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WebConferências Gênero e Diversidade na Escola - GDE

Etapa 3

Nome Professor Assunto Link


Prof. Jorge Leite Júnior Curso GDE http://webconferencia.sead.ufscar.br/p92tkyszjei/

Prof. Jorge Leite Júnior Curso GDE http://webconferencia.sead.ufscar.br/p4eg4z9i0f4/

Prof. Paulo Alberto dos Santos Vieira Apresentação Módulo V - Tutores http://webconferencia.sead.ufscar.br/p9sp4po4ptc/

Prof. Paulo Alberto dos Santos Vieira Apresentação Módulo V - Alunos http://webconferencia.sead.ufscar.br/p4b9ag1vlln/

Profa. Cynthia Cassoni Apresentação Módulo VI - Tutores http://webconferencia.sead.ufscar.br/p5p8ky9y4ar/


Profa. Cynthia Cassoni Apresentação Módulo VI - Alunos http://webconferencia.sead.ufscar.br/p5acmf2gac1/
DIFERENÇAS NA EDUCAÇÃO:
OUTROS APRENDIZADOS
UFSCar – Universidade Federal de São Carlos
Reitor
Targino de Araújo Filho
Vice-Reitor
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Pró-Reitora de Graduação
Claudia Raimundo Reyes

SEaD – Secretaria de Educação a Distância


Secretária de Educação a Distância – SEaD
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Coordenação UAB-UFSCar
Daniel Mill
Coordenação SEaD-UFSCar
Daniel Mill
Glauber Lúcio Alves Santiago
Joice Otsuka
Marcia Rozenfeld G. de Oliveira
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EdUFSCar – Editora da Universidade Federal de São Carlos


Conselho Editorial
Ana Claudia Lessinger
José Eduardo dos Santos
Marco Giulietti
Nivaldo Nale
Roseli Rodrigues de Mello
Rubismar Stolf
Sergio Pripas
Vanice Maria Oliveira Sargentini
Oswaldo Mário Serra Truzzi (Presidente)
DIFERENÇAS NA EDUCAÇÃO:
OUTROS APRENDIZADOS
Richard Miskolci
Jorge Leite Júnior
(organizadores)

São Carlos, 2014


© 2014, Secadi/MEC, dos autores

Supervisão
Douglas Henrique Perez Pino
Revisão Linguística
Clarissa Galvão Bengtson
Daniel William Ferreira de Camargo
Paloma Argemira da Silva
Paula Sayuri Yanagiwara
Rebeca Aparecida Mega
Editoração Eletrônica
Izis Cavalcanti
Ilustração
Vagner Serikawa
Capa e Projeto Gráfico
Izis Cavalcanti

Apoio
Secadi/MEC

O objetivo desta obra é o de servir como apoio didático aos cursos oferecidos pela UFSCar.
Seu conteúdo está reproduzido conforme solicitado pelo(s) autor(es), sem nenhuma interfe-
rência do Conselho Editorial da EdUFSCar.

Universidade Federal de São Carlos


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SUMÁRIO

CAPÍTULO 1: Diferenças na Escola. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


Anna Paula Vencato

Unidade 1 – Diferenças na sociedade e na escola. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


Unidade 2 – O respeito às diferenças . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Unidade 3 – Bullying ou assédio escolar: um problema que afeta todo mundo. . . .
Unidade 4 – Como lidar com as diferenças no cotidiano escolar? . . . . . . . . . . . . . .
Referências. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

CAPÍTULO 2: Religiosidades e Educação Pública . . . . . . . . . . . . . .


Tiago Duque

Unidade 1 – Estabelecendo o diálogo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


Unidade 2 – Viva a nossa diferença cultural religiosa! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Unidade 3 – Se somos diversos, por que não aceitar as nossas diferenças?. . . . . . . .
Unidade 4 – E agora? Por onde começar?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Referências. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

CAPÍTULO 3: Desfazendo o gênero. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


Larissa Pelúcio

Unidade 1 – Gênero ou gêneros? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


Unidade 2 – Gênero na escola . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Unidade 3 – Gênero na mídia – e a escola com isso? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Unidade 4 – Atividades propostas – dicas, sugestões e mais questões . . . . . . . . . . .
Referências. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
CAPÍTULO 4: Escola e sexualidades: uma visão crítica à
normalização. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Fernando de Figueiredo Balieiro
Eduardo Name Risk

Unidade 1 – O regime de (in)visibilidade da sexualidade na


educação escolar. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Unidade 2 – Casa-grande & senzala: o modelo heterorreprodutivo
nacional e suas dimensões históricas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Unidade 3 – Aspectos da heteronormatividade contemporânea . . . . . . . . . . . . . . .
Unidade 4 – Por uma pedagogia questionadora e democrática. . . . . . . . . . . . . . . .
Rerefências. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

CAPÍTULO 5: Pela desracialização da experiência: discurso


nacional e educação para as relações étnico-raciais . . . . . . . . . .
Paulo Alberto dos Santos Vieira
Priscila Martins Medeiros

Unidade 1 – Primeiras aproximações ao tema. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


Unidade 2 – Raça e a questão nacional no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Unidade 3 – Educação para as relações étnico-raciais: os marcos legais
e os resultados de uma década. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Referências. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Agradecimentos

Diferenças na Educação: outros aprendizados surgiu graças à experiên-


cia acumulada no oferecimento de três edições do curso Gênero e Diversi-
dade na Escola, na modalidade a distância, pela SEaD-UFSCar em parceria
com o MEC, a SECADI e o grupo de pesquisa Corpo, Identidades e Subjeti-
vações do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia.
Agradecemos às(aos) companheiras(os) que coordenaram os módulos
durante as últimas edições: Anna Paula Vencato, Karla Bessa, Larissa Pelúcio,
Paulo Alberto Santos Vieira, Priscila Martins Medeiros e Cynthia Cassoni.
Além deles, um conjunto grande de pessoas contribuiu para o sucesso do
curso em suas sucessivas edições, e, ainda que não tenhamos como men-
cioná-las uma a uma, sublinhamos nossa gratidão ao trabalho de todos(as)
os(as) tutores(as) e técnicos(as) administrativos(as).
Agradecemos em especial ao trabalho de Thamara Jurado na coordena-
ção executiva das duas últimas edições, uma profissional séria, sagaz e cujo
talento como educadora ainda lhe trará grandes conquistas. Nossa gratidão
se estende a Josiane Peruci, cuja competência exemplar frente à secretaria
– desde a primeira vez que ofertamos o curso – foi fundamental também
para a existência deste livro, um material de referência que pretende ser um
legado para intentos educacionais futuros.
Agradecemos à Secretaria Geral de Educação a Distância da UFSCar
(SEaD – UFSCar), ao Ministério da Educação (MEC) e à Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) por toda estrutura
e apoio ao curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE).
Por fim, dedicamos este livro às(aos) educadoras(es) brasileiras(os) que têm
se dedicado ao aprimoramento em questões que envolvem as diferenças e os
direitos humanos. O comprometimento político dessas mulheres e homens na
construção de uma sociedade mais democrática e justa nos inspirou.

Richard Miskolci e Jorge Leite Júnior


Departamento de Sociologia da UFSCar
Introdução: outros aprendizados
Richard Miskolci
Jorge Leite Júnior
Thamara Jurado

Diferenças na Educação: outros aprendizados originou-se da experiência


acumulada no oferecimento de três edições do curso Gênero e Diversidade
na Escola (GDE) da UFSCar. Trata-se, portanto, de um livro originado da prá-
tica e da experiência e que pretende ser um guia claro para compreender o
que são diferenças religiosas, de gênero, sexuais e étnico-raciais. Compre-
ender para atuar profissionalmente, daí prover, além de teoria, exemplos e
reflexões, também propostas de atividades em sala de aula.
O objetivo da obra é ser referência para a formação de educadores(as)
do ensino básico e médio – ou mesmo para seu aperfeiçoamento – em temas
fundamentais para o ensino e a escola contemporâneos. Historicamente, o
que hoje chamamos de diferenças e reconhecemos como parte importante
da vida social já foi encarado como algo a suprimir, corrigir ou normalizar. A
prática do assédio moral escolar, também conhecido como bullying, era a
marca da experiência educacional para a maioria das pessoas até recente-
mente. Faz poucos anos que passamos a reconhecer que o assédio escolar
é uma violência, porque também faz poucos anos que nossa sociedade se
tornou democrática.
Em termos internacionais, a preocupação em como lidar com diferenças
sociais gerou uma corrente teórica e política conhecida como multiculturalis-
mo. Ele surgiu a partir de fins da década de 1980 e encontrou suas principais
formulações na seguinte, dentre as quais estão o conceito de diversidade
cultural e a problemática do reconhecimento. Nessa perspectiva, as socie-
dades poderiam reconhecer sua heterogeneidade desde que mantivessem
10 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

as diferenças em harmonia. O multiculturalismo e o conceito de diversidade


sofreram fortes críticas por se basearem em uma concepção de cultura frágil
e sem dinamismo. Tais críticas também denunciaram como a diversidade
busca mascarar os conflitos por meio de uma compreensão horizontal das
relações de poder. Sim, cara leitora e caro leitor, nessa perspectiva todos
podem ser aceitos desde que “cada um em seu quadrado”.
Como pessoas diferentes poderiam ser reconhecidas em suas singula-
ridades culturais e viver sem modificar umas as vidas das outras? Isso não é
possível, daí as abordagens críticas do multiculturalismo e da diversidade
proporem o conceito de diferenças, uma compreensão de que elas modi-
ficam (positivamente) a vida social assim como sua existência pode gerar
conflitos (já que as relações de poder se dão entre pessoas com acesso dife-
rencial ao poder), mas também diálogos enriquecedores e a democratização
da vida social.
Conscientes sobre esse debate, desde a primeira edição do GDE-UFS-
Car em 2009, nossa abordagem buscou superar a perspectiva da diversida-
de pela da diferença. Ou seja, buscamos ir além da visão multiculturalista
centrada na tolerância da diversidade e aprimorar a perspectiva crítica das
diferenças e seu poder de transformação social. Acreditamos que mais do
que tolerar a diversidade podemos reconhecer e aceitar a diferença em um
diálogo aberto e criativo.
Na perspectiva das diferenças, compreendem-se as relações de poder
de forma mais dinâmica e a sociedade como inerentemente um espaço de
divergência entre diferentes perspectivas e valores. Surge assim o principal
desafio de lidar com as diferenças: compreender que isso é uma das carac-
terísticas das sociedades democráticas e que as divergências podem tanto
apontar para o conflito como para um diálogo criativo e transformador. No
contato com as diferenças podemos – inicialmente – estranhar alguém, mas
também reconhecer nesse encontro algo positivo: a chance de aprender.
Apostamos na possibilidade de fazer do encontro com a alteridade uma ex-
periência positiva e transformadora para todos(as).

Um pouco sobre o GDE/UFSCar e sua importância para a criação deste livro


O curso Gênero e Diversidade na Escola na UFSCar começou com uma
edição em 2009 que formou mais de 900 professores(as), coordenadores(as)
pedagógicos(as) e gestores(as). Nessa edição, o objetivo foi desenvolver um
projeto de sensibilização desses(as) profissionais da educação para o tema
Introdução: outros aprendizados | 11

das diferenças no espaço escolar, e as atividades priorizaram debates reali-


zados em fóruns de interação e a confecção de produções individuais.
Na edição seguinte, em 2012, foram feitas algumas alterações, e, além de
sensibilizar o público-alvo para a importância da temática, o curso tornou-se
avaliativo. Como na oferta anterior as atividades planejadas ficaram centra-
das em ferramentas de fórum e tarefa individual, em 2012 a proposta inicial
para todos os módulos era diversificar as ferramentas, utilizando todas as
possibilidades do ambiente virtual de aprendizagem.
Os problemas enfrentados no curso foram identificados durante as reu-
niões periódicas que eram realizadas com os(as) professores(as) do módulo
em curso, tutores(as) virtuais, coordenação de tutoria e supervisão acadê-
mica, com objetivo de dialogar a respeito das dificuldades encontradas na
aplicação do curso. Questões como o excesso de ferramentas, leituras e ati-
vidades foram observadas e discutidas nesses encontros, de tal modo que
as observações a respeito de cada módulo serviram para propor alterações
no módulo seguinte, quando necessário.
Essa experiência demonstrou a importância do diálogo frequente en-
tre todos(as) os(as) envolvidos(as) no processo de ensino e aprendizagem.
Como os(as) tutores(as) permanecem em contato direto com os(as) cursistas,
acompanhando o desenvolvimento de cada atividade, identificam as suas
dificuldades rapidamente e podem trazer contribuições contundentes para
que professores(as) coordenadores(as) dos módulos revejam o conteúdo
proposto e promovam alterações, quando necessário. Esse diálogo foi fun-
damental para a execução de um curso mais dinâmico e atento às necessi-
dades e expectativas dos(as) estudantes, considerando suas dificuldades na
realização do planejamento elaborado.
Esses encontros periódicos auxiliaram a construção de uma proposta
pedagógica participativa, capaz de reconsiderar o objetivo de cada módu-
lo, rever o planejamento de atividades a partir de discussões coletivas. Ao
compartilhar os resultados de cada etapa, foi possível abordar e identificar
os problemas que estavam sendo enfrentados e as possibilidades de solu-
ção, dividindo as experiências de todos(as) os(as) envolvidos(as) e, ao mes-
mo tempo, definindo as responsabilidades individuais e coletivas a serem
assumidas para que fosse possível chegar ao objetivo comum. Na edição de
2013, a mesma estrutura dialógica foi mantida com as reuniões periódicas
realizadas no início e no fechamento de cada módulo. As situações enfrenta-
das na edição anterior contribuíram para a elaboração de um planejamento
12 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

mais condensado e objetivo, priorizando ferramentas que os(as) cursistas


demonstraram mais domínio.
Nas três edições do GDE, os(as) professores(as), coordenadores(as)
pedagógicos(as) e gestores(as) que participaram do curso como cursistas
apresentaram várias questões que evidenciaram, primeiro, uma dificuldade
em relacionar os textos discutidos nos módulos com o cotidiano em sala
de aula, não sabiam como aplicar aquele conteúdo e, segundo, uma re-
sistência para discutir alguns temas. Por isso, as estratégias pedagógicas
utilizadas no curso foram tão importantes para lidar com as dificuldades
apresentadas.
O curso abre espaço para o questionamento e a problematização de
comportamentos, falas e gestos naturalizados e que perpetuam as desigual-
dades instituídas na escola. Longe de ser um espaço neutro, é também na
instituição escolar que o apagamento das diferenças se concretiza nessas
falas e gestos discriminatórios e excludentes. Uma concretização presente
não apenas nas conversas informais entre estudantes, mas também na for-
malidade das regras e normas escolares, do currículo utilizado, da proposta
pedagógica, dos planejamentos das aulas etc.
Ao problematizar todo esse cenário, reações diversas vieram à tona, e,
nesse processo, muitas vezes o tom do(a) estudante demonstrava a dificul-
dade em falar de algo que exigia uma transformação interna. Docentes e
tutores(as) trabalharam incansavelmente propondo novas questões e pro-
blematizando a partir de situações vivenciadas no cotidiano escolar trazidas
pelos(as) cursistas.
As indicações audiovisuais, artísticas e literárias representaram uma
possibilidade de sensibilização dos(as) estudantes muito importante, des-
pertando para questões imperceptíveis até então. Os filmes, especialmente,
foram recursos riquíssimos, que não apenas proporcionaram inquietações,
mas foram capazes de estabelecer uma relação entre a prática docente e as
discussões teóricas realizadas.
A sensibilização como estratégia de formação para professores(as),
coordenadores(as) e gestores(as) proporcionou questionamentos e reflexão
a respeito de como as diferenças estavam sendo vivenciadas em sala de aula;
professores(as) chegaram a relatar como essas discussões tinham modifica-
do desde pequenos gestos com seus(suas) alunos(as) até o planejamento de
atividades e suas propostas em reuniões da escola.
Introdução: outros aprendizados | 13

Os aportes teóricos de cada módulo representaram uma das dificulda-


des enfrentadas pelos(as) cursistas que não estavam familiarizados(as) com
esse arcabouço teórico. Além do livro Marcas da Diferença no Ensino Esco-
lar, edição de 2010, resultado do GDE-2009, outras bibliografias foram utili-
zadas nas atividades propostas, propiciando uma discussão teórica capaz
de problematizar como as diferenças foram constituídas, institucionalizadas,
negadas ou reconhecidas.
Sem dúvida, a primeira edição do Marcas da Diferença no Ensino Esco-
lar condensou uma discussão muito próxima da realidade escolar e, desse
modo, contribuiu para estabelecer a relação entre o cotidiano e a discussão
teórica. As propostas de atividades apresentadas no livro, assim como as in-
dicações audiovisuais, artísticas e literárias de cada capítulo, demonstraram
a concretização de algumas das questões discutidas ao longo dos módulos.
Ainda assim, durante o curso, no momento de problematizar essa dimen-
são histórica, cultural e social discutida teoricamente nas referências utiliza-
das, muitos(as) cursistas apresentavam uma certa resistência e dificuldade.
Nesse percurso, surgiram trechos retirados das mais diferentes referências
bibliográficas encontradas em rápidas pesquisas na internet, frases cons-
truídas com palavras-chave que eram recortadas dos textos de referência e
repetidas em todas as postagens etc.
Por isso, estabelecer a relação entre a prática docente e os recursos
teórico-metodológicos apresentados aos(às) professores(as) nesses textos
era uma das tarefas mais importantes da equipe de tutoria virtual tanto na
mediação das atividades de discussão quanto na elaboração do feedback
das atividades individuais.
A grande questão na mediação dos fóruns era como propiciar uma am-
pla discussão capaz de levar a uma modificação significativa da prática do-
cente, considerando os desafios da escola nesse processo. E, nesse ponto,
as estratégias pedagógicas debatidas nas reuniões periódicas auxiliaram a
condução de modo que fosse possível contribuir para o aprofundamento
das leituras teóricas e, ainda, propor questões capazes de fomentar a rela-
ção com a prática docente, tão solicitada pelos(as) professores(as). Com um
acompanhamento diário, os fóruns foram mediados com postagens diárias
dos(as) tutores(as), procurando problematizar os textos e trazendo novas
questões que auxiliassem a reflexão de cada tema.
Outro aspecto fundamental foi o surgimento de argumentos religiosos
para justificar muitas postagens. A discussão da religião permeou o curso
14 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

todo, especialmente nas edições de 2012 e 2013. Em todos os módulos,


apareceram posicionamentos religiosos fundamentando as argumentações
dos(as) cursistas. Diante do volume das questões que surgiram, este novo
livro traz um capítulo para discutir a questão da religião.
Sem dúvida, não foi uma tarefa fácil para professores(as), gestores(as) e
coordenadores(as) pedagógicos(as) repensarem suas falas, gestos e ativida-
des pedagógicas já tão sedimentadas no universo escolar. Mas todo esse
trabalho demonstrou que esse caminho foi possível, e é possível. Os(as) cur-
sistas concluem o curso com outro olhar, mais crítico, mais atento e disposto
a repensar. Tornam-se multiplicadores por apresentarem aos(às) seus(suas)
alunos(as) gestos e falas que contribuem para a desconstrução de hierar-
quias e desigualdades no que se refere a gênero e sexualidade, raça e etnia.
E munidos desse novo olhar voltam para as salas de aula e para as escolas
em que atuam levando novas propostas, mesmo sabendo que nem sempre
serão acolhidas. São tímidas as propostas de intervenção, seja na sala de aula
ou na escola como um todo, mas, ao colocarem um por que?, mas e se fosse
assim?, ao questionarem precisa mesmo fazer fila de meninas e meninos? em
reuniões pedagógicas, nos corredores da escola, nas conversas com outros(as)
professores(as) e em sua prática diária, já estão, de alguma maneira, proble-
matizando esse universo e multiplicando o que o GDE semeou.
É dessa experiência que surgiu a necessidade de um novo livro-base
para o GDE, mais atualizado conceitualmente e, principalmente, mais em-
basado nas vivências tanto da equipe do GDE quanto na dos(as) cursistas.
Um livro que, esperamos, também sirva para outras iniciativas didáticas por
todo o Brasil.

Estrutura do livro
Diferenças na Educação: outros aprendizados se inicia com um capítu-
lo sobre Diferenças que esmiuçará esse conceito, apresentará exemplos,
discutirá com muito cuidado e em detalhe as dificuldades, mas também os
ganhos indiscutíveis que uma educação mais democrática e transformado-
ra traz para educadores(as) e educandos(as). Anna Paula Vencato mostra
como a própria ideia do que pode ou não ser considerado “diferença” é
uma criação cultural que não apenas pode variar de época para época e
de grupo para grupo como, principalmente, está envolta em relações de
poder. Que forças e valores sociais definem o que é ou não “diferente”?
Introdução: outros aprendizados | 15

Como isso ocorre? Por que muitas vezes a escola transforma diferenças em
desigualdades?
Aqui também é tratada a questão do bullying, mostrando como ele não
é apenas um caso isolado de algum “aluno problema”, mas que o bullying
pertence antes de tudo a uma dinâmica escolar específica que propicia
seu surgimento e garante sua continuidade, tanto através da violência de
“brincadeiras” ofensivas por parte dos(as) alunos(as) quanto da vista grossa
ou mesmo descaso por parte dos(as) professores(as) e funcionários(as) da
escola.
Como já afirmado anteriormente, durante esses anos de GDE, todas as
pessoas envolvidas no curso (tutores(as), professores(as), supervisores(as) e
coordenadores(as)) perceberam que o tema da religião estava não apenas
presente, mas, a cada edição, aumentava a demanda por sua discussão.
Dessa forma, resolvemos incluir neste livro o cada vez mais importante de-
bate sobre religião e suas interfaces com as diferenças, especialmente em
relação a gênero, sexualidade e relações étnico-raciais. Tiago Duque, autor
desse segundo capítulo, discute questões como a pluralidade religiosa, a
religião na sala de aula em um Estado laico e o contínuo cuidado que deve-
mos ter para que a religiosidade de cada um não se transforme em opressão
e discriminação do outro.
Afinal, dentro de nossa perspectiva de direitos humanos e respeito às
diferenças, devemos lembrar que não existem religiões “superiores” ou
“verdadeiras” e que o Estado laico é aquele que não deve se associar a
ou privilegiar alguma religião específica, para poder garantir, assim, a livre
expressão de qualquer credo religioso. Como o tema deste capítulo (a reli-
giosidade) perpassa todos os outros eixos do livro (diferenças, gênero, se-
xualidade e relações étnico-raciais), as atividades nele sugeridas podem ser
usadas também com as atividades dos demais capítulos.
No terceiro capítulo, Larissa Pelúcio nos leva a problematizar o conceito
de gênero. Além de historicizá-lo, a autora nos mostra que, se o gênero
é uma construção cultural variável, que diz o que significa ser “homem”
ou “mulher” e como devemos nos portar e literalmente “encarnar” o tal
“masculino” e o “feminino” através de jeitos e trejeitos – ou seja, se esta-
mos constantemente “fazendo gênero” –, também podemos “desfazer” o
gênero, pois as construções sociais não são eternas nem têm a obrigação
ou necessidade de ser. Se determinados aspectos do que chamamos de
gênero são (ainda) hoje causas de desigualdade e preconceito, podemos – e
16 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

devemos – desconstruir isso que causa opressão e discriminação. É nesse


sentido que não podemos nos esquecer de que, se determinadas visões de
gênero consideram o feminino e o masculino como “opostos complemen-
tares”, muitas vezes essas visões suprimem o quanto essa relação é hierar-
quizada e desigual, com o polo feminino ainda hoje sendo tratado como
subalterno, inferior e mais vulnerável à violência do masculino.
Pelúcio também nos mostra como essas visões estereotipadas sobre o ho-
mem e a mulher, o masculino e o feminino estão presentes na mídia, gerando
uma pedagogia de gênero que se estende muito além dos muros e discursos
escolares (essa temática da mídia também será trabalhada no capítulo se-
guinte). Afinal, a escola que queremos é aquela que reproduz irrefletidamente
valores opressores ou aquela que questiona e ajuda a mudar esses valores?
As sugestões de atividades deste capítulo são amplas e instigantes, podendo
ser usadas em sala para discutir não apenas gênero, mas também sexualida-
de (tema aprofundado no capítulo seguinte), graças ao íntimo diálogo entre
esses dois temas.
Fernando de Figueiredo Balieiro e Eduardo Name Risk apresentam o
quarto capítulo, sobre sexualidade. Ressaltando a importância de não se so-
brepor gênero e sexualidade, é apresentado o caráter histórico da noção de
heterossexualidade como algo “normal”, “natural” e “neutro”, em cima da
qual as outras orientações, práticas ou desejos sexuais seriam vistos como
“desvios”. Outro ponto importante trabalhado é o descaso com que a nossa
sociedade em geral – e a escola brasileira em particular – lida com a vio-
lência direta e indireta sofrida por pessoas que não se encaixam no padrão
heteronormativo, muitas vezes culpabilizando a vítima pelos ataques so-
fridos. Aqui, tocamos em um dos objetivos centrais deste livro: ajudar a
sensibilizar e mudar as atitudes (quase de descaso) frente a essas situações
cotidianas de violência, através da reflexão escolar.
Paulo Alberto dos Santos Vieira e Priscila Martins Medeiros, ao discutirem
relações étnico-raciais no quinto capítulo, nos apresentam um importante
foco sobre esse tema: como o processo de racialização criou a “questão do
negro” ou a “questão do índio” enquanto a branquitude foi tomada como um
elemento “neutro” e não problematizado. Nesse sentido, não apenas o ne-
gro, o branco ou o índio devem ser discutidos mas, principalmente, o proces-
so ideológico de branqueamento, que mesmo indiretamente ainda persiste
em nossa sociedade. Paulo e Priscila também nos mostram os avanços des-
sas discussões na educação brasileira, através da Lei 10.639/03.
Introdução: outros aprendizados | 17

Todos os capítulos trazem as discussões para a realidade da sala de aula


brasileira. Eles se iniciam com uma "visão geral" do que será apresentado
e estão divididos em unidades que, gradualmente, vão se aprofundando
em cada tema trabalhado. Todos também possuem boxes explicativos dos
conceitos mais importantes e dão indicações fílmicas e bibliográficas, tan-
to para se aprofundar no assunto quanto para serem trabalhadas em sala.
Da mesma forma, os capítulos podem ser lidos em sequência ou separada-
mente, pois a estrutura do livro permite que os temas sejam trabalhados em
conjunto ou de maneira independente.
Desejamos a todos(as) uma ótima leitura e boa aula!
1
Diferenças na Escola
Anna Paula Vencato

A proposta deste capítulo é operacionalizar a problemática das diferen-


ças no contexto escolar. Ou seja, na construção de uma escola que esteja
aberta a todas as pessoas e que garanta não apenas o acesso, mas a per-
manência e a garantia de aprendizagem a todas as pessoas. Uma educação
para a igualdade deve se pautar pela construção de relações de respeito
entre aqueles(as) que estão nesse espaço, as quais devem primar pelo re-
conhecimento do outro como agente e sujeito de uma prática pedagógica
transformadora.
Nesse sentido, propomos aqui deixar de lado nossas verdades e pre-
conceitos e ver o outro com um olhar que o perceba, assim como às suas
histórias de vida e lógicas culturais como fundamentais para o processo de
construção coletiva do conhecimento a que a escola se propõe a fazer.
Para atingir o objetivo deste texto, optamos por encadear a discussão
a partir dos seguintes temas: (1) Diferenças na sociedade e na escola; (2)
O respeito às diferenças; (3) Bullying ou assédio escolar: um problema que
afeta todo mundo; e (4) Como lidar com as diferenças no cotidiano escolar?
Nessas unidades contaremos com uma discussão acerca do conceito de
diferenças e como ele impacta a vida social e a escola, discutimos a ques-
tão das desigualdades e violências, pensando em especial na questão do
bullying, algo que hoje permeia muitos dos discursos sociais preocupados
com o cotidiano escolar, e, por fim, nos dedicamos a pensar em estratégias
de como abordar as diferenças no cotidiano escolar.
20 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

UNIDADE 1
Diferenças na sociedade e na escola

Se alguém nos perguntar, podemos nos deter por muitas horas contando
várias coisas sobre a escola ou nossas vidas escolares. Algumas memórias de
nossas escolarizações são alegres, outras não. Todos(as) nós temos histórias
para contar acerca dos anos em que passamos em sala de aula, sobre cole-
gas, professores(as), o recreio, a educação física. De fato, passamos muito
tempo na escola. Ela faz parte do cotidiano de nossa infância e adolescência,
e, quando professores(as) ou pais e mães, da vida adulta. Assim, é possível
afirmar que a escola suscita muitas memórias à maioria de nós.
Em geral, as memórias que temos da escola contemplam tanto aspec-
tos positivos quanto negativos desta experiência: ao mesmo tempo, essa
instituição nos traz memórias da construção de amizades, de descobertas
e aprendizagens, assim como de alegrias e, por outro lado, de violências,
exclusões, autoritarismo e desapontamento.
Sabemos que a escola é uma instituição e que está inserida em um dado
contexto social. Isso implica dizer que muitas das regras não explícitas e
explícitas dos comportamentos, dos conteúdos, das avaliações etc. que en-
contramos dentro de uma escola refletem questões sociais mais amplas que
encontramos no mundo, no país, estado, cidade, bairro e no entorno do
prédio/terreno em que ela funciona.
Contraditoriamente, essa mesma instituição que se molda a partir das
regras sociais, ou seja, de regras que emanam da sociedade e nela circulam,
é pouco ou nada permeável às diferenças sociais e culturais que são trazidas
para dentro de seus recintos por alunos e alunas, professoras e professores,
funcionários e funcionárias, gestoras e gestores, pais e mães.
Reconhece-se que há uma série de singularidades trazidas de fora para
dentro junto com diferentes pessoas que por ali circulam, mas estas, em
geral, são tidas como exóticas e/ou inapropriadas ao contexto escolar e, por-
tanto, como algo que não pode pertencer àquele espaço.
É possível afirmar que a escola, o sistema de ensino e todas as pesso-
as que fazem parte dele têm historicamente dificuldades em lidar com a
questão das diferenças. Essa dificuldade é reflexo da sociedade a que per-
tencemos e de sua lógica cultural excludente. Ao mesmo tempo, também
é possível afirmar que a exclusão da pauta das diferenças ou da vivência
Diferenças na Escola | 21

dentro das escolas se constitui igualmente a partir da falta de formação


de professores(as) e funcionários(as) da instituição para lidar com essas
questões.
As diferenças são parte da cultura, ou ao menos do convívio entre di-
versos grupos sociais. É a cultura que as informa, e elas também constituem
a cultura. Mas o que é cultura? Para começar, partamos do pressuposto,
seguindo a pista de Clifford Geertz (1989) de que a cultura diz respeito a
todo comportamento aprendido, que independe de transmissão genética.
Outro autor, Roberto DaMatta (1986), destrincha esta noção ao afirmar que
a cultura é

um mapa, um receituário, um código através do qual as pessoas de um


dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si
mesmas. É justamente porque compartilham de parcelas importantes
deste código (a cultura) que um conjunto de indivíduos com interesses e
capacidades distintas, e até mesmo opostas, transformam-se num grupo
e podem viver juntos, sentindo-se parte de uma mesma totalidade. Po-
dem, assim, desenvolver relações entre si porque a cultura lhes forneceu
normas que dizem respeito aos modos, mais (ou menos) apropriados de
comportamento diante de certas situações (DAMATTA, 1986, p. 123).

Assim, pessoas que têm origens culturais diversas percebem e experi-


mentam o mundo de modos diferentes, pautadas nesses aprendizados das
regras sociais. É justamente o fato de pertencermos a uma dada cultura –
e, portanto, não pertencermos às demais – que produz as diferenças entre
nós. Como a cultura nos é ensinada a partir de um processo sutil e contínuo
de aprendizagem cultural chamado de socialização, com muita frequência
atribuímos a ela o caráter de natureza (como quando se afirma “é natural”,
“está no sangue”) ou de imutabilidade (“isto nunca vai mudar, pois sempre
foi assim”).
É comum ouvirmos na escola frases como “filho de peixe, peixinho é”,
“o papel do professor não é resolver conflitos” ou “ele não aprende porque
a família é desestruturada”. Muitas vezes, nós mesmos reproduzimos estes
discursos, para o qual precisamos estar atentos, contudo são os perigos
deles, sua falácia e como autorizam o preconceito e a exclusão de certas
pessoas ou grupos sociais na escola. Não pensamos, em geral, que também
somos produzidos pela cultura e por um dado tempo histórico e que isso
que interpretamos como “nossa natureza” é algo produzido socialmente.
22 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Tendemos a interpretar aquilo que não (re)conhecemos como que perten-


cente à ordem do estranho, do esquisito, do inadequado, do errado, e que
pode e deve ser excluído, afastado ou, mesmo, eliminado.
Mas o que a escola tem com isso tudo? Como sabemos, a escola abri-
ga dentro de seus recintos pessoas muito diferentes entre si, e que essas
diferenças podem ser da ordem do individual ou do social. Mas é sobre as
diferenças de ordem social que vamos conversar aqui, até porque, sem des-
considerar outras instâncias da vida de uma pessoa, é na vida social que a
hierarquização entre diferenças é produzida.

Figura 1 Esta imagem, publicada no livro “Cuidado, escola!”, ilustra como o processo
de ensino e aprendizagem tenta colocar dentro de um mesmo molde pessoas que são
muito diferentes entre si.

A escola, historicamente, tem se pautado pela ideia de que se tratar a


todas as pessoas que por ali passam a partir dos mesmos critérios formais
(avaliações, currículos, práticas pedagógicas etc.) é o melhor método para
ensinar e incluir. A escola se pretende democrática pela lógica da padroniza-
ção e não pela inclusão das diferenças culturais em suas práticas, conteúdos
e cotidianos. Nesse sentido, busca-se internamente dar unidade de trata-
mento a pessoas muito diferentes entre si, com histórias de vida e inserções
sociais que não poderiam ser contempladas dentro desta visão mais tradi-
cional de ensino-aprendizagem.
Diferenças na Escola | 23

Figura 2 Por esta ilustração do livro “Cuidado, escola!” podemos refletir sobre qual
o lugar das diferenças nas vivências escolares, ou seja, como a escola busca deixá-las
de fora de seus debates e espaços porque não as considera como fator importante
dentro dos processos de ensino-aprendizagem.

Quando as diferenças surgem no contexto da escola, elas em geral são


percebidas como “fora de lugar”. Isso acontece na escola e na vida social o
tempo todo – e é sempre bom lembrarmos que a escola é uma instituição
social, ou seja, está sempre inserida em um contexto sócio-histórico e dialo-
ga com ele em suas práticas cotidianas.
A escola não diz respeito apenas à sua estrutura formal/institucional,
mas depende também das interações sociais entre as pessoas que ali estão.
Na escola, os conflitos resultantes dos diferentes comportamentos, valores
e modos de vida tornam-se muito evidentes, até mesmo em razão desta
tradição secular de que é uma instituição que deveria ensinar valores univer-
sais – ou a cultura, num sentido nada antropológico do termo. A instituição
escola, ao cabo, tem dificuldade de lidar com as diferenças porque há uma
contradição interna que se explicita na forma como ela foi criada e permane-
ce até os dias atuais: não é fácil que uma instituição criada para padronizar
e dar unidade a indivíduos por vezes muito diferentes se torne democrática e
aberta às diferenças.
24 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Embora a existência de diferenças possa ocasionar conflitos na escola,


é preciso que tenhamos claro que o problema a ser enfrentado não são as
diferenças, mas as desigualdades. Diferenças devem ser entendidas como
um sinônimo de riqueza, e devem ser valorizadas dentro da escola e das
práticas pedagógicas. É importante que estejam incluídas nos conteúdos,
currículos, debates e nas relações entre os diferentes sujeitos que circulam
nesse ambiente. É preciso compreendê-las, conhecê-las e respeitá-las.
Mas vale a pena pensar aqui em uma ideia de diferença que vai além de
seus significados de hierarquia e opressão – e aqui retomamos a ideia de
riqueza de que já havíamos falado. A diferença, a depender do contexto em
que opera, pode levar sim a estados de opressão, mas em outros contextos
leva também a estados de igualitarismo, diversidade e a modos democráti-
cos que informam a ação política de um grupo ou indivíduo. Por isso, deve
ser valorizada, e é importante que falemos um pouco também sobre a ideia
de marcadores sociais da diferença e de interseccionalidades.

Os marcadores sociais das diferenças estão presentes na escola e


atuam no cotidiano escolar
No final dos anos 1960 e durante os anos 1970, conforme Maria Alice
Nogueira (1990), a sociologia francesa encontrou-se fortemente preocupada
com a forma como se reproduziam as desigualdades sociais naquela socie-
dade e denunciavam que a escola – enquanto instituição social – reproduzia
as desigualdades existentes nela. Este debate era particularmente impor-
tante na época, uma vez que naquele período se acreditava que o acesso
à educação, per se, impactava positivamente a vida das pessoas de classes
baixas, fazendo com que, a partir da escolarização, a mobilidade social se
tornasse realidade.
Conforme a autora, Pierre Bourdieu (1992), Jean-Claude Passeron, entre
outros pesquisadores(as), dedicaram-se a investigar cientificamente as traje-
tórias de escolarização de indivíduos que tinham origens familiares tantos
nas classes abastadas quanto nas classes trabalhadoras. Embora sejam iden-
tificadas como pessimistas, as teorias reprodutivistas em educação contribu-
íram neste debate para desvelar que a escola, enquanto instituição social,
também funcionava a partir da lógica da sociedade em que estava inserida.
Nesse contexto, estes autores – criticados hoje por seu pessimismo peda-
gógico – denunciaram que a lógica escolar dividia, ao longo dos processos
Diferenças na Escola | 25

de escolarização, os(as) alunos(as) entre as carreiras técnicas e científicas,


às quais as classes populares e médias/altas, respectivamente, estavam
destinadas.
De lá para cá, este debate, que primeiro se debruçou sobre a proble-
mática das classes sociais, se ampliou, se modificou e se aprofundou. Hoje,
vários autores e autoras argumentam que a escola não apenas reproduz,
mas também produz as desigualdades existentes na sociedade (LOURO,
1999; SILVA, 2000). Essa ampliação do debate passou, nas últimas décadas,
a englobar a ideia de que era preciso que se trouxessem para as análises
outras diferenças para além das de classe social. Atualmente também se
discute que as teorias de Bourdieu e outros autores contemporâneos a ele
são marcadas por certo eurocentrismo. No Brasil, há pesquisas que indicam
que o maior acesso à educação muda positivamente as condições de vida,
acesso a emprego e renda. Nesse contexto, pode-se dizer que, por ser um
cenário muito diferente do francês, ao se falar sobre o contexto brasileiro é
preciso que sejam observadas as especificidades locais.
Celi Scalon (2011) argumenta que se por um lado é preciso compreender
a incompletude das teorias, que por décadas defenderam que haveria uma
associação direta entre o aumento dos níveis educacionais da população e a
eliminação da pobreza – para a autora, não se pode negar que a educação
se constitui em importante fator na socialização dos indivíduos e na trans-
missão do sentimento de pertencimento a uma dada cultura –, por outro
lado, afirma também não ser possível negar que a elevação da escolaridade
incide diretamente sobre “a capacidade de participação, de organização
social e de disposição para a reivindicação de direitos – componentes in-
dispensáveis para a geração de solidariedade, no sentido de ‘reciprocidade
generalizada’” (SCALON, 2011, p. 62).
Gênero, geração, raça/etnia, sexualidade e religião entram em cena nes-
te debate, e são o que hoje chamamos de “marcadores sociais da diferença”
(BRAH, 2006). A noção de marcadores sociais da diferença diz respeito à ar-
ticulação dos diferentes pertencimentos sociais de um indivíduo e de como
eles produzem lugares diferenciados socialmente a eles, dependendo de
diversos níveis de participação na vida social. Os “marcadores sociais da di-
ferença”, em suas combinações variadas, estabelecem lugares diferenciados
para indivíduos diversos. Assim, inserem as diferenças num jogo complexo
de hierarquias que, em alguns momentos, podem contribuir para a constru-
ção de enormes desigualdades.
26 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

A abordagem das interseccionalidades – que implica em reconhecer as


intersecções variadas que os marcadores sociais da diferença possam ter
em dado contexto ou momento na sociedade – vai além da ideia de que as
diferenças se adicionam de modo a somar ou subtrair vantagens e desvanta-
gens a uma ou outra pessoa. Esta noção questiona, por conseguinte, a ideia
de que quanto mais atributos positivados socialmente um indivíduo, mais
sucesso este terá, ou, ao contrário, quanto menos deles um indivíduo tiver,
mais fadado ao fracasso social (e escolar) será.
Segundo Adriana Piscitelli (2008), trabalhar a noção de interseccionali-
dades e/ou categorias de articulação é oferecer um instrumental que ajude
a pensar como múltiplas diferenças e desigualdades se articulam na vida
social. Para a autora, “é importante destacar que já não se trata da diferença
sexual, nem da relação entre gênero e raça ou gênero e sexualidade, mas da
diferença, em sentido amplo, para dar cabida às interações entre possíveis
diferenças presentes em contextos específicos” (PISCITELLI, 2008, p. 266).
Por exemplo, Laura Moutinho (2006), ao pesquisar a relação entre
raça/cor, homossexualidade e desigualdade em uma comunidade do Rio de
Janeiro marcada pela violência e pelo tráfico de drogas, percebeu que os
homens homossexuais “‘mais escuros’ que moram nos subúrbios e nas fave-
las do Rio de Janeiro possuem um campo de manobra mais amplo do que
aqueles nos quais se inserem rapazes e moças heterossexuais da região, e,
mesmo, as lésbicas e travestis de diferentes cores que habitam essas áreas”
(MOUTINHO, 2006, p. 103). Justamente em razão da homossexualidade, es-
tão “fora” dos padrões de masculinidade locais requeridos para a atividade
do tráfico, podendo, eles, circularem mais livremente dentro da própria co-
munidade, nas comunidades onde há traficantes rivais e também nos bairros
turísticos de classe média cariocas, uma vez que a cor/raça, nesses contex-
tos, atua como um fator que os torna “mais desejáveis” para homens homos-
sexuais brancos e/ou estrangeiros do que os rapazes gays “mais brancos”.
Assim, para esses rapazes, a articulação entre os marcadores sexualidade e
raça/cor não produz subordinações em todos os contextos pelos quais circu-
lam. Isso implica em reconhecer que, para além das categorias que marcam
as diferenças, é preciso fazer uma leitura do contexto em que as diferenças
acontecem e qual seu impacto na produção ou não das desigualdades em
dado espaço ou contexto.
Assim, adotar uma perspectiva interseccional é, ao invés de tentar com-
preender a realidade a partir de um ou outro conceito isoladamente, tentar
Diferenças na Escola | 27

pensar como gênero, raça/etnia, sexualidade, geração, classes que se articu-


lam em diferentes contextos produzindo igualdade ou desigualdade. Assim,
trata-se menos de se pensar em uma soma ou subtração, mas de entender
que uma boa compreensão da problemática das diferenças deve levar em
conta como estes marcadores se articulam na produção de diferenciações
e impactam os cotidianos das pessoas conforme vivem suas vidas. Ou seja,
para além dos marcadores e pertencimentos, é preciso observá-los no
modo como aparecem em diferentes contextos. Evidentemente, para que
este debate faça sentido, o ponto de partida da análise deve ser o respeito
às diferenças e sua valorização.
Conforme Guacira Lopes Louro (1999), a escola produz diferenças, de-
sigualdades e distinções o tempo todo. Aliás, opera basicamente neste
registro, pois desde sempre separa em seus espaços: protestantes de católi-
cos; meninos de meninas; ricos de pobres; mais novos de mais velhos etc. A
questão é, apesar de pensada inicialmente para contemplar apenas alguns
poucos “escolhidos”, a escola foi sendo solicitada cada vez com mais frequ-
ência por aqueles a quem havia sido inicialmente negada. E assim, com a
abertura de seus portões para indivíduos de origens e inserções sociais cada
vez mais díspares, foi obrigada a lidar com – ou mais comumente, passou a
renegar e expulsar – as diferenças que emergiam dentro de seus espaços.
Cabe aqui fazer a pergunta: se as diferenças desestabilizam tanto, por
que devem ser respeitadas e valorizadas na educação escolar? Não seria
mais fácil reprimi-las? Deixá-las de fora dos currículos, debates e práticas? A
resposta é não, e é justamente para refletir sobre o modo como a escola lida
(ou não lida) com as diferenças – em especial o gênero, as sexualidades e a
raça/etnia – que aqui estamos.
A pauta do direito à diferença e do combate à desigualdade vem ten-
sionando a cena pública. Os Direitos Humanos1 e o direito à diferença, ao

1 A noção de Direitos Humanos refere-se, conforme explicitado pelos documentos da


ONU, ao conjunto de leis que contemplam o direito à vida e à proteção a uma pessoa ou
a um conjunto de pessoas em relação às diversas formas de abusos, tanto físicos quanto
psicológicos. Norberto Bobbio define direitos humanos como direitos que cabem a
homens e mulheres pela razão de serem homens e mulheres. Pertencem ou deveriam
pertencer, deste modo, a todas as pessoas; assim, ninguém pode ou deve ser privado
deles. Ainda, o autor afirma que direitos humanos “são aqueles cujo reconhecimento
é condição necessária para o aperfeiçoamento da pessoa humana, ou para o desen-
volvimento da civilização etc.” (BOBBIO, 1992, p. 17). Para Samuel Antonio Merbach de
Oliveira (2007), “devemos analisar que a dignidade do ser humano enquanto membro
vivente de uma sociedade está situada num contexto político atualmente marcado por
28 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

contrário do que se poderia pressupor, causam polêmica e estranhamento


sobretudo em contextos conservadores. Esta tensão aumenta significati-
vamente se o direito humano em questão estiver relacionado à seara dos
direitos sexuais e reprodutivos.2 Mesmo em âmbitos regulatórios internacio-
nais que definem como os direitos humanos devem ser compreendidos na
esfera global (CORREA, 2009), não é raro perceber que quando o direito das
mulheres e os direitos sexuais e reprodutivos emergem no debate há setores
conservadores que se contrapõem, mesmo, à inserção da pauta e do debate
nesses organismos.
Assim, conforme Claudia Fonseca (1999), pode-se falar que mesmo no
âmbito do que se convencionou chamar de direitos humanos hoje há ca-
tegorias que são priorizadas em detrimento de outras, o que desvela lutas
simbólicas e critérios particulares de legitimação de diferenças e indivíduos
que, quando se reivindicam direitos, determinam quem é mais e quem é
menos humano, e, nesse sentido, humanos com mais chance de estarem
contemplados nas políticas públicas e de acessarem os bens de cidadania3 e
terem sua humanidade reconhecida do que outros.

grandes injustiças sociais, profundas diferenças socioeconômicas e pelas não menos


trágicas disparidades de distribuição de renda. Para que um ser humano tenha direitos
e possa exercê-los, é indispensável que seja reconhecido e tratado como pessoa, o
que vale para todos os seres humanos. Reconhecer e tratar alguém como pessoa é res-
peitar sua vida, mas exige que também seja respeitada a dignidade, própria de todos
os seres humanos. Nenhum homem [ou mulher] deve ser humilhado ou agredido por
outro, ninguém deve ser obrigado a viver em situação de que se envergonhe perante
os demais, ou que os outros considerem indigna ou imoral” (OLIVEIRA, 2007, p. 363). A
Declaração Universal dos Direitos Humanos pode ser encontrada no endereço <http://
portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>.
2 Podemos definir Direitos Sexuais como “direitos a uma vida sexual com prazer e livre de
discriminação” e Direitos Reprodutivos como aqueles que dizem respeito ao “direito
básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o
número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos(as) e de ter a informação e os
meios de assim o fazer, gozando do mais elevado padrão de saúde sexual e reprodu-
tiva”. Fonte: Reprolatina. Para a definição ampliada dos conceitos, veja o site: <http://
www.reprolatina.org.br/site/html/areas/sexualidade.asp>. Acesso em: 18 maio 2014.
3 Conforme José Murilo de Carvalho (2001), a noção de cidadania contempla os direitos
civis (direitos fundamentais à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a
lei, que garantem a vida em sociedade), os direitos políticos (participação do cidadão
no governo da sociedade) e os direitos sociais (direitos coletivos como à educação, ao
trabalho, ao salário justo, à saúde, à aposentadoria, à moradia, ao transporte público de
qualidade etc.).
Diferenças na Escola | 29

O mesmo pode ser percebido nas escolas e universidades, pois não é


novidade nos cursos de licenciatura a ausência, para a formação de docen-
tes, de subsídios que lhes proporcionem a construção de um arcabouço teó-
rico-metodológico que lhes ajude a lidar com as diferenças. Essa ausência se
amplia ainda mais quando a diferença refere-se a questões de gênero, das
sexualidades – ou orientações sexuais, termo mais comumente (re)conhecido
na arena das políticas públicas – e da raça/etnia. No caso específico dos de-
bates sobre raça/etnia, nem mesmo a regulamentação no âmbito Federal,4
que institui, nos diversos níveis de ensino, a obrigatoriedade da inclusão da
temática “História e Cultura Afro-brasileira”, tornou concreta a inclusão e
o debate das diferenças étnicas para além dos estereótipos acerca delas,
assim como do combate ao racismo no cotidiano das escolas.
Deste modo, embora haja iniciativas e até mesmo políticas de governo
e de Estado5 que indiquem que esta abordagem deve estar presente nas
práticas cotidianas escolares, a inserção efetiva nas escolas é incipiente. Os
Parâmetros Curriculares Nacionais, para dar um exemplo, publicados no final
da década de 1990, propõem este debate, mesmo que de forma transver-
sal, na prática docente e escolar, o que deveria ter tido também reflexo nos
cursos de formação de professores e professoras. Independentemente des-
sas iniciativas, não é incomum nos depararmos com a ausência do debate
na maior parte das licenciaturas e das escolas. Em alguns lugares, escolas
e também universidades, há experiências de abordagem da temática, em
geral vinculadas a professores e professoras que tenham afinidade com o
tema, mas ainda são raros espaços (especialmente oficial ou, se oficiais, re-
conhecidos e levados a sério) para que o debate seja realizado efetivamente.
Nesse contexto, nosso desafio passa não apenas por reconhecer, mas
também por falar sobre a diferença, entendê-la como um princípio estru-
turante da boa prática pedagógica e deixar de lado a visão de que ela só
traz problemas para o interior da escola. Ainda, é preciso que deixemos de

4 Notadamente, a Lei no 9.394 de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e


bases da educação nacional para se incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obri-
gatoriedade da temática “História e Cultura Afro-brasileira”. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em: 17 fev. 2014.
5 Em linhas gerais, uma política de Estado é aquela que extrapola os limites de uma
gestão e deve ser acatada independentemente de quem está no governo no momento
atual. Uma política de governo é aquela que só tem garantias de ser efetivada e execu-
tada durante a gestão de quem a implantou. Assim, pode-se dizer que as políticas de
Estado têm caráter (mais) permanente que as de governo, que seriam (mais) transitórias.
30 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

lado ideias de que a escola não tem de lidar com a sexualidade e com ou-
tros marcadores sociais da diferença. A escola é um espaço importante da
sociabilidade de crianças e adolescentes, e limar a instância dos desejos e
afetividades desse espaço é uma forma de exclusão. Além disso, o mesmo
silêncio que exclui também deixa a porta aberta para as discriminações e
violências diversas. Faz parte de nossa função como educadores e educado-
ras garantir uma escola de qualidade para todas as pessoas, na qual todas
elas estejam representadas.
Como nos lembra Rogerio Diniz Junqueira (2007), ao invés de nos contra-
pormos à existência das diferenças no ambiente escolar, deveríamos valori-
zá-las, porque elas constituem fator de qualidade na educação. Conforme o
autor, não é a qualidade do ensino que acarreta uma coexistência pacífica e
um convívio democrático com as diferenças. O que se passa é justamente o
contrário: o respeito às diferenças é que viabiliza uma educação de qualida-
de e, adicionaria aqui, a produção de uma escola e sociedade pautadas nos
princípios de igualdade e justiça social.

BOX 1

“O conceito de diferença [...] se refere à variedade de maneiras como dis-


cursos específicos da diferença são constituídos, contestados, reproduzidos
e ressignificados. Algumas construções da diferença, como o racismo, pos-
tulam fronteiras fixas e imutáveis entre grupos tidos como inerentemente
diferentes. Outras construções podem apresentar a diferença como rela-
cional, contingente e variável. Em outras palavras, a diferença não é sempre
um marcador de hierarquia e opressão. Portanto, é uma questão contextu-
almente contingente saber se a diferença resulta em desigualdade, explora-
ção e opressão ou em igualitarismo, diversidade e formas democráticas de
agência política” (AVTAR BRAH, 2006, p. 374).
Diferenças na Escola | 31

UNIDADE 2
O respeito às diferenças

A escola é um espaço importante da sociabilidade de crianças e ado-


lescentes, e tornar invisíveis as diferenças desse espaço é uma forma de
exclusão. Além disso, o mesmo silêncio que exclui também deixa a porta
aberta para as discriminações e violências diversas, e é nossa função como
educadores e educadoras garantir uma escola de qualidade para todas as
pessoas, na qual todas as pessoas estejam representadas. Mas, antes de
qualquer coisa, é preciso que entendamos o que são as diferenças e suas
implicações nas escolas e na vida social.

Diferença e diversidade, respeito e tolerância: discutindo conceitos


Faço, neste texto, a opção teórica de utilizar o termo diferença ao in-
vés de diversidade. Opto também por lançar mão da ideia de respeito às
diferenças ao invés da tolerância às diferenças. Atualmente, é comum que
tenhamos contato com estes termos e, por vezes, os utilizemos sem saber
muito a que se referem. Muitas vezes, pela forma como aparecem nos dis-
cursos sociais e, mesmo, acadêmicos, parece que diferença e diversidade
falam da mesma coisa, assim como tolerância e respeito são usados como
se dissessem respeito à mesma coisa. É comum, inclusive, que as pessoas
tenham dificuldades em lançar mão do conceito de diferença e respeito, já
que diversidade e tolerância circulam também como alternativas que, por
vezes, parecem se vender como mais inclusivas. Dito isto, é valido explicitar
porque faço a opção por usar os termos diferença e respeito ao invés dos
dois outros, que parecem ter o mesmo sentido, mas não têm.
Tendo a seguir, neste debate, às pistas fornecidas por alguns autores.
Para Richard Miskolci (2012),

o termo “diversidade” é ligado à ideia de tolerância ou de convivência,


e o termo “diferença” é mais ligado à ideia de reconhecimento como
transformação social, transformação nas relações de poder, do lugar
que o Outro ocupa nelas. Quando você lida com o diferente, você
também se transforma, se coloca em questão. Diversidade é “cada um
no seu quadrado”, uma perspectiva que compreende o Outro como
32 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

incomensuravelmente distinto de nós e com o qual podemos conviver,


mas sem nos misturarmos a ele. Na perspectiva da diferença, estamos
todos implicados(as) na criação desse Outro, e quanto mais nos rela-
cionamos com ele, mais o reconhecemos como parte de nós mesmos,
não apenas o toleramos, mas dialogamos com ele sabendo que essa
relação nos transformará (MISKOLCI, 2012, p. 15-16).

Tomaz Tadeu da Silva (2007) também questiona o uso do termo diversi-


dade, e argumenta que as palavras “diferença” e “multiculturalismo” apa-
recem na teoria educacional com alguma ênfase nos últimos tempos, sem
muita reflexão acerca de suas implicações. Para o autor, é preciso pensar
acerca delas de forma crítica, já que hoje são, inclusive, utilizadas pelos dis-
cursos oficiais (inclua-se neles os governamentais) como “legítimas questões
de conhecimento”. Para Silva, deve-se estar atento ao fato de que essas te-
orias sobre a diversidade e o multiculturalismo, assim como as discussões
que dela emanam, sofrem da ausência de uma teoria da identidade e da
diferença. Em suas palavras,

em geral, o chamado “multiculturalismo” apoia-se em um vago e be-


nevolente apelo à tolerância e ao respeito para com a diversidade e
a diferença. É particularmente problemática, nessas perspectivas, a
ideia de diversidade. Parece difícil que uma perspectiva que se limita
a proclamar a existência da diversidade possa servir de base para uma
pedagogia que coloque no seu centro a crítica política da identidade e
da diferença. Na perspectiva da diversidade, a diferença e a identidade
tendem a ser naturalizadas, cristalizadas, essencializadas. São tomadas
como dados ou fatos da vida social diante dos quais se deve tomar
posição. Em geral, a posição socialmente aceita e pedagogicamente
recomendada é de respeito e tolerância para com a diversidade e a
diferença. Mas será que as questões da identidade e da diferença se
esgotam nessa posição liberal? E, sobretudo: essa perspectiva é sufi-
ciente para servir de base para uma pedagogia crítica e questionadora?
Não deveríamos, antes de mais nada, ter uma teoria sobre a produção
da identidade e da diferença? Quais as implicações políticas de concei-
tos como diferença, identidade, diversidade, alteridade? O que está em
jogo na identidade? Como se configuraria uma pedagogia e um currí-
culo que estivessem centrados não na diversidade, mas na diferença,
concebida como processo, uma pedagogia e um currículo que não se
limitassem a celebrar a identidade e a diferença, mas que buscassem
problematizá-las? (SILVA, 2007, p. 73-74).
Diferenças na Escola | 33

A opção pelo termo diferença busca, nesse contexto, positivar a dife-


rença como parte importante da experiência social. Ao contrário do termo
diversidade, que indica apenas que a diferença está posta na vida social, a
ideia de diferença contempla a ideia de que a produção das diferenças é um
processo contínuo no interior da vida social e se estabelece na relação com
o outro.

Figura 3 Tela “Operários”, de Tarsila do Amaral (1933), que contempla a diferença


étnico-racial da sociedade brasileira. As expressões austeras, de olhar fixo, nos lem-
bram das dificuldades inerentes ao trabalho fabril. Com outro cenário ao fundo, a
imagem poderia fazer também se referir à pluralidade de sujeitos presentes nas esco-
las brasileiras, pluralidade esta raramente representada nos materiais didáticos e nas
práticas escolares cotidianas.

Precisamos também, conforme apontado pelos autores, pensar acerca


das implicações políticas dos usos dos termos respeito e tolerância. Enquan-
to tolerar pressupõe uma relação de superioridade e inferioridade, em que
quem tolera pode ser juiz do outro e usar de benevolência para conviver
com ele, apesar das diferenças, a noção de respeito pressupõe igualdade
na forma de se entender a diferença dentro da hierarquia social. Isso por-
que, quando respeitamos alguém, reconhecemos que a diferença está dada,
apesar do que pensamos dela, e que ela é tão significativa dentro de um
contexto sociológico como qualquer um de seus elementos.
34 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Dito isto, podemos debater outra ideia importante aqui: a de que a di-
ferença – e consequentemente o respeito – se estabelece na relação social.
Disso, depreende-se que o reconhecimento das diferenças na sociedade
e na escola não implica em tratá-las de modo desigual e/ou com inferiori-
dade. Conforme venho argumentando, é justamente o reconhecimento das
diferenças que pode propiciar que a educação escolar seja efetivamente
igualitária e democrática.

Diferença não é um atributo inerente dos outros, mas da relação


social estabelecida
Tomaz Tadeu da Silva (2007) nos alerta que é fácil reconhecer a identida-
de quando a pensamos como aquilo que se é ou, de forma autorreferencial,
como aquilo que somos. Nesta linha de raciocínio, questiona Silva,

a identidade é simplesmente aquilo que se é: “sou brasileiro”, “sou ne-


gro”, “sou heterossexual”, “sou jovem”, “sou homem”. A identidade assim
concebida parece ser uma positividade (“aquilo que sou”) [...] Nessa pers-
pectiva, a identidade só tem como referência a si própria: ela é autocontida
e autossuficiente. Na mesma linha de raciocínio, também a diferença é
concebida como uma entidade independente. Apenas, neste caso, em
oposição à identidade, a diferença é aquilo que o outro é: “ela é italiana”,
“ela é branca”, “ela é homossexual”, “ela é velha”, “ela é mulher”. Da mes-
ma forma que a identidade, a diferença é, nesta perspectiva, concebida
como autorreferenciada, como algo que remete a si própria. A diferença,
tal como a identidade, simplesmente existe (SILVA, 2007, p. 74).

Contudo, a proposição da diferença não se esgota na categorização de


si ou do outro. Quando dizemos que somos brasileiras, estamos dizendo
que não somos de uma ampla lista de outros pertencimentos nacionais, ou
seja, ao afirmarmos o que somos, também renegamos a aquilo que não so-
mos. O que é proposto pelo autor, então, é uma (re)significação do conceito
de diferença, provocando a ruptura com a visão cristalizada da identidade
como norma. Deste modo, a inclusão das diferenças seria um pressuposto
para uma boa prática pedagógica, e não seu resultado deste. Podemos afir-
mar, então, em consonância com a proposta por ele apresentada, que

assim como a definição da identidade depende da diferença, a defini-


ção do normal depende da definição do anormal. Aquilo que é deixado
Diferenças na Escola | 35

de fora é sempre parte da definição e da constituição do “dentro”. A


definição daquilo que é considerado aceitável, desejável, natural, é in-
teiramente dependente da definição daquilo que é considerado abjeto,
rejeitável, antinatural. A identidade hegemônica é permanentemente
assombrada pelo seu Outro, sem cuja existência ela não faria sentido
(SILVA, 2007, p. 84).

Esse tipo de atitude é visível, por exemplo, quando um homem conta


uma piada ridicularizando um homossexual como forma de afirmar sua mas-
culinidade ou, ainda, quando se faz brincadeiras como “mulher feia tem que
agradecer o estupro”, ou em comentários sobre uma suposta incapacidade
“natural” das mulheres de dirigir bem, para as ciências exatas ou para exer-
cer cargos de chefia.
Para um debate sobre as diferenças, é preciso que reconheçamos que
tanto a identidade quanto a diferença são produzidas nas interações entre
indivíduos no interior da vida social. Nós nos identificamos com diversos mo-
delos e práticas que existem, estão disponíveis no mundo, e os rejeitamos
(ou na sociedade em que fomos socializados). Ambas se desvelam a partir
do (re)conhecimento de si perante o outro.
A identidade e a diferença são produzidas durante o processo de so-
cialização, um processo permanente de aprendizado cultural, que se es-
tende desde o nascimento até à morte de um indivíduo. Assim, é a partir
do processo de socialização que aprendemos e assimilamos os valores e
experiências de uma cultura (no caso, a nossa). À medida que nascemos,
crescemos e nos desenvolvemos, vamos incorporando as normas sociais e
agimos cada vez mais de acordo com a forma como fomos ensinados. Este
processo não se dá de forma consciente, e, em geral, essas regras nos são
ensinadas a partir das experiências sociais ao longo de nossas vidas. Em
resumo, a socialização consiste em um processo de aprendizado cultural
que (in)forma os comportamentos de todos indivíduos e permite que per-
tençam a uma dada sociedade.
Um desses aprendizados diz respeito ao gênero e às sexualidades.
Nesse contexto, podemos afirmar que meninos e meninas possuem com-
portamentos diferentes, não em função de transmissão genética ou do
ambiente em que vivem, mas pela educação diferenciada que cada um
recebeu.
Voltando à ideia de que mulheres “naturalmente” dirigem pior que os ho-
mens, é preciso considerar que, desde muito cedo, separam-se brincadeiras
36 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

para meninos e meninas, e com isso estimula-se o desenvolvimento de


aptidões específicas para cada um dos sexos. Enquanto meninos são esti-
mulados a atividades que permitem o desenvolvimento da lateralidade e
da noção de espaço, como a prática de esportes, às mulheres são reserva-
das brincadeiras e brinquedos que estimulam mais outras aptidões, como
a coordenação motora fina (requerida para, por exemplo, desenvolver uma
escrita “mais bonita”) ou relativa aos futuros cuidados maternais (como as
brincadeiras com bonecas(os)). Assim, vai-se produzindo a “falta de jeito”
dos homens de lidarem com seus filhos quando bebês, a caligrafia “feia”
dos meninos, a falta de aptidão para dirigir e para a localização espacial das
meninas, entre outras coisas, que nada têm de “naturais”.
Em geral, quando nos colocamos em comparação com o outro e o julga-
mos diferentes de nós, tendemos a tomar nossos próprios hábitos, costumes
e modos de vida como verdadeiros, e os demais como inadequados, falsos.
Assim, categorizamos a humanidade a partir da nossa experiência e descar-
tamos outras formas de ser e estar no mundo como menos humanas. É preci-
so que reconheçamos, contudo, que a diferença não é um atributo exclusivo
do outro, que tendemos a perceber como atrasados, errados, estranhos etc.
Um primeiro passo aqui é justamente reconhecer que, do ponto de vista dos
outros, também somos diferentes; assim, só é possível estabelecer diferença
a partir do contato com o outro, diferente de nós, e, ao mesmo tempo, é só a
partir desse contato que nos é possível perceber que nos identificamos ou
não com ele.
Concluímos que a cultura – entendida como todo o complexo que inclui
conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer hábito ad-
quirido pelo homem enquanto membro de uma sociedade – é que determi-
na a diferença de comportamento entre indivíduos ou grupos sociais.

