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Revista Semestral do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP

14
2008

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VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP.
Nº14 ( outubro 2008 - ). - São Paulo: o Programa, 2008 -
semestral
1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicionismo
Penal.
I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-
Graduados em Ciências Sociais.

ISSN 1676-9090

VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária


do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.
Coordenadores: Vera L. Michalany Chaia e Lúcia Maria Machado Bógus.

Editoria
Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária.

Nu-Sol
Acácio Augusto S. Jr., Anamaria Salles, Andre Degenszajn, Beatriz
Scigliano Carneiro, Bruno Andreotti, Edson Lopes Jr., Edson Passetti
(coordenador), Eliane Knorr de Carvalho, Guilherme C. Corrêa, Gustavo
Ferreira Simões, Gustavo Ramus, Juliana Meduri, Lúcia Soares da Silva,
Mauricio Ferreira Freitas, Natalia M. Montebello, Nildo Avelino, Rogério
H. Z. Nascimento, Salete Oliveira, Thiago M. S. Rodrigues, Thiago Souza
Santos.

Conselho Editorial
Cecilia Coimbra (UFF e grupo Tortura Nunca Mais/RJ), Christina
Lopreato (UFU), Clovis N. Kassick (UFSC), Guilherme C. Corrêa (UFSM),
Guilherme Castelo Branco (UFRJ), Margareth Rago (Unicamp), Rogério H.
Z. Nascimento (UFPB), Silvana Tótora (PUC-SP).

Conselho Consultivo
Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Dorothea V. Passetti
(PUC-SP), Francisco Estigarribia de Freitas (UFSM), Heleusa F. Câmara
(UESB), José Carlos Morel (Centro de Cultura Social – CSS/SP), José
Eduardo Azevedo (Unip), José Maria Carvalho Ferreira (Universidade
Técnica de Lisboa), Maria Lúcia Karam, Paulo-Edgar Almeida Resende
(PUC-SP), Robson Achiamé (Editor), Silvio Gallo (Unicamp, Unimep), Vera
Malaguti Batista (Instituto Carioca de Criminologia).

ISSN 1676-9090

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verve
revista de atitudes. transita por limiares e ins-
tantes arruinadores de hierarquias. nela, não
há dono, chefe, senhor, contador ou progra-
mador. verve é parte de uma associação livre
formada por pessoas diferentes na igualdade.
amigos. vive por si, para uns. instala-se numa
universidade que alimenta o fogo da liberdade.
verve é uma labareda que lambe corpos, gestos,
movimentos e fluxos, como ardentia. ela agita
liberações. atiça-me!

verve é uma revista semestral do nu-sol que


estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz
anarquias e abolicionismo penal.

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Diagramação: Andre Degenszajn.

Capa: Andre Degenszajn, a partir de ilustração de Aloisio Licht.


Ilustrações: Aloisio Licht.
Poema “69” por Gustavo Simões e Thiago Rodrigues, pp. 46-48.

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SUMÁRIO
Dossiê 68
Nu-Sol 11

A etologia das disfunções, de Aloisio Licht


Guilherme Corrêa 49

América Scarfó, uma experiência 53

FOUCAULT
Edson Passetti e Acácio Augusto 60

O grande jogo
Alexander Berkman 87

Paradise now
Judith Malina e Julian Beck 90

Escolas de indisciplina: notas sobre sociabilidades


anarquistas no Brasil em inícios do século XX
Rogério Nascimento 106

Prazer e rebeldia
João da Mata 122

O esporte como miséria e espetáculo na era da globalização


José Maria Carvalho Ferreira 133

Anarquismo e a política do ressentimento


Saul Newman 145

Sobre a fundamentação metodológica do enfoque


abolicionista do sistema de justiça penal ― uma
comparação das idéias de Hulsman, Mathiesen e Foucault
Rolf S. de Folter 180

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Política, segurança e criminalização de deslocados
Edson Lopes 216

Emma Goldman diante do tribunal


Emma Goldman 237

Antropofagia anarquista:
Roberto Freire, Antonio Martinez, Jaime Cubero 249

RESENHAS

Convulsões espanholas: invenções na Revolução


Eliane Knorr 270

Mergulho e liberdades
Natalia Montebello 274

Sobre o uso político da religião


Gustavo Ramus 279

Teatro, anarquia e um alerta aos pluralistas


Edson Passetti 284

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verve 14, traz a segunda parte do dossiê 68 com
palavras-falas do nu-sol para inesperado jogo
de amarelinha. um jovem artista, aloisio licht,
revira vestígios disciplinares com a delicadeza do
traço compondo uma figuração mordaz. uma
jovem anarquista, américa scarfó, conversa com um
experimentado anarquista sobre o amor livre.
verve amplia suas proximidades com o teatro
publicando a aula-teatro 3 do nu-sol, FOUCAULT
(assim mesmo em maiúsculas: o que somos e não
somos), uma brevíssima peça de alexander berkman
e trechos do muito comentado, e pouco conhecido,
paradise now do the living theatre, também de
sessenta e oito. indisciplina, prazer e rebeldia
rondam e transpõem as misérias do esporte. uma
discussão pertinente sobre anarquismo e ressentimento
situa a relevância das reviravoltas anarquistas
contemporâneas e mete uma rasteira em nietzsche. o
abolicionismo penal presente em um texto referência,
nas escarificações de políticas de segurança e com uma
anarquista no tribunal: diante da prisão é preciso ser
tupinambá. uma antropofagia anarquista deglute
a presença de três anarquistas ausentes (jaime cubero,
antonio martinez e roberto freire) e os muitos anônimos
guerreiros. dos livros lidos comentamos mulheres,
religião, 68, teatro livre... verve 14.

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dossiê
68

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Dossiê 68

maio de 1968 é anarquia

acácio augusto

A sociedade moderna ama as datas comemorativas:


dezoito anos disso, cinqüenta anos daquilo, noventa
anos daquele outro. Obcecada por marcar o tempo, ex-
plicita seu desejo por conservar, por manter as coisas
como são: expressa seu pavor pelo novo, o perturbador,
o estranho.
As ações de estudantes, e alguns operários, por todo
planeta durante o ano de 1968, enterraram de uma vez
a infalibilidade da ação das vanguardas. Cada diferente
falou por si, expressou seus desejos, realizou seus trans-
gressivos prazeres. Ato contínuo, muitos se lembraram
da relevância do pensamento libertário, voltaram a ler,
comentar e editar Proudhon, Bakunin, Malatesta. Teve
até historiador que se viu obrigado à retratação pública
por ter decretado a morte do anarquismo junto ao fim
da revolução espanhola.
A contagem do tempo e as interceptações históricas
e sociológicas dizem hoje que o fim das vanguardas foi
o redimensionamento destas em elites de minorias; a
retomada do anarquismo, apenas uma maneira de oxi-
genar o marxismo, gasto com a ação internacional da
URSS. Não há como negar esse desdobramento está aí
para quem quiser ver e usar.
No entanto, para anarquistas, maio de 68 permanece
um acontecimento repleto de ressonâncias libertárias;
uma possibilidade de romper com a vontade de conser-

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vação, com a busca por acomodações e de realizar no


espaço, aqui e agora, uma heterotopia anárquica, na
história e contra a história: intempestivo. Comemorá-lo
é negar sua potência de liberação.
Experimentar sua atualidade é estar atento e forte
para saber e sentir que maio de 68 é anarquia!

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Dossiê 68

um dossiê 1968

beatriz carneiro

Dossiê

■ substantivo 1. série de documentos importantes que tratam, re-


velam a vida de um ou mais indivíduos, de um país, de uma insti-
tuição.

1968, ano dos meus 12 e 13 anos de idade.

1968 em 2008 seria como se eu dobrasse quaren-


ta anos e unisse apenas as pontas 68-08, torcidas em
uma faixa de Moebius. Há porém, uma seiva que corre
direto entre as pontas, sem passar pelos anos todos; é
isso que interessa.
Abordo o assunto a partir do que experimentei na
época. Os documentos do dossiê 68 consistem em meus
próprios registros dos acontecimentos que me afetaram
naquele ano: poemas escritos em um caderno e frases
retiradas de uma tentativa de escrever um diário, o qual
se tornou um texto contínuo sem referências a datas do
dia a dia.

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DOCUMENTOS

1. Frases:
- 68, não será um ano de paz. (1 de janeiro de 1968)
- Hoje fui na Bienal. E dizem que aquilo tudo não é
arte! Gostei dos quadros surrealistas, do pop, ciné-
tico, cibernético. Vi Caetano Veloso de perto! (6 de
janeiro de 1968, último dia da Bienal de 1967)
- Gosto de arte e de revolução.
- Não gosto do muro de Berlim.
- Apoio Rudi Dutschke, Daniel Cohn-Bendit, Pavel
Litinov e todos estudantes subversivos.
- A guerra do Vietnã é uma panela. Lá os Estados
Unidos querem mostrar seu poder aos comunistas
sob o pretexto de ajudar os sul-vietnamitas.
- Os soldados são as marionetes do Pentágono, este
os manda matar e eles matam. O que acontece no
Pentágono e as resoluções tomadas, nem o povo de
lá sabe.
- Guerrilha na América Latina para fazer aparecer o
socialismo não dará certo.
- Che sempre imitado nunca igualado (essa frase
subversiva colada com a foto de Guevara no mural-
zinho da escola causou a maior confusão).
- No fim do século haverá uma III Guerra, não é
preciso adivinhações, basta ler os jornais. Nesta 3ª
guerra, os ignorantes usarão obviamente bomba atô-
mica e de hidrogênio, pode ser até que usem a de
cobalto, que ouvi dizer que é a última bomba que cai.
Se houver sobreviventes? A radioatividade influi nos
genes, será um futuro de monstros, é o fim.
- A filosofia hippie... não se pode lutar contra o que
já temos: a violência.

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Dossiê 68

- O socialismo é bom, pois há igualdade de classe,


e é péssimo, pois a gente pertence ao Estado como
bonecos.
- Não existe moral nem nunca existiu. E quem crê
nela? Quase todo mundo. Eu não creio. A moral
muda porque não é fixa, portanto não existe mo-
ral. A moral é feita e imposta ao homem, que quer
emancipar-se, pela sociedade.
- Não quero virar vítima da máquina de forjar mitos
e levar uma vida falsa e tola.
- Quero igualdade de propriedade a todos e de direi-
tos, a abolição do dinheiro, a derrubada do Estado,
a união dos países, etc.
- Viva o socicalismo! O socialismo tropicalista.
- Como eu posso imaginar alguém num mundo cheio
de injustiças, que não se revolte. Isto é inconcebível,
mas existe.

2. Poemas escritos em 1967 e 1968:

Autoridade (julho 1967, editado)

Autoridade, causa de guerras.


Autoridade, objeto de esmagar.
Quer sempre tudo e em todos mandar.
Faz classes sociais, faz conflitos raciais.
São apenas vermes de esgoto, vão desaparecer.

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Grades (fragmento) 26/8/68

Estou me integrando
Na massa popular burguesa
Em virtude de grades
GRADES!
Estou sendo absorvida...
Para que existem grades?
Para que existem grades?
Para que existem grades?
Para que existem grades?
Para que existem grades?
Para que existem ..........?
Para que .......................?
Para...............................?
......................................?
.......................................

_____________________________________________________
Prop’s 18/9/68

Compre!
Beba!
Use!
Coma!

Grandes cartazes coloridos.

E vocês respondem:
Compramos!
Bebemos!

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Dossiê 68

Usamos!
Comemos!

O dedo manda lá
Lá estão...
O dedo manda cá
Cá estão

O dedo aponta a direção


E vão....

Use!
Usaremos

Compre!
Compraremos!

Beba!
Beberemos

Coma!
Comeremos!

Arrastem-se imbecis!
Dinheiro!!!
Dinheiro!!!
Dinheiro!!!
Dinheiro!!!
Dinheiro!!!
Dinheiro!!!
Dinheiro!!!

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Passar na frente: dinheiro!


Corra, corra!
Ou falirá!
E a greve não pode estourar!

Ganha quem tem


CARTAZ LUMINOSO
Na cidade

Cidade Burguesia
Prop’s Dinheiro

Deus fez os ricos


Deus fez os pobres.
Que a vontade d’Ele seja feita.
Aaaaammmmmmééééééééém

(qual o final disso tudo?)

ESCRAVIDÃO....
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1968

Relendo essas garatujas da época, percebi que o que


eu mantenho ainda vibrante hoje é conseqüência de ter
aberto os olhos de uma infância tediosa, em 1968, e en-
contrado um imenso mundo nos jornais, nas revistas,
no rádio e na televisão, e em exposições de arte e cine-

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Dossiê 68

ma. Até no colégio de freiras, onde cursei o Ginásio, a


movimentação 68 respingava em mural de notícias; em
relatos de estudantes universitários, parentes de cole-
gas, ou de uma ou outra professora jovem, que ao tra-
zer novas idéias, tinha permanência curta na escola.
Assim como as ruas ocupadas por estudantes, a
universidade aparecia como um local pulsante de deba-
te e ação efetiva, um espaço de liberdade e de liberação.
Para mim o mundo estava lá fora, estava fora dos mu-
ros da escola e da família. O melhor de 68 ocorria fora
de mim, fora do colégio, mas hoje encontro ainda algo
arraigado dentro, desde aquela época.
Em 1968, as revoltas contaminavam o mundo todo.
Pela imprensa acompanhei manifestações de rua pelas
cidades mais diversas; jovens largando empregos e di-
zendo não à guerra; scholars abandonando as cátedras
bem postas e caindo na vida; desertores do Vietnã em
fuga; anti-consumismo; contracultura; antipsiquiatria;
revoltas contra as prisões; a busca uma vida autêntica
― as palavras “espontâneo” e “autêntico” nomeavam as
atitudes valorizadas do dia a dia.
Eu seguia as notícias sobre Daniel Cohn Bendit e o
maio francês; os estudantes no México; as passeatas
brasileiras de protesto contra o arrocho salarial, contra
a falta de vagas nas universidades estatais, contra a
ditadura, a morte do estudante no Rio, a briga UNE x
CCC – Comando de Caça aos Comunistas, na rua Ma-
ria Antônia. Rudi Dutschke era um dos meus “ídolos”.
O nome de Pavel Litinov entre minhas referências do-
cumentadas me surpreendeu, precisei pesquisar para
recordar esse dissidente russo que participou de uma
manifestação de apoio à Primavera de Praga, em Mos-
cou, na Praça Vermelha, em 1968. Eu de fato lia jornais
com maior atenção e entusiasmo do que hoje.
A grande explosão rebelde nos EUA ocorreu em
1967. A guerra do Vietnã desencadeou violentos pro-
testos, pois o alistamento obrigatório atirou jovens da

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classe média americana em um matadouro. Nos EUA,


entre outros grupos atuantes, hippies pacifistas desa-
creditaram os militares, a polícia, as escolas, os empre-
gos. A onda hippie se ampliava pelas ruas, pela mídia,
entrando nos lares, abalando os “clean-cuts” (“quadra-
dos”) envolvendo até jovens dos estados americanos
mais conservadores que escapavam de seus ranchos e
subúrbios para os grandes centros em que tudo aconte-
cia. Lá ficavam na rua, em albergues, em acampamen-
tos. Sem contar os grandes shows de rock e os grandes
conjuntos que se formaram, fornecendo a trilha sonora
das andanças pelas ruas. O movimento negro conquis-
tava seus direitos com grandes lutas incendiárias.
No Brasil, nessa época, havia um certo “aparelha-
mento” dos jovens, especialmente dos universitários,
por parte de partidos, da igreja e grupos políticos di-
versos, inclusive de direita como o CCC. Isso pode ex-
plicar a específica organização dos protestos no Brasil.
A juventude brasileira mais atuante era atravessada
por palavras de ordem de grupos de esquerda, os quais
enfrentavam a ditadura com determinação. Os jovens
saiam às ruas com coragem, mas ao mesmo tempo, a
maioria desses militantes vaiava Caetano Veloso com
ódio. Então é essa a juventude que diz que quer tomar o
poder? Que juventude é essa? — disse ele em 1968, no
festival de MPB da TV Globo durante a vaia a É proibido
proibir..., uma vaia de jovens politizados que se emocio-
navam com “Para não dizer que não falei das flores” de
Geraldo Vandré, por sinal hino de passeatas nos anos
que se seguiram.
Em 1967/68 algumas linhas de fuga surgiam jun-
to a jovens que não eram mais “o velhote inimigo que
morrera ontem”, mas atentos a autoritarismos, mesmo
os de esquerda, sem perder o tom libertário. Na mídia,
esse grupo aparecia composto pelos integrantes da Tro-
picália, cujo auge se deu em 1968 ― Caetano Veloso;
Gilberto Gil, Tom Zé incluídos. Contudo, havia outros que
só fui conhecer alguns anos depois.

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Dossiê 68

A coragem de “dizer não” se propagou como fogo e


vento. Não às ditaduras com ou sem palavras de ordem,
não ao Vietnã, não aos pais, não à burocracia de Esta-
do, não ao ensino, não ao Exército, não aos empregos,
não à repressão sexual, não às instituições, não aos
estados ordinários de consciência, não às hierarquias,
não ao não. A coragem de fazer sexo, fazer grupos atu-
antes, fazer protestos, fazer ocupações na rua, fazer
arte, fazer invenções, fazer experiências, a coragem do
fazer sim. Mais além do “inferno são os outros” de Sartre,
era forte a energia dos corpos coletivos revirando-se
contra a repressão e opressão celebrando Eros na estei-
ra de Marcuse.
As instituições eram questionadas, em vários níveis.
A arte se tornava anti-arte, o teatro não era mais lugar
de se fazer a digestão mas de transformar o pensamen-
to, o ator não era apenas uma boa voz mas corpo pre-
sente e atuante integralmente, as premiações artísticas
eram desprezadas, ter o dinheiro como meta era des-
prezível, a segurança de uma família e do bom emprego
limitava a realização da liberdade, as roupas deveriam
ser naturais, confortáveis e alegres, corpos nus apare-
ciam sem poses, o moralismo aos poucos cederia lugar
a uma compreensão das coisas como seriam de fato, a
vida deveria ser autêntica a cada atitude.
Em 1968, eu tive a certeza de que o mundo daque-
le momento em diante, se manteria incrível, libertário,
autêntico, diferente da minha vidinha besta de família-
colégio, pois parecia que as instituições conservadoras
estavam sendo demolidas para sempre e sem possibili-
dade de retorno, e atitudes autoritárias e burocráticas
desapareceriam de tão desprezadas! Por outro lado, ha-
via o espectro de uma guerra total e o fim do planeta.
Tudo ou nada! Coisas de quem tem doze/treze anos.
Tudo ou nada.
Logo percebi, porém, que não era nada disso. Nem
liberação, nem bomba atômica. Acompanhei os aconte-
cimentos do AI-5 pela rádio BBC e Rádio Cuba no dia

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13 de dezembro. As prisões e perseguições pelo Brasil


eram alardeadas no exterior enquanto que por aqui, re-
vistas e jornais com tais informações eram recolhidos e
incinerados. Eu estava sozinha, sintonizando estações
de rádio, chorando. Tive a impressão que algo terrível
ocorrera. Que aquele mundo amplo e livre que mal dera
as caras se fôra para sempre.
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2008

Quarenta anos. No Brasil, nesse período, quinze anos


foram de ditadura, perseguições e, depois, montagem e
consolidação de uma democracia adequada ao controle
globalizado, distante dos caminhos que irromperam e
pareciam prosperar em 68.
Há comemorações cívicas de um 1968 congelado na
sua própria data, assistidas por uma juventude perple-
xa em saber que seus pais e até avós experimentaram
rebeldias, que tantas possibilidades foram sendo cons-
truídas e que hoje parece que não há nenhum caminho
para se contestar e sim para se contentar. Ou não.
Talvez seja melhor esquecer, se não for para colocar
no fluxo dessa memória as linhas de fuga que ainda
não se esgotaram, escaparam e ainda escapam das cap-
turas; o resíduo vivo; a seiva oculta por grosso tronco
aparentemente morto. Quais podem ser as imperceptí-
veis resistências que incomodam o coro dos contentes?
A torção Moebius 68 ∞ 08: hoje, o não ao limite se
desloca para o sim às modulações do controle. A revolta
se torna participação constante e controlada ― passeata
hoje no Brasil precisa marcar hora e pedir autorização
ao departamento de trânsito. O controle pressupõe a re-
sistência para ampliar seu campo de atuação, William
Burroughs já apontava isso em 68.

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Dossiê 68

68 em 08, dizer não a quê? dizer sim a quê? O que


estava ainda informe em 68 ganhou configuração muito
nítida em quarenta anos. Muitos nãos de 68 foram ab-
sorvidos paulatinamente, gerando instituições flexíveis
e abrangentes, subjetividades identitárias, incentivos à
participação nas decisões, expansão de direitos juridi-
camente estabelecidos. O não ressentido que emocionou
muitas rebeliões abriu o flanco à captura caridosa.
Em cada época, há atitudes que jamais poderão ser
absorvidas e que atraem uma reação conservadora, su-
til ou violenta, visando destruí-las ou desqualificá-las
ou neutralizá-las.
Em 1968-hoje, como dizer um NÃO! que não impli-
que o SIM! a um assujeitamento ainda mais entranha-
do. Mais do que nunca é preciso dizer sim ao que de fato
resiste irredutível e não se dilui em ondas sinuosas.

É preciso estar atento e forte.


Não há tempo para se temer a morte.

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2008

isso e aquilo! (e outras coisas mais)

eliane knorr

isso e aquilo! (e outras coisas mais)


68 reinventou as rebeldias e obrigou o poder a se rein-
ventar.
nos governos...
apropriou-se da autogestão anarquista como autoges-
tão empresarial, ou policiamento de si.
afogou minorias em direitos.
amoleceu os limites, tornando-os mais flexíveis e adap-
táveis, para que a ruptura se tornasse mais difícil.
... e na vida
desestabilizou os modelos. mesmo os revolucionários.
reverbera, nos inadaptáveis, rupturas radicais.
se os governos tentam apaziguar os rebeldes com di-
reitos, é porque sabem que 68 também liberou para to-
dos os corpos a potência de ser selvagem...

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verve
Dossiê 68

sem título

gustavo ramus

Maio de 68 ficou marcado pela contracultura e por


diversas formas de liberações. É verdade que muitos
contestadores de outrora se tornaram agentes da or-
dem de hoje. No entanto, 68 continua servindo de com-
bustível para outras gerações que ainda queimam mui-
ta coisa por aí. Numa época conservadora, como a que
vivemos na atualidade, é raro encontrarmos jovens in-
surgentes. O que Maio de 68 nos deixou é a luta ineren-
te à vida, a recusa por receitas revolucionárias e pelos
condutores de consciência, a exoneração do codifica-
do, do que já existe. Inventar um outro mundo, dese-
jar o impossível. O poder permanece sem imaginação.
Tudo, inclusive a nossa própria existência, é fruto de
um combate. E é por meio desses combates que tudo
se transforma, nada se conserva idêntico a si mesmo. A
história é escrita na pele das pessoas. Lutar por si mes-
mo, não esperar mais por heróis, mas ser uma força em
movimento. Destruir e criar como fogo apaixonado. O
tesão em estar vivo! Provocar insurreições; desestabili-
zar hierarquias; explodir as couraças de nossos corpos;
incendiar o tribunal que se instalou em nós mesmos;
matar o policial que nos habita. Intensificar a liberdade
na amizade, no sexo e no corpo. Viver a vida como uma
contínua liberação, dia após dia, na busca por espaços
e experimentações de liberdade imediata.

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transgressão e revolta. que sexo faz?


faz sexo gay

edson lopes & nildo avelino

1968. Jovens inventaram costumes em que a libe-


ração dos amantes, do sexo e as insubmissões compu-
nham prazeres às revoltas que se pronunciavam nas
ruas, nos corpos, nas relações, nas fábricas e nas barri-
cadas. Pode-se adquirir uma inteligibilidade da revolta
— mesmo quando se trata de revoluções universalistas
— pelas práticas de liberações do sexo que permitem à
palavra transgressão, e a partilha nela contida, designar
a diferença. A transgressão, liberada do negativo, res-
gata seu parentesco com a ética que à pele aos poucos
permite safar-se da farsa da repressão, da ideologia, da
interioridade e das revoluções restauradoras do Estado.
Confere outra inteligibilidade às revoluções e às fugas
da sociedade que, da colonização dos sexos à coloniza-
ção dos povos, questiona o governo das condutas.
Desde as campanhas nas páginas do L’En Dehors e
Mother Earth os anarquistas propagam os perigos do
socialismo autoritário e do Estado como poderes esma-
gadores da individualidade. Denunciaram que os mes-
mos costumes que sustentam as práticas de governo
determinam as práticas sexuais. Inventaram outros
usos do corpo: nudismo, naturismo, campismo, vegeta-
rianismo etc., emergências liberadoras cujo gesto partia

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verve
Dossiê 68

de mulheres e homens, à revelia da condenação públi-


ca e da criminalização que os acometeria de inúmeras
provas de suas degenerações, vícios, desobediências e
monstruosidades revolucionárias.
As campanhas pelo amor livre e pela ‘emancipação
sexual’, não tendo lugar na consciência de classe, na
luta operária, no partido, eram, notadamente, relega-
das pelo socialismo a um sintoma de degeneração (tam-
bém, a um sintoma anarquista) e como tal, parte de
uma moralidade burguesa. Permite-se assim, enxergar
a ditadura e as feridas revolucionárias ignoradas e que
na URSS, Alemanha Oriental, China, Cuba, Coréia do
Norte, etc. fizeram de anarquistas, tanto como loucos e
gays — algumas teorias associavam perversões a doen-
ças mentais — prisioneiros de gulags, alvos de perse-
guições, criminalizações e extermínios sanguinários —
numerosos como os do nazismo e fascismo — que nem
sequer o esquerdismo de 1968 ousou problematizar.
Quem e quantos foram os anarquistas e gays mortos
pelos totalitarismos, não se sabe precisar; os números
só representam as inúmeras destruições de homens e
mulheres como pura conjectura.
Daniel Guérin ressaltou que a possibilidade de
transformar a própria vida tornava-se um problema
que importava mais do que a liberação homossexual
aliada à revolução social. Não se tratava de uma revo-
lução, segundo Guérin, simplesmente do ponto de vista
político, mas, ao mesmo tempo cultural e sexual, que
transformasse todos os aspectos da vida e da socieda-
de. Dizia-se contra qualquer sociedade, até a socialista,
que mantivesse tabus sexuais. E, para ele, a revolta da
primavera de 1968 rejeitava todas as faces da submis-
são.
Das incursões e emergências do tema do amor livre,
nas reuniões, greves, publicações, à tônica americana
‘gay is good’ e ‘coming out’, da década de 1960, que co-
locavam em jogo a possibilidade da prática, expressão,
prazer e diversão mediante a experimentação do sexo,

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o maio de 1968 e, após ele, o acontecimento Stonewall


(1969), nas suas reivindicações mais moderadas e re-
voltas mais acaloradas contra as polícias, os governos,
a noção de perversão em torno da criminalização, expri-
miram lutas de mulheres, gays, prisioneiros, etc. 1968
marca uma série de oposições: a oposição ao poder dos
homens sobre as mulheres, dos pais sobre os filhos, do
psiquiatra sobre o louco, da medicina sobre a popula-
ção... De resistências que funcionaram como lutas an-
ti-autoritárias. De lutas transversais que não estavam
limitadas a uma forma política e econômica de governo.
De lutas que tinham por alvo o poder enquanto tal. De
lutas imediatas contra as instâncias de poder imediata-
mente próximas. De lutas que questionaram o estatuto
do indivíduo e afirmaram a diferença. 1968, revolução
sem rosto: veículos revirados, códigos pulverizados, e o
rumor barulhento do sujeito e do vivido alastrando-se
numa maré indefinida.
As concessões em torno da inclusão da homossexu-
alidade no interior do sistema de direitos, no interior
do consumo crescente segmentado, da tolerância à re-
presentação da diversidade, da identidade segmentada
e de suas ações afirmativas fabrica o consumidor ou
cidadão GLBTS (gays, lésbicas, bissexuais, transsexu-
ais e simpatizantes) participativo tanto quanto opera
intervenções morais sobre o sexo, os amantes, a criati-
vidade e os costumes capazes de afirmar as liberações
sexuais. A rejeição de todas as faces da submissão de
68, ressaltou o tanto que o modo de vida e o sexo gay
inquietam com a expansão de forças imprevistas, a lei,
o direito, a regra e o hábito. Nenhum direito, tolerância
ou identidade pode validar as relações das intensidades
múltiplas, afetos, carinhos, amizades, companheiris-
mos, instinto, tesões sensuais, intensos e fugazes que
arruínam a política, a memória, o amor, a sexualidade
e a identidade. Sexo, instiga transgressões, fora da lei,
fora de si.

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é proibido proibir

juliana meduri

Música : É proibido proibir – Caetano Veloso. OUÇA

“A mãe da virgem diz que não


E o anúncio da televisão
E estava escrito no portão
E o maestro ergueu o dedo
E além da porta
Há o porteiro, sim...

E eu digo não
E eu digo não ao não
Eu digo: É!
Proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir...

Me dê um beijo meu amor


Eles estão nos esperando
Os automóveis ardem em chamas
Derrubar as prateleiras
As estantes, as estátuas
As vidraças, louças
Livros, sim...

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E eu digo sim
E eu digo não ao não
E eu digo: É!
Proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir...

Me dê um beijo meu amor


Eles estão nos esperando
Os automóveis ardem em chamas
Derrubar as prateleiras
As estátuas, as estantes
As vidraças, louças
Livros, sim...

E eu digo sim
E eu digo não ao não
E eu digo: É!
Proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir...

(em setembro de 1968, Caetano Veloso e Os Mutan-


tes no III Festival internacional da canção na TV
Globo)

Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar


o poder? Vocês têm coragem de aplaudir, este ano, uma
música, um tipo de música que vocês não teriam cora-
gem de aplaudir no ano passado! São a mesma juven-
tude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote
inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo
nada, nada, nada, absolutamente nada. Hoje não tem

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Dossiê 68

Fernando Pessoa. Eu hoje vim dizer aqui, que quem


teve coragem de assumir a estrutura de festival, não
com o medo que o senhor Chico de Assis pediu, mas
com a coragem, quem teve essa coragem de assumir
essa estrutura e fazê-la explodir foi Gilberto Gil e fui eu.
Não foi ninguém, foi Gilberto Gil e fui eu!
Vocês estão por fora! Vocês não dão pra entender.
Mas que juventude é essa? Que juventude é essa?
Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais sa-
bem a quem? São iguais sabem a quem? Tem som no
microfone? Vocês são iguais sabem a quem? Àque-
les que foram na Roda Viva e espancaram os atores!
Vocês não diferem em nada deles, vocês não dife-
rem em nada. E por falar nisso, viva Cacilda Becker!
Viva Cacilda Becker! Eu tinha me comprometido
a dar esse viva aqui, não tem nada a ver com vocês.
O problema é o seguinte: vocês estão querendo po-
liciar a música brasileira. O Maranhão apresentou,
este ano, uma música com arranjo de charleston. Sa-
bem o que foi? Foi a Gabriela do ano passado, que ele
não teve coragem de, no ano passado, apresentar por
ser americana. Mas eu e Gil já abrimos o caminho.
O que é que vocês querem? Eu vim aqui para acabar
com isso!
Eu quero dizer ao júri: me desclassifique. Eu não
tenho nada a ver com isso. Nada a ver com isso. Gil-
berto Gil. Gilberto Gil está comigo, para nós acabarmos
com o festival e com toda a imbecilidade que reina no
Brasil. Acabar com tudo isso de uma vez. Nós só entra-
mos no festival pra isso. Não é Gil? Não fingimos. Não
fingimos aqui que desconhecemos o que seja festival,
não. Ninguém nunca me ouviu falar assim. Entendeu?
Eu só queria dizer isso, baby. Sabe como é? Nós, eu e
ele, tivemos coragem de entrar em todas as estruturas
e sair de todas. E vocês? Se vocês forem... se vocês, em
política, forem como são em estética, estamos feitos! Me
desclassifiquem junto com o Gil! junto com ele, tá en-

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tendendo? E quanto a vocês... O júri é muito simpático,


mas é incompetente.
Deus está solto!
Fora do tom, sem melodia. Como é júri? Não acer-
taram? Qualificaram a melodia de Gilberto Gil?
Ficaram por fora. Gil fundiu a cuca de vocês, hein? É
assim que eu quero ver.
Chega!”
...
O mundo mudou em 1968, em maio muito já havia
sido feito na França. Dentre os principais acontecimen-
tos de lá: greve geral, a ocupação da Sorbonne e do
Théâtre de L’Odeon. E daqui: o início do Tropicalismo.
Lá ou cá, jovens viveram e deram vida à revolução sem
perder o som dos refrãos “É proibido proibir!”, “Gozar
sem freios!”, “nem Deus, nem Mestre!”. Uma revolução
apaixonada e desenfreada que não daria certo sem o te-
são de explodir valores que ninguém mais agüentava...
religião, família nuclear monogâmica, os vários tabus
ao redor do sexo e... o Partido Comunista Francês.

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Dossiê 68

músicas

mauricio freitas

Ouça:
Summertime - George Gershwin, Versão- Janis Jo-
plin. Cheap Thrills Big Brother and The Holding Com-
pany. 1967.
Triste Bahia – Gregório de Matos e Caetano Veloso.
Transa. 1972.

Pixações:
“Não me libertem, eu me encarrego disso.” Maio de
68 – França.
“Quanto mais eu faço amor, mais eu tenho a von-
tade de fazer a revolução. Quanto mais eu faço a
revolução, mais eu quero fazer amor.” Maio de 68
– França.

Frases:
“Queremos o mundo e o queremos já.” Jim Morris-
son.
“Um porto alegre é melhor que um porto seguro para
a nossa viagem no escuro.” Caetano Veloso.

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“Descobri que é chegada a hora de acrescentarmos


ao tempo e ao espaço mais uma dimensão funda-
mental à vida no universo: o tesão. Porém não me
refiro ao tesão do Aurélio, mas sim ao de Caetano,
por exemplo. Para mim esse tesão não habita dicio-
nários oficiais; entretanto, é o que anima e encan-
ta os poetas tropicais. Tesão sem passado, apenas
contemporâneo e vertical, ele é produto semântico e
romântico dos que sentem desejo pelo desejo, alegria
pela alegria e beleza pela beleza. Mas pode ser ainda
tesão de quem sente desejo pela alegria, beleza pelo
desejo e alegria pela beleza.”
Freire, Roberto, Sem tesão não há solução. Ed. Gua-
nabara. Rio de Janeiro 1987.

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Dossiê 68

jovens, a língua que corta: 68 é um agora

natalia montebello

Comecem uma revolução

Ó! comece alguém uma revolução!


não para ganhar dinheiro
mas para perdê-lo todo para sempre.

Ó! comece alguém uma revolução!


não para colocar no poder as classes trabalhadoras
mas para abolir as classes trabalhadoras para sempre
e termos um mundo de homens.

D.H. Lawrence

O exagero é o início das invenções Nos muros de Paris

Deuses habitam entrelinhas, entretecem grandes


e mínimas conspirações. Pessoas, milhares delas, re-
gurgitam divindades, entre tarefas cotidianas, em coti-
dianos estúpidos, insistentes, que rangem, rasgam, ar-
ranham, representações, pobres ilusões, de tanto tem-
po irremediavelmente perdido. Rápidas biografias de
quase todos nós. Quase sempre. Quase assim. Quase.
Jovens estudantes de uma coerente nação, em um
Ocidente primordial, primeiro mundo das primaveras

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republicanas das liberdades da convivência democrá-


tica, da ordem democrática da doce pacificação dos
modos à mesa e das incontáveis pequenas sutilezas
da boa educação racional. Herdeiros da razão, grande
novo começo, vontade registrada como garantia de que,
depois de tudo, quando tudo estiver cansado, tudo será
documentado, classificado, arquivado, interpretado e
explicado, para a felicidade geral dos menos favoreci-
dos, em intelecto ou paixão, e para o silêncio geral, dos
desfavorecidos pelas riquezas de suas nações. Jovens,
dizem os sábios comunistas do partido, burgueses. Jo-
vens, afirmam as notas de rodapé da sociedade bem-
comportada e gorda dos grandes direitos universais, do
homem e do cidadão da civilização iluminista, gratos,
e em regime de dívida eterna com um mundo que lhes
oferece educação, televisão, eletrodomésticos e sonhos
de consumo. Herdaram a razão, filhos da guerra sem
quartel, da santa guerra celestial, sem metáforas. Fi-
lhos do aniquilamento tecnológico e científico em mas-
sa, produtos da produção em massa da massificação
da vida. Seus corpos, supostamente dóceis, foram jo-
gados na universidade. Antes a universidade do que o
exército, decreta o velho continente das velhas batalhas
racionais. 1945: 120 mil estudantes nas universidades
francesas; 1968: mais de 500 mil; na Sorbonne, 160
mil. Na universidade deviam encontrar os verdadeiros
motivos e os pontos finais, teóricos, terrivelmente cla-
ros do estado das coisas do mundo, além do tempo e da
vida do mundo. E se preparar, convenientemente, para
mergulhar nas contas, de menos e de mais, e de prefe-
rência de muito mais, do bem-estar capitalista. No fim
das contas, a universidade deve capacitar o jovem a se
tornar adulto. Até aqui, qualquer semelhança, depois
de quarenta anos, não é mera semelhança.
Mas a juventude desconhece as teorias que a expli-
cam, e a recusa surpreendente da domesticação que
lhe oferece os parâmetros de uma existência civiliza-
da, e ainda por cima culta, escancara essa profunda
ignorância. Entendidos no assunto, de maneira sempre

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Dossiê 68

ridícula e anacrônica, elaboram seu atestado de estu-


pidez, que registra comentários esclarecedores a res-
peito dos surtos de liberdade e ingenuidade, que hão
de passar, e que, enquanto isso, eles, os especialistas,
hão de conter. A juventude, por vezes, desobedece ir-
remediavelmente, muito aquém e além das representa-
ções familiares e teológicas, institucionais de qualquer
maneira, do desacato, da desobediência respeitosa,
quase burocrática, dos homens de bem, ou mesmo dos
homens de mal, carregados de uma identidade muito
mais forte, ou mais pesada, do que sua vontade. Por
vezes, a juventude surpreende, assalta tudo o que está
explicado e, num pulo, vira de ponta cabeça o mundo
que lhe está reservado, do alto da sabedoria que a pre-
cede e em seu nome. Quanto mais badulaque há nesse
muito, muito maior a bagunça.
Maio de 68 foi a primeira revolta do século XXI? Ou
mesmo o começo do século XXI? Começo ou fim de uma
certa época? Quem sabe tão só uma experimentação,
uma invenção, uma potencialização, um aparecimento,
um gesto, uma cambalhota... de vida: pele, sexo, lín-
gua, palavras afiadas, gestos indecentes, danças dio-
nisíacas, gritos, grunhidos e gemidos; basta em todo
território de verdade, em toda autoridade sobre o corpo,
sobre o desejo; fome, de idéias e de prazeres, força de
idéias e de prazeres alimentando desatinos e loucuras
impostergáveis; uma política impossível, entre sua im-
possibilidade de pactuar e a improbabilidade de sua
persistência. Assim, um acontecimento, a potência do
devir, do menor que escapa aos enquadramentos da
história, ou melhor, que vaza da história, pois santos
e velas florescem em qualquer canto. Maio de 68 é in-
venção de liberdades, não como lembrança ou utopia:
invenções de mundos impossíveis, incluso para antigos
revolucionários: mundos que não reivindicam a melho-
ria de quaisquer condições; mundos, por isso, que não
se prendem nem ao passado a ser aperfeiçoado, nem
ao futuro que deve ser desenhado; mundos possíveis
apenas no presente, por isso, de novo, apenas para in-

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teressados. Quem sabe uma nova forma de revolução,


duvido, mas tanto faz: sob as ruínas do passado, do
heroísmo, da ingenuidade, da ignorância ou do saudo-
sismo, e também sob as ruínas do futuro, do sonho de
grandeza ou do delírio da fraqueza, o presente festeja
a vida breve e forte, e dançam os que não esperam por
nada, nem por ninguém. O nome disso pouco importa.
É preciso mudar a vida.
Rimbaud

O socialismo sem a liberdade é o quartel.


Bakunin

Imoralidade
Imoral é somente
estar morto-vivo,
extinguir o sol dentro de si
e ficar ocupado em extinguí-lo
nas outras pessoas.
D.H. Lawrence

Queremos uma música que seja selvagem e efêmera.


Nos muros de Paris

Uma jovem visita seu psicanalista, pela última vez.


Seu trabalho, diz, é enquadrar, normalizar, fazer da vida
uma apologia da obediência. Ela não quer ser normal: o
que ele vê como patologia, como desajuste, ela entende
como definitiva recusa à vida normal. E é assim que ela
quer viver. Antes de sair, tira da bolsa um pavê, e o coloca
sobre a mesa de Freud. Pavê: os paralelepípedos de Paris,
nas mãos insubmissas de jovens revoltados. Símbolos e
carimbos de uma civilização da luz da razão; pedras e fa-
cas de uma juventude que inventou o sol da meia-noite, à
sua maneira, mas aqui e acolá, apenas hoje.

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Dossiê 68

Maio de 68 prescinde de territórios: constelação de


idéias e de práticas sem a menor intenção de separar
umas das outras, sem a menor intenção de servir de res-
posta a qualquer acontecimento, ou de explicação para
qualquer efeito. Seu tempo, assim como suas extensões,
são estelares: ou lançamos mão de poderosas lentes
para tentar entender suas razões científicas (históricas e
sociológicas), ou olhamos para o céu, aguçando o olhar
e a imaginação, saboreando a noite sem fantasmas das
festas inebriantes dos corpos livres dos dias seguintes. A
não ser por exercício de abstração, as constelações habi-
tam nossos gabinetes científicos; a não ser por vontade,
por excesso, de vida, de poesia e de sexo, habitamos as
constelações que inventamos para nós.
O sexo não cabe na sexualidade, a política no partido,
o jovem na universidade, a vida no governo, a anarquia no
anarquismo, o trabalho na fábrica, ou na rede, a criança
na infância, o corpo na postura, a vontade no comporta-
mento, a poesia na literatura, a revolta na história, eu na
humanidade... a paixão transborda, vaza, rasga.

Guerra

Quando criança, certos céus afinaram minha ótica: to-


dos os caracteres matizaram minha fisionomia: Os Fe-
nômenos me comoveram. – Hoje, a inflexão eterna dos
momentos e o infinito das matemáticas impulsiona-
ram-me por esse mundo em que padeço todos os acon-
tecimentos civis, respeitado pela infância estranha e os
efeitos enormes. – Sonho com uma guerra, de direito ou
de força, de muito imprevista lógica.

É tão simples quanto uma frase musical.


Rimbaud

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coragem física: anotações em perspectiva

salete oliveira

Em 68,
um desabusado inventor artista plástico sacudiu o Aterro do
Flamengo.
E o morro se fez dobra, à beira da Baía de Guanabara, na su-
perfície de segundas peles para vestir.
E o museu ficou ─ e já era ─ pequeno demais para desmesu-
rada experimentação.
E uma platéia de jovens militantes que queria mudar o mun-
do, reivindicava: “Defina a loucura, defina a loucura!”
E o desabusado: “Não defino coisa alguma. Vão ao dicionário,
e lá vocês também não vão encontrar isso a que me refiro.”
E a platéia aturdida atacava uma jovem artista de sutileza
rara, repetindo palavras de ordem: “a sua arte e você também
fazem parte do sistema.”
A artista, delicada, cortava: “Se estamos sufocados, vamos
quebrar os vidros das janelas, isto sim pode ser um gesto es-
tético subversivo, entende?”
Mas a jovem platéia insistia em uma outra ordem, numa nova
ordem engajada, e se fez insensível, quando um outro artista,
recém saído da prisão, disse algo tão sutil e avassalador, e que
permanece atual 40 anos depois:

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verve
Dossiê 68

“As palavras começam a comer umas às outras como leuce-


mia.
Entende?”

40 anos depois,
uma bailarina conta que em 68 a dança largou a barra. Descal-
çou as sapatilhas. E pés, e mãos, e dorsos, e pernas e bocas e
sexos livres cotidianos transgrediram o eixo de corpos jovens
desnudos. Reviraram as latitudes do planeta e enfrentaram
inúmeras barras.
E hoje, jovens bailarinos como uma imensidão de tantos ou-
tros jovens estão preocupados com sua profissionalização e
segurança.

No presente,
uma coragem física de raríssimos homens e raríssimas mulhe-
res está interessada na abolição imediata do aprisionamento
de crianças e jovens no Brasil e ecoam, cada um a seu modo,
palavras e gestos desabusados, sem data, e que oportunismo
algum é capaz de capturar.

....................eu incorporo a revolta..................

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68 adiante, e se adiante

edson passetti

Até 68 as práticas de liberdade aconteciam por po-


sicionamentos e contra-posicionamentos. Desde
68 seus desdobramentos foram redimensionados.
Aos poucos, minguaram direita-esquerda, capi-
talismo-socialismo, democracia-ditadura, sinteti-
zados em capitalismo com direita e esquerda, de-
mocracia e ditadura. Em lugar de posições em
confronto, pretendendo conservação ou reformas
dos espaços, ocorreu uma guinada. A vida se
deslocou da relação entre a superfície e a pro-
fundidade do território planetário para o univer-
so em expansão. Aportou-se na lua e começaram
as longas viagens monitoradas a outros planetas.
O espaço sideral foi preenchido com satélites,
sondas, vigias eletrônicas, conhecimentos quân-
ticos. Deslocamo-nos da referência de superfície
e profundidade do território, das fronteiras, das
idéias e de certa filosofia. Nas práticas de liberda-
de, o domínio da razão se acomoda à religião e às
fusões com auto-ajudas, gerando outro domínio
impreciso designado pós-moderno. Todavia, o co-
mando da propriedade persiste, gerando a utopia
do bom emprego com segurança, constituindo
um conformismo jovial. O contra-posicionamen-
to acabou capturado pelo pluralismo, pelo multi-
culturalismo, pela convocação à participação, em
função da saúde do planeta; é dela que depende
a normalidade dos seus habitantes, as modas, os
moldes e as filantropias. Não se briga mais por

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verve
Dossiê 68

um novo mundo a ser conquistado. Depois de 68


espera-se que todos lutem pela restauração do
planeta, pelos seus santuários ecológicos, com
paciência, tolerância e confiança nas ações esta-
tais e nas parcerias com a chamada sociedade ci-
vil organizada. Espera-se por qualidade de vida!
A vida está governamentalizada! Somos convoca-
dos a participar e estamos disponíveis aos en-
carceramentos. 68 acabou com posicionamentos
e contra-pocisionamentos, com ideologias, uto-
pias e sonhos igualitários pós-capitalistas colo-
cados nos moldes do século 19, por comunistas
e libertários. O acontecimento 68 mostrou que
a libertação foi capturada pela reforma geral do
planeta — econômica, ecológica e política —, em
que se trafega pelo universo, assimilam-se os
Estados redimensionados em uniões, os novos
nacionalismos, xenofobias, cotidianos ordena-
dos em comunidades. A vida nas cidades e nos
territórios não é mais compreendida segundo o
artifício conceitual centro-periferia; é governada
por técnicas de campo de concentração, fecha-
da em si e sob especiais vigilâncias eletrônicas.
Neste mundo de cidadãos e de inclusões não se
pretende mais acabar com instituições totais ou
austeras, somente ampliar os controles punitivos
a céu aberto. 68 liberado e libertário, que trouxe
a anarquia de volta ao enfadonho mundo de ca-
pitalistas e socialistas anda, hoje, por delgados
fluxos navegáveis, mas pouco nítidos. Enquanto
isso o conservadorismo moderado avança e já tra-
gou até o movimento anti-globalização. Os anar-
quistas permanecem estranhos, surpreendentes
e perigosos! Estamos aqui, heterotópicos!

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A etologia das disfunções, de Aloisio Licht

a etologia das disfunções, de Aloisio Licht

guilherme corrêa*

Para a Verve, Aloisio preparou uma série de dese-


nhos inéditos em que seus insetos loucos imitadores
resolvem ter, também, escolas, lazer, equipamentos e
torres de controle. Desde seus primeiros trabalhos esse
jovem gaúcho, nascido em 1979 em Santa Maria, pro-
voca. Neles sempre havia uma torre, solitário mirante,
donde o artista podia ver pessoas como formiguinhas.
Depois desce e passa a observar muito de perto for-
migas, aranhas e outros insetos. Surgem preciosos de-
senhos à caneta esferográfica e esculturas em fios de
arame dobrado com o inusitado das formas de juntas,
corpos e arranjos de teias sobre um galho ou num can-
to de parede.
Em seu interesse pelos indivíduos foi flagrado pelas
relações: as frias decapitações no meio de uma batalha

* Guilherme Corrêa é pesquisador no Nu-Sol, professor na Universidade Fe-


deral de Santa Maria e autor de Educação Comunicação Anarquia – procedências da
sociedade de controle no Brasil. São Paulo, Cortez, 2006.

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entre dois exércitos de formigas inimigas... soldados in-


dômitos, as formigas envolvem-se por completo na defe-
sa encarniçada de sua sociedade e é aqui que podemos
pegar carona no sonho sem sono do artista. Em volta
da movimentação do confronto, numa dispersão que
parece fugir à lógica estrita das funções da fiel solda-
desca formigal, algumas formigas parecem não cumprir
função alguma. E é entre essas poucas aí que vê duas
afastarem-se um pouco demais. Prende sua atenção a
elas e percebe que não param de seguir num prolon-
gamento da linha de frente, distanciando-se cada vez
mais da batalha. Em pouco tempo, elas definitivamente
abandonaram a guerra em que deveriam estar lutando.
Cinco metros de distância, seis e logo oito até que, para
aflição do observador atento, aproximam-se do gradil
da cerca e passam decididas para o terreno do vizinho.
Não param de fugir.
Formigas desertoras? Sim, sem dúvida.
Detido pela cerca, impedido de segui-las, o artista
as acompanha em intensidade. E entramos em contato
com os que fogem, os que vivem onde não é colméia,
cupinzeiro, vespeiro, (casa?). Surge o conceito da obra,
algo que passa por deserção, disfunção, desorganização
do corpo, invenção imediata de corpo, uma espécie de
inocência não ingênua, ou cruel.
Sem nome, sem discurso os insetos se diferenciam,
como os ícones, pela figura que compõem com aquilo
que reúnem e as práticas que suas potências físicas,
estendidas pelos acoplamentos que fazem, permitem.
Evoluíram, não uma evolução darwiniana, mas volitiva
por rebelarem-se das funções gregárias das sociedades
de insetos. Rebeldes cuja causa é simplesmente não
pertencer. Do mesmo modo que fugiram da sociedade e
suas funções — o mais difícil — não despenderam es-
forço maior para livrarem-se da espécie, da escala, dos
órgãos, dos hábitos. Nesse desprendimento uns atra-
vessam solitários os espaços, outros formam duplas,
blocos e até hordas imensas e ruidosas.

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A etologia das disfunções, de Aloisio Licht

Os insetos não interessam como personagens, mas


como multiplicidade. Cada um com sua acumulação de
quaisquer coisas desde que as possam carregar. Cada
um como uma junção, uma montagem, um acoplamen-
to de coisas estranhas umas às outras — roupas, teias,
objetos, outros insetos vivos ou mortos — um conforto
ter por sobremesa suculentos carrapatos que se criam
na sua própria cabeça. Um encontra um alfinete e como
um guerreiro corre por aí a atravessar os outros, mas
não é guerreiro coisa alguma, só não consegue deixar
de testar com sua espada a consistência dos corpos que
encontra. Outro não hesita em arrancar de um pas-
sante uma perna que julgue melhorar sua performance
e costurá-la na sua barriga, de modo a experimentar
novas capacidades.
Achamos graça de qualquer coisa que façam. Efeito,
talvez, do tamanho reduzido desses animais loucos, e
do fato de não terem expressão facial, o que lhes permi-
te afeiçoar-se, ou devorar a dentadas a cabeça de outro
inseto, ainda se movendo em suas garras, com a mes-
ma cara.
Enquanto você dorme uma dessas gracinhas pode
entrar no seu ouvido, rasgar seu tímpano e alojar-se no
seu cérebro.

Recebido para publicação em 19 de agosto de 2008.


Confirmado em 22 de setembro de 2008.

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América Scarfó, uma experiência

américa scarfó, uma experiência1

“Buenos Aires, 3 de dezembro de 1928.


Ao camarada Émile Armand.

Querido camarada:

Escrevo a presente, principalmente, para consultá-


lo. Temos que atuar, em todos os momentos da vida,
de acordo com nosso modo de ver e pensar, de maneira
que as recriminações ou as críticas de outras pessoas
encontrem a nossa individualidade protegida pelas vi-
gorosas noções de responsabilidade e liberdade numa
muralha sólida que detenha os ataques. Devemos ser
conseqüentes com nossas idéias.
Meu caso, camarada, pertence à ordem amorosa.
Sou uma jovem estudante que acredita na vida nova.
Creio que, com nossa ação livre, individual ou coletiva,
poderemos chegar a um futuro de amor, de fraternida-
de e de igualdade. Desejo para todos o que desejo para
mim: a liberdade de ação, de amar, de pensar. Desejo a
anarquia para a humanidade. Creio que para alcançá-
la devemos fazer a revolução social. Mas, também, pen-
so que para chegar a essa revolução é necessário libe-
rar-se de todos os preconceitos, convenções, falsidades
morais e códigos absurdos. E, enquanto aguardamos a
explosão da grande revolução, devemos cumpri-la em
todas as ações de nossa existência. Para que a revolu-
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ção aconteça, não podemos nos contentar com a espe-


ra; nossa ação cotidiana é necessária. Devemos conce-
ber o ponto de vista anarquista, e conseqüentemente,
humano, onde for possível.
No amor, por exemplo, não aguardaremos a revo-
lução. E nos uniremos livremente, desprezando precon-
ceitos, as barreiras, as inumeráveis mentiras que se in-
terpõem a nós como obstáculos. Conheci um homem,
um companheiro de idéias. Segundo as leis burguesas,
ele está casado. Ele se uniu a uma mulher em decor-
rência de uma circunstância trivial, sem amor. Nesse
momento ele desconhecia nossas idéias. Entretanto, ele
viveu com ela vários anos e nasceram filhos. Em sua
vida com ela, não experimentou a satisfação que teria
sentido com uma pessoa amada. A vida se tornou enfa-
donha e o único meio que os unia eram os filhos.
Na juventude, esse homem conheceu nossas idéias
e nele nasceu uma consciência. Tornou-se um cora-
joso militante. Dedicou-se com ardor e inteligência à
propaganda. Todo seu amor não dirigido a uma pessoa
ele ofereceu ao seu ideal. Mas em sua casa, enquanto
isso, continuava a vida monótona alterada apenas pela
alegria de seus filhos pequenos. As circunstâncias pro-
piciaram nosso encontro, inicialmente, como parceiros
de idéias. Conversamos, simpatizamos e aprendemos a
nos conhecer. Assim nasceu nosso amor. Pensávamos,
no começo, que seria impossível. Ele, que amava só em
sonhos, e eu, que despontava para a vida. Cada um
continuou vivendo entre a dúvida e o amor. O destino,
ou melhor, o amor fez o restante. Abrimos nossos cora-
ções, e nosso amor e nossa felicidade derramaram sua
melodia no meio da luta e dos ideais, impulsionando-os
mais ainda. Nossos olhos, lábios e corações se expres-
saram na conspiração mágica de um primeiro beijo.
Nós idealizamos o amor e o levamos à realidade. O amor
livre desconhece barreiras e obstáculos. É a força cria-
dora que transporta dois seres por um caminho florido,

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verve
América Scarfó, uma experiência

atapetado de rosas — e algumas vezes de espinhos —


por onde sempre se encontra a felicidade.
Por acaso o universo não se converte em um éden,
quando dois seres se amam?
A mulher dele — apesar de seu relativo conhecimen-
to — simpatiza com nossas idéias. Ultimamente, ela
deu provas de desprezo aos sicários da ordem burgue-
sa, quando a polícia começou a perseguir meu amigo.
Foi assim que eu e ela nos tornamos amigas. Ela não
ignora o que significa para mim o homem que vive a seu
lado. O sentimento de afeição fraternal que existia entre
eles permitiu-lhe confiar plenamente nela. Ele também
lhe deu a liberdade de viver como desejasse, tal como
corresponde a todo anarquista consciente. Até agora, a
bem da verdade, vivemos uma verdadeira novela. Nos-
so amor se intensificou cada vez mais. Não podemos
viver completamente juntos devido à situação política
de meu amigo e o fato de que devo concluir meus estu-
dos. Encontramo-nos muito e em diversos lugares. Não
é por acaso essa a melhor maneira de elevar o amor
afastando-o da vida doméstica? Sei que quando existe
o verdadeiro amor, o mais belo é viver junto.
Era isso o que queria dizer. Mas aqui, alguns se ar-
voraram em juízes. Eles não se encontram apenas entre
as pessoas comuns, mas, também, entre companheiros
de idéias que se vêem livres de preconceitos, mas que
no fundo são intolerantes. Um deles afirma categorica-
mente que nosso amor é uma loucura; outro afirma que
a esposa de meu amigo representa o papel de mártir,
apesar dela não ignorar nada do que nos diz respeito,
ser dona de si e gozar sua liberdade. Um terceiro levan-
ta o ridículo obstáculo econômico. Sou tão independen-
te como meu amigo. Segundo todas as probabilidades,
criarei uma situação econômica pessoal que me libera-
rá, nesse sentido, de todas as inquietações.
Além disso, tem a questão dos filhos. O que tem a
ver os filhos com os sentimentos do coração? Por que

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um homem que tem filhos não pode amar? É o mesmo


que dizer que um pai de família não pode trabalhar por
uma idéia, fazer propaganda, etc. O que leva a pensar
que esses pequenos seres serão esquecidos porque seu
pai me ama? Se o pai esquecesse seus filhos mereceria
meu desprezo e não existiria mais amor entre nós.
Aqui, em Buenos Aires, certos camaradas têm uma
idéia verdadeiramente exígua do amor livre. Imaginam
que este consiste em coabitar sem estar casado legal-
mente e, enquanto isso, em seus lares perpetuam os
ridículos e os preconceitos próprios dos ignorantes. Na
sociedade burguesa também há essa forma de união
que ignora o registro civil e o padre. Isso é amor livre?
Por fim, criticam nossa diferença de idade, simples-
mente porque tenho 16 anos e meu amigo 26. Uns me
acusam de pretender uma operação comercial; outros
me qualificam de inconsciente. Ah, esses pontífices do
anarquismo! Colocar no amor o problema da idade!
Como se não fosse suficiente ter o cérebro raciocinando
para que uma pessoa seja responsável por seus atos!
Esse é um problema meu e se a diferença de idade não
me importa, por que isso deve interessar aos outros? O
que quero e amo é a juventude do espírito, que é eter-
na.
Há, também, os que nos tratam de degenerados, de
enfermos e outros qualificativos similares. A todos, eu
pergunto: por quê? Por vivermos a vida em seu verda-
deiro sentido, por prestarmos um culto livre ao amor?
Por nos amar sem importar os códigos ou as falsas mo-
rais, assim como os pássaros, que alegram as calçadas
e os jardins? Por sermos fiéis a nossos ideais? Despre-
zo todos que não podem compreender o que é saber
amar.
O amor verdadeiro é puro. É um sol cujos raios ce-
gam os que não podem subir às alturas. A vida é para
ser vivida livremente. Prestemos à beleza, aos prazeres
do espírito, ao amor, o culto que merecem.

