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Vitória da Conquista
Fevereiro de 2011
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Vitória da Conquista
Fevereiro de 2011
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Banca Examinadora: Prof. Dr. Edson Silva de Farias (titular), Prof. Dr. Jorge Viana Santos
(titular), Prof. Drª. Milene de Cássia Silveira Gusmão (titular), Prof. Dr. Elder Patrick Maia
Alves (titular), Profa. Dra. Maria da Conceição Fonseca-Silva (suplente), Profa. Dra. Maria
Salete de Souza Nery (suplente)
BANCA EXAMINADORA
Suplentes
Resultado:
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AGRADECIMENTOS
Aos professores Milene de Cássia Silveira Gusmão, Ana Elisabeth, Nilton Milanez,
Lúcia Ricotta, Gilberto Sobrinho, Iara Lis, Sírio Possenti, Luiz Nova, Jorge Miranda,
Pedro Ivo das Neves e Clédson Miranda dos Santos,
A Nina,
Aos amigos Thiago, Sara, Thiaquelliny, Clara, Poliana, Ronaldo, Túlio, Lucineide,
Marleide, Cecília, Rogéria Maciel, Valter Rodrigues, Tarcísio Franco, Henrique
Oliveira, Ricardo Santos, Carlos Rizério, J. C. D’Almeida, Mônica Lula, Beto Viana,
Carlos Bernard e Elisa,
A Deus.
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RESUMO
O que uma fotografia nos informa? Como prova de que aquela cena retratada aconteceu,
o acesso que ela dá ao passado é de totalidade? Na leitura de uma imagem fotográfica
levamos em consideração as informações de que tipo de passado? Estas são questões
que estimulam a pesquisa que, por ora, é apresentada a partir deste resultado parcial em
forma de dissertação. As ideias nela contidas dizem respeito à relação entre fotografia e
memória. Para tanto, serve-nos de aporte teórico as reflexões do filósofo francês Gilles
Deleuze. A partir deste pensador, amadurecemos uma concepção de memória que,
quando aplicada à fotografia, nos levará a entendê-la como um processo de criação de
passados. A argumentação das páginas que seguem se dão no sentido de buscar
elementos que sustentem a suposição de que ao se ler uma fotografia, a atuação da
imaginação é tamanha que o passado encontrado está no presente. Ou seja, os signos
presentes na imagem fotográfica nos fazem ler o passado retratado a partir de sensações
presentes. A memória aplicada à fotografia é muito mais uma atualização que uma
rememoração do instante nela retratado. Para chegar a esta concepção de memória, o
eixo teórico escolhido ainda respeita diálogos entre o pensamento deleuzeano e os
conceitos de memória de Henri Bergson e David Hume.
PALAVRAS-CHAVE:
ABSTRACT
What a picture informs us? How proof of that scene had painted, is the access that it
give to the past of totality? Do in the reading of the photografic image we consider the
informations of what kind os past? Those are questions that incite the research present,
introduced, here, like partial result in form of paper. The ideas enclosed on her refer to
the relationship between photography and memory. The French philosopher Gilles
Deleuze´s reflections are considerated. The photography’s understood like, whereof this
philosopher, the creation process of pasts. The ideas of the next pages enable us to
understand that when we reading a picture, the imaginary action is so considerable that
the past joined is in the present. That is to say, the photographic images signs enable
reading the past whereof presents sensation. The memory applied on photgraphy is a
retrofit. The research respect the dialogue between Deleuze’s thought and the memory
concept of David Hume and Henri Bergson.
KEYWORDS
SUMÁRIO
Introdução..............................................................................................................10
2. Fotografia e memória....................................................................................41
2.1. Memória e decifração.......................................................................................42
2.2. Fotografia, memória e conotação.....................................................................46
2.3. A fotografia e os signos...................................................................................49
2.4. A memória e os fragmentos fotográficos........................................................57
2.5. A memória e os signos fotográficos................................................................64
2.6. Fotografia e imaginação..................................................................................68
2.7. A fotografia como simulacro...........................................................................76
2.8. A fotografia e a criação de passados...............................................................82
3.Considerações.......................................................................................93
Referências.........................................................................................................95
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Introdução
como uma cópia sem semelhança, nos servirá de inspiração para que entendamos o que
a fotografia nos permite criar diante dela.
Antes, porém, de nos debruçarmos sobre esta categoria, deveremos recorrer a
outros dois autores que influenciaram consideravelmente o pensamento deleuzeano no
que diz respeito à memória: David Hume e Henri Bergson. Do primeiro, será importante
compreender a importância de uma outra faculdade auxiliar e complementar à memória:
a imaginação. Ou seja, reconhecer a ideia de simulacro na fotografia não será possível
senão tocando este tema da imaginação, tal qual a apresenta Hume. Na presente
pesquisa, o tom da participação humeana se dá no sentido de que na dedicação ao
exercício mnemônico, imaginar é fundamental. Sem falar que, para ele, muitas vezes o
que entendemos por memória é, na verdade, investida da imaginação. A convivência
entre estas duas faculdades exige um rigor de nós para que as ideias de uma não sejam
confundidas com as da outra. Contudo, para o contexto deste trabalho, interessa esse
grau de discussão sobre o quão importante é a imaginação num processo de observação,
como é o caso da de uma imagem fotográfica.
Em determinado momento do trabalho, abandonamos estas considerações
humeanas seguindo em direção a um outro filósofo, também dedicado ao tema da
memória: Henri Bergson. Dele, importa à pesquisa a ideia de que ao exercitarmos a
memória, prevalecerão as sensações presentes que temos reunidas no corpo. Ou seja, o
pensamento bergsoniano entende que a memória é um processo permanente de
atualização. Um fato passado é lido no presente, com sensações igualmente presentes, a
partir do que ele chama de elementos sensório-motores, que estão no corpo.
Notemos, então, que o caminho até o conceito deleuzeano de simulacro é
preparado a partir de diálogos com dois autores que pensaram sobre o mesmo tema.
Eles atuam como uma espécie de complemento à concepção de Deleuze sobre a
memória. Ou melhor, é como se neste último, encontrássemos o amadurecimento de
argumentos que permeiam as três diferentes obras. Além disso, ao nosso entender,
aquilo que Deleuze chamará de simulacro, encontra correspondência direta no debate
humeano sobre a imaginação e na atualização bergsoniana.
Destacada esta influência, a pesquisa, ainda no primeiro capítulo, vai estabelecer
esta aproximação entre os autores, delineando a ferramenta analítica a ser aplicada no
capítulo seguinte. Nessa primeira parte, o que se verá é uma apresentação do conceito
de simulacro, apreendido da obra de Deleuze, e respeitando os diálogos possíveis entre
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Sobre a percepção, por mais breve que ela seja “ela ocupa sempre uma certa
duração, e exige consequentemente um esforço da memória, que prolonga uns nos
outros, uma pluralidade de momentos” (BERGSON, 2006, p. 31).
É recorrente nessa argumentação a ideia de até onde é possível estabelecer uma
relação entre um fato e a lembrança real que se tem dele. Baseado nisso ele pensa que
uma imagem pode ser sem ser percebida, pode estar presente sem estar representada.
Neste sentido, a distância entre presença e representação parece medir o intervalo entre
a própria matéria e a percepção consciente que temos dela. Pensando em como se pode
transformar a existência pura e simples de um objeto material – que é a representação de
uma imagem –, Bergson sugere que se suprima de uma só vez o que a segue, o que a
precede e também o que a preenche, não conservando mais do que sua crosta exterior,
sua película superficial (BERGSON, 2006, p. 33).
Conceituando agora o segundo elemento do dueto sugerido anteriormente, diz-se
que há momentos em que percepções e lembranças vão se confundir. Nesse sentido, a
concepção bergsoniana entenderá sobre a lembrança:
[...] à medida que se torna mais clara e mais intensa, tende a se fazer
percepção, sem que haja momento preciso em que uma transformação radical
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Sobre as lembranças, Bergson observa que não há nem pode haver no cérebro
uma região onde elas se fixem e se acumulem. A lembrança é a representação de um
objeto ausente. Chamadas do fundo da memória, as ideias ou as lembranças puras
desenvolvem-se em lembranças-imagens cada vez mais capazes de se inserirem num
esquema motor. É o que justifica a observação de Bergson sobre a semelhança de
características com a percepção. Afinal, conforme essas lembranças adquirem a forma
de uma representação mais completa, mais concreta e mais consciente, elas tendem a se
confundir com a percepção que as atrai. Nem na percepção, nem na memória, nem nas
operações superiores do espírito, o corpo contribui diretamente para a representação.
Nesta relação da memória com o corpo, dir-se-ia que uma memória
independente junta imagens ao longo do tempo à medida que são produzidas e nosso
corpo, vale ressaltar, é mais uma dessas imagens. O nosso corpo seria, deste modo, a
última imagem que obtemos a todo momento praticando um corte instantâneo no devir
em geral.
O corpo é entendido também como um limite movente entre o futuro e o
passado, como de uma extremidade móvel que nosso passado estenderia a todo
momento em nosso futuro. Corpo definido como um condutor interposto entre os
objetos que o influenciam e os objetos sobre os quais age e que, por outro lado,
recolocado no tempo que flui, ele está sempre situado no ponto preciso onde nosso
passado vem expirar numa ação.
Henri Bergson entende, portanto, que o resumo de todos os sentidos não é capaz
de dar a imagem completa de um corpo. Afinal, colher as percepções num conjunto
significa perceber conscientemente, escolher; e consciência, nestes termos, é sinônimo
de discernimento prático. As percepções de um mesmo objeto, por mais diversas, ainda
assim não reconstituirão a imagem completa do objeto.
Isso quer dizer que os nossos estados passados estão presentes em todas as
nossas decisões. Num exemplo, nosso caráter é formado a partir de nossa experiência
vivida. Conta, para isso, com o trabalho da consciência atual que, “a cada instante aceita
o útil e rejeita momentaneamente o supérfluo” (BERGSON, 2006, p. 171).
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Na distinção entre percepção e lembrança feita por Bergson parece estar uma
chave importante para entender o modo como se dá a (re)constituição de um fato
passado. Procedimento esse que vai sempre desembocar num processo sensório-motor.
Henri Bergson propõe que se deve entender por percepção, pelo menos
provisoriamente, não a percepção concreta e complexa, aquela que minhas lembranças
preenchem e que oferece sempre certa espessura de duração, mas a percepção pura.
Uma percepção que, segundo Bergson, existe mais de direito do que de fato e é capaz,
pela eliminação da memória sob todas as suas formas, de obter da matéria uma visão ao
mesmo tempo imediata e instantânea (BERGSON, 2006, pp. 32-33). Na percepção
pura, o objeto percebido é um objeto presente, um corpo que modifica o nosso.
O passado, então, nesse debate que leva ao encontro da memória, é um ponto de
saída. O passado é o que não atua mais. A memória, assim, não consiste numa regressão
do presente ao passado. Por isso ele enxerga que perceber é lembrar, já que a memória
enriquece nosso presente com as experiências adquiridas. Bergson aponta dois tipos
distintos de memória, mas que se vinculam.
A primeira delas é configurada sob a forma de imagens-lembranças e entendida
como a memória por excelência, a memória verdadeira. Está ligada a todos os
acontecimentos da nossa vida cotidiana à medida que se desenvolvem. Não
negligenciaria nenhum detalhe, atribuindo a cada fato, a cada gesto, seu lugar e sua data.
Coextensiva à consciência, ela retém e alinha uns após outros todos os nossos estados à
medida que eles se produzem, dando a cada fato seu lugar e consequentemente
marcando-lhe a data, movendo-se efetivamente no passado definitivo, e não, como a
outra, num passado que recomeça a todo instante. Nas palavras precisas de Bergson,
isto é posto da seguinte maneira:
Quando o cão acolhe seu dono com festa e latidos alegres, ele o reconhece,
sem dúvida nenhuma; mas esse reconhecimento implica a evocação de uma
imagem passada e a reaproximação dessa imagem à percepção presente?
(BERGSON, 2006, p. 89).
Ao responder, a explicação de Bergson assinala que o cão até pode ter o passado
inteiramente desenhado em sua consciência, mas esse passado não o interessa o
suficiente para separá-lo do presente que o fascina e seu reconhecimento deve ser antes
vivido do que pensado: “Para evocar o passado em forma de imagem, é preciso saber
dar valor ao inútil, é preciso querer sonhar” (BERGSON, 2006, p. 90).
As observações fazem parte da discussão proposta por um pensador que acredita
que não há percepção que não se prolongue em movimento. Para ele, a educação dos
sentidos consiste precisamente no conjunto das conexões estabelecidas entre a
impressão sensorial e o movimento que o utiliza. Com a repetição da impressão, a
conexão se consolida.
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Este movimento conectado com a impressão sensorial tem relação direta com o
deslocamento que o presente exerce sobre o passado. Nestes termos, a supressão das
antigas imagens resulta de sua inibição pela atitude presente. As imagens que poderiam
se enquadrar nessa atitude encontrarão um obstáculo menor que as outras; e, se, a partir
de então, alguma delas for capaz de superar o obstáculo, é a imagem semelhante à
percepção presente que irá superá-lo (BERGSON, 2006, p. 108).
A memória pode fortalecer e enriquecer a percepção, atraindo um número
crescente de lembranças complementares. No que diz:
Outro fator importante que deve ser incluído nesta discussão sobre o lugar da
lembrança ou do passado, é o corpo. Para começar, conforme a argumentação
bergsoniana, nossa consciência do presente já é memória. E, nisso, cabe dizer que ela
está justamente no corpo. Corpo este que não é nada mais que a parte invariavelmente
renascente de nossa representação. É a parte sempre presente, ou aquela que acaba a
todo momento de passar. Bergson diz:
Sendo ele próprio imagem, esse corpo não pode armazenar, já que faz parte
das imagens; por isso é quimérica a tentativa de querer localizar as
percepções passadas, ou mesmo presentes, no cérebro: elas não estão nele; é
ele que está nelas (BERGSON, 2006, p. 177).
em vão, então, buscar a leitura do passado no presente, caso este passado não se
depositasse nele na condição de lembrança.