Diferença não é uma questão de opinião


Sabemos que as diferenças, assim como é a identidade, são produzidas
nas interações entre indivíduos no interior da vida social. Como já discuti-
mos, quando falamos em cultura, estamos nos referindo a tudo aquilo que
caracteriza a existência social de um povo ou de grupos no interior de uma
sociedade. Estamos falando também dos códigos e comportamentos com-
partilhados por indivíduos que constituem um grupo, ou seja, as regras so-
ciais que se seguem. As culturas não são genéticas: elas são aprendidas ao
Diferenças na Escola | 37

longo do processo de socialização do indivíduo. Também não são estáticas,


e se modificam no curso da história. Para Roberto DaMatta (1986), “a cultura
não é um código que se escolhe simplesmente” (DAMATTA, 1986, p. 123).
Quando apreciamos negativamente, distinguimos a cultura do “eu”
daquelas diferentes da nossa, podemos dizer que estamos tendo um com-
portamento etnocêntrico. Etnocentrismo é um termo amplamente utiliza-
do nas ciências sociais para definir julgamentos de valor acerca da cultura
do outro quando a observamos vestindo as lentes da cultura do eu. É fato
que todos(as) vemos o mundo através das lentes da cultura em que fomos
socializados(as). Mas no comportamento etnocêntrico isso resulta sempre
num julgamento valorativo em que a cultura do “eu” é vista como a “verda-
deira”, “correta”, “adequada”, “certa” etc., e a do outro, em oposição, não.
Um exemplo de etnocentrismo relacionado aos conteúdos escolares é
quando se toma apenas a história do continente europeu como referência
histórica para toda a humanidade. Assim, deixa-se de lado toda a história de
povos com culturas tão ricas e complexas quanto as da Europa e exclui-se
esta discussão dos currículos escolares e discussões em sala de aula. Nessa
situação, a referência de humanidade centra-se na história dos povos que
colonizaram a América e não se dá a devida importância para a influência
dos povos africanos e indígenas na história deste continente. O mesmo
acontece quando, nas aulas de ensino religioso, se privilegia a tradição reli-
giosa judaico-cristã como se fosse a única existente e não se fala sobre ou-
tras formas de experiência religiosa, consideradas então menos importantes
ou legítimas.
Roque de Barros Laraia (2009) nos alerta sobre os riscos do etnocentris-
mo, ao afirmar que o fato de vermos o mundo através de nossa cultura

tem como consequência a propensão em considerar o seu modo de


vida como o mais correto e o mais natural. Tal tendência, denominada
etnocentrismo, é responsável em seus casos extremos pela ocorrência
de numerosos conflitos sociais. O etnocentrismo, de fato, é um fenôme-
no universal. É comum a crença de que a própria sociedade é o centro
da humanidade, ou mesmo a sua única expressão. [...] A dicotomia
“nós e os outros” expressa em níveis diferentes essa tendência. Dentro
de uma mesma sociedade, a divisão ocorre sob a forma de parentes
e não parentes. Os primeiros são melhores por definição e recebem
um tratamento diferenciado. A projeção desta dicotomia para o plano
extragrupal resulta nas manifestações nacionalistas ou formas mais
38 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

extremadas de xenofobia. O ponto fundamental de referência não é a


humanidade, mas o grupo. Daí a reação, ou pelo menos a estranheza,
em relação aos estrangeiros (LARAIA, 2009, p. 72-73).

Se comportamentos etnocêntricos resultam em apreciações negativas


aos padrões culturais diferentes dos do grupo de origem de dado indivíduo,
podemos dizer que implicam sempre numa construção de legitimidades di-
ferenciadas para o grupo do “eu” e do “outro”, em que o grupo do “eu” – de
quem julga ou observa – estará sempre colocado de modo hierarquicamen-
te superior ao do “outro” (ROCHA, 1991).
É comum encontrarmos na vida cotidiana pessoas com falas como “de-
vemos respeitar as diferenças porque cada um tem a sua opinião”. O que
gostaria de pontuar aqui é que, nesse momento, já sabemos que a produção
social das diferenças extrapola a ideia de que elas são uma questão indivi-
dual. As diferenças são parte da cultura, ou ao menos do convívio entre di-
versos grupos sociais. É a cultura que as informa, e elas também constituem
a cultura. Dessa forma, podemos percebê-las mais a partir de uma noção de
que elas constituem outra possibilidade de existência, de viver a vida, e me-
nos como uma forma inferior, atrasada ou equivocada de estar no mundo.

Diferença não é o mesmo que desigualdade


Conforme bell hooks (2013, p. 235), “desde o ensino fundamental, somos
todos encorajados a cruzar o limiar da sala de aula acreditando que estamos
entrando em um espaço democrático – uma zona livre onde o desejo de
estudar e aprender nos torna todos iguais”. Assim, as diferenças (de clas-
se, conforme discute a autora, mas também todas as outras) tendem a ser
apagadas, silenciadas, dando amplo espaço a todas as formas de exclusão.
Para a autora, mesmo que entremos em classe aceitando que há diferenças
postas entre os sujeitos que ali estão, ainda acreditamos que o conhecimen-
to ali será distribuído em partes iguais e justas. Mas, ao cabo, não é isso que
ocorre.
De acordo com Ione Ribeiro Valle (2013), em termos legais é dado que a
igualdade em relação ao direito à educação é fundamental para a consolida-
ção dos projetos políticos de democratização em nível mundial e, podemos
dizer, também no Brasil. Apesar disso, e de esse discurso ter ampla aceita-
ção social, também é preciso dizer que a escola “nunca garantiu que, em
nível igual de talento, motivação e competência, todos tenham as mesmas
Diferenças na Escola | 39

perspectivas de sucesso, independentemente do meio social, da educação


familiar e dos processos de socialização que marcam, de forma distinta, a
trajetória de cada um” (VALLE, 2013, p. 295). Isso acontece de forma mais
aprofundada nas sociedades com maior índice de desigualdade social,
como a brasileira.
Assim, quanto mais desigual uma sociedade, maior a dificuldade de
acesso e garantia dos direitos fundamentais6 a todas as pessoas. Apesar da
diversificação das ações voltadas à democratização do acesso e à inclusão
escolar na sociedade contemporânea a partir de políticas de ação afirmativa
ou do desenho de políticas públicas que visem modificar o quadro vigen-
te de exclusões sociais, “as desigualdades fracionam-se, multiplicam-se e
diversificam-se no âmbito da escola, do mundo do trabalho, das hierarquias
sociais, sem que se consiga desmontar o mecanismo e a lógica que elas
ocultam” (VALLE, 2013, p. 296). A persistência das desigualdades, conforme
a autora, tem incentivado a abordagem de novas perspectivas analíticas
“que procuram analisar as múltiplas dimensões das desigualdades sociais,
caracterizando-as como um sistema que se articula na ordem do ter, do po-
der e do saber” (VALLE, 2013, p. 296).
De acordo com a autora, é preciso, para a manutenção da ordem social
vigente, que os sistemas de escolarização se pautem pela lógica do mérito.
Dentro dessa lógica, cada um, individualmente, ao adentrar nos quadros da
escola, poderá ascender socialmente e acessar os bens de cidadania, e seu
sucesso dependerá apenas de esforçar-se o suficiente para tal. O que se
passa é que, dentro dessa lógica, as diferenças aparecem como empecilho
para a produção de uma escola, pois impediria que a todas as pessoas ali
fosse dada igualdade de tratamento. Este discurso, falacioso, porém entra-
nhado na lógica escolar, justifica cotidianamente a exclusão das diferenças
como fator importante para o ensino e a aprendizagem.
O sistema de ensino que leva em conta essa lógica tenta pasteurizar
as diferenças e padronizar os conteúdos e formas de ensinar. Ele aspira
dar uma escolarização única a todas as pessoas, ignorando suas especi-
ficidades. O que ocorre, ao cabo, é que justamente ao desconsiderar as
diferenças e padronizar pessoas, conteúdos, metodologias de ensino etc.,

6 Grosso modo, aqueles previstos como direitos individuais na Carta Magna de um país.
De acordo com Michelli Pfaffenseller (2007, s/p.), “os Direitos Fundamentais, sob uma
perspectiva clássica, consistem em instrumentos de proteção do indivíduo frente à
atuação do Estado”.
40 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

a escola perpetua as desigualdades existentes na sociedade por descon-


siderar que aquilo que não faz parte do status quo da sociedade não per-
tence ao universo escolar.

Figura 4 Ilustração do cartunista Ziraldo para a cartilha do Ministério da Justiça “Os


direitos humanos”.

Nesse contexto, nosso desafio é passar por reconhecer e falar sobre as


diferenças e entendê-las como um princípio estruturante da boa prática pe-
dagógica, assim como deixar de lado a visão de que ela só traz problemas
para o interior da escola. Ainda, é preciso que deixemos de lado ideias de
que a escola não tem de lidar com gênero, sexualidade, raça ou com outros
marcadores sociais da diferença.
O relatório da “Pesquisa sobre preconceito e discriminação no ambiente
escolar”, publicado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE)
em 2009, observou que, nas escolas em que há um maior índice de precon-
ceito e discriminações, há um aprendizado pior. Essa pesquisa cruzou dados
sobre preconceito e discriminação no ambiente escolar com o desempenho
de alunos(as) na Prova Brasil 2007.7 O relatório também demonstrou que nas

7 A “Prova Brasil” ou Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (ANRESC)" é uma ava-


liação censitária envolvendo os alunos da 4 a série/5 o ano e 8a série/9o ano do Ensino
Diferenças na Escola | 41

escolas em que há maior preponderância de atitudes que enfatizem o res-


peito às diferenças, o resultado das provas dos(as) alunos(as) apresentou uma
melhora significativa. As variações nas médias de alunos(as) na Prova Brasil
mostraram-se diretamente relacionadas a maior ou menor discriminação e
preconceito, que vitimam tanto discentes quanto docentes e funcionários(as).8
Não é a existência das diferenças que institui as desigualdades entre
indivíduos, mas a hierarquização delas (legitimação de algumas e exclusão
de outras). O desrespeito às diferenças produz as intolerâncias, discrimi-
nações e violências (simbólicas e físicas) que encontramos nas escolas e,
também, amplamente na vida social. O preconceito e a discriminação não
se constituem em um problema que afeta apenas aqueles indivíduos que
são discriminados. São fatores que impactam a vida de todas as pessoas
que se encontram nos espaços onde há processos discriminatórios.
Não se trata aqui de responsabilizar exclusivamente docentes, estu-
dantes ou quaisquer outras pessoas pelos males do mundo. O que preci-
samos compreender é que a desigualdade é estrutura na vida social e afeta
a todos(as) nós, indiscriminadamente. Assim, cabe a nós, profissionais da
educação, tomarmos como nosso o projeto de produção de uma escola
democrática e pautada na noção de respeito a todas as pessoas. Cabe aqui
a proposta de que devemos pautar no cotidiano escolar (mas não apenas
nele) o debate em que o combate aos preconceitos e discriminações passa
inicialmente pelo reconhecimento de nossos próprios preconceitos e limites
de lidar de forma democrática e inclusiva com a diferença.
Antes de seguirmos para uma proposta de como fazer isto, gostaria de
propor um debate sobre as formas de violência e discriminação que mais
têm afetado o debate sobre a escola hoje: as histórias sobre o bullying e
como impactam as vivências de todos(as) no ambiente escolar.

Fundamental das escolas públicas das redes municipais, estaduais e federal, com o
objetivo de avaliar a qualidade do ensino ministrado nas escolas públicas. Participam
desta avaliação as escolas que possuem, no mínimo, 20 alunos matriculados nas séries/
anos avaliados, sendo os resultados disponibilizados por escola e por ente federativo”.
Fonte: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP).
Disponível em: <http://provabrasil.inep.gov.br/>. Acesso em: 16 jan. 2014.
8 Para mais informações, veja FIPE ([2009] 2013, p. 11).
42 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

UNIDADE 3
Bullying ou assédio escolar: um problema que afeta todo
mundo

O termo bullying é uma expressão em língua inglesa que se origina do


termo bully, que quer dizer “valentão/valentona”. Não há uma tradução exa-
ta para o termo em português, que hoje é amplamente difundido e reconhe-
cido como algo presente nas escolas em seus vários níveis de ensino. Alguns
textos trazem como alternativa à expressão em inglês o termo “assédio es-
colar”, muito embora se reconheça que esta prática extrapola os limites da
(con)vivência nas escolas.
Um exemplo de bullying fora das escolas é o cyberbullying, que se reali-
za na rede mundial de computadores (internet). No contexto escolar, muito
embora o tipo mais comum da prática seja aquele feito por alunos(as) con-
tra outros(as) alunos(as), esta também pode ser executada ou sofrida por
professores(as) e/ou funcionários(as) da escola e impacta de forma violenta
a experiência de quem é vítima deste tipo de atitude, assim como afeta a
quem a executa e todo o entorno.
O termo bullying tem sido amplamente designado para se referir a
comportamentos agressivos, atos de violência física e/ou psicológica per-
petuados por crianças e adolescentes em idade escolar contra colegas de
mesma idade ou idade inferior. Conforme a Cartilha Bullying,9 publicada
pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2010, o termo “é utilizado para qua-
lificar comportamentos agressivos no âmbito escolar, praticados tanto por
meninos quanto por meninas” (p. 7). Ainda, estes “atos de violência (física ou
não) ocorrem de forma intencional e repetitiva contra um ou mais alunos que
se encontram impossibilitados de fazer frente às agressões sofridas” (p. 7).
Assim, sem alguma razão específica, alunos(as) considerados(as) mais
frágeis são tomados como objetos de diversão, prazer e poder, com o pro-
pósito maltratar, intimidar, humilhar e amedrontar as vítimas. Também, de
acordo com a Cartilha, bullyings praticados por meninos tendem a ser mais
visíveis pelo uso frequente da força física. Já aquele praticado pelas meninas

9 Cartilha Bullying, Conselho Nacional de Justiça, 2010. Disponível em: <http://www.cnj.


jus.br/images/programas/justica-escolas/cartilha_bullying.pdf. Acesso em: 25 jan. 2014.
Diferenças na Escola | 43

tende a ser menos visível, uma vez que envolve mais fatores como intrigas,
fofocas e isolamento da vítima.
Uma pesquisa publicada em 2010 pelo Instituto Plan Brasil sobre bullying
no contexto escolar nos traz dados acerca dos números de incidência de
maus-tratos em escolas de todas as regiões do Brasil. O relatório afirma que
a violência se constitui em fenômeno relevante nas escolas brasileiras, uma
vez que 70% dos(as) alunos(as) pesquisados informaram terem visto colegas
serem maltratados(as) ao menos uma vez. Cerca de 9% também afirmaram
que assistiram a colegas sofrerem maus-tratos várias vezes por semana, e
10% dizem ter presenciado este tipo de cena todos os dias.

Tabela 1 Número de alunos que relataram ter visto colegas serem maltratados no ano
de 2009 e frequência dos maus-tratos observados.
Quantas vezes viu o
Quantidade Percentual
colega ser maltratado
Não vi 1468 28,4%
Vi 1 ou 2 vezes 1834 35,5%
Vi de 3 a 6 vezes 531 10,3%
1 vez por semana 262 5,1%
Vários por semana 461 8,9%
Todos os dias 522 10,1%
Em branco 90 1,7%
Total geral 5168 100%

Os dados dessa pesquisa também demonstram que 28% da amostra


total de alunos(as) afirmam ter sido vítimas de maus-tratos por parte de co-
legas pelo menos uma vez durante 2009, cerca de 10% afirmam ter sofrido
maus-tratos três ou mais vezes durante o mesmo período. O número parece
baixo, embora relevante se comparado ao percentual de 71% de alunos(as)
que relataram não terem sofrido maus-tratos. Contudo, conforme análise
contida no próprio relatório, o número obtido durante a pesquisa pode estar
subestimado, uma vez que o fenômeno investigado é passível de provocar
constrangimento na vítima quando do relato. Ainda, respostas posteriores
dadas à etapa quantitativa da pesquisa revelaram frequências maiores tanto
de bullying quanto de maus-tratos, o que reforça a hipótese de que o per-
centual de vítimas é superior aos 10% identificados inicialmente.
44 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Tabela 2 Número de alunos que relataram ter sofrido maus-tratos e frequência com
que isso teria ocorrido.
Frequência dos
Quantidade de alunos Percentual
maus-tratos
Não fui maltratado 3666 70,9%
Fui 1 ou 2 vezes 940 18,2%
Fui 3 a 6 vezes 198 3,8%
1 vez por semana 71 1,4%
Várias vezes por semana 140 2,7%
Todos os dias 90 1,7%
Em branco 63 1,2%
Total geral 5168 100%

Isso se explica, em parte, pela dificuldade de se reconhecer no frágil


lugar de vítima. Quanto à subnotificação dos dados de violência sofrida, é
possível também tecer paralelos com a dificuldade com que vítimas de gol-
pes ou crimes têm em denunciar a violência sofrida às autoridades policiais,
por exemplo. Conforme Silvia Ramos, há pessoas que acumulam atributos
sociais que são desvalorizados dentro da lógica cultural vigente, e, por esta
razão, com muita frequência, são tidas como “menos vítimas” quando sujei-
tas a violências diversas. Para exemplificar, ela menciona o caso da juventude
negra nos atendimentos policiais. Em suas palavras,

frequentemente, a população negra, especialmente os jovens, é vítima


de tratamento desrespeitoso e inadequado pela própria polícia, seja
numa revista policial, seja numa delegacia. O que é acionado nas cenas
comuns de seletividade da suspeita é uma combinação explosiva de es-
tereótipos, violência simbólica, às vezes violência física, e racismo, que
só faz aumentar o abismo entre polícia e juventude e que derrota todas
as tentativas de produção da paz e da segurança com a cooperação e o
engajamento criativo da juventude (RAMOS, 2002, p. 2).

Podemos fazer o mesmo tipo de analogia quando pensamos no bullying


escolar e na manipulação das identidades nesse contexto. É possível que
bullys se valham de todo um conhecimento social das desvantagens que
um(a) colega possa ter, não apenas para escolhê-lo(a) como vítima, mas
também para se manter insuspeito(a) se for acusado de abuso. Assim, são
as desigualdades manifestas na vida social que interferem nas interações
escolares, legitimam ou deslegitimam crianças e adolescentes no contexto
Diferenças na Escola | 45

escolar e fazem com que alguns indivíduos vitimizem outros com certa pos-
sibilidade de não serem pegos(as) desde que não extrapolem limites tolerá-
veis (como aqueles enquadrados nos discursos do “foi sem querer” ou “foi
apenas uma brincadeira”).

BOX 2

Saiba mais:
Para saber mais dados sobre o bullying no contexto brasileiro, busque o rela-
tório final da pesquisa Bullying escolar no Brasil, publicado em 2010 pela Or-
ganização Não Governamental Plan Brasil. A pesquisa foi realizada com 5.168
estudantes de todas as regiões do país, e o relatório encontra-se disponível
em: <http://escoladafamilia.fde.sp.gov.br/v2/Arquivos/pesquisa-bullying_es-
colar_no_brasil.pdf>.
Vale lembrar aqui que se enquadram como formas de bullying os aspec-
tos físicos e materiais (bater, empurrar, beliscar, roubar, furtar ou destruir
pertences da vítima), verbais (insultar, ofender, falar mal, colocar apelidos
pejorativos, “zoar” etc.), psicológicos e morais (humilhar, excluir, discrimi-
nar, chantagear, intimidar, difamar etc.), sexuais (abusar, violentar, assediar,
insinuar etc.) e virtuais/cyberbullying (bullying realizado por meio de ferra-
mentas tecnológicas: celulares, filmadoras, internet etc.).
46 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

BOX 3

Tipos comuns de Bullying:


• Insultar a vítima.
• Acusar sistematicamente a vítima de não servir para nada.
• Cometer ataques físicos repetidos contra uma pessoa, tanto contra o cor-
po dela quanto algo de sua propriedade.
• Interferir com a propriedade pessoal de uma pessoa, livros ou material
escolar, roupas etc., danificando-os.
• Espalhar rumores negativos sobre a vítima.
• Depreciar a vítima sem nenhum motivo aparente.
• Fazer com que a vítima faça o que ela não quer, ameaçando-a para seguir
as ordens.
• Colocar a vítima em situação problemática com alguém (geralmente uma
autoridade) ou conseguir uma ação disciplinar contra a vítima, alegando
algo que ela não cometeu ou que foi exagerado pelo bully.
• Fazer comentários depreciativos sobre a família de uma pessoa (particu-
larmente a mãe), sobre o local de moradia de alguém, aparência pessoal,
orientação sexual, religião, etnia, nível de renda, nacionalidade ou qual-
quer outro aspecto entendido como inferioridade pelo(a) bully.
• Causar isolamento social da vítima.
• Usar as tecnologias de informação para praticar o cyberbullying (criar
páginas falsas, comunidades ou perfis sobre a vítima em sites de relacio-
namento com publicação de fotos etc.).
• Fazer chantagem.
• Usar expressões ameaçadoras.
• Fazer grafitagem depreciativa.
• Usar de sarcasmo evidente para se passar por amigo (para alguém de
fora) enquanto assegura o controle e a posição em relação à vítima (isso
ocorre com frequência logo após o bully avaliar que a pessoa é uma “ví-
tima perfeita”).
• Fazer a vítima passar vergonha na frente de várias pessoas.

Fonte: Eco4U (2011, com adaptações): <https://eco4u.wordpress.com/2011/04/06/


bullying-casos-famosos-entenda-o-que-e-e-combata-esta-pratica/>.
Diferenças na Escola | 47

É comum nos depararmos com relatos de casos e notícias de casos de


bullying nas conversas do cotidiano ou na mídia hoje. Alguns exemplos são
mais ou menos intensos quanto ao grau de violência – que pode ser simbólica
ou física. É comum, em uma busca rápida na internet, nos depararmos com
informações sobre bullying. Muitas vezes estes são praticados com base na
discriminação de alguns atributos físicos da vítima, os quais são acionados de
modo a fazê-la indesejável na escola e na sociedade.10 Acusações acerca da
beleza ou feiura, da gordura ou magreza, entre outras coisas, impactam signi-
ficativamente a experiência de diversas crianças e adolescentes nas escolas.
Outros atributos que aparecem no rol de rejeições são gênero, sexualidade,
classe, raça/etnia e religião. A omissão por parte da escola e comunidade es-
colar aparece frequentemente nos relatos e pode contribuir como um fator
que permite a existência e reprodução dos abusos em seu cotidiano.11
Assim, não é raro nos depararmos com relatos trágicos sobre as con-
sequências do bullying e da omissão quanto a ele. Em um caso recente,
ocorrido no Brasil, uma adolescente de dezesseis anos matou com facadas
uma colega de quinze anos na saída da escola. De acordo com relatos de
colegas, ambas se desentenderam por causa do perfume usado pela vítima.
O desentendimento deveria ser “resolvido” na saída da aula.12
Em outro caso famoso, que ocorreu no Canadá, uma jovem de quinze
anos suicidou-se em razão de um cyberbullying que se tornou, também,
inspiração para a prática de bullying contra ela por parte de colegas de es-
cola. Quando tinha doze anos, Amanda foi convencida a mostrar partes de
seu corpo em uma conversa na internet. Depois disso, passou a ser chan-
tageada e exposta em páginas da internet e redes sociais, as quais foram
acessadas por inúmeras pessoas, incluindo-se colegas de escola. As reações
na escola foram do isolamento à violência física. Pouco antes de cometer
suicídio, Amanda publicou um vídeo relatando o que se passara com ela

10 Menina sofre bullying e apanha na saída da escola em Piracicaba, SP. EPTV. Disponível
em: <http://g1.globo.com/sp/piracicaba-regiao/noticia/2013/09/menina-sofre-bullying-
-e-apanha-na-saida-da-escola-em-piracicaba-sp.html>. Acesso em: 03 mar. 2014.
11 JACINTO, Daniela. Caso de bullying faz mãe transferir criança de 11 anos de escola. Jornal
Cruzeiro do Sul. Disponível em: <http://www.cruzeirodosul.inf.br/materia/457156/caso-
-de-bullying-faz-mae-transferir-crianca-11-anos-de-escola>. Acesso em: 03 mar 2014.
12 Estudante de 15 anos é morta com facada dada por colega na saída da escola. Hoje em
Dia. Disponível em: <http://www.hojeemdia.com.br/noticias/brasil/estudante-de-15-
-anos-e-morta-com-facada-dada-por-colega-na-saida-da-escola-1.168909>. Acesso
em: 03 mar. 2014.
48 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

no Youtube,13 no qual afirmava: “Eu não tenho ninguém... Eu preciso de


alguém”.14

Figura 5 Amanda Todd, em cena do vídeo que publicou pouco antes de cometer
suicídio.

No caso do bullying executado pelo(a) docente contra o(a) discente, as


formas mais comuns são ações como a intimidação em voz alta que rebai-
xe sua autoestima e/ou o(a) intimide. Outras formas de se praticar bullying
contra estudantes é usar critérios mais severos de avaliação, com aqueles(as)
que são seus desafetos, do que os utilizados com o resto da classe, chegan-
do a atribuir propositalmente notas baixas a eles (prática conhecida como
“perseguição”) ou os ameaçando de reprovação. Outra forma de assédio
escolar executado por docentes é a negação do direito de ir ao banheiro
ou beber água (tortura psicológica). Ainda faz parte deste tipo de atitude a
difamação do(a) aluno(a) em reuniões pedagógicas ou junto à coordenação/
direção da escola; acusações (falsas) sobre coisas que este(a) não fez; puxões
de orelha, tapas e outras torturas físicas (que afetam com mais frequência
crianças pequenas).

13 O vídeo publicado por Amanda Todd, com legendas em português, pode ser acessado
no endereço: <https://www.youtube.com/watch?v=gikbgGOE5II&feature=youtu.be>.
14 MARQUES, Melissa. Entenda o caso de Amanda Todd, a adolescente que cometeu sui-
cídio por sofrer bullying. Revista TodaTeen. Disponível em: <http://todateen.uol.com.br/
souassimtt/entenda-o-caso-de-amanda-todd-a-adolescente-que-cometeu-suicidio-
-por-sofrer-bullying/>. Acesso em: 15 mar 2014.
Diferenças na Escola | 49

Há um caso ocorrido em 2012 nos EUA, em que um professor foi filmado


incentivando a classe a agir contra um menino de treze anos, que durante
quinze minutos foi arrastado e humilhado. O professor recebeu uma suspen-
são de dez dias e foi transferido para outro colégio. Ele se desculpou pelo
acontecimento, apesar de ter declarado que “o caso não foi diferente ou
mais nocivo do que qualquer outra brincadeira feita por crianças”.15
Em outro caso, ocorrido no Brasil, um estudante de uma escola pública
estadual, de dezessete anos, manteve-se em silêncio quando sua professora
de geografia iniciou a aula com a oração “Pai-Nosso”. A professora reagiu
dizendo que “jovem que não tem Deus no coração nunca vai ser nada na
vida”, uma vez que é de amplo conhecimento que ele é ateu. Em outra aula,
o aluno argumentou com a professora que ela estaria desrespeitando o prin-
cípio de laicidade do Estado, defendida na Constituição Federal.16 A profes-
sora reagiu afirmando que não há lei que a impeça de rezar, algo que faz há
25 anos, e não deixaria de realiza-lo mesmo que o aluno levasse um juiz à
sala de aula. Na aula seguinte, o aluno chegou quando a oração estava co-
meçando e percebeu que ele tinha sido incluído na oração. Alguns/algumas
estudantes, aparentemente com a concordância da professora, substituíram
a frase “livrai-nos do mal” por “livrar-nos do Ciel” (seu prenome).17
Todos os casos relatados impactaram negativamente as vidas das vítimas
e da comunidade escolar a que pertenciam. A escola, muitas vezes, entra
como o locus privilegiado das agressões e violências, mas tende a ausentar-
-se de qualquer envolvimento ou responsabilidade com relação ao bullying.
Nos casos em que isto acontece na relação entre discentes ou em outras
relações, a regra que parece permear a atitude quanto a piadas, agressões,
xingamentos ou violências físicas é manter-se distante ou em silêncio.
O silêncio e a distância, nesses casos, são preocupantes em vários senti-
dos, pois ajudam as violências do cotidiano a se perpetuarem e autorizam os

15 NISZ, Charles. Nos EUA, aluno sofre bullying de colegas e do professor na sala de aula. Blog
Vi na internet. Disponível em: <http://br.noticias.yahoo.com/blogs/vi-na-internet/nos-eua-
-aluno-sofre-bullying-colegas-e-professor-201450161.html>. Acesso em: 20 jan. 2014.
16 De acordo com Joana Zylbersztajn (2012), a Constituição Federal não declara que o
Brasil é laico, mas suas leis trazem elementos que formam este entendimento. Alguns
desses elementos estão expressos pela garantia da democracia, igualdade, liberdade e
a separação institucional entre Estado e religião. No entanto, a existência desses prin-
cípios na Constituição não garante per se a laicidade na prática.
17 Reação de aluno ateu a bullying acaba com pai-nosso na escola. Revista Fórum.
Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/04/reacao-de-aluno-ateu-
-a-bullying-acaba-com-pai-nosso-na-escola/>. Acesso em: 14 fev. 2014.
50 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

perpetradores do assédio a seguirem com a prática, já que ninguém interfere.


É como se fosse aplicada à escola a lógica que permeia os casos de violência
contra a mulher, em que se diz com frequência “em briga de marido e mulher
não se mete a colher”. Esta lógica, como sabemos, serve apenas para legitimar
o(a) agressor(a) e deslegitimar a vítima, e tende a submetê-la a mais violências,
uma vez que a ela não é dado o direito de ser ouvida e nem protegida.
Violências e agressões, preconceitos e discriminações, conforme discu-
timos, são fruto da desigualdade social, do desrespeito às diferenças e da
deslegitimação do outro enquanto sujeito de direitos humanos e sociais. Ao
cabo, com a violência, se deslegitima seu modo de vida, seu jeito de ser e
sua existência.
Os resultados desse tipo de discriminação são danosos: baixa autoes-
tima, exclusão, medo, depressão clínica, isolamento social, adoecimentos,
suicídios ou, mesmo, mais violência. Os resultados do silêncio sobre as vio-
lências, as discriminações e o bullying são suas perpetuações.
Para evitar o assédio escolar é preciso que se faça um trabalho preventivo
e continuado, assim como demanda abertura para o diálogo e uma escuta
aberta para problemas e questões trazidas pelos(as) alunos(as). O mesmo
vale para filhos(as) ou quaisquer outras pessoas que possam estar submeti-
das a agressões verbais e não verbais. Não se trata de investir em medidas
punitivas ou criminalizadoras, mas de reconhecer que a lógica por detrás do
bullying é a mesma que se estabelece a partir de todas as outras violências
da vida social. A desigualdade, o desrespeito e/ou exclusão das diferenças
está intimamente conectada no bullying, como na vida social, com a produ-
ção da violência.
Ainda, é preciso que todas as pessoas que fazem parte da comunidade
escolar estejam envolvidas no processo de discussão das estratégias de com-
bate aos preconceitos e discriminações. Não é incomum, na vida social, que
uma criança ou adolescente seja incentivada(o) a ser violenta(o). Em certos
contextos, a violência é até motivo de orgulho, pois denota que, por exem-
plo, um menino se adequa ao perfil de masculinidade e, consequentemente,
se afasta do fantasma da homossexualidade. Também não é incomum que
crianças e adolescentes sejam incentivadas(os) a revidar agressões ou se si-
lenciar, de modo a evitar sua perpetuação. Assim, alunos(as), professores(as),
familiares e funcionários(as) da escola devem ser chamados para participar
deste diálogo. O bullying atinge todas as pessoas que fazem parte do con-
texto em que acontece. Por isso, todos(as) devem estar envolvidos(as) nos
Diferenças na Escola | 51

debates sobre sua prevenção e empenhados(as) em evitar a reprodução


desta prática.
O silêncio acerca da importância da valorização das diferenças e o silen-
ciamento acerca dos problemas trazidos até nós pelos(as) outros(as) mem-
bros da comunidade escolar constituem-se, por fim, em mais uma violência
contra quem já está vitimizado, e a falta de espaço de diálogo e debates, de
fala e de escuta impulsiona a reprodução das desigualdades e exclusões,
que fundamentam as práticas de bullying.

UNIDADE 4
Como lidar com as diferenças no cotidiano escolar?

Figura 6 Os conteúdos escolares são, há muito, criticados pela falta de relação com a
realidade social e dos(as) alunos(as). Apesar das críticas, eles ainda são reproduzidos
sem se dar atenção à questão das diferenças, e as aulas continuam a ser ministradas
sem trazer o cotidiano dos sujeitos da escola para a sala de aula. Como uma escola
que não valoriza a experiência de seus sujeitos, não as relaciona com os conteúdos
escolares, pode ensinar e ser democrática?

“Se fosse possível embarcar em uma máquina do tempo, viajar mil anos
até o futuro e pousar em uma sala de aula, teríamos dificuldades em reco-
nhecer que não estaríamos no presente”. Quando fazia minha graduação em
Pedagogia, não era incomum ouvir, de um(a) ou outro(a) professor(a), esta
anedota que falava acerca da dificuldade histórica da escola de se reinventar
frente aos novos desafios presentes na dinâmica da sociedade atual. Não
me lembro mais das exatas palavras usadas para a conta, mas me lembro do
que queria dizer, até porque, de forma ilustrativa, ela era sempre comple-
mentada com um comentário: “A escola é a instituição que é menos afeita a
52 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

mudanças em seu modo de funcionamento e visões de mundo. A educação


escolar é conservadora e retrógrada”.
Hoje, passados quase vinte anos da conclusão de minha graduação,
tornei-me professora e me vejo refletindo acerca dessas mesmas questões.
E os sentidos da anedota parecem atuais, quase fadados à permanência,
nas escolas e nos processos de escolarização. Por esta razão, o debate pro-
posto neste texto (e nos que virão a seguir) torna-se importante e também
fundamental, problematizando este sistema de verdades preestabelecidas
e seguidas, quase que às cegas, nas rotinas de escolas de muitos lugares do
país e do mundo.
Ao final deste texto, espero que tenhamos chegado à compreensão de
que diferença e desigualdade não são sinônimos. Somos apresentados na
escola à noção de que as diferenças são um problema, um empecilho ao
ensino, e que, por este motivo, devem ficar de fora da sala de aula, do re-
creio, da vida social como um todo (a escola, afinal, faz parte da sociedade).
Tendemos a pensar de modo binário em nossa sociedade. Isso quer dizer
que dividimos o mundo em bom e mau, masculino e feminino, homem e
mulher, certo e errado. Todos(as) aprendemos isto, mas podemos também
aprender a questionar estas verdades.
Podemos, inclusive, usar o pensamento binário para questionar falsas
dicotomias. Dentro da lógica binária, o conceito de Diferença se opõe ao
de Identidade. Já o conceito de Desigualdade se contrapõe ao de Igual-
dade. Assim, mesmo dentro da lógica binária (que tende a ser excludente),
diferença e desigualdades não constituem um par; assim, o problema não é
que as diferenças existam e sejam reconhecidas, o problema não é sermos
diferentes, não é a diferença: é sermos tratados com desigualdade, termos
acessos desiguais a bens sociais como a cidadania.
É este quadro, composto no espaço da escola pelas tintas da desigualda-
de de acesso, da não garantia de permanência e da não aprendizagem, que
precisa ser modificado. Para tanto, nossa prática dentro das escolas deve se
pautar pela desconstrução de pré-conceitos e estereótipos. Também se faz
necessário formar professores que entendam melhor as diferenças e lidem
melhor com ela no cotidiano da escola, e é fundamental discutir por que a
escola hoje não é um lugar para as diferenças e de que modo isso fomenta
as desigualdades e exclusões. Ainda, é preciso fomentar o diálogo sobre
aquilo que não é oficialmente conteúdo da escola, mas que está nela, como
Diferenças na Escola | 53

o gênero, a sexualidade, a raça/etnia, as diversas religiosidades etc., de


modo a compreender as diferenças e incluí-las ao nosso fazer pedagógico.
Precisamos continuamente nos fazer algumas questões, como: Realmen-
te, não devemos educar para além de “repassar conteúdos”? Não é mesmo
nosso papel, enquanto educadores(as), resolver conflitos e disputas entre
alunos(as)? Se somos mediadores(as) de conhecimentos e os conflitos por
vezes são decorrentes de conhecimentos diferentes trazidos à escola, por
que não seria nosso papel, enquanto docentes, mediá-los? Hoje em dia,
quase todas as famílias, pais e mães, trabalham fora e as famílias depen-
dem da renda dos dois cônjuges. Em outros modelos de família, há apenas
um(a) adulto(a) responsável pelas crianças, que pode ou não trabalhar fora
em período integral. Se não há alguém “em casa” (homem ou mulher) que
as “eduque”, as crianças não devem ser educadas por mais ninguém porque
educá-las “não é papel da escola”? Ao cabo, estas questões nos remetem
a outras, sobre as quais convido vocês a refletir ao longo de todo este livro:
Qual o papel da escola? Qual o papel do(a) docente? Não seria hora de a es-
cola parar de resistir às mudanças dos tempos e adequar-se aos seus novos
papéis em nossa sociedade?
Precisamos repensar conteúdos, práticas, ações, se quisermos produ-
zir uma escola realmente justa, e trocar o silêncio e a ausência confortável
dos diálogos pelo desconforto de falar sobre as coisas do cotidiano escolar.
É preciso transformar cada comentário jocoso, cada julgamento de valor,
cada intervenção agressiva ou preconceituosa em uma oportunidade de
desconstruir velhos preconceitos, estereótipos e exclusões e construir uma
nova forma de lidar com o conhecimento, com as histórias de vida de todas
as pessoas que transitam pela escola, com seu entorno e a vida social.
Matérias jornalísticas, livros de literatura, filmes, seriados e desenhos po-
dem ser boas fontes de inspiração para um início de conversa, até como for-
ma de “quebrar o gelo”. Em algumas situações, será preciso lançar mão de
materiais que não falem diretamente de fatos que aconteceram na escola,
ou com pessoas que circulam por ela, como estratégia de abordar assuntos
delicados sem causar constrangimento. Assim, é importante também que
se tomem os cuidados necessários para não expor as partes envolvidas nos
casos de discriminação ou bullying publicamente. A ideia é desconstruir vio-
lências e preconceitos de forma ética, não criar ou reforçar estigmas dentro
das redes de relação social existentes na escola.
54 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Contudo, não expor as partes envolvidas não implica em manter o silên-


cio. Para mudar a realidade, precisamos deixar de lado a omissão e enfrentar
o diálogo. É só a partir do (re)conhecimento das diferenças como ponto fun-
damental de mediação e diálogo que podemos, efetivamente, construir uma
prática pedagógica que se paute pela autonomia, pelo respeito, e que seja
efetivamente para todos(as).

BOX 4

Sugestão de materiais para o trabalho em sala de aula

• Mauricio de Souza – Turma da Mônica “Viva as diferenças”. Disponível em:


<http://www.cmdca-sl.org.br/wp-content/uploads/2012/10/REVISTA_VIVA_
AS_DIFERENCAS.pdf>.

• Ziraldo – Cartilha sobre o trabalho infantil. Disponível em: <http://portal.mte.


gov.br/data/files/8A7C812D307400CA013075FBD51D3F2A/trabalhoinfantil-
-mte-web.pdf>.

• Ziraldo – Cartilha Os Direitos Humanos. Disponível em: <http://portal.


mj.gov.br/sedh/documentos/CartilhaZiraldo.pdf>.

• HELPLINE.BR – Página gratuita para crianças e adolescentes que oferece


orientação sobre como proceder em casos de cyberbullying. Disponível
em: <http://www.safernet.org.br/site/webline>.

• Cartilha Helpline.br, para crianças e adolescentes. Disponível em: <http://


www.safernet.org.br/divulgue/banners/cartilha2012-web-150.pdf>.

• Documentário “O riso dos outros”, de Pedro Arantes (2012, 52 min) – O


documentário trata da questão do Stand Up Comedy, um tipo específico
de humor, para discutir a linha tênue entre o que é comédia e ofensa,
discutindo a questão da liberdade de expressão e do (des)respeito às
diferenças. Disponível em: <http://youtu.be/rRMsLIY2Qhw>.

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Diferenças na Escola | 55

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usp.br/aun/exibir.php?id=4967>. Acesso em: 12 nov. 2013.

FIGURAS

Figura 1 Esta imagem, publicada no livro “Cuidado, escola!”, ilustra como o processo de ensino
e aprendizagem tenta colocar dentro de um mesmo molde pessoas que são muito diferentes en-
tre si. Fonte: <http://www.uniriotec.br/~pimentel/disciplinas/ie2/infoeduc/escdiferencas.html>.
Acesso em: 14 jul. 2013.
Figura 2 Por esta ilustração do livro “Cuidado, escola!” podemos refletir sobre qual o lugar das
diferenças nas vivências escolares, ou seja, como a escola busca deixá-las de fora de seus deba-
tes e espaços porque não as considera como fator importante dentro dos processos de ensino-
-aprendizagem. Fonte: <http://gepepi.net/2011/10/24/o-mundo-nao-e-esta-sendo/>. Acesso em:
14 jul. 2013.
Figura 3 Tela “Operários”, de Tarsila do Amaral (1933), que contempla a diferença étnico-racial
da sociedade brasileira. As expressões austeras, de olhar fixo, nos lembram das dificuldades
inerentes ao trabalho fabril. Com outro cenário ao fundo, a imagem poderia fazer também se
referir à pluralidade de sujeitos presentes nas escolas brasileiras, pluralidade esta raramente
representada nos materiais didáticos e nas práticas escolares cotidianas. Fonte: <http://2.
bp.blogspot.com/-J4Ar1955lUo/TbYvvOsWauI/AAAAAAAABXI/fxdTkyCB7ig/s1600/opera-
rios.jpg>. Acesso em: 17 mar. 2014.
Figura 4 Ilustração do cartunista Ziraldo para a cartilha do Ministério da Justiça “Os direitos
humanos”. Fonte: <http://portal.mj.gov.br/sedh/documento>. Acesso em: 17 mar. 2014.
Figura 5 Amanda Todd, em cena do vídeo que publicou pouco antes de cometer suicídio. Fonte:
<http://todateen.uol.com.br/tt/wp-content/uploads/2012/10/Video-Amanda-Todd.jpg>. Acesso
em: 15 mar. 2014.
Figura 6 Os conteúdos escolares são, há muito, criticados pela falta de relação com a realidade
social e dos(as) alunos(as). Apesar das críticas, eles ainda são reproduzidos sem se dar atenção
à questão das diferenças, e as aulas continuam a ser ministradas sem trazer o cotidiano dos
sujeitos da escola para a sala de aula. Como uma escola que não valoriza a experiência de seus
sujeitos, não as relaciona com os conteúdos escolares, pode ensinar e ser democrática? Fonte:
<https://arquivopublicors.files.wordpress.com/2013/08/2013-08-14-xaxado-a-cedraz.jpg>. Acesso
em: 14 jul. 2013.

TABELAS

Tabela 1 Número de alunos que relataram ter visto colegas serem maltratados no ano de 2009
e frequência dos maus-tratos observados. Fonte: tabela sobre “Alunos que viram colegas serem
maltratados no ano de 2009” do relatório final da pesquisa Bullying escolar no Brasil” (2010, p. 24).
Tabela 2 Número de alunos que relataram ter sofrido maus-tratos e frequência com que isso
teria ocorrido. Fonte: tabela sobre a “Frequência dos maus-tratos no ano de 2009 (vítimas)” do
relatório final da pesquisa Bullying escolar no Brasil” (2010, p. 27).
2
Religiosidades e Educação Pública
Tiago Duque

Figura 1 A diversidade humana e as múltiplas expressões do sagrado.

“Religiosidades e educação” é uma temática instigante e envolve opi-


niões muito diversas. Aqui nos propomos discuti-la no viés da valorização
da diferença cultural religiosa e na busca do fortalecimento da laicidade do
Estado. Nossa reflexão está dividida da seguinte maneira:

Unidade 1: Estabelecendo o diálogo


Introduzimos o tema partindo do reconhecimento da importância da
religião para a maior parte da população brasileira. Em seguida, apresenta-
mos dois conceitos importantes para que possamos atingir o nosso objetivo:
etnocentrismo e relativismo. Dessa maneira, estabelecemos o diálogo com
você no sentido de problematizar a temática em um viés socioantropológico.
60 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Unidade 2: Viva a nossa diferença cultural religiosa!


Partirmos, nessa segunda parte, de um documento histórico importante
para pensar, desde o século XVI, as tentativas de reconhecimento da dife-
rença cultural religiosa no Brasil. Deixando clara a nossa intencionalidade
em facilitar a promoção da “justiça religiosa”, destacamos as origens da
liberdade religiosa e a laicidade no país. Discutimos o sincretismo religioso e
a realidade de desigualdade em que se deu o fenômeno religioso no Brasil.

Unidade 3: Se somos diversos, por que não aceitar as nossas


diferenças?
A partir de dados estatísticos, demonstramos a diferença religiosa na
contemporaneidade e damos destaque aos discursos contrários ao embate
e à disputa religiosa. Citamos o movimento ecumênico e macroecumênico
no sentido de apresentar direcionamentos para uma perspectiva de abor-
dagem do tema religiosidades na escola. Finalizamos essa parte do capítulo
com o contexto do Ensino Religioso no Brasil atual.

Unidade 4: E agora? Por onde começar?


Apresentamos sugestões de como atuar em sala de aula com a temáti-
ca da religiosidade em uma perspectiva laica, no sentido de desconstruir a
ideia “religião não se discute”. São apresentados possíveis recursos didáti-
cos e algumas orientações práticas (metodológicas) para facilitar o trabalho.
Finalizamos o capítulo com várias dicas de fontes e materiais que podem
ser usados para aprofundar o tema. Nossa torcida é para que a leitura do
capítulo motive a continuidade das buscas por mais informações.

Boa leitura!
Religiosidades e Educação Pública | 61

UNIDADE 1
Estabelecendo o diálogo

No Brasil, metade da população frequenta cultos religiosos de algum


credo e 89% dela considera a religião como algo importante, colocando o
país em 60o lugar em uma lista de 156 nações. Esses dados estão na pesqui-
sa “Novo mapa da religião”,18 organizada pela Fundação Getulio Vargas. A
mesma pesquisa aponta as mulheres como as maiores frequentadoras dos
cultos religiosos no Brasil (57%). No que se refere à classe social, os extremos
são os que aparecem com maior porcentagem em relação a não ter religião,
sendo 7,72% da classe E e 6,91% das classes A e B. Em termos de idade, são
as pessoas com mais de 50 anos (58%) que mais vão aos espaços e atividades
religiosas no país. No entanto, é alto o número de jovens entre 15 e 24 anos
que frequentam essas atividades (41%) e/ou que avaliam a religião como
algo importante (83%).
Em um país com essas características, não podemos concordar com
pensamentos generalizantes do tipo: “A religião deixou de ser importante
para as pessoas” ou “A juventude não se importa com a religião”. É preciso,
cada vez mais, compreender o fenômeno religioso e o quanto ele está impli-
cado em questões que envolvem tantas outras dimensões da nossa cultura
na contemporaneidade.
Evidentemente que essa dimensão religiosa da cultura não se afasta das
instituições, sejam elas de deliberações políticas (municipais, estaduais e
federais), de práticas educacionais (formais e não formais), ou até mesmo
do cuidado com a saúde (dos costumes populares aos grandes hospitais
especializados).
No que se refere ao espaço escolar, que é o nosso foco neste livro, a reli-
gião está além das aulas de Ensino Religioso. Por exemplo, o espaço escolar
não é neutro em termos religiosos. As práticas envolvendo religiosidade
estão naturalizadas de diferentes formas em muitas escolas, e isso, como
sabemos, faz parte da “nossa cultura”.
Contudo, as expressões de fé são inumeráveis em um contexto tão
diversificado religiosamente como o nosso e, certamente, jamais caberão

18 Essa pesquisa foi divulgada em 2011, utilizando-se de dados do Censo Demográfico


de 2000, realizado pelo IBGE, Pesquisa de Orçamento Familiares de 2003 – também de
responsabilidade do IBGE e do Gallup World Poll.
62 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

todas representadas no espaço escolar. Então, a quais experiências culturais


estamos nos referindo quando identificamos e reconhecemos a presença de
elementos e práticas religiosas nas escolas públicas brasileiras? E quais são
as expressões culturais religiosas que ficam invisibilizadas ou marginalizadas
quando apenas algumas são valorizadas e defendidas?
Normalmente o que se identifica com facilidade nas escolas são as ori-
gens culturais religiosas que estão diretamente ligadas à história de colo-
nização cristão-europeia que demarcou a formação da nossa experiência
enquanto nação. Pela própria forma de evangelização que se constituiu ao
longo dos séculos em terras brasileiras, as expressões de fé na escola estão
comumente ligadas às práticas valorizadas ao longo do tempo como as mais
adequadas, legítimas, apropriadas ou mesmo difundidas enquanto univer-
sais, como é o caso da oração do Pai-Nosso, frequentemente associada a
“uma oração que todo o mundo reza”, “neutra” ou “que está em todas as
religiões”.
Além das práticas propriamente ditas, há também toda uma simbologia
religiosa que comumente se encontra nas escolas. Façamos um exercício
imaginativo para que possamos ver o que alguns símbolos representam
quando estão presentes no espaço escolar. Vamos nos colocar no lugar de
uma pessoa que irá visitar uma escola, mas que, de modo algum, está fami-
liarizada com o ambiente escolar.
Ao chegar, pode avistar a coleção de troféus, que durante décadas foi
sendo formada pela conquista de várias gerações de alunos e professores
empenhados e vitoriosos na prática e competição esportiva. Essa pessoa
pode pensar: “Nossa, aqui tem muitos campeões” ou “Que legal, o pessoal
é muito dedicado à prática esportiva”.
Ela também pode se deparar com uma série de quadros com fotogra-
fias antigas, dos primeiros diretores, deixando exposto um período histo-
ricamente importante para aquela instituição, e pensaria: “O pessoal aqui
valoriza bastante a sua história” ou “As pessoas respeitam aqueles que co-
meçaram a administrar esta escola”.
Podemos imaginar ainda, no lugar dessa pessoa, que vamos encontrar
assim que chegarmos à escola um enorme quadro com a patrona, aquela
autoridade que deu nome ao local, demarcando quanto a identidade da es-
cola tem a ver com as ações e história de vida daquela personagem histórica.
Essa pessoa poderia então chegar à seguinte conclusão: “Eles se identificam
Religiosidades e Educação Pública | 63

com ela, ensinam sobre quem ela foi” ou “Ela deve ser uma mulher exemplar
para os alunos”.
Há também a possibilidade de se avistar uma série de cartazes ou ma-
quetes feitas pelos alunos de determinado período, cuidadosamente expos-
tos para que qualquer visitante possa ver o que se produziu naquela semana
ou naquele mês. Esse visitante imaginário pensaria: “As professoras traba-
lham bastante com os alunos” ou “Os alunos daqui são criativos, dedicados
e caprichosos”.
Se tudo isso informa e dá significado ao espaço, mostrando caracterís-
ticas importantes daquele lugar, bem como de parte das pessoas que ali
estão trabalhando ou estudando, ocorre o mesmo com os elementos re-
ligiosos, como imagens sacras, crucifixos, frases bíblicas ou com a própria
Bíblia. Agora, e se essa pessoa que estamos nos imaginando no lugar dela
não se identificar com nenhum dos símbolos religiosos que estão na escola?
Se esses símbolos não lhe significasse o mesmo que significa para os fun-
cionários que os colocaram ali ou os mantiveram carinhosamente expostos?
Qual o sentimento e a quais conclusões você, no lugar dessa pessoa, pode-
ria chegar?
Um exercício importante para todo educador é este da situação imagi-
nária acima, o de se colocar no lugar do outro. Mas aqui não é um apelo para
que se procure sentir a dor do outro, se compadecer dele, tentar passar pelo
que ele passa. Não se trata de um exercício espiritual, defendido em várias
religiões como uma prática que nos levaria a sentir mais compaixão. Não,
não se trata disso. O colocar-se no lugar do outro aqui é algo que nos leva a
importantes estranhamentos em termos culturais, mas ao revés, partindo do
que supostamente o outro viveria sendo diferente de você. É o se perceber
outro, deslocado, meio sem jeito, diferente de uma suposta maioria.
Nas ciências sociais, há uma crítica importante para nos alertar do quanto
é fundamental para compreendermos e reconhecermos a diferença cultural,
mudarmos de posição: a crítica ao etnocentrismo.19 Essa palavra significa o
que não se deve ser, isto é, julgar sempre a partir da sua experiência, do seu
próprio conjunto de valores e supostas verdades, aquele que não é do seu
grupo ou como você.
Everardo P. Guimarães Rocha afirma que o etnocentrismo pode ser visto
tanto no plano intelectual como no afetivo. No primeiro, pode ser entendido

19 Anna Paula Vencato apresenta essa crítica no primeiro capítulo deste livro.
64 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

como a dificuldade de pensarmos a diferença; já no segundo, é o sentimento


de medo, hostilidade etc. Muitas vezes, essa postura leva à violência, e, pa-
ralelamente a isso, há o “pressuposto de que o ‘outro’ deva ser alguma coisa
que não disfrute da palavra para dizer algo de si mesmo”.20
Durante muitos anos, de forma diferente das de hoje, alguns grupos
religiosos não tiveram o direito à palavra para se referirem a si mesmos. No
período da escravidão no Brasil, por exemplo, os negros não estavam autori-
zados a professarem suas práticas e ritos sagrados de raízes africanas.
Hoje, apesar de todas as transformações sociais e culturais, sabemos que
muitas pessoas também têm dificuldades em se assumirem publicamente
de uma religião que tem o histórico de não ser reconhecida com respeito,
ou mesmo de se assumirem enquanto ateias por temerem rechaços e discri-
minações. Logo, ainda existe, do ponto de vista de quem tem uma prática
religiosa tida como menos valiosa ou por quem não tem religião, uma não
autonomia – se não do ponto de vista legal, agora por constrangimento –
para se referir a si mesmo em espaços públicos.
Não ser etnocêntricos nos ajuda muito a lidar com o tema da religião
nos espaços escolares. As posturas não etnocêntricas devem ser ensinadas,
aprendidas e exercitadas na escola, porque, como sabemos, ela é um lugar
de convívio com as diferenças, inclusive religiosas.
A prática não etnocêntrica nos aproxima de outra contrária a ela e bas-
tante importante, que nem sempre é bem compreendida: o relativismo.

Quando vemos que as verdades são menos uma questão de essência


das coisas e mais uma questão de posição: estamos relativizando.
Quando o significado de um ato é visto não na sua dimensão absoluta,
mas no contexto em que acontece: estamos relativizando. Quando
compreendemos o “outro” nos seus próprios valores e não nos nossos:
estamos relativizando. [...] Relativizar é não transformar a diferença em
hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e mal, mas vê-la na sua
dimensão de riqueza por ser diferente.21

Alguns criticam o relativismo pensado que “com ele nada é proibido”,


“ninguém pode criticar ninguém”, “temos que aceitar tudo para não sermos
etnocêntricos”. Isso não é verdade. O relativismo não é a ausência de críti-
cas, ou a negação dos valores do grupo de quem está relativizando, nem

20 Rocha (2006, p. 10).


21 Rocha (2006, p. 20).
Religiosidades e Educação Pública | 65

mesmo é um deixar de pensar como se pensa para pensar do jeito que o


outro pensa. Mas, sem dúvida, se soubermos nos colocar no lugar do outro
para procurar compreendê-lo sob suas próprias lógicas, além de compre-
ender as diferenças humanas, saberemos ponderar as críticas aos costumes
do “outro”, assim como seremos capazes de olhar de forma mais crítica aos
nossos próprios hábitos. Passaremos a nos compreender melhor pelo enten-
dimento da diferença, estaremos mais próximos do desafio de conviver com
o diferente compreendendo-o criticamente, de forma contextualizada e sem
nos tomarmos como detentores da única verdade.
Assim, etnocentrismo e relativismo são conceitos importantes para um
tema como “Religiosidades e Educação Pública”. Mas, é claro, aqui são usa-
dos na perspectiva de crítica à prática etnocêntrica em buscar de um relati-
vismo que nos faça pensar a realidade cultural religiosa e o espaço escolar
de maneira a valorizar e reconhecer as diferenças. Isso não deve ser visto
como uma ameaça ao grupo do “eu”, isto é, de quem está se propondo a
não ser etnocêntrico, a relativizar. Nem mesmo pode ser tomado como um
perigo aos valores já estabelecidos, desde que esses valores não estejam
acomodados a ideias excludentes ou ameaçadoras à valorização da dife-
rença cultura religiosa. Relativizar não significa abandonar aqueles valores
religiosos que em muito têm contribuído para a vivência dos direitos hu-
manos e também para a convivência com o diferente. Em última instância,
não podemos entender relativismo como algo necessariamente oposto ao
fenômeno religioso, mas como uma oportunidade de melhor compreensão
e valorização do direito de todos terem (ou negarem ter) uma religião.
Neste capítulo, a crítica ao etnocentrismo e o apelo relativista são enten-
didos como ferramentas para a abordagem da questão religiosa na escola,
são entendidos como uma possibilidade de visibilizar e enfrentar as desi-
gualdades culturais construídas historicamente, que são ameaçadoras à va-
lorização das religiões, especialmente as não hegemônicas. Além disso, con-
tribuem para a compreensão da dimensão cultural a partir da constituição
das diferenças religiosas como uma característica da própria humanidade.
Essa perspectiva se faz necessária porque sabemos que

crispações fundamentalistas, comunitarismos identitários exacerbados,


intolerâncias advindas da autoatribuição de um “povo eleito” a um
segmento humano ou até mesmo a autoafirmação de uma versão “verda-
deira”, concepções de liames intrínsecos entre religião e nação e/ou etnias,
66 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

já conduziram a inúmeras formas de violência e de guerras religiosas.22

Essas violências e guerras religiosas, e o que historicamente herdamos


desses processos que hoje nos fazem menos acolhedores da diferença
cultural religiosa na Escola (e também fora dela), são o oposto da própria
noção da origem etimológica da palavra “religião”, que vem do verbo latino
religare (re-ligare).

Para uns, a religação é um retorno ampliado a uma comunhão cósmica e


telúrica. Para outros, o surgimento da vida, o encantamento com o céu
estrelado e com a consciência interior de cada qual inspiraram postular
a passagem do universo terreno ao universo da transcendência ou, em
outros termos, no encontro do outro com o Outro. Esta passagem –
para uns, uma questão de argumento lógico, para outros um salto na
fé – significou o aparecimento de múltiplas modalidades de expressar
a religação do homem com o Transcendente. Ao mesmo tempo, tal
religação foi a oportunidade para que muitos também expressassem
um humanismo radical no âmbito exclusivo da terrenalidade e da
temporalidade.23

Assim, pretendemos aqui refletir criticamente não no sentido de negar


a importância da religião, mas, antes, de problematizar o quanto podemos,
a partir dela, garantir espaços mais democráticos e valorativos da diferença
cultural religiosa no contexto escolar.
Para isso, precisamos compreender a realidade cultural religiosa como
passível de ser intencionalmente transformada, afinal, caberia, em muitos
contextos, intervenções para mudar o rumo excludente ou marginalizador
das histórias das religiões não hegemônicas. Essa transformação intencional
nos parece importante ser abordada porque, de qualquer modo, mudanças
continuarão ocorrendo, como tem sido desde sempre, inclusive para além
da própria questão religiosa. Dito de outro modo, não podemos, de forma
alguma, evitar mudanças e transformações, porque, afinal, é próprio das ex-
periências culturais a não fixidez e a dinamicidade dos acontecimentos, dos
significados e das definições sobre todas as dimensões da experiência huma-
na. Sendo assim, que as mudanças possam ser minimamente direcionadas

22 Cury (2004, p. 188).


23 Cury (2004, p. 188).
Religiosidades e Educação Pública | 67

a uma realidade menos excludente e opressora em termos religiosos, espe-


cialmente no espaço escolar.
Ficamos totalmente à vontade para nos posicionar nessa direção por-
que, como veremos, está dado que é esse o respaldo legal que um Estado
laico, como o nosso, nos coloca. Aí também se encontra a motivação para
a valorização do nosso tema, afinal, é preciso reconhecer que o Estado é
laico, mas as pessoas são religiosas. E, sendo a religião uma dimensão da
vida das pessoas, algo que não se tira e guarda em casa e sai para ir à escola
(seja por parte de quem ensina ou por parte de quem aprende), portanto,
um elemento cultural, é possível de ser refletido e estudado no sentido de
pensarmos intervenções críticas e ao mesmo tempo valorativas das suas di-
ferentes expressões.

UNIDADE 2
Viva a nossa diferença cultural religiosa!

Muitos podem pensar que a questão religiosa no Brasil se deu sempre e


inegavelmente de maneira etnocêntrica e nada relativista. Mas, em termos
de religião, sempre precisamos ficar atentos aos sinais de rupturas e contes-
tação, ou, em contexto de pouca radicalidade, às posturas menos alinhadas
às práticas e valores tidos como mais hegemônicos ou centrais.
A reflexão sobre os registros históricos sempre nos ajudam a olhar para
a religião, como para outras dimensões da nossa experiência cultural, de
maneira menos ingênua e ao mesmo tempo mais crítica. Se voltarmos ao
tempo dos encontros dos europeus com os indígenas brasileiros, temos
um importante documento que nos faz entender que, desde o século XVI,
é possível praticar ou, pelo menos, nos aproximar de uma postura menos
etnocêntrica e mais relativista em termos de religião e cultura, neste caso
levando em consideração uma pessoa assumidamente religiosa.
O francês Jean de Léry (1534-1613), pastor calvinista, chegou ao Brasil
bastante jovem. Saiu de Paris em novembro de 1556 e aportou na Baía de
Guanabara, Rio de Janeiro, com 21 anos. Devido a conflitos político-religiosos
com um grupo que aqui estava, foi obrigado a se refugiar junto aos índios
Tupinambá. Da experiência com os índios frutificou um diário, onde anotou
68 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

detalhadamente parte dos comportamentos dos Tupinambá, especialmente


o que se referiria a um tema que até os nossos dias se torna um desafio ao
exercício relativista: o canibalismo – que trataremos mais adiante.
Ele voltou à França menos de um ano depois de ter chegado ao Brasil,
iniciando sua viagem de volta à Europa em janeiro de 1558. Lá, os conflitos
entre católicos e protestantes haviam aumentado ao ponto de viverem em
uma guerra. Parte dos conhecimentos sobre sobrevivência que Léry apren-
deu com os Tupinambá na floresta foram ensinados por ele a outros france-
ses, considerando o contexto de conflito religioso da época, como a sobre-
vivência com alimento em escassez. Mas o que parece historicamente de
maior valor é a maneira como ele apresenta a cultura indígena aos europeus.
Em um período em que os europeus tinham dificuldades em reconhecer
a humanidade (logo, a cultura) dos povos indígenas (como de outros povos
diferentes deles), a forma diferenciada como Léry observou e registrou o
comportamento dos indígenas brasileiros, ainda que em alguns momentos
tenha reproduzido o vocabulário etnocêntrico, facilitou a compreensão na-
quela época do quanto diversa é a experiência cultural humana.
Os relatos sobre o que havia vivido e observado junto aos Tupinambá
foram publicados pela primeira vez, depois de certa insistência dos amigos e
alguns percalços, em 1578. O momento da publicação desse documento foi
importante porque nesse período também circulavam pela Europa relatos
de religiosos católicos bem diferentes desses de Léry, ou seja, levantando
informações nada favoráveis ao reconhecimento da experiência cultural indí-
gena brasileira, isto é, bem longe de qualquer interpretação supostamente
relativista.
O jovem pastor relatou, entre outras façanhas, a forma como os indí-
genas capturavam vivo o inimigo mais forte, o levavam para a aldeia deles
e o tratavam muito bem (com comidas, bebidas e também mulheres), mas
tanto o capturado como os que o capturavam sabiam o que estava por vir.
Léry relata o ritual, cheio de detalhes, que se passava dias após a prisão do
inimigo: a forma de matá-lo, de cortar os pedaços, de preparar a carne e
de se alimentar dela são descritos em meio a provocações do tipo: “Não se
esqueçam os leitores do que se pratica entre nós”, ou “O que se passou na
França não foi horrendo, pior do que trato aqui?”.
Léry fez referência à forma como se assassinava nos conflitos na Europa
do seu tempo, contrapondo os valores dos violentos assassinos europeus
com informações sobre o significado cultural da antropofagia indígena. Eles
Religiosidades e Educação Pública | 69

se alimentavam da carne do inimigo capturado e a devoravam porque este


também tinha feito o mesmo com os mais fortes dos seus. Sendo assim,
não era só um gesto de ódio e vingança, mas também de realimentação da
força dos seus antepassados contida naquela carne que agora lhes servia
de alimento. O que Léry percebeu e relatou é que essa prática também de-
monstrava parte das crenças dos indígenas, a ligação que buscavam ter com
os seus antepassados mais guerreiros.
Ele termina o capítulo referente a esses rituais da seguinte maneira:

Não abominemos portanto demasiado a crueldade dos selvagens an-


tropófagos. Existem entre nós criaturas tão abomináveis, se não mais,
e mais detestáveis do que aquelas que só investem contra nações ini-
migas de que têm vingança a tomar. Não é preciso ir à América, nem
mesmo sair de nosso país, para ver coisas tão monstruosas.24

Figura 2 Publicação de 1586 dos registros de Jean de Léry em Genebra.

24 Léry (1961, p. 184).


70 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

A intencionalidade de Léry em publicar seu diário depois dos vários anos


que viveu suas experiências junto aos indígenas, e o estilo de escrita utiliza-
do, estava demarcada pelo contexto político-religioso da sua época. Esse
religioso era, como nós, uma pessoa historicamente situada, ainda que com
posturas que muitos apontam como diferente das do seu tempo exatamente
por ter podido se aproximar do que chamamos hoje de relativismo cultural.
Por isso, não se trata de apostar em um jovem calvinista desprendido de
interesses políticos ou fora das relações de poder e tensão que sua época o
permitia viver.
Isso é importante de ser destacado porque reconhecemos que hoje
também temos os nossos interesses, tanto nós que escrevemos este livro
como vocês leitores, especialmente diante de temas tão envolventes e
mobilizadores de polêmicas como estes vinculados à diferença e ao seu
reconhecimento.
Aqui, portanto, nossa intencionalidade é promover uma reflexão crítica
que em última análise garanta a igualdade entre as religiões, especialmente
no que se refere ao campo da educação.

A busca pela igualdade religiosa parte do princípio de que a liberdade


de crença é um direito fundamental. No entanto, o direito de não ado-
tar religião alguma ou de seguir religiões minoritárias é desigualmente
distribuído. A liberdade de crença deve vir acompanhada de um sério
compromisso político com a igualdade religiosa entre os grupos, em
uma determinada sociedade, a fim de que não haja privilégios injustos
por razões históricas, demográficas ou culturais. Não se trata apenas
de uma questão de quais direitos são justos (e o direito à liberdade de
consciência é um deles), mas também de igualdade de direitos entre os
grupos religiosos.25

A liberdade de crença se constituiu no Brasil à luz dos valores republi-


canos no final do século XIX. Nessa mesma época ocorreu legalmente a
laicidade do Estado, isto é, a separação entre Igreja e Estado, neste caso,
a Igreja Católica – que era a religião oficial da Constituição Imperial. Desde
então, o Estado brasileiro se caracteriza oficialmente pela pluriconfessiona-
lidade e, até os dias atuais, busca-se vencer o desafio de garantir a justiça
entre as religiões para o igual direito à representação cultural.