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América Scarfó, uma experiência

Isso é tudo, camarada. Aguardo sua opinião sobre


meu caso. Sei bem o que faço e não preciso de aprova-
ção ou postergação. Mas por ter lido muitos de seus ar-
tigos e estar de acordo com seus vários pontos de vista,
gostaria de conhecer sua opinião.”
América Scarfó tinha 16 anos quando escreveu esta
carta, e se refere ao amor por Severino di Giovanni.
Sobre a relação entre eles, pode-se consultar Osvaldo
Bayer, Severino di Giovanni. El idealista de la violencia.
Buenos Aires, Planeta, 1999. No livro, Bayer afirma que
antes da carta, “um temporal havia turvado a relação
entre Severino e América. As críticas dos companhei-
ros, os impedimentos quase insuperáveis para conti-
nuar a relação e sua situação familiar levam América
a uma crise e a reprovações a Severino, exigindo o fim
da relação... Como uma típica rixa de namorados, o re-
encontro apagará os problemas e firmará a união com
mais força ainda. Desse reencontro aparece a carta de
América para L’en dehors, como uma espécie de ata que
oficializava os sentimentos retidos até então na intimi-
dade.

Sob o título Uma experiência , a carta foi publicada


em L’en dehors,2 em 20 de janeiro de 1929, acompa-
nhada da resposta de Émile Armand:
“Companheira, minha opinião pouco importa a respeito
do que você relata sobre o que faz. Você está intimamente
de acordo com sua concepção pessoal de vida anarquista?
Se estiver, ignore os comentários e insultos dos outros e
siga seu caminho. Ninguém tem o direito de julgar sua
conduta, até mesmo se a esposa de seu amigo fosse hostil
a essas relações. Toda mulher unida a um anarquista (ou
vice-versa) sabe que não deverá exercer sobre ele ou sofrer
da parte dele dominação de qualquer tipo.”

Tradução do espanhol por Edson Passetti.

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Abaixo, a nota que acompanhou todas as edições de


L’en dehors.

Nossa linha de conduta

Em todos os lugares, os individualistas de nossa


tendência querem instaurar — a partir de agora e em
qualquer tempo — um ambiente fundado no ato indi-
vidual e no qual, sem qualquer controle, intervenção
ou ingerência do Estado, todos os indivíduos possam,
seja isoladamente, seja em associações, resolver suas
questões entre eles, por meio de livres pactos, anuláveis
após aviso prévio, e isso para toda atividade, quer a
associação seja obra de uma personalidade ou de uma
coletividade. Suas associações voluntárias são uniões
de camaradas, baseadas no exercício da reciprocidade
ou «igual liberdade».
Os individualistas a nosso modo consideram como
seus adversários todas as instituições e todas as indi-
vidualidades que, diretamente ou pela interposição de
pessoas, queiram assujeitá-los à sua autoridade e usar
violência contra eles, ou em outros termos, todos os par-
tidários dos CONTRATOS IMPOSTOS. Eles se autori-
zam a defender-se contra eles por todos os meios à sua
disposição, inclusive o embuste.
Os individualistas de nossa espécie combatem os ci-
úmes sentimental-sexuais, o proprietismo corporal e o
exclusivismo em amor, que eles consideram manifes-
tações autoritárias, quando não fenômenos psicopato-
lógicos. Propagam a tese da «camaradagem amorosa».
Reivindicam TODAS AS LIBERDADES SEXUAIS (desde
que não sejam maculadas de violência, dolo, de fraude
ou de venalidade), inclusive o direito de educação, de
publicidade, de variação, de fantasia e de associação.

Tradução do francês por Martha Gambini.

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América Scarfó, uma experiência

Notas:
1
Publicado em Osvaldo Baigorria (org) El amor libre. Eros y anarquia. Buenos
Aires, Libros de Anarraes, 2006, pp. 95-99.
2
L’en dehors, jornal bimensal anarco-individualista, publicado por Émile Ar-
mand, entre 1922 e 1939, em 335 números. Todo exemplar vinha acompanha-
do com o manifesto “Notre ligne de conduite”, que publicamos em tradução,
depois da resposta de Armand a América Scarfó. (N.T.)

Indicado para publicação em 9 de junho de 2008.

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FOUCAULT1
edson passetti e acácio augusto*

Personagens:
H1 – (Homem 1)
H2 – (Homem 2)
H3 – (Homem 3)
H4 – (Homem 4)
M1 – (Mulher 1)
M2 – (Mulher 2)
G1 (Gente sem rosto)
G2 (Gente sem rosto)
A (Andarilho)
E (Exuberante — mulher)
M (Menestrel)
Coro

* Edson Passetti é professor no Departamento de Política e no Programa de


Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC/SP. Coordena o Nu-Sol.
Acácio Augusto é bacharel em Ciências Sociais pela PUC/SP, mestrando no
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC/SP, bolsis-
ta CNPq, pesquisador no Nu-Sol.

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verve
FOUCAULT

Prólogo

Na penumbra. Atores no fundo do palco. Duas can-


ções e movimentos de atores: Pena Branca & Xavanti-
nho, “Cutelinho”; Walter Franco, “Me deixe mudo”.

Cena 1 - Pirotecnia

Alguém circunda o espaço pedalando uma bicicleta


ao som de Marina Lima, “O retorno”; pára, desce e es-
taciona; dois homens agachados sobre um banco de jar-
dim; (H1 e H2)
H1 – Pirotecnia. Fabricar “alguma coisa que serve,
finalmente, para um cerco, uma guerra, uma destrui-
ção. Não sou a favor da destruição, mas sou a favor de
que se possa passar, de que se possa avançar, de que
se possa fazer caírem os muros.”2
H2 – Não se derruba muros com livros e palavras,
você é louco?
H1 – Um livro pode ser como “um vento verdadeira-
mente material”, um vento “que faz estourar as portas
e as janelas... um explosivo eficaz como uma bomba, e
bonito como fogos de artifício.”3
H2 – Delírio... tempos passados.
H1 – “É possível ter um pensamento político que não
seja da ordem da descrição triste.” “O pessimismo de
direita consiste em dizer: veja como os homens são fi-
lhos-da-puta. O pessimismo de esquerda diz: veja como
o poder é nojento! Podemos escapar destes pessimis-
mos sem cair na promessa revolucionária, no anúncio
do entardecer ou da manhã?”4

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H2 – Pirotecnia. Fabricar “alguma coisa que serve, fi-


nalmente, para um cerco, uma guerra, uma destruição.
Sou a favor de que se possa passar, de que se possa
avançar, de que se possa fazer caírem os muros.”
H1 – É preciso um tanto de loucura...
Black-out

Cena 2 - Antes da neblina

(H1, H2, H3, H4, M1, M2 e A)


H1 – Pode um preso político se recusar a ser algema-
do com um preso comum? Até para um anarquista essa
distinção passou a ser relevante. Mas, para qualquer
pessoa a algema é a mesma, a prisão, a tortura e o tri-
bunal são os mesmos.
H3 – “Se fizermos a distinção, e se aceitarmos a dife-
rença entre direito político e direito comum”, reconhe-
ceremos “a moral e a lei burguesas no que concerne ao
respeito à propriedade” e “aos valores tradicionais.”5
M1 – “Reencontra-se aqui o velho antagonismo, cons-
tituído pela burguesia, entre o delinqüente e o militante
revolucionário.”6
M2 – “Com freqüência, os representantes de algumas
organizações políticas dizem que os problemas das pri-
sões não entram no quadro da luta proletária. Há várias
razões para isso.
H2 – A primeira é que a fração da classe operária que
constantemente tem que se haver com a polícia e com
a justiça é, constituída de pessoas que estão fora da
indústria e sua forma de oposição à sociedade burgue-
sa não se exprime por meio de manifestações, de lutas
politicamente organizadas ou de pressões profissionais
e econômicas como as greves.

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verve
FOUCAULT

M2 – A segunda razão é que a burguesia se utiliza


com freqüência dessa categoria da população contra os
trabalhadores: a burguesia faz dela uma força de traba-
lho temporária, ou a recruta para a polícia.
M1 – A terceira é que o proletariado, no que concerne
à moral e à legalidade, ao roubo e ao crime, está total-
mente impregnado da ideologia burguesa.”7
H1 – Não é só um problema de classe social; é tam-
bém racismo.
H3 – “Se a criminalidade foi pensada em termos de
racismo foi igualmente a partir do momento em que era
preciso tornar possível, num mecanismo de biopoder, a
condenação à morte de um criminoso ou seu isolamen-
to. Mesma coisa com a loucura, mesma coisa com as
anomalias diversas.
H1 – A especificidade do racismo moderno, não está
ligada a mentalidades, a ideologias, a mentiras do po-
der. Está ligado à técnica do poder.”8
H2 – “Entre os europeus e os americanos há uma
distinção.
M2 – Os europeus, vivem na continuidade de sua
história.
M1 – A América vive perpetuamente o nascimento e
a morte da lei.
M2 – Os europeus vivem de vitória e derrota.
M1 – Os americanos de violência e da legalidade.”9
H4 – O que me interessa nessa agitação toda em
torno da prisão é a possibilidade de politização dessas
questões, para além de um problema de classe.
H2 – Essa politização me interessa. Os anarquis-
tas, “na segunda metade do século XIX, tomaram como
ponto de ataque o aparelho penal, colocaram o proble-
ma político da delinqüência; pensaram reconhecer nela
a forma mais combativa de recusa da lei; tentaram não

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heroicizar a revolta dos delinqüentes, nem desligar a


delinqüência em relação à legalidade e a ilegalidade
burguesa que haviam colonizado; quiseram restabe-
lecer ou constituir a unidade política das ilegalidades
populares.”10
H3 – Então você fecha com os anarquistas?
H1 – Nem com os cristãos. Nem com você. Talvez em
relação a isso, neste momento... Mas isso não me iden-
tifica politicamente. (pausa) É preciso uma saída, uma
idéia, alguma coisa?
A – “Como alguém escaparia diante do que nunca se
põe?” (Heráclito)
Black-out

Cena 3 – Vamos a Madri!

(M1, M2, H1, H2 e H4)


H2 – Você soube o que está acontecendo em Madri?
M1 – “Precisamos fazer alguma coisa. Não podemos
deixar a ditadura franquista executar esses jovens mi-
litantes...”
H2 – Vamos a Madri. Vamos distribuir panfletos. Va-
mos fazer o possível em 7 horas. Escrevo um texto. Al-
guém com bela voz e passado idôneo o lerá.
H4 – “Viemos a Madri para trazer essa mensagem. A
gravidade da situação nos chama. Nossa presença pre-
tende mostrar que a indignação que nos faz tremer nos
torna, com tantos outros, solidários com essas existên-
cias ameaçadas.”
H1 – Um policial ordenou que ficássemos sentados.
H2 – “Estamos detidos?”

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verve
FOUCAULT

H1 – Direto e sem rodeios disse o policial: “Não, mas


todo mundo tem de ficar sentado”. Entregue esses pa-
péis!
M2 – “Pálido, tenso, trêmulo de raiva, prestes a sal-
tar, a passar ao ataque, o mais inútil, o mais perigoso, e
o mais belo, ele é ainda mais admirável em sua recusa,
em sua agressividade, em sua coragem por sentirmos
(por sabermos) que nele se trata de uma reação física e
de um princípio moral: a impossibilidade carnal de su-
portar o contato de um policial e de receber uma ordem
dele.
H2 – ... a impossibilidade carnal de suportar o conta-
to de um policial e de receber uma ordem dele.
H1 – ... a impossibilidade carnal de suportar o conta-
to de um policial e de receber uma ordem dele.”11
Black-out

Cena 4 – Sobre e sob

(H1, H2, H3, H4, M1, M2, M e A)


H4 – “É um dos raros homens que, quando entrava
em uma sala, mudava toda a atmosfera. Era como se
outro ar entrasse. Ele tinha como que uma emanação.
Como uma emissão de raios. Seus gestos eram impres-
sionantes. Pareciam gestos metálicos, de madeira seca.
Eram gestos estranhos, fascinantes.”12
H1 – Uma vez, ainda jovem, mandou-me numa car-
ta: “Temos uma só vida, e talvez seja a mesma. Temos
duas vezes menos o direito de perdê-la, duas vezes me-
nos o direito de desperdiçá-la.” A resposta a um homem
que pensava e pouco amava dei em breves palavras:
“Não quero mais ‘dezembro’; não quero mais ser o ator
ou o espectador desse aviltamento. Saí dessa vertigem
de loucura.” E diante de um “vamos passar juntos o

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verão que nos prometemos?”, respondi com um sonoro


“Não!”13
H3 – Jean Barraqué era seu amor naquela época.
H2 – Veio Daniel Defert. “Eu vivo num estado de
paixão por alguém [ele]. Pode ser que em determinado
momento essa paixão se transformou em amor. Na ver-
dade se trata de um estado de paixão entre nós dois,
de um estado permanente que não tem outro motivo
para terminar além de si mesmo e no qual estou com-
pletamente envolvido, completamente envolvido, que
passa através de mim. Creio que não há uma só coisa
no mundo, nada, seja o que for, que poderia me deter
quando vou encontrá-lo.”14
H1 – A paixão é “estado sempre móvel, mas que não
vai em direção a um ponto dado”. Nela, “há momen-
tos fortes e momentos fracos, momentos em que isso
é levado à incandescência, em que isso flutua, é uma
espécie de estado instável que se prolonga por razões
obscuras, talvez por inércia;” que “procura manter-se e
desaparecer... já não faz sentido ser você mesmo...”15

O médico e seu paciente


M2 – “Leuret: você promete não pensar mais nisso?
O doente cede com dificuldade.
Leuret: você promete trabalhar todos os dias?
Ele hesita, depois aceita.”
M – “O médico e o seu paciente!”
M1 (como médico) – “Como eu não acredito nas suas
promessas, você vai receber a ducha, e continuaremos
todos os dias até que você mesmo peça para trabalhar.
Você vai trabalhar hoje?
H3 (como paciente) – Já que me obrigam, eu tenho
mesmo que ir!

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M1 – Você vai com boa vontade ou não?


H3 – Sim, eu vou trabalhar!
M1 – Então você estava louco?
H3 – Não, eu não estava louco.
M1 – Você não estava louco?
H3 – Eu acho que não.
M1 – Você estava louco?
H3 – Então estar louco é ver e ouvir?
M1 – Sim!
H3 – Está bem, doutor, é a loucura.”
M2 – No final da conversa “Ele promete ir traba-
lhar.”16 Assim termina o “Tratamento moral da loucura”
de Leuret, publicado em 1840.
(H1 diante de H2)
H2 – Estou louco por você!
H1 – Sou louco por você!
Entra o Andarilho
A – Não há solo na paixão. O amor é um salto no
escuro.

O filósofo e a sua sombra


H4 (com ironia) – “O filósofo não tem papel na socie-
dade. Não se pode situar seu pensamento em relação
ao movimento atual do grupo. Sócrates é um excelente
exemplo: a sociedade ateniense pôde apenas lhe atri-
buir um papel subversivo...
M1 – ... sub-ver-si-vo...
H4 – ... seus questionamentos não podiam ser admi-
tidos pela ordem estabelecida.

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M1 – ... pela ordem es-ta-be-le-ci-da....


H4 – Na verdade, é ao cabo de um certo número de
anos que se tem consciência...
M1 – consciência... cons-ci-ên-ci-a... do lugar de um
filósofo [é claro];
H4 – em suma, atribuímos a ele um papel retrospec-
tivo.”17
M1 – RE-TROS-PEC-TI-VO
Black-out

Cena 5 – Em algum lugar

H1, H2, agachados no banco de jardim.


H2 – “Existem numerosas maneiras diferentes de
falar e também numerosas formas de silêncio. Certos
silêncios podem implicar em uma hostilidade virulenta;
outros, são indicativos de uma amizade profunda, de
uma admiração emocionada, de um amor. Eu lembro
muito bem que quando eu encontrei o cineasta Daniel
Schmid, vindo me visitar, não sei mais com que propó-
sito, ele e eu descobrimos, ao fim de alguns minutos,
que nós não tínhamos nada, verdadeiramente nada a
nos dizer. Ficamos juntos, desde as três horas da tarde
até a meia noite. Bebemos, fumamos haxixe, jantamos.
Eu não creio que tenhamos falado mais do que vinte
minutos durante essas dez horas. Este foi o ponto de
partida de uma amizade bastante longa. Era, para mim,
a primeira vez que uma amizade nascia de uma relação
estritamente silenciosa.”
H1 (repete) – “Existem numerosas maneiras diferen-
tes de falar e também numerosas formas de silêncio.
Certos silêncios podem implicar em uma hostilidade
virulenta; outros, são indicativos de uma amizade pro-

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funda, de uma admiração emocionada, de um amor. Eu


lembro muito bem que quando eu encontrei o cineasta
Daniel Schmid, vindo me visitar, não sei mais com que
propósito, ele e eu descobrimos, ao fim de alguns mi-
nutos, que nós não tínhamos [nada] verdadeiramente
nada a nos dizer. Ficamos juntos, desde as três horas
da tarde até a meia noite. Bebemos, fumamos haxixe,
jantamos. Eu não creio que tenhamos falado mais do
que vinte minutos durante essas dez horas. Este foi o
ponto de partida de uma amizade bastante longa. Era,
para mim, a primeira vez que uma amizade nascia de
uma relação estritamente silenciosa.”18
Black-out. Em resistência

Cena 6 – O Rei, a merda e o poder

(M, H1, H2, H3, H4, M1 e M2)


Ruflar dos tambores
M – O rei, a merda e o poder. Conta Pinel que, abrem
aspas
H3 – “George III, rei da Inglaterra, enlouquece. Para
tornar sua cura mais efetiva e mais sólida, o médico
que o dirige não adota nenhuma medida de prudência;
nesse momento, todo aparelho da realeza desaparece,
o alienado, afastado de sua família e de tudo que o cir-
cunda, é mantido num palácio isolado e recluso solitá-
rio num quarto cujo quadrilátero e paredes são recober-
tos de colchões para que fique impotente de se ferir.
M1 – Aquele que dirige o tratamento declara-lhe que
ele não é mais soberano, que deve ser dócil e submisso.
Dois de seus antigos pajens, de uma estatura hercúlea,
são encarregados de zelar pelas suas necessidades e de
lhe render todos os serviços exigidos pelo seu estado,

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também de convencê-lo de que se encontra sob inteira


dependência e que deve finalmente obedecer.
M2 – Esses pajens mantêm com ele um silêncio
tranqüilo, mas em todas as ocasiões fazem-lhe sentir o
quanto são superiores em força. Um dia o alienado, no
seu fogoso delírio, recebe duramente seu antigo médico
durante sua visita e o emporcalha com imundices. Um
dos pajens entra rapidamente no quarto e, sem nada
dizer, agarra o delirante pela cintura e, reduzido a um
estado de sujeira repugnante, atira-o com força sobre
os colchões, despe-o de suas roupas, lava-o com uma
esponja, troca suas vestimentas e, olhando-o com fero-
cidade, sai rapidamente e retoma seu posto.
H3 – Lições semelhantes, repetidas freqüentemente
durante alguns meses e acompanhadas de outros mo-
dos de tratamento, produziram uma cura sólida e sem
recaída.”19 Fecham aspas.
H4 – “A cena do detrito, do excremento, da imundície
é a inversão total da soberania.
H2 – Esse rei não tem por força mais que seu corpo
reduzido ao estado selvagem, não tem por armas mais
que os dejetos de seu corpo, e são precisamente essas
armas que ele utilizará contra seu médico (...)
H1 – ... não somente porque ele substitui seu cetro
e sua espada por sua merda, mas porque precisamente
ele retoma um gesto que tem uma significação históri-
ca.
H4 – O gesto que consiste em jogar lama e imundices
sobre alguém, é o gesto secular de insurreição contra
os poderosos. (...) Gesto profanador que consiste em jo-
gar lama, imundície, merda sobre a diligência, sobre a
carruagem, sobre a seda e sobre a estola de pele dos
grandes.”20
Silêncio…

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H2 – “Para mim o trabalho intelectual está ligado


(...) a uma transformação de si. (...) Eu creio que meu
problema seja esta estranha relação entre o saber, a
erudição, a teoria e a história real.
H1 – Creio que sei desde minha infância que o saber
é impotente em transformar o mundo. Talvez eu esteja
errado. E estou seguro que estou errado de um pon-
to de vista teórico, pois eu sei muito bem que o saber
transformou o mundo.
H2 – Tenho o sentimento que o saber não pode nada
por nós e que o poder político é capaz de nos destruir.
Todo o saber do mundo não pode nada contra isso. (...)
H1 – É por isso que eu trabalho [e trabalhei] como
um doente toda minha vida. Eu não cuido de forma al-
guma do estatuto universitário disso que faço, porque
meu problema é minha própria transformação. É a ra-
zão pela qual, quando as pessoas me dizem: ‘você pensa
isso, há alguns anos, e agora diz outra coisa’ (...)
H2 – ... eu respondo: ‘vocês acreditam que eu traba-
lho tanto, há tantos anos pra dizer a mesma coisa e não
ser transformado?’
H1 – Essa transformação de si pelo seu próprio sa-
ber é algo bem próximo da experiência estética. Para
que um pintor trabalha senão para ser transformado
por sua pintura? (...)
H2 – Em todo caso, minha vida pessoal não apresen-
ta nenhum interesse.
H1 – Se alguém pensa que meu trabalho não pode
ser compreendido sem referência a tal ou qual aspec-
to de minha vida, eu aceito considerar a questão. Sou
pronto a responder se eu a vejo justificada.
H2 – Na medida em que minha vida pessoal é sem
interesse, não vale a pena fazer dela um segredo e pela
mesma razão não vale a pena torná-la pública.”21
Luz geral. Silêncio

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H3 e H4 – Não se apaixone pelo poder. Não se apai-


xone pelo poder.
Black-out

Cena 7 – Vigiar e punir

Ouve-se The Clash, “Police and thieves”, enquanto os


atores se desnudam e voltam a se vestir. A música pára
repentinamente. (H1, H2, H3, M1, M2 e Coro)
H2 – “O mais perigoso numa violência é sua racio-
nalidade. Certamente a violência é nela mesma terrível.
Mas a violência encontra sua ancoragem mais profunda
e extrai sua permanência da forma racional que a uti-
lizamos.”22
M1 – “Todo poder não repousa senão na contingência
e na fragilidade de uma história, a partir do momento
em que o contrato social é um blefe e a sociedade civil
um conto para crianças;
H2 para M1 – ... a partir do momento em que não
existe nenhum direito universal, imediato e evidente
que possa, em todo lugar e sempre, sustentar uma re-
lação de poder qualquer que seja ela.”23
Pausa.
H3 – “A vigilância só pôde funcionar conjugada com
a prisão. Porque esta facilita o controle dos indivíduos
quando são libertados. (...)
M1 para M2 – Porque coloca os infratores em contato
uns com os outros,
H3 – ... então, ela precipita a organização de um
meio delinqüente fechado em si mesmo, mas que é fácil
de controlar...

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H2 para H1 – ... e todos os efeitos do deslocamento


que acarreta ... abrem a possibilidade de impor aos an-
tigos detentos as tarefas que lhes são determinadas.
M1 para H1 – Prisão e polícia formam um dispositivo
geminado; sozinhas elas realizam em todo o campo das
ilegalidades a diferenciação, o isolamento e a utilização
de uma delinqüência...
H2 – ... Nas ilegalidades, o sistema polícia-prisão
corresponde a uma delinqüência manejável. Penso que
se deveria falar de um conjunto cujos três termos (po-
lícia-prisão-delinqüência) se apóiam uns sobre outros
e formam um circuito que nunca é interrompido [que
nunca é interrompido]. A vigilância policial fornece à
prisão os infratores que esta transforma em delinqüen-
tes, alvo e auxiliares dos controles policiais que regu-
larmente mandam alguns deles de volta à prisão.” 24
Preciso desenhar?
M2 – A justiça criminal “é um ponto de troca numa
economia geral das ilegalidades, cujas outras peças são
(não abaixo dela, mas a seu lado) a polícia, a prisão e a
delinqüência.
Coro – ... a polícia, a prisão e a delinqüência.
H2 para H1 – A invasão da justiça pela polícia, a
força de inércia que a instituição carcerária opõe à jus-
tiça, não é coisa nova, nem efeito de uma esclerose ou
de um progressivo deslocamento do poder; é um traço
de estrutura que marca os mecanismos punitivos nas
sociedades modernas.
M1 para H1 – Podem falar os magistrados; a justi-
ça penal com todo o seu aparelho de espetáculo é feita
para atender à demanda cotidiana de um aparelho de
controle meio mergulhado na sombra que visa engrenar
polícia e delinqüência, uma sobre a outra.”25
H2 – Como o poder seria leve, fácil, sem dúvida, de
desmantelar, se ele não fizesse senão vigiar, espreitar,
surpreender, interditar e punir; (pega H1 pelas costas)

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mas ele incita, suscita, produz; ele não é simplesmente


orelha e olho; ele faz agir e falar.”26 Entendeu? Ou pre-
ciso desenhar?
Volta a música. Eles dançam. Música interrompida.
Coro – Não cessa! Não cessa! Onde há poder, há re-
sistências... há resistências... há resistências...
H2 – “Essa produção da delinqüência e seu investi-
mento pelo aparelho penal devem ser tomados pelo que
são: não resultados definitivos, mas táticas que se des-
locam na medida em que nunca atingem inteiramente
seu objetivo.

Cena extra da segunda apresentação.


H2 pronuncia o texto acima e ao mesmo tempo inicia
a raspagem do cabelo de H1. Ao final de sua fala, H1 to-
ma-lhe, sutilmente, a máquina e ao som de Norah Jones,
“Nightingale”, conclui o corte de cabelo. Raspa a cabeça,
desliga a máquina e pronuncia o texto abaixo
H1 – Com muita freqüência as ações operárias eram
acusadas de serem animadas, senão manipuladas, por
simples criminosos. Mostrou-se nos veredictos muitas
vezes maior severidade contra os operários que contra
os ladrões. Misturaram-se nas prisões operários e sim-
ples criminosos, e foi dado tratamento preferencial aos
jornalistas ou políticos detidos em lugares separados.

Coro – Em resumo, toda uma temática de confusão


que tinha como finalidade um estado de conflito per-
manente.” 27
H2 – “Tudo que é aparente concessão não passa de
traição e astúcia de guerra” (Heráclito)
Coro – Ei, você conformista,
sossegado,

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instalado,
conformado,
pasmado,
petrificado...
Vai tomar no cu!

Volta a música do The Clash e os atores se desnudam.


Black-out

Cena 8 – Gente sem rosto

(M, G1, G2, H3, M1 e Coro)


M – “O anarquismo acadêmico”.
G1 – Ele é nocivo ao anarquismo!
G2 – Considero inaceitável o nietzschianismo de es-
querda.
G1 – O anarquismo é um movimento histórico. Não
deve ser alterado por essas filosofias contemporâneas,
pós-modernas, pós-estruralistas, pós-tudo, pós-isso,
pós-aquilo, ora pois, e que pretendem matar o huma-
nismo.
G2 – Ao contrário, o humanismo deve ser aperfeiço-
ado.
G1 – O importante é aperfeiçoar o Iluminismo.
H4 – “Não sei se é preciso dizer hoje que o trabalho
crítico também implica a fé nas luzes; ele sempre im-
plica, penso eu, o trabalho sobre nossos limites; um
trabalho paciente que dá forma à impaciência da liber-
dade.”28

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H2 – Ser nocivo ao anarquismo como doutrina... e


também aos seus guardiões.
H1 – Uma anarco-arqueologia diante da política
como guerra prolongada por outros meios.29
G2 – Pouco importa, isso jamais será anarquismo.
M2 – Tolice viver em função de um estado civil de-
clarado.
G2 – É preciso outra globalização.
H4 – Maio de 68 foi um instante da guerra perma-
nente, do impossível poder, e dele veio a resposta con-
servadora em direitos, democracia, moderação e capital
humano.
Coro – ... em direitos, democracia, moderação e ca-
pital humano.
M2 – Em até anti-globalização; em novas reformas,
em democracia, mesmo conservando as mesmas esper-
tas famílias, redefinindo religião e política, recriando
um mediano oriente médio, e parecendo-se com o oci-
dente. Democracia já, com guerras, com protocolos e
diplomacias, ou para de aqui 50 anos. Tudo isso como
previsão ou prevenção é impossível diante da rebeldia.
G1 – Cada vez estamos mais afastados das afinida-
des que tivemos no passado, mais remotos.
H2 para G1 – Você nunca notou que eu jamais habi-
tei esse seu lugar no passado?
H1 – “Libere-se das velhas categorias do Negativo (a
lei, o limite, a castração, a falta, a lacuna) que o pensa-
mento ocidental por tanto tempo manteve sagrado en-
quanto forma de poder e modo de acesso à realidade.
Prefira o que é positivo e múltiplo, a diferença à unifor-
midade, os fluxos às unidades, os agenciamentos mó-
veis aos sistemas; considere que o que é produtivo não
é sedentário, mas nômade. Não imagine que precise ser
triste para ser militante, mesmo se a coisa que comba-

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temos é abominável. É o elo do desejo à realidade (e não


sua fuga nas formas de representação) que possui uma
força revolucionária.30
H3 – Entre o que se chama, grosseiramente, a anar-
quia, o anarquismo e o método que eu emprego, existe
certamente qualquer coisa como uma relação, mas as
diferenças são igualmente claras. Em outras palavras,
a posição que eu assumo não exclui a anarquia.” 31
H1 – O que o anarquismo tem de especial é a inven-
ção de liberdades; ele não se resume a uma oposição ao
poder de Estado. Ele é combate ao poder.
Soa a campainha.
H1 – Quem?
A – “É preciso se fixar no exterior de si, à beira das
lágrimas e na órbita das fomes, se quisermos que algo
fora do comum se produza apenas para nós.” (René
Char)
Soa a campainha.
H2 – Entre.
A – “Temos em nós extensões imensas que jamais
chegaremos a pisar; mas elas são úteis à aridez de nos-
sos climas, próprios, tanto ao nosso despertar, como às
nossas perdições.” (René Char)
Luz. Extravagante (E) sambando ao fundo, ao som de
“O estrangeiro” [... é chegada a hora da reeducação de
alguém...]. Uma festa!
Black-out. Em resistência

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Cena 9 – Governos

(Coro, H1, H2, M2)


Coro – “Estamos todos presos. De ambos os lados
dos muros a mesma sociedade. Uma se acha boa; a ou-
tra é vista como má. A normal encarcera no seu espelho
o que lhe é insuportável. Ela diz que lá dentro eles serão
educados para voltarem integrados ao lado de fora. A
sociedade se defende construindo prisões e constatan-
do que elas não dão certo. Faz reformas na arquitetura
e na lei para internar novamente: negros, nordestinos,
bichas, pequenos ladrões, jovens, religiosos, ateus, ma-
nos, desempregados, larápios, halterofilistas, operá-
rios, um-sete-uns, manicures, pobres, punks, putas,
loucos, bêbados, homens e mulheres quase normais,
enredados em infrações e armadilhas policiais e jurídi-
cas. Estar dentro ou fora é quase um acidente. Dizem
que somos livres, mas vivemos prisioneiros dentro do
território nacional. Dizem que somos civilizados, mas
ainda não aprendemos com as sociedades primitivas a
ser antropofágicos. Temos medo de subversão. Somos
antropoêmicos e estamos todos presos.”32
Pausa
H1 – “Podemos reler uma vertente do pensamento do
século XIX como a difícil tentativa, ou uma série de difí-
ceis tentativas, para reconstruir uma ética e uma estética
do eu. Tomemos, por exemplo, Stirner, Schopenhauer,
Nietzsche, o dandismo, Baudelaire, a anarquia, o pen-
samento anarquista, etc., e teremos uma série de ten-
tativas, sem dúvida inteiramente diversas umas das
outras, mas todas elas, creio eu, mais ou menos pola-
rizadas pela questão: é possível constituir, reconstituir
uma estética e uma ética do eu? A que preço e a que
condições?”
Silêncio.

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M2 – (...) “Não há outro ponto, primeiro e último, de


resistência ao poder político senão na relação de si para
consigo.”33
H2 (repete) – Não há outro ponto, primeiro e último,
de resistência ao poder político senão na relação de si
para consigo.
Black-out

Cena 10 – A hora e a vez

(Coro e A)

Coro – “O terreiro lá de casa


não se varre com vassoura:
Varre com ponta de sabre,
Bala de metralhadora.
(...)

A – Nhô Augusto não tirou os olhos, até que desa-


parecessem. E depois se esparramou em si, pensando
forte. Aqueles, sim, que estavam no bom, porque não
tinham que pensar em coisa nenhuma de salvação de
alma, e podiam andar no mundo, de cabeça em-pé... Só
ele, Nhô Augusto, era quem estava de todo desonrado,
porque, mesmo lá, na sua terra, se alguém se lembrava
ainda do seu nome, havia de ser para arrastá-lo pela
rua-da-amargura...
E todos sentiram muito sua partida. Mas ele esta-
va madurinho de não ficar mais, e, quando chegou no
sozinho, espiou só para a frente, e logo entoou uma
das letras que ouvira aos guerreiros de seu Joãozinho
Bem-Bem:

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(...)
Coro – A roupa lá de casa
Não se lava com sabão:
Lava com ponta de sabre
e com bala de canhão”
(...)

A – Cantar, só, não fazia mal, não era pecado. As es-


tradas cantavam. E ele achava muitas coisas bonitas, e
tudo era mesmo bonito, como são todas as coisas, nos
caminhos do sertão.”34
Sai o bando de Joãozinho Bem-Bem.
Black-out

Cena 11 – Miscelânea

Lêem e entregam os bilhetes a alguma pessoa do pú-


blico. (H3, H1, M1, M3 em off e H2)
H3 – “Como fazer para não se tornar fascista mesmo
(e sobretudo) quando se acredita ser um militante revo-
lucionário? Como livrar do fascismo nossos discursos e
nossos atos, nossos corações e nossos prazeres? Como
desentranhar o fascismo que se incrustou em nosso
comportamento? (...) Não se apaixone pelo poder.”35
Não se apaixone pelo poder.
H1 – “Não utilize o pensamento para dar a uma prá-
tica política um valor de verdade; nem a ação política
para desacreditar um pensamento...”36
M1 – “Quando eu leio a tese “o saber é poder” ou “o
poder é saber” — e sei bem que ela me é atribuída —
pouco importa, eu morro de rir, pois o meu problema é

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precisamente estudar as suas relações. Se fossem duas


coisas idênticas, eu não teria que estudar suas relações
e me cansaria bem menos. O simples fato de colocar
a questão de suas relações prova seguramente que eu
não as identifico.”37
M3 (em off) – “Se me interessei pela Antiguidade, foi
porque, por toda uma série de razões, a idéia de uma
moral como obediência a um código de regras está de-
saparecendo, já desapareceu. E a esta ausência de mo-
ral corresponde, deve corresponder, uma busca que é
aquela de uma estética da existência.”38
H2 – “Não há razão que não tenha de arriscar-se à
loucura para chegar ao término de sua obra, ‘não existe
um grande espírito sem uma ponta de loucura... é neste
sentido que os sábios e os mais bravos poetas apro-
varam a experiência da loucura e o sair, às vezes, dos
trilhos normais.”39 Isto não é Rimbaud! É Foucault?
Black-out

Cena 12 – O que se chamou de entrevista

(A, H2, H1 e Coro)


A – “A questão que eu gostaria de colocar agora pode
parecer, à primeira vista, estranha, mas se for o caso,
eu a explicarei porque, em minha opinião, ela merece
ser colocada. A beleza tem uma significação especial
para você?
H2 – Penso que ela tem uma significação para todos!
Eu sou míope, certamente, mas não cego a ponto de
que ela não tenha significação para mim. Mas por que
você me coloca esta questão? Eu estou seguro de ter
dado a você provas de que não sou insensível à beleza.”
(...)
A – Por prazer.

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H1 – “De fato, eu tenho dificuldade em ter a experi-


ência do prazer. O prazer me parece ser de um controle
muito difícil. Isso não é tão simples como usufruir das
coisas. (PAUSA) Devo confessar que é meu sonho. Eu
gostaria e espero morrer de overdose de prazer, qual-
quer que seja. Porque penso que é muito difícil, e tenho
sempre a impressão de não experimentar o verdadeiro
prazer, o prazer completo e total (PAUSA); o prazer para
mim está ligado à morte.
A – Por que diz isso?
H2 – Porque o gênero de prazer que eu considero
como o verdadeiro prazer seria tão profundo, tão inten-
so, me submergiria tanto que eu não sobreviveria. Eu
morreria.” 40
Coro – Eu morreria. Eu morreria...
A – Eu morreria.
Black-out

Cena Final – Pirotecnias

Inversão de papéis da Cena 1. (H1, H2 e A)


H2 – Um livro pode ser como um vento verdadeira-
mente material que faz estourar as portas e as janelas...
um explosivo eficaz como uma bomba, e bonito como
fogos de artifício...
H1 – Pi-ro-tec-nia. Fabricar alguma coisa que serve,
finalmente, para um cerco, uma guerra, uma des-tru-i-
ção. Não sou a favor da destruição, mas sou a favor de
que se possa passar, de que se possa avançar, de que
se possa fazer caírem os muros. (...)
Entra o Andarilho.

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A – “Amanhecia. Eu não sabia onde estava. Tomei


a direção do nascente, a esmo, para ser iluminado o
mais cedo mais possível. Teria preferido um horizonte
marinho, ou desértico. Ao relento, de manhã, vou ao
encontro do sol, e ao anoitecer, ao relento, eu o sigo, e
até a casa dos mortos. Não sei por que contei essa his-
tória. Poderia muito bem ter contado outra. Talvez uma
outra hora poderei contar outra. Almas vivas, verão que
elas se parecem.”41
Alguém pega a bicicleta e circunda o espaço. Luz em
resistência sobre os homens no palco.
Black-out
Luz. Elenco retorna ao som de “Feito gente”, de Wal-
ter Franco.

Notas:
1
Aula-teatro 3 do Nu-Sol. Pesquisa de texto pelo Nu-Sol. Escritos de Michel
Foucault, acompanhados de reflexões e sugestões de Gilles Deleuze, Didier
Eribon, poesias de René Char, fragmentos de Heráclito, João Guimarães Rosa
e Samuel Beckett; improvisações na bateria; músicas: Pena Branca & Xavan-
tinho, “Cutelinho”; Walter Franco, “Me deixe mudo” e “Feito gente”; Marina
Lima, “O retorno”; The Clash, “Police and thives”; Caetano Veloso, “O es-
trangeiro”, Norah Jones, “Nightingale” (cena extra da segunda apresentação).
Texto e Trilha Musical: Edson Passetti e Acácio Augusto. Com: Acácio Au-
gusto, André Degenszajn, Beatriz Scigliano Carneiro, Bruno Andreotti, Eliane
Knorr de Carvalho, Gustavo Ramus, Gustavo Simões, Lúcia Soares, Salete
Oliveira e a presença de Pedro Henrique Manesco, na bateria. Produção grá-
fica: Andre Degenszajn. Operadora de luz: Salete Oliveira. Operador de som:
Nildo Avelino. Coordenação e direção de Edson Passetti. Apresentada em 6,
26 e 28 de maio de 2008, no Teatro Tucarena, São Paulo/Brasil.
2
Roger Pol-Droit. Michel Foucault, entrevistas, Tradução de Vera Portocarrero e
Gilda G. Carneiro. Rio de Janeiro: Graal, 2006, p. 69.
3
Idem, p. 75.
4
Ibidem, p. 96.

83

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14
2008

5
“Sobre as prisões de Attica”. In: Motta, M. (Org.). Michel Foucault Ditos e Es-
critos IV: Estratégia, Poder-Saber. Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. Rio de
Janeiro, Editora Forense Universitária, 2003, p. 142.
6
“Sobre o internamento penitenciário”. Idem, p. 78.
7
“Sobre as prisões de Attica”. Ibidem, p. 140.
8
Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de Maria
Ermantina Galvão. São Paulo, Martins Fontes, 2000, pp. 308-309.
9
Adaptado de “Prefácio (in Jackson)”. In: Motta, M. (Org.). Michel Foucault
Ditos e Escritos IV: Estratégia, Poder-Saber, op. cit., pp. 146-151.
10
Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópo-
lis, Editora Vozes, 2005, p. 256.
11
Didier Eribon. Michel Foucault - 1926-1984. Tradução de Hildegard Feist. São
Paulo, Companhia das Letras, 1990, pp. 245-246.
12
O abecedário de Gilles Deleuze. (Letra “F”). Realização de Pierre-André Boutang,
produzido pelas Éditions Montparnasse, Paris.
13
Didier Eribon, op.cit., p. 80.
14
Idem, p. 147.
15
Michel Foucault, apud Gilles Deleuze. “Um retrato de Foucault”. In Conversa-
ções. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p. 144.
16
“A água e a loucura”. In: Motta, M. (Org.). Michel Foucault Ditos e Escritos I:
Problematização do sujeito — psicologia, psiquiatria e psicanálise. Tradução de Vera
Lucia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 1999, pp.
188-189.
17
“O Que é um filósofo?”. In Motta, M (Org.). Michel Foucault Ditos e escritos
II: Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Tradução de Elisa
Monteiro. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2005, p. 34.
18
“Uma entrevista com Michel Foucault”. Tradução de Wanderson Flor do
Nascimento. In Verve – Revista do Nu-Sol, São Paulo, Programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, n.5, 2004, pp. 240-241.
19
Le pouvoir psychiatrique. Cours au Collège de France, 1973-1974. Paris, Gallimard,
2003, p. 22 [Tradução Nildo Avelino].Ver também: O poder psiquiátrico. Curso no
Collège de France, 1973-1974. Tradução de Eduardo Brandão. Revisão Técnica
de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo, Martins Fon-
tes, 2006, p. 26.
20
Idem, 26. Ver também: op. cit., p. 31.

84

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verve
FOUCAULT

21
“Michel Foucault, uma entrevista: Sexo, poder e a política da identidade”.
Tradução de Wanderson Flor do Nascimento. In Verve – Revista do Nu-Sol,
São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-
SP, n.5, 2004, pp. 255-259.
22
“Foucault estuda a razão de Estado (entrevista com M. Dillon)”. In: Motta,
M. (Org.). Michel Foucault Ditos e Escritos IV: Estratégia, Poder-Saber. op. cit., p.
319.
23
“Do governo dos vivos”. Transcrição e tradução de Nildo Avelino. In Ver-
ve – Revista do Nu-Sol, São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em
Ciências Sociais da PUC-SP, n.12, 2007, pp. 270-293.
24
Vigiar e punir: nascimento da prisão. Op. cit., p. 234.
25
Idem, idem.
26
“A vida dos homens infames”. In: Motta, M. (Org.). Michel Foucault Ditos e
Escritos IV: Estratégia, Poder-Saber, op. cit., pp. 219-220.
27
Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Op. cit., pp. 236-237.
28
“O que são as Luzes?”. In Motta, M (Org.). Michel Foucault Ditos e escritos II:
Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento, op. cit., p. 351.
29
Adaptado de “Do governo dos vivos”. Op. cit., p. 295.
30
“Anti-Édipo: uma introdução à vida não-fascista”. Tradução de Fernando
José Fagundes Ribeiro. In Cadernos de Subjetividade. Peter Pál Pelbart & Suely
Rolnik (orgs) Gilles Deleuze. São Paulo, Núcleo de Pesquisa de Subjetividade.
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, 1993,
v. 1, pp. 199-200.
31
“Do governo dos vivos”. Op. cit., p. 294.
32
Nu-Sol. “Estamos todos presos”. Disponível em: http://www.nu-sol.org/
artigos/ArtigosView.php?id=8, 2000.
33
Hermenêutica do sujeito. Tradução de Salma Muchail & Marcio Fonseca. São
Paulo, Martins Fontes, 2004, p. 306.
34
João Guimarães Rosa. “A hora e a vez de Augusto Matraga”. In Sagarana. Rio
de Janeiro, Nova Aguilar, 1994.
35
“Anti-Édipo: uma introdução à vida não-fascista”. Op. cit., p. 199-200.
36
Idem, p. 200.
37
“Estruturalismo e pós-estruturalismo”. In Motta, M (Org.). Michel Foucault
Ditos e escritos II: Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Op.
cit., p. 331.

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14
2008

38
“Uma estética da existência”. In: Motta, M. (Org.). Michel Foucault Ditos e
Escritos V: Ética, sexualidade e política. Tradução de Elisa Monteiro & Inês A. D.
Barbosa. Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 2004, p. 290.
39
A História da Loucura na Idade Clássica. Tradução de José Teixeira Coelho
Neto. São Paulo, Perspectiva, 2004, p. 35.
40
“Uma entrevista com Michel Foucault”. In op. cit., pp. 252-253.
41
Samuel Beckett. “O expulso”. In Novelas. Tradução de Eloísa Araújo Ribeiro.
São Paulo, Martins Fontes, 2006.

Indicado para publicação em 2 de junho de 2008.

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verve
O grande jogo

o grande jogo1

alexander berkman*

Personagens:
Eu (industriais e capitalistas)
Você (operários)
Negra Figura (Lei)

(Abrem-se as cortinas)

Eu ― Desçam ao interior da terra. Tragam à luz o


carvão e o ouro, o ferro, a prata e as pedras preciosas.
Você ― Considere feito.
Eu ― Construam fábricas e maravilhosas ferramen-
tas e modelem o mundo em júbilo e beleza.
Você ― Considere feito.

* Imigrante russo que se tornou proeminente anarquista nos EUA. Cometeu


um atentado contra um industrial durante uma greve operária e passou 14
anos na prisão. Em 1919, devido a contundentes manifestações contra a guer-
ra, foi deportado para a Rússia junto com vários anarquistas, inclusive Emma
Goldman, sua companheira na vida amorosa e política. Depois de dois anos,
deixaram o país e lideraram a crítica libertária aos rumos autoritários da Revo-
lução Russa e das ações do Partido Comunista. Gravemente doente, Berkman
morreu aos 66 anos, na França, em 1936.

verve, 14: 87-89, 2008


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14
2008

Eu ― Muito bem, meus homens. Maravilhoso! Quan-


ta abundância! Quantas riquezas! Todas minhas.
Algumas vozes ― Suas? Por quê? Nós fizemos tudo!
(Comoção no palco)
Mais vozes (enfurecidas) ― São nossas! Nós as fize-
mos.
Eu ― Silêncio! Eu não mandei que o fizessem?
Vozes ― Mas é nosso. Nós o fizemos.
Eu ― Chamemos a Lei!
(Entra a Negra Figura, vestida de preto, levando uma
Bíblia em uma mão, a espada desembainhada na outra.
As duas mãos com luvas)
(Um silêncio solene quando fala a Lei)
Negra Figura ― É seu. Assim está decretado. A inte-
gridade de nossas justas e livres instituições deve ser
mantida.
(Todos reverentemente ajoelham-se diante da Negra
Figura)
(Sai a Negra Figura)
Eu (orgulhosamente jubiloso) ― É meu, por Lei.
Você ― Nós somos pobres. Nossas esposas precisam
de comida, nossas crianças têm fome.
Eu ― Eu darei a vocês as coisas de que precisam.
Você ― Nos dê! Nos dê!
Eu ― Em troca de mais trabalho. Venderei as coisas
que vocês fazem e lhes darei um salário por isso.
Você ― Salários! Bons salários?
Eu ― Sim, um salário justo.
Você ― Tome, tome! Um salário justo!

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verve
O grande jogo

Eu ― Entregarei a vocês comida e roupa em troca de


seus salários.
Você ― Um amo carinhoso! Tome, pegue nossos sa-
lários!
(Eu pega os salários e entrega escassas rações de
comida)
(Você, depois de ter devorado a comida, em pé com as
mãos vazias, com semblante satisfeito)
Eu (com profunda auto-satisfação) ― A indústria e a
economia são a coluna vertebral de nossa grande pros-
peridade nacional.
Você ― Mas nós não obtivemos nada.
Eu ― Elejam-me para o ministério e aprovarei uma
lei para abrir cozinhas populares para aqueles dentre
vocês que merecerem minha generosidade.
Você ― Viva! Viva! Nosso candidato!
(Um desfile com tochas)
(Fecham-se lentamente as cortinas)

Tradução do espanhol por Natalia Montebello.

Notas:
1
The Blast, San Francisco, Estados Unidos, 29 de janeiro de 1916.

Indicado para publicação em 11 de agosto de 2008.

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14
2008

paradise now1

judith malina e julian beck*

Paradise now foi apresentado pela primeira vez no


Festival de Avignon, em 24 de julho de 1968. É resulta-
do de um ano de pesquisa dos integrantes do The Living
Theatre grupo e de seis meses de preparação.
Segundo os autores, a criação coletiva trata de “uma
viagem vertical à Revolução Permanente”, à “Bela Revo-
lução Não-violenta anarquista”. São oito raios (rungs)
ou atos expressos cada um em ritos, visões e ações (as-
sinalados aqui em negrito), compostos por orientações
à encenação (em itálico) e textos. Antes das apresenta-
ções o grupo procurava conhecer a realidade das cida-
des onde se instalava com o intuito de estabelecer uma
proximidade real e sensível entre o coletivo e o público,
dissolvendo a representação.
Entre 24 de julho de 1968, em Avignon-França e 10
de janeiro, em Berlim-Alemanha, Paradise now acon-
teceu na Itália, Estados Unidos, voltou à França, em
maio de 1969, Inglaterra e Bélgica. O The Living Theatre
também manteve relações próximas com o Grupo Ofi-
cina do Brasil, no início dos anos 1970, e foi preso pela
ditadura militar, em Minas Gerais, em 1973.2

* www.livingtheatre.org.

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verve
Paradise now

Rito III – O rito do estudo

Luz: branca
Os atores reúnem-se para O rito do estudo. Eles sen-
tam-se no centro da área de encenação, formando um
espiral voltado para dentro.
O rito do estudo é uma comunicação que encontra sua
fonte de energia no centro do ator e que se transmite por
gestos e frases chamados Mudras e Mantras.
As Mudras são executadas apenas com braços e
mãos. Os atore têm total liberdade na sua forma. Podem
estender suas mãos e braços sobre suas cabeças, para o
lado, para o chão, na sua frente, alcançando suas costas;
fazem gestos com os pulsos e dedos, mas cada movimen-
to deve buscar sua fonte no centro do corpo do ator, de
tal forma que todos os gestos sejam sempre uma mani-
festação de impulsos internos. Isso confere ao ator uma
aparência relacionada àquela do santuário educacional
da Índia. O ator presta muita atenção nos movimentos
de todos os outros atores em seu campo de visão. Assim,
as mudanças de forma e ritmo nunca são totalmente do
indivíduo, mas tornam-se comunicações, a Receptiva e a
Criativa. Por isso é chamado de O rito do estudo.
Quando a energia gerada pelos gestos alcança certa
intensidade, os atores começam a falar os Mantras.
Um Mantra é uma frase curta ou sentença que contém
um conceito sagrado. Ao repetir a frase ou sentença de
maneira rítmica é possível que a essência do conceito
comece a penetrar de forma ativa e persuasiva na mente
daquele que fala e do que escuta.
Cada ator fala quando quer. Não há ordem pré-esta-
belecida. O ator escuta, medita, estuda os Mantras con-
forme são pronunciados, e responde. Ele pode utilizar
algum dos Mantras do texto, ou inventar um. Por essa
troca ele é chamado O rito do estudo.

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2008

ser livre
é ser livre
para comer

ser livre
é ser livre
do dinheiro

ser livre
é ser livre
para fazer o trabalho que ama

ser livre
é ser livre
para amar

ser livre
é ser livre
da violência

ser livre
é ser livre
da propriedade

ser livre
é ser
revolucionário

ser livre
é ser livre
de prisões

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verve
Paradise now

ser livre
é ser livre
da polícia

ser livre
é ser livre
da lei

ser livre
é ser livre
do estado

ser livre
é ser livre
do sistema

ser livre
é ser livre
do preconceito

ser livre
é ser livre
do ódio

ser livre
é ser livre
das classes

ser livre
é ser livre
de roubar

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14
2008

ser livre
é ser livre
de mentiras

ser livre
é ser livre
para sentir

ser livre
é ser livre
para voar

ser livre
é ser livre
para mudar

ser livre
é roubar da morte
o seu poder

ser revolucionário
é girar
a roda

Em um determinado momento, a fala não é mais ne-


cessária e os atores param. Cada um na posição de sua
última Mudra. Eles estão congelados; eles estudaram;
eles ainda não alcançaram o ponto de ação. Eles sabem
disso. (Luzes se apagam).
É possível que nesse momento o público invente Man-
tras livremente. Os atores mantém suas posições até que
o público termine suas intervenções.

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verve
Paradise now

Os atores levantam-se lentamente e começam a mo-


ver-se para A visão da criação da vida.

Ação III

Essa ação se passa na cidade onde a peça está sendo


apresentada. No Quadro, essa Ação é designada como
realizada no Aqui e Agora, ou, em algumas cidades, a
própria cidade é indicada no Quadro.
O Texto dessa cena varia de acordo com a localiza-
ção. É feita uma pesquisa antecipadamente sobre o atu-
al contexto social e político local e o Texto é alterado de
acordo.
O Texto a seguir é o Texto utilizado na primeira apre-
sentação da peça em Avignon, em julho de 1968.

Avignon.
Como O rito do estudo e A visão da criação da vida
levam à Revolução das forças conjuntas.
Como a cidade de Avignon pode ser transformada?
Teatro livre. Teatro da liberdade, de alegria e ação
espontânea.
Avignon. Teatro livre. A imaginação assume o po-
der.
Que ações planejam os comunistas?
Que táticas planejam os anarquistas?
O que estão fazendo os gaulistas?
Seja o povo na cadeia em Avignon.
Seja o povo no Monoprix.
Seja a polícia na rua.

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2008

Seja os Pieds Noirs.


Seja os argelinos.
A mão pode unir.
A mão pode escrever.
A mão pode alcançar.
A mão tem cinco dedos.
Uma célula básica, afirma Bakunin, deve ter cinco
membros.
A célula é a unidade básica da vida. Forme células.

Conforme pronunciam suas falas, ou depois de fa-


larem, alguns atores deixam o espaço da apresentação
para se misturar ao público, e alguns se mantêm na área
de apresentação para falar a Fase II.

FASE II
Há 400 prisioneiros na cadeia de Avignon, à sombra
do Palais de Papes. Por que os prisioneiros estão lá?
Quem irá formar uma célula para libertar todos os
homens?
Pare o medo.
Pare a punição.
Torne-o real.
Faça agora.
Suba ao palco.
Comece.
Quem irá formar uma célula para aumentar a im-
prensa underground para publicar jornais, folhetos,
posters, para dizer ao povo de Avignon o que está
acontecendo no mundo?

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verve
Paradise now

Torne-o real.
Faça agora.
Suba ao palco.
Comece.
Avignon tem uma força policial de X homens. Quem
irá formar uma célula para provocar uma mudança
de consciência entre eles?
Avignon tem um número X de trabalhadores indus-
triais e um número X de trabalhadores rurais nas
proximidades. Quem irá formar uma célula para fa-
lar a eles das possibilidades de outro jeito de viver?
Em uma situação revolucionária quem saberá como
fornecer água, eletricidade, comida? Células são ne-
cessárias para estudar como fazer A Revolução fun-
cionar.
Quem irá formar uma célula para desarmar a cidade
de Avignon?
O exército.
A polícia.
E as almas do seu povo.

O Texto a seguir foi incorporado em New Haven, em


setembro de 1968:

Nas escolas, nos hospitais, nas universidades, a re-


pressão psico-sexual está impedindo A Revolução.
Quem ousa formar células para ajudar a quebrar es-
ses tabus?

O objetivo dessa cena é instigar a reunião das forças


revolucionárias.

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14
2008

Iniciam-se discussões sobre a formação de células.


Células de Ação Radical são formadas para continuar
a trabalhar durante e/ou após a apresentação. Posters
são impressos e todas as ações iniciadas pelo público
são apoiadas pelos atores. Para que a Ação seja apre-
sentada como o maior conhecimento possível das po-
sições do público, os atores devem aprender o máximo
possível sobre as condições e problemas do local anteci-
padamente.
A Ação continua até quando a energia se mantiver.

A REVOLUÇÃO DA AÇÃO

A Revolução Anarquista Não-Violenta é a mudan-


ça gerada pela produção e distribuição de tudo o que
as pessoas precisam sem o uso de suborno coercitivo,
violência ou trabalho rancoroso. Significa tentar viver
junto, sem leis punitivas, cadeias, polícia, exércitos, e
o controle exercido pelo dinheiro sobre o trabalho, a
produção e o caráter humano. Assim, não pode ser a
mudança imposta por uma nova classe dominante. Os
anarquistas acreditam que é possível alimentar a to-
dos e resolver melhor todos os problemas da condição
humana sem o incentivo do dinheiro, sem regras que
sugerem que se você não trabalhar você não come, e
sem os padrões de vida impostos por sistemas políticos
e econômicos. Os anarquistas acreditam que todos os
homens podem fazer o trabalho que querem e podem
viver juntos de maneira pacífica e criativa, pois a mente
humana que inventou o intricado sistema-de-produção-
por-meio-da-exploração e a regulação do consumo-por-
meio-do-desejo-e-da-superprodução irá inventar jeitos
de alimentar todas as pessoas sem o uso da violência
ou medidas coercitivas. Livre-se do sistema monetário,
afirma o Anarquista, livre-se do controle do governo
centralizado, e o que acontecerá?

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verve
Paradise now

Outros incentivos serão encontrados. O dinheiro co-


loca o Governo na posição do controle central. A hie-
rarquia do dinheiro e do Estado pode ser rompida se
as pessoas pudessem encontrar um meio de fazer sem
dinheiro. Portanto, A Revolução da Ação é esse perío-
do durante o qual um número significativo de pessoas
começa a funcionar sem o sistema monetário. Sem es-
cambo e sem troca. O necessário pode ser produzido e
distribuído sem qualquer tipo de pagamento.
A Revolução pode, assim, criar situações que pela
virtude de seus exemplos conquistará as pessoas.
Se não há lei ou controle do governo, afirma o Anar-
quista, o que acontecerá? A Revolução é baseada na
mudança individual e coletiva, e essa questão não pode
ser respondida adequadamente se imaginarmos essa
mudança exterior na estrutura da sociedade sem uma
mudança paralela no caráter humano.