Com esta conclusão bergsoniana, somos conduzidos ao complemento desta
conceituação de memória que se dará a partir do pensamento de Gilles Deleuze. Os
argumentos que apreendemos do pensamento bergsoniano parecem encontrar pertinente
continuidade nas ideias deleuzeanas. Ou seja, o entendimento de que o passado é dado
no presente, começa a ser delineado a partir do que pensa Henri Bergson. Busca-se o
diálogo com Deleuze, exatamente pelo fato de que em seu Matéria e Memória, Bergson
se dedicará a entender como, dentro do exemplo da memória, se dá a relação entre as
realidades do espírito e da matéria. Em outras palavras, interessará a ele o
esclarecimento de como se dá o problema da relação do espírito com o corpo,
conduzindo as ideias bergsonianas sobre a memória para a compreensão da vida
psicológica humana, o que exige de nós um distanciamento ou, em últimos fins, uma
busca pelo complemento da determinação do conceito de memória em questão em outro
lugar.
A continuidade está no destaque do modo como essa noção de memória emerge
do pensamento deleuzeano. Na abordagem deleuziana, este debate ganha forma naquilo
que diz respeito à relação dos signos com a memória. A conclusão de Bergson, em
Matéria e Memória, é compartilhada com Deleuze, na medida em que este último
entende “que a memória intervém como um meio de busca, mas não é o meio mais
profundo; e o tempo passado intervém como uma estrutura do tempo, mas não é a
estrutura mais profunda” (DELEUZE, 2006, p. 3).
A definição de memória, para Deleuze, repousa no estabelecimento de um
diálogo com os signos tal como entendeu Charles Sanders Peirce. Se em Hume, a
memória está apresentada em contraposição à imaginação, e em Bergson ela é intrínseca
aos mecanismos sensório-motores, para Deleuze tudo isso deve considerado com base
no papel exercido pelos signos.
Nesses termos, ele fala, então, de uma estrutura superficial que diz respeito ao
presente, às sensações presentes. Mergulhar no passado não é possível, senão por meio
da análise em que se leva em consideração o que se conhece. E esse mergulho no
passado se dá por meio de signos, condição essencial para um jogo de interpretação.
Esta é a tônica da seção seguinte, em que haverá prioridade para a forma como memória
e signo se relacionam no pensamento de Deleuze. É bom que se note que, a seguir, vão
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Antes de chegar a esta associação entre memória e signos, que é o que nos
interessará, essencialmente, na filosofia deleuzeana, definimos como pertinente
compreender certo entendimento dele para com a faculdade da memória. Tratando deste
tema, Gilles Deleuze entende que o passado encontra-se encerrado entre dois presentes:
“aquele que ele foi e aquele em relação ao qual ele é passado” (DELEUZE, 2006, p.
124). Esta é uma das passagens de Diferença e Repetição, de onde também
apreendemos que “o atual presente não é tratado como o objeto futuro de uma
lembrança, mas como o que se reflete ao mesmo tempo em que forma a lembrança do
antigo presente” (DELEUZE, 2006, p. 125).
A partir daí dizemos que o entendimento de memória de Deleuze passa,
necessariamente, por Hume e, principalmente, por Bergson. Sobre este último, utilizo
evidências dos escritos do próprio Deleuze. Em Diferença e Repetição, ele dá provas do
que o interessa na filosofia bergsoniana, no que tange à memória, tratando do que ficou
conhecido como paradoxos do passado, numa referência a quatro questões pelas quais
Bergson buscava compreender e resolver o problema do passado puro. No
esclarecimento destes paradoxos fica nítida a tentativa de entender as relações entre o
passado e o presente. E, talvez daí, ficam claras as passagens iniciais desta seção
(conceitos deleuzeanos de memória) visto que a partir destes paradoxos, ele chega ao
entendimento de que o passado é, e não, era ou foi, como se poderia definir. Isto é, o
passado insiste com um antigo presente e consiste com atual e o novo. O passado é
sempre contemporâneo.
Parecem claras as influências de Bergson em Deleuze. A propósito, o próprio
reconhecimento deste último à obra do primeiro já bastaria, se levamos em consideração
O Bergsonismo, escrito por Deleuze. Mas cabe perguntar: onde estão os vestígios de
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Sanatella. Assim, estes signos seriam entendidos como algo que representam uma outra
coisa: seu objeto. E eles só podem representar seu objeto para um intérprete. Por
representar seu objeto, dirá Santaella, “produz na mente desse intérprete alguma outra
coisa (um signo ou quase-signo) que também está relacionada ao objeto não
diretamente, mas pela mediação do signo” (SANTAELLA, 2005, p. 58). Neste
processo, o interpretante seria aquilo que não se refere ao intérprete do signo, mas a um
processo relacional que se cria na mente do intérprete. Para a autora, o que Deleuze
entende por decifração ou interpretação será explicado desta maneira:
o exemplo de que rever pessoas que nos foram muito familiares é sinônimo de uma
revelação, já que seus rostos não mais habituais para nós trazem, em estado puro, os
signos e os efeitos do tempo. Os traços estão modificados. Essas mudanças são
entendidas, na obra de Proust, como uma corrida para o túmulo e não como uma
duração bergsoniana, que podemos entender da seguinte maneira.
É que a questão envolvendo passado e presente e a maneira como um pode
sucumbir diante do outro, rememora a importância de um termo caro no pensamento
bergsoniano: duração; e sua ligação com as lembranças. Contrariando psicólogos,
Bergson diz que:
Nesse mesmo sentido, fala-se dos signos sensíveis, também caracterizados como
signos de alteração e de desaparecimento. Sobre isso, Deleuze cita o exemplo escrito
por Proust, em que a botina e a lembrança da avó fazem sentir uma ausência dolorosa e
constitui o signo de um “tempo perdido” para sempre. Neste caso, o personagem, diante
da botina, chora porque uma memória involuntária lhe traz a lembrança desesperadora
da avó morta. Essa memória involuntária é uma sensação antiga que tenta se superpor,
se acoplar à sensação atual, e a estende sobre várias épocas ao mesmo tempo.
Outra definição de memória que se apreende de Proust e os Signos é o de que
ela implica “a estranha contradição entre a sobrevivência e o nada”, a dolorosa síntese
da sobrevivência e do nada. Daí porque o entendimento deleuzeano de que os signos
(mundanos, os do amor e os sensíveis) são signos de um tempo perdido: “são signos de
um tempo que se perde” (DELEUZE, 2006, p. 19). Nesse tempo que se perde há
verdades a serem descobertas, o que resulta no aprendizado. É por intermédio de signos
que se aprende. No caso do tempo que se perde e do tempo perdido, é a inteligência, e
apenas ela, que é capaz de tornar possível o esforço do pensamento, ou de interpretar o
signo.
As possibilidades múltiplas de entendimento parecem coadunar com a
capacidade sígnica de despertar a prática do aprendizado diante de uma referida
imagem. Deve-se abrir parêntese para esta questão do aprendizado, tão importante na
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que diz Bergson, Deleuze cita que nós não percebemos uma imagem inteira.
Percebemos sempre menos, apenas o que estamos interessados em perceber, “ou
melhor, o que temos interesse em perceber, devido a nossos interesses econômicos,
nossas crenças ideológicas, nossas exigências psicológicas” (DELEUZE, 2005, p. 31).
Aplicando essa ideia ao cinema, Deleuze diz que ele não apresenta apenas
imagens, mas as cerca com um mundo. Dando continuidade a esse tema, ele relembra
mais uma vez Bergson, dizendo que essa imagem é bifacial, atual e virtual:
Importante dizer que atual e virtual, apesar de distintos, são indiscerníveis e não
param de inverter seus papéis. Quando essa imagem virtual se torna atual, ela é visível e
límpida, como um espelho ou num cristal terminado. Por outro lado, quando a virtual se
torna atual ela é invisível, opaca e tenebrosa, como um cristal que mal foi retirado da
terra. Levando isso às últimas consequências, a própria imagem atual tem uma imagem
virtual que a ela corresponde, como um duplo ou um reflexo. É como se no final disso o
par virtual-atual se prolongasse imediatamente em opaco-límpido, que é a expressão que
marca essa troca.
Ao conceituar o flash-back, a argumentação de Deleuze continua com a
definição de memória, entendida por ele numa associação com a conduta. Conforme
essa argumentação, é no presente que se faz uma memória, para ela servir no futuro,
quando o presente for passado. Assim, a memória tem a função do futuro que retém o
que se passa para dele fazer o objeto por vir da outra memória. A memória é definida a
partir da análise da obra do cineasta Mankiewicz, de que ela “nunca poderia evocar e
contar o passado, se não se tivesse constituído no momento em que o passado ainda era
presente, portanto, com um objetivo por vir” (DELEUZE, 2005, p. 68).
Nessa perspectiva, é possível dizer que o atual é sempre um presente que muda
ou que passa. É possível até dizer, nesse debate, que o presente se torna passado quando
já não é. É como se cada momento oferecesse dois aspectos: ele é atual e virtual, de um
lado percepção e de outro, lembrança.
Evocando Bergson, a imagem virtual pura é o que se pode chamar de lembrança
pura, que é distinta das imagens mentais, das imagens-lembrança, sonho ou devaneio.
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Estas últimas são imagens virtuais. Essa imagem virtual se define em função do atual
presente, do qual ela é o passado. Ela é a imagem virtual que corresponde a tal imagem
atual, em vez de se atualizar, de ter de se atualizar em outra imagem atual. É o que ele
chama de uma imagem-cristal. Numa exemplificação, ele diz que não é na imagem-
lembrança, mas na lembrança pura que permanecemos contemporâneos da criança que
fomos.
Essas imagens-lembrança são encontradas em estratos definidos como lençóis de
passado. Estabelecendo uma exemplificação, é como se cada um ou cada acontecimento
tivesse um lençol de passado. É como se diante de uma fotografia de um fato que não
conhecemos, recorrêssemos a distintos lençóis de passado. Nestes lençóis, as imagens-
lembrança encontradas seriam diferentes. É o que possibilita a diversidade de recriações
diante de um determinado fato.
Nesse sentido, é feita uma referência à renovação da equivalência platônica
criar-lembrar feita por Marcel Proust. Trabalha-se com a idéia de que criar e lembrar
nada mais são do que dois aspectos da mesma produção – “o interpretar, o decifrar, o
traduzir constituem o próprio processo de produção” (DELEUZE, 2006, p. 139).
Essa tradução também parece ter relação com aquilo que se chama de lençóis do
passado. Para isso, citamos um exemplo que deixa claro o modo como recriamos um
fato, ou deciframos, com base num amplo repertório, composto por várias situações:
realidade. Se ele não é capaz de saber todas as coisas, de criar a verdadeira realidade,
então ele criará ficções verbais, causando a sensação de que tudo o que ele fala, sobre
todas as coisas, é verdadeiro. Por isso, o sofista é considerado como um mágico, um
imitador de realidades. E diante destas características, o Estrangeiro questiona qual deve
ser o nome do resultado deste exercício do sofista:
Mas que nome daremos ao que parece copiar o belo para espectadores
desfavoravelmente colocados, e que, entretanto, perderia esta pretendida
fidelidade de cópia para os olhares capazes de alcançar, plenamente,
proporções tão vastas? O que assim simula a cópia, mas que de forma alguma
o é, não seria um simulacro? (PLATÃO, 1972, 161)
No que Teeteto concorda que sim, dizendo que a arte da produção imagens tem
duas formas: a arte da cópia e a arte do simulacro. Por fim, nesta breve seção do Sofista,
o Estrangeiro reconhece estarem ele e Teeteto diante de uma questão “Extremamente
difícil”, que é a do de uma coisa poder mostrar e parecer sem ser, dizer algo sem,
entretanto, dizer com verdade (PLATÃO, 1972, 162).
Desta contribuição platônica apreendemos que, de uma maneira ilustrativa, toda
imagem é uma cópia dessemelhante em relação ao seu original. O que nos leva a
questionar a natureza das imagens de reprodução da realidade.
Evidentemente que de toda esta discussão vai nos interessar para seguir em
direção ao pensamento de Gilles Deleuze sobre esta categoria, o simulacro. Não
continuar seguindo os passos de Platão talvez seja a melhor escolha, visto que no
próprio texto do Sofista, interessará a ele questionar a natureza da existência das coisas.
Acreditamos que optar por continuar na concepção platônica seria questionar se a
reprodução do real é, ou não, alguma coisa. E não é este o caminho do presente
trabalho, na medida em que nos interessa fazer questionamentos a partir da ideia de que
sim, esta reprodução, mesmo diferente do seu objeto real, é alguma coisa. Sendo assim,
a nossa escolha é por seguir os passos de Deleuze, tentando traçar o seu entendimento
para esta categoria e de que modo a compreensão do pensamento dele sobre o tema nos
motivará na construção de uma ferramenta analítica.
No debate deleuzeano, os signos imagéticos nos aproximarão desta questão cara
ao pensamento de Deleuze, concernente ao simulacro. Neste entendimento do pensador
francês em torno da memória não poderá faltar esta noção que mereceu destaque em
algumas de suas obras, como foi o caso de A Lógica do Sentido. A questão toda é
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“como relacionar memória com aquilo determinado como simulacro”? Ou “de que
modo os signos permitem a relação com o simulacro”?