25 Diniz & Lionço (2010, p. 25).


Religiosidades e Educação Pública | 71

Para conquistar essa representação igualitária, precisamos problemati-


zar a forma como comumente alguns pensam o tratamento igualitário. Er-
roneamente pode-se pensar que tratar igual é não dar mais atenção a um
em detrimento do outro, ou, no caso da escola, muitos acreditam que o
contexto cultural religioso não deve sequer ser abordado em sala de aula.
Mas se estamos vivendo em uma realidade desigual para religiões não reco-
nhecidas ao longo da nossa história como legítimas, e sequer “verdadeiras”,
como podemos não discutir esse assunto se pretendemos construir uma
educação e um país mais igualitário?
Em um contexto de desigualdade cultural religiosa como o nosso, não
nos cabe nos silenciar diante dos processos de marginalização da fé de gru-
pos minoritários ou tidos como “muito diferentes”. Não se trata de buscar
culpados e tecer julgamentos históricos que impeçam o diálogo e a valoriza-
ção também dos grupos majoritários, ou mais bem avaliados em termos de
cultura religiosa, mas é preciso estudar a história e os processos de exclusão
e inclusão dos segmentos religiosos e avaliar criticamente a realidade para
que possamos educar em prol da diferença cultural religiosa. Uma educa-
ção crítica e comprometida com as diferenças pode gerar atitudes menos
discriminatórias, logo mais justas e democráticas. Então, frequentemente,
precisaremos visibilizar determinados grupos subalternos em detrimentos
de outros, porque a forma como as relações religiosas se deram no país
invisibilizou e desclassificou alguns em detrimento de outros.
Antes da criação da laicidade enquanto um dispositivo jurídico no país,
usou-se do “artifício do domínio”, aquilo que aparece concretamente sob
disfarce no encontro de povos diferentes, isto é, o trabalho de tornar o outro
mais igual a mim para colocá-lo melhor a meu serviço. Segundo Antônio
Carlos Rodrigues Brandão,

ao escravo trazido nas caravelas se batizava no porto de chegada. A


consciência ingênua acreditava com isso salvá-lo. Mas o senhor que
atribuía ao negro servo um nome de branco, cristão, em troca do nome
tribal do lugar de origem, sabia que a água do batismo era apenas uma
porta líquida de entrada na redução necessária das diferenças que tor-
nam eficazes os usos da desigualdade. É importante que o escravo fale
a língua do senhor para compreendê-lo e saber obedecer. É preciso
que possua a mesma fé, para que no mesmo templo faça e refaça as
mesmas promessas de obediência e submissão aos poderes ocultos da
ordem social consagrada. Promessas que o senhor paga com a festa e
72 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

o servo com o trabalho.26

Esse histórico nos faz valorizar o quão importante foi a transformação do


país em um Estado laico; afinal, trouxe ganhos significativos para a diferen-
ça cultural religiosa. Ter a legislação como grande alicerce pró-diferenças
é algo precioso para a multiplicidade das práticas religiosas, assim como
para a proteção dos direitos daqueles sem religião. Afinal, a laicidade nos
permite organizar as instituições públicas (da saúde, da educação, cultural
etc.) separadas dos valores religiosos dessa ou daquela crença.
No entanto, os conflitos e as tensões, assim como as desigualdades, não
se resolvem exclusivamente via legislações, e, além disso, as transformações
radicais que mudam as posições dos grupos que têm ou não o poder hege-
mônico não acontecem da noite para o dia. Aí está mais uma vez a neces-
sidade de construirmos espaços de ensino e aprendizagem para que essa
legislação de fato se cumpra.
Visibilizar essa história, pensando em como valorizar as experiências re-
ligiosas tidas como não hegemônicas, e ao mesmo tempo mostrar como as
religiões que estão em situação de maior poder ou legitimidade se consti-
tuíram em contextos nacionais, é uma forma de fazer com quem crianças e
jovens compreendam a importância da necessidade de valorizar a diferença
religiosa nos dias atuais.
A história de escravidão do povo africano em terras brasileiras e o con-
tato com os povos indígenas que sobreviveram à dizimação nos contextos
coloniais demarcaram a nossa experiência cultural, inclusive na dimensão
religiosa. Para entendermos o quanto somos diversos e o quanto é preciso
visibilizar e reconhecer essa diferença, tomemos o caso do cristianismo, es-
pecialmente o católico.
A prática de muitos fiéis católicos traz como legado a influência das
religiões dos indígenas e também dos negros, além de religiosidades que
surgiram da mistura ao longo do tempo entre colonizadores, indígenas e
escravos, e não para de ser influenciada por outras religiões cristãs e pela
própria cultura secular, isto é, pelos valores e interesses não religiosos tão
frequentes na modernidade.
O que se percebe no presente, e desde muito tempo, é que o cristia-
nismo à brasileira é sincrético. Ele não somente disseminou, mas também
incorporou elementos culturais das outras religiões presentes aqui ao longo

26 Rodrigues (1985, s/p).


Religiosidades e Educação Pública | 73

do tempo. Até hoje pode-se pertencer a alguma religião de matriz africana e


ir à missa ou se assumir católico, mas participar de rituais reconhecidos como
não cristãos. Esse processo de trocas marca a nossa experiência religiosa,
e isso porque os elementos culturais não são simplesmente disseminados,
mas ressignificados no contexto em que está sendo divulgado.
Vejamos também o caso da Pajelança Cabocla, muito popular na Ama-
zônia rural, constituída por um conjunto de práticas de cura xamanística que
tem origem em crenças e costumes dos antigos índios Tupinambá, sincreti-
zados pelo contato com o branco e o negro desde pelo menos a segunda
metade do século XVIII. Segundo o pesquisador Raymundo Heraldo Mauiés,
“seus praticantes, entretanto, não se veem como adeptos de uma religião
diferente, considerando-se ‘bons católicos’, inclusive os pajés ou curadores
que presidem as sessões xamanísticas”.27
A pajelança, na região onde é praticada, tem importantes contribuições
para o campo da saúde, nos ensinando o quanto a questão da fé não é
isolada de outras dimensões cotidianas da nossa experiência cultural.

Ao contrário do que ocorre no caso da medicina ocidental, forjada dentro


da tradição individualizante, a pajelança, como outras medicinas popu-
lares da Amazônia e de outras partes do mundo, assume, através dos
métodos de tratamento do pajé, um caráter “holístico”, totalizante, que
também é condizente com a ideologia dos sujeitos populares que a pro-
curam para tratar-se de seus males físicos e tentar resolver seus conflitos
psíquicos, assim como seus problemas nas relações interpessoais.28

Portanto, os elementos culturais não chegam a um lugar vazio de sig-


nificação; logo, são interpretados conforme as tensões, os interesses, as
necessidades e as relações estabelecidas no novo ambiente. Essa lógica
cultural serve para entender as nossas diferenças, em sua riqueza simbólica
e ritualística, mas também nos ajuda a compreender sob quais convenções
de poder e hierarquização as religiões aqui se estabeleceram e aqui mantêm
suas práticas: afinal, o sincretismo se deu a partir de contextos de violência
religiosa, de não reconhecimento das diferenças e da necessidade de manu-
tenção criativa da fé das pessoas.
O espiritismo kardecista é outro exemplo disso, e, mais, nos indica o
quanto determinadas religiões não foram simplesmente modificadas em

27 Maués (1994, p. 75).


28 Id. ibid., p. 80.
74 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

nossos contextos nacionais, mas, no processo de internacionalização dos


elementos culturais, se tornaram referência importante a partir do nosso
jeito de praticá-las.
O espiritismo de Allan Kardec foi introduzido no Brasil por modismo
importado da França, na segunda metade do século XIX, ainda durante o
Império, mas logo se tornou uma alternativa religiosa de vanguarda

cujo charme estava em sua singular conjugação entre ciência experi-


mental e fé revelada, associada a um anticlericalismo que agradava a
um público de opositores ilustrados do Império, notadamente os aboli-
cionistas e republicanos.29

Seus praticantes se reuniram de forma associativa, dando origem à


Federação Espírita Brasileira, que é a responsável hoje pela transnacionali-
zação das práticas espíritas brasileiras em comunidades latino-americanas,
hispânicas, portuguesas e na diáspora brasileira no exterior.
O que podemos compreender do que pesquisou Lewgoy é que o suces-
so dessa prática não é só o teor nacionalista – de oposição à Igreja Católica,
logo, contra o Império e pró-valores republicanos –, considerando a origem
da sua vivência em terras brasileiras, como já citado no parágrafo anterior,
mas, sobretudo, o resultado do sincretismo com a Igreja Católica, especial-
mente no que se refere: 1 – à valorização da caridade; 2 – ao atendimento
assistencialista aos pobres; 3 – à ênfase numa “religiosidade interior” acima
de “rituais vazios”; e 4 – à implantação de alguns cultos familiares.
Assim, se quisermos entender o fenômeno religioso para pensar uma
educação democrática e verdadeiramente laica em contextos nacionais,
precisaremos partir de uma noção de cultura religiosa construída em con-
textos de hierarquias e desigualdades que se fundamente na ideia de não
fixidez, que valorize as mudanças e não avalie os elementos culturais como
simples reproduções.

29 Lewgoy (2008, p. 86-87).


Religiosidades e Educação Pública | 75

BOX 1

O que é e o que não é Estado laico


Durante o X Seminário LGBT do Congresso Nacional, realizado em Brasília
em maio de 2013, Débora Diniz apresentou dez afirmações sobre o que é e
o que não é Estado laico. O objetivo foi abordar tensões teóricas e práticas
sobre a questão da laicidade. A seguir, as afirmações da autora:

O que não é o Estado laico:


• O Estado laico não é um Estado ateu.
• O Estado laico não persegue as religiões.
• O Estado laico não delega o cumprimento de seus deveres para as
comunidades religiosas.
• O Estado laico não é um Estado pluralmente teocrático.
• O Estado laico não financia comunidades religiosas para atos de
proselitismo religioso.

O que é Estado Laico:


• O Estado laico é que nos garante a liberdade de pensamento.
• O Estado laico é que nos protege da perseguição religiosa.
• O Estado laico é que nos protege do discurso do ódio.
• O Estado laico é que nos protege da hegemonia moral da maioria.
• O Estado laico é que demarca a fronteira entre religiões e funcionamento
do Estado.

O texto completo da autora pode ser conferido em: <http://www.sertao.ufg.br/


uploads/16/original_Dez_palavras_sobre_laicidade_Diniz.pdf?1371953970>.
76 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

BOX 2

Constituição Federal de 1988

Art. 5o
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado
o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a prote-
ção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa
nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de
convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obri-
gação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa,
fixada em lei.
Art. 19
É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes
o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de
dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de in-
teresse público;

UNIDADE 3
Se somos diversos, por que não aceitar as nossas diferenças?

Júlia tem 11 anos e surpreendeu a todos quando chegou à escola em


uma segunda-feira de manhã com a cabeça raspada. Contou, sem muitos
detalhes aos amigos que estava doente e que o tratamento a fazia perder os
cabelos. Todos se comoveram. A professora ficou preocupada e procurou os
pais de Júlia para conversar. Descobriu que a garota estava sem os cabelos
devido à sua religião, raspou a cabeça por estar em uma fase importante no
processo de crescimento na fé no Candomblé. Júlia, apesar de muito feliz
com a nova fase religiosa, preferiu não contar a verdade por temer precon-
ceitos dos colegas.
Religiosidades e Educação Pública | 77

Algo diferente ocorreu com Vanessa, também de 11 anos, que devido ao


comprimento de seus cabelos e de suas saias – muito longos comparados
aos das outras meninas da sua nova escola –, não teve como não ser notada
como sendo adepta de uma igreja pentecostal bastante tradicional, que va-
loriza esse estilo de penteado e de roupa. Logo, o professor percebeu que
ela era motivo de piadas e risos de várias crianças da sala.
As experiências de Júlia e Vanessa não são situações isoladas. Elas se
repetem, considerando a variação de detalhes, em diferentes contextos es-
colares no Brasil. Isso significa que, se por um lado, atualmente, o país vem
se caracterizando por uma gama de diferentes religiões, por outro, ainda há
distintos tipos de preconceitos contra adeptos de tradições religiosas tidas
como “minoritárias” ou “muito diferentes”.
Apesar do número de católicos prevalecer no Brasil, sabe-se pelas últi-
mas pesquisas da queda na quantidade desses fiéis (dados do Censo mos-
tram que passaram de 73,6% em 2000 para 64,6% em 2010) e do crescimento
do grupo de evangélicos (em 30 anos, o percentual de evangélicos passou
de 6,6% para 22,2%) e de novas denominações, assim como os que declaram
como não tendo religião alguma (8,0% dos brasileiros se declararam sem
religião no Censo de 2010).

Os dados de cor, sexo, faixa etária e grau de instrução revelam que


os católicos romanos e o grupo dos sem-religião são os que apresen-
taram percentagens mais elevadas de pessoas do sexo masculino. Os
espíritas apresentaram os mais elevados indicadores de educação e de
rendimentos.30

Sabemos também o quanto é grande o número de religiões no país. Os


dados apontam para essa multiplicidade. No Censo de 2000, foi perguntado
de forma aberta “Qual é a sua religião?”. Os recenseadores se surpreende-
ram com 35 mil respostas diferentes.
Alguns dados já citados aqui podem ser conferidos na tabela abaixo,
referente ao Censo de 2010. Também podem ser observadas outras informa-
ções, como números referentes à população religiosa residente no espaço
urbano e no rural. Retomaremos as informações desta tabela no próximo
item deste capítulo, apresentando possibilidades de usá-la em sala de aula.

30 Dados do Censo de 2010.


Tabela 1 População residente, por situação do domicílio e sexo, segundo os grupos de religião – Brasil, 2010.

População residente
Situação do domicílio

Grupos de religião Urbana Rural


Total Homens Mulheres
Sexo Sexo
Total Total
Homens Mulheres Homens Mulheres

Total(1) 190 755 799 93 406 990 97 348 809 160 934 649 77 715 676 83 218 972 29 821 150 15 691 314 14 129 837

Católica Apostólica
123 280 172 61 180 316 62 099 856 100 055 896 48 872 817 51 183 078 23 224 277 12 307 499 10 916 778
Romana
Católica Apostólica
560 781 282 011 278 770 442 244 218 107 224 137 118 537 63 904 54 633
Brasileira
78 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Católica Ortodoxa 131 571 65 727 65 844 113 301 55 942 57 359 18 270 9 785 8 485
Evangélicas 42 275 440 18 782 831 23 492 609 37 824 089 16 663 271 21 160 818 4 451 350 2 119 560 2 331 791
Evangélicas de Missão 7 686 827 3 409 082 4 277 745 6 795 167 2 978 485 3 816 682 891 659 430 597 461 063
Igreja Evangélica
999 498 482 382 517 116 686 349 321 395 364 954 313 149 160 987 152 162
Luterana
Igreja Evangélica
921 209 405 424 515 785 853 864 373 752 480 112 67 345 31 673 35 672
Presbiteriana
Igreja Evangélica
340 938 149 047 191 891 325 652 142 148 183 504 15 286 6 899 8 387
Metodista
Igreja Evangélica Batista 3 723 853 1 605 823 2 118 029 3 466 862 1 488 390 1 978 472 256 991 117 434 139 557
Igreja Evangélica
109 591 48 243 61 348 94 270 40 878 53 392 15 321 7 365 7 957
Congregacional
Igreja Evangélica
1 561 071 704 376 856 695 1 341 018 599 837 741 182 220 053 104 539 115 513
Adventista
População residente
Situação do domicílio

Grupos de religião Urbana Rural


Total Homens Mulheres
Sexo Sexo
Total Total
Homens Mulheres Homens Mulheres
Continuação Tabela 1...

Outras Evangélicas de
30 666 13 786 16 880 27 151 12 085 15 066 3 514 1 701 1 814
Missão
Evangélicas de origem
25 370 484 11 273 195 14 097 289 22 371 352 9 855 098 12 516 253 2 999 132 1 418 097 1 581 035
pentecostal
Igreja Assembleia de
12 314 410 5 586 520 6 727 891 10 366 497 4 662 726 5 703 772 1 947 913 923 794 1 024 119
Deus
Igreja Congregação
2 289 634 1 060 218 1 229 416 2 006 550 924 354 1 082 196 283 083 135 863 147 220
Cristã do Brasil
Igreja O Brasil para
196 665 85 768 110 897 177 634 77 173 100 461 19 031 8 595 10 436
Cristo
Igreja Evangelho
1 808 389 774 696 1 033 693 1 706 628 727 634 978 994 101 761 47 062 54 699
Quadrangular
Igreja Universal do
1 873 243 756 203 1 117 040 1 766 246 708 533 1 057 713 106 998 47 670 59 328
Reino de Deus
Igreja Casa da Benção 125 550 52 274 73 276 118 659 49 177 69 483 6 890 3 097 3 793
Igreja Deus é Amor 845 383 365 250 480 133 723 155 308 092 415 063 122 228 57 159 65 069
Igreja Maranata 356 021 156 185 199 835 339 526 148 657 190 869 16 495 7 529 8 966
Igreja Nova Vida 90 568 37 026 53 542 88 898 36 342 52 556 1 670 684 986
Evangélica renovada
23 461 10 412 13 049 21 605 9 549 12 056 1 856 863 993
não determinada
Comunidade Evangélica 180 130 77 990 102 141 174 584 75 456 99 128 5 546 2 533 3 013
Religiosidades e Educação Pública | 79
População residente
Situação do domicílio

Grupos de religião Urbana Rural


Total Homens Mulheres
Sexo Sexo
Total Total
Homens Mulheres Homens Mulheres
Continuação Tabela 1...

Outras igrejas
Evangélicas de origem 5 267 029 2 310 653 2 956 377 4 881 368 2 127 405 2 753 963 385 661 183 247 202 414
pentecostal
Evangélica não
9 218 129 4 100 554 5 117 575 8 657 570 3 829 688 4 827 883 560 559 270 866 289 693
determinada
Outras religiosidades
1 461 495 666 772 794 723 1 350 719 613 118 737 601 110 776 53 654 57 122
cristãs
80 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Igreja de Jesus Cristo


dos Santos dos Últimos 226 509 107 144 119 366 222 224 104 957 117 266 4 286 2 186 2 099
Dias
Testemunhas de Jeová 1 393 208 579 466 813 742 1 328 406 550 262 778 144 64 801 29 204 35 598
Espiritualista 61 739 24 857 36 882 59 131 23 702 35 429 2 608 1 155 1 453
Espírita 3 848 876 1 581 701 2 267 176 3 776 857 1 546 013 2 230 843 72 020 35 687 36 332
Umbanda 407 331 182 119 225 213 398 506 177 546 220 960 8 825 4 572 4 253
Candomblé 167 363 80 733 86 630 163 115 78 584 84 531 4 248 2 149 2 099
Outras declarações
de religiosidades 14 103 6 636 7 467 13 816 6 484 7 332 287 152 135
afro-brasileiras
Judaísmo 107 329 53 885 53 444 105 342 52 821 52 520 1 987 1 063 924
Hinduísmo 5 675 2 942 2 733 5 598 2 899 2 699 77 43 33
Budismo 243 966 110 403 133 563 235 649 106 116 129 533 8 316 4 287 4 030
Novas religiões orientais 155 951 63 813 92 139 150 597 61 261 89 336 5 355 2 552 2 803
População residente
Situação do domicílio

Grupos de religião Urbana Rural


Total Homens Mulheres
Sexo Sexo
Total Total
Homens Mulheres Homens Mulheres
Continuação Tabela 1...

Igreja messiânica
103 716 41 980 61 736 100 221 40 326 59 895 3 496 1 654 1 842
mundial
Outras novas religiões
52 235 21 833 30 402 50 376 20 935 29 441 1 859 898 961
orientais
Outras religiões
9 675 4 502 5 173 9 491 4 401 5 090 185 101 83
orientais
Islamismo 35 167 21 042 14 124 34 894 20 849 14 044 273 193 80
Tradições esotéricas 74 013 42 095 31 918 70 878 40 219 30 659 3 136 1 876 1 259
Tradições indígenas 63 082 32 095 30 987 19 366 9 832 9 534 43 716 22 263 21 453
Outras religiosidades 11 306 5 135 6 171 9 925 4 426 5 500 1 380 709 671
Sem religião 15 335 510 9 082 507 6 253 004 13 742 551 8 103 211 5 639 340 1 592 960 979 296 613 664
Sem religião 14 595 979 8 592 492 6 003 486 13 043 340 7 640 022 5 403 318 1 552 638 952 470 600 168
Ateu 615 096 411 397 203 699 577 994 386 643 191 351 37 102 24 753 12 348
Agnóstico 124 436 78 618 45 818 121 216 76 545 44 671 3 220 2 072 1 147
Não determinada e
643 598 302 807 340 791 591 792 276 476 315 315 51 807 26 331 25 475
múltiplo pertencimento
Religiosidade não de-
628 219 295 713 332 506 578 347 270 469 307 878 49 872 25 244 24 628
terminada/mal definida
Declaração de múltipla
15 379 7 094 8 284 13 445 6 007 7 438 1 934 1 087 847
religiosidade

(1) Inclusive as pessoas sem declaração de religião e não sabe.


Religiosidades e Educação Pública | 81
82 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Inegavelmente, o país segue diverso em termos de fé e religiosidade.


Isso não é necessariamente uma informação nova, afinal, antes mesmo da
chegada dos europeus cristãos nessas terras, a população indígena já man-
tinha uma multiplicidade étnico-religiosa incrível.
No entanto, segundo o sociólogo Antônio Flávio Pierucci, atualmente

a diversidade religiosa está sendo valorizada não só como consequên-


cia, mas também e ao mesmo tempo como uma causa, mola propulsora
de uma liberdade religiosa cada vez mais sustentada, afirmativamente
reclamada e defendida.31

Figura 3 Imagem divulgada em campanhas e protestos nas redes sociais, vinculada


aos atos de diferentes movimentos sociais pró-laicidade do Estado, em busca da
liberdade religiosa.

A constatação de Pierucci é correta, e a cada dia aparece com mais


clareza. Estamos em tempos de discursos inflamados em prol da liberdade
religiosa. Contudo, é possível analisar que em boa parte desses discursos,
por exemplo, aqueles transmitidos por canais ou programas religiosos na TV,
a liberdade religiosa tem sido entendida de forma equivocada. A liberdade
religiosa é constitucional no sentido de garantir o direto de livre demons-
tração de fé e de adesão, ou não, a instituições ou grupos religiosos. Foi
pensada, como vimos anteriormente, em contextos republicanos de busca
de valorização das diferenças, não de enfrentamento a elas!

31 Pierucci (2011, p. 473-474).


Religiosidades e Educação Pública | 83

Mas não existem discursos que se contrapõem aos discursos religiosos


que são contrários ao convívio com os diferentes? Há caminhos que poderiam
ser abordados na escola que contrapõem os discursos contrários à valoriza-
ção da diferença religiosa? Evidentemente que ao longo da história ocorreram
parcerias das mais variadas no sentido de diferentes grupos e denominações
religiosas se reunirem ou serem solidários uns com os outros, ou trabalharem
em causas comuns. Dentro do grande grupo de cristãos, o movimento ecu-
mênico é um bom exemplo de como se pode conviver na diferença.
No Brasil, por exemplo, a partir de reuniões iniciadas em 1975, no ano de
1982 foi fundado o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC),
envolvendo nos dias atuais as seguintes denominações religiosas: Igreja Ca-
tólica Apostólica Romana, Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, Igreja Evan-
gélica de Confissão Luterana no Brasil, Igreja Sirian Ortodoxa de Antioquia e
a Igreja Presbiteriana Unida.

A contemporânea celebração do ecumenismo, dentro e fora das


religiões, repudia o dogmatismo e a intolerância, além de se bater
pelo respeito recíproco, pela liberdade de consciência, de crença, de
expressão e de culto, tende à busca de uma efetivação histórica do re-
conhecimento da igualdade essencial entre todos os seres humanos.32

Figura 4 Cartaz da primeira Campanha da Fraternidade realizada de forma ecumênica,


pelo CONIC. Esse tipo de atividade ecumênica ocorre a cada cinco anos.

32 Cury (2004, p. 188).


84 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Mas também existem movimentos de diálogo e ações formados por


grupos que não são exclusivamente cristãos, como é o caso do macroecu-
menismo. Um grande nome é o de Mãe Menininha do Gantois, que atuou de
forma exemplar no que se refere ao diálogo inter-religioso. Esse diálogo, na
perspectiva tanto da aproximação ecumênica entre algumas igrejas cristãs
como em uma perspectiva mais macro de relações entre distintas expres-
sões de fé, garante ainda hoje atividades que estão na contramão da disputa
religiosa ou dos discursos contrários à diferença de crenças.
A aproximação e a união entre religiões não pode ser entendida como
um prejuízo das especificidades de cada uma delas. O diálogo em nada
pretende fazer com que as diferenças não sejam reconhecidas ou sejam
negadas. Ao invés disso, o que se busca são os pontos em comum, ou que
não são conflitantes, para que os projetos e ações possam ser traçados e
executados. É uma atuação pela e na diferença, em busca de uma unidade
sempre combinada e constantemente negociada.
No que se refere ao campo da educação pública, há uma luta constan-
te para que o Ensino Religioso nas escolas siga a perspectiva ecumênica e
macroecumênica. Muitos apontam essa perspectiva para a garantia da con-
cretização de uma educação que seja democrática, que respeite a liberdade
religiosa e não faça proselitismo. No entanto, ainda há grandes desafios para
que, de fato, haja um controle e uma diretriz que, também de fato, estabele-
çam verdadeiramente essa perspectiva nas escolas públicas do país.

BOX 3

Ensino Religioso e escola pública no Brasil

“O ensino religioso é problemático, visto que envolve o necessário distancia-


mento do Estado Laico ante o particularismo próprio dos credos religiosos.
Cada vez que este problema compareceu à cena dos projetos educacionais,
sempre veio carregado de uma discussão intensa em torno de sua presença
e factibilidade em um país laico e multicultural”. Quem faz essa afirmação é
o professor Carlos Roberto Jamil Cury, da Universidade Católica de Minas
Gerais.

Na história recente do nosso país, a Constituição de 1988, dando sequência


ao que já havia sido aprovado em todas as outras constituições federais
desde 1934, sob a articulação e pressão dos grupos religiosos, garante o
oferecimento do Ensino Religioso – de oferecimento obrigatório desde as
Religiosidades e Educação Pública | 85

BOX 3

leis orgânicas do Estado Novo de 1946. No entanto, a matrícula dos alunos


é facultativa (inclusive nas redes privadas), no sentido de salvaguardar a
laicidade do Estado.

Buscando também a garantia do ensino laico, não é permitida nenhuma


prática de proselitismo religioso na aplicabilidade dessa disciplina, assim
como está garantido legalmente o respeito à diferença cultural religiosa.
Mas como não há definição do que é proselitismo em nenhum documento
federal nesse campo, conforme apontam Debora Diniz e Tatiana Lionço,
entendemos por proselitismo qualquer expressão de dogmatismo que re-
sulte em discriminação social, cultural ou religiosa. “O proselitismo parte da
certeza de uma verdade única no campo religioso e ignora a diversidade. É,
portanto, uma ameaça à igualdade religiosa”.*

Essa compreensão sobre qual papel não é o do Ensino Religioso é funda-


mental, considerando que é de responsabilidade dos sistemas de ensino
definir conteúdos e formas de habilitação de professores para essa discipli-
na, e, pelo fato de a legislação atual ser omissa quanto ao ônus do ofereci-
mento do Ensino Religioso no ensino fundamental, abre a possibilidade de
se ter recursos públicos voltados para essa oferta.

Em outras palavras, se, por um lado, é proibida qualquer forma de prose-


litismo e é garantido o respeito à diferença cultural religiosa, por outro, o
Ministério da Educação não possui editais próprios para a avaliação e sele-
ção dos materiais didáticos que serão utilizados nas escolas públicas nessa
disciplina, isto é, não há parâmetro curricular específico para a disciplina de
Ensino Religioso.

Segundo as duas autoras citadas anteriormente, “esse vácuo normativo e


de definição de conteúdos dificulta ações de avaliação das práticas edu-
cacionais e de cumprimento da norma constitucional que determina ser o
objetivo da educação fundamental a formação básica comum e o respeito
à diversidade”.**

* Diniz & Lionço (2010, p. 29). ** Id. ibid., p. 18.


86 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

UNIDADE 4
E agora? Por onde começar?

“Religião não se discute”. Essa máxima, amplamente divulgada como


uma orientação para um suposto bem viver, é o primeiro pensamento sobre
o nosso tema a ser desconstruído em sala de aula. Para isso, precisamos
entender seu significado em nossa experiência cultural.
Uma ideia que compõe o “modelo cultural” brasileiro é que nós, dife-
rentes de outros, não vivemos conflitos religiosos e somos “por natureza”
acolhedores das nossas próprias diferenças. Pelo que já refletimos nas pá-
ginas anteriores, está claro que isso não é bem assim. A realidade nos ajuda
a questionar a construção de qualquer “modelo cultural” para um país tão
grande e múltiplo, como a nos perguntar: qual o interesse de deixarmos as
coisas como estão, sem serem discutidas?
Aqui não se trata de propor que se anuncie na lousa uma lista de religiões
a serem discutidas e problematizadas, mas apontamos para a necessidade,
caso queiramos um ensino mais democrático e justo com a nossa diferença
cultural religiosa, de discutirmos religião no contexto sócio-histórico-antro-
pológico da formação do povo brasileiro, inclusive sem deixar de lado os
acontecimentos atuais.
Não existe outro caminho possível para pensarmos nas transformações
que nos levarão a contextos de igualdade e valorização das diferenças que
não passe pela reflexão bem-orientada. Se não discutirmos religião na esco-
la, nesta perspectiva não etnocêntrica e aberta ao relativismo, as coisas se
manterão de forma desigual porque não conseguiremos pensar em ideias e
ações para tornar a escola e a sociedade menos desiguais e excludentes com
quem tem uma fé diferente da maioria ou com quem não tem fé nenhuma.
Entendida essa necessidade de desconstruirmos a ideia de que o tema
da religião é um tema proibido nas rodas de conversa ou na sala de aula,
apontamos a seguir algumas possibilidades para começar a discutir o tema.

Crie a oportunidade caso você não tenha percebido nenhuma chance


Religião pode ser discutida em qualquer disciplina, por qualquer profes-
sor. Não é necessário nem mudar o programa temático das aulas para incluir
essa temática. Muitas vezes, o assunto surge em conversas paralelas à lição
Religiosidades e Educação Pública | 87

sugerida ou em comentários entre estudantes fora da sala de aula, aos quais


o professor acaba tendo acesso. Ou tem relação com o feriado da semana.
Há também casos em que não se fala, mas o professor percebe que há situ-
ações discriminatórias com esse ou aquele estudante sabidamente religioso
e adepto de alguma religião diferente da esperada.
Na web, encontramos um site com muitos quadrinhos sobre a temática
religiosa. Alguns podem ser entendidos como polêmicos, mas outros são,
sem dúvida, bem ingênuos. Refiro-me ao blog <www.umsabadoqualquer.
com>, criado por Carlos Ruas, em que seus quadrinhos são vistos por alguns
como algo equivocado, por estarem brincando com Deus. Mas o sucesso
pedagógico pode ser grande se encararmos a arte dos quadrinhos como
algo usado de forma crítica, irônica e humorística.
A discussão pode ser levada para as aulas de língua portuguesa, mas
também para a aula de Filosofia, Física, Matemática, Educação Física, Ci-
ências Naturais e Química, porque há uma série de imagens de Sócrates,
Darwin, Einstein, Niemeyer e Freud em diálogos com Deus. Há também uma
série de personagens símbolos de religiões não cristãs e não ocidentais, o
que também pode levar às reflexões no campo da História e da Geografia.
Parte desses personagens aparece na imagem escolhida para ilustrar o início
deste capítulo. Escolham bem o quadrinho que melhor contribuirá para o
momento da discussão.

Figura 5 Quadrinho de Carlos Ruas ilustrando o encontro de Einstein, Deus e Adão.

Evidentemente que a nossa aposta é que esse material disponível online


seja usado na perspectiva que discutimos neste livro, no sentido de fazer
com que os alunos, em diferentes disciplinas, possam refletir sobre o tema
da religião para valorizar as diferenças, e isso deve garantir, inclusive, que
os quadrinhos sejam usados no sentido de serem eles próprios também
criticados.
88 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Outros materiais, especialmente notícias de jornais e revistas, também


podem servir como objeto de análise e reflexão. Se for utilizar textos reti-
rados da Internet, normalmente nos sites de notícias existe a possibilidade
de as pessoas opinarem logo abaixo da notícia. Os comentários e opiniões
dos leitores da notícia sempre trazem depoimentos que podem ajudar na
discussão sobre o tema. Vale a pena selecionar aqueles mais produtivos para
a reflexão a que se objetiva com a notícia.
Caso você tenha facilidade em poder levar música para a sala de aula,
por ter acesso a equipamento para tal, não deixe de pensar na hipótese
de apresentar algumas letras para os estudantes. Além de lhes facilitar o
acesso à letra, é fundamental que se ouça a música ou se assista ao clipe na
sala de aula para tornar a atividade mais convidativa. Nossa dica é a música
Invocação, de Chico César (há versões no site Youtube cantada por ele e,
entre outras, por Maria Bethânia).

BOX 4

Invocação (Chico César)

Deus dos sem deuses


deus do céu sem Deus
Deus dos ateus
Rogo a ti cem vezes
Responde quem és?
Serás Deus ou Deusa?
Que sexo terás?
Mostra teu dedo, tua língua, tua face
Deus dos sem deuses

O importante é você, professor, especialmente se não é o responsável


pela disciplina Ensino Religioso, perceber que é possível criar boas oportu-
nidades para discutir o tema.
Veja outro exemplo considerando a tabela que usamos neste capítulo,
referente à população residente, por situação do domicílio e sexo, segundo
os grupos de religião formada a partir dos dados do Censo de 2010. A ideia é
trabalhá-la em aulas de geografia, sociologia, história ou matemática. É pos-
sível elaborar perguntas que motivem os alunos a encontrarem as respostas
na tabela, ensinando-os a ler esses tipos de dados, além de entenderem e
valorizarem a diversidade cultural-religiosa.
Religiosidades e Educação Pública | 89

Algumas dessas perguntas, partindo da realidade do budismo no país,


poderiam ser: “Considerando o contexto brasileiro atual, existem mais re-
ligiosos adeptos do budismo ou do candomblé?”, “E se compararmos o
budismo com outras religiões como hinduísmo e judaísmo, ele tem maior
ou menor número de adeptos do que essas outras duas religiões?”, “Esses
fiéis são do sexo masculino ou feminino?”, “É correto afirmar, observando a
tabela, que o budismo é uma religião predominantemente rural?”.
No final da atividade, chegar à conclusão que o budismo tem maior nú-
mero de adeptos do que o candomblé, o hinduísmo e o judaísmo pode pa-
recer muito interessante para a interpretação da realidade brasileira, ainda
mais considerando que essa é uma religião predominantemente urbana e
composta de pessoas, em sua maioria, do sexo feminino. Se associarmos
esses dados com textos sobre o assunto, chegaremos a conclusões ainda
mais úteis para uma discussão sobre nossa forma histórica de ter o território
ocupado: afinal, o budismo é relativamente “forte” somente nos Estados an-
tigamente preferidos pelos imigrantes asiáticos; fora desses “núcleos”, sua
situação numérica é tão limitada que é possível dizer que, na maior parte do
vasto território brasileiro, o budismo é praticamente inexistente.33
Em sala, com esses dados, pode-se refletir ainda sobre como os pesqui-
sadores chegaram a tal resultado e o que isso significa para a nossa leitura
a respeito da realidade das religiões no país, e, claro, as possíveis ideias do
senso comum que podem ser reforçadas ou desmentidas com esse tipo de
informação. Frank Usarski é uma boa referência para compreendermos esses
dados e os seus significados para o budismo:

Embora a metodologia usada pelo IBGE não seja isenta de problemas


epistemológicos, ela é um avanço do ponto de vista empírico por con-
siderar somente como seguidores do budismo aqueles brasileiros que
se manifestaram explicitamente como budistas de acordo com uma
identidade religiosa correspondente. Por outro lado, foram automati-
camente excluídas das estatísticas aquelas pessoas cuja religiosidade
substancialmente mais ampla apropria-se de maneira seletiva e às vezes
de maneira passageira de alguns elementos doutrinários ou práticas
budistas, sem que isso resulte em um autorreconhecimento do indiví-
duo como seguidor do budismo.34

33 Usarski (2004, p. 310).


34 Id. ibid., p. 308.
90 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Esse exercício envolvendo os dados da referida tabela e o budismo pode


e deve ser tomado como uma dica de atividade, sendo possível envolver
outras denominações ou tomar como foco dados de outras religiões.
Além disso, um jogo interessante a ser desenvolvido é oferecer a possi-
bilidade de a turma se dividir em grupos e eles mesmos criarem perguntas
e as trocarem entre si. O ideal é que o grupo, ao criar a pergunta, tenha a
resposta certa corrigida pelo professor antes de passar a questão adiante,
para que quando os amigos responderem, eles possam corrigir possíveis
erros de interpretação dos colegas quando as respostas dadas pelos outros
grupos retornarem ao grupo de criação/partida da pergunta. O tom de de-
safio pode ser um atrativo para os alunos conhecerem melhor essas informa-
ções e responder às perguntas uns dos outros. Nesse processo, não devem
circular apenas as informações restritas à tabela, mas o professor deve ficar
atento aos comentários e dúvidas que possam surgir em relação às religi-
ões. Durante o exercício, não faltará oportunidade de o professor valorizar a
diferença religiosa brasileira, os valores laicos e a postura macroecumênica
como diretriz de convívio em sala de aula e fora da escola.

Gaste bem o tempo com o assunto


Caso haja tempo para se dedicar ao tema, ou você tenha conseguido re-
adequar as atividades já definidas para incorporá-las à temática da religião,
planeje bem as ações e defina aonde quer chegar.
Essa dica serve para tantas outras temáticas, mas, considerando que a
discussão sobre religiosidades na Escola pode envolver os estudantes em
debates polêmicos (o que em si não é ruim) e acabar levando a reflexão
para objetivos que não são os que você imaginou, principalmente para um
contexto oposto ao que nós desejamos, que é a valorização da diferença
cultural religiosa, é imprescindível planejar.
Inspirados em uma metodologia bastante usada pelas pastorais sociais
da Igreja Católica, o “ver-julgar-agir”, apostamos no emprego do método
“ver-analisar-agir-avaliar”, mas, aqui, claro, em uma perspectiva absoluta-
mente laica.

VER: olhar a realidade a ser estudada, neste caso, a diferença religiosa.


É o momento para ouvir os estudantes (suas opiniões e conhecimento
prévio sobre o tema) e o de motivá-los a irem atrás de mais informações,
especialmente em fontes laicas. Fatos, causas e consequências do tema es-
colhido precisam ficar claros no final dessa primeira parte do método.
Religiosidades e Educação Pública | 91

Sobre o tema, vale a pena propor recortes, considerando a realidade do


contexto escolar onde você se encontra. Os subtemas podem ser: Religião
e poder; Violência e religião; Democracia e religiosidade; Direitos e religio-
sidades; Preconceitos e religiosidades; Religiosidades e educação; Cultura
e religião; Fé e política; Diferenças e religião; Ciência e religião; Corpo e
religiosidades etc.

ANALISAR: é hora de refletir e analisar as informações reunidas.


A base para a análise é o material previamente organizado ou sugerido
por você, professor. O momento da busca dos estudantes, caso encontrem
algum material para complementar a análise, será o momento de valorizar
o que foi encontrado por eles e incorporá-lo nesse conjunto que você pre-
parou. Não se deve tomar aqui nenhum material confessional (de nenhuma
religião), mas textos explicitamente ecumênicos podem ajudar.
Nossa aposta é que, por exemplo, este livro e sua perspectiva de valo-
rização das diferenças seja empregado (pelo menos no momento em que
você professor vai se preparar para a atividade). Além disso, documentos no
campo dos Direitos Humanos e a própria Constituição Federal podem ser
muito utilizados.
O importante é definir quais são as perspectivas para direcionar a refle-
xão e a análise dos estudantes. O “analisar”, aqui na nossa proposta laica,
não é estabelecer uma hierarquia e nem definir o que é necessariamente
certo e errado de cada religião, isto é, não se trata de um “julgar” propria-
mente dito, mas de pensar, decidir, concluir (ainda que temporariamente)
sobre o que foi discutido.

AGIR: realizar alguma ação a partir do que foi estudado.


Considerando que a história de desigualdade e preconceito em rela-
ção aos grupos religiosos, ou até mesmo aos sem-religião, virá à tona nos
momentos anteriores, o importante é propor tomadas de posições aos es-
tudantes quanto à temática, no sentido de garantir uma vivência na escola
que preze pela visibilidade e reconhecimento da diferença cultural religiosa.
Ações do tipo “contratos e combinados” são bem-vindas, isto é, pode-
-se combinar, por exemplo, que sempre se cuidará para que não existam
julgamentos preconceituosos entre os colegas quando o assunto for
religiosidades.
Outra atitude a ser tomada pode ser a escrita coletiva de uma carta a
uma possível editora que não contemplou a diferença cultural religiosa em
92 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

algum livro didático, ou, ainda, promover uma exposição na escola com tra-
balhos de diferentes ordens (poemas, maquetes, desenhos etc.) retratando
a diferença cultural religiosa do Brasil ou da própria comunidade.
Seja qual for a ação, é bom lembrar os estudantes que uma longa his-
tória de discriminação e hierarquização das religiões não se resolve do dia
para a noite; ao mesmo tempo, é fundamental valorizar as ações que serão
resultadas desse processo; afinal, a transformação de algo que não é bom
em alguma coisa melhor depende de atitudes pequenas e grandes, mas
tudo começa com a organização do coletivo para se conquistar algo comum.

AVALIAR: no final de tudo, depois de algum tempo, conforme a ação


realizada, é fundamental rever o que foi feito. Avaliar o processo, especial-
mente o resultado da ação escolhida pelo grupo, valoriza o envolvimento
dos estudantes em todas as etapas do método e ajuda a dar possível conti-
nuidade ao processo.

Ouça pacientemente todas as opiniões


Não acredite que o grupo religioso é homogêneo e que todos os fiéis de
determinada crença pensam da mesma forma, nem mesmo que pensam de
acordo com os seus líderes ou adotam todos os dogmas da religião que pro-
fessam. Para o trabalho com o tema da religião na perspectiva que estamos
propondo, essa percepção é fundamental. Então, ouvir todas as opiniões em
sala é um bom exercício para entender de fato o que os estudantes estão
pensando não somente sobre a religião do outro, mas sobre a sua própria.
Um exemplo é o resultado da pesquisa encomendada pela organização
não governamental e feminista Católicas pelos Direito de Decidir ao Insti-
tuto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE), realizada no Brasil
entre novembro de 2006 e janeiro de 2007. A pesquisa mostrou que a maior
parte da juventude que se declara católica não acha que o fato de não seguir
algumas orientações da Igreja quanto a sua saúde sexual e reprodutiva a faz
um mau fiel.35
Nas atividades em sala de aula, as respostas à pergunta sobre o que
poderia mudar ou manter na sua própria religião pode nos ajudar a com-
preender se os estudantes têm ou não uma visão crítica da própria fé. Isso
contribui para você conhecer melhor a forma como sua turma pensa e até

35 IBOPE (2007).
Religiosidades e Educação Pública | 93

vive as experiências religiosas e, com isso, traçar estratégias para abordar e


discutir o tema.
Outra dica importante é saber ouvir, em um primeiro momento, sem ex-
pressar reprovação ou estranhamento, valorizando todas as opiniões, para
que todos, dos mais tímidos aos mais polêmicos, possam sentir confiança
em contar sobre o que pensam. Esse cuidado envolve silenciamentos de
sua parte até o momento em que poderá conduzir uma reflexão mais crítica
e ser ouvido e compreendido, mas, também, envolve certa atenção com
as expressões faciais, que muitas vezes denunciam o que o professor está
pensando.
O embasamento histórico e socioantropológico sempre ajuda a, depois
de se ter acesso às opiniões, dialogar com os estudantes, mostrando a eles
que é possível, via os dados científicos, reforçar/fundamentar o que estão
pensando ou criticar/reformular suas opiniões. O ambiente tem de ser de
respeito e diálogo entre professor e estudantes para que eles não se sin-
tam mal com as novas informações sobre aquilo que ele “sempre achou” ou
“sempre aprendeu”.
O exercício da escuta é fundamental também para ser destacado entre
os próprios estudantes. O tema será mais bem desenvolvido se a turma con-
seguir criar um ambiente de escuta atenta às opiniões diferentes, se estiver
disposta a aprender coisas novas sobre o assunto e, acima de tudo, conse-
guir chegar a conclusões comuns, se não em uma totalidade, pelo menos em
alguns aspectos, que garantam o reconhecimento das diferenças religiosas
presentes na sala e na sociedade onde vivem.

Estude a perspectiva laica para ensiná-la


Não há como o professor estar seguro diante de qualquer tema que possa
gerar polêmicas se ele não conhecer bem o assunto. É fundamental estudar a
questão para se colocar de maneira adequada diante dos posicionamentos a
serem valorizados, desconstruídos ou criticados. Quanto melhor a formação
do professor, menores serão as dificuldades em abordar a temática.
Evidentemente que a formação religiosa, comumente desenvolvida sob
várias experiências de reflexões nas igrejas ou grupos religiosos, pode fazer
a diferença, mas, realmente, o fato de ser um religioso assíduo às atividades
da sua denominação religiosa não o fará ter a abordagem adequada para a
sala de aula.
94 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

As práticas religiosas em muitos contextos também são importantes


para a formação das pessoas e a atuação delas em diferentes áreas, mas o
que propomos aqui é que é preciso aprender a abordar a religião na sala de
aula em uma perspectiva laica, fundamentada em ciências como a história,
filosofia e as ciências sociais. São raros os espaços de formação confessionais
que se propõem a isso: eles têm outros objetivos e atingem outros resulta-
dos. Por isso, informe-se, estude e busque informações para fundamentar
a sua abordagem no sentido de possuir elementos teóricos, pedagógicos
e metodológicos para a discussão dessa temática na escola. O próximo
capítulo tem esse objetivo, de oferecer indicações que podem facilitar o
aprofundamento no tema.
Por fim, o que precisa ficar claro é que não existem receitas prontas para
a discussão que nos propomos fazer. As dicas, sugestões e indicações, se-
jam as referentes a leituras ou às práticas pedagógicas, não são para serem
tomadas como um fim em si mesmas. Elas precisam ser lidas ou executadas a
partir da realidade de cada turma, assim como devem ser pensadas de acor-
do com a necessidade e a habilidade que você tem ou está conquistando
diante do tema.

Atividades sugeridas – mergulhando em águas mais profundas...


O convite para mergulhar em águas mais profundas é aqui um chamado
para o aprofundamento do tema, mas, claro, não se deseja esgotar a discus-
são ou limitá-la até onde pode ir com as indicações que se seguirão: elas
devem ser tomadas como um início de caminho para se avançar na reflexão.
Nossa torcida é para que elas se tornem motivadoras de novas buscas e des-
cobertas no sentido de qualificá-lo cada vez mais para a abordagem dessa
temática na sala de aula.
Começamos por "sites" que lhe permitirão se manter atualizado em re-
lação aos acontecimentos, nacionais e internacionais, que envolvem o tema.
Você também encontrará artigos, entrevistas, agenda de eventos (de todo o
tipo – acadêmicos, religiosos, de formação de lideranças, eventos do movi-
mento social e do terceiro setor), e, além disso, poderá encontrar materiais
para serem adaptados e usados em sala de aula em diferentes disciplinas,
considerando a diversidade temática de cada um dos endereços eletrônicos
a seguir.
Religiosidades e Educação Pública | 95

• Koinonia36 é uma entidade ecumênica de serviço formada por pesso-


as de diferentes tradições religiosas, reunidas em associação civil sem
fins lucrativos. Neste site você encontrará informações referentes a do-
cumentos, eventos, publicações, projetos e outras coisas vinculadas ao
ou produzidas pelo movimento ecumênico no Brasil e no mundo. Vale a
pena conferir!
• Católicas pelo Direito de Decidir (CDD)37 é uma organização não gover-
namental feminista empenhada no diálogo inter-religioso e na busca da
justiça social. Comumente, tem produzido materiais educativos e reali-
zado encontros com o intuito de capacitar lideranças de comunidades
religiosas e movimentos sociais, no que se refere à temática da religião e
dos direitos humanos, especialmente dos direitos sexuais e reprodutivos.
Existem também boas pesquisas que nos ajudam a melhor compreender
a realidade da diferença cultural religiosa a partir de diferentes focos e obje-
tivos. Uma delas é a tese intitulada O movimento ecumênico no Brasil (1954-
1994): a serviço da Igreja e dos movimentos populares, defendida, em 2007,
por Agemir de Carvalho Dias, resultado de doutoramento em História pela
Universidade Federal do Paraná. No texto, o autor trata dos acontecimentos
históricos que constituíram o ecumenismo, mas também cita o legado des-
se movimento para os movimentos populares. Está disponível em: <http://
www.poshistoria.ufpr.br/documentos/2007/Agemirdecarvalhodias.pdf>.
A tese Educação nos terreiros e como a escola se relaciona com crianças
que praticam o candomblé é outra dica. Escrita por Stela Guedes, entre ou-
tras questões, a pesquisa discute discriminações, a relação da escola com
crianças do candomblé e também o Ensino Religioso. Ela é fruto de estudos
que duraram 13 anos, o que permitiu à autora acompanhar o crescimento
das crianças com quem conviveu nos terreiros. A tese foi defendida na Fa-
culdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
em 2005. Disponível em: <http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesa-
bertas/0114346_05_pretextual.pdf>.
Também vale a pena conferir a bibliografia deste capítulo, com dife-
rentes pesquisadores citados. Destaque especial para o livro organizado
por Debora Diniz, Tatiana Lionço e Vanessa Carrião, intitulado Laicidade e
Ensino Religioso no Brasil, lançado em 2010. O conteúdo aborda temáticas

36 Disponível em: <http://www.koinonia.org.br/>


37 Disponível em: <http://www.catolicasonline.org.br/>
96 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

referentes à “Justiça Religiosa” e à diversidade cultural nos livros de Ensino


Religioso.
A revista Religião e Sociedade, em cada uma de suas edições, traz artigos
científicos sobre a temática. Chamamos a atenção para a edição 32, volume
1, que contém um dossiê temático intitulado “Religião e espaço público”, de
2012. Todos os artigos, dessa e de outras edições, estão disponíveis no site
Scielo. A revista é editada pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER).
Para quem gosta de vídeos, sugerimos alguns. O primeiro é uma produ-
ção da Fundação Oswaldo Cruz, cujo título é Estado laico [sala de convida-
dos] (59 min), que aborda o Estado laico conforme o próprio título informa, e
em formato de debate discute se esta legislação é obedecida na prática. A
discussão abarca outros temas, como a interferência das religiões nas políti-
cas públicas. Você o encontra para baixar em: <http://objetoseducacionais2.
mec.gov.br/handle/mec/13980>.
Todos os demais são produções da TV Câmara. Dentro da categoria
“Educação – documentários”, selecionamos o Carta Mãe (50 min), que tra-
ta do papel da Constituição para a organização do País, as principais con-
quistas trazidas por esta legislação, a história das constituições anteriores e
os exemplos de outros países. Já na categoria “Humanidade interprogra-
mas” você encontra dois vídeos bastante curtos intitulados Estado laico e
religiões nas escolas (5 min) e Religião aproxima ou afasta? (5 min). O en-
foque do primeiro é o que discutimos neste capítulo; o segundo aborda
os conflitos religiosos do passado e do presente. Todos estes vídeos são
encontrados no site da TV Câmara: <http://www.camara.leg.br/internet/
tvcamara/?lnk=BAIXE-E-USE&selecao=BAIXEUSE>.
Por último, indicamos uma entrevista com Marcelo Neri, realizada na oca-
sião do lançamento da pesquisa feita pela Fundação Getulio Vargas, citada
no início deste capítulo. O vídeo (de aproximadamente 7 minutos) apresenta
comentários sobre os principais dados levantados em relação às religiões
no Brasil contemporâneo, disponível em: <http://cps.fgv.br/video_ren>. No
mesmo site você encontra a pesquisa na íntegra e sua repercussão na mídia
nacional e internacional, com arquivos de vídeos de programas de TV, rádio e
textos divulgados em jornais e revistas: <http://www.cps.fgv.br/cps/religiao/>.
Religiosidades e Educação Pública | 97

REFERÊNCIAS
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Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 27, p. 183-191. set./out./nov./dez. 2004. Disponível em:
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FIGURAS

Figura 1 A diversidade humana e as múltiplas expressões do sagrado. Fonte: <https://www.


facebook.com/umsabadoqualqueroficial/photos/a.402236673126883.112277.213055635378322/
402236689793548/?type=1&theater>. Acesso em: 10 ago. 2014.
Figura 2 Publicação de 1586 dos registros de Jean de Léry em Genebra. Fonte: <http://
pt.wikipedia.org/wiki/Jean_de_L%C3%A9ry>. Acesso em: 10 ago. 2014.
Figura 3 Imagem divulgada em campanhas e protestos nas redes sociais, vincula-
da aos atos de diferentes movimentos sociais pró-laicidade do Estado, em busca da
liberdade religiosa. Fonte: <https://www.facebook.com/estado.laicoja.9?fref=ts>. Acesso em: 10
ago. 2014.
98 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Figura 4 Cartaz da primeira Campanha da Fraternidade realizada de forma ecumênica, pelo CO-
NIC. Esse tipo de atividade ecumênica ocorre a cada cinco anos. Fonte: <http://www.conic.org.br/
cms/cf-ecumenica>. Acesso em: 10 ago. 2014.
Figura 5 Quadrinho de Carlos Ruas ilustrando o encontro de Einstein, Deus e Adão. Fonte:
<http://www.umsabadoqualquer.com/category/eisntein/>. Acesso em: 10 ago. 2014.

TABELA

Tabela 1 População residente, por situação do domicílio e sexo, segundo os grupos de religião
– Brasil, 2010. Fonte: IBGE, Censo Demográfico de 2010. Disponível em: <ftp://ftp.ibge.gov.br/
Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais_Religiao_Deficiencia/tab1_4.pdf>.
Acesso em: 10 ago. 2014.
3
Desfazendo o gênero
Larissa Pelúcio

Gênero é um conceito que permeia e organiza a vida de todo mundo;


é tão presente que já naturalizamos seus efeitos. Nosso esforço, neste ca-
pítulo, é justamente o de desnaturalizar nosso olhar e problematizar estas
relações. Para isso, organizamos este capítulo em quatro unidades:
1. Iniciaremos com discussões conceituais sobre o conceito de gênero,
situando o debate que nasceu em estreito diálogo com os estudos femi-
nistas, isto é, com as primeiras sistematizações teóricas e políticas que
questionavam a opressão feminina como sendo algo natural, quer dizer,
instituído por supostos determinantes biológicos;
2. Vamos trazer esta discussão para dentro da escola. Sabemos que o que
acontece na escola reflete o que se passa em muitas outras esferas da
sociedade; então, quando falamos de sala de aula, do pátio do recreio,
dos banheiros, também estamos falando de pedagogias de gênero que
circulam informando nosso olhar, moldam nosso comportamento, edu-
cam nossos corpos.
3. Momento de aprofundar nossas reflexões sobre gênero na arena pú-
blica. Talvez uma das formas mais eficientes e sedutoras de transmitir
mensagens e pedagogizar nossos sentidos sejam as mídias, que não só
reproduzem convenções e normas sociais sobre masculino, feminino,
classe, raça, orientação sexual, geração, mas também criam “verdades”
sobre esses temas.
4. Finalmente, apresentaremos um conjunto de proposta de atividades
diversas para serem trabalhadas em sala de aula ou em momentos de
102 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

formação continuada. São dicas de filmes e documentários; propostas


de trabalho com imagens; dinâmicas para a sensibilização e problemati-
zação dos temas tratados aqui, além de um box com questões pontuais
que podem ajudá-l@s a sistematizar ideias e estimular debates.
Boa leitura e boas ideias a todas e todos!

UNIDADE 1
Gênero ou gêneros?

Desnaturalizar é preciso
Como escreveu a historiadora feminista Joan Scott:

Gênero é um saber que estabelece significados para as diferenças cor-


porais. Esses significados variam de acordo com as culturas, os grupos
sociais e no tempo, já que nada no corpo, incluídos aí os órgãos repro-
dutivos femininos, determina univocamente como a divisão social será
definida (SCOTT, 2009, p. 12-13).

Neste capítulo, vamos pensar gênero nesta chave: ele é construído social
e culturalmente, tem marcas históricas e, portanto, varia. Está relacionado
com os corpos, mas nem por isso é natural, pois os corpos, para adquirirem
seu significado pleno, precisam das lentes da cultura. Ainda que existam
necessidades fisiológicas universais (excreção, fome, sede, cansaço, dor),
elas não são resolvidas da mesma forma, nem mesmo dentro de uma mes-
ma sociedade. Sendo assim, gênero, como os corpos, é plural! Quer dizer,
temos de pensar em masculinidades e feminilidades e em diversidades de
gêneros. Tirar do singular nossa percepção sobre este tema é alargar nosso
olhar sobre nossas relações cotidianas. Perceber que não existe A MULHER
e O HOMEM de forma absoluta. Pois se é mulher, mas ao mesmo tempo se
é professora, mãe, de classe média, na casa dos trinta anos, católica, mas
adepta também ao kardecismo, morena, mas entendida socialmente como
branca... ou seja, todos estes outros elementos se enfeixam de forma singu-
lar e contextual dando espessura humana e complexa a quem somos.
Desfazendo o gênero | 103

Ser uma mulher com as características descritas acima é muito distinto


de ser uma mulher indígena, que vive no Mato Grosso do Sul, professora em
uma escola indígena, na faixa dos 20 e tantos anos, bilíngue, evangelizada.
Em alguns contextos, para esta professora o mais importante seja reafirmar
e dar relevo à sua etnia. Assim como para a professora do exemplo anterior,
em alguns momentos será mais relevante sublinhar justamente sua marca
profissional.
Ambas só são fruto de um determinado momento histórico, pois até me-
ados do século XX seria pouco provável que ambas tivessem uma profissão
em comum, aliás, que tivessem uma profissão! Esta perspectiva histórica é
fundamental para trabalharmos no sentido de desnaturalizar conceitos e ideias.
Esta perspectiva ficou conhecida dentro do campo dos estudos de gênero
como Construcionismo, opondo-se ao que foi denominado Essencialismo.
Um quadro sintético nos ajuda a aclarar a forma como cada uma destas
vertentes enfoca as relações de gênero, e, assim, fica mais evidente quais
são suas diferenças:

Quadro 1 Matrizes teóricas dos estudos de gênero.

Essencialista Construcionista
-- Naturaliza os gêneros vinculando-os a -- Propõe que os gêneros são produto
um determinante biológico; de relações históricas e sociais;
-- É, portanto, determinista e -- Sendo assim, são simbolicamente
biologizante; constituídos;
-- O que faz que tenha um enfoque a- -- O que faz com que tenham dimensões
-histórico e transcultural. culturais.

A vertente essencialista é aquela com a qual estamos mais


acostumados(as) a lidar porque somos ensinados desde pequeninos que
temos uma essência imutável; repetimos ditos como “pau que nasce torto
não tem jeito, morre torto”, ou seja, essa suposta essência que já vem pronta
não sofreria influências do meio no qual cada pessoa vive, nem seria marca-
da pelo momento histórico no qual desenvolve suas experiências. Quando
falamos de gênero, pela matriz essencialista, o associamos diretamente ao
sexo genital, e o tomamos também como um definidor absoluto da nossa
forma de viver, perceber, sentir, desejar. Acabamos por desconsiderar que
há uma boa dose de aprendizado nisso tudo, que ser homem ou mulher é
algo que varia de sociedade para sociedade, e, mesmo em uma dada socie-
dade, temos variações.
104 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

A segunda matriz é a construtivista, que vai ficar mais clara a partir de


exemplos. Então vamos a eles.
Vamos dar uma olhada na bela pintura que retrata o filósofo iluminista
Voltaire.

Figura 1 Retrato do filósofo François-Marie Arouet de Voltaire.

Vamos em frente, partindo daí, da figura do filósofo iluminista, a qual,


para nós, não parece lá muito masculina. Julgamos isso pelo corpo, pelo
gestual e fazemos isso sempre, porque nosso corpo é simbólico, é todo ins-
crito culturalmente e aprendemos a ler estes signos.
Para ler os signos, temos de nos valer das referências de nossa cultura,
de nosso tempo. Quando agimos assim, estamos desnaturalizando, deses-
sencializando, pois estamos inserindo o debate no campo móvel e dinâmico
das relações sociais.
Desnaturalizar é pensar que gênero, esta marca fundamental da nossa
existência, não é um dado biológico e pronto, mas varia de sociedade, ao
longo da história, e só pode ser entendido na sua dimensão política, sim,
política, porque tem a ver com relações de poder: quem manda, quem obe-
dece, o que é verdade, o que não é. Enfim, para a gente poder entender
o gênero em toda a sua dimensão social, é preciso relacionar gênero com
Desfazendo o gênero | 105

raça/etnia, classe social, pertencimento de geração, entre outras marcas de


diferenciação social.
Buscar os referentes históricos dessas formações discursivas nos ajuda a
entender como chegamos a estabelecer certas definições sobre determina-
dos temas, no caso sobre as marcas de diferença entre feminino e masculino,
assim como instiga nossa imaginação e provoca perguntas novas: Quais sa-
beres contribuem para instituir verdades sobre diversos assuntos? Em que
contexto nasceram certas ideias? Por que algumas destas se estabeleceram
como referentes seguros e outras sequer foram consideradas? Procurando
responder questões como estas foi que, nos anos 1960, os movimentos fe-
ministas e os estudos acadêmicos sobre mulheres criaram um sujeito políti-
co e coletivo, sintetizado na categoria “mulher”. Esta não tardou a mostrar
seus limites, como vim discutindo até aqui. Porém, o debate não minguou;
ao contrário, se tornou mais denso teoricamente, alimentado sempre pela
realidade vibrante das ruas. Neste cenário de reivindicação por direitos iden-
titários, civis, culturais e de estimulantes debates teóricos nasce o conceito
de gênero.

Gênero tem história


Até a década de 1980, o conceito de gênero não era muito usado, mes-
mo dentro do campo dos estudos feministas. Trabalhava-se muito mais com
a categoria “mulher”. Isto porque as feministas, desde Simone de Beauvoir,
perceberam que havia um grande silêncio político, social e científico em tor-
no dos temas e questões que envolviam as experiências das mulheres. Era
preciso, então, falar sobre mulheres, sobre sua participação na história, na
literatura, na filosofia e nas ciências em geral. Mais do que isso, era preciso
dar voz às mulheres para que elas falassem de si e por si.
Podemos dizer que desde 1949, quando foram publicados na França os
dois volumes de O segundo sexo, de Beauvoir, as discussões políticas e te-
óricas em torno da opressão feminina e da exclusão das mulheres da cena
pública se avolumaram e mexeram profundamente com as dinâmicas das
relações sociais, sobretudo nas sociedades ocidentais e naquelas influencia-
das por este modelo.
Todo este debate em torno do tema “mulher” acabou, algumas dé-
cadas mais tarde, criando um extenso cabedal teórico, gerando inúmeras
pesquisas, muitas delas inspiradas nas demandas políticas dos movimentos
106 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

feministas (sim, no plural, pois como todo movimento político e social este
também se dividiu em diferentes tendências). Toda esta discussão provocou
novas questões e aprofundou o debate teórico e conceitual, de maneira que
a categoria central do feminismo como movimento social, bem como campo
de estudos, “mulher”, passou a ser desafiada na sua potencialidade expli-
cativa. Em outras palavras, a questão que começou a ser colocada cada vez
mais fortemente interrogava sobre quem era esta “mulher” da qual falavam
as feministas? Era negra, branca, indígena, jovem, velha, mãe, filha, avó, hete-
rossexual, homossexual, bissexual, operária, burguesa, patroa, empregada,
desempregada, ateia, católica, protestante?
Se, como escreveu Simone de Beauvoir, “não se nasce mulher, torna-
-se”, como chegamos a sê-la? Seria possível pensar nessa construção do
feminino sem pensar em sua relação com o masculino? Ao responder estas
poucas, mas profundas, questões, ficava claro que ao discutirmos a relação
entre feminino e masculino teríamos de pensar em relações de poder que
hierarquizavam pessoas a partir de seu gênero, com clara predominância do
masculino sobre o feminino. Quer dizer, gênero era uma questão política,
pois implicava em acessos desiguais a bens públicos, na participação em
arenas decisórias ou em silêncio; em privilégios para os homens também no
plano doméstico como o direto quase soberano sobre os filhos e a esposa
garantido por lei (no Brasil, até a mudança do Código Civil, em 2003, não
havia igualdade garantida para homens e mulheres relativas ao casamento
e constituição de família. Por exemplo, o Código Civil Brasileiro, antes da
reforma de 2003, ainda permitia a anulação do casamento pelo fato de a
noiva não ser virgem).
Se a desigualdade entre os gêneros era flagrante, em meados dos anos
de 1980, essas diferenças já não pareciam suficientemente mobilizadoras;
afinal, estava cada vez mais claro que a experiência de ser mulher não era a
mesma para todas.
Desde o final do século XIX, com o movimento sufragista, a questão
mobilizadora central dos feminismos era a busca por diretos iguais aos dos
homens. Assim, ser mulher era mais que uma questão de gênero, e sim o
ponto de convergência de luta, pois era a marca da desigualdade. Na meta-
de do século XX, este ainda era um mote forte e mobilizador. Mas, como já
comentei, o crescimento dos movimentos e dos estudos feministas provo-
cou também uma sofisticação nas demandas e nas reflexões, o que levou a
profundas discussões em torno de outras marcas de desigualdades sociais,
Desfazendo o gênero | 107

pois era evidente que as opressões atravessam também as relações entre as


mulheres.
Ficava patente, no aguçamento das lutas sociais e das demandas políti-
cas das mulheres, que ser mulher não se resumia a ter um corpo com útero e
ovários, que o biológico não era assim tão determinante dessa experiência.
Havia muito mais a ser considerado nesse campo de disputas e de recons-
trução de modelos sociais que a categoria “mulher” parecia não dar conta.
É assim que o conceito de “gênero” vai se firmando como um instrumento
importante de reflexão e luta, não sem provocar reações de alguns setores
do feminismo que seguiram apostando no termo “mulher” como termo polí-
tico. Aqui, trabalharemos com o conceito de gênero dada a sua abrangência
e contribuições para as discussões sobre diretos, igualdade e desigualdade,
entre outras.
Como escreve a antropóloga Adriana Piscitelli, “é importante perceber
que o conceito de gênero, desenvolvido no seio do pensamento feminista,
foi inovador em diversos sentidos. Perceber o alcance dessa inovação exige
prestar atenção às formulações desse pensamento” (2002, p. 2). Entre estas
formulações e inovações pontuo as que se seguem:
• Ir além da categoria “mulher” é considerar que homens, tanto quanto
mulheres, têm gênero, que não nascem prontos;
• Pensar em gênero como elemento organizador das relações sociais, ao
invés de operar com os termos “homem” e “mulher”, é ampliar para
além do corpo, da anatomia e do biológico, as experiências femininas e
masculinas;
• Construímos nosso gênero e o fazemos de forma relacional, ou seja, nas
relações sociais, o que implica em fazê-lo em relação aos homens, às ins-
tituições pedagogizantes (família, escola, igrejas), enfim, orientados(as)
pelos valores hegemônicos de cada tempo e lugar, seja para reiterar
estes valores ou para enfrentá-los;
• Em outras palavras, gênero tem pouco a ver com natureza, sendo sim
um conceito atravessado por ideias políticas (pois envolvem relações de
poder), sociais (pois são determinadas nas relações entre os indivíduos
vivendo em sociedade), culturais (estão marcadas por valores, moralida-
des e crenças relativas a um conjunto amplo de significações);
• Este conceito de gênero significa que aquilo que acontece em nossas
vidas privadas, nas nossas casas, no interior de nossos quartos, está
108 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

superinformado e moldado por essas formas públicas de se entender


o que é próprio do feminino e do masculino, da mulher e do homem,
adequado para meninas ou para meninos;
• Dentro dessa concepção fica evidente que “o pessoal é político”. Esta
curta frase se tornou mais que um slogan do feminismo no final da déca-
da de 1960, provocando também uma profunda mudança na forma de se
fazer ciência e de se construir conhecimentos;
• A ideia de que "o pessoal é político" conferiu dimensão política à
constituição das nossas subjetividades, mostrando que o aprendizado
de gênero passa por uma série persistente de normatizações que são
constantemente reiteradas no sentido de adequar nosso corpo às ex-
pectativas sociais sobre como devemos usá-lo, adorná-lo, apresentá-lo,
enfim, o corpo como aquilo que nos é mais próprio e particular também
se mostra um território de inscrições simbólicas em disputa;
• Os corpos voltam a ter centralidade, mas não apenas como corpos re-
produtores, mas corpos desejantes. Assim como há muitas formas de
ser mulher ou homem, há muitas formas de se viver as feminilidades e
masculinidades;
• Estas formas não estão aprisionadas em corpos marcados por genitálias
(vagina/pênis). Considera-se que corpos nascidos com vagina podem bus-
car/desejar viver experiências relativas às masculinidades e vice-versa;
• Tal conceito de gênero nos aproxima das discussões sobre sexualidade,
pois a experiência de ultrapassar os limites sociais binários do masculino
e feminino pode estar relacionada com o desejo de amar, sentir e se
expressar fora das normas impostas pela heterossexualidade;
• Gênero não é igual a orientação sexual, mas são termos relacionados, o
que leva muitas pessoas a associarem, com frequência, comportamentos
de gênero (um menino mais delicado, uma menina que gosta de futebol,
por exemplo) com homossexualidade.

