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Resumo Abstract
Esse estudo versa sobre encontros entre a psicologia e This study verses on the meeting of psychology with
o campo das políticas sociais. Objetiva discutir como the social policy area. The objective is to discuss how
psicólogos que atuam em Unidades Básicas de Saúde psychologists that work in the Basic Health Units and in
(UBS) e Centros de Referência de Assistência Social the Social Assistance Reference Centers experience their
(CRAS) vivenciam o cotidiano de suas práticas. Para daily practices. Using the interview and participant ob-
tanto, investigamos os modos de atuar de 13 psicólogos servation methods, we investigated the modes of action
ligados aos serviços indicados por meio de entrevistas e of 13 psychologists involved in these service units. The
da observação participante. Os resultados indicam que results indicate that because these contexts are adverse
por se encontrarem em contextos adversos aos modos to the traditional forms of action, many professionals
tradicionais de atuação, muitos técnicos experimentam experience daily strangeness and discomfort, resulting
cotidianamente estranhamento e mal-estar, frutos da from their encounters with limiting situations of diffi-
vivência de situações limites, de difícil manejo. Além cult management. Furthermore, we observed practices
disso, observamos práticas e vivências marcadas por and experiences that were marked by feelings of com-
sentimentos de compaixão, piedade e pelo ressentimen- passion, pity, and resentment. We consider, finally, that
to. Consideramos, por fim, que o encontro da psicologia the encounter between psychology and social policies
com as políticas sociais exige flexibilidade nos modos requires flexibility in traditional acting modes as well as
tradicionais de atuação e busca de estratégias que con- the pursuit of strategies that consider cultural contexts
siderem as características dos contextos culturais, evi- characteristics, avoiding capture, fatigue and saturation
tando assim processos de captura, cansaço e saturação process that stifle the worker.
que sufocam o trabalhador. Keywords: brazilian psychologist, public health, social
Palavras-chave: psicólogo brasileiro, saúde pública, protection, subjectivity modes
proteção social, modos de subjetivação
Para citar este artículo: Macedo, J.P., Dimenstein, M. (2012). O trabalho dos psicólogos nas políticas sociais no Brasil. Avances en Psicología
Latinoamericana, 30 (1), 182-192.
O foco dessas políticas é, no caso da saúde, neira como organizam saberes, práticas e regimes
priorizar ações com base na territorialização do de verdades sobre as formas como adoecem, como
cuidado, tanto em termos da assistência (ação clí- retomam seus estados de saúde, e como enfrentam
nica) à população-usuária, quanto de vigilância sa- suas dificuldades diárias.
nitária, epidemiológica e sobre o ambiente em que Nesse sentido, consideramos que para atuar no
determinado grupo populacional reside (Campos, campo da saúde e da assistência social (ou demais
2003). E no caso da assistência social, que também políticas) no Brasil se faz necessário, cada vez
se refere a uma política que prioriza ações de base mais, uma redefinição dos processos de trabalho e
territorial, garante ações de vigilância, acompanha- de gestão nesse campo (Benevides, 2005; Dimens-
mento e proteção social de indivíduos, famílias e tein, 2006). Mas, para tanto, é preciso ter clareza,
grupos em situação de vulnerabilidade/risco social implicação e disposição afetiva quanto a operar mo-
e pessoal, por não conseguirem prover seu sustento dos de trabalho sob os pressupostos da ação territo-
dado sua condição de exclusão dos processos pro- rial, em rede e intersetorial. Isso exige por parte dos
dutivos, ou pela a exposição: a) frente à condição profissionais o enfrentamento do modo clássico de
de pobreza, preconceito, exploração, violência e organização dos processos de trabalho (e também
abandono/apartação familiar ou social; b) frente às de como os serviços estão organizados), inserir-se
situações de drogadição, alcoolismo, desemprego no trabalho em equipe e transitar por conhecimen-
prolongado e criminalidade; além dos casos em que tos interdisciplinares, além de circular pelas comu-
grupos populacionais são vitimados por situações nidades (Dimenstein, 2006). Na verdade, tais ações
de desastre e/ou acidentes naturais (MDS, 2004). demandam dos psicólogos a desinstitucionalização
O encontro dos psicólogos com esses campos de práticas pouco permeáveis à complexidade da
trouxe uma série de problematizações para a pro- vida das pessoas, das condições de trabalho e dos
fissão, inclusive sobre a necessidade de se operar cenários onde profissionais e usuários interagem.
