco relativo e nenhuma informação direta de outras medidas de efeito,
como o risco absoluto, o risco atribuível e os riscos na população. Não permitem
avaliação adequada de exposições raras e há dificuldade para determinar a seqüência
dos eventos.

Razão de chances
Uma abordagem usada para comparar a freqüência da exposição entre casos e
controles fornece uma medida do risco que é conceitualmente e matematicamente
semelhante ao risco relativo. É a razão de chances, definida como a chance de um caso
ser exposto dividida pela chance de um controle ser exposto.

Pedro Kallas Curiati 580


Se a freqüência da exposição for maior entre os casos, a razão de chances
excederá 1, indicando risco aumentado. Por outro lado, se a freqüência da exposição for
mais baixa entre os casos, a razão de chances será menor do que 1, indicando proteção.
A razão de chances é aproximadamente igual ao risco relativo somente quando a
incidência da doença é baixa. O viés se torna grande o suficiente para ser relevante na
medida em que as taxas da doença em pessoas não-expostas se tornam maiores que
aproximadamente 1/100. Em geral, à medida que os desfechos se tornam mais
freqüentes, a razão de chances tende a superestimar o risco relativo, quando ele é maior
do que 1, e a subestimar, quando ele é menor do que 1.

Comunicação de risco
As informações sobre risco relativo são mais persuasivas do que os mesmos
dados apresentados como risco absoluto.
A formulação em termos de “perda” influencia as decisões mais do que a
formulação em termos de “ganho”.
Uma formulação positiva é melhor do que uma formulação negativa para
persuadir as pessoas a escolher opções arriscadas de tratamento.
Mais informações e informações que o paciente pode compreender bem estão
associadas a maior cautela ao decidir sobre fazer ou não um tratamento ou teste
diagnóstico.
O risco de não agir é visto como maior do que aquele de agir.

Bibliografia
Fletcher, Robert H. Epidemiologia clínica : elementos essenciais / Robert H. Fletcher, Suzanne W. Fletcher ; tradução Roberta
Marchiori Martins. – 4. Ed. – Porto Alegre : Artmed, 2006.

Pedro Kallas Curiati 581


PROGNÓSTICO
Introdução
Os estudos sobre prognóstico são semelhantes aos estudos de coorte sobre risco.
Os pacientes são agrupados de acordo com uma característica em comum, como uma
determinada doença. O grupo, então, é acompanhado por um período de tempo e os
desfechos são medidos. As condições clínicas que estão associadas com um desfecho,
denominadas fatores prognósticos, são identificadas.
Os estudos de caso-controle de indivíduos com a doença que têm ou não um
desfecho ruim também podem estimar o risco relativo associado a fatores prognósticos
variados, mas eles não podem fornecer informações sobre as taxas de desfecho.

Diferenças entre fatores de risco e fatores prognósticos


Os fatores de risco e os fatores prognósticos diferem uns dos outros de diversas
maneiras:
- Os pacientes são diferentes, uma vez que os estudos sobre fatores de
risco geralmente tratam de pessoas saudáveis, enquanto que os estudos
sobre fatores prognósticos abarcam os desfechos em pessoas doentes;
- Os desfechos são diferentes, uma vez que quando se trata de risco, o
evento sob consideração é o início da doença, enquanto que quando se
trata de prognóstico, uma gama de conseqüências da doença é
considerada;
- As taxas são diferentes, uma vez que os fatores de risco geralmente são
para eventos de baixa probabilidade, enquanto que o prognóstico, por
outro lado, descreve eventos relativamente freqüentes;
- Os fatores de risco e os fatores de prognóstico são diferentes, uma vez
que as variáveis associadas com um risco aumentado não são
necessariamente as mesmas que marcam um prognóstico pior;

Curso clínico e história natural da doença


O termo curso clínico descreve a evolução ou prognóstico de uma doença que
está sob cuidado médico e que já foi tratada de diversas maneiras que afetam o curso
subseqüente de eventos.
O prognóstico da doença sem intervenção médica chama-se história natural da
doença.

Elementos dos estudos sobre prognóstico


Os estudos sobre prognóstico, como aqueles sobre risco, são melhor conduzidos
em uma população em que todas as pessoas tenham a doença em questão em uma região
geográfica definida. A maioria dos estudos sobre prognóstico, contudo, baseia-se em
amostras clínicas que não estão diretamente relacionadas com populações geográficas.
As coortes nos estudos prognósticos devem iniciar em um ponto específico no
tempo durante o curso da doença, denominado ponto zero.
Os pacientes precisam ser acompanhados por um período de tempo
suficientemente longo para que a maioria dos desfechos clinicamente importantes
ocorra.
As descrições do prognóstico precisam incluir todas as manifestações da doença
que os pacientes consideram importantes.

Pedro Kallas Curiati 582


Descrição do prognóstico
Sobrevida em 5 anos Porcentagem de pacientes que sobrevivem por 5 anos a partir
de algum ponto no curso de sua doença
Fatalidade Porcentagem de indivíduos com uma doença que morrem em
decorrência dela
Mortalidade por doença Número de pessoas por população de 10.000 ou de 100.000
específica que morre de uma doença específica
Resposta Porcentagem de pacientes que mostram alguma evidência de
melhora após uma intervenção
Remissão Porcentagem de pacientes que entram em uma fase em que a
doença não é mais detectável
Recorrência Porcentagem de pacientes que apresentam recidiva após um
intervalo de tempo livre da doença
Para que todos os dados disponíveis para cada paciente na coorte sejam
aproveitados de forma eficiente, desenvolveu-se análise para fazer a estimativa da
sobrevida de uma coorte com o passar do tempo. O método habitual chama-se análise
de Kaplan-Meier, em homenagem a seus criadores. A análise de sobrevida pode ser
aplicada a quaisquer desfechos que sejam dicotômicos e que ocorram apenas uma vez
durante o seguimento. Quando outro evento, que não a sobrevida, é descrito, o termo
genérico análise de tempo até evento é utilizado.
No eixo vertical da curva de sobrevida
fica a probabilidade estimada de sobrevida e
no eixo horizontal fica o período de tempo
após o começo da observação. Os intervalos
de tempo podem ser tão pequenos quanto
necessário e, nas análises de Kaplan-Meier, os
intervalos ocorrem entre cada novo evento e o
anterior, independentemente de sua extensão.
Quando os pacientes saem do estudo em
qualquer ponto no tempo, por qualquer razão
que não seja o desfecho, são referidos como
censurados e não são mais considerados no
denominador.
A precisão das estimativas depende, como todas as observações de amostras, do
número de pacientes em que a estimativa se baseia. Podemos depositar, portanto, mais
confiança nas estimativas à esquerda da curva, porque existem mais pacientes em risco
durante esse período.

Coortes falsas
Os estudos de coorte verdadeiros devem ser diferenciados daqueles mascarados
como estudos de coorte. Nesses últimos, os pacientes são incluídos porque têm a doença
em questão e estão disponíveis no momento. O curso clínico da doença é então descrito
voltando-se no tempo e observando a evolução da primeira vez em que foram atendidos
até o presente.
Esses grupos de pacientes são chamados, algumas vezes, de coortes falsas,
coortes de sobreviventes ou coortes de pacientes disponíveis, embora não sejam, de
maneira alguma, coortes. Eles representam uma visão enviesada do curso da doença
porque incluem apenas aqueles pacientes que estão disponíveis para o estudo algum

Pedro Kallas Curiati 583


tempo após o começo de sua doença.
Os relatos de coortes de sobreviventes são relativamente comuns na literatura
médica, especialmente na forma de série de casos, descrições de grupos de pacientes
com uma doença. Esses relatos podem trazer uma importante contribuição,
principalmente ao descrever as experiências iniciais com síndromes descritas
recentemente e fornecer hipóteses sobre os prognósticos, mas eles representam
observações preliminares, não-conclusivas.

Identificação dos fatores prognósticos


Várias curvas de sobrevida, cada uma representando uma das características dos
pacientes, são desenhadas na mesma figura e podem ser comparadas visualmente e
estatisticamente.
Os efeitos da presença de possíveis fatores prognósticos, em relação a sua
ausência, podem ser resumidos por meio de uma razão de azares, que é análoga à razão
de riscos ou risco relativo.

Viés em estudos de coorte

Viés de suscetibilidade
Uma forma de viés de seleção, denominada viés de suscetibilidade, ocorre
quando os grupos de pacientes arrolados para o estudo diferem em outras formas que
não as variáveis sob estudo. Os grupos sob comparação não são igualmente suscetíveis
aos desfechos de interesse por razões diferentes do fator sob estudo.

Viés de migração
O viés de migração, outra forma de viés de seleção, pode ocorrer quando os
pacientes de um subgrupo de uma coorte deixam seu subgrupo original, abandonando o
estudo completamente ou passando para um dos outros subgrupos sob estudo. Se essas
mudanças ocorrerem em escala suficientemente grande, podem afetar a validade das
conclusões.

Viés de aferição
O viés de aferição é possível quando os pacientes em um subgrupo de uma
coorte têm uma probabilidade maior de ter seu desfecho detectado do que outros, em
outro subgrupo.
O viés de aferição pode ser minimizado de três formas gerais:
- Garantir que aqueles que registram os desfechos não estejam cientes do
grupo a que cada paciente pertence;
- Estabelecer regras cuidadosas para decidir se um desfecho ocorreu ou
não e seguir as regras;
- Despender esforços iguais para identificar desfechos para todos os
pacientes do estudo;

Como lidar com os vieses de seleção e confusão


Método Descrição Fase do estudo
Delineamento Análise

Pedro Kallas Curiati 584


Aleatorização Aloca os pacientes para os grupos de uma +
forma que possibilite a cada paciente uma
probabilidade igual de ficar em um ou outro
grupo.
Realizada apenas em estudos experimentais.
Restrição Limita o espectro de características dos +
pacientes sob estudo e restringe o número
de indivíduos elegíveis.
Limita a generalização.
Pareamento Para cada paciente em um grupo, são +
selecionados um ou mais controles com as
mesmas características, exceto a que está
sob estudo, para um grupo de comparação.
Poucas variáveis, com aumento dos custos.
Estratificação Compara taxas dentro de subgrupos ou +
estratos com probabilidades de desfecho
semelhantes.
Difícil quando há muitas características.
Padronização Mostra como seria a taxa global se as taxas +
ou ajuste específicas para os estratos fossem aplicadas
simples a uma população composta por proporções
semelhantes de indivíduos em cada estrato.
Ajuste ou A modelagem matemática é utilizada para +
análise ajustar ou controlar para os efeitos de
multivariável muitas variáveis de modo a determinar o
efeito independente de uma delas. Também
pode selecionar as variáveis que contribuem
de forma independente para a variação
global do desfecho e organizá-las de acordo
com a força de sua contribuição.
Melhor caso/ Descreve como os resultados poderiam +
pior caso diferir nas condições mais extremas ou
simplesmente pouco prováveis de viés de
seleção.
Com exceção da randomização, todas as formas de lidar com as diferenças
externas entre os grupos têm como limitação serem eficazes somente para aquelas
variáveis que são selecionadas para consideração.

Bibliografia
Fletcher, Robert H. Epidemiologia clínica : elementos essenciais / Robert H. Fletcher, Suzanne W. Fletcher ; tradução Roberta
Marchiori Martins. – 4. Ed. – Porto Alegre : Artmed, 2006.

Pedro Kallas Curiati 585


TRATAMENTO
Tratamento é qualquer intervenção, que pode incluir a prescrição de
medicamento, um procedimento cirúrgico ou um aconselhamento, cuja intenção seja
melhorar o curso da doença, uma vez que ela esteja estabelecida.
Nos estudos observacionais sobre intervenções, os pesquisadores simplesmente
observam o que ocorre com os pacientes que, por diversas razões, são expostos ou não a
uma intervenção. A principal vantagem desses estudos é sua factibilidade e a principal
desvantagem é a possibilidade de que existam diferenças sistemáticas nos grupos de
tratamento, além do próprio tratamento, que possam levar a conclusões enganosas sobre
os efeitos do mesmo.
Os estudos experimentais são um tipo especial de estudo de coorte em que as
condições de estudo são especificadas pelo investigador com o propósito de fazer
comparações não-enviesadas. Esses estudos são geralmente referidos como ensaios
clínicos. Os ensaios clínicos randomizados, nos quais o tratamento é alocado
aleatoriamente, são o padrão de excelência para estudos científicos sobre o efeito do
tratamento.

Ensaios clínicos randomizados


A estrutura de um ensaio clínico randomizado é igual a de um estudo de coorte,
com exceção do tratamento, que é determinado pela randomização e não pela escolha do
médico ou do paciente.
Os pacientes a serem estudados são primeiro selecionados a partir de um grande
número de pacientes com a condição clínica de interesse. Eles são, então, divididos,
utilizando-se a randomização, em dois grupos ou mais de prognóstico comparável. Um
grupo, chamado grupo experimental, é exposto a uma intervenção que se acredita ser
melhor do que as alternativas atuais. O outro grupo, chamado de grupo-controle, é
tratado da mesma forma, exceto pela exposição à intervenção experimental. Os
pacientes do grupo controle podem receber um placebo, o tratamento convencional ou o
melhor tratamento atualmente disponível. O curso da doença é então registrado em
ambos os grupos e as diferenças no desfecho são atribuídas à intervenção.

A razão principal para estruturar os ensaios clínicos é evitar o viés quando se


comparam os efeitos de duas ou mais formas de tratamento. A validade dos ensaios

Pedro Kallas Curiati 586


clínicos depende da semelhança entre os pacientes tratados e os controles na
distribuição de todos os determinantes do prognóstico, com exceção daquele que está
sendo testado.

Amostragem
Os pacientes em ensaios clínicos são geralmente uma amostra altamente
selecionada e enviesada de todos os pacientes com a condição de interesse. Uma vez
que a heterogeneidade é restringida, a validade interna do estudo melhora. No entanto,
exclusões ocasionam redução da capacidade de generalização dos achados.
Ensaios clínicos grandes e simples são uma forma de superar o problema da
capacidade de generalização.

Intervenção
A intervenção propriamente dita pode ser descrita em relação a três
características gerais:
- Capacidade de generalização;
- Complexidade;
- Força;

Grupos de comparação
O valor de um tratamento só pode ser julgado pela comparação de seus
resultados com aqueles de um curso alternativo:
- Ausência de intervenção;
- Observação;
- Tratamento placebo;
- Tratamento convencional;
A questão não é se é feita uma comparação, mas quão adequada ela é.

Alocação do tratamento
Para estudar os efeitos específicos de uma intervenção clínica isentos de outros
efeitos, a melhor forma para designar os grupos de tratamento é a alocação aleatória ou
randomização. Os pacientes são alocados para o tratamento experimental ou para o
grupo-controle por meio de um entre vários procedimentos protocolares em que cada
paciente tem uma probabilidade igual de ser alocado para cada um dos grupos de
tratamento.
A alocação aleatória não garante que os grupos sejam semelhantes. As
diferenças entre os grupos podem surgir exclusivamente devido ao acaso, especialmente
quando o número de pacientes randomizados é pequeno. Por esse motivo, os autores de
ensaios clínicos randomizados controlados apresentam uma tabela comparando a
freqüência de várias características no grupo tratado e no grupo-controle, especialmente
aquelas sabidamente relacionadas ao desfecho.
Diferenças pequenas entre os grupos podem ser controladas durante a análise
dos dados. Em algumas situações, especialmente em ensaios clínicos pequenos, os
pacientes são reunidos em grupos ou estratos tendo níveis semelhantes de um fator
prognóstico e são randomizados separadamente em cada estrato, processo denominado
randomização estratificada.

Diferenças que surgem após a randomização


Grupos de tratamento comparáveis logo após a randomização podem se tornar
cada vez menos comparáveis à medida que o tempo passa por diversas razões:

Pedro Kallas Curiati 587


- Os pacientes não apresentam a doença sob estudo, em situações nas
quais é necessário iniciar o tratamento antes de se ter certeza de que o
paciente tem a doença a que o tratamento se destina;
- Não-adesão, que pode ser contornada com período de pré-ensaio, no
qual é oferecido placebo aos pacientes e a adesão é monitorada, com
detecção e exclusão dos não-aderentes antes da randomização;
- Co-intervenções diferentes nos dois grupos;
- Comparação entre respondentes e não-respondentes, abordagem que
não tem fundamento científico;

Cegamento
Os participantes de um ensaio clínico podem modificar seu comportamento ou
sua maneira de relatar os desfechos de um modo sistemático se eles estiverem cientes de
qual tratamento estão recebendo, com prejuízo para a validade interna do estudo. Uma
forma de minimizar esse efeito é o cegamento ou mascaramento.
O cegamento pode acontecer em um ensaio clínico em quatro níveis:
- Os responsáveis por alocar os pacientes para os grupos de tratamento
não devem saber qual o próximo tratamento a ser designado, para evitar
que eles modifiquem o plano de randomização de acordo com essa
informação;
- Os pacientes não devem estar cientes de qual tratamento estão
recebendo, para que não alterem sua adesão ou seu relato de sintomas de
acordo com essa informação;
- Os médicos que cuidam dos pacientes no estudo não devem saber qual
é o tratamento que cada paciente está recebendo, para evitar tratá-los,
mesmo que inconscientemente, de forma diferente;
- Os pesquisadores que avaliam os desfechos não devem ter
conhecimento do tratamento que cada paciente está recebendo, pois a
aferição poderá ser afetada por tal informação;
Um ensaio clínico em que não há tentativa de cegamento é chamado de aberto.

Avaliação dos desfechos


Redução absoluta de risco = taxa de eventos em controles - taxa de eventos em
tratados.
Redução relativa de risco = (taxa de eventos em controles - taxa de eventos em
tratados) / taxa de eventos em controles.
Número necessário para tratar = 1 / (taxa de eventos em controles - taxa de
eventos em tratados).

Ensaios clínicos de intenção de tratar e explanatórios


Quando o ensaio clínico visa responder qual é a melhor opção de tratamento no
momento em que a escolha precisa ser feita, a análise dos resultados deve ser feita de
acordo com o grupo a que os pacientes foram alocados, independentemente de eles
terem ou não recebido o tratamento que deveriam receber. Esse método de analisar os
resultados de um ensaio clínico chama-se análise de intenção de tratar e tem como
vantagens aproximar-se da decisão enfrentada de fato pelos clínicos e comparar os
grupos da forma como foram randomizados. A desvantagem é obscurecer as diferenças
de efetividade entre a intervenção experimental e a de controle, aumentando a
probabilidade de se observar um efeito pequeno ou mesmo nenhum efeito estatístico.
Quando o ensaio clínico visa responder se o tratamento experimental é de fato

Pedro Kallas Curiati 588


melhor, a análise adequada é feita de acordo com o tratamento que cada paciente
realmente recebeu, independentemente do grupo para o qual ele foi randomizado. Os
ensaios clínicos analisados dessa maneira são denominados explanatórios, pois avaliam
se há diferença entre o tratamento ter sido realmente aplicado ou apenas oferecido aos
pacientes. O problema com essa abordagem é que, a menos que a maioria dos pacientes
receba o tratamento para que foram designados, o estudo não mais representará um
ensaio clínico randomizado e será apenas um estudo de coorte.

Eficácia e efetividade
Os ensaios clínicos que visam responder se o tratamento pode funcionar sob
circunstâncias ideais são chamados ensaios clínicos de eficácia.
Os ensaios clínicos delineados para responder se o tratamento funciona sob
circunstâncias normais são chamados de ensaios clínicos de efetividade. Descrevem os
resultados da forma como a maioria dos pacientes os experimentaria em condições
reais.

Alternativas aos ensaios clínicos randomizados

Comparações no tempo e no espaço


Os pacientes experimentais e os controles podem ser reunidos em diferentes
momentos e lugares. Esta abordagem é conveniente, mas o tempo e o lugar estão quase
sempre estritamente relacionados ao prognóstico, com aumento importante da
possibilidade de viés.
Os resultados do tratamento atual são algumas vezes comparados à experiência
com pacientes semelhantes do passado, chamados de controles históricos ou controles
não-concorrentes. Em geral, contudo, a escolha de controles concorrentes, como os
tratados durante o mesmo período de tempo, é uma estratégia melhor para evitar o viés.

Ensaios clínicos não-controlados


Os ensaios clínicos não-controlados descrevem o curso da doença em um único
grupo de pacientes antes e depois da exposição a uma intervenção. A hipótese dessa
abordagem é que qualquer melhora observada após o tratamento resulta do próprio
tratamento.
Essa suposição pode não se justificar pelas seguintes razões:
- Curso clínico imprevisível;
- Efeitos não-específicos;
- Regressão à média;
- Melhora previsível;

Estudos observacionais de intervenções


Os estudos observacionais, de coorte ou de caso-controle, sobre os efeitos do
tratamento levam em consideração o fato de que, para pacientes doentes, as decisões
terapêuticas precisam ser tomadas independentemente da qualidade das evidências
existentes sobre o assunto. Na ausência de um consenso que favoreça um tipo de
tratamento, são utilizadas terapias diversas. Como resultado, grandes quantidades de
pacientes recebem tratamentos variados e manifestam seus efeitos. Quando a
experiência com esses pacientes é utilizada e analisada de forma adequada, pode ser um
instrumento para orientar decisões terapêuticas.
Infelizmente, muitas vezes é difícil ter certeza se os estudos observacionais
sobre tratamentos envolvem comparações sem viés. Os pacientes que recebem os

Pedro Kallas Curiati 589


diversos tratamentos tendem a diferir não apenas em seu tratamento. Especialmente
preocupante é o confundimento por indicação, em que a razão que fez o médico
prescrever a medicação é a causa do desfecho observado.

Fases dos estudos terapêuticos


Nos estudos sobre medicamentos, costuma-se definir três fases de ensaios
clínicos, na ordem em que ocorrem.
Os ensaios clínicos de fase I pretendem identificar uma faixa de variação de
dose que seja tolerável e segura e incluem um número muito pequeno de pacientes, sem
um grupo controle.
Os ensaios clínicos de fase II fornecem informações preliminares sobre a
eficácia do fármaco e a relação entre dose e eficácia. Esses ensaios clínicos podem ser
controlados, mas incluem um número muito pequeno de pacientes nos grupos de
tratamento para detectar outros efeitos que não sejam os efeitos principais do
tratamento.
Os ensaios clínicos de fase III são randomizados e podem fornecer evidências
definitivas sobre a eficácia e a taxa de efeitos colaterais comuns. Eles incluem um
número suficiente de pacientes, freqüentemente dezenas de milhares, para detectar os
efeitos terapêuticos importantes e são, normalmente, publicados em revistas biomédicas.
Os ensaios clínicos de fase III não são grandes o suficiente para detectar
diferenças na taxa, ou mesmo a existência, de efeitos colaterais incomuns. Para tal, é
necessário um seguimento com um número muito grande de pacientes após o fármaco
estar disponível para uso geral, um processo denominado vigilância pós-
comercialização.

Bibliografia
Fletcher, Robert H. Epidemiologia clínica : elementos essenciais / Robert H. Fletcher, Suzanne W. Fletcher ; tradução Roberta
Marchiori Martins. – 4. Ed. – Porto Alegre : Artmed, 2006.

Pedro Kallas Curiati 590


PREVENÇÃO
Conceito
Cuidado preventivo ou exame periódico de saúde consiste em submeter pessoas
que não apresentam queixas específicas a intervenções para identificar e modificar
fatores de risco, evitar o início de doença ou diagnosticar e tratar enfermidade na fase
inicial do seu curso.

Tipos de prevenção clínica


Existem quatro tipos principais de cuidado clínico preventivo:
- Imunizações;
- Rastreamento, que é identificação de doença assintomática ou de seus
fatores de risco;
- Aconselhamento comportamental, que visa motivar mudanças no estilo
de vida;
- Quimioprevenção, que é o uso de fármacos para prevenir doenças;

Níveis de prevenção
A prevenção primária impede a ocorrência da doença e visa remover suas
causas. Freqüentemente é realizada na comunidade, fora do sistema de atenção à saúde.
A prevenção secundária detecta a doença precocemente, quando ainda é
assintomática e quando o tratamento pode impedir o seu avanço. A maior parte da
prevenção secundária é feita em cenários clínicos.
A prevenção terciária envolve as atividades clínicas que impedem o aumento da
deterioração ou reduzem as complicações após o surgimento de uma doença.

Rastreamento

Objetivos e informações gerais


O rastreamento visa a identificação de uma doença ou de um fator de risco
desconhecido por meio de anamnese, exame físico, exames laboratoriais ou outros
procedimentos. Está inserido no nível de prevenção secundário.
O principal objetivo é reduzir a morbidade e a mortalidade da doença, com base
no racional de que a identificação de doença menos avançada permitiria melhor
prognóstico.
Os testes de rastreamento distinguem os indivíduos que aparentemente estão
bem, mas que têm uma doença ou um fator de risco para uma doença, das pessoas que
não têm essa doença ou fator de risco.

Pedro Kallas Curiati 591


O teste de rastreamento não tem como objetivo o diagnóstico e raramente é
capaz de fazê-lo. De fato, a maior parte dos indivíduos detectados com programas de
rastreamento não é portador da doença e, por isso, deve ser submetida a exames
complementares.

Critérios
Três critérios são importantes para se decidir quais as doenças que devem ser
incluídas em um exame periódico de saúde:
- Gravidade ou carga de sofrimento causada pela doença;
- Qualidade do teste de rastreamento e duração da fase pré-clínica
detectável;
- Efetividade, segurança e custo da intervenção para a prevenção
primária ou a efetividade do tratamento para a prevenção secundária após
a descoberta da doença por meio do rastreamento;

Exames de rastreamento
Os exames de rastreamento são quase sempre destinados para uma doença
específica.
Indivíduos assintomáticos apresentam pequena probabilidade de ter uma doença
específica e, na grande maioria, não são beneficiados pelo rastreamento.
O rendimento do rastreamento diminui à medida que ele é repetido com o passar
do tempo. Na primeira vez que um rastreamento é conduzido, recebe a denominação de
rastreio de prevalência e identifica casos existentes por diferentes períodos de tempo.
Na segunda rodada de rastreamento, a maioria dos casos identificados terá adoecido
entre o primeiro e o segundo rastreios. Portanto, o segundo rastreamento, assim como os
subseqüentes, é denominado rastreio de incidência e, em função do menor número de
doentes a serem identificados, apresenta menor valor preditivo positivo para os
resultados do teste.

Vieses especiais no rastreamento


A melhor forma de estabelecer a eficácia do tratamento é por meio de um ensaio
clínico randomizado, o que é especialmente verdadeiro para o tratamento precoce após
o rastreamento.

Viés de tempo ganho


Tempo ganho é o período entre a detecção de uma condição médica pelo
rastreamento e o momento em que ela seria normalmente diagnosticada em função de
sintomas e busca por ajuda médica.
Devido ao rastreamento, uma doença é encontrada mais cedo do que teria sido
após o paciente ter desenvolvido os sintomas. Como resultado, as pessoas que são
diagnosticadas através do rastreamento para uma doença fatal irão, em geral, sobreviver
por mais tempo a partir do diagnóstico do que as pessoas que foram diagnosticadas após
o surgimento dos sintomas, mesmo que o tratamento precoce não seja mais efetivo do
que o tratamento no momento da apresentação clínica.

Pedro Kallas Curiati 592


Viés de tempo de duração
O viés de tempo de duração ocorre porque a proporção de lesões de crescimento
lento diagnosticadas durante o rastreamento é maior do que a proporção diagnosticada
durante o cuidado médico habitual. Como resultado, este tipo de viés faz com que o
rastreamento e o tratamento precoce pareçam mais eficazes do que o cuidado habitual.

Viés de adesão
O terceiro tipo principal de viés que ocorre nos estudos de efetividade do
tratamento pré-sintomático, o viés de adesão, é resultado do grau em que os pacientes
seguem as recomendações médicas. Os pacientes aderentes tendem a apresentar
prognóstico melhor, independentemente do rastreamento.

Formas de evitar os vieses


Um método adequado para evitar tanto o viés de tempo de duração como o viés
de adesão é contrastar os desfechos em ensaio clínico randomizado, comparando o
grupo controle com o grupo que recebeu o rastreamento. Em cada grupo, todas as
pessoas que experimentaram os desfechos de interesse precisam ser consideradas,
independentemente do método diagnóstico ou do grau de participação. Além disso,
esses grupos podem ser acompanhados durante um período de tempo com taxas de
mortalidade específicas para a idade, ao invés de taxas de sobrevida, o que permite
evitar viés de tempo ganho.

Critérios para um bom teste de rastreamento

Alta sensibilidade e especificidade


Sensibilidade é a proporção de indivíduos com a doença que têm teste positivo,
enquanto especificidade é a proporção de indivíduos sem a doença que têm teste
negativo.
A própria natureza da busca por uma doença em pessoas assintomáticas significa
que a prevalência é geralmente muito baixa, mesmo entre grupos de alto risco.
Um bom teste de rastreamento precisa, portanto, ter alta sensibilidade para que
não deixe passar os poucos casos em que há doença. Ele deve também ter uma
especificidade alta para reduzir o número de pessoas com resultados falso-positivos, que
precisam de avaliação diagnóstica.
Determina-se a sensibilidade e a especificidade para testes de rastreamento da
mesma forma que testes diagnósticos, mas o padrão-ouro para a presença de doença não
é apenas outro teste, mas também um período de seguimento.

Pedro Kallas Curiati 593


Valor preditivo positivo alto
Valor preditivo é a probabilidade da doença conforme o resultado do teste. Valor
preditivo positivo é a proporção de doentes dentre os indivíduos com teste positivo.
Valor preditivo negativo é a proporção de não-doentes dentre indivíduos com teste
negativo.
Devido à baixa prevalência da maioria das doenças, o valor preditivo positivo de
grande parte dos testes de rastreamento é baixo, mesmo para testes altamente
específicos. O contrário é verdadeiro para o valor preditivo negativo, porque, quando a
prevalência é baixa, o valor preditivo negativo geralmente é alto.

Outros critérios relevantes


Outros critérios relevantes para um bom teste de rastreamento são simplicidade e
baixo custo, segurança e aceitabilidade por pacientes e clínicos.
O impacto psicológico de um teste é denominado efeito do rótulo. Um bom
resultado de teste de rastreamento ou não produz nenhum efeito do rótulo ou produz um
efeito positivo.

Possíveis efeitos adversos do rastreamento


Os efeitos adversos dos testes de rastreamento incluem o desconforto durante a
sua execução, os efeitos da radiação a longo prazo no caso de procedimentos
radiográficos, a falsa sensação de segurança com resultados falso-negativos, a
morbidade nos casos cujo prognóstico não se altera, os resultados falso-positivos e o
sobre-diagnóstico ou pseudo-doença.
Os testes com valores preditivos positivos baixos cursam com alta freqüência de
resultados falso-positivos, que, por sua vez, podem acarretar efeito do rótulo negativo,
inconveniência e despesas com procedimentos de seguimento.
Alguns tipos de câncer se desenvolvem com tanta lentidão que não causam
nenhum problema para o paciente. Se esses cânceres forem encontrados no
rastreamento, são chamados de pseudo-doença e o processo que leva à sua detecção é
denominado sobre-diagnóstico, que é um exemplo extremo de viés de tempo de
duração. A descoberta desses cânceres causa o aumento aparente na incidência da
doença. Para determinar até que ponto o sobre-diagnóstico ocorre, é necessário
mensurar as taxas de mortalidade específicas da doença e não as taxas de sobrevida,
além de comparar um grupo rastreado com um grupo não-rastreado semelhante.

Benefícios do rastreamento
Os principais benefícios dos testes de rastreamento são a relativa segurança dos
resultados negativos, a possibilidade de tratamento menos radical de doenças e o melhor
prognóstico, que associa-se à cura e à melhora da sobrevida e da qualidade de vida.

Avaliação do rastreamento
A avaliação do rastreamento é realizada através de estudos de intervenção ou
experimentais, em que avalia-se mortalidade geral, mortalidade específica, morbidade,
qualidade de vida e relação entre eficácia e efetividade. A mortalidade geral não
costuma ser alterada por programas de rastreamento para uma doença específica e a
morbidade comumente aumenta.
Independentemente da intervenção realizada, ela deve ser eficaz, capaz de
produzir um resultado benéfico em situações ideais, e efetiva, capaz de produzir um
resultado positivo sob condições usuais.

Pedro Kallas Curiati 594


Recomendações
Recomendações são classificadas segundo a força de evidência e o balanço entre
benefícios e prejuízos.
A) Recomenda o exame. Há grande probabilidade de que o benefício seja
substancial.
B) Recomenda o exame. Há grande probabilidade de que o benefício seja
moderado ou razoável probabilidade de que o benefício seja moderado ou
substancial.
C) Contra-indica rotineiramente o exame. Indicação possível em alguns
indivíduos. Probabilidade no mínimo razoável de que o benefício seja
pequeno.
D) Contra-indica o exame. Há razoável ou grande probabilidade de não-
benefício, ou de que os prejuízos superem os benefícios.
I) Evidência insuficiente para recomendar ou contra-indicar o exame.
Evidência inexistente, de qualidade ruim ou contraditória. O balanço entre
prejuízos e benefícios não pode ser determinado.
Recomendações A ou B:
- Mamografia a cada dois anos em mulheres com 50 a 74 anos para
rastreamento de câncer de mama;
- Colpocitologia oncótica em mulheres após início da atividade sexual
para rastreamento de câncer do colo do útero;
- Pesquisa de sangue oculto nas fezes, retossigmoidoscopia ou
colonoscopia em indivíduos com 50 anos ou mais para rastreamento de
câncer colo-retal;
Recomendação C:
- Auto-exame de mama, em que o tempo despendido para instrução
reduziria o tempo disponível para medidas preventivas de efetividade
comprovada;

Novas técnicas
Tomografia computadorizada com baixa dose de radiação para rastreamento de
câncer de pulmão.
Colonoscopia virtual por tomografia computadorizada, sangue oculto de fezes
por teste imuno-químico e pesquisa de marcadores genéticos (DNA) nas fezes para
rastreamento de câncer colo-retal.
Ressonância nuclear magnética para rastreamento de câncer de mama em
mulheres com predisposição familiar ou genética.
Citologia de base líquida, pesquisa de DNA para HPV e inspeção visual do colo
uterino para rastreamento de câncer de colo do útero.

Rastreamento de câncer de próstata


Existe aumento exponencial da prevalência de câncer de próstata com o
envelhecimento e é difícil estabelecer o prognóstico.
A maioria dos casos detectados por rastreamento com antígeno prostático
específico (PSA) têm maior sobrevida. No entanto, muitos indivíduos morrem por
outras causas e não existe evidência de que o rastreamento traga benefícios. Em outras
palavras, os resultados são esperados mesmo sem benefício real.
O rastreamento com PSA tem recomendação D segundo a Canadian Task Force.

Pedro Kallas Curiati 595


Bibliografia
Fletcher, Robert H. Epidemiologia clínica : elementos essenciais / Robert H. Fletcher, Suzanne W. Fletcher ; tradução Roberta
Marchiori Martins. – 4. Ed. – Porto Alegre : Artmed, 2006.

Pedro Kallas Curiati 596


ACASO
Abordagens para o acaso
Duas abordagens gerais são utilizadas para avaliar o papel do acaso em
observações clínicas. A primeira, chamada de teste de hipótese, questiona se um efeito
ou diferença está ou não presente e utiliza testes estatísticos para examinar a hipótese de
que não existe diferença, denominada hipótese nula. A outra abordagem, denominada
estimativa, utiliza métodos estatísticos para estimar a faixa de valores que
provavelmente inclui o valor verdadeiro.

Teste de hipótese
Existem quatro possibilidades de relação entre as conclusões estatísticas e os
fatos na realidade. Duas delas levam a conclusões corretas:
- Há efeito ou diferença;
- Não há efeito ou diferença;
Existem também duas formas de resultados errados:
- Erro tipo I ou erro α é a probabilidade de encontrar diferença quando,
na verdade, não há;
- Erro tipo II ou erro β é a probabilidade de não encontrar diferença
quando, na verdade, há;
O erro tipo I é análogo a um resultado falso-positivo e o erro tipo II, a um
resultado falso-negativo. Na ausência de viés, a variação aleatória explica a incerteza de
uma conclusão estatística. As análises estatísticas são um meio para estimar os efeitos
da variação aleatória.
A maioria das estatísticas encontradas na literatura médica diz respeito à
probabilidade de um erro tipo I e são expressas pelo conhecido valor p, que é uma
estimativa quantitativa da probabilidade de que as diferenças nos efeitos tenham
ocorrido apenas em função do acaso, presumindo que não existam, de fato, diferenças
entre os grupos.
Já se tornou um hábito atribuir um significado especial aos valores de p que
ficam abaixo de 0.05 porque há um consenso geral de que uma probabilidade menor do
que 1 em 20 é, na verdade, tão pequena que é razoável concluir que é pouco provável
que tal ocorrência tenha surgido somente em função do acaso. Para contemplar várias
opiniões sobre o que é ou não suficientemente improvável, alguns pesquisadores
relatam as probabilidades exatas de p.
Uma diferença estatisticamente significativa, independentemente de quão
pequeno for o p, não quer dizer que ela seja clinicamente importante.
Os testes estatísticos são utilizados para estimar a probabilidade de um erro tipo
I. O que é testado é a hipótese nula, a proposição de que não há diferença verdadeira no
desfecho entre os grupos de tratamento. Ao final, rejeita-se a hipótese nula, concluindo
que há diferença, ou não, concluindo que não há evidências suficientes para apoiar uma
diferença.
A validade dos testes estatísticos depende de determinados pressupostos sobre os
dados. Um pressuposto típico é o de que os dados apresentam uma distribuição normal.
Se os dados não satisfazem esses pressupostos, o valor p resultante pode ser enganoso.

Para testar a significância estatística de uma diferença

Pedro Kallas Curiati 597


Qui-quadrado (χ2) Entre duas ou mais proporções quando há um grande número
de observações
Exato de Fisher Entre duas proporções quando há um pequeno número de
observações
Mann-Whitney U Entre duas medianas
t de Student Entre duas médias
Teste F Entre duas ou mais médias
Para descrever o grau de uma associação
Coeficiente de Entre uma variável independente ou preditora e uma variável
regressão dependente ou desfecho
r de Pearson Entre duas variáveis
Para modelar os efeitos de variáveis múltiplas
Regressão logística Em um desfecho dicotômico
Azares proporcionais Em um desfecho do tipo tempo até o evento
de Cox
A probabilidade de um ensaio clínico encontrar uma diferença significativa
quando ela realmente existe é chamada poder estatístico. Poder estatístico e
probabilidade de erro tipo II (pβ) são formas complementares de expressar o mesmo
conceito. O poder é análogo à sensibilidade de um teste diagnóstico.
Poder estatístico = 1 - pβ

Estimativas-ponto e intervalos de confiança


A magnitude do efeito que é observado em um determinado estudo chama-se
estimativa-ponto e é a melhor estimativa da magnitude real do efeito. No entanto, é
pouco provável que a magnitude real do efeito seja exatamente aquela observada pelo
estudo. Devido à variação aleatória, qualquer estudo poderá encontrar um resultado
maior ou menor do que o valor verdadeiro. Portanto, é necessária uma medida sumária
para a precisão estatística da estimativa-ponto, isto é, uma faixa de valores possíveis
para a magnitude real do efeito.
A precisão estatística é expressa como um intervalo de confiança em torno da
estimativa-ponto, geralmente o intervalo de confiança de 95%. Quanto mais estreito for
o intervalo de confiança, mais certeza se pode ter sobre a magnitude real do efeito.
Os intervalos de confiança contêm a mesma informação que a significância
estatística. Se o valor correspondente a nenhum efeito, isto é, um risco relativo de 1 ou
uma diferença de 0, ficar fora dos intervalos de confiança de 95% para o efeito
observado, os resultados são estatisticamente significativos no nível de 0.05. Se os
intervalos de confiança incluírem esse ponto, os resultados não são estatisticamente
significativos.
Os intervalos de confiança apresentam vantagens sobre os valores p porque
enfatizam a magnitude do efeito. Os intervalos de confiança ajudam o leitor a ver a
faixa de valores plausíveis e, então, decidir se uma magnitude de efeito que eles
consideram clinicamente significativa é consistente com ou descartada pelos achados do
estudo. Eles também fornecem informações sobre o poder estatístico, pois se o intervalo
de confiança for relativamente amplo e por pouco incluir o valor correspondente a
nenhum efeito, os leitores poderão ver que o baixo poder pode ter sido a causa do
resultado negativo.

Tamanho de amostra

Pedro Kallas Curiati 598


Do ponto de vista do teste de hipóteses, um tamanho de amostra adequado
depende de três características do estudo:
- Magnitude da diferença;
- Probabilidade de conclusões falso-positivas e falso-negativas aceitáveis;
- Natureza dos dados do estudo;
Os intervalos de confiança também podem ser utilizados para planejar tamanhos
de amostra.
O cálculo do poder estatístico com base na abordagem do teste de hipótese é
feito antes do início de um estudo para garantir que uma quantidade suficiente de
pacientes ingresse no mesmo para que se tenha uma boa probabilidade de detecção de
um efeito clinicamente significativo, caso haja algum. Entretanto, após o término do
estudo, essa abordagem não é tão relevante.

Ensaios clínicos de equivalência


Um ensaio clínico estabelece a equivalência quando o intervalo de confiança
para a diferença entre os efeitos do tratamento exclui um efeito clinicamente importante.

Comparações múltiplas
Se muitas comparações são feitas entre as variáveis em um grande banco de
dados, o valor p associado com cada comparação individual subestima com que
freqüência o resultado daquela comparação poderia ter surgido pelo acaso. A
interpretação do valor p de um único teste estatístico depende do contexto em que ele é
feito. Quanto mais comparações forem feitas, maior será a probabilidade de que uma
delas seja considerada estatisticamente significativa.
Os pesquisadores devem observar todos os aspectos de seus dados e
compartilhar achados interessantes com os leitores, mas eles devem deixar clara a
extensão em que os dados foram buscados.

Análises de subgrupos
Um perigo ao se examinar os subgrupos é o maior risco de resultados falso-
positivos por causa das comparações múltiplas. Um outro perigo é uma conclusão falso-
negativa em função da redução nos dados disponíveis.

Análises secundárias
Análises secundárias são aquelas que não são a principal razão do estudo, ou que
talvez não tenham sido planejadas quando o estudo foi concebido. Elas podem envolver
a análise de subgrupos, conforme descrição anterior, ou de diversos desfechos.

Métodos multivariáveis
A maioria dos fenômenos clínicos é resultado de muitas variáveis agindo em
conjunto de forma complexa.
Modelagem multivariável é o desenvolvimento de uma expressão matemática
dos efeitos de muitas variáveis tomadas em conjunto. Os modelos matemáticos são
utilizados de duas formas gerais em pesquisas clínicas:
- Para estudar o efeito independente de uma variável sobre o desfecho,
levando em conta os efeitos de outras variáveis que podem confundir ou
modificar essa relação;
- Para predizer um evento clínico calculando o efeito combinado de
diversas variáveis em conjunto;
Não há outra forma de ajustar para ou de incluir muitas variáveis ao mesmo

Pedro Kallas Curiati 599


tempo.

Bibliografia
Fletcher, Robert H. Epidemiologia clínica : elementos essenciais / Robert H. Fletcher, Suzanne W. Fletcher ; tradução Roberta
Marchiori Martins. – 4. Ed. – Porto Alegre : Artmed, 2006.

Pedro Kallas Curiati 600


CAUSA
Conceitos de causa
Geralmente, muitos fatores agem em conjunto para causar uma doença.
Quando mais de uma causa age concomitantemente, o risco resultante pode ser
maior ou menor do que o esperado pela simples combinação dos efeitos das causas
separadas. Isso é chamado de interação. Os clínicos denominam esse fenômeno de
sinergismo quando o efeito conjunto é maior do que a soma dos efeitos das causas
individuais e de antagonismo, quando é menor.
A interação muitas vezes é expressa como uma modificação de efeito, quando a
força da relação entre duas variáveis é diferente de acordo com o nível de uma terceira
variável, chamada de modificador de efeito.

Estabelecimento da causa
Na medicina clínica, não é possível provar relações causais indubitáveis, pois a
compreensão das relações é baseada em evidências empíricas e é possível, ao menos em
teoria, que novas evidências possam alterar nosso entendimento.
Dois fatores, a causa suspeita e o efeito, obviamente precisam estar associados
para serem considerados em termos de relação causal. No entanto, nem todas as
associações são causais. Os vieses de seleção e de aferição e o acaso podem gerar
associações aparentes que não existem na natureza.
Antes de definir se a associação é causal, é necessário saber se ela ocorre
indiretamente, por meio de outro fator, ou diretamente.
Os clínicos normalmente contam com ensaios clínicos randomizados para
fornecer evidências sobre relações causais para tratamento e prevenção. Entretanto, esse
tipo de delineamento raramente é viável quando são estudados fatores de risco de
doenças, uma vez que não é ético randomizar intervenções consideradas nocivas. Para
tal, deve-se utilizar estudos observacionais.
Os estudos de coorte bem conduzidos são o segundo melhor tipo de
delineamento de pesquisa. Os estudos de caso-controle são vulneráveis ao viés de
seleção e podem ser suscetíveis aos vieses de confusão e de aferição. Os estudos
transversais são fracos porque não fornecem evidências diretas da seqüência de eventos.
Verdadeiras pesquisas de prevalência, estudos transversais de uma população definida,
protegem contra o viés de seleção, mas estão sujeitas aos vieses de aferição e de
confusão.

Estudos ecológicos
Os estudos em que a exposição a um fator de risco se caracteriza pela exposição
média do grupo a que os indivíduos pertencem são chamados de estudos agregados de
risco ou estudos ecológicos. A unidade de informação não é o indivíduo, mas o grupo.
Informação sobre doença e exposição em grupos populacionais, como escolas,
cidades e países.
O principal problema é um potencial viés, chamado de falácia ecológica, em que
os indivíduos que desenvolvem a doença em um grupo classificado como exposto
podem não ter sido eles próprios os indivíduos expostos ao fator de risco nesse grupo.
Além disso, a exposição pode não ser a única característica que distingue as pessoas no
grupo exposto daquelas no grupo não-exposto, isto é, pode haver fatores de confusão.
Os estudos agregados de risco são muito úteis para levantar hipóteses, que

Pedro Kallas Curiati 601


precisam, então, ser testadas com pesquisas mais rigorosas.

Estudos de série temporal


As evidências dos estudos agregados de risco de que um fator é, de fato,
responsável por um efeito podem ser fortalecidas quando as observações são feitas em
mais de um local. Em um estudo de série temporal, o efeito é medido em diversos
pontos no tempo antes e depois da suposta causa ter sido introduzida. Então, é possível
ver se o efeito varia ou não conforme o esperado.
Uma vantagem de uma análise de série temporal é que ela pode distinguir entre
mudanças que ocorrem com o passar do tempo, as tendências seculares, e efeitos da
intervenção.

Estudos de séries temporais múltiplas


Em um estudo de séries temporais múltiplas, a causa suspeita é introduzida em
diversos grupos diferentes em momentos diferentes. As aferições são então realizadas
nos grupos para determinar se o efeito ocorreu da mesma forma seqüencial em que a
causa suspeita foi introduzida.

Evidências a favor e contra uma relação causal


Relações temporais entre causa e efeito:
- As causas devem obviamente preceder os efeitos;
Força da associação:
- Uma forte associação entre uma suposta causa e um efeito, expressa por
grande risco relativo ou absoluto, é uma evidência melhor para uma
relação causal do que uma associação fraca;
Relações dose-resposta:
- Demonstrar uma relação dose-resposta fortalece o argumento para
causa e efeito, mas sua ausência é uma evidência relativamente fraca
contra causalidade, porque nem todas as associações causais apresentam
uma relação dose-resposta;
Associações reversíveis:
- Um fator tem maior probabilidade de ser uma causa de doença sempre
que sua remoção resulte na redução do risco de doença;
Consistência:
- Quando diversos estudos, conduzidos em épocas diferentes, em
cenários diferentes e com tipos de pacientes diferentes, chegam à mesma
conclusão, as evidências de uma relação causal se fortalecem;
Plausibilidade biológica:
- A plausibilidade biológica, quando presente, fortalece os argumentos a
favor da causalidade, mas, quando ausente, deve-se buscar outras
evidências para a mesma;
Especificidade:
- A presença de especificidade é uma evidência forte para causalidade,
mas a sua ausência é evidência fraca contra a relação de causa e efeito;
Analogia:
- O argumento a favor da relação de causa e efeito é fortalecido quando
existem exemplos de causas bem estabelecidas que são análogas àquela
em questão;

Peso das evidências

Pedro Kallas Curiati 602


Bibliografia
Fletcher, Robert H. Epidemiologia clínica : elementos essenciais / Robert H. Fletcher, Suzanne W. Fletcher ; tradução Roberta
Marchiori Martins. – 4. Ed. – Porto Alegre : Artmed, 2006.

Pedro Kallas Curiati 603


MEDICINA BASEADA EM
EVIDÊNCIAS
Definição
Medicina baseada em evidências é o uso consciencioso, explícito e judicioso da
melhor evidência existente para tomar decisões sobre o cuidado de pacientes
individuais. A prática de medicina baseada em evidências implica integrar a experiência
clínica individual com a melhor evidência clínica externa disponível a partir de pesquisa
sistemática.

Etapas
Transformar a necessidade de informação em perguntas passíveis de resposta.
Buscar, com máxima eficiência, a melhor evidência para responder a questão.
Avaliar criticamente as evidências quanto à sua validade e utilidade.
Implementar os resultados na prática clínica.
Avaliar o desempenho.

Revisões tradicionais
Em artigos de revisão tradicionais, um especialista com vários anos de
experiência na área resume as evidências e as recomendações.
Normalmente tratam de questões amplas e se ocupam de uma gama de questões.
A falta de estrutura das revisões tradicionais, contudo, pode esconder importantes
ameaças para a validade, com subjetividade e parcialidade.

Revisão sistemática e metanálise


A revisão sistemática tem estratégia científica, com metodologia definida para
minimizar viés. Metanálise é análise estatística utilizada para sintetizar resultados de
vários estudos.
Vantagens:
- Poder estatístico e precisão para estimar efeitos de pequena magnitude;
- Consistência ou heterogeneidade de resultados;
- Generalização;
- Identificação de questões de investigação;
- Transparência;
Etapas:
- Definir questão de investigação;
- Elaborar protocolo;
- Identificar estudos;
- Selecionar estudos;
- Extrair informação;
- Realizar análise estatística;
Elaboração do protocolo:
- Breve revisão;
- Objetivos;
- Método, que envolve critérios de seleção, critérios de busca, extração
de dados e análise;
- Bibliografia;

Pedro Kallas Curiati 604


Identificação de estudos:
- Bases eletrônicas de publicações;
- Revisões e livros-texto recentes;
- Consulta a especialistas;
- Referências bibliográficas;
- Bases de registros de estudos;
- Anais de congressos;
Seleção de estudos:
- Critérios de avaliação da qualidade;
- Avaliações independentes;
- Evitar medidas-sumário;
Extração de dados:
- Piloto;
- Observadores independentes;
- Dados individuais;
Análise estatística:
- Diversos métodos, com ponderação de resultados com base no inverso
das respectivas variâncias;
- Métodos de Mantel-Haenszel e de Peto;
- Meta-análise é caracterizada por heterogeneidade clínica e estatística,
que pode ser calculada por testes de heterogeneidade;
As revisões sistemáticas e as metanálises são sujeitas a diversas formas de viés,
que influenciam a qualidade dos estudos e a disseminação dos resultados:
- Viés de publicação;
- Viés de tempo de demora;
- Viés de publicações múltiplas;
- Viés de linguagem;
A avaliação de viés de publicação pode ser realizada com base em gráfico de
funil, plausibilidade biológica e meta-regressão.

Revisão sistemática
As revisões sistemáticas são revisões rigorosas de questões clínicas específicas.
Resumem a pesquisa original relevante e seguem um plano com embasamento científico
que foi decidido a priori e tornado explícito passo a passo. Como resultado, o leitor
pode avaliar a força das evidências para quaisquer conclusões
As revisões sistemáticas são especialmente úteis para tratar de uma única
questão focada. São necessários estudos fortes sobre a questão, mas cujos resultados não
tenham tanta concordância entre si a ponto de a questão já estar respondida.
Elementos de uma revisão sistemática:
- Definir a questão clínica;
- Identificar todos os estudos completos sobre a questão, publicados ou
não;
- Selecionar os estudos que preencham padrões elevados de validade
científica;
- Procurar por evidências de viés nos estudos selecionados;
- Descrever a qualidade científica dos estudos;
- Questionar se a qualidade está sistematicamente relacionada aos
resultados do estudo;
- Descrever os estudos com uma figura, como um gráfico de floresta;
- Decidir se os estudos são suficientemente semelhantes para justificar

Pedro Kallas Curiati 605


uma combinação;
- Se eles forem suficientemente semelhantes para serem combinados,
calcular uma medida sumária de efeito e seu intervalo de confiança;
O viés de publicação é a tendência dos estudos publicados de serem
sistematicamente diferentes do conjunto de todos os estudos realizados sobre a questão.
Em geral, os estudos publicados estão mais propensos a encontrar um efeito, devido a
uma preferência disseminada por resultados positivos. Os pesquisadores estão menos
propensos a completar estudos que podem acabar sendo negativos e menos propensos
ainda a submetê-los aos periódicos. De sua parte, os editores dos periódicos podem estar
menos dispostos a ver os estudos negativos como interessantes e publicá-los. Para
contornar esses problemas, alguns pesquisadores procuram estudos que não foram
publicados e incluem aqueles que foram financiados e iniciados, mas que não foram
concluídos.
O gráfico do funil é uma
forma de detectar o viés na seleção
de estudos para revisões sistemáticas.
Os principais resultados de cada
estudo são representados
graficamente em relação ao tamanho
da amostra, com um ponto
representando cada estudo. Na
ausência de viés, os estudos
pequenos, representados na parte de
baixo da figura, estão mais propensos
a revelar variação na magnitude de
efeito relatada por causa da
imprecisão estatística, com maior
dispersão na parte de baixo da figura,
ao redor da verdadeira magnitude do
efeito. Por outro lado, os grandes
estudos, representados no topo da figura, produzem estimativas mais precisas e devem
se concentrar mais perto da magnitude de efeito verdadeira. O resultado é uma
distribuição simétrica, como um funil invertido. O viés aparece como uma assimetria no
gráfico do funil.
Os resultados de uma revisão sistemática são tipicamente apresentados como um
gráfico de floresta, mostrando as estimativas-ponto e o intervalo de confiança para cada
um dos estudos. Seis tipos de informações são especialmente úteis:
- O número de estudos que preenchem os critérios rigorosos de
qualidade;
- Referências bibliográficas dos estudos componentes;
- O padrão das magnitudes de efeito;
- O número de estudos que são estatisticamente significativos;
- Os resultados dos estudos estatisticamente precisos em relação aos
menores;

Combinação de estudos em metanálises


A meta-análise é a combinação dos resultados de estudos ou dos pacientes
desses estudos, desde que sejam suficientemente semelhantes. Quando conduzidas da
forma correta, as metanálises fornecem estimativas mais precisas das magnitudes de
efeito do que as disponíveis em qualquer um dos estudos isolados.

Pedro Kallas Curiati 606


Existem duas abordagens para avaliar a adequação do agrupamento dos
resultados de estudos. Uma é a realização de um teste estatístico de homogeneidade, o
grau em que os resultados dos estudos são semelhantes. Aplica-se um teste estatístico
aos resultados do estudo para verificar se eles diferem além do que poderia se esperar
apenas pelo acaso. Uma segunda abordagem é fazer um julgamento informado para
saber se os pacientes, as intervenções, o seguimento e os desfechos são suficientemente
semelhantes para serem considerados estudos sobre a mesma questão.
Uma abordagem mais poderosa é obter os dados sobre cada paciente em cada
um dos estudos e juntar esses dados para produzir, na prática, um único estudo grande.
Relativamente poucas metanálises são feitas dessa forma devido à dificuldade de se
obter todos estes dados dos pesquisadores.
Quando os estudos são sumarizados, aqueles que contribuem com grande
quantidade de informação têm mais peso do que os que fazem pequenas contribuições.
Cada estudo contribui para a medida sumária de efeito de acordo com o tamanho do
estudo. Estritamente falando, utiliza-se o inverso de sua variância.
Dois tipos de modelos matemáticos são utilizados para sumarizar estudos em
uma metanálise. Com o modelo de efeito fixo, presume-se que cada uma das pesquisas
trata exatamente da mesma questão, de forma que os resultados dos estudos são
diferentes somente em função do acaso. Como as questões de pesquisa tendem a variar
um pouco, a amplitude dos intervalos de confiança calculados pelo modelo de efeito
fixo tende a indicar um grau de precisão maior do que o real.
O modelo de efeitos aleatórios presume que os estudos tratam de questões um
pouco diferentes e que eles formam uma família de estudos sobre uma pergunta
semelhante. Os estudos são vistos como uma amostra aleatória de todos os estudos que
tratam da questão. Os modelos de efeitos aleatórios produzem intervalos de confiança
mais amplos do que os modelos de efeito fixo e, por essa razão, são considerados mais
realistas.
Uma outra forma de olhar para a mesma questão é uma metanálise cumulativa.
Uma nova medida sumária de efeito e um novo intervalo de confiança são calculados
cada vez que surge o resultado de um novo estudo. A figura, portanto, representa um
sumário contínuo de todos os estudos até aquele momento.
A grande vantagem de se combinar resultados é que há uma melhora no poder
estatístico. A combinação produz estimativas mais precisas da magnitude do efeito.
A principal desvantagem das metanálises é que elas podem dar uma falsa
impressão de que os resultados estão estabelecidos com grande grau de precisão
quando, na verdade, os resultados principais dependem de muitos pressupostos para se
sustentarem.

Bibliografia
Fletcher, Robert H. Epidemiologia clínica : elementos essenciais / Robert H. Fletcher, Suzanne W. Fletcher ; tradução Roberta
Marchiori Martins. – 4. Ed. – Porto Alegre : Artmed, 2006.

Pedro Kallas Curiati 607


COMO LER UM ARTIGO
CIENTÍFICO
Leitura crítica de artigo científico
Por que o estudo foi realizado?
Que tipo de estudo foi conduzido?
Que tipo de medidas de ocorrência de eventos e medidas de associação foram
utilizadas?
O desenho foi adequado?
Erros sistemáticos foram evitados?
Decidindo se vale a pena considerar o artigo:
- Método;
- Hipótese;
- Impacto dos resultados;
- Especulação na discussão;
Por que o estudo foi realizado? Qual a questão clínica? Qual a hipótese?
O estudo foi original? Já foi feito estudo semelhante?
Esse estudo contribui para o conhecimento existente? É maior ou mais longo?
Tem metodologia mais rigorosa? Qual o tipo de população?

Que tipo de estudo foi conduzido?

Primário ou original
Experimental:
- Ensaio clínico;
- Ensaio de comunidade;
Observacional:
- Coorte;
- Caso-controle;
- Corte transversal;
- Ecológico;
- Série de dados;

Secundário
Revisão sistemática e metanálise.
Diretrizes ou guidelines.
Análise de decisão e custo-benefício.

Sobre quem é o estudo (viés de seleção)?


Recrutamento dos participantes:
- Voluntários;
- Postos de atendimento;
- Hospital;
Inclusão e exclusão de participantes:
- Gravidade;
- Comorbidade;
- Semelhança com população alvo;

Pedro Kallas Curiati 608


O desenho foi adequado?
Terapêutica:
- Ensaio clínico randomizado;
Prognóstico:
- Estudo de coorte;
Diagnóstico:
- Estudo de corte transversal;
Etiologia:
- Estudos de coorte e caso-controle;
Rastreamento:
- Estudos de corte transversal e ensaio clínico randomizado;
Qual a questão clínica investigada? Como foi comparada?
Qual o resultado avaliado? Como foi medido?

Erros sistemáticos foram evitados ou minimizados?


Aleatorização em ensaios clínicos.
Perdas de seguimento em ensaios clínicos e estudos de coorte.
Seleção de controles em estudos de caso-controle.
Medida de exposição em estudos de coorte, de caso controle e de corte
transversal.
Controle de confusão em estudos de coorte, de caso controle e de corte
transversal.

Bibliografia
Fletcher, Robert H. Epidemiologia clínica : elementos essenciais / Robert H. Fletcher, Suzanne W. Fletcher ; tradução Roberta
Marchiori Martins. – 4. Ed. – Porto Alegre : Artmed, 2006.

Pedro Kallas Curiati 609


ESTUDOS DE NÃO-
INFERIORIDADE
Conceito
Estudos de não-inferioridade são modelos experimentais desenvolvidos com o
objetivo de determinar se um novo tratamento ou procedimento não é menos eficaz que
outro já estabelecido e considerado como controle. São de grande importância no estudo
de tratamentos em que o uso de placebo é inviável.
Requerem metodologia diferente dos estudos clássicos, chamados de estudos de
superioridade, especialmente no planejamento e na análise estatística. Um frequente
erro de lógica cometido na interpretação dos estudos clínicos tradicionais é o de admitir
equivalência dos tratamentos quando não foi possível mostrar diferenças significativas,
já que a não-significância em um teste tradicional não suporta a conclusão de não-
diferença em função da possibilidade de erro tipo 2.

Método
Como é fundamentalmente impossível demonstrar que dois tratamentos são
iguais, a partir da década de 1970 surgiram novos procedimentos metodológicos que
permitiram o desenvolvimento dos chamados estudos de equivalência, destinados a
mostrar a ausência de diferenças importantes entre tratamentos, e dos estudos de não-
inferioridade, de crescente utilização, que têm o objetivo de mostrar que um novo
tratamento não é, dentro de certos critérios, menos eficaz que outro já existente.
Os estudos de equivalência tornaram-se essenciais para a aprovação regulatória
dos medicamentos genéricos, enquanto os estudos de não-inferioridade são hoje
utilizados em situações nas quais comparações com placebo são inviáveis e controles
ativos são necessários.
As diferenças entre os estudos de superioridade, equivalência e não-inferioridade
estão essencialmente na formulação das hipóteses a serem testadas. Rejeitar a hipótese
nula significa, para os estudos de superioridade, que a medida de eficácia do novo
tratamento (T) é superior à medida de eficácia do tratamento controle (C), para os
estudos de não-inferioridade, que a diferença entre as medidas de eficácia do novo
tratamento (T) e do tratamento controle (C) é menor que uma margem de não-
inferioridade (M), e para os estudos de equivalência, que o módulo da diferença entre
as medidas de eficácia do novo tratamento (T) e do tratamento controle (C) é menor que
uma margem de equivalência (M). Em essência, o termo equivalente significa não-
inferior e não-superior.

Pedro Kallas Curiati 610


Tipo de estudo Hipótese nula Hipótese alternativa
Superioridade C–T≥0 C–T<0
Não-inferioridade C–T≥M C–T<M
Equivalência │C- T│ ≥ M │C- T│ < M

Interpretação
Os estudos de não-inferioridade são destinados a estabelecer se um novo
tratamento não é menos eficaz que um tratamento padrão por mais que uma margem de
tolerância fixada previamente e denominada margem de não-inferioridade (M). Nesses
estudos, a hipótese nula é a de que o tratamento em investigação é inferior ao controle
por uma diferença maior ou igual a M, e a hipótese alternativa é a de que a diferença
entre tratamentos é menor que a margem. O método de escolha para a análise dos
estudos de não-inferioridade consiste na construção de intervalos de confiança,
usualmente de 95%. O tratamento é declarado não-inferior se o limite inferior do
intervalo de confiança da diferença entre tratamento e controle não incluir o valor da
margem especificada.
Um produto que se mostra não-inferior em relação a um tratamento estabelecido
quanto a uma variável de eficácia pode, entretanto, apresentar vantagens importantes,
como melhor tolerabilidade, conveniência de uso, vantagens galênicas, diferentes vias
de metabolização, menos interações, entre outras.
No planejamento, análise e interpretação dos estudos de não-inferioridade, pelo
menos cinco fatores devem ser cuidadosamente considerados para garantir a validade do
estudo:
1. Escolha da margem de não-inferioridade;
2. Número de pacientes necessários ao estudo;
3. Controle da sensibilidade do estudo;
4. Definição da população de análise;
5. Justificativa ética.
A margem de não-inferioridade quantifica a máxima perda de eficácia
clinicamente aceitável para que o tratamento em estudo possa ser declarado não-inferior
ao controle. Por conseguinte, não pode exceder a mínima diferença clinicamente
relevante que seria utilizada em um estudo de superioridade e, para assegurar a
manutenção de alguma eficácia, não pode ser igual ou maior que o efeito integral do
tratamento controle. A sua especificação é uma tarefa difícil, porém essencial, sendo
também um dos elementos necessários para o cálculo do tamanho da amostra. Valores
excessivamente altos para margem de não-inferioridade aumentam a probabilidade de
que tratamentos inferiores sejam declarados não-inferiores, enquanto valores pequenos,
mais conservadores, exigem amostras maiores, tornando mais dispendiosos os estudos
devido a um número maior de pacientes, além de óbvias implicações éticas. O valor da
margem de não-inferioridade deve ser estabelecido com base em considerações clínicas
e estatísticas e definido a priori, podendo ser especificado em termos absolutos ou
relativos, como diferenças entre médias ou proporções ou logaritmos de razão de
chances (odds ratio) ou relações entre taxas de risco (hazard rate). De uma forma
simples, a margem de não-inferioridade pode ser fixada como uma porcentagem do
efeito estimado do controle no estudo atual, usualmente entre 10% e 20%. A sua
definição deve, entretanto, levar em consideração a área terapêutica e a magnitude do
efeito do grupo controle. Deve-se também considerar a existência de outros possíveis
benefícios, de modo que aceita-se uma margem maior se existem vantagens clínicas
como uma redução importante de reações adversas.
Atualmente, há uma tendência em definir o valor da margem de não-

Pedro Kallas Curiati 611


inferioridade predominantemente por meio de considerações estatísticas, deixando o
julgamento clínico em uma posição menos decisiva. Assim, utilizando dados históricos
de estudos comparando o tratamento controle com placebo, é possível derivar
comparações indiretas para assegurar que, mesmo na inexistência de um grupo placebo,
o tratamento em estudo seja superior ao placebo. Isso é conhecido como comparação
com placebo putativo. Se a magnitude do efeito do controle é designada por C e P é o
efeito do placebo baseado em dados históricos, a margem de não-inferioridade M será
sempre uma fração de C-P, ou seja: M = x% de (C-P). Dessa maneira, pode-se também
controlar quanto do efeito de C se quer preservar em T. Usualmente, aceita-se 50% a
75% como fração a ser preservada do efeito estimado do controle em relação ao
placebo. Nesse caso, M seria 25% a 50% do efeito líquido de C. A margem de não-
inferioridade pode ainda ser decidida pela chamada “50% rule”, endossada pela agência
americana Food and Drug Administration (FDA), a qual preconiza que o valor de M
deve ser menor (de preferência 50%) que o limite inferior do intervalo de confiança
obtido de dados históricos que comparam o tratamento controle com placebo.
No cálculo do número de pacientes necessários em um estudo clínico, leva-se
em consideração a probabilidade alfa (erro tipo I ou falso-positivo) e a probabilidade
beta (erro tipo II ou falso-negativo). No contexto dos estudos de não-inferioridade, esses
erros têm, de certa forma, interpretação reversa. Alfa quantifica o risco de se declarar
falsamente não-inferioridade, de modo que pacientes futuros poderão usar um
medicamento inferior, enquanto que beta quantifica o risco de se concluir falsamente
pela inferioridade, significando que pacientes futuros podem não se beneficiar do novo
medicamento. Além disso, o tamanho da amostra dependerá também do valor
estipulado para a margem de não-inferioridade e da variabilidade dos dados. Mantidas
as mesmas propriedades estatísticas e sendo a margem de não-inferioridade sempre
menor que a diferença clinicamente relevante dos estudos de superioridade, o número
de pacientes necessários aos estudos de não-inferioridade será sempre maior que o
correspondente número para os estudos clássicos de superioridade.
Sensibilidade de ensaio é a propriedade de um ensaio clínico ser capaz de
discriminar um tratamento eficaz de placebo ou, de uma maneira mais geral, é a
propriedade de detectar diferenças entre tratamentos quando elas de fato existem. A
sensibilidade de ensaio depende, entre outros fatores, da magnitude do efeito do
tratamento e da qualidade de execução do ensaio, além de fatores como aderência,
critérios de seleção de pacientes e do excesso de variabilidade dos dados. É, portanto,
um conceito mais abrangente que o poder estatístico do estudo. Idealmente, um estudo
de não-inferioridade deveria incluir um grupo placebo para certificar que, neste estudo
em particular, o grupo controle foi eficaz. Como essa situação é quase sempre inviável,
uma comparação de não-inferioridade que indica uma diferença de eficácia entre o
grupo controle e o tratamento em estudo menor que a margem de não-inferioridade
pode significar que os dois tratamentos foram eficazes ou que ambos foram ineficazes.
Um estudo de não-inferioridade sem um grupo placebo somente poderá ser validado se
for possível assumir que no estudo atual o grupo controle foi eficaz. O pressuposto de
eficácia do grupo controle deve ser assumido ou deduzido de forma transitiva, com base
em dados históricos. Além da evidência histórica, deve também existir o pressuposto de
constância, garantindo que a evidência de eficácia não variou do passado até o presente.
Outro fator importante para garantir a superioridade em relação a placebo é a
escolha do comparador. Se um tratamento que se demonstrou não-inferior a um padrão
reconhecido é posteriormente utilizado como controle em estudos futuros, corre-se o
risco de degradar a eficácia e terminar com tratamentos não-superiores a placebo.
Tratamentos ligeiramente inferiores, porém dentro da margem, tornando-se controles

Pedro Kallas Curiati 612


para uma nova geração de estudos de não-inferioridade, resultam em progressiva perda
de confiabilidade. Esse fenômeno da degeneração do comparador é denominado de
biocreep e ressalta a necessidade de seleção criteriosa do controle.
Os resultados dos estudos clínicos podem ser analisados considerando-se dois
possíveis conjuntos de dados. O primeiro inclui toda a população randomizada,
independentemente de desistências, perdas ou falta de adesão ao tratamento, e é
definido pela intenção de tratar, referido pela sigla ITT (intention-to-treat). O segundo
conjunto inclui somente os pacientes que completaram o tratamento e que não
cometeram nenhuma violação de protocolo, tratando-se de um subconjunto do anterior,
referido pela sigla PP (per-protocol). Algumas vezes, utiliza-se um conjunto
intermediário, conhecido como MITT (modified intention-to-treat), que inclui todos os
pacientes, exceto aqueles que não receberam nenhuma dose do tratamento. Para os
estudos de superioridade existe o consenso de que o conjunto ITT deve ser preferido. A
justificativa é que essa estratégia previne viés de atrito, preserva a randomização inicial
e, mais importante, representa uma salvaguarda contra suspeitas de exclusão consciente
ou inconsciente de dados indesejáveis. É também reconhecido que a análise segundo o
ITT fornece um resultado mais conservador, diminuindo as diferenças entre tratamentos
e, por essa mesma razão, introduz um viés oposto aos estudos de equivalência ou não-
inferioridade. A análise segundo o principio PP, por ser feita em uma população de
pacientes mais aderentes ao tratamento, tem maior eficiência em discriminar
tratamentos e por isso é, segundo muitos, a estratégia a ser seguida na análise de estudos
de não-inferioridade. Contudo, essa recomendação não é livre de controvérsias por
inflacionar o erro tipo II. A solução pragmática encontrada pelas principais autoridades
sanitárias é recomendar a análise pelos dois métodos e requerer que os resultados sejam
robustos e consistentes. O planejamento de análise segundo PP tem implicações no
cálculo do tamanho da amostra e deve-se permitir uma provisão adequada para uma
taxa estimada de perdas.
Um estudo que demonstra superioridade revela a sua sensibilidade
simultaneamente. Por outro lado, um estudo que demonstra efeitos similares entre dois
tratamentos, não o faz. Dessa forma, um ensaio clínico bem executado que corretamente
demonstra efeitos similares entre dois tratamentos não pode ser distinguido, com base
nos dados apresentados apenas, de um ensaio clínico mal executado que falha em
encontrar uma diferença verdadeira. O estudo de não-inferioridade depende de dados
como procedimentos de controle da qualidade e reputação do investigador para que seja
assumida a sua sensibilidade. Uma má aderência, medidas imprecisas e processos
degradados aumentam a variabilidade e mascaram as diferenças entre tratamentos. O
que pode ser devastador para um estudo de superioridade produz efeito inverso nos
estudos de não-inferioridade. Diluir diferenças aumenta a probabilidade de resultados
falso-positivos, declarando não-inferiores tratamentos que de outra forma não o seriam.
A ausência desse “incentivo de qualidade” torna os estudos de não-inferioridade muito
mais complexos.
Cegamento não protege contra viés tão bem em um estudo de não-inferioridade
como em um estudo de superioridade. Em um estudo de superioridade, o investigador
cegado não consegue conscientemente ou inconscientemente influenciar o resultado
para dar suporte à sua crença na superioridade, enquanto que em um estudo de não-
inferioridade não há proteção quanto à influência de um investigador cegado enviesando
os resultados para dar suporte à sua crença de equivalência ao atribuir avaliações
similares à resposta ao tratamento para todos os pacientes.
O princípio de equipolência clínica (clinical equipoise) fornece uma justificativa
ética para os estudos clínicos randomizados. Equipolência clínica é o estado de

Pedro Kallas Curiati 613


incerteza genuína sobre qual dentre dois ou mais tratamentos é o mais eficaz e seguro.
Existe um considerável desacordo sobre o uso de placebo. Situações existem nas quais o
seu uso é perfeitamente justificável e outras nas quais o seu emprego não é considerado
ético. Os estudos de não-inferioridade representam uma contribuição metodológica para
reduzir a exposição de pacientes a placebo. No entanto, a própria definição desses
estudos implica que o tratamento em avaliação pode ser, a menos de uma margem,
inferior ao controle e isso é, por si só, suficiente para desencadear questionamentos
éticos.

Avaliação de superioridade
Ambas não-inferioridade e superioridade podem ser avaliadas no mesmo ensaio
clínico sem prejuízo estatístico. Se um protocolo tem uma hipótese de não-inferioridade,
mas não uma hipótese de superioridade, é valido realizar ambos os testes. No entanto, se
um protocolo tem uma hipótese de superioridade, mas não uma hipótese de não-
inferioridade, adicionar a hipótese de não-inferioridade após o término pode ser
problemático pelo componente subjetivo da definição da margem de não-inferioridade.

Bibliografia
Estudos clínicos de não-inferioridade: fundamentos e controvérsias. Valdair Ferreira Pinto. J Vasc Bras 2010, Vol. 9, Nº 3.
Non-inferiority trials. Steven M Snapinn. Curr Control Trials Cardiovasc Med 2000, 1:19–21.
Through the looking glass: understanding non-inferiority. Jennifer Schumi and Janet T Wittes. Trials 2011, 12:106.

Pedro Kallas Curiati 614


CÂNCER DE CÓLON
Epidemiologia
O câncer colo-retal é o terceiro tipo de câncer mais comum nos Estados Unidos
e geralmente constitui a segunda causa de morte por doença neoplásica.
Apesar de incidir com maior frequência na população idosa, cerca de 10% dos
casos ocorrem em indivíduos com idade igual ou inferior a cinquenta anos. Há
predomínio discreto em homens e afrodescendentes.

Fisiopatologia
O câncer colo-retal é causado pelo acúmulo de múltiplas lesões genéticas de
maneira sequencial ao longo do tempo. A patogênese inicial envolve mutação no gene
APC, que regula o crescimento celular e a apoptose, ou em um dos genes envolvidos no
reparo do mau pareamento do DNA, com falha na reparação de erros de transcrição do
DNA e acúmulo de novas mutações. A patogênese do câncer colo-retal ainda requer
mutações adicionais, incluindo o gene supressor de tumor DCC, o gene regulador do
ciclo celular p53 e o gene KRAS, envolvido na transdução de sinais mitogênicos através
das membranas celulares. A metilação do DNA pode resultar em inativação de genes
supressores de tumor, como p14 e p16.
Cerca de 96-98% dos cânceres colo-retais são adenocarcinomas, cujas variantes
incluem mucinoso, não-mucinoso e com células em anéis de sinete. Padrões
histológicos mais raros incluem tumor neuroendócrino, carcinoma epidermoide,
localizado predominantemente no reto, linfoma e sarcoma, incluindo GIST. A
apresentação geralmente é na forma de doença localizada, independentemente do tipo
histológico.
Fatores predisponentes incluem idade avançada, sexo masculino, raça negra,
doença inflamatória intestinal, antecedente familiar e síndromes hereditárias, que, no
entanto, estão associadas a uma porcentagem pequena dos cânceres colo-retais.
Também existem evidências de que obesidade, sedentarismo, tabagismo, etilismo
excessivo, dieta rica em alimentos gordurosos e pobre em fibras, ureterocolostomia,
transplante renal, acromegalia, infecção pelo HIV e hipoandrogenismo aumentam o
risco de câncer colo-retal.

Pólipos colônicos
Pólipo intestinal é definido como massa grosseiramente visível de células
epiteliais com protrusão a partir da superfície mucosa para o lúmen do intestino. Pode
ser séssil, plano ou pedunculdado. É classificado em não-neoplasico e neoplásico ou
adenomatoso. Pode raramente causar sintomas, como sangramento, prolapso ou
obstrução. Pólipo neoplásico apresenta potencial de tornar-se maligno.
Pólipos não-neoplásicos, também denominados não-adenomatosos, que
correspondem a cerca de 90% de todos os pólipos detectados no intestino grosso, podem
ser encontrados em mais da metade das pessoas na faixa etária geriátrica. São
categorizados em hiperplásicos, inflamatórios, linfoides e juvenis. A maior parte dos
pólipos não-neoplásicos são hiperplásicos e resultam de maturação anormal de células
epiteliais da mucosa, com pequeno diâmetro e localização preferencial no sigmoide
distal e no reto. Pólipos hiperplásicos geralmente não estão associados a aumento do
risco de malignidade, mas indivíduos com múltiplos pólipos hiperplásicos grandes e
com predomínio à direita podem apresentar risco aumentado. Pacientes com doença

Pedro Kallas Curiati 615


inflamatória intestinal podem desenvolver pseudopólipos inflamatórios, que podem
necessitar de biópsia para diferenciação com pólipos neoplásicos. Pólipos linfoides são
regiões da mucosa com tecido linfoide em grande quantidade. Pólipos juvenis
geralmente se desenvolvem no reto de crianças com idade inferior a cinco anos e são
denominados hamartomatosos porque são malformações focais semelhantes a tumores,
mas que são causados por desenvolvimento anormal da lâmina própria, sem necessidade
de tratamento na ausência de sintomas ou de síndrome genética.
Pólipos adenomatosos ou adenomas são pólipos neoplásicos com potencial de
malignidade. São considerados precursores do adenocarcinoma colo-retal, com
distribuição anatômica semelhante, e existem evidências de que a sua remoção leva a
diminuição significativa no risco de câncer colo-retal. Podem apresentar um amplo
espectro de tamanhos e podem ser sésseis, planos ou pedunculados. São relativamente
comuns, particularmente na população idosa, sendo identificados através de
colonoscopia em 15% das mulheres e 25% dos homens com idade superior a cinquenta
anos. O desenvolvimento dos pólipos adenomatosos envolve uma sequência específica
de mutações, com desbalanço entre proliferação epitelial e morte celular. Os adenomas
são classificados em três tipos histológicos principais, adenoma tubular, mais comum,
geralmente pequeno e pedunculado, raramente com displasia de alto grau ou carcinoma,
adenoma viloso, mais raro, geralmente grande e séssil, com maior prevalência de
displasia de alto grau e carcinoma, e adenoma túbulo-viloso. Adenomas avançados são
caracterizados por tamanho superior ou igual a 1cm, histologia vilosa de qualquer tipo
e/ou displasia de alto grau. Pacientes com adenomas avançados ou múltiplos, definidos
como três ou mais adenomas, apresentam risco bastante aumentado de câncer colo-retal
sincrônico, com desenvolvimento simultâneo, e metacrônico, com desenvolvimento
após um intervalo de tempo de seis meses. O quadro clínico geralmente é assintomático,
mas podem ocorrer sangue oculto nas fezes ou mesmo hematoquezia evidente. A
incidência de adenomas adicionais em pacientes com um adenoma conhecido é de 30-
50% ao longo da vida. Menos de 5% dos adenomas evoluem para adenocarcinoma, com
risco influenciado pelo tamanho e pelo grau de displasia. O diagnóstico pode ser feito
com endoscopia, radiografia com bário ou tomografia computadorizada. Colonoscopia é
o método diagnóstico preferido em função de elevada acurácia e possibilidade de
biópsia e ressecção dos pólipos encontrados. O objetivo do tratamento é remover ou
destruir as lesões durante a endoscopia, com redução de mortalidade e incidência de
câncer colo-retal. Ressecção cirúrgica é indicada quando a ressecção endoscópica de um
pólipo avançado não é possível. É necessária avaliação histológica para determinar a
presença ou a ausência de carcinoma. Se lesão maligna for identificada, é necessário
determinar grau histológico, envolvimento vascular, envolvimento linfático e
proximidade da margem de ressecção. Pólipos pedunculados com câncer confinado à
submucosa, sem características histológicas desfavoráveis, podem ser tratados de forma
definitiva com ressecção endoscópica, sem necessidade de ressecção cirúrgica.
Pacientes submetidos a ressecção de pólipo adenomatoso apresentam risco aumentado
de desenvolvimento subsequente de adenoma e adenocarcinoma colo-retais, que é
influenciado por tamanho, histologia e número de adenomas. Pacientes de baixo risco,
com apenas um ou dois adenomas tubulares pequenos, com tamanho inferior a 1cm,
devem ser submetidos a colonoscopia de controle após cinco anos. Pacientes com três a
dez adenomas, adenomas com tamanho superior ou igual a 1cm, adenomas com
histologia vilosa ou adenomas com displasia de alto grau devem ser submetidos a
colonoscopia de controle após três anos. Pacientes com mais de dez adenomas devem
ser submetidos a colonoscopia de controle dentro do período de três anos. Pacientes
com adenoma com tamanho superior ou igual a 2cm ou adenoma removido em pedaços

Pedro Kallas Curiati 616


devem ser submetidos a colonoscopia de controle dentro do período de seis meses para
avaliar a ressecção.

Síndromes genéticas relacionadas a câncer colo-retal


O câncer colo-retal hereditário não-polipomatoso (HNPCC), também conhecido
como síndrome de Lynch, é a síndrome genética relacionada a câncer colo-retal mais
comum, sendo responsável por cerca de 2% de todos os casos de câncer colo-retal.
Apresenta herança autossômica dominante com penetrância elevada. Clinicamente, o
HNPCC é definido por três ou mais parentes com câncer associado à síndrome, como
câncer colo-retal, endometrial, gástrico, do intestino delgado, ovariano, pancreático,
ureteral ou da pelve renal, sendo necessária a confirmação histológica dos diagnósticos,
câncer colo-retal envolvendo pelo menos duas gerações e diagnóstico de câncer em um
ou mais familiares antes dos cinquenta anos de idade. O HNPCC é causado por mutação
com perda de função em linhagens germinativas em genes envolvidos no reparo do mau
pareamento do DNA. A idade média ao diagnóstico é na quinta década de vida. Apesar
de poderem ocorrer adenomas, a polipose difusa característica da polipose adenomatosa
familiar não é encontrada. A neoplasia colônica apresenta predomínio à direita,
proximal à flexura esplênica. Apesar de tendência para pouca diferenciação, geralmente
há melhor prognóstico do que cânceres esporádicos similares. É comum a ocorrência de
câncer colo-retal sincrônico e metacrônico. Também há risco aumentado para outras
neoplasias malignas, especialmente de endométrio, ovário, estômago, intestino delgado,
trato hepatobiliar, ureter e pâncreas. A síndrome de Muir-Torre, uma variante do
HNPCC, é associada a lesões cutâneas e malignidades viscerais. O rastreamento do
HNPCC pode ser feito com teste de instabilidade de microssatélites, imuno-
histoquímica para produtos dos genes envolvidos no reparo do mau pareamento do
DNA e/ou teste para mutação no gene BRAF. A confirmação deve ser feita com
avaliação da linhagem germinativa. Indica-se colectomia subtotal em caso de câncer
colo-retal ou grande adenoma. Indivíduos potencialmente afetados pela síndrome de
Lynch devem ser rastreados com colonoscopia a cada dois anos a partir dos vinte a vinte
e cinco anos de idade ou dez anos antes da idade do diagnóstico mais precoce de câncer
colo-retal na família e a cada ano a partir dos quarenta anos de idade. Mulheres de
famílias afetadas pela síndrome de Lynch devem ser submetidas a exame pélvico a cada
um a três anos a partir dos dezoito anos de idade e ultrassonografia transvaginal e
biópsia endometrial anuais a partir dos trinta a trinta e cinco anos de idade ou cinco a
dez anos antes da idade do diagnóstico mais precoce de câncer de endométrio ou ovário
na família, podendo-se considerar histerectomia total abdominal e salpingo-
ooforectomia bilateral profiláticas no momento da colectomia parcial. Também
recomenda-se urina tipo 1 anual a partir dos vinte e cinco a trinta e cinco anos de idade,
exame dermatológico anual e endoscopia digestiva alta regularmente.
A polipose adenomatosa familiar é uma condição de herança autossômica
dominante com penetrância incompleta caracterizada pelo desenvolvimento de centenas
a milhares de pólipos adenomatosos e câncer colo-retal. Está relacionada a mutações no
gene APC, que é regulador crítico do crescimento das células epiteliais intestinais. Os
adenomas começam a surgir na segunda década de vida, com distribuição relativamente
homogênea por todo o cólon, e sintomas gastrointestinais começam a surgir na terceira
ou na quarta décadas de vida. Praticamente todos os pacientes acometidos desenvolvem
câncer colo-retal até os quarenta anos de idade na ausência de tratamento. Podem
ocorrer também pólipos gástricos, adenomas duodenais e, com menor frequência,
câncer de duodeno periampular. Na forma atenuada da síndrome ocorre o
desenvolvimento de menos de cem adenomas colônicos, com predomínio à direita e

Pedro Kallas Curiati 617


desenvolvimento de câncer colo-retal cerca de dez anos mais tardio. Teste genético
pode identificar a mutação em cerca de 85% dos pacientes e é útil para indicação de
rastreamento familiar, também devendo ser realizado em indivíduos sem história
famíliar, mas com mais de cem adenomas. O tratamento da polipose adenomatosa
familiar consiste em proctocolectomia com ileostomia convencional ou anastomose
ileoanal com bolsa ileal. Indivíduos com mutação no gene APC ou sem mutação
identificada, mas com antecedente familiar de polipose adenomatosa familiar, devem
ser rastreados com colonoscopia anual a partir dos dez ou doze anos de idade. Em
famílias com mutações conhecidas do gene APC, indivíduos com teste genético
negativo devem ser submetidos à rotina básica de rastreamento. Pacientes com polipose
adenomatosa familiar devem ser rastreados para polipose duodenal com endoscopia
digestiva alta a partir dos vinte anos de idade, com continuidade do seguimento
conforme histologia e quantidade de pólipos encontrados.
Síndrome de Gardner é um subtipo fenotípico da polipose adenomatosa familiar,
também causado por mutação no gene APC. Distingue-se pela presença de
manifestações extra-intestinais, como osteomas, particularmente da mandíbula, tumores
de partes moles, como lipomas, cistos sebáceos e fibrossarcomas, dentes
supranumerários, tumores desmoides, fibromatose mesentérica e hipertrofia congênita
do epitélio pigmentar da retina. As diferenças fenotípicas parecem resultar de variação
na localização da mutação no gene APC, genes modificadores e fatores ambientais. As
recomendações para tratamento e rastreamento de carcinoma colo-retal são as mesmas
da polipose adenomatosa familiar.
Síndrome de Turcot é caracterizada pela associação de polipose colo-retal com
neoplasias malignas do sistema nervoso central, como meduloblastoma, glioblastoma e
ependimoma. Mutações no gene APC são responsáveis por dois terços dos casos,
enquanto que mutações nos genes de reparo do mau pareamento do DNA (DNA
mismatch repair genes) são responsáveis pelo terço restante dos casos.
A polipose associada à mutação no gene MYH é uma síndrome de herança
autossômica recessiva recentemente descrita. Está associada a mutações adquiridas no
gene APC e em outros genes, como o KRAS, com formação de adenomas e
desenvolvimento de adenocarcinomas. O quadro clínico é semelhante ao dos pacientes
com a forma atenuada da polipose adenomatosa familiar, podendo ocorrer de cinco a
centenas de adenomas. Podem ocorrer também pólipos gastroduodenais, carcinoma
duodenal, osteoma, câncer de bexiga, câncer de pele, hipertrofia congênita do epitélio
pigmentar da retina e, em mulheres, cânceres de mama e ovários. O diagnóstico deve
ser suspeitado pela presença de polipose colônica sem polipose adenomatosa familiar ou
pela herança de padrão autossômico recessivo, situações nas quais o teste genético para
mutações no gene MYH deve ser considerado. Pacientes com numerosos pólipos devem
ser submetidos a colectomia, enquanto que pacientes com forma leve podem ser
considerados para colonoscopia com polipectomia a cada um ou dois anos a partir dos
vinte e cinco a trinta anos de idade, além de endoscopia digestiva alta para vigilância de
pólipos duodenais a partir dos vinte e cinco a trinta anos de idade. Não se sabe se
portadores heterozigotos da mutação apresentam risco aumentado de câncer colo-retal,
mas recomenda-se rastreamento similar ao preconizado para indivíduos com
antecedente de familiar de primeiro grau com câncer colo-retal, que envolve
colonoscopia a cada cinco anos a partir dos quarenta anos de idade.
A síndrome de Peutz-Jeghers é uma polipose intestinal hamartomatosa do trato
gastrointestinal superior e inferior associada a pigmentação mucocutânea característica.
A idade média ao diagnóstico é a terceira década de vida. Há predisposição para
neoplasias malignas intestinais e extra-intestinais. A herança é autossômica dominante

Pedro Kallas Curiati 618


com elevada penetrância e o gene responsável é o STK11. As manifestações clínicas
mais comuns são intussuscepção, obstrução e sangramento gastrointestinais. O manejo
envolve exame físico anual com avaliação de mamas, abdômen, pelve e testículos,
radiografia de intestino delgado a cada dois anos, ultrassonografia endoscópica de
pâncreas a cada um ou dois anos e, em mulheres, colpocitologia oncótica,
ultrassonografia transvaginal, CA-125 e mamografia anuais. Pólipos com tamanho
superior a 1cm devem ser removidos por via endoscópica. Laparotomia e ressecção
intestinal são recomendadas para intussuscepção, obstrução e/ou sangramento
intestinais recorrentes ou persistentes. Como teste genético não está disponível,
familiares de primeiro grau devem ser rastreados desde o nascimento com anamnese,
exame físico e pesquisa de lesões mucocutâneas melanocíticas, puberdade precoce e
tumores testiculares anualmente.
Polipose juvenil familiar hamartomatosa, não neoplásica, é síndrome rara
caracterizada por dez ou mais pólipos hamartomatosos, não neoplásicos, ao longo do
trato gastrointestinal ou qualquer número de pólipos em paciente com antecedente
familiar de polipose juvenil. A síndrome tem herança autossômica dominante com
elevada penetrância e é causada por mutação nos genes SMAD4, PTEN ou BMPR1A.
Os hamartomas são histologicamente diferentes dos pólipos encontrados na síndrome de
Peutz-Jeghers. Os pacientes geralmente apresentam sangramento retal, anemia, dor
abdominal ou obstrução intestinal na infância ou no início da adolescência.
Manifestações extra-intestinais incluem malformações pulmonares arteriovenosas. O
risco de malignidade é alto, com predomínio na idade adulta. Indivíduos acometidos
pela síndrome devem ser submetidos a vigilância com colonoscopia a cada um ou dois
anos a partir dos quinze a dezoito anos e endoscopia digestiva alta a cada um ou dois
anos a partir dos vinte e cinco anos. Indivíduos com pólipos numerosos, grandes ou com
displasia de alto grau podem ser considerados para colectomia subtotal. Familiares
devem ser rastreados com colonoscopia a cada três a cinco anos a partir dos doze anos
de idade.
Síndrome do tumor hamartoma PTEN é uma condição rara, autossômica
dominante, relacionada ao gene PTEN, consistindo em múltiplos pólipos
hamartomatosos benignos da pele e das membranas mucosas. A taxa de neoplasias
malignas associadas é elevada, incluindo tireoide, mamas e órgãos reprodutivos.
A síndrome de Conkhite-Canada é uma condição adquirida rara, esporádica,
caracterizada por múltiplos pólipos hamartomatosos ao longo do trato gastrointestinal
em associação com alopecia, pigmentação cutânea e atrofia dos leitos ungueais.
Manifestações incluem diarreia, enteropatia perdedora de proteínas, sangramento
gastrointestinal, intussuscepção e prolapso retal. Há risco de câncer gástrico e colo-retal,
com recomendação para vigilância endoscópica.

Rastreamento
O objetivo do rastreamento é reduzir a mortalidade relacionada ao câncer colo-
retal através da remoção de adenomas precursores e detecção de tumores malignos em
estágios mais precoces e curáveis. A longa latência entre o desenvolvimento de
adenoma e a evolução para carcinoma, ao redor de dez a vinte anos, torna o câncer colo-
retal uma doença prevenível através de colonoscopia com polipectomia.
Para determinar se um paciente apresenta risco aumentado para câncer colo-
retal, deve-se questionar a cada cinco a dez anos a partir dos vinte anos de idade quanto
a antecedente pessoal de câncer colo-retal e/ou pólipo adenomatoso, antecedente
pessoal de doença inflamatória intestinal e antecedente familiar de câncer colo-retal
e/ou pólipo adenomatoso avançado. O paciente é considerado de risco usual em caso de

Pedro Kallas Curiati 619


resposta negativa para todas as perguntas. Em caso de resposta afirmativa para qualquer
uma das perguntas o risco poderá estar aumentado e será necessária avaliação mais
aprofundada. A magnitude do aumento do risco de câncer colo-retal relacionada aos
antecedentes familiares depende do número de familiares acometidos, do grau de
parentesco e da idade no momento do diagnóstico do câncer colo-retal.
Antecedente familiar de câncer colo-retal ou pólipo adenomatoso avançado
incidindo em parente de segundo grau ou em único parente de primeiro grau com idade
superior a sessenta anos no momento do diagnóstico está relacionado a aumento do
risco de câncer colo-retal, mas a magnitude não é grande o suficiente para justificar
mudar a rotina de rastreamento em relação àquela recomendada para a população geral.
Indivíduos de risco usual devem iniciar o rastreamento aos cinquenta anos de
idade e descontinuar após os setenta e cinco anos de idade ou quando sua expectativa de
vida for inferior a dez anos. Indivíduos de risco aumentado, com antecedente familiar de
parente de primeiro grau com idade inferior a sessenta anos no momento do diagnóstico
de câncer colo-retal ou pólipo adenomatoso avançado ou dois parentes de primeiro grau
com câncer colo-retal ou pólipo adenomatoso avançado, devem iniciar o rastreamento
aos quarenta anos de idade ou dez anos antes da idade do parente no momento em que
foi diagnosticado o câncer colo-retal. São reconhecidas múltiplas opções de
rastreamento, mas recomenda-se preferir testes estruturais, com capacidade para
detectar tanto o câncer colo-retal como lesões pré-cancerosas, como colonoscopia,
colonoscopia virtual por tomografia computadorizada, sigmoidoscopia flexível e enema
baritado com duplo contraste. A colonoscopia ainda permite a prevenção do câncer
colo-retal através da realização de polipectomia, devendo ser realizada a cada dez anos
em indivíduos com risco usual e a cada cinco anos em indivíduos com risco aumentado
para câncer colo-retal. Sigmoidoscopia flexível, colonoscopia virtual por tomografia
computadorizada e enema baritado com duplo contraste devem ser realizados a cada
cinco anos e um resultado positivo demanda a realização de colonoscopia. Pesquisa de
sangue oculto nas fezes deve ser realizada anualmente e um resultado positivo demanda
a realização de colonoscopia. Testes de DNA nas fezes não têm um intervalo bem
definido para repetição até o momento, mas o fabricante recomenda cinco anos. Pólipos
com tamanho superior a 6mm devem ser biopsiados.
Pacientes com retocolite ulcerativa ou doença de Crohn devem ser submetidos a
colonoscopia a cada um ou dois anos, com início oito a dez anos após o início das
manifestações clínicas da doença inflamatória intestinal. Múltiplas biópsias devem ser
obtidas, com amostragem de qualquer lesão suspeita.
Indivíduos com bacteremia ou endocardite por Streptococcus bovis apresentam
taxas aumentadas de câncer colo-retal e devem ser submetidos a colonoscopia.
Pacientes com síndromes genéticas, com risco máximo de câncer colo-retal,
devem ser rastreados conforme protocolos específicos.

Prevenção
Indivíduos com risco aumentado para câncer colo-retal devem ser incentivados a
cessar tabagismo, reduzir o consumo de álcool, aumentar o consumo de frutas e vegetais
e praticar atividade física.
Anti-inflamatórios não-hormonais, incluindo Ácido Acetilsalicílico, com pelo
menos 75mg/dia durante cinco anos, podem reduzir a formação de adenomas e inibir o
desenvolvimento do câncer colo-retal. Suplementação de cálcio, com 1200mg/dia,
diminuiria a taxa de adenomas metacrônicos, mas não há evidência de redução na
incidência de câncer colo-retal. O uso rotineiro de Ácido Acetilsalicílico e a
suplementação de cálcio não são recomendados de forma rotineira, mas podem ser

Pedro Kallas Curiati 620


considerado individualmente, caso-a-caso.

Quadro clínico
Sintomas comuns relacionados à doença primária incluem sangramento
gastrointestinal, dor abdominal e alteração do hábito intestinal. Pacientes com doença
disseminada apresentam anorexia, emagrecimento e sintomas relacionados a disfunção
hepática, como icterícia e ascite.
Tumores proximais tendem a produzir com maior frequência sangramento e
sintomas associados, enquanto que tumores mais distais apresentam com maior
frequência obstrução e perfuração intestinais. Cânceres de reto podem ainda se
manifestar com tenesmo e afilamento das fezes, além de dor neuropática por
envolvimento do plexo nervoso sacral.
A anamnese deve incluir antecedente pessoal de câncer colo-retal, pólipos
adenomatosos e doença inflamatória intestinal e antecedente familiar de neoplasia
colônica.
O exame físico deve incluir pesquisa de lesões extra-intestinais características
das síndromes de Gardner e de Peutz-Jeghers, além de sinais de disseminação sistêmica
da doença, como linfonodos supraclaviculares aumentados ou nódulos de Virchow,
fígado aumentado, massa umbilical ou nódulo de Sister Mary Joseph e ascite. O toque
retal pode revelar um tumor intestinal distal ou sinais de disseminação local, com
prateleira de Blumer.

Avaliação complementar
As fezes podem apresentar sangue oculto ou evidente em parcela significativa
dos casos avançados. Anemia por deficiência de ferro e elevação de enzimas hepáticas
corroboram o diagnóstico. Os níveis de antígeno carcinoembrionário (CEA) podem
estar elevados, mas não devem guiar o diagnóstico em função de baixa sensibilidade e
especificidade, com indicação de dosagem no período pré-operatório visando
seguimento clínico após o tratamento.
Colonoscopia é o método diagnóstico de escolha e permite a identificação de
tumores sincrônicos e a obtenção de material para análise histológica.
Ultrassonografia endoscópica permite definir o grau de invasão local, além de
identificar linfonodos aumentados e guiar amostragem para análise histológica.
Apresenta alta sensibilidade para detecção de recorrência de câncer retal.
Ressonância nuclear magnética também pode permitir um estadiamento local
acurado para câncer retal.
Tomografia computadorizada de abdômen e pelve deve ser realizada para
pesquisa de metástases hepáticas. Radiografia de tórax ou tomografia computadorizada
de tórax também são recomendadas para o estadiamento. Tomografia por emissão de
pósitrons pode ser indicada, mas não faz parte da avaliação de rotina.

Estadiamento
Tumores primários do reto podem disseminar para os pulmões sem
comprometimento do fígado, o que não é usual para tumores colônicos proximais. Isso
ocorre porque a drenagem venosa do trato gastrointestinal é feita através do sistema
porta, mas a veia retal inferior drena para a veia cava inferior.
Estadiamento TNM
Tx Tumor primário não pôde ser avaliado
T0 Sem evidência de tumor primário
Tis Carcinoma in situ – intraepitelial ou com invasão da lâmina própria

Pedro Kallas Curiati 621


T1 Tumor invade a submucosa
T2 Tumor invade a camada muscular própria
T3 Tumor invade os tecidos adjacentes ao cólon e ao reto através da camada muscular própria
T4 T4a – Tumor penetra a superfície do peritônio visceral
T4b – Tumor invade ou adere a outros órgãos e estruturas
NX Linfonodos regionais não puderam ser avaliados
N0 Sem evidência de metástases em linfonodos regionais
N1 N1a – Metástase em um linfonodo regional
N1b – Metástase em dois a três linfonodos regionais
N1c – Depósitos tumorais em subserosa, mesentério ou tecidos adjacentes ao cólon e ao reto não-
revestidos por peritônio, sem metástase para linfonodos regionais
N2 N2a - Metástase em quatro a seis linfonodos regionais
N2b - Metástase em sete ou mais linfonodos regionais
M0 Sem evidência de metástases a distância
M1 M1a – Metástases confinadas a um sítio ou órgão
M1b – Metástases em mais de um sítio ou órgão ou no peritônio

Estágios TNM
Estágio T N M
0 Tis N0 M0
I T1-2 N0 M0
IIA T3 N0 M0
IIB T4a N0 M0
IIC T4b N0 M0
IIIA T1-2 N1 M0
T1 N2a M0
IIIB T3-4 N1 M0
T2-3 N2a M0
T1-2 N2b M0
IIIC T4a N2a M0
T3-T4a N2b M0
T4b N1-2 M0
IVA Qualquer Qualquer M1a
Qualquer Qualquer M1b
Estágio I está relacionado a invasão da parede intestinal. Estágio II está
relacionado a invasão através da parede intestinal sem disseminação para linfonodos
regionais. Estágio III está relacionado a disseminação para linfonodos regionais. Estágio
IV está relacionado a disseminação para fígado, pulmões, linfonodos a distância e
retroperitônio.

Prognóstico
Além do estadiamento pelo sistema TNM, fatores adicionais que marcam pior
prognóstico em pacientes candidatos a ressecção potencialmente curativa de câncer
colo-retal incluem histologia com células em anéis de sinete, invasão linfática, vascular
ou perineural, ausência de resposta linfoide, obstrução intestinal pré-operatória, níveis
elevados de antígeno carcinoembrionário, margens positivas, tumor de alto grau e
doença microssatélite estável. O tamanho do tumor não influencia o prognóstico.

Tratamento

Ressecção endoscópica
Adenomas benignos, assim como adenomas com displasia severa ou carcinoma
in situ, sem evidência de câncer invasivo, podem ser manejados de maneira efetiva
através de polipectomia endoscópica, desde que as margens estejam livres de câncer.

Pedro Kallas Curiati 622


A ressecção endoscópica também constitui uma alternativa razoável à cirurgia
radical para casos selecionados de câncer de estádio precoce com desenvolvimento a
partir de um pólipo. No entanto, deve-se considerar cirurgia radical em caso de
histologia pouco diferenciada, invasão linfática e/ou vascular, margens cirúrgicas
comprometidas, invasão da camada muscular própria (T2) ou pólipo com características
desfavoráveis.

Cirurgia
Ressecção cirúrgica é a principal modalidade terapêutica para pacientes com
câncer colo-retal regionalmente confinado. Pacientes altamente selecionados com
doença metastática também podem ser submetidos a abordagem cirúrgica com
finalidade curativa. O objetivo é ressecção do tumor com margens livres e ressecção em
bloco da principal artéria responsável pela irrigação do território acometido juntamente
com os vasos linfáticos correspondentes. No mínimo doze linfonodos devem ser
excisados para exame microscópico para garantir a acurácia do estadiamento
patológico. A reconstrução do trânsito intestinal com anastomose primária pode ser
realizada na maior parte dos pacientes, mas derivação proximal com colostomia pode
ser necessária em caso de peritonite difusa, perfuração livre, instabilidade
hemodinâmica ou tumor obstrutivo à esquerda. Cânceres colo-retais sincrônicos podem
ser ressecados individualmente ou através de colectomia subtotal. Tumores aderidos a
estruturas adjacentes devem ser removidos em bloco. Ooforectomia profilática não é
recomendada, mas mulheres com um ovário grosseiramente envolvido com câncer
devem ser submetidas a ooforectomia bilateral por causa do risco de envolvimento
contralateral. Abordagem laparoscópica é considerada tão efetiva quanto a abordagem
cirúrgica aberta, com melhora do tempo de recuperação, constituindo opção na ausência
de obstrução, perfuração, doença localmente avançada e abordagem cirúrgica
abdominal extensa prévia.
Excisão total do mesorreto é recomendada para cânceres acometendo o reto
baixo, enquanto que excisão do mesorreto até porção 5cm distal ao tumor pode ser
suficiente para cânceres acometendo o reto alto. Excisão local transanal é aceitável para
cânceres retais baixos com mínimo risco de envolvimento linfonodal, como aqueles
com estádio T1, tamanho inferior a 3cm, bem diferenciados, localizados dentro de 8cm
da margem anal, sem invasão vascular ou linfática e com comprometimento de menos
de um terço da circunferência retal.
Dados recentes sugerem que pacientes com doença estádio IV com tumor
primário assintomático podem iniciar com segurança a terapia sistêmica sem serem
submetidos a ressecção cirúrgica.
Tumores obstrutivos que podem ser completamente removidos devem ser
ressecados, com anastomose primária sendo geralmente considerada aceitável nesse
contexto. Eventualmente, pode ser necessária estomia para desvio proximal do trânsito
intestinal, principalmente em caso de câncer localmente avançado irressecável. Outra
opção é a colocação de stent por via endoscópica para alívio de obstrução aguda.
Intestino perfurado geralmente é ressecado, com opção de anastomose primária,
com ou sem estomia para desvio proximal do trânsito intestinal a depender de fatores
como o grau de contaminação fecal e o estado geral de saúde do paciente.

Radioterapia
Radioterapia pode ser utilizada com finalidade curativa ou paliativa para
tumores colônicos de grande tamanho, com papel mais importante no tratamento do
câncer de reto do que do câncer de cólon. Pode estar relacionada a melhora do controle

Pedro Kallas Curiati 623


local após ressecção de tumores de cólon proximal volumosos e de alto risco para
recorrência local.
Recomendações atuais para irradiação adjuvante do leito tumoral após a
ressecção cirúrgica incluem margens positivas, perfuração localizada, formação de
abscesso e estádio T4. A radioterapia também pode ter papel no tratamento de
metástases ósseas, cerebrais, hepáticas e pulmonares, assim como no controle de
sangramento, obstrução ou doença localmente avançada irressecável.

Quimioterapia
As pirimidinas fluoradas constituem a base tanto do tratamento quimioterápico
adjuvante como do tratamento quimioterápico paliativo em pacientes com doença
metastática. A droga mais utilizada é o 5-Fluorouracil, cuja eficácia pode ser aumentada
com a administração de moduladores bioquímicos, como o Leucovorin. Outros agentes
quimioterápicos comumente utilizados incluem Irinotecano e Oxaliplatina.
Pacientes com câncer colo-retal estádio I ressecados apresentam elevada taxa de
cura, que não é facilmente melhorada com o uso de quimioterapia sistêmica.
Pacientes com câncer colo-retal estádio II apresentam uma chance maior de
recidiva, com potencial benefício com o uso de quimioterapia sistêmica, mas a
indicação envolve controvérsia em função de baixa magnitude absoluta do efeito.
Geralmente é oferecido esquema que não inclui Oxaliplatina, como aquele que contém a
associação de 5-Fluorouracil com Leucovorin. Acredita-se que pacientes com obstrução
intestinal clínica apresentam maior risco de recorrência e recebem quimioterapia
adjuvante com maior frequência, geralmente com os esquemas prescritos comumente
para doença estádio III.
Todos os pacientes com acometimento linfonodal devem receber quimioterapia
sistêmica adjuvante. Opções incluem a combinação 5-Fluorouracil, Leucovorin e
Oxaliplatina, assim como regimes contendo Irinotecano e biológicos, como
Bevacizumab e Cetuximab, que são indicados para pacientes com doença avançada,
mas não estão relacionados a benefício claro no contexto pós-operatório. A duração
padrão do tratamento é de seis meses.
Pacientes que não são candidatos à quimioterapia combinada são algumas vezes
tratados com Capecitabina.

Adenocarcinoma retal
De maneira geral, pacientes com câncer retal estádio I submetidos a ressecção
cirúrgica padrão não necessitam de tratamento adicional. No entanto, pacientes com
maior risco, como aqueles com estádio T2, estádio T1 com histologia pouco
diferenciada, invasão linfática e/ou vascular ou margens cirúrgicas limítrofes, tratados
com excisão local, devem receber irradiação pélvica adjuvante com ou sem
quimioterapia com 5-Fluorouracil ou devem ser reencaminhados ao centro cirúrgico
para excisão total do mesorreto.
A radioterapia neoadjuvante é padronizada para tumores estádios II e III para
reduzir as taxas de recidiva local, aumentar a chance de preservação do esfíncter e
possivelmente aumentar a sobrevida. As principais considerações são o tempo, se pré-
operatório ou pós-operatório, o curso, se curto ou longo, e a associação ou não com
quimioterapia sistêmica. Irradiação pré-operatória de curso curto, durante cinco dias,
pode ser considerada e utilizada se não é necessário controle local pré-operatório para
ressecção cirúrgica bem sucedida, sendo necessária quimioterapia adjuvante com
Pirimidina isoladamente em caso de estádio II ou combinada a Oxaliplatina em caso de
estádio III para minimizar o risco de metástases a distância. Irradiação pré-operatória de

Pedro Kallas Curiati 624


curso longo, durante aproximadamente cinco semanas e meia, geralmente associada a
quimioterapia sistêmica combinada pré-operatória ou pós-operatória, é particularmente
importante quando é necessário controle local para facilitar a abordagem cirúrgica ou
mesmo torna-la factível.
Pacientes selecionados com câncer colo-retal com baixo risco de recorrência,
estádios T3N0 ou T1-2N1, podem ser manejados com excisão total do mesorreto
associada a terapia sistêmica sem irradiação, usualmente pós-operatória.

Câncer colo-retal metastático


A doença metastática é tratada de maneira idêntica, independentemente do sítio
de origem. Sobrevida média se aproxima de seis meses com o melhor tratamento de
suporte isoladamente, mas apresenta incremento com o uso de quimioterapia sistêmica
combinada. O tratamento de primeira linha atualmente consiste na combinação de
Bevacizumab com 5-Fluorouracil, Leucovorin e Irinotecano.
Ressecção completa de metástases hepáticas ou pulmonares pode resultar em
aumento da sobrevida em longo prazo e deve ser indicada para casos selecionados.
Algumas metástases hepáticas não passíveis de ressecção cirúrgica por causa da
localização ou da fragilidade do paciente podem ser submetidas a radioablação.

Seguimento
Anamnese e exame físico a cada três a seis meses nos primeiros três anos, a cada
seis meses durante dois anos e anualmente a partir de então.
Dosagem dos níveis séricos de antígeno carcinoembrionário a cada três meses
por pelo menos três anos e a cada seis meses até que sejam completados cinco anos em
pacientes com câncer colo-retal estádios II ou III que seriam candidatos a cirurgia ou
terapia sistêmica. O uso adjuvante de 5-Fluorouracil pode estar relacionado a resultados
falso-positivos, devendo-se aguardar o término na quimioterapia adjuvante.
Tomografia computadorizada de tórax, abdômen e pelve anualmente durante três
anos para pacientes com alto risco de recorrência, como aqueles com câncer colo-retal
estádio III ou estádio II com invasão linfovascular ou histologia pouco diferenciada.
Para pacientes com câncer colo-retal estádio IV, a avaliação radiológica deverá ser
repetida a cada três a seis meses durante dois anos e a cada seis a doze meses a partir de
então até que sejam completados cinco anos. Tomografia computadorizada de pelve
anual durante três anos também deve ser considerada para vigilância de câncer de reto,
particularmente quando não é realizada irradiação pélvica.
Colonoscopia após um ano. Em caso de adenoma avançado, repetir em um ano.
Em caso de ausência de pólipos ou adenoma avançado, repetir após três anos e então a
cada cinco anos. Na ausência de colonoscopia pré-operatória em função de obstrução
intestinal, o exame deverá ser realizado três a seis meses após a abordagem cirúrgica.
Proctossigmoidoscopia flexível a cada seis meses durante cinco anos para
pacientes com câncer de reto.

Bibliografia
Goldman’s Cecil medicine / [edited by] Lee Goldman, Andrew I. Schafer.—24th ed. 2012.
Screening for colorectal cancer: Strategies in patients at average risk. Robert H Fletcher. UpToDate, 2012.
Screening for colorectal cancer: Strategies in patients with possible increased risk due to family history. Robert H Fletcher and Scott
D Ramsey. UpToDate, 2012.
Colorectal cancer: Epidemiology, risk factors, and protective factors. Dennis J Ahnen and Finlay A Macrae. UpToDate, 2012.
Clinical manifestations, diagnosis, and staging of colorectal cancer. Dennis J Ahnen, Finlay A Macrae and Johanna Beldell.
UpToDate, 2012.
Overview of the management of primary colon cancer. Miguel A Rodriguez-Bigas and Axel Grothey. UpToDate, 2012.

Pedro Kallas Curiati 625


CONSTIPAÇÃO INTESTINAL
Definição
A constipação intestinal, também denominada obstipação, pode ser definida
como sintoma ou conjunto de sintomas relacionados à alteração do hábito intestinal
normal, com menor frequência evacuatória, maior consistência das fezes e esforço para
defecação, além de sensação de evacuação incompleta.
Segundo os critérios de Roma III, devem estar presentes, nos últimos três meses,
duas ou mais características dentre esforço para evacuar em mais de 25% das
evacuações, sensação de obstrução anorretal em mais de 25% das evacuações, manobras
digitais para evacuar em mais de 25% das evacuações e menos de três evacuações por
semana. Incontinência fecal raramente está presente, apesar do uso de laxativos. Não há
critérios suficientes para diagnóstico de síndrome do intestino irritável.

Epidemiologia
A constipação é uma queixa frequente na população geral, com maior
prevalência em idosos, mulheres e indivíduos de baixo nível socioeconômico.

Etiologia
As causas de constipação podem ser classificadas em primárias e secundárias.
As causas primárias são decorrentes de problemas inerentes ao próprio intestino e são
divididas em constipação com trânsito intestinal normal, constipação com trânsito
intestinal lento e distúrbio anorretal.
Constipação com trânsito intestinal normal é a forma mais frequente de
constipação, também denominada constipação funcional ou constipação crônica
idiopática. Apesar de o trânsito intestinal e da frequência evacuatória serem normais, os
pacientes podem se queixar de constipação associada a desconforto e dor abdominal. A
diferenciação com síndrome do intestino irritável com predomínio de constipação deve
ser realizada quando possível.
Constipação com trânsito intestinal lento é caracterizada pelo retardo da
passagem das fezes pelos cólons, geralmente evidenciada pelo estudo do trânsito
intestinal colônico. Os pacientes se queixam de baixa frequência evacuatória e distensão
abdominal, além de tenderem a ser mais refratários ao tratamento clínico. Postula-se que
haja anormalidades do plexo mioentérico, alterações da inervação colinérgica e
anormalidades do sistema de transmissão neuromuscular.
Os distúrbios anorretais são caracterizados pela incoordenação do mecanismo
defecatório dependente da musculatura pélvica. As queixas mais frequentes são
sensação de evacuação incompleta ou de estar obstruído e a necessidade de manipulação
digital para evacuar. Há maior prevalência em idosos, particularmente no sexo
feminino. O diagnóstico é confirmado pelos exames de manometria anorretal e
defecografia. Os mecanismos fisiopatológicos são diversos e incluem dificuldade de
relaxamento ou contração inadequada do músculo puborretal e do esfíncter anal externo,
denominada dissinergia do assoalho pélvico, incapacidade de retificação do ângulo
anorretal e descida excessiva do períneo.
As causas secundárias de constipação incluem diversas doenças. Afecções
gastrointestinais incluem tumores intestinais, estenoses isquêmicas, inflamatórias e
actínicas, compressões extrínsecas, megacólon chagásico e idiopático, pseudo-obstrução
intestinal, retocele, prolapso retal, fissura anal, síndrome do intestino irritável e inércia

Pedro Kallas Curiati 626


colônica. Afecções endócrinas e metabólicas incluem hipotireoidismo, diabetes
mellitus, hiperparatireoidismo, insuficiência renal crônica e distúrbios eletrolíticos,
como hipocalemia e hipercalcemia. Afecções neurológicas incluem doença de
Parkinson, acidente vascular encefálico, demência, esclerose múltipla, lesões medulares
e doença de Hirschsprung. Outras afecções incluem insuficiência cardíaca congestiva,
sedentarismo, doenças psiquiátricas e desidratação. Medicamentos que causam
constipação intestinal incluem analgésicos, como Codeína, Morfina e Tramadol, anti-
inflamatórios não-hormonais, antidepressivos tricíclicos, diuréticos, como Furosemida e
Hidroclorotiazida, bloqueadores de canais de cálcio, como Verapamil, suplementos de
cálcio e ferro, anticolinérgicos, antipsicóticos, como os derivados da fenotiazina, e anti-
histamínicos, como a Difenidramina.

Quadro clínico
Evacuações infrequentes, ausência de urgência evacuatória, dificuldade para
evacuar, esforço inefetivo evacuatório, necessidade de manobras digitais, sensação de
evacuação incompleta, dor anal ou perianal, prolapso anal ao ato evacuatório e escape
fecal. Distensão abdominal. Dor ou desconforto abdominal relacionados ou não à
evacuação. Halitose, cefaleia, náusea e cansaço.
O exame neurológico é de suma importância, sendo necessário para descartar
lesões centrais e, particularmente, lesões medulares. Deve-se pesquisar a sensibilidade
nos dermátomos sacrais.

Avaliação complementar
Sugere-se que os pacientes com constipação intestinal crônica sejam avaliados
com hemograma completo, glicemia, TSH, cálcio e creatinina. Além disso, sugere-se
que sejam submetidos a colonoscopia aqueles com idade superior a 50 anos,
emagrecimento ou sangramento intestinal. A sorologia para doença de Chagas pode ser
realizada conforme o contexto epidemiológico do paciente. Indicações de investigação
diagnóstica complementar ou encaminhamento para gastroenterologista para pacientes
geriátricos incluem constipação de início recente associada a emagrecimento, anemia,
fezes com sangue, dor abdominal ou antecedente familiar de câncer colônico,
constipação crônica associada a alterações na forma das fezes, alterações na frequência
das evacuações, emagrecimento, anemia ou dor abdominal, constipação crônica
refratária ao tratamento com laxativos, constipação crônica sem melhora com ingesta de
fibras, prática de atividade física e reeducação do hábito intestinal e incontinência fecal
de início recente.
A endoscopia pode revelar a pigmentação marrom escura da melanosis coli, por
abuso de laxativos. O exame do reto distal pode evidenciar prolapso anterior da mucosa
ou úlcera retal solitária. O uso do colonoscópio serve para excluir doenças estruturais do
intestino grosso.
O trânsito intestinal colônico avalia inércia colônica e disfunção do assoalho
pélvico. Substâncias radiopacas são ingeridas e radiografias abdominais são realizadas
posteriormente.
Manometria anorretal mede a pressão do canal anal e do reto em contração e no
repouso e avalia o reflexo inibitório retal. Identifica hipertonia do esfíncter anal, perda
do reflexo inibitório retal e contração paradoxal do esfíncter anal externo, denominada
dissinergia.
Teste de expulsão do balão retal avalia a capacidade de evacuar balão cheio de
água, geralmente com 50mL. Define a presença de distúrbios funcionais da defecação.
Exame da latência motora do nervo pudendo é indicado no diagnóstico de lesões

Pedro Kallas Curiati 627


do nervo pudendo ou do esfíncter anal. Eletromiografia do esfíncter anal externo é
indicada nas lesões do esfíncter anal externo do tipo neurogênica, como no trauma local
ou obstétrico. Eletromiografia do músculo puborretal é indicada no diagnóstico de
disfunção do assoalho pélvico e no seguimento de terapêutica com biofeedback.
Defecografia dinâmica avalia o processo dinâmico do ato defecatório e das
estruturas anatômicas relacionadas. As imagens do bário no reto são obtidas durante
repouso, contração do assoalho pélvico, expulsão do bário e após a evacuação. O ângulo
anorretal e a posição da junção anorretal são calculados durante essas manobras. É útil
na detecção de anormalidades anatômicas, como retocele, sigmoidocele, enterocele,
intussuscepção retoanal e prolapso retal, e de alterações funcionais, como contração
paradoxal da musculatura puborretal e disfunção do assoalho pélvico.
Ultrassonografia endoanal é indicada na investigação de lesões estruturais do
esfíncter anal.
Ressonância nuclear magnética pélvica avalia a anatomia do esfíncter anal e a
dinâmica do assoalho pélvico sem exposição radiológica. Apresenta as mesmas
indicações que a defecografia dinâmica e a ultrassonografia endoanal, mas com maior
precisão, tendendo a substituí-los.

Tratamento
Inicialmente, deve-se identificar comorbidades e drogas que possam atuar na
gênese da constipação.
Medidas não-farmacológicas incluem reeducação do hábito intestinal, ingesta de
fibras, ingesta hídrica e prática de atividade física. Os pacientes devem ser estimulados
a evacuar no mesmo horário e a evitar abolir o desejo de evacuar. O período da manhã,
logo após o café, tende a ser o horário mais adequado. Outro fator importante é a
existência de banheiros adequados com privacidade e fácil acesso. Recomenda-se que
30g de fibras sejam consumidas diariamente, sendo estimulada a ingesta de frutas,
vegetais e produtos integrais, como cereais. Todavia, o aumento deve ser gradual para
evitar o aumento do processo fermentativo intestinal, com produção excessiva de gases,
distensão e desconforto abdominal. A fim de que haja formação do bolo fecal, é
recomendado aos pacientes ingesta hídrica de 1.5-2.0 litros por dia, exceto em situações
nas quais a hipervolemia deve ser evitada. Na medida do possível, caminhadas diárias
ou prática de natação devem ser estimuladas.
Nas situações em que não há melhora da constipação intestinal com a adoção de
medidas gerais, o tratamento farmacológico deve ser instituído. Medidas farmacológicas
incluem, como primeira linha, agentes formadores de massa ou osmóticos, como
Hidróxido de Magnésio e polietilenoglicóis, seguidos, como segunda linha, por
estimulantes, como Bisacodil. Na constipação refratária ao tratamento clínico pode ser
de grande auxílio na terapêutica definir o mecanismo fisiopatológico de base, com
indicação de dieta rica em fibras, laxativos formadores de massa e osmóticos nos casos
de constipação funcional, drogas pró-cinéticas na constipação com trânsito intestinal
lento e biofeedback nos distúrbios anorretais.
Formadores de massa são compostos por fibras, substâncias hidrofílicas que
absorvem água do lúmen intestinal, aumentam o bolo fecal, amolecem as fezes e,
portanto, facilitam a evacuação. Além disso, amentam a motilidade gastrointestinal
levando à diminuição do tempo de trânsito intestinal e à maior frequência evacuatória.
As fibras solúveis, como o Psyllium, absorvem água rapidamente e são decompostas nos
cólons. As fibras insolúveis, como a Metilcelulose, absorvem menos água do que as
fibras solúveis e, por não serem degradadas nos cólons, mantém o volume líquido das
fezes até a evacuação. A introdução de fibras deve ser gradual para evitar flatulência e

Pedro Kallas Curiati 628


distensão abdominal. Metamucil®, composto por Psyllium, é apresentado na forma de
sachês de 5.85g ou de frascos com 174g ou 210g de granulado, com diluição de um
sachê ou de uma colher de chá em 240mL de água ou outro líquido e ingesta imediata
uma a três vezes ao dia.
Osmóticos são substâncias hiperosmolares que determinam secreção de água pra
luz intestinal, causam amolecimento das fezes e aumentam a atividade propulsora dos
cólons. Incluem os salinos, como Hidróxido de Magnésio, os açúcares pouco
absorvíveis, como Lactulose e Sorbitol, e os polietilenoglicóis. Hidróxido de Magnésio
é apresentado na forma de suspensão oral com 83mg/mL em frascos de 120mL e
350mL, com dose de 30-45mL, que equivale a duas a três colheres de sopa, ao deitar.
Lactulose é apresentada na forma de frascos contendo 120mL de xarope, sachês com
15mL de xarope e flaconetes com 5mL ou 15mL de xarope, contendo 667mg/mL, com
dose de 15-30mL/dia, preferencialmente em uma única tomada pela manhã ou à noite,
sozinha ou com alimentos, ajustada para que se obtenha duas a três evacuações
diariamente. Os efeitos colaterais do Hidróxido de Magnésio incluem dores abdominais,
flatulência, meteorismo, distúrbios eletrolíticos, como hipocalemia e hipermagnesemia,
e interferência na absorção de medicamentos, como Digoxina e Clorpromazina. Os
açúcares pouco absorvíveis podem causar flatulência, dor abdominal e hipocalemia. Os
polietilenoglicóis são melhores tolerados do que os outros laxativos osmóticos.
Estimulantes são derivados do difenilmetano, como Fenolftaleína, Bisacodil e
Picossulfato de Sódio, e das antraquinonas, como sene, cáscara-sagrada e aloés. O
mecanismo de ação consiste no aumento da motilidade e da secreção intestinal por meio
da estimulação do plexo mioentérico colônico e da alteração do fluxo de água e
eletrólitos. Em doses baixas, inibem a absorção de água e sódio. Em doses maiores,
estimulam a secreção. De maneira geral, são medicamentos de ação rápida e têm como
efeito colateral cólica abdominal, incontinência fecal e hipocalemia. O uso crônico de
antraquinonas pode levar ao aparecimento de uma pigmentação marrom escura da
mucosa colônica, denominada melanosis coli. Todavia, essa é uma condição benigna
que desaparece com a suspensão da medicação. A Fenolftaleína está em desuso, pois
alguns estudos têm apontado efeito carcinogênico. Outra reação adversa do uso crônico
de estimulantes, porém questionável, é a lesão do plexo nervoso mioentérico
determinando cólon catártico. Bisacodil é apresentado na forma de drágeas de 5mg, com
dose de uma a duas drágeas ao deitar com o estômago cheio ou vazio. Sene é
apresentado na forma de cápsulas de 100mg, com dose de duas cápsulas ao deitar.
Cáscara sagrada é apresentada na forma de cápsulas de 75mg, com dose de duas
cápsulas no meio da tarde ou ao deitar.
Emolientes diminuem a tensão superficial e facilitam a entrada de água nas
fezes, determinando seu amolecimento. Sua efetividade na constipação é menor do que
o Psyllium. Tem indicação nos casos de fissura anal e hemorroidas. O principal exemplo
de medicamento dessa classe de laxativos é o Docussato de Sódio, apresentado na forma
de drágeas de 60mg com Bisacodil 5mg, sendo recomendado o uso de uma a duas
drágeas ao deitar.
Pró-cinéticos atuam acelerando o trânsito intestinal e aumentando a frequência.
Agem estimulando a inervação parassimpática pela ativação dos receptores de
serotonina 5-HT4. O Tagaserode é uma droga recente, agonista parcial dos receptores 5-
HT4, que estimula os reflexos peristálticos e os trânsitos intestinal e colônico. É
apresentada na forma de comprimidos de 6mg, com dose de um comprimido duas vezes
ao dia por via oral antes das refeições. Na constipação intestinal, seu uso foi
comprovadamente benéfico em mulheres de meia-idade com quadro associado de
síndrome do intestino irritável. Por enquanto, não está definida sua indicação em

Pedro Kallas Curiati 629


homens e na população de idosos.
O biofeedback envolve treinamento do ato defecatório com auxílio de
eletromiografia ou manometria anorretal. Esse procedimento consiste em realizar o
relaxamento da musculatura do assoalho pélvico durante o esforço evacuatório e educar
o paciente a correlacionar o processo com o ato defecatório em si.
Outra opção terapêutica é a abordagem cirúrgica. Na constipação intestinal
crônica refratária ao tratamento clínico e com diagnóstico de inércia colônica, a
colectomia total com anastomose ileorretal tem apresentado bons resultados, melhores
nos pacientes sem alterações no exame de manometria antroduodenal. Entretanto, os
trabalhos não avaliaram especificamente os idosos.

Algoritmo

Bibliografia
Clínica médica, volume 4: doenças do aparelho digestivo, nutrição e doenças nutricionais. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Goldman’s Cecil medicine / [edited by] Lee Goldman, Andrew I. Schafer.—24th ed. 2012.

Pedro Kallas Curiati 630


CIRROSE HEPÁTICA
Definição
Cirrose hepática é caracterizada pela desorganização da arquitetura do fígado e é
definida histologicamente por fibrose e formação de nódulos regenerativos.

Etiologia
Hepatites virais B, C e D. A transmissão sexual e vertical do vírus B relaciona-se
a vida sexual promíscua e passado de doenças sexualmente transmissíveis. A exposição
parenteral aos vírus B e C inclui transfusão de sangue e hemoderivados e transplante de
órgãos antes de 1992, hemodiálise, uso de drogas intravenosas com compartilhamento
de agulhas e seringas, emprego de cocaína inalatória, tatuagem e piercing.
Doença alcoólica do fígado.
Medicamentos, como Isoniazida, Alfa-Metildopa, Vitamina A e Metotrexato.
Doenças autoimunes do fígado, como hepatite autoimune, cirrose biliar primária
e colangite esclerosante primária.
Doenças metabólicas, como esteato-hepatite não-alcoólica, hemocromatose,
doença de Wilson, deficiência de alfa-1 antitripsina e tirosinemia.
Distúrbios vasculares, como insuficiência cardíaca direita e síndrome de Budd-
Chiari.
Doenças hepatobiliares, como cirrose biliar secundária, atresia de vias biliares,
ductopenia do adulto, colestase intra-hepática familiar progressiva e cirrose
criptogênica.

Fisiopatologia e quadro clínico


A cirrose hepática, independentemente dos aspectos peculiares relacionados à
sua etiologia, manifesta-se como insuficiência hepática e/ou hipertensão portal,
associada ou não a disfunção circulatória, com ascite, edema de membros inferiores,
hidrotórax, encefalopatia hepática, infecções urinárias, respiratórias e/ou do líquido
ascítico, hemorragia digestiva varicosa e/ou por gastropatia hipertensiva, síndrome
hepatopulmonar, caracterizada por vasodilatação capilar e pré-capilar e/ou
comunicações arteriovenosas, síndrome hepatorrenal e hipertensão portopulmonar,
caracterizada por hiperplasia e/ou hipertrofia de arteríolas pulmonares. A hipertensão
portal clinicamente significativa é definida hemodinamicamente por pressão venosa
portal superior a 10mmHg, secundária ao aumento da resistência intra-hepática ao fluxo
portal e ao aumento no fluxo sanguíneo portal decorrente da vasodilatação da circulação
esplâncnica.
A primeira manifestação da disfunção circulatória é a vasodilatação esplâncnica,
que leva a uma diminuição do volume plasmático efetivo e à ativação de mecanismos
compensatórios, tais como o sistema renina-angiotensina-aldosterona, com consequente
retenção de sódio e água. Com a progressão da disfunção circulatória ocorre
vasodilatação nas circulações esplâncnica e sistêmica, o que determina diminuição da

Pedro Kallas Curiati 631


resistência vascular sistêmica e redução progressiva no volume plasmático efetivo,
levando à ativação do sistema nervoso autônomo, com a liberação de catecolaminas e da
secreção não-osmótica de hormônio antidiurético. Esses eventos são responsáveis pela
circulação hiperdinâmica do cirrótico, caracterizada por redução da resistência vascular
sistêmica, aumento do índice cardíaco e complicações terminais da cirrose hepática,
secundárias à falência dos mecanismos compensatórios, como hipotensão, oligúria
associada ou não a uremia por vasoconstrição renal progressiva e hiponatremia
dilucional.
Fadiga, anorexia e perda de massa muscular podem ser manifestações da
desnutrição proteico-calórica associada à insuficiência hepatocelular ou podem ser
reflexo da ação de citocinas pró-inflamatórias desencadeadas pelos mecanismos de
agressão hepatocelular. Icterícia e colúria, por outro lado, podem ser decorrentes da
necrose de células hepáticas, dos defeitos na conjugação da bilirrubina e dos distúrbios
na excreção biliar em virtude da desorganização da estrutura hepática.
Os distúrbios no metabolismo de estrógenos são responsáveis pela presença de
aranhas vasculares, ginecomastia, perda ou diminuição da libido e impotência. Ocorre
aumento da resistência periférica à insulina e déficit na produção de substratos
energéticos por glicogenólise e gliconeogênese, com predisposição para diabetes
mellitus e hipoglicemia.
O fígado é o principal local de síntese de todos os fatores de coagulação, com
exceção do fator de von Willebrand, além do plasminogênio e dos inibidores de
protease anti-trombina III e proteínas C e S. O fígado é também o principal local de
degradação de fatores de coagulação ativados. Na cirrose hepática ocorre,
consequentemente, redução da síntese de fatores pró-coagulantes e anticoagulantes e
diminuição da depuração de fatores de coagulação ativados. Concomitantemente,
observa-se plaquetopenia, secundária na maioria das vezes ao hiperesplenismo, e
disfunção plaquetária, de origem multifatorial. As alterações mais frequentes de
coagulação são os distúrbios de hemostasia secundários à deficiência de fatores de
coagulação, com alargamento do tempo de protrombina. No entanto, também podem
ocorrer fenômenos tromboembólicos e coagulação intravascular disseminada. A
colestase leva, associadamente, a diminuição dos fatores de coagulação dependentes de
vitamina K, passível de correção com a administração parenteral de Fitomenadiona.
Sinais de coagulopatia incluem equimoses e petéquias.
Também podem ser observados redução volumétrica do fígado e sinais de
hipertensão portal, como esplenomegalia e circulação colateral peri-umbilical.
Contratura de Dupuytren resulta do encurtamento e afinamento da fáscia palmar, com
deformidades em flexão dos dedos.

Avaliação complementar e diagnóstico


Cirrose hepática é termo anatomopatológico que deve ser empregado quando
forem observadas na biópsia hepática as alterações estruturais características da doença.
As expressões doença crônica parenquimatosa de fígado e hepatopatia crônica em fase
cirrótica devem ser empregadas preferencialmente para designar pacientes com
evidências clínicas e laboratoriais de cirrose hepática, mas sem avaliação histológica do

Pedro Kallas Curiati 632


fígado.
O diagnóstico clínico da doença crônica parenquimatosa de fígado baseia-se na
presença de sinais periféricos de hepatopatia crônica, como eritema palmar,
telangiectasias e ginecomastia. A presença de evidências de hipertensão portal, como
esplenomegalia e circulação colateral abdominal, assim como a instalação de sinais e
sintomas de descompensação da doença, são sugestivas de cirrose hepática.
Não existem indicadores laboratoriais específicos de cirrose hepática. No
entanto, hipoalbuminemia, aumento do tempo de protrombina e plaquetopenia são
sugestivos de cirrose hepática em portador de doença crônica parenquimatosa de fígado.
Recentemente, foram identificados marcadores laboratoriais associados à
presença de cirrose hepática, sendo formulada uma escala de pontuação, denominada
Fibrotest, para avaliação não-invasiva da fibrose hepática com base em níveis séricos de
haptoglobuna, alfa-2 macroglobulina, apolipoproteína A1, bilirrubina e gama-
glutamiltransferase.
Os métodos de imagem podem sugerir a presença de cirrose hepática se houver
irregularidade no contorno do fígado, alteração na textura do órgão e/ou evidências de
hipertensão portal por aumento de calibre de veia porta ou por alterações no fluxo portal
ao exame de ultrassonografia abdominal. A ultrassonografia abdominal também pode
revelar presença de outras complicações da cirrose hepática, tais como ascite e
carcinoma hepatocelular. Alterações de relevo e de atenuação ou de sinal também
podem ser observadas, respectivamente, em tomografia computadorizada e na
ressonância nuclear magnética.
Superfície nodular é caracteristicamente observada na macroscopia do fígado em
caso de cirrose hepática, enquanto o exame microscópico do parênquima hepático
mostra estrutura lobular distorcida pela presença de nódulos de parênquima hepático
delimitados por traves fibróticas. A análise histopatológica do fígado é geralmente
realizada com fragmento de tecido obtido por biópsia hepática, que pode ser necessária
se os dados clínicos, laboratoriais e radiológicos sugerem fortemente a ocorrência de
cirrose. Nas hepatites crônicas e na cirrose hepática, o exame anatomopatológico
possibilita encontrar marcadores etiológicos e realizar análise semiquantitativa das
alterações estruturais, do infiltrado inflamatório portal e septal e da atividade
inflamatória periportal, periseptal e parenquimatosa em quatro estágios. Pacientes com
cirrose apresentam fibrose em estágio 4 e graus variáveis de atividade inflamatória a
depender da causa subjacente da cirrose hepática.
Além do diagnóstico de doença crônica parenquimatosa de fígado em fase
cirrótica, é importante a avaliação etiológica da causa subjacente. A biópsia hepática
pode contribuir para a definição etiológica da cirrose hepática, particularmente nos
casos em que o diagnóstico não pode ser estabelecido pela investigação laboratorial
complementar.
A ascite é usualmente diagnosticada com critérios clínicos. No entanto, é
recomendada a punção de líquido ascítico em todo paciente com doença crônica
parenquimatosa de fígado e ascite de início recente para mensuração do gradiente soro-
ascite de albumina e contagem de leucócitos polimorfonucleares visando o diagnóstico,
respectivamente, de hipertensão portal e peritonite bacteriana espontânea.
Visando a instituição de medidas profiláticas, é recomendado que todo paciente
com doença crônica parenquimatosa de fígado submeta-se a endoscopia digestiva alta
para avaliação da presença de varizes de esôfago. Caso sejam identificadas varizes de
médio e grosso calibre, é indicada profilaxia primária para redução do risco de
sangramento. Recomenda-se a repetição da endoscopia digestiva alta a cada dois anos
para pacientes classificados como Child A e que não apresentam varizes

Pedro Kallas Curiati 633


gastroesofágicas e anualmente para pacientes classificados como Child B ou C sem
varizes ou com varizes de fino calibre, independentemente da classificação de Child-
Pugh.
O carcinoma hepatocelular ocorre numa frequência de 3-5% ao ano em pacientes
com doença crônica parenquimatosa de fígado, particularmente quando secundária a
hepatites B e C, álcool e hemocromatose. Em fases avançadas, pode manifestar-se por
icterícia progressiva, emagrecimento, dor em hipocôndrio direito e ascite hemorrágica
por trombose tumoral de veia porta. O diagnóstico precoce é importante para indicação
de transplante de fígado, principal terapia de caráter curativo. O rastreamento de
carcinoma hepatocelular com ultrassonografia e dosagem de alfa-fetoproteína a cada
seis meses é recomendado para pacientes com doença crônica parenquimatosa de fígado
em fase cirrótica. Na presença de nódulos e/ou elevação de alfa-fetoproteína, o
diagnóstico pode ser comprovado por tomógrafa computadorizada ou ressonância
nuclear magnética. Dosagem de alfa-fetoproteína superior a 250-400ng/mL em paciente
com cirrose hepática é praticamente patognomônica de carcinoma hepatocelular.
Entretanto, valores elevados podem ser encontrados em gestação e tumores testiculares.
Causa Marcadores laboratoriais
Vírus da hepatite C Anti-VHC, RNA viral por reação em cadeia da polimerase, genotipagem
Vírus da hepatite B AgHBs, anti-HBc total, AgHBe, anti-HBe, DNA viral por reação em cadeia da
polimerase
Hepatite autoimune Anticorpos anti-núcleo e anti-musculo liso, anti-LKM-1
Cirrose biliar primária Anticorpos anti-mitocôndria e anti-núcleo
Colangite esclerosante Irregularidades, estenoses e dilatações biliares na colangiopancreatografia
primária retrógrada endoscópica ou na ressonância nuclear magnética, p-ANCA
Hemocromatose Saturação de transferrina e ferritina, mutações do gene HFE
Doença de Wilson Ceruloplasmina, cobre sérico e urinário, anel de Kayser-Fleischer
Doença alcoólica do Gamaglutamiltransferase, volume corpuscular médio, aspartato
fígado aminotransferase, gama glutamiltransferase, IgA

Classificação
Morfologicamente, a cirrose hepática é classificada em macronodular, formada
por nódulos com diâmetro superior ou igual a 3mm, micronodular, formada por nódulos
com diâmetro inferior a 3mm, e mista, formada por nódulos de tamanhos variados. Essa
classificação não tem qualquer valor prognóstico e alguns casos de cirrose hepática de
padrão micronodular podem evoluir para padrão macronodular. O padrão micronodular
é mais frequentemente visto na etiologia alcoólica, enquanto que o padrão macronodular
é mais comum na etiologia viral e na doença de Wilson.
A cirrose hepática compensada é frequentemente assintomática ou
oligossintomática, sendo os sinais e sintomas, quando presentes, geralmente
inespecíficos, tais como fadiga, astenia, anorexia, emagrecimento e perda de massa
muscular. Icterícia e sinais periféricos de doença crônica parenquimatosa do fígado, tais
como eritema palmar, telangiectasias, ginecomastia e atrofia testicular podem também
estar presentes. A cirrose hepática é dita descompensada na ocorrência de qualquer
complicação secundária à insuficiência hepática ou à hipertensão portal, como ascite,
hemorragia digestiva varicosa, encefalopatia hepática e peritonite bacteriana
espontânea.
Classificação de Child-Pugh Turcotte para pacientes cirróticos
Critério 1 ponto 2 pontos 3 pontos Child A quando 5-6 pontos.
Encefalopatia hepática Ausente Grau I e II Grau III e IV Child B quando 7-9 pontos.

Pedro Kallas Curiati 634


Ascite Ausente Fácil controle Refratária Child C quando 10-15 pontos.
Bilirrubina (mg/dL) <2 2-3 >3
Albumina (g/dL) >3.5 2.8-3.5 <2.8
RNI <1.7 1.7-2.3 >2.3
Model for End-Stage Liver Disease (MELD) é classificação de gravidade da
doença utilizada atualmente para determinar a posição na lista de transplante. Calculado
através da fórmula 9.6 x loge(creatinina em mg/dL) + 3.8 x loge(bilirrubinas em mg/dL)
+ 11.2 x loge(RNI) + 6.4. Deve-se arredondar para valor inteiro. Comparado à
classificação de Child, possui maior acurácia em predizer mortalidade em três meses.

Tratamento
A abordagem terapêutica da cirrose hepática compensada inclui tratamento da
causa subjacente, tratamento dos sintomas associados, prevenção de complicações e de
descompensação da doença, suporte nutricional e avaliação para transplante de fígado.
Algumas causas de cirrose hepática podem ter indicação de tratamento
específico, mesmo quando a doença encontra-se em fase cirrótica, visando diminuir sua
progressão e o risco de descompensação da cirrose hepática. As principais doenças do
fígado na fase cirrótica que merecem consideração de tratamento são as hepatites pelos
vírus B e C, a hepatite autoimune, a hemocromatose hereditária e a doença de Wilson.
Abstinência alcoólica é obrigatória para pacientes com doença alcoólica de fígado.
Entre os sintomas associados à causa subjacente da cirrose hepática, o prurido é
uma manifestação frequente e, em muitos casos, incapacitante. Colestiramina, Ácido
Ursodeoxicólico e anti-histamínicos podem ser alternativas terapêuticas. O edema de
membros inferiores é uma manifestação comum, mesmo na ausência de ascite, e pode
requerer restrição de sal e uso de diuréticos.
Deve-se restringir o uso de medicações hepatotóxicas e o consumo de álcool.
Fatores precipitantes de encefalopatia alcoólica, como obstipação intestinal e uso de
benzodiazepínicos, devem ser evitados.
Vacinação contra as hepatites A e B pode auxiliar na prevenção de insulto
adicional em um fígado com baixa reserva funcional.
Pacientes com varizes de esôfago podem requerer profilaxia primária com
betabloqueadores não-seletivos para evitar o primeiro episódio de ruptura. Profilaxia
primária é indicada para todo paciente com varizes de esôfago de médio e grosso
calibre, assim como para todo paciente com varizes de esôfago de pequeno calibre
associadas a doença hepática avançada, Child B ou C, e/ou red spots em sua superfície.
O uso de beta-bloqueadores não seletivos, como Propranolol e Nadolol, reduz o risco de
sangramento em 45%, sendo recomendados em doses suficientes para induzir
diminuição da pressão portal em 20% ou abaixo de 12mmHg, o que se correlaciona
habitualmente com redução da frequência cardíaca basal em 25%. Propranolol,
apresentado na forma de comprimidos de 40mg e 80mg, é iniciado com dose de 20mg
por via oral duas vezes ao dia e titulado até dose máxima tolerada ou frequência
cardíaca de aproximadamente 55bpm. Nadolol, apresentado na forma de comprimidos
de 40mg e 80mg, é iniciado com dose de 40mg por via oral uma vez ao dia e titulado até
dose máxima tolerada ou frequência cardíaca de aproximadamente 55bpm. Estudo
recente evidenciou o benefício do uso de Carvedilol, apresentado na forma de
comprimidos de 3.125mg e 6.25mg, com dose de 6.25-12.5mg/dia fracionada em duas
vezes. Em pacientes com varizes esofágicas de baixo risco, com pequeno calibre, sem
red spots e sem doença hepática avançada, o uso de beta-bloqueadores pode retardar o
crescimento das varizes e prevenir a ocorrência de hemorragias, sendo opcional. Na
presença de contraindicações ou efeitos colaterais ao uso de betabloqueadores, pode-se

Pedro Kallas Curiati 635


optar pela ligadura elástica endoscópica de varizes como alternativa, devendo ser
repetida a cada duas a quatro semanas até que seja obtida obliteração das varizes, o que
geralmente ocorre em duas a quatro sessões, devendo-se realizar endoscopia digestiva
alta de controle um a três meses após e então a cada seis a doze meses.
Deve ser recomendada dieta hipossódica para pacientes com retenção hídrica e
salina, não sendo necessária para todos os pacientes com doença crônica
parenquimatosa de fígado. No entanto, o consumo abusivo de sal deve ser evitado.
Desnutrição proteico-calórica é frequentemente observada em portadores de
doença crônica parenquimatosa de fígado e agravada por medidas dietéticas
inadequadas, como dieta hipoproteica prolongada, empregada inadvertidamente para
prevenção ou tratamento de encefalopatia hepática. A desnutrição é um fator associado
a pior sobrevida e deve ser tratada com suporte nutricional adequado para alcançar valor
energético total de 30-40kcal/dia, com aporte proteico diário de 0.8-1.3g/kg se não
houver encefalopatia hepática.
Embora controversa, a profilaxia primária de peritonite bacteriana espontânea
com antimicrobianos, geralmente Norfloxacino 400mg uma vez ao dia por via oral ou
Sulfametoxazol/Trimetoprim 800mg/160mg uma vez ao dia cinco vezes por semana por
via oral pode ser justificada em pacientes com maior risco de desenvolver essa
complicação infecciosa, como aqueles com teor de proteína total na ascite inferior a
1g/dL ou com bilirrubina sérica superior a 2.5mg/dL.
A abordagem terapêutica da cirrose hepática descompensada está voltada para o
tratamento específico das complicações da doença, sua profilaxia secundária e a
avaliação da elegibilidade para transplante de fígado. O tratamento adequado de ascite,
peritonite bacteriana espontânea, encefalopatia hepática, hemorragia varicosa e
síndrome hepatorrenal é crucial para redução das altas morbidade e mortalidade
associadas a esses eventos e para prevenção do surgimento consecutivo de
complicações associadas a cada descompensação da cirrose hepática.
O tratamento inicial da ascite é dieta hipossódica com 2g de sal por dia e o uso
de doses escalonadas de diuréticos. A combinação de diurético antagonista da
aldosterona, como Espironolactona 100-400mg/dia, e de alça de Henle, como
Furosemida 40-160mg/dia, com administração pela manhã, não-fracionada, é a opção
mais empregada. Doses elevadas de diuréticos habitualmente associam-se à ocorrência
de distúrbios hidroeletrolíticos, disfunção renal e encefalopatia hepática. Na ausência de
edema de membros inferiores, deve-se almejar perda ponderal de até 500g por dia com
o tratamento diurético. Pacientes que apresentam ginecomastia com o uso de
Espironolactona podem se beneficiar da substituição do agente por Triantereno ou
Amilorida. Deve-se monitorizar a função renal e os eletrólitos. Restrição hídrica não é
recomendada, exceto se sódio sérico inferior a 120-125mEq/L. Pacientes com ascite
tensa podem se beneficiar de paracentese terapêutica com infusão de albumina, com 8g
para cada litro retirado, particularmente em caso de retirada de volumes superiores a
cinco litros, com o intuito de evitar disfunção renal. Pacientes com ascite refratária que
não responde a doses máximas de diuréticos ou que apresentam frequentemente
complicações associadas ao uso de diuréticos podem se beneficiar de paracenteses
esvaziadoras de grande volume e de repetição, com infusão de albumina por veia
periférica. Deve-se avaliar a colocação de shunt transjugular intra-hepático porto-
sistêmico (TIPS) em pacientes que não tolerem ou que necessitem de paracenteses de
repetição. Pacientes com ascite devem evitar o uso de anti-inflamatórios não-hormonais.
Agentes antagonistas da vasopressina, como o Tolvaptan e o Conivaptan, estão em
estudo e devem ser comercializados para o tratamento da ascite do paciente cirrótico,
com bloqueio da retenção de água mediada pelos receptores de vasopressina nos túbulos

Pedro Kallas Curiati 636


coletores renais em resposta à vasodilatação da circulação esplâncnica. Em pacientes
aparentemente resistentes ao uso de diuréticos, deve-se considerar má-aderência à dieta
hipossódica e realizar dosagem do sódio urinário de 24 horas. Pacientes com excreção
de mais de 78mEq de sódio por dia deveriam estar perdendo peso em caso de boa
adesão à dieta hipossódica.
O tratamento da hemorragia digestiva varicosa consiste em tratamento do
episódio de hemorragia digestiva varicosa, com ressuscitação volêmica,
antibioticoterapia profilática, uso de agentes vasoconstritores esplâncnicos e hemostasia
endoscópica de varizes, e prevenção secundária de recidiva hemorrágica. Agentes
vasoconstritores esplâncnicos, como Terlipressina, Somatostatina e Octreotide podem
diminuir a pressão portal diretamente ou indiretamente, sendo indicados para controle e
prevenção de sangramento. Podem ser usados isoladamente ou, preferencialmente,
associados a hemostasia endoscópica. Devem ser utilizados preferencialmente antes da
realização do procedimento endoscópico, sendo mantidos pelo menos 48 horas após o
controle do sangramento ou por período estendido de até cinco dias para prevenção de
recidiva hemorrágica. Terlipressina pode ser administrada por via intravenosa com 2mg
de 4/4 horas nas primeiras 48 horas e 1mg de 4/4 horas a partir de então, com um total
de dois a cinco dias. Entre os métodos de hemostasia endoscópica, a ligadura elástica é
preferível à escleroterapia por causa da menor ocorrência de efeitos adversos,
particularmente úlceras pós-esclerose. Shunt transjugular intra-hepático porto-sistêmico
deve ser considerado em pacientes em que o tratamento habitual falhar e pode também
ser realizado em pacientes de alto risco, como aqueles com pressão venosa portal
superior a 20mmHg ou classificados como Child C com escore entre dez e treze pontos.
A profilaxia secundária após o sangramento prevê a associação de beta-bloqueador com
escleroterapia, podendo-se associar nitrato em pacientes que não são candidatos ao
procedimento endoscópico. Mononitrato de Isossorbida, apresentado na forma de
comprimidos de 20mg e 40mg, deve ser usado com dose inicial de 10mg por via oral
uma vez ao dia de noite e aumentado gradualmente até um máximo de 20mg por via
oral duas vezes ao dia.
Hérnias umbilicais assintomáticas e não complicadas devem ser manejadas de
forma conservadora, com correção cirúrgica programada para o momento do transplante
hepático.

Bibliografia
Clínica médica, volume 4: doenças do aparelho digestivo, nutrição e doenças nutricionais. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Diagnostic approach to the patient with cirrhosis. Eric Goldberg and Sanjiv Chopra. UpToDate, 2011.
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Initial therapy of ascites in patients with cirrhosis. José Such and Bruce A Runyon. UpToDate, 2011.
Hepatopulmonary Syndrome – A Liver-Induced Lung Vascular Disorder. Roberto Rodríguez-Rosin and Michael J Krowka. N Engl
J Med 2008;358:2378-87.
Renal Failure in Cirrhosis. Pere Ginès and Robert W Schrier. N Engl J Med 2009;361:1279-90.
Management of Varices and Variceal Hemorrhage in Cirrhosis. Guadalupe Garcia-Tsao and Jaime Bosch. N Engl J Med
2010;362:823-32.

Pedro Kallas Curiati 637


DIARREIA CRÔNICA E MÁ-
ABSORÇÃO
Diarreia crônica

Definição
Na prática clínica, a diarreia é definida como aumento do número de evacuações
associado à diminuição da consistência das fezes. A duração mínima necessária para
definir um quadro de diarreia como crônico geralmente é superior a seis a oito semanas.

Fisiopatologia
A diarreia é decorrente de alteração em absorção, secreção ou motilidade
intestinal.

Etiologia
As causas de diarreia crônica são múltiplas e incluem inflamação da mucosa,
formação de gradiente osmótico, secreção de íons, iatrogenia, má-absorção de nutrientes
e alteração da motilidade.
Diarreia osmótica pode estar relacionada a ingesta de Mg2+, SO42- ou PO43- e a
má-absorção de carboidratos. Esteatorreia pode estar associada a síndromes má-
absortivas, como em doenças da mucosa, intestino curto, diarreia pós-ressecção
intestinal, supercrescimento bacteriano e isquemia mesentérica, ou a má-digestão, como
em insuficiência pancreática e redução dos sais biliares. Diarreia inflamatória pode estar
associada a doença inflamatória intestinal, como em doença de Crohn, retocolite
ulcerativa, colite linfocítica e colite colágena, a jejunoileíte ulcerativa e a diverticulite.
Doenças infecciosas relacionadas a diarreia incluem colite pseudomembranosa,
infecções por bactérias invasivas, como tuberculose e yersinose, infecções por vírus,
como citomegalovírus e herpes simples, e infecções por protozoários, como ameba e
giárdia. Neoplasias relacionadas a diarreia incluem as de cólon e os linfomas. Diarreias
secretoras estão relacionadas a abuso de laxativos, síndromes congênita, toxinas
bacterianas e má-absorção de sais biliares. Dismotilidade está relacionada a vagotomia
ou simpatectomia, neuropatia diabética, hipertireoidismo e síndrome do intestino
irritável. Tumores neuroendócrinos relacionados a diarreia incluem gastrinoma,
VIPoma, somatostatinoma, mastocitose, síndrome carcinoide e carcinoma medular da
tireoide. Outras causas de diarreia incluem colite isquêmica, enterocolite actínica,
vasculites, reação a drogas e doença de Addison.

Investigação
Uma boa história clínica, o exame físico e a realização de alguns exames
laboratoriais simples são de fundamental importância para o direcionamento mais
racional e produtivo na investigação diagnóstica.
A anamnese deve incluir questionamento quanto a características das fezes,
evacuações noturnas, emagrecimento, investigações anteriores, medicamentos em uso,
alimentação, tempo de evolução, evolução contínua ou intermitente, associação com dor
abdominal, idade superior a cinquenta anos, antecedentes pessoais e antecedentes
familiares. Diarreia com pequeno número de evacuações ao dia, porém volumosas, com
odor fétido e presença de gordura ou alimentos não-digeridos, é sugestiva de origem

Pedro Kallas Curiati 638


alta. Diarreia em pequena quantidade com presença de sangue e acompanhada de puxo e
tenesmo é sugestiva do comprometimento do cólon distal por neoplasia ou inflamação.
Na maioria dos casos, o exame físico é normal ou não contribui para o
diagnóstico. Especial atenção deve ser dada ao estado nutricional e à hidratação.
Exames laboratoriais iniciais incluem hemograma, alfa-1 glicoproteína ácida,
proteína C reativa, hormônio tireoestimulante, glicemia de jejum, eletrólitos, proteínas
totais e frações, dosagem de imunoglobulinas, anticorpo anti-endomísio, anticorpo anti-
transglutaminase, enzimas hepáticas, função hepática, pesquisa de leucócitos nas fezes,
pesquisa de sangue oculto nas fezes, sorologia para vírus da imunodeficiência humana,
pesquisa de giárdia nas fezes por ELISA e exame parasitológico de fezes. Exames
laboratoriais adicionais incluem clearance de alfa-1 antitripsina, pesquisa de Entamoeba
histolytica nas fezes por ELISA, pesquisa de toxina de Clostridium difficile, pesquisa de
Cryptosporidium, Microsporidium e Isospora belli nas fezes, quantificação da gordura
fecal por esteatócrito ou balanço de gordura, pesquisa de substâncias redutoras, cultura
para Campylobacter e Yersinia e reação em cadeia da polimerase ou microscopia
eletrônica para Tropheryma whippelii. Avaliação do intestino delgado pode ser
conduzida com radiografia contrastada para trânsito intestinal, enteroscopia com duplo
balão, cápsula endoscópica e tomografia computadorizada. Colonoscopia com biópsia é
indicada em caso de sangue nas fezes, alteração de exames laboratoriais ou sinal de
doença orgânica.
Dosagem de ferro, folato, vitamina B12, vitamina D e tempo de protrombina é
útil para avaliar a má-absorção. Radiografia de abdômen pode revelar calcificação
pancreática.
Para facilitar a investigação, recomenda-se, inicialmente, a divisão das diarreias
crônicas em esteatorreia, diarreia inflamatória e diarreia aquosa, que, por sua vez, deve
ser subdividida em secretora e osmótica. Essa divisão é baseada em história clínica e
exames laboratoriais.

Tratamento
O tratamento deve ser direcionado para a condição subjacente, quando possível.
Quando a causa não é elucidada, a terapêutica empírica pode ser benéfica. Nos casos de
diarreia aquosa, opióides, como a Loperamida, com 2-4mg duas a quatro vezes ao dia,
ou o Difenoxilato, podem ser úteis. Agentes que se ligam a sais biliares, como a
Colestiramina, com 2-4g por via oral duas a quatro vezes ao dia, são efetivas no
tratamento de diarreias relacionadas aos sais biliares, mas podem piorar os sintomas em
caso de ressecção ileal ou doença em mais de 100cm do íleo.
Medicamentos utilizados para diarreia secretora ou inflamatória severa
geralmente têm efeitos colaterais mais significativos. O análogo de somatostatina
Octeotride, com dose inicial de 100-600mcg/dia por via subcutânea dividida em duas a
quadro administrações diárias e dose máxima de 1500mcg/dia, reduz a diarreia na
síndrome carcinoide e nos tumores neuroendócrinos. Também é efetivo no tratamento
da diarreia relacionada à síndrome de dumping e ao uso de quimioterapia. Preparação
subcutânea de longa duração, com 20-30mg por via intramuscular uma vez por mês, já
está disponível. A secreção pancreática pode ser diminuída, com piora da diarreia.
Clonidina, com dose inicial de 0.1mg duas vezes ao dia e dose máxima de 0.6mg
duas vezes ao dia, é útil na diarreia por abstinência de opióide e por diabetes mellitus.
Alosetron, com 0.5mg a 1mg por via oral duas vezes ao dia durante quatro
semanas, pode ser útil na síndrome do intestino irritável severa com predomínio de
diarreia.

Pedro Kallas Curiati 639


Má-absorção

Definição
A má absorção pode ser definida pela absorção deficiente de um ou mais
nutrientes da dieta, independentemente de haver diarreia ou esteatorreia.
Frequentemente, ocorre em associação a doenças do intestino delgado, mas outros
órgãos, como pâncreas, fígado, vias biliares e estômago também podem estar
envolvidos.

Etiologia
Doenças gástricas, como gastrite autoimune, gastrite atrófica e gastrectomia.
Doenças pancreáticas, como insuficiência pancreática por pancreatite crônica ou
fibrose cística, deficiências congênitas de enzimas pancreáticas e tumores pancreáticos.
Doenças hepáticas, como erros inatos da síntese ou do transporte de ácidos
biliares, cirrose e hipertensão portal.
Doenças biliares, como tumores, colangite esclerosante e cirrose biliar primária.
Doenças intestinais, como amiloidose, enterite autoimune, supercrescimento
bacteriano, doença celíaca, defeitos congênitos nos enterócitos, doença de Crohn,
deficiência de enteroquinase, gastroenterite eosinofílica, fístulas entéricas, alergia
alimentar, doença enxerto versus hospedeiro, hipolactasia, infecções intestinais, enterite
isquêmica, linfoma de intestino delgado, ressecções intestinais, mastocitose,
imunodeficiência primária, enterite actínica e sarcoidose.
Doenças linfáticas, como linfangectasia intestinal, que pode ser primária ou
secundária a linfoma, tumores sólidos ou trauma com lesão ou obstrução do ducto
torácico.
Tumores neuroendócrinos, como tumor carcinoide, glucagonoma,
somatostatinoma e gastrinoma.
Doença vascular e cardíaca, como insuficiência cardíaca congestiva e pericardite
constritiva.

Fisiopatologia
Mecanismo Substratos mal- Etiologia
patofisiológico absorvidos
Má-digestão
Deficiência de Gorduras, vitaminas Doença parenquimatosa hepática, doença
conjugação de ácidos lipossolúveis, cálcio e obstrutiva biliar, supercrescimento bacteriano no
biliares magnésio intestino delgado e deficiência de
colecistoquinina
Insuficiência pancreática Gorduras, proteínas, Doenças congênitas, pancreatite crônica,
carboidratos, vitaminas tumores pancreáticos, inativação de enzimas
lipossolúveis, vitamina pancreáticas por síndrome de Zollinger-Ellison
B12
Digestão mucosa Carboidratos e proteínas Doenças congênitas, deficiência de lactase
reduzida adquirida e doenças generalizadas da mucosa,
como doença celíaca e doença de Crohn
Consumo intraluminal de Vitamina B12 Supercrescimento bacteriano, infecção por
nutrientes helmintos
Má-absorção
Redução na absorção da Gorduras, proteínas, Defeitos congênitos de transporte, doenças
mucosa carboidratos, vitaminas e generalizadas da mucosa, como doença celíaca e
minerais doença de Crohn, ressecção ou by-pass
intestinal, infecções e linfoma intestinal

Pedro Kallas Curiati 640


Diminuição do transporte Gorduras e proteínas Linfangiectasia intestinal primária, obstrução por
tumores sólidos, doença de Whipple, linfoma e
estase venosa por insuficiência cardíaca
Outros mecanismos
Diminuição da acidez Vitamina B12 e ferro Anemia perniciosa, gastrite atrófica, ressecções
gástrica e/ou da secreção gástricas
de fator intrínseco
Alteração na motilidade Gorduras, cálcio e Ressecções gástricas e neuropatia autonômica
gástrica proteínas
Trânsito intestinal rápido Gorduras Hipertireoidismo e neuropatia autonômica

Supercrescimento bacteriano
As principais causas de supercrescimento bacteriano no intestino delgado estão
relacionadas à diminuição da secreção ácida pelo estômago, como em gastrite atrófica,
uso de antiácidos, cirurgias gástricas que diminuem a secreção cloridropéptica e
diminuição da motilidade por diabetes mellitus ou esclerodermia. Condições anatômicas
ou pós-cirúrgicas que levem à estase ou à recirculação das bactérias habitualmente
restritas ao cólon também provocam o supercrescimento bacteriano.
As bactérias anaeróbias desconjugam precocemente os ácidos biliares, que assim
são mais facilmente absorvidos, diminuindo, portanto, a concentração luminal e
prejudicando a formação de micelas. As bactérias utilizam a vitamina B12 para a
produção de folato e liberam proteases que degradam dissacaridases presentes na borda
em escova do intestino delgado, com deficiência de dissacarídeos e de vitamina B12.
O diagnóstico é feito por meio de cultura de aspirado duodenal ou jejunal, com
crescimento de mais de 100.000 unidades formadoras de colônia, ou de testes
respiratórios, como o do hidrogênio expirado após ingesta de carboidrato e o da xilose
marcada com C14.
O tratamento envolve a correção dos fatores predisponentes, quando possível, o
uso de pró-cinéticos e antibioticoterapia, sendo Tetraciclina, quinolonas,
Amoxacilina/Clavulanato, Cefalexina e Metronidazol as drogas de escolha, com uso
durante quatorze dias. Medicamentos que reduzem a secreção ácida gástrica devem ser
suspensos sempre que possível. Se os fatores predisponentes não forem corrigidos, há
risco de deficiência de vitamina B12, vitaminas lipossolúveis e cálcio, com necessidade
de sua suplementação.

Doença celíaca
A doença celíaca é uma doença induzida pelo consumo de proteínas presentes
em trigo, centeio e cevada. Afeta primariamente o trato gastrointestinal em indivíduos
geneticamente suscetíveis, com lesão característica, porém inespecífica, da mucosa do
intestino delgado, que resulta em má-absorção de nutrientes pelo segmento envolvido.
Há melhora com a retirada do glúten da dieta.
A prevalência é maior em crianças com baixa estatura, pacientes com diabetes
mellitus tipo I e pacientes com queixas dispépticas.
A predisposição genética é um fator bem estabelecido, com risco atribuído ao
antígeno leucocitário humano (HLA) classe II, com HLA-DQ2 e HLA-DQ8
encontrados na maior parte dos casos.
A apresentação clínica varia desde oligossintomática ou assintomática até forma
clássica com déficit de crescimento, desnutrição e diarreia crônica aquosa. Adultos
geralmente se apresentam com anemia e osteoporose, sem diarreia ou outros sintomas
gastrointestinais, em função de má-absorção de ferro, folato, vitamina B12 e cálcio.
Outras manifestações extra-intestinais incluem dermatite herpetiforme, neuropatia

Pedro Kallas Curiati 641


periférica, ataxia, epilepsia, depressão, paranoia, infertilidade, aborto espontâneo, baixa
estatura, alterações dentárias, hepatite crônica e cardiomiopatia.
O exame sorológico com anticorpos anti-endomísio IgA, anti-transglutaminase
tecidual IgA e anti-gliadina IgM e IgG é de grande utilidade, pois apresenta altas
sensibilidade e especificidade. No entanto, o diagnóstico ainda requer a documentação
da lesão intestinal pelo exame anatomopatológico, com o objetivo de identificar atrofia
das vilosidades, hiperplasia de criptas e aumento dos linfócitos intraepiteliais.
Indivíduos com deficiência de IgA pode apresentar exames sorológicos falso-negativos.
Durante o exame endoscópico, o diagnóstico pode ser suspeitado pela presença de
pregas com aspecto serrilhado.
Todos os pacientes devem ser submetidos a densitometria óssea. Aqueles com
diarreia e emagrecimento devem ser rastreados para deficiências vitamínicas e minerais.
O tratamento atual consiste na retirada completa e definitiva do trigo, da cevada
e do centeio da alimentação. A aveia pode ser tolerada pela maioria dos pacientes já em
remissão da doença. Deficiências nutricionais devem ser corrigidas.
Doença celíaca refratária pode ser definida como doença que não responde à
retirada do glúten por pelo menos seis meses, com persistência de sintomas graves e
atrofia das vilosidades, considerando que todas as outras causas de atrofia de
vilosidades tenham sido descartadas, incluindo o linfoma intestinal. A causa mais
comum de falta de resposta ao tratamento é o não seguimento estrito de forma
consciente ou de maneira inadvertida da dieta sem glúten. Outras causas de atrofia de
vilosidades incluem alergia ao leite de vaca, síndrome pós-gastroenterite, duodenite
péptica, doença de Crohn, supercrescimento bacteriano, gastroenterite eosinofílica,
radioterapia, quimioterapia, espru tropical, desnutrição grave, linfoma intestinal, doença
enxerto versus hospedeiro, hipogamaglobulinemia e doença da cadeia alfa.
Os pacientes com doença celíaca apresentam risco aumentado de linfoma de
células B, adenocarcinoma do trato gastrointestinal e morte, que pode ser reduzido com
dieta livre de glúten.

Infecção por Giardia intestinalis


A infestação crônica por giárdia causa aumento da permeabilidade intestinal por
supressão da claudina 1 e aumento da apoptose, prejuízo na absorção de glicose
dependente de sódio e ativação dos mecanismos de secreção iônicos. O quadro clínico
da infestação pode variar de assintomático até diarreia crônica, desnutrição e retardo de
crescimento. Os fatores que levam ao desenvolvimento de quadros mais graves são
hipogamaglobulinemia, alta densidade de parasitas e virulência do protozoário.

Doença de Whipple
A doença causada pelo Tropheryma whippelii é multi-sistêmica, com
envolvimento de trato gastro-intestinal, sistema nervoso central, coração, mais
frequentemente com endocardite com hemocultura negativa, e outros órgãos. O
diagnóstico definitivo é realizado pela detecção do T. whippelii por reação em cadeia da
polimerase em associação com achado característico de macrófagos tumefeitos
positivos para PAS no exame histopatológico. O tratamento é feito com antibióticos de
amplo espectro, como Penicilina G Benzatina 1200000UI/dia por via intramuscular
associada a Estreptomicina 1g/dia por via intramuscular, Ceftriaxone 2g/dia por via
intravenosa ou intramuscular ou Meropenem 1g de 8/8 horas por via intravenosa,
durante quatorze dias, com Sulfametoxazol/Trimetoprim 800mg/160mg de 12/12 horas
por via oral a partir de então e durante um ano.

Pedro Kallas Curiati 642


Enterite actínica
Os pacientes submetidos à radioterapia podem desenvolver quadros de má-
absorção até vinte anos após o tratamento. Histologicamente, o quadro típico é de
endarterite obliterativa de pequenos vasos. O quadro de má-absorção está relacionado à
extensão da lesão e à presença de estenoses.

Intolerância à lactose
A deficiência de lactase é a causa mais comum de má-absorção seletiva de
carboidratos. Neonatos apresentam alta concentração dessa enzima, mas durante o
crescimento ocorre uma redução geneticamente programada e irreversível da sua
atividade na maioria da população, resultando em má-absorção de lactose, que pode ou
não estar associada a sintomas gastrointestinais. A sintomatologia típica envolve dor
abdominal em cólica, flatulência e eructações. Secundariamente, podem ocorrer diarreia
osmótica por dificuldade na reabsorção de grande quantidade de ácidos graxos de cadeia
curta produzidos pela metabolização da lactose por bactérias colônicas. O diagnóstico é
feito por teste respiratório, com avaliação do hidrogênio expirado após ingesta de
lactose, ou sanguíneo após sobrecarga de lactose. O tratamento compreende uma dieta
pobre em alimentos que contenham lactose ou reposição de lactase por via oral.
Algumas doenças intestinais podem causar deficiência de lactase secundária e
reversível, como gastroenterite viral, doença celíaca, giardíase e supercrescimento
bacteriano.

Distúrbios na drenagem linfática


O aumento na pressão do sistema linfático leva à perda e até à ruptura dos vasos
linfáticos, com extravasamento para o lúmen intestinal de lipídios, gamaglobulina,
albumina e linfócitos, provocando um quadro de diarreia, hipoalbuminemia e edema.
Entre as principais causas, destacam-se a linfangiectasia intestinal congênita primária e
as linfangiectasias secundárias a linfoma, tuberculose, doença de Crohn, sarcoma de
Kaposi, fibrose retroperitoneal, pericardite constritiva e insuficiência cardíaca grave.

Enteropatia perdedora de proteínas


Muitas das condições podem causar enteropatia perdedora de proteínas, seja com
dano da mucosa, como em caso de linfoma, doença celíaca, doença inflamatória
intestinal, doença de Whipple, lúpus eritematoso sistêmico e supercrescimento
bacteriano, seja pela lesão linfática.

Mecanismos desconhecidos
Existem certas condições que são causadoras de síndrome de má-absorção,
porém o mecanismo desencadeante ainda permanece desconhecido, como em
hipoparatireoidismo, insuficiência adrenal, hipertireoidismo e síndrome carcinoide.

Bibliografia
Clínica médica, volume 4: doenças do aparelho digestivo, nutrição e doenças nutricionais. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Goldman’s Cecil medicine / [edited by] Lee Goldman, Andrew I. Schafer.—24th ed. 2012.

Pedro Kallas Curiati 643


DISPEPSIA
Definição
Dispepsia é dor ou desconforto no abdômen superior. Abrange grande variedade
de sintomas, como sensação de distensão abdominal, saciedade precoce, plenitude pós-
prandial, epigastralgia em queimação, eructação, náusea e vômitos, com causas
diversas.

Epidemiologia
Dispepsia apresenta elevada prevalência na população geral. É discretamente
mais frequente entre as mulheres.

Etiologia
A dispepsia pode ser dividida em orgânica, em que existe um marcador
biológico relacionado às queixas, e funcional, presente em cerca de metade dos casos.

Dispepsia funcional
Segundo o consenso de Roma III, define-se dispepsia funcional como dor
crônica ou recorrente ou desconforto em abdômen superior na ausência de qualquer
causa orgânica, sistêmica ou metabólica e sem achados da síndrome do intestino
irritável.
A frequência é maior em mulheres.
A fisiopatologia permanece obscura, estando possivelmente associada a
hipersensibilidade visceral, disfunção motora e fatores psicossociais.
Com base nos critérios do consenso de Roma III, a dispepsia funcional pode ser
subdividida em desconforto pós-prandial e dor epigástrica.
Síndrome do desconforto pós-prandial é caracterizada por empachamento pós-
prandial e/ou saciedade precoce que impossibilita o término normal da alimentação
várias vezes por semana durante os últimos três meses, com início, no mínimo, nos
últimos seis meses. Critérios que corroboram o diagnóstico incluem distensão do
abdômen superior, náusea pré-prandial e eructação. Síndrome da dor epigástrica pode
coexistir.
Síndrome da dor epigástrica é caracterizada por dor em queimação localizada no
epigástrio no mínimo uma vez por semana, intermitente, não-generalizada ou localizada
em outras regiões e não aliviada por defecação ou eliminação de flatos durante os
últimos três meses, com início, no mínimo, nos últimos seis meses.
Dispepsia é comum em pacientes com síndrome do intestino irritável.

Causas orgânicas de dispepsia


Alterações do trato gastrointestinal incluem doença ulcerosa péptica, doença do
refluxo gastroesofágico, intolerância alimentar, parasitoses, principalmente giardíase e
estrongiloidíase, neoplasias gástricas e esofágicas, gastroparesia, doenças gástricas
infiltrativas, como síndrome de Ménétrier, gastroenterite eosinofílica, sarcoidose e
amiloidose, síndrome de má-absorção, como em doença celíaca, infecções por
citomegalovírus ou fungos, pancreatite crônica, colecistopatia calculosa e neoplasia
pancreática.
Doenças sistêmicas incluem doenças endócrinas, como diabetes mellitus,
hipotireoidismo, hipertireoidismo, hiperparatireoidismo e insuficiência adrenal,

Pedro Kallas Curiati 644


colagenoses, insuficiência cardíaca, insuficiência coronariana, insuficiência renal e
gravidez.
Medicamentos incluem anti-inflamatórios não-hormonais, corticosteroides,
digitálicos, ferro, potássio, nitrato, Niacina, Colchicina, estrógenos, Levodopa,
inibidores da enzima de conversão da angiotensina, macrolídeos, Metronidazol,
Teofilina, diuréticos de alça e Alendronato.

Neoplasias
A prevalência de neoplasia em pacientes dispépticos é de 2%, com 98% dos
casos em indivíduos com idade superior a 45 anos. Fatores que aumentam o risco
incluem história prévia de cirurgia gástrica, história familiar de câncer gástrico,
neoplasia esofágica ou gástrica prévia e infecção por H. pylori. Sintomas e sinais de
alarme incluem vômitos frequentes, sangramentos gastrointestinais, anemia ferropriva,
disfagia, odinofagia, emagrecimento não-explicado, massas abdominais palpáveis,
linfonodomegalia e mudança no padrão dos sintomas. Icterícia, febre e úlcera péptica
prévia também são considerados sintomas e sinais de alarme para doença orgânica.
Neoplasias precoces podem ser assintomáticas ou manifestar-se de forma indistinguível
em relação a doenças benignas.

Avaliação complementar
Endoscopia digestiva alta apresenta alta acurácia diagnóstica. Resultado normal
pode estar associado a dispepsia funcional e a doença do refluxo gastroesofágico não-
erosiva. O médico deve distinguir o paciente com alta probabilidade de ter doença
orgânica grave, com necessidade de avaliação complementar e diagnóstico definitivo,
daquele que pode ser tratado empiricamente com inibição da secreção ácida gástrica ou
erradicação do H. pylori. A prevalência de neoplasia é rara em pacientes dispépticos
sem sintomas de alarme e não há evidência de que o atraso no diagnóstico em algumas
semanas comprometa o resultado. Para decidir entre tratamento empírico e endoscopia
precoce, o médico deve se basear em nível de ansiedade do paciente, idade, presença de
sinais de alarme, presença de sintomas de refluxo gastroesofágico e infecção pelo H.
pylori. Endoscopia digestiva alta é necessária em usuários de anti-inflamatórios não-
hormonais que persistem sintomáticos apesar da sua descontinuação ou do início de
agente inibidor da secreção ácida gástrica.
Infecção crônica pelo H. pylori está associada a úlceras pépticas e a câncer
gástrico. Testes não-invasivos incluem teste respiratório da uréia, avaliação sorológica e
acesso ao antígeno fecal. Erradicação empírica do H. pylori nos pacientes com dispepsia
e teste não-invasivo positivo resolve os sintomas na maior parte dos pacientes sem
diagnóstico de doença ulcerosa péptica, mas não tem impacto significativo naqueles
infectados sem doença ulcerosa.
Hemograma completo, eletrólitos avaliação hepática e função tireoidiana devem
ser considerados. Amilase sérica, protoparasitológico de fezes e teste de gravidez são
solicitados quando necessário.
Cintilografia gástrica e manometria gastroduodenal são reservadas para
pacientes com vômitos frequentes e podem revelar alteração na motilidade gástrica.
pHmetria esofágica é útil no diagnóstico de refluxo gastroesofágico em pacientes com
sintomas atípicos. Ultrassonografia de abdômen e tomografia computadorizada são
indicadas em caso de suspeita de doença biliopancreática.

Manejo inicial dos pacientes com dispepsia


Pacientes com idade superior a 55 anos ou com sinais de alarme devem ser

Pedro Kallas Curiati 645


submetidos a endoscopia digestiva alta para excluir doença ulcerosa péptica,
malignidade gástrica ou esofágica e outras doenças mais raras do trato digestivo alto.
Pacientes com idade inferior ou igual a 55 anos sem sinais de alarme podem ser
submetidos a teste não-invasivo e tratamento para H. pylori, com teste de supressão
ácida se a erradicação tiver sido eficaz, mas sem resolução dos sintomas, ou apenas a
teste empírico de supressão ácida com inibidor da bomba de prótons por quatro a oito
semanas. A opção de testar e tratar é preferível na população com prevalência moderada
a alta de infecção pelo H. pylori, superior ou igual a 10%, enquanto que o tratamento
empírico com inibidor da bomba de prótons é preferível em situações de baixa
prevalência.
A recomendação baseada na faixa etária é bastante questionável, pois a
incidência de neoplasia gástrica e úlcera péptica varia conforme a região. O câncer
gástrico é importante causa de mortalidade em homens e mulheres no Brasil, de modo
que o exame endoscópico tem sido recomendado em idade mais precoce no nosso meio.
Alguns pacientes ansiosos precisam ser tranquilizados pela realização de
endoscopia digestiva alta. No entanto, repetir o exame não é recomendado nesses casos.

Tratamento
A maioria dos pacientes com dispepsia funcional apresenta sintomas moderados
e intermitentes que respondem a modificações no estilo de vida. Sintomas refratários, no
entanto, podem ser de difícil manejo.
Terapia dietética não foi sistematicamente estudada, mas parece lógico alertar
para que sejam evitados alimentos que agravam os sintomas. Em geral, recomenda-se
comer mais frequentemente, com refeições menores.
Os fármacos disponíveis até o momento para o manejo da dispepsia funcional
possuem eficácia limitada e alto índice de efeito placebo. Para pacientes H. pylori
negativos com dispepsia não-investigada e sem sinais de alarme, um teste empírico com
supressão ácida por quatro a oito semanas é recomendável como terapia de primeira
linha. Se houver falha na supressão ácida após duas a quatro semanas, é razoável a
terapia com escalonamento da dose ou da medicação. Se houver recorrência dos
sintomas, outro curso do mesmo tratamento está justificado. Pacientes que não
respondem a medidas simples devem ter seu diagnóstico reconsiderado.
Os inibidores da secreção ácida gástrica, como os inibidores da bomba de
prótons e os antagonistas dos receptores H2, são a primeira escolha para dispepsia
funcional tipo dor epigástrica e os pró-cinéticos, como Metoclopramida, Domperidona,
Bromoprida e Cisaprida, são preferidos para dispepsia funcional tipo desconforto pós-
prandial. Dentre os inibidores da bomba de prótons, Omeprazol é apresentado na forma
de cápsulas de 10mg, 20mg e 40mg e é utilizado com dose inicial de 20mg pela manhã,
Pantoprazol é apresentado na forma de comprimidos revestidos de 20mg e 40mg e é
utilizado com dose inicial de 40mg pela manhã e Esomeprazol é apresentado na forma
de comprimidos de 20mg e 40mg e é utilizado com dose inicial de 40mg pela manhã.
Dentre os antagonistas dos receptores H2, a Ranitidina é apresentada na forma de
comprimidos de 150mg e 300mg e é utilizada com dose inicial de 150mg de 12/12
horas ou 300mg a noite, Cimetidina é apresentada na forma de comprimidos de 200mg
e 400mg e é utilizada com dose inicial diária de 200mg nas principais refeições e ao
deitar, 400mg de 12/12 horas ou 800mg a noite e Famotidina é apresentada na forma de
comprimidos de 20mg e 40mg e é utilizada com dose inicial diária de 20mg de 12/12
horas ou 40mg de noite. Dentre os pró-cinéticos, a Metoclopramida é apresentada na
forma de comprimidos de 10mg, solução oral com 5mg/5mL e gotas pediátricas com
4mg/mL (21 gotas) e é utilizada com dose de 10mg dez a trinta minutos antes de cada

Pedro Kallas Curiati 646


refeição principal e, se necessário, ao deitar, Domperidona é apresentada na forma de
comprimidos de 10mg e solução oral com 1mg/mL e é utilizada com dose inicial de
10mg quinze a trinta minutos antes de cada refeição principal e, se necessário, ao deitar
e Bromoprida é apresentada na forma de cápsulas de 10mg, solução oral com 1mg/mL e
gotas pediátricas com 4mg/mL (24 gotas) e é utilizada com dose de 40-60mg ao dia em
três a quatro tomadas.

Algoritmos

Pedro Kallas Curiati 647


Bibliografia
Clínica médica, volume 4: doenças do aparelho digestivo, nutrição e doenças nutricionais. – Barueri, SP: Manole, 2009.
American Gastroenterological Association Medical Position Statement: Evaluation of Dyspepsia.

Pedro Kallas Curiati 648


DOENÇA DO REFLUXO
GASTROESOFÁGICO
Definição
A doença do refluxo gastroesofágico é uma afecção crônica decorrente do fluxo
retrógrado de parte do conteúdo gastroduodenal para esôfago e/ou outros órgãos
adjacentes a ele, com espectro variável de sinais e sintomas.

Fisiopatologia
A fisiopatologia da doença do refluxo gastroesofágico tem como evento
principal o retorno patológico para o esôfago de agentes agressores, representados
principalmente por ácido clorídrico, pepsina, sais biliares e enzimas pancreáticas.
Para ocorrer lesão dos órgãos expostos, é necessário que os fatores de defesa,
que compõem a chamada barreira anti-refluxo, sejam superados. A área de alta pressão
encontrada junto à transição esofagogástrica está relacionada à pressão intrínseca do
esfíncter inferior do esôfago, à localização intra-abdominal do esfíncter inferior do
esôfago, à compressão extrínseca pelo diafragma e ao ligamento freno-esofágico, que
cria um ângulo agudo entre o esôfago e o estômago. A depuração esofágica está
relacionada à peristalse e à salivação. A resistência da mucosa esofágica está
relacionada a junções firmes, matriz extracelular e secreção de bicarbonato. Entre os
mecanismos facilitadores do refluxo, o relaxamento transitório do esfíncter inferior do
esôfago é o mais importante.
Agentes que diminuem a pressão do esfíncter inferior do esôfago incluem
alimentos, como chocolate, gorduras e café, medicamentos, como bloqueadores de
canais de cálcio, Meperidina, Morfina, Dopamina, Diazepam, barbitúricos, Teofilina,
Prostaglandina E2 e Prostaglandina I2, hormônios, como progesterona, secretina,
glucagon, somatostatina, VIP e GIP, agentes neuronais, como betabloqueadores,
anticolinérgicos, alfabloqueadores e agonistas do ácido nítrico, tabaco e álcool.
Atualmente, acredita-se que a presença de hérnia hiatal seja um fator facilitador
para o aparecimento de doença do refluxo gastroesofágico, embora sua existência não
indique necessariamente a ocorrência de doença do refluxo.

Quadro clínico
Manifestações típicas incluem pirose e regurgitação ácida. Manifestações
pulmonares incluem asma, tosse crônica, pigarro, bronquite crônica, pneumonia de
repetição e bronquiectasia. Manifestações otorrinolaringológicas incluem faringites,
otites, sinusites e laringites. Manifestações orais incluem desgaste do esmalte dentário,
aftas e halitose.
A intensidade e a frequência dos sintomas são fracos preditores da presença e da
gravidade da esofagite. A duração da doença, por outro lado, está associada a aumento
do risco de complicações.
Sinais e sintomas de complicações da doença do refluxo gastroesofágico
englobam disfagia, odinofagia, hematêmese, melena, anemia e emagrecimento.

Avaliação complementar
A endoscopia digestiva alta, apesar de baixa sensibilidade para o diagnóstico de
doença do refluxo gastroesofágico, é importante no diagnóstico diferencial com outras

Pedro Kallas Curiati 649


enfermidades, particularmente o câncer de esôfago. Tem a vantagem de permitir a
biópsia esofágica, imprescindível para o diagnóstico de esôfago de Barret e
adenocarcinoma. As principais lesões identificadas são erosões, úlceras, estenose
péptica e esôfago de Barret.
Classificação endoscópica de Savary-Miller modificada:
- 0 – Mucosa de aspecto normal;
- 1 – Uma ou mais erosões lineares ou ovaladas em uma única prega
longitudinal;
- 2 – Várias erosões situadas em mais de uma prega longitudinal,
confluentes ou não, mas que não ocupam toda a circunferência do
esôfago;
- 3 – Erosões confluentes que se estendem por toda a circunferência do
esôfago;
- 4 – Lesões crônicas, como úlceras e estenoses, isoladas ou associadas às
lesões dos graus 1 a 3;
- 5 – Epitélio colunar em continuidade com a linha Z, circunferencial ou
não, de extensão variável, associado ou não a lesões de grau 1 a 4;
Classificação endoscópica de Los Angeles:
- A – Uma ou mais soluções de continuidade menores do que 5mm;
- B – Uma ou mais soluções de continuidade maiores do que 5mm em
sua maior extensão, não-contínuas entre os ápices de duas pregas
esofágicas;
- C – Soluções de continuidade contínuas ou convergentes entre os ápices
de pelo menos duas pregas, envolvendo menos que 75% da
circunferência do órgão;
- D – Soluções de continuidade ocupando pelo menos 75% da
circunferência do órgão;
O exame radiológico contrastado de esôfago tem importância atualmente apenas
em casos de esofagite complicada, sendo útil na avaliação morfológica de estenoses,
úlceras e retrações, além da hérnia hiatal. Pode detectar alterações grosseiras da
motilidade esofágica, especialmente quando há suspeita de acalasia ou megaesôfago
associados. A indicação, portanto, está restrita ao esclarecimento do significado de
disfagia e odinofagia como sintomas de alarme.
Manometria esofágica é indicada na investigação da eficiência da peristalse
esofágica em pacientes com indicação de tratamento cirúrgico com o objetivo de
permitir ao cirurgião considerar a possibilidade de fundoplicatura parcial, na
determinação da localização precisa do esfíncter inferior do esôfago para permitir a
correta instalação do eletrodo de pHmetria e na investigação da presença de distúrbio
motor esofágico associado.
Apesar de não ser mais considerada o padrão de referência para o diagnóstico de
doença do refluxo gastroesofágico, a pHmetria de 24 horas ainda é o melhor método
disponível para caracterizar o refluxo gastroesofágico e permitir a correlação dos
sintomas com os episódios de refluxo. As principais indicações são sintomas típicos
sem resposta satisfatória ao tratamento medicamentoso e sem dano à mucosa esofágica
evidenciado na endoscopia digestiva alta, manifestações extraesofágicas sem presença
de esofagite ao exame endoscópico e pré-operatório de casos bem caracterizados em
que o exame endoscópico não caracterizou esofagite. No primeiro cenário, o exame
deve ser realizado na vigência de inibidor de bomba de prótons.
A medida da impedância intraluminal foi recentemente introduzida como mais
uma técnica de investigação do refluxo gastroesofágico e duodeno-gastroesofágico.

Pedro Kallas Curiati 650


Possibilita a investigação do movimento do conteúdo gástrico independentemente da
medida do pH, permitindo o diagnóstico de refluxo não-ácido, bem como a altura
alcançada. Permite ainda o diagnóstico de refluxo gasoso e líquido simultaneamente.

Diagnóstico
Pirose e/ou regurgitação com frequência mínima de duas vezes por semana por
período superior ou igual a quatro semanas sugere o diagnóstico de doença do refluxo
gastroesofágico. Na forma erosiva, há erosões identificadas no exame endoscópico. Na
forma não-erosiva, erosões não são detectadas.

Teste terapêutico
Pacientes portadores de manifestações clínicas típicas de doença do refluxo
gastroesofágico e sem sinais de alarme podem ser considerados para receber teste
terapêutico com medicação inibidora da bomba de prótons em dose plena diária por
quatro semanas como conduta inicial, em conjunto com as medidas comportamentais. O
teste é considerado positivo quando são abolidos os sintomas inicialmente presentes,
sugerindo fortemente o diagnóstico de doença do refluxo gastroesofágico. Em caso de
resposta inicial insatisfatória, o teste terapêutico pode ser continuado com
fracionamento da dose em duas administrações diárias. Em caso de persistência da
resposta insatisfatória, há falha do teste terapêutico.

Complicações
Complicações são mais frequentes em indivíduos que não procuram auxílio
médico, em casos refratários ao tratamento e em indivíduos que não seguem o
tratamento corretamente. As complicações mais comuns são esôfago de Barret,
estenose, úlceras e sangramento esofágico.
O esôfago de Barret consiste em substituição do epitélio escamoso estratificado
do próprio esôfago por epitélio metaplásico do tipo colunar intestinal. Está relacionado
a risco potencial de desenvolvimento de adenocarcinoma de esôfago.
A estenose ocorre como consequência da inflamação, com fibrose da parede e
redução da luz esofágica. A principal manifestação clínica é a disfagia.
O sangramento esofágico na doença do refluxo gastroesofágico costuma ser
lento e insidioso, podendo ser responsável por quadros de anemia crônica. Mais
raramente, pode ocorrer hematêmese.

Tratamento
O tratamento da doença do refluxo gastroesofágico tem como objetivos
principais o alívio dos sintomas, a cicatrização das lesões e a prevenção de recidivas e
complicações.

Medidas comportamentais
Elevar a cabeceira da cama em aproximadamente 15cm.
Moderar a ingesta de alimentos gordurosos, alimentos cítricos, bebidas
alcoólicas, bebidas gasosas, menta, molho de tomate, chocolate e condimentos em
excesso, na dependência da correlação com os sintomas.
Evitar deitar-se logo após as refeições, por pelo menos uma a duas horas.
Evitar refeições copiosas, procurando fracionar a dieta.
Suspender o consumo de tabaco.
Evitar líquidos durante a refeição.
Reduzir o peso corpóreo.

Pedro Kallas Curiati 651


Tomar cuidados especiais com medicamentos potencialmente de risco.

Tratamento medicamentoso
Inibidores da bomba de prótons são as drogas de primeira escolha no tratamento
da doença do refluxo gastroesofágico. É importante salientar que bloqueiam apenas as
bombas de prótons ativas e, portanto, devem ser administrados sempre antes de uma
refeição, já que o principal fator ativador é o alimento. Omeprazol é apresentado na
forma de cápsulas de 10mg, 20mg e 40mg e é utilizado com dose diária plena de 40mg,
Pantoprazol é apresentado na forma de comprimidos revestidos de 20mg e 40mg e é
utilizado com dose diária plena de 40mg, Esomeprazol é apresentado na forma de
comprimidos de 20mg e 40mg e é utilizado com dose diária plena de 40mg e
Lansoprazol é apresentado na forma de cápsulas de 15mg e 30mg e é utilizado com
dose plena de 30mg. Tratamento a longo prazo de manutenção deve ser titulado para a
menor dose que permita o controle adequado dos sintomas.
Os bloqueadores dos receptores H2 da histamina são eficazes como
bloqueadores da secreção ácida basal e estimulada. Os mais utilizados em nosso meio
são a Ranitidina, a Famotidina e a Cimetidina. São medicamentos seguros, com baixa
frequência de efeitos adversos e com preço acessível. A principal limitação é a baixa
eficácia em casos mais graves e o mecanismo de tolerância, que pode surgir com o uso
crônico.
Os pró-cinéticos apresentam a propriedade de elevar a amplitude das contrações
peristálticas do corpo esofágico, acelerar o esvaziamento gástrico e elevar a pressão no
esfíncter inferior do esôfago. A Metoclopramida é o agente mais antigo e apresenta
efeitos adversos indesejáveis devido à ação sobre o sistema nervoso central, como
sonolência e efeitos extra-piramidais. É apresentada na forma de comprimidos de 10mg,
solução oral com 5mg/5mL e gotas pediátricas com 4mg/mL (21 gotas) e é utilizada
com dose de 10mg dez a trinta minutos antes de cada refeição principal e, se necessário,
ao deitar. A Domperidona é um derivado da Metoclopramida com ação limitada no
sistema nervoso central e menos efeitos colaterais. É apresentada na forma de
comprimidos de 10mg e solução oral com 1mg/mL e é utilizada com dose inicial de
10mg quinze a trinta minutos antes de cada refeição principal e, se necessário, ao deitar.
Antiácidos, alginatos e Sucralfato podem ser usados em situações especiais para
fornecer alívio sintomático passageiro. Atuam neutralizando a secreção ácida e são
eficazes para o controle em curto prazo dos sintomas, com propriedade curativa bastante
limitada.

Tratamento cirúrgico
As evidências clínicas têm demonstrado que não existem diferenças
significativas entre os resultados dos tratamentos clínico e cirúrgico. Este é indicado
para os pacientes que respondem satisfatoriamente ao tratamento clínico, mas que não
podem ou não querem continuar o uso de medicamentos, e para pacientes com grandes
hérnias hiatais ou complicações da doença do refluxo gastroesofágico, como estenose,
úlcera e adenocarcinoma.
A intervenção cirúrgica consiste na recolocação do esôfago na cavidade
abdominal, na aproximação dos pilares do hilo diafragmático, denominada hiatoplastia,
e no envolvimento do esôfago distal pelo fundo gástrico, denominado fundoplicatura. O
procedimento pode ser feito por laparotomia ou por laparoscopia. Nas formas com
estenose intensa associada a distúrbios motores graves, a esofagectomia deve ser
considerada.

Pedro Kallas Curiati 652


Bibliografia
Clínica médica, volume 4: doenças do aparelho digestivo, nutrição e doenças nutricionais. – Barueri, SP: Manole, 2009.
American Gastroenterological Association Medical Position Statement on the Management of Gastroesophageal Reflux Disease.
American Gastroenterological Association Institute. GASTROENTEROLOGY 2008;135:1383–1391.
Gastroesophageal Reflux Disease. Peter J. Kahrilas. N Engl J Med 2008;359:1700-7.

Pedro Kallas Curiati 653


DOENÇA INFLAMATÓRIA
INTESTINAL
Conceito
A doença inflamatória intestinal é caracterizada por um processo inflamatório do
trato gastrointestinal e engloba pelo menos duas formas, a retocolite ulcerativa e a
doença de Crohn.
A retocolite ulcerativa acomete a mucosa do cólon e do reto e classicamente
apresenta distribuição simétrica e contínua. A doença de Crohn caracteriza-se por uma
inflamação transmural crônica do tubo digestório, da boca ao ânus, com predileção pela
região ileal ou íleo-cecal, e gera reação granulomatosa não-caseificante.
Na ausência de causas identificáveis, a retocolite ulcerativa e a doença de Crohn
são definidas empiricamente pelos seus aspectos clínicos, patológicos, radiológicos,
endoscópicos e laboratoriais típicos, sendo necessária a exclusão de causas específicas
de inflamação intestinal, como infecção, isquemia e iatrogenia, que pode estar
relacionada a radiação e ao uso de drogas.

Epidemiologia
A doença inflamatória intestinal pode acometer indivíduos de ambos os sexos
em qualquer faixa etária, porém incide predominantemente dos vinte aos quarenta anos
de idade. A doença de Crohn é mais comum entre os judeus Ashkenazi.
Os fatores de risco para doença inflamatória intestinal incluem fatores genéticos
e fatores ambientais, como dieta rica em carboidratos e pobre em frutas, uso de
anticoncepcionais e anti-inflamatórios não-hormonais e infecções prévias por
Paramyxovirus, Mycobacterium avium paratuberculosis e Escherichia coli. O
aleitamento materno reduz o risco. Tabagismo e apendicectomia diminuem o risco de
retocolite ulcerativa e aumentam o risco de doença de Crohn.

Etiopatogenia
Na doença inflamatória intestinal, suscetibilidade genética, alterações luminais,
ruptura da barreira mucosa e anormalidades da imuno-regulação propiciam que agentes
agressores gerem amplificação do processo imune e inflamatório.

Anatomia patológica
A retocolite ulcerativa é caracterizada por inflamação difusa da mucosa do
intestino grosso. Nos períodos de maior atividade da doença, a mucosa dos cólons exibe
hiperemia, edema, friabilidade, sangramento fácil ao toque, exsudato fibrinomucoide,
erosões e ulcerações. Nos casos de longa evolução, o cólon pode ter aspecto tubular,
com perda das haustrações e mucosa atrófica, pálida. Em muitos casos, podem ser vistos
pseudopólipos constituídos por ilhas de mucosa com estrutura relativamente preservada
cercadas por áreas de erosão ou ulceração confluente. No exame histopatológico,
encontra-se distorção em graus variáveis da arquitetura das criptas da mucosa. Há
considerável depleção de células caliciformes, bem como intenso infiltrado
inflamatório, que acomete a mucosa e, eventualmente, a submucosa, mas não se estende
às camadas mais profundas. Na fase aguda e nos períodos de ativação da doença, esse
infiltrado inflamatório é predominantemente constituído por neutrófilos
polimorfonucleares, enquanto que na fase crônica prevalecem as células mononucleares.

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A doença de Crohn pode acometer qualquer segmento do tubo digestivo, desde a
mucosa oral até a região perineal, porém os locais mais frequentemente afetados são o
íleo distal e o cólon proximal. Aspectos característicos incluem as lesões segmentares
ou salteadas, entremeadas por áreas inteiramente preservadas. O reto encontra-se
poupado na maioria dos casos. O exame macroscópico pode revelar úlceras profundas e
irregulares, aftoides ou serpiginosas. A coexistência de edema e infiltração da mucosa e
da submucosa e úlceras lineares pode gerar o aspecto “em paralelepípedo” das áreas
mais afetadas. Áreas de estenose e orifícios de fístulas são complicações comuns. O
exame histopatológico pode revelar infiltrado inflamatório focal transmural
predominantemente linfocitário. A arquitetura das criptas é quase sempre preservada e,
não raro, há granulomas epitelioides com presença de células gigantes de Langerhans.

Quadro clínico
A retocolite ulcerativa e a doença de Crohn apresentam características clínicas e
evolutivas diversas, que são determinadas por vários fatores, entre eles localização,
extensão e intensidade do processo patológico subjacente, bem como existência ou não
de manifestações de envolvimento sistêmico.

Retocolite ulcerativa
O quadro clínico da retocolite ulcerativa depende da extensão da doença e da sua
gravidade. O comprometimento do intestino grosso pode se limitar aos segmentos
distais, estender-se ao hemicólon esquerdo ou afetar parte ou todo o cólon transverso e o
cólon ascendente.
A retocolite ulcerativa distal, definida por proctite ou proctossigmoidite,
geralmente se manifesta com sintomatologia leve a moderada, sendo comuns diarreia,
dor abdominal em cólica precedendo as evacuações, sangramento retal, tenesmo e
presença de muco e pus nas fezes. Pode ocorrer também obstipação, urgência,
incontinência e dor anorretal. As manifestações extra-intestinais são infrequentes.
A retocolite ulcerativa de hemicólon esquerdo, limitada pela flexura esplênica, a
retocolite extensa, que ultrapassa a flexura esplênica, e a pancolite, que acomete o ceco,
geralmente se manifestam com sintomatologia moderada a grave. Febre, astenia,
anorexia e perda de peso são comuns. Há também diarreia com muco, pus e sangue,
tenesmo e dor abdominal, que é mais intensa do que na retocolite ulcerativa distal. As
manifestações extra-intestinais podem preceder as manifestações intestinais, ocorrem
em 20-30% dos casos e incluem artralgia, artrite não-erosiva migratória de grandes
articulações, sacroileíte, espondilite anquilosante, osteopenia, osteoporose, episclerite,
uveíte, irite, colangite esclerosante primária, doença hepática gordurosa, anemia de
doença crônica, anemia ferropriva, anemia hemolítica autoimune, amiloidose,
nefrolitíase por oxalato de cálcio ou ácido úrico, aftas orais, eritema nodoso, pioderma
gangrenoso e tromboembolismo venoso. O exame físico pode ser normal ou revelar
febre, emagrecimento, desidratação, palidez, taquicardia, dor abdominal, edema e
manifestações extra-articulares.
Quanto ao curso clínico, a retocolite ulcerativa pode ser dividida em forma
aguda fulminante, forma crônica contínua e forma crônica intermitente, que é a mais
frequente.
Os pacientes com retocolite ulcerativa podem desenvolver complicações
variadas, dentre as quais a mais temível é o megacólon tóxico, caracterizado por
dilatação aguda do cólon, geralmente no segmento transverso, superior ou igual a 6cm,
associada a manifestações sistêmicas. Embora pouco frequente, associa-se a alta
mortalidade. Manifesta-se por dor e distensão abdominais de grande intensidade em

Pedro Kallas Curiati 655


associação com febre, prostração, hipotensão, taquicardia, desidratação e intensa
leucocitose. Outras complicações incluem o sangramento digestivo baixo maciço e as
estenoses, que em geral acometem o hemicólon esquerdo.
O risco de desenvolvimento de adenocarcinoma colorretal está relacionado a
duração superior a dez anos e a pancolite, sendo significativamente maior do que na
população geral. Por esse motivo, pacientes com mais de dez anos de evolução da
retocolite ulcerativa e pancolite devem ser submetidos a colonoscopia com biópsias
seriadas a cada um ou dois anos.

Doença de Crohn
A doença de Crohn apresenta manifestações clínicas mais variadas, uma vez que
pode acometer todo o trato digestivo, desde a boca até o ânus e a região perianal, bem
como assumir formas evolutivas peculiares, caracterizadas por fistulização e estenose de
segmentos intestinais. Quanto à localização, em aproximadamente um terço ou mais dos
casos há doença restrita ao íleo terminal e em mais da metade dos casos há
acometimento do íleo terminal e do cólon proximal. O comprometimento isolado do
intestino grosso é menos frequente. Raramente, ocorre doença localizada em segmentos
mais proximais do intestino delgado, estômago ou boca.
A diarreia é o sintoma mais comum na doença de Crohn e caracteriza-se por
número não-exagerado de evacuações. Habitualmente não é relatada a presença de
sangue, muco ou pus nas fezes, exceto em casos com envolvimento do cólon distal. A
dor abdominal é, com maior frequência, contínua, de intensidade moderada a alta e com
localização predominante no quadrante inferior direito. Cólicas no hipogástrio
precedendo as evacuações e por elas aliviadas indicam o comprometimento do intestino
grosso. Dor em cólica mais intensa e difusa, associada a distensão abdominal, náusea,
vômitos e diminuição ou parada da eliminação de gases e fezes indica oclusão dos
segmentos intestinais comprometidos, o que é mais usual quando há envolvimento
exclusivo do íleo terminal. Febre, astenia e emagrecimento, acompanhados ou não de
diminuição da ingesta de alimentos, são manifestações da repercussão da doença no
estado geral do paciente.
O exame físico é variável, sendo comuns alterações indicativas de desnutrição.
O abdômen pode apresentar distensão de grau variável e presença de massas ou plastrão
na palpação profunda do quadrante inferior direito, não sendo raro ocorrer dor à
descompressão brusca dessa região. A avaliação minuciosa das regiões perianal e
perineal é obrigatória em todos os casos suspeitos, mesmo naqueles em que a história
clínica não sugere nenhuma anormalidade. Fissuras, fístulas e abscessos são achados
muito frequentes.
As manifestações extra-intestinais são as mesmas da retocolite ulcerativa e
ocorrem também em cerca de 30% dos casos. Em função do acometimento ileal,
também são relevantes a deficiência de vitamina B12 e a má absorção de sais biliares,
com esteatorreia e colelitíase por cristais de colesterol.
A doença de Crohn tem como complicações características a formação de
fístulas e estenoses. As fístulas perianais são as mais comuns, mas também podem
ocorrer fístulas entre alças intestinais, bem como comunicações fistulosas entre o
intestino e a bexiga ou a vagina. Em proporção menor dos casos, podem ocorrer fístulas
enterocutâneas. A penetração das lesões para a cavidade peritoneal, seguida do
tamponamento por alças ou pelo epíplon, pode se associar à formação de abscessos.

Avaliação complementar
O diagnóstico da doença inflamatória intestinal baseia-se em um conjunto de

Pedro Kallas Curiati 656


dados de ordem clínica, laboratorial, radiológica, endoscópica e histopatológica.

Exames endoscópicos
A endoscopia tem papel chave no diagnóstico e no manejo da doença
inflamatória intestinal. Além disso, é o principal método para obtenção de material para
análise histológica.
A endoscopia digestiva alta pode revelar alterações semelhantes às observadas
no intestino delgado e no cólon. A biópsia de regiões aparentemente normais pode
revelar granulomas ou inflamação transmural, aspectos característicos da doença de
Crohn. Mais recentemente, a enteroscopia com duplo balão tem se revelado um método
com grande sensibilidade para detectar aftas e úlceras no intestino delgado, além de
permitir a realização de biópsias e procedimentos terapêuticos.
A cápsula endoscópica reconhece lesões que não seriam identificadas em outros
exames, é fácil de ser realizada e é bem tolerada pelos pacientes, sendo especialmente
empregada para diagnóstico de sangramento oculto e avaliação do intestino delgado,
com contraindicação em caso de uso de marca-passo, suspeita de obstrução
gastrointestinal, estenoses, fístulas ou distúrbios da deglutição.
A retossigmoidoscopia pode revelar, na fase ativa da retocolite ulcerativa,
erosões e ulcerações em mucosa retal congesta, friável e edemaciada. Na grande maioria
dos pacientes com doença de Crohn, o reto encontra-se poupado, mas algumas vezes a
biópsia demonstra alterações inflamatórias ou mesmo granuloma. A extensão para os
demais segmentos do intestino grosso deve ser verificada por meio de colonoscopia ou,
em circunstâncias específicas, enema opaco.
A colonoscopia é de grande importância na avaliação diagnóstica da doença
inflamatória intestinal, permitindo identificar as alterações de atividade das mucosas,
determinar a extensão e o grau de atividade da doença, avaliar a resposta terapêutica,
identificar complicações, como displasia e neoplasia, e coletar biópsia do íleo terminal.

Exames de imagem
A radiografia simples de abdômen é útil nos casos mais graves para verificação
de dilatação colônica e presença de pneumoperitônio. O enema opaco com duplo
contraste pode revelar perda das haustrações, contornos colônicos irregulares, falhas de
enchimento, aumento do espaço pré-sacral e aspecto tubular do cólon. Nos casos
crônicos, ocasionalmente verifica-se a presença de estenose, que em casos de longa
duração pode estar associada a carcinoma.
O exame contrastado do intestino delgado ou trânsito intestinal é o exame de
escolha para investigar o acometimento do intestino delgado na doença de Crohn,
deixando outras modalidades de exames de imagem para uma avaliação mais detalhada
e/ou para evidenciar complicações da doença. Evidencia espessamento e edema das
válvulas coniventes, presença de estenoses segmentares, significativa alteração do
padrão mucoso com ou sem evidências de ulceração, aspecto pavimentoso e presença de
fístulas.
As imagens intestinais da tomografia computadorizada helicoidal com
enteróclise ou enterografia melhoraram muito nos últimos anos. Podem identificar
espessamentos segmentares das alças, lesões extrínsecas e complicações, como trajetos
fistulosos, fístulas e abscessos. Uma desvantagem é a radiação. Outra desvantagem é a
dificuldade de diferenciar peristalse de lesões salteadas.
A ressonância nuclear magnética com ou sem enteróclise é outro método não
invasivo utilizado para quantificar o espessamento mural, graduar a inflamação e
determinar a extensão da doença, sendo superior à tomografia computadorizada na

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documentação e diferenciação de trajetos fistulosos na pelve e na avaliação das
complicações perianais da doença de Crohn. Não envolve radiação ionizante, tem
excelente resolução em partes moles e é segura na gravidez.
A ultrassonografia é um método útil para avaliar o espessamento da parede
intestinal e a rigidez das alças, assim como a diminuição do peristaltismo. Trata-se de
exame inócuo utilizado na avaliação inicial, principalmente na doença de Crohn ileal. A
ultrassonografia endoscópica é limitada à doença perianal.

Exames laboratoriais
Os exames laboratoriais podem ser normais ou apenas discretamente alterados, o
que acontece, sobretudo, nos casos leves ou quando a doença se restringe aos segmentos
mais distais do cólon. O hemograma pode revelar anemia hipocrômica microcítica,
leucocitose de grau não muito acentuado e trombocitose. Há, com frequência, elevação
de provas de atividade inflamatória, como velocidade de hemossedimentação, alfa-1
glicoproteína ácida e proteína C reativa. Nos casos mais graves, podem ocorrer
hipoalbuminemia, hipocloremia, hiponatremia e presença de leucócitos nas fezes.
Também devem ser avaliados uréia e creatinina séricos, eletrólitos, função hepática,
perfil de ferro e vitamina B12.
O anticorpo perinuclear contra estruturas citoplasmáticas do neutrófilo (p-
ANCA) é encontrado predominantemente em casos de retocolite ulcerativa, enquanto
que o anticorpo anti-Saccharomyces cerevisiae (ASC) é encontrado predominantemente
em casos de doença de Crohn. No entanto, não podem ser considerados marcadores
sorológicos definitivos.
Cultura de fezes para Clostridium difficile, Campylobacter spp, Escherichia coli,
Salmonella spp e Shiguella spp é recomendada para excluir uma causa infecciosa para a
diarreia. Protoparasitológico de fezes também deve ser solicitado. Pacientes com doença
severa e refratária devem ser investigados quanto a infecção por citomegalovírus através
de avaliação histológica, imunoquímica, sorológica, por cultura ou por pesquisa de
DNA. No paciente imunocomprometidos, o sarcoma de Kaposi também pode simular o
quadro clínico de doença inflamatória intestinal.

Diagnóstico diferencial
O diagnóstico diferencial nos casos de doença de Crohn em que há
envolvimento predominante do intestino delgado deve ser realizado com as infecções
crônicas, como tuberculose intestinal e paracoccidioidomicose, bem como com doenças
neoplásicas, como o linfoma. Quando há envolvimento predominantemente do intestino
grosso, deve-se buscar diferenciação com as mesmas doenças.

Tratamento
Antes de tratar um paciente com doença inflamatória intestinal, é fundamental
conhecer a gravidade, a extensão e o comportamento da doença para individualização
do tratamento e escolha das melhores opções em cada grupo terapêutico.

Medidas gerais
É fundamental que o médico informe o paciente sobre o caráter crônico da
doença inflamatória intestinal e a necessidade de controles periódicos, forneça suporte
emocional e estimule a boa relação médico-paciente. Medicação antidiarreica, como
opiáceos, ou anticolinérgica, como antiespasmódicos, deve ser administrada com
cautela, pois pode desencadear megacólon tóxico. O consumo de anti-inflamatórios não-
hormonais deve ser evitado, pois pode exacerbar a doença. O tabagismo, na doença de

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Crohn, piora a doença e deve ser evitado. Reposição hidroeletrolítica, transfusão de
sangue, suporte nutricional e antibióticos por via intravenosa podem ser necessários em
casos mais graves, que demandam internação hospitalar.

Derivados 5-aminossalicílicos (5-ASA)


Esses medicamentos podem ser administrados por via oral ou retal. Inibem a
produção de leucotrienos e anticorpos e reduzem a capacidade de assimilação de
radicais livres. São prescritos no tratamento de pacientes com doença leve a moderada,
principalmente retocolite ulcerativa, tanto na fase aguda como na fase de remissão.
Parece haver pouca diferença na eficácia entre as diversas preparações, embora
os pacientes com doença de Crohn ou retocolite ulcerativa possam apresentar
inflamação em diferentes áreas do intestino delgado. Por esse motivo, foram formulados
diferentes 5-ASA para serem liberados em diferentes partes do trato gastrointestinal.
A Sulfassalazina ingerida é desdobrada no cólon, por ação bacteriana, em
Sulfapiridina, grandemente absorvida, e 5-ASA, o verdadeiro princípio ativo, pouco
absorvido, que age de forma tópica. É apresentada na forma de comprimidos de 500mg
e deve ser administrada sempre que possível após as refeições com copo cheio de água.
A dose diária pode ser fracionada de 8/8 a 6/6 horas. Na retocolite ulcerativa, tem
indicação na doença ativa leve a moderada e na manutenção da remissão, com dose de
indução de 2-6g/dia e dose de manutenção de 2-4g/dia. Na doença de Crohn, tem
indicação na doença ativa leve a moderada, com dose de indução de 3-6g/dia. Os efeitos
adversos são dose-dependentes, relacionados a altos níveis séricos de Sulfapiridina,
ocorrendo principalmente nos indivíduos com baixa capacidade genética de acetilação
hepática do medicamento. Incluem dor abdominal, náusea, vômitos, anorexia, cefaleia,
hemólise e infertilidade. Menos frequentemente, os efeitos colaterais do tratamento
podem ser causados por hipersensibilidade, com febre, exantema cutâneo,
linfadenopatia, síndrome de Stevens-Johnson, agranulocitose, hepatite, pancreatite e
exacerbação da diarreia.
Por causa dos efeitos colaterais da Sulfassalazina, foram desenvolvidas novas
estratégias de liberação do 5-ASA no trato digestivo, o que resultou na criação de novos
produtos, como a Mesalazina, apresentada na forma de comprimidos revestidos de
400mg e 800mg, supositórios de 250mg e 500mg e enema com 3g de pó e 100mL de
solução diluente. A dose deve ser fracionada, geralmente com três tomadas diárias para
a via oral. Já para o uso por via retal, é possível administrar a medicação uma vez ao dia
de noite antes de dormir. Na retocolite ulcerativa, tem indicação na doença ativa leve a
moderada e na manutenção da remissão, com a formulação oral utilizada tanto para a
forma distal como para a forma extensiva e as formulações tópicas utilizadas para a
forma distal. A dose de indução é de 1.6-4.8g/dia por via oral, 0.5-1.5g/dia por via retal
na forma de supositório e 1-4g/dia por via retal na forma de enema. A dose de
manutenção é de 0.75-4g/dia por via oral, 0.5-1.0g/dia por via retal na forma de
supositório e 1-4g/dia por via retal na forma de enema.

Corticoides
Os corticoides constituem os medicamentos de escolha para casos moderados a
graves de doença inflamatória intestinal. Recomenda-se Prednisona por via oral com
0.75-1.0mg/kg/dia até a remissão clínica, quando então se procede à diminuição gradual
da dose em 10mg/dia por semana até 0.5mg/kg/dia e 5mg/dia por semana até a retirada
completa. Se houver recaída da doença, pode-se aumentar o corticosteroide para a dose
que precedeu àquela em que ocorreu a recaída. Em casos graves, internados, indica-se
Hidrocortisona com 100mg por via intravenosa de 8/8 a 6/6 horas por cerca de uma

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semana seguida de Prednisona por via oral.
Os efeitos colaterais dos corticosteroides levaram à recomendação do uso de
forma racional, na fase aguda, e pelo menor tempo possível. Incluem aumento do apetite
e do peso, edema, insônia, labilidade emocional, psicose, acne, síndrome de Cushing,
osteoporose, osteonecrose, retardo de crescimento, supressão do eixo hipotálamo-
hipófise-adrenal, infecções, miopatia, catarata, atrofia de pele, estrias, equimose, fígado
gorduroso, diabetes mellitus, hipertensão arterial sistêmica, glaucoma e pancreatite
aguda. A Budesonida apresenta menos efeitos colaterais e é apresentada na forma de
comprimidos de liberação controlada ileal com 3mg e de enema com comprimido
dispersível de 2.3mg e 115mL de solução diluente, com administração uma vez ao dia
pela manhã. Na forma de enema, parece ser efetiva na retocolite ulcerativa distal ativa.
Já na retocolite ulcerativa com envolvimento do cólon direito e na doença de Crohn
ativa com envolvimento do íleo terminal e do cólon proximal, a formulação oral parece
ser tão eficaz quando a Prednisona, porém na retocolite ulcerativa de hemicólon
esquerdo os resultados são inferiores. Os corticoides tópicos não foram
sistematicamente estudados na doença de Crohn, mas parece que a ação local na doença
tipicamente transmural é menos eficaz que na retocolite ulcerativa. A dose de indução é
de 9mg/dia por via oral ou 2-8mg/dia por via retal na forma de enema e a dose de
manutenção é de 6mg/dia por via oral.
Importante limitação do uso de corticosteroides é a ocorrência de casos
corticosteroide-resistentes e corticosteroide-dependentes.

Imunomoduladores
Neste grupo de medicamentos, é comum incluir a Azatioprina, a 6-
Mercaptopurina, a Cloroquina, a Ciclosporina e o Metotrexato. Mais recentemente, o
Tacrolimo e o Micofenolato Mofetil têm sido testados.
A Azatioprina, apresentada na forma de comprimidos de 50mg administrados
com dose de 2-3mg/kg/dia não-fracionada, e a 6-Mercaptopurina, apresentada na forma
de comprimidos de 50mg administrados com dose de 1.0-1.5mg/kg/dia não-fracionada,
constituem os imunomoduladores mais utilizados no tratamento das doenças
inflamatórias intestinais. Após sua absorção, a Azatioprina é rapidamente convertida em
6-Mercaptopurina nas hemácias, havendo geração de metabólitos ativos do grupo dos 6-
tioguanina nucleosídeos. Na fase aguda da retocolite ulcerativa ou da doença de Crohn,
esses medicamentos estão especificamente indicados nas formas corticosteroide-
dependentes e corticosteroide-resistentes. Também podem ser usados visando a
manutenção da remissão da retocolite ulcerativa, em particular nos casos em que o
emprego da Sulfassalazina ou da Mesalazina não se mostra bem sucedido. Na doença de
Crohn, um conjunto crescente de dados apoia o emprego da Azatioprina ou da 6-
Mercaptopurina na manutenção da doença em remissão, seja após o tratamento clínico,
seja após ressecção de segmentos intestinais acometidos. Do mesmo modo, o emprego
desses imunomoduladores tem sido recomendado no tratamento das formas
fistulizantes. Os efeitos colaterais podem ser de natureza alérgica, com febre, exantema
cutâneo e mal-estar, ou por intolerância, com náusea, vômitos, mal-estar e diarreia.
Esses medicamentos podem causar ainda hepatite, pancreatite e depressão da medula
óssea, com leucopenia, neutropenia, trombocitopenia e anemia. Azatioprina e 6-
Mercaptopurina costumam ser usadas por, pelo menos, quatro anos, se não houver
evidências de toxicidade. No entanto, a doença inflamatória intestinal tende a recair
após suspensão do medicamento, justificando a tendência mais atual de mantê-lo
indefinidamente.
A Ciclosporina, apresentada na forma de cápsulas de 25mg, 50mg e 100mg,

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solução oral com 100mg/mL e solução para infusão com 50mg/mL, é um agente
amplamente empregado após os transplantes de órgãos e no tratamento de doenças
autoimunes. Seu principal mecanismo é a redução na produção de interleucina 2 pelas
células T auxiliadoras. Na doença inflamatória intestinal, mostrou-se razoavelmente
eficaz na retocolite ulcerativa não-responsiva após cinco a dez dias de corticoterapia e
na doença de Crohn refratária e fistulizante. O medicamento é utilizado com dose de 2-
4mg/kg/dia em infusão contínua durante cinco a oito dias e a seguir com dose de 6-
8mg/kg/dia por via oral em dose única diária nos casos em que há bom resultado a curto
prazo. Efeito benéfico mais duradouro demanda a associação com Azatioprina ou 6-
Mercaptopurina. Deve-se ressaltar o alto custo, a necessidade de acompanhamento dos
níveis séricos do medicamento e a reconhecida toxicidade renal e sobre o sistema
nervoso.
O Metotrexato, apresentado na forma de comprimidos de 2.5mg e solução
injetável com 25mg/mL e 100mg/mL, é um antagonista do folato e interfere na síntese
de DNA. Na dose semanal de 25mg para indução e 15-25mg para manutenção por via
intramuscular ou subcutânea pode promover a remissão em pacientes com doença de
Crohn refratária. No entanto, não parece trazer benefício para os casos de retocolite
ulcerativa.
Na doença de Crohn, os antibióticos Ciprofloxacino e Metronidazol podem ser
indicados em algumas situações específicas. O Metronidazol, apresentado na forma de
comprimidos de 250mg, com dose de 10-20mg/kg/dia fracionada de 8/8 horas, se
associa a melhora das manifestações clínicas e laboratoriais em pacientes com doença
de Crohn ativa, sobretudo naqueles com comprometimento do intestino grosso, podendo
ser usado em pacientes que não apresentam melhora após três a quatro semanas de uso
de derivados 5-aminossalicílicos. Todavia, a melhor indicação é a indução do
fechamento de fístulas perianais ou perineais. O uso prolongado ou com doses altas,
acima de 750mg/dia, pode ocasionar neuropatia periférica.

Terapia biológica
Diversos anticorpos anti-TNF têm sido testados, porém o Infliximab é o
medicamento mais testado e já comercializado no Brasil. Traz benefícios para os
pacientes com doença inflamatória intestinal, sobretudo na doença de Crohn, cuja
história natural parece ser modificada. É apresentado na forma de frasco-ampola com
100mg de Infliximab para ser reconstituído com água para injetáveis e diluído em Soro
Fisiológico. Na retocolite ulcerativa, está indicado para doença ativa leve a moderada,
doença ativa grave, doença refratária e manutenção da remissão. Na doença de Crohn,
está indicado na doença ativa grave e refratária e na presença de fístulas perianais tanto
para indução como para manutenção da remissão. A dose recomendada é de 5-10mg/kg
nas semanas 0, 2 e 6 para indução e de 5-10mg/kg a cada oito semanas para
manutenção, com infusão em duas horas. Os efeitos colaterais ocorrem numa frequência
menor que 10% e, em alguns trabalhos, não superior à do placebo. Incluem reações à
infusão, infecções de vias aéreas superiores, febre, cefaleia, náusea, dor abdominal e,
menos comumente, tontura, dor torácica, artralgia, reações de hipersensibilidade,
processos infecciosos, obstrução intestinal e lúpus. O medicamento está contraindicado
em cardiopatas e em pacientes com obstrução ou infecção. No caso de fístulas perianais
ou perineais com abscessos, estes devem ser drenados antes da infusão do anti-TNF e da
antibioticoterapia.
Os algoritmos atuais para o tratamento da doença de Crohn baseiam-se na
introdução progressiva de aminossalicilatos, corticosteroides e imunossupressores. A
terapia anti-TNF é reservada aos pacientes que falham aos tratamentos anteriores. A

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proposta de inverter a pirâmide da terapia convencional para o uso inicial de terapia
biológica nos casos moderados a graves é passível de algumas críticas.
Em indivíduos que se tornaram intolerantes ou perderam a resposta clínica ao
Infliximab, o uso de anti-TNF humanizados, como Etarnecept, Onercept e Adalimumab,
pode ser útil.

Probióticos e prebióticos
O tratamento com probióticos, constituído pela administração de altas
concentrações de bactérias não-patogênicas que modificam a flora intestinal,
substituindo as cepas mais agressivas e reduzindo a agressão antigênica oriunda das
bactérias patogênicas, tem obtido resultados animadores tanto em pacientes com
retocolite ulcerativa como em portadores da doença de Crohn.
Prebióticos, como Inulina, frutoligossacárides, hemicelulose e plantago ovata,
são utilizados pelas bactérias intestinais e parecem ter papel na manutenção da flora
bacteriana intestinal e consequentemente no metabolismo das células epiteliais do
cólon.

Nutrição
A terapia nutricional em doentes com doença inflamatória intestinal tem dois
objetivos principais, repor os nutrientes deficientes e ser aplicada como tratamento
primário. As deficiências específicas mais encontradas são cálcio, vitamina D, ácido
fólico, vitamina B12, ferro, zinco e selênio.

Conduta
Sulfassalazina e 5-ASA por via oral, retal ou ambas representam o tratamento de
primeira linha para retocolite ulcerativa. Pacientes com proctite ou proctossigmoidite
podem ter o tratamento iniciado com Mesalazina 1g por via retal na forma de
supositório uma vez ao dia antes de dormir. Em caso de falha terapêutica, a próxima
etapa prevê o uso de glicocorticoides por via retal. Pacientes com retocolite ulcerativa
moderada a grave refratária a tratamento tópico e ao uso de derivados 5-aminosalicílicos
são candidatos ao uso de corticoide oral ou agentes imunossupressores, como
Azatioprina e 6-Mercaptopurina. Pacientes que não respondem ao uso de corticoides ou
que continuam dependendo do seu uso podem se beneficiar da introdução de Infliximab.
Especialistas sugerem que pacientes com doença extensa e severa poderiam receber um
curso de corticoides por via intravenosa durante cinco a sete dias, com introdução de
Infliximab ou Ciclosporina intravenosa em caso de ausência de resposta. Após a
remissão ser atingida, o objetivo é manter o paciente livre de sintomas, o que pode ser
atingido com diferentes medicações, com exceção dos glicocorticoides, em função do
perfil de efeitos colaterais. Também existem múltiplas opções cirúrgicas de tratamento,
com indicação em pacientes com resposta insatisfatória ao tratamento clínico ou com
complicações da doença, como hemorragia massiva, perfuração de cólon, megacólon
persistente por mais de 72 horas, displasia e carcinoma. A protocolectomia com
ileostomia é curativa, mas complicações incluem obstrução do intestino delgado,
fístulas, dor persistente, infertilidade e disfunção sexual e vesical. Já a protocolectomia
com bolsa ileal e anastomose bolsa-anal é atualmente o procedimento de escolha, já que
preserva a função esfincteriana. Inflamação da bolsa ileal é complicação frequente do
procedimento e pode ser manejada com uso de antibióticos, como Metronidazol,
Ciprofloxacino e Rifamicina.
Em pacientes com doença de Crohn leve a moderada, o tratamento inicial será
influenciado pelo sítio de acometimento. Lesões orais geralmente coexistem com

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doença intestinal e respondem ao tratamento desta, mas medicamentos tópicos, como
Acetonido de Triancinolona em Orabase, podem ser utilizados. Lesões gastroduodenais
também geralmente coexistem com doença intestinal distal e podem apresentar melhora
sintomática com o uso de inibidores de bomba de prótons, antagonistas de receptor H2
ou Sucralfato, com uso de Prednisona em casos moderados a severos. Azatioprina ou 6-
Mercaptopurina são introduzidas em caso de dependência de corticoides para controle
dos sintomas ou de persistência dos sintomas na vigência do uso de corticoides. Ileíte
e/ou colite leve a moderadas podem ter o tratamento iniciado com derivados 5-
aminossalicílicos, mas existe controvérsia entre especialistas quanto à eficácia desse
grupo de medicamentos na doença de Crohn. Os glicocorticoides consistem na base do
tratamento dos pacientes com doença leve a moderada que não respondem ao uso de
derivados 5-aminossalicílicos ou daqueles com doença severa. Metronidazol também
pode ser introduzido naqueles pacientes que não apresentam melhora após três a quatro
semanas de uso de derivados 5-aminossalicílicos Assim que a remissão é atingida e o
glicocorticoide é desmamado e suspenso, terapia de manutenção com derivado 5-
aminossalicílico por via oral deve ser considerada. Pacientes que apresentam recaída
durante o tratamento, falha do tratamento inicial ou resposta insatisfatória ao manejo
clínico podem necessitar do uso de imunossupressores, como Azatioprina, 6-
Mercaptopurina ou Metotrexato, ou terapia biológica.
Pacientes com doença de Crohn severa ou fulminante devem ser manejado com
descanso do intestino, nutrição parenteral e corticoides por via intravenosa. Em caso de
ausência de resposta ao uso de corticoides por via intravenosa, terapia biológica poderá
ser necessária. Existem duas abordagens médicas para pacientes com doença ativa
refratária ao uso de derivados 5-aminossalicílicos, antibióticos, imunossupressores e/ou
agentes biológicos, o uso crônico de glicocorticoides em dose baixa e a nutrição
parenteral total ou enteral com dieta elementar ou polimérica. Adicionalmente, cirurgia
pode ser considerada se uma ressecção limitada ou outro procedimento conservador
puder ser realizado, com indicação em caso de sintomas refratários ao tratamento
clínico ou presença de complicação, como obstrução, perfuração, estenose e
sangramento intestinais. A doença de Crohn não pode ser curada através de abordagem
cirúrgica. As drogas com maior evidência de benefício na doença de Crohn com fístula
são Infliximab, Azatioprina e 6-Mercaptopurina. Infliximab geralmente não é utilizado
em associação com Azatioprina ou 6-Mercaptopurina pelo risco de linfoma
hepatoesplênico de células T.
Em caso de megacólon tóxico, preconiza-se ressuscitação volêmica, correção de
distúrbios eletrolíticos, administração de antibióticos de largo espectro, infusão de
corticosteroides por via intravenosa, descanso do intestino, descompressão intestinal
com sonda nasogástrica ou tubo intestinal longo e avaliação por equipe cirúrgica.

Bibliografia
Clínica médica, volume 4: doenças do aparelho digestivo, nutrição e doenças nutricionais. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Ulcerative colitis. Silvio Danese and Claudio Fiocchi. N Engl J Med 2011;365:1713-25.
Definition of and risk fators for inflammatory bowel disease. Mark A Pappercorn. UpToDate, 2011.
Clinical manifestations, diagnosis, and prognosis of ulcerative colitis in adults. UpToDate, 2011.
Clinical manifestations, diagnosis and prognosis of Crohn’s disease in adults. UpToDate, 2011.
Medical management of ulcerative colitis. Mark A Peppercorn and Richard J Farell. UpToDate, 2011.
Overview of the medical management of mild to moderate Crohn’s disease in adults. Richard J Farell and Mark A Peppercorn.
UpToDate, 2011.
Overview of the medical management of severe or refractory Crohn’s disease in aduls. Richard J Farell and Mark A Peppercorn.
UpToDate, 2011.
Surgical management of inflammatory bowel disease. UpToDate, Jacques Heppell, UpToDate, 2011.

Pedro Kallas Curiati 663


DOENÇAS HEPÁTICAS
AUTOIMUNES
Colangite esclerosante primária

Definição
Colangite esclerosante primária é doença hepática colestática crônica
caracterizada por inflamação difusa e consequente fibrose obliterante da árvore biliar
intra-hepática e/ou extra-hepática.

Epidemiologia
A doença é duas vezes mais comum no sexo masculino e incide com maior
frequência dos vinte e cinco aos quarenta e cinco anos de idade, mas já foi descrita em
todas as faixas etárias.

Etiologia e fisiopatologia
Acredita-se que a colangite esclerosante primária ocorra como consequência de
sistema imune geneticamente propenso a ativação contra o epitélio biliar.

Quadro clínico
A colangite esclerosante primária tem início insidioso e curso flutuante, com
periódicas exacerbações e remissões. O quadro clínico pode variar desde forma
assintomática até doença hepática avançada, sendo mais comum o quadro inicial de
icterícia, fadiga, prurido e dor abdominal. Colangite bacteriana é complicação presente
em pacientes com estenoses dominantes. 60-80% dos pacientes têm doença inflamatória
intestinal, cuja evolução clínica é independente da doença biliar. Em 10-30% dos casos,
ocorre evolução para colangiocarcinoma, com deterioração do quadro clínico, sem
correlação com o tempo de duração da doença.
A colangite esclerosante primária evolui para cirrose hepática, que pode
complicar com insuficiência hepática, hipertensão portal, ascite, encefalopatia e
carcinoma hepatocelular.
Os pacientes geralmente apresentam múltiplos fatores de risco para osteoporose,
como cirrose, colestase e uso de corticosteroide para o tratamento da doença
inflamatória intestinal. Deve-se realizar densitometria óssea em caso de cirrose ou
colestase grave, com bilirrubina acima de três vezes o limite superior da normalidade.
Colelitíase ocorre em um terço dos pacientes.

Avaliação complementar
Até 45% dos pacientes podem se apresentar com elevação assintomática de
fosfatase alcalina e gama glutamil transpeptidase.
A colangiopancreatografia retrógrada endoscópica é considerada o padrão-ouro
para o diagnóstico. As alterações características são múltiplas estenoses segmentares,
geralmente de 5-20mm, intra-hepáticas e/ou extra-hepáticas, com ou sem dilatações a
montante, associadas a finas irregularidades murais, cuja combinação sugere o aspecto
de um rosário ou colar de contas. São mais específicas as saculações similares a
divertículos, presentes em cerca de um quarto dos casos, e as estenoses extra-hepáticas
muito curtas, de 1-2mm. A colangiorressonância tem ampliado seu espaço no

Pedro Kallas Curiati 664


diagnóstico de colangite esclerosante primária, sendo comparável à
colangiopancreatografia retrógrada endoscópica em sensibilidade, especificidade,
acurácia e concordância interobservador. Em pacientes sem dilatações evidentes da
árvore biliar nos exames ultrassonográficos e tomográficos, a colangiografia por
endoscopia evidencia mais nitidamente as alterações sugestivas de colangite
esclerosante primária.
O anticorpo anti-citoplasma de neutrófilo é encontrado em 45-80% dos pacientes
com retocolite ulcerativa e em 30-80% dos pacientes com colangite esclerosante
primária, independentemente da presença de colite. Pode ser detectado frequentemente
na hepatite autoimune e, mais raramente, na cirrose biliar primária. Títulos moderados
de anticorpo anti-núcleo e de anticorpo anti-músculo liso podem ocorrer em cerca de
metade dos pacientes com colangite esclerosante primária.
Achados histopatológicos são específicos para colangite esclerosante primária
em pouco mais de um terço dos casos. A lesão mais sugestiva é a colangite fibrosante,
que se caracteriza pela formação de fibrose concêntrica ao redor dos ductos biliares.
Recomenda-se profilaxia com Ciprofloxacino antes da realização da biópsia hepática
percutânea. A biópsia deve ser evitada em pacientes com colangiografia típica.
Na ausência de doença inflamatória intestinal diagnosticada, deve-se realizar
colonoscopia com múltiplas biópsias. Ultrassonografia de abdômen superior deve ser
realizada anualmente para pesquisar lesões na vesícula biliar.

Diagnóstico diferencial
A colangite esclerosante primária deve ser diferenciada das colangites
secundárias, causadas por obstrução, isquemia, toxinas, neoplasias,
hipogamaglobulinemia e doenças hepáticas infiltrativas.

Tratamento
O tratamento efetivo da colangite esclerosante primária é limitado devido,
principalmente, à falta de pleno conhecimento a respeito da fisiopatologia e dos fatores
responsáveis pela sua evolução. As terapias apoiam-se na modificação da doença e no
procedimento endoscópico associados a medicações para alívio dos sintomas.
Ácido Ursodesoxicólico, apresentado na forma de comprimidos de 300mg, atua
em redução da colestase, imunomodulação e modificação da doença. Dose inicial de 10-
15mg/kg induz resposta bioquímica, sem melhora dos sintomas, da mortalidade, da
necessidade de transplante hepático e da incidência de colangiocarcinoma, enquanto que
dose inicial de 25-35mg/kg induz melhora histológica e endoscópica, sendo ainda
necessária comprovação da eficácia e havendo risco de aumento da mortalidade.
Recomenda-se suspender o uso em pacientes que já o fazem, com reintrodução na dose
de 10-15mg/kg em caso de piora do prurido e da icterícia.
Imunossupressores, como corticosteroide, Metotrexato, Azatioprina,
Ciclosporina e Tacrolimus reduzem a atividade inflamatória, mas estudos não
comprovaram a eficácia. Estão relacionados a risco de osteoporose, colangite e sepse.
Tratamento endoscópico tem como alvo terapêutico estenoses dominantes e
permite a distinção entre caráter benigno e maligno da estenose dominante através da
realização de biópsias e análise citológica. Deve ser evitado nos pacientes com
insuficiência hepática avançada devido ao risco de deterioração clínica.
Pacientes com colangite recorrente apesar dos esforços para tratar estenoses
dominantes podem ser manejados com antibioticoprofilaxia a longo prazo.
Antagonistas opióides, como Naloxone, antagonistas serotoninérgicos, como
Ondansetron, e resina quelante de sais biliares, como Colestiramina, constituem opções

Pedro Kallas Curiati 665


para tratamento do prurido.
Para a osteoporose, medidas gerais incluem exercício físico, abstinência de
álcool, cessação do tabagismo, dieta adequada e suplementação de Cálcio e Vitamina D.
A abordagem farmacológica pode prever uso de bifosfonatos e de Calcitonina.
O tratamento da insuficiência hepática é baseado em transplante, com melhora
da sobrevida em longo prazo.

Cirrose biliar primária

Definição
A cirrose biliar primária é uma inflamação não-supurativa, destrutiva, crônica e
progressiva dos ductos biliares, que acarreta alterações na secreção de bile e retenção de
substâncias tóxicas, com resultante dano hepático, fibrose e cirrose.

Epidemiologia
A cirrose biliar primária ocorre com maior frequência em pacientes do sexo
feminino, geralmente a partir dos cinquenta anos de idade. O risco é maior em fumantes
e indivíduos com antecedente da doença em familiar de primeiro grau.

Etiologia e fisiopatologia
O mimetismo molecular tem sido implicado na patogênese da cirrose biliar
primária e alguns agentes infecciosos têm despertado o interesse, como E. coli e
Novosphingobium aromaticivorans, bactérias Gram-negativas que apresentam
sequencias antigênicas parecidas com epitopos dos complexos enzimáticos, o que
induziria a produção de autoanticorpos.

Quadro clínico
A fadiga e o prurido são as manifestações iniciais mais comuns da colangite
biliar primária. A evolução clínica geralmente é indolente. As manifestações
hemorrágicas secundárias à hipertensão portal podem ocorrer antes das manifestações
de insuficiência hepática, pois a doença lesa inicialmente os ductos biliares dos espaços-
porta, acarretando fibrose portal precoce. A icterícia pode surgir no início do quadro ou
mais tardiamente, quando costuma apresentar caráter progressivo, sendo acentuada em
caso de fator precipitante, como hepatotoxicidade por drogas, hemorragia digestiva alta
e infecções. Outras manifestações clínicas incluem hepatomegalia, xantomas,
xantelasmas, dor abdominal e osteoporose. Ascite comumente não ocorre até estágio
tardio da doença.
A cirrose biliar primária comumente está associada a outras doenças, geralmente
de natureza autoimune. As associações mais significativas são com a síndrome de
Sjögren, a variante CREST da esclerodermia, as doenças autoimunes da tireoide, a
acidose renal distal e a doença reumatoide.

Avaliação complementar
O anticorpo anti-mitocôndria (AMA) e anti-M2 é marcador sorológico, sendo
detectado em cerca de 95% dos casos. Os pacientes sem esse anticorpo são classificados
como portadores de cirrose biliar AMA negativo ou colangite autoimune. Pode ser
detectado em outras doenças, como hepatite autoimune e hepatite C. Anticorpos anti-
núcleo também são detectados em cerca de 40% dos casos. A reatividade contra
proteínas do poro nuclear (anti-gp210) é muito específica da colangite biliar primária e
estaria associada a formas mais graves da doença.

Pedro Kallas Curiati 666


Geralmente é realizada biópsia hepática em todos os pacientes, exceto aqueles
com idade superior a 75 anos e com contraindicações para a realização do
procedimento. Na cirrose biliar primária, o fígado não é uniformemente afetado e um
fragmento obtido pode conter todos os estádios da lesão ou não ser representativo da
lesão mais avançada. A lesão assimétrica de ductos biliares com expansão fibrosa
portal, associada a infiltrado inflamatório linfomononuclear é a alteração mais
comumente observada. A presença de granulomas auxilia no diagnóstico diferencial e,
se estiver associada a colestase e ductopenia, é característica da cirrose biliar primária,
mas muito pouco frequente. O exame histológico permite estadiar a doença e definir a
intensidade do infiltrado inflamatório, sendo de fundamental importância para a decisão
terapêutica dos casos com sobreposição de características com hepatite autoimune.
No seguimento, deve-se solicitar exames hepáticos a cada três a seis meses,
função tireoidiana anualmente, densitometria a cada dois a quatro anos, dosagem de
vitaminas A, D e K anualmente se bilirrubina superior a 2.0mg/dL, endoscopia digestiva
alta a cada um a três anos se cirrose ou escore de risco de Mayo superior a 4.1 e
ultrassonografia e alfa-fetoproteína em pacientes com cirrose.

Tratamento
O tratamento da cirrose biliar primária deve ser focado no manejo de sintomas e
sinais, como prurido, osteoporose e dislipidemia, assim como da doença de base. Para o
manejo da doença de base, o Ácido Ursodesoxicólico é a única droga eficaz liberada.
Deve ser utilizada na dose de 10-15mg/kg. Prolonga a sobrevida sem transplante
hepático e diminui a progressão da fibrose e o desenvolvimento de hipertensão portal.
Contudo, os resultados favoráveis são mais bem verificados nos pacientes com lesões
histológicas iniciais. Pacientes não-respondedores apresentam anormalidades
bioquímicas hepáticas persistentes e piora histológica hepática apesar do tratamento
com Ácido Ursodesoxicólico por pelo menos seis a doze meses. Se os exames séricos
normalizarem dentro de seis meses, a droga deve ser continuada e uma biópsia hepática
deve ser realizada dentro de dezoito a vinte e quatro meses. Se a biópsia revelar
estabilidade ou melhora, a droga deve ser continuada indefinidamente e a biópsia deve
ser repetida a cada dois a três anos, ou mesmo com menor frequência.
Outras drogas foram propostas para o tratamento da cirrose biliar primária, como
corticosteroides, Penicilamina, Azatioprina, Clorambucil, estrógenos, Ciclosporina,
Metotrexato e Colchicina, porém a eficácia não foi comprovada. Colchicina 0.6mg de
12/12 horas por via oral pode ser introduzida se os exames séricos não se normalizarem
dentro de seis meses com o uso isolado de Ácido Ursodesoxicólico ou se biópsia de
controle revelar lesões de ductos biliares continuadas e/ou piora do padrão histológico.
Biópsia hepática deve ser repetida após um ano de uso da Colchicina e se padrão
histológico estável ou melhor, sem aumento óbvio da fibrose, a terapia combinada
deverá ser mantida, com nova biópsia após dois anos. Sugere-se acrescentar
Metotrexato 0.25mg/kg uma vez por semana por via oral em caso de ausência de
melhora dos exames séricos apesar do uso de Ácido Ursodesoxicólico e Colchicina,
piora inequívoca do padrão histológico apesar do uso de Ácido Ursodesoxicólico e
Colchicina, prurido severo e/ou fadiga incapacitante sem resposta terapêutica após seis
meses e doença estágio IV em biópsia, com inflamação portal 3+ ou 4+ e lesões floridas
dos ductos biliares. Recomenda-se a realização de endoscopia digestiva alta para
pesquisa de sinais de hipertensão portal em pacientes que iniciarão o uso de
Metotrexato. Em pacientes em uso de Metotrexato, também recomenda-se hemograma
completo mensalmente nos primeiros seis meses e a cada três meses a partir de então,
exames de função hepática a cada três meses e repetição da biópsia hepática anualmente

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por dois anos e a cada dois a três anos a partir de então.
O transplante hepático é o único tratamento eficaz para os pacientes com doença
hepática em estádio final. O anticorpo anti-mitocôndria volta a ser reativo após o
transplante, mesmo na ausência de sintomas. Pode haver recorrência da doença em
cerca de 15% dos casos em três anos, caso sejam feitas biópsias de protocolo, mesmo
com enzimas hepáticas normais.
Esteatorreia sintomática secundária a secreção insuficiente de sais biliares pode
ser corrigida parcialmente com restrição da ingesta de gordura na dieta. Triglicérides de
cadeia média podem ser adicionados em caso de necessidade de suplementação calórica
para manutenção do peso corpóreo. A maior parte dos pacientes tolera até 60mL por
dia.
É necessária a suplementação de Cálcio e Vitamina D na dieta. Os pacientes
podem apresentar má-absorção de vitaminas lipossolúveis, como A, D, E e K.

Prognóstico
Em pacientes com doença sintomática e icterícia, a sobrevida média é de sete
anos.

Bibliografia
Clínica médica, volume 4: doenças do aparelho digestivo, nutrição e doenças nutricionais. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Treatment of primary sclerosing cholangitis. Kris V Kowdley. UpToDate, 2011.
Overview of the treatment of primary biliary cirrhosis. Marshall M Kaplan. UpToDate, 2011.

Pedro Kallas Curiati 668


DOENÇAS HEPÁTICAS
METABÓLICAS
Hemocromatose hereditária

Definição
A hemocromatose hereditária é um distúrbio do metabolismo de ferro
caracterizado pela elevação progressiva dos níveis do metal na circulação sanguínea.
Tem herança autossômica recessiva, associada a mutações nos genes HFE, hepcidina
(HAMP), hemojuvelina (HJV) e receptor 2 da transferrina (TfR2).

Etiologia e fisiopatologia
A hepcidina, produzida no fígado, é o hormônio central no controle da
homeostase do ferro. Trata-se de um peptídeo de 25 aminoácidos que, ao interagir com
a ferroportina, reduz a quantidade de ferro liberada pelos enterócitos e macrófagos para
a circulação. Eleva-se na presença de maiores níveis séricos de ferro e de inflamação
aguda. A modulação da hepcidina está ainda relacionada à ação do HFE, da HJV e do
TfR2. Mutações nesses genes não permitem o aumento dos níveis de hepcidina
adequadamente e, assim, enterócitos e macrófagos perpetuam a liberação de ferro para a
circulação sanguínea.
O ferro excedente presente na circulação sanguínea determina elevação da
saturação de ferro da transferrina. Com o tempo, o acúmulo crescente determina
deposição tecidual e elevação da ferritina sérica. O ferro acumulado no interior das
células parenquimatosas induz a formação de radicais livres. O ambiente de estresse
oxidativo provoca inflamação e favorece o desenvolvimento de fibrose.

Quadro clínico
A maioria dos casos cursa com sintomas inespecíficos, embora alterações
laboratoriais possam ser detectadas. A manifestação de doença avançada é rara. O grau
de sobrecarga de ferro determina o dano aos órgãos.
A forma clássica da doença, associada a mutação em nos genes HFE e TfR2, é
identificável antes da quarta ou da quinta décadas de vida em indivíduos do sexo
masculino, enquanto que nas mulheres a progressão é mais lenta, provavelmente devido
à proteção oferecida pela menstruação. A forma juvenil, associada a mutações nos genes
HJV e HAMP, cursa com fenótipo idêntico ao quadro clássico, porém de modo mais
agressivo, com acúmulo de ferro acentuado e síndrome presente já na segunda ou na
terceira décadas de vida, sendo mais proeminente o acometimento cardíaco e endócrino.
Os sintomas iniciais são inespecíficos, como dor abdominal, perda de peso,
astenia e letargia. O fígado é o principal órgão envolvido, podendo haver
hepatomegalia, esplenomegalia, ascite, edema e icterícia, além de risco elevado de
degeneração da cirrose para carcinoma hepatocelular. Outras alterações frequentes são
hiperpigmentação cutânea, diabetes mellitus secundário a lesão pancreática e artralgia.
O coração também sofre depósito de ferro e as alterações eletrocardiográficas são
relativamente comuns. Há ainda a possibilidade de ocorrerem arritmias cardíacas e
insuficiência cardíaca. Por fim, o hipogonadismo hipogonadotrófico é secundário à
deposição de ferro na glândula pituitária e se expressa nos homens como impotência e
nas mulheres como amenorreia.

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Portadores de hemocromatose hereditária possuem maior suscetibilidade de
infecção por microorganismos ávidos por ferro, como Yersinia enterocolitica e Vibrio
vulnificus.

Estágios
Estágio I é caracterizado por predisposição genética sem anomalia expressa,
exceto por elevação assintomática da saturação de transferrina.
Estágio II é caracterizado por sobrecarga de ferro hepático assintomática.
Estágio III é caracterizado por sobrecarga de ferro com sintomas inespecíficos.
Estágio IV é caracterizado por sobrecarga de ferro com dano de órgãos.

Avaliação complementar
O teste bioquímico que se altera mais precocemente é a saturação de
transferrina, que constitui o melhor método isolado de detecção de hemocromatose
hereditária, com índices a partir de 45% em homens e 35% em mulheres sendo
sugestivos do diagnóstico. Outro teste relevante é a dosagem da ferritina sérica, com
valores acima de 300mcg/L para homens e 200mcg/L para mulheres sendo sugestivos
de sobrecarga de ferro.
A pesquisa de mutações HFE possui a vantagem de não modificar o resultado a
despeito das variações bioquímicas ou histológicas. O teste genético é indicado em caso
de quadro clínico suspeito e alterações do perfil de ferro sugestivas. Proporção
significativa dos portadores de mutações nos genes relacionados à hemocromatose
hereditária não desenvolverão a doença.
A dosagem da concentração de ferro hepático permite o cálculo do índice de
ferro hepático. Índices superiores a 1.9 micromoles de ferro por grama por ano de idade
são altamente sugestivos de hemocromatose hereditária.
A ressonância nuclear magnética vem sendo proposta como um método não-
invasivo e eficaz para detectar e quantificar a sobrecarga de ferro em órgãos como
fígado, coração e cérebro. O decréscimo da intensidade de sinal do parênquima dos
órgãos nas sequencias em T2 é inversamente proporcional ao grau de acúmulo do metal,
o que permitiria conhecer a distribuição tridimensional do ferro nas vísceras, bem como
quantificar a massa depositada. Está indicada nos casos de avaliação genética ou
histológica inconclusiva.

Diagnóstico diferencial
Os diagnósticos diferenciais da hemocromatose hereditária abrangem causas
primárias ou hereditárias e secundárias ou adquiridas de sobrecarga de ferro.

Tratamento
De maneira geral, os indivíduos apresentam a função de eritropoiese preservada
e respondem bem ao tratamento com flebotomia.
A flebotomia, também denominada sangria terapêutica, é o método mais seguro,
efetivo e econômico no manejo da hemocromatose hereditária. Consiste na remoção de
uma unidade de sangue, com 350-400mL, que contém 200-250mg de ferro, uma a duas
vezes por semana. O objetivo é atingir um grau de depleção de ferro com ferritina
inferior a 50ng/mL e saturação de transferrina de 16%. Após a obtenção desses valores,
inicia-se uma terapia de manutenção, com intervalos de dois a três meses. O início da
flebotomia antes do surgimento de lesões irreversíveis permite garantia de expectativa
de vida normal.
Quando há contraindicações à flebotomia por comorbidades associadas, como

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anemia, insuficiência cardíaca ou cirrose avançada, pode-se lançar mão dos quelantes de
ferro. A Deferoxamina é a droga mais conhecida, sendo administrada por via
subcutânea ou intravenosa na dose de 20-40mg/kg/dia em infusão contínua por oito a
dez horas. A Deferiprona, quelante oral, pode ser considerada nos pacientes intolerantes
à flebotomia, embora apresente alto custo.
Em relação à dieta, orienta-se evitar o consumo de álcool, alimentos ricos em
ferro e suplementos vitamínicos ricos em ferro e vitamina C.
Todo cirrótico portador de hemocromatose hereditária deve ser submetido
periodicamente a exames de rastreamento para detecção precoce de carcinoma
hepatocelular, incluindo pelo menos dosagem sérica de alfa feto-proteína e exame
ultrassonográfico de fígado a cada seis meses.
Por fim, o transplante hepático é a opção terapêutica se o paciente apresentar
doença hepática descompensada ou complicação com carcinoma hepatocelular.

Doença de Wilson

Definição
A doença de Wilson caracteriza-se pela excreção deficiente de cobre pela bile. O
metal excedente deposita-se no organismo e afeta diversos órgãos, particularmente
fígado e cérebro. A herança é autossômica recessiva.

Etiologia e fisiopatologia
Mutações no gene ATP7B acarretam defeito no transporte do íon do sangue para
a bile. O metal deposita-se nos tecidos orgânicos, onde promove lesão por aumento da
produção de radicais livres e falha nas defesas antioxidantes.
A ATP7b, expressa no complexo de Golgi, transporta o cobre para a
apoceruloplasmina, que, por sua vez, é ativada em holoceruloplasmina, forma estável na
circulação sanguínea. Na doença de Wilson, a ATP7b defeituosa não ativa a
apoceruloplasmina sérica, que é rapidamente removida da circulação sanguínea. Isso
justifica os baixos níveis de ceruloplasmina sérica.

Quadro clínico
Os primeiros sinais e sintomas podem se manifestar na infância, na adolescência
ou na juventude, tendendo a assumir proporção incapacitante e até mesmo fatal.
Pacientes com a forma hepática da doença apresentam sintomas em faixas etárias mais
precoces do que aqueles com a forma neurológica, antes dos vinte anos de idade. A
agressão ao fígado se expressa como hepatite aguda, crônica ou fulminante ou como
descompensação de hepatopatia crônica. O grau de envolvimento varia de elevações
discretas das enzimas hepáticas até perda completa da função. Os sintomas associados
podem incluir fadiga, anorexia, emagrecimento, astenia, ascite, icterícia,
hepatoesplenomegalia, encefalopatia e coagulopatia.
As manifestações neurológicas são de padrão extrapiramidal ou cerebelar, com
oligocinesia, hipertonia plástica, instabilidade postural, distonia, coreia, atetose, tremor,
disartria, disfagia e alteração da marcha. Alterações psiquiátricas, como agitação,
irritabilidade, ansiedade, comportamento bizarro e depressão frequentemente
acompanham a doença neurológica. Entretanto, demência e psicose são mais raras.
O anel de Kayser-Fleischer ocorre virtualmente na totalidade dos casos com a
forma neurológica e caracteriza as formas com maior deposição sistêmica de cobre. A
catarata em girassol é outra alteração mais rara, também secundária à deposição de
cobre no cristalino.

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Outros achados são hiperpigmentação melanocítica da pele, artralgia, hemólise,
anemia hemolítica com teste de Coombs negativo, redução dos níveis de hemoglobina,
trombocitopenia, nefropatia e cardiopatia.

Avaliação complementar
Quando se diagnostica o primeiro indivíduo afetado pela doença de Wilson em
uma família, deve-se buscar ativamente por novos casos em familiares de primeiro e
segundo graus.
Ceruloplasmina é inferior a 20mg/dL, cobre sérico é inferior a 100mcg/dL e
cobre urinário é superior a 100mcg em 24 horas.
Estudo anatomopatológico de tecido hepático revela hepatite crônica ativa,
esteatose, glicogênio nuclear, infiltrado mononuclear e cirrose. Não há padrão
patognomônico. Cirrose descompensada, anemia hemolítica e tremores intensos são
contraindicações à realização de biópsia hepática. A quantificação de cobre no tecido
hepático revela mais de 250mcg/g de peso seco e a coloração de rodanina ou ácido
rubeânico em tecido hepático é positiva.
Ressonância nuclear magnética de encéfalo em T1 revela atrofia cerebral e hipo-
sinal em gânglios da base e em T2 revela hipersinal em gânglios da base, substância
branca, tálamo, cérebro médio e ponte, com sinal das faces do panda gigante e sinal do
panda em miniatura.
Teste genético revela mutações em ambos os alelos do gene ATP7B. É realizado
apenas em protocolos de pesquisa.

Tratamento
O tratamento clínico costuma ser eficaz se o diagnóstico for estabelecido em
tempo hábil e deve ser conduzido preferencialmente em centros de referência.
D-Penicilamina, quelante de cobre, apresentada na forma de cápsulas de 250mg,
é o tratamento de primeira linha. Deve-se iniciar com 500mg por dia e aumentar a dose
gradualmente até dose diária de 1-2g em duas a três tomadas com o objetivo de manter a
cuprúria em 200-500mg em 24 horas, evitando-se excreção urinária de cobre acima de
1000mg em 24 horas. Com o uso, pode ocorrer piora neurológica com sequelas
definitivas e elastose perfurante serpiginosa. Não é segura na gestação.
Trientina, outro quelante que mobiliza cobre do tecido e compete na ligação com
a albumina, também é eficaz e vem sendo indicada quando existe intolerância à D-
Penicilamina, porém com menor potência. A dose recomendada é de 1-2g/dia em duas a
quatro tomadas distantes das refeições. É segura na gestação e instável em temperatura
ambiente elevada.
Os sais de zinco são uma alternativa terapêutica capaz de manter o balanço de
cobre equilibrado por induzir a síntese de metalotioneína do enterócito, levando ao
aumento da eliminação de cobre pelas fezes. Podem ser indicados como droga de
manutenção após a remoção da sobrecarga de cobre com agentes quelantes.
Recomenda-se 220mg de Sulfato de Zinco três vezes ao dia ou 150mg de Acetato de
Zinco três vezes ao dia uma hora antes das refeições. Há segurança na gestação.
O Tetratiomolibidato de Amônio parece ser útil nos pacientes com doença
neurológica grave, podendo ser associado aos sais de zinco.
Além do tratamento medicamentoso, os pacientes são orientados a evitar
alimentos ricos em cobre, em particular fígado, cérebro, chocolate, café, nozes, feijão,
mariscos e cogumelos. Por fim, a indicação de transplante hepático ortotópico é
inequívoca quando os pacientes com doença de Wilson apresentam doença hepática
terminal.

Pedro Kallas Curiati 672


Deficiência de alfa-1 antitripsina

Definição
Deficiência de alfa-1 antitripsina é condição de herança autossômica co-
dominante associada a determinadas variantes alélicas do gene Pi. As principais
manifestações clínicas são doença hepática neonatal, enfisema pulmonar e cirrose
hepática de instalação precoce. Constitui também fator de risco para doença neoplásica
pulmonar e hepática.

Etiologia e fisiopatologia
A alfa-1 antitripsina é glicoproteína de alto peso molecular produzida
principalmente no fígado e presente na circulação sanguínea em níveis elevados. Sua
função mais específica consiste em contrabalancear a atividade da elastase neutrofílica e
de outras proteases. Protege os pulmões da agressão da tripsina. Na vigência de
processos tumorais ou infecciosos, eleva seus níveis séricos.

Quadro clínico
O espectro de manifestações clínicas é amplo, bem como a faixa etária
acometida, que abrange de neonatos a idosos. As manifestações hepáticas compreendem
elevação de transaminases, hepatomegalia assintomática, icterícia, prurido, hipertensão
portal, hemorragia digestiva alta e cirrose hepática, com ou sem carcinoma
hepatocelular associado. Mesmo os pacientes que manifestam cirrose hepática podem
apresentar curso clínico relativamente estável e indolente, sendo pouco frequente a
necessidade de transplante hepático. Sexo masculino e obesidade são fatores de risco
agravantes na evolução.

Avaliação complementar
A dosagem sérica de anti-tripsina por nefelometria pode ser indicada para
triagem diagnóstica na investigação de alterações hepáticas, após a exclusão das
etiologias mais comuns. O diagnóstico é estabelecido pela fenotipagem da Pi (alfa-1
antitripsina) sérica, realizada por eletroforese de focalização isoelétrica.
A biópsia hepática é característica, porém não é patognomônica.

Tratamento
A alfa-1 antitripsina purificada do plasma de indivíduos normais pode ser
administrada por via intravenosa na dose semanal de 60mL/kg de massa corpórea. Os
poucos estudos têm sugerido possibilidade de incremento da função pulmonar e redução
da mortalidade nos portadores de doença respiratória. Existem, ainda, perspectivas de se
dispor comercialmente da alfa-1 antitripsina purificada ou recombinante por via
inalatória.

Bibliografia
Clínica médica, volume 4: doenças do aparelho digestivo, nutrição e doenças nutricionais. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 673


GASTRITE E DOENÇA ULCEROSA
PÉPTICA
Gastrite

Definição
Gastrite é inflamação do estômago detectada através de exame histológico da
mucosa gástrica. O termo gastropatia é atribuído ao achado de lesão e regeneração do
epitélio na ausência de inflamação.

Gastrite aguda
As gastrites agudas surgem subitamente e apresentam curta duração. Podem
acometer o corpo gástrico, a região antral ou ambos. A reação inflamatória pode
acometer de maneira isolada ou simultânea a mucosa do duodeno.
Os anti-inflamatórios não-hormonais, entre os quais está incluído o Ácido
Acetilsalicílico, são os agentes responsáveis pelo maior número de casos de gastrite
aguda. Os principais fatores de risco para lesão gástrica pelo uso desses medicamentos
são idade superior a sessenta anos, história pregressa de úlcera, uso de altas doses, uso
concomitante de corticosteroides e uso concomitante de anticoagulantes. Uso profilático
de inibidor de bomba de prótons é recomendado para indivíduos com pelo menos um
fator de risco que irão fazer uso de anti-inflamatórios não-hormonais. Pesquisa e
tratamento de infecção por H. pylori são indicados para pacientes que iniciarão
tratamento contínuo com anti-inflamatórios não-hormonais não seletivos e para
pacientes com pelo menos um fator de risco que estejam em uso ou irão iniciar o uso de
anti-inflamatórios não-hormonais, independentemente do tipo, da dose e do tempo.
As infecções bacterianas e virais também estão entre as causas mais frequentes
de agressão ao estômago. Estafilococos, shigellas e salmonelas são comuns nas
gastroenterocolites agudas, que ocorrem com maior frequência no verão. Vômitos,
diarreia e febre são os principais sintomas. Em razão da alta prevalência de gastrite
crônica associada ao H. pylori, supõe-se que muitos casos de dispepsia aguda sejam
decorrentes de uma infecção primária pela bactéria.
Giardíase e estrongiloidíase, em suas fases iniciais, ocasionam gastrite aguda e,
por vezes, são responsáveis por gastroduodenites que podem mimetizar os sintomas de
uma úlcera. Os sintomas podem adquirir caráter crônico, com flatulência, dores
abdominais de localização variada e irregularidade do hábito intestinal com diminuição
da consistência das fezes.
As infecções fúngicas ocorrem usualmente em pacientes imunossuprimidos. O
micro-organismo encontrado com maior frequência nesses casos é a Candida albicans,
muitas vezes associada a citomegalovírus e, mais raramente, herpes vírus.
O estresse agudo intenso, como grandes cirurgias, queimaduras graves e fraturas
múltiplas, pode provocar erosões e úlceras agudas na mucosa gástrica, que ocasionam
hemorragia digestiva alta. Essas lesões também são denominadas úlceras de estresse,
lesão aguda da mucosa gastroduodenal, úlceras de Cushing quando associadas a
traumatismo craniano e úlceras de Curling quando decorrente de queimaduras extensas.
O uso abusivo de etanol é uma das causas de gastrite aguda.

Gastrite crônica

Pedro Kallas Curiati 674


A gastrite crônica é caracterizada por infiltrado inflamatório mononuclear que
pode comprometer o corpo gástrico, o antro ou ambos. Existe fraca correlação entre o
quadro clínico e os aspectos endoscópicos e histológicos.
O H. pylori é responsável por mais de 90% das gastrites crônicas. Trata-se de
bactéria espiralada, Gram-negativa, que coloniza a camada de muco que reveste a
mucosa gástrica. Estima-se que acometa mais da metade da população mundial, com
prevalência maior em países em desenvolvimento. A evolução clínica da infecção é
determinada pela interação complexa entre o hospedeiro e o micro-organismo.
Indivíduos com gastrite predominantemente antral mantêm a capacidade de secretar
ácido e têm risco aumentado de úlcera duodenal, enquanto que, em indivíduos nos quais
a gastrite é mais intensa no corpo gástrico, a secreção gástrica é reduzida como
consequência da destruição progressiva da mucosa, com risco aumentado de úlcera
gástrica. Neste grupo, a inflamação pode gerar atrofia da mucosa gástrica, que predispõe
a câncer gástrico, principalmente em associação com tabagismo, etilismo e história
familiar de câncer gástrico.
A gastrite autoimune acomete principalmente o corpo e o fundo gástricos e
raramente o antro gástrico. Caracteriza-se, nas formas mais avançadas, pela atrofia da
mucosa. Trata-se de doença autossômica dominante induzida pela presença de
anticorpos anti-célula parietal e anti-fator intrínseco, com secreção inadequada de fator
intrínseco e de ácido, podendo ocorrer deficiência de vitamina B12 por baixa absorção e
anemia perniciosa. Ocorre associação com outras doenças de caráter autoimune, como
tireoidite de Hashimoto e doença de Graves.
Formas especiais de gastrite pouco frequentes incluem as gastrites
granulomatosa, que pode ser causada por doença de Crohn, sarcoidose, tuberculose,
sífilis e micoses, eosinofílica e linfocítica. A gastrite eosinofílica é uma afecção rara, de
etiologia desconhecida, caracterizada por infiltrado eosinofílico na parede do estômago
na biópsia endoscópica, eosinofilia periférica no hemograma e acometimento do
intestino delgado, com dor epigástrica, saciedade precoce, desconforto pós-prandial,
náusea, vômitos e anemia ferropriva.

Diagnóstico
O exame histológico da mucosa é obrigatório para o diagnóstico de gastrite, de
modo que endoscopia digestiva alta com biópsia é imprescindível.

Tratamento
A maior parte das gastrites é assintomática. O tratamento só é indicado para
pacientes com dispepsia aguda ou sangramento digestivo, sendo individualizado de
acordo com a etiologia.
Em caso de lesão aguda da mucosa gastroduodenal associada ao uso de anti-
inflamatórios não-hormonais, deve-se suspender o seu uso. Quando não for possível,
preconiza-se considerar a substituição por inibidor específico da COX-2, como o
Celecoxib, e associar inibidor de bomba de prótons em dose única diária. Nos
indivíduos infectados pelo H. pylori, o tratamento prevê a erradicação da bactéria. A
gastrite causada por agentes oportunistas em pacientes imunossuprimidos deve receber
tratamento específico.
A gastrite crônica tem no H. pylori o principal agente etiológico, sendo curada
com a erradicação da bactéria. Entretanto, a gastrite crônica é entidade eminentemente
histológica e não existem evidências científicas de que seja causa de dispepsia. Não há
consenso quanto à indicação de tratamento da infecção pelo H. pylori. Paciente com
conhecimento das alternativas e do risco pode optar pelo tratamento. De modo geral,

Pedro Kallas Curiati 675


havendo na família incidência alta de câncer gástrico, está indicada a erradicação.
A gastrite crônica autoimune não tem tratamento específico. As manifestações
clínicas estão associadas com as sequelas da doença avançada, como as deficiências de
vitamina B12 e de ferro, que deverão ser corrigidas. Os pacientes com anemia
perniciosa necessitam de reposição parenteral de ferro por toda a vida.
As gastrites granulomatosas devem receber tratamento para a doença de base.
A gastrite eosinofílica usualmente responde a corticoterapia e a gastrite
linfocítica não tem terapêutica específica eficaz, sendo possível o uso de antagonistas
dos receptores H2 e corticosteroides.

Doença ulcerosa péptica

Definição
As ulcerações pépticas são soluções de continuidade da mucosa gastrointestinal
secundárias aos efeitos cáusticos do ácido clorídrico e da pepsina, atingindo a
submucosa. Lesões mais superficiais, que não atingem a submucosa e, portanto, não
deixam cicatrizes, são definidas como erosões.

Epidemiologia
As úlceras duodenais predominam em populações ocidentais, enquanto que as
gástricas são mais frequentes na Ásia, em especial no Japão. O baixo nível
socioeconômico e suas consequências estão diretamente relacionados com a infecção
pelo H. pylori.

Etiologia e fisiopatologia
A alimentação, o uso de determinados medicamentos, o hábito de fumar e o
estado emocional influenciam a produção de ácido. No entanto, o fator ambiental de
maior repercussão é o H. pylori, quer em razão da inflamação da mucosa, quer por
alterar os mecanismos que regulam a produção de ácido.
A integridade da mucosa depende de um mecanismo complexo no qual os
elementos responsáveis pela defesa da mucosa devem estar aptos a exercer proteção
eficaz contra os fatores agressivos.
Em geral, a produção de ácido está aumentada na úlcera duodenal, sendo normal
ou baixa na úlcera gástrica.
Nos pacientes com úlcera duodenal, a prevalência de infecção pelo H. pylori é
de 90-95%. A inflamação em geral se restringe ao antro gástrico, sendo geralmente
poupada a região do corpo gástrico. A produção de gastrina é aumentada e, ante um
estímulo fisiológico, ocorre produção mais prolongada de HCl e esvaziamento gástrico
mais rápido, de modo que o ácido é produzido por mais tempo e ofertado mais
rapidamente ao bulbo duodenal. Uma das consequências é a maior frequência de áreas
de metaplasia gástrica, que são colonizadas pelo H. pylori.
Nos pacientes com úlcera gástrica, a prevalência de infecção pelo H. pylori é de
60-70%, com uma proporção apreciável de úlceras gástricas relacionadas ao uso de anti-
inflamatórios não-hormonais. Há pangastrite com diminuição da massa funcional de
células parietais. Assim, mesmo na presença de hipergastrinemia, não há hipersecreção
ácida. O mecanismo envolvido na gênese da úlcera é a fragilidade da mucosa,
provavelmente decorrente do processo inflamatório e do comprometimento dos
mecanismos de defesa representados por camada mucosa, bicarbonato, capacidade
surfactante do muco, vascularização mucosa e regeneração mucosa.
Úlceras H. pylori negativas estão relacionadas com situações relativamente

Pedro Kallas Curiati 676


raras, como gastrinoma (síndrome de Zollinger-Ellison), mastocitose sistêmica,
hiperparatireoidismo, sarcoidose, doença de Crohn, neoplasias, como carcinoma,
linfoma, leiomioma e leiomiossarcoma, infecções, como tuberculose, sífilis, herpes
simples e citomegalovírus, tecido pancreático ectópico e uso de anti-inflamatórios não-
hormonais.

Quadro clínico
A dor abdominal na doença ulcerosa péptica é epigástrica, em queimação,
ocorrendo duas a três horas após as refeições, aliviada com nova ingesta alimentar ou
com uso de antiácidos, podendo despertar o paciente durante a noite em dois terços dos
casos de úlcera duodenal e em um terço dos casos de úlcera gástrica. Pode ocorrer
hiperfagia e ganho ponderal em pacientes com úlcera duodenal e anorexia e perda
ponderal em pacientes com úlcera gástrica. A dor da úlcera gástrica pode não apresentar
melhora com a alimentação ou com o uso de antiácidos, eventualmente até sendo
precipitada pelas refeições.
Muitos pacientes procuram assistência médica para o tratamento das
complicações da doença sem nunca ter apresentado sintomatologia prévia. O
sangramento é a complicação mais frequente da doença ulcerosa péptica, podendo
manifestar-se com melena, hematêmese, sangue oculto nas fezes e instabilidade
hemodinâmica. As perfurações são complicações ainda mais graves, podem manifestar-
se por irritação peritoneal e instabilidade hemodinâmica e ocorrem com maior
frequência na pequena curvatura gástrica e na parede anterior do bulbo duodenal, tendo
no tabagismo um fator de risco mais importante que o uso de anti-inflamatórios não-
hormonais. Obstruções secundárias a edema ou cicatrização também podem ocorrer.

Avaliação complementar
A endoscopia digestiva alta continua sendo o exame de eleição para o
diagnóstico de lesões ulcerosas. Permite a definição da natureza e da etiologia da úlcera,
além da retirada de fragmentos de biópsias nos bordos das lesões para exame
histológico e do antro e/ou do corpo para pesquisa de H. pylori. O antro gástrico é a
localização mais frequente da úlcera péptica do estômago, com predomínio na pequena
curvatura, acometendo o epitélio gástrico não-secretor de ácido. A úlcera duodenal é a
forma predominante de úlcera péptica e localiza-se na grande maioria dos casos na
primeira porção do duodeno ou bulbo duodenal. É obrigatória a realização de biópsias
das bordas de toda lesão gástrica ulcerada, com retirada de múltiplos fragmentos para
exame histológico visando diagnóstico diferencial com câncer gástrico. Deve-se sempre
repetir a endoscopia das lesões gástricas seis semanas após o início do tratamento para
avaliar a cicatrização, uma vez que, apesar de biópsias múltiplas, uma neoplasia gástrica
eventualmente pode não ser diagnosticada, sendo recomendada a realização de novas
biópsias se houver ulceração, depressão hiperêmica ou mesmo cicatriz. Se o estudo
histológico for negativo para malignidade e houver redução significativa do tamanho da
úlcera, superior a 50%, o prazo de tratamento com a mesma droga poderá ser
prolongado, com reavaliação endoscópica após o término do uso. Se a redução não for
significativa, ou seja, inferior a 50%, outros tipos de tratamento deverão ser instituídos
por mais 45 dias, com reavaliação endoscópica após o término do uso.
Classificação das úlceras pépticas - Sakita
Fases Descrição da úlcera
Active A1 Base recoberta por fibrina espessa, com restos necróticos ou depósito de hematina e
bordas bem definidas, a pique, escavadas, edemaciadas, com hiperemia, geralmente sem
convergência de pregas

Pedro Kallas Curiati 677


A2 Base limpa e clara, recoberta por fibrina, e bordas bem definidas, regulares, sem edema,
com halo de hiperemia em torno, podendo apresentar convergência de pregas
Healing H1 Superficial, com fina camada de fibrina na base e hiperemia, havendo nítida
convergência de pregas
H2 Camada de fibrina mais tênue no centro da área deprimida em relação a H1
Scar S1 Cicatriz vermelha, com nítida convergência de pregas em tecido deprimido, hiperemiado
e sem depósito de fibrina
S2 Cicatriz branca, com área ou linha esbranquiçada recoberta por mucosa, convergência de
pregas e ausência de hiperemia
O exame radiológico contrastado é útil para o diagnóstico de doença ulcerosa,
porém menos preciso e pouco utilizado, sendo indicado apenas em situações em que o
exame endoscópico não está disponível.
Os testes para diagnosticar infecção pelo H. pylori são importantes em pacientes
com doença ulcerosa péptica. Exames negativos mudam a estratégia diagnóstica e
dispensam o uso de antibióticos. Podem ocorrer resultados falso-negativos em pacientes
que receberam tratamento com inibidores da bomba de prótons, Bismuto ou antibióticos
em função de supressão temporária do H. pylori. Outras indicações incluem linfoma
MALT, antecedente de ressecção endoscópica de câncer gástrico, dispepsia não-
investigada, câncer de estômago em familiar de primeiro grau, gastrite atrófica, anemia
ferropriva de causa não definida e púrpura trombocitopênica idiopática.
Métodos Sensibilidade Especificidade Utilidade
Endoscópicos Histologia 90-95% 90-95% Teste padrão de referência para
com biópsia diagnóstico na rotina hospitalar.
gástrica Fornece informações adicionais
sobre atrofia e inflamação.
Cultura 80-90% Superior a 95% Padrão-ouro alternativo, com
sensibilidade variável
Urease 90% 90% Rápido, com boa relação custo-
benefício, exigindo teste
adicional para confirmação da
infecção
Não- Teste Superior a Superior a 95% Padrão-ouro alternativo, útil para
endoscópicos respiratório 95% controle da erradicação, com
com uréia elevado poder preditivo positivo
marcada e negativo
Pesquisa de Superior a Superior a 90% Pouco utilizado, mas útil antes e
antígeno fecal 90% após a erradicação, com elevado
poder preditivo positivo e
negativo
Sorologia 80-90% 80-90% Mais utilizado em estudos
epidemiológicos, com pouca
utilidade na prática clínica e no
controle imediato de tratamento
em função de não diferenciar
infecção prévia de atual
Uma porcentagem importante de pacientes pode se beneficiar da realização de
exames para confirmar a erradicação do H. pylori, que são obrigatórios em caso de
doença ulcerosa péptica complicada, úlcera recorrente e úlcera refratária. Tanto o teste
respiratório como a pesquisa do antígeno fecal são recomendados como os mais
indicados para verificar a eficácia do tratamento de erradicação do H. pylori. Nos casos
em que é realizado exame endoscópico para controle da cicatrização, torna-se lógica a
realização de testes baseados em biópsia. O risco de resultado falso-negativo é menor
seis a oito semanas após o término do tratamento.
Pacientes com úlceras gastroduodenais múltiplas, refratárias, recorrentes ou
localizadas em segunda porção do duodeno e não-associadas a H. pylori ou anti-

Pedro Kallas Curiati 678


inflamatórios não-hormonais, com gastrina sérica em jejum superior a 1000pg/mL e
hipersecreção gástrica ácida não necessitam de outros exames para o diagnóstico de
gastrinoma. Entretanto, pacientes com elevação discreta da gastrina sérica necessitam de
testes provocativos para estabelecer ou excluir o diagnóstico de gastrinoma. Uma vez
confirmado o diagnóstico, é necessário localizar o tumor para instituir a terapia.

Tratamento
O tratamento da úlcera péptica tem como finalidade o alívio dos sintomas, a
cicatrização das lesões e a prevenção das recidivas e das complicações.

Pró-secretores
Pró-secretores agem fundamentalmente no estímulo de fatores responsáveis por
manter a integridade da mucosa, como o muco, o bicarbonato e os fatores surfactantes, e
favorecer a replicação celular e o fluxo sanguíneo da mucosa. Incluem os antiácidos, o
Sucralfato, os sais de bismuto coloidal e as prostaglandinas. De modo geral, são pouco
utilizados, sendo os anti-secretores os medicamentos de escolha para a cicatrização da
úlcera.
Os antiácidos têm a propriedade de neutralizar o conteúdo gástrico, diminuindo
a concentração de ácido da solução que chega ao bulbo duodenal. Hidróxido de
Alumínio é apresentado na forma de suspensão oral com 615mg/10mL, sendo a dose
recomendada 10-20mL cerca de uma hora após as refeições e ao deitar. Droxaine® é
apresentação comercial na forma de solução oral com Hidróxido de Alumínio
300mg/5mL, Hidróxido de Magnésio 100mg/5mL e Oxetacaína 10mg/5mL, com dose
recomendada de 5-10mL quatro vezes ao dia, quinze minutos antes das refeições e ao
deitar.
O Sucralfato é um octasulfato de alumínio cuja ação depende do estímulo de
prostaglandinas endógenas e da inibição de algumas enzimas citotóxicas do H. pylori.
Forma uma película protetora sobre a base da ulceração, absorve pepsina e sais biliares
e forma uma barreira à difusão do ácido e da pepsina. É apresentado na forma de
comprimidos mastigáveis de 1g e suspensão oral com 200mg/mL, sendo a dose
recomendada 1g quatro vezes ao dia, sempre antes das refeições.
Os sais de bismuto coloidal aliam à sua ação bactericida importante atividade
pró-secretora decorrente da liberação de prostaglandinas endógenas. O mais utilizado é
o Subcitrato de Bismuto, apresentado na forma de comprimidos de 120mg, que devem
ser administrados quatro vezes por dia, trinta a sessenta minutos antes das refeições e à
noite, antes de deitar, sempre com o estômago vazio.
Em razão de alto custo, efeitos colaterais e uso indevido como abortivo, o
Misoprostol foi praticamente abandonado, embora seja altamente eficaz em prevenir
lesões agudas de mucosa provocada por anti-inflamatórios não-hormonais.

Anti-secretores
Os bloqueadores dos receptores de histamina H2 das células parietais reduzem
em aproximadamente 70% a secreção ácida estimulada pela refeição. Ranitidina é
apresentada na forma de comprimidos de 150mg e 300mg e é utilizada com dose de
150mg de 12/12 horas ou 300mg à noite, Cimetidina é apresentada na forma de
comprimidos de 200mg e 400mg e é utilizada com dose de 200mg nas principais
refeições e ao deitar, 400mg de 12/12 horas ou 800mg à noite e Famotidina é
apresentada na forma de comprimidos de 20mg e 40mg e é utilizada com dose de 20mg
de 12/12 horas ou 40mg à noite. O medicamento deve ser administrado durante quatro a
seis semanas.

Pedro Kallas Curiati 679


Os inibidores de bomba de prótons bloqueiam diretamente a enzima responsável
pela união do H+ com o Cl- no canalículo da célula parietal. Omeprazol é apresentado na
forma de cápsulas de 10mg, 20mg e 40mg e é utilizado com dose de 20mg pela manhã,
Pantoprazol é apresentado na forma de comprimidos revestidos de 20mg e 40mg e é
utilizado com dose de 40mg pela manhã e Esomeprazol é apresentado na forma de
comprimidos de 20mg e 40mg e é utilizado com dose de 40mg pela manhã. O
medicamento deve ser administrado pela manhã em jejum durante duas a quatro
semanas. Nos poucos pacientes cuja úlcera permanece ativa após quatro semanas de
tratamento, observa-se cicatrização com o aumento da dose.

Erradicação do H. pylori
Sugere-se que o tratamento da úlcera duodenal deva ser restrito à erradicação da
bactéria naqueles casos em que a lesão não é muito profunda nem múltipla. Nos casos
em que a úlcera é profunda, com mais de 1cm, o bom senso indica a manutenção do
inibidor de bomba de prótons por um período de dez dias após a conclusão do esquema
de erradicação.
Os esquemas tríplices são os mais indicados e os esquemas quádruplos devem
ser reservados para situações especiais, como falha terapêutica. Atualmente, o esquema
considerado de primeira linha associa um inibidor de bomba de prótons em dose padrão
com Claritromicina 500mg e Amoxacilina 1000mg ou Metronidazol 500mg, devendo
ser administrado duas vezes ao dia por um período mínimo de sete dias.
Podem ser realizadas até duas tentativas de repetir o tratamento em caso de
falha, sendo a primeira opção a associação de inibidor de bomba de prótons em dose
padrão, Subcitrato de Bismuto 240mg, Furazolidona 200mg e Amoxacilina 1000mg,
devendo ser administrada duas vezes por dia durante dez a quatorze dias. A segunda
opção consiste em inibidor de bomba de prótons em dose padrão duas vezes ao dia,
Amoxacilina 1000mg duas vezes ao dia e Levofloxacino 500mg uma vez ao dia durante
dez dias ou associação de inibidor de bomba de prótons em dose padrão, Furazolidona
400mg e Levofloxacino 500mg uma vez ao dia durante dez dias.
Controle da erradicação é indicado em caso de úlcera gástrica ou duodenal ou
linfoma MALT de baixo grau. Prefere-se a realização de teste respiratório com uréia
marcada quando não houver indicação de nova endoscopia. Se exame endoscópico,
recomenda-se teste da urease e avaliação histológica. Inibidores de bomba de prótons
devem ser suspensos duas semanas antes do exame, bloqueadores dos receptores de
histamina H2 devem ser suspensos 24 horas antes do exame e antimicrobianos devem
ser evitados quatro semanas antes do exame.

Bibliografia
Clínica médica, volume 4: doenças do aparelho digestivo, nutrição e doenças nutricionais. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Úlcera péptica. Projeto Diretrizes, Federação Brasileira de Gastroenterologia, Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de
Medicina. 2003.
Helicobacter pylori Infection. Kenneth E.L. McColl. N Engl J Med 2010;362:1597-604.

Pedro Kallas Curiati 680


HEPATITES
Hepatite alcoólica

Definição
Hepatite alcoólica é uma síndrome clínica caracterizada por icterícia e falência
hepática que geralmente ocorre após décadas de uso de grandes quantidades de álcool.
Não é incomum que o paciente tenha cessado o uso de álcool algumas semanas antes do
início dos sintomas.

Fisiopatologia e epidemiologia
A gênese e o desenvolvimento do dano hepático pelo álcool são multifatoriais e
envolvem o metabolismo do etanol e a estimulação das células de Kupffer por
endotoxinas. Diversos cofatores aumentam o risco de hepatite alcoólica e incluem
predisposição genética, sexo feminino e hepatite crônica viral. Há predomínio na faixa
etária dos quarenta aos sessenta anos.
Geralmente, é necessário um consumo de 40-80g/dia de álcool para os homens e
de 20-60g/dia de álcool para as mulheres para o desenvolvimento de lesões hepáticas.

Quadro clínico
Sinais sugestivos de etilismo podem estar presentes, como desajuste profissional
e afetivo, depressão e antecedentes de trauma e violência.
Em casos leves, pode não haver sinais ou sintomas, sendo presumido o
diagnóstico com base em análise bioquímica sérica.
Os pacientes moderadamente enfermos apresentam fadiga, anorexia, perda de
peso, icterícia de rápida instalação, febre e hepatomegalia dolorosa. A febre é
geralmente baixa e não pode ser imediatamente atribuída à hepatite alcoólica
isoladamente até que outras causas sejam excluídas. Pode haver ascite por obstrução
inflamatória da veia porta.
Em casos graves, os sinais de descompensação da função hepática tornam-se
mais evidentes, incluído coagulopatia e encefalopatia.

Exames complementares
Na hepatite alcoólica aguda, os níveis de transaminases estão geralmente
elevados acima de duas vezes o limite superior da normalidade, raramente acima de
300U/L. Aumentos maiores devem alertar para a possibilidade de outras formas de
hepatite, especialmente virais, tóxicas ou isquêmicas. A relação entre aspartato
transaminase e alanina transaminase é tipicamente maior do que dois.
As enzimas canaliculares também estão aumentadas, geralmente até duas a três
vezes, o que ajuda a diferenciar de outras formas de hepatite aguda. Hiperbilirrubinemia
é alteração comum, geralmente superior a 5mg/dL. Leucocitose com neutrofilia é
achado frequente e importante. Hipoalbuminemia e coagulopatia indicam falência
hepática mais grave. Elevação dos valores de creatinina sérica pode indicar instalação
de síndrome hepatorrenal e maior mortalidade. O volume corpuscular médio encontra-
se elevado em alcoolistas e hepatopatas sem anemia.
Infecções bacterianas devem ser rastreadas através de culturas de urina e sangue
periférico, celularidade e cultura do líquido ascítico quando presente e radiografia de
tórax. Ultrassonografia hepática pode ser útil para identificar abscesso, carcinoma

Pedro Kallas Curiati 681


hepatocelular e obstrução biliar.
Biópsia hepática é a modalidade diagnóstica definitiva, mas raramente é
utilizada na prática clínica diária. Sua principal indicação é a dúvida diagnóstica, com
mais de uma etiologia possível, quando se considera terapêutica específica. Também é
considerada para diagnóstico de certeza em pacientes com função hepática
moderadamente ou gravemente comprometida, em que a abordagem percutânea é
contraindicada pelo risco de sangramento, preferindo-se a via transjugular. Os achados
histológicos consistem em esteatose, necrose balonante, corpúsculos acidófilos e
hialinos de Mallory, infiltração celular neutrofílica e graus variáveis e fibrose.

Diagnóstico
O diagnóstico da hepatite alcoólica depende fundamentalmente da detecção do
abuso de álcool pelo paciente e do reconhecimento do quadro clínico e laboratorial.
O diagnóstico diferencial inclui esteato-hepatite não-alcoólica, hepatite viral
aguda ou crônica, hepatite medicamentosa, doença de Wilson fulminante, hepatite
autoimune, deficiência de α1-antitripsina, abscesso hepático, colangite e
descompensação da função hepática relacionada a carcinoma hepatocelular.

Prognóstico
O escore de Maddrey, o escore MELD (Model for End-Stage Liver Disease) e o
escore de Glasgow são utilizados para decidir pelo início do tratamento com
corticosteroides, enquanto que o escore de Lille é usado para decidir por suspender o
uso da medicação após uma semana por falta de eficácia.
O principal índice de gravidade e prognóstico é o índice de Maddrey, calculado
com a fórmula 4.6 x (tempo de protrombina do paciente em segundos – tempo de
protrombina de controle em segundos) + bilirrubina total em mg/dL. Indica hepatite
alcoólica grave quando superior a 32.
O escore MELD é calculado através da fórmula 9.6 x loge(creatinina em mg/dL)
+ 3.8 x loge(bilirrubinas em mg/dL) + 11.2 x loge(RNI) + 6.4. Deve-se arredondar para
valor inteiro.
O escore de Glasgow varia de 5 a 12:
Critério 1 ponto 2 pontos 3 pontos
Idade Inferior a 50 anos Superior ou igual a 50 anos -
Leucócitos Inferior a 15000/mm3 Superior ou igual a 15000/mm3 -
Uréia Inferior a 14mg/dL Superior ou igual a 14mg/dL -
RNI Inferior a 1.5 1.5-2.0 Superior a 2.0
Bilirrubina Inferior a 7.3mg/dL 7.3-14.6mg/dL Superior a 14.6mg/dL
O escore de Lillie pode ser calculado no site www.lillemodel.com e quando
superior a 0.45 indica ausência de resposta a corticosteroides.
Sinais de boa evolução clínica seriados também foram estudados, sendo o
principal deles a queda rápida e progressiva das bilirrubinas séricas.

Tratamento
O manejo da hepatite alcoólica, assim como das demais condições clínicas
associadas ao abuso de álcool, consiste fundamentalmente na interrupção do uso da
substância, que deve ser imediata e durar por toda a vida. Existem evidências recentes
de que Baclofeno, um agonista do receptor GABA, promove abstinência a curto prazo
em etilistas com cirrose alcoólica, com perfil de segurança aceitável. Já o perfil de
segurança do Naltrexone em pacientes com insuficiência hepática de etiologia alcoólica
ainda não foi estabelecido.

Pedro Kallas Curiati 682


Medidas gerais para pacientes com disfunção hepática incluem tratamento da
ascite com restrição de sal e diuréticos e tratamento da encefalopatia com Lactulose e
lavagem intestinal com antibióticos. Infecções devem ser tratadas com antibioticoterapia
adequada. Nutrição enteral pode ser necessária, uma vez que os pacientes habitualmente
estão anoréxicos. Uma ingesta calórica de 35-40kcal/kg de peso com ingesta proteica de
1.5g/kg de peso é recomendada, mesmo nos pacientes com encefalopatia. Tiamina e
outras vitaminas podem ser administradas conforme a necessidade. Síndrome de
abstinência e delirium tremens devem ser tratados com benzodiazepínicos de curta
duração. A síndrome hepatorrenal deve ser tratada com Albumina e vasoconstritores,
como Terlipressina, Octreotide e Norepinefrina.
Há nível de evidência científica suficiente para recomendar o uso de corticoide
em pacientes com hepatite alcoólica grave, caracterizada por índice de Maddrey
superior ou igual a 32 ou MELD superior ou igual a 21. Deve-se ter certo grau de
certeza diagnóstica, eventualmente recorrendo-se a biópsia. Contraindicações relativas
incluem sangramento digestivo, sepse, insuficiência renal aguda e infecção crônica pelo
vírus da hepatite B. O esquema mais aceito consiste em Metilprednisolona 32mg/dia por
via intravenosa ou Prednisona 40mg/dia por via oral durante quatro semanas, com
desmame gradual a partir de então durante período de três semanas. Existem evidências
de que a decisão pela suspensão do esquema terapêutico em função de ausência de
eficácia pode ser baseada no cálculo do escore de Lille.
A Pentoxifilina, apresentada na forma de comprimidos de 400mg, é um inibidor
não-seletivo da fosfodiesterase, com redução da produção de TNF-α via AMP cíclico. O
esquema mais aceito consiste em 400mg por via oral de 8/8 horas por quatro semanas,
com indicação em pacientes com hepatite alcoólica grave, caracterizada por índice de
Maddrey superior ou igual a 32. Existem poucos estudos confirmando o benefício, mas
trata-se de agente terapêutico que pode ser considerado para alguns pacientes,
especulando-se que o benefício esteja relacionado à prevenção da síndrome
hepatorrenal.
A hepatite alcoólica é considerada contraindicação absoluta ao transplante de
fígado, com necessidade de abstinência de seis meses para que o paciente se torne
elegível.

Evolução
A recuperação da hepatite alcoólica depende basicamente de abstinência do
álcool, manifestações clínicas moderadas e tratamento adequado. A icterícia e a febre
regridem algumas semanas, mas a ascite e a encefalopatia podem persistir por meses a
anos.

Esteato-hepatite não-alcoólica

Definição
A doença hepática gordurosa não-alcoólica abrange amplo espectro desde
esteatose simples sem sinais inflamatórios até esteato-hepatite e fibrose, que podem
evoluir para cirrose. A esteato-hepatite não alcoólica é caracterizada por esteatose
macro ou microvesicular, infiltrado inflamatório lobular misto e balonização
hepatocelular em área da veia centrolobular (zona III), podendo apresentar fibrose e
corpúsculos de Mallory, com evolução para cirrose em 15-25%. Já a esteatose simples
evolui para doença crônica e cirrose em apenas 3% dos casos.

Epidemiologia

Pedro Kallas Curiati 683


A doença hepática gordurosa não-alcoólica é uma doença hepática com
prevalência alarmante em países industrializados e com aumento significativo em países
em desenvolvimento. A frequência de esteato-hepatite não-alcoólica aumenta
consideravelmente em pacientes portadores de síndrome metabólica.