Afinal, o que é gênero?


Já vimos que gênero não é sexo; não é dado pela natureza; não é imu-
tável, mas precisamos defini-lo pelo que é. A educadora e pesquisadora
Guacira Lopes Louro nos oferece uma excelente síntese do conceito a partir
do diálogo com diferentes autoras e autores. Vamos a esta definição que,
mesmo sendo longa, vale ser reproduzida pela sua densidade:
Desfazendo o gênero | 109

[...] o conceito afirma o caráter social do feminino e do masculino, obri-


ga aquelas(es) que o empregam a levar em consideração as distintas
sociedades e os distintos momentos históricos de que estão tratando.
Afasta-se (ou se tem a intenção de afastar) proposições essencialistas
sobre os gêneros; a ótica está dirigida para um processo, para uma
construção, e não para algo que exista a priori. O conceito passa a
exigir que se pense de modo plural, acentuando que os projetos e as
representações sobre mulheres e homens são diversos. Observa-se que
as concepções de gênero diferem não apenas entre as sociedades ou
os momentos históricos, mas no interior de uma dada sociedade, ao se
considerar os diversos grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe) que
a constituem (LOURO, 1997, p. 23).

Sendo assim, gênero deve ser entendido fundamentalmente como uma


construção social, daí seu caráter histórico e plural.

A ideia de pluralidade implicaria admitir não apenas que sociedades


diferentes teriam diferentes concepções de homem e de mulher, como
também que no interior de uma sociedade tais concepções seriam
diversificadas, conforme a classe, a religião, a raça, a idade etc.; além
disso, implicaria admitir que os conceitos de masculino e feminino se
transformam ao longo do tempo (LOURO, 1996, p. 10).

Em outras palavras:

Por gênero entende-se a condição social por meio da qual nos identifi-
camos como masculinos e femininos. É diferente de sexo, termo usado
para identificar as características anatômicas que diferenciam os homens
das mulheres e vice-versa. O gênero, portanto, não é algo que está dado,
mas é construído social e culturalmente e envolve um conjunto de pro-
cessos que vão marcando os corpos, a partir daquilo que se identifica ser
masculino e/ou feminino. Em outras palavras, o corpo é generificado, o
que implica dizer que as marcas de gênero se inscrevem nele.

Se estamos cientes de que o gênero é a construção social do sexo,


precisamos considerar que aquilo que no corpo indica ser masculino
ou feminino não existe naturalmente. Foi construído assim e por esse
motivo não é, desde sempre, a mesma coisa (GOELLNER, 2010, p. 75).

A escola tem tido um importante lugar nessa construção dos gêne-


ros. Ainda que não percebamos, aqueles são espaços profundamente
110 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

generificados e orientados por uma silenciosa, mas persistente pedagogia


de gênero. É sobre esta questão que versa a próxima unidade.

UNIDADE 2
Gênero na escola

Lembranças de um aprendizado tenaz

Ainda recordo como, ao acordar, colocava meu uniforme e seguia para


a escola. Era o final da década de 1970, e vivíamos sob a presidência
do general Figueiredo, a última do regime militar. No pátio, tínhamos
que formar filas: duas para cada sala de aula, uma de meninos e outra
de meninas. Começavam aí as “brincadeiras”, nas quais os meninos
mais robustos empurravam os mais frágeis para a fila feminina, espaço
desqualificado em si mesmo (MISKOLCI, 2012, p. 9).

As memórias escolares acima são do sociólogo Richard Miskolci, relata-


das nas primeiras páginas de seu livro Teoria Queer: um aprendizado pela
Diferença, no qual ele discute, entre outras temas, como temos reproduzido
de forma naturalizada as relações de gênero pautadas pelo reforço das de-
sigualdades entre meninos e meninas no espaço escolar. Miskolci relembra
seu receio em relação à forma como meninos de sua sala eram estimulados
a serem violentos, exercendo a força sobre outros, humilhando os considera-
dos mais fracos, ao mesmo tempo em que desqualificavam as meninas, pois
aqueles que não se ajustavam ao modelo hegemônico de masculinidade,
isto é, viris, agressivos e competitivos, eram logo alocados no lugar “des-
prestigiado” do feminino. “Mulherzinha”, “florzinha”, entre outros adjetivos,
eram de fato xingamentos que pretendiam, ainda que sem a intenção clara
dos ofensores, dizer aos ofendidos que deveriam reproduzir um único estilo
de masculinidade, posto que ser mulher ou agir como uma não era algo
bom. O mundo feminino era (e é) assim constituído como avesso ao dos
homens, além de inferior.
Desfazendo o gênero | 111

Lembro-me de uma piadinha muito comum entre professores de cur-


sinho. Sempre que havia um conjunto de meninos conversando e “zoando
a aula no fundão”, vinha a intervenção jocosa: “O que as mocinhas estão
fofocando aí? É hora do tricô, é?”. Sempre funcionava e provocava risos
debochados da sala toda. Por quê? Porque desde pequeninos aqueles me-
ninos aprenderam que não é bom ser comparado com mulheres, com moci-
nhas. E por quê? Porque elas fofocam, são, portanto, levianas, fúteis, não se
preocupam com assuntos grandiosos e se ocupam de atividades manuais e
mecânicas, como o tricô. Não aprenderam a valorizar o feminino como uma
condição comparável à do masculino, como forças complementares, e não
hierárquicas. Foram reprimidos, quando não ridicularizados, todas as vezes
que fizeram coisas associadas socialmente às mulheres, ao feminino.
Não raro, segue narrando Miskolci, reavivando suas lembranças, esses
comportamentos eram aceitos e até mesmo estimulados por professores(as)
e funcionários(as) da escola, por acharem “natural” que as crianças agissem
daquela forma. Da mesma maneira que, hoje em dia, achamos natural, leia-
-se “correto”, que meninas sejam menos ágeis nos esportes, assim como
em raciocínio matemático. Ainda fazemos filhas exclusivas para meninos,
separados das filas das meninas. Reproduzimos este procedimento, muitas
vezes sem grande crítica, exatamente porque os naturalizamos, não vemos
problemas nele. E haverá problemas nessa divisão?
A pergunta é simples, mas sua reposta não, pois nos obriga a imergir em
um rol de outros questionamentos sobre nossas práticas diárias, seja na sala
de aula, no pátio do recreio, na sala de professores ou durante reuniões com
pais. Convido vocês a enfrentar estes questionamentos, pois, como escreve
Guacira Lopes Louro e, creio, vocês têm percebido,

[a]s possibilidades de viver os gêneros e as sexualidades ampliaram-se.


As certezas acabaram. Tudo isso pode ser fascinante, rico e também de-
sestabilizador. Mas não há como escapar a esse desafio. O único modo
de lidar com a contemporaneidade é, precisamente, não se recusar a
vivê-la (LOURO, 2008, p. 23).

Então, vamos viver nossos desafios. Comecemos pelas filas, assumindo


que elas expressam, na verdade, uma separação profunda e durável pela
qual aprendemos que meninos e meninas, homens e mulheres são absoluta-
mente diferentes. Mencionei que responder àquela pergunta lá de cima nos
levaria a uma série de outras interrogações; então, pergunto, reproduzindo
112 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

a interrogação de uma importante pensadora: o que pode ser mais parecido


com uma mulher do que um homem? Como trabalhamos a fim de acentuar
ou de atenuar essas diferenças? A anatomia é destino? A biologia explica
essas diferenças? Explica também as semelhanças? Estas são perguntas
provocativas. Mais do que respostas, gostaria que parássemos um pouco
para pensar em nossas próprias atitudes no espaço escolar. O desafio vai
se tornando mais profundo, pois isso nos obriga a rever valores que nos
alicerçam e orientam, mexe com nossas convicções e adentra o terreno das
moralidades e dos segredos, mas educar é também estar abertos(as) para
esses constantes processos de aprendizado.
Sem pretensão de dar respostas conclusivas ou oferecer receitas, ensaio
a seguir algumas respostas às questões que lancei há pouco, e trago novas
interrogações, a maior parte delas suscitadas em discussões ocorridas nos
fóruns de debates do Módulo Gênero do curso de formação continuada
para professores(as) do Ensino Básico, o GDE – Gênero e Diversidade na
Escola.38
• Homens e mulheres são absolutamente diferentes?

A construção dos gêneros e das sexualidades dá-se através de inúme-


ras aprendizagens e práticas, insinua-se nas mais distintas situações, é
empreendida de modo explícito ou dissimulado por um conjunto ines-
gotável de instâncias sociais e culturais. É um processo minucioso, sutil,
sempre inacabado. Família, escola, igreja, instituições legais e médicas
mantêm-se, por certo, como instâncias importantes nesse processo
constitutivo (LOURO, 2008, p. 8).

Assim, não há sociedade que deixe de considerar as singularidades


corporais dos corpos femininos e masculinos, constituindo a partir destas
percepções diferenças, sem que isso implique necessariamente em desi-
gualdades ou em incomensurabilidade entre os gêneros. As diferenças são
construídas como tal, assim como as semelhanças. Acentuamos aquilo que
parece fazer sentido para ordenamento dos lugares sociais, dos valores mo-
rais vigentes, segundo normas estabelecidas. “A norma não emana de um

38 O GDE compõe um conjunto extenso de programas coordenados pelo Ministério da


Educação e Cultura (MEC), a partir de diversas secretarias especiais incumbidas de im-
plementar políticas públicas voltadas para a diversidade cultural e sexual. Integro, até o
momento desta escrita, o quadro de coordenadoras(es) de módulos do GDE ofertado
pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Desfazendo o gênero | 113

único lugar, não é enunciada por um soberano, mas, em vez disso, está em
toda parte. Expressa-se por meio de recomendações repetidas e observa-
das cotidianamente, que servem de referência a todos. Daí por que a norma
se faz penetrante, daí por que ela é capaz de se ‘naturalizar’” (LOURO, 2008,
p. 22). Atualmente, não por acaso, temos vivido um processo intenso e sis-
temático de acentuação das diferenças entre homens e mulheres. Nunca o
mundo de nossas meninas foi tão rosa e de nossos meninos, absolutamente
azul a tal ponto de termos situações como a citada por uma professora que
cursou uma das ofertas do GDE:

“As próprias crianças estão tão obcecadas por determinados estereó-


tipos (ano passado, tomada pela raiva, cheguei a retirar as canetinhas
cor-de-rosa da caixa, só pra ver a reação das meninas, elas usaram as
outras cores, mas desenharam bem menos, duas delas, ao perceber,
escolheram fazer outra atividade).”

Quer dizer, ao mesmo tempo em que participamos de mudanças cul-


turais significativas nas quais as convenções e normas de gênero binárias e
hierárquicas vêm sendo questionadas e desafiadas, temos, em contraparti-
da, discursos sutis mas muito eficientes que reforçam a diferença como inco-
mensurabilidade, como quase impossibilidade de se viver juntos, um gênero
“poluindo” o outro. Trago mais um depoimento gerado no mesmo contexto
de discussão, para em seguida partir para outras questões:

“Nas minhas turmas sempre surgem conversas, onde as crianças in-


terrogam, isso é de menino? Ou, isso é de menina? Essa semana, uma
menina, mostrando um lápis de time, me perguntou: Pro [professora],
é de menino? Enquanto algumas crianças riam, e então eu respondi
com perguntas, ou seja, problematizando: O que vocês acham? Só os
meninos podem ser torcedores de time? As meninas não podem ser
torcedoras, por quê?”

O reforço dessas divisões polares (meninas de um lado, meninos de


outro) é uma maneira sutil, mas eficiente, de enfrentar as transformações
sociais e culturais pelas quais nossa sociedade está passando, uma forma de
“naturalizar” esses lugares, reiterando incessantemente o binarismo quase
de forma inconciliável, do tipo “mulheres são de Vênus e homens são de
Marte”. O que ganhamos com isso em termos concretos para a qualidade
das relações sociais? Creio que nada!
114 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

• Como podemos enfrentar essas reiterações excludentes dos lugares


de gênero?

Mais uma vez: não existem fórmulas prontas para isso, pois estas ques-
tões surgem e se resolvem contextual e coletivamente. Ainda que como
professoras e professores possamos tomar iniciativas individuais, elas só se
efetivarão pedagogicamente quando incluídas em um projeto abrangente
no qual a escola, como um todo (incluindo pais, mães, funcionárias e fun-
cionários, assim como o pessoal técnico-burocrático), estiver envolvida. Isso
não implica em imobilismos, claro, mas em busca por parcerias que possam
tornar nossas intervenções mais amparadas e fundamentadas.
Uma das experiências possíveis para quem trabalha com educação in-
fantil é mudar o critério de organização das filas. A cada semana poderíamos
adotar um sistema: quem faz aniversário nos seis primeiros meses do ano fica
de um lado, e quem faz nos outros seis, de outro; quem prefere gato fica em
uma fila e os que preferem cachorro, em outra, por exemplo. Sim, corremos
o risco de ficarmos com filas desiguais, mas também criamos a possibilidade
de as crianças se socializarem mais com outras a partir de diferenças que as
singularizam, mas não as desvalorizam. Provocamos novos encontros dentro
da mesma turma, abrimos espaço para que as próprias crianças sugiram cri-
térios de organização, além de criar um espaço para se pensar na separação
entre meninos e meninas como um critério único e válido.
Como estamos ainda falando de memórias e experiências, cito o que
ocorreu com uma professora de História em uma turma de primeiro ano do
Ensino Médio, pois creio que o exemplo traz estratégias interessantes para
tratarmos das questões de gênero que, como logo ficará mais evidente, não
se desvinculam facilmente das de sexualidade. Narra a professora que um
grupo que se sentava mais à frente na sala de aula começou a rir baixo e
olhar para ela. Então, essa minha aluna, professora da turma, perguntou o
que estava acontecendo. Uma aluna teve a coragem de dizer:
• Estamos rindo porque a gente estava curiosa para saber se você namora.
E aí uma pessoa aqui, que eu não vou dizer quem é, disse que você joga
em outro time.
• Bem, vocês não estão falando de esportes, né? Acho que estão interessa-
das em minha vida pessoal e em meus interesses sexuais. E o que seria in-
teressante para vocês na minha vida? Talvez vocês se sentissem desconfor-
táveis se eu quisesse saber da de vocês, não é? Mas não tenho problemas
para falar disso, aliás, a gente deveria falar sobre o que é jogar no outro
Desfazendo o gênero | 115

time, né? Mas hoje, como não havia planejado e temos um conteúdo a
cumprir, não vamos discutir isso, mas na próxima aula vamos tirar um tem-
po para essa conversa, mas com a sala inteira. Eu quero que até lá vocês
me digam o que é jogar no outro time, e por que isso pode ser engraçado.
Ela saiu de lá tremendo que nem vara verde. Foi falar com a diretora
sobre o ocorrido e disse que seria muito importante que o debate fosse feito
de forma aberta, honesta e horizontalizada, e que ela se sentia preparada
para tal. Anunciou ainda que iria mostrar o material para a direção antes de
trabalhar com ele em sala e que se sentiria melhor com a turma se levasse
essa discussão não para o lado pessoal, mas para uma reflexão sobre normas
e convenções sociais que instituem que há, por exemplo, “um time” no qual
a maioria joga, e quem está “jogando” em outro é uma pessoa “suspeita”, o
que autoriza que seja inquerida por outras.
Ao invés de “abafar o caso”, de silenciar os sussurros, a professora deu a
devida importância à questão, buscando respaldo da coordenação para tal
e procurando enfrentar temas fundamentais para a formação de suas alunas
e alunos, que, ao invés de ficarem com conjecturas muitas vezes atravessa-
das por estereótipos sobre gêneros e sexualidade, tiveram a oportunidade
de fazer, por meio de dinâmicas (vejam na unidade 4, no item Dinâmicas –
brincando com os gêneros, levando a sério nossas questões) uma discussão
orientada e qualificada destas questões.

Silêncios e sussurros: arquitetando os gêneros


Michel Foucault, filósofo francês com uma vasta obra sobre construção de
conhecimento, sexualidade, formas de se educar corpos e subjetividade, es-
creve que os silêncios são discursos poderosos. Sobre o que calamos? O que
não é digno de se estudar? Por que não discutimos, por exemplo, a Guerra
do Chaco, que se estendeu entre os anos de 1932 a 1935, aqui na América do
Sul, envolvendo Paraguai e Bolívia e grandes trustes de petróleo? Este conflito
deixou quase 1 milhão de mortos! Passou-se em países fronteiriços e, ainda
assim, nada consta em nosso material didático sobre o tema. Por quê? Quem
eram aqueles mortos? Corpos que “não importavam”, de indígenas, de pes-
soas simples, aquelas que não têm o privilégio de escreverem suas próprias
histórias. Daí o silêncio. Este artifício do “calar sobre algo” nos ensina sobre
poder, política, prestígio pela invisibilização de determinadas versões dos fa-
tos e, mais grave, de determinados grupos sociais, criando um círculo vicioso:
quanto menos sabemos sobre eles, mas o desprezamos.
116 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Este exemplo pouco tem a ver com gênero, mas está estreitamente re-
lacionado às nossas vivências escolares e nos provoca ainda mais interroga-
ções. Sobre o que falamos e sobre o que calamos? Quando fazemos estas
perguntas, acabamos por perceber que invisibilizamos o que não nos parece
importante. Talvez, por isso, algumas experiências de nosso cotidiano es-
colar sejam silenciadas ou apenas sussurradas. Entre elas estão aquelas em
que os gêneros nos desafiam. Creio que a maioria de nós tem um exemplo
neste sentido: o aluninho que queria brincar de bonecas; a menina que não
abria mão do boné como parte de sua indumentária diária; o adolescente
que começou a mudar sua maneira de andar e se adornar, até o dia em que
apareceu na escola com unhas pintadas e sobrancelhas feitas... Em todos os
casos temos bastantes dificuldades em saber como agir, e não poderia ser
diferente, pois em nossa própria formação não tivemos discussões qualifica-
das sobre relações de gênero e sexualidade, como se esses fossem temas
menores, secundários ou pouco relacionados à vida escolar. Vamos buscan-
do nos qualificar em cursos de formação continuada, em leituras autodidatas
ou participando de oficinas e palestras que versam sobre essa temática. Foi
ao ministrar cursos assim que a psicóloga e doutora em Educação Elizabete
Cruz se deparou com eloquentes “silêncios”.
Entre 2005 e 2006, Cruz foi professora do módulo “O cotidiano da Esco-
la” em um curso de especialização em gestão educacional para diretores de
escolas da rede estadual de São Paulo, realizado pela Universidade Estadual
de Campinas (UNICAMP). Foi nesta função que começou a se dar conta que
uma das questões que mais desafiava suas turmas era relativa aos gêneros
não binários, quer dizer, sobre alunos e alunas que vivem nas fronteiras do
masculino e do feminino, aqueles e aquelas que por motivos diversos não
estão conformes aos rígidos padrões que ditam como deve ser e agir um
homem e como deve se comportar e ser uma mulher, a partir de modelos
que pregam que há um homem e uma mulher absolutos. De alguma forma,
pensem bem, todas nós, todos nós violamos a rigidez binária. Vou adiar um
pouco mais esta discussão para poder entrar logo na problemática que nos
apresenta Elizabete Cruz.
Em seu livro Banheiros, travestis, relações de gênero e diferenças no co-
tidiano da escola (2011), Cruz procura discutir sua experiência

[a] partir de situações concretas e cotidianas para criar problematizações


sobre a construção de identidades de gênero e suas possíveis implica-
ções para a educação. O que interessa aqui, portanto, é pensar, refletir
Desfazendo o gênero | 117

que nestas experiências identitárias há algo em comum: o rompimento


de uma visão binária dos gêneros estabelecida a partir do biológico e a
reinvenção das possibilidades masculino-feminino [...]. Nesta experiên-
cia docente observei que a presença de travestis na escola provoca uma
grande inquietação. Em uma das primeiras turmas, uma aluna/diretora
trouxe uma questão:

Tem um aluno, o João, que se veste como uma menina e disse que agora
é Joana. Desde então, surgiu uma questão. Qual banheiro ele deve usar?
O dos meninos ou das meninas? Deu a maior confusão! As meninas não
querem que ele use o banheiro delas, os meninos também não. Como
resolvemos? Ele usa o banheiro da diretora. Mas agora, a partir de sua
aula, estou pensando: Será que resolvemos a questão? Será que demos
o melhor encaminhamento? (CRUZ, 2011, p. 75-76, grifos do original).

Eu mesma adotei este texto em um curso de formação continuada a


distância, o GDE, por duas ofertas consecutivas. Em ambas, a leitura fazia
parte de uma atividade on-line chamada “Fórum de debates”, na qual seria
necessário, ainda, assistir ao vídeo Encontrando Bianca,39 que compunha
o chamado Kit anti-homofobia produzido pelo Ministério da Educação e
Cultura, mas que foi vetado pela Presidência da República e, portanto, não
distribuído (ver box de dicas de material audiovisual ao final deste capítu-
lo). O enunciado do Fórum orientava a atividade que tinha como objetivo
“promover interação e troca de ideias” entre a turma, além de “estimular
o debate articulado e refletido” acerca de dois materiais que deveriam ser
colocados em diálogo.
O tom geral do debate, em todas as salas virtuais, era de empatia em re-
lação a Bianca, a jovem travesti que protagoniza o vídeo. Muitos comentários
traduziam a admiração pela persistência suave daquela aluna fictícia, mas
possível, em ser aceita no ambiente escolar. Havia muitas Biancas, reconhe-
ciam as(os) cursistas, como também identificavam no cotidiano exigente de
suas escolas dificuldades para lidar com temas como aquele. Afinal, discutir
relações de gênero, sexualidade e convívio com as diferenças é entrar no

39 Encontrando Bianca é o terceiro vídeo do conjunto de produções audiovisuais que es-


tava sendo formulado pelo MEC como material para subsidiar o combate à homofobia
nas escolas. Em maio de 2011, o chamado “Kit anti-homofobia”, que ainda estava em
elaboração pelo MEC, teve sua elaboração e distribuição suspensas por veto da presi-
denta Dilma Rousseff.
118 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

delicado terreno das intimidades, é mexer com moralidades, desestabilizar


certezas, provocar incômodos que podem gerar insatisfação por parte de
pais e dos próprios pares, ao mesmo tempo que demandavam da tutoria do
curso, bem como da coordenação, respostas mais efetivas que pudessem
ser aplicadas na prática docente. Mostravam-se, por vezes, incomodadas
e incomodados por não saberem como deveriam nomear estas outras ex-
pressões de gênero e de sexualidade fora da heteronormatividade, pois não
haviam sido formad@s para tal.

[E]sse “incômodo” com as ferramentas educacionais incapazes de fazer


frente à realidade de pessoas fora da norma, essa vontade de acolhê-las
ao invés de julgá-las, frequentemente se expressa em questões como:
Como chamo tal pessoa? O que é tal aluno? Ele é travesti? Ele é transe-
xual? E foi um desafio lidar com estas questões, foi muito difícil explicar
que era justamente isso que a gente não queria, não queríamos embar-
car no processo de criar um escaninho das espécies sexuais alocando
cada uma em uma caixa ou identidade. Evitar esse tipo de abordagem
classificatória é uma forma de realmente transformar a experiência edu-
cacional (MISKOLCI, 2012, p. 17-18).

O desafio de se trabalhar fora dos marcos identitários e das referências


binárias relativas aos gêneros e à orientação sexual é exigente, pois demanda
torções na nossa forma de perceber as dinâmicas sociais que oferecem esses
termos classificatórios capazes de definir e fixar identidade, de maneira que
a pergunta crucial deixa de ser “o que é Bianca?” e se desdobra em muitas
outras questões importantes: “Por que não sabemos dizer quem ela é, sem
acionar termos desprestigiosos ou patologizadores?”; “Como esses termos
foram entrando em nosso vocabulário?”; “Quem tem autoridade para dizer
quem ela é, e por que conferimos a determinados saberes esses poderes?”.
Quando deslocamos nosso olhar do indivíduo para as normas e convenções
sociais que o conformam, criamos um campo complexo de tensões, eviden-
ciando que sexo e gênero são, antes, questões de Estado, e, portanto, públi-
cas, não de foro privado. São antes políticas do que biológicas.
Então, vou mais uma vez lançar algumas perguntas, que são de fato pro-
vocações, quer dizer, convites para pensarmos sobre estes desafios. Começo
pela tensão entre privado e público (mais um dos binarismos que nos [des]
orientam, posto que estes limites são muitos mais borrados do que querem
nos fazer acreditar).
Desfazendo o gênero | 119

• O uso dos banheiros é um problema de foro íntimo ou um problema


político?

Muitas vezes, em nosso dia a dia, ouvimos expressões do tipo “cada


cabeça uma sentença”, “em briga de marido e mulher não se mete a colher”,
“gosto não se discute”, sugerindo que se trata de assuntos pessoais, indivi-
duais e que, portanto, não devem ser discutidos, tampouco sofrer interfe-
rências externas. Bem, muitas questões tidas pelo senso comum como de
foro íntimo e privado são na verdade públicas, por isso, políticas (a origem
da palavra política, não custa lembrar, é polis = cidade-estado).
Vou me demorar pensando nos ditados citados acima. Não tenho dúvidas
que somos seres autônomos, e somos capazes de formular nossas opiniões
de maneira resoluta. Mas “cada cabeça uma sentença” não considera que
não “fazemos nossa cabeça” sozinhos, sem influências de inúmeras ideias e
valores que são coletivos, que trazem marcas de classe, religiosas geracio-
nais. Assim, ocorre também com o gosto. Claro que se discute, caso contrá-
rio nem teríamos necessidade de um ditado que afirma o contrário. Gosto
tem a ver com o momento histórico (basta olharmos nossas fotos antigas
para rirmos de nossos penteados de anos atrás), com pertencimento de clas-
se (daí expressões como “brega”), com valores culturais (não aprendemos a
achar pessoas negras bonitas); relaciona-se ainda com as mídias capazes de
estabelecer padrões rígidos de beleza moldando corpos e subjetividades.
Aliás, o corpo, este espaço que percebemos como exclusivamente indi-
vidual, é também um espaço político. Vejam que hoje temos leis que coíbem
e punem ações “privadas” sobre os corpos de mulheres e crianças, procu-
rando protegê-las da agressão doméstica (quer dizer, daquele que ocorre
no âmbito privado). Temos na Constituição brasileira leis que procuram pro-
teger pessoas a partir das suas marcas corporais, sejam étnicas, raciais ou
por alguma deficiência física.

Essa maneira de olhar para o corpo implica entendê-lo não apenas


como um dado natural e biológico, mas, sobretudo, como produto de
um intrínseco inter-relacionamento entre natureza e cultura. Em outras
palavras: o corpo não é algo que está dado a priori. Ele resulta de uma
construção cultural sobre a qual são conferidas diferentes marcas em
diferentes tempos, espaços, conjunturas econômicas, grupos sociais,
étnicos etc. (GOELLNER, 2010, p. 72).
120 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Estas marcas, ainda que naturais, só ganham significado pela linguagem.


A forma como adjetivamos, ironizamos, respeitamos, nomeamos esses sinais
diacríticos que os corpos trazem carregam as marcas da cultura, do social e,
assim, do político.
• Gênero é político?

Os diferentes movimentos feministas provaram que sim. Ao lutarem por


direitos iguais aos dos homens, muitas mulheres mostraram que as diferen-
ças naturais não justificavam as opressões sociais. Questionaram também
determinados campos de saber, como a psiquiatria, a medicina social, que,
entre outras ciências, asseveravam que as mulheres eram emocional e fisi-
camente mais fracas do que os homens. Bem, podemos nos perguntar: que
mulher? Será que uma mulher negra, escrava, um dia foi vista por aqueles
mesmos cientistas como pertencendo ao “sexo frágil”?
A terrível prática dos estupros de guerra prova de maneira cruel o quan-
to o gênero pode se transformar em uma arma. Não é o fato de terem pênis,
e mulheres, vaginas, que se justifica essa violência, mas a forma como de-
terminados homens entendem sua relação com o seu próprio corpo e como
são ensinados a perceberem as mulheres.
Nosso próprio vocabulário de palavrões evidencia como aprendemos a
entender a genitália masculina como legitimamente opressora e violadora.
Basta fazermos uma lista de apelidos populares dados ao pênis para que o
desnaturalizemos como mero órgão reprodutor para dar a ele o seu sentido
cultural e social nas relações de gênero. Muitos destes termos estão associa-
dos a armas, a instrumentos de combate.
Enfim, a maneira como devemos performar o gênero que nos foi atribu-
ído não é uma questão pessoal; basta observarmos nossas reações diante
de alunos e alunas que parecem não atender às expectativas relativas ao
seu gênero. Não é raro ouvirmos que aquel@ jovem ou criança é “estranha”,
“esquisita”, “suspeita”. Esta última atribuição normalmente está relacionada
à sexualidade. Quando ouvimos (ou pensamos) que fulaninho ou fulaninha
são suspeitos, do que exatamente estamos duvidando? Suspeitar é, neste
contexto, desconfiar de uma possível falha. Qual seria ela? Arrisco dizer que
duvidamos da heterossexualidade daquelas pessoas. Essa suspeita, não raro,
desencadeia uma série de processos de exclusão social bastantes sensíveis
dentro da escola. Em alguns casos, a violência simbólica deriva em violência
física, o que, no limite, pode levar à “evasão involuntária”. Este é um conceito
Desfazendo o gênero | 121

cunhado por Luma Andrade, doutora em Educação e a primeira travesti bra-


sileira a ingressar como docente em uma Universidade Federal (Universida-
de da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB).
Ou seja, não atender às expectativas de gênero pode derivar em uma
série de exclusões sociais que são em si políticas, pois estamos no campo
das relações de poder, considerando quem “pode” ser incluído na nossa
sala de aula, quem não merece estar ali. Quem “pode” ser respeitad@ e
quem não terá este direito.
Onde devemos defecar ou urinar, com quem podemos nos casar, qual
nome estamos autorizados a usar, quem pode ter quantos filhos desejar e
quem não pode? (caso da classe média, julgando o número de filhos que as
classes populares têm). Ao respondermos estas perguntas, nos damos conta
que todos esses temas relativos à sexualidade e ao gênero são antes ques-
tões de Estado que questões da biologia ou da conta de cada um, ou seja,
o que ocorre no espaço privado e individualizado por excelência, o nosso
próprio corpo, não escapa às normas coletivas e aos enunciados de poder.
Sendo assim, a discussão sobre o uso dos banheiros na escola não se
trata de atender a “caprichos” de algumas pessoas, mas de um profundo de-
bate pedagógico suficientemente complexo para exigir que, antes de tomar
posições taxativas ou propor receitas, precisamos refinar conceitualmente
nossas percepções sobre gênero e sexualidade.

• Genitália define o gênero?

Bem, aprendemos que sim, que se alguém tem vagina é menina/mulher e


se tem pênis é menino/homem. Simples, como algumas/alguns de vocês co-
mentaram, só que não. O sexo genital não define gênero, até porque gênero
é um construto social, ou não? Se muda de sociedade para sociedade, se se
transforma ao longo da história, se tem conotações distintas dependendo
da cultura, me parece, sim, que se trata de um construto. Será que somos
sempre 100% mulheres ou 100% homens? Em alguns momentos, temos que
agir a partir de referentes que são socialmente vistos como masculinos, por
exemplo, sendo fortes e até violentas. O mesmo se passa com os homens.
Bem, se gênero fosse uma derivação absolutamente natural da genitália,
não precisaríamos reiterar constantemente os ensinamentos de gênero:
“menino não chora”; “se senta como uma menina”; “menino não brinca de
casinha”; “menina não faz estas coisas”... E como fica o caso, nada raro (mas
122 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

muito silenciado), das crianças que nascem com genitália ambígua? (aquelas
que eram chamadas de hermafroditas, mas que hoje são nominadas de in-
tersexuadas). Como elas podem até mesmo ter uma certidão de nascimento
quando nascem com a genitália ambígua? Os médicos definem, mas nem
sempre “acertam”, o que causa muitos problemas para as famílias, pois nosso
corpo é bastante complexo e não ganha seu significado completo só por meio
dos hormônios, genes, órgãos, mas também, e sobretudo, socialmente.

• Arquitetura tem gênero?

Nossa arquitetura, por si só, é generificada e marcada por relações de


poder. Assim, a instituição escolar não seria diferente. As salas de aula gri-
tam autoridade (basta ver como estão organizadas); anfiteatros explicitam
a quem pertence a fala e quem deve apenas escutar; a ausência de rampas
nas ruas dizem em silêncio a quem o espaço público deve pertencer. Os
banheiros expressam materialmente nossa visão de gênero.
Nossa pedagogia de gênero insiste que banheiros precisam ser sepa-
rados porque ensinamos às meninas que meninos são perigosos e elas são
presas fáceis; e ensinamos aos meninos que eles devem ser perigosos e
ousados sexualmente. Portanto, a discussão sobre banheiros não é sobre
banheiros para homo e heterossexuais, mas sobre como ocupamos os espa-
ços públicos a partir de um lugar de gênero.
Por exemplo, uma mulher que decide à noite sentar-se à mesa de um
bar para beber sozinha uma cerveja será vista como “disponível”, em busca
de uma aventura, e pode ser, assim, assediada, ter seu espaço invadido por
homens que supõem que é isso que ela quer e busca. O mesmo pode se
passar com uma mulher que deseja sentar-se sozinha em um banco de praça
em plena tarde de domingo para desfrutar do prazer de estar ao sol, lendo
uma revista ou um livro. Ou seja, o espaço público não pode ser usufruído
da mesma forma por homens e mulheres. Sabemos que se por um acaso
alguma dessas mulheres dos exemplos que usei forem agredidas não será
difícil que elas sejam vistas como culpadas pela violência sofrida e não como
vítimas de um regime machista que restringe o uso do espaço público às
mulheres. E pior, o faz em completo silêncio. Não há leis que proíbam mu-
lheres de se ir a bares ou bancos de praça sozinhas.
Os meios de comunicação de massa têm sido canais potentes de
reafirmação de lugares de gênero essencializados, como também de
Desfazendo o gênero | 123

transformação de nosso olhar. Uma série como “Malu Mulher”, que foi ao ar
pela Rede Globo no final dos anos 1970, foi capaz de pautar na cena pública
uma série de discussões que acreditávamos serem privadas e individuais
relativas às relações de gênero, tais como o direto das mulheres ao prazer
sexual, de terem seu trabalho doméstico reconhecido e valorizado, de po-
derem trabalhar fora sem sofrer represálias em casa, de serem reconhecidas
profissionalmente e, talvez o mais polêmico para a época, de poderem se
separar sem ter sua moral destruída socialmente.
Hoje em dia esta influência se intensificou graças ao aumento de acesso
e à proliferação de canais midiáticos, de maneira que não podemos des-
considerar esse influente campo de pedagogização de gênero e a maneira
como ele entra nas nossas salas de aula. Podemos tê-los como aliados, ao
invés de apenas demonizá-los, acionando a já gasta frase que prega ser
“tudo culpa da mídia”, como se esta não fosse produto de nossas próprias
relações. É sobre essa maquinaria sedutora e sua relação com nosso tema
neste capítulo que versa a próxima unidade.

UNIDADE 3
Gênero na mídia – e a escola com isso?

Mocinhas e heróis: a vida em preto e branco


No documentário intitulado Filmes ruins, árabes malvados: como
Hollywood vilificou um povo (ver referência no box de dicas de material au-
diovisual), o diretor Sut Jhally40 mostra como o cinema norte-americano foi
capaz de, ao longo de 100 anos de produções, fixar no imaginário ocidental
uma visão estereotipada dos povos árabes como sendo, sobretudo, com-
posto de homens barbudos, um tanto sujos, malvados, ardilosos e violentos,
inclusive com suas próprias mulheres, que são tratadas de forma submissa
e aviltante.

40 O documentário é baseado em livro homônimo escrito por Jack Shaheen, professor da


Universidade de Ilinois e estudioso do assunto.
124 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Os estereótipos são descritores potentes, mas perigosamente simplifi-


cadores, que acabam por fomentar visões preconceituosas sobre aquele de
quem se fala. Nas palavras de Janaína Damasceno,

produzir estereótipos serve para a manutenção tanto da ordem social


quanto da ordem simbólica de nossa sociedade. As dificuldades im-
postas pelo seu uso se referem ao seu caráter de reduzir, essencializar,
naturalizar e fixar a diferença do Outro. Para tanto, o estereótipo usa a
“cisão” como estratégia. Ele divide o normal e o aceitável do anormal
e do inaceitável. Então exclui ou expele tudo aquilo que não se adapta,
que é diferente (HALL apud DAMASCENO, 2008, p. 3).

Logo nos primeiros momentos do documentário de Jhally vemos as ce-


nas de um dos clássicos da Disney, Aladim (1992). O desenho começa com
uma canção que diz: “Venho de um país, de uma terra longínqua, onde va-
gam as caravanas de camelos, de onde cortam sua orelha, se não gostam
de sua cara. É bárbaro, eu sei, mas, hey, esse é meu lar”. O apresentador do
documentário, o professor Jack Shaheen, então nos interroga: “como um
produtor com o mínimo de inteligência, com uma sensibilidade mínima, per-
mite que uma canção assim inicie um filme?”.
Esses exemplos iniciais, aparentemente descolados da questão de gê-
nero, nos ajudam a dar uma dimensão crítica e abrangente aos produtos cul-
tuais, sejam desenhos animados, contos de fadas, filmes diversos, romances,
novelas, e até propagandas de TV. Trouxe-os a fim de propor que agucemos
nosso olhar, que aprendamos a ler as várias camadas de significados que
compõem e conferem sentido a essas produções. Assim, podemos pensá-
-las não apenas como nocivas, mas nos aproveitarmos delas para fazer pen-
sar. Afinal, atualmente não temos como

esquecer [...] a sedução e o impacto da mídia, das novelas e da publi-


cidade, das revistas e da internet, dos sites de relacionamento e dos
blogs? Como esquecer o cinema e a televisão, os shopping centers
ou a música popular? Como esquecer as pesquisas de opinião e as de
consumo? E, ainda, como escapar das câmeras e monitores de vídeo e
das inúmeras máquinas que nos vigiam e nos “atendem” nos bancos,
nos supermercados e nos postos de gasolina? Vivemos mergulhados
em seus conselhos e ordens, somos controlados por seus mecanismos,
sofremos suas censuras. As proposições e os contornos delineados por
essas múltiplas instâncias nem sempre são coerentes ou igualmente
Desfazendo o gênero | 125

autorizados, mas estão, inegavelmente, espalhados por toda a parte e


acabam por constituir-se como potentes pedagogias culturais (LOURO,
2008, p. 19).

Quero que vocês se concentrem bastante na ilustração que escolhi para


pensarmos sobre essas formas quase “inocentes” de pedagogizar os gêne-
ros. As imagens também são textos e precisamos treinar esta leitura, assim
como ensinar essas leituras para nossas alunas e nossos alunos.

Figura 2 Montagem de Bruno Braga.

O que eu leio nesta imagem, que deve ter recebido umas 100 curtidas
no Facebook, é que o homem fala; o homem é ativo; homem que é homem
é dono de si e de uma mulher e usa violência legitimamente se for preciso
para garantir estas posses.
Mas, vejam, não é qualquer projeto de masculinidade que vemos aí (por
isso eu dizia mais acima que aqueles filmes não falam só de regimes políticos
ou de pertencimento racial, mas também de projetos de gênero). Trata-se
de uma masculinidade branca, burguesa, classe média, engravatada, com
poder de consumo... Uma masculinidade que está acostumada a oprimir
outras masculinidades e muitas feminilidades. Gênero, sexualidade, classe
e raça são marcadores sociais que estão sempre relacionados, ainda que
muitas vezes não os percebamos assim.
Essa imagem nos ajuda a entender que gênero é algo que se aprende a
partir de pedagogias domésticas, escolares e midiáticas. Vocês sabem que
aprendemos a sonhar, a desejar, a recusar, vendo filmes, novelas, propagan-
das. Claro que nossas alunas e nossos alunos também agem desta forma.
Aprendem, por exemplo, que rosa é cor de menina e azul de menino vendo
as persistentes propagandas de brinquedos. Sonham em serem mais bem
126 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

aceitas ou aceitos se conseguirem se parecer com ídolos da música pop, as-


sim como aprendem que ser igual ao “gay da novela” ou à “piriguete” é algo
ruim. Quase sempre, personagens assim funcionam a partir de estereótipos,
são tipos e não seres humanos complexos, como, aliás, somos tod@s nós.
Os materiais didáticos são também importantes fontes de referências.
Orientam nosso olhar e moldam nossos valores a partir de mensagens apa-
rentemente simples e inocentes. Quando, por exemplo, trabalhamos com
uma cartilha na qual a família é toda branca, mora em uma casa de alvenaria,
é formada por pai, mãe e por um casal de filhos e a lição se chama “A família
feliz”, @s alun@s vão aprendendo que esse é o modelo desejável, e que nem
sempre ele se parece com a sua própria família. Ao desconsiderarmos outros
arranjos domésticos, os desprestigiamos também, vamos construindo silen-
ciosamente fronteiras entre o norma = desejável e o anormal = desprezível.
Uma das professoras que participou do curso de formação continuada
GDE, ofertado pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), trouxe um
exemplo que nos ajuda a seguir com essa reflexão. Escreveu ela em um dos
fóruns de debates:

[...] Hoje, durante uma capacitação de determinado sistema de ensino


(que o município em que atuo como profª e coordenadora vai adotar),
estive diante de uma situação de claro equívoco. Numa apostila (para
crianças de Pré II – 5 anos) havia a imagem de um quarto, com cama, ta-
pete, abajur, boneca, ursinho etc. No rodapé havia uma pergunta: “Este
quarto é de menina ou menino?”.

A cursista e professora, autora da postagem acima, levou em frente essa


discussão com as(os) colegas, que não sabiam exatamente como conduzir a
turma para a resolução “correta” do exercício.
Bem, a primeira questão que aparentemente está posta nesse treina-
mento é a de educar para exercer “corretamente” os lugares de gênero:
coisas de menino X coisas de menina; comportamento de menino X com-
portamento de menina; do que gostam (ou devem gostar) meninos X os
gostos de meninas.
Mas se mudarmos nosso olhar, mudamos também a pergunta, ou melhor,
vamos elencar uma série de outras perguntas que estão silenciadas pelo
enunciado desse exercício proposto no curso de “capacitação” (permitam-
-me colocar entre aspas, pois tenho dúvidas sinceras sobre para o que e
como se está capacitando com este tipo de dinâmica).
Desfazendo o gênero | 127

Creio que a primeira pergunta sobre a ilustração do quarto pouco tem


a ver com gênero, mas com outro importante marcador das diferenças so-
cialmente impostas: a diferença de classe social. Creio que a pergunta que
mais faria sentido para nossas alunas e nossos alunos seria se aquele quarto
é de “rico” ou de “pobre”, para usarmos a linguagem do senso comum.
Quantas crianças que estão hoje nas escolas públicas têm um quarto indi-
vidual e inteiramente decorado? Quantas dormem em uma cama sozinhas,
sem ter de dividi-la com a mãe, a tia, algum dos irmãos? Podemos continuar
perguntando, mas não quero ser exaustiva. Voltemos ao ponto de torção
que considero importante.
Em um exercício como o proposto àquelas professoras e aqui narrado
pela cursista, estamos aprendendo a ver, a ler imagens, mas também esta-
mos aprendendo (e posteriormente ensinando) sobre silêncios. Silenciamos
sobre as diferenças de classe em uma atividade como esta, mas também
silenciamos sobre as inúmeras possibilidades de se viver em família, de se
experienciar o gênero e mesmo a raça e a etnia. Ensinamos que existe um
modelo “certo” de se viver, morar, dormir, organizar a vida doméstica e de
enfeitar o ambiente. Quer dizer, quem não consegue enxergar ali um quarto
de menina, errou, pois aquele quarto tem muitas outras informações. NÃO
é um quarto de uma criança das classes populares, NÃO é um quarto de
uma criança indígena, NÃO é um quarto onde dormem meninos e meninas,
NÃO é um quarto de uma criança católica... e por aí vai. De quem será então
este quarto? De uma hipotética menina perfeitamente ajustada ao modelo
hegemônico de gênero, classe e raça, como costumam ser as princesas dos
desenhos da Disney.
Quando oferecemos às nossas crianças e adolescentes uma pluralidade
de estórias, estamos também ofertando um mundo mais diverso de possibi-
lidades de verem o mundo e de se verem nele. Vejam, a única princesa negra
da Disney nem sequer era uma princesa, mas uma jovem empreendedora
que sofreu um encanto e se transformou em sapa, voltando à forma huma-
na com a ajuda de encantamentos e, claro, de um sapo/príncipe fanfarão e
meio falido, proveniente de uma país “exótico”. Nada de príncipes europeus
e heroicos para a humilde e batalhadora Tiana de A Princesa e o Sapo (2009).
Sim, pela primeira vez meninas negras puderam se ver como heroínas
de contos de fada – não podemos desprezar este fato –, mas quando essa
possibilidade apareceu, lá estavam elas como mulheres submetidas ao tra-
balho árduo e à condescendência dos brancos. Pelo menos saímos do clichê
128 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

mocinha cordata e meiga, à la Cinderela, e mocinhos galantes e valentes, do


tipo que monta cavalos brancos e parece não ter uma mácula, nem em suas
roupas, nem em sua vida, para uma trama mais nuançada.
Em um vídeo imperdível gravado a partir de uma palestra que realizou,
a escritora nigeriana Chimamanda Adichie nos alerta para os perigos das
estórias/histórias únicas (ver a referência nas dicas de materiais audiovisuais
no final deste capítulo). Ela conta que foi uma leitora e uma escritora preco-
ce. Filha de profissionais liberais, lia avidamente livros ingleses, herança dos
anos de colonização britânica em seu país, a Nigéria, leituras que impregna-
vam sua imaginação infantil e a estimulavam a contar, ela também, estórias.
Mas como só lia livros que falavam da realidade britânica, suas narrativas
ficcionais falavam de neve, frutas europeias e de pessoas que nada tinham
que ver com a realidade dela; porém, era bom poder viajar por meio dos
livros. “Eu escrevia exatamente sobre o que lia”, revela a escritora. Essa ex-
periência foi tão significativa que, para ela, livros eram sempre estrangeiros.
Por isso ficou gratamente surpresa quando descobriu diferentes escritoras e
escritores african@s e assim encontrou a si mesma nas páginas que antes só
tinham pessoas de olhos azuis e peles brancas. Isso mudou sua mentalidade,
pois aqueles livros a salvaram “de uma história única”, de ser invisível para a
literatura, de não poder ler ou escrever sobre pessoas e coisas nas quais se
reconhecia.
Adichie conta, ainda, que aos 19 anos foi estudar em uma universidade
norte-americana e que lá sua colega de quarto logo a olhou com imensa
compaixão, pois imaginou a fome que Chimamanda Adichie havia passado,
de como deveria ter tido uma vida precária longe da “civilização” (que pelo
menos desde as Grandes Navegações está associada à branquitude). Quis
saber onde sua colega africana havia aprendido a falar tão bem inglês, como
tinha conseguido estudar e se preocupou se ela saberia usar um fogão.
Interessante é que não aprendemos a ver a moça norte-americana como
ignorante (no sentido lato de ignorar fatos), pois ela nem sequer sabia que a
Nigéria havia sido colônia britânica, daí o inglês de Adichie, ou que se trata
de um país que tem hoje uma das economias que mais cresce no mundo,
que é o mais populoso da África, onde é uma potência regional. Mais fácil
para nós seria reproduzir a “arrogância bem intencionada” (palavras de Adi-
chie) da estudante branca, pois, como ela, nós também só tivemos acesso à
história única, aquela que trabalha com os estereótipos, que é unidimensio-
nal, maniqueísta, aquela que deixa a vida monocromática.
Desfazendo o gênero | 129

Como Chimamanda Adichie, não creio que ler livros estrangeiros ou ver
novelas das oito ou ler estórias de princesas loiras seja um problema por si.
Como ela, penso que o problema se dá justamente quando ficamos limita-
das e limitados a um único tipo de mensagem, não importa o meio pelo qual
esta seja veiculada.
Mariana Barros, psicóloga e antropóloga, inicia sua tese de doutorado
contando sobre seu trabalho em uma Escola Municipal infantil em um bair-
ro da periferia da cidade de Ribeirão Preto (SP). Como estagiária cabia-lhe,
entre outras atribuições, reunir-se com a criançada no pátio para contar estó-
rias. Mariana ficava um tanto frustrada por não conseguir toda a atenção das
crianças, mas se sentia acolhida por elas, que logo começaram chamá-la de
“tia sereia”. Ela ficou intrigada com o apelido e argumentou, certa feita, que
não tinha cabelos ruivos como os de Ariel, a pequena sereia dos filmes de
Disney; além disso, ela tem pernas. Intrigada com o novo apelido, resolveu
perguntar ao seu supervisor de estágio o que aquilo poderia significar. “Ma-
riana, esta sereia está mais para Iemanjá do que para outra coisa” (BARROS,
2010, p. 22).
A curiosidade de Barros só aumentou. Foi então que ela procurou saber
mais do universo mitológico das religiões de matriz africana. Percebeu logo
que não havia livros infantis que contassem estes contos. Teve que usar a
imaginação, pois percebeu que ali havia todo um mundo rico e imaginativo
que parecia falar mais de perto às crianças do que suas estorinhas, que não
prendiam muito a atenção. Fez fantoches representando as figuras dos ori-
xás e passou a contar seus mitos.

Na primeira apresentação, estava rodeada de nada mais, nada menos,


do que quarenta crianças. Para chamar-lhes a escuta em minha direção,
iniciei com um sonoro “Cabrum!”, e mais outro e mais outro, simulando
o barulho do trovão evocado por Xangô. Todos silenciaram e abriu-se
espaço para a primeira história: “Xangô, o rei trovão”.

[...]

Mal comecei a história, um dos meninos perguntou: “Tia, Xangô era


preto?”. Quando afirmei que sim, ele repetiu: “Preto assim, tia? Preto
que nem eu?”, apontando para sua pele. Reafirmei. O menino levantou
apressado, saiu correndo com os braços para o alto e o sorriso nos lá-
bios, encarnando legitimamente um rei-herói: “Eu sou rei! Eu sou o rei
do trovão!” (BARROS, 2010, p. 23).
130 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Talvez, aquela tenha sido a primeira vez que o aluno de Mariana Barros
pode se orgulhar de ser negro e de ter referências positivas relacionadas à
negritude. A psicóloga não pretendia converter-se nem converter ninguém
com suas estórias de orixás, mas ampliar a imaginação da garotada. Não
foi propriamente fácil fazer isso, pois logo deparou-se com a escassez de
material didático e, por sorte, não se deparou com resistências religiosas
dentro da escola ou vinda dos pais. Mas se tivesse se deparado, como ela
poderia proceder?
Não há uma única resposta para esta pergunta, mas existem condutas
para as quais devemos estar atentas e atentos. Uma delas é levar nossos
projetos ao conhecimento da coordenação/direção, defendê-los e pedir
respaldo e apoio. Convidar pais e mães para vir eles mesmos, ler as estórias
ou ouvi-las. Mesmo que não venham, serão comunicados do que estamos
fazendo e do por que o fazemos, além de se sentirem mais integrados. Não
estou afirmando que isso resolve o problema, apenas sugerindo que são
passos que podem evitar desentendimentos.

Gênero na mídia, diálogos possíveis e tensões necessárias


As estórias infantis alimentam nossa imaginação tanto quanto nos forne-
cem modelos morais, éticos e identitários, não só de gênero, mas também
relativo a outros lugares sociais: como ser uma boa criança; o que é uma boa
mãe ou um bom pai; como devemos nos comportar como alunos(as), a ser
mulher e a ser homem.

Vamos aprendendo a ser sujeitos generificados desde o momento em


que nascemos, e essa aprendizagem ocorre não somente nas institui-
ções sociais formais como a família e a escola. Ela acontece também
através da mídia, dos brinquedos, das músicas e dos desenhos anima-
dos que integram este universo infantil (RAEL apud BELELI, 2010, p. 65).

Contemporaneamente, talvez as mensagens que mais eficazmente atu-


am como referentes morais, valorativos e identitários venham do campo da
publicidade. A linguagem conotativa e apelativa da propaganda é, além de
sedutora, ligeira, rápida, mas impregnada de significados, cheia de signos
que nos permitem, como educador@s, explorá-la grandemente. Afinal,
como afirma Ruth Sabat,

[a] publicidade é um dos artefatos que estão inseridos em um conjunto


Desfazendo o gênero | 131

de instâncias culturais e como tal funciona como mecanismo de re-


presentação, ao mesmo tempo em que opera como constituidora de
identidades culturais. Muito mais do que seduzir o(a) consumidor(a), ou
induzi-lo(a) a consumir determinado produto, tais pedagogias e currícu-
los culturais, entre outras coisas, produzem valores e saberes; regulam
condutas e modos de ser; fabricam identidades e representações;
constituem certas relações de poder (SABAT, 2001, p. 10).

A análise que nos oferece Iara Beleli, a partir de uma peça publicitária,
nos ajuda a perceber como, mesmo sem sermos consumidor@s das merca-
dorias postas à venda pelos anúncios, somos consumidores de suas mensa-
gens e nos orientamos, em maior ou menor grau, por elas.

Figura 3 “Um sujeito careca e desdentado me convenceu a fazer um


seguro”.

As fotografias apontam para diferentes enquadramentos – a primeira


centrada na bunda, a segunda na face. Se ambas as imagens mostram
bebês desnudos, a nudez quando vinculada à “mulher” transforma a
ausência de vestimenta (uma primeira definição do substantivo nudez)
em adjetivo. Na segunda imagem, essa mesma nudez não é mencio-
nada, em seu lugar aparece o “sujeito” que faz a ação. As imagens,
sozinhas, não permitem afirmar o sexo dos bebês, a diferença sexual
é explicitada quando articulada ao texto, ecoando as afirmações de
Judith Butler (2002), que o sexo adquire sua materialidade através de
um discurso engendrado [de gênero] (BELELI, 2010, p. 66).

Judith Butler, autora citada por Beleli, afirma que o gênero é discursivo,
quer dizer, vai sendo construído por distintas linguagens que, mais do que
descrevê-los, formam o que ele é. Vejamos. Quando o médico diz “é uma
menina”, mais do que descrever o que viu no ultrassom, ele está oferecendo
132 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

todo um roteiro cultural aos pais daquela criança. Provavelmente, saíram do


consultório em busca de ornamentos rosados para o quarto do bebê, ima-
ginaram um futuro no quais profissões tidas como femininas serão elenca-
das, imagina-se um rapaz em seu futuro amoroso..., de forma que o gênero
da criança já aparece estreitamente vinculado à sua genitália, como se ele,
o gênero, derivasse da vagina ou do pênis e não destes tantos discursos
normativos que nos ensinam persistentemente o que é ser uma “mulher de
verdade” ou um “homem de verdade” (BUTLER, 2003).
A publicidade, mais do que nos manipular como se fosse uma força ma-
ligna e externa à sociedade, dialoga com as percepções coletivas, por isso
seduz, pois não questiona ou entra em conflito, ao contrário, via de regra,
reitera o senso comum, tratando as posições dominantes como se elas fos-
sem as únicas, as normais, as desejáveis. Isto se dá não só no campo das
relações de gênero, mas são estas que nos ocupam neste capítulo, por isso
nos concentraremos nelas.
O cinema também é um canal potente e sedutor nesse sentido. Lembrei-
-me de uma comédia de grande sucesso do cinema brasileiro contemporâ-
neo, Se eu fosse você (2006), na qual os protagonistas (atores globais) trocam
de corpo, revivendo uma clássica fórmula do cinema americano, na qual um
ardente desejo conjugado com algum fenômeno meteorológico ou sobre-
natural faz com que as personagens passem a habitar uma o corpo da outra.
Assim, Cláudio (Tony Ramos) passa a ter o corpo de Helena (Glória Pi-
res) e vice-versa. A partir daí, uma série de situações confrontam os dois
com os “papéis de gênero” (ver no box Questões persistentes um pouco
mais a fundo este conceito) estabelecidos socialmente, criando situações
embaraçosas e cômicas. O filme é divertido, mas absolutamente reiterador
e naturalizador das relações sociais e de gênero. O fato de ser leve e cômico
ajuda imensamente essa naturalização conservadora.
Em uma das cenas finais, Helena e Cláudio, ainda com as almas trocadas
(ou seriam os corpos?) conversam após a apresentação bem-sucedida do
coral infantil regido por Helena, quer dizer, naquele momento foi ensaiado e
regido por Cláudio. O sucesso da apresentação do coral se deveu pela ino-
vação e criatividade que Cláudio-Helena levou para o grupo. Helena-Cláu-
dio reconhece que o marido foi criativo. Tony Ramos, encarnando Helena,
argumenta que mulheres são mais sensíveis e que isso ajuda na criatividade.
Glória Pires, no papel de marido, fala da força dos homens.
Desfazendo o gênero | 133

• Depende o que você chama de força – retruca a esposa, ainda no corpo


masculino.
• Estou falando de músculos! – enfatiza o marido de forma taxativa; vira-se
e começa a subir as escadas da bela casa do casal.
• Só que você se esqueceu que agora os seus músculos agora estão co-
migo! – retruca Tony Ramos-Helena, subindo as escadas e entrando na
suíte matrimonial.
• Na verdade, só músculos não quer dizer nada. O importante é saber
usá-los – ensina com autoridade Glória Pires-Cláudio.
Aí, faz uso de seus músculos: derruba a esposa na cama, gira sobre o seu
próprio corpo quase que como um ninja e prende Tony Ramos-Helena entre
suas pernas. Começa, então, a passar o cabelo de forma sensual, mas domi-
nadora sobre o rosto da esposa entregue. Terminam a “guerra dos sexos”
fazendo sexo.
Claro que ao final, após muitas trapalhadas, o casal consegue desfazer
a troca. O filme termina com tudo em seu “devido lugar”: ele dirigindo seu
carro potente, utilitário e moderno; ela no banco de carona, concordando
com as coisas que ele diz, como quem não quer assentir completamente.
A voz em off é de Glória Pires e conclui o seguinte: “Mulher e homem são
dois bichos estranhos”. Corta. Agora vemos o interior do carro, Cláudio, ao
volante, completa: “Vênus e Marte, dois planetas diferentes”. E ela:
• É! – concorda, dando de ombros como quem constata uma verdade
definitiva.
• Este é um problema que nunca vai se resolver – completa ele, divertido.
• É, concorda ela novamente, emendando: não é um problema que tenha
solução.
• Porque, na verdade, não é nem mesmo um problema!
• É!! – concordam em uníssono.
• É a vida! – falam outra vez, juntos.
Ou seja, o mundo das relações de gênero é assim, não muda! Não há
o que fazer, aliás, para mudá-lo, pois “é a vida”! Uma vida na qual homens
e mulheres são criados para se perceberem como absolutamente distintos
e não parceiros. São até mesmo de planetas diferentes. O homem, sempre
superior e mais centrado do que a mulher, veio do planeta Marte, deus mito-
lógico da guerra. A mulher, de Vênus, deusa do amor, seria aquela mais frágil
134 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

emocionalmente, por isso mesmo preocupada com questões menores e um


tanto egoístas. Quer dizer, a falta de compreensão entre homens e mulheres
pouco tem a ver com a forma como somos educadas e educados, mas pelo
fato de virmos de mundos diferentes e hierarquizados. Custo a entender
como isso pode contribuir para que tenhamos casais heterossexuais mais
felizes, famílias com menos violência doméstica, homens mais solidários e
mulheres mais maduras. Ou não é isso que queremos?
O irônico é que ao biologizar e naturalizar o que é social e político,
como o gênero, a direção do filme (Daniel Filho) mostra também o quanto o
gênero é performativo: quer dizer, um aprendizado constante que faz com
que incorporemos, literalmente, discursos, normas e convenções sobre os
gêneros. Isso fica claro na forma como ambos os atores (sem querer tirar-
-lhes o mérito profissional) são capazes de incorporar outro gênero, mesmo
mantendo-se com os seus próprios corpos.
O interessante é que quando, em uma das ofertas do curso de forma-
ção continuada GDE, pedi uma resenha d@s cursistas a partir do filme em
questão, o que se passou, apesar das muitas leituras e discussões já feitas,
foi uma comemoração à produção global. As pessoas acharam o filme di-
vertidíssimo, riram o riso conservador, sem nenhum momento rir do esforço
que se fez o filme inteiro para provar que homens são de Marte e mulheres
de Vênus.
Menciono esse fato porque acho que nos ajuda a pensar como estamos
lidando com estes produtos culturais. Como estamos contribuindo (ou não)
para que nossas alunas e nossos alunos sejam capazes de duvidar do riso
conservador. O quanto acabamos sendo cúmplices de processos pedago-
gizadores que fomentam violências simbólicas enquanto fingem só querer
nos divertir.
Ninguém, naquele grupo, atentou para o fato de que o filme não fala-
va só de gênero, mas também de classe social. As mulheres e os homens
ali eram todos brancos, com filhos e filhas estudando em escolas privadas,
residindo em casas com piscina, dirigindo carros caros e vivendo em uma
grande cidade. Mas isto também não foi observado: o fato de que mulhe-
res das áreas rurais talvez tenham os mesmos “músculos” que Cláudio, pois
precisam deles desde muito novas, não parece ser relevante. Mais fácil é
pensarmos como presas, todas, a uma anatomia que traça destinos iguais,
tampouco se observou que homens pobres e não brancos são muitas ve-
zes feminilizados por serem vistos como inferiores e menos racionais. Ou
Desfazendo o gênero | 135

seja, o filme deu visibilidade apenas a um segmento pequeno da sociedade


brasileira, mas não o tratou como minoria, ao contrário, o apresentou como
sendo a norma.
Vocês podem achar que estou forçando a barra, mas quero convencê-
-l@s de que não. O humor, elemento central do filme descrito, é um potente
elemento de reiteração da ordem. Pode também funcionar como transgres-
sor, mas, no nosso cotidiano, o temos acionado muito mais com o primeiro
propósito. Basta que prestemos atenção em nossas piadas. Quais são os
temas mais recorrentes? Pensaram? Há um vasto arsenal de chistes sobre
negros, pobres, mulheres, gays. “Coincidentemente”, grupos sociais que
foram historicamente subalternizados pelos saberes dominantes.
O riso funciona, no filme em questão, como uma espécie de distencio-
nador dos conflitos entre mulheres e homens, mas também como um rei-
terador desses lugares apresentados como antagônicos e cristalizados no
tempo. Mas nós, educadoras e educadores, precisamos, sim, levar o humor
muito a sério. Por exemplo, como lidar com as piadinhas desqualificadoras
em sala de aula? Sabemos que reprimi-las, fazer “sermões”, tendem apenas
a reforçá-las. Talvez um bom caminho seja usar a própria mídia para descons-
truir algumas posições naturalizadas, transgredir o riso conservador.

Beijo de novela, do que temos medo quando a sexualidade entra em sala?