mudanças na sua base conceitual e técnica para atu- Por isso, propomos com este estudo conhecer e
ação na saúde pública e na assistência social (Lo- discutir as experiências e desafios dos psicólogos
Bianco, Bastos, Nunes & Silva, 1994; Dimenstein, que trabalham na atenção primária à saúde e na
1998, 2006; Lima, 2005; Benevides, 2005; Campos proteção social básica da assistência social, numa
& Guarido, 2007). Isso implica estarmos alerta realidade específica entre umas das capitais do
com a prática de transposição do modelo clínico estado da federação. Nosso interesse é investigar
tradicional para contextos que pedem outros modos sobre os efeitos produzidos no campo das práticas
de ser trabalhador (Dimenstein, 2006; Benevides, profissionais e no campo subjetivo (ou existencial)
2005). Não raro, as equipes profissionais e a pró- dos psicólogos que atuam em Unidades Básicas de
pria rede de serviços encontram-se permeados por Saúde (UBS) e Centros de Referência da Assistên-
modos de trabalho fragmentados, hierarquizados cia Social (CRAS). Foram objetivos desse estudo:
e burocratizados, ou seja, voltados apenas para a a) pensar como esses profissionais atuam e se rela-
afirmação de práticas reducionistas (Campos & cionam com os contextos em que estão inseridos; b)
Guarido, 2007; Vasconcelos, 2009). Tais saberes identificar o que esses campos têm pedido e exigido
e práticas quase sempre não levam em considera- desses profissionais em termos de saberes, práticas
ção as necessidades sociais de saúde e de proteção e disposição afetiva para neles atuar; c) discutir
social, além de não atuarem na defesa de direitos quais pontos críticos esses profissionais têm lidado
que as populações em suas localidades requerem ao se inserirem nesses espaços.
(Benevides, 2005). Além disso, observam-se situa- Acreditamos que o modo como os profissionais
ções em que os saberes especialistas desqualificam problematizam o cotidiano, a forma como articu-
os projetos ou “ideais” de saúde e de vida (Paim, lam/operam seus campos de saberes e práticas,
2006) construídos, normatizados e reiterados, his- têm implicações diretas na maneira como atuam,
tórico-culturalmente, pela própria comunidade (ou inclusive coletivamente e em rede, especialmente
mais singularmente, por cada indivíduo), na ma- na disposição de produzir interferências naquilo
que está instituído, portanto, cronificado. Assim, é à realização desse estudo, e consentiram por escrito
preciso conhecer as relações de forças que confi- participarem do mesmo.
guram os processos de subjetivação nesses espaços A seguir, organizamos um calendário de visitas
e mais ainda, é preciso mapear aquilo que resiste e para cada serviço, no intuito conhecer e vivenciar
escapa às relações de dominação e sujeição em que o seu funcionamento diário, o cotidiano de trabalho
somos investidos e nos produzimos profissionais. dos técnicos e a realidade social em que atuavam.
Diferentemente de décadas anteriores em que Realizamos observação participante (registro no
o psicólogo brasileiro se concentrava em consul- diário de campo) e entrevistas abertas. Nas en-
tórios/ambulatórios isolados e distantes da realida- trevistas com os psicólogos priorizamos não só a
de e do cotidiano da população, hoje, os serviços descrição da rotina e das atividades desenvolvidas
de base territorial, vinculados à saúde pública e à no serviço, mas principalmente as experiências e/
assistência social, constituem-se como um campo ou situações que marcaram de forma singular suas
consolidado de inserção profissional para nossa atuações nos/entre os serviços e nas comunidades.
profissão. É importante ressaltar que o fato de termos
No Rio Grande do Norte (RN), em especial visitado os espaços de atuação desses técnicos
Natal, nosso campo de pesquisa, a ampliação da e conhecer seu cotidiano profissional, além das
presença da psicologia no campo das políticas experiências advindas do seu encontro com uma
sociais não é diferente. Somente na saúde existem determinada realidade social, isso possibilitou o
371 psicólogos na rede SUS em todo o estado, dos mapeamento não só dos modos de atuar desses
quais 222 estão localizados na capital e, desses, 31 profissionais, mas uma espécie de “sobrevoo” por
atuam em Unidades Básicas/Centros de Saúde.1 Na seus territórios afetivos. Para apresentar os resul-
assistência social, contamos atualmente com 202 tados desse estudo, organizamos como categorias
CRAS em 154 municípios, totalizando 193 psicó- de análise: 1) os modos de atuar e os desafios de ser
logos atuando no nível básico da assistência social trabalhador na atenção básica da saúde e na prote-
em todo o estado. A cidade do Natal conta com 10 ção social básica da assistência social; e 2) os mo-
psicólogos nos cinco CRAS da cidade. dos de se relacionar (e subjetivar) desses psicólogos
em relação aos contextos de trabalho e os pontos
Estratégias metodológicas críticos que têm que lidar ao atuar nesses espaços.
