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O corpo do diabo

entre a cruz e a caldeirinha


SUJEITO E HISTÓRIA
Diretor de coleção: Joel Birman

A coleção Sujeito e História tem caráter interdisciplinar. As obras


nela incluídas estabelecem um diálogo vivo entre a psicanálise e as
demais ciências humanas, buscando compreender o sujeito nas suas
dimensões histórica, política e social.

Títulos já publicados:
Mal-estar na atualidade, Joel Birman
Metamorfoses entre o sexual e o social, Carlos Augusto Peixoto Junior
O prazer e o mal, Giulia Sissa

Próximo título:
Problema de gênero, Judith Butler
Silvia A lexim N unes

O corpo do diabo
entre a cruz
e a caldeirinha
Um estudo sobre a mulher,
o masoquismo e a feminilidade

CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

R io de Jan eiro
2000
C o p y r i g h t © 1 9 9 9 Silvia A lexim N un es

CAPA
Evelyn G rum acb

PROJETO GR ÁFI CO
Evelyn G rum ach e J o ã o d e Souza L eite

P R E P A R A Ç Ã O DE O R I G I N A I S
J o s é M auro Firm o

EDITO RAÇ ÃO ELETRÔNICA


Art Line

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÀO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

N 928c Nunes, Silvia Alexim


O corpo do diabo entre a cruz e a caldeirinha: Um estudo
sobre a mulher, o masoquismo e a feminilidade / Silvia
Alexim Nunes. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000
. - (Sujeito e História)

Inclui bibliografia
ISBN 85-200-0507-1

1. Mulheres - Psicologia. 2. Masoquismo. 3. Feminilidade


(Psicologia). 4 . Sexo (Psicologia). I. Título. II. Título: Um estu­
do sobre a mulher, o masoquismo e a feminilidade, m . Série.

CDD 155.633
9 9 -1239 CDU 1 5 9 .9 -0 5 5 .2

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Impresso no Brasil
2000
Para Carlos Alberto, Júlia e Vicente,
amores que dão sentido à minha vida.

Para meus pais, Max e Nina


Agradecimentos

A Joel Birman, amigo querido, cuja presença afetuosa e estimulante


marcou minha formação desde o início, seja como professor, supervi­
sor ou orientador, enriquecendo-a com seu pensamento rico e fértil, e
que acolheu este projeto, incentivando-o e dando subsídios funda­
mentais para que ele pudesse ser desenvolvido.
A Cristina Bruschine e demais organizadoras do II Programa de
Incentivo e Formação em Pesquisa sobre a Mulher, pelo interesse de­
monstrado por este trabalho.
Aos professores Ana Beatriz Freire, Ana Maria de Toledo Piza
Rudge, Jurandir Freire Costa e Manoel Tosta Berlinck, pela disponi­
bilidade e pelas questões instigantes que levantaram por ocasião da
defesa desta tese.
Às professoras Patrícia Birman e Regina Herzog, pelas críticas e
sugestões motivadoras.
Aos professores do Instituto de Medicina Social da UERJ, que me
receberam em seu programa de doutorado.
À CAPES, pela bolsa de estudos que possibilitou a realização
deste projeto.
À Fundação Carlos Chagas, que, por meio do II Programa de
Incentivo e Formação em Pesquisa sobre a Mulher, proporcionou-me
um importante auxílio.
A Carlos Alberto, pelo amor e pela colaboração preciosa nesse e
em tantos outros momentos de minha vida.
A Júlia e Vicente, que, além de suportarem brilhantemente mi­
nhas ausências enquanto estive ocupada com este trabalho, contribuí­
ram com seu carinho e sua força para que ele chegasse a bom termo.
A Carlos Augusto Nicéas, que, com sua escuta atenta e afetuo­
sa, permitiu-me encontrar meus próprios caminhos nas encruzilha­
das da vida.
■'

.
Sumário

INTRODUÇÃO 11

CAPÍTULO I

O século X V III e a construção da im agem m aterna 17


A NOVA MULHER: DO M A L À VIRTUDE 21
A CONSTRUÇÃO DO M UNDO DE DOIS SEXOS 2 9
A m ulher com o um hom em incom pleto 29
D iferença e com plem entaridade J ú '
A CONSTRUÇÃO DE U M PERFIL FEMININO
CONFLITOS E IMPASSES / (f

CAPÍTULO II
O século X I X entre a bela e a fera 5 Í
A NOVA REDENTORA JÈ6
A form ação da nova m ulher £ 8
M aternidade e paix ão J 4
Fem inilidade: passividade, dor e sacrifício 7 Í
A A N T I-M A D O N A 81

CAPÍTULO III
Psicopatologia da feminilidade 89
O M A SO Q U ISM O96
A vertente fem inina 103
A vertente m asculina 106
h is t e r ia 107

H isteria e diferença de sexos 109


H isteria e degeneração psíquica 116
A batalha contra a histeria 123

CAPITULO IV
Figuras do fem inino 129
FREUD E A QUESTÃO FEMININA 131
A HISTERIA 136
As prim eiras histéricas 142
D ora 146
O ENIGMA FEMININO E A MULHER PERIGOSA 151
A m ulher e o narcisism o 154
A m ulher castrada e a m ãe fálica 156

v
c a p ít u l o

A sexualidade fem inina e seus impasses 169


A ANA TO M IA É O DESTINO? 173
TORNAR-SE MULHER 185

CAPÍTULO VI
M asoqu ism o, fem inino? 205
208
SEXUALIDADE FEMININA E M ASOQUISMO
O m asoquism o fem inino no pensam ento pós-freudiano 212
A m ulher e o m asoquism o 219
A FEMINILIDADE PARA ALÉM D A DIFERENÇA DE SEXOS 2 2 2
Sujeito, pulsão e fem inilidade 223
A constru ção do con ceito de fem inilidade 227

CONCLUSÃO
Entre o m asoquism o e a fem inilidade 235
MADAME BOVARY 237
CASA DE BONECAS 243

BIBLIOGRAFIA 249
Introdução

É bastante difundida, no senso comum, a suposição de que as mulhe­


res teriam maior tendência para o masoquismo. A idéia de que “toda
mulher gosta de apanhar”, como afirmou Nélson Rodrigues, está ain­
da hoje muito presente em nosso imaginário social. A psicanálise, a
meu ver, contribuiu para reforçar esse mito, uma vez que Freud, em
muitos momentos, elaborou uma teoria que reforçou a associação
entre passividade, masoquismo e feminilidade. Suas teses sobre a
mulher e a sexualidade feminina foram decisivas para a divulgação
social da idéia de um masoquismo feminino.
Porém, não foi Freud quem primeiro formulou a hipótese de que
as mulheres seriam dotadas de uma essência masoquista. Essa idéia
ganhou força com a psiquiatria e a sexologia do século X IX e fez par­
te de uma estratégia de regulação do corpo feminino, com vistas a cir­
cunscrever as mulheres à esfera doméstica e à maternidade. Tal
estratégia, iniciada no século XVIII, colocou a mulher e sua sexualida­
de como um assunto privilegiado dos discursos médicos. Nesse con­
texto, a higiene pública, a medicina legal e a psiquiatria ocuparam-se,
de forma bastante ativa, das mulheres e sobre elas teceram pressupos­
tos, teses, normas de comportamento, reforçando velhos mitos e
caucionando um projeto de controle minucioso sobre a sexualidade
feminina.1

1 A esse respeito ver: S. A. Nunes, “A medicina social e a questão feminina”, in


Physis, Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, IM SAJERJ-Relume-Dumará,
1 9 9 1 . “Da medicina social à psicanálise”, in Percursos na história da psicanálise,
Rio de Janeiro, Taurus, 1 9 8 8 .
Durante todo o século X IX , quando tentam fixar a mulher no
casamento e na esfera doméstica, os discursos médicos constroem uma
dupla imagem feminina. De um lado, colocam a mulher como um ser
frágil, sensível e dependente, construindo um modelo de mulher passi­
va e assexuada; por outro, verifica-se o surgimento de uma represen­
tação da mulher como portadora de uma organização física e moral
facilmente degenerável, dotada de um “excesso” sexual a ser constan­
temente controlado. Nessa perspectiva, procurava-se patologizar
qualquer comportamento feminino que não correspondesse ao ideal
de esposa e mãe, tratando-o como “antinatural” e “anti-social” . A
mulher era vista então como alguém sem condições de manter seus
sentimentos e pensamentos sob controle, devido à sua frágil estrutura,
podendo sucumbir a seus estigmas degenerativos, transformando-se
em criminosa, prostituta, louca, histérica ou ninfomaníaca.2
Portadora de uma sexualidade excessiva e com pouca capacidade
moral para manter esse excesso sob controle, a mulher passa a ser tra­
tada como um perigo virtual para a espécie e para a ordem social.
Como fazer para que ela não sucumba a seus aspectos perniciosos?
Seu gozo é permitido, mas de forma débil, dentro do casamento e vol­
tado para a procriação. É preciso então disciplinar essa sexualidade a
fim de minimizar os riscos de degeneração e maximizar sua potencia­
lidade geradora. Esse papel regulador passa a ser assumido pela sexo-
logia e pela psiquiatria do século X IX , que centram fogo sobre os
“aspectos degenerativos femininos”.
Em sua História da sexualidade, Foucault mostra que o sexual é
um elemento dotado de grande instrumentabilidade nas relações de
poder, podendo servir de ponto de apoio e articulação para os mais
diversos projetos políticos. Para ele, a partir do século XVIII observa-
se o surgimento de uma “ciência sexual”, constituída como um con­
junto de disciplinas e técnicas relativas ao comportamento sexual:
pedagogia, medicina, economia, demografia, psiquiatria e psicanálise

