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Salvador – 2010
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Aos meus queridos pais, Germínio Nunes da Silva e Emília Santos Silva, in memoriam,
que não terão a oportunidade de assistir ao ritual de instituição de doutoramento do
único filho que ousou ingressar na universidade.
Aos quilombolas de Rio das Rãs e Mangal/Barro Vermelho, que lutaram e conquistaram
o direito definitivo de ocupar os seus territórios com as armas de suas crenças, por terem
me permitido conhecer uma outra faceta de sua experiência cultural.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço ao meu orientador, Jocélio Teles dos Santos, conhecido pelo rigor de suas
avaliações acadêmicas, que se mostrou ao longo da nossa convivência uma pessoa
atenta, sensível, disciplinada e justa, sem deixar de ser rigoroso, pela incalculável
contribuição ao processo de construção da tese. Aos professores, administradores,
alunos e servidores do Pós-Afro pelo ambiente acolhedor de reflexão e discussão. Aos
colegas da turma de 2006 de mestrado e doutorado. A professora Maria Rosário de
Carvalho, uma mestra na arte de ensinar, pela leitura e revisão do projeto de pesquisa
para o doutorado. A Maria Nazaré Mota de Lima, por revisar de maneira profissional,
meticulosa e engajada o texto final da tese.
Agradeço aos professores, alunos e servidores do DCHT/UNEB Campus XVII de Bom
Jesus da Lapa, que aceitaram a minha transferência para o Departamento de Educação
do Campus I de Salvador, confiando em minha palavra de cursar o doutorado. Ao reitor
da UNEB, amigo Lourisvaldo Valentim, pelo incentivo à formação dos professores da
UNEB e aprovação da Bolsa PAC/UNEB. Aos alunos, colegas e administradores do
DEDC/UNEB Campus I, que me acolheram e me liberaram das atividades docentes. Ao
atual diretor, professor Antonio Amorim, pela compreensão e aceitação da prorrogação
por três meses de minha licença. Aos colegas professores, técnicos e servidores do
CEPAIA-CEEC/UNEB, na pessoa do atual diretor, professor Wilson Matos, pelo apoio
da infra-estrutura. Especialmente a Nelson da Mata, Celene, Mabel, Pinheiro e Manoel,
colegas e amigos de longa jornada no CEEC/CEPAIA, pelas proveitosas discussões
sobre o Projeto Roda Baiana e outros temas conexos, pelo carinho, incentivo e
tolerância. À coordenação do Projeto Geografar/UFBA, na pessoa da professora
Guiomar Germani, pela elaboração e a doação dos mapas de Rio das Rãs e Mangal e
dos municípios que compõem a minha área de estudo. A Leonaldo
Carvalho/CODEVASF que, gentilmente, desenhou a outra parte dos mapas de Rio das
Rãs e do território quilombola do Médio São Francisco. À colega pesquisadora Sandra
Oliveira, pelas fotos da Marujada e disponibilidade da dissertação, ambas muito válidas
para o estudo do quilombo do Mangal. Ao amigo Miguel Teles, pelo belo trabalho de
transcrição das fitas.
Agradeço aos que me apoiaram e me incentivaram com sugestões, contribuições
teóricas, parcerias técnicas, orientações, palavras de carinho e lealdade, em Bom Jesus
da Lapa, Paratinga, Carinhanha e na cidade de Salvador. Muito obrigado a Maria Silva,
amiga leal, amável e sempre com soluções sábias; a Shirley Pimentel, que compartilhou
comigo a descoberta do discurso da feitiçaria como um problema antropológico; a
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Denise Silva, minha filha, e à amiga Queziane Martins, pela contribuição na digitação e
na sistematização das genealogias; ao filho Luizinho, pelos socorros no meu
computador; a Maurício e Cláudio Pereira, amigos e notáveis acadêmicos, pelo apoio
moral e valiosas sugestões bibliográficas; a Josemar Purificação, amigo, irmão e
confidente sobre os segredos e mistérios das mulheres, pelo apoio irrestrito; a Cláudio,
Elaine, Wilma Braga, Leonaldo, Ana Josefina, Vadinho, João, Hélio, Jonilson, Luis,
Adma e Suely, Primo de Carinhanha, Claudinéia de Paratinga, amigas e amigos
queridos, grandes operadores da logística de minha pesquisa de campo; aos antigos
colegas professores do Departamento de Lapa, Dinalva, Marinalva, Kelli, Fabiana,
Robson, Fábio, Rita, Sandra, Luciana, Sandra Célia e Otávio, pelo incentivo, apoio e
carinho. A Nara, Eneuma, Tetê e Auricélio, pelos divertidos saraus nos dias de solidão
na Lapa; a Norma Neide e Lourdinha, do antigo Programa Rede UNEB 2000, pela
confiança e apoio com as passagens de ônibus; aos amigos, amigas e confidentes
Lindinalva, Jandira, Eliane, Silvinha, Esmeralda, Samuel, Washington, Eraldo e
Ednaldo, pelo incentivo; a Marizete e Paulinha, pelo apoio moral; pela torcida constante
e amizades históricas, sinceras e alentadoras de Jônatas, in memoriam, Antonio Olavo,
Rita Brito, Clóvis Caribé, Damião, Vera, Geny, Nilo Rosa, Florentina, Valdemarina,
Edmilton, Edson Carvalho, Luiz Paulo, Menezes, Norberto, Marlene, Ivete, Iron, Ana
Célia, Austílio, Jussara, Luiz Alberto, Luíza Bairros, família Lima, Elias e Magali.
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RESUMO
Os estudos sobre a feitiçaria e o poder foram realizados nos quilombos de Rio das Rãs e
Mangal/Barro Vermelho, situados na região do Médio São Francisco no Oeste da Bahia.
Nos dois quilombos, a feitiçaria é vista como a capacidade atribuída a alguém de
provocar voluntária ou involuntariamente o mal a outrem. Do ponto de vista
antropológico, a feitiçaria é considerada um discurso capaz de orientar o sentido da ação
dos sujeitos nas relações sociais. Mas, por ser um fenômeno complexo e, sobretudo,
ambivalente, a feitiçaria pode se configurar em diferentes modalidades e, com isso, ser
empregada com discrepantes objetivos. De todo modo, a sua influência molda a
personalidade dos indivíduos, organiza e estrutura as representações e possibilita a
construção de estratégias de relacionamentos entre os sujeitos. O discurso da feitiçaria,
além de ser um influente constituinte presente nas relações sociais, produz
conhecimentos e especializa saberes. Por essa razão, ele engendra um espaço de
relações no âmbito das sociedades quilombolas. Esse espaço é designado como universo
da feitiçaria. Este é constituído de regras e uma ética especifica e nele circulam
informações, conhecimentos, produtos, objetos de troca e, por isso mesmo, têm uma
economia própria. Os detentores de capitais simbólicos nesse campo de relações
acumulam poder. Nessa medida, a feitiçaria é entendida como um discurso que
engendra relações assimétricas de poder.
ABSTRACT
Studies on witchcraft and power were made in the quilombos of Rio das Rãs and
Mangal/Barro Vermelho, situated in the Middle Francisco in West of Bahia. In the two
quilombos, witchcraft is seen as the capacity assigned to someone cause voluntary or
accidentally hurt others. Anthropological point of view, witchcraft is considered a
speech capable of guiding the direction of action of the subject in social relations. But,
because it is a complex phenomenon and, above all, ambivalent witchcraft can
configure in different modalities and, therefore, be employed with disparate goals.
Anyhow, its influence wraps the personality of individuals, organizes and structure
representations and enables the construction of strategies of relationships between
subjects. The discourse of witchcraft, in addition to being an influential constituent
present in social relations, produces expertise and specialized knowledge. For this
reason, it is creating an area of relationships within societies quilombolas. This space is
designated as the universe of witchcraft. This consists of rules and ethical specifies and
circulating information, knowledge, products, exchange objects and therefore have an
economy itself. Symbolic capital holders in this field of relationships accumulate power.
To that extent, witchcraft is understood as a speech that involve asymmetric relations of
power.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 13
1.2 O poder e o discurso da feitiçaria nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal 24
2.1 Breve notícia sobre a história dos conflitos pela posse da terra nos quilombos de Rio das Rãs e
Mangal 40
2.4 A crise econômica e a conformação de uma nova paisagem social e étnica no Vale do São
Francisco 50
2.5 Resistência política e obstáculos: visibilidade dos negros na história do Vale do São Francisco 55
2.6 Perfil dos municípios no entorno dos quilombos de Rio das Rãs e Mangal 62
3.1 A localização histórica de Rio das Rãs e Mangal/Barro Vermelho no território quilombola do
Médio Francisco 68
Agricultura de sequeiro 79
Agricultura de vazante 80
Criação 87
A pesca 93
3.3 Outras atividades econômicas nos quilombos 101
3.4 As relações sociais entre parentelas no território quilombola de Rio das Rãs e Mangal: a idéia de
que tudo é uma só parentage em Rio das Rãs e em Mangal 119
3.7 O lugar das mulheres na vida social dos quilombos de Rio das Rãs e Mangal 135
5.8 Os caminhos para a cura percorridos pelos enfeitiçados e a proteção contra a feitiçaria 241
5.9 O discurso da feitiçaria e as ambigüidades médicas nos diagnósticos das doenças e nos sistemas
de cura 249
6.1 Os discursos sobre a meia légua de terras doadas em promessa a Nossa Senhora do Rosário e os
conflitos pelo poder 269
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6.4 Os caminhos tortuosos da etnografia para investigar os relatos sobre a feitiçaria em Mangal 281
6.5 A origem da representação de que o quilombo de Mangal é uma “terra de feiticeiros” 296
6.7 A influência do estigma da feitiçaria e das religiosidades afro-brasileiras na vida cotidiana dos
quilombolas de Mangal 316
6.8 Os sinais nem sempre visíveis de acusações de feitiçaria na vida cotidiana de Mangal 321
7 CONCLUSÃO 328
INTRODUÇÃO
1
PEREIRA, Cláudio. Relação teoria x trabalho de campo: observações críticas para antropólogos que
pactuam com o pensamento insubordinado. Digitado, s/d.
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obter do outro alguma coisa ou algum ato que ele deseja.”2 Para os objetivos da
pesquisa, tal concepção era postulada como a mais operatória.
No decorrer da primeira parte da pesquisa de campo, concentrada em Rio das Rãs,
e com a incursão de uma semana nas comunidades negras rurais de Pau
D’arco/Parateca, Barra da Parateca e Tomé Nunes, todas vizinhas de Rio das Rãs e
situadas no Médio São Francisco no Estado da Bahia, fui obrigado a alterar a minha
compreensão sobre a referida noção de poder adotada para fundamentar a hipótese de
trabalho contida no projeto de pesquisa.
A partir da identificação em campo da ocorrência de outras modalidades de poder
imbricadas nas relações sociais no quilombo de Rio das Rãs, que não coadunavam com
a concepção weberiana adotada para orientar a pesquisa, as mudanças se tornaram
inevitáveis. Com isso, fui obrigado a estender a concepção de poder a outras dimensões
sociais que não envolviam diretamente relações políticas stricto sensu, sobretudo, após
a descoberta de que o discurso da feitiçaria em Rio das Rãs é um parâmetro
fundamental para se entender os sentidos das relações sociais no quilombo. Antes de
explicar de que maneira surgiu o discurso da feitiçaria na experiência etnográfica, é
importante justificar por que a escolha da noção de poder contida no projeto de pesquisa
estava vinculada ao meu interesse em verificar as mudanças ocorridas no quilombo.
Um longo e violento conflito pela posse da terra, envolvendo os quilombolas de
Rio das Rãs e fazendeiros da região, durou 18 anos e provocou alterações nas relações
sociais entre os quilombolas e profundas mudanças na organização política e na
distribuição do poder no quilombo. Por serem obrigados a se relacionar com instituições
públicas, os quilombolas tiveram que criar uma representação jurídica que atendesse às
necessidades institucionais decorrentes desse conflito.
Com isso, os indivíduos mais jovens passaram a ter mais destaque na
representação política, deslocando o poder, antes concentrado nas lideranças mais
tradicionais. Com a criação da Associação Quilombola de Rio das Rãs, passaram a
adquirir carros e bens de uso domésticos que os distinguiam do restante da população
do quilombo.
A investigação desse novo cenário nas relações institucionais de poder, portanto, é
o que norteou a definição de prioridade para orientar a pesquisa de campo.
2
LABURTHE-TOLRA, Philippe. Etnologia, Antropologia. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 133
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Logo no início da pesquisa de campo em Rio das Rãs, em maio de 2007, fui
surpreendido com um evento envolvendo uma grave acusação de feitiçaria. Após o
acontecido, que será descrito em detalhes no capítulo IV, me dei conta da influência
exercida pelo discurso da feitiçaria na vida social dos quilombolas, além de constatar
que esse discurso contém significados relativos à categoria poder, no sentido de que
interfere nas relações cotidianas entre os sujeitos.
A descoberta desse novo caminho obrigou-me a conhecer outras idéias não
convencionais de poder, como a concebida pela antropologia de George Balandier, que
associa o poder à força dos símbolos e das imagens.3 De acordo com essa concepção, o
poder não estaria circunscrito aos conhecidos arbitrários institucionais e do uso da força,
já que ele circularia no interior da sociedade como um fenômeno de múltiplas
dimensões. Assim, as “palavras e os silêncios são uma parte da substância a que recorre
o poder.”4 Relações de poder podem estar contidas tanto nas normas sociais que
impõem obediência, quanto em atos não escritos e, muitas vezes, nem pronunciados
formalmente.
A partir de Michel Foucault, de acordo com a opinião de Paul Rabinow, “foi
seriamente posta em questão a visão de poder que o toma por uma coisa, uma posse,
como um emaranhado [unidirecional] de cima para baixo, ou operando através da
aplicação da força.”5
Na visão de Foucault, “as correlações de forças múltiplas que se formam e atuam
nos aparelhos de produção, nas famílias, nos grupos restritos e instituições, servem de
suporte a amplos efeitos de clivagem que atravessam o conjunto do corpo social”6. Isso
significa que relações de poder é um fenômeno fluido, embora persistente, e que se
3
BALANDIER, Georges. O contorno – Poder e modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
4
Op. Cit. p. 100.
5
RABINOW, Paul, Antropologia da Razão. Rio de Janeiro: Relume Damará, 2002, p. 102.
6
MAIA, Antônio C. “Sobre a analítica do poder de Foucault”. São Paulo: Revista Tempo Social, USP,
outubro de 1995, p. 87.
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encontra presente em todo tecido social. Portanto, o “que caracteriza o poder que
estamos analisando é que traz à ação relações entre indivíduos (ou entre grupos)”.7
Por ser uma categoria relacional, já que envolve uma multiplicidade de interesses
dos atores em ação, o poder não derivaria exclusivamente do Estado ou de outras
instituições sociais produtoras de regras. Isso define, segundo Elyana Barbosa, de forma
precisa que o “poder passa por relações, está nas relações...”8.
A fala dos meus interlocutores na pesquisa de campo foi igualmente decisiva para
a descoberta das novas facetas do poder no âmbito do quilombo de Rio das Rãs. Por
esse motivo, é importante destacar as mudanças de concepção que fui obrigado a adotar
para dar conta de uma nova maneira de encarar o fazer etnográfico. Uma delas foi a de
valorizar mais ainda a fala dos sujeitos na pesquisa.
A experiência de pesquisa desenvolvida por Malinowski nas Ilhas Trobriand,
considerada por muitos como de fundamental importância para todas as gerações de
antropólogos, modificou estruturalmente o que antes era concebido como o mais
adequado modo de fazer etnografia: “no passado considerava-se que os documentos
eram a matéria prima necessária ao antropólogo e ao historiador; agora, a matéria prima
é a própria vida social.”9 A vida social seria explicada, antropologicamente, na medida
em que o pesquisador mergulhasse fundo na cultura vivida pelos povos pesquisados e
decidisse o que é significativo naquilo que observa e o que deve por em relevo na
subsequente narração de suas experiências.10
A “observação participante”, núcleo fundamental do projeto etnográfico de
Malinowski, segundo os seus críticos, não poderia, entretanto, fazer milagre, já que
seria uma “pretensão desmesurada e ilusória que o levava a achar que o etnógrafo
poderia ver tudo.”11 A pretensão positivista subtendida em tal visão, ensejadora de parte
das críticas dos antropólogos, está incluída nas mudanças epistemológicas em curso na
etnografia. Da discussão crítica emergem questões relacionadas ao fazer etnográfico e
aos procedimentos científicos que lhe dão sustentação, como a problemática da autoria e
também o significado e a destinação do texto etnográfico.
Clifford Geertz, um dos primeiros a perceber a necessidade de redefinir a missão
da tarefa etnográfica, considerava que o “objetivo final da etnografia [seria] a
7
OP. Cit. p. 88.
8
BARBOSA, Elyana. “Espaço-tempo e poder-saber”. São Paulo: Revista Tempo Social, USP, outubro de
1995, p. 118.
9
EVANS-PRITCHARD, E. E. Antropologia Social. Lisboa: Edições 70, 1985, p. 76.
10
Idem, 1985
11
GIUMBELLI, Emerson. Para além do “trabalho de campo”: reflexões malinowskianas. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 48, 2002, 101.
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17
12
MARQUES, Cláudia Ana e VILLELA, Jorge Mattar. O que se diz, o que se escreve. Etnografia e
trabalho de campo no sertão de Pernambuco. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2005, p. 43.
13
CARVALHO, José Jorge. O olhar Etnográfico e a voz Subalterna. Horizontes Antropológicos. Porto
Alegre, ano 07, n. 15, julho de 2001, p. 114.
14
RABINOW, Paul. Antropologia da Razão – ensaios de Paul Robinow. Rio de Janeiro: RELUME
DUMARÁ, 1999, pg. 80/81.
15
Op. cit. p. 84.
16
GEERTZ, Clifford. Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.
17
RABINOW, Paul, Op. cit. pg. 85.
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18
do antropólogo.”18 Neste caso, tão importante quanto os recursos teóricos, que poderão
impor unilateralmente os seus padrões culturais ao interpretar os fatos observados, é
ouvir as histórias e os seus diferentes personagens e, dessa forma, entender o significado
atribuído por esses atores ao cotidiano de suas vidas.
Presumo que a sensibilidade de Margaret Mead para apreender a metáfora adotada
pelo povo Arapesh para descrever o mundo, é um exemplo que muito bem se enquadra
no esforço que se deve fazer para captar o significado refinado dos discursos dos
sujeitos das pesquisas etnográficas: “Para os Arapesh, o mundo é uma plantação que
deve ser lavrada, não por si mesma, não no orgulho e jactância, não para acumulação e
usura, mas para que os inhames e os cachorros, os porcos e, acima de tudo, as crianças,
possam crescer.”19
Mesmo entre os antropólogos mais modernos, a visão da Antropologia como uma
ciência positiva ainda tem importante influência. Roberto Malighetti, por exemplo,
reconhece que a etnografia, em certo sentido, transita entre dois mundos, “o mundo do
etnógrafo e de seus eventuais leitores, e o mundo dos membros da cultura.”20 Porém,
pretender “dispensar e repartir a autoridade etnográfica entre os seus informantes,
significa negar à disciplina seu específico estatuto de ciência.” 21 Neste sentido, não há
como desconhecer, segundo o autor, que o “etnocentrismo representa uma condição
ineliminável e constitutiva do saber antropológico.”22
A discussão sobre a autoridade etnográfica tem encontrado uma maior acolhida
junto aos que buscam instituir novas referências epistemológicas para a ciência
moderna. Boaventura de Souza Santos, um dos arautos dessa corrente, afirma que em
“nome da ciência moderna destruíram-se muitos conhecimentos e ciências alternativas e
humilharam-se os grupos sociais que neles se apoiavam para prosseguir as suas próprias
vias autônomas de desenvolvimento”.23 Adiante, ele assevera de maneira taxativa que o
conhecimento moderno vive um momento de transição para outro modelo:
18
VELSEN, J. Van. “A análise situacional e o método de estudo de caso detalhado” in FELDMAN-
BIANCO, Bela. (org.). Antropologia das sociedades contemporâneas – métodos. São Paulo: Global,
1987, p. 345.
19
MEAD, Margaret. Sexo e Temperamento. São Paulo: Editora Perspectiva, 1988, p. 142.
20
MALIGHETTI, Roberto. O quilombo de Frechal – Identidade e trabalho de campo em uma
comunidade brasileira de remanescente de escravos. Edições do Senado Federal. Vol. 81. Brasília:
Senado Federal, 2007, p. 20.
21
Idem, p. 25.
22
Idem, p. 26.
23
SANTOS, Boaventura de Souza. Democratizar a democracia, os caminhos da democracia
participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 14; ver também sobre o assunto do mesmo
autor: “A globalização e as Ciências Sociais”. São Paulo: Cortez, 2002; “A crítica da Razão Indolente”.
São Paulo: Cortez, 2000; “Um discurso sobre as ciências”. São Paulo: Cortez, 2003; “Introdução a uma
ciência pós-moderna”. Rio de Janeiro: GRAAL, 1989.
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19
“Os positivistas olhavam a ciência natural como exemplar em relação à sociologia – agregando, ao
longo do tempo, vários modelos oriundos da lógica da ciência natural. As tradições da sociologia
interpretativa, particularmente a hermenêutica, por outro lado, viram em grande parte as ciências
como mais ou menos irrelevantes para o estudo das instituições e da ação social humana.”26
A “modernidade não é o fim da história; mas o moderno não se dissolveu em uma pós-
modernidade amorfa, fragmentada e não linear. Para mim, a idéia do ‘pós-moderno’ implica
transcendência e não apenas a idéia de que ‘a modernidade recobrou o juízo’ ou está sendo forçada
a encarar as limitações.”27
Ainda de acordo com o sociólogo inglês, que se diz preocupado com os profundos
questionamentos que se fazem à ciência moderna – embora esteja igualmente perplexo
face à sua incapacidade de responder aos dilemas da atualidade –, uma “forte corrente
de conservadorismo político [teria varrido] o Ocidente nas últimas décadas”.28 Para ele,
os filósofos, assustados e impotentes para dar uma explicação satisfatória da barbárie
24
SANTOS, Boaventura de Souza. Democratizar a democracia, p. 18.
25
WEBER, Max. Ciência e Política, duas vocações. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 36
26
GIDDENS, Anthony. Política, Sociologia e Teoria Social. São Paulo: Editora UNESP, 1998, p. 20.
27
Op. Cit. p. 22.
28
Op. Cit. p. 313.
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20
29
“Assim, com as palavras da minha linguagem, só posso falar de massacres, campos e procissões de
morte, de algumas que vi e de outras que desejaria também evocar” Bernard-Henri Lévi apud Anthony
Giddens. Política, Sociologia e Teoria Social. São Paulo: Editora UNESP, 1998, p. 314.
30
Giddens, Op. Cit. 314.
31
CHAMPAGNE, Patrick. A ruptura com as pré-construções espontâneas ou eruditas in
CHAMPAGNE, Patrick et. al.. Iniciação à prática sociológica. Petrópolis: Editora Vozes, 1998, p. 173/4.
32
BOURDIEU, Pierre, CHANBOREDON, Jean-Claude, PASSERON, Jean-Claude. A profissão de
Sociólogo, preliminares epistemológicas. Petrópolis: Editora Vozes, 1999. p. 50.
33
MALDONADO-TORRES, Nelson: Pensamento crítico desde a sub-alteridad: los Etudios Étnicos
como ciencias descoloniales o hacia la transformación de lãs humanidades y lãs ciencias sociales em el
siglo veintiuno. Texto digitado, 2005. Para Madonado-Torres “a noção de ciência descolonial emana, por
um lado, de Aimé Césaire, que fala de uma ciência do anti-colonialismo, e de Laura Pérez, que tem
insistido em várias conversações sobre a importância em conceber os estudos étnicos como estudos
descolonizadores. Lewis Gordon também tem falado sobre a relevância dos estudos da diáspora africana
para as ciências humanas”, p. 01.
34
GROSFOGUEL, Ramón. Descolonizando los paradigmas de la economia-política: transmodernidad,
pensamiento fronterizo y colonialidad global. Texto digitado, apresentado ao Curso Fábrica de Ideais do
CEAO-UFBa, 31/07 a 18/08/2006, p. 01.
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21
positiva, como o fazem os pós-modernos, mas propõem fazer “uma crítica sistemática
[das] correntes dominantes da reflexão epistemológica sobre ciência moderna,
recorrendo, para isso, a uma dupla hermenêutica: de suspeição e de recuperação”.35 Para
eles, a ciência e a filosofia ocidentais estariam sob suspeição. E o compromisso dos
mentores dessa escola não seria de recuperá-las, mas, desconstruí-las como referência
única e hegemônica de pensar o mundo: “O ponto central das perspectivas epistêmicas
alternativas é o lugar epistêmico de enunciação, isto é, a localização geopolítica e
corpo-política do sujeito que fala/enuncia as coordenadas do poder global”.36 Para
Grosfoguel, um dos formuladores dessa corrente de pensamento, é de fundamental
importância emergir os sujeitos anulados pela ciência moderna:
“Na filosofia e nas ciências ocidentais o sujeito que fala sempre fica escondido, encoberto e
apagado da análise. A localização étnica, sexual, racial, de classe ou de gênero do sujeito que
enuncia está sempre desconectada da epistemologia e da produção de conhecimentos. Por meio
desta supressão, que vincula a localização do sujeito nas relações entre o poder e a epistemologia,
a filosofia ocidental e as suas ciências intentam produzir um mito universalista que encobre, isto é,
que esconde quem fala e qual é a localização epistêmica nas relações de poder do sujeito que
fala.”37
35
SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: GRAAL,
1989, p. 11.
36
GROSFOGUEL, Ramón, Op. Cit. p. 01.
37
Op. Cit. p. 02.
38
CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Ciencias sociales, violência epistêmica y el problema de la “invención
del outro” in Edgardo Lander (org.). Colonialidade do saber, eurocentrismo e ciências sociais:
perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005, p. 153.
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22
Fora “dos Estados Unidos os Estudos Étnicos tendem a ser vistos como uma invenção a mais da
academia americana, e como a academia americana é hegemônica, esses estudos são considerados
uma invenção imperial ou como algo que por sua relação com o império é digno de ser
exportado.42
Ao “invés de dar expressão aos interesses políticos e cognitivos das elites estadounidenses, eles
são o resultado de protestos de movimentos sociais nos EUA. Aqui os protagonistas não são as
elites brancas, mas sim setores sociais racializados e marginalizados por elas, primeiro através do
genocídio indígena e com a escravidão dos negros, e logo a seguir na colonização do norte do
México, a partir de 1848, e a de Guam e Porto Rico, a partir de 1898.” 47
44
Op. Cit. p. 26.
45
Cf. sobre esse assunto: Edição Especial da Revista de Estudos Afro-Asiáticos. As artimanhas da Razão
Imperialista – Comentários a Bourdieu e Wacquant. Universidade Cândido Mendes – UCAM,
Ano 24/02 (2002).
46
Eis alguns desses estudos: BARBOSA, Lúcia Maria de Assunção, SILVA, Petronilha Beatriz
Gonçalves e, SILVÉRIO, Valter Roberto (Orgs.). De Preto a Afro-descendente. São Carlos:
EDUFSCAR, 2003; BENTO, Maria Aparecida. Cidadania em Preto e Branco. São Paulo, Ática, 1998;
BERNAD, Zila. Racismo e Anti- Racismo. (Coleção Polêmica.) São Paulo, Moderna, 1994; BRANDÃO,
Carlos Rodrigues. Peões, Pretos e Congos – Trabalho e Identidade Étnica em Goiás. Brasília: UNB,
1977; BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Identidade e Etnia - Construção da Pessoa e Resistência Cultural.
São Paulo: Brasiliense, 1986; CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Antropologia do Brasil - Mito,
História e Etnicidade. São Paulo: Brasiliense, 1986; D’ DESKY, Jacques. Racismos e Anti-Racismos no
Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2001; FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de
Classes. (2 vols.), 3. ed. São Paulo: Ática, 1978; FONSECA, Maria Nazareth Soares (org.). Brasil Afro-
Brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2000; GONZALEZ, Lélia e HASENBALG, Carlos A. Lugar de
Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982; GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e Anti-
racismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 1999; GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo e HUNTLEY,
Lynn (Orgs.) Tirando a máscara – ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000;
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, raças e democracia. São Paulo: Editora 34, 2002;
HASENBALG, Carlos Alfredo. Relações Raciais no Brasil Contemporâneo. São Paulo, Rio Fundo,
1992; IANNI, Octávio. Raças e Classes Sociais no Brasil. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987;
MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos e Sentidos. São Paulo: Ática, 1988.
47
MALDONADO-TORRES, Nelson. Op. Cit. p. 06
48
GROSFOGUEL, Ramón. Descolonizando, Op. Cit. p. 12
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24
49
“Como já foi apontado, o mito fundacional da versão eurocêntrica da modernidade é a idéia do estado
de natureza como ponto de partida do curso civilizatório cuja culminação é a civilização européia ou
ocidental. Desse mito se origina a especificamente eurocêntrica perspectiva evolucionista, de movimento
e de mudança unilinear e unidirecional da história humana. Tal mito foi associado com a classificação
racial da população do mundo”. (QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América
Latina in Edgardo Lander (org.). Colonialidade do saber, p. 10.)