Rito VI – O RITO DAS FORÇAS OPOSTAS

Luz: branca
Quando A Revolução da Ação alcançar seu ápice, um
ator se deita no centro da área de apresentação. Ele é o
Sujeito do Rito. Ele relaxa sua mente e corpo. Seu corpo
está solto. Sua mente está aberta e em espaço livre. Ela
faz um barulho alto e constante. Ele inspira profunda e
completamente. Os outros atores formam um largo circu-
lo em seu redor.
Individualmente ou em grupos os atores aproximam-
se do Sujeito. Eles podem fazer o que quiser com seu
corpo.
Eles conduzem seu corpo por meio de uma variedade
de investidas físicas, por comandos positivos e negativos
de forças perturbadoras e relaxantes. Eles procuram tan-
to desviar quando fortalecer a sua concentração. Nada
os contêm em suas tentativas de alcançar as profunde-

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2008

zas de seu corpo por meio de movimentos físicos e sons.


O Sujeito prende-se ao seu centro e o som que emana de
seu centro nunca hesita.
Ao aceitar as forças que vêm até ele, ao manter seu
centro, ao manter seu estado passivo, o sujeito torna-se
o Receptivo; e toda a força liberada em sua direção o
penetra e o leva a uma viagem que finalmente o libera
a um estado de energia e transformação transcendente.
(Luzes se apagam).
O Sujeito levanta-se e sinaliza. É o sinal de seu aqui
e agora.

Ação VI

Esse texto é falado em blackout.


Cape Town. Birmingham.
Como O Rito das Forças Opostas e A visão do
Amor Mágico Instantâneo levam à Revolução da
transformação.
Teatro livre. No qual a imaginação pode tomar o po-
der.
Cape Town. Birmingham. O coração das trevas.
O coração administra a circulação do sangue.
Seja o coração. Aja. Encontre a dor. Sinta-a. Faça
seu som.
O coração da África.
O coração sagrado.
Seja o revolucionário depois da revolução sexual.
Qual é a cor dele?
Tenha um coração generoso.
Teatro livre. É o teatro da chance.
Seja o ouro. Seja o garimpeiro.

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verve
Paradise now

Encene a grande transformação de Capetown e


Birmingham.
O que acontece quando os revolucionários confron-
tam o grande campo oposto?
Seja o grande campo oposto.
Seja os Bantus levantando-se e espalhando-se. Seja
os Uncle Tom. Seja os Black Cops.
Seja a música da África.
Represente os impulsos do inconsciente coletivo.

Nota: No lugar da designação “Birmingham” o nome


do gueto negro, se houver, na cidade onde a peça é apre-
sentada é utilizado.

Luzes se acendem no palco e na casa.


A ação leva à Revolução da Transformação. A referên-
cia aqui é àquele período da luta revolucionária chamado
O período da luta. Vindo depois de A revolução da
ação, levanta os problemas enfrentados pela revolução
quando as forças reacionárias tentam destruir as con-
quistas da Revolução com força e violência. A questão é:
como o revolucionário não-violento prevalece?
A Ação se mantém enquanto houver energia e ao final
a luz cai em resistência até a escuridão. (Blackout).

A REVOLUÇÃO DA TRANSFORMAÇÃO

Depois de A revolução da ação, O período de luta


começa. Agora as forças reacionárias confrontam A Re-
volução com violência. O revolucionário não-violento
irá confrontar essa força destrutiva com a energia de
sua força do amor e com o conhecimento e sabedoria que

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2008

adquiriu por meio da experiência revolucionária. Com o


exemplo pessoal das conquistas das revoluções já reali-
zadas e com seu caráter humano recém desenvolvido ele
confronta o grande campo oposto. O trabalho da Revolu-
ção agora é a transformação do povo do grande campo
oposto, e a transformação da relação entre os revolucio-
nários da nova sociedade e os militantes dos costumes
do passado.

A REVOLUÇÃO DO SER

As mudanças econômicas, políticas e sociais geradas


pela Revolução da Ação, somadas a todas as mudan-
ças interiores produzidas em nosso caráter durante todos
os estágios revolucionários anteriores devem influenciar
o potencial humano. Quando a nossa relação com o mun-
do e entre nós, com o ambiente e com nós mesmos, com
o trabalho e com o tempo, com a ciência e com a natu-
reza, tiverem se libertado dos confinamentos e injúrias
trazidos pelos erros da civilização passada, nós seremos
livres para expandir e alterar a natureza de nosso ser.

Rito VIII – O RITO DE MIM E VOCÊ

Luz: branca
De suas posições ao final de A revolução do ser, os
atores começam o canto

AUM

e movem-se para o centro da área de apresentação.


Eles dão as costas ao público. O canto é entoado profun-
damente. Os atores permitem-se dominar pela imagem
da morte. Ela os possui. Eles se enfraquecem. A respira-
ção começa a diminuir. A morte os possui pela garganta.

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verve
Paradise now

Uma película cobre os olhos. A visão se esvai. O mundo


é rompido. Eles submergem (continuando a fazer o som
ritual) como se fossem tragados pela terra. Eles se des-
pedem do mundo. Eles parecem alcançar os portais da
morte. Eles fazem um sinal da morte. O sinal é a mais
pura afirmação dos atores de seu aqui e agora. É sua
oferenda. Nesse momento, quando nada parece separá-
lo de sua aniquilação, seu sinal alcança outro moribun-
do. Entre os dois seres a faísca sagrada de MIM e VOCÊ
aciona uma força de vida e, estabelecendo sinal entre
eles, eles fortalecem esse contato até que a força de vida
entre eles supera a força de morte em cada um, e eles
novamente se levantam.

Imagem: morte evitada no contato entre MIM e


VOCÊ.

Ação VIII

Luz: na área de apresentação escurece; no auditório


ilumina.
Enquanto os atores e o público movem-se para o fun-
do do teatro, os autores falam o texto.

A rua.
Liberte o teatro. O teatro da rua. Liberte a rua.
Como O rito de mim e você e A visão de desfazen-
do o mito de éden levam à Revolução permanen-
te.
O teatro está na rua. A rua pertence ao povo. Liberte
o teatro. Liberte a rua. Comece.

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2008

A REVOLUÇÃO PERMANENTE

Mudança é o estado natural do ser. Revolução per-


manente é a condição natural do Anarquismo.

Tradução do inglês por Andre Degenszajn.

Notas:
1
Collective Creation of The Living Theatre. Escrito por Judith Malina e Julian
Beck. New York: Vintage Books, 1971. Nota de apresentação e seleção de
passagens Edson Passetti.
2
A esse respeito ver Judih Malina. Diário de Judith Malina. O Living Theatre em
Minas Gerais. Belo Horizonte, Arquivo Público Mineiro, 2008, 272 pp. Fotos
de Juvenal Pereira. Ver também resenha de Edson Passetti neste número, pp.
284-290.

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2008

escolas de indisciplina: notas sobre


sociabilidades anarquistas no brasil em
inícios do século XX1

rogério nascimento*

Pesquisar pensamentos e realizações relacionadas


ao movimento anarquista no Brasil no período de sua
maior envergadura, de fins do século XIX até as quatros
primeiras décadas do século XX, impõe uma reflexão
sobre pelo menos dois aspectos significativos: primeiro,
há uma expressiva amplitude em possibilidades de abor-
dagens dos materiais disponíveis nos arquivos e biblio-
tecas públicas; segundo, é necessário considerar que o
olhar do pesquisador consiste num enfoque atravessa-
do por diversas questões: as colocadas por seu tempo
histórico, por sua biografia, pela sua formação intelec-
tual, só para destacar alguns elementos constitutivos
da sua pessoalidade.
Em que pese às pesquisas publicadas e às encer-
radas e depositadas nas bibliotecas das universidades,

* Rogério Nascimento é doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP e professor


de Antropologia na Universidade Federal de Campina Grande. Publicou Flo-
rentino de Carvalho, pensamento social de um anarquista, Rio de Janeiro: Achiamé,
2000.

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verve
Escolas de indisciplina: notas sobre sociabilidades anarquistas...

estas são duas dimensões importantes para quem de-


seje iniciar pesquisas neste campo, que é ainda muito
vasto. A primeira destas dimensões é promissora uma
vez apontada para um abundante acúmulo de registros
históricos. Os arquivos públicos no Brasil, sobretudo
no eixo sul-sudeste, regiões de maior vigor do anarquis-
mo, guardam considerável variedade de documentos
relativos ao movimento anarquista. Contudo, mais que
isto, além da abundância destes materiais em institui-
ções públicas à espera de pesquisadores interessados,
as possibilidades de abordagem são deveras amplas.
Documentos de associações, livros, jornais, revistas,
resoluções de congressos, peças de teatro operário fa-
vorecem diferentes maneiras de enfoque analítico.
A segunda destas dimensões, pelo contrário, deve
atuar como uma constante advertência ao pesquisador
e interessado no assunto. Isto porque, por exemplo,
questões relativas à antiguidade destes materiais mui-
to facilmente distraem a atenção do estudioso quando
se trata de apreender aspectos particulares dos dina-
mismos societários que estes documentos podem fazer
emergir. O amarelado das páginas, as folhas resseca-
das pela ação do tempo, outras marcas como formas
de grafias consideradas hoje antiqüadas, termos em
desuso há muito tempo, o incômodo do odor de mofo,
os ácaros, além de outros elementos, podem acionar
e amplificar automatismos na pessoa do pesquisador.
Deste modo, há maior probabilidade em manifestar-se,
através de processos que naturalizam relações sociais,
pré-conceitos profundamente arraigados.
Caso o estudioso não consiga manter-se atento a es-
tas armadilhas, deixará facilmente passar ao largo de
seu discernimento uma quantidade consideravelmente
ampla de sinais, significados e sentidos característicos.
Este procedimento seletivo é mais rapidamente insta-
lado quando o campo de estudos abordado transborda
com os limites da sociedade da qual o pesquisador é
integrante. Ao mesmo tempo, as conclusões levantadas

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2008

pelo pesquisador têm maior probabilidade de serem


acatadas pelos seus pares na medida em que operam
dentro das fronteiras reconhecidas pelos costumes con-
vencionalmente estabelecidos.
É perfeitamente aceitável a assertiva, sustentando
que diversos grupos de pessoas interagindo numa con-
temporaneidade podem instaurar modalidades de so-
ciabilidades com diferentes graus de espontaneidade.
Creio que ninguém levante objeções a esta possibilidade
quando de distanciamentos territoriais. Há grupos que
possuem maior disposição para instaurarem imediata-
mente espaços de liberdade nas suas relações. Noutros
grupos, o grau de liberdade é menor. Fica fácil perceber
que procurar compreender o espaço de maior liberdade
a partir da perspectiva do espaço de menor liberdade
resultaria num quadro com significativas limitações.
Sobretudo se pensarmos no que, da sociabilidade mais
liberada, escapou ao enfoque àquela de liberdade mais
restrita.
Pois bem, com isto estou querendo dizer que a época
atual, a sociedade vigente, com todas as suas particu-
laridades é, comparada com os experimentos realizados
pelos anarquistas do período considerado, este espa-
ço de menor grau de liberdade. Ainda nesta linha de
exercício de abstração, proponho, em contraposição à
disposição cultural da sociedade atual naturalizando
sua concepção de tempo, desconsiderar desta tempora-
lidade linear a qualidade de possuir realidade concreta
e objetiva. Neste caso fica mais fácil sugerir uma com-
paração das modalidades de relações instauradas não
apenas entre grupos societários de diferentes espaços
territoriais, mas também de coletividades em diferentes
escalas de tempo.
O pesquisador atual, com seu perfil sócio-histórico
específico (de formação escolar rígida, integrante de
uma sociedade cujas principais instituições foram for-
jadas a partir de referenciais totalitários, cujos costu-
mes culturais consagram o patriarcado e as relações

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Escolas de indisciplina: notas sobre sociabilidades anarquistas...

sociais hierarquizadas) é formado profissional e


pessoalmente numa sociedade assimétrica. Caso este
pesquisador esteja absolutamente convencido da neces-
sidade e da naturalidade deste seu modo de vida, terá,
muito provavelmente, dificuldades em estabelecer em
suas investigações relações outras, avessas ou contra-
postas, a seu pessoal campo conceitual e existencial.
Este é, portanto, um obstáculo não desprezível às
pesquisas voltadas para o conhecimento do pensamen-
to e das realizações do movimento anarquista no re-
ferido período histórico. No meu entender, uma pers-
pectiva disciplinar — naturalizando a hierarquia na
sociabilidade humana como também aprofundando as
fronteiras dividindo pessoas e áreas do conhecimento
— possui sérias limitações para dar conta de experi-
mentos instauradores de indisciplina. É impermeável a
um enfoque disciplinar, domesticador por excelência, a
selvageria contundente da indisciplina. E é exatamente
disto que se trata nas associações anarquistas no pe-
ríodo delimitado: espaços de indisciplina, nomadismo,
condição existencial selvagem, constante e intenso pro-
cesso de descentramento, iconoclastia, multilateralida-
de, antropofagia, negativismo.2

***

A fim de poder escapar da reprodução de procedi-


mentos analíticos viciados, o pesquisador deveria, no
meu entendimento, instaurar, em primeiro lugar, um
esforço em abandonar deliberadamente a disposição
disciplinar nos seus estudos. É claro que não é nada fá-
cil, não diria desconstruir, mas, mais que isto, destruir
toda uma mentalidade já um tanto quanto cauterizada
por conta de anos sob processos de amestramento pela
escolarização. Acredito ser este um exercício necessário
para podermos abordar as vivências anarquistas da-
quele período com maior grau de descolamento. Caso
contrário o pesquisador corre o risco de projetar sobre

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2008

o campo de pesquisa demandas que possivelmente lhes


sejam totalmente alheias. Exemplos de procedimentos
desta natureza estão expostos em diversas publicações
de liberais e marxistas tratando do pensamento e das
realizações anarquistas.
Marxistas e liberais projetam, de maneira recor-
rente sobre os anarquistas, demandas que dizem res-
peito apenas a eles próprios. Suas reflexões dão voltas
em torno de si, enredadas em ciclos de pensamentos e
concepções altamente ciosas de mesmice. Seus escri-
tos partem de pressupostos externos às conceituações
e categorias com as quais os anarquistas no geral se
movem. As publicações de liberais e marxistas são far-
tas em cobranças, voltadas para os anarquistas, que
dizem respeito única e exclusivamente a seus próprios
campos conceituais, sem que estas façam qualquer
sentido no multiverso conceitual e existencial dos anar-
quismos. Materialismo histórico, dialética esclarecida
da história, neutralidade axiológica do conhecimento e
objetividade da ciência são exemplos disto que acabei
de me referir.
São estes tipos de abordagens que produzem o mes-
mo e reproduzem um conhecimento de antemão pre-
visível em suas conclusões. Nos saberes estabelecidos
no campo gravitacional do positivismo existe por cima
o estudioso e por baixo a “matéria-prima” da pesquisa;
por cima o sujeito da pesquisa e por baixo o seu “obje-
to”, a sua “coisa”. Isto assim mesmo, nesta disposição
hierárquica. A abolição intencional destes referenciais
positivistas seria indubitavelmente uma boa maneira
de intensificar e afinar a sensibilidade da pessoa do
pesquisador para uma melhor compreensão de outras
modalidades de vida que sejam refratárias a um dia-
pasão verticalizador para a sociabilidade humana. Isto
é mais verdadeiro em relação àquelas pautadas pelo
princípio de liberdade e em franca oposição às que se
referenciam no princípio de autoridade.

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Escolas de indisciplina: notas sobre sociabilidades anarquistas...

Nesta direção, seria bastante interessante abordar


os documentos guardados nas instituições de preser-
vação da memória e do patrimônio cultural, para além
da concretude de sua materialidade, concebendo-os
enquanto verdadeiras emanações de subjetividades ou-
trora existentes. Pensemos, no caso dos documentos do
movimento anarquista, em como a elaboração, publica-
ção e divulgação destes materiais inicialmente empol-
gava um número mais restrito de pessoas e como, em
seguida, contagiava leitores, correspondentes e agentes
em diversas localidades. Contagiava até oponentes ide-
ológicos como também setores governamentais.
Um dos primeiros temas discutidos entre os interes-
sados, podemos imaginar, poderia ter acontecido em
torno do título do jornal3 ou revista até que se chegasse,
enfim, a um consenso quanto ao nome mais adequado
para aquela associação. Por sua vez o título seria como
que uma maneira de anunciar assinatura coletiva. Um
nome que espelhasse o poder das vontades associadas,
expressando, simultaneamente, pseudonímia grupal,
pensamento coletivo e assinatura coletiva.4
Por estas razões entendo que o pesquisador deve
considerar em seus estudos a possibilidade da existên-
cia de sociabilidades opostas às hierarquias, permane-
cendo constantemente atento para um modo de vida
que desonera fronteiras. A disposição dos estudos da
sociedade instaurando ruptura entre a pessoa do pes-
quisador com o campo de estudo é adequada à socia-
bilidade verticalizada, como consagrado na perspectiva
positivista de estudo da sociedade.
No caso dos jornais e revistas, o coletivo editorial era
composto por pessoas que tinham em comum a vontade
de experimentar imediatamente as idéias anarquistas.
Esta disposição por inventar a liberdade na intensida-
de do agora era o fogo a arder em todos os envolvidos.
Inicialmente, a negação do princípio de autoridade
constituía ponto de encontro de todos os anarquistas.
Qualquer que seja a expressão mais simpática a esta ou

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àquela correnteza anarquista, todos estão juntos quan-


do da negação da hierarquia. E é este aspecto particu-
lar que distingue anarquismo do positivismo. Enquanto
este afirma a universalidade e fatalidade da hierarquia
na sociabilidade humana, os anarquistas negam. Por
esta razão negativismo é o único campo a partir do qual
é possível falar em anarquismo, no singular. Depois
disto, existem anarquismos, no plural.
A disponibilidade para criar associações e enfrentar
os riscos5 da subversão era atitude inquestionável nos
integrantes destes coletivos. Basta não esquecer que
toda a ambiência social à época era altamente desfavo-
rável a qualquer questionamento, que dirá às propostas
libertárias para a sociabilidade humana. As condições
de trabalho adversas, envolvendo alto grau de insalu-
bridade nos ambientes de trabalho, superexploração,
salários irrisórios, os constantes acidentes, as multas
e castigos corporais — que eram ainda mais intensos
em relação à mulher e à criança trabalhadora — não
constituíam um panorama social alentador.
Os dinamismos postos em atividade por estas sub-
jetividades partem deste ponto inicial negativista, se
desdobrando em iconoclastia, indisciplina e nomadismo.
A negação do princípio de autoridade era reafirmada
em vidas ausentes de idolatrias. Na continuidade deste
enfoque, estes anarquistas procediam desrespeitando
fronteiras estabelecidas pelos convencionalismos. Seus
pés e imaginação transitavam por entre campos de co-
nhecimento, desconsiderando limites artificiais. Por
conta disto diversos anarquistas deportados do Brasil
retornavam e insistiam em permanecer em espaços que
a lei lhes negava. Ao recusarem seguir as determina-
ções das classes dirigentes, não reproduziam a relação
mando-obediência.
É assim também que se apropriavam dos saberes e
dos fazeres disponíveis, dando-lhes um uso interes-
sado e pessoal. Transitavam livremente pelos campos
da Sociologia, Antropologia, Literatura, Estética, Filoso-

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Escolas de indisciplina: notas sobre sociabilidades anarquistas...

fia, Paleontologia, Política, Poesia, Biologia, Astronomia,


Física, entre outras especialidades, compondo, ainda
mais com sua própria trajetória de vida, seus escri-
tos e experimentos. Deste modo, mais que disciplinar,
multidisciplinar, interdisciplinar ou transdisciplinar, os
anarquistas em questão instauravam em suas vidas
e associações, processos estritamente realizados num
intenso dinamismo indisciplinar.

***

É neste sentido que pode ser muito enganoso abor-


dar as realizações dos anarquistas sem considerar a
amplidão, profundidade e intensidade dos pensamentos
em interlocução em cada acontecimento. Por isto quero
assinalar o caráter eminentemente grupal e relacional
dos processos societários instaurados neste período pe-
los anarquistas. Num ambiente de cultivo e incentivo
à experiência da alteridade, aconteciam significativos
embates de idéias e concepções. Diversos jornais, por
exemplo, registram em suas páginas os dinamismos de
indisciplina instaurados pelo coletivo editorial e que se
espraiavam em outras localidades como num contágio.
As matérias publicadas em suas colunas espelhavam
intensos debates realizados entre os integrantes do gru-
po de editores.
Também havia ocasião de se estabelecer debates com
adversários do anarquismo. Estes acontecimentos tan-
to resultavam por vezes no prolongamento da polêmica
por diversos números do jornal, como também produzia
a organização de conferências seguidas de debates com
a assistência. É fácil imaginar o desenho de um efeito
em cascata na seqüência destes acontecimentos.
Retomemos, então, a partir do entorno social no
qual estas associações aconteciam. Sabemos que o ce-
nário mais amplo da sociedade era desfavorável para
as idéias e experimentos refratários aos costumes esta-

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belecidos. A repressão e violência patronal e estatal se


davam de maneira intensa. As classes dirigentes não
economizavam esforços para jugular adversários, so-
bretudo as organizações proletárias. Neste contexto, os
trabalhadores tiveram que desenvolver estratégias de
sobrevivência. Para escapar às perseguições policiais
inventavam pseudônimos a fim de melhor continua-
rem a publicar artigos, proferir conferências, realizar
viagens de propaganda, enfim, viver da maneira que ti-
nham vontade.
Sob diversos pseudônimos os trabalhadores conse-
guiam driblar os olhos discricionários do governo, pro-
longando e distendendo sua liberdade. Algumas vezes
retornavam clandestinamente de processos de depor-
tação e continuavam no país por conta do uso de ex-
pedientes desta natureza. Este recurso individual era
também usado por associações. O nome do jornal, por
exemplo, funcionava enquanto pseudonímia coletiva,
como dito anteriormente. Este processo grupal assina-
la a elaboração de um pensamento coletivo, um saber
surgido das relações estabelecidas entre pessoas como
entre associações. Contrariamente aos processos esco-
lares vigentes na sociedade contemporânea, altamente
individualizantes, o dinamismo posto em atividade aqui
é eminentemente coletivo.
Indisciplina diz respeito a um processo intencional de
ruptura com o pensamento do mesmo, este que reinstala
essencialismos, substancialismos, reducionismo, deter-
minismos. Os anarquistas se jogavam de corpo e alma
nos arriscados experimentos com jornais, revistas, as-
sociações, congressos, conferências, livros, panfletos,
organização de comitês, manifestações, greves, escolas,
etc. A perspectiva instaurada pelos trabalhadores anar-
quizantes visava à diluição dos mecanismos sociais es-
corados em engessamentos, em enfoques dogmáticos,
rígidos e auto-referentes.
Assim, por exemplo, um mesmo espaço era utilizado
pelos anarquistas para funcionar como escola, sindi-

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Escolas de indisciplina: notas sobre sociabilidades anarquistas...

cato, local de reunião do coletivo editorial de um jornal


e como ponto para realização de conferências entre os
trabalhadores. Estes locais também funcionavam para
eventos organizados pelos professores das escolas anar-
quistas. Tais eventos eram direcionados aos estudantes,
pais, amigos e interessados pela questão educacional.
Todos eram instados a comparecer, se envolvendo com
um processo educacional que transcendia o aprendiza-
do conteudista, meramente técnico e intelectual.
Da mesma forma que na escola anarquista, nos cole-
tivos editoriais, nas associações, nos sindicatos, nas ti-
pografias, nos grupos de teatro, aconteciam uma multi-
plicidade de eventos simultaneamente. Disto resultava
a instalação de uma perspectiva nomádica em constan-
te deslocamento: lugar do saber não é a escola; lugar
da produção não é a fábrica, oficina ou fazenda; lugar
do deleite estético não é o teatro ou a galeria de artes
plásticas. Des-lugar. Na verdade, cada ambiente abriga
lugares diversos. A procura era pela intensificação das
possibilidades de interlocução, favorecendo a troca de
experiências.
Aqui encontramos uma maneira de se colocar na
vida encarando a razão do outro como sua própria con-
dição. Nesta perspectiva a razão do outro é, portanto,
mais que um objeto de curiosidade. Todo este proces-
so indisciplinar instaurava, sob diversas formas, um
pensamento caracteristicamente coletivo. Um saber e
uma postura existencial diluindo escola e vida,6 saber
e poder emergia dos encontros e dos contágios esta-
belecidos entre as subjetividades e entre associações.
A abolição dos exames, das provas e das avaliações,
dos castigos e das premiações, dos títulos e honrarias,
dos programas universalistas, caracteriza um processo
educacional com distância astronômica da perspectiva
escolarizante vigente naquela época como na contem-
poraneidade.
Getúlio Vargas foi o criador, no início dos anos trin-
ta do século XX, do Ministério da Educação. Francisco

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2008

Campos, o primeiro ministro deste ministério, é consi-


derado seu mentor intelectual. Foi ele quem, ao proje-
tar a idealidade de uma sociedade totalitária, seguiu os
moldes lançados inicialmente pelo bolchevismo e, na
seqüência, pelo nazi-fascismo. Evidenciou, nesta sua
intenção ditatorial, o locus privilegiado ocupado pela
escola, traçando-lhe uma silhueta que em nada mudou
ao longo de várias reformas educacionais instauradas
seguidamente décadas afora. O último destes reparos
procura avançar estes seus limites com a nova LDB7,
os Parâmetros Curriculares Nacionais e os temas trans-
versais.8
É este modelo totalitário de sociedade que prevalece
até hoje no espaço escolar oficial. Os programas, que
são oficiais, são pensados para serem ‘aplicados’ em
escala nacional. Desta disposição universalista e obri-
gatória podemos deslindar seu caráter totalitário. Os
processos de melhoramentos e aprimoramentos ocorridos
desde o início da era Vargas têm como efeito o refina-
mento cada vez maior das concepções autoritárias da
sociedade e, nesta, da escola. Quanto mais presencia-
mos discussões, debates e encontros visando aprimo-
rar mecanismos educacionais vigentes, mais podemos
observar “melhoramentos”... em processos nitidamente
fascistas.

***

Pois bem, todo um dinamismo indisciplinar instau-


rado nos diversos agrupamentos anarquistas, inclu-
sive em suas escolas, é inapreensível ao olhar narci-
sista de perspectivas disciplinares e disciplinadoras. É
assim que os aspectos coletivos altamente valorizados
não apenas pelos professores anarquistas — estes que
atuavam simultaneamente nos sindicatos entre outras
associações como coletivos editoriais de jornais ou re-
vistas, organizavam manifestos, integravam comitês de
trabalhadores, realizavam viagens de propaganda, pu-

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verve
Escolas de indisciplina: notas sobre sociabilidades anarquistas...

blicavam livros, etc. —, mas no conjunto do pensamen-


to anarco, não são considerados em sua dimensão mais
significativa por um enfoque marcado pelas limitações
da disciplina.
Tanto que a maneira de tornar inteligível ao ponto
de vista disciplinar o fato de trabalhadores sem forma-
ção escolar dominarem diversas línguas, nas formas
escritas e faladas, discutirem com desenvoltura sobre
os mais variados temas da questão social, conhecerem
diversos pensadores e cientistas das mais variadas áre-
as de conhecimento, dá-se costumeiramente a partir da
noção de autodidatismo. Esta é a maneira recorrente
de pacificar questionamentos acerca das especificida-
des do dinamismo existencial instaurado nos agrupa-
mentos anarquistas em questão, mantendo intacto o
edifício disciplinar. Assinalar os esforços, a disposição
e força de vontade das individualidades no processo de
configuração de um saber proletário é escamotear uma
abordagem mais rica que tem a ver com um dinamismo
relacional. Por maior que fosse a vontade e os esforços
individuais, de nada adiantariam caso não houvesse
um suporte coletivo ao alcance.
Os trabalhadores construíram à duras penas biblio-
tecas, ateneus, escolas, associações, sindicatos, teatro
operário, tipografias, colocando à disposição do movi-
mento materiais com os quais os trabalhadores mani-
pulavam a fim de melhor se situarem diante dos desafios
de sua época. Não havia subsídio estatal nem patronal.
Foi a partir dos esforços dos próprios trabalhadores,
num processo ainda não devidamente valorizado pelos
estudiosos em torno de uma gestão coletiva de recursos
financeiros das classes proletárias, que montaram uma
infra-estrutura material para suas atividades.
Para não demorar demasiadamente nestas reflexões,
gostaria de evidenciar alguns apontamentos finais so-
bre o tema. De início acredito existir muito ainda a ser
aprendido e apreendido com os estudos dos documen-
tos e registros históricos do movimento anarquista no

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2008

Brasil. As pesquisas disponíveis, publicadas e arquiva-


das nas bibliotecas, nos oferecem material importan-
te para um melhor conhecimento do tema. Entretanto,
longe de ter sido esgotado, há ainda muito a ser anali-
sado e debatido pelos estudiosos da matéria. A come-
çar pelo dinamismo relacional e indisciplinar instaurado
nas coletividades anarquistas, muitas lições podem ser
tiradas de seus experimentos.
Numa abordagem relacional está em foco a emergên-
cia de um pensamento coletivo, um saber marcado por
processos e dinamismos envolvendo a experiência da
alteridade. Como em antropofagia, a diferença é matéria
nutritiva para o guerreiro selvagem.9 Por sua vez o “civi-
lizado”, depois de intensos processos de domesticação,
procede de maneira recorrente a vomitar os “outros”.
Para o momento, portanto, não cabe mais, por inade-
quada, a centralidade da concepção liberal de indiví-
duo. No liberalismo esta categoria aponta para proces-
sos autoreferentes e para a existência de uma entidade
pretensamente autônoma e inalcançável a contágios e
aos caldeamentos da existência.
A vida, numa perspectiva indisciplinar, instaura-se
enquanto campo de contundentes experimentos com os
riscos implicados. Nesta vibração, ‘fronteira’ é vocábu-
lo desconhecido e desprovido de sentido para nomadis-
mos. Os limites convencionais, separando áreas espe-
cíficas do conhecimento como também, antes disso, as
linhas separando vida e conhecimento, saber e poder,
são objetos de abolição aos indisciplinados. Aqui se ca-
minha livremente por entre as áreas específicas do co-
nhecimento como também sobre territórios.
A não existência de regras, manuais ou receituários
para a vida é um desafio constante e uma das lições
mais significativas aprendidas com as experiências rea-
lizadas dentro do movimento anarquista. As estratégias
de ação eram definidas não de maneira apriorística, mas
considerando uma significativa amplitude de implica-
ções relativas às contingências do vivido. O estudo de

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verve
Escolas de indisciplina: notas sobre sociabilidades anarquistas...

suas táticas e dos embates ocorridos no contexto social


das primeiras décadas do século XX no Brasil, com o
movimento anarquista enquanto principal protagonista
desta análise, abre para estas possíveis relações.
Para finalizar, uma pergunta que não quer calar: o
que os anarquistas do período referido estavam mesmo
fazendo quando inventavam escolas, jornais, associações,
manifestações públicas, comitês, entre outras ativida-
des? A resposta vem rápida e certeira: instauravam pro-
cessos existenciais igualitários, libertários e liberados;
estabeleciam vibrações em multilateralidades, erupções
intempestivas esvaziando concepções e hábitos que
gangrenam os sentidos do viver. Assim, na escola, como
noutros espaços, experimentavam o estabelecimento de
relações intensas, como também quando faziam jornais
expressavam seus pensamentos, realizavam ações, pro-
duziam e socializavam saberes, sentidos e sentimentos.
Isto é a ruína da hierarquia e das relações de explora-
ção.

Notas:
1
Texto apresentado na mesa-redonda “Princípios, métodos e objetivos: as
experiências pedagógicas libertárias no Brasil”, no Seminário Nacional Peda-
gogia Libertária X Neoliberalismo, em Salvador, na Faculdade de Educação da
Universidade Federal da Bahia nos dias 05 e 06 de outubro de 2006.
2
Um artigo mais acessível ― Rogério Nascimento. “Anarquia nas Humanida-
des: perspectiva negativista no estudo da sociedade” ― em que elaboro algu-
mas reflexões sobre o negativismo está disponível em <www.nu-sol.org>. Na
minha tese de doutoramento ― Rogério Nascimento. Indisciplina: experimentos
libertários e emergência de saberes anarquistas no Brasil. São Paulo, Tese de Doutorado
em Ciências Sociais, PUC/SP, 2006 ― aprofundo os temas indisciplina, no-
madismo, condição existencial selvagem, descentramento, iconoclastia, multi-
lateralidade, antropofagia, negativismo.
3
A palavra ‘jornal’ possui atualmente sentidos bastante específicos que em
nada expressam as iniciativas levadas a efeito pelos anarquistas do período

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aqui considerado. Trato desta questão na minha tese de doutoramento citada


na nota anterior. Para um estudo de jornais quotidianos contemporâneo ver:
Sérgio Dayrell Porto (Org.). O Jornal: da forma ao sentido. 2ª ed. Tradução de
Sérgio Grossi Porto. Brasília, Universidade de Brasília, 2002. (Coleção Comu-
nicação, v. 2).
4
Pierre Lévy elaborou reflexões em torno de processos de elaboração de sabe-
res coletivos. Apesar de haver alguns aspectos importantes diferenciando sua
abordagem em relação aos experimentos dos anarquistas, suas reflexões são
relevantes para se pensar processos grupais de elaboração do conhecimento.
Ver: Pierre Lévy. A inteligência coletiva. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. 3ª ed.
São Paulo, Loyola, 2000.
5
Silvio Gallo apresenta a pedagogia anarquista como aberta a experimenta-
ções, portanto, instaurando processos com consideráveis graus de risco. Ver:
Silvio Gallo. Pedagogia do risco: experiências anarquistas em educação. Campinas, Pa-
pirus, 1995. (Coleção Magistério: Formação e trabalho pedagógico).
6
A reflexão sobre educação como processo diluindo escola e vida está colo-
cada de forma visceral no texto de Stirner em que ele reflete sobre a escola
civilizadora, isto é, adestradora (estatal, confessional ou laica). Neste mesmo
opúsculo Stirner apresenta a indisciplina da criança não como desvio, patolo-
gia ou anormalidade a ser alvo de procedimentos medicamentosos, de medidas
sócio-educativas nem corretivos similares. Para Stirner a indisciplina infantil é
indício saudável de vigor. Em seu único livro ele retoma estas ponderações
intensificando-as. Ver: Max Stirner. O Falso Princípio de Nossa Educação. Tradu-
ção de Plínio Augusto Coelho. São Paulo, Imaginário, 2001 e Max Stirner. O
Único e sua Propriedade. Tradução de João Barrento. Lisboa, Antígona, 2004.
7
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
8 Sobre este assunto ver: Guilherme C. Corrêa. Educação, comunicação e anarquia:
procedências da sociedade de controle no Brasil. São Paulo, Cortez, 2006. Sobre a
instauração de formas de aprimoramento da sociedade de controle ver: Edson
Passetti. Anarquismos e Sociedade de Controle. São Paulo, Cortez, 2003.
9
A antropofagia tem sido abordada de modo bastante elucidativo por antro-
pólogos. Ver, entre outros: Pierre Clastres. Crônicas dos índios Guayaki: o que
sabem os Ache, caçadores nômades do Paraguai. Tradução de Tânia Stolze Lima
e Janice Caiafa. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1995; Frank. Lestringant. O Canibal:
grandeza e decadência. Tradução de Mary Del Priore. Brasília, Universidade de
Brasília, 1997 e Claude Lévi-Strauss. Tristes Trópicos. Tradução de Rosa Freire
d’Aguiar. São Paulo, Cia das Letras, 1996. Dorothea V. Passetti. Canibal. Verve,
São Paulo, v. 6, p. 103-126, 2004.

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RESUMO
Este artigo apresenta reflexões sobre iniciativas educacionais
levadas a cabo por anarquistas no Brasil do início do século
XX. Proponho abordar as escolas anarquistas enquanto rea-
lização existencial de subjetividades liberadas. Isto implica
numa abordagem que procura desnaturalizar a escola, consi-
derando-a como parte de um dinamismo sócio-histórico-cultural
mais amplo. As escolas anarquistas, da mesma maneira que
jornais, revistas, sindicatos, manifestações, greves e outras
atividades concretizadas, estabeleciam processos simultanea-
mente existencial, coletivo e subversivo. Desonerando linhas
de fronteiras estabelecidas pelos convencionalismos, as esco-
las anarquistas favoreciam a instauração de modalidades in-
disciplinadas de sociabilidades, subjetividades e associações.

Palavras-chave: escola, indisciplina, anarquistas.

ABSTRACT
This article presents reflections on the educational initiative
put into effect by anarchists in Brazil at the beginning of the
twentieth century. I intend to approach the anarchist schools
as an existential realization of liberated subjectivities. This
implies a focus which tries to denaturalize the school, consi-
dering it part of a wider socio-historical-cultural dynamism.
The anarchist schools, like newspapers, magazines, trade
unions, meetings, strikes and other activities, set up proces-
ses simultaneously existential, collective and subversive.
By exonerating border lines produced by conventionalisms,
the anarchist schools favored the establishment of unruly
modalities in sociabilities, subjectivities and associations.

Keywords:school, indiscipline, anarchists.

Recebido para publicação em 15 de maio de 2008. Con-


firmado em 25 de agosto de 2008.

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joão da mata*

Este artigo tem como objetivo apresentar o ma-


terialismo hedonista de Michel Onfray e pensar as
possibilidades de uma ética hedonista na atualidade
articulada com o pensamento e a ação anarquista no
cotidiano. Sua obra propõe um cruzamento entre a éti-
ca e a estética da existência, firmando-se como um pensa-
mento ético singular, onde o Bem é moldado por valores
estéticos, que tem como propósito dar à vida um senti-
do libertário e jubiloso.
Michel Onfray é um filósofo francês cuja obra ainda
encontra-se em fase de construção e desenvolvimento.
Doutor em Filosofia, autor consagrado em seu país e
atualmente coordenador da Universidade Popular de
Caen,1 no norte da França, cuja intenção é realizar uma
universidade aberta e libertária, com aulas gratuitas
de filosofia, artes, política, estética e outros temas. Ao
definir-se como um “nietzschiano de esquerda”, Onfray
inspira-se em Georges Palante, um dos primeiros lei-
tores de Nietzsche na França que assumiu uma posi-
ção de esquerda ainda no período pré-Segunda Guerra

* João da Mata é somaterapeuta, psicólogo, Mestre em Filosofia/UGF e Dou-


torando em Sociologia Econômica e das Organizações no ISEG/UTL. Mem-
bro do Coletivo Anarquista Brancaleone. Autor de A liberdade do corpo, ed.
Imaginário e Prazer e rebeldia – o materialismo de Michel Onfray, ed. Achiamé.

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Mundial. Depois dele, vieram Roger Caillois e Georges


Bataille, e por fim Foucault e Deleuze: gerações que, se-
gundo Onfray, leram Nietzsche com um posicionamen-
to de esquerda.
Influenciado também por pensadores libertários
como Gustave Blanqui e Max Stirner, Michel Onfray
propõe-se a pensar como se pode ser anarquista hoje
em dia: longe das máquinas revolucionárias, como os
partidos socialistas, por exemplo, que aspiravam à der-
rocada do Estado e à criação de uma sociedade ideal.
Em Política do Rebelde, Onfray interroga-se sobre isso,
quando pensa neste fim de milênio e início de um novo,
sobre o anarquismo e uma “filosofia libertária, levando
em consideração duas guerras mundiais, o holocausto
de milhões de judeus, os campos de concentração do
marxismo-leninismo, as metamorfoses do capitalismo
entre o liberalismo desgrenhado dos anos 70 e a globa-
lização dos anos 90 e, principalmente, o pós-Maio de
68.”2 Segundo o autor, para pensar o anarquismo hoje
é preciso atuar aqui e agora, libertariamente, na relação
consigo mesmo, com os demais e com o mundo. Esta
noção de vida libertária que o autor defende está pre-
sente em seu materialismo hedonista e é a proposta de
um anarquismo visceral, cotidiano, que se dê na esfera
da micro-sociedade, procurando combater as hierar-
quias que se estabeleçam enquanto jogos de poder.
Atualmente, além das aulas e seminários que orga-
niza em Caen, Michel Onfray dedica-se ao mais amplo
e ousado projeto de sua carreira: percorrer a história
da filosofia e buscar figuras que foram “esquecidas” na
história oficial, como afirma o autor. Com a intenção de
criar uma Contra-História da Filosofia,3 Onfray opõe-se
a uma filosofia idealista, espiritualista e ascética, em
favor de uma filosofia materialista, sensualista, atéia e
corporal. Nesta contra-história, Onfray traça uma ga-
leria de retratos intelectuais, na qual é referido, para
além de Demócrito; Diógenes, o cínico, e Lucrécio, os fi-
lósofos que têm sido frequentemente marginalizados. O

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materialismo hedonista segue esta trajetória à medida


que Onfray contrapõe-se abertamente ao ideal ascético
e ao platonismo. Seu pensamento não pode ser toma-
do como uma obra acabada, um sistema filosófico, pois
ainda está em construção. Talvez por isto, seja pos-
sível observar pontos em que o materialismo hedonista
não se sustente, deixando lacunas a serem preenchidas
com o próprio desenvolvimento de sua obra.
Pensar a ética hedonista, num mundo marcado cada
vez mais pelo consumo descartável e pelo prazer fácil e
imediato que o capitalismo pós-industrial tem produzi-
do é uma tarefa ousada a qual Michel Onfray se coloca.
Seu desafio está em estabelecer as vias que possibilitem
a superação do niilismo contemporâneo, o que torna
seu materialismo hedonista uma rica e atual resposta
às questões de nosso tempo. É possível traçar paralelos
entre a ética hedonista e uma postura anarquista sem
cair no lugar comum, que elegem o prazer e a rebeldia
como virtudes banais ou egoístas? Neste propósito, On-
fray tem reunido em seus estudos elementos para uma
moral hedonista que está em permanente articulação
com uma forma singular e libertária de atuação que ele
define como “o rebelde”. Esta noção está mais bem de-
finida em “A Política do Rebelde”, livro de vertente mais
política do autor. Onfray defende a rebeldia como uma
forma possível de ação libertária no presente através
de um devir revolucionário dos indivíduos. A partir dos
acontecimentos de Maio de 1968, Onfray vê o surgi-
mento de uma ruptura epistemológica capaz de dividir,
entre o velho e o novo, o homem e o humanismo de um
lado e o indivíduo soberano apto a governar-se do outro
lado. O surgimento de um ser singular e livre-pensador
é entendido por ele, como um incessante movimento de
transformação.
Ao utilizar a figura conceitual do Condottiere,4 am-
parado por uma interpretação peculiar e própria da fi-
losofia nietzschiana, Onfray lança mão de uma estética
existencial hedonista. Esta noção está esboçada na for-

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ma como o autor elege a elegância e o prazer como vir-


tudes para a elaboração do próprio estilo, que se dará
sob a elaboração da sua própria estátua, ou melhor di-
zendo, sob a confecção de uma escultura de si. Retirar
e extrair do objeto para alcançar no epicentro o autên-
tico da obra, é o papel do escultor que fará de sua vida
a matéria-prima de sua invenção. O Condottiere busca
esculpir sua própria estátua, dar seus contornos e for-
mas, na construção de uma vida artista que se dê no
cotidiano. Isto está esboçado na afirmação do autor so-
bre seu personagem conceitual: “O condottiere pratica
uma moral elevada e de afirmação, uma inocência, uma
audácia e uma vitalidade que transbordam. Sua ética
é também uma estética: às virtudes que amesquinham,
ele prefere a elegância e a cortesia, o estilo e a energia,
a grandeza e o trágico, a prodigalidade e a magnificên-
cia, o sublime e a eleição, o virtuosismo e o hedonismo
— uma autêntica teoria das paixões destinada a pro-
duzir uma bela individualidade, uma natureza artística
cujas aspirações seriam o heroísmo, ou a sanidade que
permite um mundo sem Deus, desesperadamente ateu,
esvaziado de tudo, exceto das potencialidades e das de-
cisões que o fazem expandir-se.”5 Esta arquitetura de
si, a fabricação de si mesmo como obra de arte será,
portanto, a ética defendida pelo filósofo, que buscará
extrair da estética da existência a estetização da vida. O
autor defende ainda, a criação de novos modos de vida
e de novas formas de agir, de pensar, de posicionar-
se, enfim, de constituir a singularidade no exercício da
diferença e na busca do prazer como elementos consti-
tuintes do materialismo hedonista.
É desta forma que, segundo Onfray, o Condottiere
procura estabelecer uma postura libertária e hedonis-
ta em relação à existência. Longe da imagem que his-
toricamente marcou a figura do Condottiere como um
mercenário, o autor o concebe como um condutor de
sua própria existência, um artífice na habilidade de se
conduzir, numa tentativa de se realizar como homem
completo: um soldado guerreiro na construção de seus

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caminhos. Esta criação de rotas construídas a partir


da elegância e do prazer estará baseada na articulação
com os objetivos e interesses do outro. Sua busca, por-
tanto, está apoiada numa aritmética de prazeres que
leve em consideração um constante cálculo entre o eu
e o outro, assim como possibilite construir uma bela in-
dividualidade praticada no exercício da vida cotidiana.
Sua idéia fixa lugar numa estética da existência que
reverencia o exercício do prazer como fio condutor para
esculpir a própria vida, com ares artísticos libertários.
O materialismo hedonista defendido por Michel Onfray
busca nos atos conscientes o exercício do prazer en-
quanto valor moral. Para isto, o autor procura na his-
tória da filosofia, em personagens como os cirenaicos,
os cínicos, os pensadores do Livre-Espírito e o Marquês
de Sade, entre outros, os elementos que possam com-
por uma moral que não se funda apenas nos prazeres
sensíveis ou imediatos, mas nos prazeres mais amplos,
onde o Bem como afirmamos está baseado em valores
estéticos e artísticos. De todas estas correntes filosófi-
cas, a escola cínica será especialmente importante para
Onfray. O autor identifica seu personagem com Diógenes
e seu temperamento para o desprezo das convenções
sociais estabelecidas como verdades. Segundo ele, o
Condottiere apresenta atitudes resgatadas do cinismo
grego, quando coloca: “O filósofo cínico carrega em si
uma incurável vontade de dizer não, de desmascarar o
conformismo através de hábitos. O cínico é a figura em-
blemática do autêntico filósofo definido como ‘a consci-
ência crítica da (sua) época’.”6 Ao defender esta atitude,
Onfray quer valorizar o hedonista como aquele que ten-
ta desfazer em sua luta cotidiana toda uma tradição de
passividade, abandono do corpo e valorização do sagra-
do. O autor, assim, elabora uma moral resolutamente
ligada à exaltação da vida enquanto excesso transbor-
dante, onde o júbilo e a elegância sejam os guias daque-
les que buscam esculpir sua própria existência.

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O materialismo hedonista de Michel Onfray defende


uma filosofia de valorização do corpo por inteiro. Des-
ta forma, os cinco sentidos são recuperados a serviço
dos prazeres e elevados à condição de uma pragmáti-
ca contra uma tradição de abandono do corpo no pen-
samento ocidental. Segundo Onfray, o platonismo foi
quem primeiro legitimou o dualismo: a submissão da
carne ao ideal de uma forma universal. O inteligível e o
espiritual como visão idealista, desprezam o sensível, o
corpo e o prazer. Depois, a tradição judaico-cristã, onde
o processo de evangelização não poupou a apologia da
renúncia de qualquer utilização sensual do corpo, visto
como algo impuro e desprezível.
Ao adotar a interpretação nietzschiana de que “o
cristianismo é o platonismo para o povo”, o autor pro-
cura examinar a influência da tradição platônica e seu
dualismo sobre a moral cristã, onde a alma ganha es-
paço sobre o sensível, e com isso, se estabelece um pro-
cesso de distanciamento da realidade. Segundo Onfray,
esta moral manifesta-se por um abandono do corpo,
do sensível, do real, em favor da alma, das idéias, de
um além-mundo. Michel Onfray identifica esta “trans-
missão” como a principal responsável pela negação do
corpo e do prazer. Sua crítica volta-se especialmente
contra a moral cristã, considerada por ele como “uma
máquina de fazer anjos”7, na medida em que torna o
prazer corporal desprovido de intensidade e legitima-
do pela Igreja apenas na esfera do casamento monogâ-
mico. Pensar, portanto, uma ética voltada à eleição do
prazer significa confrontar-se com esta tradição, assim
como voltar-se para uma filosofia do corpo que bus-
que combater este dualismo. Em seus estudos, Onfray
concentra boa parte de suas críticas às religiões, defen-
dendo a noção de incompatibilidade entre a existência
de Deus e a liberdade. O materialismo hedonista assu-
me assim, uma postura radicalmente atéia colocando-
se contra o espírito religioso que, segundo ele, busca o
laço que vincula e prende pela piedade, pela caridade e
pela submissão.

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Onfray elabora a noção do hedonista como um ser


libertário que encontra no outro, elementos que se con-
jugam aos seus, para o exercício da diferença e da au-
tonomia. Quer também combater a noção que associa
o hedonismo a condições egoístas e banais, para valo-
rizar o exercício da singularidade e da individualidade,
apenas possível de realizar-se na interação com o outro.
Seguindo sua argumentação, afirma que o prazer indi-
vidual só tem sentido de constituir-se no intercâmbio e
na troca que se faz presente na existência, num jogo de
permanente busca de simetria. Está aí um importante
elemento de tensão no pensamento de Onfray, quan-
do defende o individualismo e ao mesmo tempo busca
conjugá-lo à alteridade. Segundo ele, estabelecer uma
possibilidade de gozo sem prejuízo ao outro é uma das
questões que o materialismo hedonista pretende dis-
cutir. A amizade, dessa forma, é o caminho encontrado
pelo autor para uma relação que se pretende horizontal,
combatendo desigualdades e compartilhando prazeres;
e entendendo que é através do outro, e com o outro, que
cada um extrai sua própria experiência. Quando esta
regra de troca e equilíbrio se desfaz ou se desequilibra,
segundo Onfray, ocorre falta de simetria e falta de ética,
o que leva conseqüentemente para uma tendência ego-
cêntrica. Assim, na relação com o outro, o materialismo
hedonista irá propor um cálculo dos prazeres, buscan-
do estabelecer uma troca em busca de afinidades eleti-
vas. No alto das possibilidades das virtudes, a amizade
é eleita pelo autor como a mais soberana e afirmativa
das formas de relação com o outro. Ela é eletiva, na me-
dida em que se dá por livre associação, num encontro
que passa ao lado do jogo social. A amizade instala-se
numa comunidade de pessoas concordantes por esco-
lha mútua, sempre provida de uma carga de afetivida-
de. Fundada na cumplicidade, ela tende a tornar-se a
justa medida do exercício de uma vida libertária sob a
perspectiva do materialismo hedonista.
Michel Onfray defende uma prática existencial que
se dê na imanência, constituída de uma ética hedonista

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e capaz de construir uma postura afirmativa e libertária


diante da vida. Seu materialismo hedonista defende a
imagem do guerreiro, guiado pela vontade de criar sua
existência trágica e livre. Para o autor, a atitude anár-
quica do Condottiere, o levará a criar seus caminhos
sem que necessite hierarquizar sua vontade sobre qual-
quer outro, assim como não aceitará ser subalterniza-
do. O materialismo hedonista, segundo Onfray, é antes
de mais nada uma aposta numa ética afirmativa: “O
hedonista dirá Sim à vida, ao júbilo, ao gozo, ao prazer,
à felicidade, à alegria, à satisfação, ao agradável. Depois
dirá Não a tudo o que entrave sua positividade escolhi-
da. Não ao sofrimento, à dor, à renúncia, à frustração,
ao desagradável. A linha reta será o caminho que leva
aos meios de realizar a afirmação: a energia, a tensão, a
força, a vontade, em suma, o consentimento à vida e à
saúde que percorre o corpo.”8
Para Onfray, o hedonista criará suas rotas, por vezes
solitárias, por vezes compartilhadas junto a outros. No
entanto, sua atenção está dirigida a estabelecer espa-
ços libertários, capazes de criar relações horizontais e
baseadas em valores que estejam distantes da moral
do cristianismo. Radicalmente ateu, inscreve-se no real
diante de si, negando qualquer forma de transcendên-
cia. Também materialista o que lhe importa é a matéria
percorrida por fluxos de energias e forças. Seu desígnio
é confrontar-se com o que diminui sua potência e tenta
enfraquecer sua luta, para enfim, encontrar seu cami-
nho.
O materialismo hedonista coloca-se em defesa de
uma justa medida, lançando-se no combate às formas
de poder que pretendam formar relações verticais. É as-
sim que Michel Onfray assume uma postura militante
por uma arte de viver construída pela filosofia e pela
interpretação do mundo através da razão e da reflexão
e também por um ateísmo sólido e engajado, distante
de todo niilismo. Sua obra procura deixar em evidên-
cia um materialismo alegre, libertário, sensual e feliz.

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O encontro da moral hedonista com o anarquismo quer


ampliar como vimos, esta vontade de viver o prazer,
em suas mais variadas formas, de maneira completa
e intensa, sem o prejuízo da autonomia de nenhuma
das partes envolvidas na relação. O cruzamento entre
o hedonismo e a estética da existência como forma de
esculpir o próprio estilo, encontra na atitude libertá-
ria uma maneira de atuar horizontalmente, rompendo
hierarquias e imposições de caprichos egoístas. Esta
atualização do pensamento anarquista proposta pelo
filósofo é a forma encontrada por ele para contrapor-se
aos micro-fascismos do cotidiano. A amizade como afir-
mamos é eleita como princípio virtuoso de uma relação
hedonista, inscrevendo-se no campo das sociabilidades
libertárias e distantes dos dogmas universais; projeto
ousado que mostra como o autor pretende estabelecer
sua crítica e sua postura diante da atualidade.
Por ser uma obra em desenvolvimento, ainda há la-
cunas na proposta filosófica de Michel Onfray, no en-
tanto, esta tem apresentado uma relevância cada vez
maior na filosofia francesa contemporânea, seguindo a
herança e os caminhos abertos por Nietzsche. O pro-
pósito aqui é apresentá-lo como pensador atual, capaz
de fornecer respostas originais às questões de nosso
tempo. Como afirmamos seu pensamento ainda requer
amadurecimento e densidade para poder sustentar-se
como um sistema filosófico. Seu desafio, assim, será
constituir este aprimoramento, para que o materialis-
mo hedonista possa de fato estabelecer as condições
necessárias para o enfrentamento ao niilismo.

Notas:
1
Em http://perso.orange.fr/michel.onfray/accueilup.htm, qualquer pessoa
pode ter acesso ao programa das aulas gratuitas que são oferecidas na Univer-
sidade Popular dirigida por Michel Onfray. O filósofo conta com a participa-
ção de vários outros pensadores, envolvidos num projeto em torno de uma
pedagogia libertária.

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2
Michel Onfray. A Política do rebelde: tratado de resistência e insubmissão. Tradução
de Mauro Pinheiro. Rio de Janeiro, Rocco, 2001, p. 14.
3
Estão publicados dois volumes de uma coleção que pretende atingir ao todo
seis livros. Foram lançados na França em 2006 os livros: Les sagesses antiques - de
Leucippe à Diogène d’Oenanda, éd. Grasset, fév. 2006 e Le christianisme hédoniste - de
Simon le magicien à Montaigne, éd. Grasset, fév. 2006.
4
Os condottieri (no singular, condottiere – do italiano “comandante”, derivado por
sua vez do latim conducere, “conduzir”) eram líderes mercenários empregados
pelas cidades-estado italianas durante a Idade Média (principalmente nos sécu-
los XIV e XV). Surgiram a partir da necessidade de defesa das cidades italianas,
em constante rivalidade. Michel Onfray se utiliza da descrição do Condottiere
apresentada por André Suarès, Le Voyage du Condottiere, onde o autor descreve
com elegância e destreza a obra de Verrochio, autor da escultura de Barto-
lomeu Colleoni, importante Condottiere em Veneza. O conceito de Condottiere
aqui utilizado deve-se essencialmente a essa visão estética e não a dimensão
histórica dos chefes de guerra mercenários da Itália renascentistas.
5
Michel Onfray. A escultura de si: a moral estética. Tradução de Mauro Pinheiro.
Rio de Janeiro, Rocco, 1995, p. 19.
6
Michel Onfray. O ventre dos filósofos. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de
Janeiro, Rocco, 1990, p. 29.
7
Michel Onfray. A arte de ter prazer: por um materialismo hedonista. Tradução de
Mônica Stahel. São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 161.
8
Michel Onfray, 1999, op. cit., p. 240.

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RESUMO
O objetivo deste texto é discutir o materialismo hedonista pre-
sente na obra de Michel Onfray. Filósofo francês contemporâ-
neo, Onfray estabelece sua proposta ética baseada em ele-
mentos que entende o bem como sendo moldado por valores
estéticos. Apoiando-se na figura do seu personagem conceitu-
al, o Condottiere, Onfray parte para a elaboração de um projeto
filosófico singular, no qual adota a elegância e o prazer como
bússolas em direção à estética da existência de forma afirma-
tiva e jubilosa. Partindo dos caminhos traçados por Onfray ao
encontro do materialismo e da crítica ao ideal ascético, será
abordada sua proposta hedonista no presente. Ao situar-se
como um “nietzschiano de esquerda”, o autor busca a excelên-
cia, a grandeza e a aceitação do caráter trágico da existência
como forma de superação do niilismo contemporâneo, através
do exercício da singularidade e da eleição hedonista.
Palavras-chave: materialismo hedonista, ética, estética da
existência.
ABSTRACT
The aim of this text is to debate the hedonist materialism found
in the work of Michael Onfray. The contemporary French philo-
sopher draws his ethical subject based on elements that take
“The Goodness” as something built up by ethical values. Adop-
ting the ideal figure of the Condottiere, as the main character
on his work, Onfray has begun the development of a particular
philosophical project, where the elegance and the pleasure are
the compasses to reach and understand the aesthetic of exis-
tence in an affirmative and jubilant way. Following the steps
of Onfray in the direction of the materialism and the criticism of
the asceticism as an ideal, his hedonist proposal is addressed
in the present time. As a “Left wing Nietschian”, the author
looks for the excellence, the greatness and the acceptance of
the tragic character of existence as an instrument to overcome
the contemporary nihilism through the exercise of singularity
and the choice of hedonism.

Keywords: materialism hedonist, ethic, aesthetic of existence.

Recebido para publicação em 21 de fevereiro de 2008.


Confirmado em 23 de junho de 2008.

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O esporte como miséria e espetáculo na era da globalização

o esporte como miséria e espetáulo na era


da globalização

josé maria carvalho ferreira*

Desde os tempos imemoriais que o homem apren-


deu a brincar por meio do jogo como atividade humana
lúdica. Era e pode ser uma atividade não separada da
vida quotidiana dos indivíduos sem a necessidade de
obediência e regulamentação do mercado. A evolução
do ser humano revelou-se, entretanto, contrária a essa
probabilidade histórica.
Vários fatores estão na origem dessa evolução. Al-
guns autores ou paradigmas científicos que pugnam
por modelos de sociedade contrastantes opinam no
sentido em que as causas e os efeitos dessa evolução
derivam, fundamentalmente, do Estado e da sociedade
capitalista. Outros, opinando no sentido positivista e
funcionalista, acham que o esporte não é mais de que
uma resultante do progresso e da razão. Por fim, alguns
pensam e são da opinião que a matriz física, mental e
psíquica de cada indivíduo explica as sínteses coletivas
da sua integração e normalização em qualquer espécie
de ordem social, econômica, política, e cultural: Esta-
do, sociedade, família, comunidade, religião, mercado,

* Professor titular na Universidade Técnica de Lisboa e editor da revista Utopia.