A começar por uma distinção feita por Deleuze entre boas cópias e simulacros,
assim iniciaremos:
As cópias são possuidoras em segundo lugar, pretendentes bem fundados,
garantidos pela semelhança; os simulacros são como os falsos pretendentes,
construídos a partir de uma dissimilitude, implicando uma perversão, um
desvio essenciais. É neste sentido que Platão divide em dois o domínio das
imagens-ídolo: de um lado, as cópias-ícones, de outro os simulacros-
fantasmas (DELEUZE, 1974, p. 262).
afrouxada, passa-se à margem da essência. O simulacro seria, assim, uma imagem sem
semelhança, enquanto a cópia é uma imagem dotada de semelhança. Ao considerarmos
o simulacro, há uma reversão do platonismo e a aceitação de uma multiplicidade
falsificante do mundo.
A cópia, por sua vez, é dividida em dois tipos por Platão: a boa cópia, que é
aquela bem fundada, o ícone, que é uma imagem dotada de semelhança; a má cópia é a
que implica uma perversão, o simulacro-fantasma, uma imagem sem semelhança. Nessa
perspectiva, o platonismo estaria, então, construído sobre a vontade de expulsar os
fantasmas ou simulacros.
É o que faz com que Deleuze seja um antiplatônico. Isso porque Deleuze
considera os simulacros não como simples imitações, como uma cópia de cópia, uma
semelhança infinitamente diminuída, um ícone degradado, mas como uma maquinaria,
uma máquina dionisíaca, uma potência positiva que, quando não é mais recalcada, ela é
a própria coisa. Se no platonismo a idéia é a coisa, na reversão do platonismo cada coisa
é elevada ao estado de simulacro.
Um exemplo dado por Deleuze é bem esclarecedor nesse sentido, permitindo-
nos entender o modo como compreende o simulacro dissociado da coisa. Ele fala do
catecismo, que foi influenciado pelo platonismo, e responsável pela noção de que Deus
fez o homem à sua imagem e semelhança, mas que, pelo pecado, perdeu essa
semelhança embora conservasse a imagem. Conclui-se que tornamo-nos, assim,
simulacros, perdendo a existência moral para entrarmos na existência estética. Dessa
forma, o simulacro interioriza uma dissimilitude, por não ser possível defini-lo com
relação ao modelo que se impõe às cópias, modelo do Mesmo do qual deriva a
semelhança das cópias. “Se o simulacro tem ainda um modelo, trata-se de um outro
modelo, um modelo do Outro de onde decorre uma dessemelhança interiorizada”
(DELEUZE, 1974, p. 263). O que quer dizer que o simulacro não é uma cópia
degradada, mas encerra uma potência positiva que nega tanto o original como a cópia,
tanto o modelo como a reprodução. Nenhum modelo resiste à vertigem do simulacro.
Nestes termos, estamos a falar dos efeitos exteriores ao simulacro, relacionados
ao conceito de simulação. Essa simulação é o próprio fantasma, ou seja, o efeito do
funcionamento do simulacro enquanto maquinaria, máquina dionisíaca. O que quer
dizer que o mesmo e o semelhante não têm mais por essência senão ser simulados, isto
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eróticos também são constituídos por simulacros emitidos por objetos muito diversos,
aptos a se condensar. A imagem constituída por esses simulacros está ligada ao objeto
de amor real. No entanto, este objeto não pode ser absorvido nem possuído. Somente a
imagem inspira e ressuscita o desejo, miragem que não assinala mais uma realidade
consistente.
O outro fator determinante em relação a esse movimento, ação do simulacro, é o
tempo. Por causa disso, o movimento talvez seja constitutivo dos “acontecimentos”.
Este acontecimento exprime aquilo que se dá e que se vai sem destruir a natureza da
coisa, num movimento compatível com sua ordem, que seriam os movimentos dos
compostos e de seus simulacros, ou os movimentos e colisões de cada átomo. Voltando
ao tempo, é como se os simulacros não fossem percebidos em si, mas somente numa
somatória num mínimo tempo sensível (imagem).
A imagem prova a sucessão e a somatória dos simulacros que se fazem num
tempo menor que o mínimo de tempo contínuo sensível. Por sua vez, os simulacros
inspiram à sensibilidade um falso sentimento da vontade e do desejo. Nesse sentido,
eles produzem a miragem de um falso infinito nas imagens que formam, e fazem nascer
a dupla ilusão de uma capacidade infinita de prazeres e de uma possibilidade infinita de
tormentos, exemplificando a partir de uma sugerida mistura de avidez e de angústia, de
cupidez ou culpabilidade tão características do homem religioso.
Nesta terceira espécie dos simulacros, o fantasma, que é a mais rápida, assiste-se
ao desenvolvimento da ilusão e dos mitos que a acompanham. Ela mistura teologia,
erotismo e onirismo. No caso do desejo amoroso, por exemplo, ele não possui senão
simulacros que lhe fazem conhecer o amargor e o tormento, mesmo no prazer que ele
deseja infinito. Do mesmo modo, nossa crença nos deuses repousa em simulacros que
nos parecem dançar, modificar seus gestos, lançar vozes que nos prometem penas
eternas, em suma, representar o infinito.
Numa aproximação entre os conceitos propostos nesta seção, essa capacidade do
simulacro de provocar ilusões diferenciais está ao lado do resultado provocado pelo
exercício da memória, do modo como a temos entendido. Ora, já foi posto que a
memória considerada, aqui, permite as investidas de uma atualização dada no presente.
Há, portanto, o distanciamento de uma suposta essência e, por outro lado, a elaboração
de uma nova realidade. Se o passado não é unívoco, a sua recriação respeitará sempre
um roteiro heterogêneo, variável segundo cada experiência.
39
fazendo surgir uma nova apresentação de um mesmo real. Como também já foi
explicitado, neste capítulo mesmo, deixamos Bergson nestas contribuições, seguindo
em direção a Deleuze, por estar nele o foco principal do que nos servirá de base no
segundo capítulo.
Em Deleuze, encontramos, pois, o ponto alto desta questão que relaciona
memória e simulacro. Afinal de contas, ele é o motivador para pensarmos nisso. E,
neste sentido, está na essência do pensamento dele a saída para justificarmos esta
constatação. Para começar, não devemos nos esquecer que Deleuze é um filósofo da
diferença, e a partir das suas leituras de pensadores clássicos faz brotar os conceitos
diferenciais que constituirão a sua filosofia. Ou seja, a partir da repetição de ideias
filosóficas, artísticas, literárias, etc. ele faz surgir uma filosofia diferencial. Isto, por si
só, já demonstra que a busca pelo múltiplo está no cerne do pensamento dele.
Das coisas, ou da interpretação delas, será possível sempre o surgimento de
duplos ou múltiplos, utilizando termos recorrentes na obra dele. O que, para o que nos
interessa por ora, nos conduz para esta discussão em torno do simulacro e da memória.
Em que medida?
Considerando um simulacro, constituído por signos, diremos que ele vai
provocar a nossa memória. Ele vai suscitar, em nós, lembranças ou a tentativa de busca
por elas. Nesta investida, pesarão as nossas influências pessoais, como a formação
religiosa ou cultural, e o diálogo com este simulacro será variável conforme haja
mudança de observador. Logo, as memórias que serão criadas em torno do simulacro
são múltiplas. O resultado do exercício mnemônico, em Deleuze, é um simulacro
tipicamente deleuzeano. A memória vai guardar características semelhantes ao seu
passado, porém de um modo geral, será caracterizado como algo novo.
Este modo como entendemos o simulacro nos serve como condição fundamental
para a construção da ferramenta analítica que aplicaremos na segunda parte deste
estudo. Quer dizer, esta maneira de associar memória, signos e simulacro, permeará a
seguinte seção, em que se busca compreender como se dá a referida relação numa
ontologia da imagem fotográfica. Nesta segunda parte, esta ferramenta parece ficar mais
clara, mais compreensível, já que algumas aplicações são propostas.
41
2. Fotografia e memória
Nesta segunda parte do trabalho, a ênfase recai sobre a relação entre a memória
e a fotografia. Nela, aplicamos a ferramenta analítica construída a partir do confronto de
ideias, cujo ponto mais alto está no pensamento do filósofo Gilles Deleuze. Com a
noção de memória já construída no capítulo anterior, aqui há um aprofundamento de
como é estabelecida esta relação fotografia-memória. Isso, a partir da leitura de
pensadores clássicos da área da fotografia e também da aplicação dos pensamentos
filosóficos que temos amadurecido até esta parte da dissertação. A discussão feita no
primeiro capítulo nos dará um direcionamento para a leitura dos autores clássicos da
fotografia, permitindo-nos um posicionamento diante de uma ontologia da imagem.
É notável, nesta parte do trabalho, a atenção dispensada aos signos e às
exigências de decifração feitas pelos elementos constituintes da imagem fotográfica. A
partir de exemplos de abordagem da fotografia pelo cinema, argumentamos em favor da
hipótese de que a fotografia funciona como uma modalidade de criação de passados.
Num primeiro momento, trazemos exemplos como o do filme Blow-up, de
Antonioni, que ilustra bem a reflexão estabelecida em torno desta necessidade de
decifração diante da análise fotográfica. Exemplificações que dividem espaço com o
confronto teórico entre as ideias de Hume, Bergson e, principalmente, Deleuze.
Este segundo capítulo tratará, também, da interferência da imaginação no
processo de interpretação da imagem fotográfica. O que demonstrará os ruídos causados
na relação entre fotografia e memória por esta outra faculdade. Nesta seção, começa a
ganhar corpo a ideia de que a memória é atualizada com base no presente e de que há
um caráter de aprendizado quando se debruça sobre uma leitura imagética.
A fotografia, nesta seção, será entendida como instrumento capaz de ajudar na
descoberta de tempos, exatamente a partir do entendimento de memória indicado. Uma
descoberta possível a partir da atuação dos signos fotográficos, que têm a força de
violentar a memória e fazer com que a imaginação seja ressaltada.
É ainda neste capítulo que será dada uma prova do diálogo entre os signos e a
possível criação de múltiplos passados diante de uma mesma foto. Os signos em
questão advêm da concepção peirceana que, a partir de sua sistematização categorial,
divide o signo em três: ícone, índice e símbolo. Interessará ao trabalho compreender de
que forma a fotografia, como um fragmento espaço-temporal, e como um signo, acende
42
as ideias da imaginação, a ponto de fazer com que esta faculdade, por vezes, sobreponha
a memória. Este último capítulo merece atenção, acima de tudo, por implicar na
aplicação da ferramenta analítica construída na primeira metade do trabalho.
corpo, tal como argumenta Bergson. Recorre-se ao lençóis do passado que cada um tem,
reforça Deleuze.
A recorrência a estes lençóis de passado tem, nos signos, uma válvula de escape.
Quer dizer, se não é possível redescobrir o passado real, retratado na fotografia, os
signos ajudam numa descoberta de passados particulares. À luz de Deleuze, o caminho
para descobrir estes passados passa pelos signos. É aí que ele considera a classificação
de Charles Sanders Peirce, que entende os signos como algo que está no lugar de
alguma coisa para alguém, em alguma relação ou alguma qualidade. Considera-se as
três tricotomias a partir das quais Peirce divide os signos: conforme o signo em si
mesmo, conforme a relação do signo para com seu objeto e conforme seu interpretante o
interpreta. Isso significa dizer que o aprendizado possível diante das imagens se dá
justamente nesse jogo de atribuição de sentidos e de correlações com o que se conhece
previamente. Em certa medida, nessa liberdade de recorrer a um baú de lembranças
próprias, há, sim, espaço para as investidas da imaginação. No entanto, elas não
colocam essas lembranças num grau especulativo diante da cena retratada. Elas
despertam lembranças de outra natureza, tão reais quanto as que se tornaram ocultas na
fotografia. Os signos da fotografia, neste sentido, funcionarão como uma espécie de
forma do simulacro que se apresenta por meio da imagem.
Partimos do entendimento da memória, portanto, como a criação do passado.
Diante dele, acredita-se ser a fotografia um artefato pelo qual se cria e se imagina o
passado. Por meio dela, temos um acesso limitado ao real. Ela não dá a dimensão
precisa daquilo que está retratado. Ela traz, ocultamente, uma história, cujos mínimos
detalhes são, em sua completude, desconhecidos.
Um exemplo que ilustra bem o que se quer dizer é o filme argentino El Secreto
de Sus Ojos1. Nesse filme, produzido em 2009, a fotografia figura como uma chave
central da trama. É a partir da leitura de imagens fotográficas que o personagem
Benjamín Espósito, o primeiro Oficial de Justiça de um juizado, ajuda a desvendar um
crime. A análise dessas imagens e a apreensão do sentido se dão por meio de uma
atualização, de uma leitura de fotos feitas em momentos em que ele não esteve presente,
porém lida com a bagagem de sentidos trazida pelo investigador.
As fotografias, encontradas nos álbuns do viúvo da jovem professora Lilliana
Colotto, brutalmente assassinada em casa, evidenciavam um olhar apaixonado de
1
El Secreto de Sus Ojos. Direção: Juan José Campanella. Argentina. 2009.
45
Isidoro Gómez em direção à vítima quando eles eram muito jovens. Décadas depois
essa mulher é assassinada e o caso fica sob a responsabilidade de um homem que um
dia também foi apaixonado por uma jovem mulher e que também havia sido fotografado
num momento em que olhava apaixonadamente para a mulher que desejava. Nesse
momento em que o personagem Benjamín Espósito encontra essas fotografias antigas e
as compara com a foto em que ele olhava para Irene Menéndez Hastings, a Secretária do
Juizado, por quem ele era apaixonado, o oficial passa a trabalhar com a hipótese de que
Gómez é o principal suspeito do crime.