Etiologia
Distúrbios metabólicos, como obesidade, diabetes mellitus ou intolerância à
glicose, dislipidemia, hipertensão arterial sistêmica, dieta hipercalórica, nutrição
parenteral total e perda rápida de peso.
Doenças metabólicas hereditárias, como abetalipoproteinemia, doenças de
depósito de glicogênio, homocistinúria, lipodistrofia hereditária, hiperlipoproteinemias,
tirosinemia, doença de Weber-Christian e doença de Wilson.
Drogas e toxinas, como Tamoxifeno, Amiodarona, estrógeno, glicocorticoides,
Cloroquina, bloqueadores de canal de cálcio, Tetraciclina, Ácido Valpróico,
Metotrexato e substâncias tóxicas voláteis.
Procedimentos cirúrgicos, como by-pass jejuno-ileal, ressecções intestinais
extensas, gastroplastias com derivação jejuno-ileal e derivação biliopancreática para
obesidade.

Fisiopatologia
A hiperinsulinemia favorece a lipogênese hepática e a lipólise periférica,
aumentando excessivamente o aporte de ácidos graxos ao fígado. O aumento da geração
de espécies reativas de oxigênio, consequente ao excesso de ácidos graxos no
hepatócito, seria importante na evolução de esteatose para esteato-hepatite e fibrose.

Quadro clínico
A doença hepática gordurosa não-alcoólica ocorre em todas as idades, embora
tipicamente tenha maior prevalência na quarta e na quinta décadas de vida, com
distribuição igual entre os sexos. Os pacientes geralmente são assintomáticos e
descobrem a doença por elevação de aminotransferases ou por ultrassonografia de
abdômen. Quando ocorrem, os sintomas são geralmente inespecíficos e vagos, como
desconforto no quadrante superior direito do abdômen, fadiga crônica e dispepsia.
Raramente, sintomas como náusea, anorexia e prurido são referidos pelos pacientes.
Ao exame físico, os pacientes geralmente estão acima do peso, são hipertensos e
apresentam adiposidade visceral. Hepatomegalia é encontrada em cerca de metade dos
casos. Estigmas de insuficiência hepática e hipertensão portal ocorrem menos
frequentemente do que em outras hepatopatias crônicas, embora esplenomegalia possa
ocorrer em até um quarto dos pacientes. Acantose nigricans é reconhecida como
marcador clínico de resistência insulínica.

Avaliação complementar
Tipicamente, pacientes portadores de doença hepática gordurosa não-alcoólica
apresentam elevação de alanina aminotransferase, usualmente menor do que quatro
vezes o limite superior da normalidade. Já a aspartato aminotransferase, embora tenha
elevação menor do que a alanina aminotransferase, pode estar aumentada na presença
de cirrose. Em metade dos pacientes coexiste elevação de gama-glutamiltransferase, que
algumas vezes pode ser a única enzima hepática com níveis séricos alterados.
Hiperglicemia, hipercolesterolemia e hipertrigliceridemia são frequentes. Devem ser
excluídos rotineiramente hepatites virais B e C, hepatite autoimune, doença de Wilson,
hemocromatose e deficiência de alfa-1-antitripsina.

Pedro Kallas Curiati 684


Métodos diagnósticos não-invasivos, como ultrassonografia, tomografia
computadorizada e ressonância nuclear magnética de abdômen podem ser utilizados
para identificar a doença hepática gordurosa não-alcoólica. No entanto, nenhum método
é suficientemente sensível para detectar inflamação e fibrose, sendo ainda a biópsia
hepática o padrão de referência para diagnóstico de esteato-hepatite não-alcoólica.
Embora os aspectos histológicos do fígado sejam o padrão-ouro no diagnóstico
de esteato-hepatite não-alcoólica, a necessidade de biópsia hepática tem sido motivo de
controvérsia. A ausência de terapia eficaz até o momento e os riscos de morbidade e
mortalidade associados à biópsia são argumentos contrários à sua realização. Contudo,
além de estabelecer o diagnóstico, a análise histológica do fígado é o único meio de
determinar a severidade da lesão hepática. Alguns fatores preditivos de fibrose têm sido
identificados e podem auxiliar na indicação de biópsia hepática, incluindo idade
superior a 45 anos, obesidade, diabetes mellitus e relação entre aspartato
aminotransferase e alanina aminotransferase superior a 1:3. Na prática, a avaliação
histológica deverá ser realizada em caso de estigmas de insuficiência hepática crônica,
esplenomegalia, citopenia, perfil de ferro anormal ou idade superior a 45 anos e diabetes
mellitus tipo 2 ou obesidade significativa. O sistema de graduação proposto pelo
Nonalcoholic Steatohepatitis Clinical Research Network inclui escore de atividade, que
varia de zero a oito, baseado em presença e intensidade de esteatose, balonização e
inflamação lobular, e sistema de estadiamento da fibrose. Dentro do contexto clínico
adequado, o diagnóstico de esteato-hepatite não alcoólica é feito quando a biópsia
hepática revela esteatose e fibrose perissinusoidal ou, na ausência e fibrose, balonização
pelo menos moderada dos hepatócitos.

Tratamento
O tratamento da doença hepática gordurosa não-alcoólica baseia-se no
tratamento das condições associadas, como obesidade, diabetes mellitus e
hipertrigliceridemia, assim como na descontinuação de drogas hepatotóxicas. A perda
gradual do excesso de peso, sem exceder 1.6kg/semana, e a prática de exercícios físicos
devem ser sempre recomendadas.
Vitamina E é associada a redução dos níveis séricos de transaminases e melhora
do padrão histológico, inclusive com redução da fibrose hepática. No entanto, em
função de receio quanto a possível aumento de mortalidade relacionado a sua
suplementação e a evidências limitadas dos benefícios, o uso rotineiro não é
recomendado. A dose preconizada é de 800UI por dia, não fracionada.

Hepatite viral

Etiologia
Os vírus das hepatites A, B, C, D e E são responsáveis por cerca de 90% dos
casos de hepatite aguda. Outros agentes etiológicos virais possíveis incluem o vírus da
hepatite G, o citomegalovírus, o Epstein-Barr vírus, o vírus da febre amarela, o herpes
simples vírus, o vírus da rubéola, o adenovírus, o enterovírus e o varicela zoster vírus.
O vírus da hepatite A é um vírus RNA e pertence à família dos Picornaviridae.
Trata-se do principal causador de hepatite no mundo.
O vírus da hepatite B é um vírus DNA e pertence à família Hepadnaviridae. É
composto por um envelope lipoproteico, o AgHBs, e por uma estrutura central, o core,
que contém as proteínas AgHBc e AgHBe, a DNA-polimerase e o genoma.
Tradicionalmente dividido em oito genótipos, de A a H.
O vírus da hepatite C é um vírus RNA e pertence à família Flaviviridae.

Pedro Kallas Curiati 685


Apresenta elevada diversidade genética, que resultou na classificação em vários
genótipos e subtipos, que diferem na distribuição geográfica e rota de transmissão. No
Brasil, os genótipos mais prevalentes, em ordem decrescente, são o 1, o 3 e o 2.
O vírus da hepatite D é um vírus RNA defectivo. O antígeno da hepatite D,
AgHD, e o genoma são envolvidos por um envelope constituído pelas mesmas proteínas
do envelope do vírus da hepatite B, com AgHBs. Embora o vírus da hepatite D possa se
replicar de maneira autônoma, a presença concomitante do vírus da hepatite B é
fundamental para que ocorra a produção do vírion completo, com sua consequente
secreção pelo hepatócito infectado. Dessa forma, o paciente com hepatite D sempre será
coinfectado pelos dois vírus. O genótipo I, encontrado mundialmente, geralmente causa
hepatite grave e é mais frequentemente associado a cirrose hepática e carcinoma
hepatocelular do que o genótipo II. Já a infecção aguda com o genótipo III, que é
isolado na região norte da América do Sul, é associada a hepatite fulminante.
O vírus da hepatite E é um vírus RNA e pertence à família Caliciviridae.

Transmissão
As infecções pelos vírus das hepatites A e E são transmitidas pela via fecal-oral.
Por essa razão, são infecções intimamente relacionadas com condições socioeconômicas
e de saneamento básico. A principal diferença epidemiológica entre elas é que a hepatite
A é endêmica nos países em desenvolvimento, com taxas elevadas de infecção em
crianças e adolescentes, enquanto a hepatite E costuma ser epidêmica, com grandes
surtos quando ocorre contaminação da água potável em regiões subdesenvolvidas.
As hepatites B, C e D apresentam transmissão essencialmente parenteral, sendo
também importantes as vias sexual e vertical. Embora os três tipos de vírus sejam
causadores de hepatite após transfusão de hemocomponentes e em usuários de drogas
intravenosas, as hepatites B e D são consideradas doenças sexualmente transmissíveis e
são transmitidas por via vertical durante o parto com maior frequência, enquanto que a
transmissão sexual e vertical da hepatite C é de menor importância epidemiológica,
porém mais comum quando associada à infecção pelo vírus da imunodeficiência
humana.

Fisiopatologia
As hepatites caracterizam-se por comprometimento do fígado, no qual ocorre
morte celular por necrose e apoptose, degeneração de hepatócitos e inflamação portal
e/ou intralobular.

Hepatites agudas
Hepatite aguda clássica exibe necrose multifocal em lise dos hepatócitos, que
podem ser circundados por infiltrado inflamatório mononuclear. Ocasionalmente, são
notados focos de necrose em saca-bocado, constituindo atividade periportal.
Hepatite aguda com necrose em ponte é caracterizada por pontes de necrose dos
hepatócitos que unem estruturas vasculares entre si e cujos mecanismos e significado
não estão elucidados.
Hepatite aguda com necrose maciça ou hepatite fulminante caracteriza-se por
necrose confluente dos hepatócitos pan-acinar ou pan-lobular, de tipo liquefativa. Em
meio à necrose, há exsudação de neutrófilos reativos.

Hepatites crônicas
Classicamente, define-se como hepatite crônica a persistência de reação
inflamatória, que se mantém sem melhora pelo prazo mínimo de seis meses. As

Pedro Kallas Curiati 686


hepatites crônicas apresentam inflamação portal e necrose e/ou apoptose periportal e/ou
intralobular. A inflamação acomete todos os espaços portais, ocorrendo neles uma
variação de intensidade. É imprescindível avaliar a atividade necroinflamatória
periportal, que deve ser graduada, e também o estadiamento do processo, mensurado
pela fibrose portal e por sua extensão ao parênquima, levando ou não a distorções da
arquitetura do órgão, com a formação de nódulos.

Quadro clínico

Síndromes clínicas
O quadro clínico é semelhante para todas as hepatites, independentemente da
etiologia. Do ponto de vista didático, pode-se classificar em hepatite aguda benigna
ictérica, hepatite aguda benigna anictérica, hepatite aguda grave, hepatite aguda
prolongada e hepatite aguda colestática.
Após um período de incubação variável, que depende do agente etiológico, a
hepatite aguda benigna ictérica manifesta-se por um período prodrômico insidioso, de
duração variável, com manifestações gerais e inespecíficas, como cansaço, astenia,
anorexia e dor em hipocôndrio direito. Febre, quando presente, geralmente é de baixa
intensidade, exceto em alguns casos cujo agente etiológico é o vírus da hepatite A. A
seguir, surge colúria, acolia fecal, icterícia, anorexia, náusea, vômitos e prurido, com
borda amolecida e dolorosa do fígado palpável em cerca de 70% dos pacientes e baço
palpável em cerca de 20%. Podem aparecer, transitoriamente, algumas aranhas
vasculares. Após uma a duas semanas, inicia-se o período de convalescença, com
retorno do apetite, desaparecimento dos sintomas, com redução lenta e progressiva da
icterícia e da colúria. A recuperação completa tende a ocorrer em quatro a seis semanas.
Na forma anictérica, os sintomas são menos intensos e não ocorre o
aparecimento de icterícia franca, podendo haver discreta colúria.
As formas agudas graves podem evoluir para o óbito do paciente dentro de oito
semanas, sendo denominadas fulminantes, ou para insuficiência hepática em mais de
oito semanas, sendo denominadas subfulminantes. Indícios de gravidade são
representados por distúrbios de comportamento, como agitação, prostração, sonolência e
coma, fenômenos hemorrágicos, como epistaxe, gengivorragia, hemorragias digestivas,
equimoses e hematomas, edema em membros inferiores e ascite.
As formas prolongadas são as que evoluem por períodos longos, de até seis
meses, sem, contudo, apresentar características de doença crônica.
A forma colestática apresenta icterícia mais intensa, prurido acentuado, colúria
persistente e acolia fecal, evoluindo por períodos mais prolongados do que o habitual.

Particularidades dos agentes etiológicos


A hepatite A na infância apresenta predomínio de formas anictéricas, de modo
que muitas vezes não é feito diagnóstico específico, sendo confundida com quadros
gripais ou diarreicos autolimitados. O período de incubação varia de duas semanas a
dois meses, com formas agudas graves em 0.1-0.2% e ausência de evolução para doença
crônica.
Com relação à hepatite B, cerca de dois terços dos indivíduos suscetíveis
apresentam infecção subclínica ou assintomática, tornando-se naturalmente protegidos.
Cerca de um quarto apresentam hepatite aguda com ou sem icterícia, sendo que 1-2%
podem evoluir com formas graves. Em média, cerca de 10% evoluem para a infecção
crônica, sem eliminar o vírus. O período de incubação varia de dois a seis meses.
No caso do vírus da hepatite C, menos de 20% dos indivíduos infectados

Pedro Kallas Curiati 687


apresentam manifestações clínicas de hepatite aguda. Entretanto, evolução para doença
crônica ocorre em mais de 85%. O período de incubação varia de duas semanas a seis
meses. A infecção crônica pelo vírus da hepatite C tem sido associada a muitas
manifestações extra-hepáticas, incluindo crioglobulinemia mista essencial, porfiria
cutânia tarda, glomerulonefrite membranoproliferativa, tireoidite autoimune, síndrome
de Sjögren e diabetes mellitus.
No caso do vírus da hepatite D, ocorrem formas agudas graves em 1-2% dos
casos de coinfecção com o vírus da hepatite B, com evolução para doença crônica em
cerca de 2-7%. Já nos casos de superinfecção, ocorrem formas agudas graves em cerca
de 1-5% e evolução para doença crônica em cerca de 70-90%.
No caso do vírus da hepatite E, o período de incubação varia de três a seis
semanas, com formas agudas graves em cerca de 10-20% dos casos e ausência de
evolução para doença crônica.

Exames complementares
Baseiam-se na demonstração de anticorpos desenvolvidos pelo hospedeiro na
presença do vírus ou na detecção de partículas virais ou de seus ácidos nucleicos. De
maneira geral, todos os pacientes devem ser avaliados com hemograma completo com
contagem de plaquetas, enzimas canaliculares e transaminases e função hepática.
A hepatite A é diagnosticada pela presença, no soro do paciente, de anticorpos
anti-VHA. Os anticorpos totais e da classe IgG permanecem geralmente por toda a vida,
enquanto que os da classe IgM persistem apenas na fase aguda da doença ou por alguns
meses após a infecção. Os níveis das aminotransferases oscilam na faixa de 600-
2000U/L, com predomínio de aspartato aminotransferase sobre alanina
aminotransferase. As bilirrubinas variam de 5mg/dL a 15mg/dL na maior parte dos
casos.
Na hepatite B, existem diversos marcadores séricos. O AgHBs indica infecção,
que pode ser aguda na presença do anti-HBc IgM ou crônica na sua ausência. O AgHBe
é um marcador de replicação viral e de infectividade, sendo contraposto ao anti-HBe. O
anti-HBs indica imunidade natural ou induzida por vacina. Pode-se ainda determinar a
presença do DNA do vírus da hepatite B por meio de reação em cadeia da polimerase,
que comprova a presença e a atividade do vírus. A quantificação do DNA é importante
na indicação de tratamento. As aminotransferases aumentam significativamente no soro,
atingindo com frequência valores acima de 1000U/L. A alanina aminotransferase
apresenta-se mais elevada do que a aspartato aminotransferase na maioria dos casos.
Nas formas ictéricas da hepatite B aguda, o aumento da bilirrubina ocorre por elevação
da bilirrubina direta, atingindo cerca de 10-15mg/dL. As enzimas colestáticas, gama-
glutamiltransferase e fosfatase alcalina, também aumentam nas formas ictéricas em
níveis moderados. Nos pacientes com hepatite crônica com indicação terapêutica, a
biópsia hepática é preconizada para estadiamento e avaliação do grau de atividade,
constituindo os principais critérios AgHBs positivo por mais de seis meses, reação em
cadeia da polimerase para DNA com mais de 100.000 cópias ou 20.000UI por mL e
elevação persistente ou intermitente de transaminases. A genotipagem não é necessária
na prática clínica diária, mas pode ser indicada em pacientes AgHBe positivos em que é
considerado tratamento com Interferon, já que há resposta mais favorável em caso de
genótipo A. Também devem ser pesquisadas outras causas de doença hepática,
incluindo hepatite C, hepatite D e hemocromatose.
Em relação à hepatite C, a presença de anticorpos indica apenas a ocorrência de
infecção atual ou pregressa, sendo necessária pesquisa do RNA do vírus por reação em
cadeia da polimerase para caracterizar doença em atividade, além de sua quantificação

Pedro Kallas Curiati 688


para indicar e acompanhar o tratamento. O grau de elevação das aminotransferases e das
bilirrubinas é menos proeminente na hepatite C aguda do que nas hepatites A e B. Nos
casos com evolução para hepatite crônica ativa e cirrose, as aminotransferases
apresentam, com frequência, curso flutuante ao longo dos meses, com predomínio da
alanina aminotransferase sobre a aspartato aminotransferase. A hepatite crônica C é
caracterizada pela persistência do RNA do vírus por pelo menos seis meses após a
infecção. A biópsia hepática é indicada nos pacientes com infecção crônica que tenham
aminotransferases elevadas e estejam sendo triados para o tratamento antiviral, também
podendo ser útil em caso de etilismo crônico associado. É realizada de rotina para
pacientes com vírus de genótipo 1 e 4, mas apenas em caso de falha do tratamento nos
pacientes com vírus de genótipo 2 e 3, que geralmente apresentam taxa de resposta
virológica de até 80%, desde que outras causas de hepatite tenham sido excluídas.
Durante a evolução da hepatite aguda para a crônica, os níveis de alanina
aminotransferase e RNA viral podem flutuar e pelo menos um quarto dos pacientes
pode apresentar períodos com resultados normais de exames laboratoriais, de modo que
recomenda-se seguimento regular no sexto e no décimo segundo meses após a fase
aguda para confirmação da resolução.
A infecção pelo vírus D, que acontece sempre com a presença do AgHBs, pode
ser decorrente de coinfecção ou de superinfecção. Em ambos os casos, o diagnóstico é
baseado na demonstração de anticorpos anti-VHD em um paciente positivo para o
AgHBs, sendo confirmado pela detecção de RNA viral no soro ou no tecido hepático.
O diagnóstico de hepatite E é feito pela pesquisa de anticorpos anti-VHE, IgG e
IgM. Pode-se fazer uso de reação em cadeia da polimerase para detectar o RNA.

Diagnóstico diferencial
O diagnóstico diferencial das hepatites virais agudas deve ser feito com doenças
febris e ictéricas prevalentes, como a leptospirose, a febre amarela e a malária. Os
quadros sépticos, especialmente por bactérias Gram negativas, e doenças não
infecciosas, como as hepatites autoimunes e medicamentosas, são diagnósticos
diferenciais importantes das hepatites virais agudas.

Tratamento
De maneira geral, as hepatites virais agudas não têm tratamento específico,
sendo recomendado repouso no leito enquanto persistirem as alterações clínicas e
laboratoriais, geralmente durante duas a quatro semanas. Sugere-se dieta hipogordurosa
com aporte calórico proveniente de carboidratos e proibição da ingesta de bebidas
alcoólicas por um ano. Nas hepatites agudas graves e nas formas fulminante e
subfulminante, pode haver indicação de transplante de fígado.
Nas hepatites crônicas, o tratamento visa eliminar o vírus e interromper ou
mesmo regredir o processo inflamatório e a fibrose, impedindo a evolução para cirrose
hepática e para hepatocarcinoma. O Interferon-α, com ação antiviral e
imunomoduladora, é usado em esquemas prolongados de seis meses a um ano,
isoladamente nos casos de hepatite B ou D e associado à Ribavirina na hepatite C. A
Lamivudina e outros antivirais, como Adefovir, Entecavir, Telbivudina e Tenofovir, têm
sido usados em casos selecionados de hepatite B crônica.

Hepatite B
O tratamento específico para o vírus da hepatite B é indicado para as formas
crônicas da doença, caracterizadas por AgHBs positivo por mais de seis meses, com
evidência de replicação viral, caracterizada por AgHBe positivo e/ou pesquisa de DNA

Pedro Kallas Curiati 689


do vírus da hepatite B positiva com mais 100.000 cópias ou 20.000UI por mL, com
doença hepática ativa, caracterizada por níveis elevados de alanina aminotransferase
e/ou hepatite crônica na biópsia hepática. Tem como metas iniciais suprimir a
replicação viral e induzir a remissão da doença hepática e como meta final a eliminação
do vírus B, impedindo a progressão para cirrose e o surgimento de hepatocarcinoma. A
supressão mantida da replicação viral é alcançada quando o DNA do vírus da hepatite B
se torna indetectável no soro e ocorre soroconversão de AgHBe para anti-HBe e de
AgHBs para anti-HBs. A remissão da doença hepática é percebida pela normalização
das aminotransferases, além da redução do conteúdo necroinflamatório na biópsia
hepática.
O tratamento deve ser postergado em três a seis meses em pacientes com AgHBe
positivo de diagnóstico recente e com doença hepática compensada para verificar se
ocorre soroconversão espontânea. Pacientes com hepatite crônica e níveis de alanina
aminotransferase baixos, inferiores a duas vezes o limite superior da normalidade,
também podem ser apenas observados.
Em pacientes com AgHBe positivo, o tratamento deve ser prolongado por pelo
menos seis meses após a soroconversão ter sido confirmada por duas testagens com pelo
menos dois meses de intervalo e o DNA do vírus da hepatite B ter se tornado
indetectável. Em pacientes com AgHBe negativo, o tratamento pode ser descontinuado
após a negativação do AgHBs confirmada por duas testagens com pelo menos dois
meses de intervalo. Tratamento por toda a vida geralmente é recomendado em pacientes
com cirrose.
A abordagem terapêutica é baseada no uso de Interferon, cujas vantagens
incluem duração finita, ausência de seleção de mutantes resistentes e resposta mais
duradoura. No entanto, os efeitos colaterais são frequentes e há contraindicação para o
uso em doença hepática descompensada. A principal indicação é o tratamento de
pacientes jovens com doença hepática compensada que não desejam tratamento a longo
prazo ou planejam gestação dentro dos próximos dois ou três anos, nos quais o
surgimento de vírus resistentes poderá limitar suas opções no futuro. Outra indicação é
infecção por vírus de genótipo A. Os esquemas mais utilizados são Interferon-α
5.000.000UI/dia ou 10.000.000UI três vezes por semana por via subcutânea durante 16-
32 semanas para pacientes AgHBe positivos e durante 12-24 meses para os pacientes
AgHBe negativos. Para o Interferon Peguilado α-2a, preconiza-se 180mcg por via
subcutânea uma vez por semana por 48 semanas independentemente do AgHBe. Os
efeitos colaterais incluem febre, calafrios, cefaleia, mialgia, adinamia, anorexia, perda
de peso, queda de cabelos, neutropenia, plaquetopenia, ansiedade, depressão,
irritabilidade e, raramente, tentativa de suicídio. Contraindicações absolutas ao uso de
Interferon incluem psicose ou depressão grave, epilepsia não-controlada, transplante de
órgão, exceto fígado, gravidez e doença cardíaca sintomática. Contraindicações relativas
incluem depressão, diabetes mellitus e/ou hipertensão arterial sistêmica não-
controlados, retinopatia, psoríase e doenças autoimunes.
As principais vantagens da Lamivudina são seu baixo custo e a segurança
comprovada, inclusive durante a gestação. A principal desvantagem é a alta taxa de
resistência. Preconiza-se 100mg/dia por via oral durante 48-52 semanas como
alternativa para os pacientes que não toleram ou não respondem ao Interferon-α,
podendo ser usada em cirrose descompensada, pacientes imunossuprimidos, grávidas e
prevenção de infecção recorrente após transplante de fígado. Há papel em indivíduos
coinfectados com HIV, com 150mg por via oral de 12/12 horas.
As principais vantagens do Adefovir são atividade contra vírus da hepatite B
resistentes à Lamivudina e menor taxa de resistência. No entanto, a supressão viral é

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lenta, doses elevadas estão associadas a nefrotoxicidade e o custo é maior. Preconiza-se
10mg/dia por via oral durante 48 semanas, com indicação predominantemente em
pacientes com vírus resistentes à Lamivudina, preferencialmente em terapia combinada.
As principais vantagens do Entecavir são atividade antiviral potente e baixa taxa
de resistência, sendo mais indicado no tratamento primário da hepatite B crônica do que
em casos de resistência a Lamivudina. Pode desempenhar papel importante em
indivíduos com cirrose descompensada, mas ainda faltam informações sobre segurança
nessa população. Preconiza-se 0.5mg/dia por via oral durante 48 semanas para o
tratamento primário e 1mg/dia por via oral durante 48 semanas para o tratamento de
casos de resistência a Lamivudina.
Telbivudina possui ação antiviral discretamente mais potente do que a
Lamivudina e o Adefovir, mas seleciona os mesmos mutantes resistentes que a
Lamivudina e apresenta custo maior. Além disso, foram descritos casos de miopatia e
neuropatia periférica relacionadas à droga. Preconiza-se 600mg/dia por via oral durante
48 semanas.
Tenofovir apresenta atividade antiviral mais potente do que o Adefovir e baixa
taxa de resistência, sendo efetivo em suprimir o vírus da hepatite B tanto no tratamento
primário como em caso de resistência a Lamivudina, Telbivudina ou Entecavir, situação
na qual prefere-se terapia combinada. Preconiza-se 300mg/dia por via oral durante 48
semanas.
A seroconversão do AgHBe deve ser considerada como resposta satisfatória ao
tratamento, mesmo com persistência do AgHBs. É frequente a normalização das
aminotransferases, bem como a redução ou mesmo o desaparecimento da atividade
inflamatória no fígado.

Hepatite C
As metas para o tratamento da hepatite C são semelhantes àquelas da hepatite B.
Incluem erradicação ou supressão prolongada da replicação viral, redução da
inflamação hepática e diminuição da taxa de progressão da agressão hepática. O
tratamento específico é indicado basicamente para a doença crônica com evidência
virológica e histológica. A indicação é amplamente aceita em indivíduos com idade
superior ou igual a 18 anos, RNA do vírus da hepatite C detectável no soro, biópsia
hepática com hepatite crônica e fibrose significativa, função hepática compensada,
caracterizada por bilirrubina total inferior a 1.5mg/dL, RNI inferior a 1.5, albumina
superior a 3.4g/dL, contagem de plaquetas superior a 75.000/mm3 e ausência de
evidência de encefalopatia hepática, hemoglobina superior a 13g/dL em homens e
12g/dL em mulheres, contagem de neutrófilos superior a 1.500/mm3, creatinina inferior
a 1.5mg/dL, desejo de aderir ao tratamento e ausência de contraindicações. O
tratamento pode ser considerado em caso de falha de tratamento prévio, uso atual de
álcool ou drogas ilícitas desde que aceitando tratar o abuso, biópsia hepática sem fibrose
ou com fibrose mínima, hepatite C aguda, coinfecção com HIV, idade inferior a 18
anos, doença renal crônica, cirrose descompensada e transplante hepático prévio.
Contraindicações incluem transtorno depressivo maior não-controlado, transplante de
rim, coração ou pulmão, hepatite autoimune ou outras condições que possam ser
exacerbadas com o uso de Interferon ou Ribavirina, doença tireoidiana não-tratada,
comorbidade severa, idade inferior a dois anos, gestação, idade fértil sem aderência a
contracepção e hipersensibilidade a drogas utilizadas no esquema.
Preconiza-se Interferon Peguilado 180mcg/semana, contraindicado em
indivíduos com depressão maior e doenças autoimunes, em associação com Ribavirina
1000mg/dia para pacientes com peso inferior ou igual a 75kg e 1200mg/dia para

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pacientes com peso superior a 75kg se genótipo 1 ou 4 e 800mg/dia independentemente
do peso se genótipo 2 ou 3, em doses divididas. A Ribavirina tem como principal efeito
colateral a hemólise, devendo-se monitorizar com frequência o nível de hemoglobina e
sendo contraindicada em caso de insuficiência renal dialítica, anemia,
hemoglobinopatia, insuficiência cardíaca grave, hipertensão arterial sistêmica
descontrolada, gravidez ou idade fértil sem adesão à contracepção
Em indivíduos com infecção por vírus de genótipo 1 ou 4, o tratamento deve ser
planejado para duração de 48 semanas, modificada conforme a resposta. O tratamento
deve ser descontinuado em pacientes que não atingem redução de pelo menos 2 log na
pesquisa de RNA do vírus da hepatite C após doze semanas. Em caso de redução de
pelo menos 2 log na pesquisa de RNA do vírus da hepatite C após doze semanas, mas
persistência de níveis detectáveis, nova pesquisa deve ser realizada 24 semanas após o
início do tratamento, com descontinuação em caso de persistência da positividade e
tratamento por um total de 72 semanas ao invés de 48 semanas em caso de negativação.
Em indivíduos com infecção por vírus de genótipo 2 ou 3, o tratamento deve ser
administrado por 24 semanas.
A indicação de tratamento nos pacientes com alanina aminotransferase normal
deve ser individualizada com base em gravidade da doença, possibilidade de efeitos
colaterais, probabilidade de resposta e presença de comorbidades. Pacientes com doença
leve, caracterizada por elevação persistente de alanina aminotransferase com biópsia
sem fibrose ou com alterações necroinflamatórias mínimas, podem ser monitorizados
sem introdução de tratamento específico.
Considera-se resposta completa sustentada quando ocorre normalização da
alanina aminotransferase ao final do tratamento e mantida por seis meses, resposta
parcial quando ocorre queda de 50% ou mais da alanina aminotransferase em relação ao
período de três meses antes pré-tratamento, ausência de resposta quando ocorre alanina
aminotransferase inalterada no período de tratamento, recidiva quando ocorre elevação
da alanina aminotransferase ao final do tratamento após a suspensão da droga em
paciente que tinha tido resposta completa e escape quando ocorre elevação da alanina
aminotransferase durante o período de utilização da droga após normalização. Pacientes
com atividade histológica moderada a grave têm melhor indicação para o tratamento,
enquanto que aqueles com níveis séricos de alanina aminotransferase normais com
cirrose descompensada e idade inferior a dezoito ou superior a sessenta anos não
deveriam ser tratados.
A caracterização molecular do vírus da hepatite C permitiu o desenvolvimento
de agentes antivirais de ação direta com o objetivo de melhorar a eficácia e diminuir os
efeitos colaterais do tratamento. Dois inibidores de protease, Telaprevir e Boceprevir,
foram recentemente aprovados pelo FDA. Telaprevir é apresentado na forma de
comprimidos de 375mg, com dose de 750mg três vezes ao dia por via oral. Efeitos
colaterais do Telaprevir incluem exantema, prurido, anemia e sintomas gastrointestinais.
Boceprevir é apresentado na forma de comprimidos de 200mg, com dose de 800mg três
vezes ao dia. Efeitos colaterais do Boceprevir incluem anemia e disgeusia. Em
indivíduos com infecção por vírus de genótipo 1, com base em ensaios clínicos
randomizados recentes, um regime de tratamento inicial razoável envolveria Telaprevir
com Interferon Peguilado e Ribavirina por doze semanas. Se a pesquisa de RNA viral
da quarta à décima segunda semanas de tratamento for negativa, indicando resposta
virológica rápida extendida, apenas doze semanas adicionais de tratamento com
Interferon Peguilado e Ribavirina são recomendadas. Se uma resposta virológica rápida
extendida não for atingida, recomenda-se 36 semanas adicionais de tratamento com
Interferon Peguilado e Ribavirina. Em caso de uso de Boceprevir, uma fase inicial de

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tratamento com Interferon Peguilado e Ribavirina com duração de quatro semanas seria
seguida por um período de 24 semanas com a associação de Boceprevir com Interferon
Peguilado e Ribavirina se a pesquisa de RNA viral da oitava à vigésima quarta semanas
de tratamento for negativa. Se uma resposta virológica rápida extendida não for
atingida, recomenda-se 8 semanas adicionais de tratamento com Boceprevir com
Interferon Peguilado e Ribavirina seguidas por mais 12 semanas de Interferon Peguilado
e Ribavirina.

Hepatite D
O tratamento específico da hepatite D também é direcionado para os casos de
doença crônica. O Interferon-α é o medicamento mais utilizado, sendo o esquema
recomendado 5.000.000-10.000.000UI três vezes por semana por via subcutânea
durante doze meses contados a partir da normalização das transaminases.

Prevenção
A imunização ativa contra o vírus da hepatite A está indicada particularmente
para profissionais de saúde, imunodeprimidos, indivíduos com doença hepática crônica
e turistas em áreas de elevada prevalência, sendo as reações adversas pouco frequentes.
Contraindicações incluem hipersensibilidade a qualquer dos componentes. A posologia
para adultos é dose única de 1440 unidades, que corresponde a 1mL de suspensão, e
para crianças é dose única de 720 unidades, que corresponde a 0.5mL de suspensão.
Pode ser administrada por via intramuscular. Em hemodialisados e
imunocomprometidos, pode haver necessidade de doses adicionais. Em caso de
necessidade de proteção imediata, como na profilaxia pós-exposição, pode-se empregar
vacina contra o vírus da hepatite A acrescida da administração de imunoglobulina
humana na dose de 0.02mL/kg por via intramuscular.
Em relação à hepatite B, há um agente imunizante de alta eficiência e
praticamente isento de efeitos colaterais que protege contra os vírus das hepatites B e D
e, de certa forma, contra o hepatocarcinoma. Recomenda-se atualmente a imunização
universal por via intramuscular, iniciando-se já nos recém-nascidos, em esquema de três
doses. Os grupos de risco em que a vacinação é mais indicada incluem comunicantes
sexuais e domiciliares de pacientes AgHBs positivos, profissionais com risco elevado de
contato com sangue e hemoderivados, pacientes em programa de hemodiálise, pacientes
com doenças hematológicas que os levam a receber transfusão de sangue ou de
hemoderivados com frequência, pacientes com síndrome da imunodeficiência adquirida,
pacientes com infecção pelo vírus da hepatite C pacientes homossexuais ou bissexuais
com múltiplos parceiros, profissionais do sexo, crianças nascidas de mães portadoras e
pacientes candidatos a transplantes de órgãos. Para imunização passiva, existe ainda a
imunoglobulina hiperimune, HBIG, que deve ser usada nos casos de pós-exposição em
dose de 0.06mL/kg por via intramuscular seguida de uma dose da vacina contra a
hepatite B e nos recém-nascidos de mães AgHBs positivas, junto com a primeira dose
da vacina. Quanto à prevenção secundária, devem pesquisados AgHBs e anti-HBs em
pessoas nascidas em áreas hiperendêmicas, homossexuais, usuários de drogas, pacientes
sob diálise, pacientes HIV positivos, mulheres grávidas e habitantes da mesma casa ou
contatos sexuais de pacientes infectados. Recomenda-se ainda a vacinação para hepatite
A de todos os pacientes com hepatite B crônica que não sejam imunes. Nos pacientes
considerados portadores inativos, caracterizados por AgHBs positivo, AgHBe negativo,
alanina aminotransferase normal e pesquisa de DNA com menos de 100.000 cópias por
mL, e naqueles com hepatite crônica deve ser realizada avaliação periódica a cada seis
meses para rastreamento de carcinoma hepatocelular com ultrassonografia de abdômen

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e dosagem de alfa-fetoproteína sérica. Os portadores inativos devem ainda fazer os
exames bioquímicos hepáticos a cada seis a doze meses para avaliação de reativação da
doença.
Em relação ao vírus da hepatite C, ainda não se dispõe de um agente imunizante
útil para uso clínico, nem mesmo de uma imunoglobulina para a imunização passiva,
sendo as medidas de prevenção dirigidas para a minimização do risco de contágio.
Quanto à prevenção secundária, devem ser rastreados indivíduos com história de uso de
drogas ilícitas injetáveis, crianças nascidas de mães positivas para o vírus da hepatite C,
pessoas que receberam concentrados de fatores de coagulação produzidos antes de
1987, pessoas tratadas com hemodiálise crônica, pessoas com níveis de alanina
aminotransferase persistentemente elevados, pessoas que receberam transfusão de
sangue ou de produtos do sangue antes de julho de 1992, pessoas que receberam
transplante de órgão antes de julho de 1992 e funcionários da saúde em geral após
exposição a picadas de agulha ou outros objetos cortantes ou com exposição de suas
mucosas a sangue positivo para o vírus da hepatite C. Os pacientes são proibidos de
doar sangue, órgãos, tecidos ou sêmen. A transmissão sexual é baixa, mas os parceiros
devem ser informados de que essa possibilidade existe. Recomenda-se, também, que os
pacientes com hepatite C sejam vacinados contra hepatites A e B e evitem o consumo
de álcool. Portadores de cirrose hepática devem ser submetidos a endoscopia digestiva
alta para pesquisa de varizes de esôfago e a rastreamento de carcinoma hepatocelular a
cada seis meses com ultrassonografia abdominal e pesquisa de α-fetoproteína.
A melhor profilaxia para hepatite D é a vacinação contra a hepatite B.
Para a prevenção da hepatite E em regiões de endemia ou epidemia, deve-se ter
grande atenção para a possibilidade de contaminação da água, sendo a sua fervura uma
das principais medidas.

Hepatite autoimune

Definição
A hepatite autoimune é uma hepatite crônica de etiologia desconhecida em que
há autoanticorpos circulantes e alta concentração de gamaglobulinas. Frequentemente
evolui para cirrose na ausência de tratamento imunossupressor.

Fisiopatologia
Postula-se que um agente ambiental, como vírus e drogas, desencadeie uma
cascata de eventos mediados por linfócitos T e direcionados para antígenos hepáticos
em indivíduo geneticamente predisposto à doença, com processo necroinflamatório e
fibrótico progressivo do fígado.

Classificação
A hepatite autoimune clássica ou do tipo 1 incide em todas as faixas etárias,
acomete mulheres em cerca de 75% dos casos, associa-se a outras doenças autoimunes e
apresenta amplo espectro de gravidade. Falha do tratamento é infrequente, com recaída
após a suspensão das drogas e necessidade de manutenção a longo prazo variável.
A hepatite autoimune tipo 2 incide predominantemente na infância e em adultos
jovens, acomete mulheres em cerca de 95% dos casos, associa-se a outras doenças
autoimunes e geralmente apresenta manifestações clínicas severas. Falha do tratamento
é frequente, sendo comum a recaída após a suspensão das drogas, com necessidade de
manutenção a longo prazo em aproximadamente 100% dos casos.

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Quadro clínico
O espectro clínico da hepatite autoimune é muito variável e pode ser
caracterizado por períodos de menor e maior atividade, incluindo desde pacientes
assintomáticos até quadros de falência hepática fulminante. Muitos pacientes
apresentam sintomas leves ou inespecíficos, como fadiga, letargia, náusea, dor
abdominal, mal-estar, anorexia, prurido e artralgia em pequenas articulações. É possível
que a doença já tenha evoluído para cirrose hepática no momento das manifestações
iniciais.
A hepatomegalia é leve a moderada, sendo dolorosa em uma parcela dos casos.
Esplenomegalia pode estar presente.
Várias outras doenças autoimunes podem estar associadas, como anemia
hemolítica, púrpura trombocitopênica trombótica, diabetes mellitus tipo 1, doença
celíaca e retocolite ulcerativa.

Exames complementares
Há elevação significativa de transaminases e pouca alteração de bilirrubina e
fosfatase alcalina, mas quadro colestático mais intenso pode ocorrer. A gamaglobulina
sérica eleva-se com frequência. É comum o encontro de teste falso-positivo para anti-
VHC, que deve ser investigado com pesquisa de RNA viral por reação em cadeia da
polimerase.
A hepatite autoimune tipo 1 é caracterizada pela presença de fator anti-núcleo
e/ou anticorpo anti-músculo liso, que inclui o anticorpo anti-actina. Também podem
estar presentes anticorpo anti-mitocôndria, anticorpo anti-citoplasma de neutrófilo
perinuclear (p-ANCA) e anticorpo anti-antígeno solúvel hepático e antígeno fígado
pâncreas (anti-SLA/LP).
A hepatite autoimune tipo 2 é definida pela presença de anticorpos anti-
microssomo fígado/rim 1 (anti-ALKM1) e/ou anti-citosol hepático tipo 1 (anti-LC1).
Um terceiro tipo, caracterizado pelo anticorpo anti-antígeno hepático solúvel,
também chamado de anticorpo anti-antígeno solúvel hepático e antígeno fígado
pâncreas (anti-SLA/LP), não foi universalmente aceito.
A biópsia hepática deve ser indicada mesmo nos quadros clássicos com o
objetivo de estadiar e acompanhar o tratamento. Não é específica e pode revelar grande
espectro de padrões histológicos:
- Infiltrado mononuclear portal com infiltrado periportal causando
necrose tipo saca-bocado;
- Alterações dos ductos biliares, com colangite destrutiva ou não-
destrutiva;
- Infiltrado intenso de plasmócitos, com rosetas de hepatócitos e células
gigantes multinucleadas;
- Fibrose em ponte porta-centro, com nódulos regenerativos e,
eventualmente, cirrose;

Diagnóstico diferencial
Na abordagem diagnóstica, é importante excluir outras doenças, como doença de
Wilson, deficiência de α1-antitripsina, hemocromatose, hepatites virais e hepatite
medicamentosa.

Tratamento
A hepatite autoimune habitualmente evolui para cirrose hepática e raramente
entra em remissão espontânea, o que justifica o tratamento na tentativa de impedir a sua

Pedro Kallas Curiati 695


progressão para formas mais graves da doença. De um modo geral, o tratamento está
indicado para os doentes que preenchem critérios para o diagnóstico provável ou
definitivo, particularmente com boa reserva funcional hepática, sintomáticos e com
importante atividade inflamatória, evidenciada por alterações de aminotransferases e/ou
histológicas. Valorizam-se níveis de transaminases acima de dez vezes o limite superior
da normalidade, níveis de transaminases acima de cinco vezes o limite superior da
normalidade em associação com níveis de gamaglobulina acima de duas vezes o limite
superior da normalidade, biópsia com necrose em ponte ou multiacinar, cirrose
descompensada com doença ativa e faixa etária pediátrica ao diagnóstico. Deve-se
individualizar a indicação em caso de biópsia com lesão da placa limitante do espaço
porta sem a presença de necrose em ponte ou multiacinar, cirrose inativa e
comorbidades preexistentes.
O melhor tratamento preconizado é a combinação de corticosteroide com
Azatioprina, principalmente em pacientes com riscos relacionados ao uso de altas doses
de corticoide isoladamente, como aqueles com diabetes mellitus, osteoporose, labilidade
emocional, psicose, hipertensão arterial sistêmica de difícil controle e obesidade. O
corticoide pode ser usado isoladamente em pacientes com contraindicação para o uso de
Azatioprina, como gestação, lactação, neoplasia ativa, citopenia grave e deficiência de
tiopurina metiltransferase. O tratamento é mantido usualmente por pelo menos dois
anos. Deve ser realizada biópsia hepática para avaliar a presença de atividade
inflamatória ao programar suspender o tratamento. Em caso de persistência de hepatite
de interface, recomenda-se aumentar as doses da medicação. Apesar de alguns pacientes
persistirem com a doença em remissão após a suspensão dos medicamentos, muitos
necessitam de manutenção a longo prazo, especialmente aqueles em que cirrose
hepática está presente no momento da primeira biópsia.
Fase Monoterapia Terapia combinada
Prednisona Azatioprina Prednisona Azatioprina Tempo
Indução 1mg/kg/dia - 30mg/dia 50mg/dia 1º-30º dias
20mg/dia 50-75mg/dia 31º-60º dias
15mg/dia 50-100mg/dia 61º-90º dias
Manutenção 5-20mg/dia - 5-15mg/dia 1.0-1.5mg/kg/dia A partir do
- 100-150mg/dia (50-150mg/dia) 90º dia
A resposta terapêutica é avaliada pela dosagem periódica das aminotransferases,
das gamaglobulinas, da albumina e do tempo de protrombina, bem como por meio da
redução dos índices de atividade inflamatória tecidual. No HC-FMUSP, nova biópsia
hepática é realizada após dezoito meses da normalização das aminotransferases.
O objetivo do tratamento é a remissão clínica, que é definida como resolução
dos sintomas, redução das transaminases a valores inferiores a duas vezes o limite
superior da normalidade, normalização dos níveis de bilirrubina e gamaglobulina e
melhora histológica, o que é alcançado geralmente em um ano. Um intervalo razoável
para repetição da biópsia hepática é um ano após normalização dos níveis séricos das
transaminases ou dois anos após a apresentação inicial.
Transplante de fígado é necessário em pacientes refratários ou intolerantes ao
uso de terapia imunossupressora e nos quais doença hepática terminal se desenvolve.
Valoriza-se ausência de resposta nos primeiros seis meses de tratamento ou ausência de
remissão dentro de três anos de tratamento.

Complicações
As complicações da hepatite autoimune incluem carcinoma hepatocelular e
cirrose hepática.

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Hepatite medicamentosa

Definição
Lesão hepática significativa é definida como aumento de alanina
aminotransferase para valores acima de três vezes o limite superior da normalidade,
aumento de fosfatase alcalina para valores acima de duas vezes o limite superior da
normalidade ou aumento de bilirrubina total para valores acima de duas vezes o limite
superior da normalidade, desde que associado a pelo menos um dos parâmetros
anteriores.
Os modelos de lesão hepática aguda induzida por medicamentos podem ser
citotoxicidade, colestase, misto de citotoxicidade com colestase e esteatose. Muitos
medicamentos podem causar hepatite crônica pelo seu uso prolongado.
O padrão hepatocelular é caracterizado por elevação predominantemente de
alanina aminotransferase e está relacionado a drogas como Acarbose, Paracetamol,
Alopurinol, Amiodarona, Baclofeno, Bupropiona, Fluoxetina, antiretrovirais,
Isoniazida, Cetoconazol, Lisinopril, Losartan, Metotrexato, anti-inflamatórios não-
hormonais, Omeprazol, Paroxetina, Pirazinamida, Rifampicina, Risperidona, Sertralina,
Estatinas, Tetraciclinas, Trazodona, Trovafloxacina e Ácido Valpróico. O padrão
colestático é caracterizado por elevação predominantemente de fosfatase alcalina e está
relacionado a drogas como Amoxacilina-Clavulanato, esteroides anabolizantes,
Clorpromazina, Clopidogrel, contraceptivos orais, Eritromicina, estrógenos, Irbesartan,
Mirtazapina, Fenotiazinas, Terbinafina e antidepressivos tricíclicos. Padrão misto está
relacionado a drogas como Amitriptilina, Azatioprina, Captopril, Carbamazepina,
Clindamicina, Ciproheptadina, Enalapril, Flutamida, Nitrofurantoína, Fenobarbital,
Fenitoína, Sulfonamidas, Trazodona, Sulfametoxazol-Trimetoprim e Verapamil.

Fisiopatologia
A maioria dos medicamentos é eliminada do organismo através da via urinária
ou biliar. Ambas as vias demandam que os medicamentos sejam hidrossolúveis, mas a
maioria dos medicamentos absorvidos pelo intestino é lipossolúvel, com necessidade de
metabolização hepática por hidroxilação, oxidação, redução ou conjugação.
Entre os medicamentos que aumentam sua hepatotoxicidade com o álcool estão
Paracetamol, Isoniazida, cocaína, Metotrexato e Vitamina A.
A atividade das enzimas da família do citocromo P450, principal sistema de
metabolização de medicamentos, é afetada pela ingesta proteica e pelo estado
nutricional. Medicamentos que inibem esse sistema incluem Eritromicina,
Claritromicina, Cetoconazol e Ritonavir. Medicamentos que induzem as enzimas desse
sistema incluem Rifampicina, Fenitoína, Carbamazepina, Fenobarbital, Dexametasona e
Etanol.
A idade também interfere na taxa de metabolização de medicamentos, com
diminuição em idosos da atividade das enzimas da família do citocromo P450 para
Paracetamol, Isoniazida, Verapamil, Nifedipina, Lidocaína e Propranolol.
Hepatotoxinas intrínsecas são medicamentos capazes de causar necrose de
hepatócitos diretamente de maneira dependente da dose. Geralmente, após um período
variável de latência, há grande aumento das transaminases, com discreto aumento da
fosfatase alcalina. Medicamentos com essa potencialidade são geralmente retirados da
prática clínica pelas agências reguladoras. Os que persistem em uso clínico apresentam
ação hepatotóxica somente em grandes doses, como Paracetamol, Sulfato Ferroso,
Etanol, Metotrexato, 6-Mercaptopurina, L-Asparaginase e Azatioprina.
Reações de hipersensibilidade ou idiossincrásicas são caracterizadas por

Pedro Kallas Curiati 697


ausência de relação entre o tamanho da dose e o grau da reação. Nas reações de
hipersensibilidade, a duração da exposição antes do início dos sintomas é de uma a
cinco semanas e acompanham a hepatite vários sintomas, como exantema, febre, dores
articulares, linfonodomegalia e leucocitose eosinofílica. Medicamentos desse grupo
incluem Fenitoína, Amoxacilina-Clavulanato, Sulfonamidas, Halotano, Dapsona e
Sulindac. Também fazem parte desse grupo os pacientes que apresentam metabolismo
aberrante de um medicamento, com produção de metabólitos tóxicos em grau maior do
que outros indivíduos. Os medicamentos mais envolvidos nesses casos são Isoniazida,
Cetoconazol, Diclofenaco, Dissulfiram, Valproato, Troglitazona e Amiodarona. A
duração da exposição antes da toxicidade varia de semanas a meses.

Quadro clínico
Um grande espectro de apresentações clínicas pode ser visto em pacientes com
hepatotoxicidade por medicamento, desde leves anormalidades bioquímicas em
pacientes assintomáticos até hepatites agudas semelhantes às hepatites virais.
Outras causas de lesão hepática devem ser excluídas, como hepatites virais,
hepatite alcoólica, hepatite autoimune, doenças metabólicas, afecções das vias biliares e
alterações hemodinâmicas.

Tratamento
A recuperação é esperada na maioria dos pacientes com a descontinuação do
medicamento suspeito e poucos tratamentos específicos são benéficos, como o uso de
N-Acetilcisteína para toxicidade por Paracetamol e uso de corticoide nas reações de
hipersensibilidade.

Falência hepática fulminante


A falência hepática fulminante é caracterizada pelo desenvolvimento de lesão
hepática grave, com prejuízo da capacidade de síntese, caracterizado por Razão
Normatizada Internacional do tempo de protrombina superior ou igual a 1.5, e
encefalopatia hepática em pacientes com fígado previamente normal ou, pelo menos,
doença hepática compensada.
O intervalo entre o início dos sintomas, como a icterícia, e o aparecimento da
encefalopatia pode originar classificação em forma hiperaguda, caracterizada por
intervalo de até sete dias, aguda, caracterizada por intervalo de oito a vinte e oito dias, e
subaguda, com intervalo superior a vinte e oito dias.
Etiologia:
- Infecções virais, como hepatites A, B, C, D e E, citomegalovírus,
Epstein-Barr vírus, varicela zoster vírus, herpes vírus 6 e febre amarela;
- Efeito idiossincrático de drogas, como Halogenados, Cumarínicos,
Metildopa, Fenitoína, Carbamazepina, Ácido Valpróico, Rifampicina,
Penicilina, Sulfonamidas e Quinolonas;
- Efeito tóxico dose-dependente de drogas, como Paracetamol,
Isoniazida, Tetraciclinas, Metotrexato, Tetracloreto de Carbono e
Anfetaminas;
- Efeito tóxico sinérgico de drogas, como Etanol e Paracetamol,
Barbitúricos e Paracetamol e Isoniazida e Rifampicina;
- Doenças metabólicas, como doença de Wilson, deficiência de α-1 anti-
tripsina, galactosemia, tirosinemia, esteato-hepatite não-alcoólica e
síndrome de Reye;
- Doenças associadas à gestação, como doença gordurosa aguda da

Pedro Kallas Curiati 698


gravidez e síndrome HELLP;
- Doenças vasculares, como síndrome de Budd-Chiari, doença veno-
oclusiva, choque e falência cardíaca;
- Outras doenças, como hepatite autoimune, infiltração hepática maligna,
hipertermia maligna e sepse;
Deve-se excluir a presença prévia de cirrose e a duração da doença deve ser
inferior a 26 semanas. Nos casos de doença de Wilson, hepatite autoimune e hepatite
por vírus B adquirida por transmissão vertical, a preexistência da cirrose pode ser
ignorada se a duração da doença aguda for inferior a 26 semanas.
O manuseio requer internação em unidade de terapia intensiva em centro com
programa de transplante hepático, que é a opção mais promissora. Em intoxicação por
Paracetamol, preconiza-se carvão ativado nas primeiras horas e N-Acetilcisteína
140mg/kg de ataque e 70mg/kg de 4/4 horas por 72 horas, por via oral, ou 150mg/kg de
ataque e 12.5mg/kg/hora por quatro horas e 6.25mg/kg/hora até evidência de melhora da
função hepática ou transplante, por via intravenosa. Em infecção por herpes simples
vírus, preconiza-se Aciclovir 30mg/kg/dia. Em hepatite autoimune, preconiza-se
Metilprednisolona 60mg/dia. Em hepatite B, preconiza-se Lamivudina 100-150mg/dia
por seis meses. Em intoxicação por Amanita phalloides, preconiza-se carvão ativado nas
primeiras horas, diurese forçada, Penicilina G em altas doses e N-Acetilcisteína. Em
caso de síndrome de Budd-Chiari aguda, preconiza-se stents intra-hepáticos e porto-
sistêmicos por via transjugular.
A decisão de transplantar pacientes com falência hepática fulminante depende da
probabilidade de recuperação hepática espontânea, o que nem sempre pode ser previsto.
Os fatores preditivos mais importantes de sobrevida são o grau de encefalopatia, a idade
do paciente e a etiologia.
Os critérios utilizados no King’s College Hospital para indicação de transplante
hepático na falência hepática fulminante induzida por Paracetamol são pH arterial
inferior a 7.3 independentemente do grau de encefalopatia ou encefalopatia grau III ou
IV, tempo de protrombina superior a cem segundos e creatinina sérica superior a
3.4mg/dL. Em todas as outras causas de falência hepática fulminante, os critérios são
tempo de protrombina superior a cem segundos independentemente do grau de
encefalopatia ou três dentre:
- Idade inferior a dez anos ou superior a quarenta anos;
- Hepatite não-A e não-B, hepatite por halotano ou hepatite por reação
idiossincrásica a drogas;
- Duração da icterícia antes do início da encefalopatia superior a sete
dias;
- Tempo de protrombina superior a cinquenta segundos;
- Bilirrubina sérica superior a 18mg/dL;
Complicações da falência hepática fulminante incluem edema cerebral,
hipertensão intracraniana, sepse, insuficiência renal aguda e distúrbios da coagulação.

Bibliografia
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Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
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Pedro Kallas Curiati 699


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Pedro Kallas Curiati 700


NUTRIÇÃO ENTERAL E
PARENTERAL
Classificação
A desnutrição proteico-calórica, também conhecida como marasmo, é resultante
do aporte alimentar diminuído. Caracteriza-se por perda de peso e diminuição das
reservas de gordura e proteína muscular, com níveis normais de secreção de proteínas
viscerais.
A desnutrição proteica, também conhecida como Kwashiorkor, é caracterizada
por depleção visceral com diminuição dos níveis de secreção proteica e
comprometimento da imunidade celular. Caracteriza-se por edema, pele frágil e
ausência de perda de peso.

Avaliação do estado nutricional


Dados antropométricos incluem peso atual, peso habitual, peso ideal, altura,
circunferência muscular do braço e prega cutânea do tríceps. O peso ideal pode ser
calculado no homem com a fórmula 50 + 0.91 x (altura em cm – 152.4) e na mulher
com a fórmula 45.5 + 0.91 x (altura em cm – 152.4).
Nível sérico de albumina permite uma estimativa dos depósitos proteicos
viscerais. Outros parâmetros bioquímicos menos utilizados incluem pré-albumina,
proteína transportadora do retinol e transferrina. O balanço nitrogenado, calculado com
base na quantidade de proteína ingerida, na uréia urinária excretada em 24 horas, nas
perdas insensíveis e em outras perdas, permite estimar o catabolismo proteico. A função
imunológica é avaliada através da linfocimetria e de testes cutâneos.
A bioimpedância elétrica é um método de avaliação da composição corpórea que
mensura a resistência oferecida pelos tecidos à passagem de uma corrente elétrica.
Permite estimar a água corpórea através de fórmulas que levam em conta a idade e a
altura.

Objetivos do suporte nutricional


Os objetivos principais do suporte exógeno são preservar a massa muscular
magra, manter a função imunológica e prevenir complicações metabólicas.

Indicações para o suporte nutricional


Há duas indicações básicas para o suporte nutricional. A primeira é a reposição
nutricional em pacientes desnutridos severos, enquanto a segunda é a prevenção da
piora do estado nutricional durante o período de tratamento intensivo, cirúrgico,
radioterápico ou quimioterápico.
Em pacientes críticos, acredita-se que quanto antes for iniciado o suporte
nutricional, melhor, exceto em caso de alterações hidroeletrolíticas acentuadas,
hiperglicemia de difícil controle, hiperosmolaridade e/ou acidose metabólica, em que é
mais sensato retardar o início por 24-48 horas. Instabilidade hemodinâmica grave, com
doses altas de drogas vasoativas, é contraindicação relativa para o suporte nutricional
precoce.
Em pacientes cirúrgicos, a reposição é utilizada no pré-operatório e a
manutenção é utilizada primordialmente no pós-operatório, de forma profilática, em
pacientes cuja expectativa de realimentação oral é superior a cinco dias devido a risco

Pedro Kallas Curiati 701


de complicações como infecções e fístulas.
A partir da decisão pelo suporte nutricional, deve-se considerar a possibilidade
de uso do trato gastro-intestinal, que é uma via segura, fisiológica e econômica. Pode
ser utilizado para alimentação oral ou através de sonda naso-gástrica ou naso-duodenal.
Quando o paciente não dispõe de trato gastro-intestinal, usa-se a via parenteral.

Requerimento energético
O alvo da terapia nutricional é definido pelo requerimento energético, que pode
ser calculado através de equações preditivas ou mensurado por calorimetria indireta,
método baseado no consumo de oxigênio, na produção de gás carbônico e na ventilação
minuto. Coeficiente respiratório de 1.0 indica carboidrato como substrato oxidado, de
0.85 indica carboidrato, lipídio e proteína como substratos oxidados, 0.80-0.82 indica
proteína como substrato oxidado e 0.7 indica lipídio como substrato oxidado. Quando
superior a 1.0 indica lipogênese como substrato oxidado e quando inferior a 0.7 indica
cetose como substrato oxidado.
A utilização de equações deve ser feita com cautela. Segundo a fórmula da
ASPEN (American Society for Parenteral and Enteral Nutrition), o requerimento
energético habitual em pacientes internados em unidade de terapia intensiva geralmente
situa-se em 25-30kcal/kg/dia. Segundo a fórmula de Harris Benedict, pode-se calcular o
gasto energético basal em homens com a fórmula 66.5 + (13.75 x peso em kg) + (5.003
x altura em cm) – (6.775 x idade em anos) e em mulheres com a fórmula 655.1 + (9.563
x peso em kg) + (1.85 x altura em cm) – (4.676 x idade em anos). O gasto energético
total pode ser calculado com a multiplicação do gasto energético basal pelo fator injúria
e pelo fator atividade, que combinados variam de 1.2 a 2.0. Pode-se também multiplicar
pelo fator térmico, com 1.1 para 38º C, 1.2 para 39º C, 1.3 para 40º C e 1.4 para 41º C.
Em indivíduos obesos, o peso ajustável é calculado com a fórmula peso ideal + (peso
atual – peso ideal) x 0.25. Em adultos queimados, a necessidade calórica pode ser
calculada com a fórmula 25kcal x peso em kg + 40kcal x porcentagem de superfície
corporal queimada.
A glicose, representando os carboidratos, com 4kcal/g, permanece como a
primeira fonte calórica nos doentes hipermetabólicos, mas a sua taxa máxima de
oxidação é 5mg/kg/minuto ou 7.2g/kg/dia, com parte sendo fornecida pela
gliconeogênese. Administração de quantidades superiores de glicose leva a
hiperglicemia, hiperosmolaridade, esteatose hepática, aumento da produção de dióxido
de carbono, aumento do trabalho respiratório, diurese osmótica, desidratação e maior
risco de infecções. Sugere-se que a nutrição não seja realizada acima das necessidades
energéticas do paciente e que sempre seja utilizada uma fonte calórica mista, em que a
glicose contribua com aproximadamente 50-60% do valor calórico total.
Os lípides, com 9kcal/g, devem ser administrados não só para prevenir a
deficiência de ácidos graxos essenciais, mas também como fonte energética, uma vez
que a oxidação de glicose está limitada. O excesso de utilização de lípides causa
bloqueio do sistema reticuloendotelial, citotoxicidade por peroxidação lipídica,
formação de radicais livres, aumento do consumo de vitamina E, antiagregação
plaquetária e hiperlipidemia. A dose recomendada de lípides é de 30% do valor calórico
total, com, no máximo, 1.5g/kg/dia, não sendo aconselhável a infusão de mais de 109g
em 24 horas em caso de administração intravenosa. Para evitar deficiência de ácidos
graxos essenciais, recomenda-se 5-10% do valor calórico total na forma de ácido
linoleico e linolênico. Não está determinada a relação ideal entre triglicérides de cadeia
média e triglicérides de cadeia longa a ser administrada, mas preconiza-se atualmente
uma mistura com 50% de cada.

Pedro Kallas Curiati 702


As necessidades proteicas durante o hipercatabolismo são grandes e o balanço
nitrogenado é o parâmetro nutricional isolado mais consistentemente associado à
melhora do prognóstico. Aminoácidos ou proteínas, com 4kcal/g, devem ser
administrados em quantidade suficiente para que seja atingido um balanço nitrogenado
positivo, sendo recomendado 1.5-2.0g/kg/dia em caso de estresse grave ou necessidade
de repleção proteica. Ingesta diária de proteína elevada acelera a esclerose glomerular
renal e aumenta a excreção urinária de cálcio quando a ingesta de fósforo é mantida.
6.25g de proteína corresponde a 1g de nitrogênio.
Situação Necessidade proteica kcal/g de
(g/kg/dia) nitrogênio
Normal e sem estresse 0.8-1.0 200-300:1
Cirurgia eletiva sem complicações 1.0-1.2 -
Estresse moderado 1.1-1.5 150:1
Estresse grave e repleção proteica 1.5-2.0 90-125:1
Queimadura superior a 20% da superfície Superior ou igual a 2.0 -
corporal
Insuficiência renal crônica sem diálise 0.5-0.6 -
Insuficiência renal crônica com diálise 1.2-1.5 -
Insuficiência hepática sem encefalopatia 1.0-1.2 -
Pacientes com síndrome do desconforto respiratório agudo ou lesão pulmonar
aguda grave devem receber suporte nutricional enteral composto por substâncias com
perfil lipídico anti-inflamatório, como ácidos graxos ômega 3 e ácido gamalinoleico
(óleo de Borage), e antioxidantes. Subgrupos específicos de pacientes críticos, como
queimados, sépticos e em pós-operatório de cirurgia de grande porte, podem se
beneficiar da suplementação de glutamina, mas não existe evidência que indique
qualquer vantagem indubitável de uma determinada via de administração. Não existe
evidência conclusiva sobre o benefício da suplementação de arginina em pacientes
críticos em geral. Em pacientes com sepse grave e choque séptico, a suplementação de
arginina, se indicada, deve ser realizada com cuidado. Uma combinação de vitaminas
antioxidantes e oligoelementos deve ser administrada a todos os pacientes críticos em
uso de terapia nutricional especializada, considerando-se que as vitaminas lipossolúveis
A (retinol), D (calciferol), E e K apresentam baixo risco de deficiência e alto risco de
toxicidade, enquanto que as vitaminas hidrossolúveis, como complexo B, ácido
pantotênico, biotina e ácido ascórbico, apresentam depósitos reduzidos no organismo e
alto risco de deficiência. Em pacientes portadores de síndromes de má-absorção, deve-
se atentar para a possível deficiência das vitaminas lipossolúveis e adicioná-las tão logo
se verifique ingesta aquém das cotas recomendadas. Não existem ainda recomendações
específicas de vitaminas e minerais para pacientes críticos, mas sugere-se suplementar
as vitaminas A, C e E, zinco e selênio em função das necessidades aumentadas de
nutrientes antioxidantes. A utilização de probióticos pode ser útil em pacientes críticos
transplantados, politraumatizado ou previamente submetidos a cirurgias abdominais
extensas. Fibras solúveis podem ser úteis para os pacientes hemodinamicamente
estáveis, adequadamente ressuscitados, em uso de terapia enteral, que desenvolvem
diarreia.
Pacientes hipometabólicos ou com desnutrição grave devem ter a dieta iniciada
com um terço das necessidades calóricas e aumentada progressiva e lentamente a cada
três dias para evitar síndrome de realimentação. Pacientes hipermetabólicos devem ter a
dieta iniciada com metade das necessidades calóricas e aumentada progressivamente
para atingir as necessidades totais em 72 horas. As necessidades hídricas correspondem
a 30mL/kg/dia, devendo-se considerar perdas, inclusive as insensíveis, ao redor de 500-
1000mL/dia.

Pedro Kallas Curiati 703


Nutrição enteral
Nutrição enteral é definida como alimento para fins especiais, com ingesta
controlada de nutrientes, na forma isolada ou combinada, de composição definida ou
estimada, especialmente formulada e elaborada para uso por sondas ou via oral,
industrializada ou não, utilizada exclusiva ou parcialmente para substituir ou
complementar a alimentação oral em pacientes desnutridos ou não, conforme suas
necessidades nutricionais, em regime hospitalar, ambulatorial ou domiciliar, visando a
síntese ou a manutenção de tecidos, órgãos e sistemas.
Entre suas inúmeras vantagens incluem-se menor custo, menor colestase, maior
facilidade de administração, menor incidência de complicações metabólicas, menor
risco de translocação bacteriana, manutenção do trofismo e da integridade da mucosa e
elevada eficácia, com o restabelecimento da função gastro-intestinal mais rapidamente
em pacientes desnutridos.
A nutrição enteral é indicada quando o paciente não pode comer, não consegue
comer ou o faz de maneira insuficiente, porém possui trato gastro-intestinal íntegro,
devendo ser iniciada o mais precocemente possível, de preferência nas primeiras 48-72
horas da internação, com prioridade sempre que possível sobre a nutrição parenteral.
Pode ser associada a alimentação oral e parenteral. No paciente crítico, a presença de
ruídos intestinais não é condição absoluta para a introdução do suporte nutricional.
Contraindicações geralmente são relativas e incluem doença terminal, síndrome do
intestino curto, obstrução intestinal mecânica, sangramento gastrointestinal, vômitos,
diarreia, fístulas intestinais, especialmente jejunais e de alto débito, instabilidade
hemodinâmica, isquemia gastrointestinal, íleo paralítico, abdômen agudo inflamatório e
hiperêmese gravídica.
Sondas nasoenterais como via de acesso são recomendadas para uso temporário
ou de curto prazo, durante quatro a seis semanas. Sondas nasogástricas ou orogástrica
são indicadas em pacientes com reflexo de vômito preservado, ausência de refluxo
gastroesofágico, esvaziamento gástrico e duodenal normal e estômago sem
acometimento patológico. Sondas nasojejunais ou orojejunais são indicadas em
pacientes com alto risco de aspiração, gastroparesia, esvaziamento gástrico lento ou
refluxo gastroesofágico. Existe um tipo especial de sonda naso-enteral que tem uma
abertura capaz de drenar o estômago e uma extremidade distal que permite administrar
nutrição enteral no jejuno, havendo necessidade de introdução e posicionamento com o
auxílio de endoscopia, com utilidade em casos de gastroparesia.
A gastrostomia pode ser um meio alternativo em pacientes com obstrução
esofagiana ou cuja expectativa de realimentação é tardia, sendo particularmente
adequada em pacientes com estômago sadio, esvaziamento gástrico e duodenal normal e
ausência de refluxo gastroesofágico, vômitos ou alteração da deglutição. Jejunostomia é
preferida em caso de refluxo gastroesofágico com alto risco de aspiração, gastroparesia,
esvaziamento gástrico lento ou disfunção gástrica, sendo contraindicada em caso de
ascite, doença inflamatória intestinal ou fístulas intestinais de alto débito. Deve-se
sempre verificar a posição intraluminal da sonda antes de iniciar a terapia nutricional
enteral, com visão direta e palpação no intra-operatório e com radiografia com injeção
de contraste pela sonda no pós-operatório.
A quantidade total de líquido a ser administrado varia de 25mL/kg/dia a
40mL/kg/dia no adulto saudável.
As formulações enterais podem ser nutricionalmente completas, para uso como
única fonte de nutrição ou como complemento a pacientes com ingesta oral normal, ou
nutricionalmente incompletas, para uso somente como suplemento e não como fonte

Pedro Kallas Curiati 704


exclusiva de nutrição. Quanto à complexidade dos nutrientes, as fórmulas podem ser
classificadas em poliméricas, com macronutrientes na forma intacta, oligoméricas, com
macronutrientes parcialmente hidrolisados, e elementares, com macronutrientes
totalmente hidrolisados. Quanto à presença de algum elemento específico, as fórmulas
podem ser classificadas em dieta enteral láctea ou isenta de lactose, dieta enteral com ou
sem fibra e dieta modular, que é a apresentação pura ou quase que exclusiva de um
determinado nutriente.
Densidade calórica de uma formulação é a expressão da quantidade de calorias
fornecidas por mL de dieta pronta. A determinação desse valor dependerá do total de
calorias que o paciente precisa e do volume de dieta enteral que deverá ser administrado
durante o dia. A quantidade de água veiculada nas formulações enterais varia, devendo-
se considerar que dietas com maior densidade energética apresentam menor quantidade
de água, com 800-860mL/litro em fórmula com densidade calórica de 0.9-1.2kcal/mL,
760-780mL/litro em fórmula com densidade calórica de 1.5kcal/mL e 690-710mL/litro
em fórmula com densidade calórica de 2.0kcal/mL. O estômago tolera dietas com
osmolalidade elevada, enquanto que porções mais distais do trato gastrointestinal
toleram melhor formulações isosmolares, com 300-350mOsm, sendo consideradas
levemente hipertônicas aquelas com 350-550mOsm.
Categorização da fórmula Densidade calórica (kcal/mL) Categorização da densidade calórica
Acentuadamente hipocalórica Inferior a 0.6 Muito baixa
Hipocalórica 0.6-0.8 Baixa
Normocalórica 0.9-1.2 Padrão
Hipercalórica 1.3-1.5 Alta
Acentuadamente hipercalórica Superior a 1.5 Muito alta
A nutrição enteral pode ser administrada de maneira intermitente ou contínua.
Quando a sonda naso-enteral está posicionada no estômago, a preocupação quanto a
dose e a velocidade de infusão passa a ter importância secundária por causa dos
mecanismos de adaptação do estômago. A administração gástrica intermitente pode ser
iniciada com volume de 60mL, na sua concentração total, e progredir até 250mL, a cada
três a quatro horas, com infusão em trinta a sessenta minutos, respeitando a tolerância e
o objetivo nutricional. Pode-se optar por menor fracionamento, com maior volume em
cada tomada. A administração de água, com cerca de 50-100mL nos intervalos, é
necessária e serve para lavar a sonda e para reposição hídrica complementar. Uma vez
iniciada a nutrição enteral, deve ser progressivamente aumentada para atingir o aporte
estabelecido para o paciente dentro de 48-72 horas.
A infusão contínua em bomba é necessária quando a sonda encontra-se em
posição no intestino delgado e quando são utilizadas as dietas elementares. A dieta deve
ser administrada durante o dia, com o período noturno para descanso do paciente.
Recomenda-se iniciar com a infusão de 10-40mL/hora, com aumentos de 10-20mL/hora
a cada oito a doze horas, conforme a tolerância, sempre durante o período de vigília do
doente. Com a técnica de infusão duodenal contínua, a dieta deve ser isotônica ou
hipotônica. A infusão de água é realizada com irrigação da sonda enteral com 20-30mL
a cada seis a oito horas, sendo necessária a interrupção da infusão contínua.
Apesar das vantagens da administração gástrica intermitente, em determinadas
situações, a forma contínua de infusão gástrica pode reduzir o risco de distensão
abdominal, diarreia e aspiração pulmonar. Em pacientes com escala de Glasgow inferior
a 12 e/ou ventilação artificial, deve-se evitar a alimentação gástrica. Para pacientes em
terapia nutricional enteral domiciliar, prefere-se a alimentação gástrica intermitente.
A aspiração do resíduo gástrico é útil para avaliar o esvaziamento gástrico e
evitar regurgitação e aspiração pulmonar. O procedimento é feito após injetar 3-5mL de

Pedro Kallas Curiati 705


ar com uma seringa grande. Na presença de resíduos maiores que 200mL com o uso de
sonda naso-enteral ou maiores que 100mL com gastrostomia, em associação com
desconforto ou distensão abdominal, deve-se interromper a administração de nutrição
enteral e investigar o paciente clinica e radiologicamente. Na ausência de sintomas
digestivos, recomenda-se retardar a dieta por uma hora e reavaliar o volume residual
gástrico. No entanto, a presença de volumes residuais gástricos de até 500mL não se
correlaciona com risco aumentado de regurgitação, aspiração ou pneumonia, de modo
que a redução do limiar de resíduo para suspensão da dieta não parece proteger o
paciente e pode afetar negativamente o prognóstico pelos menores volumes de nutrição
enteral infundidos. Alguns medicamentos, como a Eritromicina, a Metoclopramida, a
Bromoprida e a Domperidona podem ser utilizados para acelerar a motilidade gástrica.
Em todos os pacientes entubados em uso de nutrição enteral, a cabeceira do leito
deve ser elevada a 30-45 graus. Agentes pró-cinéticos podem ser utilizados para reduzir
o risco de aspiração.
Complicações:
- Mecânicas, como obstrução da sonda, inflamação da nasofaringe,
sinusite, otite, ulceração e estenose do esôfago e inflamação da pele e
escoriação nas ostomias;
- Gastro-intestinais, como refluxo gastroesofágico, distensão abdominal,
náusea, vômito, diarreia, cólica, flatulência e obstipação intestinal;
- Respiratórias, como aspiração pulmonar e broncopneumonia;
- Metabólicas, como distúrbios hidroeletrolíticos e acidobásicos,
hiperglicemia, disfunção hepática e síndrome da realimentação;
- Infecciosas, como gastroenterocolite por contaminação da dieta;
- Psicológicas, como ansiedade, depressão, monotonia alimentar,
inatividade e prejuízo da sociabilidade;

Nutrição parenteral
Nutrição parenteral é definida como conjunto de procedimentos terapêuticos
para manutenção ou recuperação do estado nutricional do paciente por meio de nutrição
parenteral, na forma de solução ou emulsão, composta basicamente por carboidratos,
aminoácidos, lipídios, vitaminas e minerais, estéril e apirogênica, acondicionada em
recipiente de vidro ou plástico, destinada à administração intravenosa em pacientes
desnutridos ou não, em regime hospitalar, ambulatorial ou domiciliar, visando a síntese
ou a manutenção de tecidos, órgãos ou sistemas.
Indicações absolutas incluem transplante de medula óssea, impossibilidade de
acesso enteral por obstrução gastrointestinal ou íleo prolongado e impossibilidade de
absorver nutrientes pelo trato gastrointestinal por ressecção intestinal maciça, síndrome
do intestino curto grave e doença inflamatória intestinal ativa. Indicações relativas
incluem sangramento gastrointestinal com necessidade de repouso gastrointestinal
prolongado, mucosite ou anorexia grave por quimioterapia, radioterapia ou transplante
de medula óssea, cirurgias extensas com previsão de íleo prolongado por mais de cinco
dias, diarreia grave por má-absorção e pancreatite grave com necessidade de repouso
intestinal por mais de cinco dias. A nutrição parenteral também pode ser empregada
quando a reposição enteral for insuficiente para a reposição nutricional antes do
esquema terapêutico programado e em caso de complicações sépticas pós-operatórias
com alto grau de catabolismo. Contraindicações incluem condições terminais sem
melhora de sobrevida ou do sofrimento e instabilidade hemodinâmica.
A nutrição parenteral deve ser realizada em pacientes críticos nos quais não há
possibilidade de se realizar nutrição enteral por mais de sete dias consecutivos após

Pedro Kallas Curiati 706


admissão na unidade de terapia intensiva. Se houver evidência de desnutrição proteico-
calórica à admissão e a nutrição enteral não for factível, é apropriado iniciar a nutrição
parenteral logo após a estabilização hemodinâmica. A suplementação de glutamina por
via parenteral deve ser considerada.
Estão disponíveis atualmente algumas fórmulas padrão de nutrição parenteral,
compostas geralmente por aminoácidos, glicose, lipídios e eletrólitos. Existem ainda
formulações especiais para condições mórbidas que impliquem alterações metabólicas,
como hepatopatias e nefropatias.
Para a nutrição parenteral central, faz-se a colocação de um cateter venoso
central, que permite longa duração e dietas com alta osmolaridade, superior a
900mOsm/L, devendo-se manter via exclusiva. Opta-se pela via central quando é
necessário administrar todos os nutrientes por via parenteral em soluções de grande
volume e por tempo prolongado. Existe a opção de utilizar cateter semi-implantável ou
totalmente implantável em caso de nutrição parenteral prolongada.
A nutrição parenteral periférica consiste na administração de proteínas e calorias
por veias periféricas, com curta duração, de no máximo sete a dez dias, e necessidade de
soluções menos hiperosmolares, com menos de 900mOsm/L, preferencialmente com
500mOsm/L ou menos. Na nutrição parenteral periférica recomenda-se que a glicose
não ultrapasse a concentração de 25% e que se administre simultaneamente uma
emulsão lipídica, que não altera a osmolaridade da solução. Em pacientes com menos de
45kg a nutrição parenteral periférica pode ser mantida por período mais prolongado pelo
menor risco de desnutrição.
Para prescrever dieta parenteral, deve-se calcular as necessidades calóricas totais
diárias, determinar a quantidade proteica em g/kg de peso conforme a patologia,
calcular as necessidades calóricas diárias não-proteicas, respeitar a velocidade de
infusão de glicose, não ultrapassando 4mg/kg/minuto, e acrescentar vitaminas,
oligoelementos e eletrólitos segundo as recomendações dietéticas diárias.
O ideal é iniciar com uma infusão de 1000mL/dia nas primeiras 24 horas e
passar para 2000mL/dia a partir do dia seguinte, com aumento gradual até atingir o
volume desejado.
A determinação das variáveis laboratoriais deve ser realizada periodicamente
para a identificação de alterações metabólicas em pacientes na unidade de terapia
intensiva que recebem nutrição parenteral, com glicose urinária quatro a seis vezes por
dia, densidade ou osmolaridade urinária duas a quatro vezes por dia, balanço hídrico
quatro vezes por dia, dosagem de hemoglobina, hematócrito, eletrólitos, glicemia e
osmolaridade plasmática diariamente, uréia, creatinina e proteína total e frações duas
vezes por semana e bilirrubina total e frações, transaminases, enzimas canaliculares e
triglicérides semanalmente. Em pacientes estáveis, recomenda-se glicose urinária e
balanço hídrico duas vezes por dia, densidade ou osmolaridade urinária diariamente e
sódio, potássio, cloro, cálcio ionizado, fósforo, magnésio, glicose, uréia, creatinina,
proteína total e frações, transaminases, enzimas canaliculares, hemoglobina,
hematócrito e triglicérides semanalmente.
Deve-se avaliar a incorporação dos nutrientes infundidos, determinar de maneira
seriada parâmetros antropométricos, quantificar o balanço nitrogenado semanalmente e
realizar calorimetria indireta, na qual quociente respiratório superior a 1.0 geralmente
indica overfeeding.
Para descontinuação da nutrição parenteral, deve-se diminuir a velocidade de
infusão gradativamente em um período de 48-72 horas para evitar hipoglicemia. Se for
necessária a retirada brusca, deve-se manter infusão contínua de Soro Glicosado a 10%
na mesma velocidade de infusão da nutrição parenteral por doze horas.

Pedro Kallas Curiati 707


Se for necessário realizar intervenção cirúrgica durante o uso de nutrição
parenteral, a velocidade de infusão deve ser reduzida à metade por uma hora e então
interrompida ou a fórmula deve ser substituída por solução de glicose a 10%
imediatamente antes da cirurgia e mantida até pouco tempo após o seu término.
Complicações:
- Decorrentes do cateterismo venoso, como pneumotórax, embolia
gasosa e hemotórax;
- Metabólicas, como hiperglicemia, hipocalemia, hipomagnesemia,
hipofosfatemia, esteatose hepática, produção excessiva de dióxido de
carbono, deficiência de ácidos graxos e osteopenia;
- Infecciosas, como sepse relacionada ao acesso central, tromboflebite
séptica e predisposição para infecções em geral;
Pacientes submetidos a jejum parcial prolongado, cujo organismo tenha se
adaptado ao uso de ácidos graxos livres e corpos cetônicos como fonte de energia,
apresentam maior risco de desenvolvimento de síndrome de realimentação. A rápida
reintrodução de grandes quantidades de carboidrato pode resultar em anormalidades
metabólicas que incluem hipofosfatemia, hipocalemia e hipomagnesemia.
Em episódios febris, a relação com contaminação de cateter deve ser sempre
considerada e, se outra causa para a febre não for encontrada, a remoção do mesmo
deve ser realizada com cultura de sua ponta.

Bibliografia
Manual do residente de cirurgia de cabeça e pescoço. – São Paulo, SP: Keila & Rosenfeld, 1999.
Medicina Intensiva Baseada em Evidências. Luciano César Pontes de Azevedo. Editora Atheneu, 2009.
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Clínica médica, volume 4: doenças do aparelho digestivo, nutrição e doenças nutricionais. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 708


PANCREATITE CRÔNICA
Definição
Pancreatite crônica implica em fibrose permanente e irreversível, geralmente
com inflamação crônica mononuclear, lesão neural e perda de ductos, ácinos e ilhotas.
Desenvolve-se a partir de episódios de pancreatite aguda, que podem ser subclínicos.

Epidemiologia
A prevalência de pancreatite crônica sintomática em países ocidentais é de cerca
de 25-30/100.000, com incidência estimada de 3-9/100.000. Já a prevalência de
evidência histológica de pancreatite crônica em estudos de autópsia aproxima-se de 5%,
indicando que várias pessoas desenvolvem lesão pancreática crônica em decorrência do
envelhecimento normal, de outras doenças e da exposição a toxinas, como o álcool, sem
sinais ou sintomas de pancreatite crônica.

Etiologia
Álcool causa cerca de 70-80% dos casos de pancreatite crônica, sendo necessária
ingesta prolongada e substancial, semelhante a cinco a oito doses diárias durante mais
de cinco anos. No entanto, a maior parte das pessoas com esse padrão de consumo
alcoólico não desenvolve pancreatite crônica, havendo cofatores importantes, como
predisposição genética, ingesta de gordura e tabagismo. Existe evidência de que o
tabagismo isoladamente pode causar pancreatite crônica.
Pancreatite hereditária é uma doença autossômica dominante caracterizada por
pancreatite aguda e crônica de início precoce, insuficiência pancreática endócrina e
exócrina e risco elevado de adenocarcinoma de pâncreas. Mutações no gene do
tripsinogênio (PRSS1) aparenta causar ganho de função em que o tripsinogênio, uma
vez ativado como tripsina, é difícil de inativar. Mutações no gene de um inibidor do
tripsinogênio (SPINK1) com perda de função predispõem a pancreatite crônica, mas,
diferente das mutações no gene do tripsinogênio (PRSS1), não são suficientes para
causar a doença. Mutações maiores no gene CFTR levam a fibrose cística, que está
associada a pancreatite crônica e atrofia pancreática, enquanto que mutações mais
brandas predispõem a pancreatite crônica sem causar as manifestações respiratórias da
fibrose cística, estando presentes nos pacientes com pancreatite crônica idiopática.
Pancreatite autoimune frequentemente se apresenta como massa relacionada a
icterícia obstrutiva, mimetizando a apresentação clínica de neoplasias malignas, mas
pode se apresentar também como pancreatite crônica e, raramente, como pancreatite
aguda. Características da doença incluem edema difuso do pâncreas, elevação da
imunoglobulina sérica G4 (IgG4) e envolvimento de outros órgãos, especialmente
estruturas biliares, glândula salivar, retroperitônio e rins, que apresentam infiltrado
inflamatório crônico com plasmócitos que expressam IgG4 em sua superfície.
Pancreatite tropical é encontrada primariamente no sul da Índia. É caracterizada
por início na infância, insuficiência pancreática exócrina, calcificações pancreáticas
difusas e diabetes mellitus. Pode haver um componente genético, como mutações no
gene SPINK1, mas cofatores, como desnutrição e toxinas dietéticas parecem estar
associados.
Em cerca de 20% dos pacientes, nenhuma causa clara de pancreatite crônica é
encontrada. Existem duas formas de pancreatite crônica idiopática. Na primeira, a dor é
a característica clínica principal e as manifestações surgem no início da vida adulta. Na

Pedro Kallas Curiati 709


segunda, a insuficiência pancreática exócrina e endócrina é a característica clínica
principal e as manifestações surgem em pessoas de meia idade.

Fisiopatologia
Apesar de a maior parte das pancreatites crônicas evoluir a partir de múltiplos
episódios de pancreatite aguda, um único episódio grave que cause necrose pancreática
substancial pode produzir insuficiência pancreática endócrina e exócrina. A
fisiopatologia da dor é complexa.

Quadro clínico
O sintoma mais comum é dor abdominal, que pode ser episódica ou constante e
geralmente é referida no epigástrio com irradiação para o dorso. Se a dor é episódica,
considera-se que o paciente apresente pancreatite aguda ou agudização de pancreatite
crônica. Quando a dor é severa, náusea e vômitos podem ocorrer. A dor pode piorar,
melhorar ou permanecer estável ao longo do tempo.
Até 5% dos pacientes não apresentam dor e se apresentam com insuficiência
pancreática exócrina, com esteatorreia e emagrecimento, ou endócrina, com diabetes
mellitus.
A doença tende a ser progressiva, mesmo que a causa original seja removida.

Avaliação complementar
O diagnóstico pode ser suspeitado com base no quadro clínico, mas deve ser
confirmado através de testes que identifiquem dano estrutural ou alteração funcional do
pâncreas. A pancreatite crônica é uma doença lentamente progressiva em que dano
visível à glândula e insuficiência funcional podem não ser aparentes durante anos.
Todos os testes diagnósticos são mais acurados quando a doença é avançada.
Exames para avaliar dano estrutural incluem biópsia pancreática, radiografia
simples, ultrassonografia abdominal, ultrassonografia endoscópica, tomografia
computadorizada, ressonância nuclear magnética com colangiopancreatografia e
colangiopancreatografia retrógrada endoscópica. Exames para avaliar alteração
funcional incluem teste hormonal (secretina), teste da elastase fecal, tripsina sérica,
balanço de gordura nas fezes e glicemia.
Radiografia simples pode revelar calcificação pancreática difusa ou focal em
pacientes com pancreatite crônica avançada, com alta especificidade e baixa
sensibilidade. Ultrassonografia abdominal tem utilidade limitada porque o gás presente
nas alças intestinais limita a visualização do pâncreas, mas ducto pancreático anormal,
calcificações pancreáticas, atrofia glandular e alterações da ecotextura podem ser
encontrados em cerca de 60% dos pacientes. Ultrassonografia endoscópica permite
avaliação detalhada do parênquima e do ducto pancreáticos, de modo que resultado
normal praticamente exclui pancreatite crônica e resultado bastante anormal corrobora o
diagnóstico. Tomografia computadorizada é o teste diagnóstico mais utilizado para
pancreatite crônica e achados característicos incluem dilatação do ducto pancreático,
calcificações ductais ou parenquimatosas e atrofia pancreática. A ressonância nuclear
magnética também permite avaliação detalhada do pâncreas e a colangiopancreatografia
por ressonância nuclear magnética permite avaliar melhor a morfologia do ducto
pancreático. Colangiopancreatografia retrógrada endoscópica permite avaliação mais
detalhada do ducto pancreático e pode revelar dilatação, irregularidade, litíase e
constrição, mas não deve ser indicada com finalidade puramente diagnóstica em função
de risco de pancreatite aguda em pacientes com pâncreas de aparência normal.
Tripsinogênio sérico é anormalmente baixo em pacientes com pancreatite

Pedro Kallas Curiati 710


crônica avançada, mas geralmente é normal em pacientes com doença menos avançada.
Níveis inferiores a 20ng/mL são encontrados em pacientes com esteatorreia. Níveis
séricos de amilase e lipase não são úteis na avaliação da pancreatite crônica. Glicemia
poderá estar elevada nos pacientes com insuficiência endócrina. Quantificação da
gordura nas fezes coletadas em período de 72 horas em vigência de dieta rica em
gordura pode ser utilizada para documentar a esteatorreia. Os níveis fecais de elastase
pancreática estão diminuídos para valores inferiores a 100mcg/g em pacientes com
pancreatite crônica avançada e esteatorreia e podem ser avaliados com o paciente
usando suplementação de enzimas pancreáticas. Para a avaliação da função pancreática,
secreção pancreática é coletada no duodeno a cada quinze minutos durante um período
de uma hora, com análise da concentração de bicarbonato após a administração de dose
suprafisiológica de secretina, sendo considerado normal quando pelo menos uma das
amostras apresenta mais de 80mEq/L. Este teste se torna anormal mais precocemente no
curso da pancreatite crônica, podendo ser utilizado para o diagnóstico precoce.

Tratamento

Dor
Deve-se pesquisar complicações específicas tratáveis, como pseudocisto
pancreático, obstrução de órgão oco adjacente e carcinoma pancreático, antes de iniciar
o tratamento da dor abdominal, o que pode ser feito com imagem de tomografia
computadorizada ou ressonância nuclear magnética de boa qualidade. Pacientes com
dilatação do ducto pancreático superior a 5mm são candidatos a terapia endoscópica e
cirúrgica para descompressão. Pacientes sem dilatação do ducto pancreático geralmente
não são apropriados para terapia endoscópica ou cirúrgica e devem receber tratamento
clínico, que abrange cessação de etilismo e tabagismo, analgesia, antioxidantes e
enzimas pancreáticas.
Recomenda-se iniciar o tratamento com analgésicos menos potentes, como
Tramadol 50mg de 6/6 horas, sendo recomendado associar medicação adjuvante, como
Amitriptilina, inicialmente 50mg uma vez ao dia de noite, inibidor seletivo da
receptação de serotonina, Gabapentina, inicialmente com 100mg uma vez ao dia de
noite ou Pregabalina, inicialmente com 50mg três vezes ao dia, em caso de necessidade
de analgésicos mais potentes. Antioxidantes, com mistura de selênio 500mcg, vitamina
E 300UI, vitamina C 1000mg, betacaroteno 10000UI e metionina 2g, podem apresentar
efeito benéfico no controle da dor. Terapia de suplementação de enzimas pancreáticas
com cápsulas sem revestimento entérico também pode ter efeito benéfico no controle da
dor por digerir no duodeno um fator liberador da secreção pancreática, com feedback
negativo. As preparações não-entéricas não são aprovadas para o uso clínico, mas
devem ser administradas com agente que reduza a secreção ácida gástrica para prevenir
a desnaturação das proteases.
Bloqueio do plexo celíaco guiado por ultrassonografia endoscópica, realizado
com anestésico local ou esteroide, ou neurólise, realizada com álcool absoluto, são
relativamente fáceis e seguros, mas alívio substancial da dor é atingido apenas durante
semanas ou meses.
A colangiopancreatografia retrógada endoscópica permite dilatar constrições e
instalar stents, além de remover cálculos ductais, que podem necessitar de litotripsia
intra-ductal ou extracorpórea para serem retirados. A terapia é tecnicamente bem
sucedida em mais de 80% de pacientes cuidadosamente selecionados, com alívio da dor
em 70-80% dos pacientes.
Cirurgia é mais efetiva e apresenta resultado mais duradouro do que a terapia

Pedro Kallas Curiati 711


endoscópica. Pode envolver descompressão do ducto pancreático, ressecção do pâncreas
ou ambos. No momento da cirurgia, constrições podem ser incisadas e cálculos ductais
podem ser removidos. A analgesia a curto prazo é boa, superior a 80%, com alívio da
dor em longo prazo em cerca de metade dos pacientes.

Insuficiência exócrina
Esteatorreia e má-digestão não ocorrem até aproximadamente 90% da secreção
enzimática pancreática ser perdida, geralmente após cinco a dez anos de doença. Os
pacientes podem perceber perda de peso e fezes oleosas e flutuantes, mas geralmente
não se queixam de diarreia. Digerem mal gordura, proteína e carboidrato, mas o
prejuízo na digestão de gordura geralmente é mais severo. Também pode ocorrer má-
absorção de vitaminas lipossolúveis, como a vitamina D. Quantificação da gordura nas
fezes coletadas em período de 72 horas em vigência de dieta rica em gordura é o método
mais acurado para documentar a esteatorreia e avaliar a efetividade do tratamento, mas
raramente é realizada.
Terapia enzimática, que reduz significativamente a quantidade de gordura nas
fezes, pode reduzir a perda de peso e é dividida em cápsulas de revestimento entérico,
preferidas para o tratamento da insuficiência exócrina em função de maior potência e
necessidade de menor número de cápsulas, e cápsulas sem revestimento entérico, que
não estão disponíveis clinicamente, mas seriam preferidas se o objetivo fosse tratar a
dor abdominal. As cápsulas são identificadas pelo conteúdo de lipase, apesar de todas
conterem também proteases e amilase. O objetivo do tratamento, que é administrar pelo
menos 10% do débito pancreático normal com cada refeição, traduz-se por
aproximadamente 30000UI de lipase a cada refeição. A maior parte dos produtos tem a
dose quantificada em unidades U.S. Pharmacopeia (USP), que correspondem a um
terço do total de unidades internacionais (UI). Como a maior parte dos pacientes ainda
produz algumas enzimas, como a lipase gástrica, geralmente não é necessário usar a
dose plena de 90000USP de lipase em cada refeição. As enzimas devem ser divididas ao
longo da refeição, com partes iguais antes, durante e imediatamente depois da refeição.
Suplementação com Vitamina D 400-1000UI/dia e cálcio 1.0-1.5g/dia é apropriada
porque osteopenia e osteoporose são comuns. O sucesso do tratamento é definido por
ganho de peso e redução ou ausência de óleo visível nas fezes. Falha do tratamento é
comumente relacionada a dose inadequada, devendo-se aumenta-la até 90000 unidades
USP por refeição e encorajar a adesão terapêutica do paciente. Algumas preparações
com revestimento entérico podem não liberar enzima suficiente no intestino delgado a
menos que sejam usadas concomitantemente a um agente que reduza a secreção ácida
gástrica. Alguns pacientes podem não responder ao tratamento em função de
concomitância de outra doença que também cause má-absorção, com síndrome do
supercrescimento bacteriano. Apresentações comerciais na forma de cápsulas contendo
microesferas com revestimento entérico (ácido-resistente) incluem Ultrase®, com
Lipase 4500 unidades USP, Amilase 20000 unidades USP e Protease 25000 unidades
USP, Creon® 10.000, com Lipase 10000 unidades USP, Amilase 33200 unidades USP
e Protease 37500 unidades USP, Creon® 25.000, com Lipase 25000 unidades USP,
Amilase 74700 unidades USP e Protease 62500 unidades USP e Panzytrat 25.000, com
Lipase 25000 unidades USP, Amilase 93375 unidades USP e Protease 78125 unidades
USP. As cápsulas devem ser ingeridas inteiras e com o auxílio de um líquido.

Insuficiência endócrina
Assim como a insuficiência exócrina, o diabetes mellitus é uma complicação
tardia da pancreatite crônica, ocorrendo anos ou décadas após o início da doença.

Pedro Kallas Curiati 712


Diferentemente do diabetes mellitus tipo 1, há destruição da ilhota inteira, com redução
da produção de ambos insulina e glucagon, de modo que tratamento agressivo pode
levar a hipoglicemia.

Complicações
Pseudocistos, quando descobertos em pacientes com pancreatite crônica,
geralmente são maduros e apresentam cápsula circunjacente visível. Assim como na
pancreatite aguda, não requerem tratamento se não causam sintomas e não estão
crescendo rapidamente. Complicações incluem infecção, sangramento e rotura. Se o
pseudocisto apresenta continuidade com o ducto pancreático, o sangramento pode
atravessar o ducto, atingir o duodeno e causar melena. Embolização do pseudocisto
pode controlar de maneira efetiva o sangramento. Pseudocistos podem vazar para o
compartimento peritoneal, com ascite pancreática, ou para o compartimento pleural,
com derrame pleural pancreático, com quadro clínico de distensão abdominal e
dispneia, respectivamente, ao invés de dor abdominal, e amilase no fluido superior a
400UI/L. Terapia endoscópica com colocação de stent na conexão entre o pseudocisto e
o ducto pancreático é altamente efetiva nessa situação. Algumas estruturas císticas
dentro e ao redor do pâncreas podem corresponder a neoplasias císticas, o que pode ser
sugerido por parede espessa ou nodular, múltiplas septações internas e ausência de
história de pancreatite, que indicam investigação complementar com ultrassonografia
endoscópica e aspiração. Pseudocistos sintomáticos requerem drenagem guiada por
ultrassonografia endoscópica, podendo também ser manejados por via percutânea ou
cirúrgica, enquanto que neoplasias císticas requerem ressecção.
Pancreatite crônica é fator de risco importante para adenocarcinoma ductal
pancreático.

Prognóstico
Em dez a vinte anos, a maior parte dos pacientes irá desenvolver insuficiência
exócrina ou endócrina. A mortalidade geral está aumentada em 3.6 vezes em
comparação com controles pareados por idade. A sobrevida média em dez anos é de
70% e em vinte anos é de 45%. O óbito geralmente ocorre por malignidade,
complicações pós-operatórias e complicações do uso de álcool e tabaco.

Bibliografia
Goldman’s Cecil medicine / [edited by] Lee Goldman, Andrew I. Schafer.—24th ed. 2012.

Pedro Kallas Curiati 713


TUMORES HEPÁTICOS
Tumores hepáticos malignos

Carcinoma hepatocelular

Epidemiologia
A taxa de incidência geralmente aumenta com a idade e atinge pico em torno dos
sessenta anos. A raça não tem um papel patogenético direto.

Etiologia
A cirrose hepática, independentemente da etiologia, pode predispor ao
carcinoma hepatocelular, devendo ser considerada uma condição pré-maligna. Os vírus
das hepatites B e C são as principais causas de cirrose hepática em pacientes com
carcinoma hepatocelular. O efeito do álcool parece ser dependente da dose.
Vários estudos epidemiológicos e biológicos sugerem um papel importante da
infecção pelo vírus da hepatite B na gênese do carcinoma hepatocelular, mas o
mecanismo exato não está elucidado.
Em relação aos carcinógenos químicos, a aflatoxina B1 é o mais documentado.
Trata-se de uma micotoxina produzida pela espécie de fungo Aspergillus, que cresce no
milho e no amendoim armazenados em condições propícias de temperatura, calor e
umidade.
A exposição a hormônios esteroides exógenos pode aumentar o risco de
adenoma e carcinoma hepatocelular.

Quadro clínico
A apresentação clínica do carcinoma hepatocelular, assim como sua incidência,
varia de acordo com a região geográfica e o fator de risco a que determinada população
está exposta.
Antigamente, a maioria dos pacientes com carcinoma hepatocelular era
diagnosticada em fase avançada, apresentando sintomas constitucionais, como perda de
peso, mal-estar e anorexia, ou descompensação da cirrose hepática, com icterícia,
encefalopatia, ascite e hemorragia varicosa. Também podem ocorrer dor abdominal,
massa abdominal palpável e saciedade precoce. Atualmente, o diagnóstico do carcinoma
hepatocelular é feito por exames complementares em estágios mais precoces, sendo os
pacientes muitas vezes assintomáticos.
Os sítios mais comuns de disseminação extra-hepática da doença são pulmões,
linfonodos intra-abdominais, ossos e glândulas adrenais.

Rastreamento
O rastreamento de carcinoma hepatocelular é indicado para pacientes com
cirrose ou fibrose hepática avançada, assim como para pacientes infectados pelo vírus
da hepatite B, principalmente se de etnia africana e idade superior a vinte anos, etnia
asiática e idade superior a quarenta anos ou, independentemente da etnia, antecedente
familiar de carcinoma hepatocelular. A prática do rastreamento em cirróticos com
ultrassonografia e dosagem de alfa-fetoproteína sérica periódicas e os avanços nos
métodos de imagem tornaram possível o diagnóstico precoce do carcinoma
hepatocelular. O intervalo de seis meses adotado pela maioria das instituições para o

Pedro Kallas Curiati 714


rastreamento é baseado no tempo de duplicação do tumor.
Apesar de estar elevada em alguns casos de carcinoma hepatocelular, a alfa-
fetoproteína apresenta diversas limitações para detecção do carcinoma hepatocelular
precoce e seus títulos podem aumentar de acordo com a intensificação da atividade viral
necro-inflamatória, com maior eficiência para rastreamento nos casos de cirrose de
etiologia não-viral. O nível de 400ng/mL apresenta alta especificidade, próxima de
100%, associada a baixa sensibilidade. Já o nível de 20ng/mL apresenta sensibilidade de
60% e especificidade de 80%.
De maneira geral, um nódulo hepático detectado por ultrassonografia em um
paciente cirrótico deve ser considerado como lesão pré-neoplásica ou carcinoma
hepatocelular. A maioria dos nódulos com até 30mm são hipoecoides, embora até 30%
dos carcinomas hepatocelulares pequenos apresentem padrão hiperecoide similar ao dos
hemangiomas em função do componente gorduroso. O aspecto ultrassonográfico é
inespecífico, mas alguns padrões são mais característicos, como anel ou halo
hipoecoide, mosaico, invasão portal, biliar ou de veia hepática e associação com vários
nódulos de diferentes padrões e tamanhos. O padrão nódulo intra-nódulo
frequentemente detectado nas várias modalidades de diagnóstico por imagem reflete um
tumor bem diferenciado com componente gorduroso contendo um foco menos
diferenciado sem gordura, que se traduz na ultrassonografia como nódulo hipoecoide
dentro de um tumor hiperecoide. Na tomografia computadorizada, o nódulo intra-
nódulo é detectado como um ponto hipervascular num nódulo hipovascular. O realce de
contraste de ultrassonografia com microbolhas fornece alta qualidade em tempo real e
caracterização da vascularização dos nódulos em pacientes cirróticos.

Diagnóstico
O diagnóstico tomográfico é baseado na demonstração de hipervascularização na
fase arterial e de clareamento nas fases tardias após o realce. Washout é definido como
hipointensidade do nódulo nas fases tardias da tomografia computadorizada e/ou da
ressonância nuclear magnética quando comparado com o parênquima adjacente. O filme
simples, sem contraste, no entanto, é necessário para se diferenciar um nódulo com
realce de um nódulo hiperdenso. No filme sem contraste, a maioria dos carcinomas
hepatocelulares é hipodensa.
Embora a literatura revele resultados muito similares entre ressonância nuclear
magnética e tomografia computadorizada multi-slice para detecção de carcinoma
hepatocelular, a principal característica desses métodos é o comportamento
hipervascular do tumor primário. A distribuição fisiológica do iodo e do gadolíneo é
comparável e essa é a principal razão da similaridade. O carcinoma hepatocelular
apresenta-se hipointenso em T1 e hiperintenso em T2.
Como métodos invasivos, tem-se a tomografia por arteriografia e por portografia
e a ultrassonografia por arteriografia com injeção de microbolhas de gás livre.
Quando surge em fígado cirrótico, o carcinoma hepatocelular pode ser
diagnosticado através de métodos não-invasivos de acordo com o nível de alfa-
fetoproteína sérica e o padrão vascular nos estudos dinâmicos de imagem. Entretanto,
em lesões menores do que 2cm de diâmetro, o padrão típico de vascularização arterial
pode não ser encontrado e, nesses casos, a biópsia deve ser realizada.
Em caso de lesão com tamanho superior a 2cm, o diagnóstico pode ser definido
com segurança através de tomografia computadorizada ou ressonância nuclear
magnética. Em caso de lesão com 1-2cm de diâmetro, achados concordantes de
tomografia computadorizada e ressonância nuclear magnética são recomendados para
que o diagnóstico possa ser definido com segurança. Nesses pacientes, níveis de alfa-

Pedro Kallas Curiati 715


fetoproteína superiores ou iguais a 400ng/mL são bastante preditivos de carcinoma
hepatocelular. Amostra adequada do tecido tumoral pode ser obtida através de biópsia
percutânea guiada por ultrassonografia ou aspiração por agulha fina. As principais
indicações são achados atípicos em avaliação radiológica, achados discrepantes entre
tomografia computadorizada e ressonância nuclear magnética e lesões detectadas na
ausência de cirrose. Recomenda-se biópsia do parênquima não-tumoral quando não
houver certeza da presença de cirrose hepática subjacente. Uma biópsia com resultado
negativo não exclui doença maligna, com necessidade de reavaliação do nódulo em
intervalos de três a seis meses até que ocorra desaparecimento, crescimento ou
surgimento de características de carcinoma hepatocelular.
A avaliação acurada de lesões com menos de 1cm é difícil, independentemente
da realização de biópsia. Recomenda-se monitorização ultrassonográfica a intervalos de
três a seis meses durante um a dois anos.
A pesquisa de metástases pode ser feita com radiografia de tórax, tomografia
computadorizada ou ressonância nuclear magnética de abdômen e tomografia por
emissão de pósitrons.

Tratamento
A ressecção cirúrgica do carcinoma hepatocelular ainda é muito restrita, pois
muitos pacientes apresentam função hepática comprometida secundária à cirrose
hepática ou têm múltiplas lesões, apesar de o diagnóstico ter sido realizado em estágio
precoce. Além disso, o carcinoma hepatocelular frequentemente apresenta um padrão
multicêntrico de recorrência. Portanto, o carcinoma hepatocelular é caracterizado por
uma resposta ruim a ressecções radicais na maioria dos casos. Os melhores preditores de
sobrevida após a ressecção cirúrgica parecem ser ausência de hipertensão portal
relevante, tumor restrito ao fígado, ausência de invasão de estruturas vasculares e nível
de bilirrubina inferior a 1mg/dL.
O transplante hepático foi inicialmente considerado no tratamento dos casos de
carcinoma hepatocelular sem possibilidade de ressecção. Por causa das altas taxas de
recorrência, o transplante não conseguiu atingir objetivo curativo nesses casos. No
entanto, ele é uma opção terapêutica para pacientes com doença hepática avançada e
carcinoma hepatocelular passível de ressecção. O estádio do tumor, com tamanho e
número de lesões, parece ser um fator importante de recorrência. Vários estudos
demonstraram que os resultados do transplante hepático para carcinoma hepatocelular
são comparáveis aos obtidos com doença não-maligna quando há uma lesão menor ou
igual 5cm ou até três lesões, cada uma menor ou igual a 3cm.
O número de candidatos ao transplante hepático em relação à oferta limitada de
órgãos é o principal fator limitante para realização desse procedimento. Por esse motivo,
muitos centros de transplante utilizam terapias ablativas ou quimioembolização numa
tentativa de prevenir o crescimento e a disseminação do tumor antes do transplante.
As terapias ablativas locais incluem injeção percutânea de etanol, ablação por
radiofrequência e outras formas menos documentadas, como terapia de coagulação por
micro-ondas, terapia de coagulação intersticial por laser e crioterapia. A injeção
percutânea de etanol guiada por ultrassonografia ou tomografia computadorizada induz
necrose de extensão dependente do tamanho da lesão, sendo o seguimento realizado
com tomografia computadorizada. A ausência de realce após a injeção de contraste é
considerada evidência de necrose completa do tumor. Recorrências locais ou novas
lesões podem ser tratadas repetidamente. Sugere-se que a eficácia seja comparável à da
cirurgia para pequenos tumores. As vantagens da ablação por radiofrequência incluem
menor número de aplicações e obtenção de uma área de necrose mais uniforme. As

Pedro Kallas Curiati 716


limitações são a falta de eficácia em lesões próximas a grandes vasos, vias biliares e
vísceras e dificuldades técnicas em lesões localizadas no domus do fígado.
O carcinoma hepatocelular é um tumor hipervascularizado e seu suprimento
sanguíneo é dado principalmente pela artéria hepática. A interrupção do suprimento
sanguíneo do tumor pela embolização da artéria hepática poderia teoricamente induzir a
isquemia do tumor. Já que o suprimento sanguíneo do fígado é, em grande parte, pela
veia porta, a embolização da artéria hepática causa mínimo dano ao parênquima
hepático não-tumoral. Há benefício em pacientes não-candidatos à terapia ablativa com
cirrose Child A ou B, sem invasão vascular e sem sintomas sistêmicos.
Pacientes com sintomas relacionados ao câncer, invasão vascular ou
disseminação extra-hepática são considerados portadores de estágio avançado da doença
e não são candidatos a terapias radicais. A primeira opção terapêutica é o agente
quimioterápico oral Sorafenib.

Colangiocarcinoma intra-hepático

Epidemiologia, etiologia e fisiopatologia


O colangiocarcinoma pode se originar de ductos biliares intra-hepáticos
pequenos, sendo denominado periférico, ductos biliares grandes, sendo denominado
hilar ou tumor de Klatskin, ou ductos biliares extra-hepáticos. O colangiocarcinoma
intra-hepático é menos comum que o colangiocarcinoma ductal e caracteristicamente
apresenta-se como uma lesão hepática focal.
Colangite esclerosante, clonorquíase hepática e cistos de colédoco são condições
que predispõem ao colangiocarcinoma ductal, mas a relação com a variante intra-
hepática não é clara.
O colangiocarcinoma intra-hepático geralmente se desenvolve em indivíduos de
idade avançada.

Quadro clínico
O colangiocarcinoma periférico raramente produz sintomas até que o tumor
atinja um estado avançado. A icterícia é mais frequente, precoce e mais importante que
nos casos de carcinoma hepatocelular. A presença de hepatomegalia não é um achado
frequente, assim como ascite. A apresentação clínica do colangiocarcinoma hilar é um
quadro de icterícia obstrutiva com ou sem perda de peso.

Avaliação complementar
Observam-se elevadas concentrações de bilirrubina, fosfatase alcalina e gama
glutamil transferase. Em pacientes com colangite esclerosante primária, tem-se utilizado
a dosagem sérica de CA 19-9 como ferramenta de rastreamento. Entretanto, não existem
estudos randomizados controlados que indiquem sua eficácia.
A tomografia computadorizada mostra uma lesão hipodensa, hipovascular nos
estudos dinâmicos, com captação periférica de contraste durante a fase portal. A
ressonância magnética mostra um tumor que é hipodenso em T1 e hiperdenso em T2. A
dilatação do ducto biliar pode sugerir o diagnóstico.
O diagnóstico definitivo é baseado na histologia. Pode ser realizada
colangiopancreatografia retrograda endoscópica com citologia por escovação.

Tratamento
O diagnóstico precoce é raro e o prognóstico associado ao tumor é geralmente
ruim. O tratamento é essencialmente cirúrgico, com sobrevida atingindo 40-60% em

Pedro Kallas Curiati 717


três anos. O transplante hepático apresenta resultados variados e não é recomendado.

Metástases hepáticas
As metástases hepáticas são os tumores malignos mais comuns no fígado e se
associam a prognóstico ruim, com exceção do câncer cólo-retal, quando permite
ressecção cirúrgica, e das metástases de tumores neuroendócrinos, que apresentam
comportamento menos agressivo e potencial de cura.
A tomografia computadorizada geralmente revela lesão hipovascular com
captação característica do contraste, enquanto que em poucos casos há um contraste
hipervascular sugerindo tumor carcinoide, melanoma, hipernefroma ou câncer de
tireoide.
A pesquisa pelo tumor primário deve ser feita em pacientes que apresentam
condição geral aceitável para se submeter a uma ressecção cirúrgica ou tratamento
paliativo. Alguns sintomas podem guiar para a origem do tumor primário, como
alteração do hábito intestinal e enterorragia no câncer colo-retal, icterícia nos tumores
pancreáticos e síndrome carcinoide nos tumores neuroendócrinos. Os marcadores
tumorais podem ser úteis, mas não são parâmetros definitivos. O antígeno
carcinoembrionário (CEA) está aumentado em 90% dos cânceres colo-retais com
metástases, o CA-125 pode estar elevado nos tumores pancreáticos e de ovário, o
antígeno prostático específico está elevado nos tumores prostáticos e o ácido 5-
hidroxiindolacético pode estar elevado nos tumores neuroendócrinos.
Para os casos em que o tumor primário é conhecido, a biópsia é necessária
quando há dúvidas sobre a natureza da lesão. Por outro lado, para tumores primários
desconhecidos, a biópsia dirigida da lesão é um exame definitivo para esclarecimento
diagnóstico.
O tratamento cirúrgico da doença metastática pode prolongar a sobrevida para
câncer colo-retal, tumores neuroendócrinos e alguns tumores renais, mas é controversa
para a maioria dos outros tumores.

Tumores hepáticos benignos

Hemangioma
O hemangioma cavernoso é o tumor hepático benigno mais comum. Com o
recente progresso dos exames de imagem, ele é frequentemente encontrado em
indivíduos assintomáticos. Trata-se de malformação congênita. Incide em quase todas as
idades, mais é mais frequente da terceira à quinta décadas de vida. Predomina no sexo
feminino.
Os hemangiomas são, em grande parte, pequenos e assintomáticos. Geralmente
estão localizados na região subcapsular do lobo hepático direito. Hemangiomas grandes
ou múltiplos podem causar sintomas, como dor no andar superior do abdômen
decorrente de infarto parcial ou compressão de estruturas adjacentes. Outros sintomas
incluem saciedade precoce, náusea e vômitos. Raramente, os hemangiomas se rompem.
Ao exame físico, pode-se detectar hepatomegalia.
A síndrome de Kasabach-Merritt é uma entidade clínica rara com
trombocitopenia e coagulopatia intravascular disseminada associada a um hemangioma
cavernoso gigante, caracterizado por tamanho superior a 4cm. A coagulopatia de
consumo habitualmente é desencadeada por um procedimento cirúrgico ou
odontológico.
À ultrassonografia, o hemangioma tipicamente se apresenta como uma massa
hiperecoide, homogênea, lobulada e bem delimitada, podendo também apresentar áreas

Pedro Kallas Curiati 718


lacunares hipoecoides no interior em razão de hemorragia, fibrose e calcificação. Em
indivíduos com esteatose hepática, o hemangioma pode adquirir padrão hipoecoide em
relação ao restante do parênquima hepático. Geralmente, quando a lesão aumenta em
tamanho, o padrão se torna mais complexo, dificultando o diagnóstico. Os padrões
característicos na tomografia computadorizada com contraste são lesão hipodensa com
realce da periferia do tumor em fase precoce, realce centrípeto em direção ao centro da
lesão, com fenômeno de enchimento, e lesão levemente hiperdensa comparada ao
parênquima circunjacente após cerca de dez minutos, nas fases tardias. Em indivíduos
com esteatose hepática, o hemangioma pode adquirir padrão hiperdenso em relação ao
restante do parênquima hepático antes da injeção do contraste. A ressonância nuclear
magnética apresenta maior especificidade e um importante papel no diagnóstico de
hemangiomas pequenos, que se apresentam com hipossinal em T1 e hipersinal em T2.
A arteriografia hepática é outro exame auxiliar. O SPECT com hemácias marcadas com
tecnécio tem sensibilidade e especificidade semelhantes às da ressonância nuclear
magnética somente quando o hemangioma é maior do que 3cm e próximo da superfície
hepática. Devido ao risco de sangramento, deve-se evitar uma biópsia hepática
percutânea com agulha na suspeita de hemangioma cavernoso.
O tratamento não é indicado para pacientes assintomáticos com hemangiomas
menores que 5cm ao diagnóstico e estáveis por, pelo menos, um seguimento com
intervalo de seis meses. Pacientes assintomáticos com hemangioma gigante podem
necessitar de monitorização mais frequente. Indicações de tratamento com enucleação
cirúrgica, ressecção, irradiação hepática ou transplante incluem presença de sintomas
graves, complicações e/ou incapacidade, além de diagnóstico diferencial com neoplasia
maligna.

Hiperplasia nodular focal


A hiperplasia nodular focal é o segundo tumor sólido benigno mais comum do
fígado. Histologicamente, é definida como um tumor que consiste de hepatócitos com
aspecto benigno ocorrendo em um fígado normal ou quase normal. Geralmente se
apresenta como um nódulo solitário menor do que 5cm próximo à superfície hepática.
Incide com maior frequência em mulheres em idade fértil. O uso de contraceptivos orais
pode estar associado ao crescimento do tumor já formado.
Embora a hiperplasia nodular focal possa atingir mais de 10cm de diâmetro, os
pacientes raramente são sintomáticos. Dor epigástrica ou no quadrante superior direito
do abdômen são referidos por menos de um terço dos pacientes. A ruptura espontânea
com hemorragia é extremamente rara. Transformação maligna não foi claramente
descrita.
A presença de cicatriz central é o achado mais característico nos exames de
imagem. Ultrassonografia é geralmente o primeiro método de imagem que identifica a
lesão hepática focal, com uma pequena diferença de ecogenicidade entre a hiperplasia
nodular focal e o parênquima adjacente. A ultrassonografia com Doppler pode ajudar a
detectar a vascularização. Na tomografia computadorizada multifásica, a hiperplasia
nodular focal geralmente é homogênea e isoatenuante com o fígado normal antes da
injeção do contraste, mas na fase arterial tardia apresenta um realce homogêneo típico e
uma cicatriz central hipodensa. A presença de septos irradiando da cicatriz central é
pouco frequente, mas bem típica. Na fase portal, a hiperplasia nodular focal aparece
isoatenuante em relação ao parênquima e pode ser difícil de detectar. Na ressonância
nuclear magnética, ela é levemente hipointensa em T1 e hiperintensa em T2. Nas fases
com contraste, as características são semelhantes às da tomografia computadorizada. Na
cintilografia com enxofre coloidal, a hiperplasia nodular focal apresenta-se

Pedro Kallas Curiati 719


normocaptante, hipercaptante ou hipocaptante em relação ao fígado normal, com a
presença de captação intensa sendo considerada um achado específico. Se todos os
exames de imagem falham em confirmar o diagnóstico, deve-se proceder ao exame
histológico.
Em pacientes assintomáticos com hiperplasia nodular focal, o tratamento
habitualmente prevê seguimento clínico para monitorizar o desenvolvimento de
sintomas e ultrassonográfico para monitorizar o crescimento do tumor. Não é
mandatória a suspensão do uso de anticoncepcional oral. A maior parte das indicações
de ressecção do tumor é devida a natureza incerta do tumor, presença de sintomas ou
suspeita de metástases em pacientes previamente operados por doenças malignas.
Quando a ressecção cirúrgica não é possível, a hiperplasia nodular focal pode ser tratada
com embolização transarterial.

Adenoma hepático
O adenoma hepático é um tumor hepático raro, caracterizado pela proliferação
benigna de hepatócitos. Também ocorre predominantemente no sexo feminino. Sua
patogênese está mais claramente associada ao uso de anticoncepcionais orais ou
medicações esteroides contendo anabolizantes. Outro grupo de risco inclui os pacientes
com doença de depósito de glicogênio, nos quais há maior risco de adenomas múltiplos
e de transformação maligna.
A maioria dos pacientes com lesões pequenas são assintomáticos. Grandes
adenomas podem causar sensação de desconforto no quadrante superior direito. O
adenoma apresenta importância clínica pela sua tendência de ruptura espontânea e
hemorragia. Portanto, dor abdominal aguda e hemorragia intraperitoneal podem ocorrer.
Na ausência de malignidade, a alfa-fetoproteína sérica e a função hepática estão,
geralmente, normais. Gestação aumenta o risco de ruptura espontânea e sangramento.
À ultrassonografia, os adenomas têm aspecto variável e inespecífico,
dependendo das características do tumor. Padrões hipoecoide, hiperecoide e misto
representam adenoma simples, adenoma com metamorfose gordurosa e adenoma com
hemorragia e necrose, respectivamente. Lesão hiperecoide com região central
hipoecoide tende a ser mais característica. Na tomografia computadorizada e na
ressonância nuclear magnética, o adenoma apresenta achados mais específicos. Ao
contrário da hiperplasia nodular focal, o adenoma é mais heterogêneo devido a
hemorragia intratumoral, necrose e componente de gordura. Apresenta realce precoce
por causa do rico suprimento arterial. O realce periférico com progressão centrípeta
geralmente é visto. À ressonância nuclear magnética, o sinal do adenoma é variado em
T1. A cintilografia hepática com enxofre coloidal geralmente demonstra lesão
hipocaptante ou não-captante, refletindo número e função diminuídos das células de
Kupffer. Biópsia geralmente não é recomendada porque adenomas hepáticos estão
associados a elevado risco de sangramento e o material obtido por punção geralmente
não é diagnóstico.
Por causa do risco de ruptura espontânea ou transformação maligna, o adenoma
deve ser diagnosticado e tratado com ressecção cirúrgica. Especialmente em adenomas
pequenos, com tamanho inferior a 5cm, a descontinuação do uso de estrógeno e o
seguimento com ultrassonografia dentro de seis meses podem constituir uma alternativa
clínica, sendo indicada ressecção cirúrgica em caso de ausência de regressão. Outros
tratamentos incluem enucleação cirúrgica, transplante e embolização arterial hepática.

Lesões císticas

Pedro Kallas Curiati 720


Cisto simples
Cisto hepático simples é uma lesão congênita geralmente única, com conteúdo
seroso recoberto por epitélio do tipo biliar cuboide, sem comunicação com os ductos
biliares.
Frequentemente, os pacientes são assintomáticos e o diagnóstico é incidental. Os
cistos simples que se tornam sintomáticos geralmente apresentam-se maiores do que
5cm, podendo causar efeito de massa, com dor em hipocôndrio direito. Raramente
ocorrem complicações, como hemorragia intracística e infecção.
Os cistos hepáticos podem ser diagnosticados por ultrassonografia. Na
tomografia computadorizada e na ressonância nuclear magnética, apresentam atenuação
e sinal de água, com parede imperceptível ou muito fina, sem septação.
A maioria dos casos é tratada de forma conservadora. O tratamento preferido
para os casos sintomáticos é aspiração percutânea guiada por ultrassonografia ou
tomografia computadorizada seguida por escleroterapia com álcool. O tratamento
cirúrgico é indicado se for difícil excluir malignidade e houver comunicação com a
árvore biliar ou infecção.

Doença hepática policística


A doença hepática policística é um distúrbio autossômico dominante geralmente
encontrado em associação com a doença renal policística. Os pacientes habitualmente
são assintomáticos, mas a doença avançada pode resultar em hepatomegalia,
insuficiência hepática e síndrome de Budd Chiari. O diagnóstico é facilmente realizado
por tomografia computadorizada ou ressonância nuclear magnética.

Cisto hidático
O cisto hidático ou cisto equinococo ainda é endêmico em certas partes do
mundo, sendo causado pelo cestoide Echinococcus granulosis. Os humanos se infectam
através da ingesta de ovos do parasita, por meio do contato com ovelhas, gatos,
cachorros, gado, água ou alimentos contaminados. O parênquima hepático filtra a
maioria dos embriões e aqueles que não são destruídos se transformam em cistos
pequenos, que crescem com o tempo. Dependendo da condição do parasita e da reação
do hospedeiro, o cisto pode degenerar e eventualmente colapsar, deixando uma área de
calcificação no fígado. Após o envolvimento hepático inicial, podem ser detectados
extensão local e disseminação para pulmões, cérebro, ossos e olhos.
A maioria dos pacientes é assintomática, mas alguns indivíduos podem
apresentar dor abdominal, febre e/ou hepatomegalia. Choque anafilático pode ocorrer
devido à ruptura dos cistos na cavidade peritoneal. Outros achados que podem facilitar o
diagnóstico são eosinofilia, testes sorológicos positivos e imagens radiológicas. Na
ultrassonografia e na tomografia computadorizada, os cistos hidáticos aparecem como
lesões bem delineadas, com paredes distintas. Podem ser vistos margens calcificadas,
septações intra-hepáticas e cistos filhos. As imagens de ressonância magnética
demonstram claramente as três camadas, com margem hipointensa em T1 e T2 e matriz
hidática hipointensa em T1 e hiperintensa em T2.
O tratamento cirúrgico pode ser curativo se todo o cisto for removido. Cuidado
especial deve ser tomado para não derramar o líquido durante a cirurgia, pelo risco de
reação anafilática. Tratamento laparoscópico é seguro e efetivo. O uso de Albendazol ou
Mebendazol isoladamente não é efetivo, mas pode ser recomendado como adjuvante.

Cisto de colédoco
Os cistos de colédoco são anomalias congênitas dos ductos biliares e podem

Pedro Kallas Curiati 721


envolver a porção extra-hepática, intra-hepática ou ambas da árvore biliar. A
apresentação clínica varia de acordo com a idade do paciente, sendo clássica a
associação de icterícia com massa abdominal palpável. Alguns pacientes podem
apresentar-se com colangite.
A ultrassonografia é a modalidade de escolha para o diagnóstico, podendo
demonstrar a comunicação com o sistema biliar. A tomografia computadorizada, a
ressonância nuclear magnética e a colangiopancreatografia ajudam a delinear a
anatomia da lesão e a relação com as estruturas adjacentes. A colangiografia percutânea
trans-hepática e a colangiografia retrógrada endoscópica são particularmente úteis em
demonstrar a presença de anomalia na junção pancreaticobiliar e a presença de possíveis
estenoses ou cálculos.
O tratamento de escolha é a excisão completa do cisto com uma anastomose
biliar entérica para restabelecer a continuidade do trato gastrointestinal. A terapia
antibiótica apropriada deve ser introduzida em pacientes com colangite.

Cistoadenoma biliar
Entidade incomum de crescimento lento, pré-maligna. A transformação para
cistoadenocarcinomas é incomum. Ocorre predominantemente em mulheres com idade
entre trinta e cinquenta anos. Na tomografia computadorizada com contraste, é uma
lesão multilocular com realce tópico das paredes do cisto, septações internas e nódulos
murais. A ressecção cirúrgica é obrigatória na suspeita de cistoadenocarcinoma.

Complexo de von Meyenburg


Hamartomas de ductos biliares são lesões benignas relativamente comuns
compostas de proliferação desorganizada dos ductos biliares e do estroma. As imagens
radiológicas não são específicas, com várias lesões não contrastadas menores do que
1cm. Apresentam-se ecogênicas com cauda de cometa posteriormente na
ultrassonografia. Apesar de mimetizar metástases e microabscessos, essas lesões não
têm significado clínico. Outras avaliações e tratamentos não são necessários.

Doença de Caroli
Doença autossômica recessiva rara, caracterizada por dilatação sacular não
obstrutiva dos ductos biliares intra-hepáticos e múltiplos cálculos intra-hepáticos. Está
associada a doença renal policística. Os sintomas mais comuns são ataques recorrentes
de febre, dor no quadrante superior do abdômen e icterícia. O tratamento cirúrgico pode
ser necessário em casos de colangite refratária recorrente. Nesses casos, também
recomenda-se uso de antibiótico de largo espectro.

Peliose hepática
Lesão hepática benigna caracterizada pela presença de espaços císticos
preenchidos por sangue. Ocorre em fígado, baço, medula óssea e pulmões e tem sido
relacionada a medicações, como estrógenos, corticoides e Tamoxifeno, neoplasias,
como carcinoma hepatocelular, adenoma hepático, linfoma de Hodgkin e mieloma
múltiplo, transplante renal e infecções, como tuberculose e síndrome da
imunodeficiência adquirida. O tratamento deve incluir retirada do possível agente causal
e tratamento específico com antibióticos em pacientes com infecções primárias ou
secundárias.

Abscesso hepático
Abscesso hepático piogênico é causado por micro-organismos como resultado de

Pedro Kallas Curiati 722


colangite, secundária a obstrução de ductos biliares, ou bacteremia portal, secundária a
infecções gastrointestinais, como diverticulite e apendicite. A suspeita clínica é baseada
na presença de mal-estar generalizado, anorexia, dor em hipocôndrio direito, febre e
leucocitose. A tomografia computadorizada permite a confirmação diagnóstica através
do achado de várias lesões císticas com um halo perilesional com realce no estudo
dinâmico, ocasionalmente com gás dentro. A hemocultura é positiva em 60% dos casos.
O tratamento inclui antibioticoterapia e drenagem percutânea ou cirúrgica.
O abscesso amebiano também deve ser considerado. A fisiopatologia envolve a
ingesta de cistos de Entamoeba histolytica, que subsequentemente invade a mucosa
colônica e as vênulas mesentéricas. As manifestações clínicas são similares, mas o
desenvolvimento ocorre em pessoas com epidemiologia positiva para amebíase. Os
métodos de imagem não podem diferenciar o abscesso piogênico do amebiano, mas os
exames sorológicos podem e são positivos em 90% dos pacientes. O tratamento de
escolha é o Metronidazol, mas drenagem deve ser considerada em casos refratários.

Bibliografia
Clínica médica, volume 4: doenças do aparelho digestivo, nutrição e doenças nutricionais. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Hepatocellular carcinoma. Hashem B El-Serag. N Engl J Med 2011;365:1118-27.
Approach to the patient with a focal liver lesion. Jonathan M Schwartz and Jonathan B Kruskal. UpToDate, 2011.
Clinical features and diagnosis of primary hepatocellular carcinoma. Jonathan M Schwartz and Robert L Carithers. UpToDate,
2011.
Overview of the treatment approaches for hepatocellular carcinoma. Eddie K Abdalla and Keith E Stuart. UpToDate, 2011.
Hepatic hemangioma. Michael P Curry and Sanjiv Chopra. UpToDate, 2011.
Focal nodular hyperplasia. Sanjiv Chopra. UpToDate, 2011.
Hepatic adenoma. Miachael P Curry and Nezam H Afdhal. UpToDate, 2011.

Algoritmo

Pedro Kallas Curiati 723


Pedro Kallas Curiati 724
AVALIAÇÃO GLOBAL DO IDOSO
Avaliação clínica básica
Na avaliação inicial, devem constar os dados de identificação, endereço e
telefones para contato, histórico patológico pregresso, inventário medicamentoso e
situação vacinal. Deve-se atentar para potenciais interações entre drogas e risco de
efeitos farmacológicos adversos.

Equilíbrio e mobilidade
O avaliador deve inquirir sobre a ocorrência de quedas e traumas e também
avaliar seu risco. Pacientes com história de duas ou mais quedas em um período de um
ano têm maior risco de quedas subsequentes e merecem avaliação mais detalhada.
Devem ser pesquisadas deformidades em membros e articulações, além do uso de
órteses. A observação da marcha e a execução de manobras para testar o equilíbrio,
como a de Romberg, ajudam na avaliação.
A força dos quadríceps pode ser testada solicitando que o paciente levante-se de
uma cadeira sem o apoio dos braços. No teste Get up and go, o paciente deve levantar-
se da cadeira sem o apoio dos braços, caminhar três metros, retornar à cadeira e sentar-
se novamente. Demora além de vinte segundos indica sujeito com mais problemas de
marcha e equilíbrio, que deve requerer avaliação mais detalhada.

Funções cognitivas
Como a prevalência de transtornos cognitivos aumenta com a idade, o seu
rastreio torna-se mais importante em idosos. Um teste simples e consagrado para avaliar
o estado cognitivo é o Mini Exame do Estado Mental. É fundamental ter em mente as
possíveis limitações sensoriais ou de escolaridade do paciente para analisar a pontuação
ou a própria escolha do instrumento.

Funções sensoriais
A deficiência auditiva deve ser inquirida ativamente e pode ser avaliada por
meio de testes como o do sussurro, no qual o examinador sussurra palavras aleatórias a
uma distância fixa atrás de cada orelha, que pode ser de 15cm, 20cm, 30cm ou 60cm, e
solicita que o paciente as repita. Se o paciente acertar 50% ou menos das palavras, deve
apresentar hipoacusia e necessita de avaliação mais detalhada.
Deve-se perguntar aos pacientes sobre antecedentes oftalmológicos, uso de
lentes ou óculos, bem como dificuldades no cotidiano. O teste de triagem visual mais
conhecido é o de Snellen, no qual o paciente é posicionado a seis metros de um quadro
com letras à altura dos olhos. Os pacientes apresentam deficiência visual que merece ser
referida se, mesmo com lentes ou óculos, falham em ler as letras da linha 20/40.

Afeto
Sintomas somáticos sem explicação orgânica, desinteresse e apatia, alterações
cognitivas, perda de peso e pessimismo injustificado podem ser mais evidentes do que
tristeza. Instrumentos de rastreio de depressão, como a escala geriátrica de depressão de
quinze itens (GDS15), são úteis para avaliação do afeto.

Suporte social
A rede de suporte social do indivíduo pode ser esboçada a partir de dados da

Pedro Kallas Curiati 725


anamnese. Para compreender a dinâmica da vida diária do paciente e prestar-lhe
cuidados adequadamente, é fundamental saber com quem ele mora, com quem pode
contar em caso de necessidade e quem poderia tomar decisões em seu lugar no caso de
algum impedimento. É importante conhecer a inserção social do indivíduo na família e
na sociedade, assim como sua satisfação em relação à sua vida familiar e social.
Alguns instrumentos foram elaborados para avaliar a rede de suporte social,
como o mapa mínimo de relações do idoso, que abrange dados quantitativos e
qualitativos.

Condições ambientais
A avaliação ambiental engloba a avaliação da adequação e da segurança do
domicílio, assim como o acesso a serviços de saúde. A melhor maneira de desempenhar
a avaliação ambiental é, sem dúvida, a visita domiciliar. Devem ser verificados
iluminação, presença de apoios em áreas de maior risco, como cozinha, sanitários e
escadas, e presença de obstáculos à deambulação segura. O acesso a serviços de saúde
pode ser verificado na própria comunidade. É interessante obter também uma avaliação
econômica sucinta para saber com que recursos o paciente pode contar.

Avaliação funcional
O bom desempenho funcional dos idosos é um dos maiores objetivos da
assistência geriátrica. Pode ser visto como resultante da interação de variáveis clínicas,
psicológicas, cognitivas, sociais e ambientais, de modo que a falha ou alteração no
desempenho de alguma função deve ser investigada. O desempenho funcional dá-se em
três níveis de complexidade crescente.
As atividades básicas de vida diária contemplam o autocuidado e incluem os
atos de tomar banho, vestir-se, cuidar da higiene íntima, transferir-se, ser continente e
alimentar-se. A avaliação sistematizada pode ser realizada por meio da aplicação da
escala de Katz.
As atividades instrumentais de vida diária são corriqueiras, mas exigem mais
habilidades específicas que as atividades básicas de vida diária. Incluem fazer compras,
gerenciar o orçamento doméstico, utilizar meios de transporte público ou dirigir
veículos, usar o telefone, cuidar da casa, preparar alimentos, lavar roupas e usar os
medicamentos. Podem ser avaliadas pela escala de Lawton.
Há também a expectativa de que indivíduos independentes possam desempenhar
as atividades avançadas, que incluem participação ativa na comunidade, papel familiar
responsável, prática de atividade física e engajamento em atividades recreativas ou
ocupacionais.

Avaliação nutricional
O método mais simples é a medida do índice de massa corpórea. Na história
clínica, o relato de perda de peso de 5-10% no período de seis meses deve suscitar
preocupação e motivar investigação específica.
Para melhor direcionar a avaliação nutricional, instrumentos práticos como a
Mini Avaliação Nutricional foram desenvolvidos. Recomenda-se que pacientes com
baixo peso ou sobrepeso sejam encaminhados para avaliação nutricional formal por
profissional competente.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 1: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da
mulher, envelhecimento e geriatria, medicina laboratorial na prática médica. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 726


PRINCIPAIS SÍNDROMES
GERIÁTRICAS
Conceito
Síndromes geriátricas são condições multifatoriais e altamente prevalentes entre
idosos que costumam estar associadas a impacto importante na morbidade e na
mortalidade desses indivíduos. O produto é um único fenômeno e não um conjunto de
sinais e sintomas, como no caso das síndromes clínicas tradicionais.
O quadro de fragilidade é marcado, na definição mais aceita, por prejuízo na
mobilidade, no equilíbrio, na força muscular, na cognição, na nutrição, na resistência e
na atividade física. Estratégias para combater a perda de funcionalidade e mobilidade,
como exercícios, treinos para equilíbrio e mobilização poderiam amenizar várias
síndromes geriátricas.

Incontinência urinária
Incontinência urinária é definida como a perda involuntária de urina em
quantidade suficiente para que se torne um problema social ou de higiene. A continência
depende não somente do trato urinário inferior, mas também da integridade das funções
mentais, da mobilidade, da destreza e da motivação.
Muitos pacientes têm perdas urinárias por causas reversíveis, que incluem
delirium, depressão, déficit de estrógeno vaginal, débito urinário alto, infecção,
imobilidade, iatrogenia e impactação fecal.
Incontinência urinária de esforço é caracterizada por perda urinária nos
momentos em que há aumento da pressão intra-abdominal, como ao tossir ou agachar.
Incontinência urinária de urgência é caracterizada por necessidade imperiosa de urinar e
perda de urina antes de conseguir chegar ao toalete. Incontinência mista é caracterizada
por associação de sintomas de urgência e esforço. Incontinência paradoxal ocorre por
extravasamento quando a bexiga está cheia.
Durante a anamnese, o médico deve questionar quanto a continência urinária
caso não seja mencionado espontaneamente pelo paciente. Informações adicionais
importantes incluem hábito intestinal, ingesta hídrica e abordagens terapêuticas prévias.
No exame físico, além da avaliação geral, deve-se dar atenção à avaliação abdominal e
pélvica. Exames complementares indicados a todos os pacientes incluem glicemia,
creatinina e urina tipo 1. Exames mais complexos, como ultrassonografia de rins e vias
urinárias e estudo urodinâmico são indicados somente em casos selecionados.
O tratamento consiste em resolução das causas transitórias e, no caso de
incontinência definitiva, opções de acordo com o tipo e com as doenças associadas,
incluindo fisioterapia, medicações e cirurgias.

Instabilidade e quedas
Uma queda incidental pode ser definida como um deslocamento não-intencional
do corpo para um nível inferior à posição inicial com incapacidade de correção em
tempo hábil.
Fatores extrínsecos ou ambientais incluem piso molhado, degrau, tapetes
escorregadios, calçadas mal-alinhadas e falta de luminosidade. Fatores intrínsecos
incluem perda de acuidade visual, alteração da propriocepção, perda auditiva, alteração
da marcha e apresentações agudas de doenças. Os fatores podem ainda ser classificados

Pedro Kallas Curiati 727


como modificáveis, como perda de força muscular, quadros álgicos, hipotensão
postural, polifarmácia e ambiente, e não modificáveis, como idade e quedas anteriores.
A prevenção abrange hábitos saudáveis de vida, incluindo prática de atividade
física com impacto. Idosos com pelo menos uma queda no último ano devem ser
avaliados de forma geral e, caso não se diagnostique nenhuma doença que necessite de
conduta clínica específica, mantidos em vigilância. Idosos com mais de uma queda no
último ano devem ser avaliados também quanto a acuidade visual, equilíbrio, presença
de hipotensão postural, alterações cognitivas e fatores ambientais. A avaliação por uma
equipe multidisciplinar também é bastante interessante, possibilitando a aplicação de
testes e a orientação sobre como adaptar o ambiente e otimizar o uso de calçados,
medicações, órteses e/ou próteses com o intuito de melhorar a marcha.

Imobilidade
A síndrome da imobilidade está relacionada à incapacidade do indivíduo de
movimentar todo o corpo ou parte dele, com perda ou redução significativa dessa
capacidade.
Alterações da mobilidade podem ter seu início abrupto, como após um acidente
vascular encefálico, ou lento, como na progressão de doenças crônicas ou na perda do
condicionamento físico. Em ambas as situações há perda de funcionalidade.
Uma das principais consequências da imobilidade é o aparecimento de úlceras
por pressão. Outra complicação comum é a trombose venosa profunda, com risco de
tromboembolismo pulmonar. Também podem ocorrer constipação e impactação fecal,
alterações endócrinas com aumento do estímulo ao catabolismo, diminuição da
produção hepática de proteína com consequentes hipoalbuminemia e perda de peso,
comprometimento psicológico e perda cognitiva.
As consequências da imobilidade são geralmente mais graves do que suas
causas, sendo necessário evita-la.

Iatrogenia
Define-se iatrogenia como ocorrência ou condição não-intencional, justificada
ou não, decorrente de intervenção da equipe multidisciplinar de saúde, que resulta em
prejuízo para a saúde do paciente. Também é considerada iatrogenia a omissão de uma
conduta ou de uma intervenção amplamente reconhecida.
Não só entre indivíduos hospitalizados, mas também entre os pacientes
ambulatoriais com diversas comorbidades, polifarmácia, adesão irregular ao tratamento
e acompanhamento por vários especialistas, a ocorrência de iatrogenia é comum.

Incapacidade cognitiva
O envelhecimento está associado ao aumento da prevalência de doenças
cerebrais, como a demência, o acidente vascular encefálico e o delirium.
Comprometimento cognitivo se correlaciona com isolamento social, fragilidade física,
depressão, piora do quadro cognitivo e aumento de mortalidade.
No processo normal do envelhecimento, há alterações da memória, como
alterações na forma de organização da informação, com dificuldade de utilizar
estratégias de memorização e de inibir estímulos competitivos e irrelevantes, sem
alteração no cotidiano do indivíduo.
O delirium é um quadro confusional agudo com comprometimento flutuante da
atenção e da função cognitiva. É considerado uma síndrome por ser resultante da
interação de fatores precipitantes em indivíduos vulneráveis, ou seja, aqueles com idade
avançada, grande número de comorbidades, comprometimento funcional, insuficiência

Pedro Kallas Curiati 728


renal, auditiva ou visual e comprometimento cognitivo prévio. Os principais fatores
predisponentes incluem infecções, alterações metabólicas, uso de medicações,
iatrogenias, insuficiência de algum órgão, desidratação e uso de sondas. Há
reversibilidade.
A demência é a perda das funções cognitivas com comprometimento de pelo
menos duas áreas da cognição, que abrange memória, gnosia, linguagem, praxia e
função executiva, com interferência na vida do indivíduo. O tipo mais comum é a
demência de Alzheimer. Outras causas são a demência vascular, a demência
frontotemporal, a demência por corpúsculos de Lewy e a demência associada à doença
de Parkinson.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 1: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da
mulher, envelhecimento e geriatria, medicina laboratorial na prática médica. – Barueri, SP: Manole, 2009.

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PROMOÇÃO DO
ENVELHECIMENTO SAUDÁVEL
Conceito
Em 1947, o conceito de saúde foi definido pela Organização Mundial da Saúde
como pleno bem estar físico, psicológico e social e não simplesmente a ausência de
doenças. O envelhecimento saudável também é associado à preservação da
funcionalidade, que está ligada à manutenção da autonomia e da independência.
A Organização Mundial da Saúde conceitua a promoção de saúde do idoso como
ações que se manifestam por alterações no estilo de vida e que resultam numa redução
na morbidade e na mortalidade. O termo senecultura é definido pelo conjunto de ações
interdisciplinares cujo resultado contribui efetivamente para a promoção de saúde do
idoso.

Avaliação global
A avaliação geriátrica global é o ponto inicial para uma abordagem completa da
saúde do idoso. A partir da avaliação global, é possível fazer diagnósticos das doenças,
mapear riscos de saúde e planejar condutas.

Imunização
A situação atual de imunização deve ser investigada ativamente, se possível com
a confirmação pelo cartão de vacinação.
A vacinação anual para influenza é amplamente recomendada para pacientes
com idade superior a 60 anos e deve ser aplicada no outono.
Todos os idosos devem receber pelo menos uma dose da vacina pneumocócica.
Aqueles com alto risco devem receber uma nova dose em cinco anos.
A vacina dupla do adulto (dT) deve ser administrada a cada dez anos e o toxoide
tetânico deve ser administrado cinco anos após a última dose se houver ferimento
considerado contaminado.

Rastreamento
O rastreamento é bem indicado para o diagnóstico precoce de doenças ou
condições de saúde que se beneficiam de intervenções reconhecidas para diminuir
morbidade e, principalmente, mortalidade. Deve ter baixo custo, apresentar boa relação
entre risco e benefício e ter instrumentos com alta sensibilidade e especificidade.

Saúde bucal
O tratamento e a prevenção de doenças orais em idosos não apenas melhoram as
condições bucais, mas também são responsáveis pela manutenção da saúde geral do
paciente. As doenças e disfunções orais podem ser extremamente dolorosas, com
impacto na qualidade de vida e comprometimento de alimentação, fala e interações
sociais.

Osteoporose, quedas e fraturas


A osteoporose é a principal causa de fratura e incapacidade em idosos.
Intervenções comprovadamente efetivas para a prevenção de quedas incluem
programa de fortalecimento muscular e treino de marcha, exercícios de tai chi chuan,

Pedro Kallas Curiati 730


avaliação e modificação dos fatores de risco domiciliar, suspensão de medicação
psicotrópica, marca-passo cardíaco para idosos com história de quedas repetidas e
hipersensibilidade do seio carotídeo e programa multidisciplinar de intervenção em
fatores de risco ambientais e intrínsecos.

Depressão
Os distúrbios depressivos em idosos estão associados a alta mortalidade
cardiovascular e a efeito negativo sobre o bem estar e as atividades de vida diária.
Fatores sociais, psicológicos, físicos e biológicos interagem na etiologia da depressão
em idosos.
O rastreamento prevê o uso da escala de depressão geriátrica (GDS). As versões
com trinta e com quinze questões têm boa sensibilidade e especificidade.
Entre as intervenções efetivas para o tratamento da depressão em idosos estão os
antidepressivos, a eletroconvulsoterapia e a psicoterapia.

Incontinência urinária
A incontinência urinária pode ocorrer em todas as idades, porém sua frequência
aumenta com o envelhecimento. Os pacientes idosos na maioria das vezes não se
queixam dessa situação. Devem ser investigadas causas frequentes de incontinência
urinária, como delirium, diabetes mellitus, restrições de mobilidade, infecção urinária e
efeitos de medicações.

Funcionalidade
A capacidade funcional é um dos importantes marcadores de um envelhecimento
bem sucedido e da qualidade de vida dos idosos. Pode ser avaliada por meio do
questionamento quanto a capacidade de realizar de forma independente as atividades
básicas de vida diária e as atividades instrumentais de vida diária. É possível avaliar a
condição funcional com medidas objetivas obtidas por meio de indicadores de aptidão
física, como flexibilidade, força muscular, agilidade e equilíbrio.

Hábitos saudáveis
Um dos maiores desafios em promoção de saúde está relacionado a mudanças de
hábitos, como sedentarismo, dieta inadequada, tabagismo e etilismo. O processo passa
por diversos estágios, que podem ser contínuos, mas frequentemente são cíclicos.
As intervenções dependem do estágio de mudança em que se encontra o
paciente, que pode ser de pré-contemplação, contemplação, preparação, ação,
manutenção e recaída.

Atividade física
Os benefícios da prática de atividade física para a saúde têm sido amplamente
documentados, na prevenção, no tratamento e na reabilitação de doenças, com
diminuição da morbidade por todas as causas e ampliação da expectativa de vida.
Existe discordância sobre qual seria o melhor exercício para provocar efeito
benéfico no idoso, mas, de maneira geral, deve-se procurar desenvolver exercícios de
flexibilidade, equilíbrio e força muscular. As atividades com boa adesão incluem
ciclismo, musculação, natação, hidroginástica, dança, ioga e tai chi chuan. A caminhada
merece destaque por ser acessível e não requerer habilidade especializada ou
aprendizagem.
A maioria dos indivíduos pode iniciar uma atividade moderada com segurança
sem realizar teste de esforço se o nível da atividade for inicialmente baixo e for

Pedro Kallas Curiati 731


aumentado lentamente. Um modo simples de determinar a intensidade segura é
exercitar-se no nível em que consegue conversar confortavelmente, o que pode requerer
algumas tentativas e erros.
Os exercícios resistidos podem efetivamente diminuir ou reverter alguma forma
de perda de massa muscular e óssea, sendo fundamentais na manutenção da capacidade
funcional e da independência. O treinamento deve ser dirigido aos grandes grupos
musculares, com intervalo de pelo menos um minuto entre as séries para que a
frequência cardíaca e a pressão arterial retornem aos valores basais. Outra
recomendação é manter a respiração constante durante o exercício, evitando a manobra
de Valsalva.

Dieta
A dieta bem orientada pode prevenir e tratar algumas doenças e condições de
saúde que acompanham o envelhecimento. É importante estimular o conhecimento da
composição dos principais alimentos e o hábito de verificar as calorias contidas nos
rótulos dos alimentos. O aumento do consumo de fibras reflete no controle do peso e,
em associação com o aumento da ingesta hídrica, pode melhorar o ritmo intestinal. As
necessidades de cálcio podem ser alcançadas com uma dieta rica em laticínios, mas
frequentemente se faz necessária uma suplementação tanto de cálcio como de vitamina
D.

Relacionamentos pessoais
A saúde sexual deve ser abordada de maneira clara e natural, tratando as causas
orgânicas e psicológicas de disfunção sexual.
As atividades culturais e de lazer e os grupos de terceira idade, de exercícios e
de turismo estão entre as várias possibilidades de aumentar o convívio e a inserção
social.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 1: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da
mulher, envelhecimento e geriatria, medicina laboratorial na prática médica. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 732


CÂNCER DE MAMA
Epidemiologia
O câncer de mama é a neoplasia maligna mais frequente em mulheres nos países
desenvolvidos. No Brasil, é a principal causa de morte por neoplasia maligna em
mulheres.
Os fatores de risco estão diretamente relacionados à exposição estrogênica
durante a vida. O maior fator de risco é o sexo feminino, seguido por antecedente
pessoal de carcinoma in situ ou invasivo e antecedente familiar de primeiro grau. Outros
fatores relacionados com aumento do risco de câncer de mama incluem idade, terapia de
reposição hormonal combinada, radiação ionizante, obesidade, etilismo e predisposição
genética, como em caso de mutação dos genes BRCA1 e BRCA2. Fatores relacionados
com diminuição do risco incluem atividade física, gravidez a termo em idade precoce e
amamentação.
O câncer de mama familiar é definido como aquele desenvolvido em paciente
com um ou mais parentes de primeiro ou segundo grau com câncer de mama, não
reunindo os critérios para câncer de mama hereditário. Pacientes com câncer de mama
familiar têm risco duas a dez vezes maior de câncer de mama bilateral do que a
população geral.
O câncer de mama hereditário é decorrente de mutações gênicas específicas.
Alguns indícios incluem aparecimento em idade precoce, alta frequência de
bilateralidade, tumores multifocais e dois ou mais familiares de primeiro grau afetados
por câncer de mama Dos cânceres hereditários, estima-se que metade deles esteja
relacionada a mutações dos genes BRCA1 e BRCA2, sendo considerados não-
sindrômicos. Os cânceres hereditários sindrômicos ocorrem nas síndromes de Cowden,
Li Fraumeni, Peutz Jeghers, Bloom, Werner e ataxia telangiectasia.
O grupo de risco moderado para câncer de mama caracteriza-se por história
familiar menos importante, sem casos de câncer de ovário e com idade média ao
diagnóstico geralmente superior a 50 anos. Provavelmente, nessas famílias, o
aparecimento dos casos não decorre de um gene herdado de forma dominante.
O grupo de alto risco é caracterizado por história familiar com pelo menos três
casos de câncer de mama e com idade média ao diagnóstico geralmente inferior a 50
anos, podendo ocorrer casos de câncer de ovário. Provavelmente, nessas famílias, as
mutações decorrem de um gene autossômico dominante de alta penetrância, como
BRCA1 e BRCA2.
A ferramenta atualmente mais utilizada para o cálculo do risco de câncer de
mama é a Breast Cancer Risk Assessment Tool (BCRAT), disponível no site
www.cancer.gov/bcrisktool/.

Rastreamento
O autoexame das mamas pode ser recomendado às mulheres a partir dos vinte
anos de idade, com periodicidade mensal. Deve ser realizado quatro a seis dias após a
menstruação. O efeito de tal prática sobre a mortalidade por câncer de mama é um
assunto controverso, com redução da recomendação por parte de médicos e sociedades
médicas.
O exame clínico das mamas, realizado por médico ou paramédico treinado, é
recomendado às mulheres a partir dos vinte anos de idade a cada três anos até os
quarenta anos e, a partir de então, anualmente.

Pedro Kallas Curiati 733


O método de escolha dos programas de rastreamento é a mamografia
convencional. O rastreamento mamográfico deve ser iniciado aos cinquenta anos, com
periodicidade anual ou bianual, podendo ser iniciado aos quarenta anos conforme
decisão informada após discussão de riscos e benefícios. De acordo com a expectativa
de vida, após os setenta anos, o rastreamento deve ser individualizado.
Em relação à composição e à distribuição do tecido fibroglandular, a mama pode
variar desde predominantemente adiposa até acentuadamente densa. Essa variação está
relacionada à sensibilidade da mamografia, uma vez que o câncer de mama é
normalmente radiodenso e tem caracterização prejudicada dependendo da constituição
mamária. A classificação BI-RADS divide a mama em predominantemente adiposa,
densidades fibroglandulares esparsas, hetereogeneamente densa e acentuadamente
densa. A sensibilidade mamográfica é menor nos casos de mamas densas. A
mamografia deve ser realizada em duas projeções, a crânio-caudal e a oblíqua externa.
A mamografia digital apresenta maior exatidão nas mulheres com menos de cinquenta
anos, com mamas densas, na pré-menopausa e na peri-menopausa.
Breast Imaging Reporting and Data System (BI-RADS):
- BI-RADS 0 corresponde a resultado inconclusivo, categoria
representada pelas mamografias que necessitam de avaliação
complementar com outro exame de imagem, com recomendação de
uso de compressão localizada, magnificação, incidência
complementar ou ultrassonografia. Lesões nodulares radiopacas,
microcalcificações agrupadas que necessitem de magnificação e áreas
de desestruturação do parênquima podem ser incluídas nessa
categoria. As mamas densas não devem ser incluídas nessa categoria
apenas por essa razão. Não havendo qualquer lesão identificável, a
mama densa pode ser categorizada como BI-RADS I, com sugestão
de ultrassonografia complementar.
- BI-RADS I corresponde a mamas simétricas, sem massas, distorção
arquitetural ou calcificações suspeitas identificáveis. O intervalo de
seguimento do paciente é aquele próprio da sua faixa etária.
- BI-RADS II corresponde a mamografia negativa para neoplasia, mas
que tem um achado radiológico a ser descrito. Abrange linfonodos
intramamários, hamartoma, fibroadenoma calcificado, cisto oleoso,
galactocele, cistos simples, microcalcificações, calcificações
vasculares, calcificações ductais, calcificações em “leite de cálcio”,
próteses mamárias, clipes metálicos, marca-passo e corpo estranho.
- BI-RADS III corresponde a lesões com alta probabilidade de
benignidade. Abrange nódulos circunscritos, arredondados, ovais ou
macrolobulados, com margem bem definida em mais de 75% de sua
superfície nas duas projeções magnificadas, microcalcificações
arredondadas ou ovais, homogêneas e difusamente distribuídas,
densidade focal assimétrica não-palpável, distorção arquitetural sem
área central densa em local de cirurgia prévia e ducto dilatado
solitário não-associado a fluxo papilar espontâneo. A orientação de
conduta pode ser o seguimento a cada seis meses durante dois anos
ou a elucidação citológica ou histológica.
- BI-RADS IV corresponde a lesões que não têm características
morfológicas de câncer de mama, mas apresentam uma probabilidade
de malignidade. Abrange nódulos sólidos com irregularidades de
contornos, microlobulações ou mais de 25% de margens

Pedro Kallas Curiati 734


obscurecidas, cistos com áreas sólidas sésseis no seu interior ou
septos grosseiros elucidados pela ultrassonografia, microcalcificações
agrupadas com distribuição linear, segmentar ou regional, densidade
assimétrica focal palpável e ducto dilatado solitário associado a fluxo
papilar espontâneo. A orientação de conduta é a elucidação
diagnóstica.
- BI-RADS V corresponde a lesões com alta probabilidade de
malignidade. Abrange nódulos ou massas espiculadas,
microcalficiações pleomórficas, lineares ou vermiformes agrupadas e
distorção arquitetural com espículas finas sem cirurgia prévia no
local. A orientação de conduta é a elucidação histológica.
- BI-RADS VI corresponde a lesões com diagnóstico estabelecido de
malignidade por biópsia.
O rastreamento do câncer de mama pela ultrassonografia apresenta limitações,
principalmente a baixa capacidade para detectar microcalcificações agrupadas. Para a
sua utilização como método de rastreamento, a ultrassonografia depende de aparelhos
de alta resolução, com dependência direta do médico examinador. O tempo necessário é
maior do que aquele dispendido com o rastreamento mamográfico. A sensibilidade da
mamografia para a detecção do câncer de mama diminui de forma significativa com o
aumento da densidade mamária. A utilização da ultrassonografia em programas de
rastreamento ainda não tem suporte científico, devendo ser indicada como exame
complementar à mamografia quando necessário.
A ressonância nuclear magnética tem sido considerada uma grande promessa no
rastreamento do câncer de mama, pois não envolve radiação ionizante e não depende da
densidade do tecido mamário. A técnica consiste na realização de uma série de imagens
com alta resolução espacial e temporal antes e depois da administração de Gadolínio. A
utilização do contraste é obrigatória. A especificidade relativamente baixa está
relacionada a alta taxa de resultados falso-positivos, com procedimentos diagnósticos
desnecessários. A ressonância nuclear magnética pode ser necessária na avaliação de
achados mamográficos e ultrassonográficos indeterminados, sobretudo em mulheres
jovens e com mamas densas. Deve ser utilizada junto com a mamografia em grupos de
alto risco, como mulheres portadoras de mutação nos genes BRCA1 ou BRCA2,
familiares de primeiro grau de portadores de mutação nos genes BRCA1 ou BRCA2,
com risco de câncer de mama estimado em superior ou igual a 20%, submetidas a
irradiação torácica entre dez e trinta anos de idade e portadoras de mutação nos genes
TP53, com síndrome de Li-Fraumeni, ou PTEN, com síndrome de Cowden.
Em mulheres com alto risco estimado para câncer de mama, superior ou igual a
20%, recomenda-se aconselhamento genético para determinar a chance de mutação nos
genes BRCA1 e BRCA2, auto-exame das mamas mensalmente a partir dos dezoito anos
de idade, exame clínico das mamas trimestral ou semestral a partir dos vinte e cinco
anos de idade e ressonância nuclear magnética das mamas e mamografia anuais a partir
dos vinte e cinco anos de idade ou dez anos antes da idade do parente mais jovem
afetado por câncer de mama. A ressonância nuclear magnética deverá ser realizada
preferencialmente no meio do período entre dois exames de mamografia, de forma
intercalada. Em caso de mutação nos genes BRCA1 ou BRCA2, deve-se incluir
rastreamento de câncer de ovário com ultrassonografia transvaginal e dosagem de CA-
125, preferencialmente nos primeiros dez dias do ciclo menstrual, duas vezes por ano,
com início aos trinta e cinco anos de idade ou cinco a dez anos antes da idade do parente
mais jovem afetado por câncer de ovário. Em homens com mutação nos genes BRCA1
ou BRCA2, deve-se rastrear também câncer de próstata.

Pedro Kallas Curiati 735


Intervenções associadas a diminuição do risco de câncer de mama
Atualmente, existe grande controvérsia quanto à estratégia adequada para
mulheres com risco elevado para câncer de mama. As pacientes têm como opções o
seguimento periódico e medidas modificadoras do risco, que incluem quimioprofilaxia
com Tamoxifeno 20mg/dia durante cinco anos ou Raloxifeno 60mg/dia, mastectomia
bilateral e, em caso de mutação dos genes BRCA1 ou BRCA2, quimioprofilaxia com
contraceptivo combinado oral, que reduz o risco de câncer de ovário na pré-menopausa,
ou salpingo-ooforectomia bilateral após os trinta e cinco anos de idade ou constituição
da prole, que reduz o risco de câncer de ovário e de câncer de mama.
Tamoxifeno, apresentado na forma de comprimidos de 10mg e 20mg,
administrado em dose única ou fracionada em duas tomadas diárias, reduz o risco de
câncer de mama na pré-menopausa e na pós-menopausa, mas eleva o risco de câncer de
endométrio, catarata e tromboembolismo.
Raloxifeno, apresentado na forma de comprimidos de 60mg, administrado em
dose única diária, reduz o risco de câncer de mama na pós-menopausa e é menos efetivo
que o Tamoxifeno para tumores in situ. Eleva o risco de tromboembolismo, mas não de
câncer de endométrio e catarata.

Diagnóstico
O diagnóstico clínico é feito por meio da verificação de áreas de abaulamento ou
retração, fluxo papilar e nódulo ou massa palpáveis. Os exames de imagem prestam-se
ao diagnóstico precoce, permitindo a conduta com base na normatização de BI-RADS
para mamografia, ultrassonografia e ressonância nuclear magnética. Avaliação
complementar pode ser limitada a hemograma, análise bioquímica e radiografia de
tórax. Em caso de evidência clínica de doença avançada, a investigação de metástases
para pulmões, ossos e fígado pode ser realizada com tomografia computadorizada e
cintilografia óssea.
O uso de métodos de imagem tem possibilitado a detecção de lesões não-
palpáveis na mama. Entretanto, frequentemente não permite diferenciar as lesões
benignas das lesões malignas devido à significativa sobreposição de achados entre elas.
Por esta razão, a biópsia é indicada para muitas lesões não-palpáveis identificadas por
métodos de imagem, especialmente no rastreamento mamográfico. Atualmente, as
técnicas de biópsia percutânea estão consolidadas como alternativa segura à biópsia
cirúrgica excisional para muitas mulheres, com resultados comparáveis, menor invasão
e menor risco de cicatrizes e complicações significativas. O critério mais importante na
escolha da técnica de imagem que guiará o procedimento é a visualização confiável da
lesão-alvo, sendo possível utilizar mamografia (estereotaxia), ultrassonografia ou
ressonância nuclear magnética.
A localização pré-operatória consiste na colocação de um marcador junto da
lesão não-palpável para que ela possa ser identificada pelo cirurgião durante a exérese
cirúrgica. Os marcadores mais utilizados são fios metálicos com gancho na sua
extremidade e coloides marcados com elementos radioativos. Após a excisão cirúrgica,
é conveniente a radiografia do espécime ressecado para confirmar a remoção da lesão-
alvo.
A punção aspirativa por agulha fina consiste na introdução de agulha fina de
23G a 25G no interior da lesão com o objetivo de aspirar células que serão utilizadas
para determinar a natureza benigna ou maligna da anormalidade. Trata-se de técnica
simples, não-traumática e virtualmente sem complicações. No entanto, depende da
habilidade de quem realiza o procedimento, requer um patologista treinado em citologia

Pedro Kallas Curiati 736


mamária e habitualmente não permite determinar se uma lesão maligna é invasiva.
As biópsias percutâneas de fragmentos são realizadas com agulhas de maior
calibre, que permitem a remoção de fragmentos teciduais da lesão, passíveis de análise
histológica. Não requerem nenhum treinamento especial do patologista e permitem
diagnósticos histológicos específicos, inclusive determinando se a lesão maligna é
invasiva. A biópsia percutânea de fragmentos nas mamas com pistola automática deve
ser realizada com agulhas de 12G ou 14G. A biópsia percutânea de fragmentos assistida
a vácuo permite acoplar agulhas com calibre de 8G, 11G e 14G. A maior vantagem da
biópsia assistida a vácuo é que ela permite obter fragmentos significativamente maiores
do que a biópsia com pistola automática, mesmo com agulhas com o mesmo calibre.
Além disso, ela pode ser realizada com inserção única da agulha, os fragmentos são
obtidos de maneira contínua, é menos suscetível a pequenos erros de localização e
associa-se a menor taxa de repetição da biópsia por material insuficiente ou
discordância anátomo-radiológica. A probabilidade de remoção de toda a lesão visível
nos métodos de imagem na biópsia percutânea de fragmentos é significativamente
maior nas biópsias assistidas a vácuo do que nas biópsias com pistola automática, com
necessidade, em muitos casos, de marcação do local com clipes metálicos para orientar
uma eventual cirurgia.
Quando há discordância entre o resultado histológico e as características da lesão
nos métodos de imagem ou é identificada uma lesão com alto risco de resultado falso-
negativo, como hiperplasia ductal atípica, hiperplasia lobular atípica e cicatriz radiada,
associadas a risco aumentado de câncer de mama, a biópsia excisional, via de regra,
deve ser indicada. Quando existe indicação para excisão cirúrgica de uma lesão
subclínica, a técnica recai sobre a localização radioguiada, com fio-guia metálico ou
com ultrassonografia intraoperatória. As biópsias cirúrgicas em mastologia são
consideradas procedimentos de pequeno porte, podendo ser realizadas sob anestesia
local e sedação, com regime de internação ambulatorial ou de hospital-dia.

Estadiamento
Estadiamento TNM Estágios TNM
Tx Tumor primário não pôde ser avaliado Estágio T N M
T0 Sem evidência de tumor primário 0 Tis N0 M0
Tis Carcinoma in situ I T1 N0 M0
T1mic Carcinoma microinvasor, com invasão menor ou IIA T0-T1 N1 M0
igual a 0.1cm T2 N0 M0
T1 Tumor menor ou igual a 2cm IIB T2 N1 M0
T1a – Tumor maior que 0.1cm e menor ou igual a T3 N0 M0
0.5cm IIIA T0-2 N2 M0
T1b – Tumor maior que 0.5cm e menor ou igual T3 N1-2 M0
que 1cm IIIB T4 Qualquer M0
T1c – Tumor maior que 1cm e menor ou igual a IIIC Qualquer N3 M0
2cm IV Qualquer Qualquer M1
T2 Tumor maior que 2cm e menor ou igual a 5cm
T3 Tumor maior que 5cm
T4 Tumor de qualquer diâmetro acometendo pele e/ou
parede torácica
T4a – Tumor com extensão para parede torácica,
sem adesão ou invasão nos músculos peitorais
T4b – Ulceração, nódulos satélites ipsilaterais e/ou
edema cutâneo sem critérios para carcinoma
inflamatório
T4c – Concomitância de características T4a e T4b
T4d – Carcinoma inflamatório

Pedro Kallas Curiati 737


NX Linfonodos regionais não puderam ser avaliados
N0 Sem evidência de metástases em linfonodos
regionais
N1 Metástase em linfonodo ipsilateral axilar móvel
N2 N2a - Metástase em linfonodo ipsilateral axilar fixo
a planos adjacentes
N2b - Metástase em linfonodo ipsilateral em cadeia
mamária interna
N3 N3a – Metástase em linfonodo ipsilateral
infraclavicular
N3b – Metástase em linfonodo ipsilateral axilar e
em cadeia mamária interna
N3c – Metástase em linfonodo ipsilateral
supraclavicular
M0 Sem evidência de metástases a distância
M1 Metástases à distância

Anatomia patológica
Os tumores malignos da mama são classificados segundo o padrão de
diferenciação histológica, que reflete os seus diferentes tipos celulares. Os carcinomas
são os mais frequentes, enquanto as neoplasias com diferenciação mesenquimal são
muito raras e podem ser puras, denominadas sarcomas, ou mistas, acompanhadas de
componente epitelial, correspondendo aos tumores phyllodes.
As variáveis de maior impacto prognóstico são o estado linfonodal da axila e,
em seguida, o tamanho do tumor. Outras variáveis anatomopatológicas clássicas que
contribuem para refinar a classificação dos casos incluem tipo histológico, grau
histológico, grau nuclear, comprometimento vascular, expressão de receptores de
estrogênio e amplificação do oncogene HER2.
A maioria dos carcinomas mamários é do tipo ductal invasivo, que é seguido de
longe pelo tipo lobular infiltrativo. Dentre os tipos histológicos mais raros, alguns têm
comportamento biológico mais favorável, como os carcinomas tubular, mucinoso do
tipo coloide, cribiforme infiltrativo, secretor e adenocístico, enquanto que outros têm
comportamento mais agressivo, como os carcinomas metaplásico e micropapilar
invasivo. Os carcinomas medular, lobular e papilífero invasivo constituem tipos
histológicos de prognóstico intermediário.
A doença de Paget da papila mamária caracteriza-se pela presença de células
glandulares grandes, poligonais, de citoplasma claro e núcleo vesiculoso, dispostas na
espessura da epiderme, isoladas ou em pequenos grupos. A maioria dos casos associa-se
a carcinoma in situ ou invasivo no tecido mamário subjacente, cujas células migram
para a epiderme a partir dos ductos. Há expressão significativa da proteína HER2,
relacionada à migração celular intraepitelial. As células são caracteristicamente
negativas para receptor de estrógeno e expressam receptor de andrógenos. Carcinomas
invasivos que se apresentam com doença de Paget associada têm prognóstico pior.
A denominação carcinoma inflamatório refere-se à apresentação clínica e não a
um tipo histológico específico, embora critérios anatomopatológicos sejam utilizados. A
entidade clínica caracteriza-se por eritema da pele mamária em, pelo menos, dois terços
da sua superfície, associado a espessamento difuso e aspecto em “casca de laranja”. À
palpação, a mama está, em geral, difusamente endurecida, embora, em alguns casos,
possa ser palpado um nódulo. Na biópsia da pele, são identificados numerosos êmbolos
neoplásicos na derme, geralmente negativos para receptores de estrógeno.
A denominação componente intraductal extenso refere-se à presença de
carcinoma in situ simultaneamente na área de tumor invasivo e no tecido mamário

Pedro Kallas Curiati 738


circunjacente, ocupando mais de um quarto da área tumoral total. O componente
intraductal extenso traduz capacidade de extensão da neoplasia além dos seus limites
por meio da árvore ductal, com maior risco de recidiva local após procedimentos
conservadores. A presença de componente intraductal não contraindica a cirurgia
conservadora, desde que as margens estejam livres.
O receptor de estrogênio é um regulador do crescimento celular, da proliferação
e da diferenciação. É o mais importante marcador biológico de resposta terapêutica.
A super-expressão do HER2 implica menor sobrevida geral e menor sobrevida
livre de doença. Também constitui fator preditivo de resposta a antracíclicos e ao
anticorpo monoclonal Transtuzumab.

Tratamento
O tratamento é constituído por um conjunto de modalidades que inclui cirurgia,
quimioterapia, radioterapia, hormonioterapia e imunoterapia.
A cirurgia pode ser radical ou conservadora, com ou sem reparação do defeito
estético. As cirurgias radicais são representadas pelas mastectomias, sejam elas
realizadas por meio da retirada da glândula mamária com pele, complexo aréolo-papilar,
músculo peitoral maior e músculo peitoral menor (técnica de Halsted), preservando o
músculo peitoral maior (técnica de Patey) ou preservando o músculo peitoral maior e o
músculo peitoral menor (técnica de Madden). Mastectomias mais conservadoras
incluem aquelas com preservação de pele e até do complexo aréolo-papilar. As cirurgias
conservadoras incluem as técnicas com preservação parcial da glândula mamária que,
em virtude disso, necessitam de associação com radioterapia adjuvante. As
denominações usualmente utilizadas para as cirurgias conservadoras incluem
quadrantectomia, tumorectomia, lumpectomia e ressecção segmentar da mama.
A radioterapia adjuvante é indicada nas pacientes submetidas a cirurgia
conservadora e naquelas que sofreram mastectomia radical por tumores localmente
avançados e/ou com axila francamente acometida. Tem a finalidade de melhorar o
controle locorregional.
A hormonioterapia tem finalidade de ablação estrogênica e é prescrita
geralmente de forma adjuvante em pacientes portadoras de tumores que expressam
receptor de estrógeno. Inclui desde a ablação ovariana cirúrgica, radioterápica ou
através de análogos de GnRH, passando por moduladores seletivos do receptor
estrogênico, como Tamoxifeno e Raloxifeno, até inibidores da enzima aromatase, como
Letrozole e Anastrozole. A escolha da modalidade depende da faixa etária no momento
do diagnóstico.
A quimioterapia sistêmica pode ser adjuvante ou neoadjuvante. A quimioterapia
neoadjuvante tem por finalidade principal a diminuição do tamanho tumoral e da
radicalidade cirúrgica. Existem inúmeros esquemas prescritos com base na análise dos
fatores prognósticos. Drogas com atividade contra o câncer de mama incluem
Ciclofosfamida, Doxorrubicina, Metotrexato, Paclitaxel, Docetaxel, Vinorelbine,
Capecitabine, Gemcitabine, Carboplatina, Ixabepilone, Doxorrubicina peguilhada e
Paclitaxel ligado a nano-albumina.
A imunoterapia é baseada no uso do anticorpo monoclonal Transtuzumab,
prescrito em pacientes com expressão do HER2.

Carcinoma ductal in situ


A ressecção segmentar da mama, seguida pela radioterapia adjuvante, pode ser
aplicável em pacientes que não se enquadram dentro da categoria de alto risco para
recorrência. Dentre os fatores relacionados com aumento no risco de recorrência após

Pedro Kallas Curiati 739


tratamento conservador estão idade menor ou igual a quarenta anos, lesão palpável, grau
histológico III, padrão histológico cribiforme ou sólido e margens cirúrgicas de
ressecção acometidas.
O tratamento de eleição nas pacientes com alto risco de recorrência é a
mastectomia com retirada do complexo aréolo-mamilar e preservação da pele. As
pacientes com lesões extensas e palpáveis devem ser submetidas a biópsia de linfonodo
sentinela.
O Tamoxifeno, utilizado por cinco anos tanto nas pacientes submetidas a
mastectomia quanto naquelas que submetidas a cirurgia conservadora, reduz o risco de
recorrência.

Carcinoma lobular in situ


Há controvérsia quanto à malignidade do carcinoma lobular in situ. Usualmente
trata-se de achado incidental em biópsia mamária e está associado a risco de cerca de
25% de desenvolvimento de carcinoma invasivo em qualquer uma das mamas. O
manejo geralmente é expectante, com exame clínico das mamas e mamografia
realizados regularmente. Essas pacientes também são candidatas a quimioprofilaxia com
Tamoxifeno ou Raloxifeno. Mastectomia total bilateral pode ser considerada em
pacientes com outros fatores de risco para câncer de mama ou ansiedade extrema.

Câncer de mama de estádio inicial (I e II)


A cirurgia conservadora é um método apropriado para tratamento primário da
maioria das mulheres com câncer de mama estádios I e II, sendo preferível por causa da
sobrevida equivalente entre a mastectomia total e a dissecção axilar com preservação da
mama. Todavia, independentemente da técnica utilizada, os índices de recidiva local são
maiores nas pacientes que têm a mama conservada. A recomendação técnica para
conservação da mama inclui excisão local do tumor primário com margens livres,
dissecção dos linfonodos dos níveis I e II ou biópsia do linfonodo sentinela e irradiação
da mama.
A identificação do linfonodo sentinela se faz por meio da cintilografia mamária
no pré-operatório e associação das técnicas de localização por gamma-probe e injeção
de azul patente peritumoral no intra-operatório. Nas pacientes com linfonodo sentinela
negativo no exame intra-operatório, os demais linfonodos axilares podem ser
preservados. Em caso de linfonodo sentinela positivo no exame intra-operatório ou
acometimento linfonodal diagnosticado clinicamente antes da cirurgia ou no intra-
operatório, recomenda-se o esvaziamento axilar.
Contraindicações para a cirurgia conservadora incluem tumores multicêntricos,
resultado estético inaceitável, desejo da paciente pela cirurgia radical e contraindicação
à radioterapia adjuvante, como irradiação prévia da mama, doenças vasculares do
colágeno, debilidade física com prejuízo da capacidade de abdução e adução do
membro superior e gravidez de primeiro ou segundo trimestre.
A irradiação adjuvante é parte fundamental do tratamento cirúrgico conservador
e deve incluir todo o volume mamário. As pacientes com linfonodos axilares
comprometidos por metástases têm o campo de irradiação, bem como a dose,
estendidos.
A quimioterapia adjuvante, com duração de cerca de três a seis meses,
preferencialmente combinada, deve ser realizada nas pacientes na pré-menopausa ou
naquelas pós-menopausa com receptor estrogênico negativo. São excluídas portadoras
de tumores considerados de baixo risco para recorrência, definidos como aqueles com
diâmetro igual ou inferior a 10mm, grau histológico I, receptor estrogênico positivo e

Pedro Kallas Curiati 740


ausência de invasão vascular ou linfática.
Quanto à hormonioterapia, as pacientes com receptor de estrogênio positivo
beneficiam-se do uso de Tamoxifeno com dose de 20mg/dia durante cinco anos ou de
inibidores da aromatase, como Anastrozole, Letrozole e Exemestane. Nas pacientes na
pós-menopausa e/ou com risco elevado de tromboembolismo, a escolha deve recair
sobre os inibidores da aromatase.
A imunoterapia é baseada no uso do anticorpo monoclonal Transtuzumab,
prescrito em pacientes com expressão do HER2.

Câncer de mama de estádio avançado (III e IV)


Os objetivos básicos do tratamento do câncer de mama localmente avançado são
a erradicação de toda a doença local e o controle das micrometástases através de
quimioterapia, cirurgia, radioterapia e hormonioterapia nas pacientes com receptor de
estrógeno positivo.
A cirurgia indicada do câncer de mama localmente avançado tem sido a
mastectomia radical. Todavia, o principal fator prognóstico é a ocorrência de doença
metastática, independentemente da técnica cirúrgica utilizada, de modo que a
reconstrução mamária pode ser realizada, bem como a cirurgia conservadora.
O principal objetivo da quimioterapia é permitir a realização da cirurgia
conservadora, embora as pacientes passem a ter um aumento não significativo das taxas
de recidiva local. Não há, em longo prazo, nenhuma diferença estatisticamente
significativa entre as taxas de sobrevida total e livre de doença entre as pacientes que
iniciaram o tratamento pela quimioterapia neoadjuvante e aquelas que foram submetidas
apenas a terapia adjuvante.
A terapia endócrina pode ser realizada tanto com Tamoxifeno como com
Anastrozole nas pacientes com câncer de mama localmente avançado e receptor de
estrógeno positivo.
A cirurgia conservadora pós-quimioterapia neoadjuvante realizada nas pacientes
que experimentam redução tumoral não causa prejuízo na sobrevida total, embora
aumente discretamente a taxa de recidiva local. A cirurgia oncoplástica é a modalidade
cirúrgica que combina o tratamento cirúrgico oncológico adequado com o melhor
resultado estético possível na cirurgia plástica.
A imunoterapia é baseada no uso do anticorpo monoclonal Transtuzumab,
prescrito em pacientes com expressão do HER2.
Os sítios mais comuns de metástase são os ossos, o fígado e os pulmões. Apesar
de uma parcela dos pacientes com poucas metástases se beneficiar de abordagem
intensiva local, a maior parte dos pacientes com câncer de mama metastático recebe
terapia sistêmica com quimioterapia, terapia endócrina e terapia imunológica. Os
principais objetivos são paliar e prevenir sintomas sem excesso de toxicidade.
Geralmente a abordagem cirúrgica é utilizada para ressecar nódulo em parede torácica
ou metástase cerebral única ou para estabilização ortopédica para prevenir ou tratar
fratura de osso longo.

Seguimento oncológico
Pelo risco vinte vezes maior, em relação à população geral, de câncer de mama
contralateral, a mamografia é particularmente importante visando a detecção de tumores
iniciais na mama oposta e recidiva local na mama tratada por cirurgia conservadora.
Até o momento, não existem evidências que indiquem que o tratamento das
metástases em um estádio inicial e assintomático esteja associado a menor morbidade e
maior sobrevida do que o tratamento das metástases no momento quando surgem

Pedro Kallas Curiati 741


manifestações clínicas. Por esse motivo, a American Society of Clinical Oncology não
recomenda sistematicamente a realização de hemograma, análise bioquímica,
radiografia de tórax, cintilografia óssea e ultrassonografia hepática na rotina do
seguimento oncológico. A orientação é para realização de consulta com história
detalhada e exame físico a cada três a seis meses nos primeiros três anos, a cada seis a
doze meses no ano seguinte e anual posteriormente. A mamografia deverá ser realizada
anualmente, assim como o exame pélvico. O autoexame das mamas deverá ser realizado
mensalmente.
A cintilografia óssea, a radiografia do tórax, a ultrassonografia hepática e o
marcador tumoral 15.3 são exames que dependem da interpretação comparativa. O
fígado pode ser examinado adequadamente pela ultrassonografia, com complementação
pela tomografia computadorizada. As metástases cerebrais normalmente dispensam
rastreamento, com realização de ressonância nuclear magnética na vigência de sintomas
neurológicos. A cintilografia óssea é o método mais sensível para rastrear metástase
óssea. A tomografia computadorizada de tórax é o método mais preciso e com melhor
relação custo-benefício na detecção de metástase pulmonar, com exceção de ápices,
diafragma, espaço aórtico-pulmonar e hilos pulmonares, em que a ressonância nuclear
magnética pode ser mais precisa. Nas instituições públicas de recursos limitados, a
radiografia de tórax pode servir como um rastreador de metástase pulmonar e pleural. A
tomografia por emissão de pósitrons com fluorodesoxiglicose parece ser um método
promissor mais preciso que a tomografia computadorizada e a ressonância nuclear
magnética na detecção de metástases.

Bibliografia
Clinica médica, volume 1: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da mulher,
envelhecimento e geriatria, medicina laboratorial na prática médica. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Screening for breast cancer. Suzanne W Fletcher. UpToDate, 2012.
An overview of breast cancer. Daniel F Hayes. UpToDate, 2012.
Management of hereditary breast and ovarian cancer syndrome and patients with BRCA mutations. Claudine Isaacs, Suzanne W
Fletcher and Beth N Peshkin. UpToDate, 2012.
Goldman’s Cecil medicine / [edited by] Lee Goldman, Andrew I. Schafer.—24th ed. 2012.

Pedro Kallas Curiati 742


ALTERAÇÕES TROMBÓTICAS E
ANTICOAGULAÇÃO
Conceito
As alterações trombóticas ocorrem fundamentalmente por um desequilíbrio do
sistema de hemostasia, que se expressa por aumento dos mecanismos ativadores e/ou
redução dos mecanismos inibidores da coagulação.
A trombose consiste na formação de um coágulo ou trombo dentro da luz de um
vaso íntegro, enquanto que o embolismo ocorre com o desprendimento do trombo e
consequente obstrução vascular em sítios distantes ao local de formação.

Fisiologia
A via intrínseca da coagulação é avaliada pelo tempo de tromboplastina parcial
ativada, que sofre influência dos fatores da coagulação V, VIII, IX, X, XI, XII,
protrombina e fibrinogênio. A via extrínseca da coagulação é avaliada pelo tempo de
protrombina, que sofre influência dos fatores V, VII, X, protrombina e fibrinogênio. A
via comum compreende os fatores V, X, protrombina e fibrinogênio.

Etiologia e fisiopatologia
As alterações trombóticas são distúrbios complexos e multicausais em que
fatores de risco adquiridos e congênitos interagem entre si, determinando o
desenvolvimento e o aparecimento de trombo dentro do leito vascular.
Os fatores de risco desencadeantes incluem uso de contraceptivos orais, terapia
de reposição hormonal, gestação, puerpério, cirurgias de grande porte, internação
hospitalar, restrição prolongada ao leito, viagens prolongadas, varizes sem tratamento
específico, imobilizações de membros inferiores e câncer.
As trombofilias compreendem alterações ou características hematológicas que
resultam no aumento da capacidade do organismo de produzir coágulo de fibrina ou na
redução da capacidade de inibir a ativação da coagulação. As trombofilias podem ser de
etiologia congênita, adquirida ou mista. As principais trombofilias congênitas são
deficiência de antitrombina, deficiência de proteína C, deficiência de proteína S, fator V
resistente a proteína C (fator V de Leiden) e protrombina mutante. As trombofilias
adquiridas ou mistas mais importantes são síndrome antifosfolipídica, hiper-
homocisteinemia, aumento de fatores da coagulação, deficiência de fibrinólise e
plaquetopenia induzida por Heparina tipo II.

Pesquisa de trombofilias
A avaliação laboratorial básica de todo paciente com trombose inclui
hemograma completo, coagulograma, função renal, eletrólitos, função hepática e análise
da urina.
No indivíduo assintomático com antecedentes familiares de trombose, a pesquisa
de trombofilias visa aconselhamento quanto a contracepção oral, gestação, reposição
hormonal e/ou demais situações consideradas desencadeantes de trombose aguda.
As trombofilias hereditárias devem ser suspeitadas em caso de trombose em
pacientes com antecedentes familiares, trombose em pacientes jovens, trombose em
locais não usuais, trombose sem fator de risco desencadeante e trombose recorrente. A
investigação deverá abranger atividade de anti-trombina, de proteína C, de proteína S

Pedro Kallas Curiati 743


total e de proteína S livre, pesquisa de fator V resistente à proteína C e/ou fator V de
Leiden e pesquisa de protrombina mutante (G20210A). Os fatores desencadeantes mais
frequentemente associados às trombofilias hereditárias são gestação e contracepção.
Nos pacientes com trombose e sem antecedentes familiares, deve-se pesquisar
trombofilias adquiridas, em especial a dosagem de anticorpos anticardiolipina IgG e/ou
IgM e pesquisa de inibidor lúpico. Alguns autores recomendam ampliar essa
investigação para as trombofilias mistas, com homocisteinemia, dosagem dos fatores da
coagulação VII, VIII, IX, XI e fibrinogênio e pesquisa de plaquetopenia induzida por
Heparina tipo II.
Para os pacientes que não receberam profilaxia anti-trombótica eficaz e que
desenvolveram trombose aguda na vigência de cirurgia de grande porte ou câncer, não é
necessário realizar investigação de trombofilias. Trombofilias hereditárias também não
são mais frequentes em indivíduos com lúpus eritematoso sistêmico, doença
inflamatória intestinal, trombocitopenia induzida por Heparina, pré-eclâmpsia, trombose
venosa retiniana e trombose venosa de membro superior, não sendo necessário o seu
rastreamento.
Quando indicada, a pesquisa de trombofilias poderá ser realizada após três
meses do último evento trombótico agudo, duas semanas após o término do uso de
anticoagulante oral. Permite programar a duração da anticoagulação após o evento
trombótico agudo, programar profilaxia anti-trombótica na vigência de fatores de risco
desencadeantes temporários e fornecer informações e aconselhamento ao paciente. No
entanto, não existem evidências de que o risco de recorrência de trombose seja maior
em pacientes com trombofilias hereditária em relação a pacientes com trombofilias
idiopática.
Trombose aguda pode reduzir transitoriamente as concentrações plasmáticas da
anti-trombina e, ocasionalmente, das proteínas C e S. Heparina pode reduzir a
concentração plasmática da anti-trombina. Warfarina reduz a atividade das proteínas C e
S e os níveis de anticoagulante lúpico, raramente elevando a concentração de anti-
trombina em pacientes com deficiência de anti-trombina.
Teste Fatores de confusão para investigação laboratorial
Trombose aguda Heparina Warfarina
Anti-trombina Pode interferir Interfere Pode interferir
Proteína C Pode interferir Não interfere Interfere
Proteína S Pode interferir Não interfere Interfere
Anticorpos anti-cardiolipina Não interfere Não interfere Não interfere
Anticoagulante lúpico Não interfere Interfere Pode interferir
Fator V de Leiden Não interfere Não interfere Não interfere
Mutação do gene da protrombina Não interfere Não interfere Não interfere
O rastreamento de familiares de primeiro grau é restrito para as deficiências de
anti-trombina, proteína C e proteína S.
Pacientes com trombose arterial devem ser testados especificamente para a
presença de anticorpo antifosfolípide.

Anticoagulação
Os anticoagulantes mais frequentemente utilizados na prática clínica são
Heparina Não-Fracionada, Heparina de Baixo Peso Molecular e Warfarina Sódica.

Indicações
São várias as indicações dos anticoagulantes no tratamento em ambulatório,
tanto para término do tratamento que teve início no hospital, como para a prevenção
primária e secundária de eventos tromboembólicos. Os anticoagulantes não exercem

Pedro Kallas Curiati 744


efeito diretamente sobre um trombo já estabelecido, mas evitam o desenvolvimento do
coágulo já formado e as complicações tromboembólicas secundárias.
Pacientes internados por tromboembolismo venoso são habitualmente tratados
com Heparina durante a internação e, após a alta, são mantidos com anticoagulantes
orais. A duração do tratamento depende do quadro agudo apresentado e dos fatores de
risco associados, variando de três a seis meses até tempo indeterminado.
Portadores de fibrilação atrial e aqueles com próteses valvares, particularmente
próteses metálicas, apresentam risco de desenvolvimento de tromboembolismo venoso
e, mesmo que nunca tenham tido nenhum evento tromboembólico, necessitam de
anticoagulação por tempo indeterminado.
A prevenção de eventos tromboembólicos nos pacientes com fibrilação atrial
pode ser feita tanto com antiagregação plaquetária como com anticoagulação, com base
na probabilidade de complicação. A escolha deve levar em conta o risco de
sangramento, o suporte para acompanhamento seguro da anticoagulação oral e as
preferências do paciente. Quando há mais de um fator de risco intermediário presente, a
escolha recai geralmente sobre a anticoagulação com Warfarina.
Fibrilação atrial isolada, ou seja, em paciente com idade Não há necessidade de terapia
inferior a 60 anos e sem doenças cardiopulmonares ou
hipertensão arterial sistêmica
Fatores de risco maiores, como evento tromboembólico Anticoagulação oral com Warfarina
prévio, estenose mitral e prótese valvar
Fatores de risco intermediários, como idade superior a 75 Anticoagulação oral com Warfarina,
anos, hipertensão arterial sistêmica, insuficiência cardíaca preferencialmente, ou antiagregação
com fração de ejeção do ventrículo esquerdo inferior a plaquetária com Ácido Acetilsalicílico 81-
35% e diabetes mellitus 325mg/dia
Fatores de risco menores, como idade de 65 a 74 anos, Antiagregação plaquetária ou
gênero feminino e doença coronariana anticoagulação
Demais pacientes Antiagregação plaquetária

Heparina Não-Fracionada
O efeito anticoagulante da Heparina Não-Fracionada tem início imediato quando
administrada por via intravenosa e após uma a duas horas quando administrada por via
subcutânea. Trata-se do anticoagulante de escolha na necessidade de anticoagulação
imediata e pode ser utilizada na profilaxia de eventos trombóticos com baixas doses por
via subcutânea, na anticoagulação plena para tratamento agudo de eventos
tromboembólicos e em circuitos de circulação extracorpórea.
Quando utilizada para profilaxia, a Heparina Não-Fracionada será administrada
na dose de 5000 unidades por via subcutânea a cada oito ou doze horas em função do
peso e do risco trombótico do paciente, sem necessidade de controle laboratorial
sistemático.
A anticoagulação plena por via intravenosa deverá ser iniciada com dose de
ataque em bolus que será calculada em função do valor do R-TTPa basal e poderá
atingir 5000UI no paciente adulto, visando saturar os sítios de ligação da Heparina e
obter nível estável em até seis horas. A dose de manutenção deverá ser iniciada
imediatamente após a dose de ataque e, no paciente adulto, poderá ser de 18U/kg/hora
por infusão contínua intravenosa. A anticoagulação plena pela Heparina Não-
Fracionada necessita de controle laboratorial para monitorar a intensidade de
anticoagulação. O exame mais frequentemente utilizado para esse fim é a relação do
tempo de tromboplastina parcial ativada (R-TTPa), avaliado de 6/6 horas, cujo valor
terapêutico está no intervalo 1.5-2.5. A dosagem da atividade anti-Xa é outro exame que
pode ser utilizado para mensurar o nível de anticoagulação pela Heparina Não-
Fracionada e deverá ter seu valor no intervalo 0.3-0.7U/mL. A diluição é feita com 5mL

Pedro Kallas Curiati 745


de solução aquosa estéril contendo 5000UI de Heparina Sódica por mL em Soro
Fisiológico 245mL, com 100UI/mL.
R-TTPa Conduta
< 1.2 Administrar nova dose em bolus de 60UI/kg e aumentar a velocidade de infusão em
4UI/kg/hora
1.2-1.5 Administrar nova dose em bolus de 30UI/kg e aumentar a velocidade de infusão em
2UI/kg/hora
1.5-2.5 Manter velocidade de infusão
2.5-3.0 Reduzir a velocidade de infusão em 2UI/kg/hora
3.1-5.0 Suspender a infusão por 1 hora e reduzir a velocidade de infusão em 3UI/kg/hora
> 5.0 Suspender a infusão, pesquisar sangramento, colher novo exame após duas horas e reiniciar
infusão se R-TTPa inferior a 3.0, com redução na velocidade de infusão de 4UI/kg/hora
Esse esquema não deverá ser utilizado nas síndromes coronarianas isquêmicas
agudas e no pós-operatório imediato de cirurgia de grande porte. Os efeitos podem ser
antagonizados com o uso de Protamina por via intravenosa muito lentamente,
apresentada na forma de ampolas de 1mL e de 5mL, com 10mg/mL e 1mL para cada
10000UI de Heparina. Caso a concentração de Heparina não seja determinada, não se
recomenda administrar mais do que 1mL. Em caso de administração intravenosa de
Heparina, deve-se considerar a quantidade circulante com base na infusão das últimas
quatro horas e tendo em vista uma meia vida de uma hora.

Heparina de Baixo Peso Molecular


A Heparina de Baixo Peso Molecular é obtida a partir da despolimerização da
Heparina Não-Fracionada e tem algumas características diferentes, com redução da
capacidade de inibir a trombina (fator IIa), manutenção da capacidade de inibir o fator
Xa e redução da capacidade de ligações não-específicas com proteínas e células. A via
de administração mais utilizada é a subcutânea, com início de ação em uma hora, pico
em quatro horas, meia-vida plasmática de três a quatro horas e clearance renal.
A anticoagulação profilática é realizada com Enoxaparina 40mg uma vez ao dia
ou 30mg de 12/12 horas em caso de cirurgia ortopédica para colocação de prótese em
joelho ou quadril, Nadroparina 2850UI uma vez ao dia ou Dalteparina 5000UI uma vez
ao dia, sem necessidade de controle laboratorial da eficácia. Recomenda-se monitorizar
a contagem plaquetária, com coleta antes de iniciar o uso da droga e periodicamente
durante todo o período de sua administração.
A anticoagulação plena pode ser feita com Enoxaparina 1mg/kg de 12/12 horas
ou 1.5mg/kg/dia uma vez ao dia, com dose máxima de 180mg, Nadroparina 86UI/kg de
12/12 horas ou 171U/kg uma vez ao dia, com máximo de 17100UI, ou Dalteparina 100-
120UI/kg de 12/12 horas ou 200UI/kg, com máximo de 18000UI. Não é necessário
controle laboratorial da eficácia, porém é necessária a monitorização pela atividade anti-
Xa em caso de obesidade, insuficiência renal, gravidez, presença de complicações
hemorrágicas e/ou trombóticas e idades extremas. Recomenda-se a realização de
exames laboratoriais antes de iniciar a administração e periodicamente durante toda a
terapia para monitorizar possíveis complicações, com hemoglobina, hematócrito,
contagem plaquetária, RNI e R-TTPa.

Warfarina
A Warfarina Sódica é o anticoagulante mais utilizado em todo mundo. Pertence
à classe dos cumarínicos e exerce sua atividade por meio da inibição da vitamina K.
A vitamina K promove a síntese de resíduos do ácido alfa-carboxiglutâmico, que
são essenciais para a atividade biológica dos fatores de coagulação II, VII, IX e X, além
das proteínas anticoagulantes C e S.

Pedro Kallas Curiati 746


É rapidamente absorvida no trato gastrointestinal e atinge sua concentração
máxima em noventa minutos após a administração oral. Algum efeito anticoagulante já
ocorre 24 horas após a administração da medicação, com meia-vida de 36-42 horas. No
entanto, o efeito anticoagulante eficaz pode demorar de dois a sete dias. A meia-vida de
eliminação varia de 36 a 42 horas e o efeito anticoagulante é mantido por dois a cinco
dias após a suspensão do uso. Mais de 97% da Warfarina circulante é ligada à albumina.
A eliminação da Warfarina ocorre quase completamente pelo metabolismo
hepático dependente do citocromo P450, com excreção dos metabólicos principalmente
na urina e, em menor quantidade, na bile. O clearance renal é considerado um fator
secundário e não é necessário ajuste de dose na presença de insuficiência renal. A
disfunção hepática, por outro lado, pode potencializar a resposta à Warfarina por
comprometimento da síntese dos fatores de coagulação e pela redução do metabolismo.
As dificuldades no uso de antagonistas de vitamina K estão relacionadas a
estreita janela terapêutica, variabilidade de resposta interindividual e intraindividual,
inúmeras interações medicamentosas, influência da dieta e dependência de controle
laboratorial rigoroso.
O teste utilizado para a monitorização da terapia é o tempo de protrombina, que
avalia os fatores II, VII e X. A razão normalizada internacional (RNI) é a relação entre o
tempo de protrombina do paciente e o tempo de protrombina normal com correção do
resultado pelo índice internacional de sensibilidade do kit utilizado. Deve ser colhido no
terceiro e no sétimo dias após a introdução da medicação, uma semana após ajuste da
dose e mensalmente a partir da estabilização. Sempre que houver adição ou suspensão
de algum medicamento que sabidamente interfira na ação da Warfarina, recomenda-se
que seja realizado novo controle da RNI após uma semana.
Geralmente, inicia-se o tratamento com Warfarina com uma dose de 5mg uma
vez ao dia, que será também a dose de manutenção para a maioria dos pacientes.
As proteínas C e S têm ação anticoagulante e inibição mais precoce que a dos
fatores de coagulação, com favorecimento de efeito pró-trombótico no início do
tratamento. Por esse motivo, recomenda-se que pacientes de alto risco recebam
Heparina junto com o anticoagulante oral até que seja atingida uma RNI adequada.
RNI Indicação
2.0-3.0 Trombose venosa profunda, embolia pulmonar e prevenção de embolia em pacientes com
valvas cardíacas biológicas, doença cardíaca valvar e fibrilação atrial
2.5-3.5 Valvas cardíacas mecânicas
3.0-4.5 Trombose venosa profunda ou embolia pulmonar em pacientes com RNI entre 2.0 e 3.0
A Warfarina apresenta efeitos potencialmente tóxicos, que incluem fenômenos
trombóticos, fenômenos hemorrágicos, necrose cutânea e efeitos adversos
hematológicos, renais e hepáticos. Em pacientes com deficiência conhecida de proteína
C, é importante iniciar a anticoagulação oral gradualmente e em associação com
Heparina para prevenir necrose cutânea.
O efeito anticoagulante pode ser antagonizado por meio do uso de vitamina K.
No entanto, situações de emergência exigem reposição dos fatores de coagulação
através da infusão de plasma fresco.
A anticoagulação é contraindicada sempre que o risco de hemorragia for maior
que o benefício potencial da anticoagulação. A Warfarina é contraindicada em
gestantes, pois atravessa a barreira placentária e pode causar hemorragia fetal e
malformações. Diátese hemorrágica, cirurgia ocular ou de sistema nervoso central
recente, traumatismo ou cirurgia de grande porte recente, sangramento ativo, punção
venosa em local não-compressivo, aneurisma cerebral e alergia à Warfarina também são
contraindicações.

Pedro Kallas Curiati 747


Alguns fatores determinam o sucesso da anticoagulação, sendo a educação do
paciente um dos principais. O conhecimento sobre conceitos básicos de segurança, a
importância da monitorização regular da RNI e a interferência de medicações
concomitantes e do álcool estão entre os fatores fundamentais. O horário da medicação
e sua relação com a ingesta de alimentos não devem ser modificados. O Ácido
Acetilsalicílico deverá ser substituído por Paracetamol ou Dipirona, que não interferem
com a função plaquetária. Deve-se atentar ao uso de anti-inflamatórios não-hormonais e
de Amiodarona, que potencializam o efeito da Warfarina. Também recomenda-se que
os pacientes evitem esportes com grande contato físico.
O paciente deve estar ciente de que, diante de qualquer sinal de alerta, como
urina escura, fezes escuras ou com sangue, cefaleia ou dor abdominal persistentes,
hemoptise ou qualquer tipo de sangramento, deve entrar em contato com seu médico ou
procurar imediatamente um serviço de atendimento de emergência.

Cardioversão de pacientes com fibrilação atrial crônica


Se ecocardiograma transesofágico não disponível, preconiza-se anticoagulação
durante três semanas com controle semanal da RNI, cardioversão e manutenção da
medicação por mais quatro semanas.
Se ecocardiograma transesofágico disponível, preconiza-se anticoagulação
durante quatro semanas com controle semanal da RNI, cardioversão e manutenção por
mais quatro semanas nos pacientes com trombo identificado no interior das câmaras
cardíacas. Se ausência de trombo, apenas é necessária anticoagulação por quatro
semanas após a cardioversão.

Reversão de anticoagulação oral no pronto-atendimento


Em geral, os pacientes que chegam ao serviço de emergência com complicações
do uso de antagonistas de vitamina K apresentam sangramentos, cuja intensidade e
gravidade podem variar desde simples equimose a instabilidade hemodinâmica com
necessidade de transfusão. Na anamnese, é importante avaliar os fatores que levaram ao
descontrole, como alteração na dose prescrita, uso de novos medicamentos, modificação
na dose de medicamentos já utilizados, alterações na dieta e comorbidades. Além do
tempo de protrombina, é adequado avaliar o nível de hemoglobina do paciente. De
acordo com a sintomatologia, são necessários exames de imagem para localizar e
dimensionar o sangramento.
Em situações como cirurgias, manipulação dentária ou gravidez, podem ser
necessárias alterações na dosagem ou mesmo suspensão temporária da anticoagulação.
Estudos demonstram que o risco de sangramento eleva-se significativamente
quando a RNI é superior a 5. De modo geral, os principais protocolos para a reversão de
anticoagulação com Warfarina apresentam opções muito próximas, que incluem
redução e/ou omissão de dose e uso de vitamina K1, plasma fresco congelado e
concentrado de complexo protrombínico.
Se durante os exames de controle o paciente apresentar RNI superior ao valor
terapêutico, mas inferior a 5, sem sangramentos significativos, deve-se diminuir a
próxima dose ou suspendê-la, com reintrodução posterior em uma dose menor quando
RNI em nível terapêutico.
Para pacientes com RNI superior a 5, mas inferior a 9, sem sangramentos
importantes ou fatores adicionais de risco hemorrágico, deve-se suspender duas doses,
monitorizar com frequência e reintroduzir em uma dose menor quando RNI em nível
terapêutico. Outra opção é suspender apenas a dose seguinte e administrar vitamina K1
na dose de 1.0-2.5mg por via oral.

Pedro Kallas Curiati 748


Para pacientes com RNI superior a 9, sem sangramentos significativos, deve-se
suspender a Warfarina e administrar vitamina K1 3-5mg por via oral, com controle
frequente da RNI e administração de novas doses de vitamina K1 se necessário, com
reintrodução do tratamento em menor dose quando RNI em nível terapêutico.
Nos casos com necessidade de reversão rápida do efeito anticoagulante oral
devido a sangramento maior ou grande elevação da RNI, superior a 20, deve-se
suspender o tratamento com Warfarina, administrar vitamina K1 10mg por via
intravenosa lentamente e infundir plasma fresco ou concentrado de complexo
protrombínico conforme a urgência da situação. Caso necessário, novas infusões de
vitamina K1 podem ser realizadas a cada 12 horas.
Em pacientes submetidos a pequenos procedimentos invasivos, o ajuste da
dosagem da Warfarina no nível inferior da faixa terapêutica recomendada deve permitir,
com segurança, a manutenção da anticoagulação. O local operado deve ser
suficientemente limitado e acessível, de modo a permitir o uso eficaz de procedimentos
locais de hemostasia.
Procedimentos de maior risco de hemorragia exigem a interrupção da
medicação. Quando há necessidade de reversão rápida do efeito anticoagulante em
paciente que não apresenta manifestações hemorrágicas, a dose de vitamina K1 oral
deve ser de 2-4mg, com observação da redução da RNI em 24 horas e, caso contrário,
nova dose de 1-2mg por via oral.
Pacientes de alto risco de eventos tromboembólicos e que permaneçam em jejum
devido ao procedimento cirúrgico devem receber anticoagulação parenteral até que
possa ser retomada a anticoagulação oral. No caso de pacientes que estão
anticoagulados exclusivamente pela presença de fibrilação atrial é razoável que o
tratamento possa ser interrompido por até uma semana para a realização de tais
procedimentos, sem a necessidade de introdução de Heparina.
Em caso de procedimentos cirúrgicos eletivos em pacientes com trombose
venosa profunda, recomenda-se a suspensão da medicação quatro a cinco dias antes.
Heparina deve ser introduzida a partir do momento em que a RNI for inferior a 2.0, com
suspensão doze horas antes do procedimento no caso de Heparina de Baixo Peso
Molecular e seis horas no caso de Heparina Não-Fracionada. A reintrodução da
anticoagulação deve ser feita a partir de 48 horas do término da cirurgia, principalmente
em caso de procedimentos intra-abdominais, e nunca antes de 24 horas. Já em pacientes
com uso de anticoagulantes por fibrilação atrial, preconiza-se suspensão da medicação
com uma semana de antecedência e coleta de RNI para confirmar reversão, com
reintrodução em uma semana.
Se o tratamento com Warfarina é indicado após a administração de altas doses
de vitamina K1, a terapia com Heparina deve ser realizada até que o paciente volte a
responder à Warfarina.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 3: doenças hematológicas, oncologia, doenças renais e genitourinárias. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Clínica médica: diagnóstico e tratamento. Itamar de Souza Santos... [et al.]. São Paulo. Sarvier, 2008.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.
Evaluation of the patient with established venous thrombosis. Kenneth A Bauer, Gregory YH Lip. UpToDate. 2011.

Pedro Kallas Curiati 749


ANEMIAS
Aspectos gerais das anemias

Definições
Anemia ocorre quando a massa de glóbulos vermelhos é insuficiente para
oxigenar adequadamente os tecidos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) define
anemia como uma redução na concentração de hemoglobina. Os níveis de hemoglobina
indicativos de anemia ao nível do mar são 13g/dL para homens adultos, 12g/dL para
mulheres adultas e 11g/dL para mulheres grávidas.

Classificação fisiopatológica
A base da classificação é a presença ou não de reticulocitose, que expressa
resposta medular. Uma estratégia que auxilia na interpretação da contagem de
reticulócitos é corrigir a contagem para os níveis de hemoglobina e hematócrito
encontrados, conforme a fórmula (hemoglobina encontrada / hemoglobina normal) x
(porcentagem dos reticulócitos). Na presença de formas precursoras, dever-se-á dividir
o número de reticulócitos pela metade como fator de correção para a maior meia-vida
circulante.

Anemias por falta de produção ou hiporregenerativas


As anemias causadas por falta de produção de eritrócitos são caracterizadas por
reticulocitopenia, com contagem absoluta inferior a 50.000/mm3, e podem ser
originadas por vários mecanismos.
Aplasias ou hipoplasias medulares são caracterizadas pela redução do tecido
hematopoético, com substituição por tecido gorduroso. Podem ser idiopáticas ou
induzidas por agentes químicos, agentes físicos, toxinas e medicamentos. A aplasia pura
da série vermelha pode ser considerada um subgrupo da aplasia medular no qual o
envolvimento é apenas da série eritrocítica. As causas do acometimento da série
eritroide abrangem doença autoimune, frequentemente associada a timoma, infecções
virais, exposição a fármacos ou agentes tóxicos e anomalia congênita primária da stem
cell, como na síndrome de Blackfan-Diamond.
As síndromes mielodisplásicas são resultantes de um defeito clonal que afeta a
stem cell medular e se caracterizam por anemia refratária com pancitopenia no sangue
periférico e maturação anormal das três linhagens celulares, geralmente com medula
óssea hipercelular e um grau aumentado de apoptose intramedular. No sangue
periférico, há macrocitose, neutrófilos hipossegmentados e hipogranulares e plaquetas
hipogranulares e de tamanhos variados. Frequentemente ocorre evolução para leucemia
aguda.
Tanto as infiltrações da medula óssea por tumores hematológicos ou
metastáticos como a mielofibrose produzem um quadro de insuficiência medular e
anemia por falta de produção. Há liberação de células imaturas na circulação e alteração
morfológica dos eritrócitos, sendo a mais característica a presença de hemácias em
lágrima, denominadas dacriócitos, no sangue periférico.
Na insuficiência renal, a produção de eritropoetina diminui gradativamente e
anemia hiporregenerativa se instala.
As anemias carenciais são as mais frequentes. A anemia por deficiência de ferro
afeta primariamente a síntese de hemoglobina, com fenótipo microcítico e hipocrômico.

Pedro Kallas Curiati 750


A deficiência de folato e/ou de vitamina B12 afeta todas as células que se dividem, com
pancitopenia, macrocitose e presença de neutrófilos hipersegmentados no sangue
periférico.
Anemia de doenças crônicas ocorre em associação com infecções de qualquer
tipo, neoplasias e doenças autoimunes.

Anemias por excesso de destruição ou regenerativas


As anemias por excesso de destruição são caracterizadas por elevação no
número de reticulócitos, com contagem absoluta superior a 100.000/mm3. A hemólise
pode ocorrer predominantemente na circulação, intravascular, ou, na maioria das vezes,
no interior dos macrófagos teciduais, extravascular. Laboratorialmente, as anemias
hemolíticas são caracterizadas por reticulocitose, aumento da bilirrubina indireta,
aumento da desidrogenase lática, redução da haptoglobina e, muitas vezes, alterações
características no sangue periférico. Podem ser causadas por defeitos intrínsecos dos
eritrócitos ou podem ser causadas por agressões por agentes extrínsecos.
Alterações intrínsecas dos eritrócitos são geralmente hereditárias, com exceção
da hemoglobinúria paroxística noturna. As doenças hereditárias causadas por defeitos
da membrana eritrocitária compreendem a esferocitose, a eliptocitose e a
estomatocitose, cujas variantes incluem a hidrocitose e a xerocitose. As principais
eritroenzimopatias são as deficiências de glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD) e de
piruvatoquinase (PK). As doenças da hemoglobina podem ser causadas por defeitos
estruturais, como na anemia falciforme, ou de síntese, como nas talassemia, de uma ou
mais cadeias globínicas. A hemoglobinúria paroxística noturna é uma doença clonal
adquirida da stem cell hematopoética caracterizada por anemia hemolítica intravascular,
tendência à trombose e graus variáveis de insuficiência medular. A causa é uma
mutação no cromossomo X que leva à ausência ou diminuição de
glicosilfosfatidilinositol (GPI), composto que ancora moléculas na superfície celular,
inclusive aquelas responsáveis por inibir a ativação do complemento e proteger as
células de lise.
Os eritrócitos normais podem ser afetados por fatores extrínsecos, que incluem
exposição a venenos e toxinas, como os das picadas de aranha, cobra, abelha e lagarta,
parasitas, como o da malária, agentes infecciosos, como na sepse por Clostridium sp,
agentes físicos, como calor e radiação, traumas mecânicos, como nas síndromes de
fragmentação eritrocitária, hipofosfastemia, medicamentos e anticorpos, como nas
anemias hemolíticas imunológicas. As síndromes de fragmentação eritrocitária podem
ser devidas a anormalidades no coração e nos grandes vasos ou nos pequenos vasos,
como nas anemias hemolíticas microangiopáticas, e caracterizam-se por sinais de
hemólise intravascular e presença de eritrócitos fragmentados, denominados
esquizócitos, no sangue periférico. As anemias hemolíticas imunológicas são causadas
por anticorpos contra os eritrócitos, que podem ser autoanticorpos e aloanticorpos.

Anemias por perdas


São decorrentes de perdas agudas ou crônicas de sangue. As perdas agudas,
como nas anemias pós-hemorrágicas, podem representar uma situação de emergência e
são compensadas pela medula óssea normal, com reticulocitose, desde que os estoques
de ferro estejam preservados. As perdas crônicas causam espoliação de ferro e,
consequentemente, anemia por falta de produção, com reticulócitos baixos.

Classificação morfológica
A classificação morfológica leva em consideração tamanho e concentração de

Pedro Kallas Curiati 751


hemoglobina nas hemácias. O valor do tamanho das hemácias, conhecido como volume
corpuscular médio (VCM), é considerado normal quando entre 80 e 100 fL.
Por ser um valor médio, o VCM pode ocultar dados importantes. Essa limitação
é sobrepujada pela observação e descrição das hemácias como vistas à microscopia e
pela observação de outros índices hematimétricos, em especial o Red Cell Distribution
Width (RDW), que é a expressão matemática da variabilidade do tamanho das hemácias.
O valor normal do RDW varia de 11.6% a 14%.
As anemias com VCM menor do que 80fL são denominadas microcíticas, as
com VCM superior a 100fL são denominadas macrocíticas e as demais são consideradas
normocíticas. As anemias microcíticas são geralmente hipocrômicas, como verificado
pelo valor de hemoglobina corpuscular média (HCM), considerado normal entre 27 e 32
pg.
As anemias hipocrômicas microcíticas são causadas por diminuição da síntese
de hemoglobina. A causa mais comum é a falta de ferro. Outras causas incluem as
talassemias, a hemoglobinopatia C e as anemias sideroblásticas congênitas. As anemias
de doenças crônicas podem, eventualmente, ser discretamente hipocrômicas e
microcíticas.
As principais causas de anemias normocíticas normocrômicas são insuficiência
renal, anemias hemolíticas, aplasia de medula, hipoplasia medular, síndromes
mielodisplásicas, infiltrações medulares, anemias de doenças crônicas e anemias
associadas a doenças endócrinas, como o hipotireoidismo.
As anemias macrocíticas podem ser divididas em megaloblásticas e não-
megaloblásticas. As anemias macrocíticas megaloblásticas na maioria das vezes são
decorrentes de deficiência de vitamina B12 ou de folatos. Outra causa possível é o uso de
medicamentos que interferem com a síntese do DNA ou que tem efeito anti-folato,
como Metotrexato e Trimetoprim. As anemias macrocíticas não-megaloblásticas podem
ser decorrentes de reticulocitose, como em anemias hemolíticas e após hemorragias, ou
ser caracterizadas por reticulocitopenia, como em hipotireoidismo, hepatopatias,
síndromes mielodisplásicas e aplasia pura de série vermelha.

Avaliação clínica do paciente com anemia


São importantes duração dos sintomas, idade de início, tempo de evolução e
resultado de exames complementares. História familiar, especialmente associada a
icterícia, esplenomegalia e cálculos biliares, pode sugerir anemia hemolítica hereditária.
História ocupacional, hábitos domésticos e hobbies devem ser questionados, já que a
exposição a solventes, fármacos e outros agentes químicos pode causar anemia
hemolítica ou aplasia medular. Hábitos sociais permitem caracterizar abuso de álcool,
viagens para áreas endêmicas de malária ou de outros agentes infecciosos e consumo de
drogas. A dieta deve ser detalhadamente caracterizada, assim como o hábito intestinal.
Perdas sanguíneas através de menstruação, parto e puerpério e trato gastrointestinal
devem ser averiguadas. Desconforto nas mucosas, especialmente na língua, e
parestesias sugerem anemia perniciosa.
A presença de febre pode indicar doença infecciosa, neoplásica ou autoimune
associada à anemia. A coloração da urina também é importante porque nas hemólises
intravasculares pode haver hemoglobina na urina, com cor característica, que deve ser
diferenciada de colúria e de hematúria. A presença de petéquias, equimoses e outros
sangramentos sugere associação com doenças da medula óssea, doenças da hemostasia
ou doenças hepáticas.
Os sintomas de doenças de base, como insuficiência renal crônica, hepatopatias,
endocrinopatias e neoplasias, devem ser pesquisados.

Pedro Kallas Curiati 752


O exame físico também pode fornecer pistas para a orientação diagnóstica.
Palidez é um sinal de anemia, embora vários fatores, além da hemoglobina, interfiram
na coloração da pele. A presença de icterícia sugere hemólise ou eritropoiese
ineficiente. Ausência ou redução de papilas linguais, com língua lisa, sugere deficiência
de vitamina B12 ou de ácido fólico. Queilite angular e alterações das unhas, com
coiloníquia, ocorrem na anemia ferropênica de longa duração. Sopros cardíacos são
comuns, geralmente sistólicos, de intensidade moderadas e mais audíveis no bordo
esternal esquerdo. Úlceras de perna em jovens são características das anemias
hemolíticas constitucionais, como a anemia falciforme. Palpação do fígado, do baço e
dos linfonodos fornecem indícios para pesquisa de infecção, linfoma, leucemias e
tumores metastáticos. Alterações oftalmológicas são descritas, como hemorragia em
chama de vela, exsudatos e tortuosidade venosa na retina.

Avaliação complementar do paciente com anemia


O hemograma confirmará a presença de anemia e fornecerá dados importantes
para sua classificação por meio da análise do número de reticulócitos e dos índices
hematimétricos. É importante enfatizar a obrigatoriedade de incluir a contagem de
reticulócitos em casos de suspeita de anemia. A inspeção do sangue periférico ao
microscópio fornece dados morfológicos que auxiliam no diagnóstico.
Exame da medula óssea é indicado em caso de associação da anemia com outras
anormalidades hematológicas para pesquisar leucemia, anemia aplástica, mielodisplasia,
mielofibrose, infiltração medular e anemia megaloblástica.

Diagnóstico diferencial
Se a anemia for microcítica hipocrômica, deve-se considerar a causa mais
comum, que é a deficiência de ferro. Geralmente, na anemia ferropriva, existe também
aumento do RDW, que reflete o grau de anisocitose. O teste definitivo para determinar a
carência de ferro é a determinação da ferritina sérica, que, no entanto, pode não estar
diminuída se houver processos inflamatórios, infecciosos e/ou neoplásicos
concomitantes. O ferro sérico está diminuído, a capacidade total de ligação do ferro está
aumentada e a saturação de transferrina está diminuída.
Se os estoques de ferro estiverem normais, o principal diagnóstico diferencial é
com as talassemias, anemias causadas por diminuição ou ausência de síntese de uma ou
mais cadeias globínicas da molécula de hemoglobina. O diagnóstico pode ser
confirmado através de eletroforese hemoglobina.
Uma terceira causa de anemia microcítica hipocrômica, a anemia sideroblástica
congênita, é caracterizada pela incapacidade de incorporação do ferro pela proto-
porfirina para a formação do heme. Esse tipo de anemia é caracterizado por sobrecarga
de ferro, hipocromia, microcitose e anisocitose. A coloração da medula óssea pelo azul
da Prússia revela a presença de sideroblastos em anel, devido ao ferro acumulado nas
mitocôndrias que estão localizadas ao redor do núcleo. O ferro sérico, a ferritina e a
saturação de transferrina estão aumentados, enquanto que a capacidade total de ligação
de ferro pode estar normal ou diminuída.
A anemia de doença crônica, que geralmente é normocrômica normocítica, pode,
às vezes, ser discretamente microcítica hipocrômica. Cabe ressaltar que a hipocromia é
mais importante que a microcitose, com volume corpuscular médio raramente inferior a
72fL e RDW geralmente normal. A anemia é leve a moderada, a ferritina sérica está
elevada, o ferro sérico e a capacidade total de ligação de ferro estão diminuídos e a
saturação de transferrina está pouco diminuída ou normal.
Quando a anemia for normocítica normocrômica, deve-se avaliar se há

Pedro Kallas Curiati 753


reticulocitose ou não. Na presença de reticulocitose, deve-se considerar anemia
hemolítica, caracterizada por outras evidências laboratoriais, como elevação dos níveis
de desidrogenase lática, hiperbilirrubinemia indireta e diminuição de haptoglobina. A
morfologia das hemácias observada por meio da visualização do esfregaço sanguíneo
ajuda a distinguir entre os diferentes tipos de anemias hemolíticas e a prosseguir a
investigação por meio de testes específicos. Na ausência de reticulocitose, é importante
afastar insuficiência renal ou endocrinopatias. Caso a anemia normocítica
normocrômica não esteja associada à insuficiência renal ou à hemólise, deve-se pensar
em anemia de doenças crônicas e em doenças envolvendo a medula óssea.
A abordagem das doenças macrocíticas também se baseia na avaliação da
presença de reticulocitose. Se houver aumento de reticulócitos, deve-se pensar em
anemia hemolítica. Na ausência de reticulocitose, as anemias macrocíticas podem ser
divididas em megaloblásticas e não-megaloblásticas.
A anemia megaloblástica é geralmente acompanhada de outras citopenias e o
exame do esfregaço sanguíneo revela hipersegmentação de neutrófilos e
macrovalócitos. O diagnóstico pode ser feito com o exame da medula óssea, que
costuma ser hipercelular, com predominância de precursores eritroides, ou por meio da
documentação de deficiência vitamínica, com resolução da anemia após sua reposição.
Os níveis de desidrogenase lática são caracteristicamente elevados como consequência
da eritropoiese ineficaz, podendo haver também discreto aumento de bilirrubinas
indiretas.
As anemias macrocíticas caracterizadas por macrocitose menos proeminente,
reticulócitos baixos e ausência de macrovalócitos ou hipersegmentação de neutrófilos
sugerem causa não-megaloblástica. Nesses casos, deve ser feita avaliação das funções
hepática e tireoidiana.
Por fim, se forem descartadas as outras hipóteses diagnósticas, deve-se
considerar doenças medulares, como as síndromes mielodisplásicas e a anemia
aplástica, que podem ser acompanhadas de macrocitose e citopenias das outras séries.
Recomenda-se o estudo da medula óssea por meio de mielograma e/ou biópsia.

Tratamento
O ideal é encontrar a causa e aplicar o tratamento apropriado. Eventualmente, no
entanto, a natureza ou gravidade da anemia exigem ações mais imediatas e
inespecíficas, como as transfusões de hemocomponentes.
O conjunto de evidências da literatura indica que não há benefícios em manter
níveis de hemoglobina superiores a 7-10g/dL na maior parte dos pacientes, com dúvidas
no contexto do paciente cardiopata. Não se deve preconizar o uso de transfusões com o
intuito de substituir o tratamento específico de anemias carenciais e não há evidências
de segurança ou efetividade na prática de manter a hemoglobina em níveis pré-
estabelecidos, tanto no contexto de terapia intensiva como na emergência.

Anemia ferropênica

Etiologia e fisiopatologia
Em indivíduos normais, o conteúdo corpóreo total de ferro é mantido dentro de
limites estreitos, sendo as perdas repostas pela dieta. O ferro da dieta é disponível em
duas formas, o ferro heme, presente nas carnes, e o ferro não-heme, presente em
vegetais. O ferro mais bem absorvido é o ferro heme, que praticamente não sofre a
influência de fatores facilitadores ou inibidores. O principal componente da dieta é o
ferro não-heme, cuja biodisponibilidade requer digestão ácida e sofre interferência de

Pedro Kallas Curiati 754


vários fatores facilitadores, como o ácido ascórbico e a carne, e inibidores, como o
cálcio, as fibras, o vinho e os polifenóis presentes no chá e no café.
A deficiência de ferro ocorre quando a demanda é maior do que a absorção do
ferro da dieta, como em faixa etária de crescimento acelerado, gravidez e lactação. Fora
das condições fisiológicas de aumento da demanda, a causa mais comum de anemia
ferropênica em adultos é a perda de sangue. A dieta deficiente isolada não é causa
frequente de carência de ferro. Nas mulheres em idade reprodutiva, a principal causa é a
perda menstrual excessiva. Nos homens e nas mulheres após a menopausa, as perdas
gastrointestinais são as mais frequentes. Os doadores regulares de sangue,
especialmente as mulheres, podem eventualmente sofrer depleção dos estoques de ferro.
Os pacientes com insuficiência renal em tratamento com hemodiálise podem tornar-se
deficientes em ferro devido às restrições da dieta, às perdas na diálise e à estimulação
exógena da eritropoiese pela eritropoetina.
Outra causa de balanço negativo de ferro é a diminuição da absorção. A causa
mais comum é a acloridria, como em gastrite atrófica e gastrectomia. Na doença celíaca,
a deficiência de ferro pode ser a primeira manifestação, na ausência de queixa de
diarreia. A infecção pelo Helicobacter pylori, com ou sem gastrite autoimune
coexistente, tem sido implicada como causa de anemia ferropênica inexplicada ou
resistente ao tratamento.

Quadro clínico
Como a instalação da anemia decorrente de carência de ferro é lenta, o
organismo se adapta e suporta, de forma praticamente assintomática, níveis muito
baixos de hemoglobina. Fadiga, perda da capacidade de exercer atividades habituais,
irritabilidade, cefaleia, palpitações e dispneia aos esforços podem ocorrer. Um sintoma
peculiar é a perversão do apetite.
No exame físico, pouco se encontra além de mucosas descoradas. Geralmente os
pacientes não apresentam taquicardia devido à adaptação à anemia. A língua pode
perder as papilas filiformes. Nos casos de longa duração, pode haver queilite angular e
alterações ungueais, como estrias longitudinais e deformidades. Nos casos associados à
telangiectasias hemorrágica familiar, doença de Rendu Osler Weber, pode haver
alterações características em pele e mucosas.

Avaliação complementar
Hemograma revela hemoglobina baixa, volume corpuscular médio baixo,
hemoglobina corpuscular média baixa, concentração de hemoglobina corpuscular média
baixa e RDW alto. Perfil de ferro revela ferro sérico baixo, capacidade total de ligação
do ferro alta, saturação de transferrina baixa e ferritina sérica baixa. Ferritina normal ou
elevada não exclui carência, visto que pode aumentar em doenças inflamatórias,
infecciosas e neoplásicas e após a ingesta de bebidas alcoólicas.
A dosagem sérica dos receptores de transferrina é inversamente relacionada à
gravidade da deficiência de ferro e pode ser útil para distinguir deficiência de ferro de
anemia das doenças crônicas. Em situações de exceção, em que coexistem diferentes
doenças e é importante confirmar a ferropenia, pode ser necessária a realização de
mielograma com coloração pelo azul da Prússia.
Após o diagnóstico laboratorial de anemia ferropênica, deve ser feita
investigação rigorosa de perdas. As perdas gastrointestinais intermitentes podem ser
difíceis de diagnosticar e a pesquisa deve ser exaustiva. Na ausência de sintomas,
métodos de triagem não-invasivos podem ser úteis para pesquisa de doença celíaca,
como anticorpos antiendomísio e antigliadina, de gastrite atrófica autoimune, como

Pedro Kallas Curiati 755


gastrina sérica e anticorpos anticélula parietal, e de infecção por H. pylori, como teste
respiratório da uréase.

Diagnóstico diferencial
O diagnóstico diferencial deve ser feito com outras causas de microcitose, como
talassemias, anemia sideroblásticas congênita, envenenamento por chumbo e,
eventualmente, anemia das doenças crônicas.

Tratamento
O tratamento de escolha é a reposição de ferro por via oral, além do tratamento,
sempre que possível, da doença de base. O composto mais comumente utilizado é o
Sulfato Ferroso, com 120-180mg de ferro elementar por dia em duas a três doses.
Efeitos colaterais ocorrem em 10-20% dos pacientes, sendo os mais comuns distensão
abdominal, diarreia e obstipação intestinal. A administração do medicamento junto com
as refeições diminui o desconforto abdominal, com melhor adesão ao tratamento, o que
compensa a menor absorção. Suco de laranja e carne aumentam a absorção, enquanto
que cereais, chá, leite e medicações que diminuem o pH gástrico reduzem a absorção.
Em caso de intolerância, pode-se tentar substituir por medicamentos líquidos, que
permitem melhor titulação da dose. Após três semanas de tratamento, observa-se um
aumento médio de 2g/dL na dosagem de hemoglobina. O volume corpuscular médio
aumenta gradativamente. O tratamento visa a normalização da concentração de
hemoglobina e a reposição dos estoques de ferro, que, dependendo da doença de base,
dura em torno de seis meses. O Sulfato Ferroso pode ser utilizado na forma de gotas
com 25mg/mL de ferro elementar, com cerca de 25 gotas por mL, de modo que cada
gota contém 1mg de ferro elementar, ou de drágeas, com 40mg de ferro elementar.
A principal causa de falha de tratamento é falta de adesão. No entanto, deve-se
considerar diagnóstico incorreto, com necessidade de afastar talassemia, anemia das
doenças crônicas, sangramento excessivo com perdas maiores do que a reposição,
outras deficiências associadas e má-absorção do medicamento, que é rara.

Pedro Kallas Curiati 756


O tratamento parenteral é tão efetivo quanto o oral, porém apresenta maiores
riscos e maior custo. As indicações incluem intolerância real ao medicamento por via
oral, perdas muito intensas e maiores do que a reposição oral, incapacidade de absorção
de ferro pelo trato gastrointestinal, doenças do trato gastrointestinal cujos sintomas
podem ser agravados pelo tratamento por via oral, necessidade de reposição rápida dos
estoques e tratamento da anemia da insuficiência renal crônica em fase dialítica e,
eventualmente, em fase pré-dialítica. A dose total é calculada com base na quantidade
necessária para restaurar os níveis de hemoglobina, com quantidade adicional para repor
os estoques, conforme a fórmula Ferro elementar a ser injetado em mg = (15 –
hemoglobina do paciente em g/dL) x peso corpóreo em kg x 3.
A via intramuscular é muito pouco utilizada atualmente e requer cuidados
especiais, como administração profunda, no quadrante superior externo da região glútea,
com técnica em Z para prevenir a pigmentação da pele. Após teste para
hipersensibilidade, a dose máxima diária recomendada é de 100mg de ferro elementar.
Aproximadamente 65% da dose injetada é absorvida em 72 horas e, em média, 25%
permanece no local da injeção por pelo menos quatro semanas, podendo ser
indisponível. Cada ampola de Noripurum® para uso intramuscular contém 330mg de
complexo de Hidróxido de Ferro III Polimaltosado, equivalente a 100mg de Ferro III,
em 2mL.
A via intravenosa tem a vantagem de possibilitar administração de doses maiores
por vez, evitando desconforto e inconveniência de repetidas injeções intramusculares. A
infusão, ao invés da administração direta, diminui o risco de hipotensão. O diluente
deve ser solução fisiológica. Cada mL do medicamento deve ser diluído no mínimo em
20mL de Soro Fisiológico. Deve ser feita uma dose teste antes da administração da dose
completa em local com disponibilidade de suporte para reversão de parada
cardiorrespiratória. Se não ocorrer nenhuma reação adversa durante um período de
aproximadamente quinze minutos, o restante da dose poderá ser administrado. Em geral,
a reposição é feita com infusão de 200mg de ferro elementar diluído conforme as
recomendações, com infusão em duas horas duas vezes por semana até completar a dose
calculada. Cada ampola de Noripurum® para uso intravenoso contém 2500mg de
complexo coloidal de Sacarato de Hidróxido de Ferro III, equivalente a 100mg de Ferro
III, em 5mL.
Reações locais incluem dor e hiperpigmentação da pele e dor em linfonodos
regionais em caso de via intramuscular e dor na veia injetada, vermelhidão e gosto
metálico em caso de via intravenosa. Reações sistêmicas imediatas incluem hipotensão,
cefaleia, mal-estar, urticária, náusea e anafilaxia. Reações sistêmicas tardias incluem
linfadenopatia, mialgia, artralgia e febre.

Anemias hemolíticas

Conceito
As anemias hemolíticas caracterizam-se por sinais de destruição excessiva de
eritrócitos acompanhados de sinais de resposta medular.

Classificação
As anemias hemolíticas podem ser agudas ou crônicas, intravasculares ou
extravasculares, causadas por defeitos intrínsecos ou extrínsecos dos eritrócitos,
hereditárias ou adquiridas.
Anemias hemolíticas hereditárias:
- Defeitos da membrana do eritrócito incluem esferocitose hereditária,

Pedro Kallas Curiati 757


eliptocitose hereditária e estomatocitose hereditária;
- Eritroenzimopatias hereditárias incluem deficiência de glicose-6-fosfato
desidrogenase (G6PD) e deficiência de piruvatoquinase;
- Defeitos hereditários da síntese de hemoglobina incluem doença
falciforme e talassemia;
Anemias hemolíticas adquiridas:
- Anemias hemolíticas imunológicas;
- Anemias hemolíticas traumáticas e microangiopáticas;
- Agentes infecciosos;
- Agentes químicos, drogas e venenos;
- Hipofosfatemia;
- Hemoglobinúria paroxística noturna;
- Acantocitose da hepatopatia;

Quadro clínico
As manifestações mais comuns são palidez e icterícia, acompanhadas ou não por
esplenomegalia.
Início abrupto sugere transfusões incompatíveis, ingesta de substâncias
oxidantes em pacientes com deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD),
doença febril aguda, púrpura trombocitopênica trombótica e anemia hemolítica
autoimune. Taquicardia e outros sintomas de anemia grave podem ser proeminentes.
Início insidioso permite adaptação cardiovascular, com sintomas escassos. A
anamnese deve abranger antecedentes familiares, consanguinidade e ingesta de
medicamentos.

Avaliação complementar
A observação do esfregaço de sangue periférico pode orientar o pedido de
exames específicos conforme a morfologia das hemácias.
A abordagem laboratorial inicial revela anemia normocítica normocrômica ou
macrocítica, reticulocitose absoluta, desidrogenase lática elevada, bilirrubina indireta
elevada, haptoglobina reduzida ou ausente, hemoglobinemia, hemoglobinúria,
hemossiderinúria e hiperplasia eritroide na medula óssea.

Anemia hemolítica autoimune


A anemia hemolítica autoimune é condição clínica incomum. Caracteriza-se por
evidências clínicas e laboratoriais de hemólise, que é causada por anticorpos dirigidos
contra antígenos eritrocitários, sendo a maior parte da classe IgG ou IgM e uma minoria
da classe IgA.
A anemia hemolítica autoimune pode ser classificada de acordo com a
sensibilidade térmica do anticorpo em anemia hemolítica autoimune causada por
anticorpos quentes, que ligam-se mais avidamente aos eritrócitos a 37º C, anemia
hemolítica autoimune causada por anticorpos frios ou crioaglutininas, que reagem mais
fortemente a 4º C, e tipo misto.
O diagnóstico é baseado em evidências clínicas e laboratoriais de hemólise e em
demonstração da presença de anticorpos dirigidos contra as hemácias do próprio
indivíduo. O principal teste diagnóstico é o teste da antiglobulina humana direto (TAD)
ou teste de Coombs direto. A pesquisa de anticorpos irregulares no soro (PAI) ou teste
de Coombs indireto detecta os anticorpos presentes no soro, que podem decorrer tanto
de autoimunidade como de aloimunização secundária a transfusões ou gestações
múltiplas. Nas anemias hemolíticas autoimunes, o teste de Coombs direto é positivo,

Pedro Kallas Curiati 758


mas não é patognomônico, podendo estar presente em diversas condições. Já o teste de
Coombs indireto pode ser positivo ou negativo.

Anemia hemolítica autoimune por anticorpos quentes


Anemia hemolítica autoimune por anticorpos quentes é o tipo mais frequente,
sendo necessária investigação pormenorizada para excluir condições de base, que
incluem doenças autoimunes, como lúpus eritematoso sistêmico, artrite reumatoide,
esclerodermia e síndrome do anticorpo antifosfolípide, doenças linfoproliferativas,
como leucemia linfoide crônica, linfoma de Hodgkin, linfomas não-Hodgkin, mieloma
múltiplo e macroglobulinemia de Waldenström, doenças inflamatórias crônicas, como
colite ulcerativa, imunodeficiências, como hipogamaglobulinemia e disglobulinemia,
infecções, como hepatite C, mononucleose infecciosa e síndrome da imunodeficiência
adquirida, neoplasias benignas, como timoma, teratoma e cisto dermóide de ovários, e
vacinação contra difteria-tétano-pertussis.
O quadro clínico é variável, podendo a apresentação ser insidiosa ou súbita. Em
cerca de metade dos casos há esplenomegalia e em um terço há hepatomegalia.
Eventualmente existe associação com plaquetopenia autoimune. O teste da antiglobulina
direto (TAD) positivo confirma o diagnóstico, geralmente com anticorpos da classe
IgG.
Os medicamentos de escolha para o tratamento dos pacientes com hemólise
franca são os corticosteroides, com Prednisona 40mg/m2/dia por via oral, que pode ser
precedida por Metilprednisolona 1000mg/dia por via intravenosa em pulsos durante três
dias. Se o paciente não responder ou for intolerante a corticosteroides, devem ser
considerados os tratamentos de segunda linha, como esplenectomia e drogas
imunossupressoras, como a Azatioprina e a Ciclofosfamida. As opções para os
pacientes que não respondem aos tratamentos de primeira e de segunda linha são
imunoglobulinas em altas doses, Ciclofosfamida intravenosa, Micofenolato Mofetil e
Rituximabe. As transfusões de sangue devem ser evitadas tanto quanto possível e a
decisão deve ser baseada mais em critérios clínicos do que em dados laboratoriais.

Doença primária das crioaglutininas


A doença primária das crioaglutininas e a hemoglobinúria paroxística ao frio são
as duas formas de anemia hemolítica autoimune por anticorpos frios. A doença das
crioaglutininas é a mais comum. Seu quadro clínico depende do título e da amplitude
térmica do anticorpo. As aglutininas frias são, com raras exceções, anticorpos da classe
IgM. Pacientes com anticorpos com grande amplitude térmica podem ter hemólise
independentemente da exposição ao frio.
Condições associadas incluem neoplasias, como macroglobulinemia de
Waldenström, linfoma angioimunoblástico, sarcoma de Kaposi, leucemia linfoide
crônica e mieloma múltiplo, doenças autoimunes, eosinofilia tropical e infecções, como
Mycoplasma pneumoniae, vírus Epstein-Barr, adenovírus, citomegalovírus, influenza,
HIV, Legionella sp, listeriose, endocardite bacteriana subaguda, sífilis, malária e
tripanossomíase.
As formas agudas, comumente associadas à infecção por Mycoplasma
pneumoniae ou à mononucleose infecciosa, são caracterizadas por início abrupto,
eventualmente fulminante, com anemia rapidamente progressiva, icterícia e
esplenomegalia, sendo o curso autolimitado. A doença crônica pode ser primária ou
secundária, sendo geralmente associada às linfoproliferações malignas. O esfregaço de
sangue revela grande aglutinação de hemácias, que causam elevação espúria do volume
corpuscular médio. Geralmente há pico monoclonal IgM kappa.

Pedro Kallas Curiati 759


Pacientes com pouca hemólise não requerem tratamento, bastando evitar
exposição ao frio. Em pacientes sintomáticos, os corticosteroides geralmente não são
eficazes e não há, geralmente, benefício com a esplenectomia. Entre as drogas
citotóxicas, o Clorambucil pode ser eficaz, assim como a Ciclofosfamida. O Rituximabe
tem sido usado em alguns casos, com resultados promissores. As indicações de
transfusões de sangue seguem os mesmos princípios da anemia hemolítica autoimune
por anticorpos quentes.

Hemoglobinúria paroxística ao frio


A hemoglobinúria paroxística ao frio foi classicamente descrita em pacientes
com sífilis, mas atualmente é mais associada a infecções virais na infância. Os sintomas
são decorrentes de hemólise aguda após exposição ao frio, com hemoglobinúria. A
doença é causada por uma hemolisina bifásica denominada anticorpo de Donath-
Landsteiner, uma IgG que se liga aos glóbulos vermelhos a 4º C e torna-se hemolítica
após ligação com o complemento a 37º C. Eventualmente o diagnóstico laboratorial é
difícil, exigindo técnicas especializadas. O tratamento da sífilis geralmente contribui
para a melhora da maioria dos pacientes. Já nos casos agudos pós-infecciosos, a
recuperação é espontânea. Nos casos idiopáticos crônicos, a única medida eficaz é evitar
o frio. Transfusões de sangue são ocasionalmente necessárias.

Anemia hemolítica autoimune induzida por fármacos


Anemia hemolítica autoimune induzida por fármacos pode ser causada por
adsorção, como ocorre com Penicilina, Cefalotina, Ampicilina, Meticilina,
Carbenicilina e Cefotaxima, formação de neoantígeno, como ocorre com Quinina,
Quinidina, Hidroclorotiazida, Rifampicina, anti-histamínicos, sulfonamidas, Isoniazida,
Clorpromazina, Tetraciclina, Paracetamol, Hidralazina, Probenecida, cefalosporina e
meios de contraste radiográfico, e modificação na membrana do glóbulo vermelho,
como ocorre com α-Metildopa, Procainamida, Ibuprofeno, Diclofenaco, Ácido
Mefenâmico e Interferon-α. Os três mecanismos podem ser distinguidos pelas reações
imuno-hematológicas no soro e no Eluato. O tratamento varia de suspensão do fármaco
a utilização de imunossupressores.

Anemias hemolíticas traumáticas e microangiopáticas


As anemias hemolíticas microangiopáticas são causadas por traumas mecânicos
das hemácias na microcirculação. Em geral, estão associadas a processos oclusivos
microvasculares, com agregação plaquetária anormal, sistêmica ou localizada em
determinados órgãos, e plaquetopenia. O dado morfológico diagnóstico é a presença de
esquizócitos. As síndromes de fragmentação eritrocitária podem também ser decorrentes
de anormalidades do coração e de grandes vasos, sendo denominadas
macroangiopáticas.
As anemias hemolíticas microangiopáticas são caracterizadas por plaquetopenia,
fragmentação de eritrócitos, reticulocitose e aumento dos níveis de desidrogenase lática.
Condições clínicas associadas a fenômenos microangiopáticos incluem púrpura
trombocitopênica trombótica, síndrome hemolítico-urêmica, carcinomatose
disseminada, quimioterapia antineoplásica, hipertensão arterial maligna, coagulação
intravascular disseminada, infecções, doenças autoimunes e hemangiomas gigantes. A
gravidez e o puerpério parecem ser situações de particular suscetibilidade.
Microangiopatia trombótica pode ocorrer também após transplante de órgãos e após o
uso de inúmeras drogas, como Quinina, Clopidogrel, Ciclosporina e Tacrolimo.
As manifestações clínicas dependem dos locais preferencialmente envolvidos.

Pedro Kallas Curiati 760


Acometimento do sistema nervoso central é mais frequente na púrpura
trombocitopênica trombótica do que na síndrome hemolítico-urêmica, na qual
predomina o comprometimento renal.

Púrpura trombocitopênica trombótica


Doença grave, potencialmente fatal, caracterizada por falha em degradar
multímeros do fator de von Willebrand de altíssimo peso molecular, com formação de
trombos plaquetários. Pode ser causada por deficiência congênita ou adquirida
autoimune da metaloprotease responsável por essa função.
O quadro clínico é caracterizado por plaquetopenia, anemia hemolítica
microangiopática, alterações neurológicas, febre e, em casos mais graves, alterações
renais. Laboratorialmente, há grande elevação de desidrogenase lática, reticulocitose,
esquizócitos no sangue periférico e plaquetopenia.
A base da abordagem terapêutica consiste em aumentar a capacidade plasmática
de degradação dos multímeros de von Willebrand de altíssimo peso molecular por meio
da infusão de plasma fresco congelado na maior quantidade possível sem levar à
hipervolemia. Como a quantidade a ser administrada é muito grande, a forma mais
segura e racional é a plasmaférese. Corticosteroides são geralmente utilizados na forma
de pulsoterapia, mas faltam evidências de benefício. Transfusões de plaquetas são
associadas a piora clínica e devem ser indicadas somente se houver sangramento ativo
com risco iminente de morte.

Síndrome hemolítico-urêmica
Condição semelhante à púrpura trombocitopênica trombótica, porém com
fisiopatologia distinta e grau de insuficiência renal mais pronunciado. Na infância, está
frequentemente relacionada a infecções causadas por enterobactérias, ocorrendo em
parcela significativa dos episódios de diarreia sanguinolenta por E. coli. Exotoxinas
produzidas pelas bactérias estão na gênese do processo patológico. Formas esporádicas
associadas a infecções virais ocorrem em adultos. A plasmaférese não tem o efeito
observado na púrpura trombocitopênica trombótica.

Hemoglobinúria paroxística noturna


A hemoglobinúria paroxística noturna é uma doença clonal adquirida da célula
tronco hematopoética caracterizada por hemólise intravascular, fenômenos trombóticos
e graus variáveis de insuficiência medular. Há sensibilidade aumentada à lise mediada
pelo complemento. Pode coexistir com outras doenças hematológicas, como síndromes
mieloproliferativas, mielodisplasias, aplasias e hipoplasias de medula óssea.
O quadro clínico é variável, dependendo do tamanho do clone anormal e da
intensidade da insuficiência medular. Nos quadros em que predomina a anemia
hemolítica, existe maior tendência trombótica. A anemia hemolítica é intravascular, mas
o quadro típico de hemoglobinúria após o sono, caracterizada pela presença de urina
escura pela manha, ocorre apenas em cerca de um quarto dos pacientes. A trombose
geralmente é venosa e acomete sítios nobres, particularmente o território mesentérico e
supra-hepático.
Nos quadros associados à presença de grandes clones, geralmente existem sinais
laboratoriais típicos de hemólise intravascular, como reticulocitose e aumento de
desidrogenase lática e de bilirrubina indireta, em associação ou não a graus variáveis de
leucopenia e plaquetopenia. Nos casos associados à aplasia medular, a porcentagem de
reticulócitos não-corrigida está discretamente aumentada, refletindo um encurtamento
da vida média dos eritrócitos, embora o número absoluto ou a porcentagem corrigida

Pedro Kallas Curiati 761


pelo hematócrito estejam baixos, refletindo a insuficiência medular.
O diagnóstico deve ser considerado em caso de citopenia ou pancitopenia de
etiologia não-esclarecida, anemia hemolítica intravascular não-imunológica na qual já
foi excluída microangiopatia, trombose venosa envolvendo grandes vasos abdominais e
anemia ferropênica sem causa aparente, em que deve-se excluir perdas por
hemoglobinúria. No entanto, o diagnóstico só é confirmado por meio de testes
específicos, como a pesquisa da expressão das moléculas CD55 e CD59 na superfície
dos eritrócitos ou, preferencialmente, dos granulócitos, por técnica de citometria de
fluxo.
Durante as crises hemolíticas, o tratamento é feito com transfusões de
concentrado de hemácias. A recomendação de administrar hemocomponente lavados
para evitar crises hemolíticas é controversa, mas ainda é comum. Os episódios de
trombose e as intercorrências infecciosas devem ser tratados com as medidas utilizadas
para qualquer paciente com tais complicações. Alguns estudos sugerem anticoagulação
profilática com dicumarínicos em pacientes com clones superiores a 50%, mesmo sem
trombose prévia. Em indivíduos selecionados, especialmente os muito jovens e com
grandes clones, pode ser considerado o transplante alogênico de medula óssea. Há
estudos em andamento sobre o uso de um inibidor da ação do complemento,
aparentemente com boa resposta em relação à hemólise.

Anemias megaloblásticas

Conceito
As anemias megaloblásticas constituem um subgrupo das anemias macrocíticas
caracterizado por anormalidades morfológicas típicas nas células precursoras das
linhagens eritrocítica, granulocítica e megacariocítica da medula óssea, secundárias à
síntese retardada do DNA. A síntese do RNA permanece inalterada, embora a divisão
celular esteja comprometida, com célula maior do que o normal, núcleo imaturo,
cromatina reticulada e citoplasma maduro.

Etiologia e fisiopatologia

Vitamina B12
A vitamina B12, também denominada cobalamina, está presente somente em
bactérias e alimentos de origem animal. A maioria da vitamina B12 presente nos
alimentos está ligada a proteínas, sendo liberada por proteólise durante a digestão
péptica ácida no estômago. Une-se então à proteína R, também denominada
haptocorrina, presente na saliva e no suco gástrico. O complexo da vitamina B12 com a
haptocorrina é quebrado pela tripsina do suco pancreático no pH alcalino da segunda
porção do duodeno, onde a vitamina B12 se liga ao fator intrínseco produzido pelas
células parietais do corpo e do fundo gástrico. O complexo da vitamina B12 com o
fator intrínseco prossegue até o íleo terminal, onde se une a receptores específicos da
membrana das células epiteliais, que mediam a absorção. A vitamina B12 é
termoestável, resistindo a cozimento em altas temperaturas.
A deficiência nutricional de vitamina B12 acomete vegetarianos, particularmente
os estritos, que não consomem produtos de origem animal, e populações com hábitos
impostos pela pobreza.
Má-absorção da cobalamina dos alimentos pode caracterizar-se pela dissociação
inadequada da cobalamina da proteína dos alimentos e por absorção normal de
cobalamina livre. Ocorre predominantemente em pacientes com cirurgia gástrica ou

Pedro Kallas Curiati 762


gastrite atrófica, mas com secreção normal do fator intrínseco. Pacientes em uso de
medicamentos supressores da secreção ácida também absorvem mal a cobalamina dos
alimentos, embora raramente apresentem deficiência.
A deficiência de fator intrínseco associada à produção deficiente de ácido
clorídrico pode ser decorrente de gastrectomia total ou parcial, destruição da mucosa
gástrica pela ingesta de substâncias cáusticas ou gastrite atrófica crônica secundária à
destruição autoimune das células parietais da mucosa, denominada anemia perniciosa.
Na insuficiência pancreática, existe deficiência de protease pancreática, com
dificuldade para quebrar a ligação da cobalamina com a haptocorrina. A hipersecreção
gástrica causada por um gastrinoma, como na síndrome de Zollinger-Ellison, além de
poder inativar a protease pancreática endógena, ainda reduz o pH no lúmen intestinal e
pode impedir a ligação do complexo da cobalamina com o fator intrínseco aos
receptores das células intestinais no íleo. O supercrescimento bacteriano no intestino
delgado pode acontecer em situações de estase, diminuição da motilidade e
hipogamaglobulinemia, com favorecimento da colonização por bactérias que competem
pela vitamina B12 livre antes de sua ligação com o fator intrínseco. As infestações
maciças por Diphyllobothrium latum, derivadas do hábito de consumir peixe cru,
podem levar à deficiência de vitamina B12 por consumo pelos vermes adultos.
As ressecções, as disfunções ou os desvios envolvendo o íleo terminal podem
resultar em má-absorção de vitamina B12.
Alguns medicamentos, como a Metformina, o Cloreto de Potássio de liberação
lenta, a Colestiramina, a Colchicina e a Neomicina, podem alterar a absorção de
vitamina B12, com inibição do transporte transenterocítico ou transepitelial. O Óxido
Nitroso inativa a cobalamina de forma irreversível.

Folatos
Os folatos são sintetizados por micro-organismos e plantas. As principais fontes
da dieta são vegetais, especialmente folhas verdes e frutas, e proteína animal. O ácido
fólico pode ser absorvido inalterado, mas o folato dos alimentos, sob a forma de
poliglutamato, deve ser hidrolisado a monoglutamato na borda em escova do enterócito
antes de ser transportado para o interior da célula. Os folatos são termolábeis e podem
ser destruídos por cozimento, especialmente fervura. A absorção ocorre
predominantemente no jejuno. A deficiência pode ser decorrente de diminuição do
suprimento ou de aumento das necessidades.
A gravidez e a lactação são estados em que ocorre aumento das necessidades de
folatos para o crescimento fetal e o desenvolvimento dos tecidos maternos. Os pacientes
com hemólise crônica e com doenças exfoliativas da pele têm aumento das necessidades
devido ao aumento da produção celular.
O esprú tropical e a doença celíaca podem cursar com deficiência de folatos
devido à má-absorção causada pelas anormalidades da mucosa intestinal.
O abuso de álcool é causa frequente de deficiência de folatos porque, além de
causar alterações na qualidade da dieta, ainda pode interferir no metabolismo, na
utilização e no estoque.
Dentre os medicamentos, o Trimetoprim, a Pirimetamina e o Metotrexato
causam inibição da dihidrofolato redutase, que pode ser revertida pelo ácido folínico. A
Sulfassalazina induz megaloblastose por diminuir a quebra de poliglutamatos a
monoglutamato antes da absorção ou por induzir anemia hemolítica, com aumento das
necessidades. Os contraceptivos orais podem aumentar o catabolismo dos folatos,
enquanto que os anticonvulsivantes diminuem a absorção. Quimioterápicos,
antineoplásicos e agentes anti-retrovirais induzem megaloblastose por interferir na

Pedro Kallas Curiati 763


síntese do DNA.

Quadro clínico
O quadro clínico da deficiência de vitamina B12 e da deficiência de folatos é
muito semelhante, exceto quanto à disfunção neurológica.
A anamnese deve abranger informações sobre dieta, abuso de álcool, história
familiar de doenças hematológicas e autoimunes, uso de anticonvulsivantes, anemias
hemolíticas, doenças intestinais, cirurgias gástricas ou intestinais, inalação acidental ou
proposital de óxido nitroso.
Os sintomas de apresentação geralmente são os de anemia crônica, que, com a
progressão, associam-se a sintomas cardiovasculares. Há palidez e icterícia, com
coloração amarelo-esverdeada da pele. Atrofia das papilas linguais é comum, com
língua lisa e muito vermelha. Além da presença de glossite, outras mucosas também
podem ser acometidas. Aumento da tireoide pode estar presente nos casos com
componente de autoimunidade. Nos casos com anemia grave e sintomas
cardiovasculares, pode haver esplenomegalia discreta devido à congestão e à
hematopoese extramedular.
Na deficiência de vitamina B12, sintomas neurológicos podem acompanhar o
quadro de anemia, mas podem ocorrer também na ausência de anormalidades
hematológicas. A doença neurológica afeta principalmente a substância branca das
colunas lateral e dorsal da medula espinal, com desmielinização. Os sintomas sensoriais
subjetivos constituem a mais precoce e frequente evidência de envolvimento do sistema
nervoso central. Mais comumente, o paciente experimenta parestesias que começam na
ponta dos pés e evoluem para uma distribuição em bota e luva nos quatro membros.
Fraqueza muscular, ataxia, espasticidade, distúrbios da marcha, reflexo de Babinski,
impotência e perda do controle vesical e fecal podem ocorrer em casos avançados. Os
sintomas cerebrais incluem alterações emocionais e cognitivas em graus variáveis de
intensidade. Tanto as alterações da medula espinal como do cérebro podem ser
detectadas por ressonância nuclear magnética. Manifestações menos comuns incluem
oftalmoplegia, perversão do apetite e do olfato e neurite retrobulbar. Diferente da
anemia, a lesão neurológica nem sempre responde ao tratamento com cobalamina. O
tratamento com ácido fólico em pacientes com deficiência de vitamina B12 pode
permitir o aparecimento da lesão neurológica ou eventualmente acelerá-lo, de modo que
folato não deve ser administrado isoladamente como teste terapêutico. Embora raras, a
neuropatia periférica, a neuropatia óptica e a degeneração combinada subaguda da
medula espinal têm sido descritas na deficiência de folatos.
Os pacientes que apresentam deficiência de vitamina B12 em consequência de
anemia perniciosa podem ter outros distúrbios imunológicos associados, como
hipotireoidismo, vitiligo, hipoparatireoidismo, hipoadrenalismo e miastenia gravis.

Avaliação complementar
Hemograma pode revelar alterações em número e morfologia nas três séries. A
anemia está presente em graus variáveis e, na ausência de doenças associadas, é
macrocítica e com reticulócitos baixos. A macrocitose precede o aparecimento da
anemia e pode ser obscurecida ou mascarada pela coexistência de deficiência de ferro,
talassemia ou doença inflamatória. Os leucócitos podem estar em número normal ou
reduzido, geralmente como resultado de neutropenia. As plaquetas podem estar
reduzidas em número, com formas bizarras e de grande tamanho. Quanto às
características morfológicas do sangue periférico, os dois achados mais importantes são
hipersegmentação dos neutrófilos e macroovalocitose dos eritrócitos, detectados pela

Pedro Kallas Curiati 764


análise do esfregaço de sangue.
A medula óssea é celular e geralmente hiperplásica, com predomínio de
precursores eritroides. A leucopoese está ativa, mas também é anormal. A proliferação
dos megacariócitos costuma ser menos comprometida.
A concentração plasmática de ferro está moderadamente elevada quando não há
deficiência de ferro associada. A capacidade total de ligação de ferro do plasma está
discretamente diminuída. Os estoques de ferro da medula óssea, assim como o número
de sideroblastos, tendem a estar aumentados devido à não utilização do ferro pelas
células eritroides, que são destruídas precocemente na medula óssea, com eritropoiese
ineficiente. Há produção excessiva de pigmento biliar, responsável por aumento leve da
bilirrubina indireta em alguns pacientes. Os níveis de desidrogenase lática estão muito
aumentados pelo mesmo motivo.
A avaliação laboratorial, frente à suspeita de deficiência de vitamina B12 ou de
folatos, começa com a determinação dos níveis séricos e então progride, se necessário,
para testes confirmatórios baseados na dosagem dos metabólitos ácido metilmalônico e
homocisteína. A concentração de vitamina B12 pode estar falsamente diminuída em
pacientes com deficiência de folatos, mieloma múltiplo, esclerose múltipla, HIV,
gravidez, uso de anticoncepcionais orais, deficiência de transcobalamina II e uso de
medicamentos com ação anti-folato. Níveis elevados de cobalamina podem ser
encontrados em pacientes com insuficiência renal, leucemia mieloide crônica, leucemia
promielocítica aguda e câncer metastático com reação leucemoide, mascarando a
deficiência da vitamina. O nível sérico de folato é altamente sensível à ingesta de uma
única refeição rica em folatos.
Ambos os metabólitos homocisteína e ácido metilmalônico aumentam
precocemente na deficiência de vitamina B12. O ácido metilmalônico aumenta no soro
e na urina na deficiência de cobalamina, mas não na de folato, sendo teste mais
específico do que a homocisteína. A dosagem de homocisteína plasmática total é mais
barata e mais disponível. É recomendado sempre dosar a creatinina sérica, pois existe
correlação com os níveis de creatinina, mesmo na ausência de insuficiência renal. A
homocisteína está aumentada também em caso de insuficiência renal, abuso de álcool,
deficiência de vitamina B6, hipotireoidismo, uso de certos medicamentos como a
Isoniazida e erros inatos do metabolismo da homocisteína. Apesar da falta de
discriminação entre a deficiência de cobalamina e folato limitar sua utilidade
diagnóstica, um resultado normal ajuda a excluir as deficiências.
Anticorpos séricos antifator intrínseco são encontrados em parcela significativa
dos pacientes com anemia perniciosa. Apesar da sensibilidade limitada, o teste é útil
pela elevada especificidade. Os anticorpos anticélulas parietais gástricas ocorrem na
maior parte dos pacientes, mas sua utilidade é limitada por serem específicos para
gastrite imunológica, mas não para anemia perniciosa.
O teste de Schilling avalia o local e a etiologia da má-absorção de cobalamina.
Uma dose de vitamina B12 é administrada por via intramuscular para saturar os
depósitos. Após isso, é administrada uma dose por via oral de vitamina B12 marcada
com 57Co, radioativo, e a excreção é medida na urina de 24 horas. A principal causa de
erro é a coleta inadequada de urina e a presença de insuficiência renal. Se a excreção da
vitamina marcada for baixa, o exame é repetido com administração concomitante de
fator intrínseco. Se a excreção normalizar, significa que a falha de absorção é decorrente
da ausência de fator intrínseco. Se não houver correção, o problema deverá ser
intestinal. Se houver suspeita de supercrescimento bacteriano, recomenda-se tratar com
antibióticos apropriados e repetir o teste. Se não houver correção, o problema pode ser
decorrente de infestação por Diphyllobothrium latum, de anormalidades do íleo ou de

Pedro Kallas Curiati 765


deficiência de transcobalamina II.
A endoscopia gástrica pode revelar aspecto característico da mucosa atrófica e a
biópsia confirma o diagnóstico, sendo importante excluir neoplasias. Na gastrite
atrófica, haveria risco aumentado de tumor carcinoide e de carcinoma gástrico.

Diagnóstico
A anemia megaloblástica faz parte do diagnóstico diferencial das anemias
macrocíticas, que abrangem reticulocitose em resposta à perda de sangue ou à hemólise,
insuficiência da medula óssea por aplasia medular ou mielodisplasia, doença hepática,
toxicidade do etanol e de agentes quimioterápicos, doenças da tireoide e deficiência de
vitaminas. A abordagem prevê inicialmente reconhecer que a anemia megaloblástica
está presente, então distinguir se a deficiência é de folato, de vitamina B12 ou
combinada e então diagnosticar a doença de base ou o mecanismo causador.

Tratamento
O tratamento consiste em identificar e tratar a causa de base e, quando possível,
corrigir a deficiência.

Deficiência de vitamina B12


A reposição parenteral é feita com 1000mcg de Vitamina B12 por via
intramuscular uma vez por semana durante quatro semanas e uma vez por mês a partir
de então. A apresentação é na forma de ampolas de 1000mcg com 2mL. É possível
espaçar as injeções para intervalos trimestrais ou até maiores, desde que seja realizado
controle com dosagens séricas prévias à administração da próxima dose. O tratamento
deve permanecer ao longo da vida quando a causa de base não puder ser removida,
como é o caso da anemia perniciosa. Praticamente não ocorrem efeitos colaterais
relacionados à administração de Vitamina B12, sendo descrito como único efeito
colateral reação alérgica ocasional, geralmente pelo conservante.
A reposição por via oral permanece, até o momento, como indicação de exceção,
apenas em alterações da hemostasia, quando não for possível utilizar a via
intramuscular. As doses recomendadas variam de 500-1000mcg/dia até 1000-
2000mcg/dia. Está disponível no Citoneurin® 5000, em que cada drágea contém 100mg
de Tiamina (Vitamina B1), 100mg de Cloridrato de Piridoxina (Vitamina B6) e
Cobalamina (Vitamina B12) 5000mcg.
A resposta ótima a doses terapêuticas de Vitamina B12 confirma o diagnóstico
de deficiência. Uma resposta subótima pode indicar que o diagnóstico inicial estava
errado ou, mais frequentemente, que existe uma causa associada, como deficiência de
ferro, infecções, doenças inflamatórias crônicas e insuficiência renal. Vale observar que
o tratamento com 5mg/dia de Ácido Fólico pode causar uma resposta hematológica
ótima na anemia megaloblástica por deficiência de Vitamina B12, mas neuropatia e/ou
recaída hematológica se desenvolvem após alguns meses. Tratamento com Vitamina
B12 não causa resposta ideal na presença de deficiência de folato.

Folatos
A reposição com Ácido Fólico é feita, habitualmente, por via oral, com uma
dose diária de 1mg. A maioria das preparações tem 5mg de Ácido Fólico, bastando
administrar um comprimido por dia. A duração do tratamento depende da doença de
base. O Leucovorin é indicado apenas em pacientes que não conseguem reduzir o Ácido
Fólico, como aqueles que usam drogas que inibem a di-hidrofolato-redutase ou que
possuem determinados erros inatos do metabolismo dos folatos. A toxicidade do Ácido

Pedro Kallas Curiati 766


Fólico é mínima e ocorre apenas ocasionalmente em pacientes que recebem grandes
doses por via intravenosa.

Resposta ao tratamento
A resposta ao tratamento ocorre muito rapidamente e, por esse motivo, a coleta
de exames deve preceder a administração do medicamento. O sinal mais útil é a
reticulocitose, que aparece em dois a três dias, com pico máximo em cinco a oito dias.
Após cinco a sete dias, observa-se aumento de hemoglobina e hematócrito, com valores
normais em quatro a oito semanas, independentemente do grau de anemia. O volume
corpuscular médio diminui gradualmente e os números de neutrófilos e de plaquetas
normalizam em uma semana. Os neutrófilos hipersegmentados desaparecem em
quatorze dias. Na medula óssea, a eritropoiese ineficiente reverte em 24 horas. O ferro
sérico diminui em 24-48 horas para níveis subnormais e pode permanecer baixo por
várias semanas. O folato sérico diminui nas primeiras 24 horas após o tratamento e os
níveis de desidrogenase lática normalizam em uma a duas semanas.

Anemias hereditárias

Doenças da membrana eritrocitária

Esferocitose hereditária
A esferocitose hereditária é uma doença hemolítica familiar caracterizada por
anemia, icterícia intermitente, esplenomegalia de graus variáveis e resposta favorável à
esplenectomia. A forma de herança é autossômica dominante em 75% e não-dominante
em 25% dos casos. Pode ser diagnosticada em qualquer período da vida.
A alteração responsável pelo aparecimento dos esferócitos envolve
anormalidades nas interações verticais entre as proteínas da membrana eritrocitária. A
desestruturação da membrana leva à perda de lípides, com consequente formação de
esferócitos.
A anemia é, em geral, leve a moderada, mas pode ser muito acentuada. A
icterícia pode ser pronunciada nos recém-nascidos, com necessidade de
exsanguineotransfusão. Após o período neonatal, a icterícia costuma tornar-se leve a
moderada, podendo ser intermitente, piorando em associação com esforço físico,
infecções, estresse emocional e gravidez. A esplenomegalia está presente em mais de
75% dos casos. Cálculos biliares são frequentes. Como em outras anemias hemolíticas
crônicas constitucionais, podem surgir úlceras de perna. Agravamento agudo da anemia
pode ocorrer nas crises de anemia aplástica, decorrente de infecção pelo parvovírus
humano B19, ou megaloblástica, decorrente de deficiência de folatos, podendo estar
associada a leucopenia e a plaquetopenia. Hematopoese extramedular, simulando
tumores, principalmente paravertebrais e mediastinais, é complicação da doença.
Anemia pode estar presente ou ausente, mas reticulocitose ocorre em todos os
casos e reflete tentativa de compensação medular. Hiperbilirrubinemia indireta e
aumento de desidrogenase lática também ocorrem. Presença de esferócitos é
característica da doença, embora possa ocorrer também nas anemias hemolíticas
autoimunes por anticorpos quentes, que devem ser excluídas através do teste de Coombs
direto. Ocorre aumento da concentração de hemoglobina corpuscular média. A
fragilidade osmótica está aumentada e a deformabilidade eritrocitária, estudada por
ectacitometria, está diminuída. O estudo das proteínas da membrana pode orientar a
pesquisa do defeito genético.
No período neonatal, casos com hemólise grave e hiperbilirrubinemia acentuada,

Pedro Kallas Curiati 767


com risco de Kernicterus, podem necessitar de exsanguineotransfusão. Como em todas
as anemias hemolíticas crônicas, a necessidade de folatos está aumentada, sendo
indicada a suplementação com Ácido Fólico 1-5mg/dia por via oral. Transfusões de
sangue podem ser necessárias durante exacerbação de hemólise e nos episódios de
crises aplástica e megaloblástica. A esplenectomia é considerada curativa e está
indicada nos quadros mais graves, com hemoglobina inferior a 8g/dL e reticulócitos
acima de 10%, na presença de comprometimento físico e intelectual devido à anemia,
na vigência de eritropoiese extramedular e em caso de cálculos biliares, podendo ser
realizada por técnica tradicional ou por laparoscopia, em geral após os seis anos de
idade. Todos os pacientes devem receber vacinação antipneumocócica,
preferencialmente algumas semanas antes da cirurgia. Vacinação contra Haemophilus
influenzae e N. meningitidis, assim como antibioticoterapia profilática após a
esplenectomia estão indicadas em crianças.

Eliptocitose hereditária
A eliptocitose hereditária compreende um grupo de doenças caracterizadas pela
presença de hemácias elípticas no sangue periférico, geralmente sem repercussão
clínica. Ocasionalmente, no entanto, pode cursar com anemia hemolítica de graus
variáveis, com necessidade de transfusão de sangue e esplenectomia.
A eliptocitose hereditária comum é causada por defeitos nas chamadas
interações horizontais entre as proteínas da membrana eritrocitária. Nas formas
heterozigotas, não ocorrem anemia, esplenomegalia e reticulocitose. Nas formas
homozigotas ou com dupla heterozigose, a hemólise pode ser proeminente, com anemia,
reticulocitose e fragmentação celular. A piropoiquilocitose hereditária é uma forma rara
de eliptocitose hereditária que se caracteriza por acentuada fragmentação celular e
sensibilidade térmica anormal.
A avaliação morfológica das hemácias no esfregaço de sangue periférico é o
principal elemento para a avaliação diagnóstica e da gravidade do quadro. Para a
identificação do defeito de base, é necessário o estudo das proteínas da membrana em
centros especializados.
Como não há manifestações clínicas na maioria dos casos, em geral não há
necessidade de tratamento. Pacientes com hemólise crônica e anemia podem se
beneficiar da esplenectomia. O uso de Ácido Fólico está indicado nos casos com anemia
hemolítica.

Estomatocitose hereditária
O termo estomatocitose hereditária designa uma série de doenças hereditárias do
eritrócito, caracterizadas por anormalidades no mecanismo de regulação do volume
celular. Dependendo do tipo de defeito, as células tornam-se hiper-hidratadas, com
hidrocitose hereditária, desidratadas, com xerocitose hereditária, ou com fenótipos
intermediários.
A estomatocitose hereditária cursa com anemia hemolítica leve a moderada, com
reticulocitose e macrocitose. A concentração de hemoglobina corpuscular média está
elevada na xerocitose e diminuída na hidrocitose. O diagnóstico é baseado na
determinação da quantidade intraeritrocitária de sódio e potássio, além de provas
específicas com as quais são estudados os diversos canais de troca iônica da membrana
eritrocitária. A ectacitometria em gradiente osmótico parece ser o teste diagnóstico mais
importante na identificação das células estomatocíticas. Além dos sinais laboratoriais de
hemólise, os pacientes com estomatocitose cursam com sobrecarga de ferro,
apresentando aumento da saturação de transferrina e hiperferritinemia,

Pedro Kallas Curiati 768


independentemente da necessidade de transfusão de sangue. Esplenomegalia e cálculos
biliares são achados comuns.
Com relação ao tratamento, a esplenectomia, além de não melhorar a anemia,
está contraindicada em função de frequentes complicações trombóticas.

Eritroenzimopatias

Deficiência de glicose-6-fosfato-desidrogenase (G6PD)


A glicose-6-fosfato-desidrogenase (G6PD) é uma enzima integrante do shunt das
pentoses ou via da hexose monofosfato. É importante na manutenção dos níveis de
glutationa reduzida, que protege a hemácia de danos oxidativos. A doença tem herança
ligada ao cromossomo X. Quanto menor a atividade enzimática, maior a intensidade do
quadro clínico.
A deficiência de glicose-6-fosfato-desidrogenase (G6PD) causa mais
frequentemente anemia hemolítica episódica relacionada a fatores precipitantes, como
infecções ou ingesta de substâncias oxidantes, como derivados de sulfa, antimaláricos,
antibióticos e analgésicos. O quadro clínico geralmente é de início súbito, com palidez,
icterícia e urina seca, podendo ser acompanhado por dor abdominal ou lombar. Mais
raramente, pode causar anemia hemolítica crônica.
A avaliação laboratorial revela queda de hemoglobina de 3-4g/dL, reticulocitose,
células fragmentadas, microesferócitos e bite cells.
O quadro hemolítico em geral é autolimitado e melhora sem tratamento em
alguns dias. O agente causal deve ser retirado sempre que possível e o processo
infeccioso, quando presente, deve ser tratado. Nos casos graves pode ser necessária
exsanguineotransfusão no período neonatal e transfusões de sangue durante a vida, com
indicação de suplementação de Ácido Fólico e, quando houver grande necessidade
transfusional, esplenectomia.

Deficiência de piruvatoquinase
Trata-se da mais frequente enzimopatia do ciclo metabólico eritrocitário
associado à glicólise.
A expressão clínica é variável. Nas formas graves neonatais, a hemólise pode ser
pronunciada a ponto de haver necessidade de exsanguineotransfusão para evitar
Kernicterus. Durante a vida, os pacientes podem apresentar graus variáveis de anemia,
icterícia e esplenomegalia. Cálculos biliares e úlceras de perna podem estar presentes.
O tratamento prevê transfusão de sangue nos primeiros anos de vida para
garantir crescimento adequado, com uso de quelante de ferro para evitar hemossiderose.
A esplenectomia pode ser útil quando a hemólise é constante e grave, devendo ser
realizada após os seis anos de idade para diminuir os riscos de infecção, com vacinação
contra S. pneumoniae e H. influenzae. Suplementação de Ácido Fólico é indicada.

Hemoglobinopatias

Talassemias
As talassemias constituem um grupo heterogêneo de doenças hereditárias
caracterizadas por diminuição ou ausência de síntese de uma ou mais cadeias globínicas
da molécula de hemoglobina. A hemoglobina do adulto é formada por uma mistura de
hemoglobina A, caracterizada por duas cadeias alfa e duas cadeias beta, hemoglobina
A2, caracterizada por duas cadeias alfa e duas cadeias delta, e F, caracterizada por duas
cadeias alfa e duas cadeias gama.

Pedro Kallas Curiati 769


As talassemias são consideradas as doenças genéticas mais comuns do mundo,
sendo de distribuição universal. A síntese de cadeias globínicas é controlada por
agrupamentos gênicos localizados nos cromossomos 11 e 16. Os genes que controlam a
síntese de cadeias alfa são duplicados e localizados no cromossomo 16. A síntese das
cadeias globínicas beta, delta e gama é controlada por agrupamento gênico localizado
no cromossomo 11.
As síndromes talassêmicas podem ser classificadas de forma clínica, genética e
molecular, sendo a classificação clínica a mais antiga. As formas major são as mais
graves, com dependência de transfusões, e devem ser tratadas em centros
especializados. As formas minor são assintomáticas, sendo conhecidas também como
traço talassêmico, e são as mais frequentes. As talassemias que apresentam um grau
maior de anemia do que o traço talassêmico, mas que não são graves como as formas
major, são chamadas de intermedias e apresentam maior variabilidade clínica.
Finalmente, existem alguns portadores do gene talassêmico que são clínica e
hematologicamente normais, sendo considerados portadores silenciosos.
A classificação genética leva em conta a cadeia globínica cuja síntese está
deficiente ou ausente. As alfa-talassemias englobam α0, com dois genes alfa inativados
por deleção no mesmo cromossomo, α+, com um dos genes inativados por deleção e
alfatalfa, com um dos genes inativados por mutação. As beta-talassemias englobam β0,
em que não existe produção de cadeia betaglobínica, e β+, em que existe produção em
nível reduzido de cadeia betaglobínica, ambas caracterizadas por aumento de
hemoglobina A2. As delta-beta-talassemias englobam δβ0, em que não existe síntese de
cadeia delta e beta, e δβ+, em que existe redução da síntese de cadeia delta e beta, com
hemoglobina Lepore, produzida pela combinação de cadeias alfa com cadeias formadas
pela fusão de parte da cadeia delta com parte da cadela beta. As delta-talassemias são
clinicamente silenciosas. As gama-talassemias não parecem ter significado clínico. A
persistência hereditária de hemoglobina fetal é um grupo heterogêneo de doenças, com
síntese de hemoglobina F na vida adulta.
A deficiência de síntese de uma ou mais cadeias globínicas tem duas
consequências, desequilíbrio de produção entre as cadeias alfa e não-alfa e síntese
diminuída de hemoglobina. As cadeias produzidas em excesso levam a alterações na
produção e na vida média dos eritrócitos. A diminuição na produção de hemoglobina
contribui para a anemia e causa a hipocromia característica das talassemias. A gravidade
da anemia é determinada pelo grau de desequilíbrio da síntese e cadeias globínicas.
Pacientes com alfa-talassemia têm diminuição de produção de cadeias globínicas alfa
em relação às cadeias beta, de modo que as cadeias livres se agrupam em tetrâmeros β4,
com hemoglobina H, instável, que se precipita e forma corpos de inclusão. Na vida
intrauterina, a cadeia que sobra é a gama, que se agrupa formando tetrâmeros γ4, com
hemoglobina de Bart. Os pacientes com beta-talassemia, por sua vez, têm diminuição da
produção de cadeias beta, o que acarreta excesso relativo de cadeias alfa, compensado
parcialmente apenas por certo aumento na produção de cadeias delta e gama, com
precipitação nos precursores eritroides.
O baço aumenta progressivamente na tentativa de fagocitar as células anormais,
exacerbando ainda mais a anemia pela hemodiluição. A anemia grave resultante desse
processo estimula a produção de eritropoetina, com enorme expansão da medula óssea e
hematopoese extramedular. O aumento da absorção de ferro no intestino e a sobrecarga
de ferro iatrogênica secundária ao tratamento transfusional levam à hemocromatose.
Apesar do grande número de alelos alfa-talassêmicos, só existem quatro
condições clínicas e hematológicas. Em ordem decrescente de gravidade, são a
hidropsia fetal por hemoglobina de Bart, a doença da hemoglobina H, o traço alfa-

Pedro Kallas Curiati 770


talassêmico e o portador silencioso, que correspondem, respectivamente, à deleção de
quatro, três, dois e um genes alfa. Não há, até o momento tratamento para a hidropsia
fetal por hemoglobina de Bart. A doença da hemoglobina H é caracterizada por anemia
hipocrômica microcítica com hemoglobina de 7-10g/dL e esplenomegalia, com quadro
clínico de talassemia intermedia e quantidades variáveis de hemoglobina H na
eletroforese de hemoglobina (1-40%), geralmente sem necessidade de tratamento,
devendo ser feita suplementação de Ácido Fólico e orientação para que o paciente evite
drogas oxidantes para prevenir crises hemolíticas. Transfusões de sangue esporádicas
podem ser necessárias e esplenectomia pode ser indicada em caso de hiperesplenismo,
devendo-se considerar o risco de complicações trombóticas. O traço talassêmico é
condição benigna, assintomática, com níveis de hemoglobina normais ou discretamente
reduzidos e glóbulos vermelhos hipocrômicos e microcíticos, sendo o diagnóstico difícil
e frequentemente circunstancial, sendo confirmado apenas com estudos do DNA. Os
níveis de hemoglobina A2 e de hemoglobina F são normais. Em caso de portador
silencioso, a deleção de um único gene alfa não causa anormalidades clínicas ou
hematológicas. As deleções de um ou de dois genes são assintomáticas e não requerem
tratamento.
O quadro clínico das beta-talassemias reflete o efeito quantitativo da mutação
presente em cada caso sobre a síntese de betaglobina. Beta-talassemia major é a forma
mais grave e manifesta-se por retardo de crescimento, anemia, esplenomegalia, eventual
hiperesplenismo, osteoporose e outras alterações esqueléticas associadas à expansão da
medula óssea e à sobrecarga de ferro, sendo o fígado, o coração, o pâncreas, a hipófise e
outras glândulas endócrinas os principais locais de deposição excessiva de ferro.
Homozigotos para β0 talassemia apresentam hemoglobina A2 e hemoglobina F, com
ausência de hemoglobina A. A beta-talassemia major é pouco frequente e os casos
suspeitos devem ser encaminhados para acompanhamento em centros especializados,
sendo o tratamento baseado em esquema transfusional e abordagem agressiva da
sobrecarga de ferro. O único tratamento curativo disponível é o transplante de medula
óssea. Beta-talassemia intermedia caracteriza-se por anemia hemolítica de gravidade
variável, que não requer transfusões crônicas. Anormalidades esqueléticas associadas à
expansão medular podem ocorrer, assim como esplenomegalia e hiperesplenismo.
Eritropoese extramedular é frequente, apresentando-se como massas em geral de
localização paravertebral ou mediastinal. Complicações trombóticas podem ocorrer e
sobrecarga de ferro pode ser encontrada em adultos, mesmo na ausência de programa
transfusional crônico. Tratamento transfusional apenas é necessário em situações
especiais e hiperesplenismo pode ser tratado com esplenectomia. Tratamento com
Hidroxiureia pode aumentar a hemoglobina F e ser benéfico em alguns casos. A beta-
talassemia minor é uma condição assintomática associada a alterações proeminentes na
morfologia dos eritrócitos e pequena ou nenhuma anemia, com anisocitose,
poiquilocitose, microcitose, hipocromia e hemácias em alvo. O diagnóstico é baseado na
demonstração de níveis aumentados de hemoglobina A2 e, em metade dos casos,
aumento de hemoglobina F, não sendo necessário estudo molecular. Constitui o
principal diagnóstico diferencial de anemia ferropênica, com hemoglobina geralmente
maior ou igual a 10g/dL, e não requer tratamento.

Doenças falciformes
As doenças falciformes constituem um grupo de anemias hereditárias que
cursam com anemia hemolítica crônica, vasculopatia, fenômenos vaso-oclusivos e lesão
orgânica aguda e crônica generalizada. Elas se caracterizam pela presença em
homozigose ou dupla heterozigose da hemoglobina S, que resulta de uma mutação no

Pedro Kallas Curiati 771


sexto códon do gene da betaglobina. O estado homozigoto para hemoglobina S (HbSS)
é denominado anemia falciforme. O gene para hemoglobina S pode ser herdado com
genes para outras hemoglobinas anormais ou para talassemia. A combinação de
hemoglobina S com hemoglobina A (HbAS) não é considerada doença falciforme e
caracteriza o traço falciforme, com importância para o aconselhamento genético de seus
portadores.
A substituição do ácido glutâmico pela valina na cadeia beta da hemoglobina
diminui a solubilidade da hemoglobina S no estado desoxigenado, com tendência à
polimerização e distorção da célula, que adquire formato de foice ou crescente. A
polimerização é influenciada por numerosos fatores, sendo particularmente importantes
a concentração intracelular de hemoglobina S, a hipóxia, a acidose e a quantidade de
hemoglobina fetal, que inibe o processo. A hemólise é principalmente extravascular,
decorrente de fagocitose, pelas células reticuloendoteliais, dos eritrócitos danificados.
Uma proporção dos eritrócitos lesados é destruída no intravascular.
Apesar de ser o protótipo de doença monogênica mendeliana, a anemia
falciforme comporta-se clinicamente com grande variabilidade fenotípica.
O quadro clínico das doenças falciformes é dominado por anemia hemolítica
crônica de graus variados e por fenômenos vaso-oclusivos e suas consequências. Os
eventos agudos que requerem tratamento de urgência nesses pacientes são crises
dolorosas, síndrome torácica aguda, acidente vascular cerebral, episódios de anemia
aguda por crise aplástica ou sequestro esplênico e priapismo. As principais
complicações crônicas são úlceras de perna, colecistopatia crônica calculosa,
acometimento renal, hipertensão arterial pulmonar, necrose isquêmica da cabeça do
fêmur, retinopatia proliferativa, sobrecarga de ferro nos pacientes politransfundidos,
insuficiência cardíaca e osteomielite.
Os genótipos associados a maior gravidade clínica são os homozigóticos para
hemoglobina S, seguidos de perto pelos S-β0-talassemia, que diferenciam-se por poder
cursar com baço aumentado. Os pacientes com hemoglobinopatia SC e S-β+-talassemia,
apesar de significativa morbidade, apresentam manifestações clínicas mais brandas,
com menos sintomas vaso-oclusivos, menos sinais de anemia e baço geralmente
palpável. Retinopatia proliferativa e necrose isquêmica da cabeça do fêmur são mais
frequentes na hemoglobinopatia SC.
A maioria dos pacientes tem anemia moderada normocítica ou microcítica, a
depender do genótipo, com níveis de hemoglobina de 7-9g/dL. A leucocitose é
frequente, sendo mais comum entre os pacientes homozigóticos para hemoglobina S e
com S-β0-talassemia. As plaquetas estão em número normal ou elevado e os
reticulócitos estão aumentados em número relativo e absoluto. Alguns pacientes
apresentam hemólise mais pronunciada, com hemoglobina inferior a 6g/dL, intensa
reticulocitose e níveis muito elevados de desidrogenase lática. Muitos pacientes com
hemoglobinopatia SC têm níveis normais de hemoglobina. No esfregaço de sangue
periférico, estão presentes eritrócitos falcizados. A hemólise pode ser evidenciada por
aumento de bilirrubina indireta, redução da haptoglobina sérica e aumento da
desidrogenase lática.
O diagnóstico das diferentes doenças falciformes é feito pela identificação e
quantificação das hemoglobinas, geralmente por eletroforese de hemoglobina.
Genótipo Hemoglobina (g/dL) VCM (fL) Reticulócitos (%) Hemoglobina (%)
SS 6-10 80-100 10-15 S: 80-95; A2: 2-3; F: 2-20;
S-β0- 6-10 60-80 10-15 S: 75-95; A2: 4-6; F: 2-20;
talassemia
S-β+- 8-12 65-75 3-6 S: 50-85; A:5-30; A2: 4-6; F: 2-
talassemia 20;

Pedro Kallas Curiati 772


SC 10-12 70-90 5-10 S: 50; C: 50;
O único tratamento curativo é o transplante de medula óssea. O tratamento geral
é baseado em suporte clínico e cuidados específicos. Nas crianças, além da vacinação
contra pneumococo e H. influenza, está indicada a profilaxia com Penicilina G
Benzatina 50.000UI/kg por via intramuscular de 21/21 dias. Todos os pacientes com
sorologia negativa para hepatite B devem ser vacinados contra a doença. Devido à
hemólise, existe necessidade aumentada de folatos, sendo recomendada a reposição com
1mg/dia de Ácido Fólico.
A transfusão de concentrado de hemácias visa melhorar a anemia sintomática e
reduzir ou prevenir complicações por meio da redução da proporção da hemoglobina S.
Em caso de insuficiência renal, o tratamento com Eritropoetina 50-100UI/kg três vezes
por semana em administração intravenosa por um a dois minutos ou subcutânea pode
ser benéfico, desde que os níveis de hemoglobina não excedam os níveis prévios à
insuficiência renal, estando disponível em ampolas de 1000UI, 2000UI, 3000UI,
4000UI e 10000UI. Todos os pacientes que precisem de programa transfusional devem
ter suas hemácias fenotipadas para evitar aloimunização. Nos pacientes com níveis de
hemoglobina superiores ou iguais a 10g/dL, que necessitam de diluição da hemoglobina
S, assim como aqueles com níveis de hemoglobina de 8-10g/dL, recomenda-se
exsanguineotransfusão parcial. As transfusões repetidas causam sobrecarga de ferro,
devendo ser associado tratamento com quelantes de ferro nos pacientes que estão em
programa transfusional.
Nos últimos anos, a Hidroxiuréia, apresentada na forma de comprimidos de
500mg, vem sendo cada vez mais utilizada, com indicação em pacientes com crises
álgicas frequentes, antecedente de síndrome torácica aguda, antecedente de outros
eventos vaso-oclusivos e anemia severa sintomática. Antes do início do tratamento, é
necessário avaliar hemograma completo, porcentagem de hemoglobina F e bioquímica
sérica. Preconiza-se dose inicial não fracionada de 15mg/kg/dia por via oral, com
preferência para 7.5mg/kg/dia em pacientes com clearance de creatinina inferior a
60mL/minuto e incremento de 5mg/kg/dia na dose a cada 6-12 semanas na ausência de
sinais de toxicidade até a dise alvo, com máximo de 30-35mg/kg/dia. Durante o ajuste
da dose, é necessário avaliar hemograma a cada duas semanas, bioquímica sérica a cada
duas a quatro semanas e dosagem de hemoglobina F a cada quatro a oito semanas. Após
uma dose estável ser alcançada, recomenda-se avaliação de hemograma e bioquímica
sérica a cada quatro a oito semanas para avaliação de toxicidade hepática e função renal,
com dosagem de hemoglobina F a cada três a quatro meses para avaliação da eficácia. A
principal toxicidade é mielossupressão, que é geralmente transitória. A contracepção
deve ser praticada por homens e mulheres.
As crises dolorosas têm etiologia complexa e pouco compreendida, sendo
autolimitadas, com duração de poucas horas a duas semanas. O diagnóstico é subjetivo.
É importante descartar causas desencadeantes, principalmente infecções. As crises de
dor leve a moderada podem ter tratamento domiciliar. O tratamento em unidades de
emergência baseia-se em hidratação com soluções hipotônicas e analgesia com
opióides, utilizando doses e intervalos apropriados com o objetivo de eliminar a dor. Em
pacientes euvolêmicos, sem sinais de desidratação, deve-se preferir infundir solução
hipotônica, com uma parte de Soro Fisiológico e uma parte de Soro Glicosado a 5%, em
taxa de manutenção. A droga de escolha para dor grave é a Morfina, associada ou não a
medicações adjuvantes e anti-inflamatórios não-hormonais, que devem ser evitados em
pacientes com diminuição da função renal, úlcera péptica e coagulopatias.
Suplementação de oxigênio é indicada apenas em caso de saturação periférica de
oxigênio inferior a 92%. Espirometria de incentivo durante hospitalização por crise

Pedro Kallas Curiati 773


vaso-oclusiva está relacionada a redução da incidência de infiltrados pulmonares e
atelectasias, necessários para o diagnóstico de síndrome torácica aguda. Analgésicos
simples e anti-histamínicos podem estar relacionados a efeito poupador de opioides.
Acidente vascular cerebral é uma das grandes complicações das doenças
falciformes. Crianças com acidente vascular cerebral isquêmico devem ser submetidas a
exsanguineotransfusão parcial para reduzir rapidamente os níveis de hemoglobina S
para inferiores a 30%, com programação de regime de transfusão crônica por tempo
indeterminado. Se forem necessários procedimentos com utilização de contrastes
iônicos também é recomendada a diluição da hemoglobina S. Como medida para
prevenção do primeiro episódio, recomenda-se atualmente medir o fluxo da artéria
cerebral média em crianças com idade de dois a dezesseis anos com Doppler
transcraniano e iniciar programa transfusional profilático naquelas que apresentarem
alta velocidade de fluxo. Em adultos, o manejo deve ser semelhante ao recomendado
para indivíduos sem doença falciforme.
A síndrome torácica aguda se caracteriza por pelo menos dois dentre febre
superior a 38.5º C, sintomas respiratórios, como tosse e dispneia, dor torácica, hipóxia e
novo infiltrado pulmonar na radiografia de tórax ou anormalidade focal em cintilografia
de ventilação e perfusão. As causas incluem infecção bacteriana, sendo isolados com
maior frequência Chlamydophila pneumoniae, Mycoplasma pneumoniae e
Streptococcus pneumoniae, ou viral, embolia gordurosa secundária a necrose de medula
óssea, hipoventilação secundária a dor torácica ou sedação excessiva e hiperventilação.
Pode ser complicação de cirurgia e anestesia. O tratamento baseia-se em combater a
hipóxia com oxigênio suplementar, administrar precocemente concentrado de hemácias
ou realizar exsanguineotransfusão visando níveis de hemoglobina A acima de 70%,
infundir solução hipotônica em taxa de manutenção, introduzir antibioticoterapia para
cobrir os agentes infecciosos mais frequentes, realizar fisioterapia respiratória e evitar
sedação excessiva e hiper-hidratação. A maior parte dos casos se desenvolve durante
uma admissão hospitalar por síndrome vaso-oclusiva, cabendo ao médico prevenção
dessa complicação com espirometria de incentivo e manejo criterioso da volemia, sem
hiper-hidratação.
Exacerbação aguda de anemia pode ser causada por sequestro esplênico ou
hepático, crise aplástica decorrente de infecção por parvovírus B19 e eventos vaso-
oclusivos muito graves com insuficiência de múltiplos órgãos. O tratamento da anemia
aguda sintomática é feito com transfusões de sangue para aliviar os sintomas, além do
tratamento dos fatores desencadeantes.
O episódio prolongado de priapismo, com duração maior do que três horas, é
uma emergência que requer atendimento urológico especializado. A indicação de
exsanguineotransfusão parcial é discutível e a administração de Hidroxiuréia para evitar
novos episódios é controversa.

Aplasia medular

Conceito
A anemia aplástica ou aplasia medular caracteriza-se por pancitopenia e
hipocelularidade da medula óssea, com falência na produção de glóbulos vermelhos,
neutrófilos e plaquetas. O tecido hematopoético normal é substituído por gordura, sem
evidências de fibrose ou infiltração por neoplasia. Segundo alguns autores, para o
diagnóstico é necessária a presença de dois dentre hemoglobina inferior a 10g/dL,
contagem plaquetária inferior a 10000/mm3 e contagem de neutrófilos inferior a
1500/mm3.

Pedro Kallas Curiati 774


Epidemiologia
A aplasia medular adquirida ocorre igualmente nos dois sexos, com média de
idade de vinte a vinte e cinco anos, com dois picos de incidência, sendo o primeiro em
adolescentes e adultos jovens e o outro em idosos. As anemias aplásticas congênitas são
igualmente raras.

Etiologia e fisiopatologia
Cerca de 15% das anemias aplásticas são congênitas, abrangendo a anemia de
Fanconi, a disqueratose congênita, a síndrome de Shwachman-Diamond, a
trombocitopenia amegacariocítica e a anemia de Diamond-Blackfan. Já as anemias
aplásticas adquiridas podem ser idiopáticas, com 70% dos casos, ou secundárias, com os
15% restantes. A fisiopatologia da anemia aplástica adquirida é complexa devido à
grande diversidade de fatores associados e tem por base processo imunológico aliado a
componente genético.
Muitos medicamentos e produtos químicos têm sido associados à doença por
causarem reação idiossincrásica. Entre eles, o benzeno e seus metabólitos têm clássica
relação. Produtos ocupacionais ou de uso doméstico, como os inseticidas, foram
também relatados como agentes causais. O medicamento mais envolvido é o
Cloranfenicol, porém outras drogas de amplo uso, como Furosemida e Alopurinol,
também têm sido relacionados. Ação citostática é outro mecanismo através do qual
medicamentos podem causar anemia aplástica.
Cerca de 5-10% das anemias aplásticas ocorrem após um episódio de hepatite,
embora nenhuma associação direta com o vírus ou com o tratamento possa ser apontada.
O parvovírus B19, o vírus da imunodeficiência humana, as micobactérias e o vírus
Epstein-Barr são agentes infecciosos associados à doença.
Mecanismo imunológico é preponderante em casos associados a gestação,
timoma, lúpus eritematoso sistêmico, fasciíte eosinofílica e doença do enxerto contra o
hospedeiro.
Em alguns casos, especialmente após terapêutica imunossupressora, ocorre
evolução da anemia aplástica para síndrome mielodisplásica e/ou leucemia mieloide
aguda e/ou aparecimento de clones de hemoglobinúria paroxística noturna,
demonstrando a íntima relação entre as doenças.

Quadro clínico
As manifestações clínicas da doença dependem da gravidade da insuficiência
medular. Ao exame físico, observa-se palidez cutaneomucosa, podendo estar presentes
petéquias, equimoses e/ou sangramento mucoso. Aumento de linfonodos, fígado e baço
não é observado. Infecção é achado infrequente, podendo estar presente em pacientes
com neutropenia grave. Em crianças e adultos jovens, sinais sugestivos de anemia
aplástica constitucional devem ser pesquisados.