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2008

esporte, ou qualquer outra atividade mercantil que pos-


samos imaginar.
Não cabe neste texto, nem é essa a minha intenção,
fazer a história do esporte das sociedades contempo-
râneas. Importa, isso sim, perceber alguns dos fatores
ou das razões que nos possam elucidar sobre o atual
estágio compulsivo de consumo alienante do esporte e,
por outro lado, enquanto fenômeno de compra e venda
do corpo no contexto da globalização e das TIC (Tecno-
logias de Informação e de Comunicação), superando,
em algumas regiões do globo, os valores monetários do
mercado do sexo.
Deste modo, em primeiro lugar, debruçar-me-ei so-
bre a indústria do esporte no quadro da racionalidade
instrumental do capitalismo, tendo presente os efeitos
estruturantes das TIC e da globalização. Em segundo
lugar, procurarei indagar as razões, os problemas e os
desafios que se apresentam ao ser humano que sobrevi-
ve como um mero instrumento ou um objeto que sente,
pensa e age, exclusivamente, em função do consumo
de bens e serviços mercantis. Finalmente, em função
da análise precedente, importa perceber as tendências
atuais da indústria do esporte nas sociedades contem-
porâneas.

1. TIC e globalização: da venda do corpo à venda da


mente e da psique

Estamos longe dos tempos áureos dos “trinta glorio-


sos anos do capitalismo” (1945-1975). Era o tempo da
máxima potenciação da produção, distribuição, troca e
consumo de mercadorias resultantes centradas na ati-
vidade econômica do setor industrial: indústria quími-
ca, transportes, siderurgia, mecânica, têxtil, eletrônica,
indústria automobilística, cimento, ferro e vidro, petró-
leo e indústria agroalimentar. Este fato, não invalida, de
modo algum, que os países capitalistas emergentes com

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O esporte como miséria e espetáculo na era da globalização

desenvolvimento tardio, como são os casos da China,


Brasil e alguns países asiáticos, evoluam também num
processo idêntico. Só que, nas circunstâncias atuais,
a estrutura dos custos de produção, o processo de in-
dustrialização e de urbanização nesses países, sofre as
vicissitudes estruturantes das TIC e da globalização.
Na realidade, as TIC (informática, microelectrônica,
robótica, telemática, biociência, tecnociência, biotec-
nologias, nanotecnologias, Internet, páginas Web, au-
dio-visual, “mídia”, ciberespaço), antes de mais nada,
integram nos seus mecanismos internos um imenso
trabalho vivo que pode ser vivificado, de forma automá-
tica, a todo o momento, pelo fator de produção no espa-
ço-tempo do processo de trabalho e, por outro lado, no
espaço-tempo da sua vida quotidiana. As TIC propiciam
assim que haja coincidência do espaço-tempo virtual
com o espaço-tempo real da produção, distribuição,
consumo e troca de bens e serviços analítico-simbólicos.
Informação, conhecimento e energia são simultanea-
mente inputs e outputs. São matéria prima básica, cuja
causalidades e efeitos são intrínsecos à condição-fun-
ção de cada ser humano. Não estamos mais pensando
em matérias primas (madeira, ferro, carvão, petróleo,
linho, algodão, cereais, cimento, vidro, etc...) cuja na-
tureza material é exterior a essa condição-função. As
TIC são uma probabilidade inaudita de reproduzir e
criar uma informação, conhecimento e energia humana
gigantescas. Essa condição-função é basicamente um
sistema aberto. Por meio dos seus órgãos sensoriais,
com especial incidência para a visão e a audição, qual-
quer fator de produção trabalho é levado a codificar e
a descodificar essas linguagens de forma atempada e
adequada. É crucial categorizar a informação, o conhe-
cimento e a energia que está diretamente reportada a
cada espaço-tempo de execução de tarefas e funções
limitadas ao processo de produção, distribuição, troca
e consumo de bens e serviços analítico-simbólicos: sig-
nos, significados e imagens.

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Desta função estruturante das TIC podemos, desde


já, extrair a seguinte ilação: não obstante continuarmos
a perceber a importância do setor industrial nas socie-
dades capitalistas menos desenvolvidas, esse fato não
impede que as TIC integrem a atual estrutura dos cus-
tos de produção referido ao setor de forma hegemônica.
Daqui concluímos que as TIC no quadro da racionalida-
de instrumental significam uma integração gigantesca
da ciência e da técnica, cuja consequência fundamental
foi desqualificar e prescindir dos perfis sócio-profissionais
básicos da segunda revolução industrial: fresador, tor-
neiro, mecânico, serralheiro, eletricista, marceneiro, te-
celão.
Uma das principais consequências desta mudan-
ça foi a substituição da energia deste operariado pela
informação e conhecimento humano que foi objeto de
integração e de automação pelas TIC. Desse modo, a
energia do fator de produção trabalho que executava as
tarefas no processo de produção de mercadorias resul-
tava da perícia e a inteligibilidade do saber-fazer desse
operariado. Como consequência, o espaço-tempo con-
finado aos gestos, movimentos e pausas que emergiam
do processo de trabalho e a organização científica do
trabalho taylorista e fordista foi extinto quase em sua
totalidade.
Se refletirmos sobre as diferenças da indústria do
esporte que existia no espaço-tempo nos “trinta glo-
riosos anos do capitalismo” com o espaço-tempo atual
das TIC, verificamos que há diferenças substantivas in-
questionáveis.
Em primeiro lugar, devemos ao processo de sociali-
zação da indústria do esporte, tendo presente que está
integrado numa atividade econômica que implica sem-
pre, em qualquer circunstância, um espaço-tempo de
produção, distribuição, troca e consumo de uma merca-
doria denominada esporte. No caso específico da indús-
tria do esporte, ainda que possamos analisar os casos
do atletismo, basquetebol, handebol, ciclismo, voleibol,

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O esporte como miséria e espetáculo na era da globalização

tênis, golfe, automobilismo, etc., o futebol é, indiscuti-


velmente, um fenômeno de massa que espelha os efei-
tos estruturantes das TIC e da globalização. No período
de 1945-1975, ainda que o espaço-tempo da atividade
econômica da indústria do esporte já fosse acompanha-
da por um processo de socialização resultante da tele-
visão, a sua repercussão efetiva ao nível global das di-
ferentes sociedades contemporâneas era infinitamente
menor, sendo na grande maioria dos casos esse proces-
so assumido pela rádio e imprensa escrita. Atualmente,
o processo de socialização do futebol pela televisão é
um fenômeno global. As TIC, por sua vez, potenciali-
zam enormemente os efeitos midiáticos da televisão por
intermédio da produção, distribuição, troca e consumo
de uma pluralidade quase infinita de uma série de bens
e serviços identificados com a indústria do futebol. São,
na sua essência, bens e serviços analítico-simbólicos,
que envolvem todos os aspectos da vida quotidiana dos
indivíduos relativos às atividades lúdicas, profissionais
e de lazer. As linguagens Web, assim como a Internet
e a informática são manifestações inequívocas do cres-
cimento gigantesco da indústria do futebol e de outros
esportes.
Em segundo lugar, comparativamente ao período
dos “trinta gloriosos anos do capitalismo”, os atores
envolvidos na indústria do esporte, e mais especifica-
mente, no futebol assumem funções e tarefas cada vez
mais complexas e abstratas devido às contingências e
efeitos da globalização e das TIC. De fato, se pensarmos
nos tempos áureos de Pelé, Kopa, Eusébio, Garrincha,
Puskas, ou outro jogador de futebol de renome mundial,
como acontece com Cristiano Ronaldo, Figo, Beckem,
Ronaldinho Gaúcho, Ronaldo, Messi e outras vedetes
mundiais, há um abismo quase infinito que os separa.
A natureza e o grau de capitalização envolvida nestes
jogadores é profunda e extensa. Atualmente, todos os
jogadores de futebol que já são ou aspiram a ser vedetes
do mesmo gabarito fazem parte da indústria de futebol
que atingiu níveis de concorrência e competição mun-

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dial inauditas. Para os jogadores de futebol atuais ou


potenciais o peso da indústria de serviços de esporte,
a montante e a jusante do futebol, assume proporções
gigantescas: saúde, educação, televisão, imprensa, pu-
blicidade, estética, moda, beleza, sexo, turismo, lazer,
etc. A vida quotidiana dos jogadores de futebol, assim
como a de todos aqueles cujas profissões estão ligadas
à indústria do futebol, com relação a sua produção, dis-
tribuição, troca e consumo, nos apontam para a imensa
diversidade de funções e tarefas, para as qualificações
e competências, para os salários e rendimentos, para o
poder e prestígio, para o crime e corrupção, violência,
miséria e alienação que envolve todo esse processo.
Em terceiro lugar, o futebol, diferentemente do golfe
e do tênis, enquanto fenômeno de estratificação e mo-
bilidade social, tem a sua origem no operariado do final
do século XIX nas sociedades que já tinham iniciado o
seu processo de industrialização e de urbanização. Até
a Segunda Guerra Mundial o futebol era uma indústria
incipiente. No período em que o processo de industria-
lização e de urbanização das sociedades atingiu o apo-
geu (1945-1975), a indústria do futebol desenvolveu-se
bastante, mas não era o único caminho de mobilidade
social na escala de estratificação social do sistema ca-
pitalista. No contexto sócio-histórico do taylorismo e do
fordismo atingiu-se o pleno emprego, como ainda as hi-
póteses, de adquirir novas competências e qualificações,
cujas funções e tarefas obrigavam mais ao dispêndio de
energia física de que informação e conhecimento.
Hoje, se pensarmos nos milhares de milhões de euros
ou de dólares envolvidos no sistema financeiro mundial,
em termos de lucros, propriedade, investimentos, com-
pra e venda de ações, fusões e aquisições de jogadores
e clubes esportivos, deduzimos da existência de tarefas
e funções bastante distintas que obrigam à existência
de competências e qualificações em que o conhecimen-
to e a informação exigidas se sobrepõem drasticamente
à energia empregada pelos jogadores nos estádios de

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O esporte como miséria e espetáculo na era da globalização

futebol. Por outro lado, como já dissemos, as contin-


gências das TIC e da globalização ao evoluírem no mes-
mo sentido, geram o desemprego, a desqualificação e
a precariedade da vinculação contratual das massas
trabalhadoras que estão inseridas nas atividades eco-
nômicas do setor industrial, agrícola e de serviços, cuja
estrutura de custos de produção prima pela utilização
de matérias primas baseadas na energia física do fator
de produção trabalho, em detrimento da informação e
do conhecimento que, hipoteticamente, possua. Resul-
tado: assiste-se à emergência de uma economia infor-
mal atravessada pela pobreza, miséria, crime e violên-
cia. Para todos os pobres e miseráveis do mundo, assim
como para aqueles que procuram ou têm emprego, a
indústria do futebol é uma miríade que estrutura um
imaginário individual e coletivo de mobilidade e ascen-
são social positiva na atual crise do fator de produção
trabalho no contexto da racionalidade instrumental do
capitalismo.
Atualmente, no caso específico dos jogadores de fu-
tebol que auferem rendimentos fabulosos na União Eu-
ropéia, e em outros continentes, a indústria de futebol
exige deles a máxima inteligência intuitiva e o máximo
esforço físico. Para ascenderem ao topo da estratifica-
ção social necessitam de informação e conhecimento
que não têm, vendo-se, por essa razão, constrangidos
a comprar esses serviços da indústria de futebol. Face
à natureza da crise que atravessamos, grande parte
das famílias que mergulharam na pobreza e na miséria
tentam a sua salvação investindo no futebol, levando
os seus filhos, desde pequenos, para escolas ou clu-
bes vocacionados para esse efeito. No atual contexto de
desemprego e precariedade de vinculação contratual
não são só os grupos sociais desfavorecidos que atuam
desse modo. Os estratos sociais mais favorecidos, como
são os casos da pequena e a média burguesia, para não
falar da alta burguesia, embora atuem de forma menos
explícita, também tentam ascender no mesmo sentido
com os seus filhos, sobretudo se estes não possuem a

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informação e o conhecimento que lhes permitam obter


as competências e as qualificações exigidas pelo mer-
cado global.

2. O consumo do esporte, como fenômeno da misé-


ria e alienação humana

Para quem trabalha mais diretamente na indús-


tria do esporte e mais concretamente do futebol, para
além dos jogadores, treinadores, preparadores físicos,
médicos, roupeiros, gandula, dirigentes esportivos, há
também que levar-se em contaaqueles que funcionam
a montante e a jusante dessa indústria: empresários,
comerciantes, sociólogos, psicólogos, professores, eco-
nomistas, analistas financeiros, contabilistas, gestores,
jornalistas, arquitetos, engenheiros, programadores,
analistas e operadores informáticos, pedreiros, jardi-
neiros, padres, políticos, etc. Se juntarmos a estes a
panóplia de assessores ligados às idiossincrasias cog-
nitivas e emocionais dos futebolistas, as competências
e as qualificações requeridas abrangem outros grupos
sócio-profissionais que foram referidos.
Pela via dos grupos sócio-profissionais que traba-
lham diretamente e indiretamente na indústria do fu-
tebol, apercebemo-nos das tipologias qualitativas e
quantitativas de informação, energia e conhecimento
humano que integram a matéria prima e a sua con-
seqüente transformação em serviços esportivos. Este
processo é simultaneamente um processo de trabalho,
no qual milhares de milhões de seres humanos estão
envolvidos, sobretudo se focarmos a centralidade do fa-
tor de produção trabalho como ator de produção, dis-
tribuição, troca e consumo de bens e serviços esporti-
vos que envolvem informação, energia e conhecimento
humano.
Quando focamos especificamente o ato de consu-
mo da indústria do futebol pensamos no planeta Terra

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O esporte como miséria e espetáculo na era da globalização

como um todo e como probabilidade potencial de 6,5


bilhões de consumidores da indústria de serviços de
esporte. Todavia, se já focamos que são serviços imate-
riais de características analítico-simbólicas, o espaço-
tempo da produção, distribuição, troca e consumo por
meio das TIC e da sua conseqüente padronização es-
paço-temporal aos níveis local, regional e mundial só é
possível quando há a coincidência do espaço-tempo vir-
tual com o espaço-tempo real. Assim sendo, ver e con-
sumir um jogo de futebol diretamente num estádio de
futebol, cada indivíduo que assiste a esse espectáculo é
uma entidade concreta, porque está presente em situ-
ação de co-presença física e de interconhecimento com
o espaço-tempo real do jogo de futebol que presencia e
consome. Nestas condições, na minha opinião, estamos
perante as fronteiras espaciais e temporais bem defini-
da no que toca o consumo de serviços da indústria do
futebol e do esporte em geral.
Não podemos utilizar este mesmo raciocínio quando
vemos o futebol pela televisão, das nanotecnologias, das
linguagens Web ou da Internet. Sendo todos nós, em úl-
tima instância, consumidores do futebol, se olharmos
bem para a energia, conhecimento e informação que
despendemos durante os processos de interação que
mantemos com a televisão, nanotecnologias, lingua-
gens Web e Internet, nos perceberemos, ainda que in-
diretamente, participantes no espaço-tempo confinado
à produção, distribuição e troca de futebol pela via das
contingências das TIC e da globalização.
Assistindo a um jogo de futebol do Campeonato Eu-
ropeu atualmente em curso em quaisquer dessas mo-
dalidades, eu sou um ator singular abstrato e complexo
que permite a socialização efetiva e atempada de um
jogo de futebol entre Portugal e a Turquia. Nos nossos
dias, essa realidade tornou-se possível, na medida estri-
ta em que eu como espectador categorizei a informação,
o conhecimento e energia da cabeçada ou do pontapé
na bola do jogador que marcou gol através da coinci-

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dência do espaço-tempo real com o espaço-tempo virtu-


al. Nesse segundo ou minuto em que decorreu a jogada
completa que deu origem ao gol. Fui eu que socializei
por meio dos meus órgãos sensoriais a produção, distri-
buição, troca e consumo desse serviço analítico simbó-
lico. Quando manipulo os mecanismos, descodifico ou
codifico as linguagens das TIC, sou eu que intervenho
na produção, distribuição, troca e consumo do futebol.
Se discernimos sobre serviços da indústria de ser-
viços esportivos centrados no futebol, o imaterial e o
analítico-simbólico do jogo, do lúdico, do lazer e da pro-
fissão leva-nos para o mundo do profano religioso, dos
valores, da moral e das ideologias políticas. A raciona-
lidade instrumental do capitalismo para que haja efici-
ência máxima nos diferentes espaços-tempos da pro-
dução, distribuição, troca e consumo de bens e serviços
de esporte necessita de atores altamente compulsivos e
competitivos. A partir do momento em que a ideologia
e os valores associados à indústria do futebol prevale-
cem como a hipótese de privilégios e enriquecimento,
como qualquer indivíduo, sem exceção, que acompanhe
os ditames do fator produção trabalho quer ser o maior
futebolista, porque só assim pode ter trabalho, empre-
go, salário e, logicamente, consumir objetos de forma
exponencial. Estes são os atores que funcionam como
os proletários básicos da indústria do futebol, mas são
provavelmente os que consomem bens e serviços de ou-
tras atividades econômicas.
Aqueles que estão no desemprego ou em vinculação
contratual precária, não têm qualificações ou compe-
tências para ser jogadores de futebol são meros espec-
tadores e consumidores da mercadoria futebol. Não ten-
do vocação ou probabilidade de ser jogador de futebol
efetivo e eficiente, é um homem frustrado e um vencido
que se projeta nos valores da pátria, do clube e do joga-
dor que simboliza as figuras emblemáticas dos heróis e
dos deuses terrestres. Sendo pobre, levando uma vida

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O esporte como miséria e espetáculo na era da globalização

sem sentido, cheio de frustrações, entrega-se compulsi-


va e apaixonadamente aos deuses e heróis terrenos.
De semana a semana discute os resultados e as vi-
vências de cada jogo, em seguida preocupa-se sobre os
resultados possíveis dos próximos jogos. Por outro lado,
informa-se sobre quanto ganha, o que veste e calça o
seu jogador preferido. Sabe tudo sobre a família, a ori-
gem social, as capacidades técnicas de cada jogador e
treinador. Enfim, como acontece atualmente, assiste de
forma compulsiva ao consumo do espectáculo midiático
e miserável dos “mídias” da pátria portuguesa jogando
futebol. Viaja, mobiliza-se, motiva-se, chora de raiva e
alegria, grita “heróis do mar, contra os canhões mar-
char”.
Entretanto, essa massa alienante e atomizada que
só sobrevive, sabe e luta para consumir objetos de di-
ferente qualidade e quantidade, não sabe nada sobre a
sua vida correlacionada com as contingências das TIC
e da globalização, naquilo que concerne ao presente e
ao futuro das suas qualificações e competências que
lhes permite ter ou não trabalho, emprego, salário e
rendimento no quadro da racionalidade instrumental
do capitalismo.
Não sabendo alimentar o cérebro, mas quase só o
corpo, resta-lhe vegetar e alienar-se com espectáculo
midiático do futebol. Diferente daqueles que acreditam
em qualquer religião, os rituais, espectáculos e sacri-
fícios associados à indústria do futebol implicam que
a generalidade da massa de espectadores desse espor-
te sejam não mais que meros escravos compulsivos de
consumo da reprodução da sua miséria e pobreza exis-
tencial.

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RESUMO
Esse texto tem como objetivo apontar alguns dos fatores que
possam elucidar sobre o atual estágio compulsivo de consu-
mo alienante do esporte, dando especial atenção ao futebol,
enquanto fenômeno de compra e venda do corpo no contexto
da globalização e das TIC (Tecnologias de Informação e de Co-
municação).
Palavras-chave: esporte, globalização, TIC.

ABSTRACT
The article intends to identify some points that will be able
to elucidate ideas from the alienating compulsive process of
sports consumerism nowadays, with special consideration on
soccer, as a buying and selling phenomena of the body in the
globalization context and ICT (Information and Communication
Technologies).
Keywords: sport, globalization, ICT.

Recebido para publicação em 25 de abril de 2008. Con-


firmado em 26 de maio de 2008.

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verve
Anarquismo e a política do ressentimento

anarquismo e a política do ressentimento

saul newman*

Antes direi no ouvido dos psicólogos,


supondo que desejem algum dia es-
tudar de perto o ressentimento: hoje
essa planta floresce de modo mais es-
plêndido entre os anarquistas...1

De todos os movimentos políticos do século dezenove


que Nietzsche despreza, do socialismo ao liberalismo,
ele reserva as palavras mais virulentas para os anar-
quistas. Ele os denomina “cães anarquistas” que pe-
rambulam pelas ruas da cultura européia, epítome da
“moral dos animais de rebanho” que caracteriza a mo-
derna política democrática.2 Nietzsche vê o anarquis-
mo como algo envenenado na raiz pela praga pestilenta
do ressentimento — a rancorosa política dos fracos e
patéticos, a moralidade dos escravos. Nietzsche está
aqui apenas expressando sua ira conservadora contra
os princípios políticos radicais, ou está diagnosticando
uma real enfermidade que tem infectado nosso imagi-
nário político radical? A despeito do óbvio preconceito

* Professor no Departamento de Política de Goldsmiths College, da Univer-


sidade Londres.

verve, 14: 145-178, 2008


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de Nietzsche em relação à política radical, este estu-


do se propõe a considerar seriamente sua acusação ao
anarquismo. Investiga a lógica perspicaz do ressenti-
mento em relação à política radical, particularmente o
anarquismo; busca desmascarar as pressões ocultas
do ressentimento no pensamento político maniqueísta
dos anarquistas clássicos como Bakunin, Kropotkin e
Proudhon. Isso não é feito com a intenção de eliminar o
anarquismo enquanto teoria política. Ao contrário, ar-
gumento que o anarquismo pode se tornar muito mais
relevante para as lutas políticas contemporâneas na
medida em que dê conta da lógica do ressentimento em
seu próprio discurso, especialmente nas estruturas e
identidades essencialistas que o habitam.

Moral de escravos e ressentimento

O ressentimento é diagnosticado por Nietzsche


como nossa condição moderna. No entanto, para se
compreender o ressentimento é necessário compreender
o relacionamento entre a moral dos senhores e a
moral dos escravos no qual o ressentimento é gerado.
Genealogia da moral é um estudo das origens da moral.
Para Nietzsche, o modo pelo qual interpretamos e
impomos valores ao mundo tem uma história — suas
origens são freqüentemente brutais e distante dos
valores que produzem. O valor de “bom”, por exemplo,
foi inventado pelos nobres e superiores para ser aplicado
a eles mesmos, em contraste com a plebe, os comuns e
inferiores.3 Era o valor do senhor — o “bom” — enquanto
oposto ao do escravo — o “mau”. Assim, de acordo
com Nietzsche, foi nesse pathos de distância, entre os
bem-nascidos e os inferiores, neste senso absoluto de
superioridade, que os valores foram criados.4
Todavia, esta equação de bom e aristocrático come-
çou a ser minada por uma revolta de escravos em re-
lação aos valores. Esta revolta de escravos, de acordo

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verve
Anarquismo e a política do ressentimento

com Nietzsche, começou com os judeus que instigaram


uma reavaliação dos valores.
“Foram os judeus que, com apavorante coerência,
ousaram inverter a equação de valores aristocrática
(bom = nobre = poderoso = belo = feliz = caro aos deu-
ses), e com unhas e dentes (os dentes do ódio mais fun-
do, o ódio impotente) se apegaram a esta inversão, a
saber, os miseráveis somente são os bons, apenas os
pobres, os impotentes, baixos são bons, os sofredo-
res, necessitados, feios, doentes são os únicos beatos,
os únicos abençoados, unicamente para eles há bem-
aventurança — mas vocês, nobres e poderosos, vocês
serão por toda a eternidade os maus, os lascivos, os
insaciáveis, os ímpios, serão também eternamente os
desventurados, malditos e danados!”5
Desse modo, a revolta dos escravos na moral inver-
teu o nobre sistema de valores e começou a nivelar bom
com o inferior, o impotente — o escravo. Esta inversão
introduziu o pernicioso espírito de vingança e ódio na
criação dos valores. Então a moral como a entendemos
tem suas raízes nesta vontade vingativa de poder dos
impotentes sobre os fortes — a revolta do escravo con-
tra o senhor. Foi desse ódio imperceptível, subterrâneo
que cresceram os valores subseqüentes associados com
o bom — a piedade, o altruísmo, a docilidade, etc.
Valores políticos também cresceram dessa raiz
envenenada. Para Nietzsche, os valores de igualdade
e democracia, que formam a pedra fundamental da
teoria política radical, emergiram da revolta do escravo
na moralidade. São gerados pelo mesmo espírito
de vingança e ódio em relação aos poderosos. Em tal
situação Nietzsche condena movimentos políticos como
a democracia liberal, o socialismo e, obviamente, o
anarquismo. Ele vê o movimento democrático como
uma expressão da moral do rebanho derivada da
reavaliação judaico-cristã dos valores.6 O anarquismo
é para Nietzsche o mais extremado herdeiro dos valores
democráticos — a expressão mais violenta do respectivo

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instinto de manada. Busca equalizar as diferenças


entre indivíduos, abolir as distinções de classe, nivelar
completamente as hierarquias pela altura do chão e
igualar o potente com o impotente, o rico com o pobre,
o senhor com o escravo. Para Nietzsche isso rebaixa
tudo ao nível do mais baixo denominador comum —
a supressão do pathos de distância entre senhor e
escravo, o senso de diferença e superioridade pelo qual
grandes valores são criados. Nietzsche considera isso
como o pior excesso do niilismo europeu ― a morte dos
valores e da criatividade.
A moral do escravo é caracterizada pela atitude do
ressentimento — o ressentimento e ódio dos impotentes
contra os fortes. Nietzsche vê o ressentimento como um
sentimento totalmente negativo — a atitude de negar o
que é afirmação da vida, dizendo “não” ao que é diferen-
te, ao que é “estranho” ou “outro”. O ressentimento se
caracteriza por uma orientação para o externo, diferin-
do do foco da nobre moralidade que está em si próprio.7
Enquanto o senhor diz “Eu sou bom” e adiciona como
idéia posterior. “Então, ele é mau”; já o escravo diz o
oposto: “Ele (o senhor) é mau, logo eu sou bom.” Assim
a invenção dos valores decorre de uma comparação ou
oposição ao que é de fora, ao outro, ao diferente. Nietzsche
diz: “a moral escrava sempre requer, para nascer, um
mundo oposto e exterior”, necessita, falando psicolo-
gicamente, de um estímulo externo para agir — “sua
ação é no fundo uma reação.”8 Esta instância reativa,
essa inabilidade para definir qualquer coisa exceto em
oposição a alguma outra, é a atitude do ressentimen-
to. É a instância reativa dos fracos que se define em
oposição ao forte. O fraco precisa da existência desse
inimigo externo para se identificar como “bom”. Desse
modo o escravo consegue uma “vingança imaginária”
em relação ao senhor, pois não pode agir sem a exis-
tência oposta deste. O homem do ressentimento odeia o
nobre com um intenso desprezo, com arraigados e fer-
vilhantes ódio e inveja. É esse ressentimento, de acordo
com Nietzsche, que envenena a consciência moderna

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Anarquismo e a política do ressentimento

e encontra sua expressão nas idéias de igualdade e


democracia e nas filosofias políticas radicais, como o
anarquismo, que advogam isso.
É o anarquismo uma expressão política do
ressentimento? Está envenenado por um ódio profundo
aos poderosos? Enquanto o ataque de Nietzsche ao
anarquismo é injustificado, excessivamente maldoso em
muitos aspectos, e mostra pouca compreensão acerca
das complexidades da teoria anarquista, por outro lado
reitero que Nietzsche de fato revela uma certa lógica do
ressentimento no pensamento maniqueísta e antagônico
do anarquismo. É necessário explorar esta lógica que
habita o anarquismo — ver aonde isso leva e até que
ponto impõe limites conceituais na política radical.

Anarquismo

O anarquismo como uma filosofia política revolucio-


nária tem muitas vozes, origens e interpretações dife-
rentes. Desde o anarquismo individualista de Stirner,
até o anarquismo comunal e coletivista de Bakunin e
Kropotkin, o anarquismo consiste em diversas séries
de filosofias e estratégias políticas. Estas se encontram
unidas, porém, por uma crítica e rejeição fundamentais
da autoridade política em todas suas formas. A crítica
da autoridade política, a convicção que o poder é ex-
plorador, opressivo e desumanizador, pode ser consi-
derada como o ponto de vista ético-político crucial do
anarquismo. Para os anarquistas clássicos o Estado
é a personificação de todas as formas de exploração,
opressão, escravização e rebaixamento do homem. Nas
palavras de Bakunin, “o Estado é como um enorme ma-
tadouro e um vasto cemitério, onde sob a sombra e o
pretexto desta abstração (o bem comum) todas as me-
lhores aspirações, todas as forças vivas de um país são
hipocritamente imoladas e sepultadas.”9 O Estado é o
principal alvo da crítica anarquista da autoridade. É
para os anarquistas a opressão fundamental na socie-

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dade e deve ser abolido como o primeiro ato revolucio-


nário.
Este último ponto acarretou ao anarquismo do sécu-
lo XIX um agudo conflito com o marxismo. Marx acredi-
tava que ao mesmo tempo em que o Estado era de fato
opressivo e explorador, ele era um reflexo da exploração
econômica e um instrumento do poder de classe. Assim
o poder político estava reduzido ao poder econômico.
Para Marx a economia, mais do que o Estado, era o
lugar principal da opressão. O Estado raramente man-
teve existência independente além dos interesses eco-
nômicos e de classe. Devido a isso, o Estado poderia ser
usado como uma ferramenta da revolução, se estivesse
nas mãos da classe certa — o proletariado.10 Em ou-
tras palavras, o Estado era dominador apenas porque
na ocasião, ele estava nas mãos da burguesia. Uma vez
que as distinções de classe desapareçam, o Estado per-
derá seu caráter político.11
Anarquistas como Bakunin e Kropotkin discordaram
de Marx precisamente nesse ponto. Para os anarquis-
tas o Estado é muito mais do que uma expressão de
classe e poder econômico. Ao invés disso, o Estado tem
sua própria lógica de dominação e auto-perpetuação
e é autônomo em relação aos interesses de classe. Ao
contrário de uma ação que vai da sociedade ao Estado
como Marx fez, e de ver o Estado como derivativo das
relações econômicas do capitalismo e da ascensão da
burguesia, os anarquistas trabalham do Estado para a
sociedade. O Estado constitui a opressão fundamental
na sociedade e a exploração econômica deriva da opres-
são política. Em outras palavras, é a opressão política
que possibilita opressão econômica.12 Além disso, para
os anarquistas, as relações burguesas são efetivamen-
te um reflexo do Estado, contrariando a concepção do
Estado ser reflexo das relações burguesas. A classe do-
minante, argumenta Bakunin, é o efetivo representante
material do Estado. Nos bastidores de cada classe domi-
nante em cada época, entrelaça-se o Estado. Por causa

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Anarquismo e a política do ressentimento

deste ter sua própria lógica autônoma, nunca poderá


ser um confiável instrumento de revolução. Fazer isso
do Estado implica ignorar sua lógica de dominação. Se
o Estado não for destruído imediatamente, se for usa-
do como ferramenta revolucionária como os marxistas
sugerem, então seu poder será perpetuado em modos
infinitamente mais tirânicos. Funcionaria, como apon-
ta Bakunin, por meio de uma nova classe dominante
— uma classe burocrática que oprimirá e explorará os
trabalhadores do mesmo modo que a classe burguesa
os oprimiu e explorou.13
Desse modo, para os anarquistas, o Estado é uma
opressão a priori, não importa a forma que possa tomar.
De fato Bakunin afirma que o marxismo dedica muita
atenção às formas do poder do Estado, ao mesmo tem-
po em que não considera suficientemente o modo pelo
qual o poder do Estado opera: “Eles (os marxistas) não
sabem que o despotismo reside não apenas na forma do
Estado, mas no próprio princípio do Estado e do poder
político.”14 Opressão e despotismo existem na própria
estrutura e simbolismo do Estado — não é mera deriva-
ção do poder de classe. O Estado tem sua própria lógica
impessoal, seu próprio momentum, suas prioridades es-
pecíficas: estes estão sempre além do controle da classe
dominante e de modo nenhum refletem necessariamen-
te as relações econômicas. Assim o anarquismo situa a
opressão fundamental e o poder sobre a sociedade na
estrutura e operações específicas do Estado. Enquan-
to uma máquina abstrata de dominação, este provoca
diversas atualizações de classe — não apenas o Estado
burguês, mas também o Estado proletário. Por meio do
seu reducionismo econômico, o marxismo negligenciou
a autonomia e pré-existência do Estado — um erro que
levaria à sua reafirmação em uma revolução socialista.
Desse modo, a crítica anarquista desmascara as formas
ocultas da dominação associadas com o poder político,
e expõe a inadequação teórica do marxismo em lidar
com este problema.

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Ironicamente, essa concepção do Estado encontra


uma inesperada nota familiar de Nietzsche. Nietzsche,
como os anarquistas, vê o homem moderno como “do-
mesticado”, acorrentado e tornado impotente pelo Es-
tado.15 Ele também considera o Estado uma máquina
abstrata de dominação, que precede o capitalismo e
paira acima dos interesses econômicos e de classe. O
Estado é um modo de dominação que impõe uma inte-
riorização regulada sobre o populacho. De acordo com
Nietzsche, o Estado emerge como uma “terrível tirania,
como uma maquinaria esmagadora e implacável,” que
subjuga, torna complacente e molda a população.16
Além do mais, as origens do Estado são violentas. Foi
imposto à força do exterior e não devido a alguma rela-
ção com “contratos”.17 Nietzsche demole a “fantasia” do
contrato social — a teoria de que o Estado fora formado
pelas pessoas que teriam abdicado voluntariamente de
seu poder em troca de segurança e proteção a serem
providas pelo Estado. Esta idéia do contrato social tem
sido central à política liberal e conservadora, de Hobbes
a Locke. Os anarquistas também rejeitam essa teoria
contratualista. Eles também dizem que as origens do
Estado são violentas, e que é absurdo afirmar que as
pessoas voluntariamente desistiram de seu poder. Isso
é um mito perigoso que legitima e perpetua a domina-
ção estatal.

O contrato social

O anarquismo está baseado em uma concepção es-


sencialmente otimista da natureza humana: se os indi-
víduos têm uma tendência natural a viverem bem jun-
tos, então não há necessidade da presença do Estado a
servir de árbitro entre eles. Ao contrário, o Estado pro-
duz de fato um efeito pernicioso nessas relações sociais
naturais. Portanto, os anarquistas rejeitam as teorias
políticas baseadas na idéia do contrato social. A teo-
ria do contrato social repousa numa imagem singular-

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Anarquismo e a política do ressentimento

mente negativa da natureza humana. Segundo Hobbes,


os indivíduos são naturalmente egoístas, interesseiros,
agressivamente competitivos, e no estado de natureza
estão engajados numa guerra de “todos contra todos”,
na qual seus impulsos naturais levam ao conflito uns
com os outros.18 Então, segundo essa teoria, a socie-
dade em estado de natureza é caracterizada por uma
desarticulação radical: não há vínculo comum entre os
indivíduos, e sim um constante estado de guerra per-
manente, uma luta constante pelos recursos.19 Para pôr
um fim a este estado de guerra permanente, os indiví-
duos se agrupam para estabelecer um contrato social
sobre o qual algum tipo de autoridade pode ser esta-
belecida. Eles concordam em sacrificar parte de sua li-
berdade em troca de algum tipo de ordem, desse modo
podem buscar seus próprios fins individuais de modo
mais proveitoso e pacífico. Concordam na criação de
um Estado com um mandato sobre a sociedade, que
deve arbitrar vontades conflitantes e impor a lei e a or-
dem.
O alcance da autoridade do Estado pode variar do
Estado liberal, cujo poder é supostamente moderado
pelo estatuto da lei, ao poder do Estado absoluto — o
Leviatã —, imaginado por Hobbes. Embora tais mode-
los possam variar, os anarquistas afirmam que o re-
sultado dessa teoria do contrato social é o mesmo: a
justificação da dominação do Estado, seja através do
estatuto da lei, seja pela imposição arbitrária da força.
Para os anarquistas qualquer forma de poder de Estado
é uma imposição da força. A teoria do contrato social é
uma prestidigitação que legitima a dominação política
— Bakunin o denomina “embuste desonroso”.20 Ele de-
monstra o paradoxo central na teoria do contrato social
desse modo: se, no estado de natureza, os indivíduos
subsistem em um estado de selvageria primitiva, então,
como que de repente, eles podem ter a perspicácia de
se reunirem e criarem um contrato social?21 Se não
há nenhum laço em comum na sociedade, nenhuma
essência dentro dos seres humanos que os coloquem

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juntos, então, escorado em qual fundamento, pode um


contrato social ser formado? Como Nietzsche, os anar-
quistas afirmam também que não há tal concordância
para que o Estado seja imposto, nem de cima nem de
baixo. O contrato social tenta mistificar as origens bru-
tais do Estado: guerra, conquista e escravização volun-
tária, ao contrário de um acordo racional. Para Kropotkin
o Estado é uma violenta ruptura e uma imposição sobre
uma sociedade orgânica funcionando harmoniosamen-
te.22 A sociedade não precisa de um “contrato social”.
Ela tem seu próprio contrato com a natureza, governa-
do por leis naturais.23
O anarquismo pode ser entendido como uma luta
entre autoridade natural e autoridade artificial. Os
anarquistas não rejeitam todas as formas de autorida-
de como o velho cliché costuma dizer. Ao contrário, de-
claram sua absoluta obediência à autoridade materia-
lizada pelo que Bakunin denomina “leis naturais”. De
acordo com Bakunin, as leis naturais são necessárias à
existência da humanidade; elas nos envolvem, nos mol-
dam e determinam o mundo físico no qual vivemos.24
No entanto, esta não é uma forma de escravidão por-
que tais leis não são externas ao homem: “essas leis
(naturais) não são extrínsecas em relação a nós, são
inerentes a nós, constituem nossa natureza, todo nos-
so ser físico, intelectual e moral.”25 Elas consistem no
que constitui o homem — são sua essência. O homem
é parte inextricável de uma sociedade natural orgânica,
segundo Kropotkin.26 Portanto o anarquismo está ba-
seado em uma noção específica de essência humana.
A moral tem sua base na natureza humana e não em
alguma fonte externa: “a idéia de justiça e bem, como
todas outras coisas humanas, deve ter sua raiz na pró-
pria animalidade do homem.”27
A autoridade natural é implacavelmente oposta à
“autoridade artificial.” Por autoridade artificial Bakunin
quer dizer poder: o poder político conservado em insti-
tuições como o Estado e nas leis feitas pelo homem.28

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Anarquismo e a política do ressentimento

Este poder é exterior à natureza humana e uma imposi-


ção sobre ela. Ele anula o desenvolvimento das caracte-
rísticas morais e das capacidades intelectuais inatas da
humanidade. São estas capacidades, afirmam os anar-
quistas, que liberarão o homem da escravidão e da ig-
norância. Para Bakunin, então, as instituições políticas
são “hostis e fatais à liberdade das massas, pois elas
impõem sobre as últimas um sistema de leis externas e
por conseguinte despóticas.”29
Nessa crítica da autoridade política, o poder (autori-
dade artificial) é externo ao sujeito humano. Este se en-
contra oprimido por tal poder, mas permanece sem ser
contaminado por ele porque a subjetividade humana
é uma criação de um sistema natural oposto ao siste-
ma político. Desse modo o anarquismo está baseado em
uma clara divisão maniqueísta entre autoridade natu-
ral e autoridade artificial, entre poder e subjetividade,
entre Estado e Sociedade. Além do mais a autoridade
política é fundamentalmente repressiva e destrutiva do
potencial dos homens. Os anarquistas afirmam que a
sociedade humana não pode se desenvolver até que as
instituições e as leis que a mantém na ignorância e ser-
vidão, até que os grilhões que a amarram sejam desfei-
tos. Por conseguinte, o anarquismo deve ser um lugar
de resistência: um lugar racional e moral, um lugar sem
ser contaminado pelo poder que oprime, e de onde sur-
girá a rebelião contra o poder. Encontra-se isso em uma
subjetividade humana essencial. A essência humana,
com suas características morais e racionais é uma to-
talidade esquecida que repousa dormente no homem
e apenas será realizada quando o poder político que a
nega for derrotado. A moralidade e racionalidade hu-
manas neutralizarão o poder político que é encarado
como inerentemente irracional e imoral. De acordo com
a teoria anarquista, a lei natural substituirá à autorida-
de política; homem e sociedade substituirão ao Estado.
Para Kropotkin o anarquismo pode pensar além da ca-
tegoria do Estado, além da categoria do poder político
absoluto, pois há um lugar, um solo para fazer isso.

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O poder político tem um lado de fora a partir do qual


pode ser criticado e uma alternativa com a qual pode
ser substituído. Assim Kropotkin é capaz de conceber
uma sociedade na qual o Estado não mais existe ou
é necessário, uma sociedade regulada, não pelo poder
político e autoridade, mas pela concordância mútua e
cooperação.30
Tal sociedade é possível, de acordo com os anarquis-
tas devido à natureza essencialmente cooperativa do
homem.31 Ao contrário da abordagem darwinista que in-
siste em uma inata competição entre os animais ― a so-
brevivência dos mais adaptados — Kropotkin encontrou
uma cooperação e sociabilidade instintiva nos animais,
particularmente nos humanos. Este instinto, Kropotkin
denominou ajuda mútua e afirmou: “A ajuda mútua é
o fato predominante da natureza.”32 Kropotkin aplica
essas descobertas na sociedade humana. Afirma que o
princípio natural e essencial da natureza humana é a
ajuda mútua e que o homem é naturalmente cooperati-
vo, sociável e altruísta, em vez de competitivo e egoísta.
Este é o princípio orgânico que governa a sociedade, é a
partir disso que as noções de moralidade, justiça e ética
prosperam. Segundo Kropotkin, a moral expande-se a
partir da necessidade instintiva de se reunir em tribos,
grupos — e de uma instintiva tendência à cooperação
e assistência mútua.33 Essas sociabilidade e capacida-
de naturais para ajuda mútua é o princípio que une
a sociedade, provendo uma base comum sobre a qual
a vida cotidiana pode se conduzir. Assim a sociedade
não tem necessidade do Estado: ela tem seus próprios
mecanismos de regulação, suas próprias leis naturais.
A dominação do Estado apenas envenena a sociedade
e destrói seus mecanismos naturais. É o princípio da
ajuda mútua que vai naturalmente substituir o prin-
cípio da autoridade política. Um estado de “anarquia”,
uma guerra de “todos contra todos” não seguirá ao mo-
mento em que o poder de Estado for abolido. Para os
anarquistas, um estado de “anarquia” já existe agora:
o poder político cria deslocamento social, não o evita. O

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Anarquismo e a política do ressentimento

que é obstruído pelo Estado é o funcionamento natural


e harmonioso da sociedade.
Para Hobbes, a soberania do Estado é um mal ne-
cessário. Não há nenhuma tentativa de transformar
o Estado em um fetiche: ele não descende dos céus,
predeterminado pela vontade divina. É pura sobera-
nia, puro poder, e está construído a partir do vazio da
sociedade, precisamente no sentido de evitar o estado
de guerra imanente ao estado de natureza. O conteúdo
político do Estado não é importante, contanto que sub-
jugue a inquietação na sociedade. Se houver democra-
cia, assembléia soberana, ou monarquia, não importa:
“o poder em todas as formas, se for suficientemente
perfeito para protegê-los, dá no mesmo.”34 Tal como os
anarquistas, Hobbes acredita que a aparência tomada
pelo poder é irrelevante. Por trás de cada máscara deve
haver um poder puro e absoluto. O pensamento político
de Hobbes está concentrado em torno de um desejo de
ordem, puramente enquanto um antídoto contra a de-
sordem e a extensão do sofrimento dos indivíduos sob
essa ordem não se compara ao sofrimento causado pela
guerra.35 Para os anarquistas, por outro lado, pelo fato
das sociedades se regularem de acordo com leis natu-
rais e por haver uma ética natural de cooperação entre
os homens, o Estado é um mal desnecessário. Ao invés
de evitar o estado de guerra perpétua entre os homens,
o Estado a engendra: o Estado está baseado na guerra
e na conquista ao invés de personificar sua solução.
O anarquismo pode observar além do Estado pois dis-
cute da perspectiva de um ponto de partida essencial
— a sociabilidade humana natural. Assim, pode con-
ceber uma alternativa ao Estado. Por sua vez, Hobbes
não tem esse ponto de partida: não há nenhum ponto
de apoio que pode atuar como alternativa ao Estado.
A sociedade, como vimos com Hobbes, está caracteri-
zada por fissuras e antagonismo. De fato, não há ne-
nhuma sociedade essencial a ser mencionada ― é um
lugar vazio. A sociedade deve portanto ser construída
artificialmente no molde do Estado absoluto. Enquanto

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o anarquismo pode contar com o estado natural, Hobbes


apenas pode confiar na lei do Estado. No cerne do para-
digma anarquista há uma plenitude essencial da socie-
dade, enquanto que no coração do paradigma hobbesiano
não há nada, apenas vazio e desarticulação.

Maniqueísmo

Todavia, pode-se argumentar que o anarquismo é


uma imagem espelhada do hobbesianismo no sentido
de que ambos colocam atributos comuns os quais deri-
vam de sua dívida com o Iluminismo. Ambos enfatizam
a necessidade de uma repleção ou coletividade, algum
ponto legítimo em torno do qual a sociedade pode ser
organizada. Os anarquistas consideram essa lei natural
o ponto de partida que informa a sociedade e a subje-
tividade humana, e que é obstruída pelo Estado. Por
outro lado, Hobbes vê este ponto de partida como uma
ausência, um lugar vazio que precisa ser preenchido
pelo Estado. O pensamento de Hobbes é compreendido
dentro do paradigma do Estado; este é o limite concei-
tual absoluto, fora do qual estão os perigos do estado
de natureza. Teorias políticas como esta, baseadas no
contrato social, estão atravessadas pela ameaça de que
ao se eliminar o Estado, se regredirá ao estado de natu-
reza. O anarquismo, por derivar de uma concepção de
sociedade e de natureza humana radicalmente diferen-
te, reivindica ser possível transcender este dilema. No
entanto, consegue?
O anarquismo opera dentro de uma lógica política
maniqueísta: cria uma oposição moral essencial entre a
sociedade e o Estado, entre humanidade e poder. A lei
natural é esquematicamente oposta ao poder artificial;
a moral e a racionalidade imanentes à subjetividade hu-
mana entram em conflito com a irracionalidade e imo-
ralidade do Estado. Há uma antítese essencial entre o
incontaminado ponto de partida, constituído pela sub-
jetividade humana essencial, e o poder de Estado. Esta

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Anarquismo e a política do ressentimento

lógica que estabelece uma oposição absoluta entre dois


termos — bom e mau, branco e preto, humanidade e o
Estado — é o traço central do pensamento maniqueísta.
Jacques Donzelot mostra que essa lógica de oposição
absoluta é endêmica à teoria política radical.
“A cultura política é também a busca sistemática de
um antagonismo entre duas essências, o desenho de
uma linha de demarcação entre dois princípios, dois
níveis de realidade que são facilmente colocados em
oposição. Não existe política cultural que não seja ma-
niqueísta.”36
Além disso, ao subscrever essa lógica e fazer do poder
o foco de sua análise ao invés da economia, como faz o
marxismo, o anarquismo talvez tenha caído na mesma
armadilha reducionista. Não teria, meramente, substi-
tuído a economia pelo Estado enquanto o mal essencial
da sociedade, do qual derivariam outros malefícios? As-
sim afirma Donzelot: “Tão logo foi decidido, para o bem
ou para o mal — não importa — que o capitalismo não
é o único ou mesmo o princípio fundamental do mal na
terra, apressou-se em substituir a oposição entre capi-
tal e trabalho pela oposição entre Estado e sociedade
civil. O capital, enquanto frustração e bode expiatório,
é substituído pelo Estado, este frio monstro cujo cres-
cimento ilimitado “pauperiza” a vida social; e o proleta-
riado abre caminho para a sociedade civil, ou seja para
tudo que seja capaz de resistir à racionalidade cega do
Estado, tudo que lhe oponha no plano dos costumes,
hábitos, uma sociabilidade viva, buscada nas margens
residuais da sociedade e promovidas ao status de motor
da história.”37
Opor a sociabilidade vivente ao Estado, do mes-
mo modo que o marxismo opunha o proletariado ao
capitalismo, sugere que o anarquismo foi incapaz de
transcender as categorias políticas tradicionais que
acompanham o marxismo. Como aponta Donzelot, o
maniqueísmo é a lógica que escora todas essas teorias:
é a propensão oculta que as circunscreve e percorre.

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Não importa se o alvo for o Estado, o Capital, ou qual-


quer outra coisa; contanto que haja um inimigo a des-
truir e um sujeito que irá destruí-lo, contanto que haja
a promessa da batalha final e da vitória final. A lógica
maniqueísta é então a lógica do lugar: há um lugar es-
sencial de poder e um lugar essencial de revolta. Esta é
a lógica binária, dialética que atravessa o anarquismo:
o lugar do poder — o Estado — deve ser derrubado pelo
sujeito humano essencial, o puro sujeito da resistência.
O anarquismo “essencializa” o próprio poder ao qual se
opõe.
A lógica maniqueísta envolve assim uma operação de
inversão especular: o lugar da resistência é um reflexo,
ao contrário, do lugar do poder. No caso do anarquis-
mo, a subjetividade humana é essencialmente moral e
racional, enquanto o Estado é essencialmente imoral e
irracional.38 O Estado é essencial à existência do sujeito
revolucionário, assim como o sujeito revolucionário é
essencial à existência do Estado. Um se define em opo-
sição ao outro. A pureza da identidade revolucionária é
unicamente definida em contraste com a impureza do
poder político. A revolta contra o Estado é sempre moti-
vada pelo Estado. Como Bakunin argumenta: “há algo
na natureza do Estado que provoca rebelião.”39 Na me-
dida em que o relacionamento entre o Estado e o sujeito
revolucionário é uma oposição claramente definida, os
dois antagonistas não podem existir fora dessa relação.
Em outras palavras, um não pode existir sem o outro.
Poderia este relacionamento paradoxal entre
reflexo e oposição ser encarado como uma forma de
ressentimento no sentido nietzschiano? Eu afirmaria
aqui que, apesar das diferenças existentes, o
relacionamento maniqueísta da oposição entre sujeito
humano e poder político encontrado no anarquismo
obedece á lógica geral do ressentimento descrito
acima. Isso devido a duas razões. Em primeiro lugar,
como vimos, o ressentimento baseia-se no preconceito
moral do impotente contra o forte — a revolta do

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Anarquismo e a política do ressentimento

escravo contra o senhor. Podemos ver com clareza essa


oposição moral à potência no discurso anarquista, o
qual situa o sujeito humano essencialmente moral e
racional em contraposição à qualidade essencialmente
irracional e imoral do poder político. Isso é evidente na
oposição da autoridade natural à autoridade artificial,
que é central ao anarquismo. Em segundo lugar,
o ressentimento é caracterizado pela necessidade
fundamental de se identificar pela atenção ao que está
fora e pela oposição a um inimigo externo. Aqui, no
entanto, a comparação ao anarquismo não é tão nítida.
Por exemplo, pode-se afirmar de modo concebível que
a ética — a noção de ajuda e assistência mútua — e a
subjetividade anarquistas são algo que se desenvolvem
independentemente do poder político e que, portanto,
não necessita de uma relação de oposição ao Estado
para se definir. Contudo, eu posso sugerir que embora
a subjetividade anarquista de fato se desenvolva
em um sistema “natural”, radicalmente exterior ao
sistema “artificial” do poder político, é precisamente
por meio desta asserção de exterioridade radical que
o ressentimento emerge. O anarquismo concorda com
uma lógica dialética pela qual as espécies humanas
emergem de um estado quase-animal e começa a
desenvolver uma moral inata e faculdades racionais em
um sistema natural.40 Entretanto, o sujeito encontra
esse desenvolvimento obstaculizado pelo poder imoral e
irracional do Estado. Conseqüentemente, o sujeito não
pode alcançar a sua plena identidade humana enquanto
permanecer oprimido pelo Estado. Para Bakunin, isso
ocorre porque: “O Estado é a mais flagrante negação
da humanidade.”41 A realização do sujeito é sempre
embrutecida, procrastinada, adiada pelo Estado. Essa
dialética do Homem e Estado sugere que a identidade do
sujeito é caracterizada como essencialmente ‘racional’
e ‘moral’ apenas na medida em que o desdobramento
dessas qualidades e faculdades inatas é obstruído pelo
Estado. Paradoxalmente, o Estado, que é considerado
pelos anarquistas um obstáculo à plena identidade do

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homem, é ao mesmo tempo, essencial à formação desta


identidade incompleta. Sem essa estúpida opressão, o
sujeito anarquista seria incapaz de se ver como “moral”
e “racional”. Essa identidade é assim completa em sua
incompletude. A existência do poder político é, portanto,
um meio de construir essa plenitude ausente. Afirmo
então que o anarquismo só pode colocar um sujeito
como “moral” e “racional” em oposição à “imoralidade”
e à “irracionalidade” do poder político. Do mesmo modo
que a identidade do “escravo” se consolida como “boa”
pela sua oposição à identidade do “senhor” que é “má”.
Nietzsche consideraria isso uma atitude do ressentimento
por excelência.
Desta forma, o maniqueísmo que habita o discurso
anarquista é uma lógica do ressentimento, o que para
Nietzsche é uma perspectiva inconfundivelmente doen-
tia, emanando de uma posição de fraqueza e doença.
A identidade revolucionária da filosofia anarquista está
constituída por sua essencial oposição ao poder. Tal
como o homem reativo de Nietzsche, a identidade re-
volucionária se pretende passar imaculável pelo poder:
a essência humana é vista como moral onde o poder é
imoral; natural onde o poder é artificial; puro onde o
poder é impuro. Pelo fato dessa subjetividade ser cons-
tituída dentro de um sistema de lei natural — enquanto
oposta à lei artificial ― este é um ponto que, enquanto
oprimido pelo poder, permanece fora do poder e sem ser
poluído por ele. Mas é isso mesmo?
O próprio Bakunin lança algumas dúvidas acerca
disso quando discorre sobre o princípio de poder. Este
é a cobiça natural pelo poder, que ele acredita ser inata
em cada indivíduo: “Cada homem carrega dentro de si
os germes da cobiça pelo poder, e cada germe, como
sabemos, devido à lei básica da vida, necessariamen-
te deve desenvolver e crescer.”42 O princípio de poder
significa que o homem não pode ser confiado ao poder,
pois sempre haverá esse desejo de poder no coração
da subjetividade humana. Embora Bakunin buscasse

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Anarquismo e a política do ressentimento

alertar os outros sobre o perigo corruptivo inerente do


poder, ele talvez tenha exposto inconscientemente a
contradição oculta que repousa no coração do discur-
so anarquista: a saber, enquanto o anarquismo estiver
baseado em uma noção de subjetividade humana es-
sencial incontaminada pelo poder, essa subjetividade
é impossível. A identidade revolucionária pura é rasga-
da, subvertida por um desejo ‘natural’ de poder, a falta
no coração de cada indivíduo. Bakunin sugere que este
desejo de poder é uma parte essencial da subjetivida-
de humana. Talvez a implicação do princípio de poder
de Bakunin é que o sujeito sempre terá um desejo de
poder e que o sujeito será incompleto até que alcance o
poder. Kropotkin fala também sobre o desejo de poder e
autoridade. Afirma que o surgimento do Estado moder-
no pode ser atribuído em parte ao fato que os “homens
se tornaram enamorados da autoridade.”43 Ele conclui
então, que o Estado não é totalmente uma imposição de
cima. Ele fala sobre auto-escravização à lei e autorida-
de: “o homem deixou-se escravizar muito mais por seu
desejo de ‘punir conforme a lei’ do que pela conquista
militar direta.”44 O desejo de “punir conforme a lei” cres-
ce diretamente do senso natural de moralidade da hu-
manidade? Nesse caso, pode a essência humana ainda
ser considerada como imaculável pelo poder? Embora
a noção anarquista de subjetividade não esteja total-
mente corroída por essa contradição, está porém deses-
tabilizada por ela: faz-se ambígua e incompleta. Força
a questionar a noção anarquista de uma revolução da
humanidade contra o poder: se os seres humanos têm
um desejo essencial de poder, então como pode alguém
se certificar que uma revolução direcionada a destruir
o poder não se transformará em uma revolução direcio-
nada em capturar o poder?

Vontade de poder

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Enquanto teoria política e social, o anarquismo


tem sido invalidado devido às contradições de sua
concepção da subjetividade humana? Não concordo.
Procuro mostrar um traço oculto do ressentimento nas
categorias essencialistas e nas estruturas em oposição
que habitam o discurso anarquista — em noções de
uma sociedade harmônica governada pela lei natural
e do comunalismo humano essencial, e sua oposição
à lei artificial do Estado. No entanto, defendo que, se
conseguir se livrar dessas categorias essencialistas
e maniqueístas, o anarquismo, pode ultrapassar o
ressentimento que o envenena e o limita. O anarquismo
clássico é uma política do ressentimento pois busca
vender o poder. Considera o poder como maléfico,
destrutivo, algo que degrada a plena realização
individual. A essência humana é o ponto de partida
incontaminado pelo poder e do qual se resiste ao poder.
Como assinalei, há uma estrita divisão e oposição
maniqueísta entre o sujeito e o poder. Contudo, mostrei
que esta separação entre indivíduo e poder é em si
instável e ameaçada por um desejo ‘natural’ de poder — o
princípio de poder. Nietzsche argumenta que este desejo
de poder — vontade de poder — é realmente ‘natural’,
e é a própria supressão desse desejo que tem tal efeito
debilitante no homem, fazendo-o se voltar contra si
mesmo e produzindo uma atitude de ressentimento.
Talvez se possa deduzir que esse desejo de poder no
homem seja produzido precisamente por meio de tenta-
tivas em negar ou extinguir relações de poder na “ordem
natural”. Talvez o poder possa ser visto nos termos do
Real lacaniano – como uma falta irreprimível que não
pode ser simbolizada e a qual retorna para assombrar
a ordem simbólica, rompendo qualquer tentativa do su-
jeito em formar uma identidade completa. Para Jacques
Lacan: “(...) o real é o que sempre retorna ao mesmo
lugar, ao lugar onde o sujeito, na medida em que pen-
sa, não o encontra.”45 O anarquismo tenta completar a
identidade do sujeito separando-o, em um sentido abso-
lutamente maniqueísta, do mundo do poder. O sujeito

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Anarquismo e a política do ressentimento

anarquista, como já apontado, encontra-se constituído


em um sistema “natural” que é dialeticamente oposto ao
mundo artificial do poder. Além disso pelo fato do sujei-
to ser constituído em um sistema “natural”, governado
pelas leis éticas de cooperação mútua, os anarquistas
estão aptos a colocar uma sociedade livre das relações
de poder, que substituiria o Estado quando esse fosse
derrubado. Entretanto, como já vimos, este mundo livre
do poder é colocado em risco pelo desejo de poder laten-
te em cada indivíduo. Quanto mais o anarquismo tenta
libertar a sociedade das relações de poder, mais perma-
nece paradoxalmente enredado em poder. O poder aqui
retorna como o real que habita todas as tentativas de
libertar o mundo do poder. Quanto mais se tenta repri-
mir o poder, mais obstinadamente este levanta sua ca-
beça. Isso ocorre pois as próprias tentativas de negar o
poder, por meio de conceitos essencialistas de leis ‘na-
turais’ e moralidade ‘natural’, constituem poder, ou ao
menos são condicionadas por relações de poder. Essas
identidades e categorias essencialistas não podem ser
impostas sem a exclusão radical de outras identidades.
Esta exclusão é um ato de poder. Se alguém se esforçar
para excluir radicalmente o poder, como os anarquistas
fizeram, o poder ‘retorna’, precisamente nas próprias
estruturas de exclusão.
Nietzsche acredita que esta tentativa de excluir e ne-
gar poder é uma forma de ressentimento. Então como
o anarquismo ultrapassa este ressentimento que tem
mostrado ser tão autodestrutivo e negador da vida? Ao
afirmar positivamente o poder, em vez de negá-lo — di-
zer ‘sim’ ao poder, como Nietzsche colocaria. É apenas
pela afirmação de poder, pelo reconhecimento de que
nós viemos do mesmo mundo do poder, e não de um
mundo “natural” apartado dele, e de que nós nunca po-
deremos estar inteiramente livres de relações de poder,
é que se pode se empenhar em estratégias politicamen-
te relevantes de resistência contra o poder. Isso não
significa, obviamente, que o anarquismo deva baixar
as armas e abraçar o Estado e a autoridade política.