50
Em Salvador são rotineiros os comentários sobre casamentos desfeitos por “trabalhos encomendados”;
suspeitas de feitiçaria envolvendo disputas por empregos, cargos ou funções em ambiente de trabalho; de
candidaturas a cargos eletivos antecedidos de “banhos de descarrego” para “abrir caminhos” ou
simplesmente com a finalidade de eliminar adversários que entre si disputam cargos políticos. No âmbito
do futebol, especialmente no passado de glória dos times baianos, eram públicas e espetaculares as
disputas extra-campo envolvendo supostos feiticeiros, nos dias que antecediam as decisões do
campeonato local.
É conhecida também a cruzada da Igreja Universal do Reino de Deus contra os Terreiros de Candomblés.
Para os evangélicos dessa confissão, as religiões afro-brasileiras como o Candomblé são veiculadoras da
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25
Nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal, constatei que a feitiçaria igualmente faz
parte do cotidiano da vida social dos quilombolas.
A crença na feitiçaria nos dois quilombos é generalizada, mesmo entre os
evangélicos de Rio das Rãs, que se consideram protegidos por Jesus Cristo da ação dos
feiticeiros. A suspeita da ocorrência de feitiçaria ocorre quando não há uma explicação
causal satisfatória para um acontecimento.
A feitiçaria é também um instrumento de poder, entendida como crença capaz de
influenciar, orientar e mesmo definir o sentido da ação dos sujeitos.
A descoberta do discurso da feitiçaria em Rio das Rãs e, posteriormente, em
Mangal, como categoria de explicação de eventos relacionados à vida social dos
indivíduos ou de seus familiares, comprovou a importância de o etnógrafo estar atento
aos detalhes, às sutilezas e a todas as possibilidades de descoberta da etnografia,
inclusive a do “imponderável”, como defendeu Malinowski. É importante, também,
como salientara Said, que os pesquisadores sejam sensíveis “para que os oprimidos do
mundo não se calem e reclamem sempre o seu direito de narrar suas experiências, suas
insurreições, suas memórias, suas tradições, suas histórias.”51
Na pesquisa etnográfica é importante também descrever as diferentes facetas
humanas e, sobretudo, entender o significado atribuído pelos atores aos seus atos, da
maneira sugerida apropriadamente por Van Velsen:
“O etnógrafo deve procurar saber, em cada ocasião, as opiniões e as interpretações dos atores e
também as de outras pessoas, não com a finalidade de saber qual é a visão ‘certa’ da situação, mas
para descobrir alguma correlação entre as várias atitudes e, digamos, o status e o papel daqueles
que tomam aquelas atitudes.”52
obra do diabo, e dessa forma à feitiçaria é atribuída todas as maldades praticadas na terra. Cf. MACEDO,
Edir. Orixás, caboclos e guias – deuses ou demônios? 15. ed. Rio de Janeiro: Universal Produções, 2004.
51
CARVALHO, José Jorge de. O olhar etnográfico e a voz subalterna. Horizontes Antropológicos, Porto
Alegre, ano 7, Nº 15, p 107-147, julho, 2001, p. 124
52
VAN VELSEN, J. Análise situacional e o método de estudo de caso detalhado. in FELDMAN-
BIANCO, Bela (org.). Antropologia das Sociedades Contemporâneas – Métodos. São Paulo: Global,
1987, p. 367
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26
Antes de chegar a Rio das Rãs e Mangal, imaginava também que as relações de
poder estivessem circunscritas às tradicionais disputas nos partidos políticos aos quais
as lideranças estão filiados, nas Associações Quilombolas que fizeram emergir
lideranças mais jovens ou no Sindicato de Trabalhadores Rurais, a que os quilombolas
recorrem para reivindicar direitos. A partir da descoberta da feitiçaria como um discurso
que orienta a ação dos indivíduos, cheguei à conclusão de que esse discurso construiu
um espaço de poder que foi capaz não só de competir com as outras modalidades
presentes nas relações políticas dos partidos, das associações e dos sindicatos como
também de desafiar e constranger os referidos poderes institucionais.
Os feiticeiros, curadores e os adeptos das crenças na feitiçaria, que são os
indivíduos diretamente vinculados ao universo da feitiçaria – espaço de trocas,
agenciamentos e conflitos entre sujeitos –, tiveram que ser avaliados, portanto, sob outra
ótica na estrutura social dos quilombos. Ao contrário do que eu supunha antes da
pesquisa de campo, a influência social desses sujeitos nos quilombos, isto é, o poder que
eles têm de influenciar ações individuais e as decisões sociais no quilombo, certamente
é muito maior do que poderia deduzir.
53
BANDEIRA, Maria de Lourdes. Território Negro em Espaço Branco. São Paulo: Editora
Brasiliense/CNPq, 1998, p. 24.
54
Idem, p. 187.
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27
55
Bandeira, p. 190.
56
BAIOCCHI, Mari de Nazaré. Negros de Cedro (Estudo Antropológico de um Bairro Rural de Negros).
São Paulo: Editora Ática, 1983, p. 133.
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28
“indivíduos com ‘poderes’, com ‘força divina’, que conseguem tirar o quebranto (...) e o
‘mau-olhado’”57
Possivelmente por não ter considerado relevante em sua investigação a feitiçaria,
a autora não conseguiu investigar mais a fundo o tema. Mas, somente a insinuação da
existência de indivíduos dotados dos poderes de tirar quebranto e mau-olhado, não
deixa dúvida de que as crenças na feitiçaria rondam o imaginário dos negros do Cedro.
O discurso da feitiçaria no quilombo do Cafundó, em São Paulo, segundo Vogt e
Fry, é um veículo para expressar “dissensões e disputas políticas internas”.58 As
disputas girariam em torno de um indivíduo chamado Pernambuco e teriam duas
distintas motivações. A primeira envolveria a tentativa dele em se legitimar como
curador, o que implicaria que a sociedade local o aceitasse e reconhecesse a sua
proeminência como um sujeito capaz de alterar processos, e, por essa razão, ratificasse a
sua força simbólica. A segunda porque os negros do Cafundó o consideravam, de fato,
um feiticeiro e, como tal, passou a ser encarado como uma ameaça social.
Não é por outra razão que os autores consideram que no Cafundó “o
enquadramento de uma doença na categoria mafambura é, evidentemente, um ato
político, na medida em que implica apontar um agressor suposto (feiticeiro) e envolve
uma agressão real (a acusação de feitiçaria).”59
Mais do que vítimas individuais, as acusações de feitiçaria no Cafundó
envolveriam a sobrevivência futura dos moradores, isso porque o território quilombola
estaria sendo ameaçado de usurpação por um feiticeiro. O principal acusado,
Pernambuco, no entanto, prometera ao “povo do Cafundó (...) recuperar as terras
griladas pelos fazendeiros vizinhos.”60 Esse aceno de lealdade e compromisso de
Pernambuco para com os negros do Cafundó não fora suficiente, contudo, para evitar a
sua expulsão do quilombo.
Mas, como um bom feiticeiro, depois de ser expulso, Pernambuco deixou
gravadas ameaças nas paredes da casa onde morava: “os pontos riscados dos seus
espíritos, símbolo visível e perigoso da sua maldade e poder.”61 Esse registro escrito e
mais uma lata enterrada com supostos objetos de feitiçaria deram ao povo do Cafundó a
certeza de que Pernambuco queria, de fato, as terras dos quilombolas.
57
Idem, p. 138.
58
VOGT, Carlos, FRY, Peter. A África no Brasil: Cafundó. São Paulo: Editora UNICAMP/Companhia
das Letras, 1996, p. nota 8, p. 34.
59
Idem, p. 145.
60
Idem, p. 146.
61
Idem, p. 147.
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29
“O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de
confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo [...], só se
exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário.”63
“O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a
subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja
produção não é da competência das palavras.”64
É desse modo que a palavra e todo sistema de comunicação que ronda o universo
da feitiçaria empurra os personagens mais salientes desse universo – os feiticeiros, os
curadores e a clientela que legitima os poderes mágico-religiosos – para uma arena onde
o poder é disputado com as armas oferecidas pela feitiçaria. Vencem, como em todas as
batalhas campais, os mais habilitados para as disputas.
62
Idem, p. 148/9.
63
BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 14.
64
Idem, p. 15.
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30
65
RATTS, Alecsandro J. P. A voz que vem do interior: intelectualidade negra e quilombo. In BARBOSA,
Lucia Maria de Assunção, SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves, SILVÉRIO, Valter Roberto. (Orgs.) De
Preto a Afro-Descendente – trajetos de pesquisa sobre relações étnicos-raciais no Brasil. São Carlos:
EDUFSCAR, 2003, p. 90.
66
Idem, 96.
67
Idem, p. 103.
68
SILVA, Valdélio Santos. Rio das Rãs à luz da noção de quilombo. In Revista AFRO-ÁSIA. Dossiê
Remanescentes de Quilombos. Salvador, Centro de Estudos Afro Oriental, nº 23, PP. 241 a 347, 2000.
69
SILVA, Valdélio Santos. Do Mucambo do Pau Preto à Rio das Rãs: liberdade e escravidão na
construção da identidade negra de um quilombo contemporâneo, 1997.
70
BANDEIRA, Maria de Lourdes. Território Negro em Espaço Branco, p. 22.
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31
71
Op. Cit. P. 20.
72
GUSMÃO, Neuza M. Mendes de. Campinho da Independência: um caso de proletarização “Caiçara”.
Tese de doutoramento, São Paulo: PUC/USP, 1979.
73
FRY, Peter e VOGT, Carlos. Mafambura e Caxampura: na Encruzilhada da Identidade. In Dados –
Revista de Ciências Sociais, V. 24, Nº 23, Rio de Janeiro, 1981.
74
SOARES, Luís E. Campesinato: Ideologia e Política. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
75
QUEIROZ, Renato de S. Caipiras negros no Vale da Ribeira: um estudo de antropologia econômica.
São Paulo: FFLCH/USP (Antropologia), 1983.
76
BAIOCCHI, Mari de Nazaré. Negros de Cedro: estudo antropológico de um Bairro Rural de Negros
em Goiás. São Paulo: Ática, 1983.
77
MONTEIRO, Anita Maria de Queiroz. Castaínho: etnografia de um Bairro Rural de Negros. Recife:
Fundação Joaquim Nabuco/Editora Manssangana, 1985.
78
TELLES, Maria Otília da C. Produção camponesa em Lagoa da Pedra: etnia e patronagem. Dissertação
de mestrado defendida na UNB, mimeografado, s/d.
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32
79
Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos/Centro de Cultura Negra do Maranhão –
Projeto Vida de Negro/Associação Rural de Moradores do Quilombo de Jamari dos Pretos. Jamari dos
Pretos, terra de mocambeiros. Coleção Negro Cosme, V. II. São Luis: SMDH/CCN/PVN, 1998.
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Introdução, p. 13.
80
Trata-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239, em que o antigo Partido da Frente
Liberal (PFL) e atual Democratas (DEM) contesta o Decreto do Governo Federal 4.887/03, que
regulamenta dispositivo constitucional sobre a ocupação de terras de quilombolas (Artigo 68 dos Atos das
Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT).
81
GUSMÃO, Neuza M. Mendes de. Terra de Pretos, Terra de Mulheres – terra, mulher e raça num
bairro negro. Brasília: Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares, 1995, p. 20.
82
ARRUTI, José Maurício. Mocambo – Antropologia e História do processo de formação quilombola.
São Paulo/Bauru: EDUSC, 2006, p. 39.
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33
mesmo assim, reconhece que é “impossível não considerá-la um fato relevante, além de
socialmente produtivo.”83
Assim, a literatura de maior densidade concernente aos quilombos nas últimas
duas décadas tem privilegiado os embates teóricos e políticos que informam o referido
cenário. Há um considerável volume de dissertações e teses acadêmicas, estudos de
casos com finalidades dirigidas para o reconhecimento de direitos, relatórios técnicos de
pesquisas militantes, relatórios periciais, laudos antropológicos, além de artigos e livros
originados de teses acadêmicas.
As pretensões dos estudos são elásticas; variam da perspectiva de “examinar a
comunidade negra frente a uma realidade maior.”84 ou mesmo “resgatar a trajetória dos
Kalunga, sua memória histórica, identidade e cultura...”85, até “repensar as relações
raciais...”86
Os estudos sobre os quilombos contemporâneos com propósitos políticos mais
engajados se tornam públicos através de relatórios para “dar sequência ao processo de
reconhecimento das áreas de quilombos exigindo publicamente a imediata titulação...”87
Outros se referem à necessidade de “levantamento preliminar da situação das chamadas
Terras de Pretos localizadas no Estado do Maranhão...”88
Para Alfredo Wagner, o Projeto Vida de Negro do Maranhão, que coordenou a
maior parte dos estudos sobre os quilombos contemporâneos no estado, é responsável
por rupturas teóricas e metodológicas que teriam influenciado decisivamente a
discussão da temática na atualidade. O referido Projeto teria incentivado os negros
quilombolas a adotarem a autoatribuição como fundamento de classificação categorial;
teriam nacionalizado o debate que aparentemente estava circunscrito ao Maranhão e,
finalmente, reconheceram que quilombolas tinham “proposições concretas a respeito
das territorialidades específicas onde eram realizadas suas ações de reprodução física e
cultural.”89
83
Idem, p. 39.
84
BAIOCCHI, Mari de Nazaré. Negros de Cedro, p. 05.
85
BAIOCCHI, Mari de Nazaré. Kalunga – Povo da Terra. Brasília: Ministério da Justiça/Secretaria de
Estado dos Direitos Humanos, 1999, p. 12/13.
86
BANDEIRA, Maria de Lourdes. Território Negro em Espaço Branco, 1988.
87
Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos/Centro de Cultura Negra do Maranhão –
Projeto Vida de Negro/Associação Rural de Moradores do Quilombo de Jamari dos Pretos. Jamari dos
Pretos, terra de mocambeiros. Coleção Negro Cosme, V. II. São Luis: SMDH/CCN/PVN, 1998, p. 11.
88
Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN-MA), Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos
Humanos (SMDH) – Projeto Vida de Negro. Terras de Preto no Maranhão: quebrando o mito do
isolamento. Coleção Negro Cosme. VIII. São Luis: SMDH/CCN/PVN, 2002, p. 17.
89
Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos/Centro de Cultura Negra do Maranhão.
Projeto Vida de Negro. Coleção Negro Cosme. V. IV. São Luis: SMDH/CCN-MA/PVN, 2005,
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Introdução, p. 16.
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34
O trabalho técnico e teórico aliado à denúncia política, sem deixar de ser rigoroso
quanto ao método e à análise dos dados, seriam responsáveis também por “descrever as
ocorrências de intrusamento das terras e de devastação de recursos naturais das
comunidades remanescentes de quilombos de Alcântara...”90
Na região Sul, no outro extremo do Brasil, Ilka Leite defende que os laudos
antropológicos sobre os quilombos da região servem como instrumento para se “criar
parâmetros que envolvem o que chamamos, de um modo geral, a dimensão cultural da
vida social.”91 Trata-se, no entanto, de um texto, de acordo com a autora, que sem
prescindir do rigor científico, é também “baseado em um posicionamento ético e
político...”92 Em um trabalho mais recente, a autora refere-se a “acontecimentos que
abrangem o campo de lutas instaurado no país desde o final dos anos 80 e no qual
sempre estivemos envolvidos.”93
Para o antropólogo José Carlos dos Anjos, “o que está em jogo em termos de uma
política de ciência é a contribuição no sentido de alargar o espaço da representação
política (...)” das populações “excluídas das esferas especializadas da argumentação.”94
Outros estudiosos do Rio Grande do Sul, que trabalharam com laudos periciais,
reconhecem a particularidade desse empreendimento e, por isso mesmo, ponderam que
a “situação do pesquisador para fins de estudo com caráter aplicado o posiciona de
maneira muito particular, já que deve lidar com fatos que se impõem e que impedem a
definição de estratégia de campo exclusivamente por ele.”95
Aqui na Bahia foram elaborados cinco Relatórios histórico-antropológicos, por
solicitação do Instituto de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, em convênio com
a Universidade Federal da Bahia – UFBA e a Universidade do Estado da Bahia –
UNEB, com o propósito de fundamentar os procedimentos administrativos para a
titulação das comunidades quilombolas de Lagoa do Peixe e Batalhinha (Bom Jesus da
90
PEREIRA JUNIOR, Davi. Quilombos de Alcântara: território e conflito – Intrusamento do território
das comunidades quilombolas de Alcântara e pela empresa binacional, Alcântara Cyclone Space.
Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2009, p. 21.
91
LEITE, Ilka Boaventura. O Legado do Testamento – A comunidade de Casca em Perícia. 2. ed. Porto
Alegre: Editora da UFRGS/Florianópolis: NUER/UFSC, 2004, p. 17.
92
Idem, p. 27.
93
LEITE, Ilka Boaventura, CARDOSO e CARDOSO, Luis Fernando. Apresentação. Boletim
Informativo do NUER, V. 2, Nº 2, 2005, p. 11.
94
ANJOS, José Carlos Gomes dos, SILVA, Sérgio Baptista da. (Orgs.) São Miguel e Rincão dos
Martinicanos – ancestralidade negra e direitos territoriais. Porto Alegre: Editora da UFRGS/Fundação
Cultural Palmares, 2004, p. 15.
95
BARCELLOS, Daisy Macedo de, CHAGAS, Miriam de Fátima, FERNANDES, Mariana Belen (et.
al.). Comunidade Negra de Morro Alto: historicidade, identidade e territorialidade. Porto Alegre: Editora
UFRGS/Fundação Cultural Palmares, 2004, p. 22.
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35
96
Instituto de Colonização e Reforma Agrária – INCRA/Universidade Federal da Bahia
UFBA/Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Relatórios Técnicos de Identificação, Delimitação e
Demarcação das Comunidades Quilombolas de Lagoa do Peixe e Batalhinha (Bom Jesus da Lapa),
Jatobá (Muquém do São Francisco), Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba (Wanderley) e Pau
D’arco/Parateca (Malhada). CARVALHO, Genildo Souza de, GERMANI, Guiomar Inez, OLIVEIRA,
Gilca Garcia de, SILVA, Valdélio Santos (Coord.). SANTOS e SANTOS, Jeane Cirlene, MATOS, Eloína
Neri, CARVALHO, Genildo Souza de, AYRES, Genny Magna de Jesus Mota, OLIVEIRA, Gilca Garcia
de, SANTANA, Gilsely Bárbara Barreto, GERMANI, Guiomar Inez, SANTOS, Paula Adaleide Mattos,
SILVA, Valdélio Santos (Equipe Técnica). Salvador: Digitado, 2006.
97
AYRES, Genny Magna de Jesus Mota. Pretos, Brancos e Agregados em Saco das Almas. Dissertação
de Mestrado. Salvador: UFBA/FFCH, 2002; SANTOS, Jucélia Bispo dos. Etnicidade e memória entre os
quilombolas em Irará – Bahia. Dissertação de Mestrado. Salvador: UFBA/FFCH/CEAO/Programa
Multidisciplinar de Estudos Étnicos e Africanos, 2008; DUTRA, Nivaldo Osvaldo. Liberdade e
reconhecer que estamos no que é nosso: comunidades negras do Rio das e da Brasileira – Bahia (1982-
2004). Mestrado em História da PUC - São Paulo, 2007.
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36
dados secundários sobre os quilombos de Rio das Rãs e Mangal no IBGE, CODEVASF
e na Comissão Pastoral da Terra, na sede de Bom Jesus da Lapa.
Nas duas etapas da pesquisa foram entrevistados, com roteiros semiestruturados,
35 quilombolas de Rio das Rãs, Parateca/Pau D’arco e Tomé Nunes. Do total de
entrevistados, 24 foram do sexo masculino e 11 do sexo feminino. No quilombo de
Mangal foram entrevistados 23 quilombolas, 13 pessoas do sexo masculino e10 do sexo
feminino.
Dois grupos focais foram constituídos em Rio das Rãs envolvendo mulheres e
crianças quilombolas, para discutir especificamente assuntos atinentes aos referidos
segmentos.
Durante a pesquisa participei de solenidades e eventos sociais, culturais, políticos
e religiosos diversos realizados nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal, a exemplo de
casamentos, aniversários, roda da capoeira, cultos católicos e protestantes, sessões de
caboclos e assembléias comunitárias. Além dos compromissos formais de pesquisa,
convivi com os quilombolas quando convidado pessoalmente para compartilhar de
refeições. Outro espaço produtivo da pesquisa foram as conversas informais com os
quilombolas nos botecos nos quais eles bebiam cerveja e cachaça nos fins de semana.
Algumas informações e impressões sobre os quilombolas de Rio das Rãs e
Mangal foram recolhidas fora dos seus territórios, nas sedes municipais de Bom Jesus
da Lapa, Paratinga e Sítio do Mato, entre pessoas direta ou indiretamente vinculadas aos
mesmos, a exemplo de lideranças do movimento negro urbano e de organizações não-
governamentais, religiosos, professoras que ensinam nas escolas, lideranças políticas,
sobretudo as do quilombo de Rio das Rãs.
Nas duas etapas da pesquisa foram feitas 1.170 fotos digitais dos sujeitos
entrevistados em Rio das Rãs e Mangal, de elementos da fauna e da flora dos dois
quilombos, de objetos culturais e de eventos significativos dos quilombos e das sedes
municipais de Bom Jesus da Lapa, Paratinga, Sítio do Mato e Carinhanha.
Nas duas etapas da pesquisa o diário de campo, registrado em um computador
portátil, consumiu 158 páginas digitadas em fonte 12.
Estrutura da tese
Capítulo I
98
De acordo com os novos conceitos geográficos e administrativos do governo da Bahia, a antiga Região
administrativa do Médio São Francisco, onde está localizado o município de Bom Jesus da Lapa, está
sendo substituída pelo chamado Território de Identidade Velho Chico. Mas, a referência anterior (Médio
São Francisco) continuará sendo adotada neste texto para facilitar a sua localização no espaço regional.
99
TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia. 8. ed. São Paulo: Editora Ática, 1987, p. 91.
100
MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala: quilombos, inssurreições, guerrilhas. 3. ed. São Paulo:
Livraria Editora Ciências Humanas, 1981.
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40
Breve notícia sobre a história dos conflitos pela posse da terra nos quilombos
de Rio das Rãs e Mangal
O quilombo de Rio das Rãs enfrentou, em sua fase mais crítica, entre 1981 e
1989, um sério conflito agrário envolvendo cerca de trezentas famílias negras e
fazendeiros que se diziam proprietários das terras imemorialmente ocupadas por essas
famílias desde o início do século XIX. O conflito percorreu, esquematicamente, a
trajetória sumariamente exposta a seguir e foi descrito detalhadamente em minha
dissertação de mestrado e em outros trabalhos já publicados.103
No final do século XIX o fazendeiro Deocleciano Pires Teixeira, filho do major
Francisco Teixeira de Araújo, detentor de grande quantidade de terras no Médio São
Francisco e morador do município de Caetité, introduziu gado bovino no território
101
Cf. NEVES, Erivaldo Fagundes. Estrutura Fundiária e Dinâmica Mercantil: Alto Sertão da Bahia,
séculos VXIII e XIX. Salvador: EDUFBA/UEFS, 2005; TAVARES, Luís Henrique Dias. História da
Bahia. 8. ed. São Paulo: Editora Ática, 1987; MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala: quilombos,
inssurreições, guerrilhas. 3. ed. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1981;
102
Cf. ROCHA, Geraldo. O Rio São Francisco como fator precípuo da existência do Brasil. 3. ed. São
Paulo: Editora Nacional/CODEVASF, 1983; PIERSON, Donald. O Homem no Vale do São Francisco.
Tomos 1, 2, 3. Rio de Janeiro: SUVALE/MINTER, 1972.
103
SILVA, Valdélio Santos. Do Mucambo do Pau Preto à Rio das Rãs: liberdade e escravidão na
construção da identidade negra de um quilombo contemporâneo (Ensaio Etnográfico). Dissertação de
mestrado defendida na UFBA. Salvador, 1998. Ver também CARVALHO, José Jorge (Org.), DÓRIA,
Siglia Zambrotti, OLIVEIRA JR, Adolfo Neves. O quilombo de Rio das Rãs: História, tradição, lutas.
Salvador: EDUFBA, 1996; SOUZA, Evangelista de, ALMEIDA, João Carlos Deschamps. O Mucambo
do Rio das Rãs – um modelo de resistência negra. Bom Jesus da Lapa: SINERGIA/CÁRITAS, 1994.
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41
ocupado por quilombolas de Rio das Rãs e apresentou-se como proprietário da área. Os
negros que lá residiam, desde o início do século XIX, foram classificados
arbitrariamente pelo fazendeiro como “agregados” da Fazenda Rio das Rãs. Nesta
condição subalterna, Deocleciano não precisou nem expulsar os tradicionais ocupantes
das terras e muito menos importuná-los. Para se antecipar a possíveis atritos, alguns
moradores eram contratados como vaqueiros, e o fazendeiro “permitia” aos demais
negros plantar e criar pequenos animais e construir casas de pau-a-pique. Essa política
de cooptação dos tradicionais ocupantes das terras de Rio das Rãs facilitou o controle
social do conjunto das famílias e a dominação ideológica exercida pelo fazendeiro.
Em 1972, Celso Teixeira, filho do já falecido Deocleciano, proibiu a abertura de
novas roças no território dos negros de Rio das Rãs, alterando, dessa forma, a política
paternalista do seu pai.
Em 1974, Fernando Teixeira, sobrinho de Celso Teixeira e Carlos Teixeira, filho
de Anísio Teixeira, o famoso educador da Bahia104, os dois, netos e herdeiros de
Deocleciano, adotaram uma política agressiva contra os negros de Rio das Rãs:
proibiram a pesca nas lagoas, derrubaram as cercas das roças e até um templo
protestante. É o começo também da resistência política dos moradores que procuraram o
Sindicato de Trabalhadores Rurais de Bom Jesus da Lapa para defendê-los.
Em 1981, o Grupo Bial - Bonfim Indústria Algodoeira LTDA, tendo como
presidente Carlos Newton Vasconcelos Bonfim, compra dos herdeiros da família
Teixeira a chamada Fazenda Rio das Rãs. Desde esta data as ações violentas
intensificaram-se. Ao mesmo tempo, organizações da sociedade civil, a exemplo da
Diocese de Bom Jesus da Lapa, a Comissão Pastoral da Terra, o Movimento Negro
Unificado, a CEDITER (órgão ecumênico) e a FUNDIFRAN (Fundação para o
Desenvolvimento do Vale do São Francisco) juntam-se ao Sindicato dos Trabalhadores
Rurais para apoiar politicamente os negros de Rio das Rãs.
Em 1990, o juiz, Antônio Laranjeiras, da Comarca de Bom Jesus, concede uma
liminar de reintegração de posse em favor dos “posseiros” de Rio das Rãs, denominação
empregada pelo sindicato e aceita pela justiça nesse momento como a mais adequada
para definir naquele momento a natureza do conflito pela posse da terra.
Em novembro de 1993, a Procuradoria Geral da República - PGR patrocina uma
Ação Civil Pública, requerendo a titulação das terras de Rio das Rãs, em favor dos seus
104
Ao que consta dos estudos até aqui realizados, Anísio Teixeira, não teria tido nenhum envolvimento
direto nos conflitos pela posse da terra em Rio das Rãs. Não se sabe, contudo, se ele se mantinha
informado ou acompanhava de longe os acontecimentos.
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42
107
Idem, p.70.
108
Idem, p. 78/9
109
NEVES, p. 54.
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46
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47
Não há dúvidas, entretanto, de acordo com Neves, de que a criação de gado para
abastecer os centros produtores mineiros, na transição do século XVII para o XVIII, foi
o fator principal para a “formação de núcleos urbanos que articularam circuitos
comerciais de boiadeiros e tropeiros em todas as direções.”110 Deve-se acrescentar que o
solo e o clima da região sertaneja do São Francisco favoreceram a criação e, com isso, o
“gado trazido pelas caravelas multiplicou-se com rapidez.”111 Além do gado bovino, os
portugueses levaram para a região galos e galinhas, porcos, cabras, bode, carneiros e
ovelhas, gatos, cães, cavalos, éguas e jumentos.112 Da costa ocidental africana, de
acordo com Pierson, chegou até nós a galinha-d’angola. Além da criação de gado, o
emprego dos animais de montaria no vasto sertão sanfranciscano moldaria uma peculiar
cultura regional de grande influência tanto na experiência pecuária quanto agrícola.
A utilização das terras do Vale São Francisco para a criação de gado foi iniciada
após as famílias Guedes de Brito e Garcia d’Ávila receberem doações de imensas áreas
de terras da Coroa Portuguesa; esta última teria chegado à Bahia na companhia do
primeiro Governador Geral da Colônia, Tomé de Souza, em 1549.113
As terras recebidas pela família Guedes de Brito, da Coroa Portuguesa, foram uma
recompensa pela resistência aos holandeses invasores, no século XVII e, também, por
combater os índios e negros que, fugindo das senzalas, permaneciam aquilombados no
sertão do São Francisco. 114 Por estes serviços, a Coroa Portuguesa concederia ainda, a
Antônio Guedes de Brito, o título de Mestre de Campo e Regente do São Francisco.115
Segundo Carlos Alberto Steil, Antonio Guedes de Brito teria sido o primeiro
colono português a ocupar o Vale do São Francisco, a partir de 1663, quando se tornou
beneficiário da “Carta régia de 27 de agosto deste ano, pela qual o rei de Portugal lhe
conferia a área compreendida entre o Morro do Chapéu e as nascentes do Rio das
Velhas.”116 Donald Pierson, por outro lado, afirma que os Garcia d’Ávila teriam
recebido primeiro as doações de terras da Coroa Portuguesa, em 1659, quando “o
Governador-Geral em Salvador, em nome do Rei de Portugal, concedia terras nas
110
Op. Cit. p. 89.
111
ROCHA, p. 14/15.