Ele leva em consideração que daquele grupo que está na fotografia, Isidoro
Gómez poderia ser capaz de ter matado Liliana, por amor. A partir de então, as
investigações tomam um novo rumo e, de fato, prova-se que ele é o assassino. O filme,
respeitando a devida dimensão fictícia, é um exemplo que evidencia essa capacidade
móvel da fotografia. Uma recriação que está ligada ao que é essencial na fotografia
presente no filme. Mais que isso, demonstra o caráter de decifração que permeia a
leitura da imagem fotográfica.
É interessante notar que a fotografia do filme em questão, provocou um novo
efeito e uma diferente interpretação. Conforme se foi contemplando, as imagens da
memória fizeram com que ela revelasse outras imagens de episódios esquecidos e de
expressões verbais que tiveram os seus significados alterados, com o correr do tempo.
Ao olhar para aquela fotografia, não era ela exatamente que Benjamín Espósito estava
vendo, mas sim outras imagens que se desencadearam na memória despertada por
aquela que estava diante dos olhos. Imagens armazenadas na memória dele e que
constituíram a chave do enigma em questão. O segredo que os olhos de Isidoro Gómez
guardava foi descoberto por Espósito não apenas pela evidência do gesto, mas por uma
decifração baseada num modelo que o investigador tinha em seu cabedal de lembranças.
A imagem fotográfica tem, portanto, uma mensagem para cada um de seus
observadores. Mensagem jamais única, a mensagem chega a todos aqueles que a lêem.
Quando se trata da memória nela contida, este passado é atualizado com base em
sensações atuais e o enigma por ela trazido é decifrado a partir de uma relação aberta.
Isso pelo fato de o real não poder ser apresentado por ela. A fotografia, vale dizer, não é
o registro da coisa em si, mas de um fenômeno. Este fenômeno fotográfico é recebido
por um sujeito individual que reconhece outras fotografias na fotografia em questão.
46
Dizemos isso porque uma foto, justamente por não se assemelhar ao objeto fotografado,
se assemelha, na verdade, a uma foto.
O fenômeno é o que é capturado pelas lentes fotográficas. O porquê, voltando ao
exemplo do filme supracitado, de Benjamín Espósito reconhecer naquela fotografia um
suposto acusado de um crime. É uma outra fotografia que o ajuda. A partir de seus
elementos, a fotografia nos coloca numa dada dimensão, permitindo, por isso, o
processo de decifração.
Tal como diante de um enigma, é como se a fotografia tivesse uma mensagem a
ser decifrada. E evidentemente que, ao falar disso, traz-se à cena o clássico debate em
torno da questão de que a fotografia é, ou não, um análogo perfeito do real. Mesmo
guardando características similares do objeto real, ou tendo a capacidade de registrar
características marcantes dele, quando se busca a memória do fragmento fotográfico,
entra em jogo esta necessidade de decifrá-la, de buscar fora dela, as referências de
leitura. São exigidos ao observador, critérios de conotação para melhor exercitar a
memória.
A memória reúne significados para os signos que são acionados pela fotografia,
quando esta serve de instrumento para o despertar de lembranças. Diante de uma mesma
situação fotografada as reações irão aos extremos.
Quando se circula pela superfície de uma imagem, o olhar tende sempre a se
voltar para elementos preferenciais. Eles passam a ser centrais e são portadores de
significados. O que nos leva a entender que as fotografias não são conjuntos de
símbolos com significados inequívocos, ou seja, não denotativos. Elas oferecem aos
seus receptores um espaço interpretativo, por meio de símbolos conotativos.
Desta discussão, inspirada nas ideias barthesianas, fica esta contribuição de que
muito do que percebe num exercício de memória advém desta capacidade conotativa da
imagem fotográfica. Os elementos conotativos funcionam suscitando a nossa
imaginação e forçando a nossa memória a buscar referências no presente, a fim de obter
uma compreensão de passado.
As reflexões barthesianas, deste modo, são inspiradoras no sentido de nos levar a
pensar que a capacidade conotativa da fotografia faz gerar um outro nível de sentido
para a fotografia em questão. Este outro sentido é totalmente aberto, permite o
desdobramento de asas fora de uma suposta essência dada. É como se a leitura ficasse
suspensa entre a imagem e a sua descrição. E, nisso, os signos têm papel fundamental.
Fazem, ao final das contas, com que a interpretação seja de certo modo indiferente à
história ou ao sentido principal, se é que ele existe.
São os signos os responsáveis por preencher este espaço que fica aberto entre o
observador e a imagem. Tal como numa linguagem, eles forçam o leitor a atribuir um
sentido aos mínimos detalhes, mesmo que não seja o sentido real. Nas páginas que
seguem, a fotografia é tomada como uma linguagem e seus signos merecem atenção.
Não seria muita novidade tratar da fotografia como sendo ela uma linguagem. O
próprio nome atribuído a esta técnica, em sua origem, sugere isso. Derivada dos termos
gregos photos e graphein, significa “escrita com a luz”. Mesmo antes disso, Joseph
Nicéphore Niepce chamou o processo em que imagem aparecia na chapa de heliografia,
cuja análise etimológica levará a “escrita do Sol”. Ou Fox Talbot, que chamava a
câmera fotográfica de “caneta da natureza”. Verdade seja dita, independente do modo
50
como seja definida, a fotografia tem elementos o bastante para ser tratada como uma
linguagem, dotada de códigos que convidam para um jogo de significação. Baseando-
nos numa antiga etimologia, a palavra imagem deveria estar ligada à raiz de imitari. E
essa representação analógica (a cópia) poderá produzir verdadeiros sistemas de signos, e
não apenas simples aglutinações.
Esta sistematização dos signos permite à fotografia ser uma linguagem
representativa de realidades. Ela acaba prevalecendo sobre as formas de arte, neste caso,
por ser dotada da capacidade de reproduzir ambientes de modo bem análogo (talvez o
mais análogo dos tipos de reprodução) à forma como eles aparecem.
Esta capacidade reprodutiva da fotografia não se faz senão por meio de dados do
que podemos identificar como conhecimento visual. E daí, talvez, a urgência e
necessidade em se falar de uma sintaxe visual. De modo parecido como num
alfabetismo verbal, é necessária a compreensão de um sistema de símbolos ou a
combinação das letras e dos sons, na linguagem visual existem linhas gerais para a
criação de composições. Há elementos básicos que podem e devem ser aprendidos e
compreendidos para que haja um entendimento, não tão rigoroso, vale notar, como
numa alfabetização verbal. O que quer dizer que mesmo sem passar por uma iniciação
ao alfabetismo visual é possível realizar a leitura de uma imagem. Ressalte-se que o
conhecimento de determinados fatores pode levar a uma melhor compreensão das
mensagens visuais, como afirma Donis A. Dondis:
fotógrafo tem o controle sobre seu trabalho e tem a oportunidade de expressar o sentido
que a imagem deseja transmitir.
O desejo de transmissão de determinado sentido pode esbarrar na sobreposição,
por vezes violenta, que alguns elementos visuais exercem nesse instante de atribuição
de sentido. Destaco quesitos como a linha, a cor, a direção, a forma, a textura, a escala,
a dimensão ou o movimento. Critérios cujo significado é variável para cada um e que
vistos numa fotografia podem significar diferentes coisas. Uma lição muito exemplar de
quais elementos podem e devem ser considerados na leitura da fotografia é o filme
Letter to Jane2, dirigido por Jean-Luc Godard e Jean-Pierre-Gorin, em 1972, em que há
uma desconstrução de uma fotografia publicada numa revista francesa, em que aparece
a atriz Jane Fonda, que recebe críticas nesta leitura. A fotografia de Jane Fonda, tirada
pelo fotógrafo Joseph Kraft, foi publicada no jornal francês L’Express, no início do mês
de agosto de 1972, no instante em que ela estava diante de vietnamitas. A foto foi tirada
a pedido do governo do Vietnã do Norte como representante, na ocasião, da aliança
revolucionária entre os povos do Vietnã do Sul e do Vietnã do Norte.
Este filme, para Susan Sontag, é uma aula de como decifrar a natureza não
inocente do enquadramento, do ângulo ou do foco numa foto (SONTAG, 2004, p. 124).
Entendemos esta conclusão quando ouvimos uma voz em off dizer que para a leitura da
imagem, deve-se levar em consideração alguns elementos elementares da imagem,
como a disposição de olhos e boca, ou o enquadramento. Como toda foto é fisicamente
muda, alerta o narrador, é preciso recorrer às peças que a compõem. No caso do filme,
os autores recorrem a partes que eles classificarão como elementos, cada um composto
por determinadas pequenas partes. Dos elementos menos elementares, se falará de
quesitos como a posição da câmera e de como pode haver audácia ao se optar por
recursos como o contra-picado, explicado pelo narrador como um recurso muito
utilizado pelo cinema, a exemplo de Orson Welles. Na referida foto, a expressão da atriz
Jane Fonda é valorizada e não é possível ver o que ela está olhando. “Enquadra-se a
atriz”, diz o narrador em off, “como se ela fosse a vedete”.
O segundo, ele chamará de elementos e a valorização recai no sentido da
fotografia, de sua mensagem. Onde cabe perguntar se aquela foto serve somente ao
Vietnã e à causa vietnamita, ou também funciona nos EUA ou na França. O filme, com
esta leitura arrojada, não nos permite perder de vista que a principal discussão é o
2
Letter to Jane. Direção: Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin. França. 1972.
52
porquê de Jane Fonda ter sido fotografada naquela situação e o porquê de a Aliança
Revolucionária utilizar esta imagem como símbolo de uma luta. Quer dizer, a imagem
de uma estrela “militante”.
Notemos que a interpretação desta imagem se dá num contexto extremamente
específico. Os dois diretores haviam dirigido um filme três meses antes da realização
daquela foto. E o questionamento que fazem, diz, exatamente, respeito a isso. Ou seja,
como é que Jane Fonda, uma atriz reconhecida internacionalmente, pôde ter sua imagem
utilizada numa causa tão específica, de um povo tão característico? Os argumentos dos
diretores, nesse sentido, se baseiam num outro elemento da própria fotografia. Por que a
imagem da atriz aparece de forma tão nítida e em primeiro plano, sendo que a expressão
de um jovem vietnamita é exibida de um modo tão tímido, tão secundário, tão opaco?
Não seria mais interessante, perguntam os autores desta carta para Jane, que os nativos,
com expressão tão sugestiva e autêntica, fossem os protagonistas?
Eis uma análise discursiva da imagem. Vale muito mais o entendimento do
cenário ideológico que ambientaliza esta interpretação, do que necessariamente entender
o enredo do exato dia em que o momento foi registrado. Em instante algum há
referência à busca pelos dados precisos, pelo lugar onde se deu a ação, ou mesmo quem
estava ali diante da atriz. O questionamento diante de saber por que a atriz e não outro,
no primeiro plano, é muito mais para argüir sobre as causas e motivos de fotografar uma
pessoa famosa internacionalmente a optar por um anônimo que representasse de forma
caracterizada um símbolo daquele povo.
No que concerne à memória, a evocação que se faz diz respeito ao vivido pelos
autores da carta. O conjunto de referências é construído com base numa pessoalidade e
não num ambiente universal. Não há nada de coletivo quando os diretores recorrem ao
processo de produção do filme que realizaram com a atriz. A chave para a decifração
dos elementos da imagem está na concatenação de ideias muito pessoais e particulares.
Mesmo quando se trata dos efeitos da imagem num cenário universal, a referência está
em questões ideológicas amarradas conforme uma formação pessoal. Se a atriz está no
primeiro plano e o Vietnã no segundo, há, nisso, uma formatação capitalista, no sentido
de tornar uma fotografia que poderia ser de luta de um povo, num produto, numa
ideia/mercadoria.
Optando por uma abordagem aprofundada sobre estes elementos constitutivos da
imagem, os chamaremos de signos. Neste caso, adotando a perspectiva de Charles
53
Sanders Peirce, com sua teoria dos signos, é necessário incluir a relação existente entre
os signos e a fotografia. Dirão muitos autores dedicados a pensar a fotografia que ela
guarda características tanto icônicas quanto indiciais. Índice porque a fotografia seria a
prova, a constatação documental que o objeto, o assunto retratado é uma espécie de
rastro indicial, representada por uma marca luminosa deixada pelo referente na chapa
fotográfica. De outro lado, ícone por ser entendida como a comprovação documental da
aparência do assunto e da semelhança que o mesmo tem com a imagem fixada na chapa
ou em alguma outra superfície que a tecnologia fotográfica permita. Há um elevado
grau de semelhança com o referente que lhe deu origem.
Uma imagem fotográfica reúne diversos elementos icônicos ou indiciais. Isso
permite que ela forneça informações para diferentes áreas do conhecimento. Daí porque
propiciar análises e interpretações multidisciplinares. Daí porque as diversas leituras
possíveis para uma mesma fotografia.
O caráter sígnico da fotografia terá relação direta com o jogo de interpretação do
que nela está retratado. Cito aqui a atenção que Boris Kossoy dá ao que chama de
desmontagem do signo fotográfico. Isso se dá a partir de uma análise iconográfica, por
meio da qual se busca fazer uma verdadeira arqueologia do documento. Uma análise
que seria possível a partir de duas linhas distintas e multidisciplinares de análise, a fim
de decodificar informações explícitas e implícitas do documento fotográfico.
Na primeira delas, sugere-se fazer uma reconstituição do processo que originou
a fotografia. Determina-se os elementos que contribuíram para a sua materialização,
seus elementos constitutivos, como o assunto, fotógrafo e tecnologia. Considera-se, para
tanto, a época e o lugar. Na segunda linha, propõe-se uma recuperação do inventário de
informações codificadas na imagem fotográfica. Parte-se para uma minuciosa
identificação dos detalhes icônicos que compõem seu conteúdo.