Uma professora, cursista do GDE, conta que, juntamente com um colega
de trabalho, resolveu aproveitar o furor estabelecido em sala com o último
capítulo da novela Amor à vida (Rede Globo, 2013) e fazer uma discussão so-
bre a cena motivadora daquela falação toda. Tratava-se do badalado “beijo
gay”. Na cena, um casal de rapazes, que está vivendo maritalmente já há al-
gum tempo, se beija na boca (de boca fechada, nada de beijo de língua). No
momento do beijo, os relógios, acertados pela hora de Brasília, marcavam
mais de 22 horas. Acho importante registrar esse dado, pois sabemos das
restrições jurídicas para a transmissão de determinados programas e cenas
por meio televisivo. Assim, se as crianças viram não foi porque passou em
horário de programação livre, mas porque suas famílias permitiram.
A turma em questão era composta de meninos e meninas na faixa dos
9 anos de idade, mas com claras posições relativas à cena do beijo. A crian-
çada se mostrava avessa àquela manifestação de afeto entre dois homens.
Tanto meninas quanto meninos usaram adjetivos desqualificadores para se
referirem aos personagens gays e mostraram asco pelo beijo. A professora
136 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

e o colega que a acompanhava naquele dia perguntaram por que aquele


beijo, que era uma demonstração de amor, parecia nojento e o beijo dado
pela atriz Bárbara Paz em um rapaz, que encarnava um personagem de ín-
dole duvidosa, não o era? Ela e ele queriam apenas prosseguir a discussão,
interrogando a turma, tão afoita diante do desfecho da trama, sobre o por-
quê de um ato de carinho ser recusado e o outro ser recebido com quase
indiferença.
A professora remontou a cena em que cada beijo foi dado. Na primeira,
os rapazes se olham com ternura, trocam palavras doces e desejam um ao
outro um dia feliz. Então, se beijam (de boca fechada) e se separam para que
cada um assumisse seus afazeres. Um deles cuidava de um restaurante de sua
propriedade, e o outro cuidava da sua própria pousada e do pai inválido. Um
pai que o recusou a vida toda, justamente por conta da sexualidade do filho.
O beijo “hétero” se deu quando a protagonista da cena abandona o
noivo no altar, pois iria se casar com ele por interesse financeiro. Foge do
cartório levando pela mão o rapaz que diz amar. Na cena seguinte, o ca-
sal aparece em um espaço público da cidade de São Paulo, beijando-se,
abraçando-se com furor sexual. Ela tem a maquiagem borrada e o vestido
de noiva rasgado, ele está sem camisa. Ambos correm, param, se beijam
novamente, de modo voraz. Parecem alterados. Mas talvez seja o amor, não?
Ao descrever as cenas com palavras que deslocavam valorativamente
cada uma das manifestações de afeto, a professora também as ressignificou,
o que fez com que a turma tivesse a oportunidade de “ver” a mesma cena
de novo, mas por outro prisma. Não interessava àquela professora promover
o beijo gay ou o hétero, mas sim promover uma outra reflexão para as formas
como nos relacionamos, como vemos a diferença e a tratamos. Por que a
diferença se tornará, no burburinho da sala, um defeito? Ela deu a eles a
oportunidade de não ficarem com a “estória única”.
Porém, há ainda uma pergunta que não quer calar: por que foi o beijo
entre rapazes aquele que causou nojo e críticas severas das crianças? A per-
gunta é retórica, pois sabemos a resposta. Ela tem a ver com gênero, mas
também com sexualidade.
Ainda que a sexualidade seja tema para o próximo capítulo, creio que
vale a pena antecipar algumas discussões aqui, mesmo porque gênero e se-
xualidade, já disse diversas vezes aqui, ainda que não sejam a mesma coisa,
são temas extremamente relacionados.
Desfazendo o gênero | 137

Vamos começar pela cena do beijo do casal heterossexual. Creio que a


(não) reação das crianças diante da cena relaciona-se com a visibilidade le-
gítima e prestigiosa pela qual aprendemos a respeitar a heterossexualidade.
Os produtos culturais (filmes, romances, novelas, propagandas), as
reuniões familiares, os espaços de lazer, promovem e cultuam as parcerias
heterossexuais e os corpos bem-conformados aos padrões binários, raciais
e estéticos, de maneira que naturalizamos esses privilégios entendendo-os
como normais e naturais, e não como construções políticas que relegam às
margens aqueles e aquelas que não se adéquam, não se conformam, não
conseguem ou mesmo recusam esses limites. Assim, os transformamos em
“MINORIAS”, quer dizer, minoramos suas reivindicações, seus problemas,
suas angústias (lembram-se que Helena e Cláudio, mesmo fazendo parte de
uma minoria social, foram tratados como maioria cultural?).
Assim, fomos aprendendo a ver homossexualidade como anormal. A
primeira pergunta talvez seja: Como chegamos a considerar alguma coisa
normal? Por que certos comportamentos são entendidos e classificados
como anormais? Por meio de quais saberes, de quais discursos, formamos
esses conceitos? Como crianças de 9 anos de idade aprenderam que um
beijo entre dois homens que se amam é asqueroso e um entre uma mulher e
um homem é bom, permitido e, até, bonito?
No caso dos comportamentos sexuais, pelo menos desde o século XIX,
as sociedades ocidentais, ou as que seguem seu modelo, alocaram a sexua-
lidade no terreno da psicologia e da medicina, deslocando-a do campo mo-
ral da religião. Se neste último campo as práticas sexuais entre pessoas do
mesmo sexo podiam implicar em pecado, no campo científico elas se trans-
formaram em anormalidade, em patologia, podendo, assim, ser curadas. O
campo jurídico também deu sua contribuição no sentido de penalizar as se-
xualidades dissidentes da norma burguesa, leia-se: heterossexual, monogâ-
mica (pelo menos em tese), procriativa e monitorada por saberes médicos.
Assim, não só homossexuais corriam risco de serem processados, presos
e submetidos a intervenções cirúrgicas como a lobotomia, mas prostitutas,
crianças “masturbadoras” e pessoas da classe operária (considerada promís-
cua pela burguesia) podiam ser igualmente punidas, vigiadas, esterilizadas.
Desse modo, a sexualidade passou a constituir-se cada vez mais a pró-
pria verdade do sujeito. Ele (sujeito) era o que ela (sexualidade) o transfor-
mara. Desde então, heterossexualidade e normalidade estão profundamen-
te associadas, de maneira que tendemos a não saber como lidar com os
138 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

gêneros que escapam ao binário e/ou com as sexualidades dissidentes da


norma heterossexual. A tendência é recusarmos em nós e/ou nos outros es-
ses “desvios”, percebendo-os como anomalias, erros, falhas que só podem
acarretar em infelicidade. E acabam acarretando mesmo, como uma profecia
autorrealizada, uma vez que passamos a tratar essas questões como proble-
ma, e não como uma possibilidade outra de vida, de amar, de se relacionar.
Não sabemos sonhar, idealizar, educar fora desse registro heterossexualida-
de, a qual, por sua vez, associamos a uma perfeita conformidade entre sexo
genital, gênero social e desejo sexual.
Há, assim, um grande mito de que pessoas homossexuais são vorazes
sexualmente (mesmo quando ainda são crianças). Há também a crença
difundida de que estas pessoas não são normais ou sanas, que são con-
traventoras. Assim, muit@s de noss@s alun@s não querem se associar a
ninguém que tenham estas marcas com receio de serem confundidos como
sendo também homossexuais. Cabe a nós ressaltar o que noss@s alun@s
que escapam à norma heterossexual têm de positivo, valorizar o que fazem
bem, incluí-l@s em atividades prestigiosas, mas sem vitimizar estas pessoas.
Tratar os diferentes como iguais pode ser injusto (por exemplo, querer que
um aluno com paralisia infantil jogue futebol com os demais), mas tratar a
diferença como parte da realidade da escola e da vida, mostrando que há
espaço para ela (por exemplo, o aluno com paralisia pode não ter o mesmo
desempenho que os outros na hora do drible, mas pode ser um ótimo go-
leiro, para tanto é preciso que a chance seja dada, ou pode se destacar em
outras modalidades).
Trabalhar com produtos midiáticos pode nos dar uma excelente oportu-
nidade para adentrar nestes temas, o que não diminui o desafio, mas, cer-
tamente, aumenta o prazer e o interesse de quem ensina e aprende. Pode
nos ajudar, inclusive, a tirar a sexualidade do marco do perigo, da doença
e do risco, porque é quase sempre assim que ela entra na escola, seja para
falar de aids e doenças sexualmente transmissíveis, seja para falar dos peri-
gos da gravidez na adolescência. Quase nunca falamos de sexo como fonte
de prazer e de estabelecimentos de vínculos. Perdemos a oportunidade de
falar com nossas alunas e alunos sobre algo que acontece todos os dias sob
nossos narizes: os encontros, os beijos, o desejo, os namoros. Abordando-os
como questões sérias, porque delicadas, pois envolvem sentimentos e afe-
tos, mas também aprendizados, dos quais, por despreparo ou moralismos,
deixamos de participar.
Desfazendo o gênero | 139

Também deixamos de problematizar, como assunto digno de figurar no


currículo, as chacotas que minoram marcas de classe, raça e gênero ou as
violências ocorridas nos portões da escola, nos banheiros e pátios. Natu-
ralizar ou assumir uma postura de pretensa neutralidade não faz com que
os problemas desapareçam ou diminuam, mas podem nos fazer cúmplices
involuntári@s de violências que podem terminar em evasão escolar.
Por fim, aposto grandemente no trabalho com mídias diversas em sala de
aula, pois nos valendo dos diversos produtos culturais temos mais chances
de provocar as turmas a também contarem suas histórias com protagonismo
e criatividade. Podemos, assim, lidar com linguagens distintas e estimulan-
tes e nos surpreender positivamente com os produtos que noss@s alun@s
podem elaborar.
Trazer o cotidiano vibrante e colorido da publicidade para dentro da sala
de aula pode ser um excelente mote para pensarmos criticamente sobre po-
breza e riqueza, e assim sobre desigualdades sociais e direitos civis, além de
oferecer material estimulante para pensarmos questões de gênero, raciais,
geracionais, religiosas. A música também pode ser um eficaz disparador de
discussões. Pensei no clássico Paula e Bebeto, de Milton Nascimento (dá
para acessar a letra por: <http://www.vagalume.com.br/milton-nascimento/
paula-e-bebeto.html>), como trilha para as cenas dos beijos narradas acima.
Podemos pedir que a própria turma traga suas músicas preferidas para que,
assim, comecemos um diálogo mais horizontal, no qual também aprende-
mos com nossas alunas e alunos.
Tod@s nós, que já nos deixamos, algum dia, impactar por um filme, sabe-
mos que a magia do cinema pode ser suficientemente sensibilizadora para
motivar projetos coletivos dentro da escola, nos levando a oferecer uma edu-
cação na qual a práxis seja o motor das ações. Práxis diz respeito à atividade
livre, universal, criativa e autocriativa, pela qual o ser humano cria (faz, produz)
e transforma (conforma) seu mundo e a si mesmo (BOTTOMORE, 1997).
Com o intuito de proporcionar algumas ideias mais e deixar dicas para o
trabalho de vocês, apresento a seguir quadros com sugestões de materiais
audiovisuais, além de um quadro com questões persistentes, quer dizer,
aquelas que apareceram sempre no meu trabalho com a temática de gêne-
ro. Sugiro, ainda, dinâmicas em grupo que podem ser excelentes ferramen-
tas de trabalho.
140 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

UNIDADE 4
Atividades propostas – dicas, sugestões e mais questões

Nas diversas ocasiões em que trabalhei com professoras e professores


sobre a temática de gênero, algumas questões se fizeram sempre presen-
tes. Acredito que esta persistência se deva ao fato de elas sintetizarem per-
cepções bastante arraigadas sobre o tema, mas também mostram o quão
desafiante tem sido trabalhar com e no ensino básico neste País. Acredito
que muitas daquelas questões sejam também questões de vocês, por isso
as pontuo a seguir:

• Qual escola sonhamos? Qual a escola queremos para noss@s filh@s? Responder
a estas perguntas exige que façamos um exercício fantástico, que é o de se co-
locar no lugar do outro. Este movimento não é fácil, mas nos ajuda a conferir ao
outro sua dimensão humana. A escola que queremos está em construção, e por
vezes nos sentimos impotentes. Escola tem que repensar práticas – o que fazer?
Essa é uma pergunta que nos angustia quando imergimos nestas reflexões. Bem,
já estamos fazendo quando estamos aqui, lendo, nos qualificando, debatendo
e nos deixando provocar. Creio que uma leitura provocativa, uma formação es-
timulante faz de cada um(a) de nós “multiplicador@s”, pois nosso olhar muda
mesmo. Senti isso intensamente em minha experiência como professora do En-
sino Fundamental e Médio, como professora universitária, mas também como
mãe, amiga, esposa... Esse processo, mesmo lento, pode ser significativamente
transformador da nossa atuação nas diferentes esferas sociais. Sugiro a leitura
de um texto delicioso de Silvana Goellner, que vocês encontram nas referências.

• Como trabalhar estes temas em escolas que estão situadas em áreas onde os
problemas sociais são tão profundos que parece não haver espaço para essas
reflexões? Este é um desafio mesmo! Sempre trabalhei com a classe média e
entendo que, de certa forma, isso foi um privilégio, pois lidei com pessoas que
tinham muitas coisas materiais e emocionais resolvidas. Um caminho que tem
dado certo em comunidades onde há muita violência tem sido buscar parcerias,
seja com outras escolas, com o Estado ou com o chamado Terceiro Setor. Há, por
exemplo, fundações e ONGs que trabalham com arte, teatro, dança, capoeira e
música junto a populações imersas em conflitos múltiplos e carências variadas.
Desfazendo o gênero | 141

O importante é que o projeto não seja um movimento de cima para baixo, quer
dizer, que não considere as particularidades de cada localidade, que seja alheio
às questões locais mais prementes. Projetos são mais eficientes quando conse-
guimos partir de algo que seja de interesse da galera, da comunidade, intervindo
também no entorno da escola. Se ficamos só do muro para dentro, a possibilida-
de de o projeto se consolidar e gerar transformações diminui significativamente.
Uma professora de Brasília, que atua em uma das áreas mais violentas da cidade
(uma cidade-satélite), tem um projeto muito bacana de pintura de muros e revi-
talização de espaços ao redor da escola, e o faz com intensa participação de um
grupo de alunas e alunos. A atividade envolve mais do que arte, grafites e ur-
banismos (o que por si só já seria muita coisa), fala também de ética, de relação
com o espaço público, obriga a pensar sobre direitos, entre outras provocações
transformadoras. Tem dado certo. Provavelmente não foi fácil e nem deve ser
algo sem desafios de toda ordem, inclusive em termos burocráticos, logísticos e
financeiros. Mas eu aposto muito nesse caminho de sensibilização, de interven-
ção que cria laços de confiança entre nós e a comunidade que atendemos. Com
meninas que se prostituem já vi trabalhos lindos com recuperação de bonecas
para doá-las a creches e orfanatos. É incrível como as meninas, cuidando de
recuperar bonecas, pensam em si mesmas, refletem sobre seus corpos, suas
vidas, suas famílias. Recuperar a boneca acaba funcionando muitas vezes em um
processo de reencontro com suas próprias belezas, com seu valor como mulher,
como pessoa, como artesã. Claro que estas oficinas têm metodologias, têm es-
tratégias de ação. Estou apenas mencionando algumas experiências que vi dar
certo. Deixo aqui uma dica de livro que pode ser estimulante: Gangues, gênero
e juventudes: donas de rocha e sujeitos cabulosos. Disponível em: <http://portal.
mj.gov.br/sedh/biblioteca/livro_gangues_sem_a_marca.pdf>.

• Se a sociedade é a grande vilã, o que nós, como indivíduos, podemos fazer?


Bem, a gente está atribuindo à ‘sociedade’ todas as culpas. Mas o que é a
sociedade se não um produto das relações sociais estabelecidas entre nós? A
sociedade é resultado das relações sociais, das instituições que criamos, das
normas e convenções que estabelecemos. Claro, nascemos e ela está aí, mas
somos nós também que damos continuidade a ela, questionamos, desafiamos
“verdades”, lutamos por outros modos de classificar e significar a vida. São pro-
jetos coletivos que transformam, mas são angústias sentidas individualmente
que nos motivam muitas vezes. Digo tudo isso para que saiamos desse lugar
paralisante, que é o de atribuir à sociedade (como uma entidade poderosa e
142 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

que nos domina) a culpa pelos males, como o preconceito, nos sentindo assim
impotentes. Pelo que experenciei nos cursos de formação continuada, não vi
letargia, ao contrário, vi pessoas pensando, se desafiando, confrontando suas
verdades, procurando caminhos para a transformação. A questão é que estes
caminhos não são fáceis, pois as resistências estão aí aparecendo em diferentes
discursos. Muitos deles têm a ver com a completa ignorância, no sentido de
ignorar, de não ter conhecimento relativo a questões de gênero e sexualidade.
No primeiro caso, naturalizamos tanto o gênero que já o vemos como algo que
vem pronto, é imutável e determinante até mesmo da nossa capacidade de sen-
tir (homens não choram) ou de aprender (mulheres não têm raciocínio lógico).
Aprendemos também que gênero determina sexualidade e que esta, quando
não corresponde ao modelo heterossexual, é perigosa. Tratamos sexualidade
sempre no marco do risco (cuidado com a aids! Cuidado para não engravidar!)
ou do perigo (você vai ficar falada! Você vai acabar pegando uma doença!). Não
falamos de prazer, de escolhas, não ensinamos noss@s filh@s ou alun@s a pensa-
rem sobre sexo para poderem fazer escolhas conscientes, por exemplo, na hora
da primeira transa.

• Podemos falar em papéis sociais de gênero? Podemos, mas eu tenho cá minhas


críticas ao conceito, justamente por sua tendência a se cristalizar e se transfor-
mar em estereótipo. Temos posições de gênero para as quais somos convoca-
das e convocados. Performamos, à medida que colocamos em atos, normas,
convenções, padrões estéticos de gênero que são largamente aceitos como
sendo femininos ou masculinos. Mas temos desafiado constantemente as ideias
de papéis, pois a vida não é roteirizada como uma peça de teatro, e estas analo-
gias com palco, teatro, papéis e máscaras, apesar de sedutoras, são insuficientes
para levarmos a fundo as discussões nesse campo, que está atravessado por
relações de poder que a analogia teatral não revela.
▫▫ O comentado acima se relaciona com outra questão: a identidade é algo
dado? Como se relaciona com gênero? A recorrência da ideia de “identida-
de” como algo que o sujeito traz consigo, um tanto pronta, está presente
em muitos momentos de nossas conversas. É importante a gente perceber
que se gênero é tão central para a formação de nossa identidade (e acho
que ninguém tem dúvidas disso) e que se gênero é construção social, por
que identidade seria algo que vem pronto com o sujeito? É legal mostrar
que vamos nos constituindo com nossas experiências, que têm tudo a ver
como o momento histórico no qual estamos inserid@s, com a sociedade
Desfazendo o gênero | 143

onde vivemos, com os ambientes de convívio cotidiano. Pensar a identidade


fora dos marcos essencialistas é difícil; dissemos, muitas vezes, que somos
assim e não vamos mudar, que pau que nasce torto não tem jeito, morre tor-
to... Quando a questão toca na orientação sexual, nas questões de gênero, a
perspectiva essencialista se acentua. A pessoa, no fundo, sempre foi assim,
reprime, esconde aquela verdade dos demais, até que um dia não suporta
mais e revela sua “verdadeira identidade” que estava ali, no âmago do seu
ser, prontinha. Por isso, mulheres, que vieram de Vênus, nunca serão iguais
em direitos a homens, porque Marte é um planeta que gera guerreiros (iro-
nias, claro).
▫▫ Quais as implicações de pensarmos que identidade não se muda, e muito
menos quando estamos falando de gênero e sexualidade? Primeiro, a ideia
de que esta verdade é unicamente do indivíduo, e não parte de uma cons-
trução coletiva que oferece a cada um de nós os termos para pensarmos as
nossas experiências, inclusive as sexuais. Segundo, isso confere uma respon-
sabilidade extra a cada um frente a suas “escolhas”, entre assumir ou não,
quando esta “escolha” pode significar perdas profundas, dramas pesados
para serem encarados por pessoas ainda tão jovens.
▫▫ Por que tantas arrobas ou tantas barras (a/o, as/os), tanto esforço para se
escrever sobre gênero? É interessante perceber que nosso vocabulário de
gênero é restrito e, para piorar, se confunde com o das sexualidades, igual-
mente escasso. Por isso, ficamos tão confus@s quando temos de lidar com
gêneros fronteiriços porque estamos presos em um binarismo que pode ser
bem confortável para muitos, mas é também aprisionador, limitador para
outros tantos. Então, como uma travesti arruma termos para se autodefinir?
Como nós fazemos isso? Pensar fora desses limites do pensável nos atordoa,
nos incomoda e nos desafia, porém estamos neste movimento, por isso as
palavras importam sim! Não se trata de “politicamente correto”, ou se trata
exatamente disso, de entrar na disputa linguística por termos capazes de
contemplar um número maior de experiências, de vidas, e que possam fazê-
-lo de forma positivada.

Há mais uma infinidade de questões, certamente, mas nos limites que


temos aqui, reuni apenas as mais recorrentes. Passo, então, às sugestões de
dinâmicas de grupos que podem ser válidas e importantes nos trabalhos
com gênero e sexualidade.
144 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Dinâmicas – brincando com os gêneros, levando a sério nossas


questões
As dinâmicas são formas muito eficientes de se promover discussões,
mas sobretudo de nos sensibilizarmos para o debate, muitas vezes de ma-
neira mais eficiente, justamente por promover o aprendizado de um jeito
lúdico, porém sério e comprometido.
A seguir encontram-se algumas sugestões para se tratar em espaços
escolares a temática das relações de gênero. Mas, antes de prosseguir, re-
produzo algumas orientações presentes do livro Gênero fora da caixa, um
projeto do Instituto Sou da Paz, publicado em 2011, acessível neste link:
<http://www.soudapaz.org/upload/pdf/genero_fora_da_caixa_web.pdf>.
As atividades sugeridas podem ser realizadas por qualquer educador(a),
seja em escola e projetos sociais, seja em organizações não governamentais.
Como a questão de gênero é complexa e exige certa reflexão e sensibilida-
de por parte dos educadores, é preciso que o(a) educador(a) tenha alguma
afinidade pelo tema e experiência de trabalho com jovens.
Além de se sentir confortável com o conteúdo abordado nas oficinas, o(a)
educador(a) deve se preocupar com sua postura em sala de aula, pois isso
também contribui para um ambiente mais participativo e de respeito entre
as pessoas. É importante o(a) profissional estar atento para garantir espaço
para que as jovens mulheres tenham voz, para estimular a diversidade, não
tolerar falas preconceituosas e machistas, estabelecer regras de convivência
e não reforçar estereótipos de gênero. O importante é manter uma postura
condizente com os conteúdos que estão sendo trabalhados. Não adianta,
por exemplo, o(a) educador(a) debater com os(as) alunos(as) sobre respeito à
diversidade e fazer brincadeiras ou colocações preconceituosas.
Recomendamos que as atividades sejam realizadas em grupos mistos
(homens e mulheres), com a participação de 10 a 20 jovens. O facilitador
pode ser homem ou mulher, o que conta é a afinidade com o tema e o
comprometimento.
Para receber os(as) alunos(as), reserve um espaço agradável para deixá-
-los(as) confortáveis. Caso o grupo ainda não se conheça, comece os primei-
ros encontros realizando algumas dinâmicas de apresentação e integração.
Desfazendo o gênero | 145

Reserve tempo para uma pausa nas atividades, estabelecendo um momen-


to de descontração. Nesse caso, se possível, ofereça um lanche para os(as)
jovens.
Finalmente, é importante preparar as oficinas com antecedência, sepa-
rando os materiais necessários e lendo os textos de apoio. Se possível, vale
a pena registrar os encontros, pontuando as discussões que foram proveito-
sas, os temas mais candentes para o grupo, os pontos de vista dos(as) jovens
e as atividades nas quais o grupo se envolveu mais. Isso ajuda a planejar as
próximas atividades e a ter um registro de todo o processo educativo (Gê-
nero fora da caixa, Elaboração do Manual: Gabriel Di Pierro e Marília Ortiz,
2011, p. 24)

Dinâmica “Brincadeiras de gênero”

Público sugerido: Crianças e adolescentes

Objetivos: A ideia é mostrar como os brinquedos têm funcionado


como “próteses de gênero”, ou seja, moldando de forma às vezes violenta
os aprendizados que se valem da ludicidade, uma vez que brinquedos e
brincadeiras, que deveriam ser antes de tudo elementos lúdicos, criativos,
prazerosos, são usados (mesmo inconscientemente) como modeladores de
gênero. Quer dizer, como vamos aprendendo a excluir, classificar, julgar, a
partir do brinquedo.

Etapas:
1. A dinâmica deve ser antecedida de um debate breve, suscitado por al-
gum episódio envolvendo a turma na qual surjam questões de gênero
e sexualidade. A partir dele, podemos lançar algumas perguntas, por
exemplo, a divisão na hora do recreio, de se formar grupos de traba-
lho ou ainda na aula de Educação Física, e lançar uma questão do tipo:
Por que algumas atividades têm de ser feitas separadamente? Será que
sempre foi assim? Será que é assim entre outras populações, em outras
culturas? Meninos e meninas são totalmente diferentes ou meninas e
meninos são muito parecidos? Como aprendemos a ser meninos e me-
ninas? Esta deve ser a última questão, para suscitar a discussão sobre os
brinquedos e as brincadeiras.
Neste momento, é importante deixar a turma se expressar, e anotar
na lousa algumas palavras-chave para incrementar a discussão. É preciso
146 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

pactuar com a turma que não pode haver ofensas, palavras de baixo calão,
piadas preconceituosas nem comentários desrespeitosos durante toda a
roda de conversa e ao longo da dinâmica.
2. Peça para que, na próxima aula, levem os brinquedos que marcaram sua
vida.
3. Peça para que os(as) alunos(as) formem um círculo no chão. Para quebrar
o gelo, a dinâmica pode ser iniciada pelo(a) professor(a) que a estiver con-
duzindo. Ele(a), por exemplo, gira uma garrafa no centro do círculo, e a
dinâmica se iniciará pela pessoa para a qual o gargalo da garrafa apontar.
4. É importante anotar o que cada alun@ elencou como sendo significativo
no brinquedo que levou para a sala, pois é a partir dessas expressões
que iremos aprofundar as relações de gênero e os brinquedos.
5. Peça que meninos troquem seus brinquedos com meninas e vice e versa.
6. Observe como essas trocas ocorrem e como cada um brinca ou não
com o brinquedo recebido (de 2 a 3 minutos de brincadeira a sós com o
brinquedo).
7. Em seguida, peça para que formem duplas ou trios mistos para que
brinquem junt@s com os brinquedos que receberam durante a troca (5
minutos para brincar).
8. Observe e anote as reações da brincadeira a sós e em grupo, para depois
problematizá-los na roda de discussão que deve ser formada em seguida.
9. Formada a roda, lance novamente as perguntas sobre o significado dos
brinquedos para si e como eles foram vistos pelo(a) colega de outro gê-
nero. Como cada um se sentiu brincando a sós com o brinquedo trocado.
Como foi brincar em grupo? Questione a pedagogia de gênero, mostre
como esses aprendizados são culturais, históricos, e não essências de-
finitivas. Mostre a importância de aprender com o outro, de fruir prazer
com a brincadeira e de como os brinquedos nos ensinam muitas coisas;
sendo assim, é importante brincar com diferentes jogos e brinquedos
para aprender a ser plural.
Dica de leitura: <http://www.faeb.com.br/livro/Comunicacoes/brinca-
deiras%20genero%20e%20sexualidade.pdf>.

Dinâmica “Tudo tá relacionado”

Criação: Prof. Dr. Felipe Bruno Martins Fernandes (PPGICH/NIGS/UFSC);


Profa. Dra. Miriam Pillar Grossi (NIGS/UFSC)
Desfazendo o gênero | 147

Público sugerido: Crianças e adolescentes

Orientações: Esta oficina visa problematizar as inter-relações entre gê-


nero, raça e sexualidade mostrando como a transversalidade entre estes
marcadores sociais pode ser produtiva no combate às violências e discrimi-
nações nas instituições educacionais. Ao iniciar os trabalhos com os temas
divididos por “eixo de opressão” e fechá-los com uma discussão coletiva, a
oficina busca ser um espaço de reflexão em que @s participantes possam se
posicionar, explicitar suas questões e discutir coletivamente seus conceitos e
pré-conceitos. O diálogo e a desconstrução devem ser o princípio norteador
da oficina, em que as diferentes posições não devem ser carregadas dos
juízos de valor do mediador, mas, sim, problematizadas por este. Problema-
tizar, categoria presente no pensamento de Michel Foucault, é uma forma de
reflexão que busca colocar determinados discursos no centro do pensamen-
to. Não é, pois, uma forma de disseminação de enunciados “politicamente
corretos”, mas, conforme sugerimos, é uma forma de refletir sobre o enun-
ciado e suas condições de possibilidade. Para isso, é necessário exercitar a
escuta, intervir e mediar o debate que surge d@s participantes.

Objetivo: refletir sobre a importância em se discutir gênero, raça e sexu-


alidade na Educação Infantil.

Material necessário: livros infantis que abordem as temáticas de gênero,


raça e sexualidade; cartolina e canetão.

Etapas:
1. Pequena apresentação teórica do papel em se discutir gênero, raça e
sexualidade na Educação Infantil.
2. Pequena apresentação de cada livro infantil a ser apresentado. Os li-
vros devem ser mostrados e as ilustrações (perspectiva imagética) de
cada um, discutidas. Mostre o quanto a literatura infantil contemporânea
pode contribuir na discussão dos temas nas instituições escolares.
3. Desenvolvimento: A turma deve ser dividida, por sorteio, em nove grupos.
O grupo deve eleger um@ “contador@ da história”. @ contador@ deve
fazer uma leitura em voz alta do livro e @s outr@s integrantes devem tomar
notas e levantar questões sobre o enredo.
4. Cada um desses grupos deve produzir um “cartaz” com as principais
ideias e questões sobre o livro.
148 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

5. Em equipe, cada grupo deve apresentar o cartaz com um quadro sinóti-


co (que possa dar uma visão do todo) ao grande grupo.
6. Em círculo, o grande grupo deve discutir os cartazes dos colegas, cabendo
“ao mediador” estabelecer links que possibilitem @s participantes trans-
versalizarem as temáticas como tendo ocorrência ordinária na dinâmica
escolar.
7. Tod@s @s participantes da oficina devem avaliar a atividade.
8. Tempo de duração: 240 minutos, divididos em: apresentação da atividade;
apresentação dos livros infantis; reunião em pequenos grupos para leitura
coletiva; construção de cartaz com quadro sinótico do enredo; e apresenta-
ção dos quadros sinóticos para o grande grupo (8 min para cada).
9. Discussão e avaliação.

Dinâmica “Etiquete-me”

Público sugerido: crianças com mais de 10 anos e adolescentes.

Material: fita-crepe e pedaços pequenos de papéis ou post-it; caneta


pilot ou canetinhas esferográficas.

Objetivos: perceber como lidamos, no dia a dia, com uma série de pres-
crições de gênero que vão sendo literalmente “incorporadas”, de maneira
que, muito mais do que fruto da biologia ou meras expressões da natureza,
os gêneros são inscrições culturais que “colam” em nossos corpos.

Tempo de duração: de 60 a 90 minutos.

Recomendações: se houver muitas pessoas, forme grupos pequenos


com cerca de 5 pessoas; em cada grupo, peça que um menino e uma menina
se voluntariem. Peça respeito, consideração pelo corpo do(a) colega e que
não sejam usados termos ofensivos como palavrões.

Etapas:
1. Divididos os grupos, peça que @s alun@s escrevam frases que expres-
sem recomendações, normas, orientações e/ou imposições sobre como
meninas devem usar cada parte do corpo. O mesmo deve ser feito para
Desfazendo o gênero | 149

o corpo do menino voluntário. Escreva no papel ou post-it para colar


a frase na parte do corpo sobre a qual a sentença se refere. Exemplo:
cabelos (para meninas): use sempre longos e bem penteados; (para
meninos): nada de ser cabeludo!; ou orelha: (para meninas) use brincos;
(para meninos): um alargador fica da hora. Voluntári@s devem também
participar desta etapa. SOLICITE A ESCOLHA DE VOLUNTÁRIOS SÓ
DEPOIS DESTE MOMENTO.
2. Voluntári@s de todos os grupos (um casal por grupo) devem se posicio-
nar mais ao centro da sala. O casal do grupo 1 irá para o grupo 2, o do 2
para o grupo 3, assim sucessivamente.
3. Posicionados nos grupos novos, o casal voluntário será etiquetado.
Sugere-se que se inicie da cabeça para os pés.
4. Depois de cada grupo ter feito sua “etiquetação”, peça aos casais que
se posicionem novamente ao centro. Os grupos devem passar pelos de-
mais casais para ver o que há escrito nas outras etiquetas, que não as do
seu próprio grupo.
5. Todas as pessoas, com exceção dos casais, devem se sentar em círculo
em volta d@s voluntárias, os quais serão as primeiras pessoas a falar. O(a)
professor(a) mediador(a) deve solicitar que cada casal fale brevemente
sobre a sensação de serem etiquetados.
6. Em seguida, o(a) professor(a) deve solicitar que as demais pessoas comen-
tem sobre as frases-recomendações escritas, avaliando como chegaram
a elas; o que pensam sobre estas recomendações; se as seguem e como
estas prescrições incidem em suas vidas. É preciso assegurar a fala de
todos(as) e, ao final, fazer uma avaliação sobre estes aprendizados e como
eles nos marcam, também avaliando como estes usos corporais recomen-
dados podem criar hierarquias e desigualdades de gêneros.
150 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

BOX 1

Dicas de material audiovisual


• Documentário Encontrando Bianca (disponível em: <https://www.
youtube.com/watch?v=4Eb9UCT1138>): trata-se do terceiro vídeo do
conjunto de produções audiovisuais que estava sendo formulado pelo
MEC como material para subsidiar o combate à homofobia nas escolas.
Sua elaboração e distribuição foi suspensa por veto da presidenta Dilma
Rousseff em maio de 2011.
• Os perigos de uma história única: vídeo gravado a partir de uma palestra
realizada pela escritora nigeriana Chimamanda Adichie (disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=ZUtLR1ZWtEY>).
• Documentário Filmes ruins, árabes malvados: como Hollywood vilificou
um povo (disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Im5qQ9s-
-ohA>): produzido por Sut Jhally, mostra como o cinema norte-americano
foi capaz de, ao longo de 100 anos de produções, fixar no imaginário
ocidental uma visão estereotipada dos povos árabes.
• Videoaula Corpo, gênero e sexualidade (disponível em: <https://www.
youtube.com/watch?v=bI-Qr5leFPk>): apresentada pela educadora e
doutora em Educação Silvana Goellner (Universidade Federal do Rio
Grande do Sul).
• Documentário Re-ensinando gênero e sexualidade (Reteaching
gender and sexuality, disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=r3QstJDidjQ>): produzido em 2008 por um grupo de jovens
do subúrbio de Seattle. Em 2010, criaram um programa de formação
para profissionais da área de saúde, educação e direitos humanos e lan-
çaram o documentário.
• Documentário Não gosto de meninos (disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=ij9baks8i64>): um projeto que reuniu 40 pessoas
com histórias de vida diferentes, com o objetivo de mostrar a realidade
da homossexualidade.
• Minha vida em cor de rosa (disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=CnOAQDrlmxs>): é um filme de ficção europeu (produção
cooperativa entre a Bélgica, França e o Reino Unido) delicioso, dirigido
pelo belga Alain Berliner e lançado em 1997. Trata da história de um
menino, chamado Ludovic, que imagina que deveria ter nascido meni-
na. O filme mostra os preconceitos que a personagem principal e seus
familiares enfrentam em relação a sua “identidade de gênero”.
Desfazendo o gênero | 151

REFERÊNCIAS
BARROS, M. L. Labareda, teu nome é mulher: análise etnopsicológica do feminino à luz de pom-
bagiras. Tese (Doutorado em Ciências) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade
de São Paulo, Ribeirão Preto, 2010.
BELELI, I. Gênero. In: MISKOLCI, R. (Org.). Marcas da diferença no ensino escolar. São Carlos:
EdUFSCar, 2010. p. 45-73.
BOTTOMORE, T. Práxis. In: ______. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1997.
BUTLER, J. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CRUZ, E. F. Banheiros, travestis, relações de gênero e diferenças no cotidiano da escola. Psi-
cologia Política, 11(21), p. 73-90, 2011. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/rpp/seer/ojs/
viewarticle.php?id=137>.
DAMACENO, J. O corpo do outro: construções raciais e imagens de controle do corpo feminino
negro: o caso de Vênus Hotentote. In: Fazendo gênero: corpo, violência e poder, 2008. Disponí-
vel em: <http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST69/Janaina_Damasceno_69.pdf>.
GOELLNER, S. A educação dos corpos, dos gêneros e das sexualidades e o reconhecimento
da diversidade. Cadernos de Formação RBCE, p. 71-83, mar. 2010. Disponível em: <http://www.
rbceonline.org.br/revista/index.php/cadernos/article/view/984/556>.
LOURO, G. L. Nas redes do conceito de gênero. In: LOPES, M. (Org.). Gênero e saúde. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1996. p. 7-18.
______. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes,
1997. Disponível em: <http://educacaosemhomofobia.files.wordpress.com/2009/03/nuh-educa-
cao-genero-sexualidade-e-educacao-guacira-lopes-louro.pdf>.
______. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-Posições, Campinas, v. 19, n. 2,
ago. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pp/v19n2/a03v19n2.pdf>.
MISKOLCI, R. Teoria queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica; UFPO, 2012.
PISCITELLI, A. Recriando a (categoria) mulher? In: ALGRANTI, L. (Org.). A prática feminista e
o conceito de gênero. Campinas: IFCH-Unicamp, 2002. Disponível em: <http://www.pagu.uni-
camp.br/sites/www.ifch.unicamp.br.pagu/files/Adriana01.pdf>.
SABAT, R. Pedagogia cultural, gênero e sexualidade. Revista Estudos Feministas, 9(1), p. 4-21,
2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ref/v9n1/8601.pdf>.

FIGURAS

Figura 1 Retrato do filósofo François-Marie Arouet de Voltaire. Fonte: <http://2.bp.blogspot.


com/-u6RF4xL5SjI/TlYS_CF24nI/AAAAAAAAAu8/4OaZslALs8Q/s1600/VOLTAIRE_
Fran%25C3%25A7ois-Marie-Arouet_Mr-de_1735.JPG>. Acesso em: 26 jul. 2014.
Figura 2 Montagem de Bruno Braga. Fonte: <http://opreh.com.br/tira-o-olho-da-minha-mina-
-rapaz/>. Acesso em: 26 jul. 2014.
Figura 3 “Um sujeito careca e desdentado me convenceu a fazer um seguro”. Fonte: Miskolci
(2010).

QUADRO

Quadro 1 Matrizes teóricas dos estudos de gênero. Fonte: autoria própria.


4
Escola e sexualidades: uma visão crítica à
normalização
Fernando de Figueiredo Balieiro
Eduardo Name Risk

Como vimos nos capítulos anteriores, a atuação da escola não se limi-


ta ao aprendizado formal ou à transmissão do conhecimento. Explícita ou
implicitamente, ela se baseia em certas normas e convenções sociais, ao
mesmo tempo em que as perpetua ou as coloca em questão.
No capítulo anterior, Larissa Pelúcio tratou das relações de gênero no
espaço escolar, mas cabe a pergunta: como abordar o tópico da sexualida-
de? Veremos que antes de se constituir como um espaço neutro, no qual a
sexualidade pouco ou nada aparece, as práticas pedagógicas, as relações
entre alunos e representações compartilhadas entre os muros da escola são
permeadas, direta ou indiretamente, pela temática da sexualidade. O es-
paço escolar é palco de demandas sociais que, como veremos, baseiam-se
em uma pedagogia da (in)visibilidade que conforma a heterossexualidade
como padrão único e esperado para orientação do desejo e das práticas
afetivo-sexuais. Por outro lado, atualmente, os educadores são chamados a
questionar essas convenções e a buscar formas de lidar com a sexualidade,
segundo proposições mais abrangentes. Para discutirmos essas questões,
este capítulo está organizado em quatro unidades:
1. Na primeira unidade, discutiremos o regime de (in)visibilidade que
configura a sexualidade no espaço escolar. Abordaremos como a
heterossexualidade é instituída como norma implícita às relações
154 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

escolares, embora essa instituição se apresente como “neutra” com rela-


ção à temática, o que acaba perpetuando preconceitos e discriminações.
2. Na segunda unidade, exploraremos o aspecto histórico da forma como
nossa sexualidade foi construída, abordando como uma ordem sexual se
relaciona com as configurações mais amplas da sociedade e levando em
conta seus vínculos com as relações raciais e de gênero.
3. Na terceira, discutiremos de que modo a heteronormatividade molda as
relações sociais, mesmo com mudanças significativas na contemporaneida-
de e diante de discursos e movimentos questionadores das normas sociais.
4. Por fim, partindo da experiência acumulada do curso de GDE da UFSCar,
na quarta unidade proporemos reflexões práticas sobre o tema da sexu-
alidade no contexto escolar, recuperando o debate com professores(as)
que participaram das primeiras ofertas do curso.
Desejamos bons estudos e bom trabalho a todos(as)!

UNIDADE 1
O regime de (in)visibilidade da sexualidade na educação
escolar

Em abril de 2011, foi amplamente divulgado o caso de agressão física


sofrida por um estudante secundário no interior de uma escola pública do
município de Mata Grande (AL). O caso chegou ao Conselho Tutelar e à
Justiça depois da gravação ter sido veiculada na internet. O vídeo registra a
perseguição à vítima dentro da escola e, em seguida, o ato de violência físi-
ca. O agressor justificou sua conduta como desagravo a um boato segundo
o qual os dois supostamente teriam um caso amoroso. No vídeo, a vítima,
apelidada de Lady Gaga, sofre as consequências sem responder à agressão.
A despeito da movimentação de alunos da escola em busca de assistir e
filmar as cenas de violência, nenhum funcionário ou professor apareceu na
filmagem na tentativa de conter o agressor, que, por sua vez, não encontrou
dificuldade em agir violentamente contra seu colega. Dessa forma, distan-
ciou-se da pecha de ser chamado de “bicha” por seus colegas, afirmando
sua virilidade e reafirmando a inferioridade moral da vítima.
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 155

Não cabe aqui averiguar se os boatos se referiam a um caso amoroso


que realmente existiu, se foi criado por outros colegas de sala com o objetivo
de fomentar a humilhação da vítima ou se foi inventado pelo próprio aluno
em busca de se divertir à custa do sofrimento alheio. O que nos interessa é
compreender a relação entre a violência dentro da escola e seu vínculo com
a temática homossexualidade. Cabe perguntar: O que a escola tem a ver
com a agressão motivada por orientação sexual? O caso apresentado é um
ato isolado ou um ato conhecido por cada um de nós em nossas vivências no
cotidiano escolar? A escola deve conceber a sexualidade como um assunto
digno de ser apresentado e debatido dentro de seus muros? Como essas
violências se relacionam com o currículo escolar de forma mais abrangente?
Nesta unidade, veremos que a vulnerabilidade ao bullying ou ao cha-
mado assédio escolar está diretamente ligada à não correspondência a
padrões de gênero e sexualidade, entre outros fatores. Em outros termos,
alunos(as), funcionários(as) e professores(as), com destaque para os primei-
ros, que não correspondam ao padrão “ideal” de comportamento estimado
pela sociedade, estão mais vulneráveis a sofrerem variadas modalidades de
violência em sua passagem pelo espaço escolar. Muito embora apresente
configurações diferentes de acordo com os contextos nacionais, o bullying
homofóbico é reconhecido como um problema global pela Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, 2013).
A respeito de depreciações sofridas no ambiente escolar em virtude da
orientação sexual, o relatório Resposta do setor de educação ao bullying
homofóbico (UNESCO, 2013), baseado em pesquisas efetuadas no mun-
do todo, mostra que alguns alunos estão mais vulneráveis a situações de
bullying por conta de sua inadequação aos valores e padrões calcados na
heterossexualidade como norma.
As recorrentes situações de bullying homofóbico manifestadas dentro
da escola levam a refletir sobre a necessidade de responsabilização dos
agentes escolares a respeito dessa temática. Mas como lidar com evidên-
cias de que a escola é espaço de expressão de violências, preconceitos e
discriminações se a concebemos como espaço fomentador da cidadania?
Os livros escolares não tratam dos direitos e deveres imprescindíveis para
uma sociedade democrática em que a discriminação é inaceitável? Diante
desses questionamentos, alguém poderia ainda afirmar que a escola nada
tem a ver com situações que envolvem discriminações baseadas em gênero
e sexualidade, visto que ela se apresenta como instituição “neutra” no que
156 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

tange a essas diferenças. Segundo essa perspectiva, a sexualidade não é um


tópico que deve ser levado em conta pela educação escolar. Portanto, não
seria um equívoco responsabilizá-la pelas situações descritas?

Figura 1 A maneira como os(as) alunos(as) estão dispostos(as) nesta imagem de uma
escola apresenta vários aspectos das relações de gênero. O que é possível refletir a
respeito das relações de gênero e sexualidade a partir desta imagem?

É preciso salientar que a escola, por ser uma instituição social, não se
situa em um vácuo, muito pelo contrário, ela exerce influência na, e é influen-
ciada pela, sociedade em que está. As modalidades de violência e hierar-
quias sociais, isto é, de diferenças, encontradas na escola podem ser pen-
sadas como reflexo da forma como a sociedade se concebe e se organiza.
Além disso, cabe analisar como a escola contribui para reproduzir violências
e hierarquias próprias da sociedade.
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 157

BOX 1

Com o intuito de recuperar a discussão sobre o fenômeno assédio esco-


lar, apresentada no capítulo Diferenças, podemos redefinir o conceito de
bullying conforme a citação a seguir:

O termo designa situações, primordialmente entre jovens, que levam uma


pessoa ou grupo a usar atos repetidos de violência simbólica, psicológica
e/ou física contra um terceiro para isolá-lo, humilhá-lo e/ou depreciá-lo.
Apesar de ocorrer entre pares, a vítima é supostamente inferior em uma
relação assimétrica de poder, na qual não possui meios de se defender. Ao
mesmo tempo, o agressor não considera a vítima um sujeito, podendo ser
utilizado contra ele(a) força física, agressão simbólica ou atos de incivilidade
(ABRAMOVAY & CALAF, 2010, p. 34).

A escola e a reprodução das normas sociais


Normalmente, pensamos na escola como um ambiente igualitário, onde
todas as crianças e jovens que lá estão têm a mesma oportunidade de apren-
dizagem e gozam da mesma forma dos recursos oferecidos. Mas será que em
uma sociedade marcada por desigualdades abissais, pelo preconceito e por
discriminações de “raça”, gênero e sexualidade, a escola não ofereceria con-
dições diferenciais a seus estudantes? Será que a instituição escolar, quando
não leva em conta as desigualdades e não problematiza a subalternização
das diferenças sociais, não acaba contribuindo para a exclusão social? As
discussões contemporâneas da área de sociologia da educação passaram a
apontar justamente para esses questionamentos, permitindo que

as visões encantadas acerca do papel transformador e redentor da


escola têm sido fortemente desmistificadas. Temos visto consolidar-se
uma visão segundo a qual a escola não apenas transmite ou constrói
conhecimento, mas o faz reproduzindo padrões sociais, perpetuando
concepções, valores e clivagens sociais, fabricando sujeitos (seus cor-
pos e suas identidades), legitimando relações de poder, hierarquias e
processos de acumulação (JUNQUEIRA, 2009, p. 14).

Em outras palavras, as desigualdades sociais não necessariamente


são mitigadas ou minimizadas pela ação escolar. Ao contrário, é bastante
comum que o sucesso escolar tenha relação direta com o pertencimento
158 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

aos estratos superiores da pirâmide social, na medida em que seus mem-


bros herdam não apenas bens econômicos, mas também recursos culturais
e dispõem de tempo livre para se dedicar a uma formação diferenciada.
Quando pensamos a partir dessas evidências, matizamos os ideais contidos
na concepção de que a escola efetiva um poder redentor e transformador
da sociedade e passamos a pensar na escola como espaço de reprodução
social, ou seja, como instituição que muitas vezes referenda desigualdades
e hierarquias sociais.
O impacto das desigualdades e hierarquias sociais na educação não se
limita à esfera socioeconômica. O racismo, o machismo e a homofobia es-
tão associados à perpetuação de desigualdades no desempenho escolar,
notadamente vinculados à evasão escolar, à redução da frequência escolar
e à queda no rendimento. Quando nos referimos especificamente a essas
dimensões que se relacionam a normas e convenções sociais, devemos nos
perguntar: Como a escola contribui e reforça tais aspectos? Como seus
agentes podem atuar para minimizar tais impactos e, dessa maneira, se en-
gajar na construção da escola como espaço efetivamente democrático?
Em primeiro lugar, é preciso pontuar que a escola representa o primeiro
contato dos indivíduos com uma série de ideais coletivos e com demandas
sociais de enquadramento a esses referenciais. Anterior à ação da escola, no
locus familiar, as demandas exteriores são conhecidas pelos novos membros
da sociedade, em geral, no interior de um ambiente potencialmente protetor,
mas cujos cuidados exclusivos logo se romperão quando a criança ingressar
no ensino básico. Na escola, muitos alunos passam a perceber quando não
correspondem a ideais coletivos, vendo-se como gordos, efeminados, ga-
gos etc., na medida em que seus ideais correspondentes tendem a aparecer
como demandas ou imposições, muitas vezes na forma de chacota e, em
casos limite, sob a forma de violência (MISKOLCI, 2012, p. 37-38).
Abordagens teóricas mais atentas às diferenças permitem analisar as-
pectos mais nuançados e escamoteados das práticas pedagógicas, que,
em geral, não se limitam apenas à transmissão do conhecimento formal e
do patrimônio cultural de uma sociedade. Cabe-nos atentar para como, na
vivência escolar, são repassadas convenções culturais e modelos de com-
portamento que vão muito além do conteúdo formal dos livros e das aulas.
Entramos no terreno das normas sociais, que muitas vezes se caracterizam
por serem pouco explícitas, mas ainda assim extremamente fortes.
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 159

Discutir as normas sociais reproduzidas na escola inclui tratar da relação


entre as práticas e omissões constituintes do sistema escolar. Para tanto, é
necessário considerar o currículo escolar de forma mais abrangente, incluin-
do os conteúdos e valores explícitos e implícitos das práticas pedagógicas.
De que modo abordar a temática da sexualidade pode contribuir para a
fomentação de um ambiente mais acolhedor e democrático?
A suposta neutralidade das práticas pedagógicas escolares em relação
à sexualidade esbarra em uma série de resultados de pesquisas orientadas
pela UNESCO, nas quais se revelou que boa parte dos professores brasi-
leiros não sabe como abordar temas relativos à homossexualidade na sala
de aula. Aliado a isso, parte deles acredita que a homossexualidade é uma
doença,41 e expressiva parcela de estudantes alega que não gostaria de ter
colegas homossexuais. Como mostra Rogério Junqueira (2009, p. 17), a pes-
quisa Perfil dos professores brasileiros, realizada entre abril e maio de 2002,
revelou um comportamento intolerante em relação à homossexualidade
entre esses profissionais, quando 59,7% afirmaram ser inadmissível que uma
pessoa tenha relações homossexuais e 21,2% declararam que não gostariam
de ter vizinhos homossexuais.
Diante desses dados, compreendemos porque questões relaciona-
das à sexualidade e à educação comumente encontram resistências a se-
rem enfrentadas de forma comprometida. É patente ainda que muitos(as)
professores(as), movidos(as) de boa vontade e desejo de se engajar em
práticas que combatem o preconceito relacionado à orientação sexual, não
se sentem à vontade ou não se consideram portadores de conhecimento
suficiente para abordá-las.
A despeito das limitações apresentadas, a escola não permaneceu imu-
ne às discussões sobre sexualidade, em especial com a evidência da epide-
mia de aids e a urgência de abordá-la com o público adolescente. Nesse
sentido, assistiu-se nas últimas décadas a um crescimento de iniciativas liga-
das à temática, muitas vezes incorporando até mesmo a disciplina Educação
sexual ou Orientação sexual no currículo formal. Assim, a sexualidade foi
incorporada nos currículos escolares sob o prisma biológico, voltado a dis-
cussões sobre a prevenção às DSTs (Doenças Sexualmente Transmissíveis) e

41 Desde 1973, a homossexualidade não é considerada algo patológico, portanto há mais


de quarenta anos que os órgãos médicos internacionais reconhecem que o desejo por
pessoas do mesmo sexo é normal e não pode ser “tratado”. Abordaremos isso em mais
detalhes, adiante.
160 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

à gravidez na adolescência. Em outros termos, o foco restringiu-se a abordar


a temática no âmbito de práticas relacionadas à saúde pública.
Embora tais temas sejam importantes, deixam de fora aspectos socio-
culturais relacionados à sexualidade. Quando mal abordadas, tais iniciativas
correm o risco de reforçar uma naturalização da relação sexual com pessoas
do sexo oposto, tornando invisíveis outras formas de expressão afetivas e se-
xuais, ou mesmo reiterando uma vinculação supostamente necessária entre
relações sexuais e reprodução. Além disso, acabam por associar, em geral,
a sexualidade à doença e a ameaças coletivas, em especial no que tange
às experiências sexuais que não correspondem aos padrões normativos.
Torna-se, pois, importante caminhar para abordagens mais aprofundadas,
com o cuidado de não reforçar pressupostos que incentivem preconceitos e
discriminações na escola.
Compreender a sexualidade de forma mais abrangente significa consi-
derar que não apenas as práticas, mas também as omissões da escola são
parte constituinte da forma como a sexualidade é aprendida entre os alunos.
Não debater as convenções sociais que produzem formas de hierarquização
impacta na própria relação que se constitui dentro dos muros da escola.
O depoimento de um jovem francês a uma pesquisa sobre o tema ilustra a
relação entre a violência na escola e seus silêncios: “Eu sofri insultos homofóbi-
cos durante todo o ensino médio... Poderia ter falado a respeito com o diretor
ou com os professores, mas como eles já sabiam da situação e não tinham
feito nada a respeito, eu não podia esperar nada deles” (UNESCO, 2013, p. 17).
A suposta neutralidade da escola com relação à sexualidade manifesta-
-se de fato em um padrão heterossexual oculto nas concepções e nos va-
lores presentes no currículo escolar, condição que leva à invisibilidade das
sexualidades divergentes. Nas palavras de Richard Miskolci (2010, p. 80),
perpetua-se o “silêncio diante da emergência de uma sexualidade diferente
e, assim, [os agentes educacionais] tornam-se cúmplices da ridicularização e
do insulto público de alguns estudantes”. Ao lado do silenciamento em rela-
ção às diferenças, há, portanto, a cumplicidade com as violências cotidianas.
Os casos de violência, como o que abriu nossas reflexões neste capítulo,
devem ser vinculados à configuração mais ampla da escola, que, por sua vez,
consente outros tipos de violência simbólica, anteriores à violência física.
Como afirma Richard Miskolci (2012):
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 161

Atos isolados de violência emergem quando formas anteriores, invisí-


veis de violência, se revelaram ineficientes na imposição de normas ou
convenções culturais. Estes atos chamam mais nossa atenção, mas não
podem nos iludir como sendo as únicas formas de violência que se pas-
sam no convívio social. Na verdade, ironias, piadas, injúrias e ameaças
costumam preceder tapas, socos ou surras (MISKOLCI, 2012, p. 34).

As formas “invisíveis” de violência constituem, no fundo, intervenções


contínuas que perpetuam ideais morais baseados no pressuposto de que
a heterossexualidade é a única forma de expressão da sexualidade natu-
ral e desejável. Estes aspectos, em geral, não são notados pelos agentes
educacionais, pois não só eles, como vários outros profissionais, tendem a
incorporar as normas sociais como se fossem naturais e permanentes.

A heteronormatividade e suas implicações na educação


A percepção de que o ambiente escolar contém um currículo oculto,
fundamentado na norma heterossexual, foi possível mediante a realização
de pesquisas que desnaturalizam a heterossexualidade ao compreendê-la
como compulsória, isto é, constituída socialmente segundo relações históri-
cas de poder.
162 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

BOX 2

Heterossexualidade compulsória
Os primeiros estudos acadêmicos sobre homossexualidade baseavam-
-se na observação e análise de subculturas homossexuais, examinando
cenários marcados por determinado tipo de sociabilidade e perpassados
socialmente pelo estigma. Ainda que importantes, estas pesquisas não co-
locavam em questão o pressuposto socialmente aceito de que a heteros-
sexualidade é natural, pois não problematizavam a concepção socialmente
constituída da homossexualidade como desvio.
Os estudos avançaram e passaram a compreender a heterossexualidade
como compulsória, ou seja, como uma imposição socialmente instituída,
algo que foi abordado em alguns textos seminais, como no clássico artigo
“A troca de mulheres” (1975) da antropóloga Gayle Rubin e explicitado no
texto da feminista Adrienne Rich (1983) “Powers of desire: the politics of
sexuality”.
Heteronormatividade
Anos depois, teóricos ligados à vertente denominada Teoria Queer passa-
ram a conceber que as sociedades contemporâneas são heteronormativas.
Michael Warner criou o conceito de heteronormatividade em 1991 para se
referir à forma como apreendemos as relações sociais, inserindo-as sempre
no binário interdependente da hetero-homossexualidade. Nesse padrão
hierárquico, atribui-se à heterossexualidade a qualidade de saudável, nor-
mal e adequada e, ao mesmo tempo, associa-se a homossexualidade à pa-
tologia ou ao desvio, subalternizando-a. Segundo Larissa Pelúcio e Richard
Miskolci (2009), a heteronormatividade configura até mesmo a gramática
das relações entre pessoas do mesmo sexo, compondo uma série de ideais
que têm como modelo o casal heterossexual.

Atualmente, nas sociedades contemporâneas, nota-se que a sexualida-


de configura-se com base na heteronormatividade, ou seja, segundo um
conjunto de valores e normas culturais que representam ideais sociais. Esta
nova forma de conceber a sexualidade é fruto de transformações políticas
e culturais que passaram a colocar em xeque certas convenções produto-
ras de desigualdades e subalternizações de sujeitos e grupos sociais. Em
suma, a produção acadêmica passou a ser decisivamente influenciada pelas
mobilizações das décadas de 1960 e 1970, entre as quais podemos citar o
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 163

feminismo e o nascente movimento homossexual, marcados não apenas pela


busca de direitos e reconhecimento, mas também pelo questionamento de
padrões morais opressivos, tendo amplo impacto na produção científica das
décadas seguintes. Tais mobilizações produziram

demandas em um cenário político em que as instituições tradicionais


como o Estado e os partidos passavam a ver questionada sua repre-
sentatividade e/ou autoridade. De forma geral, esses movimentos
afirmavam que o privado era político e que a desigualdade ia além do
econômico. Alguns, mais ousados e de forma vanguardista, também
começaram a apontar que o corpo, o desejo e a sexualidade, tópicos
antes ignorados, eram alvo e veículo pelo qual se expressavam relações
de poder (MISKOLCI, 2012, p. 22).

A segunda onda do movimento feminista, ao longo do referido período,


centrava-se no questionamento do privilégio masculino sistematicamen-
te reiterado por meio da subordinação de mulheres e gays, entre outros
grupos. Com as conhecidas palavras de ordem “o privado é político”, as
feministas questionavam a suposta não existência de relações de poder no
âmbito privado, abrindo a possibilidade para diversas contestações políticas
no âmbito da família, da sexualidade e do trabalho doméstico.
Os feminismos insurgentes passaram a desnaturalizar privilégios que os
homens obtinham dentro de casa, além de denunciar o controle moral que a
sociedade sustentava em relação ao prazer sexual feminino, limitando a pos-
sibilidade de escolhas de parceiros e as formas de relacionamento sempre
vinculadas às expectativas de matrimônio.
Ao lado dos feminismos, surgiram também movimentos homossexuais
que buscavam lutar contra a rotulação da homossexualidade como “desvio
psiquiátrico”, além de exigir o reconhecimento de suas especificidades, a
ampliação de seus direitos de cidadania e o acesso igualitário ao espaço
público e ao mercado de trabalho.
As manifestações tiveram forte impacto no âmbito acadêmico, sendo as
décadas de 1970 e 1980 marcadas pela introdução da temática de gênero
e sexualidade nas universidades. No campo teórico, ressalta-se a obra im-
portante de Mary McIntosh, publicada em 1968, chamada The homossexual
role (O papel homossexual), na qual a autora abre caminho para superar
explicações biologizantes relativas à temática da sexualidade. Entre tantas
obras do período, a mais impactante e ainda hoje referência é a obra de
164 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Michel Foucault, em especial seu livro História da sexualidade: a vontade de


saber (volume I). Neste, Foucault estuda o que denominou de dispositivo de
sexualidade.
Em sua rica pesquisa histórica, o filósofo francês chegou à conclusão de
que a formação das sociedades modernas, industriais e baseadas na conso-
lidação dos Estados Nacionais operou um exaustivo e inédito controle das
formas pelas quais a população se relacionava sexualmente. Conhecimentos
científicos e discursos médicos “alertavam” para os supostos perigos que
práticas sexuais consideradas não convencionais, como o sexo inter-racial,
o prazer sexual feminino, além das relações entre pessoas do mesmo sexo,
poderiam oferecer à coletividade.
Diante do exposto, formou-se uma rede de discursos científicos e peda-
gógicos, além de práticas, que visavam a “pedagogização do sexo da crian-
ça”. Isto é, uma série de valores, recursos e teorias passaram a defender o
disciplinamento do corpo infantil no interior de instituições escolares, tendo
em vista uma suposta ameaça de perigos físicos e morais, com consequ-
ências individuais e coletivas caso a sexualidade infantil se desenvolvesse
de forma não normativa. Ao lado do foco nas crianças, consolidava-se na
literatura psiquiátrica a imagem do homossexual:

A invenção do termo homossexual deu-se em uma carta-protesto do


jornalista e escritor austro-húngaro Karl Maria Kertbeny (1824-1882)
contra a provável criminalização das relações entre pessoas do mesmo
sexo nos estados alemães do Norte, em 1869. No ano seguinte, o então
chamado “homossexualismo” foi “medicalizado” no texto As sensações
sexuais contrárias do psiquiatra alemão Karl Friedrich Otto Westphal
(1833-1890). No eixo crime-patologia, formas muito diversas de relações
entre pessoas do mesmo sexo e maneiras heterodoxas de manipular
os gêneros foram sintetizadas sob uma mesma identidade socialmente
perseguida (MISKOLCI, 2010, p. 94).

As relações afetivas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo existem


em qualquer sociedade humana, no entanto são compreendidas de forma
distinta de acordo com cada contexto sociocultural. As sociedades moder-
nas criaram originalmente uma forma de compreensão da homossexualida-
de como doença, e, por muito tempo, perseguida como crime. A obra de
Michel Foucault, entre outras, forneceu subsídios para se pensar a origem
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 165

histórica desta compreensão e abriu caminho para muitas pesquisas volta-


das à temática nas décadas de 1970 e 1980, das quais se destacam a obra do
francês Guy Hocquenghem intitulada Le désir homossexuel, Thinking sex da
norte-americana Gayle Rubin e O negócio do michê, do argentino radicado
no Brasil Néstor Perlongher.
As referidas obras, dentre outras, criaram as bases para a constituição de
uma nova abordagem da sexualidade que ficou conhecida como Teoria Que-
er, baseada na perspectiva sócio-histórica e na análise das relações de poder.
No contexto norte-americano, são consideradas obras fundadoras dos
estudos queer o livro Problemas de gênero: feminismo e subversão da iden-
tidade, de Judith Butler, e Epistemology of the closet, de Eve K. Sedgwi-
ck, ambos publicados em 1990. Essas obras foram produzidas no ápice da
epidemia da aids, em um contexto que se caracterizava pela culpabilização
de homens gays pela epidemia, tendo a mídia desenvolvido papel crucial
nesse processo devido a reportagens sensacionalistas que enfatizavam a
relação entre homossexuais e práticas sexuais não convencionais, colocan-
do a opinião pública contra este segmento. Trata-se de uma visão moralista
que associava a ideia de que práticas sexuais não voltadas ao casamento
e entre pessoas do mesmo sexo não eram apenas imorais, mas resultavam
em ameaças à coletividade. Um dos primeiros nomes pelos quais a aids foi
conhecida para o público leigo em geral se deu pela rotulação equivocada e
preconceituosa de “câncer gay”.
Há nesse contexto, portanto, uma inflexão de um movimento histórico
que, como vimos, passava a questionar os padrões morais aceitos, algo
que havia repercutido amplamente na produção acadêmica. Na década de
1970, importantes eventos marcaram o processo de despatologização e de
descriminalização da homossexualidade – tendo a Associação Americana de
Psiquiatria retirado, em 1973, a homossexualidade do Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais. Com a epidemia de aids na década de
1980, configurou-se uma nova associação entre aids e homossexualidade,
rotulando novamente certas práticas sexuais e afetivas à doença. Em outros
termos, a despatologização da homossexualidade deu lugar à repatologiza-
ção em termos epidemiológicos (PELÚCIO & MISKOLCI, 2009).
Todo esse contexto fomentou estudos críticos e mais aprofundados
sobre a sexualidade que passaram a conceber a perpetuação, a despeito
de toda a mudança trazida pelos movimentos sociais, do que se chamou
de heteronormatividade. Nesta perspectiva, assume-se que a sexualidade é
166 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

vivida enquanto uma construção social e histórica. Somos, portanto, frutos


do nosso próprio tempo na forma pela qual concebemos e vivenciamos a
sexualidade, que, por sua vez, é constituída em meio a relações de poder.
A heteronormatividade é um sistema complexo que diferencia aquilo que é
“bom”, apropriado e saudável do que é moralmente condenável, inapropria-
do, e deve ser evitado socialmente. Trata-se de um sistema de normas que

não faz mais do que descrever como as pessoas vivem ou devem vi-
ver, como definem um horizonte de expectativas para a vida humana,
um conjunto de ideais para os quais as pessoas aspiram e contra os
quais elas medem o valor delas próprias e da vida de outras pessoas
(HALPERIN, 2012, p. 450, tradução nossa).