112
PIERSON, Donald, 1972.
113
NEVES, p. 14.
114
CARVALHO, Vaílton L. de. História do Rio São Francisco. Salvador: SEPLANTEC/CPE,
datilografado, 1981, p. 59.
115
CARVALHO, José Jorge (Coord.). Laudo Antropológico sobre a Comunidade Negra do Rio das Rãs.
Brasília: digitado, novembro, 1993.
116
STEIL, Carlos Alberto. O Sertão da Romaria – um estudo antropológico sobre o santuário de Bom
Jesus da Lapa – Bahia. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 28.
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48
margens do São Francisco.”117 Talvez Carlos Alberto Steil tenha enfatizado a primazia
dos Guedes de Brito na exploração do Vale pela maior ferocidade e violência com que
essa família ocupou as terras, posto que, de acordo com Neves, por “onde Guedes de
Brito estendeu seus domínios, o fez com a guerra, submissão, expulsão ou extermínio
das populações nativas.”118
No século XVIII, depois da descoberta do ouro em Minas Gerais, o rio São
Francisco se tornaria um caminho obrigatório entre o Nordeste e o Centro-Sul para a
comercialização dos escravos excedentes dos canaviais. A região Nordeste começou a
entrar em decadência quando os produtores de açúcar de outras colônias portuguesas
superaram a produção local a um custo de produção mais baixo. Assim, o São
Francisco, aos poucos, foi se adaptando às mudanças na economia colonial.
Erivaldo Neves sugere que o sistema de mineração incentivou o povoamento e a
ampliação da policultura no Vale.119 Parece fazer sentido tal argumento, já que uma
parte dos escravizados que se deslocaram do Recôncavo da Bahia e de Pernambuco em
direção às minas e, mais tarde, para trabalhar nos cafezais de São Paulo, em razão da
decadência da economia da cana de açúcar, conseguiram fugir e terminaram povoando
as margens do rio, transformando antigos currais em vilas autônomas, a exemplo de
Barra do Rio Grande e Santo Antônio do Urubu, com populações urbanas que mais
tarde se tornariam sedes municipais de destacada importância na conformação do
território regional. Outra parte dos negros fugidos foi parar nos canaviais da atual
Januária, no estado de Minas Gerais, famosa até hoje pela fabricação de saborosas
cachaças. Antes de Neves, Donald Pierson, em suas pesquisas na década de cinquenta
do século passado, já havia sugerido ter sido por esse caminho que os quilombos se
formaram nessa região do Vale do Francisco: os “escravos africanos fugitivos [...]
estabeleceram aldeias rudimentares fortificadas, e que, às vezes unidos a indígenas
puros ou mestiços, pilhavam fazendas dos arredores e daí retiravam outros escravos.”120
117
PIERSON, p. 265.
118
NEVES, p. 122.
119
Op. Cit.
120
PIERSON, p. 281.
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49
121
SCHWART, Stuart B. Cantos e Quilombos numa Conspiração de Escravos Haussás in REIS, João
José e GOMES, Flávio dos Santos. (Orgs.) Liberdade por um fio-História dos Quilombos no Brasil. S.
Paulo: Cia. das Letras, 1996.
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50
122
PEDREIRA, Pedro Tomás. Os Quilombos Brasileiros. Salvador: Prefeitura Municipal de Salvador/
Departamento de Cultura da SEMEC, 1973.
123
Cf. GUSMÃO, Neuza M. Mendes de. Terra de Pretos, Terra de Mulheres – terra, mulher e raça num
bairro negro. Brasília: Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares, 1995; SILVA, Valdélio
Santos. Rio das Rãs à luz da noção de quilombo. In Revista AFRO-ÁSIA. Dossiê Remanescentes de
Quilombos. Salvador, Centro de Estudos Afro Oriental, nº 23, PP. 241 a 347, 2000; ALMEIDA, Alfredo
Wagner Berno de. Quilombo: repertório bibliográfico de uma questão redefinida (1995-1996), São Luís
(MA): digitado, 1997; O’ ODWYER, Eliane Cantarino. Apresentação In Terra de Quilombos, Revista da
ABA, Rio de Janeiro: ABA, 1995.
124
CARVALHO, 1993.
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51
para concentrar renda, circular pouco capital e não empregar uma quantidade
significativa de mão de obra.
Neste período começaram a ruir também os impérios dos Morgados da Torre e da
Ponte. Os herdeiros destas duas famílias parcelam as antigas sesmarias mediante a
venda ou arrendamento que se conformarão nos latifúndios geradores do sistema de
coronelato que passará a predominar em todo o Vale do São Francisco.
Mas, esse tipo de parcelamento, contribuiu para a concentração das terras na
região. É um modelo inspirado na Lei de Terras de 1850, que estabeleceu como critérios
de legalização da propriedade a apresentação de títulos ou mediante compra,
consolidando, assim, as propriedades “de origem duvidosa”125 dos sucessores das
antigas sesmarias, o que fragilizou, desse modo, a condição jurídica dos posseiros e
ocupantes de terras públicas que viviam em comunidades margeando o rio ou no
interior de fazendas que se legalizaram através de esbulho.
Os tradicionais posseiros e ocupantes que sucederam os antigos quilombos
passaram, doravante, a ser classificados pelos fazendeiros como “agregados”, condição
atribuída aos moradores de inúmeras comunidades negras às margens dos São Francisco
que lutam para legalizar territórios que ocupam desde o século XVIII.
Os indivíduos e grupos familiares classificados como “agregados”, incorporados
às fazendas que se formaram após a fragmentação das sesmarias dos Morgados da Ponte
e da Torre, tiveram um papel fundamental na ocupação e exploração das terras às
margens do Rio São Francisco.
Nas fazendas de criação de gado que sucederam as sesmarias havia duas
categorias bem distintas de moradores: os chamados empregados, mesmo que não
tivessem um contrato formal de trabalho, considerados trabalhadores confiáveis pelo
fazendeiro; e os agregados, indivíduos e famílias que ocupavam lote de terras dentro
das fazendas demarcadas e registradas de acordo com as conveniências e a força política
do fazendeiro que se impusesse como proprietário. Os agregados eram tolerados pelo
proprietário da terra, mas não deixavam de ser, em muitas circunstâncias, úteis aos
interesses do fazendeiro. De acordo com as narrativas orais recolhidas em Rio das Rãs,
não era incomum que os antepassados dos atuais quilombolas estabelecessem uma
relação de intimidade e afeição com os fazendeiros que os impingia a condição de
agregados, sobretudo se aqueles não os molestassem.
125
NEVES, Erivaldo Fagundes. Estrutura Fundiária e Dinâmica Mercantil: Alto Sertão da Bahia,
séculos VXIII e XIX, p. 191.
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52
126
CARVALHO, 1995.
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53
serviços mal-remunerados, por isso, para se alimentar melhor, eles eram obrigados a
fazer roça e pescar.
O encarregado era o sujeito que gerenciava a fazenda e tinha relação mais direta
com vaqueiros e agregados, “era quem mandava, era gerente de tudo”, de acordo com
depoimentos dos indivíduos mais idosos de Rio das Rãs. Todos os acontecimentos
dentro da fazenda passavam pelo conhecimento do encarregado; por sua vez, ele
repassava ao proprietário as informações sobre o andamento das atividades referentes à
criação de gado e às relações com os empregados e agregados: era a pessoa de maior
confiança do fazendeiro. O interessante é que os indivíduos que desempenharam as
funções de vaqueiro e encarregado, na maior parte dos casos, eram escolhidos entre os
agregados, o que fazia com que eles sonhassem ser escolhidos algum dia “homens de
confiança” do “benemérito” patrão.
128
CARVALHO, 1981.
129
PIERSON, p. 255.
130
Idem, p. 47.
131
Idem, p. 48.
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55
132
STEIL, Carlos Alberto. O Sertão da Romaria – um estudo antropológico sobre o santuário de Bom
Jesus da Lapa – Bahia. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 263.
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56
Em Mangal, por exemplo, ouvi relatos de que a imagem de sua padroeira, Nossa
Senhora do Rosário, teria sido trazida por um sujeito de uma das famílias fundadoras do
quilombo e que participara da Guerra do Paraguai. São escassas as possibilidades de
comprovar a veracidade desse relato que faz parte do mito da fundação do quilombo.
Mesmo assim, é importante perguntar: como foi possível permanecer na memória social
da comunidade a informação de que pelo menos um sujeito do quilombo do Mangal
tivesse participado da Guerra do Paraguai em 1864? Se considerarmos que informações
históricas, como a referida guerra, são pouco conhecidas de um público com
escolaridade elementar e de pouca familiaridade com textos escritos, como o de Mangal,
somos obrigados a pensar que esse registro oral é muito importante para se conhecer um
pouco mais sobre o assunto e de que maneira ele repercutiu nas diferentes camadas
sociais da região. Confesso que, num primeiro momento em que ouvi o relato, não
imaginava ser possível a sua comprovação ou, pelo menos, ter indícios mais
consistentes que diminuíssem o meu pessimismo. Inclusive porque o relato contradizia
outro sobre o mesmo assunto – o aparecimento da imagem de Nossa Senhora do
Rosário no quilombo – e, ambos, me pareceram que expressavam, de fato, uma luta
política e simbólica em torno da afirmação da identidade de dois grupos de parentesco
que disputam o poder no quilombo.
Mas, para a minha surpresa, há sim uma referência histórica documentada de que
nesta região onde se localiza hoje o quilombo de Mangal, e que no século XIX pertencia
à Vila de Santo Antônio do Urubu (atual Paratinga), vizinha à Barra do Rio Grande,
ocorreu recrutamento de voluntários negros para a Guerra do Paraguai. Citando
historiadores especializados neste tema, Edilson Pereira Brito afirma de que foi
significativa a participação de escravos na Guerra do Paraguai. Os historiadores não se
entendem quanto ao montante de escravos negros enviados.133
Em novembro de 1864, o Paraguai declarou formalmente guerra contra o Brasil.
O Presidente da Província da Bahia, Manoel Pinto de Souza Dantas, obedecendo a
ordens superiores, começou a fazer o recrutamento de voluntários para participar da
guerra em janeiro do ano seguinte, e para isso, espalhou editais pelo interior. O
alistamento na Província da Barra, vizinha de Santo Antônio do Urubu, foi feito a partir
de novembro de 1866, dois anos depois de iniciada a guerra. É razoável pensar,
portanto, que, pela importância regional da Vila do Urubu, “a mais antiga Vila do médio
133
BRITO, Edilson Pereira. Cidadania, Escravidão e Recrutamento Militar na Província do Paraná.
Comunicação no I Seminário Nacional Sociologia e Política da UFPR, 2009.
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57
134
CARVALHO, Vaílton L. de. História do Rio São Francisco, p. 116.
135
FELIX JUNIOR, Osvaldo Silva. Repensando a Guerra (Participação da Bahia na Guerra do Paraguai –
1865-1870). Dissertação de mestrado. Departamento de Ciências Humanas Campus V, UNEB, 2009.
136
Idem, p. 120.
137
PIERSON, p. 97.
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58
nunca tenha sido vista, a não ser pelos seus guardadores e na imaginação construída
sobre ela.
Na pesquisa realizada para o mestrado em 1997, em Rio das Rãs, ouvi relatos
sobre conflitos envolvendo negros escravizados, quilombolas e marotos. Recolhi
depoimentos, como os do Sr. Francisco Ferreira Magalhães (Chico de Helena,
atualmente com 78 anos), em que ele afirma ter ouvido de seus antepassados que os
marotos teriam reescravizados negros no Mocambo, local onde teriam surgido os
primeiros quilombolas de Rio das Rãs. Eis o seu depoimento:
“Agora, quando justamente eles [os negros] tava já alicerçado [isto é, estabilizados], justamente aí,
chegou esses maroto, chegou justamente que foi e botou a escravidão nesse pessoal, esses nêgo...”
138
AMARAL, do Braz. História da Independência na Bahia. Salvador: Prefeitura do Município do
Salvador, 1957, p. 41.
139
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. A Festa do Dois de Julho – as comemorações públicas da
Independência Nacional. In Fundação Pedro Calmon. 2 de Julho – A Libertação do Brasil na Bahia.
Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 2009, p. 50.
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59
envolvendo baianos e portugueses na região, embora tenham estes sido mantidos sob
severa vigilância das autoridades fiéis à independência.
A luta pela independência da Bahia no Vale do São Francisco, parece ter se
destacado, sobretudo, nos marcos dos parlamentos locais: “As Câmaras Municipais de
Barra, Pilão Arcado, Campo Largo [Ibotirama] e Urubu [Paratinga] desempenharam seu
grande papel de guardiãs dos interesses nacionais nas barrancas do São Francisco.”140 O
mesmo autor classifica a contribuição dos sertanejos como “ativa e destemida.”141 Na
confirmação da independência da Bahia em 1823, em toda a região do Médio São
Francisco, foram rezadas missas, ocorreram desfiles, e atos políticos foram realizados
para comemorar a vitória da liberdade na Bahia.
A abolição da escravidão de 1888 é outro acontecimento histórico que repercutiu
no Vale do São Francisco e envolveu, de forma direta, os negros do Vale São Francisco.
O episódio da abolição mereceu ligeira menção do padre e historiador Turíbio
Vilanova – sacerdote espanhol, capelão e vigário do santuário do Bom Jesus da Lapa
entre 1933 e 1956 –, quando escreveu uma resenha histórica sobre o referido santuário.
Outros autores se referem a uma grande festa realizada pelos negros da região em
comemoração à abolição de 13 de maio de 1888. Vejamos primeiro o registro escrito
pelo Pe. Turíbio Vilanova:
“Em junho de 1888, pouco depois da proclamação da emancipação pela Princesa Isabel, ‘uma
imensa multidão de escravos142 [sic] vinda de todo o sertão’ [...] reuniu-se na Gruta ‘para dar
graças ao Bom Jesus, pelo benefício da alforria, demorando oito dias, cantando benditos religiosos,
rezando, dando vivas ao Gabinete de João Alfredo, tocando maracás, tambores, pandeiros, cabaças
com milho, etc.’”143
“Segundo o frade franciscano Tomar Kochmeyer, que o autor conheceu em Salvador em 1935, e
que conhecia intimamente os centros de cultos afro-brasileiros locais, o Bom Jesus da Lapa era na
ocasião conhecido, pelos negros em alguns desses centros, como ‘Lenimbé, Furáme’, e venerado
sob a forma de uma rocha.”144
140
CARVALHO, Vaílton L. de. História do Rio São Francisco, p. 110.
141
Idem, p. 115.
142
Se o acontecimento se refere a junho de 1888 essas pessoas já não eram mais escravos.
143
PIERSON, p. 106/7.
144
Idem, p. 107.
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60
“O Bom Jesus é conhecido entre os negros da Bahia pelo nome de ‘Lenibé-Furáme’ – na gíria dos
candomblezeiros do culto fetichista. É venerado sob a forma de pedra, singular prova da
vastíssima devoção à milagrosa imagem.”145
Esses registros sobre a presença dos negros no Santuário do Bom Jesus da Lapa,
após a abolição, poderiam ser tomados como importantes pistas para uma pesquisa
específica sobre esse assunto, pelas seguintes razões: a) os negros estavam presentes no
Vale do São Francisco, ao que parece de forma significativa, e isso mostra ser evidente
não somente pela referência à “imensa multidão”, mas também porque a festa durou
oito dias; b) os negros acompanhavam os acontecimentos nacionais, mesmo estando
confinados em uma região distante e a maior parte residindo no meio rural, sem falar
das imensas dificuldades de comunicação; c) estavam bem articulados na região, pois
não deve ter sido fácil organizar uma manifestação nas proximidades da gruta do Bom
Jesus, que teria durado uma semana e envolvido uma “imensa multidão”, sem que se
tivesse uma preparação prévia e convicções formadas sobre o significado daquela
decisão; d) preservaram um importante traço da identidade cultural negra africana,
como a sua religiosidade, e isso foi utilizado como um ato de afirmação da liberdade, na
medida em que eles explicitamente saudavam “Lenimbé Furáme”, ao que tudo indica
uma corruptela de Lemba Furama, em linguagem banto, equivalente a Oxalá, para os
iorubanos;146 e) essa celebração comemorativa pelo fim da abolição no final do século
XIX em frente ao templo do Bom Jesus, em face da presumida quantidade de negros, da
duração da celebração, das dificuldades de comunicação, e das conhecidas hostilidades
contra os negros nos centros urbanos147, entre outras, pode ser vista como um ato
eminentemente político.
Vários estudos fazem referência à presença negra no Vale do São Francisco.
Livros, artigos, monografias e dissertações148 discutiram especificamente aspectos da
145
STEIL, p. 131.
146
Segundo o Dicionário Eletrônico Houais de Língua portuguesa: “Nos candomblés de rito angola-
congo, [Lemba é um] inquice correspondente ao Oxalá nagô; Cassulembá, Lembarenganga, Malemba”
147
Alguns quilombolas de Rio das Rãs me confessaram de que era comum antes da década de noventa do
século passado os negros do quilombo serem tratados de forma discriminatória em Bom Jesus da Lapa.
148
CARVALHO, José Jorge (org.). O quilombo do Rio das Rãs. História, tradição e lutas. Salvador:
EDUFBA, 1996; DUTRA, Nivaldo Osvaldo. Liberdade é reconhecer que estamos no que é nosso:
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61
cultura e da vida social das populações negras quilombolas. O que não se alterou,
fundamentalmente, desde a chegada dos primeiros negros escravizados à região, foi a
condição inferiorizada dessas populações “na estrutura social.”149
Os negros deixaram de ser escravos depois de 1888, segundo Neves, para se
transformarem em modestos trabalhadores da lavoura ou “em pequenos ofícios urbanos
como ferreiros, oleiros, aguadeiros etc.”150 Nos centros urbanos de Bom Jesus da Lapa,
Santa Maria da Vitória, Ibotirama, Paratinga e outros municípios do Médio São
Francisco, que cresceram e diversificaram as suas economias nas três últimas décadas,
são mais visíveis as alterações das posições sociais dos negros na estrutura social.
Mudanças que podem ser explicadas pelas oportunidades escolares hoje existentes e
pelo oferecimento de empregos, através de concursos públicos, o que facilitou o acesso
dos negros no mercado de trabalho e, desse modo, foram ampliadas as oportunidades de
mobilidade social.
No meio rural, onde as mudanças sociais são mais lentas, as populações negras
ainda vivem em condições muito próximas ao que foi descrito por Neves. As
comunidades negras rurais que não conseguiram regularizar as suas terras e, com isso,
acessar o sistema bancário para o financiamento das suas atividades produtivas, ainda
não alteraram muito significativamente a sua situação social.
Tive a oportunidade de conhecer de perto inúmeras comunidades negras rurais, a
exemplo de Tomé Nunes, no município de Malhada no Médio São Francisco, em que as
famílias ainda residem em casas de taipa, sem água potável para o consumo e
assistência regular à saúde; além disso, estão expostas à ação dos grileiros de terra. O
fato de ocuparem terras às margens do São Francisco e não terem sido até hoje
reconhecidas e legalizadas pelo Estado Brasileiro, muitas delas ocupando as suas posses
antes da Lei de Terras de 1850151, mostra como as “leis agrárias no Brasil sempre
comunidades negras do Rio das Rãs e da Brasileira – Bahia (1982 -2004), dissertação de mestrado,
PUC/São Paulo, 2007; MESSEDER, Marcos Luciano Lopes, MARTINS, Marco Antônio Matos. Arrais
de Rio de Contas: uma comunidade de cor. Caderno CRH, Série Contos e Toques – Etnografias do
Espaço Negro na Bahia, Suplemento/1991, Salvador: Editora Fator; SOUZA, José Evangelista de,
ALMEIDA, João Carlos Deschamps. O Mucambo do Rio das Rãs – um modelo de resistência negra.
Bom Jesus da Lapa: SINERGIA/CÁRITAS, 1994; SILVA, Valdélio Santos. Do Mucambo do Pau-Preto a
Rio das Rãs. Liberdade e escravidão na construção da identidade negra de um quilombo contemporâneo.
Dissertação de mestrado defendida na UBFA, 1998.
149
NEVES, Zanoni. Os remeiros do São Francisco na Literatura. Revista de Antropologia, USP, v. 46, Nº
1, 2003, p. 168.
150
Op. Cit. p. 168.
151
Podemos citar alguns exemplos de comunidades que já foram estudadas e que confirmam que as suas
populações ocupam os territórios antes de 1850, com os quilombos de Rio das Rãs, Parateca/Pau D’arco,
e Mangal/Barro Vermelho.
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62
Perfil dos municípios no entorno dos quilombos de Rio das Rãs e Mangal.
152
NEVES, p. 199.
153
PIERSON, 280/1.
154
Idem, p. 281.
155
CARVALHO, p. 59.
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63
Oeste. Por via terrestre, a distância para Salvador, a capital da Bahia, é de 750 km. O
município possui 3.951 km2 de extensão territorial.
Paratinga está situado na margem direita do São Francisco e possui uma altitude
de 425 metros. As coordenadas geográficas indicam: latitude (Sul) 12º41’26” e
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66
longitude (Oeste) 43º11’03”. Situa-se a 708 km de Salvador e tem uma área de 2.956,39
km2.
Carinhanha está situado à margem esquerda do São Francisco a uma altitude de
440 metros. As coordenadas geográficas indicam: latitude (Sul) 14º18’17” e longitude
(Oeste) 43º45’54”. Situa-se a 899 km de Salvador, na fronteira com o Norte do estado
de Minas Gerais e tem uma área de 2.751,39 km2.
Os municípios de Carinhanha e Paratinga (antigo Santo Antônio do Urubu) têm
uma importante história na ocupação do Médio São Francisco, enquanto Sítio do Mato
tem uma história regional mais modesta, por ter sido até bem pouco tempo um distrito,
quando pela lei estadual Nº 4834, de 24 de fevereiro 1989, foi desmembrado de Bom
Jesus da Lapa para formar o município de Sítio do Mato. As economias dos três
municípios se sustentam basicamente da agricultura e da criação.
Na agricultura, de acordo com os dados do IBGE de 2007, os cultivos em áreas de
sequeiro, isto é, que dependem das chuvas sazonais, como milho, feijão e mandioca, são
os maiores destaques na produção agrícola dos municípios vizinhos de Bom Jesus da
Lapa.
No cômputo geral, as economias que mais se aproximam de Bom Jesus da Lapa
são as de Paratinga e Carinhanha.
A arrecadação municipal de Bom Jesus da Lapa, no ano de 2005, foi de R$
31.352.004,80; em Paratinga alcançou R$ 18.714.195,62; em Carinhanha de CR$
16.188.871,54; e Sítio do Mato arrecadou, apenas, R$ 9.632.023,40 no ano. A dimensão
das economias desses municípios está expressa também no número de servidores
municipais. A prefeitura de Bom Jesus da Lapa emprega 1.771 servidores públicos;
Paratinga, 1.163; Carinhanha 849; e Sítio do Mato, apenas, 683 servidores.
De acordo com o IBGE, na área de saúde, Bom Jesus da Lapa dispõe de 129 leitos
(sendo 121 disponíveis para o SUS); Carinhanha 50 leitos (todos disponíveis para o
SUS); Paratinga 36 leitos (36 para o SUS) e Sítio do Mato apenas 02 leitos (02 para o
SUS).
Na educação, em 2005, de acordo com dados do IBGE, Bom Jesus da Lapa
dispunha, no meio urbano e rural, de 108 estabelecimentos municipais de ensino
(Jovens e Adultos, Educação Infantil e Fundamental) e 22 particulares; no Ensino
Médio, foram identificados 04 estabelecimentos estaduais e 04 particulares.
Em Carinhanha, nos meios urbano e rural, havia 89 estabelecimentos municipais
de ensino (Jovens e Adultos, Educação Infantil e Fundamental), 05 particulares e 08
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67
Municípios IDH
1991 2000
Bom Jesus da Lapa 0,554 0,654
Paratinga 0,483 0,617
Carinhanha 0,486 0,607
Sítio do Mato 0,491 0,6
Dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD.
Capítulo II
As informações contidas nas fontes escritas tanto quanto aquelas originadas das
narrativas orais indicam que as comunidades negras rurais quilombolas que margeiam o
Médio São Francisco se formaram entre os séculos XVIII e XIX. Refiro-me aos grupos
étnicos negros que reivindicam do Estado brasileiro o direito de terem as suas terras
tituladas como “remanescentes de quilombos”, de acordo com o que prevê o Art. 68 dos
Atos e Disposições Constitucionais Provisórias da Constituição Federal e outros
dispositivos infraconstitucionais. Enquadram-se, nesta categoria, as comunidades de
Tomé Nunes e Pau D’arco/Parateca (ambas no município de Malhada), Barra do
Parateca (Carinhanha), Rio das Rãs, Batalhinha, Araçá/Cariacá e Lagoa do Peixe (Bom
Jesus da Lapa) e Mangal/Barro Vermelho (Sítio do Mato). Não há informação histórica
documentada de que maneira a maior parte dessas comunidades se formou na região; a
maior parte dos dados sobre as suas histórias são originados de relatos orais.
Alguns indícios, estes sugeridos pela historiografia referida no Capítulo anterior,
indicam que as comunidades foram constituídas a partir de fugas dos africanos
escravizados e de seus descendentes, quando estavam sendo transportados no século
XVIII do Nordeste para serem vendidos para os exploradores das minas de ouro na
província de Minas Gerais, e servirem como mão de obra nas fazendas de café na
província de São Paulo, em meio à crise de produção açucareira na Bahia e em
Pernambuco. Outras indicam que muitos escravizados evadiram quando estavam sendo
levados em comboios, de Salvador e Ilhéus, em direção à exploração do Oeste da Bahia,
para fixação dos limites territoriais das sesmarias das famílias D’Ávila e Guedes de
Brito, os pioneiros na criação de gado nessa região. De acordo com Tavares, os
“colonos chegaram ao sertão do Rio São Francisco na segunda metade do século
XVI.”156
156
TAVARES, Luis Henrique Dias. História da Bahia. 8. Ed. São Paulo: Editora Ática, 1987, p. 90.
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69
157
CARVALHO, José Jorge de Et. Ali. Laudo Antropológico Sobre a Comunidade Negra Rural de Rio
das Rãs. Digitado: Brasília, 1993, p. 31.
158
Op. Cit. p. 53.
159
SOUZA, José Evangelista de, ALMEIDA, João Carlos Deschamps de. O Mucambo do Rio das Rãs –
um modelo de resistência negra. Bom Jesus da Lapa: Impressão Arte e Movimento, 1994, p. 35.
160
Cf. também: SOUZA, José Evangelista de, ALMEIDA. Coronéis no Médio São Francisco – fatos e
histórias. 2. Ed. Santana – Bahia: Editora AJASS, 2007.
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70
maneiras, constituindo uma rede de relações sociais. Formavam, de fato, uma espécie de
território quilombola.
A concepção pós-moderna de Muniz Sodré sobre território nos ajuda a entender a
idéia de território quilombola como um espaço capaz de “engendrar regimes de
relacionamento, relações de proximidade e de distância.”161 O oposto dos “não-lugares”,
na acepção de Augé, na qual a antropologia da pós-modernidade tenta, no presente,
descrever relações em espaços de transição ou de acelerada circulação de pessoas.
A noção de território quilombola aqui proposto deve ser pensado como um
espaço “identitário, relacional e histórico...”162. Segundo Marc Augé, o “que é
significativo na experiência do não-lugar é a sua força de atração, inversamente
proporcional à atração territorial, ao peso do lugar e da tradição.”163
O território quilombola deve ser compreendido como um espaço social que
engendra relacionamentos sociais, aproxima indivíduos distantes entre si e segregados
em territórios específicos pelas imensas dificuldades de comunicação no meio rural.
Os obstáculos geográficos, entretanto, não impediram que indivíduos de
comunidades distantes e aparentemente isoladas compartilhassem histórias comuns de
sofrimentos durante a escravidão e, posteriormente, como agregados de grandes
fazendeiros. Essas populações do Médio São Francisco se aproximaram através de
alianças matrimoniais e pela criação de redes informais de vizinhança e compadrio.
As trocas matrimoniais entre as diferentes famílias do referido território
possibilitaram a conformação de parentelas poderosas nos espaços conquistados. Essa
aproximação entre os quilombolas das mais variadas procedências foi decisiva para a
construção de uma consciência comunitária de que todos faziam parte de um território
quilombola, no sentido demonstrado por Max Weber, em que a crença na afinidade de
origem “pode existir e desenvolver uma força criadora de comunidade...”164
É possível identificar elementos culturais desses contatos e trocas entre as dezenas
de comunidades negras rurais da região.
Quando enfrentavam o conflito pela posse da terra, na década de noventa do
século passado, lideranças do quilombo de Mangal procuraram apoio e orientação dos
seus patrícios do quilombo de Rio das Rãs. Pela ajuda política recebida, os mangazeiros
se dizem “filhos” de Rio das Rãs.
161
Ibidem, p. 61.
162
AUGÉ, Marc. Não-Lugares – Introdução a uma antropologia da supermodernidade. 2. ed. Campinas:
Papirus, 2001, p. 73.
163
Op. Cit. p. 108/9.
164
WEBER, Max. Economia e Sociedade. 3. ed. V. I Brasília: Editora UNB, 1994, p. 270.
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71
A história da família de Simplício Arcanjo Rodrigues (48 anos), uma das mais
destacadas lideranças de Rio das Rãs, é outro exemplo dos contatos e das relações
antigas e diversificadas entre os quilombos da região e abrangem uma pluralidade de
localidades e experiências.