2 S. A. Nunes, “M edicina social e regulação do corpo feminino” : tese, R io de


Janeiro, IM S/UERJ, 1 9 8 2 .
seriam seus principais componentes.3 Procura-se, por meio desses
saberes, um adestramento do corpo, que não se daria apenas pela
repressão sexual, mas principalmente pela produção de subjetividade,
pelo incitamento e encadeamento de desejos.
Iniciada em fins do século XVIII, quando os Estados começam a
se preocupar com os problemas da população, com o crescimento
demográfico e sua relação com a economia, a “ciência sexual” conso­
lida-se no século XEX, inscrevendo-se em dois registros: no da biolo­
gia da reprodução e no da medicina voltada para a higiene social —
empregando quatro recursos nessa estratégia: a) codificações das téc­
nicas de “fazer falar” (em continuidade com a idéia de confissão); b)
postulação de uma causalidade sexual difusa e geral (o sexo pode ser
causa de tudo, incluindo a degeneração da raça); c) postulação de um
princípio de clandestinidade ou de latência do sexo (haveria sempre
uma motivação sexual por trás de qualquer ato); d) medicalização do
sexo pela classificação das anomalias, disfunções e moléstias e pela
proposta de terapias.
Segundo Foucault, essas estratégias produziram algo até então
inexistente: um saber que diz o verdadeiro e o falso sobre o sexo e
cujo ponto de partida fora a formulação de regras e técnicas para gerir
e produzir indivíduos por meio do aperfeiçoamento familiar e do con­
trole da população. O que se observa é a colocação do sexo não só
como algo a ser vigiado e regulado, mas sobretudo a instalação de um
processo por meio do qual o indivíduo moderno passou a ser pensado
e a se pensar como ser sexuado.
Foucault descreve uma forma de dominação que age principal­
mente pela constituição dos indivíduos, atrelando-os a determinadas
identidades, localizando a verdade do sujeito em sua própria sexuali­
dade. Nesse contexto, pode-se distinguir quatro grandes conjuntos
estratégicos que desenvolveram dispositivos específicos de saber e
poder a respeito do sexo: pedagogização do sexo das crianças; socia­

3 M . Foucault, História da sexualidade I: A vontade de saber, Rio de Janeiro,


Graal, 1 9 7 7 .
lização das condutas de procriação e regulação demográfica; psiquia-
trização do prazer perverso e histerização do corpo feminino. Fou-
cault identificou, portanto, o corpo feminino como uma das peças
chaves dessa estratégia de poder.4 Tal “histerização do corpo femini­
no” se deu por via de um duplo movimento: de um lado, coloca-se o
corpo feminino como saturado de sexualidade, patologizando-o; de
outro, é reservado à mulher o papel social de gerar e gerir o espaço
familiar. A mãe, com sua imagem negativa de “a mulher nervosa”,
constituiu a forma mais visível dessa histerização. Quando localiza
nesse momento a construção de determinadas formas de exercício da
feminilidade, ele abre espaço para se pensar que o século XVIII foi um
marco no tocante à formulação de diferentes formas de subjetivação
da mulher.
Tendo como referência a hipótese de Foucault de que não existe
um sujeito universal, mas que, ao contrário, o sujeito é historicamen­
te determinado, e com base na idéia de que os modos de subjetivação
variam nos diferentes momentos históricos,s meu objetivo é pensar os
discursos psiquiátrico e psicanalítico sobre a mulher como parte de
uma elaboração de normas de condutas femininas. Procuro enfocar
sobretudo de que maneira Freud faz parte dessa história e qual o lugar
da psicanálise dentro dessa estratégia de elaboração e produção de
formas de subjetivação possíveis para a mulher.
Em sua obra pude localizar três campos diferentes através dos
quais Freud abordou o feminino. A saber: sua concepção sobre a
mulher, suas discussões sobre o desenvolvimento da sexualidade femi­
nina e a formulação de um conceito de feminilidade a partir do qual
ele recoloca toda a problemática da inscrição dos indivíduos, enquan­
to sujeitos sexuados, na cultura ocidental moderna. Nessas três dife­
rentes vertentes procuro levar à reflexão de como se coloca a questão

4 J . Sawicki, Disáplining Foucault, Feminism, Power and the Body, N ova Y o rk ,


Routledge, 1 9 9 1 .
J A esse respeito ver: M . Foucault, História da sexualidade II: O uso dos praze­
res, Rio de Janeiro, G raal, 1 9 8 4 . História da sexualidade III: O cuidado de si,
Rio de Janeiro, G raal, 1 9 8 5 .
do masoquismo para as mulheres em suas elaborações. Em relação à
sua concepção de mulher, pude constatar que Freud foi um legítimo
herdeiro do pensamento do século X IX , concebendo a mulher como
dotada de uma essência que pressupõe passividade e masoquismo. Em
relação ao desenvolvimento da sexualidade feminina, ele articula a
idéia de que a assunção de uma identidade feminina seria correlata de
uma “passivização” dos elementos ativos de sua sexualidade, o que
tornaria o masoquismo uma possibilidade inscrita nesse processo. No
entanto, parece-me que a idéia de feminilidade vai apontar para uma
nova possibilidade de compreensão da questão do masoquismo tanto
em relação aos homens quanto em relação às mulheres. Colocando a
feminilidade como uma experiência primária, como uma espécie de
condição de possibilidade para o processo de subjetivação dos indiví­
duos enquanto sujeitos sexuados, Freud abre espaço para que se pen­
se o masoquismo como a face negra da feminilidade, como uma ten­
tativa desesperada do sujeito de fugir à experiência dolorosa de de­
samparo quando este se torna insuportável.
Essa noção de feminilidade, formulada no final da obra freudia­
na, foi, a meu ver, pouco explorada por seus seguidores, os quais, em
sua maioria, permaneceram sustentando suas hipóteses anteriores —
o que acabou por marcar profundamente o pensamento psicanalítico.
No entanto, foi com essa noção mais tardia que, a meu juízo, Freud
contribuiu de forma radical para que, no âmbito da psicanálise, se
possa considerar a existência de possibilidades múltiplas de inscrição
dos indivíduos na ordem da cultura. Nessa perspectiva, o masoquis­
mo não seria necessariamente uma predestinação feminina e sim um
destino possível para homens e mulheres.
CAPÍTULO I O século XVIII e a construção
da imagem materna
Hm 1762, Jean-Jacques Rousseau escreveu em seu Emílio: “Em não
havendo mãe, não pode haver filho.”1 Para qualquer leitor de nossos
dias, essa frase parece dizer o óbvio. No entanto, nem sempre pensou-
se assim. Até o século XVIII, não se consideravam as mães como pe­
ças chaves para o desenvolvimento e a educação das crianças.
Rousseau foi um dos primeiros pensadores a problematizar a relação
mãe/filho, tratando-a como a ancoragem fundamental da construção
da subjetividade. Partindo do pressuposto de que a natureza humana,
em sua perfeição, estava sendo corrompida por uma civilização errô­
nea, Jean-Jacques conclamou as mulheres a assumirem as funções
ligadas aos cuidados com as crianças e se tornarem verdadeiras mães.
Rousseau não esteve sozinho nessa cruzada. Ao contrário, o sé­
culo XVIII, por via principalmente do pensamento iluminista, fez sur­
gir uma ligação fundamental entre o sexo feminino e a maternidade
inexistente até então. Aparece claramente nas análises históricas que
até aquele momento as mulheres não eram consideradas responsáveis
pela sobrevivência e a educação dos filhos, nem convocadas a assumir
uma função de maternagem. Era possível prescindir das mães para se
criar uma criança. As amas-de-leite, a criadagem, as instituições peda­
gógicas e religiosas, a organização familiar, podiam muito bem dar
conta do recado. E assim o fizeram até o momento em que a questão
da mortalidade e da sobrevivência das crianças começou a se consti­
tuir num problema de Estado.1

1 J.-J. Rousseau, Emílio ou da educação, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, p. 2 2 ,


1992.
O século XVin caracterizou-se como o momento em que a preo­
cupação com a infância se dá de forma privilegiada. Nesse período,
nas camadas burguesas, os sentimentos modernos de infância e de
família já estão estabelecidos e a família nuclear se organiza em tom o
dos filhos,2 Há uma preocupação em se constituir indivíduos sadios e
uma burguesia forte. Diante dos altos índices de mortalidade infantil,
verificados mesmo nos extratos economicamente mais favorecidos da
população, a necessidade de uma nova ordem familiar passa a ganhar
destaque nos discursos de filósofos, médicos e moralistas.
Paralelamente, a necessidade de com bater a disseminação de
doenças e a promiscuidade também faz com que as camadas popula­
res e as famílias pobres sejam alvo de uma preocupação de caráter
sanitário. A localização de focos de contaminação permitiu que uma
estratégia de controle das fontes de perigo, da vagabundagem e da
miséria se ampliasse, não só numa tentativa de garantir a força de tra­
balho, mas também de preservar a saúde da burguesia. O que inquie­
ta o Estado são os indivíduos inúteis.3
A população aparece como um problema econômico e político.
Os governos percebem que não têm de lidar simplesmente com sujei­
tos, mas com uma população com seus fenômenos específicos e suas
variáveis próprias: natalidade, mortalidade, esperança de vida, fecun-
didade, estado de saúde, incidência de doenças, formas de alimenta­
ção, hábitat e formas de sociabilidade.4
A burguesia não suporta mais a pressão da multidão, nem o con­
tato com o povo. Aos poucos retirou-se da vasta sociedade polimorfa
para se organizar à parte, em um meio homogêneo, entre suas famí­
lias fechadas, em habitações previstas para a intimidade, em bairros
novos, protegidos contra toda e qualquer contaminação popular.5

2 P. Ariès, História social da criança e da família, Rio de Janeiro, G uanabara,


p. 2 0 1 ,1 9 7 8 .
3 J . Donzelot, A polícia das famílias, R io de Janeiro, Graal, pp. 2 7 - 2 8 ,1 9 8 0 .
4 M . Foucault, História da sexualidade I: A vontade d e saber, R io de Jan eiro,
G raal, p. 2 8 , 1 9 7 7 .
s P. Ariès, op. cit., p. 2 7 9 .
À medida que a ordem burguesa vai se consolidando, o modelo
familiar nuclear ganha força e se expande. Nessa nova estrutura, a
relação mãe/filho passa a ter uma importância fundamental. Come­
çam a surgir livros e manuais que tratam da criação, da educação e
dos cuidados com a saúde das crianças e que conferem à mulher um
papel privilegiado nessa tarefa. A mulher burguesa vai ser “promovi-
da” ao estatuto de principal responsável pelos cuidados e pela educa­
ção dos filhos. É nesse momento que se dá sua fixação no lugar de
esposa e mãe, pois até então possuía um papel secundário junto aos
filhos, sendo igualada a estes na submissão ao pai.6
Esse movimento não se deu de forma linear e nem de maneira
imediata. A partir do século XVIII e durante todo o século X IX , o
papel da mulher na sociedade e na família burguesa problematiza-se e
as discussões não ocorrem sem muitas contradições e controvérsias.
Nesse processo, a medicina adquire um lugar de destaque e participa
ativamente das discussões sobre a natureza feminina e sua adequação
para as funções maternas. Transformar a mulher em mãe constituiu
um processo que determinou uma reformulação profunda da imagem
do sexo feminino, imagem característica das sociedades européias até
aquele momento, a demandar um apelo à ciência médica, chamada a
colaborar para descrever o que seria uma mulher nessa nova versão.
Nessa perspectiva, uma das estratégias mais claras foi a necessidade
de redefinir um perfil feminino, criando uma imagem de mulher mais
adequada às novas funções.