Avaliação complementar
Os exames complementares visam confirmar o diagnóstico, estabelecer o
prognóstico, auxiliar na pesquisa etiológica, pesquisar a presença de clones associados e
orientar a terapêutica.
Os exames para o diagnóstico incluem hemograma completo, contagem de
reticulócitos e análise morfológica de aspirado e biópsia de medula óssea. O
hemograma e a contagem de reticulócitos revelam pancitopenia, anemia normocítica ou
macrocítica, reticulocitopenia, neutropenia e linfocitose relativa. Intensa poiquilocitose,

Pedro Kallas Curiati 775


hemácias em lágrima, eritroblastos circulantes, neutrófilos hipossegmentados,
proliferação de células linfoides, linfócitos grandes granulares e células blásticas
afastam o diagnóstico de aplasia medular. O mielograma revela hipocelularidade
medular com aumento relativo de linfócitos, plasmócitos e células reticulares, com
presença de mastócitos. Focos quentes podem apresentar grande quantidade de
eritroblastos displásicos, mas a presença de disgranulopoese e dismegacariopoese
orienta o diagnóstico para síndrome mielodisplásica. A biópsia medular confirma a
substituição do tecido hematopoético por gordura, sem achado de fibrose ou
proliferação de células anormais. O estudo citogenético da medula é normal,
detectando-se raramente a presença de clones transitórios.
A pesquisa de clone de hemoglobinúria paroxística noturna deve ser realizada ao
diagnóstico através de pesquisa por citometria de fluxo de moléculas ancoradas pela
glicosilfosfatidilinositol, que incluem CD55, CD59 e CD14, em eritrócitos, granulócitos
e monócitos. O aumento de desidrogenase lática sérica pode sugerir hemólise, sendo um
marcador de coexistência do clone de hemoglobinúria paroxística noturna.
Para a pesquisa de anemias aplásticas constitucionais, dispõe-se de teste
citogenético para investigação de quebras cromossômicas que, quando positivo,
estabelece o diagnóstico de anemia de Fanconi. Não estão disponíveis até o momento
testes de rotina para diagnóstico de disqueratose congênita, síndrome de Shwachman-
Diamond e anemia de Diamond-Blackfan.
Testes para determinar a etiologia da aplasia incluem testes de função hepática,
avaliação sorológica para hepatites A, B, C e G, vírus da imunodeficiência humana,
citomegalovírus e vírus Epstein-Barr, provas de atividade inflamatória, pesquisa de fator
antinuclear, radiografia ou tomografia de tórax para pesquisa de timoma, beta-HCG
para pesquisa de gravidez e pesquisa de hemoglobinúria paroxística noturna.
Testes de histocompatibilidade devem ser realizados no paciente e em irmãos
para pesquisa de provável doador de medula óssea.

Classificação
Anemia aplástica grave é caracterizada por celularidade medular inferior a 25%
com dois parâmetros de sangue periférico dentre contagem de neutrófilos inferior a
500/mm3, contagem de plaquetas inferior a 20000/mm3 e contagem de reticulócitos
inferior a 20000/mm3.
Anemia aplástica muito grave é caracterizada por celularidade medular inferior a
25% com dois parâmetros de sangue periférico dentre contagem de neutrófilos inferior a
200/mm3, contagem de plaquetas inferior a 20000/mm3 e contagem de reticulócitos
inferior a 20000/mm3.
Anemia aplástica não-grave não preenche critérios para a anemia aplástica grave
ou muito grave.

Diagnóstico diferencial
O diagnóstico diferencial deve ser feito com outras entidades que cursam com
pancitopenia e medula óssea hipocelular, como tricoleucemia, linfomas, leucemia de
linfócitos grandes granulares, mielofibrose, micobacterioses atípicas, anorexia nervosa,
síndrome mielodisplásica hipocelular e alguns casos de leucemia linfoide aguda da
infância.

Tratamento

Terapêutica de suporte

Pedro Kallas Curiati 776


O suporte hemoterápico dos pacientes com anemia aplástica é baseado na
transfusão de concentrados de hemácias e de plaquetas. O nível de hemoglobina
adequado depende de fatores específicos de cada paciente, principalmente a
sintomatologia. Em geral, a transfusão profilática de concentrado de plaquetas está
indicada em pacientes com contagem inferior a 10.000/mm3, podendo variar conforme a
vigência de infecção e/ou manifestações hemorrágicas.
A quelação de ferro deverá ser iniciada quando o nível de ferritina estiver
superior a 1000ng/mL. As três drogas disponíveis para uso clínico são a Deferoxamina
(Desferal®), a Deferiprona (Ferriprox®) e o Deferasirox (Exjade®).
O uso de G-CSF tem sido descrito em conjunto com globulina e Ciclosporina
com o objetivo de acelerar a recuperação de neutrófilos, diminuindo a suscetibilidade a
infecções, sem evidência de impacto na sobrevida e com evidência de risco aumentado
de doença clonal. O uso de Eritropoetina mostrou-se ineficaz.
Antibióticos são medicamentos de suporte, devendo ser utilizados em vigência
de infecção. A escolha depende do número de neutrófilos, dos critérios de gravidade da
infecção e da identificação do agente infeccioso. Não devem ser usados
profilaticamente.
Andrógenos apresentam benefício temporário na anemia de Fanconi e parecem
ser eficazes em alguns casos de anemia aplástica adquirida, quando associados a
globulina antilinfocítica ou antitimocítica.

Transplante de medula óssea


Por ser curativo, é o tratamento de escolha para pacientes jovens. Os resultados
são influenciados por idade do paciente, tempo de diagnóstico, gravidade da aplasia,
história transfusional e tipo de doador, que preferencialmente deve ser HLA compatível
e aparentado. A principal causa de falha é a falha da enxertia, seguida pelas
complicações infecciosas. O risco de rejeição se associa ao número prévio de
transfusões de hemácias ou plaquetas. A doença do enxerto contra o hospedeiro ainda
permanece um sério problema.
Aos pacientes com idade inferior ou igual a vinte anos portadores de anemia
aplástica muito grave deve ser proposto o transplante de medula óssea e aos pacientes
com idade superior a quarenta anos deve ser preferida a terapia imunossupressora. Nos
pacientes de faixa etária intermediária com anemia aplástica grave, apesar de ser menos
clara, a conduta terapêutica pode ser individualizada na dependência da experiência do
centro hematológico e transplantador, devendo o transplante sempre ser oferecido se
houver doador HLA compatível.

Terapêutica imunossupressora
A terapêutica imunossupressora consiste basicamente em globulinas policlonais
antilinfocíticas e antitimocíticas, Ciclosporina A ou terapia combinada.
As globulinas antilinfocíticas e antitimocíticas são soros heterólogo produzidos
em animais, como cavalos e coelhos, imunizados com timócitos ou com linfócitos de
ductos torácicos humanos. A infusão das globulinas, geralmente utilizando esquemas de
cinco dias de infusão, pode causar reações alérgicas, plaquetopenia grave e doença do
soro. Os pacientes podem apresentar resposta completa ou parcial.
A Ciclosporina A é um agente imunossupressor com ação específica em função
dos linfócitos T. Tem a vantagem de ser medicamento administrado ambulatorialmente,
por via oral, utilizando-se a dose de 5mg/kg/dia. A apresentação é na forma de
comprimidos de 25mg, 50mg ou 100mg ou de solução oral com 100mg/mL. A resposta
é variável, sendo recomendada manutenção do medicamento por pelo menos seis meses

Pedro Kallas Curiati 777


e sua retirada lenta e gradual após obtenção da resposta hematológica.
A associação é o tratamento imunossupressor mais eficaz, com maior taxa de
resposta hematológica e tempo de manutenção da resposta. No entanto, não há aumento
de sobrevida documentado.
O risco global de desenvolvimento de complicações clonais tardias, como
hemoglobinúria paroxística noturna, síndrome mielodisplásica e leucemia mieloide
aguda, é de aproximadamente 15-20% em dez anos após a imunossupressão.

Bibliografia
Clínica médica: diagnóstico e tratamento. Itamar de Souza Santos... [et al.]. São Paulo. Sarvier, 2008.
Clínica Médica, volume 3: doenças hematológicas, oncologia, doenças renais e genitourinárias. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Evidence-Based Management Of Sickle Cell Disease In The Emergency Department. Emergency Medicine Practice. August 2011,
Volume 13, Number 8.

Pedro Kallas Curiati 778


COAGULOPATIAS E DOENÇAS
PLAQUETÁRIAS
Coagulopatias
A coagulação corresponde a uma sequência de reações enzimáticas que culmina
com a formação de monômeros de fibrina. Estes se organizam em polímeros, que
formarão uma malha de fibrina. Isto ocorre sobre o tampão plaquetário, formado em
resposta à lesão da parede vascular, fazendo com que ele se torne mais duradouro e
resistente, permitindo a reparação tecidual adequada.
Nas alterações dos fatores de coagulação, o tampão plaquetário não é
estabilizado pela hemostasia secundária normal, com dissolução do coágulo e
sangramento.
As doenças hemorrágicas congênitas são condições pouco frequentes na prática
médica e resultam de alterações quantitativas e/ou qualitativas de fatores da coagulação.
Entre as coagulopatias hereditárias, a doença de von Willebrand e as hemofilias são as
mais comuns. As deficiências dos fatores I, II, V, VII, XI e XIII são consideradas
coagulopatias raras.
Os distúrbios adquiridos da coagulação são muito mais frequentes na prática
médica do que as anormalidades congênitas. Além disso, são muito mais complexos,
uma vez que geralmente ocorrem múltiplas anormalidades da coagulação e
comprometimento do número e da função das plaquetas.

Doença de von Willebrand

Definição
A doença de von Willebrand é uma anormalidade hemorrágica causada por
redução e/ou disfunção do fator de von Willebrand.

Epidemiologia
É a doença hemorrágica hereditária mais comum e acomete 0.8-2.0% da
população.

Fisiopatologia
A síntese do fator de von Willebrand é realizada pelas células endoteliais e pelos
megacariócitos. O gene que codifica essa produção está localizado no cromossomo 12.
O fator de von Willebrand é uma glicoproteína multimérica que desempenha
duas importantes funções, mediar a adesão das plaquetas às estruturas do subendotélio
vascular em sítios de lesão vascular e a agregação plaquetária em condições de alto
estresse de cisalhamento e transportar o fator VIII, protegendo-o da depuração rápida.
A doença de von Willebrand é caracterizada por mutações que levam ao
comprometimento da síntese, nos tipos 1 e 3, ou da função, no tipo 2, do fator de von
Willebrand.
A doença de von Willebrand do tipo 1, autossômica incompletamente
dominante, com penetrância variável, compromete aproximadamente 70% dos pacientes
e representa uma deficiência quantitativa do fator de von Willebrand. No tipo 3, doença
autossômica recessiva, há deficiência virtualmente completa, com níveis extremamente
reduzidos ou indetectáveis de fator de von Willebrand. Já no tipo 2, doença geralmente

Pedro Kallas Curiati 779


autossômica dominante, são descritas quatro alterações funcionais do fator de von
Willebrand, que originam quatro subtipos.

Quadro clínico
A expressão clínica da doença de von Willebrand é geralmente leve na maioria
dos pacientes com tipo 1, com maior gravidade nos tipos 2 e 3. Em geral, a intensidade
do sangramento se correlaciona com o grau de redução da função do fator de von
Willebrand e da atividade do fator VIII.
Sangramentos cutâneos e mucosos, com equimoses, epistaxe, menorragia e
sangramento em cavidade oral, predominam nas formas leves, enquanto hemartroses,
hematomas intramusculares e hemorragias pós-traumáticas e pós-cirúrgicas são
observados nas formas graves. A gravidade dos sintomas pode diminuir com o aumento
da idade. Durante gravidez e terapia com estrógeno, pode ocorrer aumento de fator VIII,
o que torna a sintomatologia mais branda.

Avaliação complementar
Um conjunto de testes deve ser realizado para o diagnóstico da doença de von
Willebrand. Os testes de triagem, como tempo de sangramento e tempo de
tromboplastina parcial ativado, devem ser suplementados com testes específicos, como
quantificação do antígeno e da atividade funcional do fator de von Willebrand e da
concentração do fator VIII. Para determinação dos subtipos, deve-se avaliar a agregação
plaquetária induzida pela ristocetina e o padrão multimérico do fator de von Willebrand.

Tratamento
O tratamento da doença de von Willebrand se baseia na reposição da proteína
deficiente durante os episódios hemorrágicos e antes da realização de procedimentos
invasivos. Isso pode ser realizado com o emprego da Desmopressina (1-Deamino-8-
Arginina Vasopressina, DDAVP) ou de concentrados plasmáticos contendo fator de von
Willebrand.
DDAVP promove a liberação do fator de von Willebrand dos estoques das
células endoteliais, devendo-se administrar solução apresentada na forma de 4mcg/mL
na dose de 0.3mcg/kg por via intravenosa com diluição em 50-100mL de Soro
Fisiológico ou por via subcutânea, com elevação das concentrações do fator de von
Willebrand e do fator VIII. Também é possível a administração por spray intranasal,
apresentado na forma de 100mcg/mL, com doses de 150mcg e 300mcg. Como a
resposta individual é reprodutível, uma dose teste deve ser administrada ao diagnóstico
com a finalidade de caracterizar seu padrão.
Terapias adjuvantes incluem drogas antifibrinolíticas, preparados com
estrógenos e progestágenos e concentrados de plaquetas.
Os concentrados plasmáticos contendo fator VIII e fator de von Willebrand são
indicados para pacientes que não apresentam resposta a DDAVP ou quando a resposta é
inadequada para a situação.
Situação clínica Dose de fator Administração Objetivo
VIII (UI/kg)
Cirurgia de grande porte 50 Diária ou em dias Fator VIII superior a 50UI/dL
alternados por no mínimo sete dias
Cirurgia de pequeno 30 Diária ou em dias Fator VIII superior a 30UI/dL
porte alternados por no mínimo 5-7 dias
Sangramento espontâneo 20-40 Única
ou após trauma

Pedro Kallas Curiati 780


Exodontia 20-40 Única, em associação com Fator VIII superior a 30UI/dL
medicação antifibrinolítica por seis horas

Hemofilia

Definição
As hemofilias A e B compreendem uma categoria de doenças hemorrágicas
hereditárias que resultam de anormalidades qualitativas ou funcionais dos fatores VIII e
IX, respectivamente. A hemofilia A corresponde a 80% dos casos.

Fisiopatologia
Embora sejam doenças de transmissão recessiva ligada ao cromossomo X, em
parcela significativa dos casos de hemofilia A não há história familiar. Já na hemofilia
B a maioria dos pacientes refere antecedente familiar de diátese hemorrágica.

Quadro clínico
A frequência e a intensidade das hemorragias geralmente são proporcionais à
intensidade da deficiência do fator. Hemofilia é definida como grave quando a atividade
do fator é inferior a 1% (0.01U/mL), moderada quando é de 1-5% (0.01-0.05UI/mL) e
leve quando é superior a 5% (0.05UI/mL) e inferior a 40% (0.40UI/mL). Quando o
nível plasmático é superior a 40%, não há manifestações hemorrágicas.
As manifestações clínicas das hemofilias A e B são idênticas. De todos os
episódios hemorrágicos dos hemofílicos, 90% ocorrem nas articulações e nos músculos.
O sangramento articular se manifesta por sensação premonitória, representada
por formigamento e calor na articulação pouco antes do início do edema e da dor,
desconforto e discreta limitação da mobilidade articular, que são seguidos de dor,
aumento do volume e da temperatura e limitação da movimentação da articulação
acometida. As articulações mais frequentemente acometidas incluem joelhos, cotovelos,
tornozelos, ombros, quadris e punhos. Os sangramentos geralmente acometem uma
articulação e com a repetição causam destruição articular.
As hemorragias intramusculares podem ocorrer espontaneamente ou após
pequenos traumas. Quando pequenos e superficiais, os hematomas são autolimitados e
não apresentam maior significado clínico, exceto desconforto local. Porém, os
hematomas podem aumentar progressivamente. Quando acometem compartimentos
fechados, causam compressão de estruturas vitais, com isquemia distal, contraturas e
neuropatia.
Sangramentos de língua, garganta e pescoço podem se desenvolver rapidamente
e são particularmente perigosos, pois podem provocar rápida obstrução das vias aéreas
superiores. Sangramentos retroperitoneais e intraperitoneais são comuns.
A hematúria é uma manifestação clínica frequente da hemofilia grave.
Geralmente é benigna e não se associa com perda de função renal. Na maioria das vezes
é indolor, porém pode haver dor lombar e abdominal do tipo cólica renal decorrente da
presença de coágulos na pelve renal ou no ureter.
O sangramento do trato gastrointestinal não é incomum. Nos pacientes em que o
sangramento é persistente ou recorrente, existe, com frequência, uma lesão anatômica
associada.
O sangramento intracraniano é o de maior risco para o paciente hemofílico. Em
adultos, mais da metade dos casos ocorrem sem trauma prévio. Geralmente há cefaleia,
vômitos e letargia. Qualquer hemofílico com cefaleia não-habitual deve ser investigado.
Na suspeita, o paciente deve ser tratado imediatamente com a reposição do fator

Pedro Kallas Curiati 781


deficiente e depois avaliado com tomografia computadorizada de crânio. Se houver
indicação de punção lombar, o procedimento só poderá ser realizado após a reposição
do fator.
As epistaxes são comuns nos hemofílicos graves e, muitas vezes, são
desencadeadas por infecções das vias aéreas superiores.
Ferimentos superficiais geralmente não apresentam sangramento anormal. O
sangramento tardio é comum em pacientes com hemofilia.

Avaliação complementar
Como os fatores VIII e IX fazem parte do mecanismo intrínseco da coagulação,
o tempo de tromboplastina parcial ativada encontra-se prolongado, com normalidade da
contagem plaquetária, do tempo de protrombina e do tempo de sangramento. O
diagnóstico definitivo é feito pela dosagem dos fatores VIII e IX.

Tratamento
A abordagem é complexa e inclui o uso de terapia de reposição de concentrado
do fator deficiente, tratamento adjuvante, tratamento preventivo e tratamento das
complicações da doença e decorrentes de sua terapia.
As manifestações hemorrágicas dos pacientes hemofílicos devem ser tratadas
com a reposição do fator deficiente. Contudo, o uso de DDAVP pode tornar
desnecessária essa modalidade terapêutica nos pacientes com hemofilia A leve ou
moderada. A terapia de substituição envolve a educação e o treinamento de técnicas de
auto-infusão de concentrado de fator ao paciente e à sua família, sendo o pilar do
tratamento domiciliar.
No Brasil, é vetado o uso de crioprecipitado no tratamento de pacientes com
hemofilia A e doença de von Willebrand não-responsivos ao DDAVP, devendo o
tratamento de substituição ser sempre realizado com concentrados comerciais de fator,
exceto na sua indisponibilidade.
A reposição do fator VIII ou IX deve ser feita o mais precocemente possível
quando indicada. Deve-se considerar o nível do fator a ser alcançado, que varia com o
tipo e o local do sangramento ou com o procedimento a ser realizado. A meia-vida do
fator VIII varia de 8-12 horas e a infusão de 1U/kg produz uma elevação plasmática de
2U/dL ou 2% de atividade do fator. A meia-vida do fator IX é de aproximadamente 24
horas e a infusão de 1U/kg resulta em um incremento plasmático de 1U/dL ou 1% de
atividade do fator. Pequenas hemorragias podem necessitar de nível de fator de 20-
30UI/dL, com dose inicial de 10-15UI/kg de fator VIII e de 20-30UI/kg de fator IX a
cada 24 horas até a resolução.
Local da hemorragia Nível de fator Dose inicial (UI/dL) Frequência das Duração
(UI/dL) Fator VIII Fator IX doses (horas) (dias)
Articulação ou músculo 30-50 15-25 30-50 24 1-2
Mucosa nasal ou do trato 30-50 15-25 30-50 24 Até a
urinário resolução
Trato gastrointestinal 50-80 25-40 50-80 12-24 Até a
resolução
Língua, retrofaringe e sistema 80-100 40-50 80-100 12 7-10
nervoso central
DDAVP produz um aumento transitório do fator VIII e do fator de von
Willebrand em pessoas normais, em indivíduos com hemofilia A leve a moderada e em
alguns pacientes com doença de von Willebrand. Após uma dose de 0.3mcg/kg em
hemofílicos leves a moderados, pode haver um incremento de três a cinco vezes nas
concentrações plasmáticas dos fatores VIII e de von Willebrand em relação aos valores

Pedro Kallas Curiati 782


basais. É necessário um teste para avaliar a resposta individual antes de utilizar a droga
no tratamento de um episódio hemorrágico.
As drogas antifibrinolíticas têm sido utilizadas como terapia adjuvante nos
sangramentos mucosos, sendo muito úteis nos procedimentos odontológicos. A dose
usual do Ácido Tranexâmico é de 20-25mg/kg/dose três vezes ao dia, com comprimidos
de 250mg. A dose do Ácido Épsilon Aminocapróico é de 50-60mg/kg/dose quatro vezes
ao dia, com comprimidos de 500mg. Ainda como tratamento adjuvante são utilizados os
selantes de fibrina, especialmente para sangramentos na cavidade oral e após
circuncisão.
Não devem ser utilizados medicamentos que possam interferir na função
plaquetária, nem deve ser utilizada aplicação por via intramuscular. Qualquer
procedimento invasivo deve ser precedido de preparo, podendo ou não incluir terapia de
reposição.
Entre as complicações decorrentes do tratamento, encontram-se as doenças
transmissíveis por hemocomponente ou hemoderivados e o desenvolvimento de
aloanticorpos inibidores contra o fator deficiente.

Coagulação intravascular disseminada

Definição
A coagulação intravascular disseminada é uma síndrome caracterizada pela
ativação sistêmica da coagulação, que leva ao depósito intravascular de fibrina na
microvasculatura e ao consumo de fatores da coagulação e plaquetas.

Etiologia e fisiopatologia
É sempre secundária a uma doença de base. As condições mais frequentemente
associadas são sepse, trauma, câncer, complicações obstétricas, como embolia de
líquido amniótico e placenta prévia, doenças vasculares, como hemangioma gigante e
aneurisma de aorta, reações a toxinas e anormalidades imunológicas, como reação
alérgica grave, reação transfusional hemolítica e rejeição de transplante.

Quadro clínico
Se a ativação ocorrer lentamente, um excesso de pró-coagulantes é produzido,
predispondo a trombose. Enquanto o fígado compensar o consumo de fatores e a medula
mantiver uma contagem plaquetária adequada, não haverá manifestação hemorrágica. O
paciente poderá permanecer assintomático, com aumento dos níveis de produtos de
degradação da fibrina, ou apresentar manifestações de trombose venosa e/ou arterial.
Trata-se do quadro de coagulação intravascular disseminada crônica.
Na coagulação intravascular disseminada aguda, ocorre exposição a grande
quantidade de fator tecidual em um curto período, com geração maciça de trombina.
Ocorrem coagulação intravascular e depleção de plaquetas, fibrinogênio, protrombina e
fatores V e VIII, além da produção de produtos de degradação da fibrina, que interferem
na hemostasia. A consequência clínica é diátese hemorrágica sistêmica e, em função do
depósito disseminado de fibrina intravascular, injúria sistêmica de tecidos e anemia
hemolítica microangiopática. Manifestações hemorrágicas de qualquer tipo podem ser
encontradas, além de tromboembolismo e disfunção renal, hepática, pulmonar e do
sistema nervoso central.

Avaliação complementar
Os testes realizados em série são mais úteis para o diagnóstico de coagulação

Pedro Kallas Curiati 783


intravascular disseminada do que um exame laboratorial realizado isoladamente. Deve-
se solicitar exames gerais de hemostasia, com contagem plaquetária, tempo de
protrombina, tempo de tromboplastina parcial ativada, tempo de trombina, fibrinogênio
e monômeros solúveis de fibrina.

Tratamento
O fundamental é o tratamento da doença de base. O uso de plasma fresco
congelado e concentrado de plaquetas é uma opção quando o paciente tem sangramento
ativo, apresenta risco hemorrágico ou precisa de procedimento invasivo. O uso de
Heparina provavelmente é útil em pacientes com coagulação intravascular disseminada,
particularmente naqueles com deposição extensa de fibrina ou evento trombótico. As
drogas antifibrinolíticas somente são indicadas para pacientes com aumento da atividade
fibrinolítica, como na coagulação intravascular disseminada associada a neoplasia ou
quando há sangramento excessivo sem resposta à terapia de reposição. Nos pacientes
com coagulação intravascular disseminada relacionada a sepse, pode-se utilizar
concentrado de proteína C ativada recombinante humana.

Doença hepática
As doenças hepáticas podem cursar com comprometimento variável da
hemostasia, decorrente de inúmeros fatores, como defeitos qualitativos e quantitativos
das plaquetas, redução da síntese de fatores e inibidores da coagulação, deficiência de
vitamina K, síntese de fatores de coagulação com defeitos funcionais, redução da
depuração de fatores da coagulação ativados, hiperfibrinólise e coagulação intravascular
disseminada.
Em pacientes com doença hepática grave, todos os fatores da coagulação, exceto
o fator de von Willebrand, podem estar deficientes. Uma dieta pobre e a má-absorção
decorrente da produção inadequada de sais biliares contribuem para a diminuição da
carboxilação de precursores dos fatores dependentes de vitamina K.
As manifestações clínicas variam de simples alterações dos testes laboratoriais a
hemorragias e, com menor frequência, fenômenos trombóticos.
O tratamento das anormalidades hemostáticas da doença hepática está indicado
apenas durante sangramento de varizes esofágicas e antes de cirurgia e procedimentos
invasivos. Agentes específicos incluem vitamina K oral ou parenteral na suspeita da sua
deficiência. Utilizam-se também plasma fresco congelado, transfusão de plaquetas,
concentrado de complexo protrombínico e crioprecipitado conforme a situação clínica e
laboratorial. Também são usados agentes antifibrinolíticos e DDAVP, apesar de pouca
evidência de benefício.

Doenças plaquetárias relacionadas a alterações da função

Fisiopatologia
Quando a superfície endotelial do vaso sanguíneo sofre agressão ou ferimento,
um tampão hemostático contendo plaquetas e fibrina é formado e interrompe o
sangramento, permitindo o início do processo de reparo tecidual e cicatrização.
Sob condições de fluxo sanguíneo com elevada força de cisalhamento, as
plaquetas circulantes entram em contato com os componentes expostos do subendotélio
e aderem através da interação entre a glicoproteína de membrana Ib-V-IX e o fator de
von Willebrand depositado no subendotélio. As plaquetas presas à parede vascular
movem-se lentamente e tornam-se ativadas. Em seguida, as plaquetas sofrem mudança
em sua forma, com ativação do citoesqueleto, tornam-se esféricas, emitem pseudópodos

Pedro Kallas Curiati 784


e espalham-se sobre o subendotélio exposto. Ocorre liberação do conteúdo dos grânulos
plaquetários. À medida que as plaquetas são ativadas, elas tornam-se aderentes umas às
outras pela ligação do fibrinogênio à glicoproteína IIb/IIIa. Forma-se então um
microtrombo de plaquetas agregadas. Durante a ativação plaquetária, sob o controle de
proteínas transportadoras ativadas por cálcio, fosfolípides com carga negativa, como a
fosfatidilserina e a fosfatidiletanolamina, são translocados para a superfície externa da
membrana celular. Ocorre microvesiculação, com aumento da expressão de
fosfatidilserina na membra, a qual atua como um ligante de superfície para os fatores
VIIIa/IXa e Va/Xa, formando os complexos tenase e protrombinase, respectivamente. A
conversão subsequente do fibrinogênio em fibrina e a ativação adicional da plaqueta
pela trombina originam uma massa constituída por plaquetas e fibrina, a qual sofre
retração mediada pelas propriedades contráteis da plaqueta.

Etiologia
A disfunção plaquetária hereditária mais comum é a doença de von Willebrand.
O grupo heterogêneo constituído por defeitos na secreção plaquetária e na transdução de
sinal comporta provavelmente as disfunções plaquetárias hereditárias mais frequentes
após a doença de von Willebrand. Já a trombastenia de Glanzmann, a síndrome de
Bernard-Soulier e a afibrinogenemia são doenças raras. `
Disfunções plaquetárias adquiridas ocorrem em muitas doenças adquiridas, com
etiologias diversas. Os distúrbios adquiridos da função plaquetária incluem uso de
medicamentos, como Ácido Acetilsalicílico, anti-inflamatórios não-hormonais, beta-
bloqueadores, bloqueadores de canal de cálcio e antibióticos beta-lactâmicos, uremia,
doença hepática, doenças hematológicas, como mielodisplasias, mieloproliferações e
leucemias, paraproteinemias, como mieloma múltiplo e macroglobulinemia de
Waldenström, doenças imunológicas, infecções, coagulação intravascular disseminada e
glicogenoses. O comprometimento bioquímico específico e as anomalias
fisiopatológicas que resultam na disfunção plaquetária são desconhecidos na maioria
dos casos. Em várias doenças, as anormalidades ocorrem em múltiplas funções da
plaqueta.

Disfunções plaquetárias hereditárias


A trombastenia de Glanzmann é doença autossômica recessiva rara caracterizada
por deficiência ou alteração funcional da glicoproteína IIb/IIIa. A avaliação
complementar revela contagem e morfologia plaquetárias normais, tempo de
sangramento prolongado, retração do coágulo ausente ou diminuída e alterações na
agregação plaquetária. Os tempos de coagulação são normais e as plaquetas não
agregam quando expostas aos agonistas adenosina difosfato, colágeno, trombina e
adrenalina, porém aglutinam com a ristocetina. O diagnóstico definitivo é feito com
citometria de fluxo.
A síndrome de Bernard Soulier é uma doença hemorrágica hereditária rara
caracterizada por trombocitopenia com plaquetas gigantes e tempo de sangramento
prolongado. A herança é autossômica recessiva. O defeito de base é a ausência ou
diminuição da expressão do complexo glicoproteína IB/IX/V na superfície das
plaquetas. Os testes de agregação plaquetária apontam ausência de agregação com a
ristocetina, o que não é corrigido com a adição de plasma normal, como ocorre na
doença de von Willebrand. A confirmação do diagnóstico é feita com citometria de
fluxo.
Os distúrbios dos receptores plaquetários e das vias metabólicas de transdução
de sinais constituem um grupo heterogêneo, mal definido, de defeitos da ativação

Pedro Kallas Curiati 785


plaquetária caracterizados por inibição generalizada da ativação plaquetária a um ou
mais agonistas. Estão incluídos os defeitos na agregação, na secreção e na regulação do
citoesqueleto resultantes da função anormal dos receptores da membrana plaquetária ou
de suas respectivas vias metabólicas de sinalização. Fazem parte do grupo alterações da
tromboxane sintetase e da cicloxigenase e defeitos dos receptores de adenosina
difosfato, colágeno e adrenalina. Os indivíduos acometidos apresentam hemostasia
primária anormal, usualmente com tendência hemorrágica leve em razão da presença de
outros receptores ou de outras vias de sinalização compensatórios. A avaliação
complementar revela contagem e morfologia plaquetárias normais e redução na
agregação primária com um ou mais agonistas. Esse grupo pode ser distinguido das
doenças de estoque dos grânulos plaquetários por meio da demonstração de secreção
plaquetária normal.
Nas anormalidades dos grânulos plaquetários, a função plaquetária alterada pode
resultar de deficiências no número ou no conteúdo dos grânulos ou de falha nos
mecanismos de secreção após a estimulação. As doenças dos grânulos densos incluem a
síndrome de Hermansky-Pudlak, a síndrome de Chediak-Higashi e a deficiência
idiopática de grânulos densos. As doenças dos grânulos alfa incluem a síndrome da
plaqueta cinza, a síndrome de Paris-Trosseau ou Jacobsen e a síndrome da plaqueta
Quebec.
A síndrome de Scott, embora extremamente rara, possui herança autossômica
recessiva e é caracterizada pela redução da atividade de tenase e de protrombinase na
superfície plaquetária. Os pacientes apresentam sangramento após procedimentos
invasivos, como as exodontias, ou após o parto em razão da redução da exposição de
fosfolípides e da geração de microvesículas nas superfícies das plaquetas ativadas. Os
testes de agregação plaquetária são normais e os pacientes apresentam quadro
hemorrágico característico de alteração da hemostasia primária. A citometria de fluxo é
útil no diagnóstico.

Quadro clínico
História de sangramentos é subjetiva, variável e evolutiva durante a vida de uma
pessoa. Os pacientes devem ser avaliados para a presença de doenças que podem causar
disfunção plaquetária adquirida ou vasculites. O uso de medicamentos deve ser
interrogado.
Manifestações hemorrágicas típicas das disfunções plaquetárias incluem
equimoses inexplicadas ou em grande número, epistaxe, particularmente com duração
superior a trinta minutos, resultando em anemia ou em admissão hospitalar, menorragia,
particularmente se presente desde a menarca, sangramento oral ou gastrointestinal,
sangramento durante o parto, sangramento após procedimentos invasivos e sangramento
após exodontias.
História familiar compatível com as formas dominantes de doença plaquetária
deve ser pesquisada e a presença de consanguinidade aumenta a probabilidade de
doenças plaquetárias recessivas.

Avaliação complementar
Os testes de triagem incluem contagem plaquetária e avaliação de morfologia
plaquetária, tempo de sangramento, testes de agregação plaquetária e retração do
coágulo.
O principal indicador da presença de distúrbio plaquetário é a presença de tempo
de sangramento prolongado ou de outro teste anormal da hemostasia primária em
associação com contagem plaquetária normal, em pacientes em que doença de von

Pedro Kallas Curiati 786


Willebrand tenha sido excluída. Os pacientes em investigação de distúrbios plaquetários
hereditários devem realizar hemograma para avaliar se existe associação com
trombocitopenia ou anemia.
Os testes de agregação plaquetária constituem o principal procedimento utilizado
para diagnóstico e classificação dos distúrbios plaquetários qualitativos. Quando
realizadas com critérios técnicos apropriados, as curvas de agregação produzidas por
vários agonistas, como adrenalina, adenosina difosfato, colágeno, ristocetina e ácido
araquidônico, constituem um método sensível para a detecção da maioria dos distúrbios.
A identificação do defeito específico poderá ser realizada em uma segunda
etapa, por meio de testes ou procedimentos específicos mais complexos, como
citometria de fluxo, microscopia eletrônica, testes de secreção plaquetária, dosagens de
cicloxigenase e tromboxano sintetase e análise molecular.

Tratamento
As disfunções plaquetárias hereditárias são raras e necessitam de serviço
especializado para investigação diagnóstica, tratamento e acesso 24 horas por dia. Os
pacientes devem portar cartão de identificação com a descrição de condições clínicas e
cuidados específicos. Orientações devem ser oferecidas quanto ao estilo de vida e ao
uso de medicamentos que interferem na função plaquetária. Recomenda-se imunização
para as hepatites A e B e monitorização sorológica para infecções transfusionais.
Os inibidores da fibrinólise, como o Ácido Tranexâmico 15-25mg/kg por via
oral três vezes ao dia ou 10mg/kg por via intravenosa três vezes ao dia e o Ácido
Épsilon Aminocapróico, são utilizados com frequência nos pacientes com disfunções
plaquetárias hereditárias, em especial no tratamento de sangramentos mucosos. A
Desmopressina é um dos medicamentos mais utilizados nas plaquetopatias hereditárias,
uma vez que promove a hemostasia adequada na maioria dos casos, com dose de
0.3mcg/kg diluída em 30-50mL de Soro Fisiológico por via intravenosa em trinta
minutos, 0.3mcg/kg por via subcutânea ou 150mcg ou 300mcg por via intranasal.
Transfusões de concentrados de plaquetas são apropriadas nas disfunções plaquetárias
graves e quando outros agentes falharem no controle do sangramento. Fator VII ativado
recombinante é um agente terapêutico alternativo, com indicação na trombastenia de
Glanzmann refratária à transfusão de concentrado de plaquetas. Os anticoncepcionais
orais também são usados no tratamento das mulheres com disfunção plaquetária e que
apresentam menorragia.
O manejo da diátese hemorrágica associada aos distúrbios de função plaquetária
adquiridos é baseado no tratamento da doença de base. Na maioria dos casos, o
distúrbio hemorrágico é leve e raramente requer tratamento específico ou profilaxia com
transfusões de concentrados de plaqueta ou DDAVP. Nas alterações induzidas por
medicamentos, basta a remoção do agente causador da disfunção plaquetária. O uso de
Eritropoetina ou de transfusões de concentrados de hemácias frequentemente corrige a
anemia e o tempo de sangramento prolongado na uremia. Infusões de DDAVP também
são utilizadas para a correção da tendência hemorrágica das doenças mieloproliferativas
e das doenças de depósito de glicogênio.

Doenças plaquetárias relacionadas a alterações no número

Definição
A plaquetopenia é definida como uma redução na contagem plaquetária para
valores inferiores a 150000/mm3. Em condições fisiológicas, o pool plaquetário é
distribuído em dois compartimentos, com dois terços no sangue periférico e um terço no

Pedro Kallas Curiati 787


baço.

Etiologia e fisiopatologia
Existem três mecanismos básicos responsáveis pela ocorrência de plaquetopenia,
a diminuição da produção, o aumento da destruição e a alteração da distribuição.
Alteração da produção ocorre em lesão medular por álcool, drogas ou irradiação,
anemia aplástica, infiltração medular por câncer metastático, leucemia, linfoma,
mieloma múltiplo ou mielofibrose, anemia megaloblástica, síndrome mielodisplásica e
plaquetopenias congênitas.
Aumento da destruição ocorre em coagulação intravascular disseminada,
púrpura trombocitopênica trombótica, síndrome hemolítico-urêmica, sepse, púrpura
trombocitopênica idiopática, plaquetopenia induzida por fármacos, trombocitopenia
induzida por Heparina, colagenoses, hepatites B e C, infecção pelo vírus da
imunodeficiência humana, pelo citomegalovírus e pelo vírus varicela zoster, linfoma e
leucemia linfocítica crônica.
Sequestro ocorre em hiperesplenismo.
Hemodiluição ocorre em transfusão maciça.

Pseudoplaquetopenia
A pseudoplaquetopenia ou plaquetopenia espúria é uma condição não-patológica
na qual a contagem de plaquetas está falsamente reduzida em contadores automáticos.
Pode ser reconhecida por meio da análise das plaquetas em distensão de sangue
periférico. É causada, na maioria dos casos, por autoanticorpos naturais contra o
complexo glicoproteína IIb/IIIa, exposto in vitro na superfície plaquetária pelo
anticoagulante ácido tetra-acético etilenodiamina (EDTA), levando a aglutinação
plaquetária. Os agregados podem ser interpretados pelo contador automático como
leucócitos, com falsa impressão de plaquetopenia. Uma estratégia para obtenção da
plaquetometria real é a coleta da amostra em tubo com anticoagulante alternativo, como
a heparina e o citrato de sódio. A pseudoplaquetopenia também pode ser secundária à
presença de plaquetas gigantes, observadas em algumas trombocitopenias hereditárias, e
de macroplaquetas. O satelitismo plaquetário é outro exemplo de pseudoplaquetopenia e
é causado por anticorpos IgG contra a glicoproteína IIb/IIIa, que reagem
simultaneamente com o receptor III leucocitário, formando uma imagem característica
de roseta, com plaquetas ao redor da superfície dos neutrófilos e monócitos.

Quadro clínico
Deve-se questionar o paciente quanto a manifestações hemorrágicas, localização
e gravidade do sangramento, presença de sintomas sistêmicos que sugiram causas
secundárias, como neoplasias, colagenoses e infecções, presença de esplenomegalia, uso
de medicações e álcool, história familiar de plaquetopenia e sangramento, histórico
transfusional, fatores de risco para infecção pelo vírus da imunodeficiência humana ou
pelos vírus das hepatites e antecedentes de neoplasias hematológicas e não-
hematológicas.
Muitos pacientes com plaquetopenia podem ser assintomáticos. Em geral,
indivíduos com plaquetometria superior a 50000/mm3 não apresentam manifestações
hemorrágicas espontâneas. Os fenômenos hemorrágicos característicos na
trombocitopenia ocorrem em território cutaneomucoso, com petéquias, equimoses,
menorragia e metrorragia, epistaxe e, mais raramente, sangramento gastrointestinal. O
início do sangramento é imediato.

Pedro Kallas Curiati 788


Avaliação complementar
O diagnóstico laboratorial inicia-se com a contagem plaquetária automatizada e
é confirmado por meio da contagem manual de plaquetas em amostras com EDTA e
citrato de sódio. É importante a realização da distensão de sangue periférico para a
exclusão de pseudoplaquetopenia, além da análise da morfologia plaquetária e dos
outros componentes celulares no sangue.
Plaquetas agregadas ocorrem em pseudoplaquetopenia. Plaquetas gigantes
ocorrem em plaquetopatias, como a síndrome de Bernard-Soulier. Macroplaquetas
ocorrem em púrpura trombocitopênica em recuperação e plaquetopatias. Esquizócitos
ocorrem em púrpura trombocitopênica trombótica, síndrome hemolítico-urêmica e
coagulação intravascular disseminada. Leucócitos atípicos ocorrem em infecção viral.
Blastos ocorrem em leucemias agudas. Leucocitose com desvio escalonado ocorre em
infecção e doenças mieloproliferativas, como a leucemia mieloide crônica. Reação
leucoeritroblástica ocorre em mielofibrose. Corpúsculos de Döhle ocorrem em infecção
e sepse. Hemácias em rouleaux ocorrem em mieloma múltiplo. Sombras nucleares
ocorrem em linfoproliferações crônicas, como a leucemia linfocítica crônica.
O exame da medula óssea, com aspirado e/ou biópsia, é útil na avaliação da
plaquetopoese e pode revelar alterações no número e na morfologia dos megacariócitos.
Outros testes incluem hemograma para avaliação geral das três séries
hematopoéticas, hemocultura na suspeita de infecção, coagulograma, fibrinogênio e
dímero-D na suspeita de coagulação intravascular disseminada, sorologias para
citomegalovírus e para os vírus da imunodeficiência humana e das hepatites B e C na
suspeita de doenças infecciosas, fator antinuclear na suspeita de doenças autoimunes,
teste da antiglobulina direta na suspeita de anemia hemolítica autoimune, síndrome de
Evans ou leucemia linfocítica crônica e anticorpo anticardiolipina e anticoagulante
lúpico na suspeita de síndrome do anticorpo antifosfolípide.

Púrpura trombocitopênica idiopática

Definição
A púrpura trombocitopênica idiopática é uma patologia caracterizada por
plaquetopenia adquirida isolada, que frequentemente é crônica ou recorrente em adultos
e aguda e autolimitada após evento infeccioso viral em crianças. Não existem critérios
para o diagnóstico, que é realizado após a exclusão de outras causas de plaquetopenia.

Etiologia e fisiopatologia
A patogênese parece estar associada à destruição plaquetária e/ou à inibição da
produção plaquetária via anticorpos específicos. A citotoxicidade mediada por células T
tem sido postulada para pacientes sem autoanticorpos demonstráveis.

Quadro clínico
Existe uma variabilidade significativa na apresentação clínica da púrpura
trombocitopênica idiopática. O início do quadro pode ser abrupto e agudo ou insidioso.
O sangramento em pacientes sintomáticos pode variar de petéquias e equimoses
espontâneas a hemorragias graves. As manifestações clínicas de plaquetopenia são
aquelas características de alteração da hemostasia primária, sem sinais e sintomas
sistêmicos. Parcela significativa dos pacientes é assintomática, com diagnóstico após a
observação incidental de plaquetopenia no hemograma.
As manifestações clínicas ocorrem habitualmente naqueles indivíduos com
contagem plaquetária inferior a 30000/mm3, sendo mais evidentes e graves em níveis

Pedro Kallas Curiati 789


plaquetários inferiores a 10000/mm3 ou quando há redução abrupta da plaquetometria.
As manifestações clínicas são menos graves quando comparadas a pacientes com
plaquetopenia equivalente de etiologia alternativa.
As características da púrpura em pacientes plaquetopênicos, assintomática e não
palpável, deve ser distinguida daquelas da púrpura secundária a vasculite, como a
púrpura de Henoch-Schönlein e por hipersensibilidade, em que o paciente refere
pródromo de disestesia e, ao exame físico, observa-se púrpura palpável e papular. Além
disso, na púrpura trombocitopênica idiopática as manifestações estão presentes
predominantemente nos pés e nos tornozelos e em menor intensidade nas pernas e em
outros locais do corpo, enquanto que na púrpura secundária à vasculite as manifestações
podem ser simétricas e sem um padrão de acometimento preferencial.

Avaliação complementar
O diagnóstico é confirmado após a exclusão de outras causas de plaquetopenia,
sendo fundamentado em história clínica, exame físico e análise integral do hemograma
e da distensão do sangue periférico, que não devem revelar alterações que sugiram
outras etiologias.
Os únicos testes recomendáveis para os pacientes com suspeita de púrpura
trombocitopênica idiopática são sorologias para vírus da imunodeficiência humana e da
hepatite C em pacientes com fatores de risco associados, teste de função tireoidiana para
exclusão de hipertireoidismo e/ou hipotireoidismo previamente à esplenectomia eletiva
e mielograma em pacientes com idade superior a 60 anos para descartar síndrome
mielodisplásica e com idade inferior a 18 anos para descartar leucemias agudas. O
mielograma também deve ser realizado em pacientes não-responsivos à terapia e
previamente à esplenectomia com o objetivo de reavaliar e confirmar o diagnóstico.
Outros estudos diagnósticos geralmente não são necessários na avaliação de
rotina dos pacientes com púrpura trombocitopênica idiopática.
A morfologia da medula óssea é normal, com número normal ou aumentado de
megacariócitos, geralmente com desvio para formas mais imaturas. A mielopoese e a
eritropoiese são normais.
A função plaquetária pode variar de acordo com a especificidade do anticorpo,
quando presente, o que pode ser parcialmente responsável pela gravidade variável das
manifestações hemorrágicas com níveis plaquetários semelhantes.

Tratamento
O objetivo do tratamento é alcançar um nível seguro para a prevenção de
sangramentos graves, sem o tratamento desnecessário em pacientes com plaquetopenia
leve a moderada.
Pacientes com contagem plaquetária superior a 50000/mm3 não apresentam
sangramentos clinicamente significativos e podem ser submetidos seguramente a
procedimentos cirúrgicos invasivos, excetuando-se aqueles com abordagem de sistema
nervoso central, em que uma plaquetometria superior a 100000/mm3 é necessária.
Diante de pacientes com plaquetopenia moderada a grave com eventos
hemorrágicos, os glicocorticoides, frequentemente administrados na forma de
Prednisona 1mg/kg/dia, são a terapêutica de primeira linha, com manutenção até um
nível seguro de plaquetometria ser atingido e, a partir de então, desmame em
aproximadamente quatro a seis semanas. A maior parte dos adultos responde a essa
abordagem em duas semanas, grande parte na primeira semana, mas apenas em uma
parcela a resposta se mantém a longo prazo. Um protocolo alternativo com
Dexametasona 40mg/dia por quatro dias foi proposto.

Pedro Kallas Curiati 790


Imunoglobulina intravenosa, com dose de 1g/kg/dia por via intravenosa durante
dois dias ou 400mg/kg/dia por via intravenosa durante cinco dias, é uma terapia
apropriada para elevação rápida e temporária da contagem plaquetária, ideal para o
manejo de sangramentos graves ou a preparação para procedimentos cirúrgicos. Há
contraindicação em pacientes com deficiência seletiva de IgA e a maioria dos efeitos
colaterais, como cefaleia, dor torácica e anafilaxia, está associada à velocidade de
infusão. Imunoglobulina anti-Rh, com dose de 50-75mcg/kg/dia por via intravenosa,
pode ser utilizada em pacientes Rh positivos e parece ser eficaz naqueles pacientes que
não foram submetidos a esplenectomia. Pode desencadear hemólise aloimune através da
sua ligação aos eritrócitos Rh positivos, com posterior remoção pelo sistema retículo-
endotelial.
A esplenectomia é um tratamento efetivo para a púrpura trombocitopênica
idiopática, com remissão completa e durável em dois terços dos pacientes. É terapia de
segunda linha, já que parcela dos indivíduos entra em remissão espontaneamente após
episódio agudo. Deve ser considerada após seis meses de evolução naqueles pacientes
com plaquetopenia persistente e grave, após falha de resposta com corticosteroides ou
mais precocemente em alguns casos graves e refratários. É recomendável que os
pacientes sejam imunizados com vacina pneumocócica polivalente, vacina para H.
influenzae tipo b e vacina antimeningocócica.
Os casos de púrpura trombocitopênica idiopática crônica refratária são aqueles
com persistência de trombocitopenia após seis meses de terapia inicial incluindo
esplenectomia, com necessidade de tratamento ativo para manter nível plaquetário
seguro e sem sangramentos. Terapias menos agressivas podem ser instituídas
inicialmente naqueles casos menos graves, que, muitas vezes, poderiam ser apenas
observados, e incluem Danazol, Colchicina, Cloroquina, Dapsona e até mesmo a
erradicação de Helicobacter pylori nos casos com pesquisa positiva. O Danazol,
supressor dos hormônios luteinizante e folículo-estimulante, é utilizado inicialmente na
dose de 200mg por via oral duas vezes ao dia, com apresentação na forma de
comprimidos de 50mg, 100mg e 200mg. Em casos com plaquetopenia grave e
sintomática, deve-se considerar a relação entre riscos e benefícios do uso de Vincristina
1-2mg por via intravenosa a cada quatro a seis semanas, Azatioprina 2mg/kg/dia,
Ciclofosfamida e Rituximab.

Trombocitopenia induzida por Heparina


Doença consideravelmente ameaçadora que ocorre após exposição à Heparina.
Sua frequência varia com a população e com o tipo de Heparina, com maior risco em
Heparina Não-Fracionada e em pacientes ortopédicos. Outras drogas relacionadas à
plaquetopenia são a Quinina, o Acetaminofen, o Sulfametoxazol-Trimetoprim, os anti-
inflamatórios não-hormonais, os anticonvulsivantes e os sais de ouro.
Pela definição clássica, a contagem de plaquetas é inferior a 150000/mm3. No
entanto, alguns casos podem apresentar plaquetometria normal, mas com queda superior
a 50% do valor basal. Paradoxalmente, até metade dos pacientes podem evoluir com
complicações trombóticas, como trombose de extremidades, necrose de extremidades,
acidente vascular cerebral, infarto agudo do miocárdio, tromboembolismo pulmonar e
necrose de pele e gangrena em membros após introdução de Warfarina, sobretudo
quando há processo inflamatório decorrente de cirurgia ou infecção.
A trombocitopenia induzida por Heparina tipo I é caracterizada por
plaquetopenia leve, de início após um a três dias da exposição à droga. O mecanismo
parece ser não-imunológico, com ação direta na agregação plaquetária, sem trombose. A
trombocitopenia induzida por Heparina tipo II é uma síndrome de trombocitopenia

Pedro Kallas Curiati 791


mediada por anticorpo IgG e associada frequentemente a ativação intensa das plaquetas
e fenômenos trombóticos. A plaquetopenia ocorre em cinco a dez dias do início da
Heparina, mas pode se antecipar se o paciente tiver sido exposto previamente.
Os testes sorológicos detectam anticorpos IgM, IgA ou IgG circulantes, com
sensibilidade alta, especificidade baixa, valor preditivo positivo baixo e valor preditivo
negativo alto. Os testes funcionais medem a ativação plaquetária e detectam anticorpos
dependentes de Heparina capazes de se ligarem e ativarem receptores das plaquetas,
podendo ser realizados pela avaliação da agregação plaquetária induzida por Heparina,
cujas sensibilidade e especificidade são altas.
Na suspeita de trombocitopenia induzida por Heparina, a primeira conduta é
suspender a droga. No tipo I, não há tratamento específico. No tipo II, quando há
trombose associada, deve-se introduzir um anticoagulante alternativo, sendo
considerados efetivos Danaparoide, Lepirudina e Argatroban. Os anticoagulantes
antagonistas de vitamina K, como a Warfarina, não devem ser introduzidos na fase
inicial pelo risco de progressão do trombo, gangrena de membros e necrose de pele. A
Danaparoide é administrada por via intravenosa com bolus de 2500UI seguido de
400UI/hora por quatro horas, 300UI/hora por mais quatro horas e, então, 150-
200UI/hora, com monitorização baseada na atividade anti-Xa, tendo como alvo 0.5-
8.0U/mL. Lepirudina é administrada por via intravenosa com bolus de 0.4mg/kg e
infusão inicial de 0.15mg/kg/hora, com monitorização baseada no tempo de
tromboplastina parcial ativada duas horas após o bolus e após cada ajuste, tendo como
alvo 1.5-2.5 vezes o valor basal. Argatroban é administrado por via intravenosa em
infusão contínua sem bolus inicialmente com 2mcg/kg/minuto e com dose máxima de
10mcg/kg/minuto, com monitorização baseada no tempo de tromboplastina parcial
ativada duas horas após cada ajuste, tendo como alvo 1.5-3.0 o valor basal.
Recomenda-se que pacientes apenas com plaquetopenia devam receber doses
terapêuticas do anticoagulante alternativo e somente após a recuperação dos níveis
plaquetários é possível a introdução de anticoagulação oral. A Warfarina é iniciada em
doses baixas e a suspensão do anticoagulante alternativo só deve ser feita após o
mínimo de cinco dias de transição, até que se atinja índice normatizado internacional
terapêutico por no mínimo 48 horas.

Sequestro esplênico
A esplenomegalia pode causar sequestro de elementos do sangue, com
citopenias, sobretudo plaquetopenia. Hiperesplenismo é uma síndrome caracterizada por
esplenomegalia ou apenas elevação da atividade esplênica, associada a um ou mais
dentre citopenias, aumento dos precursores na medula óssea e correção após
esplenectomia. As plaquetas no compartimento esplênico estão em equilíbrio com as
plaquetas circulantes e podem ser mobilizadas com infusão de epinefrina ou durante
plaquetaférese.
Há vários distúrbios que causam hiperesplenismo, sendo o mais comum a cirrose
hepática com hipertensão portal. Causas infecciosas incluem hepatites virais,
mononucleose infecciosa, citomegalovirose, toxoplasmose, tuberculose, endocardite
bacteriana subaguda, malária e calazar. Causas hematológicas incluem doença
falciforme, anemias hemolíticas, talassemia, síndromes mieloproliferativas crônicas,
leucemia linfocítica crônica, linfomas e leucemias agudas. Causas reumatológicas
incluem lúpus eritematoso sistêmico, síndrome de Felty, febre reumática e sarcoidose.
Causas de esplenomegalia congestiva incluem cirrose, trombose de veia porta, trombose
de veia esplênica, síndrome de Budd-Chiari e insuficiência cardíaca. Outras causas
incluem doença de Gaucher, doença de Niemann-Pick e amiloidose.

Pedro Kallas Curiati 792


Habitualmente, a plaquetopenia relacionada ao hiperesplenismo é leve. Na
vigência de maior gravidade, deve-se investigar outras causas associadas.
A transfusão de plaquetas não é muito eficaz e na maioria dos casos não há
necessidade de tratamento específico da plaquetopenia. As principais manobras
descritas são esplenectomia total ou parcial, embolização esplênica parcial e shunt
portossistêmico transjugular intra-hepático.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 3: doenças hematológicas, oncologia, doenças renais e genitourinárias. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 793


DIAGNÓSTICO LABORATORIAL
DAS ALTERAÇÕES DA
HEMOSTASIA
Doenças hemorrágicas

Testes laboratoriais da hemostasia secundária

Testes de triagem
A investigação de uma possível doença hemorrágica deve incluir os testes que
avaliam a hemostasia secundária e primária, empregando-se inicialmente testes de
triagem.
O tempo de protrombina (TP) avalia a eficiência da via extrínseca da
coagulação, que abrange os fatores II, V, VII e X. Os resultados são expressos em
tempo de coagulação em segundos, relação dos tempos (paciente / normal), relação
normatizada internacional (INR) e atividade de protrombina. Tempo de protrombina
prolongado é indicativo de concentração reduzida de um ou mais fatores da via
extrínseca, presença de inibidores específicos, deficiência de vitamina K, doença
hepática ou uso de medicamentos.
O tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPa) reflete a integridade do
sistema intrínseco da coagulação, que abrange pré-calicreína, cininogênio de alto peso
molecular e fatores VIII, IX, XI e XII. Também se altera nas deficiências dos fatores I
(fibrinogênio), II (protrombina), V e X, que fazem parte da via comum. Os resultados
são expressos em tempo de coagulação em segundos e relação dos tempos (paciente /
normal). O prolongamento do tempo de tromboplastina parcial ativada pode ocorrer por
deficiência de um ou mais fatores da via intrínseca, coleta de sangue inadequada,
presença de inibidores específicos ou interferência.
O prolongamento do tempo de trombina pode ocorrer por baixa concentração de
fibrinogênio, fibrinogênio qualitativamente anormal, presença de inibidores de
polimerização da fibrina, presença de anti-trombina anormal e presença de Heparina na
amostra.
Após a detecção da alteração dos testes de triagem da hemostasia secundária,
antes de prosseguir com os testes específicos, é recomendável o estudo das misturas a
50%, com uma parte do plasma testado e uma parte do pool de plasmas normais para
diferenciar deficiência de fator de presença de anticorpos no plasma que interferem com
a normalização dos tempos de coagulação.
Na alteração somente do tempo de protrombina, após a confirmação de que o
paciente não está fazendo uso de anticoagulante oral, deve-se fazer o estudo das
misturas. Se o resultado retornar à faixa de normalidade, a maior suspeita é a de
deficiência do fator VII, sendo que a próxima etapa seria determinar a atividade desse
fator. Se não houver correção, deve-se investigar a presença de inibidor específico para
o fator VII.
No caso de alteração somente do tempo de tromboplastina parcial ativado, o
primeiro passo é verificar se o prolongamento é decorrente de deficiência de algum
fator da via intrínseca ou da presença de um inibidor através da mistura a 50% do
plasma do paciente com plasma normal. Se não houver correção imediata, a suspeita é

Pedro Kallas Curiati 794


de presença de anticoagulante lúpico na vigência de ausência de sintomas,
tromboembolismo venoso ou tromboembolismo arterial ou de inibidor de fator IX ou de
outro fator da via intrínseca na vigência de manifestações hemorrágicas. O inibidor do
fator VIII:C é tempo e temperatura dependente e é detectado pela mistura mantida a 37º
C por duas horas.
Rotineiramente, são encontrados casos em que o tempo de tromboplastina
parcial ativado se normaliza após a mistura a 50% imediata e após duas horas de
incubação a 37º C com os níveis normais dos fatores de coagulação da via intrínseca.
Isso se deve à presença de inibidores fracos transitórios, muitas vezes associados a
infecções virais. Esses inibidores são detectados apenas com a mistura de quatro partes
do plasma do paciente e uma parte de plasma normal.
Quando o tempo de protrombina e o tempo de tromboplastina parcial ativada
estiverem alterados, primeiro deve-se descartar o uso de anticoagulante oral pelo
paciente. A etapa seguinte consiste em repetir os testes com a mistura a 50% com
plasma normal. Se não houver correção, a suspeita é da presença de inibidores. Caso
contrário, devem ser determinados os fatores das vias intrínseca e extrínseca. O quadro
pode ser justificado por deficiência única dos fatores I, II, V ou X ou por deficiência de
múltiplos fatores. As deficiências de múltiplos fatores podem ocorrer em deficiência de
vitamina K, uso de Cefalosporinas e hepatopatias. Nessas situações, os níveis
plasmáticos de fibrinogênio e dos produtos de degradação da fibrina são normais. No
entanto, se estiverem alterados, deve-se considerar hepatopatia severa, coagulopatia por
consumo e fibrinólise primária. As coagulopatias de consumo em geral cursam com
plaquetopenia.
No caso de alteração predominantemente do tempo de trombina, deve-se afastar
a presença de contaminação por Heparina na amostra se o sangue tiver sido coletado de
cateter de longa permanência. O anticoagulante pode ser retirado por troca iônica, com
o uso de resinas, ou por heparinases, sem ativação dos fatores de coagulação. Se o
prolongamento não for decorrente de Heparina, a mistura a 50% com plasma normal
deve ser realizada. Se não houver correção, a maior suspeita é a presença de altos níveis
plasmáticos de produtos de degradação da fibrina ou de disproteinemias. Caso haja
correção, o próximo passo é a determinação funcional e quantitativa do fibrinogênio
plasmático. A diminuição da função e quantidade do fibrinogênio é denominada
hipofibrinogenemia ou afibrinogenemia, enquanto que a diminuição apenas da função é
denominada disfibrinogenemia.
Para os pacientes que apresentam doença hemorrágica com característica de
alteração da hemostasia secundária e provas de triagem normais, deve-se investigar a
deficiência de fator XIII.

Testes especiais
Quando há suspeita de deficiência de fator por estudo das misturas e/ou história
familiar, a determinação específica dos fatores de coagulação é indicada.
Quando há suspeita de inibidor de fator da coagulação por estudo das misturas, a
pesquisa específica é indicada.

Testes laboratoriais da hemostasia primária

Testes de triagem
A contagem das plaquetas têm aplicação prática particularmente no diagnóstico
das plaquetopenias e plaquetoses, sendo o primeiro teste de triagem. Quando há suspeita
de pseudoplaquetopenia, o diagnóstico pode ser confirmado com a contagem de

Pedro Kallas Curiati 795


plaquetas imediatamente após a coleta do sangue em EDTA, repetindo-se o teste após
uma ou quatro horas, com queda gradual dos resultados. O número real de plaquetas
pode ser determinado colhendo-se sangue em citrato de sódio e realizando-se a
contagem imediatamente. A avaliação cuidadosa do esfregaço de sangue em lâmina é
imprescindível para a caracterização de casos de pseudotrombocitopenia. A observação
criteriosa do histograma, nas contagens eletrônicas, pode também sugerir um quadro de
pseudotrombocitopenia quando se detecta o aumento de fragmentos celulares. Outra
técnica que está sendo adotada para a contagem do número de plaquetas é a citometria
de fluxo.
O tempo de sangramento é um teste realizado in vivo que avalia a hemostasia
primária dependente da interação entre parede vascular e plaquetas. É medido a partir de
uma incisão de tamanho e profundidade padronizados realizada por um dispositivo na
pele do antebraço do paciente. Alterações refletem defeitos quantitativos e/ou
qualitativos moderados a graves, com baixa sensibilidade, especificidade e
reprodutibilidade. Atualmente, vários centros têm substituído o tempo de sangramento
pelo método que utiliza um sistema de alta força de cisalhamento com grande
participação do fator de von Willebrand. O prolongamento do tempo de sangramento
decorre de plaquetopenia, alterações específicas da função plaquetária, uremia, mieloma
múltiplo, macroglobulinemia de Waldenström, alteração qualitativa e quantitativa do
fibrinogênio, doença de von Willebrand e uso de medicamentos que atuam no
metabolismo plaquetário, como Ácido Acetilsalicílico e anti-inflamatórios não-
hormonais.

Testes especiais
O teste de agregação plaquetária avalia a função das plaquetas in vitro na
presença de agentes que induzem a agregação, como adenosina difosfato, adrenalina,
colágeno, ácido araquidônico, ristocetina e plasma bovino.
Além da agregação plaquetária, outros métodos podem auxiliar na investigação
de doenças hemorrágicas relacionadas às plaquetas, como a pesquisa da deficiência da
cicloxigenase e da deficiência da tromboxano-sintetase.
Para a confirmação diagnóstica da doença de von Willebrand, são empregados
determinação da atividade do fator VIII:C, quantificação do antígeno de von Willebrand
e avaliação da atividade do cofator de ristocetina. Para a definição do subtipo, os testes
necessários incluem agregação plaquetária induzida pela ristocetina, fator de von
Willebrand intraplaquetário, afinidade do fator de von Willebrand pelo fator VIII:C e
análise do padrão multimérico do fator de von Willebrand. Os fatores de von
Willebrand, VIII:C e fibrinogênio são proteínas de fase aguda e seus níveis podem estar
temporariamente elevados por estresse, exercícios, gestação e contraceptivos contendo
estrogênios.

Trombofilia
Em geral, os testes laboratoriais devem ser realizados para auxiliar na decisão de
prevenção primária, tratamento ou prevenção secundária, preconizando-se aguardar três
meses após o episódio trombótico.
A anti-trombina é uma glicoproteína plasmática sintetizada no fígado cuja
função é inibir a atividade proteolítica das enzimas IIa, IXa, Xa e XIa. As deficiências
hereditárias podem ser divididas em tipo I, com deficiência quantitativa, e tipo II, com
deficiência funcional. As deficiências adquiridas podem ser secundárias a coagulação
intravascular disseminada, síndrome nefrótica, doenças hepáticas e terapia de L-
Asparginase. Altas doses de Heparina também podem causar diminuição nos níveis

Pedro Kallas Curiati 796


plasmáticos. A determinação do fenótipo da anti-trombina pode ser realizada por
método funcional ou imunológico e somente após três meses do episódio trombótico e
na ausência de terapia com Heparina.
A proteína C é uma proteína anticoagulante natural dependente de vitamina K
que, em associação com a proteína S, à trombomodulina e à trombina, inativa os
excessos de fatores VIII:C e V ativados. A deficiência é classificada em tipo I,
quantitativa, e tipo II, qualitativa. A pesquisa deve ser realizada preferencialmente por
ensaios funcionais, enquanto que os ensaios quantitativos devem ser utilizados apenas
para caracterização do tipo de deficiência. O uso de anticoagulantes orais, a deficiência
de vitamina K e um episódio recente de trombose impossibilitam a determinação da
proteína C.
A proteína S é uma proteína dependente de vitamina K presente no plasma na
forma complexada com uma proteína ligante à fração C4b do complemento e na forma
livre, responsável pela atividade anticoagulante. A deficiência hereditária é classificada
em três tipos com base em função da proteína S, níveis da proteína S livre e níveis da
proteína S total. A deficiência também pode ser adquirida pelo uso de anticoagulantes
orais, em doenças hepáticas, na coagulação intravascular disseminada, durante a terapia
com L-Asparginase e em episódios trombóticos. Estão disponíveis no mercado kits que
avaliam a função da proteína e kits que quantificam a proteína tanto na sua forma total
quando na sua forma livre.
O diagnóstico laboratorial de fator V ativado resistente à proteína C ativada pode
ser realizado por pesquisa que, além de detectar o fator V de Leiden, pode ser
influenciada por múltiplos fatores genéticos e ambientais, como gravidez, uso de
contraceptivos orais e aumento plasmático do fator VIII:C. A pesquisa do fator V de
Leiden pode ser realizada por vários métodos, sendo que todos utilizam o DNA extraído
do sangue total com amplificação por reação em cadeia da polimerase de local do gene
do fator V.
A mutação no gene da protrombina (20210 G/A) é identificada com a
amplificação por reação em cadeia da polimerase do fragmento incluindo o nucleotídeo
20210 do gene da protrombina.
A homocisteína é um aminoácido formado durante a conversão de metionina a
cisteína. A deficiência congênita das enzimas envolvidas no seu metabolismo determina
hiper-homocisteinemia, que tem sido apontada como fator de risco para trombose
arterial e venosa. A hiper-homocisteinemia também pode apresentar causa adquirida,
com a maioria dos casos relacionada ao tabagismo e a dietas com baixa suplementação
vitamínica, especialmente de vitaminas B6, B12 e ácido fólico.
A disfibrinogenemia é uma alteração na síntese da molécula de fibrinogênio que
reflete na liberação dos fibrinopeptídeos e/ou na polimerização da fibrina. Essa
alteração qualitativa do fibrinogênio pode causar manifestações hemorrágicas e
trombóticas no mesmo indivíduo. A investigação laboratorial se inicia com tempo de
reptilase e tempo de trombina. Os casos positivos são identificados pelo prolongamento
do tempo de coagulação dos dois testes e confirmados por análise da função e
determinação quantitativa do fibrinogênio.
Os alvos dos anticorpos antifosfolípide incluem beta-glicoproteína I,
protrombina, proteína C ativada, proteína S, anexina V, cininogênio de alto peso
molecular, ativador tecidual do plasminogênio (t-PA), fator XII, fator VII e fator VII
ativado. Como a maioria está envolvida na regulação da coagulação sanguínea, a
diminuição da concentração plasmática e/ou a alteração da sua função podem causar um
desequilíbrio entre o sistema pró-coagulante e anticoagulante. O diagnóstico laboratorial
dos anticorpos antifosfolípide consiste na demonstração da presença de anticoagulante

Pedro Kallas Curiati 797


lúpico por testes de coagulação e/ou anticorpos anticardiolipina e beta-glicoproteína I
por ensaio imunológico de fase sólida.
A presença de anticoagulante lúpico no plasma é evidenciada por:
- Prolongamento dos testes de coagulação dependentes de fosfolípides,
como tempo de tromboplastina parcial ativada, tempo de coagulação com
caulim, teste com veneno da víbora de Russell diluído e teste de inibição
da tromboplastina, com alteração em no mínimo dois testes baseados em
princípios diferentes;
- Demonstração da presença do inibidor por meio do estudo das misturas,
em que a presença do anticoagulante lúpico impede a correção dos
tempos de coagulação do teste, devendo-se excluir a presença de
Heparina na amostra e considerar que são descritos anticoagulantes
lúpicos dependentes de tempo de incubação;
- Demonstração de inibidor dependente de fosfolípide, prova
confirmatória, com correção do efeito inibitório por adição de alta
concentração de fosfolípide;

Bibliografia
Clínica Médica, volume 3: doenças hematológicas, oncologia, doenças renais e genitourinárias. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 798


HEMOCOMPONENTES
Sangue total
O sangue coletado e não-processado é conhecido como sangue total e tem sua
aplicação transfusional praticamente abolida. É obtido de doador único, com volume
aproximado de 450mL de sangue e 63mL de solução anticoagulante e preservante, com
hematócrito de 33-44%. O principal uso é no fracionamento para obtenção dos
diferentes hemocomponentes.

Concentrado de hemácias
O concentrado de hemácias é preparado com base no sangue total por
centrifugação. Tem hematócrito de 65-80%, volume de 200-250mL e quantidades
residuais de plaquetas e leucócitos não-funcionantes, além do plasma restante, ao redor
de 60mL, que não contém fatores de coagulação lábeis. A solução anticoagulante
utilizada é o citrato fosfato dextrose adenina (CPDA-1) ou a salina adenina glicose
manitol (SAG-M), que mantêm a viabilidade das hemácias armazenadas por um período
de 35 e 42 dias, respectivamente, à temperatura de 2-6º C.
O propósito primário da transfusão de concentrado de hemácias é aumentar a
concentração de oxigênio nos tecidos. Está indicada quando os mecanismos
fisiológicos, que incluem aumento do débito cardíaco e aumento do conteúdo de 2,3
difosfoglicerato nos eritrócitos, não conseguem compensar a anemia e surgem sinais e
sintomas. A condição clínica do paciente deve ser considerada, pois a decisão de
transfundir é complexa e depende de fatores causais, gravidade, cronicidade e,
principalmente, capacidade do paciente compensar a anemia.
De maneira geral, transfusão de concentrados de hemácias não se justifica se
hemoglobina acima de 10g/dL, é indicada se hemoglobina inferior a 7g/dL e depende
das condições clínicas do paciente se hemoglobina de 7-10g/dL. Pacientes de alto risco
incluem aqueles com idade superior a 65 anos ou com doenças cardiovasculares e/ou
respiratórias, que devem ser transfundidos se valor de hemoglobina inferior a 8g/dL.
Anemia aguda é uma condição clínica causada normalmente por perda de sangue
e suas manifestações devem ser distinguidas daquelas da hipovolemia, sendo a
estimativa da perda sanguínea importante na decisão transfusional. Anemia crônica é
caracterizada por evolução lenta, sem alteração volêmica.
Toda transfusão de hemocomponentes deve ser administrada por meio de um
filtro de transfusão padrão de 170µ, com o tempo de infusão devendo ser adaptado à
situação clínica do paciente, sem ultrapassar quatro horas. Em adultos, uma unidade de
concentrado de hemácias aumenta os níveis de hemoglobina em aproximadamente
1g/dL e o hematócrito em aproximadamente 3-4%. Na ausência de sangramento ativo,
recomenda-se transfundir um concentrado de hemácias por vez.
Os testes pré-transfusionais têm como objetivo fundamental garantir a
compatibilidade sanguínea entre doador e receptor a fim de que os hemocomponentes
transfundidos tenham sobrevida aceitável e não causem dano ao receptor. Em
hemocomponentes que contenham eritrócitos, como sangue total, concentrado de
hemácias e concentrado de granulócitos, é obrigatória a realização de determinação do
grupo ABO e do tipo Rh e pesquisa de anticorpos irregulares em amostra sanguínea do
receptor, determinação do grupo ABO e do tipo Rh e teste de hemólise na amostra do
hemocomponente e prova cruzada entre o soro do receptor e as hemácias do doador.
Os efeitos adversos incluem reação febril não-hemolítica, reação alérgica, reação

Pedro Kallas Curiati 799


anafilática, lesão pulmonar aguda, reação hemolítica, contaminação bacteriana,
hipotensão, doença do enxerto contra o hospedeiro, infecções transmitidas pelo sangue,
púrpura, imunomodulação, sobrecarga circulatória, dor aguda e sobrecarga de ferro.
Os concentrados de hemácias podem ser lavados com solução salina estéril com
a finalidade de remover quase todo o plasma residual, aproximadamente 98%,
reduzindo a quantidade de leucócitos e removendo plaquetas e restos celulares. O
componente poderá ser estocado por até 24 horas à temperatura de 2-6º C. Indicações
incluem reação alérgica grave e recorrente em pacientes que não respondem a pré-
medicação e reação anafilática por deficiência de IgA com anticorpos anti-IgA
documentados.
Os concentrados de hemácias desleucocitados são aqueles dos quais foram
retirados mais de 99.9% dos leucócitos por meio de filtros de terceira geração, devendo
conter uma quantidade menor do que 5 x 106 leucócitos por unidade. Indicações
incluem reação febril não-hemolítica, redução do risco de aloimunização contra
antígenos HLA (human leucocyte antigen) e prevenção da transmissão de
citomegalovírus em pacientes soronegativos e candidatos a transplantes. Não há
contraindicação e o uso universal foi implantado em diversos países, tendo como
principal dificuldade o custo.
A irradiação gama de componentes sanguíneos celulares, como concentrado de
hemácias, concentrado de plaquetas e concentrado de granulócitos, tem como finalidade
prevenir a doença do enxerto contra o hospedeiro mediada por células T. Indicações
incluem transfusão intrauterina, exsanguineotransfusão, recém-nascido de baixo peso,
imunodeficiência congênita ou adquirida, neoplasias hematológicas, transplantes de
células progenitoras hematopoiéticas autólogos ou alogênicos, receptores de
componentes doados por familiares, receptores de componentes HLA compatíveis,
pacientes em uso de Fosfato de Fludarabina e seus análogos e transfusão de
granulócitos.
Concentrados de hemácias fenotipadas são caracterizados por ausência de
antígenos para outros sistemas de grupos sanguíneos que não ABO e Rh(D). Indicações
incluem pacientes aloimunizados com anticorpos de significado clínico, como em
transfusão intrauterina, recém-nascidos com doença hemolítica perinatal apresentando
anticorpos irregulares e pacientes aloimunizados com anticorpos clinicamente
significativos, e pacientes politransfundidos, como aqueles com hemoglobinopatias e
doenças onco-hematológicas.
Com o objetivo de diminuir o risco de transmissão de citomegalovírus,
concentrado de hemácias de doadores soronegativos ou concentrados de hemácias
desleucocitados são utilizados em transfusão intrauterina, gestantes com sorologia
negativa para o citomegalovírus, recém-nascidos de baixo peso, receptores de
transplante de medula óssea alogênico, pacientes com sorologia negativa para
citomegalovírus e infectados pelo HIV, pacientes portadores de imunodeficiência
congênita, receptores de órgãos sólidos com sorologia negativa para citomegalovírus e
pacientes em esquema de quimioterapia com neutropenia grave e sorologia negativa
para citomegalovírus.
Concentrados de hemácias criopreservadas são submetidos a processo de
congelamento por meio de substância crioprotetora e estocados a -65º C ou menos, com
validade de dez anos. A indicação é restrita para pacientes que necessitem de unidades
com fenótipos raros.
Autotransfusão consiste em coletar, estocar e reinfundir sangue do próprio
paciente. Indicações incluem dificuldade na obtenção de sangue compatível, paciente
com reação adversa grave à transfusão, prevenção de aloimunização, crenças religiosas

Pedro Kallas Curiati 800


em testemunhas de Jeová, cirurgias cardiovasculares ou ortopédicas para recuperação
intra-operatória ou pós-operatória e estimativa de perda sanguínea superior a 20% da
volemia.

Concentrado de plaquetas
Os serviços de hemoterapia dispõem, atualmente, de dois tipos básicos de
concentrados de plaquetas:
- Concentrado de plaquetas randômico, com 50-70mL, obtido do
fracionamento de uma unidade de sangue total;
- Concentrado de plaquetas obtido por processo de doação exclusiva de
plaquetas, conhecido como aférese de plaquetas, com mais de 200mL;
O concentrado de plaquetas e a aférese de plaquetas devem ser mantidos sob
agitação constante, em temperatura controlada de 20-24º C, com validade de três a cinco
dias a depender do plastificante utilizado na bolsa.
A aférese de plaquetas tem algumas vantagens. É possível preparar com
soluções aditivas, minimizando reações transfusionais por proteínas plasmáticas ou
incompatibilidade ABO menor, realizar culturas utilizando métodos sensíveis e aplicar
tecnologia de redução de patógenos.
Em adultos, preconiza-se uma unidade de concentrado de plaquetas randômico
para cada dez quilos de peso ou uma unidade de aférese de plaquetas. O tempo de
infusão depende da capacidade de sobrecarga circulatória, funções cardíaca e renal e
relação entre volume de hemocomponente e volemia do paciente, geralmente não
expondo o paciente a riscos quando entre vinte e trinta minutos. Os concentrados de
plaquetas devem ser ABO e Rh compatíveis e administrados através de equipo com
filtro padrão de 170µ.
Na falta de plaquetas ABO idênticas, recomenda-se a seleção do concentrado de
plaquetas com plasma incompatível com título de iso-hemaglutininas baixo. Em
situações de emergência nas quais plaquetas Rh negativo não estiverem disponíveis,
podem ser transfundidas plaquetas Rh positivo em pacientes Rh negativo,
recomendando-se proceder à imunização passiva contra o antígeno D. A
imunoglobulina anti-D é recomendada, se possível, antes ou imediatamente após a
transfusão de plaquetas, em crianças do sexo feminino e em mulheres em idade fértil,
com dose de 25mg ou 125UI, suficiente para cobertura de aproximadamente 1mL de
hemácias Rh incompatível.
A transfusão de uma unidade de concentrado de plaquetas deve elevar a
contagem plaquetária em 5.000-10.000/mm3 em um adulto de 70kg na ausência de
condições associadas com a diminuição da sobrevida plaquetária. Pacientes com
esplenomegalia, febre, infecção e coagulação intravascular disseminada podem
apresentar baixo rendimento e, nesse caso, a dose inicial pode ser de 1.5-2.0 unidades
para cada 10kg de peso, sendo as doses subsequentes definidas com base na resposta
inicial. A refratariedade é definida como baixo rendimento do incremento plaquetário
em repetidas transfusões. Uma aférese corresponde a cerca de seis unidades de
plaquetas.
Contraindicações incluem púrpura trombocitopênica trombótica,
trombocitopenia induzida pela Heparina, síndrome hemolítica urêmica, púrpura pós-
transfusional e síndrome HELLP.
Indicações terapêuticas incluem sangramento ativo e plaquetas abaixo de
50.000/mm3, sangramento espontâneo de sistema nervoso central ou oftalmológico e
plaquetas abaixo de 100.000/mm3 e disfunção plaquetária por uremia ou drogas
antiplaquetárias refratária a DDAVP e crioprecipitado. Transfusões de plaquetas podem

Pedro Kallas Curiati 801


ser profiláticas, com o objetivo de prevenir hemorragias espontâneas ou induzidas por
pequenos traumas ou procedimentos invasivos, ou terapêuticas, indicadas em todos os
pacientes com sangramento ativo associado a trombocitopenia ou defeito funcional das
plaquetas. Preconiza-se valores acima de 100.000/mm3 para cirurgias neurológicas e
oftalmológicas, acima de 50.000/mm3 para cirurgias na ausência de outras
anormalidades da coagulação e para procedimentos como punção lombar, anestesia
peridural, biópsias e cateter venoso central, acima de 20.000/mm3 para pacientes onco-
hematológicos instáveis e acima de 10.000/mm3 para broncoscopia sem biópsia e para
pacientes onco-hematológicos estáveis.
A aloimunização HLA continua sendo um grande problema clínico que causa
morbidade e mortalidade significativas nos pacientes que necessitam de suporte
plaquetário cronicamente. Pode ser primariamente reduzida por meio de desleucocitação
ou irradiação ultravioleta B (UV-B) com o objetivo de reduzir a expressão de muitos
antígenos na superfície de linfócitos. A melhora no rendimento plaquetário nos
pacientes refratários aloimunizados e monitorizados recebendo repetidas transfusões
plaquetárias pode ser obtida após utilização de componentes selecionados ou
compatíveis.
Os concentrados de plaquetas devem ser submetidos a irradiação gama antes da
transfusão com o intuito de inibir a proliferação de linfócitos e minimizar o risco de
doença do enxerto contra o hospedeiro em pacientes com imunossupressão ou quando o
doador for relacionado. A redução de leucócitos pode ser feita por meio de
desleucocitação com filtros de terceira geração durante o processo de produção ou à
beira do leito com o objetivo de reduzir a aloimunização dos pacientes politransfundidos
contra os antígenos do HLA, evitar reação febril não-hemolítica e prevenir a
transmissão do citomegalovírus.
Os efeitos adversos incluem contaminação bacteriana, reação febril não-
hemolítica, reação alérgica e anafilática em pacientes com deficiência de IgA,
refratariedade plaquetária, lesão pulmonar aguda, doença do enxerto contra o
hospedeiro, sobrecarga de volume, hemólise, sensibilização ao antígeno D e transmissão
de doenças infecciosas.

Plasma fresco congelado


O plasma é a parte líquida do sangue, com aproximadamente 7% de proteínas e
2% de carboidratos e lípides. O plasma fresco congelado é obtido do sangue total pelo
método de separação e centrifugação, sendo congelado em até oito horas após a coleta.
Pode ser armazenado por até doze meses se estocado em temperaturas abaixo de -20º C
e possui todos os fatores de coagulação lábeis e estáveis. Uma bolsa de plasma fresco
congelado apresenta volume de 200-250mL e, por definição, 1mL contém uma unidade
de cada fator de coagulação.
Atualmente, as indicações terapêuticas são restritas e utilizadas quando não se
dispuser de derivado industrializado ou outro recurso terapêutico. Incluem
coagulopatias de consumo graves com sangramento ativo e grande diminuição na
concentração sérica de múltiplos fatores, transfusão maciça de mais de uma volemia em
menos de 24 horas com persistência de hemorragia ou sangramento microvascular
associado a alteração significativa da hemostasia, hemorragias em hepatopatias com
déficit de múltiplos fatores e alterações do coagulograma, pré-operatório em transplante
de fígado na fase anepática, púrpura fulminante do recém-nascido por deficiência de
proteínas C ou S, hemorragia por deficiência de fatores dependentes de vitamina K em
recém-nascidos, reposição de fatores durante plasmaféreses terapêuticas, edema
angioneurótico recidivante causado por déficit de inibidor de C1-esterase, púrpura

Pedro Kallas Curiati 802


trombocitopênica trombótica, síndrome hemolítico-urêmica, trombose por deficiência
de antitrombina III, em que o produto de escolha é o concentrado de antitrombina III,
correção de hemorragias por uso de anticoagulante cumarínico e reversão rápida dos
efeitos de anticoagulante cumarínico, em que o produto de escolha é o complexo
protrombínico. São considerados alterados os tempos de protrombina e de
tromboplastina parcial ativada quando superiores ou iguais a uma vez e meia o valor de
referência.
A dose para adultos é de 10-20mL/kg de peso, dependendo das condições
clínicas do paciente. A frequência da administração depende da vida média de cada
fator a ser reposto. O descongelamento é realizado em banho-maria à temperatura de
30-37º C ou por meio de equipamentos específicos, como o descongelador automático
de plasma. A administração é realizada com equipo de transfusão padrão, com filtro de
170µ, em até quatro horas após a unidade ser descongelada. Recomenda-se
compatibilidade ABO e Rh.
Os efeitos adversos são lesão pulmonar aguda, transmissão de doenças
infecciosas, hipotensão, alergia e anafilaxia, esta principalmente por deficiência de IgA.

Crioprecipitado
O crioprecipitado é preparado mediante o descongelamento do plasma fresco
congelado à temperatura de 2-6º C. O sobrenadante é removido e o precipitado restante
contém quantidades concentradas de fator VIII, superior ou igual a 80UI, fibrinogênio,
superior ou igual a 150mg, fator XIII, de 50-75UI, e fator de von Willebrand, de 100-
150UI, em um volume de 10-20mL. O produto é armazenado a -20º C ou menos por
doze meses.
Indicações incluem reposição de fibrinogênio em pacientes com hemorragia por
deficiência congênita ou adquirida na falta de concentrado industrial, reposição de
fibrinogênio em pacientes com coagulação intravascular disseminada grave, reposição
de fator XIII em pacientes com hemorragia por deficiência desse fator quando não se
dispuser do concentrado de fator XIII industrial e reposição de fator de von Willebrand
em pacientes que não respondem à Desmopressina (DDAVP) na indisponibilidade do
concentrado de von Willebrand industrial ou de concentrado de fator VIII rico em
multímero de von Willebrand. Também há indicação na composição de fórmula da cola
de fibrina autóloga para uso próprio.
A dose em adultos é de uma unidade para cada dez quilos de peso. O
crioprecipitado deve ser descongelado em banho-maria a 30-37º C. A administração é
realizada em filtro padrão de transfusão de 170µ. Na amostra do receptor, é realizada
tipagem ABO e Rh, não sendo necessária prova de compatibilidade.
Deve ser feito controle periódico do fibrinogênio antes e após a transfusão.
Efeitos adversos incluem reação febril não-hemolítica, alergia, transmissão de doenças
infecciosas, contaminação bacteriana, trombose e hemólise.

Concentrado de granulócitos
Os concentrados de granulócitos são, geralmente, preparados por meio de
leucaférese de doador único ou extraídos da camada leucoplaquetária de uma unidade
de sangue total fresco. Cada unidade contém mais de 1010 granulócitos e quantidades
variáveis de linfócitos, plaquetas e hemácias, sendo diluída em 200-300mL de plasma.
Para facilitar a coleta de granulócitos, recomenda-se que o doador receba corticosteroide
ou fator estimulador de colônias de granulócitos (G-CSF) horas antes da coleta.
O concentrado de granulócitos deve ser infundido preferencialmente nas
primeiras seis horas e nunca após 24 horas de suas coleta. Durante o período de estoque,

Pedro Kallas Curiati 803


ele deve ser mantido em repouso à temperatura de 20-24º C. A compatibilidade ABO e
Rh entre doador e receptor deve ser respeitada e os testes de compatibilidade realizados.
Indicações incluem neutropenia grave, com neutrófilos abaixo de 500/µL, e
infecções bacterianas ou fúngicas não-responsivas ao tratamento convencional. A dose
para adultos é de duas a três unidades. Os concentrados de granulócitos devem ser
irradiados com o objetivo de evitar doença do enxerto contra o hospedeiro em pacientes
imunossuprimidos e devem ser infundidos com filtro de transfusão padrão com 170µ,
nunca com filtro de remoção de leucócitos.
Efeitos adversos incluem reação febril não-hemolítica, alergia, lesão pulmonar
aguda, contaminação bacteriana e transmissão de doenças infecciosas.

Reações transfusionais
As reações transfusionais ocorrem em aproximadamente 10% dos pacientes
submetidos ao tratamento hemoterápico. Podem ser classificadas de acordo com o
tempo de ocorrência em imediatas e tardias e de acordo com o mecanismo em
imunológicas e não-imunológicas. Geralmente, as reações imediatas ocorrem nas
primeiras 24 horas após o início da transfusão de sangue e as reações tardias ocorrem
após esse período. No Ambulatório de Transfusão do HC-FMUSP, as reações mais
comumente observadas foram reação transfusional febril não-hemolítica e reação
alérgica.
No mínimo, a dupla conferência dos dados da bolsa de sangue, do paciente e do
prontuário deverá ser realizada antes do início da infusão de qualquer hemocomponente.

Conduta diante de reação transfusional imediata


Interromper imediatamente a infusão, verificar se a unidade certa foi
transfundida no paciente certo, manter acesso venoso e assegurar débito urinário
adequado utilizando soluções cristalóides ou colóides, monitorizar e manter sinais
vitais, monitorizar e manter ventilação, informar equipe médica e banco de sangue por
meio da ficha “Identificação do receptor” fixada na bolsa de sangue, coletar amostra de
urina e sangue para provas de hemólise e culturas, enviar relatório sobre a reação ao
banco de sangue e notificar aos órgãos competentes ao confirmar a reação.
Ao confirmar reação hemolítica intravascular, deve-se monitorizar a função
renal com uréia e creatinina séricas, estimular a diurese evitando sobrecarga de volume
se houver insuficiência renal, analisar a urina para detecção de hemoglobinúria,
monitorizar parâmetros da coagulação, como tempo de protrombina, tempo de
tromboplastina parcial ativada, fibrinogênio e contagem de plaquetas, monitorizar sinais
de hemólise, como desidrogenase lática, bilirrubinas, haptoglobina e hemoglobina livre
no plasma, monitorizar os níveis de hemoglobina e hematócrito, repetir as provas de
compatibilidade e consultar o médico do banco de sangue antes de realizar novas
transfusões.
Se houver suspeita de contaminação bacteriana, deve-se obter hemocultura do
paciente, enviar a bolsa que estava sendo infundida para o laboratório para cultura e
bacterioscopia com coloração de Gram, monitorizar e manter sinais vitais e débito
urinário, iniciar antibioticoterapia de amplo espectro e monitorizar sinais de coagulação
intravascular disseminada, insuficiência renal e insuficiência respiratória.

Reações transfusionais
Reação transfusional febril não-hemolítica é uma das reações transfusionais mais
comuns e é considerada benigna, sendo definida como aumento de temperatura corporal
acima de um grau Celsius, excluindo-se outras etiologias causadoras de febre. Ocorre

Pedro Kallas Curiati 804


durante a transfusão do hemocomponente ou até 24 horas após o término da infusão.
Trata-se de processo imunológico que envolve antígeno leucocitário presente no doador
e formação de anticorpos no receptor. Os sinais e os sintomas mais comuns são
calafrios, tremores, frio e febre, que é autolimitada e pode estar ausente. Outros
sintomas incluem cefaleia, náusea, vômitos, hipertensão arterial, hipotensão arterial e
dor abdominal. O diagnóstico é sempre de exclusão. A conduta prevê coletar amostra de
sangue do paciente e encaminhar ao banco de sangue junto com a bolsa que estava
sendo infundida para descartar reação hemolítica aguda, encaminhar amostra de sangue
do paciente e da bolsa para o laboratório de microbiologia caso haja suspeita de
contaminação bacteriana, administrar antitérmicos e considerar o uso de Meperidina 25-
50mg por via intravenosa nos casos graves de calafrios persistentes. Controvérsias
persistem com relação a reinfundir ou não a bolsa que ocasionou a reação. Não se
recomenda a utilização de anti-histamínicos. A prevenção prevê a utilização de filtro de
remoção de leucócitos em todos os pacientes com antecedente de reação transfusional
febril não-hemolítica, politransfundidos e em que se deseja prevenir a transmissão de
citomegalovírus. A pré-medicação pode ser indicada para os indivíduos com
antecedente de reação transfusional febril não-hemolítica, com Acetaminofen 500mg
por via oral trinta a sessenta minutos antes da transfusão. A infusão de Difenidramina e
de corticoides não previne a ocorrência de reação transfusional febril não-hemolítica.
Define-se reação alérgica como o aparecimento de alergias em associação com a
infusão de hemocomponente. Reação alérgica é caracterizada por lesões pruriginosas e
urticariforme na pele. Reação anafilactoide é caracterizada por lesões pruriginosas e
urticariformes na pele combinadas a hipotensão, dispneia, estridor, sibilos pulmonares e
diarreia. Reação anafilática é caracterizada por evolução para hipotensão de difícil
tratamento com perda de consciência. As manifestações clínicas podem ocorrer minutos
a horas após a infusão do hemocomponente. O diagnóstico é baseado no quadro clínico
e pode ser complementado com exames complementares, como dosagem de
imunoglobulinas. A conduta prevê interromper a transfusão e, caso a reação persista,
administrar anti-histamínico, como Difenidramina 3-5mg/kg/dia, além de medicação
antitérmica em caso de hipertermia. Quando a reação é leve e localizada, com melhora
do quadro, a reinfusão do componente pode ser realizada. A prevenção prevê utilizar
concentrados de produtos pobres em proteínas plasmáticas ou hemácias lavadas se
reações recorrentes e utilizar corticosteroide como Hidrocortisona 100mg e
Metilprednisolona 125mg por via intravenosa trinta a sessenta minutos antes da
transfusão se reações recorrentes e sem melhora com uso de anti-histamínico. O uso de
filtros de remoção de leucócitos não previne reações alérgicas. Em caso de reação
anafilática, deve-se interromper imediatamente a transfusão, administrar Epinefrina
1:1000 0.3mL por via intramuscular, manter vias aéreas superiores permeáveis, manter
volemia com solução salina e, se necessário, utilizar medicamentos vasopressores. A
prevenção consiste em utilizar bolsas de sangue com deficiência de IgA ou, quando não
for possível, concentrado de hemácias ou de plaquetas lavadas nas futuras transfusões.
A reação transfusional hemolítica aguda mediada imunologicamente ocorre
quando as hemácias do doador são transfundidas nos receptores que já apresentam
anticorpos contra seu antígeno. A maior causa de reação transfusional hemolítica aguda
é incompatibilidade ABO, que pode ocasionar óbito do paciente. A coagulação
intravascular caracteristicamente acompanha a reação hemolítica aguda, particularmente
quando ocorre a ativação de complemento. A liberação de hemoglobina na circulação
pode alterar o tônus da musculatura vascular e produzir vasoconstrição e isquemia dos
órgãos. O choque, a coagulação intravascular disseminada, a hipoperfusão renal e a
deposição de fibrina são causas de isquemia renal. Podem ser detectados hipoxemia e

Pedro Kallas Curiati 805


hipercapnia. O quadro clínico pode ser muito variável. Após a infusão de algumas gotas
de sangue incompatível e alguns minutos do início da transfusão, os pacientes
apresentam ansiedade, dor no sítio da infusão, agitação, dispneia e cianose de lábios e
de extremidades. Após as manifestações iniciais, podem ocorrer, clinicamente, calafrios,
desconforto respiratório, dor torácica, febre, náusea, dor lombar e hipotensão e,
laboratorialmente, leucocitose, insuficiência renal, hemoglobinúria e coagulação
intravascular disseminada. A reação torna-se mais grave quanto maior o volume de
sangue incompatível infundido. A maioria das reações transfusionais hemolíticas agudas
mediadas imunologicamente causa hemólise intravascular. O diagnóstico é estabelecido
com a confirmação de incompatibilidade ABO ou, mais raramente, de outros grupos
sanguíneos eritrocitários em conjunto com o quadro clínico. Amostra de sangue pós-
transfusional deve ser encaminhada ao banco de sangue para repetição da tipagem ABO
e Rh na unidade de sangue com prova cruzada. As primeiras medidas consistem em
visualizar e comparar fotometricamente a presença de hemoglobina livre ou bilirrubina
nas amostras pré-transfusão e pós-transfusão, com teste de antiglobulina direta na
amostra pós-reação. Achados laboratoriais característicos incluem queda do
hematócrito, redução da haptoglobina, elevação de desidrogenase lática, teste de
antiglobina indireta positivo e presença de hemoglobina livre no plasma. A bilirrubina
sérica se eleva após seis a doze horas. Quando houver suspeita de reação hemolítica
aguda, deve-se interromper imediatamente a infusão e manter acesso venoso com
solução salina isotônica. Preconiza-se encaminhar a bolsa de sangue ou uma amostra de
sangue da bolsa e uma amostra do paciente ao banco de sangue, manter o paciente com
vias aéreas pérvias e monitorização dos sinais vitais e manter débito urinário com
infusão de 10-20mL/kg de solução fisiológica. Recomenda-se infusão inicial de
100mL/m2 de Manitol a 20% por trinta a sessenta minutos e a seguir 30mL/m2 nas doze
horas seguintes em caso de hipotensão arterial ou choque, com contraindicação se
oligúria e normovolemia. Agentes vasopressores em baixas doses devem ser infundidos
quando houver hipotensão arterial não-responsiva a cristaloides. Deve-se tratar
coagulação intravascular disseminada com hemocomponentes hemostáticos, como
plaquetas, plasma fresco congelado e crioprecipitado. O manejo da insuficiência
respiratória é realizado com a administração de oxigênio e, se necessário, ventilação
mecânica. A prevenção prevê correta identificação da amostra do doador e do receptor,
fenotipagem eritrocitária e checagem dos dados.
Reação transfusional hemolítica aguda mediada não-imunologicamente pode ser
causada por hemólise mecânica do sangue transfundido, transfusão de hemácias por
meio de agulha de pequeno calibre sob alta pressão, diluição em solução hipotônica na
mesma linha de infusão, aquecimento acima de 42º C por mau-funcionamento do
aquecedor de sangue, doador com deficiência de glicose 6-fosfato desidrogenase e
doador com traço falciforme. A transfusão de sangue hemolisado pode causar
hipercalemia, hemoglobinúria, hiperbilirrubinemia e insuficiência renal transitória.
Quando a incompatibilidade imunológica for descartada, causas não-imunológicas
devem ser pesquisadas imediatamente. O tratamento dependerá da etiologia implicada.
A transfusão de sangue deve ser interrompida imediatamente e nenhuma bolsa adicional
deve ser infundida até que a causa seja identificada e corrigida. Solução salina isotônica
é o único fluido compatível para ser infundido com concentrado de hemácias. O
tratamento clínico não difere da reação transfusional hemolítica aguda mediada
imunologicamente.
Reação transfusional hemolítica tardia é definida como destruição acelerada das
hemácias transfundidas induzida por resposta imunológica com formação de anticorpo
que ocorre dias a meses após a transfusão. A reação frequentemente não é

Pedro Kallas Curiati 806


diagnosticada, pois, na maioria das vezes, o diagnóstico é somente sorológico, sem
manifestação clínica. A principal etiologia para a formação de anticorpos é a
reexposição do paciente a antígeno eritrocitário incompatível durante transfusão de
sangue, transplante ou gravidez. A maior parte dos casos é decorrente de resposta
amnéstica e a reação primária é rara porque a vida média das hemácias transfundidas é
menor que o tempo necessário para a formação do anticorpo. As manifestações clínicas
mais comuns são anemia, febre, icterícia, hemoglobinúria e, mais raramente,
insuficiência renal e coagulação intravascular disseminada. O diagnóstico laboratorial é
sugerido por queda inexplicada de hemoglobina, teste de antiglobulina direta positivo e
detecção de novo aloanticorpo. Os estudos para detecção de hemólise, como dosagem
de hemoglobina sérica livre, haptoglobina, hemoglobinúria, hiperbilirrubinemia e
desidrogenase lática são habitualmente realizados. O tratamento é baseado na correção
da anemia com concentrado de hemácias compatível. Raramente os pacientes
apresentam consequências graves com necessidade de internação hospitalar. A
realização da fenotipagem eritrocitária nos pacientes cronicamente transfundidos é
recomendada, como acontece nos portadores de hemoglobinopatias, para evitar futuras
aloimunizações. Uma vez detectado o anticorpo clinicamente significativo no paciente,
a transfusão de hemocomponente eritrocitário isento daquele antígeno correspondente
ao anticorpo formado é obrigatória.
Lesão pulmonar aguda relacionada à transfusão de sangue é efeito adverso
transfusional raro, mas potencialmente grave e subdiagnosticado, ocorrendo durante ou
até seis horas após a transfusão de sangue em paciente com ou sem fatores de risco.
Caracteriza-se por febre, taquipneia, secreção pulmonar espumosa, hipotensão,
taquicardia, cianose e dispneia, sem evidência de sobrecarga circulatória, estase jugular
ou terceira bulha. As pressões venosa central e pulmonar são normais. Os sintomas
frequentemente aparecem após infusão de pequenos volumes e resolvem no período de
96 horas, diferentemente dos casos de síndrome da angústia respiratória aguda. O que
diferencia a lesão pulmonar aguda relacionada à transfusão da sobrecarga circulatória é
a ausência de falência cardíaca, além da falta de resposta aos diuréticos. O diagnóstico é
clínico e os achados radiológicos incluem infiltrado pulmonar bilateral sem aumento de
área cardíaca. Sinais de hipoxemia, com PaO2/FiO2 inferior ou igual a 300mmHg e/ou
saturação periférica de oxigênio inferior a 90%, também são encontrados. Achados
laboratoriais, como leucopenia, neutropenia e complemento diminuído, são
inespecíficos. Anticorpos HLA classe I e II ou anticorpos neutrofílicos no plasma do
doador e seus respectivos antígenos no receptor, juntamente com os achados clínicos,
confirmam o diagnóstico. Todos os pacientes necessitam de suplementação com
oxigênio e a maioria de intubação com suporte ventilatório e hemodinâmico. O
tratamento com corticoide tem papel incerto. A reposição de fluidos pode ser necessária
para recuperação da hipotensão arterial e para movimentar fluido do plasma para o
espaço extravascular. Nesses pacientes, sangue de doadores que tenha sido implicado
como causador de reação e que apresente anticorpos contra granulócitos e linfócitos,
como de mulheres multíparas, é evitado ou usado somente com hemácias lavadas ou
congeladas. Componentes desleucocitados ou pobres em leucócitos estarão indicados
para transfusões futuras.
A sobrecarga circulatória relacionada à transfusão de sangue acontece quando o
paciente é incapaz de compensar o volume infundido. Crianças pequenas, pacientes com
doença cardíaca e/ou renal preexistentes, pacientes com volume plasmático aumentado
e idosos são mais suscetíveis. O paciente apresenta-se com tosse, cianose, ortopnéia,
taquicardia, dispneia, cefaleia, hipertensão arterial predominantemente diastólica e
edema pulmonar e/ou de membros inferiores. Os sintomas usualmente cessam se a

Pedro Kallas Curiati 807


transfusão é interrompida. Preconiza-se interromper imediatamente a transfusão, manter
o paciente em posição sentada, introduzir suporte respiratório com oxigênio
suplementar e administrar diurético intravenoso de ação rápida. Não havendo melhora
clínica, poderão ser utilizados Morfina intravenosa, torniquetes e, em último caso,
flebotomia. Os pacientes suscetíveis devem receber hemocomponentes infundidos
lentamente, com 1mL/kg/hora, ou em alíquotas com intervalos maiores em horas ou
dias entre as unidades. Ainda podem ser medicados com diuréticos antes do início da
transfusão.
A contaminação bacteriana dos hemocomponentes é uma das reações
transfusionais mais graves e é definida como exame bacteriológico com identificação do
mesmo micro-organismo na bolsa infundida e na amostra de sangue do paciente. O
agente etiológico pode estar presente no doador clinicamente assintomático ou ser
resultado do processo de manipulação do sangue. Os mais frequentemente isolados são
Yersinia enterocolitica, Serratia sp e Pseudomonas sp. Geralmente as bactérias Gram-
positivas estão presentes nos concentrados de plaquetas e as Gram-negativas nos
concentrados de hemácias. O quadro clínico pode ser desde assintomático até sinais e
sintomas de sepse. A manifestação clínica associada à transfusão de concentrado de
plaquetas é leve e ocorre em até sete dias após a infusão, enquanto que aquela associada
à transfusão de concentrado de hemácias é mais grave e habitualmente ocorre durante
ou nas primeiras 24 horas.
Reação hipotensiva relacionada à transfusão de sangue ocorre durante ou após a
infusão na ausência de sinais e sintomas de outras reações transfusionais, constituindo
diagnóstico de exclusão. Os biomateriais presentes no filtro de remoção de leucócitos à
beira do leito, em contato com o plasma do hemocomponente transfundido, podem gerar
cininas vasoativas, que também se acumulam na vigência do uso de inibidores da
enzima conversora da angiotensina. Os pacientes podem apresentar ansiedade, dor
abdominal ou torácica, rubor facial, distúrbios respiratórios, taquicardia e queda da
pressão arterial durante ou após o término da infusão de sangue. Ao interromper
imediatamente a infusão do sangue, os sintomas desaparecem, sem necessidade de
tratamento. O diagnóstico é clínico. Quando a pressão arterial não retornar aos valores
pré-transfusionais, deve-se infundir Soro Fisiológico até a normalização dos sinais
vitais. Como medidas preventivas, recomendam-se a substituição do filtro de remoção
de leucócitos à beira do leito pelo de pré-estocagem e dos medicamentos inibidores da
enzima conversora da angiotensina por outros anti-hipertensivos.
Dor aguda relacionada à transfusão de sangue é caracterizada por dor aguda,
súbita, de forte intensidade e de difícil caracterização, principalmente quando acomete
região torácica, membros e, com menor frequência, região lombar. A duração é de
alguns minutos e pode atingir meia hora. Taquicardia, taquipneia, dispneia, fraqueza de
membros, epigastralgia, náusea, hipertensão, inquietação, vermelhidão na pele e
calafrios podem estar associados. Geralmente os pacientes não necessitam de
medicamentos para o tratamento, pois os sintomas são autolimitados. No entanto,
quando a dor for muito intensa recomenda-se o uso de analgésico ou narcótico.
A imunomodulação consiste em alteração no sistema imunológico do receptor
como resultado da transfusão. Efeitos benéficos foram demonstrados em transplante
renal e prevenção de abortos espontâneos. Efeitos prejudiciais incluem risco aumentado
de recidiva tumoral, reativação de infecção viral latente e infecção bacteriana em pós-
operatório.
Púrpura pós-transfusional é uma doença rara caracterizada pelo aparecimento de
uma súbita trombocitopenia após uma a três semanas da infusão de hemocomponente
contendo plaquetas. Os pacientes afetados são, em sua maioria, mulheres multíparas

Pedro Kallas Curiati 808


sensibilizadas durante a gravidez ou pacientes com história prévia de transfusão de
sangue. Há formação de anticorpo contra um ou mais antígenos plaquetários
específicos. A púrpura persiste por duas a três semanas e apresenta resolução
espontânea, sem necessidade de tratamento. O diagnóstico é baseado em pesquisa de
anticorpo plaquetário em paciente com antígeno correspondente negativo. O tratamento
para pacientes com sangramento ou risco consiste em administrar imunoglobulina
intravenosa na dose de 400-500mg/kg. A plasmaférese remove os anticorpos e apresenta
boa resposta terapêutica.
Doença enxerto contra hospedeiro pós-transfusional é doença altamente letal e
rara. Ocorre quando linfócitos T imunocompetentes são infundidos, não são rejeitados,
reconhecem antígenos de histocompatibilidade do hospedeiro como estranhos e atacam
o tecido do hospedeiro. Acomete os órgãos ricos nos antígenos HLA, como baço,
fígado, trato gastro-intestinal, medula óssea, nódulos linfáticos e pele. Os sinais e
sintomas incluem rubor de pele, febre, enterite e icterícia. Laboratorialmente há
aumento de enzimas hepáticas, hiperbilirrubinemia e pancitopenia. A lesão de pele tem
início como erupção máculo-papular central espalhando para tronco, pescoço, palmas
das mãos, plantas dos pés e lóbulos das orelhas de forma confluente. O sintomas surgem
oito a doze dias após a transfusão de sangue, podendo ser mais precoces ou mais
tardios. O diagnóstico é baseado na associação do quadro clínico com o laboratorial.
Não há tratamento eficiente. A irradiação gama de componentes celulares é a única
medida preventiva conhecida e objetiva incapacitar os linfócitos dos doadores a se
proliferar.
O acúmulo de ferro no organismo é causado por transfusão de grandes
quantidades de hemocomponentes eritrocitários, com hemocromatose secundária. A
avaliação laboratorial prevê a quantificação do ferro hepático e a dosagem de ferritina.
O acúmulo de ferro causa lesão direta aos tecidos pela peroxidação lipídica e por
estímulo à deposição de colágeno, ocasionando dano orgânico, particularmente no
coração, no fígado, na pele e no pâncreas resultando em cirrose hepática, diabetes
mellitus, cardiomiopatias e hiperpigmentação cutânea. As manifestações clínicas
surgem após alguns anos do início da terapia transfusional. Os quelantes parenterais
previnem as complicações da sobrecarga de ferro nos pacientes em regime transfusional
crônico com concentrado de hemácias. A Desferoxamina é administrada de forma
subcutânea ou intravenosa por oito a doze horas na dose de 25-50mg/kg com velocidade
máxima de 15mg/kg/hora cinco a sete dias por semana. A administração concomitante
de vitamina C pode ajudar na excreção do ferro, com dose de 100-200mg/dia no dia da
quelação. A Deferiprone, outro quelante de administração oral, é prescrita três vezes por
semana, com 75-100mg/kg/dia e efeito somatório ou sinérgico ao da Desferoxamina. O
Deferasirox está disponível na forma oral e deve ser administrado trinta minutos antes
das refeições diluído em água, em jejum, com 10-30mg/dia.
Todos os casos de suspeita de infecção pós-transfusional deveriam ser
reportados ao banco de sangue para facilitar o rastreamento de doadores infectados. No
Brasil, as doações de sangue são testadas para o antígeno de superfície do vírus da
hepatite B (HBsAg), anticorpos contra o antígeno do core do vírus da hepatite B (anti-
HBc), anticorpos contra o vírus da hepatite C (anti-VHC), anticorpo contra o vírus da
imunodeficiência humana tipos 1 e 2, anticorpo contra o vírus linfotrópico de células T
humanas tipos I e II (HTLV I/II), teste para sífilis e teste para doença de Chagas.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 3: doenças hematológicas, oncologia, doenças renais e genitourinárias. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Medicina Intensiva Baseada em Evidências. Luciano César Pontes de Azevedo. Editora Atheneu, 2009.

Pedro Kallas Curiati 809


HEMOCROMATOSE
Conceito
A hemocromatose hereditária é uma doença genética caracterizada pela absorção
excessiva do ferro dietético, resultando em aumento patológico dos estoques de ferro do
organismo.
Apesar de diferenças fisiopatológicas, o termo hemocromatose tem sido aplicado
também para indicar sobrecarga de ferro transfusional, caracterizada pelo acúmulo de
ferro oriundo das hemácias transfundidas. A transfusão de hemácias carreia
aproximadamente 1mg de ferro por mL, o que equivale à um dia de absorção intestinal
normal. Não há mecanismos naturais de excreção do ferro.

Fisiopatologia
A hepcidina, que é produzida pelo fígado, controla a absorção e a utilização do
ferro por sua ação sobre a ferroportina, a molécula responsável pela liberação de ferro
dos tecidos para a corrente sanguínea. A produção de hepcidina é regulada por estoques
de ferro, nível de oxigênio, atividade eritropoética e inflamação.

Etiologia
Hemocromatose hereditária, que abrange doença associada ao gene HFE, doença
associada ao gene da hemojuvelina, doença associada ao gene da hepcidina, doença
associada ao gene do receptor da transferrina tipo 2, doença associada ao gene da
ferroportina, sobrecarga africana de ferro e sobrecarga de ferro neonatal.
Sobrecarga associada a eritropoiese ineficaz, que abrange beta-talassemia
intermedia, beta-talassemia major, anemia sideroblástica congênita e anemias
diseritropoéticas congênitas.
Atransferrinemia congênita.
Aceruloplasminemia.
Sobrecarga associada à transfusão crônica, que abrange beta-talassemia major,
doença falciforme, anemia aplástica grave, aplasia pura de série vermelha e síndromes
mielodisplásicas.
Doenças hepáticas, que abrangem doença hepática alcoólica, hepatites virais
crônicas, esteatose hepática e shunt porto-cava.
Porfiria cutânea tardia.
Estomatocitose hereditária.

Quadro clínico
A sobrecarga de ferro leva à disfunção orgânica por causa da deposição
parenquimatosa. Os órgãos mais afetados são fígado, articulações, coração e órgãos
endócrinos, como pâncreas, hipófise e supra-renais. A pigmentação da pele pode estar
alterada.
Os sintomas iniciais da doença podem ser inespecíficos, caracterizados por
fadiga, artralgias e mal-estar. Conforme a doença progride, há intensificação dos
sintomas e dos achados de exame físico. Manifestações comuns incluem sintomas de
hipogonadismo, como disfunção erétil e alteração na distribuição de pelos. Alguns
pacientes já procuram atenção médica com manifestações avançadas, como
sangramento por varizes esofágicas e hepatomegalia.
Há risco aumentado de infecções por bactérias siderofílicas, como a Yersinia

Pedro Kallas Curiati 810


enterocolitica e o Vibrio vulnificus. Nos pacientes em que ocorre desenvolvimento de
cirrose, há risco aumentado de evolução para carcinoma hepatocelular.
As manifestações da doença são influenciadas por diversos fatores genéticos e
adquiridos. No caso da hemocromatose hereditária, é incomum a manifestação em
mulheres antes da menopausa pelo efeito protetor do sangramento menstrual. Doenças
hepáticas, como hepatite C e esteatose hepática, predispõem a manifestações mais
agressivas da doença, assim como o consumo de álcool. A interação de múltiplas
mutações de genes envolvidos na homeostase do ferro altera a expressão clínica da
doença.
As manifestações também variam de acordo com o mecanismo de acúmulo de
ferro. Indivíduos com hemocromatose hereditária, ou seja, com aumento da absorção
intestinal de ferro, apresentam doença hepática precedendo a doença cardíaca. Já
pacientes com sobrecarga transfusional apresentam doença cardíaca mais precocemente.

Avaliação complementar
A hemocromatose hereditária é frequentemente descoberta em exames
laboratoriais de pacientes assintomáticos ou apresentando sintomas constitucionais
inespecíficos. O achado laboratorial sugestivo de sobrecarga de ferro é a elevação da
ferritina, associada à elevação do ferro sérico e da saturação de transferrina.
É importante excluir outras causas de hiperferritinemia, já que algumas não são
relacionadas à sobrecarga de ferro e/ou demandam abordagens diferentes. A ferritina é
uma proteína de fase aguda e aumenta em condições inflamatórias e em doenças
hepáticas. A saturação da transferrina é um bom exame nesse contexto, pois a maior
parte das hemocromatoses hereditárias possui saturação de transferrina superior a 45%
para mulheres e 50% para homens. Doenças inflamatórias diminuem a saturação da
transferrina. A história clínica e os exames devem ser dirigidos no sentido de excluir
outras causas de sobrecarga de ferro, como anemias hemolíticas, porfiria cutânea tardia
e hepatites.
Como a forma mais comum de hemocromatose hereditária é aquela relacionada
ao gene HFE, na suspeita clínica deve ser solicitada a pesquisa da mutação deste gene.
A biópsia hepática, que é tradicionalmente proposta na investigação dos
pacientes, pode ser reservada para pacientes com ferritina superior a 1000ng/mL,
elevação de enzimas hepáticas, hepatomegalia ou coexistência com outras doenças
hepáticas.
Nos últimos anos, a ressonância nuclear magnética hepática e cardíaca passou a
ocupar um papel na monitorização e no diagnóstico das complicações.

Tratamento
O tratamento de escolha na hemocromatose hereditária é a flebotomia
terapêutica, que só não deve ser instituída nas situações em que coexistem anemia e
hemocromatose hereditária. O nível de ferritina para início do tratamento é de
300ng/mL. A fase de indução envolve a realização semanal ou quinzenal de flebotomias
na quantidade de aproximadamente 7mL/kg, com retirada de no máximo 550mL de
sangue por procedimento. O objetivo é atingir um grau de depleção de ferro com
ferritina inferior a 50ng/mL e saturação de transferrina de 16%. A partir de então, é
iniciada fase de manutenção, que envolve a realização de flebotomia em média a cada
três meses. É recomendável avaliar os níveis de ferritina e a saturação de transferrina a
cada seis meses. Em situações em que níveis menores de hemoglobina impedem a
aplicabilidade do programa, é aconselhável a realização de flebotomias em menor
quantidade e com menor frequência. Em situações de exceção, é possível utilizar

Pedro Kallas Curiati 811


quelação medicamentosa do ferro.
O tratamento da sobrecarga de ferro em pacientes politransfundidos envolve a
utilização obrigatória de quelantes de ferro.
Deferoxamina Deferiprona Deferasirox
Via de Intravenosa durante a infusão de Oral, com Oral, com
administração sangue ou contínua comprimidos de comprimidos de
Subcutânea lenta por período de 8-12 500mg 125mg, 250mg e
horas em bomba de infusão portátil 500mg
Meia-vida Vinte minutos Duas a três horas Oito a dezesseis horas
Excreção Urina e fezes Urina Fezes
Dose Dose inicial diária de 500mg, 50-100mg/kg/dia, 20-30mg/kg/dia, com
aumentada até nível estável de geralmente com monitorização mensal
excreção de ferro, monitorizada pela 25mg/kg/dose em da ferritina sérica e
dosagem do ferro na urina de 24 horas, três doses diárias ajuste, quando
inicialmente diária e, uma vez necessário, a cada três
estabelecida a dose apropriada, em a seis meses
intervalos de algumas semanas.
Geralmente, a dose diária média situa-
se em 20-60mg/kg/dia.
Vantagens Longa experiência Via oral Via oral
Eficácia Segurança Dose única diária
Eficácia
Desvantagens Via intravenosa Agranulocitose e Pouca experiência
Toxicidade auditiva e ocular neutropenia Toxicidade renal
Baixa aderência ao tratamento Necessidade de Alto custo
hemograma
semanal
Deve ser realizado controle da toxicidade do Deferasirox com hemograma,
creatinina sérica, enzimas hepáticas e proteinúria de 24 horas antes do início do
tratamento e mensalmente a partir de então e audiometria e fundoscopia antes do início
do tratamento e mensalmente a partir de então.
Todos os pacientes devem ser aconselhados a evitar frutos do mar, sobretudo
não-cozidos, pelo risco maior de infecção por Vibrio vulnificus. Qualquer paciente com
sobrecarga de ferro, sobretudo sob quelação medicamentosa, deve buscar avaliação
médica quando apresentar febre e sintomas gastrointestinais. Pacientes com infecção
ativa devem interromper temporariamente o uso de quelantes.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 3: doenças hematológicas, oncologia, doenças renais e genitourinárias. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 812


LEUCEMIAS
Leucemia mieloide aguda

Conceito
Doença de curso agudo caracterizada pela proliferação na medula óssea de clone
celular mieloide que perdeu sua capacidade de diferenciação.

Epidemiologia
Mais frequente em idosos com idade superior a setenta anos.

Fisiopatologia
Em geral, as leucemias agudas caracterizam-se pela proliferação rápida de um
clone, que perde sua capacidade de diferenciação, com acúmulo de células de aspecto
citológico imaturo ou blastos no sangue periférico e na medula óssea. A proliferação
exagerada do clone dentro da medula óssea leva a uma inibição da hematopoese normal,
com anemia, plaquetopenia e neutropenia.

Quadro clínico
Falência medular, com cansaço, fraqueza, palidez cutaneomucosa, petéquias,
sangramento gengival, metrorragia, equimoses e processos infecciosos.
Infiltração de órgãos e tecidos pelo clone leucêmico, com discreta
hepatoesplenomegalia, hipertrofia gengival e, mais raramente, infiltração cutânea.
Massa tumoral formada por mieloblastos, com acometimento de coluna espinhal
e órbita.
Leucostase, síndrome caracterizada por isquemia de múltiplos órgãos, com
disfunção respiratória e do sistema nervoso central.

Avaliação complementar
O hemograma revela anemia, plaquetopenia e, habitualmente, leucocitose às
custas de blastos ou, com menor frequência, número normal ou diminuído de leucócitos
normais com a presença de blastos. O mielograma revela medula inteiramente
substituída por blastos. Na leucemia mieloide aguda, os blastos têm uma relação núcleo-
citoplasma mais baixa, com cromatina frouxa, presença de vários nucléolos e
citoplasma granular, com presença de bastonete de Auer.
É importante a demonstração da origem mieloide do blasto, já que isso define o
prognóstico e o tratamento. Com este intuito, deve-se fazer imunofenotipagem dos
blastos por meio de citometria de fluxo. Certos marcadores ou antígenos de membrana,
como CD13, CD14 e CD33 permitem definir a origem mieloide do blasto. Na ausência
de citometria de fluxo, deve ser feita a citoquímica dos blastos, pois a presença de grãos
peroxidase-positivos ou Sudan Black positivos ou uma reação de alfa-naftil acetato
esterase (ANAE) positiva permitem definir se o blasto é mieloide ou não e, ainda, se há
componente monocítico.
Ao diagnóstico, também é necessário colher material de medula óssea para
cariótipo, já que, conforme as anomalias cromossômicas encontradas, é possível
classificar as leucemias mieloide agudas em grupos prognósticos. Também é necessária
a pesquisa do gene BCR/ABL por reação em cadeia da polimerase para, junto com o
cariótipo, fazer o adequado planejamento terapêutico.

Pedro Kallas Curiati 813


Classificação FAB
M0, com diferenciação mínima.
M1, sem maturação.
M2, com maturação.
M3, promielocítica.
M4, mielomonocítica aguda.
M4Eo, variante eosinofílica.
M5, monocítica aguda.
M6, eritroleucemia.
M7, megacariocítica.

Tratamento

Tratamento de suporte
Deve-se verificar se existe acesso venoso adequado. Usualmente, os pacientes
requerem o uso de cateteres de longa permanência para garantir que a terapia seja
adequadamente administrada, nos horários certos e com a velocidade necessária, sendo
recomendável o uso de bombas de infusão.
Se o paciente for um neutropênico febril, antes de começar a quimioterapia, é
necessário iniciar antibioticoterapia de amplo espectro. Para preservar a função renal, o
paciente deve ser adequadamente hidratado por via intravenosa com 3000mL/m2/dia e
usar Alopurinol 600mg/dia por via oral, apresentado na forma de comprimidos de
300mg. Para evitar náusea e vômitos, deve-se recomendar o uso de Ondansetrona 8mg
antes da quimioterapia e a cada doze horas após o término, apresentada sob a forma de
ampolas de 2mL com 2mg/mL para aplicação intravenosa e de comprimidos de 4mg e
de 8mg para uso oral.
Concentrados de plaquetas devem ser utilizados de forma profilática se a
contagem cair para menos de 10000/mm3 no sangue periférico. O uso e fatores de
crescimento, como G-CSF e GM-CSF, está indicado em infecções fúngicas e é
recomendado em pacientes neutropênicos que permanecem febris apesar do uso de
antibióticos de amplo espectro. O G-CSF é apresentado na forma de ampola de 1mL
com 300mcg, sendo recomendada dose de 5mcg/kg/dia por via subcutânea ou
intravenosa.

Terapia de indução de remissão completa


O objetivo é diminuir a massa tumoral e restituir a hematopoese normal. A
terapia padrão para indução de todos os tipos de leucemia mieloide aguda, com exceção
da leucemia mieloide aguda promielocítica, consiste no uso de Daunorrubicina
intravenosa durante três dias e Citarabina intravenosa durante sete dias. O ciclo pode ser
repetido quatorze a vinte e oito dias após o início se não for obtida uma remissão
completa, caracterizada por ausência de blastos, número normal de neutrófilos e
plaquetas acima de 100000/mm3 no sangue periférico, com menos de 5% de blastos na
medula óssea. Para a leucemia mieloide aguda promielocítica, a adição de Ácido All-
Transretinoico ao tratamento quimioterápico é mandatória.

Terapia pós-remissão
O objetivo é, após alcançar a remissão completa, evitar a recidiva da doença.
Para portadores de anomalias cariotípicas de bom prognóstico, três ou mais ciclos
mensais de quimioterapia com Citarabina em doses elevadas é o tratamento

Pedro Kallas Curiati 814


preconizado. Para os portadores de anomalias cariotípicas de prognóstico intermediário
ou adverso, o tratamento de escolha naqueles com menos de sessenta anos de idade é o
transplante alogênico com doador HLA compatível na família ou, como segunda opção,
não-relacionado. Nos indivíduos com mais de sessenta anos de idade, a melhor opção,
independentemente do cariótipo, é usar Citarabina em doses intermediárias por mais de
um ciclo, conforme tolerância. Nestes pacientes, é aconselhável fazer o uso de G-CSF
ou GM-CSF após a quimioterapia para diminuir o número de dias em que o paciente
permanece neutropênico. Nos pacientes com leucemia mieloide aguda promielocítica,
deve-se fazer uso de Ácido-All-Transretinoico junto com a quimioterapia por pelo
menos quinze dias a cada três meses.

Terapia de pacientes com translocação BCR/ABL


Raramente, é possível fazer o diagnóstico de uma leucemia mieloide crônica em
fase blástica, pois apresenta a translocação BCR/ABL. O uso de Mesilato de Imatinibe,
com dose mínima de 600mg/dia por via oral durante pelo menos trinta dias, é capaz de
induzir remissão completa em número apreciável de doentes que, então, podem fazer
em melhores condições um transplante de medula óssea alogênico ou quimioterapia
para consolidar a remissão e diminuir a chance de recidiva.

Leucemia linfoide aguda

Conceito
A leucemia linfoide aguda se caracteriza pela proliferação clonal e pelo acúmulo
na medula óssea e no sangue periférico de células imaturas denominadas linfoblastos,
que ocupam a medula e inibem o crescimento e a maturação normal dos precursores
hematopoéticos da série vermelha, granulocítica e megacariocítica.

Epidemiologia
A leucemia linfoide aguda é a neoplasia mais frequente na infância. No adulto,
sua incidência é menor, aumentando após os quarenta anos de idade.

Fisiopatologia
Contato com agentes químicos, como benzeno, agrotóxicos, tintas e solventes.
Exposição a radiação ionizante ou tratamento prévio com quimioterapia por
neoplasia.
Vírus, como o Epstein-Barr, o da imunodeficiência humana e o T linfotrópico
humano.
Alterações cromossômicas, como a observada em crianças com síndrome de
Down.

Quadro clínico
Os sintomas estão relacionados com grau de infiltração da medula óssea e
diminuição da produção dos precursores normais das séries eritrocítica, granulocítica e
megacariocítica, além da intensidade com que as células anômalas infiltram outros
órgãos.
O quadro clínico é caracterizado por palidez cutaneomucosa, fadiga, cansaço,
palpitação, dispneia, febre, infecções, petéquias, equimoses espontâneas, gengivorragia
e epistaxe. Ao exame físico, os pacientes podem apresentar adenomegalias e
hepatoesplenomegalia.
Infiltração do sistema nervoso central pode ocorrer já ao diagnóstico ou em

Pedro Kallas Curiati 815


razão de iatrogenia após acidente de punção liquórica em pacientes com leucocitoses
acentuadas, com cefaleia, parestesias ou paralisias dos pares cranianos e sintomas de
hipertensão intracraniana. Também pode ocorrer infiltração testicular.
Pacientes com leucemia linfoide aguda T podem apresentar sintomas
relacionados a massa mediastinal volumosa, como tosse seca, dispneia e síndrome da
veia cava superior.
Sintomas de leucostase incluem tontura, visão turva, zumbido e cefaleia.
A infiltração maciça da medula óssea pode provocar dores ósseas intensas
espontâneas e à compressão do esterno. Em crianças, é frequente a presença de dores
articulares com sinais flogísticos devido à infiltração óssea das epífises.

Avaliação complementar

Diagnóstico
Hemograma completo, que geralmente revela anemia normocítica
normocrômica, leucocitose com presença de blastos circulantes, neutropenia e
plaquetopenia.
Mielograma, que geralmente revela hipercelularidade em razão dos blastos, com
hipocelularidade em maior ou menor grau das outras séries.

Prognóstico
Citogenética convencional e/ou molecular e biologia molecular.
Exames gerais para detecção de associação com outras doenças:
- Bioquímica completa, com uréia, creatinina, ácido úrico, sódio,
potássio, bilirrubina total e frações, transaminases, desidrogenase lática,
fosfatase alcalina, gama glutamil transferase, cálcio, fósforo e magnésio;
- Sorologia completa, com hepatites A, B e C, vírus da imunodeficiência
humana, vírus T linfotrópico humano, doença de Chagas, toxoplasmose e
citomegalovírus;
- Coagulograma completo;
- Urina 1;
- Radiografia simples de tórax em incidências póstero-anterior e perfil;
- Ecocardiograma;
- Ultrassonografia de abdômen;

Diagnóstico
O diagnóstico é baseado na avaliação da medula óssea e segue critérios
morfológicos, citoquímicos, imunofenotípicos, citogenéticos e moleculares. Para o
diagnóstico de leucemia aguda é necessário o encontro de 30% ou mais de blastos na
medula óssea, caracterizados pela ausência de grânulos no citoplasma das células, com
menos de 3% positivos na reação de peroxidase ou Sudan Black. É fundamental o
estudo imunofenotípico para distinguir a leucemia linfoide aguda de leucemia mieloide
com diferenciação mínima ou de leucemia bifenotípica.

Classificação FAB
L1, caracterizada por blastos pequenos, homogêneos, com alta relação núcleo-
citoplasmática, citoplasma escasso e núcleo pouco evidente.
L2, com blastos de tamanho variável, relação núcleo-citoplasmática menor,
citoplasma basofílico sem grânulos, núcleo com membrana nuclear irregular e
cromatina frouxa com nucléolo proeminente.

Pedro Kallas Curiati 816


L3, com blastos de grande porte, com citoplasma intensamente basofílico e com
vacúolos.

Classificação imunofenotípica
Leucemia linfoide aguda de linhagem B, caracterizada por CD19, CD79a e/ou
CD22 positivos:
- Pró-B (BI), sem expressão de outros antígenos de diferenciação B;
- Comum (BII), com CD10 positivo;
- Pré-B (BIII), com IgM citoplasmática positiva;
- B maduro (BIV), com kappa ou lamba de citoplasma ou de membrana
positivas;
Leucemia linfoide aguda de linhagem T, caracterizada por CD3 citoplasmático
ou de membrana positivo:
- Pró-T (TI), com CD7 positivo;
- Pré-T (TII), com CD2, CD5 e/ou CD8 positivos;
- T cortical ou tímico (TIII), com CD1a positivo;
- T maduro (TIV), com CD3 de membrana positivo e CD1a negativo;
- Anti-TCR alfa/beta positivo (subgrupo a);
- Anti-TCR gama/delta positivo (subgrupo b);
- My+, com expressão associada de um ou dois marcadores mieloides;

Tratamento
O objetivo é a erradicação do clone leucêmico e o restabelecimento da
hematopoese normal. A quimioterapia deve ser precedida de hidratação adequada com
3L/m2/dia por via intravenosa e de Alopurinol 600mg/dia por via oral. Em muitas
situações, principalmente quando o paciente apresenta hiperleucocitoses, é necessário
alcalinizar a urina, mantendo pH urinário superior a 7 por meio do uso de Bicarbonato
de Sódio a 8.4% por via intravenosa. Em pacientes com contagem de leucócitos
superior a 100000/mm3, pode ser indicada leucoaférese.
Deve-se tratar as infecções bacterianas, fúngicas e, eventualmente, virais com
medicamentos de amplo espectro. Preconiza-se Anfotericina B ou Lipossomal para as
infecções fúngicas e, eventualmente, Aciclovir para as infecções virais.
Adota-se terapia de suporte com hemoderivados para manter níveis de
hemoglobina com os quais o paciente se sinta confortável e contagem de plaquetas
superior a 10000/mm3. Os hemoderivados devem ser irradiados e leucodepletados. As
plaquetas devem ser obtidas, de preferência, por aférese.

Terapia antileucêmica específica


Não há contraindicação absoluta ao tratamento quimioterápico.
Contraindicações relativas incluem insuficiência renal, insuficiência cardíaca e
insuficiência hepática.
Indução da remissão dura 28 dias e é feita com três a quatro drogas, como
Vincristina, (VCR) antracíclicos, geralmente Daunorrubicina (DRM), Asparaginase (L-
ASP) e Prednisona (PRD).
Consolidação é realizada habitualmente com altas doses de Metotrexato (MTX)
ou Citarabina (ARA-C). Mais recentemente, esquemas de consolidação utilizam altas
doses de Metotrexato (MTX) em associação com L-Asparginase Peguilada.
Manutenção dura em geral dois a três anos, com Metotrexato (MTX) e 6-
Mercaptopurina (6-MP). Não se deve associar Alopurinol a 6-Mercaptopurina (6-MP)
por potencializar mielossupressão.

Pedro Kallas Curiati 817


Profilaxia de infiltração do sistema nervoso central com Metotrexato (MTX)
e/ou Citarabina (ARA-C) em associação com Dexametasona. Alguns protocolos de
tratamento incluem radioterapia de crânio, principalmente em crianças.

Transplante de medula óssea


O transplante de medula óssea alogênico com doador compatível é indicado nos
pacientes com fatores prognósticos adversos e alto risco para recidiva. Transplante de
células CD34 positivas (stem cells) de sangue periférico é uma alternativa ao transplante
de medula óssea.
Pacientes que apresentam cromossomo Philadelfia ou translocação BCR/ABL
têm prognóstico muito ruim, sendo candidatos a transplante de medula óssea alogênico
em primeira remissão, embora com a utilização de Imatinib associado à quimioterapia.
O papel do transplante de medula óssea autólogo é uma opção pós-remissão para
pacientes de alto risco sem doador compatível, embora de difícil avaliação.

Leucemia mieloide crônica

Conceito
Doença mieloproliferativa clonal caracterizada pela presença do cromossomo
Philadelphia em células primordiais e em suas descendentes.
Durante a fase crônica da doença ocorre expansão clonal maciça de células
mieloides, que mantêm a capacidade de diferenciação, sendo bem controlada com
terapias citorredutoras, como a Hidroxiuréia. Entretanto, com o passar do tempo, o
clone leucêmico perde a capacidade de diferenciação e a doença progride para uma
leucemia aguda denominada de crise blástica, resistente a terapia quimioterápica mais
agressiva.

Epidemiologia
Todas as faixas etárias podem ser acometidas, com uma média de 45 anos na
população brasileira.

Fisiopatologia
O cromossomo Philadelphia, anormalidade genética característica da leucemia
mieloide crônica, resulta de uma translocação recíproca e equilibrada entre os braços
longos dos cromossomos 9 e 22. A consequência molecular é a geração de uma proteína
híbrida BCR-ABL com atividade tirosina-quinase aumentada, necessária e suficiente
para a atividade oncogênica da fase inicial da leucemia mieloide crônica. O mecanismo
pelo qual ocorre a translocação é desconhecido.

Quadro clínico e laboratorial

Fase crônica
A leucemia mieloide crônica é uma doença progressiva que evolui em fases,
sendo o diagnóstico geralmente feito na fase crônica, caracterizada por curso indolente e
fácil controle terapêutico. O principal achado de exame clínico é a esplenomegalia. Os
sintomas típicos apresentados ao diagnóstico são a fadiga, geralmente relacionada à
anemia, e o desconforto abdominal, relacionado à esplenomegalia. Sudorese e perda de
peso não são raras, enquanto que febre é menos comum nessa fase, bem como sintomas
relacionados à disfunção plaquetária, como sangramentos ou tromboses. Manifestações
relacionadas a hiperviscosidade, como priapismo e distúrbios visuais, são raras.

Pedro Kallas Curiati 818


Hemograma revela leucocitose com desvio escalonado, podendo estar presentes
também plaquetose e anemia discreta com padrão normocrômico normocítico.
Raramente, observa-se aumento da massa eritrocitária semelhante à da policitemia vera.
O exame citológico do sangue periférico permite verificar a presença de células
da linhagem mieloide em todos os estágios de diferenciação, com predomínio de
mielócitos e neutrófilos segmentados. É típico, também, o encontro de basofilia e
eosinofilia.
Na análise citológica, a medula óssea exibe densa população de células
mieloides com diferenciação preservada e uma relação mieloide : eritroide média de 25
: 1. Existe hiperplasia da série megacariocítica, que pode apresentar certo grau de
displasia.
A biópsia de medula revela intensa hipercelularidade com vários graus de
proliferação reticulínica e fibrose.
Na maior parte dos casos, a translocação 9;22 pode ser detectada pela análise do
cariótipo por meio de citogenética. Em caso de resultado normal, a fusão BCR-ABL
pode ser detectada por meio de técnicas moleculares, como hibridização in situ por
fluorescência (FISH) e reação em cadeia da polimerase (PCR).

Fase acelerada
A fase acelerada é um estágio intermediário no qual os pacientes apresentam
sinais de progressão da doença, sem critérios de leucemia aguda. Essa fase é
caracterizada por um agravamento dos sintomas constitucionais, esplenomegalia
progressiva, refratariedade ao tratamento e progressiva leucocitose e/ou trombocitose.
Anemia e trombocitopenia também são observadas com frequência. Observa-se
aumento da porcentagem de blastos promielocíticos e basófilos na medula óssea e/ou no
sangue periférico.

Crise blástica
Em algum momento durante o curso da leucemia mieloide crônica, após um
intervalo médio de três a seis anos, ocorre uma mudança relativamente abrupta no curso
da doença, com acúmulo progressivo de elementos celulares imaturos no sangue
periférico ou na medula óssea, como mieloblastos e promielócitos. Quando o número de
blastos é superior a 30% ou evidencia-se a presença de um sarcoma granulocítico, o
diagnóstico de fase aguda ou crise blástica é estabelecido. Os blastos podem apresentar
fenótipo mieloide, linfoide ou mesmo serem bifenotípicos.
Diferentemente da fase crônica, a crise blástica encerra prognóstico
extremamente reservado, apresentando uma resposta precária às diversas manobras
terapêuticas utilizadas.

Tratamento
O principal objetivo do tratamento da leucemia mieloide crônica é a supressão
do clone Philadelphia ainda na fase crônica.
A Hidroxiuréia é droga bem tolerada, com poucos efeitos colaterais, mas sem
nenhum impacto na sobrevida, sendo reservada apenas para o controle da leucocitose.
O Interferon-alfa está relacionado a aumento da sobrevida, mas cursa com
efeitos colaterais constitucionais em praticamente todos os pacientes.
O transplante de medula óssea é considerado a única modalidade terapêutica
curativa para a leucemia mieloide crônica.
O Mesilato de Imatinibe atua como bloqueador da atividade tirosina-quinase e
inibe a proliferação de células leucêmicas que expressam as proteínas p210 e p190, com

Pedro Kallas Curiati 819


mínima atividade na proliferação de células BCR-ABL negativas. O medicamento é
bem tolerado, mesmo em doses mais elevadas. Os efeitos adversos mais frequentes
incluem edema, náusea, diarreia, caibras e exantema cutâneo, na maioria dos casos de
intensidade leve a moderada. A mielossupressão geralmente é mais observada em
pacientes com doença mais avançada ou que receberam Interferon-alfa por período mais
prolongado. Alguns pacientes na fase crônica e uma maior proporção de paciente em
fases mais avançadas são resistentes ou intolerantes ao Imatinibe. Alguns pacientes
falham ao tratamento inicialmente, com resistência primária, enquanto outros perdem
uma resposta previamente adquirida, com resistência secundária, mais comum,
relacionada a mutações no sítio BCR-ABL.
As opções terapêuticas para pacientes resistentes ou intolerantes ao Mesilato de
Imatinibe são limitadas. Inibidores de tirosina-quinase de segunda geração foram
desenvolvidos com maior potência com a finalidade de diminuir o risco de
desenvolvimento de resistência. Incluem o Nilotinibe e o Dasatinibe, ambos com
excelentes resultados em pacientes que desenvolveram resistência ou são intolerantes ao
Imatinibe.

Manejo
O primeiro passo do tratamento de um paciente com leucemia mieloide crônica é
o controle hematológico, que pode ser feito com Hidroxiuréia enquanto os exames de
confirmação diagnóstica, como citogenética e reação em cadeia da polimerase, são
aguardados. Resposta hematológica prevê redução no número de plaquetas para menos
de 450000/mm3, redução no número de leucócitos para menos de 10.000/mm3, redução
no número de células circulantes, ausência de esplenomegalia e ausência de sintomas
constitucionais.
Tendo a comprovação do cromossomo Philadelphia e/ou do transcrito BCR-
ABL, dá-se início ao tratamento com Mesilato de Imatinibe na dose de 400mg/dia na
fase crônica e 600mg/dia nas fases acelerada e de crise blástica. A resposta
hematológica completa deverá ser atingida em torno de três meses e, durante esse
tempo, o paciente deverá ser monitorizado com hemograma e bioquímica semanalmente
nas primeiras seis semanas e a cada quatro semanas a partir de então.
A resposta citogenética, avaliada através de monitorização da porcentagem do
número de células Philadelphia positivas em medula óssea, é o melhor parâmetro para
avaliação de resposta ao tratamento, sendo considerada resposta citogenética completa a
ausência de células Philadelphia positivas. É recomendada uma primeira avaliação
citogenética antes do tratamento e a cada seis meses até a obtenção da resposta
citogenética completa, com repetição a cada doze meses a partir de então. Deve-se
aumentar a dose de Mesilato de Imatinibe de 400mg para 600mg ou de 600mg para
800mg se houver perda da resposta inicial ou resposta subótima.

Leucemia linfoide crônica

Conceito
A leucemia linfoide crônica é uma proliferação clonal de um linfócito B maduro
com uma importante heterogeneidade nas suas manifestações clínicas e biológicas. A
leucemia linfoide crônica e o linfoma linfocítico de células pequenas são diferentes
manifestações da mesma doença e, consequentemente, são conduzidos da mesma
maneira.

Epidemiologia

Pedro Kallas Curiati 820


A leucemia linfoide crônica é a mais comum das leucemias. É bastante rara
antes da quarta década de vida e a incidência aumenta com a idade. A mediana de idade
ao diagnóstico é de 65 anos.

Etiologia e fisiopatologia
Não existem fatores etiológicos claros na leucemia linfoide crônica. Também
não foi identificada associação com exposição a radiação ionizante e substâncias
químicas. Um dos mais importantes fatores de risco é a história familiar.

Quadro clínico
Atualmente, ao diagnóstico, cerca de metade dos pacientes são assintomáticos e
a doença é detectada durante avaliação clínica e laboratorial de rotina, com linfocitose
em sangue periférico associada ou não a adenomegalia, esplenomegalia e
hepatomegalia. Quando ocorre envolvimento ganglionar, é possível encontrar desde
aumento linfonodal discreto até adenomegalia maciças, que geralmente são simétricas e
podem acometer todas as cadeias ganglionares. Manifestações de comprometimento da
medula óssea, como anemia e trombocitopenia, são encontradas ao diagnóstico em uma
parcela dos pacientes. Astenia, sudorese noturna, febre de origem indeterminada e
sangramentos nos casos mais avançados são os sintomas mais encontrados. Raramente
ocorre infiltração pulmonar e de sistema nervoso central.
Aumento na incidência de infecções resulta, sobretudo, de
hipogamaglobulinemia.
Fenômenos autoimunes decorrentes de alteração no sistema imunológico e de
perda dos mecanismos regulatórios das células T ocorrem em uma parcela dos
pacientes, devendo-se investigar a ocorrência de anemia hemolítica autoimune e
púrpura trombocitopênica imunológica, que também podem ser desencadeadas pelo
tratamento com análogos de purina. Aplasia pura de série vermelha, caracterizada pelo
aparecimento de anemia importante sem aumento do número de reticulócitos na
ausência de neutropenia e plaquetopenia, é rara.
Durante a evolução da doença, em uma proporção dos casos, pode ocorrer a
transformação da leucemia linfoide crônica para outra doença linfoide maligna
agressiva. A síndrome de Richter é caracterizada por crescimento rápido de
linfonodomegalia, hepatoesplenomegalia, febre, perda de peso, anemia e
trombocitopenia, com diagnóstico baseado em exame anatomopatológico com
transformação para linfoma de células grandes.
Os pacientes apresentam um risco aumentado para desenvolverem uma segunda
neoplasia.

Avaliação complementar
Os esfregaços de sangue periférico revelam linfócitos pequenos, pouco maiores
que os eritrócitos, com núcleo regular e cromatina condensada, sem nucléolo evidente,
com citoplasma escasso e ligeiramente basófilo, sem granulações específicas. Além
disso, o número de prolinfócitos, caracterizados por tamanho médio com citoplasma
mais abundante, cromatina densa e nucléolo evidente, é menor do que 10%. Em alguns
casos, a morfologia pode ser atípica.
O aspirado de medula óssea é geralmente hipercelular e evidencia um infiltrado
com pelo menos 30% de linfócitos maduros, além de permitir uma avaliação da
hematopoese normal residual. Por outro lado, a biópsia de medula óssea revela padrão
variável de infiltração, que pode ser intersticial, nodular, misto e difuso.
A dosagem de imunoglobulinas pode ser informativa em pacientes que

Pedro Kallas Curiati 821


apresentam infecções recorrentes. Em pacientes anêmicos, contagem de reticulócitos e
teste de Coombs direto devem ser realizados para avaliar uma possível anemia
hemolítica.
Nas doenças linfoproliferativas crônicas de células B, o painel de marcadores
analisados deve distinguir essas doenças de alterações reativas não-clonais de células
linfoides por meio da demonstração de clonalidade pela expressão de cadeia leve da
imunoglobulina, kappa ou lambda, na superfície celular ou no citoplasma. Uma
população de células B reativa contém uma mistura de células kappa positivas e lambda
positivas, geralmente na proporção 2 : 1. Na maior parte dos pacientes, encontra-se a
expressão de marcadores B, CD19 ou CD20, com co-expressão de CD5. Os linfócitos
também são positivos para CD23 e a monoclonalidade também é demonstrada pela
presença de um único tipo de cadeia leve de imunoglobulina, kappa ou lambda.
Em raros casos, em particular no linfoma linfocítico de células pequenas sem
infiltração da medula óssea e do sangue periférico, um exame histológico de linfonodo
e/ou de outros tecidos afetados é indicado para o diagnóstico.
A análise multiparamétrica engloba também análise citogenética e estudos
genéticos moleculares.

Estadiamento
Os dois sistemas mais utilizados na prática clínica até hoje são o sistema de
estadio clínico de Raí e o de Binet. Ambos foram baseados em parâmetros relacionados
à massa tumoral e agrupam os pacientes em grupos de risco distintos.
Estadio Áreas Hemoglobina Plaquetas/mm3 Sobrevida média
comprometidas (g/dL) em anos
A - Baixo risco Inferior a três Superior ou igual Superior ou igual a 12
áreas a 10 100.000
B – Risco Três ou mais áreas Superior ou igual Superior ou igual a 5
intermediário a 10 100.000
C – Risco alto Indiferente Inferior a 10 Inferior a 100.000 2

Parâmetros
Anamnese, com presença de sintomas sistêmicos.
Exame físico, com cadeias linfonodais periféricas, anel de Waldeyer, fígado e
baço.
Avaliação laboratorial, como hemograma completo com contagem de
reticulócitos, velocidade de hemossedimentação, função renal, função hepática,
eletrólitos, eletroforese de proteínas, dosagem de ácido úrico, desidrogenase lática e
beta-2-microglobulina.
Técnicas de imagem, com radiografia de tórax e tomografia computadorizada de
região cervical, tórax, abdômen e pelve.
Avaliação patológica, com biópsia de medula óssea e procedimentos invasivos
adicionais em situações especiais.
Em situações especiais, dosagem de imunoglobulinas, teste de Coombs direto e
pesquisa de anticorpos contra plaquetas.

Critérios diagnósticos
Linfocitose absoluta no sangue periférico superior a 5000/mm3, com linfócitos
morfologicamente maduros e menos de 55% de prolinfócitos.
Linfocitose inferior a 5000/mm3, porém com achados clínicos, imunofenotípicos
e histológicos de medula óssea compatíveis com leucemia linfoide crônica.
Medula óssea com mais de 30% de linfócitos.

Pedro Kallas Curiati 822


Linfócitos com expressão de antígenos de célula B, como CD19, CD20 e CD23,
com co-expressão de CD5, com monoclonalidade para uma das cadeias leves da
imunoglobulina.

Tratamento
O tratamento não é curativo e está associado ao aparecimento de manifestações
colaterais e toxicidade. Pacientes com doença de baixo risco estável frequentemente não
necessitam de terapia durante muitos anos após o diagnóstico. O mesmo ocorre para
uma proporção de casos de risco intermediário, que permanecem estáveis antes de
necessitarem de terapia. Por outro lado, os pacientes com doença de alto risco devem
iniciar terapia ao diagnóstico.
Pacientes com doença de baixo risco ou de risco intermediário sintomática ou
em progressão e pacientes com doença de alto risco têm indicação de quimioterapia. Se
idade inferior a 65 anos, preconiza-se Fludarabina e Ciclofosfamida por via intravenosa
com no mínimo seis ciclos de três dias. Se idade superior a 65 anos e funcionalidade
preservada, preconiza-se Fludarabina por via oral com pelo menos seis ciclos de cinco
dias. Se idade superior a 65 anos com comorbidades, preconiza-se Clorambucil por via
oral, com doze ciclos de quatro dias na presença de resposta clínica e laboratorial.
Na vigência de remissão completa, deve-se suspender o tratamento. Se ocorrer
remissão parcial, deve-se individualizar a terapia.
Administração concomitante de corticosteroides deve ser evitada caso a
associação produza maior toxicidade e aumente a probabilidade de aparecimento de
infecções oportunistas. Em todos os pacientes deve ser realizada profilaxia para
Pneumocystis sp com Sulfametoxazol/Trimetoprim 800mg/160mg por via oral de 12/12
horas três vezes por semana. Preconiza-se suporte com G-CSF 300mcg/dia por via
subcutânea em caso de neutropenia.
O tratamento da autoimunidade após Fludarabina é conduzido com
corticosteroide em dose de 1mg/kg por dez a quatorze dias, com redução lenta da dose
nos três meses seguintes. Se não houver resposta, o tratamento deve ser individualizado
e está indicado o uso de imunoglobulina intravenosa, Ciclosporina ou Rituximabe, que é
anti-CD20.
Outras modalidades terapêuticas incluem esplenectomia nas citopenias
refratárias, irradiação esplênica nos pacientes não candidatos à esplenectomia e
Metilprednisolona em doses altas nos pacientes com doença refratária e sem outras
opções terapêuticas.
Nos pacientes inicialmente tratados com Fludarabina e com duração de resposta
superior ou igual a doze meses a reintrodução do mesmo esquema quimioterápico está
indicada. Se os pacientes receberam Fludarabina isoladamente e não houver
contraindicação, é preconizada a associação com Ciclofosfamida. Naqueles pacientes
com duração de resposta curta, inferior a seis meses, além da associação de Fludarabina
com Ciclofosfamida, devem ser consideradas outras opções terapêuticas, como a adição
de Rituximabe.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 3: doenças hematológicas, oncologia, doenças renais e genitourinárias. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 823


LINFOMAS
A classificação da Organização Mundial de Saúde reconhece três grandes
categorias de neoplasias linfoides, as de células B, as de células T ou natural killer e o
linfoma de Hodgkin. Os linfomas e as leucemias estão incluídos na classificação, pois
as fases sólidas e circulantes estão presentes em muitas neoplasias linfoides, sendo a
distinção artificial.
Nas categorias B e T ou natural killer, são reconhecidos dois grandes grupos, as
neoplasias precursoras, em que as células comprometidas estão em fase precoce ou
imatura de diferenciação, e as neoplasias periféricas ou maduras, constituídas por
células em estádio maturativo diferenciado.
As neoplasias malignas de células B e T ou natural killer periféricas (maduras)
são agrupadas, de acordo com a sua apresentação clínica mais típica, em
predominantemente disseminada (leucêmica), linfoma extralinfonodal primário e
linfoma predominantemente linfonodal.
Os linfomas não-Hodgkin de células B e T ou natural killer encontram-se no
grupo das doenças linfoproliferativas crônicas. Compreendem um grupo heterogêneo de
doenças neoplásicas malignas do tecido linfoide com relação a manifestações clínicas,
expressão antigênica, aspectos citogenéticos e características moleculares.
Quanto ao comportamento clínico, os linfomas não-Hodgkin são divididos em
agressivos ou muito agressivos e em indolentes. Os linfomas indolentes são assim
denominados porque, quando não tratados, apresentam mediana de sobrevida medida
em anos e evoluem de forma lenta e, por vezes, silenciosa. Por outro lado, os linfomas
agressivos e muito agressivos possuem altas taxas de proliferação celular, crescem
rapidamente e têm mediana de sobrevida medida em meses e semanas, respectivamente.

Linfomas indolentes

Conceito
Em geral, os linfomas indolentes são neoplasias de linfócitos maduros, pequenos
e de baixa taxa de proliferação ou divisão. Ao diagnóstico, os pacientes geralmente
apresentam-se em estádio avançado e comumente com infiltração de medula óssea e
sangue periférico. Atualmente, permanecem incuráveis, com a exceção do linfoma de
zona marginal extralinfonodal do tecido linfoide associado à mucosa (MALT).

Formas clínicas
Doenças predominantemente disseminadas apresentam infiltração de medula
óssea, com ou sem infiltração do sangue periférico, linfadenomegalia e esplenomegalia.
Abrangem leucemia linfocítica crônica, linfoma linfocítico, linfoma linfoplasmocítico,
macroglobulinemia de Waldenström, tricoleucemia, linfoma da zona marginal esplênica
e mieloma múltiplo.
Doença extralinfonodal primária origina-se em sítio extralinfonodal,
principalmente no tecido linfoide associado à mucosa do trato gastrointestinal e menos
comumente em pulmão, anexo ocular, pele, tireoide e mama. O principal diagnóstico
diferencial é com doença linfoproliferativa reacional.
Doenças predominantemente linfonodais tem como principais representantes o
linfoma folicular, o linfoma da zona marginal linfonodal, que é raro, e alguns casos de
linfoma da zona do manto. No diagnóstico diferencial, devem ser considerados

Pedro Kallas Curiati 824


leucemia linfocítica crônica e linfoproliferação reacional infecciosa, autoimune e
inflamatória.
As linfoproliferações reativas ou benignas são policlonais, enquanto que as
malignas são monoclonais. A pesquisa da clonalidade pode ser feita por
imunofenotipagem de sangue periférico, medula óssea, linfonodo ou tecido infiltrado
utilizando imuno-histoquímica ou citometria de fluxo ou por biologia molecular.

Linfoma folicular
O linfoma folicular é uma neoplasia linfoide do centro germinativo, com
variável proporção de centrócitos e centroblastos e padrão de infiltração linfonodal do
tipo folicular ou nodular. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, é graduado
de acordo com a porcentagem de centroblastos.
Trata-se da segunda neoplasia maligna linfoide B mais frequente. Predomina no
adulto, com incidência semelhante em ambos os sexos.
A evolução do linfoma folicular é lenta, gradual e contínua. As manifestações
clínicas são variadas, mas predomina o envolvimento linfonodal, caracterizado por
linfadenomegalia localizada ou generalizada. Sintomas sistêmicos, como febre,
emagrecimento e sudorese, podem ser tênues ou estarem ausentes. Embora indolente,
pode adquirir comportamento agressivo durante sua evolução.
O diagnóstico requer análise histológica e imuno-histoquímica de amostra obtida
por biópsia excisional de linfonodo ou de tecido comprometido. Caso exista a
possibilidade de outras neoplasias, a punção por agulha fina pode ser o exame inicial.
Em vigência de linfocitose, o diagnóstico pode ser estabelecido por imunofenotipagem
de sangue periférico. Em geral, as células linfoides do linfoma folicular expressam
antígenos B CD20, CD19, CD79b, CD10 e BCL-2, mas são CD5 negativas.
Após o diagnóstico, os pacientes devem ser estadiados para avaliar a extensão da
doença por meio de exames de imagem, como tomografia computadorizada de pescoço,
tórax, abdômen e pelve, biópsia de medula óssea, dosagem de desidrogenase lática e
hemograma.
Os principais diagnósticos diferenciais são doenças infecciosas e inflamatórias
crônicas e tumor sólido.
A estratégia de tratamento e acompanhamento dos pacientes deve basear-se no
estadiamento, na presença de sintomas B e na análise dos fatores de prognóstico clínico,
como idade e comorbidades, e biológicos, já que não existe terapia curativa. O
tratamento do linfoma folicular compreende um espectro de ação extremamente variável
e possível, desde observação sem tratamento até quimioterapia em altas doses, sem
consenso quanto à abordagem ideal. A radioterapia em campo envolvido é a melhor
opção para pacientes em estádios I e II na ausência de bulky e sintomas sistêmicos.
Não se deve iniciar tratamento precoce depois do diagnóstico se o paciente
estiver assintomático. Deve-se iniciar terapia com droga única, como alquilante oral,
quando for necessário, pois terapias agressivas combinadas não impactam na sobrevida.
O linfoma folicular é uma doença incurável e o tratamento paliativo dos sintomas é
entendido como aceitável. A transformação para linfoma agressivo independe do tipo,
do tempo e da terapêutica utilizada.

Linfomas da zona marginal


O infiltrado linfoide neoplásico tem origem na zona marginal de folículos
linfoides secundários reacionais, podendo se estender para regiões interfoliculares. As
células linfoides B infiltram-se na arquitetura do tecido epitelial e a alteram, formando
lesões linfoepiteliais. Os linfomas da zona marginal abrangem o linfoma MALT, o

Pedro Kallas Curiati 825


linfoma da zona marginal linfonodal e o linfoma da zona marginal esplênica, que têm
comportamento clínico indolente e morfologia de célula B pequena.
Na maioria dos casos, a origem do linfoma MALT ocorre em tecido linfoide
adquirido secundário a estímulo antigênico crônico e persistente. O linfoma MALT da
glândula salivar e da glândula tireoide, órgãos normalmente desprovidos de tecido
linfoide, está comumente associado à síndrome de Sjögren e à tireoidite de Hashimoto,
respectivamente. No pulmão, o linfoma MALT se origina a partir do tecido linfoide
associado ao brônquio (BALT), que é adquirido secundário a bronquiolite folicular
pneumonite intersticial linfocitária, infecção viral e doença autoimune. Na pele, apesar
do predomínio dos linfomas de imunofenótipo T, existem linfomas MALT que parecem
estar associados a infecção por Borrelia burgdorferi. No estômago, local mais
comumente envolvido pelo linfoma MALT, a infecção por Helicobacter pylori parece
ser o evento desencadeante para o seu desenvolvimento.
Os linfomas MALT são neoplasias indolentes e acometem indivíduos na sétima
década de vida. Por se tratar de linfoma extralinfonodal, as queixas são inespecíficas e
normalmente relacionadas ao sítio de envolvimento primário. A maioria dos pacientes
se apresenta com doença localizada ao diagnóstico, com disseminação presente em até
um terço dos pacientes, sendo menos comum no linfoma MALT de trato
gastrointestinal. A presença de sintomas B é incomum e ocorre em menos de 20% dos
casos. Níveis elevados de desidrogenase lática e aumento de beta2 microglobulina ao
diagnóstico são infrequentes. Os pacientes têm longa sobrevida geral,
independentemente do estadio clínico e do local de envolvimento. A transformação para
linfoma difuso de grandes células B é inferior a 10%.
Em relação ao linfoma de zona marginal linfonodal, a maioria dos pacientes
apresenta-se assintomática e com linfadenomegalia generalizada, que pode transformar-
se para linfoma agressivo.
O paciente com linfoma de zona marginal esplênica apresenta-se com
esplenomegalia, desconforto abdominal, dor em hipocôndrio esquerdo e pouca ou
nenhuma linfadenomegalia. Podem ocorrer sintomas B, anemia, plaquetopenia e
leucocitose. Em alguns casos, podem ser evidenciados linfócitos circulantes com ou
sem vilos, assim como anemia hemolítica autoimune. A infiltração hepática não é
incomum e quase todos os pacientes têm a medula óssea infiltrada. Um terço dos
pacientes apresenta pico monoclonal, geralmente IgM, com sinais e sintomas de
hiperviscosidade, como cefaleia, náusea, vômitos, turvação visual, tontura, letargia,
dispneia e hemorragia retiniana.
Um problema no diagnóstico histológico do linfoma MALT é a dificuldade na
diferenciação com hiperplasia linfoide reativa e policlonal. O diagnóstico de linfoma de
zona marginal linfonodal requer biópsia excisional de linfonodo. O diagnóstico de
linfoma de zona marginal esplênica pode ser confirmado por imunofenotipagem de
sangue periférico ou medula óssea ou por esplenectomia. A imuno-histoquímica
demonstra células neoplásicas B CD20 positivas, CD79b positivas, CD5 negativas,
CD10 negativas, CD23 negativas, CD43 positivas ou negativas, CD11c positivas ou
negativas, CD21 positivas, CD35 positivas e IgM positivas.
O estadiamento dos linfomas MALT abrange exame físico completo, exames
laboratoriais, com hemograma completo, desidrogenase lática, beta2 microglobulina,
eletroforese de proteína e sorologia para vírus da imunodeficiência humana, vírus da
hepatite C e vírus da hepatite B, exames de imagem, com tomografia computadorizada
de pescoço, tórax, abdômen e pelve, biópsia de medula óssea bilateral e, em caso de
linfoma MALT gástrico, ecoendoscopia e avaliação do anel de Waldeyer.
Não existem estudos clínicos randomizados que definam a melhor forma de

Pedro Kallas Curiati 826


tratamento dos pacientes com linfoma MALT. Quimioterapia, radioterapia e cirurgia,
isoladas ou combinadas, já foram utilizadas, sem diferenças significativas. Para os
pacientes com linfoma MALT gástrico e infecção por H, pylori, a terapia de erradicação
é a primeira escolha. O tratamento do linfoma de zona marginal esplênica também é
variável, abrangendo observação, esplenectomia, quimioterapia e, atualmente,
monoterapia com Rituximab.

Tricoleucemia
A tricoleucemia ou leucemia de células pilosas é um linfoma difuso de grandes
células B indolente e raro, assim denominado por apresentar célula linfoide neoplásica
rica em projeções citoplasmáticas, que pode ser encontrada em medula óssea ou sangue
periférico, com infiltração esplênica restrita à polpa vermelha.
Predomina no sexo masculino e acomete indivíduos com mais de 55 anos de
idade.
Clinicamente, apresenta-se com história prolongada, esplenomegalia acentuada,
ausência de linfadenomegalia, infiltração difusa de medula óssea e pancitopenia com
células pilosas circulantes. Geralmente, ocorrem infecções oportunistas, vasculites e
fenômenos autoimunes.
Aspirado de medula óssea difícil, seco, é achado frequente na tricoleucemia e na
fase hipocelular da mielofibrose e de outras linfoproliferações B, principalmente
linfoma de zona marginal esplênica. É possível confirmar o diagnóstico por
imunofenotipagem de sangue periférico ou medula óssea e histologia de biópsia de
medula óssea.
As principais drogas para tratamento da tricoleucemia são os análogos de purina,
principalmente a 2-Clorodeoxiadenosina, que proporciona longas remissões, mesmo
com doenças residual mínima detectável e taxa de recaída. Outras opções terapêuticas
menos eficazes são esplenectomia e alfa-Interferon.

Micose fungoide e síndrome de Sézary


A micose fungoide é o subtipo de doença linfoproliferativa crônica de células T
mais comum, representando metade dos linfomas não-Hodgkin primários cutâneos.
Acomete adultos e idosos. O quadro clínico é caracterizado por evolução insidiosa,
inicialmente com lesões cutâneas eritrodérmicas, principalmente no tronco, que
evoluem para placas e tumorações, raramente com eritrodermia generalizada. Quando
avançada, pode comprometer linfonodos, fígado, baço, pulmão, medula óssea e sangue
periférico. Deve ser diferenciada de doenças infecciosas e inflamatórias cutâneas
crônicas. A biópsia é imperativa para o diagnóstico. Os linfócitos T neoplásicos
expressam os antígenos CD3, CD2, TCR-alfa-beta, CD5 e CD4, podendo ou não
expressar CD7 e CD25 e raramente ser CD4 negativos e CD8 positivos. O tratamento
varia de acordo com a apresentação clínica e nos casos localizados podem ser usados
medicamentos tópicos, como cremes contendo mostarda nitrogenada. Já as formas
avançadas podem ser tratadas com terapia combinada de alfa-Interferon e fototerapia
com ultravioleta A após ingesta de Psoralen oral (PUVA). Casos avançados e refratários
podem ser tratados com poliquimioterapia.
A síndrome de Sézary, diferentemente da micose fungoide, é menos comum e
mais agressiva, sendo sua classificação como linfoma indolente questionável. Acomete
adultos. O quadro clínico é caracterizado por eritrodermia difusa, alopecia,
onicodistrofia, hiperqueratose palmo-plantar e linfócitos T circulantes com núcleo
cerebriforme, denominados células de Sézary. O diagnóstico é baseado em pelo menos
um dentre contagem absoluta de células de Sézary superior ou igual a 1000/mm3,

Pedro Kallas Curiati 827


aumento de células T CD4 positivas, relação CD4/CD8 superior a dez, perda de um dos
antígenos T CD2, CD3 ou CD5 e presença de população T clonal determinada por
biologia molecular ou citogenética. As opções terapêuticas incluem fotoaférese isolada
ou combinada a alfa-Interferon, fototerapia com ultravioleta A após ingesta de Psoralen
oral (PUVA) e outros agentes citotóxicos, como Clorambucil e Metotrexato.
Recentemente, indica-se anticorpo monoclonal anti-CD52, denominado Alemtuzumab,
além de Ontak e mini-transplante de medula óssea.

Leucemia de linfócito T grande granular


No sangue periférico normal, os linfócitos grandes granulares representam 10-
15% das células mononucleares. Em sua maioria são células natural killer, CD3
negativas, e em sua minoria são células T verdadeiras, CD3 positivas.
A leucemia de linfócito T grande granular caracteriza-se por linfocitose grande
granular variável de 2.000-20.000/mm3, sem causa definida, por mais de seis meses. A
leucemia em que há comprometimento dos linfócitos T grandes granulares CD3
positivos é uma doença linfoproliferativa crônica de células T clonal e indolente, mas a
leucemia de células natural killer, CD3 negativas, é agressiva e apresenta progressão e
disseminação rápidas.
Geralmente acomete idosos e raramente crianças.
A doença é indolente e raramente evolui para forma agressiva. Cerca de metade
dos pacientes apresentam esplenomegalia, cerca de um quarto dos pacientes apresentam
hepatomegalia e raramente ocorre linfadenomegalia. Alguns pacientes apresentam
hipergamaglobulinemia ou hipogamaglobulinemia, fator reumatoide ou fator antinúcleo
positivos. É comum haver infecção de repetição de vias aéreas, estomatite, celulite e
abscesso perianal secundários à neutropenia.
A suspeita diagnóstica é baseada em citopenias inexplicadas e aumento do
número de linfócitos grandes granulares circulantes. A doença pode associar-se a
doenças autoimunes, como artrite reumatoide, síndrome de Felty, síndrome de Sjögren,
tireoidite de Hashimoto e lúpus eritematoso sistêmico. Algumas doenças hematológicas,
como anemia hemolítica autoimune, plaquetopenia autoimune, aplasia pura de série
vermelha, aplasia de medula óssea, hemoglobinúria paroxística noturna e síndrome
mielodisplásica podem ocorrer. Os linfócitos grandes granulares expressam os antígenos
T CD3, TCR-alfa-beta, D8 e CD4 na maior parte dos casos e um dos antígenos natural
killer associados, com CD16, CD56 ou CD57. Alguns casos podem ser CD4 e CD8
duplo negativos ou duplo positivos. A monoclonalidade T por
citometria de fluxo ou por biologia molecular confirma o diagnóstico.
Por ter evolução indolente, nem sempre há indicação de tratamento, que é
reservado para os casos de aplasia pura de série vermelha, neutropenia, infiltração
maciça de baço ou fígado e presença de sintomas B. As melhores respostas são obtidas
com imunossupressores, como Ciclosporina, Metotrexate e Prednisona.

Linfomas agressivos

Conceito
Os linfomas agressivos e muito agressivos caracterizam-se por alta taxa de
proliferação celular, crescimento rápido e sobrevida medida em meses e semanas,
respectivamente. Ao contrário dos linfomas indolentes, os linfomas agressivos podem
ser curados. No entanto, quando refratários, progridem rapidamente para o óbito.

Diagnóstico

Pedro Kallas Curiati 828


O diagnóstico deve basear-se em análise histológica de amostra adequada de
tecido obtido por biópsia excisional de linfonodo ou por biópsia incisional ampla de
órgão envolvido.

Estadiamento
A avaliação inicial abrange anamnese e exame físico, análise laboratorial de
parâmetros hematológicos e bioquímicos com dosagem de desidrogenase lática e
biópsia de medula óssea. Exames de imagem devem incluir tomografia
computadorizada de tórax, abdômen e pelve e tomografia por emissão de pósitrons com
fluorodesoxiglicose (FDG-PET) se disponível. Cintilografia de corpo inteiro com gálio
67 pode ser utilizada na ausência do FDG-PET. Se houver comprometimento testicular,
epidural ou de seios da face, a punção lombar para análise citológica do líquido
cefalorraquidiano é mandatória.
O estadiamento baseia-se na classificação de Ann Arbor, desenvolvida
inicialmente para linfoma de Hodgkin. Estádio 1 é caracterizado por uma única cadeia
de linfonodos acometida. Estádio 2 é caracterizado por duas ou mais cadeias do mesmo
lado do diafragma. Estadio 3 é caracterizado por duas ou mais cadeias dos dois lados do
diafragma. Estádio 4 é caracterizado por infiltração não-contígua de órgãos não-
linfoides, como fígado, sistema nervoso central, pulmão e medula óssea. Febre,
sudorese e emagrecimento superior a 10% do peso corporal em seis meses definem
sintomas B.

Linfoma difuso de grandes células B


O linfoma difuso de grandes células B é uma doença clínica e biologicamente
heterogênea.
Há expressão de marcadores B, como CD19, CD20, CD22 e CD79a e sIg, na
maior parte dos casos. Eventualmente há expressão do antígeno T CD5 e do antígeno
CD10. A ausência de ciclina D1 ajuda a diferenciar o linfoma difuso de grandes células
B da forma blástica de linfoma de célula do manto.
Para melhor abordagem terapêutica, os pacientes devem ser divididos em grupos
com doença localizada, disseminada e com recidivas após remissão inicial. Entretanto,
todos os pacientes tratados com intenção curativa devem receber poliquimioterapia
contendo Antraciclina. O transplante de medula óssea autólogo é efetivo para muitos
pacientes com linfoma difuso de grandes células B com recidiva após remissão
completa e que responderam à terapia de salvamento.
Após o término do tratamento e a obtenção da remissão completa, ainda há
significativa chance de recidiva, com maior incidência nos primeiros três anos. A
consulta de seguimento deve incluir anamnese, exame físico e análise laboratorial com
hemograma e bioquímica com dosagem de desidrogenase lática. Após remissão
completa documentada, não há necessidade de exames de imagem periodicamente na
ausência de evidência clínica ou laboratorial de recidiva, a não ser que o paciente
deseje. É um erro iniciar o tratamento para aparente recidiva sem realizar biópsia.

Subgrupos de linfomas de grandes células B

Linfoma de grandes células B primário do mediastino


Incide preferencialmente em adultos do sexo feminino na terceira ou quarta
décadas de vida. O padrão de expressão é semelhante ou do linfoma de Hodgkin
clássico esclerose nodular. Os pacientes apresentam massa mediastinal de crescimento
rápido e sintomas de tosse seca e dispneia. Mais da metade dos pacientes apresentam

Pedro Kallas Curiati 829


sinais e sintomas de síndrome da veia cava superior ao diagnóstico, com edema facial,
ingurgitamento das veias do pescoço e, ocasionalmente, trombose venosa profunda.
Com frequência, há bulky com tamanho superior a 10cm e invasão local de pulmão,
parede torácica, pleura e pericárdio. Disseminação à distância e infiltração de medula
óssea são infrequentes ao diagnóstico. As células malignas apresentam fenótipo B, com
CD19, CD20 e CD22, mas usualmente não expressam sIg. Quando presente, o antígeno
CD30 é fracamente expresso. A melhor opção de tratamento e o papel da radioterapia
de consolidação não estão definidos.

Linfoma de células B intravascular


Subtipo raro extralinfonodal de apresentação ímpar. Caracteriza-se por
proliferação clonal de linfócitos dentro de pequenos vasos, com dispersão intraluminal,
ausência de infiltração do tecido circulante e envolvimento de linfonodo ou de tecido
reticuloendotelial. A média de idade de incidência é de 72 anos. A apresentação clínica
depende do órgão comprometido, geralmente sistema nervoso central e pele. O
diagnóstico é baseado na biópsia do tecido comprometido, demonstrando infiltração por
células B. Em relação ao tratamento, não existem estudos randomizados que indiquem a
melhor terapêutica.

Linfoma difuso de grandes células B rico em T


Variante morfológica incomum, mais frequente em indivíduos jovens do sexo
masculino. Caracteriza-se por menos de 10% de células B grandes malignas em permeio
à população de linfócitos T e histiócitos reacionais e, portanto, é facilmente confundida
com linfoma T periférico e linfoma de Hodgkin. Frequentemente apresenta sintomas B
e infiltração hepática, esplênica e de medula óssea.

Linfoma de efusões
Neoplasia maligna rara de células B grandes que se apresenta em forma de
efusões e sem massa tumoral visível. É mais comum em jovens do sexo masculino e
imunocomprometidos, principalmente portadores do vírus da imunodeficiência humana.
Está associado ao herpesvírus humano tipo 8 e a altos níveis de citocinas, como IL-6 e
IL-10. Alguns pacientes têm história prévia de sarcoma de Kaposi e raramente o
linfoma associa-se à doença de Castleman multicêntrica. Os locais mais comuns de
comprometimento são pleura, pericárdio e cavidade peritoneal. Outros locais envolvidos
são o trato gastrointestinal, os tecidos moles e o tecido extralinfonodal. Em geral, há
efusões sem linfadenomegalia ou organomegalia.

Linfomas agressivos de fenótipo T de origem extralinfonodal

Linfoma de célula T ou natural killer extranodal do tipo nasal


Neoplasia linfoide extralinfonodal derivada de células natural killer e, menos
comumente, de células T citotóxicas. A média de idade ao diagnóstico é de 50 anos,
com predomínio no sexo masculino. O vírus Epstein-Barr está envolvido na patogênese.
Os pacientes apresentam-se com tumor de linha média e destruição nasal e de pálato,
além de edema periorbitário acentuado. Os locais mais comuns de recidiva são a pele e
o tecido subcutâneo. É comum complicação com síndrome hemofagocítica. O
tratamento atual inclui radioterapia em campo envolvido seguida de poliquimioterapia
sistêmica com esquema contendo antraciclina e profilaxia de sistema nervoso central.

Linfoma de célula T enteropático

Pedro Kallas Curiati 830


Doença rara, com idade média de incidência de 57 anos e predomínio no sexo
masculino. Em geral, há história prévia de enteropatia associada a glúten. Os principais
sintomas são dor abdominal, emagrecimento, diarreia e vômitos. Complicações incluem
síndrome de má-absorção, perfuração, obstrução, sangramento e fístulas. Antes do
tratamento com esquema clássico CHOP, preconiza-se enterectomia com ressecção do
tumor. Com frequência, há necessidade de suporte nutricional. O transplante de medula
óssea autólogo pode ser utilizado como consolidação.

Linfoma de célula T hepatoesplênico


Linfoma não-Hodgkin raro caracterizado por acentuada hepatoesplenomegalia,
sintomas B e ausência de linfadenomegalia. O padrão de infiltração sinusoidal de
fígado, baço e medula óssea é típico. Mais frequente em adultos jovens, ocorrendo mais
frequentemente em imunossuprimidos.

Linfoma cutâneo de células T


O linfoma cutâneo de células T é um grupo heterogêneo de doenças
linfoproliferativas com apresentação primária em pele. Os subtipos indolentes incluem
micose fungoide, linfoma de grandes células anaplásicas primário cutâneo, papulose
linfomatoide e paniculite subcutânea. Os subtipos agressivos são síndrome de Sézary e
linfoma de células natural killer blásticas.
O linfoma de células natural killer blásticas ou linfoma de células natural killer
CD4 e CD56 positivas faz parte dos linfomas cutâneos CD30 negativos. É mais comum
em idosos, acometendo principalmente pele, mas com progressão para forma
generalizada. Mesmo com quimioterapia sistêmica, a remissão completa não é
duradoura. Maior sobrevida pode ser obtida com transplante de medula óssea alogênico
com protocolos que incluem irradiação corporal total no condicionamento.
A síndrome de Sézary caracteriza-se por eritrodermia generalizada,
linfadenomegalia e células tumorais circulantes. Tipicamente, as lesões iniciais são
manchas eritematosas na pele que evoluem para placas bem delimitadas com infecção e
úlceras secundárias. Os achados histopatológicos da pele são indistintos da micose
fungoide. O tratamento é paliativo, exceto em poucos casos nos quais é possível realizar
transplante de medula óssea alogênico. Atualmente, preconiza-se o uso de alfa-
Interferon associado a PUVA ou fotoaférese. O anticorpo monoclonal anti-CD52
(Alemtuzumab) e a proteína recombinante contendo a porção da IL-2 que interage com
a cadeia alfa do receptor de IL-2, Denileukin Difitox (Ontak), ligada a uma porção da
toxina diftérica são novas opções terapêuticas.

Linfomas agressivos de fenótipo T de origem linfonodal

Linfoma de célula T periférica não-especificado


Representa uma categoria distinta de linfoma T periférico de origem
predominantemente linfonodal não-categorizado em outros grupos de linfoma não-
Hodgkin. Acomete indivíduos com média de idade de 61 anos e, em sua maioria,
doença avançada. Em geral, apresenta características desfavoráveis, como sintomas B,
desidrogenase lática elevada, bulky superior a 10cm, estado funcional acima de 2 e
doença extralinfonodal. Em geral, os linfomas de célula T periférica não especificados
expressam antígenos T associados, com CD 4 positivo, CD8 negativo e CD3, CD5 e
CD7 positivos ou negativos, alguns casos podendo ser CD4 e CD8 negativos e outros
CD4 negativos e CD8 positivos. Os antígenos CD5 e CD7 usualmente são perdidos.
Esquema contendo antracilina é a terapêutica de escolha. O anticorpo monoclonal anti-

Pedro Kallas Curiati 831


CD52 (Alemtuzumab), a proteína recombinante contendo a porção da IL-2 que interage
com a cadeia alfa do receptor de IL-2, Denileukin Difitox (Ontak), ligada a uma porção
da toxina diftérica e o transplante de medula óssea são outras opções terapêuticas.

Linfoma difuso de grandes células anaplásicas T/null


A célula maligna tem fenótipo HLA negativo DR positivo, CD25 positivo,
CD30 positivo, CD45 positivo, EMA positivo e CD15 negativo, com expressão de
antígenos T associados em cerca de 60%. Ocasionalmente não expressam antígenos B
ou T, sendo denominados forma null. É um linfoma agressivo, acometendo tecido
extralinfonodal em 40-60% dos casos, principalmente pele, osso, tecido mole e pulmão,
com sintomas B. É uma neoplasia de bom prognóstico. O tratamento inclui esquemas de
quimioterapia CHOP-símile.

Linfomas muito agressivos

Linfoma de Burkitt
Neoplasia maligna muito agressiva. Segundo a Organização Mundial de Saúde,
pode ser dividida nas variantes clínicas endêmica, esporádica e associada à
imunodeficiência.
O linfoma de Burkitt endêmico incide em crianças africanas com idades entre
quatro e sete anos, predominando no sexo masculino e envolvendo os ossos da
mandíbula e da face, os rins, o trato gastrointestinal, os ovários e a mama. O vírus
Epstein-Barr é encontrado em quase 100% dos casos.
O linfoma de Burkitt esporádico ocorre em todo o mundo, com média de idade
de 30 anos, predominando em homens. O baixo nível socioeconômico e a infecção
precoce pelo vírus Epstein-Barr associam-se a maior prevalência. A principal área
acometida é o abdômen, especialmente a região ileocecal. Outros locais, como ovário,
rins, omento e anel de Waldeyer também podem ser comprometidos. O acometimento
bilateral da mama pode ocorrer no início da puberdade ou durante a amamentação.
Derrame pleural e ascite neoplásica não são incomuns. Raramente, há infiltração de
medula óssea por mais de 25% de células neoplásicas, caracterizando a leucemia
linfoide aguda L3 do grupo Francês, Americano e Britânico (FAB).
Linfoma de Burkitt associado à imunodeficiência ocorre em pacientes infectados
pelo vírus da imunodeficiência, submetidos à transplante e com imunodeficiências
congênitas. Geralmente, os pacientes são jovens, sem diagnóstico prévio de síndrome da
imunodeficiência adquirida e com contagem de células CD4 superior a 200/mm3. O
vírus Epstein-Barr está associado a 30-40% dos casos.
O imunofenótipo é de linfoma de célula B, com CD20 positivo, CD10 positivo,
Bcl-6 positivo, Bcl-2 negativo, TdT negativo e sIg positivo, com marcador de
proliferação celular Ki67 superior a 99%.
Geralmente, os pacientes apresentam-se com doença tipo bulky pelo curto tempo
de duplicação das células neoplásicas. Cerca de 30% apresentam doença limitada ao
diagnóstico, enquanto que 70% têm doença disseminada, em estádios III e IV de Ann
Arbor. Frequentemente há desidrogenase lática elevada, com alto risco de infiltração do
sistema nervoso central e da medula óssea.
Os linfomas de Burkitt esporádicos e associados à imunodeficiência não
apresentam a alta sensibilidade à quimioterapia do linfoma de Burkitt endêmico, com
pior prognóstico. Utilizam-se esquemas de curta duração com altas doses de
quimioterapia combinada à profilaxia do sistema nervoso central.

Pedro Kallas Curiati 832


Linfoma de célula T do adulto
Linfoma de célula T altamente agressivo que, frequentemente, apresenta
infiltração de sangue periférico no diagnóstico, com leucemização. A fisiopatologia
envolve a infecção pelo vírus linfotrópico T humano tipo 1 (HTLV-1).
O primeiro critério diagnóstico é a detecção de neoplasia maligna linfoide,
geralmente de fenótipo CD4 positivo e CD25 positivo. Os linfócitos neoplásicos
possuem núcleos hiperlobulados conhecidos como flower cells. A seguir, deve-se
detectar anticorpos anti-HTLV-1 no soro e demonstrar a integração monoclonal do
provírus HTLV-1 nas células neoplásicas.
O quadro clínico é caracterizado por linfadenomegalias, lesão de pele,
hepatomegalia, esplenomegalia, hipercalcemia, frequente imunossupressão e infecções
oportunistas, como estrongiloidíase, pneumocistose, citomegalovirose e micobacteriose.
A doença é classificada em aguda, linfoma, crônica e smoldering de acordo com
critérios clínicos e de prognóstico. Na forma aguda, há hiperleucocitoses com grande
quantidade de células flower circulantes, lesões de pele, linfadenomegalia,
hepatoesplenomegalia, hipercalcemia e aumento de desidrogenase lática. A forma
linfoma caracteriza-se por proeminente linfadenomegalia sistêmica e células neoplásicas
circulantes. Na forma crônica, a leucocitose é leve, com lesões de pele,
linfadenomegalia e hepatoesplenomegalia menos frequente. A forma smoldering
caracteriza-se por pequena quantidade de células flower com integração monoclonal do
HTLV-1. Em geral, a forma crônica evolui para aguda em poucos anos. As formas
aguda e linfoma são caracterizadas por agressividade e resistência à quimioterapia.
Altas doses de quimioterapia são bem toleradas.

Linfoma de células do manto


O linfoma de células do manto é uma neoplasia de células B composta por
células de tamanho pequeno a médio e núcleo irregular cujo correspondente normal é o
linfócito B da zona do manto de linfonodo e baço. Tem como marcador a expressão de
ciclina-D1.
Acomete pessoas de meia-idade, com média de 60 anos, mais frequentemente no
sexo masculino.
As manifestações clínicas são variadas, mas, geralmente, há linfadenomegalia,
esplenomegalia, infiltração de medula óssea e infiltração do sangue periférico. Ao
diagnóstico, a maior parte dos casos encontra-se em estádio avançado. Pode haver
comprometimento extralinfonodal do trato gastrointestinal e do anel de Waldeyer.
O diagnóstico requer biópsia excisional de linfonodo ou de tecido comprometido
ou imunofenotipagem do sangue periférico ou da medula óssea. O padrão histológico
pode ser nodular, preservando-se a zona do manto, ou difuso. Os linfomas expressam
antígenos B, como CD19, CD20, CD79a, CD22, sIgM, sIgD, kappa ou lambda, e
coexpressam o antígeno T CD5, assim como os antígenos CD43, FMC7 e ciclina D1,
sendo CD10 e CD23 negativos.
O linfoma de células do manto deve ser considerado linfoma agressivo, mas
alguns casos podem apresentar características indolentes. Atualmente, não há consenso
sobre a terapia padrão. As opções são variadas e, em geral, agressivas. A consolidação
com transplante de medula óssea alogênico deve ser analisada em pacientes com idade
inferior a 60 anos.

Linfoma de Hodgkin

Conceito

Pedro Kallas Curiati 833


O linfoma de Hodgkin é uma neoplasia maligna rara, de aspecto patológico
característico e com bom prognóstico.

Classificação
O aspecto histológico característico do linfoma de Hodgkin é caracterizado por
células tumorais de Reed-Sternberg, células mononucleares e células de Hodgkin,
rodeadas por linfócitos T, formando rosetas dentro de um infiltrado inflamatório
composto por células reacionais. A proporção de células clonais malignas é baixa,
geralmente correspondendo a 2% da massa tumoral. Derivam de células B maduras em
98% dos casos e de células T em 2% dos casos.
Atualmente, a classificação empregada é a proposta pela Organização Mundial
de Saúde, que incorporou as modificações sugeridas pela classificação REAL e
compreende duas entidades:
- Linfoma de Hodgkin com predominância linfocitária nodular;
- Linfoma de Hodgkin clássico, subdividido em quatro subtipos de
prognóstico similar, incluindo rico em linfócitos, esclerose nodular,
celularidade mista e depleção leucocitária;

Epidemiologia
O linfoma de Hodgkin corresponde a menos de 1% dos casos novos de câncer
no Brasil e cerca de 30% de todos os linfomas.
O linfoma de Hodgkin com predominância linfocitária corresponde a 5% dos
casos, ocorrendo predominantemente no sexo masculino, entre trinta e cinquenta anos
de idade.
O linfoma de Hodgkin clássico corresponde a 95% dos casos, com distribuição
etária bimodal, sendo o primeiro pico entre quinze e trinta anos e o segundo após os
cinquenta anos de idade. Entre os subtipos de linfoma de Hodgkin clássico, o mais
comum é a esclerose nodular, único subtipo em que não há predominância no sexo
masculino.

Etiologia e fisiopatologia
A etiologia do linfoma de Hodgkin não é conhecida e não existem evidências de
fatores de risco ambientais ou hereditários. A fisiopatologia envolve transformação
neoplásica de linfócitos periféricos maduros do centro germinativo.

Quadro clínico
O linfoma de Hodgkin é um tumor que acomete, predominantemente,
linfonodos, baço e outros tecidos linfoides. Sua disseminação tende a ocorrer com o
acometimento progressivo de áreas nodais contíguas. A queixa mais comum dos
pacientes é o aparecimento de massas nodais indolores e de crescimento progressivo.
A maioria dos pacientes portadores de linfoma de Hodgkin com predominância
linfocitária nodular se apresenta com doença localizada e comprometimento de
linfonodos periféricos cervicais, axilares ou inguinais, raramente com envolvimento de
mediastino, baço e medula óssea. Mesmo em indivíduos com doença avançada, o curso
clínico é indolente e as recidivas são frequentes e sempre responsivas ao tratamento.
No linfoma de Hodgkin clássico, a maioria dos pacientes apresenta aumento dos
linfonodos da região supradiafragmática, enquanto que início da doença na região
infradiafragmática ocorre em cerca de 10% dos casos. Podem ocorrer sintomas de
compressão de vias aéreas, tosse não-produtiva, dor torácica e franca síndrome da veia
cava superior. Esplenomegalia é encontrada mais frequentemente em pacientes com

Pedro Kallas Curiati 834


comprometimento infradiafragmático, sintomas sistêmicos e subtipo celularidade mista.
Excetuando-se o envolvimento localizado de região ou órgão extralinfático por
contiguidade, em uma proporção dos casos pode ocorrer disseminação hematogênica
com infiltração de sítios extranodais, como pulmão, fígado e medula óssea.
Sintomas constitucionais podem ocorrer ao diagnóstico, sendo mais frequentes
em casos com doença disseminada. Febre, sudorese noturna e perda de mais de 10% do
peso corporal em seis meses são sintomas constitucionais de mau prognóstico,
denominados sintomas B. Sintomas não-específicos incluem o aparecimento de dor em
regiões comprometidas pelo linfoma de Hodgkin após ingesta de álcool e prurido.
Síndromes paraneoplásicas de caráter imunológico podem ocorrer em uma
minoria dos casos, sendo a anemia hemolítica autoimune e a síndrome nefrótica as mais
comuns. Embora terapia específica possa ser necessária, geralmente ocorre remissão
após o tratamento específico do linfoma de Hodgkin.
Disfunções da imunidade celular podem facilitar o aparecimento de doenças
oportunistas, como herpes zoster e tuberculose disseminada.

Diagnóstico
O diagnóstico deve ser baseado em biópsia ganglionar excisional e avaliação
histológica por um hemopatologista. Análise imuno-histoquímica do tecido tumoral é
fundamental para a correta classificação. No linfoma de Hodgkin com predominância
linfocitária nodular, as células neoplásicas são positivas para CD45 e para marcadores
da linhagem linfoide B, como CD20, CD79a e cadeias pesada e leve de
imunoglobulinas, sendo negativas para CD15 e CD30. No linfoma de Hodgkin clássico,
as células neoplásicas são positivas para CD30 em quase todos os casos e para CD15 na
maior parte dos casos, sendo sempre negativas para CD45 e na maior parte dos casos
negativas para marcadores da linhagem linfoide B. O vírus Epstein-Barr pode ser
encontrado com frequência nas células tumorais do linfoma de Hodgkin clássico e
raramente nas células tumorais do linfoma de Hodgkin com predominância linfocitária
nodular.

Estadiamento

Estádios clínicos do linfoma de Hodgkin segundo classificação de Ann Arbor


modificada após Encontro de Costwold
Estádio I – Comprometimento de uma única região linfática ou estrutura
linfoide, como baço, timo e anel de Waldeyer, que pode estar acompanhado pelo
envolvimento localizado de um órgão ou sítio extralinfático por contiguidade (IE).
Estádio II – Comprometimento de duas ou mais regiões linfáticas do mesmo
lado do diafragma, que pode estar acompanhado pelo envolvimento localizado de um
órgão ou sítio extralinfático por contiguidade (IIE).
Estádio III – Comprometimento de regiões linfáticas em ambos os lados do
diafragma, que pode estar acompanhado pelo envolvimento localizado de um sítio ou
órgão linfático por contiguidade (IIIE). III1 se comprometimento de baço ou linfonodos
hilares, esplênicos, celíacos e portais. III2 se comprometimento de linfonodos para-
aórticos, ilíacos e mesentéricos.
Estádio IV – Comprometimento multifocal de um ou mais órgãos ou tecidos
extralinfáticos com ou sem comprometimento linfonodal associado.
A – Presença de sintomas sistêmicos. B – Presença de sintomas sistêmicos de mau
prognóstico. E – Envolvimento nodal por contiguidade. X Bulky – Massa tumoral
maior ou igual do que 10cm no maior diâmetro em qualquer sítio comprometido ou

Pedro Kallas Curiati 835


massa mediastinal maior do que um terço do diâmetro transverso do tórax, identificada
na radiografia de tórax.

Procedimentos necessários
Avaliação clínica:
- História clínica detalhada com ênfase na presença de sintomas B,
intolerância ao álcool e prurido;
- Exame físico de todas as cadeias linfonodais periféricas, do anel de
Waldeyer, do baço e do fígado;
Avaliação laboratorial, com hemograma completo, velocidade de
hemossedimentação, função renal e hepática, eletrólitos, albumina sérica e
desidrogenase lática.
Técnicas de imagem, com radiografia simples de tórax em incidências póstero-
anterior e lateral, tomografia computadorizada de região cervical, tórax, abdômen e
pelve e tomografia por emissão de pósitrons com 18F-fluorodesoxiglicose ou
cintilografia com gálio 67. Em situações especiais, técnicas de imagem adicionais
incluem cintilografia óssea, ultrassonografia de abdômen e ressonância nuclear
magnética.
Avaliação patológica, com biópsia de medula óssea bilateral em pacientes com
estádio clínico IIB a IV. Procedimentos invasivos adicionais podem ser necessários em
situações especiais. Recomenda-se realizar exame citológico de qualquer efusão.
Avaliação de toxicidade cardíaca com eletrocardiograma e
ecodopplercardiograma, pulmonar com testes de função pulmonar com espirometria e
capacidade de difusão de CO, tireoidiana com dosagem de hormônio tireo-estimulante e
gonadal com espermograma e dosagem de hormônio luteinizante e hormônio folículo-
estimulante.

Fatores prognósticos
Indicam prognóstico desfavorável em estádios iniciais velocidade de
hemossedimentação inferior a 50mm/hora na ausência de sintomas sistêmicos ou
inferior a 30mm/hora na vigência de sintomas B, mais de três sítios envolvidos, bulky
disease, doença esplênica extensa e subtipos histológicos.

Tratamento
Na prática médica, a intensidade do tratamento varia de acordo com os fatores
prognósticos. Nos estádios iniciais com fatores prognósticos favoráveis, são realizadas
terapias menos intensas visando diminuir a toxicidade relacionada ao tratamento. Nos
casos mais avançados e com fatores prognósticos desfavoráveis, são introduzidos
esquemas mais agressivos, com o objetivo de aumentar a chance de cura. As principais
modalidades terapêuticas são a quimioterapia e a radioterapia, atualmente utilizadas em
combinação com certa frequência.
O esquema quimioterápico de primeira linha mais comumente utilizado é o
ABVD, com Doxorubicina, Bleomicina, Vinblastina e Dacarbazina por via intravenosa.
O critério de exclusão para utilização do esquema é a presença de miocardiopatia com
diminuição da fração de ejeção do ventrículo esquerdo. Todos os pacientes devem ser
pré-medicados com Cloridrato de Ondansetrona 8mg e Dexametasona 20mg para
profilaxia de náusea e vômitos. Se ocorrer neutropenia, pode-se associar,
profilaticamente, fator estimulador de colônias de granulócitos humanos para evitar a
ocorrência de episódios de neutropenia febril em ciclos subsequentes de tratamento.
Todos os pacientes com bulky disease devem receber radioterapia.

Pedro Kallas Curiati 836


A monitorização após o término do tratamento tem como objetivo a detecção
precoce de recidiva tumoral e aparecimento de complicações tardias decorrentes do
tratamento. Como o risco de recidiva é maior nos primeiros dois anos do término do
tratamento, a monitorização deve ser mais frequente durante esse período:
- No primeiro ano, reavaliação clínico-laboratorial a cada dois meses,
com tomografia computadorizada a cada seis meses;
- No segundo ano, reavaliação clínico-laboratorial a cada três meses, com
tomografia computadorizada a casa seis meses;
- No terceiro ano, reavaliação clínico-laboratorial a cada quatro meses,
com tomografia computadorizada anual;
- No quarto ano, reavaliação clínico-laboratorial a cada seis meses, com
tomografia computadorizada anual;
- A partir do quarto ano, reavaliação clínico-laboratorial anual com
exames de imagem de acordo com a necessidade clínica;
Em pacientes jovens do sexo feminino tratadas com radioterapia mediastinal
recomenda-se iniciar avaliação com exame clínico periódico das mamas,
ultrassonografia e mamografia dez anos após o término da terapia. Todo paciente que
realizou radioterapia no setor supradiafragmático deve ser rastreado para possível
aparecimento de insuficiência da atividade fisiológica da glândula tireoide.
A terapia de resgate é instituída nos pacientes com recidiva após obtenção de
resposta clínica completa e nos que não apresentaram resposta clínica completa ou
tiveram progressão da doença durante a vigência do tratamento primário. Casos com
recidiva precoce, sintomas B e doença em sítios extralinfonodais e em áreas
previamente irradiadas têm como melhor opção terapêutica quimioterapia em altas
doses seguida de transplante autoplástico de células progenitoras hematopoéticas.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 3: doenças hematológicas, oncologia, doenças renais e genitourinárias. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 837


MIELOFIBROSE PRIMÁRIA
Conceito
A metaplasia mieloide agnogênica com mielofibrose ou mielofibrose primária é
uma doença clonal da célula-tronco hematopoética caracterizada por aumento da
proliferação das células da linhagem mieloide com maturação preservada, fibrose
progressiva da medula óssea e esplenomegalia com hematopoese extramedular. De
acordo com a Organização Mundial de Saúde, a mielofibrose primária é classificada
como uma doença mieloproliferativa crônica.

Epidemiologia
A mielofibrose primária incide predominantemente na sexta década de vida e de
forma semelhante em homens e mulheres. Pode ocorrer em 25-50% dos pacientes
portadores de policitemia vera e em 2-3% dos pacientes portadores de trombocitemia
essencial.

Quadro clínico
Aproximadamente 30% dos pacientes são assintomáticos à apresentação e o
diagnóstico é sugerido por achados anormais no sangue periférico ou por
esplenomegalia identificada incidentalmente. Nos demais casos, pode haver sintomas
decorrentes de estado hipercatabólicos, como febre, emagrecimento e sudorese, sendo
também comuns sintomas relacionados à falência medular, como hemorragias,
infecções e intolerância aos esforços. Gota e nefrolitíase podem ocorrer por causa da
hiperuricemia, secundária à taxa elevada de proliferação celular.
Esplenomegalia está presente na maior parte dos pacientes, enquanto que
hepatomegalia ocorre em cerca de metade. No entanto, na fase pré-fibrótica, em que
ocorre predomínio de proliferação mieloide na medula óssea sem fibrose, somente uma
parcela dos casos apresenta esplenomegalia.
Durante a evolução da doença, os pacientes tendem a apresentar complicações
secundárias à pancitopenia e à hipertensão portal secundária ao fluxo espleno-portal
aumentado. A hemossiderose secundária é frequente em pacientes com alta necessidade
transfusional, com surgimento de insuficiência cardíaca e arritmias.
Transformação para leucemia aguda secundária pode ocorrer em uma
porcentagem dos casos.

Avaliação complementar
A mielofibrose primária é caracterizada por leucocitose com desvio à esquerda,
presença eritroblastos no sangue periférico, poiquilocitose da série vermelha com
presença de eritrócitos em forma de lágrima no esfregaço sanguíneo, graus variados de
fibrose com hiperplasia megacariocítica atípica na medula óssea e ausência de
cromossomo Philadelphia no cariótipo da medula óssea ou do gene híbrido BCR/ABL.
Os achados diagnósticos podem ser muito variáveis conforme o estágio da
doença em que se encontra o paciente. O estágio pré-fibrótico, também conhecido como
fase celular, ocorre em 20-25% dos casos, enquanto que o estágio fibrótico está presente
em 75-80%.
No estágio pré-fibrótico, os achados laboratoriais são característicos de doença
mieloproliferativa crônica e podem incluir anemia leve, leucocitose leve a moderada e
plaquetose. Dacriócitos, plaquetas atípicas e megacariócitos circulantes podem estar

Pedro Kallas Curiati 838


presentes em pequeno número. É possível que haja também eosinofilia e basofilia. A
medula óssea é usualmente hipercelular. Existe uma proliferação granulocítica com
importante desvio à esquerda. A proliferação megacariocítica é caracterizada por
crescimento anormal e localizado paratrabecular. Os megacariócitos apresentam
morfologia atípica, com elementos imaturos presentes. A fibrose reticulínica é mínima
ou ausente.
No estágio fibrótico, a fibrose vai progressivamente levando à insuficiência da
medula óssea. Podem ser observados anemia importante e contagens granulocítica e
plaquetária reduzidas, normais ou aumentadas. A reação leucoeritroblástica é
proeminente, com presença de precursores granulocíticos e eritrocíticos na circulação,
além de hemácias em forma de lágrima. A presença de 10-19% de blastos no sangue
periférico ou na medula óssea define a mielofibrose primária de fase acelerada e a
presença de pelo menos 20% de blastos define a transformação para leucemia
secundária. A medula óssea é usualmente normocelular ou hipocelular. Há fibrose
reticulínica progressiva e perda dos elementos hematopoéticos, com a presença de
somente alguns agregados megacariocíticos atípicos. Um aumento no número de
capilares sinusóides com hematopoese intra-sinusoidal também é característico. O
número de células CD34 positivas no sangue periférico está aumentado, achado
específico, mas pouco sensível. Além disso, ocorre a presença de células progenitoras
endoteliais na circulação.
O gene Janus Kinase 2 (JAK2) é uma tirosina-quinase citoplasmática com papel
importante na transdução de sinal de múltiplos receptores de fatores de crescimento
hematopoéticos. Mutação foi identificada em parcela dos pacientes portadores de
doenças mieloproliferativas BCR/ABL negativas.

Critérios diagnósticos da Organização Mundial de Saúde


Para a fase celular, os achados clínico-laboratoriais incluem
hepatoesplenomegalia leve ou ausente, anemia leve, leucocitose e trombocitose,
enquanto que os achados morfológicos incluem leucoeritroblastose leve ou ausente,
poiquilocitose leve ou ausente, hipercelularidade de medula óssea, proliferação
neutrofílica e megacariocítica, atipia megacariocítica com hipolobulação do núcleo e
fibrose reticulínica mínima ou ausente.
Para a fase fibrótica, os achados clínicos incluem hepatoesplenomegalia
moderada a intensa, anemia moderada a intensa, leucócitos diminuídos, normais ou
aumentados e plaquetas diminuídas, normais ou aumentadas, enquanto que os achados
morfológicos incluem leucoeritroblastose evidente, poiquilocitose intensa,
hipocelularidade de medula óssea, sinusóides medulares dilatados com hematopoese
intraluminal, atipia e proliferação de megacariócitos na medula óssea e proliferação
neutrofílica, fibrose reticulínica e/ou colagênica e osteoesclerose.

Diagnóstico diferencial
Durante o estágio pré-fibrótico, distinguir mielofibrose primária de policitemia
vera ou trombocitemia essencial pode ser difícil. Doenças neoplásicas e inflamatórias
associadas à fibrose de medula óssea também precisam ser diferenciadas de
mielofibrose primária.

Tratamento
Nenhum tratamento medicamentoso é curativo ou aumenta a sobrevida dos
pacientes portadores de mielofibrose primária, de modo que o objetivo do tratamento é
diminuir os sintomas. Dessa forma, em pacientes assintomáticos, a conduta é

Pedro Kallas Curiati 839


expectante.
A terapia com agentes citorredutores tem papel importante no manejo de
pacientes com mielofibrose, especialmente na fase proliferativa. Sinais periféricos de
mieloproliferação excessiva, como trombocitose e leucocitose, hematopoese
extramedular e esplenomegalia sintomática são as principais indicações para tratamento
com agentes quimioterápicos. O agente mais utilizado é a Hidroxiuréia. Outras drogas,
como Bussulfan e Melphalan em baixas doses, podem ser usadas, mas causam
citopenias prolongadas. O possível potencial carcinogênico desses agentes
quimioterápicos se torna uma questão importante em pacientes jovens, com idade
inferior a 45 anos, em que Interferon-alfa é uma alternativa.
Por muito tempo os andrógenos foram considerados a terapia de escolha para a
anemia na mielofibrose primária e bons resultados têm sido obtidos com o Danazol, um
andrógeno sintético atenuado, que melhora também a trombocitopenia e diminui o grau
de esplenomegalia. Efeitos colaterais incluem retenção hídrica, aumento da libido,
hirsutismo, alteração de enzimas hepáticas e tumores hepáticos e prostáticos.
A Eritropoetina recombinante humana é uma terapia eficaz e segura no manejo
da anemia da mielofibrose primária. A dose de início é de 10000UI por via intravenosa
ou subcutânea três vezes por semana, mas pode ser dobrada se não houver resposta num
período de um a dois meses. O tratamento deve ser descontinuado se nenhuma resposta
for obtida em três a quatro meses.
Em razão do alto grau de neoangiogênese na maioria dos pacientes com
mielofibrose primária, a Talidomida, um agente com propriedades antiangiogênicas,
pode ser utilizada com doses de 50-800mg/dia. O uso é limitado pelos efeitos adversos,
como fadiga, constipação, exantema, neurotoxicidade, bradicardia e eventos
trombóticos.
A esplenectomia deve ser restrita a pacientes selecionados com hemólise
refratária e/ou trombocitopenia, esplenomegalia sintomática, infarto esplênico
significativo e hipertensão portal. A radioterapia esplênica deve ser considerada uma
alternativa para a esplenectomia naqueles pacientes sem condições clínicas de serem
submetidos ao procedimento cirúrgico.
O transplante de medula óssea alogênico é o único tratamento curativo. Está
indicado nos indivíduos com idade inferior a 55 anos que sejam de alto risco.
Recentemente, o transplante de medula óssea alogênico não mieloablativo tem sido
estudado na mielofibrose, permitindo que indivíduos com idade superior a 55 anos
possam ser submetidos a esse procedimento.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 3: doenças hematológicas, oncologia, doenças renais e genitourinárias. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 840


MIELOMA MÚLTIPLO E DOENÇAS
RELACIONADAS
Conceito
As gamopatias monoclonais compreendem um grupo de doenças caracterizadas
pela expansão descontrolada e pelo acúmulo de um único clone de células B em
estádios finais de diferenciação. Essas células secretam um tipo de imunoglobulina
designado como componente monoclonal.
O componente monoclonal pode ocorrer em situações benignas ou pré-malignas,
com a denominação de gamopatias monoclonal de significado indeterminado. Já as
gamopatias monoclonais malignas abrangem mieloma múltiplo e suas variantes,
macroglobulinemia de Waldenström e doenças de cadeia pesada.

Diagnóstico
A eletroforese de proteínas é o método de escolha para a pesquisa de
paraproteína e deve ser feita no soro e na urina. O componente monoclonal é
reconhecido como um pico com base estreita na fração beta ou gama. Quando
detectado, deve-se complementar a investigação com imunofixação sérica e/ou urinária
para determinação da classe de cadeia leve e pesada da imunoglobulina. A
imunofixação também deve ser realizada na ausência de componente monoclonal na
eletroforese de proteínas quando existe suspeita clínica forte de doença relacionada ao
plasmócito.
Atualmente, um novo método laboratorial, baseado na pesquisa de cadeias leves
livres kappa e lambda no soro, denominado serum-free light chain assay (FLC), é
utilizado para detecção do componente monoclonal. A relação normal kappa/lambda é
de 0.26-1.65. Esse teste é particularmente importante nos pacientes com suspeita clínica
de amiloidose e quando o componente monoclonal é muito pequeno e não detectado nos
outros exames.
É essencial diferenciar as gamopatias monoclonais das gamopatias policlonais,
que resultam de doenças inflamatórias e processos reacionais.

Gamopatia monoclonal de significado indeterminado


A gamopatia monoclonal de significado indeterminado é a alteração mais
frequentemente observada relacionada aos plasmócitos, com incidência maior em
negros do que em brancos.
Os critérios diagnósticos incluem proteína monoclonal no soro inferior a 3g/dL,
mielograma com menos de 10% de plasmócitos monoclonais, biópsia de medula óssea
com infiltração discreta, ausência de outra doença linfoproliferativas e ausência de lesão
em órgão ou tecido.
Apenas um quarto dos pacientes evolui para neoplasia relacionada aos
plasmócitos ou para doenças linfoproliferativas. No entanto, os portadores de
gamopatias monoclonal de significado indeterminado devem ser seguidos
indefinidamente, uma vez que o risco de transformação maligna persiste por toda a vida.
A imunoglobulina mais comumente associada à gamopatia monoclonal de
significado indeterminado é do tipo IgG. A concentração das imunoglobulinas não
envolvidas está diminuída em uma parcela dos casos. O componente monoclonal
urinário pode estar presente.

Pedro Kallas Curiati 841


A concentração do pico monoclonal ao diagnóstico é o principal fator preditivo
de progressão. Há maior probabilidade de progressão nos casos de IgA e IgM quando
comparados aos portadores e IgG.
Embora a presença de lesões líticas na investigação de pacientes com
gamopatias monoclonal de significado indeterminado seja fortemente sugestiva de
mieloma múltiplo, deve-se afastar carcinoma metastático.
Eletroforese de proteínas deve ser repetida em seis meses e, se estável,
anualmente. Devem ser realizados estudos da medula óssea e radiografia de esqueleto se
a proteína monoclonal for superior ou igual a 1.5g/dL, não for do tipo IgG ou for
caracterizada por relação anormal no serum-free light chain assay (FLC). A medula
óssea também deve ser avaliada em pacientes com anemia, insuficiência renal,
hipercalcemia e acometimento do esqueleto. Se o paciente apresentar proteína
monoclonal do tipo IgM, deve ser considerada a realização de tomografia de abdômen.
É relatada a ocorrência de gamopatia monoclonal de significado indeterminado
em portadores de neuropatia periférica sensitiva e motora e também em casos de doença
do neurônio motor inferior. Neuropatia também ocorre em portadores de hepatite C, em
que a paraproteína se comporta como crioglobulina mista.
O componente monoclonal pode ser identificado em doenças linfoproliferativas,
como leucemia linfoide crônica, linfomas não-Hodgkin, amiloidose e, com menor
frequência, leucemias agudas, tricoleucemia, leucemia T e doenças mieloproliferativas.
A presença de componente monoclonal também já foi descrita em anemia refratária,
doença de von Willebrand adquirida, artrite reumatoide, lúpus eritematoso sistêmico,
esclerodermia, polimiosite e espondilite anquilosante. Líquen mixedematoso é condição
dermatológica usualmente associada a IgG lambda.

Mieloma múltiplo

Conceito
O mieloma múltiplo é uma neoplasia caracterizada pela infiltração da medula
óssea por plasmócitos malignos, pela presença de imunoglobulinas monoclonais séricas
e/ou urinárias e por lesões osteolíticas, podendo ocorrer anemia, insuficiência renal e
infecções de repetição.

Epidemiologia
O mieloma múltiplo é a neoplasia linfoide mais frequente em negros e a segunda
mais frequente em brancos. Acomete principalmente indivíduos na sétima década de
vida.

Quadro clínico
As manifestações clínicas são resultado da combinação de infiltração da medula
óssea, complicações decorrentes da presença de paraproteína e deficiência de
imunoglobulinas normais.
Dor óssea está presente em mais de dois terços dos pacientes e piora à
movimentação. Pode ocorrer perda de alguns centímetros de altura devido ao colapso de
vértebras. Exames de imagem, como ressonância nuclear magnética, tomografia por
emissão de pósitrons (PET-CT) e cintilografia com MIBI têm permitido melhor
avaliação da doença óssea, mas a radiografia de esqueleto continua sendo o método
padrão para estudo. Sintomas relacionados à compressão da medula espinhal, como
parestesias, plegias, incontinência ou retenção urinária e obstipação intestinal, estão
associados a plasmocitomas em vértebras ou a fratura compressiva de vértebras.

Pedro Kallas Curiati 842


Anemia, de grau variável de severidade, acomete dois terços dos pacientes com
mieloma múltiplo. O mecanismo geralmente é multifatorial, com secreção inapropriada
de eritropoetina, efeito colateral de quimioterapia e/ou radioterapia e destruição dos
precursores eritroides determinada pelos plasmócitos. Fraqueza e fadiga refletem a
presença de anemia.
O componente monoclonal sérico e/ou urinário pode ser detectado na
eletroforese de proteínas ou por imunofixação e ocorre em 99% dos casos, com
distribuição caracterizada por IgG em 50%, IgA em 20% e proteinúria de Bence-Jones,
por cadeias leves, em 15%. IgD, IgE, IgM e mieloma múltiplo não-secretor são raros. A
concentração aumentada de paraproteína pode determinar síndrome de
hiperviscosidade, com sonolência, zumbido e/ou sangramento cutaneomucoso. Pode
ocorrer quadro respiratório com sintomas clínicos e alterações radiológicas que,
erroneamente, podem sugerir edema agudo de pulmão. Sangramento anormal,
principalmente epistaxes e púrpura, podem ser importantes e são secundários à presença
de paraproteínas que interferem com a função plaquetária.
Insuficiência renal está presente ao diagnóstico em parcela significativa dos
pacientes. As duas principais causas de doença renal são a hipercalcemia, presente em
cerca de 20% dos pacientes, e o rim do mieloma. A cadeia leve pode se depositar nos
glomérulos e produzir síndrome nefrótica e/ou insuficiência renal, quadro denominado
doença de depósito de cadeia leve e caracterizado por glomeruloesclerose nodular.
Amiloidose ocorre em uma parcela dos pacientes e pode determinar insuficiência renal,
síndrome nefrótica ou ambas. Síndrome de Fanconi adquirida, caracterizada por
disfunção de túbulo renal com glicosúria, fosfatúria e aminoacidúria, pode ocorrer. O
uso de anti-inflamatórios não-hormonais, antibióticos, como os aminoglicosídeos, e
meios de contraste radiológico pode precipitar a insuficiência renal em portadores de
mieloma múltiplo.
Infecções de repetição podem ser a manifestação inicial da doença. Os principais
fatores predisponentes são deficiência de imunoglobulinas normais e neutropenia
secundária à infiltração da medula óssea por plasmócitos ou iatrogênica.

Avaliação complementar
A confirmação laboratorial prevê a realização de eletroforese de proteína sérica e
urinária, imunofixação sérica e urinária e proteinúria de 24 horas.
Na eletroforese de proteínas, pico monoclonal é encontrado em cerca de 80%
dos casos. 10% dos pacientes apresentam hipogamaglobulinemia e 10% apresentam
padrão normal. Nos pacientes que secretam apenas cadeia leve, o componente
monoclonal pode ser detectado apenas na urina. 1% dos casos são não-secretores.
O aspirado de medula óssea habitualmente apresenta infiltrado plasmocitário
superior ou igual a 10%, podendo variar de menos de 5% a 100%. O envolvimento pode
ser focal, requerendo em alguns casos inúmeras avaliações com mielograma e/ou
biópsia da medula óssea.
Outros exames são importantes para a avaliação da lesão orgânica ou tecidual
com o intuito de estabelecer o estadiamento clínico e prever o prognóstico, como
hemograma completo, uréia, creatinina, cálcio ionizado, desidrogenase lática, albumina,
imunoglobulinas, beta2-microglobulina, viscosidade sanguínea e estudo radiológico do
esqueleto, com radiografias simples de crânio, coluna, tórax, pelve, úmero e fêmur.

Critérios diagnósticos
Mieloma múltiplo assintomático é caracterizado por pico monoclonal com
concentração superior ou igual a 3g/dL e/ou mielograma com 10% ou mais de

Pedro Kallas Curiati 843


plasmócitos monoclonais.
Mieloma múltiplo sintomático é caracterizado por pico monoclonal, plasmócitos
monoclonais e presença de uma ou mais manifestações de lesão orgânica ou tecidual,
que incluem hipercalcemia com cálcio sérico superior a 11.5mg/dL, insuficiência renal
com creatinina superior a 2mg/dL, anemia com hemoglobina inferior a 10g/dL, lesões
osteolíticas ou osteoporose, hiperviscosidade, amiloidose e infecções bacterianas
recorrentes com mais de dois episódios por ano.

Prognóstico
A sobrevida dos pacientes com mieloma múltiplo pode variar de poucos meses a
dez anos.
Até recentemente, o estadiamento de Durie & Salmon era o método padrão para
a identificação de pacientes segundo o risco. Esse sistema baseia-se em combinação de
fatores que se correlacionam com a massa tumoral, como valores de hemoglobina no
sangue, cálcio sérico, concentração do componente monoclonal no soro e/ou na urina e
acometimento ósseo avaliado pelo estudo radiológico.
Mais recentemente, vem sendo proposto, sob a organização da International
Myeloma Working Group (IMWG), um novo sistema de estadiamento, o International
Staging System (ISS), baseado nos valores da albumina sérica e da beta2-
microglobulina, que é a cadeia leve do antígeno de histocompatibilidade. O novo
sistema é simples e os pacientes são classificados em três grupos de risco, com estadio
de I a III.
Outro fator prognóstico no mieloma múltiplo é a desidrogenase lática, cujos
valores elevados estão associados a presença de doença extra-óssea, resposta pobre ao
tratamento e sobrevida curta, mesmo em pacientes submetidos a transplante autólogo de
medula óssea.

Variantes clínicas
Quando não é encontrado pico monoclonal sérico ou urinário, o diagnóstico de
mieloma múltiplo pode ser dificultado. Essa forma de mieloma múltiplo, denominada
mieloma múltiplo não-secretor, é rara e apresenta duas variantes, uma em que os
plasmócitos malignos sintetizam, mas não secretam paraproteína e outra em que os
plasmócitos não sintetizam paraproteína. Em ambos os casos, o diagnóstico deverá ser
realizado por mielograma ou biópsia de medula óssea. No mieloma múltiplo produtor
não-secretor, a paraproteína pode ser determinada por técnicas de imuno-histoquímica
ou por citometria de fluxo com pesquisa das cadeias pesadas e leves no citoplasma. Os
achados clínicos do mieloma múltiplo não-secretor são semelhantes aos do mieloma
múltiplo secretor, mas a incidência de insuficiência renal é menor.
O mieloma múltiplo forma osteoesclerótica é uma neoplasia de plasmócitos
frequentemente associada a polineuropatia, hepatomegalia, esplenomegalia,
endocrinopatias, gamopatia monoclonal e acometimento de pele. Anemia é encontrada
raramente. Trombocitose é comum. Hipercalcemia, insuficiência renal e fraturas
patológicas são raras. O estudo radiográfico demonstra lesões osteoescleróticas, ao
contrário das osteolíticas habitualmente observadas no mieloma múltiplo.
O acometimento do sangue periférico pelo mieloma múltiplo, caracterizando
leucemia de células plasmocitárias, ocorre raramente. Os critérios incluem plasmócitos
com contagem superior ou igual a 2000/mm3 ou correspondendo a 20% ou mais dos
leucócitos no sangue periférico. A incidência de lesões osteolíticas e dor óssea é menos
comum do que no mieloma múltiplo, enquanto que hepatoesplenomegalia e
adenomegalia são mais comuns.

Pedro Kallas Curiati 844


Plasmocitomas são tumores resultantes da proliferação de plasmócitos
monoclonais. Dependendo da localização, podem ser ósseos ou extra-ósseos. O
plasmocitoma solitário ósseo corresponde a cerca de 5% das neoplasias dos plasmócitos
e manifesta-se como lesão única nos exames de imagem do esqueleto, não ocorrendo,
habitualmente, acometimento de medula óssea além do local do plasmocitoma e sinais
de danos a órgãos, com pico monoclonal sérico ou urinário em apenas um quarto dos
pacientes. A paraproteína normalmente desaparece após o tratamento local. Os
pacientes podem referir tumoração, fratura patológica ou sintomas neurológicos por
compressão da medula espinhal. O plasmocitoma extra-ósseo corresponde a 3-5% de
todas as neoplasias dos plasmócitos, ocorrendo na maior parte dos casos no trato
respiratório superior e com menor frequência em trato gastrointestinal, bexiga urinária,
sistema nervoso central, mama, tireoide, testículos, linfonodos e pele. Não ocorrem
sintomas de lesão orgânica ou tecidual.

Tratamento do mieloma múltiplo


Não há terapia curativa para o mieloma múltiplo até o momento. O objetivo do
tratamento é prolongar a sobrevida do paciente e diminuir os sintomas.
Os pacientes com mieloma múltiplo assintomático não devem receber
quimioterapia, dado o longo período de tempo que podem permanecer assintomáticos.
A mediana de tempo entre o diagnóstico e a progressão para doença sintomática é de
dois a três anos.
A escolha da terapia de indução para pacientes com mieloma múltiplo
sintomático deve ser diferente para os pacientes candidatos e não-candidatos ao
transplante de medula óssea autólogo. Em pacientes candidatos ao transplante autólogo,
a coleta de células-tronco é geralmente precedida por quatro ciclos mensais de terapia
de indução, sendo os dois esquemas de tratamento mais utilizados Dexametasona em
altas doses e Dexametasona associada a Talidomida, com risco aumentado de trombose
venosa profunda. Pacientes não-candidatos para transplante de medula óssea autólogo
devido a idade, performance ou presença de comorbidades podem ser tratados com
agentes alquilantes, que podem interferir com a mobilização de células tronco
hematopoéticas. Em pacientes idosos, o protocolo com Melfalano e Prednisona é
considerado menos tóxico que os esquemas com Dexametasona, Dexametasona
associada a Talidomida e Dexametasona associada a Vincristina e Adriblastina,
devendo ser administrado a cada quatro a seis semanas até a fase de doença estável.
Pacientes com insuficiência renal devem receber metade da dose de Melfalano. Alguns
grupos sugerem que o protocolo com Melfalano, Prednisona e Talidomina deve ser
adotado como primeira opção terapêutica em pacientes idosos.
Como terapia de consolidação, atualmente, o transplante autólogo de células-
tronco periféricas é considerado o padrão de referência em portadores de mieloma
múltiplo com até 65 anos de idade, pois aumenta a probabilidade de resposta completa,
prolonga a sobrevida livre de doença e aumenta a sobrevida global, apesar de não ser
curativo. Melfalano é o condicionamento mais utilizado para o transplante de medula
óssea autólogo, podendo eventualmente ser utilizado em pacientes com idade até 70
anos que estejam em boas condições clínicas. Em pacientes que não obtiveram redução
de pelo menos 90% do pico monoclonal após o primeiro transplante autólogo de
células-tronco periféricas, pode haver benefício com a realização de um segundo
procedimento, havendo necessidade de coleta de células-tronco suficientes antes do
primeiro transplante.
Transplante de medula óssea alogênico tem como vantagens a ausência de
contaminação do enxerto com células tumorais e a presença de reação do enxerto contra

Pedro Kallas Curiati 845


o mieloma. Só podem ser submetidos a esse tipo de tratamento pacientes com até 55
anos de idade, disponibilidade de doador HLA compatível e condições clínicas de
suportar a toxicidade. Os melhores resultados são conseguidos com a associação de
transplante de medula óssea autólogo, com o objetivo de levar à redução da massa
tumoral, seguido de transplante de medula óssea alogênico com regime não-
mioablativo, com uso de condicionamento com dose reduzida, denominado
minialogênico, que cursa com reação do enxerto contra o mieloma.
Existe um estudo randomizado que sugere o benefício do uso de corticoterapia
como tratamento de manutenção após tratamento convencional, mas não existem
evidências de benefício do uso de corticoterapia após transplante de medula óssea. A
eficácia da Talidomida após transplante de medula óssea ainda é motivo de estudo.
Radioterapia atualmente é utilizada no mieloma múltiplo para tratamento de
plasmocitomas com compressão de medula espinhal e como tratamento paliativo para
dor óssea. Deve ser utilizada com cautela nos candidatos à transplante de medula óssea,
pois pode comprometer a coleta de células-tronco hematopoéticas.
Em caso de plasmocitoma ósseo solitário, a radioterapia é o tratamento de
escolha. Não existe evidência de que o tratamento quimioterápico diminua a taxa de
progressão para mieloma múltiplo. A quimioterapia adjuvante e o transplante autólogo
de medula óssea ainda não têm papel definido no tratamento. A ressecção cirúrgica
raramente é necessária, mas alguns pacientes podem se beneficiar de laminectomia e
corticosteroides em altas doses na presença de compressão medular.

Tratamento das complicações do mieloma múltiplo


A doença óssea pode ser tratada com o uso de Ácido Zoledrônico mensal na
dose de 4mg por via intravenosa em quinze minutos ou de Pamidronato Dissódico
mensal na dose de 90mg por via intravenosa em três horas, não devendo-se ultrapassar
vinte a vinte e quatro doses pelo risco de necrose de mandíbula. Nos casos de lesões em
coluna vertebral com fratura ou risco de fratura, preconiza-se vertebroplastia.
Radioterapia é indicada para paliação de lesões ósseas dolorosas ou quando houver
compressão de medula espinal. Prefere-se o uso de analgésicos opióides quando houver
necessidade, evitando-se anti-inflamatórios não-hormonais.
Com relação a anemia, preconiza-se tratar causas reversíveis e pode-se utilizar
Eritropoetina.
Com relação a infecções, preconiza-se vacinação contra S. pneumoniae, H.
influenzae e vírus influenza, profilaxia com antibioticoterapia contra agentes
encapsulados e profilaxia contra Pneumocystis carinii durante o uso de corticoterapia
prolongada.
Hipercalcemia pode ser tratada com corticosteroides, hidratação e bifosfonados.
Insuficiência renal pode ser tratada com correção da hipercalcemia, da
desidratação e da hiperuricemia.
Síndrome da hiperviscosidade é tratada com hidratação e plasmaférese.

Critérios de resposta
Remissão completa é caracterizada por ausência de pico monoclonal sérico e/ou
urinário pela imunofixação de proteínas, medula óssea com 5% ou menos de
plasmócitos e desaparecimento de qualquer plasmocitoma. Remissão completa estrita é
caracterizada ainda por ausência de plasmócitos monoclonais na medula óssea,
demonstrada por imuno-histoquímica ou imunofenotipagem e relação de cadeias leves
livres normal.
Remissão parcial muito boa é caracterizada por ausência de pico monoclonal

Pedro Kallas Curiati 846


sérico e/ou urinário pela eletroforese de proteínas, com presença de pico monoclonal
pela imunofixação ou redução superior ou igual a 90% do componente monoclonal
sérico e componente monoclonal urinário inferior a 100mg em 24 horas.
Remissão parcial é caracterizada por redução superior ou igual a 50% no nível
de paraproteína sérica e a 90% no pico monoclonal urinário ou componente monoclonal
urinário inferior a 200mg em 24 horas, além de redução do tamanho de plasmocitomas
em pelo menos 50%.
Doença estável é caracterizada por ausência de critério para remissão completa,
remissão parcial muito boa, remissão parcial e progressão.
Progressão é caracterizada por aumento de 50% no pico monoclonal sérico ou
urinário, hipercalcemia, decréscimo da hemoglobina superior ou igual a 2g/dL, aumento
da creatinina superior a 2mg/dL e aparecimento de nova lesão osteolítica ou novo
plasmocitoma.

Amiloidose primária

Definição
A amiloidose é uma doença incomum, resultante da deposição de material
proteináceo amorfo, acometendo virtualmente qualquer órgão, com disfunção e
compressão de estruturas normais adjacentes. Abrange um grande grupo de doenças,
com diferentes proteínas reconhecidas como causa de doença amiloide.

Classificação
Amiloidose primária ou amiloidose de cadeia leve de imunoglobulinas (AL) é
uma neoplasia de plasmócitos que secretam imunoglobulina anormal.
Amiloidose secundária (AA) é associada a processos inflamatórios crônicos, que
cursam com aumento da produção de proteína sérica amiloide A, uma proteína de fase
aguda sintetizada pelo fígado.
Amiloidose familiar é associada à mutação da proteína transtiretina, uma
proteína de transporte da tiroxina e do retinol, também produzida pelo fígado, que
determina cardiomiopatia familiar ou polineuropatia familiar.
Amiloidose beta2-microglobulina, associada à hemodiálise.

Epidemiologia
A amiloidose primária é uma doença rara em adultos. Em 80% dos casos é
encontrada uma imunoglobulina monoclonal e em 20% dos casos há associação com
mieloma múltiplo.

Quadro clínico
A amiloidose renal manifesta-se usualmente com proteinúria, determinando
síndrome nefrótica. Os níveis séricos de creatinina geralmente encontram-se dentro dos
limites da normalidade. Envolvimento cardíaco é habitual e rapidamente progressivo.
Hepatomegalia é usual. O paciente apresenta aumento de fosfatase alcalina e ausência
de anormalidades na tomografia computadorizada e na ressonância nuclear magnética.
Esplenomegalia é rara. Hipoesplenismo pode ocorrer e é identificado pela presença de
corpúsculos de Howell-Jolly no sangue periférico. Macroglossia é observada em parcela
dos pacientes. Síndrome de má-absorção pelo acometimento do intestino delgado e
neuropatia periférica podem ocorrer. Perda de peso é comum. O paciente pode
apresentar púrpura em pescoço, face e região periorbitária.
A amiloidose localizada é tipicamente benigna e pode se manifestar

Pedro Kallas Curiati 847


isoladamente como síndrome do túnel do carpo ou com lesões isoladas em uretra,
bexiga, brônquios ou traqueia. Indica-se tratamento localizado quando indicado, sem
terapia sistêmica.

Avaliação complementar
Deve-se considerar o diagnóstico de amiloidose primária em caso de síndrome
nefrótica não-diabética, cardiomiopatia não-isquêmica com ecocardiograma
demonstrando hipertrofia de ventrículo esquerdo, hepatomegalia sem alterações na
ultrassonografia, polineuropatia ou proteinúria de cadeia leve com mielograma com
menos de 10% de plasmócitos. Nessas situações, recomenda-se solicitar imunofixação
de soro e urina, devendo-se considerar a possibilidade de amiloidose em caso de
positividade.
O diagnóstico pode ser feito através de pesquisa de amiloide na gordura do
subcutâneo, na biópsia de medula óssea ou em órgão acometido. O depósito é
reconhecido com coloração hematoxilina-eosina e vermelho Congo. Os plasmócitos
costumam estar aumentados nos tecidos adjacentes e na medula óssea. Para o
diagnóstico de amiloidose primária, além do depósito amiloide no órgão em estudo,
deve ser demonstrada a presença de cadeia leve monoclonal no sangue e/ou na urina ou
no mesmo tecido estudado.
Exames prognósticos incluem ecodopplercardiograma, troponina sérica,
hormônio natriurético cerebral (BNP) e beta2-microglobulina.

Prognóstico
A sobrevida é bastante variável e depende do órgão predominantemente
acometido e do número de órgãos acometidos.

Tratamento
O tratamento da amiloidose primária deve ser iniciado antes que dano orgânico
irreversível tenha ocorrido. Realizado o diagnóstico, deve-se estabelecer uma estratégia
de tratamento baseada em fatores de risco para a indicação de transplante autólogo de
células progenitoras hematopoéticas ou tratamento quimioterápico convencional. O
tratamento com quimioterapia em altas doses com suporte de células progenitoras
hematopoéticas autólogas é considerado a melhor opção terapêutica. Na maioria dos
casos, como o clone é pequeno e a porcentagem de plasmócitos na medula óssea é
baixa, quimioterapia de indução antes do transplante de medula óssea é desnecessária.
Quando existe contraindicação para a realização do transplante autólogo, deve ser
ministrada quimioterapia convencional com protocolos adequados às condições clínicas
dos pacientes. O tratamento da amiloidose primária localizada é conservador e baseado
em excisão e terapia local.
A síndrome nefrótica necessita de suporte geral e terapia com diurético. O uso
de inibidor de enzima conversora da angiotensina pode reduzir a proteinúria. A
insuficiência renal pode ser tratada com diálise ou transplante renal.
A insuficiência cardíaca pode responder inicialmente aos diuréticos, estando
contraindicados bloqueadores de canal de cálcio, β-bloqueadores e Digoxina. Marca-
passo cardíaco pode ser necessário em pacientes com anormalidades de condução. Em
pacientes com insuficiência cardíaca terminal, o transplante cardíaco pode ser a única
opção e deve ser seguido do tratamento específico da amiloidose primária.
A neuropatia autonômica pode ser manejada com meias elásticas.
Paresia gástrica pode ser melhorada com o uso de pró-cinéticos e diarreia pode
ser manejada com Octreotide.

Pedro Kallas Curiati 848


Macroglobulinemia de Waldenström
A macroglobulinemia de Waldenström é uma doença linfoproliferativas crônica
caracterizada por infiltração da medula óssea por linfoma linfoplasmocítico e presença
sérica de paraproteínas IgM. O linfoma linfoplasmocítico é definido como um tumor de
pequenos linfócitos com evidência de diferenciação plasmocitoide.
A mediana de idade ao diagnóstico é de 65 anos, com maior acometimento de
indivíduos brancos do que negros. O curso clínico geralmente é indolente e as
manifestações e alterações laboratoriais são relacionadas à infiltração tumoral e às
propriedades específicas da IgM monoclonal.
Pacientes assintomáticos não devem ser tratados, pois podem permanecer
estáveis por muitos anos, com avaliação a cada três a seis meses. Indivíduos como
gamopatia monoclonal de significado indeterminado do tipo IgM devem ter os níveis
séricos dosados a cada três meses no primeiro ano e anualmente a partir de então em
caso de estabilidade. O início do tratamento deve ser baseado nos níveis séricos de IgM
e em sinais e sintomas progressivos. É apropriado iniciar o tratamento em pacientes com
hemoglobina inferior a 10g/dL e/ou plaquetas inferiores a 100000/mm3, adenopatia de
grande volume, hepatomegalia e/ou esplenomegalia, sintomas B ou sintomas associados
à paraproteína, como hiperviscosidade, neuropatia sintomática, amiloidose,
crioglobulinemia sintomática e insuficiência renal. Outra indicação é sintoma de
transformação para linfoma agressivo.
Os pacientes podem receber como opção terapêutica de primeira linha agentes
alquilantes, como o Clorambucil, análogos de nucleosídicos, como a Cladribina e a
Fludarabina, ou anticorpo monoclonal anti-CD20, como o Rituximab. Para pacientes
candidatos à quimioterapia em altas doses com resgate de células-tronco
hematopoéticas, a exposição a agentes alquilantes e a análogos nucleosídicos deve ser
limitada. O uso de tomografia computadorizada é recomendado para avaliar resposta ao
tratamento.
O uso de plasmaférese está indicado no tratamento de hiperviscosidade
sintomática. Neuropatia leve pode ser tratada com analgésicos adjuvantes, como
Gabapentina e antidepressivos tricíclicos. Corticosteroides podem ser usados em caso
de crioglobulinemia mista com deposição de imunocomplexos. Esplenectomia pode ser
útil quando houver hiperesplenismo.

Doenças de cadeia pesada


As doenças de cadeia pesada são caracterizadas pela presença no soro ou na
urina de uma cadeia pesada truncada das imunoglobulinas, alteração que impede sua
ligação à cadeia leve. A identificação depende da realização de imunoeletroforese ou
imunofixação, uma vez que na eletroforese de proteínas o padrão não é característico de
uma cadeia específica.
Essas doenças resultam da proliferação de células linfoplasmocitoides ou
plasmócitos e são definidas como uma variante não comum de linfoma.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 3: doenças hematológicas, oncologia, doenças renais e genitourinárias. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Multiple Myeloma. Antonio Palumbo and Kenneth Anderson. N Engl J Med 2011;364:1046-60.

Pedro Kallas Curiati 849


POLICITEMIA VERA
Conceito
A poliglobulia é definida como aumento do número de glóbulos vermelhos
circulantes. Pode ocorrer de forma primária, por disfunção de células precursoras da
medula óssea, como na policitemia vera, ou de forma secundária a evento patológico
não-hematológico.

Epidemiologia
A policitemia vera é um tumor de ocorrência rara que acomete principalmente
indivíduos do sexo masculino entre a sexta e a oitava décadas de vida, com maior
frequência na raça caucasiana do que na raça negra.

Etiologia e fisiopatologia
A poliglobulia secundária pode ser decorrente de duas alterações
fisiopatológicas, a elevação fisiológica dos níveis de Eritropoetina em resposta a hipóxia
ou a elevação não-fisiológica dos níveis de Eritropoetina por produção anormal do
hormônio. A elevação fisiológica dos níveis de Eritropoetina em resposta a hipóxia
pode ocorrer em casos de doença pulmonar obstrutiva crônica, grandes altitudes,
síndromes de hipoventilação, cardiopatia cianótica e hemoglobina anormal com alta
afinidade por oxigênio. A produção anormal de Eritropoetina pode ocorrer por produção
ectópica por tumores ou pela produção aumentada pelo tecido renal em casos de doença
policística renal e estenose de artéria renal.
Na policitemia vera, a produção aumentada de eritrócitos é causada por
alterações clonais em uma célula precursora hematopoética multipotente. Entre as
alterações clonais observadas, a principal e mais estudada é a mutação adquirida no
gene da Janus kinase 2 (JAK2), com perda da capacidade de regulação do ciclo celular e
manutenção da capacidade de diferenciação em células maduras.

Quadro clínico
Tanto os pacientes com policitemia vera como aqueles com poliglobulias
secundária apresentam quadro clínico similar.
Durante a fase inicial da doença, denominada pré-policitêmica, ocorre aumento
progressivo do número de eritrócitos que não é suficiente para acarretar alterações da
viscosidade sanguínea. Os pacientes são assintomáticos e podem ser diagnosticados
apenas por exames de rotina.
Na fase de franca policitemia, são frequentes os sintomas relacionados ao
aumento da viscosidade sanguínea e ao comprometimento da microcirculação, tais
como isquemia digital, cefaleia, alterações auditivas tipo tinitus, distúrbios visuais,
astenia, alteração do estado mental, epistaxe e hipertensão. A viscosidade elevada
também aumenta o risco de tromboses arteriais ou venosas. Os sinais clínicos incluem
pletora facial, cianose de extremidades e, no caso de policitemia vera, esplenomegalia,
prurido generalizado normalmente após exposição a água quente e eritromelalgia,
caracterizada por eritema, dor e edema em extremidades.
Além das complicações trombóticas, 10-30% dos pacientes com policitemia vera
podem evoluir com mielofibrose secundária em fases avançadas da doença e em 1.5%
dos casos pode ocorrer transformação para leucemia aguda secundária. Com o
tratamento adequado, a expectativa de vida dos portadores de policitemia vera é similar

Pedro Kallas Curiati 850


à da população normal.

Avaliação complementar
Hemograma com hemoglobina acima de 17.5g/dL ou hematócrito acima de 51%
em homens ou hemoglobina acima de 15.0g/dL ou hematócrito acima de 48% em
mulheres indica necessidade de investigação com exames complementares.
O primeiro passo é confirmar se o aumento de hemoglobina ou hematócrito é
real, com poliglobulia absoluta, ou secundário a diminuição do volume plasmático, com
poliglobulia relativa. Para confirmação da presença de poliglobulia absoluta, é
necessária a avaliação da massa eritrocitária por meio de exame com 51Cr. Hematócrito
superior a 60% em homens e a 56% em mulheres sempre está associado a poliglobulia
absoluta, sendo dispensável a avaliação da massa eritrocitária.
A dosagem da Eritropoetina sérica é o exame de escolha para distinguir entre
poliglobulia secundária e policitemia vera. A investigação de poliglobulia secundária
deve sempre ser iniciada pela avaliação da saturação de oxigênio arterial em vigília e
durante polissonografia se houver suspeita de síndrome da apneia do sono. No caso de
saturação de oxigênio normal, deve-se prosseguir a investigação com a realização de
eletroforese de hemoglobina e da mensuração da afinidade da hemoglobina por
oxigênio. Na ausência de hemoglobina anormal, o passo seguinte é afastar a presença de
tumores produtores de Eritropoetina por meio de ultrassonografia ou tomografia
computadorizada de abdômen e pelve. Em pacientes tabagistas, pode ser necessária a
quantificação da carboxihemoglobina.
Se não forem encontradas causas de poliglobulia secundária, os dois
diagnósticos possíveis serão poliglobulia idiopática ou policitemia vera, cuja distinção é
baseada nos critérios diagnósticos estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde.

Critérios diagnósticos da Organização Mundial de Saúde para policitemia vera


A1 – Poliglobulia absoluta, com hemoglobina superior a 18.5g/dL em homens e 16.5g/dL em mulheres
ou massa eritrocitária superior a 25% da média normal.
A2 – Ausência de causas de poliglobulia secundária.
A3 – Esplenomegalia.
A4 – Anormalidade citogenética clonal, excluindo cromossomo Philadelphia.
A5 – Formação de colônias eritroides endógenas in vitro.
B1 – Trombocitose, com plaquetas acima de 400000/mm3.
B2 – Leucocitose, com leucócitos acima de 12000/mm3 ou acima de 12500/mm3 em fumantes.
B3 – Biópsia de medula óssea com evidência de mieloproliferação.
B4 – Nível sérico de eritropoetina diminuído.
O diagnóstico é firmado quando estão presentes A1 e A2 e qualquer outro
critério A ou dois critérios B.

Tratamento

Poliglobulia secundária
O tratamento da poliglobulia secundária visa a correção dos níveis de
eritropoetina sérica, com consequente normalização da quantidade de eritrócitos, sendo
a abordagem da doença de base ou de suas consequências fundamental. No caso de
doenças pulmonares hipoxêmicas, a administração de oxigenioterapia está indicada em
pacientes com hematócrito superior a 51%. No caso de síndromes hipoventilatórias,
pode ser necessário o uso de ventilação não-invasiva. Nas cardiopatias cianóticas, a
cirurgia reparadora está indicada. Cirurgia, quimioterapia e radioterapia são
possibilidades terapêuticas em portadores de poliglobulia secundária de etiologia

Pedro Kallas Curiati 851


neoplásica.
Em pacientes que desenvolvem sintomas de hiperviscosidade, o tratamento de
escolha é a flebotomia, que deve ser realizada em caráter emergencial, consistindo em
remoção de sangue total do paciente, com perda de até 10% da volemia total estimada.
O intuito da flebotomia é reduzir agudamente o hematócrito para abaixo de 51% para
diminuir a viscosidade sanguínea e melhorar o fluxo sanguíneo na microcirculação,
podendo ser repetida se for necessário com o cuidado de manter o paciente euvolêmico.
O fluido de reposição mais utilizado é o Soro Fisiológico na proporção de três volumes
de soro para cada volume de sangue retirado.

Policitemia vera
Não existe terapia curativa disponível. O tratamento tem como objetivos a
melhoria dos sintomas e a diminuição do risco de trombose com o menor risco possível
de induzir transformação leucêmica.
Para pacientes de baixo risco trombótico, caracterizados por idade inferior a 60
anos, ausência de trombose prévia, contagem de plaquetas inferior a 1500000/mm3 e
ausência de fator de risco cardiovascular, a terapia de escolha é a flebotomia seriada,
com retirada de no máximo 10% da volemia em intervalos periódicos com o intuito de
manter o hematócrito abaixo de 45% nos homens e de 43% nas mulheres. Com a
repetição periódica do procedimento, inicialmente realizado semanalmente, ocorre
ferropenia, que controla a proliferação anormal de precursores eritroides.
Para pacientes de risco intermediário, caracterizados por idade inferior a 60 anos
e ausência de trombose prévia, a flebotomia também pode ser utilizada como terapia
exclusiva. Porém, em casos com alta necessidade de flebotomia, baixa tolerância ao
procedimento, esplenomegalia progressiva ou plaquetose secundária, com contagem de
plaquetas acima de 600000/mm3, a terapia medicamentosa citorredutora está indicada.
Os fármacos de escolha são a Hidroxiuréia e o Interferon-alfa.
Para pacientes de alto risco trombótico, caracterizados por idade superior ou
igual a 60 anos e história de trombose prévia, a terapia de escolha é sempre a
citorredução medicamentosa.
A Hidroxiuréia é uma droga citostática inibidora da síntese de DNA das células
progenitoras hematopoéticas, com efeito mielossupressor, sendo indicada para todos os
pacientes de alto risco trombótico e para aqueles com risco intermediário e idade
superior a 45 anos. A dose varia de 500mg/dia a 3g/dia, devendo ser titulada
individualmente para manter o hematócrito abaixo de 45% em homens e 43% em
mulheres.
O Interferon-alfa é um modificador da resposta biológica de mecanismo de ação
desconhecido que apresenta ação mielossupressora. Por não ser fármaco citostático,
pode ser utilizado com segurança em gestantes e pacientes com idade inferior a 45 anos.
As doses variam 3mU a 9mU por via subcutânea diariamente, com indicação em
pacientes de alto risco que apresentam controle inadequado do hematócrito com o uso
de Hidroxiuréia e em pacientes de risco intermediário com idade inferior a 45 anos.
Apresenta como efeitos adversos sintomas de gripe e toxicidade hepática,
neuropsiquiátrica e tireoidiana.
O Ácido Acetilsalicílico em baixas doses de 100-200mg/dia é indicado para
profilaxia secundária de pacientes com quadro de trombose arterial prévia.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 3: doenças hematológicas, oncologia, doenças renais e genitourinárias. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 852


PORFIRIAS
Conceito
Porfirias são doenças metabólicas que, em geral, resultam de mutações nas
enzimas implicadas na biossíntese do heme. Cada porfiria é causada por deficiência de
uma enzima específica. Os compostos intermediários do mecanismo da síntese do heme,
como os porfirinogênios, as porfirinas e seus precursores, ácido delta-aminolevulínico e
porfobilinogênio, são produzidos em excesso e se acumulam nos tecidos, gerando
sintomas neurológicos, cutâneos ou ambos.

Etiologia
As porfirias abrangem a porfiria por deficiência de ALA de-hidrase, a porfiria
aguda intermitente, a porfiria eritropoética congênita, a porfiria cutânea tardia, a
coproporfiria hereditária, a porfiria variegata e a protoporfiria eritropoética ou eritro-
hepática.

Fisiopatologia
O grupo prostético heme é essencial ao organismo humano, fazendo parte da
molécula de hemoglobina e também da mioglobina, dos citocromos mitocondriais e
microssomais, da catalase, da peroxidase, da triptofano-pirrolase e da óxido nítrico-
sintetase. O heme participa do transporte de oxigênio e de elétrons, do metabolismo
oxidativo de várias substâncias endógenas e exógenas, da decomposição do peróxido de
hidrogênio e dos peróxidos orgânicos e da oxidação do triptofano. Aproximadamente
85% do heme é produzido no sistema hematopoético e o restante é produzido quase
totalmente no fígado, no qual a maior parte está incorporada ao citocromo P450
microssomal. Este citocromo tem importante papel biotransformador sobre agentes
carcinogênicos, esteroides, vitaminas, ácidos graxos e prostaglandinas.
Os defeitos genéticos das porfirias são transmitidos de forma dominante, com
exceção da porfiria eritropoética congênita, que tem herança recessiva.

Classificação
As porfirias costumam ser classificadas como hepáticas ou eritropoética com
base no principal local de expressão do defeito enzimático. Porfirias hepáticas incluem a
porfiria por deficiência de ALA de-hidrase, a porfiria aguda intermitente, a
coproporfiria hereditária, a porfiria variegata, a porfiria cutânea tardia e a porfiria eritro-
hepática. Porfirias eritropoética incluem a porfiria eritropoética congênita e a
protoporfiria eritropoética.
Outra forma de classificar as porfirias é por suas manifestações clínicas.
Porfirias com manifestações cutâneas sem doença neurológica incluem a porfiria
eritropoética congênita, a protoporfiria eritropoética e a porfiria cutânea tardia. Porfirias
que produzem doença neurológica sem manifestações cutâneas incluem a porfiria aguda
intermitente. Porfirias com doença cutânea e neurológica incluem a porfiria variegata e
a coproporfiria hereditária.
Uma terceira forma de classificar as porfirias é em formas agudas e não-agudas,
levando em consideração se o paciente apresenta ou não crises neurológicas agudas de
grande gravidade, com risco de morte. Formas agudas incluem a porfiria aguda
intermitente, a porfiria variegata, a coproporfiria hereditária e a porfiria por deficiência
de ALA de-hidrase. Formas não-agudas incluem a porfiria cutânea tardia, a

Pedro Kallas Curiati 853


protoporfiria eritropoética, a porfiria eritropoética congênita e a porfiria eritro-hepática.

Quadro clínico
As manifestações cutâneas incluem fotossensibilidade, fragilidade da pele,
bolhas, hipopigmentação, hiperpigmentação, hirsutismo e alopecia.
As manifestações neurológicas incluem dores em extremidades, costas, tórax,
cabeça e pescoço, paresias, paralisia respiratória, sintomas mentais, convulsões e
manifestações neuroviscerais, como dor abdominal, vômitos e obstipação intestinal.
Os ataques agudos são manifestações frequentes, muitas vezes precipitados por
algum fator externo, como drogas, que incluem barbitúricos, hidantoínas, Rifampicina,
progesterona e álcool, jejum prolongado, doenças intercorrentes e estresse. As
manifestações clínicas das porfirias agudas são raras antes da puberdade. As
manifestações clínicas mais comuns durante ataques agudos são dor abdominal em
cólica, frequentemente no hipogástrio, com duração de horas a dias, obstipação
intestinal, taquicardia e hipertensão arterial. Sintomas neurológicos incluem neuropatia
periférica, predominantemente motora. Sinais neuropsiquiátricos incluem ansiedade,
depressão, insônia, alucinações, paranoia, convulsões e coma.

Avaliação complementar
Um achado laboratorial comum é a hiponatremia, relacionada à excessiva
secreção de hormônio antidiurético, que pode ser agravada por iatrogenia.
O diagnóstico de porfiria é estabelecido com o achado de aumento de
porfobilinogênio na urina em amostra isolada, fresca e sem adição de conservantes. Os
valores estão geralmente bastante elevados, variando de 20mg a 200mg, em comparação
a um controle normal de 0-4mg.
Após a determinação do porfobilinogênio urinário, investiga-se o tipo de porfiria
presente atavés de mensuração da porfobilinogênio deaminase eritrocitária, diminuída
na porfiria aguda intermitente e normal na coproporfiria hereditária e na porfiria
variegata, e dos níveis de porfirinas urinárias, fecais e plasmáticas. Na porfiria aguda
intermitente, ocorre aumento principalmente da uroporfirina na urina, com as porfirinas
fecais e plasmáticas normais ou discretamente aumentadas. Na coproporfiria hereditária,
há aumento da coproporfirina urinária e da coproporfirina fecal, com níveis normais de
porfirinas plasmáticas. Na porfiria variegata, também há aumento da coproporfirina
urinária e fecal e da protoporfirina fecal, mas os níveis de porfirinas plasmáticas são
caracteristicamente aumentados.
Para o diagnóstico de deficiência da ALA de-hidrase, na qual porfobilinogênio é
normal ou somente discretamente aumentado, é preciso medir a ALA urinária. Outros
achados incluem aumento da zinco protoporfirina eritrocitária, que sugere o diagnóstico
de protoporfiria eritropoética, e acentuada deficiência da atividade da enzima ALA de-
hidrase eritrocitária, que caracteriza a porfiria por deficiência de ALA de-hidrase.
Análise molecular para a identificação da mutação gênica pode ser útil na
pesquisa e na orientação de familiares de pacientes sintomáticos.

Diagnóstico
Em vista da gravidade e da potencial letalidade das porfirias, deve-se considerar
a possibilidade diagnóstica ao se defrontar com pacientes com sinais e sintomas
compatíveis, em geral em situações de atendimento de urgência. A rapidez do
diagnóstico é de suma importância para a instituição de medidas terapêuticas. Na
anamnese, é muito importante pesquisar história pregressa de crises semelhantes sem
etiologia definida, bem como antecedente de laparotomias brancas por dores

Pedro Kallas Curiati 854


abdominais sugestivas de abdômen agudo. Em mulheres, podem ocorrer crises repetidas
em associação com fases do ciclo menstrual.

Tratamento
O tratamento das porfirias não-agudas inclui fotoproteção, que deve ser feita
com o uso de protetores solares e vestimentas apropriadas, evitar exposição à luz solar e
evitar traumas cutâneos, uso de álcool e terapia estrogênica. Na porfiria cutânea tardia,
na qual existe associação com hemocromatose, diabetes mellitus e infecção pelo vírus
da hepatite C, é benéfica a depleção dos estoques de ferro. Recomenda-se, nesses casos,
a flebotomia, com retirada de 400-500mL de sangue a cada quinze dias por três a seis
meses. Cloroquina em doses baixas, com 125mg duas vezes por semana, pode ser usada
com o objetivo de facilitar a eliminação das porfirinas. Na porfiria eritropoética
congênita e na porfiria hepatoeritropoética, é recomendada a mudança de ritmo dia e
noite. Na porfiria eritropoética congênita, pode-se indicar esplenectomia com o objetivo
de diminuir a hemólise e a plaquetopenia. O transplante de medula óssea também pode
ser indicado nos casos graves.
O tratamento das porfirias agudas inclui a remoção de fatores precipitantes, a
suplementação nutricional com pelo menos 300g de glicose por dia, a suplementação de
sódio na vigência de hiponatremia e de magnésio na vigência de hipomagnesemia, o
controle eletrolítico frequente, a analgesia adequada com derivados de opióides e o
controle de sintomas digestivos com Promazina, Clorpromazina e Trifupromazina. A
vigilância do estado clínico neurológico, particularmente da respiração, é muito
importante, podendo haver necessidade de transferência para unidade de terapia
intensiva. Agentes bloqueadores beta-adrenérgicos podem ser usados com cuidado para
tratar os achados simpaticomiméticos, como taquicardia e hipertensão arterial. A
administração intravenosa de Heminas é o tratamento de escolha para vários casos que
necessitam de internação hospitalar para tratamento de crises agudas, com início o mais
rápido possível na dose de 3-4mg/kg/dia e uso durante três a cinco dias. Hematina
Liofilizada pode ser reconstituída com albumina humana para aumentar a estabilidade e
evitar efeitos adversos sobre a coagulação e a flebite, que são muito frequentes. O uso
de Heme Arginato, na dose de 3mg/kg uma vez ao dia em infusão rápida, durante quatro
dias consecutivos, pode ser de valia se disponível, pois causa menos flebite. O
tratamento clínico deve ser acompanhado do ponto de vista laboratorial pela dosagem
da excreção de porfirinas urinárias, se possível diariamente.
Pacientes graves, com quadro de múltiplos ataques agudos, podem ser
submetidos a transplante de fígado, indicado principalmente na protoporfiria
eritropoética.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 3: doenças hematológicas, oncologia, doenças renais e genitourinárias. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 855


SÍNDROMES MIELODISPLÁSICAS
Conceito
As síndromes mielodisplásicas são doenças clonais da medula óssea e afetam
primariamente indivíduos idosos. Caracterizam-se pelo envolvimento de célula
progenitora hematopoética, com hematopoese ineficaz e anômala, medula óssea
geralmente hipercelular, citopenias periféricas e tendência de evolução para leucemias
agudas.

Epidemiologia
As síndromes mielodisplásicas são as doenças neoplásicas da medula óssea mais
prevalentes, particularmente na população idosa. Há evidências de que agentes
ambientais e ocupacionais, particularmente o benzeno, possam aumentar o risco de seu
aparecimento.

Etiologia e fisiopatologia
A falência medular nas síndromes mielodisplásicas decorre de eritropoiese
ineficaz, apoptose exacerbada das células hematopoéticas e proliferação celular
inadequada do clone neoplásico. A lesão inicial da célula progenitora pode decorrer de
insultos herdados ou adquiridos.
Na maior parte das vezes, a doença é primária, também denominada síndrome
mielodisplásica de novo. A síndrome mielodisplásica secundária, que ocorre após
exposição a quimioterápicos e/ou radioterapia, é denominada síndrome mielodisplásica
relacionada à terapêutica. A doença primária geralmente é idiopática, mas em raros
casos tem um componente familiar ou ocorre após doença hematológica prévia, como
hemoglobinúria paroxística noturna e aplasia medular. Anormalidades genéticas, como
anemia de Fanconi, síndrome de Bloom e síndrome de Down predispõem a síndrome
mielodisplásica na infância.

Quadro clínico
Grande parte dos pacientes adultos com síndrome mielodisplásica primária são
assintomáticos, sendo investigados por alteração de hemograma de rotina. As queixas
principais incluem astenia, perda de peso, sangramento cutaneomucoso, infecções e
febre de origem indeterminada. Doenças inflamatórias, como dermatite neutrofílica
(síndrome de Sweet), vasculite cutânea, polimialgia reumática e condrites podem estar
associadas.
A maior parte dos pacientes com mielodisplasia apresentam anemia refratária ao
uso de Ácido Fólico e Vitamina B12. Dentre as infecções, predominam as de etiologia
bacteriana, enquanto que as de etiologia fúngica e viral ocorrem raramente.
O exame físico não revela adenomegalia ou visceromegalias, à exceção de
esplenomegalia em casos de leucemia mielomonocítica crônica.

Avaliação complementar
A análise do sangue periférico revela a presença de uma ou mais citopenias. Em
alguns casos, pode haver macrocitose isolada, leucocitose à custa do aumento de
monócitos, com leucemia mielomonocítica crônica, e trombocitose. A anemia é do tipo
normocítica ou macrocítica com reticulocitopenia. A análise do esfregaço pode revelar a
presença de neutrófilos hipossegmentados, monocitose, plaquetas com grânulos

Pedro Kallas Curiati 856


anômalos ou macroplaquetas e células blásticas.
Aspirado revela medula óssea normocelular ou hipercelular na maior parte dos
casos, com displasia em uma ou mais linhagens. Displasia é conceituada como a
presença de anormalidade morfológica em pelo menos 10% das células de uma
determinada linhagem. A diseritropoese pode se manifestar por células
megaloblastoides, com retardo maturativo, células multinucleares, com fragmentação
nuclear, pontes internucleares e presença de sideroblastos em anel. A disgranulopoese
se manifesta por alteração da segmentação do núcleo, com hiposegmentação ou
hipersegmentação, e dos grânulos citoplasmáticos, com hipogranulação ou grânulos
grosseiros, alteração do escalonamento maturativo e aumento de mieloblastos. A
dismegacariopoese pode se manifestar pela presença de formas pequenas, os
micromegacariócitos, formas monolobadas grandes e células com anormalidades na
segmentação com núcleos múltiplos e separados.
A biópsia de medula óssea permite avaliar a histologia medular, com
celularidade, arquitetura medular e dismegacariopoese.
A análise citogenética é imprescindível nas síndromes mielodisplásicas, sendo
importante tanto no diagnóstico como no prognóstico da doença, além de auxiliar no
entendimento fisiopatológico da doença e na orientação terapêutica. Não existem
anormalidades específicas nas síndromes mielodisplásicas, havendo predomínio de
aneuploidias e deleções cromossômicas.
A citometria de fluxo pode auxiliar no diagnóstico de casos em que persiste a
dúvida de citopenia clonal ou reacional, ou seja, em que a análise morfológica do
sangue e da medula óssea revela poucas atipias, o estudo citogenético é normal e as
causas mais comuns de displasias reacionais foram descartadas. O estudo
imunofenotípico nas síndromes mielodisplásicas tem sido utilizado para detectar
expressões anômalas de antígenos celulares relacionados à linhagem e à maturação das
diversas séries hematopoéticas, aumento de células CD34 que se relacionam com os
blastos e aumento da taxa de apoptose celular.

Diagnóstico
O diagnóstico se baseia na presença de displasia medular envolvendo uma ou
mais linhagens hematopoéticas e uma ou mais citopenias periféricas. Deve ser
salientada a importância da exclusão de doenças que cursam com citopenias e displasias
medulares. Testes imunofenotípicos podem auxiliar em alguns casos.

Diagnóstico diferencial
Em casos de difícil diagnóstico, particularmente quando não há aumento de
blastos, hipossegmentação de neutrófilos, sideroblastos em anel e anormalidades
citogenéticas clonais, é fundamental distinguir a anemia refratária de causas reacionais e
potencialmente reversíveis. Deficiência de vitamina B12 e/ou folatos, exposição recente
a agentes mielotóxicos e uso de fatores de crescimento hematopoéticos devem ser
descartados. Devem ser pesquisadas doenças autoimunes, renais, hepáticas, tireoidianas,
infecciosas virais e etilismo.
O diagnóstico diferencial entre síndrome mielodisplásica hiperfibrótica e
mielofibrose crônica idiopática pode ser bastante difícil. No entanto, na mielofibrose
crônica idiopática as alterações displásicas ocorrem exclusivamente na série
megacariocítica. A presença da mutação V617F no gene JAK2 pode direcionar o
diagnóstico mais para síndrome mieloproliferativa do que mielodisplástica.
A síndrome mielodisplásica pode ser confundida com a anemia aplástica, porém
o achado de elementos displásicos, principalmente da série megacariocítica, favorece o

Pedro Kallas Curiati 857


diagnóstico de síndrome mielodisplásica.

Classificação da Organização Mundial de Saúde


Tipo Sangue periférico Medula óssea
Anemia refratária Anemia Diseritropoese isolada
Nenhum ou raros blastos Menos de 5% de blastos
Anemia refratária Anemia Diseritropoese isolada
com sideroblastos em Nenhum ou raros blastos Menos de 5% de blastos e 15% ou mais de
anel sideroblastos em anel
Citopenia refratária Citopenias Displasia de mais de 10% das células em
com displasia de Nenhum ou raros blastos duas ou mais linhagens mieloides
múltiplas linhagens Ausência de bastonete de Auer Menos de 5% de blastos e menos de 15% de
Contagem de monócitos inferior a sideroblastos em anel
1000/mm3 Ausência de bastonete de Auer
Citopenia refratária Citopenias Displasia de mais de 10% das células em
com displasia de Nenhum ou raros blastos duas ou mais linhagens mieloides
múltiplas linhagens e Ausência de bastonete de Auer Menos de 5% de blastos e 15% ou mais de
sideroblastos em anel Contagem de monócitos inferior a sideroblastos em anel
1000/mm3 Ausência de bastonete de Auer
Anemia refratária Citopenias Displasia de uma ou múltiplas linhagens
com excesso de Menos de 5% de blastos 5-9% de blastos
blastos 1 Ausência de bastonete de Auer Ausência de bastonete de Auer
Contagem de monócitos inferior a
1000/mm3
Anemia refratária Citopenias Displasia de uma ou múltiplas linhagens
com excesso de 5-19% de blastos 10-19% de blastos
blastos 2 Pode haver bastonete de Auer Pode haver bastonete de Auer
Contagem de monócitos inferior a
1000/mm3
Síndrome Citopenias Displasia única da série granulocítica ou
mielodisplásica Nenhum ou raros blastos megacariocítica
inclassificável Ausência de bastonete de Auer Menos de 5% de blastos
Ausência de bastonete de Auer
5q- isolado em citogenética

Entidades especiais
As síndromes mielodisplásicas das crianças compreendem um grupo de
patologias bastante diversas em relação às dos adultos. São doenças raras,
compreendendo cerca de 10% dos casos de leucemia mieloide aguda. Ocorre associação
com anormalidades genéticas constitucionais e síndromes de instabilidade
cromossômica.
As síndromes mielodisplásicas relacionadas à terapêutica são doenças clonais
agressivas que acometem mais pacientes jovens, com pancitopenia acentuada, menor
porcentagem de blastos na medula óssea, alta incidência de displasia multilinhagem,
alta incidência de anormalidades citogenéticas clonais e alta taxa de fibrose e
hipocelularidade medulares. Ocorrem em um período que varia de quatro a sete anos
após a exposição a agentes quimioterápicos, geralmente alquilantes. Pacientes
portadores de linfomas de Hodgkin e não-Hodgkin, mieloma múltiplo e neoplasias
gastrointestinais estão entre os mais afetados. Outra população de risco são os pacientes
submetidos a regimes de condicionamento pré-transplante de células-tronco. O curso
clínico é desfavorável.

Prognóstico
O escore prognóstico mais utilizado é o IPSS, cujas variáveis de prognóstico
incluem porcentagem de blastos na medula, alterações cariotípicas e número de

Pedro Kallas Curiati 858


citopenias.
O sistema de escore WPSS (World Health Organization classification-based
prognostic scoring system) foi publicado em 2005 e inclui como parâmetros a
classificação da Organização Mundial de Saúde, o cariótipo e a necessidade
transfusional.

Tratamento
A idade, as condições clínicas do paciente e os fatores de prognóstico devem ser
levados em conta no momento da escolha de terapêutica que vise aumentar a sobrevida
ou melhorar a qualidade de vida. Em relação à eficácia do tratamento, apesar de várias
terapêuticas terem sido testadas nas últimas décadas, apenas o transplante de células-
tronco alogênico foi capaz de aumentar a sobrevida nessa doença e apenas quatro
drogas foram liberadas pelo Food and Drug Administration (FDA) para tratamento das
síndromes mielodisplásicas, a Lenalidomida, a Azacitidina, a Decitabina e o quelante de
ferro oral Deferasirox. Nas fases precoces da doença, drogas antiapoptóticas,
antiangiogênicas, moduladoras do sistema imunológico e modificadoras do
microambiente medular têm seu papel, enquanto que na síndrome mielodisplásica tardia
melhor resposta pode ser obtida com agentes citotóxicos e transplante alogênico.
A terapêutica de suporte visa reduzir a morbidade e a mortalidade relacionadas a
complicações da pancitopenia e melhorar a qualidade de vida dos pacientes. Ela inclui
suporte com hemocomponente e tratamento das infecções. O nível recomendado de
hemoglobina deve ser o adequado para manter o paciente em boas condições de
oxigenação. É recomendado o uso de concentrado de hemácias leucodepletadas e, para
candidatos a transplante de células-tronco, derivados de sangue CMV negativos. A
transfusão de concentrado de plaquetas está indicada para pacientes com contagem
inferior a 20000/mm3 na vigência de sangramento e/ou febre e/ou que estejam em
vigência de tratamento agressivo, podendo ser indicada profilaticamente para contagens
de plaquetas inferiores a 10000/mm3. Pacientes febris devem ser considerados de risco,
sendo eles neutropênicos ou não. Antibioticoterapia empírica muitas vezes se faz
necessária. O uso de fator estimulante de colônias granulocíticas deve ser
individualizado.
A dependência de transfusão de concentrado de hemácias leva à sobrecarga de
ferro. Pacientes com ferritina sérica superior a 1000ng/mL e portadores de síndrome
mielodisplásica de baixo risco, síndrome mielodisplásica estável e candidatos a
transplante de medula óssea devem ser submetidos a quelação de ferro. Deferiprone não
está indicado por provocar neutropenia.
No Serviço de Hematologia do HC-FMUSP, tem-se utilizado Eritropoetina
30000-40000U/semana em portadores de síndrome mielodisplásica anêmicos e com
eritropoetina sérica inferior a 200U/L. A associação com G-CSF potencializa a ação da
Eritropoetina e é realizada nos pacientes com eritropoetina sérica de 200-500U/L ou
com falha terapêutica com a administração de Eritropoetina isolada, sendo preconizada
dose de 300-600mcg/semana por via subcutânea.
Agentes imunossupressores, como globulina antitimocítica (GAT), globulina
antilinfocítica (GAL) e Ciclosporina A são utilizados nas síndromes mielodisplásicas
visando a melhora da pancitopenia, que decorreria da supressão da hematopoese por
clones de células T auto-reativos.
A Talidomida é droga com ação imunomoduladora, antiangiogênica e anti-TNF.
A Lenalidomida possui uma atividade anti-TNF muito superior a seu análogo, a
Talidomida e, in vitro, inibe a proliferação de linhagens celulares com deleção do 5q.
Em pacientes de alto risco, o transplante de célula-tronco é a única opção para a

Pedro Kallas Curiati 859


cura. Para aqueles que não podem se submeter a essa modalidade, as opções incluem
quimioterapia intensiva e agentes hipometilantes ou, ainda, tratamento de suporte e
drogas em ensaios clínicos.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 3: doenças hematológicas, oncologia, doenças renais e genitourinárias. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 860


TROMBOCITEMIA ESSENCIAL
Conceito
A trombocitemia essencial é uma enfermidade do grupo das doenças clonais
mieloproliferativas BCR/ABL negativas. Para seu diagnóstico, há necessidade de
exclusão de estado de plaquetose reacional e de trombocitoses clonais associadas à
leucemia mieloide crônica, à mielofibrose com metaplasia mieloide, à policitemia vera e
à síndrome mielodisplásica. De acordo com os critérios da Organização Mundial de
Saúde, a trombocitemia essencial é definida como plaquetose superior a 600000/mm3 e
hiperplasia megacariocitária na medula óssea.

Epidemiologia
A trombocitemia essencial é uma doença pouco frequente, com incidência duas
vezes maior nas mulheres e idade média ao diagnóstico entre 65 e 70 anos.

Etiologia e fisiopatologia
É descrita na maioria dos pacientes com doenças mieloproliferativas com
cromossomo Philadelphia negativo a presença de uma mutação adquirida no gene da
Janus kinase 2 (JAK2), uma das quatro quinases da família Janus, detectável em
plaquetas, granulócitos e eritroblastos. A presença de mutação em heterozigose faz com
que ocorra aumento, de leve a moderado, da atividade de quinase, suficiente para a
mieloproliferação de megacariócitos maiores e maduros, que apresentam maior
produção de plaquetas hipersensíveis, complicando com eventos microvasculares
mediados por plaquetas. A presença de mutação em homozigose, com atividade
pronunciada de quinase, associa-se ao quadro clássico de policitemia, com
mieloproliferação das três linhagens.
Os pacientes com trombocitemia essencial e policitemia vera podem cursar com
episódios trombóticos ou isquêmicos microvasculares.

Quadro clínico
Um número significante de pacientes com trombocitemia essencial é
assintomático ao diagnóstico. Nos casos sintomáticos, o quadro clínico é caracterizado
pela presença de complicações trombóticas venosas e arteriais ou hemorrágicas. Outras
manifestações incluem os distúrbios microvasculares, com cefaleia, parestesias de
extremidades, distúrbios visuais e eritromelalgia, e as perdas gestacionais no primeiro
trimestre. Esplenomegalia pode ser encontrada à palpação.
As manifestações hemorrágicas são limitadas aos sangramentos cutâneos e
mucosos e são primariamente observadas nos pacientes com contagens plaquetárias
mais elevadas.
Em uma proporção dos pacientes a trombocitemia essencial irá se transformar
em mielofibrose ou leucemia mieloide aguda e, em um número menor, em uma
condição semelhante à policitemia vera.

Avaliação complementar
Devido à ausência de um marcador molecular positivo para trombocitemia
essencial, seu diagnóstico é feito somente após a exclusão de outras condições clínicas
que podem cursar com trombocitose.
Considerando-se como limite superior da normalidade para a contagem

Pedro Kallas Curiati 861


plaquetária o valor de 400000/mm3, todo indivíduo com resultados maiores do que este
deverá ser investigado quanto à causa. A análise do esfregaço de sangue periférico com
a presença de microcitose, indicativa de anemia ferropriva, ou de corpúsculos de
Howell-Jolly, indicativos de asplenia cirúrgica ou funcional, sugere uma condição
reacional. Exames laboratoriais adicionais incluem a dosagem dos marcadores de
atividade inflamatória e da ferritina. Valores normais de ferritina excluem anemia por
deficiência de ferro, enquanto que aumento dos marcadores inflamatórios sugere
processo neoplásico ou inflamatório subjacente. No entanto, baixos valores de ferritina
e aumento da atividade inflamatória não excluem a possibilidade de trombocitemia
essencial.
O estudo da medula óssea é realizado quando a história e os exames laboratoriais
não sugerirem trombocitose reacional, com confirmação do diagnóstico e exclusão de
outras causas de trombocitemia clonal. Além da avaliação morfológica da medula óssea,
deve-se proceder à obtenção de material para a pesquisa da translocação BCR/ABL,
visando excluir leucemia mieloide crônica, e da mutação JAK2, afim de complementar
o diagnóstico de trombocitemia essencial ou de outra doença mieloproliferativa.
Embora a mutação da JAK2 não faça a distinção entre as diferentes doenças
mieloproliferativas, sua presença torna menos provável a síndrome mielodisplásica e,
quando em homozigose, faz com que seja mais provável o diagnóstico de policitemia
vera.
O diagnóstico de fase celular de metaplasia mieloide agnogênica será sugerido
pela presença de quadro leucoeritroblástico no sangue periférico ou pelo aumento da
desidrogenase lática.

Critérios clínicos e patológicos europeus para trombocitemia essencial


Critérios clínicos
Aumento persistente da contagem plaquetária acima de 400000/mm3.
Presença de plaquetas grandes ou gigantes no esfregaço de sangue periférico.
Ausência de doença subjacente responsável por plaquetose reacional.
Eritropoetina sérica normal.
Ausência de evidências no sangue periférico, na medula óssea ou na análise citogenética de policitemia
vera, leucemia mieloide crônica, mielofibrose crônica idiopática, síndrome mielodisplásica ou
trombocitose reacional.
Ausência de qualquer anormalidade genética.
Critérios patológicos
Medula óssea normocelular, com reticulina ausente ou discretamente aumentada, com aumento de
megacariócitos predominantemente de maior tamanho, com núcleo hiperlobulado e com citoplasma
maduro, distribuídos de maneira dispersa ou formando aglomerados discretos.
Ausência de proliferação ou imaturidade da série granulocítica.
Eritropoese normal normoblástica.
Biologia molecular com monoclonalidade ou policlonalidade e mutação JAK2 positiva ou negativa em
casos de doença adquirida e negativa em caso de doença congênita.

Tratamento
A abordagem terapêutica da trombocitemia essencial baseia-se no conceito de
estratificação de risco para eventos vaso-oclusivos e hemorrágicos. Até o momento, não
há droga capaz de curar a alteração de base da trombocitemia essencial ou impedir sua
evolução clonal.
Indivíduos de risco baixo são aqueles com idade inferior a 60 anos, sem história
de trombose prévia, com contagem plaquetária inferior a 1500000/mm3 e sem fatores de
risco cardiovascular. Indivíduos de risco intermediário são aqueles com idade inferior a
60 anos e sem história de trombose prévia, mas com contagem plaquetária superior a

Pedro Kallas Curiati 862


1500000/mm3 ou com fatores de risco cardiovascular, como tabagismo, diabetes
mellitus, hipercolesterolemia e hipertensão arterial sistêmica. Indivíduos de risco
elevado são aqueles com idade superior a 60 anos ou com passado trombótico. Existe
consenso quanto ao tratamento dos pacientes estratificados como de risco elevado, mas
observa-se falta de homogeneidade nos grupos de risco baixo e intermediário.
A eficácia de Hidroxiuréia em controlar a contagem plaquetária em pacientes
com trombocitemia essencial de risco elevado tem sido documentada, além de proteção
anti-trombótica. Geralmente, não causa manifestações tóxicas agudas, sendo as mais
importantes as citopenias dose-dependentes e, menos frequentes, as úlceras orais e de
pernas.
Anagrelide é uma droga que foi desenvolvida como um inibidor da agregação
plaquetária por ter propriedades inibitórias da fosfodiesterase. No entanto,
posteriormente foi observado que causava redução da contagem plaquetária em doses
menores do que as necessárias para a ação antiagregante. Seus efeitos colaterais mais
importantes são palpitações, cefaleia, edema não-cardiogênico e insuficiência cardíaca.
Vários estudos já demonstraram a eficácia do Interferon-alfa em reduzir a
contagem plaquetária e essa é a droga de escolha em mulheres com trombocitemia
essencial de alto risco com intenção de engravidar.
Ácido Acetilsalicílico em doses baixas, de 75-325mg/dia, é útil na prevenção de
eventos vasculares recorrentes.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 3: doenças hematológicas, oncologia, doenças renais e genitourinárias. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 863


DENGUE
Definições
Febres hemorrágicas virais são doenças caracterizadas por uma síndrome multi-
sistêmica com dano aos vasos sanguíneos e aos mecanismos de auto-regulação
corpórea. São causadas por RNA-vírus envelopados que dependem de reservatórios
animais para sobreviver, sendo o homem um hospedeiro acidental.

Etiologia e fisiopatologia
O vírus da dengue é o maior causador de letalidade entre os componentes do
gênero Flavivirus. Atualmente circulam em nosso meio os sorotipos virais 1, 2 e 3, com
relatos isolados do sorotipo 4.
O principal vetor da dengue é o Aedes aegypti, um mosquito de hábitos urbanos
e peculiares. O mosquito infectado transmite o vírus da dengue ao homem, que, por sua
vez, infecta novos mosquitos e, assim, sucessivamente. O pequeno mosquito branco e
negro possui hábitos domésticos e coloca seus ovos em água limpa. Alimenta-se de dia,
principalmente ao nascer do dia e logo após o entardecer. O ciclo silvestre da dengue,
diferentemente do da febre amarela, é desprovido de relevância para a perpetuação da
doença.

Quadro clínico

Dengue clássica
Há suspeita em caso de doença febril aguda com duração máxima de sete dias,
acompanhada de pelo menos dois dentre cefaleia, dor retro-orbitária, mialgia, artralgia,
prostração e exantema. A confirmação é laboratorial ou clínico-epidemiológica, com
estadia nos últimos quinze dias em área onde esteja ocorrendo transmissão de dengue ou
que tenha a presença do Aedes aegypti. O diagnóstico clínico da dengue não é simples
fora de um contexto epidêmico. O quadro inespecífico costuma ser confundido com
outras doenças virais.
A febre é elevada e pode apresentar melhora discreta, com recidiva após um dia.
No entanto, geralmente persiste por até sete dias. Concomitantemente, até 50% dos
pacientes apresentam um eritema cutâneo, quase sempre tênue, que desaparece em até
cinco dias, às vezes com descamação. Uma característica importante e que pode causar
confusão no diagnóstico é o prurido cutâneo associado.
A dor muscular está sempre presente nos pacientes sintomáticos, porém a
intensidade é variável. Já a típica dor retro-orbital nem sempre está presente para
reforçar a suspeita clínica.
Os pacientes com dengue clássica podem apresentar manifestações hemorrágicas
e atípicas, como sangramentos gengivais, epistaxe, metrorragia, petéquias e equimoses.
O monitoramento clínico e da contagem de plaquetas assegura ao médico assistente as
condições para diferenciar as formas mais graves e tranquilizar o paciente.
Os sinais de alerta para a progressão para febre hemorrágica da dengue são dor
abdominal intensa e contínua, vômitos persistentes, hepatomegalia dolorosa, derrames
cavitários, sangramentos importantes, hipotensão arterial e ortostática, diurese reduzida,
letargia ou agitação, pulso rápido e fraco, extremidades frias e com cianose, lipotimia,
sudorese, hipotermia e elevação repentina do hematócrito.

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Febre hemorrágica da dengue
Trata-se de caso suspeito de dengue clássica que apresente também
manifestações hemorrágicas, com todos os critérios dentre:
- Febre ou história recente de febre de sete dias ou menos;
- Tendências hemorrágicas evidenciadas por pelo menos um dentre prova
do laço positiva, petéquias, equimoses, púrpura, sangramento do trato
gastro-intestinal, sangramento de mucosas e outros;
- Trombocitopenia caracterizada por contagem de plaquetas igual ou
inferior a 100.000/mm3;
- Extravasamento plasmático por aumento de permeabilidade capilar,
manifestado pelo aumento do hematócrito de 20% sobre o valor basal ou
queda do hematócrito de 20% após tratamento, presença de derrames
cavitários ou hipoproteinemia;
- Confirmação laboratorial;
Clinicamente, esse quadro se traduz por sintomas semelhantes aos da dengue
clássica que, em poucas horas, evoluem para manifestações hemorrágicas mais graves,
como petéquias e equimoses difusas, hemorragia digestiva e hematúria, e choque,
secundário a vasoplegia e extravasamento proteico.
O paciente se apresenta com extremidades frias e pele congesta e manchada. A
prova do laço positiva auxilia no diagnóstico de fragilidade capilar e pode ser útil na
tomada de decisões e no diagnóstico precoce.
Classificação conforme a Organização Mundial de Saúde:
- Grau I – Febre acompanhada de sintomas inespecíficos em que a única
manifestação hemorrágica é a prova do laço positiva;
- Grau II – Além das manifestações do grau I, hemorragias espontâneas
leves, como sangramento de pele, epistaxe, gengivorragia e outros;
- Grau III – Colapso circulatório com pulso rápido e fraco, estreitamento
da pressão arterial ou hipotensão, pele pegajosa e fria e inquietação;
- Grau IV ou síndrome do choque da dengue – Choque profundo com
ausência de pressão arterial e pressão de pulso imperceptível;
Em revisão recente do esquema de classificação da dengue por parte da
Organização Mundial de Saúde, passaram a ser considerados portadores de dengue
severa os pacientes com pelo menos um dentre extravasamento plasmático com choque
e/ou insuficiência respiratória aguda, sangramento severo e disfunção orgânica severa.
Pacientes que se recuperam sem maiores complicações são classificados como
portadores de dengue.

Prova do laço
Deve-se calcular um quadrado de 2.5cm de lado no antebraço da pessoa, aferir a
pressão arterial, calcular o valor médio através da fórmula (pressão arterial sistólica +
pressão arterial diastólica) / 2, insuflar novamente o manguito até o valor médio e
manter por cinco minutos em adultos e três minutos em crianças ou até o aparecimento
de petéquias ou equimoses e contar o número de petéquias no quadrado. A prova será
positiva se houver vinte ou mais petéquias em adultos e dez ou mais petéquias em
crianças.

Exames complementares

Dengue clássica
Hematócrito, hemoglobina, plaquetas e leucograma são indicados para pacientes

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gestantes, idosos, hipertensos, diabéticos, asmáticos, nefropatas, cardiopatas, com
doença hematológica, autoimune ou ácido-péptica ou com manifestações hemorrágicas.
Hemograma normalmente revela leucopenia e neutropenia. Entretanto,
linfocitose com atipia linfocitária pode ocorrer. Contagem de plaquetas abaixo de
100.000/mm3 também é bastante frequente. É comum a elevação transitória dos níveis
de transaminases, que pode superar cinco vezes o valor da normalidade e, em alguns
casos, até quinze vezes.

Febre hemorrágica da dengue


Do ponto de vista laboratorial, as alterações são semelhantes às da dengue
clássica, porém há uma contagem de plaquetas menor e sinais de hemoconcentração,
com elevação do hematócrito.
O coagulograma revela aumento do tempo de protrombina, do tempo de
tromboplastina parcial ativada e do tempo de trombina.
A albumina sérica está diminuída.

Confirmação etiológica
Em um contexto epidêmico, a necessidade de confirmação etiológica dos
quadros clínicos típicos torna-se secundária. Para a confirmação do diagnóstico, recorre-
se à identificação de anticorpos específicos ou ao isolamento viral ou de seu RNA, com
indicação em situações endêmicas, na suspeita de febre hemorrágica da dengue e em
gestantes.
O isolamento do RNA viral por reação em cadeia da polimerase pode ser feito
com material coletado até o quinto dia após o início dos sintomas.
O teste MAC-ELISA tem sido o mais utilizado nos últimos anos para identificar
anticorpos contra a dengue. Após cinco dias de sintomas já há possibilidade de
identificar os anticorpos IgM, que podem perdurar por até noventa dias. A identificação
de anticorpos IgG é mais tardia e esse anticorpo é mais inespecífico, com possibilidade
de múltiplas reações cruzadas.

Diagnóstico diferencial
O diagnóstico diferencial da dengue clássica se faz com gripe, rubéola, sarampo
e outras infecções virais ou bacterianas. Sintomas respiratórios estão ausentes na
dengue.
Na forma hemorrágica, o diagnóstico diferencial deve ser realizado com outras
doenças virais ou bacterianas graves que desencadeiem choque, como a
meningococcemia. Pode-se considerar leptospirose, febre amarela, malária, hepatite
infecciosa e outras febres hemorrágicas transmitidas por mosquitos ou carrapatos.

Tratamento
A dengue não tem tratamento específico. Prescreve-se sintomáticos, como
analgésicos e anti-eméticos, nos pacientes com ausência de manifestações hemorrágicas
espontâneas ou induzidas e com ausência de sinais de alarme. Estão contraindicados os
salicilatos na suspeita de dengue, por aumentarem o risco de sangramento e de síndrome
de Reye. Medicações anti-pruriginosas podem ser utilizadas, embora o prurido nesses
pacientes, apesar de incômodo, seja autolimitado. Pode-se orientar hidratação oral,
principalmente se diarreia ou vômitos proeminentes estiverem associados.
Os pacientes com prova do laço positiva, mas sem sinais de alerta, com
plaquetas acima de 100.000/mm3 e aumento do hematócrito inferior a 10% em relação
ao basal podem ser manejados ambulatorialmente, mas recomenda-se repetir os exames

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em 24-48 horas.
Os pacientes com aumento do hematócrito superior a 10% em relação ao basal
e/ou contagem de plaquetas inferior a 50.000/mm3 devem ser internados e mantidos em
observação, com hidratação oral ou parenteral se necessário, com alta em 24-48 horas se
melhora clínica e laboratorial.
Nas formas graves com hemorragia e/ou hipotensão, o paciente deve ser
hospitalizado e receber hidratação vigorosa com Ringer Lactato ou Soro Fisiológico. Se
houver choque refratário ou o hematócrito continuar aumentando, administração de
colóide está indicada. O uso de plasma fresco congelado, plaquetas ou crioprecipitado
pode ser necessário para o controle de manifestações hemorrágicas.
No início da monitorização em pacientes em choque, o hematócrito deve ser
verificado a cada duas horas e depois a cada quatro a seis horas nas primeiras doze
horas de tratamento. A dosagem de plaquetas deve ser realizada a cada doze horas.
Os critérios de alta hospitalar incluem ausência de febre em 24 horas sem uso de
terapia antitérmica, melhora visível do quadro clínico, hematócrito normal e estável por
24 horas, plaquetas em elevação e acima de 50000/mm3, estabilização hemodinâmica
durante 24 horas e derrames cavitários em reabsorção e sem repercussão clínica.

Prevenção
Doença de notificação compulsória. Todos os casos suspeitos devem ser
notificados à Vigilância Epidemiológica.
O principal meio de controle é através do combate às formas larvárias do
mosquito, já que não há vacinas e os inseticidas são pouco eficazes. Entretanto, isso só
pode ser alcançado pela conscientização da população, que deve reduzir ao máximo as
condições para oviposição da fêmea.

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Pedro Kallas Curiati
Bibliografia
Clínica médica: diagnóstico e tratamento. Itamar de Souza Santos... [et al.]. São Paulo. Sarvier, 2008.
Clínica Médica, volume 7: alergia e imunologia clínica, doenças da pele, doenças infecciosas. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Diretoria Técnica de Gestão. Dengue : diagnóstico e manejo clínico
/ Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Diretoria Técnica de Gestão. – 2. ed. – Brasília : Ministério da Saúde,
2005. 24 p. (Série A. Normas e Manuais Técnicos).
Current concepts: Dengue. Cameron P Simmons et al. N Engl J Med 2012;366:1423-32.

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DOENÇA DE CHAGAS
Definição
A doença de Chagas é uma antropozoonose causada pelo Trypanosoma cruzi,
protozoário flagelado que pode causar doença aguda ou crônica com reativação em
função de condições de imunodepressão.

Transmissão
Sua transmissão é relacionada aos vetores, ao agente e aos reservatórios, além de
um conjunto de fatores socioeconômicos e culturais. Estende-se do centro-oeste do
México até o sul da Argentina e do Chile, onde as péssimas condições de habitação
favorecem o contato entre o triatomíneo, cuja espécie mais importante no Brasil é o
Triatoma infestans, e o homem. Pessoas e mamíferos domésticos são reservatórios
comuns da infecção. A transmissão ocorre pelo contato do homem suscetível com
excreções contaminadas do inseto vetor.
A transmissão por via transfusional é a segunda mais importante via de
propagação da infecção. A transmissão transplacentária é a terceira via mais prevalente,
pode ocorrer em qualquer período da gestação e é muito mais frequente em mães com
infecção pelo vírus da imunodeficiência humana. A transmissão oral ocorre pela ingesta
de alimentos contaminados com o parasita, sendo usual entre mamíferos do ciclo
silvestre, que ingerem triatomíneos ou outros mamíferos infectados. Dentre outras vias
menos frequentes de transmissão, podem ocorrer acidente com material biológico em
laboratório, manipulação inadequada de material contaminado por pessoas suscetíveis,
transplante de órgão de doador com parasitose para receptor com reação sorológica
negativa para T. cruzi e ingesta de leite materno infectado de nutrizes chagásicas. A
transmissão sexual é teoricamente possível, mas sem comprovação definitiva.

Fisiopatologia
Na fase aguda, considera-se na patogenia das lesões principalmente o papel do
parasita seguido de amplificação da resposta imune de hipersensibilidade tardia na
miocardite. Na fase crônica, além da presença do parasita para justificar o infiltrado
inflamatório, deve-se considerar a falta de modulação da resposta imune com
predomínio de resposta TH1 na miocardiopatia chagásica, com presença de linfócitos
CD8 positivos nos tecidos e secreção de citocinas inflamatórias.

Doença de Chagas aguda


A maioria das infecções é assintomática. O período de incubação varia de cinco
a cento e quatorze dias conforme a forma de transmissão, sendo de sete a dez dias na
transmissão vetorial, cinco a vinte e dois dias na transmissão por via oral e até cento e
quatorze dias na forma transfusional.

Transmissão vetorial
Geralmente, indivíduos expostos adquirem a doença por transmissão vetorial,
com a penetração do agente através da pele lesada. Os parasitas são visualizados na
forma intracelular amastigota principalmente em fibras cardíacas, células musculares
lisas e estriadas e sistema retículo-endotelial.
Cerca de 10-20% dos casos evoluem com síndrome febril. Cerca de 5-10%,
principalmente lactentes, evoluem com doença grave, com insuficiência cardíaca ou

Pedro Kallas Curiati 870


meningoencefalite. Após a resolução da fase aguda, que dura quatro a oito semanas, os
indivíduos infectados podem evoluir para a fase indeterminada.
Uma das mais importantes características da fase aguda é o sinal de porta de
entrada oftalmoganglionar, descrito como sinal de Romaña, que representa a reação do
hospedeiro à penetração dos tripanossomas na mucosa ocular, gerando conjuntivite
aguda com edema bipalpebral unilateral, indolor, róseo, acompanhado de linfadenopatia
satélite pré-auricular, parotídea ou submaxilar. O diagnóstico diferencial deve ser feito
com celulite peri-orbitária, picada de inseto, conjuntivite e trauma ocular.
Eletrocardiograma revela alterações decorrentes de miocardite, às vezes
associada a pericardite. Arritmias graves, identificadas na fase crônica da doença, não
são registradas na fase aguda. As principais alterações encontradas são taquicardia
sinusal, baixa voltagem do QRS, alterações de repolarização ventricular e bloqueio
atrioventricular de primeiro grau. Radiografia de tórax geralmente revela aumento de
área cardíaca em graus variáveis e discreto derrame pericárdico. Hemograma revela
leucocitose leve ou moderada, leucometria normal ou leucopenia, linfocitose, linfócitos
atípicos, neutropenia relativa e plasmocitose.
As alterações clínicas e laboratoriais da fase aguda podem permanecer por cerca
de seis a oito semanas, evoluindo para óbito ou seguindo o curso natural para fase
crônica ou indeterminada.

Transmissão vertical
Casos são crianças nascidas de mães com sorologia positiva para T. cruzi, sendo
necessária a identificação do parasita e/ou de anticorpos de origem não-materna. O
espectro clínico varia de infecção assintomática em cerca de 50-75% a doença grave,
caracterizada por prematuridade, abortamento e retardo do crescimento intrauterino,
podendo ser acompanhada de sepse, febre, hepatoesplenomegalia, edema, miocardite,
meningoencefalite, exantema, icterícia e comprometimento pulmonar.

Transmissão acidental
O quadro clínico é inespecífico na maioria das vezes, cursando com febre e,
eventualmente adenomegalia, discreto edema de membros e discreto exantema, que
pode ser petequial.
Em serviços com manipulação de materiais contaminados, é fundamental fazer o
seguimento dos trabalhadores com provas sorológicas periódicas. O diagnóstico
diferencial é realizado com síndrome da mononucleose infecciosa, colagenoses, doença
do soro, sífilis e infecções bacterianas.
Aconselha-se profilaxia por dez dias com Benzonidazol em situações de risco,
como acidentes pérfuro-cortantes ou por contato com mucosas durante a manipulação
de materiais contendo parasitas vivos. Acidentes em laboratório com alta carga
parasitária devem ser tratados por período mínimo de trinta dias com Benzonidazol e
submetidos a monitorização clínico-sorológica.

Transmissão oral
Quando se observa mais de um doente febril com provável fonte comum
alimentar, com adenomegalia, hepatomegalia, esplenomegalia, exantema, edema,
miocardite, pericardite e comprometimento visceral de causa não conhecida, com
hemorragias e icterícia, deve-se suspeitar de aquisição oral da moléstia de Chagas. Não
há sinais de porta de entrada.

Forma indeterminada da doença de Chagas

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Consideram-se na forma indeterminada indivíduos com sorologia positiva para
T. cruzi e/ou com exame parasitológico positivo que não apresentam sintomas da
doença, com eletrocardiograma de repouso, radiografia de tórax, radiografia de esôfago
contrastada e enema opaco normais. É apresentação de maior prevalência e, por ser de
caráter benigno, recomenda-se seguimento em serviços de atenção primária, com
realização anual de avaliação médica e eletrocardiograma. 10-30% dos pacientes
progridem em décadas para a doença crônica. Estes pacientes devem ser orientados a
não doar sangue.
Em caso de provas sorológicas inconclusivas, aconselha-se avaliar
detalhadamente os antecedentes epidemiológicos, valorizando contato com o inseto
conhecido como barbeiro e antecedente familiar de doença de Chagas, e proceder a um
exame físico cuidadoso. No HC-FMUSP, são solicitados eletrocardiograma de repouso
e radiografia de tórax, repetição dos exames sorológicos por ELISA ou
imunofluorescência e prova de imunoblot com antígenos secretados e excretados de
tripomastigotas.

Cardiopatia chagásica crônica


A cardiopatia chagásica crônica é responsável por elevadas morbidade e
mortalidade, com significativo impacto social. Em fases iniciais, o coração apresenta-se
ainda de tamanho normal, com certo grau de hipertrofia compensatória e mínima
dilatação. Em um estágio intermediário, podem ocorrer arritmias, certo grau de
dilatação, discinesias da parede e redução da fração de ejeção, com evolução, a seguir,
para dilatação franca, discinesias extensas, fibrose e insuficiência cardíaca.
Os sintomas são variados e decorrem de alteração do ritmo, alteração da
condução, insuficiência cardíaca e fenômenos tromboembólicos. O quadro clínico varia
de formas assintomáticas até manifestações como palpitações, edema, ortopneia,
síncope e precordialgia. O exame físico pode ser normal ou com alterações variáveis,
como arritmias, sopro sistólico mitral, hiperfonese ou desdobramento de P2 por
bloqueio de ramo direito, edema, hepatomegalia, estase jugular, ritmo de galope,
congestão pulmonar, ascite e hipotensão. Pode ainda sobrevir tromboembolismo
associado a áreas discinéticas na parede ventricular. A lesão apical do ventrículo
esquerdo ou aneurisma da ponta parece ser patognomônica da miocardiopatia chagásica.
O diagnóstico é firmado com base em critérios epidemiológicos e sorológicos,
além de evidência de comprometimento cardíaco por meio de alteração do traçado do
eletrocardiograma de repouso. Devem ser excluídas cardiopatias de outras etiologias.
As alterações eletrocardiográficas sugestivas de cardiopatia chagásica são
bloqueio completo de ramo direito, hemibloqueio ântero-superior, hemibloqueio
posterior esquerdo, arritmia ventricular, como extrassístoles polimorfas aos pares e
taquicardia ventricular, manifestações de doença do nó sinusal, como bradicardia
sinusal, bloqueio sinoatrial e parada sinusal, fibrilação atrial, bloqueio atrioventricular
de segundo grau Mobitz II, bloqueio atrioventricular de alto grau, bloqueio
atrioventricular de terceiro grau, zona inativa e alteração primária da repolarização
ventricular. É importante a avaliação do cardiologista para indicação de marca-passo em
casos específicos.
O tratamento clínico segue as diretrizes da Sociedade Brasileira de Cardiologia.
Tratamento cirúrgico é indicado para pacientes com insuficiência cardíaca refratária,
com estimulação ventricular multi-sítio, transplante cardíaco ou terapia com células
tronco. Indivíduos com disfunção ventricular global, fibrilação atrial, história de
tromboembolismo prévio ou regiões acinéticas ou discinéticas, com evidência ao
ecocardiograma de trombo mural, têm indicação de anticoagulação. Em circunstâncias

Pedro Kallas Curiati 872


especiais, a aneurismectomia e a embolectomia podem ser consideradas. Além do
tratamento medicamentoso antiarrítmico, deve-se considerar em casos específicos o
controle da arritmia ventricular por ablação do foco ou implante de cardiodesfibrilador.