O avô de Simplício Arcanjo Rodrigues, Sr. Francisco Rodrigues Lima, nasceu em
1890, no pequeno povoado negro conhecido como Barreiro Grande, situado na margem
esquerda do Rio São Francisco, no atual município de Serra do Ramalho. A sua avó,
dona Rosa Vieira Lima, nasceu na localidade rural de Campinas, município de Riacho
de Santana. Dona Anita Rodrigues Lima, uma das filhas desse casal, e mãe de
Simplício, nasceu no povoado de Capão, no mesmo município de Serra do Ramalho.
Uma parte dos filhos do casal Francisco e Rosa Lima foi parar em Rio das Rãs e, neste
quilombo, constituíram uma parentela forte e influente.
Simplício é da geração dos Rodrigues já nascida em Rio das Rãs. A sua esposa,
Paulina Souza Rodrigues (47 anos), entretanto, nasceu na Barra do Pau Preto, no
município de Palmas do Monte Alto, ao Sul de Bom Jesus da Lapa. Neste mesmo local
teria nascido dona Domingas Souza, mãe de Paulina. O pai de Paulina Rodrigues, o
Senhor Auto Osório de Souza (88 anos), por sua vez, nasceu na localidade de Cedro, em
Riacho de Santana, à Leste de Bom Jesus da Lapa. Mas, a família do senhor Auto
Osório é procedente do quilombo de Tomé Nunes, no município de Malhada, Sudoeste
de Bom Jesus da Lapa.
Chama atenção o fato de os indivíduos envolvidos nesta intrincada relação serem
procedentes de pequenos povoados negros; segundo, os personagens centrais desse
relato (Simplício Arcanjo Rodrigues e sua esposa, Paulina Rodrigues, ambos nascidos
em Rio das Rãs, e os pais desta, Auto de Souza e sua esposa, Domingas Souza) residem
lado a lado, no mesmo terreno, na localidade da Brasileira, em Rio das Rãs.
Esse extraordinário encontro de diferentes gerações e experiências somente foi
possível pela existência de um território quilombola de múltiplas relações – históricas,
étnicas e culturais – que os aproximou.
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Na entrevista que fiz na comunidade negra de Tomé Nunes com a senhora Maria Dias
do Rosário (74 anos), líder de um modesto terreiro de Jurema, ela me garantiu que o
lendário Francisco Arcanjo de Souza (Chico Tomé) – a mais destacada liderança de Rio das
Rãs durante o conflito pela posse da terra, nascido no quilombo em 1894 e falecido em
2003, com 107 anos165 – seria descendente da família de Joaquim Crioulo, nascido nesta
comunidade, no município de Malhada.
De acordo com a comovida narrativa de dona Raimunda Maria da Conceição, já
falecida, antiga moradora de Capão do Cedro, uma das localidades de Rio das Rãs, os
negros livres que foram reescravizados no Mucambo, no século XIX, saíam furtivamente
nos finais de semana para ir beber pinga e sambar nos povoados de Capim da Raiz e
Parateca, ambos situados no município de Malhada. Segundo o relato de dona Raimunda,
os escravizados do Mucambo burlavam os senhores de escravos:
“Saía de noite pela janela da casa e pá [para] chegar também de noite. Furava esse trecho todo, dava
mais de três léguas, para farriar, sambar, farriar e chegar encontrá os patrão deitado, pra nunca sonhar
que eles saiu de noite.”166
Foi a partir desse período que se estreitaram os laços que unem os quilombos de Rio
das Rãs e Parateca, inclusive através das relações de solidariedade que unem os parentes
nos dois lados.
As narrativas sobre o surgimento do Mangal/Barro Vermelho indicam também que os
grupos originalmente formadores do quilombo foram compelidos a buscar alianças
matrimoniais fora do território, como opção para enfrentar a escassez de mulheres.
Essa difusa procedência dos diversos sujeitos que se cruzaram nas muitas formações
quilombolas da região demonstra a complexidade da constituição desses quilombos ao
longo da história e a necessidade que tiveram de estabelecer intensas trocas matrimoniais.
Nas genealogias de algumas parentelas de Rio das Rãs, nota-se que as relações incestuosas
no âmbito de famílias nucleares eram prática recorrente no passado, embora atualmente
sejam negadas ou escamoteadas. Outros indivíduos reconheceram com mais tranquilidade
165
O senhor Chico Tomé teria nascido em 1894 numa localidade de Rio das Rãs conhecida como Mucambo,
que teria sido, conforme o mito de origem, o local de onde originara o atual quilombo de Rio das Rãs. O seu
pai, de acordo com o registro de batismo da comarca de Bom Jesus da Lapa, nascera livre na mesma
localidade do Mucambo, em 1854. (v. Silva, 1997)
166
Idem, 1997.
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“as aventuras” que seus antepassados foram obrigados a experimentar, segundo alegam,
pela escassez de mulheres no quilombo de Rio das Rãs, no início da sua constituição.
A vastíssima rede de relações de parentesco aproximou os indivíduos dispersos no
território quilombola, fortaleceu os laços de solidariedade e contribuiu para potencializar a
resistência política e superar inúmeros obstáculos. E explica também porque os negros
permaneceram nessa região em meio às lutas, fugas, aquilombamentos, agenciamentos, e
negociações necessárias para garantir o domínio do território.
Além de homens e mulheres interessados em constituir novas famílias, circularam,
nesse território quilombola, valores e crenças que até hoje exercem uma enorme influência
para a manutenção da solidariedade entre os indivíduos. A religiosidade é um desses
valores. Os centros de Jurema que estão espalhados em Rio das Rãs, Parateca, Pau D’arco,
Barra do Parateca, Mangal e outros lugares recebem fiéis de toda essa rede quilombola. O
mais proeminente curador da região, o falecido Andrelino Francisco Xavier, de Rio das
Rãs, era querido e respeitado em todo o território. Constatei também que é significativa, no
imaginário das populações quilombolas, a crença na feitiçaria.
Outro valor cultural presente no território é a convicção quanto à origem comum dos
diferentes grupos quilombolas, o que serviu, circunstancialmente, para que as populações
negras da região incorporassem a identidade política de “remanescentes de quilombos”, que
é uma das pré-condições institucionais para que o Estado brasileiro titule os territórios
quilombolas.
Essa rede social no interior de um espaço geográfico de múltiplas relações –
históricas, étnicas, religiosas e políticas – possibilitou a interação de formações
quilombolas e de pequenos povoados negros que se formaram ainda no período da
escravidão, e conformou aquilo que estou chamando de território quilombola do Médio
São Francisco. A idéia de território é adotada aqui no sentido proposto por Marc Augé e
citado por José Carlos dos Anjos:
“[O território] é definido, primeiramente, como o lugar do ‘em casa’, o lugar da identidade partilhada,
o lugar comum àqueles que, ao habitá-los juntos, são identificados como tais por aqueles que nele não
habitam.”167
167
ANJOS, José Carlos Gomes dos. Identidade Étnica e Territorialidade. In ANJOS, José Carlos Gomes dos
SILVA, Sérgio Baptista da (Orgs.). São Miguel e Rincão dos Martinicanos – ancestralidade negra e direitos
territoriais. Porto Alegre/Brasília: URGS Editora/MINC/FCP, 2004, p. 63.
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75
“A vida cotidiana apresenta-se como uma realidade interpretada pelos homens e subjetivamente dotada
de sentido para eles na medida em que forma um mundo coerente.”169
168
GIDDENS, Anthony. A Constituição da Sociedade. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. XXVII.
169
BERGER, Peter L., LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. 18. ed. Petrópolis: Vozes,
1999, p. 35.
170
Idem, p. 35.
171
SOROKIN, Pitirim A. Sociedade, Cultura e Personalidade: sua estrutura e dinâmica – Sistema de
Sociologia Geral. Porto Alegre: Editora Globo, V. I, 1968, p. 308.
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O termo comunidade tem esse sentido indicado por Sorokin, em que os indivíduos
desenvolvem uma percepção na qual o uso do espaço territorial comum os obriga a
compartilhar vínculos que são de uma mesma ordem de interesses. O que não significa
inexistir disputas e interpretações opostas sobre os processos sociais, envolvendo interesses
coletivos e individuais, e as ações egoístas dos feiticeiros é exemplar neste sentido. A
motivação deles, feiticeiros, está calcada na concepção weberiana de que o agente, ao fazer
as suas opções, “constitui a ‘razão’ de um comportamento quanto ao seu sentido.”172
A ocorrência de uma ação comunitária como as que se verificam no âmbito do
território quilombola, portanto, não invalida e nem impede a ação dos indivíduos, muitas
vezes com a intenção de desafiar até mesmo os hábitos mais consagrados socialmente, por
isso a ação dos feiticeiros é, neste sentido, exemplar. Max Weber, embora acredite na
existência de convenções sociais que inibam os “comportamentos discordantes”, não deixa
dúvida de que uma totalidade social pode ficar refém de agentes portadores de certos
poderes especiais:
“O medo de danos de origem mágica fortalecem a inibição psíquica diante de toda mudança nas
formas habituais de comportamento, e os vários interesses, que costumam estar vinculados à
manutenção da submissão à ordem vigente, atuam no sentido da conservação dessa ordem.”173
“[O fato de se conceber a] comunidade de vizinhos [como] a sede típica da ‘fraternidade’ não significa,
naturalmente, que entre vizinhos costume reger uma relação ‘fraternal’. Ao contrário: quando a
conduta postulada pela ética popular torna-se impossível devido a uma inimizade pessoal ou conflitos
de interesses, a rivalidade assim nascida costuma assumir formas particularmente agudas e
persistentes...”174
172
WEBER, Max. Economia e Sociedade, p. 8.
173
Op. Cit. p. 23.
174
Idem, p. 248.
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77
175
JOAS, Hans. Interacionismo Simbólico. In GIDDENS, Anthony, TURNER, Jonathan (Org.) Teoria Social
hoje. São Paulo: Editora UNESP, 1999, p. 153.
176
GIDDENS, Anthony. A Constituição da Sociedade, p. 10/11.
177
Op. Cit. p. 19.
178
Idem, p. 31.
179
ORTIZ, Renato. Introdução. In ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu – Sociologia. 2. ed. São Paulo:
Editora Ática, 1994, p. 15
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78
consequências do que fazem em suas vidas cotidianas.”180 Para Bourdieu, ao contrário, isso
não ocorre, justamente, “porque os sujeitos não sabem, propriamente falando, o que fazem,
que o que eles fazem tem mais sentido do que eles sabem.”181
No sentido sugerido por Giddens, em que é possível equilibrar estrutura social e ação
dos sujeitos, pode-se afirmar que a manifestação dos negros em volta do Santuário do Bom
Jesus em junho de 1888, conforme foi descrito no Capítulo I, para celebrar o término da
escravidão, foi um ato político consciente. E, sem que eles tivessem previsão das
consequências dessa manifestação, o evento se tornou um ato político fundador do
território quilombola.
180
GIDDENS, Anthony. A Constituição da Sociedade, p. 331.
181
BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In ORTIZ, 1994, p. 15
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79
Agricultura de sequeiro
A agricultura é a mais destacada das atividades econômicas nos quilombos de Rio das
Rãs e Mangal. Nos períodos das chuvas regulares que incidem na região, entre os meses de
outubro e março, os quilombolas plantam feijão macassar, milho, mandioca, abóbora e
melancia nas partes altas de suas terras (capão) às margens de Rio São Francisco. O êxito
dessa modalidade de agricultura, chamada de sequeiro, “depende de chover no tempo
certo”, isto é, logo depois da preparação do solo em outubro e nos meses subsequentes.
Somente assim, é possível garantir a germinação, o crescimento e a floração das plantas. Os
três principais plantios da agricultura de sequeiro são o feijão, a mandioca e o milho,
fundamentais para a alimentação das famílias ao longo do ano e para complementar, no
caso do milho, a ração das galinhas e dos porcos no período de estiagem, entre junho e
novembro.
O segundo fator para o êxito da agricultura de sequeiro é a disponibilidade de mão de
obra familiar. Cada unidade familiar precisa dispor de muitos braços e disposição para
preparar o solo em uma área de terra suficiente para suprir as necessidades de alimentação
da família. Essa mão de obra será também fundamental para cuidar das plantas na fase de
crescimento, combater as doenças e pragas eventuais, e “colher no tempo certo”.
A unidade familiar precisa, também, dispor de sementes. Normalmente, o agricultor
previdente reserva, da safra anterior, uma quantidade de grãos para o plantio do ano
seguinte, já que não é costume entre eles comprar, no mercado, sementes melhoradas ou
selecionadas para o plantio de sequeiro. Serão enormes as perdas na safra de sequeiro
quando acontece que no momento decisivo do plantio o produtor não disponha de sementes
suficientes para a área preparada previamente.
O último fator para o sucesso do plantio de sequeiro é a não incidência de alguma
praga desconhecida da experiência dos quilombolas ou a indisponibilidade de defensivos
para combatê-las. Não é incomum a adoção de práticas mágicas (rezas, simpatias e
trabalhos encomendados a curadores) para proteger as plantações. Esse recurso pode ser
adotado para proteger as roças contra o ataque de olho grande, inveja e quebranto, como
também para combater pragas e doenças que se supõe terem sido causadas de forma natural
ou por terem sido enviadas por alguém com má intenção.
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80
Agricultura de vazante
agricultura de sequeiro com o plantio de áreas mais extensas. Além de cultivar uma área
mais extensa no sequeiro, eles complementam a atividade agrícola com o plantio na
limitada e estreita faixa de vazante do rio das Rãs (ver mapa). A alegação de não terem
lotes na vazante do São Francisco é de que a distância de trinta a quarenta quilômetros não
compensa cuidar de plantações nas ilhas e margens do rio.
Mas, o fato de haver solos mais férteis e a umidade garantida pela cheia do rio S.
Francisco não garantem, a priori, que as colheitas da vazante serão exitosas. Acontece
muitas vezes o rio esvaziar rapidamente e os quilombolas serem obrigados a plantar para
aproveitar a umidade. Neste caso, o rio não voltando a encher, pode-se ter uma boa safra.
Mas, pode acontecer de o rio vazar e voltar a subir, em um curto espaço de tempo, o que
depende da regularidade e intensidade das chuvas nas nascentes do São Francisco; nesta
situação, toda plantação pode ficar inundada e as perdas são totais. Quando ocorre o
agricultor dispor de mais sementes e mão de obra para fazer um novo plantio, há
possibilidade de reduzir as perdas com mais trabalho.
Outro fator que pode prejudicar os resultados de uma safra na vazante é o ataque de
pragas, ratos, gafanhotos ou o crescimento desordenado de alguns tipos de capim que
inibem o crescimento das plantas. Como ultimamente tem sido mais rigorosa a fiscalização
no uso de agrotóxico no rio São Francisco, a vulnerabilidade aumenta nos plantios de
vazante.
Do que foi possível constatar nos últimos dezesseis anos de observação nos dois
quilombos, os quase dois terços das seiscentas famílias de quilombolas de Rio das Rãs,
exceto as que moram nas localidades do Mucambo, Capão do Cedro e Enchu, que são
distantes do São Francisco, (Ver mapa de Leonaldo Carvalho na página seguinte) e a
totalidade das cento e cinquenta famílias de Mangal consideram que a agricultura da
vazante é a mais confiável para a sustentação de suas famílias.
A área plantada em Mangal e Rio das Rãs – entre dois a cinco hectares por família –
não é tão significativa ao se comparar com os padrões de uma agricultura comercial,
mesmo que seja de perfil familiar. A média de área plantada, sobretudo em Rio das Rãs, no
passado já foi, contudo, maior.
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82
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83
A fracassada experiência nos últimos dez anos de crédito bancário para o plantio e a
criação de gado, em Rio das Rãs e em Mangal, tendo como consequência o endividamento
geral dos moradores dos dois quilombos, parece ter influenciado negativamente a
motivação para se aumentar à área plantada.
Antes dessa experiência de financiamento bancário para a criação de gado bovino,
quando os territórios quilombolas não tinham ainda sido titulados, somente os antigos
vaqueiros e empregados tinham permissão para criar. Tratados como “agregados”, a maior
parte não podia criar gado bovino.
Embora a experiência de criação de gado bovino tenha sido um fracasso, por ter
resultado na inadimplência generalizada dos quilombolas de Rio das Rãs e Mangal, aquelas
famílias que souberam utilizar os empréstimos de modo mais prudente conseguiram formar
um rebanho expressivo. Hoje, é possível tomar leite fresco nas duas comunidades
praticamente todos os dias, e uma vez ou mais por semana se abate gado para a
comercialização de carne fresca nos dois quilombos. No mês de junho de 2009, em que
estive em Rio das Rãs para complementar a minha pesquisa de campo, em um só dia, fui
convidado para duas festas em que o prato servido era justamente o churrasco. Nos trinta
dias em que permaneci em Mangal, tive a oportunidade de ser convidado para comer
churrasco uma vez. Esses dois exemplos são significativos, pois não era tão comum o
consumo de carne de gado fresca, a não ser em ocasiões muito especiais, como na
comemoração dos 100 anos do Sr. Chico Tomé, em 1994, ou na festa para a entrega do
título da terra de Rio das Rãs, em 1989. Esses exemplos indicam o aumento do consumo da
carne de gado e é também um expressivo indicador da melhoria da renda dos quilombolas.
Porém, o aumento do poder de compra dos quilombolas, entretanto, de acordo com a
minha hipótese, não decorre principalmente da elevação da produtividade na agricultura, e
sim de outros fatores econômicos que serão explicitados a seguir.
Mesmo havendo uma diminuição geral da área plantada no quilombo de Rio das Rãs,
e sendo notável a diminuição da importância da agricultura na economia do quilombo,
nota-se uma enorme discrepância no tamanho das áreas plantadas e quanto aos cuidados
dispensados às roças. Ao tentar entender as motivações dos quilombolas para cuidar de suas
roças, cheguei à conclusão de que o interesse deles pela agricultura está vinculado aos
diferentes e conflitantes códigos morais e culturais que circulam no quilombo.
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84
O Sr. Celso Nunes de Souza (78 anos), um dos mais antigos e respeitáveis moradores
do quilombo, embora atribua aos dirigentes da Associação Agro-Pastoril Quilombola Rio
das Rãs parte da responsabilidade pelo desânimo generalizado em se investir mais na
agricultura, por estes serem considerados os principais responsáveis pelo endividamento da
comunidade junto aos bancos, por outro lado, não poupa os próprios quilombolas pela falta
de iniciativa em expandir as suas áreas cultivadas. Diz ele:
“De bom nós só tem as casa e a terra. Que a terra taí liberada, só falta quem trabalhe. Que tem gente aí
que... Gente moderna, pai de famia, que passa o dia inteirinho deitado não quer fazer nadinha. Não sei
nem como é que veve aí não.”
“Eu mermo tenho uns parente aqui, mora aqui pertinho aqui, um chama M. trata ele de M., parente por
parte de meu pai. Esse home tem uns fio [filho] aqui que num faz nadinha! Home tem um fio dele aí
que eu não sei nem como é que tá viveno. Porque só um fio sozinho, pegou uma muiézinha aí, já tem
cinco fio. E esse moço num tem nada. Recebeu essas vaca aí, num tem mais uma cabeça. E não faz
nada. Não planta um pé de abroba, não planta nem um pé de cabaça ela planta que é mais fácil. E eu
nem sei nem como tá viveno.”
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85
“Você vê a pessoa jovem, quando ele não quer trabaiá, ele dá... Ele alguma coisa ele vai dar. Ele dá pra
mentir ou dá pra roubar e é com certeza, que se ele num trabaia como é que veve? Ele tem de roubar
ou então mentir, adquirir as coisas com mentira.”
Esse ponto de vista do senhor Celso, é expressivo de uma idéia de que o principal
fracasso na lavoura é resultante da falta de investimento no trabalho como construtor de
riquezas. É uma avaliação que considera o trabalho o mais importante fator para o declínio
das atividades agrícolas no quilombo e, não necessariamente, o mau exemplo da
administração dos diretores da Associação.
“Esta condenação do assalariamento (macaqueiro) como trabalho não honroso socialmente pode estar
também vinculado ao ideal de trabalho que privilegia as atividades que fortalecem os laços internos de
parentesco e coesão familiar.”182
Nos discursos dos quilombolas de Rio das Rãs o trabalho na roça familiar continua
sendo o principal referente para a reprodução social das famílias da comunidade, embora
sem a mesma ênfase do passado.
A diversificação na composição da renda familiar certamente contribuiu para a
redução das expectativas nas atividades da agricultura. A outra explicação é a de que os
jovens prefiram vender a força de trabalho nos canaviais do município de Barreiras, em São
Paulo e em Goiás, mesmo sendo o trabalho temporário, extenuante, perigoso e, portanto,
precário sob muitos aspectos, inclusive sendo comum o uso de drogas para aumentar a
resistência física. Os mais velhos, entretanto, argumentam que falta disposição para o
trabalho aos jovens que buscam o assalariamento nas fazendas fora do quilombo.
Geraldo Pereira da Silva (63 anos), de Rio das Rãs, não deixa dúvidas quanto à
importância do trabalho produtivo em sua roça: “o espírito [dos mais jovens] é fraco pra
trabalho [...] Ele prossegue, eu “tou com 61 anos, mas graças a Deus todo ano vinte, trinta
saco de feijão, quarenta saco de farinha eu tenho, todo ano.”
O sentimento de que o trabalho da roça seja o criador de riquezas e a base da
sustentação da família é parte de uma concepção cultural que considera indigno o indivíduo
dispor de terra ser obrigado a vender a sua força de trabalho para outrem. De conformidade
com essa perspectiva moral, os quilombolas, ao se receberem uma visita, devem dispor em
sua casa de algo para ser oferecido como fruto do seu trabalho. Quando a visita é
inesperada, a família deverá ter algum recurso de reserva, como uma galinha no quintal,
que será transformada em alimento para servir ao visitante. Neste caso, o trabalho é visto
como um valor que produz a riqueza mais básica, que é a alimentação.
182
SILVA, Valdélio Santos. Do Mucambo do Pau Preto à Rio das Rãs – liberdade e escravidão na construção
da identidade negra de um quilombo contemporâneo. Dissertação de Mestrado defendida na UFBA, 1997, p.
97.
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87
Por ter sido historicamente imprensado em uma estreita faixa de terra de cerca de 150
hectares, doada por Deltrudes no século XIX, história que será mais detalhada no Capítulo
V, os quilombolas de Mangal se acostumaram a plantar quase exclusivamente na vazante e
reservar a criação para os capões mais altos da caatinga.
Em Mangal, em virtude da exiguidade das terras e do curto tempo disponível entre o
plantio e a colheita no plantio de vazante, os lotes são pequenos, alguns não chegam a um
hectare. Mas, pela extraordinária fertilidade das terras a produtividade é elevada, e é nesse
espaço que os quilombolas plantam feijão, mandioca e milho, as culturas mais importantes
para o sustento de suas famílias.
Nos quintais das residências do povoado, onde foram construídas as escolas e as
poucas casas de comércio do quilombo, eles plantam mandioca de sequeiro para ser
transformada em farinha. Sobressai também, nos quintais, uma enorme variedade de
fruteiras, a exemplo de mamão, manga, acerola, banana, hortaliças, plantas medicinais e de
proteção contra mau olhado e feitiço, assim como uma grande variedade de plantas
ornamentais.
Impressiona o zelo com que as mulheres do Mangal cuidam desses quintais. Na
minha estadia na comunidade, durante o mês de junho de 2009, em um período
marcadamente seco na região, tomei suco quase todos os dias na casa do meu hospedeiro.
Isso não é comum em Rio das Rãs, mesmo depois da instalação de uma rede de água
encanada abastecida por poços artesianos.
Criação
Quintal no Mangal
que se tornaram “agregados”. Em comparação com os quilombolas de Rio das Rãs, eles não
precisavam fazer vaquejador, pois a topografia do Mangal não permitia ser o gado criado
nas vazantes expostas às cheias.
A criação e o manejo de gado bovino em larga escala pelo conjunto dos quilombolas
de Rio das Rãs e Mangal, portanto, ocorreram após os conflitos que redundaram na
titulação de suas terras.
Após as terras serem legalizadas, foi possível às Associações de Rio das Rãs e
Mangal ter acesso aos empréstimos bancários e à consequente compra de uma grande
quantidade de gado bovino. Somente para se ter uma idéia, “a comunidade de Rio das Rãs
constituiu um rebanho, em pouco mais de dois anos, desde o fim do conflito com o
fazendeiro invasor, de aproximadamente 10,5 mil cabeças de gado, aí incluído o gado dos
moradores que não foram mortos no período do conflito.”183
A criação de gado bovino em tão larga escala resultou em um desgastante processo de
enfraquecimento da Associação. Primeiro, porque os criadores individuais que compraram
gado não saldaram as suas dívidas e, com isso, toda a responsabilidade recaiu sobre a
Associação, que era a avalista das compras. Segundo, uma parte do rebanho era
administrada pela própria Associação, com a finalidade de fazer capital para reinvestir na
comunidade em atividades que fortalecessem a sua economia. Esse modelo centralizado,
além de ter fracassado por dificuldades de administração, de acordo com inúmeras
avaliações dos próprios quilombolas das quais tive a oportunidade de participar, entre 1999
e 2003, favoreceu o aparecimento de ladrões de gado. Resultado: a Associação e os
quilombolas de Rio das Rãs, ainda hoje, estão impedidos de tomar empréstimos ou fazer
qualquer outra transação bancária.
Embora o ambiente social estivesse no ano de 2009 mais distensionado, tive
oportunidade de presenciar momentos de grandes tensões e tumultos envolvendo acusações
entre os quilombolas e, sobretudo, contra as diretorias da Associação que administraram o
período compreendido entre 1998 e 2008.
No quilombo de Mangal/Barro Vermelho, essa mesma orientação de comprar gado
em larga escala foi adotada depois que suas terras foram tituladas em 1998, logo depois de
183
Silva, Valdélio Santos. Os novos desafios dos quilombos contemporâneos. Revista CEPAIA Realidades
Afro-Indígenas. Centro de Estudos das Populações Afro-Indo Americanas, Ano 1, V. 1, Nº 1, dezembro de
2001, p. 71.
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Rio das Rãs ter conquistado esse direito. Influenciado pelo mesmo técnico agrícola que
elaborou o modelo de administração do rebanho adotado em Rio das Rãs, uma parte do
gado era entregue individualmente a cada quilombola e a outra parte era criada
centralizadamente pela Associação. Mas, em Mangal, não houve a ocorrência de roubo de
gado.
O quilombo de Mangal não se livrou, entretanto, dos mesmos problemas com o
modelo de administração que fracassara em Rio das Rãs e, assim, foi inevitável que a
inadimplência atingisse todos os quilombolas, já que a Associação fora, da mesma forma, a
fiadora das aquisições individuais. A vantagem de Mangal é que eles ainda dispõem de uma
boa quantidade de gado de propriedade da Associação que, segundo o seu presidente,
Deraldo Lobo dos Santos, é suficiente para saldar o total ou parte considerável da dívida
contraída com o Banco do Brasil, ao contrário da Associação de Rio das Rãs, que não
possui mais nenhum bem que possa oferecer numa negociação com os credores.
O gosto pela criação de gado bovino em Rio das Rãs e Mangal, ainda que tenha sido
marcado por esse processo conflituoso, terminou se estendendo para praticamente todos os
moradores nos dois quilombos, e o gado é parte das paisagens nesses quilombos.
Deve-se assinalar que, mesmo durante a fase na qual Rio das Rãs era tido pelo
fazendeiro como um povoado de “agregados”, uns poucos moradores mais precavidos e
corajosos criavam algumas cabeças de gado.
Esses indivíduos tinham sido vaqueiros do fazendeiro ou simplesmente pessoas que
queriam desafiar as imposições de não se criar gado bovino no território que diziam lhe
pertencer. Nos momentos mais críticos dos conflitos pela posse da terra, entre as violências
cometidas contra os quilombolas, era comum a matança do gado dos que tentavam desafiar
o fazendeiro.
Cessados os conflitos, a criação de gado se disseminou em Rio das Rãs e em Mangal.
A maior parte dos moradores das duas comunidades tem a sua “vaca de leite”. Alguns
possuem um rebanho maior, de 20, 30 e até 80 cabeças de gado. Outros possuem apenas
uma vaca e poucos novilhos, o que é suficiente para terem leite fresco nos períodos de
maior abundância de pasto.
Além do gado bovino, é significativa a criação de caprinos e ovinos em Mangal/Barro
Vermelho. No quilombo, a maior parte das famílias tem um pequeno rebanho que é cuidado
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pelas mulheres, de acordo com os hábitos locais, diferente do gado bovino manejado
exclusivamente pelos homens.
Em Rio das Rãs, a criação de ovinos e caprinos é residual, com um rebanho que não
deve ultrapassar 100 animais, é circunscrita à localidade de Retiro. A explicação dos
quilombolas da comunidade para o pequeno rebanho é que a criação de caprinos e ovinos
exige a construção de cercas de arame reforçada por um madeirame que proteja as roças
dos animais, porém, não tem havido consenso entre os quilombolas para construir tais
cercas. Como a entrada de cabras, bodes e ovelhas nas roças já foi ensejadora de conflitos
entre vizinhos, a opção foi reduzir drasticamente a criação desses animais, com exceção da
localidade do Retiro, (Ver mapa de Leonaldo Carvalho na página seguinte) que fica em
uma área mais afastada dos principais povoados de maior concentração dos moradores do
quilombo.