A NOVA MULHER: DO MAL À VIRTUDE

À medida que a maternidade passa a ser tratada como a função femi­


nina por excelência, pode-se observar que uma nova concepção sobre

6J. Donzelot, op. cit.


o sexo feminino começa a ganhar força. As mulheres, até então pensa­
das como seres imperfeitos, pouco evoluídos, começam a ganhar uma
imagem edulcorada, mais condizente com o ideal de esposa e mãe.
A concepção sobre a mulher que prevalece até o final do século
X V II é aquela herdada do Cristianismo primitivo, que sobreviveu
durante toda a Idade Média e o Renascimento. Para os filósofos e pen­
sadores de então, a mulher era vista como um ser mais carnal, dotada
de sentimentos maléficos e de um desregramento sexual ameaçador.7
O Cristianismo, desde seus primórdios, instituiu uma relação
entre a feminilidade, o sexo e o mal — as mulheres como seres trai­
çoeiros que atiçavam a luxúria e o ciúme, lançando os homens uns
contra os outros. Considerada culpada pela Queda, embora toda a
humanidade seja condenada, a mulher passa a corporificar a corrup­
ção material associada à carne. É tida como mais sexuada e, portan­
to, mais sujeita a sucumbir às tentações.8 Se, por definição, todos os
humanos participam desde o começo do estado de pecado, a mulher é
a causa de tal iniqüidade. Entre os padres da Igreja dos primeiros
séculos do Cristianismo, a carne se torna sexualizada como especifica­
mente feminina.9 Santo Agostinho, por exemplo, ao retornar do
deserto, propunha que só ali a salvação se apresentava aos homens,
porque estariam longe das tentações e especialmente das mulheres,
causa principal de todos os males. Para ele, os homens deviam man­
ter-se afastados delas.10
Essa imagem ameaçadora da mulher sobrevive durante toda a

7 P. Brown, “Antiguidade tardia” : in História da vida privada; d o Im pério


R om ano ao ano mil, São Paulo, Companhia das Letras, 1 9 9 0 .
8 M . Chauí, Repressão sexual, essa nossa (des)conhecida, São Paulo, Brasiliense,
p. 9 8 ,1 9 8 5 .
9 A esse respeito ver: R. H ow ard Bloch, Misoginia medieval, e a invenção d o am or
rom ân tico ociden tal, R io de Ja n e iro , E d ito ra 3 4 , 1 9 9 5 . P. B ro w n , C orp o e
sociedade, o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do Cristianismo, Rio
de Janeiro, Jorge Z ah ar, 1 9 9 0 .
10 J. P. Cattoné, A sexualidade ontem e hoje, São Paulo, C ortez, p. 6 1 ,1 9 9 4 .
Idade Média, ganhando contornos mais nítidos. Uma das crenças uni­
versalmente aceitas era a da inferioridade inerente e insuperável das
mulheres. A mulher era filha e herdeira de Eva, a fonte do Pecado Ori­
ginal e um instrumento do diabo. Era a um só tempo inferior (uma vez
que fora criada da costela de Adão) e diabólica (por ter sucumbido à
serpente). Os padres da Igreja Medieval acreditavam que as mulheres
seriam mais inclinadas à luxúria e aos excessos sexuais.11 y
Nessa época, o clero detém o monopólio do saber e tem a obri­
gação de pensar a humanidade, a sociedade e a Igreja, de as orientar
no plano da salvação e de atribuir, também às mulheres, seu lugar
nessa divina economia. No entanto, e sobretudo antes do século
X III, tudo os distancia das mulheres, entrincheirados como estão no
universo masculino dos claustros, das escolas, das faculdades, onde
desde o século X I os clérigos se preparam para a vida imaculada.
Separados das mulheres por um celibato solidamente constituído, os
padres nada sabem delas. Representam a mulher à distância, na
estranheza e no medo.1112 A mulher é para eles portadora do mal e da
morte, não possuindo nem bondade nem amizade, sendo incapaz
de fortalecer os laços afetivos. Por ser um sexo mais frágil, ela pode
ser facilmente possuída pelo M al, tornando-se nociva, vil e predado-
ra da humanidade.
No turbilhão dessa produção, que fala da mulher como um flage­
lo que se abateu sobre os homens, a única imagem salvadora é a da
Virgem Mãe, que ganha força a partir do século XII. Mas esta é antes
de mais nada um ideal ao qual as mortais não poderiam nunca alcan­
çar. À Eva opõe-se uma Maria inacessível.13
Essa imagem da mulher como uma ameaça perniciosa perdura

11 J . Richards, Sexo, desvio e danação, as minorias na Idade Média, R io de


Jan eiro, Jorge Z ah ar, p. 3 6 ,1 9 9 3 .
12 J . Dalarum, “ Olhares de Clérigos”: in História das mulheres: A Idade Média,
P orto, Edições A frontam ento, p. 2 9 .
13 J . D alarum , op. cit.
# durante toda a Idade Média e tem seu ápice no Renascimento, quan­
do ela é transformada em feiticeira. O estereótipo da feiticeira surgiu
por volta de 1400 e manteve-se, pelo menos no nível de direito crimi­
nal, até o final do século X V II.14 Os inquisidores procuravam fervo­
rosamente as marcas de seu comércio com o Maligno, ao mesmo tem­
po em que tentavam explicar por que elas seriam seres tão corruptí­
veis e conseqüentemente mais propensas à bruxaria. Segundo Kramer
e Sprenger, por exemplo, teria havido uma falha na formação da pri­
meira mulher, por ter sido ela criada a partir de uma costela recurva,
uma costela do peito, cuja curvatura seria contrária à retidão do
homem. Em virtude dessa falha, “a mulher seria um animal imperfei­
to, que decepciona e mente sempre”.15
Para esses inquisidores, as mulheres, devido à sua origem “torta”,
seriam perversas, impressionáveis, influenciáveis, supersticiosas e não
conheceríam a moderação. Nelas, a indisciplina seria um vício natural
e limitar-se-iam a seguir seus impulsos, sem qualquer senso do que é
devido. Donas de uma cobiça carnal insaciável, para satisfazerem sua
lascívia, copulariam até com o demônio, f
As mulheres seriam, portanto, consideradas como “mal maléfi­
co ”, tidas como crédulas, faladoras, coléricas, vingativas, de vontade
e memória fracas, dissimuladas, vaidosas, de pouca inteligência, ava­
rentas, invejosas, difamadoras, vorazes, inconstantes, mentirosas,
beberronas, tagarelas, insaciáveis, prestando-se a todas as torpezas
sexuais. A mulher se constituiría uma criatura que causa medo, na
medida em que sua aliança original com a serpente fez dela, para sem­
pre, a depositária do mal. Quando, no final do século XVII, o crime
de feitiçaria é abandonado, o estatuto cultural da mulher não é por
isso revalorizado. Tratadas como seres quase irracionais, as mulheres

M j . M . Sallman, “A Feiticeira” : in História das mulheres, d o Renascimento à


Idade Moderna, Porto, Edições Afrontamento, p. 5 3 3 .
lí H . Kram er; J . Sprenger, O martelo das feiticeiras: malleus maleficarum, Rio de
Janeiro, Rosa dos Tem pos, p. 1 1 6 ,1 9 9 1 .
são tidas como irresponsáveis e a elas não seria possível confiar o cui­
dado dos filhos. A maternidade ainda não era vista como uma função
adequada ao sexo feminino.
No entanto, apesar da permanência de uma imagem negativa do
sexo feminino, a partir do século X V I e principalmente no século
X W alguma coisa começa a se modificar. Começa-se a questionar a
ligação entre feminilidade e irracionalidade. Aparecem discussões
sobre a pertinência ou não em se propor uma educação para as
mulheres e sobre sua capacidade em assimilá-la.16 Algumas análises
históricas mostram que nesse período acontece um caloroso debate
sobre essa questão. Este debate estaria ligado ao clima de instabilida­
de sócio-política de um lado e às querelas religiosas de outro que, da
Reforma à Contra-Reforma, desenham espaços novos, depois de a
violência e o sangue terem capturado todos em suas malhas. O deba­
te é duro e se estende até as Luzes.
Observa-se um aumento da preocupação com a educação femini­
na, pelo menos no que diz respeito à trilogia ler, escrever e contar.
Alguns moralistas, como Juan Luis Vives e Erasmo, começam a defen­
der a educação das moças. Referindo-se à autoridade das Escrituras
para fundamentar sua doutrina, Lutero, interessado em propagá-la,
advoga que tanto homens como mulheres saibam ler, para que pos­
sam ser capazes de interpretar os ensinamentos da Bíblia e reportar-se
de modo direto a Deus. Cada indivíduo passa a ser responsável por
sua salvação. A questão da responsabilidade e de uma ética individual
é uma das bandeiras contidas em suas propostas. Nesse sentido, a
Reforma é portadora da alfabetização geral e da alfabetização femini­
na. M as, ao mesmo tempo em que faz a apologia da multiplicação das
escolas elementares para moças e rapazes, Lutero fecha o espaço de
saber tolerado para as mulheres, uma vez que a Reforma valoriza um
modelo familiar patriarcal que subjuga a esposa.17 Na concepção de

16 M . Sonnet, “Uma filha para educar”: in História das mulheres, d o


Renascimento à Idade Moderna, Porto, Edições Afrontam ento, p. 1 4 2 .
17 Idem, p. 1 4 3 .
Lutero, a diferenciação dos homens em camadas e vocações, estabele­
cidas por meio do desenvolvimento histórico, era resultado da vonta­
de divina e, conseqüentemente, a permanência de cada um em sua
posição e dentro dos limites que lhes fora assinalado por Deus tornou-
se um dever religioso.18 Nesse sentido, a Reforma colaborou não só
para o processo de individualização dos sujeitos, como também para
uma maior demarcação dos papéis de homens e mulheres.
Paralelamente, as decisões tomadas no Concilio de Trento situam
a reação católica no próprio terreno do adversário e aparecem várias
escolas de doutrina cristã. Os reformadores católicos compreendem
então o papel chave que a mulher pode desempenhar num processo de
reconquista religiosa e moral da sociedade. Em cada uma estaria
adormecida uma potencial educadora que poderia transmitir sua dou­
trina. Essa tomada de consciência confere um impulso decisivo à
generalização da instrução feminina, que deveria compreender pelo
menos a leitura do catecismo.19
Ao mesmo tempo, os reformadores religiosos, os filósofos e inte­
lectuais também se voltam para o problema da educação das mulhe­
res. No século XVII, todos os gêneros literários vão tratar do assunto,
estabelecendo grandes controvérsias. Os salões literários promovem
serões onde essa polêmica frutifica. Algumas mulheres de letras e
influência, como Mademoiselle Scudéry e Madame Sévigné, batem-se
por uma educação e um saber correto para o sexo feminino e advo­
gam, apoiadas por alguns pensadores, a idéia de que os “defeitos”
femininos provêm de sua falta de instrução.
De outro lado, muitos intelectuais criticam os anseios culturais
femininos de forma extremamente mordaz, rejeitando as novas idéias.
Um dos expoentes dessas críticas foi Molière, que através de suas hilá­
rias comédias satirizou as senhoras ilustradas. Em As sabichonas, por