Forma digestiva da doença de Chagas


A moléstia de Chagas determina extenso comprometimento do aparelho
digestivo. As manifestações digestivas são megaesôfago, mecacólon, megaestômago,
megaduodeno, estenose hipertrófica do piloro e, raramente, colecistopatia, com
dilatação permanente e difusa das vísceras ocas, acompanhadas ou não de alongamento
da parede, não provocadas por obstrução mecânica.

Megaesôfago chagásico
Síndrome de disfagia crônica consequente à incoordenação motora da
musculatura esofágica provocada por redução dos neurônios dos plexos nervosos
intramurais, com dilatação e alongamento do órgão. Com a destruição dos plexos de
Meissner e Auerbach, desorganiza-se a atividade motora dos esfíncteres superior e
inferior, que controlam a passagem do bolo alimentar. A associação com cardiopatia é
variável.
O quadro clínico é caracterizado por disfagia mais acentuada para sólidos,
regurgitação, dor retroesternal, sialorréia, hipertrofia de glândulas salivares, azia e
emagrecimento. Complicações incluem aspiração pulmonar, úlceras esofágicas,
esofagite, perfuração e neoplasias esofágicas.
O diagnóstico é estabelecido com base em quadro clínico, sorologia e exames
complementares, que incluem estudo radiológico contrastado do esôfago e exame
endoscópico, que avalia possibilidade de estenose orgânica, condições da mucosa e
presença de possíveis tumores. Diagnóstico diferencial é realizado com divertículo de
esôfago, distúrbios funcionais decorrentes de esofagite de refluxo, estenose orgânica por
tumores malignos e ingesta de cáusticos.
Tratamento clínico é indicado para pacientes com megaesôfago não-avançado ou
com idade avançada e alto risco cirúrgico. Recomendações dietéticas incluem mastigar
bem os alimentos e evitar ingesta de alimentos antes de deitar-se. A abordagem
medicamentosa inclui Nifedipino, Dinitrato de Isosorbitol e injeção de toxina botulínica
no esfíncter inferior do esôfago. Nutrição enteral por sonda pode ser necessária. A
abordagem cirúrgica inclui dilatação por sonda, dilatação por balão e esofagectomia.

Enteropatia chagásica
O envolvimento do intestino delgado na doença de Chagas é menos frequente e
menos conhecido. A disfunção e a dilatação decorrem de lesão de neurônios do sistema
nervoso entérico, com incoordenação motora, alteração do trânsito e distensão de fibras
musculares. A dilatação do íleo é rara, enquanto que a dilatação dos outros segmentos é
frequentemente associada a megaesôfago e/ou megacólon.
O quadro clínico pode ser de síndrome dispéptica, síndrome de pseudo-
obstrução intestinal ou síndrome de supercrescimento bacteriano.
Recomendações dietéticas incluem dieta sem irritantes de mucosa, fracionada,
de menor volume, com mastigação adequada. Pode ser associado inibidor de bomba de
prótons se esofagite de refluxo. O tratamento cirúrgico abrange anastomose
duodenojejunal em caso de megaduodeno e enterectomia parcial em caso de megajejuno
ou megaíleo se os segmentos dilatados não forem extensos.

Megacólon chagásico

Pedro Kallas Curiati 873


Atinge, sobretudo, reto e sigmoide. Há estase e discinesia decorrente de
destruição de gânglios nervosos, modificação na motilidade de vísceras e esfíncteres e
consequente retardo na progressão do conteúdo fecal. Ocorre estase intestinal crônica,
com dilatação, hipertrofia e alongamento de uma ou mais porções do intestino grosso,
mais comumente o sigmoide.
O quadro clínico é caracterizado por obstipação crônica progressiva, em que o
intervalo entre as defecações pode ser superior a dez dias, com distensão abdominal e
fecaloma, podendo ocorrer diarreia. Complicações incluem obstrução intestinal por
volvo ou fecaloma e perfuração intestinal.
O diagnóstico é baseado em anamnese e exame físico com toque retal. Os
exames complementares incluem radiografia de abdômen, enema opaco e
retossigmoidoscopia.
Tratamento clínico é preferido em pacientes sem história de complicações,
oligossintomáticos e/ou com alto risco para tratamento cirúrgico. Medidas higieno-
dietéticas incluem restrição de alimentos obstipantes, ingesta abundante de água,
aumento da ingesta de alimentos que favoreçam o trânsito intestinal, uso de laxantes,
preferencialmente osmóticos ou Óleo Mineral, e realização de lavagem intestinal
quando necessário. Medicamentos obstipantes, como opióides, diuréticos,
antidepressivos, anticonvulsivantes e antiácidos a base de Hidróxido de Alumínio
devem ser evitados. Fecaloma deve ser abordado com remoção manual ou lavagens
intestinais repetidas. Volvo de sigmoide deve ser abordado com redução por via
endoscópica ou cirúrgica. Cirurgia eletiva é indicada para casos refratários ao
tratamento clínico e/ou com história prévia de complicações.

Coinfecção com vírus da imunodeficiência humana


A reativação da doença de Chegas crônica, com doença grave e aguda e alta
parasitemia, tem sido registrada em hospedeiros imunodeprimidos, como portadores de
doenças hematológicas malignas, receptores de transplantes de órgãos submetidos a
drogas imunossupressoras e pessoas infectadas pelo vírus da imunodeficiência humana.
O sistema nervoso central é afetado em parcela significativa dos indivíduos
coinfectados, com febre, cefaleia, convulsões alteração do nível de consciência, sinais
neurológicos focais e, com menor frequência, sinais de irritação meníngea.
A miocardite é a segunda manifestação mais comum, podendo se manifestar
com insuficiência cardíaca e/ou arritmias.

Diagnóstico da doença de Chagas aguda e crônica


T. cruzi pode ser encontrado por métodos diretos a fresco no sangue durante as
primeiras seis a oito semanas de doença. A presença do parasita no sangue periférico
define a fase aguda ou a reativação da doença.
O xenodiagnóstico é realizado com ninfas de terceiro estágio de T. infestans ou
de primeiro estágio de Dipetalogaster maximus, colocadas no braço do paciente ou para
sugar sangue do paciente através de uma membrana, com leitura após trinta, sessenta e
noventa dias por análise do conteúdo intestinal. As hemoculturas são analisadas após
trinta, sessenta, noventa e cento e vinte dias. Esses exames não firmam o diagnóstico de
fase aguda ou reativação por estarem positivos em 30-50% dos casos crônicos e em
cerca de 100% dos casos agudos.
A prova qualitativa para pesquisa de DNA do cinetoplasto ou genoma do
parasita pode ser positiva em 45-100% dos casos na fase crônica e em 100% na fase
aguda, também não se prestando para o diagnóstico de fase aguda ou reativação.
Diagnóstico sorológico por ELISA, imunofluorescência ou imunoblot é

Pedro Kallas Curiati 874


recomendado para o diagnóstico na fase crônica pela sua alta sensibilidade e
especificidade.
A presença de ninhos de amastigotas associada a infiltrado inflamatório agudo
caracteriza a fase aguda ou de reativação da doença. Na forma crônica, o infiltrado
inflamatório mononuclear pode estar presente ou não, podendo-se visualizar ninhos de
amastigotas no tecido.

Tratamento da doença de Chagas


Benzonidazol, apresentado na forma de comprimidos de 100mg, é usado em
adultos com dose de 5mg/kg/dia em duas a três tomadas diárias por via oral durante
sessenta dias. Nifurtimox é usado em adultos com dose de 9-10mg/kg/dia em três
tomadas diárias por via oral durante noventa dias. No caso de falha terapêutica com uma
das drogas, apesar de eventual resistência cruzada, a outra pode ser tentada.
O tratamento medicamentoso tem indicação absoluta na infecção aguda e na
reativação da doença, com cura em 60% dos pacientes, controle das manifestações
clínicas e redução da mortalidade. No entanto, há controvérsia sobre seu uso para o
tratamento da fase crônica da doença, havendo maior sucesso terapêutico na fase
crônica recente do que na fase crônica tardia.
A Organização Mundial da Saúde recomenda tratamento para os pacientes
imunocompetentes com infecção aguda e infecção crônica recente, infectados nos
últimos dez anos, e para os pacientes imunodeprimidos com reativação da doença
crônica.
Os efeitos colaterais mais frequentes observados no uso do Nifurtimox são
anorexia, perda de peso, alterações físicas, excitabilidade, sonolência, náusea, vômitos
e, ocasionalmente, cólica intestinal e diarreia. No caso do Benzonidazol, manifestações
cutâneas são mais comuns, com hipersensibilidade, dermatite, edema generalizado,
febre, linfadenopatia, artralgia e mialgia. Depressão de medula óssea, púrpura
trombocitopênica e agranulocitose são as manifestações mais graves.

Prevenção
Triagem sorológica em bancos de sangue com provas de referência de alta
sensibilidade e especificidade.
Triagem de doadores de órgãos com pelo menos duas provas sorológicas de alta
sensibilidade e especificidade.
Monitorização de pacientes com doença de Chagas crônica que recebem
imunossupressão por drogas por meio de exames parasitológicos, sorológicos e
moleculares periódicos.
Vigilância de vetores.
Cuidados de higiene e antissepsia com alimentos, particularmente se não forem
submetidos a processo de pasteurização ou fervura.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 7: alergia e imunologia clínica, doenças da pele, doenças infecciosas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 875


DOENÇAS SEXUALMENTE
TRANSMISSÍVEIS COM
MANIFESTAÇÕES CUTÂNEAS
Sífilis (lues)

Definição
A sífilis ou lues é moléstia infecciosa produzida pelo Treponema pallidum, que
determina lesões cutâneas polimorfas e pode comprometer outros tecidos,
particularmente os sistemas cardiovascular e nervoso. Apresenta evolução crônica, em
que se distinguem períodos de latência e atividade, recentes ou tardios, caracterizando-
se as lesões do período de atividade recente pela riqueza de parasitas e reversibilidade
das lesões e, as de atividade tardia, pela escassez de parasitas e tendência destrutiva e
desorganizadora.

Transmissão
A transmissão da sífilis adquirida é sexual e na área gênito-anal, na quase
totalidade dos casos. O contágio extra-genital é raro, encontrado particularmente nos
lábios, pois frequentemente há lesões contagiantes na mucosa bucal.
Na sífilis congênita há infecção fetal por via hematogênica, transplacentária, a
partir das primeiras semanas da gravidez.

Sífilis adquirida recente


Compreende o primeiro ano de evolução, período do desenvolvimento
imunitário na sífilis não-tratada, e inclui sífilis primária, secundária e latente. Tanto as
lesões primárias como as secundárias contêm treponemas e são, portanto, contagiantes.

Sífilis primária
A lesão inicial, denominada cancro duro ou protossifiloma, surge, em média,
uma a duas semanas após a infecção, no ponto de inoculação do treponema. No entanto,
o período de incubação pode durar até quarenta dias.
O cancro duro inicia-se como pápula inflamatória e evolui para lesão única,
erosiva ou ulcerativa, indolor, com base infiltrada e fundo limpo. Apresenta-se, à
palpação, com consistência dura e cartilaginosa.
Localiza-se quase sempre nos genitais externos. Pode ocorrer cancro duro extra-
genital, com a maior parte dos casos acima do pescoço, em lábios e amígdalas, e
acometimento digital em médicos e dentistas.
Após uma a duas semanas ocorre adenite satélite, com gânglios duros, não-
inflamatórios e pouco dolorosos.
As reações sorológicas para sífilis (RSS) tornam-se positivas, em geral, entre a
segunda e a quarta semanas do aparecimento do cancro. O cancro duro pode
desaparecer espontaneamente, geralmente sem deixar cicatriz, em cerca de quatro
semanas.

Sífilis secundária
Essa fase é caracterizada pela disseminação de treponemas pelo organismo e

Pedro Kallas Curiati 876


suas manifestações ocorrem quatro a oito semanas após o aparecimento do cancro duro.
A lesão mais precoce é a roséola, caracterizada por exantema morbiliforme não-
pruriginoso. Posteriormente, podem surgir lesões papulosas palmo-plantares, placas
mucosas, adenopatia generalizada, alopecia em clareira e pápulas vegetantes perianais,
conhecidas como condiloma plano.
As manifestações regridem mesmo sem tratamento.
As reações sorológicas são positivas, mas podem estar negativas em
imunodeprimidos e em coinfectados pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV).

Sífilis recente latente


Não existem manifestações visíveis, mas há treponemas localizados em
determinados tecidos. O diagnóstico é obtido através das reações sorológicas lipídicas
ou com antígenos treponêmicos.
Na sífilis recente secundária e latente há frequentemente polimicroadenopatia,
cefaleia e dores osteoarticulares.

Sífilis adquirida tardia


A lues é considerada tardia após o primeiro ano de evolução. Ocorre em doentes
que receberam terapêutica inadequada ou que não foram tratados. Suas manifestações
podem surgir depois de um período variável de latência e compreendem as formas
cutânea, óssea, cardiovascular e nervosa, dentre outras.
As reações sorológicas são positivas.
Sífilis tardia latente caracteriza-se por ausência de sinais clínicos, tempo de
duração superior a um ano e sorologia positiva.
Sífilis cutânea tardia constitui a sífilis terciária e caracteriza-se por lesões
profundas com nódulos e gomas. São lesões circunscritas e apresentam caráter
destrutivo. Quando acometem as mucosas, podem produzir glossite intersticial crônica,
perfuração do palato e destruição do septo nasal.
Ainda que na sífilis recente possam ocorrer alterações eletrocardiográficas
transitórias, o comprometimento cardiovascular ocorre em geral dez a trinta anos após o
início da infecção. Em portadores do vírus da imunodeficiência humana, o
comprometimento cardiológico pode ocorrer alguns meses após o secundarismo. O
quadro mais frequente é a aortite, que pode, no decorrer de sua evolução, determinar
insuficiência aórtica, aneurisma de aorta e estenose orificial das coronárias. Outros
vasos, inclusive periféricos, podem ser comprometidos, com formação de aneurisma ou
quadro de endarterite obliterante.
Na sífilis recente, pode haver comprometimento transitório do sistema nervoso,
com cefaleia e, raramente, rigidez de nuca ou paralisia de nervos cranianos. O
comprometimento do sistema nervoso na sífilis tardia é encontrado após cinco a trinta e
cinco anos e pode ser assintomático ou sintomático. As formas clínicas incluem
meningo-vascular, meningite aguda, paralisia espástica de Erb, goma do cérebro ou da
medula, crise epileptiforme, atrofia do nervo óptico, paralisia do sétimo par e tabes
dorsalis.
A tabes dorsalis, em que há lesões em raízes posteriores, funículo posterior da
medula e tronco cerebral, apresenta sintomatologia variável, que pode incluir
perturbações da marcha, alterações dos reflexos, sinal de Romberg, sinal da pupila de
Argyll-Robertson, junta de Charcot e mau perfurante plantar. Pupilas de Argyll
Robertson são pupilas bilateralmente pequenas que se contraem quando o paciente foca
em um objeto próximo, mas não se contraem quando expostas ao brilho da luz.

Pedro Kallas Curiati 877


Coinfecção sífilis e síndrome da imunodeficiência adquirida
Caracterizada por curso clínico acelerado, achados clínicos floridos e resposta
imunológica inadequada.

Diagnóstico
Na sífilis primária, o cancro duro deve ser diferenciado do cancroide, que é
doloroso e múltiplo. Em caso de dúvida, pode-se fazer a pesquisa em campo escuro para
T. pallidum e o exame bacterioscópico para Haemophilus ducreyi.
A sífilis secundária e a sífilis cutânea tardia apresentam aspectos multiformes e
devem ser diferenciadas de inúmeras dermatoses, devendo-se solicitar reações
sorológicas para sífilis sempre que houver suspeita. Na neurossífilis, é indispensável o
exame do líquido cefalorraquidiano.

Exames laboratoriais
Exame de campo escuro de material do fundo da lesão permite a identificação do
T. pallidum e confirma o diagnóstico de cancro duro. Pode ser usada nas lesões pápulo-
erosivas da sífilis secundária. Outras provas caracterizadas pela demonstração direta do
agente etiológico incluem pesquisa direta com material corado com impregnação pela
prata de Fontana ou com coloração de Giemsa, pesquisa direta por imunofluorescência e
pesquisa direta pela reação em cadeia da polimerase.
Exames sorológicos não-específicos ou anti-lipídicos incluem o Venereal
Disease Research Laboratory (VDRL) e o PRP, com baixo custo e fácil execução. São
indispensáveis para o seguimento porque podem ser realizados de forma quantitativa e
permitem acompanhar o título sorológico. No entanto, essas reações não são específicas,
pois evidenciam anticorpos anti-lipídicos que ocorrem tanto na sífilis como em outras
doenças. Além disso, há necessidade de confirmação com alguma sorologia anti-
treponêmica.
Exames sorológicos específicos ou anti-treponêmicos empregam o T. pallidum
ou parte dele como antígeno. Incluem o Fluorescent Treponemal Antibody Absorbed
Test (FTA-Abs) e o ELISA.
Resultados falso-positivos são caracterizados por VDRL reagente em doente
com anamnese negativa para sífilis e FTA-Abs não-reagente. A presença de anticorpos
anti-lipídicos pode ser permanente, como em síndrome anti-fosfolipídica, lúpus
eritematoso sistêmico, colagenoses e hepatite crônica, ou temporária, como em
infecções, vacinações, medicamentos e transfusões. Os títulos nas reações falso-
positivas geralmente são baixos, exceto em doenças como a hepatite e a toxoplasmose.
Resultados falso-negativos podem ocorrer em síndrome da imunodeficiência adquirida,
fase precoce da sífilis primária, sífilis tardia e vigência de altos níveis de anticorpos.
O comprometimento do sistema nervoso é comprovado pelo exame do líquor.
Na sífilis recente ocorre inicialmente pleocitose e alteração das proteínas em cerca de
40% dos doentes e em 25% o VDRL ou o FTA-Abs tornam-se reagentes. VDRL ou
FTA-Abs reagentes no líquor comprovam os sinais clínicos de neurossífilis, enquanto
FTA-Abs não-regente exclui o diagnóstico. A avaliação deve ser realizada em todos os
pacientes com síndrome da imunodeficiência adquirida e sífilis.

Tratamento
Penicilina é a droga de escolha e não existem relatos de resistência no T.
pallidum. Esquemas alternativos são utilizados apenas nos casos em que seu uso não é
possível em função de alergia.
Sífilis recente:

Pedro Kallas Curiati 878


- Penicilina G Benzatina, apresentada na forma de ampolas de
1.200.000UI, com dose de 2.400.000 UI por via intramuscular, uma
ampola em cada nádega, uma vez por semana durante duas semanas;
- Pacientes com sífilis primária podem ser tratados com dose única de
Penicilina G Benzatina de 2.400.000UI por via intramuscular, uma
ampola em cada nádega;
- Alternativas incluem Eritromicina 500mg de 6/6 horas por via oral
durante 14 dias, Tetraciclina 500mg de 6/6 horas por via oral durante 14
dias, Doxiciclina 100mg de 12/12 horas por via oral durante 14 dias e
Ceftriaxone 250mg por via intramuscular durante 10 dias;
Sífilis tardia, com exceção de neurossífilis:
- Penicilina G Benzatina com dose de 2.400.000 UI por via
intramuscular, uma ampola em cada nádega, uma vez por semana
durante três semanas;
- Alternativas incluem Eritromicina 500mg de 6/6 horas por via oral
durante 28 dias, Tetraciclina 500mg de 6/6 horas por via oral durante 28
dias e Doxiciclina 100mg de 12/12 horas por via oral durante 30 dias;
Neurossífilis:
- Penicilina G Cristalina 3.000.000-4.000.000UI de 4/4 horas por via
intravenosa durante 10-14 dias;
- Penicilina G Procaína 2.000.000-4.000.000UI/dia por via intramuscular
associada a Probenecida 500mg 6/6 horas por via oral durante 14 dias;
- Alternativa inclui Ceftriaxone 1-2g/dia por via intravenosa ou
intramuscular durante 14 dias;
Em grávidas, deve-se tratar com Penicilina conforme o estágio da doença e
evitar o uso de Tetraciclina e Doxicilina.

Tratamento preventivo
Indivíduos que tiveram contato com doente comprovadamente com sífilis podem
receber, profilaticamente, uma injeção de Penicilina G Benzatina de 2.400.000 unidades
por via intramuscular, uma ampola em cada nádega.

Seguimento
Na sífilis recente, a negativação sorológica ocorre geralmente do sexto ao nono
mês após o tratamento, inicialmente com uma queda do título sorológico das reações
lipídicas ou não-específicas, que devem ser avaliadas três, seis e doze meses após o
tratamento. Em indivíduos com coinfecção pelo vírus da imunodeficiência humana,
também se deve repetir a avaliação sorológica vinte e quatro meses após o tratamento.
Recomenda-se considerar novo tratamento se sinais clínicos persistem ou recorrem,
títulos aumentam quatro vezes ou mais, títulos não caem e títulos não se tornam
negativos.
Na sífilis tardia há uma queda do título sorológico e a negativação pode ocorrer
no segundo ano, com necessidade de controle sorológico a cada seis meses durante dois
anos. A persistência de anticorpos em títulos baixos pode durar vários anos e, caso não
haja elevação do título, não há necessidade de novo tratamento. Recomenda-se
considerar novo tratamento em pacientes com neurossífilis prévia se contagem de
células não diminui em seis meses e proteínas não normalizam em dois anos.

Cancroide, cancro venéreo ou cancro mole

Pedro Kallas Curiati 879


Definição
Ulceração aguda, específica e contagiosa, geralmente localizada na genitália
externa, causada por bacilo Gram-negativo aeróbio denominado Haemophilus ducreyi.

Transmissão
O cancroide resulta quase sempre de transmissão direta no ato sexual. Contatos
acidentais são excepcionais. Existe a possibilidade de mulheres, principalmente as
profissionais do sexo, serem portadoras assintomáticas.
A infecção é dez vezes mais comum em homens.

Manifestações clínicas
Período de incubação dura três a cinco dias.
A manifestação inicial é mácula, que evolui para pápula, vesícula ou pústula e
finalmente ulceração.
Úlceras dolorosas, geralmente múltiplas, com bordas irregulares, talhadas a
pique, envoltas por halo eritematoso, com fundo purulento, base mole e odor fétido.
Localizam-se preferencialmente nos genitais e também podem ser encontrados em torno
do ânus. Em homens predomina acometimento do prepúcio e do sulco balano-prepucial.
Em mulheres, predomina acometimento de colo uterino e de grandes e pequenos lábios.
Com a evolução, as úlceras podem coalescer e levar à formação de lesões ulcerativas
gigantes, acometendo planos teciduais profundos e produzindo fístulas.
A complicação mais frequente é o bubão regional, que é adenite inguinal quase
sempre unilateral, extremamente dolorosa, de evolução aguda. Ocorre em 30-50% dos
casos e é raro no sexo feminino. O processo evolui rapidamente para liquefação e
fistulização, com orifício único.
As lesões do cancro mole não evoluem para cura espontânea e, em geral, deixam
pequena cicatriz após a cura.

Diagnóstico
Diagnóstico diferencial com cancro duro, herpes simples e linfogranuloma
venéreo.
Bacterioscopia do material do fundo da úlcera coletado com haste de platina ou
níquel cromado é o método eletivo para o diagnóstico laboratorial e permite a pesquisa
direta do bacilo em esfregaço corado pelo Gram. A pesquisa do bacilo de Ducrey deve
ser sempre complementada pela pesquisa do treponema em campo escuro na linfa que
emerge após a limpeza da lesão com gaze. Pode-se ainda raspar o fundo da lesão e
realizar esfregaço para a pesquisa de Calymmatobacterium granulomatis e células de
Tzank.
Cultura em ágar-chocolate demora 48 horas. Biópsia é sugestiva para
diagnóstico presuntivo e bacilos raramente podem ser demonstrados. Reação de Ito-
Reenstierna é intradermorreação do tipo tuberculínico, com resultado positivo após 24-
48 horas em 75% dos doentes.
Em todos os casos de cancroide é aconselhável fazer, trinta dias após a cura,
sorologia para sífilis e para vírus da imunodeficiência adquirida.

Tratamento
Cuidados locais, com lavagem frequente com água e sabão.
Opções terapêuticas:
- Tianfenicol granulado 5g por via oral em dose única;
- Tianfenicol cápsulas 500mg de 8/8 horas por via oral durante 5 dias;

Pedro Kallas Curiati 880


- Azitromicina 1g por via oral em dose única;
- Ciprofloxacino 500mg de 12/12 horas por via oral durante 3 dias;
- Tetraciclina 500mg de 6/6 horas por via oral durante 10 dias;
- Eritromicina 500mg de 6/6 horas por via oral durante 10 dias;
- Doxiciclina 100mg de 12/12 horas por via oral durante 10 dias;
- Ceftriaxone 250mg por via intramuscular em dose única;
- Sulfametoxazol-Trimetoprim 800/160mg de 12/12 horas por via oral
durante 10 dias;
Como tratamento tópico, indica-se limpeza local com Água Boricada e o uso de
um creme de antibiótico.
Drenagem de adenite é contraindicada porque prolonga a evolução. É preferível
esvaziamento por punção.

Linfogranuloma venéreo ou doença de Nicolas-Durant-Favre

Definição e transmissão
Infecção transmitida por contato sexual causada pela Chlamydia trachomatis
sorotipos L1, L2 e L3, bactéria intracelular obrigatória. Excepcionalmente pode ocorrer
inoculação acidental com localização extragenital.

Epidemiologia
Distribuição universal. No Brasil a frequência tem diminuído progressivamente
e atualmente trata-se de quadro raro.

Manifestações clínicas
Período de incubação variável, de três a trinta e dois dias.
A lesão primária é pápula, vesícula, exulceração ou ulceração superficial,
indolor, com involução em poucos dias. Uma cicatriz pode ser observada por meio de
exame minucioso da genitália. No homem, localiza-se preferencialmente na glande, no
freio, no prepúcio e no escroto. Na mulher, localiza-se preferencialmente em paredes
vaginais e colo uterino. Também pode ocorrer uretrite.
Após duas a quatro semanas surge a manifestação mais característica da
moléstia, a adenopatia inguinal, preferencialmente unilateral, sendo bilateral em cerca
de um terço dos casos, observada como regra nos homens e excepcionalmente nas
mulheres. Vários linfonodos são comprometidos e ocorre evolução de gânglios firmes,
levemente dolorosos e móveis para massa volumosa e dolorosa aderida à pele,
denominada bulbão. A pele sobrejacente torna-se eritêmato-edematosa e descamativa
seguindo-se ruptura dos linfonodos em um terço dos casos através de vários pontos de
drenagem, conferindo aspecto de “escumadeira”, o que explica a denominação
poroadenite inguinal para a doença. Geralmente ocorre cicatrização do processo sem
sequelas, mas em um quinto dos casos pode haver recorrência e formação de fístulas
que drenam secreção seropurulenta por semanas ou meses. Na mulher a infecção
localiza-se nos gânglios ilíacos profundos e/ou peri-retais, podendo haver dor e
drenagem de sangue, pus ou muco através do reto decorrente da ruptura do gânglio para
o seu interior.
Ocorrem manifestações sistêmicas, como febre, artralgia, mialgia, cefaleia,
prostração, sudorese noturna e hepatomegalia, geralmente discretas. Raramente,
ocorrem meningite, meningoencefalite, eritema nodoso, eritema polimorfo, urticária e
exantema máculo-papular.
A síndrome ano-genital engloba uma grande variedade de quadros clínicos, em

Pedro Kallas Curiati 881


geral resultado de lesões progressivas, hipertróficas e necróticas. Essa fase ocorre
sobretudo nas mulheres. Caracteriza-se pelo aparecimento de proctite leve, com
presença de muco, sangue e pus nas fezes, além de tenesmo, febre, emagrecimento e
dor. Posteriormente, as complicações tardias se desenvolvem, levando a fibrose, com
estenose retal, fístulas reto e ano-vaginais, compressão vesical, abscessos perianais e
elefantíase da genitália externa, conhecida como estiomene.

Diagnóstico
Diagnóstico diferencial com cancroide, sífilis, tuberculose,
paracoccidioidomicose e doença da arranhadura do gato. Quando ocorre síndrome ano-
retal, o diagnóstico diferencial deve ser feito com donovanose, doença de Crohn, colites
ou retites, hidradenite crônica e neoplasias.
O diagnóstico laboratorial:
- Detecção do agente por exame direto do esfregaço obtido de aspiração
do bulbão com coloração de Giemsa, com pesquisa de corpúsculos de
inclusão intracelulares de Chlamydia trachomatis, denominados
corpúsculos de inclusão de Gamma-Miyagawa;
- Cultura de aspirado do bulbão, swab e biópsia de mucosa retal;
- Teste de fixação de complemento;
- Microimunofluorescência;
- Ampliação do DNA por reação em cadeia da polimerase;
É importante excluir laboratorialmente sífilis e infecção pelo vírus da
imunodeficiência humana pela possibilidade de coinfecção. Podem estar presentes
manifestações inespecíficas, como hipergamaglobulinemia e VDRL falso positivo.

Tratamento
Doxiciclina 100mg de 12/12 horas por via oral durante 21 dias.
Alternativas incluem Tetraciclina 500mg de 6/6 horas por via oral durante 21
dias, Eritromicina 500mg de 6/6 horas por via oral durante 21 dias, Sulfametoxazol-
Trimetoprim 800/160mg de 12/12 horas por via oral durante 21 dias e Tianfenicol
500mg de 8/8 horas por via oral durante 14 dias.
O bulbão inguinal flutuante não deve ser abordado cirurgicamente com incisão e
drenagem, uma vez que pode ocorrer a formação de trajetos fistulosos contínuos. A
conduta mais recomendada nesses casos é a punção aspirativa com agulha grossa,
devendo penetrar através da pele normal, superiormente ao bulbão. As fases tardias da
doença, quando ocorrem estenose retal, fístulas e elefantíase, pouco se beneficiam com
o tratamento clínico, necessitando de abordagem cirúrgica ampla, como vulvoplastia,
ressecção perineal ampla com colostomia, enxertia e, por vezes, cicatrização por
segunda intenção.

Donovanose

Definição
Enfermidade de evolução progressiva e crônica, de localização genital. Pode
ocasionar lesões granulomatosas e destrutivas. Também é conhecida como granuloma
inguinal ou granuloma venéreo. O agente etiológico é o Calymmatobacterium
granulomatis, bactéria Gram-negativa intracitoplasmática. Nas lesões, esse micro-
organismo é encontrado dentro de macrófagos sob a forma de pequenos corpos ovais
denominados corpúsculos de Donovan.

Pedro Kallas Curiati 882


Epidemiologia
A doença afeta igualmente homens e mulheres e é mais frequente entre os vinte
e os quarenta anos de idade.
A transmissão pode ser sexual ou não sexual.
Período de incubação extremamente variável, de oito a oitenta dias.
Antecedente de viagem para áreas endêmicas, especialmente Índia.

Quadro clínico
A doença inicia-se por lesão nodular, única ou múltipla, de localização
subcutânea, que erode e produz ulceração bem definida, que cresce lentamente e sangra
com facilidade. Acomete principalmente pele e tecido celular subcutâneo em genitália,
região perianal e região inguinal.
As úlceras têm fundo granulomatoso e crescimento exofítico, são pouco
dolorosas e podem causar fibrose e linfedema em graus variáveis. Existe risco de
carcinoma espinocelular associado ao quadro.
É rara a ocorrência de sintomas gerais e há ausência de adenopatia satélite.

Diagnóstico
Diagnóstico diferencial com cancro mole, sífilis secundária, condiloma
acuminado, carcinoma espinocelular, leishmaniose, paracoccidioidomicose e úlcera
fagedênica tropical.
O diagnóstico definitivo é estabelecido através da demonstração de corpúsculos
de Donovan em esfregaço de material proveniente de lesões suspeitas ou cortes
tissulares com coloração de Giemsa, Leishman ou Wright. Exame histopatológico
evidencia corpúsculos de Donovan dentro dos histiócitos.
Cultura em saco vitelino de ovos embrionados é difícil e raramente utilizada.
Sorologia tem positividade tardia e resultados falso-positivos.

Tratamento
Agente extremamente sensível ao tratamento.
Duração variável, geralmente até um mês após a resolução do quadro.
Drogas:
- Cloranfenicol 2g por dia por via oral;
- Tianfenicol granulado 2.5g em dose única por via oral no primeiro dia e
500mg de 12/12 horas por via oral a partir de então;
- Tetraciclina 500mg de 6/6 horas por via oral;
- Doxiciclina 100mg de 12/12 horas por via oral;
- Ciprofloxacino 750mg de 12/12 horas por via oral;
Não havendo resposta na aparência das leões nos primeiros dias de tratamento,
recomenda-se adicionar um aminoglicosídeo, como Gentamicina 1mg/kg/dia de 8/8
horas por via intravenosa. A resposta ao tratamento é avaliada clinicamente, sendo que
o critério de cura é o desaparecimento da lesão. As sequelas deixadas por destruição
tecidual extensa ou obstrução linfática podem exigir correção cirúrgica.

Gonorréia (blenorragia)

Definição
Infecção causada por diplococo Gram-negativo denominado Neisseria
gonorrhoeae, que se desenvolve na mucosa genital e eventualmente nas mucosas anal e
da orofaringe.

Pedro Kallas Curiati 883


Transmissão
A transmissão ocorre por contato entre genitais, ânus e boca. A transmissão
acidental não-sexual é extremamente rara.

Epidemiologia
Mais comum nos homens, particularmente na faixa etária dos 15 aos 25 anos.

Quadro clínico
O período de incubação pode variar de um a dez dias. Portadores assintomáticos
constituem o principal fator de manutenção da doença.
No homem, os sintomas surgem dois a cinco dias após o contato, com prurido
intra-uretral e/ou disúria. A seguir, surge secreção uretral muco-purulenta, espessa,
abundante, amarelo-esverdeada. O meato uretral fica edemaciado e eritematoso, com
micção dolorosa e frequente sensação de mal-estar. Eventualmente pode ocorrer
adenopatia inguinal e temperatura subfebril.
70-80% das mulheres são assintomáticas ou oligossintomáticas. As 20-30%
sintomáticas apresentam quadro agudo de corrimento abundante, espesso, amarelo-
esverdeado, com quadro de vulvovaginite. Na progressão da infecção ocorre
endometrite e salpingite, o que constitui o quadro de doença inflamatória pélvica aguda,
que é caracterizada por febre, dores no abdômen inferior e dispareunia. Podem
apresentar apenas endocervicite ou uretrite com sintomas inespecíficos.
Manifestações extragenitais incluem ano-retite, faringite, oftalmia e gonococcia
disseminada.

Complicações
Progressão da infecção para uretra posterior, que ocorre em 50% dos casos.
Epididimite, orquite, prostatite, parafimose, salpingite aguda, abscessos,
pélvicos ou peri-hepatite, doença inflamatória pélvica aguda, infertilidade por fibrose
das trompas e bartolinite.

Diagnóstico
O diagnóstico é confirmado pela detecção do gonococo em esfregaço de
secreção purulenta corado por Gram, com exame bacterioscópico.
Cultura demora 24-48 horas.

Tratamento
Ceftriaxone 250mg por via intramuscular.
Ciprofloxacina 500mg por via oral.
Ofloxacina 400mg por via oral.
Penicilina G Procaína 4.800.000 UI por via intramuscular e Probenecida 1g por
via oral.
Ampicilina 3.5g ou Amoxacilina 3.0g e Probenecida 1g por via oral.
Tianfenicol granulado 2.5g por via oral.

Tratamento empírico de infecção por clamídia


Azitromicina 1000mg por via oral em dose única.
Doxiciclina 100mg de 12/12 horas por via oral durante 7 dias.

Algoritmos

Pedro Kallas Curiati 884


Em casos de herpes, utilizar Aciclovir 200mg dois comprimidos de 8/8 horas por
via oral durante sete a dez dias se primeira infecção e cinco a sete dias se recorrência,
aplicar Aciclovir 5% creme nas lesões como coadjuvante e tratar sífilis se VDRL ou
RPR forem reagentes, o que será visto no retorno. Se o quadro não é sugestivo de
herpes, tratar sífilis e cancro mole. Se forem lesões ulcerosas múltiplas e a
soroprevalência de herpes for maior ou igual a 30% na região, deve-se tratar herpes
concomitantemente à sífilis e ao cancro mole.
No estado de São Paulo, preconiza-se a notificação compulsória de doenças
sexualmente transmissíveis. Os agravos incluem síndrome da úlcera genital (excluído
herpes genital), síndrome do corrimento uretral, síndrome do corrimento cervical, sífilis
em adultos (excluída a forma primária), herpes genital (apenas o primeiro episódio) e
condiloma acuminado (verrugas ano-genitais).

Pedro Kallas Curiati 885


Bibliografia
Dermatologia. Sebastiao A.P. Sampaio & Evandro A Rivitti. 3ª Edição. Editora Artes Médicas, 2007.
Manual de ginecologia de consultório. Patrícia de Rossi, Ricardo Muniz Ribeiro e Edmund C. Baracat. 1ª Edição. São Paulo:
Atheneu, 2007.
Clínica Médica, volume 7: alergia e imunologia clínica, doenças da pele, doenças infecciosas. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Controle Das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST): Abordagem Sindrômica nas Unidades de Saúde do Município de São
Paulo.

Pedro Kallas Curiati 886


ESQUISTOSSOMOSE MANSÔNICA
Epidemiologia
A esquistossomose mansônica é considerada uma das grandes endemias
brasileiras. As áreas consideradas endêmicas estão no nordeste brasileiro e no norte de
Minas Gerais.

Etiologia e fisiopatologia
Esquistossomose é infecção causada por trematódeos do gênero Schistosoma.
Podem causar doença em humanos S. mansoni, S. japonicum, S. mekongi, S.
malayensis, S. haematobium e S. intercalatum. As quatro primeiras espécies parasitam
vasos do sistema porta e têm seus ovos eliminados nas fezes. S. haematobium parasita
preferencialmente vasos do plexo vesical e tem seus ovos eliminados na urina. S.
intercalatum causa com maior frequência infecção do sistema porta, mas pode parasitar
vasos do plexo vesical. No Brasil, a única espécie de interesse sanitário é o S. mansoni.
Machos e fêmeas de S. mansoni permanecem acasalados nos pequenos vasos
que irrigam a submucosa intestinal, onde a fêmea libera cerca de trezentos ovos por dia,
dois quais aproximadamente um terço consegue alcançar a luz intestinal, com
eliminação nas fezes. Ao atingirem coleções de água doce, ocorre a liberação dos
miracídios, que têm algumas horas para penetrar, através das partes moles, moluscos
planorbídeos do gênero Biomphalaria. Em seguida, sofrem intensas transformações e
multiplicação, que, após um período de trinta a quarenta dias, resultarão na formação de
dezenas de milhares de cercarias. Em respostas a estímulos ambientais, as cercarias são
liberadas, devendo encontrar em algumas horas os hospedeiros vertebrados suscetíveis,
nos quais provocam lesões em função da liberação de enzimas queratinolíticas.
Após a penetração das cercarias na pele, estas atingem as circulações linfática e
venosa, transformando-se em esquistossômulos. Essas formas jovens chegam aos
pulmões, onde passam à circulação arterial e, então, para a circulação portal.

Quadro clínico
À penetração das cercarias pela pele, segue-se quadro de prurido, caracterizando
a dermatite cercariana. Essa manifestação, que tende a ser mais acentuada nas
reexposições, é autolimitada.
A forma aguda da esquistossomose é aquela que se segue, após um período de
seis a oito semanas, ao primeiro contato com coleções hídricas que contenham cercarias,
sendo observada em indivíduos que não habitam áreas endêmicas, visitando-as de forma
casual, ou ainda em crianças de pouca idade nas áreas endêmicas. Trata-se de doença
febril, com curva térmica irregular, toxêmica, geralmente com instalação abrupta. São
comuns exantema máculo-papular, que pode ser urticariforme, diarreia, às vezes do tipo
disenteria, dor, distensão abdominal e broncoespasmo. Ao exame físico, nota-se
hepatoesplenomegalia dolorosa de pequenas dimensões, além de micropoliadenopatia
generalizada. O dado laboratorial mais característico é a intensa leucocitose com grande
eosinofilia. O diagnóstico deve levar em conta dados epidemiológicos, clínicos e
laboratoriais, assinalando-se que o exame parasitológico de fezes somente se torna
positivo para ovos de S. mansoni cerca de 35 dias após a infecção. Embora
ocasionalmente esse quadro possa apresentar gravidade, costuma ser autolimitado a não
mais de trinta a quarenta dias, havendo remissão completa dos sinais e dos sintomas. Se
não diagnosticado e tratado, o paciente evolui para as formas crônicas da doença.

Pedro Kallas Curiati 887


Dentre as formas crônicas da esquistossomose, a mais frequente é a intestinal.
Trata-se da tradução clínica da retite esquistossomótica. Se expressa por sintomas e
sinais escassos, incaracterísticos e comuns a outros distúrbios gastrointestinais, com
diarreia esporádica, às vezes com características de disenteria, e dores abdominais
intermitentes, sobretudo no hipogástrio e na fossa ilíaca esquerda. O diagnóstico é
realizado de forma casual, durante a execução de exame protoparasitológico de fezes.
Quando o número de vermes é maior, também é maior a carga de ovos. Parte
migra através da corrente sanguínea do sistema porta, atingindo o fígado, onde os ovos
são retidos nos vasos pré-sinusoidais. Sua presença leva à formação de granulomas,
com fibrose e obstrução do fluxo sanguíneo. Surge aumento do volume do órgão, que
passa a ser palpável ao exame físico, caracteristicamente com predomínio do lobo
esquerdo. Em função da fibrose, a superfície pode ser irregular e a consistência
progressivamente endurecida. Trata-se da forma hepatointestinal da esquistossomose.
A forma hepatoesplênica pode ser dividida em casos com e sem hipertensão
portal, em que a esplenomegalia tem origem proliferativa em resposta a estímulos
antigênicos prolongados, sendo totalmente reversível com o tratamento. Nos casos
classificados como esquistossomose hepatoesplênica com hipertensão portal ocorre
elevada carga parasitária e, consequentemente, de ovos. Cessada a capacidade de
dilatação do contingente vascular, instala-se, de forma progressiva, regime de
hipertensão portal, com aparecimento de esplenomegalia de caráter congestivo e
circulação colateral. O aumento da pressão hidrostática no sistema porta, quando
associado a uma queda da pressão coloide no sangue portal, ocasiona o surgimento de
ascite em graus variáveis. Hipoalbuminemia pode resultar de desnutrição, hepatopatia
alcoólica, infecção crônica pelos vírus das hepatites B e C ou cirrose pós-necrótica, que
se segue a episódios de hemorragia digestiva alta por ruptura de varizes esofágicas ou
do fundo gástrico. Além disso, desenvolve-se hiperesplenismo, verificado pela
ocorrência de citopenias sanguíneas. Diferentemente do que ocorre nas cirroses em
geral, não há insuficiência hepática grave na esquistossomose não-complicada ou que
não esteja associada a patologias que causem cirrose. Em caso de instalação do final da
puberdade ao início da adolescência, pode ocorrer hipodesenvolvimento pôndero-
estatural. A forma hepatoesplênica com hipertensão portal da esquistossomose é
definida como descompensada quando houver sangramento digestivo alto e/ou ascite. A
trombose da veia porta é uma complicação relativamente frequente.
Existe ainda a possibilidade de ovos atingirem arteríolas, via artéria pulmonar,
onde sua impactação ocasiona a formação de granuloma e fibrose em graus variados. O
acesso dos ovos à circulação pulmonar é maior nas situações em que houver hipertensão
portal com estabelecimento de circulação colateral. Por isso, são mais comuns as formas
pulmonares da esquistossomose nos pacientes com a forma hepatoesplênica. Nas fases
mais avançadas, estão presentes as manifestações correspondentes à hipertensão
pulmonar. Essa forma de esquistossomose pode, em alguns casos, ser acompanhada de
cianose.
O acesso de imunocomplexos aos glomérulos renais, onde são retidos junto à
membrana basal, pode ocasionar o desenvolvimento de glomerulopatias, sendo as mais
comuns a glomerulonefrite mesangioproliferativa, a glomerulonefrite
membranoproliferativa tipos I e III e a glomeruloesclerose segmentar e focal, havendo a
possibilidade de evolução entre esses padrões de glomerulopatia. As manifestações
clínicas podem variar de proteinúria assintomática a síndrome nefrótica.
A presença fortuita de ovos e, consequentemente, de granulomas em ramos
venosos no sistema nervoso central pode levar à ocorrência de mielite, além de várias
formas de comprometimento cerebelar ou encefálico.

Pedro Kallas Curiati 888


Bacteremia prolongada por enterobactérias é uma situação em que o paciente
esquistossomótico passa a apresentar quadro de febre irregular, de curso prolongado,
com o desenvolvimento de hepatoesplenomegalia, queda progressiva do estado geral,
diarreia e fenômenos hemorrágicos. A coexistência de infecção esquistossomótica com
infecção por enterobactérias ocorre, sobretudo, com o gênero Salmonella spp. O verme
tem papel preponderante na patogenia dessa doença, servindo como reservatório para as
enterobactérias, que se multiplicam sobre sua cutícula ou ainda no seu tubo digestivo. O
diagnóstico dessa entidade é feito por meio da identificação de ovos de S. mansoni nas
fezes e o isolamento da enterobactérias em hemocultura ou mielocultura. O diagnóstico
diferencial é feito, sobretudo, com a leishmaniose visceral.

Avaliação complementar

Exames inespecíficos
Os exames inespecíficos não revelam alterações características nas formas
crônicas da doença. O hemograma pode revelar anemia, leucopenia e plaquetopenia nas
formas hepatoesplênicas com hiperesplenismo. As enzimas hepáticas não costumam
estar alteradas de maneira importante. Pode ser observada proteinúria de intensidade
variável nos casos com comprometimento renal.
A ultrassonografia e a endoscopia digestiva alta são exames subsidiários
importantes na avaliação da hipertensão portal e suas consequências. Nas formas
pulmonares, radiografia de tórax revela retificação ou abaulamento do arco médio,
ecocardiograma revela hipertrofia de câmaras direitas e do tronco da artéria pulmonar e
eletrocardiograma revela sobrecarga de câmaras direitas.

Exames específicos
O diagnóstico da esquistossomose baseia-se no encontro de ovos do parasito,
seja em exame parasitológico de fezes, seja em exames histopatológicos, sobretudo da
mucosa retal. Os métodos de exame de fezes mais apropriados são os de sedimentação,
como o de Hoffman e Pons & Janer. A técnica de Kato-Katz tem a vantagem de
permitir a contagem de ovos, fato que tem importância por permitir a avaliação da carga
parasitária. A realização de cinco análises de fezes parece ser superior, em termos de
eficácia diagnóstica, à biópsia retal, devendo esta última ser reservada para situações
especiais. A positividade do exame de fezes ocorre a partir de trinta a trinta e cinco dias
da infecção, com risco de resultado falso-negativo nos primeiros dias das manifestações
clínicas da forma aguda.
Diversas técnicas sorológicas foram desenvolvidas para o diagnóstico da
esquistossomose, destacando-se imunofluorescência indireta e ELISA. Foram
desenvolvidas técnicas para a detecção de antígenos do parasita no soro e na urina.
Também encontram-se disponíveis técnicas de biologia molecular para pesquisa de
DNA do trematódeo nas fezes e no soro de pacientes, com boa sensibilidade e
especificidade em indivíduos com baixa carga parasitária. A intradermorreação com
esquistossomina tem importância epidemiológica.

Diagnóstico diferencial
O diagnóstico diferencial da esquistossomose na sua fase aguda deve ser
realizado com doenças que evoluam sindromicamente com hepatoesplenomegalia febril,
como febre tifoide, brucelose, tuberculose miliar, formas anictéricas de leptospirose,
forma aguda da doença de Chagas e infecções mononucleose “símile”. A intensa
eosinofilia sugere o diagnóstico de esquistossomose aguda.

Pedro Kallas Curiati 889


As formas intestinal e hepatointestinal devem ser diferenciadas de outras
enteroparasitoses e as formas hepatoesplênicas enquadram-se sindromicamente como
hepatoesplenomegalia afebris, devendo ser distinguidas das cirroses hepáticas em geral,
bem como da síndrome de Budd-Chiari. A observação de hepatomegalia com
predomínio do lobo esquerdo em paciente com leishmaniose visceral pode sugerir a
concomitância das duas doenças.

Tratamento
O tratamento da esquistossomose baseia-se na utilização de fármacos
específicos, tendo por objetivo a erradicação dos vermes adultos. Está indicado em
todos os casos parasitologicamente ativos, mesmo nas formas mais graves da doença,
visto que pode haver involução, mesmo que parcial, das alterações hepáticas e da
hipertensão portal.
Atualmente, as drogas disponíveis para quimioterapia são Praziquantel e
Oxamniquine. As taxas de cura após tratamento em dose única são similares para ambas
as droga, mas o Praziquantel tem menos efeitos adversos e tem ação contra as várias
espécies de Schistosoma. Ambos os fármacos devem ser evitados em mulheres grávidas
e nutrizes.
O Praziquantel, apresentado na forma de comprimidos de 150mg e 500mg, deve
ser administrado em dose única de 50-60mg/kg por via oral. Os efeitos adversos são
predominantemente gastrointestinais.
O Oxamniquine, apresentado na forma de comprimidos de 250mg, deve ser
administrado em dose única de 12.5-15.0mg/kg por via oral. Além de efeitos adversos
relacionados com o sistema digestivo, pode haver neurotoxicidade, com sonolência,
tontura e, mais raramente, convulsões.
O controle de cura pode ser realizado pela realização de seis exames de fezes
com intervalo mensal, sendo o primeiro deles feito quarenta e cinco a sessenta dias após
o tratamento.
Tratamento cirúrgico para alívio da hipertensão portal pode ser indicado em
alguns casos, seja pela realização de derivações porto-cava ou espleno-renal.
Desvantagens incluem encefalopatia hepática pós-operatória e eficácia apenas
temporária. Métodos mais conservadores incluem a esplenectomia com desconexão
ázigo-portal. A escleroterapia e a ligadura elástica das varizes esofagianas são métodos
bem menos invasivos e menos complexos que, embora com efeitos benéficos apenas
temporários, permitem uma prevenção adequada da hemorragia digestiva alta ao longo
do tempo na maioria dos casos. Esses procedimentos devem ser associados com
medidas farmacológicas para controle da hipertensão portal, representado pela
utilização crônica de betabloqueadores por via oral.

Prevenção
Estabelecimento de rede de saneamento básico constituída por sistemas de
tratamento e fornecimento domiciliar de água e recolhimento e tratamento de dejetos
domiciliares.
Controle dos planorbídeos.
Tratamento dos seres humanos infectados.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 7: alergia e imunologia clínica, doenças da pele, doenças infecciosas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 890


FEBRE AMARELA
Epidemiologia
A letalidade global por febre amarela é de 5-10%. No entanto, oscila entre 40%
e 60% no Brasil. A vacinação representou um impacto positivo para a redução de casos,
mas ainda existem novos diagnósticos.

Transmissão
A febre amarela possui um ciclo simples, tipo vetor-hospedeiro, sendo o homem
um hospedeiro acidental.
A forma urbana, adquirida nas cidades, ainda ocorre na África. O vetor dessa
forma é o Aedes aegypti, o mesmo da dengue.
No ciclo silvestre, os mosquitos Haemagogus e Sabethes desempenham o papel
de vetor e reservatório do vírus, enquanto os macacos são, a exemplo do homem,
hospedeiros amplificadores da infestação. Os mosquitos apresentam hábitos diurnos,
são facilmente infectados pelos vírus e habitam as copas das árvores. Acometem o
homem que adentra a floresta por trabalho ou lazer sem vacinação pregressa.

Quadro clínico
O período de incubação da doença é curto, de três a sete dias. Todo paciente
residente ou oriundo de uma área de risco há quinze dias ou menos, sem vacina ou com
histórico vacinal desconhecido e que apresente um quadro febril com duração de até
sete dias deve ser considerado um caso suspeito de febre amarela.
A febre amarela possui apresentações clínicas que variam desde formas
assintomáticas ou oligossintomáticas, em 65% dos casos, até formas fulminantes, em
5% dos casos.
Sintomatologia presente em intensidade máxima e acompanhada de dores
abdominais, febre sem concomitância de taquisfigmia (sinal de Faget), fenômenos
hemorrágicos severos, como melena, hematêmese, petéquias e equimoses, oligoanúria e
comprometimento do sistema nervoso central, com agitação, sonolência, confusão ou
coma, sugerem a forma fulminante da febre amarela. Nas formas graves, pelo menos um
dos componentes da tríade que caracteriza a disfunção hepato-renal está presente,
enquanto que na forma fulminante todos os componentes estão presentes, com icterícia,
hematêmese e oligúria. Há hepatomegalia.
O início das manifestações nas formas graves se dá de forma abrupta, com febre
elevada, cefaleia intensa e mialgia. Em seguida, surgem náusea e vômitos. Pode haver
um período de remissão por 24-48 horas, seguido pela intensificação dos sintomas
dispépticos, com hematêmese e outras manifestações hemorrágicas, em geral
acompanhadas de plaquetopenia severa. Dá-se ainda o aparecimento de icterícia
decorrente de bilirrubina conjugada, com valores superiores a 20-30mg/mL, e elevação
de transaminases. Por volta do sétimo dia de doença surge insuficiência renal e pode
ocorrer encefalopatia. Se superada esta fase, ocorre uma recuperação lenta, progressiva
e plena, sem sequelas.
Forma Evolução Principais Grupos mais acometidos
clínica (dias) manifestações
Leve Até 2 Febre e cefaleia Crianças com anticorpos maternos IgG

Pedro Kallas Curiati 891


Moderada 2-3 Febre e cefaleia Pessoas com imunidade para outros vírus do
Mialgia, artralgia, gênero Flavivirus
náusea, vômitos e
astenia
Grave 3-5 Febre e cefaleia Agricultores, pescadores, caçadores, lenhadores,
Mialgia, artralgia, turistas e outros grupos suscetíveis com
náusea, vômitos e imunidade cruzada para vírus do gênero
astenia Flavivirus
Icterícia, hematêmese
ou oligúria
Maligna Superior ou Todos os sintomas Agricultores, pescadores, caçadores, lenhadores,
igual a 6 clássicos turistas e outros grupos suscetíveis sem imunidade
cruzada para vírus do gênero Flavivirus

Períodos Forma de Quadro clínico Duração


apresentação média
Infeccioso Leve Febre discreta e cefaleia. Às vezes, tontura e mal-estar Algumas
ou de evolução fugaz. horas a dois
congestivo dias
Moderada Febre alta e cefaleia de início abrupto, náusea, vômitos, De dois a
calafrios, mialgia, prostração, congestão conjuntival, quatro dias
icterícia leve e sinal de Faget
Remissão - - Poucas
horas a dois
dias
Toxêmico Grave Exacerbação dos sintomas das formas menos graves, dor De três a
epigástrica, diarreia, vômitos com aspecto em “borra de oito dias
café”, oligúria ou anúria e sintomas de insuficiência
hepática evidenciados por icterícia, melena, hematêmese
e outras manifestações hemorrágicas

Avaliação complementar
Diante de um caso suspeito, faz-se necessária a confirmação diagnóstica. No
caso confirmado, além da presença de sintomas compatíveis, é realizado o diagnóstico
específico por meio de detecção viral com isolamento, imuno-histoquímica ou reação
em cadeia da polimerase, ou de sorologias, com IgM em não-vacinados ou elevação em
pelo menos quatro vezes do título de IgG. A partir do quinto dia de sintomas é possível
realizar a pesquisa de IgM específica contra o vírus pela técnica de ELISA ou de
inibição da hemaglutinação. Esses anticorpos permanecem por até três meses, mas em
vacinados deve-se comparar o título primário com o de convalescença, sendo uma
elevação maior do que quatro vezes compatível com infecção recente. No caso de óbito,
deve-se procurar o RNA viral por técnicas de reação em cadeia da polimerase no soro
ou no fígado.
Em relação aos exames inespecíficos, destaca-se proteinúria maciça. Devem ser
solicitados hemograma, coagulograma, fibrinogênio, sódio e potássio séricos, uréia e
creatinina séricas, transaminases, bilirrubinas, creatinofosfoquinase, gasometria arterial,
urina I e hemocultura.
O perfil sorológico para hepatites virais deve ser solicitado.

Diagnóstico diferencial
O diagnóstico diferencial é feito com outras causas de febre hemorrágica, como
dengue, hantavirose, febre purpúrica brasileira e febre maculosa brasileira, que
habitualmente não cursam com icterícia. Outro diagnóstico diferencial é a leptospirose,
caracterizada por hipocalemia e elevação discreta de transaminases. As infecções

Pedro Kallas Curiati 892


bacterianas graves também fazem parte do diagnóstico. As hepatites virais agudas
cursam com elevação importante de alanina aminotransferase e bilirrubinas, enquanto
que na febre amarela os níveis de aspartato aminotransferase, por conta do
comprometimento muscular e cardíaco, podem ser superiores. A malária grave deve ser
diferenciada com base no período de incubação e de exposição, além da realização de
pesquisa direta do Plasmodium.

Tratamento
Não há uma terapia específica para a febre amarela. Para as formas graves, o
tratamento deve ser realizado com medidas intensivas, com suporte clínico e reposição
das perdas hematológicas e hídricas, preservando a função renal e o equilíbrio
hemodinâmico. Considerando a disfunção hepática severa, o suporte nutricional
específico e a manutenção da reserva glicêmica devem ser observados com atenção. A
disfunção renal pode levar à indicação precoce de hemodiálise. Deve-se evitar o uso de
anti-inflamatórios não-hormonais e outros medicamentos que possam deteriorar a
função renal e aumentar os riscos de sangramento.
É importante que, nos casos suspeitos com forma moderada, os pacientes sejam
hospitalizados e monitorizados cuidadosamente ante o risco de progressão. Nos casos
graves e fulminantes, os pacientes devem ser internados em unidade de terapia
intensiva.

Prevenção
A febre amarela é uma doença de notificação compulsória no Brasil. Assim,
diante de uma suspeita, é obrigatório notificar o caso às autoridades sanitárias, que
desencadeiam uma investigação epidemiológica, que deve resultar em vacinação de
bloqueio. Dessa forma, a vacina com vírus vivos atenuados é a medida mais eficaz para
a prevenção da febre amarela, uma vez que o combate aos vetores silvestres é inviável.
A vacina é recomendada aos moradores de regiões endêmicas ou aos indivíduos que
viajam para elas.
A vacinação abaixo dos seis meses de vida é contraindicada pelo risco de
encefalite viral. Portadores de imunodeficiências não devem, salvo situações
individualizadas, ser vacinados. As gestantes também possuem contraindicação relativa
a vacinação, pelo risco de transmissão ao concepto. Por fim, indivíduos com alergia à
proteína do ovo não devem ser imunizados.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 7: alergia e imunologia clínica, doenças da pele, doenças infecciosas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 893


INFECÇÃO PELO HIV E
SÍNDROME DA
IMUNODEFICIÊNCIA ADQUIRIDA
Aspectos virológicos
O vírus da imunodeficiência humana (HIV) classifica-se entre os retrovírus, no
gênero Lentivírus. Duas variantes genômicas são atualmente conhecidas, HIV-1 e HIV-
2. Ambas são capazes de infectar o hospedeiro humano e nele provocar doença,
induzindo lenta e progressivamente uma síndrome de imunodeficiência e degeneração
do sistema nervoso central.

Patogenia
A transmissão sexual do HIV-1 pode ocorrer por exposição das mucosas do trato
genital e gastrointestinal a sêmen, fluido pré-seminal, secreção cervicovaginal ou
sangue contaminados. As doenças sexualmente transmissíveis aumentam a
concentração do HIV-1 nas secreções mucosas, elevando o risco de transmissão do
vírus.

Espectro clínico da infecção pelo HIV-1


A infecção pelo HIV-1 cursa com amplo espectro de apresentações clínicas,
desde a fase aguda, que pode ser assintomática, oligossintomática ou se manifestar
como síndrome retroviral aguda, até a fase avançada da doença, com as manifestações
definidoras da síndrome da imunodeficiência humana. Em indivíduos não tratados,
estima-se em dez anos o tempo médio entre o contágio e o aparecimento da doença.
Para estimar o prognóstico e avaliar a indicação de início de terapia anti-
retroviral, monitora-se a evolução da contagem de linfócitos T CD4 positivos e a
quantificação plasmática da carga viral do HIV. A contagem de linfócitos T CD4
positivos é utilizada internacionalmente como marcador do estado imunológico dos
indivíduos. No caso de ter havido algum evento clínico, a contagem de linfócitos T CD4
positivos deve ser realizada cerca de quatro semanas após seu controle. Já a
quantificação da carga viral serve como marcador do risco de queda subsequente nas
contagens de linfócitos T CD4 positivos.

Síndrome retroviral aguda


A infecção aguda pelo HIV ou síndrome retroviral aguda é caracterizada por
uma doença transitória sintomática, que ocorre logo após a exposição ao HIV. Está
associada à intensa replicação viral e a uma resposta imunológica específica. Após a
exposição ao HIV-1, manifestações clínicas podem ocorrer em cerca de 50-90% dos
indivíduos.
O quadro clínico tem duração entre uma e quatro semanas, assemelha-se à
mononucleose infecciosa e cursa com viremia plasmática elevada e queda transitória,
mas significativa, da contagem de linfócitos T CD4 positivos. O início dos sintomas
geralmente ocorre entre duas a quatro semanas após a exposição, porém já foi descrito
em até dez meses após a infecção primária. Os sintomas, quando ocorrem, incluem
febre alta por um a dois dias, sudorese e linfadenomegalia transitória, caracterizada por
nódulos indolores, simétricos e móveis principalmente nas cadeias cervical anterior e

Pedro Kallas Curiati 894


posterior, submandibular, occipital e axilar. Podem ocorrer, ainda, esplenomegalia,
fadiga, falta de apetite, depressão, faringite, mialgia, artralgia e úlceras cutâneas e de
mucosa oral e/ou genital, algumas vezes atingindo o esôfago, com intensa odinofagia.
Alguns pacientes desenvolvem exantema após o início da febre, com duração de poucos
dias. Esse exantema frequentemente acomete face, pescoço e/ou tórax superior, mas
pode se disseminar e envolver braços, pernas e regiões palmares e plantares.
Podem ocorrer sintomas digestivos, como náusea, vômitos, diarreia e perda de
peso. É raro comprometimento do fígado, com hepatoesplenomegalia, e do pâncreas. A
apresentação neurológica é composta por cefaleia e dores nos olhos, com piora à
movimentação ocular. Meningite linfomonocitária, ou asséptica, pode se instalar,
cursando com febre, dor de cabeça, confusão mental, distúrbios da personalidade e
episódios não-controlados da atividade elétrica. Neurite periférica sensitiva ou motora,
algumas vezes com paralisia do nervo facial, e síndrome de Guillain-Barré completam o
espectro de manifestações neurológicas nessa fase da doença.
O diagnóstico clínico da infecção aguda pelo HIV geralmente passa
despercebido por seu caráter inespecífico ou pela ausência de sintomas. Assim, o clínico
deve estar atento para avaliar não só os dados do exame físico e as queixas, mas
também a situação epidemiológica, incluindo história de possível exposição de risco
para o HIV, tais como relações sexuais desprotegidas, utilização de drogas intravenosas
e acidente com material biológico.
Avaliação laboratorial pode revelar leucopenia, trombocitopenia e aumento de
transaminases.
No diagnóstico diferencial, inclui-se febre de origem desconhecida com
exantema máculo-papular e linfadenopatia. Ademais, na maioria das vezes, o
diagnóstico não é realizado devido à semelhança clínica com outras doenças virais e à
ausência de exames laboratoriais que detectem anticorpos específicos contra o HIV.

Latência clínica e fase sintomática


O tempo para o desenvolvimento da síndrome da imunodeficiência adquirida
após a soroconversão é, em média, de dez anos. Com exceção da linfadenopatia, na fase
de latência clínica, o exame físico é normal.
A história natural da infecção em pacientes com e sem linfadenopatia é
semelhante. De forma geral, a involução dos linfonodos acompanha a evolução da
doença. O diagnóstico diferencial nessa fase inclui as doenças linfoproliferativas e a
tuberculose, embora, geralmente, as características dos linfonodos nessas patologias
sejam marcadamente diferentes.
Podem ocorrer alterações nos exames laboratoriais, sendo a plaquetopenia um
achado comum, embora sem qualquer repercussão clínica na maioria das vezes. Alguns
indivíduos podem, também, apresentar anemia normocrômica normocítica e leucopenia
discretas. Lesões cutâneas inespecíficas, tais como foliculite, molusco contagioso,
dermatite seborreica e prurigo podem estar presentes antes do aparecimento de doenças
definidoras da síndrome da imunodeficiência adquirida.
Enquanto a contagem de linfócitos T CD4 positivos permanece acima de 350
células por mm3, os episódios infecciosos mais frequentes geralmente são de etiologia
bacteriana, como as infecções respiratórias ou mesmo a tuberculose, incluindo a forma
pulmonar cavitária. Com a progressão da infecção, começam a ser observadas
apresentações atípicas das infecções, resposta tardia à antibioticoterapia e/ou reativação
de infecções antigas como, por exemplo, tuberculose e neurotoxoplasmose. Podem
surgir sintomas constitucionais, como febre baixa, sudorese noturna, fadiga, diarreia
crônica, cefaleia, alterações neurológicas, infecções bacterianas e lesões orais, como a

Pedro Kallas Curiati 895


leucoplasia oral pilosa.

Síndrome da imunodeficiência adquirida


O aparecimento de infecções oportunistas e neoplasias é definidor da síndrome
da imunodeficiência adquirida. Entre as infecções oportunistas destacam-se pneumonia
por Pneumocystis jirovecii, toxoplasmose do sistema nervoso central, tuberculose
pulmonar atípica ou disseminada, meningite criptocócica e retinite por citomegalovírus.
As neoplasias mais comuns são sarcoma de Kaposi, linfomas não-Hodgkin e câncer de
colo uterino em mulheres jovens. Nessas situações, a contagem de linfócitos T CD4
positivos está, na maioria das vezes, abaixo de 200 células por mm³.
Além das infecções e das manifestações não-infecciosas, o HIV pode causar
doenças por dano direto a certos órgãos ou devidas a processos inflamatórios, tais como
miocardiopatia, nefropatia e neuropatia, que podem estar presentes durante toda a
evolução da infecção.

Classificação do Centers for Disease Control and Prevention (CDC)


A categoria A compreende os pacientes assintomáticos, com infecção aguda por
HIV ou linfadenomegalia generalizada progressiva.
Na categoria B, encontram-se pacientes com manifestações que representam
deterioração gradual da imunidade, antes da imunodeficiência severa estabelecida,
como angiomatose bacilar, candidíase oral, candidíase vulvovaginal de repetição ou
com difícil resposta ao tratamento, aftas orais, displasia cervical, carcinoma cervical in
situ, febre superior a 38.5º C persistente, diarreia por mais de um mês, perda de peso
superior a 10%, leucoplasia pilosa oral, herpes-zoster com mais de um dermátomo ou
mais que um episódio, púrpura trombocitopênica idiopática, listeriose e neuropatia
periférica pelo HIV.
As manifestações da categoria C são aquelas consequentes à imunodeficiência
avançada, consideradas doenças definidoras de síndrome da imunodeficiência adquirida.
Incluem câncer cervical invasivo, candidíase esofágica, candidíase de traqueia,
brônquios ou pulmões, citomegalovirose em qualquer local que não seja fígado, baço e
linfonodos, criptococose extrapulmonar, criptosporidíase intestinal crônica com duração
superior a um mês, herpes simples mucocutâneo com duração superior a um mês,
histoplasmose disseminada, isosporidiose intestinal crônica com duração superior a um
mês, leucoencefalopatia multifocal progressiva, linfoma não-Hodgkin de células B,
linfoma maligno de células grandes ou pequenas não-clivadas tipo Burkitt ou não-
Burkitt, linfoma maligno imunoblástico sem outra especificação, linfoma primário de
sistema nervoso central, pneumonia por P. jirovecii, micobacteriose disseminada em
qualquer órgão que não pulmão ou linfonodos, exceto tuberculose ou hanseníase,
reativação da doença de Chagas com meningoencefalite e/ou miocardite, sarcoma de
Kaposi, sepse recorrente por bactérias do gênero Salmonella não-tifoide, tuberculose
extrapulmonar ou disseminada e neurotoxoplasmose.

Métodos diagnósticos da infecção pelo HIV


O diagnóstico sorológico da infecção pelo HIV é baseado no desenvolvimento
de anticorpos anti-HIV após a exposição ao vírus. Antes da realização da testagem para
o HIV, é necessário realizar aconselhamento pré e pós-teste, fornecendo informações
acessíveis sobre formas de transmissão, significados dos resultados dos exames e
período de janela imunológica. É necessário sempre obter o consentimento do usuário
ou de seu responsável.
Os testes para detectar anticorpos anti-HIV podem ser classificados como

Pedro Kallas Curiati 896


ensaios de triagem, desenvolvidos para detectar todos os indivíduos infectados, e
ensaios confirmatórios, desenvolvidos para identificar os indivíduos que não estão
infectados, mas têm resultados reativos nos ensaios de triagem. O ensaio de triagem
utilizado no Brasil é o ELISA, capaz de detectar anticorpos anti-HIV-1 e anti-HIV-2, e
os ensaios confirmatórios incluem imunofluorescência indireta, imunoblot e western
blot. O diagnóstico sorológico da infecção pelo HIV somente poderá ser confirmado
após a análise de no mínimo duas amostras de sangue coletadas em momentos
diferentes, preferencialmente com intervalo de trinta dias.

Janela imunológica
Anticorpos específicos contra o HIV começam a ser produzidos após o contágio.
No entanto, o tempo exato para seu aparecimento depende de vários fatores,
relacionados ao hospedeiro e ao agente viral, podendo ocorrer níveis baixos durante a
infecção recente. O período total para a detecção de anticorpos, isto é, a janela
imunológica, dura, em média, 29 dias. O Ministério da Saúde recomenda que o teste
anti-HIV seja realizado 60 dias após uma possível infecção.

Pedro Kallas Curiati 897


Diagnóstico da infecção pelo HIV por testes rápidos
Os testes rápidos são de fácil execução, não requerem equipamentos ou mão-de-
obra especializada e podem ser executados em poucas etapas, em um tempo inferior a
20 minutos. Em regiões de baixa prevalência da infecção pelo HIV, o valor preditivo
positivo de um único teste pode não ser suficientemente alto. Em geral, o aumento da
prevalência da infecção na população, incrementa a probabilidade de que o indivíduo
com resultado positivo esteja realmente infectado.
Se dois testes rápidos iniciais apresentarem resultados positivos, a amostra será
considerada positiva para o HIV. Da mesma forma, se dois testes rápidos apresentarem
resultados negativos, a amostra será considerada negativa para o HIV. Um terceiro teste
será utilizado somente quando os testes iniciais apresentarem resultados discordantes,
sendo que o terceiro teste definirá o resultado da amostra, havendo necessidade de
coletar uma nova amostra após trinta dias para repetir todo o algoritmo.

Abordagem inicial do adulto infectado pelo HIV

Anamnese
Informações específicas sobre a infecção pelo HIV, com data do primeiro exame
anti-HIV, documentação do teste, tempo provável de soropositividade, situações de
risco para infecção, presença ou história de doenças oportunistas, contagem de
linfócitos T CD4 positivos e/ou carga viral prévias, uso prévio de terapia anti-retroviral
e efeitos adversos relacionados e compreensão sobre a doença.
Informações sobre o risco, com vida sexual, utilização de preservativos, história
de sífilis e outras doenças sexualmente transmissíveis, abuso de tabaco, álcool e outras
drogas, uso de drogas injetáveis e interesse em reduzir danos à saúde.
História médica atual e passada, com história de doença mental, história de
tuberculose, hospitalizações, outras doenças e uso de práticas complementares e/ou
alternativas.
História reprodutiva, com desejo de ter filhos e uso de métodos contraceptivos.
História social, com rede de apoio social, condições de domicílio, condições de
alimentação, emprego e aspectos legais.
História familiar, com doenças cardiovasculares, dislipidemia e diabetes
mellitus.

Exame físico
Em pele, pesquisar sinais de dermatite seborreica, foliculite, micose, molusco
contagioso e sarcoma de Kaposi.
Em cabeça e pescoço, realizar, sempre que possível, fundoscopia quando
contagem de linfócitos T CD4 positivos inferior a 200 por mm3. Na orofaringe,
pesquisar candidíase oral e/ou leucoplasia pilosa.
Pesquisar linfadenopatia.
Em abdômen, pesquisar hepatomegalia e esplenomegalia.
Em sistema nervoso central, pesquisar sinais focais e avaliar estado cognitivo.
Em região genital, anal e perianal, pesquisar corrimentos, úlceras e verrugas.

Prevenção
Recomenda-se que seja feita avaliação do risco cardiovascular global utilizando
a escala de Framingham como rotina em toda pessoa com infecção pelo HIV.
Além da adoção de um estilo de vida que inclua atividade física rotineira e

Pedro Kallas Curiati 898


alimentação adequada, é necessário abordar especificamente as medidas de prevenção
da transmissão do HIV o mais precocemente possível. Essa abordagem tem o objetivo
de prevenir a transmissão do HIV para outras pessoas, evitar a reinfecção e a aquisição
de outros agravos, como sífilis, vírus da hepatite B e/ou vírus da hepatite C.
Entre as medidas que devem ser adotadas sistematicamente estão aconselhar o
paciente a reduzir situações de risco, pesquisar sintomas e tratar doenças sexualmente
transmissíveis para reduzir o risco de reinfecção pelo HIV, estimular avaliação das
parcerias sexuais, discutir o uso de álcool e outras drogas para redução de danos e
disponibilizar insumos de prevenção, com orientação sobre o uso correto.

Avaliação laboratorial
A abordagem laboratorial no início do acompanhamento clínico de pacientes
assintomáticos precede e auxilia a avaliação do benefício de iniciar terapia anti-
retroviral, permitindo complementar a avaliação da condição geral de saúde, bem como
pesquisar a presença de comorbidades. A contagem de linfócitos T CD4 positivos
estabelece o risco de progressão para síndrome da imunodeficiência adquirida e morte,
sendo o indicador laboratorial mais importante em pacientes assintomáticos para definir
o momento de iniciar o tratamento. Para esse grupo de pacientes, a carga viral tem
maior importância quando a contagem de linfócitos T CD4 positivos estiver próxima a
500 por mm3, auxiliando a estimar a intensidade da deterioração imunológica no
período até a próxima consulta agendada, apoiando assim a decisão de iniciar o
tratamento.
O teste tuberculínico (PPD) é um importante marcador de risco para o
desenvolvimento de tuberculose. Quando negativo, inferior a 5mm, deve ser repetido
anualmente para orientar a indicação de quimioprofilaxia com Isoniazida. Como parte
dessa avaliação, antes de iniciar a quimioprofilaxia, deve-se excluir tuberculose ativa
usando critérios clínicos, exame de escarro e radiografia de tórax.
Exame Periodicidade e comentários
Hemograma Repetir a cada três a seis meses ou, com maior frequência, em caso de sintomas
ou uso de drogas mielotóxicas
Repetir a cada três a quatro meses para pacientes em tratamento anti-retroviral
Contagem de Repetir a cada três a seis meses, quando valores discrepantes ou, com maior
linfócitos T CD4 frequência, quando houver tendência de queda
positivos Repetir a cada três a quatro meses para pacientes em tratamento anti-retroviral
Carga viral Repetir quando contagem de linfócitos T CD4 positivos próxima a 500 células
por mm3
Repetir a cada três a quatro meses para pacientes em tratamento anti-retroviral
Avaliação hepática e Repetir uma vez ao ano
renal Repetir a cada três a quatro meses para pacientes em tratamento anti-retroviral
Exame básico de Inicial para pesquisa de proteinúria relacionada ao HIV
urina Repetir a cada três a quatro meses para pacientes em uso de medicamentos
nefrotóxicos
Exame Inicial
parasitológico de
fezes
Colpocitologia Repetir em seis meses e, se normal, anualmente
oncótica
Citologia oncótica Opcional, devendo ser considerada em pessoas que tenham prática receptiva anal
anal
PPD Repetir anualmente caso o indivíduo seja não reator
Nos casos de contato com tuberculose ou PPD superior ou igual a 5mm, já está
indicada a quimioprofilaxia, não sendo necessário, portanto, realizar o exame

Pedro Kallas Curiati 899


Anti-HVA Opcional, com triagem somente para candidatos a vacina, ou seja, portadores dos
vírus das hepatites B ou C, homens que fazem sexo com homens e usuários de
drogas injetáveis
AgHBs e anti-HBc Inicial, com indicação de vacina em caso de resultado negativo para ambos
Anti-HCV Inicial, com repetição anual em pessoas com exposição
VDRL Inicial
Pacientes infectados por HIV com reações sorológicas para sífilis positivas
devem ser submetidos a punção liquórica em caso de sífilis latente tardia ou de
duração desconhecida, presença de sinal ou sintoma neurológico ou evidência
sorológica de falência após tratamento
Radiografia de tórax Cicatriz de tuberculose sem tratamento prévio indica quimioprofilaxia com
Isoniazida
IgG para Repetir anualmente em caso de resultado negativo
toxoplasmose
Sorologia para Considerar apenas em pacientes com manifestações neurológicas sugestivas e/ou
HTLV I e II com CD4 elevado e discrepante
Sorologia para Inicial em pacientes oriundos de áreas endêmicas
Chagas
Dosagem de lipídios Repetir antes do início do tratamento para monitorar dislipidemia
Repetir a cada três a quatro meses para pacientes em terapia anti-retroviral
Glicemia de jejum Inicial
Repetir a cada três a quatro meses para pacientes em terapia anti-retroviral

Imunizações
Adultos e adolescentes que vivem com HIV podem receber todas as vacinas do
calendário nacional, desde que não apresentem deficiência imunológica importante. À
medida que aumenta a imunodepressão, eleva-se também o risco relacionado à
administração de vacinas de agentes vivos, bem como se reduz a possibilidade de
resposta imunológica consistente. Sempre que possível, deve-se adiar a administração
de vacinas em pacientes sintomáticos ou com imunodeficiência grave, caracterizada por
contagem de linfócitos T CD4 positivos inferior a 200 células por mm3, até que um grau
satisfatório de reconstituição imune seja obtido com o uso de terapia anti-retroviral, o
que proporciona melhora na resposta vacinal e reduz o risco de complicações pós-
vacinais. A administração de vacinas com vírus vivos atenuados em pacientes com
imunodeficiência deve ser condicionada à análise individual de risco-benefício e não
deve ser realizada em casos de imunodepressão grave.
A vacina contra Haemophilus influenzae tipo b é indicada para menores de
dezenove anos de idade não-vacinados, com duas doses com intervalo de dois meses.
A vacina contra Varicela zoster não possui dados que respaldem seu uso
rotineiro em adultos e adolescentes HIV positivos suscetíveis, devendo-se avaliar risco
e benefício conforme a situação imunológica.
A vacina para febre amarela, contraindicada em gestantes, não tem eficácia e
segurança estabelecidas para pacientes portadores do HIV. Pode ser recomendada
levando-se em consideração a condição imunológica do paciente e a situação
epidemiológica local. É indicada em áreas de alto risco para indivíduos com contagem
de linfócitos T CD4 positivos superior a 350 células por mm3. Não é indicada em áreas
de baixo risco nem para indivíduos com contagem de linfócitos T CD4 positivos
inferior a 200 células por mm3. Também não é indicada em áreas de médio risco para
indivíduos com contagem de linfócitos T CD4 positivos entre 200 e 350 células por
mm3.
A vacina dupla do adulto, contra difteria e tétano, deve ser administrada em três
doses com intervalo de dois meses e reforçada a cada dez anos. Gestantes devem seguir
o calendário habitual.

Pedro Kallas Curiati 900


A vacina contra hepatite A é indicada para todos os indivíduos suscetíveis à
hepatite A portadores de hepatopatia crônica, incluindo portadores crônicos dos vírus
das hepatites B e/ou C. São administradas duas doses com intervalo de seis meses.
A vacina contra hepatite B está indicada para todos os indivíduos suscetíveis. A
imunogenicidade e a eficácia são inferiores em pacientes imunodeprimidos em relação
aos imunocompetentes. Doses maiores e/ou número aumentado de doses são
necessários para indução de anticorpos em níveis protetores. Por este motivo, são
recomendadas quatro doses de vacina contra hepatite B, com o dobro da dose habitual
(0, 1, 2 e 6 ou 12 meses).
A vacina polissacarídica 23-valente contra Streptococcus pneumoniae é indicada
para indivíduos com contagem de linfócitos T CD4 positivos superior a 200 células por
mm3. Deve-se administrar uma dose por via intramuscular a cada cinco anos.
A vacina inativada trivalente contra o vírus influenza é indicada para todos os
indivíduos infectados pelo HIV antes do período da influenza, com uma dose anual de
0.5mL por via intramuscular.

Tratamento
O objetivo básico do tratamento antirretroviral é diminuir a mortalidade e a
morbidade consequentes à infecção pelo HIV. A supressão da replicação viral leva à
recuperação ou preservação da função imune e, com isso, à diminuição da frequência de
infecções e neoplasias oportunistas. Estudos recentes sugerem que a supressão viral
também diminui a inflamação e a ativação imunológica crônicas, que podem estar
associadas a algumas condições clínicas previamente não consideradas como associadas
à infecção pelo HIV, como eventos cardiovasculares.

Critérios para iniciar a terapia anti-retroviral


Pacientes sintomáticos, independentemente da contagem de linfócitos T CD4
positivos. Nessa categoria incluem-se todos que apresentaram qualquer condição
definidora de síndrome da imunodeficiência adquirida. Entretanto, enfatiza-se a
necessidade de iniciar o tratamento em algumas situações clínicas não-definidoras de
síndrome da imunodeficiência adquirida, tais como sintomas potencialmente
relacionados à infecção do HIV, candidíse oral, púrpura trombocitopênica idiopática,
alterações cognitivas e tuberculose ativa.
Pacientes gestantes, independentemente da presença de sintomas e da contagem
de linfócitos T CD4 positivos.
Pacientes assintomáticos com contagem de linfócitos T CD4 positivos menor ou
igual a 350 células por mm3.
Pacientes assintomáticos com contagem de linfócitos T CD4 positivos entre 350
e 500 células por mm3 na presença de:
- Coinfecção pelo vírus da hepatite B em pacientes com indicação de
tratamento para hepatite B, situação na qual o esquema anti-retroviral
deve incluir Tenofovir e Lamivudina associados a Efavirenz ou inibidor
de protease potencializado com Ritonavir;
- Coinfecção pelo vírus da hepatite C, com abordagem individualizada;
- Idade igual ou superior a 55 anos;
- Doença cardiovascular estabelecida ou risco cardiovascular elevado,
superior a 20% em dez anos segundo o escore de Framingham;
- Nefropatia pelo HIV, que é a causa mais comum de doença renal
crônica em indivíduos infectados pelo HIV;
- Neoplasias, incluindo aquelas não-definidoras de síndrome da

Pedro Kallas Curiati 901


imunodeficiência adquirida;
- Carga viral elevada, superior a 100000 cópias, confirmada em duas
quantificações, sendo descartado o fenômeno de transativação
heteróloga;
Na impossibilidade de acesso à contagem de linfócitos T CD4 positivos, a
terapia anti-retroviral e as profilaxias primárias devem ser consideradas para pacientes
com menos de 1200 linfócitos totais por mm3 ou queda anual superior a 33%,
especialmente se hemoglobina inferior a 10g/dL ou com queda anual superior a 11.6%.

Escolha do esquema inicial


A decisão do médico em relação ao esquema anti-retroviral inicial deve
considerar alguns fatores, tais como potencial de adesão ao regime prescrito, potência e
toxicidade imediata e, em longo prazo, presença de comorbidades, uso concomitante de
outros medicamentos, adequação do esquema à rotina de vida do paciente, interação
com a alimentação e custo do medicamento.
A terapia inicial deve sempre incluir combinações de três drogas, com dois
Inibidores da Transcriptase Reversa Análogos de Nucleosídeos (ITRN) associados a um
Inibidor de Transcriptase Reversa Não-Análogo de Nucleosídeo (ITRNN) ou a um
Inibidor da Protease reforçado com Ritonavir (IP/r). Diante dos resultados de
equivalência dos esquemas com dois ITRN associados a ITRNN em relação aos
esquemas com dois ITRN associados a IP/r e por vantagens potenciais no manejo anti-
retroviral, os esquemas com ITRNN são considerados primeira opção e esquemas com
IP/r são considerados como alternativos para o início de terapia anti-retroviral em
pacientes virgens de tratamento.
A associação de Zidovudina (AZT) com Lamivudina (3TC) é a mais estudada
em ensaios clínicos randomizados, apresenta resposta virológica equivalente a outras
combinações de dois ITRN e habitualmente é bem tolerada. Possui a vantagem de ser
disponível em co-formulação, contribuindo para a comodidade posológica, é
amplamente utilizada em todo mundo e apresenta menor custo comparativo dentro da
classe, o que fortalece a sustentabilidade do acesso universal ao tratamento. Em relação
à comparação entre os ITRN para associação com a Lamivudina (3TC) na terapia
inicial, cabe salientar que a Zidovudina (AZT), o Abacavir (ABC), a Didanosina de
absorção entérica (ddI EC) e o Tenofovir (TDF) possuem eficácia virológica
semelhante. Entretanto, o AZT e o ddI EC têm um perfil de toxicidade menos
favorável, com lipoatrofia, e efeitos adversos hematológicos associados ao AZT e
pancreatite e neuropatia periférica associadas ao ddI EC. O ABC pode causar a
síndrome de hipersensibilidade e o TDF pode causar nefrotoxicidade em alguns casos.
Nos casos de intolerância ao AZT, o ddI EC ou o TDF permanecem como alternativas
para substituí-lo, sempre combinados com o 3TC. Recomenda-se evitar o uso de AZT
em casos de anemia, com hemoglobina inferior a 10.0g/dL, e/ou neutropenia, com
neutrófilos abaixo de 1000/mm3. Nos pacientes que usam AZT, a toxicidade
hematológica é um dos principais efeitos adversos que resultam na modificação do
tratamento. Nos casos de anemia e/ou neutropenia após seu início, com tendência
consistente de queda dos glóbulos vermelhos e/ou brancos, que leve a potencial prejuízo
ao paciente, o AZT deve ser substituído. A lipodistrofia é um efeito adverso do AZT
que ocorre com longo tempo de uso, geralmente não sendo evidenciado antes de um
ano, mas seu aparecimento deve acarretar a troca por outro ITRN com menor perfil de
toxicidade. É caracterizada por acúmulo de gordura visceral no abdômen, acúmulo de
gordura subcutânea, acúmulo de gordura nas mamas, acúmulo de gordura na região
occipital, lipomas e perda de gordura em face, pernas, braços e região glútea. O ABC

Pedro Kallas Curiati 902


permanece recomendado na terapia inicial apenas nas situações de intolerância ao AZT,
ao ddI EC e ao TDF, pois seu custo elevado não se traduz em benefício proporcional
quando comparado às outras opções. A Estavudina (d4T) permanece sendo a última
opção para substituir o AZT, devido ao acúmulo de dados científicos e clínicos
confirmando a forte associação entre uso do d4T e desenvolvimento de lipoatrofia e
dislipidemia. A associação ddI/d4T continua excluída da terapia inicial devido ao maior
potencial de toxicidade. Para os pacientes que estão em uso de d4T na terapia inicial,
deve ser considerada redução da dose para 30mg duas vezes ao dia.
Esquemas que utilizam dois ITRN em associação com ITRNN são de posologia
mais simples, facilitam a adesão ao tratamento, apresentam tempo de supressão viral
mais prolongado e, de modo geral, têm perfil de toxicidade mais favorável. Atenção
especial deve ser dada ao risco de falha terapêutica. Devido à sua baixa barreira
genética, a identificação de falha terapêutica determina a realização do teste de
genotipagem e a troca do esquema o mais precocemente possível. Em relação a essa
classe, os dois ITRNN disponibilizados no Brasil são o Efavirenz (EFZ) e a Nevirapina
(NVP). O EFZ continua sendo preferencial à NVP, exceto em gestantes. Essa opção está
fundamentada na sua elevada potência de supressão viral, na comprovada eficácia em
longo prazo e no menor risco de efeitos adversos sérios. Os efeitos adversos mais
relacionados ao EFZ, como tonturas, alterações do sono, sonhos vívidos e alucinações,
costumam desaparecer após as primeiras duas a quatro semanas de uso. Como esses
efeitos podem ser exacerbados com o uso concomitante de álcool, são frequentes os
relatos de interrupção do EFZ em ocasiões em que o paciente ingere bebidas alcoólicas,
como, por exemplo, em finais de semana. A indicação do EFV deve ser evitada em
pessoas que necessitam ficar em vigília durante a noite, como motoristas, guardas
noturnos, pilotos e profissionais de saúde, devido aos riscos ocasionados pelos efeitos
neuropsiquiátricos. A NVP é uma opção ao EFZ em algumas situações, como em
mulheres que desejam engravidar ou durante a gestação. Entretanto, a NVP apresenta
maior toxicidade hepática, exantema e risco de desencadear síndrome de Stevens-
Johnson. Quando indicado iniciar tratamento com NVP, suas doses devem ser
escalonadamente aumentadas para diminuir o risco de efeitos adversos, notadamente o
exantema. Inicia-se com um comprimido ao dia durante os primeiros 14 dias, seguindo-
se da dose plena de um comprimido a cada 12 horas a partir do 15º dia. Devido à sua
meia-vida mais longa, a interrupção de esquemas anti-retrovirais compostos por ITRNN
deve ser realizada, quando realmente necessária, com cuidado adicional devido ao risco
da manutenção de níveis séricos e teciduais mais prolongados destes em relação às
outras classes componentes do esquema, sejam ITRN ou IP. Sugere-se, para evitar
monoterapia com ITRNN, que estes sejam substituídos por IP ou por ITRN, uma a duas
semanas antes da suspensão de todo esquema.
A combinação de IP com Ritonavir como adjuvante farmacológico tem como
vantagens proporcionar níveis sanguíneos do IP mais elevados, estáveis e prolongados,
além de menor risco de mutações que confiram resistência viral. Esquemas que incluem
a associação de IP/r estão relacionados à maior elevação nas contagens de linfócitos T
CD4 positivos. Por outro lado, é mais frequente a ocorrência de dislipidemias
envolvendo esquemas com IP/r quando comparados a associações que envolvem
ITRNN, particularmente o Efavirenz. Na falha virológica, os esquemas com IP/r
demonstram menor número de mutações de resistência na transcriptase reversa do que
os esquemas com ITRNN, corroborando a hipótese de maior proteção de resistência à
dupla de ITRN conferida pelo IP/r. Caso a escolha da terapia inicial envolva um
esquema composto por um inibidor da protease, o Lopinavir/r (LPV) deve ser o IP/r
preferencial, baseado na experiência de uso, no maior número de estudos clínicos com

Pedro Kallas Curiati 903


seguimento de pacientes em longo prazo e na alta potência e durabilidade que confere
aos esquemas anti-retrovirais. A associação Atazanavir/r (ATV/r) é considerada a
combinação de inibidores da protease alternativa, com 300mg de Atazanavir e 100mg
de Ritonavir. Convém salientar que a combinação LPV/r está associada à maior
ocorrência de dislipidemia comparativamente a outras combinações de IP/r,
particularmente no caso do ATV/r. O ATV/r como alternativa ao LPV/r amplia as
opções de escolha na classe dos IP, já que tem um distinto perfil de toxicidade e maior
facilidade posológica. A opção de ATV sem Ritonavir foi mantida, exclusivamente,
para os raros casos de pacientes virgens de tratamento que não toleram Ritonavir,
mesmo na dose de 100mg por dia, como uma alternativa ao LPV/r e ao ATV/r. Quando
não potencializado com Ritonavir, a dose do ATV deverá ser de 400mg/dia. De forma
geral, o Saquinavir/r e o Fosamprenavir/r permanecem como opção de resgate. As
principais desvantagens do LPV/r são a dificuldade de adesão em longo prazo e seus
eventos adversos, particularmente efeitos metabólicos. O ATV/r está mais relacionado à
icterícia. Nas situações em que causar alterações estéticas importantes para o paciente
pode-se determinar sua substituição por outro IP.
Após o início da terapia anti-retroviral, é recomendável realizar hemograma
completo, perfil lipídico e avaliação hepática em até trinta dias, particularmente em
situações de deficiência imunológica grave. Posteriormente, os controles periódicos
podem ser realizados a cada três a quatro meses. Recomenda-se a avaliação periódica da
função renal, com uréia, creatinina, cálculo da depuração da creatinina endógena e
exame qualitativo de urina, especialmente quando for necessário o uso de Tenofovir. O
PPD deverá ser repetido anualmente nos pacientes não-reatores. Os pacientes com
contagens de linfócitos T CD4 positivos inferiores a 200 células por mm3 na avaliação
inicial devem repetir o PPD logo que seja evidenciada restauração imunológica. Essa
recomendação não se aplica a pacientes com história pregressa de tratamento para
tuberculose ou que já tenham realizado quimioprofilaxia com Isoniazida.

Efeitos adversos
Náusea, anorexia, cefaleia, alterações no paladar, mal-estar e insônia são
frequentes nas primeiras quatro semanas de uso da AZT. O paciente deve ser orientado
a persistir com a medicação, pois após esse período, tais efeitos desaparecem, com
melhora considerável do apetite. A cefaleia pode persistir em alguns pacientes, porém
raramente chega a ser necessária a substituição do medicamento. Conforme já discutido,
o AZT deverá ser suspenso quando ocorrer anemia e/ou neutropenia após seu início,
desde que exista uma tendência consistente de queda dos glóbulos vermelhos e/ou
brancos que leve a potencial prejuízo ao paciente. O 3TC habitualmente é bem tolerado
nas primeiras quatro semanas de terapia inicial, sendo rara a ocorrência de efeitos
adversos. Eventualmente podem ocorrer pancreatite ou neuropatia periférica. O ddI EC
é melhor tolerado que a apresentação tamponada, mas pode ocasionar náusea, vômitos,
diarreia e anorexia, principalmente logo após seu início. Atenção especial é necessária
ao risco de pancreatite, podendo determinar hiperamilasemia com ou sem dor
abdominal ou até mesmo quadro grave de pancreatite aguda. Tais efeitos podem ocorrer
nas primeiras quatro semanas, mas geralmente são mais tardios. A polineuropatia
periférica, quando ocorre, é mais tardia.
O TDF é normalmente bem tolerado. O risco de toxicidade renal associado ao
uso de TDF é de 1.5/1000 pacientes/ano, com elevação da uréia e da creatinina,
disfunção tubular proximal (síndrome de Fanconi) e diabetes insipidus. Os principais
efeitos adversos do EFZ estão relacionados ao sistema nervoso central, tais como
tonturas com sensação de embriaguez, sonolência ou insônia, dificuldade de

Pedro Kallas Curiati 904


concentração logo após a tomada do medicamento e sonhos vívidos com sensação forte
de realidade, que podem tornar o medicamento intolerável. O paciente deve ser
orientado sobre tais efeitos e informado de que normalmente desaparecem ao final das
primeiras quatro semanas de tratamento. Outra manifestação que pode ocorrer no início
do tratamento com EFZ é o aparecimento de exantema geralmente maculopapular,
podendo evoluir para formas graves como a síndrome de Stevens-Johnson ou necrólise
epidérmica tóxica.
A principal reação adversa no início do tratamento com NVP se caracteriza pelo
aparecimento de exantema, geralmente maculopapular do tipo eritema multiforme. Até
0.5% dos pacientes que desenvolvem exantema progridem para síndrome de Stevens-
Johnson ou para necrólise epidérmica tóxica. A NVP deve ser suspensa quando o
exantema cutâneo decorrente de seu uso for extenso, comprometer mucosas, for
associado a manifestações semelhantes a um resfriado e/ou ocorrerem linfadenopatias.
Os principais efeitos adversos relatados com o LPV/r após o início do tratamento
são diarreia, náusea, fezes mal-formadas, astenia, dor abdominal, cefaleia, vômitos e
hiperlipidemia com hipertrigliceridemia. A diarreia pode ser manejada com adequações
de dieta e medicamentos sintomáticos, como a Loperamida. Outros efeitos adversos
menos frequentes incluem hiperglicemia, aumento de enzimas hepáticas e
hiperamilasemia. De modo geral, o ATV/r é bem tolerado. Náusea, vômitos, diarreia,
exantema, cefaleia e tontura, dentre outros sintomas, foram relatados pelos pacientes
nos diversos estudos clínicos. No entanto, o principal efeito adverso é o aumento da
bilirrubina total, às custas, principalmente, da fração indireta, com icterícia em alguns
casos. A ocorrência de icterícia clínica pode afetar a imagem e autoestima do paciente,
devendo, portanto, ser cuidadosamente avaliada e considerada sua suspensão quando
houver desconforto para o paciente. Elevação das transaminases pode ocorrer em cerca
de 2 a 7% dos casos.

Síndrome inflamatória da reconstituição imune


A síndrome caracteriza-se por intensa e exacerbada resposta inflamatória
associada à reconstituição imune, ocasionada pelo tratamento anti-retroviral. Suas
manifestações refletem a presença de infecções subclínicas, tumores, ou mesmo
desordens autoimunes.
Os agentes infecciosos mais comumente relacionados são herpes zoster,
citomegalovírus, M. tuberculosis, complexo Mycobacterium avium, e Cryptococcus
neoformans. Na coinfecção de HIV com tuberculose, a síndrome é igualmente
conhecida como reação paradoxal e é caracterizada pela exacerbação das manifestações
clínicas da tuberculose em decorrência da reconstituição imune e boa resposta ao
tratamento.
Menos frequentemente, podem ser encontradas manifestações neurológicas, tais
como as lesões desmielinizantes com efeito expansivo da leucoencefalopatia multifocal
progressiva e tuberculomas cerebrais. A exacerbação da coriorretinite do
citomegalovírus pode também estar acompanhada de uveíte. Adicionalmente,
observam-se casos de síndrome da reconstituição imune com encefalite causada pelo
próprio HIV.
Em função da elevada frequência da síndrome da reconstituição imune, cabe
considerá-la em pacientes que iniciaram recentemente terapia anti-retroviral ou que
obtiveram boa eficácia com um esquema de resgate terapêutico. A ocorrência de reação
paradoxal não indica a suspensão ou mudança da terapia anti-retroviral.
O manejo inclui a manutenção da terapia anti-retroviral, o tratamento das
doenças desencadeadas e a introdução de anti-inflamatórios não-hormonais nas formas

Pedro Kallas Curiati 905


leves a moderadas e corticosteroides sistêmicos nos casos mais graves, com Prednisona
1mg/kg/dia por um período de pelo menos trinta dias e retirada lenta após melhora.

Falha do tratamento

Diagnóstico
Após a instituição do tratamento anti-retroviral, basicamente três aspectos da
evolução podem caracterizar falha ou sucesso terapêutico:
- Evolução da carga viral;
- Evolução da contagem de linfócitos T CD4 positivos;
- Ocorrência de eventos clínicos;
A falha virológica é definida por não-obtenção ou não-manutenção de carga
viral indetectável. Caracteriza-se por carga viral confirmada acima de 400 cópias por
mL após 24 semanas ou acima de 50 cópias por mL após 48 semanas de tratamento ou,
ainda, para indivíduos que atingiram supressão viral completa, por rebote confirmado de
carga viral acima de 400 cópias/mL. Deve ser confirmada em três a quatro semanas para
excluir transativação hereróloga.
O declínio progressivo da contagem de linfócitos T CD4 positivos caracteriza
falha imunológica. Deve-se considerar, entretanto, que há ampla variabilidade biológica
individual e interindividual nas contagens dessas células, assim como variabilidade
laboratorial referente à reprodutibilidade técnica do teste. Existe também a variação
circadiana dos níveis de CD4 e, portanto, recomenda-se que a amostra para o teste seja
obtida no período da manhã. Frente a reduções maiores que 25% na contagem de
linfócitos T CD4 positivos, deve-se suspeitar de falha imunológica e proceder a
confirmação do exame.
A progressão clínica da infecção expressa principalmente por meio de infecções
ou tumores oportunistas, tem sido a referência para caracterizar falha clínica. No
entanto, na ausência de falha virológica, a ocorrência de doenças oportunistas não indica
falha do tratamento anti-retroviral, mas sim reflete, na maior parte dos casos,
reconstituição imune parcial e insuficiente.

Causas
Uma das causas mais frequentes é a baixa adesão ao tratamento, dada a
complexidade da posologia e a ocorrência de efeitos adversos.
A insuficiente potência do esquema anti-retroviral também pode acarretar
supressão viral parcial.
Fatores farmacológicos, como má-absorção do anti-retroviral, eliminação
acelerada do medicamento e baixa penetração em alguns santuários de replicação viral.
Transativação heteróloga, que pode elevar a carga viral sem ocasionar
repercussões clínicas relevantes, seleção de resistência ou falha virológica definitiva.
Resistência celular.
Erro laboratorial.

Teste de genotipagem
Estudos sobre a utilidade do teste de genotipagem para detecção de resistência
do HIV aos medicamentos anti-retrovirais apontaram para benefício da resposta
virológica à terapia anti-retroviral quando o teste é utilizado para auxiliar na escolha de
um esquema de resgate.
Na prática clínica, o teste de genotipagem possibilita troca de esquemas anti-
retrovirais com resistência identificada ao invés de presumida, propicia o uso de drogas

Pedro Kallas Curiati 906


ativas por períodos mais prolongados, evita trocas desnecessárias de anti-retrovirais,
evita toxicidade desnecessária de drogas inativas, economiza custos relacionados a
trocas de drogas e promove uma noção mais realista do desempenho futuro do
tratamento. Em suma, o teste de genotipagem otimiza a terapia de resgate. Sua
realização logo após confirmação da falha virológica orienta a mudança precoce do
esquema anti-retroviral, reduzindo a chance de acúmulo progressivo de mutações e de
ampla resistência anti-retroviral. O teste de genotipagem apresenta valor preditivo
positivo alto, mas valor preditivo negativo baixo, de modo que a ausência de detecção
de resistência não significa necessariamente que a droga seja ativa.
Critérios para realização do teste de genotipagem incluem falha virológica
confirmada, carga viral com pelo menos 2000 cópias por mL e uso regular de terapia
anti-retroviral há seis meses para pacientes em geral e há três meses para gestantes.

Teste de fenotipagem
A fenotipagem é a comparação direta da capacidade replicativa do vírus do
paciente em relação a um vírus de referência frente a concentrações seriadas dos anti-
retrovirais.

Princípios gerais da terapia de resgate


O manejo do resgate anti-retroviral permanece em constante modificação.
Distintamente do que ocorre em relação à terapia inicial, há escassez de recomendações
consensuais específicas para escolha de esquemas de resgate.
De maneira geral, recomenda-se solicitar precocemente o teste de genotipagem,
suprimir a carga viral ao nível mais baixo possível, evitar monoterapia funcional, não
utilizar ITRNN se já houver falha dessa classe, considerar o efeito residual dos ITRN,
usar 3TC mesmo se houver resistência, sempre incluir inibidor de protease
potencializado com Ritonavir, escolher IP e ITRN com base em resistência, tolerância e
toxicidade dos medicamentos e discutir ou encaminhar casos de falha múltipla ou
resistência ampla.

Enfuvirtida
A Enfuvirtida foi o primeiro inibidor de fusão aprovado para uso clínico. É um
peptídeo sintético de 36 aminoácidos lineares, apresentado sob a forma de pó liofilizado
branco ou acinzentado, para ser aplicado por via subcutânea. É indicada exclusivamente
para terapia de resgate fazendo parte de um esquema contendo, no mínimo, uma a duas
outras drogas ativas. Por ter baixa barreira genética, a resistência desenvolve-se
rapidamente se for usada sem outra droga ativa no esquema, ou seja, em monoterapia
funcional. Seu mecanismo de ação é distinto das demais classes de drogas e, por isso,
não há resistência cruzada com os demais anti-retrovirais disponíveis. Os efeitos
adversos mais comuns são locais, relacionados à administração por via subcutânea,
como desconforto, dor, eritema, equimose, prurido, enduração, nódulos e cistos. Há
relatos de hipersensibilidade, incluindo febre, exantema, náusea, vômitos, calafrios,
hipotensão, distúrbios respiratórios, glomerulonefrite, síndrome de Guillain-Barré,
elevação de transaminases, trombocitopenia, neutropenia e hiperglicemia, mas não são
frequentes. A Enfuvirtida só deve ser indicada durante a gravidez na ausência de outras
opções ativas e mais seguras.

Duplo IP
Sabe-se que em caso de resistência muito ampla aos IP, uma das alternativas que
pode ser utilizada é o aumento da dose das medicações ou a associação de dois IP com

Pedro Kallas Curiati 907


Ritonavir.

Darunavir
O Darunavir (DRV), previamente denominado TMC114, é um novo IP com alta
afinidade por essa enzima. Apresenta potência antiviral elevada, mesmo na presença de
mutações de resistência aos IP de uso corrente. O DRV possui estrutura não-peptídica
que contém em sua molécula um radical de sulfonamida e, portanto, deve ser utilizado
com cuidado em pessoas com história de alergia a sulfas.

Profilaxia de infecções oportunistas


Recomendações para prevenção da exposição a patógenos oportunistas
Agente infeccioso Recomendação
Pneumocystis jirovecii Evitar contato direto com pneumonia por P. jirovecii
Utilizar filtro especial na nebulização profilática de Pentamidina
Toxoplasma gondii Evitar carne vermelha mal passada e contato com gatos que se alimentam na
rua
Evitar limpar caixas de areia de gatos
Lavar as mãos após jardinagem
Cryptosporidium spp Evitar ingesta de água de lagos e rios
Evitar contato domiciliar com animais domésticos com menos de seis meses de
idade
Criptococcus Evitar situações de risco, como entrar em cavernas e limpar galinheiros
neoformans Evitar exposição a fezes de pássaros
Citomegalovírus Evitar transfusão de sangue de doador IgG positivo para citomegalovírus caso o
receptor seja soronegativo
Histoplasma Em áreas endêmicas, evitar situações de risco, como entrar em cavernas e
capsulatum limpar galinheiros
Evitar exposição a fezes de pássaros silvestres
Papilomavírus humano Evitar sexo não protegido
e herpesvírus humano

Indicações de profilaxia primária de infecções oportunistas para pacientes imunossuprimidos


Agente infeccioso Indicação Medicação
Pneumocystis CD4 inferior a 200/mm3, Sulfametoxazol/Trimetoprim 800mg/160mg por
jirovecii menos do que 15% de via oral uma vez ao dia ou três vezes por semana
linfócitos totais, candidíase Alternativas incluem Dapsona 100mg por via oral
oral ou febre indeterminada uma vez ao dia e Pendamidina por aerossol 300mg
com mais de duas semanas de uma vez por mês
duração
Toxoplasma CD4 inferior a 100/mm3 e Sulfametoxazol/Trimetoprim 800mg/160mg por
gondii IgG positiva para toxoplasma via oral uma vez ao dia
Alternativas incluem Dapsona 100mg por via oral
uma vez ao dia associada a Pirimetamina 50mg por
via oral uma vez ao dia e Ácido Folínico
Mycobacterium PPD superior ou igual a 5mm, Isoniazida 5-10mg/kg/dia, com no máximo
tuberculosis história de contato com 300mg/dia, por via oral, em associação com
bacilífero ou radiografia com Piridoxina 50mg/dia por via oral durante seis
cicatriz pulmonar meses
Complexo CD4 inferior a 50/mm3 Azitromicina 1200mg por via oral uma vez por
Mycobacterium semana ou Claritromicina 500mg por via oral duas
avium vezes por dia, evitando-se associação de
Claritromicina com Efavirenz e Atazanavir
Citomegalovírus CD4 inferior a 50/mm3 Profilaxia primária não-recomendada

Pedro Kallas Curiati 908


Herpes simples - Profilaxia primária não-recomendada
Em caso de infecções recorrentes, com seis ou mais
por ano, Aciclovir 400mg por via oral duas vezes
ao dia, Fanciclovir 250mg por via oral duas vezes
ao dia ou Valaciclovir 500mg por via oral uma vez
ao dia
Papilomavírus - Profilaxia primária não-recomendada
humano
Histoplasma - Profilaxia primária não-recomendada
capsulatum
Criptococcus - Profilaxia primária não-recomendada
neoformans

Critérios para interrupção e reinício da profilaxia de infecções oportunistas


Profilaxia Critério para interrupção Critério
para reinício
Pneumocistose - primária e secundária CD4 superior a 200/mm3 durante três CD4 inferior
meses a 200/mm3
Toxoplasmose -primária CD4 superior a 200/mm3 durante três CD4 inferior
meses a 200/mm3
Toxoplasmose – secundária (Sulfadiazina CD4 superior a 200/mm3 durante seis CD4 inferior
500mg de 6/6 horas e Pirimetamina 25mg meses após o fim do tratamento na ausência a 200/mm3
uma vez ao dia) de sintomas
Complexo Mycobacterium avium – CD4 superior a 100/mm3 durante três CD4 inferior
primária meses a 100/mm3
Complexo Mycobacterium avium – CD4 superior a 100/mm3 durante seis CD4 inferior
secundária meses, com no mínimo um ano de a 100/mm3
(Claritromicina 500mg duas vezes ao dia e tratamento e ausência de sintomas
Etambutol 15mg/kg uma vez ao dia)
Criptococose – secundária (Fluconazol CD4 superior a 250/mm3 durante seis CD4 inferior
200-400mg uma vez ao dia) meses após o fim do tratamento na ausência a 150/mm3
de sintomas
Citomegalovirose – secundária CD4 superior a 150/mm3 durante seis CD4 inferior
(Ganciclovir ou Foscarnet) meses na ausência de atividade, com a 150/mm3
avaliações oftalmológicas regulares
Histoplasmose – secundária (Itraconazol Não é recomendada interrupção -
200mg duas vezes por dia)

Medicina preventiva
No Brasil, são obrigatórias as notificações da síndrome da imunodeficiência
adquirida e, em grupos específicos, da infecção por HIV.
O risco relativo de infecção por HIV aumenta na presença de outras doenças
sexualmente transmissíveis.
Comportamento de risco inclui transfusão de sangue ou hemoderivados, uso de
drogas injetáveis com compartilhamento de agulhas e seringas, relação sexual não
protegida e múltiplos parceiros sexuais.
A exposição sexual pode ser decorrente tanto de situações que envolvam
violência sexual como acidental. Nas duas situações, de acordo com o Ministério da
Saúde, a profilaxia deve ser iniciada preferencialmente em um prazo de 72 horas. As
situações em que a exposição sexual ocorre com parceiro cuja sorologia para o HIV é
desconhecida devem ser avaliadas cuidadosamente antes da instituição da profilaxia.
Para a profilaxia, são recomendados esquemas com três drogas, com duração de 28 dias.
As combinações de primeira escolha consistem em AZT, 3TC e IDV/r, AZT, 3TC e
LPV/r e AZT, 3TC e NFV. Em caso de contraindicação ao AZT, como hemoglobina
inferior a 8.0g/dL e/ou contagem de neutrófilos inferior a 500/mm3, as combinações de

Pedro Kallas Curiati 909


segunda escolha envolvem a substituição do AZT por d4T nas combinações de primeira
escolha. Em caso de contraindicação ao AZT e ao d4T, como pancreatite e/ou
neuropatia periférica, as combinações alternativas envolvem TDF, 3TC e IDV/r e TDF,
3TC e LPV/r.
Não há nenhum tipo de profilaxia segura para exposição ao HIV. Assim, o
reforço das normas de biossegurança é essencial para reduzir o risco de transmissão. A
exposição ocupacional ao HIV é uma emergência médica e a profilaxia deve ser
iniciada o mais rápido possível, preferencialmente em até 72 horas após a exposição.
Uma vez indicada, a profilaxia deve ser mantida por 28 dias. O profissional exposto
deve realizar sorologia para diagnóstico da infecção por HIV prontamente, com objetivo
de conhecer sua situação de base. Nos casos negativos, a sorologia deve ser repetida em
seis, doze e vinte e quatro semanas. A sorologia do paciente fonte deve ser realizada
sempre que possível, mesmo após o início da profilaxia, para suspendê-la nas situações
em que a sorologia da fonte for negativa.

Exposição é considerada mais grave em caso de agulhas com lúmen ou grosso


calibre, lesão profunda, sangue visível no dispositivo usado ou agulha usada
recentemente em artéria ou veia do paciente. Exposição é considerada menos grave em
caso de lesão superficial e agulha sem lúmen. Exposição de pequeno volume é
caracterizada por poucas gotas de material biológico de risco, com curta duração.
Exposição de grande volume é caracterizada por contato prolongado ou grande
quantidade de material biológico de risco. Estudos em exposição sexual e transmissão
vertical sugerem que indivíduos com carga viral inferior a 1500 cópias por mL
apresentam um risco muito reduzido de transmissão do HIV. Materiais biológicos com
risco de transmissão do HIV incluem sangue, sêmen, secreção vaginal, líquor, tecidos,
exsudatos inflamatórios, cultura de células e líquidos pleural, pericárdico, peritoneal,
articular e amniótico. Materiais sem risco de transmissão do HIV incluem urina, fezes,
escarro, vômitos e lágrima. Quando a condição sorológica do paciente-fonte não é
conhecida ou o paciente fonte é desconhecido, o uso de profilaxia deve ser decidido em
função da possibilidade de transmissão do HIV, que depende da gravidade do acidente e
da probabilidade de infecção pelo HIV do paciente. Esquema de duas drogas inclui dois
ITRN, geralmente AZT e 3TC. Esquema de três drogas inclui um IP, geralmente IND/r
ou LPV/r, ou NFV.
A transmissão vertical é a principal causa de infecção por HIV em crianças.
Pode ocorrer intra-útero, durante o trabalho de parto ou através do aleitamento materno.
A abordagem da gestante infectada por HIV prevê exame físico completo, exames

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laboratoriais relacionados ao pré-natal e à infecção por HIV e profilaxia para a
transmissão vertical. Drogas contraindicadas na gestação incluem Efavirenz,
Hidroxiuréia, Amprenavir solução oral e associação de Estavudina com Didanosina.
Homens circuncidados têm redução de risco de aquisição de HIV em relações
heterossexuais.

Anexos

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Bibliografia
Recomendações para Terapia Anti-retroviral em Adultos Infectados pelo HIV: 2008/Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância
em Saúde, Programa Nacional de DST e Aids. 7a Ed. - Brasília: Ministério da Saúde, 2008.
Suplemento II. Critérios para Início do Tratamento Anti-retroviral. Recomendações para Terapia Anti-retroviral em Adultos
Infectados pelo HIV: 2008/Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Programa Nacional de DST e Aids. 7a Ed. -
Brasília: Ministério da Saúde, 2010.
Clínica Médica, volume 7: alergia e imunologia clínica, doenças da pele, doenças infecciosas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

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INFECÇÕES OPORTUNISTAS
Pneumocistose
Infecção causada pelo Pneumocystis jiroveci, agente oportunista classificado
como fungo, porém com características biológicas de protozoário. Em geral, a infecção
inicial ocorre ainda na infância, sendo encontrado o marcador sorológico positivo em
60% das crianças com até quatro anos de idade. Embora geralmente a doença decorra da
reativação do agente, há descrição de reinfecção resultando em doença.
Manifesta-se clinicamente como dispneia de início insidioso e subagudo
acompanhada de tosse seca e desconforto torácico, com ou sem febre. Ocorre piora
progressiva, podendo ocorrer insuficiência respiratória grave. Ao exame físico, o
paciente apresenta-se taquidispneico e a ausculta pulmonar é normal ou revela raros
estertores.
A avaliação laboratorial revela hipoxemia, alargamento do gradiente alvéolo-
arteriolar e elevação dos níveis séricos de desidrogenase lática. O achado radiológico
mais comum é infiltrado intersticial difuso, bilateral, simétrico, porém, apresentações
atípicas, como condensação lobar, infiltrado micronodular ou nodular, cavitação e
derrame pleural podem ser encontrados. Pneumotórax é uma complicação comum. A
tomografia computadorizada evidencia um infiltrado com aspecto de vidro fosco difuso,
bilateral, mas outras alterações podem ser encontradas.
As manifestações extrapulmonares, mais frequentes em pacientes que fazem
profilaxia com Pentamidina inalatória, podem envolver olhos, pele, esôfago, pleura,
coração, fígado, rins, baço e gânglios.
O diagnóstico etiológico de pneumocistose é feito com pesquisa direta do agente
no escarro, com sensibilidade de 55-77% antes do início da antibioticoterapia. A
sensibilidade do exame é aumentada quando se faz indução com Cloreto de Sódio a 3%
por via inalatória. Nas situações de forte suspeita clínica em que a pesquisa direta for
negativa, deve ser realizada a pesquisa em lavado bronco-alveolar, obtido por
broncoscopia, com sensibilidade de 86-97%. Associada a biópsia transbrônquica, a
sensibilidade atinge 100%.
O tratamento de escolha é feito com Sulfametoxazol/Trimetoprim, com 75-
100mg/kg/dia de Sulfametoxazol e 15-20mg/kg/dia de Trimetoprim por via oral ou
intravenosa em três a quatro tomadas diárias durante vinte e um dias. Em casos de
hipoxemia severa, com pressão parcial de oxigênio no sangue arterial inferior a
70mmHg ou gradiente alvéolo-arteriolar de oxigênio superior a 35mmHg, é indicada a
associação de corticosteroides com o objetivo de evitar a exacerbação de sintomas
respiratórios após o início do tratamento. Preconiza-se Prednisona 40mg por via oral
duas vezes ao dia durante cinco dias, 40mg por via oral uma vez ao dia durante cinco
dias e 20mg por via oral uma vez ao dia até o término do tratamento. Em caso de
insuficiência respiratória moderada a severa, suporte ventilatório pode ser necessário até
a estabilização.
Alternativas terapêuticas incluem Pentamidina 4mg/kg/dia por via intravenosa,
Dapsona 100mg/dia por via oral associada a Trimetoprim 15mg/kg/dia fracionado de
8/8 horas e Primaquina 15-30mg/dia por via oral associada a Clindamicina 600mg por
via intravenosa de 6/6 horas.
Ao término do tratamento de ataque, a terapia de manutenção, também
denominada profilaxia secundária, deve ser instituída e só poderá ser suspensa quando o
paciente alcançar recuperação imunológica com contagem de linfócitos T CD4 positivos

Pedro Kallas Curiati 914


superior a 200 células por mm3 por pelo menos três meses. Devido à alta incidência de
pneumocistose em pacientes com contagem de linfócitos T CD4 positivos inferior a 200
células por mm3, profilaxia primária deve ser indicada. Recomenda-se
Sulfametoxazol/Trimetoprim 800mg/160mg uma vez ao dia ou três vezes por semana.
Alternativas incluem Dapsona 100mg por via oral uma vez ao dia e Pentamidina por
aerossol 300mg uma vez por mês.

Neurotoxoplasmose
Lesão encefálica causada pela reativação de Toxoplasma gondii no sistema
nervoso central. Geralmente, a doença manifesta-se em indivíduos com contagem de
linfócitos T CD4 positivos inferior a 100 células por mm3, sendo rara em pacientes com
contagem de linfócitos T CD4 positivos superior a 200 células por mm3.
As manifestações clínicas mais comuns são sintomas de encefalite, com cefaleia,
convulsões, paresia, hemiplegia, alterações de pares cranianos, confusão mental e
rebaixamento do nível de consciência. A febre é infrequente. Ao exame físico, são
observados déficits neurológicos focais. Manifestações extraneurológicas são raras,
sendo descritos quadros de pneumonia e coriorretinite.
Tomografia computadorizada de crânio e ressonância nuclear magnética
evidenciam lesões únicas ou múltiplas acometendo principalmente gânglios da base,
com realce anelar e edema peri-lesional. Em decorrência do edema acentuado, pode
ocorrer apagamento de ventrículos e desvio de linha média.
O diagnóstico definitivo é difícil de ser realizado, pois o reaparecimento de
anticorpo IgM na reativação é raro. Alguns pacientes com contagem de linfócitos T
CD4 muito baixa podem apresentar sorologia negativa para anticorpo da classe IgG.
Detecção de T. gondii por reação em cadeia da polimerase no líquor pode auxiliar no
diagnóstico, uma vez que a especificidade é de 100%, porém possui baixa sensibilidade,
ao redor de 50%. A punção liquórica é contraindicada na presença de edema importante
com efeito de massa ou desvio de linha média. No exame quimiocitológico de líquor,
geralmente não são encontradas alterações significativas, estando a celularidade
preservada e a proteinorraquia e a glicorraquia pouco alteradas.
Devido à alta prevalência de sorologia positiva para toxoplasmose no nosso
meio, em caso de lesão sugestiva em pacientes com HIV, a terapia empírica deve ser
iniciada. Se houver resposta clínica e radiológica em duas a três semanas, o diagnóstico
estará estabelecido. O tratamento de escolha é Sulfadiazina 1g por via oral de 6/6 horas
se peso inferior a 60kg ou 1.5g por via oral de 6/6 horas se peso superior ou igual a
60kg associada a Pirimetamina 200mg por via oral no primeiro dia e 50mg por via oral
nos dias subsequentes e Ácido Folínico 15mg por via oral uma vez ao dia durante pelo
menos seis semanas. Dexametasona é indicada em caso de edema ou efeito de massa
importante secundários à lesão, devendo ser descontinuada logo que possível.
Anticonvulsivantes devem ser administrados quando houver convulsões.
Alternativas terapêuticas incluem Clindamicina 600mg por via oral ou
intravenosa de 6/6 horas associada a Pirimetamina e Ácido Folínico,
Sulfametoxazol/Trimetoprim 25mg/kg /5mg/kg por via oral ou intravenosa e
Azitromicina 900-1200mg por via oral uma vez ao dia associada a Pirimetamina e
Ácido Folínico.
O controle da resposta ao tratamento deve ser realizado com exame de imagem
dez a quatorze dias após o início do tratamento. Em caso de ausência de resposta, deve-
se realizar biópsia.
Após o tratamento de ataque, institui-se a terapia de manutenção com
Sulfadiazina 500-1000mg por via oral de 6/6 horas associada a Pirimetamina 25-50mg

Pedro Kallas Curiati 915


por via oral uma vez ao dia e Ácido Folínico 10-25mg por via oral uma vez ao dia, cuja
suspensão será feita quando houver resolução ou calcificação da lesão ao exame de
imagem e contagem de linfócitos T CD4 positivos superior a 200 células por mm3 por
pelo menos seis meses. Devido às elevadas morbidade e letalidade da
neurotoxoplasmose, a profilaxia primária é indicada para todos os pacientes HIV
positivos com contagem de linfócitos T CD4 positivos inferior a 100 células por mm3,
com Sulfametoxazol/Trimetoprim 800mg/160mg uma vez ao dia. Alternativa para
profilaxia secundária inclui Clindamicina 300-450mg por via oral de 8/8 a 6/6 horas
associada a Pirimetamina 25-50mg por via oral uma vez ao dia e a Ácido Folínico 10-
25mg por via oral uma vez ao dia.

Tuberculose
Doença causada por M. tuberculosis, de alta prevalência mundial.
A coinfecção de HIV com tuberculose aumenta o risco de adoecimento por
tuberculose, assim como a disseminação e a gravidade da doença.
A manifestação clínica de tuberculose em pacientes HIV positivos é influenciada
pelo grau de imunodeficiência. Em indivíduos com contagem de linfócitos T CD4
positivos superior a 350 células por mm3, a apresentação clínica em geral é similar à das
pessoas sem infecção por HIV, com doença localizada, geralmente pulmonar, e padrão
radiológico típico de cavitação ou infiltrado micronodular em ápices pulmonares.
Manifestações extrapulmonares, normalmente ganglionares, podem ser encontradas, não
diferindo daquelas dos imunocompetentes.
À medida que a imunodepressão evolui, manifestações extrapulmonares ou
disseminadas tornam-se mais frequentes. Em pacientes com contagem de linfócitos T
CD4 positivos inferior a 50 células por mm3, o acometimento sistêmico pode ser
importante, com febre elevada e progressão para sepse. Pode ocorrer acometimento do
sistema nervoso central, com meningite ou meningoencefalite. A evolução geralmente é
subaguda, com cefaleia e febre, acompanhada de perda de peso e sinais e sintomas de
irritação meníngea. Na presença de meningoencefalite, quadros convulsivos podem ser
encontrados. Envolvimento de órgãos do sistema retículo-endotelial também é
frequente, com comprometimento ganglionar, hepático, esplênico e de medula óssea,
ocasionando quadros de dor abdominal, icterícia obstrutiva, hepatoesplenomegalia e
citopenias. Derrames pleural, pericárdico e peritoneal também podem ser encontrados.
Acometimento de suprarrenal e tubo digestivo podem estar presentes nas formas
disseminadas da doença.
O diagnóstico de tuberculose deve ser realizado pela procura do agente em
secreção, fluido ou tecido do órgão acometido.
No tratamento de tuberculose em pacientes coinfectados pelo HIV, deve-se levar
em consideração a interação medicamentosa entre Rifampicina e drogas anti-retrovirais,
assim como a adesão do paciente e o risco de efeitos colaterais, particularmente nas
primeiras semanas de tratamento. Assim, deve-se priorizar a terapia anti-tuberculosa, de
preferência com esquemas que incluem a Rifampicina. O esquema a ser utilizado para o
tratamento da tuberculose no portador de HIV não difere do recomendado ao paciente
sem essa comorbidade.
Todo paciente com HIV que não teve tuberculose deve ser submetido a teste
tuberculínico e, se não reator, o exame deve ser repetido seis meses após o início da
terapia anti-retroviral, devido à possibilidade de reconstituição imunológica com
restauração da resposta tuberculínica, e anualmente para detecção de viragem do exame.
Em caso de reação positiva, superior ou igual a 5mm, deve-se afastar doença ativa e
iniciar a quimioprofilaxia com Isoniazida 300mg/dia durante seis meses para reduzir o

Pedro Kallas Curiati 916


risco de adoecimento. Também devem receber quimioprofilaxia os pacientes com
infecção por HIV que tenham evidência de reação tuberculínica superior ou igual a
5mm no passado, contato prévio com indivíduo bacilífero e/ou cicatriz radiológica de
tuberculose, sem tratamento prévio.

Complexo Mycobacterium avium (MAC)


Doença de alta prevalência em alguns países, mas de importância relativa em
nosso meio. Pode ser transmitida por inalação, por via oral ou por inoculação direta.
Hábitos domiciliares e contato próximo com pessoas portadoras não parecem ser fatores
de risco para adoecimento. Transmissão entre humanos é rara. Em pacientes infectados
pelo HIV, o adoecimento por MAC geralmente ocorre com contagens de linfócitos T
CD4 positivos abaixo de 50 células por mm3.
Do ponto de vista clínico, apresenta-se como doença disseminada, de evolução
crônica. Inicialmente oligossintomática, pode evoluir com febre intermitente, sudorese
noturna, perda de peso, fadiga, diarreia e dor abdominal. Acometimento de fígado, baço
e linfonodos intra-abdominais, mediastinais e/ou cervicais é comum. Pericardite,
derrame pleural, úlceras genitais e lesões cutâneas também já foram descritas. Ao
exame físico, evidencia-se hepatoesplenomegalia e adenomegalia.
Avaliação radiológica revela alterações similares às da tuberculose
extrapulmonar.
O diagnóstico de MAC baseia-se em quadro clínico compatível, isolamento do
agente na hemocultura, na medula óssea ou em qualquer fluido ou tecido do órgão
acometido. Ao exame anatomopatológico, não é possível diferenciar da tuberculose.
O tratamento é feito com Claritromicina 500mg por via oral de 12/12 horas
associada a Etambutol 15mg/kg por via oral uma vez ao dia e, em caso de forma grave,
Rifampicina 600mg por via oral uma vez ao dia por tempo indeterminado, até que haja
recuperação imunológica com introdução de terapia anti-retroviral. Alternativas
terapêuticas incluem Azitromicina 500-600mg por via oral uma vez ao dia associada a
Etambutol 15mg/kg por via oral uma vez ao dia e, em caso de forma grave,
Ciprofloxacino 500-750mg por via oral duas vezes ao dia, Levofloxacino 500mg por via
oral uma vez ao dia ou Amicacina 10-15mg/kg por via intravenosa uma vez ao dia.
A profilaxia primária é indicada por contagem de linfócitos T CD4 positivos
inferior a 50 células por mm3, com Azitromicina 1200mg por via oral uma vez por
semana ou Claritromicina 500mg por via oral duas vezes ao dia e deve ser mantida até
contagem de linfócitos T CD4 positivos superior a 100 células por mm3 durante três
meses.

Criptococose
Infecção fúngica causada por Cryptococcus neoformans, que acomete, em geral,
pacientes com contagem de linfócitos T CD4 positivos inferior a 100 células por mm3.
A doença pode atingir qualquer parte do organismo, porém a localização no sistema
nervoso central é a mais comum em pacientes infectados pelo HIV.
O quadro clínico geralmente é subagudo, caracterizado por febre e cefaleia
intermitente, que se torna cada vez mais frequente, com perda de peso e adinamia.
Apenas 30% dos pacientes apresentam sinais de irritação meníngea e fotofobia.
Encefalite, manifestada por letargia, alterações cognitivas e alterações comportamentais,
pode estar presente.
Punção liquórica revela elevação da pressão intracraniana, elevação da
proteinorraquia, celularidade pouco alterada ou normal e glicorraquia pouco diminuída
ou normal. No esfregaço direto com tinta da China, é possível observar formas fúngicas.

Pedro Kallas Curiati 917


Em caso de alta suspeita e pesquisa com tinta da China negativa, a pesquisa de antígeno
com prova de látex pode auxiliar no diagnóstico. Lesões podem ser evidenciadas na
ressonância nuclear magnética de crânio.
Pode cursar com comprometimento extrameníngeo, associado ou não ao
acometimento do sistema nervoso central. A lesão pulmonar caracteriza-se por tosse
seca e dispneia, com achado radiológico de infiltrado micronodular. Doença
disseminada com acometimento de pele, suprarrenal, próstata e medula óssea também
pode ocorrer. A hemocultura e a pesquisa de antígeno no sangue podem auxiliar no
diagnóstico das formas extrameníngeas.
O tratamento deve ser iniciado com Anfotericina B 0.7mg/kg por via intravenosa
uma vez ao dia e 5-Flucitosina 100mg/kg/dia por via oral fracionada em quatro doses
diárias durante pelo menos duas semanas. A fase de consolidação é baseada no uso de
Fluconazol, com 400mg por dia durante pelo menos oito semanas, até a negativação da
cultura no líquor.
Alternativas terapêuticas para a fase de ataque incluem Anfotericina B 0.7mg/kg
por via intravenosa uma vez ao dia por pelo menos duas semanas, Fluconazol 400-
800mg por dia ou Fluconazol 400-800mg por dia em associação com 5-Flucitosina
100mg/kg/dia por via oral fracionada em quatro doses diárias por quatro a seis semanas
até negativação da cultura no líquor. Alternativa para a fase de consolidação inclui
Itraconazol 200mg por via oral uma vez ao dia.
A profilaxia secundária é realizada com Fluconazol 200mg por via oral uma vez
ao dia ou Itraconazol por via oral 200mg uma vez ao dia até contagem de linfócitos T
CD4 positivos superior a 250/mm3 por pelo menos seis meses após o fim do tratamento,
na ausência de sintomas, devendo ser reiniciada se contagem de linfócitos T CD4
positivos inferior a 150/mm3.

Histoplasmose
Doença fúngica causada por Histoplasma capsulatum. A infecção ocorre por
inalação de microconídios. A doença geralmente se manifesta em pacientes com
contagem de linfócitos T CD4 positivos inferior a 100 células por mm3.
A manifestação clínica mais comum é a forma disseminada, comprometendo
pulmões, medula óssea, fígado, baço, gânglios, trato digestivo, pele e, raramente,
sistema nervoso central. O quadro clínico é subagudo, caracterizado por febre, astenia,
perda de peso e adinamia. No comprometimento pulmonar, tosse, dor torácica e
dispneia podem estar presentes. Ao exame físico, são encontradas alterações na ausculta
pulmonar, hepatoesplenomegalia, adenomegalia e lesões cutâneas pápulo-crostosas.
Radiografia e tomografia computadorizada de tórax evidenciam infiltrados
micronodulares. Avaliação laboratorial revela pancitopenia e elevação de desidrogenase
lática. O diagnóstico é baseado na identificação de H. capsulatum em sangue periférico,
medula óssea, raspado de pele, secreção pulmonar ou outros materiais obtidos dos
órgãos acometidos. A detecção de antígeno no sangue ou na urina possui alta
sensibilidade nas formas disseminadas. Testes sorológicos também podem ser utilizados
para auxiliar o diagnóstico.
O tratamento é feito com Anfotericina B 0.7mg/kg por via intravenosa uma vez
ao dia por pelo menos dez dias. Quando houver envolvimento do sistema nervoso
central, é necessário manter o tratamento por pelo menos doze a dezesseis semanas. A
fase de manutenção é feita com Itraconazol 200mg por via oral duas vezes ao dia, não
sendo recomendada interrupção.
Alternativas terapêuticas incluem Itraconazol 400mg por via intravenosa uma
vez ao dia para a fase aguda e Fluconazol 800mg por via oral uma vez ao dia para a fase

Pedro Kallas Curiati 918


de manutenção.

Citomegalovírus
Doença causada pela reativação do citomegalovírus, geralmente em pacientes
com contagem de linfócitos T CD4 positivos inferior a 50 células por mm3. Pode
acometer qualquer órgão, sendo mais comum a ocorrência de lesões em olhos, como
retinite, tubo digestivo, como úlceras esofágicas, gástricas e colônicas, medula óssea,
sistema nervoso central e pulmões.
A coriorretinite pode ser assintomática quando acomete a periferia da retina,
sendo um achado ao exame de fundo de olho, ou cursar com borramento visual,
escotomas, redução do campo visual e cegueira. Ao exame do fundo do olho, é
observada lesão característica de retinite necrotizante, com aspecto amarelo
esbranquiçado, com ou sem hemorragia retiniana. Pode ser encontrado descolamento de
retina.
A lesão esofágica é responsável por disfagia, perda de peso, febre e desconforto
retroesternal. A colite por citomegalovírus caracteriza-se por febre, perda de peso,
anorexia, diarreia e dor abdominal. A diarreia pode ser sanguinolenta e perfuração
intestinal pode ser uma complicação. O diagnóstico é feito por endoscopia com
visualização de úlceras na mucosa e biópsia de lesão, que revela corpúsculos de
inclusão característicos. O uso de reação de imuno-histoquímica específica para
citomegalovírus ou de reação em cadeia da polimerase auxilia o diagnóstico.
Acometimento hematológico é caracterizado por pancitopenia, febre, perda de
peso e adinamia. Mielograma com pesquisa através de reação em cadeia da polimerase
positiva em vigência de quadro clínico compatível confirma o diagnóstico.
Pneumonite por citomegalovírus em pacientes infectados pelo HIV é incomum.
Cursa com tosse seca, dispneia progressiva e hipoxemia. Radiografia de tórax evidencia
infiltrado intersticial difuso. O diagnóstico é feito por biópsia transbrônquica.
Comprometimento neurológico pode levar a demência, encefalite ou
polirradiculomielopatia. A evolução geralmente é subaguda. A demência é semelhante
ao complexo demência por HIV, com alteração de raciocínio, letargia e confusão,
porém, em geral, há febre. Exame liquórico evidencia pleocitose linfocítica ou
neutrofílica, glicorraquia normal ou pouco diminuída e proteinorraquia normal ou pouco
aumentada. Quadros de encefalite apresentam evolução mais aguda, com déficits
neurológicos focais, frequentemente com alteração de pares cranianos. A evolução
geralmente é rápida. Exames de imagem evidenciam realce periventricular. A
polirradiculomielopatia apresenta quadro semelhante à síndrome de Guillain-Barré,
caracterizada por perda progressiva de força nos membros inferiores e alteração de
controle esfincteriano. Exame e líquor revela pleocitose com predomínio neutrofílico,
hipoglicorraquia e elevação de proteínas. O diagnóstico de comprometimento
neurológico pelo citomegalovírus é confirmado pela identificação no líquor, geralmente
por meio de reação em cadeia da polimerase.
O tratamento da reativação com citomegalovírus é feito com Ganciclovir
5mg/kg por via intravenosa de 12/12 horas durante quatorze a vinte e um dias,
associado, em caso de retinite, a Valganciclovir 900mg por via oral de 12/12 horas
durante quatorze a vinte e um dias. Alternativa terapêutica para retinite inclui Foscarnet
90mg/kg por via intravenosa de 12/12 horas durante quatorze a vinte e um dias e
implante ocular de Ganciclovir associado a Ganciclovir 5mg/kg por via intravenosa de
12/12 horas durante quatorze a vinte e um dias.
Profilaxia secundária é realizada com Ganciclovir 5mg/kg por via intravenosa
uma vez ao dia ou Foscarnet 90-120mg/kg por via intravenosa uma vez ao dia até

Pedro Kallas Curiati 919


contagem de linfócitos T CD4 positivos superior a 150/mm3 durante seis meses na
ausência de atividade, com avaliações oftalmológicas regulares. Em caso de retinite,
alternativa de profilaxia secundária inclui Valganciclovir 900mg por via oral uma vez
ao dia ou implante intraocular de liberação lenta de Ganciclovir a cada seis a nove
meses associado a Ganciclovir 1.0-1.5g por via oral de 12/12 horas.

Leucoencefalopatia multifocal progressiva


Doença neurológica relacionada ao vírus JC, geralmente em pacientes com
contagem de linfócitos T CD4 positivos inferior a 100 células por mm3. Nas pessoas
saudáveis, a infecção primária não causa doença conhecida e o vírus assume estado
latente no rim. Entretanto, com a imunodepressão crônica, a infecção pode ser reativada
e o vírus pode atingir o sistema nervoso, transportado por células B infectadas.
O quadro clínico é caracterizado por alteração cognitiva, ataxia, afasia, déficit de
pares cranianos, hemiparesia, convulsões e coma. O início é insidioso, mas a progressão
é relativamente rápida, em semanas a meses.
Tomografia computadorizada e ressonância nuclear magnética evidenciam lesão
hipodensa, única ou múltipla, sem realce, que acomete substância branca, com alteração
característica em “dedo de luva”. O acometimento do cerebelo pode estar presente.
A confirmação diagnóstica requer quadro clínico compatível, imagem
compatível e isolamento do vírus JC no líquor através de reação em cadeia da
polimerase ou biópsia do tecido com evidência de lesão desmielinizante e
oligodendrócitos com núcleo de aspecto aumentado com inclusões intranucleares
basófilas.
Não existe terapia antiviral eficaz para controle do vírus JC. A restauração
imune obtida com a terapia anti-retroviral parece ser a única forma de controle da
doença. No entanto, há relatos de piora neurológica com o início da terapia anti-
retroviral, atribuída à síndrome de reconstituição imune.

Reativação da doença de Chagas


Doença ainda de alta prevalência em algumas regiões do Brasil. Causada pelo
protozoário Trypanosoma cruzi, com quadro clínico dividido em fases aguda e crônica.
A fase crônica da doença geralmente é assintomática, mas pode causar
cardiomiopatia ou alterações esofágicas e colônicas. Em pacientes infectados pelo HIV,
pode ocorrer a reativação na fase crônica, com acometimento do sistema nervoso central
ou do coração. A lesão do sistema nervoso central é caracterizada por
meningoencefalite multifocal e cursa com cefaleia, déficits focais, convulsão,
rebaixamento do nível de consciência e coma. As lesões do sistema nervoso periférico
são principalmente autonômicas, mas podem ocorrer polineuropatias sensitivo-motoras.
A evolução é relativamente rápida e, ao exame de imagem, há lesões focais com
realce de contraste e edema peri-lesional. Trata-se de diagnóstico diferencial de
neurotoxoplasmose.
O diagnóstico é feito por meio da identificação de T. cruzi no sangue e no líquor
ou pela biópsia com identificação de amastigota. A pesquisa por reação em cadeia da
polimerase é outro método diagnóstico indicado.
O tratamento é feito com Benzonidazol 5-8mg/kg/dia por via oral fracionado em
duas doses diárias durante trinta a sessenta dias. Alternativa terapêutica inclui
Nifurtimox 10mg/kg/dia em três tomadas diárias por via oral durante noventa dias.

Sarcoma de Kaposi
Neoplasia de origem vascular causada por herpesvírus 8, atualmente também

Pedro Kallas Curiati 920


conhecido como herpesvírus associado a sarcoma de Kaposi, de transmissão inter-
humana, com maior soroprevalência entre homens que fazem sexo com homens.
Em indivíduos infectados pelo HIV, a neoplasia se manifesta geralmente quando
a contagem de linfócitos T CD4 positivos é inferior a 200 células por mm3. Lesões de
sarcoma de Kaposi podem acometer qualquer parte do organismo, principalmente pele,
trato respiratório, trato digestivo, fígado e gânglios. Apresentam aspecto característico
de lesão pápulo-nodular violácea.
Tomografia computadorizada pode evidenciar lesão nodular com captação de
contraste.
O tratamento é feito com quimioterapia, porém, quando o paciente apresenta
poucas lesões, a restauração imune com introdução de terapia anti-retroviral pode ser
suficiente para levar à remissão da lesão. Em alguns casos, a radioterapia pode auxiliar
o tratamento. Existem indícios de que antivirais, como Ganciclovir e Cidofovir,
utilizados no tratamento contra citomegalovírus, assim como Lopinavir, inibidor de
protease, podem ter algum efeito sobre o herpesvírus 8.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 7: alergia e imunologia clínica, doenças da pele, doenças infecciosas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 921


LEISHMANIOSE VISCERAL
Epidemiologia
A leishmaniose visceral é amplamente distribuída no mundo, ocorrendo na Ásia,
na Europa, na África e nas Américas, apresentando diferenças em aspectos
epidemiológicos, clínicos e imunológicos decorrentes dos diversos ecossistemas.
A distribuição geográfica da leishmaniose visceral no Brasil coincide com a do
inseto vetor. É uma endemia rural, embora nas últimas décadas tenha apresentado
mudança do perfil epidemiológico, com mais casos descritos dentro das cidades e na
região de transição entre a zona rural e a zona urbana.

Etiologia
A leishmaniose visceral é causada por protozoários da família
Trypanosomatidae, ordem Kinetoplastidae, gênero Leishmania. As espécies que causam
doença visceral incluem L. chagasi, L. donovani, L. infantum e L. archibaldi. A
leishmaniose visceral americana é causada pela L. chagasi. A L. donovani é o agente
etiológico da doença na Índia e a L. infantum é o agente etiológico da doença no
Mediterrâneo.
O parasita é intracelular obrigatório e se multiplica nas células do sistema
fagocítico mononuclear do mamíferos suscetíveis. No Brasil, a leishmaniose visceral
americana é uma zoonose de canídeos, que se transmite ao homem pela picada do vetor,
hospedeiro intermediário, que é um mosquito classificado como flebotomídeo, cuja
espécie é Lutzomyia longipalpis. Somente as fêmeas do vetor são hematófagas, de
modo que somente elas podem transmitir a doença. Contaminam-se quando sugam o
sangue da pele dos canídeos infectados, ingerindo parasitos ali presentes. Existem
formas raras de transmissão congênita por via transplacentária.

Quadro clínico
O período de incubação da leishmaniose visceral é variável, geralmente com
duração de dois a cinco meses.
A forma assintomática corresponde à infecção inaparente e é detectada em
indivíduos sem manifestação clínica através de inquéritos epidemiológicos ou em áreas
de transmissão através de positividade da intradermorreação ou presença de anticorpos
específicos no soro. Os títulos de anticorpos são baixos e podem permanecer positivos
por tempo indeterminado. Os indivíduos que tiveram leishmaniose visceral foram
tratados e se curaram apresentam também positividade do teste intradérmico e
anticorpos específicos em títulos baixos.
A forma oligossintomática pode passar despercebida ou ser confundida com
outras doenças infecciosas. O paciente, em geral criança, apresenta discreto
comprometimento do estado geral, anemia discreta, diarreia, emagrecimento e
adinamia. Em geral, não se relata febre. A hepatomegalia normalmente está presente e
não ultrapassa 5cm. A esplenomegalia, ao contrário da forma clássica da leishmaniose
visceral, é discreta e pode estar ausente. As alterações laboratoriais são pouco evidentes,
com hemograma normal ou com anemia discreta, velocidade de hemossedimentação
elevada e eletroforese de proteínas normal. A intradermorreação é geralmente negativa.
Os anticorpos anti-leishmania estão sempre presentes. Esses quadros são autolimitados
e, em geral, não se indica tratamento. Os sintomas podem persistir por cerca de três a
seis meses. A pesquisa de parasitas em aspirado de medula óssea e a cultura têm baixa

Pedro Kallas Curiati 922


positividade.
A forma clássica é a doença plenamente manifesta, com instalação insidiosa e
curso crônico. O período inicial, também denominado período agudo, caracteriza-se por
febre diária com duração de quinze a vinte e um dias e estado geral preservado.
Frequentemente evidenciam-se hepatoesplenomegalia e anemia discretas. A sorologia
revela presença de anticorpos com título superior a 1:256 e a intradermorreação é
negativa. A velocidade de hemossedimentação eleva-se e ocorre anemia discreta, além
de linfomonocitose com contagem de leucócitos normal. A pesquisa de amastigotas em
aspirado esplênico ou na medula óssea pode ser positiva, assim como a cultura em meio
NNN. O período de estado é caracterizado por febre, geralmente alta e diária,
tipicamente apresentando dois picos diários, podendo apresentar períodos de remissão
espontânea, ser acompanhada de calafrios e ser seguida de sudorese. Progressivamente,
o paciente apresenta anorexia, enfraquecimento, emagrecimento e sinais de desnutrição
grave, como cabelos secos e quebradiços, cílios longos e pele seca. Ao mesmo tempo,
surge palidez cutânea, aumento progressivo do volume abdominal e desconforto em
hipocôndrio esquerdo. Manifestações hemorrágicas e gastrointestinais, como epistaxe,
gengivorragia e diarreia, são comuns. Outro sintoma que pode ser relatado é tosse seca,
que estaria relacionada à pneumonite intersticial da leishmaniose visceral. A duração da
sintomatologia na ocasião do diagnóstico é de vários meses. Laboratorialmente, são
observadas pancitopenia e hipergamaglobulinemia. A intradermorreação é negativa e os
títulos de anticorpo, elevados. No período final, a forma clássica pode evoluir com
gravidade, com esplenomegalia atingindo a cicatriz umbilical ou mesmo a fossa ilíaca
direita, caquexia pronunciada e anemia intensa, podendo ocorrer complicações
determinantes de óbitos, como hemorragias, ascite, icterícia e infecções bacterianas.
Leishmaniose visceral grave é definida como aquela que incide em pacientes
com idade inferior a seis meses ou superior a sessenta e cinco anos, desnutrição grave,
comorbidades ou uma manifestação dentre icterícia, fenômenos hemorrágicos (exceto
epistaxe), edema generalizado e toxemia, caracterizada por letargia, má-perfusão,
cianose, taquicardia ou bradicardia, hipoventilação ou hiperventilação e instabilidade
hemodinâmica.
A reativação da infecção em hospedeiros imunologicamente comprometidos,
como os transplantados renais e os submetidos a terapêutica imunossupressora,
determina quadro clínico semelhante ao clássico. Nos indivíduos infectados pelo vírus
da imunodeficiência humana, a leishmaniose visceral reativa clinicamente com níveis
de linfócitos T CD4 positivos abaixo de 200/mm3.

Avaliação complementar

Exames inespecíficos
Os exames laboratoriais inespecíficos que auxiliam no diagnóstico são o
hemograma e a eletroforese de proteínas. O hemograma revela anemia, leucopenia com
neutropenia e, frequentemente, plaquetopenia. Na eletroforese de proteínas, são
observados diminuição da albumina e elevação da gamaglobulina em pico policlonal.

Exames específicos
O diagnóstico específico direto geralmente é feito pelo encontro de formas
amastigotas de leishmânias em esfregaços corados pela coloração de Leishman ou
Giemsa obtidos por punção de medula óssea ou punção esplênica. Esse material deve
ser cultivado em meio especial, NNN. O mesmo material obtido por punção também
pode ser inoculado em hamster, por via intraperitoneal.

Pedro Kallas Curiati 923


Na pesquisa de anticorpos específicos, as técnicas mais utilizadas são a
imunofluorescência indireta e a reação imunoenzmática (ELISA). Os anticorpos são
detectados em títulos elevados durante a fase de doença e decrescem após o tratamento.
As técnicas de biologia molecular têm sido uma alternativa mais promissora,
sendo a reação em cadeia da polimerase uma técnica que pode ser usada como método
de triagem inicial para casos suspeitos de leishmaniose.
Muitos dos pacientes com infecção pelo vírus da imunodeficiência humana têm
testes sorológicos e reação de Montenegro negativos. Portanto, a demonstração do
parasita em tecidos é pré-requisito para o diagnóstico e para a instituição do tratamento.

Diagnóstico diferencial
No diagnóstico diferencial da forma clássica, devem ser consideradas as doenças
de curso crônico e que apresentem durante a evolução febre e hepatoesplenomegalia,
como a histoplasmose, a tuberculose miliar, a toxoplasmose, a endocardite bacteriana e
a malária crônica. Devem ser incluídas as doenças não transmissíveis, como os
linfomas, as leucemias e as colagenoses.
No decurso da forma hepatoesplênica da fase crônica da esquistossomose
mansônica não ocorre febre. Já a enterobacteriose septicêmica prolongada é uma
bacteremia crônica por enterobactérias, principalmente Salmonella spp, que acomete
indivíduos com esquistossomose mansônica, especialmente na forma hepatoesplênica,
sendo uma das principais hipóteses no diagnóstico diferencial da leishmaniose visceral.

Tratamento

Internação hospitalar
A internação está indicada, de forma geral, a todos os pacientes com a forma
grave da leishmaniose visceral, com alterações laboratoriais que podem ser
consideradas como fatores de mau prognóstico em decorrência de risco de infecção ou
sangramento, como leucopenia menor que 1000/mm3, neutropenia menor que 500/mm3
e plaquetopenia abaixo de 50000/mm3. Outros achados que também indicam gravidade
são hemoglobina sérica inferior a 7g/dL, creatinina superior a duas vezes o valor de
referência, alteração no coagulograma, alteração hepática, como bilirrubina total acima
dos valores de referência, transaminases acima de cinco vezes o limite superior da
normalidade e albumina inferior a 2.5g/dL, e exame radiológico do tórax sugestivo de
pneumonia.

Antimonial Pentavalente
Atualmente, existem duas apresentações do Antimonial Pentavalente, o
Estibogluconato de Sódio, usado em países de língua inglesa, e o Antimoniato de N-
Metilglucamina (Glucantime®), empregado habitualmente na França e no Brasil, com
frascos de 5mL contendo 81mg de Antimonial Pentavalente por mL. A dose
recomendada para o tratamento da leishmaniose visceral é 20mg/kg/dia de Antimônio
Pentavalente, com duração de vinte a quarenta dias sendo o tempo médio de tratamento
vinte e oito dias. A dose para tratamento deve ser calculada com base no conteúdo de
Antimônio Pentavalente em cada ampola, nunca ultrapassando a dose de três ampolas
por dia, ou seja, 15mL/dia.
As contraindicações ao uso dos antimoniais são gestação, cardiopatia, nefropatia
e hepatopatia. Os efeitos adversos incluem artralgia, mialgia, náusea, vômito, cefaleia,
anorexia, aumento de transaminases, fosfatase alcalina, lipase e amilase, leucopenia,
alargamento do intervalo QT e alterações do segmento ST. Efeitos colaterais menos

Pedro Kallas Curiati 924


frequentes incluem aumento de uréia e creatinina, arritmias cardíacas, morte súbita e
herpes zoster.
Antes da utilização do Antimonial Pentavalente, devem ser realizados
eletrocardiograma, leucograma e dosagem sérica de uréia, creatinina e enzimas
hepáticas. Durante o tratamento, o eletrocardiograma deve ser realizado duas vezes por
semana e os demais exames devem ser realizados ao menos uma vez por semana.

Anfotericina
Embora a utilização do Antimonial Pentavalente tenha sido ampla e tenha
modificado o panorama da doença em muitos países, incluindo o Brasil, a droga com
maior potencial leishmanicida é a Anfotericina B, que existe em formulação
convencional na forma de Desoxicolato e em formulações lipídicas, todas para
aplicação intravenosa lenta.
A formulação Desoxicolato é apresentada na forma de frascos liofilizados com
50mg de Anfotericina. A dose preconizada é de 0.5-0.7mg/kg/dia ou 1mg/kg em dias
alternados até uma dose total de 2-3g, sem ultrapassar dose diária de 50mg. Esse
esquema apresenta alta toxicidade, sobretudo renal, com distúrbios hidroeletrolíticos,
mas também cardíaca. Os efeitos adversos mais comuns são aqueles que ocorrem
durante a infusão da droga, como febre, anorexia, náusea, vômitos e flebite. Não existe
um valor de creatinina estabelecido para interromper o tratamento, porém níveis acima
de 2.0mg/dL podem ser considerados de risco. A hipopotassemia pode ser manejada
com reposição oral quando o potássio sérico encontra-se acima de 2.5mEq/L. Anemia e
leucopenia também podem ocorrer. O monitoramento do tratamento deve consistir em
dosagem dos níveis séricos de sódio, potássio, magnésio, uréia e creatinina, além da
realização de eletrocardiograma, duas vezes por semana.
As formulações lipídicas são medicamentos mais recentes com menos efeitos
adversos. A mais estudada na leishmaniose visceral é a Anfotericina Lipossomal
(Ambisome®), apresentada em frasco-ampola de 50mg de Anfotericina, com dose de 4-
5mg/kg/dia durante cinco dias. Trata-se da droga de primeira escolha nas formas graves.

Outras drogas
Uma droga que vem se tornando bastante atrativa no tratamento da leishmaniose
visceral tem sido a Miltefosina, quimioterápico de apresentação oral e com poucos
eventos adversos. No entanto, necessita de mais estudos para determinar seus efeitos na
leishmaniose visceral brasileira. As diamidinas aromáticas, como a Pentamidina,
também são bastante eficazes no tratamento da leishmaniose visceral.
Nas formas refratárias ao tratamento antimonial, têm sido avaliados muitos
esquemas alternativos, sendo um dos mais referidos a utilização de Alopurinol em doses
de 15-20mg/kg/dia, divididas em duas a três tomadas diárias, durante cerca de quatorze
dias, em associação com o antimonial.
Nos casos de insucesso com o uso de Anfotericina B, principalmente se for de
formulação lipídica, a recomendação é repetir o tratamento.

Evolução
A recidiva é considerada como retorno dos sinais e dos sintomas da doença,
assim como positivação do exame parasitológico, antes de doze meses de completado o
tratamento. A falha terapêutica é definida como a não melhora dos critérios clínicos e
laboratoriais durante a reavaliação do paciente após um, três, seis e doze meses de
acompanhamento.

Pedro Kallas Curiati 925


Prevenção
Na profilaxia primária da leishmaniose visceral, recomenda-se a adoção de
várias medidas, como o tratamento dos doentes, o reconhecimento dos reservatórios, o
combate aos insetos e a proteção dos indivíduos sadios.
A antibioticoterapia deve ser empregada especialmente em pacientes com menos
de dois meses e em todos os neutropênicos graves, uma vez que é difícil caracterizar um
quadro infeccioso em uma síndrome febril, que é a leishmaniose visceral.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 7: alergia e imunologia clínica, doenças da pele, doenças infecciosas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 926


LEPTOSPIROSE
Epidemiologia
Atualmente, a maioria dos casos notificados corresponde à forma grave da
doença, sobretudo na população mais pobre, que reside em favelas sem saneamento
básico. São acometidos com maior frequência adultos jovens, principalmente do sexo
masculino.

Etiologia
As leptospiras são bactérias helicoidais móveis aeróbicas ou microaerófilas
obrigatórias que compartilham características de bactérias Gram-positivas e Gram-
negativas. Quando coradas, são facilmente visualizadas em microscopia de campo
escuro ou de contraste de fase. A espécie patogênica para o homem é a Leptospira
interrogans e a saprofítica ou de vida aquática, não-patogênica, é a Leptospira biflexa.

Transmissão
Geralmente, o homem se infecta quando entra em contato com água ou solo
contaminado com urina de animais infectados. Os ratos infectados com leptospiras
muitas vezes se tornam portadores crônicos e eliminam leptopiras pela urina por meses
ou anos. As leptospiras penetram através de solução de continuidade da pele ou pelas
mucosas, mesmo íntegras. Algumas formas de transmissão mais raras são descritas,
como a transplacentária, por acidentes em laboratório e por mordedura de rato.
Nos países desenvolvidos, os principais relatos de transmissão são relacionados
a atividades recreacionais e/ou esportivas, como natação em lagos, represas ou rios.

Quadro clínico
A maioria das infecções são assintomáticas ou autolimitadas, influenza-símile.
Todavia, uma pequena parte corresponde a formas graves, como a síndrome de Weil,
caracterizada por icterícia, insuficiência renal e fenômenos hemorrágicos, e a síndrome
hemorrágica pulmonar.
O período de incubação é variável, usualmente sete a quatorze dias, com
extremos de um a trinta dias. A leptospirose pode apresentar uma evolução bifásica, que
geralmente não é observada nas formas mais graves. O primeiro período é o de
leptospirosemia, que dura de quatro a sete dias. Segue-se um período de defervescência
de um a dois dias, seguido de período de recrudescência da febre e dos sintomas, que
pode durar quatro a trinta dias, correspondendo ao segundo período ou fase imune da
leptospirose.

Forma anictérica
A doença tem início abrupto com febre, calafrios, cefaleia e mialgia, sobretudo
nos músculos da panturrilha, mas podendo acometer outros grupos musculares. Rigidez
de nuca pode refletir acometimento meníngeo. Anorexia, náusea, vômitos, diarreia,
prostração, dores articulares e hiperemia ou hemorragia conjuntival são frequentemente
observados. Na pele, podem ocorrer exantemas máculo-papular, eritematoso ou
petequial.
Seguindo-se a defervescência, inicia-se, após um a dois dias, a fase imune, em
que os anticorpos específicos começam a ser detectados no soro. A principal
manifestação clínica da fase imune da forma anictérica é a meningite do tipo linfocitária

Pedro Kallas Curiati 927


benigna, caracterizada por cefaleia intensa, vômitos e, ocasionalmente, sinais de
irritação meníngea. Diversas manifestações neurológicas têm sido mais raramente
descritas, como encefalite, paralisias focais, espasticidade, nistagmo, convulsões,
distúrbios visuais de origem central, neurite periférica, paralisia de nervos cranianos,
radiculite, síndrome de Guillain-Barré e mielite. Hemorragia cerebral, meníngea ou
pulmonar pode ocasionalmente ocorrer na ausência de icterícia ou insuficiência renal.
O acometimento ocular, caracterizado por uveíte, pode surgir da terceira semana
até o primeiro ano após o desaparecimento da sintomatologia, variando em média de
quatro a oito meses. As alterações oculares em geral desaparecem espontaneamente.

Forma ictérica ou síndrome de Weil


Nesta forma da doença, associa-se ao quadro clínico disfunção hepática com
icterícia combinada ou não a insuficiência renal aguda, fenômenos hemorrágicos e
alterações cardíacas, hemodinâmicas, pulmonares e do nível de consciência. A taxa de
letalidade é de 10-15% na síndrome de Weil e superior a 50% na síndrome hemorrágica
pulmonar.
A icterícia ocorre três a sete dias após o início da doença. Sua instalação é
abrupta e caracteriza-se por coloração amarelo-avermelhada, a assim chamada icterícia
“rubínica”. Pode ser intensa e, com frequência, os níveis de bilirrubina são altos. A
urina é escura e, geralmente, não se observa acolia fecal.
O comprometimento renal na leptospirose, com nefrite intersticial e necrose
tubular aguda, caracteriza-se por elevação de uréia e creatinina, aumento da fração de
excreção de sódio e alterações variáveis no volume de urina, como leucocitúria,
hematúria, proteinúria e cristalúria. Oligúria ocorre com frequência variável.
Diferentemente de outras formas de insuficiência renal aguda, na leptospirose os níveis
de potássio plasmático estão normais ou diminuídos, raramente elevados. Tal fenômeno
é explicado pela alta fração de excreção de potássio que acompanha a fração de
excreção de sódio.
O envolvimento cardíaco é mais acentuado na forma ictérica da doença,
ocorrendo miocardite aguda. As manifestações mais comuns são alterações
eletrocardiográficas e arritmias cardíacas. Insuficiência cardíaca e choque cardiogênico
ocorrem com menor frequência.
Os fenômenos hemorrágicos são relativamente frequentes na síndrome de Weil,
podendo ocorrer em pele, mucosas ou órgãos internos. As hemorragias pulmonares
podem variar de escarro hemoptoico até hemorragia maciça com hemoptise asfixiante.
Também em graus variados de intensidade, podem ocorrer hemorragias
gastrointestinais, como hematêmese, enterorragia ou melena.
O comprometimento pulmonar caracteriza-se ao exame radiológico pela
presença de infiltrado pulmonar difuso ou localizado. A insuficiência respiratória é
atribuída às alterações da difusão do oxigênio através da membrana alvéolo-capilar
decorrente do edema e do extravasamento de sangue no interstício pulmonar e no
interior dos alvéolos, assim como pelo aumento do shunt arteriovenoso pulmonar.

Avaliação complementar

Exames inespecíficos
Hemograma pode revelar neutrofilia e desvio à esquerda. Leucocitose
geralmente está presente em graus variados, mas também se pode observar leucopenia
ou contagem normal. Plaquetopenia é muito frequente na síndrome de Weil, com
intensidade variável. Anemia pode ser leve a moderada, consequente ao quadro

Pedro Kallas Curiati 928


hemorrágico.
As transaminases estão pouco alteradas, geralmente inferiores a 100UI. A
fosfatase alcalina, a gama glutamil transpeptidase e a creatinofosfoquinase encontram-se
elevadas em graus variáveis. A hiperbilirrubinemia pode ser intensa, à custa da fração
direta.
O comprometimento renal é revelado pela elevação dos níveis plasmáticos de
uréia e creatinina. A fração de excreção de sódio se eleva e o potássio apresenta nível
sérico normal ou diminuído. As alterações mais comuns do exame de urina são
leucocitúria, proteinúria e cilindrúria.
O líquido cefalorraquidiano encontra-se com frequência alterado. A pressão
liquórica geralmente é normal e o aspecto do líquor é límpido e, nos casos com icterícia,
xantocrômico. Em geral, a pleocitose não ultrapassa 500 células por mm3 à custa de
linfócitos, embora em menor porcentagem de casos possa haver predomínio de
polimorfonucleares, principalmente no início da fase imune da doença. As proteínas se
elevam pouco e a glicorraquia costuma ser normal.
No coagulograma realizado na fase aguda pode haver alargamento do tempo de
protrombina, que geralmente se normaliza com a administração de vitamina K. Não
ocorre coagulação intravascular na leptospirose humana.
A gasometria arterial geralmente revela alcalose respiratória e acidose
metabólica. Nos casos mais graves ocorre hipoxemia e acidose mista.
O estudo radiológico do tórax pode ser normal ou revelar infiltrado intersticial
e/ou parenquimatoso localizado unilateral ou bilateral e algumas vezes velamentos
difusos. Mais raramente pode ocorrer derrame pleural.
O eletrocardiograma pode expressar o comprometimento do miocárdio na
doença, com alterações da repolarização ventricular, arritmias cardíacas, bloqueios ou
sobrecarga de câmaras.

Exames específicos
O isolamento da Leptospira no sangue, na urina ou no líquor pode ser feito em
meios de cultura apropriados. A cultura só pode ser considerada negativa após seis a
oito semanas de incubação. Todavia, possui baixa sensibilidade.
Na prática, a maioria dos casos de leptospirose é diagnosticada por sorologia. Os
anticorpos são detectáveis no sangue após cinco a sete dias do início dos sintomas e
podem persistir por semanas ou meses após a cura. Os testes mais utilizados são
ELISA-IgM e micro-aglutinação, que é o padrão-ouro. A sensibilidade na primeira
semana de doença é em torno de 25%.
A reação em cadeia da polimerase tem se mostrado útil no diagnóstico de
leptospirose. Os principais fatores limitantes são o custo, a falta de padronização e a
necessidade de tecnologia apropriada.
Estudos identificaram boa sensibilidade e especificidade para os testes
diagnósticos baseados em proteínas recombinantes, que estão sendo incorporadas em
plataforma de teste rápido.

Diagnóstico
Considera-se caso confirmado de leptospirose quando ocorrer isolamento da
Leptospira em algum espécime clínico, aumento de quatro vezes no título inicial ou
título único superior ou igual a 1:800 pela reação de soroaglutinação microscópica ou
detecção de anticorpos da classe IgM pela reação de ELISA.

Diagnóstico diferencial

Pedro Kallas Curiati 929


Na forma anictérica, a leptospirose pode ser confundida com doenças como
gripe, dengue e outras infecções virais, geralmente benignas e autolimitadas, que
cursam com cefaleia, febre e dores musculares. O comprometimento meníngeo pode se
expressar de forma clínica e laboratorial bastante parecida com as meningites
linfomonocitárias benignas.
Na forma ictérica, o diagnóstico diferencial deve ser feito com sepse bacteriana
grave, hepatite alcoólica, infecção bacteriana aguda em hepatopatas crônicos, forma
ictérica da febre tifoide, malária por P. falciparum, febre amarela, hepatites virais
graves, colangite, colecistite e dengue hemorrágica.

Tratamento
De modo geral, a leptospirose é uma doença autolimitada. As formas leves e
moderadas requerem tratamento sintomático, hidratação e antibioticoterapia. Nas
formas graves, a terapêutica de suporte é de suma importância e compreende reposição
volêmica e correção de distúrbios hidroeletrolíticos. Quando a insuficiência renal não
for revertida, preconiza-se submeter o paciente a diálise, com hemofiltração ou
hemodiálise clássica, precocemente. Diálise peritoneal é uma opção.
O tratamento das formas leves pode ser conduzido com Doxiciclina 100mg de
12/12 horas por via oral ou Amoxacilina 500mg de 8/8 horas por via oral. Já o
tratamento das formas moderadas e graves pode ser conduzido com Penicilina G
Cristalina 1500000UI de 6/6 horas por via intravenosa, Ceftriaxone 1g uma vez ao dia
por via intravenosa ou Ampicilina 0.5-1.0g de 6/6 horas por via intravenosa durante sete
dias.
O tratamento da insuficiência respiratória preconiza a monitorização e a
manutenção da pressão parcial de oxigênio acima de 80mmHg. Para tanto, deve-se
utilizar todas as técnicas terapêuticas, inclusive ventilação mecânica com estratégia
protetora e hipercapnia permissiva, com volume corrente inferior a 6mL/kg e pressão
expiratória final positiva elevada, superior a 15cmH2O. Deve-se evitar reposição hídrica
em excesso.

Prevenção
Evitar que o homem entre em contato com água ou solo contaminado constitui a
base das medidas profiláticas. Além disso, diversas providências devem ser adotadas
para controlar os animais portadores, em especial os roedores e os animais domésticos.
Outras medidas incluem rede de esgoto adequada, retificação e canalização de córregos,
coleta e destino adequado do lixo e campanhas educacionais.
Para pessoas que vão atuar em áreas de risco, pode-se recomendar a
administração de antibiótico profilático. A população mais indicada a receber esse tipo
de tratamento são os militares, os bombeiros e os profissionais que irão se submeter a
situação de risco por um tempo limitado. A Doxiciclina é o antitbiótico mais
recomendado, com dose de 200mg uma vez por semana por via oral. Em relação à
profilaxia secundária, os estudos são limitados. Alguns autores indicam
antibioticoterapia após enchentes ou exposições ocasionais com Doxiciclina 100mg de
12/12 horas por via oral durante sete dias.
As vacinas disponíveis para humanos são baseadas em extrato bruto da bactéria
e só protegem contra os sorotipos nela contidos. No Brasil, não existe vacina disponível
para aplicação em humanos.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 7: alergia e imunologia clínica, doenças da pele, doenças infecciosas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 930


MALÁRIA
Epidemiologia
No Brasil, a malária ocorre predominantemente na zona rural da região da
Amazônia Legal, composta por Acre, Amazonas, Amapá, Mato Grosso, Pará,
Rondônia, Roraima, parte do Maranhão e Tocantins.

Etiologia
Quatro espécies do gênero Plasmodium são reconhecidas como agentes
etiológicos da malária humana, P. malariae, P. vivax, P. falciparum e P. ovale. No
Brasil ocorre a transmissão das três primeiras espécies, com P. vivax, responsável pela
maior parte dos casos. A resposta imune na malária caracteriza-se por ser espécie-
específica, estágio-específica, fraca e de curta duração.
Portadores de hemoglobina S, como na anemia falciforme, e hemoglobina fetal,
como na talassemia, são relativamente resistentes à malária, já que o parasita não
sobrevive bem nas hemácias que possuem a hemoglobina alterada. Indivíduos que são
grupo sanguíneo Duffy negativos são resistentes à malária por P. vivax.
A transmissão natural da malária humana ocorre pela picada do mosquito
infectado. Os vetores são insetos da ordem Diptera, da família Culicidae, do gênero
Anopheles. Uma via de transmissão pouco habitual é a malária induzida, resultado do
contato com sangue infectado. A prevalência e os mecanismos de transmissão
placentária são pouco conhecidos.

Quadro clínico
O período de incubação varia conforme a espécie de plasmódio. Na infecção
pelo P. falciparum, varia de sete a onze dias, enquanto que na infecção pelo P. vivax
varia de dez a quatorze dias e na infecção pelo P. malariae varia de quatorze a vinte e
oito dias. Já na infecção induzida por transfusão de sangue ou hemoderivados o período
de incubação varia de dez horas a sessenta dias e na infecção congênita varia de três a
oito semanas.
O quadro clínico clássico da malária aguda caracteriza-se pelo paroxismo
secundário ao rompimento das hemácias parasitadas ao final do ciclo eritrocitário, com
intervalo de tempo variável, ao redor de 48 horas na infecção por P. falciparum e P.
vivax (febre terçã) e de 72 horas na infecção por P. malariae (febre quartã). No entanto,
indivíduos que vivem em áreas hiperendêmicas e recebem múltiplas picadas de
mosquitos infectados habitualmente apresentam mais de um ciclo de esquizogonia não
simultânea, com paroxismos em intervalos menores de 48 horas.
A evolução clínica, em especial as complicações relacionadas à doença, varia
conforme características da espécie envolvida e do grau de imunidade do hospedeiro.

Malária no indivíduo não-imune


O ataque agudo a malária no indivíduo não-imune se caracteriza por um
conjunto de paroxismos febris com três períodos. Na maioria dos pacientes, os sintomas
começam repentinamente com período de frio, que na maioria das vezes dura de quinze
a sessenta minutos. Os sintomas estão relacionados ao brusco aumento de temperatura
do corpo e se caracterizam pela sensação de frio intenso e calafrios marcados por
tremores generalizados. Podem acompanhar cefaleia, náusea e vômitos. O pulso fica
fino e acelerado, a pele, seca, e os lábios, cianóticos.

Pedro Kallas Curiati 931


O período de calor dura de duas a seis horas e se inicia quando terminam os
calafrios. O paciente começa a sentir calor, a face fica hiperemiada, o pulso fica cheio e
a pele fica seca e quente. Ocorre intensificação da cefaleia e persistência da náusea e
dos vômitos. Podem surgir delírio e/ou convulsões, principalmente em crianças.
Segue o período de sudorese intensa, com duração de duas a quatro horas. A
febre cede rapidamente, com melhora do desconforto. Após cessar o suor, o paciente
experimenta um período de melhora importante, podendo permanecer com sintomas
inespecíficos e discreta cefaleia. A duração total do paroxismo é de seis a doze horas.
As primeiras manifestações no indivíduo não-imune podem não se apresentar
como paroxismo típico, pois a esquizogonia não é síncrona até que o sistema imune do
hospedeiro comece a reconhecer as diferentes formas parasitárias. Em geral, o indivíduo
apresenta como sintoma único febre contínua, subcontínua ou intermitente com
remissões. Nesses pacientes, a malária tem maior possibilidade de evoluir com
complicações.

Malária grave
Crianças, gestantes e primoinfectados apresentam risco elevado de evoluir para
formas graves de malária. As formas graves e de urgência, com raras exceções, são
observadas nas infecções por P. falciparum.
O paciente apresenta febre persistente, podendo não ser muito elevada, e não
apresenta calafrios nem sudorese. A cefaleia é intensa e o vômito é frequente. Ocorre
delírio. Geralmente, mais de 2% das hemácias encontram-se parasitadas, ocorrendo
anemia.
Se o paciente não for tratado de forma adequada, poderá evoluir rapidamente
para forma grave da doença, com acentuação dos sinais e dos sintomas, surgindo as
complicações. Pode ocorrer comprometimento renal, pulmonar, cerebral, hepático ou
hematológico, com anemia ou trombocitopenia.
Critérios clínicos de gravidade incluem hipertermia contínua, alteração do nível
de consciência, convulsão, icterícia, sangramentos anormais, choque circulatório, lesão
pulmonar aguda, microglobinúria e hemoglobinúria. Critérios laboratoriais de gravidade
incluem hiperparasitemia com mais de 2% nos primoinfectados e parasitemia superior a
100000 trofozoítos por mm3, anemia severa, insuficiência renal aguda, hipoglicemia,
hiperlactatemia e distúrbios hidroeletrolíticos.

Malária na criança
Em crianças maiores de cinco anos de idade, a malária habitualmente tem a
mesma evolução que em adultos, porém nem sempre se observam os sinais
característicos do paroxismo palúdico, levando, com frequência, a erro diagnóstico.
Entretanto, em regiões endêmicas, a infecção causada pelo P. falciparum é responsável
por alta taxa de morbidade e mortalidade em crianças em idade pré-escolar.
Os lactentes geralmente não apresentam paroxismos típicos. Tornam-se flácidos
e sonolentos, perdem o apetite, têm frio e podem apresentar vômitos e convulsões. A
febre pode ser contínua, remitente, intermitente ou irregular. Posteriormente, podem
surgir dores abdominais e diarreia. A despeito de não ser achado comum, podem surgir
hepatomegalia e esplenomegalia. Nas evoluções mais graves surge icterícia e anemia.
A despeito da malária grave quase sempre ser causada pelo P. falciparum, a
infecção pelo P. vivax pode também ter evolução grave em crianças pela alta taxa de
reticulócitos.

Malária na gestante

Pedro Kallas Curiati 932


As alterações da gravidez e da malária influenciam tanto a mãe quanto o
concepto. A mortalidade é duas vezes maior do que em mulheres não-gestantes. Podem
apresentar parasitemia dez vezes mais elevada, favorecendo a evolução grave.

Malária no indivíduo semi-imune


O espectro clínico da infecção pelo plasmódio pode variar desde quadros típicos
de paroxismo à infecção assintomática. Na resposta imune adquirida, carga parasitária,
virulência, fatores relacionados ao hospedeiro e fatores genéticos são responsáveis pela
expressão clínica da doença em cada indivíduo.

Síndrome da esplenomegalia tropical


Essa síndrome, observada nas regiões endêmicas, caracteriza-se pela presença de
marcada esplenomegalia crônica, sem outros sinais e sintomas clínicos sugestivos de
malária. Como mecanismo, sugere-se defeito nas células supressoras, originando
ativação policlonal de linfócitos B, que também poderia ser induzida por mitógeno
associado ao parasita. Na investigação laboratorial, há ausência de parasitas no sangue
periférico e níveis séricos elevados de anticorpos anti-maláricos das classes IgM e IgG.
O diagnóstico é de exclusão, devendo-se afastar outras causas de esplenomegalia
crônica. Apresenta boa resposta a quimioprofilaxia anti-malárica prolongada com
Cloroquina.

Avaliação complementar
Hemograma pode revelar anemia e/ou trombocitopenia discreta, com
leucometria normal ou alterada. A concentração sérica das enzimas hepáticas pode estar
normal ou discretamente elevada. Nos casos graves, de comprometimento sistêmico
múltiplo, as alterações laboratoriais dependem do órgão envolvido. As alterações
laboratoriais devem ser monitorizadas para uma adequada condução do caso.
Os métodos diagnósticos padrão-ouro são a gota espessa e o esfregaço de sangue
periférico, ambos de realização simples. Possibilitam a identificação da espécie e do
estágio do plasmódio envolvido na infecção, bem como a quantificação da carga
parasitária.
Os métodos indiretos consistem na demonstração da presença de anticorpos
específicos contra plasmódio no soro, que não se correlaciona com infecção em
atividade.
O diagnóstico molecular pela reação em cadeia da polimerase apresenta elevada
sensibilidade e especificidade para detecção de plasmódio.

Diagnóstico diferencial
As doenças que mais comumente podem ser confundidas com o paroxismo da
malária em sua forma típica são aquelas acompanhadas de bacteremia. Quanto às
complicações, o diagnóstico diferencial depende do órgão ou sistema acometido.

Tratamento
O tratamento de malária habitualmente é bastante eficaz, desde que iniciado de
modo precoce e utilizado de maneira correta. Idealmente, devem ser utilizados
medicamentos que atuem nas diferentes fases do ciclo. No Brasil, o Ministério da Saúde
recomenda os esquemas a serem utilizados, estando as drogas disponíveis gratuitamente
nas unidades de referência. A decisão de como tratar o paciente com malária deve ser
precedida de informações sobre idade, comorbidades, história prévia de malária, espécie
de plasmódio, gravidade da doença e suscetibilidade aos antimaláricos convencionais.

Pedro Kallas Curiati 933


Malária por P. vivax ou P. ovale
As 4-aminoquinoleínas continuam sendo as drogas de escolha para tratar a fase
eritrocítica. A dose de Cloroquina empregada é de 25mg/kg de substância de base em
quatro tomadas, com 10mg/kg no início e 5mg/kg seis, vinte e quatro e quarenta e oito
horas após. Operacionalmente, tem sido empregado 10mg/kg no início e 7.5mg/kg vinte
e quatro e quarenta e oito horas após, sem prejuízo. A Cloroquina é apresentada na
forma de drágea de 250mg de Difosfato de Cloroquina, com aproximadamente 150mg
de substância de base. Quando administrada por via oral, deve ser administrada
preferencialmente durante as refeições, com baixa toxicidade. Efeitos adversos incluem
cefaleia, náusea, alterações gastrointestinais, embaçamento visual, prurido e exantema
cutâneo leves. A Amodiaquina, outra opção de 4-aminoquinoleína, não está disponível
no Brasil.
Com o objetivo de promover cura radical e evitar recaída, associa-se
medicamentos que atuam na fase exoeritrocítica e pertencem aos grupos dos 8-
aminoquinoleínicos, cujo único representante disponível é a Primaquina, disponível em
formulação com 15mg de substância de base para adultos e 5mg de substância de base
para crianças. A dose recomendada é de 0.25mg/kg/dia de substância de base durante
quatorze dias, iniciando juntamente com a Cloroquina. Em virtude do risco de hemólise,
a Primaquina deve ser contraindicada em pacientes com deficiência de fosfato
desidrogenase, gestantes e crianças com menos de seis meses. Efeitos colaterais como
anorexia, náusea, vômito e dores abdominais podem estar relacionados à droga e, menos
comumente, à toxicidade de medula óssea.
No tratamento de gestantes e menores de seis meses de idade, cujo tratamento é
realizado apenas com Cloroquina, sem associação com a Primaquina, a prevenção de
recaídas pode ser realizada por meio da administração de 300mg de base de Cloroquina
em dose única semanal até que a Primaquina possa ser administrada.

Malária por P. malariae


O tratamento da malária por P. malariae se reduz ao emprego de medicamentos
que atuem nas formas eritrocíticas, já que não existe forma exoeritrocítica secundária na
malária por essa espécie. O medicamento utilizado é a Cloroquina nas mesmas doses
preconizadas para malária por P. vivax.

Malária por P. falciparum não-complicada


O esquema de primeira escolha é composto pela associação de Artemeter 20mg
com Lumefantrina 120mg, disponível comercialmente em combinação fixa
(Coartem®), com dose de quatro comprimidos administrada de 12/12 horas durante três
dias para pacientes com peso superior ou igual a 35kg. Recomenda-se a ingesta da
droga junto com alimentos. Há contraindicação em crianças menores de seis meses de
idade e gestantes durante o primeiro trimestre de gravidez.
Esquema de segunda escolha é composto por Sulfato de Quinino na dose de
30mg/kg/dia de sal em duas tomadas diárias durante três dias associado a Doxiciclina
ou Tetraciclina na dose de 3.3mg/kg/dia também em duas tomadas diárias durante cinco
dias, a partir do primeiro dia de uso do Sulfato de Quinino. No sexto dia de tratamento,
a Primaquina deve ser empregada em dose única de 45mg para adultos como
gametocitocida. Em caso de impossibilidade do uso de Doxiciclina e Tetraciclina,
contraindicadas em gestantes e indivíduos com idade inferior a oito anos, utiliza-se
Clindamicina 20mg/kg/dia com quatro tomadas diárias durante cinco dias.

Pedro Kallas Curiati 934


Malária por P. falciparum grave
A mortalidade é de aproximadamente 15-20%.
A terapia antimalárica deve ser instituída o mais precocemente possível. Ao lado
da necessidade de rápida negativação da parasitemia, é fundamental controlar as
complicações, idealmente em unidade de tratamento intensivo.
Duas classes de drogas são disponíveis para terapia parenteral, o Sulfato de
Quinino e os derivados de artemisina, como Artesunato, Artemeter e Artemotil. O
Artesunato intravenoso deve ser iniciado na dose de 2.4mg/kg na admissão, doze, vinte
e quatro, quarenta e oito e setenta e duas horas após a primeira dose. Eventualmente,
pode ser mantido por mais de três dias em casos graves, mas não existem
recomendações específicas para essas situações. Sua formulação em pó, com 60mg,
deve ser diluída em Bicarbonato de Sódio a 5% distribuído com o produto e essa
diluição, por sua vez, deve ser diluída em 5mL de Dextrose a 5% para administração
intravenosa. Recomenda-se preparo na hora da administração, sem armazenamento
posterior. Não é necessário ajuste da dose para insuficiência hepática ou insuficiência
renal.
Na indisponibilidade do Artesunato intravenoso, o Artemeter, disponível na
forma de ampolas de 80mg, pode ser utilizado como opção terapêutica, administrado
por via intramuscular na dose de ataque de 3.2mg/kg na admissão e de manutenção de
1.6mg/kg do segundo ao quinto dias, com eficácia limitada por absorção variável.
O Sulfato de Quinino também pode ser uma alternativa terapêutica, indicado por
via venosa, com dose de ataque de 20mg/kg de sal na admissão e 10mg/kg de sal de 8/8
horas. Deve ser diluído em solução salina ou glicosada e administrado em bomba de
infusão, não excedendo a velocidade de 5mg/kg/hora pelo risco de hipotensão letal. Em
pacientes com insuficiência renal ou hepática, a dose deve ser reduzida em um terço
após 48 horas.
Esses tratamentos devem ser associados a uma droga de ação lenta, como
Clindamicina 20mg/kg ou Doxiciclina por cinco a sete dias para assegurar a cura
radical, com início quando o paciente apresentar melhora clínica ou tolerância à
medicação oral.
O Artesunato é a droga de escolha para gestantes no segundo e no terceiro
trimestres. O Sulfato de Quinino é a droga de escolha para gestantes no primeiro
trimestre.
Quando não estão disponíveis esquizonticidas sanguíneos rápidos, pode-se
utilizar como método de exceção exsanguineotransfusão.

Malária por P. vivax e P falciparum


Os tratamentos recomendados para malária por P. falciparum não-complicada
também são efetivos contra as formas eritrocitárias do P. vivax. Com o objetivo de
eliminar as formas hepáticas latentes deste, deve-se associar a Primaquina na dose
preconizada para a infecção pelo P. vivax.

Quimioprofilaxia
Viajantes que se dirigem a áreas rurais da África e do Sudeste Asiático devem
procurar orientação em serviços especializados, que levará em conta o risco de adquirir
malária de acordo com o estilo de viagem e as destinações previstas, bem como o perfil
de resistência dos parasitas locais às drogas disponíveis.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 7: alergia e imunologia clínica, doenças da pele, doenças infecciosas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 935


MONONUCLEOSE INFECCIOSA
Etiologia e fisiopatologia
O vírus Epstein-Barr pertence à família Herpesviridae e é um vírus DNA de
dupla fita. A infecção pelo vírus Epstein-Barr é transmitida pela saliva e é
extremamente comum em populações de baixo nível socioeconômico, que vivem em
más condições de higiene e habitação. O hospedeiro suscetível é infectado por meio da
entrada do vírus pela orofaringe. Após a infecção primária, o vírus é eliminado pela
saliva durante muitos meses. Como todos os outros membros da família, o vírus
Epstein-Barr é capaz de persistir no hospedeiro humano pelo resto da vida. Infecta
preferencialmente os linfócitos B.

Quadro clínico
O período de incubação é de cerca de quatro a seis semanas, mas a fonte da
infecção é raramente identificada.
A mononucleose infecciosa é caracterizada clinicamente por febre,
faringoamigdalite, linfadenomegalia generalizada e hepatoesplenomegalia, ocorrendo,
sobretudo, em crianças e adultos jovens. Os principais sintomas da doença são dor de
garganta, astenia intensa, cefaleia e dor abdominal. A febre, na maioria dos casos, não
ultrapassa duas semanas de duração, mas a resolução completa dos sinais e sintomas
pode levar várias semanas.
Os pacientes apresentam-se, via de regra, com bom estado geral, apesar da
abundância de achados ao exame clínico. A faringe encontra-se sempre muito
hiperemiada e o exsudato de amígdalas, quando presente, é membranoso, de aspecto
branco-acinzentado, cobrindo em geral toda a loja amigdaliana. Ao contrário do que se
observa na difteria, o exsudato da mononucleose infecciosa nunca invade os tecidos
adjacentes à loja amigdaliana. Já a amigdalite estreptocócica é caracterizada pela
presença de pontos purulentos não confluentes, sendo o pus facilmente retirado com
uma espátula. Em casos raros, o processo inflamatório na faringe é muito intenso e,
além do exsudato, observa-se hiperemia e edema importantes, chegando a prejudicar a
respiração. Petéquias de palato ocorrem em cerca de metade dos pacientes. A
linfonodomegalia é dolorosa e generalizada, atingindo praticamente todas as cadeias
ganglionares. O fígado e o baço apresentam aumento moderado e são dolorosos. O
aumento de linfonodos, fígado e baço pode perdurar por semanas ou meses após o
término da febre. Icterícia pode ser observada eventualmente. Em alguns casos, pode
ocorrer edema palpebral de curta duração, conhecido como sinal de Hoagland.
Hepatite, com ou sem icterícia e plaquetopenia, faz parte do quadro clínico
habitual da mononucleose infecciosa. Contudo, existem complicações que são raras,
mas potencialmente graves. Incluem hemorragia subcapsular e ruptura do baço,
trombocitopenia grave, pericardite, encefalite, síndrome de Guillain-Barré e outras
complicações neurológicas, como mielite transversa, encefalomielite, paralisia do nervo
facial e paralisia de outros pares cranianos. São ainda relatadas complicações
respiratórias, como pneumonite intersticial, cardíacas, como miocardite e pericardite,
renais, como hematúria e proteinúria transitórias, e hematológicas, como anemia
aplástica, granulocitopenia e síndrome hemofagocítica, quase todas com regressão
espontânea.

Doenças linfoproliferativas

Pedro Kallas Curiati 936


Mais de 90% da população mundial apresenta infecção latente do vírus Epstein-
Barr em linfócitos B, que persiste pelo resto da vida sem qualquer sintoma. Contudo,
dependendo de alterações do sistema imune do hospedeiro ou de certas alterações
genéticas dos linfócitos B infectados, pode haver transformação maligna dessas células.
O aumento do número de transplantes de órgãos, a instituição de esquemas
quimioterápicos para tratamento de neoplasias e o advento da síndrome da
imunodeficiência adquirida aumentaram muito o número de indivíduos
imunodeprimidos na população geral. Uma das complicações mais temidas nesses
pacientes gravemente imunocomprometidos, sobretudo naqueles que são suscetíveis e
apresentam infecção primária pelo vírus Epstein-Barr, são as síndromes
linfoproliferativas.
O linfoma de Burkitt é o tumor mais frequente da infância na África Equatorial.
Trata-se de um tumor de mandíbula, mas que também pode iniciar-se no globo ocular
ou nos ovários, e cursa invariavelmente com linfoproliferação de células B infectadas
pelo vírus Epstein-Barr.
O carcinoma de nasofaringe também está associado à infecção pelo vírus
Epstein-Barr, identificando-se o genoma viral em todas as células tumorais. É endêmico
no sul da China e no sudeste asiático.
Também está comprovada a participação do vírus Epstein-Barr na etiologia de
algumas das formas de apresentação do linfoma de Hodgkin, principalmente na forma
de celularidade mista em crianças de países em desenvolvimento.

Avaliação complementar
Os achados laboratoriais incluem, além das alterações no hemograma, aumento
moderado de enzimas hepáticas e presença de anticorpos anti-núcleo, anti-hemácia e
heterofilos, que são a base da reação de Paul-Bunnell-Davidsohn. Icterícia leve, às
custas de aumento da bilirrubina direta, pode ser vista em cerca de 10% dos casos. Os
achados característicos do hemograma na mononucleose infecciosa são leucocitose às
custas de aumento absoluto, superior a 3000/mm3, e relativo, superior a 50%, de
linfócitos, com presença de linfócitos atípicos. Plaquetopenia moderada pode ocorrer
em quase metade dos casos.
O diagnóstico específico é dado pela positividade da reação de Paul-Bunnell-
Davidsohn ou pela pesquisa de anticorpos para cápside do vírus Epstein-Barr de classe
IgM (anti-VCA).

Diagnóstico diferencial – síndrome mononucleose “símile”


O diagnóstico diferencial da mononucleose basicamente está relacionado às
doenças mononucleose “símile”, ou seja, aquelas que cursam com febre e linfocitose,
com presença de linfócitos atípicos. Dentre essas, as mais relevantes pela sua frequência
e semelhança do quadro clínico seriam a toxoplasmose aguda e a citomegalovirose
adquirida. Contudo, diversas outras infecções, como a forma aguda da doença de
Chagas, a infecção aguda pelo vírus da imunodeficiência humana, a hepatite A aguda,
as adenoviroses, a rubéola, a infecção aguda pelo herpesvírus 6 humano, as leucemias,
os linfomas e as reações a drogas, incluindo Difenil-Hidantoína, Alopurinol,
Hidralazina, Sulfapiridina, Dapsona e Metildopa, podem levar a quadros mononucleose
“simule”.
Frente a um caso clinicamente e laboratorialmente sugestivo de mononucleose
infecciosa, a primeira conduta diagnóstica para definição da etiologia é solicitar a
reação de Paul-Bunnell-Davidsohn. Caso seja positiva, estará confirmado o diagnóstico
de infecção aguda pelo vírus Epstein-Barr. Em caso de resultado negativo, deve-se

Pedro Kallas Curiati 937


prosseguir a investigação, lembrando que o próprio vírus Epstein-Barr pode causar
mononucleose infecciosa com reação negativa. Uma vez afastada a possibilidade de
infecção aguda pelo vírus Epstein-Barr, seja pela reação de Paul-Bunnell-Davidsohn,
seja pela sorologia específica, há necessidade de investigar laboratorialmente as outras
etiologias.
Os antecedentes pessoais e epidemiológicos são bastante importantes para
orientar a investigação.

Tratamento
O tratamento é sintomático. Estudos controlados não mostraram eficácia clínica
do tratamento com Aciclovir e outros antivirais. Não existem também estudos
comprovando a utilidade do uso e corticosteroides no tratamento da mononucleose
infecciosa.

Prevenção
No momento, não existe vacina comercialmente disponível para prevenir a
mononucleose infecciosa.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 7: alergia e imunologia clínica, doenças da pele, doenças infecciosas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 938


PARASITOSES INTESTINAIS
Protozooses

Giardíase
Infecção causada pelo protozoário flagelado Giardia lamblia, atualmente
denominado Giardia duodenalis ou Giardia intestinalis. É adquirida pela ingesta de água
ou alimentos contaminados por cistos. Tem distribuição universal e é, atualmente, uma
das parasitoses mais diagnosticadas.
Muitos casos passam despercebidos por serem assintomáticos, porém cerca de
metade dos indivíduos contaminados apresentam quadro clínico caracterizado com
frequência por diarreia líquida, volumosa, com três a cinco evacuações por dia, com
muco, sem sangue, às vezes acompanhada de desconforto abdominal ou dor abdominal
em cólica, raramente com náusea, vômitos e febre baixa. A infecção parece ser, com
frequência, mais sintomática quando acomete crianças. Os sintomas podem regredir sem
tratamento específico após algumas semanas ou persistir sob a forma de diarreia crônica
com síndrome de má-absorção e emagrecimento. Quadros atípicos podem se manifestar
com dor epigástrica ou simulando cólica biliar.
O diagnóstico é feito por meio do exame das fezes. Nas fezes líquidas,
predominam as formas trofozoítas, sendo o exame a fresco, com fezes coradas por
Lugol ou hematoxilina-férrica, a técnica mais adequada. Nas fezes formadas,
predominam os cistos, muito resistentes às condições ambientais, e as técnicas de
fixação e concentração são úteis para melhorar a sensibilidade do exame, com a de
Faust e a de Ritchie usualmente empregadas. Como a eliminação do parasita nas fezes é
intermitente, para o correto diagnóstico é imprescindível o exame de três amostras de
fezes colhidas com o intervalo de uma semana.
Atualmente, os compostos imidazólicos são as drogas de primeira escolha no
tratamento da giardíase. Emprega-se o Tinidazol, apresentado na forma de comprimidos
de 500mg, na dose de 2g por via oral em dose única para adultos. O Metronidazol,
apresentado na forma de comprimidos de 250mg, deve ser utilizado com dose de 250mg
três vezes por dia por via oral durante sete a dez dias para adultos. Outros compostos
imidazólicos estão disponíveis com a mesma eficácia dos demais, podendo ser
administrados na mesma dose do Tinidazol, como Nimozarol, Secnidazol e Ornidazol.
O controle de cura deve ser realizado com exames coproparasitológicos colhidos
sete, quatorze e vinte e um dias após o tratamento. O emprego de Albendazol,
apresentado na forma de comprimidos de 400mg, na dose de 400mg por dia, durante
cinco dias, também mostrou-se eficaz. Deve-se atentar para o fato de que determinados
pacientes permanecem infectados com G. duodenalis, às vezes por longos períodos de
tempo, apesar de adequadamente tratados.

Criptosporidíase
Trata-se de infecção determinada mais frequentemente por coccídios do gênero
Cryptosporidium spp, parasitas intracelulares causadores de quadros de diarreia
autolimitada em indivíduos imunocompetentes e diarreia crônica em 10-30% dos
pacientes com síndrome da imunodeficiência adquirida e contagem de linfócitos T CD4
positivos inferior a 200/mm3. Pode haver infecção assintomática. A maior parte dos
casos em seres humanos deve-se a C. hominis e a C. parvum. Na vigência de
comprometimento imunológico importante, pode ocorrer enterite com diarreia líquida

Pedro Kallas Curiati 939


de grande volume, conhecida como diarreia coleriforme, acompanhada de dor
abdominal, vômitos, desidratação intensa, má-absorção e, consequentemente,
emagrecimento.
A transmissão, à semelhança de outras parasitoses intestinais, ocorre por via
fecal-oral.
O diagnóstico é realizado pela concentração dos oocistos eliminados pelas fezes,
utilizando-se a técnica de Ritchie e corando-se a preparação obtida pelo método de
Kinyon ou com o emprego de dimetilsulfóxido. Anticorpos monoclonais acoplados a
uma substância fluorescente também constituem ferramenta adequada ao diagnóstico,
empregando-se a técnica de imunofluorescência direta para a leitura da reação. As
técnicas de biologia molecular, principalmente as que envolvem o uso de reação em
cadeia da polimerase, além de utilidade diagnóstica, são empregadas em estudos
epidemiológicos envolvendo populações humanas e animais.
As drogas para tratamento específico disponíveis, todas com atividade precária,
sobretudo nos pacientes intensamente imunodeprimidos, incluem Espiramicina,
apresentada na forma de cápsulas de 250mg e 500mg, com dose de 3g por dia por via
oral durante duas semanas e 1g por dia de manutenção a partir de então, Paromomicina,
com dose de 2g por dia por via oral durante duas semanas e 1g por dia de manutenção a
partir de então, e Roxitromicina, apresentada na forma de comprimidos de 50mg,
100mg, 150mg e 300mg, com dose de 500mg duas vezes ao dia por via oral durante
quatro semanas. O emprego mais recente da Nitazoxanida nesta situação revelou-se
relativamente eficaz, mas apenas em indivíduos infectados por HIV com contagens de
linfócitos T CD4 positivos acima de 200/mm3.

Ciclosporíase
Infecção determinada por Cyclospora cayetanensis, agente intracelular
potencialmente causador de quadros diarreicos em imunocompetentes e de diarreia
crônica em indivíduos com comprometimento da imunidade celular, sobretudo
pacientes com síndrome da imunodeficiência adquirida e contagem de linfócitos T CD4
positivos inferior a 100/mm3.
Na prática clínica, as características da doença diarreica por C. cayetanensis são
indistinguíveis daquelas causadas por Cryptosporidium spp. O diagnóstico é feito da
mesma maneira que o da criptosporidíase. A exemplo daquilo que ocorre com a
criptosporidíase, a ciclosporíase também deve ser considerada no contexto da diarreia
dos viajantes, sobretudo quando houver deslocamento para áreas consideradas
endêmicas, principalmente aquelas de clima tropical ou subtropical.
O tratamento em imunocompetentes com quadros sintomáticos é feito com a
associação Sulfametoxazol/Trimetoprim, apresentada na forma de comprimidos de
400mg/80mg e 800mg/160mg, com 800mg/160mg quatro vezes ao dia por via oral
durante dez dias e 800mg/160mg três vezes por semana de manutenção até que seja
obtida melhora da imunidade celular pelo controle da carga viral do retrovírus.

Isosporíase
A infecção pelo coccídeo Isospora belli pode causar doença diarreica em
indivíduos imunocompetentes, embora sua presença no tubo digestivo dessa população
seja mais frequentemente assintomática. É nos imunodeprimidos, sobretudo pela
presença de infecção pelo vírus da imunodeficiência humana, que essa infecção assume
maior importância clínica, com quadros diarreicos extremamente graves em pacientes
com imunidade celular comprometida, nos quais o número de linfócitos T CD4
positivos é menor que 100/mm3.

Pedro Kallas Curiati 940


O modo de transmissão é fecal-oral. Após período de incubação, que varia de
três a quatorze dias, inicia-se, nos casos sintomáticos, diarreia aquosa, volumosa, não-
sanguinolenta, às vezes com muco, acompanhada de dores abdominais do tipo cólica,
vômitos, mal-estar, anorexia, febre baixa e emagrecimento.
O diagnóstico é realizado pela identificação de oocistos nas fezes por intermédio
dos métodos de Sheather, Ritchie ou de sedimentação espontânea.
A primeira escolha para o tratamento consiste na associação de Sulfametoxazol
50mg/kg/dia com Trimetoprim 10mg/kg/dia por via oral em quatro tomadas diárias
durante quatro semanas, sendo a manutenção nos indivíduos imunodeprimidos realizada
com 25mg/kg/dia de Sulfametoxazol por mais quatro semanas. Outra combinação
utilizada é de Sulfadiazina na dose de 100mg/kg/dia com Pirimetamina na dose de
25mg/kg/dia durante seis a oito semanas.

Microsporidíase
Infecção reconhecida predominantemente em indivíduos imunocomprometidos
por infecção pelo vírus da imunodeficiência humana determinada por parasitas
intestinais intracelulares obrigatórios pertencentes a vários gêneros e espécies, sendo
mais comuns Enterocytozoon bieneusi e Encephalitozoon intestinalis.
O quadro clínico consiste em enterite com diarreia líquida e emagrecimento
acentuado em decorrência de má absorção, sem febre. A contagem de linfócitos T CD4
positivos em geral é inferior a 100/mm3.
Até recentemente, o diagnóstico baseava-se exclusivamente na análise de
fragmentos de biópsia intestinal por meio de microscopia eletrônica. Contudo, hoje é
possível contar com a técnica de coloração tricrômica modificada por Weber, além de
métodos de biologia molecular.
O tratamento recomendado é feito com Albendazol na dose de 400-800mg duas
vezes por dia por via oral durante período superior a três semanas em caso de infecção
por E. intestinalis. Já nos casos de infecção por E. bieneusi, a resposta ao Albendazol é
insatisfatória na maioria das vezes e a Fumagilina parece ter atividade anti-parasitária,
havendo boas perspectivas de que tenha utilidade terapêutica.

Amebíase
Trata-se de protozoose com distribuição mundial causada por Entamoeba
histolytica, cuja transmissão ocorre por intermédio da ingesta de água ou alimentos
contaminados por cistos do protozoário presentes nas fezes de indivíduos infectados.
Outra modalidade de transmissão é o contato sexual oro-anal.
As apresentações clínicas variam desde formas assintomáticas a formas
intestinais e extra-intestinais. As formas intestinais são, mais comumente,
oligossintomáticas, com náusea, flatulência, cólicas abdominais e alterações do ritmo
intestinal leves. A forma disentérica, denominada retocolite amebiana aguda, manifesta-
se por sangue e muco nas fezes, cólicas abdominais intensas, tenesmo, náusea, vômitos
e cefaleia, com febre baixa em parcela dos casos. Raramente ocorre enterorragia ou
complicações como perfuração intestinal e megacólon tóxico. A amebíase intestinal
crônica pode suceder a forma disentérica, sendo caracterizada por períodos de diarreia
recorrente, com muco nas fezes, dor abdominal e perda de peso intercalados por
períodos assintomáticos. A forma pseudotumoral, denominada ameboma, localiza-se
quase sempre na parede de reto, sigmoide ou ceco. Em geral, esses tumores são
pequenos, mas podem atingir grandes dimensões, com obstrução intestinal.
As formas extra-intestinais atingem, sobretudo, o fígado, sob a forma de
pequenos focos de necrose parenquimatosa, que, após coalescerem, dão origem a

Pedro Kallas Curiati 941


abscesso único, localizado com maior frequência no lobo hepático direito, em posição
posterior. A sintomatologia sistêmica é importante, com toxemia, febre alta, calafrios e
dor em hipocôndrio direito. Focos de necrose amebiana podem se estender pelo
diafragma em direção à pleura e ao pulmão direito, mas raramente atingem o saco
pericárdico e ocasionam pericardite constritiva com tamponamento cardíaco. A ruptura
da parede do abscesso hepático pode originar também peritonite amebiana. A amebíase
cerebral manifesta grave quadro de meningoencefalite com sinais de localização e é
proveniente da disseminação hematogênica. A amebíase cutânea, situação na qual
feridas pré-existentes são contaminadas com o protozoário, tornando-se crônicas, é rara
em nosso meio.
O diagnóstico é obtido por meio da detecção de formas trofozoítas em fezes
disentéricas ou de cistos nas fezes formadas. Os métodos de concentração de Faust e
Ritchie aumentam a sensibilidade do exame. Nos casos de necrose amebiana do fígado,
utiliza-se exame sorológico, com sensibilidade próxima a 100%, estando disponíveis
ELISA, fixação do complemento e hemaglutinação indireta. O exame parasitológico de
fezes não consegue diferenciar cistos e trofozoítos de E. histolytica daqueles de E.
díspar, considerada uma espécie não-patogênica. A diferenciação entre as duas espécies
exige a utilização de anticorpos monoclonais ou técnicas de biologia molecular.
A amebíase assintomática pode ser tratada com as dicloroacetamidas Etofamida,
apresentada na forma de comprimidos de 500mg, com dose de 500mg duas vezes ao dia
por via oral durante três dias, e Teclosan, apresentado na forma de comprimidos de
500mg, com dose de 500mg três vezes ao dia por via oral durante um dia.
Opcionalmente, pode-se utilizar componentes imidazólicos, com Metronidazol 750mg
três vezes ao dia por via oral durante dez dias ou Tinidazol 2g por dia durante dois a
cinco dias. Quanto aos quadros disentéricos ou de necrose amebiana extra-intestinal,
recomenda-se sempre o uso de imidazólicos, com Metronidazol por dez dias ou
Tinidazol por cinco a sete dias. Nos casos de abscessos amebianos hepáticos ou
pulmonares, a medicação deve ser administrada por via intravenosa. Após completado o
esquema, deve-se administrar uma das dicloroacetaminas no esquema recomendado
para a amebíase assintomática para erradicar possíveis formas remanescentes no lúmen
intestinal. O emprego da Nitazoxanida, apresentada na forma de comprimidos de
500mg, na dose de 500mg duas vezes ao dia durante três dias tem sido recomendado
por alguns autores. Além do tratamento específico, no caso da necrose amebiana do
fígado, ainda pode ser necessária drenagem cirúrgica, aspirações repetidas por agulha
guiadas por ultrassonografia ou a colocação de dreno tipo pig tail, bem como o
tratamento antimicrobiano de infecções bacterianas secundárias.
Deve-se sempre proceder com controle de cura por meio do exame
parasitológico de fezes com sete, quatorze, vinte e um e vinte e oito dias após o
tratamento.

Balantidíase
Trata-se da infecção pelo maior protozoário ciliado, Balantidium coli, parasita
de suínos, cuja incidência na espécie humana é atualmente rara. As infecções em
crianças podem se apresentar com quadros de síndrome disentérica de extrema
gravidade. O diagnóstico é facilmente estabelecido pelo encontro de formas
trofozoíticas muito características nas fezes. O tratamento é realizado com Tetraciclina,
apresentada na forma de comprimidos de 500mg, com dose de 30-50mg/kg/dia por via
oral em quatro tomadas diárias durante dez dias, ou com Metronidazol, com dose de
20mg/kg/dia por via oral em três tomadas diárias durante sete dias.

Pedro Kallas Curiati 942


Blastocistose
A infecção humana por Blastocystis hominis, bastante comum, foi considerada
desprovida de relevância clínica. Entretanto, atualmente, atribui-se papel patogênico a
esse parasita, especialmente quando é encontrado em grande quantidade no exame
parasitológico de fezes. O impacto dessa infecção em pacientes imunocomprometidos
não está ainda bem determinado, embora haja relatos de doença diarreica importante em
pacientes com síndrome da imunodeficiência adquirida. O diagnóstico é efetuado com a
visualização direta das formas vacuolizadas do parasita coradas por Lugol,
hematoxilina-férrica ou tionina. O tratamento, quando recomendado, é feito pelo uso de
Metronidazol 750mg três vezes ao dia durante dez dias.

Diantamebíase
Este parasita, frequentemente estudado no grupo das amebas, é, na realidade, um
flagelado. Não apresenta estágio de cisto, sendo binucleado. Vive no intestino grosso,
sendo raramente descrito fagocitando hemácias.
A ocorrência de doença diarreica é relatada em 15-20% dos portadores de D.
fragilis. O quadro clínico é caracterizado por dor abdominal, fezes amolecidas mucoides
ou mesmo hemorrágicas, flatulência, fraqueza, fadiga, náusea, vômitos e
emagrecimento.
A transmissão deste parasita ainda é discutível, mas pode estar relacionada com
a transmissão de outros parasitas intestinais, como ovos de nematódeos, ou transmissão
direta entre homens, como em homens que têm relação sexual com outros homens.
O tratamento dos casos sintomáticos pode ser realizado com Tetraciclina na dose
de 250mg quatro vezes ao dia durante sete dias ou com Metronidazol na dose de 750mg
três vezes ao dia durante dez dias.

Outros protozoários
Diversas outras espécies de protozoários podem ser identificadas em exames
parasitológicos de fezes, porém não são patogênicas, apenas comensais. Incluem
Entamoeba coli, Entamoeba hartmanni, Endolimax nana, Iodamoeba butschlii,
Chilomastix mesnilli e Trichomonas hominis.

Helmintíases

Ancilostomíase
Trata-se de infecção causada por um conjunto de helmintos pertencentes à
família Ancylostomatidae, classificados em duas subfamílias distintas, Ancylostominae
e Necatorinae. A subfamília Ancylostominae contém parasitas que possuem cápsula
bucal com dentículos, abrangendo Ancylostoma duodenale, parasita habitual do
intestino delgado do ser humano e que raramente parasita outros animais, Ancylostoma
ceylanicum, espécie parasita de seres humanos na Ásia, Ancylostoma brasiliense,
parasita habitual de cães e gatos que, ao infectar seres humanos, dá origem a migrações
cutâneas conhecidas como síndrome de larva migrans cutânea, e Ancylostoma caninum,
parasita de cães que, além de ocasionar a síndrome da larva migrans cutânea em seres
humanos, pode, raramente, causar migrações no intestino delgado, dando origem a uma
enterite eosinofílica. Já a subfamília Necatorinae contém parasitas possuidores de
aparato bucal com placas cortantes, sendo apenas uma espécie de interesse médico, o
Necator americanus.
O habitat de Ancylostoma duodenale e Necator americanus é representado pelo
duodeno, pelo jejuno e pela porção proximal do íleo de seres humanos. Os parasitas

Pedro Kallas Curiati 943


fixam-se com firmeza à mucosa intestinal por meio de seus dentes ou placas cortantes,
dilacerando o epitélio, causando úlceras e hemorragias, sugando constantemente seus
hospedeiros e se reproduzindo sexuadamente. As fêmeas depositam ovos embrionados,
que eclodirão no meio ambiente, liberando larvas que se tornarão infectantes no solo
após cerca de duas semanas. A transmissão para um novo hospedeiro ocorre pela
penetração ativa das larvas através da pele intacta, causando eritema local e prurido. As
larvas atingem a corrente sanguínea, as veias cavas, as câmaras cardíacas direitas e os
pulmões. Nos pulmões, a passagem larvária pode determinar a chamada síndrome de
Löeffler, uma pneumonite eosinofílica caracterizada clinicamente por tosse, escarro
hemoptoico, broncoespasmo, febre baixa e, as vezes, sinais de insuficiência respiratória,
com infiltrados pulmonares na radiografia de tórax e eosinofilia no hemograma. No
duodeno, ocorre maturação dos vermes, que se fixam à mucosa, reiniciando o ciclo.
Em conjunto, esses parasitas determinam quadro clínico semelhante,
denominado popularmente de opilação ou amarelão, caracterizado por anemia
progressiva e distúrbios intestinais. A espoliação sanguínea por Ancylostoma
duodenalis é três vezes mais intensa que por Necator americanus, determinando anemia
ferropriva, cujos sintomas incluem palidez, astenia, cefaleia, palpitações, edema e
mesmo cor pulmonale nos casos graves. Os sintomas digestivos mais frequentes são
diarreia, dores abdominais, anorexia, náusea e vômitos. Nos casos graves,
especialmente em lactentes, pode ocorrer melena.
O diagnóstico é facilmente determinado pelo exame do material fecal, em
especial quando empregadas técnicas de flutuação, como o método de Willis, uma vez
que os ovos são de baixo peso. A utilização de técnicas sorológicas quantitativas, como
o método de Stoll, tem valor diagnóstico, uma vez que somente deve-se considerar
como de origem ancilostomótica uma anemia hipocrômica e microcítica quando o
paciente elimina mais de 10000 ovos por grama de fezes.
O tratamento da ancilostomíase pode ser efetuado pelo uso do Albendazol na
dose de 400mg por via oral em dose única ou com Mebendazol, apresentado na forma
de comprimidos de 200mg e 400mg e suspensão oral com 400mg/10mL, na dose de
100mg duas vezes ao dia durante três dias ou ainda de 500mg em dose única. Deve-se
sempre realizar controle de cura com exames parasitológicos sete, quatorze e vinte e um
dias após o tratamento.

Estrongiloidíase
Trata-se da geo-helmintíase causada por Strongyloides stercoralis, adquirida pela
penetração ativa de larvas pela pele do hospedeiro, à semelhança do que ocorre com os
ancilostomídeos. As larvas, após a passagem pelos pulmões, são deglutidas e terminam
sua maturação, dando origem a fêmeas adultas, partenogenéticas, que, inseridas na
mucosa ou na submucosa do duodeno, ovipõe. Logo após a postura, os ovos eclodem
liberando larvas, que são eliminadas com as fezes. No solo, estas larvas se transformam
em vermes adultos machos e fêmeas de vida livre, que, por meio de reprodução
sexuada, dão origem a larvas filarioides, que são infectantes. Uma característica muito
importante do ciclo biológico de Strongyloides stercoralis é a ocorrência de auto-
infecção. Dessa forma, mesmo sem reexposição a solo que contenha larvas infectantes,
o parasitismo é mantido por tempo indefinido.
Após a fase de invasão, podem ocorrer manifestações pulmonares, que
caracterizam a síndrome de Löeffler. O quadro clínico decorrente da presença das
fêmeas adultas na intimidade da mucosa ou da submucosa do intestino delgado pode ser
dividido em formas habituais, com escassa sintomatologia ou com epigastralgia, e em
hiperinfecção, com quadros diarreicos e síndrome de má-absorção.

Pedro Kallas Curiati 944


Quando os vermes, sobretudo as larvas, atingem órgãos e tecidos que não fazem
parte do ciclo habitual, fala-se em estrongiloidíase disseminada. Trata-se de situação
clínica de extrema gravidade, frequentemente associada a infecção por enterobactérias
que atingem a circulação sanguínea, seja por meio de translocação ou carreadas pelas
larvas do parasita, com elevados índices de letalidade, sobretudo se houver retardo no
diagnóstico e no tratamento específico. O aumento na quantidade de parasitas no tubo
digestivo e a eventual presença de larvas em sítios distantes estão associados a
imunodepressão do setor celular, verificada em doenças diversas, como diabetes
mellitus com cetoacidose, colagenoses, neoplasias linfáticas e uso de corticosteroides.
O diagnóstico deve levar em conta que os indivíduos parasitados, ao invés de
eliminarem ovos, eliminam larvas em suas fezes. Os métodos mais utilizados são o de
Baemann-Moraes e o de Rugai. A utilização de cultura em placa de ágar parece
aumentar a sensibilidade do diagnóstico. Deve-se lembrar que os indivíduos infectados
podem eliminar larvas também no escarro. Os métodos sorológicos têm utilidade
diagnóstica em regiões onde a estrongiloidíase não é endêmica.
O tratamento das formas não-graves pode ser feito com Ivermectina, apresentada
na forma de comprimidos de 6mg, com dose única por via oral de 200mcg/kg,
Cambendazol, apresentado na forma de comprimidos de 180mg, em dose única por via
oral de 5mg/kg, ou Tiabendazol, apresentado na forma de comprimidos de 500mg, com
dose de 25mg/kg/dia durante dois dias, repetindo-se o tratamento dez dias depois. Já o
tratamento da hiperinfecção pode ser feito com Ivermectina na dose de 200mcg/kg/dia,
por via oral, durante dois dias ou mais, dependendo da evolução, ou com Tiabendazol
25mg/kg duas vezes durante cinco a sete dias.

Ascaridíase
Trata-se da helmintíase causada por nematoide da família Ascaridae denominado
Ascaris lumbricoides, vulgarmente referido como lombriga. A transmissão ocorre com a
ingesta de ovos larvados após permanecerem por período mínimo de dez a quinze dias
no solo, carreados por mãos sujas de terra ou material fecal ou, ainda, por alimentos e
água contaminados com fezes. Os ovos ingeridos liberam larvas infectantes no intestino
delgado, que atravessam a mucosa intestinal, alcançam a veia porta, passam pelo fígado
e atingem, por fim, os alvéolos pulmonares e a árvore traqueobrônquica, de onde são
eliminadas no escarro ou deglutidas. No tubo digestivo, tornam-se vermes adultos e se
reproduzem, liberando ovos nas fezes.
Especialmente em crianças, a passagem larvária pelo fígado pode ocasionar
hepatomegalia e pelos pulmões, a síndrome de Löeffler. Hepatite ascaridiana e abscesso
ascaridiano no fígado são ocorrências raras. Também na ascaridíase intestinal, a
infecção pode ser sintomática ou não. Os sintomas gastrointestinais incluem náusea,
vômitos, cólicas abdominais e meteorismo. Em casos de parasitismo intenso, podem
ocorrer as chamadas complicações cirúrgicas, como abdômen agudo obstrutivo,
apendicite, obstrução do colédoco, obstrução da ampola de Vater e obstrução do canal
de Wirsung, com consequente pancreatite. Também pode ocorrer migração dos vermes
para o estômago, com vômito subsequente e aspiração destes para a árvore
traqueobrônquica.
O diagnóstico é facilitado pela eliminação diária de grande número de ovos pela
fêmea do parasita, permitindo que a identificação seja feita por qualquer técnica, em
praticamente qualquer amostra.
As opções terapêuticas envolvem o Levamizol, apresentado na forma de
comprimidos de 80mg e 150mg, com dose de 150mg por via oral em dose única para
adultos. Essa droga deve ser entendida como de escolha, pois, ao provocar paralisia

Pedro Kallas Curiati 945


espástica no verme, impede sua migração e complicações dela decorrentes. Outras
possibilidades terapêuticas são Albendazol em dose única de 400mg por via oral e
Mebendazol 100mg duas vezes ao dia por via oral durante três dias ou 500mg em dose
única. Alternativamente, a Ivermectina, com dose única de 200mcg/kg, tem sido
avaliada com bons resultados. Quadros de oclusão intestinal parcial ou total devem ser
submetidos à passagem de sonda naso-enteral para administração de Hexaidrato de
Piperazina, na dose de 50mg/kg, sem exceder 3g, juntamente com 50mL de óleo
mineral, na tentativa de, ao promover paralisia flácida dos vermes, facilitar sua
eliminação. Caso essa medida não seja eficaz, deve-se proceder ao tratamento cirúrgico
com a retirada manual de todos os parasitas.

Enterobíase
Também conhecida como oxiuríase, é uma helmintíase intestinal causada pelo
Enterobius vermicularis, nematoide filiforme transmitido por ingesta ou inalação de
ovos infectantes. Ao chegarem ao duodeno, os ovos eclodem em larvas, que completam
seu desenvolvimento no intestino grosso, onde as fêmeas, após serem fecundadas, se
enchem de ovos e migram até a mucosa anal e perianal, morrendo por dessecação e
liberando os ovos. Os sintomas são relacionados à migração das fêmeas, principalmente
na mucosa anorretal, com intenso prurido e desconforto locais, mais comuns à noite.
Em meninas, pode haver vulvovaginite pela presença de fêmeas na genitália, condição
de difícil tratamento.
O diagnóstico deve levar em consideração a peculiaridade biológica do parasita,
que, em geral, não elimina os ovos nas fezes, mas os deposita na mucosa perianal.
Assim, o diagnóstico é feito mediante esfregaço anal ou swab, que consiste em justapor
uma fita adesiva na mucosa anal e depois transferi-la para uma lâmina para análise ao
microscópio óptico.
O tratamento de escolha deve ser feito com Mebendazol em dose única de
100mg ou Albendazol em dose única de 400mg. O Pamoato de Pirvínio, apresentado na
forma de comprimidos de 100mg, em dose única de 10mg/kg pode ser utilizado em
mulheres grávidas, uma vez que não é absorvido. Deve-se lembrar da conveniência de
tratar todos os moradores do domicílio do paciente diagnosticado, mesmo que estes
sejam assintomáticos, levando-se em conta a fácil disseminação da helmintíase nesse
ambiente.

Tricuríase
Trata-se de infecção promovida por Trichuris trichiura, nematoide que
geralmente só determina manifestações clínicas em caso de parasitismo muito intenso.
O ciclo biológico é simples. Após a ingesta dos ovos, ocorre liberação das larvas no
intestino grosso, onde evoluem para vermes adultos, que se alimentam de sangue.
A infecção é assintomática na maioria dos adultos. A sintomatologia mais
exuberante ocorre especialmente em crianças desnutridas e de baixa idade, sendo
representada por irritabilidade, insônia, anorexia, diarreia prolongada, por vezes
disenteria, enterorragia e, eventualmente, prolapso retal.
O diagnóstico pode ser obtido pelo exame parasitológico das fezes,
preferencialmente por meio da utilização de técnicas de concentração e do método de
Kato-Katz.
O fármaco mais adequado à terapêutica da tricuríase, Oxipirantel, não está mais
disponível comercialmente no Brasil. Assim, Albendazol em dose única de 400mg ou
Mebendazol em dose de 100mg duas vezes ao dia durante três dias ou dose única de
500mg são as drogas de escolha.

Pedro Kallas Curiati 946


Teníases
Tratam-se das parasitoses intestinais causadas por platelmintos da classe Cestoda
e da família Taeniidae, com dois representantes, a Taenia solium, transmitida pela
ingesta de carne suína contaminada com cisticercos, e a Taenia saginata, transmitida
pela ingesta de carne bovina contaminada com cisticercos. Ambas causam quadro
clínico intestinal semelhante, sendo a diferença clínica primordial a ocorrência de
cisticercose humana, relacionada exclusivamente com a infecção pelas larvas de Taenia
solium por ingesta de ovos ou proglotes grávidas.
A infecção ocorre, em geral, por um único verme adulto, que, na maioria das
vezes, passa despercebido, eventualmente com sintomas pouco intensos e por vezes
incaracterísticos de dor abdominal em cólica ou em queimação, cefaleia, diarreia,
flatulência, irritabilidade e astenia.
Quanto ao diagnóstico, os ovos das duas espécies de Taenia são indistinguíveis,
sendo que o encontro de ovos no exame de fezes permite apenas o diagnóstico do
gênero. Contudo, como a identificação da espécie é importante para se estabelecer o
risco de aquisição da cisticercose, utiliza-se a técnica de tamisação ou peneiragem das
fezes para recuperação e identificação dos proglotes.
O tratamento é o mesmo qualquer que seja a Taenia e faz-se pela administração
de Praziquantel, apresentado na forma de comprimidos de 150mg e 500mg, com dose
única de 10mg/kg, ou de Clorossalicilamida, com dose única de 2g para adultos. O
controle de cura deve ser feito noventa dias após o tratamento por meio de pesquisa de
proglotes nas fezes.

Himenolepíase
Trata-se de infecção por platelmintos da família Hymenolepididae contendo um
parasita habitual do ser humano, Hymenolepis nana, conhecido por tênia anã, e um
excepcional, Hymenolepis diminuta. Esses vermes vivem frequentemente na porção
terminal do íleo, em grande número. A transmissão ocorre por ingesta de ovos
embrionados eliminados nas fezes de indivíduos parasitados no caso de Hymenolepis
nana. Como os ovos sobrevivem poucos dias no meio ambiente, a transmissão está
relacionada ao fecalismo com ausência de medidas de higiene bucal. Infecção por
Hymenolepis diminuta é habitualmente adquirida quando seres humanos ingerem, de
forma acidental, insetos nos quais a larva cisticercoide se desenvolveu.
As manifestações clínicas ocorrem quando o parasitismo é muito intenso,
correspondendo à eliminação de mais de 15000 ovos por grama de fezes. Após a ingesta
de ovos de Hymenolepis nana, há liberação das larvas cisticercoides, que invadem a
mucosa intestinal, evoluindo para vermes adultos, que ficam repletos de ovos. Do ponto
de vista clínico, podem estar presentes diarreia, dor abdominal, principalmente em
quadrante inferior direto do abdômen, meteorismo, anorexia, perda de peso e cefaleia. É
incomum a ocorrência de himenolepíase em adultos, sendo mais frequente em crianças
com menos de oito anos de idade.
O diagnóstico é facilmente realizado pela identificação dos ovos no exame de
fezes.
O tratamento é simples e eficaz, com Praziquantel em dose única de
25mg/kg/dia, repetida dez dias após. O controle de cura deve ser feito sete, quatorze e
vinte e um dias depois do fim do tratamento.

Difilobotríase
Seres humanos podem ser infectados por diversas espécies de cestódeos do

Pedro Kallas Curiati 947


gênero Diphyllobothrium, conhecidos como tênia do peixe, ao se alimentarem com
peixes salmonídeos crus ou mal cozidos, nos quais se encontra a forma larvária do
parasita. As espécies que parasitam com maior frequência o ser humano são D. latum e
D. pacificum. Diferentemente do que ocorre nas teníases, é comum o parasitismo por
mais de um exemplar do verme no mesmo hospedeiro.
Embora não existam focos autóctones de difilobotríase no Brasil, ultimamente
surgiram casos de infecção por em decorrência de importação de salmão do Chile, onde
a parasitose é endêmica.
A infecção humana tende a ter sintomas mais acentuados em relação ao que se
observa nas teníases, com dores abdominais, meteorismo e náusea. Em especial, quando
ocorre infecção por D. latum, pode manifestar-se anemia megaloblástica em razão de
depleção de vitamina B12 pelo cestódeo, que impede a absorção e compete com o
hospedeiro por ela.
O diagnóstico é facilmente realizado pelo encontro de ovos e/ou proglotes nas
fezes. A droga de escolha para o tratamento é o Praziquantel, com dose única de
10mg/kg. Se houver anemia, deve-se administrar Vitamina B12.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 7: alergia e imunologia clínica, doenças da pele, doenças infecciosas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 948


TOXOPLASMOSE
Etiologia e fisiopatologia
O agente etiológico da toxoplasmose, Toxoplasma gondii, é um protozoário que
age como parasita intracelular estrito, tendo como reservatório natural felídeos
domésticos e selvagens, particularmente o gato. O homem, muitos outros mamíferos e
diversas espécies de aves são infectados acidentalmente.
Nos hospedeiros acidentais, como o homem, ocorre apenas o ciclo extra-
intestinal. Os oocistos, os cistos teciduais e os taquizoítas são as formas de Toxoplasma
gondii capazes de provocar a infecção na espécie humana. Os oocistos eliminados nas
fezes dos gatos provocam a contaminação do solo e do meio ambiente, eventualmente
de alimentos, possibilitando a infecção de animais e seres humanos, a qual se dá por
intermédio da ingesta dos próprios oocistos ou de alimentos contaminados. Outro
mecanismo de transmissão é a ingesta de carne crua ou mal cozida de animais, assim
como de leite de vaca ou cabras, que atuam como fonte de cistos. Os taquizoítas
invadem diversos tipos de células e, uma vez no seu interior iniciam o estágio latente da
infecção. Já foi documentada a transmissão de Toxoplasma gondii por intermédio de
transplante de órgãos. Embora viável, ainda não se conhece o significado da
participação das transfusões de sangue na transmissão da doença. Considera-se não
haver transmissão da toxoplasmose por contato direto.
A toxoplasmose pode ser transmitida verticalmente, da mãe para o feto, durante
a gravidez. Para ocorrer o acometimento fetal, é indispensável que a gestação esteja em
desenvolvimento no momento em que a mulher sofre a infecção, com exceção nas
poucas semanas que antecedem a concepção. A transmissão para o feto não ocorre a
partir de mãe que teve a infecção no passado.

Quadro clínico
A maioria das infecções causadas por Toxoplasma gondii em seres humanos,
congênitas e adquiridas, transcorre de forma assintomática. As quatro principais
apresentações da doença são infecção congênita, infecção primária em
imunocompetentes, infecção progressiva em imunocomprometidos e coriorretinite
isolada. Em imunocompetentes, as formas clínicas mais comuns são constituídas pela
toxoplasmose adquirida aguda benigna ou forma linfoglandular e pela toxoplasmose
ocular tardia. A toxoplasmose congênita em recém-nascidos tem características
peculiares em virtude da imaturidade do sistema imunológico do feto e do recém-
nascido. Em imunodeprimidos, particularmente em indivíduos com síndrome da
imunodeficiência adquirida, a reativação da infecção latente pode causar doença grave,
cuja forma clínica mais comum é a encefalite.

Toxoplasmose adquirida em imunocompetentes


Cerca de 90% das pessoas imunocompetentes acometidas primariamente por
Toxoplasma gondii apresentam infecção inaparente, com o aparecimento no soro de
anticorpos específicos de modo semelhante ao que ocorre nos indivíduos que
apresentam manifestações clínicas após a infecção. O período de incubação da doença
adquirida não é conhecido com precisão, com registros variando de dez a vinte e três
dias em surto por ingesta de carne mal cozida e de cinco a vinte dias em surto por
contato com gatos.
A forma linfoglandular da toxoplasmose é a variedade clínica com que a doença

Pedro Kallas Curiati 949


se apresenta com maior frequência em pessoas imunocompetentes, sendo acometidos,
na maioria dos casos, os gânglios linfáticos da cadeia cervical, sobretudo os da cadeia
cervical posterior. Também podem estar hipertrofiados, isoladamente ou
concomitantemente, linfonodos axilares, supraclaviculares, retroauriculares,
submandibulares, suboccipitais, mesentéricos, retroperitoneais e, raramente,
mediastinais. A linfadenomegalia, portanto, pode ser generalizada ou localizada,
eventualmente unilateral ou limitada a apenas um gânglio, constituindo, às vezes,
manifestação clínica isolada da doença. Os gânglios hipertrofiados, quase sempre
numerosos, bilaterais e simétricos, são lisos, firmes ou elásticos, indolores ou sensíveis
à palpação, não coalescentes e não aderidos a planos profundos, medindo de poucos
milímetros a 3cm de diâmetro. Não ulceram nem supuram. Em alguns casos,
encontram-se amolecidos e/ou confluentes, formando massas suspeitas de malignidade.
Com a hipertrofia ganglionar ocorre febre em 40-70% dos casos, com
intensidade variável, geralmente baixa. No entanto, pode ser elevada, contínua ou com
ocorrência apenas vespertina. Astenia, anorexia, mal-estar geral e cefaleia são queixas
comuns. Hepatoesplenomegalia é encontrada em aproximadamente um terço dos casos.
Também podem ser observados mialgia, artralgia, odinofagia, sudorese noturna e
erupção cutânea. Leucocitose com pequena porcentagem de linfócitos atípicos não é
incomum.
A forma linfoglandular da toxoplasmose adquirida costuma ser benigna e
autolimitada, com desaparecimento espontâneo das manifestações clínicas ao fim de
algumas semanas. Em alguns casos não tratados, os sintomas e sinais podem persistir
durante semanas a meses. A astenia pode perdurar por mais tempo, sendo a
linfadenomegalia a última alteração a desaparecer.
A hepatite causada por Toxoplasma gondii foi demonstrada ocasionalmente
como manifestação isolada da doença e como parte do quadro da forma linfoglandular.
É excepcional que a forma linfoglandular da toxoplasmose, em indivíduos
imunocompetentes, assuma evolução grave com o aparecimento de complicações, como
pneumonia intersticial, miocardite, pericardite e encefalite. Também é rara a instalação
de coriorretinite, que, quando se manifesta, costuma ser unilateral.

Toxoplasmose em imunodeprimidos
A encefalite é a variedade clínica pela qual a toxoplasmose se manifesta com
maior frequência em doentes com síndrome da imunodeficiência adquirida, quase
sempre como resultado de reativação de infecção latente, localizada no encéfalo, que se
estabeleceu muitos anos antes, de forma congênita ou adquirida. As lesões instalam-se
com maior frequência no córtex cerebral, embora possam ser detectadas em qualquer
área do sistema nervoso central. O aparecimento dos sintomas e dos sinais de encefalite
dá-se quase sempre de modo insidioso e progressivo, porém, em alguns casos, a
instalação é abrupta. O quadro clínico é grave, constituído por distúrbios do
comportamento, confusão mental, torpor, convulsões, delírio, ataxia, coma e déficits
neurológicos focais, às vezes acompanhados de rigidez de nuca. As lesões espinhais
manifestam-se sob a forma de disfunção urinária e intestinal. Raramente ocorrem
diabetes insipidus, síndrome da secreção inapropriada do hormônio antidiurético e pan-
hipopituitarismo.
Depois da encefalite, a manifestação mais comum da infecção oportunista por
Toxoplasma gondii em doentes com síndrome da imunodeficiência adquirida é a
pneumonia. A instalação dos sintomas, como febre, tosse e dispneia, e dos sinais, como
estertores crepitantes na ausculta pulmonar e taquipneia, é progressiva. Geralmente, a
hipótese inicial é pneumonia por Pneumocystis carinii.

Pedro Kallas Curiati 950


A coriorretinite toxoplasmótica só foi observada esporadicamente em doentes
com síndrome da imunodeficiência adquirida, manifestando-se em associação com a
encefalite. O acometimento do nervo óptico ocorre em cerca de 10% dos casos.
Outras alterações, como hepatite, miocardite, orquite e pancreatite, também
foram raramente descritas em enfermos com síndrome da imunodeficiência adquirida.

Toxoplasmose ocular
Na coriorretinite causada por Toxoplasma gondii, as lesões podem ser isoladas
ou múltiplas, unilaterais ou bilaterais. Na toxoplasmose adquirida em pessoas
imunologicamente normais, a ocorrência de coriorretinite é pouco frequente, limitando-
se quase sempre a apenas um dos globos oculares. Na toxoplasmose congênita, a
coriorretinite ocorre em cerca de 75% dos doentes, podendo, em casos muito graves, ser
acompanhada de glaucoma e descolamento de retina.
Como manifestação isolada e tardia da toxoplasmose em pessoas
imunologicamente normais, a coriorretinite costuma se manifestar na adolescência ou
na vida adulta, em geral na segunda ou na terceira décadas de vida, como consequência
da reativação de foco ocular latente que se estabeleceu no feto durante infecção
congênita e que foi inaparente no recém-nascido. Nessa eventualidade, a coriorretinite é
bilateral e os episódios podem ser recorrentes, determinando perda progressiva da visão.
Os sintomas são visão borrada, escotomas, fotofobia, dor e lacrimejamento. O frequente
acometimento da mácula em extensão variável acarreta perda parcial ou total da visão.

Avaliação complementar

Exames complementares inespecíficos


Na forma linfoglandular da toxoplasmose adquirida em indivíduos
imunocompetentes, o leucograma apresenta-se com leucocitose ou número normal de
leucócitos totais, linfocitose e/ou eosinofilia ou monocitose, com eventuais linfócitos
atípicos em pequena porcentagem. Eritrograma e contagem de plaquetas são normais.
O exame histopatológico de gânglios obtidos por biópsia em pessoas
imunocompetentes com toxoplasmose adquirida evidencia a presença da tríade
hiperplasia folicular reacional, linfócitos B monocitoides que distendem os seios
subcapsulares e trabeculares e aglomerados irregulares de histiócitos epitelioides.
Na coriorretinite, a fundoscopia permite evidenciar lesões retinianas em
atividade, associadas com inflamação do corpo vítreo, ou lesões quiescentes com área
central cinzento-esbranquiçada e borda hiperpigmentada com limites bem definidos.
Pelo fato de a mácula ser atingida com muita frequência, a acuidade visual costuma
estar comprometida. Em doentes com síndrome da imunodeficiência adquirida, as
alterações observadas na fundoscopia muitas vezes não são como as descritas.
Embora na maioria dos casos seja normal, em cerca de 30% dos doentes com
síndrome da imunodeficiência adquirida que apresentam encefalite toxoplasmótica
observam-se alterações no líquido cefalorraquidiano, com pleocitose linfomonocitária,
geralmente com menos de cem leucócitos por mm3, hiperproteinorraquia discreta ou
moderada, ao redor de 50-200mg/dL, e hipoglicorraquia pouco intensa. A tomografia
computadorizada evidencia alterações sugestivas, como edema discreto, moderado ou
intenso e lesões arredondadas, isoladas ou múltiplas, com densidade aumentada ou
semelhante à do encéfalo não-comprometido. A ressonância nuclear magnética pode
evidenciar lesões não demonstradas pela tomografia computadorizada.

Exames complementares específicos

Pedro Kallas Curiati 951


Tanto para a toxoplasmose congênita como para a adquirida, a pesquisa de
anticorpos específicos por meio de testes sorológicos é o método habitualmente
utilizado para a confirmação diagnóstica. É decisiva para o diagnóstico de infecção
atual ou recente a demonstração no soro de IgM contra Toxoplasma gondii. A
quadruplicação do título de IgG num período de três semanas é indicativa de infecção
atual por Toxoplasma gondii. Na toxoplasmose ocular localizada, encontram-se no soro
apenas baixos títulos de IgG e ausência de IgM contra Toxoplasma gondii, que pode ser
demonstrada no humor aquoso. Em doentes com síndrome da imunodeficiência
adquirida que apresentam toxoplasmose, os anticorpos da classe IgG encontram-se
geralmente em baixa concentração no sangue e os das classes IgM, IgA e IgE não são
detectados, dificultando o diagnóstico sorológico.
A demonstração da presença do DNA do Toxoplasma gondii por intermédio de
reação em cadeia da polimerase no líquido amniótico, no sangue, no líquido
cefalorraquidiano, no humor aquoso e em lavado broncoalveolar é um grande avanço
para o diagnóstico específico da toxoplasmose.
Na encefalite toxoplasmótica, a demonstração do parasita em fragmentos de
cérebro obtidos por biópsia possibilita o diagnóstico de certeza.

Diagnóstico diferencial
Doença neonatal causada por citomegalovírus, vírus da rubéola, vírus herpes
simples, Treponema pallidum e Listeria monocytogenes pode confundir-se com
toxoplasmose congênita. A sepse e a fase aguda da doença de Chagas também devem
ser lembradas.
A forma linfoglandular da toxoplasmose adquirida em pessoas
imunocompetentes é a única cuja suspeita diagnóstica pode ser feita rapidamente com
base no quadro clínico e epidemiológico. Deve-se fazer o diagnóstico diferencial com
linfoma, mononucleose infecciosa, infecção por citomegalovírus, doença da arranhadura
do gato, tuberculose, sarcoidose e metástases de neoplasia maligna.
O diagnóstico diferencial da coriorretinite toxoplasmótica deve ser efetuado com
uveíte posterior causada por Mycobacterium tuberculosis, Mycobacterium leprae ou
Treponema pallidum. O citomegalovírus pode provocar retinite em doente com
síndrome da imunodeficiência adquirida ou outras condições imunodepressoras.

Tratamento
No tratamento específico da toxoplasmose são empregados diversos
medicamentos, como Sulfadiazina, apresentada na forma de comprimidos de 500mg,
Pirimetamina, apresentada na forma de comprimidos de 25mg, Espiramicina,
apresentada na forma de comprimidos de 250mg e 500mg, e Clindamicina, apresentada
na forma de comprimidos de 300mg. O Sulfametoxazol pode ser prescrito, em doses
apropriadas, no lugar da Sulfadiazina. Quando se opta pela associação de Sulfadiazina e
Pirimetamina, recomenda-se incluir no esquema o Ácido Folínico, apresentado na forma
de comprimidos de 15mg e 50mg, para prevenir leucopenia, anemia e plaquetopenia
provocados pela Pirimetamina e Bicarbonato de Sódio para prevenir a cristalúria com
formação de cálculos provocada pela Sulfadiazina. Para cada 15mg de Pirimetamina
devem ser administrados 5mg de Ácido Folínico, com dose máxima de 50mg. No
tratamento da toxoplasmose em gestantes, pode-se optar pelo uso de Espiramicina
alternado a cada três a quatro semanas com a associação de Sulfadiazina, Pirimetamina
e Ácido Folínico, no decorrer de toda a gravidez.
O tratamento é desnecessário em casos leves de toxoplasmose linfoglandular em
indivíduos imunocompetentes. Já em casos com sintomas e sinais moderados a intensos

Pedro Kallas Curiati 952


e em imunodeficientes sem síndrome da imunodeficiência adquirida, preconiza-se
Sulfadiazina 1g de 6/6 horas por via oral, Pirimetamina 75mg no primeiro dia e 25mg
em dose única diária pela manhã por via oral a partir de então e Ácido Folínico 10-
15mg uma vez ao dia por via oral durante quatro a seis semanas. Em caso de
coriorretinite, deve-se adicionar ao esquema Prednisona, inicialmente com dose única
diária pela manhã de 40-60mg, com redução de 5mg ou mais a cada cinco dias. Depois
da melhora das lesões retinianas demonstrada por fundoscopia, pode-se reduzir a dose a
cada três dias até a suspensão.
Em casos de imunodeficientes com síndrome da imunodeficiência adquirida,
preconiza-se Sulfadiazina 1.0-1.5g de 6/6 horas por via oral, Pirimetamina 200mg no
primeiro dia e 50-75mg em dose única diária pela manhã por via oral a partir de então e
Ácido Folínico 50mg no primeiro dia e 15-30mg uma vez ao dia por via oral a partir de
então durante quatro a seis semanas após o completo desaparecimento dos sintomas e
dos sinais.
A associação da Clindamicina, com dose diária de 1.2-1.8g, para adultos, em
frações iguais administradas por via oral a cada oito horas, constitui alternativa para a
Sulfadiazina, em associação com a Pirimetamina, no tratamento da encefalite
toxoplasmótica em doentes com síndrome da imunodeficiência adquirida. Nesses casos,
também pode ser empregada a associação de Dapsona, apresentada na forma de
comprimidos de 100mg, com 100mg/dia, e Pirimetamina, embora com alto risco de
efeitos adversos.
Azitromicina 1.2-1.5g uma vez ao dia por via oral, Claritromicina 2g/dia em
duas tomadas diárias por via oral e Atovaquona 3g/dia têm sido propostas como
substitutos da Sulfadiazina no esquema terapêutico.
Corticosteroides, em particular a Dexametasona, podem ser indicados quando
houver sinais de hipertensão intracraniana. De acordo com a necessidade, podem ser
empregados também medicamentos sintomáticos, em particular antitérmicos, sedativos
e anticonvulsivantes.
Recomenda-se posologia específica para crianças e gestantes.

Profilaxia
A profilaxia da toxoplasmose merece especial consideração em grávidas,
mulheres sexualmente ativas em idade fértil e imunodeprimidos. Nas mulheres com
toxoplasmose adquirida durante a gravidez, o tratamento tem como principal finalidade
evitar a infecção fetal ou torna-la mais branda.
No Brasil, deve ser realizado no pré-natal e em mulheres em idade fértil o teste
sorológico para toxoplasmose. As seguintes precauções devem ser adotadas para evitar
a infecção adquirida por Toxoplasma gondii:
- Não ingerir carne mal cozida ou crua nem leite de vaca ou de cabra não
fervido;
- Não manusear carne crua sem luvas e, se isso ocorrer, lavar as mãos em
seguida com água e sabão;
- Lavar cuidadosamente frutas, legumes e verduras antes do consumo;
- Afastar qualquer tipo de contato direto com gatos ou com materiais
potencialmente contaminados com fezes desses animais;
A quimioprofilaxia primária da toxoplasmose em adultos com síndrome da
imunodeficiência adquirida e teste sorológico positivo para toxoplasmose, cujo número
de linfócitos CD4 positivos no sangue é menor que 100/mm3, pode ser a mesma
efetuada na prevenção da pneumonia por Pneumocystis carinii, com
Sulfametoxazol/Trimetoprim 800mg/160mg uma vez ao dia por via oral.

Pedro Kallas Curiati 953


Alternativamente, pode-se usar por via oral a associação Dapsona 50mg/dia,
Pirimetamina 50mg/dia e Ácido Folínico 25mg/dia. Nos indivíduos com síndrome da
imunodeficiência adquirida que terminaram o tratamento da encefalite toxoplasmótica
com bom resultado, deve-se adotar quimioprofilaxia secundária com a associação
Sulfadiazina 0.5-1.0g de 6/6 horas por via oral, Pirimetamina 25-75mg uma vez ao dia
por via oral e Ácido Folínico 25mg uma vez ao dia por via oral.
Como não ocorre transmissão entre humanos, não há necessidade de isolar
doentes com toxoplasmose ou de tomar qualquer precaução no convívio com eles.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 7: alergia e imunologia clínica, doenças da pele, doenças infecciosas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 954


TUBERCULOSE
Definição
A tuberculose é definida como uma doença infecciosa causada por micobactérias
do complexo Mycobacterium tuberculosis, que inclui o M. tuberculosis, o M. africanum
e o M. canettii, primariamente patogênicas em humanos, além do M. bovis e do M.
microti, agentes da tuberculose em animais, mas que podem ser transmitidas para
humanos.

Fisiopatologia
O M. tuberculosis é transmitido de uma pessoa com doença ativa para outra,
exclusivamente por via inalatória, através de gotículas de secreção respiratória. A
inalação do bacilo induz no pulmão eliminação, infecção latente ou rápida progressão
para doença. A reativação da infecção a partir do foco primário após anos de latência é
denominada infecção pós-primária.
Os doentes bacilíferos, isto é, aqueles cuja baciloscopia de escarro é positiva, são
a principal fonte de infecção. Doentes com tuberculose pulmonar e baciloscopia
negativa, mesmo que tenham resultado da cultura positivo, são muito menos eficientes
como fontes de transmissão, embora isto possa ocorrer. As formas exclusivamente
extrapulmonares não transmitem a doença.

Busca de casos de tuberculose pulmonar


Ambiente de risco é local que proporciona elevada chance de infecção por M.
tuberculosis de paciente para indivíduos sadios, de paciente para paciente ou de paciente
para profissionais da área de saúde. Contato de tuberculose pulmonar é contato de pelo
menos duzentas horas de exposição a focos com pesquisa positiva para bacilo álcool-
ácido resistente no escarro ou de pelo menos quatrocentas horas de exposição a focos
com pesquisa negativa para bacilo álcool-ácido resistente no escarro e cultura positiva,
sendo valorizado apenas o contato no mesmo espaço físico.
Busca ativa de tuberculose é busca de casos de tuberculose pulmonar em
indivíduos sintomáticos respiratórios que não procuram o serviço de saúde
espontaneamente ou que procurem o serviço de saúde por outro motivo que não a tosse.
É uma atividade multiprofissional com o objetivo de diagnosticar a tuberculose
precocemente, especialmente nos grupos com maior risco de adoecimento, como
comunidades com alta prevalência de tuberculose, contatos de tuberculose pulmonar,
portadores do vírus da imunodeficiência humana ou de outras condições de
imunodepressão, moradores de abrigos ou asilos, prisioneiros e profissionais da área da
saúde. Busca passiva de tuberculose é investigação de tuberculose em indivíduos
sintomáticos respiratórios que procuram o serviço de saúde espontaneamente devido à
tosse.
Sintomático respiratório é indivíduo com tosse, dispneia e/ou dor torácica,
acompanhados ou não de expectoração, hemoptise e/ou sibilância. Na investigação de
tuberculose pulmonar, são considerados sintomáticos respiratórios os indivíduos com
tosse.
Embora a tuberculose pulmonar se manifeste geralmente na forma de sintomas
respiratórios, a doença representa apenas uma pequena parcela dos sintomáticos
respiratórios atendidos nos serviços de saúde. Por esse motivo, a Organização Mundial
de Saúde sugere que a abordagem de sintomáticos respiratórios seja sistematizada e

Pedro Kallas Curiati 955


inclua a investigação de outras doenças, como infecção respiratória aguda, asma e
doença pulmonar obstrutiva crônica. O Ministério da Saúde do Brasil recomenda a
coleta de duas a três amostras de escarro espontâneo para pesquisa direta de bacilo
álcool-ácido resistente em sintomáticos respiratórios com tosse por três ou mais
semanas, mas a redução do tempo de tosse necessário para investigação para duas
semanas aumenta o número de casos de tuberculose diagnosticados com pouco aumento
da carga de trabalho para o sistema de saúde.
Apenas metade dos pacientes com tuberculose pulmonar apresenta pesquisa
direta de bacilo álcool-ácido resistente no escarro positiva e até 30% dos pacientes não
apresentam expectoração espontânea nas formas iniciais da doença. Assim, a radiografia
de tórax, na abordagem inicial dos casos sintomáticos respiratórios, tem grande impacto
na detecção precoce da tuberculose pulmonar.

Quadro clínico
A tuberculose pulmonar classicamente apresenta-se com tosse há mais de duas
semanas associada ou não a outros sintomas respiratórios, como dor torácica, dispneia e
hemoptise, e/ou sistêmicos, como febre vespertina, sudorese noturna, anorexia e
emagrecimento. As formas extrapulmonares apresentam, além das manifestações
sistêmicas, sinais e sintomas relacionados com a localização da doença, como
linfonodomegalia, derrame pleural, espessamento pleural, rouquidão, meningite,
hematúria, dor lombar, obstrução intestinal, dor óssea, edema peri-articular,
conjuntivite, uveíte e nódulos cutâneos.
Tubercúlides são manifestações à distância do foco infeccioso desencadeadas
por imunocomplexos. Incluem febre, eritema nodoso e eritema endurado de Bazin.

Avaliação complementar
Para a coleta de escarro, o paciente deve ser orientado a lavar bem a boca ao
despertar pela manhã, inspirar profundamente, prender a respiração por um instante e
escarrar após forçar a tosse. Deverá repetir essa operação até obter três eliminações de
escarro, evitando que escorra pela parede externa do pote. Na impossibilidade de envio
imediato da amostra para o laboratório ou unidade de saúde, esta poderá ser conservada
em geladeira comum até no máximo sete dias.

Microscopia
Os primeiros exames a serem solicitados são a radiografia de tórax e a pesquisa
de bacilo álcool-ácido resistente no escarro, que apresenta elevado valor preditivo
positivo e baixa sensibilidade. No Brasil, o padrão é a coloração por Ziehl-Neelsen.
Devem ser coletadas duas amostras de escarro espontâneo, uma no momento que o
sintomático respiratório procura atendimento e outra pela manhã ao acordar. Nos
pacientes sem expectoração espontânea e com radiografia sugestiva de tuberculose, a
indução do escarro com solução salina hipertônica (5mL de Cloreto de Sódio a 3-5%)
está indicada por ter rendimento diagnóstico semelhante ao da broncoscopia com lavado
broncoalveolar. A coleta de três escarros induzidos em dias diferentes é mais custo-
efetiva do que uma broncoscopia para o diagnóstico de tuberculose pulmonar.
A pesquisa de bacilo álcool-ácido resistente por microscopia direta deve ser
solicitada aos pacientes que apresentem critérios de definição de sintomático
respiratório, suspeita clínica e/ou radiológica de tuberculose pulmonar,
independentemente do tempo de tosse e suspeita clínica de tuberculose extrapulmonar,
situação na qual podem ser examinados materiais biológicos diversos.

Pedro Kallas Curiati 956


Cultura
A cultura permite a identificação do M. tuberculosis e a realização do teste de
sensibilidade, além de aumentar o rendimento diagnóstico. Os meios sólidos mais
recomendados são o Löwenstein-Jensen e o Ogawa-Kudoh. A cultura em meio sólido
tem como limitação o tempo do resultado, entre duas e oito semanas, devendo-se,
quando possível, usar o meio líquido através de sistemas automatizados não-
radiométricos, com resultados entre dez e quarenta dias. Indicações da realização de
cultura incluem suspeita clínica de tuberculose pulmonar e pesquisa negativa para
bacilo álcool-ácido resistente, suspeita de tuberculose pulmonar com base em
radiografia de tórax, retratamento, sorologia positiva para o vírus da imunodeficiência
humana, populações vulneráveis, suspeita de resistência, suspeita de infecção causada
por micobactéria não-tuberculosa e suspeita de tuberculose extrapulmonar. A
identificação de espécies consiste em distinguir as micobactérias do complexo M.
tuberculosis das outras. Indicações para a realização de teste de sensibilidade incluem
contato de caso de tuberculose resistente, antecedente de tratamento prévio,
imunodepressão, baciloscopia positiva no final do segundo mês de tratamento, falência
ao tratamento e populações com maior risco de cepa resistente, como profissionais de
saúde, moradores de rua, privados de liberdade, pacientes internados em hospitais que
não adotam medidas de biossegurança, moradores instituições de longa permanência e
indígenas.

Análise histopatológica
Método empregado na investigação das formas extrapulmonares e nas formas
pulmonares que se apresentam radiologicamente como doença difusa ou que incidem
em indivíduos imunossuprimidos. Nos pacientes não imunossuprimidos, a baciloscopia
do tecido usualmente é negativa e a presença de um granuloma com necrose de
caseificação é compatível com o diagnóstico de tuberculose. Nos pacientes
imunossuprimidos, é menos frequente a presença de granuloma com necrose caseosa,
mas é mais frequente a positividade da baciloscopia no material de biopsia. No entanto,
o único método diagnóstico de certeza de tuberculose é a cultura seguida da
confirmação da espécie de M. tuberculosis por testes bioquímicos ou moleculares.

Radiografia simples
Embora a radiografia de tórax seja um importante meio de diagnóstico da
tuberculose pulmonar primária, alterações pulmonares não são demonstradas em até
15% dos casos. Opacidades parenquimatosas, frequentemente unifocais e
predominantemente no pulmão direito, acometem os lobos superiores na infância e os
lobos médio e inferior em adultos. Opacidades arredondadas persistentes de até 3cm de
diâmetro, também denominadas tuberculomas, são manifestações não-habituais, mais
comuns em lobos superiores e podem estar associadas à calcificação de linfonodos
hilares. Linfonodomegalia é observada na maioria das crianças e em até 40% dos
adultos, habitualmente unilateral, podendo ser bilateral em até 30% dos casos, tendo
como regiões mais comprometidas a hilar e a paratraqueal direita. Atelectasia decorre
da compressão extrínseca das vias aéreas por linfonodomegalia e é a principal
manifestação em crianças com idade inferior a dois anos, sendo os segmentos mais
comprometidos o anterior dos lobos superiores e o medial do lobo médio. Padrão miliar
é caracterizado por pequenas opacidades nodulares de 1-3mm de diâmetro distribuídas
de forma simétrica, com distribuição assimétrica em até 15% dos casos. Derrame
pleural é considerado uma manifestação tardia da tuberculose primária, ocorre em 25%
dos casos e é raro na infância. Nódulo de Ghon é opacidade parenquimatosa relacionada

Pedro Kallas Curiati 957


ao processo inflamatório granulopatoso. Complexo de Ranke é a associação do nódulo
de Ghon com aumento de linfonodos hilares radiologicamente visíveis.
As alterações radiológicas da tuberculose pós-primária incluem tênues
opacidades nodulares agrupadas, de limites imprecisos, localizadas principalmente em
ápices pulmonares e regiões infraclaviculares e intercleido-hilares, correspondendo aos
segmentos apical e posterior dos lobos superiores e ao segmento superior dos lobos
inferiores, podendo progredir para aspecto heterogêneo segmentar ou lobar, bilaterais
em até dois terços dos casos. A disseminação linfática local é caracterizada por linhas e
faixas de permeio a opacidades parenquimatosas. A disseminação broncogênica é
caracterizada por pequenas opacidades lineares e nodulares agrupadas. O padrão
clássico da tuberculose pós-primária é a cavidade, única ou múltipla, em média com
cerca de 2cm de diâmetro, localizada preferencialmente nos segmentos apicais e
dorsais, raramente com nível líquido no seu interior. Após a cura, essas lesões tornam-
se fibróticas, eventualmente calcificadas, associadas com distorção da arquitetura
parenquimatosa, bronquiectasias de tração, desvio das estruturas mediastinais e
tuberculomas. As apresentações atípicas se localizam em segmentos anteriores dos
lobos superiores e em segmentos basais. Parcela significativa dos casos têm
envolvimento brônquico, caracterizado por estenose e atelectasia. As manifestações
radiográficas da tuberculose associada à síndrome de imunodeficiência adquirida
dependem do grau de imunossupressão.

Tomografia computadorizada de alta resolução


A tomografia computadorizada de alta resolução pode ser indicada para
sintomáticos respiratórios com pesquisa para bacilo álcool-ácido resistente negativa no
escarro ou incapazes de fornecer material para exames micobacteriológicos quando a
radiografia é insuficiente para o diagnóstico. As principais alterações são nódulos do
espaço aéreo ou nódulos acinares associados a ramificações lineares, configurando o
padrão de árvore em brotamento. Outros achados incluem espessamento das paredes
brônquicas, assim como sua dilatação e aproximação. Em relação à tuberculose miliar, a
tomografia computadorizada é mais sensível do que a radiografia de tórax, porém, é
pouco específica. Podem ser visualizadas opacidades parenquimatosas, pequenas
cavidades, nódulos acinares, linfonodomegalias e derrame pleural associado.

Métodos moleculares
Os testes moleculares para o diagnóstico da tuberculose são baseados na
amplificação e na detecção de sequências específicas de ácidos nucleicos do complexo
M. tuberculosis em espécimes clínicos, com resultados em 24-48 horas. Na prática
clínica, permitem o diagnóstico precoce de tuberculose em cerca de 60% dos casos com
bacilo álcool-ácido resistente negativo e posterior cultura positiva e a diferenciação
entre tuberculose e infecção por micobactérias não-tuberculosas em pacientes com
pesquisa de bacilo álcool-ácido resistente positiva.

Diagnóstico
Caso novo ou virgem de tratamento é paciente que nunca recebeu tratamento
para a tuberculose por período igual ou superior a um mês. Caso de recidiva é
caracterizado por diagnóstico atual de tuberculose com pesquisa ou cultura positivas em
indivíduo com história de tuberculose anterior curada com medicamentos.
Diagnóstico de tuberculose pulmonar é baseado em cultura positiva para M.
tuberculosis. Diagnóstico de presunção de tuberculose é baseado em presença de duas
pesquisas positivas para bacilo álcool-ácido resistente ou uma pesquisa positiva

Pedro Kallas Curiati 958


associada a radiografia de tórax sugestiva de tuberculose ou histopatologia com
granuloma, com ou sem necrose de caseificação, em paciente com suspeita clínica.
Tuberculose com baciloscopia negativa é aquela com pelo menos duas amostras
de escarro com pesquisa negativa para bacilo álcool-ácido resistente, incluindo uma
amostra coletada pela manhã, radiografia compatível com tuberculose e/ou ausência de
resposta clínica ao tratamento com antimicrobianos de amplo espectro.
Fluoroquinolonas não devem ser utilizadas, pois têm atividade contra o complexo M.
tuberculosis e podem causar melhora transitória do paciente com tuberculose.

Tuberculose extrapulmonar
Embora a tuberculose extrapulmonar seja paucibacilar, o diagnóstico
bacteriológico, assim como o diagnóstico histopatológico, deve ser buscado. Todo
material coletado por biópsia deve ser também armazenado em água destilada ou soro
fisiológico, ambos estéreis, para viabilizar a realização da cultura.

Tuberculose pleural
Trata-se da forma mais comum de tuberculose extrapulmonar em indivíduos
com sorologia negativa para o vírus da imunodeficiência humana. Ocorre mais em
jovens e cursa com dor torácica pleurítica. Também podem ocorrer astenia,
emagrecimento, anorexia, febre e tosse seca.
A cultura associada ao exame histopatológico do fragmento pleural permite o
diagnóstico em até 90% dos casos. A determinação da adenosina deaminase é o método
acessório principal, mas também pode estar elevada em empiema, linfoma, artrite
reumatoide e lúpus eritematoso sistêmico. O conjunto de exsudato com mais de 75% de
linfócitos, adenosina deaminase superior a 40 U/L e ausência de células neoplásicas
permite o início do tratamento. Entre os métodos moleculares, reação em cadeia da
polimerase tem potencial utilidade, mas sem evidências para o uso clínico. O escarro
induzido em indivíduos com sorologia negativa para o vírus da imunodeficiência
humana tem cultura positiva em 50% dos casos, mesmo quando a radiografia de tórax
não apresenta outra alteração além do derrame pleural, podendo atingir 75% de
positividade em pacientes com sorologia positiva para o vírus da imunodeficiência
humana.

Tuberculose ganglionar
Trata-se da forma mais frequente de tuberculose extrapulmonar em pacientes
com sorologia positiva para o vírus da imunodeficiência humana e crianças. Cursa com
aumento subagudo, indolor e assimétrico das cadeias ganglionares. Ao exame físico, os
gânglios podem apresentar-se endurecidos ou amolecidos, aderidos entre si e aos planos
profundos.
Os gânglios podem fistulizar, liberando secreção na qual a pesquisa de bacilo
álcool-ácido resistente pode ser positiva. Punção ou biópsia do gânglio são indicadas e o
produto deve ser encaminhado para análise histopatológica, baciloscopia direta e cultura
para micobactérias. O método molecular de melhor desempenho é a reação em cadeia
da polimerase, mas não há estudos sobre sua acurácia no uso rotineiro.

Tuberculose do sistema nervoso central


Pode se apresentar como tuberculose de meninge, com meningite basal
exsudativa, ou como tuberculose de parênquima cerebral, com tuberculoma, abscesso e
cerebrite. Clinicamente, a evolução é subaguda ou crônica. Na forma subaguda, a
meningite cursa com cefaleia holocraniana, irritabilidade, alterações de comportamento,

Pedro Kallas Curiati 959


sonolência, anorexia, vômitos e rigidez de nuca por tempo superior a duas semanas.
Eventualmente, apresenta sinais focais relacionados a síndromes isquêmicas ou ao
envolvimento de pares cranianos, principalmente II, III, IV, VI e VII. Pode haver
hipertensão intracraniana. Na forma crônica, o paciente evolui durante várias semanas
com cefaleia até a ocorrência de acometimento de pares cranianos. O tuberculoma,
forma localizada, cursa com quadro clínico compatível com processo expansivo
intracraniano de crescimento lento, com sinais e sintomas de hipertensão intracraniana.
Na suspeita de tuberculose do sistema nervoso central, está indicada a
radiografia de tórax, que revela imagem sugestiva de tuberculose em metade dos casos.
O exame de neuroimagem com contraste, tomografia computadorizada ou ressonância
nuclear magnética, deve ser realizado. Os três achados de imagem mais comuns na
meningite por tuberculose são hidrocefalia, espessamento meníngeo basal e infartos do
parênquima cerebral. A punção liquórica após avaliação tomográfica revela pleocitose
raramente com mais de 1.000 células/mm3, 100-500 leucócitos/mm3, predomínio de
linfócitos, proteinorraquia de 100-500mg/dL e glicorraquia inferior a 40mg/dL. O
diagnóstico diferencial deve ser feito com causas de meningite linfocitária, sendo
fundamentais a suspeita clínica, a história epidemiológica e a avaliação do estado
imunológico do paciente. A pesquisa de bacilo álcool-ácido resistente no líquor é
positiva em 5-20% dos casos, podendo atingir 40% se o líquor for centrifugado. A
cultura é positiva na metade dos casos. O teste terapêutico é válido após avaliação
clínica e laboratorial, com exclusão das demais causas de meningite linfocitária. A
amplificação dos ácidos nucleicos e a dosagem de adenosina deaminase no líquor são
promissores, mas sem força de evidência para o uso rotineiro, assim como interferon-γ.

Tuberculose das vias urinárias


O achado clássico é de leucocitúria asséptica. Hematúria isolada é incomum. A
cultura de urina positiva define o diagnóstico. No mínimo três amostras de urina matinal
devem ser coletadas e enviadas ao laboratório no mesmo dia da coleta. Os achados
radiológicos vão desde pequenas corrosões calicinais até fenômenos obstrutivos com
hidronefrose. A urografia excretora está indicada na suspeita de tuberculose urinária. A
cistoscopia com biópsia é importante para o diagnóstico de cistite.

Tuberculose pericárdica
Tem apresentação clínica subaguda e geralmente não se associa à tuberculose
pulmonar, embora possa ocorrer simultaneamente à tuberculose pleural. Os principais
sintomas são dor torácica, tosse seca e dispneia. Pode haver febre, emagrecimento,
astenia, tontura, edema de membros inferiores, dor no hipocôndrio direito por congestão
hepática e aumento do volume abdominal por ascite. Raramente ocorre quadro clínico
compatível com tamponamento cardíaco.

Tuberculose óssea
Mais comum em crianças e entre a quarta e a quinta décadas de vida. Atinge
mais a coluna vertebral e as articulações coxofemoral e do joelho, embora possa ocorrer
em outros locais. A tuberculose de coluna, denominada mal de Pott, é responsável por
cerca de 1% de todos os casos de tuberculose e por até metade de todos os casos de
tuberculose óssea. O quadro clínico é caracterizado pela tríade dor lombar, dor à
palpação local e sudorese noturna, afetando com maior frequência a coluna torácica
baixa e a coluna lombar.
A osteomielite pode se apresentar radiologicamente como lesões císticas bem
definidas, áreas de osteólise ou lesões infiltrativas. Na tuberculose de coluna vertebral, a

Pedro Kallas Curiati 960


radiografia simples, a ultrassonografia e a tomografia computadorizada revelam
acometimento de tecidos moles, esclerose óssea e destruição dos elementos posteriores
do corpo vertebral. A ressonância magnética é capaz de avaliar o envolvimento precoce
da medula óssea e a extensão da lesão para os tecidos moles.

Infecção latente por M. tuberculosis


A infecção latente por M. tuberculosis é o período entre a penetração do bacilo
no organismo e o aparecimento da doença, com oportunidade para a adoção de
abordagem medicamentosa, denominada atualmente tratamento da tuberculose latente,
em substituição ao termo anteriormente utilizado, quimioprofilaxia.
A prova tuberculínica consiste na inoculação intradérmica de um derivado
proteico do M. tuberculosis para medir a resposta imune celular a estes antígenos. A
leitura deve ser realizada 48-72 horas após a aplicação e o maior diâmetro transverso da
área palpável é medido com régua milimetrada transparente, sendo o resultado
registrado em milímetros. O diagnóstico da tuberculose latente é feito pela positividade
do teste tuberculínico em associação com a exclusão da doença. O tamanho da
enduração cutânea orienta a necessidade de tratamento da tuberculose latente nos
diferentes contextos epidemiológicos.
A repetição periódica do teste tuberculínico nos indivíduos com teste
tuberculínico inicial negativo deve ser feita nos grupos de risco. Contatos que
apresentam teste tuberculínico negativo devem ser submetidos a um novo teste após seis
a doze semanas para avaliação da viragem tuberculínica.
Reações falso-positivas podem ocorrer em indivíduos infectados por outras
micobactérias ou vacinados com BCG. Condições associadas a resultados falso-
negativos da prova tuberculínica incluem técnica inadequada, tuberculose grave ou
disseminada, outras doenças infecciosas agudas virais, bacterianas ou fúngicas,
imunodepressão avançada, vacinação com vírus vivos, neoplasias, desnutrição, diabetes
mellitus, insuficiência renal, gravidez, idade inferior a três meses ou superior a 65 anos,
febre, linfogranulomatose e desidratação acentuada.
Viragem tuberculínica é caracterizada por aumento da enduração do teste
tuberculínico superior ou igual a 10mm em relação a um teste tuberculínico realizado
entre duas semanas e dois anos após tratamento anterior.
Indicações para tratamento da tuberculose latente em indivíduos assintomáticos
e com radiografia de tórax normal:
- Teste tuberculínico com enduração superior ou igual a 5mm em
infectados pelo vírus da imunodeficiência humana, contatos recentes
(menos de dois anos) de tuberculose pulmonar vacinados com BCG há
mais de dois anos, indivíduos não tratados para tuberculose e portadores
de lesões sequelares na radiografia de tórax, candidatos a transplantes ou
transplantados e imunossuprimidos por outras causas, como uso de
Prednisona em dose superior ou igual a 15mg/dia por tempo superior a
um mês ou candidatos ao uso de bloqueadores de TNF-α;
- Viragem tuberculínica em trabalhadores do sistema prisional,
cuidadores de idosos, trabalhadores em laboratório de micobactérias,
profissionais da área da saúde e contatos recentes de tuberculose
pulmonar de qualquer idade;
- Teste tuberculínico superior ou igual a 10mm em contatos recentes
(menos de dois anos) de tuberculose pulmonar vacinados com BCG há
dois anos ou menos, usuários de drogas injetáveis, populações indígenas
e pacientes com depressão da imunidade celular por diabetes mellitus

Pedro Kallas Curiati 961


dependente de Insulina, silicose, linfomas, neoplasias de cabeça e
pescoço, neoplasias pulmonares e procedimentos como gastrectomia,
hemodiálise e derivação gastrointestinal;
- Independentemente do teste tuberculínico, indivíduos com sorologia
positiva para o vírus da imunodeficiência humana com história de
contato recente (menos de dois anos) com tuberculose pulmonar
bacilífera ou apresentando imagem radiológica de sequela de tuberculose
pulmonar sem história prévia de tratamento para tuberculose;
Candidatos ao uso de bloqueadores de TNF-α devem completar pelo menos um
mês de tratamento para tuberculose latente antes do início da terapia.
O medicamento atualmente indicado é a Isoniazida na dose de 5-10mg/kg, no
máximo 300mg/dia, durante seis meses. Reações adversas são pouco frequentes e em
geral não determinam a suspensão do tratamento. Toxicidade hepática ocorre raramente,
não havendo necessidade de acompanhamento laboratorial. A suspensão da Isoniazida
está indicada no caso de elevação da alanina aminotransferase acima de três vezes o
limite superior da normalidade ou da aspartato aminotransferase acima de cinco vezes o
limite superior da normalidade, mesmo na ausência de sintomas. A associação de
Rifampicina com Pirazinamida por três meses ou o uso de Rifampicina por quatro
meses podem ser indicados aos pacientes que não toleram a Isoniazida.
O tratamento da infecção latente deve ser notificado em ficha específica definida
por alguns estados da federação. O paciente deve ser consultado em intervalos regulares
de 30 dias, quando será estimulada adesão e será feito o monitoramento clínico de
efeitos adversos. Após o término do tratamento os pacientes devem ser orientados a
procurar a unidade de saúde em caso de sintomas sugestivos de tuberculose.
Em grávidas, recomenda-se postergar o tratamento da infecção latente para após
o parto. Em gestante com infecção pelo vírus da imunodeficiência humana, recomenda-
se tratar a infecção latente após o terceiro mês de gestação.
Os contatos de pacientes portadores de bacilos resistentes devem ser submetidos
ao tratamento da tuberculose latente, mas não há evidência científica quanto ao melhor
esquema. As associações de Etambutol com Pirazinamida ou com fluoroquinolona têm
sido preconizadas se houver resistência à Isoniazida e à Rifampicina.
A repetição do tratamento da tuberculose latente deve ser considerada em caso
de persistência da imunodepressão, a cada dois a três anos, ou de reexposição a focos
bacilíferos, sempre que ocorrer.

Notificação
A tuberculose é uma doença de notificação compulsória e todo caso
diagnosticado, assim como a evolução do tratamento para cura, abandono, falência,
óbito ou mudança de diagnóstico devem ser notificados ao Serviço de Vigilância
Epidemiológica. Todos os casos de falência ou de tuberculose multirresistente, além
daqueles que necessitem de esquemas especiais, devem ser encaminhados para os
centros de referência, notificados no Sistema de Tuberculose Multirresistente e
encerrados no SINAM.

Tratamento
Todos os pacientes que iniciam tratamento para tuberculose devem ser
submetidos a sorologia para o vírus da imunodeficiência humana.
O tratamento diretamente observado constitui uma mudança na forma de
administrar os medicamentos, sem mudanças no esquema terapêutico, em que o
profissional treinado passa a observar a tomada da medicação do paciente desde o início

Pedro Kallas Curiati 962


do tratamento até a sua cura. A escolha da modalidade de tratamento diretamente
observado a ser adotada deve ser decidida conjuntamente entre a equipe de saúde e o
paciente, considerando a realidade e a estrutura de atenção à saúde existente. É
desejável que a tomada observada seja diária, de segunda à sexta-feira. No entanto, se
para o doente a opção de três vezes por semana for a única possível, deve ser
exaustivamente explicada a ele a necessidade da tomada diária, incluindo os dias em
que o tratamento não será observado.
A transmissibilidade está presente desde os primeiros sintomas respiratórios,
caindo rapidamente após o início de tratamento efetivo.

Esquema básico
Indicado para todos os casos novos de todas as formas de tuberculose pulmonar
e extrapulmonar, exceto meningoencefalite, bem como para todos os casos de recidiva e
retorno após abandono. Pacientes que apresentarem pesquisa direta de bacilo álcool-
ácido resistente positiva no final do segundo mês de tratamento devem realizar cultura
com identificação da micobactéria e teste de sensibilidade pela possibilidade de
tuberculose resistente.
Abandono de tratamento é interrupção do tratamento para tuberculose por
período igual ou superior a trinta dias após a data prevista para seu retorno no
tratamento autoadministrado ou trinta dias após a última ingesta de dose no tratamento
supervisionado. Retratamento após abandono ocorre quando paciente
bacteriologicamente positivo reinicia o tratamento após o abandono. O paciente que
retorna ao sistema após abandono deve ter sua doença confirmada por nova investigação
diagnóstica por baciloscopia, devendo ser solicitada cultura, identificação e teste de
sensibilidade antes da reintrodução do tratamento.
Esquema Fármacos e quantidade por comprimido Peso Dose Meses
2RHZE – Rifampicina (150mg), Isoniazida 20-35kg 2 comprimidos 2
Fase (75mg), Pirazinamida (400mg), 36-50kg 3 comprimidos
intensiva Etambutol (275mg) >50kg 4 comprimidos
4RH – Fase Rifampicina (150mg ou 300mg), 20-35kg 1 comprimido de 4
de Isoniazida (100mg ou 200mg) 300/200mg
manutenção 36-50kg 1 comprimido de
300/200mg e 1
comprimido150/100mg
>50kg 2 comprimidos de
300/200mg
Os medicamentos deverão ser administrados preferencialmente em jejum, uma
hora antes ou duas horas após o café da manhã, em uma única tomada ou, em caso de
intolerância digestiva, junto com uma refeição.
Em casos individualizados cuja evolução clínica inicial não tenha sido
satisfatória, com o parecer emitido pela referência, o tratamento poderá ser prolongado
na sua segunda fase.
As reações adversas mais frequentes ao esquema básico são mudança da
coloração da urina, intolerância gástrica, alterações cutâneas, icterícia e dores
articulares. Deve ser ressaltado que quando a reação adversa corresponde a uma reação
de hipersensibilidade grave, como plaquetopenia, anemia hemolítica ou insuficiência
renal, o medicamento suspeito não pode ser reiniciado após a suspensão, pois na
reintrodução a reação adversa é ainda mais grave. A Rifampicina interfere na ação dos
contraceptivos orais, devendo as mulheres, em uso desse medicamento, receberem
orientação para utilizar outros métodos anticoncepcionais.
O acompanhamento da evolução da doença em adultos prevê pesquisa de bacilo

Pedro Kallas Curiati 963


álcool-ácido resistente no escarro mensalmente durante o tratamento da tuberculose
pulmonar, além de cultura para micobactérias com identificação e teste de sensibilidade
em caso de baciloscopia positiva no final do segundo mês de tratamento, com
acompanhamento clínico mensal. Pacientes inicialmente bacilíferos, deverão ter pelo
menos duas baciloscopias negativas para comprovar cura, uma na fase de
acompanhamento e outra ao final do tratamento.
Falência é caracterizada por persistência da positividade do escarro ao final do
tratamento, persistência de escarro fortemente positivo até o quarto mês ou nova
positividade por dois meses consecutivos, a partir do quarto mês de tratamento, após
negativação inicial.

Esquema para meningoencefalite


Na forma meningoencefálica, é recomendado o uso concomitante de
corticosteroide, com Prednisona 1-2 mg/kg/dia por via oral durante quatro semanas ou
Dexametasona 0.3-0.4mg/kg/dia por via intravenosa durante quatro a oito semanas e
redução gradual da dosagem nas quatro semanas subsequentes.
Esquema Fármacos e quantidade por comprimido Peso Dose Meses
2RHZE – Rifampicina (150mg), Isoniazida 20-35kg 2 comprimidos 2
Fase (75mg), Pirazinamida (400mg), 36-50kg 3 comprimidos
intensiva Etambutol (275mg) >50kg 4 comprimidos
7RH – Fase Rifampicina (150mg ou 300mg), 20-35kg 1 comprimido de 4
de Isoniazida (100mg ou 200mg) 300/200mg
manutenção 36-50kg 1 comprimido de
300/200mg e 1
comprimido150/100mg
>50kg 2 comprimidos de
300/200mg

Esquema para crianças


Para crianças com idade inferior a dez anos, continua o uso de esquema de três
medicamentos, com Rifampicina 10mg/kg, Isoniazida 10mg/kg e Pirazinamida
35mg/kg. Uma das justificativas para a não utilização do Etambutol em crianças é a
dificuldade de identificar precocemente a neurite ótica, reação adversa ao uso do
Etambutol, nessa faixa etária.

Esquema para tuberculose multirresistente


Tuberculose multirresistente é aquela causada por M. tuberculosis resistente a
Rifampicina e Isoniazida.
As indicações do esquema para tuberculose multirresistente são falência do
esquema básico com resistência à Rifampicina e à Isoniazida ou impossibilidade de uso
do esquema básico por intolerância a dois ou mais medicamentos. Na suspeita de
falência, recomenda-se prolongar o esquema básico até o resultado da cultura e do teste
de sensibilidade e considerar a possibilidade de infecção por micobactéria não-
tuberculosa, erro de dosagem dos medicamentos, irregularidade de uso dos
medicamentos em caso de regimes autoadministrados e absorção inadequada dos
medicamentos. A Estreptomicina deverá ser utilizada cinco dias por semana nos
primeiros dois meses e três vezes por semana nos quatro meses subsequentes. Na
impossibilidade do uso da Estreptomicina, deve-se utilizar Amicacina na mesma
frequência. O regime de tratamento deverá ser supervisionado, com duração de dezoito
meses, em unidade de referência terciária.
Esquema Fármacos Meses

Pedro Kallas Curiati 964


2S5 LZT – Fase intensiva, Estreptomicina injetável, Levofloxacina, Pirazinamida, 2
primeira etapa Terizidona
4 S3ELZT – Fase intensiva, Estreptomicina injetável, Etambutol, Levofloxacina, 4
segunda etapa Pirazinamida, Terizidona
12ELT – Fase de manutenção Etambutol, Levofloxacina, Terizidona 12

Esquema para tuberculose super-resistente


Tuberculose super-resistente é aquela causada por M. tuberculosis resistente a
Rifampicina, Isoniazida, uma fluoroquinolona e um dos três fármacos injetáveis de
segunda linha, que são Amicacina, Canamicina e Capreomicina.
Deve ser feito o encaminhamento para referência terciária e a utilização de
esquemas individualizados com fármacos de reserva. Serão disponibilizados nas
referidas unidades de referência Capreomicina, Moxifloxacina, Ácido Para-
Aminosalicílico e Etionamida.

Esquema para tuberculose polirresistente


Tuberculose polirresistente é aquela causada por M. tuberculosis resistente à
Rifampicina ou Isoniazida e a outro fármaco. Os esquemas são individualizados de
acordo com o teste de sensibilidade.

Esquema em caso de intolerância a um medicamento


Em caso de intolerância a Rifampicina, preconiza-se Isoniazida, Pirazinamida,
Etambutol e Estreptomicina cinco vezes por semana durante dois meses e Isoniazida e
Etambutol durante dez meses.
Em caso de intolerância a Isoniazida, preconiza-se Rifampicina, Pirazinamida,
Etambutol e Estreptomicina cinco vezes por semana durante dois meses e Rifampicina e
Etambutol durante sete meses.
Em caso de intolerância a Pirazinamida, preconiza-se Rifampicina, Isoniazida e
Etambutol durante dois meses e Rifampicina e Isoniazida durante sete meses.
Em caso de intolerância a Etambutol, preconiza-se Rifampicina, Isoniazida e
Pirazinamida durante dois meses e Rifampicina e Isoniazida durante quatro meses.

Tratamento cirúrgico da tuberculose pulmonar


As principais indicações cirúrgicas em casos de tuberculose pulmonar ativa são
tuberculose multirresistente, efeitos adversos graves aos fármacos, hemoptise não-
controlada e/ou de repetição, linfonodomegalia com compressão de árvore
traqueobrônquica e complicações, como empiema, pneumotórax e fístula broncopleural.
As indicações de tratamento cirúrgico sem tuberculose em atividade são resíduo
pulmonar sintomático, lesão pulmonar sintomática colonizada por fungos, hemoptise
não-controlada e/ou de repetição, diagnóstico diferencial entre tuberculose e câncer de
pulmão e complicações, como empiema, pneumotórax e fístula broncopleural.

Situações especiais

Infecção pelo vírus da imunodeficiência humana


A infecção pelo vírus da imunodeficiência humana aumenta muito o risco de
adoecimento por tuberculose, diminui o rendimento da pesquisa de bacilo álcool-ácido
resistente no escarro, aumenta a prevalência de infecção por micobactérias não
tuberculosas e aumenta a incidência de tuberculose multirresistente. Assim, além da
pesquisa de bacilo álcool-ácido resistente, devem ser solicitados cultura, identificação e

Pedro Kallas Curiati 965


teste de sensibilidade.
Deve ser dada prioridade ao tratamento para tuberculose. Quando indicada, a
terapia anti-retroviral pode ser iniciada após duas a quatro semanas. Os esquemas
recomendados são os mesmos dos pacientes com sorologia negativa para o vírus da
imunodeficiência humana, com a possibilidade de substituição da Rifampicina pela
Rifabutina em paciente utilizando anti-retroviral incompatível com Rifampicina. A
melhor opção para compor o esquema anti-retroviral é Efavirenz associado a dois
inibidores da transcriptase reversa análogos de nucleosídeo, não sendo necessária a
alteração da dose quando administrado com Rifampicina. O uso concomitante de
vitamina B6 na dose de 40mg/dia é recomendado pelo maior risco de neuropatia
periférica principalmente quando outros fármacos neurotóxicos são prescritos para
compor a terapia anti-retroviral.
Síndrome da reconstituição imune é pronunciada reação inflamatória em
pacientes positivos para o vírus da imunodeficiência humana com tuberculose que
ocorre após o inicio da terapia anti-retroviral altamente ativa. Cursa com febre, perda de
peso e aumento ganglionar, bem como consolidação pulmonar e derrame pleural.
Histologicamente observa-se reação granulomatosa com ou sem caseificação. Pode
ocorrer em pacientes negativos para o vírus da imunodeficiência humana após o inicio
do tratamento para tuberculose. Não indica a suspensão de nenhum dos tratamentos.
Seu manejo inclui o uso de corticosteroides nos casos mais graves, com Prednisona 1-
2mg/kg/dia por quatro a dezesseis semanas, assim como é preconizado em meningite
tuberculosa, tuberculose miliar e tuberculose pericárdica.

Diabetes mellitus
Deve-se considerar o prolongamento do tratamento para um total de nove meses
e substituir o hipoglicemiante oral por Insulina durante esse período. O tratamento
também deve ser prolongado em transplantados, portadores de neoplasia maligna e
pacientes em uso de medicamento imunossupressor.

Gestação
Indica-se o uso de Piridoxina 50mg/dia durante a gestação pelo risco de crise
convulsiva no neonato devido à Isoniazida.
Não há contraindicações à amamentação, desde que a mãe não seja portadora de
mastite tuberculosa. É recomendável, entretanto, que faça uso de máscara cirúrgica ao
amamentar e cuidar da criança.

Insuficiência renal
O tratamento só é modificado em caso de insuficiência renal com clearance de
creatinina inferior ou igual a 30mL/minuto ou indicação de diálise. Recomenda-se evitar
Estreptomicina e Etambutol ou, na ausência de alternativa, administrar em doses
reduzidas e com intervalos maiores. O esquema mais seguro prevê o uso de Isoniazida,
Rifampicina e Pirazinamida durante dois meses e Isoniazida e Rifampicina durante
quatro meses.

Hepatopatia
Deve-se solicitar dosagem de transaminases, bilirrubinas e fosfatase alcalina no
início, a cada quinze dias nos primeiros dois meses e mensalmente até o fim do
tratamento em paciente adulto com história de consumo de álcool, doença hepática
prévia ou atual, uso de outras medicações hepatotóxicas e infecção pelo vírus da
imunodeficiência humana. Em caso de hepatite ou doença hepática sem fator etiológico

Pedro Kallas Curiati 966


conhecido, deve-se solicitar também marcadores de hepatite viral.
O esquema terapêutico escolhido depende da presença de hepatopatia no
momento do início do tratamento. Em caso de hepatotoxicidade após o início do
tratamento, com transaminases acima de cinco vezes o limite superior da normalidade,
icterícia e/ou sintomas hepáticos, deve-se suspender o esquema e investigar abuso de
álcool, doença biliar e uso de outras drogas hepatotóxicas. Em casos graves e até que se
detecte a causa da anormalidade ou em casos em que as enzimas e/ou bilirrubinas não
normalizam após quatro semanas sem tratamento, deve-se utilizar esquema alternativo.
Quando as transaminases apresentarem dosagem inferior a duas vezes o limite superior
da normalidade, pode-se reiniciar o esquema básico com uma droga por vez com
intervalos de sete dias e monitorização através de dosagem seriada de transaminases.
Caso os sintomas reapareçam ou ocorra aumento de transaminases, recomenda-se
suspender o último medicamento adicionado. Em pacientes com hepatotoxicidade
prolongada ou grave, não se deve reintroduzir Pirazinamida e o tratamento deve ser
prolongado por nove meses. O tempo de tratamento será considerado a partir da data em
que foi possível retomar o esquema terapêutico completo.
Se houver história de etilismo, deve-se utilizar Piridoxina 50mg/dia para a
prevenção de neurite periférica.

Profissionais de saúde

O efeito booster representa a reativação da resposta tuberculínica pelas células


de memória. É detectado quando a segunda prova tuberculínica é igual ou superior a
10mm, com incremento de pelo menos 6mm em relação a primeira prova tuberculínica.
Nestes indivíduos, não há indicação de tratamento da infecção latente, pois o risco de
adoecimento é muito baixo. Esta segunda aplicação da tuberculina é utilizada apenas
para excluir uma falsa conversão no futuro em indivíduos testados de forma seriada. Se
o resultado da segunda aplicação for superior ou igual a 10mm, mesmo sem incremento
de 6mm em relação à primeira, a prova tuberculínica não deve ser repetida futuramente.

Medidas de controle da transmissão da tuberculose


No ambiente ambulatorial, recomenda-se ventilação adequada, fluxo de ar
direcionado do profissional para o paciente, atendimento dos pacientes com suspeita de
tuberculose separado dos outros atendimentos clínicos, fornecer máscara cirúrgica aos
pacientes com diagnóstico confirmado ou com suspeita clínica e sem tratamento ou com
tratamento há menos duas semanas e definir um local para coleta de escarro que seja
isolado dos demais pacientes e com ventilação adequada, de preferência ao ar livre.

Pedro Kallas Curiati 967


No setor de emergência hospitalar, recomenda-se buscar ativamente os casos
sintomáticos respiratórios e colocação de máscara cirúrgica até afastar o diagnóstico de
tuberculose, coletar três amostras de escarro com intervalo de oito horas, sendo uma em
jejum pela manhã, realizar radiografia de tórax, isolar casos confirmados ou com alta
suspeita clinica, utilizar sala especifica para coleta de escarro que seja isolada e com
ventilação adequada e proteger o profissional que atende o paciente com respirador
N95.
Em caso de internação, recomenda-se quarto individual com ventilação
adequada, uso de respirador N95 pelos profissionais de saúde e uso de máscara cirúrgica
pelo paciente quando houver necessidade de transporte a outra unidade até duas
semanas após o inicio de tratamento efetivo. Os casos de tuberculose multirresistente
requerem isolamento em enfermaria separada, com quarto adequadamente ventilado ou,
de preferência, com pressão negativa e controle de saída com filtro HEPA.
No ambiente domiciliar, recomenda-se orientar o paciente a cobrir a boca ao
tossir, dormir em quarto isolado por pelo menos duas semanas de tratamento efetivo e
evitar ambientes fechados e conglomerados durante as duas primeiras semanas de
tratamento.

Vacinação com BCG


No Brasil, a vacina BCG é prioritariamente indicada para as crianças de 0 a 4
anos de idade, sendo obrigatória para menores de um ano de idade. A vacinação com o
Mycobacterium bovis atenuado, conhecido como bacilo de Calmette e Guérin (BCG)
exerce poder protetor contra as manifestações graves da primo-infecção, como as
disseminações hematogênicas e a meningoencefalite em menores de cinco anos mas não
evita a infecção tuberculosa. A imunidade se mantém por 10 a 15 anos. A vacina BCG
não protege os indivíduos já infectados pelo M. tuberculosis. Nas áreas geográficas com
alta prevalência de infecção por micobactérias não tuberculosas, a margem de proteção
do BCG contra a tuberculose é reduzida.

Controle dos contatos


A atividade de controle de contatos deve ser considerada como uma ferramenta
importante para prevenir o adoecimento e diagnosticar precocemente casos de doença
ativa, sendo realizada fundamentalmente pela atenção básica. Tendo em vista que
crianças com tuberculose em geral desenvolvem a doença após transmissão por um
contato adulto bacilífero, preconiza-se a investigação de todos os seus contatos,
independentemente da forma clínica da criança, a fim de identificar não somente os
casos de infecção latente, mas, principalmente o caso índice, interrompendo a cadeia de
transmissão.
Todos os contatos devem ser convidados a comparecer à unidade de saúde para
serem avaliados com criteriosa anamnese e exame físico. Crianças ou adultos
sintomáticos deverão ter sua investigação diagnóstica ampliada com radiografia de
tórax, baciloscopia de escarro e/ou outros exames, a critério médico. Adultos e
adolescentes com idade superior a dez anos assintomáticos devem ser submetidos a
prova tuberculínica para avaliação da indicação de tratamento de infecção latente após
afastada doença ativa por meio de exame radiológico. Contatos com história prévia de
tuberculose tratada anteriormente com quaisquer resultados da prova tuberculínica não
devem ser tratados para infecção latente.
Crianças assintomáticas deverão ser submetidas a prova tuberculínica e
radiografia de tórax na primeira consulta, com indicação de tratamento de infecção
latente se enduração superior ou igual a 5mm em crianças não-vacinadas com BCG,

Pedro Kallas Curiati 968


vacinadas há mais de dois anos ou portadoras de condição imunossupressora ou
superior ou igual a 10mm em crianças vacinadas com BCG há menos de dois anos. Se a
prova tuberculínica não preencher os critérios para indicação do tratamento da infecção
latente, deverá ser repetida em oito semanas.
Recomenda-se a prevenção da infecção tuberculosa em recém-nascidos
coabitantes de caso índice bacilífero. Nestes casos, o recém-nascido não deverá ser
vacinado ao nascer. A Isoniazida é administrada por três meses e, após esse período,
faz-se a prova tuberculínica. Se a enduração for superior ou igual a 5mm, a
quimioprofilaxia deve ser mantida por mais três meses. Caso contrário, interrompe-se o
uso da Isoniazida e vacina-se com BCG.
Se os contatos não comparecerem à unidade de saúde, visita domiciliar deve ser
realizada. Após serem avaliados, não sendo constatada tuberculose ou não existindo
indicação de tratamento da infecção latente, deverão ser orientados a retornar à unidade
de saúde, em caso de aparecimento de sinais e sintoma sugestivos de tuberculose,
particularmente sintomas respiratórios.

Pedro Kallas Curiati 969


Bibliografia
III Diretrizes para Tuberculose da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. Comissão de Tuberculose da SBPT,
Grupo de Trabalho das Diretrizes para Tuberculose da SBPT. J Bras Pneumol. 2009;35(10):1018-1048.
Clínica médica, volume 2: doenças cardiovasculares, doenças respiratórias, emergências e terapia intensiva. – Barueri, SP: Manole,
2009.
Manual de Recomendações para o Controle da Tuberculose no Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde.
Programa Nacional de Controle da Tuberculose. 2010.

Pedro Kallas Curiati 970


ALTERAÇÕES TUBULARES
RENAIS
Nos túbulos renais, são transportados ácido (H+), bicarbonato, sódio, potássio,
fósforo e cálcio, entre outros eletrólitos, além de pequenas moléculas, como glicose,
aminoácidos e ácido úrico. As alterações tubulares renais constituem uma série de
patologias, sendo a maior parte delas hereditária e com déficits específicos de algum
mecanismo de transporte. Também podem ser consequência de doenças sistêmicas,
distúrbios metabólicos, distúrbios imunológicos ou efeito tóxico de certos
medicamentos, como a Anfotericina.
No túbulo proximal ocorre a reabsorção da maior parte dos solutos filtrados,
como glicose, aminoácidos, bicarbonato, fosfatos e, principalmente, cloreto de sódio. O
restante do sódio filtrado é absorvido, na sua maior parte, pela porção ascendente da
alça de Henle e, em menor proporção, pelo túbulo distal. Por fim, no ducto coletor, sob
ação da aldosterona, ocorre a absorção do sódio residual e a secreção de potássio e de
H+. É também no duto coletor que, sob a ação do hormônio antidiurético, ocorre a
concentração da urina.
As alterações tubulares são patologias renais bastante conhecidas pelos
pediatras. Nas crianças, trazem consequências mais sérias e precoces. Na maioria das
vezes, os pacientes adultos portadores de doenças tubulares procuram atendimento
médico com hipertensão arterial sistêmica, poliúria, litíase renal ou distúrbios
hidroeletrolíticos graves.

Síndrome de Fanconi

Etiologia e fisiopatologia
Em sua forma hereditária, a síndrome de Fanconi apresenta dois componentes,
disfunção generalizada do túbulo proximal, que leva a bicarbonatúria, fosfatúria,
uricosúria, glicosúria e aminoacidúria, e doença óssea metabólica resistente à vitamina
D. Pode estar relacionada a erros inatos do metabolismo, como cistinose, tirosinemia,
galactosemia e doença de Wilson.
Doenças sistêmicas que acometem o compartimento tubulointersticial renal,
como o mieloma múltiplo, a gamopatia monoclonal e a síndrome de Sjögren, podem
levar à síndrome de Fanconi. A síndrome também pode resultar de toxicidade direta,
como no uso terapêutico de aminoglicosídeos e na intoxicação por chumbo ou cádmio.
A disfunção generalizada e não-seletiva dos túbulos proximais parece ser
consequência de um defeito no transporte ativo de sódio nesse segmento ao qual o
transporte de outros solutos, como glicose e aminoácidos, está acoplado.
A síndrome de Dent é uma variante que engloba um grupo heterogêneo de
doenças hereditárias ligadas ao sexo nas quais os homens homozigotos apresentam
acidose tubular proximal, raquitismo hipofosfatêmico, glicosúria, aminoacidúria e
nefrocalcinose, com progressão para insuficiência renal crônica, e as mulheres
apresentam um fenótipo muito mais leve, sem nefrocalcinose e sem progressão para
insuficiência renal crônica.
A doença óssea encontrada na síndrome de Fanconi tem gênese multifatorial,
com acidose metabólica e hipofosfatemia decorrentes de perdas tubulares de
bicarbonato e fosfato e deficiência de vitamina D ativa, pois é no túbulo proximal que a

Pedro Kallas Curiati 971


25-hidróxi-vitamina D é convertida em 1,25-diidroxi-vitamina D.