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“Olhe Valdélio, [no passado] era melhor porque a gente tinha o privilégio de criar cabra, ovelha, o
mesmo tempo nas frentes das casas, porque era aquele cercado. Depois que o Carlos Bonfim chegou
aqui, foi destruindo a madeira, como você tem conhecimento disso, foi tirada. Hoje não [tem] nem
como contar as carretas de madeira que ele tirou. Então nós sabemos que a madeira aqui mais forte,
pra aguentar o quintal, dificuldade de carregar tanta pra cercar é aroeira, então foi essa que mais ele
tirou daqui de nós, foi essa madeira.”
A pesca
A pesca em Mangal e em Rio das Rãs é outra atividade de grande peso na economia
destes quilombos. Como os quilombolas destas comunidades sempre viveram às margens
do Rio São Francisco, a atividade pesqueira tornou-se parte de uma tradição que vem dos
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94
ancestrais das atuais populações. Ainda que a piscosidade do São Francisco tenha
diminuído, por uma série de fatores184, e o número de pescadores nos dois quilombos seja
relativamente pequeno, comparativamente ao número de produtores que se dedicam à
agricultura, isso não implica que a pesca seja menos importante para a economia e a
alimentação dos quilombolas. O peixe, além de ser uma fonte de proteínas
comparativamente mais barata – os custos de produção incluem anzóis, linhas, redes,
canoa, tempo e a mão de obra –, é uma alimentação muito apreciada por todos.
184
Técnicos, governantes e os próprios pescadores atribuem a diminuição da quantidade de pescado no Rio
São Francisco a fatores como a intensidade da pesca comercial em períodos de piracema, malgrado a intensa
fiscalização do IBAMA, a poluição do rio com o crescente despejo de dejetos urbanos, acentuada atividade de
irrigação que estaria diminuindo o volume de água do rio e de seus afluentes, além do assoreamento da calha
principal, em virtude do desmatamento das margens e nascentes do São Francisco e seus afluentes. Nem
sempre há acordo entre os sujeitos envolvidos quanto à solução desses e outros problemas identificados
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Mas, a arte de pescar não é fácil nem simples, muito pelo contrário, é uma atividade
desgastante e perigosa185. A pesca envolve também um grau de incerteza e risco muito
grande para os que prioritariamente a ela se dedicam.
Em Rio das Rãs existem cerca de quarenta pescadores profissionais ou com uma
ênfase maior na atividade de pesca: são indivíduos que possuem uma quantidade maior de
tralha de pesca (barco, redes variadas, locais apropriados para acondicionar o pescado) e
que pescam com regularidade, comercializando o pescado na comunidade e para
compradores de fora. Além dos pescadores considerados “profissionais”, os demais
quilombolas fazem da pesca uma forma de atividade para complementar a dieta alimentar.
A pesca nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal é realizada tanto no rio São
Francisco como também nas lagoas. Em Rio das Rãs, onde existem imensas e maravilhosas
lagoas, a safra de peixe, a depender da cheia do rio São Francisco, pode ser abundante.
determinados anos, de uma grande safra a surpreender a todos, sobretudo nas lagoas, como
aconteceu em 2007, após uma generosa cheia do rio São Francisco. Neste ano, o jovem
pescador de Rio das Rãs, Domingos Nunes de Souza (35 anos), exultava de alegria com a
fartura da pesca:
“Ela tá boa sim. Ela tá mais ou menos... Ela tá oitenta por cento bom. Porque todo lugar que você tá,
você tem peixe. Você tá no rio tem peixe, tá na lagoa, tem peixe. Tá mais ou menos oitenta por cento.”
E – Mas não tava tão bom algum tempo atrás não, né? Os pescadores com quem eu conversei
algum tempo atrás tavam se queixando muito. Isso melhorou já tem algum tempo ou foi esse ano
que teve uma cheia boa?
DNS – “Realmente foi esse ano agora pra cá que melhorou bastante. Porque teve uns anos atrás aí que
peixe tava ruim e mermo pra pegar. Difícil. Você pescava e num achava. E agora cum essa enchente
que deu aí, miorou bastante. Pega bastante peixe. Tá ruim só a vendage, o peixe ta ruim pra vender.
Sobre o preço.”
A fartura do pescado nas lagoas e no rio São Francisco impacta a economia dos
quilombolas com a comercialização do excedente, principalmente em Rio das Rãs, onde é
mais praticada a pesca profissional. A injeção de mais dinheiro no quilombo, com os lucros
dos pescadores profissionais, incentiva o comércio e as atividades de serviços. Por outro
lado, para quem tem a atividade pesqueira como complementar às outras atividades
produtivas, a abundância da safra de peixe diversifica e melhora a alimentação com
ingestão da proteína do pescado, que é saudável, mais barata e bastante apreciada pelos
quilombolas. Aos que não podem pescar, pela idade ou por não dispor das ferramentas de
pesca, o pescado em abundância tende a ser comercializado internamente a baixos preços, o
que não aborrece os pescadores profissionais, como Domingos.186 Como ele e os demais
colegas pescadores não vivem somente da pesca, a redução nos preços é compensada com
as outras atividades da roça e da criação. Domingos explica porque ele tem que desenvolver
outras atividades, além da pescaria:
“Não dá não. Porque tem o medicamento, tem outras coisa que precisa. O peixe não dá. Por dia eu
pego oito quilo de peixe. Aí chego vendo ele aqui. Oito quilo de peixe, só dá mermo pra comprar
186
Em maio de 2007 os preços praticados pelo referido pescador eram os seguintes: Traíra R$2,50 o quilo;
Surubim e Dourado R$3,00; Curimatá, R$2,00. Estes preços eram válidos para os comerciantes de Palmas do
Monte Alto, Guanambi, Bom Jesus da Lapa, Matinas e Riacho de Santana, que pegavam a mercadoria na
comunidade. Para isso, o mais comum é que os pescadores estoquem o pescado de alguns dias de trabalho em
um freezer para serem entregues aos comerciantes. A venda interna na comunidade era também com esses
preços, mas quem costuma vender para os moradores do quilombo são os pequenos pescadores que não
possuem freezer e vendem o peixe in natura, e por esse motivo, não estão categorizados como “profissionais”.
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alguma coisinha. Realmente só mermo pra ajudar. A pescaria falar que dá pra sustentar a casa num
dá.”
E – Além da pesca, então, o que é que você faz pra manter a família?
DNS – “Trabalhar a roça.”
E – Você planta o que, diga aí?
DNS – “Lá eu planto feijão, planto milho, planto abobra, melancia, todos... Planto mandioca. Esse ano
mermo eu plantei meio hectare de mandioca. A água de cheia foi que comeu. Mas eu plantei meio
hectare de mandioca. Mas todo ano eu planto. Que é as coisas que ajuda as despesa da casa, sabe?”
O que se observa em Rio das Rãs e Mangal é que, no curso da vida social, as escolhas
no âmbito da economia e em outras dimensões ocorrem tanto por influência da sua história
cultural como também por iniciativa dos sujeitos que constroem sua história cotidiana. Os
quilombolas não desconhecem a força dos hábitos tradicionais, mas, procuram adaptá-los
às circunstâncias que melhor sirvam às suas necessidades reais.
Berger e Luckmann estavam atentos à força desses condicionantes: toda “atividade
humana está sujeita ao hábito. Qualquer ação frequentemente repetida torna-se moldada em
um padrão...”187 Para os referidos autores, ao desempenhar papéis que lhe são transmitidos
pela sociedade, o sujeito termina por reconhecer e incorporar a realidade do mundo social.
Numa perspectiva semelhante, Sorokin argumenta que a função da família é
justamente a de inculcar “incessantemente idéias e crenças, gostos e simpatias, maneiras e
costumes.”188 Do ponto de vista desses dois autores, a margem de liberdade dos sujeitos
está contida nas regras estritas construídas pela tradição, e não haveria, dessa forma, como
fugir a tais determinações. Sorokin ainda concede ao sujeito “certa margem de seleção entre
valores e significados, mas só pode escolhê-los e criá-los com os materiais que lhe
oferecem o seu ambiente social e cultural.”189
Essa despersonalização e a incapacidade dos agentes agirem conscientemente são
criticadas por Giddens. Para ele, os “agentes ou atores humanos [...] têm, como aspecto
inerente do que fazem, a capacidade para entender o que fazem enquanto fazem.”190 É
desse modo que se faz a escolha da melhor estratégia, a que mais convém para sobreviver,
mesmo que seja em um ambiente ecológico, social e cultural marcadamente influenciado
por uma experiência no qual seja evidente a força da tradição. Não há, portanto, a anulação
do indivíduo no fluxo da vida social. Há, sim, uma há compatibilização entre o que ele
aprendeu no decorrer da vida e o que ele pode criar para ser um agente ativo no processo
social. A concepção de poder proposta por Giddens tem exatamente o sentido de ser “capaz
de ‘atuar de outro modo’, significa ser capaz de intervir no mundo, ou abster-se de tal
intervenção, com o efeito de influenciar um processo ou estado específico de coisas.”191
187
BERGER, Peter L., LUCKMANN, Thomas. p. 77.
188 188
SOROKIN, Pitirim A. Sociedade, Cultura e Personalidade, p. 386.
189
Op. Cit. p. 533.
190
GIDDENS, Anthony. A Constituição da Sociedade, p. XXV.
191
Idem, p. 17.
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É esse poder de agir em circunstâncias em que é possível fazer certas escolhas que
impulsiona os quilombolas de Mangal e Rio das Rãs, sobretudo neste último quilombo, a
buscarem a diversificação das atividades produtivas como estratégia mais apropriada para a
subsistência de suas famílias.
É importante assinalar que, historicamente, eles nunca entenderam as diferentes
atividades produtivas (agricultura, criação, pesca e coleta) como excludentes. Tais
atividades, de acordo com a experiência cultural que lhes foi transmitida pela tradição,
constituem uma totalidade articulada e complementar. Como os ciclos produtivos ocorrem
em tempos distintos ou numa simultaneidade em que é possível compatibilizar agricultura
de sequeiro de outubro a abril; agricultura de vazante, de maio a outubro; pesca no rio e nas
lagoas, entre julho e janeiro; e a criação durante todo o ano, ainda que a fase mais crítica da
alimentação do rebanho coincida com o período de seca, entre maio e novembro, as
escolhas das prioridades de cada família terminam tendo uma marcante influência do seu
aprendizado familiar, mas não anulam as habilidades individuais.
Foi desse modo que, mais recentemente, passou-se a criar gado bovino como uma
opção que não era tão significativa nessas comunidades. Neste caso, não há uma
contradição antagonizando os conhecimentos adquiridos pela experiência e a volição dos
sujeitos atuantes. Reitero, dessa forma, o argumento de Giddens: “o momento da produção
da ação é também um momento de reprodução nos contextos do desempenho cotidiano da
vida social...”192 Para o sociólogo inglês, a “estrutura não tem existência independente do
conhecimento que os agentes possuem a respeito do que fazem em sua atividade
cotidiana.”193
Para Giddens, seria ingenuidade pensar na idéia de volição incontida dos agentes. Isto
porque, ao mesmo tempo em que reconhece o papel do indivíduo no processo social, ele
condiciona e restringe a sua ação ao que lhe é “permitido” pelas circunstâncias históricas. É
desse modo que ele parece interpretar o famoso aforismo de Marx: a “tradição de todas as
gerações mortas pesa como um pesadelo sobre os cérebros dos vivos.”194 Para Giddens, que
parte da premissa de que os agentes são seres cognoscitivos, eles “possuem um
192
GIDDENS, p. 31.
193
Idem, p. 31.
194
Marx, Karl. O 18 Brumário de Luiz Bonaparte. In: Marx, Karl e ENGELS, Friedrich. Textos. V. III. São
Paulo: Edições Sociais, 1977.
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100
195
GIDDENS, Anthony. A Constituição da Sociedade, p. 331.
196
Idem, p. 333.
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101
referidos bens é vista como resultante do trabalho produtivo ou de uma dádiva especial
concedida por forças espirituais. Nos dois casos, a tendência desses indivíduos é a de serem
vistos de maneira reverencial. A elevação do status não é pelos bens materiais em si, que
eles possuem, e sim como consequência de que os seus possuidores os adquiriram através
do trabalho da roça, da criação de gado, de sua atividade pesqueira, pelos dons que
possuem ou como resultado do conjunto dessas virtudes.
Portanto, é o trabalho (manual e espiritual) que, em última instância, termina sendo o
componente mais destacado, do ponto de vista moral, para elevar o prestígio social dos
indivíduos. Os que “melhoram de vida” mediante o trabalho, passam a ser encarados como
pessoas respeitáveis e merecedoras de elevada honra, ainda que essa condição de
respeitabilidade não os isente de serem vítimas da inveja, da feitiçaria e de todo tipo de
energia negativa.
A descrição das atividades econômicas nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal, de
forma segmentada (agricultura, criação, pesca, comércio e serviços), resulta da intenção de
mostrar como se organiza a subsistência dos sujeitos e como as atividades estão distribuídas
no espaço físico do quilombo. Na prática cotidiana elas não são, como pode parecer,
fragmentadas e tampouco independentes entre si.
Na vida real quem comanda o “planejamento econômico” é o tempo que, por sua
vez, está intimamente associado ao espaço territorial e a imponderáveis aspectos ligados à
natureza, gerando: tempo da chuva, tempo da seca, tempo de plantar, tempo de pescar. Em
cada tempo, é possível compatibilizar aquilo que a natureza oferece com aquilo que os
indivíduos necessitam para se reproduzir fisicamente. Ao invés das atividades econômicas
fragmentadas orientarem as ações dos quilombolas para garantir a sua reprodução social –
como ocorre no meio urbano capitalista em que os assalariados são obrigados a vender a
sua força de trabalho para repor as energias de que precisam para se reproduzir –, o
indivíduo é orientado para a ação em sintonia com os fatores relacionados à natureza, o
tempo e o espaço, que oferecem as coordenadas de como ele deve agir.
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102
De acordo com essa lógica, não adianta planejar abstratamente se naquele ano será a
agricultura, a pecuária ou pesca a sua prioridade, em sua estratégia de reprodução.
Teoricamente, as três atividades, articuladamente, devem ser consideradas, e vai depender
de variáveis que os indivíduos não controlam completamente. Será que a chuva no próximo
ano favorecerá o plantio de sequeiro? E virá no tempo certo? E se chover além do
necessário? Bem, no caso de chover bastante e prejudicar a lavoura, não ajudará a encher as
lagoas e, com isso, aumentar a fartura do peixe?
A previsibilidade da atividade produtiva, portanto, não se aplica a uma economia que
não depende muito do cálculo racional e nem de variáveis que possam ser controladas pela
tecnologia e as pretensas certezas matemáticas que se supõe orientar as ações no sistema
capitalista.
Além de ter uma economia com características camponesas, os quilombolas se
orientam também por tradições que os obrigam a colocar no primeiro plano tanto os
ensinamentos culturais dos seus ancestrais como também as suas crenças religiosas. Estas
crenças podem influenciar até mesmo a decisão do que deva ser a melhor opção, por
exemplo, do que se plantar naquele ano. Por conseguinte, é preciso atentar para a
complexidade do sistema econômico dos quilombolas de Rio das Rãs e Mangal.
Mencionei anteriormente que a experiência dos quilombolas de Rio das Rãs e Mangal
em fazer transações bancárias para compra de gado bovino não havia sido bem-sucedida.
Na verdade, essa experiência malogrou, por ter provocado o endividamento dos moradores
e contribuído para dividir politicamente as lideranças, sobretudo em Rio das Rãs, mas,
também em Mangal, assim como por ter produzido um profundo desânimo em toda a
comunidade. Mas, as atividades de criação de gado foram inteiramente integradas aos
hábitos culturais e econômicos nos dois quilombos.
Nos últimos oito anos, é possível identificar algumas mudanças importantes na
economia dos dois quilombos. Os fatores que presumo influenciar essas mudanças são os
seguintes: os avanços verificados na educação, depois de cessados os conflitos pela posse
da terra; a introdução nos quilombos dos programas federais de distribuição de renda; e,
sobretudo, o deslocamento dos jovens para o corte de cana na região de Barreiras, na Bahia,
e nos estados de Goiás e São Paulo.
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103
O sistema de educação nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal, até o início dos anos
dois mil, se caracterizava pela precariedade e pela improvisação. As escolas do ensino
fundamental funcionavam com pequenas turmas em espaços construídos de pau a pique, e
com professores leigos, alguns das próprias comunidades e, outros, provenientes da sede de
Bom Jesus da Lapa, no caso de Rio das Rãs, e de Sítio do Mato, no caso de Mangal.
A história da educação neste último quilombo é um pouco mais complexa, já que os
fazendeiros que controlavam as terras contíguas ao povoado dos mangazeiros permitiam,
desde a década de oitenta, que os filhos dos quilombolas fossem alfabetizados em uma
escola privada da fazenda. Esse apoio na escolarização das crianças de Mangal foi mais do
que suficiente para que muitos filhos dos quilombolas se deslocassem para Paratinga, após
a conclusão do ensino fundamental, para dar continuidade aos estudos. Esse trajeto levava
duas horas de canoa pelo rio São Francisco.
Com isso, mesmo durante o conflito pela posse da terra, o número de jovens de
Mangal que concluíam o segundo grau passou a ser considerável. Por essa razão, antes
mesmo do conflito pela posse da terra ter chegado ao fim, a educação no quilombo já
apresentava um diferencial: a maior parte dos professores era originária da própria
comunidade, ainda que ensinassem mediante contratos precários de prestação de serviços
da prefeitura de Sítio do Mato. Entre 2002 e 2003 eles conquistaram o direito de escolher a
diretora da escola, de elevado padrão arquitetônico, construída na comunidade pelo
Exército, com verbas do Ministério de Educação – MEC. Depois de 2004, o Ministério da
Educação financiaria mais uma unidade no Mangal, para abrigar as salas de 5ª a 8ª Séries
do Ensino Fundamental.
Em Rio das Rãs, um novo impulso foi verificado na educação, a partir da construção,
com recursos do MEC, de uma grande unidade escolar com 08 espaçosas salas de aulas,
bem ventiladas, cantina, secretaria e espaço de lazer.
Essa escola abriga os alunos do ensino fundamental e médio. Além disso, a Prefeitura
Municipal de Bom Jesus da Lapa promoveu uma intervenção no sistema de ensino que
alteraria completamente o perfil da educação no quilombo: unidades escolares de alvenaria
foram construídas para as séries iniciais do ensino fundamental nas localidades de
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104
Brasileira, Retiro, Enchu, Capão do Cedro e Mocambo. Uma parte dos professores dessas
unidades, todos com o 2º grau completo e, alguns, com licenciatura plena, é originária do
próprio quilombo, e a outra parte vem da sede do município.
A grande unidade de ensino da localidade de Novo Rio das Rãs (Ver mapa de
Leonaldo Carvalho na página seguinte) concentra os alunos das séries iniciais, da 5ª a 8ª
Séries do Ensino Fundamental, turmas do Ensino Médio, de Aceleração e Alfabetização,
estas últimas no turno noturno. Ainda que a maior parte dos professores seja procedente de
fora do quilombo, é crescente o número dos que nasceram no quilombo e se formaram em
Bom Jesus da Lapa, retornando depois para ensinar em sua própria comunidade.
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105
Até a década de noventa, quando o sistema escolar era precário e cobria uma parte
pouco significativa da educação dos jovens, “muito cedo” as crianças e adolescentes
começavam a trabalhar na roça, na criação e nas atividades de pesca. Era comum a
mentalidade dos casais de desejarem ter filhos homens para ajudar os pais, “desde cedo”,
nas labutas pesadas da vida rural. Ainda acontece muitos filhos ajudarem os seus pais nos
afazeres da roça, mas isso ocorre apenas depois que eles cumprem as suas jornadas na
escola; alguns têm, inclusive, se recusado a desenvolver essas tarefas, quer por
incompatibilidade de horário, quer por falta de “vontade”.
Nos quase trinta dias do mês de junho de 2009 em que fiquei em Mangal, o filho
adolescente do meu hospedeiro que cursava o ensino médio em Sítio do Mato não foi uma
vez sequer ajudar os seus pais nos afazeres da roça. Em Rio das Rãs e Mangal, conversei
com crianças e adolescentes e notei ser visível a inclinação deles em absorver as ideologias
e representações dos centros urbanos modernos, segundo as quais “lugar de criança e
adolescente é na escola”, isto é, a primeira e mais importante obrigação das crianças e
jovens é sua formação escolar.
Em entrevistas realizadas com adolescentes de Rio das Rãs, em 2007, além de
incorporarem esse ideário, houve a identificação com profissões que não têm relação direta
com as atividades produtivas da vida rural. Para a jovem Aldeane (15 anos, em 2007), da
Brasileira, “precisamos estudar, essa é a forma de alcançar os nossos sonhos.” Do seu ponto
de vista, o ideal seria se formar para vir ensinar no quilombo ou ser uma secretária ou
mesmo uma advogada. Matildes (15 anos) gostaria de ser advogada também; Angélica (14
anos) quer cantar; Glecivaldo (16 anos), Miriam (16 anos) e Ronaldo (22 anos) gostariam
de ensinar.
Na mentalidade da nova geração do quilombo de Rio das Rãs, em grande parte
formada pela influência direta do que é transmitido pela TV, a Associação da comunidade
deveria oferecer opções de lazer e esporte para eles. Nota-se, enfim, um crescente
sentimento da especificidade de ser jovem e, por consequência, em serem tratados
diferencialmente no quilombo.
Em Mangal, recentemente, os jovens e adolescentes masculinos, após a aula, não
prescindem de um “baba” no final da tarde. As meninas vão aos bandos tomar banho no
Rio São Francisco. Pelo barulho que elas fazem, as troças dirigidas uma às outras e as
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alegres brincadeiras e algazarras, certamente, o trabalho na roça não faz parte dessas
agendas de diversão e lazer.
Saliento a ocorrência de mudanças nos hábitos tradicionais dos dois quilombos que
consideravam no passado crianças e jovens peças fundamentais para a composição da força
de trabalho das famílias nucleares. As meninas, desde cedo, ajudavam as mães nas
atividades consideradas, na divisão do trabalho, relacionadas ao sexo feminino, como
limpar a casa, cozinhar, lavar pratos e roupas e cuidar dos irmãos menores. Os meninos, por
sua vez, desde cedo, ajudavam os pais nas atividades pesadas da roça, da pesca e da criação
de gado.
Crianças e adolescentes compunham um modelo em que todos os membros da família
nuclear participavam do esforço para a reprodução social. Muitas vezes, mesmo depois dos
filhos homens solteiros se casarem, eles contribuíam nas roças dos pais, a partir do
momento em que esses começassem a perder a vitalidade com o avançar da idade. Antes da
universalização das aposentadorias rurais, que estão provocando, igualmente, uma
importante mudança na mentalidade dos quilombolas mais velhos, os que não conseguiam
trabalhar na roça ficavam deprimidos e com um sentimento de inutilidade, por dependerem
exclusivamente dos filhos. Essa situação está se invertendo completamente, depois que os
idosos passaram a receber um salário mínimo fixo mensal e estão socorrendo os filhos que,
por ventura, passem por dificuldades, quando a produção de sua roça não é suficiente para
saldar os compromissos familiares.
Enfim, a oferta da educação em larga escala nos quilombos ajuda, por um lado, a
alargar os horizontes sociais dessas comunidades, que antes tinham elevados índices de
analfabetismo. Por outro lado, a escolarização em massa desorganiza completamente o
sistema produtivo tradicional, na qual era fundamental a mão de obra de todos os membros
da unidade familiar para potencializar a reprodução física e social da mesma. Avizinha-se,
por conseguinte, uma crise no sistema produtivo tradicional, nos dois quilombos, com a
descontinuidade na reprodução tradicional da força de trabalho, que se dava mediante a
formação dos rapazes nos ofícios da agricultura, da criação e da pesca, no interior das
unidades familiares; e, entre as meninas, com a complementação das atividades
relacionadas com os ofícios considerados apropriados às suas mães. Além disso, com o
crescente interesse dos jovens por atividades alheias ao mundo rural.
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Quem cuidará das roças dos seus pais, depois desses se aposentarem ou falecerem?
Mesmo que parte desses jovens se case com pessoas do próprio quilombo, o que parece ser
a inclinação mais forte, haveria interesse dos que terão uma maior escolarização em
desenvolver as atividades rurais tradicionais à base da enxada e da foice? Com mais de
trinta e nove mil hectares de terras em Rio das Rãs, para cerca de seiscentas famílias, e oito
mil hectares em Mangal/Barro Vermelho, para as cerca de cento e cinquenta famílias, quem
cuidará de tanta terra no futuro? Essas questões preocupam boa parte dos quilombolas.
Um outro elemento que influenciou a economia dos quilombolas de Rio das Rãs e
Mangal foi a introdução, no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, de
políticas públicas para as comunidades de quilombos nas áreas de educação, infra-estrutura
(luz elétrica, água encanada, reparos e construção de estradas), saúde, previdência
(aposentadoria, pensão e salário maternidade), saneamento básico e apoio social às crianças
em idade escolar, através dos programas Bolsa Família e Erradicação do Trabalho Infantil.
Deve-se reconhecer, de antemão, o que de positivo esses programas trouxeram para
os quilombos: eles estimularam a permanência das populações quilombolas em suas terras e
consolidaram as ocupações centenárias dos territórios, pois são vistos na atualidade como
algo que lhes pertence e ajudaram, direta e indiretamente, a movimentar as economias
dessas comunidades e das sedes municipais mais próximas nos setores de comércio,
serviços e mesmo as atividades produtivas internas aos quilombos. Do ponto de vista
simbólico, há um notável sentimento de vitória, na medida em que os quilombolas se
sentem “vistos”, “reconhecidos”, isto é, se tornaram “visíveis” diante do Estado brasileiro.
Em Mangal, de um total de 150 famílias do quilombo, 95 recebem uma média de R$
90,00 por mês, do Programa Bolsa Família. E os aposentados, ao todo, são 25, recebem
cada um R$ 465,00 por mês. Como se pode observar, somente estes dois programas
movimentam mais de 20 mil reais por mês, dentro do quilombo.
Com esses recursos, os quilombolas adquirem, no mercado de Paratinga, alimentos
industrializados para reforçar a alimentação das famílias, materiais de higiene e limpeza, e
compram, em prestações de longo prazo, até bens duráveis como televisão, telefone celular,
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O Jornal americano New York Times escreveu uma matéria de página inteira sobre o quilombo de Rio das
Rãs na edição de 15 de agosto de 1993.
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O que se nota, é que o quilombo cada vez mais mescla as suas características rurais
predominantes (agricultura, criação e pesca) com atividades comerciais e de serviços que
contribuem, aos poucos, para conformar um mercado interno. O impulso desse mercado
não é maior porque a atividade produtiva do quilombo ainda sofre com as limitações
decorrentes da inadimplência generalizada da comunidade junto aos bancos públicos, o que
impossibilita, assim, que os indivíduos tenham acesso ao crédito.
O deslocamento de jovens quilombolas de Rio das Rãs e Mangal para o corte de cana
e outras atividades rurais em fazendas capitalistas na região do município de Barreiras, na
Bahia, São Paulo e Goiás é outro fator a impactar a economia dos dois quilombos.
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Comenta-se que anualmente cerca de 50 jovens de Mangal migram para tais atividades. Em
Rio das Rãs a estimativa é que entre 100 e 200 jovens sejam atraídos por ano para o
assalariamento nessas fazendas.
Uns poucos conseguem se fixar, mas a maior parte retorna aos seus lugares de
origem, pois eles são recrutados por intermediários para atividades sazonais, como a de
plantio de capim ou do corte de cana. O retorno desses jovens ao quilombo injeta mais
dinheiro nos incipientes setores de comércio e de serviços ou na compra de gado.
Mas o trabalho assalariado temporário, ainda que seja um pequeno estímulo para a
economia dos quilombos de Rio das Rãs e Mangal, se tornou também um desestímulo para
a exploração das potencialidades existentes nos próprios quilombos, já que a parte mais
produtiva da mão de obra está migrando para o assalariamento nas fazendas.
Nos dois quilombos, o trabalho assalariado é motivo de controvérsia. De acordo com
o depoimento de Joaquim da Silva, da Brasileira, as alegações para que seu filho migrasse
para trabalhar temporariamente em São Paulo, mas que terminou fixando moradia por lá
mesmo, são as seguintes:
“Porque aqui se o rapaz de vinte ano, ele for ficar no estudo, no estudo aí, então ele vai passar ficar
descalço e nu, sem poder ir na escola. Por causa que ele num tem saláro, o pai num tem, não tem o que
é que pegar pra vender pra comprar. Então no momento tem que sair pra trabalhar fora. Eu mermo
tenho um filho que tá pra São Paulo, tá cum quatro ano, agora tá fazeno quatro ano. Ta trabaiano lá
porque aqui num tinha condições dele ficar aqui, sobreviver.”
“Mas eu nunca saí pra São Paulo, nunca saí pra corte de cana nenhum. Eu trabáio numa roça aqui
perto. Mas aqui eu cunserto uma bicicleta, eu pesco, eu... Porque alguma coisa assim de planta, eu
planto... Eu sei plantar, na lavoura mermo eu sei plantar tudo. Então isso aí é uma cultura que a pessoa
já tem. Já num preciso sair pra fora. Aqui mermo subrivéve.”
Outros quilombolas consideram que a migração não deva ser demonizada. Para esses,
ela se torna uma opção explicável nos períodos de instabilidade provocados pela seca que
obriga as pessoas a procurarem na migração uma saída para a falta de uma atividade com
remuneração certa, embora elas mesmas não tenham sido atraídas. É o caso de Geraldo
Pereira (63 anos), da localidade de Novo Rio das Rãs, reconhecido como um dos mais
destacados produtores agrícolas do quilombo. Mesmo assim, Geraldão, como ele é
conhecido, recomenda que a Associação crie opções de trabalho no quilombo, para atrair os
jovens que estão migrando.