1 Disponível em http://w3.datasus.gov.br/datasus/index.php?area=0203
narrativas dos mesmos, momentos de potência e pesquisador) produzindo efeitos que desalinham
produção de movimentos de diferenciação em suas nossas fronteiras identitárias, visto que a intensi-
práticas técnico-profissionais. Inclusive, tendo al- dade do encontro com essas realidades distintas,
gumas vezes, situações em que os entrevistados se com uma pluralidade de forças que geram inúmeras
reconheceram como geradores de ações coletivas e sensações, imagens, pensamentos e ações, indica
problematizadoras do modo como se posicionavam que não há como sair ileso de tais experiências.
em relação aos entraves institucionais e burocráti- Pormenorizando o movimento de alguns afe-
cos dos serviços em que atuavam. tos que conseguimos cartografar na medida em
De uma maneira geral, os relatos referiam sobre que os técnicos produziram suas narrativas sobre
o quanto o encontro com comunidades, em geral as experiências no serviço, identificamos em rela-
de baixa renda, contribuíam para que eles próprios, ção ao mal-estar, que o mesmo derivava tanto dos
os profissionais entrevistados, questionassem suas questionamentos sobre a falta de suporte teórico-
ferramentas de trabalho e o aparato técnico-teórico -técnico e gerencial para melhor desenvolverem
que utilizavam, especialmente por que se tratava de suas funções, quanto em relação à precarização das
contextos que os colocavam em contato direto com condições de trabalho (questões salariais, falta de
pessoas expostas a um cotidiano de miséria, despro- estrutura física, de capacitação e autonomia para o
teção e violência. Ou seja, contextos que expunham desenvolvimento das atividades). Ou seja, condi-
os profissionais a situação de encontrarem-se face ções que acarretavam entre os técnicos frustrações
a face com seus próprios limites. Assim, os relatos visto não realizarem o seu trabalho da forma ide-
dos entrevistados, ora e outra, nos lançava (eles e alizada. Porém, o que mais chamou nossa atenção
a nós próprios que os escutávamos, muitas vezes) ao longo das entrevistas foram as expressões de
em experiências abismais, que possibilitavam en- inconformação e desconforto dos profissionais em
contrarmos no cotidiano de suas práticas realidades relação à realidade social que atuavam e a clientela
ou posturas tidas como esquisitas ou estranhas, en- que atendiam.
contro com a diferença. Por se tratar , muitas vezes,
de homens e mulheres extraviados/esvaziados de Estava numa atividade grupal e quando vi o público
quaisquer possibilidades (de sobrevivência, eman- o qual estava me dirigindo, me dei conta de como era
cipação, etc.) em suas vidas (Pelbart, 2004), o en- difícil estar ali naquela situação! Como podíamos falar
contro com este universo marcava definitivamente de saúde, se o básico não existia: roupa, casa, comida?
a sensibilidade dos técnicos (e também a nossa ao Nesse dia minha única vontade foi largar tudo e nunca
acompanharmos suas narrativas no momento das mais voltar! (E1-CRAS)
entrevistas).
Nesse aspecto, o cotidiano de trabalho desses Por repetidas vezes, os entrevistados relataram
técnicos, não raro, os impelia a ter que se con- que se sentiam apenas como meros espectadores
frontar com situações de vida dos usuários que os frente ao sofrimento e as demandas sociais de
deixavam profundamente mobilizados e muitas indivíduos e famílias que atendiam. O incômodo
vezes impossibilitados de realizarem intervenções desses técnicos com tal realidade era disparado
eficazes (no sentido de resolutivas). Além disso, por se sentirem impotentes frente a um cenário
deparavam-se constantemente com a falta de reta- que, sem dúvida, os lhes exigia um tipo de atuação
guarda institucional e/ou jurídica em relação aos diferente, ou seja, mais coletiva e política, além de
casos que necessitavam resoluções imediatas. Por problematizadora das condições sociais e das rela-
isso entendemos que atuar no “campo social”, ali ções de forças que se produziam nesses espaços. O
onde a vida se produz, se fabrica e se modula (ou é resultado disso era que muitos desses profissionais
produzida, fabricada e modulada) permanentemen- acabavam resguardando-se apenas em seu saber
te, requer implicação do trabalhador. técnico como forma de manterem-se seguros fren-
Essa experiência incide, sem dúvida, de imedia- te a esse território diverso e problemático que é o
to em nossos territórios subjetivos (inclusive como campo das políticas sociais.