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Pelo contrário, o anarquismo pode mais efetivamente


se contrapor à dominação política ao se engajar com o
poder, em vez de negá-lo.
Talvez seja necessário aqui distinguir entre relações
de poder e relações de dominação. Para usar a definição
de Michel Foucault, poder é “um modo de ação sobre a
ação de outros.”46 Poder é meramente o efeito da ação
de alguém sobre as ações de outro. Nietzsche também
considera o poder em termos de um efeito sem um su-
jeito: “(...) não existe ser por trás do fazer, do atuar, do
devir; o ‘agente’ é uma ficção acrescentada à ação — a
ação é tudo.”47 Poder não é uma mercadoria que pode
ser possuída, nem pode ser localizada no centro nem de
uma instituição, nem de um sujeito. É meramente uma
relação de forças, forças que fluem entre diferentes ato-
res e através de nossas ações cotidianas. O poder está
em todo lugar, de acordo com Foucault.48 O poder não
emana de instituições como o Estado, pelo contrário, é
imanente a toda rede social, através de vários discursos
e saberes. Por exemplo, discursos morais e racionais,
os quais os anarquistas consideram inocentes em rela-
ção ao poder e até como armas na luta contra o poder,
são eles mesmos constituídos de relações de poder e
enredados em práticas de poder: “poder e saber se im-
plicam diretamente um ao outro.”49 Poder nesse senti-
do é produtivo ao invés de repressivo. É portanto sem
sentido e realmente impossível tentar construir, como
os anarquistas fazem, um mundo fora do poder. Nunca
estaremos inteiramente livres das relações de poder. De
acordo com Foucault: “parece-me que... nunca se está
fora do poder, que não há nenhuma margem para sal-
tar para aqueles que rompem com o sistema.”50
Contudo, o fato de não se poder nunca se livrar do
poder não significa que nunca se possa se libertar da
dominação. A dominação deve ser distinguida do po-
der no seguinte sentido. Para Foucault, as relações de
poder se tornam relações de dominação quando o livre
e instável fluxo de relações de poder se torna bloquea-

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Anarquismo e a política do ressentimento

do e congelado — quando forma hierarquias desiguais


e não mais permite relações de reciprocidade.51 Estas
relações de dominação formam a base das instituições
tais como o Estado. De acordo com Foucault, o Estado
é apenas uma reunião de relações de poder diferentes
que desse modo se tornaram congelados. Esta é uma
maneira radicalmente diferente de olhar para as insti-
tuições como o Estado. Enquanto os anarquistas vêm o
poder como emanando do Estado, Foucault vê o Estado
como emanando do poder. Em outras palavras, o Esta-
do é meramente um efeito das relações de poder que se
cristalizaram em relações de dominação.
Qual é o ponto desta distinção entre poder e domina-
ção? Isso não traz de volta à posição original anarquista
que a sociedade e nossas ações do dia a dia, embora
oprimidas pelo poder, são ontologicamente apartadas
uma da outra? Em outras palavras, por que não apenas
chamar a dominação de “poder” uma vez mais, e retro-
ceder de volta à original distinção maniqueísta entre
vida social e poder? Contudo, o ponto dessa distinção
é mostrar que essa separação é agora impossível. Do-
minação — as opressivas instituições políticas como o
Estado — agora advém do mesmo mundo do poder. Em
outras palavras, rompe-se a estrita distinção manique-
ísta entre sociedade e poder. O anarquismo e, natu-
ralmente, a política radical em geral não podem per-
manecer em sua confortável ilusão que nós, enquanto
sujeitos políticos, não somos de algum modo cúmplices
com o próprio regime que nos oprime. De acordo com
a definição foucaultiana de poder aqui utilizada, nós
somos potencialmente cúmplices, através de nossas
ações diárias, nas relações de dominação. Nossas ações
cotidianas, as quais inevitavelmente envolvem poder,
são instáveis e podem facilmente se transformar em re-
lações que nos dominem.
Enquanto sujeitos políticos, não podemos nunca
descansar e esconder identidades essencialistas e es-
truturas maniqueístas atrás de uma estrita separação

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do mundo do poder. Ao contrário, precisamos estar


sempre em guarda contra as possibilidades da domina-
ção. Foucault diz: “Meu ponto é que nada é mau, mas
tudo é perigoso... Se algo é perigoso, então nós temos
sempre algo a fazer. Então minha posição não leva à
apatia, mas a um hiper e pessimista ativismo.”52 Para
resistir à dominação devemos estar cientes de seus ris-
cos, da possibilidade que nossas próprias ações, mes-
mo as ações políticas ostensivas contra a dominação,
podem facilmente ocasionar uma dominação posterior.
Há sempre a possibilidade, então, de se contestar a do-
minação e de minimizar suas possibilidades e efeitos.
De acordo com Foucault, a dominação em si é instável
e pode ocasionar inversões e resistência. Construções
como o Estado são baseadas em relações de poder ins-
táveis aos quais podem facilmente se voltar contra a
instituição da qual elas formam a base. Assim há sem-
pre a possibilidade de resistência contra a dominação.
Entretanto, a resistência nunca pode assumir a forma
de revolução — essa grande e dialética superação do
poder, como os anarquistas advogavam. Abolir institui-
ções centrais como o Estado com um único golpe, pode
implicar negligenciar as relações multiformes e difusas
do poder em que elas se baseiam, permitindo assim o
surgimento de novas relações e instituições. Seria cair
na mesma armadilha reducionista do marxismo e cor-
tejar a dominação. Ao contrário, a resistência deve to-
mar a forma do que Foucault denomina agonismo, ―
uma progressiva e estratégica contestação junto com o
poder — baseada em incitamento e provocação mútu-
os, sem nenhuma esperança final de se livrar disso.53
Como já assinalei, não se pode nunca ter a esperança
de superar completamente o poder, pois toda supera-
ção é por si só a imposição de um outro regime de po-
der. O melhor que se pode esperar é uma reorganização
das relações de poder, através de luta e resistência, em
modos menos opressivos e dominadores. A dominação
pode portanto ser minimizada pela constatação de nos-
so necessário envolvimento com o poder e não pela ten-

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Anarquismo e a política do ressentimento

tativa impossível de nos colocar fora do mundo do po-


der. A clássica idéia de revolução como uma superação
dialética do poder — a imagem que tem freqüentado o
imaginário político radical — deve ser abandonada. Pre-
cisamos reconhecer o fato de que o poder nunca poderá
ser superado inteiramente, e precisamos afirmar isso,
trabalhando dentro desse mundo, renegociando nossa
posição de modo a intensificar nossas possibilidades de
liberdade.
Esta definição do poder aqui construída, enquanto
uma relação instável e de livre fluxo dispersa pela rede
social ― pode ser considerada como uma noção não-
ressentida de poder. Isso mina a política oposicionis-
ta e maniqueísta do ressentimento, pois o poder não
pode ser exteriorizado na forma do Estado ou de uma
instituição política. Não precisa existir nenhum inimigo
externo para nós que nos defina enquanto uma oposi-
ção e canalize nosso ódio. Isso rompe a distinção apo-
línea entre o sujeito e o poder central do anarquismo
clássico e da filosofia política radical maniqueísta. O
homem apolíneo, o sujeito humano essencial, é sempre
habitado pelo poder dionisíaco. Apolo é o deus da luz,
mas também o deus da ilusão: “ele confere descanso
aos seres individuais... desenhando limites ao seu re-
dor.” Dionísio, por outro lado, é a força que ocasional-
mente destrói esses “pequenos círculos”, rompendo a
tendência apolínea a “congelar a forma em uma rigidez
e frieza egípcias.”54 Atrás da ilusão apolínea de uma vida
e um mundo sem poder, está a ‘realidade’ dionisíaca do
poder que rasga o “véu de maya”.55
Ao invés de ter um inimigo externo, como o Esta-
do, em oposição ao qual se forma a identidade política,
devemos trabalhar em nós mesmos. Enquanto sujeitos
políticos, devemos superar o ressentimento pela trans-
formação de nossa relação com o poder. De acordo com
Nietzsche, isso só pode ser feito através do eterno retor-
no. Afirmar o eterno retorno é reconhecer e com certeza
afirmar positivamente o contínuo ‘retorno’ da mesma

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vida com suas rudes realidades. Como isso é a vontade


ativa do niilismo, é ao mesmo tempo, a transcendência
do niilismo. Talvez do mesmo modo, o eterno retorno
se refere ao poder. Devemos nos dar conta e afirmar
o ‘retorno’ do poder, o fato de que este sempre esta-
rá conosco. Para superar o ressentimento precisamos,
em outras palavras, querer o poder. Precisamos afirmar
uma vontade de poder, na forma de valores criativos
e afirmativos da vida, de acordo com Nietzsche.56 Isso
consiste em aceitar a noção de “auto-superação”.57 Su-
perar-se nesse sentido significaria uma superação das
identidades e categorias essencialistas que nos limi-
tam. Como Foucault nos mostrou, somos construídos
como sujeitos políticos essenciais de modos que nos
dominam — isso é o que ele denomina subjetivação.58
Nos escondemos atrás de identidades essencialistas
que negam o poder e produzimos através dessa nega-
ção uma política maniqueísta de absoluta oposição que
apenas reflete e reafirma a genuína dominação a que
tal política alega se opor. Isso nós observamos no caso
do anarquismo. Para evitar essa lógica maniqueísta, o
anarquismo não deve mais contar com identidades e
conceitos essencialistas, e em vez disso, afirmar posi-
tivamente o eterno retorno do poder. Isso não é uma
realização inflexível, mas sim um “positivismo feliz”. É
caracterizado por estratégias políticas voltadas a mini-
mizar as possibilidades de dominação e aumentar as
possibilidades de liberdade.
Se identidades essencialistas são rejeitadas, fica-se
com o quê então? Pode-se ter uma noção da política
radical e da resistência sem um sujeito essencial? Seria
possível, porém, perguntar a questão oposta: como po-
deria a política radical continuar sem ‘superar’ as iden-
tidades essencialistas; nos termos de Nietzsche, sem
‘superar’ o homem? Nietzsche diz: “O mais cauteloso
dos homens pede nos dias de hoje: ‘Como o homem ain-
da pode ser preservado?’ Zaratustra, porém, pergunta
como o único e primeiro a fazê-lo: Como o homem deve
ser superado?”59 Eu defenderia que o anarquismo cres-

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Anarquismo e a política do ressentimento

ceria muito enquanto uma filosofia ética e política se


evitasse as categorias essencialistas, abrindo-se para
diferentes e contingentes identidades — um pós-anar-
quismo. Afirmar a diferença e a contingência seria se
tornar uma filosofia do forte, em vez do fraco. Nietzsche
nos exorta a “viver perigosamente”, a abolir as certezas,
a romper com as essências e estruturas e a adotar o in-
certo. “Construa suas cidades ao pé do Vesúvio! Mande
seus navios para mares nunca mapeados!”60 A política
de resistência contra a dominação deve ter lugar em um
mundo sem garantias. Permanecer aberto à diferença e
à contingência, afirmar o eterno retorno do poder, se-
ria tornar-se o que Nietzsche chama o ‘super-homem’
ou ‘além do homem’. O ‘além do homem’ é o homem
superado — a superação do humano: “Deus morreu:
agora nós queremos que o Super homem viva.”61 Para
Nietzsche o super-homem substitui Deus e o Homem —
veio redimir uma humanidade mutilada pelo niilismo,
afirmando jovialmente o poder e o eterno retorno. No
entanto gostaria de propor aqui uma versão um pouco
mais gentil, mais irônica do super homem para a políti-
ca radical. Ernesto Laclau fala de “um herói de um novo
tipo que ainda não foi criado por nossa cultura, mas
cuja criação é absolutamente necessária se nosso tem-
po está prestes a viver à altura de suas mais radicais e
alegres possibilidades.”62
Talvez o anarquismo possa se tornar uma nova fi-
losofia “heróica”, que não é mais reativa, mas ao invés
disso, criadora de valores. Por exemplo, a ética do cui-
dado e a assistência mútua propostas por Kropotkin
possam talvez serem utilizadas na construção de novas
formas de ação e de identidades coletivas. Kropotkin
prestava atenção no desenvolvimento de grupos coleti-
vos baseados na cooperação — sindicatos, associações
de todo tipo, sociedades de amigos e clubes, etc.63 Como
já assinalado, ele acreditava que isso era desdobramen-
to de um princípio natural essencial. Todavia, talvez
se possa desenvolver esse impulso coletivista sem cir-
cunscrevê-lo a idéias essencialistas sobre a natureza

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humana. A ação coletiva não necessita de um princípio


de essência humana para justificá-la. Ao contrário, é a
contingência da identidade — sua abertura à diferença,
à singularidade, à individualidade e coletividade — que
é ética em si mesma. Assim, a ética anarquista de ajuda
mútua pode ser tirada de seus fundamentos essencia-
listas e aplicadas a uma idéia aberta e não essencialista
de uma identidade política coletiva.
Uma concepção alternativa de ação coletiva pode ser
desenvolvida a partir de uma rearticulação do relacio-
namento entre igualdade e liberdade. Para grande mé-
rito do anarquismo, isso rejeita a convicção liberal que
igualdade e liberdade agem enquanto limites um para o
outro e são conceitos basicamente irreconciliáveis. Para
os anarquistas, igualdade e liberdade são impulsos li-
gados inextricavelmente, e não se pode conceber um
sem o outro. Para Bakunin: “Só sou verdadeiramente
livre quando todos os seres humanos que me cercam,
homens e mulheres, são igualmente livres. A liberdade
dos outros, longe de limitar ou negar minha liberdade, é
ao contrário a sua condição necessária e sua confirma-
ção. Eu me torno livre no verdadeiro sentido apenas em
virtude da liberdade dos outros, de modo que quanto
maior o número de pessoas livres ao meu redor, quanto
mais profunda, enorme e mais extensa for sua liberda-
de, mais profunda e mais abundante torna-se minha
liberdade.”64
A imbricação de igualdade e liberdade permite for-
mar a base de um novo ethos coletivo, que recusa a
ver a liberdade individual enquanto limite ao outro, que
recusa a sacrificar a diferença em nome da universali-
dade, e a universalidade em nome da diferença. A ética
anti-estratégica de Foucault pode ser vista como um
exemplo dessa idéia. Na sua defesa dos movimentos co-
letivos como a revolução iraniana, Foucault disse que a
ética anti-estratégica que ele adota consiste “em respei-
tar quando algo singular aparece, e em ser intransigen-
te quando o poder ofende o universal.”65 Essa aborda-

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Anarquismo e a política do ressentimento

gem anti-estratégica condena o universalismo quando


este desdenha o particular, e condena o particularismo
quando este se realiza às custas do universal. Desse
modo, uma nova ética da ação coletiva poderia conde-
nar a coletividade quando esta se realiza às expensas
da diferença e singularidade, e condenar a diferença
quando esta sucede às expensas da coletividade. Esta
é uma abordagem que permite que se combinem a dife-
rença individual e a igualdade coletiva de um modo não
dialético, mas que retém entre eles um certeiro anta-
gonismo positivo e afirmador da vida. Implica uma no-
ção de respeito à diferença, sem invadir a liberdade de
outros serem diferentes — uma igualdade de liberdade
de diferença. Em outras palavras, a ação coletiva pós-
anarquista estaria baseada em um compromisso em
respeitar e reconhecer autonomia, diferença e abertura
dentro da coletividade.
Além disso, talvez se possa conjeturar uma forma
de comunidade política ou uma identidade coletiva que
não restrinja a diferença. A questão da comunidade é
central para a política radical, incluindo o anarquismo.
Não se pode falar sobre ação coletiva sem ao menos
colocar a questão da comunidade. Para Nietzsche, as
mais modernas aspirações radicais à comunidade se-
riam uma manifestação da mentalidade do rebanho.
Contudo é possível construir uma noção de comunida-
de livre de ressentimento a partir do próprio conceito
de poder de Nietzsche. Para Nietzsche, o poder ativo é
a liberação instintiva individual de suas forças e ca-
pacidades que nele produzem uma intensa sensação
de poder, enquanto que o poder reativo, como já apon-
tado, necessita de um objeto externo para agir e para
se definir como uma oposição a este.66 Talvez se possa
imaginar uma forma de comunidade baseada no poder
ativo. Para Nietzsche esse intenso sentimento de poder
pode ser derivado do auxílio e benevolência em relação
aos outros, da intensificação do sentimento de poder
de outros.67 Assim como a ética da ajuda mútua, uma
comunidade baseada na vontade de poder pode ser

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composta de uma série de relações inter-subjetivas que


envolvem ajuda e cuidado pelas pessoas sem dominá-
las e sem negar as diferenças. Esta abertura à diferença
e à transformação de si e a ética do cuidado poderiam
ser as características específicas da comunidade demo-
crática do pós-anarquismo. Esta seria uma comunida-
de do poder ativo — uma comunidade de ‘senhores’ ao
invés de ‘escravos’.68 Seria uma comunidade que bus-
casse se superar — transformando-se continuamente
e deliciando-se com o conhecimento do seu poder para
fazer isso.
O pós-anarquismo pode então ser considerado como
uma série de estratégias ético-políticas contra a domi-
nação, sem garantias essencialistas e estruturas mani-
queístas que condicionam e restringem o anarquismo
clássico. Afirma a contingência dos valores e identida-
des, incluído a sua própria, e afirma, em vez de negar,
a vontade de poder. Em outras palavras seria um anar-
quismo sem ressentimento.

Tradução do inglês por Beatriz Scigliano Carneiro.

Notas:
1
Friedrich Nietzsche. On the Genealogy of Morality and others writings. Keith Ansell-
Pearson (org.), Tradução de Carol Diether. Cambridge, Cambridge University
Press, 1994, p. 52 O trecho aqui utilizado procede da versão em português:
Friedrich Nietzsche. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução de Paulo Cezar
de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 1998. p. 62. (N.T.).
2
Idem, p. 161.
3
Ibidem, p. 12.
4
Ibidem.
5
Ibidem, p. 19. Trecho aqui utilizado procede da versão em português:
Friedrich Nietzsche, 1998, op. cit., p.26. (N.T.).
6
Ibidem, p 161.

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verve
Anarquismo e a política do ressentimento

7
Ibidem, p. 21.
8
Ibidem, pp. 21-22.
9
Mikhail Bakunin. Political Philosophy: scientific anarchism. G.P Maximoff (org.).
London, Free Press of Glencoe, 1984, p. 207.
10
Karl Marx. “Critique of the Gotha Program” in The Marx-Engels Reader 2nd.
Ed. Robert C. Tucker (org.). New York, W.W Norton & Co. 1978, p. 538.
11
Karl Marx, “After the Revolution: Marx debates Bakunin”, 1978, op. cit.,
p. 545.
12
Mikhail Bakunin. Marxism, Freedom and the State. Translation of K.J Kenafick.
London, Freedom Press, 1950, p. 49.
13
Mikhail Bakunin, 1984, op.cit., p. 228.
14
Ibidem, p. 221.
15
Nietzsche, 1994, op. cit., p. 61.
16
Idem, pp. 62-63.
17
Ibidem, p. 63.
18 Thomas Hobbes. Leviathan. Oxford, Basil Blackwell, 1947, p. 83. Em portu-
guês. Thomas Hobbes. Leviatã. (Os Pensadores). Tradução de João Paulo Monteiro e
Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo, Editora Abril, 1973. (N.T.).
19
Idem, p. 82.
20
Bakunin, 1984, op. cit., p. 165.
21
Idem.
22
Piotr Kropotkin. The State: Its Historic Role. London, Freedom Press, 1946, p.
37. Em português: Piotr Kropotkin. O Estado e seu papel histórico. Tradução de
Alfredo Guerra. São Paulo, Nu-Sol/ Imaginário, 2000. (N.T.).
23
Bakunin, 1984, op. cit., p. 166.
24
Idem, p. 239.
25
Ibidem.
26
Kropotkin, 1946, op. cit., p. 12.
27
Bakunin, 1984, op. cit., p. 121.
28
Idem, p. 212.
29
Ibidem, p. 240.

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2008

30
Ibidem, p. 157.
31
Bakunin, 1984, op. cit., p. 156.
32
Piotr Kropotkin. Ethics: Origin & Development. Translation of L. S Friedland,
New York, Tudor, 1947, p. 14.
33
Idem, p. 45.
34
Hobbes, 1947, op. cit., p. 120.
35
Idem, p. 120.
36
Jacques Donzelot. “The Poverty of Political Culture”. In Ideology & Con-
sciousness, 5, 1979, 73-86, p. 74.
37
Idem.
38
Bakunin, 1984, op. cit., p. 224.
39
Idem, p. 145.
40
Ibidem, p. 172.
41
Ibidem, p. 138.
42
Ibidem, p. 248.
43
Kropotkin, 1946, op. cit., p. 28.
44
Idem, p. 17.
45
O autor não apontou a obra específica da citação da noção de real apresen-
tada. (N. T.)
46
Michel Foucault. “The Subject and Power”. In Hubert L. Dreyfus and Paul
Rabinow, Michel Foucault: Beyond Structuralism and Hermeneutics. Brighton, Har-
vester Press, 1982, p. 221. Em português: Hubert Dreyfus,.& Paul Rabinow.
Michel Foucault: uma trajetória filosófica, para além do estruturalismo e da hermenêutica.
Tradução de Vera Portocarrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
(N.T.).
47
Nietzsche, 1994, op. cit., p. 28. Trecho aqui utilizado procede da versão em
português: Nietzsche, 1998, op. cit., p. 36. (N.T.).
48
Michel Foucault. The History of Sexuality. Vol.I: Introduction. Translation of R.
Hunter. New York, Vintage Books, 1978, p. 93. Em português: M. Foucault.
História da sexualidade. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Re-
visão técnica de José Augusto Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro, Graal.
Vol. 1, 1977; vol. II, 1984; vol.III, 1985. (N.T.).
49
Michel Foucault. Discipline and Punish: the Birth of the Prison. Translation of
Alan Sheridan. London, Penguin Books, 1991, p. 27. Em português: Michel

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verve
Anarquismo e a política do ressentimento

Foucault. Vigiar e Punir: História da Violência nas Prisões. Tradução de Lígia M. Ponde
Vassalo. São Paulo, Vozes, 1977. (N.T.).
50
Michel Foucault. “Power and Strategies”. In Power/Knowledge: selected interviews and
other writings 1972-77, Colin Gordon (org.), New York, Harvester Press, 1980, p.
141. Em português: Michel Foucault. “Poderes e estratégias” in Estratégia, poder-
saber (Ditos e escritos vol. IV). Org. Manuel Barros da Motta e tradução de Vera L.
Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2003, pp. 241-252. (N.T.).
51
Michel Foucault. “The Ethic of Care for the Self as a Practice of Freedom”. The
Final Foucault, ed., J. Bernauer and D. Rasmussen, MIT Press: Cambridge, Mass,
1988, p. 3. Em português: “A ética do cuidado de si como prática da liberdade” in
Ética, sexualidade, política (Ditos e Escritos Vol. V). Tradução de Elisa Monteiro e
Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro, Forense, 2004 (N.T.).
52
Michel Foucault. “On the Genealogy of Ethics”. The Foucault Reader. Paul Rabinow
(org), New York, Pantheon Books, 1984, p. 343. Em português: “Sobre a genealo-
gia da ética: uma revisão do trabalho” in Hubert Dreyfus e Paul Rabinow. Michel
Foucault, uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução
de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995, pp. 253-278.
(N.T.).
53
Foucault. History of Sexuality. op. cit., p. 96.
54
Friedrich Nietzsche. Birth of Tragedy, in Basic Writings. Translation of Walter
Kaufmann, New York, Modern Library, 1968, p. 72. Em português: F. Nietzsche.
O nascimento da Tragédia. Tradução de Jacob Guinsburg. São Paulo, Companhia das
Letras, 1998. (N.T.).
55
Cf. Allan Megill. Prophets of Extremity: Nietzsche, Heidegger, Foucault, Derrida.
Berkeley, University of California Press, 1985, p. 39.
56
Nietzsche, 1994, op. cit., pp. 55-56.
57
Cf. Friedrich Nietzsche. Thus Spoke Zarathustra. Translation of R.J Hollingdale,
London, Penguin, 1969, pp. 28-29. Em português: F. Nietzsche. Assim falou
Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1998.
(N.T.).
58
Foucault, 1982, op. cit., p. 212.
59
Nietzsche, 1969, op. cit., p. 297.
60
Friedrich Nietzsche. The Gay Science. Translation of., Walter Kaufmann, New
York, Vintage, p. 228. Em português: F. Nietzsche. A gaia ciência. Tradução de
Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2001. (N.T.).
61
Nietzsche.1969, op. cit., p. 297.

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2008

62
Ernesto Laclau. “Community and Its Paradoxes: Richard Rorty’s ‘Lib-
eral Utopia’”. In Ernesto Laclau (org.) Emancipations, London, Verso, 1996,
105-123, p. 123.
63
Piotr Kroptokin. Mutual Aid: A Factor of Evolution. London, Penguin Books
Ltd., 1939, p. 210.
64
Bakunin, 1984, op. cit., p. 267.
65
Michel Foucault. “Is It Useless To Revolt?”. In Philosophy and Social Criticism 8
(1) (1981), pp. 1-9, p. 9. Em português: Michel Foucault. “É inutil revoltar-se?”
in Michel Foucault, 2004, op. cit.
66
Cf. Paul Patton. “Power in Hobbes and Nietzsche”. In Paul Patton (org.)
Nietzsche, Feminism & Political Theory. Australia, Allen & Unwin, 1993, p. 152.
67
Idem, p. 156.
68
Ibidem, p. 154.
RESUMO
Este ensaio investiga o discurso anarquista clássico por meio da
lógica do ressentimento no pensamento maniqueísta que habita
esta política radical, conforme apontado por Nietzsche. Levan-
do em conta também a noção de poder de Foucault, Newman
afirma um anarquismo que seja mais do que reação ao Estado,
mas que implique uma comunidade baseada no poder ativo, na
qual a liberação individual de forças e capacidades produz uma
intensa sensação de poder compartilhada mutuamente.
Palavras-chave: anarquismo, ressentimento, pós-anarquismo.

ABSTRACT
This essay investigates the classic anarchist discourse through
the logic of ressentiment in the Manichean thinking that inhabits
this radical politics, as pointed out by Nietzsche. Considering
also Foucault’s notion of power, Newman affirms an anarchism
that is more than reaction to the state but implies a community
based on active power, in which the individual’s discharge of
forces and capacities produce an enhanced sensation of power
mutually shared.
Keywords: anarchism, ressentiment, post anarchism.

Recebido para publicação em 25 de março de 2008.


Confirmado em 16 de junho de 2008.

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14
2008

sobre a fundamentação metodológica do


enfoque abolicionista do sistema de justiça
penal — uma comparação das idéias de
hulsman, mathiesen e foucault1

rolf s. de folter*

Dedicado a Louk Hulsman

I. Introdução

Uma característica interessante do sistema penal ou


do sistema de justiça penal é o fato de se encontrar
em um estado de reforma quase permanente.2 A respei-
to do sistema prisional, Foucault afirma que o debate
sobre sua reforma é quase contemporâneo ao nasci-
mento da prisão.3 Atualmente é discutida uma grande
quantidade de propostas de reformas com a intenção de
melhorar o sistema de justiça penal. Fala-se em “des-
criminalização”, “despenalização”, “diversificação”, “de-
saceleração”, “tratamento comunitário”, “desinstitucio-
nalização”, etc. Vimos como a criminologia baseada nas
teorias do “rotulamento” e do “conflito” e os diferentes

*
Professor no Departamento de Filosofia da Universidade de Erasmus,
Rotterdam, Holanda

verve, 14: 180-215, 2008


180

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verve
Sobre a fundamentação metodológica do enfoque abolicionista...

tipos de criminologia “radical”, como “A Nova Crimi-


nologia” e as criminologias “marxista”, “materialista”,
“dialética”, “socialista” e “crítica” desafiam a hegemo-
nia da criminologia tradicional “clássica” e “positiva”.4
O desafio mais radical dentro da teoria criminológica
é apresentado na posição abolicionista do sistema de
justiça penal.
Quando falamos de abolicionismo devemos distin-
guir entre o sentido restrito do termo e o seu sentido
mais amplo. O abolicionismo no sentido restrito refere-
se à abolição de um aspecto específico do sistema pe-
nal. Podemos, assim, falar da abolição da pena capital.
Esse tipo de abolicionismo aproxima-se da descrimina-
lização no que diz respeito “(...) àqueles processos pe-
los quais a ‘competência’ do sistema penal para aplicar
sanções, como uma reação diante de certa forma de
conduta é suprimida no que se refere a essa conduta
específica.”5 O abolicionismo nesse sentido restrito não
é uma novidade.
Thomas More, por exemplo, queria substituir a pena
de morte pelo trabalho forçado. Beccaria reclamava a
abolição da pena capital em seu famoso livro Dei delitti
e delle pene,6 baseando-se na teoria do contrato social,
já que ninguém pode outorgar a outro o direito de matá-
lo.
Falamos de abolicionismo no sentido mais amplo
quando não só uma parte do sistema de justiça penal,
mas o sistema em seu conjunto é considerado um pro-
blema social em si mesmo e, portanto, a abolição de
todo o sistema aparece como a única solução adequada
para esse problema. Neste artigo refiro-me ao abolicio-
nismo em seu sentido mais amplo. Vejo o abolicionismo
como uma maneira de captar todas as práticas discursi-
vas e não discursivas do sistema de justiça penal e uma
maneira de atuar frente a elas. Com relação às práticas
discursivas faço referência a tudo o que foi falado ou
escrito sobre o sistema de justiça penal em forma de
discurso no sentido foucaultiano.7 Por exemplo, pode-

181

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14
2008

mos considerar a lei penal como um corpo de textos


e doutrinas, a produção discursiva de organizações
do Estado, como a polícia, os tribunais, a promotoria,
a administração prisional, o ministério de justiça e o
legislativo e a informação dos meios de comunicação.
Por práticas não discursivas entendo os fatos dentro do
sistema de justiça penal que não têm o caráter de dis-
curso, por exemplo a pena de morte, a pena de prisão,
o tratamento médico-social dos delinqüentes, a busca e
apreensão dos mesmos por parte de um policial.
Concebo o abolicionismo como um método. O filósofo
alemão Heidegger nos diz que o verdadeiro método nun-
ca pode ser apreendido como uma técnica que possa ser
aplicada simplesmente a qualquer objeto de estudo.8 O
verdadeiro método não pode ser aplicado simplesmente
a uma realidade jurídica predeterminada, mas é tam-
bém o elemento constitutivo do caráter da realidade
jurídica que libera. O significado de alguma coisa não
pode estar separado do acesso a ela. O acesso é parte
do próprio significado. Entre o método e o objeto existe
uma relação dialética que na tradição hermenêutica é
conhecida como o problema da “aplicação”.9
Penso que a relação correlativa a priori entre o mé-
todo e o objeto está presente de forma preeminente
no método abolicionista. O problema da “aplicação”
(Anwendung) do método a um objeto radicaliza-se pelo
problema da “elevação” e “supressão” (Aufhebung) do
objeto. O método abolicionista luta pela abolição do sis-
tema de justiça penal em sua totalidade. Essa luta pela
abolição nos dá uma indicação direta do status filosó-
fico do método. Os objetos do método abolicionista não
são essências dadas, eternas e imperecíveis. Assim, po-
demos dizer que o abolicionismo é antiplatonismo.
Quando caracterizamos o abolicionismo como uma
espécie de antiplatonismo, afirmamos também que não
existe alguma coisa que possa ser entendida como a
essência do “abolicionismo”. Podemos dizer que o abo-
licionismo é a bandeira sob a qual navegam barcos de

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verve
Sobre a fundamentação metodológica do enfoque abolicionista...

diversos tamanhos, transportando diversas quantida-


des de explosivos. Em relação à maneira em que de-
verão explodir, não existe uma única idéia. Resumin-
do, não há teoria abolicionista que contemple todas as
características dos diferentes enfoques abolicionistas
do sistema de justiça penal. Em lugar de me referir a
uma teoria geral abstrata do abolicionismo, quero fazer
uma revisão dos três diferentes tipos de abolicionismo
e tratar de mostrar suas diferenças específicas. Farei
referência ao filósofo francês Michel Foucault, ao cri-
minologista holandês Louk Hulsman e ao sociólogo no-
rueguês Thomas Mathiesen. Todos podem ser tratados
como abolicionistas no sentido mais amplo do termo
que foi discutido anteriormente. Também se asseme-
lham no fato dos três terem fundado grupos de ação ou
de pressão contra o sistema de justiça penal. Foucault
fundou o Grupo de Informação sobre as Prisões (Groupe
d’Information sur les Prisions), o GIP, Hulsman iniciou
a Liga Coornhert, a qual, por exemplo, apresentava to-
dos os anos um orçamento alternativo para o Ministério
de Justiça, e Mathiesen teve a iniciativa de fundar o
KROM, sigla do Norsk forening for kriminalreform (As-
sociação Norueguesa para a Reforma Penal).
Neste artigo quero prestar especial atenção às di-
ferenças na fundamentação metodológica do enfoque
abolicionista de cada um deles. De uma maneira geral,
podemos marcar essas diferenças dizendo que a funda-
mentação metodológica reside, para Foucault, em sua
particular concepção do estruturalismo, para Hulsman,
em um tipo específico de método fenomenológico que
se ocupa do mundo das experiências vividas e, para
Mathiesen, em um tipo de materialismo com orientação
marxista.
No decorrer do texto, farei referência, sucessivamen-
te, às concepções abolicionistas de Hulsman, Mathiesen
e Foucault, segundo as seguintes perguntas: o que deve
ser abolido? Como atingir a abolição? Qual é a funda-
mentação metodológica do abolicionismo?

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14
2008

Finalmente, tentarei delinear a possibilidade que


cada autor tem de criticar o outro, e também de que
forma se complementam.

II. O abolicionismo de Hulsman

1. O que deve ser abolido? — Hulsman é professor de


direito penal na Universidade de Erasmus, em Rotterdam,
desde 1964. Com humor poderia dizer-se que é o pro-
fessor que está tentando abolir sua própria posição no
direito penal. Numa publicação recente, reclama a abo-
lição do sistema penal em sua totalidade.10 A razão para
a abolição do sistema penal já tinha ficado implícita no
ambíguo título de seu livro, escrito em francês, Peines
Perdues, le système penal en question. Peines perdues
são “castigos sem sentido” e ao mesmo tempo “castigos
perdidos” que devem ser abolidos precisamente por sua
falta de sentido. Sua visão abolicionista surge de uma
dúvida cada vez maior sobre a justiça e a conveniência
do sistema de justiça penal. Podemos seguir um pro-
cesso de radicalização em seu pensamento sobre o fun-
cionamento do sistema de justiça penal. Desde o prin-
cípio enfatizou a importância de comparar o sistema de
direito penal com os sistemas de direito civil e adminis-
trativo no que diz respeito às condições de aplicação,
“controlabilidade” e seus “produtos” intencionais ime-
diatos. No Informe sobre Descriminalização do Conselho
da Europa, no qual reconhecemos em grande medida
as idéias de Hulsman, afirma-se que em comparação ao
sistema civil e certas partes do sistema administrativo,
o sistema de justiça penal apresenta riscos especiais
de “incontrolabilidade” do próprio sistema.11 Durante
muito tempo, Hulsman tentou desenvolver critérios ra-
cionais de criminalização e penalização. Entretanto, foi
se convencendo aos poucos de que seria melhor abolir
o sistema penal em sua totalidade devido à sua obscura
contraprodutividade em relação a seus objetivos. Como
resultante do fato de que o sistema de justiça penal não

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verve
Sobre a fundamentação metodológica do enfoque abolicionista...

funciona de acordo às legitimizações que lhe foram da-


das, como a ressocialização e a prevenção, e do fato de
que o sistema não atende às verdadeiras necessidades
da população, ele chega à conclusão extrema de que
se deve abolir o sistema repressivo em sua totalidade.
Cada vez mais, foi se convencendo de que o sistema
penal era um problema social em si mesmo. As três
razões principais que tornam o sistema de justiça penal
problemático como sistema de controle social são: cau-
sa um sofrimento desnecessário que, além disso, está
desigualmente repartido, “seqüestra” o conflito, como
diz Christie, já que apenas influi naqueles que se vêem
diretamente envolvidos, e finalmente parece difícil de
ser controlado.
Devo esclarecer que a abolição do sistema penal in-
clui, ao menos para Hulsman, os diferentes campos do
direito penal. Ele não faz exceções, por exemplo, para
os crimes de contaminação ambiental, crimes econômi-
cos, de trânsito, ou crimes de colarinho branco.12 Seu
posicionamento abolicionista mostra uma tendência em
direção à radicalização. Anteriormente, Hulsman falava
cautelosamente sobre a abolição do sistema penal como
uma hipótese e como um ponto de vista. Hoje, porém,
fala da abolição como um objetivo positivo que deve ser
alcançado. A abolição de todo o sistema penal não é
uma utopia, mas uma necessidade lógica, uma gestão
realista e uma demanda de justiça.13
2. Como atingir a abolição? — Quando Hulsman re-
clama a abolição do sistema penal em sua totalidade
refere-se a que a administração estatal centralizada da
justiça penal deveria ser substituída por formas des-
centralizadas de regulação autônoma de conflitos, nas
quais aqueles que estão diretamente envolvidos tenham
maior influência. Não é sua intenção abolir a estrutura
das sanções penais e substituí-las por estruturas de
tratamento médico ou pedagógico ou, simplesmente,
por uma estrutura menor da justiça penal. O que im-
porta é a abolição do nível estatal de regulação de con-

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14
2008

flitos em favor de um nível direto ou mais autônomo,


como ainda pode ser observado, por exemplo, nas so-
ciedades tribais. Nelas, a regulação dos conflitos acon-
tece no nível das relações entre os grupos e das relações
diretas entre indivíduos, com a ajuda de instituições
ou procedimentos que estão muito mais vinculados à
experiência direta das pessoas.14
A organização central burocrática do sistema penal
seqüestra o problema dos que estão diretamente envol-
vidos e, portanto, trata problemas que eles não têm. A
abolição do sistema penal centralizado teria dois efeitos
importantes. Em primeiro lugar, a eliminação dos pro-
blemas sociais ocasionados pelo sistema, como a fabri-
cação de pessoas culpadas, a estigmatização dos pri-
sioneiros, o “seqüestro do problema”, a marginalização
de determinados grupos, a dramatização dos conflitos
por parte dos meios de comunicação, etc. Em segun-
do lugar, a “revitalização da fibra social”.15 A ausência
do sistema penal estatal, com seus esquemas de inter-
pretação reducionista e suas soluções estereotipadas,
permitiria em todos os níveis da vida social outros ti-
pos de soluções de conflitos muito mais vinculados à
experiência imediata daqueles que estão diretamente
envolvidos. Podemos dizer que as idéias abolicionistas
de Hulsman estão ligadas às idéias dos “verdes”, do
movimento ecologista e às idéias do “pequeno é belo”
e do “autocontrole” no campo da economia. A idéia de
solidariedade é básica para seu abolicionismo. Trata-se
da solidariedade viva com seres concretos ou grupos de
seres, como as pessoas dentro e fora do sistema penal,
ainda que também inclua a solidariedade com os ani-
mais e com os objetos concretos. A solidariedade sur-
ge de um entendimento agudo da igualdade dos seres,
oposto ao tradicional, variado e excludente conceito de
igualdade.16
De uma maneira geral, podemos dizer que a aboli-
ção do sistema penal requer uma forma de conversão.
A conversão tem aqui um sentido metafórico. Significa

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Sobre a fundamentação metodológica do enfoque abolicionista...

um salto, tanto no nível da compreensão como no da


ação no mundo. O abolicionismo requer uma espécie
de conversão coletiva.17 Essa conversão requer antes
de mais nada a abolição dos conceitos tradicionais e
da “gramática” do sistema penal. A abolição radical do
sistema penal significa em primeiro lugar a abolição do
conceito de crime. Segundo a opinião de Hulsman, é um
erro fundamental considerar o crime e a criminalidade
como categorias básicas para a compreensão e defini-
ção dos fatos “reais” e da organização da reação frente
a eles. Obviamente, a abolição do conceito de crime e
criminalidade não implica a solução de todos os proble-
mas. As situações problemáticas persistirão. Hulsman
propõe tomar essas “situações-problema” como ponto
de partida.
A abolição de um estilo quase reducionista de reação
do sistema de justiça penal diante de uma “situação-
problema” abre espaço para uma quantidade de outras
definições e reações diante dela, tais como o sistema
mais informal de solução de conflitos ou os modelos
compensatórios, conciliatórios, terapêuticos ou educa-
tivos de reação.18 Também deveriam ser abolidos outros
conceitos, como o de “gravidade” do crime, “periculosi-
dade” do delinqüente, o conceito metafísico de culpabi-
lidade e a dicotomia do “bom” e do “mau”. A abolição do
conceito de crime obriga-nos a revisar completamente
o vocabulário do sistema de justiça penal. Uma vez que
se percebe a infertilidade de ver a criminalidade como
uma qualidade de pessoas, comportamentos ou situa-
ções, faz-se necessário o desenvolvimento de um novo
vocabulário para a interpretação de fenômenos sociais
que anteriormente eram considerados como criminali-
dade. O desmantelamento dos velhos conceitos não só
não admite, obviamente, a conservação das velhas ca-
tegorias sob novos termos, mas também requer “outra
lógica”, ou, diria eu, “outra linguagem”.19 Também im-
plica a abolição da concepção voluntarista da filosofia e
da forma escolástica de pensamento contida na cosmo-
logia da teologia escolástica medieval, na qual implica a

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2008

existência de um ponto de vista absoluto, de um Deus


onipresente e onisciente. Também é necessário abolir a
projeção das chamadas teorias do contrato, nas quais
o mal individual é considerado como um mal que afeta
toda a sociedade. E, assim, estaria resolvido o problema
da falta de influência daqueles diretamente interessa-
dos.
Esse problema está também diretamente relaciona-
do à lógica do sistema de justiça penal, que não está
orientada para as necessidades e os interesses das pes-
soas que se sentem vítimas, mas que está legitimada
por interesses da “sociedade”, como a prevenção geral,
a prevenção especial e a ressocialização. O sistema de
justiça penal enfrenta os problemas reduzindo-os, re-
constituindo-os em consonância com sua lógica espe-
cífica, em vez de enfrentar o verdadeiro problema e as
verdadeiras necessidades dos diretamente envolvidos.
Todo o universo isolado de situações criminais, distan-
ciadas da realidade, deveria ser abolido. Alguns pode-
riam temer que a abolição do sistema penal traga ou-
tros perigos, como a vingança privada, a autodefesa, a
violência e a insegurança social. Hulsman responderia
a eles que a abolição da maquinaria penal não implica
a exclusão de toda coerção. Ele considera que a polícia
ainda tem um papel a desempenhar na manutenção da
ordem pública e na paz e no aprisionamento de pesso-
as. Devemos perceber que o sistema de justiça penal
é tão somente uma parte menor dos mecanismos em
funcionamento na sociedade para a administração de
conflitos e para o controle de condutas e situações não
desejáveis.
Hulsman não nos dá um plano elaborado ou detalha-
do para a realização concreta da abolição do sistema de
justiça penal. Seria um erro esperar sequer um rascu-
nho definitivo ou elaborado para a abolição do sistema.
Entretanto, nos dá a estratégia global para implemen-
tar sua política penal abolicionista. Em primeiro lugar,
oferece-nos uma estratégia para os fatos ainda não cri-

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Sobre a fundamentação metodológica do enfoque abolicionista...

minalizados. É necessário prestar atenção permanen-


te e cuidadosa, e atuar para evitar a criminalização de
situações-problema, especialmente aquelas situações
que só são consideradas problemáticas por aqueles
que estão fora da situação. Ao considerar a abolição do
sistema penal em sua totalidade, torna-se necessário
desenvolver critérios racionais para controlar todas as
decisões concretas sobre criminalização.
Devemos pensar aqui em critérios como o princípio
de subsidiaridade, critérios sobre o caráter problemáti-
co das situações que eventualmente legitimem a crimi-
nalização, critérios relativos aos custos e benefícios das
ações penais e critérios relacionados à capacidade do
sistema penal. Em resumo, interessa-nos o problema
da redução e minimização da criminalização.
Em segundo lugar, necessitamos de uma estratégia
para reduzir a atual aplicação do sistema penal. Aqui
devemos desenvolver uma estratégia para a descrimina-
lização. Devemos distinguir entre os diferentes tipos de
descriminalização. Assim, podemos diferenciar a des-
criminalização de jure da descriminalização de facto.
Por descriminalização de jure entende-se a redução da
competência formal do sistema por um ato de legisla-
ção. A descriminalização de facto é o fenômeno de redu-
ção (gradual) das atividades do sistema de justiça penal
relativas a certas formas de conduta ou a certas situa-
ções, ainda que não tenha ocorrido nenhuma mudan-
ça na competência formal do sistema.20 Em relação à
descriminalização de jure podemos distinguir três tipos
diferentes. O primeiro é o chamado “descriminalização
tipo A”, que aponta para o total reconhecimento legal e
social da conduta descriminalizada, por exemplo a abo-
lição da discriminação ou descriminalização da conduta
homossexual. Em segundo lugar, a “descriminalização
tipo B”, cuja aspiração não é o reconhecimento total
legal e social da conduta descriminalizada, mas a mu-
dança de opinião sobre o papel do Estado em áreas im-
portantes, como, por exemplo, a descriminalização dos

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delitos sexuais. Em terceiro lugar, a “descriminalização


tipo C”, que se refere à descriminalização da conduta
que ainda é considerada não desejável, mas que perma-
nece sob a competência do Estado para tratá-la. Além
dessa classificação, é importante desenvolver modelos
concretos de descriminalização para as distintas áreas,
por exemplo os delitos contra a propriedade, como os
delitos cometidos com cheques ou cartões de crédito,
furtos em lojas de departamentos ou roubos em fábri-
cas por parte de seus empregados.
Finalmente, é necessário criar alternativas ao en-
foque da justiça penal diante de situações-problema.
Podemos pensar na “mudança do meio simbólico dos
fatos criminalizados” através de uma mudança na ava-
liação de sua não desejabilidade ou um aumento de sua
tolerância. Uma segunda alternativa é a prevenção téc-
nica: a mudança do meio físico através da técnica, com
a intenção de influenciar em uma situação para que
resulte menos problemática. Por exemplo, o uso de dis-
positivos eletrônicos e não permitir o acesso direto do
consumidor aos produtos podem ser formas possíveis
de diminuir a freqüência dos furtos nas lojas de de-
partamentos. Também são importantes nesse contexto
as mudanças na forma de organização da vida social,
isto é, o desenvolvimento de enfoques alternativos para
fatos não desejáveis definidos como delitos. Uma últi-
ma alternativa é substituir o controle social do sistema
de justiça penal por outras formas de controle social;
por exemplo, podemos pensar em formas de controle
social compensatórias, terapêuticas ou conciliatórias.
Hulsman menciona, nesses casos, o sistema de “juntas
comunitárias” do Canadá e dos Estados Unidos.21
3. Qual é a fundamentação metodológica do abo-
licionismo de Hulsman? — Quando lemos o trabalho
de Hulsman, dificilmente encontramos declarações ex-
plícitas sobre a fundamentação metodológica de seu
enfoque abolicionista. Podemos dizer, porém, que seu
enfoque abolicionista se caracteriza profundamente por

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uma atitude anti-reducionista frente às situações-pro-


blema. Ele enfatiza que a criminalização é somente uma
opção em relação às chamadas situações-problema, e
por certo não é a melhor. Eu suponho que Hulsman
concordaria com a afirmação que o pai da fenomeno-
logia, Edmund Husserl, faz em Crise das ciências euro-
péias e a fenomenologia transcendental: “É a vestimenta
das idéias que nos leva a tomar por verdadeiro o que
é apenas método.”22 Podemos dizer que a criminaliza-
ção não é mais do que pôr “uma vestimenta de idéias”
em certas situações-problema. A maior parte das vezes
sequer percebemos que o enfoque criminalizador é ape-
nas uma opção para compreender uma situação-pro-
blema e atuar sobre ela. Muito freqüentemente comete-
mos o erro de “reificar” o delito. A “reificação” significa
que uma interpretação da realidade, uma construção
humana, é transformada numa realidade em si mes-
ma, independentemente da realidade constitutiva da
atividade humana. De fato, Hulsman diz que se a ves-
timenta das idéias criminalizantes não é satisfatória,
por ser demasiado reducionista, e produz uma gran-
de confusão sobre o que realmente está acontecendo,
devemos descartá-la. Seguindo sociólogos fenomenolo-
gistas, como Schütz, Berger e Luckmann, poderíamos
dizer que a realidade do sistema de justiça penal é tão
somente uma realidade construída. Também é possível
imaginar outras construções, mas para isso é necessá-
rio antes de mais nada o que Heidegger chama de “des-
truição fenomenológica” da construção já existente.
Poderíamos dizer que Hulsman está fazendo a des-
truição fenomenológica do sistema de justiça penal.
Esse procedimento nos faz conhecer a existência do
mundo das experiências mais primárias e diretas, que
precede à visão reducionista do sistema penal sobre
esse mundo. Quando Scheerer chama o abolicionismo
de “teoria sensibilizante”,23 eu o interpreto, em primeiro
lugar, no sentido de que o abolicionismo de Hulsman
nos faz sensíveis ao mundo concreto das experiências
vividas diretamente pelos que se vêm envolvidos em si-

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tuações-problema. Em segundo lugar, nos faz sensíveis


ao fato de que a criminalização é só uma opção, entre
outras, para reagir diante de uma situação-problema.
No enfoque abolicionista de Hulsman ressoa o velho
adágio fenomenológico de “voltar às coisas”. Temos de
deixar de lado os esquemas reducionistas de interpre-
tação do sistema de justiça penal para ter uma maior
sensibilidade sobre o que realmente acontece no mun-
do cotidiano. Temos de voltar ao mundo da vida ou ao
mundo de experiências vividas diretamente. O ponto
inicial da análise não deveria ser as categorias totaliza-
doras, objetivizantes e abstratas do sistema de justiça
penal, mas aquelas situações concretas do mundo da
vida que são vividas como problemáticas pelas pessoas
diretamente envolvidas, e que precedem o mundo abs-
trato do sistema penal.
Quando Hulsman fala de “revitalizar a estrutura
social”, isso implica em primeiro lugar uma volta ao
mundo da vida de interação interpessoal e comuni-
cação direta. O sistema de justiça penal transcende o
enraizamento do homem e seus problemas cotidianos.
Hulsman reclama esses autênticos direitos e quer dar
espaço novamente às múltiplas formas do mundo da
vida e à diversidade de soluções autônomas que podem
ser encontradas nesse nível. Quando Hulsman fala da
conversão necessária para implementar sua política
criminal abolicionista, podemos interpretá-lo fenome-
nologicamente no sentido da famosa mudança de ati-
tude de Husserl (Einstellungsänderung). Uma mudança
de atitude que nos leva desde a “atitude naturalista” da
reificação, objetivação das construções criminalizantes
da realidade social, até a “atitude fenomenológica”, que
nos põe em contato com o conhecimento do mundo con-
creto das experiências vividas e do rico mundo da vida
diária, com seus diferentes remédios e soluções para as
situações-problema.
Concluindo, gostaria de dizer que ainda que Hulsman
não nos ofereça uma completa fundamentação meto-

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dológica para seu abolicionismo, nos dá, entretanto,


indicações em direção ao seu enfoque fenomenológico.
De qualquer maneira, eu diria que a fenomenologia nos
oferece uma reflexão epistemológica adequada e uma
fundamentação metodológica para o abolicionismo de
Hulsman. Não se trata, obviamente, do tipo idealista
de fenomenologia no sentido de Husserl, mas um tipo
“mundano” de fenomenologia ou de fenomenologia do
mundo da vida, como o colocam Merleau-Ponty, Schütz
e os etnometodologistas.