Quadro clínico
Tanto na forma hereditária como na forma adquirida, as manifestações clínicas
mais comuns da síndrome de Fanconi são poliúria, que pode levar à desidratação,
hipocalemia, que pode se manifestar como fraqueza muscular ou arritmias cardíacas,
acidose metabólica, que induz hiperventilação, e, às vezes, vômitos. A doença óssea se
manifesta como osteomalácia no adulto e como déficit de crescimento e raquitismo na
criança. Apresar da presença de fosfatúria, calciúria e acidose metabólica persistente,
nefrocalcinose e nefrolitíase são achados incomuns, o que ajuda no diagnóstico
diferencial com outras formas de acidose tubular renal.

Avaliação complementar
O diagnóstico de síndrome de Fanconi, suspeitado pela presença de acidose
metabólica, é confirmado pela presença de disfunção tubular proximal não-seletiva, ou
seja, por fosfatúria, aminoacidúria, glicosúria e uricosúria aumentadas. Principalmente
no adulto, devem ser procuradas doenças sistêmicas associadas ou agentes nefrotóxicos.
A acidose metabólica, na síndrome de Fanconi, apresenta anion gap normal, ou seja, é
hiperclorêmica.

Tratamento
O tratamento consiste na reposição, baseada nos níveis plasmáticos, de sódio,
potássio, bicarbonato, fosfato, cálcio e magnésio, além da reposição de vitamina D. Não
deve-se esquecer de tratar a doença de base ou retirar o agente nefrotóxico. A principal
reposição a ser feita é a de bicarbonato, geralmente com 5-15mEq/kg/dia, concomitante
à de potássio. Apesar de, na maioria das vezes, a acidose metabólica não ser muito
grave, sua correção é difícil. Quando se administra Bicarbonato de Sódio, ocorre um
aumento do volume extracelular, com consequente aumento da oferta de sódio às
porções distais do néfron e da secreção de potássio, que ainda se torna maior pela
presença de intensa bicarbonatúria. Em geral, a ingesta de grandes quantidades de álcali
é melhor tolerada e mais facilmente atingida quando é administrada sob a forma de
Citrato de Sódio, com 1mEq/mL de Citrato de Sódio e 1mEq/mL de Ácido Cítrico na
solução de Shohl. O Citrato de Sódio é convertido em bicarbonato pelo fígado e fornece
maior quantidade de álcali. Como alternativa, em casos de hipocalemia de difícil
tratamento, a solução de Shohl pode ser modificada pela substituição de Citrato de
Sódio por Citrato de Potássio.
Atenção especial deve ser dada à reposição de cálcio, fósforo e vitamina D com
o objetivo de evitar o surgimento de raquitismo ou osteomalácia.

Acidose tubular renal

Fisiopatologia
O bicarbonato filtrado é reabsorvido predominantemente no túbulo proximal
através de trocador Na+/H+, com o restante sendo reabsorvido no néfron distal
primariamente através da secreção de íons hidrogênio pela H+-ATPase. Desse modo, em
condições normais, virtualmente não há bicarbonato na urina final.
O potássio filtrado é reabsorvido passivamente no túbulo proximal e na alça de
Henle, de modo que a maior parte do potássio urinário é oriunda de secreção no néfrons
distal. Esse processo é influenciado por aldosterona e aporte de água e sódio ao néfron
distal.

Pedro Kallas Curiati 972


As acidoses metabólicas classificadas como acidoses tubulares renais são
resultantes da deficiência na absorção ou na geração de bicarbonato pelas células
tubulares. Ao contrário das acidoses metabólicas mais comuns, em que existe um
aumento do anion gap devido ao acúmulo de ânions orgânicos, na acidose tubular renal
há uma diminuição primária do bicarbonato, com manutenção da eletroneutralidade
plasmática por meio do aumento do ânion cloreto.

Acidose tubular renal proximal ou tipo II


A acidose tubular renal proximal é consequência da absorção de bicarbonato
deficiente no túbulo proximal, o que leva inicialmente a bicarbonatúria e hipocalemia. A
perda de bicarbonato leva à acidose metabólica, com urina ácida porque o néfron distal
íntegro aumenta a excreção de ácido. Essa alteração tubular pode ser seletiva ou, na
síndrome de Fanconi, vir acompanhada de alteração global da função tubular proximal.
Em condições normais, a maior parte do bicarbonato filtrado pelo glomérulo é
absorvido pelo túbulo proximal por meio do trocador Na+/K+. A absorção proximal de
bicarbonato apresenta um limiar acima do qual o bicarbonato filtrado não é totalmente
absorvido. Na acidose tubular renal proximal, ocorre diminuição desse limiar e
consequente bicarbonatúria ate que os níveis séricos diminuam e seja atingido novo
equilíbrio. O túbulo distal está íntegro e consegue acidificar a urina. Desse modo, o grau
de acidose plasmática permanece estável, com valores de bicarbonato plasmático em
torno de 16-18mEq/L, e o pH urinário permanece baixo. Quando as perdas de
bicarbonato excedem 15% da carga filtrada, o excesso de bicarbonato excretado leva a
poliúria e hipocalemia.
A incidência de acidose tubular renal proximal é baixa, principalmente no
adulto, em que geralmente é desencadeada pelo uso de aminoglicosídeo. Também pode
estar associada a uso de Acetazolamida, Ácido Valpróico, Topiramato, Ifosfamida,
Tenofovir ou Cidofovir, intoxicação por chumbo, mercúrio ou cádmio, mieloma
múltiplo, gamopatia monoclonal, hiperparatireoidismo primário, deficiência de vitamina
D, nefrolitíase recorrente e hipocapnia crônica. Na criança, quase sempre é uma doença
hereditária, com herança autossômica dominante ou recessiva.
Muitas vezes, as manifestações clínicas observadas são relacionadas com a
acidose metabólica mantida, como retardo do crescimento, anorexia e desidratação. A
hipocalemia e suas manifestações, como fraqueza muscular e íleo adinâmico, podem ser
muito evidentes. Como em todas as acidoses metabólicas crônicas, ocorre
desmineralização óssea em consequência do tamponamento dos íons hidrogênio nos
ossos, resultando em perda de cálcio da massa óssea. A osteomalácia e o raquitismo são
manifestações importantes na população acometida pela acidose tubular renal proximal
apenas quando esta está acompanhada pela síndrome de Fanconi. Nefrolitíase não
ocorre, exceto em caso de uso de Acetazolamida ou Topiramato, porque a urina
permanece ácida na ausência de reposição de bicarbonato, com maior solubilidade do
fosfato de cálcio, a ingesta de ácido pode ser excretada na forma de amônio, sem a
contínua liberação de fosfato dos ossos, e a disfunção tubular proximal pode aumentar a
excreção de ânions orgânicos, como citrato, com formação de complexos solúveis com
cálcio.
O diagnóstico é suspeitado pela presença de acidose metabólica hiperclorêmica e
hipocalemia e confirmado pela presença de fração de excreção de bicarbonato superior a
15% quando o bicarbonato sanguíneo é corrigido para um valor normal. O paciente que
não recebe álcalis como tratamento mantém a capacidade de acidificar a urina.
Entretanto, o emprego de bicarbonato com o objetivo de corrigir a acidose leva a uma
bicarbonatúria maciça e um pH urinário francamente alcalino. Síndrome de Fanconi

Pedro Kallas Curiati 973


deve ser investigada com a dosagem dos níveis séricos e urinários de glicose, fosfato e
ácido úrico.
Além da correção da doença de base ou da suspensão da droga causadora, o
tratamento se baseia na reposição de grandes quantidades de bicarbonato ou citrato, com
5-15mEq/kg, além da correção da hipocalemia. A correção da hipocalemia é um desafio
ao clínico devido à intensidade do distúrbio, que é agravado pela reposição de
bicarbonato. A adição de diurético tiazídico pode ser benéfica se altas doses de álcalis
não forem suficientes ou não forem toleradas.

Acidose tubular renal distal clássica ou tipo I


O néfron distal, compreendendo o túbulo contornado distal e o duto coletor, é
responsável pela secreção de potássio e hidrogênio. A urina se torna ácida na porção
distal do néfron, onde também existe a formação de acidez titulável, principalmente
fosfatos hidratados, e do cátion amônio (NH4+) por meio da amônia (NH3) sintetizada
no túbulo proximal. Ao contrário da acidose tubular renal proximal, em que o defeito
está na absorção de bicarbonato, a acidose tubular renal distal clássica é caracterizada
por um defeito seletivo na secreção de H+ pelo néfron distal, gerando, da mesma
maneira, acidose metabólica hiperclorêmica crônica e hipocalemia. A acidose tubular
distal clássica incompleta é caracterizada por pH urinário persistentemente elevado e
hipocitratúria, mas bicarbonato sérico dentro dos limites da normalidade. O diagnóstico
diferencial do pH urinário alcalino deve incluir infecção urinária e depleção severa de
volume, devendo-se excluir essas possibilidades com urina tipo 1 sem sinais de
infecção, concentração urinária de sódio superior a 25mEq/L e, se necessário, urocultura
negativa.
A acidose tubular distal clássica pode ter origem em defeitos nas bombas H+-
ATPases ou no trocador de ânion basolateral da célula intercalada do duto coletor. Esses
defeitos levam à incapacidade de acidificar a urina mesmo na presença de acidose
sistêmica. Em alguns casos adquiridos, como na nefrotoxicidade pela Anfotericina,
existe secreção adequada de prótons, mas ocorre um escape de H+ secretado por vias
intercelulares, o que diminui a excreção de ácidos e induz acidose metabólica. A
hipocalemia parece ser consequência de um aumento na secreção de potássio devido a
um gradiente eletroquímico favorável, com lúmen mais negativo, e da preservação das
células principais que secretam potássio.
As causas de acidose tubular renal distal clássica incluem distúrbios hereditários,
como doença de Wilson, doenças autoimunes, como artrite reumatoide, síndrome de
Sjögren e cirrose biliar primária, crioglobulinemia, amiloidose, medicamentos, como
Anfotericina B, Lítio, Ifosfamida e analgésicos, toxinas, nefrolitíase e nefrocalcinose,
como em hiperparatireoidismo primário e hipercalciúria idiopática. Curiosamente, a
nefrolitíase e a nefrocalcinose também são consequências da acidose tubular renal
distal. A formação de cálculos renais é facilitada por hipercalciúria, relacionada a
acidemia, alto pH urinário, superior a 5.5, que favorece a precipitação de fosfato de
cálcio, e pela hipocitratúria, explicada pelo aumento da absorção de citrato pelo túbulo
proximal desencadeado pela acidose. Os demais sintomas são comuns à acidose
sistêmica e à hipocalemia. O diagnóstico de acidose tubular renal distal clássica é
sugerido pela medida do anion gap urinário, que resulta em valores positivos,
denotando baixa excreção de NH4+.
A correção da acidose metabólica pela administração de álcalis comumente é
eficaz e mais fácil de ser atingida do que na acidose tubular renal proximal. Em geral,
2mEq/kg/dia de Bicarbonato de Sódio ou Citrato de Sódio são suficientes para a
correção do bicarbonato sanguíneo e também da hipocalemia associada. Em caso de

Pedro Kallas Curiati 974


hipercalciúria associada a nefrolitíase, pode-se preferir o uso de Citrato de Potássio. O
objetivo do tratamento é atingir nível sérico normal de bicarbonato.

Acidose tubular renal distal não-seletiva, com hipercalemia e perda de sal, ou tipo IV
Há deficiência ou resistência à ação da aldosterona, com redução da excreção
tubular de amônio. Essa alteração tubular geralmente está associada à presença de
diabetes mellitus ou de doenças tubulointersticiais, como nefropatia obstrutiva e anemia
falciforme. A acidose tubular renal distal hipercalêmica também pode estar presente em
doença de Addison, lúpus eritematoso sistêmico, síndrome da imunodeficiência
adquirida e uso de anti-inflamatórios não-hormonais, Espironolactona, Triantereno,
inibidores da enzima de conversão da angiotensina e antagonistas do receptor AT1 da
angiotensina II. Outros medicamentos associados incluem Ciclosporina A, Tacrolimo,
Heparina, Amilorida, Pentamidina e Trimetoprim. Na acidose tubular renal
hipercalêmica associada ao diabetes mellitus, é comum o achado de hipoaldosteronismo
hiporreninêmico. Quando a alteração tubular distal é mais generalizada, em geral ocorre
também excessiva perda urinária de sódio. Como, em geral, a capacidade de formação
de acidez titulável está preservada, a capacidade de acidificar a urina está íntegra,
embora haja diminuição da amônia em consequência da hipercalemia.
Além da presença de hipercalemia, altamente sugestiva do diagnóstico desse tipo
de acidose tubular renal, geralmente há algum grau de disfunção renal crônica, com
filtração glomerular em torno de 40-60mL/minuto. Cabe lembrar, porém, que a
hipercalemia que decorre somente da diminuição da filtração glomerular apenas é
observada quando esta é menor que 20mL/minuto A acidose metabólica hiperclorêmica
é discreta.
O gradiente de concentração transtubular de potássio (TTKG) pode ser calculado
com a fórmula [potássio urinário/ (osmolaridade urinária/ osmolaridade sérica] /
potássio sérico. Hipercalemia deve ser associada a aumento da liberação de aldosterona
e da secreção de potássio, com TTKG superior a 10 em indivíduos normais. Um valor
inferior a 7 ou, particularmente, inferior a 5 é altamente sugestivo de
hipoaldosteronismo. O TTKG é relativamente acurado desde que a osmolaridade
urinária exceda a osmolaridade sérica e a concentração urinária de sódio seja superior a
25mEq/L.
O tratamento consiste em restrição de potássio na dieta, administração de
diuréticos de alça para aumentar a excreção de potássio e hidrogênio e administração de
resinas de troca iônica. Além disso, no caso de hipoaldosteronismo, orgânico ou
funcional, pode-se fazer uma reposição com Fludrocortisona, apresentada na forma de
comprimidos de 0.1mg, com dose de 0.05-0.2mg/dia, porém com risco de agravar ou
desencadear edema e hipertensão arterial sistêmica, principalmente nos casos com
filtração glomerular mais diminuída ou na presença de nefropatia diabética. A
administração de pequenas doses de bicarbonato pode auxiliar o controle da acidose e
da hipercalemia, porém, como no caso da reposição de mineralocorticoides, também
pode agravar o edema e a hipertensão arterial sistêmica.

Diagnóstico diferencial
O anion gap urinário é resultante da diferença entre os cátions e os ânions
usualmente medidos na urina, sendo calculado através da fórmula (Na+ + K+) – Cl-.
Avalia a excreção urinária aproximada de NH4+. A amônia sintetizada no túbulo
proximal é permeável, sendo transformada no cátion NH4+, impermeável, nas porções
distais do néfron pela secreção ativa de H+, sendo assim excretada. Geralmente, o anion
gap urinário é negativo por causa do NH4+ não medido. Assim, quanto menor a

Pedro Kallas Curiati 975


excreção urinária de NH4+, menor a acidificação urinária e mais positivo o anion gap
urinário, o que caracteriza as acidoses tubulares renais distais tipos I e IV. Mais
importante ainda, o anion gap urinário diferencia as acidoses tubulares renais das
situações de acidose tubular hiperclorêmica decorrentes da perda de bicarbonato, como
em diarreia ou fístula intestinal alta, nas quais o rim normal responde com grande
excreção de NH4+ e anion gap urinário bastante negativo.
O aumento da carga excretada de sódio e cloreto oferecida ao néfrons distal após
uma dose de 40mg por via oral de Furosemida leva à maior excreção de potássio e
hidrogênio pelo duto coletor. Assim, a resposta esperada é um aumento da fração de
excreção de potássio e da excreção urinária de hidrogênio, além do aumento da
excreção de sódio. Nas acidoses tubulares renais distais, principalmente na tipo IV, essa
resposta fisiológica está comprometida.
Acidose tubular Acidose tubular Acidose tubular
renal tipo II renal tipo I renal tipo IV
K+ plasmático Normal ou diminuído Normal ou Aumentado
diminuído
Anion gap urinário Negativo Positivo Positivo
pH urinário em acidemia Inferior a 5.5 Superior a 5.5 Inferior a 5.5
Excreção de NH4+ Normal Reduzida Reduzida
Excreção de K+ Normal ou Aumentada Diminuída
aumentada
Calciúria Normal Aumentada Normal ou diminuída
Citratúria Normal Diminuída Normal
Excreção de bicarbonato após Superior a 15% Inferior a 5% Inferior a 10%
correção da acidemia
Outros defeitos tubulares Frequentes Ausentes Ausentes
Nefrocalcinose e nefrolitíase Ausente Frequente Ausente
Lesão óssea Frequente Frequente Ausente
Reposição diária de bicarbonato 5-15mEq/kg/dia 1-2mEq/kg/dia 0-2mEq/kg/dia

Síndrome de Bartter
A porção espessa ascendente da alça de Henle é o segmento do néfrons onde
ocorre absorção de sódio filtrado por meio do cotransportador Na+-K+-2Cl-. O
transporte de sódio nesse segmento gera uma diferença de potencial com lúmen tubular
positivo, afetando o transporte tubular não somente do potássio, mas também dos íons
cálcio e magnésio, que também são absorvidos. O maior exemplo de uma situação
clínica em que há interferência nesse sistema de transporte é a administração de
diuréticos de alça, como a Furosemida.
A síndrome de Bartter, com herança autossômica recessiva, simula o uso crônico
de Furosemida. Já foram descritos cinco subtipos, com uma de suas formas associada a
surdez neurossensorial. Os defeitos genéticos que induzem alterações nos
transportadores levam a perda de sal e depleção de volume intravascular, com
consequente aumento da secreção de renina, hiperaldosteronismo e aumento da
produção de prostaglandinas. Concentrações normais de aldosterona podem ser
encontradas mesmo na presença de altos níveis de renina quando a hipocalemia é grave.
O aumento da excreção urinária de prostaglandinas é um fator agravante da poliúria,
pois inibem o funcionamento do sistema de reabsorção de sódio da alça espessa e
atenuam a ação do hormônio antidiurético nos dutos coletores, dificultando a formação
de urina concentrada. Apesar das altas concentrações de angiotensina II, os pacientes
apresentam hiporresponsividade vascular tanto à angiotensina como à adrenalina, sendo
normotensos ou hipotensos. O aumento da oferta de sódio aos dutos coletores corticais,
com aumento da absorção de sódio em consequência do hiperaldosteronismo, aumenta a

Pedro Kallas Curiati 976


tanto a secreção de potássio quanto a de hidrogênio e induz, consequentemente, alcalose
metabólica. A hipercalciúria e a hipermagnesiúria resultam da diminuição da reabsorção
desses íons na alça espessa ascendente de Henle.
A síndrome de Bartter geralmente se apresenta na infância, sendo mais raros os
casos em adultos. O achado clínico predominante é a hipocalemia, com seus sintomas
associados, como fraqueza muscular, íleo adinâmico, retardo do crescimento e arritmias
cardíacas, que são agravados pelo aumento da excreção urinária de cálcio e magnésio.
Poliúria e enurese noturna também são manifestações comuns.
O diagnóstico diferencial é feito com outras causas de hipocalemia, como
vômitos, diarreia crônica e uso crônico e abusivo de diuréticos e laxativos. O cloro
urinário estará alto, acima de 20mEq/L, apenas na síndrome de Bartter ou no uso
crônico de diuréticos. O hiperaldosteronismo primário pode ser facilmente excluído pela
ausência de hipervolemia e hipertensão arterial sistêmica.
A terapia é baseada em bloqueio do sistema renina-angiotensina-aldosterona
com medicamentos como diuréticos antagonistas da aldosterona ou inibidores da
enzima de conversão da angiotensina, com risco de hipotensão arterial sintomática,
além de bloqueio das prostaglandinas com anti-inflamatórios não-hormonais nos casos
de síndrome de Bartter antenatal. Deve-se ter em mente que a reposição de potássio e
magnésio é mandatória.

Síndrome de Gitelman
A síndrome de Gitelman ocorre em decorrência de uma diminuição na absorção
de sódio pelo túbulo contornado distal, segmento no qual os diuréticos tiazídicos agem
inibindo o cotransportador Na+-Cl-.
Trata-se de doença autossômica recessiva que leva a um quadro semelhante ao
uso crônico de diuréticos tiazídicos. Caracteriza-se por hipocalemia, hipomagnesemia,
depleção de volume circulante, ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona e
alcalose metabólica. A diferença mais marcante com a síndrome de Bartter é a presença
de hipocalciúria e o diagnóstico mais tardio, geralmente na infância tardia ou na idade
adulta. O quadro clínico pode abranger cãibras e condrocalcinose.
Quadros de alterações tubulares com hipocalemia e alcalose metabólica podem
ser diferenciados por um teste com tiazídicos. Após a administração de 50mg de
Hidroclorotiazida por via oral, indivíduos normais apresentam um aumento, em relação
ao basal, da fração de excreção de cloreto de 2.3-5.4%. Os pacientes com síndrome de
Bartter, em uso de diuréticos ou com vômitos apresentam aumentos maiores que 5.4%,
enquanto que pacientes com síndrome de Gitelman apresentam aumentos menores que
2.3%.
A terapia é baseada em bloqueio do sistema renina-angiotensina-aldosterona
com medicamentos como diuréticos antagonistas da aldosterona ou inibidores da
enzima de conversão da angiotensina, com risco de hipotensão arterial sintomática,
além de reposição de potássio e magnésio.

Alterações do transporte de sódio regulado pela aldosterona


Nas células principais do duto coletor, a aldosterona estimula, na porção
luminal, o canal epitelial de sódio e, na porção basal, a bomba Na+-K+-ATPase,
favorecendo, desta maneira, a absorção de sódio. A absorção de sódio não acompanhada
pela absorção do ânion cloreto gera um gradiente de voltagem com o lúmen negativo, o
que favorece a secreção de potássio e hidrogênio.
A síndrome de Liddle é uma forma rara de hipertensão arterial acompanhada de
hipocalemia com frequência e de níveis baixos de renina e aldosterona plasmáticas, com

Pedro Kallas Curiati 977


herança autossômica dominante. Esse fenótipo é explicado por um defeito molecular
nas subunidades beta e gama dos canais epiteliais de sódio presentes no duto coletor,
levando à sua ativação, com retenção salina, hipertensão arterial sistêmica, hipocalemia
e supressão do sistema renina-angiotensina-aldosterona. O tratamento com Triantereno
ou Amilorida, que inibem os canais endoteliais de sódio, leva à rápida correção da
pressão arterial e da hipocalemia.
Ao contrário da síndrome de Liddle, existem alterações tubulares que se
caracterizam pela perda de função dos canais endoteliais de sódio presentes no duto
coletor, com resistência à ação da aldosterona. Mutações que inativam as subunidades
alfa e beta levam à hipercalemia, perda urinária excessiva de sal e acidose metabólica,
com herança autossômica dominante ou recessiva. Essa síndrome é geralmente
diagnosticada em crianças. O diagnóstico de pseudo-hipoaldosteronismo tipo 1 é
baseado no encontro, em crianças, de níveis aumentados de renina e aldosterona
plasmáticas na presença concomitante de hipertensão arterial sistêmica, hipercalemia e
acidose metabólica. O tratamento consiste na reposição agressiva de cloreto de sódio e
no controle da hipercalemia com resinas de troca iônica, podendo ser utilizada, em caso
de refratariedade, Fludrocortisona 1-2mg/dia. Já o pseudo-hipoaldosteronismo tipo 2, ou
síndrome de Gordon, ocorre em adolescentes e adultos jovens, com acidose metabólica,
hipercalemia, hipertensão arterial sistêmica e níveis diminuídos de renina e aldosterona
plasmática. A alteração molecular não é bem caracterizada e há excelente resposta aos
diuréticos tiazídicos, com correção da hipertensão arterial e da hipercalemia.

Diabetes insipidus nefrogênico


O hormônio antidiurético desempenha papel importante na capacidade do rim de
concentrar a urina por meio de sua ação na porção interna dos dutos medulares. A
ligação a seus receptores promove a fusão de vesículas citoplasmáticas carreando
aquaporina 2 para a membrana citoplasmática luminal, com aumento da permeabilidade
à água nessa porção do néfrons. Foram identificadas mutações nas duas principais
proteínas envolvidas no processo, o receptor V2 do hormônio antidiurético, com
herança recessiva ligada ao sexo, e a aquaporina 2, com herança autossômica recessiva
ou dominante. Essas alterações explicam as formas hereditárias de diabetes insipidus
nefrogênico, nas quais o eixo neuro-humoral responsável pela secreção do hormônio
anti-diurético está íntegro, mas existe resistência renal à sua ação. É importante frisar
que as formas mais comuns do diabetes insipidus nefrogênico são adquiridas e que
geralmente estão relacionadas a nefrotoxicidade de certas drogas, como Lítio,
Demeclociclona, Ifosfamida, Ofloxacino, Orlistat, Vincristina, Ciclofosfamida,
Anfotericina B, Didanosina, Cidofovir, Tenofovir e Foscarnet. Na maioria dos casos, o
diabetes insipidus causado pelo Lítio é reversível. No entanto, pode se tornar
permanente após o uso prolongado. O diabetes insipidus nefrogênico pode ser causado
por doenças sistêmicas, como amiloidose, síndrome de Sjögren e anemia falciforme,
além de distúrbios hidroeletrolíticos, como hipercalcemia e hipocalemia. Redução da
capacidade renal de concentrar a urina também pode ocorrer após resolução de
obstrução bilateral do trato urinário e em caso de insuficiência renal aguda ou crônica.
O diabetes insipidus nefrogênico se caracteriza pela presença de polidipsia e
poliúria, caracterizada por diurese superior a 3L/dia, e osmolalidade muito mais baixa
que a do plasma, inferior a 250mosmol/kg, além do encontro de níveis elevados de
hormônio antidiurético. Baixa concentração plasmática de sódio sugere polidipsia
primária ou psicogênica. Muitos casos são suspeitados na presença de desidratação e
hipernatremia. O diagnóstico é confirmado quando se demonstra a incapacidade de se
obter urina adequadamente concentrada após a supressão da ingesta de água e

Pedro Kallas Curiati 978


administração de hormônio antidiurético exógeno, com aumento da osmolaridade
urinária para valores inferiores a 300mosm/kg relacionado à restrição hídrica e
inferiores a 45% acima do basal relacionado à infusão do hormônio. No teste de
restrição hídrica, avalia-se volume e osmolaridade urinários a cada hora e de sódio
sérico a cada duas horas, com o paciente tendo cessado a ingesta de líquidos duas a três
horas antes do início do teste. A interrupção do teste de restrição hídrica é recomendada
quando a osmolaridade urinária atinge valores normais, acima de 600mosmol/kg,
indicando que tanto a secreção como o efeito do hormônio antidiurético estão normais, a
osmolaridade urinária permanece estável durante duas a três horas apesar de elevação da
osmolaridade plasmática, a osmolaridade plasmática excede 295-300mosmol/kg ou o
sódio plasmático é igual ou superior a 145mEq/L. Nas últimas três situações,
Desmopressina 10mcg por via intranasal ou 4mcg por via subcutânea ou intravenosa é
administrada, com monitorização da osmolaridade urinária e plasmática, com avaliação
do volume urinário a cada trinta minutos. Em caso de persistência de dúvida
diagnóstica, pode-se dosar os níveis séricos de hormônio diurético antes e após o teste
de restrição hídrica. O teste de restrição hídrica pode ser dispensado em caso de elevada
suspeita de diabetes insipidus nefrogênico. Aumento dos níveis séricos de hormônio
antidiurético exclui diabetes insipidus central, enquanto que aumento da osmolaridade
urinária concomitante ao aumento dos níveis séricos de hormônio antidiurético exclui
diabetes insipidus nefrogênico. Polidipsia primária é associada a aumento da
osmolaridade urinária com restrição hídrica e ausência de efeito adicional do hormônio
antidiurético, já que a produção endógena é adequada.
O tratamento é indicado para alívio de sintomas. Nas formas parciais, muitas
vezes não é necessário tratamento, pois o próprio paciente, ingerindo moderadas
quantidades de água, impede que a desidratação hiperosmolar se instale, com confusão
mental ou mesmo coma. Nas formas completas e mais graves, algumas medidas visando
o controle do déficit de concentração urinária devem ser instituídas. A diurese pode ser
reduzida com redução da ingesta de sódio para 2.3g e proteínas para 1g/kg, uso de
diuréticos e uso de anti-inflamatórios não-hormonais. A administração de tiazídicos,
como Hidroclorotiazida 25mg uma a duas vezes por dia, aumenta a expressão de
aquaporina 2, cotransportador Na+-Cl- sensível a tiazídicos e também canal de sódio
epitelial alfa. Amilorida pode ser associada e, além de potencializar o efeito da
Hidroclorotiazida, poupa potássio. Nos casos de toxicidade pelo Lítio em que a droga
não pode ser suspensa, a Amilorida diminui a sua absorção pelo duto coletor, mas pode
aumentar os níveis séricos da medicação, com necessidade de monitorização e ajuste da
dose. A Amilorida também pode ser usada na prevenção da poliúria relacionada ao uso
do Lítio. Não devem ser usados diuréticos de alça, como a Furosemida, que causam
resistência relativa ao hormônio antidiurético. Os anti-inflamatórios não-hormonais,
como Indometacina, também têm sido usados no tratamento do diabetes insipidus
nefrogênico, com antenuação do antagonismo que algumas prostaglandinas exercem
sobre a ação do hormônio antidiurético. O uso de Desmopressina (dDAVP) pode ser
tentado em pacientes com poliúria sintomática persistente refratária ao tratamento, já
que a maior parte dos pacientes com diabetes insipidus nefrogênico não-hereditário têm
resistência apenas parcial ao hormônio antidiurético.

Nefrolitíase
Além da acidose tubular renal clássica, outras alterações tubulares podem levar à
nefrolitíase.
A cistinúria é uma patologia hereditária autossômica recessiva em que existe a
formação de cálculos renais de cistina. Pode ser resultante de um defeito no transporte

Pedro Kallas Curiati 979


tubular proximal de aminoácidos básicos, que incluem a cistina, ou de um defeito
específico dos transportadores de cistina, o que é mais raro. A cistina é um aminoácido
altamente insolúvel, de modo que a diminuição da sua absorção pelo túbulo proximal e
o aumento de sua excreção urinária levam à formação de cálculos radiopacos, que
podem ser coraliformes e frequentemente contêm oxalato de cálcio. Os cristais de
cistina podem ser encontrados no exame direto da urina, mas o diagnóstico da doença
deve ser confirmado pelo encontro de uma excreção urinária de cistina aumentada. O
tratamento tem como objetivo diminuir a concentração urinária de cistina abaixo de
300mg/L pela ingesta de pelo menos quatro litros de água por dia. Deve-se também
alcalinizar a urina, com pH urinário superior a 7.5, com o objetivo de aumentar a
solubilidade da cistina. Pode-se tentar converter a cistina em compostos mais solúveis
por meio da administração de um derivado tiol, como a D-Penicilinamina. O Captopril
tem sido utilizado na tentativa de aumentar a solubilidade da cistina excretada a urina,
mas sua eficácia ainda não está estabelecida. A despeito de todas as medidas, a
recorrência na formação de cálculos é a regra, o que demanda múltiplas intervenções
urológicas.
Ao contrário dos cálculos de cistina, a maioria dos casos de litíase renal está
associada a hipercalciúria e formação de cálculos de cálcio. A nefrolitíase apresenta
caráter familiar em mais de 35% dos pacientes. No homem, a hipercalciúria familiar
pode ser uma doença monogênica, como em doença de Dent, raquitismo
hipofosfatêmico renal progressivo ligado ao sexo e hipercalciúria hipocalcêmica
autossômica dominante, ou envolver até três genes.
Outra alteração tubular bastante rara que também se traduz clinicamente como
nefrolitíase é a hipouricemia renal hereditária, que leva a um aumento da excreção
urinária de uratos.
A nefrolitíase, além de ser manifestação de raras alterações tubulares renais,
pode também produzir essas alterações. Acidose tubular renal tipos I e IV secundárias a
nefrolitíase e/ou nefrocalcinose podem ser consequência da lesão estrutural do
compartimento tubulointersticial, o que leva a lesão funcional das porções distais do
néfron.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 3: doenças hematológicas, oncologia, doenças renais e genitourinárias. – Barueri, SP: Manole, 2009.
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Genetic disorders of the collecting tubule sodium channel: Liddle's syndrome and pseudohypoaldosteronism type 1. William F
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Bartter and Gitelman syndromes. Michael Emmet. UpToDate, 2012.

Pedro Kallas Curiati 980


DOENÇA RENAL CRÔNICA
Definição
Define-se doença renal crônica como lesão renal por tempo igual ou superior a
três meses, caracterizada por anormalidades estruturais ou funcionais dos rins,
manifestada por alterações histopatológicas, nos exames de imagem e/ou na composição
da urina e/ou do sangue, independentemente da filtração glomerular.
A definição de doença renal crônica também engloba a redução na taxa ou no
ritmo de filtração glomerular abaixo de 60mL/minuto/1.73m2 por um período superior a
três meses, independentemente da presença de alterações histopatológicas, nos exames
de imagem e/ou na composição da urina e/ou do sangue.

Classificação
Estágio Descrição Ritmo de filtração Ação
glomerular
(mL/minuto/1.73m2)
1 Lesão renal com ritmo de Superior a 90 Diagnóstico e tratamento de
filtração glomerular normal ou comorbidades, redução da
aumentado e albuminúria progressão e redução do risco
persistente cardiovascular
2 Lesão renal com redução leve 60-89 Estimativa da progressão
no ritmo de filtração glomerular
e albuminúria persistente
3 Lesão renal com redução 30-59 Avaliação e tratamento das
moderada no ritmo de filtração complicações
glomerular
4 Lesão renal com grave redução 15-29 Preparação para terapia de
no ritmo de filtração glomerular substituição da função renal
5 Falência renal Inferior a 15 ou Terapia substitutiva se uremia
diálise

Epidemiologia
No Brasil, a primeira causa de doença renal crônica é hipertensão arterial
sistêmica, seguida por diabetes mellitus e glomerulonefrite crônica. As principais causas
de morte entre os pacientes que recebem terapia renal substitutiva são as doenças
cardiovasculares, seguidas pelas doenças infecciosas.

Etiologia e fisiopatologia
A doença renal crônica é a fase final comum a diversas doenças renais.
Fatores de risco incluem diabetes mellitus, doença cardiovascular, hipertensão
arterial sistêmica, dislipidemia, obesidade, síndrome metabólica, tabagismo, infecção
pelo vírus da imunodeficiência humana ou pelo vírus da hepatite C, neoplasia, história
familiar de doença renal e uso de drogas potencialmente nefrotóxicas.

Quadro clínico
A progressão insidiosa é a característica clínica da doença renal crônica, de
modo que o rim mantém a capacidade de regulação da homeostase até fases avançadas
da doença.
A noctúria, decorrente da perda da capacidade de concentração urinária, costuma
ser um dos primeiros sintomas, mas dificilmente é valorizada pelo paciente.
Posteriormente, surgem as manifestações decorrentes dos distúrbios hidroeletrolíticos e

Pedro Kallas Curiati 981


do acúmulo de escórias nitrogenadas, com acometimento de diversos sistemas. As
manifestações podem incluir fadiga, cansaço, perda de apetite, soluços, perda de massa
muscular, edema, hipertensão arterial sistêmica, desnutrição, sonolência, redução da
atenção e da capacidade cognitiva, mioclonias, convulsões, confusão mental, coma,
neuropatia sensitivo-motora, síndrome das pernas inquietas, pericardite, tamponamento
pericárdico, miocardiopatia urêmica, aceleração da aterosclerose, calcificação vascular,
pleurite, pneumonite, edema agudo de pulmão, respiração de Kussmaull, náusea,
vômitos, gastrite erosiva, pancreatite, ascite, parotidite, anemia por deficiência de
eritropoetina, disfunção plaquetária, alteração de função neutrofílica, maior
susceptibilidade a infecções e neoplasias, hiperparatireoidismo secundário, impotência,
redução da libido, alteração do ciclo menstrual, dislipidemia, intolerância a glicose,
palidez cutânea, pele seca e atrófica, equimoses e prurido cutâneo.
Os distúrbios hidroeletrolíticos, a anemia e as manifestações urêmicas são
comuns tanto à insuficiência renal aguda como à doença renal crônica. O diagnóstico
diferencial é baseado em achados ultrassonográficos compatíveis com nefropatia
crônica, como aumento da ecogenicidade do parênquima renal e redução do diâmetro
renal e da espessura do córtex renal, exame de fundo de olho com evidência de
retinopatia diabética e/ou hipertensiva e presença de osteodistrofia renal, que pode ser
sugerida por elevação dos níveis séricos de paratormônio. Casos de doença renal
crônica com rim de tamanho normal ou aumentado incluem nefropatia diabética,
amiloidose renal, nefroesclerose maligna primária e doença renal policística.

Avaliação complementar
Muitos pacientes podem ser assintomáticos ou oligossintomáticos, de modo que
o diagnóstico da doença renal crônica inclui necessariamente a realização de exames
complementares. O primeiro passo na abordagem do paciente com suspeita de doença
renal crônica é determinar se há perda de função renal e qual o grau de declínio na
filtração glomerular. O passo seguinte é identificar fatores de risco para doença renal
crônica e sua progressão e evidenciar sinais de injúria renal por meio da análise do
sedimento urinário, da pesquisa de proteínas na urina e da avaliação ultrassonográfica
do parênquima renal. Na vigência de déficit de função renal, devem ser buscadas causas
com potencial de tratamento e reversão, tais como obstrução de vias urinárias, estenose
de artéria renal e doenças imunológicas em atividade, como lúpus eritematoso sistêmico
e vasculite.
As principais anormalidades laboratoriais são elevação nos níveis séricos de
uréia e creatinina, hipercalemia, hipocalcemia, hiperfosfatemia, acidose metabólica,
anemia normocítica e normocrômica e, em fases avançadas da falência renal,
hiponatremia hipervolêmica.

Determinação do nível de função renal


O ritmo de filtração glomerular é considerado o melhor índice de função renal.
A sua determinação rigorosa requer a medida da depuração renal de um marcador que
não seja reabsorvido nem secretado pelo túbulo, sendo excretado na urina apenas por
filtração glomerular. A depuração renal de inulina, um polímero de frutose, é o padrão
de referência de medida do ritmo de filtração glomerular, mas seu uso restringe-se
praticamente ao ambiente de pesquisa em função de necessidade de realização do exame
em condições padronizadas e com infusão intravenosa do marcador. A creatinina sérica
é o marcador mais utilizado para estimar a função renal, é acessível na maioria dos
laboratórios e permite rápida dosagem com técnica simples e baixo custo, mas não deve
ser utilizada isoladamente em razão de sua elevação no sangue geralmente ocorrer

Pedro Kallas Curiati 982


quando o clearance declina a valores abaixo de 60mL/minuto, com baixa sensibilidade
para insuficiência renal incipiente. O nível sérico de creatinina apresenta limitações
quanto à acurácia dos resultados especialmente em populações com reduzida geração de
creatinina, como idosos e hepatopatas. A depuração renal de creatinina medida em urina
de 24 horas também é influenciada por secreção pela célula tubular proximal, variável
em um mesmo indivíduo e com elevação conforme a redução da filtração glomerular. A
depuração renal de uréia pode ser utilizada, mas a reabsorção no túbulo renal implica
subestimação da filtração glomerular, de modo que se propõe o uso da média aritmética
das depurações de uréia e a creatinina para minimizar o erro das medidas isoladas. A
medida da concentração sérica de cistatina C também tem sido utilizada como marcador
de função renal. A National Kidney Foundation preconiza o uso de fórmulas ou
equações para estimar o ritmo de filtração glomerular a partir da concentração sérica de
creatinina.
Cockroft-Gault (mL/minuto) {[(140 – idade em anos) x peso em kg] / (72 x creatinina sérica
em mg/dL)} x 0.85 se mulher
Modification of Diet in Renal Disease 186 x (creatinina sérica em mg/dL)-1.154 x (idade em anos)-0.203 x
study (mL/minuto) 0.742 se mulher x 1.21 se raça negra

Marcadores laboratoriais de lesão renal


O exame de urina é o primeiro e mais importante teste não-invasivo a ser feito
na avaliação inicial de paciente com suspeita de doença renal crônica. A análise
microscópica do sedimento compreende basicamente pesquisa de células, cilindros e
cristais.
A hematúria é definida como a presença de quantidade anormal de eritrócitos na
urina, acima de 3-5 eritrócitos por campo de aumento de 400 vezes ou 3000 eritrócitos
por mililitro. Hemácias com origem no parênquima renal são dismórficas e indicativas
de glomerulonefrites proliferativas ou nefrites hereditárias.
A presença de grande número de leucócitos, acima de 10 por campo ou 10000
por mililitro, define piúria e indica inflamação no trato urinário. Embora a infecção seja
a causa mais comum de leucocitúria, vale considerar situações em que há leucocitúria
com cultura de urina negativa, como tuberculose do trato urinário, infecção por
clamídia, doença glomerular proliferativa difusa, litíase renal, nefrite intersticial aguda e
doença renal ateroembólica.
A cilindrúria, definida como excreção aumentada de cilindros na urina, nem
sempre indica doença renal. Diversas situações clínicas, como desidratação, exercício
extenuante, uso de diurético e febre, podem provocar cilundrúria transitória, com
remissão em um período que varia de 24 a 48 horas após desaparecer o estímulo inicial.
A excreção aumentada de cilindros hialinos e granulosos pode não ser indicativa de
doença renal, mas a excreção de todos os outros tipos de cilindros, como os céreos,
celulares, gordurosos e pigmentados, é anormal e indica patologia renal.
A urina normal pode conter vários tipos de cristais, como os de ácido úrico, de
fosfato e de oxalato de cálcio e nem sempre sua presença tem significado diagnóstico,
especialmente quando há refrigeração ou retardo na análise da amostra, com mudança
de pH e temperatura.
A excreção urinária de proteínas é um indicador sensível de lesão glomerular. A
identificação de proteínas na urina pode ser feita inicialmente por meio de fitas
reagentes, com elevada especificidade e baixa sensibilidade. As fitas são sensíveis para
detectar a presença de proteínas de carga negativa, como a albumina, mas praticamente
não detectam proteínas da família das imunoglobulinas. São ineficazes para o
diagnóstico de microalbuminúria, abaixo do limiar de sensibilidade do método.

Pedro Kallas Curiati 983


A microalbuminúria é um marcador precoce de doença renal e sua medida deve
ser solicitada na população de risco para doença renal crônica, especialmente se a
proteinúria for negativa em amostra isolada de urina. Uma vez identificada a presença
de proteínas na urina, o segundo passo é quantificar a proteinúria em urina de 24 horas.
O índice proteinúria/creatininúria (mg/g) é um método alternativo para estimar a
excreção de proteínas, sendo considerados normais valores iguais ou inferiores a
200mg/g e anormais valores acima de 3500mg/g.

Ultrassonografia renal
A ultrassonografia das vias urinárias é adequada para definir o diagnóstico de
obstrução do trato urinário, refluxo vesicoureteral e doença renal policística
autossômica dominante, assim como para diferenciar tumores sólidos de cistos renais.

Biópsia renal
A avaliação da histologia renal é um importante instrumento para o diagnóstico,
determina o prognóstico e direciona a terapêutica dos pacientes com doença renal. Saber
a causa da doença renal tem importância prognóstica também no transplante renal, uma
vez que algumas doenças podem recidivar no enxerto renal. Entretanto, no momento do
diagnóstico de doença renal crônica, habitualmente, o grau de fibrose glomerular é
demasiado avançado para definir o aspecto histológico da doença de base, o córtex renal
está reduzido de tamanho e o risco de sangramento decorrente do procedimento
percutâneo não compensa os potenciais benefícios e, na maioria das vezes, contraindica
a sua realização.

Rastreamento
Pacientes com fatores de risco para doença renal crônica devem ser avaliados
com pesquisa de proteínas na urina através da razão entre albumina e creatinina em
amostra isolada e dosagem de creatinina sérica para estimativa do ritmo de filtração
glomerular. Pesquisa de hematúria é indicada para pacientes com risco elevado de
glomerulonefrite. Ultrassonografia de vias urinárias pode ser recomendada para
pacientes com antecedente familiar de doença renal policística.

Tratamento
A doença renal crônica é uma doença sem cura e a perda de função renal
progride até fases terminais, quando a terapia renal substitutiva se torna necessária.
Pacientes com doença renal crônica estágios III e IV devem ser vacinados contra
influenza, hepatite B e pneumococo. No estágio V, são preconizadas quatro doses da
vacina contra hepatite B.

Retardar a progressão da doença renal crônica


Para inibir a progressão das nefropatias, a estratégia terapêutica deve iniciar pelo
diagnóstico e tratamento dos fatores de risco, em especial diabetes mellitus e
hipertensão arterial sistêmica, mas também dislipidemia, tabagismo, obesidade e
hiperuricemia. Em associação, é preconizada a utilização de drogas que inibam o
sistema renina-angiotensina-aldosterona, bem como a detecção e o tratamento precoces
das complicações da doença renal crônica.
A terapia anti-hipertensiva abrange mudanças no estilo de vida e uso de
fármacos, tendo como alvo nível pressórico inferior a 130x80mmHg. Na doença renal
crônica, todas as classes de drogas anti-hipertensivas são eficazes em reduzir a pressão
arterial, mas existem drogas preferenciais pelo seu efeito benéfico em reduzir eventos

Pedro Kallas Curiati 984


cardiovasculares e a progressão da doença renal, como os inibidores da enzima de
conversão da angiotensina e os bloqueadores do receptor da angiotensina II.
Bloqueadores de canais de cálcio não-dihidropiridínicos também apresentam efeito na
diminuição da proteinúria. A utilização de terapia dupla no bloqueio do sistema renina-
angiotensina-aldosterona, com o uso simultâneo de inibidor da enzima de conversão da
angiotensina e bloqueador do receptor da angiotensina II, tem sido frequente nas
nefropatias proteinúricas não-diabéticas, mas não é recomendada em função de risco
aumentado de efeitos adversos e ausência de benefício conhecido. Na nefropatia
diabética também não há evidência para a utilização indiscriminada do bloqueio duplo,
de modo que a prescrição deve ser individualizada para cada paciente. O bloqueio
triplo, com Espironolactona, tem sido utilizado em ensaios clínicos. O emprego de uma
quarta droga, dita inibidor de renina, surge como perspectiva. O uso de diuréticos pode
recuperar o efeito na diminuição da proteinúria dos inibidores da enzima de conversão
da angiotensina em pacientes que não aderem a restrição de sódio na dieta.
Preconiza-se controle glicêmico rigoroso em pacientes diabéticos, com o
objetivo de manter a glicose capilar pré-prandial inferior a 130mg/dL, o pico pós-
prandial inferior a 180mg/dL e a hemoglobina glicada inferior a 7%. Uma das medidas
mais importantes de prevenção da nefropatia diabética é a mensuração anual da
microalbuminúria.
O diagnóstico e tratamento de dislipidemia no paciente com doença renal
crônica são referendados não só na redução da incidência de doença cardiovascular
aterosclerótica, como também na redução da progressão da doença renal,
independentemente da sua etiologia. O paciente com doença renal crônica é considerado
de alto risco para doença cardiovascular aterosclerótica, com alvo terapêutico a ser
atingido de LDL-colesterol inferior a 100mg/dL, HDL-colesterol superior a 40mg/dL e
triglicérides inferiores a 150mg/dL. Há maior incidência de rabdomiólise secundária ao
uso de estatinas e fibratos em pacientes com doença renal crônica, particularmente
quando usados em associação, com necessidade de maior vigilância.
A obesidade eleva o risco de proteinúria ao longo dos anos, provavelmente por
hiperfiltração glomerular. Assim, particular atenção deve ser dada a medidas dietéticas,
atividade física e tratamento da obesidade em pacientes com doença renal crônica.
Menos evidente é a relação entre hiperuricemia e progressão da nefropatia
crônica, questão ainda em debate na literatura médica. De qualquer forma, persiste a
recomendação de tratar a hiperuricemia no paciente com doença renal crônica com a
prescrição de drogas redutoras da produção de ácido úrico. Não devem ser prescritas
drogas uricosúricas.
O tabagismo aumenta o risco de proteinúria tanto na população geral quanto em
portadores de nefropatia diabética ou hipertensiva. Embora não esteja claro se a
cessação do tabagismo tem impacto na história natural da doença renal crônica, essa
medida deve ser encorajada a todo paciente de risco para desenvolver doença renal ou
naqueles que já tenham doença instalada.

Orientar dieta na doença renal crônica


Pacientes com disfunção renal devem ter avaliação de seu estado nutricional e da
albumina sérica. O peso seco deve ser analisado a cada visita ambulatorial. A presença
de perda de peso não intencional superior a 5% e de hipoalbuminemia inferior a 4g/dL
pode ocorrer em portadores de doença renal crônica, sendo de origem multifatorial e
estando associada a morbidade e mortalidade elevadas.
A terapêutica dietética para insuficiência renal tem como objetivos prover
nutrição adequada ao paciente, limitar a formação e o acúmulo de toxinas urêmicas,

Pedro Kallas Curiati 985


desacelerar a progressão da disfunção renal e prevenir ou minimizar distúrbios no
balanço hidroeletrolítico corpóreo, principalmente a hipervolemia e a hipercalemia.
É extremamente importante a redução na ingesta de sódio. Faz-se controle da
excreção de sódio em urina de 24 horas, com 17mEq de sódio urinário correspondendo
a cerca de 1g de sal ingerido. Nas fases mais adiantadas, restrições de potássio, fósforo e
água podem tornar-se necessárias.
A dieta hipoproteica visa reduzir a progressão da doença, mas não deve implicar
desnutrição. O controle da ingesta proteica pode ser realizado por meio de inquérito
alimentar ou, mais facilmente, por cálculo indireto através da fórmula 6.25 x [(excreção
urinária diária de uréia em g/dia / 2.14) + (0.031 x peso em quilogramas) +
proteinúria de 24 horas quando superior a 3g/dia]. Recomenda-se considerar uma
ingesta proteica de 0.80g/kg/dia e ingesta energética de 30-35kcal/kg/dia para
indivíduos com clearance de creatinina inferior a 25mL/minuto, suplementada, se
necessário, com aminoácidos essenciais ou cetoanálogos. O aporte proteico deve ser
realizado com teor predominante de proteínas de alto valor biológico, ou seja, ricas em
aminoácidos essenciais. Assim, ovos e carnes devem ser priorizados em detrimento de
proteínas vegetais. Quando do início do programa dialítico, introduzem-se dietas mais
ricas em proteínas, com 1.2g/kg.

Tratar as complicações da doença renal crônica - anemia


A correção da anemia desde o seu surgimento é crucial para a prevenção
secundária de doença cardiovascular, além de melhorar a qualidade de vida e o
desempenho do paciente em suas atividades diárias. O tratamento inclui a administração
de Eritropoetina e a identificação das potenciais causas de resistência à sua ação, tais
como deficiência de ferro, deficiência de vitamina B12, deficiência de ácido fólico,
processos infecciosos ou inflamatórios, intoxicação por alumínio, osteíte fibrosa,
hemoglobinopatias, hemólise e desnutrição. A saturação de transferrina deverá ser
mantida superior a 20% e a ferritina deverá ser mantida superior a 100ng/mL. Nova
diretriz publicada em 2012 recomenda manter saturação de transferrina superior a 30%
e ferritina superior a 500ng/mL. Pode-se utilizar Sulfato Ferroso 325mg três vezes ao
dia, com 20% de ferro elementar, em caso de deficiência de ferro, mas a reposição de
ferro por via oral nem sempre é eficaz, devendo-se considerar a via intravenosa. Já a
Eritropoetina é apresentada na forma de ampolas de 1000UI, 2000UI, 3000UI, 4000UI e
10000UI, com dose recomendada de 50-100U/kg três vezes por semana por via
intravenosa em um a dois minutos ou por via subcutânea. A dose inicial poderá ser
aumentada em 25UI/kg de cada vez, em intervalos de quatro semanas, não devendo
exceder o máximo de 20000U/semana em pacientes não submetidos a diálise e
200UI/kg três vezes por semana em pacientes submetidos a diálise. Darbepoetina alfa,
outro agente eritropoético, também é indicada para o tratamento da anemia relacionada
à doença renal crônica, com meia-vida mais longa e maior atividade biológica que a
Eritropoetina, podendo ser administrada uma vez por semana, uma vez a cada duas
semanas ou mesmo, em alguns pacientes, uma vez por mês. É apresentada na forma
seringa com 10mcg em 0.4mL (25mcg/mL), com dose inicial recomendada é de
0.45mcg/kg por via subcutânea uma vez por semana ou, em pacientes pré-dialíticos,
opcionalmente 0.75mcg/kg por via subcutânea a cada duas semanas. Em caso de
aumento inadequado da hemoglobina, inferior a 1g/dL em quatro semanas, deve-se
aumentar a dose em 25% com intervalos de quatro semanas. Se o aumento da
hemoglobina for superior a 2g/dL em quatro semanas ou se a hemoglobina exceder
12g/dL, deve-se reduzir a dose em 25%. Os índices hematimétricos devem ser
monitorizados até que as metas sejam alcançadas e conferidos periodicamente. A

Pedro Kallas Curiati 986


recomendação da Sociedade Brasileira de Nefrologia e da National Kidney Foundation
é manter um nível alvo de hemoglobina de 11-12g/dL, com cautela para valores de
hemoglobina acima de 13g/dL. Nova diretriz publicada em 2012 recomenda manter o
nível de hemoglobina superior ou igual a 10g/dL.

Tratar as complicações da doença renal crônica - hipervolemia


Pacientes com doença renal crônica e hipervolemia geralmente respondem à
combinação de dieta hipossódica com uso de diurético de alça.

Tratar as complicações da doença renal crônica – distúrbios de cálcio, fósforo,


vitamina D e PTH (doença osteomineral)
Alterações no metabolismo mineral e ósseo são complicações da doença renal
crônica e estão associadas com aumento de morbidade e diminuição da qualidade de
vida, com dor óssea e risco de fraturas, além de elevação da mortalidade cardiovascular
por calcificações extra-esqueléticas. O distúrbio ósseo e mineral decorrente da doença
renal crônica inicia-se com a redução na produção de 1,25 dihidroxicalciferol. O
progressivo declínio no nível sérico de vitamina D é acompanhado por elevação de
paratormônio à medida que declina a filtração glomerular, de modo que, nos estágios 3
e 4 da doença renal crônica, a maioria dos pacientes já apresenta hiperparatireoidismo
secundário. Níveis séricos de cálcio, fósforo, bicarbonato, fosfatase alcalina e
paratormônio devem ser medidos em todos os pacientes com diagnóstico de doença
renal crônica e clearance menor que 60mL/minuto/1.73m2. O fósforo sérico deve ser
mantido abaixo de 5.5mg/dL, a calcemia na faixa da normalidade, o produto cálcio x
fósforo inferior a 55mg2/dL2, o bicarbonato plasmático nos limites da normalidade e o
paratormônio abaixo de duas vezes e meia o limite superior da normalidade. Exames de
imagem devem ser solicitados para evidenciar calcificação de tecidos moles, fraturas e
reabsorção óssea, com aspecto em “sal e pimenta” na radiografia de crânio. A biópsia
óssea não é recomendada como avaliação de rotina, mas deve ser indicada em caso de
dor persistente, suspeita de intoxicação por alumínio, programação de
paratireoidectomia, programação de terapia com bifosfonatos, calcificação vascular
progressiva e hipercalcemia, hipofosfatemia ou fraturas não explicadas.
Estágio da Dosagem de Alvo para o Dosagem Alvo para Alvo para Alvo para o
doença paratormônio paratormônio de cálcio e o cálcio o fósforo produto cálcio
renal (pg/mL) fósforo (mg/dL) (mg/dL) x fósforo
crônica (mg2/dL2)
3 12/12 meses 35-70 12/12 Normal 2.7-4.6 Inferior a 55
meses
4 3/3 meses 70-110 3/3 meses Normal 2.7-4.6 Inferior a 55
5 3/3 meses 150-300 1/1 mês 8.4-9.5 3.5-5.5 Inferior a 55
Mais recentemente, tem-se preferido abordagem segundo a qual paratormômio,
cálcio e fósforo séricos têm como alvo valores normais, sendo o tratamento iniciado em
caso de níveis séricos de paratormônio em ascensão progressiva e com persistência
acima do limite da normalidade. Os valores de cálcio e fósforo séricos passam a ser
analizados individualmente, ao invés do produto cálcio x fósforo. Para atingir os
objetivos, os níveis séricos de paratormônio devem ser avaliados a cada três a seis
meses e os níveis séricos de fósforo e cálcio devem ser avaliados a cada um a três
meses. Os níveis de vitamina D também devem ser dosados.
A expressão osteodistrofia renal é usada atualmente para descrever as alterações
na morfologia óssea decorrentes da doença renal crônica, com base na histologia da
biópsia óssea. O diagnóstico e a classificação requerem, portanto, a realização de
biópsia óssea e se baseiam nos componentes de remodelamento, mineralização e

Pedro Kallas Curiati 987


volume ósseo, o que é denominado sistema de classificação TMV:
- Osteíte fibrosa, com alta remodelação óssea causada pelo
hiperparatireoidismo secundário;
- Osteomalacia, com baixa remodelação, caracterizada por um defeito na
mineralização óssea;
- Doença adinâmica, também caracterizada por baixa remodelação óssea;
- Doença mista, com alta remodelação e defeito de mineralização óssea;
A hipocalcemia deve ser tratada com a reposição de cálcio com 1g/dia,
habitualmente feita com Carbonato de Cálcio entre as refeições e ao deitar, e a
insuficiência ou deficiência de Vitamina D com a sua reposição. Na prática, pode-se
considerar que os níveis séricos de vitamina D aumentam em 0.7ng/mL para cada 100
UI/dia, de modo que a dose média preconizada para reposição em pacientes com
disfunção renal crônica com deficiência laboratorialmente confirmada é de 8000-10000
UI/semana. Em caso de hipercalcemia, a reposição deve ser descontinuada.
A hiperfosfatemia deve ser tratada inicialmente com restrição dietética de
fósforo para 800mg/dia, ou seja, com a redução da ingesta de carne, leite e derivados,
ovo (principalmente a gema), refrigerante, pães com grãos integrais, nozes, cereais e
legumes. Caso não haja resposta apenas com a restrição da dieta em duas a quatro
semanas, deve-se iniciar o uso de quelantes de fósforo. Estão disponíveis atualmente no
mercado o Carbonato de Cálcio, o Acetato de Cálcio, o Sevelamer e o Hidróxido de
Alumínio, que devem ser administrados às refeições. Os quelantes que contêm cálcio
estão particularmente indicados para pacientes que apresentam cálcio total inferior a
9.5mg/dL, mas tornam-se prejudiciais nos pacientes hipercalcêmicos. São mais efetivos
quando administrados com as refeições, sendo que a ingesta de cálcio elementar diária
não deve exceder 2g, incluindo o cálcio proveniente dos alimentos. Carbonato de Cálcio
é apresentado na forma de comprimidos de 1250mg, com 500mg de cálcio elementar e
dose recomendada de um a três comprimidos por dia. Os quelantes com alumínio são
eficazes e estão indicados quando o produto cálcio x fósforo encontra-se superior a
70mg/dL, mas apresentam efeitos tóxicos sobre o próprio osso e seu uso não deve ser
prolongado por período superior a quinze dias. O Cloridrato Sevelamer, apresentado na
forma de comprimidos de 400mg e 800mg é o único dentre os quelantes que não
contém nem cálcio nem alumínio, mas apresenta custo mais elevado e não deve ser
utilizado na fase de pré-diálise por causar acidose metabólica quando na forma de
Cloridrato de Sevelamer. Já está disponível formulação com Carbonato de Sevelamer,
apresentado na forma de comprimidos de 800mg, que pode ser utilizado na fase de pré-
diálise. Para ambas as formulações, preconiza-se dose inicial de 800-1600mg três vezes
ao dia durante as refeições, devendo-se monitorizar os níveis séricos de bicarbonato,
fosfato e vitaminas D, E, K e ácido fólico.
A elevação progressiva de PTH persistente por um período superior a seis meses
apesar de terapia otimizada com Vitamina D e quelantes de fósforo deve ser tratada com
Calcitriol, apresentado na forma de cápsulas de 0.25mcg, com dose de uma cápsula por
dia, ou outro metabólito de vitamina D, desde que o produto cálcio x fósforo não esteja
muito elevado e não haja hipercalcemia e/ou hiperfosfatemia. O cálcio sérico deve ser
corrigido para a albumina sérica utilizando a fórmula cálcio sérico medido + 0.8 x (4 –
albumina sérica em g/dL). A administração de Calcitriol aumenta a reabsorção
intestinal de cálcio e fósforo, podendo gerar valores proibitivos de fosforemia e
calcemia, com necessidade de dosagem laboratorial a intervalos de no máximo três
meses. Os novos análogos sintéticos de vitamina D são mais seletivos para as
paratireoides, sem ação sob o receptor intestinal da vitamina D. Se não houver resposta
clínica com vitamina D sintética, está indicado o tratamento cirúrgico, com a realização

Pedro Kallas Curiati 988


de paratireoidectomia subtotal, total ou total com autoimplante. Uma nova perspectiva
para o tratamento do hiperparatireoidismo secundário na doença renal crônica estágio 5
emerge com as drogas calcimiméticas, como o Cinacalcet, que são agonistas de
receptores cálcio-sensíveis que atuam nas glândulas paratireoides.

Tratar as complicações da doença renal crônica – acidose metabólica


O tratamento da acidose metabólica é preconizado para impedir a osteopenia e o
catabolismo muscular. O osso tampona o excesso de hidrogênio, com liberação de
cálcio e fosfato e prejuízo da mineralização normal. A acidose também pode alterar o
eixo hormonal do hormônio de crescimento, com impacto no crescimento de crianças
com doença renal crônica.
Na fase pré-dialítica, a correção da acidose metabólica pode ser feita com
orientação dietética e com administração de Bicarbonato de Sódio por via oral na dose
de 0.5-1.0mEq/kg, objetivando manter o bicarbonato sérico maior ou igual a 22mEq/L.
O paciente pode ser orientado a dissolver uma colher de café de Bicarbonato de Sódio a
100% em pó, que equivale a 2.5g de Bicarbonato de Sódio e a 29.76mEq de
Bicarbonato, em um copo de água filtrada e tomar duas a três vezes ao dia. A
administração do Bicarbonato de Sódio apresenta como desvantagem o aumento na
ingesta de sódio, porém habitualmente é bem tolerado. Citrato de Sódio pode ser usado
em pacientes que não toleram o Bicarbonato de Sódio, mas deve ser evitada a
associação com antiácidos que contenham alumínio.

Tratar as complicações da doença renal crônica – diátese hemorrágica urêmica


Tratamento específico não é necessário em pacientes assintomáticos.
Correção da disfunção plaquetária é desejável em pacientes com sangramento
ativo ou em programação de procedimento cirúrgico ou invasivo. Podem ser
considerados correção da anemia, administração de Desmopressina (dDAVP),
transfusão de crioprecipitado, suplementação de estrógeno e início de terapia dialítica.

Evitar situações de piora aguda da função renal


Causas de piora aguda da função renal em pacientes com doença renal crônica
incluem depleção de volume circulatório efetivo, uso de agentes tóxicos ao rim, crise
hipertensiva, controle excessivamente rápido da pressão arterial em pacientes
hipertensos graves, uso de inibidores da enzima conversora da angiotensina e/ou de
bloqueadores dos receptores da angiotensina II em pacientes com doença renal crônica
avançada, surgimento de componente renovascular, obstrução do trato urinário e
infecção do parênquima renal.
Alguns princípios para o uso clínico de agentes farmacológicos devem ser
observados em pacientes com doença renal crônica. Quando a terapêutica é instituída,
sua dose inicial normal pode ser administrada para quase todos os agentes. Agentes
eliminados inteiramente por metabolismo hepático podem ser administrados sem
modificação de dosagem quando metabólitos ativos não são produzidos. Agentes
eliminados total ou parcialmente pelos rins necessitam ter suas dosagens modificadas,
com monitorização cuidadosa. A modificação consiste em redução de dosagens e/ou
alargamento do intervalo de tempo entre as tomadas.

Diálise e transplante renal


Os pacientes portadores de doença renal crônica avançada devem ser
encaminhados ao nefrologista para preparo da terapia de substituição da função renal
quando apresentarem filtração glomerular inferior a 30mL/minuto. As indicações para

Pedro Kallas Curiati 989


início da terapia de substituição da função renal no paciente com doença renal crônica
se baseiam na presença de sinais e sintomas de uremia e no nível da função renal. Há
condições clínicas que, quando presentes, são sinalizadoras de doença renal crônica
avançada e tornam mandatório o início da terapia de substituição da função renal.
Incluem pericardite urêmica, sobrecarga volêmica refratária ao uso de diuréticos,
hipertensão arterial sistêmica refratária às drogas anti-hipertensivas, encefalopatia ou
neuropatia periférica avançadas, diátese hemorrágica atribuída à uremia, hipercalemia e
acidose metabólica não-controladas clinicamente, clearance de creatinina inferior a
20mL/minuto para pacientes com desnutrição energético-proteica, clearance de
creatinina inferior ou igual a 15mL/minuto para pacientes com diabetes mellitus e
clearance de creatinina inferior ou igual a 10mL/minuto para pacientes não-diabéticos.
Educação para terapia de substituição renal deve ser iniciada quando a função
renal estiver abaixo de 30mL/minuto/1.73m2. As modalidades devem ser apresentadas e
discutidas. Para a maior parte dos pacientes e na ausência de contraindicações, a escolha
pode se basear na preferência do paciente. A diálise peritoneal deve ser o método de
escolha no tratamento em crianças urêmicas, especialmente naquelas com menos de
20kg de peso, pacientes com impossibilidade de acesso vascular e pacientes que não
toleram a hemodiálise.
A via de acesso venoso definitiva deve ser instalada em um período de dois a
quatro meses antes do início da terapia de substituição da função renal, quando o
clearance de creatinina estiver ao redor de 20-25mL/minuto. Deve-se dar preferência a
uma fístula arteriovenosa nativa, instalada no antebraço não-dominante do pacientes. O
tempo mínimo requerido para a maturação de uma fístula arteriovenosa nativa fica ao
redor de trinta dias. Cateteres de duplo lúmen por canulação percutânea da veia jugular
interna ou da veia subclávia, para realização de hemodiálise clássica, são largamente
empregados como acesso temporário. Nos pacientes cuja necessidade de hemodiálise se
faz por um período mais prolongado, pode-se lançar mão do uso de cateter atrial
colocado por via jugular, como Permcath Quinton ou Hickman duplo lúmen 10-12Fr.
Para aqueles com opção de diálise peritoneal, o cateter peritoneal deve ser instalado
cerca de um mês antes do início definitivo do tratamento.
No Brasil, mais da metade dos pacientes submetidos a um transplante renal
obtiveram seus rins de doadores vivos. Uma parcela desses pacientes teria, em fase pré-
dialítica, a possibilidade de ser submetida a um transplante renal sem tratamento
dialítico prévio. O preparo para a cirurgia deve ser iniciado quando o nível de função
renal for inferior a 30mL/minuto.
A hemodiálise é a terapêutica mais utilizada para tratamento, controle e
manutenção vital de pacientes portadores de insuficiência renal crônica em sua fase
terminal. Remove os solutos urêmicos anormalmente acumulados e o excesso de água,
restabelecendo o equilíbrio hidroeletrolítico e acidobásico do organismo. A hemodiálise
se baseia na transferência de solutos e líquidos através de uma membrana
semipermeável que separa os compartimentos sanguíneos do dialisado nos filtros
capilares. Essa transferência de solutos pode ser feita por difusão, caracterizada pela
passagem de moléculas de soluto do compartimento mais concentrado para o outro
menos concentrado através de uma membrana semipermeável, ou por convecção,
caracterizada por um gradiente pressórico exercido sobre a membrana semipermeável
do dialisador, resultando na ultrafiltração de água plasmática, que carrega consigo o
soluto. A remoção de líquidos durante a hemodiálise é feita pelo processo de
ultrafiltração. Um aspecto essencial no tratamento hemodialítico de rotina é a prevenção
da coagulação do sangue que flui no sistema extracorpóreo, sendo a heparinização
sistêmica a técnica mais utilizada, com controle do tempo de coagulação para três a

Pedro Kallas Curiati 990


quatro vezes o basal. Em pacientes com risco de sangramento ativo, pode-se utilizar a
técnica de hemodiálise sem anticoagulante. Em média, três sessões semanais com
duração de três a quatro horas são suficientes para evitar complicações clínicas
urêmicas. Recentemente, voltou-se a introduzir o conceito de hemodiálise diária com
seis a sete sessões semanais, que promove vantagens clínicas, maior reabilitação social e
melhor qualidade de vida aos pacientes. Para que se possa calcular a dose de diálise,
definida como Kt/V, é necessário o conhecimento da depuração do dialisador (K),
fornecida pelo fabricante, do tempo de terapia dialítica (t) e do volume de distribuição
de determinado soluto, sendo a uréia o mais utilizado. Também se faz necessário para o
cálculo os valores de uréia plasmática de antes e após a diálise.
A diálise peritoneal é uma das modalidades de tratamento utilizadas em
pacientes com doença renal crônica, empregada em uma parcela pequena do total de
pacientes em diálise no Brasil, ao redor de 10%. É especialmente indicada para crianças
e para pacientes com dificuldade na obtenção de um acesso vascular. Pode ser uma
opção interessante para pacientes com instabilidade hemodinâmica durante as sessões
de hemodiálise. Sua grande vantagem é ser de fácil instalação e execução, tornando-se
viável mesmo em hospitais sem grandes recursos técnicos. Dispensa o uso de
anticoagulantes. As principais desvantagens são menor eficiência na remoção de solutos
e baixa sobrevida do método. As principais contraindicações são incapacidade de
aprendizado da técnica e de realização segura das trocas pelo paciente, cirurgia
abdominal recente, em especial quando houver abertura do retroperitônio há menos de
48 horas, peritonite localizada, aderências múltiplas intra-abdominais que dificultam a
colocação do cateter ou formam múltiplas lojas, colostomias e defeitos diafragmáticos
congênitos ou adquiridos. Entre as técnicas de diálise peritoneal propostas, destacam-se
diálise peritoneal intermitente, diálise peritoneal ambulatorial contínua e diálise
peritoneal automatizada. Para os programas crônicos de diálise peritoneal, torna-se
necessário o implante de cateter flexível e permanente feito em centro cirúrgico por
cirurgião treinado.
O transplante renal surge como uma modalidade de tratamento ideal para o
paciente com falência renal crônica. Quando realizado com sucesso, permite o
restabelecimento da função renal a níveis satisfatórios, livre de sintomas urêmicos e
distúrbios hidroeletrolíticos, com melhoria inquestionável da qualidade de vida. O
paciente transplantado renal deverá fazer uso contínuo de drogas imunossupressoras
para inibir uma possível rejeição do órgão, o que acarretará em risco de infecção,
principalmente nos primeiros meses após o transplante. As sobrevidas dos pacientes
transplantados de doador vivo e doador falecido são de 90% e 80%, respectivamente, no
primeiro ano da terapia. O transplante renal está indicado a todo paciente portador de
falência renal crônica, estando este recebendo ou não hemodiálise ou diálise peritoneal.
Contraindicam o transplante renal retardo mental grave, neoplasias ativas, problemas
psiquiátricos graves, alterações em vias urinárias não passíveis de correção e oxalose
primária. A idade não é mais uma contraindicação para a realização do transplante
renal. Apesar de não ser considerada uma contraindicação, alguns cuidados devem ser
tomados quanto a possibilidade de recidiva da doença de base do paciente. O melhor
doador de rim é aquele que, além da compatibilidade do tipo sanguíneo, tenha os
antígenos de histocompatibilidade (HLA) mais semelhantes aos do receptor. O doador
vivo é submetido a avaliação clínica, laboratorial e psicológica de forma a não ter
nenhum prejuízo para sua saúde com a cirurgia. Complicações do transplante renal
incluem hipertensão arterial sistêmica por retenção de sal e água, uso de corticoide ou
estenose de artéria renal do aloenxerto, neoplasias e infecções, sendo as bacterianas
mais comuns. As infecções virais podem incluir citomegalovírus, varicela, herpes zoster

Pedro Kallas Curiati 991


e hepatites B e C. A insuficiência renal aguda após o transplante demanda pelo menos
uma investigação com imagem, além do uso ajustado de drogas imunossupressoras.
Rejeição enxerto é complicação frequente e constitui a principal causa de perda de
função do rim transplantado.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 3: doenças hematológicas, oncologia, doenças renais e genitourinárias. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Epidemiology of chronic kidney disease. Gregorio T Obrador and Brian J G Pereira. UpToDate, 2011.
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Treatment of chronic kidney disease. Jeffrey M Turner et al. Kidney International (2012) 81, 351–362.

Pedro Kallas Curiati 992


GLOMERULOPATIAS PRIMÁRIAS
Fisiopatologia
Mecanismos imunológicos e não-imunológicos estão envolvidos na patogênese
das glomerulopatias primárias.
Aproximadamente metade das glomerulopatias primárias tem em sua patogênese
envolvimento imunológico. O mecanismo dominante pode ser a deposição de
autoanticorpos no tufo glomerular, como na nefrite lúpica, ou a ação do sistema imune
celular, como nas glomerulonefrites pauci-imunes. A deposição de autoanticorpos pode
estar relacionada a imunocomplexos circulantes previamente formados, a
imunocomplexos formados in situ ou a deposição no glomérulo de autoanticorpos
circulantes reativos a antígenos originados a partir de modificações estruturais do
glomérulo renal. O local de deposição dos anticorpos dentro do glomérulo é
determinante da apresentação clínico-patológica da glomerulonefrite. A extensão da
lesão tecidual depende, além da quantidade de imunocomplexos depositados, de fatores
ligados ao consumo de complemento e fatores quimiotáticos. As glomerulonefrites se
apresentam inicialmente com infiltração do tufo glomerular por leucócitos, porém, em
uma etapa posterior, apresentam proliferação de células residentes, endoteliais e
mesangiais, em resposta a fatores de crescimento liberados no local. Algumas formas de
glomerulopatias apresentam um acometimento histológico de maior gravidade, com a
formação de crescente, estrutura histológica formada por pelo menos duas camadas de
células epiteliais glomerulares e fagócitos mononucleares, que ocupam parcial ou
totalmente o espaço de Bowman.
A pressão no capilar glomerular parece ser fator dominante envolvido na lesão
não-imunológica. Seu aumento desencadeia alterações do podócito, com disfunção,
perda de vitalidade, apoptose e perda de adesão à membrana basal. A proteinúria, por
sua vez, pode ser lesiva ao podócito, ao mesângio e à célula tubular proximal.

Quadro clínico
As doenças glomerulares podem se apresentar sob formas brandas, como
hematúria macroscópica, hematúria microscópica e proteinúria subnefrótica, ou sob
formas mais floridas, como síndrome nefrítica, definida por edema, hipertensão arterial
sistêmica e hematúria, e síndrome nefrótica, definida por edema, proteinúria superior a
3g/dia e hipoalbuminemia.
O diagnóstico clínico das doenças glomerulares é dificultado na prática porque
uma mesma doença pode se apresentar com características nefrítica e nefrótica. Assim,
a biópsia renal com estudo histológico por microscopia óptica, imunofluorescência ou
até microscopia eletrônica é um recurso diagnóstico imprescindível.

Hematúria microscópica assintomática


Caracteriza-se por hematúria isolada ao exame de urina, sem proteinúria,
alteração de função renal ou manifestações sistêmicas, como edema e hipertensão
arterial sistêmica. Apenas cerca de 10% dos casos são causados por glomerulopatias,
como nefropatia da membrana basal fina, nefropatia por IgA, glomerulonefrite
membranoproliferativa e síndrome de Alport, de modo que a investigação urológica é
obrigatória. O achado de hemácias dismórficas aponta para glomerulopatias.
Em pacientes com idade superior a quarenta anos com hematúria microscópica
persistente isolada sem evidência de origem glomerular, cistoscopia é mandatória para

Pedro Kallas Curiati 993


excluir malignidade uroepitelial.
De maneira geral, em pacientes com hematúria microscópica assintomática sem
evidências de doença sistêmica, não é necessária a realização de biópsia renal, pois
terapia imunossupressora não estará indicada na maioria dos casos.
A síndrome de Alport é uma forma hereditária de glomerulonefrite usualmente
caracterizada por alterações assintomáticas do sedimento urinário. Na maior parte dos
casos, possui herança ligada ao X e manifesta-se por hematúria e proteinúria em
associação com diminuição de acuidade auditiva para sons agudos e alterações do
cristalino. Microscopia óptica pode revelar desde proliferação mesangial até lesões
esclerosantes avançadas. Em homens, a síndrome de Alport geralmente evolui para
glomeruloesclerose progressiva e insuficiência renal.

Hematúria macroscópica recorrente


A cor da urina na hematúria macroscópica associada a doença glomerular é mais
marrom do que vermelha e coágulos são raros. Deve-se distinguir de outras causas de
urina marrom ou vermelha, como hemoglobinúria, mioglobinúria, porfiria, consumo de
comidas com corantes e uso de drogas, particularmente a Rifampicina. A hematúria
macroscópica requer avaliação urológica com cistoscopia em qualquer idade, a menos
que a história seja característica de hematúria glomerular.
A hematúria macroscópica recorrente geralmente é episódica, relacionada a
infecções do trato respiratório e/ou exercício físico, e autolimitada, ocorrendo
predominantemente em adolescentes e adultos jovens. As causas mais frequentes são
nefropatia da membrana basal fina, nefropatia por IgA, síndrome de Henoch-Schönlein
e síndrome de Alport.
A nefropatia por IgA, ou doença de Berger, é considerada a glomerulopatia mais
comum mundialmente, com predomínio na Ásia. É rara na etnia negra e tem predomínio
no sexo masculino. Pode ocorrer em qualquer faixa etária, com um pico de incidência
na segunda e na terceira décadas. A apresentação clássica consiste em hematúria
macroscópica que se manifesta dois a três dias após um quadro infeccioso,
habitualmente faringite, persistindo por habitualmente dez dias. Apenas uma pequena
porcentagem dos pacientes com nefropatia por IgA apresentam a tríade clássica,
caracterizada por hematúria macroscópica, edema e hipertensão arterial sistêmica,
acompanhada ou não de perda de função renal. A doença pode se manifestar de forma
insidiosa, muitas vezes descoberta incidentalmente em exames de rotina, com hematúria
macroscópica e proteinúria não-nefrótica associadas ou não a hipertensão arterial
sistêmica e perda de função renal, ou como síndrome nefrótica clássica, com proteinúria
maciça e anasarca. Na nefropatia por IgA, há aumento da concentração sérica de IgA
em metade dos pacientes. O complemento sérico é normal. A nefropatia por IgA pode
ser secundária a doenças sistêmicas, como doença celíaca, dermatite herpetiforme,
espondilite anquilosante, artrite reumatoide, carcinoma de pulmão, micose fungoide,
cirrose hepática, psoríase, hanseníase e infecção pelo vírus da imunodeficiência
humana. Quanto à histologia associada ao quadro nefrítico, observa-se glomerulonefrite
proliferativa mesangial focal ou difusa, podendo ocorrer expansão da matriz mesangial
e das sinéquias. A imunofluorescência é crucial para o diagnóstico, revelando
predomínio de depósitos de IgA no mesângio, podendo haver, em menor intensidade,
deposição de IgG, IgM ou componentes do complemento. Não há um tratamento
comprovadamente eficaz para nefropatia por IgA. O uso de inibidores da enzima de
conversão da angiotensina e de bloqueadores do receptor AT1 da angiotensina II está
indicado, com redução da proteinúria e da progressão da doença renal. Bons resultados
podem ser obtidos em alguns pacientes com tratamento em longo prazo com corticoide,

Pedro Kallas Curiati 994


reservado para pacientes com marcadores de mau prognóstico da doença, como idade
avançada na instalação, ausência de hematúria macroscópica, perda de função renal,
hipertensão arterial sistêmica, proteinúria persistente superior a 1g/dia e presença de
crescentes ou esclerose e proliferação severas na biópsia renal. O esquema preconizado
prevê Metilprednisolona intravenosa 1g/dia durante três dias nos meses 0, 2 e 4 seguida
por Prednisona 0.5mg/kg em dias alternados durante seis meses. O benefício do uso de
imunossupressores, como Ciclofosfamida, Azatioprina e Micofenolato Mofetil, é
incerto.
A púrpura de Henoch-Schönlein é considerada a forma sistêmica da nefropatia
por IgA, sendo caracterizada por vasculite de pequenos vasos com depósitos
predominantemente de IgA. Essa doença é diagnosticada mais comumente em
indivíduos com menos de vinte anos de idade. O quadro clínico é caracterizado pela
presença de púrpura, principalmente em membros inferiores, artralgia, com predomínio
em joelhos, punhos e tornozelo, artrite, com menor frequência, e sintomas
gastrointestinais, como cólica abdominal, diarreia, náusea e vômitos, algumas vezes
associados a sangramento digestivo baixo. O envolvimento renal ocorre mais
frequentemente em crianças mais velhas ou em quadros prolongados, com persistência
da dor abdominal e da púrpura. O prognóstico é pior em adultos. A apresentação mais
comum é de hematúria e proteinúria isoladas, mas uma parcela dos pacientes apresenta
quadro nefrítico agudo ou síndrome nefrítica-nefrótica. O complemento sérico é normal.
A histologia revela proliferação mesangial com ou sem crescentes e depósito de IgA
tanto em mesângio como em alças capilares, como na nefropatia por IgA. A evolução é
variável, com alguns pacientes desenvolvendo forma estável e outros desenvolvendo
síndrome nefrótica, hipertensão arterial sistêmica e insuficiência renal. Os episódios de
exantema, artralgia e sintomas gastrointestinais geralmente se resolvem
espontaneamente. Assim como a nefropatia por IgA, não há tratamento com eficácia
comprovada. Em caso de sintomatologia abdominal severa, podem ser utilizados cursos
curtos de corticosteroides em altas doses. Em caso de envolvimento glomerular severo,
pode ser realizado tratamento semelhante ao preconizado para a nefropatia por IgA.

Síndrome nefrítica
As doenças que produzem inflamação aguda em mais de metade dos glomérulos,
com glomerulonefrite difusa aguda, são aquelas que se exteriorizam de forma mais
exuberante como síndrome nefrítica, caracterizada por edema por overfill, hipertensão
arterial sistêmica, hematúria e graus variáveis de insuficiência renal, além de proteinúria
pouco intensa, inferior a 3g/dia. As formas proliferativas focais, com menos de metade
dos glomérulos acometidos, não apresentam síndrome nefrítica plena, mas apenas
alguns de seus sintomas e sinais, frequentemente apenas com hematúria. Neste grande
grupo de doenças, o mecanismo imunológico é o mais comumente envolvido.
As principais causas são glomerulonefrite proliferativa aguda difusa, como em
glomerulonefrite pós-estreptocócica, glomerulonefrite proliferativa difusa ou focal,
como nefropatia por IgA, síndrome de Henoch-Schönlein e nefrite lúpica, endocardite
bacteriana por Staphylococcus aureus ou Streptococcus viridans, glomerulonefrite
membrano-proliferativa tipos I e II e glomerulonefrite fibrilar.
Doença Associação clínica Teste laboratorial
Glomerulonefrite pós- Faringite, impetigo Anti-estreptolisina O (ASLO) elevada
estreptocócica
Endocardite bacteriana Sopro, febre Hemocultura positiva C3 sérico diminuído
Derivações ventriculares Hidrocefalia Hemocultura positiva e C3 sérico diminuído
infectadas tratada
Abscesso visceral História clínica Hemocultura positiva e C3 e C4 séricos normais

Pedro Kallas Curiati 995


Glomerulopatia por IgA Infecções IgA sérica aumentada
respiratórias
Lúpus eritematoso sistêmico Artrite e eritema Fator anti-núcleo e anti-dsDNA positivos e C3 e
malar C4 séricos diminuídos
A glomerulonefrite difusa aguda pós-estreptocócica é a glomerulonefrite mais
comum. Acomete potencialmente crianças, com pico de incidência entre seis e dez anos
de idade e discreto predomínio no sexo masculino. Adultos também podem ser
acometidos, porém é rara a ocorrência de doença após os quarenta anos de idade. Ocorre
aproximadamente dez dias após um quadro de faringite ou duas semanas após uma
piodermite por determinadas cepas do estreptococo beta-hemolítico do grupo A de
Lancefield, embora tenham sido relatados casos de glomerulonefrite após infecção
provocada por estreptococo pertencente aos grupos C e G. Dos indivíduos infectados,
cerca de 15% apresentam a doença, embora muitos casos sejam subclínicos e de
resolução espontânea. A recidiva é extremamente rara e o uso frequente de antibióticos
tem diminuído consideravelmente a incidência dessa doença. O quadro clínico clássico
é caracterizado por hematúria macroscópica, edema, hipertensão arterial sistêmica e
sinais de hipervolemia, mas o espectro de apresentação inclui desde quadros clínicos
mais frustros até insuficiência renal grave. A análise do sedimento urinário revela
leucocitúria estéril, hemácias dismórficas, cilindros e proteinúria inferior a 3g/dia. A
creatinina sérica geralmente está um pouco aumentada. A maioria dos pacientes
apresenta elevação de marcadores imunológicos de infecção estreptocócica, como o
ASLO, embora sua ausência não exclua o diagnóstico. A fase aguda cursa com
hipocomplementenemia, habitualmente às custas do componente C3, com normalização
após dois meses. Caso a hipocomplementenemia seja persistente, deve-se considerar
outras possibilidades diagnósticas, como glomerulonefrite membrano-proliferativa ou
nefrite lúpica. Culturas de orofaringe ou pele não são necessárias. Diante de um quadro
clínico típico em crianças, a biópsia renal não é necessária. No entanto, em casos com
história familiar de nefropatia, elevação progressiva de creatinina sérica, proteinúria
nefrótica ou hematúria macroscópica prolongada e persistência de hipertensão arterial
sistêmica, a biópsia está indicada tanto para confirmação diagnóstica como para
avaliação do eventual surgimento de crescentes. Além dos achados de microscopia
óptica com proliferação endocapilar e exocapilar, a biópsia renal permite evidenciar,
através de imunofluorescência, padrão granular difuso com depósito de IgG e C3 no
mesângio e em alças capilares. A resolução espontânea é habitual e geralmente rápida,
com retorno da diurese em uma a duas semanas e da creatinina sérica em quatro
semanas, além da normalização da pressão arterial. Já a hematúria pode demorar três a
seis meses para desaparecer, enquanto a proteinúria regride para menos de 1g/dia em
dois a três meses. Crianças apresentam taxa de cura de 90%, enquanto que adultos
apresentam taxa de cura de 60-70%. O tratamento é sintomático e dirigido para o
controle da hipertensão arterial sistêmica e da retenção de fluidos. Prevê o uso de
agentes anti-hipertensivos e diuréticos.
A glomerulonefrite pós-infecciosa não-estreptocócica é resultante de eventos
imunológicos desencadeados por bacteremia, como em endocardite bacteriana,
derivações ventriculares infectadas e abscessos viscerais. O quadro clínico consiste
geralmente em hematúria, ocasionalmente macroscópica, proteinúria, raramente
nefrótica, e perda de função renal, podendo ocorrer glomerulonefrite rapidamente
progressiva. A hipertensão arterial sistêmica geralmente está ausente. Febre, artralgia,
anemia, emagrecimento, hepatoesplenomegalia e púrpura podem estar presentes.
Geralmente, há consumo dos componentes do complemento C1q, C3 e C4, exceto nos
casos relacionados a abscessos viscerais. Também podem ser detectados no sangue

Pedro Kallas Curiati 996


vários autoanticorpos, como anticorpo anti-citoplasma de neutrófilos (ANCA), fator
anti-núcleo (FAN), fator reumatoide e crioglobulinas, com risco de diagnóstico falso de
vasculite ou lúpus eritematoso sistêmico. É obrigatória a realização de hemoculturas e
ecocardiograma. Os achados histológicos podem ser de glomerulonefrite proliferativa
focal ou difusa, mais observada na endocardite subaguda, ou mesmo de
glomerulonefrite membrano-proliferativa. Crescentes podem ocorrer. A
imunofluorescência revela depósitos granulares de IgG, IgM e C3 no mesângio e em
alças capilares. Síndrome nefrótica incide em um quarto dos pacientes. Com
antibioticoterapia adequada, geralmente as lesões glomerulares são curadas e a função
renal é recuperada.

Glomerulonefrite rapidamente progressiva


As manifestações clínicas são de síndrome nefrítica, geralmente com pouca
hipertensão arterial sistêmica ou pressão arterial normal e perda de função renal em dias
a semanas. A lesão histológica característica é a crescente glomerular, que é descrita
como proliferação das células epiteliais da cápsula de Bowman e de fagócitos
mononucleares. Quando há mais de metade dos glomérulos acometidos por crescentes,
o diagnóstico é de glomerulonefrite crescêntica, que se expressa clinicamente por rápida
e intensa perda de função renal. Doenças com mais de 80% de crescentes se manifestam
geralmente por insuficiência renal dialítica e seu aspecto histopatológico é de vasculite,
enquanto doenças de imunocomplexos, como nefropatia por IgA e nefrite lúpica, que se
expressam com menos crescentes, se manifestam por quadro clínico mais brando.
Três subgrupos de doenças se apresentam como glomerulonefrite rapidamente
progressiva com maior frequência:
- Glomerulonefrite anti-membrana basal glomerular;
- Glomerulonefrite por imunocomplexos;
- Vasculites ANCA-relacionadas;
A forma relacionada ao anticorpo anti-membrana basal glomerular pode se
apresentar como Goodpasture ou sem comprometimento pulmonar.
As doenças de imunocomplexos mais comumente encontradas são nefrite lúpica,
crioglobulinemia e nefropatia por IgA.
As vasculites ANCA-relacionadas podem se apresentar com manifestações
sistêmicas de Wegener, poliangeíte microscópica e Churg-Strauss ou com
manifestações exclusivamente renais de vasculite pauci-imune.
Doença Associação clínica Teste laboratorial
Goodpasture Hemorragia alveolar Anticorpo anti-membrana basal positivo
Granulomatose de Wegener Sinusite, perfuração de ANCA citoplasmático (C-ANCA)
septo positivo
Poliangeíte microscópica Envolvimento multi- ANCA perinuclear (P-ANCA) positivo
sistêmico
Vasculite pauci-imune Somente envolvimento ANCA perinuclear (P-ANCA) positivo
renal
Lúpus eritematoso sistêmico Envolvimento FAN e anti-dsDNA positivos e C3 e C4
sistêmico séricos diminuídos
Glomerulonefrite pós- Faringite, impetigo C3 sérico diminuído, C4 sérico normal e
estreptocócica ASLO elevado
Nefropatia por IgA, púrpura de Dor abdominal, IgA sérica aumentada e C3 e C4 séricos
Henoch-Schönlein púrpura normais
Endocardite bacteriana Sopro, bacteremia Hemocultura positiva, C3 sérico
diminuído, C4 sérico normal
A doença anti-membrana basal glomerular é uma doença autoimune rara em que
os autoanticorpos são dirigidos contra colágeno tipo IV, presente na membrana basal

Pedro Kallas Curiati 997


glomerular e, eventualmente, em outros órgãos, como o pulmão. Ocorre tipicamente em
adultos jovens do sexo masculino, com pico também em mulheres na faixa etária
geriátrica. Fatores predisponentes incluem fatores genéticos, uso de cigarro e exposição
a solventes hidrocarbonatos voláteis O quadro clínico geralmente é de uma
glomerulonefrite rapidamente progressiva, com perda da função renal em semanas,
hematúria e proteinúria não-nefrótica. Hipertensão arterial sistêmica é incomum. 50-
70% dos pacientes apresentam hemorragia pulmonar, caracterizando o quadro clínico de
síndrome de Goodpasture, sendo raras as formas somente renais. O diagnóstico
sorológico é dado pelo encontro de anticorpos anti-membrana basal circulantes, que são
detectados em mais de 90% dos pacientes. Os níveis de complemento são normais e
pode haver P-ANCA positivo em até 20% dos casos, com significado desconhecido. Os
achados da biópsia renal são muito característicos, com glomerulonefrite proliferativa
necrotizante e formação de crescentes em mais de metade dos glomérulos. A
imunofluorescência revela um depósito contínuo de IgG e C3 ao longo da membrana
basal glomerular e em túbulos. O tratamento deve ser instituído precocemente e precisa
ser agressivo, com imunossupressão, que pode envolver o uso de corticoide,
Ciclofosfamida e Azatioprina, e plasmaférese se necessário. Preconiza-se
Metilprednisolona intravenosa 15-30mg/kg/dia, com máximo de 1g/dia, durante três
dias seguida por Prednisona oral 1mg/kg/dia, com máximo de 80mg/dia, com desmame
lento após remissão clínica, em associação com Ciclofosfamida, apresentada na forma
de comprimidos de 50mg, com dose de 2mg/kg/dia, com desmame lento após remissão
clínica, além de plasmaférese diária, que deve ser mantida até os títulos de anticorpo
anti-membrana basal glomerular se tornarem indetectáveis. A duração do tratamento
geralmente varia de três a seis meses. A sobrevida renal melhorou com o tratamento e
atinge até 90% em um ano se a terapêutica for instituída antes de a creatinina atingir
5mg/dL. Pacientes que requerem diálise no início da doença raramente recuperam a
função renal. O transplante renal está indicado desde que realizado em uma ocasião em
que a dosagem de anticorpo anti-membrana basal glomerular seja consistentemente
negativa por dois a três meses.
As doenças renais que mais comumente se expressam como glomerulonefrite
pauci-imune são a granulomatose de Wegener e a poliangeíte microscópica. A forma
idiopática limitada ao rim, denominada glomerulonefrite pauci-imune crescêntica
idiopática, é menos frequente e ocorre mais em homens idosos. A lesão histológica
geralmente está na forma proliferativa segmentar e focal necrotizante com crescentes e
infiltrado intersticial leucocitário no espaço túbulo-intersticial, exteriorizando-se sobre a
forma clínica de glomerulonefrite rapidamente progressiva de diferentes gravidades em
função do percentual de crescentes. Anticorpo circulante (ANCA) é achado em
aproximadamente 80% dos casos. A pesquisa de imunocomplexos circulantes, assim
como de crioglobulinas e anticorpo anti-membrana basal de glomérulo, é sempre
negativa. Os níveis séricos de complemento são sempre normais. O tratamento
agressivo com corticoides e outros imunossupressores é eficaz, com resposta terapêutica
variável. O tratamento de indução prevê Metilprednisolona intravenosa 10-15mg/kg/dia,
com máximo de 500-1000mg/dia, durante três dias, seguida de Prednisona oral
1mg/kg/dia e Ciclofosfamida, apresentada na forma de frasco-ampola de 200mg/20mL
e 1000mg/75mL, 15mg/kg por via intravenosa a cada duas a três semanas ou 1.5-
2mg/kg/dia por via oral, com ou sem plasmaférese. Em vasculite renal severa,
plasmaférese melhora a sobrevida renal. Metotrexato, apresentado na forma de
comprimidos de 2.5mg, com dose de 20-25mg/semana durante doze meses, é tão efetivo
quanto a Ciclofosfamida, mas com maior risco de recidiva, devendo ter seu uso limitado
a doença que não ameace a vida ou o rim, constituindo alternativa com menor

Pedro Kallas Curiati 998


toxicidade. Esquemas de manutenção com Azatioprina, apresentada na forma de
comprimidos de 50mg, com dose de 1.5mg/kg/dia, ou Metotrexato 20-25mg/semana
devem ser administrados durante doze a dezoito meses após ser atingida a remissão.
Corticosteroides devem ser desmamados de maneira lenta.

Proteinúria assintomática
Caracterizada por proteinúria isolada superior a 150mg/dia e inferior a 3g/dia na
ausência de outras alterações urinárias, como hematúria, e sem sintomas ou sinais
sistêmicos, como edema e hipertensão arterial sistêmica. É, portanto, diagnóstico feito
através do exame de urina. As doenças mais frequentes nesse grupo são a
glomeruloesclerose segmentar e focal e a glomerulonefrite membranosa, que têm
evolução benigna a menos que mudem suas características clínicas, com
desenvolvimento de hipertensão arterial sistêmica e proteinúria maciça.
A microalbuminúria, definida como a excreção de 30-299mg de albumina por
dia, é um importante marcador de doença glomerular. Esse parâmetro também é
utilizado para identificar o risco de desenvolvimento de nefropatia em pacientes
diabéticos, assim como o risco cardiovascular em pacientes hipertensos. O achado de
outras proteínas urinárias, que não a albumina, tem significado próprio.
A proteinúria tubular, constatada pelo achado urinário de beta-2 microglobulina,
retinol binding protein (RBP) ou outras proteínas de baixo peso molecular, é
característico de doenças com comprometimento túbulo-intersticial, quer
primariamente, como na nefrite túbulo-intersticial, quer secundário a glomerulopatias,
como a glomeruloesclerose segmentar e focal.
A proteinúria encontrada em estados de hiperprodução de proteínas,
particularmente cadeias leves de globulinas, que se infiltram pelo glomérulo, são
características de paraproteinemias e devem ser pesquisadas adequadamente.
O achado de pequenas quantidades de albumina urinária também pode ocorrer
em certas situações funcionais, não-patológicas, como febre e estados de ativação
adrenérgica, com a denominação de proteinúria funcional, ou posição ortostática e
deambulação, com a denominação de proteinúria ortostática.
A probabilidade de ser encontrado rim normal ou com pequenas alterações em
biópsia é grande, sem influência no tratamento, de modo que a avaliação histológica não
é indicada. Terapia imunossupressora não estará indicada na maioria dos casos

Síndrome nefrótica
Síndrome clínico-laboratorial decorrente do aumento de permeabilidade às
proteínas plasmáticas e caracterizada por proteinúria superior a 3.5g/1.73m2/dia, com
consequente hipoalbuminemia e edema. Retenção renal primária de sódio, com overfill,
estaria na gênese do edema, porém, nas fases avançadas, em que a hipoalbuminemia é
intensa, o papel de hipovolemia predomina, com underfill. O achado de hiperlipidemia,
com elevação de LDL-colesterol e triglicérides, não é obrigatório, porém é muito
comum, assim como a hipercoagulabilidade, relacionada à perda de fatores de
coagulação, a desnutrição proteica e a suscetibilidade a infecções. Várias anormalidades
na coagulação podem ser responsáveis pela hipercoagulabilidade no estado nefrótico,
sendo as mais importantes níveis plasmáticos elevados de fatores V, VII e VIII,
hiperfibrinogenemia, deficiência de antitrombina III e proteína S, distúrbios da
fibrinólise, hiperatividade plaquetária e trombocitose. As tromboses podem ser venosas,
com maior frequência, ou arteriais, ocorrendo trombose de veia renal em até metade dos
indivíduos com glomerulonefrite membranosa.
Dentre as glomerulopatias primárias que mais frequentemente causam síndrome

Pedro Kallas Curiati 999


nefrótica estão a glomerulopatia de lesões mínimas, a glomeruloesclerose segmentar e
focal e a glomerulonefrite membranosa, também podendo ser incluídas entre as causas a
glomerulonefrite proliferativa mesangial e a glomerulonefrite membrano-proliferativa
tipos I e II. Entre as secundárias, destaca-se a glomeruloesclerose diabética, também
podendo ser incluídas entre as causas a glomerulonefrite fibrilar, a amiloidose e a
doença de depósito de cadeia leve.
Exames laboratoriais iniciais incluem glicemia de jejum, hemoglobina glicada,
fator anti-núcleo e complemento sérico. Em casos selecionados, podem ser avaliados
também crioglobulinas, sorologia para os vírus das hepatites B e C, sorologia para o
vírus da imunodeficiência humana, VDRL, anticorpo anti-citoplasma de neutrófilo,
anticorpo anti-membrana basal glomerular e eletroforese de proteínas. A biópsia renal,
em adultos, define diagnóstico, terapêutica e prognóstico. Já em crianças, ela é de
indicação excepcional frente à grande incidência da doença de lesão mínima, que tem
boa resposta terapêutica ao corticoide.
O tratamento depende da causa específica. Dislipidemia deve ser abordada.
Anticoagulação rotineira não é recomendada, mas é necessária em caso de complicações
trombóticas. Edema pode ser manejado com diuréticos, sendo a combinação de
Furosemida com Albumina mais efetiva que o uso isolado de Furosemida em indivíduos
com edema refratário.
Várias doenças glomerulares, geralmente nefróticas, apresentam-se com
alteração estrutural expressa pela simplificação ou pela retração dos processos
podocitários, que compõem, junto com a membrana basal glomerular e as células
endoteliais, os elementos básicos da filtração glomerular. A doença de lesão mínima e a
glomeruloesclerose segmentar e focal são agrupadas nas podocitopatias. Em crianças, a
doença de lesão mínima predomina, enquanto que no adulto o predomínio é de
glomeruloesclerose segmentar e focal. Agressões ao podócito podem ser de origem
genética, viral, como vírus da imunodeficiência humana, parvovírus B19 e
citomegalovírus, relacionada a drogas, como Pamidronato e Ciclosporina, relacionada a
linfocinas, como Interferon-alfa e Interferon-beta, mecânica, como hiperfiltração
adaptativa, e desconhecida ou idiopática. Os fenótipos variam em função da
agressividade, do tempo e do tipo de doença. O quadro clínico inicial das podocitopatias
decorre de alterações de permeabilidade glomerular à albumina, com aparecimento de
proteinúria em vários níveis, inclusive no nefrótico. Assim, pode ocorrer pouco ou
muito edema, dislipidemia e função renal variável. Hipertensão arterial sistêmica pode
estar presente, porém hematúria é incomum.
A doença de lesão mínima é responsável por 80% das síndromes nefróticas em
crianças com idade inferior a 16 anos, com pico de incidência entre dois e seis anos de
idade, e por 20% das síndromes nefróticas em adultos. Sua apresentação típica é
síndrome nefrótica pura, sendo que em adultos a hipertensão arterial sistêmica e a
hematúria microscópica podem estar presentes em 30% dos casos. O achado de
hipovolemia com insuficiência renal leve ou moderada é muito relacionado à
hipoalbuminemia. A etiologia é desconhecida, sendo rotulada como idiopática, porém é
comum a instalação após infecções do trato respiratório, manifestações atópicas ou
imunizações. Alguns medicamentos, como anti-inflamatórios não-hormonais e Lítio, e
doenças linfoproliferativas, como linfoma de Hodgkin, estão associados à doença. A
histologia renal à microscopia de luz é normal, não havendo depósitos à
imunofluorescência. À microscopia eletrônica, a membrana basal glomerular é normal,
notando-se uma fusão dos processos podocitários das células epiteliais viscerais ao
longo das alças capilares. A doença de lesão mínima é altamente responsiva a
corticoide, com 85-95% de remissão em crianças e 75-85% em adultos, dentro de oito

Pedro Kallas Curiati 1000


semanas. Preconiza-se Prednisona 1mg/kg/dia, com no máximo 80mg/dia, ou 2mg/kg
em dias alternados, com no máximo 120mg/dose, com início do desmame após cerca de
dois meses e tempo total de terapia ao redor de cinco a seis meses. O tempo para
resposta clínica é mais lento em adultos, que podem ser considerados córtico-resistentes
apenas quando sem remissão após dezesseis semanas de tratamento. Tanto adultos
como crianças apresentam recidivas frequentes, de 30-50% no primeiro ano, e podem se
tornar córtico-dependentes. Geralmente a primeira recidiva pode ser tratada de maneira
similar ao episódio inicial, mas em caso de novas recidivas ou de dependência de
corticosteroides, com recorrência da proteinúria na redução da dose de Prednisona,
podem ser indicados agentes alquilantes, como Ciclofosfamida 2mg/kg/dia e
Clorambucil, com uso durante dois a três meses, ou, alternativamente, Ciclosporina,
apresentada na forma de cápsulas de 10mg, 25mg, 50mg e 100mg e solução oral com
100mg/mL, com dose de 3-5mg/kg/dia fracionada em duas tomadas diárias, com uso
durante quatro meses. Outras opções incluem Tacrolimo, apresentado na forma de
cápsulas de 0.5mg, 1mg e 5mg, com dose de 0.05-0.1mg/kg/dia fracionada em duas
tomadas diárias, e Micofenolato Mofetil, apresentado na forma de comprimidos de
250mg e 500mg, com dose de 1500-2000mg fracionada em duas tomadas diárias. O
risco de nefrotoxicidade é maior com Ciclosporina e Tacrolimo, com necessidade de
monitorização dos níveis séricos.
Relatos na literatura em pacientes com idade entre vinte e quarenta anos
apontam para até 40% de frequência de glomeruloesclerose segmentar e focal como
causa de síndrome nefrótica idiopática. Além da forma idiopática, algumas causas de
glomeruloesclerose segmentar e focal são relatadas, destacando-se infecção pelo vírus
da imunodeficiência adquirida, uso de heroína, diabetes mellitus e hipertensão
glomerular por oligonefropatias congênitas, como em agenesia renal unilateral e
oligomeganefronia, perda de néfrons adquirida, como em ressecção cirúrgica, nefropatia
por refluxo e glomerulonefrite, e outras respostas adaptativas, como em anemia
falciforme, obesidade e apneia do sono. A apresentação típica é síndrome nefrótica em
70% dos casos, com hipertensão arterial sistêmica em 30-50% e hematúria em 50%.
Apenas 20-30% dos casos apresentam redução do ritmo de filtração glomerular. Os
níveis de complemento e outros testes sorológicos são normais. À microscopia óptica,
inicialmente apenas alguns glomérulos mostram alguns segmentos de alças capilares
com sinéquias ou hialinizados. No entanto, a evolução da lesão é no sentido da
esclerose global. Os achados da imunofluorescência são inespecíficos, com presença de
IgM e C3. A evolução clínica da doença não-tratada é de proteinúria persistente e perda
de função, o que ocorre cinco a vinte anos após a apresentação. A remissão espontânea
é rara. O tratamento é ainda controverso, porém os melhores resultados são com
corticoterapia prolongada em dose plena por dezesseis semanas e redução progressiva
da dose a seguir. Preconiza-se Prednisona 1mg/kg/dia, com no máximo 80mg/dia, ou
2mg/kg em dias alternados, com no máximo 120mg/dose, durante pelo menos três a
quatro meses e desmame gradual ao longo de três a seis meses se remissão for atingida.
Em caso de recidiva, recomenda-se o uso de Ciclofosfamida 2.0-2.5mg/kg/dia,
Clorambucil ou Ciclosporina 4mg/kg/dia fracionada em duas tomadas diárias durante
um a dois anos, com desmame lento após esse período. Em caso de uso de Ciclosporina,
é necessário monitorizar níveis séricos e função renal. Em caso de resistência ao uso de
glicocorticoides, após quatro meses de uso de Prednisona em altas doses, deve ser
realizado desmame para dose de 0.15mg/kg/dia, com no máximo 15mg/dia, e associada
Ciclosporina 3.5mg/kg/dia fracionada em duas tomadas diárias, com ajuste da dose para
níveis séricos de 125-225mcg/L, durante seis meses.
Glomerulopatia membranosa é o padrão histológico mais comum entre as causas

Pedro Kallas Curiati 1001


de síndrome nefrótica em algumas regiões, enquanto no Brasil é a segunda causa,
ficando atrás da glomeruloesclerose segmentar e focal. O pico de incidência ocorre
entre trinta e cinquenta anos de idade. Além da forma primária, pode também ser
encontrada associada a infecções, como sífilis e hepatites B e C, medicamentos, como
sais de ouro e anti-inflamatórios não-hormonais, alguns tumores sólidos, linfomas e
lúpus eritematoso sistêmico. A maioria dos pacientes apresenta-se com síndrome
nefrótica e a proteinúria é não-seletiva. A hematúria ocorre em metade dos casos e a
leucocitúria é rara. Hipertensão arterial sistêmica é pouco frequente, porém é comum na
evolução para perda de função renal. Dor súbita em flanco associada a deterioração de
função renal pode sugerir trombose de veia renal, enquanto que sintomas respiratórios
de início súbito podem sugerir tromboembolismo pulmonar. Testes sorológicos são
negativos e os níveis séricos de complemento são normais. À microscopia óptica, há
espessamento difuso da membrana basal glomerular, com formação de espículas.
Imunofluorescência revela depósitos subepiteliais de IgG e C3. A evolução clínica
descrita em até 40% dos casos é de remissão, com progressão para insuficiência renal
crônica em 30% em aproximadamente dez a quinze anos. O tratamento apenas com
corticoide é ineficaz. Preconiza-se corticoterapia com Metilprednisolona intravenosa
1g/dia durante três dias seguida por Prednisona oral 0.5mg/kg/dia durante 27 dias nos
meses 1, 3 e 5 em associação com terapia citotóxica nos meses 2, 4 e 6, que pode ser
conduzida com Clorambucil, apresentado na forma de comprimidos de 2mg, com dose
de 0.2mg/kg/dia, ou Ciclofosfamida 2.5mg/kg/dia. Alternativa prevê o uso de
Ciclosporina 3.5mg/kg/dia, com ajuste da dose para nível sérico de 125-225mcg/L,
associada a Prednisona 0.15mg/kg/dia, com máximo de 15mg/dia, durante seis meses.
Marcadores de mau prognóstico incluem sexo masculino, idade avançada na instalação,
hipertensão arterial sistêmica, proteinúria severa e insuficiência renal. Indicam maior
risco de progressão da disfunção renal, com maior benefício potencial relacionado ao
tratamento.
Glomerulonefrite membrano-proliferativa corresponde a um padrão de lesão
glomerular caracterizado por proliferação mesangial e endocapilar, além de
espessamento com duplicação da membrana basal do capilar glomerular, podendo ser
primária (idiopática), subdividida nos tipos I, II e III, ou secundária. Normalmente se
apresenta como síndrome nefrótica, mas em parcela dos pacientes, a apresentação
inicial é de nefrite aguda. Até metade dos casos cursam com níveis reduzidos de C3 e
CH50. Incide em qualquer idade, porém a forma idiopática é mais frequentemente
encontrada em jovens, enquanto a forma secundária é mais comum em adultos,
associada a doenças infecciosas, como infecção pelos vírus das hepatites B e C, da
imunodeficiência humana e Epstein-Barr, esquistossomose, endocardite bacteriana,
abscessos viscerais, derivações ventriculares infectadas, malária e infecção por
micoplasma, doenças autoimunes, como lúpus eritematoso sistêmico, crioglobulinemia,
artrite reumatoide e síndrome de Sjögren, paraproteinemias, como em nefropatia de
cadeia leve, mieloma múltiplo e macroglobulinemia de Waldenström, doenças
linfoproliferativas, como linfomas e leucemias, glomerulopatia fibrilar, glomerulopatia
imunotactoide e microangiopatia trombótica, como em síndrome hemolítico-urêmica,
síndrome do anticorpo antifosfolípide, anemia falciforme e nefrite por radiação. A
biópsia renal não é capaz de definir a etiologia da glomerulonefrite membrano-
proliferativa, de modo que a investigação de quadros sistêmicos é obrigatória, incluindo
anti-DNA, crioglobulina sérica, sorologias para hepatites B e C, enzimas hepáticas e
eletroforese de proteínas sérica e urinária. A imunofluorescência geralmente apresenta
depósito difuso ou granular de imunoglobulinas, além de presença de C3 em mesângio e
em paredes capilares. Crescentes podem ocorrer. A evolução das formas idiopáticas é

Pedro Kallas Curiati 1002


variável, com perda renal em 50-70% dos pacientes em dez anos. Nenhum tratamento
mostrou-se eficaz em adultos, mas o uso de corticosteroides apresenta resultados em
crianças, com dose de 40mg/m2 em dias alternados.

Diagnóstico diferencial
Nefrótica Nefrítica
Lesão mínima ++++ -
Glomerulonefrite membranosa ++++ +
Glomeruloesclerose segmentar e focal +++ ++
Glomerulonefrite mesangial ++ ++
Glomerulonefrite membrano-proliferativa ++ +++
Glomerulonefrite difusa aguda + ++++
Glomerulonefrite crescêntica + ++++

Bibliografia
Clínica Médica, volume 3: doenças hematológicas, oncologia, doenças renais e genitourinárias. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Goldman’s Cecil medicine / [edited by] Lee Goldman, Andrew I. Schafer.—24th ed. 2012.

Pedro Kallas Curiati 1003


MANIFESTAÇÕES RENAIS DAS
DOENÇAS SISTÊMICAS
Lúpus eritematoso sistêmico

Fisiopatologia
O envolvimento glomerular no lúpus eritematoso sistêmico é mediado por
imunocomplexos, cuja deposição ou formação in situ ativa a cascata do sistema
complemento. As alterações mais importantes, com implicações prognósticas, abrangem
quatro padrões, segundo o compartimento glomerular envolvido, denominados
mesangial, proliferativo focal, proliferativo difuso e membranoso.

Classificação – International Society of Nephrology/ Renal Pathology Society


A classe I, também denominada alterações mesangiais mínimas, é caracterizada
por glomérulos normais na microscopia óptica, porém com depósitos imunológicos na
região mesangial na imunofluorescência e na microscopia eletrônica. Do ponto de vista
clínico, os pacientes são assintomáticos, o sedimento urinário pode apresentar hematúria
leve e, às vezes, ocorre proteinúria inferior a 1g/dia.
A classe II, também denominada alterações proliferativas mesangiais, é
caracterizada por hipercelularidade mesangial de qualquer grau ou expansão da matriz
mesangial na microscopia óptica, com depósitos imunológicos no mesângio. Podem
existir poucos e isolados depósitos subepiteliais e subendoteliais visíveis pela
imunofluorescência ou pela microscopia eletrônica, porém com microscopia óptica
normal. Relativamente comum em pacientes ambulatoriais, apresentando-se
clinicamente com mínimas evidências de envolvimento renal, tais como proteinúria e
hematúria discretas, com filtração glomerular preservada. As alterações histológicas
geralmente permanecem estáveis na maioria dos pacientes, mas em aproximadamente
um quinto dos casos pode haver transformação para glomerulonefrite difusa.
A classe III, também denominada glomerulonefrite lúpica focal, é caracterizada
por proliferação inflamatória focal, que acomete menos de metade de todos os
glomérulos, com ou sem alterações mesangiais. Os glomérulos acometidos geralmente
têm lesões proliferativas endocapilares ou cicatrizes glomerulares inativas, com ou sem
necrose capilar, além de depósitos subendoteliais, geralmente com distribuição
segmentar. Crescentes epiteliais podem acompanhar as lesões mais ativas. O sedimento
urinário é mais ativo, com proteinúria nefrótica em um quarto dos casos. Hipertensão
arterial sistêmica pode estar presente. A imunofluorescência revela depósitos de
imunoglobulinas e frações do complemento distribuídos difusamente no mesângio e de
forma segmentar nas alças capilares. A glomerulonefrite lúpica focal pode ser
subdividida em classe III(A), com lesões ativas, também denominada glomerulonefrite
proliferativa focal, classe III(A/C), com lesões ativas e crônicas, também denominada
glomerulonefrite proliferativa focal e esclerosante, e III(C), com lesões crônicas e
inativas com esclerose glomerular, também denominada glomerulonefrite esclerosante
focal.
A classe IV, também denominada glomerulonefrite lúpica difusa, é definida pela
presença de processo inflamatório difuso que envolve mais de metade dos glomérulos,
com depósitos difusos subendoteliais, com ou sem alterações mesangiais. O sedimento
urinário é ativo, o envolvimento renal é severo e ocorrem hipertensão arterial,

Pedro Kallas Curiati 1004


proteinúria geralmente nefrótica e redução da filtração glomerular. As lesões
histológicas podem ser segmentares, com glomerulonefrite difusa segmentar quando
mais de metade dos glomérulos têm lesões segmentares, e globais, com
glomerulonefrite difusa global quando mais de metade dos glomérulos têm lesões
globais. A glomerulonefrite lúpica difusa pode ser subdividida em classe IV-S(A),
também denominada glomerulonefrite proliferativa difusa segmentar, com lesões ativas,
classe IV-G(A), também denominada glomerulonefrite difusa global, com lesões ativas,
classe IV-S(A/C), também denominada glomerulonefrite proliferativa e esclerosante
difusa segmentar, com lesões ativas e crônicas, classe IV-S(C), também denominada
glomerulonefrite esclerosante difusa segmentar, com lesões crônicas, e classe IV-G(C),
também denominada glomerulonefrite esclerosante difusa global, com lesões crônicas.
A classe V, também denominada glomerulonefrite lúpica membranosa, é
caracterizada por depósitos subepiteliais segmentares ou globais ou por suas sequelas
morfológicas em microscopia óptica, imunofluorescência e microscopia eletrônica, com
ou sem alterações mesangiais. Geralmente está associada a hipercelularidade mesangial,
com depósitos de imunoglobulinas e complemento nessa região. Nas fases iniciais do
envolvimento renal, a membrana basal pode parecer normal na microscopia óptica, mas
com a evolução da doença ela torna-se espessada e a formação de espículas pode ser
evidenciada quando usada coloração pela prata. Os pacientes com glomerulonefrite
membranosa habitualmente se apresentam com síndrome nefrótica e função renal
preservada. A hematúria microscópica é relativamente frequente. Pode ocorrer
transformação após vários anos de evolução estável, assim como associação com as
classes III e IV.
A classe VI, também denominada glomerulonefrite com esclerose avançada, é
caracterizada por mais de 90% dos glomérulos com lesões cicatriciais e esclerosantes
avançadas, sem atividade inflamatória residual e sem possibilidade de regressão
histológica, correspondendo ao quadro clínico de insuficiência renal crônica.

Outras formas de envolvimento renal


Além do envolvimento glomerular, outras lesões renais menos comuns podem
ocorrer em pacientes com lúpus eritematosos sistêmico, como a nefrite intersticial e as
vasculopatias.
Alterações inflamatórias que acometem o compartimento túbulo-intersticial
constituem um importante componente da injúria renal global, sendo frequente sua
associação com as lesões glomerulares mais ativas e graves. Em algumas situações, a
nefrite intersticial isolada pode ser a única manifestação de nefropatia lúpica, devendo
ser aventada sempre que pacientes com lúpus eritematoso sistêmico se apresentarem
com disfunção renal, exame de urina normal e, eventualmente, alterações da função
tubular, tais como acidose metabólica hiperclorêmica e hiperpotassemia
desproporcional à queda da filtração glomerular.
A microangiopatia trombótica é ocasionalmente descrita no lúpus eritematoso
sistêmico, levando a uma síndrome semelhante à púrpura trombocitopênica trombótica.
Em pacientes portadores de anticorpos antifosfolípide, trombos de fibrina podem ser
observados nas pequenas artérias e nos capilares glomerulares. Essas lesões
microvasculares podem ocorrer como doença primária ou se sobrepor às formas de
nefrite lúpica por imunocomplexos. A vasculopatia necrosante geralmente é
acompanhada de hipertensão arterial sistêmica grave e forte tendência à perda
progressiva de função renal.

Quadro clínico

Pedro Kallas Curiati 1005


O quadro clínico associado ao envolvimento renal no lúpus eritematoso
sistêmico depende basicamente da natureza e da severidade das lesões histológicas
subjacentes. Na maioria dos pacientes, as alterações urinárias ou funcionais são
concomitantes com outros sintomas sistêmicos ou se apresentam como manifestação
inicial da doença.
Os pacientes cujas biópsias revelam formas mais leves, com lesões histológicas
confinadas à região mesangial, sem sinais de proliferação endocapilar, como na classe
II, geralmente têm sedimento urinário pouco ativo e proteinúria, que pode estar presente
em um terço desses casos, inferior a 1g/dia, nunca atingindo níveis nefróticos. Os testes
sorológicos, entretanto, podem estar alterados, sendo comum a ocorrência de títulos
elevados de anti-dsDNA e baixo nível de complemento sérico, mesmo com função renal
normal.
Na glomerulonefrite focal, classe III, as alterações clínicas renais são mais
evidentes, com hematúria e cilindros hemáticos em metade dos pacientes e proteinúria
sempre presente, assumindo características nefróticas em aproximadamente 25% dos
casos. Hipertensão arterial sistêmica é muito frequente e a sorologia para lúpus
eritematoso sistêmico é positiva no momento da biópsia renal.
Os pacientes com glomerulonefrite difusa, classe IV, se apresentam com a forma
mais ativa e frequentemente grave de envolvimento renal. Aproximadamente três
quartos dos casos têm sedimento urinário alterado e mais da metade apresenta síndrome
nefrótica franca. Insuficiência renal moderada é bastante comum e pode evoluir com
perda rápida de função até níveis dialíticos em um quinto dos pacientes.
A nefropatia membranosa, classe V, se apresenta com quadro clínico de
síndrome nefrótica com função renal preservada. Sedimento urinário ativo e hipertensão
arterial sistêmica aparecem de modo inconstante. Uma das complicações do estado
nefrótico é a trombose da veia renal.
No seguimento a médio e longo prazo de pacientes com nefropatia lúpica, é
frequente a transformação de uma classe histológica para outra. As alterações
mesangiais podem evoluir para lesões mais graves, classes III e IV, habitualmente
traduzindo-se de forma clínica por alterações nos títulos de fator anti-núcleo e anti-
dsDNA, sedimento urinário ativo e aumento da proteinúria.
Aproximadamente um quarto dos pacientes com nefrite lúpica, apesar de
tratados de maneira adequada, poderão evoluir de modo progressivo para insuficiência
renal crônica. Na fase de tratamento dialítico, habitualmente as manifestações clínicas e
sorológicas remitem. A mortalidade dos pacientes em diálise é semelhante à
mortalidade dos demais pacientes com insuficiência renal crônica. Os transplantes
costumam ser bem sucedidos e a recorrência da nefrite no rim transplantado é rara.

Avaliação complementar
A nefrite lúpica caracteriza-se por evolução em longo prazo, com episódios de
recidiva e períodos de remissão. Um dos aspectos mais importantes no seguimento dos
pacientes é, portanto, a detecção precoce dos surtos de atividade renal para o uso
judicioso das drogas imunossupressoras.
Vários testes séricos estão alterados na atividade do lúpus eritematoso sistêmico,
com destaque para velocidade de hemossedimentação, proteína C reativa, frações do
complemento, autoanticorpos, imunocomplexos e várias citocinas. Em relação à
atividade nefrítica lúpica, entretanto, os testes com maior valor preditivo são os níveis
séricos do complemento total, da fração C3 do complemento e dos títulos de anti-
dsDNA. O exame cuidadoso do sedimento renal é extremamente útil, especialmente
quando suas características podem ser comparadas com exames anteriores. O aumento

Pedro Kallas Curiati 1006


da proteinúria e o reaparecimento da hematúria, de modo geral, indicam surto de
atividade inflamatória glomerular ou transformação para outra classe histológica.
Laboratorialmente, a nefrite lúpica pode ser definida por proteinúria persistente
superior a 0.5g/dia, 0.5g/g de creatinina urinária ou 3+ em fita reagente, cilindros
celulares, mais de cinco eritrócitos por campo de grande aumento, mais de cinco
leucócitos por campo de grande aumento na ausência de infecção ou biópsia renal com
glomerulonefrite mediada por imune-complexos e compatível com nefrite lúpica.
Todos os pacientes com evidência clínica de nefrite lúpica e sem tratamento
prévio devem ser submetidos a biópsia renal, exceto em caso de contraindicação, para
classificação da doença glomerular, avaliação de atividade e cronicidade, pesquisa de
alterações tubulares e vasculares e identificação de causas adicionais ou alternativas de
disfunção renal.

Tratamento
O tratamento e o prognóstico da nefropatia do lúpus eritematoso sistêmico estão
diretamente relacionados ao tipo de lesão histológica subjacente, ao grau de
comprometimento da filtração glomerular e, possivelmente, às notas atribuídas aos
índices de atividade e cronicidade avaliados pela biópsia renal Em qualquer uma das
classes histológicas da nefrite lúpica, recomenda-se a utilização de Hidroxicloroquina,
que está relacionada a menor risco de ativação da doença, lesão renal e eventos
trombóticos, exceto em caso de contraindicação. Em qualquer uma das classes
histológicas da nefrite lúpica com proteinúria superior ou igual a 0.5g em 24 horas,
recomenda-se a utilização de drogas inibidoras do sistema renina-angiotensina, tendo
em vista seu efeito anti-proteinúrico, renoprotetor e modulador da atividade inflamatória
tecidual, exceto em caso de contraindicação. O uso de estatinas é indicado no controle
das dislipidemias e, possivelmente, no retardo da progressão para a perda funcional,
com meta de LDL-colesterol inferior a 100mg/dL. Os níveis de pressão arterial
sistêmica devem ser mantidos menores ou iguais a 130x80mmHg.
Os pacientes que se apresentam com alterações renais mínimas ou leves, com
proteinúria inferior a 1g/dia e creatinina sérica normal, como ocorre habitualmente nas
classes I e II, não necessitam de tratamento específico para a nefropatia, mas apenas de
suporte terapêutico direcionado para as manifestações extra-renais. O uso de anti-
inflamatórios não-hormonais em doses altas deve ser evitado pelo risco de piora da
função renal, mesmo que a nefropatia tenha evolução estável. Em longo prazo, os
pacientes com alterações urinárias leves têm bom prognóstico, com sobrevida renal
superior a 85% em dez anos. Em 20-30% dos casos, o quadro clínico pode sofrer
transformação, com surgimento de proteinúria nefrótica e disfunção renal. Essa situação
se correlaciona com a mudança da lesão histológica, geralmente para a forma
proliferativa difusa, classe IV.
As glomerulonefrites proliferativas focal grave, classe III(A), e difusa, classes
IV-S e IV-G, devem ser consideradas em conjunto, uma vez que apresentam
manifestações clínicas e prognóstico semelhantes. Na fase de indução da nefrite lúpica
proliferativa difusa, utiliza-se Metilprednisolona sob a forma de pulsos intravenosos de
1g/dia durante três dias, seguida por Prednisona por via oral com 60-80mg/dia durante
um período de seis a oito semanas. O uso de drogas citostáticas possivelmente estará
indicado na maioria dos pacientes com classe IV, uma vez que tais agentes têm
demonstrado eficácia no controle das recidivas, na prevenção da insuficiência renal
crônica e na redução da dose total de corticosteroides. O esquema ideal não está bem
estabelecido, mas um dos mais utilizados é o do grupo National Institutes of Health, que
consiste na administração intravenosa de Ciclofosfamida, apresentada na forma de

Pedro Kallas Curiati 1007


frasco-ampola de 200mg/20mL e 1000mg/75mL, na dose de 0.75g/m2 de superfície
corpórea sob a forma de pulsos mensais durante os primeiros seis meses e trimestrais a
partir de então durante pelo menos dois anos. Micofenolato Mofetil com dose de 3g/dia
em duas tomadas diárias em não-asiáticos e 2g/dia em duas tomadas diárias em asiáticos
durante seis meses é considerado equivalente à Ciclofosfamida para a indução da
remissão, com manutenção em doses menores durante três anos, apresentando menor
risco de infertilidade em ambos os sexos. O uso da Ciclofosfamida como esquema de
indução da remissão da nefrite está bem estabelecido, porém seu papel na fase de
manutenção da remissão em longo prazo tem sido questionado, sendo atualmente
recomendado o uso para a indução com 500mg por via intravenosa a cada duas semanas
até totalizar seis doses ou 500-1000mg/m2 por via intravenosa uma vez por mês até
totalizar seis doses seguido por manutenção com Azatioprina ou Micofenolato Mofetil.
Tanto a Azatioprina como o Micofenolato Mofetil são eficazes no controle das
recidivas, na estabilização da função renal em longo prazo e na prevenção de efeitos
colaterais quando comparados ao uso prolongado da Ciclofosfamida. Outras
terapêuticas alternativas têm sido propostas, destacando-se o uso do anticorpo
monoclonal anti-CD20, Rituximab. O prognóstico dos pacientes portadores de lesões
proliferativas das classes III e IV tem melhorado muito nos últimos anos, com sobrevida
em dez anos superior a 80%.
Os pacientes com glomerulonefrite membranosa, classe V, geralmente se
apresentam com quadro de proteinúria assintomática ou síndrome nefrótica com função
renal estável. O prognóstico em longo prazo é bom, havendo forte tendência de
remissão total ou parcial da proteinúria em mais de metade dos pacientes no prazo de
três a cinco anos. A conduta terapêutica é essencialmente conservadora na maioria dos
casos. Pacientes com proteinúria não-nefrótica e ausência de sintomas não necessitam
de tratamento imunossupressor, exceto aqueles com manifestações extra-renais. O uso
de inibidores da enzima de conversão da angiotensina ou de bloqueadores do receptor
AT1 é indicado nessa situação. Na presença de síndrome nefrótica não-complicada,
pode ser utilizada Ciclosporina, apresentada na forma de cápsulas de 10mg, 25mg,
50mg e 100mg e solução oral com 100mg/mL, com dose de 3-5mg/kg/dia fracionada
em duas tomadas por dia durante um período de quatro a seis meses em associação com
doses baixas de Prednisona, como 5-10mg/dia, ou Micofenolato Mofetil, apresentado na
forma de cápsulas de 250mg e comprimidos de 500mg, com 2-3g/dia em duas tomadas
diárias em associação com Prednisona 0.5mg/kg/dia durante um período de seis meses.
A manutenção pode ser feita com Micofenolato Mofetil 1-2g/dia ou Azatioprina
2mg/kg/dia. Em pacientes com função renal prejudicada, a dose de Ciclosporina não
deve exceder 2.5mg/kg/dia. Caso ocorra síndrome nefrótica muito sintomática, com
anasarca refratária ou tromboembolismo, ou creatinina sérica em ascensão, recomenda-
se o mesmo esquema imunossupressor utilizado para tratar a forma proliferativa difusa.
Os pacientes com glomerulonefrite com esclerose avançada, classe VI,
geralmente requerem preparação para terapia de substituição renal ao invés de
imunossupressão.
Em pacientes com microangiopatia trombótica e trombos de fibrina nas
pequenas artérias e nos capilares glomerulares, pode ser necessário associar ao
tratamento imunossupressor anticoagulação, antiagregação plaquetária ou ambas.

Diretriz

Pedro Kallas Curiati 1008


Vasculites sistêmicas necrotizantes

Classificação – Conferência Internacional de Chappel Hill


Vasculites de grandes vasos incluem arterite temporal e arterite de Takayasu,
com envolvimento renal infrequente, caracterizado por hipertensão renovascular e
nefropatia isquêmica.
Vasculites de vasos de médio calibre incluem poliarterite nodosa clássica, com
envolvimento renal infrequente, caracterizado por hipertensão renovascular e nefropatia

Pedro Kallas Curiati 1009


isquêmica, e doença de Kawasaki, com envolvimento renal extremamente raro.
Vasculites de pequenos vasos incluem granulomatose de Wegener, que afeta
capilares, vênulas e arteríolas, sendo comum a ocorrência de glomerulonefrite
necrotizante e a positividade do anticorpo anti-citoplasma de neutrófilo (ANCA),
poliangeíte microscópica, que afeta capilares, vênulas e arteríolas, sendo comum a
ocorrência de glomerulonefrite necrotizante e a positividade do ANCA, síndrome de
Churg-Strauss, sendo infrequente o envolvimento renal, com positividade do ANCA,
púrpura de Henoch-Schönlein, sendo comum a ocorrência de glomerulonefrite
mesangial com depósitos de IgA, vasculite da crioglobulinemia, sendo comum a
ocorrência de glomerulonefrite membrano-proliferativa, e angeíte cutânea
leucocitoclástica, sendo muito raro o envolvimento renal.

Etiologia
A etiologia das vasculites sistêmicas, de um modo geral, não é conhecida,
sabendo-se, no entanto, que, em certas circunstâncias, podem ser identificados alguns
agentes causais representados por drogas, como Propiltiouracil, Alopurinol,
Penicilamina, Hidralazina e sulfas, agentes infecciosos, como vírus da hepatite B,
parvovírus B19 e bactérias, e genética, como em deficiência hereditária de alfa-1-
antitripsina associada ao ANCA.
O envolvimento renal nas vasculites sistêmicas ocorre em 50-90% dos casos e a
lesão descrita como glomerulonefrite crescêntica necrotizante pauci-imune corresponde
a aproximadamente metade de todas as glomerulonefrites rapidamente progressivas. Por
outro lado, entre as nefrites pauci-imunes, cerca de 80% dos pacientes têm vasculites
sistêmicas e até 85% têm sorologia positiva para ANCA. Na população geral, as
vasculites dos vasos de pequeno calibre afetam principalmente a faixa etária acima dos
cinquenta anos, mas também podem atingir pessoas mais jovens.

Patologia
A lesão histológica predominante no parênquima renal de pacientes com
vasculite é glomerulonefrite necrotizante focal e segmentar, sem depósitos de
imunoagregados (pauci-imune) ou evidências de proliferação celular intraglomerular.
Em 80% dos casos, ocorre a formação de crescentes epiteliais agudos ou em vários
estágios de evolução. Em geral, existe boa correlação entre a creatinina sérica inicial e o
porcentual de glomérulos comprometidos com crescentes. Além da lesão glomerular,
algum grau de infiltrado intersticial pode ser descrito na vasculite renal, geralmente
acompanhando a glomerulonefrite crescêntica grave. Granulomas necrotizantes
intersticiais, com células gigantes multinucleadas, podem ser observados na
granulomatose de Wegener e na síndrome de Churg-Strauss. O envolvimento vascular
extra-glomerular é pouco frequente.

Quadro clínico
O envolvimento renal nas vasculites sistêmicas necrotizantes é frequente e muito
bem caracterizado nas entidades associadas ao ANCA, como a poliangeíte
microscópica, a granulomatose de Wegener e a glomerulonefrite crescêntica pauci-
imune sem evidências de vasculite extra-renal. A síndrome de Churg-Strauss é bastante
rara e poucos pacientes apresentam manifestações renais relevantes.
As vasculites relacionadas ao ANCA acometem indistintamente ambos os sexos,
com maior prevalência por volta dos 55 anos de idade, com predileção para indivíduos
de raça branca. De maneira característica, os pacientes se apresentam com febre,
anorexia, emagrecimento e astenia, frequentemente precedidos por pródromos que

Pedro Kallas Curiati 1010


simulam um quadro viral, com artralgia e mialgia. Dentre as manifestações renais mais
frequentes, destacam-se a hematúria microscópica ou macroscópica, a proteinúria,
habitualmente não-nefrótica e assintomática, e o quadro grave de glomerulonefrite
rapidamente progressiva. A creatinina sérica pode estar elevada desde o início dos
sintomas. Hipertensão arterial sistêmica está presente em um quarto a metade dos
pacientes, podendo ser grave ou mesmo ter características de hipertensão maligna.
Outra forma menos frequente é a perda lenta e progressiva da função renal em um
período de meses ou anos, geralmente acompanhado de hematúria e proteinúria. A
biópsia renal pode ser extremamente útil e tem o objetivo de diferenciar os pacientes
que têm a forma aguda rapidamente progressiva daqueles portadores de lesões renais
cronificadas, que não irão se beneficiar do tratamento imunossupressor.
Aproximadamente metade dos pacientes com glomerulonefrite necrotizante têm
acometimento do trato respiratório, com padrão histopatológico de granulomatose de
Wegener ou poliangeíte microscópica. As manifestações do trato respiratório alto
incluem sinusite, otite média, ulcerações nasais e rinorréia. O quadro pulmonar se
traduz por hemoptise, infiltrados evanescentes e nódulos com transformação cavitária.
Outras manifestações extra-renais das vasculites necrotizantes estão relacionadas à pele,
com púrpura palpável, ao sistema nervoso central, com encefalopatia e/ou convulsões,
ao aparelho ocular, com episclerite e/ou uveíte, e ao sistema muscular, com artrite e/ou
miosite.

Avaliação complementar
Em relação aos exames complementares, o teste do ANCA é o mais importante
para o diagnóstico. Outros achados menos específicos incluem velocidade de
hemossedimentação e proteína C reativa aumentadas, anemia, leucocitose e,
ocasionalmente, trombocitose. A eosinofilia é observada em pacientes com síndrome de
Churg-Strauss e, menos frequentemente, em pacientes com granulomatose de Wegener
e poliangeíte microscópica. O padrão de ANCA mais encontrado nas vasculites renais é
o perinuclear, encontrado em casos de poliangeíte microscópica, glomerulonefrite
crescêntica necrotizante e, eventualmente, granulomatose de Wegener. O padrão de
ANCA citoplasmático é o mais frequente em pacientes com granulomatose de Wegener.
A documentação histológica é imprescindível para o diagnóstico definitivo de
vasculite necrotizante. A biópsia renal também permitirá avaliar o grau de
reversibilidade das lesões.

Tratamento
O tratamento permite sobrevida de até 70% em cinco anos.
Na fase de indução, a droga de escolha é a Metilprednisolona, administrada sob
a forma de pulsos intravenosos de 1g/dia durante três dias consecutivos, seguida por
Prednisona por via oral na dose de 0.5-1mg/kg/dia. A Ciclofosfamida, apresentada na
forma de comprimidos de 50mg, deve ser acrescentada ao esquema, preferencialmente
por via oral, na dose de 1-3mg/kg/dia, mas também podendo ser utilizada por via
intravenosa. Na vasculite extra-renal grave ou mesmo quando ocorrer perda rápida da
função renal até nível dialítico, tem sido proposto o uso de plasmaférese intensiva, com
sete a dez trocas diárias de quatro litros de plasma e substituição por Albumina a 5%.
Após a fase de indução terapêutica da doença aguda, que dura 12-24 semanas,
inicia-se a fase de manutenção, com duração de até 36 meses, podendo ser utilizada a
Ciclofosfamida oral com 1-2mg/kg/dia acompanhada de Prednisona 10-20mg/dia ou
mesmo a Ciclofosfamida intravenosa sob a forma de pulsos mensais na dose de 0.75-
1g/m2 de superfície corporal durante seis a dose meses. Azatioprina, apresentada na

Pedro Kallas Curiati 1011


forma de comprimidos de 50mg, com dose de 2mg/kg/dia, e Micofenolato Mofetil,
apresentado na forma de comprimidos de 250mg e 500mg, com dose de 2-3g/dia
fracionada em duas tomadas, também têm sido propostos como drogas eficazes e menos
tóxicas que os agentes alquilantes na fase de manutenção.
Dentre os critérios de avaliação da resposta terapêutica em longo prazo, devem
ser cuidadosamente pesquisados os sinais e sintomas clínicos da atividade sistêmica e
renal. Os testes de laboratório mais utilizados incluem proteína C reativa, velocidade de
hemossedimentação, sedimento urinário, proteinúria quantitativa e creatinina sérica. A
negativação do ANCA guarda boa correlação com as fases inativas da granulomatose de
Wegener.

Púrpura de Henoch-Schönlein
A púrpura de Henoch-Schönlein se manifesta habitualmente como vasculite de
pequenos vasos da pele, das articulações, do trato gastrointestinal e dos glomérulos
renais, tendo como manifestações clínicas um quadro de púrpura dos membros
inferiores, artralgias, dor abdominal, sangramentos gastrointestinais e glomerulonefrite.
Trata-se de uma afecção que atinge especialmente crianças, sendo incomum em adultos.
A maioria dos pacientes com púrpura de Henoch-Schönlein relata antecedente
de infecção do trato respiratório precedendo o quadro clínico típico da síndrome. Vários
agentes microbianos potencialmente patogênicos têm sido implicados na sua etiologia,
incluindo estreptococos beta-hemolíticos, estafilococos, micobactérias, Haemophilus
spp, Yersinia spp e numerosos vírus. Mais raramente, os episódios de vasculite podem
surgir após ingesta de drogas ou alimentos. Depósitos de imunoglobulinas e frações do
complemento estão invariavelmente presentes na pele e nos glomérulos renais. Tendo
em vista as semelhanças histológicas com a nefropatia por IgA, também denominada
doença de Berger, muitos consideram que a púrpura de Henoch-Schönlein seja a sua
forma de manifestação sistêmica. Em ambas ocorre aumento na concentração sérica de
IgA-fibronectina, imunocomplexos e fatores reumatoides da classe IgA.
A biópsia de pele nos casos de púrpura mostra aspecto típico de vasculite
leucocitoclástica de pequenos vasos, com deposição de IgA. A biópsia renal pode
revelar desde proliferação mesangial leve até lesões mais graves, como glomerulonefrite
proliferativa difusa, com ou sem crescentes epiteliais. A presença de IgA no mesângio,
demonstrada por imunofluorescência, é o mais importante critério diagnóstico.
O quadro clínico é caracterizado por antecedente de episódios de infecção das
vias aéreas superiores, que são seguidos de exantema purpúrico na face extensora dos
membros inferiores, artralgias, dores abdominais, hematúria e proteinúria. Em geral, os
sinais e sintomas de cada surto purpúrico duram até três meses, exceto a nefrite, que
pode ser evolutiva e crônica. Habitualmente, ocorrem duas a três recidivas da síndrome
durante o primeiro ano de evolução, com tendência de remissões prolongadas no
seguimento em longo prazo. A hematúria macroscópica é a manifestação mais comum
do envolvimento renal na púrpura de Henoch-Schönlein, ocorrendo em até 80% dos
pacientes. Hematúria microscópica e síndrome nefrótica são bem menos frequentes.
Ocasionalmente, as manifestações renais têm as características da síndrome nefrítica,
com edema, hipertensão arterial sistêmica e redução da filtração glomerular, simulando
a glomerulonefrite pós-estreptocócica. Em pacientes adultos, pode ocorrer a variante da
glomerulonefrite rapidamente progressiva, que evolui quase sempre para insuficiência
renal dialítica.
Os testes laboratoriais são inespecíficos e apenas auxiliam na exclusão de outros
diagnósticos. A contagem de plaquetas e provas de coagulação habitualmente são
normais, assim como são normais ou negativos o complemento sérico, o fator anti-

Pedro Kallas Curiati 1012


núcleo e o anticorpo anti-citoplasma de neutrófilo. A IgA sérica está elevada em
aproximadamente metade dos pacientes e a pesquisa de crioglobulinas ocasionalmente é
positiva. Imunocomplexos circulantes contendo IgA polimérica ou IgA ligada a
fibronectina podem ser detectados nos períodos de atividade da doença. A análise da
urina revela hematúria com dismorfismo moderado, cilindros granulosos e/ou hemáticos
e proteinúria não-nefrótica.
O diagnóstico diferencial deve ser feito com glomerulonefrite aguda pós-
estreptocócica, lúpus eritematoso sistêmico e crioglobulinemia mista, que podem ser
afastados pelo estudo sorológico adequado.
A maioria dos pacientes apresenta envolvimento renal de pouca repercussão
clínica, com hematúria microscópica, proteinúria leve e função renal conservada.
Nessas situações, recomenda-se apenas tratamento de suporte e seguimento com
monitorização de função renal. Os pacientes com insuficiência renal ou síndrome
nefrótica cujas biópsias revelem lesões proliferativas mais graves e difusas devem ser
tratados com Prednisona 1mg/kg/dia, Ciclofosfamida e/ou gamaglobulina intravenosa.
A eficácia dos esquemas imunossupressores é bastante discutível.
O prognóstico da púrpura de Henoch-Schönlein depende basicamente do quadro
clínico inicial e das lesões histológicas reveladas na biópsia renal. Os pacientes com
hematúria microscópica e proliferação mesangial evoluem muito bem, com morbidade
inferior a 10% em dez anos. Por outro lado, quando houver síndrome nefrótica
persistente, elevação da creatinina sérica e biópsia com glomerulonefrite grave com
mais de 50% de crescentes, a tendência será evolução para insuficiência renal crônica.
O transplante renal tem sido indicado para os pacientes que chegam ao estágio de
falência renal terminal, sendo frequente a recidiva da doença original, habitualmente
sem levar à perda do enxerto.

Síndrome de Goodpasture
A síndrome de Goodpasture ou glomerulonefrite associada ao anticorpo anti-
membrana basal glomerular é bastante incomum, porém deve ser considerada no
diagnóstico diferencial de nefropatias graves com envolvimento pulmonar. O quadro
clínico é variável, mas, em sua forma completa, caracteriza-se por insuficiência renal
rapidamente progressiva associada a hemorragia pulmonar. Em alguns pacientes, pode
ser encontrada apenas hematúria microscópica, sem manifestações clínicas renais nem
hemoptise. A síndrome de Goodpasture acomete indivíduos de qualquer idade, com dois
picos distintos de prevalência, um na segunda e outro na quinta décadas de vida, com
predomínio em jovens do sexo masculino. Nas mulheres com idade superior a 50 anos,
é mais frequente a forma de glomerulonefrite crescêntica, sem acometimento pulmonar.
Nos países do hemisfério norte, ocorre uma típica distribuição sazonal, mais comum na
primavera, e racial, com acometimento quase exclusivo de indivíduos brancos. A
doença ocorre, ocasionalmente, em pintores e em pessoas que têm contato com
solventes hidrocarbonados.
Os antígenos responsáveis pela formação dos autoanticorpos que deflagram a
reação inflamatória glomerular na síndrome de Goodpasture estão localizados na porção
não-colágena do colágeno IV da membrana basal glomerular. É possível que uma
agressão de qualquer natureza lese a membrana basal glomerular e exponha os
antígenos, desencadeando o processo em indivíduos geneticamente predispostos à
doença.
O principal indicador histológico da glomerulonefrite anti-membrana basal
glomerular é o padrão linear do depósito de IgG ao longo da parede capilar glomerular
na imunofluorescência do fragmento de biópsia renal. O mesmo padrão pode ser

Pedro Kallas Curiati 1013


encontrado em membrana basal tubular. O depósito de C3 ocorre em dois terços dos
pacientes, sendo geralmente linear, às vezes descontínuo ou de aspecto granular. A
microscopia óptica revela uma glomerulonefrite proliferativa com crescentes epiteliais,
sendo habitual estarem os glomérulos no mesmo estágio de lesão.
O quadro clínico típico da síndrome de Goodpasture é o de glomerulonefrite
rapidamente progressiva com oligúria. A anemia do tipo ferropriva é muito comum por
causa do sangramento pulmonar intra-alveolar. A hematúria microscópica com
dismorfismo eritrocitário é a alteração precoce mais frequente, sendo às vezes a única
manifestação da doença renal. A proteinúria é discreta, sendo incomuns a síndrome
nefrótica e a hipertensão arterial sistêmica.
Outras glomerulonefrites podem cursar com hemorragia pulmonar, incluindo
lúpus eritematoso sistêmico, granulomatose de Wegener e púrpura de Henoch-
Schönlein.
O diagnóstico diferencial da glomerulonefrite anti-membrana basal glomerular
com as vasculites compreende a detecção de anticorpo anti-membrana basal glomerular
no soro de pacientes com síndrome de Goodpasture e do ANCA em pacientes com
granulomatose de Wegener e poliangeíte microscópica.
No tratamento da síndrome de Goodpasture devem ser considerados a
precocidade do diagnóstico e a gravidade da lesão na biópsia renal. Os casos leves, sem
déficit de função renal, podem prescindir de uma terapêutica específica. Diversos
autores têm afirmado que pacientes anúricos com creatinina superior a 6mg/dL
dificilmente poderão se beneficiar com a medicação imunossupressora, dado o caráter
de rápida colagenização dos crescentes glomerulares.
A plasmaférese é a terapêutica de escolha, especialmente quando ocorrer
hemorragia alveolar, e tem a finalidade de remover o autoanticorpo circulante. A troca
de plasma diária de 4L/dia deve ser mantida por um período mínimo de dez dias e, por
volta de oito semanas de tratamento, o anticorpo torna-se indetectável. Devem ser
associados ao esquema imunossupressor Metilprednisolona e Ciclofosfamida por via
intravenosa, seguidas por Prednisona por via oral. Preconiza-se Metilprednisolona
intravenosa 15-30mg/kg/dia, com máximo de 1g/dia, durante três dias seguida por
Prednisona oral 1mg/kg/dia, com máximo de 80mg/dia, com desmame lento após
remissão clínica, em associação com Ciclofosfamida, apresentada na forma de
comprimidos de 50mg, com dose de 2mg/kg/dia, com desmame lento após remissão
clínica, além de plasmaférese diária, que deve ser mantida até os títulos de anticorpo
anti-membrana basal glomerular se tornarem indetectáveis. A duração do tratamento
geralmente varia de três a seis meses.
A hemorragia alveolar é um dos maiores fatores limitantes da sobrevida. Quando
isolada, poderá ser tratada com pulsos intravenosos de Metilprednisolona e
plasmaférese. Não há contraindicação ao transplante nos casos que evoluem para
insuficiência renal crônica terminal, devendo-se tomar o cuidado de não o realizar
enquanto houver anticorpo anti-membrana basal glomerular detectável na circulação.

Síndrome hemolítico-urêmica
A síndrome hemolítico-urêmica se caracteriza pela ocorrência de insuficiência
renal aguda associada a anemia hemolítica microangiopática e plaquetopenia. Trata-se
de uma doença bastante heterogênea e de causa multifatorial, acometendo com maior
frequência a população pediátrica. A principal lesão anatômica é a microangiopatia
trombótica de vasos da microcirculação, que resulta em isquemia e insuficiência de
órgãos e aparelhos. Ambos os sexos são acometidos.
A síndrome hemolítico-urêmica pode estar associada a várias condições que têm

Pedro Kallas Curiati 1014


como denominador comum a lesão endotelial, como infecções, neoplasias, drogas,
toxemia gravídica, defeitos genéticos e hereditários e doenças autoimunes. A síndrome
em crianças com diarreia infecciosa está relacionada à produção de toxinas pela bactéria
E. coli. A plaquetopenia decorre do aumento do consumo e da maior destruição na
microcirculação e no sistema retículo-endotelial. A anemia hemolítica microangiopática
é resultante da fragmentação de hemácias por lise mecânica quando passam por
territórios vasculares parcialmente ocluídos por trombose de fibrina.
As manifestações clínicas incluem anemia hemolítica, plaquetopenia e
insuficiência renal aguda, frequentemente de evolução oligúrica. Na população
pediátrica, há pródromo característico das enterites infecciosas, com vômitos, dor
abdominal, febre e diarreia, sendo frequente a ocorrência de enterorragia. Em adultos, a
síndrome pode ser precedida por infecções do trato respiratório alto ou estar associada a
outras condições predisponentes, como toxemia gravídica, infecções virais sistêmicas,
hipertensão maligna, doenças autoimunes, drogas antineoplásicas e imunossupressores,
como Ciclosporina e Acrônimo. Além do quadro clínico de insuficiência renal aguda,
sintomas adicionais resultam de trombose microvascular em cérebro, pulmões, pâncreas
e musculatura esquelética e cardíaca. Também pode ocorrer coagulação intravascular
disseminada, que se manifesta por isquemia bilateral dos membros inferiores, púrpura e
lesões necrotizantes.
As alterações laboratoriais mais importantes são reticulócitos e esquizócitos
aumentados, elevação de desidrogenase lática e valores baixos de haptoglobina. A
plaquetopenia está presente na fase aguda da doença. O coagulograma costuma estar
normal, exceto por leve fibrinólise, com pequena elevação dos produtos de degradação
da fibrina.
O principal achado histopatológico renal é a microangiopatia trombótica.
O tratamento da síndrome hemolítico-urêmica típica, que ocorre em crianças
com enterites infecciosas, é de suporte e se baseia no controle dos distúrbios
hidroeletrolíticos, na reposição volêmica, no suporte nutricional e no repouso intestinal,
com recuperação espontânea da hemólise microangiopática e da insuficiência renal
aguda em 85% dos casos. Em adultos, as orientações terapêuticas são muito
divergentes, tendo em vista a heterogeneidade dos fatores desencadeantes nesse grupo.
As principais recomendações incluem o controle estrito da hipertensão arterial
sistêmica, a infusão de plasma fresco e a plasmaférese, especialmente nas formas com
envolvimento neurológico e possivelmente nas formas recidivantes. Os anticoagulantes
e anti-agregantes plaquetários não estão indicados na fase aguda. O prognóstico é muito
variável, com alta mortalidade na fase aguda e baixa taxa de recuperação da função
renal em adultos.

Doenças infecciosas

Endocardite bacteriana
O envolvimento renal na endocardite bacteriana pode ocorrer por meio de
abscessos ou infartos renais relacionados a embolização séptica, necrose tubular aguda,
glomerulonefrite aguda ou rapidamente progressiva por deposição de imunocomplexos
e nefrite intersticial por ação nefrotóxica de medicamentos.
A glomerulonefrite da endocardite se assemelha ao perfil das síndromes
nefríticas pós-infecciosas, cujo quadro clínico é caracterizado por hematúria
macroscópica, edema, hipertensão arterial sistêmica e redução do ritmo de filtração
glomerular. Na maioria dos casos, seu curso é para cura completa ou com pequenas
sequelas de fibrose renal. O exame de urina mostra hematúria com hemácias

Pedro Kallas Curiati 1015


dismórficas e cilindros hemáticos, leucocitúria e proteinúria. A síndrome nefrótica não é
comum na endocardite. Em 90% dos pacientes são encontrados imunocomplexos
circulantes. Crioglobulinemia é achado frequente. Também ocorre redução dos níveis
séricos de complemento total, C3 e C4.
Os principais agentes infecciosos são Streptococcus viridans na endocardite
subaguda e Staphylococcus aureus na endocardite aguda.
A lesão histológica habitual é do padrão proliferativo, que pode ser focal ou
difuso. Quando presentes, os crescentes não atingem mais que metade dos glomérulos.
A imunofluorescência é sempre difusa, positiva para IgG, IgM e C3. A microscopia
eletrônica revela a presença de imunodepósitos subepiteliais e, com menor tamanho,
depósitos subendoteliais ou mesangiais.
Os pacientes, de maneira geral, não devem ser tratados com corticosteroides ou
outras drogas imunossupressoras. Na maioria dos casos há reversão da lesão renal com
o tratamento antimicrobiano, mas perda de função renal irreversível pode ocorrer se a
terapêutica for instituída muito tardiamente ou se próteses valvares infectadas não forem
prontamente removidas.

Infecção pelo vírus da imunodeficiência humana


A nefropatia associada ao vírus da imunodeficiência humana é a forma mais
comum de doença renal crônica em pacientes com sorologia positiva. Esse tipo de lesão
glomerular se refere a uma forma especial de glomeruloesclerose segmentar e focal,
geralmente associada à síndrome nefrótica e à perda progressiva da função renal.
Glomerulonefrites proliferativas por imunocomplexos também podem estar associadas
ao vírus da imunodeficiência humana. Nefropatia intersticial frequentemente está
relacionada ao envolvimento glomerular ou é decorrente do uso de drogas.
Na microscopia por imunofluorescência, observa-se deposição segmentar de
IgM e C3 em mesângio e alça capilar, porém tais depósitos não representam
imunocomplexos. A microscopia eletrônica pode revelar a presença de inclusões túbulo-
reticulares no interior de células endoteliais que, embora não específicas, são muito
sugestivas de infecção viral.
O quadro clínico do paciente com nefropatia do vírus da imunodeficiência
humana se caracteriza pela presença de síndrome nefrótica, podendo ocorrer
insuficiência renal de intensidade variável desde o início dos sintomas. O edema pode
ser insidioso ou abrupto, mas sua presença não é constante, assim como a hematúria
microscópica. A hipertensão arterial sistêmica é de ocorrência rara, exceto nas fases
avançadas da insuficiência renal. Os níveis séricos do complemento e de suas frações
estão normais e as imunoglobulinas podem estar aumentadas, com padrão policlonal. A
nefropatia é normalmente uma complicação tardia da infecção pelo vírus da
imunodeficiência humana, acompanhando-se de diminuição dos linfócitos CD4
circulantes.
O tratamento da nefropatia associada ao vírus da imunodeficiência humana está
exclusivamente baseado na terapêutica múltipla anti-retroviral, sem indicação para o
uso de corticosteroides ou imunossupressores. O uso de inibidores do sistema renina-
angiotensina pode reduzir discretamente a proteinúria, porém não interfere na sobrevida
renal. Os pacientes com nefropatia tratados tardiamente habitualmente têm remissão
parcial da proteinúria e, por causa das lesões esclerosantes, podem evoluir de modo
lento para a insuficiência renal crônica.

Esquistossomose
A glomerulonefrite membrano-proliferativa com aspecto lobulado é a lesão renal

Pedro Kallas Curiati 1016


mais comumente observada, sobretudo no estágio hepatoesplênico da doença. A
glomerulonefrite mesangial é mais comum na fase hepatointestinal da doença, podendo
ser encontrada em indivíduos assintomáticos. A glomeruloesclerose segmentar e focal é
considerada por alguns autores como a segunda forma mais frequente da nefropatia
esquistossomótica.
A imunofluorescência revela, mais frequentemente, depósitos de IgM e C3 no
mesângio. Também pode ser utilizada para detectar a presença de antígeno
esquistossomótico do verme adulto.
Síndrome nefrótica e graus variáveis de insuficiência renal constituem a forma
clínica mais comum de apresentação do paciente com nefropatia esquistossomótica. A
hematúria microscópica é muito comum e pode ocorrer hipertensão arterial sistêmica.
Os pacientes costumam apresentar hepatomegalia, esplenomegalia e sinais de
hipertensão portal. No entanto, na fase inicial da nefropatia, o paciente pode se
apresentar assintomático e o envolvimento renal ser caracterizado por hematúria e
proteinúria no exame de urina.
O diagnóstico da esquistossomose é feito por meio de pesquisa de ovos nas fezes
ou por biópsia da mucosa retal. A concomitância de proteinúria, hematúria, hipertensão
arterial, hipocomplementenemia e gamaglobulina sérica elevada em adultos jovens com
hepatoesplenomegalia provenientes de área endêmica de esquistossomose sugere o
diagnóstico de nefropatia esquistossomótica, principalmente se a biópsia renal revelar
glomerulonefrite membrano-proliferativa ou mesmo glomerulonefrite proliferativa
mesangial, com imunofluorescência positiva para IgM e C3 em mesângio e alças
capilares. A detecção do antígeno no tecido renal reforça o diagnóstico.
A nefropatia tem curso progressivo, independentemente da presença do parasita
e das tentativas terapêuticas com imunossupressores. As tentativas de reverter a lesão,
quer tratando a parasitose, quer tentando a remissão da síndrome nefrótica com
corticoide e imunossupressores, não mostram bons resultados. O controle rigoroso da
pressão arterial e a redução da proteinúria podem contribuir para o retardo da
insuficiência renal. Alguns pacientes podem permanecer estáveis por vários anos com
proteinúria não-nefrótica e disfunção renal moderada.

Outras doenças infecto-parasitárias


As glomerulopatias secundárias a outras etiologias infecciosas ou parasitárias
devem ser destacadas por sua importância no contexto médico, incluindo a
glomerulonefrite pós-estreptocócica e as glomerulonefrites associadas às infecções
pelos vírus das hepatites B e C. Outros agentes infecto-parasitários associados a
glomerulopatias incluem Mycobacterium leprae, Treponema pallidum, Plasmodium
malariae, S. pneumoniae, Klebsiella spp, Staphylococcus spp, citomegalovírus, vírus da
varicela, vírus do sarampo, filária e toxoplasma.

Paraproteinemias
As paraproteinemias constituem um grupo de doenças que se caracterizam pela
produção e/ou deposição de proteínas monoclonais de modo isolado ou sob a forma de
macromoléculas de composição complexa. Destacam-se, pela frequência e gravidade, o
mieloma múltiplo, a macroglobulinemia de Waldenström, a amiloidose e as doenças de
cadeias leves e pesadas.

Mieloma múltiplo e doença de cadeias leves e pesadas


Pacientes com mieloma múltiplo excretam na urina cadeias leves de
imunoglobulinas, denominadas proteínas de Bence Jones, originalmente filtradas no

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glomérulo. A proteinúria, sem síndrome nefrótica, ocorre em 90% dos pacientes e 55%
têm insuficiência renal ao diagnóstico. A causa do envolvimento renal é multifatorial e
inclui hipercalcemia e hipercalciúria, hiperuricemia, infecção do trato urinário,
infiltração renal por células plasmocíticas e nefropatia dos cilindros. Em 15% dos casos,
a porção variável da cadeia leve monoclonal, associada ou não à cadeia intacta, se
deposita no rim como substância amiloide, constituindo a amiloidose AL.
Outro tipo de comprometimento glomerular é a doença de deposição de cadeias
leves e pesadas, que se enquadra no grupo maior das doenças de deposição de
imunoglobulinas monoclonais, em que o depósito glomerular é de cadeia leve intacta e,
às vezes, de cadeia pesada. Esses depósitos são mais frequentemente de cadeias leves
kappa e não assumem a estrutura fibrilar do amiloide AL, não apresentando, também a
birrefringência verde-maçã quando corados com vermelho Congo e vistos por luz
polarizada.
As cadeias leves depositam-se na membrana basal glomerular e tubular, assim
como no mesângio, resultando em lesão glomerular e tubular. A lesão glomerular mais
característica é a glomeruloesclerose nodular, semelhante à encontrada na nefropatia
diabética. À imunofluorescência, os depósitos são caracterizados como cadeia leve,
sendo mais frequente a cadeia leve kappa. Ocasionalmente, pode-se detectar C3 no
mesângio. A microscopia eletrônica revela depósitos elétron-densos não-fibrilares nos
nódulos mesangiais. Embora tais lesões possam ocorrer em todos os órgãos, a maioria
dos pacientes apresenta envolvimento renal isolado.
A doença de deposição de cadeias leves e pesadas pode ocorrer em pacientes
com gamopatia monoclonal de significado indeterminado e naqueles sem componente
monoclonal sérico ou urinário.

Macroglobulinemia de Waldenström
Na macroglobulinemia, a imunoglobulina monoclonal patogênica é a IgM e o
quadro clínico se deve à hiperviscosidade sanguínea, caracterizando-se por fadiga, perda
de peso, sangramentos e distúrbios visuais em pacientes com idade superior a sessenta
anos. Seu curso costuma ser lento e progressivo, com anemia, hepatomegalia e
linfoadenopatia. O envolvimento renal é raro, sendo o achado mais frequente o depósito
de material eosinofílico nas luzes capilares, constituído por agregados de IgM. Alguns
autores observam que 10-20% dos pacientes apresentam proteinúria de Bence Jones,
sendo a quantidade excretada em geral inferior a 500mg/dia. Além dos pseudotrombos
capilares, a macroglobulinemia pode, mais raramente, se manifestar histologicamente
como glomeruloesclerose nodular, semelhante à doença de deposição de cadeias leves,
glomerulonefrite mesangiocapilar e doença de lesões mínimas, que se acompanha de
síndrome nefrótica.

Crioglobulinemia
O envolvimento renal na crioglobulinemia ocorre em 20-25% dos pacientes e o
quadro clínico mais frequente é o da síndrome nefrítica, com proteinúria moderada,
hematúria, hipertensão arterial sistêmica grave e insuficiência renal não-dialítica. O
diagnóstico laboratorial pode ser firmado pela demonstração de crioglobulinas
circulantes do tipo IgM monoclonal e IgG policlonal, pela presença de fator reumatoide
IgM e por hipocomplementenemia às custas de consumo dos componentes iniciais da
via clássica.
O vírus da hepatite C tem sido considerado o principal fator etiológico da
vasculite associada à crioglobulinemia mista, antigamente rotulada “essencial”. As
lesões glomerulares da crioglobulinemia podem ter vários padrões de glomerulonefrites.

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O encontro de depósitos eosinofílico sob a forma de “trombos” na luz dos capilares
glomerulares é muito frequente e está constituído por crioglobulinas precipitadas.
A eficácia de esquemas terapêuticos utilizados no tratamento da
crioglobulinemia é difícil de ser avaliada, tendo em vista a frequente ocorrência de
remissões espontâneas. Corticosteroides, agentes alquilantes e plasmaférese têm sido
indicados nos surtos de reagudização, com resultados aparentemente favoráveis na
reversão da insuficiência renal.

Amiloidose
Trata-se de doença caracterizada pela deposição de proteína insolúveis de
aspecto fibrilar, acometendo os espaços extracelulares de órgãos e tecidos. De modo
muito característico, a substância amiloide se cora por vermelho Congo e tioflavina-T,
facilitando o diagnóstico pela análise histológica dos locais afetados.
A amiloidogênese é vista como um processo em que um determinado estímulo
provoca alteração na concentração e/ou na estrutura de uma proteína sérica que, após
clivagem proteolítica anômala, passa por uma sequência de polimerização e deposição
tecidual.
Por definição, amiloidose primária é a forma de amiloidose não associada a
outra doença sistêmica. A proteinúria está presente em 80% dos casos, em nível
nefrótico em uma parcela destes. Os rins geralmente estão aumentados de tamanho. O
diagnóstico deve ser considerado em paciente com síndrome nefrótica ou insuficiência
renal de causa não definida na faixa etária superior a quarenta anos. Nesse contexto,
impõe-se a pesquisa de proteína monoclonal no soro e na urina, preferencialmente por
imunofixação. Praticamente dois terços dos pacientes com amiloidose primária
apresenta proteína monoclonal no soro e em um quinto dos casos são detectadas
proteínas de Bence Jones. Cadeias leves do tipo lambda são mais comuns que as do tipo
kappa e o inverso ocorre no mieloma múltiplo. Os depósitos teciduais podem ser
revelados por reatividade com anticorpos de cadeia leve, sendo negativos quando é
utilizado anticorpo anti-proteína amiloide. Além do rim, há depósitos em coração,
língua, nervos periféricos, vasos sanguíneos e trato digestório.
Amiloidose secundária está associada a estímulos inflamatórios crônicos, que
acompanham doenças infecciosas, inflamatórias e neoplásicas. A proteína amiloide
sérica é sintetizada no fígado e tem seu nível elevado cerca de mil vezes o valor basal
em resposta a determinado estímulo inflamatório agudo ou a necrose tecidual. A artrite
reumatoide é um dos mais característicos exemplos de doença inflamatória crônica que
pode evoluir com amiloidose secundária e cursa com níveis elevados de proteína
amiloide sérica tanto em pacientes com amiloidose como naqueles sem a doença.
Amiloidose renal hereditária é uma doença rara em que a deposição de amiloide
é preferencial no rim, mas também ocorre com frequência o acometimento do sistema
nervoso periférico, com neuropatias motoras e sensoriais. Uma das variantes bem
conhecidas da amiloidose hereditária é aquela decorrente de mutação na molécula da
transtirretina, que é produzida no fígado. Em outra forma de amiloidose hereditária, a
proteína envolvida é uma mutação da apolipoproteína A.

Glomerulonefrites fibrilares e imunotactoides


As glomerulonefrites fibrilares e imunotactoides se caracterizam
histologicamente pela deposição de fibrilas que não se coram como o depósito amiloide,
sendo negativas na coloração por vermelho Gongo. Essas lesões têm sido relatadas com
frequência crescente nas biópsias renais, sobretudo quando se realiza o estudo de rotina
dos fragmentos por microscopia eletrônica, já que essas estruturas são dificilmente

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diagnosticadas apenas pela microscopia óptica, na qual os achados são inespecíficos e
podem mimetizar qualquer forma de glomerulopatias primária.
As manifestações clínicas mais frequentes são proteinúria assintomática ou em
nível nefrótico, hematúria microscópica, hipertensão e insuficiência renal. A alteração
característica desse grupo de lesões é observada à microscopia eletrônica, que revela
fibrilas no mesângio e na parede capilar. Na glomerulonefrite fibrilar, a
imunofluorescência é fortemente positiva para IgG, C3 e cadeias leves. Os depósitos
podem ser tão intensos que chegam a simular um quadro de glomerulonefrite anti-
membrana basal glomerular. Em casos esporádicos, não são detectadas imunoglobulinas
nos depósitos.
Na glomerulopatias imunotactoide, as fibrilas são ainda maiores, com aspecto de
microtúbulos dispostos de modo ordenado. Em algumas casuísticas, a glomerulopatias
imunotactoide tem sido associada a patologias linfoproliferativas e/ou a paraproteínas
circulantes.

Neoplasias
A glomerulonefrite membranosa é a lesão renal mais frequentemente associada
às neoplasias sólidas, representadas pelos carcinomas broncogênicos, colo-retais, renais,
de mama e gástricos. De modo geral, a manifestação clínica mais comum é a síndrome
nefrótica, que pode surgir ao mesmo tempo em que a instalação da neoplasia, mas, em
algumas ocasiões, pode preceder o diagnóstico clínico do tumor.
O mecanismo envolvido nas lesões glomerulares associadas às neoplasias não é
totalmente conhecido, mas existem algumas teorias explicativas. Os antígenos
associados a tumores foram apontados como integrantes de imunocomplexos
nefritogênicos.
O tratamento das glomerulopatias associadas às neoplasias depende do tipo e do
estadiamento da condição maligna. A remissão da proteinúria pode ocorrer em pacientes
com neoplasias sólidas tratadas cirurgicamente, porém não se pode afastar nesses casos
uma remissão espontânea da doença glomerular. Nas neoplasias linfoproliferativas, por
outro lado, ocorre boa correlação entre atividade da doença e ocorrência de proteinúria e
síndrome nefrótica.

Doenças hepáticas

Infecção pelo vírus da hepatite C


A associação entre infecção pelo vírus da hepatite C e o desenvolvimento de
glomerulopatias está bem consolidada. A doença glomerular pode ocorrer mesmo sem
doença hepática evidente.
Na história natural da infecção pelo vírus da hepatite C, após um período de dez
a quinze anos e replicação viral persistente, mais de metade dos indivíduos infectados
evoluem com hepatite crônica ativa e, ocasionalmente, podem se instalar manifestações
de autoimunidade, tais como artrite, síndrome sicca e crioglobulinemia mista tipo II,
que se manifesta por vasculite cutânea e glomerulonefrite. O achado de
crioglobulinemia traz repercussões laboratoriais importantes, tais como fator reumatoide
e hipocomplementenemia à custa de consumo de fatores da via clássica, como
complemento total, C3 e C4.
As manifestações renais predominantes são síndrome nefrótica com
insuficiência renal leve a moderada. A lesão histológica mais frequente é
glomerulonefrite membrano-proliferativa do tipo I, que se distingue da forma idiopática
pela representatividade maior de imunoglobulinas, com IgG, IgM e C3. Outras lesões

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menos frequentes de nefropatia por vírus C são a glomerulonefrite membranosa e a
glomerulonefrite proliferativa mesangial.
O tratamento proposto é ainda muito discutível, porque seus resultados não são
constantes. Os esquemas com corticoides e imunossupressores não são eficazes na
doença renal e, podem, por outro lado, agravar a viremia e a hepatopatia. O esquema
terapêutico para a glomerulopatias associada ao vírus da hepatite C tem por objetivo
negativar a carga viral para reduzir a produção de crioglobulinas e, portanto, reduzir a
formação dos crioprecipitado nefritogênicos. Para tanto, ultimamente, tem sido utilizada
a associação de Interferon-alfa com Ribavirina.

Infecção pelo vírus da hepatite B


A maioria dos casos de proteinúria em pacientes com infecção pelo vírus da
hepatite B são descritos em crianças, com predomínio no sexo masculino. De modo
geral, a população pediátrica que apresenta essa lesão glomerular evolui de forma
benigna, com remissão habitualmente no prazo de seis meses do clareamento do
HBeAg. Em adultos, a remissão da proteinúria é mais demorada, podendo levar até
mais de doze meses após a viragem sorológica. Manifestações extra-hepáticas e extra-
renais, como artrite e crioglobulinemia, são descrita, porém pouco frequentes. A doença
hepática, com ou sem hipertensão portal, habitualmente é sintomática, entretanto lesões
glomerulares já foram descritas sem nenhuma evidência de lesão hepatocelular.
A manifestação clínica da nefropatia do vírus da hepatite B é a proteinúria, com
ou sem síndrome nefrótica. A microscopia óptica revela glomerulonefrite membranosa
ou, com menor frequência, glomerulonefrite membrano-proliferativa. A
imunofluorescência revela depósitos de IgG, IgM, C3 e, ocasionalmente, IgA.
O tratamento da glomerulopatias por vírus B é controverso. Em crianças, o
tratamento é sintomático tendo em vista o alto índice de remissão. Em adultos, os
corticoides e imunossupressores estariam contraindicados pela possibilidade de
predisporem a maior replicação viral e progressão da lesão hepatocelular. Tem sido
proposto, em situações especiais, o uso de Interferon-alfa e/ou Lamivudina, mas os
dados disponíveis não são consistentes. Alguns relatos de casos esporádicos tratados
com esquemas antivirais apontam para possível melhora da nefropatia.

Cirrose hepática
O depósito glomerular de IgA é um achado comum na cirrose hepática,
particularmente na hepatopatia crônica associada ao etilismo. O mecanismo implicado é
pouco conhecido. A maioria dos pacientes não demonstra sintomas ou sinais clínicos
evidentes de nefropatia, sendo o diagnóstico cogitado pelo achado de hematúria e
proteinúria discretas. Não ocorre síndrome nefrótica nem hematúria macroscópica. A
lesão histológica mais frequente ocorre sob forma de proliferação.
Outra forma de envolvimento renal na cirrose, porém menos frequente, é a
glomeruloesclerose cirrótica, em que ocorre uma lesão esclerótica difusa glomerular. É
necessário diagnóstico diferencial com outras formas de glomeruloesclerose, como
diabetes mellitus e amiloidose. Essa lesão glomerular é geralmente silenciosa,
manifestando-se apenas por proteinúria leve. A imunofluorescência frequentemente
revela IgA em mesângio, além de IgM e IgG.

Hipertensão arterial sistêmica


Considerando que uma parcela dos pacientes com hipertensão essencial pode
desenvolver lesão renal progressiva, dois mecanismos são propostos como causa:
- Isquemia do glomérulo em decorrência do estreitamento progressivo da

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luz de artérias e arteríolas pré-glomerulares;
- Redução do número de néfrons decorrente de isquemia, que provoca
adaptação nos néfrons remanescentes, com vasodilatação da arteríola
aferente, transmissão da hipertensão sistêmica, hiperfiltração glomerular
e esclerose glomerular;
O termo nefroesclerose tem sido extensivamente usado para descrever as
alterações vasculares renais decorrentes de hipertensão arterial sistêmica. A
nefroesclerose benigna apresenta como principal característica a presença de depósitos
hialinos em paredes de arteríolas aferentes. Os glomérulos podem ser afetados
secundariamente e a lesão mais característica é o seu colapso isquêmico, com retração
do tufo glomerular junto ao polo vascular, enrugamento da membrana basal e posterior
glomeruloesclerose global. A nefroesclerose maligna compromete principalmente a
íntima dos vasos e as artérias interlobulares são preferencialmente envolvidas, com
proliferação miointimal e necrose fibrinoide de células de músculo liso de pequenas
artérias e arteríolas, podendo estender-se para o glomérulo, com estreitamento
irreversível da luz vascular e colapso isquêmico dos glomérulos.
Na ausência de biópsia renal, o diagnóstico clínico de nefroesclerose benigna é
feito por exclusão de hipertensão arterial em fase maligna e de outras causas de doença
renal primária. Critérios sugeridos para o diagnóstico clínico incluem hipertensão
arterial de longa data com evidência de lesão em outros órgãos, função renal normal
quando do diagnóstico da hipertensão arterial, proteinúria inferior a 1.5g/dia e
sedimento urinário normal.
Hipertensão arterial maligna é uma síndrome clínica caracterizada por elevação
abrupta da pressão arterial com lesão de órgão-alvo, sendo característica a ocorrência de
retinopatia de graus III ou IV. As manifestações clínicas nos rins incluem início abrupto
de proteinúria, podendo evoluir em um terço dos pacientes com proteinúria nefrótica,
hematúria, podendo ser macroscópica em um quinto dos casos, e função renal com
deterioração progressiva em semanas a meses.
Com base na patogênese do dano renal induzido pela hipertensão arterial, três
alvos para intervenção terapêutica são sugeridos:
- Redução da carga pressórica;
- Redução da transmissão da pressão para a microvasculatura renal com
inibidores da enzima de conversão da angiotensina e bloqueadores de
receptores de angiotensina II, que diminuem a resistência da arteríola
eferente;
- Interrupção e/ou modificação da via que medeia a lesão tecidual e a
fibrose;

Diabetes mellitus
Entre os principais fatores de risco para progressão da doença renal estão
controle glicêmico ruim e presença de hipertensão arterial sistêmica.
A nefropatia diabética, expressão genérica que designa apenas lesão do
parênquima renal ocasionada por diabetes mellitus, é classificada em três diferentes
fases, de hiperfiltração, de microalbuminúria e de macroalbuminúria. Essas fases
apresentam sinais clínicos, laboratoriais e histológicos distintos, além de potencial de
reversibilidade diferente.
A primeira fase da nefropatia diabética, conhecida como fase de hiperfiltração, é
caracterizada por um incremento na taxa de filtração glomerular, habitualmente na
ordem de 25-50% em relação à taxa basal do indivíduo. Essa fase costuma durar anos e
é totalmente reversível com o controle rigoroso da glicemia e da pressão arterial. A

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microscopia eletrônica é variável, podendo revelar desde aspecto de rim normal até
aumento do volume mesangial e espessamento da membrana basal. Por definição, a
microalbuminúria é ausente.
A segunda fase da nefropatia diabética é caracterizada por microalbuminúria,
definida por albuminúria de 30-299mg/dia. Pode haver algum grau de
comprometimento na função renal. Achados histológicos variam de rim normal até
sinais de proliferação mesangial e aumento da matriz mesangial. A microalbuminúria é
um fator preditor importante de evolução para formas mais avançadas de nefropatia
diabética. Ao contrário do que se acreditava inicialmente, a microalbuminúria é
potencialmente reversível. Entre os principais fatores preditores de regressão da
microalbuminúria estão o controle da glicemia, a idade jovem, o controle da
dislipidemia e a ausência de hipertensão arterial sistêmica. É possível que o controle da
obesidade e a cessação do tabagismo também tenham influência na remissão da lesão.
Já a fase de proteinúria clínica ou macroalbuminúria caracteriza-se pela presença
de albuminúria superior ou igual a 300mg/dia. Conforme a doença progride, a
albuminúria torna-se crescente, atingindo frequentemente valores nefróticos, superiores
a 3.5g/1.73m2/dia. Histologicamente, essa fase corresponde a lesões histológicas mais
graves, com proliferação mesangial e expansão da matriz mesangial acompanhados de
espessamento da membrana capilar e surgimento de fibrose periglomerular. A
proliferação da matriz pode tornar-se tão intensa a ponto de formar nódulos grosseiros
eosinofílicos. A biópsia renal costuma revelar também lesões arteriolares importantes,
caracterizadas, sobretudo, pela hialinização da parede de arteríolas aferentes e eferentes.
A imunofluorescência costuma ser negativa, exceto para colágeno e fibronectina. As
lesões não são reversíveis e as medidas terapêuticas visam apenas a desaceleração da
progressão.
A principal característica clínica da nefropatia diabética é seu curso insidioso.
Apenas na fase de macroalbuminúria o paciente começa a notar progressivamente
presença de urina espumosa e, a depender do grau de proteinúria, edema. Conforme a
doença renal progride, é comum haver agravamento da hipertensão arterial sistêmica,
com aumento na necessidade de drogas anti-hipertensivas. Os sintomas que surgem
posteriormente já são decorrentes da insuficiência renal instalada, com uremia e
congestão.
Dois exames diagnósticos fundamentais são a taxa de depuração de creatinina e
a albuminúria. O exame de fundo de olho é obrigatório na avaliação diagnóstica da
nefropatia diabética e a ausência de retinopatia diabética sempre deve alertar para a
possibilidade de outro diagnóstico para a doença renal. A presença de hematúria em
pacientes com suspeita de nefropatia diabética não é incomum, devendo ser excluídas
causas urológicas de hematúria.
O tratamento da nefropatia diabética está fundamentado em três medidas
essenciais:
- Controle da glicemia;
- Controle da pressão arterial;
- Bloqueio farmacológico do sistema renina-angiotensina;

Bibliografia
Clínica Médica, volume 3: doenças hematológicas, oncologia, doenças renais e genito-urinárias. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Goldman’s Cecil medicine / [edited by] Lee Goldman, Andrew I. Schafer.—24th ed. 2012.
American College of Rheumatology Guidelines for Screening, Treatment, and Management of Lupus Nephritis. Arthritis Care &
Research. Vol. 64, No. 6, June 2012, pp 797–808.

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NEFRITE INTERSTICIAL AGUDA
Etiologia
Nefrite intersticial aguda é comumente induzida por fármacos, como anti-
inflamatórios não-hormonais, β-lactâmicos, Rifampicina, Ciprofloxacino e, com menor
frequência, outras quinolonas, Cimetidina e, raramente, Ranitidina, inibidores de bomba
de prótons, Alopurinol, Indinavir, derivados 5-aminossalicílicos e sulfonamidas, como
Sulfametoxazol-Trimetoprim e, com menor frequência, Furosemida, Bumetanida e
diuréticos tiazídicos. Outras etiologias incluem doenças autoimunes, como lúpus
eritematoso sistêmico, síndrome de Sjögren e granulomatose de Wegener, infecções
distantes aos rins, como aquelas causadas por Legionella spp, Leptospira spp,
Streptococcus spp e citomegalovírus, sarcoidose e síndrome de nefrite túbulo-
intersticial e uveíte.

Quadro clínico
A maior parte dos pacientes apresenta sintomas e sinais inespecíficos de
disfunção renal aguda, com início agudo ou subagudo de náusea, vômitos e mal-estar,
ou ausência de sintomas e sinais.
No caso da nefrite intersticial aguda induzida por fármacos, o início do quadro
clínico geralmente ocorre de três a cinco dias após uma segunda exposição ao
medicamento a semanas a meses após uma primeira exposição.
Classicamente, os pacientes apresentam sintomas, sinais e alterações
laboratoriais de reação alérgica, com exantema, febre e eosinofilia, mas a tríade
completa está presente em apenas 10% dos casos.

Avaliação complementar
A análise do sedimento urinário revela leucócitos, eritrócitos e cilindros
leucocitários, com excreção de proteínas usualmente normal ou discretamente
aumentada, geralmente com valores inferiores a 1g/dia. No entanto, sedimento urinário
relativamente normal não exclui o diagnóstico. A avaliação laboratorial também revela
aumento da concentração de creatinina sérica, eosinofilúria e eosinofilia. A fração de
excreção de sódio geralmente é superior a 1%, mas valores inferiores podem ser
encontrados.
A análise histológica revela edema intersticial e infiltrado intersticial com
predomínio de linfócitos T e monócitos. Eosinófilos, plasmócitos e neutrófilos também
podem ser encontrados. Tubulite ocorre quando células inflamatórias invadem a
membrana basal tubular. A formação de granulomas, característica da doença renal
relacionada à amiloidose, pode ser encontrada em qualquer forma de nefrite intersticial
aguda. Indicações de biópsia renal incluem dúvida diagnóstica, disfunção renal
avançada e ausência de melhora espontânea após suspensão da droga suspeita.
Cintilografia com Gálio revela captação difusa, intensa e bilateral consistente
com infiltrado inflamatório intersticial. Apesar de resultado semelhante poder ser obtido
em outras doenças, na necrose tubular aguda o exame é quase sempre negativo. Um
resultado negativo não exclui o diagnóstico de nefrite intersticial aguda.

Diagnóstico
O diagnóstico é suspeitado com base em história clínica e achados laboratoriais
e confirmado com análise histológica, mas teste terapêutico com corticosteroides e

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suspensão da droga suspeita pode ser empregado em pacientes que não sejam bons
candidatos à biópsia renal. Espera-se melhora da função renal com início dentro de uma
a duas semanas e rápido retorno aos níveis séricos basais de creatinina.

Prognóstico
Recuperação da função renal é geralmente incompleta, com elevação persistente
da creatinina sérica em até 40% dos pacientes. Diálise aguda usualmente é necessária,
mas apenas cerca de 10% dos pacientes persistem dependentes de terapia substitutiva
renal. Indicadores clínicos de menor probabilidade de recuperação da função renal
incluem disfunção renal aguda prolongada, superior a três semanas, nefrite intersticial
aguda secundária a anti-inflamatórios não-hormonais e achados histológicos, como
granulomas intersticiais, fibrose intersticial e atrofia tubular.

Tratamento
A suspensão do medicamento suspeito de causar a nefrite intersticial aguda é a
base do tratamento, com indicação de imunossupressão com corticosteroides em caso de
ausência de melhora subsequente da função renal dentro de três a sete dias. Preconiza-se
Prednisona 1mg/kg/dia, com máximo de 60mg/dia, durante pelo menos uma a duas
semanas, com desmame gradual após a creatinina sérica atingir nível basal ou próximo
do basal, com duração total de dois a três meses. Em caso de disfunção renal aguda
severa, pode-se iniciar o tratamento com Metilprednisolona intravenosa com 0.5-1g/dia
durante três dias. Biópsia renal é recomendada antes do início do uso de corticosteroides
para confirmação do diagnóstico e exclusão de outras doenças e de nefrite intersticial
com dano crônico significativo, na qual o tratamento imunossupressor poderá não ser
indicado. Micofenolato Mofetil pode ser considerado em pacientes dependentes de
corticosteroides, resistentes a corticosteroides ou incapazes de tolerar o tratamento com
corticosteroides, desde que com biópsia comprovando a nefrite intersticial aguda. A
nefrite intersticial aguda por anti-inflamatórios não-hormonais parece responder menos
ao uso de glicocorticoides.

Bibliografia
Clinical manifestations and diagnosis of acute intersticial nephritis. Burton D Rose and Gerald A Appel. UpToDate, 2012.
Treatment of acute interstitial nephritis. Abhijit V Kshirsagar and Ronald J Falk. UpToDate, 2012.

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NEFROLITÍASE
Epidemiologia
Pico de incidência entre vinte e cinquenta anos de idade, com maior frequência
no sexo masculino e na raça caucasiana.
Os fatores de risco incluem hábitos alimentares, como baixa ingesta hídrica,
consumo excessivo de sal e dieta rica em purinas, oxalato e/ou proteínas, doenças renais
anatômicas, como rins policísticos, estenose de junção ureteropielocalicial e rins em
ferradura, doenças renais funcionais, como acidose tubular renal e hiperparatireoidismo
primário, litíase renal em familiares de primeiro grau, profissões, como cozinheiros,
padeiros e trabalhadores de indústrias siderúrgica e de cerâmica, sedentarismo,
medicamentos, como Indinavir, Aciclovir, Sulfadiazina, Triantereno, Vitamina D,
Vitamina C, salicilatos, Probenecid, Acetazolamida e Anfotericina B, doenças
gastrointestinais, como síndrome do intestino curto e doença de Crohn, doenças
sistêmicas, como hipertensão arterial e gota, e infecções do trato urinário por bactérias
produtoras de urease.

Fisiopatologia
A formação de cálculos é o resultado da ocorrência isolada ou em conjunto de
aumento na concentração urinária de solutos, diminuição de inibidores da cristalização e
aumento de condições promotoras da formação de cálculos. Outro mecanismo
conhecido é a infecção por bactérias produtoras de urease.

Aumento da concentração urinária de solutos


A hipercalciúria na maioria das vezes é idiopática, ocorrendo por defeito na
reabsorção tubular de cálcio ou por absorção intestinal excessiva de cálcio, geralmente
sem alterações dos níveis séricos de cálcio e paratormônio. A reabsorção tubular de
cálcio também pode estar diminuída na ausência de um defeito tubular, como na ingesta
excessiva de sódio. A hipercalciúria também pode ser causada por hiperparatireoidismo
primário, que cursa com hipercalcemia e aumento dos níveis séricos de paratormônio,
assim como por imobilização prolongada, neoplasias e doenças granulomatosas.
Independentemente do mecanismo, o excesso de cálcio na urina causa a formação de
precipitados. Tanto para o fosfato de cálcio como para o oxalato de cálcio, o produto de
solubilidade é limitado.
A hiperuricosúria aumenta muito o risco de desenvolvimento de cálculos de
ácido úrico. Está associada a gota, dieta rica em purinas, deficiências enzimáticas e
neoplasias. É comum a formação de cálculos de ácido úrico puro na vigência de taxas
normais de excreção de ácido úrico em pacientes com pH urinário excessivamente
ácido.
A hiperoxalúria é sempre decorrente de produção e/ou absorção intestinal
exagerada de oxalato, que, por não ser catabolizado, deve ser eliminado por excreção
renal. As principais causas de oxalúria são deficiências enzimáticas de origem genética,
doenças intestinais associadas a má-absorção de gorduras, como doença de Crohn,
doença celíaca e cirurgia bariátrica, e consumo exagerado de alimentos que contêm
oxalato, como espinafre, beterraba, chocolates e chá preto, ou que são precursores do
oxalato, como o ácido ascórbico.
A cistinúria é uma doença rara com herança de padrão autossômico recessivo na
qual há um grave defeito na absorção intestinal e na reabsorção tubular da cistina e de

Pedro Kallas Curiati 1026


vários outros aminoácidos, com excreção renal persistentemente elevada. A cistina tem
solubilidade limitada e forma cálculos com facilidade, especialmente em pH ácidos. Os
cálculos formados são radiopacos em razão da presença de enxofre na molécula de
cistina, tendem a crescer por agregação e podem adquirir grandes dimensões.

Diminuição dos inibidores da cristalização


A deficiência de inibidores de precipitação de solutos, como citrato, magnésio e
macromoléculas (proteína de Tamm-Horsfall e nefrocalcina), é fator importante na
gênese dos cálculos urinários.
O citrato tem afinidade relativamente alta pelo cálcio, mas, diferentemente do
oxalato e do fosfato, não forma precipitados. O magnésio tende a formar complexos
solúveis com o oxalato e diminui a sua absorção intestinal. Algumas substâncias, como
pirofosfato, glicosaminoglicanos e nefrocalcina, além da proteína de Tamm-Horsfall,
produzida e excretada nos túbulos renais, também exercem um efeito protetor contra o
desenvolvimento de cálculos urinários por dificultar a agregação e a precipitação de
cálcio, fosfato e oxalato, mesmo sem interferir nas respectivas concentrações urinárias.

Aumento de substâncias ou condições promotoras da formação de cálculos


Fatores promotores da formação de cálculos incluem hiperuricosúria e pH
urinário alcalino.
Em pH ácido, o fosfato de cálcio é muito mais solúvel do que em pH neutro ou
alcalino. Quando a urina se torna persistentemente alcalina, como ocorre nas
deficiências de acidificação urinária, a precipitação de fosfato de cálcio é muito
facilitada. Infelizmente, a precipitação de oxalato de cálcio é muito pouco influenciada
pelo pH e, portanto, continua a ocorrer mesmo que a urina esteja ácida. O pH alcalino
também facilita a combinação de fosfato com amônia, magnésio e cálcio, dando origem
ao cálculo de estruvita.

Infecção por bactérias que produzem urease


A infecção por bactérias que produzem urease, como Proteus sp, Klebsiella sp,
Serratia sp, Pseudomonas sp, Ureaplasma sp e Citrobacter sp, resulta em formação de
íons amônio e pH alcalino, facilitando a combinação de fosfato com amônia, magnésio
e cálcio.

Litíase renal no pronto socorro

Quadro clínico
As manifestações clínicas são variáveis e dependem do tamanho, do número, da
localização e do grau de obstrução dos cálculos. As formas mais comuns de
apresentação no pronto socorro são dor e hematúria, com infecção do trato urinário e
insuficiência renal aguda ocorrendo com menor frequência. A descrição clássica da dor
causada pela litíase renal é a cólica ureteral, cujo mecanismo é a obstrução ao fluxo
urinário, com aumento da pressão intraluminal, distensão da cápsula renal e contração
da musculatura ureteral. É caracterizada por dor intensa no flanco ou na região lombar,
com irradiação para hipogástrio, testículos ou grandes lábios, podendo ser acompanhada
por hematúria macroscópica, disúria, náusea, vômitos e íleo paralítico. Oligúria ou
anúria podem estar presentes nos casos de obstrução parcial ou total ao fluxo urinário,
respectivamente.
Ao exame físico, o paciente pode encontrar-se com fácies de dor, pálido,
taquicárdico e, às vezes, hipertenso. Febre pode acompanhar os casos com infecção

Pedro Kallas Curiati 1027


urinária associada. A punho-percussão da região costovertebral pode ser extremamente
dolorosa.

Avaliação complementar
Hemograma completo, uréia, creatinina e potássio séricos, gasometria venosa e
urina tipo I fazem parte da avaliação inicial. Hematúria reflete a passagem do cálculo
pelas vias urinárias. Leucocitúria, às vezes com nitrato positivo e visualização de
bactérias, sugere infecção urinária. Aumento de uréia, creatinina e potássio pode sugerir
obstrução do trato urinário.
Exames de imagem são fundamentais para a confirmação do diagnóstico de
litíase. Os cálculos de oxalato de cálcio são radiodensos e possuem forma arredondada,
os cálculos de ácido úrico são radiolucentes e possuem forma arredondada ou irregular e
os cálculos de estruvita e cistina são radiodensos e possuem forma irregular.
A radiografia simples de abdômen é útil e pode revelar opacificação nas áreas de
projeção de rins, ureteres e bexiga. Condições que simulam cálculos renais incluem
cálculos em vias biliares, calcificação de linfonodos mesentéricos, calcificações
pancreáticas, calcificações renais e flebólitos. Cálculos radiolucentes, de tamanho
reduzido ou sobrepostos a estruturas ósseas podem não ser visualizados.
A ultrassonografia de rins e vias urinárias pode detectar não somente a presença
de cálculos, mas também a ocorrência de dilatação pielocalicial. Todos os cálculos
podem ser visualizados por ultrassonografia, mas o exame não permite uma avaliação
muito precisa da região ureteral.
A tomografia computadorizada helicoidal atualmente é o teste de escolha por
apresentar alta sensibilidade e especificidade. Pode detectar o cálculo, assim como
definir o ponto e o grau de obstrução. Na grande maioria das vezes, não requer o uso de
contraste intravenoso, que pode ser útil na suspeita de cálculos de Indinavir, que são
radiolucentes e podem causar mínimos sinais de obstrução.

Tratamento
Na maioria das vezes, um episódio agudo de cólica renal sem complicações pode
ser manejado de forma conservadora com medicações intravenosas analgésicas, anti-
inflamatórias e antiespasmódicas.
O controle da dor pode ser conseguido com analgésicos simples, anti-
inflamatórios não-hormonais e, às vezes, com drogas mais potentes, como Meperidina e
Morfina. Antiespasmódicos, como Brometo de N-Butilescopolamina, também podem
ser empregados. Quando houver suspeita de cálculo de ácido úrico, radiolucente, pode-
se tentar alcalinizar a urina com citrato de potássio com o intuito de dissolver o cálculo
em poucos dias. Em caso de desidratação, pode-se prescrever Soro Fisiológico por via
intravenosa.
Em caso de litíase renal com infecção do trato urinário, cuja suspeita é baseada
em febre, leucocitose, disúria, leucocitúria, nitrito e bactérias na urina, dor intratável,
hematúria macroscópica intensa e obstrução do trato urinário com ou sem disfunção
renal, o paciente deverá ser internado e avaliado por um urologista. Nos casos de
infecção do trato urinário, deve ser iniciada antibioticoterapia, com Ceftriaxone 1g por
via intravenosa de 12/12 horas após coleta de urocultura.
Na presença de hematúria macroscópica, deve-se considerar a suspensão do uso
de medicamentos como Warfarina, Ácido Acetilsalicílico e Heparina, além de solicitar
contagem de plaquetas e coagulograma. Na maioria dos casos, é necessária sondagem
vesical de demora e irrigação vesical com Soro Fisiológico frio, a 15-20º Celsius, para
evitar formação de coágulos e obstrução do trato urinário.

Pedro Kallas Curiati 1028


Após a alta, o paciente deve ser orientado a procurar um nefrologista para
consulta ambulatorial. Cálculos eliminados devem ser guardados para análise.
Medicamento Dose Administração
Butil-escopolamina 1 ampola de 20mg Intravenosa lentamente
Dipirona 2-4mL (1-2g)
Metoclopramida 1 ampola (10mg)
Meperidina 2mL (100mg ou 1 ampola) 3mL da solução por via endovenosa lentamente
Água destilada 8mL
Diclofenaco ou 1 ampola (75mg) Intramuscular profunda
Cetoprofeno 1 ampola (100mg) Intravenosa lentamente

Litíase renal no ambulatório

Quadro clínico
No consultório, o médico geralmente receberá paciente após episódio agudo de
cólica renal, com achado de litíase em exame de rotina, após eliminação espontânea de
cálculo, em investigação de hematúria ou em investigação de insuficiência renal.

Avaliação complementar
Pacientes sem fatores de risco e que apresentaram primeiro episódio de cólica
renal aguda de resolução simples, sem disfunção renal ou infecção do trato urinário
associadas, não necessitam de investigação extensa. Por sua vez, pacientes com alto
risco de recorrência, como homens brancos de meia-idade e com antecedentes
familiares, e aqueles com cálculos compostos de cistina, ácido úrico, fosfato de cálcio
ou estruvita, diarreia crônica ou má-absorção intestinal, fraturas ósseas patológicas ou
osteoporose, infecção do trato urinário, idade inferior a vinte anos ou gota necessitam de
investigação completa.
A investigação começa com anamnese e exame físico. A anamnese deve ser
dirigida para encontrar etiologia sistêmica para a litíase, abordar aspectos dietéticos,
identificar as atividades profissionais e recreativas, discriminar os medicamentos em
uso e avaliar os antecedentes pessoais e familiares.
Exames bioquímicos gerais para a investigação incluem hemograma, sódio,
potássio, cloro, pH, bicarbonato, uréia, creatinina, ácido úrico, cálcio e fósforo séricos,
urina I, urocultura e urina de 24 horas com dosagens de sódio, potássio, creatinina,
ácido úrico, magnésio, cálcio, citrato e oxalato.
Com relação ao cálcio, quando estiver elevado ou no limite superior da
normalidade, devem-se considerar os diagnósticos diferenciais de hipercalcemia, como
sarcoidose, mieloma múltiplo, outras neoplasias malignas e hiperparatireoidismo
primário, devendo-se dosar os níveis de paratormônio. Acidose metabólica e
hipocalemia podem sugerir acidose tubular renal distal, que está associada a nefrolitíase
e nefrocalcinose. No exame de urina I, densidade elevada pode refletir urina
concentrada por baixa ingesta de líquidos. pH urinário elevado é encontrado em
pacientes com cálculo de estruvita ou fosfato de cálcio, enquanto que pH baixo pode ser
encontrados em pacientes com litíase por ácido úrico ou oxalato de cálcio. Na análise do
sedimento urinário, cristais hexagonais são patognomônicos de cistinúria. Em pacientes
com suspeita de cálculos de estruvita, principalmente naqueles com história de infecção
do trato urinário, pH urinário superior a 6.5 e bactérias na urina I, deve-se solicitar
urocultura, com identificação do agente mesmo que a contagem de colônias seja inferior
a 100.000/mL, já que a produção de urease pode ocorrer com contagens baixas de
bactérias. A coleta da urina de 24 horas deve ser realizada em mais de uma ocasião, em
geral três vezes, e com o paciente consumindo sua dieta habitual, sendo desprezada a

Pedro Kallas Curiati 1029


primeira micção matinal e armazenando todo o volume urinário a partir de então até o
dia seguinte, incluindo a primeira micção desse dia. Para assegurar que todo o volume
de urina foi coletado, pode-se dosar simultaneamente a creatinina urinária de 24 horas,
que quando inferior a 20mg/kg em homens e a 15mg/kg em mulheres sugere coleta
incompleta, exceto em indivíduos idosos, desnutridos e com pouca massa muscular.
Duas informações adicionais importantes que são obtidas com a coleta de urina de 24
horas são o volume urinário e o sódio urinário, que permitem estimar a quantidade de
água e de sódio (17mEq equivale a 1g) ingerida pelo paciente.
Todo paciente deve ser instruído a guardar os cálculos expelidos para posterior
análise, que pode trazer subsídio adicional para definir a anormalidade metabólica e
orientar o tratamento.
Com relação aos exames de imagem, geralmente são utilizados ultrassonografia
de rins e vias urinárias, radiografia de abdômen, tomografia computadorizada
helicoidal, urografia excretora e renografia isotópica com diurético.

Tratamento
De posse dos dados de anamnese e exame físico, exames laboratoriais de sangue
e urina, exames de imagem e análise do cálculo, o médico pode determinar a
programação terapêutica geral e individualizada para cada distúrbio metabólico
subjacente.
Nas orientações dietéticas gerais, deve-se incluir ingesta de líquidos,
predominantemente água, para obter um volume urinário de 2.0-2.5 litros por dia. A
ingesta de suco de maçã, tomate ou uva pode aumentar risco de formação de cálculos,
enquanto que suco de laranja ou limão pode diminuir o risco por aumentar a excreção
de citrato. O consumo moderado de café, chá ou vinho reduz o risco de litíase em
mulheres. Em pacientes com litíase por cistina, o volume urinário deve ser maior, em
torno de 4.0 litros por dia.
A restrição do consumo de sal para cerca de 3g por dia ou menos reduz a
excreção urinária de cálcio e deve ser encorajada em pacientes com hipercalciúria. O
consumo de alimentos industrializados com alto teor de sódio deve ser evitado. A cada
consulta, o médico pode monitorizar o consumo por meio da dosagem de sódio urinário
em 24 horas.
Ainda em relação aos pacientes com hipercalciúria, o uso de diuréticos
tiazídicos, como a Hidroclorotiazida, com dose inicial de 12.5mg/dia, e a Clortalidona,
com dose inicial de 25mg/dia, é eficaz em reduzir a calciúria. O paciente deve ser
orientado a aumentar o consumo de alimentos com potássio para prevenir hipocalemia e
dosar os níveis séricos do íon dez dias após o início do tratamento.
O consumo de proteínas em alguns grupos de pacientes, principalmente aqueles
com hipercalciúria e/ou hiperuricosúria, deve ser restrito a 0.8-1.2g de proteína animal
por quilograma de peso corpóreo a cada dia, já que o metabolismo de certos
aminoácidos pode gerar íons sulfato, com precipitação de cálcio na urina. A ingesta de
proteína animal também aumenta a carga filtrada de cálcio, com hipercalciúria, além de
causar acidose metabólica e reduzir o pH urinário, com redução da excreção urinária de
citrato, aumento da excreção urinária de ácido úrico e formação de cálculos de ácido
úrico.
A recomendação atual para ingesta de cálcio gira em torno de 800-1200mg/dia
para pacientes com litíase renal. Não deve haver restrição ao consumo de cálcio, nem
mesmo em pacientes com hipercalciúria, pois a falta de cálcio no lúmen intestinal leva a
um aumento da absorção de oxalato, com hiperoxalúria secundária.
Pacientes que apresentam uricosúria devem restringir o consumo de alimentos

Pedro Kallas Curiati 1030


com alto teor de purinas, como miúdos e vísceras, frutos do mar, sardinha, bacon,
bacalhau, espinafre, couve-flor, feijões e aspargos. Naqueles indivíduos com uricosúria
e litíase por ácido úrico, pode-se alcalinizar a urina, visto que o ácido úrico torna-se
mais solúvel em pH urinário em torno de 6.5-7.0, não devendo-se alcalinizar além
desses valores pelo risco de precipitar fosfato de cálcio.
Em situações de catabolismo celular intenso com aumento do nível de ácido
úrico sanguíneo, como neoplasias hematológicas e síndrome de lise tumoral, pode-se
prescrever Alopurinol, apresentado na forma de comprimidos de 100mg e 300mg, com
dose inicial de 100mg por dia. Estados de diarreia crônica devem ser investigados e
tratados porque causam depleção de bicarbonato e redução do pH urinário, propiciando
a formação de cálculos de ácido úrico.
Todo paciente com litíase deve ter os níveis de citrato urinário de 24 horas
aferidos em mais de uma ocasião. Medicamentos como o Citrato de Potássio (Litocit®)
são indicados, além de alimentação rica em citrato, com sucos de laranja ou limão. O
Citrato de Potássio é apresentado na forma de comprimidos de absorção retardada de
5mEq e de 10mEq, com dose inicial de 10mEq três vezes por dia durante ou até trinta
minutos após as refeições em caso de hipocitratúria moderada e de 20mEq três vezes ao
dia durante ou até trinta minutos após as refeições em caso de hipocitratúria severa,
caracterizada por citrato em urina de 24 horas inferior a 150mg, tendo o intuito de
aumentar a citratúria para além de 320mg em 24 horas. Eletrólitos séricos, creatinina
sérica, hemograma completo, pH urinário e citrato em urina de 24 horas devem ser
monitorizados a cada quatro meses.
Pacientes com hiperoxalúria devem ser orientados a restringir o consumo de
alimentos com oxalato, como espinafre, beterrabas, chocolate e chá preto. O consumo
de cálcio deve ser de 1000mg/dia para garantir um melhor balanço na absorção
intestinal de oxalato. Carbonato de Cálcio, com 250-500mg de cálcio elementar duas
vezes ao dia durante as refeições, pode ser empregado para quelar o oxalato intestinal.
Suplementos de magnésio e piridoxina podem beneficiar alguns pacientes. Deve-se
considerar a suspensão de suplementos alimentares com vitamina C. Em caso de doença
inflamatória intestinal que cursa com aumento da absorção de oxalato, o tratamento
específico pode melhorar o quadro. Em caso de hiperoxalúria primária, o emprego de
ortofosfato também é uma opção terapêutica e nos pacientes com doença renal crônica
progressiva, o transplante hepático e/ou renal pode ser necessário.
Pacientes com cálculos de estruvita requerem abordagem clínica e cirúrgica
agressiva, com indicação precoce da remoção do cálculo. Antibióticos específicos para
a bactéria isolada na urocultura são essenciais tanto para a redução do crescimento
quanto para a prevenção de novos cálculos. Em certas situações, faz-se necessário o uso
prolongado de antimicrobianos até a erradicação da bactéria isolada. As bactérias
podem permanecer no interstício do cálculo e, mesmo com uroculturas negativas, pode
ser necessário prolongar o tratamento por mais três meses.
Pacientes com cálculos de cistina, além da grande ingesta de líquidos, podem se
beneficiar do uso de drogas como D-Penicilamina, apresentada na forma de cápsulas de
250mg, com dose inicial de uma cápsula por dia uma hora antes ou duas horas após a
ingesta alimentar, e Tiopronina, que se ligam à cistina e diminuem sua concentração
urinária. O Captopril, um dos inibidores da enzima de conversão da angiotensina, pode
ser efetivo por levar à formação de compostos de tiolsteína, que são cerca de duzentas
vezes mais solúveis que a cistina. A alcalinização urinária com citrato de potássio
também pode ser empregada.
Distúrbio Tratamento
principal

Pedro Kallas Curiati 1031


Hipercalciúria Restringir sódio e proteínas de origem animal, consumir 1000mg/dia de cálcio, tratar
hipocitratúria e hiperuricosúria associadas, usar diuréticos tiazídicos e considerar
suspender vitamina D e análogos
Hiperuricosúria Restringir purinas, usar Alopurinol em caso de hiperuricemia, tratar hipocitratúria
associada e tentar alcalinização urinária com Citrato de Potássio em caso de litíase por
ácido úrico
Hipocitratúria Aumentar o consumo de alimentos ricos em citrato e usar Citrato de Potássio, sendo
preconizada cautela em caso de pH urinário superior a 6.5
Hiperoxalúria Restringir alimentos que contêm oxalato, usar Carbonato de Cálcio, magnésio e/ou
Piridoxina, tratar doenças intestinais disabsortivas, suspender o uso de ácido ascórbico
e considerar uso de Ortofosfato e transplante renal e/ou hepático em caso de
hiperoxalúria primária
Cistinúria Considerar uso de D-Penicilamina, Tiopronina e Captopril

Tratamento urológico
A maioria dos cálculos com tamanho igual ou inferior a 4mm é eliminada
espontaneamente. Pode ser realizado tratamento clínico para cálculos com tamanho
inferior a 10mm em caso de controle satisfatório dos sintomas. O uso de Tansulosina
0.4mg por via oral uma vez ao dia durante quatro semanas pode facilitar a passagem da
pedra. Bloqueador de canal de cálcio, como Nifedipino, constitui alternativa.
O tratamento urológico visa a remoção do cálculo das vias urinárias, a sua
desobstrução e, eventualmente, a correção de malformações anatômicas. Atualmente, as
técnicas de remoção de cálculos incluem litrotripsia extracorpórea por ondas de choque,
ureteroscopia, nefrolitotomia percutânea e cirurgia aberta. Como técnica de
desobstrução, deve ser citada, além da destruição do cálculo por ureteroscopia com ou
sem a colocação de cateter duplo J, a nefrostomia percutânea, preferida em caso de
obstrução aguda com infecção associada pelo menor risco de desenvolvimento de sepse
e pela possibilidade de anestesia local.
As situações em que é comum a necessidade de intervenção do urologista são
infecção do trato urinário, obstrução do trato urinário, dor intratável e ausência de
resposta ao tratamento clínico.
Como técnica mais empregada, a litotripsia consiste em sessões de cerca de
trinta minutos sob analgesia e anestesia nas quais ondas de choque são aplicadas em
direção ao cálculo. O número de sessões depende do tamanho, da composição e da
quantidade dos cálculos. Os resultados são melhores para cálculos menores do que 2cm,
com coeficiente de atenuação inferior a 900 unidades Hounsfield e com distância da
pele inferior a 10cm e piores para cálculos grandes, múltiplos, associados a obstrução,
coraliformes, em rim em ferradura, em cálice inferior (especialmente se dilatado) e em
divertículo calicinal. O uso de litotripsia para tratamento de cálculos em cálice inferior
deve ser limitado para cálculos menores do que 1cm e de cálculos coraliformes deve ser
limitado para cálculos pequenos. As complicações mais comuns são obstrução ureteral,
hemorragias, hematomas e infecções. Contraindicações incluem infecção do trato
urinário ativa, coagulopatia ou diátese hemorrágica não-tratadas, obstrução distal e
gestação. Obesidade e deformidades da coluna espinal podem dificultar o
posicionamento adequado do paciente. Anticoagulantes, antiagregantes plaquetários e
anti-inflamatóios não-hormonais devem ser suspensos sete a dez dias antes do
procedimento. É necessário documentar resultado negativo de cultura de urina antes do
procedimento. Em mulheres em idade fértil, teste de gravidez deve ser realizado se
radiação ionizante será usada durante o procedimento. Os pacientes são orientados a
iniciar jejum para sólidos e líquidos na noite anterior ao procedimento e, a depender do
tamanho, da radioteransparência e da localização do cálculo, podem ser orientados a
usar laxativos previamente ao procedimento. Recomenda-se o uso de antibiótico

Pedro Kallas Curiati 1032


profilático, como fluorquinolona ou Sulfametoxazol-Trimetoprim, de antes do
procedimento a 24 horas após. Após o procedimento, os pacientes são orientados a
utilizar medicação analgésica e uma peneira para coletar fragmentos eliminados para
análise. O uso de Citrato de Potássio ou Tansulosina com ou sem Metilprednisolona
após o procedimento resulta em melhores taxas de eliminação completa dos cálculos.
Os pacientes devem ser orientados quanto a sinais de infecção e obstrução urinárias.
Hematúria leve e dor em flanco são esperadas durante alguns dias, mas hematúria
grosseira e dor severa indicam avaliação quanto à ocorrência de complicações.
Reavaliação é recomendada duas a quatro semanas após o procedimento, com urina 1,
radiografia de abdômen e ultrassonografia de rins e vias urinárias. O tratamento pode
ser repetido com intervalo de duas semanas ou mais se necessário. A eliminação de
fragmentos pode se prolongar por até três meses.
Tratamento ureteroscópico é indicado para cálculos ureterais obstrutivos que
ocasionam dores ou para cálculos com diâmetro superior a 6mm, com alto índice de
sucesso, especialmente no ureter distal. Em muitos casos, após o procedimento, deixa-se
um cateter duplo J por cerca de uma semana para evitar dor por fragmentos residuais ou
por edema da mucosa.
A nefrolitotomia percutânea é uma técnica que pode ser usada em pacientes com
cálculos maiores do que 2cm ou coraliformes, cálculos difíceis de serem pulverizados
pela litrotripsia, como os de cistina, cálculos localizados no pólo renal inferior, pela
dificuldade de drenagem dos fragmentos quando empregada a litrotripsia, e obesidade
mórbida. Consiste em criar uma via de acesso percutânea lombar através de uma incisão
para a introdução de nefroscópio e retirada ou fragmentação de cálculos calicinais,
piélicos ou ureterais superiores. Ao final do procedimento, pode-se deixar no trajeto
percutâneo um cateter de nefrostomia por 48-72 horas para drenar a urina e tamponar o
sangramento do parênquima renal. Complicações incluem sepse, hemorragia e lesão
intestinal ou esplênica.
Com relação à localização, cálculos coraliformes são submetidos a
nefrolitotomia percutânea e litrotripsia, cálculos caliciais e ureterais superiores com
diâmetro maior do que 6mm são submetidos a litrotripsia e cálculos em ureter distal são
submetidos a ureteroscopia ou litrotripsia. Nos cálculos de estruvita, a abordagem
urológica deve ser mais precoce e liberal, com boa resposta à litrotripsia em cálculos
com até 2cm, enquanto que cálculos maiores necessitam de nefrolitotomia percutânea
seguida ou não de litrotripsia.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 3: doenças hematológicas, oncologia, doenças renais e genitourinárias. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.
Urologia Básica: Curso de Graduação Médica. Miguel Srougi, José Cury. . 1ª edição. Barueri, São Paulo. Manole, 2006.
Diagnosis and acute management os suspected nephrolithiasis. Gary C Curhan, Mark D Aronson, Glenn M Preminger. UpToDate,
2011.
Evaluation of the adult patient with established nephrolithiasis treatment if stone composition is unknown. Glenn M Preminger,
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Options in the management of renal and ureteral stones in adults. Glenn M Preminger. UpToDate, 2011.
Shock-Wave Lithotripsy for Renal Calculi. Margaret S Pearle. N Engl J Med 2012;367:50-7.

Pedro Kallas Curiati 1033


CEFALEIA
A cefaleia pode ocorrer por tração, tensão, distensão, dilatação ou inflamação de
estruturas sensíveis a dor, como estruturas externas ao crânio, porções externas da dura-
máter e vasos intracranianos. O cérebro não possui fibras dolorosas, sedo insensível à
dor.
As cefaleias são divididas em primárias, quando não está evidente uma causa
anatômica, e secundárias, quando se encontra um fator causal. Três tipos de cefaleia
primária (tipo tensão, enxaqueca e em salvas) e um tipo de cefaleia secundária (abuso
de analgésicos) respondem pelo tipo de cefaleia na maior parte dos casos.
Cefaleia crônica diária é caracterizada por dores que duram mais do que quinze
dias por mês durante três meses ou mais do que 180 dias em um ano e é uma síndrome
que engloba cefaleias primárias e secundárias.
O diagnóstico é baseado na anamnese e no exame físico. Se a história clínica for
adequada, o exame físico raramente irá revelar sinais inesperados. Por outro lado, irá
reassegurar paciente e médico.
Investigação complementar, incluindo o uso de técnicas de neuroimagem,
raramente contribui para o diagnóstico quando a história e o exame físico sugerem
ausência de causa secundária.

CEFALEIAS PRIMÁRIAS

Cefaleias crônicas disfuncionais, não decorrentes de processos estruturais. As


características mais marcantes são a recorrência e a estereotipia na apresentação clínica.
Estudos de imagem são indicados para quadros atípicos ou com alteração do
exame neurológico. Não se deve investigar quadro típico com exame neurológico
normal.

Enxaqueca ou migrânea

Epidemiologia
Acomete 15% da população adulta do Reino Unido, sendo três vezes mais
frequente em mulheres do que em homens.

Classificação
Enxaqueca comum ou sem aura.
Enxaqueca clássica ou com aura, que pode ser hemiplégica, familiar ou
esporádica, basilar, caracterizada por vertigem, diplopia, zumbido e ataxia, ou retiniana,
caracterizada fosfenas, escotomas e amaurose.
Síndromes da infância precursoras de enxaqueca, com vômitos, dor abdominal e
vertigem.

Quadro clínico
Dor latejante, pulsátil, de forte intensidade, que causa o abandono das atividades
diárias, em princípio unilateral, com piora ao esforço físico.
Fotofobia, fonofobia, náusea ou vômitos.
Após a dor melhorar, o paciente apresenta sono.
Aura é um conjunto de sinais de disfunção neurológica focal que aparecem

Pedro Kallas Curiati 1034


subitamente e tendem a evoluir com fenômenos negativos, como escotomas, ou
positivos, como fosfenas. A aura pode preceder, suceder ou acompanhar a dor.

Fatores predisponentes e desencadeantes


Fatores predisponentes incluem estresse, depressão, ansiedade, menstruação,
menopausa e trauma crânio-encefálico ou cervical.
Fatores desencadeantes incluem relaxamento após período de estresse,
iluminação clara, ruídos altos, ingesta de bebidas alcoólicas, ingesta de queijo, atividade
física extenuante, menstruação e mudança em hábitos, como perder refeição, passar
noite sem dormir, viajar para lugar distante e ir dormir até tarde.

Critérios diagnósticos de enxaqueca


A – Pelo menos 5 crises preenchendo critérios de B a D.
B – Crise com duração entre 4 e 72 horas.
C – A cefaleia tem no mínimo duas das seguintes características:
1. Localização unilateral;
2. Qualidade pulsátil;
3. Intensidade moderada ou forte, que limita ou impede as atividades
diárias;
4. Agravada por subir degraus ou atividade física semelhante às de
rotina;
D – Durante a cefaleia há no mínimo um dos seguintes sintomas:
1. Náuseas e/ou vômitos;
2. Fotofobia e fonofobia;
E – Não há uma causa secundária atribuível à cefaleia:
1. História e exames físico e neurológico não-sugestivos de cefaleia
secundária;
2. História e/ou exame físico e/ou neurológico sugestivos de cefaleia
secundária, que é afastada por investigação complementar;
3. Cefaleia secundária está presente, mas as crises não ocorreram pela
primeira vez em clara relação temporal;
Em crianças, as crises podem ter duração menor, a dor é bilateral com maior
frequência e sintomas gastrointestinais são mais proeminentes.

Critérios diagnósticos de enxaqueca com aura


Pelo menos três dentre quatro características:
- Um ou mais sinais reversíveis de aura;
- Aura por mais de cinco minutos;
- Duração máxima da aura de sessenta minutos;
- Cefaleia inicia em no máximo sessenta minutos após a aura e dura de 4
a 72 horas;
Pelo menos 2 crises semelhantes.

Complicações da enxaqueca
Cefaleia crônica diária, com sintomas em mais do que quinze dias por mês
durante três meses ou mais do que 180 dias em um ano, sem abuso de medicações
analgésicas.
Status enxaquecoso é a denominação da crise de enxaqueca com duração
superior a 72 horas. Em geral acomete pacientes que já têm antecedente de enxaqueca e
que apresentam dor com as mesmas características habituais, porém que não melhora

Pedro Kallas Curiati 1035


apesar do uso da medicação. É preciso descartar causas secundárias e pode-se
administrar triptanos, como Sumatriptano, corticoides, como Dexametasona, e
neurolépticos, como Clorpromazina.
Aura persistente sem enxaqueca.
Infarto enxaquecoso, caracterizado por uma ou mais áreas isquêmicas associadas
aos sintomas da aura. A persistência de déficits neurológicos focais após uma crise de
migrânea com aura sempre deve ser investigada com neuroimagem.
Convulsão desencadeada por enxaqueca.

Investigação de cefaleia secundária


Os principais critérios para investigação de cefaleia secundária são status
enxaquecoso, refratariedade ao tratamento, aura pela primeira vez após o uso de
anticoncepcionais orais e aura atípica, com mais de uma hora e/ou componente motor.

Tratamento
Os objetivos incluem reduzir a frequência e a intensidade dos ataques, reduzir a
incapacidade associada, melhorar a qualidade de vida, prevenir a cefaleia e evitar o
abuso de analgésicos.
Controle de fatores predisponentes e desencadeantes através de medidas para
controlar o estresse, controle de padrões alimentares, combate ao sedentarismo,
avaliação da atividade profissional, atuação sobre fatores físicos e químicos ambientais,
diminuição ou abolição do tabagismo e manutenção do ritmo de atividade diária regular.

Tratamento de ataque ou abortivo

Técnicas não-farmacológicas
O paciente pode ser orientado a aplicar gelo, descansar em ambiente silencioso e
agradável, praticar medidas de relaxamento e dormir.

Técnicas farmacológicas
Tratamento estratificado:
- Tratamento inespecífico com analgésicos, anti-inflamatórios não-
hormonais e pró-cinéticos;
- Tratamento específico com triptanos e ergotamínicos;
Opções de analgesia simples incluem Ácido Acetilsalicílico 500-1000mg por via
oral até de 6/6 horas, Paracetamol 500mg por via oral até de 6/6 horas e Dipirona 1-2g
por via oral até de 6/6 horas.
Anti-inflamatórios não-hormonais são efetivos e opções incluem Naproxeno
250-500mg por via oral de 12/12 a 8/8 horas, Ibuprofeno 400-600mg por via oral até de
6/6 horas, Cetoprofeno 100mg por via intramuscular ou intravenosa até de 12/12 horas,
Diclofenaco 50mg por via oral até de 8/8 horas, 75mg por via intramuscular até de
12/12 horas ou supositório de 100mg por via retal até de 12/12 horas e Tenoxicam 20-
40mg por via intravenosa ou intramuscular uma vez ao dia. Contraindicações incluem
alergia conhecida, úlcera péptica e insuficiência renal. Deve-se evitar o uso em
hipertensos e idosos.
Antieméticos pró-cinéticos potencializam o tratamento analgésico por
promoverem o esvaziamento gástrico e tratarem náusea e vômitos. Podem ser utilizados
Metoclopramida 10mg por via oral ou intravenosa até de 8/8 horas e Domperidona 10-
20mg por via oral até de 8/8 horas ou supositório de 30-60mg por via retal até de 12/12
horas.

Pedro Kallas Curiati 1036


Triptanos atuam como agonistas seletivos dos receptores serotoninérgicos 5-
HT1B e 5-HT1D e apresentam menos efeitos adversos que os ergotamínicos, ligantes de
todos os tipos e subtipos de receptores de serotonina e também de receptores
dopaminérgicos, adrenérgicos e noradrenérgicos de todo o organismo. Os triptanos
causam vasoconstrição craniana, inibição de neurônios periféricos e inibição da
transmissão através de neurônios de segunda ordem do complexo trigêmino-cervical. Os
efeitos adversos são leves e transitórios, como vertigens, tontura, sensação de calor e de
fraqueza, náusea, vômitos, dispneia e aperto no peito. As principais contraindicações
são gravidez, doença coronariana, insuficiência vascular periférica e hipertensão arterial
grave. O medicamento mais utilizado é o Sumatriptano 50-100mg por via oral em dose
única com possibilidade de repetição da dose em caso de recorrência dos sintomas
desde que não seja excedido o máximo de 300mg em 24 horas, 20mg por spray nasal
com possibilidade de repetição desde que respeitado intervalo mínimo de duas horas e
não seja excedido o máximo de 40mg em 24 horas e 6-12mg/dia por via subcutânea.
Outras opções incluem Zolmitriptano 2.5-5.0mg/dia por via oral, Rizatriptano 5-
10mg/dia por via oral, Naratriptano 2.5-5mg/dia por via oral e Eletriptano 40-80mg/dia
por via oral. Há início de ação em trinta minutos e melhora da dor em duas horas, com
taxa de recorrência relativamente alta.
Apesar de sua boa e comprovada eficiência, atualmente o uso indiscriminado de
ergotamínicos tem sido muito criticado por efeitos adversos, risco aumentado de
indução de cefaleia rebote, abuso de analgésicos e piora dos vômitos. Há
contraindicação em pacientes com doença coronária, insuficiência hepática ou renal,
hipertensão arterial grave, gravidez, hipertireoidismo e porfiria. As opções incluem
Tartarato de Ergotamina 1-2mg por via retal ou sublingual com dose máxima diária de
4mg/dia e Mesilato de Dihidroergotamina 0.5mg spray nasal.
A Dexametasona na dose de 4-10mg por via intravenosa também é útil na crise
aguda de migrânea e seu uso é quase obrigatório no status enxaquecoso. Quando usada,
deve ser associada a outros analgésicos.
Opióides são potentes e úteis, mas seu uso rotineiro não é recomendado, sendo
reservado para intolerância ou contraindicação aos medicamentos tradicionais. Opções
incluem Tramadol 50-100mg por via oral, intravenosa ou intramuscular até de 6/6
horas, Codeína 30-60mg por via oral até de 4/4 horas e Oxicodona 10-20mg por via oral
até de 12/12 horas.
Em caso de aura prolongada, deve-se evitar drogas com efeito vasoconstritor,
como os ergotamínicos e os triptanos e pode-se usar Verapamil 5-10mg por via
intravenosa ou inalação com Nitrito de Amilo ou Isoproterenol 0.25%.
Exemplo de prescrição:
- Soro Glicosado a 5% 10mL, Metoclopramida 10mg, Dipirona 4mL e
Dexametasona 10mg por via intravenosa lentamente;

Tratamento profilático

Técnicas não-farmacológicas
Condicionamento físico.
Terapia física.
Acupuntura.
Tratamento odontológico.
Psicoterapia.

Técnicas farmacológicas

Pedro Kallas Curiati 1037


Indicações:
- Duas crises a cada quinze dias ou quatro crises no mês;
- Falta em mais de três dias no trabalho devido às crises;
- Crises intensas que interferem com a vida normal;
- Incapacidade psicológica de conviver com as crises;
- Medicações de ataque contraindicadas ou ineficientes;
- Crises prévias de enxaqueca com complicações isquêmicas;
Polifarmácia deve ser evitada e deve ser realizado aumento gradual das doses de
medicação, com avaliação sistemática de outras medicações em uso. O tempo de
tratamento com drogas efetivas deve prolongado por quatro a seis meses e então
suspenso gradualmente com titulação em duas a três semanas. Drogas aparentemente
não-efetivas não devem ser suspensas precocemente, com teste durante seis a oito
semanas após otimização das doses.
β-bloqueadores que não sejam agonistas parciais constituem a primeira linha de
tratamento na ausência de contraindicações, como asma, insuficiência cardíaca
descompensada, bradicardia, doença arterial periférica e depressão. Opções incluem
Atenolol 25-100mg/dia por via oral em dose única ou fracionado de 12/12 horas,
Metoprolol 50-100mg por via oral de 12/12 horas e Propranolol 20-40mg de 12/12 a 8/8
horas. Efeitos colaterais incluem fraqueza, tontura, sonhos vividos, depressão e
distúrbios da memória.
Antidepressivos tricíclicos administrados ao dormir ou uma a duas horas antes
constituem a primeira linha de tratamento quando a enxaqueca coexiste com cefaleia
tensional, outro tipo de dor crônica, insônia e depressão. Contraindicações incluem
cardiopatia com bloqueio de ramo ou com alargamento de intervalo QT. Efeitos
colaterais incluem boca seca, sedação, náusea, hipotensão postural, retenção urinária e
obstipação. A principal opção é Amitriptilina 10-150mg/dia, enquanto que Nortriptilina
10-150mg/dia constitui alternativa.
Anticonvulsivantes constituem a segunda linha de tratamento. Opções incluem
Topiramato 25mg por via oral em dose única a 50mg por via oral de 12/12 horas e
Valproato de Sódio 300-1000mg por via oral de 12/12 horas. Contraindicações incluem
gestação. Efeitos colaterais do Topiramato incluem anorexia, disfunção cognitiva,
nefrolitíase, depressão e flutuação do humor. Efeitos colaterais do Valproato de Sódio
incluem náusea, astenia, sonolência, ganho de peso e alopecia. Há indicação de
avaliação complementar com hemograma completo com contagem de plaquetas,
coagulograma e tempo de sangramento no início do tratamento com Valproato de Sódio
e em caso de surgimento de equimoses.
β-bloqueadores e antidepressivos tricíclicos podem ser utilizados em associação,
postulando-se efeito sinérgico.
Bloqueadores de canais de cálcio, como o Verapamil, têm pouca evidência de
benefício e a cefaleia muitas vezes é efeito colateral. Inibidores seletivos da recaptação
de serotonina têm valor incerto até o momento.
Na enxaqueca relacionada à menstruação, pode-se utilizar Ácido Mefenâmico
500mg de 8/8 a 6/6 horas do primeiro dia da menstruação até o término do
sangramento, tratamento considerado de primeira linha quando a enxaqueca associa-se a
menorragia ou dismenorreia.

Cefaleia tensional

Epidemiologia
Menos debilitante do que a enxaqueca, porém mais prevalente. Pode atingir até

Pedro Kallas Curiati 1038


80% da população.

Fisiopatologia
Mecanismos pericranianos miofasciais estão relacionados à cefaleia tensional
esporádica, enquanto que a sensibilização das vias de dor estaria mais relacionada à
cefaleia tensional crônica.
Fatores predisponentes incluem sedentarismo, estresse e depressão.

Quadro clínico
Dor de origem muscular, vaga, em pressão ou constrição ao redor da cabeça,
bilateral, às vezes latejante, irradiada para musculatura posterior do pescoço ou até
região interescapular, com duração de trinta minutos a sete dias. Às vezes é
acompanhada de fraqueza e cansaço.
Dor à palpação de musculatura cervical posterior.
Geralmente associada à ansiedade em casos agudos ou à depressão em casos
crônicos. É importante questionar sobre mudança de hábitos de vida, como cessação do
tabagismo.

Critérios diagnósticos para cefaleia tensional esporádica


A - Pelo menos 10 crises preenchendo os critérios de B a D. O número de dias
desta cefaleia é menor ou igual a 180 em um ano ou quinze em um mês.
B – Cefaleia com duração entre trinta minutos e sete dias.
C – Pelo menos duas das seguintes características da dor:
1. Qualidade em aperto ou pressão, não-pulsátil;
2. Intensidade leve a moderada, que pode limitar sem impedir atividades;
3. Localização bilateral;
4. Não é agravada por subir degraus ou atividade física semelhante de
rotina diária;
D – Ambos os seguintes:
1. Náusea e vômitos ausentes;
2. Fotofobia e/ou fonofobia ausentes;
E – Não há uma causa secundária atribuível à cefaleia:
1. História e exames físico e neurológico não-sugestivos de cefaleia
secundária;
2. História e/ou exame físico e/ou neurológico sugestivos de cefaleia
secundária, que é afastada por investigação complementar;
3. Cefaleia secundária está presente, mas as crises não ocorreram pela
primeira vez em clara relação temporal;

Periodicidade
Esporádica infrequente quando menos de um dia por mês, com ou sem dor
pericraniana.
Esporádica frequente quando entre um e quinze dias por mês.
Crônica quando mais do que quinze dias por mês durante pelo menos três meses
ou quando mais de 180 dias em um ano.

Tratamento
A abordagem não-farmacológica inclui prática de atividade física regular,
orientações para manejo do estresse e encaminhamento para fisioterapia.
A abordagem farmacológica aguda inclui analgésicos simples por via oral, com

Pedro Kallas Curiati 1039


ou sem anti-inflamatórios não-hormonais.
A abordagem farmacológica profilática deve ser considerada na presença de
sintomas em dois ou mais dias por semana. Naproxeno 250-500mg por via oral de 12/12
horas por três semanas pode ser usado para controlar os sintomas frequentes e recuperar
o efeito dos analgésicos simples, mas em caso de falha não deve ser repetido.
Antidepressivos tricíclicos constituem o tratamento de primeira linha para cefaleia
tensional episódica frequente e crônica, com Amitriptilina 10-25mg por via oral de noite
e titulação da dose com incrementos de 10-25mg a cada uma a duas semanas até alvo de
75-150mg se os efeitos colaterais permitirem. Suspensão da droga pode ser tentada após
a melhora dos sintomas ser mantida por quatro a seis meses.

Conduta
Analgesia com Ácido Acetilsalicílico, Dipirona ou Paracetamol.
Em caso de falha terapêutica, indica-se o uso de anti-inflamatório não-hormonal
por 3-5 dias. Em caso de refratariedade, deve-se avaliar o uso de antidepressivos
tricíclicos, inicialmente 25mg nos primeiros três dias, com aumento para 50mg no
quarto dia. Opções incluem Imipramina, Amitriptilina e Nortriptilina. É necessário
aguardar quinze dias antes de aumentar novamente a dose da droga.
Inibidores da recaptação de serotonina não apresentam efeito em cefaleias
tensionais.
Acupuntura é de eficácia comprovada para o tratamento da cefaleia tensional.

Cefaleia em salvas

Epidemiologia
Paciente típico é o homem magro, com idade entre vinte e cinquenta anos,
tabagista e etilista. Há hereditariedade autossômica dominante em cerca de 5% dos
casos.

Fisiopatologia
Possível origem hipotalâmica, relacionada à alteração na resposta de
quimiorreceptores à hipoxemia, com prejuízo da regulação da concentração arterial de
oxigênio.

Quadro clínico
Cefaleia intensa retro ou periorbitária e temporal, sempre do mesmo lado, com
duração entre quinze e cento e oitenta minutos, que deve estar acompanhada de pelo
menos um dentre injeção conjuntival e/ou lacrimejamento ipsilateral, congestão nasal
e/ou rinorréia ipsilateral, edema palpebral ipsilateral, sudorese da fronte e da face
ipsilateral, miose e/ou semiptose ipsilateral e sensação de inquietação ou agitação. Não
há uma causa secundária atribuível à cefaleia.
A forma episódica ocorre em clusteres tipicamente com duração de seis a doze
semanas uma vez por ano ou uma vez a cada dois anos. A frequência das crises varia de
uma em dias alternados até oito por dia.
Cinco crises semelhantes são necessárias para o diagnóstico.
Em geral o paciente acorda a noite com dor em função da queda da pressão
parcial de oxigênio durante o sono REM.
Comumente a dor é agravada pelo decúbito horizontal.
O paciente fica inquieto e, muitas vezes, desespera-se.
Episódios estão associados a alterações na luminosidade ou nos horários da

Pedro Kallas Curiati 1040


rotina a que o paciente está habituado. Ocorrem sempre na mesma época do ano.

Tratamento
Medidas comportamentais incluem tratamento da ansiedade, promoção da
abstinência de álcool e introdução de medidas de higiene do sono.
Crise aguda:
- Oxigênio a 100% 10-15L/minuto durante dez a vinte minutos em
máscara não-reinalante;
- Sumatriptano 6-12mg por via subcutânea;
- Analgésicos comuns e opiáceos têm pouco efeito e não devem ser
prescritos;
A medicação profilática deve ser introduzida o quanto antes após o início de um
novo cluster. Para a maior parte das drogas, a dose deve ser titulada o mais rápido
possível até a dose máxima tolerada. Na ausência de benefício aparente dentro de uma
semana do uso da dose máxima tolerada, a droga deve ser descontinuada e substituída
ou associada a outra medicação.
Verapamil é um agente de primeira linha tanto para cefaleia em salvas episódica
como para a doença crônica. Doses de 80mg de 8/8 a 6/6 horas podem ser suficientes,
mas pode ser necessário titular para até 960mg/dia em alguns casos. Efeitos colaterais
incluem constipação e rubor facial. Eletrocardiograma deve ser avaliado quanto a
presença de bloqueio atrioventricular antes de a dose atingir 480mg/dia e sempre que
for aumentada a partir de então. β-bloqueadores não devem ser utilizados
concomitantemente.
Prednisolona pode ser preferida porque, diferente das outras opções
farmacológicas, pode ser iniciada já em dose alta. Preconiza-se 60-100mg por via oral
uma vez ao dia por dois a cinco dias, com redução de 10mg/dia a cada dois ou três dias
a partir de então, de modo a que a medicação seja suspensa em duas a três semanas.
Recidiva pode ocorrer durante o desmame, de modo que a droga pode ser utilizada em
combinação com outro medicamento profilático até que ele seja efetivo.
Carbonato de Lítio deve ser considerado em cefaleia em salvas episódica ou
crônica se o Verapamil não for efetivo. Na forma episódica, com tratamento esperado
de menor duração, inferior a doze semanas, doses mais elevadas, de 800-1600mg/dia
podem ser necessárias, com nível sérico devendo ser mantido em 1.0-1.4mmol/L. O
paciente poderá desenvolver tolerância após o tratamento de dois ou três clusteres. Na
forma crônica, com necessidade de tratamento a longo prazo, pode haver benefício com
o uso de doses diárias de 600-900mg, com concentração sérica de 0.3-0.8mmol/L.
Sintomas de intoxicação incluem náusea, diarreia, poliúria e polidipsia e indicam
necessidade de suspender o tratamento. Efeitos colaterais a longo prazo incluem tremor,
edema, distúrbios eletrolíticos, fraqueza muscular, distúrbios do sistema nervoso
central, anormalidades eletrocardiográficas, hipotireoidismo e hipertireoidismo. As
funções renal, tireoidiana e cardíaca devem ser monitorizadas. Anti-inflamatórios não-
hormonais não devem ser utilizados concomitantemente.
Com exceção da Prednisolona, a medicação profilática deve ser continuada na
cefaleia em salvas episódica até que o paciente esteja assintomático por pelo menos
duas semanas. As drogas devem ser retiradas com desmame gradual ao invés de
suspensas abruptamente. Em caso de recidiva, o tratamento deve ser reiniciado.

Cefaleias por uso excessivo de analgésicos

Epidemiologia

Pedro Kallas Curiati 1041


Incide em cerca de um em cada cinquenta adultos, sendo cerca de cinco vezes
mais frequente em mulheres.

Quadro clínico
Início do quadro com uma cefaleia primária, mais comumente enxaqueca do que
cefaleia tensional. Com o uso excessivo de analgésicos, especialmente aqueles com
combinação de drogas contendo barbitúricos, Codeína e cafeína, ocorre mudança nas
características da dor e a cefaleia torna-se diária. O uso de triptanos em dez ou mais dias
do mês e de analgésicos simples em quinze ou mais dias do mês está relacionado a risco
aumentado de cefaleia por uso excessivo de analgésicos.
Dor logo pela manhã, em opressão, com piora com atividade física, raramente
associada a náuseas e vômitos. Frequentemente, no caso da enxaqueca transformada em
cefaleia crônica diária, as dores se apresentam com características de cefaleia tensional,
as crises de exacerbação perdem o caráter pulsátil e os fenômenos associados, como
náusea, vômitos, fonofobia e fotofobia, ficam menos intensos.
Doses baixas diárias apresentam maior risco em relação a doses altas semanais.

Critérios diagnósticos
Critério diagnóstico prevê cefaleia presente por pelo menos quinze dias no mês,
caracterizada por piora significativa da dor durante abuso de medicação analgésica e
com resolução da dor com reversão para o padrão episódico prévio dentro de dois meses
após a suspensão da medicação. Tipo de cefaleia crônica diária.

Tratamento
É fundamental suspender os analgésicos de abuso para bloquear o efeito rebote.
Ergotamínicos, triptanos e analgésicos simples podem ser suspensos abruptamente.
Barbitúricos e opióides devem ser titulados ao longo de duas a quatro semanas e, se
necessário, principalmente em caso de comorbidade com depressão e ansiedade, durante
internação hospitalar.
Recomenda-se tratamento dos sintomas com o uso de Naproxeno 250-500mg
por via oral de 12/12 horas durante três semanas ou 250mg por via oral de 8/8 horas por
duas semanas, 250mg por via oral de 12/12 horas por mais duas semanas e 250mg por
via oral uma vez ao dia nas últimas duas semanas. Opções de medicação de resgate
incluem anti-inflamatórios não-hormonais por qualquer via de administração,
Dexametasona 12-16mg/dia por via intravenosa, intramuscular ou oral durante alguns
dias, Sumatriptano 6-12mg/dia por via subcutânea ou 100-200mg/dia por via oral,
Naratriptano 2.5mg por via oral de 12/12 horas, Clorpromazina 12.5-25.0mg por via
intravenosa de 6/6 horas por dois dias e, em caso de dependência de opióides, Clonidina
transdérmica 0.1mg a cada dois ou três dias.
Ao mesmo tempo deve ser iniciada a medicação profilática, que pode requerer
combinações de drogas e suporte psicológico e psiquiátrico.

CEFALEIAS SECUNDÁRIAS

Cefaleias decorrentes de patologia subjacente, como meningite, hemorragias


intracranianas, tumores, trombose venosa cerebral, arterite temporal, hidrocefalia,
apoplexia hipofisária, sinusite e abscessos.

Sinais de alerta em cefaleias agudas


Início recente, mesmo que quadro muito sugestivo de primeiro episódio de

Pedro Kallas Curiati 1042


enxaqueca ou de cefaleia em salvas, particularmente se muito intensa e súbita ou se em
pacientes com mais de cinquenta anos ou crianças com mais de dez anos.
Início recente em paciente com câncer, imunossupressão ou HIV.
Mudança no padrão da cefaleia.
Intensidade progressiva em poucas semanas.
Refratariedade ao tratamento.
Dor acorda o indivíduo.
Anticoagulação ou discrasia sanguínea.
Alteração do exame neurológico.
Persistência matinal associada a náusea.
Sepse.
Associação com mudança postural.
Ausência de critérios de doença primária.

Causas de cefaleia secundária


Tumores intracranianos estão relacionados a cefaleia quando são grandes o
suficiente para causar hipertensão intracraniana, o que comumente é aparente pela
história clínica. Papiledema e sinais neurológicos focais comumente estão presentes.
Meningite geralmente é acompanhada de febre e rigidez de nuca em paciente
visivelmente doente.
Hemorragia subaracnóidea cursa com cefaleia que é comumente descrita como a
pior da vida e que, na maior parte das vezes, apresenta início súbito ou ictal. Rigidez de
nuca pode demorar horas para se manifestar. Em pacientes idosos, sinais e sintomas
clássicos podem estar ausentes.
Arterite temporal é caracterizada por cefaleia persistente, que pode ser pior de
noite, eventualmente intensa, em paciente com idade superior a 50 anos.
Glaucoma é afecção rara antes da meia idade e decorre de hipertensão
intraocular aguda. O indivíduo apresenta olhos avermelhados, doloridos e com pupilas
dilatadas e fixas. Pode haver visão dupla, náusea e vômitos. O quadro é sugestivo
quando o paciente se queixa de halos circundando as luzes.
Hipertensão intracraniana idiopática é causa rara de cefaleia e ocorre
especialmente em mulheres obesas jovens. Pode não ser evidenciada claramente através
da história e o papiledema indica o diagnóstico.
Intoxicação por monóxido de carbono é incomum, porém potencialmente fatal.
Sintomas incluem cefaleia, náusea, vômitos, fraqueza muscular e alterações visuais,
como visão dupla.
Indivíduos que já foram investigados com líquor e apresentam cefaleia que não
melhora com a medicação podem apresentar cefaleia pós-punção. Nesses casos, é
importante perguntar se os sintomas melhoram com decúbito dorsal horizontal e
orientar hidratação, decúbito dorsal horizontal e analgesia.

Exames complementares
Exame do fundo de olho e exame neurológico são obrigatórios na investigação
de cefaleia secundária.
Tomografia computadorizada é melhor exame para avaliar hemorragia aguda,
além de ser técnica relativamente barata e acessível. Ressonância magnética é melhor
exame para avaliar a fossa posterior e é mais sensível que a tomografia
computadorizada.
Avaliação do líquor com manometria é indicada em cefaleia de início súbito
com tomografia computadorizada de crânio normal, cefaleia acompanhada de sinais de

Pedro Kallas Curiati 1043


irritação meníngea e/ou de infecção, suspeita de sangramento ou de processo
inflamatório, suspeita de hipertensão ou hipotensão intracraniana, déficits de nervos
cranianos e neoplasia ou sorologia positiva para HIV sem lesão intracraniana que
contraindique a punção.
Deve-se também investigar vasculopatia carotídea, hipóxia, hipercapnia,
hipoglicemia, insuficiência renal e otorrinolaringopatias. Pode-se realizar palpação de
articulação têmporo-mandibular e pesquisar bruxismo ou uso exagerado de chicletes.

Achados clínicos Hipótese diagnóstica Investigação


Febre, confusão mental e Meningite, encefalite Tomografia computadorizada de crânio
rigidez de nuca antes da coleta de líquor apenas na
presença de déficit focal
Cefaleia súbita ou pior da vida Hemorragia subaracnóide Tomografia de crânio e, se normal,
coleta de líquor, com indicação de
angiografia cerebral para pesquisa de
aneurismas em caso de confirmação do
diagnóstico
Início súbito, dor cervical, Dissecção de carótidas Angiotomografia, angiorressonância ou
alterações neurológicas arteriografia digital
variadas
Hipertensão arterial grave, Encefalopatia hipertensiva Nitroprussiato de Sódio e tomografia
confusão mental e papiledema computadorizada se déficit neurológico
focal
Nova cefaleia após os cinquenta Artrite de células gigantes Velocidade de hemossedimentação e
anos de idade, dor à palpação biópsia de artéria temporal
da artéria temporal, podendo
estar acompanhada de
polimialgia reumática
Olho vermelho e pupilas Glaucoma agudo Tonometria
medianas
Cefaleia progressiva com Lesão com efeito de massa Tomografia computadorizada ou,
qualquer alteração ao exame em sistema nervoso preferencialmente, ressonância nuclear
neurológico central, como tumor, magnética de crânio
abscesso ou hematoma
Cefaleia súbita, de forte Trombose de seios venosos Angioressonância magnética de crânio
intensidade, tendo sido
descartada hemorragia
subaracnóide e na presença de
trombofilias
Perda de campos visuais Apoplexia hipofisária Ressonância nuclear magnética de
laterais, cefaleia e tumor crânio
hipofisário
Sexo feminino, obesidade, Hipertensão intracraniana Tomografia computadorizada e coleta de
papiledema e déficit em sexto idiopática líquor com manometria
par craniano
Cefaleia de esforço Malformação da transição Tomografia computadorizada de crânio
occipitocervical (Arnold- sem contraste e punção liquórica se
Chiari), aneurisma imagem normal
intracraniano

Arterite temporal
Também é conhecida como arterite de células gigantes, que deve ser suspeitada
em indivíduos com idade igual ou superior a cinquenta anos, cefaleia localizada de
início recente e artéria temporal dolorida à palpação ou com diminuição do pulso.
O quadro clínico caracterizado por dor ou claudicação associada à mastigação,
deglutição e movimentação da língua. Em parte dos pacientes, há associação com

Pedro Kallas Curiati 1044


polimialgia reumática, com rigidez e dor em pescoço, ombro e quadril.
A avaliação diagnóstica prevê exames laboratoriais, como velocidade de
hemossedimentação e proteína C reativa. A confirmação é feita com biópsia.
Recomenda-se avaliar o fundo de olho.
Tratamento com Prednisona 40-60mg/dia ou 1mg/kg por 4-6 semanas.

Neuralgia do trigêmeo
A neuralgia do trigêmeo é a mais comum do segmento crânio-cervical.
Convencionou-se aplicar o termo neuralgia clássica para os casos com
apresentação típica, mesmo quando compressão vascular da raiz do nervo, presente na
maior parte dos casos, for identificada. O termo secundário deve ser reservado para
todas as outras lesões que possam ser demonstráveis, como tumores, angiomas,
aneurismas gigantes, placas desmielinizantes de esclerose múltipla, infartos, processos
inflamatórios e infecciosos, traumatismos a malformações da base do crânio.
A neuralgia clássica do trigêmeo é caracterizada pela ocorrência de crises de dor
de curta duração, com menos de dois minutos, paroxísticas, lancinantes, em choque,
pontada ou agulhada, no território de uma ou mais divisões nervo. O transtorno é
predominantemente unilateral e a frequência dos sintomas varia muito de paciente para
paciente. As dores geralmente são espontâneas, mas comumente são desencadeadas por
estímulos triviais, como escovar os dentes, mastigar, falar, barbear-se e fumar. Pode
haver espasmo facial no lado afetado. Pico de incidência entre a quinta e a sétima
décadas de vida, com predomínio no sexo feminino.
Nas neuralgias clássicas o exame clínico e neurológico de um modo geral é
normal, porém existe sempre a obrigatoriedade de execução de exames de neuroimagem
para excluir causas secundárias.
Excluindo-se as causas secundárias que tenham indicação cirúrgica absoluta e a
esclerose múltipla, que tem tratamento específico, o tratamento farmacológico é a
primeira abordagem para as neuralgias do trigêmeo. Os efeitos colaterais podem ser
minimizados com o fracionamento da dose ao longo do dia e monoterapia deve ser
preferida.
Drogas anticonvulsivantes, bloqueadoras dos canais de sódio, que suprimem as
descargas ectópicas e estabilizam as membranas neuronais, constituem a primeira
escolha. A Carbamazepina é a droga a ser utilizada inicialmente, com dose inicial de
400mg/dia e dose máxima de 1200mg/dia. A maioria dos pacientes fica livre da dor em
duas semanas. Oxcarbazepina é tão eficaz quanto a Carbamazepina e é mais bem
tolerada pelos pacientes idosos. Em caso de piora aguda no ambiente de pronto-socorro,
a infusão intravenosa de Fenitoína 15mg/kg em duas horas pode ser adotada.
Se o tratamento farmacológico não controlar as dores devem ser considerados
procedimentos cirúrgicos percutâneos ou abertos.

Trombose venosa cerebral


Doença cerebrovascular que compromete a circulação venosa cerebral com
trombose de veias ou de seios venosos.
Todas as idades e gêneros podem ser afetados, com predomínio em mulheres
relacionado ao uso de anticoncepcionais orais e gravidez. Geralmente incide entre vinte
e quarenta anos de idade.
Etiologia:
- Estados pró-trombóticos adquiridos, como gravidez, puerpério,
policitemia, poliglobulias, síndromes paraneoplásicas, síndrome
nefrótica, síndrome antifosfolípide, tabagismo e uso de anticoncepcionais

Pedro Kallas Curiati 1045


combinados orais;
- Trombofilias hereditárias;
- Infecções locais, como otite, mastoidite, sinusite e meningite;
- Doença de Behçet, sarcoidose, granulomatose de Wegener e outras
vasculites;
- Alterações do fluxo sanguíneo, como desidratação, insuficiência
cardíaca congestiva, fístulas durais espontâneas ou traumáticas e
compressão dos seios durais por processos expansivos;
Os sinais e sintomas são variáveis na dependência de localização, extensão e
evolução da trombose, bem como dos fatores predisponentes ou das doenças prévias. A
trombose venosa central pode evoluir de forma aguda, com menos de dois dias,
frequentemente em puerpério e infecções, de forma subaguda, de dois dias a um mês, ou
de forma crônica, com mais de um mês.
Entre os principais sinais e sintomas destaca-se a cefaleia, geralmente pulsátil,
intensa e difusa, que em uma minoria dos casos tem características que simulam a
cefaleia da hemorragia subaracnóide. Déficits focais sensitivos ou motores ocorrem em
30-50% dos casos e distúrbios da consciência são achados frequentes que acompanham
geralmente a trombose do sistema venoso central. Entre as manifestações neuro-
oftalmológicas predomina o papiledema e podem ocorrer diplopia e amaurose. Crises
epilépticas ocorrem em torno de 40% dos pacientes, podendo ser focais ou
generalizadas e associadas frequentemente a lesões focais.
O exame inicial na emergência é geralmente a tomografia computadorizada de
crânio, cujos achados podem ser complementados por angiotomografia. A ressonância
magnética do encéfalo em combinação com a angiografia venosa por ressonância são os
exames de neuroimagem de escolha para o diagnóstico e acompanhamento.
A investigação laboratorial deve ser realizada para avaliar as possíveis etiologias
associadas à trombose venosa central, com especial atenção para avaliação
hematológica. Não se deve investigar deficiências de proteínas C e S e de antitrombina
III nos primeiros meses em função de consumo na fase aguda. O exame do líquor
identifica os pacientes com aumento da pressão intracraniana e possibilita o estudo de
etiologias inflamatórias e infecciosas.
A possível etiologia ou fator predisponente da trombose venosa cerebral deve
sempre ser avaliada para o tratamento adequado. Antiepilépticos devem ser utilizados
em caso de crises epilépticas, sem consenso quanto a duração. Para o tratamento
farmacológico da hipertensão intracraniana, a Heparina melhora o fluxo sanguíneo e,
em casos mais graves, opções incluem Acetazolamida, Manitol, cirurgia de fenestração
da bainha do nervo óptico, derivação ventricular ou lombar, ventriculostomia e
craniectomia descompressiva. O uso de corticosteroides, apesar de muito frequente, é
controverso.
Embora não haja evidência da eficácia, o tratamento de escolha da trombose
venosa central é a anticoagulação com Heparina de baixo peso molecular ou Não-
Fracionada, principalmente para os casos de evolução aguda e subaguda e sem
contraindicação para anticoagulação. Deve ser indicada mesmo nos casos em que
houver hemorragia intraparenquimatosa ou subaracnóide sem outra etiologia. Após a
fase aguda da doença, o paciente deve ser mantido com Warfarina por um período de
três a seis meses ou por tempo indeterminado em caso de trombofilias hereditárias.

Pseudotumor cerebral
Hipertensão intracraniana benigna idiopática.
Fatores de risco incluem sexo feminino, obesidade e hipervitaminose A.

Pedro Kallas Curiati 1046


Exame de fundo de olho revela papiledema.
Tomografia computadorizada, angiotomografia computadorizada e
angioressonância nuclear magnética podem ser solicitadas para excluir trombose venosa
central e são normais. Coleta de líquor com manometria confirma hipertensão
intracraniana.
Tratamento prevê Acetazolamida, corticosteroides e punções de alívio.

Hematoma subdural crônico


Coleção hemorrágica situada entre a dura-máter e a membrana aracnoide,
revestida por cápsula e com graus variados de lise e organização. O critério cronológico
pode não ser o alicerce para a definição da cronicidade da hemorragia subdural.
A etiopatogenia do hematoma subdural crônico encontra no sangramento
repetido a causa precípua para o seu crescimento e perpetuação.
A grande maioria dos doentes é idosa e a causa mais frequente é o traumatismo
craniano, embora uma porcentagem dos doentes não relate esse antecedente. Outros
fatores associados incluem etilismo crônico, derivações terapêuticas do trânsito do
líquor, epilepsia e discrasias sanguíneas.
O hematoma subdural crônico pode provocar variadas manifestações
neurológicas, que incluem sinais neurológicos focais de lenta progressão, sintomas de
hipertensão intracraniana, alterações cognitivas e comportamentais, síndrome de
irritação meníngea, síndrome ictal, crises convulsivas focais ou generalizadas e
alterações da marcha.
A tomografia computadorizada de crânio é o procedimento de escolha para
avaliação inicial dos casos suspeitos e revela usualmente imagem côncavo-convexa
hipoatenuante em relação ao parênquima cerebral. A administração intravenosa de
contraste radiológico revela cápsula envolvente, que se torna realçada.
Quando não tratado, o hematoma subdural crônico causa, quase sempre, o óbito
e raramente torna-se espontaneamente inativo. Os sintomas frequentemente refletem o
início da descompensação da pressão intracraniana e a possibilidade de lesões graves e
irreversíveis.
Em nosso meio, doentes com coleções de menor magnitude e com pouca
repercussão clínica, sobretudo os mais idosos e com comorbidades importantes, devem
ser tratados de modo conservador, inclusive sem o uso de corticosteroides, mediante
rigorosa monitorização clínica e tomográfica.
A drenagem do hematoma subdural crônico mediante trepanação única ou
múltipla é o método mais seguro e eficaz. Proporciona bons resultados e baixa
morbimortalidade.
Deve-se excluir a recorrência do hematoma subdural crônico em todos os
doentes que não apresentarem melhora ou que evoluírem com deterioração neurológica
no período pós-operatório.

Bibliografia
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.
Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 5. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2010.
Clínica médica: diagnóstico e tratamento. Itamar de Souza Santos... [et al.]. São Paulo. Sarvier, 2008.
Headache. T J Steiner, Manuela Fontebasso. BMJ 2002;325:881–6
British Association for the Study of Headache Guidelines for All Healthcare Professionals in the Diagnosis and Management of
Migraine, Tension-Type Headache, Cluster Headache and Medication-Overuse Headache. 3rd edition. 2010.

Pedro Kallas Curiati 1047


COMA
Conceitos
Define-se consciência, de uma forma operacional e aplicável à prática
neurológica, como um perfeito conhecimento de si próprio e do ambiente. O
diagnóstico que se faz sobre o estado de consciência de um paciente é sindrômico e não
etiológico.

Etiologia
Causas metabólicas, como hiponatremia ou hipernatremia, hipoglicemia ou
hiperglicemia, hipóxia, acidose, uremia, hipercalcemia, encefalopatia hepática,
hipotireoidismo ou hipertireoidismo e insuficiência adrenal.
Causas infecciosas, como meningite, encefalite, abscesso cerebral e sepse.
Causas vasculares, como encefalopatia hipertensiva, choque, vasculite, acidente
vascular cerebral isquêmico e acidente vascular cerebral hemorrágico.
Estado de mal epiléptico.
Causas ambientais, como hipotermia e síndromes hipertérmicas.
Intoxicações exógenas, como aquelas por monóxido de carbono, etanol,
etilenoglicol, metanol, sedativos, hipnóticos, antidepressivos e opióides.
Causas estruturais e traumáticas, como tumor, hidrocefalia, hematoma subdural,
hematoma epidural, contusão cerebral e edema cerebral difuso.
Encefalomielite disseminada aguda.
Trombose venosa central.

Fisiopatologia
Dois componentes da consciência devem ser analisados, o nível e o conteúdo. O
conteúdo de consciência relaciona-se basicamente à função do córtex cerebral, enquanto
que o nível de consciência depende de projeções para todo o córtex oriundas da
formação reticular ativadora ascendente, situada na porção posterior da transição ponto-
mesencefálica.
Alterações de consciência podem ocorrer em encefalopatias focais supra-
tentoriais, em encefalopatias difusas e/ou multifocais e em encefalopatias focais infra-
tentoriais, que acometem diretamente a formação reticular ativadora ascendente.
As encefalopatias difusas são, na maior parte das vezes, relacionadas a
patologias clínicas, como transtornos metabólicos e intoxicações exógenas. Já nas
encefalopatias focais é provável que seja encontrada doença intracraniana, como
acidente vascular cerebral, contusão cerebral, abscesso e neoplasia.
Meningites, múltiplas metástases cerebrais, hemorragia subaracnóide e
hipertensão intracraniana podem causar quadros difusos, enquanto que hipoglicemia,
encefalopatia hepática e uremia podem apresentar-se com sinais localizatórios,
simulando um quadro focal.

Quadro clínico
Após o atendimento inicial e uma sumária avaliação neurológica, o médico que
assiste o paciente com alteração de estado de consciência deve estar apto a reconhecer
as situações de lesão difusa ou multifocal do sistema nervoso central e a presença de
encefalopatias focais.
O exame inicial deve abranger sinais de trauma, pressão arterial e temperatura

Pedro Kallas Curiati 1048


corpórea. Após a estabilização clínica do doente, deve-se fazer avaliação neurológica
rápida e objetiva, incluindo nível de consciência, pupilas e fundo de olho, motricidade
ocular extrínseca, padrão respiratório e padrão motor.

Exames complementares
Dado que existe uma ampla gama de etiologias que podem levar a alterações de
consciência, é fundamental um amplo rastreamento tóxico-metabólico e infeccioso em
praticamente todos os casos.
Exames para causas tóxicas, metabólicas, infecciosas e sistêmicas dependem do
contexto clínico e do exame físico. Incluem hemograma, eletrólitos, osmolaridade
plasmática, gasometria arterial, função renal, função hepática, função tireoidiana,
transaminases, glicemia, coagulograma, urina tipo 1 e eletrocardiograma. Com relação à
gasometria arterial, alcalose respiratória sugere encefalopatia hepática e intoxicação por
salicilato, acidose respiratória sugere intoxicação aguda por sedativos, doença pulmonar
avançada e sepse e acidose metabólica sugere cetoacidose diabética, uremia, acidose
lática, choque séptico e intoxicação aguda por metanol, etilenoglicol, paraldeído,
salicilato e Isoniazida.
Pacientes com encefalopatias focais devem sempre ser submetidos a exame de
imagem intracraniano. Com exceção de casos de hipoglicemia, hiperglicemia grave,
encefalopatia hepática e uremia, o achado de encefalopatia focal se relaciona a causas
estruturais.
Diante de um paciente com alterações ao exame que sugiram uma encefalopatia
difusa ou multifocal, neuroimagem está indicada se ausência de história clínica, se
história clínica ou dados do exame clínico claramente apontam para uma patologia
neurológica, se não há causa clínica provável ou a causa já foi corrigida sem a
normalização do exame neurológico ou se paciente com história de imunodepressão,
neoplasias ou coagulopatias. Nesses casos, os exames necessários incluem geralmente
uma tomografia computadorizada de crânio inicialmente sem e, se necessário, com
contraste.
Em casos nos quais o diagnóstico não seja esclarecido com o exame de imagem
está indicada a realização de punção liquórica, que fornece a medida da pressão
intracraniana e auxilia no diagnóstico de doenças inflamatórias, infecciosas e
neoplásicas do sistema nervoso central, além de definir situações de hemorragia
subaracnóide. Deve-se avaliar pressão de abertura, aparência do líquido cérebro-
espinhal, protreinorraquia, glicorraquia, celularidade, cultura, coloração com tinta da
China, pesquisa de antígeno de Cryptococcus sp e reação em cadeia da polimerase para
vírus.
Se ainda assim o diagnóstico não for estabelecido, pode-se realizar um
eletroencefalograma. Alentecimento difuso da atividade elétrica cerebral com ou sem
ondas trifásicas é padrão inespecífico e indica sofrimento cortical difuso. Presença de
estado de mal epiléptico eletrográfico indica crise epiléptica não-convulsiva.
Eletroencefalograma normal descarta organicidade e indica investigação de causas
psiquiátricas.
Em caso de rebaixamento do nível de consciência em paciente com epilepsia,
deve-se considerar estado pós-ictal, dano permanente ao córtex cerebral em
consequência de estado de mal epiléptico, lesão estrutural secundária a crise, estado de
mal epiléptico não-convulsivo e iatrogenia.

Escala de coma de Glasgow


Classicamente, avalia-se a consciência através da aplicação da escala de coma de

Pedro Kallas Curiati 1049


Glasgow, baseada em três parâmetros de resposta, que são a abertura ocular, a melhor
resposta verbal e a melhor resposta motora.
ESCALA DE COMA DE GLASGOW
Abertura ocular Resposta verbal Resposta motora
4 – Espontânea; 5 – Orientado, com respostas 6 – Obedece a comando verbal, como ordem
3 – Aos coerentes simples;
estímulos 4 – Confuso e desorientado no 5 – Localiza a dor;
verbais; tempo e no espaço, mas fala 4 – Flexão inespecífica;
2 – À dor; frases inteiras; 3 – Flexão anormal, com decortição,
1 – Nenhuma; 3 – Palavras inapropriadas; caracterizada por flexão dos membros superiores
2 – Sons monossílabos e/ou sons e extensão dos membros inferiores;
ininteligíveis; 2 – Extensão à dor, com decerebração,
1 – Nenhuma; caracterizada por extensão de membros
superiores e inferiores;
1 – Nenhuma;
A escala de coma de Glasgow mede uma resposta a um estímulo e é uma
evidência indireta de consciência. Situações que comprometam a resposta motora
podem gerar escores falsamente baixos, o que pode ocorrer em caso de uso de
bloqueadores neuromusculares ou síndrome do cativeiro. Doentes com lesão da porção
ventral da ponte, geralmente aguda, não se movimentam, porém permanecem
conscientes, já que a porção dorsal da ponte, onde se localiza a formação reticular
ativadora ascendente, permanece íntegra. Conseguem apenas elevar e abaixar os olhos.
Deve-se entender que se privilegia nessa escala a resposta verbal como
parâmetro de consciência, o que pode ser problemático em indivíduos com lesões
agudas que afetem a linguagem, que podem receber escore falsamente baixo sem estar
com rebaixamento do nível de consciência.
Lesões pontinas extensas, com comprometimento da formação reticular
ativadora ascendente e dos núcleos do nervo facial, podem causar situação em que o
paciente está absolutamente inconsciente e tem olhos abertos.

Escala de Jouvet
Pode-se ainda avaliar o nível de consciência através da escala de Jouvet. Sua
vantagem em relação a escala de coma de Glasgow é que permite certa correlação
anatômica, já que alteração de perceptividade implica em disfunção cortical e alteração
de reatividade implica em disfunção da formação reticular ativadora ascendente. Sua
grande desvantagem, porém, é que é de aplicação mais difícil.
Perceptividade Lúcido, obedece a ordens complexas e até escritas P1
Desorientado no tempo e no espaço, não obedece a comandos escritos P2
Obedece apenas a ordem verbal P3
Apresenta apenas blinking P4
Não apresenta sequer blinking P5
Reatividade Inespecífica Ao estímulo verbal, acorda e orienta os olhos R1
Ao estímulo verbal só acorda, sem orientar os olhos para o estímulo R2
Ao estímulo verbal, sequer acorda R3
Específica Ao estímulo doloroso, acorda, retira o estímulo, tem mímica de dor e D1
vocaliza
Ao estímulo doloroso, acorda e retira o estímulo, porém não apresenta D2
mímica de dor ou vocalização
Ao estímulo doloroso, apresenta apenas retirada motora D3
Resposta negativa D4
Autonômica Ao estímulos doloroso, apresenta taquicardia, taquipnéia e midríase V1

Pedro Kallas Curiati 1050


Resposta negativa V2
O reflexo de blinking consiste em fechamento dos olhos aos estímulos visuais de
ameaça. Devem ser evitados movimentos bruscos dos dedos em direção aos olhos, pois
o deslocamento de ar pode provocar resposta através do reflexo córneo-palpebral.
A resposta de retirada aos estímulos dolorosos não faz especificação do tipo de
retirada.

Alterações dos estados de consciência


Alterações do nível de consciência incluem coma, estado vegetativo persistente,
estado de consciência mínima, estados confusionais agudos e morte encefálica,
enquanto que falsas alterações de nível de consciência incluem retirada psíquica, estado
desaferentado ou locked-in e catatonia.
Após estabilização clínica do paciente, deve-se fazer uma avaliação neurológica
no sentido de checar em qual subgrupo descrito ele se enquadra. O exame neurológico
do coma inclui avaliação de nível de consciência, pupilas e fundo de olho, motricidade
ocular extrínseca, padrão respiratório e padrão motor.

Nível de consciência
Coma é estado em que o indivíduo não demonstra conhecimento de si próprio e
do ambiente, caracterizado pela ausência ou extrema diminuição do alerta
comportamental, permanecendo não-responsivo aos estímulos internos e externos e com
os olhos fechados. Esse estado deve permanecer por pelo menos uma hora. Sua causa é
lesão ou disfunção da formação reticular ativadora ascendente, do córtex cerebral
difusamente ou de ambos. Lesões supratentoriais focais, embora possam comprometer o
nível e o conteúdo da consciência, são insuficientes para levar ao coma a menos que
causem compressão de estruturas no hemisfério contralateral ou no compartimento
infratentorial. Abertura ocular, sem fixação visual ou seguimento, e flexão inespecífica
dos membros podem ocorrer com estímulo doloroso. A maior parte dos pacientes
emerge do coma em uma a duas semanas.
A situação clínica em que há agudamente um déficit global da atenção
denomina-se estado confusional agudo, síndrome mental orgânica ou ainda delirium. Os
três aspectos fundamentais são transtorno de vigilância e aumento do nível de distração,
incapacidade de manter uma coerência de pensamento e incapacidade em executar uma
série de movimentos com objetivo definido.
Uma situação em que há comprometimento da perceptividade com relativa ou
total preservação da reatividade é o chamado estado vegetativo persistente. Trata-se de
um estado de vigília sem percepção do ambiente. Os olhos ficam abertos e podem se
fechar sob ameaça, mas não ficam orientados a um estímulo, embora possam, às vezes,
simular seguimento. Com relação à parte motora, postura descerebrada pode dar lugar a
respostas flexoras, porém lentas e distônicas. Um intenso reflexo de preensão costuma
aparecer, assim como mastigação e deglutição. Embora a maior parte dos pacientes não
vocalize, sons ininteligíveis podem ser obtidos por estímulos dolorosos. Há ciclo
circadiano de sono e vigília. Os reflexos relacionados aos pares cranianos geralmente
estão intactos. Há incontinência urinária e fecal. O diagnóstico é clínico e não existem
exames complementares definidores.
Estado de consciência mínima é caracterizado por capacidade de fazer contato
visual ou mover a cabeça ao comando verbal, capacidade de segurar ou usar objeto ao
comando verbal, abulia, ausência de emoções e alguma verbalização inteligente.
Podem simular alterações do nível de consciência psicose de Korsakoff, afasia
de Wernicke, depressão, demência e psicose aguda.

Pedro Kallas Curiati 1051


Pupilas e fundo de olho
O fundo de olho pode revelar evidências de doenças clínicas, como diabetes
mellitus e hipertensão arterial sistêmica. Permite inferências sobre pressão intracraniana
e patologias oftalmológicas sugestivas da etiologia da alteração de consciência. É
proscrita a utilização de midriáticos, pois prejudica a avaliação das pupilas.
O primeiro neurônio da via simpática se origina no hipotálamo (diencéfalo) e se
dirige caudalmente passando por todo o tronco encefálico e avançando pela medula
cervical. Faz a primeira sinapse da via na coluna intermédia lateral da medula cérvico-
torácica, de onde parte o segundo neurônio, que forma o plexo simpático paravertebral e
faz sinapse no gânglio cervical superior. O terceiro neurônio da via envolve a carótida,
com quem retorna para dentro do crânio e parte em direção à órbita com o primeiro
ramo do nervo trigêmeo. Lesão do sistema nervoso simpático em qualquer ponto dessa
via pode gerar a síndrome de Claude Bernard-Horner, caracterizada por semiptose
palpebral, miose e anidrose ipsilaterais à lesão. Nessa síndrome, a anisocoria é mais
intensa com baixa luminosidade. Em alguns pontos, contudo, a associação de lesão do
sistema nervoso simpático com o parassimpático pode gerar diferentes tipos de pupila.
Os estímulos necessários para o funcionamento do sistema nervoso simpático
são, em geral, a privação de luz e a dor. Estímulos luminosos, por sua vez, estimulam o
funcionamento do sistema nervoso parassimpático. O reflexo fotomotor tem uma via
aferente através do II nervo craniano, uma integração mesencefálica e uma via eferente
através do III nervo craniano. Numa análise do III nervo craniano, as fibras
parassimpáticas são mais externas e, portanto, mais suscetíveis à compressão extrínseca
que as fibras da motricidade ocular extrínseca, que nessa situação costumam ser
afetadas posteriormente.
Com relação às estruturas que podem comprimir o III nervo craniano, deve-se
ressaltar a importância de duas situações clínicas. A primeira delas é o aneurisma de
artéria comunicante posterior, que deve ser suspeitado em pacientes com quadro clínico
compatível com hemorragia subaracnóide e paralisia do III nervo craniano com
comprometimento de sua porção parassimpática. A segunda delas é a herniação
transtentorial lateral, que deve ser interpretada como uma evidência clínica de
hipertensão intracraniana descompensada.
Na semiologia das pupilas, são observados o diâmetro em milímetros, a simetria
e os reflexos fotomotor direto e consensual. Como as vias simpática e parassimpática
têm um longo trajeto através do sistema nervoso central e periférico, no coma, em que
pode haver disfunções em vários
pontos, pode-se verificar o
aparecimento de vários tipos de
pupilas, que têm forte significado
localizatório.
Um dado importante é que o
reflexo fotomotor é extremamente
resistente a insultos metabólicos e
difusos e, dessa forma, nas
encefalopatias difusas ou multifocais
as pupilas geralmente são normais.
Exceções incluem intoxicação por
atropina, com pupilas dilatadas sem
reflexo fotomotor presente, intoxicação por opiáceos, com pupilas intensamente
mióticas com reflexo fotomotor presente, hipotermia, que pode transcorrer com pupilas

Pedro Kallas Curiati 1052


fixas, intoxicação barbitúrica severa, com pupilas fixas e encefalopatia anóxica, com
pupilas midriáticas e fixas. Lesões acometendo o diencéfalo ou a ponte comprometem a
via simpática preservando a parassimpática e, portanto, causam miose com reflexo
fotomotor preservado. Lesões mesencefálicas comprometem tanto o sistema nervoso
simpático como o parassimpático e geralmente levam a pupilas médias e fixas. Lesões
do tecto mesencefálico cursam com pupilas levemente dilatadas com reflexo fotomotor
negativo, porém com flutuações em seu diâmetro e dilatação em resposta ao reflexo
cilioespinal, com estímulo doloroso. Lesões do III nervo relacionadas a compressão por
herniação uncal ou aneurisma de artéria comunicante posterior causam anisocoria com
pupila ipsilateral dilatada ao máximo e reflexo fotomotor ausente.

Motricidade ocular extrínseca


Os nervos cranianos envolvidos na motricidade ocular são o III, o IV e o VI. Os
núcleos do III e do VI nervos cranianos estão localizados no mesencéfalo e na ponte,
respectivamente, e são integrados por fibras do chamado fascículo longitudinal medial.
A análise adequada da motricidade ocular extrínseca horizontal é fundamental
em casos de alteração do estado de consciência, pois, como sua integração se dá no
mesmo sítio anatômico em que se localiza a formação reticular ativadora ascendente,
inferências da integridade dessa estrutura podem ser feitas. Diversas estruturas têm
aferência sobre essa via, o que implica que o movimento horizontal dos olhos pode ser
obtido de diversas maneiras.
Existem duas formas de realizarmos o movimento conjugado horizontal dos
olhos de forma voluntária. A primeira é seguirmos um objeto em movimento sem
movermos a cabeça. Nessa situação, a ordem para o movimento parte do córtex parieto-
occipital e gera o movimento chamado de seguimento. A segunda forma é gerarmos
voluntariamente um movimento ocular para o lado independentemente de qualquer
estímulo visual. Esse movimento é chamado de sacada ou movimento sacádico e se
origina no córtex pré-frontal. Nesse caso, a ordem que parte do córtex passa por um
centro do olhar conjugado horizontal, situado junto ao núcleo contralateral do VI nervo,
chamado de formação reticular paramediana pontina. Do núcleo do VI nervo craniano
na ponte partem as fibras que compõem o nervo abducente, responsável pela abdução
do olho ipsilateral, além de fibras que cruzam a linha média e fletem-se cranialmente
em direção ao subnúcleo do reto medial, do III nervo craniano. Lesões que
comprometam a via até o núcleo do VI nervo craniano geram desvios conjugados do
olhar horizontal, ao passo que lesões a partir desse ponto, nas vias dentro do tronco ou
nos nervos cranianos, geram olhar desconjugado.
Lesão da formação reticular paramediana pontina e do trato piramidal contíguo
causa desvio do olhar para o lado oposto da lesão e hemiparesia contralateral, o que é
denominado síndrome de Foville inferior e indica encefalopatia focal infratentorial por
lesão pontina. Lesão do córtex pré-frontal e do trato piramidal contíguo é mais comum e
cursa com desvio do olhar para o lado da lesão e hemiparesia contralateral, ocorrendo
em lesões focais supratentoriais, geralmente extensas e denominadas síndrome de
Foville superior.
Pacientes com alteração do estado de consciência não colaborarão, contudo, para
a realização desses movimentos voluntários e deve-se, então, usar de movimentos
reflexos dos olhos.
Através da manobra dos olhos de boneca realizam-se bruscos movimentos da
cabeça para os lados e, posteriormente, no sentido de flexão e extensão da cabeça sobre
o tronco. Devido a conexões existentes entre receptores proprioceptivos cervicais e
labirínticos e os núcleos do III e do VI nervos cranianos, os olhos realizam movimentos

Pedro Kallas Curiati 1053


em igual direção e velocidade, porém em sentido contrário à movimentação da cabeça.
Assim, para avaliar a integridade das estruturas anatômicas envolvidas com o olhar
horizontal para um lado, deve-se mover a cabeça rapidamente para o lado oposto.
Permite a verificação de déficit de movimentos oculares isolados em qualquer direção e
sentido e de déficit de movimentos conjugados. Contudo, a ausência de resposta não
estabelece inequivocamente que exista lesão de vias dentro do tronco para movimentos
dos olhos. Para tal fim, a manobra óculo-vestibular é mais fidedigna.
Diferenças de tônus entre o labirinto de um lado e de outro geram desvios
conjugados dos olhos para o lado do labirinto hipofuncionante. Isso pode ser simulado
através da estimulação calórica do ouvido interno, injetando-se água gelada ou quente
no conduto auditivo do paciente. A água gelada inibe e a água quente estimula o
labirinto do lado da injeção. Em um paciente alerta, após estimulação calórica, gera-se
um movimento tônico dos olhos para o lado do labirinto hipofuncionante, ao qual se
segue uma sacada de correção para o lado oposto, gerando um movimento conhecido
como nistagmo. Pacientes com alteração importante do estado de consciência em geral
não geram sacadas de correção, apresentando apenas a fase de desvio conjugado dos
olhos.
A manobra óculo-vestibular deve ser realizada após otoscopia para excluir lesão
timpânica da seguinte maneira:
- O paciente é colocado com a cabeça 30º acima da horizontal;
- 50-100mL de água gelada são injetados lentamente num dos condutos
auditivos externos e, após cinco minutos, no outro;
- No indivíduo consciente, isso provoca o aparecimento de nistagmo para
o lado oposto ao lado estimulado e, no indivíduo em coma, provoca
desvio dos olhos para o lado estimulado;
- O estímulo com água gelada bilateralmente provoca desvio dos olhos
para baixo e com água quente (44º C) bilateralmente provoca desvio dos
olhos para cima;
A resposta conjugada tônica aponta integridade de ponte e mesencéfalo.
Resposta desconjugada com abdução presente e adução ausente aponta lesão do
fascículo longitudinal medial ou do III nervo. Resposta desconjugada com abdução
ausente e adução presente aponta lesão do nervo abducente. Resposta negativa indica
lesão intensa de vias dentro do tronco. Resposta horizontal normal e vertical patológica
indica lesão mesodiencefálica.
Resposta vertical normal e horizontal
patológica aponta integridade
mesencefálica e lesão pontina.
Outro parâmetro a ser
observado é o reflexo córneo-papebral.
Produz-se um estímulo na córnea e
como resposta há fechamento e desvio
dos olhos para cima, o que é
denominado fenômeno de Bell. Esse
reflexo permite a análise da aferência
pelo nervo trigêmeo, da eferência pelo
nervo facial e da área tectal que controla os movimentos verticais do olhar.
A presença de déficit de fechamento das pálpebras pode sugerir lesão do VII
nervo craniano. Já a semiptose palpebral sugere lesão simpática e a ptose completa
sugere lesão do III nervo craniano.

Pedro Kallas Curiati 1054


Padrão respiratório
Classicamente foram reconhecidos alguns padrões respiratórios com certo valor
localizatório, mas isso tem utilidade limitada nos dias de hoje porque inúmeros fatores
podem influenciar os padrões respiratórios e a avaliação respiratória ocorre
posteriormente à avaliação da permeabilidade de vias aéreas.
Respiração de Cheyne-Stokes é caracterizada por alternância entre
hiperventilação e apnéia devido a uma maior sensibilidade do centro respiratório do
tronco ao dióxido de carbono do sangue. Normalmente indica lesões supratentoriais
extensas e difusas ou alterações metabólicas.
Respiração apnêustica é caracterizada por pausas inspiratórias e expiratórias de
dois a três segundos. Tem valor localizatório e indica lesão em nível pontino baixo.
Hiperventilação neurogênica central é caracterizada por manutenção de
taquipnéia mesmo com baixos níveis de dióxido de carbono e ausência de hipóxia.
Indica lesão do mesencéfalo, que leva a uma liberação dos mecanismos reflexos de
controle da respiração.
Respiração atáxica é completamente irregular e não garante boa ventilação.
Indica lesão bulbar, com dano aos neurônios da formação reticular que geram o ritmo
respiratório.
Apnéia aponta falência dos mecanismos de respiração situados no bulbo.

Padrão motor
A via motora estende-se do giro pré-central até a porção baixa do tronco, no
bulbo, onde decussa para o lado oposto para atingir a medula cervical. Essa via é
frequentemente afetada em lesões estruturais do sistema nervoso central.
A avaliação do padrão motor inclui observação da movimentação espontânea do
paciente, a pesquisa de reflexos e de sinais patológicos, a pesquisa do tônus muscular
pela movimentação e balanço passivos e a observação dos movimentos em resposta a
estimulação dolorosa.
Hemiparesia com comprometimento facial sugere envolvimento hemisférico
contralateral. Hemiparesia com comprometimento facial e paratonia sugere
envolvimento hemisférico contralateral com herniação central incipiente ou afecção
frontal predominante. Sinergismo postural flexor ou decorticação sugere disfunção
supratentorial. Sinergismo postural extensor ou descerebração pode ocorrer por lesões
do tronco encefálico alto ao diencéfalo. Flacidez e ausência de resposta sugerem lesão
periférica associada ou lesão pontina baixa e bulbar. Resposta extensora anormal no
membro superior com flacidez ou resposta flexora fraca no membro inferior sugere
lesão em tegmento pontino.

Morte encefálica
Independentemente da etiologia, o estado neurológico pode deteriorar para uma
situação de irreversibilidade e ausência de funções encefálicas, que caracteriza a morte
encefálica. A confirmação deve basear-se em perfeito conhecimento da etiologia da
causa do coma, irreversibilidade do estado de coma, ausência de reflexos do tronco
encefálico e ausência de atividade cerebral cortical.

Critérios clínicos
Diagnóstico da doença ou situação que precipitou a condição clínica.
Afastar situações que simulem ou dificultam o diagnóstico de morte encefálica,
como intoxicações exógenas, hipotermia, choque, encefalite de tronco, traumatismo
facial múltiplo, síndrome do cativeiro, alterações pupilares prévias e distúrbio

Pedro Kallas Curiati 1055


metabólico grave.
Exame neurológico:
- Escala de coma de Glasgow igual a três, excetuando-se respostas
medulares;
- Pupilas médias ou midriáticas e ausência de reflexo fotomotor;
- Manobras óculo-cefálica e óculo-vestibular negativas;
- Ausência de resposta motora à estimulação dolorosa, podendo ocorrer
respostas medulares;
- Reflexos axiais da face, corneano, mandibular e faríngeo ausentes;
- Apnéia oxigenada para atingir o estímulo respiratório máximo, com
PaCO2 de 55-60mmHg, sem movimentos respiratórios espontâneos;
Tempo mínimo de observação de seis horas. Em menores de quatro anos, o
período de observação deverá ser maior e o exame deverá ser feito por dois médicos.

Exames subsidiários
Demonstram falta de atividade encefálica eletroencefalograma, potencial
evocado, dosagem de neurohormônios e vasopressina.
Demonstram ausência de fluxo vascular encefálico angiografia encefálica,
angiografia com isótopo radioativo, tomografia computadorizada com contraste, SPECT
e Doppler transcraniano.

Tratamento
O tratamento inicial do coma deve ser pautado pelos princípios que regem a
atenção aos pacientes graves e prioriza cuidados com vias aéreas, ventilação e
circulação. A abordagem comumente inclui administração de oxigênio suplementar,
obtenção de acesso venoso, coleta de exames laboratoriais, monitorização de ritmo
cardíaco, pressão arterial e oximetria de pulso, aferição da glicose capilar, administração
de 60-100mL de Soro Glicosado a 50% e de 100mg de Tiamina por via intravenosa se
hipoglicemia, administração de antídotos em caso de intoxicação exógena, tratamento
de crises convulsivas e controle da hipertensão intracraniana. Deve-se tratar hipertensão
intracraniana e infecções quando presentes. Na ausência de causa imediatamente
reversível para o coma, deve-se proceder com intubação orotraqueal precocemente.
Hipotensão deve ser corrigida com decúbito em Trendelemburg e infusão de
cristalóides e/ou vasopressores. Hipertensão extrema deve ser corrigida com Labetalol
10mg por via intravenosa, Hidralazina 10mg por via intravenosa ou Nicardipina
5mg/hora por via intravenosa. Hipotermia é corrigida com cobertores aquecidos, mas
pode ser induzida em pacientes submetidos a ressuscitação cardiopulmonar bem
sucedida. Hipertermia deve ser corrigida com cobertores resfriados, blocos de gelo e
lavagem com água.
Não há risco significativo com a administração empírica de Soro Glicosado a
50% 60mL por via intravenosa em indivíduo com alto risco para hipoglicemia e de
Naloxone 0.4mg por via intravenosa de 3/3 minutos em indivíduos com suspeita de
intoxicação por opióides. Flumazenil 0.2mg por via intravenosa de 1/1 minuto pode ser
administrado lentamente em indivíduos com suspeita de intoxicação por
benzodiazepínicos, mas deve ser evitado em caso de epilepsia ou de intoxicação por
antidepressivo tricíclico.
Em pacientes com causa estrutural aguda para o coma, deve-se proceder com
derivação ventricular externa se hidrocefalia, considerar evacuar eventual tumor ou
hematoma, considerar craniectomia descompressiva e considerar o uso de agentes
osmóticos, como Manitol a 20% 0.25-1.0g/kg a cada duas a quatro horas por via

Pedro Kallas Curiati 1056


intravenosa em bolus, com início de ação dentro de dez a quinze minutos, salina
hipertônica a 3% (513mmol/L) por via intravenosa na forma de bolus de 150mL, salina
hipertônica a 7.5% (1283mmol/L) por via intravenosa na forma de bolus de 75mL e
salina hipertônica a 23.4% (4008mmol/L) por via intravenosa na forma de bolus de
30mL. Salina hipertônica com concentração superior a 3% deve ser infundida através de
acesso venoso central.
Infecção do sistema nervoso central, mesmo que uma remota possibilidade, deve
ser tratada com Cefotaxime 2g por via intravenosa de 6/6 horas, Vancomicina 20mg/kg
por via intravenosa de 12/12 horas e Ampicilina 2g por via intravenosa de 4/4 horas em
associação com Aciclovir 10mg/kg por via intravenosa de 8/8 horas. Recomenda-se
considerar o uso de Dexametasona 0.6mg/kg/dia por via intravenosa com início antes da
infusão dos antibióticos e duração de quatro dias.

Monitorização cerebral
A monitorização cerebral visa evitar lesões secundárias após evento agudo e
grave. Deve-se controlar a pressão arterial sistêmica e evitar hipotensão, hipoxemia,
hipovolemia, hiperglicemia e hipertermia. Distúrbios hidroeletrolíticos devem ser
corrigidos.

Monitorização da pressão intracraniana


Indicações:
- Traumatismo crânio-encefálico grave com tomografia computadorizada
anormal, após ressuscitação cardiopulmonar;
- Traumatismo crânio-encefálico grave com tomografia normal e pelo
menos dois dentre idade superior a quarenta anos, pressão arterial
sistólica inferior a 90mmHg e postura tônica unilateral ou bilateral;
- Hepatite aguda fulminante;
- Demais insultos neurológicos, a critério do neurocirurgião;
O padrão-ouro ainda é o cateter ventricular, que permite a aferição da pressão
intracraniana, a redução do componente liquórico por drenagem e a calibragem
frequente. Alternativas incluem cateter intraparenquimatoso, que não pode ser calibrado
após a inserção, e monitores subaracnóides, subdurais e epidurais, que são menos
acurados.
Deve-se visar pressão intracraniana inferior a 20mmHg e pressão de perfusão
cerebral de 50-70mmHg. Apenas valores elevados sustentados devem ser tratados.

Medidas da oxigenação cerebral


Monitorização da porcentagem de hemoglobina saturada por oxigênio no bulbo
jugular (SvjO2) fornece uma estimativa global da oxigenação cerebral, com valor
normal de 55-70%. Valor baixo sugere sofrimento cerebral e valor alto sugere estado
hiperdinâmico de fluxo ou redução do consumo cerebral de oxigênio. Pode revelar
insuficiência da disponibilidade de oxigênio no sangue arterial e a futilidade de uma
pressão de perfusão cerebral muito elevada. Ajuda a evidenciar sofrimento isquêmico
ocasionado por uma PaCO2 muito baixa.
Monitorização da oxigenação regional é baseada no uso de probe que detecta a
pressão parcial de oxigênio no interstício em tempo real em determinada região, com
indicação de tratamento em caso de valores inferiores a 15mmHg.

Medidas diretas de fluxo sanguíneo cerebral


Valores absolutos de fluxo podem ser obtidos por métodos como

Pedro Kallas Curiati 1057


angiorressonância e tomografia de perfusão.
Doppler transcraniano fornece a velocidade do fluxo ao longo do tempo e é útil
no seguimento de vasoespasmo após hemorragia subaracnóide, indicado por valores
acima de 120cm/segundo em artéria cerebral média. Trata-se de exame realizado a beira
do leito, não-invasivo.

Eletroencefalograma
Indicado em rebaixamento do nível de consciência não explicado por quadros
tóxico-metabólicos e/ou anatômicos. Permite a identificação de eventos epilépticos
isolados ou o diagnóstico de estado de mal não-convulsivo.
Em neurotraumatologia, o uso do eletroencefalograma ajuda a titular a dose
necessária quando é induzido coma barbitúrico.

Pedro Kallas Curiati 1058


Bibliografia
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 5. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2010.
A Neurologia que Todo Médico deve Saber. Ricardo Nitrini & Luiz Alberto Bacheschi. 2ª edição. Editora Atheneu. 2003.
The Bare Essentials. Coma. Pract Neurol 2010;10:51-60.
Hyperosmolar Therapy for Raised Intracranial Pressure. Allan H Ropper. N Engl J Med 2012;367:746-52.

Pedro Kallas Curiati 1059


DELIRIUM
Definição
Delirium é uma síndrome mental orgânica aguda caracterizada por redução
acentuada da percepção do ambiente, com dificuldade para focar, manter ou mudar a
atenção. As alterações cognitivas mais comuns envolvem, sobretudo, orientação,
memória e linguagem. A instalação aguda é característica, com flutuação do nível de
consciência ao longo do dia. A causa é condição médica subjacente, que requer
investigação de urgência.
Deve-se suspeitar em caso de rebaixamento do nível de consciência, com
confusão mental e/ou obnubilação, sem sinais neurológicos localizatórios.

Etiologia e fisiopatologia
Segundo a American Psychiatric Association (APA), os diversos tipos de
delirium podem ser agrupados de acordo com a etiologia que precipitou ou induziu o
quadro clínico em delirium devido à condição médica geral, delirium induzido por
substâncias, delirium devido a múltiplas etiologias e delirium não-especificado.
Tipicamente, a maioria dos casos de delirium apresenta vários fatores de risco,
como idade avançada, sexo masculino, doença clínica com comprometimento do estado
geral de saúde, demência, doença cerebrovascular, depressão e polifarmacoterapia,
particularmente se, entre as múltiplas medicações em uso incluem-se drogas com ação
anticolinérgica, anti-histamínica, sedativo-hipnótica e narcótica. A interação de fatores
predisponentes e precipitantes com fatores agravantes ou perpetuadores influencia a
evolução do quadro.

Quadro clínico
O delirium deve fazer parte do diagnóstico diferencial em todos os pacientes
que apresentam alteração aguda no estado de consciência, alterações cognitivas, como
déficits de memória, desatenção, desorientação e perturbação da linguagem, alteração
da atividade psicomotora, com agitação ou lentificação, alteração do ciclo sono-vigília,
labilidade afetiva, alterações que flutuam ao longo de um dia e evidência de um
distúrbio fisiológico, clínico ou farmacológico relacionado ao aparecimento dos
sintomas observados. Alterações da sensopercepção são frequentes, caracteristicamente
com alucinações ou ilusões visuais e auditivas seguidas de interpretação delirante.
Normalmente não há sinais neurológicos focais de natureza motora ou sensitiva, com a
possível exceção de tremores, mioclonias e asterixis.
Os subtipos de delirium quanto à atividade psicomotora e ao nível de alerta
abrangem hiperativo (25%) agitado ou alerta, hipoativo (25%) letárgico ou hipoalerta,
misto (35%) e atividade psicomotora normal (15%).

Instrumentos de avaliação do delirium


O teste mais utilizado para rastreamento de déficit cognitivo é o Mini Exame do
Estado Mental (MEEM). Entretanto, uma pontuação abaixo da média pode ser
atribuível a demência, falta de cooperação, dificuldade de comunicação e baixa
escolaridade.
Um instrumento indicado para rastreio e avaliação quantitativa do delirium é a
escala Confusion Assessment Method (CAM), que é de fácil aplicação à beira do leito e
leva cerca de cinco minutos para ser aplicada, com boa sensibilidade e especificidade.

Pedro Kallas Curiati 1060


Avalia as principais características exigidas pelo DSM-IV, sendo o início agudo e a
presença de flutuação de curso, a desatenção e pensamento desorganizado ou alteração
do nível de consciência achados necessários para o diagnóstico.

Exames complementares
Exames laboratoriais básicos, indicados para todos os pacientes com delirium,
incluem hemograma, eletrocardiograma, radiografia de tórax, gasometria arterial ou
saturação periférica de oxigênio, urina tipo I e bioquímica do sangue, com dosagem de
glicose, albumina, uréia, creatinina, transaminases, bilirrubinas, fosfatase alcalina,
sódio, potássio, cálcio, magnésio e fósforo.
Exames adicionais, solicitados conforme a condição clínica, incluem urocultura
com antibiograma, rastreamento de drogas na urina, hemocultura, medidas dos níveis
séricos de medicações, coleta e análise do líquor, tomografia computadorizada ou
ressonância nuclear magnética de crânio, eletroencefalograma e exames de sangue,
como VDRL, dosagem de metais pesados, níveis de vitamina B12 e folato, função
tireoidiana, eletroforese de proteínas, pesquisa de anticorpo antinuclear, porfirinas
urinárias e sorologia para HIV.

Diagnóstico diferencial
Os principais diagnósticos diferenciais para confusão mental na sala de
emergência são delirium, demência, depressão, psicose aguda, afasia de Wernicke e
psicose de Korsakoff.

Tratamento
Prioridades universais incluem avaliar e tratar imediatamente alterações dos
sinais vitais potencialmente fatais, verificar o nível de consciência, realizar uma
dosagem da glicose capilar e procurar na história e no exame físico elementos que
forneçam informações para que se possa inferir qual o processo responsável pelo atual
quadro confusional. Inicialmente devem ser priorizadas condições clínicas reversíveis
ou que cursam com morbimortalidade significativa na fase aguda. A avaliação do nível
de consciência deve ser realizada rotineiramente.
Após estabelecer o diagnóstico de delirium, o tratamento envolve a identificação
da causa de base para tratamento específico e a adoção de medidas inespecíficas.