Quando eu cheguei ao cras... É... Foi assustador próprio serviço também não tem como ajudar, enca-
(risos). Porque tem essas coisas novas... Aqui, a gente minho direto! [...] Aqui tudo é muito forte! Não dá
tem que aprender fazendo. Coisas que não fazemos para separar o profissional do pessoal não! Tudo aqui
no consultório e não vemos na faculdade... Trabalhar nos envolve de todos os lados. Temo ficar uma pessoa
aqui é conviver com o estranhamento, é estar dentro indiferente com as outras! (E2 - UBS).
da casa do usuário, lidando com suas questões de
maneira aberta. Ele falando de problemas de drogas Em função disso, muitos desses técnicos recor-
com o filho, estando o garoto ali na tua frente! E você riam, algumas vezes, à “amortização” dos próprios
calada, dentro da casa, vendo tudo aquilo e olhando afetos, especialmente frente aos casos que extrapo-
para as verdadeiras condições de vida daquela gente. lavam suas condições de intervenção.
É difícil! E agora? Atento para as questões do pai, do
filho, da casa, da mãe... Não olho! Atento somente para Nas situações de limite como a pobreza, à dependên-
o psicológico? Não olho! E... [..] Não sei, é difícil viu! cia química e situações de pessoas envolvidas com o
Acho que só aos poucos é que percebemos que isso tráfico, eu bloqueio! São situações em que fico im-
não é só uma experiência profissional, um lugar de possibilitado de propor algo, de ir além do que está
passagem: ‘onde chego aqui’, ‘consigo meu primeiro no nosso script profissional. Travo mesmo! Com isso
emprego’, ‘valorizo meu currículo’, e ‘depois parto eu deixo passar situações/experiências em que possa
para uma coisa melhor’. Aqui é uma experiência de escutar mais, questionar a respeito e insistir mais com
vida! Essa, sem dúvida, é uma experiência que tem me esse usuário, no sentido de mobilizar a unidade de al-
marcado profundamente. Penso nela assim que posso guma forma. Meio a isso ainda tem outro limitante que
para ver o que estou aprendendo com esse lugar, com é o próprio serviço, pois a maneira como os técnicos
as pessoas que aqui circulam, os profissionais, etc. conduzem os atendimentos, e por já agirem meio que
Mas as vezes não a retomo, por medo! (E4 - CRAS). ‘naturalizados’ com essas situações; isso tudo me co-
loca ainda mais, num beco sem saída. É nesse sentido
Nesse sentido, a realidade cotidiana dos profis- que vem a travação mesmo! (E1 - UBS).
sionais se configurava como geradora de grandes
incertezas, seja pelo fato de não terem claro (ou A compaixão e a piedade são outro exemplo de
por não conseguirem delimitar) as fronteiras/papel/ reações muito presentes no cotidiano desses pro-
lugar da psicologia nesses campos, seja por não fissionais em relação às condições de vida dos usu-
conseguirem se reconhecer enquanto trabalhado- ários, especialmente quando se trata de situações
res vinculados às políticas sociais. Tais espaços emergenciais: abrigo, roupas, alimentos, remédios,
de trabalho desterritorializam, sem dúvida, não só proteção e atendimento psicossocial nos casos de
os saberes e práticas profissionais hegemônicas da violência e agilidade no atendimento médico es-
psicologia, como também suas próprias verdades pecializado, etc. Nesses casos, os entrevistados
pessoais e a identidade profissional. relataram sentir-se bastante impotentes quando
A impotência também se evidenciava nos casos têm que desenvolver ações coletivas com vistas a
em que os técnicos se deparavam com situações promoção do auto-cuidado, da auto-gestão e da ar-
em que não sabiam o que fazer frente às demandas ticulação política dessa população para reivindicar
apresentadas, pois ora esbarravam na burocracia direitos. Além disso, reconhecem que a dificuldade
dos serviços ou na falta de estrutura, ora ficavam de organização política não é apenas da população
reféns da falta da rede de apoio de cuidado sócio- usuária, mas deles, enquanto técnicos, que não
-institucional (ações, serviços e programas) que conseguem articulação entre os trabalhadores pa-
atendessem as necessidades da população. ra reivindicarem direitos e melhorias, nem mesmo
em relação às suas condições de trabalho (vínculo
Vou ser sincero com você, tem situação aqui que eu empregatício, salários, carga horária, material para
não olho, eu não agüento olhar, sabe?! Para mim, isso o desenvolvimento das atividades programadas,
é horrível, mas se eu sei que não tenho condições e o dentre outros).
namentos da categoria. Até porque atuar nesses Dimenstein, M. (1998). O psicólogo nas Unidades
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