III. O abolicionismo de Mathiesen

1. O que deve ser abolido? — Mathiesen é pesqui-


sador do Instituto de Pesquisa Social e professor de
Sociologia do Direito na Universidade de Oslo. Como
sociólogo, interessou-se especialmente pela pesquisa
da organização do tratamento institucional dos delin-
qüentes. Foi então que percebeu que muitos casos de
encarceramento eram injustos, já que a pena era desne-
cessariamente dura em relação ao delito. Em 1968 par-
ticipou pessoalmente da criação da KROM, Associação
Norueguesa para a Reforma Penal — análoga à KRUM,
na Suécia, e à KRIM, na Dinamarca —, cujos membros
são advogados, criminologistas, detentos, ex-detentos,
profissionais do serviço penitenciário, etc. Desde 1968
até 1973 foi presidente e, depois, membro da direção da
KROM. Seus dois objetivos principais foram formulados
em 1968, da seguinte maneira: “A longo prazo, mudar
o pensamento geral a respeito do castigo e substituir
o sistema penitenciário por medidas mais modernas e
adequadas. A curto prazo, derrubar todos os muros que
não sejam necessários: humanizar as diferentes formas
de detenção e aliviar o sofrimento que a sociedade in-
fringe aos detentos.”24 Desde então essa formulação foi
alterada várias vezes, como também a estratégia para
alcançar esses objetivos. O desenvolvimento de sua
atitude abolicionista está, em grande medida, direta-

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mente relacionado ao resultado do programa de ação


da KROM.
O abolicionismo de Mathiesen é muito especial, pois,
em primeiro lugar, não trata de abolir, mas de estabele-
cer alguma coisa. Trata de estabelecer o início e a ma-
nutenção do “inacabado”. Esse objetivo, porém, implica
a “abolição” de um sistema social repressivo, ou de par-
te dele. A abolição se produz “quando rompemos com a
ordem estabelecida e ao mesmo tempo nos deparamos
com um terreno vazio.”25 Manter o “inacabado” e se en-
frentar a um terreno sem construir nos diz que não se
trata de substituir a ordem estabelecida por outra. Só
a abolição do que está acabado dá uma oportunidade
ao inconcluso. Podemos dizer, portanto, que o início do
inacabado acontece através da abolição de uma ordem
estabelecida, ou pelo menos através do trabalho para
tal abolição. As idéias de Mathiesen sobre o estabele-
cimento do inacabado baseiam-se no temor de que, ao
escolher alternativas acabadas, todas as mudanças es-
truturais se transformem em uma mudança marginal
que na realidade não afetaria a ordem predominante.
Finalmente, gostaria de destacar que enquanto
Hulsman coloca a abolição de todo o sistema de justiça
penal, Mathiesen tenta abolir os absorventes sistemas
sociais repressivos da última etapa do capitalismo de
Estado. Mathiesen tenta chegar à “(...) transcendência
da estrutura repressiva de nossa sociedade, na última
instância do modelo básico de produção dessa socieda-
de.”26 Seu abolicionismo tem, ao menos em princípio,
uma maior extensão que o abolicionismo de Hulsman.
Nos fatos, porém, seu abolicionismo baseia-se na idéia
de que a política penal norueguesa “envolve em grande
medida um tratamento irracional e injusto dos grupos
marginais da sociedade — tratamento que deveria ser
abolido em uma medida considerável.”27
2. Como atingir a abolição? — A abolição do sistema
repressivo social, ou de parte dele, será alcançada por
meio de uma ação radical, isto é, “uma ação política

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que transcenda os limites”. Uma parte substancial do


trabalho de Mathiesen refere-se ao “(...) questionamen-
to geral de como iniciar e manter um movimento polí-
tico que transcenda os limites, seja vital, expansivo e
‘inacabado’.”28 Seu trabalho pode ser caracterizado, em
grande medida, como o desenvolvimento de uma teoria
de ação política.
Seu interesse numa teoria de ação política que trans-
cenda os limites está fortemente influenciado por suas
experiências como membro ativo da KROM. Lá compro-
vou que produzir mudanças estruturais em um siste-
ma social repressivo é um empreendimento crítico. É
muito conhecida a estratégia utilizada pelo sistema es-
tabelecido para obstruir todo movimento abolicionista,
introduzindo uma ordem nova que, de alguma maneira,
suavize as críticas contra a velha ordem, sem produzir
mudanças estruturais nela. Antes de que as pessoas o
percebam, foram capturadas pelo sistema que tenta-
vam combater. Podemos lembrar aqui a famosa teoria
de Marcuse sobre a “tolerância repressiva”. Mathiesen
refere-se ao problema de “definição interior” e “definição
exterior”. A definição interior é o processo pelo qual os
sistemas de idéias que originalmente apontavam para
abolir a repressão se transformam, através de muitos
elementos absorventes da formação social, em sistemas
de idéias geradoras de repressão. Através da estratégia
de definição interior, leva-se as pessoas a cooperar, por
exemplo quando são convidadas a persuadir os repre-
sentantes do Estado, ou a demonstrar como se devem
fazer as coisas, ou a participar na tomada de decisões.
A definição exterior é o processo pelo qual os sistemas
de idéias que originalmente apontavam para abolir a re-
pressão são simplesmente postos para fora da socieda-
de, ou postos de fora daqueles que integram a comu-
nidade. Há várias estratégias e argumentos isolantes
deste tipo, por exemplo aquele que sustenta que a opo-
sição desenvolve idéias cada vez mais irresponsáveis,
numa atitude de ampla rebeldia, ou que são teóricos
numa torre de marfim, ou que estão divididos entre eles

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a respeito dos objetivos globais e os meios para alcan-


çá-los. Outra argumentação desse tipo sustenta que os
opositores pertencem a grupos políticos extremos, ou
que há alguém em particular “detrás deles”.29
Pareceria não haver alternativa entre a absorção e o
antagonismo aberto. O capitalismo tardio, formação so-
cial absorvente, define dentro ou define fora, e termina
numa dessas duas direções. Reside aqui, em essência,
a razão da enorme pressão sobre os opositores ao sis-
tema para que proponham alternativas. Ao demandar a
implementação de alternativas antes de abolir o sistema
predominante, as forças conservadoras estão exigindo
algo que não pode se materializar, ou que pelo menos se
materializará muito lentamente e que resultará muito
similar ao que já existe.
Como membro da KROM, Mathiesen percebeu, por
exemplo, que no caso da abolição do trabalho forçado
para os alcoólatras, as propostas alternativas não eram
necessárias. Gradualmente foi compreendendo que a
alternativa de definir dentro ou definir fora ― para aca-
bar em uma dessas direções ― reside no “inacabado”,
isto é, no “processo de começar a ser”. Essa estratégia
de estabelecer o inacabado é a única possibilidade que
o movimento político abolicionista tem para continuar
sendo um movimento vital e em expansão. Devem então
ocorrer duas condições. A primeira é que um movimen-
to político vital deve, para sê-lo, ter uma relação de con-
tradição com o sistema existente. A alternativa é “alter-
nativa” sempre que não estiver baseada nas premissas
do velho sistema, mas em suas próprias premissas, que
em um ou mais pontos contradigam as do velho siste-
ma. A segunda condição é que um movimento político
em expansão deve, para continuar sua ampliação, com-
petir com o sistema existente. Caso contrário, a subs-
tituição do sistema existente não será interessante ou
relevante, e o movimento político se retrairá.30
Segundo Mathiesen, “a contradição reiterada e com-
petitiva é a única arma contra a absorvente formação

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social do capitalismo tardio”. Refere-se a ela como o


“calcanhar de Aquiles” dessa última formação social ca-
pitalista. O desenvolvimento e a manutenção da contra-
dição competitiva equivale ao desenvolvimento e manu-
tenção do inacabado, isto é, ao processo de começar a
ser. O problema principal é manter a combinação entre
contradição e competição. Podemos fazer uma compara-
ção com manter o equilíbrio no “fio da faca”, ou melhor,
“da lâmina da navalha”. Sempre existe o perigo de que
a contradição se transforme em acordo e a competição
perca sua importância. Portanto, o principal problema
é evitar que a contradição se torne não competitiva e a
competição se transforme em acordo.
Mais concretamente, o começo do inacabado reside
em se negar a fazer uma escolha. Negar-se a escolher é
a única possibilidade de escapar das estratégias imuni-
zadoras de definir dentro e definir fora. Além do proble-
ma do início, está, obviamente, o problema da continu-
ação do inacabado. Em primeiro lugar, devemos tomar
como ponto de partida uma questão concreta que seja
importante para aqueles a quem estiver dirigida. Quan-
to mais concretas forem as questões, mais mobilizado-
ras serão suas funções. A questão concreta deve ser
tomada como ponto de partida para desmascarar o fato
de que uma situação cotidiana está estruturada siste-
maticamente. Depois devemos desafiar essa questão
concreta, em direção abolicionista, com tanta agudeza
que os participantes percebam que a solução da ques-
tão requer o ataque a uma estrutura mais global, da
qual a questão concreta forma parte. Inicia-se então o
processo de atravessar os limites das estruturas, o que
é visto por Mathiesen como um movimento totalizador
que se dirige progressivamente a envolver um campo
desconhecido. “A manutenção da abolição requer que
existam constantemente mais coisas para abolir, que
ao olhar para diante existam novos objetivos para abolir
em um prazo mais longo, que se movimente constan-
temente em círculos cada vez mais amplos em direção
a novos campos para a abolição.”31 É importante, por-

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tanto, ver os objetivos a curto e longo prazo como uma


totalidade indissolúvel.
Finalmente, deveríamos sublinhar que toda política
abolicionista acontece junto a uma política defensiva.
A política abolicionista é ofensiva e tenta pôr fim aos
sistemas repressivos estabelecidos. A política defensi-
va consiste em trabalhar para impedir o surgimento de
novos sistemas do tipo que se tenta abolir, e de cair
em velhos arranjos. Porém, é importante que o trabalho
defensivo não se transforme em uma linha fixa. A ativi-
dade defensiva deve ser alternada continuamente com
a atividade ofensiva abolicionista.32
3. Qual é a fundamentação metodológica do abolicio-
nismo de Mathiesen? — É interessante notar que, num
primeiro momento, Mathiesen apresentou sua teoria de
ação abolicionista sem fazer referências a considerações
metodológicas ou filosóficas que a apoiaram. Em The
politics of abolition simplesmente apresenta uma clara
teoria de ação política que em grande medida expres-
sava suas experiências com a KROM. Sua preocupação
central era como iniciar e manter um movimento políti-
co que transcendesse os limites, fosse vital, expansivo
e “inacabado”. Mais tarde, adicionou uma metodologia
materialista para conseguir uma compreensão adequa-
da do direito e da legislação como fenômenos sociais.
Em Law, Society and Political Action, Mathiesen ten-
tou integrar uma compreensão materialista da socie-
dade a sua teoria de ação política abolicionista. Penso
que tentou dar a seu abolicionismo uma fundamenta-
ção metodológica materialista. Quando Mathiesen fala
da ação política que transcende os limites refere-se a
transcender as estruturas materiais. Ele entende por
estruturas materiais ou sociais “a presença de relações
de poder relativamente permanentes entre unidades
que têm distintos interesses”. Considera as estruturas
econômico-materiais como determinantes “em última
instância”. A expressão “em última instância” signifi-
ca que há uma hierarquia de estruturas, mas também

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que não é possível mudá-las além dos limites estabele-


cidos pela estrutura econômica. Geralmente refere-se à
“prioridade das estruturas materiais”. A prioridade das
estruturas materiais por sua vez significa que “(...) a
mudança no interior das estruturas materiais inicia ou
induz a mudança nos sistemas de idéias e formas de
consciência e não o contrário.”33 Ainda que Mathiesen
pretenda que sua análise seja de fato sutil, oferece-nos
o pobre esquema marxista de que as estruturas econô-
mico-materiais constituem a infra-estrutura, e a lei a
superestrutura, ou, como ele a chama, a “supercons-
trução”.
Ainda mais precária é sua análise dos mecanismos
de realimentação objetivos e subjetivos, o que provoca
que os interesses predominantes e as estruturas de po-
der sejam mantidos e apoiados.34 Ao abordar diferen-
tes casos, por exemplo a lei penal, a lei econômica e a
lei de proteção ao trabalhador, tenta afirmar sua idéia
de que as estruturas materiais têm preeminência so-
bre a lei. Esses exemplos não me convencem. Concor-
do com Mathiesen que freqüentemente as tentativas de
efetivar as mudanças sociais estruturais através da lei
resultam, como ele mesmo o expressa, “reduzidas” ou
“desguarnecidas”. Discordo totalmente, porém, de sua
análise sobre a preeminência das estruturas materiais.
De fato, Mathiesen consagra as estruturas materiais
da sociedade capitalista como determinantes em últi-
ma instância, e as considera, ontologicamente, como a
raiz de todo mal. Não acredito que uma tal análise seja
frutífera, e realmente duvido que ao desmascarar a de-
pendência do legal no material se dê uma contribuição
revolucionária.35
Sua análise materialista tem um enfoque ontológico
que explica como são as coisas “realmente”, mas muito
mais frutífero seria um enfoque funcional que descre-
vesse como “funcionam realmente” as coisas. Por isso
aprecio muito mais sua teoria de ação política do que
sua análise materialista. Diria que, ainda que tente fa-

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zê-lo sutilmente, a fundamentação metodológica mate-


rialista de sua teoria abolicionista é um tanto ingênua,
pouco convincente e nada frutífera. O mesmo é válido
para sua análise do poder, um tanto ingênua também,
e que segue a orientação marxista de confrontar os que
têm o poder com aqueles que não o têm. Em grande
medida segue a concepção clássica ingênua do poder,
que opera pela negação e está localizado em algum lu-
gar, em mãos de grupos específicos de interesse e que
funciona através da distorção e a produção de ideolo-
gia. Nas palavras de Foucault, segue fiel ao “poder da
lei”, ou ao conceito “jurídico-discursivo” de poder. Isto
é especialmente surpreendente, já que em seu livro,
escrito na Noruega em 1978, Den skjulte disiplinering,
Mathiesen refere-se à análise foucaultiana da “discipli-
na do poder”, fazendo assim uma análise muito mais
sutil do funcionamento do poder.
Talvez Mathiesen fosse consciente da fraqueza de
sua análise materialista quando afirmou que é incerto
que alguma vez se possa provar — de forma precisa — a
concepção materialista da lei. “Da mesma maneira que
qualquer outra concepção da sociedade, a materialis-
ta é finalmente uma interpretação política e teórica do
mundo, um paradigma, uma forma de abraçar o mundo
conceitualmente.”36 Seja a concepção materialista e a
fundamentação metodológica de seu abolicionismo sa-
tisfatória ou não, ao menos é um autêntico marxista no
sentido de que, em seu trabalho prático, põe realmente
em prática o credo marxista: “Os filósofos só interpre-
taram o mundo de diferentes maneiras; a questão, po-
rém, é mudá-lo.”

IV. O abolicionismo de Foucault

1. O que deve ser abolido? — Foucault foi profes-


sor de História dos Sistemas de Pensamento no Collège
de France, em Paris. Talvez não se costume falar de
Foucault como um abolicionista, e nem ele se refere a

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si mesmo como tal. Entretanto, eu penso que seu tra-


balho prático e teórico tem muitos pontos de contato
com o movimento abolicionista do sistema penal e do
sistema de justiça penal. Mais ainda, oferece-nos um
marco para a análise do poder que é fundamental para
a teoria e a prática abolicionista. Considero que os tra-
balhos de Foucault são uma contribuição para o debate
abolicionista.
Não há dúvida de que Foucault realiza atividades
concretas de caráter abolicionista. Em suas atividades
teóricas e práticas se ocupa especialmente da política
de confinamento no período clássico e pós-clássico. Em
História da Loucura, por exemplo, refere-se à política de
degredo e confinamento dos doentes mentais, fazendo
dessa maneira uma contribuição para a “arqueologia do
silêncio”, para o silêncio dos doentes marginados. Uma
parte substancial de seu trabalho sobre a natureza do
confinamento foi efetuada em paralelo a ações práticas
para dar suporte aos confinados. Em 1971 Foucault
fundou, junto a Jean-Marie Domenach e Pierre Vidal-
Naquet, o Grupo de Informação sobre as Prisões, o GIP.
Segundo sua restrita concepção do papel dos intelec-
tuais, o objetivo do GIP não era se tornar porta-voz dos
prisioneiros, mas criar as condições que permitissem a
eles falarem por si mesmos. Ao reformular suas ativi-
dades políticas a respeito do sistema de justiça penal,
podemos dizer que Foucault tenta abolir os limites e
as condições que fazem com que os prisioneiros não
possam falar por si mesmos e unificar as lutas dentro
e fora da prisão.
De uma maneira geral, podemos dizer que Foucault
tenta, em concordância com os pensamentos de Nietzsche
e Bataille, abolir todos esses limites que fixam relações
assimétricas, oposicionais, como as relações entre ino-
cência e culpabilidade, razão e loucura, o bom e o mau,
o normal e o patológico.37 Foucault percebe o problema
das prisões como “local e marginal”. Entretanto, a pri-
são e o sistema penal revestem um interesse especial

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para ele, já que são mais fáceis de reconhecer como ma-


nifestações de poder. “A prisão é o único lugar onde o
poder se manifesta com total nudez, em sua forma mais
excessiva, e onde é justificado como força moral.”38 Por-
tanto, podemos dizer que o objetivo do abolicionismo
de Foucault é questionar todas as formas de expressão
do próprio poder. Não se limita ao questionamento e à
transgressão do poder para castigar, nem ao poder que
se exerce sobre os doentes mentais ou os loucos.39 Isto
não quer dizer, entretanto, que Foucault reclame por
uma ação política totalizante para a abolição de todas
as relações de poder. As lutas abolicionistas são locais
e relacionadas a um domínio específico no qual as pes-
soas se sentem oprimidas. Não existe uma totalização
da luta abolicionista sob a aparência da verdade. Se
podemos falar da generalidade da luta, ela deriva do
próprio sistema de poder, de todas as formas em que se
exerce e se aplica o poder.40
2. Como atingir a abolição? — Diferentemente de
Hulsman e Mathiesen, Foucault oferece-nos pouquís-
simas propostas para implementar ações abolicionistas.
De uma maneira geral, podemos ilustrar a estratégia de
Foucault para levar adiante essas ações utilizando um
exemplo da prática de judô. No judô, quando o adversá-
rio ataca “(...) a melhor resposta é não retroceder, mas
considerar a manobra de ataque como ponto de parti-
da para o passo seguinte.”41 Portanto, deve-se seguir
a estratégia de utilizar e se beneficiar com a fraqueza
inerente ao poder de ataque do adversário. Quando o
adversário tenta “taquear” haverá um momento em que
se encontre em uma posição fraca, por exemplo, quan-
do está em pé em uma perna, e não tem, por isso, total
equilíbrio.
Em relação à análise de Mathiesen, Foucault conhece
muito bem o problema de cada tipo de ação abolicionista
relativa à “definição interior” e “definição exterior”. O
problema de se ver capturado pelos mecanismos que
se quer combater é próprio de todas as situações de

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Sobre a fundamentação metodológica do enfoque abolicionista...

batalha. É interessante, porém, o fato de que Mathiesen


e Foucault retirem conclusões diferentes. Mathiesen
procura ansiosamente uma estratégia que exclua a
possibilidade de se converter em definição interior e
definição exterior, e insiste na proposta de manter o
“inacabado”. O que é campo de temor e pessimismo
para Mathiesen é campo de esperança e otimismo
para Foucault. Foucault não tenta evitar a manobra
do adversário, mas a utiliza em seu próprio favor. As
reflexões de Foucault a respeito da situação de batalha
deixam também claro que as ações abolicionistas devem
ter seu ponto de partida na situação concreta, e que
devem desenvolver suas estratégias e táticas segundo
o que requisitar a situação real de forças em confronto.
A respeito do governo, por exemplo, declara que “(...)
devemos sair do dilema; ou se está a favor ou se está
em contra.”42 Em oposição à concepção de Mathiesen
sobre a contradição competitiva, Foucault afirma que “é
possível estar contra mas ao mesmo tempo envolvido”.
Talvez deveríamos dizer que Mathiesen, nos termos
de Foucault, não é um bom judoca. Em especial, seu
princípio fundamental de ação contraditória a respeito
das políticas criminais repressivas dos governos faz
com que seja necessário que ele retroceda para escapar
do perigo de definição interior ou definição exterior.
A pequena diferença, em aparência, entre o mode-
lo de ação oposicional seguido por Foucault e a linha
de ação contraditória seguida por Mathiesen, tem aqui
muita importância. Penso que o princípio de contradi-
ção de Mathiesen tem suas raízes na crença metafísica
e maniqueísta de uma visão dualista do mundo, que
consiste na existência de sistemas repressivos ou de
sistemas não repressivos. Esse problema está relacio-
nado ao fato de que Mathiesen constrói sua teoria de
contradição competitiva na concepção, um tanto in-
gênua, do funcionamento do poder como uma forma
de poder repressivo. O modelo de ação oposicional de
Foucault enfatiza o fato de que todas as ações pres-
supõem uma relação fundamental com os oponentes.

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Essa relação pode modificar-se e não há uma neces-


sidade a priori de estar sempre em contradição, já que
algumas vezes será mais vantajoso cooperar com quem
se combate. Foucault nos oferece uma análise mais su-
til do funcionamento do poder como uma rede de re-
lações de força. Para Foucault, a resistência ao poder
repressivo não está fora dele, mas é parte da rede de
relações de poder.
Com o exemplo do judô, demonstrei que Foucault
trabalha através de um processo de contra-ataques tá-
ticos. Esse é também um princípio metodológico básico
adotado em seus livros. Em sua conferência inaugural
A Ordem do Discurso toma o “contra-ataque” como seu
princípio metodológico.43
É interessante notar que ele entende a escritura de
seus livros como parte da luta política. Somente lhe in-
teressa escrever livros se estes servirem como “instru-
mento, tática e desnudamento em uma luta verdadei-
ra”. Seus livros são “caixas de ferramentas”, e não têm
a intenção de oferecer teorias completas ou diretrizes de
ação política, mas de projetar possíveis estratégias para
a ação. Ele vê seus livros como “bisturis, bombas molo-
tov ou galerias de minas”, e a ele mesmo como um “(...)
instrumentista, um coletor, um indicador de objetivos,
um cartógrafo, um planejador, um blindador...”44
3. Qual é a fundamentação metodológica do abolicio-
nismo de Foucault? — Podemos considerar o trabalho
de Foucault como uma crítica fundamental, em termos
de identidade, a uma tradição do pensamento de pro-
fundas raízes. Ele critica a tradição metafísica ociden-
tal que pode ser caracterizada como “o pensamento
da origem”. Em particular, lança um ataque contra o
pensamento dialético hegeliano, que reconcilia todas
as contradições, como também contra a fenomenologia
transcendental, a que fundamentalmente pesa como a
filosofia da experiência original. “Aquilo que se encontra
no começo histórico das coisas não é a identidade ainda
preservada da origem; mas a discórdia entre as coisas.

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Sobre a fundamentação metodológica do enfoque abolicionista...

É o disparate.”45 Podemos ler o trabalho de Foucault


como a tentativa contínua de liberar a diferença. Como
ele mesmo diz em seu artigo sobre o filósofo francês
Deleuze, “(...) a liberação da diferença requer um pen-
samento sem contradição, sem dialética, sem negação:
um pensamento do múltiplo, da multiplicidade nôma-
de e dispersa que não está limitada ou confinada pelas
restrições da similitude.”46
Em seu livro metodológico A Arqueologia do Saber,
afirma que antes de mais nada é necessário fazer um
“trabalho negativo”: devemos nos liberar de todos os
conceitos, que não são outra coisa mais do que uma
variação sobre o tema da continuidade e do pensamen-
to em termos de identidade. É essa a razão pela qual
Foucault tenta se desfazer de categorias e conceitos fa-
miliares, como “continuidade”, “autor”, “livro”, “traba-
lho”, “sujeito”, “tradição”, “desenvolvimento”, “influên-
cia” e “mentalidade”. “A diferença só pode ser liberada
através da invenção de um pensamento categórico.”47
Em A Arqueologia do Saber não buscou o sujeito ou o
objeto de seu conhecimento, mas um espaço disperso
que permitisse a possibilidade de formar os objetos e os
sujeitos do pensamento. Tentou descobrir “os sistemas
de dispersão”.48 Seguindo os passos de Nietzsche, luta
contra o processo familiar de identificação do não-idên-
tico. Investe — seguindo o princípio de contra-ataque
— na “descontinuidade”, na “dispersão”, na “diferença”,
no “disparate”, no “caráter anônimo”, na “adequação do
sujeito”, etc. A problemática da diferença é um princípio
básico de sua metodologia. O historiador francês Paul
Veyne o expôs da seguinte maneira: “A intenção funda-
mental de Foucault não é a estrutura, nem a ruptura,
mas a raridade, no sentido latino da palavra.”49 Em A
Arqueologia do Saber explicou a “lei da raridade” e, em
A Ordem do Discurso, o “princípio de especificação”.
Seus primeiros livros estiveram dedicados ao pro-
blema da identidade e da diferença. No prólogo de As
Palavras e as Coisas deixa claro que concebeu História

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da Loucura como “a história do Outro”, do que é ineren-


te à cultura, mas ao mesmo tempo alheio a ela e que,
portanto, deve ser excluído. Em As palavras e as Coisas
nos oferece a “história do Mesmo”.50
Também podemos considerar sua empresa filosófica
como a tentativa de escrever histórias sobre os limites
da cultura ocidental. No prólogo de História da Loucura
refere-se a várias fronteiras. Menciona, por exemplo, a
fronteira entre a razão ocidental e a oriental, entre a
razão e a loucura e as fronteiras fixadas pelos tabus
sexuais. Essas fronteiras e limites, e o conhecimento
dos mesmos, estão de alguma maneira relacionados ao
funcionamento das relações de poder. É aqui que apa-
rece o tema fundamental “Poder-Saber”, no qual está
especialmente interessado em seu último trabalho. Se
nos referimos ao artigo dedicado a Bataille, “Prólogo à
transgressão”, podemos concluir que Foucault adota
uma espécie de metodologia de transgressão que ques-
tiona e desafia constantemente os limites que separam
o “mesmo” do “outro”.
Suas tentativas de liberar a diferença estão direta-
mente relacionadas a seus esforços por conceitualizar
o “acontecimento” como “diferença pura”.51 Enquanto a
maior parte dos historiadores toma a “desacontecimen-
talização” como um princípio guia para a compreensão
da história, Foucault trabalha em direção à “aconteci-
mentalização”. Esse princípio de “acontecimentaliza-
ção” tem a função teórico-política de romper “aquelas
auto-evidências sobre as quais descansam nossos co-
nhecimentos, assentimentos e práticas”. Também sig-
nifica “o redescobrimento, as conexões, os encontros,
os apoios, bloqueios, jogos de forças, estratégia e ou-
tros que em um momento dado estabelecem o que sub-
seqüentemente conta como auto-evidente, universal e
necessário”, e realizam nesse sentido “uma espécie de
multiplicação ou pluralização de causas”. Por exemplo,
ao analisar a prática do encarceramento penal como
um “acontecimento” (e não como um fato institucional

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Sobre a fundamentação metodológica do enfoque abolicionista...

ou efeito ideológico), trata-se de “determinar os proces-


sos de penalização” (isto é, a inserção progressiva nas
formas do castigo legal) das já existentes práticas de
internação; o processo de “carcerização” das práticas
da justiça penal (isto é, o movimento pelo qual o encar-
ceramento como forma de castigo e técnica de correção
se torna um componente central da ordem penal); e es-
ses vastos processos precisam uma análise mais cui-
dadosa: a penalização da internação compreende uma
multiplicidade de processos, tais como a formação de
espaços pedagógicos fechados que funcionam por meio
de recompensas e castigos, etc.52
A “acontecimentalização” não é “(...) questão de lo-
calizar tudo em um mesmo nível, o do acontecimento,
mas de perceber que na realidade há uma ordem de
níveis de diferentes tipos de acontecimentos, que di-
ferem em amplitude, espaço cronológico e capacidade
de produzir efeitos. O problema é poder distinguir en-
tre eventos, diferenciar as redes e os níveis aos quais
pertencem e reconstituir a linha à qual estão ligados e
que engendra cada um deles. Daí a negativa de realizar
análises em termos do campo simbólico ou do domínio
das estruturas significativas, enquanto que se recorre
a análises em termos de genealogia das relações de for-
ça, desenvolvimentos estratégicos e táticas.”53 Assim, a
“acontecimentalização” nos leva a uma análise em ter-
mos da genealogia das relações de força, estratégias e
táticas.
De forma mais geral, podemos dizer que todas es-
sas linhas — a metodologia da liberação da diferença,
transgressão, acontecimentalização — levam-nos ao
problema das relações de poder. Nesse ponto Foucault
descarta a análise tradicional sobre o poder. Por isso
não aceita a análise marxista sobre o poder, segundo
a qual as estruturas econômicas são as determinantes
em última instância, nem sobre a função da ideologia e
a inter-relação entre a infra-estrutura e a superestrutu-
ra, que adota Mathiesen.

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O projeto de Foucault a respeito do poder pode ser


interpretado como uma tentativa de inverter a análi-
se tradicional do poder, que se formula como a teoria
político-jurídica da “soberania”. Ele fala da conexão “ju-
rídico-discursiva” de poder, já que o poder está sempre
formulado no discurso da lei. É um poder cujo modelo é
essencialmente jurídico, e que se centra exclusivamen-
te no que é dito pela lei e no funcionamento dos tabus.54
Na análise tradicional, o poder funciona por meio da
repressão, a negação, o recobrimento ou a proibição, e
a produção de ideologia. Sempre está localizado em al-
gum lugar (no Estado, parlamento, etc.), e é proprieda-
de exclusiva de alguns grupos de interesse (professores,
advogados, reis, etc.). Segundo Foucault, o poder não
está localizado em lugar algum dentro de uma institui-
ção, nem tampouco é de interesse especial para algumas
pessoas. Essa concepção clássica do poder, da qual nós
também encontramos uma projeção nas relações entre
o homem e a mulher, sexuais, familiares e pedagógicas,
é inapropriada para possibilitar uma análise adequada
dos mecanismos de poder que funcionam na sociedade.
Essa inversão do conceito básico de poder nos leva à
concepção do poder disciplinar, que Foucault desenvol-
ve em seu livro dedicado ao “nascimento da prisão”. O
poder disciplinar é a inversão do poder soberano por
não funcionar pela negação, mas por ser produtivo em
seus efeitos. Foucault reconhece que “(...) o que faz com
que o poder seja produtivo, o que faz com que seja acei-
tável, é simplesmente o fato de que não só pesa em nós
como uma força negativa, mas que atravessa e produz
coisas, induz prazer, forma conhecimento, produz dis-
curso. É necessário considerá-lo como uma rede produ-
tiva que corre através de todo o corpo social, e não como
uma instância negativa cuja função é a repressão.”55 O
que assegura o funcionamento desse poder não é a lei,
mas as técnicas de disciplina, normalização e controle.
Segundo Foucault, o poder disciplinar fomentado
pelos sistemas penais não é alguma coisa especial, mas
a manifestação do funcionamento do poder em geral.

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Sobre a fundamentação metodológica do enfoque abolicionista...

Esse poder disciplinar é “onipresente”: em prisões, es-


colas, hospitais, lugares de trabalho, etc. O funciona-
mento básico da sociedade se vê continuamente pene-
trado por mecanismos disciplinares. Para compreender
o funcionamento desse poder não devemos observar o
exercício ritual do poder soberano, mas os pequenos
castigos da vida diária. Portanto, inverte-se a direção da
análise: não é “descendente”, já que o poder disciplinar
não funciona de cima para baixo, mas de baixo para
cima. O poder disciplinar chega até “produzir” delin-
qüentes, loucos, desviados sexuais, etc.
O que caracteriza esse poder disciplinar não é a sim-
ples relação binária entre o dominador e o dominado,
mas uma complexa rede de relações de poder que é co-
extensiva à sociedade como um todo. Essa é uma das
razões pelas quais Foucault não aceita a análise mar-
xista do poder com sua teoria da luta de classes e das
estruturas materiais e econômicas como o determinan-
te em última instância. A própria resistência é sempre
parte das relações de poder. A política abolicionista,
portanto, só pode ser implementada dentro do campo
estratégico das relações de poder.

V. Algumas conclusões

a) A política abolicionista está imbuída de pensamen-


to antiplatônico. É o oposto ao pensamento essencialis-
ta. Hulsman o garante em seu trabalho com a metodo-
logia da fenomenologia “mundana”, ou a fenomenologia
do mundo da vida, Foucault com sua metodologia ba-
seada em sua filosofia da diferença. Eu encontro se-
melhança entre a tentativa de Hulsman de revitalizar
a fibra social, ao tratar as situações-problema e os fa-
tos no mundo concreto das experiências vividas pelas
pessoas, e a atenção de Foucault ao que ele chama de
“acontecimentalização”. Ambos pontos de vista dão ex-
pressão a uma atitude anti-reducionista que aponta na
mesma direção. A metodologia marxista de Mathiesen,

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por outro lado, contém alguns traços platônicos. Não é


sua metodologia marxista que leva a uma posição an-
tiplatônica, mas sua luta concreta por manter o ina-
cabado e sua teoria de ação política criada sobre essa
prática.
b) Há distintos enfoques da fundamentação metodo-
lógica do abolicionismo. Uma fundamentação metodo-
lógica adequada requer uma coerência original entre a
fundamentação filosófica ou metodológica, por um lado,
e a prática concreta da política abolicionista, por outro.
A esse respeito, vejo uma dificuldade no enfoque de
Mathiesen. Ainda que ele faça certos refinamentos da
teoria marxista, adere no final das contas a um esque-
ma fixo de interpretação da realidade social, que não é
sutil como para oferecer uma teoria adequada para a
política abolicionista.
c) O abolicionismo implica de uma ou outra manei-
ra um movimento transcendente. Hulsman fala sobre
transcender as interpretações sociais e as categorias do
sistema de justiça penal para dar lugar á revitalização
da fibra social. Mathiesen fala de ações políticas que
“transcendam os limites”. Podemos interpretar o pensa-
mento de Foucault, da liberação da diferença, sob a luz
do trabalho de Bataille, como um pensamento trans-
gressor.
d) O abolicionismo é um movimento que tenta per-
mitir que as pessoas falem por si mesmas. Isso é claro
tanto no trabalho teórico como nas ações políticas que
os três atores participaram.
e) O abolicionismo é um pensamento e uma prática
que se pode aplicar a distintas áreas. Portanto, a prá-
tica abolicionista não se limita ao sistema de justiça
penal, mas também pode ser aplicada, por exemplo, ao
sistema educativo. Devemos perceber, porém, que as
políticas abolicionistas são sempre locais e não é fácil
generalizá-las para que possam ser aplicadas da mes-
ma maneira em distintas áreas.

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Sobre a fundamentação metodológica do enfoque abolicionista...

f) A teoria e a prática abolicionista devem dar conta do


problema do poder. A esse respeito, penso que Hulsman
e Mathiesen seguem apegados a uma concepção do
poder tradicionalmente negativa e funcionalmente
repressiva. Foucault tem uma concepção do poder
disciplinar mais adequada, positiva e produtiva. A
análise do funcionamento do poder tem conseqüências
importantes para a prática do abolicionismo. Hulsman,
em particular, não explica sistematicamente a
possibilidade de que ao abolir a política criminal
repressiva do Estado, ela seria substituída por formas
de controle social mais sutis ao nível microscópico da
interação social.
g) A política abolicionista requer um pensamento es-
tratégico que se inicie a partir de uma situação concre-
ta. Por essa razão a ação abolicionista é sempre local.
h) A política abolicionista está algumas vezes ligada
à estratégia de desmascarar a ideologia. Hulsman e
Mathiesen levam em consideração esse ponto. Foucault,
entretanto, critica o conceito de ideologia, que por três
motivos é analiticamente insuficiente. Em primeiro
lugar, esse conceito está em oposição virtual com
algo que se supõe seja verdadeiro. Porém, em seus
trabalhos sobre o poder do saber, demonstrou que
essa distinção entre o falso e o verdadeiro se produz
como efeito das relações de poder. Em segundo lugar, o
conceito de ideologia refere-se a alguma coisa na ordem
do sujeito. Em terceiro lugar, a ideologia é secundária
em relação à infra-estrutura, como seu determinante
material, econômico, etc.56 Portanto, o próprio conceito
de ideologia é problemático para ele.
i) O abolicionismo implica certa forma de radicalis-
mo. Penso que esse radicalismo encontra sua melhor
garantia na metodologia que se baseia na filosofia da
diferença de Foucault. Em termos gerais, ele expressa o
princípio do pensamento e da ação radical. O radicalis-
mo da “liberação da diferença” dá forma mais concreta
à tentativa de Hulsman de “revitalizar a estrutura so-

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cial”, que está sustentada por sua metodologia baseada


na fenomenologia do mundo da vida. Na realidade, a
liberação da diferença é também o objetivo da teoria
radical de Mathiesen sobre a ação política. Entretanto,
não é sua metodologia marxista que a garante, mas o
próprio princípio concreto da contradição competitiva.
Até esse ponto sua análise marxista é um apêndice des-
necessário.
j) O abolicionismo está relacionado de uma maneira
ou de outra ao princípio de solidariedade com os margi-
nalizados sociais. Essa solidariedade está especialmen-
te expressa no trabalho de Hulsman, mas também está
presente no pensamento de Foucault e de Mathiesen.
Nesse sentido, podemos dizer que o abolicionismo pos-
sui um enfoque humanista. Porém, esta caracterização
não é compartilhada por Foucault que demonstrou vá-
rias vezes que os movimentos humanistas deram lugar
ao surgimento de novas formas acirradas de controle
social. Penso, entretanto, que é exatamente esse o risco
que o movimento abolicionista deve correr.

Tradução do espanhol por Natalia Montebello.

Notas:
1
Extraido de: Stan Cohen (org.). Abolicionismo penal. Buenos Aires, Ediar,
1989.
2
Council of Europe. Report on Descriminalisation. Strasbourg, 1980, p. 19.
3
Michel Foucault. Surveiller ePunir. Naissance de la prison. Paris, Gallimard, 1975,
p. 236.
4
R. M. Bohm. “Radical Criminology: an explication”. In Criminology 4, 1982,
pp. 565-580.
5
Council of Europe, 1980, op. cit., p. 13.
6
Dos delitos e das penas. Cf., entre outras, a edição da Editora Martins Fontes,
2005. (NT)

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Sobre a fundamentação metodológica do enfoque abolicionista...

7
Michel Foucault. The order of things: an archeology of de human sciencies. London,
Tavistock. Prefácio da edição em inglês, 1970, p. XV: “O discurso em geral, e
o discurso científico em particular, é uma realidade tão complexa que não só
podemos mas também devemos abordá-lo em diferentes níveis e com diferen-
tes métodos.” Mais explicações em: Michel Foucault. The archeology of knowledge.
New York, Pantheon, 1972.
8
Martin Heidegger. Die Grundprobleme der Phünomenology. Gesammtausgabe,
Vol. 24. Frankfurt, M. Klostermann, 1975, p. 29.
9
Hans Georg Gadamer. Warheit und Methode. Tübingen, Moher 290, 1975.
10
Louk Hulsman & J. Bernat de Célis. Peines perdues: le système pénal en question.
Paris, Lelenturion, 1982, p. 107: “(...) C’est le systeme tout entier qu’il s’agit de
faire basculer.”
11
Council of Europe, 1980, op. cit., pp. 37-53; Louk Hulsman. Handhaving van
recht. Deventer, Kluwer, 1965, p. 12; Louk Hulsman. “Un paradigme crimino-
logique abolitionniste sur la catégorie du crime”, Colloques internationaux de
C.N.R.S., n. 571, In Connaissance et fonctionnement de la justice pénale. Paris, 1977,
p. 429.
12
Hulsman & Bernat de Célis, 1982, op. cit., pp. 142-144.
13
Idem, pp. 71-72; Hulsman, 1977, op. cit., p. 429.
14
Hulsman & Bernat, 1982, op. cit., pp. 90, 130, 140.
15
Idem, pp. 121, 164.
16
Ibidem, pp. 39, 106.
17
Ibidem, pp. 39, 47.
18
Ibidem, p. 114. Também: J. Bernat de Célis. “Les grands options de la
politique criminelle: la perspective criminelle; la perspective de Louk Hulsman”,
In Archives de politique criminelle, 1981, 5:31.
19
Hulsman & Bernat de Célis, 1982, op. cit., p. 110.
20 Council of Europe, 1980, op. cit., p. 14.
21
Idem, pp. 176-181; Hulsman & Bernat de Célis, 1982, op. cit., pp. 156-158.
22
Edmund Husserl. Die Krisis der europäischen. Wissenschaften und die traszendentale
Phänomenology. The Hague, Nijhoff, p. 52: “Das Ideenkleid macht es, dass wir
für wahres Sein nehmen, was eine Methode ist.”
23
Sebastian Scheerer. “Die abolitionistische Perspektive”, In 16 Kriminologisches
Journal, 2:98, 1984.
24
Thomas Mathiesen. The Politics of Abolition. Oslo, Robertson, 1974, p. 46.

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25
Ibidem, p. 925; Thomas Mathiesen. Law, Society and Political Action. London,
London Academie Press, 1980, p. 233.
26
Mathiesen, 1980, op. cit., p. 190.
27
Mathiesen, 1974, op. cit., p. 3.
28
Mathiesen, 1980, op. cit., p. 3.
29
Idem, pp. 224, 284-292.
30
Ibidem, pp. 226-230; Mathiesen, 1974, op. cit., p. 14.
31
Mathiesen, 1974, op. cit., p. 211.
32
Idem, pp. 100-109; Mathiesen, 1980, op. cit.
33
Mathiesen, 1980, op. cit., pp. 15-20.
34
Idem, pp. 80, 86, 112, 115, 133, 140.
35
Ibidem, p. 150.
36
Ibidem, p. 72.
37
Michel Foucault. Language, Counter-Memory, Practice: Selected Essays and Interviews.
D. F. Bouchard (ed.). New York, Cornell University Press, 1977, pp. 227, 230.
38 Idem, p. 209.
39
Michel Foucault. “Omnes et Singulatim: Towards a Criticism of Political Rea-
son”, In The Tanner Lectures on Human Values. Vol. II. Cambridge, 1981, p. 217.
40
Foucault, 1977, op. cit., p. 217.
41
Michel Foucault. “Sur la sellette”, entrevista de J. L. Ezine, In Les nouvelles
littéraires (March 17), 1975.
42
Michel Foucault. “Is it really important to think?”, In A Philosophy of Criticism,
1982. Entrevista a D. Eribon publicada originalmente no diário de esquerda Li-
bération, em Paris.
43
Michel Foucault. L´ordre du discours. Paris, Gallimard, 1970, p. 53; K. Racevskis.
Michel Foucault and the Subversion of Intellect. Ch. 5. London, Cornell University
Press, 1983.
44
Foucault, 1975, op. cit., p. 3.
45
Foucault, 1977, op. cit., p. 142.
46
Idem, p. 185.
47
Ibidem, p. 186.

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verve
Sobre a fundamentação metodológica do enfoque abolicionista...

48
Michel Foucault. The Archeology of Knowledge. New York, Pantheon, 1972, pp.
47, 32, 37.
49
Paul Veyne. Foucault revolutionne l’histoire. Paris, Seuil, 1978, p. 204.
50
Michel Foucault. The Order of Things: An archeology of the Human Sciences.
London, Thistok, 1970, p. XXIV.
51
Foucault, 1977, op. cit., p. 177.
52
Michel Foucault. “Questions of Method: An interview with Michel Foucault”,
In Ideology and Consciousness, 8, 1981.
53
Foucault, 1972, op. cit., p. 114.
54
Michel Foucault. The History of Sexuality: Vol. 1, “An Introduction”. London,
Allen Lane, p. 85
55
Foucault, 1972, op. cit., p. 119.
56
Idem, p. 118.

RESUMO
O artigo estabelece uma análise de três perspectivas diferentes
de abolicionismo pautados no pensamento de Louk Hulsman,
Thomas Mathiesen e Michel Foucault. Procura mostrar que o
abolicionismo é uma prática que não se restringe ao sistema
penal e requer uma estratégia específica, negando a possibili-
dade de uma teoria geral ou qualquer tipo de generalização.
Palavras-chave: Abolicionismo, estratégia, sistema penal.

ABSTRACT
The article establishes an analysis of three different perspec-
tives of the abolishment, according to the notions of Louk
Hulsman, Thomas Mathisen and Michael Foucault. It intends
to show that the abolishment is an action that does not res-
train itself from the penal code and requires a specific strategy,
denying the possibility of a common theory or any kind of ge-
neralization.
Keywords: abolitionism; strategy, penal code.

Indicado para publicação em 7 de fevereiro de 2008.

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política, segurança e
criminalização de deslocados

edson lopes*

Este texto apresenta algumas categorias que pro-


gramam e orientam o conjunto temático da seguran-
ça cidadã e cultura de paz e algumas de suas tecnolo-
gias de convivência e tolerância promovidas a fatores
de proteção de setores da população, como processo
de uma constituição social, a comunidade aliada à
polícia. Pretendemos problematizar as conexões pre-
cárias e instáveis que assentam este conjunto temáti-
co a uma perspectiva que se pretende solucionadora
da criminalização, a despeito da crescente seleção,
suspeita e ativamento do reforço penal, conduzindo a
misérias, racismo de Estado e à periferia como acon-
tecimento penal, como campo de concentração.
O documento intitulado “Democracia e Participa-
ção no contexto da crise da representação”, divulgado
no sítio da Secretaria Nacional de Segurança Pública1
como apresentação da Primeira Conferência Nacional
de Segurança Pública (janeiro de 2008), enfatiza a va-

* Mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em


Ciências Sociais da PUC/SP, pesquisador no Nu-Sol e integrante do Centro
de Cultura Social.

verve, 14: 216-236, 2008


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Política, segurança e criminalização de deslocados

riedade e importância dos instrumentos democráticos


de participação popular na formulação, execução e
fiscalização das políticas públicas. Ao definir a cons-
trução destes instrumentos democráticos organiza,
apresenta e dá forma ao tema da segurança pública e
orienta um debate focado nas diversas práticas, que
a despeito da colaboração do intelectual/especialista
ao cidadão comum, entrecruzam e justapõem tanto
os instrumentos democráticos e a avaliação que se
pretende constante de sua eficácia, como o elemento
de uma colaboração e construção coletiva, que ope-
ra a validação do sucesso do empreendimento de tal
forma que parece inadequado, hoje, se questionar as
alianças projetadas no campo da participação, que
por sua vez, ressoa das concessões individuais às
universidades e mídia que divulgam ou traçam solu-
ções e programas que visando a prevenção da violên-
cia, inicialmente exteriores ao governo, através das
instituições de participação e das alianças, informam
ou criam demandas, programas parceiros ou políti-
cas a serem aplicadas pelas secretarias de segurança,
setores do governo e polícias.
Justapõe-se participação com instrumentos demo-
cráticos, parcerias político-privadas — apresentadas
também como ‘coesão social de novo tipo’2 —, alian-
ças entre sociedade, governo e polícias e políticas
afirmativas da comunidade, ou “ações afirmativas”3de
prevenção. Os recentes planos e projetos de seguran-
ça pública (2000, 2003 e 2007),4 que apresentam as
situações de parcerias, os novos instrumentos demo-
cráticos, as “novas alianças”,5 validam-se insistente-
mente através do enunciado do aprofundamento da
democracia e do aperfeiçoamento constante do siste-
ma de segurança pública e sistema de justiça brasi-
leiro que passam pelos modelos de modernização ad-
ministrativa e formação da polícia (integrada e focada
em Direitos Humanos), inovações tecnológicas para
os setores de comunicação, registro e tratamento de
dados criminais, administrativos e do sistema de jus-

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tiça e disseminação e apoio de programas e políticas


de segurança com a sociedade civil.
A “nova aliança”6 entre sociedade civil e polícia
que pode compreender desde o diagnóstico, seleção
de prioridades e processos de avaliação de projetos
e programas de prevenção implantados localmen-
te (por região, bairro, zona censitária, área integra-
da de segurança, periferia, favelas, etc) até a efeti-
va colaboração à investigação, pela denúncia ou no
processo criminal como réu colaborador, ou mesmo
através de contratos de co-gestão, co-elaboração,
parcerias que visam gestão e acompanhamentos de
medidas sócio-educativas, re-inserção de egressos do
sistema penitenciário, constitui uma segurança cida-
dã. A segurança cidadã — no âmbito nacional —,
em construção, como um novo conceito de segurança
pública, ‘em um sentido amplo’ constitui-se em para-
lelo a Cultura de Paz7 no âmbito internacional cujas
propostas de novas tecnologias de convivência e tole-
rância, influenciaram a articulação de prefeituras em
fóruns regionais na década de 1990, como o Fórum
Metropolitano de Segurança Pública, os planos na-
cionais de segurança a partir de 2000, campanhas de
desarmamento, a construção do estatuto do desar-
mamento, o Comitê Desarma São Paulo, seminários
e grupos de trabalho sobre prevenção, como o São
Paulo Sem Medo (2000) e organizações não governa-
mentais como Instituto São Paulo Contra a Violência,
Viva Rio, Instituto Sou da Paz, etc.
A segurança cidadã, esboçada no Projeto Seguran-
ça Pública para o Brasil (2003) e no Plano Nacional
de Segurança Pública com Cidadania é caracteriza-
da pela mudança esperada de comportamento das
instituições de governo, da sociedade civil e do cida-
dão, baseada na colaboração, para diminuição dos
índices de violência. “Aproximar governo e sociedade,
integrar as polícias e fazer com que ela faça parte
da comunidade, promover a capacitação constante

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Política, segurança e criminalização de deslocados

dos profissionais de segurança pública, estimular a


inclusão social e digital entre outras iniciativas pre-
cisam ser levadas adiante. Para que esses e outros
objetivos sejam atingidos é preciso trabalho conjunto
das iniciativas de prevenção e repressão à violência
(...). Estimular a confianças entre cidadão-cidadão
e polícia-cidadão.”8 A parceria entre o Ministério da
Justiça, Secretaria Nacional de Segurança Pública
(SENASP) e o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), desde 2004 promovem o
desenvolvimento do Projeto Segurança Cidadã, cuja
meta é “formular políticas públicas e implementar
ações e estratégias para prevenção da violência e da
criminalidade. A garantia à inclusão social e à igual-
dade de oportunidades também são metas do proje-
to. A disseminação do conhecimento em segurança
cidadã, a capacitação dos agentes implementadores
das políticas públicas de segurança e a prevenção da
violência e criminalidade por meio do resgate da cida-
dania também são metas do projeto.”9
A Cultura de paz é caracterizada por valores, ati-
tudes, tradições, comportamentos e estilos de vida
associados à paz. A Declaração e Programa de Ação
sobre uma Cultura de Paz aborda a prática da não
violência por meio da educação, diálogo e cooperação;
solução pacífica de conflitos, tolerância, pluralismo,
diversidade cultural, etc. Segundo, Federico Mayor,
diretor geral da Unesco, “enquanto cultura de vida,
trata-se de tornar diferentes indivíduos capazes de
viverem juntos, de criarem um novo sentido de com-
partilhar, ouvir e zelar uns pelos outros, e de assumir
responsabilidades por sua participação numa socie-
dade que luta contra a pobreza e a exclusão; ao mes-
mo tempo que garante igualdade política, eqüidade
social e diversidade cultural.”10
O texto “Democracia e Participação no Contexto da
Crise da Representação”11 com a oposição de um con-
ceito de segurança em sentido restrito — baseado em

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ações policiais reativas, enérgicas, reforçadas, com


mobilidade, eficácia repressiva de ação — ao concei-
to amplo de segurança, “novo”,12 que consistiria no
“fortalecimento institucional do Estado para atuar
preventivamente, numa nova concepção de atuação
policial, com o objetivo de estabelecer e fortalecer os
laços comunitários, criando condições para o acesso
a políticas públicas sociais em todo o território bra-
sileiro, respeitando as diferenças regionais, sociais e
culturais fundando uma perspectiva cidadã que po-
nha fim ao que Wacquant chamou de ‘criminalização
da pobreza’.”13 Quais os efeitos dessa aliança entre a
sociedade e a polícia caracterizada por uma forma de
convivência e perspectiva cidadã? Quais os efeitos de
uma perspectiva cuja prática preventiva recai sobre
‘os laços comunitários’?
No Projeto Segurança Pública para o Brasil (2003)
a prevenção é definida como uma intervenção que
busca alterar “condições propiciatórias diretamente
ligadas à prática da violência e do crime”,14 ou “as
dinâmicas imediatamente geradoras da violência.”15
As prevenções são caracterizadas como “iniciativas
tópicas”16 direcionadas e associadas a locais deter-
minados, que antes mesmo devem ser explorados,
mapeados, caracterizados por estatísticas sobre cri-
minalidade, pobreza, distribuição de equipamentos
sociais, de desempenho econômico e indicadores de
seus fatores de risco como: “(...) determinada área
urbana é mal iluminada, não conta com equipamen-
tos e serviços públicos — ou eles são insuficientes
—, é cercada por terrenos baldios. Suponha-se que
não haja acesso viário fácil e que as ruas próximas
ou vielas não tenham calçamento. Adicionem-se al-
guns ingredientes explosivos: ausência de espaços
apropriados para esporte e lazer, nenhuma ativida-
de cultural atraente, alguns bares vendendo bebida
alcoólica a noite toda. Não será difícil concluir que,
sobretudo nas madrugadas de sábado e domingo, as
chances de que surjam conflitos serão altas. Da mes-

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Política, segurança e criminalização de deslocados

ma forma, será fácil deduzir que haverá elevada pro-


babilidade de que se realizem enredos violentos, se
houver armas acessíveis e um contexto de rivalidades
favoráveis, caso a comunidade não esteja organizada
e não intervenha, ocupando espaço com iniciativas
gregárias dada a ostensiva ausência das instituições
públicas e a falta de iniciativa do poder político.”17
No Relatório Sobre prevenção do Crime e da Vio-
lência e Promoção da Segurança Pública,18 os fatores
de risco são caracterizados como ingredientes explo-
sivos, determinantes de variáveis de maior ou menor
presença de crimes e de violência, possuem uma le-
gibilidade técnica, afetando de maneiras diversas os
indivíduos em famílias e grupos diferentes e indivídu-
os em diferentes fases do seu desenvolvimento. Sele-
ciona-se os seguintes fatores de risco: desorganiza-
ção social, comunitária e familiar; a desigualdade de
oportunidades nas áreas de saúde, educação, traba-
lho, segurança e justiça; descriminação; marginaliza-
ção e exclusão de grupos minoritários; a dissemina-
ção de valores, normas e atitudes favoráveis ao crime
e à violência; as relações com familiares, amigos e
conhecidos envolvidos com o crime e a violência; a
ausência ou fragilidade de políticas/programas19 de
prevenção do crime e da violência. Descreve-se as-
sim, circuitos que, sobretudo, enredam o desenvolvi-
mento dos indivíduos, a constituição das famílias, a
instrução pública, a sociabilidade, justapondo crime/
infrações, circunstâncias de desenvolvimento huma-
no e delinqüência. Portanto, a prevenção operaria um
papel técnico positivo, do analítico das condições de
vida e desenvolvimento à obviedade da justiça penal
e de sua peça principal, a prisão; passando pelas inú-
meras condições de educação e trabalho que devem
abranger diferentes períodos da vida como subprodu-
to da incursão de um indivíduo a inúmeros projetos
governamentais ou não-governamentais, no próprio
local determinado por seus fatores de risco.

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A prevenção, nesta perspectiva, deve ganhar o


maior espaço possível, mesmo que a título de inúme-
ros projetos pilotos, instituições de participação que
não são irreversíveis, soluções institucionais concor-
rentes entre si, sujeitas a investigações permanen-
tes tanto por cidadãos, como por setores do governo,
organizações nacionais e internacionais privadas ou
não e universidades, realizando de forma mais neoli-
beral possível através da crítica permanente da ação
governamental, policial e social, sua validade, ativi-
dade, despesas, investimentos em capital humano,
conseqüências sociais e aos comportamentos indivi-
duais, filtrando toda ação de Estado, privada ou social
como investimento mensurável a partir de diferentes
metodologias avaliativas, referenciais e manuseio de
indicadores.
Da economia à saúde, da estrutura familiar às es-
colas, do cenário urbano à disponibilidade de trans-
porte, das condições habitacionais ao acesso ao lazer,
das oportunidades de emprego às relações comuni-
tárias, do potencial cultural aos movimentos estéti-
cos da juventude e à liberdade assistida, as práticas
de prevenção, segundo o PSPB — fundamentando o
Observatório de Práticas de Prevenção à Violência e
à Criminalidade no âmbito nacional e banco de pro-
jetos locais — devem ser mapeados, sistematizadas
e disseminadas a título de amostras preliminares da
situação da prevenção do crime, base para pesqui-
sas e modelo de implantação para diversas regiões-
problemáticas.
A segurança cidadã, ao ser apresentada como uma
disseminação de conhecimento e prática inacabada,
em aperfeiçoamento, nela, a “nova aliança” e os pro-
gramas e projetos, selecionados, listados em bancos
de projetos on line, não dão conta do banimento da
violência ou do crime e redesenham um esboço geral
de adaptação e reforma que remete a um constante
acionamento desta ‘aliança’, avaliação e monitora-

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Política, segurança e criminalização de deslocados

mento das propostas e ações implantadas pelo con-


trole externo da sociedade civil.
A vulnerabilidade das populações é o resultado da
legibilidade técnica da mecânica tanto dos fatores de
risco como dos efeitos das ações de política e pro-
gramas equacionando crimes e violências,20 desenvol-
vimento humano, pobreza e delinqüência; podendo
segmentar-se, por exemplo, como a vulnerabilidade
juvenil. A existência de fatores de risco — que se es-
pera alternarem-se em fatores de proteção — com-
põem as peças principais para transformação de um
contingente em seu espaço, para que introduzidos na
variedade de políticas e programas sejam favorecidos
pela alteração da percepção social (na perspectiva ci-
dadã) desta população e pela alteração de seus peda-
ços de favelas ou periferias em comunidades trans-
formadas ou à espera de uma rede de intervenções
preventivas. “Cada experiência será um piloto, cujo
efeito-demonstração apontará caminhos e despertará
a convicção de que é possível mudar, desde que se
empregue a metodologia apropriada, desde que haja
articulação suficiente entre as instâncias governa-
mentais mobilizadas e desde que se leve realmente
a sério a indispensável participação da sociedade ci-
vil.”21
Não há como deslocar a inteligibilidade técnica
que mapeia a vulnerabilidade em nome das demo-
cráticas integrações de políticas e programas sociais
nos planos de segurança recentes, da criminalização
e da ‘nova aliança’. Entende-se, segundo o Relatório
sobre Prevenção do Crime e da Violência e Promoção
da Segurança Pública,22 que políticas e programas de
prevenção não se limitam à responsabilidade das or-
ganizações que atuam na área econômica, social e
cultural, mas também às organizações/instituições
que atuam nas áreas de segurança pública, justi-
ça criminal e administração penitenciária, às quais
cabe a aplicação da lei, identificação, detenção, per-

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2008

secução, julgamento e punição dos responsáveis pela


prática de crimes. Segundo o mesmo documento, que
sugere uma concepção alternativa, tanto ações puni-
tivas (especialmente, mas não apenas nas áreas de
segurança pública, justiça criminal e administração
penitenciária) quanto ações não-punitivas (especial-
mente, mas não apenas nas áreas econômica, social
e cultural) podem ser preventivas ou criminógenas de
acordo com o resultado monitorado e avaliado de im-
pacto sobre o crime e a violência.
A vulnerabilidade é uma percepção/avaliação so-
cial e policial — sobretudo, política — que opera di-
ferentes criminalizações, estigmatizações e situações
de desenvolvimento humano, sobre a vida de pessoas
como noção analítica, classificadora, selecionadora e
solucionadora.
Os documentos mais recentes se opõem à dicoto-
mia repressão/prevenção, privilegiando a concepção
generalizada da prevenção identificada às organiza-
ções/instituições que atuam nas áreas de segurança
pública, justiça criminal e administração penitenci-
ária. A vulnerabilidade torna contingentes, alvos e
acionadores de demandas de ações policiais (comu-
nitárias ou de elite), penais e sócio-culturais, preen-
chendo estrategicamente novas formas de penalida-
des neoliberais sob a forma expressa do social, da
descentralização do sistema de justiça, do desenvol-
vimento humano e desenvolvimento das cidades.
A justaposição dos mapeamentos, caracterizados
por estatísticas e pela pretensão do compartilhamen-
to de bancos de dados sobre criminalidade, pobreza,
distribuição de equipamentos sociais, desempenho
econômico e indicadores de seus fatores de risco e
projetos e programas de prevenção — como apontam
os Relatório sobre Prevenção do Crime e da Violência
e Promoção da Segurança Pública, Projeto Segurança
Pública para o Brasil e PRONASCI — refazem circui-
tos que se fecham em torno das populações pobres,

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Política, segurança e criminalização de deslocados

compondo política social e política penal em torno do


elevado crescimento dos números de crimes e violên-
cia (criminalidade); diagramações, regularização de
terras e desenvolvimento humano nas cidades, ges-
tão das legalidades e ilegalidades, criminalizações e
seletividade inerente ao sistema penal.
A justiça cidadã só utopicamente pode dar conta de
prescindir da seletividade penal e da criminalização,
fundamenta-se na projeção de zonas, pessoas condi-
cionalmente expostas ao crime ou à ação criminosa
e violenta — vulnerabilidade — e introduzem manei-
ras de separação e percepção social, cuja legibilidade
técnica, atribui um caráter histórico e natural ao que
não é construído de outra maneira senão pela própria
possibilidade de gestão de ilegalismos das polícias,
populares, militares, administrativos, etc.
O processo que deu visibilidade aos excluídos nas
cidades e formulou propostas participativas, a partir
dos anos 1980; ao mesmo tempo que lançava mão
de expedientes como os movimentos populares e de-
mandas diversas por conselhos gestores, orçamentos
participativos, assembléias populares e espaços ins-
titucionalizados de participação, tendo como pano de
fundo a municipalização das demandas e o âmbito
da luta e desativação do regime militar — do qual
a Doutrina de Segurança Nacional incorporou-se na
concepção de segurança pública na democracia —,
não assistiu à reversão dos aprofundamentos dos
problemas urbanos associado ao desemprego, mas à
criminalização crescente das periferias associadas ao
narcotráfico. O processo mais contemporâneo e con-
siderado a maior novidade em democracia é aquele
que hoje em segurança faz funcionar os mecanismos
jurídico-legais, novas formas de penalidade, disposi-
tivos penais associados à tecnologia, justapostos a
políticas e programas sociais e à colaboração da so-
ciedade no planejamento, avaliação e denúncia.