18 M . W eber, “A ética protestante e o espírito do capitalism o” : in O s pensadores,


São Paulo, Abril Cultural, p. 2 1 4 ,1 9 7 4 .
19 M . Sonnet, op. cit., pp. 1 4 2 -1 4 5 .
exemplo, faz troça e ridiculariza as mulheres que se pretendem filó­
sofas ou cientistas, demonstrando sua idéia de que mulher e saber são
incompatíveis:

Não me agradam os seus eternos livros e, tirante um alentado


Plutarco que me serve de suporte para os colarinhos, você deveria
queimar toda essa livraria inútil e deixar a ciência aos doutores da
cidade; tirar-me do sótão aquela enorme luneta que mete medo na
gente, e cem bugiarias cujo aspecto importuna; não andar especulan­
do o que se faz na lua e preocupar-se um pouco mais com o que se faz
em casa, onde vai tudo de pernas para o ar. Não é muito direito e por
muitas razões que uma mulher estude e saiba tantas coisas. Aperfei­
çoar aos bons costumes o espírito dos filhos, governar a casa, trazer
de olho os criados, regular-lhes as despesas com economia, nisso se
lhe dá de cifrar o estudo e a filosofia.20

O debate sobre a igualdade da razão de homens e mulheres torna-


se durante todo o século X V II bastante acalorado. Seria a mulher
dotada do mesmo entendimento que o homem? Para alguns, certa­
mente não: a ciência, a filosofia e todas as altas especulações lhes são
estranhas. Para poucos, como Poullain de la Barre, que tentava de­
monstrar a identidade das aptidões e das funções femininas, certa­
mente que sim. Na Inglaterra, no final do século, Mary Astell escreve
uma defesa da educação feminina e num tom cordial convida as
mulheres a tomarem consciência de suas possibilidades inexploradas
por falta de instrução.21
Poullain de la Barre foi, sem dúvida, um dos grandes divulgadores
desse tipo de pensamento. Servindo-se do princípio cartesiano que afir­
mava a autonomia da Razão em relação ao corpo, tornou possível a

20 M olière, “As sabichonas” : in Teatro escolhido, volume II, São Paulo, D IFEL,
p. 3 9 ,1 9 6 5 .
21 M . Sonnet, op. cit., p. 1 4 7 .
idéia de uma igualdade intelectual para os dois sexos. Poullain pregava
a existência de uma essência única para homens e mulheres, demons­
trando a identidade das aptidões masculinas e femininas. Acreditava
que a Razão era a mesma para toda a espécie humana e que as mulhe­
res não eram inferiores, nem em relação às faculdades mentais nem em
relação à capacidade moral. Ao contrário, ao considerar a inferiorida­
de feminina como um preconceito e advogar direitos iguais para ho­
mens e mulheres, afirmava que a vocação feminina para a maternidade
seria sinal de uma superioridade moral da mulher, que apontaria para
uma maior capacidade de bondade e compaixão. A mulher encarna
para ele os mais altos valores da humanidade: a razão, a paz, o repou­
so e o ju n o r jijic r ia tu r a ^ ^
Mas Poullain ainda faz parte de uma minoria que procura reabi­
litar a imagem do sexo feminino, ligada ao mal, à natureza bruta e à
desordem. No século XVII, ainda é esse o perfil feminino mais difun­
dido. Somente com a virada para o século XVIII, a partir da necessi­
dade política de situar a mulher como guardiã da infância, observa-se
umíTmudança realmenFe sigmfícãtiva na representação do sexo femi­
nino. Afinal, como dar uma responsabilidade tão grande a um ser tão
desqualificado? Ocorre então uma inversão de valores que permite
que atributos como fragilidade, sensibilidade e dependência passem a
ser tratados como positivos. Para que as mulheres pudessem assumir
os encargos da maternidade, foi preciso uma mudança radical em sua
imagem. A mulher não é mais identificada a uma criatura diabólica.
Ela se transforma numa pessoa doce e sensata, de quem se espera co-
medimento e indulgência. Eva cede lugar a Maria. A curiosa, a ambi­
ciosa, a audaciosa, metamorfoseia-se numa criatura modesta e ponde­
rada cujas ambições não ultrapassam o limite do lar.2223 A imperfeição

22 E. Badinter, Emilie, Emilie, 1’Ambition Féminine au X V / //”" ' Siècle, Paris,


Flam marion, pp. 3 1 -3 2 , 1 9 8 3 .
23 E. Badinter, Um am or conquistado, o mito do am or materno, Rio de Janeiro,
N ova Fronteira, p. 1 7 6 ,1 9 8 5 .

28

.1
l
dá lugar à perfeição na medida em que tem início uma nova concep­
ção sobre a diferença entre homens e mulheres.

A CONSTRUÇÃO DO MUNDO DE DOIS SEXOS

A construção de um novo perfil feminino se deu juntamente com uma


modificação profunda na forma de pensar as diferenças entre homens
e mulheres que, a partir do século XVIII, passa a ser vinculada à dife­
rença sexual. O que se observa é um propósito de se atribuir a essa
diferença o estatuto de condição fundante da diferença de gêneros.
O historiador Thomas Laqueur nos mostra que até o século XVII
a diferença entre homens e mulheres não era pensada como uma deri­
vação direta da diferença sexual. Ao contrário, por intermédio de sua
análise, mostra como a vinculação entre diferença sexual e diferença
de gêneros é uma forma completamente nova de se pensar as diferen­
ças entre homens e mulheres, e que só aparece na passagem para o
século XVIII.24

A mulher como um homem incompleto

Da Antiguidade tardia à Renascença, dois sistemas de pensamento


dominam o Ocidente, no que diz respeito à construção da masculini­
dade e da feminilidade: a teoria dos humores aristotélico-galênica e a
descrição judaico-cristã.
No mundo antigo, homens e mulheres eram cuidadosamente co­
locados na grande cadeia dos seres. Suas posições foram definidas re-24

24 T . Laqueur, “O rgasm , Generation, and the Politics o f Reproductive Biology” :


in The Making o f the M odem Body, Sexuality and Society in the Nineteenth
Century, organizado por Catherine Galiagher e Thom as Laqueur. Califórnia,
University o f Califórnia Press, s.d.
lativamente às plantas, aos animais e a Deus. Para os antigos, os ór­
gãos sexuais não eram considerados fatores determinantes do caráter
sexual. A forma de pensar a diferença entre homens e mulheres não
era isolada da forma de pensar o mundo: ela tem seu lugar num vasto
conjunto classificatório.25
De acordo com essa perspectiva, todo corpo terrestre é formado
pela combinação de quatro elementos de base — o fogo, o ar, a terra
e a água. Cada um desses elementos possuía qualidades distintas: o
fogo era quente e seco; o ar era quente e úmido; a terra era fria e seca;
a água era fria e úmida. A cada elemento correspondia um humor: a
bile amarela, o sangue, a bile escura ou melancolia e o catarro. Esses
quatro humores coexistiam em todos os corpos vivos, mas em propor­
ções variáveis.26 O corpo humano também era composto desses qua­
tro humores e uma boa saúde era conseqüência direta do cultivo de
um equilíbrio entre eles. Esses elementos mantinham uma hierarquia
entre si: coisas quentes e secas eram superiores a coisas frias e úmidas.
O temperamento sexual era também definido pela propensão a
ser frio ou quente. Coisas quentes e secas eram consideradas masculi­
nas, como por exemplo o sol, enquanto coisas frias e úmidas eram
consideradas femininas, como por exemplo a lua. Nessa perspectiva,
masculinidade e feminilidade não tinham nada a ver com a constitui­
ção sexual do homem e da mulher, mas eram o resultado de uma mis­
tura específica dos quatro elementos. Para Aristóteles, por exemplo,
masculinidade e feminilidade eram princípios em relação aos quais os
órgãos reprodutores eram meros instrumentos.27 Ele acreditava que o
pai gerava o feto, que todas as características das crianças já estariam
presentes em seu sêmen, por ser o sexo do macho dotado de maior

25 L. Schiebinger, The Mind Has N o Sex, Women in the Origins o f M od em


Science. C am bridge, M assach u setts; L on d res, H arv ard U niversity Press,
p. 161,1991.
25 M . C . Pouchelle, “ L ’H ib ride” : in N ouvelle Revue de Psychanalise, P aris,
Gallimard, n? 7 , p. 5, 1 973.
27 L . Schiebinger, op. cit., p. 162.
calor e o único capaz de esquentar o sangue, transmitindo o calor vital
necessário à formação da vida. O sexo da fêmea seria frio e por isso
não podia ferver o sangue para transmitir a vida. O pai daria a proge-
nitura e a mãe apenas o corpo.28 A mulher seria passiva e receptora, o
solo que acolhia e fazia germinar a semente que vinha do homem.
Para Aristóteles, a fêmea seria de fato um elemento passivo e o macho
um elemento ativo.29
No século II, seguindo a tradição aristotélica, Galeno desenvolveu
um poderoso e resistente modelo de pensamento sobre a natureza dos
órgãos reprodutores de homens e mulheres. Formulou o princípio de
uma identidade do aparelho anatômico nos dois sexos, propondo a
existência de uma semelhança inversa entre os órgãos masculinos e
femininos. Supunha que as genitálias masculina e feminina não eram
essencialmente diferentes, apenas que, na mulher, os órgãos estavam
localizados dentro do corpo. Para ele, os órgãos sexuais femininos
seriam similares aos masculinos em número e espécie. A menor quan­
tidade de calor existente no corpo feminino era a responsável por essa
inversão, por não ser suficiente para viabilizar que eles fossem exter-
nalizados, uma vez que o frio contrai e aperta, mantendo os órgãos
internos. O calor que determinava o caráter sexual também determi­
nava o sexo, moldando a genitália masculina ou feminina.
O calor era um ponto fundamental da concepção de Galeno e a
comparação que ele fazia entre homens e mulheres, baseado nesse ele­
mento, colocava essas últimas como homens mutilados. O calor era o
sinal de perfeição que localizava um ser vivo na cadeia hierárquica.
Humanos eram mais perfeitos do que animais e homens mais perfei­
tos do que mulheres. O macho seria o ser humano mais quente e a
mulher, mais fria, sua versão imperfeita, localizando-se em um grau
inferior na escala hierárquica. Biologicamente, os homens eram consi­