Nessa perspectiva teórica apontada por Kossoy, será levado em consideração
que o documento fotográfico é uma representação a partir do real. Representação onde
está registrado um aspecto selecionado de um real, organizado cultural, técnica e
esteticamente, portanto ideologicamente. Cabe notar, no entanto, que esta não é a
representação do real. É o que nos permite entender porque se torna obscura essa
tentativa de acesso ao real fotografado.
Estão estabelecidas, aqui, as prerrogativas que permitem Kossoy tratar do tema
da criação de ficções a partir de imagens. Notemos os exemplos dados por ele mesmo.
54
Ao considerar o advento do cartão postal, cuja “idade de ouro” foi completada em 1899,
momento de enorme propagação deste formato de fotografia, o autor diz que ele foi o
responsável por trazer a sensação de que era possível conhecer o mundo todo sem sair
de casa. De certo modo, a prática a partir dos postais contribuiu para uma “construção
do nacional”, no caso da produção cultural brasileira. Ao valorizar feitos heróicos como
os contidos nas pinturas heróicas, ou vistas de logradouros e panoramas de cidades,
difundidas pelo Brasil, chamaram a atenção de fotógrafos de todo o país que viram,
nisso, uma possibilidade comercial, de ganhar dinheiro representando uma determinada
realidade. Bem que se poderia dizer que a construção foi, na verdade, de um nacional,
na medida em que os cenários muitas vezes retratados pouco remetia a uma idéia de
“nacional”. Na referida exemplificação, os fotógrafos se aproveitaram de uma
característica da técnica fotográfica que a torna diferente, por exemplo, da criação
literária. Ao contrário desta última, a fotografia fornece “provas” de uma realidade que
se pretende mostrar.
Atendo-me à idéia de criação de ficções, pode-se dizer que estas realidades
criadas pela fotografia, em torno de uma construção do nacional, encontraram campo
fértil também a partir dos retratistas do período do império, do fotojornalismo – tempos
depois - e, não esqueçamos, da construção de conceitos muitas vezes equivocados de
fora para dentro que partem do olhar do europeu sobre o Brasil. Avaliações a que eles
chegaram, motivadas por imagens que traziam pessoas vestidas conforme a moda
européia do momento, com mobiliários de formas clássicas e vitorianas, ou objetos e
decoração que de nada tinham de nacional, mas européias.
Os signos fotográficos que enriquecem essas imagens de um passado, por essas e
outras, nos colocam diante de realidades superpostas. Ou seja, aquilo que se vê retratado
na imagem (definida como segunda realidade ou de representação), convive com aquela
que se imagina e que teve lugar no passado, numa primeira realidade. Notemos que a
relação de memória que se estabelece não é a de uma lembrança plena. Em termos
peirceanos, são resquícios indiciais, que nos apontam que caminhos foram desbravados,
sem saber precisamente quando e como. A fotografia como um espetáculo misterioso
em sua trama, em seus códigos, símbolos, portando segredos nunca revelados, como
aponta Boris Kossoy:
55
Por tais razões servem as imagens e os arquivos. Para que possamos fazer
essas e outras descobertas; para que possamos preservar a lembrança de
certos momentos e das pessoas que nos são caras; para que nossa imagem
não se apague; para que não percamos as referências do nosso passado, dos
nossos valores, da nossa história, dos nossos sonhos; para que possamos
preservar as imagens dos desaparecidos e torturados; para que tenhamos
provas que fatos hediondos ocorreram, para que não nos esqueçamos
(KOSSOY, 2002, p. 130).
Aqui, está a se falar de um ponto que é muito caro ao presente texto e que tem a
ver com a relação da fotografia com a imaginação, num processo em que pesa a
presença dos signos. Apesar destas evidências oferecidas pela fotografia, como na
última passagem citada, a reconstituição – seja histórica ou mesmo de recordação
pessoal – implicará sempre num processo de criação de realidades. Isso por ser
justamente elaborada por meio de imagens mentais dos próprios receptores envolvidos.
Daí porque se dizer que uma análise iconográfica, por mais competente que seja, ainda
será insuficiente. Ela sempre será afetada por uma sucessão de construções imaginárias.
Pesará o contexto particular que resulta na materialização da fotografia, fazendo valer
ainda a história do momento daqueles personagens que se vê representados, o
pensamento intrínseco a cada um dos fragmentos fotográficos, a vida dos modelos
referentes. Neste processo, a realidade interior é invisível ao sistema ótico da câmera.
Nesse sentido, a fotografia faz a função de testemunha que dá forma e contornos nítidos
às fantasias da imaginação individual e do imaginário coletivo.
Estes contornos da fotografia explicam porque determinadas imagens se tornam
símbolos de uma era, de um movimento, etc. Vamos ao exemplo da clássica fotografia
do revolucionário Che Guevara, registrada pelo fotógrafo cubano Alberto Korda.
Aquela imagem é o ponto de convergência de diversas lutas individuais. Ela é
construída e se sustenta por causa das mais diversas construções de realidades
individuais. A imagem estampada na camisa de um estudante universitário tem um
sentido diverso da situação em que uma dona de casa vê a camisa exposta na vitrine de
uma loja. As duas visões se encontram, naturalmente, no imaginário coletivo que
envolve a história da fotografia. Em ambos os casos, haverá uma mínima concordância
de que a imagem representa alguém ou uma situação de algum tipo de resistência, de
luta, de revolução.
A dimensão sígnica em que estamos envolvidos, aceita que, na fotografia,
estamos diante de um código visual. As fotos são constituídas a partir de uma
56
gramática, em que cada uma é um pequeno pedaço do mundo. Estes fragmentos é que
darão a sensação de que somos capazes de reter o mundo inteiro em nossas cabeças,
gerando a possibilidade de uma espécie de ontologia de imagens. É essa coleção de
imagens que temos arquivada e que, mais que isso, interferirá na leitura de todas as
outras imagens que necessitarmos ler.
A interpretação de signos instaurada na Recherche proustiana, por exemplo,
resulta num processo de aprendizado. Decifrar, este, relacionado muito mais ao futuro
que ao passado. O tempo, neste caso, é uma questão fundamental para esta interpretação
e ainda mais determinante no caso da fotografia. O que mostra que signo e sentido estão
sempre em relação com o tempo. Os quatro tipos de signos apresentados são, portanto,
quatro estruturas temporais subordinadas a duas categorias mais gerais: o tempo perdido
e o tempo redescoberto (MACHADO, 2010, p. 204).
A primeira estrutura, correspondente aos signos mundanos, é o tempo perdido no
sentido de tempo que passa. O narrador perde um tempo no vazio da vida social, da vida
mundana. Essa perda é parte de seu aprendizado dos signos. A verdade que se descobre
nesse tempo é a passagem ou o efeito do tempo.
A segunda estrutura está relacionada aos signos amorosos. A perda de tempo
possibilitada pelo amor é mais radical do que a que se tem na vida social. O porquê do
sofrimento que ele causa.
A terceira estrutura, ligada aos signos sensíveis, é o tempo redescoberto, no
sentido de um tempo que redescobre um “centro de envolvimento” no cerne de um
tempo já “desdobrado”, já desenvolvido, que é redescoberto no âmago do tempo
perdido como uma imagem da eternidade.
A última estrutura temporal diz respeito aos signos artísticos. Neste caso, a arte é
de fundamental importância para uma teoria do exercício do pensamento. Só ela
possibilita a descoberta do tempo como “tempo puro”, “tempo original absoluto”,
“tempo primordial” idêntico à eternidade, já que a eternidade é o “estado complicado do
tempo”. Quando revela a essência, o signo artístico redescobre esse tempo. A arte
permite a descoberta do tempo tal como ele se encontra na essência. Daí porque dizer
que só a obra de arte nos faz redescobrir o tempo. Ela porta signos de um tempo original
absoluto. Aqui, precisamos incluir algumas ideias, por se tratar da estrutura na qual
parecem estar as melhores condições para abrigar a fotografia. Este tempo redescoberto
por ela, ou que ela permite redescobrir, diz respeito ao passado particular de cada leitor
57
particular. O fato de os signos estarem no lugar de outra coisa, representando uma outra
coisa que existe na realidade, permite aos signos fotográficos despertar sentimentos
muito fortes em direção a um entendimento. E ainda mais principalmente por seu alto
teor de analogia àquilo que, de fato, busca representar a partir de seu mecanismo
reprodutor. Isto é, se vejo uma fotografia consigo identificar se aquela é uma foto de um
estádio de futebol, de uma cachoeira ou de um haras. Esses signos (a imagem do estádio
está no lugar do estádio real) logo ativam a minha memória e acabo por acionar um
referencial afetivo que leva a um pensamento diferencial. Chego a uma ideia de estádio
que está na minha essência, que não é a essência precisa da cena. Mesmo que eu
conheça e tenha visitado o estádio fotografado, a essência a que chego é diferente da do
fotógrafo, por exemplo, ou do funcionário que trabalha neste estádio, ou de um jogador
que disputou partidas ali.
A fotografia enquanto um signo, algo que está no lugar de outra coisa, não
permite uma leitura linear. Entre a coisa em si e a foto recebida por um sujeito
particular, há inúmeras rupturas e metamorfoses. Primeiro, poderíamos dizer que a
máquina fotográfica só consegue captar um dos fenômenos possíveis da coisa em si.
Diante de todas as representações possíveis, a máquina só consegue conservar uma.
Segundo, é permitido dizer que na observação há uma série de seleções, como no da
escolha de um dos negativos fotográficos, em meio a tantos outros, que vai ganhar uma
cópia em papel, por exemplo. Simples detalhes que poderão modificar substancialmente
a direção do entendimento do observador.
Não se deve perder de vista que aqui está embutida a predominância da questão
técnica sobre o desdobramento da memória. Se a escolha do negativo a ganhar uma
cópia em papel já influencia neste exercício, o que dizer do recorte registrado no
negativo em si. Fala-se, neste caso, da movimentação que o recorte espaço-temporal
fotográfico causa na conexão fotografia-memória. Nesta próxima seção, trazemos
exemplos e leituras de autores clássicos que nos inspiram a pensar este tema da relação
entre técnica fotográfica e memória.
num conjunto portátil de imagens que dá testemunho de sua coesão. Os conectivos entre
os fragmentos são, no entanto, variáveis conforme cada leitura. O nível de entendimento
com base num mesmo álbum vai se dar mediante uma liberdade de atribuição de
reconhecimento de determinados episódios. Haverá, naturalmente, esquecimentos,
interditos, na medida em que nem todas as lembranças vão se dar na mesma proporção.
Lembro-me do caso em que mãe e filha se concentram na leitura do conteúdo de
uma imagem fotográfica no interior de um monóculo do acervo da família3. Ao reverem
aquela imagem juntas, pela enésima vez, as leituras são variáveis em relação às vezes
anteriores e uma discorda da maneira como a outra rememora o fato. Imagine-se uma
fotografia em que há o congelamento de parte de um desfile de 7 de setembro há quatro
décadas. A identificação de dados como quem estava na fotografia, onde aconteceu, em
que ano exatamente, ficarão num lugar indefinido entre elas e a imagem.
Entenderemos a fotografia, nestes termos, como um fragmento que, com a
passagem do tempo, tem as suas amarras afrouxadas. Aos olhos de Susan Sontag, ela é
uma imagem que fica à deriva num passado flexível e abstrato, aberto a qualquer tipo de
leitura e de associação a outras fotos. Compara-se, por isso, o livro de fotografias com
um livro de citações (SONTAG, 2004, p. 86). Fazendo referência a Walter Benjamin,
que a autora considerou como um dos maiores críticos da fotografia, a foto será
entendida como uma espécie de descriação do passado, a fabricação de uma realidade
nova, paralela, que torna o passado algo imediato, ao mesmo tempo que sublinha sua
ineficácia cômica ou trágica, reveste a especificidade do passado com uma ironia
ilimitada, transforma o presente no passado e passado em condição pretérita.
Analisando a fotografia deste lugar, entendemos que a mensagem trazida por ela
é, a um só tempo, transparente e misteriosa. De outro modo, as verdades que ela tenta
transmitir têm relação estreita com as necessidades de compreensão. O que levará o
leitor a não compreender, muitas vezes, a essência da foto, ou ir numa direção
totalmente diversa daquela intenção do fotógrafo. É muito eficaz, nesse sentido, o
exemplo dado por Susan Sontag sobre o trabalho dos fotógrafos humanistas. É como se
a beleza das imagens sobrepusesse a verdade das imagens. É como no exemplo das
fotografias tiradas por Lewis Hine de crianças exploradas em fábricas e minas
3
O monóculo é uma peça plástica que se tornou muito comum no Brasil e serve de artefato para a
visualização de imagens fotográficas. É uma espécie de câmara em que numa extremidade há um
fotograma colorido e, de outro, uma pequena lente com ínfima quantidade de grau. Ao colocar diante de
um dos olhos o lado que tem a lente, é possível visualizar a fotografia ampliada.
59
4
Narradores de Javé. Direção: Eliana Caffé. Brasil. 2003.