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2008

A visibilidade dos pobres associada às demandas


pela participação, imediata, concomitante à interna-
cionalização do proibicionismo e ao aumento das in-
frações relacionadas à posse, consumo ou venda de
drogas ilegais, à visibilidade operada pela criminali-
zação, opera além de dispositivos de distinção irredu-
tíveis à valoração do trabalho e das atuações das polí-
cias; estados e qualidades para cidadania associados
inicialmente à pobreza (1980), exclusão (1990) e vul-
nerabilidade (2000) — com seus inúmeros fatores de
risco — e a participação e suas derivadas conseqüên-
cias sociais (fatores de proteção) que atingem além do
desenvolvimento dos indivíduos, o desenvolvimento
das cidades.23
Em matéria de perigo, de risco o maior problema é
associado à intensa participação, a morte antecipada
e desenvolvimento de crianças e jovens — grupo so-
cial caracterizado como mais vulnerável — em áreas
dominadas pelo tráfico de drogas. Segundo o Projeto
Segurança Pública Para o Brasil, é preciso disputar
menino a menino com o tráfico através de um processo
de educação, de desenvolvimento humano que caiba
às várias idades da vida. Associado à responsabiliza-
ção de consumidores, esse comércio ilegal de drogas é
por si só caracterizado como violento, ceifando a vida
da maioria dos homens jovens na população. Assim,
uma favela ou periferia dominada pelo tráfico, apre-
senta inúmeros fatores de risco, não cria condições
para o gregarismo, para alianças civis com a polícia,
e neste sentido as intervenções/ocupações militares
ou policiais repressivas constituem a abertura de um
processo cuja finalidade é a criação de uma tecnolo-
gia de convivência em que a população e a motivação
da ampliação das ações sociais disseminam alianças,
até no que diz respeito ao policiamento comunitário,
de modo lento, progressivo e perene. A comunidade,
neste sentido, transforma-se num fato histórico, na
evidência histórica da ampliação dos mecanismos de
participação, dos equipamentos sociais, das alianças

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Política, segurança e criminalização de deslocados

entre a sociedade e a polícia. A despeito, lamentando


ou azeitando as circunstâncias dos inúmeros históri-
cos de invasões policiais, ocupações do exército, tor-
turas, desaparecimentos, etc., que ceifam numerica-
mente também, grande parte dos jovens.
É a história e a percepção da comunidade com uma
qualificação da cidadania — ainda que vulnerável —
de uma comunidade que se une contra o crime ao
lado da polícia. A formulação de projetos e programas
preventivos em políticas sociais recobram no mais
das vezes o discurso punitivo, a ocupação feroz das
favelas por forças militares — como parte de um pro-
cesso aceitável e anterior ao gregarismo comunitário
—, as reformas e descentralizações do sistema penal.
Os efeitos da realidade desta composição corrobora
para a ampliação do poder do Estado de punir e para
a prática de uma legibilidade técnica, equacionada
em vulnerabilidade fundamentadora de um seguro
mútuo que mantém a tendência do sistema penal e
suas conseqüentes ampliações do empobrecimento,
miséria e destruição das famílias dos considerados
infratores (ou egressos). A vulnerabilidade necessi-
ta de uma reserva de confiança, redimensionando a
idéia de que o governo tem muito a realizar.
As comunidade e suas populações são e permane-
cem como álibis contínuos para a intervenção — de
polícias comunitárias a polícias de elite e das Forças
Armadas, sob diversos pretextos —, para o controle
e para mais Estado mesmo que afinado com reorien-
tações focadas em direitos humanos como sugere o
Programa Nacional de Direitos Humanos de 1995. A
história das diferentes situações de pactos antivio-
lência como sugere Cecília Coimbra operam sempre
pelo anúncio de níveis ‘insuportáveis’ de violência e
falta de controle do Estado ou dos governos locais
sobre estes níveis, os da intervenção de outros Es-
tados num nível internacional. Acompanham-se de
novos números, muitas vezes desmentidos e negados

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2008

de agressões, crianças feridas ou revistadas, casas


invadidas sem mandatos, revistas, mandatos de pri-
são em branco, torturas, desaparecimentos, pessoas
feridas por balas perdidas, estupros e outras inúme-
ras violências. Posteriormente, os debates acerca dos
‘excessos’, ‘boatos’ ou meros “deslizes eventuais” for-
talece novas pautas e projetos sobre a estigmatização
das populações, direitos humanos, moralizações das
polícias, educação integradas das polícias, e sobre a
imagem das parcerias e das forças militares emprega-
das em condições em que as atitudes são necessárias
quando se trata de violência, narcotráfico ou até mes-
mo terrorismo — como os comparados aos do PCC.
À medida que a associação pobreza-periculosidade
permanece inabalável, seja agora nomeada de vulne-
rabilidade, comunidade, desenvolvimento humano,
etc, o sistema de justiça, sistema penal, a socieda-
de, permanecem criminalizadores pela perspectiva da
ontologia do crime na pobreza, na comunidade, no
bairro pobre, na favela e na periferia, diferenciados
artificialmente e toleradas como centros de perigo e
destacados na imprensa, por qualquer especialista em
segurança tradutor de uma legibilidade técnica. Jogo
dos toleráveis e das inúmeras adesões que acompa-
nham programas policiais e das Forças Armadas, das
etapas que levam dos fatores de risco aos fatores de
proteção — e não são poucas as vezes que as polícias
e forças armadas são parceiros de traficantes e com-
põem com estes novos tribunais e penas de morte —,
ou que passam pelas indignações populares. E “atrás
do ódio que o povo tem da justiça, dos juízes, dos tri-
bunais, das prisões, não se deve apenas ver a idéia de
outra justiça melhor e mais justa, mas antes de tudo
a percepção de um ponto singular em que o poder se
exerce em detrimento do povo.”24 A captação inces-
sante da experiência demonstra a miséria, o abuso e
o racismo25 por toda parte. A vulnerabilidade é uma
insuficiência analítica universal, que pretende dar
conta da impaciência e da iminente revolta por toda

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Política, segurança e criminalização de deslocados

parte. Frente à desconfiança popular ou a indignação


transformada em demanda, cada luta se desenvolve
em torno de um foco particular de poder. “onde há
poder, ele se exerce. Ninguém é propriamente falan-
do, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em
determinada direção, com uns de um lado e outros
de outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas
se sabe quem não o possui.”26 O escopo humanitário
da governamentalização da sociedade, o escopo rea-
bilitador, reformador, reeducador pelas novas formas
de punir (redimensionando o aprisionamento a céu
aberto), pelo escopo da universalização dos direitos
e da esperança pela paz, em cujas sobreposições os
problemas sociais são cada vez mais criminalizados
fazem com que as periferias e favelas, resignificadas
como comunidades, que crescem mundialmente aco-
pladas a grandes fluxos de imigração e deslocamento
de refugiados (sob a forma de acampamentos, instala-
ções ou campos de refugiados) funcionem como cam-
pos de concentração,27 que junto às prisões, alternam
a configuração de depósitos humanos definitivos.
Mesmo que estes aglomerados de pobres, sistema-
ticamente tolerados enquanto zonas de perigo, rece-
bam um outro estatuto, comunidade, campo, vitimi-
zados, vulneráveis ou refugiados, é a introdução de
uma governamentalização humanitária — com a for-
ça que outorga a lei e a governamentalização, com ou
sem coesão de Estados — no reduto do pobre, ativan-
do sua colaboração e confiança, faz com que a percep-
ção social deste pobre mude de signo, convertendo-se
num cooperador ou num construtor da justiça cidadã
ou da cultura de paz. No interior das periferias, como
sugere Passetti, “a luta pela cidadania aparece como
a tática mais acabada”, contudo, pouco esclarecedo-
ra, à medida que “recoloca, por outras vias, a divi-
são entre viciosos e virtuosos no interior da pobreza.
O Estado pretende corrigir desvios, alardeando aos
quatro cantos que é capaz de vigiar cada cidadão que
não seguir a moral, como se a moral do direito fosse

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2008

sempre isenta de ilegalidades, ou a vigilância, antes


de tudo, não se instruísse na própria sociedade como
uma de suas éticas.”28
A fabricação de pessoas vulneráveis, interpretação
da realidade transformada em realidade em si mesma
das populações pobres, acopla-se à fabricação de ví-
timas e de culpados e toma-se por verdadeiro o que
é apenas estratégico, direcionamento de forças para
novos acontecimentos prisionais. Anne Applebaum29
define o campo de concentração, como campos cons-
truídos com a finalidade de “encarcerar pessoas não
pelo que elas fizeram, mas pelo que elas eram. Di-
ferentemente dos campos de criminosos condenados
e dos campos de prisioneiros de guerra, os de con-
centração foram criados para um tipo específico de
prisioneiro civil não-criminoso, membro de um grupo
“inimigo” ou, pelo menos, de uma categoria de pes-
soa que, pela raça ou suposta tendência política, era
considerada perigosa ou estranha à sociedade.”30 Ou
conforme Origens do Totalitarismo “os campos de con-
centração do começo do regime totalitário eram usa-
dos para ‘suspeitos’ cujas ofensas não se podiam pro-
var, e que não podiam ser condenados pelo processo
legal comum.”31
A acusação, a suspeita, e o perigo operam a con-
cretude da política criminal e penal na seleção, no
perímetro urbano que atualiza a prisão a céu aberto
e no controle eletrônico. Segundo Passetti,32 o campo
de concentração se anuncia como um modelo de ad-
ministração governamental, que redesenha e redefine
as periferias.
Associar as periferias a atuais campos de concen-
tração na sociedade de controle é uma problemati-
zação frente à possibilidade de deslocamentos de
aprisionamentos das prisões, para os meios abertos
(municipalização das medidas sócio-educativas ou
penas alternativas), ou pelas mortes operadas em
ambos os lados por tribunais paralelos e comandos

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verve
Política, segurança e criminalização de deslocados

especiais.33 A localização do inimigo justifica que se


exerça um controle social mais autoritário sobre toda
a população, como único modo de identificá-los e, por
conseqüência, impor limitações à liberdade com o ob-
jetivo de reduzir o risco, a vulnerabilidade. Abre-se
um amplo negócio para os acordos extorsivos com os
infratores, com os identificados e o campo de exter-
mínio pode ser deslocado da periferia para a prisão e
vice-versa.
Desde Vigiar e Punir, Focault apresenta o controle
cuja leitura pode ser dupla, como sugere Alain Beau-
lier,34 de um movimento de transformação que vai do
controle institucional ao controle extra institucional
que também pode ser chamado de social. Sendo que
esta abordagem de Foucault se difere das abordagens
tradicionais em que o controle social é percebido
como um controle de classe ou de um grupo sobre o
outro. Trata-se de algo que se exerce livremente na
sociedade, alimentando vis a vis, cortes distintivos e
artificiais e novas obsessões de segurança que alte-
ram circunstancialmente os indignados, vulneráveis,
injustiçados, vitimizados e colaboradores, tornando-
se um objeto de governo e do Estado, uma aposta de
governo. Ao abordar a história da razão de Estado, da
ratio governamental, e no curso que ao final declara
se tratar de uma mera experiência de método,35 Fou-
cault aborda que embora a sociedade civil, a popula-
ção ou a nação, se oponham ao Estado, são elemen-
tos que se põem em jogo dentro das gênesis do Estado
moderno. E são esses elementos que vão servir de
aposta ao Estado e ao que se opõe a ele.
Os documentos que explicitam a segurança cidadã,
como aliança entre sociedade e polícia — Projeto Se-
gurança Pública para o Brasil (2003) e Plano Nacional
de Segurança Pública com Cidadania (2007) — des-
creve mecanismos e práticas de combate ao crime e à
violência. Estas políticas de combate de ilegalidades
e criminalidades delimitam guerra às pessoas sob a

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2008

democracia, sobretudo, pobres. Essas guerras visam


algo que se pode agravar progressivamente, que gera
inúmeras criminalidades, que se colocam como peri-
go econômico e social para a humanidade e para a so-
berania dos Estados e fazem funcionar polícias inter-
nacionais e intervenções, que fazem parte do sistema
penal tanto quanto do âmbito militar, que remetem a
funções flexíveis e móveis, a uma circulação controla-
da, a toda uma rede que atravessa também os meios
livres, as ciências, o fluxo legal da economia, penas
de morte e aquelas que somam os maiores contin-
gentes, acontecimentos prisionais cujo alvo são, mui-
tas vezes, civis não criminosos, mas que compõem
uma categoria de pessoas, raça, tendência política,
ou etnia, considerada perigosa, deslocada, arrastan-
do consigo as marcas das violências, da desorganiza-
ção social, da guerra à sociedade, da legítima defesa
em relação aos excessos do Estado e que capturados
pela situação de aprisionamento enredados ou não
num processo legal comum, são configurados aos ter-
ritórios com suas situações de vida que encarnam a
imagem do terror, epicentros de periculosidade, como
periferias e favelas, novos campos de concentração.
Não se pode tratar de justiça cidadã ou de cultura
de paz como algo que como um processo, uma cons-
trução, lançará no futuro a lembrança importuna de
um período de violência, criminalização do pobre e
racismo. Portanto, não podem ser tomadas como es-
tratégias para a descriminalização e sequer para re-
dução da atual aplicação do sistema penal e devem
ser descartadas. Frente aos critérios bem explícitos
da seletividade dos Estados, defini-se os pontos em
que a acusação, o direito à morte, o assassínio é re-
querido indefinidamente sob a indefinida continui-
dade do Estado, da comunidade de Estados, segu-
rança da sociedade e saúde do Planeta. As guerras
às pessoas sob o Estado de direito democrático se
tornam álibis contínuos para o controle de contingen-
tes em pleno crescimento, em pleno empobrecimento,

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Política, segurança e criminalização de deslocados

transformados democraticamente e voluntariamente


em colaboradores, denunciantes, delatores, alvos da
governamentlização humanitária, e, dentro ou fora
do conjunto processual, em vítimas testemunhas de
acusação, inteiramente acuados em relação ao direito
penal, à capacidade de seleção, decisão e racismo de
Estado.

Notas:
1
Ministério da Justiça, janeiro de 2008 (sem autor discriminado). www.mj.gov.br.
2
Projeto Segurança Pública para o Brasil, Secretaria Nacional de Segurança
Pública (SENASP), 2003, p. 13.
3
Cf. Loïc Wacquant. As prisões da miséria. Tradução de André Telles. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 2001.
4
Respectivamente: Plano Nacional de Segurança Pública, Projeto Seguran-
ça Pública para o Brasil e Programa Nacional de Segurança Pública com
cidadania.
5
Projeto Segurança Pública para o Brasil, Secretaria Nacional de Segurança
Pública (SENASP), 2003, p. 13.
6
Idem.
7
Definida pela Declaração e Programa de Ação sobre uma Cultura de Paz
de 13 de setembro de 1999 e pelo manifesto de 2000 “Por uma Cultura de
Paz e não-violência” (ONU/UNESCO).
8
Página principal de www.segurançacidada.org.br.
9
Idem.
10
Definição de Cultura de Paz em. “A cultura de Paz”, www.comitepaz.
org.br.
11
Ministério da Justiça, janeiro de 2008 (sem autor discriminado). www.
mj.gov.br.
12
Segundo o Projeto Segurança Pública Para o Brasil (2003) e Programa
Nacional Segurança Pública com Cidadania (2007).
13
Ministério da Justiça. “Democracia e Participação no contexto da crise
da Representação” In www.mj.gov.br/conferencia, janeiro de 2008, p. 5.
14
Projeto Segurança Pública para o Brasil, SENASP, 2003, p. 13.

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2008

15
Idem.
16
Idem.
17
Idem.
18
Secretaria Nacional de Segurança Pública, 2004.
19
As políticas de prevenção do crime e da violência são aquelas ações de-
senvolvidas e aplicadas pelo governo federal, estadual e/ou municipal; os
programas de prevenção do crime e da violência são caracterizados como
intervenções ou ações implementadas por organizações governamentais
e/ou organizações/associações não governamentais.
20
Segundo o Relatório Sobre Prevenção do Crime e da Violência e Promo-
ção da Segurança Pública (SENASP, 2004) estes efeitos podem ser carac-
terizados como preventivos, na medida em que contribuem para reduzir a
incidência e o impacto de crimes e violências, ou podem ser considerados
criminógenos, à medida que contribuem para aumentar a incidência e o
impacto de crimes e violências.
21
Projeto Segurança Pública para o Brasil, 2003, op. cit., p. 19.
22
Secretaria Nacional de Segurança Pública, 2004.
23
Nota-se, portanto, a importância do âmbito social e urbano do Programa
de Aceleração do Crescimento, tendo sido o próprio Programa Nacio-
nal de Segurança com Cidadania classificado como PAC da segurança em
2007.
24
Michel Foucault e Gilles Deleuze. “Os intelectuais e o poder” In David
Lapoujade (org). A ilha deserta e outros textos. Tradução de Luiz B. L. Orlandi
(et all.). São Paulo, Iluminuras, 2007.
25
Foucault chama a atenção ao fato da especificidade do racismo moderno
que uma sociedade exerce sobre ela mesma não é simplesmente o racismo
marcado pelo desprezo e pelo ódio de uma raça contra a outra, ou como
operação ideológica, pela qual o estado, ou uma classe, desviava para o
adversário hostilidades. Trata-se da especificidade do racismo como um
dispositivo, uma tecnologia de segurança. Cf. Em Defesa da Sociedade.
26
Idem, p. 271.
27
A noção de periferia como campo de concentração tem procedências no
trabalho de Loïc Wacquant. As prisões da miséria. Tradução de André Telles.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001; Os condenados da cidade. Tradução
de Maria Eduarda Reis Colares. Rio de Janeiro, Revan/Fase, 2001; Nils
Christie. A indústria do controle do delito. A caminhdo dos Gulags em estilo ociden-

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Política, segurança e criminalização de deslocados

tal. Tradução de Luis Leiria. São Paulo, Forense, 1998; e Edson Passetti.
Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo, Cortez Editora, 2003.
28
Edson Passetti. Anarquismo e sociedade de controle. São Paulo, Cortez edi-
tora, 2003, p. 176.
29
Anne Applebaum. Gulag: uma história dos campos de prisioneiros soviéticos.
Tradução de Mário Vilela e Ibraíma Dafonte. São Paulo, Ediouro, 2004.
30
Idem, p. 35.
31
Hannah Arendt. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São
Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 491.
32
Edson Passetti. “Ensaio sobre um abolicionismo penal” in Verve vol. 9.
São Paulo, Nu-sol, 2006.
33
A história ampla dos campos de concentração data do século XIX, ilus-
tra diversos projetos e atualizações. Os primeiros campos foram estabe-
lecidos em 1895 na Cuba colonial para pôr fim a insurreições locais. Em
1900 um projeto britânico foi descrito como reconcentração e iniciado por
motivos semelhantes durante a guerra dos Bôeres, na África do Sul. Alguns
colonizadores na África, aderiram ao modelo obrigando habitantes nativos
a trabalhos forçados para a colônia. O Império Russo, na marcha para
o leste, conquistou e concentrou diversos povos. Dos campos do século
XIX, aos do século XX, opera-se um longo processo de desumanização de
opositores ou inimigos objetivos, categoria nem inteiramente arbitrária e
nem estável. A noção de periferia como campo de concentração, não deve
ser observada como mera construção de efeito, mas como problematiza-
ção possível de um longo processo de seleção e governamentalização que
está à mão quando se trata de determinada categoria de população.
34
Alain Beaulieu. “La Transversalité de la notion de controle dans la travail
de Michel Foucault” in Alain Beaulieu (org.). Michel Foucault et lê Controle
social. Québec, Lê Presses de l´Université Laval, 2005.
35
Referência ao curso de 1977-1978: Sécurité, territoire, population.

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2008

RESUMO
Este texto apresenta algumas categorias que programam e
orientam o conjunto temático da segurança cidadã e cultu-
ra de paz e algumas de suas tecnologias de convivência e
tolerância promovidas a fatores de proteção de setores da
população, como processo de uma constituição social, a co-
munidade aliada à polícia. Pretendemos problematizar as
conexões precárias e instáveis que assentam este conjunto
temático a uma perspectiva que se pretende solucionadora
da criminalização, a despeito da crescente seleção, suspeita
e ativamento do reforço penal, conduzindo a misérias, racis-
mo de Estado e à periferia como acontecimento penal, como
campo de concentração.
Palavras-chave: vulnerabilidade, segurança cidadã, polícia.

ABSTRACT
This text shows some categories that programs and directs
the thematic set of citizen security and culture of peace, and
some of its technologies of sociability and tolerance promo-
ted as factors of protection to population’s sectors as process
of a social constitution to a community associated with the
police. We intend to problematize the precarious and unsta-
ble connections that place this thematic set on a perspective
that affirms itself as the solution for the criminalization, in
spite of the increasing selection, suspicion and activation of
the penal strengthen, guiding to miseries, racism of State,
and to the periphery as penal occurrence, as concentration
camp.
Keywords: vulnerability, citizen security, police.

Recebido para publicação em 19 de setembro de 2008.


Confirmado em 6 de outubro de 2008.

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verve
Emma Goldman diante do tribunal

emma goldman diante do tribunal —


o povo do estado de nova york contra
emma goldman1
Publicado por Mother Earth

20 de abril de 1916.

O Tribunal de sessões especiais no Edifício da Cor-


te Criminal de Nova York estava lotado na tarde em
que Emma Goldman compareceu diante dos juízes
O’Keefe, Moss e Hebert. Centenas de pessoas foram
impedidas de entrar na sala do tribunal. Pessoas dos
mais variados tipos e condições podiam ser vistas em
meio à multidão de meninos e meninas, mulheres da
sociedade, artistas, literários, médicos, advogados. Al-
gumas das proeminentes figuras presentes eram o Dr.
Charles Andrews, Dr. William J. Robinson, William
Sanger, Leonard D. Abbott, Rose Marie e Yuster, Sr. e
Sra. Robert Henri, Dr. Ben L. Reitman, Harry Weinberger,
Robert Minor , George Bellows, Randall Davey, Sra.
Jessie Ashley, Bolton Hall, Anna Sloan, Rose Pastor
Stokes e Sra. J. Sergeant Cram.
Emma Goldman encontrou-se cara-a-cara com os
próprios representantes da lei que ela havia violado.
Ela optou por ir ao tribunal sem um advogado. Com
rara coragem e eloqüência, ela procedeu com sua sus-
tentação. Albert B. Unger, o jovem advogado enviado
para representar o Ministério Público fez de tudo para
interrompê-la e confundi-la.

verve, 14: 237-247, 2008


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2008

Um investigador foi chamado a testemunhar e, em


seu depoimento, afirmou ter assistido à sua palestra
sobre controle de natalidade no Cassino New Star, em
Nova York, em 8 de fevereiro, na qual Emma Goldman
havia falado sobre métodos contraceptivos. Ele entrou
em detalhes que, por razões que os nossos leitores irão
entender, não podemos reproduzir.
Reproduzimos aqui os desdobramentos, citados di-
retamente dos registros oficiais:
JUIZ O’KEEFE (Dirigindo-se à Acusada): O povo
pôde finalmente descansar. Esse é o caso dele. Agora o
caso vai para você, que pode propor umas moções por
estar certa quanto à suficiência das provas apresenta-
das, encontrando uma dentre elas de absolvição e ime-
diata libertação. E uma tal moção estaria em ordem.
SRA. GOLDMAN: Excelência, a testemunha afir-
mou, entre outras coisas, que havia homens, mulheres
e crianças, e ele enfatizou o fato de que havia crianças
de idade inferior a três anos. Seria provável que tais
crianças pudessem se ofender com o que eu viesse a
falar desse púlpito? Ele também disse que eu salientei,
no discurso, que setenta e cinco mil pessoas, mulhe-
res, morrem anualmente em decorrência de abortos
criminosos, e que, em vez de levá-las a tal situação,
elas deveriam utilizar métodos preventivos. Parece-me
que os métodos de prevenção que ele utilizou eram
simplesmente uma continuidade da palestra que os
precedeu.
Prosseguindo, Excelência, o senhor foi realmente
justo em me conceder o direito de expressar-me nesse
tribunal e, se me permite, gostaria de seguir adiante.
Eu gostaria de lembrá-lo que se houvesse liberdade de
expressão na cidade de Nova York, ou neste condado,
eu não estaria aqui nesta tarde. Lá não há liberdade
de expressão. E eu espero que haja liberdade de ex-
pressão neste tribunal.

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verve
Emma Goldman diante do tribunal

Excelência, eu já realizei essa palestra em cin-


qüenta cidades nos Estados Unidos, sempre diante de
pessoas representativas e, dentre elas, havia sempre
investigadores. Nunca fui molestada ou impedida de
forma alguma. Eu dei essa mesma palestra em inglês
e iídiche sete vezes em Nova York antes de falar no dia
8 de fevereiro. Sempre na presença de investigadores.
Pois no meu caso, Excelência, a polícia e os detetives
estão sempre por perto; estão sempre em todos os en-
contros. Eles anotavam tudo; tiveram a oportunidade
de me prender. Mas nunca me prenderam quando eu
dava a palestra em inglês; eles claramente aguarda-
vam o momento em que eu desse a palestra em iídiche,
quando ela poderia ser distorcida e, então, realizavam
a prisão.
No entanto, Excelência, eu penso que antes que
qualquer decisão possa ser tomada, se há justiça nes-
sa corte, aquilo que está por trás da realização do cri-
me deve ser considerado. Atualmente e nas últimas
três semanas, toda noite, diante de casas lotadas, há
um tremendo indiciamento social sendo encenado no
Candler Theatre, chamado “Justiça”. O advogado de
defesa, ao resumir sua sustentação em defesa do acu-
sado, afirma que “por trás de todo crime — do ato de
cometer um crime — há vida palpitante”. Agora, o que
seria, Excelência, a vida palpitante? Isso poderia sig-
nificar — tome o crime pelo qual sou indiciada. Eu lhe
direi o que significa. Outro dia, o Ministério da Saúde
emitiu [...]
SR. UNGER: Não tenho qualquer intenção em in-
terromper a acusada, mas O Povo do Estado de Nova
York está interessado em apenas uma proposição, isto
é, processar a acusada por violação do Artigo de In-
decência do Código Penal. Esse pronunciamento da
acusada está fora de ordem. Penso que precisamos
colocar certos limites. Não temos qualquer objeção
à liberdade de expressão, nem tampouco a qualquer

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2008

propaganda que seja disseminada decentemente e de


maneira pura.
JUIZ HERBERT: o senhor apresenta objeção às afir-
mações da acusada por serem incompetentes, irrele-
vantes e imateriais.
SR. UNGER: Sim, senhor. Eu recomendaria à acu-
sada que propusesse uma moção formal de não con-
sideração, se o Tribunal julgar procedente. O Tribunal
a tratou muito bem e zelou pela observância de seus
direitos e o Promotor defenderá os direitos de qualquer
acusado que entre neste Tribunal.
JUIZ O’KEEFE: A senhora certamente excedeu-se
um pouco em sua moção. O seu pronunciamento deve
ser interpretado como uma moção de não considera-
ção. Tal moção é enunciada a partir daquilo que está
diante do Tribunal até o presente momento. O que está
diante do Tribunal é a acusação apresentada pelo Pro-
motor e o depoimento recém citado.
Seu ataque deve ser dirigido a essa acusação e a
esse testemunho. Nós lhe concedemos, certamente,
amplo espaço de ação, considerando que a senhora
está agindo como sua própria advogada. Nós queremos
lhe dar toda oportunidade de defender seus direitos e
de levantar qualquer questão que seja pertinente.
SRA. GOLDMAN: Excelência, eu não tenho desejo
algum em realizar um ataque, mas me parece que [...]
JUIZ O’KEEFE: Quando digo “ataque”, refiro-me a
desafiar a suficiência. Quero dizer atacar em um sen-
tido restrito, como uma moção de não consideração
pode ser entendida como um ataque à suficiência da
ação.
SRA. GOLDMAN: Isso é exatamente o que pretendo
fazer, Excelência. Eu quero desafiar o indiciamento ou
a acusação, com base no fundamento de que a acu-
sação, ou ainda o Direito Penal, a seção do Estatuto,
1142, refere-se exclusivamente à venda ou à propa-

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verve
Emma Goldman diante do tribunal

ganda para a venda de tal coisa, ao passo que estou


tentando ressaltar, com o intuito de solicitar a não
apreciação da acusação — estou tentando ressaltar
que a acusação é apenas parte de um vasto movimento
apoiado num certo argumento econômico e social. Isso
é certamente parte de uma defesa, e se, como afirmou
o Promotor, há liberdade de expressão, eu devo ter o
direito de dizer algo a respeito. Eu apenas gostaria de
salientar que, de acordo com o informe do Conselho de
Saúde, trinta milhões de pessoas nos Estados Unidos
passam fome ao longo de suas vidas. Que espécie de
criança, Excelência, essas trinta milhões de pessoas
trazem ou podem trazer ao mundo, se o seu salário não
é suficiente para sustentar seus filhos e a si mesmos?
Como resultado, em decorrência de seus reduzidos sa-
lários e do grande número de crianças por residência,
trezentas mil crianças, Excelência, são sacrificadas
todo ano; morrem antes de alcançar o primeiro ano de
vida. Assim, tal situação, acredito [...]
SR. UNGER: Se o Tribunal me permite, eu sinto
muito interromper a Sra. Goldman, mas esse Tribunal
não é lugar para discursos políticos. Essa moção não é
dirigida às evidências desse caso. Se a acusada deseja
tomar a palavra e fazer tais afirmações sob juramen-
to, nesse caso haveria alguma razão, algum sentido,
e regras adequadas para que as provas devessem ser
aplicadas no sentido de sua admissão ou exclusão.
Mas para uma moção, parece-me ser profundamente
inadequado e objetivar meramente notoriedade e nada
mais.
JUIZ O’KEEFE: A Sra. tentará se deter à adequação
da moção, levando em consideração a seção?
SRA. GOLDMAN: Bem, Excelência, já que, segun-
do o promotor, eu não tenho o direito de expressar
minhas razões sobre o alvoroço em torno do controle
de natalidade e sobre aquilo pelo qual sou indiciada,
eu apenas gostaria de concluir que ao divulgar idéias
sobre o esclarecimento da raça humana, sobre a me-

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14
2008

lhoria da condição de vida das crianças, eu não o faço


por ganhos pessoais ou lucro. Eu faço para alertar e
trazer conhecimento às mulheres; para dar-lhes opor-
tunidade de saber sob quais condições e por quais
meios trazer filhos saudáveis ao mundo, e não encher
o mundo de filhos. E portanto, considerando que não
cometi crime algum, já que não estou me benefician-
do pessoalmente, já que não é uma questão de lidar
com falsas idéias e remédios fajutos, eu solicito que a
acusação não seja acatada. Eu não sou culpada de cri-
me algum em todo o grande movimento conhecido por
controle de natalidade, apoiado pelos maiores homens
e mulheres em todo o mundo. Eu desejo que a minha
moção seja aceita e o indiciamento ou acusação sejam
rejeitados.
JUIZ O’KEEFE: A moção é negada, com uma exce-
ção à acusada.
A Sra. pode testemunhar agora. O caso está com
você. A Sra. pode testemunhar em seu próprio nome
ou pode chamar testemunhas em seu nome, como pre-
ferir.
SRA. GOLDMAN: O que significa “testemunhar por
conta própria”, Excelência?
JUIZ O’KEEFE: Ir ao púlpito, fazer o juramento e
contar sua versão do caso; o que aconteceu, assim
como fizeram as testemunhas que a precederam. A
testemunha que falou sob juramento testemunhou.
Ele contou o que ocorreu sob juramento. Isso é teste-
munhar.
SRA. GOLDMAN: Pois bem, estou disposta a teste-
munhar.
EMMA GOLDMAN, acusada, chamada como teste-
munha em seu próprio nome, declarada solenemente,
testemunhou o seguinte:
Exame direto pelo JUIZ O’KEEFE.

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verve
Emma Goldman diante do tribunal

P — Onde você mora? R — Eu moro na 20 East One


Hundred com a Twenty-Fifth Street, em Manhattan.
P — Você está ciente da acusação que lhe foi feita?
R — Sim.
P — E você ouviu o depoimento que foi dado pela
testemunha, um policial, que acabou de depor? R —
Sim.
P — Você pode dar seu depoimento em seu próprio
nome e em sua defesa como lhe parecer mais adequa-
do. R — Bem, a primeira afirmação que eu gostaria de
fazer é que há uma grande diferença entre iídiche e
alemão; eu dei a palestra em iídiche e o oficial não en-
tende iídiche. Ele demonstrou que não entende nada
pois não compreendeu o Presidente e, portanto, não
poderia ter-me compreendido. Isso é uma coisa. Eu
afirmo ainda que as diversas coisas sobre as quais o
policial jurou são, em primeiro lugar, enganosas, pois
estão mal escritas, erradas, e não seriam utilizadas
por alguém inteligente. Eu afirmo ainda que antes de
tratar daquilo que o oficial falou, os métodos preven-
tivos, eu falei por quase uma hora, a partir de uma
perspectiva educacional, para homens e mulheres da
classe trabalhadora e profissionais de baixa renda;
não, como ele afirmou anteriormente, para homens,
mulheres e crianças, mas diante de homens e mulhe-
res capazes de cuidar de si mesmos. Eu expus a razão,
o objetivo e o histórico do movimento de controle de
natalidade. Assim, se o oficial foi até lá com o objetivo
deliberado de fazer anotações sobre o que ele ouviu,
está evidente que ele o fez a partir do que compreen-
deu, não a partir do que foi realmente dito. Ademais,
acredito que a testemunha não sabe taquigrafia. Como
é que ele pode lembrar de tudo tão bem, de acordo
com seu próprio depoimento? Não temos o hábito de
lembrar de tudo com tanta precisão. A palavra falada
é facilmente esquecida. Como ele se lembra — ele pode
ler de seu próprio manuscrito — se não sabe taquigra-
far ou pelo menos não sabe bem? Ainda, Excelência,

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2008

gostaria de acrescentar, se possível, que a causa e a


razão para disseminar o controle de natalidade é uma
necessidade urgente e imperativa. Como enfermeira de
formação, que passou todo o tempo em meio à pesso-
as, eu sei que essa é uma necessidade urgente e que,
portanto, eu não estou sozinha e isolada na divulga-
ção do controle de natalidade. Eu tenho o apoio de
centenas e milhares de profissionais da área médica
e científica, artistas, intelectuais, mulheres de negó-
cio, que perceberam que a prevenção é melhor que a
cura. Com isso, queremos dizer que a conspiração do
silêncio, conforme afirmou a testemunha, está levando
mulheres ao aborto, quando a inteligência e o escla-
recimento teriam salvo as mulheres e crianças. Isso é
tudo o que eu tenho a dizer.
Inquirição pelo SR. UNGER :
Agora, Sra. Goldman, para romper a conspiração
do silêncio, você acha necessário e essencial utilizar
a palavra ———— e pronunciá-la em um evento pú-
blico? R — Eu acredito ser necessário esclarecer ao
público como prevenir a concepção.
P — Você já foi condenada por algum crime? R — Se
eu fui? Sim, há vinte e três anos, senhor.
P — Qual crime? R — Eu fui acusada de [...]
P — Por qual crime você foi condenada? R — Eu
fui acusada de ter incitado uma rebelião que nunca
aconteceu.
Inquirição pelo JUIZ HERBERT:
P — A senhora nega que tenha dito o que o oficial
afirma que a senhora disse? R— Eu nego ter dito dessa
maneira, sim, senhor.
Um segundo investigador foi levado a depor e teste-
munhou que a Sra. Goldman falou de diferentes ma-
neiras sobre prevenir a concepção.
Em seguida, a Sra. Goldman encerrou sua defesa:

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verve
Emma Goldman diante do tribunal

SRA. GOLDMAN: Excelência, eu estive envolvida


no movimento social dessa cidade pelos últimos vin-
te e seis anos, como enfermeira, professora e editora.
Durante esse período, eu testemunhei situações tão
extremas que até os artistas mais criativos teriam difi-
culdade em descrever. Eu não irei tomar o tempo desta
corte, nem tampouco o do senhor, com os detalhes.
Eu apenas gostaria de chamar a sua atenção para
alguns desses casos. Eu acompanhei o caso de uma
mulher, casada com um homem tuberculoso, mãe de
oito filhos e grávida do nono. Essas crianças estão em
um hospital para tuberculosos. Eu acompanhei outro
caso em que o homem ganha 12 dólares por semana,
a mulher é mãe de seis filhos e está grávida do sétimo.
Eu mesma cuidei de um caso em que a mulher era
mãe de doze filhos; ela morreu na prisão, grávida do
décimo terceiro, e o provedor da família, o filho mais
velho, tem apenas quatorze anos. Esses são apenas
alguns poucos casos do nosso moinho econômico, que
recompensa a pobreza e as leis que fazem da conspi-
ração do silêncio uma virtude. Como resultado des-
sas condições, Excelência, e também por causa da de-
manda e da insistência das próprias pessoas, a grande
idéia de ajudar as pessoas a tomarem conta de si pró-
prias e trazer melhores crianças ao mundo é a idéia
que eu trago diante desse tribunal e diante do mundo
hoje. Se isso é um crime, eu estou disposta a ser uma
criminosa. Mas eu chamo vossa atenção para o fato
de que eu não estou sozinha nessa posição. Eu tenho
como ilustres colegas os maiores homens e mulheres
em todo o mundo, incluindo nos Estados Unidos. Se
para ensinar as pessoas a trazerem ao mundo melho-
res crianças, de tal forma que não se tornem indigen-
tes ou povoem hospitais e reformatórios, ou terminem
no crime, se isso for considerado crime, eu desejo ser
condenada. Eu quero alertá-lo, Excelência, para o fato
de que o controle de natalidade é uma fase importante
do desenvolvimento humano. É uma fase na luta so-
cial mais ampla; ou, como seria mais adequado, uma

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fase na guerra social mais ampla. Não uma guerra por


conquistas militares, por supremacia material, mas
uma guerra por um assento à mesa da vida por par-
te do povo, das massas que criam, que constroem o
mundo e não recebem coisa alguma em troca. Eu vejo
o controle de natalidade como apenas uma fase desse
vasto movimento. E se eu, por meio da minha revol-
ta — por meio da minha educação, eu diria — puder
indicar um caminho para o aprimoramento da huma-
nidade, a uma qualidade mais apurada, crianças que
deveriam ter uma juventude feliz e gloriosa e mulheres
que deveriam ter uma maternidade saudável, se isso
é um crime, Excelência, eu tenho prazer e orgulho em
ser uma criminosa.
JUIZ O`KEEFE: Certamente, Sra. Goldman, você
precisa entender que nós não somos legisladores; so-
mos o Judiciário e devemos interpretar a lei conforme
a encontramos.
A sentença do Tribunal é de que a acusada deve
pagar uma multa no valor de cem dólares e, diante da
recusa ao pagamento, deve ser mantida na Casa de
Correção até que a multa seja paga, não excedendo o
período de quinze dias.
SRA. GOLDMAN: Eu escolho a Casa de Correção,
Excelência.2

Tradução do inglês por Andre Degenszajn.

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verve
Emma Goldman diante do tribunal

Notas:

1 Publicado na revista Mother Earth, 1916, volume XI, nº 3.


2 “No cárcere do condado de Queens, como anos antes em Blackwell’s
Island, comprovei que um delinqüente médio não nasce, mas se faz. É
preciso ter o consolo de um ideal para sobreviver às forças construídas para
humilhar o prisioneiro. Com tal ideal, os quinze dias foram para mim como
um jogo. Li mais do que havia lido durante meses, preparei material para
seis conferências sobre literatura americana e ainda sobrou tempo para me
dedicar às minhas companheiras de prisão”. In Emma Goldman. Viviendo
Mi Vida. Madri, Fundación de Estudios Libertários Anselmo Lorenzo, 1995,
Tomo II, pp. 76. (N.T.).

RESUMO
O texto reproduz os registros oficiais do julgamento de Emma
Goldman, em decorrência da denúncia de um policial, acusan-
do-a de propaganda indecente.

ABSTRACT
The text reproduces official transcripts of Emma Goldman’s
trial, following the accusation of a police officer for obscene pro-
paganda.

Indicado para publicação em 23 de junho de 2008.

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antropofagia
anarquista

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nós que vivemos com vocês
vocês que habitam em nós

jaime cubero, 1927-1998


antonio martinez, 1915-1998
roberto freire, 1927-2008

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verve

Jaime e seu jardim

doris accioly e silva*

no ofício múltiplo
de sábio e sapateiro
um homem se cria
palmilhando pregos, sonhos,
lutas e sentidos
nascidos da dura dignidade da matéria

seu olhar de horizonte


abraça o perto que foge
em invisível delicadeza
e o que nos acena lá longe
como impossível e alheio
sendo nosso residente

* Doris Accioly é Doutora em Sociologia e professora na Faculdade de Edu-


cação da USP.

verve, 14: 251-268, 2008


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no ouvir
acolhe o outro
que então se reconhece
a palavra em alteridade
é maré de epifanias

convive com os bens simbólicos


que lhe chegam através das eras
como pássaros e constelações

cultiva estranhas flores no limiar dos abismos


na improvável praia pressentida
entre o horror , o cosmos, a radical liberdade
e a mais terna compreensão dos seres.

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verve

o arco teso da anarquia

gustavo ferreira simões*

Roberto Freire: anarquista, escritor de Cléo e Daniel,


Coiote, Os cúmplices, Ame e dê vexame, Sem Tesão não
há solução, Viva eu viva tu, viva o rabo do tatu, de pe-
ças de teatro, novelas, poesias, revistas, programas de
televisão, cinema. Não submeteu sua existência ao go-
verno do Estado nem a outros governos sobre a vida.
Escreveu em todos os cantos possíveis, sob cada nesga,
que mesmo sob diversas formas de autoritarismo nas
relações, pessoas que se amam livremente despertam
costumes liberadores. Inventou a Somaterapia no final
dos anos 1960, como resistência ao regime militar no
Brasil, prestando auxílio psicológico e financeiro para
a manutenção das famílias de militantes clandestinos
vitimadas por fuga, prisão ou morte. Incorporou a seu
modo o tesão, palavra que corria na língua dos jovens,
para afirmar seu anarquismo somático, que não aparta-
va da batalha prazer e paixão. Apreciador da beleza e
da alegria no movimento dos corpos, no sexo solto, Ro-
berto Freire temperou o anarquismo com sensualidade,
lutando, corajosamente, de peito aberto, como se diz na
capoeira. A presença do seu pensamento singular na
universidade, em pesquisas, encontros, cursos, provo-
ca a irrupção de experiências imperdíveis, na carne de
quem, deliciosa e libertariamente se envolve neste ou-
tro jeito de se fazer política. Algo em nós fica mais forte

* Mestrando em Ciências Sociais na PUC/SP e pesquisador no Nu-Sol.

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no contato com esta existência protomutante, anuncia-


dora, cúmplice, parceira, amiga e guerreira. Existência
que habita hoje quem vive interessado na lida com a
vida nos excessos, convite irresistível para curtir teso o
arco da anarquia.
Saúde, Tesão e Anarquia.

antonio martinez (1915-1998) e


jaime cubero (1927-1998)

nildo avelino*

Para o anarquista, o exemplo é a melhor das pro-


pagandas, e a vida anárquica a melhor obra. Como se
o caminho trilhado através dos preceitos fosse longo
e árduo em comparação ao breve percurso dos exem-
plos. E talvez tenham sido os anarco-terroristas quem
mais tenham enfatizado a conduta enérgica, exemplar
e resoluta, contra os embates meramente discursivos, e
afirmado no estampido de uma explosão o meio de fazer
ouvir surdos. Fizeram de seus corpos um suporte para
sua propaganda, modelaram seus gestos e estilizaram
suas vidas de maneira a perdurarem no tempo. Rejeita-
ram a separação entre discurso e existência anarquis-
ta e imortalizaram-se na obra de suas próprias vidas.
Por isso, nada entenderam esses que confundem esté-
tica da existência com o quietismo da vida burguesa e
confortável: o que há de mais incômodo, e perigoso, do
que engajar a própria vida num estilo singular? O que
é mais arruinador do que passar disso que os gregos
chamavam de vida inautêntica, porque irrefletida, para
uma vida autêntica e refletida? É certamente mais fácil

* Doutor em Ciência Política e integrante do Centro de Cultura Social.

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verve

deixar-se absorver inteiramente na militância política,


na preparação revolucionária. Mas são raros, muito ra-
ros, os que, ao preparar a revolução, revolucionam a si
mesmos.
Antonio Martinez e Jaime Cubero foram estilos de
liberdade; fizeram do anarquismo um exercício do pen-
samento, da vontade, de todo seu ser, procurando al-
cançar um modo de existir praticado a cada instante e
destinado a transformar toda a vida. É dessa maneira
que é preciso referir-se a eles. Mas gostaria de fazer
de maneira que a dura recordação de amigos perdidos
fosse igualmente doce. Ninguém desejaria recordar pelo
pensamento o que no pensamento se pensa com dor.
Façamos, então, como dizia o poeta, de modo que a
lembrança dos amigos contenha doçura e frescor, as-
sim como certos frutos possuem uma agradável aspe-
reza, assim como agrada o amargor de um vinho enve-
lhecido. Ao recordar amigos que perdemos, a tristeza
tem qualquer coisa de doce quando vem ao pensamento
seus discursos prazerosos, suas companhias alegres,
seus afetos atenciosos. Quando eram presentes, sabí-
amos que iriam; agora que foram, parece-nos ainda tê-
los conosco.
Martinez foi o primeiro velho anarquista que conhe-
ci, dividi com ele a função de tesoureiro do Centro de
Cultura Social, CCS. Era avesso à publicidade e negou-
me várias vezes seu depoimento. Mas quando finalmen-
te consentiu, foi internado, vindo a falecer em 29 de
outubro de 1998.
Levado pela primeira vez à Federação Operária de
São Paulo, FOSP, aos 14 anos, o conheci em 1991
aos 76 anos (eu contava com 17). Pairava sobre ele
sua lendária participação no confronto armado entre
anarquistas e integralistas, na Praça da Sé em 1934.
Mas jamais falava sobre o assunto, procurando evitar
manifestações de bajulação. Todavia, recordo-me bem
como o ouvi falar uma única vez. Encontrava-me em
um meeting na Praça Ramos por ocasião das comemo-

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rações do 8 de março; avistei Martinez próximo a uma


animada roda de discussão entre militantes da esquer-
da. Inadvertidamente, um velho comunista começou a
elogiar o Conde Crespi como importante personagem
industrial responsável pelo desenvolvimento paulista.
Inquieto, permaneci calado esperando Martinez contra-
dizer o orador; o que não ocorreu. Me vi na oportuni-
dade de relatar os conhecimentos que tinha dos atos
desse Conde e como levaram à explosão da greve de
1917. Incomodado com minha impertinência, o velho
retrucou que faltava-me experiência para discutir tais
assuntos. Do silêncio, Martinez irrompeu. Enrijeceu o
dedo e, como se lhe tivesse tocado o nervo, falou du-
ramente: “Eu tinha dezessete anos quando empunhei
uma arma na praça da Sé!”. A discussão cessou depois
de um silêncio incômodo.
Sua participação no CCS data provavelmente de
1945, com a reabertura após a ditadura getulista.
Porém, deve-se a seu trabalho pessoal a organização
minuciosa de um vasto acervo, o restauro de velhos
documentos e a conservação de um material valio-
so pertencente ao Círculo Alfa de Estudos Históricos
(Grupo Projeção). Martinez, sua irmã e uma sobrinha,
habitaram durante anos a sede do arquivo, uma velha
casa assobradada na Rua Gonçalves Dias, no Brás. Por
alguns meses fomos vizinhos, quando então morava em
uma pensão na Rua Marcos Arruda, por volta de 1996.
Costumava visitar Martinez quase todos os dias no cair
da noite. Mostrava-me o material e queixava-se da falta
de apoio; fazia questão de narrar minuciosamente suas
técnicas de restauro: comprava papel arroz em casas de
aeromodelismo no centro da cidade e, com cola espe-
cial, fazia os remendos necessários em jornais amare-
lados. Em seguida, cobria-os completamente, folha por
folha, com cera de abelha, dizendo que, além do efeito
impermeabilizante, protegia contra a ação de insetos.
Dizia, com muita decepção, que eu era uma das poucas
pessoas que se interessava por seu trabalho.

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verve

Após o falecimento de Jaime Cubero, “seu melhor


amigo” no dizer de sua sobrinha, Martinez entristeceu
e caiu doente. Acamado em um leito improvisado de
tijolos, em minhas visitas pedia-me algum volume de
jornal que havia encadernado para ler e fazer ainda
eventuais reparos. Em uma dessas visitas, levantou-se
com dificuldade, apanhou uma caixa de sapatos, abriu-
a e retirou um velho revólver: era a arma empunhada
contra integralistas em 1934. Transferido para um leito
do hospital do Jabaquara, faleceu aos 83 anos.
Ao contrário de Martinez, Jaime Cubero foi um anar-
quista conhecido. A longa trajetória de militante do
CCS, também iniciada em 1945, colocou-o na convivên-
cia de velhos anarquistas tais como Edgard Leuenroth,
Rodolfo Felipe, João Penteado, Adelino de Pinho e Pedro
Catallo. Em 1954 foi convidado por Leuenroth para tra-
balhar no jornal O Globo. Viaja para o Rio de Janeiro
onde mantém relações com o velho anarquista carioca
José Oiticica. Em O Globo vive um episódio curioso. No
ano de 1963, os gráficos do jornal declaram greve e os
jornalistas aderem em solidariedade. Jaime engaja-se
na greve e logo é nomeado para a comissão de salários.
Ocupava na época o cargo de subchefe do arquivo de
redação, fato que o tornava bem conhecido de Rober-
to Marinho. Com a demissão de oitenta jornalistas, o
presidente do sindicato marca uma reunião com os de-
mitidos. Roberto Marinho condiciona a readmissão dos
trabalhadores a uma confissão escrita por eles em que
declaravam ter cometido falta grave, arrependimento e
a promessa de não incorrer em outras faltas. Marinho
assegurava não utilizar a confissão junto ao Ministério
do Trabalho, mas se reservava o direito de mostrá-la
aos demais trabalhadores de O Globo. Jaime foi tomado
pelo que chamava de “santa fúria”. Afirmou sua parti-
cipação e envolvimento em todos os episódios grevistas
e sustentou a incompatibilidade salarial da profissão.
Marinho, ruborizado, retrucou que Jaime tinha “agido
muito mal”. Depois de algum tempo, para sua surpre-
sa, Jaime recebe um comunicado do superintendente

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de O Globo solicitando seu comparecimento à Redação.


Propuseram-lhe sua readmissão, Roberto Marinho ti-
nha simpatizado e considerado sua atitude digna. Mas
Jaime recusa. Dias depois, o superintendente do jor-
nal insiste, e nesse momento Jaime responde consen-
tir com sua readmissão mediante declaração escrita de
Roberto Marinho afirmando seu engano em ter demi-
tido os jornalistas e prometendo não mais fazê-lo. Jai-
me assegurava não utilizar a declaração no Ministério
do Trabalho, mas se reservava o direito de mostrá-la a
todos os demitidos. E assim terminou sua epopéia de
jornalista no Rio de Janeiro.
De volta a São Paulo, engaja-se arduamente nas ati-
vidades do CCS. Foi um dos fundadores de uma das
melhores iniciativas da segunda fase do CCS, o “La-
boratório de Ensaio”, inaugurado em junho de 1966.
Estabelece forte ligação intelectual e afetiva com o filó-
sofo Mário Ferreira dos Santos, envolvendo-o nas ati-
vidades do anarquismo paulista. Com o Laboratório de
Ensaio e as iniciativas de Jaime, seu irmão Francisco e
Waldyr Kopesky, o CCS ganha um revigoramento sem
precedentes. Organizam um teatro de arena que, se-
gundo Pedro Catallo, funcionava com quatro sessões
por semana e média de 40 pessoas por sessão, público
composto de estudantes, membros de entidades sin-
dicais e trabalhadores. O Laboratório foi um teatro de
resistência anarquista contra a ditadura e na ditadura.
Uma de suas peças de grande sucesso chamava-se “Os
Guerreiros”, de Waldyr Kopesky, que narrava a inútil
tentava de transformar um general num ser humano.
Mas além das atividades artísticas, os integrantes do
Laboratório se encarregavam também do jornal O Deal-
bar, dirigido por Pedro Catallo; organizaram, em parce-
ria com o Centro Democrático Espanhol e com refugia-
dos da CNT em São Paulo, uma semana comemorativa
da Revolução Espanhola com exposição aberta, confe-
rências e encerramento com noite de poesias dedicada
à Revolução. Em seguida, organizam uma comemora-

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verve

ção sobre a greve de 1917 com a participação de velhos


anarquistas, entre eles Edgard Leuenroth.
Com o AI5 em 1968, O Dealbar é suspenso. Segundo
Jaime, uma edição de 1.000 exemplares, pronta a ser
expedida, foi destruída. Em 1969, Pedro Catallo anun-
ciava em jornal a perda, entre as ruas Oriente e Rubino
de Oliveira, dos documentos relativos ao CCS. Suas ati-
vidades permanecem encerradas até a reabertura de-
mocrática em 1985, quando novamente são retomadas
com grande entusiasmo. Em abril de 1991, a revista
Isto É anunciava a reabertura de um “centro cultural
libertário no bairro do Brás”. Jaime contava então com
58 anos e dizia que o objetivo dos anarquistas do CCS
era o de resgatar e difundir os valores libertários.
O cortejo fúnebre chega no crematório da Vila Alpi-
na. Era 21 de maio de 1998. Da pequena arena o caixão
é avistado coberto por uma bandeira vermelha e negra.
Desaparecendo em seguida ao som da Nona Sinfonia.

lembro o dia em que conheci cubero

maria oly pey*

Havíamos organizado, nosso grupo de afinidade —


eu e alguns alunos de graduação e pós-graduação da
UFSC — uma pequena viagem até São Paulo para tro-
car idéias com educadores que temos no rol de não-
autoritários, em função ou de conhecê-los de perto ou
de deles ter ouvido falar ou lido a respeito. Curiosidade
de “sentir” pedagogias instituintes em funcionamento.

* Professora titular aposentada da UFSC.

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Agendáramos um encontro na prefeitura e outro no Cen-


tro de Cultura Social.
Apenas para entrar no clima...
Na Prefeitura da cidade de São Paulo recebeu-nos
Paulo Freire e sua equipe. Entusiasmados, ansiávamos
por discutir com mais gente os possíveis funcionamen-
tos da educação, na esteira do pensamento libertador e
libertário. Do staff pedagógico, dois se revezavam nos in-
formando sobre como estavam levando à frente uma ex-
periência em cem escolas do município. Ouvíamos, não
lembro detalhes, e só o sono ia tomando conta de mim.
Olhei para o Paulo com certa inquietação e notei que sua
perna cruzada sobre a outra sacudia ligeiramente, o que
nele revelava preocupação. Conhecíamos um ao outro,
naqueles anos 80, demasiadamente bem para sabermos
o que nossas reações corporais indicavam. Meu sono
intensificou-se, mas o movimento da perna cruzada do
Paulo foi diminuindo, diminuindo, e cessou. Aí eu saí
da sala; Guilherme e Ritinha, licenciandos em Química,
logo após, quase juntos. Lá fora, Ierecê e Élvio haviam se
antecipado à nossa saída. Participando, ficara metade do
nosso grupo visitante. Penso que ainda continuam lá.
No Centro de Cultura Social...
Na sala modesta, com cadeiras ruins de sentar, um
velhinho ágil, altivo e risonho veio rápido nos acolher.
Assim, vimos pela primeira vez o anarquista, um pouco
não à vontade com o título de educador que havíamos
colado nele. Mãos vazias de documentos “elaborados co-
letivamente”, nos olhava nos olhos a perguntar de nós,
da cidade de onde vínhamos, em que poderia nos prestar
algum auxílio. Esquecemos nossas perguntas primeiras
para responder as que nos fazia, vivamente interessado,
e acabávamos por devolvê-las. Em uma hora, essa con-
versa já nos tornara íntimos, e a ela se juntou mais duas
ou três pessoas que costumavam freqüentar o Centro. E
também nos falava ele não do que ensinava, mas do mui-
to que tinha aprendido lendo e compartilhando com ami-

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verve

gos, a maioria de mesmo ideário. Contou-nos histórias do


sítio onde realizavam atividades em comum, da repressão
às publicações do Centro e da luta por manter vivo o acer-
vo cultural em livros anarquistas durante a mais recente
ditadura explícita da nossa história, contava dos amigos
e dele próprio. Parece que o vejo, apontando apaixonado
para uma estante carregada de livros antigos e outros es-
palhados sobre uma mesa. Com metade daqueles auto-
res, que na sua narrativa já se tornavam meio familiares
nossos, tomamos primeiro contato naquela tarde. A sala
se enchia de gente saindo das páginas amareladas da-
queles livros, no calor da voz do velhinho autodidata. O
esvaziamento da manhã dera lugar ao entusiasmo frente
ao inusitado da situação. Em meio aos acontecimentos
que saltitavam na sala, a película da memória deslizava
mais viva e plena de sentido para nós do que o arquivo da
experiência pedagógica.
Na academia...
Ierecê continuava impactada.
— Oly, eu quero o Cubero na minha banca de dis-
sertação de mestrado!
— Mas o cara não tem títulos acadêmicos, a Universi-
dade não vai financiar... nunca.
— A gente paga a viagem, ele fica na minha casa, ele
participa da composição da mesa. Quero ver o que os bu-
rocratas vão fazer.
Afinal, era só mais uma das nossas intoleráveis e in-
compreensíveis atitudes na academia.
E lá veio o Cubero para a UFSC. Mas o velhinho não ia
vir só para uma banca de mestrado, é claro. Ele queria co-
laborar conosco nas atividades do Núcleo de Alfabetização
Técnica. A banca era só para satisfazer a Ierecê, como ele
mesmo dizia. Seu comparecimento foi uma aula de avalia-
ção sem julgamento. Ouvindo atentamente e traduzindo o
que ia aprendendo do relato da mestranda, ele jogava luz
anarquista na análise foucaultiana da educação escolar

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que Ierecê desenhara com avidez. Cubero era assim: nos


espaços nos quais a maioria pratica a operação de redu-
zir, ele potenciava. Quando, no final, apareceu uma insi-
nuação da platéia no sentido de objetivar a sua aprecia-
ção do trabalho, com simplicidade cristalina Cubero fez
observar que, se havia apreendido tanto da dissertação,
os doutores haveriam também de gostar.
E lá se foi o Cubero a trabalhar conosco em uma dis-
cussão pública, fora dos muros da universidade a partir
de uma peça teatral — Bakunin — que havíamos trazido
para Florianópolis. Foi durante essa discussão, pas-
seando pela história do movimento anarquista mundial,
que um futuro colaborador nosso, Jorge Silva — outro
anarquista autodidata — se deu a conhecer para o gru-
po. Mais uma operação de potenciação, de informação e
amizade.
Já passou de uma página, mas...
Recordar Jaime Cubero dá um arrepio em mim. Arre-
pio de prazer, lembrança doce.
Pena eu não ter conhecido muitos mais anarquistas
assim.
Depois do dia em que visitamos o Centro de Cultura,
Guilherme não mais se separou das leituras de Ivan Illich.
Cubero tinha conseguido conectar o garoto que estudava
Química com a instigante obra do autor sobre os cami-
nhos da água na invenção de H2O. Daí para frente tínha-
mos em Illich um ótimo companheiro de referência para
investigar o que não se deve sequer pensar e muito menos
mencionar no âmbito das instituições. E Illich nunca fora
anarquista! Mas Cubero, além de anarquista, era princi-
palmente uma pessoa inteligente, desinteressada do po-
der que as capelas de identidade fazem produzir.
Depois daquele dia, Ierecê desacreditou definitivamen-
te dos doutos e das instituições educacionais que o soma-
tório dos seus cinismos reproduz sem cessar.

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verve

Por ter conhecido Cubero juntei mais indícios para


considerar que há muitos tipos de anarquismos porque
há muitos tipos de anarquistas. O anarquismo dele nun-
ca me decepcionou. Ou talvez a integridade dele como ser
humano, independentemente de ser ou dizer-se anarquis-
ta, é que aderia rigorosamente à nossa utopia de liber-
tário. O que vale é que Jaime Cubero nos fez melhores
em nossas realizações independentes, na afirmação de
nossas diferenças anônimas, na força de buscar a auto-
sustentação fora do instituído.
Cubero nos foi inspirador. Alguém que fazia crescer
em nós a admiração por qualquer pessoa ou grupo que
se utilize da cultura libertária para viver sem medo, com
alegria e autodeterminação. Pena ele ter morrido. Aposto
que ia gostar de vir aqui onde, faz bem dez anos, invento
vacúolos de silêncio onde ancorei os pedaços libertários
que existem em mim. E juntando memórias com nossos
visitantes de afinidade, rir do mundo, porque bastam al-
gumas libertárias existências singulares para revelar ao
mundo muito do seu quase todo podre. Esse tipo de anar-
quista “cuberiano”, vivo ou morto, consegue isto. Então
vale a pena registrar suas façanhas para instigar o racio-
cínio daqueles que não tiveram o privilégio que nós tive-
mos.

jaime cubero:
uma potência singular da anarquia

josé maria carvalho ferreira*

Conheci o Jaime Cubero, na realização do “Encontro


do Pensamento Libertário Internacional — Os Outros

* Professor na Universidade Técnica de Lisboa.