28 M . Chauí, Introdução à história da filosofia; dos pré-socráticos a Aristóteles,


São Paulo, Brasiliense, pp. 2 9 5 -2 9 6 , 1 9 9 4 .
29 M . Foucault, História da sexualidade II: O uso dos prazeres, Rio de Janeiro,
G raal, p. 4 5 , 1 9 8 4 .
derados os fetos que haviam realizado seu potencial pleno, já que
haviam reunido um excedente decisivo de calor, nas etapas iniciais de
coagulação no ventre. As mulheres, em constraste, seriam homens
inacabados, o precioso calor vital não lhes chegara em quantidade
suficiente no ventre. Isso as tornava mais flácidas, mais líquidas, mais
frias, mais úmidas e, de um modo geral, mais desprovidas de formas
do que os homens.30
Galeno estabeleceu uma analogia entre a genitália dos dois sexos,
órgão por órgão. Desse modo propunha uma equivalência entre, por
exemplo, os testículos e os ovários, o pênis e a vagina e assim por dian­
te. Do ponto de vista científico, portanto, formulava-se a existência de
apenas um único sexo, que poderia ser mais ou menos bem-sucedido
em sua evolução. A mulher seria o representante inferior de um sexo
cujo potencial máximo de realização só era alcançado no corpo mas­
culino. A mulher seria portanto um homem com algo “a menos”.
Nesse modelo, no qual se supunha uma essência única para os dois
sexos, estava presente a idéia de possibilidade de transformação.
Galeno e seus seguidores relatavam casos de mulheres que haviam se
tornado homens, devido a um aumento da quantidade de calor de seus
corpos. Advogava porém que essa passagem só podia se dar em um sen­
tido. As mulheres poderíam se transformar em homens, mas o inverso
não era possível, já que a natureza sempre tendia para a perfeição.31
As idéias de Galeno constituem o dogma oficial da medicina até o
final da Renascença, quando ainda se pode encontrar relatos que ten­
tam provar a possibilidade desta passagem do sexo feminino para o
sexo masculino. Ambroise Paré, grande cirurgião do século X V I, rela­
tava o caso de um certo Germain Garnier, batizado Maria, que servia
na comitiva do rei. Tratava-se de um homem perfeito, mas que até os
15 anos viveu como uma moça, não mostrando nenhum sinal de mas­
culinidade. No entanto, com a chegada da puberdade houve uma rup­

30 P. Brow n, op. cit., p. 19.


31 L. Schiebinger, op. cit., pp. 1 6 3 -1 6 4 .
tura de ligamentos e sua genitália se externalizou. Os médicos explica­
ra m o fenômeno como uma transformação ocorrida devido a um au­
mento de calor que possibilitou que seus órgãos sexuais saíssem.32
A sobrevivência desse discurso médico até um período tão tardio
deu-se paralelamente à ascensão e expansão do Cristianismo, com o
qual não entrava em conflito, pois o pensamento cristão, desde os seus
primórdios, também via a mulher como um homem imperfeito. O sexo
Icminino, na versão do Gênesis, era um subproduto do sexo masculi­
no, um ser inacabado, menos evoluído. Na perspectiva cristã, uma
iransformação também era possível: a mulher poderia encontrar a sal­
vação tornando-se homem. Essa, aliás, era a única forma de uma mu­
lher ter acesso ao sagrado. Portanto, no discurso cristão, observa-se
também, como no modelo galênico, uma homologia onde as catego­
rias masculino e feminino são fixadas em uma hierarquia, na qual o
homem está numa posição superior à da mulher. A possibilidade de
transformação também está inscrita nesse modelo, onde o deslocamen­
to da feminilidade para a masculinidade é entendido como um movi­
mento progressivo em direção a um estágio mais alto de virtude.33
Essa possibilidade de transformação revela o quanto era tênue e
maleável a fronteira entre masculino e feminino no pensamento anti­
go e como uma determinada concepção pode esgarçar esses limites.
Essa visão de mundo sobre a diferença entre os dois sexos era bastan­
te diferente do pensamento moderno, no qual uma passagem natural
do sexo feminino para o masculino seria impensável.
No século XVII, os médicos começam a questionar as idéias anti­
gas. A controvérsia entre os adeptos de um galenismo cristalizado e os
admiradores da grande obra da natureza é reveladora de uma mudan-

32 T . Laqueur, op. cit., p. 13.


33 E . Castelli, “I Will M ake M ary M ale. Pieties o f the Body and Gender Transfor-
m ation o f Christian W om en in Late Anciquity”: in B ody Guards: the Cultural
Politics o f Gender Ambiguity, organizado por Julia Epstein e Kristina Straub,
N ova Y ork e Londres, Routledge, p. 3 2 .
ça de atitude. Afirmar a imperfeição radical do sexo feminino começa
a se constituir uma heresia científica. Jean Liebaud afirma a sua von­
tade de provar, pelas leis da filosofia natural, que a mulher não é um
macho inacabado. No discurso dos médicos-filósofos, a mulher come­
ça a ter sua própria identidade, já não é examinada apenas como uma
cópia defeituosa do macho, mas como um corpo acabado e singular.
Começa a ser contestada a idéia de que as mulheres poderiam se
transformar em homens. Aparece o pressuposto de uma irredutibili-
dade entre os dois sexos. O médico Saviard constata no final do sécu­
lo XV II que alguns clínicos confundem um prolapso de útero com
uma mudança de sexo.34
É interessante observar que a partir da segunda metade do século
X V I e durante todo o século XVII pode-se constatar a sobrevivência
do modelo galênico paralelamente a uma mudança que começa a se
operar, mudança essa calcada principalmente nos seguidores do pen­
samento cartesiano, que propunham que homens e mulheres partilha­
vam a mesma Razão e que a única diferença sexual era a dos órgãos
reprodutores. No entanto, essa diferença particular não era pensada
como um fator determinante de uma distinção nas faculdades mentais
e morais das mulheres. A idéia de que a Razão constituía-se a essência
de homens e mulheres começa a deslocar a ênfase dada ao calor na
constituição dos aspectos morais e do caráter sexual. Mas mesmo
aqui a diferença sexual ainda não é pensada como a ancoragem da
diferença da subjetividade de homens e mulheres. Poullain de la Barre
e algumas feministas que o seguiam argumentavam que a diferença
sexual não tinha significado sobre os aspectos físicos ou sobre o cará­
ter das mulheres.
Nesse período, duas importantes reformas na visão médica sobre a
mulher começam a ganhar força. A primeira é uma mudança na manei-

34 E . B errio t-S alv ad ore, “ O discurso da m edicina e da ciên cia” : in H istória


das mulheres; do Renascimento à Idade Moderna, P orto, Edições A frontam ento,
pp. 4 1 8 -4 1 9 .
*<» »lc tratar os órgãos sexuais femininos, que passam a ser vistos como
{'et fntos e adequados às suas funções. A segunda é em relação ao papel
.Ia mulher na reprodução, que passa a ser cada vez mais valorizado.
I s*!,is mudanças, porém, não significavam um abandono completo das
antigas. Encontravam-se médicos que relativizavam a teoria dos
te se s

humores e outros que ainda apoiavam-se nela abertamente.35


Andreas Vesalius, considerado o pai da anatomia moderna, não
subscrevia integralmente a teoria dos humores, nem acreditava que as
■lilrienças sexuais penetrassem no esqueleto. Para ele, o sexo estava
jpnias na superfície, limitando-se a diferenças no contorno do corpo
* nos órgãos sexuais. Fora os órgãos reprodutivos, Vesalius conside-
i iv . i os outros órgãos intercambiáveis entre os dois sexos. Acreditan-

.ln que o mesmo esqueleto moldava tanto homens quanto mulheres,


Vesalius não sexualizou os ossos do corpo humano, não deu um sexo
I' ira seu esqueleto. Já William Cowper, que também não localizava
no esqueleto diferenças entre os sexos, explicava a diversidade de
modelagem do corpo pelo acúmulo de uma maior camada de gordu-
*a sob a pele das mulheres que, em seu entender, devia-se à ausência
de calor do corpo feminino.
A indiferença dos primeiros anatomistas modernos para a ques­
tão da diferença sexual não derivava de uma ignorância sobre o cor­
po feminino, uma vez que desde o século XIV faziam dissecção de cor­
pos femininos. O que pode dar a impressão de um desinteresse em
■clação ao estudo dos caracteres sexuais secundários era, de fato, pro-
■luto de uma revolução incompleta. Embora os anatomistas não subs-
( revessem explicitamente a antiga teoria dos humores, continuavam a
tecair na visão da mulher fria e úmida. Foi preciso ainda um longo
tempo até que novas explicações tomassem o lugar das antigas. Os
anatomistas, como os filósofos do século XVII e do início do século
XVIII, deixaram intocada a questão da extensão do caráter sexual
para além dos órgãos da reprodução. Esse silêncio permitiu que a

35 L. Schiebinger, op. cit., pp. 1 8 1 -1 8 3 .


visão antiga persistisse até o século XVIII, quando o modelo passa a
ser questionado e começa-se a pensar a diferença sexual como deter­
minante do caráter de homens e mulheres.36