62
senhores que conversam. O que eles tentam resolver é o seguinte: um dos irmãos,
Armando Peneré, diz que Dona Margarida se casou com Cosme, o pai dele, e que
Damião é que seria o pai do irmão. A história é bem curiosa, pois Armando Peneré
alega que Margarida foi para a cama com os dois irmãos, Cosme e Damião, e que eram
filhos de pais diferentes, mesmo sendo gêmeos. Enredo a parte, deve-se considerar o
meio pelo qual se conduz esta passagem. O tempo todo eles duelam com a memória,
sempre auxiliada pela fotografia. Em certo momento, um dos “gêmeos” apresenta uma
fotografia, que seria a prova de que Damião se casou com Margarida e que atestava a
legitimidade de seu parentesco com ele. Antônio Biá ouve atento a tudo o que é dito e,
no momento em que escuta o relato sobre a fotografia, a imagem ganha um movimento
na cabeça dele. Responsável por escrever aquelas histórias ele tenta recriar o episódio
em que Dona Margarida teria se casado. Sanfona, banjo, dança e bebedeira no
terreiro...tudo isso ganha vida na cabeça de Biá, que dispara num processo de recriação
de um passado que não viveu. O tempo todo ele vai se deixando levar pelos atalhos da
história contada pelos irmãos; jamais segue o principal caminho. Parece ele se basear na
primeira frase do diálogo desta passagem do filme, que é dita pelo personagem
Armando Peneré: “(...) uma terra vale pelo que produz, mas ela pode valer mais ainda
pelo que esconde”. Todo o filme é permeado por esta variação entre lembrança e
esquecimento. A dúvida paira sobre o processo de recontar a história de Javé e essa
passagem ilustra bem o espírito do filme, além, acima de tudo, de mostrar o modo como
a fotografia atua nessa rememoração.
Uma outra passagem do filme se transforma num argumento ainda mais forte no
que diz respeito à profundidade psíquica onde residem signos. Neste caso, o grupo que
está tentando reunir as histórias vividas na comunidade de Javé chega à casa de um
jovem que mora sozinho. Biá encontra o jovem Daniel. Ele fala do seu falecido pai,
Isaías. Daniel mostra a cama em que o pai dormia e onde ele faleceu. Diante da cama, o
jovem se lembra de quando era criança e via o pai deitado. Enquanto ele conta, aparece
uma fotografia do pai, feita três meses antes de ele morrer, desvairado pelo amor de
uma mulher chamada Santinha. A realidade que cerca a atmosfera daquelas fotografias
é habitada por histórias como a de um homem que chegou a cavalo, armado, querendo
saber onde estava uma peça de ouro que ele guardava. Naquela ocasião, ele sacou uma
arma e atirou contra o homem que tentava assaltá-lo. Daniel diz que perdeu todo o seu
63
medo a partir deste dia em que viu o pai matar um homem. A fotografia despertou nele
as lembranças fortes da infância, dizendo que só sairia daquela casa morto.
A reação de Daniel é diferente e inusitada em relação às dos outros moradores. É
radical diante da notícia da construção da represa. Ele é intenso, pega a arma e faz com
que sua relação com o passado seja muito mais complexa. Se para os outros moradores,
a fotografia do pai do jovem é a prova de que ele existiu, que ele morou no vilarejo,
para o filho, a imagem é como uma pequena centelha que causa um incêndio a depender
do modo como é acionada. O fogo que aparece na memória de Daniel tem uma
intensidade diferente nos outros moradores de Javé.
A passagem nos leva à comprovação de que o modo como os signos estão
internalizados nas memórias particulares extrapolam a realidade. O exemplo, associado
a esta constatação, nos permite evocar algo dito pela autora Susan Sontag, muito
sugestivo, aqui: “Como o fogo da lareira num quarto, as fotos – sobretudo as de
pessoas, de paisagens distantes e de cidades remotas, do passado desaparecido – são
estímulos para o sonho” (SONTAG, 2004, p. 26).
A fidelidade ao ali fotografado, seja no caso da fotografia do pai do jovem
Daniel ou não, só seria possível com o auxílio da linguagem verbal. Seria necessária a
inclusão da legenda, tal como alertou Walter Benjamin em seu Pequena história da
fotografia. “Não se tornará a legenda a parte mais essencial da fotografia?”, perguntava
o autor, acreditando que a introdução da legenda iria favorecer a literalização de todas
as relações da vida e sem a qual qualquer construção fotográfica correria o risco de
permanecer vaga e aproximativa (BENJAMIN, 1994, p. 107). A pertinência destas
palavras é comprovada e reforçada quando se chega à discussão que se dá no espaço
entre a fotografia e a construção do passado. É onde se reconhecerá o quão vago é o
conjunto de informações visuais oferecidos pela fotografia.
As fotografias comunicam, sim, uma atmosfera e exprime sentimentos. Há,
porém, uma limitação na transmissão de informações necessárias para uma construção
social de significados culturais. Ela traz vestígios, mas é muda. Não fala de nomes, de
datas; apenas sugere períodos, probabilidades. Estes indícios, tratados nesta pesquisa
como signos, é que colocam a fotografia numa relação com a memória. Uma memória
que sempre reacende as ideias criadoras daquele que se arrisca na leitura da imagem
fotográfica.
64
Ditas de outro modo, as palavras desta seção nos conduzem para a discussão em
torno do simulacro gerado pela fotografia. Neste caso, é possível propor uma relação
entre a questão da técnica fotográfica e estas realidades sem semelhança com a situação
retratada. E daí, fazendo referência ao recorte fotográfico, motivador disto que
chamamos de fragmento fotográfico, tem totalmente a ver com a questão do simulacro,
com a geração do duplo. Ao passo em que a fotografia faz um recorte de uma cena,
aquilo que está fora do fotograma, vai necessitar ser criado. Logo, o resultado disso é
uma formulação de realidade, a partir deste fragmento espaço-temporal.
Este fragmento, por sua vez, é constituído por outros inúmeros fragmentos, que
denominaremos signos. Diríamos que, em comparação à relação do recorte fotográfico
com a memória, os signos são envolvidos em microrrelações com a memória. Cada um
dos signos fotográficos despertam a memória de seu observador, dando um sentido final
inédito. O sistema sígnico categorial de Charles Sanders Peirce ajuda a pensar sobre esta
questão, em páginas a seguir, bem como a apresentação de um exemplo de leitura
imagética.
Quando em 2001 ele resolve fazer esta leitura do referido quadro, os detalhes do
livro dado pela tia já faziam parte de sua gramática e a ela se somaram informações
acumuladas ao longo de uma vida. Bem mais tarde, Manguel descobriu fatos que
esclareciam algumas dúvidas deixadas pela imagem por si só. Um deles dizia que o
nome da obra fazia referência a Saintes-Maries porque em junho de 1888, Van Gogh
caminhou de Arles até Saintes-Maries-de-la-Mer, que era uma aldeia de pescadores para
a qual ciganos de toda a Europa fazem peregrinações anuais. Se no início havia apenas a
referência da pintura, depois se descobriu que em Saintes-Maries ele fez desenhos de
boates e de casas de prostituição que posteriormente transformaria em pinturas. A citada
pintura pode ser considerada um fruto da impressão que conhecer o Mediterrâneo, ao 35
anos, causou em Van Gogh.
Baseado nesta experiência e naquilo que leu vindo de Francis Bacon, Manguel
entende que:
[...] só podemos ver aquilo que, em algum feitio ou forma, nós já vimos
antes. Só podemos ver as coisas para as quais já possuímos imagens
identificáveis, assim como só podemos ler em uma língua cuja sintaxe,
gramática e vocabulário já conhecemos (MANGUEL, 2001, p. 27).
Numa comparação com um texto verbal, o autor diz que diferente de um excerto
de texto, uma imagem se apresenta à nossa consciência instantaneamente, encerrada
pelo seu recorte (moldura), limitando-a e exigindo uma complementação a partir de
outras imagens e fontes, o que pode ser transferido para a fotografia. Pensa-se, por isso,
que a imagem de uma obra de arte existe em algum local entre percepções: entre aquela
que o pintor imaginou e aquela que o pintor pôs na tela; entre aquela que podemos
nomear e aquela que os contemporâneos do pintor podiam nomear; entre aquilo que
lembramos e aquilo que aprendemos; entre o vocabulário comum, adquirido de um
modo social, e um vocabulário mais profundo, de símbolos ancestrais e secretos
(MANGUEL, 2001, p. 29).
Por extensão, diremos que os signos da imagem fotográfica terão algum sentido
se houver uma antecipação de imagens. Quer dizer, é preciso reunir elementos numa
gramática que permita ao leitor falar de um lugar parecido com aquele representado
imageticamente. Notemos isso quando se fala da utilização das cores pela artista nova-
iorquina Joan Mitchell. Infuenciada por Jackson Pollock, artista que iniciou sua carreira
em meio ao caos social e moral dos anos da Depressão nos Estados Unidos e, também,
67
em pleno pesadelo da Segunda Guerra Mundial na Europa, nas cores que ela representa
se dá a expressão de uma artista que não transmite uma narrativa, mas algo à beira do
movimento. É como se nada acontecesse em sua pintura, nada fosse representado.
As cores, neste caso, figuram como um destes elementos gramaticais da
imagem. Possuem, para tanto, critérios a serem levados em consideração e que podem
brotar das mais diversas áreas. Para a psicologia, representada no texto de Manguel pelo
psicólogo americano William James, as cores só podem ser percebidas em contraste
com outras cores e se não é possível identificar o contraste não se pode ter uma
sensação autêntica do seu oposto ou do seu complemento. Uma outra referência,
buscada num comentador medieval do talmude, são quatro as cores principais,
referentes ao pó do qual o homem foi criado: o vermelho do sangue, o preto das
entranhas, o branco dos ossos e o verde da pele pálida.
Evidentemente que o modo de entender as cores poderá ser variável como, do
mesmo modo, diversa será a maneira de atribuir sentido a formas geométricas ou
profundidade de campo, quem sabe. Comparativamente, os signos imagéticos
permitirão uma variação de atribuição de sentido e de significado a depender de quem
seja o leitor e a depender do que seja o próprio signo. Isso porque o signo é
extremamente aberto e, do mesmo modo como nos leva a um reconhecimento, também
pode levar a um conhecimento.
Isso nos levará a dizer que a fotografia tem uma característica semiótica que a
faz funcionar como ícone e também como índice, que são dois dos tipos de signos
peirceanos, que se juntam ao terceiro tipo, os símbolos. Bem, ela é icônica por
demonstrar uma aparente semelhança com a realidade que retrata; é indexical por ter
relação causal com a realidade devido às leis da ótica, por ter uma ligação física com o
seu objeto. Seria, por fim,um ícone indexical, por conter características dos dois tipos de
signos. Considerando o terceiro tipo de signos, os símbolos, diremos que a fotografia é
destituída desta função, visto que, na definição peirceana, o símbolo é algo
convencionado, de algum modo, como simbolizador de uma nação, instituição, etc.
Neste sentido, a fotografia pode, muito bem, registrar um símbolo, mas não ser um
símbolo por si só. Se estamos diante de uma fotografia de uma bandeira de um país,
temos diante de nós a fotografia de um símbolo. Por mais representativa que seja uma
imagem, no sentido de simbolizar uma guerra, uma festa, uma tragédia, ela será
destituída da caracterização que faz dela um símbolo.
68
Neste trabalho damos atenção aos dois primeiros tipos, visto que parecem
melhor se relacionar com o debate central do trabalho, que diz respeito à memória. Estes
aspectos de iconicidade e indexicalidade nos levam, neste trabalho, a tentar entender a
relação da presença destes signos fotográficos com a memória. Quer dizer, se a
fotografia tem traços de semelhança da realidade, é questionável se o sentido que ela
nos apresenta é fiel ou não à realidade congelada naquele passado da fotografia. Há,
inegavelmente, uma relação contígua com os objetos nela retratados e, por isso mesmo,
isso é questão com que devemos nos preocupar. Por causa disso, é que das categorias
apresentadas por Peirce, no seu sistema semiótico, devemos entender que a fotografia
está na terceira delas, exatamente porque o fator interpretação é a prova de que a
iconicidade e a indexicalidade fotográficas não são por si suficientes no sentido de
apresentar um passado. A relação de memória que se apreende deve respeitar, portanto,
memórias particulares, considerando que mesmo as capacidades icônica e indexical da
fotografia não são suficientes para revelar a verdade do seu objeto.
Os índices e ícones que saltam aos olhos do intérprete são decifrados com base
num mapa intrínseco que ele detém e que o leva ao caminho do tesouro, que é a verdade
dele diante da imagem fotográfica que ele vê. A fotografia é uma referência
colaborativa para a construtividade e a criatividade. Num debate de memória, ela não
traz, portanto, uma mensagem codificada, já que ela vai sempre trazer um sentido em
qualquer situação. E, mais do que isso, ela permite o acréscimo de predicados.
Estes novos atributos, acrescidos à imagem, estão no campo da imaginação. A
capacidade imaginária é a responsável por nos colocar no seio de um processo de
criação de novas realidades. Em outras palavras, a imaginação nos leva a decifrar
imagens. Nesta seção seguinte, trazemos a contribuição de autores clássicos e
contemporâneos sobre este tema.
Adiante nos interessa, desse debate de Morin, a distinção que ele propõe entre
imaginário e real. E aqui os dados de uma pesquisa são bem pertinentes e trata da
importância da fantasia e do imaginário no ser humano. A pesquisa que ele apresenta
informa que dado que as vias de entrada e de saída do sistema neurocerebral, que
colocam o organismo em conexão com o mundo exterior, representam apenas 2% do
conjunto, enquanto 98% se referem ao funcionamento interno, constituiu-se um mundo
psíquico relativamente independente, em que fermentam necessidades, sonhos, desejos,
ideias, imagens, fantasias, e este mundo infiltra-se em nossa visão ou concepção do
mundo exterior (MORIN, 2004, p.21).
71
Uma foto não é uma prova, mas um vestígio do objeto a ser fotografado que é
incognoscível e infotografável, e, ao mesmo tempo, do sujeito que fotografa,
que também é incognoscível, e do material fotográfico; é, portanto, a
articulação de dois enigmas, o do objeto e o do sujeito. É por isso que a
fotografia é interessante: ela não fornece uma resposta, mas coloca e impõe
esse enigma dos enigmas que faz com que o receptor passe de um desejo de
real a uma abertura para o imaginário, de um sentido a uma interrogação
sobre o sentido, de uma certeza a uma preocupação, de uma solução a um
problema. A própria fotografia é enigma; incita o receptor a interpretar, a
questionar, a criticar, em resumo, a criar e a pensar, mas de maneira
inacabável (SOULAGES, 2005, p. 346).
fato existiu. O que vejo não é imaginação ou lembrança, mas imagino e lembro coisas
com base no que vejo. Este tempo passado e real, igualmente me convida para pensar no
que foi passado e real para mim. Ela não inventa, é uma marca de autenticação
codificada, uma emanação do real passado e poderia ser entendida muito mais como
uma contralembrança, já que não tem esta capacidade literal de fazer evocar
lembranças. Apesar de ser um testemunho seguro, é fugaz.