Dona Elíndia Maria Cardoso (44 anos), da localidade de Capão do Cedro, pondera
que, em função das secas, as pessoas eram compelidas a migrar para São Paulo, entretanto,
como as terras já lhes pertencem, e não há mais conflito com fazendeiros, o ideal seria que
os quilombolas cuidassem de suas roças e do gado recentemente adquirido, sob pena de
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“ficá preso aqui dentro sofreno, porque não tem emprego, num tem serviço pra gente fazer
num tempo desse [da seca] aqui.”
A experiência do quilombo de Rio das Rãs de executar projetos governamentais de
incentivo e fomento às atividades produtivas, embora tenha malogrado no passado, parece
ainda exercer algum fascínio para os que tentam encontrar uma alternativa à crescente
migração de jovens para o corte de cana. O senhor Chico de Helena, da localidade de Rio
das Rãs, critica com indignação a saída dos jovens para o corte de cana, porém,
pragmaticamente, reconhece que o problema existe e que é preciso alguma providência, daí
ele indicar uma alternativa:
“Faz um regradio, um trabaio pra mulé trabalhar, ganhar o pão, home ganhar tomem o pão, é como se
o caso, e nunca ninguém saia daqui pra ir pra São Paulo. Porque o que tem aqui sô, o que tem aqui
dentro desse Quilombo, dá pro pessoá viver sem precisar sair daqui, pra trabaiá um dia de serviço pra
pessoa nenhuma.”
de Rio das Rãs e Mangal. O problema mais sério para as famílias cujos filhos estão
migrando seria em relação às dos pais situados na faixa de idade intermediária entre os
quarenta e cinco e sessenta e quatro anos, período natural de maior declínio da força física
para os que labutam com a cansativa atividade do campo e ainda não podem requerer a
aposentadoria. Pois é nessa faixa de idade que mais se torna necessário o apoio e
complementação do trabalho dos filhos mais jovens para desenvolver atividades produtivas
que componham a renda familiar.
Uma outra questão relacionada com a migração é que não se percebe nas discussões
cotidianas o modo como as atuais gerações pretendem explorar, no futuro, o potencial do
território quilombola nas atividades relacionadas com a agricultura, a criação e a pesca.
Esse vazio de perspectiva sobre o que fazer com as riquezas existentes foi, num passado
recente, um terreno fértil para que alguns migrantes de Rio das Rãs que moravam em São
Paulo introduzissem costumes incompatíveis com os hábitos tradicionais dos quilombolas,
como o roubo do gado no próprio quilombo, algo que resultou numa gravíssima crise social
e moral.
O fenômeno da migração em Mangal tem semelhanças e diferenças com o que ocorre
em Rio das Rãs. Historicamente, por exemplo, a migração neste quilombo nunca alcançou a
intensidade e o volume ocorrido em Rio das Rãs.
A migração dos quilombolas de Rio das Rãs teve início ainda na fase áurea do
processo de industrialização de São Paulo na primeira metade do século vinte. Durante o
conflito pela posse da terra, entre 1971 e 1998, ficaram no quilombo menos de duzentas
famílias, das mais de quinhentas nascidas na comunidade; o restante migrou, uma pequena
parte para a sede de Bom Jesus da Lapa e a maior parte para São Paulo. Ainda existem vilas
na periferia da capital paulista exclusivamente de pessoas oriundas de Rio das Rãs. Pela
estreita relação com São Paulo, ainda é costume recorrer aos parentes que moram por lá
para se fazer exames, tratamentos médicos e, também, consultar curadores oriundos do
quilombo que abriram terreiros em São Paulo. O intercâmbio, inclusive no âmbito
religioso, entre Rio das Rãs e São Paulo foi fundamental para dinamizar a prática religiosa
mais recente (refiro-me aos últimos trinta anos) no quilombo. O mais célebre curador de
Rio das Rãs, Andrelino Francisco Xavier, da localidade de Enchu, falecido em 2003,
embora tenha herdado a religiosidade de origem africana dos seus ancestrais, foi iniciado na
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Umbanda em São Paulo; somente depois ele voltaria a Rio das Rãs para fundar um Centro
de Mesa Branca, como ele denominava, e dar ao mesmo uma identidade religiosa mais
próxima à prática da Jurema e, assim, se tornar uma referência religiosa para o povo de Rio
das Rãs e de toda a região.
Além da proporção da migração em Mangal ter sido menor, pelo fato da sua
população representar um quarto da de Rio das Rãs, o conflito em seu território não se
revestiu da mesma violência que assumiu neste último. A menor mobilidade migratória em
Mangal também se deveu ao fato de os quilombolas terem ficado resguardados da violência
dos fazendeiros em um território de cerca de 150 hectares, que fora doado aos ancestrais
dos atuais moradores por uma mulher que fizera a promessa de doação a Nossa Senhora do
Rosário. Nesse exíguo pedaço de terra, não era possível prover toda a subsistência dos
quilombolas, porém, serviu como um abrigo seguro para os seus moradores.
O impacto migratório em Mangal é um fenômeno mais recente, depois que o
quilombo teve as suas terras tituladas e a Associação resolveu implantar o mesmo projeto
de criação intensiva de gado financiado com recursos de programas federais de fomento às
atividades produtivas.
Da mesma forma que ocorreu em Rio das Rãs o projeto fracassou e o Banco do Brasil
não recebeu os créditos devidos, com isso, os quilombolas se tornaram inadimplentes. Os
reflexos negativos em Mangal, embora tenham sido menores do que em Rio das Rãs,
resultaram, igualmente, no impedimento de os quilombolas acessarem novos créditos. A
crítica dos moradores, de que a Associação teria administrado indevidamente os recursos
bancários, é a mesma dos quilombolas de Rio das Rãs. Não há acusação, entretanto, de que
tenha havido roubo de gado. Mas, por outro lado, esse processo de endividamento serve
como combustível para alimentar as disputas que confrontam as duas principais famílias do
quilombo – os Lobo e os Gomes.
A vantagem de Mangal, comparativamente a Rio das Rãs, é a de que o débito
bancário ali parece198 ser menor, e, além do mais, neste quilombo ainda restou uma parte
significativa do gado, cerca de 200 cabeças, administrado pela Associação. Esse rebanho,
segundo o atual presidente, conhecido como Caboje, pode ser suficiente para saldar toda ou
198
Não se sabe o montante dos débitos bancários em Rio das Rãs e em Mangal. No caso do primeiro
quilombo, tentei fazer um levantamento desses débitos e não consegui pelo fato da negociação ser conduzida
de forma sigilosa pelo Banco do Brasil. Sabe-se que o total das duas contas envolve cifras de milhões de reais.
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“Tinha uma roçona que nós enchia de mandioca. Trabalhava assim em quatro roça. Trabalhava na ilha,
uma semana na ilha. Quando terminasse uma semana na ilha então nós ia pro Capão, ali chamava
Capão, nós ia trabalhar no Capão, zelava do Capão, zelava de lá de cima. Tudo junto. A irmandade
toda. Aí nós ia pra roça da caatinga, zelar. Tinha cada mandiocona. Fizemos muitas quarta de farinha,
muitos saco de farinha da caatinga.”
mantiveram uma relação social fundada na reciprocidade e no respeito, ainda que tais
relações não sejam o “tempo todo” cordiais.
Na origem dos dois quilombos os indivíduos das diferentes parentelas foram
obrigados a se aliar através do casamento, pois a escassez de mulheres no princípio da
formação dos quilombos superou os conflitos e a competição entre as famílias fundadoras.
Mas, a representação da idéia de parentage comum não consegue, porém, mitigar
conflitos entre as parentelas motivadas por rivalidades, ciúmes e disputas pelo poder,
conforme descreveremos adiante.
Em Rio das Rãs, como em Mangal, a identidade fundada na filiação a uma parentela é
uma das mais importantes formas de inscrição dos indivíduos na vida social dos quilombos.
As diferenças entre as parentelas parecem mais compor um cenário em que a dialética do
conflito serve como pano de fundo para uma compreensão comum da inelutabilidade de
conviver no mesmo espaço territorial, já que uma parentela depende da outra e todas foram
fundidas pela mesma história.
O sentido de parentage tem um conteúdo mais simbólico, na acepção proposta por
Mesquitela Lima: “o símbolo é facto, é também valor e o seu caráter impositivo advém da
magnitude do valor ou do conjunto de valores que o grupo ou a sociedade lhe atribui.”199
A parentage para os quilombolas de Rio das Rãs e Mangal possui também uma
conotação ambivalente. Nos conflitos pela posse da terra que atingiram os dois quilombos,
em que os inimigos que os acossavam vinham de fora, as diferenças políticas entre as
parentelas praticamente desapareceram. Mas, essa espécie de “pacto de não agressão” não
foi capaz de apagar as fronteiras que os separavam enquanto parentelas distintas. É
fantasiosa, portanto, a idealização construída, sobretudo, pela historiografia tradicional, que
conceberam os quilombos como organizações sociais exclusivamente africanas e, muitas
vezes, sem conflitos internos. Flávio Gomes e João Reis criticam algumas dessas
idealizações:
O quilombo seria “uma espécie de sociedade alternativa à sociedade escravocrata, onde todos seriam
livres e possivelmente iguais, tal como teriam sido na África, uma África consideravelmente
romantizada.”200
199
LIMA, Mesquitela. Antropologia do Simbólico – ou o simbólico da antropologia. Lisboa: Editorial
Proença, 1983, p. 49.
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Nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal, a existência de conflitos entre os indivíduos
e as famílias fundadoras não os inviabiliza de viver, contudo, em uma mesma sociedade e
terem uma convivência social prolongada; ao contrário, esses conflitos parecem alimentar a
necessidade do agenciamento e da negociação entre as parentelas e os indivíduos.
As razões para a ocorrência de conflitos entre as parentelas são diversas. Em Mangal,
a aparente fonte de discórdia entre as duas principais parentelas do quilombo, os Gomes e
os Lobo, é a tentativa de cada parentela de usufruir das vantagens em se aliar a um dos dois
grupos políticos que dominam o poder no minúsculo e pobre município de Sitio do Mato.
Os desacordos teriam começado, de acordo com um depoente, a partir de uma armadilha
criada pela oligarquia dos Magalhães de Sítio do Mato, ao oferecer minguados empregos na
escola da comunidade para o chefe de uma das famílias do quilombo, alijando a outra
família do poder de nomear os seus parentes. Por esse prisma, as divergências estariam
circunscritas à preferência que um e outro grupo familiar dá aos chefes políticos do DEM
(Democratas) e do PT (Partido dos Trabalhadores) da sede municipal, e, desse modo,
transferindo para o quilombo as disputas políticas que envolvem o controle da prefeitura de
Sítio do Mato.
Ainda que seja pertinente tal avaliação, ela não explica outros aspectos dos conflitos
entre as duas famílias, além de querelas partidárias, que são a manifestação mais visível dos
desentendimentos.
De acordo com o depoimento de um morador de Mangal que conhece razoavelmente
a história da comunidade, os conflitos entre os Lobo e os Gomes remontam ao período de
fundação do quilombo, em que as duas famílias tentavam afirmar o poder sobre o legado
deixado por uma devota de Nossa Senhora do Rosário, que doara à comunidade “meia
légua quadrada de terras”201 Embora não se tenha identificado um documento que
confirmasse a referida doação, a narrativa de que a santa doara as terras para a comunidade
teria provocado uma ruptura entre as duas famílias: a quem a doadora confiara a
200
REIS, João José, GOMES, Flávio dos Santos. Introdução: Uma História da Liberdade. In REIS, João José,
GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.) Liberdade por um fio – história dos quilombos no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996, p. 11.
201
Fala-se que tal medida simbólica representaria de fato cerca de 150 hectares de terras. Fala-se também até
que o documento de doação existira, mas até hoje não se conseguiu encontrá-lo.
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E – Me conta aí como foi que ele achou essa Santa, a Nossa Senhora do Rosário?
BMS – Ele [Benedito Caboclo202] falou que teve um fogo [na Guerra do Paraguai] que ele correu, ele
mariou [fugiu] fora do bataião. E ele chegou num canto e sentou num lajedo. Aí ele achou... Sentou
cansado... E acho que as coisas quando tinha que acontecer, né... Que ele sentou, que olhou... A Santa!
Ele ficou olhando... Vou panhar essa Santa. A pedra já tava escrita a marcação das rezas, quando era o
dia de rezar. O Dia Santo dela. Já tava escrito na pedra. Ele leu aquilo tudo direitinho, que ele sabia ler,
leu. Aí tava escrito em cima: “Nossa Senhora do Rosário”. Pegou a Santa. Ele fugiu. Quando ele achou
a Santa, ele se apegou com ela pro modi tirar ele, pra num deixar mais ninguém encontrar ele, nunca
mais ele viu nem tiroteio. E saiu esmariado caminhando até sair fora do lugar. E saiu fora.
E – E ele era escravo quando foi para a guerra?
BMS – Eu acho que não. Mas eu acho que era quase esse ponto de escravidão. Mas num era escravo.
Foi na guerra. Teve uma guerra aí que você ver falar dessa guerra num vê? Do Paraguai. Ele tava nessa
guerra. Saiu fora. Fugiu. Escondeu. Aí agora ele tratou de sair fora pra precurar a terra dele. Veio
cortando por fora caminhano de a pé, aqui e acolá, comendo aquelas besteirinha, aquelas coisa, até sair
fora do giro aí, pegou, chegou. Quando chegou na terra dele, precurou: “Ah! Seu povo foram embora
daqui”. Ele saiu informando: “Ah! Tá morando num sei a onde, do lado de lá do rio, em tal canto
assim, assim. Era aqui [no Mangal]. Chegou. Dizendo o povo que aturou pouco. Disse que nunca tinha
tomado uma bala. Não. Parece que Deus abençoou ele que nunca tomou uma bala.
Ao chegar ao Mangal, Benedito Caboclo teria procurado os seus parentes para que
alguém cuidasse da santa. Por não ter encontrado em sua parentela alguém que soubesse as
ladainhas apropriadas ao seu culto, ele terminou entregando a imagem de Nossa Senhora do
Rosário para um membro da família Gomes, que cuida da santa, quatro gerações depois.
Por que Benedito Caboclo entregara aos adversários da sua família, os Gomes, o símbolo
202
Benedito Caboclo seria o bisavô do Senhor Isauro Lobo dos Santos; nos seus 77 anos é o mais velho
ancião dos Lobos.
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123
“Nas histórias contadas em Rio das Rãs são frequentes as referências às localidades de Passagem de
Areia, Pedra do Cal, Barra, Aribá, Brasileira, Capão do Cedro, Riacho Seco, Baixa da Mula,
Pitombeira, Rio das Rãs, Barreiro da Onça, Juá, Manga, Jacaré, Baixa do Marí, Enchú. São núcleos de
moradia, locais de roça, pesca e caça que acompanharam a trajetória migratória e de ocupação
paulatina do território de Rio das Rãs. A partir deles pode-se perceber a gama de relações e conflitos
no decorrer do percurso; em cada localidade está inscrita a história particular do grupo doméstico
que lhe nomeou, como uma ponte para conectar as várias mudanças da história geral do grupo.”203
“A distribuição da população de Rio das Rãs no espaço geográfico, após o conflito, nas localidades
mencionadas, contudo, não impossibilitou a preservação de certos costumes dos antigos “troncos
familiares”. Um deles é a construção das residências em torno da do chefe da parentela.”204
203
SILVA, Do Mucambo do Pau Preto à Rio das Rãs, p. 23.
204
Idem, p. 24.
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125
As parentelas que controlavam a antiga localidade de Rio das Rãs nas margens do
Rio São Francisco, antes das terras do quilombo serem tituladas, por exemplo, não
suportavam “a vida boa” dos moradores da Brasileira. Era comum que os quilombolas da
Brasileira fossem chamados de cachaceiros, festeiros, preguiçosos. A estereotipia, como se
sabe, é um dos mecanismos mais constrangedores para enquadrar um indivíduo ou um
grupo às idéias e concepções que se pretendem legítimas e corretas para outro grupo.
A experiência vivida por Eduardo Batista Lima, filho do Senhor Josino Batista Lima
e dona Maria Batista Lima, último presidente da Associação Agro-Pastoril e Quilombola de
Rio das Rãs, é um caso exemplar para se entender as disputas que envolvem as parentelas
de Rio das Rãs.
Eduardo Lima nasceu no estado de São Paulo e chegou a Rio das Rãs com dois anos
e meio de idade; passou mais doze anos vivendo em São Paulo e, finalmente, voltou à
comunidade para assumir a condição de presidente da Associação, cargo que tem enorme
prestígio para quem o ocupa. Mas, por ter passado muito tempo fora e ter nascido de uma
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127
família pouco proeminente no quilombo, além de ter voltado à comunidade quase no final
do conflito pela posse da terra, no final dos anos noventa do século passado, ele sofreu
humilhações, segundo me contou, por não ter a confiança plena dos troncos familiares que
controlaram as sete gestões anteriores na diretoria da Associação. O “calvário” vivido por
Eduardo é explicado porque um dos critérios, nem sempre explicitado, para se assumir o
poder no quilombo – e a Associação é um dos espaços de poder –, é o de pertencer a uma
das famílias “fortes” do quilombo, isto é, ser de um tronco familiar considerado “de raiz”,
e, por conseguinte, representar com legitimidade a identidade quilombola.
Lobo, como se pode observar, está associado ao sentimento de que ela se coloca no mundo
como uma identidade que ele e a sociedade local reconhecem como positiva.
O que toda a parentela quer é ser reconhecida na sociedade; isso concede aos seus
membros dividendos sociais importantes, tanto nas trocas matrimoniais como também
naquelas em que está em jogo a reputação do indivíduo, a exemplo de um empréstimo ou
um compromisso firmado. Fazer qualquer negócio com um indivíduo de uma parentela que
não se confia é temerário. Isso porque é disseminado socialmente a marca negativa que
termina se estendendo para todos os membros daquela parentela. A presunção é que os
indivíduos sejam formados moralmente pela sua parentela, e desse modo, todos dessa
parentela carregam os traços morais pelas quais são identificados socialmente.
Falar dos antepassados em Rio das Rãs e Mangal requer das gerações atuais mostrar o
que eles representaram para a história do quilombo. Os notáveis do passado servem como
referência para os que lhe sucederem. É esse o sentido do breve comentário que senhor
Francisco Ferreira Magalhães, conhecido como Chico de Helena, fez sobre o seu pai.205 Ele
contou que, no passado de Rio das Rãs, quando não havia escola, “tinha as pessoa que tinha
boa mimória, como é meu pai mermo, era um home mimorista. Meu pai sabia fazer um
balaio, meu pai fazia uma canoa, meu pai fazia uma rede, meu pai tudo, tudo, fazia uma
gamela, meu pai fazia uma embarcação, tudo meu pai fazia.” Esse elogio caloroso dos
descendentes é a oportunidade que os membros da parentela encontram para falar de si
mesmos. É para isso que servem as gerações atuais narrarem os mitos de sua parentela.
No dia a dia da vida dos quilombolas de Rio das Rãs e Mangal, as famílias nucleares
dão suporte para as decisões mais imediatas, notadamente aquelas que não envolvem a
honra ou princípios estabelecidos pela parentela sobre o modo de agir mais adequado. Em
torno do pai e da mãe, é que se estruturam e se organizam as atividades relacionadas à
economia familiar, à socialização, formação moral, educação e religiosidade dos filhos. A
família nuclear não está desvinculada, entretanto, do que ocorre em torno da família
extensa. E não é por outra razão que em muitas localidades de Rio das Rãs e Mangal elas
estão localizadas geograficamente próximas uma das outras. Entre os membros da família
205
O senhor Francisco Ferreira de Magalhães é uma das memórias mais lúcidas do quilombo. Além de
historiador do quilombo, ele é repentista, poeta e cantador. Teve um papel central durante todo o conflito pela
posse da terra, sobretudo, para desmascarar o fazendeiro Carlos Bonfim quando este afirmava ter documentos
que supostamente comprovavam que as terras de Rio das Rãs sempre pertenceram à família Teixeira. Senhor
Chico desmentiu o fazendeiro publicamente com dados recolhidos de sua memória notável.
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extensa há, com frequência, trocas e aconselhamentos. Mas, de um modo geral, as famílias
nucleares organizam as suas estratégias de sobrevivência no dia a dia com relativa
autonomia.
As trocas entre as parentelas é o que dá às mesmas o sentimento de terem uma mesma
origem. Essas trocas envolvem o que cada família nuclear conseguiu produzir com seu
trabalho na roça, na pesca ou na criação de gado, mas também bens imateriais, como
conselhos, ensinamentos, recomendações e outras formas de transmissão do que é
considerado moralmente válido para a parentela.
É com o referente do aprendizado adquirido na família nuclear, “supervisionado” pela
parentela à qual esteja vinculada, que os indivíduos se posicionam na sociedade
quilombola. Ser membro de uma parentela e de um território social onde ela inscreveu
hábitos e costumes, portanto, antecede ser membro do quilombo. Cada parentela, portanto,
tem um papel fundamental na formação dos seus membros. Até porque as regras emanadas
fora do seu âmbito serão processadas e interpretadas de diferentes perspectivas e
assimiladas ou rejeitadas.
A impressão que se tem é a de que, no final das contas, há um equilíbrio nas
negociações entre as normas originadas nas parentelas e aquelas estabelecidas pela
sociedade quilombola. As normas mais consensualmente aceitas prevalecerão; outras cairão
em desuso, mesmo que os mais velhos fiquem ressentidos e com o sentimento de estarem
perdendo o controle do que eles imaginavam ser a mais adequada. O senhor Auto Osório de
Souza (88 anos), da localidade da Brasileira, em Rio das Rãs, (Ver mapa de Leonaldo
Carvalho na página seguinte) expressa esse sentimento de perda quando se refere às
etiquetas da relação entre pai e filho no passado:
“Naquele tempo que eu era um menino de oito até quinze ano, naquela época de meu conhecimento, eu
vi muito o pai... O filho chegar perto do pai tirar o chapéu da cabeça e falar com o pai, Louvado seja
Nosso Senhor Jesus Cristo, bença meu pai, ou que fosse a mãe, bença minha mãe. Outros as vez já se
ele já carregasse facão ou faca, ele tirava da cintura e se fosse um facão, batia assim pelo chão, ou se
fosse uma faca e só dava a bença ao pai mais a mãe, Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo... Outros
até, também sentava o joelho no chão ainda pra dá a benção aos pais. Então esse já é uma das coisa que
dava um sentimento que o qual é hoje. Agora sabeno que as vezes hoje assim uma parte ali também, se
esse menino aí tivesse algum ensinamento, já pedia licença pra passar aqui, ou o sinhô acha que num
precisava pedir?”
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Pelo estado de espírito nostálgico do senhor Auto, fica evidente que o aprendizado
ensinado pela sua parentela não consegue, no presente, ter o mesmo valor. Mas, ele está
resignado e não considera que tal mudança seja o fim do mundo, ou alimenta qualquer
veleidade de que as regras de etiqueta do passado tenham validade no atual contexto. Com
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isso, o senhor Auto admite, a contragosto, e sem explicitar, serem inevitáveis as mudanças.
Por outro lado, ele continuará ensinando aos seus parentes mais próximos que o mais
correto é agir do “modo tradicional”.
A responsabilidade de socialização das novas gerações concernentes às parentelas de
Rio das Rãs e Mangal pode dar a impressão de serem as relações entre os parentes sempre
baseados na harmonia e no respeito mútuo. E não são. Os parentes se encontram e se
desencontram na vida social nos dois quilombos. As denúncias envolvendo a feitiçaria, por
exemplo, tanto podem opor diferentes parentelas como confrontar indivíduos de uma
mesma família nuclear, irmãos, por exemplo.
Um exemplo de conflito envolvendo membros de uma mesma família nuclear foi
relatado pelo senhor Renério Vilaça, ele próprio envolvido no desentendimento com o seu
irmão. O conflito começou com a entrada de uma vaca de sua propriedade na roça desse
irmão. De acordo com o relato do senhor Renério, ele fora obrigado a sacrificar a sua
querida e estimada vaca para não acontecer uma morte na família. Mas, antes eles
chegaram “às vias de fato” e só não aconteceu uma tragédia porque outros parentes e
vizinhos separaram a briga violenta. Mais tarde, aceitaram fazer as pazes, após o senhor
Renério ter ficado seis meses sem poder frequentar sua igreja evangélica por estar “de
castigo”, em virtude da briga com o irmão. Porém, até hoje, confessa o nosso depoente: “é
ele lá e eu cá.”
No quilombo de Mangal/Barro Vermelho, no qual as parentelas dos Lobo e dos
Gomes dividem e disputam ao mesmo tempo o poder, os conflitos são recorrentes. Havia
mencionado anteriormente que os conflitos entre as duas famílias estão relacionados à
disputa pelo poder político. Mas, observando detidamente a vida social no quilombo, pude
verificar que as divergências se estendem para outros espaços, e a evitação de casamento
entre indivíduos das duas parentelas é uma delas.
Isso aconteceu quando um indivíduo da família Gomes namorava a sobrinha de um
expoente da família Lobo, o que tornaria os seus filhos sobrinhos netos deste. A forte
oposição dos Lobo a esse casamento, segundo o depoente, seria uma tentativa de manter
íntegras as fronteiras de parentesco que separam as duas famílias, o que possivelmente
poderia ser visto como um enfraquecimento da identidade que alimenta as disputas
políticas. O informante revelou que o casamento envolvendo indivíduos das duas parentelas
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não é o único caso acontecido; resta saber se essa oposição foi apenas dos Lobo ou
envolveu os Gomes também, em outras situações.
Mas, é enganoso imaginar que os processos conflituosos envolvendo indivíduos de
uma mesma parentela os levem a agir em público de maneira grosseira e deseducada.
Conheci muitos casos de parentes que não se entendiam mas, no espaço público, tinham
uma relação amistosa, se cumprimentavam, trocavam a “benção” com a mais solene
reverência, e eram capazes de rir de maneira espalhafatosa e troçar um do outro como se
não houvesse entre eles nenhuma intriga. Presenciei, também, certa pessoa classificar como
“ladrão” uma conhecida liderança de Rio das Rãs durante a nossa caminhada em direção a
uma reunião e, quando lá chegamos, se cumprimentaram efusivamente. Mas não há o que
censurar, afinal, eles são compadres, além de serem primos.
Esse equilíbrio instável entre os parentes de Rio das Rãs e Mangal, envolvendo as
mais complexas idiossincrasias, não foi obstáculo para que eles unissem todas as parentelas
em defesa dos dois quilombos e alcançassem a vitória diante da violência dos fazendeiros
que desejavam confiscar suas terras.
Tanto em Rio das Rãs como em Mangal, aos mais velhos é dispensada uma
deferência toda especial. Antes da criação das associações representativas, o respeito era
ainda mais reverencial.
Com a legalização das terras de Rio das Rãs e Mangal, o que obrigou os quilombolas
a criarem as associações, o poder foi deslocado para as lideranças mais jovens. Mesmo
assim, os mais velhos continuaram a ser tratados com muito respeito.
O tratamento cerimonioso aos mais velhos é parte do reconhecimento de serem
portadores de conhecimentos e saberes que os mais jovens poderão ter acesso ou não. A
transmissão desses conhecimentos depende do interesse dos jovens, da capacidade de
aprenderem pela observação e, sobretudo, da vontade individual. Um velho feiticeiro me
confessou que tentara passar seus conhecimentos para um neto e esse se recusava, não
demonstrando qualquer interesse.
Não há uma norma para a transmissão de conhecimento e nem se trata de um
processo ritual. Assim, são corriqueiras as queixas das gerações mais jovens de não terem
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aprendido com os seus mais velhos porque eles não permitiam, entre outras restrições, que
as crianças presenciassem as conversas que envolvessem pessoas idosas.
A retidão moral dos idosos é a base de toda a reverência dos seus descendentes, tanto
no passado como no presente.
Em Rio das Rãs e Mangal, quando se fala em deferência aos mais velhos, ela é
comumente referida aos homens idosos. Não é que as mulheres mais velhas não sejam
respeitadas, o que se salienta é que os homens são detentores de maior prestígio social nos
quilombos.
A mulher mais conhecida na história de Rio das Rãs, dona Imbilina Maria da
Conceição, que teria nascido na localidade de Mucambo, no território de Rio das Rãs, em
1870, por exemplo, é referida de maneira ambígua: por um lado, ela é “lembrada pela
memória social como ‘mulher solteira’ ou ‘mulher da vida’ – categorias sociais associadas
à prostituição...”206 Ao mesmo tempo, ela é também mencionada positivamente, como
“uma mulher forte, que sabia criar os seus filhos, trabalhadora, ‘raiz do lugar.’”
Conta-se que dona Imbilina teria se casado com um homem chamado João Nagô,
ainda no século XIX, estando grávida de outro homem. Após a morte prematura deste, ela
teve filhos com, pelo menos, cinco homens. Responsável por nomear a sua parentela, dona
Imbilina, entretanto, é reconhecidamente uma das mais fortes referências entre as mais
tradicionais famílias quilombolas de Rio das Rãs. Mas, a ambivalência é a tônica dos
relatos envolvendo a sua extraordinária figura: as “lacunas sobre a vida social de dona
Imbilina são muitas, mas não resta dúvida entre os moradores da comunidade sobre a sua
incontestável liderança em Rio das Rãs.”
Em Rio das Rãs e Mangal, nenhuma personalidade masculina importante na história
destes quilombos é lembrada publicamente por seus desempenhos sexuais, mas por terem
deixado legados morais, até hoje seguidos. Esse lado da sexualidade arrojada de dona
Imbilina, contudo, está sempre presente nas referências ao seu nome.