Diferença e complementaridade

Foi no bojo das transformações sociais e políticas da segunda metade


do século X V III que uma “questão fem inina”, isto é, a mulher
enquanto um objeto a ser estudado, controlado, investigado, colocou-
se de forma mais contundente e que a necessidade de criar novos
papéis sociais para homens e mulheres foi sendo elaborada, possibili­
tando que um novo ideal feminino ganhasse força. É nesse contexto
que se pode observar uma rediscussão do problema da diferença de
gêneros. É dessa rediscussão que surge a idéia da diferença de sexos,
entendida como bissexualidade original. A mulher deixa então de ser
pensada como uma simples especialização funcional, anatomicamen­
te identificada em sua natureza com o masculino. A forma cultural de
distinguir os gêneros masculino e feminino, característica do pensa­
mento antigo que dispensava o recurso à diferença de sexos, dá lugar
a uma nova interpretação sobre o corpo, especialmente sobre o corpo
feminino. A necessidade política de se constituir novas realidades
sociais para homens e mulheres foi o motor dessa transformação.
A reinterpretação do corpo foi a maneira encontrada pelos pensa­
dores da época, principalmente Rousseau e os filósofos iluministas, de
reestabelecer, em outro registro, a hierarquia entre homens e mulhe­
res que começava a se constituir num problema. De um lado, a pro­
gressiva expansão do pensamento liberal colocava o ideal de liberda­
de e igualdade cada vez mais na ordem do dia. Além disso, no mode­
lo de sociedade emergente, individualista, centrada numa perspectiva
igualitária, na qual os indivíduos passam a se perceber como singula­
res, autônomos, dotados de um mundo interno próprio e particular, a

| 36 Idem, p. 186.
questão da hierarquia entre os sexos tornava-se ainda mais complica­
da e contraditória.
Desde Poullain de la Barre, a possibilidade de a mulher poder ser
pensada como igual ao homem tornou-se um problema, pois a pre­
missa de uma igualdade sustentava-se na idéia de que todo indivíduo
era portador de uma mesma Razão. Além disso, o pensamento liberal
emergente advogava também que, em função dessa Razão, todos,
homens e mulheres, deveríam ser iguais perante a lei. O problema,
então, era como justificar a dominação da mulher pelo homem, sua
exclusão da esfera pública e as diferenças sociais, se todos deveríam
ter os mesmos direitos. O século XVIII trouxe então novas “luzes” so­
bre o problema; o dilema foi resolvido pela ancoragem da diferença
social e cultural dos sexos em uma biologia da incomensurabilidade,
a partir da qual homens e mulheres são tratados como radicalmente
diferentes. A conseqüência lógica desse percurso foi que, a partir da
idéia de uma diferença biológica “natural”, passou-se a justificar e
propor inserções sociais diferentes para os dois sexos.
Rousseau foi um dos pensadores mais imporrantes na artirnlação
dessas idéias. Seu projeto de organização social pressupunha uma divi­
são de papéis diferentes e complementares para homens e mulheres.
Para ele, a esfera de atuação feminina seria a doméstica e a masculina,
a pública. A mulher deveria “reinar” no lar, devendo abrir mão de
qualquer pretensão e desejo pessoal de outra ordem. Sua vida deveria
permanecer completamente vinculada à de seu marido.37 Em seu ideal
romântico, Rousseau negava às mulheres o status de cidadãs. Essa
perspectiva, no entanto, entrava em choque com sua própria proposta
de igualdade universal. Dessa forma, viu-se diante da necessidade de
justificar a desigualdade real que existia entre os sexos. A solução
encontrada para resolver essa contradição foi propor que as funções
preconizadas para homens e mulheres seriam determinadas por uma
suposta diferença de essência entre os sexos, que estaria ancorada em
uma diversidade morfológica sexual, naturalmente determinada.

| 37J . - J . R ou sseau , op. cit.


Rousseau advogava ser a natureza feminina que designava qual deve­
ria ser sua inserção social. Dessa forma, inaugurou todo um discurso
sobre a diferença entre os sexos e suas consequências morais e sociais,
acoplando diferença sexual e diferença de gênero. Para ele, em tudo
que se relaciona ao sexo, a mulher é diferente do homem, sendo cada
sexo moldado segundo sua natural destinação.
Para Rousseau, a mulher não seria nem inferior, nem imperfeita;
ao contrário, ela seria perfeita em sua especificidade, dotada de carac­
terísticas biológicas e morais condizentes com as funções maternas e a
vida doméstica, enquanto os homens seriam mais aptos à vida públi­
ca, ao trabalho e às atividades intelectuais. Essas teses vão procurar
encerrar definitivamente a mulher no lar e na maternidade, tentando
dar um fim à “querela das mulheres” que, a partir das teses cartesia-
nas, ganhava força desde o século XVII. Ao mesmo tempo tinham a
vantagem de não entrar em choque com a perspectiva liberal, uma vez
que a condição feminina não seria uma imposição social, mas um
desígnio da natureza. Não se pensa, nesse modelo, numa relação de
inferioridade, mas sim de complementaridade. Essa idéia, portanto,
não só não atropelava a ética libertária emergente, como justificava
plenamente a desigualdade social real existente entre os sexos. As
idéias de Rousseau foram amplamente aceitas e reforçadas pelo Ilumi-
nismo. Pensadores como Diderot e Voltaire defenderam e justificaram
suas premissas: essa perspectiva triunfou e ganhou força a partir da
virada para o século X IX .
No momento em que Rousseau e seus seguidores começam a pro­
pagar suas idéias, a ciência médica articula hipóteses que as caucio-
nam. É quando se pode observar uma mudança na visão dos médicos
em relação à sexualidade feminina e às mulheres. Os anatomistas, por
exemplo, não satisfeitos com a teoria dos humores, articularam uma
nova visão sobre as origens e o caráter das diferenças sexuais, da rela­
ção entre sexo e gênero e da presença da sexualidade no corpo. Entre
1750 e 1790, observa-se nos discursos anatômicos e médicos, de um
modo geral, uma tentativa de fazer um delineamento minucioso das
diferenças sexuais. A sexualidade não era mais vista como residindo
cxclusivamente nos órgãos sexuais. O médico filósofo Pierre Roussel
i (-provava seus colegas por considerarem a mulher similar ao homem.
Para ele a essência sexual não estaria confinada a um único órgão,
mas se estenderia por meio de nuances mais ou menos perceptíveis a
ioda parte.38 Roussel, alinhando-se com Rousseau, pensa a feminili-
d.ide como uma essência que se define por funções orgânicas específi-
( as. O físico da mulher marcaria sua predestinação por sinais particu­
lares: a fragilidade dos ossos, a forma alongada da bacia, a moleza
dos tecidos, a estreiteza do cérebro e a superabundância das fibras
nervosas deixariam perceber que a mulher tem como vocação natural
a maternidade.
Como já apontei, um dos aspectos mais significativos dessa revo­
lução nos discursos médicos do século XVIII foi a reavaliação dos
órgãos reprodutores femininos que, de imperfeitos e pouco evoluídos,
passaram a ser vistos como perfeitos e adequados à maternidade.
Mas, além disso, deu-se uma mudança fundamental: o sexo passou a
■.cr pensado como permeando todo o corpo humano, isto é, como
algo que não estaria circunscrito apenas aos órgãos sexuais. De acor­
do com essa perspectiva, a diferença entre os sexos marcaria toda a
extensão do corpo e fora da genitália havería muitas outras diferenças
•ignificativas. Inicia-se então um processo delineador de diferenças
profundas entre homens e mulheres, e os médicos tentavam demons-
n ar que havia diferenças consideráveis entre os sexos, no corpo, na
ilrna e em todos os aspectos físicos e morais. O modelo antigo segun­
do o qual o homem e a mulher eram “arrumados” de acordo com seu
grau de perfeição e de calor vital sai definitivamente de cena, dando
lugar à idéia de uma diversidade biológica.39 Em 1788, o anatomista
germânico Jacob Ackerman, por exemplo, detalhou milimetricamen-

38 P. Roussel, “Système Physique et M oral de la Femme, ou Tableau Philosophi-


que de la Constitution, de l’É tat Organique, du Tem pérament, des M oeurs, et
des Fonctions Propres au Sexe”, Paris, 1 7 7 5 , citado por Londa Schiebinger in
op. cit., p. 18 9 .
39 T . Laqueur, op. cit., p. 3.
te as diferenças entre os ossos, o cabelo, a boca, os olhos, a voz, os
vasos sanguíneos e o cérebro de homens e mulheres.40
Foi como parte dessa ampla investigação na natureza das diferen­
ças sexuais que os primeiros desenhos do esqueleto feminino aparece­
ram na Europa entre 1730 e 1790.41 O fisicalismo da época levou os
anatomistas a olharem primeiro para o esqueleto como a parte mais
dura do corpo, que proporcionava sua “estrutura” e dava a direção
“certa e natural” para os músculos e outras partes ligadas a eles. Se di­
ferenças sexuais pudessem ser encontradas no esqueleto, então a iden­
tidade sexual não dependería mais de diferentes graus de calor e nem
tampouco os órgãos sexuais seriam apêndices para um corpo neutro.
Ao contrário, a sexualidade seria vista como algo que penetrava cada
músculo, cada veia, cada órgão, ligados e modelados pelo esqueleto.
O estudo de Londa Schiebinger sobre a modificação da descrição
do esqueleto feminino na passagem do século X V II para o século
XVIII é exemplar desse processo. Segundo ela, foi no contexto de uma
tentativa de definir a posição da mulher na sociedade européia que as
primeiras representações científicas do esqueleto feminino aparece­
ram. Mostra também que essas descrições não eram feitas de forma
arbitrária, pois a atenção dos anatomistas voltava-se principalmente
para as partes do corpo feminino politicamente significativas. Assim,
desenhava-se a mulher com menor crânio (sinal de menor aptidão
intelectual) e pélvis maior (sinal de maior aptidão para a reprodução).
Ao contrário, os anatomistas do século X V I e X V II, de um modo
geral, não voltaram sua atenção para essas diferenças, não mudaram
a visão sobre a mulher contida em Galeno, nem formularam novas
visões sobre as diferenças sexuais. Até o século XVIII havia apenas
uma estrutura básica para o corpo humano: o modelo masculino.42

40 L. Schiebinger, op. cit, p. 190.


41 Idem.
42 L. Schiebinger, “Skeletons in the Closet, the First Illustrations o f the Female
Skeleton in Eighteencentury A natom y” : in The M aking o f the M od em Body,
p. 4 3 , s.d.
V lucbinger assinala que o interesse médico foi modelado, em parte,
p<'i mudanças na cultura. À medida que a maternidade aparece como
■mi ideal ao qual às mulheres devem corresponder, os anatomistas
passam a rejeitar a visão dos órgãos femininos como imperfeitos ou
monstruosos e a olhá-los como sexualmente perfeitos, passando o
mn o a ser tratado como um órgão nobre. Os desenhos do esqueleto
Irininino são então carregados de valores e servem para representar os
í.trais de masculinidade e feminilidade emergentes. Os anatomistas
'melhoraram” a natureza para adequá-la a esses ideais.43
Na mesma linha de interpretação, Thomas Laqueur mostra não
haver até a Renascença uma nomenclatura estandardizada para os
grnitais femininos, o que testemunha uma falta de necessidade de
■nar categorias incomensuráveis de homens e mulheres por meio de
palavras. Até o século XVII, é impossível determinar nos textos médi-
■■>s para qual parte da anatomia reprodutiva feminina um termo par-
i k ular era aplicado. A linguagem também sustentava o corpo mascu­
lino como modelo da forma humana.44
É ainda Laqueur que, em um estudo sobre o prazer feminino,
lumbém localiza o século XVIII como o momento em que se tenta
i (-descrever a experiência da sexualidade na mulher e nos seres huma­
nos de um modo geral. Foi nessa época que a biologia, com suas pes­
quisas das diferenças fundamentais entre os sexos, trouxe um novo
questionamento sobre o prazer feminino. Laqueur mostra que a idéia
da necessidade do prazer feminino para a reprodução era inquestioná­
vel no pensamento ocidental desde a Antiguidade. Até a Renascença o
prazer de homens e mulheres era considerado fundamental para a re­
produção, mesmo que a concupiscência fosse vista como uma fraque­
za de vontade. Somente próximo ao final do século XVIII a ciência
médica deixou de olhar o orgasmo feminino como importante para a