Esta fugacidade tem relação direta com a imaginação, que pode ser conceituada
como a capacidade de abstração específica. Baseado em Villém Flusser, em sua
Filosofia da Caixa Preta, diria que numa fotografia a imaginação age codificando
fenômenos de diferentes dimensões em símbolos planos e decodificando mensagens
codificadas. Imaginação, portanto, como a capacidade de fazer e decifrar imagens
(FLUSSER, 2002, p. 7). De um lado a imaginação permite abstrair duas dimensões dos
fenômenos e de outro, permite reconstituir as duas dimensões abstraídas na imagem.
Por vezes, o processo de criação que à fotografia atribuímos é abordado numa
associação em que se faz necessário o auxílio de fontes secundárias aos documentos
fotográficos, para que sua realidade seja compreendida. Mas como dizer que fontes
documentais paralelas ajudam a desvendar o passado de determinada imagem, se a
própria construção destas fontes é deficiente por sua vez? Elas são, sim, necessárias
para trabalhos como o dos historiadores, visto que é nelas que se busca evidências.
Contudo, o que sugerimos é a eficaz capacidade dos signos da imagem fotográfica no
despertar da ação de nosso imaginário.
Considerar este caráter mágico das imagens é essencial para a compreensão das
suas mensagens. Consideramos, para tanto, que as fotografias são códigos que traduzem
eventos em situações. Elas não eternizam eventos, mas substituem eventos por cenas.
Nesse sentido, a imaginação se torna alucinação e o homem passa a ser incapaz de
decifrar imagens, de reconstituir dimensões abstraídas. Numa evocação ao tratado
humeano, dedicado à natureza humana6, a imaginação sobrepõe a memória, por
apresentar cores mais vivas e mais fortes que a segunda. O que era decifração, agora é
criação. O distanciamento das informações abstraídas é tamanho que se chega a um
novo referencial para aquela imagem.
6
HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Fundação Calouste Gulbenkian, Tradução Serafim da
Silva Fontes.
75
Vale citar, então, uma experiência que parece ilustrar bem isso. Em Dreams7, de
Akira Kurosawa, em um dos “sonhos”, o personagem está numa galeria de arte, diante
da tela Campo de Trigo com Corvos, de Vincent Van Gogh. A imaginação o leva para
dentro daquela pintura, para um cenário onde as cores vívidas do artista dão as boas-
vindas. Ajudado por lavadeiras à beira de um rio, que indicam onde o pintor pode estar,
ele segue à procura de Van Gogh e o avista no meio do descampado, com tela e pincel
nas mãos. Eles ficam um de frente para o outro e perguntado pelo admirador sobre uma
faixa que usava na cabeça, o artista diz que se tratava de um ferimento surgido quando
da feitura de um auto-retrato em que a orelha não cabia na tela e ele acabou arrancando-
a fora. A imaginação daquele homem então distorceu um fato histórico. Conta-se que,
na verdade, Van Gogh, em certa feita, arrancou a própria orelha esquerda, embalou-a
num pedaço de papel e presenteou uma prostituta de Saintes-Maries-de-la-mer. Naquele
sonho o episódio ganhava outro significado, uma nova criação. Talvez o caráter
aparentemente não-simbólico, objetivo, das imagens técnicas – como é o caso da
fotografia – faz com que seu observador as olhe como se fossem janelas diante de um
cenário móvel e não imagens estáticas.
Limitemo-nos, porém, às imagens técnicas que, segundo Flusser, são aquelas
produzidas por aparelhos. Sobre elas, o observador confia nas imagens técnicas tanto
quanto confia em seus próprios olhos, pelo fato de os aparelhos terem a intenção de
representar algo. Nesta tentativa, o fotógrafo é aquele que produz símbolos, manipula-os
e os armazena. Esta produção se dá das mais variadas formas, fazendo gerar os levantes
da imaginação.
Diante do turbilhão de informações, de acontecimentos, de gente, do
congestionamento de informações visuais, a fotografia aparece como um meio de
registrar e guardar o que “vale a pena”, o que queremos que fique. A importância da
fotografia para a memória entra nesse sentido. Já se tornou impossível pensar o
cotidiano sem imagens fotográficas. E curioso notar que, mesmo não tendo uma
fotografia para cada situação, o imaginário cria a imagem em nós e para nós. A partir
das fotografias, supomos. Ela não é, necessariamente, memória, mas apontamento dela.
Funciona como um lembrete do que parece ter se perdido no cotidiano. Mas o que e
como a fotografia nos faz lembrar? Que passado está em questão?
7
Dreams. Direção: Akira Kurosawa. EUA. 1990.
76
Numa breve ressalva, digo que na primeira seção foi levantada a questão em
torno do simulacro à luz de Gilles Deleuze. Construíamos, ali, um alicerce sobre o qual
nos basearíamos para propor uma leitura dos teóricos da fotografia que até aqui foram
citados. Em outros termos, buscávamos uma definição aplicável à fotografia e,
principalmente, à sua relação com a memória. E, neste caso, parece-nos indispensável
tratar do simulacro dando atenção especificamente para a imagem fotográfica, ou seja,
entendo-a como um simulacro, por si só. Somos conduzidos a esta altercação mediante
o resultado a que chegamos, na medida em que entendemos a memória, aplicada à
77
8
No Livro VII, de A República, Platão apresenta o diálogo entre Sócrates e Gláucon, conhecido como
Mito da Caverna. No início do diálogo, Sócrates sugere que Gláucon imagine uma situação, assim
descrita: “Imagina homens que estão numa morada subterrânea, semelhante a uma furna, cujo acesso se
faz por uma abertura que abrange toda a extensão da caverna que está voltada para a luz. Lá estão eles,
desde a infância, com grilhões nas pernas e no pescoço de modo que fiquem imóveis onde estão e só
voltem o olhar para a frente, já que os grilhões os impedem de virar a cabeça. De longe chega-lhes a luz
de uma fogueira que arde num local mais alto, atrás deles, e, entre a fogueira e os prosioneiros, há um
caminho em aclive ao longo do qual se ergue um pequeno muro semelhante ao tabique que os mágicos
põem entre eles e os espectadores quando lhes apresentam suas habilidades”. Ele continua a descrição:
“Imagina homens passando ao longo desse pequeno muro e levando toda espécie de objetos que
ultrapassam a altura do muro e também estátuas de homens e de outros animais, feitas de pedra e de
madeira, trabalhadas das mais diversas maneiras. Alguns dos que carregam, como é natural, vão falando,
e outros seguem em silêncio”. (PLATÃO, 2006, p. 267)
78
Entre a imagem e a coisa está interposta uma série de outras imagens que a
corrigem, comentam, acrescentam em seu sentido. E em tudo isso, as transformações
80
A natureza que fala à câmera é distinta da que fala aos olhos; distinta,
sobretudo, porque um espaço elaborado inconscientemente aparece no lugar
de um espaço que o homem elaborou com consciência. É possível, por
exemplo, que alguém se dê conta, mesmo que seja de forma bem geral, da
maneira de andar das pessoas, mas seguramente não sabe nada de sua atitude
nessa fração de segundo em que o passo se alarga (apud MACHADO, 1984,
p. 48).
9
Em seu A Câmara Clara, no capítulo “O ar”, Roland Barthes chama de noema a capacidade que a
fotografia tem de autentificar a existência do ser retratado. O noema da fotografia é, ainda, chamado por
ele de “Isso foi”.
81
Se estas informações não são dadas de uma maneira homogênea e unívoca, serão
permitidas leituras e atribuições variadas de sentidos. Neste caso, é como se diante da
foto fosse possível uma penetração num espaço simbólico. O leitor ignora o seu próprio
lugar e se imagina no mesmo ponto privilegiado do espaço que organizou a imagem. O
resultado gerado é uma imagem sem semelhança com o real, ou melhor, é uma nova
imagem, um simulacro.
Sobre esta questão que trata do simulacro, é possível encontrar passagens que
nos convidam para uma reflexão, mais uma vez no trabalho Estética da fotografia:
perda e permanência, de François Soulages. Influenciado pelo pensamento de
Bachelard, ele busca uma definição para o conceito de imaginação e a compreende
como a capacidade de formar imagens, ou até mesmo de deformar imagens fornecidas
pela percepção. A partir do exemplo da fotografia, é como se ela permitisse o exercício
da faculdade de libertação das imagens primeiras, mudando estas imagens.
A partir de argumentos assim é possível buscar uma aproximação entre o
simulacro e a imaginação. Ou pelo menos, esta última como criadora de possibilidade
de surgimento do simulacro. Ao estabelecermos este diálogo, entenderemos o fotógrafo
como um criador de mundos. O resultado de seu trabalho será um álbum de ilusões.
Passe o tempo que passar, a fotografia terá sempre algo a dizer, justamente porque a
mensagem que ela precisa passar não está precisamente nela. O que leva Soulages a
entendê-la assim:
Todo o debate estabelecido até aqui, nos conduz a este ponto, em que nos
debruçamos sobre o ponto final neste percurso em que fotografia e memória seguem
emparelhadas. O confronto destes dois conceitos resulta, por fim, no nosso
entendimento de que a técnica fotográfica é responsável pela criação de passados para o
seu observador. Iniciamos a seção evocando Marcel Proust, que neste trabalho aparece
como uma referência analítica, tanto de uma perspectiva filosófica quanto discursiva
sobre a fotografia, a partir da autora Susan Sontag, que dirá que Proust, ao colocar a
fotografia como um instrumento de memória, a fotografia é muito mais uma invenção
dela, ou um substituto, do que necessariamente um artefato. A fotografia teria então
uma relação superficial com o passado. O que resultará no modo de dizer que a
fotografia fornece não apenas um registro do passado, mas um modo novo de lidar com
o presente.
Esta é a conclusão que tiramos quando analisamos usos da fotografia, como o
das ciências, a exemplo da sociologia. Cabe-nos perguntar: até que ponto é possível
utilizar a prática da fotografia e a sua significação como material para a sociologia ou
antropologia? Em Un Art Medio, Pierre Bourdieu diz que:
também apenas delimitarão um certo espaço onde se imaginará. Neste tipo de uso, a
fotografia indicará vestígios, nunca dará certezas. Ela indica uma temporalidade
destemporalizada que só conserva do devir as marcas materiais congeladas. Após esta
breve exemplificação, se faz importante dizer que, na verdade, esta é a natureza da
fotografia, seja lá qual for seu uso. Enquanto linguagem, faltarão a ela alguns elementos
que provocam esta incompletude.
É preciso fazer referência à inexistência, na linguagem fotográfica, de unidades
elementares e discretas, como são os fonemas no código linguístico. A partir destes
elementos é que se constrói uma mensagem. Nesta ausência, o que aparece é uma fusão
entre os signos e seu referente.
O que nos levará a dizer que diante de uma foto, não olhamos apenas para ela.
Sempre olhamos para a relação entre nós e ela. Neste caso, é possível dizer que
pensamos por conceitos e por imagens. E estas imagens são sempre um elo no
movimento do pensamento que ligam as que as precedem às que as seguem. Que
discussão, então, caberia em se tratando de fotografia e passado?
No livro O Ato Fotográfico e outros ensaios, o autor Philippe Dubois toca nesta
questão delicada para o pensamento em torno da fotografia. Considerada como um
processo mecânico, foi muito comum dizer que a fotografia não poderia mentir sendo,
assim, a reprodução fiel da realidade. Por causa disso, foi tomada como uma espécie de
prova, ao mesmo tempo necessária e suficiente, que atesta indubitavelmente a existência
daquilo que mostra. Por este motivo, ela é tida como capaz de usurpar a realidade, já
que não é apenas uma imagem (como uma pintura é uma imagem), uma interpretação.
Mais que isso, “ela é um vestígio, algo diretamente decalcado do real, como uma
pegada ou uma máscara mortuária”, diria Susan Sontag (SONTAG, 2004, 170).
No trabalho citado de Philippe Dubois, o autor propõe o percurso histórico de
algumas posições sobre esta questão, das quais destacamos três principais.
Na primeira delas, a fotografia é entendida como espelho do real, transparecendo
o discurso da mimese. É ingenuamente percebida como um analogon objetivo do real.
Ela é considerada como a imitação mais perfeita da realidade. Capacidade mimética
esta associada à natureza técnica e ao procedimento mecânico. Essa concepção, tão
comum em todo o século XIX, gerou reações nos artistas contra o domínio crescente da
indústria técnica contra o afastamento da criação e do criador. Priorizava-se uma
fixação do que o autor chama de sinistro visível em detrimento das “realidades
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não têm. Só por intermédio das fotos é que conheço essas pessoas” (apud DUBOIS,
1993, p. 44).
A terceira das posições trata a fotografia como traço de um real, prevalecendo o
discurso do índice e da referência. A imagem é remetida a seu referente. A proposta é a
de que seja dado um prosseguimento à análise imagética, indo além da simples
denúncia do “efeito de real”. Nela, a imagem é dotada de um valor todo singular ou
particular, pois é determinado exclusivamente por seu referente: traço de um real. Ela
protagoniza uma fase de desconstrução de códigos e se estrutura em dois eixos:
semiótico e ideológico. No primeiro, a mensagem é dotada de uma codificação,
enquanto no segundo há uma mensagem sem código, em que a foto é um puro ato-traço.