Medidas inespecíficas
Evitar o uso de múltiplas medicações, especialmente aquelas envolvidas na
etiologia do delirium. Retirar lentamente as medicações que podem causar algum tipo
de abstinência.
Remover o quanto antes cateteres venosos, vesicais e enterais e equipamentos de
monitorização.
Adequar o horário de medicações e procedimentos a um sono noturno
ininterrupto.
Fornecer pistas para orientação, como calendários, fotos de familiares, rótulos e
relógio. Permitir ao paciente o uso de suas lentes corretivas e/ou de seu aparelho de
audição. Manter uma iluminação boa durante o dia e limitada à noite.
Evitar modificar a localização do leito do paciente. Evitar intervenções que
limitem a mobilidade do paciente, como acesso venoso e contenção mecânica.
Estimular o paciente a sentar fora do leito.
Promover intervenções ambientais e de apoio e esclarecimento ao paciente e à
família. Flexibilizar os horários de visita familiar.

Pedro Kallas Curiati 1061


Evitar a desidratação.
Indicar intervenções farmacológicas inespecíficas para pacientes cuja alteração
do comportamento impõe riscos a ele ou a outrem ou impedem o tratamento.

Tratamento medicamentoso
O manejo das alterações comportamentais decorrentes do delirium é um aspecto
fundamental do tratamento. O controle farmacológico pode ser necessário para prevenir
acidentes, favorecer as avaliações clínicas e possibilitar a realização de exames
subsidiários. Sintomas que invariavelmente requerem tratamento farmacológico são
agitação psicomotora, psicose e insônia. Em idosos, devem ser preferidas doses iniciais
menores dos medicamentos.
Os antipsicóticos constituem a primeira escolha para o tratamento dos pacientes
em delirium, eficazes tanto para as formas hiperativas como para as hipoativas.
Haloperidol é a droga preferida e mais usada, pois possui menos metabólitos ativos,
efeitos colinérgicos limitados e poucos efeitos sedativos e hipotensores. É apresentado
na forma de comprimidos de 1mg, 5mg e 10mg, solução oral com 2mg/mL
(0.1mg/gota) e solução injetável com 5mg/mL, podendo ser administrado por via oral,
intramuscular ou intravenosa. A ação não é imediata, levando de trinta a sessenta
minutos após a aplicação parenteral e mais tempo após a administração por via oral. Há
risco de efeitos extrapiramidais importantes, como rigidez, acatisia, agitação e síndrome
neuroléptica maligna. Em casos de gravidade leve, doses baixas, de 1-10mg, por via
oral, costumam controlar a agitação. Em casos moderados a graves, deve-se administrar
0.5-1.0mg de Haloperidol por via intravenosa ou intramuscular de acordo com o nível
do distúrbio e da tolerância do paciente, com observação durante vinte a trinta minutos.
Caso o efeito seja insuficiente, deve-se dobrar a dose e continuar a monitorização,
repetindo o ciclo até que haja o efeito desejado, ocorra intolerância ou o paciente fique
obnubilado. Não há limites precisos de dose, mas geralmente aceita-se como máximo o
uso de 100mg de Haloperidol em 24 horas ou 60mg em 24 horas se houver uso
concomitante de benzodiazepínicos. Quando o objetivo for alcançado, deve-se reduzir a
dose pela metade e iniciar a administração por via oral com duas a três tomadas por dia.
A via intravenosa não é contraindicada, mas sempre que possível deve ser evitada por
causa do aumento de efeitos colaterais.
Mais recentemente, os antipsicóticos atípicos têm sido empregados com êxito no
manejo farmacológico do delirium, mantendo, segundo alguns autores, eficácia
comparável à do Haloperidol. Destacam-se Risperidona, Olanzapina, Quetiapina e
Ziprasidona, que causam menos efeitos colaterais agudos e têm menor risco de provocar
sintomas extrapiramidais. Quetiapina é apresentada na forma de comprimidos de 25mg,
100mg e 200mg para administração oral, com dose inicial de 50mg duas vezes ao dia e
podendo-se titular conforme a necessidade com aumentos de 50mg duas vezes ao dia
diariamente até a dose máxima de 400mg/dia.
Para o tratamento da insônia, delirium tremens e pacientes com doses muito altas
de antipsicóticos podem ser usados benzodiazepínicos, preferencialmente os de meia-
vida curta ou ultracurta, que têm início de ação mais rápido que os antipsicóticos, mas
podem piorar o quadro clínico em razão do efeito sedativo. Lorazepam é apresentado na
forma de comprimidos de 1mg e 2mg, com dose de 1-2mg a cada trinta a sessenta
minutos, com controle da agitação geralmente com dose de 4-8mg.
Inibidores da colinesterase não têm um papel no tratamento ou na prevenção de
delirium.

Prognóstico

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O delirium está associado a maior incidência de complicações clínicas e pós-
cirúrgicas, maior tempo de permanência hospitalar, maiores taxas de admissão em
unidades de terapia intensiva, pior recuperação funcional e maiores índices de
institucionalização e mortalidade após a alta.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 1: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da
mulher, envelhecimento e geriatria, medicina laboratorial na prática médica. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Clínica Médica, volume 6: doenças dos olhos, doenças dos ouvidos, nariz e garganta, neurologia, transtornos mentais. – Barueri, SP:
Manole, 2009.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 5. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2010.

Pedro Kallas Curiati 1063


DISTÚRBIOS COGNITIVOS
Demência

Conceito
Demência é uma síndrome decorrente de comprometimento do sistema nervoso
central.

Critérios diagnósticos (National Institute on Aging and Alzheimer’s Association)


Demência é diagnosticada quando há sintomas cognitivos ou comportamentais
que:
 Interferem com a funcionalidade no trabalho e nas atividades
habituais;
 Representam um declínio em relação a níveis prévios de
funcionalidade e performance;
 Não são explicados por delirium ou transtorno psiquiátrico;
Comprometimento cognitivo é detectado e diagnosticado através de uma
combinação de anamnese, obtida do paciente e de informante confiável, e avaliação
cognitiva objetiva, que pode ser um exame do estado mental a beira do leito ou uma
avaliação neuropsicológica. A avaliação neuropsicológica é necessária quando a
anamnese e o exame do estado mental a beira do leito não permitem diagnóstico com
segurança.
Comprometimento cognitivo ou comportamental envolve a presença de no
mínimo dois dentre:
 Habilidade de adquirir e lembrar novas informações prejudicada;
 Raciocínio e manejo de tarefas complexas prejudicados, com
julgamento pobre;
 Habilidades visuo-espaciais prejudicadas;
 Linguagem prejudicada;
 Alterações em personalidade ou comportamento;
A diferenciação entre demência e transtorno cognitivo leve é baseada na
interferência na funcionalidade no trabalho e nas atividades habituais.

Epidemiologia
A prevalência de demência na população idosa é muito alta, dobrando a cada
cinco anos, aproximadamente, a partir dos 65 anos.

Diagnóstico diferencial
Declínio cognitivo leve do idoso é uma redução da memória própria do
envelhecimento. É leve, praticamente não interfere nas atividades cotidianas e não é
acompanhada de declínio importante em outras esferas da cognição. A principal
característica é a dificuldade na lembrança, em um dado momento, de nomes ou
aspectos da informação que posteriormente são corretamente evocados.
Funções cognitivas Preservadas Alteradas
Inteligência Habilidades cristalizadas, Inteligência fluida, que consiste em capacidade de
obtidas com a experiência raciocínio flexível e resolução de problemas
Atenção Atenção sustentada Atenção dividida
Funções executivas Funções executivas do -
cotidiano

Pedro Kallas Curiati 1064


Memória Memória remota, semântica e Memória declarativa
de procedimentos
Linguagem Compreensão, vocabulário e Capacidade de encontrar palavras
habilidades sintáticas espontaneamente e fluência verbal
Habilidades Construção e cópia simples Rotação mental de objetos, cópia de desenhos
visuoespaciais geométricos complexos e montagem mental de
objetos
Psicomotoras - Tempo de reação e habilidades motoras
O diagnóstico diferencial entre demência e depressão é frequentemente aventado
porque as duas condições podem apresentar manifestações comportamentais
superponíveis e porque podem associar-se. Sempre que um idoso apresenta depressão e
declínio cognitivo leve, recomenda-se tratar inicialmente a depressão antes de firmar o
diagnóstico de demência.
O diagnóstico diferencial pode ser particularmente difícil quando há suspeita de
declínio cognitivo em idosos com escolaridade muito baixa, em que o mau desempenho
nos testes neuropsicológicos pode ser decorrente da inadequação da maioria desses
testes para a avaliação desses indivíduos, e em pacientes com déficit cognitivo prévio.
Comprometimento cognitivo leve do tipo amnéstico é caracterizado por queixa,
preferencialmente confirmada por informante, e evidência de comprometimento
objetivo da capacidade de memorização de informações, que pode ser avaliada por
testes de memória tardia. O diagnóstico diferencial com envelhecimento normal e com
demência leve pode ser difícil. Em razão disso, recomenda-se a realização de todos os
exames laboratoriais e de neuroimagem preconizados para casos de demência, além de
avaliações neuropsicológicas sequenciais para verificar a progressão.

Anamnese e exame físico


Geralmente, a queixa do paciente e/ou dos familiares que motiva a consulta é a
perda de memória para fatos recentes, o que reflete redução da capacidade de reter
novas informações. Menos frequentemente, são as mudanças de comportamento, como
apatia, desinibição e dificuldade em tarefas da vida cotidiana, que trazem o paciente à
consulta.
Como para o diagnóstico de demência há necessidade de comprometimento das
atividades sociais ou ocupacionais do indivíduo, é interessante aplicar um questionário
sobre as atividades funcionais, que deve ser respondido pelo acompanhante.
Questionário de atividades funcionais
1) Ele/ela manuseia seu próprio dinheiro?
2) Ele/ela é capaz de comprar roupas, comida e coisas para a casa sozinho (a)?
3) Ele/ela é capaz de esquentar a água para o café e apagar o fogo?
4) Ele/ela é capaz de preparar uma comida?
5) Ele/ela é capaz de manter-se em dia com as atualidades e/ou com os acontecimentos da comunidade
ou da vizinhança?
6) Ele/ela é capaz de prestar atenção, entender e discutir um programa de rádio ou televisão, um jornal
ou uma revista?
7) Ele/ela é capaz de lembrar-se de compromissos, acontecimentos familiares e/ou feriados?
8) Ele/ela é capaz de manusear seus próprios remédios?
9) Ele/ela é capaz de passear pela vizinhança e encontrar o caminho de volta para a casa?
10) Ele/ela pode ser deixado (a) em casa sozinho (a) de forma segura?
Pontuação (questões 1-9): 0 = Normal ou nunca fez, mas poderia fazê-lo agora; 1 = Faz com dificuldade
ou nunca fez e agora teria dificuldade; 2 = Necessita de ajuda; 3 = Não é capaz;
Pontuação (questão 10): 0 = Normal ou nunca ficou, mas poderia ficar agora; 1 = Sim, mas com
precauções ou nunca ficou e agora teria dificuldade; 2 = Sim, por curtos períodos; 3 = Não poderia;
Escores superiores a 5 pontos, desde que causados pelo distúrbio cognitivo e não secundários a
limitações físicas, sugerem síndrome demencial. Escores de 1-5 são frequentemente encontrados nas
fases iniciais de demência.

Pedro Kallas Curiati 1065


O estado mental pode ser investigado na ausência do paciente com
questionamentos específicos sobre mudanças de personalidade, mudanças do humor e
da afetividade, ideias delirantes, alucinações visuais ou complexas, mudanças de
comportamento, comportamentos repetitivos, alterações do sono, alterações dos hábitos
alimentares e alterações do comportamento sexual.
No exame físico, deve-se atentar para sinais de risco aumentado para doença
cerebrovascular, como hipertensão arterial, arritmias cardíacas e sopros carotídeos,
sinais sugestivos de carências nutricionais e sinais sugestivos de doenças sistêmicas.
Anormalidades ao exame neurológico que são relativamente frequentes incluem
alterações da marcha, assimetria de força muscular ou de reflexos e sinais
extrapiramidais.

Avaliação cognitiva
É aconselhável que a avaliação cognitiva seja realizada de modo estruturado,
com testes que quantifiquem o desempenho e que permitam aplicação relativamente
breve.
O Mini Exame do Estado Mental (MEEM) pode ser aplicado em menos de dez
minutos. Escores abaixo de 24 pontos são considerados sugestivos de problemas
cognitivos. Como qualquer teste cognitivo, sofre influência da escolaridade, de modo
que, para indivíduos com nível superior, escores abaixo de 27 sugerem declínio
cognitivo, enquanto que para analfabetos ocorre o mesmo para escore abaixo e 18.
ORIENTAÇÃO TEMPORAL Pontuação
Dia da semana 1
Dia do mês 1
Mês 1
Ano 1
Hora aproximada 1
ORIENTAÇÃO ESPACIAL Pontuação
Local específico, como aposento ou setor 1
Instituição 1
Bairro ou rua próxima 1
Cidade 1
Estado 1
MEMÓRIA IMEDIATA Pontuação
Repetir o nome de três objetos não-relacionados, como vaso, carro e tijolo 1-3
ATENÇÃO E CÁLCULO Pontuação
Subtrair sucessivamente (100-7; 93-7; 86-7; 79-7; 72-7) 1-5
Soletrar a palavra MUNDO de trás para frente
MEMÓRIA DE EVOCAÇÃO Pontuação
Recordar as 3 palavras 1-3
LINGUAGEM Pontuação
Nomear um relógio e uma caneta 1-2
Repetir “nem aqui, nem ali, nem lá” 1
Obedecer o comando verbal “pegue este papel com a mão direita, dobre-o ao meio e 1-3
coloque-o no chão”
Ler e obedecer o comando ”feche os olhos” 1
Escrever uma frase 1
PRAXIA CONSTRUTIVA Pontuação
Copiar um desenho 1

No Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento da Clínica Neurológica

Pedro Kallas Curiati 1066


e no Centro de Referência de Distúrbios Cognitivos do HC-FMUSP, para aumentar a
acurácia da avaliação cognitiva e em razão da grande heterogeneidade educacional da
população, aplica-se uma bateria cognitiva breve em associação com o Mini Exame do
Estado Mental, que inclui um teste de memória de dez figuras apresentadas como
desenhos simples em uma folha de papel. A aplicação dura de sete a oito minutos. O
examinado deve reconhecer e nomear as dez figuras. Em seguida, a folha é retirada e se
solicita que diga quais figuras havia visto para avaliar a memória incidental. Pede-se,
então, que olhe atentamente para as figuras e tente memoriza-las por até trinta segundos.
Retirada a folha, solicita-se que diga de quais se lembra para avaliar a memória
imediata. Novamente, repete-se o procedimento para obter o escore de aprendizado. São
aplicadas então duas tarefas de interferência, a fluência verbal e o teste do desenho do
relógio. Na primeira, pede-se ao examinando que fale todos os nomes de animais que
for capaz de se lembrar no menor tempo possível, sendo considerado sugestivo de
comprometimento cognitivo escore abaixo de 13 para indivíduos alfabetizados e abaixo
de 10 para indivíduos analfabetos. Em seguida, fornece-se uma folha de papel e uma
caneta ou um lápis e solicita-se que desenhe um relógio com todos os números e
coloque os ponteiros marcando duas horas e quarenta e cinco minutos, teste útil para
identificar dificuldades de planejamento e de habilidades visuais e construtivas, com
muita influência da escolaridade. Terminada a interferência, solicita-se que o
examinando diga quais figuras foram vistas há alguns minutos para avaliar a memória
tardia. Se o examinando não tiver sido capaz de se lembrar das dez figuras, pede-se que
as identifique em folha na qual estão entremeadas com dez figuras distratoras.

A pontuação do teste do relógio


varia de 1 ponto, com pior desempenho, a
10 pontos, com melhor desempenho.
Atribui-se de 6 a 10 pontos se relógio e
números corretos, com 10 pontos se hora
certa, 9 pontos se leve erro de ponteiros, 8 pontos se erros mais intensos nos ponteiros, 7
pontos se ponteiros completamente errados e 6 pontos se uso inapropriado dos ponteiros
ou uso de código digital. Atribui-se de 1 a 5 pontos se desenho do relógio e dos
números incorreto, com 5 pontos se números em ordem inversa ou concentrados de um
lado, 4 pontos se números faltando ou situados fora do círculo, 3 pontos se números e
relógio não estão conectados, 2 pontos se vaga semelhança com o relógio, revelando
alguma compreensão da instrução, e 1 ponto se não tentou ou não conseguiu representar
um relógio.
Outro teste de memória tardia também utilizado no Brasil faz parte da bateria

Pedro Kallas Curiati 1067


denominada CERAD (Consortium to Establish a Registry for Alzheimer’s Disease), na
qual a recordação tardia de uma lista de dez palavras é solicitada cerca de cinco minutos
depois da fase de registro.
Quando persistirem dúvidas, ou para permitir diagnóstico mais preciso das
dificuldades que o paciente apresenta, solicita-se avaliação neuropsicológica mais
detalhada, que apresenta potencial para identificar objetivamente o prejuízo cognitivo
em pacientes altamente escolarizados, além de revelar alterações sutis em pessoas com
suspeita de demência. Pode ser útil para diferenciar depressão de demência e, ainda, em
pacientes com mínimo prejuízo em testes de rastreamento.

Diagnóstico nosológico
As doenças que causam demência incluem doenças degenerativas primárias
tendo demência como síndrome principal ou associada, doenças vasculares cerebrais,
doenças infecciosas, hidrocefalias, doenças desmielinizantes, doenças priônicas,
epilepsia, distúrbios metabólicos, intoxicações, carências nutricionais, doenças
autoimunes, neoplasias, traumatismo craniano e estado pós-anóxico. Doenças
psiquiátricas são responsáveis por pseudo-demência.
Na anamnese e nos exames físico e neurológico, as principais hipóteses
diagnósticas já começam a ser investigadas.
Exames gerais incluem hemograma, velocidade de hemossedimentação,
eletroforese de proteínas séricas, glicemia, uréia, creatinina, bilirrubinas, albumina,
transaminases, gama-glutamiltrasferase, sódio, potássio, cálcio, fósforo, tiroxina livre,
hormônio tireo-estimulante, reações para sífilis, anticorpos anti-HIV se idade inferior a
sessenta anos, vitamina B12 e radiografia de tórax. Exames especializados incluem
tomografia computadorizada de crânio ou ressonância magnética de crânio, cintilografia
de perfusão (SPECT), exame neuropsicológico, eletroencefalograma e avaliação do
líquido cefalorraquidiano. Exames utilizados em casos especiais incluem cobre sérico,
pesquisa de anticorpos antinucleares, anti-tireoide e anti-Hu e pesquisa de intoxicações.
Em casos muito especiais, indica-se biópsia cerebral.
A vantagem mais óbvia da investigação é detectar os casos de demência
potencialmente reversíveis.

Demências secundárias

Demências vasculares
A causa mais frequente de demência secundária é a doença vascular cerebral. O
quadro clínico depende do calibre dos vasos e dos territórios de irrigação afetados.
A fisiopatologia abrange infarto único estrategicamente situado, múltiplos
infartos em territórios de grandes vasos, doença Início abrupto 2
de vasos pequenos, hipoperfusão com isquemia de Deterioração em degraus 1
territórios terminais, hemorragia cerebral e outros Curso oscilante 2
mecanismos. Confusão noturna 1
Para casos em que há dúvida entre Conservação relativa da personalidade 1
Depressão 1
demência degenerativa e demência vascular, pode
Queixas somáticas 1
ser usado o escore isquêmico de Hachinski. Incontinência emocional 1
Escores maiores ou iguais a 7 são muito Hipertensão arterial sistêmica 1
sugestivos de demências vasculares e escores Acidente vascular cerebral anterior 2
menores ou iguais a 4 são mais comuns na doença Evidência de aterosclerose 1
de Alzheimer e em outras demências Sintomas neurológicos focais 2
degenerativas. Escores intermediários podem ser Sinais neurológicos focais 2

Pedro Kallas Curiati 1068


encontrados na doença de Alzheimer com doença vascular cerebral.
Deve-se considerar que os fatores vasculares contribuem para a gênese e a
progressão da síndrome demencial e, portanto, todos os recursos para reduzir o risco de
novos infartos ou isquemias cerebrais devem ser utilizados. Também deve-se ter em
conta que nas idades avançadas a concomitância de doença vascular cerebral e doença
de Alzheimer é mais comum.

Hidrocefalia
Hidrocefalia a pressão normal é uma suspeita sempre presente na investigação
de um paciente com demência, particularmente pela possibilidade de reversão, por
vezes dramática, com tratamento específico. Caracteriza-se pela presença de redução da
velocidade de processamento de informações (bradipsiquismo) e esquecimento
associados à dificuldade de marcha, que apresenta a peculiaridade de não depender de
alterações motoras evidentes dos membros inferiores.
Quando o paciente é examinado deitado ou sentado, não há déficit de força, de
sensibilidade ou de coordenação nos membros inferiores que possam justificar a
alteração da marcha e, ao ficar em pé, o equilíbrio estático é normal. Porém, quando o
paciente caminha, existe alargamento da base de sustentação, os passos têm amplitude
reduzida e pode parecer que os pés estão colados ao chão, o que dificulta a troca de
passos. Essa condição é denominada apraxia de marcha e é causada por
comprometimento de fibras que têm origem nas fibras motoras e pré-motoras dos lobos
frontais e que em seu trajeto passam ao lado dos cornos frontais dos ventrículos laterais.
Com a evolução, surgem urgência e incontinência urinárias.
A tríade clássica de alteração da marcha com características apráxicas,
deterioração cognitiva e incontinência urinária não é exclusiva da hidrocefalia a pressão
normal e pode se manifestar em doenças neurodegenerativas, como doença de
Parkinson, paralisia supranuclear progressiva e degeneração de múltiplos sistemas. O
teste de punções repetidas do líquor é o mais utilizado e consiste na retirada de 30mL,
com melhora da marcha indicando bom prognóstico com tratamento cirúrgico. Outros
testes utilizados são estudo do fluxo no aqueduto de Sylvius com a ressonância nuclear
magnética e monitorização da pressão do líquor
O tratamento é cirúrgico, mediante a implantação de sistema que deriva o líquor
do ventrículo para o peritônio.

Demência em doenças infecciosas


Muitas doenças infecciosas que afetam o sistema nervoso central podem causar
demência. Infecções agudas tendem a causar alterações do nível de consciência, de
modo que raramente merecem consideração na análise de casos de demência, exceto
como em caso de sequelas. Infecções subagudas e particularmente crônicas podem
cursar com demência como manifestação principal ou associada a outras síndromes
neurológicas.
Doenças bacterianas incluem sífilis, tuberculose, brucelose, doença de Lyme e
doença de Whipple. Doenças parasitárias incluem cisticercose, toxoplasmose, malária e
equinococose. Doenças virais incluem síndrome da imunodeficiência adquirida,
panencefalite esclerosante subaguda, panencefalite progressiva da rubéola,
leucoencefalopatia multifocal progressiva e encefalopatia herpética. Doenças priônicas
incluem doença de Creutzfeldt-Jakob e Kuru. Doenças fúngicas incluem criptococose,
histoplasmose, paracoccidioidomicose, candidíase, aspergilose, cromomicose,
nocardiose, coccidioidomicose, esporotricose, clodosporiose, alesqueriose e
cefalosporiose.

Pedro Kallas Curiati 1069


Deve-se destacar entre os exames de líquor a importância da eletroforese de
proteínas, que, em alguns casos, apresenta alteração marcante que permite a suspeita de
processo infeccioso crônico. A principal indicação de biópsia cerebral no diagnóstico de
demência é justamente a suspeita de processo infeccioso, pois o tratamento adequado
pode ser acompanhado de completa remissão dos sintomas, quando aplicado
precocemente.

Outras demências secundárias


Ë sempre importante lembrar da possibilidade de hematoma subdural no idoso.
Quando unilateral, predominam manifestações focais, que sugerem processo expansivo
ou mesmo acidente vascular cerebral. Nas formas bilaterais, a demência pode ser a
manifestação predominante. O tratamento cirúrgico é relativamente simples e
geralmente eficaz.
As doenças autoimunes oferecem particular dificuldade ao diagnóstico. Lúpus
eritematoso sistêmico, vasculites primárias do sistema nervoso central, encefalopatia de
Hashimoto e encefalite límbica paraneoplásicas merecem destaque.
Distúrbios neuropsiquiátricos, incluindo demência, podem ser importantes na
esclerose múltipla, em tumores cerebrais e em algumas formas de epilepsia.

Demência nas doenças degenerativas primárias do sistema nervoso central


Trata-se do grupo de maior prevalência entre as causas de demência.
Entre as doenças degenerativas em que demência não é a manifestação mais
importante para o diagnóstico, incluem-se as doenças extra-piramidais, como doença de
Parkinson, coréia de Huntington, paralisia supranuclear progressiva, degeneração
córtico-basal, degenerações de múltiplos sistemas, calcificação idiopática dos gânglios
da base, doença de Wilson, degenerações cerebelares e degenerações espinocerebelares.
Geralmente, a demência não é a manifestação inaugural e o exame neurológico revela
alterações evidentes, predominando distúrbios do movimento.
As mais frequentes doenças degenerativas primárias do sistema nervoso central
que apresentam demência como manifestação preponderante são a doença de
Alzheimer, as degenerações frontotemporais e a demência com corpúsculos de Lewy.
Embora exista dificuldade em diagnostica-las, a associação da análise do padrão
neuropsicológico predominante e dos exames de neuroimagem pode permitir razoável
segurança diagnóstica.

Demência com predomínio de síndrome amnéstica – Doença de Alzheimer

Fisiopatologia
As manifestações clínicas da doença de Alzheimer decorrem da redução do
número de neurônios e de sinapses em regiões específicas do sistema nervoso central.
As alterações neuropatológicas típicas são as placas neuríticas e os emaranhados
neurofibrilares, que são acúmulos de filamentos das proteínas tau.
O peptídeo beta-amiloide é o principal constituinte do centro da placa neurítica e
é um fragmento de uma proteína maior, denominada proteína precursora do amiloide,
que é sintetizada a partir de um gene localizado no cromossomo 21. A proteína
precursora do amiloide sofre clivagem mediada por enzimas, o que resulta em diferentes
peptídeos. A clivagem mais comum segue a via denominada alfa-secretase, na qual o
peptídeo beta-amiloide é cindido. Alternativamente, na via denominada amiloidogênica,
sob ação das enzimas beta-secretase e gama-secretase, é liberado o peptídeo beta-
amiloide. Existem evidências de que tanto oligômeros solúveis como polímeros desse

Pedro Kallas Curiati 1070


peptídeo são neurotóxicos, atuando não somente sobre os neurônios, mas também sobre
as sinapses.

Quadro clínico
A doença de Alzheimer inicia-se com comprometimento da capacidade de
memorizar novas informações, dificuldade que pode ser demonstrada pelo mau
desempenho em testes de memória tardia. Na sua progressão, agregam-se, de modo
progressivo, dificuldades em funções executivas, transtornos na orientação topográfica e
leves distúrbios de linguagem. Essa é a fase denominada demência leve, que depende
principalmente do acometimento da formação hipocampal e de núcleos colinérgicos
basais, especialmente o núcleo basal de Meynert. Ainda na fase leve ocorre
acometimento de estruturas paralímbicas, como cíngulo, especialmente em sua porção
posterior, giro para-hipocampal, pólo temporal e córtex órbito-frontal, e também de
áreas corticais mais recentes, como os neocórtices frontal dorsolateral e temporal.
À medida que a doença evolui para demência moderada, surgem transtornos de
funções executivas, de linguagem e de praxia, discalculia, agnosia visual, alterações do
humor e alterações do comportamento, evidenciando acometimento de áreas de
associação multimodal situadas na encruzilhada têmporo-parieto-occipital e nas áreas
occípito-temporais, além de agravamento das alterações paralímbicas.
Na fase de demência grave, que geralmente se manifesta depois de mais de cinco
anos de evolução, existe progressiva redução do número de palavras inteligíveis que o
paciente emite ao longo de um dia, dificuldade para controlar esfíncteres e para
caminhar e incapacidade para reconhecer pessoas que não os familiares mais próximos.
Com o avançar da doença, mesmo a capacidade de manter-se sentado ou de sorrir é
perdida. Nessa fase, o acometimento cortical é praticamente difuso, sendo menos
afetadas apenas as áreas corticais primárias.

Clinical Dementia Rating (CDR)


O paciente pode ser avaliado com a escala Clinical Dementia Rating (CDR), que
avalia a performance cognitiva e funcional e requer uma fonte de informações sobre o
paciente. Requer trinta a quarenta e cinco minutos para ser administrada e treinamento é
oferecido online.
O escore varia de 0 a 3, com 0 correspondendo a envelhecimento saudável, 0.5 a
doença de Alzheimer pré-clínica ou transtorno cognitivo leve, 1 a doença de Alzheimer
inicial, 2 a doença de Alzheimer moderada e 3 a doença de Alzheimer severa.
A ferramenta pode ser realizada no contexto da atenção primária à saúde e é útil
quando avaliação neuropsicológica não é amplamente acessível.

Functional Assessment Staging (FAST)


1- Ausência de dificuldades subjetivas ou objetivas.
2- Queixa de esquecimento do local de objetos. Dificuldade subjetiva no
trabalho.
3- Redução da funcionalidade no trabalho evidente para os colegas. Dificuldade
para viajar a novos locais. Redução da capacidade organizacional.
4- Redução da capacidade de realizar tarefas complexas.
5- Necessidade de ajuda para escolher vestimenta adequada.
6a- Veste roupas de maneira imprópria sem ajuda ou dicas.
6b- Inabilidade para tomar banho adequadamente.
6c- Inabilidade para lidar com a mecânica relacionada ao uso do toalete.
6d- Incontinência urinária.

Pedro Kallas Curiati 1071


6e- Incontinência fecal.
7a- Habilidade para falar limitada a aproximadamente meia dúzia de palavras
inteligíveis ou menos no curso de um dia comum ou de uma entrevista intensiva.
7b- Habilidade para falar limitada a uma única palavra inteligível no curso de
um dia comum ou de uma entrevista intensiva.
7c- Inabilidade para andar sem assistência.
7d- Inabilidade para sentar sem assistência.
7e- Inabilidade para sorrir.
7f- Inabilidade para sustentar a cabeça independentemente.

Exames complementares
Técnicas com valor para o diagnóstico que ainda não são aplicadas
rotineiramente incluem espectroscopia por ressonância nuclear magnética, comparação
computadorizada entre a imagem obtida do paciente com um banco de dados para
identificação das áreas mais afetadas e comparação computadorizada entre exames
sequenciais. A maioria dos estudos com tomografia por emissão de pósitrons (PET) e
tomografia computadorizada por emissão de fóton único (SPECT) em pacientes com
doença de Alzheimer revela tipicamente uma redução bilateral e frequentemente
assimétrica do fluxo sanguíneo e do metabolismo em regiões temporais posteriores ou
têmporo-parietais, porém tais alterações podem estar ausentes nas fases iniciais da
doença ou ocorrer em outros tipos de demência, como a vascular e a da doença de
Parkinson. Substâncias que se ligam transitoriamente às placas têm sido testadas para
emprego em neuroimagem, sendo a mais conhecida o Pittsburg compound B (PIB), que
se liga ao amiloide das placas e é detectado pela tomografia por emissão de pósitrons
(PET) quando previamente associado a material que emite pósitrons. Outra descoberta
recente é a do composto conhecido pela sigla FDDNP, que marca simultaneamente
placas amiloides e emaranhados neurofibrilares, podendo ser acoplado a radioisótopo e
detectado com tomografia por emissão de pósitrons (PET).
Entre indivíduos com transtorno cognitivo leve, níveis reduzidos de peptídeo
beta-amiloide e elevados de tau e tau fosforilada no líquor predizem o diagnóstico de
doença de Alzheimer.

Diagnóstico e classificação
O diagnóstico de doença de Alzheimer obedece aos critérios propostos pelo
National Institute of Neurologic and Communicative Disorders and Stroke e pela
Alzheimer’s Disease and Related Disorters Association (NINCDS-ADRDA) em 1984 e
modificados pela Alzheimer’s Association em 2011. Os pacientes podem ser
classificados em demência de Alzheimer provável, demência de Alzheimer possível e
demência de Alzheimer provável ou possível com evidência de processo fisiopatológico
da doença de Alzheimer.
Demência de Alzheimer provável é diagnosticada na vigência das seguintes
características:
A. O início dos sintomas é insidioso, ao longo de meses ou anos;
B. A história de declínio cognitivo é clara;
C. Os déficits cognitivos mais proeminentes se adequam a uma categoria
entre apresentação amnéstica, caracterizada por prejuízo do aprendizado
e da evocação de informações recentemente aprendidas, além de
disfunção em pelo menos um outro domínio cognitivo, e apresentação
não-amnéstica, caracterizada por déficits predominantemente em
linguagem, habilidades visuo-espaciais ou função executiva, além de

Pedro Kallas Curiati 1072


disfunção em outros domínios cognitivos;
D. Não há características proeminentes de doença cerebrovascular
concomitante, definida por antecedente de acidente vascular cerebral
temporalmente relacionado ao início ou à piora do déficit cognitivo,
presença de infartos múltiplos ou extensos ou alterações severas em
substância branca, de demência por corpúsculos de Lewy, de demência
frontotemporal, de afasia progressiva primária ou de medicamento ou
comorbidade neurológica ou não-neurológica com efeito substancial na
cognição;
Demência de Alzheimer provável com maior nível de certeza é caracterizada por
declínio cognitivo progressivo documentado em avaliações subsequentes com base em
dados obtidos com informantes e com testes cognitivos e/ou por evidência de mutação
genética causadora nos genes do precursor do peptídeo amiloide (APP), da presenilina 1
(PSEN1) ou da presenilina 2 (PSEN2).
O diagnóstico de demência de Alzheimer possível é feito em caso de curso
atípico, caracterizado por início súbito do déficit cognitivo ou por história ou avaliação
cognitiva objetiva com documentação insuficiente de declínio progressivo, ou de
apresentação com etiologia mista, em que estão presentes os critérios essenciais para a
demência de Alzheimer, mas há evidência de concomitância com doença
cerebrovascular, demência por corpúsculos de Lewy, demência frontotemporal, afasia
progressiva primária ou medicamento ou comorbidade neurológica ou não-neurológica
com efeito substancial na cognição.
Biomarcadores de deposição encefálica de peptídeo beta-amiloide incluem beta-
amiloide (Aβ42) baixo no líquor e tomografia por emissão de pósitrons positiva com
substâncias que se ligam transitoriamente às placas neuríticas. Biomarcadores de
degeneração neuronal incluem proteína tau total e proteína tau fosforilada aumentadas
no líquor, tomografia por emissão de pósitrons com redução da captação de
18
fluorodeoxiglicose em córtex temporoparietal e ressonância nuclear magnética com
atrofia desproporcional em lobo temporal medial, basal e lateral e córtex parietal
medial. Em indivíduos com critérios para demência de Alzheimer, a presença de
biomarcadores pode aumentar a certeza de que a base da síndrome demencial é o
processo fisiopatológico da doença de Alzheimer. O resultado dos testes biomarcadores
pode ser definido como claramente positivo, intermediário e claramente negativo.
Demência de Alzheimer com comprovação fisiopatológica é diagnosticada na
presença de critérios clínicos e cognitivos de demência de Alzheimer e de avaliação
neuropatológica com demonstração de patologia da doença de Alzheimer com base em
critérios amplamente aceitos.
Demência de Alzheimer improvável é caracterizada por ausência de critérios
clínicos para demência de Alzheimer, evidência suficiente de diagnóstico alternativo ou
biomarcadores negativos.

Tratamento
Estratégias não-farmacológicas incluem utilizar agenda, listas e lembretes para
auxiliar a perda de memória em fase inicial, estabelecer uma rotina diária regular com a
participação ativa do paciente, perguntar apenas uma questão de cada vez e permitir
tempo suficiente para a resposta, calmamente reorientar o paciente quando necessário,
dividir as tarefas em pequenas partes simples e estabelecer expectativas realistas para o
que o paciente consegue ou não realizar.
Procedimentos que impeçam a formação do peptídeo beta-amiloide, seu depósito
no parênquima do sistema nervoso central ou seu efeito tóxico, que promovam sua

Pedro Kallas Curiati 1073


eliminação ou que impeçam a hiperfosforilação da proteína tau são os principais
candidatos a bons resultados em um futuro que não está muito distante. Fármacos que
bloqueiam a ação da gama-secretase ou da beta-secretase ou que estimulam a ação da
alfa-secretase estão em fase de testes. Há alguns anos a vacinação de animais
transgênicos com o peptídeo beta-amiloide reduziu muito o seu depósito intracerebral
por promover a fagocitose por células da micróglia, mas os testes em seres humanos
foram suspensos em função do surgimento de efeitos colaterais graves.
Os principais tratamentos sintomáticos de distúrbios cognitivos atualmente
disponíveis baseiam-se no emprego de drogas que interferem na neurotransmissão
colinérgica. Donepezil é inibidor da acetilcolinesterase apresentado na forma de
comprimidos de 5mg, com dose inicial de 5mg uma vez ao dia e aumento para 10mg
uma vez ao dia em quatro a seis semanas. Rivastigmina é inibidor da acetilcolinesterase
e da butirilcolinesterase apresentado na forma de comprimidos de 1.5mg, 3mg, 4.5mg e
6mg, de solução oral com 2mg/mL e de adesivos transdérmicos, com dose inicial de
1.5mg duas vezes ao dia e aumentos a intervalos de no mínimo duas semanas se boa
tolerância para 3mg duas vezes ao dia, 4.5mg duas vezes ao dia e finalmente 6mg duas
vezes ao dia. Galantamina é inibidor da acetilcolinesterase e agonista nicotínico
apresentado na forma de cápsulas de liberação prolongada de 8mg, 16mg e 24mg, com
dose inicial de 4mg duas vezes ao dia junto com as refeições e aumento de 4mg/dia a
cada quatro semanas até dose de manutenção de 16-24mg. Todos devem ser iniciados
com doses menores e aumentados a cada quatro semanas para reduzir os efeitos
colaterais que incluem náusea, diarreia, bradicardia, perda do apetite, emagrecimento e
cefaleia. As contraindicações mais importantes são doença do nó sinusal, bloqueio de
ramo esquerdo, glaucoma de ângulo fechado e asma de difícil controle. Em geral,
produzem melhora pequena, mas clinicamente significativa, podendo melhorar também
os transtornos comportamentais.
Ensaios clínicos comprovaram que a Memantina, fármaco que tem efeito sobre o
receptor glutamatérgico NMDA, é benéfica na doença de Alzheimer moderada a grave,
com questionamento recente quando ao benefício da associação com inibidores da
acetilcolinesterase em relação ao uso isolado. É apresentada na forma de comprimidos
de 10mg, com dose diária máxima de 20mg em duas tomadas e introdução com
aumento gradual de 5mg por semana. Efeitos adversos incluem constipação, tontura e
cefaleia.
Uma abordagem racional prevê tentar inicialmente o uso de um inibidor da
colinesterase, mesmo em indivíduos com doença inicial ou moderada, com troca por
outro agente da mesma classe em caso de ausência de efetividade ou efeitos adversos
não-toleráveis. Memantina pode ser associada a qualquer um dos inibidores da
colinesterase em pacientes com pouca ou nenhuma melhora com a monoterapia.

Demência com predomínio de alterações do comportamento


Mudanças da personalidade, caracterizadas por desinibição nas atividades
sociais, perda da autocrítica, irritabilidade ou apatia, e alterações das funções executivas
são as manifestações mais comuns. A possibilidade de confusão com síndromes
psiquiátricas, não-orgânicas, é muito grande.
Degeneração lobar frontotemporal é a denominação geral para um grupo de
doenças que se caracterizam por esse fenótipo ou por comprometimento da linguagem,
mas que dependem de diferentes mecanismos genéticos e bioquímicos. Cerca de metade
dos casos está associada a alterações da proteína tau, que sofre hiperfosforilação, o que
interfere na sua função importante para a integridade do citoesqueleto neuronal.
Também foram identificados casos em que não há depósitos de proteína tau, mas de

Pedro Kallas Curiati 1074


outra proteína, a TDP-43. A degeneração lobar frontotemporal incide principalmente na
idade pré-senil e menos da metade dos casos apresenta história familiar. O diagnóstico
baseia-se na forma de apresentação, nas alterações de comportamento e nos exames de
neuroimagem estrutural, como tomografia computadorizada e ressonância nuclear
magnética, e funcional, como tomografia computadorizada por emissão de fóton único
(SPECT) e tomografia por emissão de pósitrons (PET), que demonstram, na maioria dos
casos, atrofia frontotemporal ou padrões de hipometabolismo frontotemporal. Ainda não
há tratamento específico, mas tem sido recomendado o emprego de Trazodona ou de
inibidores seletivos da recaptura da serotonina como medicação sintomática. É
importante lembrar que a paralisia geral progressiva, forma de neurossífilis, geralmente
se inicia desse modo e, se diagnosticada nessa fase, é curável.
Doenças degenerativas que afetam predominantemente estruturas subcorticais,
como paralisia supranuclear progressiva, coreia de Huntington e síndromes
denominadas parkinsonismo-plus podem apresentar quadro clínico superponível. Em
tais casos, apatia e bradipsiquismo são as alterações mais frequentes.
A demência com corpúsculos de Lewy também pode se manifestar com
alterações predominantes do comportamento. Nessa forma de demência, que faz parte
do espectro das sinucleinopatias, em que a principal representante é a doença de
Parkinson, associam-se sinais parkinsonianos e alterações psíquicas, particularmente
alucinações e delirium, com grande oscilação de desempenho cognitivo. Distúrbios do
sono, particularmente distúrbio comportamental do sono REM, são frequentes e podem
preceder a síndrome demencial. Do ponto de vista neuropatológico, são encontradas
inclusões citoplasmáticas eosinofílicas que contêm alfa-sinucleína nos neurônios, os
corpúsculos de Lewy, que na doença de Parkinson limitam-se ao tronco cerebral,
principalmente na substância negra, enquanto que na demência com corpúsculos de
Lewy são encontrados também no núcleo basal de Meynert, na amígdala, no giro do
cíngulo e no neocortex. São raros os casos de demência que apresentam apenas os
corpúsculos de Lewy, pois as alterações neuropatológicas da doença de Alzheimer
frequentemente também estão presentes. Na neuroimagem, chamam a atenção a
ausência de atrofia hipocampal ou de atrofia de predomínio frontotemporal, enquanto
que os exames de neuroimagem funcional podem revelar hipometabolismo occipital ou
parieto-occipital. Trata-se de um dos tipos de demência que mais responde ao
tratamento com inibidores da colinesterase e que pior responde a neurolépticos típicos e
mesmo atípicos. O tratamento deve ser iniciado com inibidor da colinesterase, que pode
melhorar as alucinações e o déficit de atenção. Se necessário, Levodopa deve ser
utilizada para a síndrome parkinsoniana com cuidado, pois pode agravar as alucinações.
Do mesmo modo, neurolépticos atípicos, como a Quetiapina ou a Clozapina, podem ser
utilizados quando alucinações e outras alterações de comportamento não melhoram com
inibidor da colinesterase. Ainda, inibidores da recaptação de Serotonina, como
Citalopram e Sertralina, podem ser usados se houver sintomatologia depressiva. Para os
distúrbios do sono, Clonazepam é recomendado.

Demência com predomínio de disfunções visuoespaciais


Distúrbios do processamento das informações visuais podem ser as primeiras
manifestações de síndrome demencial em que há acometimento da região parieto-
occipital ou occípito-temporal bilateral.
O comprometimento parieto-occipital é mais frequente, manifestando-se como
distúrbio visuoespacial em que é mais comum a síndrome de Bálint parcial. Na
síndrome completa, manifestam-se dificuldade para dirigir o olhar para onde é
necessário ou apraxia do olhar, incapacidade para a visão simultânea de dois ou mais

Pedro Kallas Curiati 1075


objetos no campo visual e dificuldade para dirigir os movimentos do corpo e da mão.
Agnosia visual para imagens, objetos ou pessoas e incapacidade de ler também podem
ser as manifestações iniciais, mas mais raramente.
Geralmente, esse tipo de demência manifesta-se antes dos 65 anos e tem como
uma das primeiras causas a degeneração córtico-basal, na qual, além desses sintomas,
ocorrem também síndrome parkinsoniana assimétrica e movimentos involuntários no
mesmo hemicorpo. A doença de Alzheimer e a doença de Creutzfeldt-Jakob podem
iniciar-se desse modo.
Na maioria das vezes, é iniciado o tratamento com inibidor da colinesterase, mas
os resultados usualmente não são animadores.

Demência com predomínio de distúrbio de linguagem


Comprometimento da linguagem pode inaugurar as manifestações clínicas da
degeneração lobar frontotemporal. Muitas vezes, os distúrbios de linguagem mantêm-se
isolados ou como sinais predominantes por longo tempo. Quando isso ocorre por pelo
menos dois anos, a síndrome é definida como afasia progressiva primária.
Dois tipos são descritos, a afasia progressiva não-fluente e a demência
semântica. No primeiro grupo, predomina a atrofia de localização na região situada ao
redor da fissura de Sylvius, no hemisfério cerebral esquerdo, enquanto nos casos de
demência semântica a atrofia afeta principalmente o pólo temporal esquerdo. Na
demência semântica, o paciente não consegue nomear objetos ou pessoas e não é capaz
de reconhecer o nome quando este lhe é apresentado, configurando uma aparente
desconexão entre significante e significado.
A ressonância nuclear magnética, a tomografia computadorizada por emissão de
fóton único (SPECT) e eventualmente a tomografia por emissão de pósitrons (PET) são
bastante úteis no diagnóstico.
Embora a maioria dos casos faça parte do grupo das degenerações lobares
frontotemporais, a doença de Alzheimer pode eventualmente manifestar-se com esse
quadro clínico.

Outras síndromes causadas por comprometimento cortical assimétrico


Comprometimento unilateral cortical de outras regiões, especialmente dos lobos
parietais, pode causar síndromes em que predominam apraxias ou agnosias e que
permitiriam definir outro padrão, o de acometimento cortical assimétrico, do qual o
distúrbio de linguagem seria um tipo especial. Apraxias unilaterais ou bilaterais,
apraxias construtivas ou apraxia para vestir-se podem ocasionalmente inaugurar a
síndrome demencial.
Taupatias e mesmo doença de Alzheimer podem apresentar-se desse modo
atípico. Uma taupatia em que o padrão assimétrico é muito marcante é a degeneração
córtico-basal, na qual ocorrem apraxia, agnosia tátil e distúrbios do movimento que
geralmente afetam um dos membros superiores. O sinal da mão estrangeira é um dos
sinais distintivos dessa afecção e caracteriza-se pela ocorrência de movimentos
involuntários do membro afetado.
Cada um desses perfis deve ser identificado por meio de bateria de testes
neuropsicológicos apropriados. Exames de neuroimagem podem reforçar a definição.

Tratamento sintomático de transtornos neuropsiquiátricos em demência


Deve-se ressaltar que o tratamento farmacológico dos distúrbios do
comportamento somente deve ser considerado depois que outras alternativas, como a
correção de fatores ambientais adversos ou de intercorrências clínicas, não tenham

Pedro Kallas Curiati 1076


surtido efeito.
Distúrbios psicóticos, como delírios e alucinações, podem ser tratados com
neurolépticos atípicos. Depressão pode ser tratada com inibidores seletivos da recaptura
da serotonina. Insônia pode ser tratada com Trazodona, Mirtazapina e Zolpidem.
Agitação e agressividade podem ser tratados com inibidores seletivos da recaptação de
serotonina e neurolépticos atípicos.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 1: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da
mulher, envelhecimento e geriatria, medicina laboratorial na prática médica. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Clínica Médica, volume 6: doenças dos olhos, doenças dos ouvidos, nariz e garganta, neurologia, transtornos mentais. – Barueri, SP:
Manole, 2009.
Early Alzheimer’s Disease. Richard Mayeux. N Engl J Med 2010;362:2194-201.
Introduction to the recommendations from the National Institute on Aging and the Alzheimer’s Association workgroup on
diagnostic guidelines for Alzheimer’s disease. C.R. Jack Jr. et al. / Alzheimer’s & Dementia -(2011) 1–6.
The diagnosis of dementia due to Alzheimer’s disease: Recommendations from the National Institute on Aging and the Alzheimer’s
Association workgroup. G.M. McKhann et al. / Alzheimer’s & Dementia -(2011) 1–7.

Pedro Kallas Curiati 1077


DISTÚRBIOS DO MOVIMENTO
Conceito
Distúrbios do movimento são disfunções neurológicas caracterizadas por
pobreza ou lentidão dos movimentos voluntários, na ausência de paresia ou paralisia, ou
por atividade motora involuntária.
Os distúrbios do movimento relacionados a disfunções dos núcleos da base,
como parkinsonismo, coreia, balismo, distonia e atetose, tradicionalmente são
denominados síndromes extrapiramidais.

Fisiologia

Fisiopatologia
No parkinsonismo, admite-se que ocorra uma redução da atividade inibitória
sobre a via indireta e da atividade excitatória sobre a via direta dos gânglios da base
como consequência de disfunção da alça dopaminérgica nigro-estriatal. Essas alterações
resultam em intensificação da atividade inibitória sobre o tálamo e, consequentemente,
redução da estimulação cortical.
Nas coreias, admite-se que, em função de alterações estriatais atingindo
preferencialmente neurônios que expressam ácido gama aminobutírico (GABA) e
encefalina, ocorra redução da atividade inibitória exercida sobre o globo pálido externo
pela via indireta. Na sequência das conexões do circuito ocorre redução da inibição do
tálamo e hiperatividade da alça tálamo-cortical. O balismo é classicamente decorrente
de lesões do núcleo subtalâmico de Luys.

Parkinsonismo

Epidemiologia

Pedro Kallas Curiati 1078


O parkinsonismo, entendido como síndrome parkinsoniana com diversas
etiologias, é um dos mais frequentes distúrbios motores decorrentes de lesão do sistema
nervoso central.

Quadro clínico
A bradicinesia ou acinesia é um distúrbio caracterizado por pobreza de
movimentos, lentidão na iniciação e na execução de atos motores voluntários e
automáticos e dificuldade na mudança de padrões motores, na ausência de paralisia.
Pode englobar incapacidade de sustentar movimentos repetitivos, fatigabilidade
anormal, dificuldade de realizar atos motores simultâneos, redução da expressão facial
(hipomimia), diminuição da expressão gestual corporal e redução da deglutição
automática da saliva, com sialorréia. A escrita tende para micrografia. A marcha
desenvolve-se a pequenos passos, às vezes arrastando os pés, e há perda dos
movimentos associados dos membros superiores (marcha em bloco), hesitação no
início, interrupções e aceleração involuntária. A fala apresenta comprometimento da
fonação e da articulação das palavras, com disartria hipocinética.
A rigidez é uma forma de hipertonia plástica, em que há resistência à
movimentação passiva dos membros, contínua ou intermitente, com fenômeno da roda
denteada. Há acometimento preferencial da musculatura flexora e alterações típicas de
postura incluem ântero-flexão do tronco e semiflexão dos membros (postura simiesca).
O tremor parkinsoniano é clinicamente descrito como de repouso, assimétrico,
exacerbado por marcha, esforço mental e estresse emocional e diminuído por
movimentação voluntária do segmento afetado e sono. A frequência varia de quatro a
seis ciclos por segundo, com envolvimento preferencial de mãos e alternância entre
pronação e supinação.
A instabilidade é decorrente da perda de reflexos de readaptação postural e trata-
se de manifestação tardia no parkinsonismo primário.

Etiologia

Parkinsonismo primário
No parkinsonismo primário ou doença de Parkinson idiopática, afecção
neurodegenerativa progressiva, o quadro clínico é dominado pelas manifestações
motoras representadas pela síndrome parkinsoniana. No entanto, os pacientes também
podem apresentar alterações cognitivas, psiquiátricas e autonômicas.
As alterações cognitivas em fases iniciais da moléstia, quando presentes,
geralmente são discretas, com distúrbios visuoespaciais e disfunção executiva.
Entretanto, em cerca de 15-20% dos casos, em fases adiantadas da evolução da doença,
podem instalar-se alterações cognitivas graves, configurando quadro demencial.
Depressão está presente em cerca de 40% dos pacientes e pode ocorrer em
qualquer fase da evolução da doença.
Entre as alterações autonômicas, a mais frequente é a obstipação intestinal,
podendo também estar presentes seborreia, hipotensão postural e alterações vesicais.
Em fases iniciais ou mesmo em fases mais avançadas o parkinsonismo pode
apresentar-se de forma fragmentária, com dificuldade para o seu reconhecimento. A
forma rígido-acinética caracteriza-se pela presença de acinesia e/ou rigidez, enquanto
que a forma hipercinética caracteriza-se pela presença de tremor.
Atualmente, a doença pode ser dividida em clássica, com início na meia idade, e
genética, geralmente de início mais precoce e associada a história familiar.

Pedro Kallas Curiati 1079


Parkinsonismo secundário
As principais causas de parkinsonismo secundário são drogas, como
neurolépticos, antieméticos (Metoclopramida), bloqueadores de canais de cálcio
(Cinarizina, Flunarizina), Amiodarona e Lítio, intoxicações exógenas, como por
monóxido de carbono, dissulfeto de carbono, metil-fenil-tetrahidroperidina (MPTP),
metanol, organofosforados e herbicidas, infecções, como encefalite viral,
neurocisticercose e síndrome da imunodeficiência adquirida, doença vascular cerebral,
traumatismo crânio-encefálico, processos expansivos do sistema nervoso central,
hidrocefalia e distúrbios metabólicos, como hipoparatireoidismo.
O parkinsonismo induzido por drogas pode persistir por semanas a meses após a
suspensão do uso.

Parkinsonismo plus
O parkinsonismo plus ou atípico é caracterizado por quadro neurológico no qual
uma síndrome parkinsoniana, geralmente expressa apenas por acinesia e rigidez, sem
tremor, associa-se a distúrbios autonômicos, cerebelares, piramidais, de neurônio motor
inferior ou, ainda, de motricidade ocular extrínseca. O parkinsonismo atípico, ao
contrário do que ocorre com a doença de Parkinson idiopática, geralmente instala-se de
forma simétrica, cursa precocemente com instabilidade e quedas e responde mal ao
tratamento, inclusive à Levodopa. Relaciona-se a uma série de moléstias neurológicas
degenerativas ou dismetabólicas.
Doenças neurodegenerativas, geralmente esporádicas, que se instalam na meia
idade, após os quarenta anos, oferecem maior dificuldade diagnóstica porque têm a
apresentação mais semelhante com a forma clássica da doença de Parkinson idiopática.
O seu reconhecimento precoce reveste-se de importância em função de pior
prognóstico, estando entre essas moléstias a paralisia supranuclear progressiva, a atrofia
de múltiplos sistemas, a degeneração córtico-basal e a demência com corpos de Lewy.
A paralisia supranuclear progressiva é uma doença degenerativa relacionada à proteína
tau que se apresenta na sua forma mais típica como uma síndrome parkinsoniana na
qual sobressai a instabilidade postural, acentuada já na fase inicial da doença, com
desenvolvimento ao longo do segundo ou do terceiro anos de evolução de
oftalmoparesia supranuclear vertical. A atrofia de múltiplos sistemas é uma doença que
pode manifestar-se com predomínio de parkinsonismo ou com predomínio de alterações
cerebelares, em ambos os casos com distúrbios autonômicos graves, incluindo
hipotensão postural, impotência sexual e disfunção de esfíncter vesical, podendo-se
encontrar em imagens de ressonância magnética alterações de sinal no putâmen e atrofia
de tronco cerebral e cerebelo. A degeneração corticobasal é uma doença degenerativa
rara relacionada à proteína tau, de início mais tardio, rígido-acinética, com acentuada e
persistente assimetria e associada a uma ou mais manifestações de disfunção cortical
dentre apraxia ideomotora, síndrome da “mão alienígena”, alterações sensoriais
corticais e mioclonias corticais. A demência com corpos de Lewy é caracterizada por
parkinsonismo, espontâneo ou desencadeado por neurolépticos, demência com flutuação
do déficit cognitivo e início antes do parkinsonismo ou até um ano após as
manifestações iniciais e alucinações visuais
Doenças com instalação precoce, antes dos quarenta anos, associadas a história
familiar, são mais facilmente distinguíveis da doença de Parkinson idiopática. Incluem
doença de Wilson, forma rígida da doença de Huntington, doença de Hallervorden-
Spatz, calcificação estriato-pálido-denteada (síndrome de Fahr), degeneração palidal,
parkinsonismo com neuroacantocitose, doença de Machado-Joseph, demência
frontotemporal com parkinsonismo, complexo parkinsonismo-demência-esclerose

Pedro Kallas Curiati 1080


lateral amiotrófica de Guam e parkinsonismo atípico das Antilhas. Em pacientes com
parkinsonismo de início precoce, a doença de Wilson deve sempre ser considerada e
investigada pelo estudo do metabolismo do cobre, pois comporta tratamento específico.
Na maioria dos casos, o parkinsonismo está associado a quadro distônico ou tremor
postural. Pode estar presente anel de Kayser-Fleischer, consequente ao depósito de
cobre na córnea.

Avaliação complementar
Ressonância nuclear magnética do encéfalo deve ser realizada para excluir
anomalias estruturais específicas de causas de parkinsonismo secundário, como
hidrocefalia, tumores e infartos lacunares. Também pode revelar sinais de doenças
específicas em pacientes com parkinsonismo atípico.
Tomografia por emissão de pósitrons e tomografia por emissão de fóton único
podem ser úteis para o diagnóstico precoce da doença de Parkinson idiopática.

Tratamento
O tratamento não-farmacológico da doença de Parkinson idiopática abrange
educação, suporte social e psicológico, exercício físico, abordagem fonoaudiológica e
orientações nutricionais.
As síndromes parkinsonianas determinadas por drogas, algumas intoxicações
exógenas, como por organofosforados, e processos expansivos do sistema nervoso
central geralmente são controladas apenas com a remoção da causa básica. Já o
parkinsonismo encefalítico ou pós-encefalítico, vascular, metabólico ou decorrente de
algumas intoxicações exógenas, como por manganês e herbicidas, geralmente é
definitivo e o tratamento deve ser sintomático.
As drogas empregadas no tratamento das síndromes parkinsonianas têm como
mecanismo básico de ação o aumento da atividade dopaminérgica e a redução da
atividade colinérgica. As principais são a Levodopa, os agonistas dopaminérgicos, os
anticolinérgicos e a Amantadina. Drogas que bloqueiam a metabolização da dopamina,
como os inibidores da monoamino-oxidase (MAO), que incluem Selegilina e
Rasagilina, ou da catecol-orto-metiltransferase (COMT), que incluem Tolcapone e
Entacapone, podem potencializar o efeito da Levodopa.
O primeiro fator a ser considerado no paciente recém-diagnosticado é a
neuroproteção. Não há, até o momento, agente farmacológico que seja
comprovadamente eficaz em retardar o processo degenerativo, mas podem ter efeito
neuroprotetor, embora não comprovado, a Selegilina, a Rasagilina, a Amantadina e os
agonistas dopaminérgicos. Destacam-se a Selegilina e a Amantadina.
Como terapia sintomática, na fase inicial, podem ser associados à Selegilina um
anticolinérgico e/ou Amantadina. Porém, em pacientes com idade superior a setenta
anos ou déficit cognitivo, os efeitos colaterais podem impedir o seu uso. Em pacientes
com idade mais avançada, a Levodopa é a droga de escolha.
Quando na evolução da doença de Parkinson se torna necessária a introdução de
drogas mais potentes de efeito sintomático, surge nova controvérsia quanto a introdução
precoce ou tardia de Levodopa e o papel dos agonistas dopaminérgicos. Os principais
argumentos contra o uso precoce da Levodopa são a sua possível toxicidade e o maior
risco de induzir flutuações motoras ou discinesias quando comparada com agonistas
dopaminérgicos.

Levodopa
A Levodopa é transformada em dopamina sob a ação da enzima dopa-

Pedro Kallas Curiati 1081


carboxilase. Essa transformação, porém, pode ocorrer perifericamente, antes do sistema
nervoso central ser alcançado, com dissipação e efeitos colaterais, que incluem náusea,
vômitos, diminuição do apetite, hipotensão postural e arritmias cardíacas. O emprego de
inibidores periféricos da dopa-carboxilase permite o controle da maior parte dos efeitos
colaterais e a redução da dose necessária de Levodopa de 3-4g/dia para
aproximadamente 1g/dia.
A Levodopa é particularmente efetiva para o manejo da bradicinesia ou acinesia
e deve ser introduzida quando os sintomas se tornam incapacitantes e não são
controlados de maneira satisfatória com outras medicações. A associação com
anticolinesterásicos ou Amantadina pode ser útil para o controle do tremor de repouso.
Atualmente, é apresentada comercialmente em associação com Carbidopa, com
comprimidos de 250mg/25mg e 200mg/50mg, ou em associação com Benzerazida, com
comprimidos de 200mg/50mg e de liberação prolongada ou dispersíveis de
100mg/25mg. As doses utilizadas variam de acordo com a gravidade do quadro. O
tratamento deve ser iniciado com doses baixas, como 50mg duas a três vezes ao dia. Na
ausência de efeitos adversos, pode-se titular gradualmente ao longo de algumas semanas
até a menor dose que produza resposta clínica, geralmente ao redor de 300-600mg/dia.
Ausência completa de resposta a doses de 1000-1500mg/dia sugere diagnóstico
alternativo. A medicação deve ser preferencialmente administrada em intervalos de
quatro horas em caso de preparações de liberação imediata, preferencialmente durante
alguma refeição em pacientes com doença em estágio inicial e trinta minutos antes ou
uma hora após refeição em pacientes com doença em estágio avançado.
Embora a Levodopa continue sendo o padrão de referência no tratamento da
doença de Parkinson idiopática, seu uso em longo prazo é associado a uma série de
efeitos adversos, como perda de eficácia, flutuações do desempenho motor, discinesia,
distonia e complicações neuropsiquiátricas. Além disso, instabilidade postural e acinesia
súbita não respondem a essa droga. No início da doença, o tratamento com Levodopa
leva a uma resposta clínica sustentada, particularmente refletindo capacidade de
armazenamento da dopamina nos terminais nigro-estriatais, mas com o tempo surgem
flutuações motoras da resposta à Levodopa. Admite-se que entre os fatores diretamente
relacionados ao uso crônico da Levodopa e implicados no aparecimento de algumas das
complicações esteja a estimulação intermitente dos receptores dopaminérgicos, de modo
que pode-se inferir que as intervenções que melhorem a biodisponibilidade da
Levodopa devem contribuir para minimizar os seus efeitos colaterais. O uso
concomitante de agonistas dopaminérgicos pode diminuir o risco de flutuações motoras
e discinesia. Amantadina pode ser útil para aliviar a discinesia.
As principais alterações mentais decorrentes do uso crônico da Levodopa são
distúrbios do sono, alucinações visuais e delírios, mais frequentes em pacientes com
idade avançada e comprometimento cognitivo. Há indicação de redução da dose, mas
caso ocorra piora inaceitável do parkinsonismo, pode-se retornar para a dose prévia e
introduzir neuroléptico com baixa afinidade por receptores dopaminérgicos estriatais
(D1 e D2), como a Quetiapina e a Clozapina, que requer hemograma de controle
quinzenal pelo risco de agranulocitose, principalmente no início do tratamento.

Inibidores da monoamino-oxidase
Selegilina e Rasagilina, inibidores seletivos da monoamino-oxidase B, são
modestamente efetivas no tratamento sintomático do parkinsonismo primário e podem
ter efeito neuroprotetor. Em muitos pacientes, no entanto, podem não produzir
benefício significativo na funcionalidade.
Selegilina é apresentada na forma de comprimidos de 5mg, com dose de 5mg

Pedro Kallas Curiati 1082


uma vez ao dia pela manhã.
Os principais efeitos adversos são náusea, cefaleia e insônia. Em idosos, pode
ocorrer confusão mental. Pode ocorrer aumento dos efeitos adversos induzidos pela
Levodopa, mas a necessidade de continuar o uso da Selegilina é questionável uma vez
que o paciente tenha atingido o ponto de necessitar aquela medicação. Diferentemente
de inibidores da monoamino-oxidase não-seletivos, não ocorre crise hipertensiva
associada a ingesta de alimentos ricos em tiramina.

Inibidores da catecol-orto-metiltransferase (COMT)


O emprego dos inibidores da catecol-orto-metiltransferase (COMT) permite
potencializar os efeitos da Levodopa.
Tolcapone possui ação central e periférica, é apresentado na forma de
comprimidos de 100mg e deve ser administrado com posologia inicial de um
comprimido três vezes ao dia, sendo o primeiro ingerido junto com a primeira dose de
Levodopa do dia e os subsequentes distribuídos com intervalo de seis horas entre si. As
indicações mais precisas para o emprego dessa droga, cujo efeito está condicionado ao
uso concomitante com a Levodopa, são o tratamento do encurtamento da duração do
efeito de cada dose (wearing off) e perda de potência da Levodopa. O uso em fases mais
precoces, por ocasião da introdução da Levodopa, com a finalidade de proporcionar
níveis plasmáticos mais estáveis e possivelmente reduzir, a longo prazo, a incidência de
complicações, ainda é matéria controversa. Os efeitos colaterais mais comuns são os
mesmos da Levodopa, além de anorexia, náusea, diarreia e hepatotoxicidade, com
necessidade de monitorização de níveis de enzimas hepáticas. O manejo dos efeitos
colaterais é feito com a redução da dose de Levodopa antes ou depois da adição do
Tolcapone.
Entacapone possui ação predominantemente periférica, é apresentado na forma
de comprimidos de 200mg, com dose diária de 600-1200mg/dia, devendo ser usado
juntamente com a Levodopa em doses fracionadas de 200mg. Também existe
apresentação comercial com a associação Levodopa, Carbidopa e Entacapona, com
comprimidos de 50mg/12.5mg/200mg, 100mg/25mg/200mg e 150mg/37.5mg/200mg
(Stalevo®). As indicações são as mesmas do Tolcapone, porém a potência parece ser
menor. Os efeitos colaterais são similares, exceto o potencial de hepatotoxicidade.

Agonistas dopaminérgicos
Os agonistas dopaminérgicos, drogas que estimulam diretamente os receptores
dopaminérgicos, têm sido desenvolvidos na tentativa de superar as limitações da
Levodopa no tratamento da doença de Parkinson idiopática. Numerosos agonistas
dopaminérgicos foram testados nas últimas décadas, porém as drogas que já foram
definitivamente incorporadas ao arsenal terapêutico são Bromocriptina, Lisurida,
Piribedil, Pramipexol, Ropinirol e Apomorfina. Não necessitam de conversão
metabólica, não competem com aminoácidos pelo transporte através do intestino e para
o cérebro e não dependem de captação e liberação neuronal. Além disso, geralmente
apresentam ação com duração mais prolongada. Cabergolina e Pergolida não devem ser
utilizadas em função do risco de lesão cardíaca valvar.
Os agonistas dopaminérgicos têm eficácia comparável, mas o Pramipexol e o
Ropinirol têm um perfil de efeitos colaterais mais favorável e, por essa razão, são os
mais utilizados atualmente. O Pramipexol é apresentado na forma de comprimidos de
0.125mg, 0.25mg, 0.5mg, 1mg e 1.5mg, iniciando-se com 0.375mg/dia em três vezes e
aumentando, se necessário, 0.375mg/dia a cada cinco a sete dias até alcançar a dose
eficaz, geralmente 1.5-4.5mg/dia. O Ropirinol é apresentado na forma de comprimidos

Pedro Kallas Curiati 1083


de 0.25mg, 0.5mg, 1mg e 2mg, com dose inicial de 0.25mg três vezes ao dia,
aumentada gradualmente em 0.25mg/dose a cada semana durante quatro semanas até
uma dose diária de 3mg, suficiente para a maior parte dos pacientes, podendo-se ainda
aumentar a dose gradualmente em 0.50mg/dose semanalmente a partir de então, com
máximo de 24mg/dia.
Bromocriptina é apresentada na forma de comprimidos de 2.5mg e 5.0mg, com
dose inicial de 1.25mg duas vezes ao dia e incrementos de 2.5mg/dia a cada duas a
quatro semanas, sendo a maior parte dos pacientes manejada adequadamente com 20-
40mg fracionados em três a quatro vezes, podendo-se atingir até 90mg/dia.
Em função da potencial menor associação com flutuações motoras e da
evidência de maior incidência de discinesia relacionada à Levodopa em doença de
Parkinson idiopática de início precoce, sugere-se o uso de agonistas dopaminérgicos
como tratamento inicial em pacientes com idade inferior a sessenta, com uso da
Levodopa, mais eficiente, naqueles com idade mais avançada.
Os efeitos colaterais incluem náusea, vômitos, sonolência, hipotensão
ortostática, confusão mental, alucinações e edema periférico.

Anticolinérgicos
Os anticolinérgicos, como Biperideno e Trihexifenidila, reduzem a atividade
colinérgica, com o restabelecimento do equilíbrio com a dopamina no striatum. No
entanto, embora apresentem ação satisfatória sobre o tremor parkinsoniano, apresentam
reduzida capacidade de controlar a bradicinesia e frequentemente induzem efeitos
colaterais anticolinérgicos sistêmicos, com sialosquese, obstipação intestinal, retenção
urinária, estado confusional, déficit cognitivo e alucinações.
A dose inicial da Trihexifenidila é de 0.5-1mg duas vezes ao dia, com aumento
gradual para 2mg três vezes ao dia.
Atualmente, os anticolinérgicos são drogas de segunda linha no tratamento da
doença de Parkinson idiopática e melhor indicados para jovens que apresentam tremor
como manifestação predominante da doença.

Amantadina
A atividade anti-parkinsoniana da Amantadina, que é um agente antiviral, foi
descoberta casualmente. A sua potência é consideravelmente menor que a da Levodopa
e o seu mecanismo de ação é bloqueio da recaptação de dopamina na fenda sináptica e
atividade anticolinérgica. Atua ainda como antagonista de receptor N-metil-D-aspartato
(NMDA), um dos tipos de receptor para ácido glutâmico. A ação anti-glutamatérgica
pode explicar o efeito sobre a discinesia induzida por Levodopa.
É apresentada na forma de comprimidos de 100mg, com doses de 100-
300mg/dia divididas em três vezes. Reduz a intensidade da discinesia e das flutuações
motoras induzidas pela Levodopa.
Os efeitos colaterais mais importantes são confusão mental, alucinações, insônia
e pesadelos, especialmente em pacientes muito idosos. Efeitos colaterais periféricos
incluem livedo reticular e edema de membros inferiores, que raramente limitam o uso
da droga, que quando necessário, deve ser retirada gradualmente. Deve-se ter cautela
em caso de insuficiência renal.

Cirurgia
Ao contrário do que ocorreu com as técnicas cirúrgicas anteriormente
introduzidas para o tratamento da doença de Parkinson idiopática, a moderna
palidotomia foi proposta com uma base racional, calcada nos atuais conhecimentos de

Pedro Kallas Curiati 1084


fisiopatologia. A melhora do parkinsonismo ocorre imediatamente após o procedimento,
embora possa oscilar em sua graduação nas semanas seguintes até alcançar um patamar
estável. A palidotomia unilateral determina uma regressão do parkinsonismo no
hemicorpo contralateral que varia entre 20% e 60%, com melhora modesta no
hemicorpo ipsilateral. O procedimento bilateral, mesmo que realizado em tempos
diferentes, pode determinar agravamento da disartria e o aparecimento de disfunção
cognitiva. Os sintomas que melhor respondem à cirurgia são a acinesia e a rigidez. A
melhora do tremor é inferior a observada na talamotomia. Dessa forma, a palidotomia
não é o procedimento de escolha para pacientes em que predomina tremor e pode ser
realizada no mesmo ato cirúrgico que talamotomia em pacientes em que componente
rígido-acinético e tremor estão presentes com intensidades equivalentes. Com as
modernas técnicas de cirurgia estereotáxica, as complicações relacionadas a esse
procedimento ocorrem com baixa frequência, inferior a 10%, e geralmente são
transitórias. As principais são hematoma no globo pálido ou em algum ponto no trajeto
de acesso a essa estrutura e consequentes déficits motores, crise convulsiva e déficits,
geralmente permanentes, de campo visual.
A estimulação cerebral profunda, de introdução recente, tem sido proposta como
uma alternativa mais conservadora para as clássicas lesões termolíticas do tálamo ou do
globo pálido. É feita por eletrodos que, implantados nessas estruturas ou mesmo no
núcleo subtalâmco, são acionados por um gerador, que admite ajustes de frequência e
direcionamento do estímulo elétrico, colocado no subcutâneo em região torácica. A
estimulação de alta frequência tem efeito inibitório sobre a estrutura em que o eletrodo
está implantado. A vantagem maior é a reversibilidade do efeito nos alvos atingidos,
permitindo, quando necessário, intervenções bilaterais. As principais desvantagens são
os custos do equipamento e a necessidade de ajustes do estimulador.

Coreias
A coreia caracteriza-se por movimentos involuntários de início abrupto,
explosivo, geralmente de curta duração, repetindo-se com intensidade e topografia
variáveis, assumindo caráter migratório e errático. Os movimentos voluntários nos
segmentos afetados, assim como a marcha, são influenciados pelos movimentos
coreicos, que provocam interrupções e desvios da trajetória, conferindo um caráter
bizarro à movimentação do paciente. Por vezes, o paciente incorpora deliberadamente o
movimento coreico em um movimento voluntário, com o intuito de torna-lo menos
aparente, porém resultando em gesticulação exagerada, caracterizando o chamado
maneirismo. A coreia acompanha-se de certo grau de hipotonia e os reflexos miotáticos
profundos tendem a ser pendulares.
As coreias são classificadas em hereditárias, como em doença de Huntington,
coreoacantocitose, coreia familiar benigna e coreoatetose paroxística, associadas a
doenças dismetabólicas ou degenerativas do sistema nervoso central, como em doença
de Wilson, encefalopatia mitocondrial e doença de Lesch Nyhan, autoimunes, como em
coreia de Sydenham e lúpus eritematoso sistêmico, vasculares, como em acidente
vascular cerebral isquêmico e acidente vascular cerebral hemorrágico, infecciosas,
como em infecção pelo vírus da imunodeficiência humana, associadas a distúrbios
metabólicos e endócrinos, como em coreia gravídica, hipertireoidismo,
hipoparatireoidismo, hiperparatireoidismo, hipoglicemia e hiperglicemia, intoxicações
exógenas, como em intoxicação por monóxido de carbono, manganês, mercúrio, titânio
e chumbo, e associadas ao uso de drogas, como anfetaminas, xantinas, neurolépticos,
benzamidas, bloqueadores de canais de cálcio, Levodopa, anticoncepcionais,
antieméticos, Lítio e Fenitoína.

Pedro Kallas Curiati 1085


A doença de Huntington é uma coreia crônica progressiva familiar autossômica
dominante. O quadro clínico é caracterizado por síndrome coreica associada a distúrbios
psiquiátricos e cognitivos. Pode ter instalação tardia, na quinta ou na sexta décadas de
vida. O diagnóstico é corroborado por exames de neuroimagem e testes genéticos. A
evolução é invariavelmente fatal em um período que varia de dez a quinze anos.
Dentre as síndromes coreicas de início agudo, nas quais em geral não há história
familiar positiva, destaca-se a coreia reumática, também denominada coreia de
Sydenham, que é a causa mais frequente na infância. Nos casos de coreia aguda, a
investigação é centrada em exames de bioquímica sanguínea, hormônios e provas
reumatológicas, além de pesquisa de reação a drogas. Eventualmente, exames de
neuroimagem são necessários.
A discinesia tardia é atribuída à hipersensibilidade de receptores dopaminérgicos
causada por diversos tipos de bloqueadores dopaminérgicos. Os neurolépticos atípicos,
de uso mais recente, como Quetiapina, Olanzapina e Risperidona, provocam esse tipo
de efeito colateral mais raramente, enquanto que a Clozapina parece ser o único
neuroléptico que não apresenta esse tipo de complicação. Pacientes com idade mais
avançada são mais propensos a desenvolver esse tipo de complicação.
O tratamento sintomático das coreias é baseado no conhecimento do
desequilíbrio bioquímico existente, caracterizado por redução da atividade gabaérgica e
colinérgica e predomínio de atividade dopaminérgica. As drogas que aumentam a
atividade colinérgica não têm se mostrado suficientemente eficazes para serem
consideradas opções no tratamento. Por outro lado, os agonistas gabaérgicos, como o
Ácido Valpróico, disponível na forma de comprimidos de 250mg e 500mg, têm sido
empregados no tratamento da coreia reumática com resultados satisfatórios. As doses
variam de 250mg a 1500mg diários divididos em três a quatro vezes.
Os antagonistas dopaminérgicos são os mais empregados no tratamento das
coreias. Entre aqueles com ação pré-sináptica, o mais utilizado é a Reserpina, com dose
de 0.5-5mg por dia. Pode provocar hipotensão e depressão, porém não induz o efeito
colateral mais temido dos antagonistas de ação pós-sináptica, discinesias tardias. Os
antagonistas dopaminérgicos de ação pós-sináptica são os bloqueadores de receptores
dopaminérgicos e têm grande eficácia no controle dos movimentos coreicos. Os mais
empregados são os fenotiazínicos, como a Clorpromazina, apresentada na forma de
comprimidos de 25mg e 100mg e solução oral a 4% com 1mg/gota, com dose de 10-
100mg/dia dividida em duas a seis vezes, e as butirofenonas, como o Haloperidol,
apresentado na forma de comprimidos de 1mg e 5mg, com dose de 2-20mg/dia,
Olanzapina, apresentada na forma de comprimidos de 2.5mg, 5.mg e 10mg, com dose
de 5-10mg/dia não fracionada, e Risperidona, apresentada na forma de comprimidos de
1mg, 2mg e 3mg, com dose de 2-6mg/dia fracionada em duas vezes. Podem induzir
parkinsonismo às vezes tão incapacitante quanto a própria hipercinesia que se pretende
controlar, de modo que as doses devem ser mínimas na introdução e aumentadas
cuidadosamente até que se obtenha o efeito desejado. O efeito colateral mais grave é a
discinesia tardia.

Hemibalismo
O hemibalismo é caracterizado por movimentos involuntários amplos, de início
e fim abruptos, envolvendo segmentos proximais dos membros, podendo também
acometer o tronco e o segmento cefálico, envolvendo apenas um lado do corpo. Leva a
deslocamentos bruscos e violentos, colocando em ação grandes massas musculares. O
quadro tem instalação abrupta, em pacientes com perfil para doença cerebrovascular.
Nos pacientes mais jovens, deve-se sempre considerar a presença de granuloma por

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toxoplasmose cerebral em um contexto e síndrome da imunodeficiência adquirida.
Trata-se de situação clínica particular, geralmente secundária a lesão vascular
isquêmica do núcleo subtalâmico de Luys.
O tratamento farmacológico do balismo é feito com o mesmo arsenal disponível
para o tratamento das coreias. Raramente a cirurgia estereotáxica torna-se necessária
para controlar o balismo que não responde satisfatoriamente ao tratamento
farmacológico.

Atetose
Atetose, ou coreoatetose, é caracterizada por movimentos involuntários lentos,
sinuosos, frequentemente contínuos, lembrando uma contorção, envolvendo
predominantemente as extremidades distais.
Ocorre com maior frequência em crianças do que em adultos, geralmente por
anóxia em sistema nervoso central.

Distonia
Distonia é caracterizada por movimentos involuntários, geralmente em torção,
variando em velocidade, frequentemente mantidos por um segundo ou mais no ponto
máximo da contração muscular. Quando persistem por alguns segundos ou minutos, a
expressão postura distônica é mais apropriada. A presença de um tremor postural
semelhante ao tremor essencial em pacientes com as mais variadas formas de distonia é
relativamente comum e sugere que as anormalidades fisiológicas presentes nas distonias
predisponham ao aparecimento desse tipo de tremor. A distribuição topográfica dos
movimentos distônicos é variável e qualquer território muscular pode ser acometido,
inclusive os músculos oculares extrínsecos, levando às chamadas crises oculógiras.
De acordo com o território muscular envolvido, a distonia pode ser classificada
em focal, segmentar, hemidistonia, multifocal e generalizada. De acordo com a sua
etiologia, podem ser divididas em idiopáticas ou primárias e sintomáticas ou
secundárias.
Admite-se que a disfunção ocorra em nível estriatal, mais especificamente no
putâmen.
O tratamento sintomático das distonias tem base empírica, já que a fisiopatologia
é pouco conhecida. Das drogas empregadas, os anticolinérgicos são os agentes
farmacológicos mais efetivos, ainda que a resposta terapêutica em geral não seja tão
boa. Algumas formas de distonia generalizada da infância respondem muito bem à
Levodopa, que, portanto, sempre deve ser testada nesses casos. As opções restantes são
os benzodiazepínicos, o Baclofeno e os neurolépticos. O Baclofeno intratecal tem sido
empregado com algum sucesso em distonias que afetam predominantemente os
membros inferiores.
De modo geral, os resultados do tratamento farmacológico sistêmico das
distonias são precários e a introdução da toxina botulínica em injeções intramusculares,
indicada principalmente para as formas focais de distonia, constituiu-se em avanço
marcante. Atua na junção neuromuscular e bloqueia a liberação de acetilcolina na fenda
sináptica. A duração do efeito é, em média, três meses. Efeitos colaterais sistêmicos são
pouco comuns, sem gravidades e transitórios. Incluem náusea, sialosquese e obstipação
intestinal. Os efeitos colaterais locais, igualmente transitórios, são relacionados a
paresia excessiva dos músculos injetados.
O tratamento cirúrgico das distonias, indicado em casos selecionados, envolve
procedimentos periféricos, com denervação da musculatura acometida, e centrais, com
intervenção estereotáxica no segmento medial do globo pálido.

Pedro Kallas Curiati 1087


Bibliografia
Clínica Médica, volume 6: doenças dos olhos, doenças dos ouvidos, nariz e garganta, neurologia, transtornos mentais. – Barueri, SP:
Manole, 2009.
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Diagnosis of Parkinson disease. Kelvin L Chou. UpToDate, 2011.
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Pharmacologic treatment of Parkinson disease. Daniel Tarsy. UpToDate, 2011.
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Levodopa for the Treatment of Parkinson’s Disease. Peter A. LeWitt. N Engl J Med 2008;359:2468-76.

Pedro Kallas Curiati 1088


DOENÇA CEREBROVASCULAR
Ataque isquêmico transitório e acidente vascular cerebral isquêmico

Definições
Os tipos de doença cerebrovascular são divididos com base no aspecto
patológico em acidentes vasculares cerebrais isquêmicos, responsáveis por
aproximadamente 80% dos casos, e eventos hemorrágicos, que abrangem a hemorragia
cerebral intraparenquimatosa ou acidente cerebral vascular hemorrágico e a hemorragia
subaracnóide.
O acidente vascular cerebral é definido como um déficit neurológico, geralmente
focal, de instalação súbita e rápida evolução, com etiologia vascular. Segundo a
definição clássica, a duração dos sintomas e dos sinais neurológicos deve ser superior a
24 horas ou levar à morte.
O ataque isquêmico transitório têm, geralmente, as mesmas características e os
mesmos mecanismos do acidente vascular cerebral isquêmico, porém com regressão
completa do déficit neurológico em menos de 24 horas. Mais recentemente, foi proposta
uma nova definição que leva em consideração ausência de infarto cerebral nos exames
de imagem e duração dos sintomas inferior a uma hora.

Epidemiologia
As doenças cerebrovasculares representam a maior causa de morte no Brasil e
uma das três principais causas de mortalidade na maioria dos países industrializados, ao
lado de doença isquêmica do coração e câncer. As doenças cerebrovasculares também
constituem a segunda causa mais frequente de demência, apenas superadas pela doença
de Alzheimer, além de serem desencadeantes comuns de epilepsia, depressão e quedas
com fraturas.

Etiologia e fisiopatologia
Os mais comuns mecanismos causadores do acidente vascular isquêmico são
trombose de grandes artérias, embolia de origem cardíaca e trombose de pequenas
artérias. Entre outros mecanismos menos comuns estão a dissecção arterial, as arterites e
os estados hipercoaguláveis ou trombofilias.
A trombose de grandes artérias pode determinar insulto isquêmico por trombose
no local da placa ou, mais comumente, tromboembolismo artério-arterial. Os principais
fatores de risco para doença aterosclerótica são idade avançada, hipertensão arterial
sistêmica, diabetes mellitus, tabagismo, dislipidemia e sedentarismo. Suas principais
manifestações clínicas envolvem comprometimento cortical, com afasia, negligência e
déficit motor desproporcionado, ou disfunção de tronco encefálico ou cerebelo. Os
pacientes acometidos habitualmente têm estenose significativa, superior a 50%, ou
oclusão de uma grande artéria ou mesmo de um ramo arterial cortical. Podem estar
presentes antecedente de claudicação intermitente, doença isquêmica do coração e
acidente isquêmico transitório no mesmo território vascular, além de achado ao exame
físico de sopro carotídeo e diminuição de pulsos periféricos. Lesões isquêmicas
corticais, cerebelares, do tronco encefálico ou hemisféricas subcorticais maiores que
15mm de diâmetro são consideradas de origem potencialmente aterosclerótica de

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grandes artérias. Imagens isquêmicas no território de fronteira vascular são sugestivas
de mecanismo hemodinâmico.
A embolia de origem cardíaca tem como fatores de risco prótese valvar,
principalmente se mecânica, estenose mitral, principalmente se acompanhada de
fibrilação atrial, arritmias cardíacas, principalmente fibrilação atrial, trombo
intracavitário em átrio ou ventrículo esquerdos, infarto do miocárdio nos últimos seis
meses, principalmente se nas últimas quatro semanas, miocardiopatia dilatada,
hipocinesia ou, principalmente, acinesia ventricular esquerda, mixoma atrial,
endocardite infecciosa e insuficiência cardíaca. Evidência de isquemia cerebral prévia
em mais que um território vascular ou embolia sistêmica reforça o diagnóstico de
embolia de origem cardíaca. Os achados clínicos e de imagem são similares aos da
aterosclerose de grandes artérias. Porém, os infartos cerebrais com transformação
hemorrágica são mais comuns.
A oclusão de pequena artéria se caracteriza pela ocorrência de pequeno infarto,
menor do que 15mm de diâmetro, na profundidade dos hemisférios cerebrais ou do
tronco cerebral. O principal substrato é lipo-hialinose e ateromatose acometendo o óstio
das artérias perfurantes profundas. Os infartos lacunares se localizam preferencialmente
no território dos ramos lenticuloestriados da artéria cerebral média, dos ramos
talamoperfurantes da artéria cerebral posterior e dos ramos paramedianos pontinos da
artéria basilar. O paciente pode exibir uma das cinco clássicas síndromes laculares, com
hemiparesia motora pura, hemiparesia atáxica, déficit sensitivo puro, déficit sensitivo e
motor e disartria com mão desajeitada, não podendo, sob nenhuma hipótese, apresentar
sinais de disfunção cortical, como afasia, apraxia, agnosia e negligência. Antecedente de
hipertensão arterial sistêmica e diabetes mellitus reforça o diagnóstico. Potenciais fontes
cardioembólicas devem estar ausentes e estenose significativa no território arterial
correspondente deve ser excluída. Estado lacunar é a denominação utilizada para
múltiplos infartos lacunares que se caracterizam clinicamente por distúrbios de
equilíbrio, sinais pseudobulbares, como disartria e disfagia, declínio cognitivo e
incontinência urinária.
Causas incomuns incluem dissecções arteriais cervicocefálicas, displasia
fibromuscular, doença de moyamoya, vasculites primárias e secundárias do sistema
nervoso central, síndrome de Sneddon, doença de Fabry, estado de hipercoagulabilidade
e angiopatia cerebral autossômica dominante com infartos subcorticais e
leucoencefalopatia (CADASIL).
A causa do acidente vascular isquêmico permanece indeterminada em quase um
terço dos pacientes a despeito de extensa investigação.

Quadro clínico
Deve ser indagada a hora exata do início dos sintomas ou, na impossibilidade da
obtenção dessa informação, o momento em que o paciente foi visto normal pela última
vez. Outras informações incluem existência de doenças associadas, fatores de risco para
sangramento gastrointestinal ou gênito-urinário e antecedentes de acidente vascular
cerebral prévio, trauma de crânio, doença cardíaca ou coagulopatia. Também é
importante saber sobre a condição neurológica prévia e sobre o uso de medicações.
Aspectos relevantes do exame físico incluem ritmo cardíaco, frequência
cardíaca, ausculta cardíaca, ausculta carotídea, pressão arterial, temperatura, fundo de
olho, peso e pontuação na escala de déficit neurológico do National Institutes of Health
(NIH), que reflete a gravidade e o prognóstico. Os resultados variam de 0 a 42, sendo
quantificados déficits em onze categorias.
A suspeita de acidente vascular cerebral isquêmico deve existir nos casos em

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que ocorra um déficit neurológico de instalação súbita. A apresentação clínica depende
da região cerebral comprometida.
O território carotídeo abrange as artérias carótidas internas, cerebrais médias,
cerebrais anteriores, oftálmicas e coroideias anteriores. O território vértebro-basilar
abrange as artérias vertebrais, basilar, cerebelares e cerebrais posteriores. Em 15-20%
da população, observa-se circulação fetal da artéria cerebral posterior, caracterizada por
origem unilateral ou bilateral na artéria carótida interna ao invés da artéria basilar.
Território Quadro clínico
Síndromes carotídeas
Artéria Cegueira monocular ipsilateral transitória ou permanente
oftálmica
Artéria Hemiplegia severa e proporcionada contralateral, hemi-hipoestesia contralateral e
coroideia hemianopsia contralateral
anterior
Artéria cerebral Hemiparesia de predomínio crural contralateral, hemi-hipoestesia contralateral,
anterior distúrbios esfincterianos, abulia e déficits de memória
Artéria cerebral Hemiparesia de predomínio braquiofacial contralateral, hemi-hipoesteria contralateral,
média afasia se hemisfério dominante e negligência se hemisfério não-dominante
Síndromes vertebrobasilares
Artéria Hemi-hipoestesia alterna (face ipsilateral e membros contralaterais), ataxia cerebelar
vertebral ipsilateral, paralisia bulbar ipsilateral (IX e X nervos cranianos), síndrome de Claude
Bernard- Horner ipsilateral, síndrome vestibular periférica e diplopia decorrente de
desvio não-conjugado vertical do olhar (skew deviation)
Artéria basilar Dupla hemiplegia, dupla hemianestesia térmica e dolorosa, paralisia do olhar
conjugado horizontal ou vertical, torpor ou coma, paralisia ipsilateral de nervos
cranianos (III, IV, VI e VII pares), ataxia cerebelar, cegueira cortical e alucinações
visuais
Artéria cerebral Hemianopsia homônima contralateral, alexia sem agrafia, hemi-hipoestesia térmica e
posterior dolorosa contralateral, movimentos coreoatetoides e estado amnéstico
Artéria Ataxia cerebelar ipsilateral e síndrome vestibular
cerebelar
póstero-inferior
Artéria Ataxia cerebelar ipsilateral, surdez, síndrome vestibular e hemi-hipoestesia térmica e
cerebelar dolorosa contralateral
ântero-inferior
Artéria Ataxia cerebelar ipsilateral, tremor braquial postural, síndrome de Claude-Bernard-
cerebelar Horner ipsilateral e hemi-hipoestesia térmica e dolorosa contralateral
superior
Acidente vascular cerebral em mesencéfalo, tálamo, lobo occipital e/ou cerebelo,
ou seja, na circulação posterior, é comumente causado por embolia.
Rebaixamento do nível de consciência pode ocorrer em lesões isquêmicas do
tronco cerebral, mesmo que pequenas, por acometimento de núcleos relacionados ao
sistema reticular ativador ascendente. Já nas lesões isquêmicas dos hemisférios
cerebrais, o rebaixamento de nível de consciência costuma ocorrer naquelas de maior
extensão, exceto quando ocorre comprometimento de certas regiões talâmicas.
Quanto à apresentação clínica do acidente isquêmico transitório, a maior parte
dos casos dura menos de uma hora.

Exames complementares
Exames complementares são úteis na investigação de certos diagnósticos
diferenciais, podem revelar potenciais fatores de risco e auxiliam na decisão terapêutica.
Na fase aguda, devem ser solicitados rapidamente após a suspeita diagnóstica e incluem
hemograma completo, glicemia, uréia e creatinina séricas, sódio e potássio séricos,
tempo de protrombina, tempo de tromboplastina parcial ativada, marcadores de necrose

Pedro Kallas Curiati 1091


miocárdica, função hepática, transaminases, colesterol total e frações, triglicérides,
eletrocardiograma de doze derivações, radiografia de tórax e tomografia
computadorizada de crânio sem contraste. Pode ser apropriado solicitar teste de
gravidez para mulheres em idade fértil.
A tomografia computadorizada de crânio é o exame inicial de neuroimagem
mais utilizado. Nela, o acidente vascular cerebral isquêmico aparece como uma área
com baixa atenuação. Esse exame tem baixa sensibilidade para acidente vascular
cerebral isquêmico agudo com poucas horas de evolução, mas apresenta elevada
sensibilidade para acidente de etiologia hemorrágica. Discretas alterações indicativas de
edema cerebral, como apagamento de sulcos cerebrais e assimetria do sistema
ventricular, podem estar relacionadas a infartos extensos.
A ressonância nuclear magnética tem maior sensibilidade para a detecção do
acidente vascular cerebral isquêmico e pode revelar a área infartada a partir de quatro
horas do íctus. Constitui a técnica preferida para identificar infartos de tronco cerebral e
cerebelo. A sequência de difusão aliada ao mapa de coeficiente de difusão aparente
avalia a existência de restrição à difusão das moléculas de água, permite o diagnóstico
de lesões isquêmicas minutos após o seu início e diferencia lesões agudas de crônicas.
Se o estudo de perfusão cerebral for realizado conjuntamente, pode-se determinar a
penumbra isquêmica subtraindo-se da área com comprometimento perfusional a região
com déficit de difusão.
Após o diagnóstico, uma investigação complementar poderá ser necessária para
a definição do mecanismo e da etiologia do acidente vascular cerebral isquêmico. Na
suspeita de embolia de origem cardíaca, exames como eletrocardiograma de doze
derivações, radiografia simples de tórax, ecodopplercardiograma transtorácico ou
transesofágico e eletrocardiograma de 24 horas (Holter) podem ser úteis. Na suspeita de
mecanismo aterotrombótico, exames sonográficos como o ecodoppler de artérias
carótidas e vertebrais permitem a avaliação do segmento extracraniano dessas artérias.
Outros exames, como a angiorressonância e a angiotomografia, permitem a avaliação de
segmentos vasculares extracranianos e intracranianos, sendo indicadas principalmente
em caso de estenose carotídea superior a 50%. O Doppler transcraniano pode
complementar a avaliação se houver suspeita clínica de estenose arterial intracraniana e
na pesquisa de microêmbolos. O exame do líquor deve ser solicitado quando houver
suspeita de vasculite.
A pesquisa de trombofilias pode ser realizada em caso de antecedente pessoal ou
familiar de tromboses sistêmicas, etiologia não definida do acidente vascular cerebral
apesar de avaliação cardiológica e de neuroimagem, especialmente em indivíduos
jovens, e achados clínicos sugestivos de lúpus eritematoso sistêmico ou síndrome do
anticorpo antifosfolípide.

Diagnóstico diferencial
Alterações metabólicas incluindo hipoglicemia, hiperglicemia e encefalopatia
hepática, além de hipóxia e infecções sistêmicas, causam alterações focais que podem
mimetizar um acidente vascular cerebral isquêmico. As infecções do sistema nervoso
central, como a encefalite herpética e o abscesso cerebral, podem causar déficits focais.
Outros diagnósticos diferenciais incluem os déficits pós-críticos, as neoplasias
cerebrais, o hematoma subdural crônico, a enxaqueca, as doenças desmielinizantes, as
labirintopatias, as paralisias faciais periféricas e outras paralisias periféricas agudas.

Tratamento
O tratamento dos quadros neurológicos isquêmicos deve ter como princípio

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básico agilidade e dinamismo. Após o tratamento da fase aguda, é necessário
estabelecer a melhor forma de prevenção secundária com base nos mecanismos
causadores.

Medidas gerais
As medidas gerais visam garantir ao paciente a manutenção da permeabilidade
das vias aéreas superiores, permitindo uma ventilação adequada, e a manutenção da
circulação. É importante avaliar o sistema cardiovascular, incluindo o ritmo cardíaco e o
traçado eletrocardiográfico.
Deve-se utilizar oxigênio suplementar nos pacientes com algum grau de hipóxia
com o objetivo de assegurar saturação periférica de oxigênio superior ou igual a 95%.
A maioria dos pacientes deve receber hidratação intravenosa com 2000-3000mL
por dia de soluções salinas isotônicas, procurando-se evitar o uso de soluções
hipotônicas e glicosadas.
A glicemia deve ser estritamente monitorizada e a Insulina Regular deve ser
utilizada se os níveis glicêmicos excederem 180mg/dL. Também a hipoglicemia deve
ser prontamente corrigida.
Hipertermia deve ser monitorizada e corrigida com antitérmicos e compressa
fria.
Hipotensão arterial persistente não é comum na fase aguda do acidente vascular
cerebral isquêmico, mas deve ser prontamente corrigida.
As recomendações de conduta mais recentes são de que a hipertensão arterial
sistêmica não seja tratada em pacientes não candidatos ao tratamento trombolítico,
exceto se os níveis diastólicos estiverem acima de 120mmHg, os níveis sistólicos
estiverem acima de 220mmHg ou a pressão arterial média for superior a 130mmHg. Os
pacientes com indicação de tratamento trombolítico tendo como único critério de
exclusão o próprio nível pressórico elevado, com tempo hábil para o tratamento,
deverão receber medicação anti-hipertensiva para controle adequado da pressão arterial,
que deve ser rigoroso pelo menos durante as primeiras 24 horas, visando valores
inferiores a 180x105mmHg. Pela necessidade de controle rápido e monitorização
frequente, recomenda-se o uso de drogas parenterais, como o Labetalol e a Nicardipina,
não disponíveis no Brasil. Em nosso meio, alguns autores sugerem o uso de Metoprolol.
Nos pacientes hipertensos sem indicação de tratamento parenteral, deve-se introduzir
medicação anti-hipertensiva por via oral após 24-48 horas, com preferência por
inibidores da enzima de conversão da angiotensina, bloqueadores do receptor da
angiotensina II e betabloqueadores.
Em função do risco de vômitos e broncoaspiração, é prudente prescrever jejum
oral nas primeiras 24 horas. Antes do retorno à alimentação por via oral, recomenda-se
uma avaliação da deglutição para descartar disfagia e então decidir pela melhor via.

Tratamento trombolítico
O ativador do plasminogênio tecidual, Alteplase ou rT-PA intravenoso é o único
agente farmacológico com eficácia comprovada na melhora funcional de pacientes com
acidente vascular cerebral agudo, tendo sido utilizado até há pouco tempo com janela
terapêutica de 180 minutos. No entanto, existem evidências de benefício com até 270
minutos de evolução.
O rT-PA deve ser administrado com dose de 0.9mg/kg, sendo 10% em bolus
administrado durante um minuto e o restante em sessenta minutos com uso de bomba de
infusão contínua. Um frasco de 50mg é diluído em 50mL de água para injeção,
obtendo-se concentração final de 1mg/mL. A solução reconstituída pode ser diluída em

Pedro Kallas Curiati 1093


Soro Fisiológico até a concentração de 0.2mg/mL.
Critérios de inclusão para o tratamento trombolítico intravenoso:
- Idade superior a 18 anos;
- Diagnóstico clínico de acidente vascular cerebral isquêmico;
- Déficit neurológico de intensidade significativa, geralmente com NIH
Stroke Scale de 4 a 22;
- Tomografia computadorizada de crânio sem evidências de hemorragia,
efeito de massa, edema ou sinais precoces de isquemia em mais de 1/3 do
hemisfério cerebral ou do território da artéria cerebral média;
- Até 180 minutos de evolução antes do início da infusão do trombolítico,
idealmente, sendo aceito até 270 minutos em casos selecionados;
Critérios de exclusão absolutos:
- Acidente vascular cerebral, trauma craniano severo, cirurgia
intracraniana ou cirurgia espinhal nos últimos três meses;
- Quadro clínico de hemorragia subaracnóide, mesmo com tomografia
computadorizada normal;
- Punção arterial recente, há menos de sete dias, em sítio não
compressível;
- História prévia de hemorragia intracraniana;
- Pressão arterial sistólica superior a 180mmHg ou pressão arterial
diastólica superior a 110mmHg, sem resposta ao tratamento anti-
hipertensivo;
- Evidência de sangramento ativo;
- Uso de anticoagulantes orais com Razão Normatizada Internacional
(RNI) superior a 1.7 ou tempo de protrombina superior a 15 segundos;
- Uso de Heparina nas últimas 48 horas e tempo de tromboplastina
parcial ativada (TTPa) prolongado;
- Contagem de plaquetas inferior a 100.000/mm3;
- Hepatopatia provável e atividade de protrombina menor que 50%;
- Punção liquórica recente, há menos de sete dias;
- Malformação vascular, aneurisma ou aneurisma do sistema nervoso
central;
Critérios de exclusão relativos:
- Sinais neurológicos com melhora rápida espontânea;
- Crises convulsivas com déficit neurológico pós-crítico;
- Cirurgia de grande porte ou traumatismo grave nos últimos quatorze
dias;
- Sangramento gênito-urinário ou gastrointestinal nos últimos vinte e um
dias;
- Infarto do miocárdio recente, nos últimos três meses;
- Glicemia inferior a 50mg/dL ou superior a 400mg/dL;
- Uso de Dabigatran nas últimas 48 horas;
Para tratamento dentro da janela de 180-270 minutos em relação ao início dos
sintomas, contraindicações relativas incluem idade superior a oitenta anos, uso de
anticoagulante oral, independentemente da Razão Normatizada Internacional, e ambos
acidente vascular cerebral isquêmico prévio e diabetes mellitus
Durante e após a administração do rT-PA por via intravenosa é fundamental uma
supervisão clínica e neurológica para detectar precocemente quaisquer alterações.
Recomenda-se permanência em unidade de cuidados intensivos durante as primeiras 24
horas, monitorização cardiovascular contínua, medida da pressão arterial e exame

Pedro Kallas Curiati 1094


neurológico a cada quinze minutos nas primeiras duas horas, a cada trinta minutos nas
próximas seis horas e a cada sessenta minutos até completar 24 horas, evitar acessos
venosos centrais e punções arteriais nas primeiras 24 horas, evitar sonda vesical pelo
menos até trinta minutos após o término da infusão e não usar anticoagulantes e/ou anti-
agregantes plaquetários nas primeiras 24 horas. Tomografia computadorizada de crânio
de controle é realizada após 24 horas e em caso de suspeita de sangramento.
Quando a pressão arterial sistólica estiver entre 185mmHg e 225mmHg ou a
pressão arterial diastólica estiver entre 110mmHg e 140mmHg em duas medidas com
intervalo de cinco minutos, preconiza-se administrar Metoprolol 5mg por via
intravenosa em três minutos com repetição até máximo de 20mg. Nas situações em que
a pressão arterial sistólica ultrapassar 230mmHg ou a pressão arterial diastólica
ultrapassar 140mmHg, indica-se o uso de Nitroprussiato de Sódio por via intravenosa,
com 0.5-10.0mcg/kg/minuto a critério médico em bomba de infusão contínua com
equipo protegido da luz.
A utilização de trombolítico por via intra-arterial pode ser considerada em casos
selecionados, particularmente naqueles desencadeados por procedimentos
endovasculares ou angiográficos, em que já se dispõe de artéria cateterizada no
momento da ocorrência do acidente vascular cerebral. Em outras situações, a trombólise
intra-arterial pode ser realizada com janela terapêutica maior, entre quatro horas e meia
e seis horas, com resultados mais satisfatórios nos casos de oclusão da artéria cerebral
média e de trombose progressiva da artéria basilar.

Anti-agregantes plaquetários e anticoagulantes


Existe benefício do uso de Ácido Acetilsalicílico na fase aguda do acidente
vascular cerebral isquêmico quando iniciado dentro das primeiras 48 horas de evolução,
com 160-300mg/dia. Outros anti-agregantes não foram estudados em fase aguda, mas
podem ser alternativas, particularmente para prevenção secundária. Incluem
Clopidrogrel 75mg/dia e Clopidina 250mg duas vezes ao dia.
Em relação aos anticoagulantes, os dados disponíveis não permitem sua
recomendação para algum subgrupo específico de pacientes na fase aguda do acidente
vascular cerebral isquêmico. No entanto, são usados com frequência quando o
mecanismo implicado é embolia de origem cardíaca, estado hipercoagulável, dissecção
arterial extracraniana, trombose de artéria basilar ou episódios isquêmicos transitórios
de repetição. Nesses casos, prefere-se na fase aguda o uso de Heparina Não-Fracionada
em bomba de infusão intravenosa contínua com controle da dose pelo TTPa para valor
entre 1.5 e 2.0 vezes o valor de controle. Pacientes com infartos cerebrais extensos não
devem receber anticoagulação plena por aproximadamente uma semana por causa do
risco elevado de transformação hemorrágica.

Manejo de complicações
Crises epilépticas são mais frequentes nas primeiras 24 horas de evolução, sendo
geralmente parciais com ou sem generalização secundária. Epilepsia se desenvolve em
um terço dos pacientes em que as crises epilépticas ocorrem nessa fase precoce e em
metade dos pacientes em que as crises se iniciam mais tardiamente. O uso de
anticonvulsivantes deve ser iniciado somente após uma primeira crise para prevenção de
recorrência.
O edema cerebral atinge seu máximo entre o segundo e o quinto dias de
evolução. Alternativas de tratamento incluem hiperventilação, diuréticos osmóticos,
drenagem liquórica, hipotermia leve em alguns casos e descompressão cirúrgica. A
descompressão cirúrgica reduz significativamente a mortalidade nos infartos supra-

Pedro Kallas Curiati 1095


tentoriais extensos, especialmente se o procedimento for bastante amplo e indicado
precocemente, dentro das primeiras 24-48 horas de evolução, antes de surgirem sinais
de herniação, principalmente em infarto da artéria cerebral média, em indivíduos com
idade inferior a 60 anos.
Recomenda-se o uso de anticoagulantes por via subcutânea para prevenção de
trombose venosa profunda e tromboembolismo pulmonar. Na impossibilidade do uso
desses medicamentos, deve ser iniciada prevenção com meias elásticas e dispositivos de
compressão pneumática intermitente.
Infecções pulmonares e urinárias são comuns e o início rápido do trabalho
fisioterápico pode prevenir sua ocorrência. Nos pacientes com incontinência ou retenção
urinária, com indicação de sondagem urinária, dá-se preferência ao cateterismo vesical
intermitente.

Tratamento do acidente isquêmico transitório


O tratamento visa prevenir a recorrência do acidente isquêmico transitório e a
ocorrência de acidente vascular cerebral. A investigação diagnóstica imediata pode
permitir o reconhecimento dos pacientes com maior risco de ocorrência precoce de um
infarto cerebral e, dessa forma, prevenir maiores complicações através da rápida
instituição do tratamento.
A prevenção secundária prevê controle da hipertensão arterial sistêmica,
interrupção do tabagismo, tratamento de doenças cardíacas, redução da ingesta
alcoólica, interrupção do uso de anticoncepcionais orais, tratamento das dislipidemias,
prática de atividade física, uso de anti-agregantes principalmente em casos cujo
mecanismo é trombose de grandes artérias, uso de anticoagulantes nos casos cujo
mecanismo é embolia de origem cardíaca e tratamento cirúrgico ou endovascular de
estenoses críticas sintomáticas.

Prescrições
Acidente vascular isquêmico não submetido à trombólise:
- Jejum por via oral;
- Soro Fisiológico 1000mL por via intravenosa de 12/12 horas;
- Ácido Acetilsalicílico 300mg por via oral uma vez ao dia;
- Omeprazol 40mg por via intravenosa uma vez ao dia;
- Enoxaparina 40mg por via subcutânea uma vez ao dia para profilaxia de
trombose venosa profunda ou 1mg/kg de 12/12 horas por via subcutânea
na presença de embolia de origem cardíaca, estado hipercoagulável,
dissecção arterial extracraniana, trombose de artéria basilar ou episódios
isquêmicos transitórios de repetição;
- Avaliação da glicose capilar de 6/6 horas;
- Insulina Regular por via subcutânea conforme glicose capilar, com 2UI
se 180-200mg/dL, 4UI se 201-250mg/dL, 6UI se 251-300mg/dL, 8UI se
301-350mg/dL e 10UI se acima de 350mg/dL;
- Soro Glicosado a 50% 60mL por via intravenosa se glicose capilar
inferior a 70mg/dL;
- Não puncionar membro parético;
- Monitorização contínua com saturação periférica de oxigênio,
frequência cardíaca, frequência respiratória, pressão arterial não-invasiva
intermitente, ritmo cardíaco e temperatura;
- Avisar imediatamente equipe médica se pressão arterial sistólica
superior a 220mmHg ou pressão arterial diastólica superior a 120mmHg;

Pedro Kallas Curiati 1096


- Metoprolol 5mg por via intravenosa em três minutos a critério médico;
- Nitroprussiato de Sódio 50mg em Soro Glicosado a 5% 248mL por via
intravenosa em bomba de infusão contínua a critério médico com equipo
protegido da luz;
- Fisioterapia;
- Fonoterapia;
- Repouso no leito com decúbito zero por 24-48 horas;
- Internação em unidade de terapia intensiva;
Acidente vascular cerebral isquêmico submetido a trombólise:
- Jejum por via oral;
- Dois acessos venosos em membro não-parético e em sítio compressível;
- Soro Fisiológico 1000mL por via intravenosa de 12/12 horas;
- rT-PA 0.9mg/kg por via intravenosa com ataque em bolus de 10% da
dose total em um minuto e administração do restante em sessenta
minutos, considerando dose máxima de 90mg;
- Monitorização contínua com saturação periférica de oxigênio,
frequência cardíaca, frequência respiratória, pressão arterial não-invasiva
intermitente, ritmo cardíaco e temperatura;
- Avisar imediatamente se pressão arterial sistólica superior a 180mmHg
ou pressão arterial diastólica superior a 105mmHg;
- Metoprolol 5mg por via intravenosa em três minutos a critério médico;
- Nitroprussiato de Sódio 50mg em Soro Glicosado a 5% 248mL por via
intravenosa em bomba de infusão contínua a critério médico com equipo
protegido da luz;
- Avaliação da glicose capilar de 6/6 horas;
- Insulina Regular por via subcutânea conforme glicose capilar, com 2UI
se 180-200mg/dL, 4UI se 201-250mg/dL, 6UI se 251-300mg/dL, 8UI se
301-350mg/dL e 10UI se acima de 350mg/dL;
- Soro Glicosado a 50% 60mL por via intravenosa se glicose capilar
inferior a 70mg/dL;
- Omeprazol 40mg por via intravenosa uma vez ao dia;
- Não passar sonda vesical de demora por trinta minutos e sonda naso-
enteral por 24 horas após o término da infusão do rT-PA;
- Fisioterapia;
- Fonoterapia;
- Meias elásticas;
- Repouso no leito com decúbito zero por 24-48 horas;
- Internação em unidade de terapia intensiva;

Profilaxia secundária
A profilaxia secundária do acidente vascular isquêmico tem como pilares o
controle de seus inúmeros fatores de risco modificáveis, como hipertensão arterial
sistêmica, diabetes mellitus, dislipidemia, obesidade, tabagismo, etilismo e
sedentarismo, o uso de medicações de ação antitrombótica e a possibilidade de
abordagem cirúrgica ou por radiologia intervencionista.
A endarterectomia de carótida tem eficácia comprovada para estenose severa, de
70-99%, em pacientes com evento isquêmico carotídeo recente. O benefício é mais
modesto em pacientes sintomáticos portadores de estenose carotídea moderada, de 50-
69%, sendo recomendada quando o risco cirúrgico e da angiografia é inferior a 5%. A
indicação em pacientes assintomáticos é mais controversa, sendo validada para

Pedro Kallas Curiati 1097


estenoses superiores a 60% em indivíduos com baixo risco cirúrgico e angiográfico,
inferior a 3%.

Acidente vascular cerebral hemorrágico

Epidemiologia
O acidente vascular cerebral hemorrágico, também denominado hemorragia
intracerebral ou hemorragia cerebral intraparenquimatosa, exibe elevada mortalidade.
Acomete preferencialmente indivíduos idosos e sua incidência dobra a cada década a
partir de 45 anos de idade, com discreto predomínio no sexo masculino.

Etiologia e fisiopatologia
A hipertensão arterial destaca-se como o principal fator etiológico e é
responsável pela maior parte dos casos, com predomínio na população com idades entre
50 e 70 anos. Em adultos jovens, especial atenção deve ser dada às malformações
vasculares, como aneurismas, malformações arteriovenosas e angiomas cavernosos, e ao
uso de drogas simpatomiméticas, como anfetaminas, cocaína e crack. Em indivíduos
idosos não-hipertensos, a angiopatia amiloide cerebral parece ser mecanismo comum de
hemorragia intracraniana lobar. Outros fatores etiológicos incluem neoplasias, como
glioblastoma multiforme, metástase de melanoma, carcinoma renal, carcinoma
broncogênico e coriocarcinoma, uso de anticoagulantes, uso de fibrinolíticos, diáteses
hemorrágicas, como hemofilia, púrpura trombocitopênica idiopática e leucemia aguda, e
vasculites primárias ou secundárias do sistema nervoso central.
Os acidentes vasculares cerebrais hemorrágicos secundários a hipertensão
arterial sistêmica são mais frequentemente localizados na profundidade dos hemisférios
cerebrais, sendo comuns em putamen e tálamo, podendo também exibir topografia
lobar, cerebelar, pontina e no núcleo caudado. Surgem a partir da ruptura de pequenas
artérias perfurantes, alvo de processo degenerativo de sua parede denominado lipo-
hialinose, e de micro-aneurismas, descritos por Charcot e Bouchard.
O período de sangramento na hemorragia intracraniana hipertensiva pode ser
breve e autolimitado, durando alguns minutos. No entanto, em mais de um terço dos
pacientes, o volume do hematoma pode aumentar dramaticamente nas três horas
iniciais, com consequente deterioração clínica. O efeito tóxico do sangue sobre o
parênquima cerebral circunjacente, acrescido de fatores mecânicos compressivos, pode
provocar sofrimento isquêmico ao redor do hematoma.

Quadro clínico
As manifestações clínicas comuns a todas as hemorragias intracranianas incluem
cefaleia, vômitos e rebaixamento do nível de consciência. O volume do hematoma se
correlaciona diretamente com a intensidade e a gravidade do quadro clínico.
Ao contrário do acidente vascular cerebral isquêmico, em que habitualmente o
déficit neurológico é máximo na sua instalação, na hemorragia intracraniana é comum a
progressão dos déficits neurológicos focais e da sintomatologia da hipertensão
intracraniana no curso de algumas horas.
Nas hemorragias talâmicas, do núcleo caudado, lobares extensas e putaminais,
observa-se com frequência extensão do sangramento para o sistema ventricular. Deve-se
estar atento na hemorragia talâmica para deterioração clínica abrupta causada por
hidrocefalia como resultado da obstrução do aqueduto de Sylvius por coágulo
intraventricular.
Características clínicas do acidente vascular cerebral hemorrágico segundo sua localização

Pedro Kallas Curiati 1098


Putaminal Hemiparesia, hemianestesia, afasia global e paralisia do olhar conjugado horizontal
contralateral (Foville superior)
Talâmico Hemiparesia, hemianestesia, ocasionalmente afasia, paralisia do olhar conjugado vertical,
skew deviation e síndrome de Horner
Lobar Hemiparesia e hemianestesia fronto-parietal, afasia, paralisia do olhar conjugado horizontal
contralateral, hemianopsia e convulsões
Cerebelar Tríade de Ott, com ataxia, paralisia do olhar conjugado horizontal e paralisia facial
periférica, todas ipsilaterais
Pontina Dupla hemiparesia e hemianestesia, paralisia do olhar conjugado horizontal bilateral, pupilas
puntiforme, bobbing ocular, postura descerebrada e instabilidade respiratória

Exames complementares
Avaliação geral inclui hemograma, uréia e creatinina séricas, glicemia, sódio e
potássio séricos, tempo de protrombina, tempo de tromboplastina parcial ativada,
gasometria arterial, radiografia simples de tórax, eletrocardiograma de doze derivações
e tomografia computadorizada de crânio sem contraste. Recomenda-se perfil
toxicológico em casos suspeitos.
A tomografia computadorizada é essencial para confirmação diagnóstica,
avaliação da extensão para o sistema ventricular e detecção de hidrocefalia. A
hemorragia intracraniana é caracterizada como imagem hiperatenuante e homogênea. O
exame deverá ser repetido após poucas horas se houver piora do quadro neurológico.
A ressonância nuclear magnética pouco acrescenta à tomografia
computadorizada nas hemorragias intracranianas de etiologia hipertensiva. No entanto,
em casos atípicos pode detectar malformações vasculares e tumores intracranianos.
Angiografia cerebral está indicada nos pacientes com suspeita de sangramento
por aneurismas e malformações artério-venosas. Mais raramente, o diagnóstico de
vasculite pode ser sugerido pela presença de estenoses e dilatações arteriais intercaladas.
O exame do líquido cefalorraquidiano geralmente está contraindicado pelo risco
de desencadear herniação uncal ou tonsilar. Pode ser útil em casos suspeitos de vasculite
ou endocardite.

Diagnóstico diferencial
O infarto hemorrágico deve ser sempre considerado quando se avalia o paciente
com lesão cerebral hemorrágica. A transformação hemorrágica costuma ocorrer 48-72
horas após o íctus.
Traumatismo crânio-encefálico com contusão hemorrágica também deve ser
diferenciado do acidente vascular cerebral hemorrágico e geralmente tais lesões são
múltiplas e superficiais.
Acidente vascular Lesão hiperdensa, homogênea, com efeito de massa, predominantemente
cerebral hemorrágico subcortical, não respeitando território de distribuição arterial e frequentemente
com extensão ventricular e hidrocefalia
Infarto hemorrágico Lesão hiperdensa, salpicada e heterogênea, com pouco efeito de massa,
predominantemente cortical, respeitando território arterial nas embolias e sem
inundação ventricular ou hidrocefalia

Tratamento

Cuidados gerais
À admissão no serviço de emergência, o paciente deve ter seus sinais avaliados e
estabilizados. Ênfase deve ser direcionada à proteção das vias aéreas em pacientes com
alteração do sensório e, se o escore da escala de coma de Glasgow for igual ou menor

Pedro Kallas Curiati 1099


que 8, intubação orotraqueal deve ser realizada de imediato. Nem sempre uma boa
saturação de oxigênio é suficiente, pois a hipercapnia pode exacerbar a hipertensão
intracraniana.
A pressão arterial deve ser controlada agressivamente e tanto a hipertensão como
a hipotensão devem ser evitadas:
- Se pressão arterial sistólica superior a 200mmHg ou pressão arterial
média superior a 150mmHg em duas leituras com cinco minutos de
intervalo, iniciar Nitroprussiato de Sódio 0.5-10.0mg/kg/minuto por via
intravenosa;
- Se pressão arterial sistólica superior a 180mmHg ou pressão arterial
média superior a 130mmHg e houver evidências ou suspeita de
hipertensão intracraniana, proceder à monitorização da pressão
intracraniana e reduzir a pressão arterial com o uso de Metoprolol 5mg
por via intravenosa em dois minutos e repetir a cada dez a vinte minutos
até o máximo de 20mg ou com o uso de Labetalol 10mg por via
intravenosa em dois minutos e repetir ou dobrar a dose a cada dez a vinte
minutos até máximo de 150mg, tendo como objetivo pressão de perfusão
cerebral superior a 70mmHg;
- Se pressão arterial sistólica superior a 180mmHg ou pressão arterial
média superior a 130mmHg e não houver evidência ou suspeita de
hipertensão intracraniana, considerar redução parcimoniosa da pressão
arterial utilizando as mesmas medicações com o objetivo de manter
pressão arterial média de 110mmHg ou pressão arterial sistólica de
160mmHg e diastólica de 90mmHg;
A exemplo do que se preconiza nas lesões cerebrais isquêmicas, recomenda-se
combate rigoroso à hipertermia e à hiperglicemia.
Utiliza-se Fenitoína Sódica no tratamento de crises convulsivas, geralmente no
contexto de hematomas lobares, na dose de ataque de 18mg/kg por via intravenosa,
diluída em solução salina, sem ultrapassar a velocidade de infusão de 50mg/minuto.
Diazepam 10mg por via intravenosa pode ser utilizado para o controle rápido das
convulsões, porém doses mais elevadas podem causar diminuição do nível de
consciência e depressão respiratória. Profilaxia é feita em pacientes com hematomas
lobares ou com inundação ventricular. A droga deve ser mantida por um mês após a sua
introdução.

Tratamento da hipertensão intracraniana


As indicações de monitorização da pressão intracraniana são escala de coma de
Glasgow inferior a 9, evidências clínicas de hipertensão intracraniana e evidências
tomográficas de hipertensão intracraniana. A pressão de perfusão cerebral deve ser
mantida acima de 70mmHg e a pressão intracraniana inferior a 20mmHg.
Analgesia e sedação, derivação ventricular externa nas hidrocefalias obstrutivas
agudas, Manitol 0.25-1.00g/kg em infusão rápida intravenosa a cada quatro horas e
hiperventilação com hipocapnia de 30-35mmHg, podem ser utilizadas a curto prazo em
casos de deterioração neurológica com herniação iminente. Dexametasona é
recomendada somente nos casos com hemorragia intraventricular ou subaracnóide
associadas.
Sedação com uso de benzodiazepínico, Propofol ou Morfina e bloqueio
neuromuscular reduz as demandas metabólicas cerebrais. Caso a hipertensão
intracraniana persista apesar de todas as medidas aplicadas, coma barbitúrico pode ser
induzido, de preferência com monitorização eletroencefalográfica contínua.

Pedro Kallas Curiati 1100


Abordagem cirúrgica do hematoma
Indicações:
- Hemorragias lobares volumosas com mais de 30mL que apresentem
deterioração clínica, particularmente do nível de consciência, ou que
apresentem grande efeito de massa na tomografia computadorizada,
principalmente se o hematoma for temporal, pelo maior risco de
herniação uncal;
- Pacientes com hemorragias cerebelares se diâmetro superior a 3cm,
volume superior a 14mL, presença de hidrocefalia, obliteração da
cisterna quadrigêmea e/ou deterioração clínica;
- Hemorragia intraparenquimatosa associada a aneurisma, malformação
arteriovenosa ou angioma cavernoso, desde que acessível por cirurgia;
Os pacientes com hemorragia cerebelar que não preencherem os critérios para
abordagem cirúrgica devem ser rigorosamente monitorizados com avaliação clínica e
tomográfica por no mínimo duas semanas e cirurgia deve ser indicada ao primeiro sinal
de deterioração.

Prescrição
- Jejum por via oral;
- Soro Fisiológico 1000mL por via intravenosa de 12/12 horas;
- Omeprazol 40mg por via intravenosa uma vez ao dia;
- Avaliação da glicose capilar de 6/6 horas;
- Insulina Regular por via subcutânea conforme glicose capilar, com 2UI se 180-
200mg/dL, 4UI se 201-250mg/dL, 6UI se 251-300mg/dL, 8UI se 301-350mg/dL
e 10UI se acima de 350mg/dL;
- Soro glicosado a 50% 60mL por via intravenosa se glicose capilar inferior a
70mg/dL;
- Monitorização contínua com saturação periférica de oxigênio, frequência
cardíaca, frequência respiratória, pressão arterial não-invasiva intermitente,
ritmo cardíaco e temperatura;
- Avisar imediatamente se pressão arterial sistólica superior a 180mmHg ou
pressão arterial diastólica superior a 105mmHg;
- Metoprolol 5mg por via intravenosa em três minutos a critério médico;
- Nitroprussiato de Sódio 50mg em Soro Glicosado a 5% 248mL por via
intravenosa em bomba de infusão contínua a critério médico com equipo
protegido da luz;
- Meias de compressão intermitente em membros inferiores, com Heparina Não-
Fracionada 5000UI de 12/12 a 8/8 horas por via subcutânea a partir do segundo
dia;
- Não puncionar membro parético;
- Repouso no leito, com cabeceira elevada a 30º;
- Fisioterapia;
- Fonoterapia;
- Internação em unidade de terapia intensiva;

Hemorragia subaracnóide

Definições
Hemorragia subaracnóide, conhecida também como hemorragia meníngea, é

Pedro Kallas Curiati 1101


uma ocorrência potencialmente muito grave em que o conteúdo sanguíneo extravasa
para o espaço subaracnóide e espalha-se por sulcos e cisternas. Pode até mesmo dissecar
estruturas cerebrais e formar hematoma intraparenquimatoso ou subdural.

Etiologia
A causa mais frequente de hemorragia subaracnóide espontânea é a ruptura de
aneurisma sacular intracraniano, que representa 75-80% dos casos. A hemorragia
subaracnóide aneurismática pode incidir por predisposição familiar via herança
autossômica dominante ou em associação com outras doenças predisponentes, como
síndrome de Marfan, síndrome de Ehlers-Danlos, pseudoxantoma elástico, doença do
rim policístico e coarctação da aorta.
O aneurisma sacular ou congênito compreende cerca de 90% de todos os
aneurismas intracranianos e se localiza preferencialmente nas bifurcações das grandes
artérias intracranianas, particularmente no polígono de Willis. Nos homens, o aneurisma
intracraniano se localiza mais comumente na artéria cerebral anterior ou na artéria
comunicante anterior, enquanto que nas mulheres sua topografia mais frequente é a
junção da artéria carótida interna com a artéria comunicante posterior. A ruptura de um
aneurisma intracraniano causa frequentemente hemorragia subaracnóide, mas pode
ocorrer também sangramento intraparenquimatoso, intraventricular ou subdural. Para o
desenvolvimento do aneurisma sacular interagem aterosclerose, hipertensão arterial
sistêmica e predisposição congênita a alterações da lâmina elástica interna das artérias
intracranianas.
Os aneurismas fusiformes ou arterioscleróticos compreendem quase 7% de todos
os aneurismas intracranianos, podendo também causar hemorragia subaracnóide. Sua
apresentação clínica mais característica é com síndrome compressiva do tronco cerebral
e neuropatia craniana às custas de sua localização mais frequente no sistema vértebro-
basilar.
Sabe-se que cerca de 5% das hemorragias subaracnóides devem-se a ruptura de
malformação arteriovenosa e que 15-20% desses casos podem cursar com angiografia
que não evidencia a fonte da hemorragia. Outras causas incluem angiomas, discrasias
sanguíneas, uso de drogas, tumores intracranianos, trombose venosa cerebral,
dissecções arteriais intracranianas e angiites.
Sendo irritativo, o sangramento produz também sinais inflamatórios meníngeos
e incremento do volume do cérebro, podendo evoluir com sinais e sintomas de
hipertensão intracraniana. Imediatamente após a hemorragia subaracnóide ocorre
diminuição progressiva do fluxo sanguíneo cerebral, com diminuição da pressão de
perfusão cerebral. Hidrocefalia pode ocorrer agudamente por bloqueio da passagem de
líquor ou por aumento da sua viscosidade.
Crises epilépticas ocorrem em 10-25% dos pacientes. Edema pulmonar
neurogênico e arritmias cardíacas possivelmente resultam de descarga simpática maciça.
Disfunção hipotalâmica tem sido apontada como causa de hiponatremia.

Quadro clínico
Cefaleia é o sintoma mais frequente e está presente em 85-95% dos pacientes. É
súbita, muitas vezes associada a náusea e/ou vômitos e tipicamente descrita como a pior
da vida. Costuma irradiar para a região occipital ou cervical, acompanhada de irritação
meníngea. Outros sintomas incluem convulsões, fotofobia, lentificação e confusão.
É conhecido o fenômeno tônico semelhante a uma convulsão no momento da
hemorragia, semelhante a opistótono, provavelmente decorrente da súbita elevação da
pressão intracraniana, que também pode estar relacionada a breve perda de consciência

Pedro Kallas Curiati 1102


em muitos pacientes.
Nível de consciência persistentemente diminuído após hemorragia subaracnóide
pode ser decorrente de hemorragia intraparenquimatosa, hidrocefalia, hipertensão
intracraniana ou vasoespasmo.
Caso haja melhora da cefaleia, o paciente poderá não procurar auxílio médico ou
ainda procurar ajuda médica e ser erroneamente diagnosticado. A cefaleia em tal
situação é conhecida como cefaleia sentinela e ocorre em 20-60% dos pacientes entre
dois e vinte dias da instalação de uma hemorragia subaracnóide, com duração de um a
dois dias e podendo estar associada a náusea, vômitos, dor occipital e letargia.
Os sintomas neurológicos muitas vezes são acompanhados de hipertermia,
hipertensão arterial e alguns achados oftalmológicos, como hemorragias sub-hióidea,
pré-retiniana e intra-vítrea. Paralisias de nervos cranianos e déficits neurológicos focais
comumente se associam a hemorragia subaracnóidea aneurismática em função de
fenômeno compressivo, por vezes também embólico. Não raramente os pacientes
podem exibir diversas alterações cardíacas. Dentre os déficits neurológicos focais, os
mais característicos são paralisia do nervo oculomotor nos aneurismas de artéria
comunicante posterior, paralisia do nervo abducente na síndrome da hipertensão
intracraniana e déficit motor nos membros inferiores ou abulia nos aneurismas da artéria
comunicante anterior.
A ruptura aneurismática pode ocorrer mais comumente em circunstâncias
específicas. Aproximadamente um terço delas ocorre durante o sono, um terço na rotina
do dia-a-dia e um terço em atividades de esforço, como dobrar-se, levantar-se, evacuar
ou engajar-se em práticas sexuais.

Escala de Hunt e Hess


Utilizada sistematicamente para caracterização inicial da hemorragia
subaracnóide, com valor prognóstico:
I – Assintomático ou cefaleia leve e mínima rigidez de nuca;
II – Cefaleia moderada a grave, rigidez de nuca e ausência de sinais
neurológicos focais, exceto paralisia de nervo craniano;
III – Sonolência, confusão e déficit neurológico focal mínimo;
IV – Estupor, hemiparesia moderada a grave, com possíveis reações de
descerebração e perturbações neurovegetativas;
V – Coma profundo, rigidez de descerebração, paciente moribundo;

Diagnóstico diferencial
Diagnóstico diferencial com formas de cefaleia benigna, porém similarmente
impactantes, como a cefaleia relacionada ao orgasmo e “em trovoada”. Na síndrome de
Call-Flemming há histórico de enxaqueca e associação frequente com uso de inibidores
da recaptação de serotonina, com sinais de déficit neurológico focal secundário a um
vasoespasmo transitório. Tais pacientes não têm sangramento na tomografia
computadorizada de crânio, mas ainda assim devem ser submetidos a coleta e exame de
líquor para afastar hemorragia subaracnóide.

Exames complementares
O procedimento auxiliar de escolha para detectar hemorragia subaracnóide é a
tomografia computadorizada de crânio, que demonstra magnitude, localização, tamanho
ventricular e provável topografia do aneurisma roto.
Frente a resultado não-conclusivo de imagem ou quando a tomografia
computadorizada é dúbia, a punção liquórica deve ser realizada. Devem ser coletados

Pedro Kallas Curiati 1103


quatro tubos consecutivos, com determinação do número de hemácias em cada um. A
pressão inicial do líquor pode elevar-se em parte dos pacientes e o exame geralmente
revela xantocromia ou hemorragia, aumento da proteinorraquia, glicorraquia normal e,
posteriormente, leucorraquia.
Uma vez que a hemorragia subaracnóide tenha sido diagnosticada, os pacientes
deverão realizar angiografia cerebral com contraste por cateterismo femoral com a
finalidade de encontrar a fonte do sangramento.
Nos cerca de 15-20% dos casos cuja angiografia cerebral não revela a fonte do
sangramento, deve-se prosseguir a investigação. Nesses casos, o padrão de hemorragia
na tomografia computadorizada pode ser de auxílio, exceto se o sangramento se
restringir à cisterna mesencefálica, onde uma busca subsequente é desnecessária. Se o
sangramento for difuso ou localizado anteriormente, na cisterna basilar, a repetição da
angiografia em uma a seis semanas será importante, já que a hemorragia subaracnóide
pode decorrer de aneurisma oculto ou micótico, dissecção de artéria intracraniana ou
malformação arteriovenosa dural. Angiografia por tomografia computadorizada é
alternativa aceitável.
Ressonância nuclear magnética pode ser útil em determinar se um tumor oculto
ou uma malformação arteriovenosa intracraniana ou espinhal é fonte de sangramento,
sendo indicada principalmente caso a arteriografia seja normal após uma a seis semanas.
Isquemia miocárdica decorrente do aumento de catecolaminas circulantes em
resposta à hemorragia subaracnóide é observada em aproximadamente um quarto dos
pacientes, devendo-se solicitar eletrocardiograma de doze derivações e dosagem de
marcadores de necrose miocárdica.

Classificação de Fisher segundo achado tomográfico inicial


1 – Sem sangue;
2 – Difuso ou lâmina vertical menor do que 1mm;
3 – Coágulo localizado ou lâmina vertical maior do que 1mm;
4 – Sangramento intracerebral, intraventricular ou pancisternal;

Prognóstico e complicações
Cerca de 15-20% dos pacientes com hemorragia subaracnóide aneurismática
morrem antes de chegar ao hospital. No restante dos pacientes, complicações que
ocorrem incluem ressangramento, déficit neurológico isquêmico secundário a
vasoespasmo, hidrocefalia, disfunção hipotalâmica e convulsões.

Tratamento
Uma vez confirmado o diagnóstico de hemorragia subaracnóide, os pacientes
devem ter sua terapêutica conduzida em unidade de terapia intensiva. Angiografia
cerebral por cateterismo femoral, incluindo o sistema vértebro-basilar, deve ser
realizada tão cedo quanto possível. Caso um aneurisma roto seja evidenciado, os
pacientes devem ser submetidos a cirurgia corretiva assim que viável.
Aos cuidados pré-operatórios de praxe, devem-se agregar medidas de acesso
venoso central, cateter arterial para pressão arterial média e pré-medicação de apoio
com anticonvulsivantes, corticosteroides, protetor gástrico, bloqueadores de canal de
cálcio e analgésicos. Nos pacientes com graduação neurológica ruim ou com
instabilidade hemodinâmica, deve-se instalar cateter em artéria pulmonar.
Monitorização cardíaca é fundamental para todos os pacientes, dada a
possibilidade de arritmias e transtornos cardíacos relacionados. Cateter de drenagem
intraventricular poderá ser instalado nos pacientes com hidrocefalia aguda.

Pedro Kallas Curiati 1104


Mínima lesão cerebral com reparo do aneurisma roto e restabelecimento da
vasculatura são os objetivos da cirurgia. O sangue coletado deve, caso possível, ser
amplamente retirado e as cisternas devem ser deixadas o máximo possível limpas. Caso
múltiplos aneurismas sejam detectados, a clipagem do aneurisma roto será realizada
primeiro, seguida do tratamento dos aneurismas adicionais, se possível no mesmo
acesso e tempo cirúrgico. O tratamento endoscópico com molas descartáveis é
alternativa, sendo preferido em pacientes idosos e com má condição clínica, enquanto
que o tratamento cirúrgico é mais recomendado em caso de colo largo do aneurisma e
hematoma intraparenquimatoso com efeito de massa associado.
Para os pacientes em condição neurológica desfavorável ou clinicamente
instáveis demais para a operação, o tratamento clínico é a única alternativa e tem como
objetivo minimizar a chance de ressangramento e estabilizar o paciente de modo que o
aneurisma possa ser clipado mais tarde. Sob o ponto de vista hemodinâmico, a base do
tratamento é a preservação de normotensão e normovolemia. Repouso absoluto,
controle adequado da dor e laxativos podem inibir uma elevação súbita da pressão
arterial ou da pressão intracraniana. Complicações sistêmicas, incluindo cardíacas,
pulmonares e eletrolíticas devem ser monitoradas e tratadas apropriadamente. Doppler
transcraniano diário pode indicar o aparecimento de vasoespasmo antes mesmo da
sintomatologia clínica, com indicação de emprego judicioso de tratamento com
hipervolemia e hipertensão arterial sistêmica.
Em pacientes com hemorragia subaracnóide não-aneurismática, o tratamento
torna-se individualizado de acordo com a causa e a condição clínica do paciente.
Pacientes cuja hemorragia é difusa ou localizada anteriormente na cisterna basilar
muitas vezes não necessitam de cuidados intensivos e repetirão a angiografia cerebral
em cerca de uma semana. Coagulopatia, caso presente, deve ser corrigida. Aneurismas
micóticos devem ser tratados com antibióticos apropriados e uso estendido por quatro a
seis semanas. Pacientes com hemorragia subaracnóide peri-mesencefálica idiopática
geralmente têm bom prognóstico e a repetição de angiografias torna-se desnecessária.
O tratamento da hidrocefalia aguda consiste principalmente em drenagem
ventricular externa. Hidrocefalia tardia possivelmente irá requerer válvula de líquor com
drenagem peritoneal perene.
Analgesia com Paracetamol e Codeína é utilizada na maioria dos pacientes.
Controle rigoroso de hipertensão arterial, hiperglicemia e hipertermia é recomendado.
Deve-se manter pressão arterial média de 70-110mmHg antes do tratamento definitivo
do aneurisma e, após, ou caso não ocorra até o quarto dia, permitir hipertensão até
pressão arterial média de 130mmHg. Fenitoína é utilizada para profilaxia primária e
secundária de convulsões e crises epilépticas não-convulsivas. Dexametasona visa
reduzir a reação inflamatória induzida pelo sangramento.
Finalmente, tem-se demonstrado que drogas como a Nimodipina podem ser
eficientes em diminuir a incidência de infarto cerebral, seja por efeito direto citoprotetor
ou por ação dilatadora facilitadora do fluxo sanguíneo cerebral. Recomenda-se o uso de
60mg por via oral de 4/4 horas durante três semanas. Sinvastatina 80mg/dia ou
Pravastatina 40mg/dia por via oral podem ser associadas durante quatorze dias visando
prevenir vasoespasmo.

Prescrição
- Jejum por via oral;
- Repouso absoluto no leito, com decúbito elevado a 30º;
- Soro Glicosado a 5% 1000mL, NaCl a 20% 40mL e KCl a 19.1% 10mL por
via intravenosa de 8/8 horas;

Pedro Kallas Curiati 1105


- Nimodipina 60mg por via oral de 4/4 horas;
- Fenitoína 15-20mg/kg em 250mL de Soro Fisiológico por via intravenosa em
40 minutos;
- Fenitoína 100mg por via intravenosa de 8/8 horas após a infusão de ataque;
- Sinvastatina 80mg/dia por via oral de noite;
- Dipirona 2mL por via intravenosa de 6/6 horas de febre ou dor;
- Cetoprofeno 100mg por via intravenosa de 12/12 horas se dor;
- Tramadol 50mg em 250mL de Soro Fisiológico por via intravenosa de 6/6
horas se dor moderada a forte;
- Dexametasona 4mg por via intravenosa de 8/8 horas;
- Lactulose 10mL por via oral de 8/8 horas;
- Omeprazol 40mg por via oral uma vez ao dia;
- Avaliação da glicose capilar de 6/6 horas;
- Insulina Regular por via subcutânea conforme glicose capilar, com 2UI se 180-
200mg/dL, 4UI se 201-250mg/dL, 6UI se 251-300mg/dL, 8UI se 301-350mg/dL
e 10UI se acima de 350mg/dL;
- Soro glicosado a 50% 60mL por via intravenosa se glicose capilar inferior a
70mg/dL;
- Soro Fisiológico 1000mL por via intravenosa a critério médico;
- Meias de compressão pneumática intermitente em membros inferiores, com
introdução de Enoxaparina ou Heparina Não-Fracionada em dose profilática
após a correção do aneurisma;
- Monitorização contínua com saturação periférica de oxigênio, frequência
cardíaca, frequência respiratória, pressão arterial não-invasiva intermitente,
ritmo cardíaco e temperatura;

Complicações
O vasoespasmo cerebral geralmente ocorre entre três e doze dias após o
sangramento e a quantidade de sangue visualizada na tomografia computadorizada de
crânio é o melhor parâmetro para prevê-lo. O Doppler transcraniano deve ser realizado
frequentemente para o seu diagnóstico e monitoramento, a cada dois dias ou mesmo
diariamente, com valores superiores a 120cm/segundo em grandes artérias sendo
indicativos de vasoespasmo. O tratamento inicial do vasoespasmo sintomático consiste
na terapia hiperdinâmica, com hipervolemia, hipertensão e hemodiluição. O paciente
deve ser monitorizado com acesso venoso central e pressão arterial invasiva. Deve
receber pelo menos três litros por dia de solução cristalóide, com monitorização
contínua dos níveis de sódio. A pressão arterial média deve ser mantida entre 90mmHg
e 130mmHg. Caso não surta efeito, angiografia cerebral deve ser realizada e, se
estreitamento arterial for detectado, procede-se a angioplastia transluminal com infusão
intra-arterial de droga vasodilatadora, como Papaverina.
O ressangramento causa altas taxas de morbidade e mortalidade, podendo ser
evitado com a terapêutica precoce do aneurisma. Hidrocefalia sintomática deve ser
tratada com derivação ventricular externa ou mesmo derivação ventricular permanente.
Hiponatremia pode ser causada tanto por secreção inapropriada de hormônio
antidiurético como por síndrome perdedora de sal. Nesta, deve-se proceder à agressiva
administração de cristaloides e coloides por via intravenosa, visto que a hipovolemia
eleva o risco de isquemia cerebral, acarretando consequente piora do prognóstico.

Bibliografia
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva

Pedro Kallas Curiati 1106


Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Clínica Médica, volume 6: doenças dos olhos, doenças dos ouvidos, nariz e garganta, neurologia, transtornos mentais. – Barueri, SP:
Manole, 2009.
Overview of the evaluation of stroke. Louis R Caplan. UpToDate, 2011.
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Intravenous Thrombolytic Therapy for Acute Ischemic Stroke. Lawrence R Wechsler. N Engl J Med 2011;364:2138-46.

Pedro Kallas Curiati 1107


EPILEPSIA E CRISE EPILÉPTICA
Epilepsia

Definições
Epilepsia é a ocorrência de duas ou mais crises epilépticas não-provocadas.
Epilepsia ativa é definida como aquela com crises nos últimos 12 meses ou, com base
em um conceito mais amplo, nos últimos 24 meses.
Por crise epiléptica entende-se manifestação de atividade epiléptica, excessiva
ou hipersincrônica, de neurônios do cérebro, geralmente com caráter autolimitado. Do
ponto de vista clínico, crise epiléptica é a manifestação clínica paroxística da
hiperexcitabilidade neuronal, com manifestação motora, sensitiva ou psíquica.

Epidemiologia
Afecção neurológica mais comum, com prevalência em torno de 1% na
população geral. A prevalência de epilepsia ativa é mais alta em crianças e idosos.

Diagnóstico
Uma anamnese cuidadosa é o elemento mais importante individualmente para o
diagnóstico. O exame neurológico é normal na maior parte dos pacientes. Exames
complementares, como o eletroencefalograma e tomografia computadorizada de
encéfalo ou ressonância nuclear magnética de encéfalo são utilizados para sustentar e
complementar o diagnóstico.

Diagnóstico diferencial
A primeira questão a ser abordada em um paciente com suspeita de epilepsia é a
diferenciação de outros eventos paroxísticos não-epilépticos, como síncopes,
hipoglicemia e crises psicogênicas. A anamnese deve abranger os períodos pré-ictal,
ictal e pós-ictal.
O paciente com epilepsia muitas vezes tem pródromo produtivo e geralmente a
crise, com duração na dimensão dos minutos, vem associada a movimentos
involuntários tônicos, clônicos, tônico-clônicos ou, eventualmente, mioclônicos.
Durante a crise epiléptica, o paciente pode sofrer traumatismo, como mordedura de
língua ou queda ao solo, com traumatismo crânio-encefálico ou dos membros. Em geral,
a pele é quente, cianótica e com rubor. Após a crise, há período de sonolência excessiva,
confusão mental e desorientação, com recuperação progressiva. A sonolência pode
durar de 24 a 48 horas e o paciente comumente se queixa de dores no corpo. Liberação
do esfíncter é comum e o eletroencefalograma é alterado em 90% dos casos.
Classicamente, a síncope é caracterizada por perda súbita da consciência de
curta duração, na dimensão dos segundos, geralmente sem pródromo ou aura. Quando o
paciente se lembra dos momentos que precederam a síncope, ele descreve fenômenos
negativos, como escurecimento da visão, sensação de desfalecimento e, dependendo do
quadro, palpitações. Liberação do esfíncter é pouco comum, o período pós-crítico é
curto, o eletroencefalograma é normal em 98% e o paciente refere náusea e vontade de
evacuar. Movimentos involuntários geralmente estão ausentes, mas espasmos
musculares em pequena quantidade podem ocorrer em função de hipóxia
O quadro clínico da hipoglicemia é variável, dependente de quão baixa é a
glicemia e do tempo de exposição a esses valores. De maneira geral, os fenômenos são

Pedro Kallas Curiati 1108


negativos, o paciente fica gradualmente mais confuso e apresenta sudorese fria,
hipoacusia, tontura e alterações visuais. Estão ausentes movimentos involuntários e
liberação do esfíncter. Eletroencefalograma é normal em 98%.
Em caso de hiperventilação, pode haver ansiedade, taquipnéia, parestesias e
espasmos musculares em mãos e pés e fator desencadeante ambiental. Em caso de
enxaqueca, pode haver progressão lenta dos sintomas neurológicos, manifestações
visuais proeminentes e ausência de cefaleia, com quadro clínico pouco usual em caso de
enxaqueca basilar, caracterizada por confusão mental, estupor e amaurose bilateral. Em
caso de ataque de pânico, pode haver instalação abrupta de sensação intensa de medo,
eventualmente de morte iminente, com dificuldade para respirar, sintomas autonômicos,
como taquicardia, sudorese e náusea, duração prolongada, ao redor de cinco a trinta
minutos, e ausência de perda de consciência. Em caso de acidente isquêmico transitório,
pode haver início súbito sem progressão dos sintomas, com manifestações variáveis em
função da anatomia cerebral e vascular, predominantemente negativas.
Outra possibilidade é a pseudocrise ou crise psicogênica, cujo principal sinal é o
paciente estar de olhos fechados, inclusive contra a resistência, já que nos pacientes com
crise epiléptica os olhos não se fecham. Além disso, pode haver antecedente pessoal de
afecções psiquiátricas, movimentos oculares em tremulação, ausência de incontinência
urinária, movimentos de membros fora de fase e refratariedade ao tratamento. As crises
epilépticas originadas nos lobos frontal e temporal podem parecer psicogênicas.

Classificação
Uma vez que o diagnóstico tenha sido estabelecido, o próximo passo consiste em
definir o tipo de crise e a síndrome epiléptica, que vão definir a abordagem diagnóstica
e terapêutica, bem como trazer informações sobre o prognóstico do paciente.

Classificação das crises epilépticas parciais


Crises parciais simples, sem comprometimento da consciência:
- Com sinais motores, que inclui focal motora sem marcha, focal motora
com marcha, versiva, postural e fonatória;
- Com sintomas somatossensitivos ou sensitivos especiais, que inclui
somatossensitiva, visual, auditiva, olfatória, gustativa e vertiginosa;
- Com sinais ou sintomas autonômicos, incluindo sensação epigástrica,
palidez, sudorese, rubor facial, piloereção e dilatação pupilar;
- Com sintomas psíquicos, que inclui difásica, dismnésica (déjà-vu),
cognitiva (estado onírico, distorções do sentido de tempo), afetiva (medo,
raiva), ilusões e alucinações estruturadas (músicas, cenas);
Crises parciais complexas, com perda da consciência e possibilidade de início
com crise parcial simples. Pode haver ou não automatismos.
Crises parciais simples ou complexas com evolução para crises secundariamente
generalizadas.

Classificação das crises epilépticas generalizadas


Ausência:
- Típica, que inclui comprometimento da consciência isoladamente,
componentes clônicos leves, componentes atônicos, componentes
tônicos, automatismos e componentes autonômicos;
- Atípica;
Crises mioclônicas, com abalos mioclônicos simples ou múltiplos.
Crises clônicas.

Pedro Kallas Curiati 1109


Crises tônicas.
Crises tônico-clônicas.
Crises atônicas.

Classificação das síndromes epilépticas


Para o diagnóstico da síndrome epiléptica, além do tipo ou dos tipos de crise
apresentados, outros dados devem ser considerados, como idade de início das crises,
etiologia da epilepsia, condição neurológica do paciente, evolução clínica e neurológica,
alterações eletroencefalográficas e resultados de exames de neuroimagem.
Com relação à etiologia, as síndromes epilépticas são classificadas em
idiopáticas, sintomáticas e criptogênicas, que são presumidamente síndromes
sintomáticas com falta de evidência da etiologia.
Na maior parte dos casos a etiologia é desconhecida. Acidente vascular cerebral,
traumatismo crânio-encefálico, etilismo, doença neurodegenerativa, neoplasia cerebral,
encefalopatia não-progressiva e infecção são as principais causas identificadas.

Exames complementares
O eletroencefalograma é o exame complementar mais importante e na maioria
dos pacientes pode detectar alterações específicas da atividade elétrica cerebral,
denominadas descargas epileptiformes, muitas vezes influenciadas pelo sono e pelo
despertar. Se exames seriados forem realizados com o uso de métodos apropriados de
ativação, como sono, fotoestimulação intermitente e hiperventilação, o número de
resultados falso-negativos pode chegar a 8%. Uso indicado para o diagnóstico de
epilepsia e, em alguns casos, para o acompanhamento do tratamento com alguns
medicamentos, como o Valproato.
A tomografia computadorizada de crânio e a ressonância nuclear magnética são
as modalidades de neuroimagem estrutural mais utilizadas no diagnóstico de pacientes
com epilepsia. Os pacientes com quadro clínico compatível com uma das síndromes
epilépticas idiopáticas prescindem dessa investigação.
Esclerose mesial temporal é a forma mais comum de epilepsia refratária no
adulto, com crises parciais simples ou complexas demoradas, com automatismos e
generalização secundária eventual. Ressonância nuclear magnética revela displasia
hipocampal e eletroencefalograma detecta espículas focais no lobo temporal.
Avaliação laboratorial com hemograma completo, função renal, enzimas
hepáticas, função hepática e eletrólitos é útil antes do início do tratamento
farmacológico da epilepsia, uma vez que ajuste de dose pode ser necessário em caso de
insuficiência renal ou de insuficiência hepática. Níveis de albumina devem ser
mensurados antes da administração de drogas com alto índice de ligação proteica, como
Fenitoína e Valproato de Sódio. Em adolescentes e adultos com crises generalizadas de
causa desconhecida, recomenda-se rastreamento de drogas de abuso.

Tratamento
Os pacientes devem ser desencorajados a participar de atividades nas quais uma
crise epiléptica aumente o risco de acidentes ou de morte, como dirigir, operar
determinados equipamentos, trabalhar em alturas elevadas e nadar sem supervisão. Há
necessidade de observar sinais de depressão, com interrogatórios direcionados para o
diagnóstico, tendo em vista a necessidade de tratamento e acompanhamento
psiquiátricos.
De maneira geral, devem ser considerados os fatores envolvidos na
probabilidade de recorrência após a primeira crise epiléptica para indicar o início do

Pedro Kallas Curiati 1110


tratamento farmacológico, cuja duração mínima será de dois a três anos. Esses fatores
incluem crise parcial, alterações em eletroencefalograma e/ou ressonância nuclear
magnética, paciente muito jovem ou idoso, alteração no exame neurológico, doenças
associadas e história familiar.
A escolha do medicamento antiepiléptico em cada caso baseia-se no tipo de crise
e na síndrome epiléptica de cada paciente. Além do tratamento com medicamento
antiepiléptico, algumas medidas gerais podem contribuir para o controle das crises,
como a abordagem dos fatores precipitantes, que podem incluir a privação de sono,
estímulos visuais, estresse, uso de álcool e fatores menstruais.
Sempre que possível, deve-se optar pela monoterapia. Caso não seja obtido o
controle adequado das crises com o uso do medicamento antiepiléptico em doses
adequadas, faz-se a adição de outra droga. Se o segundo medicamento controlar as
crises, deve-se descontinuar o primeiro. Se houver insucesso, o paciente deve ser
encaminhado para especialista, pois a possibilidade de controle é inferior a 11% e
cirurgia precisa ser considerada.
Para o tratamento das crises parciais, são considerados medicamentos de
primeira escolha Oxcarbazepina 300-2400mg/dia de 12/12 a 8/8 horas, com dose inicial
de 300-600mg/dia (8-10mg/kg/dia) e titulação com incremento de 300-600mg/dia por
semana até dose alvo inicial de 900-1200mg/dia, Carbamazepina 200-1200mg/dia de
8/8 a 6/6 horas, com dose inicial de 200mg/dia e titulação com incremento de
200mg/dia a cada três dias até dose alvo inicial de 400-600mg/dia, e Fenitoína 300-
600mg/dia de 12/12 a 8/8 horas, com dose inicial de 300mg/dia. Fenobarbital, com dose
inicial de 30mg e titulação com incremento de 30mg/dia por semana até dose alvo de
60-120mg/dia única ou fracionada também é eficaz, mas seu uso é limitado pelos efeitos
colaterais, principalmente sedação e sonolência. O Valproato de Sódio, com amplo
espectro de eficácia, também tem efeito sobre as crises parciais, porém geralmente em
doses maiores do que as utilizadas para o tratamento das crises generalizadas. A
Gabapentina 900-4800mg/dia de 8/8 a 6/6 horas, com dose inicial de 300-600mg/dia e
titulação com incremento de 300-600mg/dia por semana até dose alvo inicial de
900mg/dia, apresenta eficácia limitada, mas pode ser usada em pacientes idosos, pois
tem baixo potencial de interação com outros medicamentos e é excretada inalterada por
via renal.
O Valproato de Sódio é o medicamento de primeira escolha para as crises
primariamente generalizadas, com dose inicial de 250-500mg/dia ou 10-15mg/kg/dia
em dose única e titulação com incremento de 250-500mg/dia ou 5-10mg/kg/dia por
semana até dose alvo inicial de 750-2000mg, com dose máxima de 60mg/kg/dia, sendo
disponível também como Ácido Valpróico, que causa mais efeitos colaterais
gastrointestinais. Pode ser fracionado de 12/12 a 8/8 horas quando a dose diária exceder
250mg. Os pacientes com epilepsia generalizada idiopática, principalmente crianças,
exclusivamente com crises de ausência, podem ser tratados com Etossuximida,
considerado medicamento de primeira escolha para crises de ausência típica. Os
pacientes com crises generalizadas que não toleram o tratamento com Valproato de
Sódio ou que não obtêm controle adequado das crises com esse medicamento podem
beneficiar-se do uso de Topiramato 25-400mg/dia em dose única ou de 12/12 horas,
com dose inicial de 25-50mg/dia e titulação com incremento de 25-50mg/dia por
semana até dose alvo de 100-200mg, ou de Lamotrigina 25-500mg/dia em dose única
ou de 12/12 horas, com dose inicial de 25mg/dia por duas semanas, seguida por
50mg/dia por mais duas semanas e titulação com incremento de 25-50mg/dia por
semana a partir de então até dose alvo inicial de 100-200mg/dia.
É importante lembrar que alguns medicamentos antiepilépticos, como Fenitoína,

Pedro Kallas Curiati 1111


Fenobarbital, Carbamazepina, Topiramato e Oxcarbazepina, facilitam a metabolização
dos hormônios das pílulas anticoncepcionais. Por esse motivo, as pacientes devem
evitar o uso de pílulas com baixa dosagem, com preferência por um mínimo de 50mcg
de Etinilestradiol ao dia.
Um quinto das grávidas com epilepsia apresentam aumento das crises,
possivelmente por diminuição do nível sérico do medicamento antiepiléptico. Quando a
gravidez é programada e a paciente ainda precisa de Valproato de Sódio, deve-se
substituir a medicação. Quando a paciente está bem controlada, sem crises há pelo
menos dois anos, é possível propor a retirada da medicação. Caso o uso do
medicamento antiepiléptico deva ser iniciado, deve-se dar preferência àquele com
melhor controle da crise e não se deve trocá-los com base na redução do risco de
malformação. Entretanto, em grávidas com história familiar de defeitos do tubo neural
deve-se evitar Carbamazepina e Valproato de Sódio. É recomendável a suplementação
de Ácido Fólico durante toda a gravidez e de vitamina K no último mês.
Em pacientes com doença hepática deve-se dar preferência à Gabapentina e
evitar Carbamazepina, Valproato de Sódio, Fenobarbital e Fenitoína. Pacientes com
doença renal não devem receber Fenobarbital, Gabapentina e Topiramato. Antecedente
de nefrolitíase é contraindicação relativa ao uso de Topiramato.
Perda de densidade mineral óssea pode ocorrer com o uso de Fenitoína,
Fenobarbital e Carbamazepina, com indicação de suplementação de Vitamina D até
2000UI/dia e Cálcio até 1200mg/dia, com realização periódica de densitometria óssea.
Assim como a decisão de iniciar ou não o tratamento com medicamento
antiepiléptico e a decisão de qual usar, o momento da interrupção da terapia
medicamentosa depende diretamente do tipo de epilepsia. Há uma regra comum na
prática clínica segundo a qual após dois anos sem crise, ou cinco anos em análises mais
conservadoras, a interrupção do tratamento pode ser considerada. Outros fatores que
favorecem a decisão de descontinuar o medicamento antiepiléptico são uso de baixas
doses com bom controle, rápido controle das crises, epilepsia idiopática e exames de
imagem, eletroencefalográfico e neurológico normais. Já os fatores que influenciam na
decisão de prosseguir com a medicação são controle inicial difícil, uso de mais de um
medicamento para o controle das crises, eletroencefalograma anormal ou que piore na
retirada e alteração no exame neurológico ou no exame de imagem.

Crise epiléptica

Conceitos
Crise aguda sintomática ou crise provocada é crise epiléptica decorrente de uma
causa imediata identificada.
Crise isolada é uma ou mais crises recorrendo no período de 24 horas. Pode
corresponder a uma crise aguda sintomática ou à primeira manifestação de epilepsia.

Etiologia

Crises agudas sintomáticas


Podem ocorrer em qualquer indivíduo devido a alterações na excitabilidade
neuronal secundárias ao fator desencadeante.
As causas mais comuns de crises agudas sintomáticas são:
- Disfunção tóxico-metabólica, como intoxicação exógena por drogas
estimulantes do sistema nervoso central, abstinência de drogas
depressoras do sistema nervoso central, hiperglicemia ou hipoglicemia,

Pedro Kallas Curiati 1112


hipernatremia ou hiponatremia, uremia, insuficiência hepática,
hipocalcemia e hipomagnesemia;
- Infecções do sistema nervoso central, como meningite, encefalite e
abscesso cerebral;
- Lesão neurológica aguda, geralmente com lesão cortical, como
hemorragia intracraniana, isquemia grave do sistema nervoso central,
trauma cranioencefálico e encefalopatia hipertensiva;
- Doença ou lesão neurológica prévia, como acidente vascular cerebral
isquêmico ou hemorrágico, aneurisma, malformação arteriovenosa,
tumores primários ou metastáticos, doenças degenerativas, doenças
congênitas e neurocisticercose;
A correção do distúrbio de base geralmente previne o surgimento de novas
crises. A ocorrência de lesão do sistema nervoso central implica em maior risco de
desenvolvimento futuro de crises espontâneas recorrentes. Na ausência de lesão
permanente, o risco de o doente tornar-se epiléptico após uma crise aguda sintomática é
pequeno.

Epilepsia
Nas epilepsias idiopáticas, que representam apenas 5% dos casos nos pacientes
adultos, pressupõe-se hiperexcitabilidade cortical, com início geralmente antes dos vinte
anos de idade, possibilidade de história familiar de epilepsia e ausência de outras
anormalidades neurológicas ao exame de imagem.
Nas epilepsias sintomáticas existem lesões corticais adquiridas em qualquer
momento da vida. A etiologia dessas lesões inclui afecções congênitas, doenças
infecciosas do sistema nervoso central, lesões vasculares, neoplasias e doenças
degenerativas.
Nas epilepsias criptogênicas, provavelmente sintomáticas, não são observadas
lesões ao exame de neuroimagem, mas os pacientes não apresentam as características
clínicas das epilepsias idiopáticas.

Quadro clínico
Em um paciente que apresente uma primeira crise epiléptica, devem ser
pesquisados:
- Presença de febre, que pode indicar meningoencefalite viral, bacteriana
ou de etiologia fúngica;
- Rigidez de nuca, que pode indicar meningite, encefalite e hemorragia
meníngea;
- Evidência de traumatismo craniano, que pode ser fator causal ou
decorrente da crise;
- Presença de déficit neurológico focal, que pode indicar lesão
neurológica aguda ou crônica relacionada à crise;
Devem ser pesquisadas na história clínica:
- Evidência de doença clínica descompensada;
- História de uso de medicação prescrita, de uso drogas ilícitas ou de
tentativa de suicídio;
- História de etilismo crônico, com redução ou ausência da ingesta de
álcool nas últimas horas ou dias, o que indica abstinência alcoólica;

Exames complementares
Todo paciente deve imediatamente ser submetido a medida de glicose capilar e,

Pedro Kallas Curiati 1113


se valores inferiores aos limites da normalidade, correção e coleta de amostra de sangue
para confirmação. Deve-se administrar, concomitantemente, Tiamina 100mg por via
intravenosa para impedir o desencadeamento de encefalopatia de Wernicke.
Deve-se considerar se história, exame físico, exame neurológico e exame do
fundo de olho sugerem alguma causa, com indicação de investigação conforme a
hipótese.
Em pacientes sem história prévia de epilepsia, deve-se, obrigatoriamente,
proceder a:
- Investigação de causas clínicas com hemograma completo,
coagulograma, função renal, transaminases séricas, função hepática,
glicemia, sódio e potássio sérico, cálcio iônico, magnésio sérico, proteína
C reativa, velocidade de hemossedimentação e, em casos selecionados,
gasometria arterial, urina tipo 1, urocultura, hemoculturas e perfil
toxicológico;
- Neuroimagem, preferencialmente ressonância nuclear magnética de
crânio ou, alternativamente, tomografia computadorizada de crânio, com
contraste em casos selecionados;
- Exame do líquor com manometria deve ser colhido, desde que não haja
contraindicação, em casos selecionados, sendo imprescindível quando há
suspeita de quadro infeccioso;
- Eletroencefalograma é exame raramente disponível no pronto-
atendimento em caráter de urgência, mas é extremamente útil para
revelar anormalidades epileptiformes em pacientes epilépticos e na
avaliação de estado de mal eletrográfico em pacientes com rebaixamento
do nível de consciência de etiologia não definida;
Nos casos de primeira crise epiléptica, o paciente deve ser mantido em
observação hospitalar até que sejam afastadas as causas mencionadas. Pacientes com
história prévia de epilepsia devem ser avaliados cuidadosamente, pois nem sempre é
possível excluir a ocorrência de novo quadro neurológico agudo sobreposto. Nesses
casos, é de extrema importância a história do uso de medicações, aderência ao
tratamento, parada abrupta da medicação e mudança no esquema de medicamentos,
sendo recomendada a dosagem dos níveis séricos das medicações em uso.
Em caso de paciente epiléptico que parou de tomar por conta própria a
medicação há alguns dias, deve-se analisar individualmente a necessidade de exames
complementares.

Estado de mal epiléptico


Estado de mal convulsivo caracteriza-se por crises tônico-clônicas generalizadas
reentrantes, sem recuperação completa da consciência entre as crises ou crise
generalizada que dura mais de vinte minutos. Representa risco de morte e deve ser
identificado e tratado prontamente.
Estado de mal não-convulsivo pode ocorrer espontaneamente ou após uma ou
mais crises tônico-clônicas generalizadas ou parciais complexas. Manifesta-se por
rebaixamento persistente do nível de consciência, a despeito da cessação de crises
clinicamente perceptíveis. Podem ocorrer manifestações clínicas sutis. O diagnóstico é
feito com eletroencefalograma. Os fatores desencadeantes e agravantes devem ser
reconhecidos o mais rapidamente possível e o tratamento medicamentoso deve ser
estabelecido com rapidez.
Estado de mal parcial ou focal simples caracteriza-se por crises focais
reentrantes ou contínuas, sem comprometimento do nível de consciência. Pode

Pedro Kallas Curiati 1114


caracterizar-se por abalos motores em um dos membros ou na face. Nesses casos,
também é fundamental afastar fatores etiológicos ou desencadeantes e tratar
adequadamente as crises. A urgência no tratamento é um pouco menor do que nos
outros tipos de mal epiléptico, devendo-se pesar cuidadosamente a necessidade de
introdução de medidas agressivas, como intubação orotraqueal e infusão de drogas
antiepilépticas por via intravenosa.

Conduta
A prioridade inicial é avaliar se há hipoglicemia e realizar as manobras de
suporte avançado de vida. Após a estabilização, deve-se realizar história clínica
completa, exame físico, exame neurológico e avaliação do fundo de olho.
A conduta farmacológica com medicação antiepiléptica é reservada para casos
selecionados, uma vez que a grande maioria das crises tende a não se repetir uma vez
eliminado o fator causal. O uso de drogas antiepilépticas tem como objetivo cessar uma
crise prolongada e prevenir novas crises.

Crises agudas sintomáticas


O melhor tratamento é a correção da causa e geralmente não se inicia tratamento
com agentes antiepilépticos nessa situação. Não devem ser administrados
benzodiazepínicos se a crise já tiver cessado e o doente estiver no período pós-ictal.
Esses agentes devem ser reservados para casos em que se caracterize estado de mal
epiléptico, em crises com duração superior a cinco minutos.
No caso de crises agudas sintomáticas secundárias a lesões neurológicas agudas,
habitualmente são empregados agentes antiepilépticos na prevenção de recorrência de
crises, embora sua eficácia possa ser limitada nesse contexto. O agente mais empregado
é a Fenitoína, que não é sedativa e pode ser administrada por via intravenosa em dose de
ataque, com rápido início de ação. Recomenda-se a manutenção durante toda a fase
aguda e retirada a partir da 12ª semana de uso.

Crise única, excluída crise aguda sintomática


A maior parte dos doentes com crise única na emergência não apresentará
recorrência de crises e, portanto, a introdução de agentes antiepilépticos não está
indicada na maioria dos casos e é restrita àqueles casos em que há alto risco de
recorrência.
Doentes com crise única de etiologia não esclarecida idealmente não devem
receber alta hospitalar até que se tenham dados completos de investigação que forneçam
subsídios para decidir sobre a introdução ou não de medicação antiepiléptica, sendo
necessários os resultados de ressonância magnética de crânio e de eletroencefalograma.

Crise epiléptica em doente com epilepsia


As causas mais frequentes de descontrole incluem falta de aderência ao
tratamento, troca de agentes farmacológicos, distúrbios metabólicos, infecção sistêmica,
interações medicamentosas e outras situações que levem à queda da biodisponibilidade
do agente antiepiléptico. A identificação do fator desencadeante é fundamental para
uma conduta adequada. A dosagem sérica do agente antiepiléptico pode ser útil em
alguns casos.
Se for comprovada a irregularidade do uso do agente antiepiléptico, devem ser
administradas as doses perdidas. Em doentes aderentes ao tratamento e sem sinais
clínicos de intoxicação, um aumento na dose do agente de que já faz uso pode ser
suficiente para o controle das crises, devendo-se sempre explorar o tratamento em

Pedro Kallas Curiati 1115


monoterapia, com ajuste até a máxima dose tolerada sem efeitos adversos.
Em alguns casos deve ser considerado o uso de uma dose de ataque de Fenitoína
de 20mg/kg para doentes que não utilizem essa medicação e não apresentem
contraindicações e de 5-10mg/kg para doentes que utilizem regularmente essa
medicação.
Deve-se sempre avaliar a possibilidade de trauma secundário a crise e realizar
tomografia computadorizada de crânio se houver dúvidas.

Estado de mal epiléptico


Do primeiro ao quinto minutos da crise epiléptica preconiza-se estabilização de
vias aéreas, suporte de oxigênio, acesso venoso, monitorização e medida de glicose
capilar. A partir do quinto minuto, caso o paciente continue com crise epiléptica,
preconiza-se Diazepam 1-2mg/minuto por via intravenosa até controle ou dose máxima
de 10-20mg. O Diazepam tem duração de cerca de trinta minutos e pode levar a
depressão respiratória. O Lorazepam intravenoso é considerado a droga de escolha, mas
não é disponível no Brasil na forma parenteral. Preconiza-se 0.10-0.15mg/kg por via
intravenosa em um a dois minutos, com possibilidade de repetição após cinco a dez
minutos.
A utilização de benzodiazepínicos no estado de mal epiléptico deve ser seguida
pela administração de agentes antiepilépticos com duração de ação mais prolongada no
sistema nervoso central. Preconiza-se Fenitoína 15-20mg/kg de peso por via
intravenosa, com velocidade máxima de 50mg/minuto e diluição em 250-500mL de
Soro Fisiológico. Pode-se administrar uma dose adicional de 5-10mg/kg caso não
ocorra controle completo da crise. O paciente deve ser observado durante a infusão, de
preferência com monitorização eletrocardiográfica, podendo ocorrer hipotensão e
arritmias. A droga de escolha é a Fosfenitoína, que é metabolizada em Fenitoína, com
dose inicial de 20mg/kg e adicional de 7-10mg/kg, tendo como vantagem a infusão mais
rápida, com velocidade de 150mg/minuto.
Após dose máxima de Fenitoína ou Fosfenitoína, caso o paciente continue com
crise epiléptica, deve-se prescrever Fenobarbital 10mg/kg por via intravenosa com
velocidade de 50-75mg/minuto e repetição se necessário. Deprime intensamente o nível
de consciência, sendo por vezes necessário suporte ventilatório. Trata-se do agente de
escolha se o estado de mal epiléptico for desencadeado pela sua abstinência. Uma opção
ao Fenobarbital é o Valproato, com 25-40mg/kg por via intravenosa em dez minutos e
dose suplementar de 20mg/kg se necessário, que causa menor alteração do nível de
consciência.
Após o uso de benzodiazepínico, Fenitoína e Fenobarbital, se o paciente ainda
persistir com crises epilépticas, deve-se proceder à anestesia geral com monitorização
de eletroencefalograma. Opções para a anestesia geral incluem Midazolam 0.2mg/kg
por via intravenosa e manutenção com 1-10mcg/kg/minuto, Propofol 1-2mg/kg por via
intravenosa lentamente e manutenção com 1-15mg/kg/hora e Pentobarbital 10-15mg/kg
por via intravenosa em uma hora e manutenção com 0.5-1.0mg/kg/hora.
Os doentes com estado de mal refratário devem ser tratados em unidade de
terapia intensiva, de preferência com acompanhamento de um neurologista. A
monitorização prolongada por eletroencefalograma deve ser realizada visando a
identificação do estado de mal subclínico.
É importante que sejam introduzidos, além de agentes para combater o estado de
mal, agentes antiepilépticos para o tratamento crônico antes do desmame.

Pedro Kallas Curiati 1116


Bibliografia
Manual da residência de medicina intensiva. Andréa Remigio de Oliveira... [et al.]. 2. ed. Barueri, SP. Manole, 2011.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.
Clínica médica: diagnóstico e tratamento. Itamar de Souza Santos... [et al.]. São Paulo. Sarvier, 2008.
Initial Management of Epilepsy. Jaqueline A. French and Timothy A. Pedley. N Engl J Med 2008;359:166-76.

Algoritmos

Pedro Kallas Curiati 1117


Pedro Kallas Curiati 1118
ESCLEROSE MÚLTIPLA
Fisiopatologia
A doença caracteriza-se por um processo inflamatório na substância branca do
sistema nervoso central, que é iniciado e mantido pela ativação de células T da
linhagem CD4. Agentes virais, como o vírus Epstein-Barr, ou outros antígenos
ambientais podem ser o gatilho da autoagressão à bainha de mielina e aos
oligodendrócitos em pacientes geneticamente suscetíveis. A doença tem evolução com
surtos, mas pode ser progressiva, quando mecanismos de degeneração substituem o
processo inflamatório, com destruição axonal relacionada a alterações de canais iônicos,
com aumento da entrada de cálcio e ativação de proteases intracelulares. Os nervos
periféricos não são acometidos pela desmielinização da esclerose múltipla.
Atualmente, os estudos genéticos apontam para a interação de vários genes para
determinar a suscetibilidade à esclerose múltipla.
Fatores ambientais de natureza viral, exposição aos raios ultravioleta e menor
produção de vitamina D são fatores que indiretamente podem interferir no sistema
imunológico e contribuir para a ativação da linhagem linfocitária de função Th1,
responsável pelo processo inflamatório da esclerose múltipla.

Quadro clínico
A esclerose múltipla é a doença inflamatória mais frequente do sistema nervoso
central em adultos jovens. Ocorre em adultos jovens, com predomínio em brancos de
ascendência caucasoide e no sexo feminino. Apresenta um grande espectro clínico, com
duas formas bem distintas de evolução, a forma recorrente-remitente e a forma
progressiva. Do primeiro sintoma da doença aos sintomas que são comuns durante
décadas, a estrutura básica da esclerose múltipla está vinculada ao surgimento de placas
de desmielinização aleatórias na substância branca do sistema nervoso central. Os
sintomas da fase progressiva correspondem, como regra, a uma acentuação dos
sintomas e sinais neurológicos pré-existentes.
Charcot descreveu a tríade clínica composta por nistagmo, disartria e ataxia
sinais resultantes do comprometimento das estruturas do tronco cerebral e das conexões
cerebelares. Vertigem é frequente.
A doença se instala com sintomas e sinais neurológicos na forma recorrente-
remitente na maior parte dos casos, com surtos bem individualizados, caracterizados por
pico em dias a semanas, e recuperação total ou com sequelas. No intervalo entre os
surtos, a doença se mantém estável, sem progressão. A forma secundariamente
progressiva se caracteriza por uma fase precedente de recorrência e remissão seguida de
progressão dos déficits sem novos surtos ou com surtos subjacentes, havendo
progressão dos déficits entre os surtos. A forma primariamente progressiva se
caracteriza desde o início da doença por progressão dos déficits, evoluindo, entretanto,
com períodos de estabilização ou mesmo discreta melhora. A forma progressiva-
recorrente é caracterizada desde o início de modo progressivo, intercalada por surtos
definidos com ou sem recuperação total. No intervalo dos surtos, continua a progressão.
A doença pode se instalar com um único sintoma ou polissintomática. Nem
sempre a apresentação polissintomática corresponde à ocorrência de múltiplos sítios de
lesão. No tronco cerebral, uma única lesão pode comprometer vias de motricidade
ocular, sensitivas, motoras e da coordenação. Os sintomas da esclerose múltipla são
secundários às lesões dos tratos mielinizados do sistema nervoso central e, para que

Pedro Kallas Curiati 1119


sejam interpretados como nova desmielinização, devem permanecer durante tempo
igual ou superior a 24 horas.
As escalas de incapacidade permitem identificar o resultado de terapêuticas
modificadoras do curso da doença, assim como adequar o atendimento médico e a
reabilitação. A escala mais utilizada é a de Kurtzke.
Sintomas e sinais motores, quando ocorrem, estão acompanhados de exaltação
dos reflexos miotáticos e sinal de Babinski. A instalação do déficit geralmente é
assimétrica e gradual em horas ou dias, raramente aguda como nas síndromes
vasculares. Nas formas progressivas, a apresentação é lenta e insidiosa, os déficits
geralmente são simétricos e há maior acometimento de membros inferiores e,
eventualmente, esfincteriano, com diagnóstico diferencial com síndromes degenerativas
espinais.
As alterações sensitivas são relatadas com extremo detalhe pelos pacientes, o
que ocorre em virtude do comprometimento álgico, que às vezes está presente. Como
manifestação inicial e transitória, durante semanas ou meses, essas alterações
geralmente são assimétricas e afetam um segmento ou mesmo um dimidio. A
dificuldade de identificação semiológica das síndromes sensitivas, na ausência de outras
manifestações, induz o neurologista a confusão com síndromes psíquicas. A marcha
pode estar alterada quando há lesões extensas no funículo posterior. Há maior chance de
marcha talonante ou sinal de Romberg quando a lesão é bilateral.
O ato motor pode ser alterado por lesão sensitiva, porém é a lesão cerebelar que
determina distúrbios severos e incapacitantes de coordenação. O tremor do paciente
com esclerose múltipla é assimétrico, ocorre mais frequentemente nos membros
superiores e pode ser de ação, postural ou cinético.
Sintomas visuais correspondem às manifestações da neurite óptica.
As dificuldades visuais decorrentes das alterações dos movimentos oculares são
de fácil identificação. A maioria dos pacientes apresenta queixa de visão dupla. A lesão
mais identificada pelo exame neurológico e responsável pela queixa de diplopia ou
oscilopsia é a oftalmoplegia internuclear, frequentemente unilateral, observada quando
o paciente realiza movimentos no plano horizontal, com paresia do reto medial do olho
aduzido e nistagmo do olho abduzido. A lesão é localizada no fascículo longitudinal do
lado do olho aduzido, com preservação da movimentação do olho aduzido quando se
pesquisa a convergência. Todas as alterações dos movimentos oculares nos pacientes
com esclerose múltipla decorrem da desmielinização de várias vias com conexão
cerebral, mesencefálica, cerebelar e nos núcleos espinhais cervicais.
As alterações autonômicas têm sido encontradas nos pacientes com esclerose
múltipla e estão associadas a lesões em hipotálamo, tronco cerebral e medula espinal.
As lesões dessas áreas ou vias de associação podem estar relacionadas à perda parcial
ou total da regulação e do controle dos sistemas simpático e parassimpático. São
descritas alterações de sudorese unilateral, hiperidrose, síndrome de Horner, arritmias
cardíacas, crises de hipertermia, secreção inapropriada do hormônio antidiurético,
disfunção sexual e disfunção no controle dos esfíncteres, sendo a urgência e a
incontinência urinárias as disfunções mais frequentes.
A fadiga é um sintoma muito importante entre os pacientes com esclerose
múltipla, independentemente da evolução da doença e do grau de incapacidade. O
impacto na qualidade de vida e na redução do desempenho social e profissional é
desproporcional aos déficits existentes, exigindo intervenção medicamentosa. O
Modafinil, com 200mg por dia por via oral, aprovado para sonolência e narcolepsia,
facilita o despertar dos pacientes estimulando a atividade cortical por meio da ativação
das vias histaminérgicas. Antidepressivos são utilizados para controle da fadiga com

Pedro Kallas Curiati 1120


sucesso parcial.
Os déficits cognitivos mais referidos estão relacionados a velocidade de
processamento das informações, capacidade de desempenhar funções executivas e
memória operacional.

Avaliação complementar
As lesões costumam situar-se na substância branca do sistema nervoso central e
são evidenciadas pela imagem de ressonância nuclear magnética com grande precisão.
Têm localização periventricular, perpendicular à parede do ventrículo ou ao corpo
caloso, e morfologia alongada, afilada ou globoide. Na medula espinal, as lesões são
nodulares ou alongadas no sentido rostro-caudal e localizadas na porção dorsal ou
lateral, com múltiplos segmentos afetados. São facilmente reconhecidas nos cortes
axiais e sagitais do encéfalo, principalmente na sequência FLAIR (fluid attenuated
inversion-recovery), variante da sequência ponderada em T2 na qual é suprimido o sinal
do líquor. As lesões mesencefálicas, pontinas e bulbares, assim como as cerebelares,
podem ter ótima identificação com imagem de ressonância nuclear magnética, sendo
importante realçar a relevância de uma sequência ponderada em T2 ou densidade de
prótons para detectar lesões na fossa posterior, uma relativa limitação da sequência
FLAIR. A utilização do contraste paramagnético Gadolínio permite identificar as lesões
agudas ou subagudas, com idade inferior a quatro meses, nas quais ocorrem as
alterações da barreira hematoencefálica. Na lesão aguda, o contraste é homogêneo e
nodular, com intenso hipersinal na aquisição pesada em T1 pós-contraste. Com o
decorrer de dias ou semanas, a lesão adquire realce periférico completo ou incompleto.
As lesões antigas podem contrastar nas bordas, porém o realce é mais tênue e a porção
central apresenta um hipossinal nítido na sequência T1 pós-contraste. Há lesões
conhecidas como buracos negros, que apresentam importante hipossinal na aquisição T1
pré-contraste, sem realce significativo na fase pós-contraste, com idade avançada. As
lesões observadas na imagem de ressonância nuclear magnética não guardam relação
com os sintomas neurológicos. A espectroscopia de prótons revela nos pacientes com
esclerose múltipla queda do N-acetil aspartato, marcador de concentração e viabilidade
neuronal e axonal, e aumento de mio-inositol, marcador de gliose e osmorregulador, e
colina, marcador de proliferação celular e/ou desmielinização. Na técnica de difusão, as
lesões crônicas de esclerose múltipla apresentam coeficiente de difusão aparente
aumentado. O estudo do tensor de difusão agrega conhecimento ao estudo das lesões,
mostrando diminuição da anisotropia com o acometimento do tecido. O processo de
transferência de magnetização (TM) depende da quantidade de prótons que residem na
mielina e, por isso, representa um método para quantificar indiretamente a quantidade
de mielina no tecido.
O líquor obtido pela punção lombar tem grande importância para o diagnóstico
da esclerose múltipla. Permite identificar a presença de processo inflamatório e suas
características reacionais. No líquor dos pacientes com esclerose múltipla são avaliados
rotineiramente os perfis citomorfológico e proteico. A análise do perfil citomorfológico
objetiva comprovar a existência de processo inflamatório e sua caracterização quanto à
proporção de linfócitos, eosinófilos, plasmócitos, macrófagos e neutrófilos. Nos
pacientes com esclerose múltipla, em razão da quebra da barreira hematoencefálica, há
aumento da quantidade de proteínas no líquor. Na rotina clínica, a eletroforese em
acetato de celulose ou agarose é o procedimento que permite identificar as modificações
proteicas que ocorrem durante o processo inflamatório. Durante uma recidiva da
doença, o aumento das proteínas no líquor é identificado pelo aumento do teor de
albumina, que não existe no encéfalo e cuja presença indica quebra da barreira

Pedro Kallas Curiati 1121


hematoencefálica. Nos pacientes com esclerose múltipla, as imunoglobulinas da fração
gama aparecem com distribuição em bandas de número reduzido e diferem daquelas que
podem ser observadas no soro do mesmo paciente, sendo denominadas bandas
oligoclonais. O nível de IgG pode ser expresso como porcentagem do total de proteínas,
porcentagem do total de albumina ou índice IgG. A concentração proteica no líquor dos
pacientes com esclerose múltipla pode estar normal ou discretamente elevada. Quando
os teores proteicos são maiores que 70mg/dL a hipótese deve ser revista, mesmo na
presença de critérios clínicos e de imagem.
O potencial evocado é um subsídio laboratorial que permite identificar lesões
subclínicas do sistema nervoso central. São estudadas as vias mielinizadas que não
apresentam comprometimento clínico. É um subsídio que acrescenta ao exame
neurológico a evidência de uma nova lesão e assim preenche os requisitos para o
diagnóstico laboratorial nas classificações existentes. O potencial evocado registra a
redução da amplitude ou o aumento da latência do potencial propagado por uma via
desmielinizada. As vias mais estudadas são as vias ópticas, as vias do trato auditivo e as
vias somato-sensitivas. Lesões parciais do nervo óptico somente podem ser
identificadas com a pesquisa do potencial evocado visual, que identifica lesões do
segmento retro-ocular e pré-quiasmático do nervo óptico, não visualizadas na imagem
de ressonância magnética e assintomáticas.

Diagnóstico
O diagnóstico das doenças desmielinizantes é baseado em anamnese, sinais
clínicos, avaliação do líquor, imagem de ressonância nuclear magnética e exames de
sangue. Em algumas situações, o diagnóstico da esclerose múltipla nas fases iniciais só
consegue ser definido após a biópsia cerebral.

Critérios clínicos de Schumacher et al (1965)


Idade entre dez e cinquenta anos.
Doença localizada na substância branca do sistema nervoso central.
Lesões disseminadas no tempo e no espaço.
Anormalidades objetivas no exame neurológico, com surtos caracterizados por
duração igual ou superior a 24 horas e intervalos superiores a um mês e/ou quadros
progressivos caracterizados por duração igual ou superior a seis meses.
Ausência de outras patologias que justifiquem os sinais e os sintomas.
Investigação com rotina básica de exames.
Parecer de neurologista conhecedor de neurologia clínica.

Critérios do Painel Internacional de McDonald et al (2001) modificados (2010)


Apresentação clínica Dados adicionais necessários para o diagnóstico
Dois ou mais surtos com Diagnóstico definido, sem necessidade de dados adicionais
evidência clínica objetiva de duas Se imagem de ressonância nuclear magnética e avaliação do líquor
ou mais lesões distintas negativos, diagnósticos alternativos devem ser considerados
Dois ou mais surtos com Imagem de ressonância nuclear magnética com disseminação
evidência clínica objetiva de uma espacial com duas ou mais lesões
lesão
Um surto com evidência clínica Imagem de ressonância nuclear magnética com disseminação
objetiva de duas ou mais lesões temporal
Um surto com evidência clínica Imagem de ressonância nuclear magnética com disseminação
de uma lesão (síndrome clínica espacial e temporal
isolada)

Pedro Kallas Curiati 1122


Progressão neurológica insidiosa Progressão contínua por um ano determinada retrospectivamente ou
sugestiva de esclerose múltipla prospectivamente em associação com pelo menos dois dentre
(esclerose múltipla primariamente disseminação espacial no encéfalo, disseminação espacial na medula
progressiva) espinal e líquor com bandas oligoclonais e/ou índice de IgG elevado
Disseminação espacial é caracterizada por uma ou mais lesões hiperintensas em
T2 em pelo menos duas das quatro regiões típicas de acometimento da esclerose
múltipla no sistema nervoso central, que incluem periventricular, justacortical, infra-
tentorial e medular. Em pacientes com síndromes de tronco cerebral ou medula espinal,
lesões sintomáticas em imagem de ressonância nuclear magnética são excluídas do
critério e não contribuem para a contagem de lesões.
Disseminação temporal é caracterizada por imagem de ressonância nuclear
magnética com a presença de lesões assintomáticas com e sem impregnação por
gadolíneo ou por imagem de ressonância nuclear magnética de controle com surgimento
de nova lesão hiperintensa em T2 ou com impregnação por gadolíneo.

Critérios de Barkhof et al (1997) para disseminação espacial


Imagem de ressonância magnética com aquisição em T2 e T1 pós-gadolínio.
Critérios cumulativos, com maior probabilidade de esclerose múltipla quanto
maior o úmero de critérios preenchidos:
- Uma lesão com impregnação pelo gadolíneo ou nove lesões encefálicas,
sendo que lesões medulares são contabilizadas como uma lesão
encefálica;
- Uma lesão infra-tentorial;
- Uma lesão justacortical;
- Três lesões periventriculares;
Para que os critérios tenham uma sensibilidade de 80% é necessário que pelo
menos três dos quatro critérios estejam presentes.

Critérios de Tintoré et al (2000) para disseminação temporal


Em caso de primeira imagem de ressonância nuclear magnética do encéfalo,
adquirida menos de três meses após o evento clínico, deve-se repetir o exame três ou
mais meses após o evento. Se houver lesão com impregnação pelo gadolíneo, o critério
de disseminação temporal estará preenchido. Se não houver lesão com impregnação
pelo gadolíneo, o exame deverá ser repetido três ou mais meses após, sendo uma nova
lesão hiperintensa em T2 ou uma lesão com impregnação por gadolíneo suficientes para
preencher critério de disseminação no tempo.
Em caso de imagem de ressonância magnética feita três ou mais meses após o
evento clínico, a presença de lesão no encéfalo ou na medula espinhal com impregnação
pelo gadolíneo preenche critério de disseminação temporal. Se não houver lesão com
impregnação pelo gadolíneo, imagem de ressonância nuclear magnética deverá ser
repetida três ou mais meses após, sendo uma nova lesão hiperintensa em T2 ou uma
lesão com impregnação pro gadolíneo suficientes para preencher critério de
disseminação no tempo.

Classificação

Síndrome clínica isolada


A denominação de síndrome clínica isolada está relacionada ao aparecimento de
um sintoma e/ou sinal neurológico que sugerem uma lesão do sistema nervoso central.
A síndrome clínica isolada pode ser diagnosticada em indivíduos com várias lesões na

Pedro Kallas Curiati 1123


substância branca, contanto que uma tenha correlação clínica. Essa definição não prevê
a obrigatoriedade de etiologia desmielinizante, de modo que devem ser afastados os
diagnósticos diferenciais.
A síndrome clínica isolada não representa a esclerose múltipla, pois é
monofásica. Há necessidade de ser identificada clinicamente ou por imagem de
ressonância nuclear magnética nova lesão distinta para o diagnóstico de esclerose
múltipla, com disseminação no tempo e no espaço. A acurácia da síndrome clínica
isolada como evento inflamatório idiopático e potencialmente manifestação inicial da
esclerose múltipla depende de exaustiva pesquisa de outras doenças inflamatórias e de
outra natureza.
Aspectos clínicos que sugerem esclerose múltipla incluem presença de
recorrências e remissões, início entre quinze e cinquenta anos de idade, neurite óptica,
sinal de Lhermitte, caracterizado por sensação de choque elétrico pela coluna em
direção caudal desencadeada por flexão da cabeça, oftalmoplegia internuclear, fadiga e
fenômeno de Uhthoff, caracterizado por piora dos sintomas neurológicos em condições
nas quais ocorre aquecimento corporal. Aspectos clínicos que sugerem diagnóstico
alternativo são curso insidioso, início antes dos dez ou após os cinquenta anos de idade,
déficits corticais, como afasia, apraxia e negligência, rigidez, distonia sustentada,
convulsões, demência precoce e déficit com desenvolvimento ao longo de minutos.
Ensaios clínicos randomizados de pacientes com síndrome clínica isolada
revelaram que o tratamento precoce com medicação imunomoduladora pode postergar
ou mesmo prevenir a conversão clínica para esclerose múltipla, sendo indicado em caso
de lesão desmielinizante em imagem de ressonância nuclear magnética. Se a imagem de
ressonância nuclear magnética for normal na avaliação inicial, tratamento não estará
indicado e o exame deverá ser repetido em três a seis meses. Em caso de persistência de
normalidade no exame de imagem, não há necessidade de nova repetição na ausência de
novos sintomas.
Quanto aos indivíduos com síndrome radiológica isolada, com achados de
imagem de ressonância nuclear magnética incidentais sugestivos de esclerose múltipla
na ausência de manifestações clínicas, não há indicação para o uso de drogas
modificadoras do curso da doença.

Variantes da esclerose múltipla


A neurite óptica é considerada uma doença desmielinizante quando não há
nenhuma evidência de doença infecciosa, de doença sistêmica ou de esclerose múltipla.
A neurite óptica desmielinizante pode ocorrer isoladamente, com a denominação de
síndrome clínica isolada, ou como manifestação de esclerose múltipla previamente
diagnosticada. A incidência é maior no sexo feminino e entre vinte e quarenta anos de
idade. O sintoma que define a neurite óptica é a perda visual, caracterizada por
embaçamento, turvação ou escurecimento total ou parcial em horas a dias. O defeito de
campo visual é tipicamente caracterizado como um escotoma central. Quando se
extende para a periferia, sugere lesão compressiva. Quando é altitudinal, sugere
neuropatia óptica isquêmica anterior. O paciente também pode se queixar de dor ocular,
acentuada com a movimentação do globo ocular acometido, que pode preceder a perda
visual em alguns dias. O acometimento é unilateral na maior parte dos indivíduos
adultos. O exame de fundo de olho pode revelar disco óptico normal, disco óptico
edemaciado ou hemorragias peripapilares. A recuperação está na dependência do grau
de lesão instalada na fase aguda. Sem tratamento, o déficit visual começa a melhorar
dentro de semanas e pode continuar ao longo de meses. Neurite óptica recorrente está
relacionada a maior risco de esclerose múltipla. Anticorpo contra a aquaporina-4 é

Pedro Kallas Curiati 1124


preditor de desenvolvimento subsequente de neuromielite óptica, principalmente se
imagem de ressonância nuclear magnética normal. Tratamento do surto agudo com
Metilprednisolona intravenosa em altas doses é indicado em caso de déficit visual
severo ou bilateral ou identificação de lesões de substância branca na imagem de
ressonância nuclear magnética. Não é recomendado o uso de Prednisona por via oral.
Tratamento com imunomoduladores é indicado em caso de identificação de lesões de
substância branca na imagem de ressonância nuclear magnética. O prognóstico visual a
longo prazo não é influenciado pelo tratamento.
A neuromielite óptica (doença de Devic) acomete somente a medula espinal e o
nervo óptico. O diagnóstico é sugerido por lesões na medula espinhal com extensão
longitudinal maior que três corpos vertebrais e ampla extensão transversal, em
associação com neurite óptica, com imagem de ressonância nuclear magnética de
encéfalo normal. A avaliação do líquor revela pleocitose elevada, com número superior
ou igual a 50 células por mm3, aumento de polimorfonucleares eosinófilos e ausência de
bandas oligoclonais. Uma característica da doença recorrente é não apresentar
progressão entre as recidivas, que ocorrem de forma súbita e caracterizadas por
somatória da incapacidade, com evolução para amaurose unilateral, paraparesia severa
ou paraplegia crural e alteração do controle vesical. A falência respiratória é a causa
mais comum de óbito. Com a identificação do anticorpo contra a aquaporina-4, foram
revistos os critérios de diagnóstico para a neuromielite óptica recorrente. Não existem
ensaios clínicos controlados avaliando o tratamento da neuromielite óptica. Surtos
agudos e recorrências de mielite e neurite óptica podem ser tratados com
glicocorticoides seguidos por plasmaférese em caso de refratariedade ou progressão dos
sintomas. Para prevenção dos ataques, imunossupressores podem ser utilizados.
A mielopatia aguda transversa é considerada uma entidade inflamatória que não
tem evolução para a esclerose múltipla e seu diagnóstico, regra geral, é elaborado por
exclusão. Os critérios para o diagnóstico incluem déficit motor, sensitivo e/ou
autonômico decorrente de lesão medular, sinais clínicos de lesão bilateral da medula
simétricos ou não, nível sensitivo clínico bem definido, líquor com pleocitose e duração
dos sintomas entre quatro horas e vinte e um dias. Critérios de exclusão incluem
antecedente de radioterapia nos últimos dez anos, sinais clínicos de trombose de artéria
espinal ou malformação arteriovenosa, mielopatia compressiva observada por imagem
de ressonância magnética, antecedente de neurite óptica, lesão medular no contexto de
doenças infecciosas e clínica ou sorologia sugestivas de doenças inflamatórias
sistêmicas.
Encefalomielite aguda disseminada (ADEM) é uma entidade desmielinizante
que ocorre após infecção viral ou bacteriana ou vacinação, com predomínio nos
extremos de idade. Os vírus identificados como responsáveis pela ADEM incluem os
herpes vírus, o vírus do sarampo, o vírus da caxumba, o vírus da imunodeficiência
humana, os vírus das hepatites, o vírus da dengue e o enterovírus. As bactérias
identificadas como responsáveis pela ADEM incluem Chlamydia spp, Legionella spp,
Borrelia burgdorferi e Listeria spp. O diagnóstico é baseado em sintoma único de
gravidade variável precedido por quadro febril ou vacinação em uma a quatro semanas.
Geralmente há alteração do nível de consciência, confusão mental e cefaleia. Os
sintomas deficitários se instalam no decorrer de três a seis dias com sinais de disfunção
do nervo óptico, do tronco cerebral, da medula espinal ou do hemisfério cerebral. A
imagem de ressonância nuclear magnética revela lesões isoladas globosas e
arredondadas com captação de contraste. No caso da repetição do exame após seis anos,
há desaparecimento de todas as lesões. O líquor apresenta aumento das proteínas e
pleocitose com mais de 50 linfócitos por mm3, com raras bandas oligoclonais

Pedro Kallas Curiati 1125


transitórias quando presentes. A infecção pelo vírus da imunodeficiência humana pode
cursar com desmielinização compatível com a ADEM, merecendo tratamento precoce
com anti-retrovirais juntamente com glicocorticoides. A conversão para esclerose
múltipla é rara e somente a avaliação longitudinal permite a confirmação. Altas doses de
glicocorticoide por via intravenosa na forma de pulso é o esquema terapêutico mais
utilizado e deve ser iniciado o mais breve possível para interromper o processo
inflamatório. Preconiza-se 1g de Metilprednisolona por via intravenosa com infusão em
duas horas uma vez por dia durante três a cinco dias e então Prednisona por via oral
com doses que são reduzidas progressivamente durante três a seis semanas.
Doença de Marburg é caracterizada por desmielinização com acentuada
infiltração de macrófagos, com evolução clínica aguda monofásica fulminante.
Doença de Balo é caracterizada por encefalite periaxial concêntrica e com
características de desmielinização aguda. Na histopatologia, observam-se círculos
concêntricos de desmielinização que se alternam com círculos de mielina normal.

Diagnóstico diferencial
Mielinólise pontina e extrapontina, adrenoleucodistrofia e mielopatia pós-
radiação são doenças crônicas que, apesar de não terem caráter inflamatório, lesam a
mielina e podem apresentar evolução progressiva.
As vasculites sistêmicas, o lúpus eritematoso sistêmico, a doença de Sjögren, a
doença de Behçet e a sarcoidose podem ter comportamento semelhante ao da esclerose
múltipla.
Embolia de origem cardíaca é frequente em jovens, principalmente em
comprometimento valvar reumático, doença de Chagas e endocardite bacteriana.
Doença vascular cerebral também pode estar relacionada a síndrome do anticorpo anti-
fosfolípide.
As mielopatias recorrentes com duração de meses ou anos podem ser
dependentes de malformações vasculares da medula espinal.
Doenças infecciosas que mimetizam a esclerose múltipla incluem sífilis, doença
de Lyme (Borrelia burgdorferi), síndrome da imunodeficiência adquirida, mielopatia
pelo HTLV-1 e leucoencefalopatia multifocal progressiva (vírus JC).
As síndromes paraneoplásicas podem mimetizar a esclerose múltipla, sendo que
os sintomas neurológicos precedem por vezes o aparecimento da neoplasia.
Malformações venosas encefálicas ou medulares podem simular a ocorrência de
esclerose múltipla.
Doenças carenciais, como a mielose funicular por deficiência de vitamina B12
ou ácido fólico, que podem envolver tratos mielinizados da medula, simulam a
esclerose múltipla.
Linfoma do sistema nervoso central apresenta lesão ou lesões hiperintensas nas
aquisições T2 e FLAIR em região periventricular que simulam desmielinização.
Doenças degenerativas, como paraplegias espástica e ataxias hereditárias, são de
diagnóstico diferencial difícil.

Tratamento
O tratamento da esclerose múltipla pode ser dividido em tratamento dos surtos e
tratamento profilático da esclerose múltipla recorrente-remitente.

Tratamento dos surtos


Indicações de tratamento incluem sintomas debilitantes com evidência objetiva
de lesão neurológica, como déficit visual, déficit motor e síndrome cerebelar.

Pedro Kallas Curiati 1126


Manifestações sensitivas leves geralmente não são tratadas da mesma forma, podendo
necessitar apenas de medicação para alívio dos sintomas.
A utilização dos glicocorticoides para o controle dos surtos pode ser conduzida
com pulsos por via oral ou intravenosa ou com esquemas regressivos prolongados com
duração de quinze a trinta dias por via oral, intramuscular ou intravenosa, com efeito
benéfico na redução do déficit funcional e do tempo de duração dos sintomas.
Glicocorticoides por via oral em baixas doses não devem ser oferecidos a pacientes com
neurite óptica aguda. Preconiza-se Metilprednisolona 500-1000g/dia por via intravenosa
com infusão em duas horas durante três a sete dias seguida ou não por Prednisona por
via oral com dose inicial de 1mg/kg/dia e redução gradual durante quatorze dias. Deve-
se excluir a presença de infecção ativa antes do início do tratamento.
Aproximadamente metade dos pacientes não se recupera satisfatoriamente dos
surtos mais graves apesar do uso dos glicocorticoides. Nesses casos, recomenda-se o
uso de plasmaférese. Outras opções incluem imunoglobulina intravenosa ou
imunossupressores, mas as respostas clínicas a esses procedimentos foram
contraditórias e poucos ensaios clínicos existem para que se estabeleçam rotinas
terapêuticas nessas raras situações.
Os surtos sensitivos com pequena expressão clínica em pacientes que recebem
drogas imunossupressoras podem ser tratados com Dexametasona na dose de 16mg por
dia durante cinco dias ou medicação sintomática.

Tratamento da forma recorrente-remitente


Os imunomoduladores são as drogas de escolha para o tratamento da esclerose
múltipla recorrente-remitente e são indicados para todos os pacientes após o
diagnóstico.
A decisão quanto ao início do tratamento deve ser julgada individualmente
considerando que o benefício das drogas imunomoduladoras na esclerose múltipla é
modesto, as medidas das taxas de recorrência e gravidade da doença nos ensaios
terapêuticos têm relação incerta com a incapacidade causada pela doença a longo prazo,
não há dados que mostrem que o tratamento modifica o tempo para o desenvolvimento
da forma secundariamente progressiva, alguns pacientes desenvolvem importantes
efeitos colaterais das drogas e alguns pacientes têm curso benigno mesmo sem qualquer
terapêutica específica.
O tratamento imunomodulador pode ser considerado após a primeira crise desde
que o diagnóstico de esclerose múltipla seja estabelecido conforme critérios definidos
pelo Painel Internacional de McDonald et al, em pacientes com esclerose múltipla
recorrente-remitente e em pacientes com esclerose múltipla secundariamente
progressiva com surtos.
O paciente deve se submeter a avaliações periódicas, incluindo exame
hematológico e da função hepática.
Não há imunomodulador de escolha. Na ausência de evidências favorecendo o
uso de um determinado imunomodulador, o custo do tratamento deve ser considerado.
Os Interferons podem apresentar maior antigenicidade e, portanto, maior produção de
anticorpos neutralizantes, o que ocorre com maior frequência com Interferon-beta 1b
subcutâneo e com menor frequência com o Interferon-beta 1a intramuscular. Não há
evidência que o Acetato de Glatirâmer induza a produção de anticorpos neutralizantes.
Os efeitos biológicos dos anticorpos neutralizantes ainda são incertos, mas sua presença
pode estar relacionada à redução de eficácia da droga.
Hemograma completo, função hepática e função tireoidiana devem ser
monitorizados durante o tratamento com Interferon, idealmente uma vez por mês nos

Pedro Kallas Curiati 1127


primeiros seis meses, com redução da dose em 50% em caso de leucopenia ou elevação
persistente de transaminases para três a cinco vezes o limite superior da normalidade.
Não é necessária monitorização laboratorial durante o tratamento com Acetato de
Glatirâmer.
As mulheres em idade fértil em uso de Interferon devem usar métodos
contraceptivos seguros e a medicação deve ser interrompida em caso de planejamento
de gestação. Não foram encontrados em animais efeitos nocivos do Acetato de
Glatirâmer durante a gestação. Durante a gestação, medicação imunomoduladora é
suspensa e surtos são tratados com glicocorticoides.
O agente imunomodulador não deve ser interrompido durante o tratamento de
um surto da doença.
A terapêutica combinada, com drogas imunomoduladoras associadas a
imunossupressores, em casos de esclerose múltipla recorrente-remitente, pode ser
aceitável na forma de pulsos ou de administração contínua. Não há imunossupressor
mais eficiente para uso nas formas agressivas de esclerose múltipla recorrente-
remitente. As respostas são individuais e deve ser escolhida a medicação de menor
efeito colateral e eficácia mais prolongada.
O desenvolvimento da terapia imunológica evoluiu para a elaboração de
moléculas complexas, os anticorpos monoclonais, que estabilizam a atividade
inflamatória por bloqueio de receptores de interleucinas ou antígenos de membrana de
linfócitos. A ação desses anticorpos monoclonais é duradoura, porém os efeitos
colaterais são fatores que limitam o uso. Estão em estudo Natalizumab, anticorpo
monoclonal anti-VLA4, que impede a migração dos linfócitos pela barreira
hematoencefálica, Alentuzumab, anticorpo monoclonal anti-CD52, que determina
linfopenia prolongada, Daclizumab, anticorpo monoclonal anti-CD25, que interrompe a
ativação dos linfócitos, Rituximab, anticorpo monoclonal anti-CD20, que reduz a
atividade dos plasmócitos, Ocrelizumab, anticorpo monoclonal anti-CD20, que se liga a
epítopo difererente do Rituximab, e Fingolimod, molécula modificadora da atividade
linfocitária, que induz internalização aberrante de receptores de timócitos e linfócitos.
Em suma, recomenda-se iniciar o tratamento de pacientes recém-diagnosticados
com Interferon-beta, Acetato de Glatirâmer ou Fingolimod. O tratamento deve ser
continuado por prazo indeterminado a menos que haja evidências de sua ineficácia, de
efeitos colaterais intoleráveis ou de riscos em sua continuação. Para pacientes com
doença altamente ativa e resposta insatisfatória ao tratamento inicial, opções incluem
associação de pulso mensal de Metilprednisolona ou uso de Natalizumab em
monoterapia.

Tratamento das formas progressivas


Nenhuma droga se mostrou eficaz no tratamento da esclerose múltipla
primariamente progressiva até o momento. Tratamento empírico pode ser realizado com
Metilprednisolona intravenosa em pulsos, Metotrexato oral ou subcutâneo, Cladribina
oral ou subcutânea e Mitoxantrone intravenoso.
O Interferon-beta 1b é útil na esclerose múltipla secundariamente progressiva
com surtos, enquanto que na forma sem surtos sua eficácia é incerta. Outras medicações
com potencial benefício incluem Metotrexato oral ou subcutâneo, Ciclofosfamida
intravenosa em pulsos e Metilprednisolona intravenosa em pulsos.

Drogas imunomoduladoras
Interferon-beta 1b Interferon-beta 1a Interferon- Acetato de
beta 1a Glatirâmer

Pedro Kallas Curiati 1128


Nome Betaferon® Avonex® Rebif® Copaxone®
comercial
Origem Escherichia coli Ovário de hamster Polipeptídeo
sintético
Apresentação Solução injetável Solução injetável Seringas de Frasco-ampola com
reconstituída com reconstituída com 22mg e 44mg 20mg e água para
0.25mg/8x106UI/mL 30mcg/6x106UI/mL Frasco- injeção 1mL
ampola com
pó liofilizado
e diluente
com 11mg e
44mg
Dose 0.25mg (8x106UI) 30mcg (6x106UI) 22-44mcg (6- 20mg
12x106UI)
Via de Subcutânea Intramuscular Subcutânea Subcutânea
administração
Frequência de Em dias alternados Uma vez por semana Três vezes Uma vez por dia
administração por semana
Indicações Esclerose múltipla Esclerose múltipla recorrente-remitente
recorrente-remitente ou
secundariamente
progressiva com surtos
Contra- Gravidez, depressão, ideação suicida, epilepsia não-controlada, Hipersensibilidade
indicações insuficiência hepática, hipersensibilidade à droga, à droga
hipersensibilidade à albumina humana
Efeitos Reações locais, síndrome gripal, aumento de espasticidade, Reações locais
adversos linfopenia, depressão, ideação suicida

Drogas imunossupressoras
Azatioprina Ciclofosfamida Mitoxantrone Metotrexate Cladribina Fludaribina
Apresentação Comprimidos Frasco-ampola Solução Comprimidos de Frasco-ampola Frasco-ampola
de 50mg com injetável 2.5mg com 1mg/mL com 50mg de pó
1000mg/75mL 20mg/10mL liofilizado
e 200mg/20mL injetável
Dose 2.5-3.0mg/kg 800mg/m2 12mg/m2, 7.5-10mg 0.07mg/kg 20-30mg/m2/dia
cumulativa durante cinco
inferior a dias
140mg/m2
Via de Oral Intravenosa Intravenosa Oral Intravenosa Intravenosa
administração
Frequência Diária Mensal Trimestral ou Semanal Mensal, com Mensal, com
mensal ajuste individual ajuste individual
Indicação Esclerose Esclerose Esclerose Esclerose Esclerose Esclerose
múltipla múltipla múltipla múltipla múltipla múltipla
recorrente- recorrente- recorrente- secundariamente recorrente- recorrente-
remitente remitente grave remitente grave progressiva remitente grave remitente grave
ou com falha ou ou ou
do uso de secundariamente secundariamente secundariamente
Interferon progressiva progressiva progressiva
Contra- Gestação, Gestação, Gestação, Gestação, Gestação, Gestação,
indicações doença doença doença cardíaca doença hepática doença hepática doença hepática
hepática hepática ou
renal
Efeitos Linfoma, Linfoma, Linfopenia, Linfopenia, Linfopenia, Linfopenia,
adversos neoplasias neoplasias lesão cardíaca neoplasias neoplasias neoplasias

Tratamento sintomático
Os sintomas são tratados individualmente e paralelamente ao tratamento com
drogas que mudam a evolução natural da doença.
Em caso de déficits motores, recomenda-se a elaboração por fisiatras de planos
de fisioterapia motora.
Em caso de déficits sensitivos, o paciente deve ser orientado quanto a possíveis

Pedro Kallas Curiati 1129


ferimentos e queimaduras, além de calçados adequados. Para controle de sintomas
álgicos, está recomendado o uso de Carbamazepina, apresentada na forma de
comprimidos de 200mg e 400mg, com dose inicial de 100mg três vezes ao dia e ajustes
individuais, Fenitoína, apresentada na forma de comprimidos de 100mg, com dose
inicial de 100mg duas a três vezes ao dia e ajustes individuais, ou Gabapentina,
apresentada na forma de cápsulas de 300mg e 400mg, com dose inicial de 300mg três
vezes ao dia e ajustes individuais.
Quando as dores são acompanhadas por espasmos, deve-se associar Baclofeno,
apresentado na forma de comprimidos de 10mg, com dose inicial de 5-10mg duas a três
vezes ao dia e ajustes até dose máxima diária de 120mg. Outro medicamento que pode
ser associado é Tizanidina, apresentada na forma de comprimidos de 2mg e 4mg, com
dose inicial de 2mg duas a três vezes ao dia e dose máxima de 36mg/dia. Dentre os
benzodiazepínicos, o Clonazepam, apresentado na forma de comprimidos de 0.50mg e
2mg, comprimidos sublinguais de 0.25mg e gotas com 2.5mg/mL (0.1mg/gota), na dose
de 0.25-0.50mg três a quatro vezes ao dia, reduz as dores e a espasticidade. Deve-se
ajustar a dose individualmente levando em consideração os possíveis efeitos adversos,
como hipotonia e sonolência.
As dores trigeminais devem ser tratadas inicialmente com Carbamazepina e se
não apresentarem melhora deve-se recorrer à Gabapentina e à Fenitoína antes da
indicação de rizotomia percutânea por radiofrequência.
A dor relacionada à neurite óptica geralmente cede com o uso de corticosteroide.
Na ocorrência de fortes dores, os medicamentos indicados incluem analgésicos e anti-
inflamatórios não-hormonais. Alguns pacientes descrevem lampejos ou brilhos em raios
quando modificam a posição do olhar, com indicação de Carbamazepina, Gabapentina
ou Clonazepam.
Para a postura espástica de membros está recomendado o uso de infiltração com
toxina botulínica do tipo A, válido para grupos musculares pequenos ou médios e com
duração de três ou quatro meses.
O tremor é comumente tratado com Primidona, apresentada na forma de
comprimidos de 100mg e 250mg, com dose inicial de 50mg duas a três vezes ao dia e
aumento na dependência dos efeitos colaterais. Benzodiazepínicos, especialmente o
Clonazepam na dose de 0.5mg três vezes ao dia, são bem tolerados. β-bloqueadores,
como Propranolol 20mg duas vezes ao dia, podem reduzir parcialmente o tremor. Na
ausência de resposta aos medicamentos propostos, deve ser indicada a talamotomia
estereotática contralateral ao membro que apresenta o tremor mais incapacitante.
Na fadiga, a resposta terapêutica por vezes é modesta e não é duradoura. As
drogas de escolha, quando não há depressão, são a Amantadina, apresentada na forma
de comprimidos de 100mg, na dose de 100-300mg/dia em duas a três tomadas, com
cautela em caso de insuficiência renal e epilepsia, e o Modafinil, apresentado na forma
de comprimidos de 200mg, na dose de 100mg duas vezes ao dia. Sertralina e derivados
tricíclicos são eficientes para o controle sintomático da fadiga quando há sinais de
depressão.
Avaliação do volume urinário residual com ultrassonografia deve ser realizada
em todos os pacientes com esclerose múltipla. Em caso de distúrbio dos esfíncteres, a
terapêutica deve ser precedida de um exame urodinâmico. Hiperatividade do detrusor
pode ser controlada com restrição hídrica, treinamento vesical e uso de anticolinérgicos,
como o Cloreto de Oxibutinina, apresentado na forma de 5mg e xarope com 1mg/mL,
com dose de 2.5-5.0mg uma a três vezes ao dia. O aumento das doses deve ser feito de
maneira cuidadosa para evitar retenção urinária e necessidade de sondagem uretral. A
incontinência ocasional pode ser controlada com Imipramina ou outro derivado

Pedro Kallas Curiati 1130


tricíclico em doses de 50-75mg uma vez ao dia. A retenção urinária pode ser controlada
com uso de benzodiazepínicos ou relaxante muscular para reduzir o impacto do
espasmo do esfíncter uretral e permitir um esvaziamento completo. Na impossibilidade
desse controle, deve-se utilizar o cateterismo intermitente ou a aplicação de toxina
botulínica na musculatura do assoalho pélvico.
A disfunção do hábito intestinal é muito frequente. Antiácidos, anticolinérgico,
antidepressivos, analgésicos e anti-inflamatórios não-hormonais são agravantes da
obstipação. A utilização de laxantes por via oral, enema, supositórios ou mesmo
extração mecânica se faz necessária sistematicamente e com periodicidade para evitar a
ocorrência de fecaloma.
A libido está prejudicada e ocorre disfunção erétil e da lubrificação vaginal,
dificultando o ato sexual. A ocorrência de ansiedade, depressão, espasmos de membros
inferiores, incontinência urinária e/ou fecal, perda da sensibilidade na região pudenda,
disestesias em membros inferiores e fadiga também prejudicam a relação sexual. Por se
tratar de disfunção multifatorial, o tratamento deve ser medicamentoso aliado a
orientações especializadas, que incluem psicólogos e urologistas.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 6: doenças dos olhos, doenças dos ouvidos, nariz e garganta, neurologia, transtornos mentais. – Barueri, SP:
Manole, 2009.
Clinically isolated syndromes suggestive of multiple sclerosis. Michael J Olek. UpToDate, 2012.
Comorbid problems associated with multiple sclerosis in adults. Michael J Olek. UpToDate, 2012.
Epidemiology and clinical features of multiple sclerosis in adults. Michael J Olek. UpToDate, 2012.
Diagnosis of multiple sclerosis in adults. Michael J Olek. UpToDate, 2012.
Treatment of acute exacerbations of multiple sclerosis in adults. Michael J Olek. UpToDate, 2012.
Treatment of relapsing-remitting multiple sclerosis in adults. Michael J Olek. UpToDate, 2012.
Treatment of progressive multiple sclerosis in adults. Michael J Olek. UpToDate, 2012.
Optic neuritis: Pathophysiology, clinical features, and diagnosis. Benjamin Osborne and Laura J Balcer. UpToDate, 2012.
Optic neuritis: Prognosis and treatment. Benjamin Osborne and Laura J Balcer. UpToDate, 2012.

Pedro Kallas Curiati 1131


INFECÇÕES DO SISTEMA
NERVOSO CENTRAL
Processos infecciosos agudos

1. Meningites bacterianas

Etiologia e epidemiologia
Atualmente os principais agentes, em ordem decrescente de frequência, são S.
pneumoniae, N. meningitidis, S. agalactiae, L. monocytogenes e H. influenzae do tipo
b. Outros agentes etiológicos, como enterobactérias e estafilococos, são muito mais
raros e costumam acometer pacientes nas fases inicial ou terminal da vida.
Meningite meningocócica pode ser suspeitada em situação de epidemia, quando
a evolução for muito rápida e desfavorável, quando o quadro clínico se iniciar com
petéquias, exantema, grandes equimoses ou palidez acentuada das extremidades e
quando houver colapso circulatório. Meningite pneumocócica é frequentemente
acompanhada por infecção pulmonar, otite ou sinusite. Meningite por H. influenzae é
frequentemente acompanhada de infecção em vias aéreas superiores, sobretudo em
crianças.
Estreptococos do grupo B ocorrem habitualmente em crianças com menos de um
mês de vida, sendo responsáveis pela maior parte das meningites bacterianas nessa faixa
etária.
Pacientes com sistemas de derivação do trânsito do líquor ou em pós-operatório
neurocirúrgico apresentam frequentemente meningites por estafilococos ou bacilos
Gram-negativos. Doentes com abscessos cerebrais, doenças linfoproliferativas ou
mieloproliferativas, colagenoses, processos infecciosos ou tumorais dos ossos do crânio
ou metástases cerebrais apresentam suscetibilidade aumentada para meningites por
Listeria sp, Acinetobacter sp e Pseudomonas sp. Em pacientes imunodeprimidos deve
ser sempre considerada a possibilidade de tratar-se de meningite por L. monocytogenes.
A mortalidade da meningite por N. meningitidis e por H. influenzae varia de 5%
a 15%, enquanto que nas meningites por S. pneumoniae situa-se entre 15% e 30%.
Poucos pacientes que se recuperam de meningite meningocócica apresentam sequelas,
enquanto que cerca de 10% dos pacientes que se recuperam de meningites por H.
influenzae e 30% dos que sobrevivem de meningite por pneumococos podem apresentar
problemas neurológicos.

Quadro clínico
Síndrome da hipertensão intracraniana é caracterizada por cefaleia intensa,
náusea, vômitos e certo grau de confusão mental. Habitualmente os vômitos são
precedidos por náusea, de modo que a ocorrência clássica de vômitos em jato é
observada apenas esporadicamente.
Síndrome toxêmica é caracterizada por sinais gerais de toxemia, incluindo febre
alta, mal-estar e agitação psicomotora. É frequente o achado de dissociação entre pulso,
que se altera pouco, e temperatura, que atinge níveis elevados.
Síndrome da irritação meníngea é caracterizada por rigidez de nuca e sinais de
Kernig, Brudzinski e Laségue.
A presença de duas dentre as três síndromes sugere meningite aguda.

Pedro Kallas Curiati 1132


Diagnóstico
A confirmação diagnóstica das meningites bacterianas é feita pelo exame do
líquido cefalorraquidiano. Os primeiros parâmetros avaliados são o aspecto do líquor e a
pressão de abertura. As principais alterações são aumento da pressão do líquor,
pleocitose, predomínio absoluto de polimorfonucleares, proteínas totais elevadas
geralmente acima de 100mg/dL, taxas de glicose muito baixas, geralmente inferiores a
10mg/dL, e identificação de bactérias no sedimento da amostra ao exame direto através
do método de Gram. Culturas do sedimento são positivas em cerca de 70-90% e
pesquisa de antígenos bacterianos pode ser feita por provas de aglutinação em látex.
Exames radiológicos, sobretudo a tomografia computadorizada de crânio, não
são os exames de escolha para o diagnóstico das meningites. No entanto, devem
preceder a punção liquórica quando predomina o quadro de hipertensão intracraniana,
quando há crises convulsivas na fase inicial do quadro e quando há sinais localizatórios.
Devem ser colhidos exames gerais, como hemograma, dosagem de proteína C
reativa e hemoculturas.

Tratamento
As meningites bacterianas devem ser encaradas como emergências médicas. Por
esse motivo, frequentemente é necessário iniciar o tratamento antibiótico antes de
conhecer o agente etiológico e internar o paciente em unidade de terapia intensiva com
isolamento respiratório. Cuidados incluem cabeceira elevada a 30º e monitorização de
ritmo cardíaco, pressão arterial, temperatura, glicose capilar, frequência cardíaca e
frequência respiratória.
Idade Agentes mais prováveis Esquema de escolha
Inferior a S. agalactiae, L. Ampicilina 75mg/kg de 6/6 horas associada a
três meses monocytogenes, E. coli, S. Ceftriaxone 50-75mg/kg de 12/12 horas ou a
pneumoniae Cefotaxime 50-75mg/kg de 6/6 horas
3 meses a 18 N. meningitidis, S. pneumoniae, Ceftriaxone 50-75mg/kg ou 2g de 12/12 horas
anos H. influenzae
18 a 50 anos S. pneumoniae, N. meningitidis, Ceftriaxone 2g de 12/12 horas
H. influenzae
Superior a S. pneumoniae, L. Ampicilina 2g de 4/4 horas associada a Ceftriaxone 2g
50 anos monocytogenes, bacilos Gram- de 12/12 horas
negativos
Na faixa etária superior a três meses de idade, deve-se acrescentar Vancomicina
em áreas com mais de 2% de pneumococos altamente resistentes.
Agente etiológico Esquema de escolha Esquema alternativo Duração do
tratamento
H. influenzae Ceftriaxone ou Cefotaxime Cloranfenicol 7-10 dias
N. meningitidis Penicilina G Cristalina ou Ceftriaxone, Cefotaxime ou 7-10 dias
Ampicilina Cloranfenicol
S. pneumoniae Ceftriaxone ou Cefotaxime Penicilina G Cristalina ou 10-14 dias
com CIM < 0.1 Meropenem
S. pneumoniae Ceftriaxone ou Cefotaxime Trocar Vancomicina por 10-14 dias
com CIM ≥ 0.1 associados a Vancomicina Rifampicina ou usar Vancomicina
isoladamente
S. agalactiae Penicilina G Cristalina ou Vancomicina 14-21 dias
Ampicilina
L. monocytogenes Ampicilina associada a Sulfametoxazol-Trimetoprim 14-21 dias
Gentamicina
Tem sido preconizado o uso sistemático de corticosteroides no tratamento das

Pedro Kallas Curiati 1133


meningites bacterianas agudas, com Dexametasona 0.15mg/kg ou 10mg de 6/6 horas
durante quatro dias, com início entre quinze e trinta minutos antes da primeira dose ou,
no máximo, acompanhando a primeira dose de antibióticos. Notificação deve ser feita
no momento da suspeita de meningite.
As meningites meningocócicas e por H. influenzae podem ser prevenidas pela
erradicação do estado de portador, indicada para os contactantes íntimos do caso índice.
Os contactantes íntimos são definidos como residentes do mesmo domicílio, indivíduos
com contato superior a quatro horas por dia nos últimos sete dias ou a oito horas
consecutivas nos últimos sete dias, pessoas que trocaram beijo na boca nos últimos sete
dias, contatos de creche, contatos da sala de aula quando dois ou mais casos ocorreram
em seis meses e habitantes de comunidade fechada. Devem ser submetidos a
quimioprofilaxia, com início, idealmente, nas primeiras 24 horas. Em caso de meningite
meningocócica, opções incluem Rifampicina 600mg de 12/12 horas por via oral durante
dois dias, Ceftriaxone 250mg por via intramuscular em dose única e Ciprofloxacino
500mg por via oral em dose única. Em caso de meningite por H. influenzae, opções
incluem Rifampicina 600mg uma vez ao dia por via oral durante quatro dias ou
Ciprofloxacino 500mg por via oral em dose única. Em crianças, a dose de Rifampicina é
de 5mg/kg antes de um mês de idade e 10mg/kg após essa idade.

Prescrição
- Dieta geral ou jejum conforme a condição clínica do paciente;
- Soro fisiológico 1000mL por via intravenosa de 8/8 horas ou soro de
manutenção basal se jejum;
- Ceftriaxone 2g de 12/12 horas por via intravenosa;
- Ampicilina 2g de 4/4 horas por via intravenosa se idade superior a cinquenta
anos;
- Dexametasona 0.15mg/kg por via intravenosa no ato da administração da
primeira dose de Ceftriaxone e de 6/6 horas durante quatro dias;
- Controle de glicose capilar, com Insulina Regular por via subcutânea e Soro
Glicosado a 5% por via intravenosa conforme protocolo;
- Repouso no leito, com cabeceira elevada a 30º;
- Monitorização contínua de ritmo cardíaco, frequência cardíaca, frequência
respiratória, pressão arterial, temperatura e oximetria;
- Isolamento respiratório para gotículas;
- Notificação da suspeita de meningite bacteriana e convocação de contactantes;
- Internação em unidade de terapia intensiva;

Evolução
Nas primeiras quatro a seis horas deve haver melhora significativa do quadro de
confusão mental. Entre seis e doze horas costuma diminuir a febre. Os sinais de irritação
meníngea melhoram mais tardiamente, geralmente depois de alguns dias.
Classicamente, o segundo exame do líquor deve ser feito cerca de 72 horas após
o primeiro. Na prática, quando o quadro clínico apresenta melhora muito expressiva e
os sinais infecciosos regridem quase por completo em três a quatro dias, pode ser
dispensada a segunda coleta.
As principais complicações são os abscessos cerebrais, as coleções subdurais e
as ventriculites, que devem ser suspeitados quando a melhora clínica não ocorre como
esperado, o paciente apresenta piora do nível de consciência, ocorrem crises
convulsivas, surgem sinais focais no exame neurológico ou o exame de líquor exibe
evolução mais lenta do que o esperado ou sinais de piora. Nessas eventualidades,

Pedro Kallas Curiati 1134


impõem-se a utilização de recursos de neuroimagem.

2. Meningites virais
Enterovírus, vírus herpes simples, varicela zoster e Epstein-Barr são
responsáveis por cerca de 95% das meningites virais. Dentre os enterovírus estão
incluídos echovírus, poliovírus e coxsackievírus.
O quadro infeccioso é relativamente semelhante ao das meningites bacterianas
agudas, porém menos intenso.
O diagnóstico é feito pelo exame do líquor. Classicamente há aumento do
número de células, geralmente inferior a 500/mm3, predomínio de linfomononucleares,
proteinorraquia e glicorraquia dentro dos limites da normalidade e pesquisa de bactérias
e fungos negativa. O número de células pode ultrapassar 1000/mm3, especialmente na
caxumba. Alguns vírus podem ocasionar resposta inicial mediada por
polimorfonucleares nas primeiras 48 horas. Aumentos discretos da concentração
proteica podem ocorrer mais tardiamente.
A etiologia viral pode ser confirmada através da cultura para vírus ou, mais
frequentemente, pela reação em cadeia da polimerase. A pesquisa etiológica nas
meningites virais é restrita às formas mais graves e menos típicas. Exames de
neuroimagem são normais.
O tratamento é sintomático, reservando-se o uso de corticosteroides para os
casos em que a resposta inflamatória é intensa e mantida e/ou acompanhada por
hipertensão intracraniana com manifestações clínicas importantes. Quando o exame do
líquor por ocasião do diagnóstico evidencia a participação de polimorfonucleares em
percentuais elevados, preconiza-se assumir a etiologia bacteriana para fins de
tratamento e repetir o exame em 24 horas, com possibilidade de suspensão dos
antibióticos se diminuição drástica do percentual de neutrófilos.
Na vigência de quadros mais agressivos ou mais frequentes determinados pelo
herpes simples 2 ou pelo vírus varicela zoster é indicado o tratamento com Aciclovir em
doses semelhantes àquelas utilizadas para a meningoencefalite herpética.

3. Encefalites virais
Encefalite é uma infecção aguda do parênquima cerebral que se caracteriza
clinicamente por febre, cefaleia e alterações da consciência. Pode haver também sinais
de acometimento neurológico focal ou multifocal e crises convulsivas parciais ou
generalizadas.
Em pacientes sem síndrome da imunodeficiência adquirida, as causas mais
frequentes de encefalite são o vírus herpes simples tipo 1, o vírus herpes simples tipo 2
em recém nascidos e os arbovírus.
A encefalomielite aguda disseminada pós-infecciosa pode assemelhar-se, na
apresentação clínica, a uma encefalite viral. É doença aguda desmielinizante que
acomete o encéfalo, o nervo óptico e a medula espinhal. Ocorre geralmente alguns dias
ou semanas após infecção do trato respiratório ou após vacinação.

3.1. Meningoencefalite herpética

Etiologia e fisiopatologia
O vírus herpes simples tipo 1 é o agente causal da encefalite aguda esporádica
mais frequente no mundo ocidental, com distribuição universal. 6-15% dos casos são
causados pelo vírus herpes simples tipo 2, que é o principal agente em recém-nascidos.
A infecção primária acontece habitualmente na mucosa da orofaringe e, na

Pedro Kallas Curiati 1135


maioria das vezes, é assintomática. Na forma sintomática, ocorrem febre, dor e
dificuldade de deglutição devido às lesões na mucosa oral e nas gengivas, com duração
de duas a três semanas. Depois da infecção primária, o vírus migra retrogradamente
através de ramos do nervo trigêmeo até atingir o gânglio de Gasser, onde permanece em
forma latente.
Aproximadamente um terço dos pacientes apresenta a infecção viral primária,
enquanto que em 70% dos casos a reativação da forma latente com replicação maciça do
vírus leva à encefalite viral, com acometimento de estruturas do tronco cerebral ou,
mais frequentemente, dos lobos temporais e do sistema límbico.
A meningoencefalite herpética costuma estar relacionada a algum grau de
imunodepressão. Fatores desencadeantes podem incluir estresse, privação alimentar e
exposição exagerada à luz solar.

Quadro clínico e diagnóstico


Os sinais e sintomas habituais são febre, cefaleia, confusão mental e alterações
do comportamento. Com muita frequência, associam-se crises convulsivas focais ou
generalizadas e quadros deficitários, como disfasia e hemiparesia. Os sintomas atingem
sua expressão máxima em duas a três semanas. O diagnóstico é feito através de
neuroimagem, exame do líquor e eletroencefalograma.
A tomografia computadorizada e a ressonância magnética
evidenciam o envolvimento assimétrico, unilateral ou bilateral, dos
lobos temporais e da superfície orbitária dos lobos frontais, que
pode se estender para córtex insular, convexidade cerebral e córtex
occipital. O giro do cíngulo pode ser comprometido mais
tardiamente. O exame de escolha em neuroimagem é a ressonância
nuclear magnética, que pode ser normal nas fases iniciais da doença
ou revelar lesões com hipersinal em T2 nos giros temporais médio
e inferior, podendo estender-se até a ínsula. As sequências FLAIR e difusão são as mais
sensíveis para a caracterização das lesões. Focos subagudos de hemorragia e quebra da
barreira hematoencefálica podem ser encontrados. O exame do líquor pode revelar
hipertensão, pleocitose linfomononuclear, celularidade de 5-500/mm3, aumento discreto
ou moderado da proteinorraquia, glicose normal ou discretamente diminuída, aumento
da atividade de adenosina-deaminase e presença ocasional de hemácias ou xantocromia,
com diagnóstico de certeza feito através de reação em cadeia da polimerase, que é o
exame padrão-ouro durante a primeira semana, ou de sorologia específica no sangue e
no líquor. A pesquisa de anticorpos específicos deve ser feita no soro e no líquor
simultaneamente desde a fase aguda e pode revelar aumento significativo dos títulos ou
produção local específica a partir de oito a doze dias do início do quadro. A ocorrência
de atividade periódica no eletroencefalograma também auxilia no diagnóstico.

Tratamento
O tratamento recomendado é Aciclovir 10mg/kg de 8/8 horas por via intravenosa
durante duas a três semanas. Preconiza-se internação em unidade de terapia intensiva. É
necessário monitorizar a função renal e corrigir a dose da medicação para o clearance
de creatinina, quando necessário.
Em raros casos de hipertensão intracraniana com falência de resposta ao
tratamento clínico, poderá ser indicada cirurgia descompressiva após introdução de
cateter para medida da pressão intracraniana.
A abordagem é semelhante em caso de encefalite pelo vírus varicela zoster.

Pedro Kallas Curiati 1136


Outros processos meníngeos agudos

Hemorragias meníngeas
A presença de sangue no sistema liquórico costuma produzir reação
inflamatória, aumento do número de células, valores percentuais variados de neutrófilos
e, tipicamente, a presença de macrófagos com hemácias ou pigmentos derivados do
heme no seu citoplasma. Não há diminuição das taxas de glicose e não são detectados
agentes etiológicos de natureza infecciosa. O tratamento clínico restringe-se ao uso de
corticosteroides com a finalidade de reduzir a intensidade da resposta inflamatória.

Meningismo
A injeção de quimioterápicos, contrastes radiológicos ou radioisótopos no
sistema liquórico pode desencadear fenômenos irritativos nas meninges, por vezes com
presença marcante de polimorfonucleares. São fenômenos de curta duração, mas que
devem ser sempre considerados cuidadosamente devido à possibilidade de
contaminação do material injetado ou de coexistência de processo infeccioso.

Processos infecciosos subagudos

1. Neurotuberculose
Embora outras micobactérias, como M. bovis e M. africanus, possam causar a
doença no ser humano e o M. avium seja um agente oportunista importante, a
neurotuberculose é provocada na maioria das vezes pelo Mycobacterium tuberculosis ou
bacilo de Koch.
Os granulomas caseosos formados precocemente no sistema nervoso central
podem romper-se para o espaço subaracnóideo e causar meningite tuberculosa. Podem
também ocupar o parênquima cerebral e causar os granulomas ou, menos
frequentemente, os abscessos tuberculosos.

1.1. Meningoencefalite tuberculosa

Quadro clínico
A meningoencefalite tuberculosa é a forma mais frequente de neurotuberculose e
é a sua complicação mais grave. No estágio inicial, o paciente não apresenta alterações
cognitivas nem do estado de consciência e não há alterações detectáveis ao exame
neurológico. A seguir, o paciente pode apresentar algum grau de confusão mental e
podem aparecer sinais de localização, como hemiparesia e acometimento isolado de um
nervo craniano. No último estágio, o paciente evolui com torpor e coma e pode
apresentar acometimento de múltiplos nervos cranianos e hemiplegia ou paraplegia.
Em cerca de um quarto dos pacientes há acometimento de nervos cranianos,
principalmente o VI nervo e, menos frequentemente, o III, o IV, o VII e o VIII nervos.
Raramente o acometimento é bilateral. Hemiparesia, papiledema e convulsões ocorrem
em cerca de 10-15% e tubérculos na coroide podem ser visualizados ao exame de fundo
de olho em cerca de 10%.
Em adultos, as manifestações iniciais podem ser semelhantes às das meningites
agudas, com elementos das três síndromes clássicas. Em crianças, cefaleia ocorre
raramente, hidrocefalia é muito frequente e ocasionalmente pode haver dor abdominal e
obstipação intestinal.
É característica a ocorrência de período prodrômico de duas a quatro semanas
antes do aparecimento da sintomatologia neurológica, com sinais inespecíficos, como

Pedro Kallas Curiati 1137


fadiga, mal-estar, mialgia e febre. Nessa fase o paciente costuma ter infecções do trato
respiratório prolongadas ou de repetição, geralmente com desproporção entre os sinais
objetivos de infecção e a persistência de febre, irritabilidade e letargia.
Alterações de radiografia de tórax, teste cutâneo positivo e história de contato
com pacientes tuberculosos costumam ser relatados mais frequentemente em crianças,
possivelmente porque o período prodrômico é menor.
Ao contrário do que ocorre com outras infecções do sistema nervoso central, o
perfil clínico e do líquor são semelhantes em pacientes com e sem síndrome da
imunodeficiência adquirida.

Diagnóstico
O diagnóstico é feito com base nas manifestações clínicas, no exame do líquor e
nos exames de neuroimagem.
O líquor pode revelar pleocitose de 50-500/mm3, perfil citomorfológico de
características mistas, aumento da concentração de proteínas, ao redor de 50-200mg/dL,
diminuição da glicorraquia, com taxas de 20-40mg/dL, aumento do teor de lactato e
elevação das taxas de adenosina-deaminase. A demonstração do bacilo da tuberculose
no líquor é muito difícil. O bacilo da tuberculose cresce em meios de cultura próprios
em até metade dos pacientes, geralmente entre trinta e cento e vinte
dias. Outra opção é a reação em cadeia da polimerase para detecção
e amplificação do DNA do M. tuberculosis.
As alterações de neuroimagem mais frequentes são os
espessamentos meníngeos, particularmente na base do crânio.
Podem ser evidenciados facilmente pela tomografia
computadorizada com contraste ou pela ressonância nuclear
magnética, especialmente se for usado Gadolínio. Também são muito frequentes as
hidrocefalias, comunicantes ou não, e os infartos.

Tratamento
O tratamento deve ser instituído precocemente, mesmo que não haja
confirmação do diagnóstico. A ocorrência de processo infeccioso subagudo do sistema
nervoso central, principalmente quando acompanhado de sinais focais, autoriza o clínico
a introduzir imediatamente esquema terapêutico específico, que não difere para os
pacientes portadores do HIV. No entanto, deve-se atentar para a interação da
Rifampicina com os inibidores de protease.
Fase intensiva por dois meses com comprimido contendo Rifampicina 150mg,
Isoniazida 75mg, Pirazinamida 400mg e Etambutol 275mg. Preconizam-se 4
comprimidos por dia para adultos com peso superior a 50kg.
Fase de manutenção por sete meses com comprimido contendo Rifampicina
300mg e Isoniazida 200mg. Preconizam-se 2 comprimidos por dia para adultos com
peso superior a 50kg.
Deve ser associado corticosteroide ao esquema, com Prednisona 1-2mg/kg/dia
por via oral durante quatro semanas ou Dexametasona 0.4mg/kg/dia por via intravenosa
durante quatro a oito semanas nos casos mais graves, com redução gradual da dose nas
quatro semanas subsequentes. O tratamento neurocirúrgico é pouco utilizado e
restringe-se aos casos de hidrocefalia resistente ao tratamento com corticosteroides.

Prognóstico
A mortalidade média é de cerca de 25%. Dentre os pacientes que sobrevivem,
20-30% apresentam sequelas neurológicas, tais como alterações mentais, motoras,

Pedro Kallas Curiati 1138


visuais e da movimentação ocular, além de convulsões e surdez.
Complicações incluem infartos isquêmicos, graus variados de hiponatremia,
siringomielia e aracnoidite.

1.2. Formas parenquimatosas da neurotuberculose


Os tuberculomas são granulomas que podem ser encontrados em cérebro,
cerebelo, espaço subdural e espaço epidural. Em crianças, localizam-se na região
infratentorial, enquanto que nos adultos são mais frequentes na região supratentorial.
Podem ser múltiplos em um terço dos pacientes e coexistir com a meningoencefalite
tuberculosa em cerca de 10%.
Sinais e sintomas de tuberculose extrapulmonar são pouco expressivos ou
mesmo ausentes. O paciente costuma apresentar apenas quadro de hipertensão
intracraniana e crises convulsivas, com história de contato com tuberculose em apenas
metade dos casos. A doença evolui de forma menos aguda e menos agressiva e o exame
do líquor apresenta alterações discretas e inespecíficas, como aumento da
proteinorraquia.
Exames de neuroimagem podem ser inespecíficos e revelam granuloma com
realce e variados graus de edema em áreas cerebrais circunjacentes. O teste cutâneo com
PPD é positivo em até 85% dos pacientes. A hipótese diagnóstica é reforçada pela
resposta favorável ao tratamento específico.
Diagnóstico diferencial inclui neoplasias e outros processos granulomatosos,
como sarcoidose, cisticercose, nocardiose e toxoplasmose.
Quando o tratamento clínico, idêntico àquele preconizado para a forma
meningoencefalítica, é bem sucedido, os tuberculomas diminuem de tamanho, em
média, após três meses. Se o tratamento clínico não for suficiente, pode ser feita a
exérese cirúrgica dos granulomas.
Havendo liquefação do conteúdo dos granulomas, formam-se abscessos
tuberculosos. Relativamente pouco frequentes, costumam ser maiores, podem ser
multiloculados e, frequentemente, têm maior efeito de massa do que os granulomas.
Não costuma ser encontrada ao redor dessas estruturas a reação inflamatória que
envolve os granulomas, acentuando a semelhança com os demais abscessos bacterianos.
Há quadro clínico mais exuberante, com febre, cefaleia e sinais de localização. O
tratamento é semelhante ao preconizado para os tuberculomas.

2. Neuromicoses
Em sua maioria, os fungos não causam doenças em pessoas hígidas, embora
possam atingir algumas estruturas orgânicas.
A principal porta de entrada é o sistema respiratório, através da inalação de
esporos. A infecção localiza-se nos pulmões, costuma ser assintomática ou
acompanhada de sintomas respiratórios vagos e, na maioria das vezes, é debelada
rapidamente pelo sistema imunológico. Ocasionalmente, os micro-organismos que
colonizaram o pulmão atingem a corrente circulatória.
Mais raramente, a disseminação pode ocorrer a partir de:
- Cateteres intravenosos ou lesões na mucosa oral ou intestinal, como no
caso da candidíase;
- Lesões da pele, como na esporotricose;
- Infecções dos seios paranasais, como nas infecções por Aspergillus sp,
Zygomycetes sp e mucormicose;
- Fraturas dos ossos do crânio ou procedimentos neurocirúrgicos;
No sistema nervoso central, os fungos podem ser responsáveis por meningites,

Pedro Kallas Curiati 1139


meningoencefalites ou infecções localizadas, como granulomas e abscessos.
As micoses do sistema nervoso central são menos frequentes do que as
meningites bacterianas ou virais e na maioria dos pacientes pode ser detectada alguma
patologia de base, como leucemia, linfoma, colagenose, síndrome da imunodeficiência
adquirida, diabetes mellitus, etilismo e transplante de órgão.
As manifestações clínicas são totalmente inespecíficas e o quadro laboratorial da
meningite fúngica é semelhante ao de outras meningites subagudas e crônicas,
especialmente da neurotuberculose. Os granulomas e abscessos detectados assemelham-
se àqueles das infecções bacterianas, das formas parenquimatosas da neurotuberculose
ou de neoplasias. O isolamento do fungo para diagnóstico a partir de amostras do líquor
ou mesmo de material de biópsia é muito difícil.
A infecção fúngica mais frequente é a neurocriptococose.

2.1. Neurocriptococose
Infecção fúngica causada por Cryptococcus neoformans, que acomete, em geral,
pacientes com contagem de linfócitos T CD4 positivos inferior a 100 células por mm3.
A doença pode atingir qualquer parte do organismo, porém a localização no sistema
nervoso central é a mais comum em pacientes infectados pelo HIV. O fungo tem larga
distribuição no solo e em excreções de pombos.
O quadro clínico geralmente é subagudo, caracterizado por febre e cefaleia
intermitente, que se torna cada vez mais frequente, com perda de peso e adinamia.
Apenas 30% dos pacientes apresentam sinais de irritação meníngea e fotofobia.
Encefalite, manifestada por letargia, alterações cognitivas e alterações comportamentais,
pode estar presente.
Punção liquórica revela elevação da pressão intracraniana, elevação da
proteinorraquia, celularidade pouco alterada ou normal e glicorraquia pouco diminuída
ou normal. No esfregaço direto com tinta da China, é possível observar formas fúngicas.
Em caso de alta suspeita e pesquisa com tinta da China negativa, a pesquisa de antígeno
com prova de látex pode auxiliar no diagnóstico. Lesões podem ser evidenciadas na
ressonância nuclear magnética de crânio.
Pode cursar com comprometimento extrameníngeo, associado ou não ao
acometimento do sistema nervoso central. A lesão pulmonar caracteriza-se por tosse
seca e dispneia, com achado radiológico de infiltrado micronodular. Doença
disseminada com acometimento de pele, suprarrenal, próstata e medula óssea também
pode ocorrer. A hemocultura e a pesquisa de antígeno no sangue podem auxiliar no
diagnóstico das formas extrameníngeas.
O tratamento deve ser iniciado com Anfotericina B 0.7mg/kg por via intravenosa
uma vez ao dia e 5-Flucitosina 100mg/kg/dia por via oral fracionada em quatro doses
diárias durante pelo menos duas semanas. A fase de consolidação é baseada no uso de
Fluconazol, com 400mg por dia durante pelo menos oito semanas, até a negativação da
cultura no líquor.
A vida média da Anfotericina é de 12-24 horas, com pico sérico de 6-8 horas.
Em geral, sua excreção ocorre por meio da urina. Limitações incluem pouca penetração
pela barreira hematoencefálica e efeitos adversos como toxicidade renal, hipocalemia,
reações alérgicas, febre, calafrios, falência hepática, convulsões, fibrilação ventricular e
parada cardíaca. Preconiza-se infusão em quatro a seis horas. Em pacientes que
experimentam febre, hipotensão, náusea, tremores ou outras reações não-anafiláticas,
pré-medicação deve ser administrada trinta a sessenta minutos antes da infusão da
Anfotericina B, incluindo Hidrocortisona 100-300mg/dia, antipiréticos e anti-eméticos.
Alternativas terapêuticas para a fase de ataque incluem Anfotericina B 0.7mg/kg

Pedro Kallas Curiati 1140


por via intravenosa uma vez ao dia por pelo menos duas semanas, Fluconazol 400-
800mg por dia e Fluconazol 400-800mg por dia em associação com 5-Flucitosina
100mg/kg/dia por via oral fracionada em quatro doses diárias por quatro a seis semanas
até negativação da cultura no líquor. Alternativa para a fase de consolidação inclui
Itraconazol 200mg por via oral uma vez ao dia.
Caso haja toxicidade pela Anfotericina B, podem-se utilizar preparações
lipídicas de Anfotericina, que têm a vantagem de ter mais baixa toxicidade, porém
apresentam alto custo e baixa permeabilidade no sistema nervoso central. A dosagem
varia de 3mg/kg/dia a 5mg/kg/dia.
A profilaxia secundária é realizada com Fluconazol 200mg por via oral uma vez
ao dia ou Itraconazol por via oral 200mg uma vez ao dia até contagem de linfócitos T
CD4 positivos superior a 250/mm3 por pelo menos seis meses após o fim do tratamento,
na ausência de sintomas, devendo ser reiniciada se contagem de linfócitos T CD4
positivos inferior a 150/mm3.
Um importante preditor da evolução é a esterilidade da cultura após duas
semanas do início do tratamento. Os pacientes com baixa resposta são aqueles com alto
nível de antígenos, baixo nível de albumina sérica e baixa contagem de linfócitos T
CD4 positivos.
Na meningite com hidrocefalia comunicante, o paciente poderá se beneficiar de
punções lombares repetidas, derivação ventrículo-peritoneal, derivação lombo-
peritoneal, terceiro ventriculostomia ou drenagem do ventrículo para o seio venoso
transverso. A punção liquórica é contraindicada no caso de hipertensão intracraniana ou
de lesões com efeito de massa e desvio da linha média.

Processos infecciosos crônicos

1. Neurossífilis

Etiologia e fisiopatologia
A neurossífilis é causada pelo Treponema pallidum, bactéria que invade o
sistema nervoso central em período variável de três a dezoito meses após a infecção
inicial.
O primeiro evento relacionado ao acometimento do sistema nervoso central é o
desenvolvimento de processo inflamatório meníngeo, clinicamente sintomático ou não.
Quando há manifestações clínicas, o quadro é semelhante ao das meningites benignas
de tipo viral. A confirmação é feita pelo exame do líquor. Os fenômenos imunológicos e
fisiopatológicos que acontecem no período que transcorre entre o processo inflamatório
inicial e o desenvolvimento da neurossífilis não são conhecidos.

Forma meningovascular
A forma meningovascular manifesta-se após período variável entre seis meses e
dez anos da infecção inicial, na maioria das vezes entre seis e sete anos. Ocorre
processo inflamatório das meninges predominantemente de tipo crônico, acompanhado
de fenômenos arteríticos.
As manifestações clínicas decorrem do acometimento de áreas cerebrais nutridas
pelas artérias afetadas. Podem ocorrer desde quadros caprichosos decorrentes da lesão
de estruturas irrigadas por uma única arteríola até lesões mais extensas decorrentes do
acometimento de artérias médias ou grandes. Ocasionalmente, a neurossífilis atinge a
medula espinhal e manifesta-se clinicamente como síndrome da artéria espinhal anterior
da medula.

Pedro Kallas Curiati 1141


Formas parenquimatosas
As formas parenquimatosas ocorrem tardiamente, cerca de 15-20 anos após a
infecção inicial. As principais são a paralisia geral progressiva, a tabes dorsalis, a
atrofia óptica e a sífilis espinhal.
A paralisia geral progressiva tem como substrato a destruição e a atrofia
progressiva do parênquima cerebral, particularmente dos lobos frontais e temporais,
além do espessamento das meninges da base do crânio com prejuízo para a circulação
de líquor. Ocorre progressiva dissolução mental e física, com demência, disartria, abalos
mioclônicos, tremor de ação, convulsões, hiperreflexia, sinal de Babinski e sinal de
Argyll-Robertson. O paciente perde a crítica em relação a si mesmo e,
progressivamente, passa também a desrespeitar normas morais e de comportamento
social. Ocorre evolução com dificuldades de locomoção, hipotonia muscular, perda de
equilíbrio e tremor de língua e de mãos.
O substrato da tabes dorsalis é a destruição seletiva das células do gânglio
sensitivo posterior responsáveis pela transmissão de impulsos sensitivos cinético-
posturais, da sensibilidade tátil discriminativa e da sensibilidade vibratória. Não há
alterações significativas de outros tipos de sensibilidade veiculados por fibras de
pequeno calibre nem alterações medulares, tronculares ou radiculares relacionadas à
esfera motora. O quadro clínico é caracterizado por ataxia do tipo sensitivo, dores
intensas e, mais raramente, incontinência urinária.
Na atrofia óptica, o paciente apresenta perda progressiva da visão de início
unilateral e depois acometendo ambos os olhos. Na maioria das vezes ocorre contração
progressiva do campo visual. Outras vezes, o paciente queixa-se de escotomas. Pode
estar associada a outras formas parenquimatosas da neurossífilis.
Sífilis espinhal é bastante rara. A forma mais citada é a meningomielite sifilítica,
também conhecida como paralisia espástica de Erb, em que há lesão de fibras
mielinizadas, sobretudo dos tratos corticoespinhais.

Diagnóstico
O exame do líquor é o procedimento mais útil para o diagnóstico e controle de
evolução da neurossífilis. As principais alterações são pleocitose inferior a 50/mm3,
perfil citomorfológico de tipo crônico, proteinorraquia aumentada geralmente de 40-
200mg/dL, aumento de gamaglobulina e presença de anticorpos. Os anticorpos
inespecíficos ou não-treponêmicos, como o Venereal Disease Research Laboratory
(VDRL), são testes simples e com boa especificidade, mas com baixa sensibilidade. Os
anticorpos específicos ou treponêmicos, como o Fluorescent Treponemal Antibody
Absorption (FTA-Abs), são caracterizados por alta sensibilidade e especificidade.
A fase de regressão da doença é lenta e começa com diminuição do número de
células. A seguir, ocorre queda da concentração proteica, diminuição dos títulos de
anticorpos e, finalmente, diminuição dos teores de globulinas.

Tratamento
Penicilina G Cristalina 2.000.000-4.000.000 UI de 4/4 horas por via intravenosa
durante 10-14 dias ou Penicilina G Procaína 2.000.000-4.000.000 UI/dia por via
intramuscular associada a Probenecida 500mg 6/6 horas por via oral durante 14 dias.
Alternativa inclui Ceftriaxone 1-2g/dia durante 14 dias.
Jarisch-Herxheimer é reação imunoalérgica após as primeiras doses do
tratamento com Penicilina relacionada à destruição do treponema. A conduta prevê a
administração de corticosteroides.

Pedro Kallas Curiati 1142


2. Neurocisticercose

Conceito
Neurocisticercose é a infecção do sistema nervoso central provocada por
cisticercos, formas larvárias da Taenia solium.

Fisiopatologia
Em condições normais, o ciclo da doença compreende o homem como
hospedeiro definitivo da Taenia solium e os suínos como hospedeiros intermediários
infectados pela forma larvária da tênia. A ingesta pelo homem de carne suína com
cisticercos viáveis provoca a teníase.
A cisticercose humana ocorre quando, acidentalmente, o ser humano ingere ovos
da Taenia solium e ocupa a posição de hospedeiro intermediário da doença. Esses ovos
podem ser ingeridos através de água ou alimentos contaminados, em virtude de
condições precárias de higiene pessoal ou, eventualmente, devido a refluxo do conteúdo
intestinal para a cavidade gástrica em pacientes com teníase.
O adequado funcionamento da interface entre parasita e hospedeiro permite que
o cisticerco sobreviva no sistema nervoso central durante um período médio de quatro a
seis anos. O processo inflamatório característico da cisticercose tem início quando os
cisticercos começam a exibir sinais de perda de vitalidade e apresentam seus antígenos
de superfície já desprotegidos ao sistema imunológico do hospedeiro.

Quadro clínico
O quadro clínico pode ser influenciado pelo número de parasitas, pela sua
localização, pelo seu tipo e tamanho, pela sua viabilidade biológica e pelas
características da resposta inflamatória de cada paciente.
As formas clínicas incluem a forma hipertensiva, com hipertensão intracraniana,
geralmente sem sinais de localização, a forma epiléptica, com crises focais ou
generalizadas, uma associação das formas hipertensiva e epiléptica e as formas
psíquicas ou demenciais.

Diagnóstico
O diagnóstico baseia-se no quadro clínico, nos dados de neuroimagem e nos
dados do exame do líquor.
A tomografia computadorizada permite a visualização dos parasitas sediados no
sistema nervoso central. As informações principais fornecidas são a presença de
dilatação do sistema ventricular, o número de parasitas, a localização em relação ao
sistema liquórico e o estágio de evolução biológica. Vesículas com imagem nítida e sem
realce após a injeção de contraste sugerem a presença de cisticercos íntegros. Sinais
radiológicos de processo inflamatório em volta do parasita, como realce periférico pelo
contraste e edema, sugerem fase de degeneração das vesículas. Presença de
calcificações indica apenas processo cicatricial, sem qualquer atividade da doença.
A reação inflamatória do hospedeiro em relação ao parasita transparece no líquor
desde que os cistos estejam localizados em posição favorável à sinalização imunológica.
As principais características são pleocitose, geralmente inferior a 50/mm3, predomínio
de linfomononucleares, presença de polimorfonucleares eosinófilos e presença de
anticorpos específicos. Outras características incluem presença de neutrófilos na fase de
degeneração dos cistos, aumento da atividade de adenosina-deaminase, aumento do teor
de gamaglobulinas, presença de bandas oligoclonais e síntese local de imunoglobulinas

Pedro Kallas Curiati 1143


inespecíficas. Antígenos podem ser detectados no líquor através de ELISA.

Tratamento
Para o controle do processo inflamatório durante os surtos da doença são
utilizados corticosteroides e anti-histamínicos. O esquema terapêutico utilizado com
sucesso no HC-FMUSP prevê a administração, na fase aguda, de Dexametasona 0.1-
0.6mg/kg/dia para crianças ou 4-18mg/dia para adultos, com doses decrescentes durante
os primeiros dez a quinze dias, associada, desde o início, com Dexclorfeniramina
(Polaramine®) 6-10mg/dia fracionada em três a quatro tomadas, que deverá ser mantida
indefinidamente.
As drogas parasiticidas têm sua indicação formal em pacientes com cistos no
parênquima cerebral, desde que não haja sinais de degeneração biológica dos parasitas,
mas não são utilizadas no HC-FMUSP. A droga de escolha é o Albendazol na dose de
15-20mg/kg/dia durante oito dias, acompanhado ou não de corticosteroides, de acordo
com a indicação clínica.
Os pacientes que apresentam dilatação do sistema ventricular que não regride
após o uso de medicação anti-inflamatória devem ser submetidos à colocação de cateter
de derivação de trânsito do líquor. A retirada cirúrgica de cisticercos é procedimento
excepcional.
As convulsões deverão ser tratadas com anticonvulsivantes, como Fenitoína,
Fenobarbital, Carbamazepina, Oxcarbazepina, Valproato de Sódio, Topiramato e
Lamotrigina. Os níveis séricos devem ser mensurados e utilizados para adaptação das
dosagens das drogas. Em caso de epilepsia mesial temporal, amidaloipocampectomia
poderá ser feita.
A hidrocefalia não comunicante deverá ser tratada com derivação ventrículo-
peritoneal. Casos de hidrocefalia aguda serão submetidos à derivação externa
transitória. A hidrocefalia comunicante poderá ser tratada com punções liquórica
repetidas, derivação ventrículo-peritoneal, derivação lombo-peritoneal, terceiro
ventriculostomia ou drenagem do ventrículo para o seio venoso transverso.

3. Esquistossomose do sistema nervoso central


O Schistossoma mansoni é parasita que vive habitualmente no sistema portal do
homem, acasalado e fixado às paredes venosas. Centenas de ovos podem ser liberados
diariamente pela fêmea na corrente circulatória, atingindo maciçamente o fígado e
podendo alcançar outros órgãos. Ovos ou mesmo vermes adultos podem chegar ao
sistema nervoso através da circulação venosa e das anastomoses existentes entre os
plexos venosos pélvico e vertebral e entre as veias pélvicas e hemorroidárias.
Possivelmente por esse motivo o S. mansoni acomete principalmente a região medular
e, nesta, a porção mais caudal. A neuroesquistossomose mansônica decorre
provavelmente de lesões vasculares.
Na fase inicial, há toxemia com febre, mialgia, cefaleia, urticária e
linfadenopatia dez a cinquenta dias após o contato com água parada. Nesse estágio,
pode ocorrer meningoencefalite leve e transitória ou vasculite generalizada. Na fase
crônica, ocorrem lesões medulares mais comumente por embolia dos ovos e inflamação
dos vasos e da medula nos níveis torácico e lombar.
O quadro neurológico mais comum é meningomielomultirradiculite lombo-
sacral. As principais manifestações clínicas são dor aguda na região lombar, no
hipogástrio ou na face interna da coxa, parestesias de intensidade variável, paraparesia
ou paraplegia e comprometimento esfincteriano, principalmente com retenção urinária.
O diagnóstico é feito pelo exame do líquor, que revela pleocitose discreta,

Pedro Kallas Curiati 1144


presença de eosinófilos, aumento das taxas de proteína e aumento do teor de
gamaglobulinas. Anticorpos específicos podem ser detectados. É aconselhável a
pesquisa simultânea de anticorpos séricos. Presença de ovos viáveis nas fezes ou na
mucosa retal e antecedentes epidemiológicos sugestivos são elementos de grande
auxílio diagnóstico. A imagem por ressonância nuclear magnética revela lesão
inflamatória medular.
O tratamento deve ser feito em duas fases. Imediatamente após o início do
quadro clínico devem ser administrados corticosteroides, com Metilprednisolona 1g/dia
por via intravenosa durante três a cinco dias e Prednisona 1-2mg/kg/dia a partir de então
até melhora significativa do quadro neurológico. Uma vez estabilizado o quadro clínico,
deve ser feito o tratamento parasiticida com Oxaminiquine 15mg/kg em adultos e
20mg/kg em crianças em dose única.
A administração de corticosteroides é urgência médica e dessa conduta depende
o prognóstico da doença.

Complicações neurológicas da síndrome da imunodeficiência adquirida


A infecção pelo HIV produz uma vasta gama de manifestações clínicas, desde
uma ligeira indisposição até quadros demenciais graves. A partir da sexta semana após a
contaminação e coincidindo com a soroconversão, podem ocorrer sinais de
meningoencefalite, neuropatias periféricas, paralisia facial, neurite braquial ou
radiculopatias. A fase aguda é seguida por um período assintomático que pode ser
superior a dez anos. À medida que a replicação viral vai ocorrendo e a imunossupressão
vai se agravando, o indivíduo entra no estágio sintomático, período no qual ocorrem a
maioria das complicações neurológicas, que decorrem da ação do HIV ou de patologias
associadas à imunodepressão. As infecções oportunistas são frequentes, mas raramente
ocorrem com taxas de células CD4 positivas acima de 200/mm3. São, portanto,
previsíveis e podem ocorrer associadas umas às outras.

1. Demência associada ao HIV


Na fase assintomática da doença, apenas 0.4-2.0% dos pacientes apresentam
sinais de demência, enquanto que nas fases mais avançadas essas taxas sobrem para
15%. Os fatores de risco para demência associada à síndrome da imunodeficiência
adquirida são carga viral plasmática aumentada, contagem de células CD4 positivas
diminuída, anemia, uso de drogas injetáveis, sexo feminino, presença de infecção
oportunista prévia, baixo peso e idade avançada.
As manifestações podem ser cognitivas, motoras e de comportamento. Nos casos
mais avançados, o paciente evolui para retardo psicomotor grave e mutismo. A
progressão da demência é bastante variável e depende do grau de imunidade do
indivíduo no início das manifestações clínicas e da instituição de tratamento
antirretroviral.
Devem ser evitadas drogas hipnóticas e ansiolíticas.
Ressonância nuclear magnética revela atrofia córtico-subcortical e alterações
difusas de substância branca. O líquor não apresenta alterações significativas e é
utilizado para excluir outros diagnósticos.

2. Toxoplasmose do sistema nervoso central


O Toxoplasma gondii é um protozoário intracelular que infecta todos os
mamíferos, mas o gato é o hospedeiro definitivo. Eles excretam oocistos de T. gondii
pelas fezes e a ingesta de alimentos contaminados por essas fezes, alimentos não-
cozidos ou contaminados pela ação do homem causam a infecção primária. A infecção

Pedro Kallas Curiati 1145


fetal parece ser restrita às crianças cujas mães se infectam durante a gestação.
Neurotoxoplasmose é lesão encefálica causada pela reativação de Toxoplasma
gondii no sistema nervoso central. Geralmente, a doença manifesta-se em indivíduos
com contagem de linfócitos T CD4 positivos inferior a 100 células por mm3, sendo rara
em pacientes com contagem de linfócitos T CD4 positivos superior a 200 células por
mm3.
As manifestações clínicas mais comuns são sintomas de encefalite, com cefaleia,
convulsões, paresia, hemiplegia, alterações de pares cranianos, confusão mental e
rebaixamento do nível de consciência. A febre é infrequente. Ao exame físico, são
observados déficits neurológicos focais. Manifestações extraneurológicas são raras,
sendo descritos quadros de pneumonia e coriorretinite.
Tomografia computadorizada de crânio e ressonância nuclear magnética
evidenciam lesões únicas ou múltiplas acometendo principalmente gânglios da base,
com realce anelar e edema peri-lesional. Em decorrência do edema acentuado, pode
ocorrer apagamento de ventrículos e desvio de linha média. As imagens geralmente têm
hipossinal em T1 e hipersinal em T2.
O diagnóstico definitivo é difícil de ser realizado, pois o reaparecimento de
anticorpo IgM na reativação é raro. Alguns pacientes com contagem de linfócitos T
CD4 muito baixa podem apresentar sorologia negativa para anticorpo da classe IgG.
Detecção de T. gondii por reação em cadeia da polimerase no líquor pode auxiliar no
diagnóstico, uma vez que a especificidade é de 100%, porém possui baixa sensibilidade,
ao redor de 50%. A punção liquórica é contraindicada na presença de edema importante
com efeito de massa ou desvio de linha média. No exame quimiocitológico de líquor,
geralmente não são encontradas alterações significativas, estando a celularidade
preservada e a proteinorraquia e a glicorraquia pouco alteradas.
Devido à alta prevalência de sorologia positiva para toxoplasmose no nosso
meio, em caso de lesão sugestiva em pacientes com HIV, a terapia empírica deve ser
iniciada. Se houver resposta clínica e radiológica em duas a três semanas, o diagnóstico
estará estabelecido. O tratamento de escolha é Sulfadiazina 1g por via oral de 6/6 horas
se peso inferior a 60kg ou 1.5g por via oral de 6/6 horas se peso superior ou igual a
60kg associada a Pirimetamina 200mg por via oral no primeiro dia e 50-75mg por via
oral nos dias subsequentes fracionada em duas a três tomadas por dia e Ácido Folínico
15mg por via oral uma vez ao dia durante pelo menos seis semanas. Dexametasona é
indicada em caso de edema ou efeito de massa importante secundários à lesão, devendo
ser descontinuada logo que possível. Anticonvulsivantes devem ser administrados
quando houver convulsões.
Alternativas terapêuticas incluem Clindamicina 600mg por via oral ou
intravenosa de 6/6 horas associada a Pirimetamina e Ácido Folínico,
Sulfametoxazol/Trimetoprim 25mg/kg /5mg/kg por via oral ou intravenosa e
Azitromicina 900-1200mg por via oral uma vez ao dia associada a Pirimetamina e
Ácido Folínico.
O controle da resposta ao tratamento deve ser realizado com exame de imagem
dez a quatorze dias após o início do tratamento. Em caso de ausência de resposta, deve-
se realizar biópsia.
Após o tratamento de ataque, institui-se a terapia de manutenção com
Sulfadiazina 500-1000mg por via oral de 6/6 horas associada a Pirimetamina 25-50mg
por via oral uma vez ao dia e Ácido Folínico 10-25mg por via oral uma vez ao dia, cuja
suspensão será feita quando houver resolução ou calcificação da lesão ao exame de
imagem e contagem de linfócitos T CD4 positivos superior a 200 células por mm3 por
pelo menos seis meses. Devido às elevadas morbidade e letalidade da

Pedro Kallas Curiati 1146


neurotoxoplasmose, a profilaxia primária é indicada para todos os pacientes HIV
positivos com contagem de linfócitos T CD4 positivos inferior a 100 células por mm3,
com Sulfametoxazol/Trimetoprim 800mg/160mg uma vez ao dia. Alternativa para
profilaxia secundária inclui Clindamicina 300-450mg por via oral de 8/8 a 6/6 horas
associada a Pirimetamina 25-50mg por via oral uma vez ao dia e a Ácido Folínico 10-
25mg por via oral uma vez ao dia.

Profilaxia
As indicações para profilaxia primária da toxoplasmose em pacientes com HIV
são a sorologia positiva para T. gondii e a contagem de CD4 menor que 100
células/mm3. Pode ser descontinuada quando o CD4 superar 200 células/mm3 durante
três meses. Preconiza-se Sulfametoxazol-Trimetoprim 400mg/180mg dois comprimidos
por dia.
A profilaxia secundária consiste no tratamento supressivo e pode ser suspensa se
a contagem de células CD4 superar 200/mm3 por seis meses e o paciente tiver sido
tratado por seis semanas com o esquema específico supressivo.

3. Criptococose
A maior parte dos casos é observada em pacientes com contagens de linfócitos
CD4 muito baixa, inferior a 200 células/mm3.
Nos pacientes portadores do vírus HIV com neurocriptococose predominam os
sinais de hipertensão intracraniana, com cefaleia de forte intensidade, náusea e vômitos,
geralmente de início insidioso. Febre, sinais de irritação meníngea, fotofobia,
convulsões e sinais focais são menos frequentes.
O controle da hipertensão intracraniana pode ser feito através de punções
lombares de repetição, associadas ou não ao emprego de Acetazolamida.

4. Infecção pelo citomegalovírus


Doença causada pela reativação do citomegalovírus, geralmente em pacientes
com contagem de linfócitos T CD4 positivos inferior a 50 células por mm3. Pode
acometer qualquer órgão, sendo mais comum a ocorrência de lesões em olhos, como
retinite, tubo digestivo, como úlceras esofágicas, gástricas e colônicas, medula óssea,
sistema nervoso central e pulmões.
Comprometimento neurológico pode levar a demência, encefalite ou
polirradiculomielopatia. A evolução geralmente é subaguda. A demência é semelhante à
demência por HIV, com alteração de raciocínio, letargia e confusão, porém, em geral,
há febre. Exame liquórico evidencia pleocitose linfocítica ou neutrofílica, glicorraquia
normal ou pouco diminuída e proteinorraquia normal ou pouco aumentada. Quadros de
encefalite apresentam evolução mais aguda, com déficits neurológicos focais,
frequentemente com alteração de pares cranianos. A evolução geralmente é rápida.
Exames de imagem evidenciam realce periventricular. A polirradiculomielopatia
apresenta quadro semelhante à síndrome de Guillain-Barré, caracterizada por perda
progressiva de força nos membros inferiores e alteração de controle esfincteriano.
Exame e líquor revela pleocitose com predomínio neutrofílico, hipoglicorraquia e
elevação de proteínas. O diagnóstico de comprometimento neurológico pelo
citomegalovírus é confirmado pela identificação no líquor, geralmente por meio de
reação em cadeia da polimerase.
O tratamento da reativação com citomegalovírus é feito com Ganciclovir
5mg/kg por via intravenosa de 12/12 horas durante quatorze a vinte e um dias,
associado, em caso de retinite, a Valganciclovir 900mg por via oral de 12/12 horas

Pedro Kallas Curiati 1147


durante quatorze a vinte e um dias. Alternativa terapêutica para retinite inclui Foscarnet
90mg/kg por via intravenosa de 12/12 horas durante quatorze a vinte e um dias e
implante ocular de Ganciclovir associado a Ganciclovir 5mg/kg por via intravenosa de
12/12 horas durante quatorze a vinte e um dias.
Profilaxia secundária é realizada com Ganciclovir 5mg/kg por via intravenosa
uma vez ao dia ou Foscarnet 90-120mg/kg por via intravenosa uma vez ao dia até
contagem de linfócitos T CD4 positivos superior a 150/mm3 durante seis meses na
ausência de atividade, com avaliações oftalmológicas regulares. Em caso de retinite,
alternativa de profilaxia secundária inclui Valganciclovir 900mg por via oral uma vez
ao dia ou implante intraocular de liberação lenta de Ganciclovir a cada seis a nove
meses associado a Ganciclovir 1.0-1.5g por via oral de 12/12 horas.

5. Linfoma primário do sistema nervoso central


Muito raro antes da síndrome da imunodeficiência adquirida, o linfoma primário
do sistema nervoso central ocorre em até 4% dos pacientes infectados pelo HIV e está
quase sempre associado à infecção pelo vírus Epstein-Barr. Sua existência deve ser
considerada quando as taxas de células CD4 positivas estiverem abaixo de 50/mm3.
O quadro clínico caracteriza-se por confusão mental, alteração de memória,
crises convulsivas e sinais focais.
O diagnóstico de certeza é anatomopatológico, mas a detecção de partículas do
vírus Epstein-Barr no líquor através de reação em cadeia da polimerase está fortemente
associada.
Os exames de imagem revelam lesão com captação de contraste frequentemente
periventricular ou frontal, que pode cruzar a linha média. O encontro de lesão única
sugere linfoma primário, enquanto lesões múltiplas são mais sugestivas de
neurotoxoplasmose.
A radioterapia associada a corticoides é o tratamento de escolha. Quimioterapia
intratecal também pode ser utilizada.

6. Leucoencefalopatia multifocal progressiva (LEMP)


Doença infecciosa causada pelo vírus JC, que atinge oligodendrócitos e
astrócitos e causa doença desmielinizante multifocal, com acometimento da substância
branca cerebral. Nas pessoas saudáveis, a infecção primária não causa doença conhecida
e o vírus assume estado latente no rim. Entretanto, com a imunodepressão crônica, a
infecção pode ser reativada e o vírus pode atingir o sistema nervoso, transportado por
células B infectadas.
Não se conhece manifestação da infecção aguda pelo vírus JC. As manifestações
clínicas da leucoencefalopatia multifocal progressiva são as únicas manifestações de
doença causada por esse agente e resultam de lesões da substância branca do cérebro.
A doença tem início insidioso e progride rapidamente em semanas ou meses. Os
sintomas são cefaleia, ataxia, hemiparesia, alterações do psiquismo e déficits cognitivos.
Podem ocorrer convulsões de vários tipos ou manifestações de doença localizada, como
lesões de pares cranianos. A contagem de células CD4 positivas de pacientes que
desenvolvem LEMP é geralmente menor do que 100 células/mm3.
A tomografia computadorizada evidencia lesões hipoatenuantes subcorticais,
sem efeito de massa, que não captam contraste e que têm aspecto digitiforme. As
imagens obtidas através de ressonância magnética têm maior sensibilidade para o
diagnóstico da extensão e do número das lesões, com hipossinal em T1 e hipersinal em
T2, geralmente sem realce após a administração de Gadolínio. O exame do líquor
geralmente é normal ou pouco alterado.

Pedro Kallas Curiati 1148


Biópsia geralmente é necessária para o diagnóstico definitivo. O DNA do vírus
nas lesões pode ser demonstrado por técnicas convencionais ou por reação em cadeia da
polimerase in situ, que também pode ser utilizada para detectar vírus no líquor, com alta
sensibilidade e especificidade, definindo o diagnóstico nos casos em que a biópsia não
pode ser realizada.
Não há tratamento específico. Deve-se instituir a terapia antirretroviral.
O óbito ocorre em menos de seis meses.

Estrongiloidíase disseminada
Forma aguda e grave de sepse que segue uso de corticoide em altas doses ou
outras imunodepressões em portador assintomático.
Quadro clínico caracterizado por púrpuras periumbilicais confluentes,
broncoespasmo, síndrome da angústia respiratória aguda, endocardite, rebaixamento do
nível de consciência, convulsões e coma.
O diagnóstico é difícil e depende de alta suspeição em função da elevada
mortalidade.
Preconiza-se profilaxia com Albendazol 400mg por via oral de 12/12 horas
durante três a sete dias ou Ivermectina 200mcg/kg/dose com duas doses administradas
em dois dias consecutivos ou com duas semanas de intervalo antes de iniciar o uso de
corticoide em altas doses.
O tratamento ótimo é desconhecido, geralmente sendo necessário prolongar ou
repetir a terapia com Ivermectina, podendo-se prescrever a droga durante cinco a sete
dias ou associá-la ao Albendazol até que ocorra resposta clínica. A duração do
tratamento deve ser guiada pela resposta clínica, com regime diário mantido até
resolução dos sintomas e negativação dos exames de fezes por pelo menos duas
semanas. Uso de Ivermectina por via subcutânea, retal ou intravenosa consiste em
alternativa.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 6: doenças dos olhos, doenças dos ouvidos, nariz e garganta, neurologia, transtornos mentais. – Barueri, SP:
Manole, 2009.
Clínica Médica, volume 7: alergia e imunologia clínica, doenças da pele, doenças infecciosas. – Barueri, SP: Manole, 2009.
A Neurologia que Todo Médico Deve Saber, 2ª edição. Ricardo Nitrini & Luiz Alberto Bacheschi. Editora Atheneu, 2003.

Pedro Kallas Curiati 1149


MIASTENIA GRAVIS
Definição
A miastenia gravis é uma doença imunológica mediada por anticorpos
direcionados contra antígenos do receptor nicotínico de acetilcolina pós-sináptico na
junção neuromuscular, com fraqueza e fatigabilidade flutuantes da musculatura
esquelética estriada.

Epidemiologia
Ainda que a doença possa ter início em qualquer idade, ela acomete
principalmente mulheres entre vinte e quarenta anos e homens entre quarenta e sessenta
anos. As mulheres são mais frequentemente acometidas e a incidência aumenta com a
idade. Há alta incidência de outras doenças imunológicas associadas, como lúpus
eritematoso sistêmico, artrite reumatoide, doença de Graves e tireoidite, bem como de
história familiar de doenças autoimunes.

Fisiopatologia
A patogênese da miastenia gravis envolve ataque imunológico mediado por
anticorpos contra o receptor nicotínico de acetilcolina pós-sináptico na junção
neuromuscular. Esses anticorpos induzem disfunção da membrana pós-sináptica na
placa motora mediada pelo complexo de ataque da membrana C5-C9, com redução
numérica e funcional dos receptores nicotínicos de acetilcolina pós-sinápticos.
Em cerca de 10-20% dos pacientes não são encontrados anticorpos contra o
receptor nicotínico de acetilcolina pós-sináptico no soro. Em parte desses casos, o
anticorpo é dirigido a uma proteína intrínseca da membrana da placa terminal, que é
uma tirosina-cinase músculo-específica (anti-MuSK). Muito provavelmente, outros
anticorpos e fatores plasmáticos estão envolvidos na miastenia gravis soronegativa.
Em contraste ao anticorpo contra o receptor nicotínico de acetilcolina pós-
sináptico, no qual ocorre ligação predominantemente com IgG1 e IgG3, com
consequente fixação de complemento, o subtipo de anticorpos direcionados à tirosina-
cinase músculo-específica é do tipo IgG4, que não ativa complemento.
As anormalidades imunológicas envolvem disfunção do timo. A maioria dos
pacientes com miastenia gravis soropositiva tem anormalidades tímicas, como
hiperplasia tímica e timoma. O timo é um órgão ligado ontogeneticamente às células T,
tendo um papel importante nos mecanismos de tolerância de antígenos próprios, que
provavelmente estão desregulados nos pacientes miastênicos.
Fatores genéticos também estão envolvidos na patogênese da miastenia gravis.

Quadro clínico
A característica cardinal da miastenia gravis é a fraqueza flutuante associada a
fadiga da musculatura esquelética.
Clinicamente, alterações da junção neuromuscular com frequência cursam com
fraqueza muscular bulbar e proximal dos membros, além de ptose palpebral,
oftalmoparesia e diplopia. A maioria dos pacientes apresenta flutuação dos sintomas,
tipicamente oligossintomáticos ou assintomáticos ao acordar e com piora durante o
transcorrer do dia, principalmente nas fases iniciais da doença. Com a evolução, muitos
pacientes deixam de apresentar períodos assintomáticos, porém persistem com flutuação
dos sintomas durante o dia.

Pedro Kallas Curiati 1150


Na miastenia gravis, a voz pode ter um caráter anasalado espontaneamente ou
desencadeado por atividades, como falar por períodos prolongados. Ao exame físico,
pode-se solicitar que o paciente conte de um até cinquenta. Com o esforço progressivo,
a fala apresenta uma diminuição no volume, seguida por uma qualidade anasalada,
chegando muitas vezes a um sussurro ou murmúrio. Ocasionalmente, os pacientes com
miastenia gravis seguram a mandíbula com a mão para ajudar na fala.
A ptose palpebral constitui um dos sinais cardinais da miastenia gravis,
constituindo a apresentação inicial em torno de um quarto dos casos. Em geral, é
descrita pelos pacientes como de início súbito em um olho, mas logo se torna bilateral
ou alternante, predominando em um dos olhos, com flutuação durante o dia e nítida
piora no final do dia. Caracteristicamente, a flutuação da ptose pode ser observada com
mais facilidade solicitando ao paciente que mantenha o olhar direcionado para um ponto
superior à linha ocular. Há resposta dramática com o teste do Edrofônio.
Exacerbação dos sintomas pode levar a um quadro conhecido como crise
miastênica. Caracteriza-se por fraqueza de predomínio em musculatura bulbar, com
disfagia e disartria seguidas por dispneia, com diminuição da capacidade vital,
atelectasia e microaspirações. Em alguns casos, há evolução para insuficiência
respiratória, com necessidade de ventilação mecânica. Entre os fatores precipitantes da
crise, os mais comumente identificados são infecções, mudanças nas medicações,
cirurgia e pós-parto imediato. Dentre as infecções, predominam as traqueobronquites, as
infecções de vias aéreas superiores e a broncopneumonia aspirativa. Dentre as
mudanças nas medicações, incluem-se a retirada ou o início abrupto de corticosteroides
e/ou anticolinesterásicos, além do início de aminoglicosídeos, polimixinas,
Clindamicina, Fenitoína, Lítio ou Clorpromazina.
Inibidores da colinesterase, como o Brometo de Piridostigmina, maximizam a
ativação dos receptores nicotínicos de acetilcolina, o que, em dose excessiva, pode gerar
crise colinérgica. O paciente terá a sintomatologia semelhante e tão grave quanto à da
crise miastênica, porém acompanhada de sinais e sintomas muscarínicos e nicotínicos
dos anticolinesterásicos. A ocorrência de dificuldade de tossir pela madrugada poderá
ser um indicativo de iminente crise colinérgica.

Diagnóstico
A confirmação do diagnóstico pode ser feita por meio de testes à beira-do-leito,
estudo eletrofisiológico e exames laboratoriais.

Testes à beira-do-leito
O teste do gelo consiste na aplicação de um bloco de gelo na pálpebra acometida
por um período de dois minutos, observando-se, em seguida, melhora da ptose por um
período de quinze minutos. Apresenta sensibilidade de 89% e especificidade de 100%,
sendo indicado particularmente se o teste do Edrofônio for contraindicado ou não
estiver disponível. Vantagens incluem baixo custo, simplicidade e fácil aplicação.
Desvantagens incluem não avaliar a fraqueza extraocular.
A observação clínica da resposta à administração de inibidores da colinesterase
muscular, como Edrofônio, Neostigmina e Piridostigmina, com melhora da força, serve
de base para inúmeros testes diagnósticos. O Cloreto de Edrofônio (Tensilon®) tem
rápido início de ação, em trinta segundos, e curta duração do efeito, cinco a dez
minutos, o que o torna um agente ideal para a realização de teste à beira-do-leito. O
teste consiste em administrar 2mg por via intravenosa e, na ausência de efeitos
adversos, complementar a dose com 6-8mg por via intravenosa após trinta segundos. O
paciente deve ser observado quanto à melhora na força de um músculo extraocular.

Pedro Kallas Curiati 1151


Efeitos colaterais podem incluir salivação, sudorese, náusea, cólica e fasciculação.
Hipotensão e bradicardia ocorrem mais raramente e resolvem-se com a posição supina.
Sulfato de Atropina deve estar disponível caso a bradicardia persista. O teste tem uma
sensibilidade de 71-95%. Uma resposta positiva ao Edrofônio foi relatada em uma
variedade de condições clínicas além da miastenia gravis, dentre as quais estão
incluídos outros distúrbios da junção neuromuscular, como a síndrome miastênica de
Eaton Lambert, o botulismo, a síndrome de Guillain-Barré e doenças do neurônio
motor. Vantagens incluem baixo custo. Desvantagens incluem possibilidade de melhora
em outros distúrbios da junção neuromuscular, risco de resultado falso-positivo e efeitos
colaterais potencialmente graves. Alguns pacientes que não respondem ao teste do
Edrofônio podem responder a outros inibidores da colinesterase, podendo ser
administrada dose única subcutânea ou intramuscular de Neostigmina 1-2.5mg ou dose
única oral de Piridostigmina 60mg.

Estudo eletrofisiológico
A eletroneuromiografia é utilizada em pacientes com suspeita de desordem da
junção neuromuscular para confirmar um defeito na transmissão neuromuscular e
excluir outras doenças da unidade motora que podem contribuir para o quadro clínico.
Dois testes eletrofisiológicos utilizados com esse propósito são o estudo da estimulação
elétrica repetitiva e a eletromiografia de fibra única. Estudo eletrofisiológico com
estimulação repetitiva a 2Hz pode revelar o padrão clássico de decremento superior a
10% a partir do quinto estímulo nos casos de miastenia gravis, síndrome miastênica de
Eaton Lambert, botulismo e alguns casos de síndromes miastênicas congênitas. A
eletroneuromiografia de fibra única apresenta sensibilidade de 87-91% e especificidade
de 96% para o diagnóstico de miastenia gravis. Confusão diagnóstica pode ocorrer com
esclerose lateral amiotrófica e blefaroespasmo, que podem ser distinguidos da miastenia
gravis por história e exame clínico.

Testes laboratoriais
O teste imunológico utilizado é a determinação de anticorpos contra o receptor
nicotínico de acetilcolina no soro, que ocorre em cerca de 80% dos pacientes
miastênicos, com sensibilidade de 50-75% na miastenia gravis puramente ocular e de
70-95% na miastenia gravis generalizada. Trata-se de teste de execução complexa e alto
custo. Em geral, a identificação do anticorpo não modifica a evolução do caso ou a
conduta terapêutica. Os títulos séricos não predizem a gravidade da doença. Embora
dados quanto à especificidade sejam escassos e a ocorrência de falsos-positivos seja
rara, o anticorpo contra receptor nicotínico da acetilcolina pode ocasionalmente ser
encontrado em hepatite autoimune, lúpus eritematoso sistêmico, artrite reumatoide em
uso de D-Penicilamina, polineuropatias inflamatórias, esclerose lateral amiotrófica,
timoma e parentes de pacientes com miastenia gravis.
Anticorpos contra o receptor da tirosina-cinase músculo-específica (anti-MuSK)
foram relatados em cerca de 15% dos pacientes com anticorpos contra o receptor
nicotínico de acetilcolina (anti-AChR), ocorrendo apenas na miastenia gravis
generalizada. Os pacientes com anticorpos anti-MuSK podem ter apresentações atípicas
caracterizadas por paresia facial, bulbar e de musculatura cervical, com relativa
preservação da musculatura ocular.
Os anticorpos contra músculo estriado e anti-titina em geral revelam a existência
de miastenia gravis associada a timoma, mesmo que não haja evidências em exames de
imagem. O anticorpo anti-rianodina em geral ocorre em idosos com miastenia gravis. O
anticorpo anti-rapsina também tem sido identificado.

Pedro Kallas Curiati 1152


Estudo anatomopatológico
Historicamente, a biópsia de músculo foi utilizada para confirmar o diagnóstico
de miastenia gravis em pacientes soronegativos para anticorpos contra receptor
nicotínico da acetilcolina e com estudo eletrofisiológico inconclusivo.

Exames radiológicos
Feito o diagnóstico de miastenia gravis, o estudo com imagem de tomografia
computadorizada do mediastino poderá revelar timo normal, hiperplasia do timo, timo
atrófico ou tumores benignos ou malignos do timo. A imagem por ressonância nuclear
magnética também poderá ser realizada com o mesmo objetivo.

Classificação – Força-Tarefa da Academia Norte-Americana de Miastenia Gravis


(MGFA)
Classe I – Qualquer fraqueza da musculatura ocular. Pode ocorrer fraqueza do fechamento
ocular. Todos os outros músculos são normais.
Classe II – Discreta fraqueza afetando outros músculos, além da musculatura ocular. Pode
ocorrer fraqueza da musculatura ocular de qualquer intensidade. Classe IIa – Fraqueza com predomínio
em musculatura axial e/ou apendicular. Pode ocorrer envolvimento da musculatura orofaríngea com
menor intensidade. Classe IIb – Fraqueza com predomínio em musculatura orofaríngea ou respiratória.
Pode ocorrer envolvimento da musculatura axial ou apendicular com menor ou igual intensidade.
Classe III – Moderada fraqueza afetando outros músculos, além da musculatura ocular. Pode
ocorrer fraqueza da musculatura ocular de qualquer intensidade. Classe IIIa – Fraqueza com predomínio
em musculatura axial e/ou apendicular. Pode ocorrer envolvimento da musculatura orofaríngea com
menor intensidade. Classe IIIb – Fraqueza com predomínio em musculatura orofaríngea ou respiratória.
Pode ocorrer envolvimento da musculatura axial ou apendicular com menor ou igual intensidade.
Classe IV – Severa fraqueza afetando outros músculos, além da musculatura ocular. Pode ocorrer
fraqueza da musculatura ocular de qualquer intensidade. Classe IVa – Fraqueza com predomínio em
musculatura axial e/ou apendicular. Pode ocorrer envolvimento da musculatura orofaríngea com menor
intensidade. Classe IVb – Fraqueza com predomínio em musculatura orofaríngea ou respiratória. Pode
ocorrer envolvimento da musculatura axial ou apendicular com menor ou igual intensidade.
Classe V – Intubação com ou sem ventilação mecânica, exceto a usada em cirurgia de rotina.
Uso de um tubo de alimentação sem intubação classifica o paciente em IVb.

Tratamento
O objetivo maior da terapêutica é induzir e manter a remissão clínica.
A terapia sintomática objetiva a melhora da condução na junção neuromuscular
pelo uso de anticolinesterásicos. Esses agentes inibem a hidrólise da acetilcolina,
aumentando, assim, o tempo de exposição dos receptores nicotínicos. Se o tempo de
exposição for excessivo, ocorrerá uma despolarização mantida, com bloqueio
colinérgico da junção neuromuscular. A medicação de escolha é o Brometo de
Piridostigmina (Mestinon®), apresentado na forma de comprimidos de 60mg, com dose
de meio a um comprimido três a cinco vezes ao dia. Deve-se iniciar com doses baixas,
em geral de 30mg três vezes ao dia, com administração antes das principais refeições e
aumento a cada 72 horas, com dose média de 240mg/dia. O Hidrocloridrato de
Ambenonio (Mytelase®), apresentado na forma de comprimidos de 10mg, que não está
disponível no comércio, pode ser iniciado com doses baixas, em geral de 5mg, também
de 8/8 a 6/6 horas, com aumento gradual. Efeitos adversos incluem os muscarínicos,
como diarreia, cólica intestinal, sialorreia e bradicardia, e os nicotínicos, como
fasciculações, que requerem redução imediata da dose ou suspensão da medicação.
Também são relatados dor precordial, infarto do miocárdio, espasmo esofageano e
cãibras. Os efeitos adversos podem ser controlados com Loperamida 2mg/dia.
O tratamento de base etiopatogênica visa a redução do fenômeno imunológico

Pedro Kallas Curiati 1153


da miastenia gravis. A imunossupressão não-específica com o uso de corticosteroides,
antimetabólitos, plasmaférese e timectomia é o método usado na atualidade.
Particularmente na crise miastênica, plasmaférese e imunoglobulina apresentaram
eficácia similar, devendo ser usadas o mais precocemente possível. Com terapêutica
adequada, a maioria dos miastênicos pode ter uma vida produtiva. No entanto, a
terapêutica imunossupressora utilizada em larga escala aumenta a suscetibilidade a
infecções e neoplasias. Tratamento prolongado é frequentemente necessário e
recrudescências clínicas quase sempre ocorrem quando da suspensão da terapia
imunossupressora.
O princípio geral da terapêutica imunológica deve considerar a história natural
de exacerbação e remissão. Inicia-se com baixas doses de corticosteroides, com
Prednisona 5-10mg em dias alternados, ambulatorialmente, com aumento lento e
progressivo, de 5-10mg/dia/semana, até que seja obtida a remissão clínica ou seja
atingida dose teto de 1.5mg/kg. As doses elevadas são mantidas por um a dois meses e,
em seguida, inicia-se redução lenta, de 5-10mg/dia a cada duas semanas, até que haja
recorrência e seja identificada a dose mínima para o controle da atividade da doença.
Dependendo da gravidade, pode estar indicada a associação com agentes
imunossupressores com o objetivo de redução da dosagem dos corticosteroides. A dose
plena de corticosteroides somente poderá ser feita com rigorosa observação clínica,
idealmente com o doente internado. Caso existam dificuldades respiratórias ou
comprometimento de musculatura bulbar, indica-se internação em unidade de terapia
intensiva devido ao alto risco de crise miastênica
Terapêutica de curto prazo é uma terapêutica imunológica que tem rápido efeito
e curta duração. Deverá ser utilizada em casos graves, principalmente em crises
miastênicas. Estudos têm demonstrado eficácia da plasmaférese, com início da melhora
na primeira semana, geralmente a partir da terceira sessão, com duração do efeito de um
a dois meses. A imunoglobulina intravenosa tem efeito similar ao da plasmaférese, mas
menor custo e menos efeitos colaterais graves, com infusão de 400mg/kg/dia durante
cinco dias ou 1g/kg durante um a dois dias. A associação de corticosteroides e/ou,
menos frequentemente, imunossupressores, prolonga a resposta clínica.
A timectomia é o tratamento clássico de longo prazo. Os timomas, benignos ou
malignos, requerem a timectomia indiscutivelmente devido ao risco oncológico e à curta
sobrevida dos timomas malignos. Em pacientes cujos sintomas generalizados não são
controlados adequadamente com Piridostigmina, a timectomia é indicada
empiricamente mesmo na ausência de timoma. A resposta aumenta a partir do terceiro
ano e atinge o ápice no quinto ano após a cirurgia. O estadiamento clínico é de suma
importância e, naqueles casos em que não há invasão da cápsula, a cirurgia é curativa.
Em caso de invasão da cápsula, há benefício com radioterapia adjuvante. Em caso de
invasão de estruturas adjacentes, como pericárdio, pleura, pulmão e grandes vasos,
deve-se complementar o tratamento com poliquimioterapia com Etoposide, Ifosfamida e
Doxorrubicina. No grupo de miastênicos com hiperplasia tímica, a indicação de
timectomia deverá ser feita nos pacientes com quadros clínicos acentuados ou bulbares
severos, ou seja, nas formas IIb, IIIb, IVb e V. A indicação é eletiva, jamais com o
paciente internado em unidade de tratamento intensivo, de preferência com o paciente
em remissão clínica ou com mínimos sintomas ou sinais às custas de preparo com
Prednisona associada a inibidores da colinesterase. Embora a indicação da timectomia
possa ser feita a qualquer momento da evolução da doença, em geral não se indica no
primeiro ano da doença.
Os corticosteroides são parte fundamental do tratamento imunossupressor de
longo prazo da miastenia gravis. Quando utilizados adequadamente, induzem a remissão

Pedro Kallas Curiati 1154


em cerca de 50-80% dos pacientes. Os seus efeitos colaterais são limitantes, com
síndrome de Cushing, fraturas ósseas, necrose avascular óssea, catarata, miopatia,
úlceras e perfurações gastrointestinais e infecções oportunistas. Profilaxia de osteopenia
relacionada ao uso de corticosteroides deve ser considerada em todos os pacientes.
Medicação imunossupressora é necessária nos pacientes que não respondem de
forma satisfatória ao uso de Prednisona ou que necessitam de doses elevadas de
manutenção.
A Azatioprina, apresentada na forma de comprimidos de 50mg, com dose de 1-
3mg/kg/dia, inibe a síntese de purinas e tem sido utilizada extensivamente na miastenia
gravis. Tem sido empregada como poupadora de corticosteroides, principalmente em
caso de falha de resposta ao tratamento ou de intolerância aos efeitos adversos. Os
efeitos adversos mais comuns são vômitos, disfunção hepática, leucopenia e
trombocitopenia.
Ciclosporina, apresentada na forma de cápsulas de 25mg, 50mg e 100mg e
solução oral com 100mg/mL, tem sido empregada nos casos mais resistentes ao
tratamento como poupadora de corticosteroides. Geralmente consiste na segunda opção
de droga imunossupressora. Inibe a célula T. A dosagem empregada é de 3-5mg/kg/dia.
Existem trabalhos que comprovam sua eficiência no tratamento da miastenia gravis.
Efeitos adversos incluem hipertensão arterial sistêmica, nefrotoxicidade, tremores,
rigidez muscular e leucoencefalopatia posterior reversível.
Micofenolato Mofetil, apresentado na forma de comprimidos de 500mg, inibe a
síntese das purinas e é altamente específico para proliferação de linfócitos. Tem sido
relatado como agente útil no tratamento da miastenia gravis, como poupador de
corticosteroides, em pacientes intolerantes à Azatioprina. A dosagem inicial é 2g/dia.
A Ciclofosfamida, apresentada na forma de drágeas de 50mg e frascos-ampola
de 200mg e 1000mg, é um agente alquilante e atua sobre os linfócitos T e B.
Geralmente é utilizada com dose de 1-3mg/kg/dia, mas não há trabalhos controlados
referindo indução de remissão clínica com seu uso isoladamente. Pode ser usada em
pulsoterapia intravenosa com 1g uma vez por mês em associação com corticosteroides.
No seu metabolismo, produz acroleína, que é tóxica para a parede vesical, com cistite
hemorrágica. Supressão da medula óssea e aumento do risco de neoplasias são os
efeitos colaterais mais temíveis.
O Rituximab (Mabthera®), anti-CD20, pode também ser utilizado no tratamento
de casos refratários. Os anti-TNFα Infliximab® ou Remicade®, também podem ser
utilizados.