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2008

500”, realizado em São Paulo, no período de 24 a 29 de


Agosto de 1992.
Desde então, até à sua morte em 20 de Maio de 1998,
tive oportunidade de partilhar e viver, com ele, momen-
tos inesquecíveis. Cedo percebi-me em reuniões, pales-
tras, conferências, assim como nos convívios na sua
vida familiar com a sua companheira de sempre Maria,
que estava em presença de um homem, cuja razão de
ser decorria da anarquia. Os factores de causalidade
deduzidos da minha inteligência intuitiva resultam de
duas dimensões básicas que atravessavam o seu carác-
ter: vida quotidiana; militante da anarquia.
Da primeira ilação extraio o carácter humano, ético
e moral da sua trajetória biológica e social. Nesta di-
mensão, a anarquia para Jaime Cubero, antes de mais
nada, traduzia-se em relações sociais e relações inter-
pessoais intensas e extensas em quaisquer espaço-
tempo da sua vida quotidiana. Quem frequentou a sua
casa e quem teve oportunidade de conviver com Jaime
Cubero e a sua companheira Maria, como foi o meu
caso, compreende o significado do que acabo de dizer.
Todavia, esse comportamento comunicacional, afetivo,
solidário e livre estendia-se nos momentos de convívio
com companheiras e companheiros que emergiam em
correlação estreita com o espaço-tempo das reuniões e
palestras realizadas no Centro de Cultural Social, em
São Paulo, ou em cursos de formação ou colóquios so-
bre o anarquismo que aconteceram no Brasil e em ou-
tros países.
Como militante da anarquia, sublinhe-se a sua ação
individual e coletiva de toda uma vida em prol de uma
aprendizagem teórica e prática do anarquismo no Bra-
sil.
Neste domínio, na minha opinião, Jaime Cubero era
um homem que, desde muito novo, se apercebeu da
realidade social, econômica, política e cultural do Brasil
assente na miséria, pobreza, opressão e exploração do

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homem pelo homem. Ao procurar as razões perversas


que estavam na origem dessa realidade, encontrou-as,
com naturalidade e espontaneidade, no Estado e no
capitalismo. Daqui decorre que grande parte da sua
vida tenha sido para reconstruir a COB (Confederação
Operária Brasileira) no Brasil, recorrendo para tal ao
modelo de militância anarco-sindicalista que tinha sido
desenvolvido na Espanha no período de 1936 a 1939.
Face ao fracasso das premissas que enformavam o re-
ferido modelo, depressa percebeu que as hipóteses de
revitalizar a anarquia passavam por um diálogo intenso
e extenso entre os diferentes anarquismos que, entre-
tanto, conflitavam entre si e nada mais faziam que se
transformar em seitas ou “guetos” e, por essa via, des-
truir a própria essência de emancipação social preconi-
zada pela anarquia.
Um ano antes de morrer tive a oportunidade de fa-
zer uma entrevista que foi publicada na revista Utopia,
nº 8. Da história da sua vida e da sua obra extraí uma
grande lição: como anarquista sou um aprendiz de
Jaime Cubero.

juventude

guilherme corrêa*

Meu primeiro encontro com o Anarquismo se deu no


grupo de pesquisa do Núcleo de Alfabetização Técnica
(NAT) da UFSC em 1988, coordenado por Maria Oly Pey.
À época, o grupo estava dividido em duas partes: a dos
grandes formada pelos estudantes de pós-graduação e
a dos pequenos reunia minha colega Rita e eu, então es-

* Professor na Universidade Federal de Santa Maria.

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2008

tudantes de graduação em Química. Os grandes preo-


cupavam-se em encontrar uma fundamentação teórica
para seus trabalhos de mestrado em educação quando
a recorrência a Paulo Freire e à noção de conscientiza-
ção subjacente a toda sua obra já não satisfaziam mais
seu intento de problematizar uma educação livre. Como
a grande maioria das pessoas eu também sabia o que
era anarquismo e não me agradava nem um pouco a
idéia de uma educação anarquista, ou seja, na minha
cabeça de maioria, de uma educação sem um mínimo
de ordem nem hierarquia — esta última, é claro, forma-
da só por pessoas bem intencionadas que fariam a boa
orientação dos rumos da educação.
Foi nesse sistema, do qual o jovem estudante uni-
versitário que eu era tinha orgulho de participar, que
Jaime Cubero interferiu. O sistema com a coerência
quase inescapável da responsabilidade bem intencio-
nada, tecido do mal costurado disfarce dos intelectuais
de direita e de esquerda nos seus postos de mando,
incansáveis em gerir vida dos outros.
E como ele fez isso? De várias maneiras, todas elas
com uma particularidade: todas elas maneiras não rea-
tivas. Na impossibilidade de falar de várias delas, todas
as que tive a alegria de participar, destaco a sua aber-
tura do “Seminário de Educação Libertária” promovi-
do pelo NAT, em 1994. Jaime abriu sua fala evocando
a admiração que temos pela arte do bonsai. A beleza
das pequenas árvores, algumas centenárias, resulta
da arte de inibir seu crescimento atingindo a forma de
uma árvore adulta. Felizmente não se tem notícia da
aplicação das técnicas do bonsai em seres humanos.
Lembrou que, todavia, se uma arte da diminuição física
não foi empreendida, nossa sociedade produz em pro-
fusão, e delas se mostra orgulhosa, técnicas eficazes na
miniaturização emocional, social, intelectual e criativa
do homem. A partir daí deu seguimento ao seu tema
“educação independente de escola” sublinhando que,
da perspectiva libertária, não há formação que não seja

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auto formação e que é esse o ponto em que educação e


liberdade coincidem. E o caminho da liberdade, acres-
centou, é o da prática da própria liberdade. Não mais
libertar, mas liberar-se.
São dez anos sem ouvir a sua voz, sem ver seu ros-
to amável, sem ver os movimentos do seu corpo frágil
e leve, sempre um corpo de menino. Mas não são dez
anos sem rir com ele. Nos encontros com os que o co-
nheceram, nos divertimos muito com a graça de suas
palavras. Suas frases nos chegam sempre vívidas e
frescas e somos tomados da alegria marota que sempre
trazia consigo e acompanha os que o amam e com ele
aprenderam os mais generosos, alegres e contundentes
sentidos da anarquia.

jaime cubero, uma anarquia brasileira no


século 20

edson passetti*

Jaime Cubero fez parte de uma era do Centro de Cul-


tura Social de São Paulo (CCS) inventada por Edgar
Leuenroth, habitada pelo ecletismo intelectual anti-au-
toritário. Jaime, na companhia de Mario Ferreira dos
Santos, ali no CCS, acolheu e formou muitos anônimos
contestadores e anarquistas vigorosos como José Car-
los Morel e Nildo Avelino, acompanhados pela presença
cuidadosa de Antonio Martinez, o vozeirão teatral de
Francisco Cubero, e uma familiaridade libertária salu-
tar que hospedava intelectuais, arquivos, publicações,
pesquisadores, anarco-punks e um tanto de provado-

* Professor no Departamento de Política e no Programa de Estudos Pós-


Graduados em Ciências Sociais da PUC/SP. Coordena o Nu-Sol.

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2008

res da irresistível anarquia. Magro, com seus óculos de


lentes grossas, trazia à mão uma lupa para facilitar sua
leitura. A visão podia falhar, mas não o lidar com as pa-
lavras movidas nas cartas, nos livros, jornais, panfletos
ou fanzines e endereçadas a si, às suas sutis reflexões
e oferecidas aos anarquistas de todo lugar, a qualquer
tempo. O Jaime era bom de anarquia, incluindo comer,
beber, rir, ironizar, ensinar, ouvir e sei lá qual palavra
que eu perdi. Vou lembrá-la adiante, mas sem lamen-
tos. O lamento não era próprio do Jaime Cubero, nem
da anarquia. A memória sim, mesmo quando escapa-
va; por isso montar os arquivos e notar estranhamente
como parte dos documentos anarquistas foi parar na
universidade; por isso lembrar que há outra parte ain-
da guardada e protegida. O Jaime sabia porque a res-
guardava; seus parceiros de defesa também o sabem. O
Jaime era uma pessoa boa e livre das transcendências.
Fazia no imediato e propiciava. O quê? Um tantão! Gos-
tava de misturar trabalho manual com trabalho inte-
lectual. Valorizava a anarquia através dos tempos como
Max Nettlau. E se divertia e me entretinha falando de
oportunistas, os temporários e os temporões. Essa gen-
te metida a sério. Era um homem de respeito. Fez greve
sindical, desprezou os benefícios legais para não virar
ostra do Estado e abalou o Jornal O Globo, nos anos
1950. Afirmou a firmeza com leveza e o jornalismo au-
todidata. Encerrou uma era da anarquia no Brasil.

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convulsões espanholas:
invenções na revolução eliane knorr*

Margareth Rago e Clara Pivato Biajoli (orgs.). Mujeres Libres:


Documentos da Revolução Espanhola. Rio de Janeiro, Achia-
mé, 2008, 158 pp.

“(...) devemos concordar com a afirmação de que


nossa guerra é social, portanto, Revolução” (p. 60-61).
É assim que Lucía Sanchez Saornil — feminista, anar-
quista, poeta e um dos mais fortes nomes da organiza-
ção Mujeres Libres — explica brevemente o momento
vivido na Espanha entre os anos de 1936 e 1939. Não
apenas uma guerra civil, como qualificam aqueles que
pensam a História de uma perspectiva homogeneizante
e totalizadora, mas uma Revolução!
Uma Revolução não está limitada à uma mudança
puramente econômica ou política. Não se altera o fun-
cionamento de grandes estruturas sem alterar primei-
ramente as relações pessoais e cotidianas. É por isso
que estas corajosas anarquistas já alertavam, na pri-
meira metade do século XX, na Espanha, que atuar re-
volucionariamente significava lutar contra a autoridade
e o despotismo na vida de cada um.

* Mestre em Ciências Sociais pela PUC/SP e pesquisadora no Nu-Sol.

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“Dissemos outro dia que a Revolução deveria come-


çar em nós mesmos, e se não o fizermos, perderemos a
Revolução social, nem mais, nem menos; nossa men-
talidade burguesa não terá senão revestido de roupas
novas os velhos conceitos, conservando-os em toda a
sua integridade” (p. 108), acrescenta Lucía em um texto
publicado em 1937. A luta das mulheres na Espanha,
neste sentido, é tão vital quanto a luta de trabalhadores
ou camponeses, e além disso, não está separada destas
outras lutas, está também em seu interior. O combate
das mulheres era, portanto, parte de um processo revo-
lucionário que não se voltava às conquistas de direitos,
mas que procurava convulsionar a vida de homens e
mulheres.
Às vésperas da explosão da guerra na Espanha, a
organização Mujeres Libres emergiu do encontro de três
fortes e corajosas militantes — a jornalista Lucía San-
chez Saornil, a advogada Mercedes Comaposada e a
médica Amparo Poch y Gascón — que transbordaram
na luta dentro do próprio movimento anarquista. Dian-
te de outras organizações que propunham inverter a or-
dem de dominação entre homens e mulheres, ou ainda,
“encerrar as mulheres nas mesmas jaulas em que, por
séculos, vinham enquadrados os homens” (p. 32), estas
Mujeres Libres se diferenciavam por querer romper com
os modelos pré-estabelecidos, contra qualquer forma de
dominação e pela valorização de cada um em suas par-
ticularidades, homens ou mulheres.
Margareth Rago e Maria Clara Pivato Biajoli, a par-
tir de uma cuidadosa pesquisa de documentos e me-
mórias, reuniram no livro Mujeres Libres da Espanha:
Documentos da Revolução Espanhola, textos publica-
dos na revista Mujeres Libres, ou em outros periódicos
anarquistas, fragmentos de cartas, depoimentos, fotos
e imagens que mostram um lado da Revolução Espa-
nhola, regularmente ignorado pela História. Depois da
apresentação por estas duas mulheres, historiadoras,
anarquistas, mas únicas em suas abordagens, os do-

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2008

cumentos que compõe o livro foram distribuídos em


alguns temas: o grupo; anarquismo/política/guerra;
feminismo e moral sexual; outros; depoimentos.
A editora autogestionária Achiamé, responsável pela
publicação do livro, expressa na capa, nas folhas e na
impressão das imagens — a maioria em papel couchê
— um cuidado interessado, de quem compreende a im-
portância de uma publicação anarquista como meio de
anarquizar o mundo.
O livro abre com a letra de um hino de Mujeres Li-
bres, escrito por Lucía Sanchez Saornil, como um con-
vite às mulheres guerreiras para inventar sua própria
vida e a História. Livro-corpo: da capa, da orelha, das
mulheres que o habitam. Livro-luta: contra a História
do Homem, severa, inquestionável, detentora da verda-
de. Livro que coloca as memórias de mulheres, suas
delicadezas, questionamentos e força. Não tem a pre-
tensão de ser uma outra História contra os Homens,
mas contra os valores que justificam a dominação do
homem sobre a mulher, que são os mesmos que justifi-
cam qualquer modo de dominação.
Os depoimentos que se concentram na parte final
do livro, mostram as reflexões de algumas mulheres
— Antonia Fontanilla, Sara Berenger e Lola Benavent
—, todas jovens no momento da Revolução, que trazem
em suas memórias experimentações e críticas da épo-
ca, mas ainda atuais e fortes. Mulheres que devem ser
ouvidas e lidas, cujos posicionamentos e reflexões hoje
continuam diferenciais.
Mais do que colocar a Revolução Espanhola sob a
perspectiva de algumas mulheres na Espanha, Marga-
reth e Maria Clara expõem, por meio da seleção de do-
cumentos, que o movimento anarquista não cabe em
um território. A partir dos textos de Emma Goldman
em relação ao movimento das mulheres na Espanha,
e de uma nota na revista Mujeres Libres em repúdio
ao aprisionamento de Maria Lacerda de Moura em Mi-

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nas Gerais, deixam claro que para os anarquistas a bri-


ga contra a autoridade centralizada e pela liberdade é
internacional. Mesmo que não seja dito, este cuidado
mostra que, para um anarquista, a liberdade de um se
expande — e não se limita — com a liberdade do outro,
derruba-se fronteiras e fortalecem-se lutas, mesmo en-
tre homens e mulheres.
É por isso também que as Mujeres Libres não eram
contra os homens. Ainda que alguns temessem que uma
organização de mulheres pudesse enfraquecer o movi-
mento, estas sabiam que o seu fortalecimento era vital
para uma Revolução anarquista. Da forma como colo-
cavam, “(...) isto é mais do que feminismo. Feminismo e
masculinismo são dois termos de mesma proporção; há
alguns anos, um periodista francês, Leopoldo Lacour,
cunhou a expressão exata: humanismo integral” (p.
42). Mesmo que a escolha do termo humanismo traga
em si alguns problemas relacionados ao Universal, ele
é utilizado aqui de forma a combater as segmentariza-
ções advindas destas categorias de classificação. Estes
são homens ou mulheres por acaso, mas são anarquis-
tas por querer.
É naquilo que consegue anarquizar, que estes do-
cumentos mostram sua atualidade. Por vezes estas
mulheres caem em contradição quando se apóiam em
alguns valores de sua época. Por exemplo, enquanto
combatem firmemente as verdades científicas constru-
ídas sobre as mulheres em um determinado momento,
e em outro, acabam sustentando seus argumentos nes-
tas mesmas verdades. Mas ao mesmo tempo, alertavam
para questões, como o amor livre, que ainda hoje es-
tão muito distantes — e parecem distanciar-se cada vez
mais — dos valores predominantes. Assinalavam para a
questão do sexo, como parte da mudança revolucioná-
ria, mas não a tratavam em sua teoria e cientificidade,
como acontece atualmente. Para algumas delas, “as te-
orizações na ordem sexual nos parecem, até o presente,
tão desnecessárias quanto estéreis” (p. 81).

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Sob o crescente conservadorismo destes novos tem-


pos, as críticas destas mulheres se tornam ainda mais
atuais. Em 1936, no editorial do 2º número da revista
Mujeres Libres, alertava-se para o perigo da busca da
conservação da democracia como abertura para o fas-
cismo: “(...) vemos como na Alemanha, na Itália e em
outros países, para conter o avanço dos povos que a
rebaixavam, [a democracia] jogou-se nos braços da rea-
ção. (...) Ela abriu as portas do mundo aos ‘descamisa-
dos’, mas quando os ‘descamisados’ adquiriram consci-
ência e pretenderam estabelecer-se no mundo, fecha as
portas imediatamente, estrepitosamente, e entrega as
chaves ao fascismo, se não se converte em fascismo ela
mesma, da noite para o dia” (p. 54). Naquele momento,
em meio à Revolução, Franco tomou o poder, e a Es-
panha viveu décadas sob um regime despótico. Hoje, o
conservadorismo travestido em democracia toma conta
mesmo de alguns discursos revolucionários, é por isso
que o alerta destas anarquistas continua urgente.

mergulho e liberdades natalia montebello*

Carlos Fuentes. Em 68: Paris, Praga e México. Tradução de


Ebréia de Castro Alves. Rio de Janeiro, Rocco, 2008, 159 pp.

68, agora, também inventa resistências às apologias.


Hoje, a loucura saudável e generosa de jovens subten-
de à memória pacificadora e adulta, não na lembrança,
mas na reinvenção corajosa do ano-constelação. Ano

* Pesquisadora do Nu-Sol, doutoranda no Programa de Estudos Pós-gradua-


dos em Ciências Sociais da PUC/SP e Secretária do Centro de Cultura Social
de São Paulo.
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de um improvável basta, diante da naturalizada obedi-


ência; ainda hoje improvável, hoje digerido em longas
digressões históricas, mais ou menos filosóficas, mais
ou menos redentoras, mornas. 68 subtende de diversas
maneiras, entre linhas que escapam às soluções: não
há como, pois não há o quê, resolver: liberdades entre
jovens, quando livres de modelos — e para a liberdade
há tantos —, instauram os gestos, os gritos, os estre-
mecimentos que fogem da história e seus decretos. Em
Paris, Praga e México, Carlos Fuentes descreve a potên-
cia sob a cronologia, a atualidade sob os obituários das
interpretações.
Sob a memória que condena ou consagra, o livro-
ensaio inventa um incômodo sim: há mais do que há-
bito e tédio, nos muros de Paris, nas ruas de Praga,
nas praças de Cidade do México, na vida de cada um...
O improvável, por vezes, escancara o medonho me-
lhor mundo possível que não interessa, que está mor-
to, conservado em repetidas estúpidas generalizações,
grandes e pequenas, sobre a vida. E por vezes, ainda,
o improvável é o detalhe que desarticula o mundo: a li-
berdade de cada um não se dissolve em nenhum todos.
Sob restos, ruínas ou monumentos, algumas palavras,
hoje, permanecem únicas, desatinadas, absurdamente
livres. Ontem ou hoje, agora.
68, único, irrepetível, “(...) a explosão libertária, o
júbilo, a imaginação, o humor, o excesso, a loucura,
no pátio da Sorbonne, nos debates do Odéon, nas ma-
nifestações gigantescas, nas manifestações exaltadas
até as portas das fábricas a fim de selar a aliança (im-
pedida pela Confederação Geral dos Trabalhadores e
pelo Partido Comunista Francês) dos estudantes com
os operários, no incêndio da Bolsa de Paris ao grito de
‘Templo do bezerro, arde!’, nas terríveis lutas noturnas
das barricadas da rue Gay-Lussac, o Boul’Mich, Saint-
Germain-des-Prés, a Place Edmond Rostand e a rue
d’Assas com as brutais CRS (Companhias Republica-
nas de Segurança, tropa de elite da polícia francesa)

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que avançam contra a fumaça e as chamas e as árvores


caídas, lançando gases letais, batendo indiscriminada-
mente em pedestres, jornalistas e paroquianos de cine-
mas e cafés, insinuando-se para as mulheres, a quem
matracam o grito de ‘putas, putas!’, lançando granadas
plásticas em direção às janelas abertas, perseguindo os
estudantes pelas escadas dos edifícios e até dentro dos
apartamentos onde se refugiaram” (pp. 24-25). A potên-
cia do improvável 68: a imaginação. A imaginação toma
o poder: a imaginação surpreende o poder: desconcerta,
transborda... Está fora... tô fora!
Tô fora: palavras e pavés: palavras-paralelepípedos,
duplo giro, dupla força de superfícies reinventadas, dis-
paradas em poesia contundente: o que fundava e ates-
tava agora voa pelos ares, fulmina. “Contra a abundân-
cia das comunicações inúteis, enviamos a mensagem
imprescindível de nossas pedras e palavras” (p. 29).
Rimbaud: é preciso mudar a vida. E ponto. 68, diz Fuen-
tes, é insurreição, não contra um governo, mas contra
um futuro. Do futuro escorre a baba dos bons homens
de bem: das famílias e seus eletrodomésticos, das salas
de aula enfileiradas, dos campos de golfe e de batalhas
patrióticas, de guerras capitalistas, impregnadas do ca-
tegórico democrático, do futuro escorre a castidade da
causa, a entrega ao partido, o sacrifício e a vendeta. De
futuro estamos cheios, tudo isso é sempre o mesmo.
Ensaios em 68: mergulho do autor, que o projeta na
pele viva de quem se interessa em problematizar livre-
mente a existência: de novo palavras-paralelepípedos,
rasgando acomodamentos. A vida não é metáfora: cada
palavra inscreve a vontade de viver livre: da família, da
fábrica, da escola, da polícia, ou melhor, das polícias.
A guerra é nada, o mercado é nada, a televisão, nada, o
emprego, a dívida, as classes, nada: final de um século
XIX? Começo de um XXI? Tanto faz: momento em que
qualquer coisa pode não mais resistir, à esquerda ou à
direita, incólume, ao lado da sinistra representação de

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nossas vontades. Constetation: jovens, anota Fuentes,


questionando tudo.
Tudo: “(...) não há uma única profissão francesa que
não tenha sido submetida à crítica e projetada para o
futuro por seus próprios membros, subitamente cons-
cientes de que a revolução consiste em assumir livre-
mente responsabilidades concretas dentro de cada cír-
culo de trabalho, livrar-se das tutelas administrativas
abstratas” (p. 51). Livrar-se do abstrato: que raio de re-
volução é essa? O futuro utópico fica pequeno, ridículo.
Livre de abstrações, o presente é inegociável. Sob qual-
quer bandeira, dentro de qualquer desígnio, o presente
deve ser solucionado: direitos, garantias, salários, fé-
rias... reformas. A essa altura, a vida já passou. O deta-
lhe, inventar a própria existência, está fora de partidos
e seus dogmas: autogestão não é programa:
“Mais que uma crítica da propriedade (pública no
neo-liberalismo, remotamente exercida por managers
no neocapitalismo), trata-se de uma crítica da gestão,
igualmente abstrata, igualmente distante dos interessa-
dos em ambos sistemas. A revolução contra a burguesia
e a revolução dentro da revolução convergem na afir-
mação da autogestão do trabalho e da produção pelos
homens diretamente interessados” (p. 94). Novamente,
como na Espanha de 1936, e como em Proudhon, cem
anos antes, a revolta política só afirma liberdades quan-
do inventa relações econômicas livres: ainda devemos
problematizar a autoridade pela propriedade.
Pelas ruas de Praga, tanques soviéticos desfilam pela
ordem, tentando conter, nos moldes da velha revolução,
a liberdade que escapa pelas linhas da literatura: espe-
rando o desacato na via pública, pouco podem contra a
insurgência bem-humorada, inteligente, das palavras.
Os exércitos de punhos ao céu nada sabem de corpos
vivos, de mãos delicadas, que pulverizam ideologias: o
sangue está na tinta, e no espaço público desfilam ca-
dáveres. “Condenar o totalitarismo não merece um ro-
mance, diz Kundera. O que ele considera interessante é

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2008

a semelhança entre o totalitarismo e ‘o sonho imemorial


e fascinante de uma sociedade harmoniosa onde a vida
privada e a pública têm uma unidade e todos se reúnem
ao redor da mesma vontade e da mesma fé. Não é por
acaso que o gênero mais favorecido na época culminan-
te do stalinismo fosse o idílio’” (p. 110).
O encontro com a literatura: a poesia e a revolução:
dupla inocência, loucura da pureza jovem. O poeta nos
olhos do revolucionário, e vice-versa... não se trata de
aperfeiçoar o mundo, mas de gritar sua estupidez: dan-
çando no cemitério não se vence a morte, mas se afirma
a vida sobre a veneração da memória. O humor sutil
e cruel que com palavras faz da lei o crime repete-se
no olhar certeiro que fotografa a vida interrompida pela
ordem cifrada que a nega, em nome da paz. Em Tlate-
lolco, Laura Díaz fotografa o retorno do mesmo gesto,
dos astecas, dos espanhóis, dos latino-americanos, dos
humanistas de toda índole, que sobrepõem crânios em
muralhas e valas comuns, silenciando a morte em nú-
meros de perigosos revoltados inconseqüentes ameaça-
dores desobedientes bagunceiros, etcétera. Laura chora
seu neto, guarda Santiago na memória que grita, do
fundo da vala, que a vida tem nome, e o nome não se
repete nunca igual, o nome sai da garganta, o nome
não soma, não resulta em idéia, não justifica causa al-
guma. O massacre, novamente: sobre ele, o silêncio, a
imagem. Mas a fotografia, clique do olhar interessado,
cúmplice, volta ao ancestral do governo: “A cidade era
um acampamento de bárbaros” (p. 159). Este livro nada
comemora, nada condena: apenas anota que o impro-
vável permanece visceral.

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verve

sobre o uso
político da religião gustavo ramus∗

Anônimo clandestino do século XVIII. A vida e o espírito de


Baruch de Espinosa: tratado dos três impostores. Tradução
de Éclair Antonio Almeida Filho. São Paulo, Martins Fontes,
2007, 199 pp.

Em 1719, foi publicada em uma revista holandesa


uma biografia anônima de Baruch de Espinosa (1632-
1677), autor de “Ética”, “Pensamentos metafísicos” e
“Tratado teológico-político”. Essa biografia era intitula-
da simplesmente “A vida do senhor Baruch de Espino-
sa”. Muitos atribuem esse escrito a Lucas, um dos dis-
cípulos de Espinosa. Passado algum tempo, em outra
publicação, foi acrescido outro texto ao primeiro cha-
mado “O espírito do senhor Baruch de Espinosa”, ou
“Tratado dos três impostores”. Esse texto é atribuído
a Espinosa, ainda que também tenha sido publicado
anonimamente.
A primeira parte do livro traz um relato apaixona-
do da vida de Espinosa. Um jovem judeu de Amsterdã,
educado rigorosamente pelos costumes dessa religião.
Dominava vários idiomas como o hebraico, italiano, es-
panhol, alemão, flamengo, português, e mais tarde o
latim e o grego. Desde muito jovem, Espinosa levantava
questões muito embaraçosas para seus mestres sobre
a religião e os escritos sagrados. Dizia que o povo judeu
era arrogante por se considerar eleito por Deus, igno-
rando o resto da humanidade. Não demorou a ser acu-
sado do mais temível dos crimes da época: o desprezo
pela Lei. Foi julgado e condenado ao exílio. No Herem —
excomunhão — pronunciado contra ele constava-se o

* Bacharel em Ciências Sociais, mestrando no Programa de Pós-Graduandos


em Ciências Sociais da PUC-SP e integrante do Nu-Sol.

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seguinte fragmento: “E vós, que restais fiéis ao Eterno,


vosso Deus, que Ele assim vos conserve em vida. Sabeis
que não deveis ter [com Espinosa] qualquer contato,
escrito ou verbal. Que não lhe seja prestado nenhum
auxílio e que ninguém se aproxime dele mais do que
quatro côvados. Que ninguém more debaixo do mesmo
teto que ele e que ninguém leia seus escritos” (p. 58).
Segundo a descrição de Lucas, Espinosa era um jo-
vem muito elegante e demonstrava ser muito generoso
em diversas situações. Dizia que a natureza se satisfa-
zia com pouco e, portanto, o pouco era o suficiente para
satisfazê-lo. O maior erro do Homem, para Espinosa,
era acreditar cegamente nos escritos sagrados. Para o
holandês, a Lei fora inventada por um homem muito
hábil politicamente para subjugar o povo. Os eclesiásti-
cos de qualquer religião zelam mais por sua autoridade
do que pelos ensinamentos sagrados, são presunçosos
e fundam seu poder em falsos pensamentos, abusam
da ignorância do povo, que toma para si esse falso dis-
curso como uma verdade absoluta e se deixa dominar.
Para o filósofo, é necessário livrar-nos da educação que
nos foi imposta para podermos conhecer a “verdadeira
idéia de Deus”, não essa que traz a divisão entre os
homens, mas por uma concepção que nos torna parte
da natureza. A razão prevalecendo sobre a ignorância
nos permite o conhecimento de um Deus que nos torna
senhores de nossas paixões. Essa idéia de Deus sive
Natura — Deus ou Natureza — de Espinosa é uma con-
cepção panteísta, assegura a materialidade de deus e
desestabiliza o pensamento transcendente de um Deus
severo e punidor, estruturante da moral, impositor de
formas de condutas.
A segunda parte do livro, aquela atribuída ao pró-
prio Espinosa, trata desse pensamento panteísta e faz
uma crítica aos fundadores das três grandes religiões,
judaísmo, cristianismo e islamismo, respectivamente:
Moisés, Jesus e Maomé. Fundamenta uma crítica à im-
postura religiosa, ao uso da religião para fins políticos,

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como estratégia de dominação. Os homens constituí-


ram uma idéia de Deus que é passada ao povo, este,
aprisionado em sua ignorância, aceita e reproduz esse
falso discurso. Para o autor, a ignorância leva à credu-
lidade, e a credulidade à servidão.
Ainda, segundo o autor, aos políticos interessava
manter o povo com medo. Para isso inventaram-se se-
res invisíveis e a cólera divina. A superstição permitia
ao soberano legitimar seu poder e suas leis como um
saber divino, levando-se em conta que muitos reis e di-
tadores se diziam enviados ou próximos de Deus. Tam-
bém estabeleceram a idéia de que Deus criou o mundo
para o Homem, submetendo toda a natureza e as de-
mais espécies ao seu domínio. E é nesse domínio so-
bre a natureza que se fundaram as grandes religiões.
O livro enumera cinco maneiras pelas quais os políti-
cos e legisladores se servem das religiões: ao conven-
cer o povo que dispõem de comunicação direta com os
deuses; simular milagres, inventar visões, monstros e
prodígios; assustar, apavorar, comover, animar ou en-
corajar os súditos para o que quer que seja; contar com
auxílio de excelentes pregadores e se servir de homens
eloqüentes; por fim, empreender o que nenhum outro
poderia tornar válido e legítimo.
O Tratado dos três impostores desfaz a imagem de
Deus semelhante a do Homem e também não concebe
sua imaterialidade. Tudo o que existe é corpóreo, toda
substância é um corpo, e se Deus é o criador do mundo
ele é tudo o que criou. Essa idéia simples de Deus, que
tudo se encontra Nele e que Ele se encontra em tudo, ar-
ruína a imagem de Deus semelhante aos governantes. A
questão é que o povo deseja um Deus justo e vingador,
recompensador e punidor, tal qual os governantes. E
atribui não somente sua imagem a essa divindade, mas
também, as paixões que lhes são próprias, inclusive o
sentimento moral que determina o bem e o mal.
Segundo o autor anônimo, os escritos bíblicos são
produtos da imaginação humana, fragmentos sele-

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cionados segundo a vontade dos líderes religiosos. As


passagens sobrenaturais e milagrosas são inaceitáveis
à razão, sendo oportuno somente aos supersticiosos e
ignorantes, escravizados por sua esperança e temor.
Os ignorantes aceitam toda a verdade da qual possam,
de alguma forma, tirar proveito. A religião é o laço sa-
grado originado pelo pavor. Assim emergem as figuras
dos pastores e profetas, que tinham relações estreitas
com Deus, proferindo verdades produzidas, guiando
seu obediente rebanho. As religiões combatem umas às
outras, desclassificando-as, menosprezando-as, e no li-
mite declarando guerra entre si. Mas elas convergem
em muitas coisas no que diz respeito à suas doutrinas.
Oferecem ídolos, regras e promovem sacrifícios. Muda-
se a igreja, os eclesiásticos e os ídolos, mas o princípio
do discurso que visa a obediência permanece o mes-
mo.
As contradições das religiões são o suficiente para
conduzir os homens à apostasia. O Deus que nos é
imposto é um grande juiz que examina nossas ações
diariamente. Esse Deus carrancudo e rancoroso tam-
bém se mostra recompensador quando o indivíduo age
conforme sua lei. Assim, os supersticiosos tornam-se
bajuladores de entidades num duplo jogo de adoração e
medo. A esse Deus é atribuído nossos humores e modo
de pensar, julgar e repreender. Não há nada que gover-
ne a multidão com mais eficácia do que mantê-la apri-
sionada à sua crença.
Moisés é tratado no livro como o homem que libertou
os judeus de uma escravidão para submetê-los a outra.
E como escolhido, era soberano e possuía autoridade
sobre o seu povo, condenando à morte quem se opu-
sesse a ele. Jesus fundamentou sua doutrina sobre a
mesma base de Moisés. O autor destaca sua habilidade
retórica mostrando a ambigüidade de suas respostas
em algumas passagens bíblicas, e na promessa de uma
outra vida. Jesus destruiu a antiga Lei para impor uma
nova doutrina, sabiamente manuseada por homens as-

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tutos que rapidamente construíram fortunas em nome


da fé. E por fim, aponta as farsas de Maomé, de como
teria se tornado um ser mistificado, e o surgimento do
Corão. Espinosa expõe diversas contradições no interior
dessas religiões. Para ele, elas somente existiram para
criar impérios, como uma forma inescrupulosa de tira-
nizar o povo com seu próprio consentimento, obtendo o
trivial para uma relação de dominação: a obediência.
“Deus é um ser simples, ou uma extensão infinita,
que se parece com o que ele contém, quer dizer, ele é
material, e não é nem justo, nem misericordioso, nem
invejoso, nem nada do que se imagina dele, e, por con-
seguinte, não pune nem recompensa” (p. 179). Ele é a
fonte de todos os seres, e pode, portanto, ser reconhe-
cido em todos eles, de tal forma que um não tem mais
importância do que outro. Assim, o Homem não é mais
importante do que uma flor ou qualquer outro animal.
Essa divisão entre o homem e a natureza não passa de
invenção da imaginação, sustentada pelo interesse das
religiões. Não há motivos para atribuirmos a Deus per-
feição ou imperfeição, ou até mesmo crer que Ele queira
ser louvado, adorado ou contemplado. A Deus não cabe
julgar. As noções de bem e mal surgem no interior da
moral de cada religião. Para aqueles que fazem uso da
razão, palavras como céu e inferno não fazem o menor
sentido, assim como não faz sentido acreditar na exis-
tência de um ser imaterial e onisciente. Esse tipo de
crença serve somente para manter os homens no cum-
primento do dever.

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2008

teatro, anarquia
e um alerta aos pluralistas edson passetti*

Judih Malina. Diário de Judith Malina. O Living Theatre em


Minas Gerais. Belo Horizonte, Arquivo Público Mineiro, 2008,
272 pp. Fotos de Juvenal Pereira.

The Living Theatre preso no Brasil por trabalhar com


prisioneiros da pobreza. Palavras de Julian Beck. Pre-
sos por trabalhar, em Ouro Preto, com favelados, mise-
ráveis e principalmente filhos de operários. Por montar,
com eles, “Seis sonhos sobre mamãe”, o início do que
seria “O legado de Caim” — a ampliação da experimen-
tação libertária do grupo com teatro nas ruas e com o
público.
Judith Malina, integrante do grupo e mulher de
Beck, mesmo presa junto com o Living Theatre (LT) por
uso de maconha e subversão, em julho de 1971, conti-
nuou escrevendo seu diário. As páginas relativas a este
mês, redigidas na prisão do DOPS, em Belo Horizonte,
e na cadeia, em Ouro Preto, foram publicadas, naque-
les dias, no jornal O Estado de Minas e no Correio da
Manhã. Agora, acompanhadas de ofícios e ensaios com-
põem o livro Diário de Judith Malina.

Uma publicação estatal

O Arquivo Público Mineiro publica esse torneado di-


ário de Judith Malina escrito na prisão brasileira, com
honestidade e esperteza, acompanhado de alguns frag-

* Professor no Departamento de Política e no Programa de Estudos Pós-


Graduados em Ciências Sociais da PUC/SP. Coordena o Nu-Sol.

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mentos relacionados à passagem do grupo pelo Brasil,


e ilustrado por alguns documentos com as assinaturas
oficiais rasuradas, pertencentes ao Arquivo do Dops
(Departamento de Ordem e Política e Social criado du-
rante o Estado Novo e mortalmente acionado na fase di-
tatorial seguinte: a do regime militar iniciado em 1964).
Na abertura do volume, a Secretária de Cultura se
pergunta: “como transformar essa massa impressa em
algo útil, que pudesse servir à democracia, aos direitos
humanos, à diferença de pensamento, à liberdade de
criação?” Responde o Secretário Adjunto de Estado da
Cultura, desejando que a edição “singelamente contri-
bua, com seu testemunho universal, para uma pedago-
gia da paz”.
O livro Diário de Judith Malina. O Living Theatre em
Minas Gerais em papel couchê fosco 145g/m2, com ti-
ragem de mil exemplares é o produto destinado a pes-
soas e instituições selecionadas pelo governo de Minas
Gerais. Um presente que confirma o pluralismo demo-
crático, ou melhor, que ajuda a compreender um pouco
mais como os pluralistas encantam seguidores da direi-
ta à esquerda. No caso deste livro de circulação restrita,
deu-se pela mídia, satisfação à opinião pública a res-
peito do uso de verba governamental. Assim, o Estado
prestou e presta contas de seu governo ditatorial e do
seu efeito devastador sobre a arte e a liberdade, reite-
rando a proposital identidade entre Estado e público.
Judith Malina em seu diário e o Living Theatre em
suas atividades não compartilham essa noção de públi-
co com o governo mineiro. Para estes anarquistas ame-
ricanos, o público começa onde se suprime o Estado e
não em suas instituições maleáveis e repressoras.
Apoiada por verso de canção do mineiro Milton Nas-
cimento, Heloisa Maria Murgel Starling redige, a seu
modo, “Coisas que ficaram muito tempo por dizer”. Para
ela a prisão do LT no Brasil, assim como as anteriores
nos Estados Unidos, dizem respeito ao fato do grupo ser

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2008

um caso de polícia. Equívoco da autora. O LT não foi um


caso de polícia; é um caso de Estado, deportado mais
de uma vez. Seus integrantes não eram ingênuos nem
utópicos; queriam mudar o mundo, sim, mas do jeito
anarquista, no instante. O LT foi criado na convivência
libertária com o educador e teatrólogo Paul Goodman,
um professor expulso da universidade americana por
ser homossexual. O LT fazia e faz o acontecimento; per-
manece na luta libertária contra a prisão, problemati-
zando o militarismo e ampliando resistências. Não se
acanha mesmo diante de outros anarquistas que não
suportam suas invenções arrojadas, como o Black-blo-
ck, na derradeira empolgação anti-globalização, em Gê-
nova, em 2001.
Voltando 30 anos antes, ao responder a um jornalis-
ta se voltaria ao Brasil depois da temporada na cadeia,
Julian Beck, que leu Os sertões na prisão, disse que
poderia regressar sim, não para Ouro Preto, mas direto
para o nordeste.

Um ensaio como peste

Ilion Troya acrescenta um breve e intenso ensaio ao


final do livro, acompanhado de uma precisa cronologia
dos experimentos do LT. Leva o leitor à sua convivência
com o grupo desde a época em que, ainda um jovem
estudante de Ciências Sociais, viu o LT atuar pelas ruas
de Rio Claro – São Paulo. Relata em poucas e certeiras
palavras a criação do grupo chamada “Seis sonhos para
mamãe” na companhia de pequenos estudantes de uma
escola, abordando as violências domésticas e a mecâni-
ca obediência às surras explicitadas por esses filhos de
mineradores em Ouro Preto. No Dias das Mães daquele
ano de 1971, mesmo sob a tentativa de proibição por
parte do padre, reacionários e de delatores, a encena-
ção ocorreu no salão da comunidade com o apoio e a
coragem da diretora da escola. Provocaram um instante
de delicadeza e reflexão naquelas mulheres. Dias mais

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tarde, na prisão de Belo Horizonte, encenaram com


encarcerados, outra criação, “Sonhos de prisioneiros”
que terminava com “O teatro e a peste” de Antonin Ar-
taud. Contaram com o apoio declarado de um padre
que considerava insuportável o regime de delação entre
os próprios presos. O LT não escamoteava; tampouco
se escusava diante de violências e práticas de torturas
privadas ou públicas exercidas sobre crianças, presos
comuns, presos políticos.
No fim de “Paradise Now” anunciavam: o teatro está
nas ruas! Para o LT, nas ruas, escolas, cadeias, teatro
propriamente dito como encenação, como ação. Ilion
Troya contribui de maneira diferenciada ao livro falan-
do da atuação do LT no presente e como isso fortificou
a vida de cada integrante ao lidar com a ditadura bra-
sileira acusando-os inicialmente por porte de drogas e
depois também por subversão. Ao consultar a cronolo-
gia o leitor constatará desdobramentos de “O legado de
Caim”, iniciado no Brasil, e encenado nos Estados Uni-
dos entre 1973 e 1975. Ali está também a composição
“Sonhos de prisioneiros”, realizada na Colônia Penal de
Ribeirão Neves — Minas Gerais, junto com outros efei-
tos dos desdobramentos acontecidos na Europa e que
incluíram não só experimentações com pacientes de
hospitais psiquiátricos, como a encenação do recente
assassinato, em 1976, do anarquista Giuseppe Pinelli,
na Itália. O LT era e é um perigo ao Estado. Burra ne-
nhuma ditadura foi, é ou será: ela sabe onde reside a
peste que a destruirá e ao seu trono do Estado.

O diário amoroso de Judith Malina

O Diário de Judith Malina relata a prisão dos inte-


grantes do LT em Ouro Preto em 1 de julho de 1971,
seu deslocamento para Belo Horizonte, o julgamento
em Ouro Preto, os diversos apoios recebidos de intelec-
tuais e artistas brasileiros e internacionais, mas regis-

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2008

tra, principalmente, os gestos amorosos e inesquecíveis


de uma população pobre e sensível.
Judith Malina sabe escrever um diário sem torná-lo
hermético e enfadonho. Dilui o que seria um fragmento
de biografia, condescendências e piedades num ensaio
de existência que arruína a ligeireza quase inteligente
das reportagens jornalísticas em voga.
Ao chegar presa ao DOPS, em Belo Horizonte, so-
bressai uma dúvida libertária em Judith Malina diante
dos curiosos: “quem era jornalista, quem era policial”?
Eles só queriam saber se o LT fumava maconha. Foi
neste mês aprisionado que ela e Julian Beck recebem
a notícia do nascimento da neta. Foi mesmo na prisão
que Judith, mãe preocupada com a filha pequena, mos-
tra-se tranqüila por saber que Isha se encontra com a
família gentil e carinhosa de Geralda, na periferia de
Ouro Preto.
Na cela convive com Dulce, presa política, apaixona-
da por Tito, outro preso político que se encontra numa
cela com homens do LT, e que formarão o par Romeu e
Julieta daqueles dias. Lê Ilíada com auxílio de dicioná-
rio, matando pulgas nos colchões. E, de repente, saída
de uma tragédia grega faz aparecer, vindo de Nova York,
Mabel Beck, a mãe de Julian, trazendo travesseiros, co-
bertores, apetrechos e que brada caber a uma mãe es-
tar onde o filho sofre. Judith sabe para quem escreve e
o que é o teatro.
Não cansa de anotar no diário que lê, escreve, come
razoavelmente bem e vê Julian todos os dias porque o
LT tem dinheiro. Cada vez mais aprimora o português
conversando com Dulce, a quem ensina inglês. Ouve
pelo rádio que Nixon irá à China estreitar amizades,
o que considera retórica do governante — o efeito his-
tórico dessa viagem repercute hoje na atual ditadura
neoliberal chinesa. Ouve também um preso dizer: “os
Estados Unidos não são uma democracia, são uma plu-
tocracia” — e isso ultrapassa a retórica.

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Ela e Julian concordam em dar entrevistas para a TV


Globo e a revista Veja, sabendo que são mídias desfa-
voráveis. Pretendem enfatizar a importância de estilos
de vida experimentais e manter a atenção do público
voltada para os efeitos da ditadura. São teatrais e polí-
ticos. Judith retoma a leitura de Martin Buber, Eu e tu,
e constata que o autor “insufla uma emoção religiosa
que é quase insuportável neste ambiente”, mesmo por-
que respeita o ateísmo e a jovialidade de Dulce. Afirma
que os atores franceses dizem “bobagem com elegância”
quando falam de teatro moderno. E desliga o rádio.
Junto com a depressão e a pieguice cresce sua ad-
miração por Dulce que lá está há muito tempo. Chega
Régis, uma bela encrenqueira. Anota Judith: “aqui es-
tão sentadas as duas: a jovem pirada de que a políti-
ca não pode ter nenhum significado para ela e a brava
subversiva que não consegue ver a revolução do estilo
de vida”.
Julian, em 18 de julho, lhe fala sobre a prisão de
Proudhon, como este obtinha livros, da visita que rece-
bia da mulher e como redigiu escritos importantes. A
prisão do século 19, pelo menos para intelectuais, era
melhor que a do 20, é o que parece concluir Beck. No
dia 21, Judith Malina escreve que esteve com Julian
a maior parte do dia e que “toda diferença está nisto.
Amor”. Judith e Julian sabem que a prisão é menos di-
fícil quando os amantes estão juntos. Ela constata que
acompanhada a felicidade é possível mesmo na prisão.
Com isso põe por terra o horror disseminado por carce-
reiros, presos e poderosos assujeitados. Judith Malina e
Julian Beck destroem a prisão por dentro dela, usando
a corrupção em proveito do libertarismo, das amizades
em qualquer espaço; na solidariedade aos torturados,
na recusa ao habeas-corpus e na escolha por ficarem
presos, ao concluírem que assim sairiam mais depressa
da prisão-Brasil, num tempo em que o chefe da dita-
dura não era conhecido como presidente de república,
como hoje em dia certos politólogos politicamente cor-

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retos pretendem caracterizar. Os integrantes do LT são


anarquistas que não contemporizam com a prisão.
Durante o julgamento Judith Malina segue a “dire-
ção de cena” proposta por uma mulher de teatro de São
Paulo e fala alto, bem alto. Lembra das pessoas queri-
das e das delatoras que acusam o nômade LT de “sujos
e perigosos”. Chegam telegramas internacionais, atores
e intelectuais brasileiros para se contra-posicionarem
ao lado deles. Os norte-americanos chegam à lua. E
Judith teatralmente escreve: “aqui gente passa fome.
Pode-se estar alegre?” Constata depois de 30 dias que
nunca tinha ficado presa tanto tempo, nas oito vezes
anteriores e conclui: “a prisão nos faz sentir sentimen-
tais!”
Guarda na memória o depoimento da diretora da es-
cola Saramenha, D. Delfina, sobre a convivência do LT
com as crianças e a receptividade das mães, professo-
res e de muitas pessoas preciosas de Ouro Preto. Nunca
mais, nem ela nem ninguém tiveram notícias de Dul-
ce e Tito: desapareceram! Judith, Julian e quase todos
do LT foram deportados pelo ato do executivo de 27 de
agosto de 1971.
Antes da chegada a Ouro Preto há anotações do di-
ário sobre a miséria, o esgoto a céu aberto, o fedor e as
pessoas bonitas da favela da Catacumba, no Rio de Ja-
neiro; esboço do ensaio para “O legado de Caim”, num
campo de futebol, na favela do Buraco Frio, em São
Paulo, e que terminou com um bando de crianças des-
calças dizendo: “Exijo um par de sapatos!”. A favela era
outra, os miseráveis menos destroçados, o uso de dro-
gas uma experimentação de liberdade, a subversão um
vigor do jovem na invenção de éticos estilos de vida.
Antes de fechar o livro, há uma manchete estampa-
da num jornal e que ainda permanece viva: “O teatro
anarquista quer voltar ao Brasil para o segundo ato”.

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Publicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de Estudos


Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.

Hypomnemata, boletim eletrônico mensal, 1999-2008.


Flecheira libertária, semanal, 2007-2008.
Ágora, agora, ao vivo de setembro a outubro de 2007 e reapresentação
de janeiro a março de 2008. Canal universitário/TVPUC.
Ágora, agora 2, 2o ano, segundo semestre de 2008.
Os insurgentes, ao vivo, abril, maio e junho de 2008.
Canal universitário/TVPUC e transmissão simultânea em
http//tvnu-sol.org.

Aulas-teatro
Emma Goldman na Revolução Russa, 1o semestre de 2007.
Eu, Émile Henry, 2o semestre de 2007.
Foucault, 1o semestre de 2008.
Estamos todos presos, 2o semestre de 2008.

DVD

Ágora, agora, edição de 8 programas da série PUC ao vivo.

Vídeos
Libertárias, 1999.
Foucault-Ficô, 2000.
Um incômodo, 2003.
Foucault, último, 2004.
Manu-Lorca, 2005.
A guerra devorou a revolução. A guerra civil espanhola, 2006.
Cage, poesia, anarquistas, 2006.

CD-ROM
Um incômodo, 2003 (artigos e intervenções artísticas do Simpósio Um
incômodo).

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2008

Coleção Escritos Anarquistas, 1999-2004

1. a anarquia Errico Malatesta

2. diálogo imaginário entre marx e bakunin Maurice Cranston


3. a guerra civil espanhola nos documentos anarquistas C.N.T.

4. municipalismo libertário Murray Bookchin

5. reflexões sobre a anarquia Maurice Joyeux

6. a pedagogia libertária Edmond-Marc Lipiansky

7. a bibliografia libertária — um século de anarquismo em língua

portuguesa Adelaide Gonçalves & Jorge E. Silva

8. o estado e seu papel histórico Piotr Kropotkin

9. deus e o estado Mikhail Bakunin

10. a anarquia: sua filosofia, seu ideal Piotr Kropotkin

11. escritos revolucionários Errico Malatesta

12. anarquismo e anticlericalismo Eduardo Valladares

13. do anarquismo Nicolas Walter

14. os anarquistas e as eleições Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Mirbeau,

Grave, Vidal, Zo D’Axa, Bellegarrigue, Cubero


15. surrealismo e anarquismo Joyeux, Ferrua, Péret, Doumayrou,

Breton, Schuster, Kyrou, Legrand

16. nestor makhno e a revolução social na ucrânia Makhno, Skirda,

Berkman

17. arte e anarquismo Ferrua, Ragon, Manfredonia, Berthet, Valenti

18. análise do estado — o estado como paradigma do poder Eduardo

Colombo

19. o essencial proudhon Francisco Trindade

20. escritos contra marx Mikhail Bakunin

21. apelo à liberdade do movimento libertário Jean-Marc Raynaud

22. a instrução integral Mikhail Bakunin

23. o bairro, o consumo, a cidade... espaços libertários Bookchin, Boino,

Enckell

24. max stirner e o anarquismo individualista Armand, Barrué, Freitag

25. o racionalismo combatente: francisco ferrer y guardia Ramón

Safón

26. a revolução mexicana Flores Magón

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verve

27. anarquismo, obrigação social e dever de obediência Eduardo Co-

lombo

28. Bakunin, fundador do sindicalismo revolucionário Gaston Leval


29. Autoritarismo e anarquismo Errico Malatesta

Livros
Edson Passetti e Acácio Augusto. Anarquismos e educação. São Paulo, Au-
têntica, 2008.
Edson Passetti. Anarquismo urgente. Rio de Janeiro, Achiamé, 2008.
Edson Passetti e Salete Oliveira (orgs.). Terrorismos. São Paulo, Cortez,
2006.
Edson Passetti e Salete Oliveira (orgs.). A tolerância e o intempestivo. São
Paulo, Ateliê Editorial, 2005.
Edson Passetti (org.). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro,
Editora Revan/Nu-Sol, 2004.
Edson Passetti (org.). Kafka-Foucault, sem medos. São Paulo, Ateliê Editorial,
2004.
Mikhail Bakunin. Estatismo e anarquia. São Paulo, Ed. Imaginário/Ícone
Editora/Nu-Sol, 2003.
Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo, Ed. Imaginário/
Nu-sol, 2001.

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recomendações para colaborar com verve

Verve aceita artigos e resenhas que serão analisados pelo Conselho


Editorial para possível publicação. Os textos enviados à revista Verve
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Identificação:

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Resumo:

Os artigos devem vir acompanhados de resumo de até 10 linhas —


em português e inglês — e de três palavras-chave (nos dois idiomas).

Notas explicativas:

As notas, concisas e de caráter informativo, devem vir em nota de


fim de texto.

Citações:

As referências bibliográficas devem vir em nota de fim de texto


observando o padrão a seguir:

I) Para livros:

Nome do autor. Título do livro. Cidade, Editora, Ano, página.

Ex: Guilherme Corrêa. Comunicação, educação, anarquia: proce-


dências da sociedade de controle no Brasil. São Paulo, Cortez, 2006,
p. 74.

II) Para artigos ou capítulos de livros:

Nome do autor. “Título” in Título da obra. Cidade, Editora, ano,


página.

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verve

Ex: Michel de Montaigne. “Da educação das crianças” in Ensaios,


vol. I. São Paulo, Nova Cultural, Coleção Os pensadores, p.76.

III) Para citações posteriores:

a) primeira repetição: Idem, p. número da página.

b) segunda e demais repetições: Ibidem, p. número da página.

c) para citação recorrente e não seqüencial: Nome do autor, ano,


op. cit., p. número da página.

IV) Para resenhas

As resenhas devem identificar o livro resenhado, logo após o título,


da seguinte maneira:

Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, número de


páginas.

Ex: Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo,


Ed. Imaginário, 2001, 134 pp.

V) Para obras traduzidas

Nome do autor. Título da Obra. Tradução de [nome do tradutor].


Cidade, Editora, ano, número de páginas.

Ex: Michel Foucault. As palavras e as coisas. Tradução de Salma


T. Muchail. São Paulo, Martins Fontes, 2000.

As colaborações devem ser encaminhadas por meio eletrônico para


o endereço nu-sol@nu-sol.org salvos em extensão rtf. Na impossibili-
dade do envio eletrônico, pede-se que a colaboração em disquete seja
encaminhada pelo correio para:

Revista Verve

Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol), Programa de Estudos


Pós-graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Rua Ministro Godói,
969, 4o andar, sala 4E-20, Perdizes, CEP 05015-001,
São Paulo/SP.

Informações e programação das atividades


do Nu-Sol no endereço: www.nu-sol.org

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Veja também...

Revista Utopia
Publicação da Associação Cultural A VIDA
www.utopia.pt
Portugal

Letralivre
Revista de cultura libertária, arte e literatura
Robson Achiamé, Editor
www.achiame.net
Brasil

El Libertário
Vócero ácrata de ideas y propuestas de acción
www.nodo50.org/ellibertario
Venezuela

El Libertário
Publicación de la Federación Libertaria Argentina.
www.flying.to/fla
www.anarquia.org.ar (versão digital realizada pelo Colectivo Libertario Mar
del Plata
Argentina

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ágora, agora
anti-programa do nu-sol [nova série]
na tv-puc/canal universitário
t
toda 5a feira
às 20:00 hs
[reprises: sexta às 13hs, domingo às 13hs
3h e terça às 7h30]
//t
também na tv nu-sol - http://tv.nu-sol.org

25 de setembro
br
16 de outubro
liberdade: entre o negativo
at e a potência
educação
com: edson passetti, acácio augusto, gus gustavo simões, michel foucault,
paulocom
resende,
edson william burroughs
passetti, cut
cut-ups,
acácio augusto, rené char,simões,
gustavo câmera solta,
um estado de sítio, gustavo ramus, oscar
michel foucault, max wilde, nam
stirner,anamaria
o inimigosalles, salete
do rei, oliveira,
roberto bolaño, roberto freire,
proudhon:
jaime cubero:"a"alinguagem
gua
linguagem é éumumvirus"
virus"

23 de
2 de
eooutubro
outubro
nômades
revolução
uçã e revolta
com: edson
com passetti, acácio au
edson passetti, augusto, gustavogustavo
acácio augusto, simões, simões,
michel foucault,
émile henry,
bertolucci-partner, camposrené
dechar,r, câmera
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carvalho, solta,duschamp,
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kafka, rené char, sêneca,
lucia soares, gustavo ramus,
bakuninus: "aeliane knorr, albert
linguagem camus, salete oliveira,
é um virus"
max stirner:
rne "a linguagem é um virus"
30 de outubro
9 de outubro
qual o seu nome?
palavras
com edson passetti, acácio augusto, gustavo simões, salete oliveira, michel foucault,
com:
konstantino edson
kaváfis, passetti,
emma etti acáciojuliana
goldman, augusto, gustavo
meduri, simões,
maria michel
lacerda foucault,
de moura, lucia soares,
monda imprensa
joão monteiro,
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avo
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: "a linguagem é umsalete oliveira,
virus"
m livro
um li de cabeceira: "a linguagem é um virus"
6 de novembro
16 de outubro
ecopolítica
educação
com edson passetti, acácio augusto, gustavo simões, michel foucault,
com: eds
dalton edson passetti,
trevisan, buñuel,acácio
rené augusto, gustavo
char, cut-up maissimões,
uma vez, michel
saletefoucault,
oliveira,
max stirner,
sti rené char,
errico câmera"a
malatesta: solta, salete oliveira,
linguagem roberto bolaño,
é um virus"
bakunin: "a linguagem é um virus"

13 de novembro
um silêncio

20 de novembro
intempestivo

27 de novembro
anarquia 2 a 2

em dezembro e em 2009, continua...

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aula-teatro
6 de maio
tucarena, puc-sp

retirada de ingressos:
06 de maio
00:00 às 00:00
www.nu-sol.org

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10 e 11 de novembro de 2008
19h30
tucarena, puc-sp
[r. monte alegre, 1024]

retirada de ingressos
na bilheteria do tucarena
10 e 11 de novembro
18h00 às 19h00

Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP


Projeto de Extensão Cepe/PUC-SP

Nu-Sol - www.nu-sol.org

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conversações
nversações do nu-sol com anarquistas no brasil
b

Com depoimentos de:

Margareth Rago
José Maria Carvalho Ferreira
Rogério Nascimento
Nildo Avelino
Robson Achiamé
Guilherme Corrêa
Acácio Augusto & Thiago Parafuso
Roberto Freire

Nu-Sol, 2008.
Disponível em DVD.

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anarquismos & educação
edson passetti & acácio augusto

“Durante sua existência, cada pessoa interfere nos elementos


em sua volta, dando-lhes novos percursos, ignorando-lhes os
rumos, mantendo seus modorrentos itinerários. Por vezes, sob
circunstâncias imprevistas, alguém é levado ao transborda-
mento das margens, dos limites, das fronteiras, das designa-
ções a respeito de onde devemos parar sinalizados por regras
ou leis. Aí ele se vê diante do caos e da beleza estonteante e
experimenta liberdades”

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