206
SILVA, Valdélio Santos. Notas para um estudo sobre o papel das mulheres na história – o caso
emblemático de uma mulher em Rio das Rãs. Trabalho obrigatório do Curso de Pós-Graduação
Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia – UFBA e requisito
parcial para a aprovação na disciplina “África Negra: colonialismo, raça, classe e gênero” ministrada pelo
professor Valdemir Zamparoni., 2006, p. 01.
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Outra conhecida mulher em Rio das Rãs, falecida recentemente, era referida dessa
mesma forma ambígua pelos homens. Diziam sobre ela: dona M. era uma “mulherzinha da
vida”, mas, um “verdadeiro homem para trabalhar na roça”. Quer dizer, era uma mulher
destemida e trabalhava na roça com a mesma força de um homem. Em outras ocasiões, era
classificada de “mulherzinha”, para lembrar a sua condição de mulher solteira e que
mantinha relações sexuais com diferentes homens. E o curioso é que esses comentários
eram considerados elogiosos, possivelmente, porque o seu extraordinário desempenho no
trabalho da roça circunstancialmente superava o estigma de prostituta.
Nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal, o predomínio da ideologia da
masculinidade é, portanto, indisfarçável.
A educação dos filhos é, em tese, uma responsabilidade compartilhada entre o pai e a
mãe. Mas, na prática, a palavra final sobre as decisões mais importantes cabe aos homens,
inclusive aquela que se refere à imposição da ordem moral considerada mais adequada:
“O pai tinha uma palmatória de bater os fio de bolo na mão, hoje num tem mais. Tinha chicote de bater
no filho se ele fizesse uma coisa errada, uma má-criação. Até mesmo que não fosse com o pai e a mãe,
mas se fosse com um tio ou uma tia, naquele respeito tinha que... Aquele outro vinha contar o que
aquele menino fez, o pai pegava e dava uma surra nele que era pra ele saber que o respeito era outro,
não era aquilo.”207
A ordem de um homem, sobretudo mais velho, era obedecida à risca. Mário Nunes de
Souza (66 anos), de Rio das Rãs, conta que quando um jovem era apanhado fazendo algo
errado, um homem mais velho assim o advertia: “‘Não foi certo o que fez, foi uma forma
assim errada e o caminho é por aqui’. E o povo temia e obedecia porque sentia que era uma
pessoa na idade que tinha aconselhado”.
A emergência do conflito pela posse da terra em Rio das Rãs e Mangal e a
consequente necessidade de se criar uma Associação para representar legalmente os
quilombolas perante o Estado contribuíram para diminuir a autoridade e o papel de
conselheiro dos mais velhos. É revelador, a esse propósito, o desabafo de dona Matildes
Rodrigues (72 anos), de Rio das Rãs: “Os troncos acabou só resta rama e flor, que são os
mais jovens.” Essa nostálgica declaração revela como as decisões estão passando para as
mãos das jovens lideranças, que agora estão investidas de poder. Os “troncos” são aquelas
207
Senhor Auto Osório de Souza, 88 anos, da localidade de Brasileira, em Rio das Rãs.
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lideranças que estavam distribuídas pelas pequenas localidades e que, pela força moral,
definiam os parâmetros da convivência social e da solidariedade entre os indivíduos. A
metáfora da “rama” e da “flor” significa que os mais jovens são considerados imaturos
socialmente para tal responsabilidade. Note-se que a crítica contida nesta expressão tem um
sentido ao mesmo tempo denunciatório da inadequação dos ocupantes dos postos de
direção da Associação, mas também é construtivo ao se pensar que tais ramas e flores
poderão algum dia frutificar e se reproduzir.
O lugar das mulheres na vida social dos quilombos de Rio das Rãs e Mangal
currais, derrubar árvores, destocar e preparar o solo para o plantio das roças; plantar, ainda
que possa contar nessa atividade com a ajuda das mulheres; limpar periodicamente a roça e
protegê-la de ataques de pragas e doenças; colher a plantação, com a ajuda das mulheres e
das crianças; vaquejar e cuidar, de um modo geral, do rebanho de gado bovino, dos animais
de montaria e de tração; abrir poços, pescar e caçar.
Na divisão social do trabalho, portanto, há uma nítida influência de gênero a separar
homens e mulheres. Essa divisão não implica uma interdição absoluta que impeça, por
exemplo, as mulheres de exercerem atividades consideradas masculinas, como derrubar
árvores de machado para abrir novas roças. Mas, esse tipo de serviço executado pelas
mulheres não é o mais comum. Por outro lado, não será “bem visto” socialmente um
homem que lave a sua roupa em casa ou no rio.
Os homens, de um modo geral, não fazem qualquer tentativa de alterar os costumes
tradicionais que atribuíram às mulheres a responsabilidade de executar serviços domésticos,
como lavar roupa, pratos e varrer a casa e o quintal. Em Rio das Rãs, algumas mulheres que
tiveram a experiência de residir no estado de São Paulo estão tentando timidamente alterar
tais regras tradicionais, mas os poucos homens que se sensibilizaram diante dos reclamos
femininos foram compelidos a retroceder diante das piadas e galhofas dos que resistem em
mudar tais costumes.
Em julho de 2007, quando estava na localidade da Brasileira, em Rio das Rãs, pude
constatar que o aprendizado para a repartição das tarefas de acordo com o sexo acontece
“desde cedo”.
No riacho de Rio das Rãs, a jovem esposa Juvenice, casada com Eduardo, lavava os
pratos e as roupas de sua família, enquanto as suas duas filhas, com idades variando entre
seis e sete anos, molhavam a horta de coentro, cebolinha e alface. No mesmo cenário, o
filho de Juvenice, de cerca de oito anos de idade, pescava com uma faca.
As meninas, cuidando da horta, aprendem desde cedo a distinguir o que é uma tarefa
feminina; do mesmo modo, o menino, brincando de pescar, aprende a ser pescador, que é
uma atividade laboral masculina. Ao lado de Juvenice, outra jovem esposa da Brasileira
eviscerava o peixe no rio, que é outra atividade específica das mulheres. Na minha saída,
uma delas comentou com refinado humor: “com todo esse trabalho que o senhor está vendo
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a gente tem que correr, porque precisamos ainda fazer o almoço do marido que está em
casa...”
A reclamação da filha do meu hospedeiro, em Rio das Rãs, era a de que os seus
irmãos chegavam ao extremo de exigir que ela, além de fazer a comida, estivesse a postos
para, quando eles chegassem do campo ou de qualquer outra atividade, esquentar a comida
e colocar à mesa. Ela se mostrava chateada, não por assumir um papel estipulado para as
mulheres em sua sociedade, mas por sentir que havia sintomas nítidos de abuso da parte dos
homens.
Dona Maria Arcanjo Xavier, da localidade de Enchú, em Rio das Rãs, reconhece e
define com nitidez a divisão sexual do trabalho em sua comunidade: “Eu fui criada, nós
tínhamos uma abundância que não tem nem explicação. Era tão bom. A gente podia criar
cabra, ovelha, porco, que isso aí era criação das mulheres. Dos homens era o gado, os
homens era cuidar do gado, do cavalo, do jegue, do burro.”
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A divisão do trabalho social entre homens e mulheres em Rio das Rãs e Mangal se
mantém em comparação com o passado, com pequenas alterações.
Nos detalhes da vida familiar e nas relações cotidianas nos quilombos de Rio das Rãs
e Mangal, pode-se notar a expressão viva das relações de gênero.
De acordo com Miréya Suarez, o uso do conceito de gênero não pode ser reduzido ao
contato sexual entre homens e mulheres, mas ao conjunto das relações sociais entre as
mulheres e entre os homens. Ela parte do pressuposto de que a antropologia clássica tem
uma dívida, sobretudo, com as mulheres que foram invisibilizadas nos relatos etnográficos
ou reduzidas apenas às dimensões que envolvem a sexualidade. Neste sentido, e assumindo
a sua concepção feminista de produção do relato etnográfico, a autora sugere que é “preciso
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observar e descrever o que as mulheres realmente fazem e pensam ao invés de escutar o que
os outros dizem que elas fazem e pensam.”208
As desigualdades entre homens e mulheres fazem parte das práticas culturais nos dois
quilombos, e parece que isso não está vinculado ao fato de os indivíduos terem ou não
informações sobre as etiquetas das sociedades urbanas modernas, e tampouco ao nível de
escolaridade dos atores envolvidos.
Na residência de uma professora de Mangal que me convidara para almoçar, além de
ter preparado a diversificada e saborosa refeição, ela serviu aos presentes: eu, seu esposo e
os dois filhos, um menino e uma menina. Entretanto, a dona da casa somente sentou-se à
mesa depois que todos já estavam concluindo a refeição, mesmo assim com o prato à mão e
ao lado da mesa. Em Rio das Rãs observei, também, que as mulheres não se sentam à mesa
junto com os filhos homens, o marido e o visitante. Depois que os homens terminam a
refeição é que as mulheres sentam-se à mesa.
Na rotina da vida social em Rio das Rãs e Mangal, é possível identificar outros
espaços em que homens e mulheres não compartilham igualdade de condições.
Nos fins de semana, as opções de diversão e lazer nos citados quilombos são
limitadas, a não ser que haja algum evento lúdico-religioso, como a Marujada, a Roda de
São Gonçalo, uma festa do Divino, um batizado ou um casamento. Com o recente aumento
da renda dos moradores – resultado dos recursos do Programa Bolsa Família, das
aposentadorias ou do trabalho assalariado fora do quilombo – e a chegada nos povoados da
água encanada e da luz elétrica, cresceu o hábito de beber cerveja gelada nos pequenos
botecos aos sábados e domingos. Mas esse novo hábito é quase exclusivamente dos
homens, velhos e jovens, já que as mulheres não costumam compartilhar dessa nova
atração com os maridos ou namorados.
Num domingo, um grupo de homens bebia animadamente no bar de Simplício
Arcanjo de Souza (49 anos), na localidade da Brasileira, em Rio das Rãs, e as brincadeiras
picantes corriam soltas em meio às gargalhadas. Do lado de dentro do balcão, Edinéia
Souza, uma das filhas do dono do bar, servia aos homens presentes. Lembrei-me da
conversa que tivera com um grupo de mulheres de um programa de alfabetização que
208
SUÁREZ, Mireya. Enfoques Feministas e Antropologia. Trabalho apresentado no I Encontro Nacional
Enfoques Feministas e as Tradições Disciplinares nas Ciências e na Academia, realizado na UFF em 1994.
Série Antropologia 177, Brasília, 1995, p. 10.
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funciona ao lado do bar. Elas falavam da frustração de não poderem compartilhar com os
seus maridos desses escassos momentos de lazer nos fins de semana, como o de beberem
juntos nos botecos, mas ficavam chateadas, sobretudo, quando eles retornavam para suas
casas e nem se lembravam de trazer um guaraná ou uma cerveja para as esposas e seus
filhos.
Quando acontece casais se encontrarem em um mesmo bar, por terem saído juntos
para uma visita a um parente, um compadre ou comadre em outra vila, por exemplo, elas
podem beber, porém, ficam em um espaço à parte e não participam da mesma conversa dos
seus maridos. A única exceção que presenciei foi quando uma visitante que namora um
nativo de Rio das Rãs compartilhou da mesma mesa em que homens bebiam. A visitante
ainda teve direito de participar da animada conversa. A explicação é elementar: homens e
mulheres relevaram aquela presença “estranha” em meio aos homens porque a moça era
uma pessoa de fora, professora da comunidade, portanto, com “licença” para violar as
regras locais.
Mas, nem nessa circunstância especial, as mulheres do quilombo de Rio das Rãs se
atreveram a violar o costume. Elas beberam também no espaço do bar, mas em uma roda
somente delas. Como estavam rindo à vontade, posso imaginar que caçoavam da cena
inusitada daquela moça fora de lugar.
Na vida afetiva conjugal se percebe com mais nitidez que homens e mulheres nos
dois quilombos comportam-se de maneira bem distinta dos casais que conhecemos nos
centros urbanos. Homens e mulheres em Rio das Rãs e Mangal não se beijam em público.
Nos dezesseis anos de estreita relação nos dois quilombos, nunca presenciei casais de
namorados ou esposos se beijarem. Moisés Cândido da Silva (47 anos), da Brasileira, em
Rio das Rãs, professor, músico, compositor e dono da banda do quilombo, portanto, com a
licença poética de escrever e transgredir, me contou que chegou a fazer “uma música pra
Banda Quilombo que fala, ‘tô, tô querendo um beijo, tô tô da tua boca, tô, tô um beijo doce,
vou, vou te deixar louca’”.
No plano da música foi possível ao compositor construir essa imagem poética e
sedutora, porém não há correspondência com a mentalidade vigente no quilombo. Para
Moisés Cândido da Silva, é tão excepcional que homens e mulheres se beijem em público
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que se pode até fazer uma tipologia e definir os momentos em que as exceções podem
ocorrer:
“Os homens aqui pra dar um beijo numa mulher em público, ou ele tá de brincadeira com ela, ou tá de
brincadeira com o outro, tirando o barato de um outro colega pra que ele inveje daquilo, ou então ele tá
dando um sinal, que ele tava alguns tempos fora, ele tá dando um sinal ele chegando em casa, que ele
vai ficar melhor, ficar de bem com ela.”
Moisés explica mais adiante que o ato de beijar é parte de um verdadeiro dilema. Os
casais de namorados que viajaram para São Paulo e aprenderam novos costumes não se
beijavam em público para não desrespeitar os mais velhos. Mas também não procuravam
um lugar reservado, “porque beijar no escuro não podia, porque a moça já podia tá se
perdendo...” Ou seja, sobre ela poderia pesar a séria suspeita de não ser mais virgem, e a
preservação da virgindade nestes quilombos é a condição primária de a mulher ser aceita e
habilitada para o casamento. Apesar de haver casos de mulheres viúvas ou que já tenham
filhos de outra relação se casarem novamente, sobretudo com homens mais idosos.
A separação de casais em Rio das Rãs e Mangal é algo raro, o que não quer dizer que
as mulheres casadas não tenham motivos para tal. Moisés Candido da Silva se refere à
indissolubilidade do casamento de uma maneira peremptória: “casou aqui pro Quilombo de
Rio das Rãs, casou tá casado até os ossos, e até a alma. Agora, a diferença de outros lugares
que eu vejo aqui...”
Moisés explica que a diferença entre Rio das Rãs e os outros lugares que ele mesmo
conheceu, é que na sua comunidade os costumes culturais concederam aos homens direitos
quase ilimitados de ter relações sexuais fora do casamento. Mas, há regras para que isso se
torne aceitável para as mulheres e legitimado na sociedade, e os homens a seguem com
rigor, sob pena de serem censurados pelos mais velhos. A mais importante é a de que o
homem tem permissão para ter relação sexual fora do casamento tão somente se for com
uma mulher “perdida”, isto é, que não seja mais virgem.
As regras sociais de controle das mulheres solteiras, isto é, as virgens, estão mais
frouxas, mas no passado, de acordo com Moisés, os pais eram inflexíveis com o
comportamento do que eles consideravam inaceitáveis:
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“Se até 1979 uma filha minha, ou a filha de qualquer um deles, [saísse] na rua, que fosse ali na casa de
[fulano] e voltasse no escuro com um rapaz, se uma pessoa mais velha pegasse ela no caminho de lá
pra cá junto mais esse rapaz, chegava aqui dizia até que ela já era perdida.”
Neste caso, segundo o depoente, a filha era exemplarmente punida. Quando os pais
não identificavam o rapaz para obrigá-lo a casar com a moça que ele havia supostamente
tirado a virgindade, a reação se voltava contra a filha. Eis o relato detalhado de Moisés
Cândido da Silva sobre a condição da mulher solteira que perdia a virgindade em Rio das
Rãs:
“Ele [o pai] expulsava ela, que fazia na época. Fazia uma casinha pra ela, lá dentro do mato, bem
afastado dele, ou então expulsava ela de qualquer maneira, mas quando fazia isso o pai quando queria
pelo menos ver pelo menos mais por perto. Fazia uma casinha lá dentro do mato, e quando fazia essa
casinha pra ela afastado dos outros, acontecia o que, acontecia que essa casinha que ela tinha feito lá,
ela ia ficar sozinha. Então ela comia mais, ela pelo domínio da mãe que tinha mais pena. O pai deixava
logo geralmente com ela, então aí ela ficava a necessitar, e aí o que aconteceu, os vaqueiro da época
então iam e davam rapadura, meio quilo de toicinho, um quilinho de farinha. E por essas coisas que
eles ofericiam então eles também tinham o direito de dormir com ela. E por ali gerava um [filho].
Esses homens dessa época, uns era, dava por pena, e outros davam por interesse, porque a menina era
nova, e tinha a mulher dele, mas ele podia, o homem no caso do quilombo poderia escapulir, não a
mulher, mas o homem podia, então, começava a ter relação com ela. Tinha uma relação com uma
menina nova dessa, uma menina necessitada, morando sozinha, o colchão na época ou era de um couro
de boi em cima da cama daqueles pau travessado, não era tábua. O camarada começava a perder um
pouco o amor da relação sexual, não o amor pela mulher, mas a relação sexual dentro de casa, ficava
mais forte pra ele poder ir ao atendimento daquela outra, não pintava a criança, quando pintava a
criança, jamais era dele. Ali podia ser de fulano, podia ser de sicrano...”
Alguns aspectos desses costumes mais antigos devem ser evidenciados. O primeiro,
pelo rigor da punição às jovens que perdiam a virgindade, pode-se perceber o rigor de como
no passado eram severas as normas sociais no quilombo. Em segundo lugar, confirma-se
que nessa sociedade, com uma ideologia patriarcal, o homem assumia para si a
responsabilidade de julgar, dar a sentença e punir. Terceiro, os homens tinham licença para
ter relações livres fora do casamento, desde quando as mulheres fossem “solteiras”, isto é,
estivessem no limiar da prostituição. Quarto, as mulheres que perdiam a virgindade eram
expulsas de sua casa e colocadas em um lugar isolado para servirem de exemplo para toda a
sociedade quanto à sua condição de seres “impuros” em que elas se encontravam, no
sentido de Mary Douglas.209 Esta autora, defende a idéia de “que o pouco claro e o
209
DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976.
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“Durante o período liminar, os neófitos são alternadamente forçados e encorajados a refletir sobre sua
sociedade, seu cosmo, e os poderes que os geram e sustentam. A liminaridade pode ser em parte
descrita como um estágio de reflexão.”212
No quilombo de Rio das Rãs, esse costume de o pai expulsar a filha de casa não é
mais tão comum, mas, por outro lado, as mulheres solteiras que perdem a virgindade e não
se casam com algum homem continuam tendo um status inferiorizado, marginal mesmo.
Moisés da Silva explica como está essa relação:
“O pai não faz isso de expulsar ela da casa, fazer uma casinha pra ela lá, deixar ela abandonada [...]
Mas, a gente sabendo que aquela menina ela é solteira, ela tá ali, os rapaz às vezes já quer ficar com
uma que se diz virgem. [Ela então diz]: ‘você não paga uma cerveja pra mim?’; ‘você não paga uma
guaraná pra mim?’; ‘a gente paga’, naquilo que a gente paga, ela começa com aquele elo de amizade
com a gente, e dá o sintoma que ela tá necessitada de interesse, porque o desejo da gente é ter uma
relação sexual com ela”
É comum em Rio das Rãs, conforme foi salientado por Moisés da Silva, que os filhos
nascidos dessas relações marginais não sejam registrados com o sobrenome do pai. Mesmo
com os comentários recorrentes na comunidade de que certa criança é parecida com esse ou
210
TURNER, Victor. Floresta de Símbolos – aspectos do ritual Ndembu. Rio de Janeiro: EDUFF, 2005, p.
141.
211
Idem, p. 112.
212
Ibidem, p. 151.
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144
“Os casados porque as mulheres não têm tempo pra estar lá inda mais durante o dia, num tem um
tempinho pra tá lá de junto e as vez também é aquela coisa que elas não tem costume, de tá junto com
eles. E os solteiros às vezes é porque é aquela coisa que já vem de tradição, que diz onde tem homem
mulher não está, né? Isso aí já vem desde as pessoas mais velhas. ‘Ah, o que é que você ta fazendo
aqui? Você é mulher, vá procurar o seu lugar’, então acho que aí fica...”
Perguntei à entrevistada qual seria esse lugar das mulheres na sociedade de Mangal e,
sem afetação, ela respondeu com um riso no canto da boca de quem entende ser um hábito
cultural estranho para quem não conhece as idiossincrasias da cultura de sua terra:
“Eles, o pessoal acham que é no caso tem [a mulher] que tá em casa. Vamos supor, se for mãe, no
caso, ela pode tá só no lugar só delas mesmo mulher, e não no bar junto com os homens, né? E sim só
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145
elas mulher e se tiver outro reservado... O que acontece, que às vezes as mulher vai num bar e aí se os
homens tá num lugar, ela tá lá em outro lugar reservado. Só elas as mulheres.”
A aproximação física e afetiva entre homens e mulheres em Rio das Rãs e Mangal é
mais comum nas celebrações públicas, como os bailes, nos finais das festas religiosas, que
sempre acabam em samba, nos casamentos. Nestes casos, os casais podem se abraçar,
dançar juntos e até se beijarem. Mas, essa descontração, talvez, seja provocada pela
ingestão de bebidas.
Algumas mulheres na comunidade de Mangal, de acordo com a minha depoente,
chegam a reclamar das estafantes tarefas que lhes são reservadas no dia a dia da
comunidade: “ ‘Ah, a gente trabalha demais. A gente trabalha demais. Desde a hora que a
gente levanta até a hora que a gente deita na cama. É o tempo todo trabalhando’.” Mas, essa
queixa não chega a se transformar em protesto para mudar o status quo. Ao contrário, as
forças sociais predominantemente patriarcais reproduzem mecanismos dissuasórios que
impedem que os protestos isolados progridam.
Os homens que aceitam fazer, por exemplo, serviços considerados femininos – como
lavar roupa, passar, varrer casa –, são tratados pela sociedade local impiedosamente,
segundo Clene Farias:
“ ‘Ah, fulano agora fulano é...’, eles dizem: ‘aquele ali é viado, faz tudo que a muié manda. Agora
porque a muié saiu, a muié tal, vou ter que fazer isso! Vou fazer isso nada!’”
Com isso, os homens que se sensibilizam em ajudar as suas esposas são prontamente
desencorajados a alterar o que a tradição estabeleceu como princípio normativo.
A poligamia em Mangal é tolerada, segundo Clene, moderadamente. As mulheres que
ouvem falar de casos extraconjugais de seus maridos ficam tristes e desoladas. “Quando a
esposa é traída com “uma pessoa da comunidade”, os homens são severamente censurados:
“ ‘Ah, eu não esperava de fulano fazer isso...’” Mas, como se vê, é uma reprimenda que
mostra uma sutil desaprovação, mas que compreende ser algo passível de acontecer. Em
Rio das Rãs, isto tem uma conotação bem diversa. A ocorrência de casos extraconjugais
neste quilombo parece ser mais frequente e sem uma explícita condenação pública, desde
que a mulher seja “solteira”, isto é, perdeu a virgindade e não se casou.
Provavelmente, essa é a razão para que os homens do Mangal procurem mulheres
fora do casamento em lugares distante do quilombo, como observou Clene Farias, para não
sofrer, assim, um constrangimento público. O fato de Mangal ter uma população menor do
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147
que Rio das Rãs e o povoado estar concentrado em um território mais exíguo, talvez
explique as diferenças entre os dois quilombos; além disso, deve-se levar em consideração
que o quilombo de Mangal é formado basicamente por duas famílias rivais, o que restringe
muito a ação dos homens que queiram buscar novas aventuras sexuais.
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148
Capítulo III
Grande parte do pensamento religioso se orienta pela crença em deuses poderosos nos
quais se tem a mais absoluta confiança e fé. Em decorrência dessa crença, a maior parte dos
seguidores das religiões aceita formalmente serem os seus deuses os criadores do universo,
da natureza terrestre, dos homens e, baseado em seus ensinamentos, é possível explicar
acontecimentos do passado, do presente e mesmo projetar o futuro. A religião, neste
sentido, é vista, de um modo geral, como um sistema de crença integrado a um conjunto
ordenado de dogmas e de ritos sistematizados teologicamente. As grandes religiões de
revelação, como o cristianismo, o judaísmo e o islamismo podem se enquadrar nesse
simplificado modelo.
Existem outras modalidades de religião que compartilham de enunciados presentes
nas referidas religiões de revelação, mas que se diferenciam quanto ao relacionamento e
formas de comunicação dos indivíduos com os deuses, aos valores e obrigações outorgadas
a eles, às práticas rituais, às formas e objetos de oferendas e, sobretudo, quanto às
motivações individuais e coletivas de religiosidades213. É o caso, por exemplo, das religiões
e religiosidades tradicionais africanas.214
Em algumas dessas modalidades, notadamente as que influenciaram os africanos que
vieram escravizados para o Brasil, a prática religiosa não está reduzida a uma ação
particular de indivíduos, e sim faz parte do sistema de organização social, da atividade
laboral, da vida econômica e do modo de organização do sistema de parentesco. Ou seja, o
sistema religioso articula e, em certo sentido, orienta as ações dos indivíduos em todas as
atividades rotineiras de sua sociedade. Assim, através da idéia de Tylor, que concebia a
213
O conceito de religiosidade, ao contrário do que evoca a formalidade religiosa, será empregado em todo o
texto de acordo com a sugestão de Marc Piault: “para dar conta sobretudo das atitudes, das práticas e das
expectativas...” PIAULT, Marc Henri. A questão do sentido: progressões, práticas emergentes e expectativas.
In: BIRMAN, Patrícia. (Org.) Religião e espaço público. São Paulo: CNPq/PRONEX/ATTAR Editorial,
2003, p. 369.
214
O conceito de tradicional é empregado aqui no sentido temporal para se referir às religiões autóctones
presentes em quase toda África negra.
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149
religião como “a crença em seres espirituais”215, não é possível, de acordo com a crítica de
Pritchard, compreender as práticas religiosas e o sentido de religiosidade africana. Nas
cosmologias africanas, incluem-se dimensões que estão ausentes nas idéias mais
ocidentalizadas de religião, a exemplo da “magia, totemismo, tabu e mesmo bruxaria...”216
Antes de discutir o que diferencia o pensamento religioso africano de outras formas
de religiosidades, sobretudo, o de origem ocidental, faz-se necessário distinguir, de modo
breve, o que alguns autores escreveram sobre esse fenômeno.
Os antropólogos que estudaram os fatos religiosos, após terem realizado pesquisas de
campo com os povos tradicionais da África, Ásia, Oceania e América, ainda que tenham
aprimorado a noção de religião, não conseguiram elaborar um conceito mais sociológico,
na opinião de Evans-Pritchard. Lowie, por exemplo, associou o fato religioso à emoção.
Paul Radin, por outro lado, acreditava que o “sentimento religioso” estivesse vinculado aos
“valores de sucesso, felicidade e vida longa...”217 Enquanto Malinowski imaginou que a
religião provocaria nos homens alívio diante do medo e da ansiedade. Com esse mesmo
viés, Sigmund Freud considerava que os chamados povos primitivos supervalorizaram o
pensamento, daí a importância das palavras para os mágicos. Ele acreditava, ainda, que “a
religião é igualmente uma ilusão. Ela surgiu e [foi] mantida por seu sentimento de
culpa.”218
Estas concepções psicologistas de religião foram duramente criticadas por Pritchard,
em parte pelo caráter especulativo, mas também pela presumida individualização das
condutas religiosas concebidas em tais teorias.
Faltava, portanto, o fato religioso ser discutido sociologicamente, isto é, como um
fenômeno não dissociado da cultura de um povo e da sua experiência de viver em
sociedade. Fatores psicológicos como emoção, medo, temor, espanto podem ter
influenciado no surgimento da religião, mas tais fatores, isoladamente, não poderiam
determinar o surgimento das mesmas. A influência do sistema de parentesco nas
religiosidades dos povos estudados pelos referidos autores, largamente aceita nas ciências
215
EVANS-PRITCHARD, E. E. Antropologia Social da Religião. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1987, p.
14.
216
EVANS-PRITCHARD, E. E. Antropologia Social da Religião, p. 14.
217
Idem, p. 59.
218
Idem, 63.
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150
219
EVANS-PRITCHARD, E. E. Antropologia Social da Religião, p. 97
220
Idem, p. 91.
221
Idem, p. 164.
222
MAUSS, Marcel. Ensaios de Sociologia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1981, p. 226.
223
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1967.
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151
224
ELIADE, Mircea. O sagrado e profano – a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 18.
225
Idem, p. 32.
226
VANSINA, Jan. A tradição oral e sua metodologia. In: KI-ZERBO, Joseph (Coord.). História da África -
metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática/UNESCO, 1982, 157.