Crise miastênica
Um dos primeiros sinais de alarme em pacientes com miastenia é o aumento da
frequência da tosse, particularmente após salivação, o que significa disfunção da
musculatura bulbar. Disfagia e habilidade para proteger as vias aéreas podem ser
avaliadas à beira-do-leito solicitando ao paciente que degluta 3mL de água. Tosse após
deglutição indica aspiração secundária à fraqueza da musculatura bulbar e, nesse caso, a
alimentação oral deve ser suspensa, devendo ser oferecida apenas por sonda
nasoenteral. Um exame cuidadoso com o objetivo de identificar os primeiros sinais de
dificuldade respiratória é importante. Taquipneia e taquicardia são sinais de
comprometimento respiratório incipiente. Muitos pacientes apresentam um padrão de
fala em estacato, necessitando fazer uma pausa entre as palavras. Fraqueza progressiva
do trapézio e dos músculos do pescoço usualmente corre em paralelo com a
deterioração da função diafragmática. Por fim, o uso da musculatura respiratória
acessória intercostal e abdominal sugere fraqueza diafragmática. Avaliação da reserva

Pedro Kallas Curiati 1155


ventilatória pode ser acessada com o uso de uma manobra simples à beira-do-leito em
que solicita-se ao paciente que conte o máximo de números possíveis após uma
inspiração profunda, sendo normal uma contagem maior ou igual a cinquenta e
significativamente reduzida uma contagem inferior a quinze. A presença desses sinais
clínicos, combinados ou não com prova de função pulmonar, indicam necessidade de
intubação orotraqueal.
Na suspeita de crise miastênica, os pacientes devem ser monitorizados com
provas de função pulmonar à beira-do-leito, além de oximetria de pulso e gasometria
arterial. Provas de função pulmonar são mais sensíveis para detecção de insuficiência
respiratória incipiente do que gasometria arterial, visto que acidose respiratória,
hipercarbia e hipóxia ocorrem tardiamente. É importante que a intubação orotraqueal
seja realizada antes que ocorra acidose respiratória. Pacientes com queixa de dispneia,
mas que não necessitam de intubação imediata, devem ser admitidos em unidade de
terapia intensiva e medidas seriadas de volume corrente, pressão inspiratória máxima e
capacidade vital duas a quatro vezes ao dia são recomendadas. Quando a capacidade
vital cai abaixo de 30mL/kg e a tosse é ineficaz, as secreções acumulam-se na
orofaringe e surgem atelectasias. Uma capacidade vital de 15mL/kg ou menos indica
necessidade de intubação. A pressão inspiratória máxima, normalmente superior a
70cmH2O, mede a força do diafragma e de outros músculos inspiratórios e reflete a
capacidade de manter a expansibilidade pulmonar e evitar atelectasias. A pressão
expiratória máxima, normalmente superior a 100cmH2O, mede a forca da musculatura
expiratória e correlaciona-se com a força da tosse e a capacidade de eliminar secreções
das vias aéreas. Uma pressão inspiratória máxima menor que 20cmH2O e uma pressão
expiratória máxima menor que 40cmH2O são critérios adicionais para intubação.
Os pacientes que desenvolvem crise miastênica por qualquer motivo devem ter
os anticolinesterásicos suspensos para que os receptores se regenerem e pela
possibilidade de crise colinérgica. Cuidados críticos, intubação, suporte ventilatório,
sondagem nasoenteral para alimentação e tratamento das infecções devem ser
instituídos. A seguir, devem ser introduzidas doses adequadas de corticosteroides, como
Prednisona 1-2mg/kg/dia. Plasmaférese ou imunoglobulina intravenosa são terapêuticas
imunológicas pouco específicas que poderão ser usadas para melhora clínica mais
rápida e menor tempo de internação na unidade de terapia intensiva.
A reintrodução de anticolinesterásicos deverá ser gradual e iniciada três a cinco
dias após a suspensão.

Diagnósticos diferenciais

Síndrome miastênica de Eaton Lambert


A síndrome miastênica de Eaton Lambert é uma desordem autoimune adquirida
da transmissão neuromuscular em que a imunoglobulina G é dirigida contra canais de
cálcio voltagem-dependentes da membrana terminal do neurônio motor pré-sináptico,
com perturbação da arquitetura da membrana pré-sináptica, redução do número desses
canais e liberação inadequada de acetilcolina.
Em geral, a síndrome miastênica de Eaton Lambert começa gradualmente com
fatigabilidade e fraqueza de evolução distal para proximal. Os pacientes podem notar
piora da fraqueza ao acordar, com melhora ao final do dia. Também podem notar
melhora transitória da força com exercício, porém evoluindo com fadiga após esforço
físico persistente. O envolvimento das musculaturas ocular, bulbar e respiratória é
menos comum do que na miastenia gravis, mas até metade dos pacientes apresentam
graus discretos de ptose, diplopia, disfagia e disartria. A ptose em geral é discreta,

Pedro Kallas Curiati 1156


bilateral e não representa uma queixa significativa do paciente. Pode ocorrer
envolvimento do sistema nervoso autônomo, com xerostomia, xeroftalmia, disfunção
erétil, visão turva e hipotensão postural. Há associação com outras doenças autoimunes,
como vitiligo, nas formas não-paraneoplásicas.
Doença neoplásica, sobretudo carcinoma de pequenas células do pulmão, pode
ser identificada em cerca de metade dos pacientes, sendo mais em comum pacientes do
sexo masculino, tabagistas e com idade superior a cinquenta anos. A síndrome
miastênica de Eaton Lambert é raramente descrita em crianças, podendo estar associada
a doenças linfoproliferativas nessa população.
A tríade clássica do estudo eletrofisiológico na síndrome miastênica de Eaton
Lambert é constituída por amplitude baixa do potencial de ação do músculo com
aumento dramático após exercício, decremento maior que 10% com estimulação
repetitiva com frequência de 2-5Hz e resposta de incremento em índices altos de
estimulação repetitiva acima de 20Hz.
Os anticorpos do tipo canal de cálcio voltagem-dependente podem ser
pesquisados em centros especializados, com uma positividade variável, sendo mais
comuns em pacientes com câncer.
Da mesma forma que na miastenia gravis, o tratamento deve ser individualizado
de acordo com a severidade clínica, a doença subjacente e a expectativa e vida. Após
confirmação diagnóstica, uma procura extensa para uma malignidade subjacente é
imperativa, devendo ser iniciada com estudos radiológicos e continuada com
broncoscopia em casos específicos. Caso seja identificada neoplasia subjacente, o
tratamento inicial deve ser dirigido contra a malignidade, com possibilidade de melhora
das manifestações neurológicas. Quando nenhuma malignidade é encontrada, a
investigação deve ser repetida a cada seis a doze meses. Em geral, a primeira
intervenção farmacológica tentada é o uso de Piridostigmina, embora, com frequência, o
benefício seja limitado.
Idealmente, agentes que aumentam a liberação pré-sináptica de vesículas de
acetilcolina devem ser usados. O Hidrocloridrato de Guanidina tem sido benéfico em
alguns pacientes, mas os efeitos colaterais são proibitivos e incluem aplasia de medula,
insuficiência renal, sintomas gastrointestinais, ataxia, hipotensão arterial, parestesias,
confusão mental, alterações tróficas da pele e fibrilação atrial. O uso de Diaminopiridina
aumenta a duração do potencial de ação pré-sináptico por bloquear o efluxo de potássio,
o que, indiretamente, prolonga a ativação de canais de cálcio voltagem-dependentes,
com melhora clínica significativa em cerca de 85% dos pacientes. Em geral, o agente é
bem tolerado e efeitos colaterais, como parestesias, são discretos. A dose é de 10-20mg
três a quatro vezes ao dia, com risco aumentado de efeitos colaterais quando a dose
diária excede 100mg. Deve ser feito controle laboratoriais de função hepática, função
renal e hemograma a cada três meses durante o primeiro ano e com menor frequência a
partir de então. A droga pode ser obtida via importação da Europa.
Existem poucos estudos clínicos sobre terapia imunossupressora em síndrome
miastênica de Eaton Lambert e o uso de plasmaférese, corticosteroides, imunoglobulina
e Azatioprina no mesmo regime recomendado para miastenia gravis pode ser eficiente.

Botulismo
O botulismo é causado por uma toxina produzida por Clostridium botulinum,
organismo anaeróbio Gram-positivo encontrado comumente em terra e produtos
agrícolas. O C. botulinum é engolido, germina e se propaga no trato gastrointestinal,
produzindo toxina in vivo. O consumo de mel e xarope de milho foi associado ao
botulismo infantil, mas na maior parte dos casos a fonte de infecção não é evidente.

Pedro Kallas Curiati 1157


Oito toxinas imunologicamente distintas foram identificadas, com a doença em
humanos associada aos tipos A, B e E. As toxinas ligam-se a receptores nos terminais
pré-sinápticos do neurônio motor, são translocadas através da membrana e bloqueiam a
liberação de acetilcolina cálcio-dependente. A ação das toxinas parece independente da
entrada de cálcio. A lesão de terminais nervosos pode ser permanente e a prolongada
recuperação clínica parece depender da formação de novas junções neuromusculares.
Na população adulta, o quadro clínico clássico é caracterizado por turvação
visual, diplopia, ptose, disartria e disfagia doze a trinta e seis horas após a ingesta de
alimento contaminado. A ptose pode ocorrer em até um terço dos casos. Fraqueza de
padrão descendente se segue ao quadro, evoluindo, em alguns casos, para insuficiência
respiratória.
O botulismo, quando associado a ferida contaminada, surge quatro a quatorze
dias após a infecção com C. botulinum. Embora considerado raro, um número crescente
de casos têm sido reconhecidos em usuários de drogas, sendo um importante
diagnóstico diferencial nessa população. O organismo pode ser isolado diretamente
quando uma ferida óbvia está presente. Nesses casos, são indicados o desbridamento da
ferida e a terapia antibiótica.
O botulismo infantil tipicamente ocorre em crianças com idade entre seis
semanas e nove meses, com constipação severa seguida de fraqueza descendente, choro
e sucção débeis, expressões faciais reduzidas, fraqueza de membros, hipotonia,
hiporreflexia, ptose, oftalmoparesia e reflexo pupilar lento. Pode ocorrer febre por
envolvimento do sistema nervoso autônomo.
O diagnóstico de botulismo é confirmado por isolamento do organismo ou da
toxina em amostras biológicas, porém o estudo eletrofisiológico é útil para confirmar o
diagnóstico de distúrbio da junção neuromuscular pré-sináptico. Na
eletroneuromiografia de paciente com botulismo, observa-se avaliação normal do nervo
sensitivo, velocidade de condução motora preservada com diminuição da amplitude e
potenciais de fibrilação. No estudo específico da junção neuromuscular, a prova de
estímulo repetitivo com frequência baixa, de 2-5Hz, confirmará um defeito pré-
sináptico na transmissão neuromuscular, porém as respostas com padrão de decremento
são variáveis e a avaliação com frequência de 20-50Hz demonstra incrementos em geral
menos dramáticos que aqueles identificados na síndrome miastênica de Eaton Lambert.
No tratamento do botulismo, medidas de proteção do paciente melhoram os
índices de sobrevivência. A recuperação quase plena é esperada para os sobreviventes.
Uso de sonda nasoenteral e nutrição parenteral podem ser necessários. Ventilação
mecânica também pode ser exigida. Aminoglicosídeos e outros agentes que afetem a
transmissão neuromuscular devem ser usados com extrema cautela. O tratamento com
anti-toxina tem papel fundamental no botulismo, mas só é eficiente se administrado nas
primeiras 24-48 horas, já que a anti-toxina não reverte a paralisia estabelecida.

Síndromes miastênicas congênitas


As síndromes miastênicas congênitas constituem um grupo de distúrbios da
transmissão neuromuscular geneticamente determinados, não autoimunes e menos
comuns. Podem ser causadas por defeitos pré-sinápticos, sinápticos ou pós-sinápticos.
Dados de estudo eletrofisiológico podem sugerir síndromes miastênicas
congênitas.
Ao contrário da miastenia gravis e da síndrome miastênica de Eaton Lambert, as
síndromes miastênicas congênitas não são autoimunes, determinações de anticorpos são
negativas e terapias com imunossupressores são ineficientes.
A maior parte das síndromes miastênicas responde a tratamento com inibidores

Pedro Kallas Curiati 1158


da colinesterase, como a Piridostigmina, ou com Diaminopiridina.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 6: doenças dos olhos, doenças dos ouvidos, nariz e garganta, neurologia, transtornos mentais. – Barueri, SP:
Manole, 2009.
Goldman’s Cecil medicine / [edited by] Lee Goldman, Andrew I. Schafer.—24th ed. 2012.

Pedro Kallas Curiati 1159


NEUROPATIAS PERIFÉRICAS
O sistema nervoso periférico compreende os nervos cranianos, com a exceção do
nervo óptico, as raízes espinais, o gânglio dorsal, os troncos dos nervos periféricos, as
ramificações terminais e o sistema nervoso autônomo. As manifestações clínicas das
neuropatias periféricas variam amplamente. A confirmação do diagnóstico pode ser
feita pela eletroneuromiografia. Deve-se determinar a distribuição, que pode ser de
mononeuropatia, mononeuripatia múltipla ou polineuropatia, assim como o tipo de
acometimento periférico, que pode ser axonal ou desmielinizante. A análise
anatomopatológica pode revelar degeneração walleriana, desmielinização segmentar
e/ou degeneração axonal. Na desmielinização segmentar, a recuperação da função pode
ser rápida, pois o axônio está intacto, necessitando somente da sua remielinização. Por
outro lado, na degeneração walleriana e na degeneração axonal, a recuperação é mais
lenta, em meses ou anos, porque o axônio deve primeiro regenerar-se e reconectar-se ao
músculo.

Mononeuropatia
O termo mononeuropatia indica lesão focal de um único nervo periférico. As
causas mais frequentes são trauma e compressão focal.
A mononeuropatia mais comum é a síndrome do túnel do carpo, causada pela
compressão do nervo mediano. A neuropatia do nervo ulnar, relacionada a sua
compressão no cotovelo, é a segunda causa mais comum de mononeuropatia. As
mononeuropatias focais também podem estar associadas a agentes etiológicos tóxicos e
metabólicos.
A eletroneuromiografia é indispensável para o diagnóstico, assim como para
localizar o sítio da lesão e determinar o grau de comprometimento. Pode evidenciar
quadro de mononeuropatia múltipla não diagnosticada clinicamente.

Mononeuropatia múltipla
A mononeuropatia múltipla está relacionada ao envolvimento de múltiplos
nervos periféricos com diferentes intensidades. Em alguns casos, pode progredir de
forma somatória, com evolução para déficit simétrico e confluente, que pode mimetizar
polineuropatia simétrica distal. As principais causas são vasculites, diabetes mellitus,
sarcoidose, crioglobulinemia, hanseníase, doença de Lyme, neuropatia hereditária com
suscetibilidade a pressão, infecção pelo HIV, invasão neoplásica de nervos ou raízes,
granulomatose linfomatoide, neuropatia multifocal com bloqueio de condução e
neurofibromatose.

Vasculites
As vasculites geralmente são sistêmicas e associadas a poliarterite nodosa,
síndrome de Churg-Strauss, granulomatose de Wegener ou doenças do tecido
conjuntivo, como artrite reumatoide, lúpus eritematoso sistêmico e síndrome de
Sjögren, mas podem ser restritas ao sistema nervoso periférico.
A neuropatia ocorre por envolvimento de vasos nutrientes do nervo por processo
inflamatório. A vasculite tende a ser focal, assimétrica e com desenvolvimento de
mononeuropatia múltipla. Na evolução, com o comprometimento progressivo, há uma
confluência dos nervos envolvidos. Também podem ocorrer polineuropatia periférica e
mononeuropatia isolada. Com frequência, as manifestações sensitivas predominam e

Pedro Kallas Curiati 1160


inauguram o quadro clínico, com aparecimento de déficit motor posteriormente.
O diagnóstico de um tipo particular de vasculite depende do quadro sistêmico e
o diagnóstico definitivo de uma neuropatia relacionada a vasculite depende da biópsia
de nervo. O vaso epineural é o local mais comumente acometido, com consequente
perda de fibras nervosas, sobretudo nas regiões centrais, com graus variáveis de lesão
axonal e desmielinização segmentar.
O tratamento é feito com Prednisona em altas doses, associada ou não a
Ciclofosfamida ou outro imunossupressor. A vasculite sistêmica tem uma alta taxa de
mortalidade, mas a neuropatia raramente é a causa do óbito.

Diabetes mellitus
As neuropatias focais e multifocais podem ocorrer no diabetes mellitus, embora
sejam mais raras.
Neuropatias de nervos cranianos em geral ocorrem em pacientes idosos, sendo a
alteração mais frequente a lesão isolada do terceiro nervo. O sexto nervo é afetado
menos comumente e o quarto nervo raramente é envolvido sozinho. Em geral, o início é
abrupto e pode ser indolor ou associado com cefaleia. A inervação pupilar com
frequência não é afetada na paralisia do terceiro nervo. A recuperação é a regra.
Excetuando a inervação da musculatura ocular extrínseca, o sétimo nervo é o mais
acometido.
Os nervos periféricos podem ser afetados de forma isolada ou associadamente.
Os mais comumente afetados são ulnar, mediano, radial, femoral, cutâneo lateral da
coxa e fibular. Em geral, o início é abrupto, com dor. A lesão normalmente situa-se no
mesmo local das paralisias por compressão. Também são descritos casos com dor no
tronco devido a radiculopatia.
A neuropatia motora proximal ou amiotrofia diabética cursa com dor e fraqueza
na extremidade proximal do membro inferior, acometendo os músculos iliopsoas,
quadríceps femoral e adutor da coxa, com preservação dos extensores da coxa e flexores
da perna. As manifestações podem ocorrer de um lado, regredir e aparecer do outro
lado. A lesão geralmente é microvasculite do plexo lombossacral ou das raízes nervosas.

Hanseníase
A hanseníase é uma doença infecciosa primária do sistema nervoso periférico
causada pelo Mycobacterium leprae. A lesão inicial é pápula ou mácula, geralmente
hipopigmentada, com diminuição da sensibilidade, decorrente de invasão dos nervos
cutâneos pelo bacilo.
A manifestação clínica é determinada pela resposta imunológica do hospedeiro.
A forma tuberculoide causa uma resposta celular, com formação de granuloma e lesão
do tecido. A forma lepromatosa causa uma resposta imunológica mínima, com
proliferação e disseminação do agente.
O sintoma principal é a perda sensitiva, principalmente à dor e à temperatura,
acometendo nervos cutâneos e mistos em partes do corpo com temperatura
relativamente baixa. A perda sensitiva é acompanhada de perda da função motora
devido à invasão de nervos próximos da pele, sendo o nervo ulnar o mais acometido.
O diagnóstico é feito pela biópsia de pele ou nervo.
O tratamento é feito com sulfonas, sendo a Dapsona a mais utilizada. Nas formas
reacionais tipos I e II, os corticosteroides são empregados no tratamento da neurite.

Doença de Lyme
A doença de Lyme é causada pela Borrelia burgdorferi, transmitida por um

Pedro Kallas Curiati 1161


carrapato. A doença tem três estágios, com erupção cutânea ao redor da picada,
disseminação precoce e disseminação tardia. A neuropatia periférica pode ocorrer nas
disseminações precoce e tardia.
O envolvimento neurológico precoce causa meningismo, acometimento de
nervos cranianos, sendo a neuropatia do nervo facial a mais comum, e acometimento
das raízes espinais, com dor de distribuição radicular e, após, fraqueza muscular,
geralmente assimétrica. O tratamento com Ceftriaxone ou Penicilina leva à recuperação.
Nos estágios avançados, a polineuropatia é distal, leve ou com dor radicular. Ao
contrário dos sintomas precoces, a neuropatia periférica tardia não melhora, a menos
que seja tratada.

Polineuropatias
Na maioria das polineuropatia ocorre alteração da função dos nervos periféricos
de modo simétrico, distal e bilateral. Em caso de envolvimento de raízes espinais ou
raízes e troncos dos nervos periféricos, podem ser usados os termos polirradiculopatia
ou polirradiculoneuropatia, respectivamente.
A fraqueza muscular pode ser decorrente de desmielinização segmentar,
interrupção axonal ou destruição do neurônio motor, sendo o grau de fraqueza
proporcional ao número de neurônios motores alfa afetados.
A maioria das polineuropatias tem distribuição característica, com acometimento
inicial e mais grave dos músculos dos pés e das pernas e mais tardio e menos intenso
dos músculos das mãos e dos antebraços, como nas neuropatias nutricionais,
metabólicas e tóxicas. Esse comportamento justifica-se por lesão primária do corpo
celular do neurônio, com diminuição da síntese proteica e consequente falência de
suprimento para as partes mais distais dos axônios. Decorre desse mecanismo a atrofia
muscular, que também é intensa quando há lesão axonal. Nas neuropatias
desmielinizantes, a atrofia é mais discreta, sendo consequente ao desuso dos músculos.
A hipotonia muscular geralmente acompanha os quadros em que o comprometimento
periférico é importante e deve-se à interrupção do arco reflexo espinal.
A perda dos reflexos profundos na neuropatia periférica é comum. A presença de
fasciculações e cãibras não é um achado importante na maioria das polineuropatias.
Fasciculações podem ocorrer em algumas neuropatias crônicas e ocasionalmente em
radiculopatias crônicas.
A sensibilidade está mais comprometida nos segmentos distais dos membros,
frequentemente assumindo a forma de “bota” e “luva” e acometendo mais os membros
inferiores que os superiores. Na maioria das polineuropatia, todas as modalidades
sensitivas estão comprometidas e, à medida que a doença progride, há hipoestesia ou
anestesia nas partes proximais dos membros e do tronco. Outro padrão de perda
sensitiva, frequente nas neuropatias com comprometimento de axônios mielínicos finos
e amielínicos, é hipoestesia térmica e dolorosa com preservação da sensibilidade tátil
vibratória e cineticopostural. Nas neuropatias em que o maior comprometimento é das
grandes fibras mielínicas, há perda da sensibilidade tátil, enquanto que as sensibilidades
térmica e dolorosa estão preservadas.
Parestesias são frequentemente referidas como queimação ou formigamento,
podendo ocorrer no território de um nervo periférico ou, na polineuropatia simétrica,
com padrão de “bota” e “luva”. Hiperestesia é sensibilidade aumentada a um estímulo.
Hiperpatia é uma resposta dolorosa, desagradável, a um estímulo nocivo,
principalmente se repetido. Esses fenômenos ocorrem em lesão parcial do nervo
periférico ou durante recuperação da injúria nervosa.
Ataxia sensitiva pode resultar de deaferentação proprioceptiva, ocorrendo em

Pedro Kallas Curiati 1162


casos com perda de fibras grossas. Quando a deaferentação acomete os membros
superiores e a força muscular é preservada, pode-se observar movimentos
pseudoatetóticos dos dedos se os membros são mantidos estendidos com o paciente com
os olhos fechados. Fenômeno semelhante pode ocorrer nos membros inferiores. Tremor
pode estar presente em algumas neuropatias, principalmente nos membros superiores,
quando estendidos ou em movimento.
Atrofia por denervação é o principal distúrbio trófico decorrente da interrupção
dos nervos motores. A presença de deformidades em pés, mãos e coluna é frequente em
polineuropatia crônicas, sobretudo nas que se iniciam na infância. Analgesia das partes
distais as torna susceptíveis a queimaduras, escaras de decúbito e outras formas de
lesão. Osteoartropatia neurogênica de Charcot caracteriza-se por deformidades
articulares, ausência de manifestações álgicas e, geralmente, início súbito e
desenvolvimento rápido.
Manifestações de disfunção autonômica incluem hipotensão postural com
tontura ou síncope, atonia de bexiga, obstipação, boca e olhos secos, disfunção erétil e
alterações pupilares. Hipertensão paroxística, taquicardia ou bradicardia, hiperidrose e
diarreia são ocasionais. Nas polineuropatia distais com envolvimento autonômico, os
achados mais comuns são as alterações de sudorese e a instabilidade circulatória.
A maioria das polineuropatias compromete tanto as fibras grossas como as fibras
finas, mas em algumas etiologias um grupo de fibras é predominantemente acometido.
Como a maioria dos axônios motores é composta de fibras grossas, a presença de
fraqueza e atrofia muscular indica seu envolvimento. A propriocepção, a sensibilidade
palestésica e o arco aferente dos reflexos miotáticos também são conduzidos por fibras
sensitivas grossas. Por outro lado, a sensibilidade térmica e dolorosa, assim como a
função autonômica periférica, são mediadas por fibras sensitivas finas. Portanto, as
polineuropatias sensitivas de fibras finas também se apresentam com sintomas
sensitivos positivos, como dor e disestesia. Causas possíveis de polineuropatia de fibras
finas incluem diabetes mellitus, amiloidose e infecção pelo HIV. A menos que a doença
de base seja identificada, o tratamento usualmente é sintomático e dirigido para a dor do
paciente.
Sinais do envolvimento do sistema nervoso autônomo geralmente ocorrem no
contexto das polineuropatias generalizadas, como a polineuropatia diabética e a
síndrome de Guillain-Barré. Raramente, ocorre uma síndrome adquirida de
pandisautonomia de provável etiologia imunológica.

Polineuropatias agudas – Síndrome de Guillain-Barré


A síndrome de Guillain-Barré é caracterizada clinicamente por déficit motor
progressivo, em geral ascendente, de instalação aguda, acompanhado de arreflexia, com
ou sem alteração sensitiva, com recuperação precoce e espontânea. Com base em
estudos patológicos e eletroneurofisiológicos, pode ser dividida em predominantemente
desmielinizante ou axonal. Atualmente, sob a denominação síndrome de Guillain-Barré,
estão incluídas formas distintas da doença, que incluem polirradiculoneurite aguda
inflamatória desmielinizante, neuropatia aguda axonal sensitivo-motora e neuropatia
aguda axonal motora. Além dessas formas, são descritas outras variantes com outro
quadro clínico predominante, como a síndrome de Miller-Fisher e a neuropatia aguda
pandisautonômica.
A síndrome de Guillain-Barré é a causa mais frequente de fraqueza generalizada
de instalação aguda não-traumática. Ocorre em todas as faixas etárias, com um pico em
adultos jovens e outro entre a quinta e a sétima décadas de vida. Há um discreto
predomínio no sexo masculino.

Pedro Kallas Curiati 1163


Em aproximadamente dois terços dos casos, a síndrome de Guillain-Barré é
precedida em uma a três semanas por eventos como infecção de vias aéreas superiores,
diarreia por Campylobacter jejuni, mal-estar, pneumonia por Mycoplasma pneumoniae,
infecção pelo citomegalovírus ou pelo vírus Epstein-Barr, doença de Hodgkin, cirurgia,
lúpus eritematoso sistêmico e vacinação. Outras associações descritas incluem hepatite
viral, infecção por micoplasma, doença de Lyme, sarcoidose e infecção pelo vírus HIV.
Os pacientes geralmente apresentam infecção respiratória ou gastrointestinal
aguda com duração de poucos dias. Após uma a três semanas, desenvolve-se um quadro
de paralisia ascendente. Inicialmente, os membros inferiores são envolvidos e, após
alguns dias, os membros superiores. A fraqueza em geral acomete tanto músculos
proximais como músculos distais no mesmo membro. Instalação descendente, com
início nos membros superiores e na face, também pode ocorrer. Cerca de um terço dos
pacientes pode evoluir com insuficiência respiratória, com necessidade de ventilação
mecânica, e cerca de metade dos pacientes apresenta envolvimento de nervos cranianos,
principalmente do nervo facial. Metade dos pacientes desenvolve déficit orofaríngeo e
10-20% têm envolvimento da motricidade ocular extrínseca. A fraqueza muscular é
relativamente simétrica, acompanhada de arreflexia ou hiporreflexia. Embora os
sintomas sejam predominantemente motores, o paciente, em geral, tem discreta
alteração sensitiva, que pode inaugurar o quadro. Cerca de metade dos pacientes tem
disfunção autonômica, com flutuação da pressão arterial, arritmias cardíacas, disfunção
gastrointestinal, retenção urinária e edema pulmonar neurogênico. O grau máximo de
incapacidade ocorre geralmente entre uma e quatro semanas. O ponto de maior déficit
neurológico é seguido por uma fase de platô durante duas a quatro semanas e, após, por
uma recuperação em poucos meses. Após seis meses de evolução da doença, 85% dos
pacientes já voltaram a deambular, mas somente 15% ficam sem nenhum déficit
residual. As causas mais comuns de mortalidade incluem falência respiratória, sepse,
embolia pulmonar e disautonomia.
A síndrome de Miller-Fisher é caracterizada por oftalmoplegia, ataxia e
arreflexia na ausência de fraqueza muscular importante. É considerada uma variante da
síndrome de Guillain-Barré por apresentar início agudo, curso monofásico, recuperação
posterior e aumento da proteinorraquia no líquor sem pleocitose. Na maior parte dos
pacientes, há evidência de infecção uma a três semanas antes do início das
manifestações neurológicas. A oftalmoplegia evolui em um a três dias, sendo, em geral,
grave, completa e relativamente simétrica. Alguns pacientes têm ptose. A função pupilar
é normal. Pode ocorrer parestesia distal. A síndrome de Miller-Fisher está associada a
anticorpos IgG anti-gangliosídeo GQ1b, que tem alta concentração no III, no IV e no VI
nervos cranianos. Embora não ocorram em pacientes com síndrome de Guillain-Barré
típica, esses anticorpos são encontrados em pacientes com oftalmoplegia aguda pós-
infecciosa e nos pacientes com síndrome de Guillain-Barré com oftalmoplegia.
A neuropatia pandisautonômica aguda é descrita juntamente com a síndrome de
Guillain-Barré em razão de início agudo, dissociação proteíno-citológica no líquor,
inflamação perivascular no nervo sural em alguns casos e frequente antecedente de
infecção. A falência autonômica geralmente acomete os sistemas simpático e
parassimpático. As manifestações mais comuns são hipotensão postural, sintomas
gastrointestinais, como náusea, vômitos, diarreia, obstipação e dor abdominal,
intolerância ao calor por diminuição da sudorese, visão borrada, olhos secos, retenção
urinária e impotência. Os reflexos podem estar diminuídos e um quarto dos pacientes
tem alteração sensitiva distal. A recuperação pode ser completa, mas em muitos casos é
gradual e incompleta.
Após uma semana de evolução, observa-se no líquor aumento da concentração

Pedro Kallas Curiati 1164


de proteína, que atinge seu máximo entre a quarta e a sexta semanas, com celularidade
normal. O número de células no líquor deve ser inferior a 10 leucócitos por mm3. Se o
número de células for superior a 50 por mm3, deve-se considerar outras doenças de
base, como infecção por HIV, doença de Lyme e sarcoidose.
As alterações da condução nervosa que refletem desmielinização, como aumento
da latência motora distal, dispersão temporal do potencial evocado motor, bloqueio de
condução parcial ou completo e aumento do tempo de latência da onda F, são os
achados de exames complementares mais sensíveis e específicos. Ocorrem primeiro e
mais frequentemente que a elevação da proteinorraquia. Na primeira semana, entretanto,
o estudo da condução nervosa geralmente revela alterações mínimas. Após duas a
quatro semanas, são observados sinais de desnervação nos músculos acometidos,
indicando um certo grau de degeneração axonal secundária. Nas formas axonais, a
amplitude dos potenciais evocados motores diminuem nos primeiros dias, podendo
posteriormente se tornar inexcitáveis, mas não há alterações indicativas de
desmielinização.
Anticorpos para vários gangliosídeos, como GM1, GM1b e GD1a, têm sido
documentados na síndrome de Guillain-Barré. Anticorpos contra gangliosídeo GM1 são
encontrado em grande porcentagem nos pacientes com antecedente de infecção por
Campylobacter jejuni.
O primeiro ponto a ser considerado no tratamento da síndrome de Guillain-Baré
é a terapêutica de suporte, com fisioterapia adequada e monitorização da evolução da
doença, especificamente quanto a comprometimento respiratório, bulbar e autonômico.
Progressiva fraqueza dos músculos flexores do pescoço tem forte correlação com o
desenvolvimento de falência respiratória. A capacidade vital forçada deve ser
monitorada, sendo que valores abaixo de 15-20mL/kg requerem intubação endotraqueal.
Medidas preventivas para trombose venosa profunda e embolia pulmonar também
devem ser consideradas, com indicação de quimioprofilaxia e métodos mecânicos para
os pacientes acamados. A monitorização das funções do sistema nervoso autônomo é
essencial, especialmente em pacientes com déficit motor importante, com avaliação da
flutuação da pressão arterial, da ocorrência de arritmias cardíacas, do desenvolvimento
de edema pulmonar neurogênico, de sinais de pseudo-obstrução gastrointestinal e da
instalação de retenção urinária.
Eletrocardiograma, pressão arterial, oximetria de pulso, capacidade vital e
deglutição devem ser monitorizados regularmente em pacientes com doença severa,
com reavaliação a cada duas a quatro horas se a doença está progredindo ou a cada seis
a doze horas se a doença está estável.
Mesmo na ausência de desconforto respiratório, intubação orotraqueal e
ventilação mecânica podem ser necessárias em caso de um critério maior, como
hipercarbia superior a 48mmHg, hipoxemia inferior a 56mmHg e capacidade vital
inferior a 15mL/kg, ou dois critérios menores, como tosse não-efetiva, prejuízo da
deglutição e atelectasia. Descontaminação seletiva do trato gastrointestinal reduz o
tempo que os pacientes permanecem em ventilação mecânica.
Plasmaférese ou imunoglobulina intravenosa devem ser administrados em
pacientes que não são capazes de deambular sem assistência.
A plasmaférese foi o primeiro tratamento considerado comprovadamente eficaz
na síndrome de Guillain-Barré. Fatores humorais, incluindo anticorpos,
imunocomplexos, complemento e outros mediadores inflamatórios são removidos
mecanicamente. Atualmente, é indicada nos pacientes com déficit motor predominante.
O número ideal de sessões é arbitrário, sendo, em geral, quatro a seis, com retirada de
200-250mL/kg de plasma em sete a dez dias. Pacientes com síndrome de Miller-Fisher

Pedro Kallas Curiati 1165


e neuropatia disautonômica aguda também têm se beneficiado com a plasmaférese. É
considerada uma terapêutica segura, apesar da presença de disfunção autonômica em
muitos pacientes, o que pode dificultar sua realização. A utilização de veia periférica é
mais segura, embora muitas vezes torne-se necessário o emprego de cateteres
intravenosos de duplo lúmen, com eventual risco de pneumotórax, sangramento e
infecção. Frequentes sessões de plasmaférese podem causar anemia, plaquetopenia e
depleção de fatores da coagulação.
Vários trabalhos evidenciaram a ação benéfica da imunoglobulina intravenosa na
dose de 2g/kg, dividida em cinco dias, com eficácia igual à da plasmaférese. Possíveis
mecanismos do efeito benéfico da imunoglobulina são bloqueio de receptores das
células T, bloqueio de receptores dos macrófagos e ativação anti-idiotípica. Os efeitos
colaterais que podem ocorrer são febre, mialgia, hipertensão arterial, náusea, vômitos,
cefaleia, neutropenia e meningite asséptica. O quadro mais severo é a necrose tubular
aguda e deve-se sempre dosar o nível sérico de IgA para evitar um choque anafilático
em paciente com déficit de IgA. Contraindicações incluem baixos níveis séricos de IgA,
insuficiência renal e hipertensão arterial sistêmica acentuada.
Alguns estudos demonstraram a ação benéfica da associação de imunoglobulina
intravenosa com Metilprednisolona 500mg/dia por cinco dias.
Em pacientes com piora após melhora ou estabilização iniciais, pode-se repetir o
tratamento, preferencialmente com a mesma modalidade utilizada.

Polineuropatias agudas – Outras


Na porfiria aguda intermitente, de caráter autossômico dominante, o quadro
clínico é caracterizado por ataques agudos, inicialmente com sintomas abdominais,
como dor, náusea, vômitos e obstipação, acompanhados por taquicardia e hipertensão
arterial. Posteriormente, há alterações psíquicas, como confusão e delírio, convulsões e,
por fim, fase neurológica, com aparecimento de neuropatia, que é predominantemente
motora, axonal, com instalação aguda, semelhante à síndrome de Guillain-Barré.
Durante o ataque, precursores das porfirinas são excretados na urina. O tratamento
consiste em suporte respiratório, uso de β-bloqueadores se taquicardia e hipertensão
arterial graves e infusão de glicose por via intravenosa para suprimir a biossíntese do
heme. A administração de heme na forma de hematina para suprimir a ação da enzima
ALA-sintetase no fígado também é indicada.
Cerca de 20-50% dos pacientes admitidos na unidade de terapia intensiva podem
desenvolver polineuropatia do doente crítico. Trata-se de polineuropatia motora axonal
consequente à síndrome da resposta inflamatória sistêmica. O quadro costuma melhorar
se o paciente sobrevive à doença de base. Do ponto de vista clínico, o paciente
apresenta tetraparesia, arreflexia profunda e manutenção e prolongamento da
insuficiência respiratória, com dificuldade para desmame do aparelho de suporte
ventilatório. O exame eletroneuromiográfico revela envolvimento axonal, além de
permitir o estudo do grau de comprometimento do nervo frênico e da musculatura do
diafragma. A biópsia do nervo revela degeneração axonal das fibras motoras e
sensitivas, sem evidência de infiltrado inflamatório.
Outras causas menos comuns de neuropatia aguda são difteria, vasculites,
neuropatia paraneoplásica e poliomielite.

Polineuropatias desmielinizantes crônicas


As neuropatias desmielinizantes hereditárias podem ser divididas em dois
subgrupos, aquelas relacionadas a defeitos metabólicos específicos e aquelas em que a
patogênese ainda não está definida. Esse último grupo pode ser subdividido em

Pedro Kallas Curiati 1166


neuronopatias motoras hereditárias, como a atrofia espinal hereditária, neuronopatias
sensitivo-motoras hereditárias, como a doença de Charcot-Marie-Tooth, neuropatias
autonômicas e sensitivas e outros grupos menores. Entre as neuropatias hereditárias
associadas a defeitos metabólicos específicos estão incluídas leucodistrofia
metacromática, doença de Krabbe, doença de Refsum, doença de Fabry, doença de
Tangier, neuropatia amiloidótica hereditária e porfiria hepática hereditária. A doença de
Charcot-Marie-Tooth tipo I é doença geneticamente heterogênea, com formas
autossômicas dominantes, caracterizada por uma fraqueza distal, lentamente
progressiva, acometendo, sobretudo, os músculos fibulares e tibiais anteriores, que se
torna sintomática entre a segunda e a quarta décadas de vida, comumente associada a
deformidades dos pés, arreflexia e perda sensitiva distal, com ataxia dos membros
superiores ou tremor e hipertrofia dos nervos periféricos em um terço dos pacientes. A
doença de Charcot-Marie-Tooth tipo III, ou doença de Dejerine-Sottas, é uma
neuropatia de caráter autossômico recessivo, de início geralmente antes dos dois anos de
idade, com manifestações clínicas mais marcantes.
As neuropatias desmielinizantes adquiridas constituem um grupo heterogêneo
em que se encontra a maioria das neuropatias mediadas pelo sistema imunológico.
A polirradiculoneurite crônica é uma polineuropatia desmielinizante adquirida,
provavelmente de natureza imunológica. O diagnóstico é fundamentado em critérios
clínicos, laboratoriais, eletroneuromiográficos e anatomopatológicos, apresentando
algumas semelhanças com a síndrome de Guillain-Barré. Entretanto, as duas entidades
diferem no seu curso, na presença de fatores predisponentes, no prognóstico e na
resposta ao tratamento. A instalação da doença, em geral, é lentamente progressiva ou
com períodos de flutuação da fraqueza muscular. O curso pode ser recidivante,
progressivo ou monofásico, sendo dois meses o tempo mínimo de evolução da doença,
e, em raros casos, pode evoluir para remissão. Não há associação frequente com fatores
predisponentes. Na forma idiopática, o quadro clínico caracteriza-se por déficit motor
geralmente simétrico acometendo tanto a musculatura proximal como a distal, em geral
com início em membros inferiores e raramente com evolução para insuficiência
respiratória. O envolvimento sensitivo é frequente, com parestesias distais e dor em pés
e mãos. O exame físico revela hipoestesia distal em “bota” e “luva”, com
comprometimento de sensibilidade superficial e profunda. Em geral, há arreflexia
generalizada, que se inicia nos membros inferiores e, posteriormente, acomete os
membros superiores nos casos lentamente progressivos. Os nervos cranianos podem ser
acometidos com frequência variável. A desmielinização é caracterizada, do ponto de
vista eletroneuromiográfico, por diminuição da velocidade de condução nervosa motora,
aumento do tempo de latência distal do potencial evocado motor e aumento do tempo de
latência da onda F. A dispersão temporal do potencial evocado motor também ocorre. O
bloqueio de condução é a alteração mais importante para a fisiopatologia da doença.
Como na síndrome de Guillain-Barré, encontra-se dissociação proteíno-citológica do
líquor obtido por punção lombar. Quando ocorre pleocitose, deve-se suspeitar de
associação com outras afecções, como infecção pelo HIV. As alterações
anatomopatológicas são multifocais, predominando proximalmente ou ocorrendo de
forma difusa desde a raiz nervosa até o nervo periférico, sendo possível assim o estudo
por meio da biópsia de um nervo sensitivo periférico, que só deve ser realizada em caso
de dúvida diagnóstica. O objetivo do tratamento é modular a resposta imune anormal e
suprimir a atividade da doença. O uso de corticosteroides, com Prednisona 1mg/kg/dia
por períodos prolongados, foi a primeira terapêutica que se mostrou eficaz no
tratamento da polirradiculoneurite crônica, mas pode levar a vários efeitos colaterais,
sendo que, durante o desmame, quanto mais lenta a redução da dose e menor o

Pedro Kallas Curiati 1167


decremento, menor será a chance de recidiva, que indica reintrodução da dose inicial do
tratamento. No serviço de neuropatias periféricas do HC-FMUSP, o emprego de
corticosteroides na forma de pulsos mensais de Metilprednisolona 1g/dia por via
intravenosa durante três dias tem se mostrado eficaz, além de não causar efeitos
colaterais importantes, como se observa com o uso de corticosteroides por via oral em
altas doses. Quando a resposta terapêutica não é adequada nos primeiros três pulsos
com Metilprednisolona, a associação com Ciclofosfamida em pulsos tem sido
empregada com boa resposta. O efeito benéfico da plasmaférese na polirradiculoneurite
crônica é descrito e alguns pacientes tornam-se dependentes, com piora após a retirada
do tratamento, podendo-se associar corticosteroides ou outros imunossupressores para
auxiliar na diminuição da frequência das sessões. Imunoglobulina policlonal
intravenosa na dose de 400mg/kg/dia durante cinco dias consecutivos, também parece
causar melhora clínica em alguns pacientes, tendo como vantagem em relação à
plasmaférese a via de administração mais simples. Entretanto, devido ao curso crônico
da doença, para a manutenção da melhora clínica, essa terapêutica deve ser repetida
mensalmente, o que a torna muito dispendiosa em longo prazo.
Várias entidades clínicas podem estar associadas a polirradiculoneurite crônica,
como lúpus eritematoso sistêmico, diabetes mellitus, síndrome nefrótica, tireotoxicose,
hepatite B, infecção pelo vírus da imunodeficiência humana, gamopatia monoclonal de
significado indeterminado, mieloma múltiplo, síndrome de POEMS, macroglobulinemia
de Waldenström e doença de Castleman. Se uma entidade imunoproliferativa for
encontrada, o tratamento deve ser direcionado para a doença de base e não para a
neuropatia associada. Outras variantes da polirradiculoneurite crônica incluem a
neuropatia desmielinizante simétrica distal adquirida e a neuropatia desmielinizante
sensitivo-motora multifocal adquirida. A neuropatia desmielinizante simétrica distal
adquirida caracteriza-se por polineuropatia simétrica crônica distal, sensitivo-motora,
com predomínio no sexo masculino, iniciando-se geralmente a partir da sexta década de
vida, com sinais de desmielinização na eletroneuromiografia e, na maioria dos casos,
presença de gamopatia monoclonal IgM e anticorpos anti-glicoproteína associada a
mielina (anti-MAG), sem boa resposta ao tratamento imunossupressor. A neuropatia
desmielinizante sensitivo-motora multifocal adquirida é caracterizada por
mononeuropatia múltipla sensitivo-motora crônica de início insidioso e progressão
lenta, com início nos membros superiores e, posteriormente, acometimento dos
membros inferiores, podendo ocorrer envolvimento de nervos cranianos e diminuição
ou ausência dos reflexos profundos, sem associação com anticorpos anti-GM1, mas com
aumento da proteína no líquor na maior parte dos pacientes. O estudo eletrofisiológico
revela sinais de desmielinização e há boa resposta ao tratamento com imunoglobulina e
corticosteroides.
A neuropatia motora multifocal é uma neuropatia crônica adquirida mediada
pelo sistema imunológico, desmielinizante, caracterizada clinicamente por déficit motor
assimétrico e atrofia na distribuição dos vários nervos periféricos. O diagnóstico é
baseado no acometimento seletivo e multifocal das fibras motoras em associação com
os achados eletroneuromiográficos de desmielinização e perda axonal. Há predomínio
no sexo masculino e a idade do acometimento varia da segunda a oitava décadas de
vida. O quadro clínico caracteriza-se por déficit motor lentamente progressivo, distal e
assimétrico, que frequentemente se inicia nas mãos e, com menor frequência,
distalmente nos membros inferiores. Os pacientes podem desenvolver sinais
eletroneuromiográficos de lesão axonal, provavelmente secundária à desmielinização
crônica. Os reflexos miotáticos podem estar diminuídos, mas em geral estão
preservados nas regiões não afetadas. Os sintomas e sinais sensitivos não ocorrem e o

Pedro Kallas Curiati 1168


acometimento dos nervos cranianos e a falência respiratória são incomuns. Ao contrário
da polirradiculoneurite crônica, o nível da proteína no líquor na neuropatia motora
multifocal é normal. Parcela significativa dos pacientes têm anticorpos IgM policlonais
anti-gangliosídeos, principalmente anti-GM1, o que não é necessário para o diagnóstico.
O estudo da condução nervosa sensitiva geralmente é normal e o bloqueio de condução
ocorre no axônio motor. Outros sinais de desmielinização também podem estar
presentes. Ao contrário da polirradiculoneurite crônica, poucos pacientes com
neuropatia motora multifocal melhoram com corticosteroides e plasmaférese e alguns
podem até piorar com esse tratamento. A Ciclofosfamida foi o primeiro
imunossupressor que se mostrou eficaz no tratamento da neuropatia motora multifocal,
mas, atualmente, a imunoglobulina é o tratamento de escolha.
Neuropatias associadas a paraproteínas constituem um grupo heterogêneo,
incluindo, além das neuropatias desmielinizantes, formas axonais e formas mistas. A
maioria das gamopatia ocorre em associação com uma gamopatia monoclonal de
significado indeterminado, mas em alguns pacientes a neuropatia está associada a
mieloma múltiplo, síndrome de POEMS, amiloidose sistêmica, macroglobulinemia e
linfoma.

Polineuropatias axonais crônicas


Essa é a variedade mais comum de polineuropatias e compreende um número
maior de etiologias. A causa mais comum é o diabetes mellitus.
Em relação às neuropatias hereditárias, a doença de Charcot-Marie-Tooth tipo II
tem quadro clínico semelhante ao tipo I, com início mais tardio, mas está associada a
lesão axonal. A herança é predominantemente autossômica dominante, embora formas
recessivas tenham sido descritas.
As causas mais comuns de neuropatia devido a doenças metabólicas são diabetes
mellitus, doença renal crônica, insuficiência hepática, hipotireoidismo e acromegalia.
Essas neuropatias geralmente são axonais, com comprometimento sensitivo-motor,
embora os sintomas sensitivos predominem. O quadro clínico mais frequente é o de
polineuropatia sensitivo-motora progressiva e simétrica, com predomínio de disestesia
nos pés e déficit motor leve. O acometimento autonômico é raro.
A neuropatia diabética é a neuropatia periférica que ocorre como complicação
do diabetes mellitus. Pode se apresentar na forma de polineuropatia ou de neuropatia
focal ou multifocal. A polineuropatia pode ser sensitiva, sensitivo-motora, motora aguda
ou subaguda ou autonômica. A polineuropatia sensitiva é a forma mais frequente, com
sintomas relativamente discretos na maioria dos casos, podendo o exame físico revelar
anormalidades na ausência de sintomas. Os sinais mais precoces são a perda do reflexo
aquileu e a diminuição da sensibilidade palestésica dos pés. Quando os sintomas
acompanham os sinais, consistem em dormência e, às vezes, parestesias nos pés.
Sintomas nas mãos são menos comuns. Dor nos membros inferiores é frequente, com
piora à noite. Às vezes, a neuropatia sensitiva é intensa, de instalação rápida ou
insidiosa, com diminuição da sensibilidade cutânea distalmente nos quatro membros e
perda da sensibilidade profunda. A ataxia sensitiva pode desenvolver-se, com marcha
talonante, e a perda da sensibilidade dolorosa contribui para o desenvolvimento de
úlceras perfurantes e artropatia nos pés. Sintomas de envolvimento autonômico incluem
disfunção pupilar e lacrimal, hipotensão postural, alteração da sudorese e dos reflexos
vasculares, atonia do trato gastrointestinal, diarreia, atonia vesical, ejaculação retrógrada
e impotência sexual. O quadro de ataxia, perda da sensibilidade profunda e atonia
vesical com discreta fraqueza dos membros assemelha-se à tabes dorsal. Certo grau de
fraqueza muscular distal e atrofia, em especial nos membros inferiores, geralmente

Pedro Kallas Curiati 1169


acompanha a polineuropatia sensitiva simétrica. Há descrições de neuropatia motora
aguda ou subaguda relacionada a diabetes mellitus, com boa recuperação, devendo ser
feito diagnóstico diferencial com síndrome de Guillain-Barré. Como há relação entre
lesão de nervos periféricos e controle inadequado do diabetes mellitus, o ponto principal
do tratamento é a manutenção da glicemia relativamente normal. O quadro álgico pode
ser importante e várias drogas, como Carbamazepina, Gabapentina e antidepressivos
tricíclicos são recomendadas para o tratamento.
As neuropatias tóxico-carenciais podem estar relacionadas a drogas, toxinas,
álcool e déficit de vitaminas B1, B6, B12 e E.
A maioria das neuropatias causadas por drogas é predominantemente distal,
simétrica e sensitivo-motora. Os sintomas sensitivos geralmente predominam e a dor é
comum. A eletroneuromiografia e o padrão histológico sugerem degeneração axonal
sem características específicas e, portanto, a biópsia de nervo não é diagnóstica. Quando
a exposição à droga cessa, o paciente piora um pouco antes de começar a melhorar. A
recuperação ocorre em meses e geralmente é incompleta. As principais drogas que
causam neuropatia incluem Amiodarona, Cloranfenicol, Cloroquina, Colchicina,
Dapsona, Disulfiram, Etambutol, Hidralazina, Isoniazida, Metronidazol,
Nitrofurantoína, Óxido Nitroso, Nucleosídeos, Fenitoína, Cisplatina, Piridoxina,
Suramin, Taxol, Talidomida e Vincristina. A Isoniazida aumenta a excreção de
Piridoxina e, portanto, a sua reposição previne o aparecimento de neuropatia. Por outro
lado, doses muito elevadas de Piridoxina causam neuropatia sensitiva atáxica.
A chave para o diagnóstico de uma neuropatia causada por metais é o
reconhecimento do quadro sistêmico, com comprometimento hematológico ou não, que
acompanha a síndrome periférica. Na neuropatia por arsênico, além da polineuropatia
periférica sensitivo-motora, há pancitopenia, alterações digestivas, como dores
abdominais, vômitos e diarreia, e alterações cutâneas, como hiperqueratose das regiões
palmar e plantar, melanose, alopecia e estrias transversas esbranquiçadas em unhas. Na
neuropatia por chumbo, relacionada a lesão axonal, além da neuropatia periférica
predominantemente motora, com predileção pelo nervo radial, há dor abdominal,
anemia e linha plúmbica na margem das gengivas. Na neuropatia por tálio, além da
neuropatia periférica sensitivo-motora predominantemente sensitiva, distal e dolorosa,
há sintomas gastrointestinais e alopecia. O diagnóstico das neuropatias periféricas
causadas por metais é feito pelo nível sérico elevado do metal no sangue, na urina, no
cabelo ou nas unhas. O tratamento é feito com parada da exposição ao agente e
utilização de agentes quelantes. Outras toxinas relacionadas a neuropatias incluem
acrilamida, dissulfeto de carbono, óxido de etileno, hexacarbono, mercúrio e
organofosforados.
Neuropatia alcoólica acomete, sobretudo, os membros inferiores, é
predominantemente sensitiva e cursa com hiperestesia nos pés, abolição dos reflexos
aquileus e leve déficit motor de força distal. O tratamento da neuropatia consiste em
parar o consumo de álcool e manter uma nutrição adequada. A melhora é gradual,
ocorrendo em meses, podendo ser incompleta.
Deficiência de vitamina B1 ou tiamina causa beribéri, cujo quadro clínico é
caracterizado por insuficiência cardíaca e polineuropatia periférica, que é distal e
axonal, com sintomas sensitivos como principal manifestação e ocorrência de déficit
motor com a evolução. Deficiência de vitamina B6 ou piridoxina causa neuropatia
periférica e está comumente relacionada ao uso de Isoniazida para o tratamento da
tuberculose. Deficiência de vitamina B12 ou cobalamina pode estar relacionada a falta
de oferta, alterações gástricas e distúrbios absortivos, com polineuropatia leve associada
a mielopatia com lesão das colunas posterior e lateral. Deficiência de vitamina E causa

Pedro Kallas Curiati 1170


síndrome espino-cerebelar e arreflexia, ataxia de marcha e de membros, diminuição da
sensibilidade vibratória e anartrestesia, com lesão periférica nos processos centrais dos
neurônios do gânglio da raiz dorsal.
Neuropatias sintomáticas ocorrem em pacientes HIV positivos, com maior
incidência quanto menor a contagem de linfócitos T CD4 positivos e maior a
imunodeficiência. Nos quadros tardios da doença, o quadro mais comum é uma
neuropatia distal dolorosa, principalmente nos pés, com alteração sensitiva mais
importante e comprometimento motor menor. Nos pacientes assintomáticos com
infecção pelo vírus HIV, muitas vezes na época da soroconversão, pode ocorrer quadro
de polirradiculoneurite aguda ou crônica semelhante ao que ocorre em pacientes HIV
negativos, exceto pela presença de pleocitose no líquor. Duas síndromes periféricas
causadas pelo citomegalovírus podem ocorrer nos estágios avançados da doença, a
mononeuropatia múltipla grave e a polirradiculoneuropatia lombossacral aguda.
A neuropatia relacionada ao vírus da hepatite C pode se manifestar como
polineuropatia sensitiva, polineuropatia sensitivo-motora ou mesmo mononeuropatia
múltipla. A reativação do vírus da varicela-zoster latente nos neurônios sensitivos do
gânglio da raiz dorsal ou dos gânglios cranianos causa inflamação com alteração
sensitiva no dermátomos e dor, podendo ocorrer neuralgia pós-herpética após a
resolução da lesão cutânea. Outras causas infecciosas importantes de neuropatia são a
hanseníase e a doença de Lyme.

Exames complementares
Testes básicos incluem hemograma, velocidade de hemossedimentação, proteína
C reativa, ácido fólico, vitamina B12, glicose, hemoglobina glicosilada, função renal,
função hepática, função tireoidiana, eletroforese de proteínas no sangue, urina 1,
eletroforese de proteínas na urina e radiografia ou tomografia computadorizada de tórax.
Testes específicos:
- Para doenças do tecido conjuntivo e vasculites, fator anti-núcleo, fator
reumatoide, anti-Ro, anti-La, ANCA e crioglobulinas;
- Para agentes infecciosos, sorologias para Campylobacter jejuni,
citomegalovírus, hepatites B e C, HIV, doença de Lyme e herpes-vírus;
- Para doenças do trato gastrointestinal, endoscopia e biópsia;
- Para metais pesados, testes em sangue, urina, cabelo e unha;
- Para afecções imunológicas, anticorpos anti-gangliosídeos e anticorpos
paraneoplásicos;
- Para doenças genéticas, testes genéticos moleculares;
- Líquido cefalorraquidiano;
- Biópsia de nervo;
- Biópsia de pele;
- Investigação de doenças malignas;
- Investigação de porfiria;
- Investigação de sarcoidose;

Bibliografia
Clínica Médica, volume 6: doenças dos olhos, doenças dos ouvidos, nariz e garganta, neurologia, transtornos mentais. – Barueri, SP:
Manole, 2009.
Goldman’s Cecil medicine / [edited by] Lee Goldman, Andrew I. Schafer.—24th ed. 2012.
N Engl J Med 2012;366:2294-304. Nobuhiro Yuki and Hans-Peter Hartung.

Pedro Kallas Curiati 1171


VERTIGEM
Conceitos
Define-se tontura como uma ilusão de movimento que pode adquirir inúmeras
características. Vertigem e tontura são sintomas que podem estar envolvidos em
disfunção de múltiplos sistemas. A diferenciação entre os dois sintomas é importante,
pois diferentes sensações correspondem ao acometimento de estruturas distintas.
Vertigem rotatória é caracterizada pela sensação de estar girando ou de que o
mundo gira ao seu redor, frequentemente com náusea, vômitos e desequilíbrio. Deve-se
quase sempre a comprometimento vestibular unilateral, periférico ou central.
Vertigem oscilatória é caracterizada por sensação de estar balançando ou de
perder o equilíbrio, raramente com náusea e vômitos. Pode estar relacionada a distúrbio
vestibular ou não-vestibular, inclusive de etiologia psicogênica.
Tontura de origem não-vestibular ou pré-síncope é caracterizada por mal-estar,
escurecimento visual, fraqueza e sensação de desmaio, com sintomas vagos e fraqueza
intensa, sem sensação de rotação ou desequilíbrio. Tem várias causas, como hipotensão
postural, arritmia cardíaca, doença cardíaca isquêmica, obstrução ao fluxo sanguíneo,
hipoglicemia e exposição a toxinas. De maneira geral, os sintomas são desencadeados
por redução do débito cardíaco e/ou alteração do metabolismo neuronal.
Não havendo a descrição de quadros de vertigem ou pré-síncope, deve-se
questionar se a tontura afeta o equilíbrio do paciente. Se a tontura for apenas um
sintoma referido e o equilíbrio estiver mantido, chama-se tontura tipo atordoamento,
cujas causas principais são psicológicas ou psiquiátricas.

Avaliação clínica
Vários achados da história e do exame físico podem sugerir uma causa não-
neurológica e não-vestibular para os sintomas do paciente.
O nistagmo espontâneo é a manifestação clínica da assimetria de tônus neural
dos núcleos vestibulares. Quando tem origem periférica, é inibido pela fixação visual. O
nistagmo periférico é comumente unidirecional, horizontal ou rotatório, com uma fase
lenta vestibular e outra rápida por correção central, velocidade constante e aumento da
frequência com o deslocamento do olho no sentido da fase rápida, que em geral tem
direção contrária ao labirinto menos funcionante. O nistagmo espontâneo vertical não
pode ser explicado pelo envolvimento de um único labirinto e, portanto, sua presença
sugere etiologia central.
O Head Impulse Test é um teste útil para a observação da assimetria de
informação entre os dois labirintos. Quando há comprometimento de um dos labirintos,
há dificuldade em manter a fixação do olhar à rotação da cabeça para o lado
comprometido, pois a correção do globo ocular depende de sua informação. Assim, o
teste consiste em ficar de frente para o paciente, segurando sua cabeça entre as mãos e
solicitando que fixe um ponto entre os olhos do examinador. Então, a cabeça é girada
bruscamente para um dos lados e, quando o giro é efetuado para o lado comprometido,
há um atraso do ajuste vestibular na correção do olhar, que manifesta-se como desvio do
olhar e sacada corretiva para manter a fixação da imagem. A positividade do teste
sugere comprometimento vestibular e o seu resultado negativo confirma lesão do
sistema nervoso central.
O teste de Romberg consiste em pedir ao paciente que fique em pé, com os pés
juntos e os olhos fechados. O teste é positivo quando a estabilidade corporal pode ser

Pedro Kallas Curiati 1172


mantida com os olhos abertos, mas não sem a informação visual. É um teste consistente
com doença vestibular ou proprioceptiva.
O teste de Fukuda é um teste de investigação dinâmica do equilíbrio. O paciente
é solicitado a marchar no lugar, com os olhos fechados por um minuto. O teste é
considerado positivo quando há desvio de mais de 30 graus, comumente para o lado que
apresenta menor atividade vestibular. Os pacientes que apresentam lesões do sistema
nervoso central costumam oscilar o corpo durante a marcha, eventualmente com queda.
O teste de Dix-Hallpike tem importância particular na diferenciação dos
nistagmo de origem central daqueles de origem periférica.
Em caso de sinais e sintomas de síndrome periférica, o exame otoscópico é
fundamental para afastar problemas locais.

Diagnóstico diferencial
Um passo extremamente importante no pronto-socorro é diferenciar se a
vertigem tem causa central ou periférica.
Característica Lesão periférica Lesão central
Intensidade da Muito intensa Pouco intensa
vertigem
Duração dos Finita e recorrente, com Pode ser crônica
sintomas minutos, dias ou semanas
Hipoacusia e/ou Comum Raro
zumbido
Alterações Sinais exclusivos de Sinais de comprometimento de outros nervos
neurológicas comprometimento vestíbulo- cranianos, cerebelo e vias motoras ou sensitivas
coclear
Equilíbrio estático Alteração moderada, com Alteração importante e, nas lesões cerebelares,
e dinâmico desvio para o lado da lesão desvio para o lado lesado ou ausência de sentido
preferencial
Coordenação Normal Comprometida nas lesões cerebelares
apendicular
Motricidade ocular Normal Diplopia por lesão de nervos cranianos ou lesões
extrínseca internucleares e desalinhamento ocular
Reflexo vestíbulo- Patológico para o lado lesado Normal
ocular
Nistagmo Inibido pela fixação visual Fixação visual não inibe e pode aumentar o
espontâneo nistagmo
Direção do Horizonto-rotatório Vertical ou rotatório puro, raramente horizontal,
nistagmo podendo mudar de direção
Nistagmo evocado Na mesma direção do nistagmo Pode ser em qualquer direção e pode ocorrer em
pelo olhar espontâneo mais de uma direção
Nos casos em que o paciente apresenta sinais e sintomas de comprometimento
central, os diagnósticos diferenciais são acidente vascular cerebral isquêmico ou
hemorrágico de tronco encefálico ou cerebelo, ataques isquêmicos transitórios, lesões
com efeito de massa e infartos da região ponto-mesencefálica e da região caudal do
bulbo.

Exames complementares
Em geral, exames complementares não são necessários em todos os pacientes e
deverão ser guiados pelos achados de história, exame físico e exame neurológico.
O exame otoneurológico, com avaliação funcional do labirinto, é composto por
audiometria, impedanciometria e eletronistagmografia. Não há indicação de exames
vestibulares específicos durante uma crise labiríntica.
A solicitação de um exame de imagem com urgência, preferencialmente a

Pedro Kallas Curiati 1173


ressonância nuclear magnética, tem indicação frente a vertigem súbita, persistente e
isolada, vertigem súbita na presença de Head Impulse Test normal, vertigem súbita com
cefaleia, especialmente em região occipital, vertigem súbita acompanhada de sinais
neurológicos focais e vertigem súbita e surdez sem história pregressa compatível com
síndrome de Ménière. Um estudo vascular pode ser necessário na suspeita de
insuficiência vértebro-basilar, podendo-se solicitar ultrassonografia Doppler,
angiorressonância ou mesmo arteriografia digital. Caso haja sinais de infecção
associados à vertigem, deve-se realizar tomografia seguida de coleta de líquor, desde
que não haja contraindicação.
Exames complementares para pacientes com pré-síncope e síncope são
destinados para a investigação de causas não neurológicas.

Síndromes vestibulares periféricas

Vertigem postural paroxística benigna (VPPB)


Episódios de vertigem com curta duração, desencadeados por movimentos
rápidos da cabeça ou por determinadas posições, têm como principal causa a vertigem
postural paroxística benigna, mas eventualmente podem ser causados por lesões
centrais.
A vertigem postural paroxística benigna é causada por um problema mecânico
do labirinto, em que os otólitos se descolam da mácula do utrículo, caem
preferencialmente no canal semicircular posterior e passam a flutuar livremente na
endolinfa. A cada movimento da cabeça, essas partículas promovem uma deflexão
anormal da cúpula do canal semicircular e deflagram o ataque de vertigem.
Ao exame neurológico devem ser examinadas as características do nistagmo ao
ser realizada a manobra de Dix-Hallpike ou de posicionamento lateral, com latência de
poucos segundos até o seu aparecimento, curta duração, inversão da direção quando o
paciente é posicionado novamente sentado e fatigabilidade, caracterizada por
diminuição na intensidade e eventual desaparecimento com manobras repetidas. Para a
realização da manobra de Dix-Hallpike, o examinador desloca a cabeça do paciente para
o lado em 45º e então faz um movimento súbito para trás com o objetivo de colocar a
cabeça do paciente inclinada 30º para baixo da linha da maca. O olho contralateral à
orelha testada apresenta nistagmo vertical para cima. Para a realização da manobra de
posicionamento lateral o paciente é colocado sentado, sua cabeça é rodada em 45º para
o lado oposto àquele que se deseja examinar e então é deitado para o lado examinado,
ficando em decúbito lateral com a cabeça rodada e olhando na direção do examinador.
O nistagmo de posicionamento de origem central é caracterizado por ausência de
latência, duração prolongada, geralmente superior a um minuto, direção vertical ou
padrão torsional puro, ausência de relação com o plano do canal estimulado, ausência de
fatigabilidade com a repetição da manobra, intensidade do nistagmo e da vertigem
flutuantes, mudança de direção, náusea e vômitos sem associação com intensidade do
nistagmo e da vertigem e sinais cerebelares e oculomotores.
O tratamento de escolha são as manobras de reposição ou de liberação, com
taxas de sucesso acima de 90%. O objetivo dessas manobras é promover o movimento
dos otólitos que flutuam na endolinfa do canal semicircular até que eles caiam de volta
no utrículo. Não são indicados medicamentos sedantes vestibulares.
A manobra de Brandt-Daroff foi a primeira a ser proposta e consiste em
sucessivos movimentos partindo da posição sentada. O paciente é orientado a deitar
alternadamente para a direita e para a esquerda e manter o decúbito por quarenta
segundos a um minuto ou enquanto persistir a vertigem.

Pedro Kallas Curiati 1174


Para a manobra se Semont, o paciente é posicionado sentado e a cabeça é
deslocada no plano horizontal em 45º para o lado sadio, mantendo a posição por cinco
minutos. A seguir, deve-se orientar que as manobras a seguir serão rápidas e poderão
desencadear sintomas. Nesse momento, o examinador mantém a cabeça do paciente
deslocada a 45º e rapidamente o coloca em decúbito lateral sobre o lado comprometido.
Novamente, de maneira rápida, o paciente deve ser posicionado em decúbito lateral
sobre o lado sadio, com o nariz encostado na cama. Após essa última etapa, deverá
permanecer na posição por mais cinco a dez minutos. Por fim, o paciente será levado à
posição sentada lentamente.
Para a manobra de Eppley modificada, o paciente sentado na maca deve ter sua
cabeça deslocada a 45º no plano horizontal para o lado comprometido. A seguir, será
posicionado deitado com a cabeça mantida estendida inferiormente à maca e
permanecerá assim por um a dois minutos. Os próximos passos devem ser feitos de
maneira rápida e brusca. A cabeça do paciente é deslocada no sentido contralateral em
90º mantendo-se a extensão do pescoço. Logo após, em bloco, cabeça e tronco são
deslocados até que a face do paciente esteja para baixo, posição que será mantida por
um a dois minutos. Com a cabeça quase encostada no ombro do lado sadio e o queixo
encostado no peito, o paciente retorna à posição sentada lentamente.
Em alguns casos de má-evolução, além da busca do fator desencadeante do
processo, são indicadas outras técnicas fisioterápicas, além de intervenção cirúrgica
quando há persistência da queixa após várias tentativas de tratamento.

Neurite vestibular
Uma das principais causas de vertigem é a neurite vestibular, por vezes
denominada neuronite vestibular. Muitos pacientes utilizam o termo labirintite, que,
embora possa estar presente, é de ocorrência mais rara e se caracteriza por infecção viral
ou bacteriana das porções vestibular e coclear do labirinto, com a presença de sintomas
auditivos.
Acomete igualmente homens e mulheres e pode se manifestar em qualquer
idade, sendo mais frequente dos trinta aos sessenta anos e rara em crianças. A etiologia
mais aceita atualmente é uma infecção da divisão superior do nervo vestibular pelo
herpes simples tipo 1, sem comprometimento coclear.
O paciente com lesão vestibular periférica relata um quadro agudo de vertigem
rotatória, desequilíbrio, tendência de queda preferencialmente para um dos lados,
náusea e vômitos. O quadro quase sempre é harmônico, com todos os sintomas
presentes na mesma intensidade. Não há alterações auditivas. Embora possa haver
pequena flutuação dos sintomas, que costumam piorar com qualquer tipo de
movimento, a queixa é constante durante alguns dias, havendo melhora lentamente
progressiva em uma a duas semanas. Com frequência, há história de infecção de vias
aéreas alguns dias antes do episódio, que geralmente é único.
Ao exame neurológico, observa-se na pesquisa do equilíbrio estático o sinal de
Romberg vestibular, ou seja, tendência de queda para o lado lesado com um curto
período de latência após o paciente fechar os olhos. Naqueles pacientes que conseguem
realizar o teste de equilíbrio dinâmico há um desvio da marcha com olhos fechados
também para o lado lesado. Ao se solicitar ao paciente que ande para frente e para trás
nota-se a marcha em estrela. Há nistagmo espontâneo horizonto-rotatório para o lado
sadio, sempre no mesmo sentido, independentemente da direção do olhar.
O principal diagnóstico diferencial é o infarto cerebelar, que pode se manifestar
exclusivamente por vertigem. A falta de inibição do nistagmo pela fixação ocular e a
integridade do reflexo vestíbulo-ocular durante o Head Impulse Test fecham o

Pedro Kallas Curiati 1175


diagnóstico de síndrome vertiginosa de origem central.
A doença tem um curso benigno, evoluindo com melhora dos sinais e sintomas
ao longo de alguns dias. Em geral o quadro é autolimitado e podem ser utilizados
depressores labirínticos para alívio dos sintomas. Estudos recentes sugerem que a
intervenção com corticoterapia favorece a evolução. Assim que o doente suportar, tão
precoce quanto possível, devem ser instituídos exercícios de reabilitação vestibular.

Síndrome de Ramsay-Hunt
Denota reativação do vírus Varicela-Zoster, que se manifesta como uma dor no
ouvido e na região da mastoide seguida por erupção de vesículas no conduto auditivo
externo. Nessa síndrome há uma perda combinada da função vestibular e auditiva
associada a paralisia facial periférica.

Doença de Ménière
Caracterizada pela tríade típica de ataques recorrentes de vertigem de início
súbito e duração de até duas horas, déficit auditivo neurossensorial flutuante, que
eventualmente pode persistir como sequela, e zumbido. Podem ocorrer também
sintomas como sensação de pressão no ouvido, desequilíbrio, náusea e vômitos. Os
ataques geralmente têm duração de horas, mas um certo grau de tontura e desequilíbrio
pode persistir por dias.
A patogênese reside no aumento da pressão da endolinfa nos canais
semicirculares. Etiologias relacionadas à síndrome incluem infecções da orelha média,
distúrbios metabólicos, traumatismos, migrânea e otosclerose. Quando não é
identificado um possível fator causal, a síndrome de Ménière é denominada de doença
de Ménière.
Nas fases iniciais da doença, os ataques podem ser monossintomáticos, com
predomínio dos sintomas auditivos ou vestibulares. Nos períodos intercrise pode haver
ausência de sintomas, persistência das queixas auditivas ou ainda desequilíbrio ao
movimento. A evolução costuma ser lenta e benigna, mas alguns casos podem evoluir
rapidamente, levando à surdez. Com o passar do tempo, não mais ocorre a flutuação dos
sintomas e a lesão labiríntica é instalada.
O diagnóstico é clínico. Exames complementares incluem audiometria,
eletronistagmografia, eletrococleografia e teste do glicerol.
O tratamento prevê dieta hipossódica, com 2-3g de sódio por dia, redução da
ingesta de álcool e cafeína, cessação do tabagismo, Hidroclorotiazida, apresentada na
forma de comprimidos de 25mg, com dose recomendada de 25-50mg/dia por via oral,
Betaistina, apresentada na forma de comprimidos de 8mg e 16mg, com dose
recomendada de 8-16mg de 8/8 horas por via oral, e tratamento sintomático em crises
agudas com sedativos labirínticos. Recentemente, surgiu uma nova proposta de
tratamento clínico baseada na teoria da concentração plasmática da vasopressina e seu
efeito sobre as aquaporinas, com orientação para que o paciente ingira quantidade
elevada de água. A abordagem cirúrgica é reservada a pacientes com vertigem
incapacitante com falha do tratamento clínico. Dentre os procedimentos propostos, estão
a descompressão do saco endolinfático, de menor risco e com preservação da função
labiríntica, a labirintectomia química e a neurectomia do nervo vestibular.

Fístula perilinfática
Define-se fístula labiríntica como uma comunicação anormal entre a orelha
interna e a orelha média. Apresenta-se clinicamente como um surto agudo de vertigem
acompanhada de perda auditiva, geralmente precedida por esforço físico ou trauma,

Pedro Kallas Curiati 1176


embora possa ser espontânea. Seu diagnóstico é controverso e não há um exame que
possa ser considerado conclusivo, ficando a história clínica como indício mais
importante para a conclusão final. O aumento da pressão intracraniana por manobra de
Valsalva, tosse ou espirro pode desencadear nistagmo e vertigem. Outro sintoma muito
sugestivo é a presença de nistagmo e vertigem desencadeados por sons, o que é
denominado fenômeno de Túlio.
Um teste clínico utilizado para a documentação da fístula perilinfática é a
observação do aparecimento de nistagmo quando aumentada a pressão no conduto
auditivo externo através de uma pêra de borracha ou por compressão digital do tragus, o
que é denominado sinal de Henebert. Sua ausência, no entanto, não exclui o
diagnóstico, que será de certeza apenas quando observado o extravasamento da
endolinfa para o ouvido médio durante cirurgia exploradora. A audiometria é o exame
de escolha para a demonstração de comprometimento auditivo.
Não há tratamento medicamentoso resolutivo. Recomenda-se repouso no leito
com a cabeça elevada, evitando-se esforços por duas a três semanas. Para aliviar a
vertigem, são utilizados depressores vestibulares. A persistência dos sintomas leva à
indicação de timpanotomia exploradora, muito controversa na literatura, com a
finalidade de amenizar a vertigem, não sendo esperada normalização auditiva de
imediato.

Tratamento
Anti-histamínicos e benzodiazepínicos aliviam os sintomas por uma diminuição
da excitabilidade vestibular, embora possam retardar a compensação. Antieméticos são
importantes no controle de náusea e vômitos. É importante lembrar que essas
medicações devem ser utilizadas apenas na fase aguda.
Opções de anti-histamínicos incluem Dimenidrato (Dramin®), apresentado na
forma de comprimidos de 100mg e solução oral com 12.5mg/5mL, Dimenidrato com
Pirodoxina (Dramin B6®), apresentado na forma de comprimidos de 50mg de
Dimenidrato com 10mg de Piridoxina, solução oral com 25mg de Dimenidrato e 5mg
de Piridoxina por mL (20 gotas) e solução injetável intramuscular com 50mg de
Dimenidrato e 50mg de Piridoxina por mL, e Dimenidrato com Piridoxina, Glicose e
Frutose (Dramin B6 DL®), apresentado na forma de solução injetável intravenosa com
30mg de Dimenidrato, 50mg de Piridoxina, 1000mg de Glicose e 1000mg de Frutose
em 10mL, com dose recomendada de Dimenidrato de 25-50mg de 6/6 a 4/4 horas por
via oral ou 50mg de 8/8 a 6/6 horas por via intravenosa ou intramuscular, Meclizina,
apresentada na forma de comprimidos de 12.5mg, 25mg e 50mg, com dose
recomendada de 25-50mg de 8/8 horas por via oral, Prometazina, apresentada na forma
de comprimidos de 25mg e solução injetável intramuscular com 50mg/2mL, com dose
recomendada de 50mg por via oral de 8/8 horas ou 25-50mg por via intramuscular de
8/8 horas, e Cinarizina, apresentada na forma de comprimidos de 25mg e 75mg, com
dose recomendada de 25mg de 8/8 horas ou 75mg uma vez ao dia por via oral. Opções
de benzodiazepínicos incluem Diazepam, apresentado na forma de comprimidos de 5mg
e 10mg e de solução injetável intravenosa com 5mg/mL, com dose recomendada de 2.5-
5.0mg de 24/24 a 12/12 horas por via oral, Lorazepam, apresentado na forma de
comprimidos de 1mg e 2mg, com dose recomendada de 1-2mg de 24/24 a 12/12 horas
por via oral, e Clonazepam, apresentado na forma de solução oral com 2.5mg por mL
(25 gotas) e de comprimidos de 0.5mg e 2mg, com dose recomendada de 0.25mg de
12/12 a 8/8 horas por via oral. Opções de antieméticos incluem Metoclopramida 5-
10mg de 8/8 a 6/6 horas por via oral e 10mg de 8/8 a 6/6 horas por via intravenosa.
Todo e qualquer medicamento de uso na fase aguda deve ser utilizado durante o menor

Pedro Kallas Curiati 1177


tempo possível, pois os depressores vestibulares implicam em retardamento da
compensação vestibular central fisiológica, cronificando a tontura.
A partir do momento em que o paciente não apresenta mais náusea ou vômito e
consegue deambular, deve-se iniciar a reabilitação vestibular, que consiste em
exercícios de movimentação ocular e de equilíbrio com o objetivo de restabelecer os
reflexos vestíbulo-ocular e vestíbulo-espinal e a percepção do espaço e do movimento.
Em caso de síndromes vestibulares centrais, o tratamento da fase aguda deve
incluir o tratamento da doença de base.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 1: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da
mulher, envelhecimento e geriatria, medicina laboratorial na prática médica. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Clínica Médica, volume 6: doenças dos olhos, doenças dos ouvidos, nariz e garganta, neurologia, transtornos mentais. – Barueri, SP:
Manole, 2009.
Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Herlon Saraiva
Martins, Maria Cecilia de Toledo Damasceno, Soraia Barakat Awada. 2ª edição revisada e ampliada. Barueri, São Paulo. Manole,
2008.
Emergências clínicas : abordagem prática. Herlon Saraiva Martins... [et al.]. 5. ed. ampl. e ver. Barueri, SP. Manole, 2010.

Pedro Kallas Curiati 1178


ANALGESIA E OPIOIDES
Dor oncológica
Dor moderada a severa é comum e afeta 70-80% dos pacientes com doença
oncológica avançada. A escada de analgesia da Organização Mundial de Saúde (OMS),
proposta em 1996, tem como ideia central a escolha da medicação analgésica com base
na intensidade da dor.
Opioides atuam através da ligação a receptores específicos, sendo mais bem
caracterizados os receptores mu, kappa e delta, presentes em diferentes tecidos,
incluindo tanto o sistema nervoso periférico como o sistema nervoso central. Com base
em seus efeitos nos receptores mu, os opioides são divididos em agonistas puros, como
Codeína, Hidrocodona, Morfina, Hidromorfona, Fentanil, Oxicodona, Metadona e
Meperidina, agonistas parciais, como Buprenorfina e Nalbufina, agonistas-antagonistas
e antagonistas puros, como Naloxone e Naltrexone, que não têm propriedade analgésica
intrínseca e podem ser usados para prevenir ou reverter os efeitos de outros opioides.
Tramadol apresenta mecanismo misto, com ligação a receptor mu e bloqueio da
recaptação de serotonina e noradrenalina.
O uso adequado de analgésicos opioides é crucial para o alívio da dor
oncológica, mas ainda faltam evidências científicas que embasem a prática clínica.
Como o manejo da dor oncológica é uma área especializada, mas a maior parte dos
cuidados são prestados por não-especialistas, o desenvolvimento de consenso de
especialistas e diretriz clínica pode ser útil.

Formulações

Pedro Kallas Curiati 1179


Em pacientes com dor oncológica leve a moderada ou nos quais analgesia
satisfatória não é obtida com o uso de analgésico simples ou anti-inflamatórios não-
hormonais usados regularmente por via oral, a introdução de um opioide fraco por via
oral, como a Codeína, com dose superior a 360mg/dia não recomendada, e o Tramadol,
com dose superior a 400mg/dia não recomendada, pode permitir alívio da dor
satisfatório sem efeitos adversos significativos. Alternativamente, podem ser usadas
doses baixas de opioide forte, como até 30mg/dia de Morfina, até 20mg/dia de
Oxicodona e até 4mg/dia de Hidromorfona. Hidrocodona é utilizada como substituta da
Codeína em alguns países. A eficácia analgésica da Codeína depende da conversão para
Morfina por sistema enzimático, com influência genética significativa e benefício
terapêutico ausente ou limitado em 5-10% dos pacientes e duração da analgesia mais
curta e maior risco de efeitos colaterais em pacientes com metabolização ultra-rápida.
Quanto ao manejo de pacientes com dor oncológica moderada a severa, não
existe evidência de diferença significativa entre os opioides fortes Morfina, Oxicodona e
Hidromorfona por via oral, de modo que qualquer uma dessas três drogas pode ser
utilizada como primeira escolha. A titulação da dose de opioides fortes pode ser
realizada tanto com formulações de liberação imediata como com formulações de
liberação lenta, devendo-se suplementar com formulação de liberação imediata para uso
conforme a necessidade.
Formulações transdérmicas de Fentanil e Buprenorfina permitem aumento lento
dos níveis séricos desses opioides fortes, com meia-vida aparente e período de latência
para obtenção do estado de equilíbrio farmacológico longos. Consistem em alternativas
em relação às formulações orais, podendo haver maior preferência dos pacientes e
menor risco de obstipação intestinal. A via transdérmica também pode ser considerada
alternativa efetiva e não-invasiva de administração de opioide forte para pacientes que
não são capazes de deglutir. A titulação da formulação transdérmica deve ser realizada
conforme a meia-vida aparente, geralmente a cada três dias, devendo-se suplementar
com formulação oral de liberação imediata para uso conforme a necessidade nesse
período.
Metadona tem perfil farmacocinético complexo com meia-vida
imprevisivelmente longa, que em média dura 24 horas, mas pode variar de 12 horas a
quase uma semana, podendo ser usada por profissionais experientes como opioide forte
de primeira escolha ou alternativo para pacientes com dor oncológica moderada a
severa. O tempo necessário para obtenção de nível sérico estável varia de dias a
semanas, com risco de overdose durante esse período. A evidência de maior risco de
efeitos adversos em sistema nervoso central, como sedação, não é consistente. A droga
também pode aumentar o intervalo QT corrigido, com predisposição para arritmias
fatais.

Rotação de opioides
Rotação de opioides consiste na substituição de um opioide forte por outro
quando um balanço satisfatório entre alívio da dor e efeitos adversos não é atingido. É
recomendada em caso de analgesia insatisfatória e efeitos adversos severos não-
controláveis. Outras indicações incluem benefício esperado com a mudança da via de
administração, necessidade de substituir medicação atual por outra com propriedades
farmacocinéticas diferentes, como em caso de disfunção renal, e considerações
relacionadas ao custo do tratamento. A taxa de sucesso aparente é de 40-80%, sendo
comum substituir Morfina, Hidromorfona e Fentanil por Metadona.
A prática de substituir um analgésico opioide por outro requer que a droga nova
seja prescrita com dose inicial segura e eficaz, de modo a evitar tanto toxicidade como

Pedro Kallas Curiati 1180


abstinência e ao mesmo tempo garantir analgesia semelhante ou superior. As razões de
equivalência analgésica utilizadas para o cálculo da dose inicial são específicas para
pacientes que referem analgesia satisfatória com a medicação em uso, de modo que
quando a substituição for realizada em função de analgesia insatisfatória, efeitos
adversos excessivos ou ambos, sugere-se iniciar com dose inferior à calculada, com
titulação conforme a resposta clínica para otimizar o balanço entre alívio da dor e
efeitos adversos.
A conversão de Morfina oral para Metadona oral é afetada pelo uso prévio de
opioides e varia amplamente, com dificuldade para o cálculo também influenciada pela
meia-vida longa da Metadona. Dessa forma, a conversão pode ser feita com redução
significativa da dose equianalgésica calculada ou com redução específica baseada na
dose de opioide em uso no momento da rotação. O opioide atual pode ser substituído
imediatamente por Metadona ou pode ser realizada transição gradual ao longo de
período de três dias.
Os mecanismos específicos pelos quais a rotação de opioides melhora a resposta
analgésica não são conhecidos, mas especula-se que a variação individual ampla das
respostas a diferentes agonistas de receptores mu e a tolerância cruzada incompleta aos
efeitos analgésicos e não-analgésicos dos opioides podem estar relacionadas. Dessa
forma, a mudança de um opioide para outro deverá gerar um diferente conjunto de
efeitos, que poderá ser mais ou menos favorável, com viés para melhora relativa em
função da tolerância cruzada incompleta menor para o efeito analgésico do que para os
efeitos indesejáveis.
O uso de tabelas com razões de equivalência analgésica deve ser feito com
cautela porque pacientes individuais podem não ter as mesmas características daqueles
incluídos nos estudos clínicos, existe larga variação individual no metabolismo e na
farmacodinâmica de drogas e a tolerância aos efeitos adversos durante tratamento em
longo prazo não ocorre da mesma forma para diferentes drogas. Em função de variações
na absorção da droga, correção na dose pode ser necessária ao trocar de uma via de
administração para outra.
Droga Via Apresentação Dose Dose inicial em Meia- Duração do
comercial equianalgésica adulto virgem de vida efeito
tratamento analgésico
Morfina Intravenosa, Solução injetável 10mg 2-10mg a cada 2-4 2-3 horas 3-4 horas
subcutânea ou com 2mg/2mL e horas por via
intramuscular 10mg/1mL intravenosa ou a
cada 3-4 horas por
via subcutânea ou
intramuscular
Oral Solução oral com 20-30mg 10-30mg a cada 4 3-6 horas
10mg/mL (32 horas
gotas)
Comprimidos de
10mg e 30mg
Cápsulas de 30mg a cada 12 - 8-12 horas
liberação horas
cronogramada de
30mg, 60mg e
100mg
Hidromorfona Intravenosa, - 1.5mg 0.3-1mg a cada 2- 2-3 horas 3-4 horas
subcutânea ou 4 horas por via
intramuscular intravenosa ou a
cada 3-4 horas por
via subcutânea ou
intramuscular
Oral - 7.5mg 2-4mg a cada 2-4 3-6 horas
horas
Comprimidos de 8mg a cada 24 - 24 horas
liberação horas
prolongada de
8mg, 16mg e 32mg

Pedro Kallas Curiati 1181


Codeína Oral Solução oral com 200mg 30-60mg a cada 4- 2-4 horas 4-6 horas
3mg/mL e 6 horas
comprimidos de
30mg e 60mg
Oxicodona Oral - 15-20mg 5-15mg a cada 4-6 2-3 horas 3-6 horas
horas
Comprimidos de 10mg a cada 12 - 8-12 horas
liberação horas
controlada de
10mg, 20mg e
40mg
Hidrocodona Oral - 30mg 5-10mg a cada 6 3-4 horas 4-8 horas
horas
Metadona Intravenosa, Solução injetável 10mg, menor 1.25-5mg a cada 12-150 3-4 horas
subcutânea ou com 10mg/1mL quanto maior a 4-8 horas horas inicialmente
intramuscular dose diária de 6-8 horas com
Morfina uso crônico
Oral Comprimidos de 20mg, menor 2.5-10mg a cada Aumento com
5mg e 10mg quanto maior a 4-8 horas administração
dose diária de repetida
Morfina
Fentanil Intravenosa ou Solução injetável 50-100mcg 10-50mcg a cada 7-12 0.5-1 hora por
subcutânea com 100mcg/2mL, 1-2 horas horas via intravenosa
250mcg/5mL e e 1-2 horas por
500mcg/10mL via subcutânea
Aumento com
administração
repetida
Transdérmica Adesivos - 12.5-25mcg/hora, 20-27 48-72 horas por
transdérmicos de com troca a cada horas ao adesivo
12.5mcg/hora, 72 horas remover
25mcg/hora, o adesivo
50mcg/hora,
75mcg/hora e
100mcg/hora
Buprenorfina Intravenosa ou - 0.3-0.4mg 0.3mg a cada 6-8 2-3 horas 6 horas
intramuscular horas
Transdérmica Adesivos 5-10mcg/hora 5mcg/hora, com 26 horas 7 dias por
transdérmicos de troca a cada sete ao adesivo
35mcg/hora, dias remover
52.5mcg/hora e o adesivo
70mcg/hora
Tramadol Intravenosa ou Solução injetável - 50mg a cada 4-6 6-9 horas 4-6 horas
intramuscular com 50mg/1mL e horas inicialmente
100mg/1mL 3-11 horas com
Oral Solução oral com uso crônico
100mg/mL (40
gotas),
comprimidos de
100mg e cápsulas
de 50mg
Oral Comprimidos de - 100mg uma vez ao - -
liberação dia
prolongada de
50mg e 100mg

Dose diária de Dose diária


Morfina oral equivalente estimada
de Metadona oral
< 100mg 20-30%
100-300mg 10-20%
300-600mg 8-12%
600-1000mg 5-10%
> 1000mg < 5%

Pedro Kallas Curiati 1182


Vias de administração
A via oral é usualmente preferida para o tratamento da dor oncológica por
conveniência e flexibilidade. Formulações orais de liberação prolongada não devem ser
trituradas ou fracionadas nunca pelo risco de toxicidade aguda.
Administração parenteral de opioides pode ser necessária em pacientes que não
conseguem deglutir, com náusea e vômitos ou no final da vida com fraqueza e
debilidade que impeçam o uso oral. A via subcutânea é simples e efetiva para a
administração de Morfina, Diamorfina e Hidromorfona, devendo ser a primeira opção
para pacientes que não podem receber opioides por via oral ou transdérmica. Infusão
intravenosa deve ser considerada quando administração subcutânea é contraindicada,
como em edema periférico, distúrbios da coagulação, circulação periférica pobre e
necessidade de altas doses, e quando controle rápido da dor é necessário. Infusão
subcutânea ou intravenosa também pode ser indicada para otimizar o controle da dor em
pacientes que não atingem analgesia adequada com administração oral ou transdérmica.
Técnicas de analgesia controlada pelo paciente podem ser adotadas paras as vias
subcutânea e intravenosa para pacientes capazes e com desejo de controlar as doses de
resgate. Apesar de a administração retal ser efetiva, com potência aproximada à da
administração oral, formulações apropriadas geralmente não estão prontamente
disponíveis e não são aceitáveis para muitos pacientes, devendo ser considerada de
segunda-escolha.
Pacientes desnutridos e com infecções frequentes apresentam risco de
intoxicação em caso de uso de adesivos transdérmicos de Fentanil em função de fração
livre aumentada na vigência de hipoalbuminemia e aumento da absorção na vigência de
febre.
Há recomendação fraca para a administração epidural ou intra-tecal de
analgésicos opioides em combinação com anestésicos locais, como Quetamina, ou
Clonidina em pacientes com analgesia inadequada ou relacionada a efeitos adversos
intoleráveis com o uso otimizado de analgésicos opioides e não-opioides por via oral e
parenteral.

Medicação de resgate
Exacerbações da dor oncológica secundárias a controle insatisfatório basal
devem ser tratadas com doses adicionais de formulação oral de liberação imediata
seguidas de titulação da dose de uso regular. A titulação da dose de uso regular pode ser
feita com aumento de 30-100% da dose diária total em relação ao último período de 24
horas ou, alternativamente, aumento da quantidade média diária de medicação de
resgate utilizada nos últimos dias, com ajuste pela equivalência de potência analgésica.

Pedro Kallas Curiati 1183


Idealmente, o intervalo entre os escalonamentos de dose deve ser longo o suficiente para
permitir que um novo estado de equilíbrio seja atingido, o que demora cinco a seis
meias-vida, independentemente da via de administração. Recomenda-se esperar dois a
três dias para formulações orais de liberação modificada, três a seis dias para adesivos
transdérmicos e cinco dias para Metadona.
Dor incidental pode ser efetivamente manejada com formulação oral de
liberação imediata ou com Fentanil bucal ou intra-nasal, que pode ser preferido em
algumas situações em função de início de ação mais rápido e duração do efeito mais
curta. Formulações de liberação imediata de opioides com meia-vida curta podem ser
utilizadas de forma preemptiva vinte a trinta minutos antes de o paciente ser submetido
a manobra provocadora de dor incidental.

Controle de efeitos adversos


Náusea e vômitos induzidos por opioides ocorrem em até 40% dos pacientes,
devendo ser utilizados Haloperidol e Metoclopramida. Substituição do opioide,
modificação da via de administração e redução da dose também podem ser úteis.
Administração profilática de medicação anti-emética não é recomendada.
Recomenda-se fortemente o uso rotineiro de laxantes para o manejo e a
profilaxia de constipação induzida por opioides, sem evidência de que uma medicação
deva ser preferida em relação às outras. A combinação de medicações com diferentes
modos de ação pode ser mais efetiva que o uso de agente único no tratamento de
constipação resistente. Metilnaltrexona, apresentada na forma de frasco com
12mg/0.6mL, com dose de 0.4mL para pacientes com peso de 38-61.9kg e de 0.6mL
para pacientes com peso de 62-114kg, administrada por via subcutânea, pode ser
considerada quando os laxativos não forem efetivos.
Os efeitos adversos dos opioides no sistema nervoso central incluem
rebaixamento do nível de consciência, com sedação e tontura, prejuízo cognitivo e
psicomotor e reações de hiperexcitabilidade, como alucinações, mioclonias e
hiperalgesia. Metilfenidato, apresentado na forma de comprimidos de 10mg, com dose
inicial de 5mg duas vezes ao dia por via oral, com a segunda dose administrada até as
18:00 para evitar prejudicar o sono, e titulação conforme a necessidade, geralmente não
sendo necessário ultrapassar 60mg/dia, pode ser utilizado para melhorar a sedação
induzida por opioides, mas o limiar entre efeitos desejáveis e indesejáveis é estreito.
Efeitos neurotóxicos, como delirium, alucinações, mioclonias e hiperalgesia, podem ser
manejados com redução da dose ou substituição do opioide.

Intoxicação exógena aguda por opioide

Pedro Kallas Curiati 1184


Pedro Kallas Curiati 1185
Uso de opioides em pacientes com disfunção renal
Em pacientes com disfunção renal severa, com filtração glomerular inferior a
30mL/minuto, opioides devem ser utilizados com cautela. As drogas de primeira
escolha deverão ser o Fentanil ou a Buprenorfina administrados por via subcutânea ou
intravenosa com doses iniciais baixas e titulação gradual cuidadosa. Metadona também
não apresenta metabólitos ativos de eliminação renal e pode constituir uma boa opção,
desde que prescrita por clínico experiente. Alternativamente, em curto prazo, pode-se
reduzir a dose e/ou a frequência de administração da Morfina. Alguns clínicos preferem
o uso de Hidromorfona em pacientes com insuficiência renal porque os metabólitos
ativos eliminados pelos rins apresentam baixas concentrações em comparação com os
da Morfina e apresentam pouca probabilidade de causar efeitos adversos não
antecipados. Tanto Codeína como Tramadol podem acumular em pacientes com
disfunção renal, tendo seus efeitos prolongados. Meperidina é particularmente perigosa
em função do acúmulo de metabólitos ativos.

Associação de medicamentos analgésicos com opioides


Pode-se adicionar analgésicos simples ou anti-inflamatórios não-hormonais ao
esquema de analgesia com opioides fortes para melhorar o controle da dor e reduzir a
quantidade de opioides fortes necessária para obtenção do resultado desejado. No
entanto, o uso de anti-inflamatórios não-hormonais deve ser restrito pelo risco de efeitos
adversos, particularmente em idosos e pacientes com disfunção renal, cardíaca e/ou
hepática.
A dor oncológica é mediada por uma mistura de mecanismos neuropáticos e
nociceptivos. Analgésicos adjuvantes são geralmente adicionados ao esquema de
analgesia com opioides para atuar em mecanismos neuropáticos específicos.
Recomenda-se fortemente que Amitriptilina ou Gabapentina sejam considerados em
pacientes com dor oncológica neuropática apenas parcialmente responsiva a analgésicos
opioides. Titulação cuidadosa tanto da medicação opioide como da medicação
adjuvante é necessária pelo risco de efeitos adversos em sistema nervoso central, como
sonolência e tontura.

Bibliografia
Use of opioid analgesics in the treatment of cancer pain: evidence-based recommendations from the EAPC. Caraceni et al. Lancet
Oncol 2012; 13: e58–68.
Opioid Rotation: The Science and the Limitations of the Equianalgesic Dose Table. Knotkova et al. J Pain Symptom Manage
2009;38:426e439.
Cancer pain management with opioids: Optimizing analgesia. Russel K Portenoy, Zankhana Mehta and Ebtesam Ahmed.
UpToDate, 2012.
Management of Opioid Analgesic Overdose. Edward W Boyer. N Engl J Med 2012;367:146-55.

Pedro Kallas Curiati 1186


ASMA
Definição
Asma é uma doença inflamatória crônica das vias aéreas associada a hiper-
responsividade brônquica e caracterizada por episódios recorrentes de sibilância,
dispneia, sensação de sufocamento e tosse, particularmente durante a noite ou o início
da manhã. Os sintomas geralmente são associados a obstrução do fluxo aéreo, que
comumente é reversível espontaneamente ou com tratamento.

Fisiopatologia
O desenvolvimento e a expressão da asma são influenciados por fatores
individuais, como predisposição genética para atopia, predisposição genética para hiper-
responsividade brônquica, obesidade, sexo masculino na infância e sexo feminino na
idade adulta, e fatores ambientais, como alérgenos, infecções, sensibilizadores
ocupacionais, fumaça de cigarro, poluição e alimentação, em que aleitamento materno
exclusivo durante os primeiros meses traz proteção. Os principais alérgenos incluem
ácaros, pelo de animais, baratas, fungos e pólen. Outros fatores incluem a maturação do
sistema imunológico e a exposição a agentes infecciosos durante os primeiros anos de
vida.
Atopia é um importante fator predisponente identificável para o
desenvolvimento de asma alérgica. Pode-se definir atopia como uma característica
herdada de um indivíduo relacionada à síntese de imunoglobulina do isotipo E (IgE)
diante de alérgenos do meio ambiente.

Quadro clínico
O diagnóstico de asma é suspeitado em caso de episódios recorrentes de
sibilância, dispneia, sensação de sufocamento e tosse, particularmente durante a noite ou
o início da manhã. Também pode haver exposição incidental a alérgenos precedendo os
sintomas, variabilidade sazonal dos sintomas e história familiar positiva para asma e
atopia.
Quando a asma é alérgica, o paciente costuma queixar-se de sintomas de
rinoconjuntivite alérgica e dermatite atópica, com coriza, salva de espirros, prurido
nasal, congestão nasal, lacrimejamento, prurido ocular, hiperemia ocular, eczema e
prurido cutâneo. A doença alérgica tende a começar em idades mais precoces, ter
evolução mais benigna, estar associada a exposição aos alérgenos e ser acompanhada de
antecedentes pessoais e familiares de doenças atópicas. A asma não-alérgica está
associada a quadros de rinite não-alérgica.
Existem pacientes com variante da doença em que predomina a tosse, sendo
importante documentar variabilidade da função pulmonar ou hiper-responsividade das
vias aéreas e pesquisar eosinófilos na expectoração. Um diagnóstico diferencial
importante é a bronquite eosinofílica, caracterizada por tosse e eosinófilos na
expectoração, mas com índices de função pulmonar normais. Outros diagnósticos
diferenciais são tosse induzida por inibidores da enzima de conversão da angiotensina,
refluxo gastro-esofágico, sinusite crônica, disfunção de corda vocal e gotejamento pós-
nasal.
Atividade física é uma importante causa de sintomas de asma na maior parte dos
pacientes e para alguns é a única causa. Broncoespasmo induzido por exercício
tipicamente ocorre cinco a dez minutos após o término do exercício, com manifestações

Pedro Kallas Curiati 1187


típicas de asma e resolução espontânea dentro de trinta a quarenta e cinco minutos. Pode
ocorrer em qualquer condição climática, mas é mais comum com ar seco e frio.

Avaliação complementar
Medidas de função pulmonar permitem avaliar a gravidade, a variabilidade e a
reversibilidade da limitação ao fluxo aéreo, além de confirmar o diagnóstico.
A espirometria é o método recomendado, com aferição do volume expiratório
forçado no primeiro segundo (VEF1) e da capacidade vital forçada (CVF) durante
manobra de expiração forçada. O grau de reversibilidade no VEF1 que indica asma é
geralmente aceito como 12% e 200mL em relação ao valor prévio ao uso de
broncodilatador. No entanto, a maior parte dos pacientes com asma não apresentará
reversibilidade em todas as avaliações, particularmente após o início do tratamento, de
modo que o teste possui baixa sensibilidade. O exame é reprodutível, mas dependente
de esforço, de modo que instruções apropriadas sobre como realizar a manobra
expiratória forçada devem ser oferecidas e o maior valor dentre três registros deve ser
considerado. Os valores preditos são baseados em idade, sexo, altura e etnia. Como
muitas doenças pulmonares podem causar redução do VEF1, é útil o cálculo da relação
VEF1/CVF.
O pico de fluxo expiratório (PFE) é aferido usando equipamento apropriado e
pode ser útil tanto para o diagnóstico como para a monitorização da asma. Como os
valores obtidos com diferentes equipamentos variam e o espectro de valores preditos é
amplo, as medidas devem ser preferencialmente comparadas ao maior valor prévio do
próprio paciente. Instrução cuidadosa é necessária, já que o exame é dependente de
esforço. O PFE comumente é aferido logo no início da manhã, antes do uso dos
medicamentos, quando os valores estão próximos ao seu nível inferior, e no final da
noite, quando os valores estão próximos ao seu nível superior. Uma forma de descrever
a variabilidade diurna do PFE é a sua amplitude, ou seja, a diferença entre os valores
máximo e mínimo de um determinado dia, expressa em porcentagem do valor médio do
dia, devendo-se calcular para um período de uma a duas semanas. Uma outra forma de
descrever a variabilidade diurna do PFE é o valor mínimo em porcentagem do valor
máximo tendo como referência temporal uma semana, índice que requer apenas uma
leitura diária, correlaciona-se melhor com a hiper-responsividade brônquica e envolve
cálculo simples. Apesar de a espirometria ser o método preferido para documentar a
limitação ao fluxo aéreo, uma melhora de 60L/minuto ou 20% do PFE após uso de
broncodilatador inalatório ou uma variabilidade diurna superior a 20% em caso de única
medida diária ou a 10% em caso de duas medidas diárias sugere o diagnóstico de asma.
Outras utilidades incluem melhorar o controle da doença, particularmente em pacientes
com má percepção dos sintomas, e identificar causas ambientais.
Em pacientes com sintomas consistentes com asma, mas função pulmonar
normal, medidas de responsividade das vias aéreas a estímulo direto com metacolina ou
histamina por via inalatória ou a estímulo indireto com manitol por via inalatória ou
exercício físico podem ser úteis. Esses testes são sensíveis, porém pouco específicos
para o diagnóstico de asma, já que hiper-responsividade brônquica é descrita em
pacientes com rinite alérgica, fibrose cística, bronquiectasia e doença pulmonar
obstrutiva crônica. A resposta ao agente provocativo é usualmente expressa como a
concentração que causa 20% de declínio no VEF1.
A avaliação da inflamação das vias aéreas associada à asma pode ser realizada
com o exame citológico da expectoração espontânea ou induzida por salina hipertônica,
que pode revelar aumento de eosinófilos ou neutrófilos. Além disso, níveis de óxido
nítrico e monóxido de carbono exalados também são sugeridos como marcadores de

Pedro Kallas Curiati 1188


inflamação na asma.
A avaliação do estado alérgico, que pode ser realizada com teste cutâneo (Prick
Test) ou medida de IgE específica no soro (RAST), ajuda a identificar os fatores de risco
que causam sintomas de asma em determinado indivíduo. A provocação deliberada das
vias aéreas com alérgeno suspeito ou agente sensibilizador pode ser útil no contexto
ocupacional, mas não é recomendada de rotina por ser raramente útil para estabelecer o
diagnóstico, requerer experiência considerável e pode resultar em broncoespasmo
ameaçador à vida. A principal limitação dos métodos que avaliam o estado alérgico é
que um resultado positivo não necessariamente significa que a doença é alérgica ou que
o agente identificado seja o causador dos sintomas. A medida da IgE total no soro não
tem valor como teste diagnóstico para atopia.
Hemograma com leucocitose pode indicar infecção pulmonar associada ou
utilização de corticosteroides sistêmicos. É característica a presença de eosinofilia.
Radiografia simples de tórax é normal na maioria dos indivíduos com asma não-
complicada. Quando alterada, pode revelar rebaixamento do diafragma, retificação de
arcos costais, aumento dos espaços intercostais e diminuição da densidade do
parênquima pulmonar.

Classificação
Controlada Parcialmente Descontrolada
controlada
Frequência de Menor ou igual a Mais do que duas vezes Três ou mais características da
sintomas diurnos duas vezes por por semana asma parcialmente controlada
semana em qualquer semana
Limitação das Nenhuma Qualquer
atividades
Frequência de Nenhuma Qualquer
sintomas noturnos
Frequência de uso Menor ou igual a Mais do que duas vezes
de medicação de duas vezes por por semana
resgate semana
Função pulmonar Normal Inferior a 80% do predito
ou do melhor
desempenho pessoal
A avaliação do controle da asma deve incluir não apenas as manifestações
clínicas, mas também o risco futuro esperado de exacerbações, declínio acelerado da
função pulmonar e efeitos adversos do tratamento, que está relacionado a controle
clínico precário, exacerbações frequentes no último ano, internação prévia em unidade
de terapia intensiva por exacerbação, VEF1 baixo, exposição a fumaça de cigarro e alta
dose de medicamentos.
A gravidade da asma é classificada com base na intensidade do tratamento
necessário para alcançar o controle, sendo considerada leve aquela que é bem
controlada com tratamento de baixa intensidade, como glicocorticoide inalatório em
dose baixa, modificador de leucotrieno e cromona, e severa aquela que requer
tratamento de alta intensidade ou em que o controle não é alcançado apesar de
tratamento de alta intensidade.

Diagnóstico diferencial
Síndrome de ansiedade e hiperventilação.
Síndrome do pânico.
Obstrução de vias aéreas superiores e inalação de corpo estranho.
Disfunção de corda vocal.

Pedro Kallas Curiati 1189


Formas de doença pulmonar obstrutiva, como doença pulmonar obstrutiva
crônica.
Formas de doença pulmonar não-obstrutiva, como doença parenquimatosa
pulmonar difusa.
Doenças não-respiratórias, como insuficiência cardíaca e refluxo gastro-
esofágico.

Tratamento
Medicamentos de controle são utilizados diariamente e a longo prazo, incluindo
glicocorticoides inalatórios e sistêmicos, modificadores de leucotrieno, β2-agonistas
inalatórios de longa duração, Teofilina de liberação sustentada, cromonas e anti-IgE.
Medicamentos de alívio são usados conforme a necessidade para reverter
broncoespasmo e aliviar sintomas, incluindo β2-agonistas inalatórios de curta duração,
anticolinérgicos inalatórios, Teofilina de curta duração e β2-agonistas orais de curta
duração.
O tratamento pode ser administrado por via inalatória, oral, subcutânea,
intramuscular ou intravenosa. A via inalatória é vantajosa porque as drogas atingem
diretamente as vias aéreas, com maior concentração local e menor risco de efeitos
colaterais sistêmicos.
A educação sobre a doença deve ser parte de todos os contatos entre os
profissionais da área da saúde e os pacientes. O objetivo é prover ao indivíduo com
asma, à sua família e aos outros cuidadores informação e treinamento para que sigam
adequadamente o esquema terapêutico medicamentoso e saibam ajustá-lo conforme um
plano previamente desenvolvido com os profissionais de saúde. Aspectos essenciais
incluem enfoque no desenvolvimento de parceria, aceitação de que trata-se de um
processo contínuo, compartilhamento de informações, discussão abrangente sobre as
expectativas e abordagem de medos e preocupações. Deve-se oferecer informação
específica, treinamento e aconselhamento sobre o diagnóstico, a diferença entre
medicamentos de controle e de alívio, os efeitos colaterais potenciais dos
medicamentos, o uso de dispositivos inalatórios, a prevenção de sintomas, os sinais
sugestivos de exacerbação e as ações a serem tomadas, a monitorização do controle da
asma e as indicações para que o paciente procure assistência médica. Os pacientes
devem ser convidados a demonstrar sua técnica de uso dos dispositivos inalatórios a
cada consulta, com novas orientações sempre que necessário.
Apesar de o tratamento farmacológico para a asma ser altamente efetivo no
controle dos sintomas e na melhoria da qualidade de vida, medidas para prevenir os
sintomas através da redução do contato com fatores desencadeantes devem ser
implementadas sempre que possível. Medidas para controle de alérgenos domiciliares
incluem usar revestimento impermeável para a roupa de cama, lavar a roupa de cama
em ciclo quente (55-60º C), substituir carpetes por piso duro, usar acaricidas, reduzir o
número de objetos que acumulam pó, utilizar aspiradores de pó específicos, remover e
lavar com água quente pelúcias, remover gato ou cachorro de casa, manter o animal de
estimação fora das principais áreas da casa, utilizar filtros de ar específicos e dar banho
nos animais de estimação. No entanto, não existem evidências de benefício clínico até o
momento para a maioria das medidas. Com relação a poluição fora do domicílio,
pacientes com asma controlada não precisam evitar condições ambientais desfavoráveis,
mas aqueles com doença de difícil controle devem ser orientados a evitar atividade
física extenuante em caso de frio, baixa humidade do ar e/ou alta taxa de poluentes,
evitar ambientes com fumaça de cigarro e permanecer em ambientes climatizados. A
identificação precoce de sensibilizadores ocupacionais e o afastamento do paciente de

Pedro Kallas Curiati 1190


novas exposições são componentes importantes do manejo da asma ocupacional. Ácido
Acetilsalicílico e outros anti-inflamatórios não-hormonais podem causar exacerbações
severas e devem ser evitados em pacientes com antecedente de episódios prévios. β-
bloqueadores orais ou intraoculares podem exacerbar o broncoespasmo, de modo que
supervisão médica cuidadosa é necessária quando são usados em pacientes com asma.
Pacientes com asma moderada a severa devem ser orientados a receber
vacinação contra influenza anualmente, apesar de não haver evidências de melhora do
controle da doença ou prevenção de exacerbações.
Redução de peso em pacientes obesos com asma melhora a função pulmonar, os
sintomas, a morbidade e o estado de saúde.

Medicamentos de controle

Glicocorticoides inalatórios
Os corticoides inalatórios são atualmente as medicações anti-inflamatórias mais
efetivas para o tratamento da asma, com evidência de que melhoram a qualidade de vida
e a função pulmonar e reduzem a hiper-responsividade brônquica, a inflamação das vias
aéreas, a frequência e a intensidade das exacerbações e a mortalidade.
O principal benefício em adultos é atingido com doses relativamente baixas,
equivalentes a 400mcg de Budesonida por dia. Doses maiores estão relacionadas a
aumento discreto do benefício, com mais efeitos colaterais. Tabagismo reduz a resposta
a glicocorticoides inalatórios, de modo que doses maiores podem ser necessárias em
fumantes.
Para atingir o controle clínico, a associação com outra classe de medicamentos
de controle é preferida em relação ao aumento da dose de glicocorticoide inalatório. No
entanto, há relação clara entre a dose inalada de glicocorticoide inalatório e a prevenção
de exacerbações agudas graves da asma.
Efeitos colaterais locais incluem candidíase orofaríngea, disfonia e tosse, que
podem ser reduzidos com o uso de espaçadores e com a lavagem oral após a inalação.
Produtos ativados nos pulmões e não na faringe, como Ciclesonida e Beclometasona, e
novas formulações e dispositivos que reduzem a deposição na orofaringe podem
minimizar os efeitos colaterais locais sem a necessidade de uso de espaçadores ou de
lavagem oral após a inalação. Há certo grau de biodisponibilidade sistêmica, mas efeitos
colaterais, que incluem supressão adrenal, redução da densidade mineral óssea,
hematomas, catarata e glaucoma, não são significativos com dose diária equivalente a
400mcg ou menos de Budesonida.
Droga Apresentação Dose baixa diária Dose média diária Alta dose diária
Dipropionato de 50mcg e 250mcg* 200-500mcg Superior a 500mcg, Superior a
Beclometasona 100mcg, 200mcg e até 1000mcg 1000mcg, até
400mcg# 2000mcg
Budesonida+ 200mcg* 200-400mcg Superior a 400mcg, Superior a
100mcg, 200mcg e até 800mcg 800mcg, até
400mcg# 1600mcg
Ciclesonida+ 80mcg e 160mcg* 80-160mcg Superior a 160mcg, Superior a
até 320mcg 320mcg, até
1280mcg
Flunisolida 250mcg* 500-1000mcg Superior a Superior a
1000mcg, até 2000mcg
2000mcg
Propionato de 50mcg e 250mcg& 100-250mcg Superior a 250mcg, Superior a
Fluticasona até 500mcg 500mcg, até
1000mcg

Pedro Kallas Curiati 1191


Furoato de 200mcg# Superior ou igual a Superior ou igual a Superior ou
Mometasona+ 200mcg, inferior a 400mcg, inferior a igual a 800mcg
400mcg 800mcg
Triancinolona 60mcg* 400-1000mcg Superior a Superior a
Acetonida 1000mcg, até 2000mcg
2000mcg
*
Nebulímetro pressurizado; #Inalador de pó seco; &Nebulímetro pressurizado e inalador de pó seco;
+
Medicamentos aprovados para uso em dose única diária em pacientes com doença leve;

β2-agonistas inalatórios de longa duração


β2-agonistas inalatórios de longa duração, como Formoterol e Salmeterol, não
devem ser utilizados como monoterapia para asma porque não influenciam a inflamação
das vias aéreas. A adição ao regime com glicocorticoides inalatórios melhora os
sintomas e a função pulmonar e reduz o número de exacerbações, sendo atingido o
controle clínico da doença mais rapidamente e com doses mais baixas de
glicocorticoides. Nebulímetros e inaladores de pó seco com combinações em dose fixa
são mais convenientes para os pacientes e aumentam a aderência ao tratamento.
β2-agonistas inalatórios de longa duração, quando usados em combinação com
glicocorticoides inalatórios, podem ser usados também para prevenir broncoespasmo
induzido por exercício.
Os efeitos adversos com a terapia inalatória são menores que aqueles
relacionados ao uso oral. O uso regular de β2-agonistas inalatórios de curta ou longa
duração pode gerar refratariedade ao uso de β2-agonistas.
Droga Apresentação Posologia
Formoterol 6mcg e 12mcg& Dose de 12-24mcg duas vezes por dia. Se necessário, uma a
(Foradil®, duas doses adicionais de 12mcg podem ser usadas para alívio
Oxeze®) dos sintomas. Para profilaxia de broncoespasmo induzido por
exercício ou antes de exposição inevitável a alérgeno
conhecido, dose de 12-24mcg deve ser inalada com
aproximadamente 15 minutos de antecedência.
Salmeterol 25mcg e 50mcg& Dose de 50-100mcg duas vezes por dia.
(Serevent®)
Combinação Apresentação Posologia
Formoterol/ 6mcg/100mcg, Dose de 6-12mcg de Formoterol e 100-400mcg de Budesonida
Budesonida 6mcg/200mcg e duas vezes por dia. Durante uma piora da asma, a dose pode
(Alenia®) 12/400mcg# ser temporariamente dobrada.
Salmeterol/ 25mcg/50mcg, Dose de 25-50mcg de Salmeterol e 50-500mcg de Fluticasona
Fluticasona 25mcg/125mcg e duas vezes ao dia. Durante uma piora da asma, a dose pode ser
(Seretide®) 25mcg/250mcg* temporariamente dobrada.
50mcg/100mcg,
50mcg/250mcg e
50mcg/500mcg#
*
Nebulímetro pressurizado; #Inalador de pó seco; &Nebulímetro pressurizado e inalador de pó seco;

Teofilina
A Teofilina é medicação broncodilatadora disponível como formulação de
liberação prolongada, adequada para administração uma a duas vezes ao dia. Pode ser
utilizada como terapia adjunta em pacientes que não atingem o controle da asma com o
uso isolado de glicocorticoides, porém com menor efetividade que os β2-agonistas
inalatórios de longa duração.
Os efeitos colaterais, particularmente com altas doses, superiores ou iguais a
10mg/kg/dia, são significativos e reduzem a utilidade da droga. Incluem sintomas
gastrointestinais, arritmias cardíacas, convulsões e mesmo morte. Doses baixas, que
oferecem benefício anti-inflamatório pleno, são associadas a menos efeitos adversos e a

Pedro Kallas Curiati 1192


dosagem dos níveis séricos não é necessária a menos que haja suspeita de intoxicação.

Cromonas
O papel do Cromoglicato de Sódio e do Nedocromil no tratamento a longo prazo
da asma é limitado, com eficácia demonstrada em pacientes com doença leve e
broncoespasmo induzido por exercício. O efeito anti-inflamatório é fraco e a efetividade
é inferior a de glicocorticoides inalatórios em dose baixa.
Efeitos colaterais são incomuns e incluem tosse e dor de garganta.

β2-agonistas orais de longa duração


β2-agonistas orais de longa duração incluem formulações de liberação lenta de
Salbutamol, Terbutalina e Bambuterol, uma pró-droga que é convertida em Terbutalina.
São usados apenas em situações excepcionais em que broncodilatação adicional é
necessária.
O perfil de efeitos colaterais é pior que o dos β2-agonistas inalatórios de longa
duração, incluindo estímulo cardiovascular com taquicardia, ansiedade e tremores
esqueléticos. O uso isolado pode ser danoso, de modo que é sempre recomendada a
combinação com glicocorticoides inalatórios.

Anti-IgE
Omalizumab é uma opção limitada a pacientes com níveis elevados de IgE
sérica, com indicação em asma alérgica severa sem controle com glicocorticoides
inalatórios. O melhor controle da doença é demonstrado por redução dos sintomas,
menor necessidade de medicamentos de alívio e menor frequência de exacerbações.
A droga é apresentada na forma de pó para solução injetável com 150mg em
cada frasco. A dose e a frequência de administração são determinadas pelo nível sérico
basal de IgE em UI/mL, medido antes do início do tratamento, e pelo peso corpóreo. A
via utilizada é a subcutânea.
Anti-IgE parece ser uma terapia adjuvante segura.

Glicocorticoides sistêmicos
Tratamento com glicocorticoides sistêmico em longo prazo, ou seja, por período
superior a duas semanas, pode ser necessário para asma severa não-controlada, mas seu
uso é limitado pelo risco de efeitos adversos significativos. Preparações orais são
preferidas em relação às parenterais para tratamento em longo prazo em função de
menor efeito mineralocorticoide, meia-vida relativamente curta e menor efeito em
musculatura estriada.
Os efeitos adversos incluem osteoporose, hipertensão arterial sistêmica, diabetes
mellitus, supressão do eixo hipotálamo-pituitária-adrenal, obesidade, catarata,
glaucoma, atrofia da pele com estrias e hematomas e fraqueza muscular.
Pacientes asmáticos que recebem glicocorticoides sistêmicos em longo prazo
devem receber tratamento preventivo para osteoporose. Densitometria óssea deve ser
realizada em qualquer paciente em uso de glicocorticoides sistêmicos por período
superior a seis meses com dose diária média superior ou igual a 7.5mg de Prednisona,
em mulheres na pós-menopausa em uso de glicocorticoides sistêmicos por período
superior a três meses com dose diária média superior ou igual a 5mg/dia e em qualquer
paciente com história de fraturas relacionadas a osteoporose.

Imunoterapia
O papel da imunoterapia alérgeno-específica na asma do adulto é limitado.

Pedro Kallas Curiati 1193


Requer a identificação e o uso de único, bem definido e clinicamente relevante
alérgeno, que é administrado em doses progressivamente maiores por via oral,
sublingual ou subcutânea com o intuito de induzir tolerância. Há evidências de redução
dos sintomas e da necessidade de medicamentos e melhora da hiper-responsividade
brônquica.
Deve-se considerar o uso de imunoterapia alérgeno-específica apenas após
controle ambiental rigoroso e intervenção farmacológica, incluindo o uso de
glicocorticoides inalatórios, terem falhado em controlar a asma.
Efeitos colaterais podem incluir reação local, reação anafilática e exacerbação da
asma.

Medicamentos de alívio

β2-agonistas inalatórios de curta duração


β2-agonistas inalatórios de curta duração são as drogas de escolha para o alívio
do broncoespasmo durante exacerbações da asma e para a prevenção de broncoespasmo
induzido pelo exercício. Incluem Salbutamol, Terbutalina, Fenoterol, Levalbuterol,
Reproterol e Pirbuterol.
O uso deve ser orientado conforme para alívio de sintomas, com a menor dose e
frequência necessários. Uso aumentado, especialmente se diário, é sinal de deterioração
do controle da doença, com necessidade de reavaliação do tratamento.
Efeitos colaterais incluem taquicardia e tremores.
Droga Apresentação Posologia
Fenoterol Nebulímetro pressurizado Dose de 100-200mcg para broncoespasmo agudo, que pode
(Berotec®) com doses de 100mcg e ser seguida de uma segunda dose após dez minutos,
200mcg devendo-se respeitar intervalo de três horas para nova
repetição. Manutenção ou profilaxia com dose três a quatro
vezes ao dia. Máximo de 800mcg por dia.
Solução para nebulização Dose de 8-10 gotas diluídas em 5mL de Soro Fisiológico
com 5mg/mL (20 gotas de para broncoespasmo agudo, com repetição após trinta
0.25mg) minutos na ausência de melhora. Manutenção ou profilaxia
com dose três a quatro vezes ao dia.
Salbutamol Nebulímetro pressurizado Dose de 100-200mcg para broncoespasmo agudo e
(Aerolin®) ou inalador de pó seco prevenção de asma induzida por exercício, cinco a trinta
com doses de 100mcg e minutos antes do início da prática. Manutenção ou
200mcg profilaxia com 200mcg três a quatro vezes ao dia.
Solução para nebulização Dose de 2.5-5.0mg em 2.0-2.5mL de Soro Fisiológico
com 5mg/mL.
Terbutalina Inalador de pó seco com Dose de até 500-1500mcg para broncoespasmo agudo.
(Bricanyl®) dose de 500mcg Manutenção ou profilaxia com 500-1000mcg quatro vezes
ao dia. Máximo de 4000mcg por dia.
Solução para nebulização Dose de 4-10 gotas, podendo chegar a 20 gotas nos casos
com 10mg/mL (20 gotas) mais graves.

Glicocorticoides sistêmicos
Apesar de os glicocorticoides sistêmicos não serem usualmente encarados como
medicamentos de alívio, são importantes no tratamento de exacerbações agudas severas
da asma. Seus principais efeitos são evidentes apenas após quatro a seis horas, com a
terapia oral sendo preferida e apresentando a mesma efetividade da terapia parenteral.
Um curso típico de glicocorticoide sistêmico é 40-50mg de Prednisolona por dia
durante cinco a dez dias.

Anticolinérgicos

Pedro Kallas Curiati 1194


Broncodilatadores anticolinérgicos usados no tratamento da asma incluem o
Brometo de Ipratrópio e o Brometo de Oxitrópio, que são medicamentos de alívio
menos efetivos que os β2-agonistas inalatórios de curta duração e consistem em
alternativa em pacientes com taquicardia, arritmias e tremores.
Efeitos adversos incluem boca seca e gosto ruim.
Droga Apresentação Posologia
Brometo de Nebulímetro pressurizado Dose de 20-40mcg três a quatro vezes ao dia.
Ipratrópio com doses de 20mcg e 40mcg Máximo de 240mcg por dia.
(Atrovent®) Solução para nebulização Dose de 0.5mg (40 gotas, 2mL) três a quatro
com 0.25mg/mL (20 gotas) vezes por dia, com pelo menos quatro horas de
intervalo entre as doses.
Brometo de Nebulímetro pressurizado Dose de 100-200mcg duas a três vezes ao dia.
Oxitrópio com dose de 100mcg
Solução para nebulização -
com 1.5mg/mL.

Teofilina
Teofilina de curta duração pode ser considerada para alívio de sintomas. Apesar
de não apresentar efeito broncodilatador adicional em relação a doses adequadas de β2-
agonistas inalatórios de curta duração, pode melhorar o drive respiratório.
A Teofilina tem potencial para importantes efeitos adversos, o que pode ser
evitado com dose e monitorização apropriadas. Teofilina de curta duração não deve ser
administrada para pacientes já em uso e Teofilina de liberação sustentada, a menos que
a concentração sérica seja baixa e possa ser monitorizada.

β2-agonistas orais de curta duração


β2-agonistas orais de curta duração são apropriados para o uso em pacientes
selecionados que não podem inalar medicação. No entanto, o uso por via oral está
associado a maior prevalência de efeitos adversos.

Etapas do tratamento
O objetivo do tratamento da asma, que consiste em atingir e manter o controle
clínico, pode ser atingido na maior parte dos pacientes com estratégia de intervenção
farmacológica. Cada paciente é designado para uma dentre cinco etapas do tratamento
conforme o seu nível atual de controle da doença. O racional envolve avaliar o nível de
controle, tratar para atingir o controle e monitorizar para manter o controle. O nível de
controle atual da doença, preferencialmente nas últimas quatro semanas, e a etapa atual
de tratamento são os fatores determinantes na seleção da abordagem farmacológica.
Nível de controle Ação terapêutica
Doença controlada Encontrar a menor etapa do tratamento que mantenha a doença controlada
Doença parcialmente Considerar a próxima etapa do tratamento para atingir o controle da doença
controlada
Doença descontrolada Direcionar o tratamento para as próximas etapas até atingir o controle da
doença
Etapa 1 Etapa 2 Etapa 3 Etapa 4 Etapa 5
Educação e controle ambiental
Vacinação anual contra influenza se asma moderada a grave
β2-agonista inalatório de curta duração para alívio das crises
Selecione 1 Selecione 1 Adicione 1 ou mais Adicione 1 ou
ambos

Pedro Kallas Curiati 1195


Corticoide Corticoide inalatório Corticoide inalatório Glicocorticoides por
inalatório em em dose baixa e β2- em dose média a alta e via oral na menor dose
possível
dose baixa agonista inalatório de β2-agonista inalatório
longa duração de longa duração
Antagonista de Corticoide inalatório em Antagonista de leucotrieno Anticorpos anti-IgE
leucotrieno dose média a alta
Corticoide inalatório em Teofilina de liberação
dose baixa e antagonista de sustentada
leucotrieno
Corticoide inalatório em
dose baixa e Teofilina de
liberação sustentada
A Etapa 1 é reservada para pacientes com doença controlada sem o uso de
medicamentos de controle. A Etapa 2 é a escolha inicial para a maior parte dos
pacientes virgens de tratamento com sintomas persistentes, mas se a avaliação inicial
revelar doença severamente descontrolada, deve-se preferir iniciar pela Etapa 3. Para a
maior parte das classes de medicamentos de controle, a melhora dos sintomas se inicia
dias após o início do tratamento, mas o benefício completo só é atingido após três a
quatro meses.
Atividade física é uma importante causa de sintomas em pacientes com asma e
eventualmente pode ser a única causa. No entanto, broncoespasmo induzido por
exercício geralmente indica que a doença não está controlada adequadamente, de modo
que progredir o tratamento para a próxima etapa pode reduzir os sintomas. Para aqueles
indivíduos em que persiste broncoespasmo induzido por exercício apesar de doença
controlada em outras situações e para aqueles em que broncoespasmo induzido por
exercício é a única manifestação da asma é indicado o uso de β2-agonista de curta ou
longa duração antes do início da atividade física ou para aliviar os sintomas que se
desenvolvem após. Modificador de leucotrieno e cromonas constituem alternativas.
Com relação ao desmame das medicações em pacientes com doença controlada,
quando glicocorticoides inalatórios em dose média a alta são utilizados isoladamente
como medicação de controle, redução de 50% da dose pode ser tentada com intervalos
de três meses. Quando o controle é atingido com glicocorticoides inalatórios em dose
baixa, o tratamento pode ser conduzido com dose única diária. Quando o controle é
atingido com uma combinação de glicocorticoides inalatórios em dose média a alta e β2-
agonista de longa duração, prefere-se iniciar com redução da dose de glicocorticoide em
50% com intervalos de três meses até dose baixa ser atingida, quando o uso de β2-
agonista de longa duração pode ser interrompido. O tratamento com medicamentos de
controle pode ser suspenso se o paciente mantiver asma controlada com as menores
doses dos medicamentos de controle, sem recorrência dos sintomas no período de um
ano.
Em caso de perda do controle do tratamento, doses repetidas de β2-agonista de
início rápido e curta ou longa duração podem oferecer alívio temporário dos sintomas
até que a causa da piora dos sintomas seja resolvida, mas a necessidade de manutenção
dessa abordagem por mais de dois dias indica a necessidade de rever e possivelmente
aumentar a medicação de controle. Existe evidência de que quadruplicar a dose de
glicocorticoide inalatório pode ser efetivo quando há deterioração do controle da asma,
com manutenção por sete a quatorze dias. O uso de uma combinação de β2-agonista de
início rápido e longa duração, como o Formoterol, em associação com glicocorticoide
inalatório tanto para controle da doença como para alívio dos sintomas é abordagem
efetiva na manutenção de elevado nível de controle da asma e na redução de
exacerbações com necessidade de glicocorticoides sistêmicos e internação hospitalar.
Pacientes que não atingem nível de controle aceitável com a Etapa 4 do
tratamento são considerados portadores de asma de difícil tratamento. Nesses casos, é

Pedro Kallas Curiati 1196


necessário confirmar o diagnóstico de asma, investigar e confirmar a aderência ao
tratamento, considerar a concomitância de tabagismo e orientar a cessação do hábito e
investigar e tratar comorbidades que podem agravar a asma, como sinusite crônica,
doença do refluxo gastro-esofágico, obesidade e síndrome da apneia obstrutiva do sono.

Bibliografia
Global strategy for asthma management and prevention. Global Initiative for Asthma. 2010.
Clínica Médica, volume 7: alergia e imunologia clínica, doenças da pele, doenças infecciosas. – Barueri, SP: Manole, 2009.

Pedro Kallas Curiati 1197


CÂNCER DE PULMÃO
Tumores malignos primários de pulmão

Epidemiologia
O carcinoma pulmonar é uma doença de etiopatogenia multifatorial, em que se
destacam tabagismo, agentes ocupacionais, como exposição a asbesto, sílica,
hidrocarbonetos policíclicos e metais pesados (arsênico, cromo e níquel), iatrogenia,
como irradiação torácica prévia, agentes ambientais, como exposição a radônio e
tabagismo passivo, e agentes sociodemográficos, como gênero, hormônios, dieta,
exposição a compostos derivados da queima de gorduras animais, antecedente de
doenças pulmonares, como fibrose pulmonar, e predisposição genética. Há implicação
direta do número de cigarros consumidos, do tempo de exposição e da idade de
iniciação no risco relativo de câncer de pulmão.
A taxa de sobrevida média em cinco anos é de 13%. Isso se deve a vários
fatores, entre os quais o diagnóstico tardio, a idade avançada dos pacientes no momento
do diagnóstico e a baixa taxa de resposta completa ao tratamento sistêmico com
quimioterapia.

Quadro clínico
Sintomas e sinais inespecíficos são comuns e incluem anorexia, fadiga, febre e
perda de peso. Achados considerados específicos para neoplasia pulmonar dividem-se
entre aqueles atribuídos à lesão primária, aqueles relacionados à extensão intratorácica
da doença e aqueles atribuíveis a metástases e a síndromes paraneoplásicas.
Quando acometem as vias aéreas, as neoplasias pulmonares podem ocasionar
tosse, sibilos, hemoptise e pneumonias recorrentes. Quando acometem a pleura visceral,
podem causar dor torácica ventilatório-dependente e derrame pleural. Dispneia é
frequente, podendo ser consequente a obstrução de vias aéreas, envolvimento linfático
ou derrame pleural volumoso.
Síndrome de Pancoast é secundária ao envolvimento do gânglio estrelado e do
plexo braquial por tumores apicais, comumente próximos à impressão da clavícula e dos
vasos subclávios sobre o pulmão, com dor em ombro de forte intensidade, atrofia
muscular, destruição dos arcos costais superiores e síndrome de Claude-Bernard-
Horner, caracterizada por ptose palpebral, enolftalmia, miose e anidrose facial
ipsilateral. Síndrome da veia cava superior ocorre secundária a linfonodomegalias
mediastinais ou invasão tumoral. Outros achados clínicos relacionados à extensão
intratorácica da doença incluem rouquidão por acometimento do nervo laríngeo
recorrente, paralisia frênica por acometimento do nervo frênico, dor torácica por
acometimento costal, derrame pleural por extensão direta, obstrução linfática ou
atelectasia e derrame pericárdico por extensão direta ou obstrução linfática.
Manifestações relacionadas às metástases estão presentes em cerca de um terço
dos pacientes com câncer de pulmão. Os locais mais comuns de metástase são ossos,
fígado, suprarrenais, linfonodos distantes e sistema nervoso central. Eventualmente,
surgem metástases cutâneas e pulmonares.
Síndromes paraneoplásicas representam um grupo de distúrbios não
relacionados diretamente ao tumor primário ou às metástases e ocorrem em pelo menos
10% dos portadores de câncer de pulmão. A fisiopatologia é ainda pouco conhecida,
mas está relacionada a produção de substâncias biologicamente ativas pelo tumor ou em

Pedro Kallas Curiati 1198


resposta a ele. A hipercalcemia, cujo achado favorece o diagnóstico de carcinoma de
células escamosas, ainda que também associada a metástases ósseas, é mais
frequentemente devida à produção de proteína relacionada ao paratormônio.
Hiponatremia é achado frequente relacionado a níveis séricos elevados de hormônio
antidiurético, com síndrome da secreção inapropriada de hormônio antidiurético. Apesar
de cerca de metade dos portadores de carcinoma pulmonar de células pequenas
apresentar níveis séricos elevados de hormônio adrenocorticotrófico, síndrome de
Cushing é rara. Baqueteamento digital é encontrado em quase um terço dos doentes e,
como a osteoartropatia hipertrófica pulmonar, tem causa desconhecida e guarda relação
com os tipos histológicos adenocarcinoma e carcinoma de células escamosas.
Osteoartropatia, menos frequente, consiste em artropatia simétrica dolorosa com
neoformação óssea periosteal nas extremidades distais dos ossos longos dos membros.
Uma série de distúrbios neurológicos pode ocorrer como consequência de neoplasias
pulmonares, principalmente no caso dos carcinomas pulmonares de pequenas células,
com fisiopatologia não compreendida, parecendo envolver anticorpos. Incluem
síndrome de Lambert-Eaton, encefalomielite, neuropatia sensorial subaguda,
degeneração cerebelar, retinopatia e neuropatia periférica. Manifestações hematológicas
incluem anemia, granulocitose, trombocitemia e tromboembolismo. Manifestações
cutâneas incluem hipertricose lanuginosa e acantose nigricans. Manifestações renais
incluem glomerulonefrite e síndrome nefrótica.

Avaliação complementar
Radiologicamente, o câncer de pulmão pode se apresentar como atelectasia,
nódulo, massa densa ou cavitada, derrame pleural, opacidades em vidro fosco ou
consolidações. A tomografia computadorizada de tórax tem se firmado como o melhor
exame no diagnóstico de lesões pulmonares e supera a radiografia simples de tórax pelo
seu alto poder de definição. A ressonância nuclear magnética pode ser indicada para
determinar a invasão de estruturas mediastinais e da parede torácica. A tomografia por
emissão de pósitrons tem sido importante no diagnóstico de nódulos indefinidos e no
estudo do mediastino.
Os principais métodos não-cirúrgicos para obtenção de amostra de células ou
tecido da lesão pulmonar primária são citologia do escarro, biópsia por broncoscopia e
biópsia percutânea transtorácica. A citologia do escarro representa método não-
invasivo, devendo ser colhidas no mínimo três amostras, com maior utilidade em
pacientes com lesões centrais e/ou hemoptise. A broncoscopia tem valor principalmente
para lesões centrais endobrônquicas. As lesões periféricas em contato com a pleura
parietal podem ser diagnosticadas por biópsia transtorácica guiada por tomografia
computadorizada. Na impossibilidade de obtenção do diagnóstico por meio de métodos
menos invasivos, a abordagem cirúrgica com videotoracoscopia ou toracotomia
convencional torna-se necessária, permitindo análise histológica transoperatória e, se
necessário, terapêutica com extirpação cirúrgica do tumor.
Derrame pleural deve ser investigado com toracocentese para estudo
citopatológico do líquido. A biópsia pleural percutânea tem menor sensibilidade que a
pesquisa de células neoplásicas no líquido pleural. Em pacientes com alta suspeita
clínica de acometimento pleural e toracocentese não-diagnóstica, pode-se optar por
videotoracoscopia.
Doença linfonodal mediastinal pode ser inicialmente investigada com punção
aspirativa transcarinal por broncoscopia ou com punção aspirativa guiada por
ultrassonografia endoscópica esofágica ou endobrônquica. Nos casos de resultado
inconclusivo, a investigação dos linfonodos mediastinais suspeitos deve ser

Pedro Kallas Curiati 1199


complementada com mediastinoscopia.
Lesões a distância idealmente também devem ser submetidas a biópsia para
confirmação do estadiamento.

Rastreamento
O rastreamento tem como objetivo identificar pacientes com doença precoce,
aumentando as chances de cura. As características do método de rastreamento ideal são
eficácia, com redução de mortalidade e/ou melhora na qualidade de vida, segurança e
custo-efetividade.
Apesar de algumas evidências apontarem para aumento da detecção de
neoplasias pulmonares em indivíduos assintomáticos, os estudos conduzidos até a
presente data não conseguiram demonstrar redução da mortalidade com uso de
radiografias e citologias seriadas.
Existem evidências de que o rastreamento anual por tomografia
computadorizada com baixo teor de radiação anualmente durante pelo menos três anos
permite o achado de cânceres em estágios mais precoces, quando comparado ao
rastreamento por radiografia simples de tórax, com redução da mortalidade em
indivíduos de alto risco, caracterizados por idade entre 55 e 74 anos no início do
programa de rastreamento, fumantes ou que deixaram de fumar há quinze anos ou
menos, com antecedente de tabagismo de pelo menos 30 maços-ano ou de pelo menos
20 maços-ano em associação com fator de risco adicional, exceto tabagismo passivo.
Tanto o rastreamento com radiografia de tórax como aquele com tomografia
computadorizada com baixo teor de radiação apresentam altas taxas de resultados falso-
positivos, com necessidade de avaliação radiológica seriada e, eventualmente,
procedimentos invasivos para confirmação diagnóstica.
Até o presente momento, não há evidências que permitam recomendações a
favor do rastreamento de câncer de pulmão, apesar de a tomografia computadorizada de
tórax de baixa dosagem parecer um método promissor. A cessação do tabagismo é uma
intervenção muito superior a qualquer método de rastreamento para redução de
mortalidade.

Classificação
De maneira geral, os tumores primários são divididos em carcinoma de pulmão
de células não-pequenas e carcinoma de pulmão de células pequenas. O comportamento
distinto desses tipos celulares influencia tanto a forma de abordagem como o
prognóstico dos pacientes.
Outros tipos histológicos incluem carcinoma adenoescamoso, carcinoma de
elementos pleomórficos e sarcomatoides e tumor carcinoide.

Carcinoma de pulmão de células não-pequenas


O carcinoma de pulmão de células não-pequenas representa 75% dos carcinomas
pulmonares. Os três tipos histológicos distintos que formam esse grupo são o
adenocarcinoma, o carcinoma epidermóide e o carcinoma indiferenciado de grandes
células. Embora esses tumores tenham peculiaridades que os diferenciem entre si, são
classificados conjuntamente porque têm potencial de cura por meio de ressecção
cirúrgica quando diagnosticados precocemente. Representam a maior parte dos casos de
tumores malignos primários do pulmão.
O adenocarcinoma atualmente é o tumor primário de pulmão mais comum.
Tipicamente, manifesta-se como nódulos ou massas periféricas, com tendência à
disseminação linfonodal mediastinal e derrame pleural. Entre seus subtipos, o

Pedro Kallas Curiati 1200


carcinoma bronquíolo-alveolar é o mais relevante por manifestar-se radiologicamente
através de broncograma aéreo e por acreditar-se que sua disseminação seja aérea.
O carcinoma epidermóide, bastante relacionado ao tabagismo, localiza-se
centralmente na maior parte dos casos e pode ocasionar pneumonia obstrutiva. Está
mais relacionado a cavitações centrais por causa de áreas de necrose e se manifesta por
hemoptise com maior frequência. Tem tendência à disseminação local.
O carcinoma indiferenciado de grandes células manifesta-se como massa
pulmonar e também pode apresentar necrose central. Pode ser central ou,
preferencialmente, periférico.

Carcinoma de pulmão de células pequenas


O carcinoma de células pequenas é tumor de alto grau. Ao diagnóstico,
normalmente não é cirúrgico, com grande chance de já existir disseminação. A
apresentação clínica mais comum é de massa hilar associada a linfadenopatia
mediastinal Costuma apresentar síndrome paraneoplásicas, principalmente secreção
inapropriada do hormônio antidiurético, síndrome de Cushing e degeneração cerebelar.
Apesar de bastante suscetível aos efeitos da quimioterapia e da radioterapia, o
carcinoma de células pequenas geralmente recorre e se torna refratário ao tratamento
dentro de um a dois anos.

Estadiamento
Alguns achados de exame físico indicam estádios mais avançados de doença,
tendo, portanto, valor prognóstico.
Ainda que não tenham implicação diretamente prognóstica, alguns exames são
solicitados de rotina aos pacientes com neoplasias pulmonares por sua utilidade na
avaliação clínica geral, para investigação de avanço da doença e para avaliação de
eventuais comorbidades. Incluem hemograma, marcadores de função renal, eletrólitos
séricos com dosagem de cálcio sérico, transaminases hepáticas, enzimas canaliculares
hepáticas, bilirrubinas e albumina. Alterações nos níveis de enzimas hepáticas dirigem a
investigação para metástase hepática. Alterações da calcemia ou dos níveis de fosfatase
alcalina dirigem a investigação para metástases ósseas. A pesquisa de marcadores
tumorais séricos não é feita rotineiramente.
Os exames de imagem mais utilizados para o estadiamento das neoplasias
pulmonares são tomografia computadorizada de tórax com contraste, tomografia
computadorizada de abdômen com contraste, tomografia computadorizada de crânio ou
ressonância nuclear magnética de crânio, cintilografia óssea e tomografia por emissão
de pósitrons de corpo inteiro fundida com imagem de tomografia computadorizada
(PET-CT). O estadiamento anatomopatológico envolve biópsia das lesões com suspeita
clínica e/ou radiológica de extensão intratorácica ou extratorácica da doença, com
aspirado transbrônquico por broncoscopia guiada ou não por ultrassonografia, aspirado
transesofágico guiado por endoscopia, mediastinoscopia ou toracoscopia. Derrames
pleurais também devem ser puncionados para análise citológica naqueles doentes em
que evidências de acometimento pleural mudem a proposta terapêutica.
O desempenho funcional pode ser avaliado com o sistema do Eastern
Cooperative Oncology Group (ECOG) e com o escore de Karnofsky.
Desempenho funcional (performance status)
Sistema Escore de Critérios
ECOG Karnosfky
0 100 Ausência de sintomas.
1 90 Mínimos sintomas, sem limitações para atividades de vida diária.

Pedro Kallas Curiati 1201


80 Sintomas evidentes, com dificuldade para atividades de vida diária.
2 70 Sintomas evidentes, com impedimento para atividades de vida diária e
autocuidado preservado. Paciente acamado menos de metade do dia.
60 Sintomas evidentes, com impedimento para atividades de vida diária e
autocuidado parcialmente preservado Paciente acamado menos de metade do
dia.
3 50 Sintomas evidentes, com impedimento para atividades de vida diária e
autocuidado. Paciente acamado mais de metade do dia.
40 Sintomas evidentes, com impedimento para atividades de vida diária e
autocuidado. Necessidade de cuidados plenos. Paciente acamado mais de
metade do dia.
4 30 Paciente acamado e dependente, com hospitalização indicada.
20 Paciente acamado e dependente, com hospitalização necessária.
10 Paciente moribundo, com morte iminente.
5 0 Paciente morto.

Carcinoma de pulmão de células não-pequenas


Após o diagnóstico histológico, o próximo passo é estabelecer a extensão da
doença para estimar o prognóstico e definir a conduta terapêutica. No carcinoma de
pulmão de células não-pequenas, utiliza-se o estadiamento TNM.
A disseminação dos tumores pulmonares é linfática e acompanha a árvore
traqueobrônquica. Dessa forma, as primeiras estruturas acometidas seriam os linfonodos
intrapulmonares, seguidos por linfonodos hílares, linfonodos paratraqueais e, por fim,
metástases à distância. Entretanto, a existência de metástases à distância sem
acometimento de linfonodos pode ocorrer, fenômeno denominado skip metastasis.
A avaliação do envolvimento linfonodal inicia-se pela análise tomográfica do
mediastino. Linfonodos aumentados nessa região podem ser indicativos de doença
mediastinal, embora a alta prevalência de tuberculose no Brasil seja responsável por
resultados falso-positivos. A esse achado, segue-se a investigação por meio de
mediastinoscopia. A tomografia por emissão de pósitrons pode ser utilizada para avaliar
lesões mediastinais e possui alto valor preditivo negativo, com redução da necessidade
de realização de mediastinoscopia quando não há aumento de metabolismo glicolítico.
T N M
Tx Tumor primário desconhecido, com citologia Nx Extensão linfonodal Mx Existência de
positiva sem lesão observada. desconhecida. metástases
Tis Tumor in situ. N0 Ausência de acometimento desconhecida.
linfonodal.
T1 Tumor menor ou igual a 3cm de diâmetro sem N1 Extensão a linfonodos M0 Ausência de
invasão de brônquio lobar ou pleura visceral e peribrônquicos, hilares e/ou metástases a
sem atelectasia. T1a – Tumor menor ou igual a intrapulmonares ipsilaterais. distância.
2cm. T1b – Tumor maior do que 2cm e menor
ou igual a 3cm.
T2 Tumor maior do que 3cm e menor ou igual a N2 Extensão a linfonodos M1 Presença de
7cm de diâmetro ou com invasão de pleura subcarinais ou mediastinais metástase a distância.
visceral ou de brônquio lobar distante 2cm ou ipsilaterais. M1a – Nódulos
mais da carina ou atelectasia que não tumorais separados
comprometa todo o pulmão. T2a – Tumor maior no lobo contralateral,
do que 3cm e menor ou igual a 5cm. T2b – tumor com nódulos
Tumor maior do que 5cm e menor ou igual a pleurais ou tumor
7cm. com derrame pleural
T3 Tumor maior do que 7cm de diâmetro ou que N3 Extensão a linfonodos hilares ou pericárdico com
invada parede torácica, diafragma, pleura ou mediastinais contralaterais citologia oncótica
mediastinal, nervo frênico, pericárdio ou ou a linfonodos escalenos ou positiva. M1b –
brônquio lobar a menos de 2cm da carina, que supraclaviculares ipsilaterais Metástase em órgãos
leve a atelectasia de todo um pulmão ou que ou contralaterais. extratorácicos.
curse com nódulos satélites no mesmo lobo do
tumor primário.

Pedro Kallas Curiati 1202


T4 Tumor de qualquer tamanho que invada Estádios
mediastino, grandes vasos, coração, traqueia, IA: T1N0M0; IB: T2aN0M0;
carina, esôfago, nervo laríngeo recorrente ou IIA: T1N1M0, T2aN1M0, T2bN0M0; IIB: T2bN1M0, T3N0M0;
corpo vertebral, que leve a derrame pleural ou IIIA: T1-2N2M0, T3N1-2M0, T4N0-1M0; IIIB: T4N2M0, T1-
pericárdico ou que curse com nódulo satélite em 4N3M0
lobo ipsilateral, porém diferente do lobo do IV: T1-4N1-3M1
tumor primário.

Carcinoma de pulmão de células pequenas


No carcinoma de pulmão de células pequenas, o estadiamento adotado é o do
Veterans Lung Cancer Study Group, que propôs dois estádios, limitado e extenso. A
definição clássica de doença limitada é poder enquadrar a doença em um campo de
radioterapia, ou seja, em um hemitórax, podendo ter comprometimento linfonodal
mediastinal sem derrame pleural neoplásico. Todo o restante é classificado como
doença extensa. Há controvérsia quanto a linfonodo supraclavicular ipsilateral ou
contralateral, linfonodo hilar contralateral e derrame pleural simples ipsilateral.
No momento do diagnóstico, cerca de dois terços dos doentes já têm doença
extensa. Considerando que tratamento cirúrgico é feito somente em casos muito
selecionados de carcinoma de células pequenas e que quimioterapia é o tratamento de
escolha em todos os doentes com condição clínica, o estadiamento é feito basicamente
para definir o papel da radioterapia.

Tratamento

Carcinoma de pulmão de células não-pequenas


A cirurgia, ainda que reservada apenas aos pacientes com doença inicial, é o
tratamento mais efetivo e com maior potencial curativo em carcinomas pulmonares.
Contudo, como a maioria dos pacientes se apresenta à ocasião do diagnóstico com
doença localmente avançada ou disseminada, poucos podem ser submetidos a essa
modalidade terapêutica. Os pacientes elegíveis devem ser avaliados quanto aos riscos de
complicações advindas da ressecção cirúrgica por meio do cálculo dos valores
espirométricos e perfusionais pulmonares preditos pós-operatórios.
Apesar de vários indícios em estudos recentes favorecerem as ressecções
menores em razão do menor trauma cirúrgico, com melhor recuperação pós-operatória
sem alteração da sobrevida, a lobectomia permanece como a terapêutica de eleição nos
pacientes que possuem condições clínicas para tolerar esse procedimento. A abordagem
dos linfonodos mediastinais também é etapa primordial no procedimento cirúrgico por
definir o estadiamento da lesão. Essa abordagem pode ser realizada por meio de
amostragem ou de esvaziamento mediastinal. Embora ambas sejam eficazes como
métodos de estadiamento, a última técnica parece conferir melhor sobrevida aos
pacientes.
Pacientes com carcinoma de pulmão de células não-pequenas estádio I ou II
devem ser tratados com ressecção cirúrgica completa sempre que possível.
Quimioterapia pós-operatória adjuvante melhora a sobrevida em pacientes estádio II e
pode ter um papel em pacientes estádio IB. A radioterapia adjuvante é indicada para o
tratamento complementar das ressecções incompletas. Em pacientes com carcinoma de
pulmão de células não-pequena estádio clínico I ou II nos quais envolvimento de
linfonodos mediastinais é documentado na avaliação histológica do material ressecado
durante a cirurgia, com estádio patológico IIIA, quimioterapia adjuvante melhora a
sobrevida. Pacientes com carcinoma de pulmão de células não-pequenas estádio I ou II
que não são candidatos a ressecção cirúrgica ou que recusem a abordagem cirúrgica
podem ser candidatos a radioterapia.

Pedro Kallas Curiati 1203


Em pacientes com carcinoma de pulmão de células não-pequenas estádio
patológico III, terapia combinada envolvendo quimioterapia e radioterapia geralmente é
preferida. O papel da cirurgia após a quimioterapia e a radioterapia está em
investigação. A cirurgia pode ter um papel em pacientes cuidadosamente selecionados
com lesões T3 ou T4 com linfonodos mediastinais negativos.
Pacientes com carcinoma de pulmão de células não-pequenas estádio IV
geralmente são tratados com quimioterapia sistêmica ou cuidados paliativos dirigidos
para alívio de sintomas específicos. Em pacientes apropriadamente selecionados,
quimioterapia e/ou terapia com alvos moleculares podem prolongar a sobrevida sem
sacrificar a qualidade de vida. Radioterapia e cirurgia podem ser úteis para paliação de
sintomas em alguns pacientes.
Pacientes com carcinoma de pulmão de células não-pequenas estádio IV com
metástases isoladas podem se beneficiar da ressecção das metástases e do tratamento
agressivo do tumor primário.
Medidas paliativas locais podem ser úteis em pacientes com doença pulmonar
não-controlada. Dispneia por envolvimento de via aérea central pode ser abordada por
broncoscopia com o uso de coagulação por laser ou crioterapia. Implantação de stent
pode ser necessária para manter a patência da via aérea e permitir irradiação externa.
Braquiterapia pode ser aplicada localmente através de um cateter direcionado por
broncoscopia e pode ser útil para doença recorrente ou persistente de vias aéreas.
Radioterapia paliativa sintomática é indicada para pacientes com doença
metastática ou inelegíveis a outras modalidade terapêuticas e visa alívio de sintomas
dolorosos da parede torácica secundários a invasão direta ou compressão nervosa por
tumores irressecáveis, estabilização de fraturas patológicas, alívio de sintomas
dolorosos e deficitários secundários a metástases ósseas, tratamento local de atelectasias
secundárias ao acometimento endobrônquico de tumores irressecáveis, hemostasia de
tumores endobrônquicos sangrantes e tratamento local de metástases encefálicas.
A quimioterapia paliativa com esquemas de duas drogas baseados em análogo
platínico, como Cisplatina e Carboplatina, confere significativo aumento de sobrevida
geral e melhor controle dos sintomas em pacientes com carcinoma pulmonar de células
não-pequenas virgens de tratamento quando adicionada aos cuidados de suporte clínico
e tratamento sintomático. Esse benefício se aplica de forma mais homogênea aos
pacientes em melhores condições clínicas, com ECOG 0 a 2. Não há consenso quanto à
melhor opção para a segunda droga, devendo-se pesar aspectos individualizados, como
os perfis e a incidência de efeitos adversos, as comorbidades do paciente e a
disponibilidade do medicamento. As drogas mais utilizadas incluem Paclitaxel,
Docetaxel, Vinorelbina e Gencitabina.
Fármacos especialmente direcionados para vias associadas a apoptose,
proliferação celular e angiogênese surgem como novas e promissoras opções
terapêuticas em diferentes estágios da doença. A incorporação desses agentes
terapêuticos com alvos moleculares específicos, comumente referidos como “agentes
biológicos”, ao arsenal medicamentoso do carcinoma pulmonar de células não-
pequenas, isoladamente ou em conjunto com esquemas quimioterápicos usuais, vem
sendo investigada experimentalmente.

Carcinoma de pulmão de células pequenas


O tratamento do carcinoma pulmonar de células pequenas é baseado na terapia
combinada com quimioterapia e radioterapia, de preferência concomitante, quando a
doença é limitada, e na quimioterapia exclusiva, quando a doença é extensa.
Recomenda-se a associação de análogo platínico, como Cisplatina e Carboplatina, com

Pedro Kallas Curiati 1204


Etoposídeo ou Irinotecano. A indicação de radioterapia é mandatória nos casos de
metástases encefálicas e pode ser considerada de forma profilática conforme o contexto
clínico.
Em razão das características desse tumor, muito mais agressivo, geralmente com
metástases presentes no momento do diagnóstico, a operação de modo isolado não é
superior a outras formas de tratamento. Na doença limitada que se manifesta como
nódulo pulmonar solitário, a ressecção seguida de quimioterapia adjuvante com dueto
baseado em análogo platínico mostra resultados superiores se comparada à
quimioterapia isolada. Desse modo, indica-se a ressecção nos casos em que o controle
local é possível.

Tumores metastáticos de pulmão


Os pulmões são o principal sítio de metástases de todos os tumores sólidos
malignos, exceto os tumores colo-retais.
A probabilidade de uma lesão pulmonar única corresponder a processo
metastático varia conforme o tipo histológico.
Radiologicamente, essas lesões manifestam-se como nódulos, geralmente
múltiplos, periféricos e bem delimitados.
Critérios de indicação cirúrgica para realização de metastasectomias incluem
pacientes com lesão primária controlada ou controlável, ausência de lesões extra-
pulmonares, ausência de melhor tratamento disponível, lesões metastáticas ressecáveis e
condição clínica favorável para o procedimento proposto.
A lobectomia e a pneumectomia devem ser reservadas para situações em que o
tamanho das lesões impede ressecções menores.

Bibliografia
Clínica médica, volume 2: doenças cardiovasculares, doenças respiratórias, emergências e terapia intensiva. – Barueri, SP: Manole,
2009.
Clínica cirúrgica. – Barueri, SP: Manole, 2008.
Overview of the risk fators, pathology, and clinical manifestations of lung cancer. David E Midthun. UpToDate, 2012.
Overview of the initial evaluation, treatment and prognosis of lung cancer. David E Midthun. UpToDate, 2012.
Diagnosis and staging of non-small cell lung cancer. Karl W Thomas and Michael K Gould. UpToDate, 2012.
Pathobiology and staging of small cell carcinoma of the lung. Anthony Elias. UpToDate, 2012.
Screening for lung cancer. Mark E Deffebach and Linda Humphrey. UpToDate, 2012.

Pedro Kallas Curiati 1205


DOENÇA PULMONAR
OBSTRUTIVA CRÔNICA
Definição
Doença pulmonar obstrutiva crônica é uma doença prevenível e tratável
caracterizada por limitação do fluxo aéreo que não é completamente reversível,
geralmente é progressiva e está associada a resposta inflamatória anormal dos pulmões a
partículas ou gases nocivos.
Bronquite crônica é definida como a presença de tosse e expectoração por pelo
menos três meses por ano em pelo menos dois anos consecutivos.

Fisiopatologia
A limitação crônica do fluxo aéreo característica da doença pulmonar obstrutiva
crônica é causada por uma combinação de doença de pequenas vias aéreas, denominada
bronquiolite obstrutiva, e destruição do parênquima, denominada enfisema.

Fatores de risco
Predisposição genética, como deficiência hereditária de alfa-1 antitripsina.
Baixo nível socioeconômico.
Prematuridade, crescimento pulmonar reduzido e desnutrição.
Hiper-responsividade brônquica.
Exposição a fumaça de cigarro, poluição ambiental, fumaça proveniente de
fogão e sistemas de aquecimento que utilizam biomassa em ambientes pouco ventilados
e agentes ocupacionais.
Infecções virais e bacterianas, incluindo tuberculose.

Quadro clínico
Os principais sintomas são dispneia progressiva, geralmente agravada por
esforço e persistente, tosse crônica, que pode ser intermitente e sem expectoração, e
expectoração crônica. Sibilância e sensação se sufocamento são sintomas inespecíficos
e que variam entre os dias ou mesmo durante o curso de um único dia. Emagrecimento e
anorexia são comuns em estágios avançados.
O exame físico pode revelar cianose central, tórax em barril, abdômen protruso,
costelas horizontalizadas, achatamento do diafragma, taquipneia, uso de musculatura
acessória da ventilação, fígado facilmente palpável no rebordo costal direito, redução
dos murmúrios vesiculares, sibilância, estertores pulmonares e edema de membros
inferiores, que pode ser o único sinal de cor pulmonale.
História de exposição a fatores de risco, como fumaça de cigarro, agentes
ocupacionais e fumaça proveniente de fogão e sistemas de aquecimento, também está
presente.

Avaliação complementar
Espirometria deve ser indicada para pacientes em que haja suspeita de doença
pulmonar obstrutiva crônica. Trata-se do método de avaliação da limitação ao fluxo
aéreo mais padronizado, mais reprodutível e mais objetivo disponível até o momento.
Inclui as medidas da capacidade vital forçada (CVF), caracterizada pelo ar exalado de
maneira forçada a partir do ponto de inspiração máxima, do volume expiratório forçado

Pedro Kallas Curiati 1206


no primeiro segundo (VEF1), caracterizado pelo volume de ar exalado durante o
primeiro segundo de maneira forçada a partir do ponto de inspiração máxima, e da razão
entre as duas medidas (VEF1/CVF). A interpretação é baseada na comparação com
valores de referência para idade, altura, gênero e raça. O exame deve ser realizado dez a
quinze minutos após a administração de dose adequada de β2-agonista de curta duração,
como Salbutamol 400mcg, com o intuito de reduzir a variabilidade.
A determinação da capacidade pulmonar total (CPT), da capacidade residual
funcional (CRF) e do volume residual (VR) através de pletismografia ou técnica
dilucional com hélio e da capacidade de difusão do monóxido de carbono (DLCO)
permite uma melhor avaliação dos pacientes com doença pulmonar obstrutiva crônica,
que é caracterizada por aumento de CPT, VR e CRF e redução de DLCO.
Em alguns casos, pode-se realizar teste de reversibilidade da limitação ao fluxo
aéreo com broncodilatador e/ou corticosteroide.
Radiografia de tórax é útil para excluir diagnósticos alternativos e para
estabelecer a presença de comorbidades significativas, como insuficiência cardíaca.
Alterações associadas a doença pulmonar obstrutiva crônica incluem sinais de
hiperinsuflação pulmonar, como achatamento do diafragma, aumento do espaço aéreo
retroesternal, hipertransparência dos pulmões e atenuação da trama vascular.
Em caso de indicação de cirurgia para redução do volume pulmonar, tomografia
computadorizada de tórax se torna necessária para avaliação da distribuição do
enfisema.
Gasometria arterial em ar ambiente deve ser realizada em pacientes com VEF1
inferior a 50% do predito ou com sinais clínicos sugestivos de insuficiência respiratória
ou insuficiência cardíaca direita. Deve ser realizada em todos os pacientes com
saturação periférica de oxigênio aferida por oximetria de pulso inferior a 90%.
Eletrocardiograma e ecocardiograma são indicados na suspeita de hipertensão
pulmonar e cor pulmonale.
Rastreamento de deficiência de alfa-1 antitripsina pode ser indicado para
indivíduos de ascendência caucasiana que desenvolvem doença pulmonar obstrutiva
crônica em idade jovem, antes dos 45 anos, ou que tenham história familiar importante,
principalmente em caso de ausência de fator de risco e enfisema de predomínio em
região basal. Concentração sérica inferior a 15-20% do valor normal é altamente
sugestiva de deficiência homozigótica da enzima.

Diagnóstico
O diagnóstico clínico de doença pulmonar obstrutiva crônica deve ser
considerado em todo indivíduo com dispneia, tosse e/ou expectoração crônicas, com ou
sem fatores de risco conhecidos para a doença. Poderá ser confirmado com
espirometria, na qual VEF1/CVF após o uso de broncodilatador inferior a 0.70 confirma
a presença de limitação ao fluxo aéreo que não é completamente reversível.
Os principais diagnósticos diferenciais são asma, insuficiência cardíaca,
bronquiectasia, tuberculose, bronquiolite obliterante e panbronquiolite difusa.

Classificação
Apesar de VEF1 e VEF1/CVF serem recomendados para o diagnóstico e a
avaliação da severidade da doença pulmonar obstrutiva crônica, o grau de
reversibilidade da limitação ao fluxo aéreo não mais é recomendado para diagnóstico,
diferencial com asma e predição de resposta ao tratamento com broncodilatadores ou
corticosteroides. Além disso, existe apenas uma fraca correlação entre VEF1, sintomas e
prejuízo da qualidade de vida relacionada à saúde, com necessidade de avaliação formal

Pedro Kallas Curiati 1207


da sintomatologia.

Avaliação dos sintomas


A avaliação dos sintomas pode ser realizada através de questionários validados,
como o COPD Assessment Test (CAT), que abrange de forma ampla o impacto da
doença no dia-a-dia e na sensação de bem-estar do paciente, e o Modified British
Medical Research Council (mMRC), que abrange apenas o impacto da dispneia, mas se
associa bem a outros parâmetros do estado de saúde e à mortalidade futura. O CAT
pode ser preenchido online no site www.catestonline.org. O mMRC abrange grau 0,
com dispneia apenas com exercício extenuante, grau 1, com dispneia ao caminhar
rápido no plano ou subir uma ladeira, grau 2, com dispneia levando a andar mais
devagar do que outras pessoas da mesma idade ou a parar para respirar no meio do
percurso ao caminhar no próprio ritmo no plano, grau 3, com necessidade de parar para
respirar após andar cem metros ou poucos minutos no plano, e grau 4, com dispneia
para se vestir ou se despir ou que impeça de sair de casa. Um escore superior ou igual a
10 no CAT e um grau superior ou igual a 2 no mMRC indicam elevado nível de
sintomas.

Avaliação espirométrica da severidade da limitação ao fluxo aéreo


GOLD I ou limitação ao fluxo aéreo leve:
- VEF1 pós-broncodilatador superior ou igual a 80%, com VEF1/CVF
inferior a 70%;
GOLD II ou limitação ao fluxo aéreo moderada:
- VEF1 pós-broncodilatador maior ou igual a 50% e inferior a 80%, com
VEF1/CVF inferior a 70%;
GOLD III ou limitação ao fluxo aéreo grave:
- VEF1 pós-broncodilatador maior ou igual a 30% e inferior a 50%,
comVEF1/CVF inferior a 70%;
GOLD IV ou limitação ao fluxo aéreo muito grave:
- VEF1 pós-broncodilatador inferior a 30%;

Avaliação do risco de exacerbações


O melhor preditor de exacerbações é história de eventos prévios tratados, com
duas ou mais exacerbações por ano indicando risco de exacerbações frequentes. Apesar
de até 20% dos pacientes com limitação ao fluxo aéreo GOLD II, moderada,
experimentarem exacerbações frequentes com necessidade de tratamento com
glicocorticoides e/ou antibióticos, o risco de exacerbações aumenta de maneira
significativa com limitação ao fluxo aéreo GOLD III, grave, e GOLD IV, muito grave.

Avaliação combinada da doença pulmonar obstrutiva crônica


Quando dois parâmetros diferentes indicarem níveis diferentes de gravidade dos
sintomas ou do risco de exacerbações, deve-se considerar aquele que indicar o maior
risco.
Grupo A, com baixo risco de exacerbações e menos sintomas, é caracterizado
por limitação ao fluxo aéreo GOLD 1, leve, ou GOLD 2, moderada, no máximo uma
exacerbação no último ano, mMRC grau 0 ou 1 e CAT com escore inferior a 10.
Grupo B, com baixo risco de exacerbações e mais sintomas, é caracterizado por
limitação ao fluxo aéreo GOLD 1, leve, ou GOLD 2, moderada, no máximo uma
exacerbação no último ano e mMRC grau superior ou igual a 2 e/ou CAT com escore
superior ou igual a 10.

Pedro Kallas Curiati 1208


Grupo C, com alto risco de exacerbações e menos sintomas, é caracterizado por
limitação ao fluxo aéreo GOLD 3, grave, ou GOLD 4, muito grave, e/ou duas ou mais
exacerbações no último ano, mMRC grau 0 ou 1 e CAT com escore inferior a 10.
Grupo D, com alto risco de exacerbações e mais sintomas, é caracterizado por
limitação ao fluxo aéreo GOLD 3, grave, ou GOLD 4, muito grave, e/ou duas ou mais
exacerbações no último ano e mMRC grau superior ou igual a 2 e/ou CAT com escore
superior ou igual a 10.

Seguimento clínico
Visa garantir que os objetivos do tratamento estão sendo atingidos.
Deve incluir avaliação de exposição a fatores de risco, especialmente fumaça de
cigarro, progressão da doença e surgimento de complicações, terapia farmacológica e
não-farmacológica, exacerbações e comorbidades.
O declínio da função pulmonar é melhor acompanhado através de espirometria
periódica, que pode ser realizada até uma vez ao ano. Deve-se rastrear os pacientes para
insuficiência respiratória com oximetria de pulso e avaliar a gasometria arterial em caso
de saturação periférica de oxigênio inferior a 92%. Diagnóstico de cor pulmonale pode
ser feito com base em radiografia de tórax, eletrocardiograma, ecocardiograma,
cintilografia e ressonância nuclear magnética. Hemograma pode revelar policitemia,
definida como hematócrito superior a 55%, na presença de hipoxemia, ou anemia, que
pode estar presente em um quarto dos pacientes.
Durante o seguimento clínico, espirometria com teste de broncodilatação,
radiografia de tórax e gasometria arterial em caso de uso contínuo de oxigênio
suplementar são repetidos anualmente.

Tratamento não-farmacológico

Educação do paciente
Orientação quanto a cessação do tabagismo é a medida que tem maior
capacidade de influenciar a história natural da doença pulmonar obstrutiva crônica. A
educação do paciente também permite melhor resposta a exacerbações. Discussões
sobre terminalidade permitem o estabelecimento de diretrizes avançadas e decisão
terapêuticas efetivas no final da vida. É vital aos pacientes entender a natureza de sua
doença, os fatores de risco para sua progressão e o seu papel e o papel dos profissionais
da área da saúde na obtenção de resultados otimizados.
Todos os pacientes devem receber informação e aconselhamento sobre a redução
de fatores de risco, a natureza da doença, o uso de nebulizadores, nebulímetros
pressurizados, inaladores de pó seco e outras formas de tratamento farmacológico,
reconhecimento e tratamento de exacerbações e estratégias para minimizar a dispneia.
Pacientes selecionados devem receber adicionalmente informação sobre complicações
da doença, tratamento com oxigênio e diretrizes avançadas quanto a decisões de final de
vida.

Reabilitação pulmonar
Os principais objetivos são reduzir sintomas, melhorar a qualidade de vida e
aumentar a participação em atividades físicas e emocionais cotidianas, sendo abordados
a perda de condicionamento físico, o isolamento social relativo, os transtornos de
humor, a perda muscular e o emagrecimento.
Os componentes dos programas de reabilitação pulmonar variam, mas
geralmente incluem treinamento de exercícios físicos, cessação do tabagismo,

Pedro Kallas Curiati 1209


aconselhamento nutricional e educação em saúde.
O treinamento de exercícios físicos varia em frequência de semanal a diária, em
duração de dez a quarenta e cinco minutos e em intensidade de 50% do pico de
consumo de oxigênio ao máximo tolerado.
O aconselhamento nutricional prevê identificar e corrigir fatores associados a
baixa ingesta calórica em pacientes com doença pulmonar obstrutiva crônica. Em caso
de dispneia durante a alimentação, recomenda-se fracionar a dieta em refeições
pequenas e frequentes. Dentição precária deve ser corrigida e comorbidades devem ser
manejadas apropriadamente.
A duração mínima de um programa de reabilitação pulmonar é de seis semanas,
com maior efetividade quanto mais prolongado.

Oxigenioterapia
Uma das principais medidas não-farmacológicas, a oxigenioterapia pode ser
administrada através de terapia contínua em longo prazo, durante exercício físico ou
para alívio de dispneia aguda. O principal objetivo é aumentar a pressão parcial de
oxigênio (PaO2) no sangue arterial para pelo menos 60mmHg ao nível do mar em
repouso ou aumentar a saturação periférica de oxigênio (SaO2) para pelo menos 90%.
A administração de oxigênio contínua em longo prazo, com mais de quinze
horas por dia, a pacientes com falência respiratória crônica, melhora a sobrevida e pode
ter efeitos benéficos sobre hemodinâmica, sistema hematológico, condicionamento
físico, mecânica pulmonar e estado mental. Está indicada em pacientes com PaO2
inferior ou igual a 55mmHg ou SaO2 inferior ou igual a 88% com ou sem hipercapnia,
confirmadas duas vezes em um período de três semanas. Também pode ser indicada em
caso de PaO2 inferior a 60mmHg ou SaO2 inferior a 90% se houver evidência de
hipertensão pulmonar, insuficiência cardíaca ou policitemia, definida por hematócrito
superior a 55%. A titulação dos fluxos é feita com o oxímetro de pulso durante repouso,
exercício e sono até que seja obtida saturação periférica de oxigênio superior ou igual a
90%. O período de oxigenioterapia domiciliar deve incluir doze horas noturnas.
Recomenda-se a adição de 1L/minuto de oxigênio durante a noite em relação ao valor
prescrito durante o dia em repouso e aumento do fluxo de oxigênio aos esforços.
Durante viagens aéreas, deve-se manter PaO2 superior a 50mmHg, o que pode ser
atingido em pacientes com hipoxemia moderada a severa com o uso de cânula nasal
com oxigênio 3L/minuto ou de máscara de Venturi com fração inalada de oxigênio de
31%. Pacientes com PaO2 superior a 70mmHg ao nível do mar podem viajar com
segurança sem oxigênio suplementar.
A prescrição inicial inclui fonte de oxigênio suplementar, como gás ou líquido,
sistema de liberação, como cilindro, concentrador ou líquido, duração e fluxo durante
repouso, exercício e sono.
Quando o oxigênio é prescrito logo após uma exacerbação, deve-se reavaliar sua
indicação após um período de trinta a noventa dias por meio de gasometria arterial.
A combinação de ventilação não-invasiva com pressão positiva intermitente com
administração de oxigênio contínua em longo prazo pode ser benéfica em parcela dos
pacientes, principalmente em caso de hipercapnia acentuada durante o período diurno.

Tratamento farmacológico
O tratamento farmacológico é destinado para prevenir e controlar os sintomas,
reduzir a frequência e a gravidade das exacerbações, melhorar o estado de saúde e
melhorar a tolerância ao exercício. Tende a ser cumulativo, com mais medicações sendo
necessárias conforme a doença evolui. Deve ser mantido no mesmo nível por períodos

Pedro Kallas Curiati 1210


longos de tempo a menos que ocorram efeitos colaterais significativos ou piora da
doença.

Broncodilatadores
Os broncodilatadores são medicamentos centrais no manejo sintomático da
doença pulmonar obstrutiva crônica, podendo ser utilizados conforme a necessidade
para alívio de sintomas ou de forma regular para preveni-los ou reduzi-los. Melhoram o
esvaziamento dos pulmões, tendem a reduzir a hiperinsuflação pulmonar e melhoram a
tolerância a esforço. A intensidade do benefício, especialmente em estágios mais
avançados da doença, não é facilmente previsível a partir da melhora no VEF1. O uso
regular desses medicamentos não modifica a progressão da doença nem o seu
prognóstico. Efeitos colaterais são previsíveis e dose-dependentes. Efeitos adversos são
menos frequentes e controlados mais rapidamente após a suspensão dos medicamentos
com o uso inalatório em relação ao uso oral. A combinação de broncodilatadores de
classes farmacológicas diferentes pode melhorar a eficácia do tratamento e diminuir o
risco de efeitos colaterais em comparação com o aumento da dose de um único
broncodilatador.
A ação principal dos β-agonistas é relaxar o músculo liso das vias aéreas através
do estímulo a receptores β2. Terapia oral apresenta início de ação mais lento e maior
risco de efeitos colaterais do que a terapia inalatória. O efeito broncodilatador de β2-
agonistas inalatórios de curta duração geralmente persiste por 4-6 horas, enquanto que o
efeito broncodilatador de β2-agonistas inalatórios de longa duração geralmente persiste
por doze horas ou mais. O Indacaterol, um novo β2-agonista inalatório, dura 24 horas.
Efeitos adversos incluem taquicardia sinusal, distúrbios do ritmo cardíaco em pacientes
muito suscetíveis, exacerbação de tremor essencial, hipocalemia e aumento do consumo
de oxigênio.
O efeito mais importante das medicações anticolinérgicas em pacientes com
doença obstrutiva crônica parece ser o bloqueio do efeito da acetilcolina sobre
receptores M3. As atuais drogas de curta duração também bloqueiam receptores M2 e
modificam a transmissão na junção pré-ganglionar. Aumentos significativos na função
pulmonar podem ser obtidos com a administração de anticolinérgicos inalatórios em
associação a β-agonistas inalatórios, mesmo em pacientes com doença moderada a
severa. O uso de drogas de longa duração melhora a efetividade da reabilitação
pulmonar. O principal efeito adverso é boca seca.
Ainda resta controvérsia quanto aos efeitos exatos dos derivados de xantinas.
Podem atuar como inibidores da fosfodiesterase não-seletivos, mas também apresentam
um espectro além da ação broncodilatadora. A Teofilina é uma droga efetiva na doença
pulmonar obstrutiva crônica, mas, devido à toxicidade potencial, broncodilatadores
inalatórios são preferidos quando disponíveis. Doses baixas reduzem exacerbações em
pacientes com doença pulmonar obstrutiva crônica, mas não aumentam a função
pulmonar pós-broncodilatador. A toxicidade é dose-dependente, o limiar terapêutico é
pequeno e a maior parte dos benefícios da droga ocorrem com níveis próximos daqueles
considerados tóxicos. Efeitos adversos incluem arritmias atriais ou ventriculares, crises
convulsivas, cefaleia, insônia, náusea e pirose.
Apesar de a monoterapia com β2-agonistas ser aparentemente segura, a
combinação de broncodilatadores com diferentes mecanismos de ação pode aumentar o
grau de broncodilatação para a mesma ou menor quantidade de efeitos colaterais.

Glicocorticoides
Os efeitos de glicocorticoides por via oral e inalatória na doença pulmonar

Pedro Kallas Curiati 1211


obstrutiva crônica são muito menos dramáticos do que na asma, com papel dessa classe
de medicamentos limitado a indicações específicas.
O tratamento com glicocorticoides por via inalatória não modifica o declínio do
VEF1 a longo prazo em pacientes com doença pulmonar obstrutiva crônica, mas reduz a
frequência das exacerbações e melhora a função pulmonar, os sintomas e a qualidade de
vida em pacientes com VEF1 inferior a 60% do predito. Além disso, aumenta o risco de
broncopneumonia e não reduz a mortalidade.
A associação de glicocorticoide inalatório com β2-agonista de longa duração é
mais efetiva do que os componentes individuais na redução de exacerbações e na
melhora da função pulmonar e do estado de saúde. Há aumento do risco de
broncopneumonia, sem redução da mortalidade. A inclusão de um anticolinérgico de
longa duração ao esquema parece oferecer benefícios adicionais.
Não existem evidências suficientes para recomendar um teste terapêutico com
glicocorticoides por via oral em pacientes com doença pulmonar obstrutiva crônica e má
resposta aos broncodilatadores inalatórios. Um efeito colateral do tratamento a longo
prazo com glicocorticoides sistêmicos é a miopatia, que contribui para a fraqueza
muscular, a diminuição da funcionalidade e a insuficiência respiratória em pacientes
com doença pulmonar obstrutiva crônica. Dessa forma, com base em ausência de
evidências de benefício e na importância dos efeitos adversos, tratamento a longo prazo
com glicocorticoides por via oral não é recomendado.

Inibidores da fosfodiesterase IV
A principal ação dos inibidores da fosfodiesterase IV é reduzir a inflamação
através da inibição do metabolismo do AMP cíclico intracelular. Roflumilast é
administrado com dose única diária de 500mcg por via oral e não possui efeito
broncodilatador direto. Existem evidências de que melhora o VEF1 em pacientes
tratados com Salmeterol e Tiotrópio e reduz exacerbações tratadas com glicocorticoides
por via oral em pacientes com VEF1 inferior a 50%.
Apresentam mais efeitos adversos que as medicações inalatórias para doença
pulmonar obstrutiva crônica. Os mais frequentes são náusea, diminuição do apetite, dor
abdominal, diarreia, distúrbios do sono e cefaleia.

Vacinas
Vacina contra influenza contendo vírus vivos ou atenuados é recomendada para
todos os pacientes, com administração anual.
Vacina polissacarídica contra pneumococo é recomendada para pacientes com
idade superior ou igual a 65 anos e/ou com VEF1 inferior a 40% do predito ou
comorbidades significativas, como insuficiência cardíaca.

Concentrados de alfa-1 antitripsina


Pacientes jovens com deficiência de alfa-1 antitripsina severa e enfisema
pulmonar estabelecido podem ser candidatos a infusão de concentrados de alfa-1
antitripsina. No entanto, o tratamento tem custo elevado, não está disponível na maior
parte dos países e não é recomendado para pacientes com doença não relacionada à
deficiência da enzima.

Outros fármacos
O uso profilático de antibióticos não apresenta efeito significativo na frequência
de exacerbações na doença pulmonar obstrutiva crônica ou, quando apresenta, não há
relação favorável entre benefícios e efeitos adversos. Paciente que persiste com

Pedro Kallas Curiati 1212


ocorrência frequente de exacerbações apesar do tratamento otimizado é potencial
candidato ao uso profilático de Azitromicina, com 250mg uma vez ao dia ou três vezes
por semana por via oral. A frequência cardíaca deverá ser inferior a 100bpm,
eletrocardiograma deverá ser realizado para excluir intervalo QT longo, com valor
corrigido superior a 450ms, e audiometria deverá ser realizada para excluir déficit
auditivo. Não deve ser associada outra medicação com potencial de prolongar o
intervalo QT. Há inibição do citocromo P450.
Agentes mucolíticos, como Glicerol Iodado, Ambroxol, Erdosteína e
Carbocisteína, podem ser benéficos em alguns pacientes com expectoração viscosa, mas
o seu uso generalizado não pode ser recomendado atualmente. Não reduzem a
frequência das exacerbações, exceto em pacientes não tratados com glicocorticoides.
Antioxidantes, particularmente a N-Acetilcisteína, não reduzem a frequência das
exacerbações, exceto em pacientes não tratados com glicocorticoides.
Imunomoduladores podem reduzir a frequência e a gravidade das exacerbações,
mas ainda faltam estudos sobre os efeitos a longo prazo antes que o seu uso regular seja
recomendado.
Óxido nítrico é contraindicado em pacientes com doença pulmonar obstrutiva
crônica, uma vez que a hipoxemia é causada por aumento do espaço morto e a droga
alteraria a regulação do balanço entre ventilação e perfusão.
Opióides por via oral e parenteral são efetivos no tratamento da dispneia em
pacientes com doença pulmonar obstrutiva crônica avançada.
Nedocromil e modificadores de leucotrieno não foram adequadamente testados
em pacientes com doença pulmonar obstrutiva crônica e não podem ser recomendados
atualmente.

Tratamento cirúrgico
Bulectomia é um procedimento cirúrgico antigo para enfisema bolhoso. A
remoção de uma bolha volumosa que não contribui para a troca gasosa descomprime o
parênquima pulmonar adjacente e alivia sintomas locais, como hemoptise, infecção e
dor torácica. Pode ser realizada por toracoscopia. Em pacientes selecionados, reduz
dispneia e melhora função pulmonar.
Cirurgia de redução de volume pulmonar é procedimento no qual partes do
pulmão são ressecadas para reduzir a hiperinsuflação, tornando os músculos
respiratórios mais eficientes do ponto de vista mecânico e aumentando o recolhimento
elástico, com melhora do fluxo expiratório.
Em pacientes adequadamente selecionados com doença pulmonar obstrutiva
crônica muito avançada, o transplante de pulmões melhora a qualidade de vida e a
capacidade funcional, sem diminuição da mortalidade. Os critérios para indicação são
VEF1 inferior a 35% do predito, PaO2 inferior a 55.6mmHg, PaCO2 superior a
50mmHg e hipertensão pulmonar secundária. Complicações comuns incluem
mortalidade operatória, rejeição aguda, bronquiolite obliterante, citomegalovirose,
infecções oportunistas fúngicas ou bacterianas e doenças linfoproliferativas.

Tratamento do cor pulmonale crônico e da hipertensão pulmonar


A medida mais eficaz é a oxigenioterapia. Diuréticos são utilizados na presença
de edema, tomando-se cuidado para não reduzir o débito cardíaco e a perfusão renal e
para não aumentar a viscosidade sanguínea. Em geral, digitálicos e vasodilatadores não
são eficazes. Flebotomia é realizada quando o hematócrito for maior que 55% e o cor
pulmonale não for controlado com outras medidas.

Pedro Kallas Curiati 1213


Manejo da doença pulmonar obstrutiva crônica estável
A abordagem geral do paciente com doença pulmonar obstrutiva crônica estável
deve ser caracterizada por um aumento da intensidade do tratamento conforme a
severidade da doença e o estado do paciente.
Tratamento não-farmacológico
Grupo Essencial Recomendado Conforme protocolos locais
A Cessação do tabagismo Atividade física Vacinação contra influenza
Vacinação pneumocócica
B Cessação do tabagismo Atividade física Vacinação contra influenza
C Reabilitação pulmonar Vacinação pneumocócica
D

Tratamento farmacológico inicial


Grupo Primeira opção Segunda opção Alternativa*
A β2-agonista de curta β2-agonista de longa duração ou anti- Teofilina
duração conforme a colinérgico de longa duração ou β2-agonista de
necessidade ou anti- curta duração associado a anti-colinérgico de
colinérgico de curta curta duração
duração conforme a
necessidade
B β2-agonista de longa β2-agonista de longa duração associado a anti- β2-agonista de
duração ou anti- colinérgico de longa duração curta duração e/ou
colinérgico de longa anti-colinérgico de
duração curta duração
Teofilina
C Glicocorticoide β2-agonista de longa duração associado a anti- Inibidor da
inalatório associado a colinérgico de longa duração ou glicocorticoide fosfodiesterase IV
β2-agonista de longa inalatório associado a anti-colinérgico de longa β2-agonista de
duração ou anti- duração curta duração e/ou
colinérgico de longa anti-colinérgico de
duração curta duração
Teofilina
D Glicocorticoide Glicocorticoide inalatório associado a anti- Carbocisteína
inalatório associado a colinérgico de longa duração ou glicocorticoide β2-agonista de
β2-agonista de longa inalatório associado a β2-agonista de longa curta duração e/ou
duração ou anti- duração e a anti-colinérgico de longa duração anti-colinérgico de
colinérgico de longa ou glicocorticoide inalatório associado a β2- curta duração
duração agonista de longa duração e a inibidor da Teofilina
Em caso de bronquite fosfodiesterase IV ou β2-agonista de longa
crônica, pode-se duração associado a anti-colinérgico de longa
associar inibidor da duração ou anti-colinérgico de longa duração
fosfodiesterase IV associado a inibidor da fosfodiesterase IV
* As medicações alternativas podem ser utilizadas isoladamente ou em combinação com as medicações
listadas como de primeira ou segunda opção

Bibliografia
Global strategy for the diagnosis, management, and prevention of chronic obstructive pulmonary disease. Global Initiative for
Chronic Obstructive Lung Disease. 2010.
Global strategy for the diagnosis, management, and prevention of chronic obstructive pulmonary disease. Global Initiative for
Chronic Obstructive Lung Disease. 2011.
Clínica médica, volume 2: doenças cardiovasculares, doenças respiratórias, emergências e terapia intensiva. – Barueri, SP: Manole,
2009.
Antibiotic Prevention of Acute Exacerbations of COPD. Richard P Wenzel, Alpha A Fowler and Michael B. Edmond. N Engl J
Med 2012; 367:340-347

Pedro Kallas Curiati 1214


Droga Via de administração Duração
Inalatória Solução para nebulização Oral Injetável (horas)
Β2-agonistas de curta duração
Fenoterol 100mcg e 200mcg * 5mg/mL (20 gotas de 0.25mg) Xarope a 0.05%, Pílula de - 4-6
(Berotec®) Dose de 100-200mcg para broncoespasmo Dose de 8-10 gotas diluídas em 2.5mg, Gotas de 0.25mg
agudo, que pode ser seguida de uma segunda 5mL de Soro Fisiológico para Dose de 2.5-5.0mg (5-10mL,
dose após dez minutos, devendo-se respeitar broncoespasmo agudo, com 1-2 pílulas, 10-20 gotas) três
intervalo de três horas para nova repetição. repetição após trinta minutos na vezes ao dia.
Manutenção ou profilaxia com dose três ausência de melhora.
vezes ao dia. Máximo de 800mcg por dia. Manutenção ou profilaxia com
dose três vezes ao dia.
Salbutamol 100mcg e 200mcg& 5mg/mL. Xarope 0.4mg/mL, Pílula de 0.5mg/mL 4-6
(Aerolin®) Dose de 100-200mcg para broncoespasmo Dose de 2.5-5.0mg em 2.0- 2mg e 4mg Dose de 8mcg/kg, com
agudo e prevenção de asma induzida por 2.5mL de Soro Fisiológico. Dose efetiva de 4mg (10mL). uso subcutâneo,
exercício. Manutenção ou profilaxia com Manutenção ou profilaxia com intramuscular ou
200mcg três a quatro vezes ao dia. três a quatro vezes ao dia, intravenoso. Pode ser
podendo-se aumentar cada repetida a cada quatro
dose gradualmente até 8mg. horas se necessário.
Em idosos, deve-se iniciar com
2mg três a quatro vezes ao dia.
Terbutalina 500mcg# - Xarope 0.3mg/mL, Pílulas de 0.5mg/mL 4-6
(Bricanyl®) Dose de até 500-1500mcg para 2.5mg e 5.0mg Dose de 0.5-1.0mL por
broncoespasmo agudo. Manutenção ou Dose de 3.0-4.5mg (10-15mL) via subcutânea até
profilaxia com 500-1000mcg quatro vezes ao ou 2.5-5.0mg (1-2 pílulas) três quatro vezes ao dia.
dia. Máximo de 4000mcg por dia. vezes ao dia.
Β2-agonistas de longa duração
Formoterol 6mcg e 12mcg& 0.01mg/mL - - > 12
(Foradil®, Dose de 12-24mcg duas vezes por dia. Se
Oxeze®) necessário, uma a duas doses adicionais de
12mcg podem ser usadas para alívio dos
sintomas.
Salmeterol 25mcg e 50mcg& - - - >12
(Serevent®) Dose de 50-100mcg duas vezes por dia.
Indacaterol 150mcg# - - - 24
(Onbrize®) Dose de 75-300mcg uma vez por dia

1215
Pedro Kallas Curiati
Anticolinérgicos de curta duração
Brometo de 20mcg e 40mcg* 0.25mg/mL (20 gotas) - - 6-8
Ipratrópio Dose de 20-40mcg três a quatro vezes ao dia. Dose de 0.5mg (40 gotas, 2mL)
(Atrovent®) Máximo de 240mcg por dia. três a quatro vezes por dia, com
pelo menos quatro horas de
intervalo entre as doses.
Brometo de 100mcg* 1.5mg/mL - - 7-9
Oxitrópio Dose de 100-200mcg duas a três vezes ao
dia.
Anticolinérgicos de longa duração
Tiotrópio 2.5mcg* - - - >24
(Spiriva®) Dose de 5mcg uma vez ao dia.
Metilxantinas
Aminofilina - - Pílulas de 100mg e 200mg 240mg/10mL Até 24
Dose de 100-200mg duas a três Dose de 240-480mg
vezes por dia. uma ou duas vezes ao
dia por injeção
intravenosa lenta em
cinco a dez minutos.
Teofilina SR - - Pílulas de 100mg, 200mg e - Até 24
300mg
Dose inicial de 300-400mg
uma vez ao dia e dose de
manutenção de 400-600mg
uma vez por dia.
Combinação de Β2-agonistas de curta duração com anticolinérgico
Fenoterol/ 100mcg/40mcg* - - - 6-8
Ipratrópio Dose de 100mcg/40mcg para broncoespasmo
(Duovent®) agudo, com possibilidade de repetição após
cinco minutos, devendo-se aguardar pelo
menos duas horas antes de nova
administração. Manutenção ou profilaxia
com 100mcg/40mcg três vezes por dia.
Glicocorticoides inalatórios

1216
Pedro Kallas Curiati
Beclometasona 50mcg e 250mcg* 0.2-0.4mg/mL - - -
100mcg, 200mcg e 400mcg#
Dose de 250-500mcg ou 200-400mcg duas
vezes por dia.
Budesonida 200mcg* 0.25mg/mL e 0.50mg/mL - - -
100mcg, 200mcg e 400mcg# Dose de 0.25-0.50mg uma vez
Dose de 200-400mcg duas vezes por dia, ao dia, com máximo de 1mg se
com máximo de 800mcg duas vezes por dia uso prévio de glicocorticoides
se uso prévio de glicocorticoides por via oral por via oral.
ou inalatória.
Fluticasona 50mcg e 250mcg& - - - -
Dose de 500mcg duas vezes por dia.
Combinação de Β2-agonistas de longa duração com glicocorticoides
Formoterol/ 6mcg/100mcg , 6mcg/200mcg e 12/400mcg# - - - -
Budesonida Dose de 6-12mcg de Formoterol e 100-
(Alenia®) 400mcg de Budesonida duas vezes por dia.
Salmeterol/ 25mcg/50mcg, 25mcg/125mcg e - - - -
Fluticasona 25mcg/250mcg*
(Seretide®) 50mcg/100mcg, 50mcg/250mcg e
50mcg/500mcg#
Dose de 25-50mcg de Salmeterol e 50-
500mcg de Fluticasona duas vezes ao dia.
*
Nebulímetro pressurizado; #Inalador de pó seco; &Nebulímetro pressurizado e inalador de pó seco;

1217
Pedro Kallas Curiati
FIBROSE CÍSTICA
Definição
Fibrose cística é uma doença autossômica recessiva causada por mutações no
gene que codifica a proteína CFTR (cystic fibrosis transmembrane conductance
regulator). Afeta pulmões, pâncreas, intestinos, fígado, glândulas sudoríparas, seios
nasais e ductos deferentes. Resulta em morbidade substancial e mortalidade precoce.

Epidemiologia
A incidência de fibrose cística nos Estados Unidos, na Europa e na Austrália
varia de 1:3000 a 1:5000 nascimentos. A doença é mais comum em brancos não-
hispânicos, mas também ocorre de forma significativa em hispânicos, afrodescendentes
e indígenas e raramente em asiáticos.

Fisiopatologia
A fisiopatologia da fibrose cística está relacionada às funções de transporte de
íons da proteína CFTR, uma glicoproteína de membrana que funciona como canal de
cloreto e que está envolvida na regulação do transporte transepitelial de sódio e
bicarbonato.
Nas vias aéreas, a disfunção da proteína CFTR reduz a secreção de cloreto das
células epiteliais para o lúmen e aumenta a absorção de sódio do lúmen para o interior
das células epiteliais. Com isso, ocorre um afilamento da camada líquida na superfície
das vias aéreas, com prejuízo do clearance muco-ciliar. A infecção crônica subsequente
leva a resposta inflamatória intensa com predomínio de neutrófilos, cujos produtos, que
incluem enzimas proteolíticas e oxidantes, mediariam as alterações patológicas
subsequentes nas vias aéreas, como bronquiectasia, bronquiolectasia, estenose
brônquica e fibrose. A formação de rolhas de muco nas vias aéreas, secundária à
infecção crônica e à inflamação, é outra característica proeminente da doença.
A proteína CFTR é expressa nos ductos pancreáticos, onde o prejuízo da
secreção de cloreto e bicarbonato para o lúmen leva ao aumento da viscosidade das
secreções, com obstrução ductal e dilatação acinar. A exposição do tecido pancreático
às enzimas proteolíticas de origem acinar leva a um pâncreas de aspecto cístico e
fibrótico, com insuficiência exócrina completa em cerca de 85% dos pacientes.
A proteína CFTR é expressa nos intestinos, onde o aumento da viscosidade do
mecônio pode gerar íleo meconial no período neonatal e interferir com o
desenvolvimento intestinal normal, com risco de estenoses e atresias em jejuno e íleo.
No fígado, obstrução de ductos biliares é a primeira alteração patológica
detectada, podendo cursar com áreas de esclerose focal.
Nas glândulas sudoríparas, disfunção da proteína CFTR leva à falência da
absorção de cloreto do lúmen, com prejuízo na absorção de sódio e aumento da
quantidade de cloreto e sódio no suor. Essa anormalidade não está associada a
destruição tecidual.
Os ductos deferentes são as estruturas do trato reprodutor masculino mais
sensíveis à disfunção da proteína CFTR, com obstrução frequente no período fetal ou na
infância.
Diabetes mellitus, comum em crianças e adultos, ocorre quando a fibrose
extensa do pâncreas exócrino se estende para as ilhotas de Langerhans. Osteopenia e
osteoporose, comuns em adultos, resultam de desnutrição e infecção crônica. Atraso da

Pedro Kallas Curiati 1218


puberdade é comum. Insuficiência pancreática exócrina leva a prejuízo do crescimento e
a deficiências nutricionais, como deficiência de vitaminas lipossolúveis e elementos
traço. Podem ocorrer também vasculite e/ou artralgia como consequência da resposta
imunológica à infecção crônica.

Quadro clínico
Sem tratamento de suporte específico, a maior parte dos pacientes sucumbe
ainda na infância por desnutrição ou doença pulmonar. Com uso de reposição de
enzimas pancreáticas, prestação de melhor cuidado pulmonar e desenvolvimento de
centros especializados, a maior parte dos pacientes atualmente vive até a terceira ou a
quarta décadas de vida.
Tosse, frequentemente persistente após infecções virais, é a manifestação
precoce mais proeminente da doença. Infecções virais podem demandar internação
hospitalar com maior frequência em crianças com fibrose cística. Apesar de a doença
pulmonar iniciar na infância, a função pulmonar frequentemente é preservada até a
adolescência, quando um declínio de curso acentuado comumente se inicia e
exacerbações se tornam mais frequentes. A maior parte dos pacientes apresenta tosse
produtiva diária ao final da adolescência ou no início da vida adulta.
A fibrose cística causa doença pulmonar obstrutiva, inicialmente com fluxo
reduzido nos volumes pulmonares mais baixos O volume expiratório forçado no
primeiro segundo é o parâmetro que melhor se correlaciona com o prognóstico e
começa a diferir de forma marcante do normal durante a adolescência. A sua taxa de
declínio geralmente prediz o curso clínico.
Os indivíduos com fibrose cística estão sujeitos a exacerbações agudas,
caracterizadas por tosse, dispneia, redução da tolerância para exercícios, fadiga,
aumento da expectoração e alteração na cor da expectoração, com duração de dias a
semanas. Frequentemente há aumento dos estertores pulmonares e redução da saturação
periférica de oxigênio e da função pulmonar. Há evidência de que a perda de função
pulmonar permanente é acelerada durante os períodos de exacerbação. Complicações
pulmonares também incluem pneumotórax, hemoptise e hipertensão pulmonar.
Insuficiência pancreática exócrina, aparente no primeiro ano de vida na maior
parte dos pacientes, resulta em prejuízo do crescimento e dificuldade para manutenção
do peso normal ao longo de toda a vida. Pacientes de todas as idades podem apresentar
sinais de má-absorção. Deficiências de vitaminas lipossolúveis e de elementos traço são
comuns, porém de diagnóstico difícil sem monitorização laboratorial. Cerca de 15% dos
pacientes mantêm a função pancreática exócrina, com episódios recorrentes de
pancreatite aguda em cerca de um sexto.
Obstrução intestinal pode ocorrer em qualquer faixa etária. Frequentemente, o
bloqueio ocorre na válvula ileocecal, mas constipação generalizada crônica é ainda mais
comum. Pode ocorrer intussuscepção do apêndice cecal. Doença inflamatória intestinal
e neoplasias gastrointestinais são mais frequentes do que na população geral. Dor
abdominal crônica pode ocorrer em qualquer período da vida, com dificuldade para
identificação da sua causa.
Anormalidades hepáticas são inicialmente detectadas através de esplenomegalia
ou fígado palpável de consistência firme ao exame físico. Ocasionalmente, hematêmese
leva ao diagnóstico de varizes esofágicas. Sequestro esplênico leva a neutropenia e/ou
trombocitopenia. A redução da síntese de fatores da coagulação também pode predispor
a sangramento. Icterícia pode ser a primeira manifestação de comprometimento
hepático. Com exceção da gama-glutamiltransferase, os níveis das enzimas hepáticas
frequentemente são normais, mesmo em casos com doença avançada. Litíase biliar é

Pedro Kallas Curiati 1219


comum. Pode ocorrer síndrome hepatopulmonar.
Apesar de a maior parte dos pacientes apresentar evidência radiológica de
doença em seios paranasais, sinusite aguda ou crônica ocorre em uma minoria dos
casos. Polipose nasal é frequente.
Redução dos níveis séricos de eletrólitos pode ocorrer em qualquer idade.
Sintomas incluem náusea, vômitos, redução do apetite, crises epilépticas e colapso
circulatório.
A maior parte dos homens com fibrose cística é estéril em função de alterações
nos ductos deferentes. No entanto, a espermatogênese é normal.
Diabetes mellitus ocorre com frequência maior conforme o aumento da idade,
ocorrendo em cerca de um terço dos pacientes com trinta anos de idade. Osteopenia,
osteoporose e fraturas também ocorrem com maior frequência com o envelhecimento.
Vasculite com exantema ou artralgia pode ocorrer em qualquer idade. Dor crônica e
depressão também podem ocorrer.

Avaliação complementar
Nas fases iniciais da doença, a radiografia de tórax revela hiperinsuflação
pulmonar e espessamento peri-brônquico. Tomografia computadorizada pode revelar
bronquiectasia.
Infecção de vias aéreas pode ser detectada através de cultura de escarro ou
lavado broncoalveolar, cuja realização é recomendada a cada três meses. Pseudomonas
aeruginosa é o patógeno principal. Staphylococcus aureus, que é outro patógeno
proeminente, pode ser resistente à Oxacilina e existir na forma de pequenas colônias, o
que dificulta a antibioticoterapia. A maior parte das infecções permanecem
endobrônquicas e raramente causam doença invasiva, apesar de infecção por
Burkholderia spp poder resultar em sepse, declínio acelerado da função pulmonar e
morte. Infecção por micobactérias não-tuberculosas pode causar doença granulomatosa
nas vias aéreas. Aspergillus spp e outras espécies de fungos, comumente identificados
em amostras de escarro, podem causar micose broncopulmonar alérgica. A natureza
polimicrobiana da doença de vias aéreas é reconhecida. Stenotrophomonas maltophilia,
Achromobacter xylosoxidans e Inquilinus limosus são frequentemente identificados em
culturas seriadas de material de vias aéreas. Infecção por bactérias anaeróbias também é
importante.
O rastreamento neonatal prevê a mensuração do tripsinogênio imunorreativo, um
marcador de injúria pancreática, em gota de sangue seca colhida nos primeiros dias de
vida. A próxima etapa consiste na análise de mutação genética, mas não é realizada em
todos os centros. O teste do suor é utilizado para a confirmação diagnóstica e mede a
concentração de cloreto no suor estimulado pelo método de iontoforese por Pilocarpina.
A diferença de potencial transepitelial está alterada na fibrose cística por causa
do transporte anormal de sódio e cloreto. A medida da diferença de potencial
transepitelial nasal pode ser utilizada na investigação diagnóstica, particularmente em
adultos.
Em suma, os exames complementares recomendados na investigação e na
avaliação de um paciente com suspeita de fibrose cística incluem determinação de
eletrólitos no suor, análise estendida de mutação no gene que codifica a proteína CFTR,
diferença de potencial transepitelial nasal, tomografia computadorizada de tórax de alta
resolução, tomografia computadorizada de seios paranasais e análise microbiológica de
escarro ou lavado broncoalveolar para identificação de bactérias e fungos.

Diagnóstico diferencial

Pedro Kallas Curiati 1220


Em caso de sintomatologia predominantemente respiratória, o diagnóstico
diferencial abrange discinesia ciliar primária, deficiência imunológica e bronquiectasia
pós-infecciosa. Em caso de sintomatologia com predomínio de pancreatite recorrente, o
diagnóstico diferencial abrange pancreatite hereditária com anormalidades no gene
SPINK.

Tratamento
O tratamento da fibrose cística é melhor conduzido em centros especializados
com abordagem multidisciplinar, educação do paciente e da família, monitorização da
função pulmonar e intervenção rápida em caso de anormalidades.

Doença pulmonar
Infecções pulmonares podem ser tratadas com antibióticos orais, inalados ou
sistêmicos. Aumento da tosse e outros sintomas respiratórios devem ser manejados com
a introdução de antibióticos ou a troca de antibióticos dentro de período de poucos dias.
Nebulização com antibióticos, como Aztreonam 75mg duas a três vezes ao dia ou
Tobramicina 300mg duas vezes ao dia durante quatro semanas, com possibilidade de
repetição do ciclo com intervalos de quatro semanas, isoladamente ou em associação
com tratamento por via oral, melhora a função pulmonar e reduz a frequência das
exacerbações em pacientes com infecção crônica por Pseudomonas aeruginosa. Uso
crônico de macrolídeo por via oral, como Azitromicina 250mg/dia, 250mg três vezes
por semana se peso inferior a 40kg ou 500mg três vezes por semana se peso superior a
40kg, reduz a frequência das exacerbações e melhora a função pulmonar, com indicação
em pacientes com evidência de inflamação das vias aéreas, como tosse crônica, ou
qualquer redução do volume expiratório forçado no primeiro segundo. Antes do início
do tratamento com Azitromicina, recomenda-se colher amostra de escarro para pesquisa
de infecções micobacterianas não-tuberculosas, que contraindicam o uso de macrolídeos
isoladamente. Alterações mais severas nos sintomas ou falha aguda na função pulmonar
demandam antibioticoterapia intravenosa direcionada para o patógeno cultivado.
Infecções micobacterianas não-tuberculosas são tratadas por seis meses ou mais com
múltiplos agentes antibióticos. Micose broncopulmonar alérgica deve ser tratada com
corticosteroides e agentes anti-fúngicos.
Muitos pacientes apresentam hiper-reatividade das vias aéreas e se beneficiam
do uso de agentes broncodilatadores. As principais indicações para agonistas de
receptores beta-2-adrenérgicos inalatórios são uso antes de sessões de fisioterapia
respiratória para facilitar o clearance de secreções das vias aéreas e uso antes de
inalação com salina hipertônica, antibióticos e/ou DNAse para limitar a
broncoconstrição induzida por esses agentes e potencialmente melhorar a penetração e a
distribuição nas vias aéreas. Recomenda-se também o uso crônico de agonistas de
receptores beta-2-adrenérgicos de curta duração a cada quatro a seis horas ou de longa
duração a cada doze horas nos pacientes com obstrução ao fluxo aéreo e evidência de
melhora do fluxo expiratório com o uso desses agentes.
Curso breve de corticosteroide por via oral, como Prednisona 0.5-1.0mg/kg/dia,
com máximo de 40-60mg/dia, durante cinco dias, frequentemente é útil nas
exacerbações agudas, com indicação em pacientes com predomínio de sintomas
semelhantes aos da asma, resposta documentada a broncodilatador na prova de função
pulmonar, sibilos e/ou redução do murmúrio vesicular na ausculta pulmonar. O uso
crônico pode levar a complicações severas.
Agentes utilizados para alterar a viscosidade das secreções respiratórias incluem
salina hipertônica a 7% nebulizada inalatória, com 4mL duas vezes ao dia, e DNAse I

Pedro Kallas Curiati 1221


nebulizada inalatória (Dornase Alfa), com 2.5mg uma vez ao dia, que podem melhorar a
função pulmonar e reduzir a frequência das exacerbações. A principal indicação é tosse
crônica e/ou qualquer redução no volume expiratório forçado no primeiro segundo em
paciente com idade superior ou igual a seis anos, mas acredita-se também haver
benefício em formas mais brandas da doença. Para pacientes que farão uso das duas
medicações, recomenda-se respeitar a seguinte ordem: (1) agonista de receptores beta-2-
adrenérgico inalatório; (2) salina hipertônica nebulizada inalatória; (3) fisioterapia
respiratória e DNAse I nebulizada inalatória em qualquer ordem; (4) outros tratamentos
inalatórios, como antibióticos.
Mesmo a exposição passiva à fumaça do tabaco é nociva. Suplementação de
oxigênio é frequentemente necessária para manter a saturação arterial de oxigênio e
prevenir o desenvolvimento de hipertensão arterial pulmonar, com indicações
semelhantes às da doença pulmonar obstrutiva crônica. Fisioterapia respiratória é
indicada para todos os pacientes que produzem catarro. Ventilação não-invasiva noturna
é usada predominantemente em pacientes com doença mais avançada, com indicação
em caso de pressão parcial de dióxido de carbono no sangue arterial superior ou igual a
50mmHg apesar da otimização das outras opções terapêuticas. Pneumotórax quase
sempre requer a realização de pleurodese. Hemoptise persistente ou recorrente é tratada
com embolização de artéria brônquica, sendo a lobectomia necessária em alguns casos.
Pacientes com insuficiência respiratória aguda devem ser manejados com ventilação
mecânica, a menos que tenham expressado previamente desejo contrário.
Vacinação anual injetável contra influenza com vírus inativado é recomendada
para todos os pacientes com idade superior a seis meses. Vacinação contra S.
pneumoniae também é recomendada para todos os pacientes.
Ivacaftor é uma droga especificamente desenvolvida para tratar pacientes com
uma mutação G551D em pelo menos um dos alelos do gene que codifica a proteína
CFTR. Trata-se da primeira terapia para fibrose cística que restaura o funcionamento de
proteína mutante. Todos os portadores de fibrose cística devem ser submetidos a
genotipagem para determinar se possuem essa mutação, que ocorre em cerca de 5% dos
casos. Recomenda-se o uso da medicação para todos os pacientes com fibrose cística
com pelo menos uma cópia da mutação G551D, com 150mg de 12/12 horas por via
oral. As doses devem ser ingeridas com alimentos contendo gordura e devem ser
reduzidas em caso de uso concomitante de drogas que inibem o citocromo P4503A,
como Cetoconazol e Fluconazol. Dosagem de enzimas hepáticas é necessária antes do
início do tratamento, a cada três meses no primeiro ano e anualmente a partir de então.
Transplante pulmonar é uma opção para muitos pacientes adultos. Os pacientes
devem ser encaminhados para centro de transplante em caso de volume expiratório
forçado no primeiro segundo inferior a 30% do predito, declínio rápido no volume
expiratório forçado no primeiro segundo, aumento na frequência das exacerbações com
necessidade de antibioticoterapia, pneumotórax recorrente e/ou refratário ou hemoptise
recorrente não-controlada por embolização.

Doença gastrointestinal
Reposição de enzimas pancreáticas é a base do tratamento da insuficiência
pancreática exócrina. Como a acidez gástrica reduz a atividade das enzimas,
bloqueadores H2 ou inibidores de bomba de prótons são frequentemente utilizados.
Para o aporte nutricional adequado de pacientes com fibrose cística é
recomendada dieta hipercalórica, hiperproteica e hiperlipídica. Crianças e adolescentes
frequentemente utilizam múltiplos suplementos nutricionais diariamente para manter o
peso. Reposição de vitaminas lipossolúveis é necessária na maior parte dos casos. Cerca

Pedro Kallas Curiati 1222


de 10-20% dos pacientes necessitam de gastrostomia para suplementação nutricional. A
nutrição enteral complementar por sonda, à noite, facilita atingir as metas nutricionais,
permitindo durante o dia alimentação adequada, sem interferências no apetite.
Para prevenir obstrução intestinal, a quantidade de fibras na dieta deve ser
aumentada e Polietilenoglicol é frequentemente utilizado diariamente. Obstruções
agudas podem ser manejadas com doses mais elevadas de Polietilenoglicol ou enema
com Gastrografin®. Ocasionalmente, constipação refratária pode necessitar de
abordagem cirúrgica, com perda de segmento intestinal.

Acometimento de outros órgãos


A doença dos seios paranasais é manejada com combinação de lavagem nasal,
glicocorticoides tópicos e antibióticos tópicos. Cirurgia é necessária em alguns casos,
especialmente para ressecção de pólipos.
Adultos devem ser orientados quanto aos sintomas de depleção de sal e
encorajados a aumentar a ingesta de sal na dieta na ausência de contraindicações
clínicas.
Rastreamento de diabetes mellitus é recomendado a partir dos dez anos de idade.
O manejo da doença deve ser realizado com Insulina.
A saúde óssea é abordada com suplementação de cálcio e vitamina D e uso de
bifosfonatos, se indicado.
Homens com fibrose cística podem gerar descendentes através de técnicas de
fertilização in vitro após aspiração dos espermatozoides no epidídimo.

Bibliografia
Goldman’s Cecil medicine / [edited by] Lee Goldman, Andrew I. Schafer.—24th ed. 2012.
Cystic fibrosis: Overview of the treatment of lung disease. Richard H Simon. UpToDate, 2012.
Fibrose Cística: Diagnóstico e Tratamento. Adde FV, Marostica PJC, Ribeiro MAGO, Santos CIS, Solé D, Vieira SE. Sociedade
Brasileira de Pediatria, Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, Associação Brasileira de Alergia e Imunopatologia,
Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. 2011.
Terapia Nutricional na Fibrose Cística. Epifanio M, Spolidoro JVN. Sociedade Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral,
Sociedade Brasileira de Clínica Médica, Associação Brasileira de Nutrologia. 2011.

Pedro Kallas Curiati 1223


NÓDULO PULMONAR SOLITÁRIO
Definição
Os nódulos pulmonares solitários são definidos radiologicamente como lesões
intrapulmonares menores do que 3cm no maior diâmetro, não associadas a outras
anormalidades. Em geral, apresentam-se como achado incidental de exames rotineiros e
raramente causam algum tipo de sintoma.

Etiologia
Nódulos Tumor primário Adenocarcinoma, carcinoma espinocelular, tumor de grandes células,
malignos de pulmão tumor de pequenas células, tumor bronquíolo-alveolar, tumor
carcinoide

Metástase Mama, partes moles, rim, cabeça e pescoço, melanoma, cólon, células
pulmonar de outro germinativas
sítio

Nódulos Neoplásicos Hamartoma, lipoma, fibroma, leiomioma, Schwanoma


benignos
Infecciosos Tuberculose, histoplasmose, coccidioidomicose, Mycobacterium
avium complex, blastomicose, criptococose, abscesso pulmonar,
dirofilariose, pneumocistose, cisto equinócico, aspergilose, êmbolo
séptico, nocardiose

Inflamatórios Nódulos reumatoides, granulomatose de Wegener, amiloidose,


sarcoidose

Outros Malformações arteriovenosas, varizes pulmonares, hematomas,


derrame loculado, cisto broncogênico, atelectasia, linfonodos
intrapulmonares, infarto pulmonar

Métodos diagnósticos não-invasivos


Atualmente, a tomografia computadorizada de tórax é o exame de escolha na
avaliação de nódulos pulmonares.
A presença de calcificação, principalmente se difusa e homogênea, central,
laminada concêntrica ou em “padrão de pipoca”, bordas lisas, pequeno diâmetro e
elevada densidade radiológica é sugestiva de nódulos benignos, enquanto que lesões
espiculadas e com padrão em vidro fosco são sugestivas de malignidade. Alguns
padrões de calcificação não devem ser considerados sugestivos de benignidade, como
reticular, amorfo, puntiforme e excêntrico.
Avaliar exames radiológicos prévios pode dar informações a respeito do ritmo
de crescimento da lesão. Nódulo que permanece sem sinais de crescimento por período
de dois anos é sugestivo de benignidade.
Avaliar a vascularização do nódulo, por meio de injeção de contraste venoso e
cálculo do ganho de densidade radiológica pode auxiliar na condução do caso. Um
ganho menor do que 15 UH (unidades Hounsfield) é característico de benignidade,
enquanto nódulos que apresentam ganho maior que 20UH são denominados
inespecíficos.
Tomografia por emissão de pósitrons com a utilização de FDG evidencia que os

Pedro Kallas Curiati 1224


nódulos com baixo consumo de glicose são geralmente benignos, com poder preditivo
negativo relativamente alto. No entanto, falso-negativos podem ocorrer em caso de
tumor carcinóide ou carcinoma bronquíolo-alveolar. Resultados falso-positivos podem
estar relacionados a nódulos inflamatórios, infecciosos ou granulomatosos. Além disso,
sua resolução é baixa para nódulos menores que 1cm.

Métodos diagnósticos invasivos


A eficácia da broncoscopia no diagnóstico de lesões pulmonares está relacionada
ao tamanho e à localização da lesão. É maior em caso de lesão central ou endobrônquica
com tamanho de 2-3cm.
A punção transtorácica também pode ser útil na investigação de nódulo
pulmonar solitário, principalmente para lesões periféricas em contato com a pleura
parietal. A utilização de agulhas cortantes pode aumentar a sensibilidade em relação à
punção aspirativa. Pneumotórax é a complicação mais comum..
A biópsia cirúrgica é o exame padrão-ouro na investigação dos nódulos
pulmonares, tanto por permitir a análise do material por congelação como por
possibilitar o tratamento cirúrgico de uma lesão maligna. A videotoracoscopia é muito
indicada por ser menos agressiva do que a toracotomia convencional, principalmente
nos casos de lesões periféricas.

Conduta HC-FMUSP
A estratégia a ser adotada perante um paciente com nódulo pulmonar solitário
depende da probabilidade de que a lesão pulmonar seja maligna. Se o risco é baixo, o
acompanhamento radiológico é suficiente. Quanto maior for o risco, maior será a
necessidade de investigação. Pacientes com alto risco de câncer devem receber o
diagnóstico de certeza.
Variável Risco de câncer
Baixo Médio Alto
Diâmetro (cm) <1.5 1.5-2.2 ≥2.3
Idade (anos) <45 45-60 >60
Tabagismo Não ≤ 20 cigarros por dia > 20 cigarros por dia
Bordas do nódulo Lisas Lobuladas Espiculadas
Se calcificações benignas ou estabilidade em exames prévios por pelo menos
dois anos, a conduta prevê acompanhamento clínico. Se ausência de calcificações
benignas e estabilidade em exames prévios por pelo menos dois anos, deve-se
estratificar o risco de câncer.
Se risco baixo, a conduta prevê acompanhamento com tomografia
computadorizada após três, seis e doze meses.
Se risco intermediário, indica-se avaliação complementar com tomografia por
emissão de pósitrons ou com protocolo de captação pós-contraste. Se negativo, a
conduta prevê acompanhamento com tomografia computadorizada após três, seis e doze
meses. Se positivo, a conduta prevê biópsia cirúrgica aberta ou por videotoracoscopia
com análise por congelação e lobectomia se malignidade.
Se risco alto, deve-se estratificar o risco cirúrgico. Se risco cirúrgico baixo, a
conduta prevê biópsia cirúrgica aberta ou por videotoracoscopia com análise por
congelação e lobectomia se malignidade. Se risco cirúrgico alto, a conduta prevê
avaliação complementar com tomografia por emissão de pósitrons ou com protocolo de
captação pós-contraste e acompanhamento com tomografia computadorizada após três,
seis e doze meses se resultado negativo.

Pedro Kallas Curiati 1225


Conduta Uptodate
A classificação do risco de malignidade do nódulo em baixa, intermediária e alta
é baseada na impressão médica, que deverá considerar todas as características clínicas e
radiológicas.
Nódulo com crescimento evidente em exames de imagem seriados devem ser
excisados. Nódulo estável por pelo menos dois anos em exames de imagem seriados
podem ser considerados benignos, sem necessidade de avaliação seriada com
tomografia computadorizada, exceto em caso de padrão em vidro fosco, situação na
qual há necessidade de acompanhamento mais prolongado com tomografia
computadorizada anual.
Nódulo com baixa probabilidade de malignidade pode ser acompanhado com
tomografia computadorizada seriada, com intervalo entre os exames variável conforme
o tamanho do nódulo. Tomografia por emissão de pósitrons com FDG e amostragem
linfonodal são abordagens aceitáveis em pacientes que se sentem desconfortáveis com a
observação clínica e radiológica.
Nódulo com tamanho inferior a 1cm e probabilidade intermediária de
malignidade pode ser acompanhado com tomografia computadorizada seriada, com
intervalo entre os exames variável conforme o tamanho do nódulo.
Nódulo com tamanho igual ou superior a 1cm e probabilidade intermediária de
malignidade deve ser avaliado com tomografia por emissão de pósitrons com FDG. Se
resultado negativo, o nódulo pode ser acompanhado com tomografia computadorizada
seriada, com intervalo entre os exames variável conforme o tamanho do nódulo. Se
resultado positivo, o nódulo deve ser excisado. Amostragem linfonodal com punção
aspirativa percutânea, biópsia percutânea, broncoscopia ou toracoscopia deve ser
realizada em caso de indisponibilidade de tomografia por emissão de pósitrons com
FDG.
Nódulo com alta probabilidade de malignidade deve ser excisado.
Frequência de repetição de tomografia computadorizada conforme tamanho do nódulo pulmonar
Tamanho Paciente de baixo risco, com história de Paciente de alto risco, com antecedente de
tabagismo ausente ou mínima e sem outros tabagismo ou outros fatores de risco
fatores de risco conhecidos conhecidos
≤4mm Seguimento não é necessário Repetição em 12 meses e, se ausência de
crescimento, seguimento não é necessário
4-6mm Repetição em 12 meses e, se ausência de Repetição em 6-12 meses e, se ausência de
crescimento, seguimento não é necessário crescimento, em 18-24 meses
6-8mm Repetição em 6-12 meses e, se ausência de Repetição em 3-6 meses e, se ausência de
crescimento, em 18-24 meses crescimento, em 9-12 e em 24 meses
>8mm Repetição em 3, 9 e 24 meses e, se Repetição em 3, 9 e 24 meses e, se
necessário, tomografia computadorizada com necessário, tomografia computadorizada com
contraste, tomografia por emissão de contraste, tomografia por emissão de
pósitrons com FDG e/ou biópsia pósitrons com FDG e/ou biópsia

Bibliografia
Clínica cirúrgica. – Barueri, SP: Manole, 2008.
Diagnostic evaluation and management of the solitary pulmonar nodule. Steven E Weinberger. UpToDate, 2012.
Computed tomographic and positron emission tomographic scanning of pulmonary nodules. Paul Stark. UpToDate, 2012.

Pedro Kallas Curiati 1226


TESTE DE FUNÇÃO PULMONAR
Espirometria
Trata-se de método de avaliação da função pulmonar através da aferição do
volume de ar expelido após inspiração máxima. Todos os volumes e as capacidades
contidos na capacidade vital são passíveis de mensuração por meio da espirometria. Os
principais índices obtidos são a capacidade vital forçada (CVF) e o volume expiratório
forçado no primeiro segundo (VEF1), expressos em litros e como porcentagem em
relação ao valor predito, além da relação VEF1/CVF, expressa na forma de fração. Não
permite a determinação do volume residual (VR) e das capacidades pulmonares que o
incluem, como a capacidade pulmonar total (CPT) e a capacidade residual funcional
(CFR), o que somente é possível com a utilização de outras técnicas, como os métodos
dilucionais e a pletismografia.
A interpretação dos testes de função pulmonar geralmente é baseada em dados
obtidos de um indivíduo e tem como referência valores de sujeitos saudáveis com as
mesmas características, que incluem idade, gênero, altura e aspectos étnicos relevantes.
A interpretação da espirometria envolve os valores absolutos de VEF1, CVF e
VEF1/CVF, a sua comparação com os valores preditos e a forma das curvas.
Os pacientes devem completar três expirações forçadas consistentes, com as
duas melhores curvas dentro de 5% ou 100mL de diferença uma da outra. Em um
indivíduo com função pulmonar normal, a curva volume-tempo deve ascender rápida e
suavemente, atingindo platô dentro de três a quatro segundos. Considera-se normal
VEF1 e CVF acima de 80% do predito e VEF1/CVF acima de 0.7.

O VEF1 é geralmente utilizado para graduar a severidade do distúrbio


ventilatório em pacientes com distúrbios obstrutivos, restritivos e mistos. No entanto, é
pouco aplicável a pacientes com obstrução de vias aéreas superiores, como estenose
traqueal, em que obstruções potencialmente fatais podem ser subestimadas. Apesar de a
relação VEF1/CVF não ser utilizada rotineiramente para determinar a gravidade de um
distúrbio ventilatório obstrutivo, pode ter valor em indivíduos com pulmões volumosos.
Um aumento no VEF1 e/ou na CVF superior ou igual a 12% e 200mL constitui
uma resposta positiva a broncodilatadores. Na ausência de aumento significativo, uma
melhora dos parâmetros de função pulmonar dentro do espectro do volume corrente
pode justificar a redução da dispneia. A ausência de resposta a broncodilatadores na
avaliação laboratorial não exclui a possibilidade de benefício clínico.

Medidas de volumes pulmonares


A obtenção dos volumes pulmonares, como a CRF e a CPT, pode ser necessária
para a classificação dos distúrbios ventilatórios, distinguindo restrição de
aprisionamento aéreo.
As técnicas dilucionais têm como princípio a utilização de um gás que se mistura

Pedro Kallas Curiati 1227


ao gás alveolar, alterando sua composição. Duas variações dessa técnica são mais
amplamente utilizadas atualmente, a diluição do hélio e a lavagem de nitrogênio. A
pletismografia também é utilizada para mensuração da CRF. Tem como vantagens sobre
as técnicas dilucionais a menor duração da manobra, a possibilidade de repetição
consecutiva de amostras sem necessidade de longo intervalo entre elas e a ausência de
necessidade de analisadores de gases.

Tipos de distúrbios ventilatórios

Distúrbios obstrutivos
Um distúrbio ventilatório obstrutivo consiste em redução desproporcional do
fluxo máximo de ar no pulmão em relação à CVF. Implica em estreitamento da via
aérea durante a expiração e é definido pela redução da relação VEF1/CVF abaixo do
percentil 5 do valor predito, ou seja, abaixo do limite inferior da normalidade para
determinada população. Também é possível considerar relação abaixo de 0.7 em
indivíduos adultos jovens e abaixo de 0.65 em indivíduos idosos com idade superior a
70 anos como critério para identificação de obstrução ao fluxo aéreo.
O volume expiratório forçado nos primeiros seis segundos (VEF6) é um índice
que se aproxima da CVF em indivíduos normais e que pode ser útil na avaliação de
pacientes com obstrução ao fluxo aéreo severa, nos quais a expiração forçada pode
demorar até quinze segundos para ser completada, com maior taxa de desistência dos
pacientes antes do seu término e risco de que a obstrução ao fluxo aéreo seja
subestimada. Dessa forma, a relação VEF1/ VEF6 é uma alternativa aceitável e validada
à relação VEF1/CVF.
A redução dos fluxos expiratórios em porções intermediárias da capacidade
vital, como o fluxo expiratório forçado médio de 25-75% da CVF (FEF25-75%) e o fluxo
expiratório forçado a 75% da CVF (FEF75%), também pode indicar a presença de
obstrução. Redução isolada dos fluxos expiratórios médios e terminais sem redução da
relação VEF1/CVF, embora não específica, pode indicar doença obstrutiva em pequenas
vias aéreas.
A capacidade vital lenta (CVL) é aferida com o paciente expirando em seu
próprio ritmo. Apesar de não ser utilizada de forma rotineira, já é sugerido que a relação
VEF1/CVL pode ser preferível em algumas populações de pacientes.
Atenção especial deve ser dada aos casos em que VEF1 e CVF estão
concomitantemente reduzidos, com relação VEF1/CVF normal, padrão que
frequentemente reflete falência do paciente em inalar e exalar completamente. Também
pode indicar que o fluxo é tão pequeno que o indivíduo não consegue exalar o suficiente
para esvaziar os pulmões. A figura ilustra exemplos de distúrbios pulmonares
obstrutivos com relação VEF1/CVF diminuída (a) e normal (b).

Pedro Kallas Curiati 1228


Distúrbios restritivos
Um distúrbio ventilatório restritivo é caracterizado por uma redução da
capacidade pulmonar total (CPT) abaixo do percentil 5 do valor predito, com relação
VEF1/CVF normal.
Deve-se suspeitar quando a CVF estiver reduzida e a relação VEF1/CVF estiver
aumentada, acima de 85-90%, com padrão convexo da curva de fluxo. No entanto, é
importante lembrar que CVF reduzida e relação VEF1/CVF normal ou discretamente
aumentada são comumente causadas por esforços inspiratórios e expiratórios
insuficientes e/ou obstrução periférica de vias aéreas, de forma que uma redução da
CVF isoladamente não é suficiente para definir um distúrbio ventilatório restritivo.
A figura ilustra um exemplo típico de distúrbio ventilatório restritivo, com
diminuição da CPT e fluxo acima do esperado para determinado volume.

Distúrbios mistos
Um distúrbio ventilatório misto é caracterizado pela coexistência de obstrução e
restrição, com relação VEF1/CVF e CPT abaixo do percentil 5 do valor predito. Como a
CVF pode estar reduzida tanto em caso de obstrução como em caso de restrição, a
presença de um componente restritivo em um paciente com obstrução não pode ser
inferida apenas com base nas medidas de VEF1 e CVF.
Se a relação VEF1/CVF é baixa e o maior valor de CVF estiver abaixo dos
limites da normalidade, sem medida de CPT disponível, é possível afirmar que a CVF
está provavelmente reduzida em função de hiperinsuflação, mas que a sobreposição de
um componente restritivo não pode ser excluída. Por outro lado, quando a relação
VEF1/CVF é baixa e a CVF é normal, a sobreposição de componente restritivo pode ser
desconsiderada.

Pedro Kallas Curiati 1229


A figura ilustra um exemplo típico de distúrbio ventilatório misto, caracterizado por
relação VEF1/CVF e por CPT diminuídas.

Capacidade de difusão do monóxido de carbono


A interpretação da capacidade de difusão do monóxido de carbono em conjunto
com a espirometria e os volumes pulmonares pode auxiliar no diagnóstico da doença
subjacente.
Capacidade de difusão do monóxido de carbono diminuída em paciente com
espirometria e volumes pulmonares normais pode indicar anemia, doenças pulmonares
de etiologia vascular, doença pulmonar intersticial precoce e enfisema pulmonar
precoce.
Na presença de distúrbio restritivo, capacidade normal de difusão do monóxido
de carbono sugere distúrbios da parede torácica e doenças neuromusculares, enquanto
que capacidade diminuída de difusão do monóxido de carbono sugere doença pulmonar
intersticial.
Na presença de distúrbio obstrutivo, capacidade diminuída de difusão do
monóxido de carbono sugere enfisema pulmonar, mas também pode ocorrer em
linfangioleiomiomatose.
Valores elevados de capacidade de difusão do monóxido estão associados a
asma, obesidade e hemorragia pulmonar.

Algoritmo
VC – vital
capacity; FEV1 –
forced expiratory
volume in one
second;
LLN – lower
limits of normal;
TLC – total lung
capacity;
DL,CO – diffusing
capacity for carbon
monoxide;
PV – pulmonary
vascular;
CW – chest wall;
NM –
neuromuscular;
ILD – interstitial
lung diseases;
CB – chronic

Pedro Kallas Curiati 1230


bronchitis.

Obstrução central de vias aéreas e obstrução de vias aéreas superiores


Obstruções podem ocorrer nas vias aéreas extra-torácicas, como faringe, laringe
e porção inicial da traqueia, e nas vias aéreas intra-torácicas, como a maior porção da
traqueia e os brônquios principais. Geralmente não há redução do VEF1 e/ou da CVF,
mas o pico de fluxo expiratório pode ser severamente afetado. Ao menos três curvas de
fluxo por volume durante inspiração e expiração forçadas são necessárias para a
avaliação de obstrução de vias aéreas superiores.
Quando o esforço do paciente é adequado, o padrão com um platô de fluxo
inspiratório forçado reprodutível, com ou sem platô de fluxo expiratório forçado, sugere
obstrução extra-torácica variável de vias aéreas superiores ou de vias aéreas centrais (b).
Por outro lado, o padrão com um platô de fluxo expiratório forçado reprodutível com
ausência de platô de fluxo inspiratório forçado reprodutível, sugere obstrução intra-
torácica variável de vias aéreas superiores ou de vias aéreas centrais (c). Padrão de platô
reprodutível com um fluxo semelhante tanto na inspiração forçada como na expiração
forçada sugere obstrução fixa de vias aéreas superiores ou de vias aéreas centrais (a).
A ausência de padrão espirométrico clássico de obstrução de vias aéreas centrais
não prediz de maneira acurada a ausência de patologia. Dessa forma, casos suspeitos
devem ser encaminhados para inspeção visual das vias aéreas.

Bibliografia
Interpretative strategies for lung function tests. Pellegrino R, Viegi G, et al. Eur Respir J 2005; 26: 948–968.
Spirometry for health care providers. Global Initiative for Chronic Obstructive Lung Disease. 2010.
Clínica médica, volume 2: doenças cardiovasculares, doenças respiratórias, emergências e terapia intensiva. – Barueri, SP: Manole,
2009.

Pedro Kallas Curiati 1231


TRANSTORNOS ANSIOSOS
Transtorno de ansiedade generalizada

Critérios diagnósticos
Ansiedade e preocupação excessivas ocorrem na maioria dos dias por pelo
menos seis meses, com diversos eventos ou atividades, tais como desempenho escolar
ou profissional.
O indivíduo considera difícil controlar a preocupação.
A ansiedade e a preocupação estão associadas a três ou mais dos seguintes
sintomas, com pelo menos alguns deles presentes na maioria dos dias durante os últimos
seis meses:
- Inquietação ou sensação de estar com os nervos à flor da pele;
- Fatigabilidade;
- Dificuldade em concentrar-se ou sensações de "branco" na mente;
- Irritabilidade;
- Tensão muscular;
- Perturbação do sono, com dificuldades em conciliar ou manter o sono,
sono insatisfatório ou inquietação;
Ansiedade, preocupação ou sintomas físicos causam sofrimento clinicamente
significativo ou prejuízo no funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas
importantes da vida do indivíduo.
A perturbação não se deve aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância ou
de uma condição médica geral e nem ocorre exclusivamente durante transtorno do
humor, transtorno psicótico ou transtorno invasivo do desenvolvimento.

Avaliação complementar
A necessidade de exames complementares é restrita às situações em que se
suspeita de sintomas ansiosos secundários a condições médicas gerais. Exames
geralmente úteis incluem hemograma, função renal, eletrólitos, glicemia, função
tireoidiana, urina tipo 1, exame toxicológico de urina ou sangue e eletrocardiograma.

Tratamento
Psicoterapia comportamental-cognitiva é efetiva para o tratamento do transtorno
de ansiedade generalizada.
Antidepressivos:
- Inibidores seletivos da recaptação de serotonina são considerados
tratamento de primeira linha, incluindo Paroxetina, Escitalopram,
Sertralina, Fluvoxamina, Fluoxetina e Citalopram;
- Alguns autores também consideram a Venlafaxina e a Duloxetina,
inibidores da recaptação de serotonina e noradrenalina, como primeira
linha de tratamento;
- Todas as classes de antidepressivos podem ser utilizadas, com exceção
de drogas noradrenérgicas mais seletivas, como Desipramina,
Bupropiona e Maprotilina;
- Antidepressivos tricíclicos estão associados a maior incidência de
efeitos colaterais e a maior risco de envenenamento;
- O tratamento deve ser mantido por pelo menos um ano após o controle

Pedro Kallas Curiati 1232


dos sintomas;
Benzodiazepínicos:
- Incluem Diazepam, Clonazepam e Lorazepam;
- Mais eficazes nos sintomas somáticos e autonômicos e menos eficazes
nos sintomas cognitivos primários, como preocupações excessivas e
antecipação catastrófica;
- Ação rápida e eficaz, com grande valia no início do tratamento e em
períodos de exacerbação dos sintomas, como abordagem adjuvante ao
tratamento antidepressivo;
- Risco de abuso, dependência e tolerância;
- Há prejuízo cognitivo e amnésia anterógrada;
- Preferência pelos benzodiazepínicos de meia vida longa;
- Retirada gradual;
Buspirona:
- Agonista parcial 5-HT1A;
- Atua nos sintomas cognitivos, porém não possui efeito antidepressivo e
parece não ter eficácia em longo prazo;
- Inicio de ação não é imediato;
Antipsicóticos de segunda geração, como Quetiapina, consistem em opção para
casos refratários ao tratamento e podem ser utilizados como monoterapia ou em
associação com outras drogas.
O tratamento medicamentoso deve ser reavaliado dentro de quatro a seis
semanas após introdução de droga ou ajuste na dose.

Transtorno de pânico e agorafobia

Ataques de pânico
Episódios de medo intenso acompanhados de vários sintomas físicos e
cognitivos. Após o início, os sintomas atingem um pico rapidamente, em até dez
minutos, e têm duração limitada, de até uma hora. Há sensação de morte iminente.
Períodos distintos de intenso temor ou desconforto durante os quais quatro ou
mais dos seguintes sintomas desenvolvem-se abruptamente e alcançam um pico em dez
minutos: palpitações ou ritmo cardíaco acelerado; sudorese; tremores ou abalos;
sensação de falta de ar ou sufocamento; sensação de asfixia; dor ou desconforto
torácico; náusea ou desconforto abdominal; sensação de tontura, instabilidade, vertigem
ou desmaio; desrealização (sensação de irrealidade) ou despersonalização (sensação de
estar distante de si mesmo); medo de perder o controle ou enlouquecer; medo de morrer;
parestesias; calafrios ou ondas de calor.

Agorafobia
Ansiedade acerca de estar em locais ou situações das quais possa ser difícil ou
embaraçoso escapar ou cujo auxílio pode não estar disponível na eventualidade de um
ataque de pânico ou de sintomas tipo pânico. As situações incluem estar fora de casa
desacompanhado, estar em meio a uma multidão, permanecer em uma fila, estar em
uma ponte e viajar de ônibus, trem ou automóvel.
As situações são evitadas ou suportadas com acentuado sofrimento ou com
ansiedade acerca de ter um ataque de pânico ou sintomas tipo pânico ou exigem
companhia.
A ansiedade ou esquiva não é melhor explicada por um outro transtorno mental.

Pedro Kallas Curiati 1233


Transtorno de pânico
Ataques de pânico recorrentes e inesperados.
Pelo menos um dos ataques foi seguido por um mês ou mais de uma ou mais das
seguintes características:
- Preocupação persistente acerca de ter novos ataques;
- Preocupação acerca das implicações do ataque ou suas consequências;
- Alteração comportamental significativa relacionada aos ataques, como
agorafobia, hipocondria e uso excessivo de serviços médicos;
Ausência de agorafobia no transtorno de pânico sem agorafobia.
Presença de agorafobia no transtorno de pânico com agorafobia.
Os ataques de pânico não se devem aos efeitos fisiológicos diretos de uma
substância ou de uma condição médica geral.
Os ataques de pânico não são melhores explicados por outro transtorno mental,
como fobia social, fobia específica, transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno de
estresse pós-traumático e transtorno de ansiedade de separação.

Agorafobia sem transtorno de pânico


Presença de agorafobia relacionada ao medo de desenvolver sintomas tipo
pânico.
Jamais foram satisfeitos os critérios para transtorno de pânico.
A perturbação não se deve aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância ou
de uma condição médica geral.
Na presença de uma condição médica geral associada, o medo excede
claramente aquele em geral associado com a condição.

Tratamento
Antidepressivos:
- Inibidores seletivos da recaptação de serotonina são as medicações de
primeira escolha, incluindo Sertralina, Paroxetina, Fluoxetina,
Fluvoxamina, Citalopram e Escitalopram;
- Há particular sensibilidade aos efeitos colaterais, sendo recomendado
iniciar com metade ou mesmo um quarto da dose que seria usada para
depressão;
- Inibidores da recaptação de serotonina e noradrenalina, como a
Venlafaxina de liberação controlada, consistem em alternativa eficaz;
- Tricíclicos consistem em alternativa em caso de intolerância ou
refratariedade ao uso de inibidores seletivos da recaptação de serotonina
e inibidores da recaptação de serotonina e noradrenalina;
- O tratamento deve ser mantido por período prolongado, de no mínimo
um ano, em função dos elevados índices de recaída após a suspensão;
Benzodiazepínicos:
- Incluem Diazepam, Clonazepam, Lorazepam e Alprazolam;
- Drogas eficazes, porém com alto índice de recorrência após sua
interrupção;
- Risco de dependência iatrogênica e falta de eficácia nos sintomas
depressivos;
- Principal indicação no início do tratamento e nas épocas de
exacerbação, em combinação com antidepressivo;
- São preferíveis as drogas de meia-vida longa, como o Clonazepam, ou
aquelas com formulações de liberação controlada, como o Alprazolam;

Pedro Kallas Curiati 1234


- Problema adicional em doses altas;
Terapias estruturadas com a utilização de técnicas cognitivas e/ou
comportamentais são eficazes para pacientes com transtorno do pânico. Estratégias
psicológicas focadas nos sintomas são os elementos centrais da terapia comportamental-
cognitiva, com técnicas de relaxamento e controle da respiração, reestruturação
cognitiva e exposição gradual.

Fobias específicas

Critérios diagnósticos
Medo acentuado e persistente, excessivo ou irracional, revelado pela presença ou
antecipação de um objeto ou situação fóbica, como altura, avião, elevador, dirigir,
sangue, injeção, insetos e animais.
A exposição ao estímulo fóbico provoca, quase que invariavelmente, uma
resposta imediata de ansiedade, que pode assumir a forma de um ataque de pânico.
O indivíduo reconhece que o medo é excessivo ou irracional.
A situação fóbica é evitada ou suportada com intensa ansiedade ou sofrimento.
A esquiva, a antecipação ansiosa ou o sofrimento na situação temida interferem
significativamente na rotina, no funcionamento ocupacional, nas atividades sociais ou
nos relacionamentos do indivíduo ou existe sofrimento acentuado por ter a fobia.
Em indivíduos com menos de 18 anos, a duração mínima é de seis meses.
A ansiedade, os ataques de pânico ou a esquiva fóbica associados com o objeto
ou a situação específica não são melhor explicados por efeitos fisiológicos diretos de
uma substância ou de uma condição médica geral nem por outro transtorno mental.

Tratamento
Terapia comportamental-cognitiva é o tratamento de eleição. Em geral, terapia
farmacológica tem papel secundário. Benzodiazepínicos são utilizados eventualmente se
o estímulo fóbico é esporádico apenas.

Fobia social

Critérios diagnósticos
Medo acentuado e persistente de uma ou mais situações sociais ou de
desempenho nas quais o indivíduo é exposto a pessoas estranhas ou ao possível
escrutínio por outras pessoas. O indivíduo teme agir de um modo que lhe seja
humilhante e embaraçoso.
A exposição à situação social temida quase que invariavelmente provoca
ansiedade, que pode assumir a forma de um ataque de pânico ligado a situação ou
predisposto pela situação
A pessoa reconhece que o medo é excessivo ou irracional.
As situações sociais e de desempenho temidas são evitadas ou suportadas com
intensa ansiedade ou sofrimento.
A esquiva, a antecipação ansiosa ou o sofrimento na situação social ou de
desempenho temida interferem significativamente na rotina, no funcionamento
ocupacional, nas atividades sociais ou nos relacionamentos do indivíduo ou existe
sofrimento acentuado por ter a fobia.
Em indivíduos com menos de dezoito anos, a duração é de no mínimo seis
meses.
O temor ou esquiva não se deve aos efeitos fisiológicos diretos de uma

Pedro Kallas Curiati 1235


substância ou de uma condição médica geral nem é melhor explicado por outro
transtorno mental.
A fobia social é considerada generalizada se os temores incluem a maioria das
situações sociais.

Tratamento
Casos mais leves, restritos a poucas situações sociais, podem ser manejados com
terapia comportamental-cognitiva ou terapia farmacológica com ß-bloqueadores nas
situações de exposição, com Propranolol 20-60mg com trinta a sessenta minutos de
antecedência, ou benzodiazepínicos em situações de exposição, com Clonazepam 0.25-
1mg ou Lorazepam 0.5-2mg com trinta a sessenta minutos de antecedência.
Casos mais graves, generalizados, podem ser manejados com terapia
comportamental cognitiva ou terapia farmacológica com inibidores seletivos da
recaptação de serotonina, inibidores da recaptação de serotonina e noradrenalina ou, em
caso de refratariedade, inibidores irreversíveis da monoamino-oxidase.
Benzodiazepínicos podem ser associados. Em caso de substituição de inibidor seletivo
da recaptação de serotonina ou inibidor da recaptação de serotonina e noradrenalina por
inibidor da monoamino-oxidase, é necessária a suspensão do antidepressivo
previamente em uso duas semanas antes do início da nova medicação, exceto no caso da
Fluoxetina, que deve ser suspensa cinco semanas antes. O tratamento medicamentoso
deve ser continuado por seis a doze meses após o controle dos sintomas.
A dessensibilização das situações temidas e a instalação de novos repertórios
comportamentais são essenciais.

Transtorno de estresse pós-traumático

Critérios diagnósticos

Reação aguda ao estresse


A pessoa vivenciou, testemunhou ou foi confrontada com um ou mais eventos
que envolveram morte ou grave ferimento, reais ou ameaçados, ou uma ameaça à
integridade física, própria ou de outros. A resposta da pessoa envolveu intenso medo,
impotência ou horror.
Enquanto vivenciava ou após vivenciar o evento aflitivo, o indivíduo teve três ou
mais dos seguintes sintomas dissociativos:
- Sentimento subjetivo de anestesia, distanciamento ou ausência de
resposta emocional;
- Redução da consciência quanto às coisas que o rodeiam;
- Desrealização;
- Despersonalização;
- Amnésia dissociativa;
O evento traumático é persistentemente revivido no mínimo de uma maneira
dentre imagens, pensamentos, sonhos, ilusões, episódios de flashback recorrentes,
sensação de reviver a experiência e sofrimento quando da exposição a lembretes.
Acentuada esquiva de estímulos que provocam recordações do trauma.
Sintomas acentuados de ansiedade ou maior excitabilidade.
A perturbação causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo ao
funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.
A perturbação tem duração mínima de dois dias e máxima de quatro semanas e
ocorre dentro de quatro semanas após o evento traumático.

Pedro Kallas Curiati 1236


A perturbação não se deve aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância ou
de uma condição médica geral, não é melhor explicada por um transtorno psicótico
breve e não representa uma exacerbação de um transtorno mental preexistente.

Transtorno de estresse pós-traumático


A pessoa vivenciou, testemunhou ou foi confrontada com um ou mais eventos
que envolveram morte ou grave ferimento, reais ou ameaçados, ou uma ameaça à
integridade física, própria ou de outros. A resposta da pessoa envolveu intenso medo,
impotência ou horror.
O evento traumático é persistentemente revivido em uma ou mais das seguintes
maneiras:
- Recordações aflitivas, recorrentes e intrusivas do evento, incluindo
imagens, pensamentos e percepções;
- Sonhos aflitivos e recorrentes com o evento;
- Comportamento ou sensação como se o evento traumático estivesse
ocorrendo novamente;
- Sofrimento psicológico intenso quando da exposição a indícios internos
ou externos que simbolizam ou lembram algum aspecto do evento
traumático;
- Reatividade fisiológica na exposição a indícios internos ou externos que
simbolizam ou lembram algum aspecto do evento traumático;
Esquiva persistente de estímulos associados com o trauma e entorpecimento da
responsividade geral, não presente antes do trauma, indicados por três ou mais dentre
esforços de evitar pensamentos, sentimentos ou conversas associadas com o trauma,
esforços no sentido de evitar atividades, locais ou pessoas que ativem recordações do
trauma, incapacidade de recordar algum aspecto importante do trauma, redução
acentuada do interesse ou da participação em atividades significativas, sensação de
distanciamento ou afastamento em relação a outras pessoas, faixa de afeto restrita e
sentimento de um futuro abreviado.
Sintomas persistentes de excitabilidade aumentada, indicados por dois ou mais
dentre dificuldade de conciliar ou manter o sono, irritabilidade ou surtos de raiva,
dificuldade em concentrar-se, hipervigilância e resposta de sobressalto exagerada.
A duração da perturbação é superior a um mês.
A perturbação causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo ao
funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.
Início tardio é caracterizado por instalação dos sintomas pelo menos seis meses
após o estressor.

Tratamento

Reação aguda ao estresse


Frente a trauma agudo, recomenda-se evitar benzodiazepínicos, evitar estresse
adicional, oferecer suporte social e familiar, introduzir terapia cognitivo-
comportamental e considerar introdução de antidepressivo. O uso de corticosteroides e
bloqueadores adrenérgicos é experimental.

Transtorno de estresse pós-traumático


O tratamento de primeira linha prevê o uso de inibidores seletivos da recaptação
de serotonina. A Venlafaxina de liberação controlada também é considerada por alguns
autores como primeira escolha, porém hipertensão arterial e outros problemas

Pedro Kallas Curiati 1237


cardiovasculares podem limitar o uso.
Os consensos de especialistas têm considerado a terapia comportamental-
cognitiva como uma opção aos inibidores seletivos de recaptação de serotonina no
tratamento inicial, também podendo ser implementada em associação com a terapia
farmacológica.
Os antidepressivos tricíclicos devem ser considerados tratamento de primeira
escolha quando as opções descritas anteriormente não estiverem disponíveis, uma vez
que têm eficácia comparável.
Em caso de refratariedade, antipsicóticos atípicos podem ser introduzidos, como
Risperidona, apresentada na forma de comprimidos de 1mg, 2mg, 3mg e 4mg, com dose
inicial de 0.5mg/dia e aumento semanal conforme tolerância até 4mg/dia. Em caso de
ausência de benefício após duas semanas do uso da dose máxima, a medicação deverá
ser descontinuada.
Em caso de insônia e pesadelos persistentes, podem ser usadas doses baixas de
antipsicóticos ou antidepressivos sedativos, como os tricíclicos e a Mirtazapina.
Os benzodiazepínicos também podem ser usados com cuidado como
coadjuvantes no tratamento do transtorno de estresse pós-traumático já instalado.
O tratamento deve ser mantido por pelo menos seis meses a um ano após a
remissão dos sintomas.

Transtorno obsessivo-compulsivo

Obsessões
Pensamentos, impulsos ou imagens recorrentes e persistentes que, em algum
momento, são experimentados como intrusivos e inadequados e causam acentuada
ansiedade ou sofrimento.
Os pensamentos, impulsos ou imagens não são meras preocupações excessivas
com problemas da vida real.
A pessoa tenta ignorar ou suprimir tais pensamentos, impulsos ou imagens.
Também pode procurar neutralizá-los com algum outro pensamento ou ação.
A pessoa reconhece que os pensamentos, impulsos ou imagens obsessivas são
produto de sua própria mente e não são impostos a partir de fora, como na inserção de
pensamentos.
Há sofrimento e prejuízo funcional.

Compulsões
Comportamentos repetitivos ou atos mentais que a pessoa se sente compelida a
executar em resposta a uma obsessão ou de acordo com regras que devem ser
rigidamente aplicadas.
Os comportamentos ou atos mentais visam prevenir ou reduzir o sofrimento ou
evitar algum evento ou situação temida. Entretanto, esses comportamentos ou atos
mentais não têm uma conexão realista com o que visam a neutralizar ou evitar ou são
claramente excessivos.
Em algum momento a pessoa reconhece que os sintomas são irracionais e
excessivos.
Há sofrimento e prejuízo funcional.

Quadro clínico
Obsessões % Compulsões %

Pedro Kallas Curiati 1238


Contaminação 50 Checagem 61
Dúvida patológica 42 Limpeza 50
Somática 33 Contagem 36
Simetria 32 Necessidade de confissão 34
Agressividade 31 Simetria e precisão 28
Sexual 24 Colecionismo 18
Múltiplas obsessões 72 Múltiplas compulsões 58
Compulsões podem ser mentais, como rezar repetidamente.
Obsessões e compulsões estão presentes em 91% dos casos. Obsessões isoladas
estão presentes em 8.5% dos casos. Compulsões isoladas são extremamente raras e
estão presentes em 0.5% dos casos, com maior frequência entre seis e oito anos de
idade.
Início precoce está relacionado a história familiar e mau prognóstico. Subtipo
com início antes da puberdade é relacionado a infecções por estreptococo β-hemolítico
do grupo A, o que sugere etiologia autoimune. Mais de 70% dos pacientes com coreia
de Sydenham têm transtorno obsessivo-compulsivo.

Critérios diagnósticos
Presença de obsessões ou compulsões.
Em algum ponto durante o curso do transtorno, o indivíduo reconhece que as
obsessões ou compulsões são excessivas ou irracionais. Esse critério não se aplica a
crianças.
As obsessões ou compulsões causam acentuado sofrimento, consomem mais de
uma hora por dia ou interferem significativamente na rotina, no funcionamento
ocupacional ou acadêmico, nas atividades ou nos relacionamentos sociais habituais do
indivíduo.
Se outro transtorno do eixo I estiver presente, o conteúdo das obsessões ou
compulsões não estará restrito a ele.
A perturbação não se deve aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância ou
de uma condição médica geral.

Tratamento
Terapia comportamental-cognitiva consiste no tratamento de primeira linha, com
tratamento farmacológico indicado em caso de indisponibilidade ou preferência do
paciente.
Em função de sua segurança e tolerabilidade, os inibidores seletivos da
recaptação de serotonina são a terapêutica farmacológica de primeira escolha. A ação
sobre os sintomas obsessivo-compulsivos parece não estar vinculada ao efeito
antidepressivo dessas drogas. São necessárias pelo menos oito semanas de tratamento
em dose adequada para estabelecer se o paciente respondeu à medicação. Venlafaxina
de liberação controlada pode ter efeito comparável ao dos inibidores seletivos da
recaptação de serotonina.
Associação com neurolépticos atípicos, como a Risperidona, é justificada em
caso de resposta insatisfatória ao uso de inibidor seletivo de recaptação de serotonina ou
Clomipramina e em caso de tiques e síndrome de Tourette.
Recomenda-se não diminuir ou descontinuar o tratamento psicofarmacológico
antes de um a dois anos do controle dos sintomas. Após esse período, a medicação pode
ser diminuída lentamente, em torno de um quarto da dose a cada dois meses, com
acompanhamento médico periódico e sessões de terapia comportamental-cognitiva.
São necessários doses e tempo maiores que para outros transtornos para atingir

Pedro Kallas Curiati 1239


resposta máxima, com altas taxas de recaída após suspensão abrupta da medicação.
Outras abordagens incluem eletroconvulsoterapia, estimulação elétrica
transcraniana e, quando houver refratariedade comprovada, capsulotomia anterior.

Bibliografia
Fundamentos em Psiquiatria. Pedro Gomes de Alvarenga, Arthur Guerra de Andrade. – Barueri, SP: Manole, 2008.
Clínica Médica, volume 6: doenças dos olhos, doenças dos ouvidos, nariz e garganta, neurologia, transtornos mentais. – Barueri, SP:
Manole, 2009.
Generalized anxiety disorder: Epidemiology, clinical manifestations, and diagnosis. Paul Ciechanowski and Wayne Katon.
UpToDate, 2012.
Treatment of generalized anxiety disorder. Alexander Bystristsky. UpToDate, 2012.
Panic disorder: Epidemiology, clinical manifestations, and diagnosis. Wayne Katon and Paul Ciechanoswski. UpToDate, 2012.
Agoraphobia in adults: Epidemiology, clinical manifestations, and diagnosis. Randi E McCabe. UpToDate, 2012.
Pharmacotherapy for panic disorder. Peter P Roy-Byrne. UpToDate, 2012.
Psychotherapy for panic disorder. Michelle Craske. UpToDate, 2012.
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Posttraumatic stress disorder: Epidemiology, clinical manifestations, and diagnosis. Paul Ciechanowski and Wayne Katon.
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Pharmacotherapy for posttraumatic stress disorder. Murray B Stein. UpToDate, 2012.
Obsessive-compulsive disorder: Epidemiology, clinical manifestations, and diagnosis. Paul Ciechanowski and Wayne Katon.
UpToDate, 2012.
Pharmacotherapy for obsessive-compulsive disorder. Paul Ciechanowski and Wayne Katon. UpToDate, 2012.

Medicamentos comumente utilizados no tratamento dos transtornos de ansiedade


Medicamento Apresentação Dose
Inibidores seletivos da recaptação de serotonina
Fluoxetina Cápsulas de 10mg e 20mg 10-80mg uma vez ao dia
Sertralina Comprimidos de 50mg e 100mg 25-200mg uma vez ao dia
Paroxetina Comprimidos de 10mg, 15mg, 20mg, 10-60mg uma vez ao dia
25mg, 30mg e 40mg
Citalopram Comprimidos de 20mg e 40mg 10-60mg uma vez ao dia
Fluvoxamina Comprimidos de 100mg 50-300mg/dia, com fracionamento em duas
tomadas em caso de doses superiores a
150mg/dia
Escitalopram Comprimidos de 10mg e 20mg 5-20mg uma vez ao dia
Inibidores da recaptura de serotonina e noradrenalina
Venlafaxina Cápsulas de liberação controlada de 37.5-225mg uma vez ao dia
37.5mg, 75mg e 150mg
Duloxetina Cápsulas de liberação retardada de 30-120mg/dia, com fracionamento em duas
30mg e 60mg tomadas em caso de doses superiores a
60mg/dia
Benzodiazepínicos
Diazepam Comprimidos de 5mg e 10mg 2.5-5mg uma a duas vezes ao dia a 10mg três
vezes ao dia
Clonazepam Solução oral com 2.5mg/mL (25 0.25-0.50mg uma a duas vezes ao dia a 1mg
gotas/mL) e comprimidos de 0.5mg e duas a três vezes ao dia
2mg
Alprazolam Comprimidos de 0.25mg, 0.5mg, 1mg 0.25-0.5mg três vezes ao dia a 1.5mg três
e 2mg vezes ao dia
Lorazepam Comprimidos de 1mg e 2mg 0.5-1mg três vezes ao dia a 1.5mg quatro
vezes ao dia

Pedro Kallas Curiati 1240


TRANSTORNOS DA
SEXUALIDADE
Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde (CID-10)
Transtornos do desempenho da função sexual ou disfunções sexuais.
Transtornos de relação com o objeto ou a finalidade sexual ou transtornos de
preferência sexual.
Transtornos de identidade sexual ou transtornos de gênero.
Transtornos do desenvolvimento sexual e de sua orientação.
Transtornos sexuais não especificados em outra parte.

Epidemiologia
O desejo sexual hipoativo e a dificuldade para atingir o orgasmo são as queixas
femininas mais frequentes. Entre os homens, a disfunção erétil e a ejaculação precoce
são as mais comuns.
Enquanto a prevalência da disfunção erétil tende a aumentar com a idade, a
ejaculação precoce se mantém estável para qualquer faixa etária. O desejo sexual
feminino tende a diminuir com o advento do climatério e da menopausa, enquanto que a
capacidade para o orgasmo geralmente melhora com os anos de experiência sexual.

Etiologia
As disfunções sexuais resultam de fatores orgânicos e/ou emocionais, além de
condições socioculturais e econômicas, que agem de forma isolada ou conjunta.
Sedentarismo, estresse, tabagismo, uso de drogas ilícitas, uso excessivo de
bebidas alcoólicas e obesidade comprometem a ereção e a lubrificação vaginal por meio
de disfunção endotelial progressiva.
Diabetes mellitus, hipertensão arterial sistêmica, dislipidemia e doenças
cardiovasculares são as principais enfermidades associadas às falhas da função sexual.
O mecanismo é disfunção endotelial, que resulta em comprometimento vascular, com
repercussão na ereção e na lubrificação.
Depressão e ansiedade também podem predispor às disfunções sexuais por
diminuição de libido, autoestima, capacidade de concentração e autocontrole.
Distúrbios hormonais, como déficits de hormônios sexuais e disfunção
tireoidiana, também podem interferir na função sexual.
Medicamentos e substâncias que afetam adversamente a função sexual incluem
anticonvulsivantes, como Carbonato de Lítio, Valproato, Carbamazepina, Fenitoína e
Fenobarbital, neurolépticos, como Clorpromazina, Flufenazina, Tioridazina,
Haloperidol e Risperidona, ansiolíticos, como benzodiazepínicos, diuréticos, como
tiazídicos, de alça e antagonistas da aldosterona, anti-hipertensivos, como Reserpina,
Metildopa, bloqueadores adrenérgicos (β, α1 e α2), inibidores da enzima de conversão da
angiotensina e bloqueadores de canais de cálcio, anti-cancerígenos, como 5-Fluouracil,
Tamoxifeno e Vimblastina, antidepressivos tricíclicos, como Clomipramina,
Amitriptilina, Imipramina, Nortriptilina e Desipramina, inibidores da monoamina-
oxidase, como Fenelzina e Trancilpramina, inibidores seletivos da recaptação de
serotonina, como Fluoxetina, Paroxetina, Sertralina, Fluvoxamina e Venlafaxina,
antialérgicos, inibidores da secreção ácida gástrica, como Cimetidina e Ranitidina,
anorexígenos, hormônios, como progesterona e corticoide, e anti-lipêmicos, como

Pedro Kallas Curiati 1241


Gemfibrozil e Clofibrato.
Outros fatores associados incluem sintomas do trato urinário inferior, radiação,
trauma pélvico e cirurgias prévias.

Anamnese

Quociente sexual
Responda o questionário com sinceridade, baseando-se nos últimos seis meses de sua vida sexual
Legenda: 0 – Nunca; 1 – Raramente; 2 – Às vezes; 3 – 0 1 2 3 4 5
Aproximadamente 50% das vezes; 4 – Na maioria das vezes;
5 – Sempre;
1 – Seu interesse por sexo é suficiente para você querer
iniciar o ato sexual?
2 - Sua capacidade de sedução dá a você confiança de se
lançar em atividade de conquista sexual?
3 – As preliminares de seu ato sexual satisfazem você e sua
(seu) parceira (o)?
4 – Seu desempenho sexual varia conforme sua (seu) parceira
(o) seja ou não capaz de se satisfazer durante o ato sexual
com você?
5 – Você consegue manter o pênis ereto o tempo que precisa
para completar a atividade sexual com satisfação?
6 – Após o estímulo sexual, sua ereção é suficientemente
rígida para garantir uma relação sexual satisfatória?
7 – Você é capaz de obter e manter a mesma qualidade de
ereção nas várias relações sexuais que realiza em diferentes
dias?
8 – Você consegue controlar a ejaculação para que seu ato
sexual se prolongue o quanto desejar?
9 – Você consegue chegar ao orgasmo nas relações sexuais
que realiza?
10 – Seu desempenho sexual o estimula a fazer sexo outras
vezes, em outras oportunidades?
O resultado é obtido pela soma dos índices de cada questão, Domínios investigados:
com o total multiplicado por dois. - Desejo – questão 1;
O escore final apresenta a qualidade de desempenho e - Autoconfiança – questão 2;
satisfação sexual: - Qualidade da ereção – questões 5, 6 e
- 82-100 pontos – Bom a excelente; 7;
- 62-80 pontos – Regular a bom; - Controle da ejaculação – questão 8;
- 42-60 pontos – Desfavorável a regular; - Capacidade de atingir o orgasmo –
- 22-40 pontos – Ruim a desfavorável; questão 9;
- 0-20 pontos – Nulo a ruim; - Satisfação geral com as preliminares e
o intercurso – questões 3, 4 e 10;

Responda o questionário com sinceridade, baseando-se nos últimos seis meses de sua vida sexual
Legenda: 0 – Nunca; 1 – Raramente; 2 – Às vezes; 3 – 0 1 2 3 4 5
Aproximadamente 50% das vezes; 4 – Na maioria das vezes; 5 –
Sempre;
1 – Você costuma pensar espontaneamente em sexo, lembra de
sexo ou se imagina fazendo sexo?
2 – O seu interesse por sexo é suficiente para você participar da
relação sexual com vontade?
3 – As preliminares a estimulam a continuar a relação sexual?
4 – Você costuma ficar lubrificada durante a relação sexual?
5 – Durante a relação sexual, à medida que a excitação do seu
parceiro vai aumentando, você também se sente mais estimulada
para o sexo?

Pedro Kallas Curiati 1242


6 – Durante a relação sexual, você relaxa a vagina o suficiente
para facilitar a penetração do pênis?
7 – Você costuma sentir dor durante a relação sexual, quando o
pênis penetra a sua vagina?
8 – Você consegue se envolver, sem se distrair, durante a relação
sexual?
9 – Você consegue atingir o orgasmo nas relações sexuais que
realiza?
10 – A satisfação que você consegue obter com a relação sexual
lhe dá vontade de fazer sexo outras vezes, em outros dias?
O resultado é obtido pela soma dos índices de cada questão, com Domínios investigados:
o total multiplicado por dois. - Desejo e interesse sexual – questões
O escore final apresenta a qualidade de desempenho e satisfação 1, 2 e 8;
sexual: - Preliminares – questão 3;
- 82-100 pontos – Bom a excelente; - Excitação da mulher e sintonia com
- 62-80 pontos – Regular a bom; o parceiro – questões 4 e 5;
- 42-60 pontos – Desfavorável a regular; - Conforto – questões 6 e 7;
- 22-40 pontos – Ruim a desfavorável; - Orgasmo e satisfação – questões 9 e
- 0-20 pontos – Nulo a ruim; 10;

Exame físico
Sinais de hipogonadismo, como testículos pequenos, ginecomastia e redução de
pilificação demandam atenção.
Toque retal é indicado para avaliar o tônus do esfíncter anal e o reflexo
bulbocavernoso.
Pulsos periféricos devem ser palpados para pesquisa de doença vascular.

Avaliação complementar
Exames laboratoriais incluem testosterona sérica matinal, glicemia de jejum,
perfil lipídico, hemograma e função renal.
Avaliação vascular baseada em injeção intracavernosa de Prostaglandina E1,
ultrassonografia duplex e tumescência peniana noturna não é recomendada para uso
rotineiro, mas pode ser útil em casos selecionados.

Diagnóstico
O diagnóstico das disfunções sexuais, dos transtornos de preferência e dos
transtornos de identidade sexual é essencialmente clínico. Deve-se observar um período
mínimo de seis meses de sintomatologia. É importante investigar o parceiro para afastar
possíveis erros de interpretação.
Muito relevante para o diagnóstico, assim como para o planejamento terapêutico
e o prognóstico, é a distinção entre os transtornos sexuais primário e secundários,
adquiridos após um período de funcionamento normal, e entre disfunção generalizada,
presente em qualquer circunstância, e situacional.
Recomenda-se também considerar a idade e a experiência sexual do paciente.

Disfunções sexuais
Alteração nos processos próprios do ciclo de resposta sexual ou presença de dor
associada ao intercurso, com acentuado sofrimento ou dificuldade interpessoal. É
necessária ausência de explicação por outro transtorno do Eixo I e de relação exclusiva
com efeitos fisiológicos diretos de substância ou condição médica geral.
Tipos:
- Disfunção por falta, exemplificada por disfunção erétil, inibição do
desejo sexual e anorgasmia;

Pedro Kallas Curiati 1243


- Disfunção por excesso, exemplificada pelo impulso sexual excessivo;
- Disfunção por desconforto, exemplificada pela ejaculação precoce no
homem e pelo vaginismo na mulher;
- Disfunção por dor, exemplificada pela dispareunia;

Transtornos de preferência
Fantasias ou comportamentos sexuais intensos recorrentes envolvendo objetos
não-humanos, crianças ou adultos, sem consentimentos destes, infringindo sofrimento
ou humilhação a si próprio ou ao parceiro, por um período mínimo de seis meses. O
comportamento, os desejos ou as fantasias provocam acentuado sofrimento,
prejudicando o funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas importantes da
vida.
Para a pedofilia, o indivíduo deve ter, pelo menos, dezesseis anos, sendo ao
menos cinco anos mais velho do que a (s) criança (s) envolvida (s).

Transtornos de identidade de gênero


Identificação forte e persistente com o gênero oposto, consistindo no desejo de
ser ou mesmo na crença de que pertence ao sexo oposto, não refletindo, porém, o desejo
de vantagens percebidas como próprias do outro sexo. Ocorre persistente desconforto
com o próprio sexo ou sensação de inadequação no papel de gênero próprio do seu sexo,
com acentuado sofrimento, prejudicando o funcionamento social, ocupacional ou de
outras áreas importantes da vida.
Havendo concomitância de uma condição intersexual física, o diagnóstico não se
aplica.

Tratamento

Ejaculação precoce
O tratamento medicamentoso consiste no uso de medicamentos que interferem
na transmissão serotoninérgica, retardando a ejaculação.
Os fármacos de primeira escolha são os antidepressivos inibidores da recaptação
da serotonina. Paroxetina é apresentada na forma de comprimidos de 10mg, 20mg e
30mg, com dose de 20-60mg uma vez ao dia pela manhã juntamente com a alimentação,
titulada com incrementos de 10mg a cada duas a três semanas. Fluoxetina é apresentada
na forma de comprimidos de 10mg e 20mg, com dose de 20-60mg uma vez ao dia pela
manhã com ou sem a alimentação. Sertralina é apresentada na forma de comprimidos de
50mg e 100mg, com dose de 50-200mg uma vez ao dia pela manhã ou de noite com ou
sem a alimentação, com titulação com incrementos de 50mg com intervalo mínimo de
uma semana.
Antidepressivos tricíclicos também podem ser utilizados, apesar da menor
tolerância. Amitriptilina é apresentada na forma de comprimidos de 10mg, 25mg e
75mg, com dose de 75-150mg/dia fracionada em até três vezes, preferencialmente no
período noturno, titulada gradualmente conforme a tolerância do paciente, podendo
atingir até 300mg em casos selecionados. Clomipramina é apresentada na forma de
comprimidos de 10mg, 25mg e 75mg, com dose de 25-150mg/dia fracionada em até três
vezes, titulada gradualmente, podendo atingir até 250mg em casos selecionados.
Outras opções terapêuticas incluem ansiolíticos, aplicações tópicas de cremes de
Lidocaína, associações de inibidores da fosfodiesterase 5 com inibidores seletivos da
recaptação de serotonina e psicoterapia.

Pedro Kallas Curiati 1244


Disfunção erétil
O tratamento de primeira linha abrange educação sexual, mudanças no estilo de
vida, manejo dos fatores de risco, aconselhamento, psicoterapia e agentes
medicamentosos orais. Os medicamentos de primeira escolha são os inibidores da
fosfodiesterase tipo 5, que recuperam e mantêm a resposta erétil frente ao estímulo
sexual por meio do bloqueio seletivo da degradação do GMPc no corpo cavernoso. Na
ausência de estímulo sexual, esses fármacos não são capazes de iniciar ou manter a
ereção. Sildenafila (Viagra®) é apresentado na forma de comprimidos de 25mg, 50mg e
100mg, com dose de no máximo um comprimido por dia conforme a gravidade da
disfunção erétil, aproximadamente uma hora antes da relação sexual. Vardenafila
(Levitra®) é apresentado na forma de comprimidos de 5mg, 10mg e 20mg, com dose de
no máximo um comprimido por dia conforme a gravidade da disfunção erétil, vinte e
cinco a sessenta minutos antes da relação sexual. Tadalafila (Cialis®) é apresentado na
forma de comprimidos de 20mg, com dose de no máximo um comprimido três vezes
por semana, trinta minutos antes da relação sexual. Lodenafila (Helleva®) é
apresentado na forma de comprimido de 80mg, com dose de no máximo um
comprimido por dia uma hora antes da relação sexual. Contraindicações incluem risco
intermediário a alto de doença arterial coronária, uso de nitratos, retinite pigmentosa e
neuropatia óptica isquêmica anterior não-arterítica. Efeitos colaterais comuns incluem
cefaleia, rubor facial, dispepsia e congestão nasal, além de exantema e sintomas visuais
com Sildenafil e dor lombar e mialgia com Tadalafil.
O tratamento de segunda linha abrange agentes injetáveis, como injeções
intracavernosas de Papaverina, Fentolamina, Clorpromazina e prostaglandinas, e
medicações intrauretrais, como Alprostadil, além de dispositivos a vácuo, aplicados no
pênis.
O tratamento de terceira linha abrange próteses penianas e cirurgia de
revascularização peniana, cuja eficácia é discutível.

Desejo sexual hipoativo masculino


Tratamento da depressão, se esta for a causa, com inibidor seletivo da recaptação
de serotonina e psicoterapia.
Antídotos para disfunção sexual induzida por antidepressivo. Bupropiona, droga
inibidora da recaptação de dopamina e noradrenalina, é apresentada na forma de
comprimidos de 150mg, com dose de 150mg uma a duas vezes ao dia, com intervalo
nunca inferior a oito horas, evitando-se tomar a segunda dose após as dezoito horas pelo
risco de insônia. Inibidores da fosfodiesterase 5 podem ser utilizados com a mesma
posologia recomendada para os casos de disfunção erétil.
A terapia hormonal só está indicada quando houver quadro clínico característico
de distúrbio androgênico do envelhecimento masculino e níveis de testosterona abaixo
do normal, inferiores a 300ng/dL. Benefícios e riscos devem ser reavaliados a cada três
meses e todas as opções de tratamento devem ser discutidas com o paciente.
Contraindicações absolutas incluem câncer de próstata não-tratado, câncer de mama e
hipertrofia prostática não-tratada. Contraindicações relativas incluem apnéia do sono,
doença pulmonar obstrutiva crônica, insuficiência cardíaca congestiva, síndrome
nefrótica, hepatopatia e hiperprolactinemia.
Undecilato de Testosterona é apresentado na forma de cápsulas de 40mg, com
dose recomendada de 40-160mg por dia. As cápsulas devem ser ingeridas inteiras, com
o auxílio de algum líquido, após as refeições, com metade da dose pela manhã e metade
de noite. Se um número ímpar de cápsulas for recomendado, a dose maior deverá ser
administrada pela manhã. Também é apresentado na forma de ampola de 4mL com

Pedro Kallas Curiati 1245


250mg/mL, com dose recomendada de 1000mg a cada três meses.
Cipionato de Testosterona é apresentado na forma de ampolas de 2mL com
200mg, com dose recomendada de 200-400mg por via intramuscular a cada duas
semanas.
Durateston® é apresentação comercial na forma de ampola com Propionato de
Testosterona 30mg, Fenilpropionato de Testosterona 60mg, Isocaproato de Testosterona
60mg e Decanoato de Testosterona 100mg, com uma aplicação intramuscular a cada
três semanas.
Mesterolona é apresentada na forma de comprimidos de 25mg, com dose de um
comprimido duas a três vezes ao dia, ingeridos sem mastigar e com pequena quantidade
de líquido.
Metiltestosterona não está disponível comercialmente, com necessidade de
manipulação em farmácias especializadas. A dose recomendada é de 10-30mg por via
oral uma vez ao dia.
Adesivos transdérmicos podem ser utilizados com dose de 5mg/dia.
Gel transdérmico de Propionato de Testosterona a 1% pode ser utilizado com
dose de 5-10mg/dia, sendo recomendada aplicação inicialmente de 1mL em ombros,
membros superiores e/ou abdômen uma vez ao dia. Utiliza-se seringa dosadora.
Não há dados de segurança de terapia androgênica a longo prazo. O tratamento
deve ser monitorado com base na melhora da função sexual e do bem-estar e no
aparecimento de efeitos adversos. Concentrações plasmáticas normais ou próximas ao
limite superior da normalidade devem ser mantidas para controle dos efeitos
virilizantes, como tom grave da voz, alopecia, hirsutismo, acne e hipertrofia do clitóris.
Hepatite colestática, icterícia, hipercalcemia, policitemia e retenção hidroeletrolítica
podem ocorrer, sendo reversíveis com a suspensão do hormônio. Risco cardiovascular
representa a maior limitação ao uso de androgênios. Monitorização laboratorial inclui
hemograma e dosagem de antígeno prostático específico (PSA).

Anosgarmia
Bupropiona para anorgasmia induzida por antidepressivo.
Buspirona ou Alprazolam para anorgasmia induzida por ansiedade. Buspirona é
apresentada na forma de comprimidos de 5mg e 10mg, com dose inicial de 15mg/dia
fracionada em duas a três vezes e titulação em 5mg/dia a cada dois a três dias conforme
a necessidade, com máximo de 60mg/dia. Alprazolam é apresentado na forma de
comprimidos de 0.25mg, 0.5mg e 1.0mg, com dose habitual de 0.25-0.50mg duas a três
vezes ao dia e máximo de 4.5mg/dia.
Em caso de disfunção psicogênica ou mista, psicoterapia poderá ser indicada.

Desejo sexual hipoativo ou falta de excitação femininos


Se devidos à depressão, administrar, sempre que possível, antidepressivo de
menor efeito sobre a função sexual, como Bupropiona e Mirtazapina. Pode-se
acrescentar antídotos se tratamento com inibidor seletivo da recaptação de serotonina,
como Bupropiona e Buspirona.
Testosterona, com administração preferencialmente transdérmica ou tópica em
relação à oral para evitar primeira passagem hepática e alterações lipídicas. Preconiza-se
Propionato de Testosterona a 2% em veículo (creme) aplicado em clitóris, pequenos
lábios e grandes lábios diariamente ou em dias alternados em esquemas de dois a quatro
meses. Alternativas incluem Undecilato de Testosterona 40mg por via oral uma vez ao
dia e Metiltestosterona 1.25-2.50mg por via oral uma vez ao dia. Contraindicações
incluem câncer de útero e de mama, doença cardiovascular e doença hepática. Deve-se

Pedro Kallas Curiati 1246


recorrer à menor dose pelo menor tempo.
A Metiltestosterona tem metabolização e inativação hepáticas. A administração
de pequenas doses não contempla níveis sanguíneos suficientes para efeito clínico.
Doses maiores interferem no metabolismo lipídico e são hepatotóxicas. Mulheres na
menopausa utilizando associação de estrógenos conjugados e 1.25-2.50mg/dia de
Metiltestosterona por até dois anos não têm apresentado efeitos adversos significativos.
O Undecilato de Testosterona tem se mostrado menos hepatotóxico, sendo
excretado por via linfática. Indicado para mulheres, com dose de 40mg por dia, por via
oral. Eficácia e segurança não estão suficientemente estabelecidas. O uso também pode
ser transdérmico, com níveis mais fisiológicos e menos efeitos adversos sobre o perfil
lipídico e o fígado. São referidos bons resultados em mulheres com menopausa
cirúrgica e desejo hipoativo, com duas aplicações de adesivos por semana durante 24
semanas.
Tibolona, apresentada na forma de comprimidos de 1.25mg e 2.50mg, é
esteroide sintético com ação androgênica.
Em caso de disfunção psicogênica ou mista, psicoterapia poderá ser indicada.

Dispareunia e dificuldade de lubrificação


Gel hidrossolúvel se lubrificação diminuída.
Cremes de estrógeno para uso tópico se atrofia vaginal.
Tibolona 1.25-2.50mg/dia.
Psicoterapia se disfunção psicogênica ou mista.

Vaginismo
Ansiolítico em dose variável, conforme o caso.
Exercícios específicos com auxílio dos dedos ou de moldes dilatadores.
Gel hidrossolúvel para melhora da lubrificação.
Psicoterapia.

Transtornos de preferência
O tratamento baseia-se em psicoterapia, para a identificação dos elementos
associados ao comportamento parafílico e o desenvolvimento de alternativas mais
adequadas de relacionamento sexual, e medicamentos, que inibem a libido. No Brasil, a
medicação utilizada nesses casos é a antidepressiva, como Fluoxetina 80mg/dia, e
antipsicótica. Há países que adotam, também, substâncias antiandrogênicas, como o
Acetato de Ciproterona e o Acetato de Medroxiprogesterona. É importante fazer o
acompanhamento em longo prazo até que o paciente atinja, pelo menos, a quinta década
de vida, quando a frequência desse tipo de comportamento costuma recrudescer.
O tratamento dos casos de transexualismo envolve equipe multidisciplinar para
formulação diagnóstica correta, avaliação psiquiátrica apoio psicológico, administração
do uso de hormônios, avaliação de condições familiares e sociais, preparação para a
cirurgia, ato cirúrgico e acompanhamento pós-operatório.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 6: doenças dos olhos, doenças dos ouvidos, nariz e garganta, neurologia, transtornos mentais. – Barueri, SP:
Manole, 2009.
Erectile Dysfunction. Kevin T McVary. N Engl J Med 2007;357:2472-81.

Pedro Kallas Curiati 1247


TRANSTORNOS DO HUMOR
Transtorno depressivo

Critérios diagnósticos
Cinco ou mais sintomas estiveram presentes durante o mesmo período de duas
semanas e representam uma mudança do funcionamento prévio. No mínimo, um dos
sintomas é humor deprimido ou perda de interesse ou prazer. Não se incluem sintomas
que sejam causados claramente por condições médicas gerais ou delírios e alucinações
incongruentes com o humor.
(1) Humor deprimido na maior parte do dia, quase todos os dias,
indicado pelo relato subjetivo ou por observações feitas por terceiros.
(2) Diminuição do interesse ou prazer em todas ou quase todas as
atividades diárias, na maior parte do dia, quase todos os dias,
indicada pelo relato subjetivo ou por observações feitas por terceiros.
(3) Perda ou ganho significativo de peso sem estar de dieta ou aumento
ou diminuição do apetite quase todos os dias.
(4) Insônia ou hipersônia quase todos os dias.
(5) Agitação ou retardo psicomotor quase todos os dias observáveis
pelos outros e não meramente sensações subjetivas de inquietação ou
de estar mais lento.
(6) Fadiga ou perda da energia quase todos os dias.
(7) Sentimentos de inutilidade ou culpa excessiva ou inadequada, que
podem ser delirantes, quase todos os dias e não meramente auto-
recriminação ou culpa por estar doente.
(8) Capacidade diminuída de pensar ou concentrar-se ou indecisão quase
todos os dias por relato subjetivo ou observação feita pelos outros.
(9) Pensamentos de morte e não apenas medo de morrer, ideação suicida
recorrente sem um plano específico, tentativa de suicídio ou plano
específico para cometer suicídio.
Os sintomas não preenchem os critérios de um episódio misto de transtorno
bipolar, causam angústia clinicamente significativa ou prejuízo nas atividades sociais,
ocupacionais e outras funções importantes, não se devem a efeitos psicológicos diretos
de alguma substância ou condição médica geral e não são melhor explicados por luto,
isto é, perda de um ser amado, a menos que persistam por mais de dois meses ou sejam
caracterizados por prejuízo significativo das funções, preocupação mórbida com
inutilidade, ideação suicida, sintomas psicóticos ou retardo psicomotor.

Especificadores
O transtorno depressivo é considerado leve quando poucos sintomas estão
presentes além daqueles necessários para fazer o diagnóstico e o indivíduo consegue
funcionar com esforço extra, moderado quando existe comprometimento das funções e
incapacitação parcial, grave sem sintomas psicóticos quando todos os sintomas estão
presentes e existe importante comprometimento funcional e grave com sintomas
psicóticos quando há presença de delírios ou alucinações concomitantes à síndrome
depressiva grave.
Características catatônicas incluem comportamentos ou movimentos estranhos,
como imobilidade, atividade motora excessiva despropositada, rigidez, adoção de

Pedro Kallas Curiati 1248


posturas bizarras e/ou imitação de gestos e palavras.
Um primeiro episódio é considerado único, enquanto que episódios
subsequentes são considerados recorrentes.
Há remissão completa quando ocorre ausência de sintomas por pelo menos dois
meses. Considera-se remissão parcial quando não são preenchidos todos os critérios
para depressão maior ou não existem mais sintomas por período inferior a dois meses.
O transtorno depressivo é considerado crônico quando a pessoa mantém
sintomatologia preenchendo critérios de depressão maior por pelo menos dois anos.

Subtipos
A depressão melancólica caracteriza-se por perda de interesse ou prazer em
atividades normalmente agradáveis, humor depressivo não-reativo a estímulos
prazerosos de qualidade distinta da tristeza normal, sentimentos de culpa, insônia
terminal, piora matutina, acentuada diminuição do apetite, perda de peso e retardo ou
agitação psicomotora. O diagnóstico é baseado na presença de um dentre os dois
primeiros sintomas e de três dentre os demais sintomas no período mais grave do
episódio atual de transtorno do humor. Antidepressivos tricíclicos, Venlafaxina,
Milnaciprano e Mirtazapina apresentam eficácia superior à dos inibidores seletivos da
recaptação de serotonina. Depressão melancólica prediz boa resposta à
eletroconvulsoterapia.
A depressão atípica caracteriza-se por inversão dos sintomas vegetativos típicos,
ou seja, aumento de apetite, ganho de peso e hipersônia, além de falta de energia
marcante, reatividade do humor e padrão persistente de sensibilidade à rejeição
interpessoal. Há maior eficácia dos inibidores da monoamino-oxidase não-seletivos em
relação aos antidepressivos tricíclicos e inibidores seletivos da recaptação da serotonina,
com resultados controversos com Moclobemida. Recomenda-se tentar inibidor seletivo
da recaptação seletiva de serotonina e, se não houver resposta, trocar por
Tranilcipromina, com necessidade de dieta e proibição do uso de derivados de Morfina,
Adrenalina, descongestionantes nasais, antigripais e simpaticomiméticos. Há boa
resposta à terapia comportamental-cognitiva.
A depressão sazonal caracteriza-se pela ocorrência de episódios depressivos em
determinadas estações do ano, mais comumente no início do outono e do inverno, com
remissão na primavera. Ocorre predominantemente em mulheres e os sintomas atípicos
são frequentes. A abordagem prevê fototerapia e inibidor seletivo da recaptação de
serotonina.
A depressão puerperal desenvolve-se nas primeiras quatro semanas após o parto,
via de regra em primíparas, mas frequentemente tem início durante a gestação.
Distingue-se do “blues” puerperal, quadro transitório e benigno nos primeiros sete a dez
dias após o parto, e da psicose puerperal, condição rara que é um transtorno bipolar
grave na maior parte dos casos.
A depressão psicótica é transtorno depressivo grave caracterizado por sintomas
psicóticos, com delírios e/ou alucinações. Os delírios podem ser congruentes ou
incongruentes com o humor. As alucinações geralmente são auditivas, mas podem ser
visuais. É importante a associação de antidepressivos com antipsicóticos e
eletroconvulsoterapia.
Distimia é um estado depressivo crônico de intensidade leve marcado por
sentimentos frequentes de insatisfação e pessimismo. A maior parte dos pacientes
desenvolve francos episódios depressivos superpostos, de pior resposta terapêutica. Os
critérios diagnósticos preveem humor deprimido na maior parte do dia, na maioria dos
dias, indicado por relato subjetivo ou observação feita por terceiros, pelo período

Pedro Kallas Curiati 1249


mínimo de dois anos, mas em crianças e adolescentes o humor pode ser irritável e com
duração mínima de um ano. Devem estar presentes dois ou mais dentre apetite
diminuído ou hiperfagia, insônia ou hipersônia, baixa energia ou fadiga, baixa
autoestima, fraca concentração ou dificuldade em tomar decisões e sentimentos de
desesperança. Os sintomas não são incapacitantes, porém comprometem o rendimento
profissional e interferem nas relações sociais e familiares. Amisulprida 50mg por dia,
um antipsicótico atípico, apresenta eficácia semelhante à dos antidepressivos, com
tempo de ação aparentemente mais rápido. Psicoterapia apresenta resultados
semelhantes aos obtidos com antidepressivos.

Características sugestivas de bipolaridade


Idade de início precoce, inferior a 25 anos.
Depressão com sintomas atípicos e depressão psicótica.
Depressão puerperal.
Início e término abruptos do episódio depressivo.
Episódios depressivos breves, com duração inferior a três meses, ou recorrentes.
Retardo psicomotor importante.
Sazonalidade.
História familiar de transtorno afetivo bipolar em parente de primeiro grau.
Temperamento ciclotímico ou hipertímico.
Mania ou hipomania induzidas por antidepressivos.
Falha de resposta a pelo menos três ensaios adequados com antidepressivos.
Perda de efeito antidepressivo, com resposta aguda, mas não profilática.
Presença de aumento de energia, inquietação, redução da necessidade de sono,
irritabilidade importante, pensamentos acelerados, aumento de libido e impulsividade
durante um episódio depressivo.

Diagnóstico diferencial
Deve-se diferenciar sintoma, síndrome e transtorno. São inúmeras as condições
clínicas e as medicações associadas a quadros depressivos. Nem sempre é fácil
diferenciar um estado de humor patológico de reações afetivas normais.

Investigação clínica preliminar


Todos os pacientes devem ser avaliados com hemograma completo, hormônio
tireoestimulante e T4 livre, glicemia de jejum, colesterol total e frações e triglicérides.
Antes de iniciar antidepressivos tricíclicos, deve-se solicitar eletrocardiograma,
principalmente em pacientes com idade superior a quarenta anos, antecedentes de
doença cardiovascular e/ou história familiar de morte súbita, síndrome de Brugada ou
síndrome de Wolff-Parkinson-White.
Em caso de opção pelo uso de antidepressivos com ação dual ou inibidores
seletivos da recaptação de noradrenalina, preconiza-se medir a pressão arterial antes de
iniciar o tratamento e regularmente, principalmente após aumentos da dose.
Pacientes com déficits neurológicos focais, história de trauma recente ou
indícios de alteração da personalidade devem ser avaliados com tomografia
computadorizada de crânio ou, preferencialmente, ressonância magnética de crânio.
Sintomas sistêmicos sugestivos de doenças autoimunes ou depressão resistente
indicam a avaliação de perfil reumatológico.
Outros exames podem ser solicitados de acordo com o direcionamento
diagnóstico.

Pedro Kallas Curiati 1250


Tratamento
Os pacientes devem ser encaminhados para psiquiatra em caso de depressão
maior que não respondeu a dois ensaios com tempo e dose adequados com
antidepressivos de classes diferentes, sintomas psicóticos, suspeita de transtorno
bipolar, risco de suicídio e gravidade, com importante perda de autonomia, justificando
necessidade de internação psiquiátrica.
A escolha do tratamento depende de características clínicas da doença, como
gravidade e subtipo, resposta medicamentosa prévia, condições médicas que podem ser
agravadas pelo antidepressivo, interações medicamentosas, efeitos colaterais de curto e
longo prazos, adesão, história de eficácia em parente de primeiro grau, antecedentes de
resistência a tratamentos e preferências do paciente.
Internação psiquiátrica voluntária ou compulsória está indicada quando há risco
iminente de suicídio em função de tentativas anteriores ou planejamento explícito,
incapacidade do paciente em reconhecer ou seguir as orientações médicas, como na
depressão psicótica, falta de suporte ou elevado nível de estresse psicossocial,
acentuado prejuízo funcional ou debilidade física e presença de condições médicas que
dificultem o manejo terapêutico, como dependência de substâncias e doença cardíaca.
O tratamento da depressão é dividido em três fases. A fase aguda visa a remissão
dos sintomas e a recuperação do funcionamento psicossocial, com duração de oito a
doze semanas. A fase de continuação visa a prevenção de recaídas e remissão total,
inclusive de sintomas residuais, com duração de seis a doze meses. O tratamento de
manutenção está indicado em pacientes com grande risco de recorrência durante a vida,
como aqueles com depressão crônica, episódios graves, resistência a tratamento, três ou
mais episódios ao longo da vida e idade superior a sessenta e cinco anos, com duração
de três anos ou vitalícia. Aconselha-se constância na manutenção da dose necessária
para alcançar a remissão dos sintomas e retirada lenta no decorrer de quatro a seis
meses. Nos casos de falha da resposta após duas semanas ou resposta parcial depois de
quatro semanas, apesar de doses adequadas, orienta-se trocar por antidepressivo de
outra classe.
O antidepressivo sempre deve ser introduzido de maneira gradativa e a
progressão da dose dependerá da classe da medicação, mas também da tolerabilidade do
paciente. Inibidores seletivos da recaptação de serotonina, Bupropiona, Duloxetina e
Mirtazapina podem ser eficazes nas doses iniciais ou serem aumentadas em caso de
resposta parcial após dez a quinze dias. Compostos cuja eficácia depende do incremento
gradativo das doses, como antidepressivos tricíclicos, inibidores da monoamino-oxidase
e Venlafaxina devem ter a posologia ajustada a cada semana conforme resposta e
tolerância. Em condições graves, aumenta-se a dose a cada três dias até atingir níveis
minimamente eficazes. No entanto, doses e incrementos mais lentos devem ser
empregados em deprimidos leves, idosos, pacientes debilitados e indivíduos com grande
sensibilidade a efeitos colaterais.
Via de regra, os pacientes desenvolvem tolerância aos efeitos adversos depois
das primeiras duas a quatro semanas, mas redução da libido e ganho de peso podem se
estender ao longo do tratamento, comprometendo a adesão.
A resposta ao tratamento é medida pela melhora clínica do paciente e pode ser
parcial ou total. O objetivo do tratamento é o retorno aos níveis de funcionamento e
bem estar normais do paciente, pois a manutenção de sintomas residuais aumenta o
risco de recidivas. Sabe-se que os sintomas depressivos melhoram significativamente já
após a primeira semana, apesar da melhora prosseguir com taxas decrescentes por mais
seis semanas. Frente à resposta parcial, a primeira conduta é o aumento da dose. Se não
atingir remissão total com a dosagem máxima preconizada ou tolerada, troca-se por

Pedro Kallas Curiati 1251


outra classe de antidepressivos. Em caso de não haver resposta novamente, deve-se
considerar o encaminhamento ao psiquiatra, pois se trata de depressão resistente.
A eletroconvulsoterapia está indicada no tratamento de todos os subtipos de
depressão maior e transtorno bipolar, na esquizofrenia com catatonia ou sintomas
afetivos proeminentes e no transtorno esquizoafetivo. Indicações específicas dos
transtornos de humor incluem necessidade de resposta rápida, superposição dos riscos
de outros tratamentos aos riscos da eletroconvulsoterapia, história de resposta precária
aos medicamentos ou boa resposta à eletroconvulsoterapia e preferência do paciente.
Deve ser administrada sob anestesia geral, conforme normas internacionais de eficácia e
segurança, monitorizada pelo psiquiatra. Geralmente, seis a doze aplicações são
necessárias para obter a remissão de quadros afetivos ou psicoses.
As terapias comportamental-cognitiva e interpessoal são técnicas com eficácia
para depressão maior bem documentada na literatura.

Particularidades do tratamento da população idosa


Os antidepressivos de escolha para idosos são os inibidores da recaptação de
serotonina devido à segurança e ao perfil de efeitos colaterais. Geralmente apresentam
melhor tolerância que os antidepressivos tricíclicos pela menor incidência de efeitos
sedativos e anticolinérgicos, com pouca ou nenhuma influência na cognição e poucos
efeitos cardiovasculares. Os inibidores da recaptação de serotonina mais novos, como
Sertralina, Citalopram e Escitalopram são preferidos em relação à Fluoxetina, pois esta
apresenta maior meia-vida e interação medicamentosa. Seus efeitos adversos mais
comuns são náusea, vômitos, diarreia, insônia, ansiedade, agitação, acatisia, tremor,
cefaleia e disfunção sexual.
Os antidepressivos tricíclicos são igualmente efetivos em idosos e adultos
jovens, mas os idosos são mais sensíveis aos seus efeitos colaterais, que incluem
hipotensão postural, boca seca, constipação intestinal, confusão mental e arritmias. A
Nortriptilina, entre os tricíclicos, causa menos efeitos colaterais.
Os inibidores da monoamino-oxidase, embora eficazes em idosos, não são muito
utilizados devido aos seus efeitos colaterais e à necessidade de limitação alimentar pelo
risco de crises hipertensivas com alimentos que contenham tiramina.
A Venlafaxina é um antidepressivo inibidor de recaptação de serotonina e
noradrenalina que não tem efeitos anticolinérgicos, histaminérgicos ou alfa-
adrenérgicos. Os principais efeitos colaterais são náusea, sonolência, tontura, boca seca,
sudorese, insônia e elevação da pressão arterial. É uma droga eficaz e bem tolerada em
idosos, com perfil semelhante aos antidepressivos tricíclicos, porém com menos efeitos
adversos.
A Mirtazapina apresenta eficácia comparável à dos tricíclicos e é bem tolerada
em idosos. Não apresenta efeitos cardiovasculares nem interações medicamentosas
importantes. Seus principais efeitos colaterais são muitas vezes desejáveis em alguns
pacientes, como sedação, aumento do apetite e ganho de peso.
A Bupropiona é um bloqueador da recaptação de noradrenalina e dopamina e
não possui efeitos anticolinérgicos, anti-histamínicos e cardiovasculares, nem causa
hipotensão ortostática ou sedação. A principal vantagem em relação aos inibidores
seletivos da recaptação de serotonina é não causar disfunção sexual.