Em termos gerais, tais ideais se centram no modelo do casal heteros-


sexual reprodutivo. Estabelecido como a forma mais elevada moralmente,
o modelo heterorreprodutivo influenciou e influencia até hoje as expectati-
vas de vida afetiva e sexual, até mesmo de pessoas que se relacionam com
pessoas do mesmo sexo, servindo para desqualificar qualquer outra escolha
individual no que tange às possibilidades de vida privada e afetiva. Eve K.
Sedgwick (2007) compreende a heteronormatividade a partir de um regime
de visibilidade que se constitui com base no binário hétero/homo, dois ter-
mos contemporâneos que não apenas dizem respeito a formas de expres-
são afetiva e sexual, mas são categorias estruturantes da sociedade como
um todo. Trata-se do que ela concebeu como um regime de visibilidade
heterossexual (regime do armário) que se configura alocando a homossexu-
alidade ao privado, ao segredo, enquanto resguarda o espaço público à he-
terossexualidade. Não se trata apenas de proibir certas expressões públicas
de amor entre iguais, frequentemente alvo de violência, mas também de um
complexo controle de expressões de gênero.
Judith Butler (2003) considera que as sociedades contemporâneas são
caracterizadas pela construção de gênero baseada em uma matriz heteros-
sexual na qual se exige uma coerência entre sexo anatômico, gênero, dese-
jos e práticas sexuais. Em outros termos, exige-se que meninos se portem
de forma masculina e desejem se relacionar com meninas ou que meninas se
portem de forma feminina e desejem se relacionar com meninos.
Gêneros socialmente aceitos são aqueles que se baseiam nesta coerên-
cia, enquanto aqueles que rompem o continuum socialmente imposto, como
travestis, transexuais e transgêneros, são alocados à esfera da abjeção, ou
seja, daquilo que está socialmente associado à repugnância, ao desprezo e à
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 167

vulnerabilidade. Nesse sentido, é possível compreender o regime de visibili-


dade heterossexual como aquele que inviabiliza pessoas que rompem com a
norma não apenas de se expressarem afetivamente, mas de se portarem de
forma espontânea, sendo frequentemente alvo de violência verbal ou física.
De um lado, por exemplo, tal regime constrange casais de mulheres que
se relacionam amorosamente a não expressarem sua afetividade em públi-
co. De outro lado, transforma, muitas vezes, espaços públicos em lugares
hostis a expressões de gênero dissidentes, como para travestis, transexuais
e transgêneros, que frequentemente se transformam em alvo de insultos ou
mesmo de violência física.

Figura 2 Muriel/Hugo é uma personagem d@ Laerte, cartunista reconhecid@ que


passou a se identificar publicamente enquanto transgênero. Os quadrinhos desta
personagem lidam de forma descontraída e questionadora com a ordem sexual que
subalterniza transgêneros, transexuais e travestis.

A escola contemporânea, em geral, atua como instituição normalizado-


ra, atualizando pedagogias de gênero e sexualidade que contribuem para
deixar intocada a ordem heterossexual, alocando ao segredo e à vergonha
outras formas de viver a sexualidade e o gênero. Neste sentido, um dos
aspectos centrais de sua caracterização é a perpetuação do regime de vi-
sibilidade heterossexual que aloca à vulnerabilidade aqueles(as) que não
se adéquam à norma heterossexual. Em outros termos, não se reconhece
a existência da homossexualidade, transexualidade e transgeneridade, ao
mesmo tempo que se reproduz a heterossexualidade como padrão.

Ignorar a existência do interesse por pessoas do mesmo sexo é uma das


formas que a escola utiliza para construir identidades de gênero tradi-
cionais, mas vale sublinhar que essa ignorância é intencional e ativa.
168 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Os educadores e educadoras partem de uma desvalorização de formas


alternativas de compreensão dos gêneros e de vivência da afetividade
para que as identidades esperadas sejam construídas em cada menino
ou menina (MISKOLCI, 2010, p. 100-101).

O que está em jogo não é apenas a vivência de sujeitos homossexuais


dentro dos muros da escola. No decorrer da infância, há mecanismos hete-
ronormativos muito antes de qualquer autorreconhecimento identitário. No
contato com as violências visíveis e invisíveis, com os silêncios e modelos,
com as ações e omissões da escola, os alunos aprendem o que é social-
mente prescrito e como devem se portar diante das diferenças da norma
heterossexual. A partir do exposto, podemos repensar e propor uma “outra
escola”, que dialogue com experiências abertas às diferenças e que debata
de que forma a violência está presente na sociedade e na escola, propician-
do reflexões transformadoras aos alunos e às alunas.
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 169

BOX 3

Já afirmamos que a forma de se compreender a sexualidade varia social


e historicamente, bem como os termos que a designam. Em outras épo-
cas e sociedades, as relações sexuais com pessoas do mesmo sexo eram
compreendidas de forma amplamente distinta da nossa sociedade. Como
exemplo, na Grécia e Roma antigas, homens relacionavam-se com outros
homens sexualmente, e, desde que cumprissem certos códigos morais,
sua masculinidade não era posta em questão. Na sociedade contemporâ-
nea, algo distinto ocorre à medida que, para um homem ser reconhecido
enquanto tal, se exige uma orientação sexual específica: a heterossexuali-
dade. Em outros termos, os homens que mantêm relação afetiva e sexual
entre si convivem com a consideração preconceituosa de que apresentam
uma “falha” em sua masculinidade.
Alguns termos são importantes para compreendermos essas questões.
Segue um pequeno glossário simplificado.
Orientação sexual: escolha sexual e afetiva segundo o gênero. Deste
modo, algumas pessoas se definem como heterossexuais, elegendo pes-
soas do gênero oposto, outras se definem como homossexuais, elegendo
pessoas do mesmo sexo, e, ainda, outras se definem como bissexuais, ele-
gendo tanto pessoas do sexo oposto quanto do mesmo sexo. O termo
homossexualidade é preferível em relação a homossexualismo, cujo prefixo
ismo carrega uma conotação de doença. É importante pensar que essas
categorias não são tão fechadas e podem não dar conta da totalidade das
experiências afetivas e sexuais de uma mesma pessoa.
Identidade de gênero: identificação da pessoa segundo o gênero base-
ada no argumento de que o sexo anatômico não determina diretamente
a masculinidade ou a feminilidade. A identidade de gênero é nomeada a
partir da congruência ou divergência em relação às expectativas que de-
terminam causalidade direta entre a anatomia biológica e as dimensões
culturais da masculinidade ou da feminilidade. Transgeneridade refere-se à
identificação de uma pessoa com o gênero oposto ao do seu “sexo bioló-
gico”. Transexualidade é comumente definida da mesma forma, havendo a
possibilidade de que as pessoas realizem cirurgias corporais de modo a se
adequarem à anatomia sexual correspondente à sua identidade de gênero.
170 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

BOX 3

Travestilidade refere-se à outra forma de expressão de gênero discordante


da anatomia sexual original. É importante ressaltar que a não conformidade
em relação ao gênero não necessariamente se relaciona com a orientação
sexual, ou seja, há pessoas trans que se relacionam com pessoas do mesmo
gênero, por exemplo.

BOX 4

Assista ao curta-metragem Eu não quero voltar sozinho (Brasil, 2010), diri-


gido por Daniel Ribeiro. A produção fílmica é uma boa oportunidade para
debater a presença de outras sexualidades no contexto escolar, além de
abordar o exercício da sexualidade entre pessoas com deficiências. O filme
narra o convívio entre dois adolescentes, sendo um deles deficiente visual,
e suas primeiras vivências afetivo-sexuais. Acesse o link: <https://www.you-
tube.com/watch?v=1Wav5KjBHbI>.

UNIDADE 2
Casa-grande & senzala: o modelo heterorreprodutivo
nacional e suas dimensões históricas

Após termos apresentado o conceito de heteronormatividade e sua in-


fluência no modo como as relações sociais se organizam, em especial no
interior da escola, nesta unidade discutiremos os aspectos singularmente
brasileiros da construção histórica e social da sexualidade. Ou seja, aborda-
remos de que modo fatores políticos, econômicos e históricos configuraram
as manifestações da sexualidade no Brasil. Para tanto, apresentaremos as
ideias de Gilberto Freyre, influente teórico das Ciências Sociais brasileiras.
Freyre é frequentemente associado à ideia de que haveria uma “demo-
cracia racial” no país. Segundo esse mito, o Brasil seria um país mestiço e,
diferentemente de outros contextos nacionais, marcado por relações mais
harmônicas entre as “raças”. Embora as críticas baseadas em pesquisas
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 171

sociológicas e históricas tenham apontado que a configuração social brasi-


leira, ao contrário do que Freyre apontava, é marcada pelo racismo, vários
autores realizaram uma leitura original de sua obra, aproveitando-se da com-
plexidade com a qual lidava com aspetos macrossociais relacionados à vida
privada e íntima do Brasil colonial.
Freyre analisou as bases históricas da sociedade brasileira de forma so-
fisticada, ao integrar em sua análise aspectos socioeconômicos abrangen-
tes, como as históricas plantations baseadas no trabalho escravo, os sistemas
políticos patriarcalistas, além das características prosaicas dos costumes
privados dessa época. Em uma leitura crítica de seu livro mais famoso, Casa-
-grande & senzala, publicado em 1933, é possível notar as íntimas e não me-
nos violentas relações entre a casa-grande e a senzala, que deixaram marcas
profundas em nossa configuração social presente. Um dos aspectos analisa-
dos pelo autor, bem lembrados por Laura Moutinho (2004), diz respeito ao
patriarcalismo poligâmico, no qual o pai de família e proprietário de terras
tinha assegurado para si uma dupla moral sexual que lhe permitia ter rela-
ções sexuais dentro e fora do casamento, aproveitando-se de suas escravas.
Desta origem histórica herdamos um modelo de sexualidade que articu-
la dominação masculina e racismo. No período colonial e escravista de nossa
história, às mulheres brancas e da elite cabia o recato sexual, a reprodução e
o cuidado do lar e dos filhos. As mulheres negras e escravizadas, por sua vez,
frequentemente serviam, mediante coação, aos prazeres dos proprietários
de terras e homens livres. No Brasil, a relação sexual inter-racial constituiu-se
saturada de poder com base na história de hierarquias raciais próprias de
uma sociedade de origem colonial e escravocrata. Deste cenário surgiu a
representação da mulher negra ou mulata como supostamente mais sensual
e acessível sexualmente, bem como marcada pela falta de moralidade. Em
outros termos, além de coagidas ao ato sexual, eram tratadas como se esti-
vessem sempre predispostas ao sexo.
Sueann Caulfield (2000) aborda a continuidade desse padrão moral ba-
seado na hegemonia masculina durante as décadas de 1930 e 1940. A mora-
lidade da época compreendia a honra sexual da mulher, também concebida
como “honestidade sexual”, como base da família, por sua vez, sustentáculo
da nação. O controle moral da sexualidade tinha óbvios contornos de gê-
nero. Aos homens, permitia-se o uso do espaço público e não se cobrava
recato sexual, às mulheres exigia-se domesticidade e “proteção” de sua
“honra”. Honestidade, neste caso, significava submissão à vigilância dos pais
172 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

e do marido, ao passo que seu oposto poderia ser constatado na presença


da mulher na esfera pública andando em bondes, em atividades de entre-
tenimento, como a dança desacompanhada, entre outras que denotavam
autonomia. As leis e os direitos sexuais da época eram concebidos a partir
de uma suposta missão reprodutiva e moralizadora da mulher, em vez da
defesa de sua liberdade e da garantia de seus direitos individuais.
Estamos diante da caracterização de uma ordem sexual que, se na pri-
meira unidade assinalamos sua relação com a heteronormatividade, aqui
enfatizamos sua vinculação com aspectos raciais e de gênero.
É possível conceber, para fins didáticos, um sistema de classificações so-
ciais que hierarquiza certas práticas sexuais como moralmente mais dignas
do que outras. As análises de Gayle Rubin (1984) permitem formular uma
representação gráfica de uma pirâmide sexual em que no topo constam
heterossexuais casados do mesmo grupo racial, logo abaixo homens hete-
rossexuais solteiros, seguidos por casais heterossexuais de grupos raciais
distintos e mulheres heterossexuais solteiras. Pouco acima dos grupos da
base da pirâmide estão os casais estáveis de lésbicas e gays, mais abaixo os
mesmos grupos solteiros, e na base constam os transgêneros e transexuais,
os(as) profissionais do sexo e, por fim, travestis que vivem da prostituição.
Temos, portanto, um modelo de estratificação social segundo a respeitabili-
dade social, ancorado em pressupostos morais e relações de poder.
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 173

Figura 3 Gráfico ilustrativo da pirâmide sexual brasileira. Adaptado com base na dis-
cussão da antropóloga norte-americana Gayle Rubin.

A pirâmide sexual descrita auxilia na compreensão de como a sociedade


vincula respeitabilidade com a maneira pela qual os indivíduos lidam com
a esfera dos afetos, da sexualidade, das formas de identificação de gênero
e das relações raciais, considerando que todas essas dimensões atuam de
forma simultânea. Nessa perspectiva, o argumento segundo o qual a sexua-
lidade se restringe às questões pessoais e à esfera do privado cai por terra.
Uma ordem sexual se configura socialmente e a sociedade conta com instru-
mentos sofisticados para controlá-la, perpetuando assimetrias, hierarquias e
desigualdades tal como apresentado na referida pirâmide.
Os grupos sociais presentes no topo da pirâmide, representativos da
respeitabilidade social, têm garantida sua circulação na esfera pública, além
da livre expressão de seus afetos, pois não se deparam com restrições à ma-
nifestação afetiva (beijos, abraços, carícias) nas ruas, restaurantes, shoppin-
gs centers etc. Além disso, esses grupos têm maior possibilidade de serem
respeitados e recrutados pelo mercado de trabalho. No entanto, os grupos
174 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

sociais localizados na base da pirâmide, representativos da abjeção social,42


encontram inúmeros obstáculos em sua circulação pública, sendo alvo de
manifestações violentas e discriminatórias, além de terem dificuldade de
acesso ao mercado de trabalho. As desigualdades não se restringem aos
empecilhos para circular nos espaços abertos, mas também têm efeito nos
rendimentos financeiros, pois o mercado de trabalho atua a partir de prin-
cípios normativos, discriminando, portanto, os grupos sociais estabelecidos
na base da pirâmide. Mais profundo do que isso, a base da pirâmide atesta a
consideração de um grau menor de humanidade aos seus ocupantes. Como
exemplo,

são corriqueiras as notícias de pessoas transexuais e travestis assassi-


nadas no Brasil sem que haja apuração e punição dos(as) culpados(as).
Acaba-se produzindo uma hierarquia das mortes: algumas merecem
mais atenção do que outras. De modo geral, na lógica jurídica, um dos
critérios para se definir a posição que cada assassinato deve ocupar na
hierarquia dos operadores do Direito parece ser a conduta da vítima em
vida. Nessa cruel taxonomia, casos de pessoas transexuais assassina-
das ocupam a posição mais inferior. É como se houvesse um subtexto:
“quem mandou se comportar assim”. Essa taxonomia acaba (re)produ-
zindo uma pedagogia da intolerância. A vítima é metamorfoseada em
ré em um processo perverso de esvaziá-la de qualquer humanidade
(BENTO, 2011, p. 554).

O entremeio é caracterizado por julgamentos coletivos que, embora não


aloquem os sujeitos à abjeção, recusam o reconhecimento integral de suas
experiências, da mesma forma que cobram sua adequação às normas. Às
mulheres heterossexuais, solteiras, na faixa dos 30 anos, por exemplo, recai a
“cobrança” de se casarem ou de pelo menos manterem um namoro estável
de forma mais acentuada do que aos homens. O sentimento de adequação
e reconhecimento social alcançado por aqueles que estão no topo da pi-
râmide se revela na mesma medida em que a inadequação dos que estão
abaixo se apresenta em situações cotidianas, mesmo que de forma sutil.

42 Abjeção social refere-se às manifestações de repugnância e temor da qual são objeto


aqueles(as) que não se enquadram nos rígidos padrões heteronormativos. Nessas oca-
siões, por expressarem sexualidades e performances de gênero não enquadradas no
padrão “esperado”, gays, lésbicas, travestis, entre outros, são alvo de desprezo e temor
por grupos sociais refratários a qualquer padrão que não manifeste explicitamente as
demandas heterossexuais.
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 175

Os casais gays e lésbicos, especialmente aqueles cujos pares não apre-


sentam performance de gênero discordante das normas sociais, ou seja, no
qual os homens são masculinos e as mulheres femininas – preferencialmente
brancos e das classes altas –, estão em um patamar acima na pirâmide de
respeitabilidade social quando comparados a gays e lésbicas solteiras, dado
que reproduzem, ainda que de forma avessa, o modelo heterossexual funda-
do no vínculo conjugal estável.

Mídia e sexualidade: o que é incentivado a ser veiculado e o que


causa polêmica?
Além do prestígio social e da respeitabilidade de que gozam os grupos
sociais localizados nos estratos superiores da pirâmide e das experiências
de abjeção social a que são submetidos(as) aqueles(as) cuja sexualidade não
corresponde ao padrão heteronormativo, é importante discutir o papel da
mídia na veiculação de representações sobre gênero e sexualidade. É possí-
vel dizer que, atualmente, a televisão, o cinema e a internet são importantes
fontes de significados da cultura que acabam repercutindo na forma como
nos vemos e vemos os outros.
Atualmente, as mídias televisivas, ao atuarem em convergência com as
mídias digitais, produzem e transmitem diversos tipos de valores à socieda-
de. O que vemos nos canais televisivos nunca é o reflexo imediato da reali-
dade, independentemente se estamos nos referindo às ficções das teleno-
velas ou aos programas jornalísticos. Uma representação é sempre seletiva
em termos do que abordar e de como atribuir significado. O que pode ser
visto na televisão? Como os diversos grupos sociais são abordados? Esses
questionamentos são importantes caso concebamos que a relação entre es-
pectadores e o conteúdo midiático ocorre por meio da produção de identifi-
cações e referências. Em outros termos, o modo pelo qual compreendemos
a nós mesmos e aos outros depende de modelos que são, cada vez mais,
fornecidos pelas mídias.
Por exemplo, no início de 2014, pela primeira vez um beijo entre homens
foi veiculado na telenovela Amor à vida, produzida pela maior emissora de
televisão brasileira, conforme abordado no capítulo anterior deste livro. O
que explica tamanho intervalo de tempo na representação da afetividade
entre homens na televisão? Por que uma forma de afeto e de expressão
da sexualidade representativa na sociedade não pode ser abordada em
176 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

programas televisivos? O receio é resultado do controle das emissoras


que buscam se adequar aos valores sociais normativos definidores de sua
audiência, mas também é revelador da norma heterossexual, presente nas
decisões corporativas da mídia e no mercado de anúncios publicitários que
mantêm a programação.
Setores mais conservadores da sociedade assumem que a televisão é
influente no que se refere à transmissão de padrões de comportamentos
e consideram que práticas sexuais divergentes às normas não devem ser
veiculadas em público. A despeito dessas manifestações, de modo geral,
a cena do beijo teve uma repercussão positiva na imprensa escrita e nas
redes sociais, embora seja patente que ela se pautou pela discrição afeti-
va e foi circunscrita a homens brancos e de classe alta, com privilégios e
reconhecimento que minimizam o preconceito em relação à homossexua-
lidade, conforme aludido na pirâmide de respeitabilidade social segundo a
sexualidade.
Enquanto as relações afetivas entre homens não encontram espaço na
mídia, no carnaval, mulheres seminuas ocupam as telas durante todo o ho-
rário da programação. Em especial, as mulatas, atualizando a representação
que associa negritude e sensualidade natural, cuja história remonta a nosso
passado colonial e escravista, conforme já discutido.
As representações midiáticas, portanto, não são neutras, pois carre-
gam valores culturais e difundem normas sociais que reatualizam o modelo
heterorreprodutivo da sociedade brasileira, calcado na hegemonia mascu-
lina e influenciado por fatores raciais, entre outros. Vemos, portanto, que
as dimensões de raça, gênero e sexualidade se encontram entrelaçadas
na configuração de uma ordem sexual brasileira, conforme discutido no
primeiro capítulo do presente livro, quando foi apresentado o conceito de
interseccionalidade.
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 177

Figura 4 Aline Prado, “Globeleza” entre 2006 e 2013, representa a figura da mulata
sensual, bastante abordada pela mídia brasileira.

A matriz heterossexual de gênero e a homofobia na escola


Quando falamos de uma ordem sexual devemos compreender como
os elementos que se referem à sexualidade se unem a outras dimensões,
por exemplo, às relações de gênero. Sexualidade e gênero se entrecruzam
quando consideramos que a construção social da masculinidade se baseia
na negação do feminino, incluindo a dominação simbólica das mulheres e a
homofobia. Para Rogério Junqueira (2009), o processo de se constituir en-
quanto homem passa por se diferenciar do feminino encarnado nas mulhe-
res e nos homossexuais, muitas vezes a partir da violência: o “‘outro’ passa a
ser principalmente as mulheres e os gays e, para merecerem suas identida-
des masculinas e heterossexuais, [os homens] deverão dar mostras contínuas
de terem exorcizado de si mesmos a feminilidade e a homossexualidade”
(JUNQUEIRA, 2009, p. 19).
Considerando que a masculinidade se constitui na homossociabilidade,
ou seja, ela é aprendida e reforçada nas relações de sociabilidade entre ho-
mens nas práticas esportivas, nos grupos de amizade, no contato com cole-
gas de trabalho, um aspecto fundamental destas relações é a necessidade
178 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

de se espantar a “ameaça” da homossexualidade. Em outros termos, na ho-


mossociabilidade, a homossexualidade atua como um elemento simbólico
especial:

Tanto o medo como a forma de agressão mais comum se fazem na


linguagem da homossexualidade, enquanto categoria passiva, simboli-
zada na imagem da penetração anal, feminizando assim o homem. Este
recurso retórico é usado em todas as relações competitivas e conflitu-
osas entre homens, seja no trabalho, nos negócios ou no jogo. Por sua
vez, a homofobia situa e exorciza o perigo homossexual da homossocia-
lidade (ALMEIDA, 2000, p. 68).

A homofobia se refere, em termos simples, à internalização da negação


da homossexualidade como aspecto constitutivo da identidade heterosse-
xual. Os termos heterossexual e homossexual são categorias contemporâ-
neas, criadas na passagem do século XIX para o XX, e se caracterizam por
sua interdependência. Apenas se concebe o que é heterossexual referindo-
-se ao seu contraste, o homossexual. Em outras palavras, a homossexuali-
dade é a alteridade definidora da heterossexualidade. Essa constatação é
facilmente notada nas piadas contadas por homens e nas relações jocosas
(“zombarias”) típicas desse grupo, cujo conteúdo, em geral, alude de forma
pejorativa à homossexualidade e sistematicamente coloca em xeque a “he-
terossexualidade” de algum membro do grupo. Basta nos lembramos das
piadas contadas sobre gays, taxados nessas ocasiões como “viados/bichas”,
e nas gargalhadas que extraem dos comparsas. Por meio do escárnio, os ho-
mens procuram se diferenciar dos gays e rejeitar qualquer forma de desejo
ou prática homossexual e, ao mesmo tempo, reafirmam publicamente sua
virilidade.
A homofobia não se limita às piadas ou às relações jocosas estabelecidas
entre homens, pois sua expressão talvez assuma contornos de repulsa que
podem culminar em atos de agressão física, por exemplo. A violência homo-
fóbica não se limita a um ato isolado que diz respeito apenas à personalida-
de do agressor, pois ela coincide com um sistema de valores que caracteriza
a heterossexualidade como manifestação da normalidade, do saudável e do
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 179

adequado, ao mesmo tempo que classifica a homossexualidade como anor-


mal, desviante, inadequada e doentia. Aqueles que não se identificam com
as normas habitam a esfera da abjeção e, portanto, encarnam justamente a
alteridade a ser socialmente repugnada. Segundo Richard Miskolci (2012), “a
abjeção, em termos sociais, constitui a experiência de ser temido e recusado
com repugnância, pois sua própria existência ameaça uma visão homogênea e
estável do que é a comunidade” (MISKOLCI, 2012, p. 24).

BOX 5

A matriz heterossexual de gênero


Segundo Judith Butler (2003), a construção das relações de gênero em con-
textos heteronormativos fundamenta-se na coerência socialmente imposta
entre anatomia sexual, gênero, desejo e práticas sexuais. Assim, pessoas
dotadas de um pênis devem se portar de forma masculina, se interessar
por mulheres e se relacionar com elas. De forma inversa, o mesmo vale
para pessoas que nasceram com a anatomia feminina. Baseando-se nessas
argumentações, cria-se a ideia de complementaridade de gênero, isto é, a
pressuposição de que homens e mulheres são naturalmente condicionados
para formar casais heterossexuais. O heterossexismo organiza-se conforme
o pressuposto de que todos são naturalmente heterossexuais até que se
prove o contrário, em vez de conceber as relações de gênero e afetivo-
-sexuais como constituições sociais e históricas.

Aqueles que não se adéquam às normas de gênero e sexualidade são


vistos como desviantes ou como portadores de alguma patologia. Os valo-
res e as ideias difundidas por família, religiões, mídias, escola, entre outras
instituições, tendem a naturalizar as normas sociais não levando em conta
que, no cotidiano, as crianças, por exemplo, ultrapassam ou misturam os
universos masculinos e femininos. Segundo Berenice Bento (2011), “o pro-
cesso de naturalização das identidades e a patologização fazem parte desse
processo de produção das margens, local habitado pelos seres abjetos”
(BENTO, 2011, p. 553). A expressão “isso não é coisa de menino!” revela
muito como as fronteiras entre os gêneros são constantemente vigiadas. Em
síntese, questiona a autora,

depois de uma minuciosa e contínua engenharia social para produzir


180 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

corpos sexuados que tenham na heterossexualidade a única possibilida-


de humana de viver a sexualidade, como se pode continuar atribuindo
à natureza a responsabilidade daquilo que é o resultado de tecnologias
gerenciadas e produzidas pelas instituições sociais? (BENTO, 2011, p. 552).

A título de exemplo, Berenice Bento (2011) analisa narrativas de transe-


xuais que na infância deixaram a escola depois de serem alvo de sucessivas
agressões por conta de sua inadequação às normas de gênero, sem que
a escola atuasse para inibir tais atitudes. Esses casos acabam compondo
as estatísticas de evasão escolar; no entanto, como o tema não é levado a
sério pela maior parte das escolas, não se sabe nem mesmo qual percentual
dessas evasões decorre do bullying homofóbico. Segundo a autora, em vez
de serem tipificados como “evasão”, esses casos deveriam ser classificados
como “expulsão”, pois são fruto, entre outros aspectos, das práticas e omis-
sões da pedagogia escolar alinhada às normas de gênero hegemônicas.
Diante do panorama apresentado nesta unidade, deve-se questionar a
neutralidade das práticas pedagógicas e do currículo escolar convencional.
Nesse sentido, é importante propor uma nova abordagem pedagógica que
leve em conta os aspectos discutidos e que busque problematizá-los em
prol da transformação do espaço escolar. Uma pedagogia que leva em conta
o reconhecimento das diferenças deve tornar explícito o conteúdo muitas
vezes imperceptível, mas violento, de alguns tipos de interação, valores e
práticas presentes na instituição escolar, com o propósito de intervir para
que esse ambiente se torne mais receptivo e democrático.
Neste sentido, torna-se importante dar visibilidade às injustiças e à vio-
lência decorrentes do cumprimento de regras e convenções culturais que
subdividem grupos sociais segundo critérios de “normalidade” e “anor-
malidade”. É necessário reconhecer que tanto aqueles que são “adapta-
dos” e “respeitados socialmente” quanto os estigmatizados e humilhados
sofrem ação dessas mesmas normas e convenções e detêm recursos para
reconhecê-las.
O senso comum muitas vezes compreende as diferenças como “des-
vio” e, desta forma, naturaliza as identidades socialmente reconhecidas e
as identidades abjetas. Em uma perspectiva mais crítica e atenta, devem-se
refutar as concepções essencialistas da diferença, ou seja, que a concebem
como natural e imutável, visto que ela só pode ser compreendida com base
no contexto social que a circunscreve.
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 181

Além disso, as diferenças embasam elementos dos hábitos e costumes


de uma sociedade e, assim, moldam o “jeito de ser”, os gostos, as carac-
terísticas de cada um. Neste sentido, uma abordagem questionadora das
normas não se limita à aceitação da “diferença”, pois busca transformar as
relações cotidianas da escola de modo a eliminar hierarquias de gênero
e sexualidade. Nessa perspectiva, recusa-se um modelo de pensamento
que se baseie em valores binários e redutores, tais como “normalidade” ou
“anormalidade”, “castidade” ou “promiscuidade”, “garanhão” ou “viado”,
“moça de família” ou “piriguete”, pois o modo de se relacionar com o outro,
de se portar, o desejo, são expressões possíveis da sexualidade no contexto
ocidental e devem ser vistos como elementos possíveis do “jeito de ser” de
cada um.
A abordagem queer atenta para como as normas da sociedade moldam
tanto aqueles que se adaptam a elas quanto os que delas divergem. A escola
fornece exemplos por meio das imagens dos livros didáticos e das falas dos
professores e colegas sobre o que é esperado socialmente em relação aos
padrões de gênero e sexualidade, como também perpetua a invisibilidade
das diferenças em relação aos padrões. Há uma pedagogia de gênero e se-
xualidade no espaço escolar que opera por meio da violência e da omissão,
conformando um horizonte de expectativas aos alunos sobre o que é ou
não é aceitável/esperado nos comportamentos sociais. Essas constatações
são evidentes em casos de bullying homofóbico, em que o agressor justifica
suas motivações em razão da “defesa” das normas sociais “esperadas”, ao
passo que aqueles que discordam da atitude tomada muitas vezes silenciam
suas argumentações e tornam-se “cúmplices” da covardia por se sentirem
ameaçados ou por receio de sofrerem tal como a vítima.
Tanto os casos de bullying quanto a sutileza das práticas escolares que
dividem rigidamente comportamentos típicos de “meninos” e típicos de
“meninas” perpetuam a “pedagogia da (in)visibilidade” da sexualidade, com
consequências pessoais para diversos sujeitos no espaço escolar. No início
da adolescência, quando alguns estudantes passam a se reconhecer como
não heterossexuais, em geral, não encontram acolhimento para expressar
seus sentimentos e identificações. Muitas vezes, reconhecem a própria ho-
mossexualidade a partir da experiência do xingamento e da abjeção. Veem
a escola como um ambiente no qual a homossexualidade não encontra outra
posição que não a da abjeção, do silêncio e do medo, que tendem a ser a
dimensão subjetiva predominante.
182 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Desse modo, a instituição escolar paulatinamente incute nos chama-


dos “estranhos” a ideia de que devem manter em silêncio seus desejos e
sentimentos, pois, aos olhos da sociedade, são “errados”, “sujos” e “abje-
tos”. A escola, que em tese deveria socializar as novas gerações de forma
democrática e reconhecer suas peculiaridades, acaba por obrigá-los não
apenas a esconder, mas também a rejeitar qualquer aspecto, seja nos tra-
jes, no modo de pentear os cabelos, no modo de andar, na expressão dos
sentimentos, que sutil ou abertamente “denunciem” oposição ao padrão
heteronormativo. Ou seja, a instituição escolar ensina meninos e meninas
a rejeitarem seus desejos e gostos, alocando-os à esfera da abjeção e do
segredo “vergonhoso”.
O silêncio é, portanto, o espaço no qual se escapa da violência física ou
do assédio moral, muito embora com custos pessoais e psicológicos. Desta
forma, a homossexualidade é preservada em seus vínculos com o segredo e
com a vergonha, enquanto a esfera pública persevera sua associação com a
heterossexualidade. Neste sentido, o “armário”, isto é, manter em segredo
os sentimentos e desejos homossexuais, não pode ser concebido como es-
colha individual. Trata-se, antes, de um dispositivo de controle que naturaliza
a heterossexualidade e não permite a expressão pública de comportamen-
tos que dela divirjam. Embora seja comum a culpabilização daqueles que
não “assumem” sua sexualidade, em muitos casos, “esconder” a própria
orientação sexual é uma forma de evitar maior vulnerabilidade às situações
de violência. Em contraste ao racismo, que, em geral, é marcado pela visibi-
lidade do estigma, o armário se caracteriza pela instabilidade e pela vulne-
rabilidade na manipulação do conhecimento sobre a sexualidade de alguém
cuja “verdade” passa pelo controle do julgamento coletivo.
Nos casos em que a discordância dos padrões de gênero e sexualidade são
mais acentuados, como entre meninos que se identificam com meninas desde
cedo, transgêneros e transexuais, o silenciamento não se apresenta como “op-
ção”, pois o assédio moral e a violência física atuam de forma evidente, espe-
cialmente em espaços liminares, nos quais inspetores, professores e diretores
não supervisionam o comportamento dos alunos, tais como os corredores, os
pátios, as quadras, os banheiros e, principalmente, a saída da escola.

Como profissionais da educação costumam testemunhar, são meninos


femininos e meninas masculinas, pessoas andróginas ou que adotam um
gênero distinto do esperado socialmente, que costumam sofrer injúrias
e outras formas de violência no ambiente escolar. Será mero acaso que
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 183

homens e mulheres que constroem um perfil de gênero esperado e escon-


dem seu desejo por pessoas do mesmo sexo sofram menos perseguição?
A sociedade incentiva essa forma “comportada”, no fundo, reprimida
e conformista, de lidar com o desejo, inclusive por meio da forma como
persegue e maltrata aqueles que são cotidianamente humilhados sendo
xingados de afeminados, bichas, viados, termos que lembram o sentido
original de queer na língua inglesa (MISKOLCI, 2012, p. 32).

Para os homens, qualquer ocasião que os associem à feminilidade é con-


siderada aviltante, pois a virilidade depende da rejeição de características
femininas ou que coloquem em xeque sua heterossexualidade. Por outro
lado, na infância, quando um menino eventualmente se comporta, ou tem
gostos, de modo considerado não normativo, em geral, é chamado de “bi-
cha” ou “marica”, fato que o leva cada vez mais a se sentir rejeitado e pe-
jorativamente diferente. Para os meninos, tornar-se homem é diferenciar-se
do feminino, o que muitas vezes significa virilizar-se a partir da dominação
masculina e da homofobia. Essa situação é agravada durante a adolescência
quando o maior número de parceiras sexuais atesta a virilidade do jovem e
exclui a suspeita de que ele seja homossexual.
No caso das mulheres, o senso comum considera que elas devem zelar
por sua honra, o que significa não apenas comportar-se de modo delicado,
mas também engajar-se em escolher exclusivamente os relacionamentos
estáveis e, dessa forma, evitar contato com vários parceiros sexuais ou com
qualquer situação que deponha contra a sua moralidade, condutas não
esperadas para “mulheres respeitáveis”. Desse modo, concluímos que a
ordem sexual e de gênero é constituída por valores morais que asseguram
privilégios para os homens e desigualdades para as mulheres, padrão reper-
cutido não apenas nas relações afetivo-sexuais e familiares, como também
nas relações de trabalho, no interior das escolas, dos serviços de saúde, en-
tre outros espaços públicos.
184 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

UNIDADE 3
Aspectos da heteronormatividade contemporânea

Nas novelas, nos telejornais, nas revistas e nas redes sociais, cotidiana-
mente nos deparamos com discursos e opiniões divergentes relacionados à
sexualidade. O roteiro das telenovelas, vez ou outra, contempla o romance
entre homens e entre mulheres; questiona se é legítimo ou não o uso de tec-
nologias reprodutivas para que casais gays possam ser pais ou mães; além
de levar o público ao frisson diante do beijo entre dois homens, constatação
que selaria a suposta “liberdade” de costumes e de normas nunca antes
vista no Brasil. As forças sociais estariam avançando de modo a fazer da
diferença motivo genuíno de transformação das relações familiares, conju-
gais e sexuais ou apenas estariam aprendendo a tolerar o “diferente” e a
“aceitá-lo” como tal?
A esse respeito, José Alves e Sônia Corrêa (2009) afirmam que cada vez
mais as sociedades têm se individualizado e expandido a autonomia pes-
soal, sobretudo das mulheres. Além disso, os autores mencionam modifica-
ções no modo de organização da família e da conjugalidade em virtude da
separação entre reprodução e exercício da sexualidade. Durante boa parte
do século XX, considerava-se que as práticas sexuais deveriam estar vincu-
ladas ao matrimônio, pelo menos para as mulheres, ao passo que, hoje em
dia, é amplamente aceito que o início da vida sexual ocorra na adolescência,
com maior possibilidade de os jovens experimentarem relações sexuais com
mais parceiros durante a vida. A invenção da pílula anticoncepcional e o uso
disseminado de preservativos foram elementos que contribuíram para uma
nova forma de se exercer a sexualidade, não tendo em vista necessariamen-
te a formação de uma família.
Esses fatores redundam em transformações importantes na fecundidade
e na contestação de padrões “tradicionais” das relações de gênero e das re-
lações familiares, além da reconfiguração da heteronormatividade. A despeito
das mudanças, “mecanismos legais e culturais de subordinação das mulheres
[...] continuam vigentes em muitos países” (ALVES & CORRÊA, 2009, p. 125).
Mesmo nas sociedades marcadas por mudanças contundentes no plano das
sexualidades e das relações de gênero, o privilégio disponível aos homens
segue orientando a sociabilidade cotidiana, entre outros domínios.
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 185

De um lado, de acordo com Jeffrey Weeks (2009), atualmente, as forças


sociais perfazem uma longa e profunda revolução nos parâmetros da vida
sexual e íntima. Desde a década de 1990, verificam-se mudanças dramáticas
na família e na vida conjugal, no erotismo, nas identidades sexuais, nas rela-
ções entre homens e mulheres, homens/homens e mulheres/mulheres. Estas
transformações ocorrem de forma desigual nos países, pois dependem de
configurações sociais específicas e da condição histórica e cultural de cada
um. Mas é preciso ressaltar que as referidas modificações se deram sem o
questionamento das normas que reconhecem certas experiências, identida-
des e formas de organizar a vida afetiva como superiores a outras. Em outras
palavras, a heteronormatividade segue vigente, ainda que reconfigurada.

A heteronormatividade expressa as expectativas, as demandas e as


obrigações sociais que derivam do pressuposto da heterossexualidade
como natural e, portanto, fundamento da sociedade. Muito mais do que
o aperçu de que as relações com pessoas do sexo oposto são compul-
sórias, a heteronormatividade sublinha um conjunto de prescrições que
fundamenta processos sociais de regulação e controle até mesmo da-
queles que se relacionam com pessoas do mesmo sexo. Assim, ela não
se refere apenas aos sujeitos legítimos e normalizados, mas é uma de-
nominação contemporânea para o dispositivo histórico da sexualidade
que evidencia seu objetivo: formar a todos para a heterossexualidade
ou para organizarem suas vidas a partir de seu modelo supostamente
coerente, superior e “natural” (MISKOLCI, 2009, p. 8).

O questionamento das normas heteronormativas não se faz com a “aceita-


ção” ou “tolerância” às diferentes formas de orientação sexual e identidades
de gênero. Para isso, seguindo as considerações de Miskolci (2012), é preciso
“tornar visíveis as injustiças e violências implicadas na disseminação e na de-
manda do cumprimento das normas e das convenções culturais, violências
e injustiças envolvidas tanto na criação dos ‘normais’ quanto dos ‘anormais’”
(MISKOLCI, 2012, p. 26). Para o autor, as normas e convenções expressam-se
tanto no reconhecimento social dos indivíduos considerados ajustados(as)
como nas ofensas dirigidas aos que não as seguem plenamente. Portanto,
é importante refletirmos sobre como, ainda na contemporaneidade, as rela-
ções de poder tendem a normalizar e a disciplinar as relações de gênero e
as próprias sexualidades segundo mecanismos que distinguem aqueles(as)
que expressam suas convenções daqueles(as) que não as expressam.
186 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Com base no que foi discutido nas unidades 1 e 2 deste capítulo, são apre-
sentadas a seguir temáticas atuais no cenário brasileiro que desvelam trans-
formações e resistências com relação à heteronormatividade e suas injunções.
Discutiremos o projeto que visava legitimar práticas psicológicas destinadas a
curar e a tratar a homossexualidade; aspectos do movimento social intitulado
“marcha das vadias”, além de temas intrincados a estes, como sexualidade,
ciência e religião; a medicalização do aborto e o movimento LGBT (Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros). Os temas apresen-
tados podem ser utilizados de forma ampla e livre pelo(a) professor(a) em
atividades didáticas e oficinas com alunos(as) na faixa etária da adolescência.

A contenda entre a “cura” da homossexualidade e os direitos sexuais


Conforme citado na primeira unidade, em 1973, a homossexualidade
deixou de ser elencada como transtorno mental pela Associação Americana
de Psiquiatria, fato que reformula a definição da própria associação, datada
de 1952. Em 1975, a Associação Americana de Psicologia adota a mesma
resolução, e, em 1990, com a atualização da Classificação Internacional de
Doenças (CID), a Organização Mundial de Saúde (OMS) retira a classificação
da homossexualidade como doença mental.
No Brasil, em 1999, por meio da Resolução 1/99, o Conselho Federal de
Psicologia deliberou que psicólogos não colaborarão com serviços de “cura”
ou “tratamento” da homossexualidade. Mudanças culturais e políticas, decor-
rentes dos movimentos sociais das décadas de 1960 e 1970, pareciam ter ques-
tionado de forma definitiva a vinculação de longa data entre homossexualidade
e doença. No entanto, alguns acontecimentos recentes mostram a persistência
de definições culturais preconceituosas, mesmo quando repudiadas no âmbito
científico, podendo ser reavivadas por grupos políticos conservadores.
Nos anos iniciais da década de 2010, a Comissão de Direitos Humanos
e Minorias da Câmara Federal, entre outras, foi alvo de debate sobre a le-
gitimidade da Resolução 1/99 do Conselho Federal de Psicologia (CFP). O
projeto, inicialmente apresentado no plenário, contra-argumentava que o
referido Conselho havia extrapolado seus dispositivos regulamentares, in-
correndo em abuso de poder, e, portanto, propunha que dois parágrafos da
Resolução fossem sustados. Após meses de caloroso debate, aglutinador de
setores a favor e contra, a proposta foi retirada de tramitação por seu autor.
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 187

Dentre os grupos contra o projeto estavam representantes do Conselho


Federal de Psicologia, do movimento LGBT, além de profissionais da saúde.
O projeto era aprovado por alguns segmentos religiosos, entre outros. Para
além da divisão de posicionamentos, a iniciativa foi lida por muitos como o
recrudescimento de discursos religiosos e médicos ávidos em (re)patologi-
zar aqueles(as) que não se orientam conforme os parâmetros estritos da he-
teronormatividade, leia-se gays, lésbicas, travestis, transexuais, entre outros.

BOX 6

Sexualidade, religião e ciência: os discursos que constroem a “verdade”


sobre a sexualidade

De acordo com Foucault (1988), em História da sexualidade: a vontade de sa-


ber (volume 1), nas sociedades ocidentais, o sexo tornou-se alvo de uma série
de práticas e saberes que prescrevem o que é apropriado e inapropriado
quanto ao uso do corpo e erotismo. No domínio religioso, em decorrência da
Contrarreforma nos países católicos, paulatinamente instituíram-se práticas
destinadas a investigar e a expressar, por meio da palavra, desejos e insinu-
ações de cunho sexual. Para tanto, o ritmo das confissões anuais foi acelerado,
e na penitência deu-se cada vez mais valor às “insinuações da carne”: ideias,
desejos, imaginações lascivas, “tudo isso deve entrar, agora, e em detalhe,
no jogo da confissão e da direção espiritual” (FOUCAULT, 1988, p. 25). A con-
fissão, por exemplo, passou a ser realizada em caráter individual e instigava o
escrutínio ávido e detalhado sobre o sexo. “A pastoral cristã inscreveu, como
dever fundamental, a tarefa de fazer passar tudo o que se relaciona com o
sexo pelo crivo interminável da palavra” (FOUCAULT, 1988, p. 27).
Com a formação das sociedades modernas, houve uma profusão discursiva
sobre o sexo produzida pelos saberes médicos, pedagógicos e governa-
mentais, formando o que Foucault denominou de dispositivo de sexuali-
dade, isto é, um conjunto de estratégias que visava a organizar a sexualidade
e regulá-la conforme um padrão ótimo. Dentro deste contexto, é notável o
aparecimento de novas identidades como categorias médicas, entre elas a
do homossexual, concebido como um adulto perverso.
O homossexual, uma nova personagem, era então considerado um tipo de
natureza específica, um personagem em que “nada daquilo que ele é, no
fim das contas, escapa à sua sexualidade” (FOUCAULT, 1988, p. 50). Nesse
188 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

BOX 6

contexto, a medicina passou a determinar que qualquer comportamento,


identidade e desejo que não corroborassem com o padrão sexual da época
deveriam ser taxados como patológicos. No curso desse processo, ao pa-
tologizar a homossexualidade, a heterossexualidade foi instituída como
manifestação natural e normal da sexualidade.
Passados quase dois séculos, conforme Márcia Arán (2003), as nações oci-
dentais desenvolvidas foram palco de movimentos contra a discriminação da
homossexualidade devido a alguns fatos importantes, entre eles “a saída da
homossexualidade do código internacional das doenças e o fim da condena-
ção da prática homossexual no código penal” (ARÁN, 2003, p. 405-406). Com
as conquistas do movimento gay na esfera pública, a homossexualidade, como
prática afetivo-sexual, ganhou visibilidade face ao histórico de controle e con-
denação a que foi submetida desde o início da era cristã, segundo a autora.
No entanto, ainda hoje, percebe-se a persistência das identidades trans
(transexuais, transgêneros e travestis) associadas à patologia na lista de
CID e da OMS na categoria de “transtornos de identidade de gênero”, o
que é questionado pelo movimento social LGBT e acadêmicos de diversas
áreas. Atualmente, no Brasil, somente com o diagnóstico médico que clas-
sifica o “transtorno” é que as pessoas trans têm direito à terapia hormonal,
psicoterapia e cirurgia de redesignação do sexo. Percebe-se, com estas per-
manências patologizantes no discurso médico, que a ciência é marcada por
definições calcadas em valores culturais e, portanto, é passível de reiterar
normas e convenções sociais.
Ao lado das ciências, as religiões não deixaram de produzir suas concep-
ções sobre (homos)sexualidade, variando seus posicionamentos segundo
grupos distintos e períodos históricos. No contexto político contemporâ-
neo, há determinados segmentos religiosos que, a despeito da laicidade do
Estado brasileiro, contam com quadros no poder legislativo e influenciam
o debate sobre os direitos sexuais. Caso observado no debate a respeito
do então projeto destinado a reinserir práticas para tratamento e cura da
homossexualidade por parte do psicólogo.
Embora não possamos incorrer em generalizações e na homogeneização
do discurso religioso, diante da multiplicidade de doutrinas no interior de
uma mesma denominação, concepções defensoras da conversão homos-
sexual decorrem, segundo Marcelo Natividade (2006), da distinção realizada
por determinadas denominações evangélicas entre duas dimensões da cor-
poralidade, presentes na literatura religiosa e em rituais dirigidos à cura da
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 189

BOX 6

homossexualidade, a saber: “corpo carne” e “corpo templo”.


“A imagem do corpo carne indica a necessidade de renascimento, que compõe
todo processo de conversão. O discurso pastoral, fundado em princípios cos-
mológicos, enfatiza a necessidade da morte do ‘eu’ (antigo), para o posterior de-
spontar de uma nova criatura. As metáforas estar pleno, cheio do Espírito Santo,
encher-se de Deus expressam um discurso cosmológico que concebe um ‘eu’
sagrado, de corpo, mente e espírito curados e libertos. O sujeito de vontade
fraca, que cedia aos ditames da carne pela prática do pecado, pode se tornar
o indivíduo que renuncia, resiste e é senhor de seus impulsos, portador de uma
ética construída pela busca da restauração sexual” (NATIVIDADE, 2006, p. 126).
De acordo com Natividade (2006), determinadas denominações evangélicas
propõem que a homossexualidade seria “causada” por elementos exteriores
ao corpo dado o uso de mecanismos de reversão e conversão para extirpá-la.

Segundo o referido autor, “as acusações morais subjacentes ao discurso so-


bre a cura revelam um pânico moral insuflado pelo cultivo de uma imagem
negativa. Homossexuais são vistos como ‘promíscuos’, ‘pedófilos’ e sujeitos
que ‘espalham doenças’, portanto indivíduos perigosos à coletividade” (NA-
TIVIDADE, 2006, p. 127).
Considerando o respeito em relação às diferenças religiosas como algo
fundamental no espaço escolar, é importante desconstruir convenções e
normas, sejam elas religiosas, científicas, políticas etc., quando destinadas
a dividir e a reconhecer alguns indivíduos como “normais” ou “adaptados”
e outros como “abjetos” e “anormais” e, portanto, compreendidos como
passíveis de tratamento e cura tal qual propõem alguns discursos religiosos
e científicos.

A persistência da associação entre homossexualidade e doença recru-


desceu-se em fins da década de 1980, com a epidemia da aids. Aos poucos,
no Brasil, de acordo com Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (2009), com a
invenção e eficácia do coquetel que combate alguns dos sintomas da aids,
além de campanhas publicitárias voltadas ao questionamento do precon-
ceito, disseminou-se a ideia de que “a aids não é uma doença que aflige
exclusivamente as pessoas de condutas ‘suspeitas’, mas está também no
seio das relações heterossexuais, familiares e monogâmicas” (MISKOLCI &
PELÚCIO, 2009, p. 151).
190 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Ainda assim, segundo os autores, as políticas profiláticas à aids se re-


vestem de mecanismos de controle e normalização das relações afetivo-
-sexuais com base em parâmetros heteronormativos, pois, conforme se
apreende dos autores, vigiam e modelam as próprias relações homosse-
xuais segundo valores higienistas que discriminam o que é considerado
salubre, limpo e “correto” nas práticas sexuais.
Desta maneira, iniciativas como o mencionado projeto de lei, alcunha-
do pela imprensa de “cura gay”, corroboram com a histórica associação
entre homossexualidade e perversão ou com a ideia de que a homosse-
xualidade é uma doença passível de tratamento e cura e que, portanto,
merece ser dissecada, vigiada e normalizada. O projeto apresentado à
Câmara, embora objetive “apenas” sustar parágrafos da Resolução 1/99
do CFP relacionados à prática psicológica, traz em seu bojo a ideia de que
gays, entre outros(as), caso desejem, podem voluntariamente ser tratados
e ter seus “sintomas doentios” amenizados.
É, portanto, um retrocesso à ideia de que determinadas práticas sexu-
ais, desejos e identidades que não correspondem ao sexo monogâmico,
heterossexual, reprodutivo e estável devem ser alvo dos saberes e de prá-
ticas psicológicas com vistas à sua cura. Em vez de legitimar e reconhecer
legalmente a expressão de relações afetivo-sexuais que não se orientam
conforme o parâmetro heterossexual, iniciativas dessa natureza estão na
contra corrente da constatação de que gênero, desejo e práticas sexuais
nem sempre coadunam com a ordem heteronormativa, muito pelo contrário,
suas brechas e fendas são cada vez mais patentes.
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 191

Figura 5 Imagem das conhecidas Paradas LGTB que objetivam dar visibilidade às
demandas políticas de lésbicas, gays, travestis, transexuais, transgêneros e bissexuais.

Entretanto, segundo nosso entendimento, a expressão do desejo e suas


práticas afetivo-sexuais é múltipla e não se reduz rigidamente em identida-
des. Deste modo, é preciso questionar os dispositivos de poder que insis-
tem em nomear, segmentar e moldar condutas que ultrapassam o padrão
monogâmico e heterorreprodutivo. Pesquisas acadêmicas vêm demonstran-
do que as experiências daqueles que não se enquadram às expectativas da
heteronormatividade são muito mais amplas e diversas. Caso explicitado,
por exemplo, pela recorrência de relações sexuais entre travestis e homens
casados; na estética de homens e mulheres andróginos, os quais têm sua ex-
pressão de gênero não correspondente às expectativas sociais em relação a
seus corpos; além dos crossdressers, ou seja, homens que se vestem de mu-
lher ou participam de uma rede de sociabilidade de homens que se vestem
de mulher, vivenciando sua feminilidade, entre muitas outras experiências.
Com estes exemplos, fica mais fácil entender como as experiências
em relação à sexualidade e ao gênero são muito diversificadas. Ao mesmo
tempo, é possível refletir como qualquer desvio às normas é passível de um
olhar disciplinador e normativo. Sendo assim, além do reconhecimento de
192 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

direitos a determinadas identidades sexuais e de gênero, é necessário ques-


tionar as normas e convenções que produzem o estigma, o preconceito e a
discriminação.

BOX 7

A pauta do movimento LGBT


Atualmente, segundo Sérgio Carrara (2010), o movimento LGBT caracteriza-
-se por ampla pauta de proposições desde “a luta pelo direito ao reco-
nhecimento legal das relações afetivo-sexuais” (CARRARA, 2010, p. 135),
passando pela adoção conjunta de crianças e pela “livre expressão de sua
orientação sexual e/ou de gênero em espaços públicos” (CARRARA, 2010,
p. 135). Segundo o autor, o movimento luta também pelo direito à redesig-
nação do “sexo”, à modificação do nome de registro em documentos, ao
acesso a políticas e cuidados específicos de saúde, além do amparo estatal
diante de atos violentos em virtude de preconceito por orientação sexual.
Embora muitas das reivindicações do movimento não se refiram diretamen-
te à sexualidade, por exemplo, luta por direitos previdenciários, pelo direito
à adoção de crianças e pela modificação do nome e sexo em documentos,
elas tendem a ser entendidas como “direitos sexuais”, visto que a privação
desses direitos passa pela estigmatização e discriminação de valores liga-
dos à sexualidade, pois a própria “identidade” do grupo se liga à expressão
específica do desejo e das práticas sexuais (CARRARA, 2010).
Para além de alguns itens da mencionada pauta, pode-se afirmar que deter-
minados segmentos do movimento LGBT fundamentam sua luta política e
relação com o Estado segundo paradigmas identitários, isto é, com base em
identidades atribuídas e conformadas aos comportamentos “esperados”,
ou seja, “típicos” das pessoas não heterossexuais, como se houvesse um
padrão definitivo para as condutas de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais,
travestis e transgêneros.

A marcha das vadias e o discurso machista


A marcha das vadias, movimento iniciado em abril de 2011 no Canadá,
espalhou-se ao longo dos últimos anos para vários países do mundo, inclusive
para capitais e cidades do interior do Brasil. O termo vadias (sluts, em inglês)
foi utilizado por um policial canadense em referência a determinados trajes
femininos que, para ele, seriam potencialmente incitadores do estupro. Em
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 193

sinal de protesto à manifestação do policial e à concepção machista de que


as mulheres deveriam ser responsabilizadas por eventuais estupros sofridos
por trajarem, por exemplo, “saias curtas”, nas marchas, as mulheres utilizam
roupas íntimas ou consideradas “provocantes” ou despem seus seios como
forma de repúdio ao machismo e aos parâmetros ditatoriais que marcam a
sexualização do corpo feminino.

Figura 6 Manifestantes exibem cartazes com dizeres que salientam a lógica machista
na qual se culpa a vítima sexual pela violência sofrida na situação de estupro.

Conforme você estudou, o movimento feminista, desde as décadas de


1960 e 1970, luta pela igualdade de direitos de homens e mulheres no domí-
nio público (política, mercado de trabalho) e privado (relações domésticas,
conjugais e familiares). O feminismo reivindica, entre outras pautas, que as
mulheres tenham acesso equânime às oportunidades escolares e profissio-
nais garantidas historicamente aos homens. Além disso, no âmbito privado,
é inaceitável que as mulheres sejam submetidas à violência física e psicoló-
gica perpetrada pelo parceiro, irmão, pai, entre outros parentes, tendo sua
dor e sofrimento silenciados.
194 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

No Brasil, a despeito dos esforços para aplicação da Lei 11.340/06,


conhecida como Lei Maria da Penha, que originou ferramentas para coibir a
violência familiar e contra a mulher, as estatísticas oficiais referentes ao nú-
mero de mulheres vítimas de violência doméstica permanecem alarmantes.
Ainda no plano das relações privadas, é legítimo que as mulheres busquem
condições igualitárias na divisão de tarefas da casa, no tempo dedicado ao
cuidado com os filhos, idosos e demais parentes. Dados da Organização
Internacional do Trabalho, conforme reportagem de Alexandro Martello
(2012), demonstram que as mulheres trabalham semanalmente cerca de cin-
co horas a mais do que os homens, quando se soma a carga horária total
(trabalho remunerado e tarefas domésticas).
Sob o olhar de concepções conservadoras, a mulher é objeto de posse
e propriedade do homem, raciocínio que redunda, entre outros fatores, na
aviltação do direito da mulher em relação ao seu corpo, seja na forma de se
vestir, nos adornos que quiser utilizar ou na autonomia legítima de manter
relações sexuais quando, da forma e com quem quiser. As relações de poder
machistas difundem-se também no seio da vida privada, quando o homem
submete a mulher, seja sua esposa, filha ou mãe, à sua dependência e co-
mando, sob o risco de serem violentadas ou torturadas psicologicamente.
Desse modo, a marcha em questão, ao corporificar de modo performáti-
co e alegórico atributos e formas de vestir consideradas pelos homens pró-
prias de mulheres “vadias”, busca ultrajar os valores machistas e, ao mesmo
tempo, estampar concretamente o direito que a mulher tem em relação ao
seu corpo e ao seu desejo, de modo a questionar convenções hegemônicas.
Além disso, a marcha das vadias representa um meio de criticar valores e
concepções estéticas que imputam à mulher o dever de se comportar de
modo “feminino” e “sensível” e, ao mesmo tempo, de se vestir e manter
um padrão corporal longilíneo, “apta”, portanto, a ser objeto do desejo, da
conquista e da posse dos homens.
Portanto, atualmente, a marcha das vadias e o movimento feminista his-
toricamente têm reivindicado o direito da mulher a respeito do que faz com
seu corpo, o que não se restringe aos trajes e demais adornos, mas inclui o
exercício da sexualidade, o uso de métodos contraceptivos e o direito ao
aborto medicalizado conforme determinados critérios.
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 195

BOX 8

Aborto: uma questão política


Na Medicina, de acordo com Vieira (2010), o aborto é definido “como
o nascimento de um feto com menos que 500 g ou antes de 20 semanas
completadas de idade gestacional no momento da expulsão do útero, não
possuindo nenhuma probabilidade de sobrevida” (VIEIRA, 2010, p. 103).
No Brasil, provocar aborto é tipificado como crime segundo os artigos 124,
125, 126 e 127 do Código Penal Brasileiro, salvaguardadas as seguintes exce-
ções (artigo 128): quando não há outra forma para salvar a vida da gestante
ou quando a gravidez decorre de estupro (VIEIRA, 2010).

Segundo Elisabeth Meloni Vieira (2010), o aborto perfaz critérios para


ser considerado um problema de saúde pública, pois atinge inúmeras pes-
soas e as afeta, contribui para a letalidade à mulher, além de haver meios
eficazes para sua prevenção. “O aborto provocado no Brasil, devido à sua
criminalização, pode ser considerado como inseguro e figura na lista das
principais causas de mortalidade materna no país. O aborto oscila entre
a terceira e a quarta causa de morte materna” (VIEIRA, 2010, p. 103). Des-
ta forma, os países que adotaram a medicalização do aborto conforme
escolha da mulher tomaram essa medida em virtude das altas taxas de
mortalidade materna, em defesa do Estado laico e segundo a concepção
de que até a 20a semana de gestação o feto não pode ser considerado
uma pessoa, pois, em condição extrauterina, não conseguiria sobreviver.
Segundo esses critérios e com base no delimitado período de tempo, o
feto pertence ao corpo da mulher e cabe a ela decidir o que deve fazer
com seu corpo (VIEIRA, 2010).
Aparentemente se tratando de questões independentes, as discussões
e disputas políticas em torno da sexualidade se encontram em movimentos
com objetivos distintos. Um exemplo interessante são os inúmeros rapazes
que também participam da Marcha das Vadias vestidos de mulheres e, assim,
ao mesmo tempo em que se colocam ao lado das mulheres em sua busca
por equidade de gênero, questionam as normas de gênero que cerceiam a
masculinidade.
Segundo Daniel Welzer-Lang (2001), a construção social da masculi-
nidade passa socialmente pela subordinação da mulher e, além disso, se
196 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

baseia na consolidação de traços heterossexistas mediante a valorização da


heterossexualidade e o rechaçamento de sexualidades que não se orientem
por ela, por exemplo, a homossexualidade, a bissexualidade e as transexu-
alidades. Há um paradigma duplo e naturalista que toma a masculinidade
como superior à feminilidade e que impõe normativamente a expressão da
sexualidade masculina na figura do homem viril, ativo e dominante. Segundo
o referido autor, “os outros, aqueles que se distinguem por uma razão ou
outra, por sua aparência, ou seus gostos sexuais por homens, representam
uma forma de não submissão ao gênero, à normatividade heterossexual [...]”
(WELZER-LANG, 2001, p. 468) e, assim, são excluídos de modo simbólico
do grupo de homens, pois representam os(as) dominados(as), aos quais se
somam as crianças e as mulheres.
Conforme discutimos, vivenciamos mudanças importantes no parâmetro
de organização das relações conjugais, familiares e no exercício da sexualidade.
Se de um lado o referencial queer busca desconstruir e questionar as injunções
da heteronormatividade, de outro, discursos refratários às mudanças operadas
e ligados aos valores tradicionais da família e da religião seguem no campo
de disputa política e ganham corpo na opinião pública. Não é nosso objeti-
vo definir os termos futuros dessa contenda; acima de tudo, nos propomos a
questionar as convenções de gênero e sexualidade postas no cenário atual de
modo a fomentar elementos teóricos capazes de desconstruir e de ultrapassar
mecanismos de poder que segmentam identidades de forma binária.

BOX 9

Assista ao filme Transamerica (EUA, 2005), dirigido por Duncan Tucker. No


longa-metragem, em formato road movie, uma mulher transexual (Bree), na
iminência de realizar uma cirurgia para redesenhamento da genitália, rece-
be a notícia de que tem um filho de 17 anos cujas condições de vida pedem
por seu auxílio. Para assistir ao trailer, acesse o link: <https://www.youtube.
com/watch?v=VUbjZfmFvv0>.
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 197

UNIDADE 4
Por uma pedagogia questionadora e democrática

Após termos contextualizado e apresentado o referencial teórico-con-


ceitual sobre as relações de gênero e sexualidade no espaço escolar e na
sociedade brasileira de forma geral, finalizamos este percurso com a propo-
sição de estratégias pedagógicas que busquem questionar e modificar as
normas e valores heteronormativos ainda hoje vigentes no ambiente escolar.
Para isso, apresentamos conteúdos recolhidos dos fóruns de discussão
virtual do curso de aperfeiçoamento GDE da UFSCar (Universidade Fede-
ral de São Carlos), oferecido desde 2009, conforme edital da SECADI-MEC
(Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão
– Ministério da Educação). De lá para cá, temos mantido um diálogo fértil
entre a universidade e o cotidiano escolar, por meio do contato entre profes-
sores universitários, tutores virtuais e professores da rede pública.
Nesse sentido, apresentamos algumas questões levantadas por professores
da rede pública nos fóruns de discussão do referido curso e que relatam situa-
ções vivenciadas na escola, cuja “resolução”, em geral, não é simples. Propomos
um quadro de reflexão mais democrático e questionador de problemáticas que
perpassam, muitas vezes de forma não tão explícita, o espaço escolar.

Diferenças, religião e sexualidade


Para início do debate, abordaremos um tema recorrente: Como lidar com
as tensões entre valores morais e religiosos dentro do espaço escolar sabendo
que este deve primar pela igualdade de direitos? Como garantir o direito à di-
versidade religiosa sem reiterar visões normalizadoras das diferenças sexuais?
Antes de tudo, é preciso ter em mente que a escola é laica, ou seja,
enquanto instituição pública ela não se pauta em valores religiosos e muito
menos é responsável pela reprodução de conteúdos religiosos. Portanto,
deve prezar pelo respeito à diversidade religiosa e contribuir para que es-
tudantes, professores e funcionários possam professar quaisquer religiões
sem que sejam alvo de preconceitos e discriminações de fundo religioso. Em
outros termos, é preciso compreender que a sociedade brasileira é formada
198 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

por povos de origem e culturas distintas cujas manifestações religiosas são


variadas e, portanto, gozam do direito de profissão de sua doutrina e fé.
No entanto, o respeito à religião não deve se sobrepor aos questiona-
mentos das normas e violências que operam no contexto escolar conforme
seus vínculos com o gênero e a sexualidade. As concepções de fundo re-
ligioso trazidas por alunos e professores devem ser respeitadas, mas tam-
bém problematizadas e questionadas, quando reforçam a discriminação de
alguns ou quando reproduzem a violência simbólica de modo a criar um
campo propício a preconceitos. Nas unidades anteriores do presente capítu-
lo, apresentamos elementos históricos para questionar pressupostos essen-
cialistas relacionados aos padrões de gênero e sexualidade. Sabemos que
a sexualidade é uma construção social e cultural marcada por relações de
poder e hierarquias, e, a partir deste saber, é possível problematizar postu-
ras que contribuem para naturalizar as diferenças, reiterar as normas sociais
e as diversas modalidades de violência relacionadas a elas.
Muitos professores e professoras levantam a questão de que a temá-
tica “sexualidade” é algo novo no cotidiano escolar, algo com o qual não
sabem lidar. Muitas vezes é mais cômodo não tocar no assunto, seguindo
a forma como o currículo pedagógico é estruturado: tornando invisíveis as
diferenças. Vale a reflexão: Será que a sexualidade sempre esteve ausente
das preocupações e práticas escolares? Será que a escola é neutra em re-
lação à sexualidade, ou ela fornece modelos e padrões de relacionamento
ao menos implicitamente? Como a escola historicamente lidou com sujeitos
divergentes à norma no que toca à sexualidade: com atenção ou com indife-
rença e punição, ainda que velada?
Vimos ao longo do capítulo que há um regime histórico e social de (in)vi-
sibilidade da sexualidade que limita ao segredo expressões afetivas e sexuais
não adequadas à norma heterossexual. Não questionar a falta de exemplos
nas falas dos professores e nos livros didáticos sobre as novas configurações
familiares, por exemplo, as famílias homoparentais, as diversas formas de se
relacionar afetiva e sexualmente, significa respaldar a heteronormatividade,
ou seja, um regime que considera a heterossexualidade como natural, dese-
jável e modelo que todos devem seguir.
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 199

Hierarquias de gênero e sexualidade: é possível transformá-las?