43 Idem, p. 5 3 .
44 T. Laqueur, “A m or Veneris vel Dulcedo Appeletur” : in Fragments fo r a History
o f the Human Body. Part III. N ova Y ork, Feher, M . com Naddeff, R . e Tazi, N ,
p. 1 0 5 , 1 9 8 9 .
reprodução, reforçando a idéia de que o homem estaria mais ligado
ao sexo e a mulher à maternidade e ao afeto.45 Em nome de um deter­
minismo natural, o pensamento médico confinou a feminilidade ideal
à esfera estreita que a ordem social liberal lhe destina: a mulher sã e
feliz é a mãe de família, guardiã das virtudes e dos valores eternos.
Em resumo, ao contrário do que se propunha na perspectiva galê-
nica, onde o modelo ideal do corpo humano era o masculino, sendo o
sexo feminino sua versão mal acabada, no século XVIII pensa-se a
diferença entre os sexos como uma diferença de essência. Essa diferen­
ça de essência seria aqui produto da diferença sexual. No modelo
antigo não havia a idéia de uma sexualidade masculina e de uma
sexualidade feminina. Do ponto de vista sexual, a mulher nada mais
seria do que uma variação do homem. A diferença sexual não era o
parâmetro que explicava a diferença de gêneros.
Essa maneira de pensar só aparece no século XVIII, e seu surgi­
mento está intimamente ligado à necessidade emergente de criação de
novos ideais de masculinidade e feminilidade. À mulher ficará reser­
vado o ideal materno; a partir dele os discursos médicos passam a
construir um novo perfil feminino. É importante frisar, mais uma vez,
que a mudança da percepção médico-científica sobre a mulher deu-se
principalmente em função das transformações operadas e esperadas
da condição social feminina, e não devido a descobertas científicas
que caucionassem a idéia de um dimorfismo original. Distinguir a
mulher do homem pela particularidade do sexo foi uma preocupação
de filósofos e moralistas antes de ser uma crença de cientistas.46
Enfatizando a diferença sexual, a comunidade médica permitiu
que os adeptos da teoria da complementaridade construíssem argu­
mentos para uma maior diferenciação de papéis. A tese de que ho­
mens e mulheres não são física e moralmente iguais, mas opostos

45 T . Laqueur, “O rgasm , Generation and Politics o f Reproductive Biology” : in


op. cit.
46 J . Freire Costa, A face e o verso: estudos sobre o hom oerotism o II, São Paulo.
Escuta, p. 1 0 8 ,1 9 9 5 .

i
complementares, ajustava-se perfeitamente ao pensamento liberal,
lu/.endo as desigualdades parecerem naturais, ao mesmo tempo em
i|iic satisfaziam as necessidades da sociedade européia de dar conti­
nuidade à divisão sexual do trabalho, assinalando para a mulher um
imico lugar social. A mulher não deveria ser vista como inferior ao
homem, mas como fundamentalmente diferente e portanto incompa-
i.ível a ele. A figura da mulher doméstica e cuidadosa surge como um
i >posto à do homem público e racional.

A CONSTRUÇÃO DE UM PERFIL FEMININO

Recorrendo à natureza, filósofos, médicos e moralistas arquitetam


uma teoria “racional” do feminino que aponta para a essência mater­
nal das mulheres. Rousseau sustenta que a desigualdade entre o ho­
mem e a mulher não seria uma instituição humana, nem obra de pre­
conceito, e sim uma obra da Razão. A mulher deveria cuidar dos fi­
lhos porque esse é o encargo que a natureza lhe delegou, sua destina-
ção é fazer filhos.47 Segundo ele, homens e mulheres teriam de se
situar na ordem social, de acordo com seu destino natural. A nature­
za aqui é percebida como um princípio normativo no qual cada sexo
tem sua especificidade e seu lugar.48
Rousseau advoga que, assim como as necessidades de um sexo
não são iguais às do outro, as características morais também seriam
diversas e complementares. Ele aponta vários aspectos inerentes à
feminilidade, tais como: fragilidade, timidez, doçura, sedução e afeti-
vidade. Nesse modelo, privilegia algumas características que conside­
ra fundamentais para o bom funcionamento do casal. Assim, por
exemplo, para ele, feminilidade rima com passividade.49 Em seu

47 J.-J. Rousseau, op. cit., p. 4 2 9 .


48 Idem, p. 4 2 3 .
49 Idem, p. 4 2 4 .
entender, a diferença de essências seria o motor de uma convivência
pacífica do casal. Criticando as mulheres, ou seus poucos defensores,
que pleiteavam direitos iguais, tenta desqualificar essas reivindica­
ções, argumentando que as mulheres são, por natureza, passivas e
que devem estar subordinadas ao homem, que seria o cabeça e guia
do casal. A mulher não deve rivalizar com o homem, ela é feita para
segui-lo e agradá-lo.s0
Interessante notar que apesar de Rousseau considerar que a essên­
cia feminina está voltada naturalmente para a passividade e a subor­
dinação, o projeto pedagógico por ele proposto para o sexo feminino
visa principalmente o adestramento das mulheres para poderem
suportar esse lugar de submissão. Para ele, desde o início da vida a
educação das meninas deve voltar-se para o aprendizado dos cuida­
dos em relação às necessidades e desejos dos homens. Nesse sentido,
toda a educação das mulheres há de ser relativa ao homem, a quem se
obrigam ser úteis; educá-los jovens, cuidar deles grandes, aconselhá-
los, consolá-los, tornar-lhes a vida mais agradável e doce.5051
As palavras do filósofo indicam qual deve ser a preocupação com
a educação das moças. A mulher só deve ter acesso ao conhecimento
jta ra tom ar sua presença agradável para aqueles que a cercam. Ela
não é feita para o saber, mas para o prazer e o bem-estar do marido e
dos filhos. Rousseau acredita que adestrar as mulheres para servir e
obedecer aos homens não é uma tarefa difícil, pois a dependência é
uma condição natural das mulheres, o que faz com que, de um lado,
elas se sintam feitas para obedecer e, de outro, desenvolvam maior ca­
pacidade de amor e doação. No entanto, é espantosa a ênfase que ele
confere à necessidade de disciplinar os sentimentos, os desejos e o cor­
po feminino, no sentido de garantir o sucesso dessa tarefa. Para tal,
prega claramente que esses sentimentos e desejos sejam freados desde
cedo, e que as meninas aprendam a aceitar as restrições impostas à

50 Idem, p. 4 2 4 .
si Idem, p. 4 3 3 .
sua vida sem reclamar. É preciso criar o hábito da obediência, através
tio constrangimento e da disciplina constantes.52 A educação das me­
ninas deve estar, portanto, voltada para a formação de um caráter dó-
i il, passivo e subserviente, que seria, se for o caso de acompanhar suas
considerações, a base para o sucesso da vida do casal e da família.
No entanto, em muitos momentos de suas descrições o processo
educativo preconizado por Rousseau se assemelha a uma verdadeira
tortura, onde a necessidade de subjugação contínua da vontade das
meninas é o fim principal. Sua orientação nesse sentido é bastante cla­
ra e contundente.
r

Justificai sempre as tarefas que impuserdes às jovens, mas impondo-
lhes sempre tarefas. A ociosidade e a indolência são os dois defeitos
mais perigosos para elas e de que dificilmente se curam após contraí-
los. As jovens devem ser vigilantes e laboriosas; não é tudo, elas
devem ser contrariadas desde cedo. Essa desgraça, se é que é uma, é
inseparável de seu sexo, e dela nunca elas se libertam senão para so­
frer outras bem mais cruéis. Estarão a vida inteira escravizadas a
constrangimentos contínuos e severos, os do decoro e das conveniên­
cias. É preciso exercitá-las desde logo a tais constrangimentos, a fim
de que não lhes pesem; a dominarem suas fantasias para submetê-las
às vontades dos outros. Se quisessem trabalhar sempre, dever-se-ia
forçá-las a não fazerem nada por vezes. A dissipação, a frivolidade, a
inconstância, são defeitos que nascem facilmente de seus primeiros
gostos corrompidos e sempre seguidos. Para prevenir tais abusos,
ensinai-lhes sobretudo a se dominarem. Nas nossas insensatas condi­
ções de vida, a existência de uma mulher honesta é um combate per­
pétuo contra si mesma; é justo que esse sexo partilhe as penas dos
males que nos causaram.53 U

52 J.-J . Rousseau, op. cit., p. 4 3 9 .


53 J.-J . Rousseau, op. cit., p. 4 3 8 .
Rousseau entra em contradição com suas próprias idéias de uma
determinada essência natural, uma vez que o controle que prega para
o desenvolvimento das meninas é tão rigoroso que se duvida dessa
pressuposta natureza. O que se depreende nas entrelinhas desse pará­
grafo é a velha idéia do feminino como agente do pecado e portanto
perigoso. Aliás, isso aparece muito claramente em alguns de seus
seguidores como, por exemplo, Diderot, que cauciona essas idéias
com o argumento de que as mulheres são no fundo ainda selvagens.54
Além disso, outro aspecto importante a ser ressaltado nesse pro­
jeto pedagógico é ele pressupor que a menina aprenda não só a se sub­
meter calada, como a fazê-lo de bom grado, extraindo daí satisfações.
É como se a educação das jovens devesse se constituir num exercício
constante de disciplinarização do prazer feminino, de forma a fixá-lo
nesse modelo de uma relação conjugal de submissão.
Mais um ponto importante das teses de Rousseau: para ele, a R a­
zão não é a mesma para homens e mulheres, como queriam Poullain
de la Barre e seus companheiros cartesianos. Segundo Rousseau, a
filosofia e a ciência não são da competência das mulheres e seus estu­
dos devem voltar-se para a prática, já que sua razão é uma razão prá­
tica. Tal estudo prático deveria estar voltado para conhecimentos que
tenham o homem como objeto. Aqui também existiría uma relação de
complementaridade na qual o papel da mulher é o de criar condições
adequadas para o homem poder produzir seu saber. A mulher seria a
sombra que sempre se encontra atrás da luz.55 Para Rousseau, uma
mulher que ultrapassasse esses limites, voltando-se para as ciências e
as letras de forma mais sistemática, seria o flagelo do marido, dos
filhos e da família. As idéias de Rousseau fizeram escola e-O-século,
X V III viu nascer o desenho de um perfil feminino onde doçura, mater-
nidade, amor, fragilidade, passividade e subserviência foram descritos
como partedesuaessência.