Das três concepções apresentadas o que se percebe é que na lógica delas há a
consideração de que as fotografias propriamente ditas quase não têm significação elas
mesmas. O sentido lhes é exterior e determinado por sua relação efetiva com o seu
objeto e com sua situação de enunciação. Há um afastamento da imagem em relação à
sua experiência referencial, ao ato que a funda. Sua realidade nada diz além de uma
afirmação de existência. Para ele, “A foto é em primeiro lugar índice. Só depois ela
pode tornar-se parecida (ícone) e adquirir sentido (símbolo)” (DUBOIS, 1993, p. 53).
Antes de simbolizar alguma idéia, a fotografia indica e atesta que aquilo de fato
aconteceu. É condizente lembrar que a fotografia, como índice, por maior e mais
estreito que seja o vínculo físico, por mais próxima que esteja do objeto que ela
representa, e do qual ela emana, ainda assim ela permanece absolutamente distante dele.
Convém acrescentar que na relação com o passado, a leitura da imagem
fotográfica requer aquilo que Bazin denomina de “ontologia da imagem fotográfica”
(BAZIN, 2007, p. 6). O que significa dizer que a característica essencial da imagem
fotográfica deve ser procurada não no resultado, mas na gênese. Se o objetivo é
compreender o que constitui a originalidade da imagem fotográfica deve-se,
obrigatoriamente, ver o processo bem mais do que o produto. Acrescentando a isso,
Dubois diz:
exemplo dizer que uma fotografia feita em 1910, em Vitória da Conquista, no interior
da Bahia, com um colorido vivo, e em forma de retrato, só foi possível a partir de
negativos de vidro, com retoques de grafite e coloridas em processo manual10.
Seja ele como for, esse procedimento vai ser sempre deficiente. Mesmo que se
mostre ampla, a leitura da imagem fotográfica só será um pouco mais aprofundada, caso
se utilize fontes externas. Serão elas a complementação do que é iconográfico, sem ser
total. Vai ser levado em consideração o conceito de caracteres internos da imagem
fotográfica. São exemplos deles: edificações – das quais se conhece a data de
construção – transformações arquitetônicas de edifícios, igrejas e outras construções
marcantes da cidade, a presença de objetos como lampiões a gás, tipo de instalação
elétrica.
Estes elementos internos trazem um determinado “movimento” à imagem, no
sentido de permitir ampliar as possibilidades de elementos. Mas e quando se tratam de
retratos? Quando estão em questão formatos padronizados como carte-de-visite, tão
propagado na década de 1960, em que um retrato ilustrava uma espécie de postal? Neste
caso, a estaticidade dá bem menos sugestões de como pode ter acontecido aquela
situação e, muito mais, quem estava ali retratado, onde e em que condições. Por outro
lado, a relação que se estabelece com o tempo, aí, é de outro modo. Num retrato, parece
haver o desejo de perpetuar a própria imagem, coisa que no desenrolar do tempo não
será possível. Congelar aquele instante implica em perpetuar a própria imagem,
resultando numa auto-apreciação posterior.
Parece-nos que a questão em torno da fotografia diz respeito a um processo de
interpretação. Nesse sentido, não é possível entender que a imagem fotográfica é capaz
de descrever situações ou detalhes como numa linguagem escrita. Ela até permite saber,
por exemplo, como se vestiam pessoas em determinada década passada, ou como se
maquiavam certas mulheres; contudo, as possibilidades imaginativas são muito mais
possíveis, muito mais dadas. Até visualizamos um fragmento de passado diante de um
10
Observou-se esta situação em pesquisa desenvolvida em Vitória da Conquista, a partir de fotografias da
Família Mello, uma família de fotógrafos da referida cidade. Dentre as fotografias, foi possível encontrar
imagens fotográficas registradas no início do século XX. O resultado da pesquisa pode ser visto no artigo
“A fotografia e um breve debate acerca da modernidade”, apresentado no VI Encontro de Estudos
Multidisciplinares em Cultura – ENECULT, realizado em Salvador – Bahia, em maio de 2010. Neste
texto, constatou-se que, no caso destas fotografias feitas do período citado, só era possível obter tal
resultado com a utilização de chapas de vidro, retocadas manualmente, o que justifica o colorido das
imagens, impossível somente utilizando o negativo revelado. As imagens do tipo da que citamos neste
texto, foram feitas pelo fotógrafo Manuel Euphrásio dos Santos Mello.
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testemunho direto. Mas a fotografia não é, por isso, um documento incontestável e não
livra o leitor de imaginar diante daqueles personagens ali retratados.
Esta constatação livra a fotografia da definição reducionista de documento. O
próprio Kossoy faz, no desdobramento de suas pesquisas em torno da fotografia,
observações nesse sentido. Há uma busca por melhor explicitar o caráter de
representação que é atribuído à fotografia. A fotografia é então encarada como um
instrumento dotado da capacidade de evocar realidades e de ficções. Essa ideia leva em
direção ao conceito e que as imagens fotográficas não se esgotam em si. Diferente disso,
elas são apenas o ponto de partida a partir de onde se tentará desvendar o passado
(KOSSOY, 2002, p. 21). A tarefa do leitor é a de tentar decifrar a realidade interior das
representações fotográficas, seus significados ocultos, sua tramas, realidades e ficções.
Na maneira como temos entendido a natureza da fotografia, quer dizer, atribuindo a ela
a capacidade de estimular a criação de passados, encontraremos uma contribuição de
Boris Kossoy nos seguintes termos:
primeira e segunda realidades. A história oculta e interna que a fotografia traz é a sua
realidade interior. Por natureza, é complexa, invisível fotograficamente e inacessível
fisicamente, se confundindo com a primeira realidade. Assim como esta última, é o
próprio passado. Ela é a realidade do assunto em si na dimensão da vida passada
(KOSSOY, 200, p. 36). Ela diz respeito à história particular do assunto. Esta primeira
realidade tem curtíssima duração e sua existência se limita ao instante em que se dá o
registro.
A segunda realidade é a realidade do momento posterior ao registro. É a
realidade do assunto representado e está ligado aos limites bidimensionais da imagem
fotográfica, “não importando qual seja o suporte no qual esta imagem se encontre
gravada” (KOSSOY, 2002, p. 37). Esta segunda realidade é a realidade fotográfica do
documento, cuja referência é sempre presente de um passado inacessível. Ele diz que
“Toda e qualquer fotografia que vemos será sempre uma segunda realidade”
(KOSSOY, 2002, p. 37).
Esta contraposição entre duas realidades sugere que devamos entender os
mecanismos internos de produção e de recepção das imagens que, neste caso, deverão
ser entendidos como componentes de um processo de criação de realidades. Deste
modo, entendemos que o assunto uma vez retratado na imagem é um novo real. Ele é
interpretado e idealizado. Há uma atribuição de novos sentidos. Essa interpretação é
construída. Detentora de signos, a fotografia não se permite leituras singulares. Longe
disso, ela permite interpretações plurais, variando conforme varie quem a aprecie, do
modo como apresenta Kossoy:
11
Quincas Berro D’água. Direção: Sérgio Machado. Brasil. 2010.
92
Por ser enigma é que a fotografia, como um haicai, pede uma recepção
poética e uma fala ao mesmo tempo sempre necessária e sempre inadequada.
A ambigüidade é ainda mais forte porque a fotografia pode sempre ser, de
certa forma, da esfera de uma encenação, de uma instalação e de uma
negociação. Assim, no que tem de mais rico, a arte fotográfica cria obras que
só podem nos sensibilizar e nos comover, nos desestabilizar e nos abalar, e,
portanto, só podem nos enriquecer. A fotografia é então fonte de surpresa: ela
nos faz pensar e imaginar, sonhar e ver; ela pode nos incitar a filosofar; ela
deve nos convidar à meditação (SOULAGES, 2005, p. 346).
Na leitura de uma foto, há uma abertura ao que ela não é. Ela é ultrapassada,
trabalhada com tal intensidade que o processo criativo é incontrolável por seu
observador. Uma mesma foto pode ser apresentada e atualizada numa infinidade de
contextos diferentes. Ela não é entregue pronta, mas é aberta, adquirindo uma nova
dimensão e um novo destino a cada observação. A história nela contida também é viva,
visto que cada recepção pode ser uma nova recriação.
No instante em que está diante de uma fotografia, o espectador reúne derivações
da história do grupo do qual faz parte. Ao ler uma imagem fotográfica, haverá
implicação de questões ideológicas, que são ideias, concepções de mundo, formas de
consciência, sistemas de pensamento, senso comum e também relações imaginárias. As
coisas na fotografia não são como elas se mostram ao olhar desprevenido. Para
compreendê-las é preciso fazer um desvio, dar um salto por trás do visível, destruir a
aparência familiar, natural com que aparecem aos nossos olhos, como se fossem
originárias em si mesmas e independentes do sujeito que as opera e as modifica.
Diremos, diante de toda esta argumentação que o valor e informação trazidos por
uma fotografia estão cada vez menos no que ela traz de sua suposta origem documental
e cada vez mais naquilo que lhe é exterior. O olhar a tem como um objeto e a tornará
um tipo de elo para uma narrativa sentimental. Em lugar de uma rememoração, haverá,
diante da fotografia, um processo de criação de passados, possibilitada pelo presente de
cada um de seus intérpretes.
93
3 Considerações finais
acrescenta a isso que o exercício da memória é possível a partir do papel dos signos.
Queremos dizer que os signos, os da definição de Charles Sanders Peirce, fazem com
que busquemos em nosso repertório de conhecimento os elementos suficientes para a
compreensão de fatos passados que não vivemos. Para dar o exemplo de uma imagem, é
como se diante de um quadro considerássemos toda a nossa bagagem cultural, religiosa,
etc., para dar um sentido à referida imagem.
Sendo assim, este modo de entender a memória em Deleuze, nos leva,
necessariamente, a uma categoria cara ao pensamento dele: o simulacro. Esta
capacidade que temos de imaginar e atualizar um determinado fato, com base no que
nos é presente, nos permite, exatamente, criar novas realidades. Isto nos autoriza a
produzir apresentações diante da realidade. Isto é, ainda no caso da imagem, ao
observarmos uma pintura, a realidade que criamos é diferente daquela do quadro em si e
diferente da que é criada por outra pessoa que também a observe. Tratando deste tema,
encerramos a primeira parte da dissertação, ficando como modelo analítico esta
ferramenta aplicada no capítulo 2.
A partir disso, partimos para uma segunda parte com a intenção de aplicar este
modo de observação, a fim de entender de que maneira a fotografia se relaciona com a
noção definida de memória e de como ela incita o surgimento de simulacros, a partir de
seus signos.
Dotada de signos, a fotografia foi tratada como uma causadora de ilusão. As
câmeras, por sua vez, como construtoras de configurações próprias, resultando numa
forma diferenciada dos objetos e seres que povoam o mundo. Na medida em que são
fabricados “simulacros”, as figuras retratadas significam, portanto, as coisas mais que as
reproduzem. A fotografia acaba sendo um sistema simbólico que, em vez de exprimir
passivamente a presença pura e simples das coisas, constrói representações. Ela até pode
ser considerada um espelho do mundo, mas conforme um dia escreveu o autor Arlindo
Machado, “um espelho dotado de memória” (MACHADO, 1984, p. 10).
O espectador deixa de ser um leitor passivo; torna-se ativo visto que há uma
necessidade de movimento ante a imagem fotográfica. Exige-se uma ação sempre
produtiva de interpretação e de alteração do objeto representado. É criada uma terceira
significação, além daquela da fotografia e da do espectador. Ao reunirem-se estas duas,
estamos diante de um terceiro aspecto, que é o do simulacro.
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Ou seja, se a fotografia tem uma limitação, no que diz respeito àquilo que
informa sobre a essência do objeto fotografado, ela permite e solicita um investimento
da capacidade criadora. Criamos em vez de lembrarmos; aprendemos em vez de
rememorarmos. Compreendemos, assim, que, diante de uma fotografia, o sujeito vê o
presente avançar sobre o passado e sobre o futuro e ele acaba mergulhando numa
temporalidade que lhe parece própria da intimidade, mas que não passa da apropriação
de um desejo diante da cena. A interpretação que se faz não é, portanto, contida por sua
vivência, mas por uma vontade apontada pelas vivências próprias. A fotografia, assim,
revela nossa memória mais onírica e a põe diante de nossos olhos saudosos de um
presente, não de um passado. Nesta atualização, age, determinantemente, o imaginário.
Ele, que se torna um personagem da história contemporânea, propõe que imaginar a
imagem faz com que se veja nela o que de fato ela quer dizer, ou seja, é condição para a
construção de sua indicialidade.
Ao respeitarmos este caráter indicial, se reconhecerá o papel da fotografia como
uma artefato auxiliar na restauração que pode faltar à memória. Ela fornece a forma
dessas lembranças. Apesar de presa ao real, por seus traços de certa forma análogos, a
foto não consegue ficar presa à realidade, acabando por se descolar dela e pegar carona
nas asas da imaginação. Ela permite que as investidas imaginativas sejam familiares
àquilo que está representado. Ela delimita, por seu ritmo ou forma, o espaço onde se
darão as divagações. A realidade da imagem é transportada para a realidade de quem
cria o seu próprio passado conforme determinada foto. A fotografia foi entendida, por
fim, como uma criadora de passados, tantos quantos forem os seus leitores.
Decifra-se signos imagéticos a fim de dar a eles uma significação que, por sinal,
é nova. Aprendizado, associado à decifração, resulta no entendimento de memória.
Diríamos que, a partir dela, faz-se nascer novos signos. Pesa, neste processo, as
especulações da imaginação; interferem, neste caminho, as sensações presentes; é
determinante, num fim último, a livre interpretação dos signos.
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