Um exemplo de como a invisibilidade é produzida são as atividades es-
colares do dia das mães e do dia dos pais. Comumente, de forma implícita,
considera-se que a única forma de arranjo possível é aquele constituído pelo
modelo da família nuclear burguesa, ou seja, formado pelo pai, pela mãe e
pelos filhos. Outras formas de arranjo familiar, ainda que muito representati-
vas na sociedade, muitas vezes não são abordadas na rotina escolar.
Em oposição a esta postura, é possível manejar as temáticas complexas
que tocam o cotidiano escolar, em especial no que diz respeito aos “estra-
nhamentos” que permeiam os olhares e atitudes direcionados aos alunos e
às alunas cujo comportamento diverge do padrão heteronormativo. Em vez
de reiterar o “estranhamento” ou de fingir que não se trata de questão cuja
escola é responsável, professores e professoras podem trazer temas para a
reflexão coletiva questionando o caráter violento das normas e, assim, abrir
espaço para a reflexão a respeito dos princípios democráticos da educação.
As discussões devem ser feitas sem expor quaisquer discentes e manifestar
especial atenção àqueles(as) que já estão sob o foco do julgamento público.
O interesse em tratar do tema sexualidade no ambiente escolar é tão
importante quanto a reflexão sobre a melhor maneira de abordá-lo, evitando
reproduzir, mesmo que com as melhores das intenções, as normas que visa-
mos questionar. Há uma série de problemas quando professores e professo-
ras, muitas vezes preocupados com as questões aqui abordadas, lidam com
elas por meio de tentativas de “diagnosticar” uma “condição homossexual”
nos alunos pela forma de comportamento, associando atributos de gênero
divergentes à norma com orientação sexual. Assim, a homossexualidade
acaba sendo compreendida nos termos do senso comum: como uma “natu-
reza” e não como uma categoria histórica de compreensão da relação entre
pessoas do mesmo sexo que, por sua vez, não dá conta da multiplicidade de
experiências e formas de identificação presentes no mundo real e que vão
muito além do binarismo redutor homossexual versus heterossexual.
A concepção de uma “natureza” homossexual reitera sua origem: a psi-
quiatria do século XIX, que “inventava” então a homossexualidade como
patologia e como “inversão de gênero”, passando por cima da multiplici-
dade de formas identitárias existentes, da maneira pela qual as pessoas
manifestam suas relações afetivas e se compreendem a partir dos atributos
da masculinidade e feminilidade. Outro aspecto a ser ressaltado é a recor-
rência do termo homossexualismo, expressão que conota doença segundo
200 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

o sufixo ismo. Vimos durante nossa discussão como a cultura e a linguagem


são aspectos decisivos na configuração das normas sociais, e, portanto, de-
vemos nos recusar a utilizar termos depreciadores de experiências que não
perfazem a heterossexualidade.
Na fala de professores e professoras participantes das edições anteriores
do curso GDE, eram comuns associações entre meninos femininos e homos-
sexualidade. Essas combinações aparecem de diversas formas: desde casos
em que pais demonstram-se receosos de que seu filho seja homossexual, re-
latando características do menino que contrastam com o ideal de masculini-
dade (ora por se aproximar só de meninos, ora por ser próximo de meninas);
ou pela própria observação das professoras que notam comportamentos
femininos nos garotos, vinculando-os a uma suposta homossexualidade la-
tente, mesmo que se posicionando contra a discriminação por eles sofrida.
É preciso tomar cuidado para não respaldarmos uma noção “essencia-
lista” de gênero e sexualidade nessas ocasiões. As referidas associações
revelam uma aceitação implícita da coerência, socialmente imposta, entre
sexo, gênero, desejo e práticas sexuais. Devemos ressaltar que esta coe-
rência representa o padrão estipulado por uma sociedade heteronormativa,
que, em vez de natural, é arbitrário e se manifesta de variadas formas e, ao
mesmo tempo, é contestado por alguns grupos sociais.
Uma forma de abordar este tópico é questionar a suposta essência do
homossexual ou do heterossexual, concepção logo refutada quando temos
em mente a pluralidade de expressões homoafetivas em nossa sociedade,
além das mais variadas formas de expressão do desejo e da identidade
documentadas nos arquivos históricos. Uma nova perspectiva pedagógica
pode ser pensada com base na observação a seguir.

A ideia não é apenas descobrir a forma correta de chamar alguém, mas,


antes, questionar esse processo de classificação que gera o xingamen-
to: a primeira experiência com relação à sexualidade de todo mundo,
seja daquele que foi rejeitado e aprendeu que não era normal, seja de
quem adotou as normas e se inseriu socialmente de uma forma mais fá-
cil, digamos assim, é a experiência da injúria (MISKOLCI, 2012, p. 32-33).

É fundamental romper com o tácito nestes casos, abrindo a possibilidade


de reflexões questionadoras e que podem servir para alargar as formas de
pensar para além dos binarismos normativos. Neste sentido, o esforço a ser
feito deve apontar para a crítica dos mecanismos normalizadores, evitando
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 201

posturas que pressionem alunos a assumirem ou a definirem tal ou qual


identidade, mesmo que essas iniciativas tenham como intenção o combate
à discriminação, pois, no fundo, podem ser sentidas como segmentadoras e
violentas para o próprio indivíduo.
Em geral, os agentes escolares adotam a concepção comum de que a
sexualidade corresponde a um impulso natural e biológico reprimido pelas
normas e regras da sociedade. No entanto, a essa concepção acrescenta-se
a ideia de que a sexualidade é um “tabu”, isto é, algo perigoso e, ao mesmo
tempo, muito comentado pelos alunos e alunas desde a tenra infância. A fra-
se a seguir, recolhida em fórum do GDE e escrita por uma ex-aluna do curso,
ilustra com clareza esse conflito: “A questão da sexualidade e da orientação
sexual é um tema muito interessante porque por mais que tenha sido um
tabu falar em público sobre esse assunto sempre foi de interesse de todos.
O que me parece um pouco contraditório, não é?”.
Com base na afirmação da aluna, podemos problematizar duas perspec-
tivas: uma visão essencialista da sexualidade, que a vê fora das classifica-
ções culturais, baseada no pressuposto simplista de que esta foi relegada
ao silêncio em nossas sociedades e excluída dos discursos pedagógicos. A
segunda perspectiva apresenta-a como temática frequente no cotidiano es-
colar, o que não afasta sua “delicadeza” ou “perigo”, pois pode ser uma “má
influência” às crianças e adolescentes. Como compreender essas questões?
Por um lado, a sexualidade é vista como um impulso biológico, mas repri-
mido; por outro lado, os professores se deparam com conversas, risadas e
comportamentos relacionados à sexualidade no cotidiano escolar, inclusive
em crianças matriculadas no ensino infantil.
Baseados nas contribuições do filósofo francês Michel Foucault, autor
que investigou as variadas concepções históricas a respeito dessa temáti-
ca, compreendemos que as sociedades modernas modelam um dispositivo
de poder marcado pela “explosão discursiva sobre o sexo”. Isto é, embora
marcada por momentos em que ele não pode ser enunciado, a preocupa-
ção com suas manifestações é constante, na medida em que o controle da
sexualidade constituiu-se como aspecto central de sociedades urbanizadas
e industriais. A partir de autores mais recentes, foi possível constatar que a
sexualidade é controlada segundo normas que silenciam manifestações não
correspondentes ao padrão heterossexual normativo.
No contexto escolar, ainda hoje, muitas vezes a sexualidade é apresen-
tada segundo referencial médico e biológico, enfocando-se a preservação
202 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

das DSTs. Embora seja importante transmitir informações e orientações a


respeito da prevenção às DSTs, não se pode restringir o tema à visão de que
a experiência da sexualidade é um risco e potencialmente perigosa. Quando
mal abordada, essa perspectiva associa práticas sexuais não convencionais
ao risco, referendando que a única forma segura de se relacionar afetiva e
sexualmente é dentro do matrimônio heterossexual.
Devemos ter o cuidado com esta visão essencialista da sexualidade
que não compreende seus vínculos com os discursos e condicionamentos
sociais. Os processos discursivos e as relações de poder constituintes da
sexualidade contemporânea devem ser problematizados e, neste aspecto,
a abordagem mais frutífera se baseia na perspectiva das diferenças, que se
configura em oposição à perspectiva da diversidade.
Em uma perspectiva centrada na diversidade, não se questiona como
as identidades se constituem relacionalmente a partir de hierarquizações
socialmente estabelecidas. Antes do que uma proposição de aceitação da
diversidade compreendida em termos de diferenças naturais que devem
ser integradas, a perspectiva das diferenças parte do questionamento das
normas que subalternizam as diferenças. Nas palavras de Richard Miskolci
(2012), a “diversidade afasta o conflito e a divergência em nome da conci-
liação”, enquanto “a diferença nos convida ao contato e à transformação;
ela nos convida a descobrir o Outro como uma parte de nós mesmos”
(MISKOLCI, 2012, p. 49). Nossas reflexões, portanto, partem da necessidade
de uma “política da diferença”, de reconhecer a diferença para modificar as
concepções hegemônicas. Desse modo, rejeita-se a retórica da diversidade,
da aceitação e da tolerância por meio da “incorporação da diferença”, isto é,
da constatação de que o supostamente “estranho” e “divergente” no outro
é parte de nós mesmos.
Em outros termos, trata-se de questionar o regime heteronormativo pre-
sente na escola e na sociedade e não simplesmente aceitar aqueles que não
se conformam às normas dadas. Quais as possibilidades de integração de
gays, lésbicas, travestis e transexuais sem questionar todo o currículo oculto
da escola que privilegia a heterossexualidade como a única forma correta
de identificação? Como impedir o silenciamento de outras experiências, a
violência simbólica e física, a evasão escolar de sujeitos com identidades
de gênero alheios às expectativas normativas, senão questionando-as? A
perspectiva da diversidade está fadada a falhar, na medida em que não
questiona as próprias bases nas quais as subalternizações se efetivam.
Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 203

A busca por uma política da diferença no contexto escolar, em substi-


tuição à política da diversidade, visa à transformação do espaço escolar de
forma democrática e, para tanto, exige um esforço contínuo de questiona-
mentos e reflexões sobre os pressupostos históricos, valores e normas que
permeiam cotidianamente os discursos e as práticas escolares.

BOX 10

Atividades a ser desenvolvidas com os alunos e alunas


Conforme abordado ao longo do capítulo, a construção social da sexualida-
de se imbrica com as dinâmicas de gênero. A compreensão da homofobia e
suas implicações na escola exige a reflexão sobre a matriz sexual de gênero
que estrutura nossa forma de inteligibilidade das identidades na contempo-
raneidade a partir do continuum socialmente imposto entre sexo (biológico),
gênero e sexualidade. Assim, compreende-se, por um lado, que é imposto
aos meninos que corroborem com as prescrições da masculinidade desde
pequenos, evitando qualquer associação à feminilidade e já presumindo
de antemão que deverão se relacionar com meninas. Por outro, é imposto
às meninas que se comportem segundo as convenções de feminilidade e
supondo que deverão se relacionar com meninos.
As atividades propostas visam refutar os pressupostos normativos contidos
na frequente expressão “isso não é de menino” ou “isso não é de menina”,
objetivando refletir sobre as limitações e fronteiras impostas entre os gêne-
ros que estão na origem de preconceitos e práticas discriminatórias.
Em outras palavras, as atividades sugeridas visam “quebrar” modelos rígi-
dos presentes na construção do gênero. Isso pode ser feito por meio da
reflexão sobre atividades que estão tradicionalmente relacionadas à femini-
lidade e à masculinidade. Após isso, é importante levar os alunos e alunas
a refletirem sobre atividades que “invertam” o padrão tradicional destas
relações. Por exemplo, atribuir para os meninos atividades em que lidem
com o cuidado e com a afetividade, e, ao mesmo tempo, atribuir às meni-
nas atividades em que lidem com a força física e com a competitividade.
O(a) professor(a) pode fazer uso dessa ocasião reflexiva para salientar as
mudanças decorrentes da inserção da mulher no mercado de trabalho que
levaram, por exemplo, à redivisão das tarefas domésticas e de cuidado. O
brincar com bonecas entre meninos e a competição esportiva que mistura
meninos e meninas são exemplos de como isso pode ser levado a cabo.
As resistências, os questionamentos e as reflexões gerados pela atividade
podem produzir reflexões construtivas e questionadoras das normas que
proporcionam exclusão e discriminação.
204 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

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FIGURAS

Figura 1 A maneira como os(as) alunos(as) estão dispostos(as) nesta imagem de uma escola
apresenta vários aspectos das relações de gênero. O que é possível refletir a respeito das rela-
ções de gênero e sexualidade a partir desta imagem? Fonte: <http://www.folhadoestado.com.
br/wp-content/uploads/2014/03/sala-de-aula.jpg>. Acesso em: 11 ago. 2014.
Figura 2 Muriel/Hugo é uma personagem d@ Laerte, cartunista reconhecid@ que passou a se
identificar publicamente enquanto transgênero. Os quadrinhos desta personagem lidam de
forma descontraída e questionadora com a ordem sexual que subalterniza transgêneros, transe-
xuais e travestis. Fonte: < >. Acesso em: 11 ago. 2014.
Figura 3 Gráfico ilustrativo da pirâmide sexual brasileira. Adaptado com base na discussão da
antropóloga norte-americana Gayle Rubin. Fonte: autoria própria.
Figura 4 Aline Prado, “Globeleza” entre 2006 e 2013, representa a figura da mulata sensual,
bastante abordada pela mídia brasileira. Fonte: <http://peacefulworld.mondoblog.org/
files/2014/03/0000000belaza5.jpg>. Acesso em: 11 ago. 2014.
Figura 5 Imagem das conhecidas Paradas LGTB que objetivam dar visibilidade às
demandas políticas de lésbicas, gays, travestis, transexuais, transgêneros e bissexuais. Fonte:
<http://vemrimuito.com.br/wp-content/uploads/2014/04/10172641_128351194026046_9312703
64_n.jpg>. Acesso em: 11 ago. 2014.
Figura 6 Manifestantes exibem cartazes com dizeres que salientam a lógica machista na qual se
culpa a vítima sexual pela violência sofrida na situação de estupro. Fonte: <http://www.revista-
forum.com.br/wp-content/uploads/2013/11/marcha-das-vadias.jpg>. Acesso em: 11 ago. 2014.
5
Pela desracialização da experiência:
discurso nacional e educação para as
relações étnico-raciais
Paulo Alberto dos Santos Vieira
Priscila Martins Medeiros

Cara leitora, caro leitor,


Neste texto, convidamos vocês para uma reflexão a respeito das relações
étnico-raciais na sociedade brasileira e em como podemos relacionar esse
debate com a Educação, o cotidiano escolar e os conteúdos curriculares.
No dia a dia de todos(as) os(as) profissionais de educação não faltam de-
bates sobre aspectos fundamentais desse ofício: a melhoria das condições
de trabalho dos profissionais de educação; a construção de propostas pe-
dagógicas motivadoras e interessantes; a necessidade de se formar profes-
soras e professores reflexivos; a criação e o oferecimento de bons materiais
didáticos aos estudantes; a denúncia das matrizes curriculares muito rígidas;
a importância de não nos limitarmos ao conteudismo, que empobrece o pro-
cesso formativo; a necessidade de um diálogo direto entre escola, currículo
e realidade social.
Outro tema que também deve ser considerado no cotidiano de quem
pensa e faz a educação brasileira é a criação de metodologias, programas,
projetos e atividades culturais e políticas de combate ao racismo e às formas
208 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

de discriminação. Ainda que o racismo seja um aspecto estruturante das


relações sociais no Brasil, podemos dizer que há mudanças sinalizadas no
horizonte, o que inclui também importantes avanços no campo da Educa-
ção, como, por exemplo, a aprovação dos seguintes instrumentos legais:
• Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, em
2004, resultado da Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino dessas
diversidades na educação básica;
• Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História
e Cultura Afro-brasileira e Africana, em 2009;
• Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola,
em 2012;
• Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na
Educação Básica, em 2012.
No Brasil, outra dinâmica cultural e societária, especialmente a partir
da década de 1980, tem exigido uma nova reflexão entre desigualdades,
diversidade cultural e conhecimento, e esse processo tem estreita relação
com as demandas dos movimentos sociais, como pudemos perceber nas
lutas por democratização e nas estratégias coletivas a fim de sensibilizar o
Estado para temas que historicamente foram deixados de lado. A impor-
tância de se pensar e de se reconhecer a diversidade cultural brasileira,
inclusive nos currículos escolares, foi um dos temas exaustivamente deba-
tidos na Assembleia Nacional Constituinte em 1987 (SILVÉRIO & TRINIDAD,
2012, p. 901).
Tudo isso não acontece isoladamente: são demandas que estão na es-
teira das exigências sociais mundiais do pós-Segunda Guerra Mundial, das
quais destacamos: as lutas por libertação nos continentes africano e asiático;
os movimentos por direitos civis nos Estados Unidos; os estudos mundiais
sobre relações étnico-raciais, especialmente os realizados pela UNESCO (e
que envolveram pesquisas no Brasil); o fortalecimento do movimento negro no
Brasil a partir do surgimento do Movimento Negro Unificado em 1978; e a crítica
ao economicismo das políticas públicas, que se mostraram pouco eficientes
no combate às desigualdades sociais.
Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 209

BOX 1

Alguns autores compreendem o movimento negro enquanto um conjunto de


entidades e de ações que surgiram nos anos 1930, especialmente a partir da
fundação da Frente Negra Brasileira, em 1931 (SANTOS, 1985, p. 287). Aqui,
adotamos a conceituação realizada por Joel Rufino dos Santos (1985), que
é mais ampla e que, portanto, compreende o movimento negro como sendo
“todas as entidades, de qualquer natureza, e de todas as ações, de qual-
quer tempo [...] fundadas e promovidas por pretos e negros [...]. Entidades
religiosas, assistenciais, recreativas, artísticas, culturais e políticas; e ações
de mobilização política, de protesto antidiscriminatório, de aquilombamento, de
rebeldia armada, de movimentos artísticos, literários e ‘folclóricos’ – toda
esta complexa dinâmica, ostensiva ou invisível, extemporânea ou cotidiana,
constitui movimento negro” (SANTOS, 1985, p. 303). Em 1978, com o surgi-
mento do Movimento Negro Unificado (MNU) houve uma reformatação do
movimento negro, que passa a ter uma ação de combate explícito ao mito
da democracia racial, uma atitude que não era a determinante em períodos
anteriores (RIOS, 2012, p. 51).

Esse contexto complexo se reflete nas escolas e universidades, exi-


gindo uma revisão dos debates sobre a produção do conhecimento e a
formação de professores(as). A renovação necessária não mais se restringe
à teoria, mas sim à relação que mantemos entre teoria e prática e entre os
sujeitos da educação. Nesse sentido, os currículos escolares se transfor-
mam em um território em disputa, especialmente de sujeitos que deman-
dam por reconhecimento social, entre eles as populações negra e indígena
(GOMES, 2012, p. 6).
Este texto pretende incentivar o debate sobre algumas teses desenvol-
vidas nas décadas iniciais do século XX: de que o Brasil seria um exemplo
mundial de respeito à diversidade étnico-racial e às diferentes heranças cul-
turais formadoras do país. Essas teses se pautavam na ideia de que seríamos
uma democracia racial sem preconceitos e de que a miscigenação seria uma
prova desse espírito igualitário e fraterno. Veremos ao longo do texto que
essas teses tiveram amparo nas ações do Estado, na legislação, na literatura
e nas artes, nas políticas educacionais e na teoria social realizada no Brasil,
que sustentaram a imagem de uma nação igualitária, apesar das gritantes
desigualdades raciais e das denúncias realizadas pelos movimentos sociais.
210 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

BOX 2

Miscigenação significa a mistura genética, através do intercurso sexual, en-


tre dois ou mais grupos étnico-raciais. É importante dizer que a miscigena-
ção no Brasil se deu, em sua grande maioria, por meio de relações sexuais
entre mulheres negras e indígenas com homens brancos, e, de modo geral,
de forma não consensual. A miscigenação entre esses grupos é extensa-
mente relatada por Gilberto Freyre em Casa grande & senzala (1933), no
entanto é descrita como uma prova de harmonia racial, e não como relações
desiguais, forçadas e pautadas no racismo.

Para tanto, estruturamos o texto da seguinte maneira: iniciamos com


uma apresentação e problematização de conceitos importantes no debate
teórico e político e que estão presentes ao longo do texto, além de uma
breve caracterização histórica acerca das dimensões econômicas, políticas
e sociais. Na sequência, apresentamos questões que nos conduzem ao de-
bate sobre o panorama nacional e como essa construção esteve na base do
surgimento de uma identidade mestiça, que buscava igualar artificialmente
grupos sociais. Posteriormente, relacionamos a construção da identidade
mestiça com a legislação educacional dos séculos XIX e XX, discutindo a
centralidade da educação na construção de discursos racializados. O debate
sobre os processos de racialização continua no próximo item do texto, com
detalhes sobre como eles se refletem na construção do conhecimento. Cabe
frisar que neste texto damos ênfase à racialização sofrida pela população
negra devido à sua predominância demográfica no país e pela importância
que esse processo teve na construção do discurso nacional brasileiro. Isso
não impossibilitou, no entanto, que tratássemos, mesmo que sucintamente,
de outras formas de racialização contra os diversos grupos sociais presentes
no país. Finalizamos com observações gerais a respeito dos dez anos de
educação para as relações étnico-raciais no Brasil.
Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 211

UNIDADE 1
Primeiras aproximações ao tema

Certa vez, o compositor brasileiro Tom Jobim disse uma frase que per-
manece absolutamente viva: “o Brasil não é um país para principiantes”. Do
ponto de vista das relações étnico-raciais, de fato, temos no país um dilema
mais profundo e complexo do que possamos imaginar à primeira vista. O
racismo no Brasil, e os seus mecanismos sempre renovados que o fizeram
se perpetuar ao longo dos séculos, coloca um grande desafio ao Brasil. E
se concordamos que a escola seja um espaço privilegiado para discutirmos
criticamente a realidade brasileira, o desafio posto para nós educadores(as)
não é dos menores.
Pedimos licença para destacar aqui uma pequena experiência que acon-
teceu em uma sala de aula de uma universidade pública do Centro-Oeste
brasileiro, e que pode nos auxiliar a refletir sobre o assunto. Ao final de uma
aula cujo tema era as relações étnico-raciais no Brasil, uma estudante relatou
que só agora, na fase adulta, conseguia colocar em palavras o que se passou
com ela no período em que cursava o ensino fundamental. Ainda que já en-
tendesse que na infância era vítima de preconceitos constantes, nunca tinha
refletido com mais atenção sobre tudo aquilo, até porque era um assunto que
preferia deixar em algum canto do passado. Filha de uma relação inter-racial,
ela era, entre as irmãs, a mais parecida fisicamente com seu pai, negro.
Frequentemente, sua família a incentivava a usar os cabelos presos, a ali-
sá-los, ou ainda a mantê-los curtos, tudo para torná-la “mais parecida” com
suas irmãs. A insistência e a vigilância sobre seu corpo no ambiente familiar
acontecia também na escola, e aqui este relato se aproxima ainda mais dos
nossos objetivos neste texto: em uma daquelas cruéis “brincadeiras” que
marcam a infância, os meninos de sua sala de aula fizeram uma votação para
eleger “a mais bonita” e “a mais feia” da turma. Quem foi escolhida como a
menina “mais bonita”? Ela. E a “mais feia”? Ela também. Como pode alguém
ser alvo de dois estigmas completamente opostos? Naquele momento, ela
passava a carregar, além das pressões sobre seu cabelo, esses dois rótulos
impostos pelos colegas da turma.
Na época, não entendeu, evitou entender e não expôs esse episódio
para sua família. Em seu relato, ela (já mulher) diz que não tem dúvidas de
212 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

que o racismo tenha sido a base dos dois “prêmios” recebidos na infância.
Esse é um relato que explicita muito bem os mecanismos do chamado “ra-
cismo à brasileira”. Os insultos racistas se misturam a elogios e afagos que
podem dar a sensação de que o homenageado esteja situado no mesmo
lugar valorizado dos enunciadores. O discurso do mito da democracia racial
age “lembrando” o(a) negro(a) que ele(a) é uma pessoa negra, caso ela se
esqueça disso em algum momento. O exemplo nos remete ao que disse
um importante autor da temática étnico-racial, Homi Bhabha (2010), que a
pessoa ou o grupo alvo do racismo é ao mesmo tempo objeto de desejo e
de escárnio (BHABHA, 2010, p. 106). Em outras palavras, o racismo age de
uma maneira vacilante, pois atua dizendo insistentemente “qual é seu lugar
na sociedade” (e o lugar é sempre humilhante), enquanto costuma também
se mostrar a partir de elogios insistentes e artificiais, como o tão conhecido
“é negro, mas é muito inteligente”.

BOX 3

O mito da democracia racial é uma construção cultural cujo surgimento data


das primeiras décadas do século XX, especialmente a partir do Estado Novo,
e que vigorou até o fim da ditadura militar. O mito se baseia na tese de que
as relações étnico-raciais no Brasil teriam se construído de forma mais amena,
se comparada com outros países com grande diversidade como o Brasil. De
acordo com o sociólogo brasileiro Florestan Fernandes, as principais caracte-
rísticas do mito da democracia racial são: a) o argumento de que a população
afro-brasileira não enfrenta maiores problemas do que a população branca
no Brasil; b) a ideia de que os brasileiros não se classificam em termos raciais
nas relações cotidianas e que, portanto, os afro-brasileiros estariam crian-
do um cenário ilusório e um “conflito desnecessário”; c) a noção de que as
oportunidades seriam igualmente acessíveis a todos; d) o argumento, sem
comprovação, de que a população afro-brasileira estaria satisfeita com sua
condição social; e) a defesa de que a abolição da escravidão teria sido uma
medida suficiente para sanar as injustiças sociais. Dessa maneira, reforça Flo-
restan, a pobreza e todas as limitações sofridas pela população afro-brasileira
foram, por muito tempo, interpretadas como efeitos residuais da escravidão,
mas que seriam transitórios. A liquidação desses dilemas, portanto, ocorreria
de forma espontânea, não necessitando de intervenções governamentais
(FERNANDES, 1965, p. 197-199). O mito da democracia racial ganhou gran-
de impulso a partir da publicação de Casa grande & senzala, do sociólogo
brasileiro Gilberto Freyre, em 1933.
Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 213

BOX 3

De acordo com esse autor:

O intercurso sexual de brancos dos melhores estoques – inclusive ecle-


siásticos, sem dúvida nenhuma, dos elementos mais seletos e eugênicos
na formação brasileira – com escravas negras e mulatas foi formidável.
Resultou daí grossa multidão de filhos ilegítimos – mulatinhos criados
muitas vezes com a prole legítima, dentro do liberal patriarcalismo das
casas-grandes; outros à sombra dos engenhos de frades; ou então nas
“rodas” e orfanatos. [...] Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é
de todas da América a que se construiu mais harmoniosamente quanto
às relações de raça: dentro de um ambiente de quase reciprocidade
cultural que resultou no máximo aproveitamento dos valores e experi-
ências dos povos atrasados pelo adiantado; no máximo da contempo-
rização da cultura adventícia com a nativa, da do conquistador com a
do conquistado (FREYRE, 1987, p. 91, 442-443).

Um outro autor interessante, o martinicano Frantz Fanon, lembra que “há


uma procura pelo negro, o negro é uma demanda, não se pode passar sem
ele, ele é necessário, mas só depois de tornar-se palatável de uma determina-
da maneira” (FANON, 2008, p. 151). Temos boas condições de tensionarmos
esse cenário de racismo se apostarmos no fortalecimento da educação para
as relações étnico-raciais e no entendimento do processo de racialização por
qual passaram negros(as), indígenas e outros grupos sociais, não europeus,
estigmatizados no Brasil, entre eles os japoneses, coreanos, chineses, sírio-
-libaneses, haitianos, bolivianos, paraguaios e seus descendentes.
214 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

BOX 4

Racialização são discursos e práticas sociais que transformam características


socialmente construídas em aspectos biológicos. São aspectos que atingem
todos os grupos sociais, causando representações distintas sobre cada gru-
po: para alguns, causa subordinação, silenciamento, limitações e constran-
gimentos; para outros, confere status, privilégios e poder. A todo momento,
nós classificamos pessoas e o mundo ao redor, afinal isso é uma característica
intrínseca ao ser humano. Mas, então, qual seria o problema de fazermos isso?
A classificação começa a ser problemática quando transformamos diferenças
em desigualdades, e é isso que acontece na racialização. Ela é uma prática
que parte de uma referência de “ser humano ideal”, e que, com isso, classifica,
desumaniza e nomeia pessoas arbitrariamente. Um exemplo de racialização
é descrito pelo autor Frantz Fanon, quando afirma que o negro não tem a
possibilidade de construir sua própria visão sobre si mesmo, pois antes disso
há uma sociedade ao redor que constrói significados para ele, e praticamente
“colam” essas características sobre seu corpo (FANON, 2008, p. 105).

Não é difícil percebermos no dia a dia a permanência de alguns discur-


sos que buscam diminuir a importância e a gravidade do racismo no Brasil.
Em período de Copa do Mundo de futebol no Brasil, esse discurso mitológi-
co de que seríamos todos igualmente respeitados é resgatado vez ou outra
pela mídia, por figuras políticas, por alguns acadêmicos, mas não consegue
esconder sua artificialidade.
Em dez minutos de telejornal, podemos assistir a algumas notícias que
dariam bons debates sobre relações étnico-raciais para serem realizados em
qualquer sala de aula: de um lado, por exemplo, o governador de um estado
brasileiro, empolgado com os jogos mundiais de futebol, diz que “a misci-
genação é a nossa marca, e que será elogiada pelo mundo todo”. Minutos
depois, ouvimos notícias sobre patroas “entristecidas”, pois a aprovação da
chamada PEC das Domésticas43 teria minado as “relações de afeto” entre
as duas partes ao estabelecer direitos às empregadas, que são mulheres
negras na maioria das vezes. Na notícia em questão, uma patroa relata, inclu-
sive, que a empregada doméstica que trabalha em sua casa estaria há duas

43 A PEC das Domésticas é a Proposta de Emenda Constitucional 478/2010, de autoria do


deputado Carlos Bezerra do PMDB (MT). Passado mais de um ano de sua aprovação,
muitas das prerrogativas ainda não foram regulamentadas.
Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 215

décadas a serviço da mesma família, realizando o trabalho que sua mãe já


havia realizado na mesma residência.
O que é chamado de “afeto” demonstra, na verdade, uma situação de
pouca ou nula mobilidade social ascendente de muitas famílias negras bra-
sileiras, ou seja, a perpetuação de desigualdades e de lugares sociais exclu-
dentes, como bem demonstrou o autor brasileiro Carlos Hasenbalg (GUIMA-
RÃES, 2006, p. 262). Um único noticiário dá conta de apresentar exemplos
do mito da democracia racial, que acoberta desigualdades utilizando-se de
um discurso adocicado. E apenas a indicação de possíveis alterações nesse
ciclo de hierarquias é o suficiente para causar temor em alguns segmentos
da sociedade brasileira.
Um dos pontos fundamentais para se pensar o Brasil dos dias atuais
é a morosidade governamental no tratamento de assuntos que envolvem
grupos sociais subalternizados historicamente, como a população negra, os
quilombolas, indígenas e homossexuais. O que vemos no cenário político
atual é uma forte participação de setores mais conservadores da sociedade,
que ganharam destaque no Poder Legislativo e grande espaço para deci-
são sobre assuntos sensíveis, como as demarcações de terras indígenas e
quilombolas, os direitos das mulheres e assuntos relacionados às liberdades
sexuais e ao casamento homoafetivo.44
O Brasil possui 476 terras indígenas, o que totaliza aproximadamente
12,5% do território brasileiro. Ainda existem outros 196 territórios em fase de
estudos antropológicos, ou ainda nas fases iniciais do processo de demar-
cação.45 De acordo com a FUNAI, durante o governo FHC (1995-2002) foram
homologadas 145 áreas, e no governo Lula (2003-2010), 84. Na gestão Dilma
Rousseff, foram homologadas, por ora, 10 áreas indígenas.46

44 No dia 22 de abril de 2014, a comissão especial da Câmara dos Deputados, que analisa
o Plano Nacional de Educação, aprovou o texto principal do documento. Cedendo ao
lobby da bancada evangélica, a Câmara aceitou retirar a diretriz que propunha a supe-
ração das desigualdades educacionais, “com ênfase na promoção da igualdade racial,
regional e de gênero e de orientação sexual”. Dessa maneira, fica mantida a redação do
Senado, que determina a “promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas
de discriminação”.
45 Sobre as etapas de demarcação, consulte o link: <http://pib.socioambiental.org/pt/c/
terras-indigenas/demarcacoes/como-e-feita-a-demarcacao-hoje. Acesso em: 14 abr. 2014.
46 Os dados são de janeiro de 2014 e se encontram disponíveis na página eletrônica da
FUNAI – Fundação Nacional do Índio.
216 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Nos confrontos por terra no país, são os indígenas, e não outros grupos
sociais, que morrem com grande frequência (foram 108 assassinatos só nos
dois últimos anos, de acordo com relatório do Conselho Indigenista Mis-
sionário47), mas não são raras as vezes em que eles são apontados como os
causadores da violência no campo. Essa modalidade de discurso é comum e
engloba outros grupos historicamente subalternizados. Mulheres, por exem-
plo, são violentadas sexualmente, mas são muitas vezes tratadas como cau-
sadoras dos estupros devido às suas roupas ou aos comportamentos; jovens
negros são as maiores vítimas de homicídios (o risco de um jovem negro ser
assassinado é 3,7 vezes maior em relação a um jovem branco (WAISELFISZ,
2012), mas são muitas vezes tratados como suspeitos em potencial. Todas es-
sas falas são pautadas em estereótipos, o que, de acordo com Bhabha (2010,
p. 106), sempre são acionados em excesso e não precisam de comprovação
lógica para que se fixem nos discursos e no imaginário social.

Figura 1 Confrontos entre ruralistas e indígenas em torno da demarcação das terras


indígenas. À esquerda, um outdoor em estrada no sul do Estado da Bahia; à direita,
um outdoor no Estado do Espírito Santo, que cita uma empresa de produção de
celulose.

47 Disponível em: <http://www.cimi.org.br>. Acesso em: 06 dez. 2013.


Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 217

Figura 2 À esquerda, um bebê da etnia guarani kaiowá em acampamento às margens


de uma rodovia no Estado do Mato Grosso do Sul, aguardando com sua família as
decisões dos processos de demarcação de terras indígenas. À direita, outro acampa-
mento indígena, também no Estado do Mato Grosso do Sul.

Quanto às comunidades quilombolas, o INCRA estima que existam 3.000


territórios em todo o Brasil, no entanto apenas 149 deles possuem hoje o
título de propriedade, o que equivale a 5% do total de terras estimadas. No
momento, a Fundação Cultural Palmares certificou 1.800 territórios (trata-se
da primeira etapa do processo) e, destes, 1.264 estão com processos ab-
ertos no INCRA. O quadro geral de titulações dos territórios quilombolas
é o seguinte: 45 títulos durante o governo FHC (1995-2002), 75 títulos no
governo Lula (2003-2010) e 29 títulos nos dois primeiros anos do governo
Dilma Rousseff.48

BOX 5

No período colonial brasileiro, as comunidades quilombolas recebiam uma


conceituação diferente daquela que utilizamos nos dias atuais. No século
XVIII, essas comunidades eram definidas como “toda habitação de negros
fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham
ranchos levantados nem se achem pilões neles” (MOURA, 1981, p. 16). Com
a publicação do Decreto 4.887, de 2003, a noção de comunidades quilom-
bolas se amplia, passando a ser consideradas como “grupos étnico-raciais,
seguindo critérios de autoafirmação, com trajetória histórica própria, dota-
dos de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade
negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida” (BRASIL,
2008). Vale destacar que nessa atualização conceitual o foco é sobre a au-
toafirmação do povo quilombola, o que significa um avanço no sentido do
reconhecimento de sua trajetória histórica e da sua autodeterminação.

Do ponto de vista das relações raciais, o século XX poderia ser breve-


mente caracterizado em três grandes momentos:

48 Dados de janeiro de 2014, disponíveis na página eletrônica do INCRA – Instituto


Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
218 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

• O primeiro, que investe nas teorias racialistas provenientes do sé-


culo XIX, como a Eugenia e o Darwinismo Social, mas que ainda têm
destaque nas décadas iniciais do século seguinte;

BOX 6

A palavra eugenia deriva do latim: é a junção dos termos “eu”, que significa
“bom”, e “genesis”, que quer dizer “geração”. É uma pretensa ciência pautada
nas ideias do inglês Francis Galton, conhecido pela descoberta das impres-
sões digitais. Galton argumentava que o Estado deveria formular políticas
de seleção de jovens “aptos” para procriarem “os mais capazes”. Propunha
a escolha de uma “boa e pura raça” e a esterilização de doentes, “crimino-
sos”, judeus e ciganos. Suas ideias incentivaram experiências de “purificação
racial” durante o Terceiro Reich, pela Alemanha nazista. Já o darwinismo so-
cial foi uma analogia teórica com as ciências biológicas, que considerava os
grupos humanos como organismos vivos em conflito, o que se resolveria com
a sobrevivência do grupo mais apto. Essa noção foi uma adaptação da obra A
origem das espécies, escrita por Charles Darwin em 1859.

• O segundo, que se desenvolve entre as décadas de 1930 e 1980 e que se


apoia na ideologia da mestiçagem e no mito da democracia racial;

BOX 7

Diferentemente da ideia de miscigenação (que significa mistura genética


entre grupos raciais distintos), a mestiçagem é um conceito mais amplo, que
significa a mistura cultural, e que foi por várias décadas um dos principais
pilares que deram sustentação à ideia de identidade nacional brasileira.

• E o terceiro, que a partir de uma postura crítica, denuncia, critica e re-


formula perspectivas teóricas sobre as relações raciais e, a partir delas,
avançam sobre temas da identidade, da cultura e da nação.

Esta divisão possibilita nos aproximarmos das principais formas de ex-


plicar as relações raciais e as presenças de brancos, indígenas e negros na
sociedade brasileira.
Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 219

As relações entre os distintos grupos sociais possuem íntima relação


com os componentes econômicos, políticos e culturais que se estendem en-
tre o ano de 1889 (Proclamação da República) e 2012 (pronunciamento pela
constitucionalidade das políticas de ação afirmativa pelo Supremo Tribunal
Federal). Neste leque temporal de mais de um século de história republicana
no país, alguns momentos nos chamam atenção. Tenhamos um breve olhar
sobre este período, no interior do qual destacaremos datas importantes que
estão consagradas em abordagens historiográficas:

a ) 1889-1930 – período que corresponde à fase inicial do período republica-


no. Em termos econômicos, significou a consolidação dos interesses das
elites, sobretudo as latifundiárias. Em termos políticos, a construção de
profundos laços entre setores da sociedade que se propunham a tarefa do
embranquecimento da nação. Em termos sociais, período de grande ex-
clusão expressa no número de eleitores, menor que no período imperial.

Figura 3 O ideal de branqueamento da população.


220 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

b ) 1930-1937 – derrotado nas urnas, Getúlio Vargas desfecha golpe de


Estado, após ampla mobilização nacional envolvendo distintos setores
da sociedade brasileira. Em termos econômicos, o período significou o
primeiro grande impulso à industrialização. Em termos políticos, o exer-
cício do poder afastado dos grupos que apoiaram a chamada Revolução
de 30 e afastamento das bases populares com a adoção de medidas
populistas. Em termos sociais, este período correspondeu à criação da
ideologia da mestiçagem e do mito da democracia racial.
c ) 1937-1945 – Getúlio Vargas lidera o Estado Novo, período de ditadura
aberta. Em termos econômicos, aprofunda-se orientação visando a in-
dustrialização do país; em termos políticos, o Estado Nacional parece ex-
pressar a vontade do ditador. Grupos de opositores e partidos políticos
são perseguidos pelo aparato da segurança nacional. Em termos sociais,
consagra-se como discurso oficial a inexistência de diferenças raciais,
reafirmando o harmonioso convívio entre os distintos grupos sociais; no
Brasil, ocorria a perseguição aos japoneses.
d ) 1945-1964 – período de abertura democrática após a derrota dos regi-
mes nazifascistas no contexto da Segunda Guerra Mundial. Em termos
econômicos, o país acompanha a rápida perda das reservas internacio-
nais acumuladas no período anterior. Em termos políticos, o ambiente
relativamente democrático não é capaz de conviver com a crítica, uma
vez que as representações políticas e partidárias dos comunistas são
consideradas ilegais. Em termos sociais, as pesquisas patrocinadas pela
UNESCO sobre relações raciais no Brasil revelam que a pertença racial
constituía-se como importante fundamento das desigualdades no país.
e ) 1964-1985 – ditadura militar no Brasil. Em termos econômicos, o período
é marcado por forte crescimento nos anos iniciais e, no período final,
por forte crise econômica. Em termos políticos, estes anos banalizam a
política, e os opositores ao sistema são considerados “terroristas”, o que
confere ao Estado elevado poder de letalidade: sequestros, desapareci-
mentos e assassinatos compõem a política do Estado policial. Em termos
sociais, há a brutal repressão aos movimentos sociais: as agremiações
negras são fortemente atingidas pelo brutal esquema de repressão
conduzido ao longo do período e há evidência de vários ataques às po-
pulações indígenas, algo que está sendo investigado atualmente pela
Comissão da Verdade, instalada em maio de 2012 para apurar os crimes
cometidos pela ditadura militar. Em 1978 é criado o Movimento Negro
Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 221

Unificado, que confere um novo “tom” nas reivindicações, em especial,


fazendo a denúncia explícita do mito da democracia racial.
f ) 1985 aos dias atuais – período de retomada dos princípios democráticos
marcado pela diversidade de movimentos sociais e pela promulgação da
Constituição Federal de 1988. Em termos econômicos, o período espe-
lha uma grande batalha em busca da estabilidade macroeconômica. Em
termos políticos, significa avanços nas garantias individuais e cidadãs;
surge no período um grande leque de agremiações partidárias. Em ter-
mos sociais, ganham imporância os movimentos sociais, com destaque
para o Movimento Negro, e uma agenda na qual são acentuadas as polí-
ticas de ação afirmativa, o caráter estrutural e institucional do racismo e a
elaboração de discursos, práticas, procedimentos e ações transnacionais
que ressaltam a perspectiva diaspórica da população afro-brasileira.

BOX 8

O termo diáspora é uma derivação das palavras gregas “dia”, que significa
“através, por meio de”, e speirõ, que quer dizer “dispersão ou dissemi-
nação” (CASHMORE, 2000, p. 169). O conceito já foi amplamente difun-
dido para se referir à experiência judaica, relembrando o exílio no Egito
e sua dispersão por vários países. Nas últimas décadas, diáspora passa
também a se referir a comunidades “transnacionais”, ou seja, aquelas que,
por vários motivos (entre eles, a escravidão), atravessam as fronteiras dos
Estados-Nacionais. A diáspora africana é a consciência de que os descen-
dentes africanos, dispersos por todos os continentes por meio do tráfico
negreiro, fazem parte de um passado em comum, pautado na luta por
liberdade. Além disso, uma perspectiva diaspórica significa o desejo de se
recontar essa história de uma maneira autônoma, crítica e que elucide os
processos de racialização.

Se estivermos atentos aos períodos brevemente descritos aqui, iremos


perceber que na maior parte do tempo a sociedade brasileira esteve sob
regimes autoritários ou ditatoriais. Esta característica construiu marcas
“duras” de serem superadas quando nos dedicamos ao tema das relações
étnico-raciais. Mesmo diante de estatísticas oficiais e cenas cotidianas que
evidenciam a existência de práticas discriminatórias, preconceituosas e ra-
cistas, parece haver certa permanência do passado. A elaboração do mito
222 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

da democracia racial, embora erodido em suas bases teóricas, políticas, so-


ciais e culturais, ainda resiste em vários discursos, o que torna fundamentais
os atuais avanços em direção a uma educação pelas relações étnico-raciais.
Como é possível afirmar a inexistência do racismo no Brasil, diante das
manifestações ocorridas em campos de futebol brasileiros dirigidas a joga-
dores e árbitros de futebol? Que explicação restará aos que negam a existên-
cia do racismo quando indicações de atores e atrizes brasileiros, negros, não
são aceitos pela entidade que organiza o futebol no mundo? Como explicar
os milhares de indígenas vivendo há anos nas margens de rodovias federais,
aguardando por processos infindáveis de demarcação de terras, vinte e seis
anos depois de a “constituição cidadã” definir os direitos das populações
indígenas sobre suas terras tradicionais? Como explicar as taxas de suicídio
entre indígenas guaranis no Brasil, que chegam a ser trinta e quatro vezes
maiores do que as taxas nacionais?49 O que dizer da “confusão” ocorrida
com uma trabalhadora, que ao ter seus bens furtados não titubeia em acusar
o primeiro indivíduo negro que surgiu em seu caminho, dizendo que ele se
“parecia” com seu algoz? Mais, como compreender a conduta do delegado
deste caso, que opta por ferir o código de processo de penal e conduz ao
presídio uma pessoa inocente? Como entender o silenciamento diante da
conduta criminosa de profissionais da segurança pública ao conduzir na ca-
çamba de viaturas oficiais pessoas, como se fossem “nada humanos”? Que
emblemas ainda estão guardados nas práticas, lamentavelmente presentes,
da indicação de elevadores de serviço e da “boa aparência”?
São muitas as perguntas que se impõem. Sem a pretensão de esgotá-
-las, elaboramos um texto que os convida a mergulhar na reflexão de como
o racismo se re-atualiza nos dias de hoje. Pesquisas mais recentes têm de-
monstrado que vivemos um momento de transição; transição de uma nação

49 De acordo com dados do Ministério da Saúde publicados em outubro de 2013, a taxa


de suicídios entre jovens guaranis (entre 15 e 29 anos de idade) é 34 vezes maior do que
a taxa nacional para a mesma faixa etária. Indígenas e especialistas do tema informam
que os conflitos por terra e a precariedade de vida são as causas dos altos índices de
suicídio. No caso do Estado do Mato Grosso do Sul, indígenas Guarani, Terena e de
outras etnias vivem em condições sub-humanas às margens de rodovias, aguardando
a resolução dos casos de demarcação de terras. A condição de acampamento che-
ga a durar muitos anos, causando toda a sorte de problemas: falta de alimentos, de
assistência médica, de escola para as crianças, de condições de produção agrícola,
atropelamentos e vulnerabilidade de todo tipo. Sobre os dados, veja o link: <http://
blogs.estadao.com.br/roldao-arruda/ong-associa-alta-taxa-de-suicidio-entre-indios-
-jovens-a-problemas-fundiarios>. Acesso em: 11 out. 2013.
Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 223

que se representava homogênea, harmônica e cordial para uma sociedade


que se percebe heterogênea, dissonante e conflituosa (SILVÉRIO & TRINI-
DAD, 2012, p. 894). Auxiliar nesta compreensão é a tarefa que queremos
compartilhar com você, algo que consideramos fundamental para refletir-
mos sobre os novos desafios colocados para a construção de uma educação
das relações étnico-raciais.

Caracterização conceitual
Antes de nos aprofundarmos no debate a respeito da educação para as
relações étnico-raciais e dos processos de racialização presentes nas rela-
ções sociais brasileiras, algumas definições se fazem necessárias.
Neste capítulo, o termo raça é compreendido enquanto um conceito
livre de conotação biológica e que é reapropriado política e culturalmente
pelo Movimento Negro enquanto uma categoria de interpretação da reali-
dade social. De acordo com o sociólogo jamaicano-inglês Stuart Hall,

a raça é uma categoria discursiva e não uma categoria biológica. Isto é,


ela é uma categoria organizadora daquelas formas de falar, daqueles
sistemas de representação e práticas sociais (discursos) que utilizam um
conjunto frouxo, frequentemente pouco específico, de diferenças em
termos de características físicas (HALL, 2006, p. 63).

O sociólogo jamaicano salienta que, apesar de o conceito não ser ex-


plicável cientificamente, isso não impediu que ele fosse acionado cotidia-
namente como quadro de referência nas relações humanas, e não impediu
suas consequências devastadoras (HALL, 2006, p. 63). Hall nos apresenta,
portanto, uma compreensão da terminologia “raça”, que leva em conta os
processos pelos quais as pessoas de determinados grupos sociais são sub-
metidas, nos quais elas são representadas socialmente de forma estigmati-
zada e que sua humanidade é negada ou violentada.
Quando utilizamos o termo “raça” estamos necessariamente nos refe-
rindo a esse processo histórico-cultural que estabelece hierarquias entre
os seres humanos e que cristaliza, nos próprios corpos dos indivíduos, as
representações sociais construídas pelo coletivo. Ou seja, antes mesmo de a
pessoa se expressar verbalmente, seu corpo já está recebendo muitas inter-
pretações. É por isso que Fanon compreende o corpo negro enquanto lugar
onde ocorre a exclusão, a violência e a subordinação.
224 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

BOX 9

“No mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na elaboração


de seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é uma atividade unica-
mente negadora. É um conhecimento em terceira pessoa. Em torno do cor-
po reina uma atmosfera incerta. [...] Elaborei, sob o esquema corporal, um
esquema histórico-racial. Os elementos que utilizei não me foram fornecidos
pelos ‘resíduos de sensações e percepções de ordem [...] tátil, vestibular,
cinestésica e visual’, mas pelo outro, o Branco, que os tecera para mim com
mil detalhes, anedotas, contos. Pensava poder construir um eu fisiológico
para equilibrar o espaço, localizar sensações, e eis que me exigiam em ex-
cesso” (FANON, 2008, p. 104-105; grifo nosso).

Alguns podem se perguntar: por que não utilizarmos o conceito de et-


nia no lugar de raça? Não seria mais sensato utilizarmos um conceito “mais
cultural” do que um que pode dar uma conotação biológica? Nessa lógica,
alguns autores brasileiros defendem a não utilização do conceito de raça,
substituindo-o pelo de etnia, como se fosse possível falarmos em “etnia
negra”. No entanto, a troca de um conceito por outro não surtiu efeito na
diminuição do racismo e dos casos de discriminação racial. Cabe destacar
também que etnia tem uma definição bastante precisa: “Uma etnia é um
conjunto de indivíduos que, histórica ou mitologicamente, têm um ancestral
comum, têm uma língua em comum, uma mesma religião ou cosmovisão,
uma mesma cultura e moram geograficamente num mesmo território” (MU-
NANGA, 2004, p. 28-29). No caso da população negra brasileira, a informa-
ção sobre suas origens étnicas são vagas ou mínimas, tendo em vista que
esses aspectos foram sistematicamente abafados pelo processo colonial e
quase que desapareceram dos registros históricos.
Em nosso dia a dia na escola, no trabalho e entre os amigos, deparamo-
-nos com tantos termos que, muitas vezes, ficamos inseguros sobre qual de-
les utilizar. Alguns dos mais comuns são: cor, moreno, negro, afro-brasileiro e
afrodescendente. Tem diferença entre cada um deles?
Assim como qualquer conceito, todos estes são situados historicamente
e apresentam diferentes conotações a depender do contexto em que são uti-
lizados. Os leitores das obras do Florestan Fernandes, escritas nas décadas
de 1950 e 1960, reparam que o sociólogo brasileiro descreve e problematiza
o “preconceito de cor”, e na maioria das vezes se refere aos descendentes de
Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 225

africanos como “homens de cor”. Cor – que já foi um termo comum no Brasil,
sendo muitas vezes utilizado “maliciosamente” como forma de humilhação
e de menosprezo – não é mais usual na literatura sobre as relações raciais,
exceto nos estudos demográficos. O Censo brasileiro pede às pessoas que
se classifiquem dentro de uma das cinco categorias de cor estabelecidas:
branca; preta; parda; indígena; e amarela. Por semelhanças em termos de
indicadores sociais (educacionais, inserção no mercado de trabalho, entre
outros) e também por se remeter à origem africana da população, pesquisa-
dores uniram as categorias de cor preta e parda em uma única, denominada
negro. Os africanos traficados para o Brasil não se compreendiam como ne-
gros, mas através de suas etnias de origem. Negro é um termo criado pelo
colonizador na intenção de estabelecer uma homogeneização entre os gru-
pos, o que fez parte das técnicas de dominação colonial. Essa terminologia,
no entanto, foi apropriada pelo movimento de resistência ao racismo com
um sentido político, de afirmação identitária.
E a palavra moreno? Ela é muito utilizada no dia a dia e, mais uma vez,
precisaremos olhar com atenção para a história do Brasil para entender como
e por que esse termo ganhou destaque. É difícil dizer quando exatamente
essa palavra começou a ser utilizada no Brasil, mas é sabido hoje que more-
no é um termo que já causou muitas discussões teóricas! De um lado, vários
autores que defendiam que o moreno seria uma “degeneração racial”, uma
mistura entre brancos e outros grupos raciais não brancos (especialmente
negros). São autores que se entusiasmavam com a eugenia e o darwinismo
social. De outro, autores que defendiam o conceito de moreno, pois ele seria
a grande marca brasileira, a marca da “tolerância racial” e da diversidade.
Essa conotação mais positiva sobre a palavra moreno ficou muito conhecida
especialmente a partir da década de 1930, quando se queria definir “a cara
do brasileiro”.
No entanto, podemos ver essa história sob um ponto de vista mais crí-
tico, característica fundamental para nós educadores. Usar o termo moreno
é uma maneira de “escaparmos” dos polos “negro” e “branco”, um meio-
-termo que muitas vezes é usado para “não ofender”. Quantas vezes não
ouvimos isto: “Mas você não é negro, você é moreno”? Incontáveis vezes!
Se esse tipo de “cuidado” ainda existe, é porque ainda precisamos esva-
ziar a palavra negro das conotações pejorativas. “Negro” não é um proble-
ma, pois o problema está no racismo. A pessoa negra não precisa mudar,
não precisa ficar “menos negra”. O necessário é mudarmos o racismo.
226 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Fazendo referência a Nelson Mandela, importante ativista contra o racismo


no mundo e presidente da África do Sul (1994-1999), se o racismo é algo que
aprendemos desde muito pequenos, a escola e os currículos escolares po-
dem, e devem, ser muito úteis para desaprendê-lo, e construirmos relações
realmente respeitosas e de reconhecimento.
José Jorge de Carvalho (2003) lança duas perguntas pertinentes: A
quem interessa a centralidade do discurso sobre o mestiço ou o moreno?50
Ele traz benefícios a quem? Carvalho salienta que a figura do mestiço, ao
invés de auxiliar na promoção do respeito e na quebra de preconceitos,
acaba permitindo que o racismo se perpetue, escondendo-se atrás desse
discurso que afirma que “todos são iguais na mestiçagem”. O autor salienta
dois resultados imediatos desse discurso: por um lado, ele deslegitima as
reivindicações dos afro-brasileiros por direitos; por outro, mantém os privilé-
gios da população não negra, mantendo-a em uma “zona de conforto” onde
ela se esconde e se poupa das responsabilidades no que toca ao respeito à
diversidade.51 Afinal, diz o autor, se todos são iguais na mestiçagem, por que
reivindicar direitos? (CARVALHO, 2003, p. 317-319).

50 Em entrevista concedida em 2006, Carlos Hasenbalg comenta que a categoria “moreno”


surge nas falas dos brasileiros referindo-se a quase todas as possibilidades fenotípicas,
exceto as pessoas “louras, ruivas ou pretas de cabelos encaracolados”. Dessa maneira,
além de todos os aspectos aqui mencionados, em termos dos estudos socioeconômi-
cos e, portanto, da mensuração das desigualdades, o termo “moreno” não contribui
(GUIMARÃES, 2008, p. 265).
51 Apesar de compreendermos o caminho argumentativo do autor, e concordarmos com
as análises, cabe fazer uma pequena relativização nesse argumento, pois este pode ser
interpretado como determinista. Ou seja, pode dar a entender que todos os brancos
são necessariamente racistas, de uma forma quase que natural. A libertação com rela-
ção aos discursos essencialistas passa também por esse aspecto.
Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 227

Figura 4 “Ruim é o racismo”.

Mais recentemente, temos percebido o uso de expressões como afrode-


scendente e afro-brasileiro. Esses termos nos fazem lembrar que a população
negra do Brasil mantém relação histórica com o continente africano. Além
disso, têm relação com outros povos negros que estão espalhados por vários
continentes devido à escravidão. De acordo com Silvério & Trinidad (2012),

em relação aos negros brasileiros, se não encontramos uma ideologia


de retorno físico à origem africana, identificamos pelo menos dois dis-
cursos distintos: um, que dilui a origem africana na brasilidade; outro,
no qual a origem africana é discursivamente constitutiva da identidade,
daí a utilização recente de expressões como afrodescendente e afro-
brasileiro. [...] Pode ele (o sujeito), ao recriar sua origem para além da
fronteira nacional numa perspectiva diaspórica, denunciar a forma
como a diferença é transformada em desigualdade social (SILVÉRIO &
TRINIDAD, 2012, p. 909).

Portanto, de acordo com os autores, o fato de utilizar os termos afrodes-


cendente ou afro-brasileiro não significa um desejo de retorno à África e à
sua ancestralidade, mas sim de ter a consciência sobre os processos históri-
cos, processos que muitas vezes nos levam a negar a participação do conti-
nente africano na formação do Brasil, não é verdade? Somos brasileiros(as),
mas também somos um mundo de informações diferentes, e a diferença não
precisa significar desigualdade, mas sim uma rica diversidade.
228 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

UNIDADE 2
Raça e a questão nacional no Brasil

Uma boa proposta para professores e professoras é vincular as aulas de


história do Brasil com a questão étnico-racial, até porque nada disso está
desconectado, pelo contrário! Uma pergunta que políticos, artistas e pensa-
dores brasileiros do período escravocrata faziam era a seguinte: “que povo
é o povo brasileiro?” ou “que civilização é esta dos trópicos?”. E, portanto,
para entendermos a formação brasileira, faz-se fundamental discutirmos a
presença negra, indígena e de imigrantes europeus e não europeus no país.
Os termos dominantes durante o século XIX e também nas primeiras
décadas do século seguinte eram marcados por discursos biologizantes,
que tentavam conferir status de inferioridade do negro frente aos europeus
e eurodescendentes.
Esse debate alicerçado na miscigenação variava de uma avaliação pessi-
mista das possibilidades de se construir uma “nação” nos trópicos sobre tal
base humana – e nesta vertente se encontram, por exemplo, Nina Rodrigues
e Euclides da Cunha – até à perspectiva positiva de que a miscigenação
levaria ao embranquecimento gradual da população – como defenderam
Oliveira Viana, João Baptista Lacerda e Silvio Romero (COSTA, 2002, p. 40).
Cabe fazermos algumas poucas considerações sobre as duas perspectivas a
respeito da miscigenação e em como concepções racistas acerca da realida-
de social se tornaram “verdades científicas”, influenciando debates recentes.
Raymundo Nina Rodrigues, que foi médico do instituto médico legal no
Estado da Bahia, marcou a avaliação pessimista sobre a miscigenação e or-
ganizou sua análise a partir de três premissas:
a ) existiria uma diferenciação entre “raças superiores e inferiores”;
b ) a “raça superior” venceria nos contatos inter-raciais e na concorrência social;
c ) existiria uma evolução que aperfeiçoa lenta e gradualmente as caracte-
rísticas psíquicas, morais e intelectuais (ORTIZ, 2003, p. 20).
Nesse sentido, o negro e o indígena se apresentavam como entraves ao
“progresso civilizatório” e deveriam se manter a distância para a concretiza-
ção da supremacia racial do mundo branco.
As teorias de Nina Rodrigues, que incluíam medições de crânio para jus-
tificar as alegadas tendências inatas dos afro-brasileiros para a criminalidade,
Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 229

são ainda hoje aclamadas por institutos de criminologia (BRASIL, 2001, p. 3).
Suas teorias também possuem forte fundamentação religiosa, segundo a
qual a justificativa para a escravidão estaria no mito de que os negros são
descendentes de Cã, a tribo amaldiçoada de Canaã. Vestidos dessa justifi-
cativa teológica, muitos escravocratas e fazendeiros sustentavam a ideia de
uma “missão civilizadora”, que possibilitaria a remissão dos filhos de Cã, a
conversão para o cristianismo e o aprendizado do valor do trabalho (MU-
NANGA, 2004, p. 17-18).
As publicações de Nina Rodrigues justificaram por muito tempo toda
forma de discriminação e de preconceito contra a população negra, uma
vez que tudo isso era apresentado como ciência. Era, portanto, a tradição
racista se apropriando das ferramentas modernas da ciência para dar res-
paldo aos discursos e práticas discriminatórios. E foi dessa maneira, sem a
menor neutralidade, que se afirmava que, “cientificamente”, determinado
grupo étnico-racial seria superior física, intelectual, moral e esteticamente
com relação a outros.

Figura 5 A eugenia e a prática de medição de crânios para realizar classificação racial

Perguntamos, portanto:
• O que fez com que os intelectuais brasileiros fossem imediatamente
convencidos de que haveria fundamento na ideia de inferioridade e su-
perioridade racial?
• Não havia outro caminho lógico possível?
• Se a população negra e indígena já era há muito tempo (e é) tão central
para o desenvolvimento do Brasil em todos os aspectos que possamos
230 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

analisar; se a riqueza cultural e filosófica dos povos africanos no Brasil e


indígenas (expressa, por exemplo, na simbologia religiosa, na linguagem
e na forma de ver o mundo) estava presente; se essas populações mos-
travam e aplicavam seus conhecimentos técnicos com total perícia, seja
na agricultura, na criação de animais, na mineração e (no caso da popu-
lação negra) também na construção civil, na metalurgia, na marcenaria,
então, como pôde ter ocorrido o caminho argumentativo mais difícil e
improvável?
• Não seria mais lógica a constatação positiva das heranças africana e
indígena?
• Não seria também mais lógica a revolta contra a escravidão, a crueldade,
a desumanidade?
Nas noções mais tradicionais, defende-se que a formação e a estabili-
dade do Estado-nação dependem da realização integral da equação: um
território, um povo e uma língua. Isso se daria a partir da assimilação cultural,
transformando a pluralidade racial, cultural e de valores civilizatórios em um
grupo coeso de cidadãos (MUNANGA, 2006; ANDERSON, 1999; MOYA &
SILVÉRIO, 2009).
Do ponto de vista assimilacionista (do apagamento das diferenças), a
figura do mestiço aparece de maneira central. Resultante de um discurso
hierárquico e excludente, que se desdobrou em boa parte da produção inte-
lectual do período, a mestiçagem ganha espaço na elaboração da produção
intelectual acerca do nacional.
Richard Miskolci (2012) realiza uma análise que aponta as duas últimas
décadas do século XIX como um período de gestão de ideais de progres-
so, embasados na defesa de uma “regeneração racial” através do embran-
quecimento da população, com o desejo de inaugurarem uma “civilização
nos trópicos” (MISKOLCI, 2012, p. 21). De acordo com o autor, uma parcela
considerável das interpretações históricas e sociológicas privilegiaram, ao
descreverem esse momento, os temas da mudança do regime escravocrata
para o trabalho livre e os reflexos políticos e econômicos desse processo. O
que foi deixado em segundo plano nessas análises, de acordo com o autor,
foi a formação de um novo imaginário social, pautado nos valores positivis-
tas da ordem e do progresso.
O aspecto da ordem, de acordo com Miskolci, já foi amplamente deba-
tido através das análises sobre a Proclamação da República e da construção
de um distanciamento com relação à instabilidade política e a “anarquia”,
Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 231

frequentemente associados aos outros países latino-americanos da época.


O que não foi realizado a contento, e o que motiva os estudos do autor, seria
o aspecto do progresso, no qual inegavelmente o discurso nacionalista e
do povo brasileiro aparecem em primeiro plano. O progresso guarda em si
o ideal de uma civilização construída no futuro, através de um processo po-
lítico modernizante e de uma “evolução humana”, mas o grande obstáculo
ao progresso no Brasil estaria justamente na composição étnico-racial da
população (MISKOLCI, 2012, p. 22-23).
Leandro Macedo Janke (2009), ao analisar os aspectos populacionais e
de territorialidade presentes na formação nacional brasileira, demonstra que,
no caso da população indígena, os debates em torno da assimilação cultural
se iniciaram ainda no século XVIII com a instauração do Diretório Geral dos
Índios, em 1757, pelo Marquês de Pombal. Tratava-se de uma nova política,
não mais pautada exclusivamente na catequização católica, mas agora com
interesses seculares de uma suposta integração ao Império.
Em 1823, durante as reuniões da Assembleia Constituinte, José Bonifá-
cio de Andrada e Silva apresentou uma proposta intitulada Apontamentos
para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil. Com o intuito de
consolidar uma volumosa população para aumentar as forças do império
brasileiro, o projeto previa o aldeamento e o contato físico e cultural com
a população branca para os tornarem “mansos e sedentários”, de maneira
a serem capazes de, inclusive, substituírem a mão de obra africana. Afirma
Bonifácio:

[O Tribunal Conservador dos Índios] procurará com o andar do tempo, e


nas aldeias já civilizadas, introduzir brancos e mulatos morigerados para
misturar as raças, ligar os interesses recíprocos dos índios com a nossa
gente, e fazer deles todos um só corpo da nação, mais forte, instruída e
empreendedora, e destas aldeias assim amalgamadas irá convertendo
algumas em vilas (SILVA, 1998, p. 119).