54 D. Diderot, “Sobre as mulheres” : in E . Badinter, O que é uma mulher?, R io de


Janeiro, N ova Fronteira, p. 1 2 9 ,1 9 9 1 .
55 J.-J. Rousseau, op. cit., p. 4 6 4 .
Interessa-me ressaltar aqui que essa nova descrição da feminilida­
de traz para o primeiro plano a idéia de que a mulher deva ser capaz
ilc suportar sofrimentos, injustiças, subjugação, encontrando prazer
nus obrigações e nas tarefas que lhe são destinadas. A fórmula de que
"ser mãe é padecer no paraíso” nasce com muita força e fornece as
bases para que o século X IX pense a mulher como portadora de uma
essência masoquista.

CONFLITOS E IMPASSES

Pode-se observar então que, apesar do pressuposto de Rousseau e dos


iluministas de uma adequação inata das mulheres à maternidade, o
projeto pedagógico proposto para as mulheres era tão minucioso e
intenso que gera a impressão de que ninguém é mais “naturalmente
inadequado” a essa tarefa do que a mulher. É como se, no fundo, esses
moralistas percebessem que, por si só, a natureza não desse conta do
recado. E provavelmente essa percepção baseava-se no fato de que o
“instinto materno” e a suposta “vocação” feminina para a vida domés­
tica eram inclinações que poucas mulheres apresentavam.
Elizabeth Badinter mostra muito claramente que a idéia da mater­
nidade como uma vocação natural instintiva feminina produziu-se
também a partir do século XVIII e que, para as mulheres concor­
darem em abdicar de seus projetos e necessidades pessoais, em nome
da maternidade, foi preciso uma longa batalha.56 Como se sabe, nas
camadas burguesas, durante todo o século XVII, auxiliadas pelo so­
pro liberalizante da perspectiva cartesiana que conferia ao sexo femi­
nino o estatuto de sujeito da Razão, as mulheres procuravam ter aces­
so às ciências, às letras e à filosofia, ficando o cuidado com as crian­
ças relegado às amas. Aliás, foi nesse momento que o costume de dei-

56 E. Badinter, Um am or conquistado, o mito d o am or materno, Rio de Janeiro,


N ova Fronteira, 1 9 8 5 .
xar a criança na casa da ama-de-leite generalizou-se entre a burgue­
sia.57 A criança não tinha, nem para as mães, nem para a família e
nem para os médicos, o lugar de honra que ganhou a partir do século
XVIII. Ao contrário, o que se observa é uma certa indiferença afetiva
em relação a ela. Era comum, por exemplo, que a morte de um filho
não representasse uma grande desgraça para a família e mesmo para
a mãe. O sofrimento intenso por essa perda é geralmente notado
como um comportamento curioso.58 Nesse contexto, muitas mulheres
não estavam dispostas a sacrificar seu lugar na Corte ou simplesmen­
te sua vida social e mundana para criar os filhos.59 O desejo de eman­
cipação e de saber fazia com que essas mulheres trocassem a vida
doméstica pelos salões. E embora os cuidados com a infância ainda
não estivessem na ordem do dia, essas mulheres ambiciosas foram por
isso criticadas e mesmo ridicularizadas. As “Preciosas” eram figuras
muito comuns, e apesar de alguns defenderem seus direitos ao conhe­
cimento, muitos começaram a clamar por sua volta ao lar. Aos pou­
cos, à medida que a relação mãe e filho tornou-se importante, emerge
a idéia de que a verdadeira mulher deveria abdicar não só de ativida­
des sociais e intelectuais, porém, mais profundamente ainda, renun­
ciar a qualquer desejo pessoal. Algumas mulheres começam a introje-
tar esse tipo de ideal.60
A polêmica em favor do aleitamento materno e contra o hábito de
entregar os bebês às amas-de-leite constituiu um dos debates impor­
tantes na construção da idéia da existência de um instinto materno.
Durante o Século das Luzes, principalmente a partir do manifesto de
Rousseau, as mulheres eram permanentemente conclamadas a ama­
mentarem seus filhos. Essa prática podería ser fundamental para es­
treitar o vínculo amoroso entre mãe e filho e reforçar esse instinto.

*7 Idem, p. 6 7 .
5* Idem, p. 9 0 .
59 Idem, p. 9 5 .
60 A . Goreau, “Duas inglesas do século X V II” : in Sexualidades ocidentais. São
Paulo, Brasiliense, 1 986.
Interessante notar que o exercício da maternidade era diretamen­
te vinculado à necessidade de um sacrifício por parte das mulheres.
Elas deviam sacrificar seus anseios, seus projetos, sua capacidade de
pensar, seus direitos pessoais e civis, em nome dos filhos e do marido.
Essa capacidade de sacrifício seria considerada como um dos dons de
sua natureza, em função de sua vocação materna, e então enaltecida e
“santificada”. A mãe passa a ser tratada como uma mártir da moder­
nidade, ganhando um valor positivo e inexistente até então. Seu sacri­
fício a redimiría dos pecados de Eva e ela, pelo sofrimento e renúncia,
seria colocada em um pedestal. Ser mãe é padecer no paraíso: num
mundo divinizado a mulher purga suas culpas e atinge uma espécie de
beatificação.
As mulheres burguesas, que compartilhavam a proposta rousseau-
niana de um retorno à vida “natural”, aderiram a seu projeto de forma
voluntária; algumas, como Madame D ’Epinay, tornaram-se propagan-
distas de suas idéias. Deixando a ciência aos homens, ela se apoderou
simbolicamente de um novo papel deixado vago há muito tempo: o de
mãe.61 Outras mulheres, como Madame Châtelet, Mary Wollstone-
craft, Madame Roland e Olympe de Gouges, protestaram e advoga­
ram seus direitos, tentando demonstrar que eram tão capazes de exer­
cer atividades intelectuais quanto os homens. Muitas foram punidas.
Entre os intelectuais, as teses sobre a menor capacidade intelec­
tual das mulheres ganha cada vez mais força. Algumas vozes isoladas
saem em defesa do sexo feminino. Dentre elas a mais importante é a
de Condorcet. Advogado ferrenho dos direitos femininos, é um dos
poucos a recuperar a idéia cartesiana de que não haveria uma diferen­
ça de essência entre os sexos, por serem ambos seres de Razão.62
Na virada para o século X IX , as mulheres parecem ainda não ter

61 E . Badinter, Emilie, Emilie, 1’Ambition Féminine au X V í t f ™ siècle, P aris,


Flam m arion, 1 9 8 3 .
62 E. Badinter, Palavras de homens (1790 a 1793), R io de Janeiro, N ova F ro n ­
teira, 1 9 9 1 .
absorvido bem os ideais domésticos e maternos. Sua presença na cena
pública ainda é bastante significativa. Das revolucionárias às traba­
lhadoras, passando pelos salões, pela ciência e pela literatura, as mu­
lheres continuavam lutando por seus direitos como cidadãs.
Na França revolucionária, esse debate ganha grandes proporções.
Discute-se os direitos femininos, suas associações sociais, seu poder
na família, sua submissão ao pai, sua possibilidade de acesso às tribu­
nas.63 Ao fim desse processo as mulheres são silenciadas, espoliadas
de seus direitos civis e políticos, e, em alguns casos mais graves, con­
denadas à guilhotina. As mulheres não eram consideradas responsá­
veis a ponto de poderem subir nas tribunas, mas consideradas respon­
sáveis para responderem por seus crimes e morrerem por eles. Ao final
desse período, o projeto político de reorganização da ordem familiar
e das relações entre os sexos, sonhado por Rousseau, ganha força de
lei e as mulheres francesas terão de esperar cerca de 150 anos para
finalmente adquirirem seu estatuto de cidadãs.64
Paralelamente às discussões político-jurídicas sobre o estatuto ci­
vil da mulher, pode-se observar um movimento de culpabilização da­
quelas que de alguma forma transgridem esse modelo. A idéia de que
as mulheres que se desviam do caminho que a sociedade e a natureza
lhes demandam é culpada de uma transgressão é cada vez mais disse­
minada, não só no pensamento de moralistas, médicos e filósofos,
mas também nas mais diferentes manifestações artísticas e literárias.
Em interessante estudo sobre as figuras femininas das grandes
óperas, compostas nos séculos XVIII e X IX , Catherine Clément mos­
tra como nessas obras os personagens femininos, embora correspon­
dam a um dos pontos altos da beleza musical e da encenação, cantam
sua eterna derrota.65 Atrás das sublimes melodias, são sofredoras,
perdedoras, vencidas, junto com os fracos, os negros e os velhos. Sua

63 D. Godineau, “ Filies de la Liberté et Citoyennes Révolutionaires” : in Histoire


des Femmes: le XIX1'Siècle.
64 E. Badinter, Palavras de homens (1790 a 1793), op. cit.
65 C. Clément, A ópera ou a derrota das mulheres, R io de Janeiro, R o cco , 1 9 9 3 .
hipótese é que o século XVIII, aurora da família burguesa, esmaga as
mulheres que transgridem as normas de esposas e filhas. Mostra como
os laços das tramas servem para prender as personagens e conduzi-las
•\ morte. Elas morrem porque são castigadas por sua transgressão —
transgressão das regras familiares, das regras políticas, dos jogos do
poder sexual. A saber: Carmem, uma cigana que ama a quem desejar
c anda com contrabandistas; Desdêmona, que se casa com um mouro
estrangeiro; Tosca, cantora que mata o chefe de polícia romana, e tan­
tas outras. A ópera é também um assunto de mulheres: elas sofrem,
gritam e morrem. Nenhuma — ou muito poucas — se salva. Como rp
fosse possível assinalar o destino funesto reservado àquelas que se
rebelam contra seu papel social: culpadas, devem ser punidas.
O teor e a gravidade das ameaças que recaem sobre aquelas que
de alguma forma rompem com as regras de boa conduta fazem pensar
no quanto era fundamental naquele momento, para a ordem burgue­
sa emergente, as mulheres se conformarem com sua restrição ao espa­
ço doméstico. Durante todo o século X IX , a preocupação com as
mulheres e seus desvios se amplia, na tentativa de se criar melhores
maneiras de adestrá-las e coibir essas transgressões.

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