Transtorno afetivo bipolar

Critérios diagnósticos de mania


Período distinto, durante o qual existe um humor anormal e persistentemente

Pedro Kallas Curiati 1252


elevado, expansivo ou irritável, com duração mínima de uma semana ou com qualquer
duração caso hospitalização seja necessária.
A perturbação do humor deve ser acompanhada por pelo menos três sintomas
adicionais:
- Autoestima inflada ou grandiosidade;
- Redução da necessidade de sono;
- Mais loquaz do que o habitual ou pressão por falar;
- Fuga de ideias ou sensação subjetiva de que os pensamentos estão
acelerados;
- Distrabilidade;
- Aumento das atividades dirigidas a objetivos ou agitação psicomotora;
- Envolvimento excessivo em atividades prazerosas com um alto
potencial para consequências dolorosas, como surtos incontidos de
compras, indiscrições sexuais e investimentos financeiros insensatos;
Se humor apenas irritável, pelo menos quatro dos sintomas adicionais devem
estar presentes.
Os sintomas não satisfazem os critérios para um episódio misto, que se
caracteriza pelos sintomas tanto de um episódio maníaco como de um episódio
depressivo maior, quase todos os dias, por pelo menos duas semanas.
A perturbação deve ser suficientemente severa para causar prejuízo acentuado
no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do
indivíduo ou é marcada pela presença de aspectos psicóticos.
O episódio não deve decorrer dos efeitos fisiológicos diretos de uma droga de
abuso, um medicamento, outros tratamentos somáticos para a depressão ou exposição a
toxina. Também não deve decorrer de uma condição médica geral.

Critérios diagnósticos de hipomania


Período distinto de humor persistentemente elevado, expansivo ou irritável, com
duração mínima de quatro dias e nitidamente diferente do humor habitual não-
deprimido.
A perturbação do humor deve ser acompanhada por pelo menos três sintomas:
- Autoestima inflada de modo significativo;
- Redução da necessidade de sono;
- Mais loquaz do que o habitual ou pressão por falar;
- Fuga de ideias ou experiência subjetiva de que os pensamentos estão
correndo;
- Distrabilidade;
- Aumento da atividade dirigida a objetivos ou agitação psicomotora;
- Envolvimento excessivo em atividades prazerosas com um alto
potencial para consequências dolorosas, como surtos incontidos de
compras, indiscrições sexuais e investimentos financeiros insensatos;
Se humor apenas irritável, pelo menos quatro dos sintomas adicionais devem
estar presentes.
Comparado com um episódio maníaco, um episódio hipomaníaco não é
suficientemente severo para causar prejuízo acentuado no funcionamento social,
profissional ou de outras áreas importantes da vida do indivíduo ou para exigir
hospitalização. Não existem características psicóticas.
O episódio não deve decorrer dos efeitos fisiológicos diretos de uma droga de
abuso ou um medicamento ou decorrer de uma condição médica geral.

Pedro Kallas Curiati 1253


Subtipos
Transtorno bipolar tipo I é caracterizado por um ou mais episódios maníacos ou
mistos, geralmente acompanhados por episódios depressivos maiores.
Transtorno bipolar tipo II é caracterizado por um ou mais episódios de
hipomania, geralmente acompanhados por episódios depressivos maiores.
Ciclotimia é caracterizada por presença de numerosos períodos com sintomas
hipomaníacos e numerosos períodos com sintomas depressivos que não satisfazem
critérios para um episódio depressivo maior por período mínimo de dois anos. Em
crianças e adolescentes, a duração deve ser de pelo menos um ano. Durante o período
estipulado, o indivíduo não fica assintomático por mais do que dois meses consecutivos.
Além disso, nenhum episódio depressivo maior, maníaco ou misto está presente durante
os dois primeiros anos da perturbação.

Diagnóstico diferencial
O principal erro diagnóstico é o de depressão unipolar, principalmente em
mulheres, seguido de alcoolismo e esquizofrenia em homens. Transtornos que cursam
com impulsividade aumentada, transtornos relacionados ao uso de substâncias,
transtornos ansiosos, depressão unipolar, psicose, distúrbio de déficit de atenção e
hiperatividade e transtorno de personalidade borderline, entre outros, podem ocorrer
associados ao transtorno bipolar, representar um agravamento dos sintomas ou ser
estado misto ou mania.

Tratamento
Ó transtorno bipolar requer tratamento psiquiátrico especializado que aja
agudamente e preventivamente, atenda as necessidades psicossociais do paciente e
minimize a falta de adesão. Tanto a família como o cuidador devem ser amparados e
receber psicoeducação sobre o transtorno bipolar.
O tratamento de escolha consiste no uso de estabilizadores do humor,
substâncias que tratam e podem prevenir novos episódios, mas não agravam a
sintomatologia maníaco-depressiva ao longo da vida. Na fase aguda de mania, podem
ser utilizados benzodiazepínicos e/ou antipsicóticos. Casos de difícil controle podem ser
tratados com eletroconvulsoterapia.
Carbonato de Lítio tem eficácia em torno de 70-80% no tratamento da mania,
com latência de resposta de duas a três semanas e moderado efeito antidepressivo. É
apresentado na forma de comprimidos de 300mg e 450mg. A meia-vida de eliminação
varia de dezoito a vinte e quatro horas, com dosagem inicial de 300-900mg/dia e
titulação para faixa terapêutica de 900-1800mg/dia fracionada em duas a três vezes por
dia de acordo com a litemia, que deve ser de 0.6-1.2mEq/L, com dose tóxica próxima da
dose terapêutica. A primeira dosagem da litemia deverá ser feita entre o quarto e o
sétimo dias de tratamento, a segunda ao fim da segunda semana e a terceira ao fim do
primeiro mês. O acompanhamento clínico rigoroso em relação à evolução psiquiátrica e
quanto à presença de efeitos colaterais é tão ou mais importante do que as dosagens
plasmáticas da droga. Efeitos adversos incluem acne, queda de cabelo, exantema,
leucocitose e hipotireoidismo. Intoxicação cursa com tremor, ataxia, déficits cognitivos,
dispepsia, aumento de peso, diarreia, diabetes insipidus, insuficiência renal aguda,
alterações de onda T e bloqueio sinoatrial. Monitorização laboratorial prevê função
tireoidiana, função renal, hemograma, urina tipo I e litemia pelo menos cinco dias após
alteração da dose e a cada seis meses após estabilização da litemia
Divalproato é apresentado na forma de comprimidos de 500mg, com dose inicial
de 250-750mg/dia e titulação para faixa terapêutica de 25mg/kg/dia fracionada, ajustada

Pedro Kallas Curiati 1254


para obtenção de resposta clínica e nível plasmático de 85-125mcg/mL. Efeitos
adversos incluem sedação, tremor, ataxia, dispepsia, aumento de peso, elevação de
transaminases, insuficiência hepática e pancreatite agudas, queda de cabelo, exantema
cutâneo, trombocitopenia e agranulocitose.
Carbamazepina apresenta eficácia maior em manias disfóricas e ciclagem rápida,
constituindo opção para casos menos graves. Sua eficácia antidepressiva é menor.
Interage com p450 com indução dos complexos enzimáticos e diminuição dos níveis
séricos de outros fármacos. Apresentada na forma de comprimidos de 200mg, com meia
vida curta e administração ideal a cada oito horas. A dose inicial é de 200-600mg/dia e a
faixa terapêutica é de 200-1600mg/dia fracionada em duas vezes, com nível plasmático
de 4-12mcg/mL. Efeitos adversos incluem sedação, tontura, ataxia, diplopia, dispepsia,
elevação de transaminases, exantema cutâneo, hiponatremia, síndrome de secreção
inapropriada de hormônio antidiurético, miocardite eosinofílica, trombocitopenia,
anemia aplástica e hipotireoidismo.
Lamotrigina apresenta boa eficácia para o tratamento dos episódios de depressão
bipolar, mas não é tão boa para tratar a mania, constituindo opção para transtorno
bipolar tipo 2. É apresentada na forma de comprimidos de 25mg, 50mg e 100mg,
podendo ser administrada em uma dose diária, com dose inicial de 25mg e faixa
terapêutica de 50-200mg/dia. Efeitos adversos incluem cefaleia, sonolência, tontura,
náusea, vômitos, exantema cutâneo e taquicardia.
O tratamento da depressão bipolar pode ser conduzido preferencialmente com
Quetiapina 300-600mg/dia fracionada em duas vezes, com dose inicial de 50mg/dia e
aumento em 50mg/dia até 300mg/dia, ou com Olanzapina 6-12mg/dia associada a
Fluoxetina 25-50mg uma vez ao dia. Outras opções incluem Lamotrigina e Olanzapina
associada a outros inibidores seletivos da recaptação de serotonina.
Eletroconvulsoterapia é indicada para a mania refratária e constitui tratamento
de escolha em depressões com estupor grave, alto risco de suicídio ou sintomas
psicóticos.
A terapia comportamental-cognitiva é a que dispõe de mais recursos e
evidências de eficácia no manejo da psicoeducação, das distorções cognitivas e das
disfuncionalidades comportamentais que os pacientes bipolares habitualmente
apresentam.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 1: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da
mulher, envelhecimento e geriatria, medicina laboratorial na prática médica. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Clínica Médica, volume 6: doenças dos olhos, doenças dos ouvidos, nariz e garganta, neurologia, transtornos mentais. – Barueri, SP:
Manole, 2009.
Bipolar Disorter: A Focus on Depression. Mark A. Frye. N Engl J Med 2011;364:51-9.

Pedro Kallas Curiati 1255


Medicamentos antidepressivos
Classe Medicamento Dosagem Faixa Efeitos adversos Letalidade em
inicial terapêutica Anticolinérgicos Gastrointestinais Sedação Insônia e Disfunção Hipotensão Ganho Efeitos superdosagem
(mg/dia) (mg/dia) inquietação sexual ortostática de específicos
peso
Tricíclicos Imipramina 25-50 100-300 ++ - + ++ + ++ ++ Alterações Alta
+++ - +++ - + +++ +++ no ECG, Alta
Amitriptilina 25-50 100-300 redução do
Clomipramina 25 100-300 +++ + + + ++ ++ ++ limiar Moderada
convulsivo
Nortriptilina 25 50-150 + - + + + + + Alta
Tetracíclicos Maprotilina 50 100-225 ++ - ++ - + ++ ++ Risco de Alta
crise
convulsiva
Inibidores Fluoxetina 20 20-60 - ++ - + ++ - - Inibição do Baixa
CYP2D6
seletivos da Paroxetina 20 20-60 + ++ - ++ ++ - + Baixa
recaptação de Citalopram 20 20-50 - ++ - ++ ++ - - Baixa
serotonina Escitalopram 10 10-20 - ++ - ++ ++ - - Baixa
Sertralina 50 50-200 - ++ - ++ ++ - - Baixa
Fluvoxamina 50 50-300 + +++ - + + - - Inibição dos Baixa
CYPs 1A2 e
2C19
Inibidores da Bupropiona 150 150-300 + + - + - - - Baixa
recaptação de
dopamina e
noradrenalina
Inibidores da Duloxetina 10 40-60 - ++ - ++ + - - Baixa
recaptação de Milnaciprano 25 50-100 - ++ - ++ ++ - - Baixa
serotonina e Venlafaxina 37.5 75-375 - ++ - ++ ++ - - Hipertensão Baixo
noradrenalina arterial
Venlafaxina de 37.5 75-225 - ++ - ++ ++ - - Baixo
liberação
prolongada
Moduladores Mianserina 30 30-90 + - ++ - - + + Discrasia Baixa
de serotonina sanguínea
Tianeptina 37.5 37.5 + + - + - - - Alterações Baixa
no ECG
Trazodona 50-100 200-600 - + ++ - ++ + + Priapismo Baixo

1256
Pedro Kallas Curiati
Moduladores Mirtazapina 15 15-45 - - ++ - - + ++ Baixa
de
noradrenalina
e serotonina
Moduladores Reboxetina 4 8-10 - + - ++ + ++ - Baixa
de
noradrenalina
Inibidores Tranilcipromina 10 20-60 - + - ++ + ++ - Crise Alta
irreversíveis hipertensiva,
risco de
da síndrome
monoamino serotoninérgi
oxidase ca
Inibidores Moclobemida 150 300-600 + + - + - - - Baixa
reversíveis
da
monoamino
oxidase A
Antagonistas Agomelatina 25 25-50 - + - - - - - Baixa
da
melatonina

1257
Pedro Kallas Curiati
ARTRITE REUMATOIDE
Definição
A artrite reumatoide é uma doença inflamatória crônica sistêmica de caráter
autoimune que acomete grandes e pequenas articulações periféricas de forma aditiva e
simétrica e evolui para deformidade e perda funcional se não adequadamente tratada.

Epidemiologia
A artrite reumatoide é a artropatia inflamatória crônica mais comum. É mais
prevalente em mulheres e pode afetar indivíduos de todas as idades.
Fatores indicativos de pior prognóstico incluem presença de autoanticorpos,
particularmente em níveis elevados, atividade da doença elevada e ocorrência de
erosões ósseas precocemente.

Fisiopatologia
Há evidências de interação de vários fatores para o desenvolvimento da doença,
dentre os quais herança genética, ação hormonal, agentes infecciosos e tabagismo. O
alvo primário da inflamação é a membrana sinovial.

Quadro clínico
Com frequência, o quadro articular característico da artrite reumatoide é
precedido de manifestações gerais, como fadiga, mialgia e febre. O início da doença
ocorre, habitualmente, entre os vinte e os sessenta anos de idade, com a maior
incidência entre trinta e cinco e quarenta e cinco anos.
A história clínica é variável, acreditando-se que existam pacientes com evolução
benigna em um padrão monocíclico ou oligocíclico, pacientes com evolução policíclica
com períodos de melhora e piora, mas sempre progressivos, e pacientes com padrão
agressivo, evoluindo com rapidez para deformidade e perda funcional.

Manifestações articulares
O quadro clínico, desde o início caracterizado por dor e edema das articulações,
é frequentemente poliarticular, envolvendo, em especial, as pequenas articulações de
mãos e pés, embora qualquer uma das articulações diartrodiais do organismo seja
passível de acometimento. Em cerca de um terço dos pacientes, a doença pode estar
limitada a uma ou duas articulações, geralmente um ou ambos os joelhos. Na maioria
dos pacientes, o acometimento articular é simétrico e aditivo.
A rigidez articular é observada principalmente pela manhã e melhora com a
movimentação. Sua duração é indicativa da intensidade do processo inflamatório.
As articulações mais acometidas nos membros superiores são punhos,
metacarpofalangeanas e interfalangeanas proximais. Ao contrário da artrite psoriática e
da osteoartrose, o envolvimento das interfalangeanas distais é incomum. O conjunto de
punho alargado pela sinovite, atrofia dos músculos interósseos das mãos e aumento de
volume das articulações metacarpofalangeanas e/ou interfalangeanas proximais, com
aspecto característico, é denominado de mão reumatoide. Deformidades típicas, embora
não patognomônicas, são observadas na evolução da doença, como desvio ulnar dos
dedos, dedo em “pescoço de cisne”, caracterizado por hiperextensão da articulação
interfalangeana proximal e flexão da articulação interfalangeana distal, e botonniere,
caracterizada por flexão da articulação interfalangeana proximal e hiperextensão da

Pedro Kallas Curiati 1258


articulação interfalangeana distal.
Compressões neurológicas periféricas também podem ocorrer, com compressão
do nervo mediano na síndrome do túnel do carpo, compressão do nervo tibial posterior
na síndrome do túnel do tarso e compressão do nervo ulnar.
Em relação ao cotovelo, artrite é frequente, com quadro doloroso pouco
expressivo e significativa limitação funcional.
Nos membros inferiores, joelhos e pés também são frequentemente acometidos,
inclusive nas fases iniciais da doença. Ocorre artrite em tornozelos, articulações
metatarsofalangeanas e articulações interfalangeanas dos artelhos, com evolução para
deformidades como desabamento do arco transverso e longitudinal dos pés, desvio e
desalinhamento dos artelhos com valgo do primeiro artelho, sobreposição de
articulações interfalangeanas e dedos em martelo, caracterizados por hiperflexão da
articulação distal. Embora comuns e características, as deformidades não são
patognomônicas. Quanto ao envolvimento do joelho, caracteriza-se pela formação de
grandes derrames e de cistos sinoviais, particularmente cisto de Baker, que pode se
estender para fossa poplítea, panturrilha e face posterior da coxa, cujo rompimento pode
causar quadro clínico semelhante a tromboflebite.
A artrite reumatoide também acomete o esqueleto axial. Quadros de compressão
medular e mesmo morte súbita são observados como consequência principalmente da
subluxação atlanto-axial. O envolvimento da coluna lombar e da articulação sacroilíaca
é raro.
A articulação têmporo-mandibular é comprometida em mais de 50% dos
pacientes, tornando difícil a mastigação e podendo ser causa de dor referida no ouvido
médio e na garganta. Artrite da articulação cricoaritenoidea pode levar a rouquidão e
mesmo a obstrução grave das vias aéreas superiores. Artrite esternoclavicular ocorre em
30% dos pacientes, podendo ser detectada com tomografia computadorizada.

Manifestações extra-articulares
As manifestações extra-articulares podem ocorrer em até 20% dos pacientes e
afetar pele e tecido subcutâneo, com nódulos subcutâneos e vasculites cutâneas, olhos,
com ceratoconjuntivite sicca, episclerite, esclerite e nódulos coroides e retinianos,
pericárdio, com pericardite, coração, com miocardite, nódulos no sistema de condução e
vasculite coronária, pulmões, com nódulos pulmonares, fibrose intersticial e
bronquiolite obliterante, pleura, sistema nervoso central e periférico, com neuropatias
periféricas por compressão, compressão medular por subluxação C1-C2, mononeurites
múltiplas e vasculite do sistema nervoso central, baço e fígado, com síndrome de Felty,
caracterizada por esplenomegalia, febre, neutropenia e úlcera de membros inferiores, e
vias aéreas superiores e inferiores, incluindo cordas vocais, laringe e passagens nasais.
Sintomas gerais, como febre e emagrecimento, também podem ser identificados, assim
como anemia de doença crônica.

Avaliação complementar
O fator reumatoide é um autoanticorpo dirigido contra a fração constante (Fc) de
outro anticorpo da classe IgG, sendo encontrado em 70-80% dos pacientes com artrite
reumatoide. Geralmente é uma imunoglobulina M (IgM), mas pode ser também das
classes IgA, IgG e IgE. Pode ser positivo, frequentemente de forma transitória e em
títulos baixos, em indivíduos normais, sobretudo em idosos e mulheres. Em títulos mais
elevados, é detectado em um grande número de patologias, particularmente doenças
autoimunes, como lúpus eritematoso sistêmico, síndrome de Sjögren, esclerose
sistêmica, dermatomiosite, polimiosite, crioglobulinemia mista e doença mista do tecido

Pedro Kallas Curiati 1259


conectivo, pulmonares, como sarcoidose, fibrose pulmonar, silicose e asbestose,
infecciosas crônicas, como tuberculose, hanseníase, sífilis e hepatite C, e neoplasias,
como macroglobulinemia de Waldenström, linfomas e proliferações de células B.
Os anticorpos anti-peptídeos citrulinados (anti-CCP) constituem um grupo de
autoanticorpos de auxílio diagnóstico, com moderada sensibilidade e alta
especificidade. Devem ser reservados para casos duvidosos de poliartrites com fator
reumatoide negativo. A presença contribui para estabelecer o diagnóstico de artrite
reumatoide, mas a ausência não afasta a doença.
Proteína C reativa e velocidade de hemossedimentação são utilizados para
avaliar a atividade inflamatória e controlar a eficácia terapêutica.
As alterações radiográficas na artrite reumatoide incluem aumento das partes
moles periarticulares nas articulações mais acometidas, osteopenia periarticular, redução
dos espaços articulares, erosões marginais, subluxações e anquilose óssea, com
distribuição simétrica. As radiografias são complementos essenciais para o diagnóstico
e acompanhamento da evolução da doença, sendo sempre necessária a avaliação de
mãos e pés. Recomenda-se avaliação basal, semestral no primeiro ano do tratamento e
anual a partir de então. A coluna cervical deve ser avaliada periodicamente em perfil
neutro e flexão e extensão máximas para afastar possíveis subluxações de C1-C2, que
podem evoluir de forma assintomática. Atenção especial deve ser dada a pacientes que
sofrerão cirurgia com necessidade de intubação orotraqueal.
Ultrassonografia e ressonância nuclear magnética são particularmente úteis para
o diagnóstico da artrite reumatoide em suas fases iniciais.
Conforme o quadro clínico e a proposta terapêutica, devem ser solicitados para
diagnóstico diferencial hemograma completo, urina 1, creatinina, glicemia, radiografia
de tórax, transaminases, fosfatase alcalina, hormônio tireoestimulante, T4 livre, fator
antinucleo, autoanticorpos, pesquisa de tuberculose e hanseníase e sorologias para
hepatites B e C, rubéola, parvovírus, mononucleose, citomegalovírus, sífilis e
toxoplasmose.

Diagnóstico
O diagnóstico de artrite reumatoide é clínico. Exames laboratoriais e radiografias
complementam uma história clínica bem feita e o exame físico articular.

Critérios do American College of Rheumatology (1987)


Devem estar presentes quatro dentre:
1. Rigidez articular ou periarticular matinal com duração mínima de uma
hora até a melhora máxima;
2. Artrite simultaneamente em pelo menos três articulações dentre
interfalangeanas proximais das mãos, metacarpofalangeanas, punhos
cotovelos, joelhos, tornozelos e metatarsofalangeanas;
3. Artrite observada em mãos;
4. Artrite simultânea simétrica;
5. Nódulos subcutâneos em proeminências ósseas, faces extensoras ou
periarticulares;
6. Determinação no soro do paciente da presença de títulos anormais de
fator reumatoide;
7. Erosões ou osteopenia periarticular importante na radiografia de mãos e
punhos;
Os critérios 2-5 devem ser observados pelo médico e os critérios 2-4 devem estar
presentes por pelo menos seis meses.

Pedro Kallas Curiati 1260


Critérios do American College of Rheumatology e da European League Against
Rheumatism (2010)
Os novos critérios propostos são destinados para pacientes com manifestações
iniciais da doença. Se aplicam àqueles com sinovite clínica em pelo menos uma
articulação e que não seja melhor explicada por outra doença.
Critério Pontuação
Envolvimento articular
1 grande articulação 0
2-10 grandes articulações 1
1-3 pequenas articulações, com ou sem envolvimento de grandes articulações 2
4-10 pequenas articulações, com ou sem envolvimento de grandes articulações 3
Mais do que 10 articulações, com pelo menos uma pequena articulação 5
Sorologia – É necessário o resultado de pelo menos um teste
Fator reumatoide e anticorpo anti-peptídeos citrulinados negativos 0
Fator reumatoide ou anticorpo anti-peptídeos citrulinados fracamente positivos, até três 2
vezes o limite superior da normalidade para o método utilizado
Fator reumatoide ou anticorpo anti-peptídeos citrulinados altamente positivos, acima de três 3
vezes o limite superior da normalidade para o método utilizado
Reação de fase aguda - É necessário o resultado de pelo menos um teste
Velocidade de hemossedimentação e proteína C reativa normais 0
Velocidade de hemossedimentação ou proteína C reativa anormais 1
Duração dos sintomas
Inferior a seis semanas 0
Superior ou igual a seis semanas 1
Escore superior ou igual a 6 indica o diagnóstico de certeza de artrite
reumatoide. Envolvimento articular é definido como edema ou dor ao exame físico em
qualquer articulação e pode ser confirmado com exame de imagem. As articulações
interfalangeanas distais, primeiras carpometacarpianas e primeiras metatarsofalangeanas
são excluídas da avaliação. Grandes articulações abrangem ombros, cotovelos, quadris,
joelhos e tornozelos. Pequenas articulações abrangem metacarpofalangeanas,
interfalangeanas proximais, segundas a quintas metatarsofalangeanas, interfalangeanas
do hálux e punhos.
Indivíduos com erosões ósseas típicas de artrite reumatoide podem ser
classificados como sendo portadores da doença. Indivíduos com doença de longa
evolução, ativa ou inativa, que, com base em dados disponíveis retrospectivos,
satisfizeram no passado os critérios diagnósticos, podem ser classificados como sendo
portadores de diagnóstico de certeza de artrite reumatoide.
No contexto de fase precoce da doença em vigência de tratamento, o paciente
poderá não preencher os novos critérios diagnósticos inicialmente, mas tenderá a fazê-lo
com a evolução.

Tratamento
As metas do tratamento são controlar a dor e o edema com um mínimo de efeitos
colaterais, evitar a lesão articular, a deformidade e a perda funcional e manter a
qualidade de vida e a capacidade para o trabalho e o lazer.
Além de um programa de fisioterapia e/ou terapia ocupacional com técnicas de
proteção articular, o paciente deve receber tratamento sintomático, com anti-
inflamatórios e analgésicos, e de base.
O uso de aparelhos para imobilização das articulações pode ser muito útil na
prevenção de deformidades. A terapia intra-articular com corticosteroides é um
instrumento valioso nos casos de artrite refratária e deve ser muito útil na prevenção de

Pedro Kallas Curiati 1261


deformidades. Finalmente, em pacientes crônicos, com alterações irreversíveis, a
cirurgia pode trazer alívio da dor e significativa melhora estética e funcional.
Glicocorticoides podem ser utilizados em doses baixas a moderadamente altas
em associação com agentes modificadores do curso da doença, preferencialmente em
doses inferiores a 10mg/dia, como sintomáticos, durante períodos de maior atividade da
doença, enquanto se aguarda a resposta a outras medicações. Nunca devem ser
empregados como monoterapia ou como medicação de base para o controle da doença.
Em caso de utilização mais prolongada, recomenda-se prevenção de osteoporose com o
emprego de suplementação de cálcio e vitamina D e mesmo de bifosfonatos.

Agentes modificadores do curso da doença sintéticos


Os agentes modificadores do curso da doença devem ser introduzidos assim que
o diagnóstico de artrite reumatoide é feito. O seu uso deve controlar os sintomas e
bloquear a evolução da doença. Enquanto o objetivo de atingir remissão da doença ou
atividade baixa o quanto antes não for alcançado, o tratamento deverá ser reajustado a
cada três a seis meses com base em monitorização frequente e estrita. A adição de um
segundo agente modificador do curso da doença sintético deve ser considerada em
pacientes sem fatores de pior prognóstico, enquanto que a adição de um agente
biológico deve ser considerada em pacientes com fatores de pior prognóstico.
O Metotrexato é comumente usado como monoterapia ou terapia combinada. É
considerado o agente modificador do curso de doença mais bem tolerado e vem sendo
considerado o fármaco padrão para o tratamento da artrite reumatoide. Preconiza-se
incluí-lo como parte da estratégia inicial de tratamento de pacientes com doença ativa. É
apresentado na forma de comprimidos de 2.5mg para uso oral e de solução injetável
com 25mg/mL para uso subcutâneo ou intramuscular, com dose inicial de 7.5mg uma
vez por semana. Caso não se observe melhora ou controle da doença com a dose inicial,
recomenda-se aumento progressivo da dose a cada seis a oito semanas até que seja
alcançada a dose máxima de 25-30mg por semana. Está contraindicado em insuficiência
renal, hepatopatia, etilismo, supressão da medula óssea e mulheres em idade fértil que
não estejam fazendo anticoncepção. Deve ser usado com cautela em pacientes com
pneumopatias. A administração do Metotrexato deve ser associada ao uso de Ácido
Fólico, apresentado na forma de comprimidos com 5mg, com dose recomendada de 1-
2mg/dia. O tempo para início de ação varia de um a três meses. Exames de controle
incluem hemograma, transaminases e creatinina mensais nos primeiros seis meses e a
seguir a cada um ou dois meses.
Sulfassalazina é tão efetiva quanto o Metotrexato e superior aos antimaláricos e
a Azatioprina. Está contraindicada em pacientes com história de hipersensibilidade a
sulfas, salicilatos ou qualquer componente da fórmula, porfiria ou obstrução dos tratos
gastrointestinal ou gênito-urinário. É apresentada na forma de comprimidos de 500mg,
com dose diária recomendada de 500-1000mg duas a três vezes ao dia, com aumento de
500mg por semana. O tempo para início de ação varia de um a três meses. Exames de
controle incluem hemograma completo e enzimas hepáticas a cada duas a quatro
semanas nos primeiros três meses e a cada três meses a partir de então.
Leflunomide tem eficácia comparável à do Metotrexato e à da Sulfassalazina. É
licenciado para uso em monoterapia e há evidência de benefício da associação com
Metotrexato. Está contraindicado em mulheres em idade fértil que não estejam
utilizando métodos anticoncepcionais, insuficiência renal e hepatopatia. É apresentado
na forma de comprimidos de 20mg e 100mg, com dose de ataque de 100mg/dia durante
três dias e dose de manutenção de 20mg/dia a partir de então. O tempo para início de
ação varia de um a dois meses. Exames de controle incluem hemograma, transaminases

Pedro Kallas Curiati 1262


e creatinina mensais nos primeiros seis meses e a seguir a cada um ou dois meses.
Como é medicação de depósito, em caso de intoxicação, deve ser utilizada
Colestiramina, apresentada na forma de pó com embalagens com 4g, na dosagem de 4-
8g três vezes ao dia durante cinco dias.
Antimaláricos, como Difosfato de Cloroquina, apresentada na forma de
comprimidos de 250mg e com dose diária de 3-4mg/kg/dia, e Hidroxicloroquina,
apresentada na forma de comprimidos de 400mg e com dose diária de 6mg/kg/dia, têm
baixa eficácia como monoterapia, devendo ser usados isoladamente apenas em casos
leves. Seu uso em associação com Metotrexato e/ou Sulfassalazina mostra-se benéfico,
inibindo a atividade clínica e laboratorial da doença. Há contraindicação em pacientes
que apresentem alterações retinianas e de campo visual. O tempo para início de ação
varia de três a seis meses. Exames de controle incluem exame oftalmológico inicial e a
cada seis meses e leucograma.
A monoterapia com Ciclosporina A tem se mostrado eficaz na artrite
reumatoide, com eficácia comparável a da Cloroquina ou superior. É apresentada na
forma de cápsulas com 25mg, 50mg e 100mg e solução oral com 100mg/mL. A dose
inicial de 2.5mg/kg/dia pode ser aumentada em 0.50-0.75mg/kg/dia após oito semanas
de tratamento se não houver resposta adequada e novamente na décima segunda semana
de tratamento, se necessário, até dose máxima de 5mg/kg/dia em duas tomadas. Está
contraindicada em pacientes com alteração da função renal, hipertensão não-controlada
e neoplasia maligna. Sua toxicidade limita a utilização a pacientes com doença que não
responde aos outros agentes modificadores do curso da artrite reumatoide. Se houver
desenvolvimento de hipertensão ou aumento de creatinina em 30% do valor basal, deve
ser realizada redução de 25-50% na dose. Persistindo hipertensão ou aumento de
creatinina, o tratamento deve ser descontinuado. O tempo para início de ação varia de
dois a quatro meses. Exames de controle incluem pressão arterial e função renal iniciais
e a cada duas semanas nos primeiros três meses.
A Azatioprina é usada ocasionalmente em pacientes com doença grave e não
responsivos a outras medicações. É eficaz e reduz a atividade da doença. Seu perfil de
efeitos adversos, entretanto, a coloca como uma alternativa quando não há resposta aos
outros agentes modificadores do curso da doença. É contraindicada em mulheres
grávidas. É apresentada na forma de comprimidos de 50mg, com dose recomendada de
1-2mg/kg. O tempo para início de ação varia de dois a três meses. Exames de controle
incluem hemograma completo, transaminases e fosfatase alcalina inicialmente e a cada
duas semanas.
Ciclofosfamida, em forma de pulsoterapia, é usada para as vasculites
reumatoides e para quadro refratário articular ou pulmonar. O uso de D-Penicilamida
está cada vez mais restrito por causa dos efeitos colaterais, embora seja considerada
medicação eficaz, capaz de reduzir os sintomas e alterar a progressão radiológica.
Clorambucil é usado ocasionalmente em pacientes com quadro articular refratário,
vasculites e amiloidose secundária.
Em pacientes virgens de tratamento, independentemente da associação com
glicocorticoides, agentes modificadores de doença podem ser utilizados em
monoterapia. No entanto, algumas combinações se mostraram particularmente efetivas,
sendo que as associações de Metotrexato e antimalárico, Metotrexato e Sulfassalazina,
Metotrexato, Sulfassalazina e antimalárico, Metotrexato e Ciclosporina e Metotrexato e
Leflunomide são muito utilizadas, sempre se considerando cuidadosamente os efeitos
adversos.

Agentes biológicos

Pedro Kallas Curiati 1263


Os agentes biológicos são uma nova geração de medicamentos para artrite
reumatoide. Consistem basicamente em anticorpos monoclonais ou antagonistas de
receptores e têm como alvos específicos citocinas ou moléculas de superfície celular.
Bloqueadores do TNF-alfa, Infliximabe (Remicade®), Etanercepte (Enbrel®) e
Adalimumabe (Humira®) estão atualmente disponíveis para uso, sendo recomendada
sua adição ao esquema terapêutico em pacientes refratários a Metotrexato e/ou outros
agentes modificadores do curso da doença sintéticos. O anticorpo monoclonal contra
CD20, Rituximabe (Mabtera®), depleta as células B e também está disponível para uso
em pacientes refratários aos agentes anti-TNF. Um modulador da função das células T,
inibidor dos sinais coestimulatórios, Abatacepte (Orencia®), foi aprovado para uso em
pacientes refratários tanto aos agentes modificadores do curso de doença tradicionais
como aos inibidores de TNF.
Antes do início do tratamento, é necessário realizar rastreamento de tuberculose
latente com história pessoal e familiar, teste tuberculínico e radiografia simples de tórax.
Também recomenda-se avaliação sorológica para hepatites B e C. Há contraindicação
em indivíduos com doença neoplásica ativa ou prévia e em gestantes.
Em pacientes virgens de tratamento com fatores de pior prognóstico, pode-se
considerar a combinação de Metotrexato com um agente biológico como estratégia
inicial.
Se o paciente estiver em remissão persistente, por pelo menos doze meses, após
o desmame de corticosteroides, pode-se considerar desmamar o agente biológico,
especialmente em caso de tratamento combinado com agente modificador do curso da
doença sintético. Em caso de remissão persistente, o desmame cuidadoso do agente
modificador do curso da doença sintético pode ser considerado com base em decisão
conjunta do paciente com a equipe médica.

Bibliografia
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.
2010 Rheumatoid arthritis classification criteria: an American College of Rheumatology/European League Against Rheumatism
collaborative initiative. Daniel Aletaha, Tuhina Neogi, Alan J Silman, et al. Ann Rheum Dis 2010 69: 1580-1588.
EULAR recommendations for the management of rheumatoid arthritis with synthetic and biological disease-modifying
antirheumatic drugs. Josef S Smolen, Robert Landewé, Ferdinand C Breedveld, et al. Ann Rheum Dis published online May 5,
2010.

Pedro Kallas Curiati 1264


DOENÇA MISTA DO TECIDO
CONJUNTIVO
Definição
A doença mista do tecido conjuntivo é caracterizada por sobreposição de sinais e
sintomas de esclerose sistêmica, lúpus eritematoso sistêmico e dermatopolimiosite em
pacientes com altos títulos do anticorpo anti-U1RNP.

Epidemiologia
Mais comum que a esclerose sistêmica e menos comum que o lúpus eritematoso
sistêmico, a doença mista do tecido conjuntivo acomete principalmente mulheres, com
idade de início variando de quatro a cinquenta e seis anos, havendo maior incidência na
quarta década de vida.

Fisiopatologia
A etiologia da doença mista do tecido conjuntivo não é conhecida e pouco se
sabe sobre a sua fisiopatologia. Diferente do lúpus eritematosos sistêmico, a exposição
solar não é desencadeante.

Quadro clínico
O início da doença é habitualmente insidioso. As manifestações mais frequentes
no início da doença são poliartrite, fenômeno de Raynaud, edema difuso de dedos e/ou
mãos, mialgia e fraqueza muscular. Febre baixa, fadiga, perda de peso e adinamia não
são raras.
Manifestações dermatológicas incluem edema de dedos, espessamento cutâneo,
esclerodactilia, livedo reticular, telangiectasias, eritema malar, fotossensibilidade,
heliotropo, sinal de Gottron, queda de cabelos, calcinose, hipopigmentação ou
hiperpigmentação, eritema nodoso, lúpus discoide, lúpus subagudo, eritema multiforme,
vasculite livedoide e vasculite leucocitoclástica pustular. Nódulos subcutâneos com
características histopatológicas de nódulo reumatoide podem estar presentes em regiões
peritendinosas, no dorso das mãos ou no antebraço.
A artrite é simétrica, com distribuição semelhante à da doença reumatoide. Pode
ser erosiva e ter fator reumatoide e/ou anticorpo anti-peptídeo citrulinado cíclico
positivo. Pode evoluir sem deformidades, com artropatia de Jaccoud, com deformidades
importantes ou, mais raramente, de forma mutilante. Outras manifestações músculo-
esqueléticas incluem artralgia e miosite.
Manifestações cardiovasculares incluem pericardite, miocardite, lesões valvares,
distúrbios de condução, isquemia miocárdica, hipertensão arterial pulmonar, fenômeno
de Raynaud, microangiopatia na capilaroscopia peri-ungueal semelhante ao padrão lento
da esclerose sistêmica, com capilares gigantes e micro-hemorragias, e anticorpos anti-
fosfolípides.
Manifestações neuropsiquiátricas incluem neuropatia do trigêmeo, meningite
asséptica, mielite transversa, convulsões, coreoatetose, ataxia, rebaixamento do nível de
consciência, cefaleia, distúrbios de memória, neuropatia periférica sensitiva,
polirradiculoneuropatia aguda, psicose, delírio paranoide, síndrome do pânico e
alucinações táteis e visuais. Existem relatos também de hemorragia cerebral, síndrome
da cauda equina e encefalopatia multifocal progressiva.

Pedro Kallas Curiati 1265


Manifestações pulmonares incluem pleurite, pneumonite intersticial, fibrose
pulmonar, cistos pulmonares múltiplos, vasculite pulmonar fulminante com hemorragia
alveolar, disfunção diafragmática, pneumonia aspirativa, pneumonite aspirativa,
tromboembolismo pulmonar e doença pulmonar obstrutiva crônica.
Manifestações orais e oculares incluem xeroftalmia e xerostomia, sem
correlação com pesquisa positiva para anti-Ro e anti-La.
Manifestações renais são infrequentes e incluem nefrite membranosa com
proteinúria leve, não acompanhada por hipocomplementenemia.
Manifestações gastrointestinais incluem pirose, disfagia baixa para sólidos,
regurgitação, dispepsia, vômitos, diarreia secretora, má-absorção, obstipação,
perfuração espontânea de cólon ou delgado por vasculite com necrose fibrinoide,
pseudo-divertículos em cólon, dilatação de intestino delgado, pneumatose intestinal,
hemorragia fatal de jejuno e reto, esteatose hepática, hepatite autoimune, hepatite
crônica ativa severa, cirrose hepática e pancreatite aguda.
Manifestações hematológicas incluem anemia de doença crônica, anemia
hemolítica, leucopenia, plaquetopenia, e pancitopenia por uso de medicação citotóxica
ou, com menor frequência, atividade da doença. Anticorpos anti-fosfolípide ocorrem
com menor frequência do que no lúpus eritematoso sistêmico e se correlacionam com
hipertensão arterial pulmonar e trombocitopenia, mas não com abortos e eventos
trombóticos. Também existem relatos de púrpura trombocitopênica trombótica e aplasia
de série vermelha.
Manifestações endocrinológicas incluem tireoidite de Hashimoto e doença de
Graves. O uso de corticosteroides frequentemente provoca síndrome de Cushing
iatrogênica, diabetes mellitus, hipertensão arterial sistêmica, glaucoma, catarata, necrose
asséptica óssea e osteoporose.

Avaliação complementar
Exames gerais com provas de atividade inflamatória, inespecíficos, devem ser
realizados, atentando-se para a ocorrência de aumento de gamaglobulina na eletroforese
de proteínas, comum em processos inflamatórios, porém mais acentuado na doença
mista do tecido conjuntivo. O hemograma pode revelar citopenias. Apesar de o
comprometimento renal ser raro, urina tipo 1 deve ser solicitada.
Enzimas musculares, como aldolase, desidrogenase lática, aspartato
aminotransferase, e creatinofosfoquinase devem ser dosadas para diagnóstico
diferencial com miopatia de origem neurológica. Eletroneuromiografia complementa a
investigação. Biópsia muscular revela infiltrado inflamatório endomisial, perimisial e
peri-fascicular e fibras atróficas endomisiais e perimisiais.
Exame de importância em todos os pacientes com fenômeno de Raynaud é a
capilaroscopia peri-ungueal.
Dentre os auto-anticorpos, espera-se positividade de fator anti-núcleo (FAN)
com padrão pontilhado e anticorpos anti-antígenos extraíveis do núcleo (anti-ENA),
secundários à presença de anticorpos anti-U1RNP em altos títulos, acima de 1:1000 por
hemaglutinação. Segundo a maioria dos critérios de classificação, a negatividade do
anticorpo anti-dsDNA não é necessária. No entanto, por causa da alta especificidade
desse anticorpo para lúpus eritematoso sistêmico quando pesquisado por
imunofluorescência indireta, sua positividade persistente afasta o diagnóstico de doença
mista do tecido conjuntivo, o que também é válido para o anticorpo anti-Sm. Outros
auto-anticorpos podem estar presentes, como anti-Ro, anti-La e fator reumatoide. Os
anticorpos anti-cardiolipina, mesmo quando positivos, aparentemente não provocam
manifestações trombóticas ou hemorrágicas. Síndrome anti-fosfolípide secundária é

Pedro Kallas Curiati 1266


rara.
A dosagem de complemento não tem utilidade, visto que seus níveis são
habitualmente normais e a sua queda não está ligada a manifestações clínicas.
Caso haja suspeita clínica de doença mista do tecido conjuntivo, tomografia
computadorizada de tórax de alta resolução e prova de função pulmonar com difusão de
monóxido de carbono devem ser realizadas, mesmo em pacientes assintomáticos. As
alterações mais comuns no exame radiológico são espessamento septal, opacidades em
vidro fosco, opacidades lineares não-septais e predomínio em periferia e lobos
inferiores.
Para pesquisa de retardo de esvaziamento esofágico, o exame tradicionalmente
utilizado e acessível a praticamente todos os serviços médicos é o esofagograma
contrastado com bário, porém sua sensibilidade é baixa. Quando se procede à
manometria esofágica, exame invasivo e disponível somente em centros universitários,
a sensibilidade sobe.
A avaliação cardíaca mais importante relaciona-se à hipertensão arterial
pulmonar, com a estimativa os valores pressóricos pelo ecocardiograma com Doppler.
Caso seja encontrada elevação dos valores, por causa da gravidade dessa complicação e
do risco terapêutico, os níveis pressóricos devem ser confirmados pelo cateterismo de
câmaras cardíacas direitas.
Alterações radiológicas articulares não são específicas. Pode estar presente
quadro erosivo leve. Há descrição de absorção do tofo distal dos dedos, semelhante à
encontrada na esclerose sistêmica.

Diagnóstico

Critérios propostos por Kasukawa


1. Sintomas comuns:
a. Fenômeno de Raynaud;
b. Edema de dedos ou mãos;
2. Anticorpos anti-RNP presentes em títulos superiores a 1:1000;
3. Achados clínicos:
a. Achados semelhantes aos do lúpus eritematoso sistêmico, como
poliartrite, linfadenopatia, eritema facial, pericardite, pleurite, leucopenia
inferior a 4000/mm3 ou trombocitopenia inferior a 100000/mm3;
b. Achados semelhantes aos da esclerose sistêmica, como esclerodactilia,
fibrose pulmonar (restrição pulmonar ou redução da capacidade de
difusão), hipomotilidade esofágica e dilatação esofágica;
c. Achados semelhantes à polimiosite, como fraqueza muscular, aumento
das enzimas musculares no soro (CPK) e padrão miopático à
eletroneuromiografia;
O diagnóstico é feito quando pelo menos um dos sintomas comuns estiver
presente, anticorpos anti-RNP estiverem presentes e um ou mais achados clínicos em
pelo menos duas das três categorias estiverem presentes.

Critérios propostos por Alarcón-Segovia e Cardiel


1. Título de anti-RNP superior ou igual a 1:6000 à hemaglutinação;
2. Achados clínicos:
a. Edema de mãos;
b. Sinovite;
c. Miosite;

Pedro Kallas Curiati 1267


d. Fenômeno de Raynaud;
e. Acroesclerose;
O diagnóstico é baseado na associação do critério sorológico com pelo menos
três achados clínicos, dentre os quais sinovite ou miosite deverão estar presentes.

Critérios propostos por Kahn


1. Título elevado de anti-RNP correspondendo a fator anti-núcleo pontilhado com
título superior ou igual a 1:1200;
2. Achados clínicos:
a. Edema de dedos;
b. Sinovite;
c. Miosite;
d. Fenômeno de Raynaud;
O diagnóstico é baseado na associação do critério sorológico com pelo menos
três achados clínicos, dentre os quais fenômeno de Raynaud deverá estar presente.

Tratamento
Em função de sua raridade e de pouco tempo após sua descrição, não há
trabalhos controlados sobre o tratamento da doença mista do tecido conjuntivo. Desse
modo, não é possível orientar a terapêutica por meio da medicina baseada em
evidências.
O quadro cutâneo, quando decorrente de processo inflamatório, com lesões
eritematosas ou vasculíticas, terá boa resposta a corticoide em doses baixas a
moderadas, com até 0.5mg/kg/dia de Prednisona ou equivalente, e a droga de
manutenção, como Difosfato de Cloroquina 250mg/dia ou Hidroxicloroquina
400mg/dia. Em caso de vasculite extensa ou profunda, mais grave, deve-se utilizar dose
alta de corticosteroide ou mesmo pulsoterapia, além de drogas citotóxicas, como
Azatioprina 1-3mg/kg/dia. Pode ser necessário o emprego de Ciclofosfamida em
pulsoterapia mensal com 0.5-1g/m2 de superfície corporal. O edema difuso de dedos ou
mãos já foi indicação de corticoterapia, mas atualmente essa decisão foi abandonada
pelo fato de esse sinal clínico não estar relacionado a doença ativa.
O espessamento cutâneo não responde a corticosteroide, mas responde a drogas
anti-fibróticas, como a Colchicina, com dose de 0.5-1mg/dia, que só trará benefício ao
paciente em caso de manifestação limitada a mãos, antebraço e face. Em casos mais
graves e extensos, com comprometimento de tórax e abdômen, está indicada a
pulsoterapia mensal com Ciclofosfamida. Caso haja manifestações semelhantes às do
lúpus eritematoso sistêmico, com indicação de uso de corticosteroide, deve-se avaliar a
relação entre risco e benefício em razão do risco de crise renal esclerodérmica.
A calcinose não tem tratamento específico com bons resultados, mas as drogas
mais comumente utilizadas são os bifosfonatos.
O tratamento do quadro articular deve adotar os mesmos procedimentos
indicados para a doença reumatoide, com algumas ressalvas. Hidroxicloroquina
400mg/dia ou Difosfato de Cloroquina 250mg/dia, Metotrexato 7.5-15mg/semana,
Sulfassalazina e Leflunomide são bem tolerados e sem riscos para o paciente. Os
medicamentos D-Penicilamina, sais de outo e anti-TNF alfa estão contraindicados pelo
risco de síndrome semelhante ao lúpus eritematoso sistêmico. Os anti-inflamatórios
não-hormonais têm sua utilidade, devendo ser administrados conjuntamente a inibidores
de bomba de prótons.
Para o tratamento do quadro muscular, deve-se utilizar costicosteroide em doses
de 10-20mg/dia de Prednisona ou equivalente, raramente superiores a 0.5mg/kg/dia. O

Pedro Kallas Curiati 1268


Metotrexato é a droga de escolha quando a miosite é recidivante. Em casos graves,
deve-se utilizar Ciclofosfamida intravenosa.
Manifestações cardiovasculares semelhantes às do lúpus eritematoso sistêmico
deverão ser tratadas como no lúpus eritematoso sistêmico, sendo, mais uma vez,
necessária a corticoterapia, com doses elevadas (1mg/kg/dia) em caso de miocardite. A
pericardite, por sua vez, pode ser responsiva apenas a anti-inflamatórios não-hormonais.
Deve-se evitar o uso de Digoxina em pacientes com miocardite pelo risco de arritmias.
Deve-se evitar o uso de Cloroquina em pacientes com bloqueio de condução incompleto
pelo risco de evolução com bloqueio completo.
O fenômeno de Raynaud é intenso na doença mista do tecido conjuntivo e deve
ser tratado com rigor. O uso de medidas físicas é indispensável, como aquecimento
contínuo das áreas afetadas com luvas e meias, uso somente de água aquecida em
torneiras, adaptação do local de trabalho ou da atividade profissional e cessação do
tabagismo. Toda proteção necessária para evitar ferimentos e suas complicações deve
ser adotada. Deve-se evitar o uso de beta-bloqueadores. O tratamento medicamentoso
classicamente é feito com vasodilatadores. Os inibidores de canais de cálcio, como
Nifedipino, pioram a função esofágica e provocam outros efeitos colaterais indesejáveis,
com uso apenas em pacientes selecionados. Bloqueadores alfa-adrenérgicos, como
Prazosina, também podem ser utilizados. Droga de uso fácil e baixo custo é o
Naftidrofuril, ganglioplégico com muitos anos de uso clínico, com dose de 200mg duas
a três vezes ao dia. Dentre as drogas disponíveis em nosso meio, nem todas são de fácil
acesso pelo seu alto custo. Há trabalhos com o uso de inibidores da angiotensina II,
inibidores seletivos da receptação de serotonina, inibidores da fosfodiesterase-5
(Sildenafil), uso tópico ou oral de nitrato, agonistas de prostaciclina e bloqueadores de
receptor da endotelina (Bosentan). Os efeitos colaterais dessas drogas são numerosos e
por vezes limitam o seu uso.
Por sua gravidade, existem muitos estudos sobre a hipertensão arterial pulmonar,
com o surgimento de novas propostas terapêuticas. Há alguns relatos de casos bem-
sucedidos após tratamento com Ciclofosfamida em regime de pulsoterapia mensal
associada ou não a corticosteroide, Bosentan, Epoprostenol, Treprostinil e Iloprost
inalatório ou associação de drogas como Iloprost a costicosteroide, Ciclofosfamida e
Heparina. Não há consenso até agora sobre a melhor escolha.
A Azatioprina apresenta boa resposta do ponto de vista neurológico para
pacientes lúpicos, motivo pelo qual tem sido prescrita para manifestações semelhantes
em pacientes com doença mista do tecido conjuntivo. O uso associado com
corticosteroide é frequentemente indicado para resposta mais rápida do quadro
inflamatório neurológico. No caso de manifestações intensas ou risco para o paciente,
deve-se sempre cogitar o uso de pulsoterapia mensal com Ciclofosfamida. Cefaleia
vascular pode ser controlada com Propranolol ou Ácido Acetilsalicílico 350mg em dias
alternados, sendo o alívio agudo dos sintomas realizado com Sumatriptano.
Pleurite com ou sem derrame pleural responde de forma favorável ao uso de
anti-inflamatório não-hormonal, embora, por vezes, sejam necessários corticosteroides.
Já a doença intersticial pulmonar requer tratamento mais agressivo com Ciclofosfamida
mensal ou oral, havendo também descrição do uso de Azatioprina e Micofenolato
Mofetil. Corticosteroide em dose alta está indicado quando houver alveolite ativa.
Exceto pela vasculite retiniana, que requer tratamento agressivo e imediato com
imunossupressão, as manifestações oculares de síndrome seca necessitam de tratamento
paliativo e prevenção de complicações que possam provocar cegueira. É fundamental o
uso regular de lágrima artificial. Para alívio dos sintomas de xerostomia, a saliva
artificial deve ser empregada.

Pedro Kallas Curiati 1269


O tratamento das alterações renais segue o mesmo modelo do lúpus eritematoso
sistêmico. A resposta a Azatioprina ou Micofenolato Mofetil parece ser favorável. Em
caso de crise renal esclerodérmica, a base do tratamento é reduzir a pressão rapidamente
com o uso de inibidores da enzima de conversão da angiotensina e associação de
medicações anti-hipertensivas.
As alterações de motilidade esofágica mais frequentes devem ser abordadas do
ponto de vista terapêutico com o objetivo de prevenir pneumonias aspirativas com a
redução do refluxo gastroesofágico e prevenir o desenvolvimento de esôfago de Barret,
o que pode ser atingido com o uso de inibidores de bomba de prótons. A redução dos
sintomas é rápida, não necessariamente havendo regressão da esofagite, de modo que
endoscopia digestiva alta deve ser realizada anualmente. Medidas higiênico-dietéticas
devem ser implementadas, com repetidas orientações aos pacientes. O uso de
medicações pró-cinéticas deve ser avaliado quanto à relação entre risco e benefício.
Quadros de gastroparesia, pseudo-obstrução intestinal, diarreia intermitente por
supercrescimento bacteriano e outros mais raros são abordados do mesmo modo que na
esclerose sistêmica, com tratamento de suporte, orientação higiêno-dietética, drogas
pró-cinéticas e uso de Metronidazol em casos selecionados.
Dentre as citopenias, a anemia de doença crônica terá resposta com o tratamento
da doença de base, na melhor das hipóteses. Já a leucopenia, habitualmente relacionada
a efeito colateral de drogas ou atividade da doença, deve ser tratada com corticosteroide
em dose baixa, em último caso. A plaquetopenia responde a corticosteroide em dose
baixa, porém, em caso de refratariedade, tratamento mais agressivo terá que ser
instituído, com citotóxicos e corticosteroide em doses imunossupressoras. Mais rara, a
anemia hemolítica necessita de intervenção rápida com pulsoterapia com
Metilprednisolona associada a drogas citotóxicas, imunoglobulina intravenosa, Danazol
ou plasmaférese.
É obrigatório o monitoramento de todas as possíveis manifestações da síndrome
de Cushing iatrogênica, assim como o seu tratamento. As doenças da tireoide devem ser
sempre investigadas.

Bibliografia
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Definition and diagnosis of mixed connective tissue disease. Robert M Bennett. UpToDate, 2012.
Clinical manifestations of mixed connective tissue disease. Robert M Bennett. UpToDate, 2012.
Prognosis and treatment of mixed connective tissue disease. Robert M Bennett. UpToDate, 2012.

Pedro Kallas Curiati 1270


ESCLEROSE SISTÊMICA
Definições
A esclerose sistêmica é uma doença autoimune do tecido conjuntivo
caracterizada por fenômeno de Raynaud, fibrose da pele e comprometimento de outros
órgãos. A forma limitada, de evolução lenta, é caracterizada por espessamento cutâneo
em face e membros distalmente, enquanto que a forma difusa, de evolução rápida, é
caracterizada por espessamento cutâneo que se estende para a porção proximal dos
membros, o tórax e o abdômen. Em cerca de 10% dos casos, a pele é normal e o
diagnóstico é feito pela associação de fenômeno de Raynaud, acometimento de órgãos
que são caracteristicamente envolvidos na esclerose sistêmica, como esôfago e pulmões,
e autoanticorpos específicos.
CREST é a denominação utilizada para a forma limitada com calcinose,
fenômeno de Raynaud, comprometimento esofágico, esclerodactilia e telangiectasia.

Epidemiologia
Trata-se de doença rara, com pico de incidência entre trinta e cinquenta anos de
idade, mais prevalente em mulheres e em negros.

Fisiopatologia
A esclerose sistêmica é uma doença complexa de etiologia desconhecida, sendo
improvável que um fator isolado, genético ou ambiental, seja a causa da doença. Podem
participar exposição a sílica, óleo contaminado, solventes, como cloridrato de vinil e
benzeno, drogas, como Bleomicina e L-Triptofano, vírus, como retrovírus e
citomegalovírus, fatores mecânicos, como vibração intensa, microquimerismo fetal e
genética.
São importantes na patogênese da esclerose sistêmica lesão vascular, ativação
imune e ativação de fibroblastos, com produção excessiva de colágeno. Vários
anticorpos foram identificados, sendo alguns altamente específicos, como o anti-
centrômero para a forma limitada e o anti-Scl-70 para a forma difusa da esclerose
sistêmica. Os anticorpos anti-endotélio estão presentes em cerca de 30% dos pacientes e
podem contribuir para a lesão.

Quadro clínico
O fenômeno de Raynaud caracteriza-se pela mudança de cor dos dedos em três
fases, com palidez intensa, cianose e hiperemia reacional. Está presente nos dedos em
resposta a frio ou estresse e provoca extremidades frias, com formigamento e dolorosas.
Na forma limitada da esclerose sistêmica, o fenômeno de Raynaud pode ser a única
queixa por longo período de tempo e só vai ser valorizado se surgir alguma complicação
isquêmica. Já na forma difusa, este fenômeno surge concomitante a outros sinais da
doença ou é um sinal isolado por curto período de tempo. O fenômeno de Raynaud
primário ou doença de Raynaud é comum, principalmente em países frios, é mais
frequente em adolescentes do sexo feminino, é caracterizado por episódios isolados de
palidez ou cianose digital, ocorre sem isquemia periférica, úlcera digital, cicatrizes ou
gangrena e cursa com capilaroscopia normal, fator anti-núcleo negativo e velocidade de
hemossedimentação normal. O fenômeno de Raynaud secundário é raro, é mais
frequente em mulheres em idade fértil, é caracterizado por pelo menos duas fases, com
palidez e cianose, ocorre com sinais de isquemia arterial, como úlceras digitais,

Pedro Kallas Curiati 1271


amputação e gangrena e cursa com capilaroscopia com áreas avasculares, hemorragias e
ectasia capilar, fator anti-núcleo positivo, outros auto-anticorpos positivos e velocidade
de hemossedimentação eventualmente elevada.
O comprometimento da pele na esclerose sistêmica é caracterizado por uma fase
inicial de edema, uma fase de espessamento e uma fase tardia de atrofia. O
endurecimento da pele começa nos dedos e nas mãos, sendo denominado
esclerodactilia. Caso a esclerodactilia seja intensa, ocorre importante retração dos
dedos, que pode evoluir para mão em garra. A pele se torna aderida, seca, brilhante,
com perda das pregas naturais e diminuição dos fâneros. Na fase avançada, ocorre o
apagamento dos sulcos naturais, o nariz e os lábios se tornam afilados e a abertura da
boca torna-se reduzida, com microstomia. Na forma difusa o espessamento se estende
além da parte distal dos membros. O espessamento pode ser quantificado e para tanto é
utilizado o Escore de Rodnan Modificado, que avalia a pele em dezessete regiões do
corpo, com graduação de zero, correspondendo a pele normal, a três, correspondendo a
pele muito espessada, com graduação máxima de cinquenta e um pontos. Escore
superior a quarenta pontos é indicador de mau prognóstico. A ocorrência de atrito
durante a mobilização das articulações, principalmente dos punhos, está relacionada
com a forma difusa e sugere pior prognóstico. A hiperpigmentação da pele pode ser
extensa dependendo da distribuição e da cor da pele do paciente. A associação de
hiperpigmentação e hipopigmentação, que ocorre mais comumente em dorso e próxima
ao couro cabeludo, é denominada sal e pimenta, sendo característica da esclerose
sistêmica. Alguns pacientes desenvolvem lesões do tipo vitiligo em estágios muito
avançados, principalmente na forma difusa da doença. Telangiectasias, conhecidas
como aranhas vasculares, ocorrem em face, palma das mãos e mucosas, tendem a
aumentar em número com o passar dos anos e ocorrem com maior frequência na forma
limitada. Calcinose são depósitos anômalos de cálcio que ocorrem em regiões peri-
articulares, ponta dos dedos, cotovelos, bursa pré-patelar e superfície extensora do
antebraço. A sua presença pode levar a inflamação local, ulceração da pele e drenagem
de material calcificado, o que predispõe frequentemente a infecção. Úlceras isquêmicas
de pele, comuns na esclerose sistêmica, recidivantes, muito dolorosas e, às vezes,
múltiplas, podem ocorrer em várias regiões do corpo, sendo mais comuns na região
peri-ungueal e na região maleolar.
Artralgia, artrite e rigidez matinal são sintomas frequentes em pacientes com
esclerose sistêmica nas fases iniciais da doença, levando muitas vezes a um diagnóstico
de artrite reumatoide. Fraqueza muscular e mialgia são comuns, sendo mais frequentes
na forma difusa. Embora os pacientes apresentem uma sintomatologia leve, há casos em
que a fraqueza muscular pode ser grave e debilitante, semelhante à polimiosite. A
osteoporose é frequente.
O trato gastrointestinal é acometido na maior parte dos casos. O esôfago é o
órgão mais acometido, seguido por região anorretal, intestino delgado, estômago e
cólon. Disfagia, odinofagia, pirose e regurgitação são sintomas comuns e algumas vezes
se tornam incapacitantes. Pacientes com esclerose sistêmica e refluxo gastroesofágico
apresentam maior risco para esofagite, constrição do esôfago distal e metaplasia de
Barret do que pacientes sem esclerose sistêmica. O envolvimento gástrico e do intestino
delgado, com pseudo-obstrução, ocorre devido à proliferação bacteriana e provoca
anorexia, náusea, vômitos, distensão, dor abdominal, perda de peso e diarreia.
Comprometimento anorretal por disfunção do esfíncter interno é um achado frequente e
pode ser o responsável pela ocorrência de incontinência fecal.
O comprometimento pulmonar é a principal causa de morbidade e mortalidade
na esclerose sistêmica. A doença intersticial pulmonar é a forma de comprometimento

Pedro Kallas Curiati 1272


pulmonar mais frequente. Em geral, quando surgem os sintomas, como dispneia aos
esforços e tosse seca, a extensão da lesão é grande, com comprometimento da resposta
ao tratamento. Existe na esclerose sistêmica uma lesão pulmonar histológica compatível
com fibrose centro-lobular, padrão associado a aspiração de conteúdo gástrico pelo
refluxo gastroesofágico. Hipertensão arterial pulmonar ocorre quase exclusivamente na
forma limitada da esclerose sistêmica, podendo o paciente permanecer assintomático até
estágio avançado e irreversível. Segunda bulha aumentada e palpável, galope de
ventrículo direito, sopros de insuficiência tricúspide e/ou pulmonar, refluxo hepato-
jugular e edema de membros inferiores refletem a presença de hipertensão arterial
pulmonar. Outras manifestações pulmonares, como hemorragia alveolar, bronquiolite
obliterante, reação pleural e pneumotórax são mais raras. O risco de câncer de pulmão
está aumentado em relação à população geral.
O acometimento cardíaco ocorre mais comumente na forma difusa e os pacientes
geralmente são assintomáticos. O derrame pericárdico é um achado ecocardiográfico
presente em até metade dos pacientes. A presença de grandes derrames, com tamanho
superior a 200mL, está associada a risco de tamponamento cardíaco e a pior
prognóstico. Os principais sintomas são dispneia progressiva e palpitações. Também
podem ocorrer miocardite, fibrose miocárdica, distúrbios de condução e arritmias.
A crise renal esclerodérmica é a manifestação mais importante do
comprometimento renal na esclerose sistêmica. É caracterizada por hipertensão arterial
grave de início súbito associada a insuficiência renal oligúrica rapidamente progressiva,
hemólise microangiopática e trombocitopenia. A análise da urina revela proteinúria leve
com pequena quantidade de células e/ou cilindros. Ocorre em cerca de 10% dos
pacientes, sobretudo na forma difusa e nos primeiros quatro anos de doença. Sua
incidência tem diminuído nos últimos anos pelo controle da hipertensão arterial
sistêmica com os inibidores da enzima de conversão da angiotensina. Manifestações
mais brandas de comprometimento renal incluem elevação discreta dos níveis séricos de
creatinina e microalbuminúria.
Síndrome sicca e neuropatia do trigêmeo podem ser observadas, especialmente
nas fases iniciais da doença. Também podem ocorrer síndrome do túnel do carpo,
mononeurite múltipla e comprometimento do sistema nervoso central, como cefaleia,
crises convulsivas, radiculopatia e mielopatia.

Avaliação complementar
O fator anti-núcleo é positivo na maior parte dos pacientes, mas os anticorpos
específicos da doença são o anti-centrômero na doença limitada e o anti-topoisomerase I
(Scl-70) na doença difusa. Anticorpos contra RNA polimerase I, II e III e fibrilarina
também são encontrados na forma difusa e geralmente são responsáveis pelo padrão
nucleolar na imunofluorescência.
A capilaroscopia, exame simples, não-invasivo e barato, é de grande auxílio na
abordagem diagnóstica.
As alterações mais características nas radiografias de mãos são reabsorção de
tecidos moles nas polpas digitais, calcificações de tecidos moles, osteólise, provocando
perda das falanges distais, e deformidades com tendência para luxação da primeira
articulação carpo-metacarpiana.
A avaliação do trato gastrointestinal, principalmente do esôfago, deve ser feita
rotineiramente com manometria, esofagograma e endoscopia digestiva alta. O trânsito
intestinal deve ser avaliado quando houver diarreia e desnutrição. No enema opaco, a
presença de dilatações do cólon e pseudo-divertículo é muito sugestiva de esclerose
sistêmica.

Pedro Kallas Curiati 1273


A avaliação pulmonar deve ser feita anualmente nos primeiros cinco anos da
doença com tomografia computadorizada de cortes finos. As áreas basais, subpleurais e
posteriores são os locais preferenciais de lesão. Imagens em vidro fosco nas bases
pulmonares são as lesões mais encontradas. Outros achados, como imagens em favo de
mel, opacidades reticulares e cistos também são sugestivos de lesão pulmonar da
esclerose sistêmica. As provas de função pulmonar são alteradas mais tardiamente,
porém são de grande auxílio no acompanhamento dos pacientes. A espirometria revela
padrão restritivo, com diminuição progressiva da capacidade pulmonar total e da
difusão de monóxido de carbono. O lavado bronco-alveolar pode revelar alveolite com
elevada proporção de linfócitos, neutrófilos e, ocasionalmente, eosinófilos. Hipertensão
arterial pulmonar é definida na ecocardiografia com Doppler como pressão de artéria
pulmonar superior a 40mmhg. A redução da difusão de monóxido de carbono na
ausência de restrição na espirometria é muito sugestiva de hipertensão pulmonar.
Quando o ecocardiograma indica aumento da pressão da artéria pulmonar, é necessária
a confirmação pelo cateterismo de câmaras direitas. Os exames devem ser repetidos
anualmente.
O eletrocardiograma revela comprometimento do sistema de condução e
arritmias, que geralmente são assintomáticas. O Holter, no entanto, é o método mais
sensível para detectar essas anormalidades. Os achados mais comuns são alteração não-
específica do segmento ST, hipertrofia ventricular esquerda, hipertrofia ventricular
direita, prolongamento do intervalo PR e bloqueio fascicular anterior esquerdo. Entre as
arritmias, as contrações ventriculares prematuras são as mais comuns. Defeitos da
perfusão cardíaca na cintilografia com tálio são comuns nos pacientes com esclerose
sistêmica, provavelmente devido a vasoespasmo reversível da circulação coronária.
A biópsia de pele raramente é necessária para o diagnóstico, mas pode ser útil
em caso de suspeita de doenças que se assemelham à esclerose sistêmica.

Diagnóstico
• Critério maior:
o Espessamento da pele proximal às articulações
metacarpofalangeanas;
• Critérios menores:
o Esclerodactilia;
o Cicatrizes em polpas digitais;
o Fibrose pulmonar;
Para o diagnóstico, é necessário o critério maior ou dois critérios menores.

Diagnóstico diferencial
Desordens com envolvimento semelhante de órgãos internos incluem cirrose
biliar primária, hipertensão arterial pulmonar primária e fibrose pulmonar idiopática.
Desordens com alterações de pele assimétrica incluem morfea, esclerodermia
linear e golpe de sabre.
Doenças do tecido conjuntivo incluem doença mista, superposição e lúpus
eritematoso sistêmico.
Desordens associadas ao fenômeno de Raynaud incluem fenômeno de Raynaud
primário, fenômeno de Raynaud induzido por drogas, como beta-bloqueadores,
derivados ergotamínicos e tabaco, fatores ocupacionais, como manejo de máquinas que
causam intensa vibração, feocromocitoma, síndrome carcinoide, arteriosclerose,
vasculites, crioglobulinemia, síndrome de hiperviscosidade, policitemia e outras
colagenoses, como síndrome de Sjögren, doença mista do tecido conjuntivo e lúpus

Pedro Kallas Curiati 1274


eritematoso sistêmico.
Desordens associadas a espessamento de pele das mãos e dos dedos incluem
esclerose digital do diabetes mellitus, distrofia simpático-reflexa, doença do cloridrato
de vinil, esclerose sistêmica induzida por Bleomicina, amiloidose e doença celíaca do
adulto.
Desordens associadas a espessamento de pele generalizado sem atingir mãos e
dedos incluem escleroderma de Buschke, relacionado a diabetes mellitus dependente de
Insulina, escleromixedema, relacionado a mieloma múltiplo e amiloidose, mixedema,
relacionado a hipotireoidismo, fasciite eosinofílica, síndrome eosinofilia-mialgia,
morfea generalizada, porfiria cutânea tarda, amiloidose e doença enxerto versus
hospedeiro.

Tratamento

Fenômeno de Raynaud
Devem ser eliminados todos os fatores que pioram o vasoespasmo, como
tabagismo, beta-bloqueadores e derivados ergotamínicos. O uso de meias e luvas, bem
como evitar a exposição de qualquer parte do corpo ao frio, é de grande auxílio. Quando
essas medidas não são suficientes, os agentes mais eficazes são os bloqueadores de
canais de cálcio, como a Nifedipino, apresentado na forma de comprimidos revestidos
de 10mg e 20mg, com dose diária de 10mg duas vezes ao dia a 20mg três vezes ao dia,
e o Diltiazem, apresentado na forma de comprimidos revestidos de 30mg e 60mg, com
dose máxima diária de 360mg fracionada em três a quatro tomadas. A simpatectomia
cervical ou lombar pode ser eficaz em casos graves e resistentes, mas foi abandonada
como prática rotineira, pois seus benefícios são mantidos por curto período de tempo.
Em caso de úlceras de difícil cicatrização e/ou gangrena, terapias adicionais são
necessárias. As doses dos vasodilatadores devem ser aumentadas até o máximo
tolerado, deve-se introduzir Ácido Acetilsalicílico em dose anti-agregante e deve-se
considerar o uso de Pentoxifilina, apresentada na forma de comprimidos revestidos de
400mg, com dose de um comprimido duas a três vezes ao dia. Bosentan, apresentado na
forma de comprimidos de 62.5mg e 125mg, com dose inicial de 62.5mg duas vezes ao
dia e titulação até 125mg duas vezes ao dia, um antagonista não-seletivo da endotelina,
pode ter efeito benéfico na isquemia digital e reduzir a incidência de ulceração. O
análogo sintético de prostaciclina Iloprost administrado por via parenteral, com 0.5-
2ng/kg/minuto, é um potente vasodilatador, inibe a agregação e a adesão plaquetária,
aumenta a deformabilidade das hemácias, altera a função dos neutrófilos, pode ajudar a
reparar o endotélio lesado e reduz a produção e a liberação de citocinas pró-fibróticas. O
uso de inibidores da fosfodiesterase-5, como Sildenafil, Tadalafil e Vardenafil, também
pode ser tentado.
O alívio da dor é de grande importância e esquemas isolados ou combinados
com Paracetamol, Codeína e anti-depressivos são de grande auxílio.
Quando a úlcera se torna infectada, é importante a limpeza constante e o uso de
antibiótico tópico e oral com cobertura para Staphylococcus aureus.

Pele
A D-Penicilamina, apresentada na forma de comprimidos revestidos de 300mg,
com dose de um a três comprimidos por dia, agente capaz de afetar a produção de
colágeno e com provável efeito imunossupressor, tem sido utilizada rotineiramente no
tratamento dos pacientes com esclerose sistêmica.
A Colchicina, avaliada em estudo randomizado controlado com placebo não

Pedro Kallas Curiati 1275


apresentou benefício.

Doença pulmonar
Há melhora do escore de Rodnan, da gravidade da dispneia e de medidas de bem
estar com o uso de Ciclofosfamida, apresentada na forma de comprimidos de 50mg e de
frasco-ampola de 200mg/20mL e 1000mg/75mL. Preconiza-se 1-2mg/kg por via oral
uma vez ao dia ou 500-750mg/m2 uma vez por mês na forma de pulso com ou sem
corticosteroide. Metotrexato, Azatioprina, Ciclosporina e plasmaférese já foram
utilizados, porém seus resultados precisam ser confirmados.
Ecocardiograma deve ser realizado anualmente para pesquisa de sinais de
hipertensão arterial pulmonar. O melhor controle da hipertensão arterial pulmonar
ocorre com o uso de prostaciclinas por via intravenosa, subcutânea ou inalatória,
inibidores da endotelina 1, como o Bosentan, ou inibidores da fosfodiesterase 5, com
diminuição da mortalidade e melhora da qualidade de vida. A terapêutica anticoagulante
é mandatória.

Doença gastrointestinal
A orientação dos hábitos alimentares ao paciente, como ingerir refeições
pequenas e frequentes, evitar comer até duas horas antes de dormir e manter a cabeça
elevada ao dormir, é fundamental. Os pró-cinéticos, como a Metoclopramida e a
Domperidona, melhoram a peristalse do esôfago e aceleram o esvaziamento gástrico. O
uso de inibidores de bomba de prótons, como o Omeprazol, representa um grande
avanço no cuidado dos pacientes, com dose habitual de 20mg duas vezes ao dia e
indicação empírica para prevenir estenose esofágica.
Quando há sinais de acelerado crescimento bacteriano devido a estase, o
tratamento prevê o uso de antibióticos, como Ciprofloxacino, Amoxacilina e
Metronidazol. Para preservar a eficácia do antibiótico, é necessário o seu rodízio
mensal, reservando alguns períodos livres.

Doença cardíaca
A pericardite sintomática tem boa resposta com anti-inflamatórios não-
hormonais ou baixas doses de corticosteroides. Em pacientes com grandes derrames, a
pericardiocentese pode ser necessária. Em caso de suspeita de comprometimento
cardíaco, a avaliação inicial prevê eletrocardiograma, radiografia de tórax, creatinina
sérica, troponina I sérica e ecocardiograma.

Doença renal
O tratamento da crise renal é baseado principalmente no controle adequado da
pressão arterial sistêmica. Os inibidores da enzima de conversão da angiotensina são as
drogas de escolha e o seu uso diminuiu drasticamente a evolução para a insuficiência
renal. Essas drogas devem ser mantidas mesmo que a insuficiência renal piore ou o
paciente necessite de diálise, pois o quadro pode ser revertido mesmo após alguns anos
de diálise. Se necessário, bloqueadores de canais de cálcio podem ser associados. Beta-
bloqueadores devem ser evitados pelo risco de piora da isquemia digital.
A monitorização renal é recomendada de forma rotineira, com medida mensal da
pressão arterial e avaliação da proteinúria a cada três a seis meses, desde que os
resultados obtidos sejam normais. Creatinina sérica, taxa de filtração glomerular
estimada e sedimento urinário também são úteis.

Bibliografia

Pedro Kallas Curiati 1276


Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Overview of the clinical manifestations of systemic sclerosis (scleroderma) in adults. John Varga. UpToDate, 2012.
Diagnosis and differential diagnosis of systemic sclerosis (scleroderma) in adults. John Varga. UpToDate, 2012.
Overview of the treatment and prognosis of systemic sclerosis (scleroderma) in adults. Chrisopher P Denton. UpToDate, 2012.

Pedro Kallas Curiati 1277


ESPONDILOARTROPATIAS
Definições
As espondiloartropatias constituem um grupo de artropatias inflamatórias que se
distinguem das demais pelo envolvimento inflamatório preferencial das inserções
ligamentares e tendinosas e das interfaces entre o osso subcondral e a cartilagem
articular. Caracterizam-se por acometimento axial de coluna lombo-sacra e de
articulações sacro-ilíacas. O acometimento periférico é assimétrico, geralmente
oligoarticular, com envolvimento de membros inferiores, sendo comum dor em região
de fáscia plantar, tendão do calcâneo e/ou calcanhar. Podem envolver outros órgãos,
como mucosas, pele, olhos e trato intestinal.
Os subtipos reconhecidos com maior frequência são espondilite anquilosante,
artrite reativa, artrite psoriásica e artrite enteropática. Uma parcela dos pacientes não se
enquadra em uma das categorias específicas, mas apresenta as características clínicas
comuns às espondiloartropatias, com diagnóstico sindrômico de espondiloartropatia
não-diferenciada.

Epidemiologia
Antes consideradas raras, as espondiloartropatias estão sendo reconhecidas como
muito mais prevalentes.

Etiologia e fisiopatologia
As espondiloartropatias apresentam etiopatogenia pouco conhecida. Porém,
mecanismos genéticos, como o antígeno HLA-B27, ambientais e infecciosos parecem
estar envolvidos, provavelmente modulando uma resposta imunológica alterada.
O HLA-B27, expresso em 7% da população europeia ocidental sadia, pode estar
presente em até 80-90% dos casos de espondilite anquilosante, mas é menos prevalente
nas espondiloartropatias enteropáticas, sendo detectado em 35-75%.
Interação com antígenos bacterianos em hospedeiros geneticamente predispostos
foi comprovada. Na artrite psoriásica, estresse emocional pode desencadear o quadro
clínico.

Quadro clínico
Os achados mais frequentes nas espondiloartropatias são envolvimento de
coluna lombar e articulações sacro-ilíacas, artrite periférica assimétrica de grandes
articulações dos membros inferiores, ausência de fator reumatoide no soro,
envolvimento de ênteses, cartilagens e cápsulas ligamentares, podendo ocorrer erosões
ósseas e deposição de osso reativo com a formação de esporões, envolvimento extra-
articular, podendo abranger olhos, valva aórtica, pele, parênquima pulmonar e uretra, e
agregação familiar, com positividade para HLA-B27.
O paciente clássico com espondiloartropatias é indivíduo do sexo masculino,
jovem, que apresenta dor lombar de caráter inflamatório, pior em repouso e pela manhã,
com rigidez matinal associada a dor e edema de articulações de membros inferiores,
muitas vezes com envolvimento de ênteses em calcâneos e plantas dos pés.
Ao exame físico, observa-se retificação da coluna lombar e dor à palpação de
articulações sacro-ilíacas. O teste de Schöber geralmente é positivo já nas fases iniciais,
assim como são evidentes a restrição da expansibilidade torácica, com variação do
perímetro torácico, medido ao nível do quarto espaço intercostal, entre a inspiração e a

Pedro Kallas Curiati 1278


expiração, inferior a 5cm, e as alterações da distância occipício-parede e mão-chão,
denotando limitações funcionais precoces por dor devido ao processo inflamatório.
Ocorre evolução com sequelas irreversíveis por anquilose articular. O acometimento
axial é ascendente, atingindo a região cervical mais tardiamente, com importante
contratura da musculatura paravertebral. Em geral, as articulações periféricas,
principalmente dos membros inferiores, como joelhos, tornozelos e artelhos, são
acometidas de forma assimétrica e em surtos de baixa intensidade inflamatória, exceto
na região do calcâneo e do tendão de Aquiles, em que o acometimento pode apresentar
caráter contínuo e com bastante edema e dor à palpação, levando à formação de
exostose óssea ou esporão. Em pacientes jovens, com início do quadro antes dos trinta
anos, deve-se atentar para o envolvimento das articulações rizomélicas, isto é, do
quadril e dos ombros, cuja evolução pode levar a limitação funcional precoce e
irreversível.

Avaliação complementar
Os exames complementares são inespecíficos e muitas vezes negativos. Nos
casos mais graves, podem revelar aumento da atividade inflamatória com elevação de
proteínas de fase aguda, além de hemograma com discreta leucocitose e anemia
normocítica normocrômica. O HLA-B27 não faz parte da rotina diagnóstica, nem deve
ser supervalorizado, mas pode auxiliar nos casos iniciais ou dúbios. Nos casos de
monoartrite, punção do líquido sinovial pode ser necessária e revela padrão inflamatório
de grau variável.
Exames de imagem, como radiografia simples de coluna em incidências ântero-
posterior e perfil, pelve em incidência ântero-posterior e articulações periféricas
envolvidas, são extremamente úteis, podendo revelar sacroileíte e retificação da coluna
lombar, que pode se prolongar até a coluna cervical, com sindesmófitos, calcificações
ligamentares e a clássica coluna em bambu da espondilite anquilosante. Tomografia
computadorizada e, preferencialmente ressonância nuclear magnética podem ser de
grande valia nos casos precoces, nos quais a radiografia simples pode ser normal. No
esqueleto periférico e nas fases de atividade inflamatória, os achados radiológicos se
caracterizam por edema de partes moles das regiões afetadas seguido por
irregularidades do periósteo e rarefação óssea periarticular.

Critérios diagnósticos – European Spondylarthropathy Study Group (1991)


1. Dor inflamatória na coluna, caracterizada por início antes dos 45 anos,
instalação insidiosa, duração superior ou igual a três meses, rigidez
matinal e melhora com exercício, ou sinovite, que pode ser assimétrica
ou predominantemente em membros inferiores.
2. Pelo menos um dentre:
a. Antecedente de espondilite anquilosante, psoríase, irites agudas,
artrites reativas ou doença inflamatória intestinal em familiar de
primeiro ou segundo grau;
b. Psoríase;
c. Doença inflamatória intestinal;
d. Dor alternando entre os glúteos, atual ou prévia;
e. Dor espontânea ou contratura nos sítios de inserção do tendão de
Aquiles ou na fáscia plantar, atuais ou prévias;
f. Episódio de diarreia dentro do período de um mês antes do início
das artrites;
g. Uretrites não-gonocócicas ou cervicite dentro do período de um

Pedro Kallas Curiati 1279


mês antes do início das artrites;
h. Sacroileíte bilateral mínima a anquilosada ou unilateral moderada
a anquilosada;

Tratamento
Embora as bases do tratamento das doenças que constituem o grupo das
espondiloartropatias sejam semelhantes, o que vai determinar o esquema terapêutico é a
evolução dos diferentes quadros clínicos específicos. Faz-se também necessária
individualização terapêutica e abordagem conjunta com diversos especialistas, como o
gastroenterologista, o dermatologista e o oftalmologista.
Exercícios físicos são importantes no planejamento terapêutico, devendo-se
evitar esportes de alto impacto e preferir práticas como natação e alongamento. A
cessação do tabagismo deve ser orientada a todos os pacientes fumantes. É importante
ressaltar, ainda, a necessidade de medidas fisioterápicas e de reabilitação precoces.
Intervenções cirúrgicas, como tenotomia e artroplastia, principalmente das articulações
coxofemorais e dos joelhos, podem proporcionar melhor mobilidade e dar recuperação
funcional ao paciente. Fusão cervical é indicada para subluxação atlanto-axial com
comprometimento neurológico.
O tratamento farmacológico comum às diferentes espondiloartropatias constitui-
se no alívio da dor e na redução da atividade inflamatória com analgésicos e anti-
inflamatórios não-hormonais, como Indometacina, apresentada na forma de
comprimidos de 25mg e 50mg e supositórios de 100mg, com dose de até 200mg/dia
fracionada em até quatro tomadas diárias, Diclofenaco de Sódio, apresentado na forma
de comprimidos de 50mg, com dose de até 150mg/dia fracionada em até três tomadas
diárias, e Naproxeno, apresentado na forma de comprimidos de 250mg e 500mg, com
dose de até 1500mg/dia fracionada em até três tomadas diárias. Para avaliar a eficácia, o
anti-inflamatório não-hormonal deve ser utilizado regularmente durante pelo menos
quatro semanas, com suspensão em caso de resposta insatisfatória. Em caso de artrite
enteropática, deve-se ter cautela com o uso de anti-inflamatórios não-hormonais, pois
podem exacerbar a doença inflamatória intestinal subjacente.
Atualmente, agentes biológicos, como os inibidores do TNF Infliximab,
Etanercepte, Adalimumab e Golimumab, têm sido utilizados com excelente resposta
clínica, ganhando posição de destaque no tratamento das espondiloartropatias, mas sem
evidência satisfatória até o momento de bloqueio da evolução da doença. São indicados
após três a seis meses de falha com anti-inflamatórios não-hormonais. Em caso de
artrite periférica, pode-se indicar Sulfassalazina. Os principais preditores de resposta ao
tratamento com inibidores do TNF são doença com curta duração, níveis elevados de
proteína C reativa e idade jovem. Efeitos adversos potenciais incluem reativação de
tuberculose latente e exacerbação ou mesmo desenvolvimento de doença
desmielinizante.
O único agente modificador do curso da doença considerado potencialmente útil
na espondilite anquilosante é a Sulfassalazina, com maior efetividade no tratamento da
artrite periférica do que da artrite axial. Apresentada na forma de comprimidos de
500mg, com dose inicial de 500mg uma vez ao dia e aumento de 500mg/dia uma vez
por semana até dose de 2000-3000mg/dia fracionada em duas tomadas diárias. Os
efeitos adversos mais comuns são náusea, tontura, cefaleia e exantema. Hemograma
deve ser monitorizado no mínimo a cada três meses, já que leucopenia e neutropenia
podem ocorrer subitamente. A principal indicação é espondilite anquilosante com artrite
periférica em paciente no qual outra medicação que não um inibidor do TNF é desejada.
A Sulfassalazina deve ser descontinuada na ausência de melhora dentro do período de

Pedro Kallas Curiati 1280


um mês ou em caso de remissão da doença. Metotrexato é utilizado por alguns médicos
como alternativa, mas atualmente faltam evidências que suportem o seu uso no
tratamento da espondilite anquilosante.
Os corticoides sistêmicos devem ser evitados, mas podem ser utilizados por
curtos períodos se houver falha na resposta ou contraindicação aos anti-inflamatórios
não-hormonais. Injeções intra-articulares ou perilesionais com drogas de depósito,
eventualmente guiadas por fluoroscopia ou tomografia computadorizada, podem ser
úteis em pacientes selecionados, devendo ser utilizadas com critério pelo risco potencial
de ruptura de tendões e ligamentos e devendo ser evitadas no tendão de Aquiles.
Corticoide tópico usualmente é efetivo no tratamento das manifestações cutâneas e
mucosas da artrite psoriásica e, quando na forma de colírio, faz parte integral do
tratamento da uveíte aguda.

Espondilite anquilosante
A espondilite anquilosante é uma doença inflamatória sistêmica crônica
caracterizada pelo acometimento primário da coluna vertebral, com envolvimento das
articulações sacro-ilíacas de forma simétrica. Em seu espectro clínico, podem ocorrer
entesites, com inflamação de inserções ligamentares e tendíneas, e artrite periférica, em
geral assimétrica, preferencialmente de membros inferiores, como tornozelos, quadril e
joelhos, e mais raramente de membros superiores, sobretudo ombros.
Ocorre uma ampla variação na distribuição mundial da prevalência da
espondilite anquilosante, havendo forte correlação em determinadas populações com a
presença do HLA-B27.
Em geral, o início do quadro clínico ocorre na segunda ou na terceira décadas de
vida, de forma insidiosa, sendo três vezes mais frequente nos homens do que nas
mulheres, nas quais as características clínicas e radiológicas evoluem mais lentamente.
A lombalgia é a queixa mais comum e mais precoce, com irradiação para a região glútea
profunda e para a linha articular das sacro-ilíacas, geralmente de forma bilateral. Após
alguns meses, pode tornar-se persistente, com rigidez e sensação dolorosa difusa na
região lombar baixa. Há rigidez matinal, melhora com atividade física moderada ou
banho quente e piora no leito ou após períodos de inatividade física. Em alguns casos,
há pouca manifestação axial nas fases iniciais, com predomínio de mialgia seguida por
dor nas regiões de inserção tendinosa ou ligamentar. As entesites de parede torácica,
com envolvimento de articulações costo-esternais, processos espinhosos, escápulas e
articulações costo-vertebrais, podem causar dor e dificuldade de expansão torácica pela
manhã, com respiração predominantemente abdominal ou diafragmática. Manifestações
gerais, como febre, anorexia e inapetência, podem ser encontradas nos estágios iniciais
e mais frequentemente na forma de início juvenil.
Exame físico minucioso é crucial para o estabelecimento do diagnóstico precoce
da doença. Encontra-se limitação parcial do movimento da coluna lombar,
comprometendo hiperextensão, rotação, flexão para frente e flexão lateral, além de
deformidade do pescoço em flexão, acentuação da cifose torácica e perda da lordose
lombar. Testes como a distância do terceiro dedo para o chão, o exame detalhado das
articulações coxofemorais e o teste de Schöber devem ser executados de maneira
rotineira. A avaliação da expansibilidade torácica é realizada na altura do quarto espaço
intercostal com os braços do paciente elevados e as mãos atrás da cabeça. Com a
evolução do quadro, pode ocorrer a anquilose óssea da coluna, caracterizada pela fusão
das articulações interapofisárias, com perda total ou parcial dos movimentos dos
diversos segmentos da coluna vertebral. O paciente adota a clássica “posição de
esquiador”, com retificação cervical e lombar, acentuação da cifose torácica e flexão

Pedro Kallas Curiati 1281


parcial dos joelhos. Dactilite é evidenciada por edema difuso em dedos de mãos e/ou
pés.
O teste de Schöber é usado para medir a mobilidade da coluna lombar. Com o
paciente em posição ereta, é realizada a marcação de um ponto na altura da quinta
vértebra lombar e de outro ponto 10cm acima. Após flexão máxima da coluna para a
frente, a distância entre os dois pontos é medida novamente, sendo considerado normal
um incremento de 5cm.
A inflamação da articulação sacro-ilíaca é manifestada por dor na linha articular
à compressão direta ou à manobra de flexão, abdução e rotação externa do quadril com
o paciente em posição supina, conduzida com aplicação de pressão sobre o joelho
fletido durante o movimento. Pode-se também, com o paciente em posição supina,
exercer pressão sobre a espinha ilíaca ântero-superior, ou, com o paciente deitado de
lado, exercer pressão sobre a crista ilíaca para comprimir a pelve.
Critérios diagnósticos de Nova Iorque modificados de 1984:
- Lombalgia com duração superior ou igual a três meses que melhora
com exercício e não é aliviada por repouso;
- Limitação do movimento lombar em dois planos, adução-abdução e
flexão-extensão;
- Expansibilidade torácica diminuída para a idade e para o sexo;
- Sacroileíte bilateral leve a grave ou unilateral moderada a grave;
Considera-se diagnóstico definitivo quando presentes um parâmetro radiológico
em associação com pelo menos um parâmetro clínico.
Manifestações extra-articulares podem associar-se. Uveíte anterior aguda,
também denominada irite aguda ou iridociclite, manifesta-se por surtos agudos de dor,
lacrimejamento, fotofobia e borramento da visão, geralmente unilaterais, que podem
anteceder o quadro articular ou surgir durante o curso da doença. Envolvimento
cardiovascular é raro, mas pode manifestar-se por insuficiência aórtica, aortite
ascendente, cardiomegalia, pericardite e distúrbios do sistema de condução. Lesão de
parênquima pulmonar ocorre em pequena parcela dos pacientes, em geral após vinte
anos do início da doença, raramente com fibrose por pneumonite intersticial de lobos
superiores. Comprometimento neurológico é raro e tende a ocorrer nas fases mais
tardias da doença, sendo caracterizado por síndrome da cauda equina, subluxação
atlanto-axial e fraturas por deslocamentos vertebrais. Lesões de mucosa entérica
assintomáticas no terço terminal do íleo ou no cólon são detectadas em parcela
significativa dos pacientes com espondilite anquilosante e artrite reativa. Além da
nefropatia por abuso de analgésicos, também estão associadas à espondilite anquilosante
a nefropatia por IgA e a amiloidose secundária.
Os achados laboratoriais não são patognomônicos, mas podem auxiliar na
caracterização do grau de atividade inflamatória, seja pela elevação da velocidade de
hemossedimentação e da proteína C reativa, seja pelo aumento da concentração de IgA
sérica. A tipagem do HLA pode ajudar no diagnóstico, porém não é indispensável. A
radiologia é de grande valia no diagnóstico e no seguimento evolutivo. Os achados mais
característicos são sacro-ileíte, sindesmófitos, calcificações ligamentares, “coluna em
bambu” e esporão calcâneo. Às vezes, para o diagnóstico precoce, tomografia
computadorizada ou ressonância nuclear magnética podem evidenciar sacroileíte inicial
ou edema ósseo em vértebras, com espondilodiscite asséptica ou entesite.

Artrites reativas
Em geral, as artrites reativas são assimétricas e assépticas, cursando em surtos
agudos com duração média de quatro a cinco meses, podendo chegar a um ano. Podem

Pedro Kallas Curiati 1282


ser recorrentes, com fraqueza ou dores musculares. Ocorrem geralmente três a seis
semanas após um evento gatilho, que pode ser uma infecção do trato gênito-urinário,
sendo a Chlamydia trachomatis o agente mais comum, ou gastrointestinal, sendo
enterobactérias, como Salmonella spp, Shiguella spp, Yersinia spp e Campylobacter
spp, os agentes mais comuns. Além das manifestações urinárias, com uretrite, ou em
genitália externa, com balanites e vulvites, outros eventos extra-articulares, como
conjuntivite, uveíte anterior aguda e lesões na mucosa oral são comuns. Parcela dos
pacientes pode desenvolver sacroileíte e espondilite, com grande correlação com o
HLA-B27. A tríade clássica abrange artrite, conjuntivite e uretrite não-gonocócica.
A artrite reativa tem um pico de incidência por volta dos vinte a trinta anos, com
maior incidência em homens. Em crianças, é rara e está mais associada a quadros pós-
disentéricos do que venéreos.
Os sintomas gerais incluem febre baixa, perda de peso e mal-estar. Quando
presentes, os sintomas urogenitais no homem são de uretrite, com dor uretral em
queimação e descarga mucoide, e/ou prostatite. Na mulher, uretrite, cistite e cervicite
tendem a ser silenciosas. A diarreia desencadeadora da artrite reativa pode ser leve e
passar despercebida ou evoluir, ocasionalmente, com sangue e por período prolongado,
tendo sido associada a infecções por Shigella dysenteriae ou flexneri, Salmonella
enteriridis ou typhimurium, Yersinia enterocolitica ou pseudotuberculosis e
Campylobacter jejuni. A conjuntivite é a alteração ocular mais frequente e cursa com
olho vermelho, ardor, fotofobia e descarga mucopurulenta estéril, unilateral ou bilateral,
sendo transitória e leve. Quando presente, a uveíte é aguda e unilateral. Complicações
oculares mais raras incluem ceratite, hipópio, ulcerações corneanas, uveíte posterior,
neurite óptica e hemorragias intraoculares. Envolvimento de grandes articulações de
membros inferiores predomina, de forma assimétrica e oligoarticular, sobretudo em
joelhos, tornozelos, tarso e punhos. Edema e calor local são menos proeminentes que
rigidez e dor. A sacro-ileíte acomete parcela dos pacientes. Entesite é a característica
marcante da artrite reativa, com edema uniforme dos dedos, descritos como “dedos em
salsicha” ou dactilite, além da típica dor no calcanhar, decorrente do envolvimento
aquileu e da inserção da fáscia plantar.
A artrite reativa pode se manifestar em surtos bem definidos ou de maneira
contínua e progressiva, quando o envolvimento axial tende a ser grave e caracterizado
por dorsalgia ou lombalgia mal definida, possivelmente decorrente da inflamação da
inserção tendinosas dos músculos intercostais e das articulações intervertebrais.
Tardiamente, a dor e a rigidez podem ser indistinguíveis do quadro de espondilite
anquilosante.
A diferenciação da artrite reativa das demais espondiloartropatias faz-se graças
às manifestações cutâneo-mucosas características. A balanite circinata é uma alteração
da mucosa peniana identificada em um quarto dos pacientes e se apresenta como úlceras
múltiplas rasas na glande peniana e no meato uretral. A queratodermia blenorrágica é
uma lesão de pele que ocorre em parcela dos pacientes e inicia-se como vesículas claras
com base eritematosa, progredindo para máculas, pápulas e nódulos, sendo
indistinguível clínica e patologicamente da psoríase pustular, com acometimento de
plantas dos pés, dedos, bolsa escrotal, pênis, palmas das mãos e couro cabeludo. Em
casos tardios, nota-se o envolvimento das unhas, com espessamento e descamação.
Outras lesões cutâneo-mucosas incluem úlceras orais superficiais indolores e eritema
nodoso, característico da infecção por Yersinia spp, especialmente em mulheres.
Os achados laboratoriais são inespecíficos e denotam inflamação. Em geral,
observa-se aumento de velocidade de hemossedimentação e proteína C reativa, além de
leucocitose discreta. Casos mais crônicos evoluem com anemia normocrômica

Pedro Kallas Curiati 1283


normocítica discreta. O fator reumatoide é negativo. O líquido sinovial é de padrão
inflamatório. A detecção do HLA-B27 pode auxiliar nos casos de suspeita de artrite
reativa sem outras manifestações extra-articulares. Cultura de Chlamydia spp de
raspado de garganta, uretra e cérvix e coprocultura, em vigência de sintomas
gastrointestinais, para pesquisa de Shiguella spp, Salmonella spp, Yersinia spp e
Campylobacter spp podem auxiliar na identificação de um agente desencadeante. A
sorologia para Chlamydia spp e a pesquisa por reação em cadeia da polimerase de
antígenos bacterianos também podem ser úteis para o diagnóstico etiológico e o
tratamento específico.
As radiografias simples podem ser normais, mas a sacroileíte, em geral
unilateral, pode ser detectável radiologicamente em até 10% dos pacientes nas fases
iniciais e em até 70% tardiamente. Aumento de partes moles e osteopenia justa-
articular, comuns nas fases agudas, podem desaparecer completamente com a remissão
dos surtos. As alterações em pequenas articulações dos pés, calcâneo, joelhos, bacia e
esqueleto axial se assemelham às alterações de outras espondiloartropatias, com
aumento de partes moles, principalmente dactilite, geralmente assimétrico e
preservando o punho, osteopenia regional ou periarticular inicial, que pode se tornar
generalizada nos quadros crônicos, erosão óssea associada a diminuição do espaço
interarticular, e proliferação óssea, sob a forma de periostite linear e calcificações em
ênteses, tendões e ligamentos.
O tratamento da artrite reativa inicia-se com o esclarecimento do paciente quanto
à natureza da afecção, assim como de sua evolução em surtos de atividade e remissão,
muitas vezes espontâneos. As medidas terapêuticas instituídas visam à melhoria da
qualidade de vida, sem que se consiga prever o aparecimento ou não de novos surtos.
Anti-inflamatórios não-hormonais constituem a primeira escolha no tratamento dos
episódios agudos, mas nem sempre seu uso isolado é suficiente para o controle do
processo inflamatório. Em caso de resposta insatisfatória ao uso de anti-inflamatórios
não-hormonais por pelo menos duas semanas, injeções intra-articulares de corticoide
podem ser utilizadas. Em caso de resposta insatisfatória ao uso de anti-inflamatórios
não-hormonais e injeções intra-articulares, corticoide sistêmico em dose baixa a
moderada pode ser utilizado. Sulfassalazina, com dose inicial de 500mg duas vezes ao
dia e titulação até 1000mg duas vezes ao dia, com manutenção durante três a seis meses
e suspensão em caso de remissão da doença, é recomendada se o uso de anti-
inflamatórios não-hormonais, associado ou não a injeções intra-articulares de
corticoides, não for efetivo no controle de sinais e sintomas de sinovite. Alguns
pacientes podem necessitar de intervenção mais precoce com a medicação modificadora
do curso da doença. Metotrexato pode ser benéfico em alguns pacientes. Inibidores de
TNF podem ser utilizados em caso de contraindicação ou intolerância ao uso de
Sulfassalazina. Antibióticos podem ser indicados em caso de evidência de infecção ativa
genito-urinária ou de colonização por organismos patogênicos. Infecções do trato
gastrointestinal não-complicadas em geral não necessitam de tratamento com
antibióticos.

Artropatias inflamatórias intestinais


As doenças inflamatórias intestinais podem evoluir com manifestações
articulares de caráter inflamatório e envolvimento típico axial. Muitas vezes, o
acometimento articular inflamatório é assintomático e nem sempre coincide com as
fases ativas do quadro intestinal.
Na maioria dos casos, os sintomas intestinais precedem ou coincidem com as
manifestações reumatológicas. Os sintomas articulares podem ser periféricos e/ou

Pedro Kallas Curiati 1284


axiais. O envolvimento articular periférico é assimétrico, oligoarticular e
frequentemente migratório e transitório, com predomínio em grandes articulações dos
membros inferiores. Entesopatia, periostite e “dedo em salsicha” podem ocorrer, porém
com menor frequência. O envolvimento axial, ao contrário do periférico, tende a
preceder as manifestações intestinais e não tem relação direta com as fases de atividade
inflamatória intestinal, além de não sofrer influência de intervenções cirúrgicas
abdominais. O quadro clínico é similar ao da espondilite anquilosante não complicada,
com lombalgia de caráter inflamatório, noturna, que melhora com a deambulação,
acompanhada de limitação progressiva da movimentação em quase todos os eixos da
coluna.
Quando o quadro clínico das enteroartropatias se inicia com envolvimento
intestinal, outras manifestações cutâneo-mucosas, como uveíte anterior, conjuntivite,
eritema nodoso e aftas orais, associadas ao quadro articular, corroboram o diagnóstico.
Porém, quando os primeiros sintomas são extra-intestinais, como uveíte com eritema
nodoso ou artrite em tornozelo com aftas orais, o diagnóstico diferencial se torna um
desafio.
As provas de atividade inflamatória encontram-se habitualmente aumentadas.
Trombocitose e anemia microcítica hipocrômica são frequentes. HLA-B27 é encontrado
em parcela significativa dos doentes com artrite axial, mas a sua avaliação não tem
papel no manejo das enteroartropatias. Os achados radiológicos se caracterizam por uma
sacroileíte semelhante à da espondilite anquilosante, simétrica e bilateral na maioria dos
casos. A espondilite também é similar, com enquadramento do corpo vertebral,
osteopenia e formação de sindesmófitos marginais e bilaterais. Observa-se também
ossificação da articulação apofisária.
Em relação ao tratamento específico, a resolução cirúrgica parece controlar
melhor a artrite na retocolite ulcerativa do que na doença de Crohn. A terapêutica das
manifestações articulares é similar à das outras espondiloartropatias, mas anti-
inflamatórios não-hormonais são utilizados com cautela, já que podem, eventualmente,
piorar o quadro intestinal na colite ulcerativa, sendo necessário então o uso de
corticosteroides. A Sulfassalazina, já consagrada no tratamento dessas patologias, com
indicação predominantemente em caso de artrite periférica, é prescrita com dose inicial
de 500mg duas vezes ao dia e aumento de 1000mg/dia a cada duas semanas até a
melhora da artrite ou, se necessário, dose máxima ser atingida, com 1500mg três vezes
ao dia. Recomenda-se manutenção durante pelo menos doze semanas antes de avaliar a
eficácia. Na falha de resposta a esse esquema ou em caso de artrite axial, pode-se
utilizar Metotrexato, com dose inicial de 7.5mg/semana e aumento de 2.5-5mg/semana
com intervalos mensais até a inflamação articular ser controlada ou a dose máxima de
25mg/semana ser atingida. Azatioprina e 6-Mercaptopurina são as principais
alternativas em caso de preocupação com hepatotoxicidade. Agentes biológicos, como
Infliximabe, podem ser prescritos nos esquemas preconizados em caso de falha do
tratamento ou controle parcial apenas. O uso de antagonistas de TNF é contraindicado
em caso de infecção ativa, com indicação de tratamento de infecção latente pela
tuberculose antes do início do seu uso.

Artrite psoriásica

Definição
A artrite psoriásica é uma artropatia soronegativa inflamatória que se associa à
psoríase cutânea. Afeta mais caucasianos do que outras raças.

Pedro Kallas Curiati 1285


Epidemiologia
Em cerca de 75% dos casos o quadro cutâneo precede a artrite, em 15% a
doença cutânea e a articular são concomitantes e em 10% dos casos a doença articular
precede a psoríase. Em geral, a doença cutânea aparece na segunda ou na terceira
décadas de vida, enquanto que a doença articular, na maioria das vezes, surge duas
décadas após. Pode manifestar-se em qualquer faixa etária, mas o pico de incidência
ocorre entre trinta e cinquenta anos, com frequência similar em homens e mulheres.

Etiologia e fisiopatologia
A etiopatogenia da artrite psoriásica permanece obscura, mas o surgimento da
doença parece sofrer influência de fatores ambientais, infecciosos e imunogenéticos,
com maior prevalência de HLA-B27. Muitas vezes, estresse emocional pode estar
presente como gatilho.

Quadro clínico
O exame físico revela as lesões cutâneas eritêmato-descamativas associadas à
artropatia inflamatória. As lesões cutâneas podem ser variadas, localizadas ou difusas,
gutatas ou pustulosas.
A forma clássica caracteriza-se por envolvimento das articulações
interfalangeanas distais de mãos e pés, geralmente acompanhado de lesões ungueais
caracterizadas por estrias transversais, pitting nails e hiperqueratose subungueal.
A artrite mutilante é a forma mais grave da doença, já que se apresenta de forma
erosiva e destrutiva, algumas vezes acompanhada de sintomas sistêmicos, como perda
de peso e febre. Envolvimento cutâneo disseminado e sacroileíte são comuns. Afeta
preferencialmente os dedos dos pés e das mãos, as articulações metacarpofalangeanas e
metatarsianas e associa-se a osteólise das falanges envolvidas, anquilose e osteoporose,
com deformidades graves.
A forma espondilítica acomete o esqueleto axial, associa-se ao antígeno HLA-
B27, em geral é assintomática e cursa com envolvimento iliossacral em parte dos casos.
Os sintomas do processo inflamatório em coluna lombar baixa ou parede torácica são
mínimos ou ausentes, havendo pouca correlação entre achados clínicos e radiológicos.
Em geral, há assimetria quanto ao envolvimento das sacroilíacas e à presença de
sindesmófitos. Manifestações extra-articulares, como uveíte, fibrose pulmonar e
insuficiência aórtica, são raras.
A forma monoarticular ou oligoarticular assimétrica em algum momento no
curso da doença evolui para poliartrite. Em geral, há pouca relação entre a atividade
cutânea e a articular. Ocorre acometimento de maneira assimétrica das articulações
interfalangeanas proximais, interfalangeanas distais e metacarpofalangeanas, além de
dedos dos pés, tornozelos, calcanhares, joelhos e quadris.
A tenossinovite digital leva ao característico “dedo em salsicha”. Na poliartrite
simétrica tipo reumatoide, pequenas e grandes articulações são afetadas de maneira
semelhante à artrite reumatoide, mas o envolvimento das interfalangeanas distais, o
fator reumatoide negativo e a ausência de nódulos subcutâneos auxiliam no diagnóstico.
É importante ressaltar que os padrões de comprometimento articular podem
modificar-se ou superpor-se ao longo do tempo. Outras manifestações observadas são
conjuntivite, uveíte, entesite, dactilite e lesões mucosas.

Avaliação complementar
A avaliação laboratorial é inespecífica, mas velocidade de hemossedimentação,
proteína C reativa e alfa-1 glicoproteína ácida em geral estão aumentadas na fase ativa

Pedro Kallas Curiati 1286


da doença. Hipergamaglobulinemia policlonal, anemia, hipoalbuminemia, complemento
sérico normal ou elevado, imunocomplexos circulantes e hiperuricemia podem ser
observados em alguns pacientes. Fator reumatoide pode ser positivo em até 10% dos
pacientes. Apesar de inespecífica, a análise do líquido sinovial tem características
inflamatórias com aumento de celularidade. A investigação radiológica revela
características de uma artropatia inflamatória com edema de partes moles, redução do
espaço articular e, nos casos mais avançados, doença erosiva grave nas articulações
interfalangeanas distais, osteólise com destruição articular e anquilose óssea. Nas
formas axiais, sindesmófitos isolados e assimétricos com sinais de periostite secundária
a entesopatia distal podem ser observados e a sacroileíte pode ser unilateral nas fases
iniciais, mas geralmente evolui para fusão bilateral.

Critérios diagnósticos
Inflamação musculoesquelética, com artrite, entesite ou dor lombar.
Pelo menos três pontos:
- Psoríase (2 pontos), psoríase prévia (1 ponto) ou história familiar de
psoríase (1 ponto);
- Lesões ungueais (1 ponto);
- Dactilite, atual ou prévia, documentada por reumatologista (1 ponto);
- Fator reumatoide negativo (1 ponto);
- Formação óssea justa-articular em radiografias simples (1 ponto);

Tratamento
O tratamento consiste na utilização de anti-inflamatórios não-hormonais, agentes
imunossupressores, fisioterapia e terapia ocupacional. Em geral, o alívio dos sintomas
articulares ocorre na maioria dos pacientes com o uso de anti-inflamatórios não-
hormonais, como Naproxeno, Indometacina e inibidores da ciclo-oxigenase 2, mas sem
influência na evolução clínica e radiológica da doença. Dessa forma, agentes
modificadores do curso da doença devem ser iniciados precocemente, especialmente em
pacientes com comprometimento articular mais grave, maior número de articulações
afetadas, sintomas persistentes apesar de terapêutica com anti-inflamatórios não-
hormonais ou rápida progressão radiológica ou funcional.
Apesar da exacerbação das lesões cutâneas ter sido descrita com o uso de
Quinacrian e Cloroquina, antimaláricos, como Hidroxicloroquina, podem
eventualmente ser benéficos para a manifestação articular da doença. Colchicina, na
dose de 0.5-1.5mg/dia, pode ser útil para alguns pacientes, com melhora da rigidez
matinal e da dor articular. A melhor opção terapêutica para a artrite psoriásica é, no
entanto, Metotrexato. Sulfassalazina na dose de 1-3g/dia pode ser uma alternativa,
especialmente para a forma axial da doença, assim como a Leflunomida, a Azatioprina
na dose de 1-3mg/kg/dia para casos refratários e a Ciclosporina A na dose de 2.5-
5.0mg/kg/dia, que controla as manifestações cutâneas e articulares também nos casos
refratários.
Corticosteroides sistêmicos são evitados, já que geralmente doses elevadas são
necessárias para controlar a doença e recidivas são comuns. As apresentações tópicas
para controle das lesões cutâneas são absorvidas pela pele e podem proporcionar certo
alívio articular. Já o corticoide intra-articular pode auxiliar no manejo de sinovites
isoladas, mas exige cuidados rigorosos de assepsia pelo alto risco de contaminação
articular por bactérias, sendo recomendado evitar que a agulha passe pela placa
psoriásica.
Recentemente, agentes biológicos, como os inibidores do TNF Adalimumabe,

Pedro Kallas Curiati 1287


Etanercepte, Golimumabe e Infliximabe, têm demonstrado uma boa ação na
estabilização da doença com excelente resposta das lesões de pele, além de proporcionar
melhora sintomática importante do quadro articular. Estão indicados em caso de
persistência das alterações de líquido sinovial após três meses de tratamento com
Metotrexato.
Orientação postural, atividade física e exercícios de alongamento e
fortalecimento muscular com a prática de exercícios isométricos devem ser introduzidos
e encorajados gradativamente, à medida que o quadro inflamatório entra em remissão
com a terapêutica empregada.
Artroplastias e outras formas de intervenção ortopédica, como tenotomia e
artrodeses, principalmente de joelhos e quadris, podem ser necessárias quando as
limitações funcionais forem importantes. Proporcionam melhor qualidade de vida ao
paciente.

Bibliografia
Clínica médica: diagnóstico e tratamento. Itamar de Souza Santos... [et al.]. São Paulo. Sarvier, 2008.
Goldman’s Cecil medicine / [edited by] Lee Goldman, Andrew I. Schafer.—24th ed. 2012.
Clinical manifestations, diagnosis, and management of undifferentiated spondyloarthritis and related spondyloarthritides. David T
Yu. UpToDate, 2012.
Pathogenesis of spondyloarthritis. David T Yu. UpToDate, 2012.
Clinical manifestations of ankylosing spondilytis in adults. David T Yu. UpToDate, 2012.
Diagnosis and differential diagnosis of ankylosing spondylitis. David T Yu. UpToDate, 2012.
Assessment and treatment of ankylosing spondylitis in adults. David T Yu. UpToDate, 2012.
Reactive arthritis (formerly Reiter syndrome). David T Yu. UpToDate, 2012.
Arthritis associated with gastrointestinal disease. Peter H Schur. UpToDate, 2012.
Clinical manifestations and diagnosis of psoriatic arthritis. Dafna D Gladman. UpToDate, 2012.
Treatment of psoriatic arthritis. Dafna D Gladman. UpToDate, 2012.

Pedro Kallas Curiati 1288


GOTA
Definição
A gota é uma artrite inflamatória induzida pela deposição de cristais de
monourato de sódio em articulações, estruturas periarticulares, rins e tecido subcutâneo.
Está associada a hiperuricemia.

Epidemiologia
A gota acomete principalmente os homens, com pico de incidência aos quarenta
anos de idade. A disparidade entre homens e mulheres diminui com o avançar da idade,
pelo menos em parte devido ao declínio nos níveis de estrogênio, que apresenta efeito
uricosúrico. Existe uma forte influência hereditária.

Fisiopatologia
O ácido úrico é um produto normal do catabolismo das purinas, excretado
basicamente pelo rim. A concentração normal no plasma é de até 6.8mg/dL e acima
desse nível a solubilidade diminui, com aumento progressivo do risco de deposição nos
tecidos sob a forma de cristais.
Existem dois mecanismos básicos de doença:
- Aumento na produção de ácido úrico, que pode ocorrer devido a defeito
enzimático, alto metabolismo de ácidos nucleicos, dieta rica em purinas e
estresse, como em traumatismo, cirurgia e infecção;
- Diminuição da eliminação de ácido úrico pelo rim, com deficiência
específica presente na maior parte dos portadores de gota,
independentemente da função renal;

Classificação
Gota primária:
- Idiopática;
- Defeito enzimático;
Gota secundária:
- Aumento do metabolismo de ácidos nucleicos, como em neoplasias,
tratamento quimioterápico, hiperparatireoidismo, psoríase, estresse físico
e estresse emocional;
- Diminuição da eliminação de ácido úrico pelo rim, como em
insuficiência renal, uso de substâncias que reduzem o clearance do ácido
úrico, como diuréticos, Ácido Acetilsalicílico em doses de até 1g/dia,
drogas contra tuberculose e etanol, intoxicação por chumbo e acidose
metabólica;

Quadro clínico
Hiperuricemia assintomática caracteriza-se por níveis elevados de ácido úrico
sérico, acima de 6.8mg/dL, porém sem nenhuma manifestação da doença.
Artrite gotosa aguda é uma das manifestações clínicas mais características do
sistema musculoesquelético. A crise manifesta-se por artralgia quase sempre
monoarticular, de início repentino, intensa, acompanhada de edema, calor e eritema
locais, com duração de três a dez dias e regressão espontânea. As articulações
periféricas dos membros são as mais comumente afetadas. Irritabilidade, febre e poliúria

Pedro Kallas Curiati 1289


podem anteceder e acompanhar as crises. Após a crise, pode ocorrer descamação
epidérmica sobre o local afetado. Os fatores desencadeantes mais comuns são ingesta de
bebida alcoólica, uso de medicamentos, como diuréticos, Ácido Acetilsalicílico e drogas
contra tuberculose, traumatismo, infecção, cirurgia, estresse emocional, excessos
dietéticos e fase inicial ou interrupção de tratamento para hiperuricemia.
Os pacientes ficam assintomáticos após os primeiros ataques agudos, inclusive
sem nenhuma sequela articular na maioria das vezes. Muitos apresentam uma única
crise durante toda a vida, enquanto outros apresentam mais duas ou três crises. No
entanto, a evolução mais característica é a daqueles que apresentam vários ataques, que
tendem a se tornar mais prolongados e a envolver mais articulações. Em alguns casos, o
indivíduo entra em fase poliarticular crônica, com dor nos períodos intercríticos e
alterações persistentes ao exame clínico e radiológico articular.
Gota tofácea crônica caracteriza-se pela presença de tofos, depósitos de urato,
em vários tecidos, principalmente subcutâneo, articulações e região periarticular. Incide
em pacientes com doença de longa evolução, após muitos surtos de artrite.
O rim é o sítio extra-articular mais comumente afetado na gota e na
hiperuricemia assintomática. Os cálculos renais são constituídos por ácido úrico
isoladamente ou associados a outras substâncias, como o oxalato de cálcio. A
nefropatia decorre do acúmulo de cristais no interstício renal.
Doenças associadas incluem hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus,
insuficiência coronariana, hipercolesterolemia e hipertrigliceridemia.

Exames complementares
Ácido úrico sérico geralmente é maior do que 6.8mg/dL, embora existam raros
casos de gota com uricemia normal.
Provas de atividade inflamatória, como velocidade de hemossedimentação e
proteína C reativa, podem elevar-se na fase aguda.
Hemograma pode revelar leucocitose na fase aguda.
Excreção de ácido úrico em urina de 24 horas serve para diferenciar indivíduos
hiperexcretores, normoexcretores e hipoexcretores, sendo normal 300-800mg.
Clearance de ácido úrico geralmente é reduzido, inferior a 6.5mL/minuto.
Glicemia, colesterol e triglicérides podem estar alterados.
A análise do líquido sinovial revela presença de cristais de monourato de sódio
extra-articulares e intra-articulares, com grande quantidade de polimorfonucleares na
fase aguda. Deve ser enviado material para bacterioscopia e cultura para diagnóstico
diferencial.
Exame anatomopatológico revela presença de granulomas envolvendo massas de
cristais de urato em tofos e articulações comprometidas.
Na radiografia convencional, verificam-se múltiplas erosões ósseas em saca-
bocado com bordas escleróticas e espiculadas. Habitualmente, o osso afetado torna-se
mais denso que o adjacente. Calcificações periarticulares são incomuns. Os tofos podem
ser identificados como opacidades tênues na radiografia e às vezes tornam-se
calcificados. Com a evolução da doença, surgem lesões ósseas líticas disseminadas,
redução do espaço articular, osteófitos, anquilose e osteopenia.
Ultrassonografia de vias urinárias e dosagem de uréia e creatinina são utilizadas
para pesquisa de doença renal associada.

Diagnóstico
Baseia-se em história clínica, hiperuricemia, achados de cristais de monourato
de sódio em tofos, líquido sinovial e sinóvia e quadro radiográfico.

Pedro Kallas Curiati 1290


Diagnóstico diferencial
Na primeira crise de gota, é fundamental a punção articular para descartar artrite
séptica. Outros diagnósticos diferenciais incluem artrite reumatoide e artropatias
soronegativas.

Tratamento

Crise articular
As drogas de primeira opção são os anti-inflamatórios não-hormonais.
Diclofenaco e Indometacina podem ser administrados com 50mg de 8/8 horas por via
oral durante dois dias e 25mg de 8/8 horas por via oral durante mais três dias ou 50mg
de 8/8 horas por via oral durante três dias e 25mg de 8/8 horas por via oral durante mais
quatro a sete dias. Naproxeno pode ser administrado com 500mg de 12/12 horas por via
oral durante cinco dias ou 500mg de 12/12 horas por via oral durante três dias e 250mg
de 12/12 horas por via oral durante mais quatro a sete dias, com apresentações injetáveis
nos quadros mais graves. Devem ser evitados em caso de insuficiência renal ou
hepática, distúrbios da coagulação, insuficiência cardíaca ou alergia. Estão associados a
risco aumentado de eventos adversos trombóticos e gastrointestinais.
Corticosteróides por via oral ou intra-articular são altamente eficazes, estão
indicados quando o tratamento com anti-inflamatórios não-hormonais for
contraindicado ou ineficaz e podem ser utilizados durante todo o período de duração da
crise. Prednisolona pode ser administrada com 30-35mg/dia por via oral durante cinco
dias. Prednisona pode ser administrada com 30-60mg/dia por via oral durante dois dias
conforme a gravidade da crise e redução de 5-10mg/dia a cada dois dias até completar
dez dias. É necessária cautela em pacientes com hiperglicemia ou insuficiência cardíaca.
A Colchicina pode ser usada na dose de 0.5mg de 8/8 horas por via oral,
ressaltando-se que pode provocar diarreia e dor abdominal.
A medicação escolhida deverá ser administrada por sete a dez dias para garantir
a resolução dos sintomas.
Medidas adjuvantes incluem crioterapia e repouso da articulação acometida.

Hiperuricemia
Inicialmente, deve-se orientar uma dieta adequada, com restrição parcial da
ingesta de carnes em geral e leguminosas, como feijão, lentilha e ervilha. A ingesta de
bebidas alcoólicas deve ser proibida. Pode-se aumentar a ingesta de vitamina C.
A escolha da melhor opção medicamentosa deve ser feita após a avaliação da
excreção e do clearance do ácido úrico, além da investigação de litíase urinária com
história, ultrassonografia e radiografia. Há benefício em pacientes com hiperuricemia e
pelo menos duas crises ao ano ou com gota tofácea crônica.
Nos indivíduos hipoexcretores e normoexcretores sem calculose, indica-se o uso
de uricosúricos, que bloqueiam a reabsorção tubular renal de urato, como
Benzbromarona 50-200mg/dia, que é muito eficaz, mesmo em indivíduos com baixo
clearance de creatinina, apesar de apresentar certo grau de hepatotoxicidade. Probenecid
deve ser iniciado com dose de 250mg/dia por via oral e aumentado em 500mg/dia por
mês até dose máxima de 2-3g/dia de 12/12 horas em pacientes com função renal normal
para atingir a meta do tratamento. Sulfinpirazona também age como uricosúrico.
Inibidores da síntese do ácido úrico são usados nos indivíduos hiperexcretores e
hiperprodutores de ácido úrico ou ainda naqueles que apresentam urolitíase. A única
opção terapêutica do grupo dos inibidores da xantina oxidase até recentemente era é o

Pedro Kallas Curiati 1291


Alopurinol, administrado com dose inicial de 50-100mg/dia por via oral, com
incremento a cada duas a quatro semanas até dose média de 300mg/dia, podendo-se
atingir até 800mg/dia se função renal normal. Deve ser prescrito criteriosamente por ser
mielotóxico, nefrotóxico e hepatotóxico, além de provocar erupções cutâneas com certa
frequência. A dose deve ser reduzida em caso de disfunção renal. Febuxostat foi
lançado recentemente no mercado, com dose inicial de 40mg/dia por via oral e aumento
até 80mg/dia após duas a quatro semanas para atingir a meta de tratamento, se
necessário, com maior eficácia do que o Alopurinol. Deve-se evitar o uso dessas
medicações em associação com Azatioprina ou 6-Mercaptopurina.
Pegloticase, uma uricase recombinante porcina modificada, foi aprovada em
2010 para doença crônica refratária ao tratamento convencional. Preconiza-se 8mg por
via intravenosa a cada duas semanas. Reações adversas são comuns e deve-se pré-
medicar com anti-histamínicos e glicocorticoides. Colchicina deve ser iniciada pelo
menos sete dias antes para prevenir uma crise aguda.
É necessária monitorização cuidadosa dos níveis de ácido úrico sérico, da função
renal e dos efeitos adversos. As doses das medicações devem ser ajustadas para uma
meta de ácido úrico sérico inferior a 6mg/dL.
O tratamento da hiperuricemia nunca deve ser iniciado ou suspenso durante o
quadro articular agudo, pois a oscilação do nível de ácido úrico pode desencadear ou
agravar uma crise, devendo-se aguardar duas a quatro semanas após a resolução.
Colchicina 0.6mg por via oral uma a duas vezes ao dia pode ser utilizada
profilaticamente durante o início do tratamento por pelo menos seis meses. A
hiperuricemia assintomática habitualmente não deve ser tratada, exceto durante
quimioterapia ou em caso de níveis muito elevados. Na medida do possível, deve-se
restringir o uso de diuréticos e Ácido Acetilsalicílico. A restrição dietética não deve ser
muito rigorosa nos pacientes que deverão obrigatoriamente utilizar fármacos. Na litíase
urinária, preconiza-se a alcalinização da urina, o que pode ser realizado com
Bicarbonato de Sódio, Ácido Cítrico e Citrato de Sódio acompanhados de uma
hidratação corporal adequada.

Bibliografia
Clínica médica: diagnóstico e tratamento. Itamar de Souza Santos... [et al.]. São Paulo. Sarvier, 2008.
Manual de Reumatologia para graduação em medicina. Ricardo Fuller. São Paulo. Pontes Editores Ltda. 2007.
Gout. Tuhina Neogi. N Engl J Med 2011;364:443-52.

Pedro Kallas Curiati 1292


LÚPUS ERITEMATOSO SISTÊMICO
Definição
O lúpus eritematoso sistêmico é uma doença autoimune crônica por
imunocomplexos. Caracteriza-se por inflamação de múltiplos órgãos, com apresentação
clínica polimórfica.

Epidemiologia
A doença, característicamente, é muito prevalente em mulheres em idade fértil,
sendo que seus primeiros sinais e sintomas se iniciam principalmente entre a segunda e
a terceira décadas de vida. No entanto, pode ocorrer com relativa frequência em
crianças e idosos, com menor predomínio do gênero feminino.
A doença parece ser mais prevalente na raça negra.

Fisiopatologia
A patogênese possui origem multifatorial. O componente genético parece
apresentar um papel de destaque. A participação hormonal é evidenciada pela maior
prevalência na população feminina em idade fértil. A influência de fatores ambientais é
bem reconhecida e a exposição à luz ultravioleta é capaz de induzir e exacerbar a
atividade inflamatória cutânea e sistêmica. Substâncias químicas, como Sulfadiazina,
Sulfametoxazol-Trimetoprim e estrogênio, também são reconhecidas como
desencadeantes de exacerbações. Agentes infecciosos virais são considerados na gênese
da doença.
Existe uma forma especial de doença, o lúpus induzido por medicamentos como
Procainamida e Hidralazina, com um quadro clínico mais brando, sem acometimento
renal e do sistema nervoso central, na presença exclusiva dos anticorpos anti-histona.

Quadro clínico
O lúpus é uma doença pleomórfica que não apresenta um padrão clássico de
comprometimento sistêmico. As manifestações clínicas podem aparecer isoladamente,
de forma consecutiva ou de forma aditiva. Articulações e pele são acometidas com
maior frequência, enquanto que rins e sistema nervoso central são acometidos em
quadros mais graves. Sintomas gerais e constitucionais podem estar presentes, como
febre, anorexia e perda insidiosa de peso.

Manifestações cutâneas
As lesões cutâneas específicas permitem considerar três quadros clínicos
cutâneos, que podem evoluir com ou sem comprometimento sistêmico. Outras lesões
cutâneas inespecíficas frequentes são alopecia, vasculite cutânea, fenômeno de Raynaud
e livedo reticular. As úlceras orais podem ser diferenciadas das aftas por serem mais
dolorosas e persistentes.
O lúpus eritematoso cutâneo crônico, também conhecido como lúpus discoide,
consiste em dermatose de evolução crônica e é a variante clínica mais comum do lúpus
eritematoso cutâneo. As lesões cutâneas são desencadeadas ou agravadas por exposição
a radiação ultravioleta, frio ou drogas. As lesões discoides podem ser localizadas ou
generalizadas e caracterizam-se por eritema de cor rosada a violeta, com atrofia central
e descamação. Afetam frequentemente a face, especialmente as regiões malares e o
dorso do nariz, com aspecto característico em asa de borboleta. Acometem o couro

Pedro Kallas Curiati 1293


cabeludo, onde as lesões causam alopecia localizada. As lesões geram cicatriz após a
resolução e podem surgir hiperpigmentação residual e telangiectasias. O diagnóstico é
obtido pelo exame histológico e por imunofluorescência direta da lesão. O fator anti-
núcleo é positivo em 30-40% dos pacientes, com títulos baixos. A doença permanece
restrita à pele em 80-90% dos casos.
Lúpus eritematoso cutâneo subagudo é forma disseminada com importante
componente de foto-sensibilidade e lesões cutâneas que involuem sem atrofia
cicatricial, com hipopigmentação residual e eventualmente aspecto vitiligoide. Metade
dos casos preenche critérios para lúpus eritematoso sistêmico e, nesses casos, há menor
incidência de comprometimento renal. Caracteriza-se por lesões pápulo-eritematosas
com descamação tênue, que formam lentículas ou placas com aspecto psoriasiforme ou
anular policíclico. As lesões surgem preferencialmente em porção superior do tronco,
ombros, decote, face extensora dos membros superiores e dorso da mão. Há associação
com anticorpos anti-Ro (SS-A). O diagnóstico laboratorial compreende exame
anatomopatológico da lesão cutânea e imunofluorescência direta da pele lesada e sã,
além de exames complementares. Os anticorpos anti-nucleares são encontrados com
padrão pontilhado ou homogêneo na dependência do substrato utilizado e correspondem
à presença de anticorpos anti-Ro (SS-A), comumente associados aos anticorpos anti-La
(SS-B).
Lúpus eritematoso cutâneo agudo ocorre exclusivamente no lúpus eritematoso
sistêmico em atividade e, classicamente, compreende eritema malar em asa de borboleta
simétrico e associado a foto-sensibilidade. A forma generalizada é caracterizada por
eritema máculo-papular. Uma das características dessas lesões é sua evolução para
hiperpigmentação após a resolução da fase inflamatória.

Manifestações musculoesqueléticas
Extremamente frequentes nas fases precoces da doença. Apesar de não existir
um padrão articular, a grande maioria dos casos cursa com poliartrite episódica, de
caráter migratório ou aditivo, sempre não-deformante. Por vezes, há rigidez matinal
proeminente, com dificuldade para diagnóstico diferencial com artrite reumatoide. A
artropatia tipo Jaccoud caracteriza-se por desvio ulnar, deformidade do tipo “pescoço de
cisne” e subluxação das articulações interfalangeanas do polegar, mas é facilmente
passível de redução e alinhamento durante o exame físico.

Manifestações cardiovasculares
A pericardite é uma das manifestações cardíacas mais frequentes. O quadro
agudo pode ser isolado ou fazer parte de serosite generalizada. Os sintomas variam de
discretos e transitórios até graves e persistentes, mas a evolução é habitualmente
subaguda ou crônica, raramente cursando com tamponamento cardíaco.
A miocardite é caracterizada por taquicardia persistente e sinais clínicos de
insuficiência cardíaca de instalação aguda.
A endocardite de Libman-Sacks é caracterizada pela presença de vegetações
verrucosas próximas às bordas valvares.
Aterosclerose precoce e acelerada é importante causa de mortalidade por infarto
agudo do miocárdio.

Manifestações pleuro-pulmonares
A pleurite é manifestação pulmonar frequente, enquanto que doença intersticial
pulmonar é rara e deve ser diferenciada de infecções. Hipertensão arterial pulmonar
pode ocorrer de forma leve, mas é necessário descartar embolia pulmonar recorrente e

Pedro Kallas Curiati 1294


estado de hipercoagulabilidade.

Manifestações neurológicas
Manifestações difusas incluem convulsões, predominantemente tônico-clônicas
e recidivantes mesmo após introdução de medicação anticonvulsivante, psicose,
cefaleia, pseudotumor cerebral e síndrome orgânica cerebral.
Manifestações focais incluem acidente vascular cerebral, mielite transversa,
síndrome de Guillain-Barré, meningite asséptica, neuropatia craniana periférica,
tremores, coreia e parkinsonismo.
Devem ser excluídos infecções, anormalidades metabólicas, hemorragias,
tromboses, crise hipertensiva e reação adversa de medicamentos.

Manifestações renais
A identificação da nefrite lúpica deve ser realizada o mais precocemente
possível, através de alterações laboratoriais e histológicas, já que sintomas e sinais
ocorrem quando há grau avançado de síndrome nefrótica ou insuficiência renal.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, a glomerulonefrite lúpica pode ser
classificada através de biópsia renal com base em padrão histológico:
- I – Normal;
- II – Mesangial, caracterizada por hematúria e proteinúria discretas, sem
hipertensão ou alteração de função renal;
- III – Proliferativa segmentar e focal, caracterizada por sedimento
nefrítico e, frequentemente, proteinúria nefrótica, hematúria, cilindrúria,
hipertensão arterial e insuficiência renal de grau leve;
- IV – Proliferativa difusa, caracterizada por combinação de sedimento
nefrítico e nefrótico, com proteinúria e hematúria significativas,
hipertensão arterial e insuficiência renal significativa;
- V – Membranosa, caracterizada por síndrome nefrótica;
- VI – Esclerose glomerular;
A biópsia inicial é de extrema valia principalmente quando existem fatores como
diabetes mellitus, crise hipertensiva, síndrome do anticorpo antifosfolípide e uso de
medicamentos potencialmente nefrotóxicos. Além disso, auxilia na análise dos índices
de atividade e cronicidade renais.

Manifestações hematológicas
As manifestações hematológicas podem preceder em anos o diagnóstico da
doença. A série branca apresenta-se alterada com maior frequência, com leucopenia e
linfopenia isoladas ou em associação sendo os principais achados.
Anemia está presente na maior parte dos pacientes e pode ser classificada em
imune e não-imune. A anemia hemolítica com Coombs positivo é a principal
representante do grupo das anemias imunes. Pode ser identificada outra forma de
hemólise, a anemia hemolítica microangiopática, caracterizada por Coombs negativo e
identificação de esquizócitos na periferia, geralmente relacionada a presença de
vasculite sistêmica. A causa mais comum de anemia não-imune é a anemia de doença
crônica, seguida pela anemia secundária a deficiência de ferro e pela anemia secundária
a doença renal.
O grau de plaquetopenia é variável e formas graves são pouco comuns.

Exames complementares
A complementação diagnóstica inclui as provas inflamatórias de fase aguda,

Pedro Kallas Curiati 1295


como velocidade de hemossedimentação, que pode persistir elevada após a remissão da
doença e não refletir corretamente a atividade inflamatória, e proteína C reativa,
geralmente baixa no lúpus eritematoso sistêmico e elevada em processos infecciosos,
com utilidade no diagnóstico diferencial.
Eletroforese de proteínas é importante para avaliar elevação de gamaglobulina,
que por vezes pode estar associada à atividade da doença, e pode ser útil para avaliar
níveis de albumina e de atividade inflamatória.
Hemograma é exame fundamental no diagnóstico e no acompanhamento dos
pacientes com lúpus eritematoso sistêmico. O teste de Coombs e a dosagem da
desidrogenase lática auxiliam no diagnóstico de anemia hemolítica.
Avaliação renal com urina 1, uréia e creatinina séricas e clearance de creatinina
deve ser feita independentemente da presença de manifestações clínicas tanto no
diagnóstico como no acompanhamento dos pacientes..
A pesquisa do fator anti-nuclear é o primeiro teste a ser realizado, sendo positiva
em mais de 98% dos pacientes. Apesar da alta sensibilidade, o fator anti-nuclear ocorre
em um grande número de doenças crônicas ou mesmo em indivíduos normais,
particularmente idosos, com menor especificidade.
Diante da positividade do fator anti-nuclear, é fundamental caracterizar os auto-
anticorpos específicos do lúpus eritematoso sistêmico, particularmente o anti-dsDNA e
o anti-Sm, que são marcadores específicos da doença e cuja titulação pode ser muito útil
no acompanhamento da atividade inflamatória, particularmente na nefrite. Os anticorpos
anti-proteína P ribossômica podem, em alguns casos, ser os únicos marcadores de
doença e sua pesquisa auxilia o acompanhamento de pacientes com quadros
psiquiátricos graves associados.
Outros anticorpos também podem ser detectados e caracterizam o padrão de
resposta imunológica, sendo frequentes anti-RNP, anti-Ro (SS-A), anti-La (SS-B), e
antifosfolípide, relacionados com tromboses e/ou abortamentos de repetição, com
síndrome antifosfolípide secundária. Fator reumatoide está presente em cerca de um
quarto dos pacientes com lúpus eritematoso sistêmico.
A avaliação da resposta imunológica também compreende a determinação da
atividade hemolítica do complemento e dos níveis séricos dos seus componentes C3 e
C4, cujas diminuições dos seus níveis guardam uma estrita relação com a atividade
inflamatória da doença, sendo extremamente úteis na monitorização da doença e da
resposta terapêutica.

Critérios diagnósticos

American College of Rheumatology (ACR, 1982)


Devem estar presentes quatro dentre:
- Eritema malar;
- Lesão discoide;
- Foto-sensibilidade;
- Úlceras orais;
- Artrite não-erosiva de duas ou mais articulações;
- Serosite, com pleurite e/ou cardite;
- Proteinúria superior a 0.5g/dia e/ou cilindrúria;
- Convulsão e/ou psicose;
- Anemia hemolítica, leucopenia inferior a 4000/mm3, linfopenia inferior
a 1500/mm3 e/ou plaquetopenia inferior a 100000/mm3;
- Anticorpos anti-fosfolípide, anti-dsDNA e/ou anti-Sm;

Pedro Kallas Curiati 1296


- Anticorpos anti-nucleares;

Systemic Lupus International Collaborating Clinics (SLICC, 2012)


O diagnóstico de lúpus eritematoso sistêmico é baseado na presença de quatro
critérios, com pelo menos um critério clínico e um critério imunológico.
Alternativamente, o diagnóstico pode ser baseado em nefrite lúpica confirmada por
biópsia em associação com fator anti-núcleo positivo ou anti-dsDNA positivo. Os
critérios diagnósticos não precisam estar presentes simultaneamente.

CRITÉRIOS CLÍNICOS
1. Lúpus cutâneo agudo, incluindo rash malar lúpico, lúpus bolhoso, necrólise
epidérmica tóxica lúpica, rash máculo-papular lúpico e rash por
fotossensibilidade lúpico, na ausência de dermatomiosite, ou lúpus cutâneo
subagudo, com lesões psoriasiformes não-enduradas e/ou anulares policíclicas
que resolvem sem deixar cicatriz, apesar de ocasionalmente deixarem
despigmentação pós-inflamatória ou telangiectasias;
2. Lúpus cutâneo crônico, incluindo lúpus discoide clássico localizado, acima do
pescoço, ou generalizado, lúpus hipertrófico ou verrucoso, paniculite lúpica ou
lúpus profundo, lúpus mucoso, lúpus túmido, lúpus pernioso e sobreposição de
líquen plano com lúpus discoide;
3. Úlceras orais ou nasais na ausência de outras causas, como vasculite, doença de
Behçet, infecção (herpesvírus), doença inflamatória intestinal, artrite reativa e
alimentação ácida;
4. Alopecia não-cicatricial, com afilamento difuso ou fragilidade com fios
quebrados visíveis, na ausência de outras causas, como alopecia areata, drogas,
deficiência de ferro e alopecia androgênica;
5. Sinovite envolvendo duas ou mais articulações, com inchaço ou efusão, ou dor
envolvendo duas ou mais articulações, com rigidez matinal de pelo menos trinta
minutos;
6. Serosite, com pleurite por mais de um dia, efusão pleural, atrito pleural, dor
pericárdica típica por mais de um dia (pior com decúbito dorsal e melhor com
inclinação do corpo para a frente), efusão pericárdica, atrito pericárdico ou sinais
eletrocardiográficos de pericardite;
7. Sedimento urinário com proteinúria superior ou igual a 500mg em 24 horas ou
superior ou igual a 0.5g/g de creatinina urinária ou cilindros hemáticos;
8. Convulsões, psicose, mononeurite múltipla na ausência de outras causas, como
vasculite primária, mielite, neuropatia periférica ou de pares cranianos na
ausência de outras causas, como vasculite primária, infecção e diabetes mellitus,
estado confusional agudo na ausência de outras causas, como intoxicação e
distúrbio metabólico;
9. Anemia hemolítica;
10. Leucopenia inferior a 4000/mm3 em pelo menos uma ocasião na ausência de
outras causas, como síndrome de Felty, drogas e hipertensão portal ou linfopenia
inferior a 1000/mm3 em pelo menos uma ocasião na ausência de outras causas,
como corticosteroides, drogas e infecções;
11. Trombocitopenia inferior a 100000/mm3 em pelo menos uma ocasião na
ausência de outras causas, como drogas, hipertensão portal e púrpura
trombocitopênica trombótica;

CRITÉRIOS IMUNOLÓGICOS

Pedro Kallas Curiati 1297


12. Fator anti-núcleo positivo, acima dos valores de referência do laboratório para a
normalidade;
13. Anti-dsDNA acima dos valores de referência do laboratório para a normalidade
ou acima de duas vezes o limite superior dos valores de referência do laboratório
para a normalidade em caso de ELISA;
14. Anti-Sm positivo;
15. Anticorpos anti-fosfolípides, com teste positivo para anticoagulante lúpico,
rapid plasma reagin falso-positivo, anti-cardiolipina IgA, IgG ou IgM com
títulos moderados ou altos ou teste positivo para anti-β2-glicoproteína IgA, IgG
ou IgM;
16. Complemento baixo, com C3 baixo, C4 baixo ou CH50 baixo;
17. Coombs direto positivo na ausência de anemia hemolítica;

Tratamento
Aspectos relacionados a doença e sua evolução, com possíveis complicações e
riscos decorrentes dela ou de seu tratamento, devem ser explicados e discutidos com o
paciente.
A frequência com a qual testes laboratoriais de monitorização da doença são
realizados depende da atividade e da gravidade das manifestações clínicas. Preconiza-se
avaliação complementar semanal em caso de nefrite lúpica ativa, a cada dois a três
meses em caso de redução da taxa de filtração glomerular estimada e doença estável,
sem proteinúria, a cada quatro a seis meses em caso de nefrite lúpica prévia e taxa de
filtração glomerular estimada normal, sem proteinúria, com doença quiescente, e a cada
seis a doze meses em caso de ausência de envolvimento renal, com doença quiescente.
Sugere-se hemograma completo, velocidade de hemossedimentação, proteína C reativa,
urina 1, proteinúria, creatinina sérica, taxa de filtração glomerular estimada, anti-
dsDNA e frações C3 e C4 do complemento. Em indivíduos com antecedente de nefrite
lúpica, dosagem de proteínas e de creatinina na urina e de albumina sérica é
recomendada.
Deve-se orientar proteção contra luz solar e outras formas de radiação
ultravioleta pelos riscos de exacerbação ou indução de lesões cutâneas e até mesmo de
manifestações sistêmicas, preferindo-se produtos com fator de proteção solar superior
ou igual a 55. O grau de foto-sensibilidade é determinante na restrição à exposição solar
e na frequência e na intensidade da fotoproteção. O tabagismo deve ser desestimulado
por dificultar a melhora das manifestações cutâneas. O uso de bloqueadores dos canais
de cálcio e a proteção contra o frio são medidas efetivas no tratamento do fenômeno de
Raynaud, que tende a se tornar menos intenso com o controle da doença. Dieta
balanceada deve ser recomendada para promover melhor qualidade de vida com base
em comorbidades e complicações da doença ou da terapêutica. As pacientes em idade
fértil devem ser orientadas a não engravidar até a doença estar quiescente por pelo
menos seis meses e o uso de contraceptivos combinados orais deve ser evitado em caso
de enxaqueca, fenômeno de Raynaud, antecedente de flebite e positividade para
anticorpo antifosfolípide. As lesões discoides podem ser tratadas com pomadas ou
apósitos oclusivos de corticoides fluorados ou com infiltração de Triamcinolona 2.5-
5.0mg/mL.
A terapêutica medicamentosa deve ser obrigatoriamente individualizada, pois
depende dos sistemas comprometidos e da intensidade do processo inflamatório.
Gestantes geralmente são manejadas com corticosteroides, mas anti-inflamatórios não-
hormonais e Hidroxicloroquina provavelmente são seguros.
Anti-inflamatórios não-hormonais devem ser utilizados com cautela,

Pedro Kallas Curiati 1298


particularmente nos doentes com envolvimento renal, estando indicados para o controle
das manifestações articulares, das serosites leves a moderadas, da cefaleia e da febre
associada a doença.
Os corticosteroides são preferencialmente utilizados nos quadros iniciais, pois
promovem um rápido controle da maioria das manifestações clínicas. Devido a seus
múltiplos efeitos colaterais, devem ser introduzidos na menor dose efetiva com base na
gravidade do processo inflamatório e na rapidez da evolução clínica. Doses elevadas de
Prednisona ou Prednisolona, de 1-2mg/kg/dia por via oral, são indicadas em quadros
graves renais, hematológicos e do sistema nervoso central. Quando a evolução desses
quadros é muito rápida, pode ser utilizada a pulsoterapia com dose intravenosa de
Metilprednisolona de 1g/dia (15-20mg/kg/dia) durante três dias consecutivos. Doses
baixas a moderadas de Prednisona ou Prednisolona, ao redor de 5-15mg/dia por via oral,
estão indicadas no controle inicial de manifestações mais brandas da doença, em geral
em associação com outros medicamentos para poupar o uso de corticoide e obter melhor
controle da doença a longo prazo. Efeitos adversos incluem ganho de peso, diabetes
mellitus, hipertensão arterial sistêmica e infecções. A suplementação de Vitamina D
800UI/dia e Carbonato de Cálcio para 1500mg/dia de cálcio elementar deve ser sempre
instituída quando da utilização de corticosteroides em dose superior ou igual a 5mg/dia
e quando da sua manutenção por longo período de tempo. Recomenda-se prática de
atividade física regular. Deve-se evitar imunizar pacientes potencialmente
imunossuprimidos, como aqueles em uso de doses superiores ou iguais a 20mg/dia de
Prednisona por mais de duas semanas, com vírus vivos, como os do sarampo, da
caxumba, da rubéola, da poliomielite, da varicela e da varíola.
Dentro do arsenal terapêutico, os antimaláricos merecem destaque
independentemente do órgão ou sistema acometido. Tanto o Difosfato de Cloroquina na
dose de 4mg/kg/dia como a Hidroxicloroquina na dose de 6mg/kg/dia mostraram-se
efetivos em controlar a atividade inflamatória da doença, reduzir o tempo de uso de
corticosteroides e promover melhor controle das dislipidemias. São considerados
medicamentos de primeira escolha nos quadros cutâneos e/ou articulares da doença.
Efeitos adversos incluem neurite óptica e dermatites.
Nas lesões cutâneas não-responsivas a Cloroquina, podem ser indicadas a
Talidomina na dose de 100-200mg/dia, a Dapsona na dose de 100mg/dia, o Metotrexato
na dose de 10-20mg/semana e a Azatioprina na dose de 1-2mg/kg/dia. A Talidomida
promove resposta rápida em até 75% dos casos e deve ser indicada apenas nos casos
sem risco de concepção, com menopausa ou anticoncepção definitiva, em função de
teratogenicidade, sendo a principal restrição para seu uso prolongado o aparecimento de
neuropatia periférica. Além disso, recidivas são frequentes após sua retirada, o que
determina redução lenta e gradativa até a menor dose necessária para o controle das
manifestações clínicas. A Dapsona é particularmente efetiva nas lesões bolhosas e no
lúpus discoide, tendo hemólise como principal efeito colateral e estando contraindicada
na deficiência de G6PD. A Azatioprina é utilizada em quadros cutâneos mais graves e
está particularmente indicada quando há vasculite associada, tendo como principais
efeitos adversos hepatotoxicidade e infecções. O Metotrexato pode ser uma excelente
indicação quando houver associação de persistência de quadros cutâneos e articulares,
tendo como principais efeitos colaterais náusea, vômitos, diarreia, hepatotoxicidade,
pneumonite aguda por hipersensibilidade, leucopenia, infecções cutâneas, herpes zoster
e teratogenicidade.
Os quadros hematológicos graves, como plaquetopenia e hemólise, requerem
doses altas de Prednisona (0.6-1.0mg/kg) na fase inicial do tratamento, associada aos
antimaláricos. Nos casos refratários, as opções terapêuticas incluem Azatioprina na dose

Pedro Kallas Curiati 1299


de 1-3mg/kg/dia, esteroides androgênicos e Ciclofosfamida intravenosa. A
Gamaglobulina está indicada para o rápido controle nos casos de sangramento devido a
plaquetopenia ou na persistência de hemólise grave. Esplenectomia é opção a ser
considerada para casos refratários.
A Ciclofosfamida é o medicamento mais efetivo para os quadros de
glomerulonefrite proliferativa, sempre associada inicialmente à Prednisona em altas
doses por período mínimo de seis a oito semanas. São preconizados pulsos intravenosos
mensais de 0.5-1.0g/m2 até seis a oito doses e então trimestrais por dois anos, podendo-
se optar por manutenção da remissão com Azatioprina ou Micofenolato Mofetil por dois
anos. Seus efeitos colaterais incluem leucopenia grave, depressão medular, infecções,
esterilidade e maior risco de neoplasias. A indicação do melhor imunossupressor para o
tratamento da forma membranosa com proteinúria nefrótica é ainda controverso, porém
é consenso o uso da corticoterapia inicial e de medicamentos inibidores da enzima de
conversão da angiotensina independentemente dos níveis pressóricos, exceto quando
não existe manutenção dos níveis de creatinina. Em qualquer das formas de
glomerulonefrite, é de suma importância o controle rigoroso dos níveis pressóricos.
Os imunossupressores também são indicados nas outras manifestações do lúpus
eritematoso sistêmico conforme a gravidade para minimizar a dose o tempo de uso de
corticosteroides. Em geral, nos casos mais graves está indicada a Ciclofosfamida e nos
casos leves a moderados estão indicados Azatioprina, Ciclosporina e Micofenolato
Mofetil.
Aterosclerose acelerada, hipertensão pulmonar, síndrome do anticorpo
antifosfolípide, osteopenia e osteoporose são comorbidades que devem ser rastreadas e
tratadas. Medidas profiláticas incluem monitorização e orientação de fatores de risco
para doença arterial coronariana, como fumo, dislipidemia, obesidade, sedentarismo e
hipertensão arterial sistêmica, complicações oftalmológicas, como uso de
corticosteroides e antimaláricos, e osteoporose, como uso de corticosteroides e
menopausa precoce.

Bibliografia
Clínica médica: diagnóstico e tratamento. Itamar de Souza Santos... [et al.]. São Paulo. Sarvier, 2008.
Manual de Reumatologia para graduação em medicina. Ricardo Fuller. São Paulo. Pontes Editores Ltda. 2007.
Dermatologia. Sebastião A.P. Sampaio & Evandro A. Rivitti. São Paulo. Artes Médicas. 2007.
Overview of the therapy and prognosis of systemic lúpus erythematosus in adults. Peter H Schur & Daniel J Wallace. Uptodate.
2010.
Derivation and Validation of the Systemic Lupus International Collaborating Clinics Classification Criteria for Systemic Lupus
Erythematosus. Arthritis & Rheumatism. Vol. 64, No. 8, August 2012, pp 2677-2686.

Pedro Kallas Curiati 1300


MIOPATIAS INFLAMATÓRIAS
IDIOPÁTICAS
Definições
As miopatias inflamatórias idiopáticas são um grupo heterogêneo de doenças
mediadas pelo sistema imunológico caracterizadas por inflamação não-supurativa da
musculatura estriada e, consequentemente, fraqueza muscular proximal. Também
podem afetar pele, pulmão e outros órgãos. Apresentam-se de forma isolada ou em
associação com outras doenças do tecido conjuntivo ou neoplásicas. Outra forma de
miopatia inflamatória idiopática é a miosite por corpúsculos de inclusão.
A dermatomiosite é caracterizada por lesões cutâneas, como heliotropo, pápulas
de Gottron e eritrodermia generalizada. Incide geralmente após os cinquenta anos de
idade e há risco aumentado de malignidade em relação à população geral. As neoplasias
mais comumente associadas são aquelas que acometem ovários, pele, pulmões, mamas e
sistema hematológico, como o linfoma não-Hodgkin, com identificação geralmente ao
diagnóstico da dermatomiosite ou no primeiro ano após o diagnóstico, podendo também
ocorrer um ano antes do início das manifestações clínicas autoimunes. Pode ser
amiopática, com lesões patognomônicas, mas sem evidência de comprometimento
muscular, que pode ser identificado histologicamente ou através de exame de
ressonância nuclear magnética. A forma juvenil tem apresentação clínica semelhante à
da forma adulta, com maior frequência de manifestações extra-articulares, vasculite e
calcinose.
A polimiosite é uma miopatia subaguda que evolui em semanas a meses. O risco
aumentado de câncer ainda é questionado, mas alguns estudos mostraram um risco de
uma vez e meia em relação à população geral. O diagnóstico diferencial é muito
importante, pois a doença não tem um achado clínico patognomônico.

Epidemiologia
As miopatias inflamatórias idiopáticas têm taxas altas de morbidade e
mortalidade. Apesar de ocorrerem em qualquer idade, em adultos há um pico na quinta
década de vida e em crianças há um pico entre dez e quinze anos de idade. As mulheres
são duas vezes mais acometidas que os homens.

Fisiopatologia
A etiologia das miopatias inflamatórias idiopáticas é desconhecida, porém, assim
como em outras doenças do tecido conjuntivo, acredita-se que fatores ambientais
desencadeiem a reação inflamatória crônica em indivíduos geneticamente suscetíveis.

Quadro clínico
Sintomas constitucionais, como fadiga persistente, perda de peso, febre, mialgia
e artralgia podem estar presentes no início da doença. A queixa predominante é fraqueza
muscular proximal, simétrica, progressiva, em geral insidiosa. Raramente, há casos com
evolução aguda. Mialgia pode ocorrer em até metade dos casos.
Os pacientes referem dificuldade para realizar atividades diárias, como levantar
uma cadeira, carregar objetos e pentear os cabelos. A musculatura flexora do pescoço
pode estar afetada, com dificuldade para levantar a cabeça do travesseiro. Em casos
agudos ou graves, pode ocorrer disfagia e fraqueza respiratória, com broncoaspiração.

Pedro Kallas Curiati 1301


Movimentos finos, que dependem da força muscular distal, são afetados tardiamente.
A dermatomiosite é identificada por exantema característico, que acompanha ou
precede a fraqueza muscular. As manifestações cutâneas incluem heliotropo, com
coloração violácea nas pálpebras associada a edema local, exantema em face, pescoço e
face anterior do tórax, com sinal do V do decote, exantema em ombros e dorso, com
sinal do xale, e sinal de Gottron, com exantema eritêmato-violáceo em proeminências
das articulações metacarpofalangeanas e interfalangeanas, podendo também estar
presente na face extensora de outras articulações. Outras alterações cutâneas incluem
alterações de cutículas e rachaduras em região látero-palmar dos dedos, lembrando
mãos de mecânico.

Manifestações extra-articulares
Alguns pacientes apresentam poliartrite simétrica de pequenas articulações,
especialmente em fases precoces da doença, geralmente transitória e não-erosiva.
O envolvimento pulmonar ocorre em até metade dos pacientes, podendo
abranger pneumonia aspirativa, geralmente recorrente, doença pulmonar intersticial,
geralmente manifestada por tosse, dispneia e estertores crepitantes na ausculta
pulmonar, derrame pleural e hipertensão pulmonar.
Síndrome anti-sintetase é caracterizada por anticorpo específico da miosite, anti-
Jo1, doença pulmonar intersticial, poliartrite com deformidade, especialmente em mãos,
febre, fenômeno de Reynaud e mãos de mecânico, geralmente com curso recidivante.
Apesar de o envolvimento cardíaco ser comum, geralmente é assintomático.
Podem ocorrer distúrbios de ritmo, pericardite e, mais raramente, tamponamento
cardíaco e insuficiência cardíaca.
A musculatura faríngea pode ser acometida, com disfagia alta. Pode ocorrer
envolvimento de musculatura lisa em qualquer porção do trato gastrointestinal. A
dermatomiosite juvenil é mais comumente associada a ulcerações em trato
gastrointestinal e hemorragias, que são resultantes de vasculite sistêmica.
Uma manifestação tardia e, eventualmente, incapacitante é a calcinose, que pode
ocorrer em pele, tecido subcutâneo, fáscia e músculos. Compromete especialmente
indivíduos com dermatomiosite juvenil.
Há relatos de glomerulonefrite em pacientes com polimiosite, mas essa
associação é rara.

Avaliação complementar
Devem-se dosar os níveis séricos de enzimas musculares, como
creatinofosfoquinase (CPK), aldolase, desidrogenase lática, alanina aminotransferase e
aspartato aminotransferase. A CPK é a enzima mais utilizada por ser mais sensível, com
utilidade no diagnóstico e no acompanhamento terapêutico. Os seus níveis séricos estão
aumentados, em média, em dez vezes em relação ao limite superior da normalidade. A
aldolase também é uma enzima que predomina no tecido muscular, mas é um pouco
menos específica que a CPK, podendo estar elevada em doenças hepáticas e de outros
órgãos.
Títulos significativos de autoanticorpos estão presentes em metade dos
pacientes. O fator anti-núcleo é positivo com maior frequência nas miopatias
inflamatórias associadas a outras doenças do tecido conjuntivo e menor frequência
naquelas associadas a neoplasias. Dentre os anticorpos específicos para miosites, o anti-
Jo1 é o único amplamente disponível para detecção de forma rotineira. Ele faz parte do
grupo dos anticorpos anti-sintetase, que se ligam às proteínas responsáveis pela ligação
dos aminoácidos aos seus RNA transportadores específicos.

Pedro Kallas Curiati 1302


A eletroneuromiografia pode ser realizada apenas de um lado do corpo. Três
achados são considerados típicos para o diagnóstico de miopatia inflamatória e cerca de
40% dos pacientes apresentam a tríade completa, com aumento de atividade insercional,
com fibrilações e ondas positivas, descargas bizarras de alta frequência e potenciais de
unidade motora polifásicos, de baixa amplitude e com curta duração.
Biópsia muscular permite avaliação por histopatologia, histoquímica,
microscopia eletrônica e testes específicos para atividades enzimáticas e identificação
de outras substâncias. As colorações de hematoxilina e eosina e tricrômio de Gomory
modificado são as mais utilizadas para a análise histopatológica, com fibras musculares
arredondadas, variação no calibre das fibras musculares, internalização dos núcleos,
substituição gordurosa, necrose e fagocitose sugestivos de doença miopática. Quando a
miopatia é inflamatória, associa-se ainda a atrofia, degeneração e regeneração, bem
como infiltrado inflamatório, que pode predominar no perimísio ou no endomísio. Na
polimiosite, o infiltrado inflamatório tende a ser mais focal, com predomínio no
endomísio e invasão das fibras musculares por linfócitos T CD8 positivos. Na
dermatomiosite, por outro lado, o infiltrado inflamatório tende a ser constituído
predominantemente por linfócitos B e linfócitos T CD4 positivos, prevalecendo na
região perivascular e do perimísio, sem invasão das fibras musculares.
Ressonância nuclear magnética é um método sensível para avaliação de edema
muscular e, portanto, pode ser útil para orientação de biópsia nas miopatias
inflamatórias e para o diagnóstico de piomiosite.
Para o diagnóstico de neoplasia, é suficiente a realização periódica de avaliação
clínica com anamnese cuidadosa e exame físico completo, incluindo exame
ginecológico e toque retal. Os exames complementares recomendados incluem
hemograma, bioquímica sérica, dosagem de antígeno prostático específico, urina tipo 1,
colpocitologia oncótica, pesquisa de sangue oculto nas fezes, radiografia de tórax,
mamografia e colonoscopia de acordo com idade e antecedentes familiares. Deve-se ter
limiar baixo para solicitar ultrassonografia transvaginal ou tomografia computadorizada
de pelve para excluir câncer de ovário.

Critérios diagnósticos
Para o diagnóstico definitivo de polimiosite são necessários os quatro critérios
iniciais e para o diagnóstico definitivo da dermatomiosite são necessários apenas quatro
dos cinco critérios, mas com a inclusão obrigatória do último critério, referente às lesões
cutâneas.
1. Fraqueza muscular proximal e simétrica.
2. Elevação dos níveis séricos de enzimas musculares, especialmente
creatinofosfoquinase e aldolase.
3. Alterações miopáticas à eletromiografia, com potenciais de unidade motora de
curta duração e baixa amplitude, polifásicos e com fibrilações espontâneas.
4. Biópsia com achados compatíveis com miopatia inflamatória, como necrose,
degeneração, regeneração e infiltrado inflamatório.
5. Lesões de pele características, como heliotropo, caracterizado por edema e
eritema nas pálpebras superiores, sinal de Gottron, caraterizado por edema e
eritema nas superfícies extensoras das articulações dos dedos, e eritema das
superfícies extensoras de cotovelos ou joelhos.

Diagnóstico diferencial
Medicamentos, como corticosteroides, etanol, hipolipemiantes, D-Penicilamina,
Colchicina, cocaína, Ciclosporina, Cloroquina, Zidovudina e L-Triptofano.

Pedro Kallas Curiati 1303


Doenças infecciosas virais, como influenza, adenovírus, coxsackievírus,
echovírus, vírus Epstein-Barr, vírus da hepatite B, vírus da hepatite C, vírus da
imunodeficiência humana e HTLV, bacterianas, como piomiosite, gangrena e doença de
Lyme, parasitárias, como triquinose, toxoplasmose, sarcosporidiose e tripanossomíase, e
fúngicas, como candidíase, criptococose, esporotricose, actinomicose e histoplasmose.
Doenças endocrinológicas, como hipotireoidismo, hipertireoidismo, acromegalia
e diabetes mellitus.
Doenças neurológicas, como esclerose lateral amiotrófica, miastenia gravis,
síndrome de Eaton-Lambert, esclerose múltipla, síndrome de Guillain-Barré e doença
do neurônio motor.
Doenças imunológicas ou do tecido conjuntivo, como síndrome
hipereosinofílica, poliarterite nodosa ou outras formas de vasculite sistêmica,
polimialgia reumática, doença de Still, artrite reumatoide, lúpus eritematoso sistêmico,
esclerose sistêmica, tendinite e síndromes de lesão por esforço repetitivo.
Distúrbios metabólicos, como hipocalemia, hipercalcemia e hipocalcemia.
Doenças metabólicas hereditárias.
Doenças mitocondriais.
Distrofias musculares hereditárias.

Evolução clínica
A polimiosite e a dermatomiosite têm um curso variável, podendo responder
com rapidez ao tratamento, evoluir com recidivas frequentes ou evoluir
progressivamente sem resposta a diversas modalidades de tratamento. Fatores de mau
prognóstico incluem demora de mais de seis meses para iniciar o tratamento após o
início dos sintomas, idade superior a cinquenta anos, presença de neoplasia, doença
rapidamente progressiva levando o paciente a ficar acamado ou em cadeira de rodas,
doença pulmonar, presença de anti-Jo1, disfagia e diagnóstico de miosite por corpúsculo
de inclusão.

Tratamento
A reabilitação é de extrema importância e deve ser iniciada no diagnóstico para
evitar retrações e atrofias musculares maiores. A recomendação atual é de mobilização
precoce do paciente, sendo inicialmente passiva e progressivamente ativa.
Corticosteroide é o agente de escolha no tratamento inicial das miopatias
inflamatórias idiopáticas. A via oral é a preferida, com 1mg/kg/dia de Prednisona. A via
intravenosa é indicada para pacientes graves ou com fatores de mau prognóstico, com
Metilprednisolona 1000mg/dia durante três dias e, após, manutenção por via oral com
Prednisona. Recomenda-se manter corticosteroide em doses altas até a melhora objetiva
da força muscular e normalização dos níveis séricos de CPK. A resposta inicial deve
ocorrer em quatro a seis semanas e a melhora clínica objetiva em três a seis meses. A
dose diária de Prednisona deve ser diminuída progressivamente em 5mg a cada mês até
atingir 20mg e, então, em 2.5mg a cada mês até dose de manutenção de 5-10mg/dia,
com manutenção por até um ano.
Atualmente é recomendado o uso de imunossupressor no diagnóstico quando o
paciente apresentar doença grave ou sinais de mau prognóstico. No entanto, não há
trabalhos que orientem a escolha da melhor medicação, que deverá ser utilizada por pelo
menos um ano, com redução gradual após a retirada da Prednisona e tempo médio de
uso ao redor de três anos. Em casos refratários, a associação de imunossupressores é
comum. Metotrexato, apresentado na forma de comprimidos de 2.5mg, com dose de
7.5-25mg/semana, em associação a Ácido Fólico, parece ser mais efetivo em homens e

Pedro Kallas Curiati 1304


é o agente de escolha na dermatomiosite infantil. Azatioprina, apresentada na forma de
comprimidos de 50mg, com dose de 1.5-2.0mg/kg/dia, demanda monitorização de
leucócitos, linfócitos e níveis séricos de enzimas hepáticas. Ciclosporina, apresentada na
forma de cápsulas com 25mg, 50mg e 100mg, com dose de 3mg/kg/dia fracionada em
duas vezes, demanda monitorização de pressão arterial e níveis séricos de creatinina.
Ciclofosfamida, com dose mensal intravenosa de 1000mg durante aproximadamente um
ano, é reservada para casos de doença grave com refratariedade ao tratamento.
Gamaglobulina, com 1g/kg/dia durante dois dias, é indicada para casos de doença grave
com refratariedade ao tratamento. Micofenolato Mofetil, apresentado na forma de
cápsulas de 250mg e comprimidos de 500mg, com dose de 1-3g/dia fracionada em duas
vezes, parece ser efetivo para alguns casos com refratariedade ao tratamento.
Tacrolimus, apresentado na forma de cápsulas de 0.5mg, 1mg e 5mg, com dose de 0.1-
0.2mg/dia fracionada em duas vezes, parece ser uma boa opção também em caso de
refratariedade ao tratamento. Leflunomide, apresentado na forma de comprimidos de
20mg e 100mg, com dose de 20mg/dia, também pode ser utilizado em caso de
refratariedade.
Quanto ao uso de agentes biológicos, existem apenas alguns relatos de caso de
anti-TNFα e anti-CD20, com resultados promissores.
Para controle das lesões de pele, está indicado o uso de protetor solar,
Hidroxicloroquina 400mg/dia, em caso de exantema malar, e creme de Tacrolimus, em
caso de exantema resistente.
Para a prevenção de osteoporose, é recomendada a prescrição de Carbonato de
Cálcio 1250mg três comprimidos por via oral ao dia e vitamina D 800 UI por via oral
uma vez ao dia nos pacientes em uso de altas doses de corticosteroide. Em caso de
osteoporose, deve ser iniciada a terapia com bifosfonatos.

Bibliografia
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Goldman’s Cecil medicine / [edited by] Lee Goldman, Andrew I. Schafer.—24th ed. 2012.

Pedro Kallas Curiati 1305


OSTEOARTROSE
Definição
A osteoartrose decorre de uma multiplicidade de fatores causais, desencadeantes
e agravantes, devendo, portanto, ser encarada como uma síndrome, na qual a perda
qualitativa e quantitativa da cartilagem articular acarreta uma significativa remodelação
óssea hipertrófica local e uma inflamação secundária, via de regra de pequena
magnitude. É obrigatória a presença de dor, visto que alterações anatomopatológicas,
bioquímicas e verificadas por meio de métodos de imagem podem ocorrer de modo
assintomático.

Epidemiologia
A osteoartrose acomete aproximadamente 3.5% da população geral e sua
prevalência aumenta com a idade, atingindo 10% dos indivíduos com idade superior a
60 anos. Trata-se de uma das principais causas de afastamento do trabalho.

Fisiologia
A cartilagem normal é um tecido altamente diferenciado, constituído por uma
matriz extracelular, responsável por aproximadamente 95% do volume do tecido, e por
condroblastos, que ocupam os 5% restantes. A matriz cartilaginosa é composta por uma
rede de proteoglicanos, açúcares com estrutura terciária altamente complexa, capazes de
exercer a função de mola biológica. Os proteoglicanos são constituídos por
grupamentos denominados agrecanos, ligados ao ácido hialurônico. Os agrecanos, por
sua vez, têm um eixo central proteico no qual se ligam polímeros de açúcares
denominados glicosaminoglicanos. Existem vários tipos de glicosaminoglicanos e na
cartilagem hialina predominam o sulfato de condroitina e o sulfato de queratano, que
são cadeias de dissacarídeos, ricos em glicosamina.

Fisiopatologia
Do ponto de vista fisiopatológico, a osteoartrose é caracterizada por
insuficiência da cartilagem articular decorrente de um predomínio de degradação sobre
síntese, que evolui com inflamação local, proliferação sinovial e enfraquecimento global
de ligamentos e músculos. Surge como resultado da interação de fatores biológicos e
mecânicos.

Etiopatogenia
Algumas formas de osteoartrose são fortemente vinculadas à transmissão
genética, como a forma generalizada e a forma nodal das mãos.
Existe um aumento na prevalência e na incidência da osteoartrose com o
envelhecimento.
Traumas podem ocasionar sequelas na conformação óssea e articular, roturas
miotendíneas, capsulares e ligamentares, consolidação viciosa, roturas e descolamentos
osteocartilaginosos e meniscais e lesões neurovasculares. Essas alterações podem
provocar perda da congruência e da estabilidade da articulação, favorecendo o
surgimento ou agravamento da osteoartrose.
A obesidade pode ser um fator de risco para osteoartrose em determinadas
articulações de carga.
Deformidades articulares podem aumentar a carga sobre a cartilagem e

Pedro Kallas Curiati 1306


contribuir para o desenvolvimento da osteoartrose.
Atividades que requeiram determinadas posturas e carga excessiva sobre alguma
articulação podem desencadear ou agravar a osteoartrose.
A frequência de osteoartrite é maior em atletas de elite, podendo afetar inclusive
algumas articulações não diretamente relacionadas à execução do esporte.
Ainda permanece no campo das hipóteses a real relação da deficiência
estrogênica com a osteoartrose.

Quadro clínico
O principal sintoma da osteoartrose é a dor articular. No início, ela é inconstante
e de fraca intensidade. Com a progressão da doença, torna-se contínua e difusa, com
característica basicamente mecânica, isto é, aparece com o início do movimento e
melhora com o repouso, o que permite diferenciá-la da artrite reumatoide, na qual a dor
é do tipo inflamatória, presente mesmo ao repouso. A evolução do processo leva a perda
gradual da estabilidade articular e, consequentemente, a dor de maior intensidade, com
limitação funcional da articulação.
No exame físico, é comum encontrar dor à palpação, crepitação aos movimentos
e alargamento articular de consistência óssea. Às vezes, estão presentes sinais
inflamatórios, derrame articular e comprometimento musculotendíneo. Os casos de
evolução mais grave apresentam redução importante da amplitude do movimento,
podendo chegar à anquilose. A rigidez matinal, quando presente, geralmente é de curta
duração, inferior a quinze minutos. A identificação de dor localizada periarticular
remete à possibilidade do diagnóstico de bursites, tendinites ou lesões ligamentares.

Avaliação complementar
A graduação da lesão articular da osteoartrose pode ser realizada por métodos de
imagem convencionais, como radiografias simples, tomografia computadorizada e
ressonância nuclear magnética.
A radiografia simples é o exame complementar mais utilizado na rotina
diagnóstica. As alterações mais características são redução do espaço articular, que
indica perda da cartilagem articular, aumento da densidade óssea subcondral ou
esclerose óssea subcondral e osteófitos, que indicam remodelação óssea. Cistos e
erosões ósseas podem estar presentes nos casos mais graves e são circundados por um
osso com densidade normal ou até aumentada, o que ajuda na diferenciação com os
cistos e as erosões que ocorrem nas artropatias inflamatórias, como a artrite reumatoide,
em que existe osteopenia.
Outros exames complementares, utilizados rotineiramente na reumatologia,
como provas de atividade inflamatória, têm aplicação muito restrita na osteoartrose,
pois, via de regra, são normais. O exame do líquido sinovial revela um aspecto amarelo
citrino, elevação de leucócitos discreta e viscosidade preservada ou levemente
diminuída. Sua análise se presta principalmente ao diagnóstico diferencial nos casos em
que o derrame articular se instala agudamente, como ocorre, por exemplo, na artropatia
por cristais de pirofosfato de cálcio.

Articulações mais acometidas


A dor protocinética é um sintoma muito característico da osteoartrose de joelhos,
que pode evoluir com deformidade em varo ou, com menor frequência, em valgo.
O envolvimento das mãos é mais frequente nas mulheres e tem forte influência
genética, associando-se em aproximadamente 85% dos casos com a forma generalizada
da osteoartrose. Nas mãos, as articulações mais afetadas são as interfalangeanas distais,

Pedro Kallas Curiati 1307


a primeira carpometacarpal, com rizartrose, e as interfalangeanas proximais. Em muitos
pacientes, verificam-se alargamentos de consistência rígida nas regiões dorsolateral e
dorsomedial das articulações interfalangeanas distais e interfalangeanas proximais
denominados nódulos de Heberden e Bouchard, respectivamente. Essa forma de doença
é também denominada osteoartrose nodal, sendo poliarticular e simétrica.
O quadril é uma articulação frequentemente comprometida e, em muitos casos, a
doença evolui para a incapacidade total com indicação cirúrgica. A osteoartrose de
quadril é mais frequente em homens e pode ser unilateral ou bilateral.
Na coluna, a dor se apresenta bastante correlacionada aos movimentos e às
posturas, isto é, tem caráter mecânico e melhora com o repouso e durante o sono. Com
frequência, também está associada à presença de espasmo muscular paravertebral. A dor
à flexão geralmente indica um comprometimento dos discos intervertebrais e a dor à
extensão geralmente indica o envolvimento das articulações interapofisárias. O
surgimento de complexos disco-osteofitários decorrente de acometimento mais
avançado dessas articulações pode provocar síndrome da estenose do canal
raquimedular, na qual o paciente, normalmente idoso, apresenta dor mecânica na
coluna, com piora à extensão, e claudicação neurogênica. A claudicação ocorre de
forma lenta e progressiva, podendo ocasionar dificuldade para deambulação e dor
irradiada para os membros inferiores do tipo radicular ou atípica. No envolvimento
cervical, pode haver dor na região do trapézio e na nuca e cefaleia occipital. Na região
lombar, a dor piora com a permanência em pé ou sentado.

Classificação
A osteoartrose é definida como idiopática quando não existem fatores
predisponentes identificáveis e secundária quando decorre de agentes locais ou
sistêmicos que, ao agirem na articulação, modificam suas características biomecânicas.
Tanto a forma idiopática como a secundária podem ocorrer de modo localizado ou
generalizado. A forma localizada é restrita a um ou dois grupos articulares e a
generalizada envolve três ou mais grupos articulares. Na osteoartrose secundária, existe
geralmente o envolvimento de poucas articulações, sendo mais frequentes aquelas que
suportam carga. A forma idiopática comumente é poliarticular e quase sempre envolve
as mãos.

Diagnóstico
O diagnóstico da osteoartrose é baseado, sobretudo, no quadro clínico e na
avaliação por meio de métodos de imagem. A dor é sintoma de presença obrigatória.

Tratamento
O tratamento da osteoartrose tem por objetivos básicos o alívio dos sintomas, a
recuperação da função, o retardo da evolução da doença e a regeneração dos tecidos
lesados.
O tratamento farmacológico da osteoartrose se apoia em duas vertentes, o
tratamento com medicação sintomática de curta duração, como analgésicos e anti-
inflamatórios não-hormonais, e o tratamento com medicamentos de ação lenta, que se
subdividem em fármacos sintomáticos de ação lenta, como hialuronatos, Cloroquina,
Sulfato de Glicosamina, Sulfato de Condroitina, Diacereína e extratos insaponificados
de soja e abacate, e fármacos modificadores da doença, como Diacereína, Sulfato de
Glicosamina e Ácido Hialurônico.

Tratamento sintomático de curta duração

Pedro Kallas Curiati 1308


É recomendado o uso de Acetaminofeno, apresentado na forma de comprimidos
de 500mg e de solução oral com 200mg/mL (15 gotas), como fármaco inicial na terapia
de pacientes com dor média a moderada. A dose recomendada deve atingir até 2 gramas
por dia e ser fracionada em três a quatro vezes, com atenção para o risco de
hepatotoxicidade. Outros analgésicos incluem a Dipirona, apresentada na forma de
comprimidos de 500mg e 1000mg e de solução oral com 500mg/mL (20 gotas), com
dose recomendada de até 4 gramas por dia fracionada em quatro vezes, a Codeína,
apresentada na forma de comprimidos de 30mg e 60mg e de solução oral com 3mg/mL,
com dose recomendada de 15-60mg a cada três a seis horas e dose máxima de
120mg/dia, e o Tramadol, apresentado na forma de comprimidos de 50mg e 100mg e
solução oral com 100mg/mL (40 gotas), com dose máxima de 400mg/dia fracionada em
três a quatro vezes.
A presença de inflamação na osteoartrose justifica a ampla utilização dos anti-
inflamatórios não-hormonais. Quanto à tolerabilidade, principalmente gastrointestinal,
os inibidores específicos da ciclo-oxigenase 2 se mostraram mais seguros, vantagem
também encontrada em alguns inibidores inespecíficos da ciclo-oxigenase, como o
Meloxicam, apresentado na forma de comprimidos de 7.5mg e 15mg, com dose diária
não fracionada de 7.5-15mg, e a Nimesulida, apresentada na forma de comprimidos de
100mg e solução oral com 50mg/mL (20 gotas), com dose recomendada de 100-
400mg/dia fracionada em duas vezes. O uso é indicado como opção aos casos com
baixa resposta ao Acetaminofeno e como abordagem inicial nos casos com
manifestações moderadas a graves. Uma alternativa ao uso de inibidores específicos da
ciclo-oxigenase 2 em indivíduos com idade superior ou igual a 65 anos, comorbidades,
uso de corticoide oral, histórico de úlcera péptica e/ou sangramento digestivo alto ou
uso de anticoagulantes é a prescrição de anti-inflamatório não-hormonal inespecífico
associado a agente protetor gástrico, como o Omeprazol.
Nos casos de fenômenos inflamatórios pronunciados, a infiltração intra-articular
de corticosteroide acarreta uma rápida e eficiente resposta.

Tratamento com fármacos de ação lenta


Os fármacos sintomáticos de ação lenta na osteoartrose apresentam-se como
alternativa ao uso isolado de analgésicos e anti-inflamatórios não-hormonais, podendo
exercer um efeito poupador sobre estes ou até substituir o seu uso. A Cloroquina é uma
opção válida para o tratamento da artrose, com dose diária de 125-250mg de Difosfato
de Cloroquina ou de 200-400mg de Hidroxicloroquina, o que corresponde a meio a um
comprimido por dia. A Diacereína, apresentada na forma de comprimidos de 50mg, age
reduzindo a síntese de interleucina 1β e de metaloproteases e elevando a produção de
colágeno e proteoglicanos, com dose recomendada de 50mg/dia nas duas primeiras
semanas e 100mg/dia a partir de então durante as refeições. O Sulfato de Glicosamina,
um amino-monossacáride apresentado na forma de sachê de 1500mg para dissolução
em um copo d’água, alia-se a boa tolerabilidade e eficácia no controle dos sintomas da
osteoartrose, com dose de 1500mg/dia. O Sulfato de Condroitina, apresentado na forma
de sachês com 1500mg de Sulfato de Glicosamina e 1200mg de Sulfato de Condroitina
e de comprimidos com 500mg de Glicosamina e 400mg de Condroitina, age inibindo a
síntese de IL-1, com dose recomendada de 1200mg/dia. A viscossuplementação com o
Ácido Hialurônico apresenta eficácia semelhante ao Naproxeno e efeito analgésico que
perdura por até seis meses após a aplicação, com três a cinco aplicações intra-articulares
semanais.
Qualquer que seja a opção de tratamento com fármacos de ação lenta, não existe
uma duração previamente estipulada, uma vez que a osteoartrite é uma doença de

Pedro Kallas Curiati 1309


evolução crônica. Assim, a sua manutenção baseia-se na resposta sintomática e
radiográfica e na eficácia das medidas não-medicamentosas.

Tratamento não-farmacológico
Devem-se identificar os fatores de risco presentes na vida do paciente e orientá-
lo quanto a natureza da doença e sua evolução. É imprescindível o treinamento em
medidas de proteção articular, como evitar posturas inadequadas, perder peso, praticar
tipo de atividade física ideal e iniciar programa de fortalecimento muscular.
Recomenda-se que o paciente transfira carga para articulações maiores, poupe
articulações afetadas e distribua os esforços bilateralmente.
Qualquer exercício que gere dor articular deve ser suspenso e o tratamento físico
reavaliado. Exercícios de impacto e carga acentuada e torção articular devem ser
evitados, pois podem acelerar a osteoartrose. Exercícios aeróbios, como marcha,
natação, bicicleta e hidroginástica são habitualmente bem tolerados. Exercícios de
resistência são tão eficazes quanto os aeróbios no controle da dor, na melhora funcional
e na qualidade de vida.
Palmilhas, bengalas e calçados especiais são medidas auxiliares de grande valor.
Palmilhas em cunha lateral com 6-8mm de altura promovem redução significativa da
carga no compartimento medial do joelho varo e diminuem o estiramento dos
ligamentos colaterais laterais. Da mesma maneira, utilizam-se palmilhas em cunha
medial para o joelho valgo. Há melhora da eficácia quando as palmilhas são utilizadas
com tornozeleiras e outros estabilizadores do tornozelo. Uma bengala contralateral
reduz em até 60% a carga do quadril lesado e deve ter comprimento suficiente para
permitir um ângulo de 20-30º entre o braço e o antebraço quando empunhada. Os
calçados devem apresentar solado com boa capacidade de absorção de impacto,
estabilidade, com fixação no antepé e no calcanhar, e salto de 2-3cm.
O realinhamento da patela com desvio lateral por meio de fita adesiva é uma
medida simples e tem sua principal indicação na osteoartrose da faceta lateral patelo-
femoral. A joelheira fenestrada constitui uma opção. Joelheiras com hastes articuladas
melhoram a estabilidade dos joelhos quando os exercícios de fortalecimento forem
insuficientes.
A aplicação de calor atua sobre as terminações nervosas e sobre as fibras gama
do fuso muscular, além de melhorar a extensibilidade do colágeno e do músculo, e pode
ser realizada sob as formas superficial e profunda. O calor superficial é obtido pelos
métodos de condução, com bolsas térmicas, convenção, com banho quente, e radiação
infravermelha. O calor profundo pode ser obtido com ultra-som, ondas curtas e micro-
ondas. Sua eficácia é questionável. A utilização de frio reduz a espasticidade muscular e
aumenta o limiar da dor. A aplicação é feita com bolsas térmicas ou massagem com
gelo por períodos de vinte a trinta minutos.
A estimulação elétrica transcutânea do nervo é útil como procedimento
analgésico. A acupuntura pode ser utilizada para melhorar a dor e a contratura muscular.

Tratamento cirúrgico
O tratamento cirúrgico geralmente é indicado quando ocorre falha do tratamento
clínico. Inclui irrigação, debridamento artroscópico, fenestração do osso subcondral,
remoção de osteófitos, osteotomia, colocação de próteses e artrodese. Transplante de
cartilagem e condrócito, uso de matriz artificial e aplicação de fatores de crescimento
apresentam resultados aceitáveis apenas nos casos de lesões focais em indivíduos mais
jovens.

Pedro Kallas Curiati 1310


Bibliografia
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Osteoartrite (Artrose): Tratamento. Sociedade Brasileira de Reumatologia. Projeto Diretrizes. Associação Médica Brasileira e
Conselho Federal de Medicina. 2003.

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OSTEOPOROSE
Conceitos
Osteoporose é doença esquelética caracterizada pelo comprometimento da
resistência óssea, com predisposição a fraturas.
A resistência óssea é resultante da integração entre a densidade óssea e a
qualidade do osso. A densidade óssea é expressa em gramas de mineral por área ou
volume. A qualidade óssea depende da arquitetura, do remodelamento, do acúmulo de
microfraturas e da mineralização.
Até o momento, não existe medida acurada da resistência óssea. A densidade
mineral óssea é usada com frequência como uma pedida aproximada.

Categorias diagnósticas segundo a Organização Mundial de Saúde


Categoria Definição
Normal Valor da densidade óssea superior a -1 desvio padrão em relação à media dos valores para
adultos jovens saudáveis (T-Score)
Osteopenia Valor da densidade óssea entre -1 e -2.5 desvios padrão em relação à media dos valores
para adultos jovens saudáveis (T-Score)
Osteoporose Valor da densidade óssea inferior a -2.5 desvios padrão em relação à media dos valores
para adultos jovens saudáveis (T-Score)
Osteoporose Valor da densidade óssea inferior a -2.5 desvios padrão em relação à media dos valores
estabelecida para adultos jovens saudáveis (T-Score) e pelo menos uma fratura por fragilidade óssea

Epidemiologia
A prevalência da osteoporose está aumentando em todos os países em
consequência do envelhecimento populacional.

Fisiopatologia
As fraturas são decorrentes da diminuição da resistência óssea e das quedas.
Fatores de risco maiores incluem história pessoal de fratura na vida adulta,
história de fratura por fragilidade em parente de primeiro grau, história atual de
tabagismo, baixo peso, inferior a 57kg ou com índice de massa corpórea inferior ou
igual a 19kg/m2, uso de corticoide oral por mais de três meses e idade avançada.
Fatores de risco menores incluem deficiência de estrógeno em pessoas com
menos de 45 anos, baixa ingesta de cálcio durante a vida, atividade física inadequada,
etilismo superior a duas doses diárias, déficit visual, saúde comprometida, quedas
recentes e demência.

Etiologia
A osteoporose é uma síndrome classificada em primária e secundária. Na
osteoporose primária, não são conhecidas as causas que produzem a diminuição da
massa óssea. A osteoporose primária compreende a osteoporose juvenil, a osteoporose
idiopática e a osteoporose involutiva.
A osteoporose juvenil é bastante rara, acomete jovens de oito a quatorze anos
durante o estirão do crescimento puberal e evolui rapidamente com fraturas vertebrais
em alguns anos. Tem curso clínico autolimitado, mas o paciente pode ter como sequelas
deformidades vertebrais, como cifose e escoliose. O diagnóstico diferencial deve ser
realizado principalmente com a osteogênese imperfeita.
A osteoporose idiopática do adulto jovem também tem baixa prevalência, sua

Pedro Kallas Curiati 1312


fisiopatologia é desconhecida e, provavelmente, inclui diferentes doenças ainda não
definidas.
Na osteoporose primária involutiva, a relação com alguns fatores causais não
implica o total esclarecimento patogenético. A osteoporose involutiva se caracteriza
como pós-menopausa e senil. Embora a deficiência estrogênica seja importante na
osteoporose pós-menopausa, não é a única causa.
Na osteoporose secundária, a etiologia abrange doenças endocrinológicas, como
síndrome de Cushing, hiperparatireoidismo, hipertireoidismo e hipogonadismo, doença
celíaca, síndromes de má-absorção, doença pulmonar obstrutiva crônica, doença
neurológica crônica, artrite reumatoide, síndrome da imunodeficiência adquirida,
neoplasias, como mieloma múltiplo, linfoma e leucemia, doenças hereditárias do tecido
conjuntivo, como Ehlers-Danlos, homocistinúria, síndrome de Marfan e osteogênese
imperfeita, e medicações.

Quadro clínico
A diminuição da massa óssea é assintomática, sendo a osteoporose uma doença
de evolução silenciosa e o quadro clínico evidente apenas por ocasião das fraturas, que
ocorrem geralmente nas vértebras, no terço distal do antebraço, no fêmur e no úmero.
A fratura vertebral é a manifestação clínica mais comum da osteoporose. Em
dois terços dos casos, é assintomática e diagnosticada na radiografia torácica ou
abdominal realizada por outros motivos. Os pacientes podem permanecer
assintomáticos até que tenham ocorrido várias fraturas e uma deformidade significativa
tenha se instalado. As fraturas vertebrais podem se manifestar com dor aguda nas costas
após movimento rápido de flexão, extensão ou mesmo tosse ou espirro. A maior parte
das fraturas ocorre na região torácica baixa ou lombar alta. A dor pode ser leve ou
intensa, restrita ao sítio de fratura ou irradiada para a região anterior do abdômen. Os
episódios agudos de dor desaparecem após quatro a seis semanas, mas podem recorrer
com o desenvolvimento de novas fraturas. Fraturas vertebrais por osteoporose
raramente estão associadas a complicações como compressão radicular. Nos casos em
que a fratura vertebral é indolor, ela pode ser diagnosticada por meio da perda da altura
ou do aumento progressivo da cifose dorsal. A perda progressiva da altura resulta no
encurtamento progressivo da musculatura paravertebral e na sua contração ativa, com
dor e fadiga. Em alguns pacientes, as costelas inferiores podem encostar-se na crista
ilíaca, levando a desconforto, dor contínua e pronunciada distensão abdominal.
As alterações esqueléticas que acompanham a osteoporose podem reduzir a
capacidade das cavidades torácica e abdominal, com consequente alteração das funções
cardíaca, pulmonar, gástrica e vesical, dificultando a respiração e causando hérnia de
hiato e incontinência urinária. Também podem ocasionar limitação dos movimentos que
causam impacto em sua vida diária.
As fraturas de quadril são relativamente comuns na osteoporose. As fraturas
femorais são, geralmente, decorrentes de queda, podendo, no entanto, acontecer
espontaneamente. Ocorrem no colo do fêmur ou são transtrocantéricas. Outro sítio
comum de fratura em indivíduos com osteoporose é o terço distal do antebraço por
queda sobre a mão, com fratura de Colles.

Avaliação complementar

Densitometria óssea
A densitometria óssea de dupla emissão com fonte de raios X (DXA) ainda é o
padrão de referência para diagnóstico, monitorização e investigação clínica do paciente

Pedro Kallas Curiati 1313


com osteoporose.
Está indicada em mulheres com idade superior ou igual a sessenta e cinco anos,
homens com idade superior ou igual a setenta anos, mulheres na pós menopausa com
fatores de risco, homens com idade entre cinquenta e setenta anos com fatores de risco,
adultos com fraturas de fragilidade, adultos com condição ou medicação associadas à
perda de massa óssea, adultos com uso de medicações associadas à baixa massa óssea
ou à perda óssea, pacientes em que a terapia farmacológica esteja sendo considerada,
pacientes em tratamento para monitorização da eficácia terapêutica e pacientes que não
estão em tratamento nos quais a evidência de perda óssea poderia indicar tratamento.
Na densitometria óssea de dupla emissão com fonte de raios X (DXA), a massa
óssea é relatada como um valor absoluto em g/cm2, uma comparação para a média da
massa óssea de um indivíduo jovem adulto saudável (T-Score) e uma comparação
pareada para idade e sexo de um padrão de referência (Z-Score). O T-Score é utilizado
para predizer o risco de fraturas e classificar a síndrome osteoporótica em mulheres na
pós-menopausa. Em crianças, adolescentes, mulheres na pré-menopausa e homens com
idade entre vinte e cinquenta anos, deve ser usado o Z-Score. Nesses casos, um Z-Score
inferior ou igual a -2.0 desvios padrão é definido como abaixo da faixa esperada para a
idade e um Z-Score superior a -2.0 desvios padrão deve ser classificado como dentro
dos limites esperados para a idade.
Os locais mais comumente avaliados pela densitometria são a coluna e o quadril,
seguidos por regiões periféricas, como antebraço distal. Na coluna lombar, a
densitometria óssea de dupla emissão com fonte de raios X (DXA) avalia as vértebras
individualmente e a média da densidade mineral óssea de L1 a L4. Na região do quadril,
o colo do fêmur e o quadril total são as regiões de maior interesse clínico.

Avaliação de fraturas vertebrais


Como a maioria das fraturas vertebrais é assintomática, radiografias das colunas
torácica (T4-T12) e lombar (L1-L4) devem ser realizadas nos pacientes em investigação
para osteoporose.
Utiliza-se a análise semi-quantitativa de Genant para a classificação:
- Grau I ou deformidade leve, com redução de 20-25% do corpo
vertebral;
- Grau II ou fratura moderada, com redução de 25-40% do corpo
vertebral;
- Grau III ou fratura grave, com redução superior a 40% do corpo
vertebral;

Exames laboratoriais
Alguns exames gerais devem ser realizados para afastar causas secundárias de
perda de massa óssea, como cálcio e fósforo séricos para hiperparatireoidismo e
osteomalacia, 25-OH-vitamina D para deficiência de vitamina D e osteomalacia,
fosfatase alcalina para osteomalacia e doença de Paget, calciúria de 24 horas para
hipercalciúria e deficiência de vitamina D, eletroforese de proteínas para mieloma
múltiplo, hormônio tireoestimulante (TSH) para hipertireoidismo, hormônio folículo
estimulante para menopausa, testosterona livre para hipogonadismo masculino,
anticorpos anti-gliadina e anti-endomísio para doença celíaca, paratormônio intacto para
hiperparatireoidismo, creatinina sérica para insuficiência renal, enzimas hepáticas para
insuficiência hepática e cortisol livre em urina de 24 horas ou teste com supressão com
Dexametasona para síndrome de Cushing.
Na população geral, as indicações de dosagem de vitamina D incluem doenças

Pedro Kallas Curiati 1314


ósseas, faixa etária geriátrica associada a história de quedas e/ou fraturas por
fragilidade, gestação, lactação, obesidade, raça negra, uso de anticonvulsivantes, terapia
anti-retroviral, Cetoconazol, Colestiramina e/ou corticosteroides, síndromes de má-
absorção intestinal, doença hepática crônica, doença renal crônica, doenças
granulomatosas e linfomas.

Marcadores do metabolismo ósseo


Os marcadores do metabolismo ósseo podem ser utilizados na monitorização da
osteoporose e são divididos em marcadores de formação e de reabsorção óssea. Os
marcadores de formação óssea incluem fosfatase alcalina total e fração óssea, enzima
produzida somente pelos osteoclastos e essencial para a mineralização óssea,
osteocalcina, pequeno peptídeo do colágeno sintetizado pelos osteoblastos para ser
incorporado à matriz óssea recém-formada, e propeptídeos carboxil ou amino-terminais
do colágeno tipo I, liberados pela molécula de colágeno I antes da incorporação em
fibrilas da matriz.
Os marcadores da reabsorção óssea mais utilizados são produtos da degradação
do colágeno. Os interligadores do colágeno tipo I, N-telopeptídeo e C-telopeptídeo, são
produtos da degradação do colágeno tipo I. A piridinolina e a deoxipiridinolina são
covalentes interligadores encontrados no colágeno tipo I, liberados durante a reabsorção
óssea. A fosfatase ácida tartarato-resistente é uma enzima liberada pelos osteoclastos e
também deriva dos eritrócitos.

Diagnóstico
Na avaliação clínica de um paciente com suspeita de osteoporose, devem ser
considerados inicialmente os fatores de risco e afastadas causas secundárias.
O diagnóstico de osteoporose pode ser feito pela constatação de uma fratura por
fragilidade ou, antes que isso ocorra, pela medida da densidade mineral óssea.

Prevenção e tratamento
O objetivo do tratamento da osteoporose é reduzir o risco de fratura.
O tratamento ideal ainda é a prevenção, já que nenhuma terapia restaura
plenamente a massa óssea perdida. Baseia-se em otimizar o pico de massa óssea na
juventude e impedir, sempre que possível, a perda de massa óssea.

Medidas não-farmacológicas
A dieta para tratamento ou prevenção de osteoporose inclui a ingesta adequada
de calorias, cálcio e vitamina D. Excesso de oxalatos, presentes em frutas e vegetais, ou
fitatos, presentes em cereais e farinhas, uso de Tetraciclina ou Sulfato Ferroso e
deficiência de vitamina D dificultam a absorção adequada de cálcio. A ingesta excessiva
de sódio e proteínas e o uso de diuréticos não tiazídicos aumentam a excreção renal,
piorando o balanço de cálcio do organismo. As carnes e os alimentos industrializados,
como congelados, enlatados e refrigerantes a base de cola, apresentam grande
quantidade de fosfatos, que, no lúmen intestinal, podem formar cristais com cálcio e
impedir sua absorção.
A ingesta de 1000-1500mg de cálcio por dia pode diminuir a velocidade da
perda óssea, especialmente em mulheres após a menopausa ou com idade avançada.
Quando estas quantidades não forem alcançadas pela dieta, a complementação com sais
de cálcio deve ser prescrita. O Carbonato de Cálcio é o suplemento mais recomendado
devido ao baixo custo e sua absorção é melhor quando administrado juntamente com as
refeições, já que os alimentos estimulam a secreção gástrica e retardam o esvaziamento

Pedro Kallas Curiati 1315


gástrico. A absorção do Citrato de Cálcio é menos dependente da presença de secreção
gástrica, podendo ser ingerido longe das refeições. Os efeitos colaterais mais comuns
são flatulência e constipação intestinal, que são menos comuns com o Citrato de Cálcio.
O risco de nefrolitíase deve ser avaliado nos pacientes com história de calculose prévia
e na presença de hipercalciúria, caracterizada por cálcio urinário superior a 4mg/kg/dia,
que não possa ser controlada com um diurético tiazídicos.
A dose recomendada de 800-1000UI/dia de Colecalciferol possibilita a
manutenção da concentração sérica adequada de 25-OH-vitamina D. Em caso de
insuficiência, com níveis séricos de 20-29mg/mL, ou deficiência, com níveis séricos
inferiores a 20ng/mL, de vitamina D, a dose oral dependerá da natureza e da gravidade.
Em pacientes com capacidade absortiva normal, a suplementação de 100UI aumenta a
concentração sérica de 25-OH-vitamina D em aproximadamente 0.7-1.0ng/mL. É
prática comum administrar 25000-50000UI por semana a indivíduos com concentração
sérica de 25-OH-vitamina D inferior a 20ng/mL durante seis a oito semanas e a seguir
dose necessária para manter a concentração sérica desejada, de 30-50ng/mL, que
geralmente será superior ou igual a 800UI/dia. A dosagem da concentração sérica
deverá ser repetida três a quatro meses após o início da suplementação.
Pode-se utilizar o Calcitriol (1,25-diidroxi-vitamina D) em doses diárias que
variam de 0.25-0.50mcg/dia, devendo-se monitorizar os níveis de cálcio e creatinina a
cada três meses, dado o risco de hipercalcemia e hipercalciúria.
Os-Cal 500® é produto comercial apresentado na forma de comprimidos com
1250mg de Carbonato de Cálcio, correspondente a 500mg de cálcio elementar. Os-Cal
500+D®, Nutrical-D® e Maxicalc D-200UI® são produtos comerciais apresentados na
forma de comprimidos com 1250mg de Carbonato de Cálcio, correspondente a 500mg
de cálcio elementar, e 200UI de Vitamina D. Maxicalc D-400UI® é produto comercial
apresentado na forma de comprimidos com 1250mg de Carbonato de Cálcio,
correspondente a 500mg de cálcio elementar, e 400UI de Vitamina D. Caltrate 600 +
D® é produto comercial apresentado na forma de comprimidos com 600mg de cálcio
elementar na forma de Carbonato de Cálcio e 200UI de Vitamina D. Miocalven® e
Osteocalcic® são produtos comerciais apresentados na forma de comprimidos com
950mg de Citrato de Cálcio, correspondente a 200mg de cálcio elementar. Miocalven
D® é produto comercial apresentado na forma de pó para suspensão oral, com sachês de
4g contendo 500mg de cálcio elementar na forma de Citrato de Cálcio e 200UI de
Vitamina D. Osteonutri® é produto comercial apresentado na forma de comprimido
com 600mg de cálcio elementar na forma de Fosfato de Cálcio Tribásico e 400UI de
Vitamina D. Addera D3® é produto comercial apresentado na forma de solução oral
com Vitamina D 3300UI/mL (25 gotas). Ad-Til® produto comercial apresentado na
forma de solução oral com Vitamina A 50000UI/mL e Vitamina D 10000UI/mL (40
gotas). Aderogil D3® é produto comercial apresentado na forma de solução oral com
Vitamina A 5500UI/mL e Vitamina D3 2200UI/mL (28 gotas). Rocaltrol® e
Sigmatriol® são produtos comerciais apresentados na forma de cápsulas com 0.25mcg
de Calcitriol.
Etilismo e tabagismo constituem dois fatores de risco para osteoporose.
Nos indivíduos idosos, o exercício pode reduzir a taxa de perda óssea e melhorar
a saúde e a força muscular, contribuindo para a prevenção de quedas e para o menor
risco de fraturas. Indivíduos assintomáticos com densidade mineral óssea normal e/ou
osteopenia têm um menor risco de fratura e podem ser orientados para um exercício
mais intenso, que ajudará a manter a massa óssea. Pacientes com osteoporose e/ou
história de fratura atraumática apresentam maior risco e não existe evidência de que o
exercício intenso, com impacto, irá corrigir a condição, podendo teoricamente causar

Pedro Kallas Curiati 1316


mais fraturas, de forma que o foco primário será minimizar o trauma. Atividades como
caminhada, Tai Chi Chuan, dança e exercícios específicos podem melhorar postura,
força muscular e equilíbrio. Pacientes com diagnóstico de osteoporose devem evitar
exercícios abdominais dinâmicos ou exercício que requerem movimentos de torção,
abruptos ou de flexão.
A maioria das fraturas de quadril e antebraço é causada por quedas que podem
ser prevenidas se cuidados forem tomados pelos pacientes e por seus familiares, como
instalação de corrimãos nas escadas e nos banheiros, fixação de tapetes soltos e fios
elétricos, garantia de boa iluminação e presença de luzes de emergência, uso de sapatos
com saltos baixos e solas de borracha, substituição de pisos escorregadios, uso de
bengala ou andador se necessário e retirada de objetos soltos nas passagens.

Medidas farmacológicas
Bifosfonatos são medicamentos anticatabólicos com alta afinidade pela
hidroxiapatita óssea, onde se depositam por longos períodos. Ao serem capturados pelos
osteoclastos, inibem sua atividade, acelerando sua apoptose e diminuindo a reabsorção
óssea e a osteoclastogênese. A absorção dos bifosfonatos é baixa e prejudicada pela
ingesta concomitante de alimentos contendo cálcio, ferro, café, chá e sucos de frutas.
Por isso, a administração oral deve ser feita em jejum com um copo d’água, a ingesta de
alimentos só deve ser feita após um intervalo de trinta minutos para Alendronato e
Risedronato e sessenta minutos para Ibandronato e o paciente deve evitar se deitar por
pelo menos uma hora. São bem tolerados, mas cerca de 10% dos pacientes podem
apresentar sintomas relacionados a esofagite dentro de um mês do início da terapia,
podendo ocorrer, mais raramente, úlceras esofágicas e perfuração esofágica. Para
minimizar o risco de esofagite, o bifosfonato deve ser tomado com um copo de água e o
indivíduo não deve deitar nos trinta minutos seguintes. Se o indivíduo, por alguma
razão, ficar acamado, apresentar disfagia ou tiver acalasia ou doença do refluxo
gastroesofágico severa, a medicação não deverá ser administrada. Outras
contraindicações incluem osteonecrose de mandíbula, arritmias, reação alérgica prévia,
clearance estimado de creatinina inferior ou igual a 35mL/minuto, hipocalcemia,
vitamina D insuficiente ou deficiente, gestação e lactação. Ajuste da dose pode ser
necessário em pacientes com disfunção renal estágio III, com filtração glomerular
estimada de 30-59mL/minuto. Uma reação de fase aguda, caracterizada por febre,
mialgia, dor óssea e fraqueza ocorre em cerca de 20% dos pacientes após uma infusão
intravenosa inicial de bifosfonatos e em uma pequena parcela daqueles com tratamento
por via oral. Alendronato é apresentado na forma de comprimidos de 10mg e 70mg,
com dose recomendada de 10mg uma vez ao dia ou 70mg uma vez por semana.
Ibandronato é apresentado na forma de comprimidos de 150mg, com dose recomendada
de 150mg uma vez por mês. Risedronato é apresentado na forma de comprimidos de
5mg e 35mg, com dose recomendada de 5mg uma vez ao dia ou 35mg uma vez por
semana. Ibandronato é apresentado na forma de comprimidos de 150mg, com dose
recomendada de 150mg uma vez por mês. Ácido Zoledrônico é apresentado na forma de
ampolas de 4mg para administração intravenosa em pelo menos quinze minutos com
diluição em 100mL de Soro Fisiológico ou Soro Glicosado a 5%, com dose
recomendada de 5mg uma vez por ano. Além de serem medicamentos de escolha para o
tratamento da osteoporose, particularmente quando há indícios de remodelação
aumentada, os bifosfonatos também estão indicados na prevenção da perda óssea em
pacientes recebendo glicocorticoides, com duração ideal do tratamento desconhecida,
embora o uso contínuo por sete anos tenha sido bem tolerado. A duração ótima do
tratamento com bifosfonatos é desconhecida, mas parece que a descontinuação após

Pedro Kallas Curiati 1317


cinco anos de uso, ao menos temporariamente por um a dois anos, não é prejudicial e
pode trazer benefícios.
Ranelato de Estrôncio é uma medicação que tem uma ação única no
metabolismo ósseo, uma vez que parece simultaneamente aumentar a formação e
diminuir a reabsorção óssea. Apresentado na forma de sachês granulados para
suspensão oral com 2g e diluição em um copo d’água, deve ser tomado diariamente,
preferencialmente ao deitar, duas horas após o jantar, já que alimentos como leite e
derivados reduzem a absorção. Os efeitos colaterais mais comuns são náusea e diarreia.
O Raloxifeno é um modulador seletivo dos receptores estrogênicos. Apresenta
ação agonista sobre os metabolismos lipídico e ósseo e antagonista em relação às
mamas, com redução do risco de fraturas vertebrais e de câncer de mama. Em mulheres
com risco cardiovascular aumentado, também reduz o risco de eventos cardiovasculares.
A dose aprovada para prevenção e tratamento é de 60mg/dia, que corresponde a um
comprimido da apresentação comercial, podendo ser administrada com a refeição.
A terapia de reposição hormonal normalmente consiste em estrógeno e
progesterona em mulheres na pós-menopausa com o útero e apenas estrógeno em
mulheres histerectomizadas. Os benefícios e os riscos devem ser explicados para as
pacientes. Embora essa terapêutica seja eficaz para prevenção de osteoporose, sua
indicação tem sido reconsiderada com base nos efeitos indesejáveis não ósseos
descritos, como aumento do risco de câncer de mama e de eventos cardiovasculares.
Estrógeno conjugado, apresentado na forma de drágeas com 0.625mg, tem dose
recomendada de 0.3-1.25mg/dia.
A Calcitonina é um peptídeo produzido pelas células parafoliculares da tireoide.
A sua ação no osso se faz pela inibição direta da atividade dos osteoclastos. Além disso,
apresenta ação analgésica, atuando no sistema nervoso central e liberando endorfina,
sendo bastante eficaz em reduzir a dor associada à fratura vertebral aguda. É utilizada
nos pacientes com osteoporose que apresentam exames laboratoriais indicando
remodelação óssea aumentada. Em razão da ausência de efeitos colaterais, pode ser
considerada em mulheres na pré-menopausa, não-grávidas, com osteoporose.
Apresentada na forma de solução injetável com 50U/mL, 100U/mL e 200U/mL e de
spray nasal com 50U/dose, 100U/dose e 200U/dose. Recomenda-se a dose de 100-
200UI uma vez ao dia por via subcutânea ou intranasal.
Teriparitida ou Paratormônio (PTH) 1-34 Recombinante Humano é constituída
pelos primeiros 34 aminoácidos da molécula de paratormônio humano (PTH) e estimula
a atividade dos osteoblastos, aumentando a formação óssea. A secreção contínua de
paratormônio (PTH) leva a uma resposta catabólica no esqueleto, o que é demonstrado
pelo modelo de hiperparatireoidismo primário. No entanto, se o paratormônio (PTH) é
administrado em dose baixa, observa-se de modo intermitente uma propriedade
anabólica importante, principalmente em osso trabecular, com redução da apoptose dos
osteoblastos e aumento de sua atividade formadora. Preconiza-se o uso de injeções
subcutâneas de 20mcg na coxa ou no abdômen uma vez ao dia pela manhã durante 18-
24 meses. A apresentação é na forma de caneta injetora. A principal limitação é o custo,
devendo o uso ser restrito a casos de moderada a alta gravidade, com fraturas já
presentes ou alto risco de fraturas ou com resposta ineficaz aos bifosfonatos. Há
contraindicação em caso de hipercalcemia, alta remodelação óssea ou doença de Paget.
Para melhores resultados, o paciente deve estar pleno de vitamina D. Após o término do
tratamento, é necessário o uso de uma medicação anti-reabsortiva. Entretanto, não se
recomenda o uso de bifosfonato associado a Teriparitida.
Anabolizantes são derivados sintéticos da testosterona, com reduzidos efeitos
androgênicos. Possuem efeito estimulador da formação óssea, embora o ganho efetivo

Pedro Kallas Curiati 1318


na densidade óssea seja pequeno. A melhora clínica deve-se, provavelmente, ao
aumento da massa muscular e à melhora do estado geral dos pacientes. Devem ser
indicados para pacientes idosos, com musculatura reduzida. A dose preconizada de
Decanoato de Nandrolona é de 50mg por via intramuscular a cada 21 dias. Efeitos
colaterais, como mudança do timbre da voz e hirsutismo, são reduzidos.

Indicações do tratamento
A decisão pelo tratamento de paciente com osteoporose baseia-se na análise do
risco de fraturas e na eficácia e na tolerância das medicações.
A história de uma fratura por fragilidade óssea indica a necessidade de
tratamento medicamentoso. O tratamento de primeira linha é com bifosfonatos. O
Ranelato de Estrôncio, o Raloxifeno e os estrógenos representam medicações
alternativas, sobretudo em mulheres mais jovens. A Calcitonina é outra opção, embora a
evidência de eficácia seja limitada. Apesar de a avaliação da densidade mineral óssea
não seja necessária para decisão do tratamento nos pacientes que apresentam fratura por
fragilidade vertebral e de fêmur, esse é o exame normalmente solicitado. Dada a
dificuldade de interpretar se uma fratura de antebraço é causada por fragilidade, a
medida da densidade mineral óssea em coluna lombar e fêmur é necessária para orientar
a conduta terapêutica. O benefício da terapia da osteoporose estabelecida é limitado se a
expectativa de vida é curta. Em qualquer opção de tratamento, a oferta de cálcio e
vitamina D deve ser adequada.
As mulheres que apresentam T-Score abaixo de -2.5 desvios padrão na
densitometria óssea de coluna lombar ou quadril têm osteoporose e devem ser tratadas,
a menos que a expectativa de vida seja curta ou o risco de fraturas seja baixo. O
tratamento de mulheres com osteopenia é mais polêmico e a decisão se baseia no risco
de fratura e depende da magnitude do déficit na densidade mineral óssea e de fatores de
risco adicionais. O instrumento Fracture Risk Assessment Tool (FRAX,
www.shef.ac.uk/FRAX) pode ser utilizado para auxiliar na decisão através da estimativa
do risco de fratura osteoporótica no período de dez anos, com indicação em caso de
risco superior a 3% para fratura de quadril ou superior a 20% para fratura osteoporótica
de importância clínica. Também é indicado manejo farmacológico em caso de uso
crônico de corticostroide, com dose igual ou superior a 7.5mg/dia de Prednisona por
período igual ou superior a três meses.

Avaliação do tratamento
A medida da densidade mineral óssea em coluna e fêmur pode ser repetida
depois de um ano de tratamento. Se existe diminuição significativa em ambos os locais,
a terapia deve ser modificada. Se existe perda em um local e nenhuma mudança ou
aumento no outro local, as medidas devem ser repetidas em um ano.
A abordagem recomendada é a combinação da medida de marcadores do
metabolismo ósseo com medida de densidade mineral óssea. Antes do início do
tratamento, são medidos a densidade mineral óssea e um marcador de reabsorção óssea,
como o telopeptídeo interligador do colágeno tipo I C-terminal (CTx). Após um mês, o
paciente deve ser reavaliado quanto à tolerância. Após três e seis meses, deve ser
repetida a medida do marcador de reabsorção óssea, cuja redução superior a 30% indica
que a medicação está provavelmente tendo o efeito desejado e deve ser continuada por
um ano, quando a densidade mineral óssea deve então ser reavaliada.
A avaliação de fratura é feita em toda consulta por meio da anamnese e da
medida da estatura. A radiografia de coluna toracolombar é realizada sempre que se
constata redução maior ou igual a 3cm na estatura do paciente e após três anos para

Pedro Kallas Curiati 1319


todos os pacientes. A densitometria óssea é realizada anualmente e o CTx em todas as
consultas.

Osteoporose induzida pelo uso de corticosteroides


Recomenda-se o uso da ferramenta FRAX para definir o risco de fratura em dez
anos, que é considerado baixo quando igual ou inferior a 10%, moderado quando
superior a 10% e igual ou inferior a 20% e alto quando superior a 20%. Essa ferramenta
leva em consideração idade, sexo, peso, altura, antecedente pessoal de fratura,
antecedente familiar de fratura de quadril em pai ou mãe, tabagismo atual, uso de
glicocorticoides com dose superior ou igual a 5mg de Prednisolona durante mais de três
meses, antecedente pessoal de artrite reumatoide, ingesta alcoólica superior ou igual a
três doses por dia, densidade mineral óssea no colo do fêmur e osteoporose secundária,
suspeitada em caso de doença fortemente associada a osteoporose, como diabetes
mellitus tipo 1, osteogênese imperfeita, hipertireoidismo de longa duração não-tratado,
hipogonadismo, menopausa prematura (antes dos 45 anos de idade), desnutrição
crônica, má-absorção e doença hepática crônica. Considera-se também alto risco de
fraturas em caso de escore T igual ou inferior a -2.5 e/ou antecedente familiar de fratura
por fragilidade. Também influenciam o risco de fraturas raça, dose diária de
corticosteroide, dose cumulativa de corticosteroide, uso de pulso intravenoso de
corticosteroide e declínio progressivo da densidade mineral óssea.
A abordagem não-farmacológica para pacientes que irão iniciar o uso de
corticosteroides em qualquer dose com duração antecipada superior ou igual a três
meses inclui orientação quanto a atividade física com carga, cessação do tabagismo,
redução da ingesta alcoólica para menos de duas doses por dia e ingesta adequada de
cálcio e vitamina D, avaliação do risco de quedas, densitometria óssea, dosagem de 25-
hidróxi-vitamina D, aferição da altura, pesquisa de fraturas por fragilidade, devendo-se
considerar avaliação radiológica da coluna para pacientes com dose inicial superior ou
igual a 5mg/dia de Prednisona, suplementação de cálcio para ingesta diária de 1200-
1500mg e suplementação de vitamina D. O seguimento clínico prevê avaliação seriada
da densidade mineral óssea, dosagem anual de 25-hidróxi-vitamina D, aferição anual da
altura, pesquisa de fraturas por fragilidade e avaliação da adesão ao tratamento.

Pedro Kallas Curiati 1320


Bibliografia
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Vertebral Fractures. Kristine E. Ensrud and John T. Schousboe. N Engl J Med 2011;364:1634-42.
Biphosphonates for Osteoporosis. Murray J. Favus. N Engl J Med 2010;363:2027-35.
Osteoporosis in Men. Peter R. Ebeling. N Engl J Med 2008;358:1474-82.
Osteopenia. Sundeep Khosla and Joseph Melton III. N Engl J Med 2007;356:2293-300.
Postmenopausal Osteoporosis. Clifford J. Rosen. N Engl J Med 2005;353:595-603.
Treatment of vitamin D deficiency in adults. UpToDate. 2011.
Clinitian’s Guide to Prevention and Treatment of Osteoporosis. National Osteoporosis Foundation, 2010.

Pedro Kallas Curiati 1321


VASCULITES SISTÊMICAS
Vasculites são definidas como processos inflamatórios de vasos, podendo estar
associadas a inúmeros fatores, como infecções, doenças autoimunes, agentes físicos e
agentes químicos. Quando a causa não é identificada, a vasculite é chamada primária,
enquanto que quando se conhece o motivo do aparecimento da vasculite, ela é
denominada secundária. Algumas vasculites são localizadas em apenas um órgão ou
tecido, como aquelas que acometem exclusivamente a pele ou o sistema nervoso central,
e são denominadas vasculites localizadas, contrastando com aquelas que atingem vários
órgãos ou tecidos, que são denominadas vasculites sistêmicas.
Define-se vasculite sistêmica primária como enfermidade de causa
indeterminada relacionada a inflamação dos vasos e comprometimento de múltiplos
órgãos. Capilarites incluem doença de Henoch-Schönlein e vasculite crioglobulinêmica.
Vasculites de pequenos vasos incluem as vasculites associadas aos anticorpos anti-
citoplasma de neutrófilos (ANCA), ou seja, granulomatose de Wegener, síndrome de
Churg-Strauss e poliangiite microscópica. Arterites de vasos de médio calibre incluem
poliarterite nodosa e doença de Kawasaki. Arterites de grandes vasos incluem arterite de
Takayasu e arterite temporal.

Capilarites

Doença de Henoch-Schönlein
A púrpura de Henoch-Schönlein é vasculite sistêmica caracterizada por púrpura
palpável não relacionada a trombocitopenia ou coagulopatia, artrite ou artralgia, dor
abdominal e disfunção renal. É mais comum em crianças com três a quinze anos de
idade, com cerca de 90% dos casos na faixa etária pediátrica, no sexo masculino e na
raça branca ou asiática. Ocorre preferencialmente no outono, no inverno e na primavera,
com cerca de metade dos casos precedidos por infecção de vias aéreas superiores. Em
contraste com outras formas de vasculite sistêmica, trata-se de doença frequentemente
autolimitada.
A púrpura de Henoch-Schönlein é uma vasculite imune-mediada associada a
depósito IgA. O achado histológico característico é vasculite leucocitoclástica, com
restos de neutrófilos, acompanhada de depósito de imune-complexos contendo IgA nos
órgãos afetados. A biópsia de pele das lesões purpúricas demonstra o envolvimento de
pequenos vasos, principalmente vênulas pós-capilares, na derme papilar. Existe
predomínio de neutrófilos e monócitos no infiltrado inflamatório e a
imunofluorescência demonstra depósitos de IgA, C3 e fibrina na parede dos vasos
envolvidos.
Todos os pacientes desenvolvem púrpura palpável. O rash geralmente se inicia
com eritema, mácula ou urticária, evoluindo para púrpura palpável, equimoses ou
petéquias. Tipicamente, apresenta distribuição simétrica, localizada em áreas
dependentes de gravidade ou pressão, como os membros inferiores. Em crianças
menores, as nádegas frequentemente são envolvidas. Artrite ou artralgia geralmente é
migratória ou transitória, oligoarticular e não-deformante, comprometendo grandes
articulações de membros inferiores, como quadris, joelhos e tornozelos. Manifestações
gastrointestinais estão presentes em cerca de metade das crianças, ocorrem
classicamente dentro de oito dias do aparecimento do rash e podem ser leves, como
náusea, vômitos, dor abdominal em cólica e íleo paralítico transitório, ou graves, como

Pedro Kallas Curiati 1322


hemorragia gastrointestinal, isquemia intestinal, necrose intestinal, intussuscepção e
perfuração intestinal. Doença renal ocorre em 22-78% dos pacientes, tem como achado
histopatológico típico glomerulonefrite focal e segmentar com depósitos de IgA e pode
manifestar desde hematúria microscópica transitória até glomerulonefrite rapidamente
progressiva, com pior prognóstico em adultos. Proteinúria nefrótica e hipertensão
arterial sistêmica são raras. Outras manifestações clínicas mais raras podem ocorrer,
como edema e dor escrotais, cefaleia, convulsões, déficit neurológico focal, ataxia,
hemorragia intracerebral, neuropatia central, neuropatia periférica, ceratite, uveíte,
alteração da capacidade de difusão pulmonar, alterações intersticiais pulmonares e
hemorragia alveolar.
Níveis séricos elevados de IgA podem ser encontrados em 50-70% dos pacientes
com púrpura de Henoch-Schönlein. Após infecção bacteriana, pode-se encontrar
leucocitose e velocidade de hemossedimentação elevada. A demonstração da contagem
de plaquetas e dos estudos de coagulação normais é fundamental. O exame da urina
deve ser realizado em todos os pacientes e a creatinina sérica deve ser realizada em
todos os pacientes com envolvimento renal, principalmente nos adultos.
Os critérios diagnósticos preveem púrpura sem trombocitopenia ou coagulopatia
associada a um ou mais dentre dor abdominal difusa, artrite ou artralgia e qualquer
biópsia com depósito predominantemente de IgA.
Na maior parte dos casos, a doença é autolimitada, com duração média de quatro
semanas. Glicocorticoides aliviam os sintomas articulares e gastrointestinais na maior
parte dos pacientes e as manifestações cutâneas em parte deles. Em caso de
glomerulonefrite severa associada à púrpura de Henoch-Schönlein, sugere-se o uso de
Metilprednisolona 1g/dia por via intravenosa durante três dias seguida por Prednisona e
Azatioprina ou Ciclofosfamida, mas há controvérsia quanto à eficácia.

Vasculite crioglobulinêmica
Crioglobulinas são imunoglobulinas com precipitação no frio, reversível com
aquecimento. A presença anormal dessas proteínas no sangue de um indivíduo é
denominada crioglobulinemia e, quando associada a vasculite, é denominada vasculite
crioglobulinêmica.
Crioglobulinemia tipo I é caracterizada por um único tipo de imunoglobulina
(monoclonal) e raramente se apresenta com vasculite importante, estando associada a
doenças neoplásicas de células B, como macroglobulinemia de Waldenström, linfoma e
mieloma múltiplo. Crioglobulinemias podem ser caracterizadas por mais de uma
variedade de imunoglobulinas, sendo denominadas mistas e divididas em dois grupos, o
tipo II e o tipo III. Crioglobulinemia tipo III é caracterizada por composição policlonal,
sendo associada a doenças autoimunes, como síndrome de Sjögren, lúpus eritematoso
sistêmico e artrite reumatoide, ou doenças infecciosas com ativação linfocitária B, como
mononucleose, hepatites virais B e C e endocardite bacteriana. Crioglobulinemia tipo II
é caracterizada por pico monoclonal e componente policlonal, incluindo doenças
associadas ao tipo III com componente monoclonal e doenças associadas ao tipo I
quando o pico monoclonal tiver atividade de fator reumatoide. Quando a doença
responsável pelo aparecimento da crioglobulinemia não é encontrada, ela é denominada
crioglobulinemia essencial. A maioria das vasculites crioglobulinêmicas é secundária à
infecção crônica pelo vírus da hepatite C.
A idade média ao diagnóstico é de cerca de cinquenta anos, com frequência
maior em mulheres do que em homens.
O quadro clínico mais frequente é caracterizado pela tríade constituída por
fraqueza e indisposição, lesões purpúricas palpáveis em membros inferiores e artralgia

Pedro Kallas Curiati 1323


ou artrites. As principais complicações são polineuropatia periférica, mononeurite
múltipla e glomerulonefrite. Outras manifestações clínicas comuns incluem fenômeno
de Raynaud, síndrome sicca e úlceras de pele. Raramente podem ocorrer nefrite,
neoplasia hematológica, hepática ou de tireoide e pneumonite.
Achados laboratoriais comuns incluem fator reumatoide positivo, consumo de
C4, consumo de C3, anti-VHC positivo, anti-HBs positivo e autoanticorpos. Achados
laboratoriais raros incluem HBsAg positivo e hiperviscosidade.
Critérios Sorológicos Patológicos Clínicos
Maiores Crioglobulinemia mista Vasculite leucocitoclástica Púrpura
Menores Fator reumatoide Infiltração por clone de Hepatite crônica
Infecção pelo VHC linfócitos B em fígado ou Glomerulonefrite
Infecção pelo VHB medula óssea membranoproliferativa
Neuropatia periférica
Úlceras cutâneas
Considera-se que um paciente tem crioglobulinemia mista se estiverem presentes os três critérios maiores
ou crioglobulinemia mista associada a mais dois critérios clínicos e dois critérios sorológicos ou
patológicos
O quadro clínico da crioglobulinemia geralmente desaparece com o tratamento
da sua causa. Caso o paciente apresente neuropatia periférica ou glomerulonefrite na
apresentação inicial, pode ser útil o uso de glicocorticoides e Ciclofosfamida, com a
realização adjuvante de plasmaférese para retirada dos imunocomplexos circulantes, de
modo a evitar maiores sequelas enquanto se aguarda o efeito do tratamento da doença
de base. Quando a crioglobulinemia é secundária a doenças do tecido conjuntivo, deve-
se iniciar o tratamento com corticoides e imunossupressores. Se secundária a doenças
neoplásicas de células B, deve-se instituir a quimioterapia. Nos casos relacionados a
infecções, o tratamento antimicrobiano deve ser iniciado. Nas crioglobulinemias
essenciais, em geral são administrados corticosteroides sistêmicos e imunossupressores
em casos refratários ou recorrentes.

Vasculites de pequenos vasos


Desde sua descrição, os anticorpos anti-citoplasma de neutrófilos (ANCA) têm
sido usados para auxiliar no diagnóstico de vasculites de pequenos vasos, estando
presentes na granulomatose de Wegener, na síndrome de Churg-Strauss e na poliangiite
microscópica. Detecção de ANCA pode eventualmente ocorrer em diversas doenças
reumatológicas, como polimialgia reumática, lúpus eritematoso sistêmico, polimiosite e
esclerodermia, assim como em doenças não-reumatológicas, como retocolite ulcerativa,
endocardite bacteriana, fibrose cística, carcinoma broncogênico e uso de Propiltiouracil.
A ausência de ANCA não descarta a possibilidade de vasculite associada aos ANCA, já
que a positividade ocorre em mais de 80% dos pacientes com granulomatose de
Wegener, em cerca de dois terços dos pacientes com poliangiite microscópica e em
metade dos pacientes com síndrome de Churg-Strauss.
Dois padrões principais de ANCA são descritos, o perinuclear (P-ANCA),
associado principalmente à poliangiite microscópica e à síndrome de Churg-Strauss, e o
citoplasmático (C-ANCA), associado principalmente à granulomatose de Wegener.
O quadro clínico costuma ser caracterizado por sintomas constitucionais
importantes e envolvimento de pulmões e rins. Podem estar envolvidos também pele,
sistema gastrointestinal, coração, sistema nervoso periférico e vias aéreas superiores. Do
ponto de vista laboratorial, além da presença dos ANCA, as vasculites costumam
apresentar velocidade de hemossedimentação e proteína C reativa elevadas,
trombocitose, leucocitose e anemia normocítica normocrômica.

Pedro Kallas Curiati 1324


Granulomatose de Wegener
Mais comum das vasculites associadas aos ANCA. Trata-se de vasculite
sistêmica grave de etiologia desconhecida e caracterizada por tríade clássica composta
por inflamação granulomatosa necrosante das vias aéreas superiores e inferiores,
glomerulonefrite crescêntica pauci-imune e vasculite sistêmica predominantemente de
pequenos vasos. Geralmente, a doença inicia-se nas vias aéreas superiores e, a seguir,
acomete pulmões e rins.
Acomete indivíduos de todas as raças e faixas etárias, com maior incidência
entre brancos provenientes do norte da Europa e entre adultos mais velhos.
Além da forma clássica, envolvendo rins e vias aéreas, existe uma forma
limitada, que acomete apenas as vias aéreas superiores ou, mais raramente, os pulmões.
Os casos de granulomatose de Wegener limitada apresentam curso clínico recorrente,
com lesões destrutivas do trato respiratório alto, e, frequentemente, são ANCA
negativos. Manifestações isoladas de vias aéreas superiores incluem sinusites de
repetição, desabamento de septo nasal e estenose subglótica. Também são frequentes
úlceras orais, gengivite, otite com ou sem perda auditiva, mastoidite e epistaxe.
Em ordem decrescente de frequência, são acometidos vias aéreas superiores,
pulmões, rins, olhos, sistema esquelético, pele e sistema nervoso. Muitos pacientes com
envolvimento pulmonar são assintomáticos no início da doença, evoluindo
progressivamente com tosse, dispneia e escarro hemoptoico. A avaliação radiológica
pode revelar nódulos cavitados ou não, massas, infiltrado intersticial e derrame pleural.
Hemorragia alveolar maciça pode ser uma manifestação inicial catastrófica, com
diagnóstico difícil, devendo ser suspeitada em caso de infiltrado alveolar bilateral
associado a hipoxemia e queda dos níveis de hemoglobina. A biópsia pulmonar nesses
casos geralmente revela apenas alveolite e é um procedimento com alto risco e pequeno
benefício. Raramente, a granulomatose de Wegener pode se apresentar de imediato com
insuficiência renal, mas cerca de metade dos casos apresenta alterações do sedimento
urinário ao diagnóstico. Manifestações oculares ocorrem em cerca de metade dos casos
e incluem uveíte, conjuntivite e massas retro-orbitárias com proptose ocular, podendo
ocorrer também ulcerações corneanas, episclerite, neuropatia óptica, obstrução de ducto
lacrimal e vasculite retiniana. Pode ocorrer perda auditiva tanto condutiva como
neurossensorial. Mialgia e poliartralgia são bastante frequentes na apresentação da
doença. Alguns pacientes evoluem com artrite inflamatória, geralmente pauciarticular
ou monoarticular e migratória. As manifestações cutâneas incluem púrpura palpável,
úlceras, nódulos, vesículas e infartos digitais, com achado histológico de vasculite
neutrofílica leucocitoclástica. Manifestações constitucionais, como febre, perda de peso
e astenia são frequentes.
A detecção do C-ANCA tem utilidade não apenas no diagnóstico precoce, mas
também no acompanhamento terapêutico e na prevenção de recidivas. O diagnóstico
deve ser confirmado sempre que possível por exame histológico de um órgão com
atividade da doença. As lesões das vias aéreas superiores são facilmente acessíveis por
métodos pouco invasivos, mas a biópsia frequentemente revela apenas um infiltrado
inflamatório inespecífico. A retirada de material cirúrgico de seios da face ou da região
mastoide aumenta a sensibilidade da biópsia. A pele não reflete de maneira específica os
achados característicos da granulomatose de Wegener. Na biópsia de pulmão, além da
pesquisa de vasculite, granuloma e necrose fibrinoide, é necessário excluir a presença de
infecções, sobretudo aquelas causadas por micobactérias e fungos.
O diagnóstico é baseado na presença de dois ou mais dentre inflamação oral ou
nasal, com úlceras orais dolorosas ou não ou descarga nasal purulenta, radiografia de
tórax com nódulos, infiltrados fixos ou cavidades, sedimento urinário alterado, com

Pedro Kallas Curiati 1325


hematúria microscópica com ou sem cilindros, e inflamação granulomatosa na biópsia
de artéria ou área perivascular.

Síndrome de Churg-Strauss
A síndrome de Churg-Strauss é caracterizada por vasculite com formação de
granuloma e infiltração de eosinófilos tanto na parede vascular como no tecido extra-
vascular. Acomete indivíduos com antecedente de asma, rinite alérgica e polipose nasal,
com maior frequência na quinta década de vida. Alguns pacientes, depois da primeira
fase, em que predominam os fenômenos alérgicos, apresentam uma segunda fase, em
que são encontrados infiltrados inflamatórios nos tecidos, com pneumonite, hepatite ou
enterite eosinofílicas. Na terceira fase é iniciada a vasculite, geralmente acompanhada
de sintomas em múltiplos sistemas. Além da asma, nos pulmões costumam ocorrer
pneumonites migratórias, caracterizadas por infiltrados localizados, geralmente já
tratados com antibióticos, que mudam de localização no exame radiológico de controle.
Hemorragia alveolar pode ocorrer, mas com menor frequência do que nas outras
vasculites associadas aos ANCA. O achado de glomerulonefrite segmentar e focal com
crescentes em geral não se diferencia daquele encontrado na poliangiite microscópica e
na granulomatose de Wegener. Para confirmação do diagnóstico, além da história prévia
de alergias e dos achados clínicos, são de grande auxílio eosinofilia periférica, vasculite
com infiltrado granulomatoso ou eosinofílico em biópsia e detecção de P-ANCA.
O diagnóstico é baseado na presença de quatro dentre asma, com história de
chiado ou achado de sibilos expiratórios difusos, hemograma com eosinofilia superior a
10% na contagem diferencial, mononeuropatia, incluindo mononeurite múltipla, ou
polineuropatia, radiografia simples de tórax com infiltrado pulmonar migratório,
anormalidade de seios paranasais e biópsia com acúmulo de eosinófilos nas áreas extra-
vasculares.

Poliangiite microscópica
O termo poliangiite microscópica é usado para designar uma vasculite pauci-
imune de pequenos vasos que, em geral, é acompanhada de glomerulonefrite pauci-
imune. Diferentemente das outras vasculites associadas aos ANCA, não é uma doença
granulomatosa e o achado histopatológico é de infiltrado inflamatório misto com
destruição da parede de artérias e arteríolas, praticamente idêntico ao encontrado na
poliarterite nodosa.
A poliangiite microscópica diferencia-se da poliarterite nodosa por acometer
pulmões e rins de forma muito semelhante às outras vasculites associadas aos ANCA. A
poliarterite nodosa, quando acomete o pulmão, só atinge os ramos das artérias
brônquicas, poupando os ramos das artérias pulmonares. Na poliangiite microscópica,
com frequência são encontrados infiltrados pulmonares migratórios, semelhantes aos da
síndrome de Churg-Strauss, e hemorragia alveolar, idêntica à da granulomatose de
Wegener. A forma clássica da poliarterite nodosa se manifesta inicialmente de forma
mais agressiva, com hipertensão arterial sistêmica de difícil controle e insuficiência
renal, causadas por isquemia cortical renal, com sedimento renal pouco alterado. Na
poliangiite microscópica, em contraste, o quadro renal é de glomerulonefrite pauci-
imune, com proteinúria e hematúria importantes e evolução mais lenta para hipertensão
arterial sistêmica e insuficiência renal. Existe uma forma de glomerulonefrite
denominada glomerulonefrite necrosante limitada ao rim, que também está associada ao
P-ANCA, sendo considerada uma forma de poliangiite microscópica limitada ao rim.

Tratamento das vasculites associadas aos ANCA

Pedro Kallas Curiati 1326


O esquema mais utilizado até o hoje prevê a associação de Ciclofosfamida
2mg/kg/dia por via oral e Prednisona 1mg/kg/dia por via oral, com redução da dose de
corticosteroide gradualmente ao longo de seis a doze meses até a retirada e manutenção
da Ciclofosfamida por pelo menos um ano após a remissão da doença. Esse esquema é
consideravelmente tóxico, com risco de infecções oportunistas, citopenias, cistite e
câncer de bexiga, sendo estudadas outras formas de administração, como
Ciclofosfamida parenteral intermitente, e outros agentes menos tóxicos, como o
Rituximabe, com 375mg/m2 uma vez por semana durante quatro semanas por via
parenteral ou duas doses de 1g com intervalo de duas semanas por via parenteral, para a
associação com corticosteroides. Formas limitadas podem responder à combinação de
Metotrexato, com até 25mg/semana por via oral, e corticosteroides. Ambos a
Azatioprina, com 2mg/kg/dia, e o Metotrexato parecem ser efetivos para a terapia de
manutenção. Embora controverso, o uso de Trimetoprim/Sulfametoxazol é indicado na
prevenção de infecções de vias aéreas superiores recorrentes e na prevenção de
Pneumocistis carinii.
Pulsoterapia com corticosteroides pode ser usada para casos graves.
Plasmaférese está indicada para casos com nefrite refratária.
A estenose subglótica cicatricial responde mal ao tratamento imunossupressor.
Infiltração local com corticosteroide, dilatação mecânica e traqueostomia podem ser
necessários. Infecções persistentes ou recorrentes podem requerer drenagem cirúrgica e
irrigação local constante.

Arterite de vasos de médio calibre

Poliarterite nodosa
Poliarterite nodosa é uma vasculite sistêmica necrosante que compromete
artérias musculares de médio calibre, com envolvimento ocasional de pequenas artérias
musculares. Não está associada a anticorpos anti-citoplasma de neutrófilos (ANCA).
A incidência da doença aumenta com a idade, com pico na sexta década de vida
e predomínio no sexo masculino.
A maioria dos casos é de etiologia idiopática, embora o vírus da hepatite B e a
leucemia de células cabeludas sejam importantes na patogênese de alguns casos. Outros
agentes virais implicados em alguns casos incluem o vírus da hepatite C, o vírus da
imunodeficiência humana, o citomegalovírus e o parvovírus B19.
A poliarterite nodosa é caracterizada por reação inflamatória com necrose
fibrinoide em paredes de artérias de médio e pequeno calibres. Em contraste com outras
formas de vasculite sistêmica, não envolve veias. Os infiltrados celulares contém
leucócitos polimorfonucleares e células mononucleares. Fragmentos de leucócitos
(leucocitoclasia) podem ser notados. Interrupção da lâmina elástica interna e externa é
observada, podendo evoluir para o desenvolvimento de dilatação aneurismática.
Pacientes com poliarterite nodosa tipicamente apresentam fadiga, fraqueza,
febre, artralgia, hipertensão arterial sistêmica, insuficiência renal, disfunção
neurológica, dor abdominal e envolvimento multi-sistêmico.
As manifestações cutâneas podem incluir livedo reticular, úlceras cutâneas,
nódulos subcutâneos, eritema nodoso e erupção vesicular ou bolhosa, que podem ser
focais ou difusos e geralmente estão presentes em membros inferiores. Envolvimento
cutâneo progressivo pode ser grave, incluindo infarto e gangrena de dedos e ulcerações
com extensão até o tecido subcutâneo. Envolvimento renal leva a hipertensão arterial e
diferentes graus de disfunção. Ruptura de aneurisma de artéria renal pode causar
hematoma peri-renal. Infartos renais múltiplos podem ocorrer em indivíduos com

Pedro Kallas Curiati 1327


extensa vasculite. O sedimento urinário, quando alterado, revela somente proteinúria
subnefrótica e, às vezes, modesta hematúria. A mononeuropatia múltipla é um dos
achados mais comuns em pacientes com poliarterite nodosa, sendo geralmente
assimétrica no início, mas com evolução para polineuropatia simétrica distal com o
envolvimento adicional de outros ramos nervosos. Nervos cranianos são menos
comumente envolvidos e o comprometimento do sistema nervoso central é raro. A dor
abdominal é um sintoma intestinal inicial em pacientes com arterite de mesentérica,
com desconforto intermitente ou contínuo, podendo ser referido após as refeições. Perda
de peso pode ser secundária a má-absorção intestinal. Doença progressiva pode resultar
em infarto intestinal com perfuração. Outros sintomas gastrointestinais incluem náusea,
vômitos, melena, diarreia sanguinolenta e extenso sangramento gastrointestinal. Embora
o envolvimento do miocárdio seja pouco frequente, isquemia miocárdica pode resultar
do estreitamento ou da oclusão das artérias coronárias. Envolvimento muscular é
frequente, com mialgia e fraqueza. Também podem ocorrer orquite, retinopatia
isquêmica com hemorragias, descolamento de retina e atrofia óptica, envolvimento de
mama ou útero e envolvimento de artérias brônquicas.
As alterações laboratoriais são inespecíficas e demonstram apenas a natureza
inflamatória da doença e seu envolvimento visceral. As provas de atividade inflamatória
estão elevadas, o hemograma costuma revelar leucocitose, plaquetose e anemia
normocrômica normocítica, o sedimento urinário pode revelar proteinúria e hematúria e
a dosagem de ureia e creatinina pode indicar redução da taxa de filtração glomerular. As
sorologias para hepatites B e C devem sempre ser realizadas. A eletroneuromiografia
geralmente revela neuropatia axonal e pode ser útil no direcionamento da biópsia em
caso de comprometimento subclínico.
Devido à raridade e ao potencial de eventos adversos relacionados ao
tratamento, o diagnóstico deve ser confirmado sempre que possível por biópsia, que
revela arterite necrosante característica, sendo pele, músculo e nervo os locais
preferenciais. Na ausência de um sítio óbvio para biópsia tecidual, pode-se indicar
angiografia para identificar micro-aneurismas nas circulações renal, hepática ou
mesentérica. Outras lesões, como estenoses, oclusões e irregularidades arteriais,
ocorrem com maior frequência, porém são menos específicas. Aspecto distintivo da
arterite na poliarterite nodosa é o encontro de lesões segmentares e focais com
alterações morfológicas vasculares em diferentes estágios evolutivos. A realização de
biópsia renal ou hepática deve ser considerada somente após a arteriografia documentar
ausência de micro-aneurismas pelo risco de rotura.
O diagnóstico de poliarterite nodosa é sugerido na presença de pelo menos três
dentre perda de peso não explicada superior a 4kg, livedo reticular, dor testicular,
mialgia (excluir cintura escapular e pélvica), mononeurite ou polineuropatia, pressão
arterial diastólica superior a 90mmHg, níveis séricos de ureia superiores a 40mg/dL ou
creatinina superiores a 1.5mg/dL, infecção pelo vírus da hepatite B (HBsAg ou anti-
HBs), anormalidades arteriográficas características (aneurismas ou oclusões) e biópsia
de artéria de pequeno ou médio calibre contendo polimorfonucleares na parede arterial.
O glicocorticoide é a medicação de primeira linha para o tratamento da
poliarterite nodosa. Deve-se iniciar com altas doses, como Prenisona 40-60mg/dia, e
monitorizar o quadro clínico e a velocidade de hemossedimentação. Se o quadro clínico
do paciente melhora e a velocidade de hemossedimentação retorna ao normal, deve-se
iniciar a diminuição da dose de glicocorticoide, com redução em 5-10mg/dia a cada uma
a duas semanas até atingir 15mg/dia e em 1mg a cada duas a três semanas a partir de
então. Com frequência, o paciente é mantido com doses baixas por um período
indefinido de tempo. Terapêutica apropriada para prevenir osteoporose deve ser

Pedro Kallas Curiati 1328


associada.
As medicações imunossupressoras devem ser associadas à Prednisona em caso
de vasculite rapidamente progressiva ou com envolvimento de órgãos viscerais, controle
insatisfatório da atividade e dificuldade de desmame por recidiva da doença.
Ciclofosfamida é o imunossupressor de escolha para induzir remissão, com dose de
2mg/kg/dia por via oral ou 0.6g/m2 de superfície corpórea por via intravenosa uma vez
por mês, com seis a doze ciclos. Conforme a dose de glicocorticoide é reduzida, pode
ser necessária a redução da dose de Ciclofosfamida para evitar leucopenia. Tratamento
concomitante com Sulfametoxazol-Trimetoprim pode ser considerado para reduzir o
risco de infecção oportunista. Efeitos adversos incluem cistite hemorrágica, neoplasias
hematológicas e de bexiga, citopenias, infecções e falência ovariana.
Recentemente, esquemas terapêuticos com a inclusão de Lamivudina ou
Entecavir e plasmaférese têm melhorado de maneira substancial o tratamento da
poliarterite nodosa associada à infecção pelo vírus da hepatite B.

Doença de Kawasaki
A doença de Kawasaki, também denominada síndrome do linfonodo
mucocutânea, é uma das vasculites da infância mais comuns. Trata-se de condição
frequentemente autolimitada, com febre e manifestações inflamatórias agudas durando
ao redor de doze dias na ausência de tratamento. Contudo, complicações, como
aneurisma de artéria coronária, comprometimento da função miocárdica, infarto do
miocárdio, arritmia e oclusão arterial periférica podem ocorrer, com aumento da
morbidade e da mortalidade.
Meninos são mais afetados do que meninas. A maior parte dos casos ocorre em
crianças com idade inferior a cinco anos. A doença é infrequente em crianças com idade
inferior a seis meses e rara após o final da infância.
A etiologia da doença de Kawasaki permanece desconhecida, mas dados
epidemiológicos sugerem que seja causada por um agente transmissível. Há variação
sazonal na incidência da doença, que geralmente ocorre em epidemias. Ocorre alteração
da resposta imunológica. Fatores genéticos estão envolvidos.
A doença de Kawasaki se manifesta com febre, conjuntivite não-purulenta,
eritema dos lábios e da mucosa oral, língua em framboesa, adenomegalia, eritema
palmar com descamação palmo-plantar e rash cutâneo, que podem não estar presentes
ao mesmo tempo. Outras manifestações clínicas incluem poliartrite e, mais raramente,
envolvimento do sistema nervoso central, com meningite asséptica e comprometimento
de pares cranianos, e envolvimento pulmonar. As manifestações cardíacas, como
pericardite e miocardite, são comuns na fase aguda, podendo surgir insuficiência
cardíaca e arritmias. A complicação cardíaca mais grave é a arterite coronária, com
detecção de aneurismas uma a quatro semanas após o início da doença, sendo o
ecocardiograma o método de escolha e indicado em todos os casos. Ocorre em 20-25%
das crianças não tratadas e somente em 4% daquelas que recebem tratamento adequado.
Nenhum parâmetro laboratorial está incluído entre os critérios diagnósticos para
doença de Kawasaki, mas alguns achados podem ajudar, como provas de atividade
inflamatória elevadas, leucocitose com desvio à esquerda, trombocitose, anemia
normocrômica normocítica, leucocitúria, elevação de transaminases, elevação de
triglicérides e LDL-colesterol, diminuição de HDL-colesterol, hiponatremia e
hipoalbuminemia.
O diagnóstico requer a presença de febre durante pelo menos cinco dias sem
qualquer outra explicação e pelo menos quatro dentre conjuntivite bilateral não-
purulenta, alterações de mucosa oral, como lábios hiperemiados ou rachados, hiperemia

Pedro Kallas Curiati 1329


de faringe e língua em framboesa, alterações de extremidade, como eritema de palma e
planta dos pés, edema de mãos e pés e descamação peringueal, rash polimorfo e
linfoadenomegalia cervical, com pelo menos um linfonodo com tamanho superior a
1.5cm de diâmetro.
A recomendação da terapia inicial inclui o uso de imunoglobulina intravenosa,
com 2g/kg em única infusão por oito a doze horas ou 400mg/kg/dia durante quatro dias,
e Ácido Acetilsalicílico 80-100mg/kg/dia em quatro tomadas diárias. Havendo
persistência de febre, uma segunda dose de imunoglobulina intravenosa deve ser
prescrita. A dose inicial de Ácido Acetilsalicílico deve ser reduzida após 48 horas do
controle da febre para 3-5mg/kg/dia, com manutenção durante oito semanas. Em caso
de aneurisma de coronárias, essa dose menor de Ácido Acetilsalicílico pode ser mantida
indefinidamente para evitar trombose. Se o paciente permanecer febril após a segunda
dose de imunoglobulina intravenosa, pulsoterapia com Metilprednisolona 30mg/kg/dia
por via intravenosa em duas a três horas durante um a três dias ou uso de Infliximabe
5mg/kg por via intravenosa podem ser indicados.

Arterite de grandes vasos

Arterite de Takayasu
A arterite de Takayasu é uma vasculite sistêmica que atinge predominantemente
mulheres jovens e acomete a aorta, os seus ramos primários e as artérias pulmonares.
Trata-se de doença rara que predomina na Ásia, mas que ocorre em todo o
mundo. Não só a prevalência, mas também os tipos topográficos parecem sofrer grandes
variações étnicas e geográficas. O início da doença ocorre entre os quinze e os trinta e
cinco anos de idade na maioria dos casos e muito raramente após os cinquenta anos de
idade. O sexo feminino é acometido com maior frequência.
Sua etiologia é desconhecida. Acredita-se que fatores genéticos e ambientais
interajam para desencadear a doença. A doença parece ser mais frequente em países
com maior prevalência de tuberculose. Às vezes, a arterite de Takayasu ocorre
associada a doença inflamatória, como doença inflamatória intestinal, lúpus eritematoso
sistêmico, espondilite anquilosante, febre reumática, glomerulonefrite membrano-
proliferativa e granulomatose de Wegener.
Infiltrado celular mononuclear invade a parede arterial, aparentemente através
dos vasos da vasa vasorum, e ocorre formação de granuloma com células gigantes e
destruição tecidual. Na maioria dos casos, a doença evolui de forma muito lenta e o
processo inflamatório é progressivamente substituído por fibrose, que predomina na
camada adventícia e leva lentamente à oclusão arterial. De forma simultânea, ocorre
proliferação da camada íntima, que predispõe à ocorrência de trombose. Nos casos mais
graves, costuma ocorrer formação de aneurismas. Depois de muitos anos de evolução,
ocorre a formação de placas de ateroma. Predominam os estreitamentos do calibre, que
variam de estenoses leves a oclusões. Dilatações arteriais, entretanto, costumam
predominar na aorta ascendente e, com frequência, provocam insuficiência aórtica e
miocardiopatia valvar.
O quadro clínico varia conforme o local, a gravidade, a velocidade e a duração
do acometimento arterial. Alguns pacientes evoluem de forma extremamente lenta e
totalmente assintomática e a doença é descoberta de maneira casual. O achado clínico
que leva à suspeita é a diminuição de pulso, a presença de sopro ou a assimetria da
medida da pressão arterial nos membros. Na fase pré-estenótica, o paciente apresenta
manifestações sistêmicas inespecíficas, como febre, emagrecimento, indisposição,
cefaleia, dor torácica atípica, dor abdominal e eritema nodoso. Após essa fase, o

Pedro Kallas Curiati 1330


paciente pode ou não apresentar um período assintomático de semanas, meses ou anos.
Na fase pós-estenótica, predominam os sintomas de isquemia de órgãos e suas
manifestações variam conforme o território arterial envolvido. Em alguns casos, a
diminuição progressiva do calibre da artéria ocorre de forma tão lenta que há tempo
hábil para o desenvolvimento de circulação arterial colateral e o paciente não apresenta
complicação, mesmo após a oclusão da artéria. Isquemia grave e de evolução rápida é
rara, mas pode levar o paciente ao óbito ou a dano irreversível, como infarto agudo do
miocárdio, acidente vascular cerebral isquêmico, infarto pulmonar e infarto intestinal. A
isquemia renal ocorre em cerca de um terço dos pacientes e, na maioria dos casos,
provoca hipertensão arterial renovascular de difícil controle e/ou perda de função renal.
Se em vez de estenose houver formação de aneurismas, estes podem causar compressão
extrínseca, trombose com embolia à distância, dissecção ou ruptura.
Envolvimento de artérias carótidas está relacionado a embaçamento visual,
diplopia, amaurose, evento isquêmico transitório e acidente vascular cerebral isquêmico.
Envolvimento de artérias vertebrais está relacionado a tontura, síncope, zumbido e
distúrbios auditivos. Envolvimento de artérias subclávias está relacionado a dor, cãibra
e fraqueza em membros superiores. Envolvimento de artérias renais ou aorta
descendente acima das artérias renais está relacionado a hipertensão arterial sistêmica.
Envolvimento de artérias mesentéricas está relacionado a dores abdominais pós-
alimentares e isquemia mesentérica. Envolvimento de aorta abdominal abaixo das
artérias renais está relacionado a dores, cãibras e fraqueza nos membros inferiores.
Envolvimento de artérias pulmonares está relacionado a dispneia, trombose pulmonar e
hipertensão pulmonar. Envolvimento de artérias coronárias está relacionado a angina,
infarto agudo do miocárdio e cardiomiopatia isquêmica.
O exame físico de um paciente com arterite de Takayasu deve sempre incluir a
palpação dos pulsos periféricos, a procura de sopros e a medida da pressão arterial nos
quatro membros. Deve-se estar atento para a diminuição progressiva da intensidade ou o
desaparecimento de pulsos, o agravamento de sopros e/ou frêmitos e a queda da pressão
arterial em algum membro. A presença de um sopro novo deve alertar para a
necessidade de repetir o exame de imagem. Avaliação anual do fundo do olho para
verificar a presença de retinopatia isquêmica ou hipertensiva é recomendável. Sugerem
atividade da doença dor carotídea e eritema nodoso. Ecocardiograma também é de
grande importância para avaliação da gravidade da doença.
Devido ao risco envolvido, é impossível indicar biópsia de grandes artérias, a
não ser que exista indicação cirúrgica, o que só ocorre em cerca de um terço dos
pacientes. Por isso, diferentemente das outras vasculites, o diagnóstico de arterite de
Takayasu não se baseia na biópsia, mas sim no aspecto das lesões nos métodos de
imagem, como a arteriografia digital, a angiotomografia computadorizada e a
angiorressonância nuclear magnética. Os achados angiográficos considerados mais
sugestivos de arterite de Takayasu incluem presença tanto de aneurismas como de
estenoses na aorta, ponto de maior estenose de subclávias entre 1cm proximal e 3cm
distal aos óstios das artérias vertebrais, ponto de maior estenose de carótidas comuns no
trecho de 5cm que se inicia 2cm após a sua origem e associação de lesões em aorta ou
ramos com lesões em artérias pulmonares. As lesões da arterite de Takayasu costumam
poupar os óstios, com exceção das artérias coronárias.
Exames laboratoriais revelam velocidade de hemossedimentação superior a
50mm na primeira hora, proteína C reativa superior a 30mg/L, anemia de doença
crônica e plaquetose.
Em geral, as lesões são longas, em forma de ampulheta e se diferenciam de
outras lesões que causam estenoses arteriais, como as displasias fibromusculares e a

Pedro Kallas Curiati 1331


aterosclerose, que costumam ser mais focais. Outras doenças não-inflamatórias que, em
vez de estenose, causam aneurismas arteriais, como a doença de Ehlers-Danlos tipo IV e
a síndrome de Marfan, também podem ser confundidas com a arterite de Takayasu.
Entretanto, nenhuma dessas doenças costuma apresentar elevações significativas das
provas de atividade inflamatória. Outras doenças inflamatórias raras, como a síndrome
de Cogan e a doença e Behçet, muitas vezes envolvem artérias de grande calibre e
costumam apresentar provas inflamatórias extremamente elevadas, podendo ser
confundidas com a arterite de Takayasu, mas a primeira cursa com ceratite e distúrbio
vestibular periférico e a segunda cursa com úlceras orais e genitais, eventos raros na
arterite de Takayasu.
O diagnóstico é baseado na presença de três dentre idade de início igual ou
inferior a quarenta anos, claudicação de extremidades, diminuição de pulso braquial,
diferença de pressão arterial sistólica superior a 10mmHg entre os membros superiores,
sopro sobre as artérias subclávias ou sobre a artéria aorta e anormalidade arteriográfica.
Em geral, na fase aguda da doença, é necessário administrar 1mg/kg de
Prednisona por via oral para o controle da atividade, o desaparecimento dos sintomas
sistêmicos e a melhora das provas de atividade inflamatória. A maior parte dos
pacientes entra em remissão clínica e laboratorial com essa abordagem, sendo
recomendado desmame progressivo ao longo de oito a doze semanas até dose inferior a
20mg/dia, com dose de manutenção inferior a 10mg/dia. Nos casos que não respondem
a doses altas de corticosteroides e naqueles em que recidivas de atividade ocorrem ao se
tentar redução da dose de Prednisona, está indicada a utilização de imunossupressores.
O imunossupressor mais utilizado é o Metotrexato, com até 25mg/semana, mas existem
relatos de bons resultados com Ciclofosfamida, Azatioprina, Ciclosporina, Micofenolato
Mofetil, com 1.5g duas vezes ao dia, e Leflunomide, com 20mg/dia. Mais recentemente,
têm-se empregado agentes biológicos, como o anti-TNF Infliximabe, com 3-5mg/kg a
cada seis semanas por via parenteral, para casos refratários à associação de
corticosteroides com imunossupressores. Adicionalmente ao tratamento da atividade
inflamatória, indica-se também a utilização de Ácido Acetilsalicílico ou outros anti-
agregantes plaquetários por tempo indeterminado visando prevenir fenômenos
trombóticos relacionados às lesões de grandes artérias. Outra preocupação é o
desenvolvimento de ateromatose sobre as lesões vasculíticas, com indicação de controle
cuidadoso dos níveis de colesterol com atividade física, dieta e uso de medicamentos.

Arterite temporal
A arterite temporal, também conhecida como cefaleia de Horton, arterite cranial
e arterite de células gigantes, é uma vasculite que afeta artérias de grande e médio
calibre, com preferência para ramos extra-cranianos das carótidas, em especial a artéria
temporal superficial de indivíduos com mais de cinquenta anos de idade.
Dentre as vasculites sistêmicas, a arterite temporal é a mais frequente. É menos
frequente em países de latitude menor e incide mais em brancos do que em amarelos e
negros. A idade média de início é de cerca de setenta e dois anos. Quase nunca ocorre
antes dos cinquenta anos de idade. A frequência é maior no sexo feminino.
O início da doença pode ser insidioso ou abrupto e a maioria dos doentes
apresenta manifestações constitucionais, como anorexia, perda de peso, febre baixa,
fadiga e depressão. A cefaleia, geralmente de forte intensidade e localizada apenas em
uma área da cabeça, é o sintoma mais comum e normalmente faz parte do quadro
inicial. Hipersensibilidade da região temporal, com incômodo ao usar óculos, pentear os
cabelos ou apoiar a cabeça no travesseiro à noite, é queixa frequente. Uma das
manifestações mais específicas da arterite temporal é a claudicação de mandíbula, com

Pedro Kallas Curiati 1332


dor em músculo masseter ou temporal relacionada ao esforço de falar ou mastigar e que
desaparece com o repouso. Às vezes, as dores são mais intensas na região retro-
auricular ou na articulação têmporo-mandibular. Também podem ocorrer claudicação e
parestesia em língua. Sintomas oculares, como borramento visual, diplopia, amaurose
fugaz e escotomas ocorrem em cerca de um terço dos pacientes e prenunciam a
evolução para perda súbita e definitiva da visão, que se deve, geralmente, a neuropatia
óptica isquêmica, relacionada a oclusão de ramos ciliares posteriores da artéria
oftálmica, mas pode ocorrer por oclusão de artéria central da retina. Perda de memória,
convulsão, demência e acidente isquêmico transitório podem ocorrer por acometimento
de ramos intracranianos de artérias carótidas ou vertebrais. Inflamação da aorta, com
dilatação da porção ascendente, levando à insuficiência aórtica ou obstrução de ramos
do arco e até mesmo de ramos abdominais, pode ocorrer, com quadro clínico
dependente do território irrigado pelos ramos.
O espessamento da artéria temporal, com nodulações, rigidez da parede e
diminuição ou ausência de pulsos é o achado mais sugestivo ao exame físico. Sopros
devido a estenoses em subclávias ou carótidas e à insuficiência de válvula aórtica
podem ocorrer. Diminuição de pulsos periféricos ou diferença de pressão arterial entre
os membros sugerem envolvimento de ramos da aorta.
O exame laboratorial que mais auxilia no diagnóstico da doença é a velocidade
de hemossedimentação, que é quase sempre muito elevada, entre 80mm/hora e
100mm/hora. Plaquetose e anemia de doença crônica podem ocorrer. Outros exames
auxiliam apenas para diagnóstico diferencial. A ultrassonografia com Doppler das
artérias temporais pode ser útil para indicar o local a ser biopsiado. A biópsia da artéria
temporal deve ser indicada e o maior segmento possível deve ser retirado e analisado. O
achado de infiltrado inflamatório mononuclear com células gigantes é o padrão de
referência para o diagnóstico da doença. No entanto, muitos pacientes apresentam
biópsia negativa mesmo se as duas artérias temporais forem biopsiadas.
O diagnóstico é baseado na presença de pelo menos três dentre idade de início
superior ou igual a cinquenta anos, cefaleia de início recente ou novo tipo de cefaleia,
dor à palpação ou diminuição do pulso da artéria temporal, velocidade de
hemossedimentação superior a 50mm/hora e evidência histológica de arterite, com
lesões granulomatosas, geralmente com células gigantes ou infiltrado celular
mononuclear.
Corticosteroides em altas doses são o tratamento de escolha para a arterite
temporal. Habitualmente, usa-se Prednisona 0.5-1mg/kg/dia. A dose de 0.5mg/kg/dia
está associada a maior risco de recorrência de atividade da doença e de amaurose do que
a dose de 1mg/kg, mas é preferida nos pacientes com maiores complicações clínicas
prévias, como insuficiência cardíaca, arritmias, diabetes mellitus e osteoporose. Para
pacientes com quadro ocular, pode ser administrada Metilprednisolona em pulso. A
resposta brilhante ao corticoide é a regra, com grande melhora dos sintomas e
normalização das provas de atividade inflamatória em até três dias na maioria dos casos.
Após um mês da melhora clínica, a dose de Prednisona pode ser lenta e gradativamente
diminuída ao longo de dois anos até sua retirada total. Recorrências da atividade da
doença são frequentes após a redução abaixo de 20mg/dia, conseguindo-se controlar a
atividade da doença com o dobro da dose anterior à recidiva. Embora exista
controvérsia a respeito, para casos refratários ou com recidivas está indicada a utilização
conjunta de imunossupressores, como Metotrexato e Azatioprina. O uso de Ácido
Acetilsalicílico deve ser indicado para todos os pacientes que não tenham
contraindicação, pois está associado a menor risco de complicações isquêmicas tardias.
Investigação e profilaxia ou tratamento para osteoporose são indicados para todos os

Pedro Kallas Curiati 1333


pacientes.

Polimialgia reumática
A polimialgia reumática é considerada uma doença relacionada à arterite
temporal. Trata-se de doença inflamatória sistêmica que ocorre em indivíduos com
idade superior a cinquenta anos, comumente associada a elevação da velocidade de
hemossedimentação e a anemia.
A polimialgia reumática pode fazer parte de um espectro de doenças
inflamatórias, com um componente de vasculite sistêmica. Aproximadamente metade
dos pacientes com arterite de células gigantes apresentam dores e outros sintomas
clínicos característicos de polimialgia reumática, enquanto que cerca de 10% dos
pacientes com polimialgia reumática apresentam ou desenvolvem arterite de células
gigantes.
Há pico de incidência entre sessenta e oitenta anos de idade, com casos
documentados em indivíduos com menos de cinquenta anos de idade. Há predomínio
discreto no sexo feminino.
A polimialgia reumática é caracterizada por curso subagudo ou crônico de dores
difusas pelo corpo, rigidez matinal e dor em região cervical, ombros e cintura pélvica.
Os sintomas geralmente são simétricos, mas pode ocorrer assimetria da dor. Alguns
pacientes queixam-se de fraqueza, fadiga, anorexia, perda de peso e febre. Sinovite e
bursite são consideradas as principais causas de desconforto e rigidez articular. A
sinovite é leve, pode ser transitória, é relativamente comum nas articulações periféricas
e responde com rapidez ao uso de corticosteroides. Alguns pacientes apresentam edema
depressível nas mãos, nos punhos, nos tornozelos e no dorso dos pés. Tenossinovite dos
flexores pode ser a causa de síndrome do túnel do carpo. A força muscular é difícil de
ser avaliada devido à dor intensa, mas é normal quando realizada analgesia adequada.
O achado laboratorial característico é elevação da velocidade de
hemossedimentação, que pode exceder 100mm/hora. A proteína C reativa também
encontra-se elevada. Anemia normocítica é encontrada em cerca de metade dos
pacientes. Trombocitose e leucocitose podem ser encontradas quando a doença está
ativa. A frequência de fator reumatoide, fator anti-núcleo e outros auto-anticorpos é
semelhante àquela encontradas na população geral.
Radiografias das articulações inflamadas raramente revelam qualquer alteração.
Por outro lado, a imagem de ressonância nuclear magnética confirma a inflamação de
estruturas sinoviais extra-articulares. A ultrassonografia revela derrame articular.
O diagnóstico é baseado em idade superior ou igual a cinquenta anos, dor
articular e rigidez matinal com duração superior ou igual a trinta minutos bilateralmente
por pelo menos um mês envolvendo pelo menos duas regiões dentre pescoço, ombros
ou região proximal dos braços e quadris ou região proximal das coxas e velocidade de
hemossedimentação superior ou igual a 40mm/hora. Alguns autores acrescentam a
resposta imediata dos sintomas com o uso de corticosteroides como um critério
adicional. A presença de outra doença para explicar esses achados exclui o diagnóstico.
O diagnóstico diferencial inclui artrite reumatoide, hipotireoidismo, endocardite
infecciosa, fibromialgia, neoplasia maligna, polimiosite, bursite, tendinite e amiloidose.
A polimialgia reumática apresenta uma rápida resposta ao tratamento com
corticosteroide, geralmente em doses baixas. A maioria dos sintomas resolve-se em 48-
72 horas e a velocidade de hemossedimentação, a anemia e a trombocitose normalizam
em sete a dez dias. Dependendo do peso do paciente e da gravidade dos sintomas, a
dose inicial de Prednisona pode variar de 7.5mg a 20mg por dia, com aumento se os
sintomas não forem controlados em uma semana. O diagnóstico diferencial com arterite

Pedro Kallas Curiati 1334


de células gigantes e síndrome paraneoplásicas deve ser feito. A dose efetiva de
corticoide deve ser mantida por duas a quatro semanas após a dor e a rigidez articulares
terem sido resolvidas e então reduzida em aproximadamente 10% a cada duas a quatro
semanas, encontrando a menor quantidade necessária da medicação para manter a
supressão dos sintomas. Quando a dose for inferior a 10mg/dia, é conveniente reduzir
lentamente, ao redor de 1mg/dia/mês. Recidivas ocorrem em um quarto a metade dos
pacientes, em geral quando a dose do corticosteroide é reduzida mais rapidamente que o
preconizado. Como a maioria dos pacientes irá necessitar de uso de corticosteroide por
mais de seis meses, a suplementação de cálcio e vitamina D está indicada e o uso
profilático ou terapêutico de bifosfonatos deve ser considerado. A associação de
Metotrexato 7.5-20mg/semana ou Azatioprina 2mg/kg/dia pode estar indicada como
agente poupador de esteroide. Na maioria dos pacientes, a doença tem curso
autolimitado, com duração de meses a anos, e a terapia com corticosteroides pode,
eventualmente, ser descontinuada.

Bibliografia
Clínica médica, volume 5: doenças endócrinas e metabólicas, doenças ósseas, doenças reumatológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Goldman’s Cecil medicine / [edited by] Lee Goldman, Andrew I. Schafer.—24th ed. 2012.

Pedro Kallas Curiati 1335


CÂNCER DE PRÓSTATA
Epidemiologia
Sob o ponto de vista epidemiológico, o câncer de próstata apresenta duas
características relevantes. A sua prevalência aumenta com a idade, atingindo quase
metade dos indivíduos com oitenta anos. Além disso, é encontrado em um número
elevado de indivíduos, sem lhes causar nenhum mal, com caráter indolente.

Fisiopatologia
Todo homem nasce com predisposição para câncer de próstata em função de
proto-oncogenes. A neoplasia maligna surge porque as múltiplas divisões celulares que
vão ocorrendo com o passar dos anos acompanham-se de perdas de genes supressores e
de ativação de oncogenes. A testosterona não está relacionada à gênese do câncer de
próstata, mas acelera o crescimento da neoplasia já existente. Fatores de risco incluem
antecedente familiar de câncer de próstata, ingesta de alimentos com alto teor de
gordura e raça negra.
Aproximadamente 98% das neoplasias da próstata são adenocarcinomas e o
restante compreende sarcomas, carcinomas epidermoides e carcinomas de células
transicionais. Os adenocarcinomas localizam-se na zona periférica da glândula em cerca
de 75% dos casos, na zona transicional em aproximadamente 25% dos casos e na zona
central em menos de 5% dos casos. A diferenciação glandular é um importante fator
prognóstico e está relacionada com o comportamento biológico do tumor e com a
sobrevida do paciente.

Quadro clínico
A evolução de pacientes com câncer de próstata é relativamente imprevisível,
com casos de rápida disseminação antes mesmo de surgirem sintomas locais e casos de
evolução lenta e indolente, com lesões que permanecem estacionárias. De uma maneira
geral, tende a prevalecer a última forma de evolução clínica.
No passado, a maioria dos pacientes com câncer de próstata apresentava doença
disseminada. Atualmente, a maior parte dos casos é identificada ainda com doença
localizada.
Nos pacientes com tumor circunscrito à próstata, a doença é assintomática. Por
sua vez, na maior parte dos pacientes com tumor localmente avançado, há obstrução
urinária, com urgência, noctúria, polaciúria e hesitação, e hematúria macroscópica. O
surgimento súbito de obstrução urinária em um paciente com padrão miccional recente
satisfatório é manifestação comum de câncer de próstata. Em caso de hiperplasia
benigna, os sintomas obstrutivos tendem a evoluir de forma mais lenta.
Com menor frequência, pacientes com câncer de próstata podem apresentar
dores ósseas, uremia, anemia, perda de peso, adenopatia cervical ou inguinal, linfedema,
trombose venosa profunda de membros inferiores e/ou hemospermia como primeira
manifestação da doença.

Avaliação complementar
A detecção do tumor primário é feita através de toque digital, medida do PSA
sérico e ultrassonografia transretal. No toque digital, nódulos ou áreas endurecidas
assimétricos são sugestivos de câncer de próstata. Sob o ponto de vista prático, níveis
séricos de PSA inferiores a 2.5ng/mL em pacientes com toque prostático normal

Pedro Kallas Curiati 1336


acompanham-se de risco desprezível de câncer de próstata, sendo recomendado
seguimento clínico. Por sua vez, níveis superiores a 2.5ng/mL acompanham-se de riscos
substanciais de câncer de próstata. Pacientes idosos ou com hiperplasia benigna
acentuada podem apresentar pequenas elevações do PSA sem que isso signifique a
presença de neoplasia maligna. Nos casos de hiperplasia benigna, toleram-se níveis de
PSA equivalentes a 1/15 do peso ou do volume da próstata avaliados por
ultrassonografia, de modo que valores mais elevados demandam biópsia local para
descartar processo maligno. Nos casos de crescimento prostático benigno, a relação
entre PSA livre e PSA total sérico costuma ser superior a 25%. Valores mais baixos da
fração livre aumentam consideravelmente a probabilidade de câncer de próstata. Em
pacientes com câncer de próstata, os níveis de PSA tendem a subir 50-100% ao ano.
Quando a velocidade de aumento é superior a 200% ao ano, é provável que a doença de
base seja uma prostatite e não uma neoplasia. Quadros de prostatite produzem elevações
substanciais dos níveis de PSA, que podem atingir 80ng/mL nos processos agudos
febris. Pacientes com elevação abrupta e intensa de PSA podem ser tratados
inicialmente com antibióticos, que rapidamente reduzem os níveis séricos do marcador.
Se os níveis séricos persistirem anormais dez a vinte dias após o tratamento, deve-se
indicar biópsia prostática. A ultrassonografia transretal não costuma ser empregada
sistematicamente para rastrear câncer de próstata, sendo indicada quando o toque digital
ou as dosagens de PSA apresentam resultados incoerentes ou duvidosos. Os inibidores
da 5-alfaredutase reduzem os níveis séricos de PSA, sendo sugerido multiplicar por dois
os valores medidos nos primeiros dois anos de uso da medicação e por dois e meio os
valores medidos a partir de então para uma interpretação mais adequada.
O rastreamento do câncer de próstata deve ser indicado com base em decisão
informada e compartilhada e conduzido por meio de avaliações anuais quando os níveis
de PSA situam-se acima de 1ng/mL e a cada dois anos quando esses níveis são
inferiores a 1ng/mL, com início aos cinquenta anos, sendo recomendada antecipação
para quarenta anos nos pacientes de maior risco, como aqueles de raça negra, com
história familiar de câncer de próstata em familiares de primeiro grau e/ou com mutação
nos genes BRCA1 ou BRCA2. Sugere-se não realizar o toque digital como parte da
rotina de rastreamento. O rastreamento deve ser interrompido quando idade ou
comorbidades limitam a expectativa de vida para menos de dez anos.
A biópsia da próstata deve ser indicada em todos os pacientes com área de maior
consistência na glândula, nódulo palpável e/ou assimetria no toque digital e/ou elevação
dos níveis séricos de PSA. Quando os níveis de PSA situam-se acima de 10ng/mL, o
risco de neoplasia maligna é de cerca de 50% e indica-se biópsia, independentemente da
idade e do volume da glândula. Quando os níveis de PSA situam-se de 4.1ng/mL a
10ng/mL, o risco de neoplasia maligna é de cerca de 20% e geralmente indica-se
biópsia, independentemente da idade e do volume da glândula, com o objetivo de
aumentar a chance de diagnosticar doença localizada. Quando os níveis séricos de PSA
situam-se entre 2.6ng/mL a 4.0ng/mL ou são inferiores a 2.5ng/mL em vigência de
elevação superior ou igual a 0.35ng/mL/ano, deve-se considerar a realização de biópsia.
A biópsia da próstata por via transretal com ajuda de ultrassonografia transretal e
sedação intravenosa constitui o método mais recomendado. A possibilidade de
resultados falso-negativos faz com que o procedimento deva ser repetido precocemente
nos pacientes com indícios clínicos sugestivos de neoplasia maligna. A biópsia deve ser
sempre bilateral, mesmo em caso de nódulo unilateral. Associa-se a complicações
sépticas, com infecção urinária em parcela significativa dos pacientes. Outras
complicações incluem hemospermia, hematúria severa e retenção urinária. Para reduzir
o risco de complicações sépticas, os pacientes devem receber, antes do procedimento,

Pedro Kallas Curiati 1337


pequeno clister anal e antibioticoterapia profilática com agentes contra Gram-negativos
e anaeróbios. Recomenda-se o emprego de Ciprofloxacino 500mg por via oral duas
horas antes do procedimento e a cada doze horas durante sete dias. Pacientes com
neoplasia intraepitelial (PIN) de alto grau, que apresenta associação frágil com
neoplasia maligna, em biópsias que envolveram a retirada de doze fragmentos devem
ser acompanhados clinicamente, com repetição da biópsia se os níveis de PSA ou o
toque digital piorarem com o tempo. Proliferação de pequenas glândulas atípicas
(ASAP) constitui, com frequência, alteração presente na periferia de uma área com
neoplasia maligna já instalada, com indicação de repetição da biópsia da próstata cerca
de dois meses após o exame inicial.
O sistema de graduação histológico mais utilizado é o proposto por Gleason, que
valoriza principalmente o padrão glandular e a relação entre as glândulas e o estroma
prostático. Nesse sistema, os tumores são classificados em cinco graus, denominando-se
grau 1 as lesões mais diferenciadas e grau 5 as lesões mais indiferenciadas. Como os
adenocarcinomas da próstata apresentam mais de um padrão histológico, o diagnóstico
final na escala de Gleason é dado pela soma dos graus do padrão primário,
predominante, e do padrão secundário, segunda maior área representada, o que faz com
que as neoplasias mais diferenciadas sejam classificadas como escore 2 (1 + 1) e as
neoplasias mais anaplásicas sejam classificadas como escore 10 (5 + 5).

Estadiamento
Além do toque retal, que permite avaliar localmente a extensão do tumor, o
estadiamento é feito por meio de dosagem de fosfatase ácida, fosfatase alcalina e
antígeno prostático específico, cintilografia óssea, ultrassonografia transretal,
ressonância nuclear magnética de pelve e retroperitônio, PET-CT e linfadenectomia
ilíaca. O rastreamento de metástases ósseas com cintilografia óssea pode ser
desnecessário em paciente com PSA sérico inferior a 10ng/mL, escore de Gleason
inferior ou igual a seis e estágio clínico T1 ou T2.
Fosfatase ácida sérica elevada indica doença extra-prostática regional ou
metastática. Níveis séricos iniciais elevados não têm valor prognóstico, mas a sua
redução com o tratamento indica melhor prognóstico, principalmente quando os valores
se normalizam. Elevações posteriores indicam recrudescimento da doença.
Fosfatase alcalina eleva-se frequentemente em pacientes com metástases ósseas
e, ao contrário do que ocorre com a fosfatase ácida, valores iniciais elevados parecem se
relacionar com pior prognóstico.
Os níveis de PSA dependem diretamente do volume de tecido prostático
existente. Em hiperplasia benigna da próstata, cada grama de tecido eleva os níveis
séricos de PSA em 0.31ng/mL. Em adenocarcinomas de próstata, cada grama de tecido
eleva os níveis séricos de PSA em 3.5ng/mL, indicando que, quanto maior o valor do
PSA, maiores são o volume e a extensão do tumor. O extravasamento tumoral para além
da cápsula e a doença metastática em osso acompanham-se de níveis séricos de PSA
que ultrapassam, respectivamente, 20ng/mL e 100ng/mL.
A cintilografia óssea com Tc99 constitui forma relativamente precisa de
identificar metástases ósseas. As lesões surgem, geralmente, na forma de áreas
hipercaptantes múltiplas, assimétricas, acometendo principalmente coluna, pelve,
costelas, escápula, crânio e fêmur. Resultados falso-positivos devem-se, principalmente,
a processos degenerativos articulares, fraturas antigas, doenças ósseas metabólicas e
doença óssea de Paget. Nas lesões cintilográficas de natureza duvidosa, deve-se
recorrer, sucessivamente, a estudo de imagem por ressonância nuclear magnética ou
tomografia computadorizada e, quando necessário, a biópsia óssea se a área suspeita for

Pedro Kallas Curiati 1338


de fácil acesso e os exames anteriores não dirimirem a dúvida.
A ultrassonografia transretal pode caracterizar com precisão o envolvimento
neoplásico da cápsula prostática e das vesículas seminais.
A ressonância nuclear magnética de pelve e retroperitônio com bobina
endorretal é utilizada para delinear a lesão primária e para estagiar localmente a doença.
Permite definir o envolvimento dos linfonodos pélvicos.
O emprego de PET-CT em câncer de próstata ainda tem um valor indefinido, já
que essas neoplasias são de crescimento lento e, por isso, associam-se a baixa atividade
metabólica. Utilizando a [F-18]-fluorodeoxiglicose (FDG) como radiotraçador, o PET-
CT pode revelar áreas extra-prostáticas da doença, mas tem pouco valor na detecção do
câncer primário ou na avaliação da extensão local da doença.
Linfadenectomia ilíaca representa o método mais sensível para identificação de
metástases ganglionares pélvicas. O procedimento é recomendado no momento do ato
cirúrgico, quando o paciente está sendo submetido à prostatectomia radical ou como
intervenção isolada precedendo a radioterapia, quando se opta por essa modalidade em
casos com lesão primária de características desfavoráveis.
Estadiamento TNM
Tx Tumor primário não pôde ser avaliado
T0 Sem evidência de tumor primário
T1 Tumor incidental, clinicamente inaparente, não-palpável e não-detectável em exames radiológicos
T1a – Achado histológico em 5% ou menos do tecido histológico
T1b – Achado histológico em mais de 5% do tecido histológico
T1c – Tumor identificado por biópsia com agulha em função de elevação dos níveis séricos de PSA
T2 Tumor confinado à próstata
T2a – Envolvimento de metade de um lobo prostático ou menos
T2b – Envolvimento de mais de metade de um lobo prostático
T2c – Envolvimento de ambos os lobos prostáticos
T3 Tumor com extensão extra-capsular
T3a – Extensão extra-capsular unilateral ou bilateral, com ou sem invasão microscópica do colo
vesical
T3b – Invasão das vesículas seminais
T4 Tumor invade ou está fixo a estruturas adjacentes, como esfíncter uretral externo, reto, bexiga,
músculos elevadores e parede pélvica
NX Linfonodos regionais não puderam ser avaliados
N0 Sem evidência de metástases em linfonodos regionais
N1 Metástases em linfonodos regionais
M0 Sem evidência de metástases a distância
M1 Metástases à distância
M1a – Linfonodos não-regionais; M1b – Ossos; M1c – Outros sítios, com ou sem doença óssea;

Estágios TNM
Estágio Tumor Linfonodos Metástases à PSA Escore de Gleason
primário regionais distância
I T1a-c, T2a N0 M0 < 10ng/mL ou indisponível ≤ 6 ou indisponível
IIA T1a-c N0 M0 < 20ng/mL 7
T1a-c, T2a N0 M0 ≥10ng/mL e < 20ng/mL ≤6
T2a N0 M0 < 20ng/mL 7
T2b N0 M0 < 20ng/mL ou indisponível ≤ 7 ou indisponível
IIB T2c N0 M0 Qualquer Qualquer
T1-2 N0 M0 ≥ 20 Qualquer
T1-2 N0 M0 Qualquer ≥8
III T3a-b N0 M0 Qualquer Qualquer
IV T4 N0 M0 Qualquer Qualquer
Qualquer N1 M0 Qualquer Qualquer
Qualquer Qualquer M1 Qualquer Qualquer

Pedro Kallas Curiati 1339


Tratamento
Ao se planejar o tratamento dos casos de câncer de próstata, devem ser
considerados a extensão da doença, o grau histológico do tumor e as condições gerais
do paciente. Os tumores localizados inteiramente dentro da glândula, estágios T1 e T2,
nem sempre precisam ser tratados, mas quando isso for necessário, pode-se recorrer à
cirurgia ou à radioterapia. Quando o câncer atinge os envoltórios da próstata, estágio
T3, costuma-se indicar tratamento radioterápico associado à terapêutica hormonal
antiandrogênica. Finalmente, quando o tumor se estende para outros órgãos, estágios
N+ e/ou M+, a doença é tratada com castração ou hormônios antiandrogênicos.
O grau histológico do tumor também deve ser levado em conta quando se
planeja o tratamento, uma vez que as lesões bem diferenciadas, com escore de Gleason
de dois a seis, tendem a ter um comportamento mais indolente, podendo ser tratadas de
forma mais conservadora. Por sua vez, as neoplasias indiferenciadas, com escore de
Gleason de oito a dez, são extremamente agressivas e respondem de forma imprevisível
às diferentes opções de tratamento, o que justifica a adoção de terapia combinada, em
geral com a associação de cirurgia ou radioterapia com terapêutica hormonal.
Finalmente, a estratégia de tratamento dos casos de câncer de próstata deve levar
em conta as perspectivas de vida do paciente. A conduta conservadora expectante ou
tratamento hormonal com bloqueio androgênico periférico está justificada para os
pacientes com perspectiva de vida menor que dez anos, quer pela idade do paciente,
quer pela existência de doenças complexas associadas. Quando as condições gerais e a
idade sugerem chance razoável de sobrevida superior a dez anos, o tratamento curativo
radical deve ser adotado.

Tratamento do câncer localizado


Alguns homens com câncer de próstata localizado não precisam ser tratados. A
vigilância ativa é definida como o adiamento do tratamento imediato, com instituição de
tratamento curativo em caso de evidência de progressão da doença. Já na conduta
expectante, assume-se a premissa de que alguns pacientes não se beneficiarão do
tratamento curativo, com preferência por cuidados paliativos com terapia
antiandrogênica para sintomas locais e relacionados a metástases à distância.
Apesar da falta de dados científicos mais consistentes, algumas evidências
indicam que o valor terapêutico da radioterapia externa é inferior ao da cirurgia. Novas
formas de tratamento radioterápico têm sido exploradas clinicamente, como a
radioterapia com modulação de intensidade, a braquiterapia intersticial com aplicação
de sementes radioativas de 125I na próstata e a associação de radioterapia com
tratamento hormonal neoadjuvante, com resultados favoráveis.
Algumas complicações permeiam o tratamento do câncer localizado da próstata
e geram ansiedade e preocupações nos seus portadores. Embora seu valor curativo seja
inquestionável e a intervenção seja atualmente realizada com baixa morbidade, a
prostatectomia radical pode provocar impotência sexual e incontinência urinária,
comprometendo a qualidade de vida do paciente. A disfunção sexual, que se caracteriza
por perda das ereções penianas e pode ser tratada com inibidores da 5-fosfodiesterase,
injeções intrapenianas, dispositivos à vácuo e implante de próteses penianas, surge em
95% dos casos operados com mais de 70 anos de idade, 50% dos indivíduos com 55-65
anos de idade e 15-20% dos pacientes com menos de 55 anos. Incontinência urinária
grave surge em 20-40% dos pacientes submetidos a cirurgia em centros não-
especializados, mas acomete apenas 2-4% dos casos quando a intervenção é realizada
por equipes habilitadas.

Pedro Kallas Curiati 1340


A radioterapia, apesar de sua característica não-invasiva, também é
acompanhada de efeitos colaterais modestos. 40-50% dos pacientes desenvolvem
impotência sexual, que surge um a dois anos após o tratamento. Além disso, cerca de
20% apresentam reação actínica em reto, ânus e bexiga durante o tratamento, com
tendência de melhora após um a dois meses, podendo se perpetuar em cerca de 10% dos
pacientes. Também há aumento do risco de câncer de reto e bexiga após radioterapia.
A cirurgia radical deve ser evitada em caso de margens possivelmente
envolvidas. A radioterapia externa deve ser evitada em caso de próstata volumosa. A
braquiterapia deve ser evitada em caso de escore de Gleason superior a seis, margens
envolvidas, próstatas volumosas e ressecção prévia.

Tratamento do câncer localmente avançado


O câncer localmente avançado é caracterizado por extensão da doença para os
tecidos periprostáticos ao toque ou em estudos de imagem, mas sem metástases
aparentes. Incluem-se também nesse grupo os pacientes com níveis de PSA superiores a
20ng/mL e os casos com escore de Gleason oito a dez ou com todos os fragmentos da
biópsia positivos para tumor maligno, nos quais as chances de envolvimento
periprostático são elevadas.
Esses pacientes são mais bem controlados com o emprego de terapia
antiandrogênica por pelo menos dois anos associada a radioterapia externa iniciada no
terceiro mês de tratamento. Outra opção é a realização de cirurgia radical exclusiva,
associada ou não à radioterapia externa local no pós-operatório.

Tratamento do câncer disseminado


Apesar de diferentes tentativas de se controlar a doença por outros meios, a
terapêutica endócrina representa, ainda, o único método eficiente para se deter a
evolução do câncer da próstata em suas fases mais avançadas.
Na prática, a supressão da atividade androgênica pode ser realizada com:
- Orquiectomia bilateral;
- Supressão da liberação hipotalâmica ou hipofisária de LH e FSH por
meio de, respectivamente, estrógenos ou análogos do LHRH;
- Bloqueio da ação periférica da testosterona por meio dos
antiandrogênicos;
- Bloqueio da síntese de testosterona pela Ciproterona;
Embora se atribua às diferentes modalidades a mesma eficiência terapêutica, a
vivência clínica tem indicado que a orquiectomia e a estrogenoterapia representam as
alternativas mais eficazes. Os análogos do LHRH apresentam uma eficiência um pouco
menor e os antiandrogênicos periféricos são os menos atuantes do ponto de vista
clínico.
Pacientes institucionalizados, com recursos financeiros limitados e com
dificuldade de acesso a cuidados médicos são melhor tratados com orquiectomia. Nos
pacientes sem afecções cardiovasculares e que não aceitam a castração, pode-se recorrer
aos estrógenos, como o Dietilestilbestrol, apresentado na forma de comprimidos de
1mg, com dose de 1-3mg/dia. Esses pacientes devem receber irradiação mamária para
prevenir ginecomastia, mas o efeito da radioterapia só se manifesta se o tratamento for
realizado antes do início do uso do estrógeno. Com o objetivo de reduzir a incidência de
fenômenos tromboembólicos, deve-se administrar Ácido Acetilsalicílico 100mg/dia.
Nos pacientes com maior disponibilidade econômica, a terapêutica
antiandrogênica pode ser realizada com os análogos do LHRH, que, além de não
induzirem ginecomastia ou complicações cardiovasculares, são de fácil administração,

Pedro Kallas Curiati 1341


realizada por meio de injeções repetidas a cada um, dois ou três meses. Parte dos
pacientes apresenta ondas de calor, que quando intensas podem ser suprimidas com o
uso de estrógeno oral, como Dietilestilbestrol 0.3mg/dia, ou progesterona parenteral,
com uma ampola de 150mg de Medroxiprogesterona de depósito por via intramuscular
a cada noventa dias. A primeira injeção do análogo produz, de imediato, um aumento
dos níveis de testosterona que pode exacerbar quadros dolorosos e precipitar retenção
urinária ou paraplegia em pacientes com tumores primários volumosos ou com
compressão metastática incipiente da medula espinhal. Essas intercorrências e a
elevação precoce dos níveis de testosterona são abolidas com o emprego de
antiandrogênicos, como Flutamida, Nilutamida, Ciproterona e Bicalutamida, que devem
ser iniciados dez dias antes e mantidos por dez dias após a primeira injeção do análogo
de LHRH.
A utilização isolada de antiandrogênicos periféricos representa a modalidade
menos atuante em casos de câncer de próstata disseminado, mas, sob o ponto de vista
clínico, o emprego desses agentes está indicado em pacientes que desejam preservar a
função sexual. Realmente, a Flutamida, apresentada na forma de comprimidos de
250mg, com dose de um comprimido três vezes ao dia, a Nilutamida, com dose de
150mg/dia, e a Bicalutamida, apresentada na forma de comprimidos de 50mg, com dose
de um comprimido por dia, permitem que cerca de metade dos pacientes tratados
mantenham-se sexualmente ativos, já que os níveis séricos de testosterona permanecem
elevados. Causam ginecomastia e, ocasionalmente, diarreia e hepatite tóxica.
Para o tratamento do câncer refratário ao tratamento hormonal, estão sendo
exploradas clinicamente novas estratégias, como o bloqueio adrenal, a terapia citotóxica
combinada, a inibição dos fatores de crescimento e a terapia genética. A terapêutica
endócrina de segunda linha atualmente abrange estrógenos em altas doses,
orquiectomia, o bloqueio adrenal com glicocorticoides ou Cetoconazol e a
quimioterapia citotóxica.
Estrógenos em altas doses são administrados por via parenteral, com Fosfato de
Estilbestrol 1g diariamente durante sete dias e uma a duas vezes por semana a partir de
então. Cerca de metade dos pacientes apresentam edema e retenção hidrossalina e uma
pequena parcela apresenta trombose venosa profunda de membros inferiores, de modo
que diuréticos e Ácido Acetilsalicílicos devem ser administrados preventivamente.
Orquiectomia está indicada nos casos de progressão após o uso inicial das
medicações antiandrogênicas.
Em doses baixas, os glicocorticoides suprimem a produção de andrógenos
adrenais e eliminam a influência dos mesmos sobre o crescimento prostático. A
administração de Dexametasona, apresentada na forma de elixir com 0.1mg/mL e
comprimidos com 1mg, com dose de 0.75mg por via oral duas ou três vezes ao dia, em
pacientes com escape à orquiectomia promove melhora clínica e queda dos níveis de
PSA. Os corticoides também são bastante eficientes no controle de dores ósseas
decorrentes das metástases locais, mas nessa situação doses mais elevadas devem ser
empregadas, com Dexametasona 8mg por via intramuscular duas a três vezes ao dia.
Cetoconazol, apresentado na forma de comprimidos de 400mg, é um antifúngico
derivado imidazólico que inibe a síntese de testosterona no testículo e na adrenal. Sua
utilização em doses elevadas, com 400mg três vezes ao dia por via oral, acompanha-se
de supressão imediata dos níveis de testosterona. Apesar da sua eficiência, efeitos
colaterais ocorrem em elevado número de pacientes, com astenia, anorexia, náusea,
vômitos, eczema, queda de pelos e edema de membros inferiores. Ademais, os níveis de
testosterona tendem a elevar-se após o quinto mês de tratamento, permitindo eventual
reativação da doença.

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Quanto à quimioterapia citotóxica, a combinação de Mitoxantrona com
Prednisona não modifica substancialmente a sobrevida dos pacientes com doença
hormônio-refratária, mas produz melhora significativa da qualidade de vida por
favorecer o controle da dor e aumentar o bem-estar físico, enquanto que a associação de
Docetaxel 75mg/m2 a cada três semanas com Estramustine ou Prednisona 5mg duas
vezes ao dia é capaz de produzir respostas objetivas e duradouras, com queda
significativa dos níveis de PSA, aumento de sobrevida e melhora na qualidade de vida.

Tratamento de situações especiais


A ressecção transuretral da próstata pode ser feita de forma segura e eficiente
nos pacientes com retenção urinária.
Recorrência da doença deve ser cogitada quando, após a realização de
prostatectomia radical, os níveis de PSA ultrapassam o valor de 0.4ng/mL. Quando o
toque da loja prostática ou exames de imagem evidenciam presença de lesão local e
estudos sistêmicos do esqueleto e do retroperitônio não evidenciam a presença de
metástases, os pacientes devem ser tratados com radioterapia aplicada na loja prostática.
Por outro lado, na presença de doença metastática, de lesões de alto grau (Gleason oito a
dez) ou de invasão das vesículas seminais, deve-se instituir tratamento endócrino
antiandrogênico.
Na recorrência local após radioterapia exclusiva, o aumento dos níveis séricos de
PSA em 2ng/mL representa indício objetivo de atividade da doença e justifica o
emprego de terapêutica de resgate com ablação endócrina antiandrogênica ou
prostatectomia radical.
Dores relacionadas a metástases ósseas são bem controladas com a utilização de
radioterapia externa. Nos pacientes com dores ósseas generalizadas resultantes de
metástases múltiplas, pode-se recorrer a corticoides, com Dexametasona 8mg por via
intramuscular três vezes ao dia, a bifosfonatos, com Ácido Zolendrônico, apresentado
na forma de frasco-ampola com 4mg/5mL, com diluição em 100mL de Soro Glicosado
a 5% ou Soro Fisiológico e infusão lenta em quinze minutos a cada três a quatro
semanas, a Estrôncio-89 ou Samarium-153 por via intravenosa e a irradiação
hemicorpórea em duas etapas. O uso de Ácido Zolendrônico deve ser associado a
reposição oral de cálcio e vitamina D.
Os quadros de obstrução ureteral podem regredir rapidamente com a instituição
de terapêutica endócrina nos casos sem tratamento prévio e, nesse sentido, a
orquiectomia parece ser superior à administração de estrógenos. Nos pacientes com
invasão da bexiga e já submetidos a tratamento antiandrogênico, o emprego de
radioterapia sobre a loja prostática e a base vesical melhora o quadro de hidronefrose
em um número apreciável de pacientes.
Sangramento importante pode ser controlado com ressecção endoscópica
transuretral do tumor. Quando esse procedimento é insuficiente para conter o
sangramento, os pacientes podem ser tratados com irradiação local, que, em geral,
interrompe ou atenua o quadro. Embolização percutânea das artérias ilíacas internas
também controla efetivamente quadros de sangramento prostático e é particularmente
indicada nos pacientes instáveis hemodinamicamente, dada sua pronta eficiência.

Bibliografia
Clínica Médica, volume 3: doenças hematológicas, oncologia, doenças renais e genitourinárias. – Barueri, SP: Manole, 2009.
Clinical presentation, diagnosis, and staging of prostate cancer. Philip W Kantoff and Mary-Ellen Taplin. UpToDate, 2012.
Overview of treatment for clinically localized prostate cancer. Eric A Klein. UpToDate, 2012.
Overview of treatment for advanced prostate cancer. Nancy A Dawson. UpToDate, 2012.
Screening for prostate cancer. Richard M Hoffman. UpToDate, 2012.

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