O Brasil, assim como outros países de experiência colonial, colaboraria


para a emergência da modernidade, especialmente por meio de medidas
sanitaristas e de reforma urbana, como a que aconteceu na cidade do Rio
de Janeiro na primeira década do século XX. Se um dos aspectos centrais
da modernidade é o “novo” enquanto valor, a “boa nova” como riqueza
em comparação com o que se entende por estagnação dos períodos an-
teriores, esses elementos estavam todos revisitados no Brasil na passagem
232 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

do século XIX para o XX. Isso se deu ancorado na desqualificação do povo


brasileiro e em um cenário político de temores sobre uma possível revolta
de escravizados. Não são raros os trabalhos que demonstram que a abolição
foi resultado de mais de quarenta anos de sérias crises do sistema escravista
e de que em maio de 1888 havia mais afrodescendentes nos quilombos do
que nas senzalas (AZEVEDO, 2004, p. 177-179).
Wilson Mattos (2009) descreve com riqueza de detalhes os mecanismos
da legislação escravista durante o século XIX. Logo após o término da Revol-
ta dos Malês, ocorrida janeiro de 1835 na cidade de Salvador, o governo insti-
tuiu a expulsão de africanos suspeitos de participarem desse que foi um dos
maiores movimentos de resistência de escravizados nas Américas; o governo
também os proibiu de comprar alguns bens, entre eles casas, e de alugarem
imóveis. Os africanos também foram taxados pelo simples motivo de serem
africanos. Para conter as rebeliões negras, o governo premiava africanos
que denunciassem insurreições e, se os denunciantes fossem escravizados,
daria a liberdade pela informação (MATTOS, 2009, p. 79). Os mecanismos de
exclusão não se limitaram a isso: foram aprovadas várias leis que taxavam os
africanos que exercessem atividades marítimas e de comércio.52
Ousamos dizer que a maioria de nós foi alfabetizada acreditando que
a escravidão tenha sido liquidada, pura e simplesmente, pela benevolência
da Princesa Isabel. Essa noção, que é mais um mito da nossa história, retirou
por muito tempo o foco do protagonismo negro no processo de libertação
da escravidão. A Lei Áurea, assinada por ela, existiu e teve importância his-
tórica, mas os livros didáticos, a história oficial e os discursos do cotidiano
tendem a apagar outros fatos que foram tão relevantes quanto a Lei Áurea.
As aulas sobre história seriam certamente mais completas e mais coerentes
se nos fossem contados os fatos concretos.
Muito antes de 1888, o sistema escravocrata já demonstrava sinais de fa-
lência, de perda de legitimidade perante o cenário econômico internacional
e as revoltas negras no Brasil estavam saindo do controle do império. Entre
os grandes produtores e políticos do século XIX havia medo de que aconte-
cesse uma grande revolta negra no país, aos moldes da Revolução Haitiana,
que poderia despejar na sociedade “uma horda de homens semibárbaros,
sem direção, sem alvo social” (AZEVEDO, 2004, p. 32-36).
O cenário de medos fica evidente nas palavras de Varnhagen, em 1850:
“eles [escravizados africanos] não dormem tanto como se pensa e já têm

52 Leis no 250, de 8 de junho de 1846, 252, de 6 de julho de 1846 e 344, de 5 de agosto de


1848 (MATTOS, 2009, p. 80-81).
Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 233

feito seus ensaios em vários anos” (VARNHAGEN, 1850, p. 22). Assim, de


acordo com ele, seria fundamental, para não ver “os vossos netos reduzidos
talvez à condição de servos dos netos africanos”, que “desde já nenhum
navio possa levar um só a seu bordo” (VARNHAGEN, 1850, p. 22).
Atendendo ao discurso de “pânico” contra a população negra, Varnha-
gen considera o trabalho servil dos indígenas uma alternativa no lugar da es-
cravização de africanos: “Teríamos com eles um aumento de braços menos
perigosos que os dos negros, porque daqui a pouco, estariam misturados
conosco em cor, e em tudo, e então teríamos em todas as províncias – povo
– classe social que algumas não possuem” (VARNHAGEN, 1850, p. 23). Além
disso, ele defende o incentivo à vinda ao Brasil de imigrantes europeus bran-
cos para ingressarem, como pequenos proprietários, na colonização agríco-
la do interior do país e também para difundir no país aspectos científicos,
artísticos e estéticos, inaugurando um “bom grau de civilização e de gosto”
(VARNHAGEN, 1850, p. 38) no país. Varnhagen conclui que

para civilizarmos o Brasil, e fazermos que haja povo brasileiro, neces-


sitamos ir paulatinamente acabando com a escravidão dos africanos;
necessitamos prender e avassalar (não escravizar) temporariamente os
índios bravos; necessitamos, enfim, admitir no país gente branca vo-
luntariamente arregimentada em grupos. Se adotamos já tal sistema
[...] fiquemos descansados que havemos de vir a ter uma população
compacta” (VARNHAGEN, 1850, p. 39).

As teorias eugênicas, fortemente empregadas em toda a Europa para


“combater a degeneração racial”, estavam colocadas textualmente na le-
gislação brasileira, por exemplo, no Decreto no 528 de 28 de junho de 1890,
assinado pelo então Presidente Marechal Deodoro da Fonseca, que regula-
mentava a entrada de imigrantes no Brasil, determinando que

é inteiramente livre a entrada, nos portos da República, dos indivíduos


válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos à ação
criminal de seu país, excetuados os indígenas da Ásia ou da África, que
somente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser
admitidos de acordo com as condições que forem então estipuladas
(BRASIL, 1890, art. 20).53

53 O mecanismo de exclusão do Decreto no 528 de 28 de junho de 1890, assinado por Ma-


rechal Deodoro da Fonseca, foi atualizado pelo Decreto-lei 7.967 de 1945, que vigorou
até 1957, e que determinava: “Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade
234 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Na passagem do século XIX para o XX, outros grupos sociais, além das
populações negra e indígena, foram alvo de ódio racial e de uma legislação
segregacionista. É isso que observamos em um trecho do decreto acima,
que diz ser proibida a entrada de “indígenas da Ásia”. O racismo contra os
japoneses no Brasil, acirrado no período da Segunda Guerra Mundial, devi-
do à participação do Japão na guerra ao lado da Itália e da Alemanha, teve
o amparo do governo brasileiro, que dispôs de medidas radicais para conter
o que se convencionou chamar de “Perigo Amarelo”.
Mais de duzentas escolas de japonês no Brasil foram fechadas, e falar a
língua japonesa em público passou a ser proibido, o que foi uma medida ra-
dical tendo em vista que a maioria dos nipônicos no país só falava o japonês.
Jornais exclusivamente em língua japonesa também ficaram proibidos: todo
material impresso precisava ser bilíngue (em português e em japonês) para um
maior controle estatal sobre suas informações. Outras medidas também foram
adotadas contra a população nipônica no Brasil: estavam proibidos de dirigir
automóveis; algumas famílias tiveram seus bens confiscados; viagens só eram
permitidas com ordem governamental; aparelhos de rádio eram apreendidos
para que não ouvissem transmissões em ondas curtas do Japão. Em 1942, a
colônia japonesa, que cultivava pimentas no município de Tomé-Açu, no Pará,
foi transformada em campo de internamento, aos moldes do que existiu nos
EUA, país que confinou mais de 120 mil japoneses e seus descendentes, sem
respaldo jurídico, até o final da Segunda Guerra Mundial. Medida parecida
era apoiada pelo embaixador brasileiro Carlos Martins Pereira e Sousa, que na
época do ocorrido estava em Washington, EUA (TAKEUCHI, 2008).
Não nos esqueçamos de que o racismo contra judeus também teve
adeptos no Brasil durante o século XX. O livro antissemita Protocolos dos
sábios de Sião, uma publicação russa do século XIX, foi publicado duas vezes
no Brasil pelo escritor e membro da Associação Integralista Brasileira Gusta-
vo Barroso. O livro trata de uma suposta conspiração judaica, com o objetivo
de dominar política e economicamente todo o mundo.

de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais


convenientes da sua ascendência europeia” (BRASIL, 1945).
Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 235

Educação, racismo e a questão nacional no Brasil


E qual foi relação entre os processos educativos e a construção desse
ideal de “civilização branca” no Brasil? Foram muitas as relações, pautadas
em legislação que pressupunha uma educação eugênica e higienista. Às
crianças negras, foi-lhes negada a educação durante o século XIX, e quando
puderam finalmente estudar, sua formação foi sensivelmente diferente da-
quela dirigida às crianças brancas, sendo pautada principalmente no ensino
do trabalho braçal, especialmente para o campo.
Ana Maria Gonçalves (2012) descreve o desenho da educação pública no
Brasil, a qual diz ser pensada “de brancos para brancos”. De acordo com a
autora, desde 1834 as províncias brasileiras passaram a ter autonomia para
legislarem sobre instrução escolar elementar, o que levou à homologação
da Lei provincial 13, de 1835, que proibia os escravizados de Minas Gerais de
receberem educação pública. A existência dessa legislação, no entanto, não
trazia novidades para o contexto da época, em que os senhores raramente
permitiam a escolarização dos escravizados.
A primeira vez de que se tem notícias sobre o incentivo à escolarização
da população africana e afro-brasileira no Brasil é no período de discussões
em torno da Lei do Ventre Livre, em 1871, quando parcela dos proprietários
rurais, temendo o fim da escravidão, achava indispensável a existência no
Brasil de um sistema de educação capaz de integrar os filhos livres de mães
escravizadas aos moldes de uma sociedade de trabalhadores livres. Ou seja,
o modelo de educação pensado era absolutamente voltado para a formação
de mão de obra especialmente para a lavoura, garantindo dessa maneira
a manutenção da hierarquia no trabalho, mesmo com o fim da escravidão.
Chega a ser, inclusive, difícil manter a descrição desse modelo como sendo
o de um “sistema de educação”, pois ele não tinha nenhum potencial trans-
formador da realidade da população afro-brasileira (GONÇALVES, 2012, p.
5).
De acordo com Gonçalves, as crianças nascidas sob a Lei do Ventre Livre
ficariam sob a responsabilidade dos donos de suas mães até os oito anos de
idade, quando então poderiam ser entregues ao Estado, mediante indeni-
zação de seiscentos mil réis, ou mantidos pelos senhores, trabalhando até
a idade de 21 anos. Nesse período até os 21 anos de idade, os “senhores
de escravos” deveriam “sempre que possível” proporcionar-lhes instrução
elementar, e isso é importante, porque foi uma brecha na lei conseguida
pelos agricultores (GONÇALVES, 2012, p. 5-6).
236 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Os órgãos do Estado, como o Ministério da Agricultura, fizeram cálculos


para prever o número de crianças que ficaria sob sua responsabilidade para
receber a referida “formação de trabalhadores braçais”. Foram firmados
contratos com vários agrônomos, para que fundassem estabelecimentos
que ensinariam essas crianças a trabalharem na terra e com instituições reli-
giosas que já atendiam órfãos. As previsões apontavam que cerca de 4.000
crianças seriam entregues ao Estado, mas, qual foi a surpresa, apenas 113
crianças de todo o Brasil chegaram ao governo por meio dessa medida.
Ou seja, a realidade mostrou o quão era difícil para os proprietários rurais
abandonarem o tradicional modelo da escravidão. Esses proprietários esco-
lheram ficar com as crianças, trabalhando até os 21 anos de idade, para as quais
deveriam oferecer formação educacional “sempre que possível”, não pagan-
do, dessa maneira, as taxas de matrícula cobradas no sistema proposto pelo
Estado. Perceberam também que seria mais lucrativo ganhar dinheiro por
meio da gravidez das escravizadas, pois, alugando-as como amas de leite,
isso renderia “aos donos” cerca de seiscentos mil réis anuais, exatamente a
mesma quantia que o governo pagaria de indenização caso ficasse com as
crianças (GONÇALVES, 2012, p. 5). Outro dado lamentável é que nenhuma
criança no Brasil se beneficiou da Lei do Ventre Livre, pois nenhuma chegou
a completar os 21 anos de idade antes da promulgação da Lei Áurea.
A educação, nas primeiras décadas do século XX, se transforma em uma
ferramenta importante para o desenvolvimento e a divulgação dos ideais
eugênicos, com o intuito de embranquecer a população brasileira e, por-
tanto, de apagar as referências físicas e culturais de indígenas e negros. A
partir da educação, era possível identificar e classificar os diferentes grupos
étnico-raciais, para os quais deveriam ser construídas medidas educativas
específicas, sempre buscando a “elevação da raça”.
Um dos exemplos é a Escola Normal de São Paulo, que em 1914 cria um
laboratório de pedagogia experimental para realizar testes eugênicos em
crianças, individualmente. Entre os elementos testados estavam: compleição
física; tipo racial; traços morais; ambiente familiar; e traços de hereditarieda-
de. Os resultados dos testes eram registrados na Carteira Biográfica Escolar,
e as crianças, ao final do processo, eram caracterizadas em um dos três tipos:
normalidade, anormalidade ou degenerescência (CARVALHO, 1997, p. 273).
Jerry Dávila (2006) realizou um minucioso estudo no qual analisou a in-
terferência dos ideais eugênicos nas políticas educacionais brasileiras no
período de 1917 a 1945. Sua pesquisa se pautou em documentos da época,
Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 237

depoimentos, fotografias, artigos de jornais e outros materiais, tanto brasi-


leiros quanto internacionais. Em seu trabalho, o autor mostra que a política
educacional brasileira daquele período, executada sob o pressuposto de
que algumas desigualdades sociais deveriam ser sanadas, principalmente as
que acometiam pessoas pobres e não negras, era na verdade fundamentada
na eugenia lamarckiana.54
A educação, logo no início da década de 1930, passa a ser percebida
como o principal meio de desenvolvimento do país, e um dos objetivos colo-
cados na época era o de levar a escolarização para os lugares mais remotos
do Brasil. Vale destacar que nessa década o campo da educação era tratado
sempre em relação com premissas biológicas e sanitaristas, o que pode ser
observado pela união de Saúde e Educação em um mesmo ministério. Im-
buídas de um discurso de democratização e universalização da educação, as
medidas estatais desse período tinham como meta a aculturação de negros,
indígenas e pobres. São medidas em que inclusive os indivíduos conside-
rados “brancos” são extremamente racializados, explicados e resumidos
biologicamente.

54 De acordo com Tatiane Consentino Rodrigues (2011), “um dos atrativos do lamarckismo
deve-se ao fato de que, por focar na hereditariedade, esta perspectiva era considerada
intrinsecamente antirracista, o que a colocava em harmonia com o ideal de unidade na
diversidade postulado na concepção de democracia racial” (RODRIGUES, 2011, p. 84).
238 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Figura 6 Criança premiada como o Bebê Eugênico; ilustração do trabalho "A influência
da educação sanitária na redução da mortalidade infantil", apresentado no congresso
por Maria Antonieta de Castro (fotografia de Adenir F. Carvalho; acervo Arquivo de
Antropologia Física, Museu Nacional/URFJ).

O marco do período foi um movimento intelectual que acabou dando


origem ao documento conhecido como o Manifesto dos Pioneiros da Escola
Nova, redigido em 1932 por vários artistas, jornalistas e intelectuais da época,
tais como Anísio Teixeira, Júlio de Mesquita Filho, Cecília Meireles, Roquete
Pinto, Fernando de Azevedo e Lourenço Filho. O manifesto se difundiu como
um levante pela educação pública, laica, para todas as classes sociais, e pela
responsabilização do Estado para a expansão das instituições escolares e
pela reforma do ensino. No entanto, buscava-se também uma uniformização
das pessoas por meio de uma educação que os fizesse aderir a princípios e
modos de vida “culturalmente brancos”, “mediante a ação biológica e fun-
cional [...] elevando ao máximo o desenvolvimento dos indivíduos dentro de
suas aptidões naturais e selecionando os mais capazes” (AZEVEDO, 1932).55
A eugenia se torna princípio constitucional ao ser incluía na Constituição
Federal Brasileira de 1934, artigo 138, com a seguinte redação: “Incumbe à

55 Disponível em: <http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/heb07a.htm>. Acesso em: 08 abr. 2014.


Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 239

União, aos Estados e aos Municípios nos termos das leis respectivas [...] b)
estimular a educação eugênica [...] g) cuidar da higiene mental e incentivar a
luta contra os venenos sociais”.
Entre os constituintes havia muitos médicos, entre eles Antônio Carlos
Pacheco e Silva, que argumentava pela “melhoria racial” dizendo que “há
um esforço continuado para se obterem melhores cavalos, suínos, caprinos,
enquanto se recebem as correntes imigratórias sem uma seleção individual
dos imigrantes, desprezando os mais elementares preceitos indispensáveis
à defesa da raça” (VILLA, 2011, p. 55). Um dos membros constituintes, Xavier
Oliveira, defendeu a inclusão do assunto ao texto constitucional dizendo:

De orientais poucos assimiláveis, bastam no Brasil os cinco milhões que


somos, os nordestinos e planaltinos de Minas, Mato Grosso e Goiás,
sem falar dos autóctones da Amazônia, os quais quatro séculos de
civilização passaram indiferentes à sua inferioridade patenteada numa
decadência incontestável, que marcha para uma extinção talvez não
remota (VILLA, 2011, p. 54-55).

Em 1938, Gustavo Capanema, então Ministro da Educação e Saúde,


indagou a cientistas e intelectuais nacionalistas como seria o “homem brasi-
leiro”. De acordo com Jerry Dávila (2006), um impasse havia se instalado em
função das concepções arquitetônicas do prédio Ministério da Educação e
Saúde e a escultura produzida por Celso Antônio sobre o Homem Brasileiro.
Assim, é que em Dávila lê-se:

A estátua do Homem Brasileiro deveria completar a alegoria mostrando


que a educação pública tornaria os brasileiros brancos e fortes, dignos de
seu trabalho futuro. Segundo Capanema, “o edifício e a estátua se com-
pletarão, de maneira exata e necessária. Entretanto, a figura do Homem
Brasileiro que o escultor Celso Antônio extraiu da pedra representava
tudo o que Capanema esperava que o Brasil deixasse para trás. A figura
era um caboclo [...] de raça mestiça [...] Oliveira Viana, Roquette Pinto e
Rocha Vaz, assim como a comunidade científica, científico-social e mé-
dica como um todo, confiavam no futuro branco do país e no papel da
educação e da saúde pública em sua criação (DÁVILA, 2006, p. 48-50).

O desejo de “aperfeiçoamento eugênico da raça” estava nesse período


explicitado nas comissões e nos programas governamentais de saúde e edu-
cação, como, por exemplo, na Comissão de Ensino Primário do Ministério
240 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

da Educação (instituída em 8 de novembro de 1939), que listou a prática


eugênica entre seus quatro objetivos. As outras três metas eram: “disciplina
social, defesa nacional e aumento da produtividade” (DÁVILA, 2006, p. 21).
O racismo no Brasil se deu de forma articulada com o preconceito de
gênero. O Plano Nacional de Educação de 1937 (produzido na época de
atuação do Ministro de Educação Gustavo Capanema) propõe um currículo
de ensino médio específico para meninas de 12 a 18 anos, a fim de prepará-
las para a vida doméstica. Capanema idealizou o Estatuto da Família, que
determinava em seus artigos 13 e 14 que “às mulheres será dada uma edu-
cação que as torne afeiçoadas ao casamento, desejosas da maternidade,
competentes para a criação dos fihos e capazes da administração da casa
[...]. Não poderão as mulheres ser admitidas senão aos empregos próprios
da natureza feminina e dentro dos estritos limites da convivência familiar”
(COSTA, 2008, p. 249-250).56
De acordo com Dávila (2006), o Estado Novo inaugurou um período de
maior visibilidade, de expansão e de consolidação do nacionalismo eugêni-
co iniciado em décadas anteriores. No caso do ensino público do Estado do
Rio de Janeiro, por exemplo, este se tornou mais paternalista e a categoria
raça ganhou evidência, demonstrando com mais força suas relações com a
educação e o nacionalismo (DÁVILA, 2006, p. 245). Na esteira da educação
nacionalista, a música de Villa-Lobos ocupou espaço importante. Após a
proclamação do Estado Novo,57 os eventos comemorativos de culto à nação
e à personalidade de Getúlio Vargas se tornaram mais frequentes. O pro-
grama musical de Villa-Lobos, voltado especialmente para a formação edu-
cacional de crianças e adolescentes, era considerado por ele mesmo como

56 No caso das mulheres afro-brasileiras, estudos recentes confirmam que elas formam
o grupo social mais subalternizado – em comparação com homens brancos, mulheres
brancas e homens afro-brasileiros –, sofrendo um acúmulo de discriminações raciais e
de gênero (PAIXÃO et al., 2010).
57 A Constituição Federal de 1937, conhecida como a Constituição Polaca, pelas semelhan-
ças com a Constituição da Polônia, igualmente de perfil fascista, significou um retrocesso
em termos de direitos sociais e políticos se comparada com a Constituição Federal de
1934, a qual teve dois lados: de um deles, a população teve baixíssima ou nula participa-
ção em sua construção, além de ser a constituição da “educação eugênica”; de outro, o
texto constitucional reconheceu as associações profissionais, os sindicatos, criou a Justiça
do Trabalho e a Justiça Eleitoral, além de estender o direito ao voto às mulheres e a
todos(as) os(as) maiores de 18 anos de idade. Com a Constituição Federal de 1937, a au-
tonomia sindical e partidária foi liquidada, os movimentos sociais foram censurados pelo
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e foi criada a figura dos interventores,
nomeados por Vargas, para governarem os estados (DO BEM, 2006, p. 1146).
Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 241

um instrumento de aculturação europeia de estudantes negros, “mestiços”


e indígenas.
O maestro planejava criar uma nova estética nacional que fosse, entre
outros aspectos, hostil aos aspectos culturais de origem africana e indíge-
na, e, quando os usava, fazia de maneira com que fossem retratados como
folclore, vestígios do passado que seriam resgatados de forma romantizada.
De acordo com Dávila, “seu programa musical [de Villa-Lobos] era uma ale-
goria educacional, disciplinar e nacionalista da jornada que se afastava da
negritude, passava pela mistura de raças e chegava à brancura” (DÁVILA,
2006, p. 249).
A defesa da miscigenação e a busca pelo branqueamento do país signi-
ficaram, segundo Guimarães (2001), a institucionalização da desmemória das
origens étnico-raciais, ou seja, por um lado, a imagem de Portugal deveria
ser afastada, pois lembrava a “subordinação” do Brasil com relação a ele; por
outro, a imagem “servil” da escravidão deveria ser apagada com o branque-
amento da população, e a criação sobre o indígena “primitivo” e “selvagem”
deveria ser substituída agora pela imagem romantizada dos guerreiros. Isso
significa que afro-brasileiros e indígenas são aceitos, não como pessoas, mas
como “marcos da brasilidade” (GUIMARÃES, 2001, p. 387).
Ronaldo Sales Jr. (2006) também contribui com o debate trazendo uma
importante análise sobre o mito da democracia racial pautado na figura do
mestiço. De acordo com o autor, a dita cordialidade, que em nada se parece
com gentileza, se realiza no cotidiano de forma muito violenta, reproduzindo
as relações de poder em ações e falas informais, utilizando-se de piadas,
comparações que são anunciadas como “inocentes”, ou apelidos que su-
bestimam indígenas e negros. Essa suposta cordialidade orienta tanto as
vítimas do racismo quanto os racistas a se relacionarem a partir de um duplo
pacto de silêncio: de um lado, os discriminadores limitam suas falas para não
exporem a cor ou raça enquanto um critério utilizado na organização de suas
condutas; de outro lado, os discriminados que expuserem a dor sofrida pelo
racismo são tachados como sendo eles próprios os discriminadores. Mais do
que isso, salienta o autor, o discurso de que viveríamos em uma democracia
racial é uma forma de deslegitimação das lutas por emancipação, que pas-
sam a ser chamadas de “conflitos sociais” (SALES JR., 2006, p. 230-231).
Nessa lógica, a população afro-brasileira rotineiramente é “lembrada”
de que, se vive em piores condições de vida, isso seria resultado da falta
de iniciativa individual. Ou seja, em determinados momentos é conveniente
242 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

caracterizar os afro-brasileiros enquanto mestiços; em outros, são “levemen-


te” retirados para fora das margens da mestiçagem, sendo diferenciados dos
demais e responsabilizados pelas desigualdades sentidas dentro da nação,
esta que teria dado todas as condições possíveis para seu desenvolvimento
a partir dos seus méritos individuais.
A violenta conquista colonial não se dá por meio de uma simples e total
lealdade, união ou identificação simbólica (HALL, 2006, p. 59). Antes disso,
todo o processo de colonização se dá em meio a muita resistência, o que
no Brasil é facilmente exemplificado pelo caso do Quilombo dos Palmares,
cujos primeiros registros de sua existência remontam ao ano de 1597. O qui-
lombo existiu até 1695, ano em que foi destruído fisicamente pelas forças
oficiais. Outras formas de resistência negra ao racismo foram a Revolta dos
Malês (1835) e a Revolta da Chibata (1910). Muitos outros capítulos da históri-
ca brasileira têm nas relações étnico-raciais alguns de seus fundamentos. No
entanto, esse aspecto não é relatado pela historiografia oficial com a devida
atenção, sendo subestimado em sua importância.

A construção de discursos racializados


Os discursos racializados são aqueles que buscam “colar” representa-
ções sociais em indivíduos ou em grupos sociais, de tal maneira que essas
criações quase se parecem naturais. São falas, imagens e ações que buscam
naturalizar estigmas sociais.
A racialização pode ser percebida em diversos momentos do nosso dia
a dia:
• Através do comercial de cerveja, que sexualiza a mulher, diminuindo-a
explicando-a apenas por meio do seu corpo;
• Nos discursos clássicos de todo carnaval carioca sobre a pretensa “faci-
lidade” dos negros para sambar, se comparada com as pessoas brancas;
• Nos programas de humor que satirizam a população negra a partir de
alguns estereótipos, como a fala coloquial, a pobreza, as gírias, a dita
“malandragem” nas relações, os “desvios de conduta”;
• Nas salas de aula, quando crianças negras são tratadas como “menos
capazes”, e muitas vezes esquecidas no fundo da sala de aula, como se
não “valesse a pena” o esforço de ensiná-las.
• Na pretensa limitação das possibilidades intelectuais e artísticas da
população negra: geralmente, negros não são relacionados ao que se
Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 243

convencionou chamar de “música erudita”, mas há uma relação imediata com


instrumentos de percussão e ritmos “primitivos”, por exemplo.

Várias dessas falas, imagens e reproduções são adaptações bastante


fiéis aos discursos do período colonial. E por que ainda ganham destaque
nos dias atuais? Por que, de um modo geral, essas imagens não causam es-
tranheza ou repulsa em parcela da sociedade? Por que aderimos com tanta
facilidade a esses discursos?

Figura 7 Campanha publicitária de cerveja.

Figura 8 À esquerda, um personagem de programa humorístico estadunidense,


apresentando-se ao estilo black face, gênero reconhecidamente racista. À direita, a
personagem Adelaine, do programa humorístico Zorra Total, uma adaptação do estilo
black face, que no geral não é imediatamente reconhecida como uma figura racista.
244 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

O debate sobre o racismo na história brasileira nos leva a uma discussão


mais hermenêutica sobre como se dão as relações raciais nos dias atuais: se
ainda muitas pessoas afirmam que vivemos em um país livre do racismo, a
realidade não nos mostra isso.
Sobre esse assunto, João Feres Júnior (2004) faz um apontamento sim-
ples e revelador, lembrando-nos de que na linguagem cotidiana existem
muitas expressões pejorativas sendo utilizadas contra pessoas negras, mas
o mesmo não acontece contra as pessoas brancas. Ou seja, o racismo que
vemos no dia a dia não é um elemento de um Brasil “brincalhão” e “extro-
vertido”, imagem essa muito difundida aqui e fora do país. Se assim fosse,
haveria uma proporção entre as “piadas” contra ambos os grupos. Se isso
não acontece, é porque no Brasil a brincadeira e a diversão são pautadas
pelo racismo (FEREZ JR., 2004, p. 302).
Ducrot (1987) nos informa que o não dito é uma forma de “dizer alguma
coisa sem, contudo, aceitar a responsabilidade por tê-la dito, o que, em ou-
tras palavras, resultaria em beneficiar-se da eficácia da fala e da inocência
do silêncio” (DUCROT, 1987, p. 20). Dessa maneira, a responsabilidade se
transfere totalmente para o ouvinte: se ele está se sentindo ofendido com
uma piada, o problema é que ele está procurando maldade na brincadeira.
Então, se a piada sobre negros for vista por uma pessoa negra como mensa-
gem racista, a “sugestão” que se segue é que ele não a leve a sério, ou pior,
que as mensagens foram “mal compreendidas”.
O esforço deve ser, portanto, o de diferenciar o mal dito do mal-entendi-
do, pois sempre que alguém faz uma piada preconceituosa, logo de partida
sabe que se trata de algo que pode humilhar ou ofender. Mas no momento
em que alguém aponta para o emissor a presença de preconceito em sua
fala, uma das respostas mais comuns é: “Nossa, mas eu não tinha a intenção!
Fui mal compreendido”. O resultado prático é que o assunto se dá por en-
cerrado ali, e, por consequência, crimes de preconceito e de injúria são facil-
mente transfigurados e passam a ser qualificados enquanto mal-entendidos
ou brincadeiras.
As piadas são uma das piores ferramentas de perpetuação de precon-
ceitos e discriminações, uma vez que são discursos disfarçados de inocência,
como se fossem lançados com a melhor das boas intenções: a de fazer rir, a
de descontrair. E é dessa maneira que essa modalidade de discurso ganha
terreno. Normalmente, o raciocínio de quem ri de uma piada machista, ho-
mofóbica ou racista é o seguinte: “Se está me fazendo rir, que mal tem? É
Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 245

divertido, então não quero perder a chance de rir, fazendo críticas chatas”.
Ou então, mesmo se incomodando com as piadas contadas em um grupo
de amigos, há a tendência de se manter na roda e rir junto, pois, do contrá-
rio, “seria o chato do grupo”.
Freud já discutiu esse assunto. De acordo com ele, tendemos a não cri-
ticar o que nos diverte, o que seria um desperdício e uma anulação da fonte
de um prazer. Por isso, há uma transferência de valor: atribuímos benefício à
mensagem inscrita na piada quando a forma como foi exposta nos agrada.
Freud chamou essa inversão de “princípio da confusão das fontes de prazer”
(FREUD, 1996).
Uma característica fundamental de qualquer piada é que ela é enuncia-
da como se fosse em “terceira pessoa”, fazendo com que o enunciador se
retire de qualquer responsabilidade do que diz. Afinal, “alguém disse isso
antes de mim, eu estou só reproduzindo”.
Estamos discutindo, portanto, que o racismo pode se apresentar de for-
ma violenta, direta, mas também de maneira “abrandada”, escondida por
detrás de figuras de linguagem. Enquanto educadores(as), esse debate é de
especial importância, uma vez que essa apresentação do racismo é a mais
presente no Brasil, em que algumas pessoas ainda acreditam no “mito da
democracia racial”. Trata-se, portanto, de um racismo travestido de brinca-
deiras, piadas e trocadilhos.
Ronaldo Sales Jr. (2006, p. 241) nos auxilia muito quando exemplifica as
várias figuras de linguagem racistas, que não se resumem em xingamentos,
mas também se estendem a “afagos” e a comparações aparentemente elo-
giosas. De acordo com o autor, alguns exemplos de uso figurado de conte-
údos raciais são:
• Metáforas: “macaco”; “piche”; “cabelo bombril”; “dia de branco”; ou,
utilizando-se de um exemplo atual, o arremesso de banana contra joga-
dores negros em estágios de futebol.
• Metonímias: “aquele escuro”; “aquele preto”, “aquele negro”, que são
palavras que substituem os nomes originais das pessoas, sem descre-
vem os sujeitos com precisão.
• Eufemismos: “boa aparência”; “moreno”; “pessoa de cor”; que é a subs-
tituição de uma palavra por outra mais “cortês”.
• Ironias: “Só podia ser...”; “Pra variar...”; “Mas como é bonitinho...”.
• Perguntas retóricas: “Desde quando negro é gente?”.
246 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

A essas descrições, o autor também acrescenta os muitos apelidos con-


feridos a pessoas negras: “Pelé”; “Djavan”; “Barack Obama”: raramente, o
enunciador dessas palavras estará se referindo às qualidades artísticas ou
políticas dessas celebridades; muito provavelmente não estará querendo
dizer “você é tão talentoso quanto o Djavan”. São apelidos desrespeitosos,
pois tratam de igualar as pessoas negras, sem levar em consideração suas
particularidades, seus nomes próprios, suas individualidades e trajetórias
específicas (SALES JR., 2006, p. 242).
Destacamos também aquelas frases muito comuns, em que o racista
“pede licença” para proferir seu racismo, sem se considerar como tal: “Não
sou preconceituoso, mas aquele ali fez trabalho de preto”; “Não sou racista,
mas negro na minha família já é demais”.
Quantas vezes nós nos deparamos com essas falas no dia a dia escolar?
Elas estão muito presentes nas conversas das crianças. E quantas vezes co-
meçamos nós mesmos a utilizar esses apelidos de tão “acostumados” que
ficamos com eles? Um esforço interessante é o de desnaturalizar esses dis-
cursos, estranhá-los e refletir junto com os estudantes sobre esses diversos
mecanismos de perpetuação do racismo.
Essa reflexão já foi realizada por Frantz Fanon na década de 1950, em
suas análises sobre como o negro é transformado ora em caricatura, ora
em perigoso, ora em nojo, ora em objeto de desejo. De acordo com ele, a
compreensão dos negros sobre si próprios é construída em terceira pessoa,
ou seja, é o discurso colonial que informa o que é ser negro, quais as caracte-
rísticas do seu povo e quais os motivos pelos quais eles devem se convencer
de que seriam semi-humanos, incompletos. Os elementos utilizados pelos
negros para compreenderem a si próprios e para formarem um esquema
corporal histórico-social são fornecidos por um outro, um outro branco, que
os tece através de muitos mecanismos discursivos. O autor diz que, na ver-
dade, os discursos tentam resumir o negro a uma cor (antes de tudo, sou
um negro) ou ainda em alguém construído não só em terceira pessoa, mas
também em tripla pessoa: “No trem, ao invés de um, deixavam-me dois, três
lugares” (FANON, 2008, p. 105). O autor prossegue:

Sim, nós (os pretos) somos atrasados, simplórios, livres nas nossas mani-
festações. [...] Aliás, nossos homens de letras nos ajudam a vos convencer.
Vossa civilização branca negligencia as riquezas finas, a sensibilidade [...].
Eu me assumia como o poeta do mundo. O branco tinha descoberto
uma poesia que nada tinha de poética [...]. O branco, por um instante
Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 247

baratinado, demonstrou-me que, geneticamente, eu representava um


estágio [...] O branco estava enganado, eu não era um primitivo, nem
tampouco um meio-homem, eu pertencia a uma raça que há dois mil
anos já trabalhava o ouro e a prata [...] (FANON, 2008, p. 116-119).

Figura 9 Gravura do livro infantil Xixi na cama, escrito em 1979 por Drummond
Amorim, com ilustrações de Helder Augusto Waldolato.

A estigmatização da população negra é um exercício de vigilância das


hierarquias, que se dá pela violência física e também simbólica, repercutin-
do sobre o próprio corpo: mutilando-o (cabelo, nariz, lábios); esfolando-o
(embranquecendo socialmente); codificando-o (mediante um mapeamento
científico e estatal sobre seu corpo e dos estigmas sexuais); intimidando-o
(com a violência policial especialmente contra os rapazes afro-brasileiros de
18 a 24 anos de idade); culpabilizando-o (pelo discurso que o coloca como
responsável por suas próprias tragédias); paralisando-o (politicamente);
empobrecendo-o (economicamente); humilhando-o (por meio dos discur-
sos de que o(a) negro(a) seria menos capaz); vigiando-o (“coloque-se no seu
lugar”, “negro atrevido”); adoecendo-o (por meio do descaso médico, da
248 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

assistência tardia ou mal realizada, do descaso contra a gestante negra e a


falta de atenção às doenças que são mais frequentes em população negra,
tais como a anemia falciforme, a hipertensão, o câncer de próstata e alguns
tipos de miomas uterinos).58
Os autores dos chamados Estudos pós-coloniais, tais como o palestino
Edward W. Said, o autor jamaicano Stuart Hall e o indiano Homi Bhabha,
nos ajudam a pensar porque as características “ocidentais” são destacadas
como as grandes referências de cultura, de erudição e de verdade, enquanto
o “não ocidental” seria a ausência, o incompleto, pois, afinal, a história da hu-
manidade seria um processo de ocidentalização paulatina e épica de todo o
mundo. Nesse processo, os ditos “ocidentais” também são estereotipados.
Eles também são fruto de uma construção discursiva, tanto quanto os ditos
“não ocidentais”.

BOX 10

O trabalho teórico e empírico desenvolvido pelos autores dos Estudos


pós-coloniais tem como finalidade problematizar as relações coloniais e suas
consequências. O termo “colonial” refere-se à dominação política, econô-
mica e cultural instaurada por poderes imperiais em outros territórios. Já
o “pós” traz uma dupla significação: por um lado, ele estabelece o recorte
temporal marcado pelas lutas por independência no pós-Segunda Guerra
Mundial; por outro, remonta a um alinhamento com outros movimentos
intelectuais, tais como o pós-modernismo e o pós-estruturalismo, ou seja,
estabelece uma transição crítica para além de discursos conservadores
(CASHMORE, 2000, p. 434). Alguns dos objetivos dos Estudos pós-coloniais
são: a crítica à modernidade como destino último da história; a defesa de
um lugar de enunciação híbrido, portanto, não essencializado; a crítica ao
sujeito das Ciências Sociais; a compreensão das forças discursivas que criam
e estabelecem os limites da representação do que foram e do que são os se-
res humanos subalternizados; as forças de resistência dos grupos subalter-
nizados a esses discursos (CASHMORE, 2000, p. 434; COSTA, 2006, p. 118).

58 Para mais informações, consulte: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/doencas_etnicas.


pdf> e <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_populacao_ne-
gra.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2013.
Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 249

No mundo das artes plásticas, por exemplo, raramente uma arte


Guarani (etnia indígena presente no território brasileiro e em outros países
sul-americanos) é considerada arte, a não ser que esteja exposta em alguma
galeria internacional. Caso contrário, ela é, antes de tudo, um artesanato
para ser vendido a preços módicos. Com isso, não é reconhecida nos livros
de artes, nas aulas de educação artística e não entram nas lembranças das
crianças brasileiras.
Quando observamos os livros que abordam o tema das ciências, perce-
bemos uma constante descrição sobre como elas devem ter surgido: é co-
mum vermos a Grécia Antiga consagrada como o berço das ciências, como
o local de surgimento da astronomia, da matemática, da física: alguns nomes
surgem em meio a essas descrições, tais como Aristóteles, Pitágoras, entre
outros. Guardada a importância que esses homens tiveram na concretiza-
ção das ciências, é necessário não perder de vista que “ciência” é poder,
como nos alerta Michel Foucault (2005). Ou seja, as ciências, para além dos
benefícios que nos proporcionam, foram também, historicamente, formas
de demonstrar e de firmar hierarquias sociais, criando uma divisão entre os
detentores da “verdade”, de um lado, e o povo “leigo”, de outro.
As ciências, por definição, deveriam ser construtos livres de preconcei-
tos, mas não é isso que se percebe, e o caso da trigonometria é bem suges-
tivo: ainda crianças, aprendemos na escola o famoso teorema de Pitágoras,
a respeito das leis dos triângulos e pirâmides. No entanto, muito antes do
nascimento desse famoso grego, os construtores das pirâmides do Egito já
demonstraram ter conhecimentos sobre ângulos.59 O reconhecimento sobre
a descoberta ficou para Pitágoras, e o Egito é um dos países africanos que
mais recebeu esforços no intuito de retirá-lo, ao menos simbolicamente, do
território africano, apagando quaisquer traços negros de sua população, de
suas dinastias e da sua história como um todo. O que se percebe é uma sub-
valorização dos saberes africanos, ou seja, da ciência e dos conhecimentos
desenvolvidos e acumulados pelos povos que compõem o continente.
Nas ciências humanas, observamos ainda outras marcas do racismo: na
linguística brasileira, há o estudo sistemático de idiomas como o inglês, o
português, o espanhol, mas são raros os estudiosos que se dedicam ao es-
tudo dos mais de duzentos idiomas indígenas que existem no Brasil. Ou seja,

59 As pirâmides do Egito datam de 2600 anos a.C., aproximadamente. Quéops, a maior pirâ-
mide do Egito antigo, provavelmente foi construída em torno do ano 2550 a.C. Estima-se
que Pitágoras, o famoso filósofo e matemático grego, nasceu entre 571 a.C. e 572 a.C.
250 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

a ciência ainda carrega fortes traços do domínio colonizador, o que nos pri-
va de conhecer e de valorizar nossas próprias diversidades. Não é possível
compreender a complexidade da ciência sem considerar aspectos históricos
do colonialismo, haja vista que a história, as ciências naturais e físicas foram
escritas sob o ponto de vista dos “conquistadores”, em detrimento das vi-
sões de mundo dos povos colonizados.
No campo da História, por exemplo, conhecemos tantas descrições so-
bre os Impérios Austro-Húngaro, Bizantino, Romano, Otomano, Persa, Babi-
lônico, Português, Britânico, mas são poucos os historiadores no Brasil que
relatam a civilização Kush, localizada no vale do Alto Nilo, que corresponde
ao atual Sudão, por exemplo. Ou, ainda, sobre a civilização Axumita, que
se desenvolveu no século II da era cristã, onde atualmente existe a Etiópia;
além dos Impérios Gana, Mali, Songai, Kanem-Bornu, a Civilização Ioruba, os
Reinos Abomé, Achanti e Zulu, entre tantos outros que existiram e que exis-
tem no continente africano (MUNANGA & GOMES, 2004). Grande parcela
dos estudos a que temos acesso hoje se deve aos esforços não de historia-
dores brasileiros, mas de africanos que aqui residem e fazem ciência, como
é o caso do antropólogo Kabengele Munanga.60
Dessa maneira, o que se compreende é que as ciências precisam ser
“descolonizadas”, e ao recontarmos a história da África, por exemplo, re-
contaremos a história do próprio Brasil e da Europa, uma vez que estes
territórios se ergueram e se mantiveram através da exploração humana e
material realizada no continente africano. Mais do que isso, a memória dos
muitos grupos étnicos africanos, seus conhecimentos filosóficos, técnicos e
científicos foram, no decorrer dos séculos, invisibilizados ou estigmatizados
em detrimento de uma história contada sob a ótica dos colonizadores. Por-
tanto, o esforço em desconstruir o eurocentrismo traz à tona outras histórias
e outras visões de mundo das quais fomos privados de conhecer.
Quando esses conhecimentos passarem a ser compreendidos como um
direito de todos, negado durante séculos, imaginamos que serão possíveis
grandes passos rumo à descolonização dos saberes. Dessa maneira, uma
descolonização da ciência abre espaço para a construção de uma nova con-
cepção de escola e de currículos escolares.

60 Nascido na República Democrática do Congo (antigo Zaire), foi professor de Antropo-


logia na Universidade de São Paulo durante 31 anos e se aposentou compulsoriamente
no mês de junho de 2012.
Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 251

UNIDADE 3
Educação para as relações étnico-raciais: os marcos le-
gais e os resultados de uma década

Figura 10 Capa do livro didático Banzo, tronco & senzala, escrito por Elzi Nascimento
e Elzira Melo Quinta (em março de 2003, dois meses depois da publicação da Lei
10.639/03, o livro é retirado de circulação devido à descaracterização e desumaniza-
ção da população negra no texto e nas ilustrações do material).61

61 A respeito da retirada do livro de circulação, veja o link: <http://www.senadorpaim.com.


br/verDiscursoPrint.php?id=802>. Acesso em: 25 abr. 2014.
252 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Cara professora, caro professor,


Utilizando-nos de legislações brasileiras aprovadas na última década,
relativas à diversidade étnico-racial, realizamos neste item uma breve iden-
tificação de suas principais orientações e uma breve avaliação dos primeiros
desdobramentos das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-raciais e o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Afri-
cana. Sabemos que o quadro educacional é bastante complexo nos dias de
hoje, e o campo da educação para as relações étnico-raciais ainda se es-
trutura em termos de recursos materiais, humanos e financeiros. Mas, ainda
assim, é possível que identifiquemos avanços em relação a um passado re-
cente. Os marcos legais que amparam e justificam ações desta envergadura
podem ser representados por um conjunto de diretrizes que entre 2004 e
2012 alteraram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996).
Estes avanços podem estar relacionados com alguns princípios nortea-
dores que surgem ao longo de cada uma das leis citadas logo no início deste
diálogo. Vejamos:
a ) As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-raciais e o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana
indicam alguns eixos norteadores, dos quais destacamos: definição das
políticas de reparações, de reconhecimento, de valorização e de ações
afirmativas; apontamento dos principais problemas de racismo e discri-
minação enfrentados nas escolas e presentes nos materiais didáticos;
reflexão sobre como construir uma consciência política e histórica da
diversidade; debate acerca do fortalecimento de identidades e de di-
reitos; proposição de ações de combate ao racismo e às discriminações,
apontando as responsabilidades do Estado e das instituições de ensino
no compromisso de implantação das diretrizes.
b ) O Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-raciais e o Ensino de História e Cultu-
ra Afro-brasileira e Africana estabelece, por exemplo, metas de curto, mé-
dio e longo prazos, no intuito de assegurar capacitação dos profissionais
da educação nesta área temática e a construção de materiais didáticos.
c ) As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola
visam, entre outros aspectos: orientar os processos de construção de
instrumentos normativos dos sistemas de ensino, visando garantir a
educação escolar quilombola nas diferentes etapas e modalidades da
educação básica, sendo respeitadas as suas especificidades; assegurar
Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 253

que as escolas quilombolas e as escolas que atendem estudantes oriun-


dos dos territórios quilombolas considerem as práticas socioculturais,
políticas e econômicas das comunidades quilombolas, bem como seus
processos próprios de ensino-aprendizagem e as suas formas de produ-
ção e de conhecimento tecnológico.
d ) Por fim, nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar
Indígena na Educação Básica destacamos a orientação de que elas de-
vem, por exemplo, orientar os processos de construção de instrumentos
normativos dos sistemas de ensino visando tornar a Educação Escolar
Indígena projeto orgânico, articulado e sequenciado de Educação Bá-
sica entre suas diferentes etapas e modalidades, sendo garantidas as
especificidades dos processos educativos indígenas.
Em 2013, ou seja, dez anos depois da aprovação da Lei 10.639/03, foi
publicada a primeira pesquisa nacional sobre os desdobramentos das Di-
retrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais
e o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, dando origem ao
dossiê “Relações étnico-raciais e práticas pedagógicas: resultados da pes-
quisa nacional Práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais
na escola na perspectiva da Lei 10.639/2003”. A pesquisa foi coordenada
pelo Programa de Ações Afirmativas da UFMG e pelo Núcleo de Estudos e
Pesquisas sobre Relações Étnico-raciais e Ações Afirmativas (NERA/CNPq),
em parceria com pesquisadores(as) de vários NEABs, da SECADI/MEC e da
UNESCO no Brasil. Alguns dos resultados apontados pelos pesquisadores
sobre a primeira década de educação para as relações étnico-raciais são os
seguintes:
• As políticas educacionais não têm sido implantadas de forma linear, pois
os processos de mediação são muitos e as redes de ensino, os gestores,
as escolas, os docentes e profissionais da educação, os alunos e seus
familiares, as comunidades e movimentos sociais atuam ativamente em
relação a tais políticas.
• Em determinadas regiões, sistemas de ensino e redes, o processo está
mais avançado, ao passo que caminha lentamente em outros e apresen-
ta descontinuidade em alguns.
• Embora as mudanças observadas não sejam compatíveis com o que a
superação do racismo exige, o caráter emancipatório das normativas
contribui para legitimar práticas antirracistas já existentes, explicita
254 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

divergências, induz à construção de novas práticas, trazendo novos de-


safios para os sistemas, escolas, educadores.
• Não obstante algumas experiências exitosas, a maioria do corpo do-
cente, gestores e funcionários das escolas investigadas carece melhorar
as informações e conhecimentos sobre a Lei 10.639/03 e suas diretrizes,
além de outros documentos de orientação para a educação das relações
étnico-raciais.
• As práticas pedagógicas ainda estão mais focadas no improviso e na
“boa intenção” do que na formação continuada e na pesquisa.
• Ainda há muitas práticas estereotipadas e/ou focadas em dias
comemorativos.
• Muitas práticas auxiliam na sensibilização, na discussão ética do racismo;
no entanto, trazem poucos conhecimentos qualificados sobre a África e
questões afro-brasileiras.
• Falta de referência à lei nos Projetos Pedagógicos das escolas.
• As escolas em que o mito da democracia racial se mostrou mais presente
nos depoimentos colhidos, revelando a sua força enquanto concepção
e imaginário social e pedagógico sobre a diversidade, apresentaram
práticas mais individualizadas, projetos com menor envolvimento do co-
letivo de profissionais e pouco investimento na formação continuada na
perspectiva da Lei e suas Diretrizes. Dessa forma, apresentam níveis mais
fracos de enraizamento e sustentabilidade.
• O desinteresse pelas questões étnico-raciais notado em algumas escolas
não diz respeito apenas às questões do racismo, da discriminação, do
preconceito e do mito da democracia racial. Está relacionado também
ao modo como os(as) educadores(as) lidam com questões mais gerais de
ordem política e pedagógica, por exemplo, formas autoritárias de gestão,
descompromisso com a comunidade, desestímulo à carreira e à condição
do(a) docente, bem como visões políticas conservadoras de maneira geral.
• Precisamos de ferramentas de diagnóstico mais interessantes, de abran-
gência nacional, que possam minimamente observar a qualidade das
atividades que já estão sendo feitas e ouvir os sujeitos envolvidos.
Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais | 255

Considerações finais
Caro(a) colega profissional da educação,
Os esforços que realizamos ao longo deste capítulo buscaram problema-
tizar alguns temas que se apresentam no ambiente escolar e, ainda, causam
algum tipo de confusão. Buscamos dialogar com aspectos que envolvem
a educação para as relações étnico-raciais e que se apresentam em nosso
cotidiano. O percurso realizado por nós enfatizou a população negra, mas
evitamos nos restringir a este grupo social. Processos de racialização, racis-
mo, discriminação e preconceito racial, diferentemente do que alguns ainda
pensam, não afetam apenas grupos sociais específicos.
Vimos que a racialização, ao longo de séculos, ao nomear o Outro o
faz descaracterizando-o e rebaixando a humanidade desta alteridade. As-
sociado ao discurso colonial, este processo esteve na base de genocídios
de ameríndios; sequestro, tráfico e escravização de africanos e asiáticos; e
perseguição em bases racistas de outros povos, como japoneses e judeus.
Ainda hoje é possível identificarmos profundas marcas desta elaboração
desumanizadora quando nos deparamos, em termos simbólicos, com repre-
sentações negativas e estereotipadas de grupos sociais subalternizados; e,
em termos materiais, quando tomamos conhecimento por estatísticas ofi-
ciais, por exemplo, das reais condições de vida de indígenas, negros, mulhe-
res, crianças, gays, lésbicas, imigrantes etc.
Este material se soma a outras iniciativas no campo temático da edu-
cação para as relações étnico-raciais. Ainda que dirigido a profissionais da
educação básica, pode ser apropriado por outros segmentos da sociedade.
O importante, a nosso juízo, é que este texto permita, ao menos, que o(a)
leitor(a) leve consigo algumas interrogações sobre a sociedade brasileira
que se construiu como harmônica, cordial e homogênea.
O que observamos ao longo destes últimos 30 anos é exatamente a re-
visão crítica deste tipo ideal de sociedade. Vivemos tempos em que pululam
aos quatro cantos demandas por direitos, reconhecimento e valorização de
alteridades cuja existência e humanidade até recentemente eram negadas.
Cara professora, caro professor, que esta leitura possa efetivamente
contribuir com o desenvolvimento de suas atividades pedagógicas e para
o surgimento de novas interrogações no interior da Escola. Esta é nossa
mensagem.
256 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

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FIGURAS

Figura 1 Confrontos entre ruralistas e indígenas em torno da demarcação das terras indígenas. À
esquerda, um outdoor em estrada no sul do Estado da Bahia; à direita, um outdoor no Estado do
Espírito Santo, que cita uma empresa de produção de celulose. Fontes: <http://pib.socioambien-
tal.org/pt/noticias?id=131186> e <http://www.midiaindependente.org/pt/red/2006/10/361913.
shtml>. Acesso em: 20 ago. 2014.
Figura 2 À esquerda, um bebê da etnia guarani kaiowá em acampamento às margens de uma ro-
dovia no Estado do Mato Grosso do Sul, aguardando com sua família as decisões dos processos
de demarcação de terras indígenas. À direita, outro acampamento indígena, também no Estado
do Mato Grosso do Sul. Fontes: <http://racismoambiental.net.br/2011/12/uma-tragedia-indige-
na/> e <http://www.survivalinternational.org/fotos/Damiana#5>. Acesso em: 20 ago. 2014.
Figura 3 O ideal de branqueamento da população. Fonte: <http://cean2d.blogspot.com.
br/2010/08/modesto-brocos-redencao-de-ca.html>. Acesso em: 20 ago. 2014.
Figura 4 “Ruim é o racismo”. Fonte: <http://mural.folha.blog.uol.com.br/sul/>. Acesso em: 20
ago. 2014.
Figura 5 A eugenia e a prática de medição de crânios para realizar classificação racial. Fonte:
<http://www.cerebromente.org.br>. Acesso em: 20 ago. 2014.
Figura 6 Criança premiada como o Bebê Eugênico; ilustração do trabalho "A influência da
educação sanitária na redução da mortalidade infantil", apresentado no congresso por Maria
Antonieta de Castro (fotografia de Adenir F. Carvalho; acervo Arquivo de Antropologia Físi-
ca, Museu Nacional/URFJ). Fonte: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid
=S0104-59702009000300012>. Acesso em: 20 ago. 2014.
Figura 7 Campanha publicitária de cerveja. Fonte: <http://pensamentos-negros.blogspot.com.
br/2012/03/e-pelo-corpo-que-se-reconhece.html>. Acesso em: 20 ago. 2014.
Figura 8 À esquerda, um personagem de programa humorístico estadunidense, apresentando-
-se ao estilo black face, gênero reconhecidamente racista. À direita, a personagem Adelaine,
do programa humorístico Zorra Total, uma adaptação do estilo black face, que no geral não
é imediatamente reconhecida como uma figura racista. Fontes: <http://propaganda-history.
blogspot.com.br/2010/12/blackface-racism-or-pop-culture.html> e <http://www.bahianamidia.
com.br/rapper-emicida-protesta-contra-personagem-do-zorra-total/>. Acesso em: 20 ago. 2014.
Figura 9 Gravura do livro infantil Xixi na cama, escrito em 1979 por Drummond
Amorim, com ilustrações de Helder Augusto Waldolato. Fonte: <www.cacimbaodahistoria.blogs-
pot.com.br>. Acesso em: 20 ago. 2014.
Figura 10 Capa do livro didático Banzo, tronco & senzala, escrito por Elzi Nascimento e Elzira
Melo Quinta (em março de 2003, dois meses depois da publicação da Lei 10.639/03, o livro
é retirado de circulação devido à descaracterização e desumanização da população negra no
texto e nas ilustrações do material). Fonte: <http://www.armazemdolivro.com/banzo-tronco-e-
-senzala-_usado-p10292829>. Acesso em: 20 ago. 2014.
Sobre os(as) autores(as)

Anna Paula Vencato


Doutora em Antropologia Cultural (UFRJ), mestre em Antropologia Social
(UFSC) e licenciada em Pedagogia (UDESC). É pesquisadora associada dos
grupos de pesquisa Corpo, Identidade e Subjetivações (UFSCar) e Transgres-
sões – Gênero, Sexualidades, Corpos e Mídias Contemporâneas (UNESP),
professora titular da UNIP e assessora LBT da Secretaria Municipal de Políti-
cas para as Mulheres de São Paulo. Tem atuado em pesquisas, publicações e
eventos nas temáticas de gênero, sexualidades, corporalidades, crossdressing
e diferenças.

Eduardo Name Risk


Psicólogo e bacharel em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciên-
cias e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP)
e mestre em Psicologia pela mesma instituição. Atualmente, é doutorando
do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP-USP, docente do
Centro Universitário UniSEB – Ribeirão Preto-SP e estudante vinculado ao
Grupo de Pesquisa Corpo, Identidades e Subjetivações (UFSCar). E-mail:
<eduardonrisk@gmail.com>.

Fernando de Figueiredo Balieiro


Doutor em Sociologia pela UFSCar e pesquisador vinculado ao Grupo
de Pesquisa Corpo, Identidades e Subjetivações na mesma universidade.
Docente do Centro Universitário UniSEB em Ribeirão Preto-SP, desenvolveu
doutorado sanduíche em Film & Digital Media na University of California,
Santa Cruz, e tem se dedicado a pesquisas sobre cultura, sexualidade e gê-
nero em uma perspectiva queer. E-mail: <fernandofbalieiro@gmail.com>.
Jorge Leite Júnior
Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em So-
ciologia da UFSCar, onde também foi coordenador de tutoria de duas edi-
ções do curso Gênero e Diversidade na Escola. Doutor em Ciências Sociais
pela PUC-SP. Foi duas vezes coordenador de tutoria do curso GDE e trabalha
com os temas de sexualidade, gênero, corpo, riso e entretenimento. E-mail:
<jcabelo@uol.com.br>.

Larissa Pelúcio
Professora de Antropologia na UNESP/Bauru (Departamento de Ciên-
cias Humanas – FAAC) e integra o quadro de docentes do Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais do campus da UNESP/Marília, além
de ser pesquisadora colaboradora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu –
UNICAMP. É doutora em Ciências Sociais pela UFSCar, onde foi coordena-
dora do Módulo Gênero em duas ofertas consecutivas do GDE e autora do
livro Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de
aids (2009). E-mail: <larissapelucio@gmail.com>.

Paulo Alberto dos Santos Vieira


Professor adjunto da Universidade do Estado de Mato Grosso, Campus
Universitário Jane Vanini (Cáceres), onde desenvolve atividades de ensino,
pesquisa e extensão em cursos de graduação e no Programa de Pós-Gra-
duação em Educação. Doutor em Sociologia pelo PPGS/UFSCar, coordena
o Núcleo de Estudos sobre Educação, Gênero, Raça e Alteridade (NEGRA/
PROEC) e é líder do Grupo de Pesquisa sobre Ações Afirmativas e Temas da
Educação (GRAFITE/CNPq). É integrante da Rede Universitas/Br do Obser-
vatório da Educação (OBEDUC) e de grupos de pesquisa no Mato Grosso e
Mato Grosso do Sul que investigam o acesso e a permanência de estudantes
no ensino superior. E-mail: <vieirapas@yahoo.com.br>.

Priscila Martins Medeiros


Professora e atual coordenadora do curso de Ciências Sociais da Uni-
versidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS, campus de Campo
Grande). Doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar), pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da referida
Universidade e coordenadora do Grupo de Estudos sobre Raça e Ações
Afirmativas da UFMS. E-mail: <medeiros.ufms@gmail.com>.

Richard Miskolci
Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em So-
ciologia da UFSCar, além de ter coordenado três edições do curso Gênero
e Diversidade na Escola na mesma universidade. Doutor em Sociologia pela
USP, tem pós-doutorados na área de estudos feministas na Universidade
da Califórnia e na Universidade de Michigan. Seus livros mais recentes são
Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças (2012) e O desejo da nação:
masculinidade e branquitude no Brasil de fins do XIX (2012). E-mail: <ufs-
car7@gmail.com>.

Thamara Moretti Soria Jurado


Supervisora acadêmica do curso de aperfeiçoamento em Gênero e
Diversidade na Escola realizado na UFSCar e doutoranda em sociologia na
mesma universidade. Possui mestrado em Filosofia pela UFSCar (2006) e
graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (1999). E-mail: <thamara.uab@gmail.com>.

Tiago Duque
Doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP, mestre em Sociologia
pela UFSCar e graduado em Ciências Sociais e Ciências Religiosas pela
PUC de Campinas. É professor da Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul – Campus do Pantanal (UFMS-CPAN), onde desenvolve atividades
interdisciplinares de ensino, pesquisa e extensão em vários cursos de gra-
duação, e é professor permanente do Programa de Pós-Graduação em
Educação. Atua com temáticas como gênero, sexualidade e diferenças.
E-mail: <duque_hua@yahoo.com.br>.
Este livro foi impresso em 2014
pelo Departamento de Produção Gráfica – UFSCar.
Relatório Etapa 3 - Curso GDE

Trabalhos realizados no mês de Maio de 2014


Tramitações
E-mails
Inserção no sistema (PROEX)
Arquivamento
Ofícios
Atendimentos telefonicos
Provas
Correios

Trabalhos realizados no mês de Junho de 2014


Tramitações
Ofícios
E-mails
Inserção no sistema (PROEX)
Atendimentos telefonicos
Correios
Arquivamento
Lançamentos Bolsas FNDE
Atendimentos telefonicos
Contato professores

Trabalhos realizados no mês de Julho de 2014


E-mails
Arquivamento
Inserção no sistema (PROEX)
Atendimentos telefonicos
Declaração Alunos
Declaração Tutores
Certificados
Tramitações
Ofícios
Correios
Contatos FAI
Contatos ProAd
Lançamentos Bolsas FNDE
Atendimentos telefonicos
Contato professores

Trabalhos realizados no mês de Agosto de 2014


E-mails
Atendimentos telefonicos
Tramitações
Gráfica
Arquivamento
Ofícios
Contatos ProAd
Correios
Atendimentos telefonicos
Contato FAI
Contato professores
Reuniões
Lançamentos Bolsas FNDE
Relatório Etapa 3 - Curso GDE

lhos realizados no mês de Maio de 2014


3
Resposta a diversos e-mails
Inserção de notas dos alunos
De documentos, ofícios, solicitações
6
Diversos
Impressão e envio de provas aos pólos
Envio de ofícios, provas, documentos e planilha de bolsas

hos realizados no mês de Junho de 2014


5
2
Resposta a diversos e-mails
Inserção de notas dos alunos
Diversos
Envio de livros, planilha de bolsas e documentos (ofícios, certificados)
Documentos, ofícios, solicitações
Envio planilha bolsas FNDE
Diversos
Novo Livro GDE

lhos realizados no mês de Julho de 2014


Resposta a diversos e-mails
Documentos, ofícios, solicitações
Inserção de notas dos alunos
Diversos
Envio declarações aos alunos (via e-mail)
Envio declarações aos tutores presenciasi e virtuais (via e-mail)
Emissão
4
3
Envio de livros, planilha de bolsas e documentos (ofícios, certificados)
relatórios
Mudança de fiscais
Envio planilha bolsas FNDE
Diversos
Novo Livro GDE

hos realizados no mês de Agosto de 2014


Resposta a diversos e-mails
Diversos
Serviços diversos
Impressão de certificados de conclusão do curso
Documentos, ofícios, solicitações
2
Mudança de fiscais
Envio de planilha de bolsas e ofícios
Diversos
Mudança planilha de bolsas
Novo Livro GDE
Reunião coordenação e CAPE
Envio planilha bolsas FNDE
Acesso Usuário: avaexterno Senha: @AvaExt12

GDE – Gênero e Diversidade na Escola


Diferenças - Anna Paula Vencato

GDE: Diferenças - Módulo 2 - Sala 10 (2013) GDE: Diferenças - Módulo 2 - Sala 13 (2013)
GDE: Diferenças - Módulo 2 - Sala 11 (2013) GDE: Diferenças - Módulo 2 - Sala 14 (2013)
GDE: Diferenças - Módulo 2 - Sala 12 (2013)

Gênero - Larissa Pelúcio

GDE: Gênero - Módulo 3 - Sala 10 (2013) GDE: Gênero - Módulo 3 - Sala 13 (2013)
GDE: Gênero - Módulo 3 - Sala 11 (2013) GDE: Gênero - Módulo 3 - Sala 14 (2013)
GDE: Gênero - Módulo 3 - Sala 12 (2013)

Sexualidade e Orientação Sexual - Karla Adriana Martins Bessa

GDE: Sexualidade e Orientação Sexual - Sala 10 (2013) GDE: Sexualidade e Orientação Sexual - Sala 13 (2013)
GDE: Sexualidade e Orientação Sexual - Sala 11 (2013) GDE: Sexualidade e Orientação Sexual - Sala 14 (2013)
GDE: Sexualidade e Orientação Sexual - Sala 12 (2013)

Relações Étnico-Raciais - Paulo Alberto dos Santos Vieira

GDE: Relações Étnico-Raciais - Sala 9 (2013) GDE: Relações Étnico-Raciais - Sala 12 (2013)
GDE: Relações Étnico-Raciais - Sala 10 (2013) GDE: Relações Étnico-Raciais - Sala 13 (2013)
GDE: Relações Étnico-Raciais - Sala 11 (2013) GDE: Relações Étnico-Raciais - Sala 14 (2013)

Implentação Pedagógica de uma abordagem a partir das diferenças - Jorge Leite Junior e Cynthia Cassoni

GDE: Implementação Pedagógica - Sala 1 (2013) GDE: Implementação Pedagógica - Sala 9 (2013)
GDE: Implementação Pedagógica - Sala 2 (2013) GDE: Implementação Pedagógica - Sala 10 (2013)
GDE: Implementação Pedagógica - Sala 3 (2013) GDE: Implementação Pedagógica - Sala 11 (2013)
GDE: Implementação Pedagógica - Sala 4 (2013) GDE: Implementação Pedagógica - Sala 12 (2013)
GDE: Implementação Pedagógica - Sala 5 (2013) GDE: Implementação Pedagógica - Sala 13 (2013)
GDE: Implementação Pedagógica - Sala 6 (2013) GDE: Implementação Pedagógica - Sala 14 (2013)
GDE: Implementação Pedagógica - Sala 7 (2013) GDE: Implementação Pedagógica - Sala 15 (2013)
GDE: Implementação Pedagógica - Sala 8 (2013)
Relatório Etapa 3 - Curso GDE

Trabalhos realizados no mês de Maio de 2014


Tramitações 3
E-mails Resposta a diversos e-mails
Inserção no sistema (PROEX) Inserção de notas dos alunos
Arquivamento De documentos, ofícios, solicitações
Ofícios 6
Atendimentos telefonicos Diversos
Provas Impressão e envio de provas aos pólos
Correios Envio de ofícios, provas, documentos e planilha de bolsas

Trabalhos realizados no mês de Junho de 2014


Tramitações 5
Ofícios 2
E-mails Resposta a diversos e-mails
Inserção no sistema (PROEX) Inserção de notas dos alunos
Atendimentos telefonicos Diversos
Correios Envio de livros, planilha de bolsas e documentos (ofícios, certificados)
Arquivamento Documentos, ofícios, solicitações
Lançamentos Bolsas FNDE Envio planilha bolsas FNDE
Atendimentos telefonicos Diversos
Contato professores Novo Livro GDE

Trabalhos realizados no mês de Julho de 2014


E-mails Resposta a diversos e-mails
Arquivamento Documentos, ofícios, solicitações
Inserção no sistema (PROEX) Inserção de notas dos alunos
Inserção no sistema (PROEX) Inserção Equipe de Trabalho
Atendimentos telefonicos Diversos
Declaração Alunos Envio declarações aos alunos (via e-mail)
Declaração Tutores Envio declarações aos tutores presenciasi e virtuais (via e-mail)
Certificados Emissão
Tramitações 4
Ofícios 3
Correios Envio de livros, planilha de bolsas e documentos (ofícios, certificados)
Contatos FAI relatórios
Contatos ProAd Mudança de fiscais
Lançamentos Bolsas FNDE Envio planilha bolsas FNDE
Atendimentos telefonicos Diversos
Contato professores Novo Livro GDE

Trabalhos realizados no mês de Agosto de 2014


E-mails Resposta a diversos e-mails
Atendimentos telefonicos Diversos
Tramitações Serviços diversos
Gráfica Impressão de certificados de conclusão do curso
Arquivamento Documentos, ofícios, solicitações
Ofícios 2
Contatos ProAd Mudança de fiscais
Inserção no sistema (PROEX) Nova planilha financeira
Correios Envio de planilha de bolsas e ofícios
Atendimentos telefonicos Diversos
Contato FAI Mudança planilha de bolsas
Contato professores Novo Livro GDE
Reuniões Reunião coordenação e CAPE
Lançamentos Bolsas FNDE Envio planilha bolsas FNDE

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