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152
Vansina, que não põe em dúvida o valor documental das tradições orais, esta “foi definida
como um testamento transmitido oralmente de uma geração a outra.”227
A oralidade, entretanto, já foi considerada uma ferramenta pouco confiável, sobretudo
pelos historiadores. Le Goff, por exemplo, alerta que é preciso ter cuidado com o uso desse
método. A memória oral, de acordo com o autor, carece ser interpretada e não deve ser
traduzida “palavra por palavra”.228 Ele quer dizer que não é qualquer palavra pronunciada
que pode representar a experiência histórica de um povo; nas sociedades nas quais a escrita
não predomina, as narrativas orais confiáveis são reservadas aos especialistas. Os
indivíduos mais velhos exercem nessas sociedades um papel proeminente, justamente
porque a alguns deles são delegadas responsabilidades de narrar feitos ancestrais. Por essa
razão, “a memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e um
objeto de poder.”229 Essa é a razão da importância da assertiva que, de acordo com Augé, é
atribuída à “fórmula de Hampaté Bâ segundo a qual, na África, um velho que morre é uma
biblioteca que se queima...”230
O sábio africano referido por Augé assinala também que, durante muito tempo, se
imaginou ser a escrita redutível à civilização humana em geral, sendo que os povos que não
a dominassem seriam considerados sem cultura e sem história. Mas, a palavra na cultura
africana é igualmente fundamental, de acordo com Hampaté Bâ, porque ela encerra o
“poder criador, mas também a dupla função de conservar e destruir.”231 O autor se refere,
especialmente, ao poder construtor e destruidor que tem a palavra nos rituais religiosos
africanos, embora a importância da palavra não se restrinja a esta dimensão.
A tradição oral não se refere apenas à responsabilidade de narrativas ou à descrição
de conhecimentos específicos, ela “é geradora e formadora de um tipo particular de
homem.”232 Hampaté Bâ fala que o domínio da tradição oral, além de ser, como
observaram outros autores, uma função especializada, é parte do patrimônio de uma
civilização, o que significa dizer, ela está inscrita nessa cultura como um importante
227
Idem, p. 158.
228
LE GOFF, Jaques (et. ali). História e memória. 2. ed. Campinas: Editora UNICAMP, 1992, p. 426.
229
LE GOF, Op. Cit. p. 476.
230
AUGÉ, Marc. Não-Lugares – introdução a uma antropologia da supermodernidade. 2. ed. Campinas:
Papirus, 2001, p. 14.
231
HAMPATÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (Coord.). História da África –
metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática/UNESCO, 1982, p. 186.
232
Idem, p. 199.
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153
233
Idem, p. 217.
234
Idem, p. 186.
235
LEITE, Fábio. A questão da Palavra em sociedades Negro-Africanas. Revista THOT 80, s/d, p. 37.
236
CRAMER, de Willy, VANSINA, Jan, FOX, Renée C. Religions in of Movements Central Africa:
Theorical Study. Comparatives Studies in Society and History, 1976.
237
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé – história e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas:
Editora UNICAMP, 2006, p. 104.
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154
238
Idem, p. 104.
239
CRAMER, de Willy, VANSINA, Jan, FOX, Renée C, 1976.
240
THONSON, Dennis L., VAN BEEK, Walter E. A., BLAKELY, Thomas D. (eds.) Religion in Africa:
Experience e Expression. (Introduction) London: Portmouth: James Currey; Heinemann, 1994. p. 23
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155
que o traduzir torna-se ainda mais interessante, na medida em que seja possível comparar
com outros sistemas religiosos com diferentes princípios. No caso das religiosidades
africanas que dialogaram com diferentes experiências, a tradução seria o cerne dessa
concepção. No processo de aproximação cultural entre duas ou mais formas de
religiosidades, tanto a religião de origem como a religião de contato seriam igualmente
modificadas “e, ao fazê-lo, transforma[ria]m tanto a expressão como a experiência.”241
Os autores consideram também que essa plasticidade da religiosidade africana em
incorporar outras experiências ajudou-a a fugir da oposição contrastiva ego/alter para uma
idéia de relação, que melhor explicaria as expressões religiosas africanas.
Nas duas concepções de religiosidades africanas aqui expostas – a da experiência e a
da performance –, o fato religioso tem uma dimensão dinâmica, isto é, está propenso e
permeável a se reatualizar e sofrer influências de outras culturas. Isso explicaria porque na
experiência dos cultos de possessão entre os somali estudados por Lewis, tanto os espíritos
como também os cultos praticados estariam se reconfigurando por influência das mudanças
sociais e culturais. As alterações identificadas refletiriam igualmente os papéis sociais
desempenhados por homens e mulheres na sociedade. A autora teoriza que na “chegada
desses novos acréscimos de espíritos, refletindo novos contatos e novas experiências,
alguns dos velhos espíritos se tornam inúteis e desaparecem.”242 Com isso, querendo
afirmar que essas religiosidades têm uma relação direta com o contexto do seu surgimento e
as mudanças culturais que ocorrem na sociedade somali.
George Balandier afirma que há uma dialética na tradição religiosa africana em que
“tudo se traduz por um jogo de forças e de relações, tudo se exprime por uma dinâmica
constitutiva do real, para o qual se efetua o constante embate da ordem e da desordem.”243
A ordem deve ser concebida como a manutenção do equilíbrio social e a permanência
daquilo que é instituído pelas normas e códigos da tradição. Quando a ordem é abalada, é
um indicador de que um possível ataque de feitiçaria esteja a caminho. Nessa cosmologia, o
caráter antissocial da feitiçaria se define por estar na contramão da ordem social, isso
241
Idem, p. 25
242
LEWIS, Ioan M. Êxtase Religioso: um estudo antropológico da possessão por espírito e do xamanismo.
São Paulo: Editora Perspectiva, 1977 [1971], p. 122.
243
BALANDIER, Georges. O Contorno: poder e modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p.
38/9.
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156
244
Idem, p. 52.
245
MACGAFFEY, Wyatt. Kimbanguism and the question of Syncretism in Zaire. In: THONSON, Dennis L.,
VAN BEEK, Walter E. A., BLAKELY, Thomas D. (eds.) Religion in Africa: Experience e Expression.
London: Portmouth: James Currey; Heinemann, 1994.
246
HORTON, Hobin. El pensamiento tradicional africano y la ciencia Occidental. In: GLUCKMAN, Max,
DOUGLAS, Mary, HORTON, Hobin. Ciencia y Brujeria. Barcelona: Editorial ANAGRAMA, 3. ed., 1991,
p. 75.
247
HOBIN, Horton, p. 80.
248
Idem, p. 86.
249
Idem, p. 107.
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157
não seja certa.”250 Mary Douglas, em certo sentido, reforça o argumento de que há lógica
no pensamento tradicional africano, na medida em que suas crenças mantêm o equilíbrio
dos sistemas sociais. Por esse motivo, ela credita a Evans-Pritchard ter colocado a crença na
bruxaria entre os Azande “como parte do problema da explicação como tal.”251
Essa correlação entre o pensamento científico e as construções de religiosidade no
pensamento africano já havia sido observada por alguns clássicos da antropologia, ainda
que timidamente. Malinowski via uma distinção radical entre ciência e pensamento africano
tradicional: a “ciência fundamenta-se na convicção de que a experiência, o esforço e a
razão são válidos; a magia, na crença de que a esperança não pode falhar nem o desejo
iludir.”252 Marcel Mauss argumentou, por outro lado, que o mágico por experiência ou
revelação possui conhecimentos e, de acordo como o seu ponto de vista, é “neste ponto que
a magia mais se aproxima da ciência, sendo mesmo, algumas vezes, nesse sentido, muito
sábia, se não verdadeiramente científica.”253
As diferentes recriações e acréscimos de religiosidades na diáspora e, sobretudo, no
Brasil, podem muito bem ser inseridas nessa visão mais maleável das tradicionais religiões
africanas. A seguir, veremos que esta concepção será útil e operacional para se entender
uma grande variedade de situações, práticas e comportamentos religiosos no Brasil.
250
GLUCKMAN, Max. La logica de la ciencia y de la brujeria africanas. In: GLUCKMAN, Max,
DOUGLAS, Mary, HORTON, Hobin. Ciencia y Brujeria. Barcelona: Editorial ANAGRAMA, 3. ed., 1991, p.
21.
251
DOUGLAS, Mary. Brujeria: el estado de la question – treinta años después de Brujeria, Oráculos y Magia
entre los Azande. In: GLUCKMAN, Max, DOUGLAS, Mary, HORTON, Hobin. Ciencia y Brujeria.
Barcelona: Editorial ANAGRAMA, 3. ed.,1991, p. 36.
252
MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, Ciência e Religião. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 90.
253
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP, 1974, p. 105.
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158
ser a religião algo privado, como o são as presumíveis escolhas autônomas que se faz para
uma relação afetiva ou para se torcer por um time de futebol.
Mas, a percepção dos indivíduos familiarizados com as religiões e religiosidades
africanas e afro-brasileiras diferem dessa presumida individuação das concepções religiosas
hegemônicas no Brasil, notadamente as originadas do cristianismo.
Nos terreiros de candomblé, por exemplo, é habitual se ouvir que os indivíduos não
procuraram os terreiros do qual fazem parte, foram os Orixás que as escolheram e as
trouxeram. Nessa idéia está subtendida, por um lado, que a escolha religiosa não é privativa
do indivíduo, pois ele faz parte de uma cultura que o obriga a aceitar as injunções
estabelecidas ancestralmente; por outro lado, sugere também que cada indivíduo já nasce
com certas predisposições (Ori) definidas por forças espirituais que comandam a sua ação.
As idiossincrasias quanto à liberdade de escolha dos indivíduos nas duas experiências
de religiosidades aqui citadas podem ter sido influenciadas pela história de fundação dessas
experiências.
As religiões de origem africana não tiveram na história do Brasil, até janeiro de 1976,
a mesma liberdade de cultuar os seus deuses como tiveram os praticantes do catolicismo.
Além disso, o reconhecimento e a legitimação social dos cultos afro-brasileiros como
religiões sempre foi algo problemático na sociedade brasileira; não esquecendo que até a
década de setenta do século vinte os terreiros tinham que receber autorização da polícia
para realizar os seus rituais, por serem consideradas contravenções penais.254 Mais
recentemente, em resposta às violências perpetradas por igrejas neo-pentencostais, as
lideranças das religiões afro-brasileiras foram obrigadas a criar um movimento contra a
intolerância religiosa.255
Em tais circunstâncias, a questão da escolha religiosa e, sobretudo, a sua admissão
pública, certamente pode ter sido também influenciada por esses condicionantes políticos,
sem que isso invalide as razões de ordem cosmológica mencionadas acima.
254
Cf. BRAGA, Julio. Na gamela do Feitiço: repressão e resistência nos Candomblés da Bahia. Salvador:
CEAO/EDUFBA, 1995; BRAGA, Julio. A Cadeira de Ogã e outros ensaios. Rio de Janeiro: PALLAS, 1999.
255
Cf. SILVA, Vagner Gonçalves (org.). Intolerância Religiosa – impactos do neopentecostalismo no campo
religioso afro-brasileiro. São Paulo: EDUSP, 2007; BIRMAN, Patrícia (org.). Religião e espaço público.São
Paulo: CNPq/PRONEX/ATTAR Editorial, 2003; OLIVEIRA, Rafael Soares (org.) Candomblé – diálogos
fraternos contra a intolerância religiosa. Rio de Janeiro: DP&A, 2007.
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159
256
Cf. LABURTHE-TOLRA, Philippe, WARNIER, Jean-Pierre. Etnologia, Antropologia. 2. ed. Petrópolis:
Vozes, 1999.
257
EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1978, p. 37.
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160
258
MAIR, Lucy. La brujeria en los pueblos primitivos actuales. Madrid: Ediciones Guadarrama, 1969.
259
TURNER, Victor. Floresta de Símbolos – aspectos do Ritual Ndembu. Niterói/RJ: EDUFF, 2005, p. 166.
260
LABURTHE-TOLRA, Philippe, WARNIER, Jean-Pierre, p. 325.
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161
representações coletivas.”261 Uma prática social se torna uma instituição social duradoura,
se ele se mantém inabalável independentemente do juízo moral que os indivíduos façam
dele.
A feitiçaria, de acordo com esta concepção, é uma instituição social, inclusive no
contexto da modernidade pois, a despeito de todo o fascínio exercido pela racionalização da
vida moderna, não conseguimos abandonar, mesmo que irrefletidamente, certos receios e
temores tipicamente relacionados aos discursos da feitiçaria.
É comum em nossa sociedade, por exemplo, o medo do escuro, de ruídos estranhos
na madrugada e de pessoas com aspecto lúgubre que fixem o olhar em recém-nascidos.
Nestes exemplos, os nossos temores podem estar relacionados à idéia que construímos
socialmente de que existem indivíduos com poderes e energias capazes de provocar o mal.
É por esse e outros motivos que a feitiçaria atravessou gerações e períodos históricos e
permanece com força no mundo contemporâneo, onde se tornou uma instituição social.
Portanto, é inadequado o diagnóstico de Mair de que as “crenças na bruxaria florescem
naquelas sociedades que têm um conhecimento médico insuficiente...”262 Neste juízo de
Mair, está subtendido que a feitiçaria seria uma instituição incapaz de se renovar e,
portanto, sem condições de rivalizar com outras maneiras de explicar ocorrências naturais e
sociais. Em outra parte deste texto, vou tentar demonstrar que o discurso da feitiçaria
convive com a modernidade e que não há um antagonismo entre os dois discursos.
Por considerar a feitiçaria do ponto de vista da sua representação simbólica e da
eficácia que a mesma exerce nas relações sociais, somos inclinados a corroborar com a
mesma proposição de Mary Douglas:
Ou “o poder da magia é pura ilusão [como queria Freud], ou não é. Se não é ilusão, então os símbolos
têm o poder de operar mudanças. Deixando os milagres de lado, este poder pode atuar somente em
dois níveis, o da psicologia individual e da vida social”.263
261
MAUSS, Marcel. Ensaios de Sociologia, pp. 19/20.
262
MAIR, Lucy, p. 9.
263
DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976, p. 89.
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162
264
Da MATTA, Roberto. Apresentação Liminar à obra e à graça de Victor Turner e à sua Antropologia da
Ambigüidade. In: TURNER, Victor. Floresta de Símbolos, p. 26.
265
TURNER, Victor. Floresta de Símbolos, p. 60/61.
266
Idem, p. 68.
267
GIDDENS, Anthony. Política, Sociologia e Teoria Social – encontros com o pensamento social clássico e
contemporâneo. São Paulo: Editora UNESP, 1998, p. 257.
268
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 21. ed. Rio de Janeiro: GRAAL, 2005, p. 250.
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163
“O proprietário mandou chamar o feiticeiro e ameaçou-o de severo castigo; negou ele, porém, a autoria
do fato, comprometendo-se, todavia, a pôr a mulher boa. E pouco tempo depois, estava ela
completamente restabelecida. Este sucesso devia crescer ainda mais o prestígio do feiticeiro de que
270
ainda hoje, morto como ele já é, falam todos com respeito.”
Não é apenas o temor vago que faz dos feiticeiros indivíduos poderosos em todas as
sociedades em que predominam as crenças na feitiçaria. Eles são respeitados porque se
acredita que eles são capazes de manipular forças que agem efetivamente para o bem e
para o mal. Por serem largamente compartilhadas nas sociedades onde estão presentes, as
crenças na feitiçaria a fazem mais ainda influente. São essas forças que transmitem para os
indivíduos em sociedade a idéia de que vale a pena se precaver, daí a feitiçaria ser
considerada por alguns teóricos como um instrumento de controle social.
O fato de a ideologia da feitiçaria ser capaz de influenciar os processos sociais
provocando mudanças, não significa ser pacífica a sua relação com o poder. Na maior parte
das sociedades, a feitiçaria é vista como uma ação temida por ser negativa e destrutiva.
“Para os antigos beti, a sua fonte secreta [de poder] reside no próprio poder de agir mal,
pelo uso anti-social da feitiçaria...”271
Na história da África Central, segundo Thornthon, havia forte imaginário que
associava a feitiçaria ao poder, e os congoleses tinham uma justificada desconfiança de
ambos. A utilização do poder, de acordo com esse imaginário, poderia ser feita
269
TURNER, Victor. Floresta de Símbolos, p. 436.
270
RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros baianos. Salvador: P555 Edições/Theatro XVIII,
2005, p. 64.
271
LABURTHE-TOLRA, Philippe, WARNIER, Jean-Pierre, p. 133.
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164
“abusivamente com propósitos egoístas e mal-intencionados, e como tal seria uma forma de
feitiçaria política ou para o uso de interesse público, o que poderia incluir a supressão da
feitiçaria.”272
Em muitas situações, os feiticeiros com as suas técnicas mortais ou usando a força de
mobilizar certas divindades, se voltam justamente para os que detêm o poder, não
necessariamente para competir, mas com a finalidade de desafiar. É desse modo que
Balandier assinala que entre os feitos de Legba incluem-se “a ironia, que desmoraliza o
poder e as hierarquias, a rebelião, que mostra que o poder não é intangível, o movimento
que introduz a perturbação da mudança no âmago da ordem.”273
A estreita relação entre feitiçaria e poder tem como ponto de interseção a
ambivalência, onde ambos circulam com desenvoltura. Ao mesmo tempo em que poder e
feitiçaria aspiram à visibilidade – através dos resultados de suas maquinações –, tanto a
feitiçaria como o poder são, ao mesmo tempo, célebres cultuadores do silêncio, do segredo,
da sombra, enfim, do oposto à transparência. Pierre Clastres nos diz que para a maioria das
tribos indígenas sul-americanas, “os mesmos poderes que fazem dele [o xamã] um médico,
isto é, um homem capaz de provocar a vida, permitem-lhe também dominar a morte: é um
homem que pode matar.”274
E Evans-Pritchard observou em sua pesquisa entre os Azande que a magia era um
poder concentrado, sobretudo, nas mãos dos homens e, justamente por esse motivo, quando
as mulheres desconfiavam de estarem sendo enfeitiçadas recorriam aos seus maridos.275
Assim, o discurso da feitiçaria cria também desequilíbrio entre os indivíduos de sexos
diferentes, introduzindo, desse modo, outra problemática no universo das relações sociais,
que é o da desigualdade de gênero. Considerando ter a maior parte das sociedades africanas
uma predominância masculina entre os feiticeiros, pode-se inferir ser a questão de gênero
mais um elemento provocador de conflitos no interior das sociedades onde a feitiçaria se
faz presente.
272
THORNTON, John K. Religião e vida cerimonial no Congo e áreas Umbundo, de 1500 a 1700. In:
HEYWOOD, Linda M. (org.) Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2008, p. 93.
273
BALANDIER, Georges. O contorno: poder e modernidade, p. 99.
274
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. 4.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1998, p. 100.
275
EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, 1978.
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165
276
LABURTHE-TOLRA, Philippe, WARNIER, Jean-Pierre, p. 223.
277
SOMETTI, José. Feitiço e Contra Feitiço. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 11.
278
Idem, p. 53.
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166
uma expressão da ação do diabo, ao contrário da ideologia africana que creditava a sua
força “nas intenções dos vivos, e não no status do sobrenatural.”279
Tanto as práticas mágicas relacionadas à feitiçaria como outras formas de
religiosidades africanas teriam chegado até nós, de acordo com Kiddy, através dos
“centros-africanos”, a exemplo das “irmandades religiosas leigas, um lugar ideal para
reunir uma comunidade africana no Brasil.”280
As primeiras levas de africanos que chegaram ao Brasil, para Slenes, conseguiram
superar hostilidades decorrentes das suas origens, nações e línguas e, pelo menos em
Minas, Rio de Janeiro e São Paulo, “os escravizados africanos usaram seu passado para dar
sentido ao presente e sua cosmologia lhe deu recursos para agir conjunta e
decisivamente.”281 Isso explicaria o uso de conhecimentos ancestrais, como o da feitiçaria,
que poderia ser uma importante arma política em defesa dos interesses dos escravizados.
Laura de Mello Souza, em seu clássico O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e
religiosidade popular no Brasil Colonial, argumenta que as crenças na feitiçaria trazidas
pelos africanos durante a colonização foram indiretamente reforçadas pela filosofia
religiosa portuguesa que enxergava o mundo pela ação de “forças sobrenaturais”282. Uma
idéia que influenciou a percepção de que o cotidiano da vida colonial fosse “impregnado de
demônios.”283 De acordo com esse olhar, os índios e negros não poderiam ser portadores de
uma humanidade semelhante à do europeu, visto serem os tais povos não apenas diferentes,
e sim, ontologicamente inferiores.
Embora as cosmologias portuguesa e africana se conflitassem filosoficamente sobre a
origem do mal, alguns estudiosos consideram que as duas cosmologias, ainda que marcadas
por essas diferenças antagônicas, se comunicaram e, muitas vezes, se mesclaram. Questão
que remete para a discussão sobre o sincretismo religioso no Brasil que, no entender de
279
THORNTON, John K, p. 92.
280
KIDDY, Elizabeth W. Quem é o rei do Congo? Um novo olhar sobre os reis africanos e afro-brasileiros.
In: HEYWOOD, Linda M. (org.) Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2008, p. 170.
281
SLENES, Robert W. A Grande Greve do Crânio do Tucuxi: espíritos das águas centro-africanas e
identidade escrava no início do século XIX no Rio de Janeiro. In: HEYWOOD, Linda M. (org.) Diáspora
negra no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2008, p. 217.
282
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil
Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 137.
283
Idem, 145.
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167
284
FERRETI, Sérgio Figueiredo. Repensando o sincretismo. São Paulo: Editora USP; São Luís: FAPEMA,
1995, p. 17.
285
MILLER, Joseph. C. África Central durante a era do comércio de escravizados, 1490 a 1850. In
HEYWOOD, Linda M. (Org.) Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2008.
286
HEYWOOD, Linda M. De português a africano: a origem centro-africana das culturas atlânticas e crioulas
no século XVIII. In HEYWOOD, Linda M. (Org.) Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Editora Contexto,
2008.
287
KIDDY, Elizabeth W, p. 170.
288
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé – História e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas:
Editora UNICAMPI, 2006, p. 111.
289
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz, p. 378.
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168
290
REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do
século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
291
Idem, 204.
292
COUCEIRO, Luiz Alberto. A sedução do feitiço: Juca Rosa, Pai Gavião e acusações de feitiçaria no
Império do Brasil. Trabalho apresentado no XIII Encontro de História ANPUH, Rio de Janeiro: Identidades,
s/d.
293
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé, p. 112.
294
COUCEIRO, Luiz Alberto, p. 7.
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169
Janeiro já conheceu.”295 Ainda segundo a imprensa da época, “Juca Rosa era a ‘questão
mais na baila’, o ‘grande assunto nacional’ de então.”296
Note-se que esse ardoroso destaque com que Juca Rosa fora retratado pela imprensa,
ocorre no momento em que ele é preso, e sendo acusado de feitiçaria. Desse modo, fica
evidente que o feiticeiro tinha influência política na sociedade de então, o que, para
Gabriela Sampaio, não chega a ser a uma novidade, já que entre os clientes de Juca Rosa,
além dos negros e pobres do Rio de Janeiro, havia “também políticos, ricos comerciantes,
membros das classes dominantes brancas e letradas, que se deslocavam até sua casa em
busca dos seus conselhos e prodigiosas curas...”297
Ivonne Maggie, que considera a crença na feitiçaria um elemento “central” no
imaginário da sociedade brasileira, relata a história de um curador no interior da Bahia,
Manuel Paulo dos Santos, que ameaçara com feitiçaria um cliente que não cumprira um
trato com ele. O cliente ameaçado, Generino Bispo dos Santos, tomado de medo de ser
enfeitiçado, segundo a sua alegação em juízo, resolveu matar o curador. No julgamento do
réu, o antropólogo Vivaldo da Costa Lima, na condição de perito, defendeu em juízo
“separar a personalidade do réu de sua circunstância sócio-cultural”298, subtendendo em seu
parecer que a crença na feitiçaria é algo que, de fato, determina uma maneira de agir. O juiz
acatou a alegação do advogado, naturalmente respaldado pela opinião do perito, de que seu
cliente agira em “legítima defesa.”
Duas questões importantes neste relato de Maggie. A primeira é que a denúncia de
feitiçaria envolve um “curador”, fato comum no Brasil e na África. A outra questão
interessante é que o réu depois que fora solto se dirigira ao advogado com a seguinte
indagação: “Doutor, e se a alma dele voltar?”299 Moral da história: Generino dos Santos se
livrou da prisão, mas não do medo da feitiçaria.
295
SAMAPAIO, Gabriela dos Reis. Tenebrosos Mistérios – Juca Rosa e as relações entre crença e cura no
Rio de Janeiro. In CHALHOUB, Sidney et. ali. (Orgs.) Artes e ofícios de curar no Brasil. Campinas/SP:
Editora UNICAMPI, 2003, p. 387; Ver também: SAMPAIO, Gabriela dos Reis. A história do feiticeiro Juca
Rosa – cultura e relações sociais no Rio de Janeiro Imperial. Tese de Doutorado. Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas/UNICAMPI, 2000.
296
SAMAPAIO, Gabriela dos Reis. Tenebrosos Mistérios, p. 388.
297
Idem, p. 388.
298
MAGGIE, Ivonne. O feitiço da Antropologia. In: BACELAR, Jéferson, PEREIRA, Cláudio (orgs.).
Vivaldo da Costa Lima – um intérprete do Afro-Brasil. Salvador: EDUFBA/CEAO, 2007, P. 78
299
Idem, p. 82.
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170
Jocélio Teles dos Santos discute denúncias de feitiçaria difundidas na Bahia no século
XIX, pelo jornal O Alabama, envolvendo líderes de terreiros de candomblés. O autor
questiona se tais denúncias procediam e, sobretudo, se tais feitiços “precisariam ser feitos
numa roça de candomblé.”300 Mas é fato que, tanto no passado como no presente,
denúncias de feitiçaria envolvendo curadores ou pais de santo foram e são comuns, embora
eles sejam, teoricamente, os principais responsáveis por fazer consultas aos oráculos para
identificar a ocorrência de enfeitiçamento e, desse modo, prescrever fórmulas para anular
os malefícios remetidos a um cliente. Todavia, há justificadas razões para que o autor
suspeite de serem algumas dessas denúncias forjadas para incriminar o candomblé, que
durante muito tempo foi associado, de forma preconceituosa, à feitiçaria, conforme
demonstrou exaustivamente Braga301, na primeira metade do século XX, com a deliberada
intenção de estigmatizar e negar a condição legítima de religião. Esse fenômeno se repete
ainda na atualidade, através das conhecidas pregações das igrejas neopentecostais que
associam o candomblé à “bruxaria e ao diabo.”302.
É importante lembrar que, ao longo do século vinte, as denúncias de feitiçaria
relacionadas ao candomblé se baseavam na imputação de a mesma ser uma contravenção
penal. A este propósito, o livro de Ivonne Maggie, Medo do feitiço, demonstra cabalmente
que a ação do Estado brasileiro, desde 1890, ao enquadrar legalmente as práticas de magia,
o espiritismo e o curandeirismo, pretendeu de fato criar “mecanismos reguladores” para
normatizar as acusações de feitiçaria.303
Maggie lembra também que os mecanismos reguladores da feitiçaria no Brasil foram
implantados ainda durante a Colônia, e os antecedentes de perseguição contra as religiões
originadas na África ocorreram durante a escravidão. A Igreja Católica procurou impedir
que os africanos praticassem as suas religiões nativas através da catequização forçada, mas
também associando as práticas religiosas dos negros ao paganismo. Conforme a oportuna
lembrança de Montero, a feitiçaria, durante a colonização portuguesa, foi demonizada pela
300
SANTOS, Jocélio Teles dos. Candomblés e espaço urbano na Bahia do século XIX. Revista Estudos Afro-
Asiáticos, 2005, p. 218.
301
Cf. BRAGA, Julio. Na Gamela do Feitiço – repressão e resistência nos Candomblés da Bahia. Salvador:
EDUFBA/CEAO, 1995; BRAGA, Julio. A Cadeira de Ogã e outros ensaios. Rio de Janeiro: PALLAS, 1999.
302
Cf. SILVA, Vagner Gonçalves (org.). Intolerância Religiosa – impactos do neopentecostalismo no campo
religioso afro-brasileiro. São Paulo: EDUSP, 2007; OLIVEIRA, Rafael Soares (org.) Candomblé – diálogos
fraternos contra a intolerância religiosa. Rio de Janeiro: DP&A, 2007.
303
MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e o poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1992.
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171
304
MONTERO, Paula. Religião, Pluralismo e espaço público no Brasil. Novos Estudos/CEBRAP, Nº 74,
março de 2006.
305
PARÉS, Luis Nicolau, p. 112.
306
MAGGIE, Ivonne. Guerra de Orixá – um estudo de ritual e conflitos. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2001, p. 99.
307
DANTAS, Beatriz Góis. Vovó Nagô e Papai Branco – usos e abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro:
GRAAL, 1988, p. 86.
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172
308
Idem, p. 184.
309
BRAGA, Julio, 1995;BRAGA, Julio, 1999.
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173
310
PASSADOR, Luiz Henrique. Dinheiro e feitiço numa vila moçambicana. Trabalho apresentado na 20º
Reunião da Associação Brasileira de Antropologia, Porto Seguro, 01 a 04 de junho de 2008. Digitado.
311
Idem, p. 07.
312
Idem, p. 11.
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174
313
Idem, 14.
314
ORTIZ, Renato Mundialização: saberes e crenças. São Paulo: Editora Brasiliense, 2006, p. 163.
315
Idem, p. 164.
316
Idem, p. 164.
317
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano, p. 166.
318
LAPLANTINE, François. Antropologia da doença. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 217.
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175
contenta com anunciar a salvação após a morte, mas afirma que esta pode ser realizada em
vida.”319
O pensamento religioso no processo de cura prossegue o autor, não deve, portanto,
ser negligenciado, na medida em que ele é “a única interpretação totalizante do social, do
individual e do universo...”320 Barros, que dialoga com as idéias de Laplantine, lembra que,
na medicina tradicional africana, em grande parte influenciada pela religiosidade local, a
relação entre saúde e doença está associada “à idéia de equilíbrio e interdependência dos
elementos constitutivos (visíveis ou não) que se influenciam entre si...”321
Consequentemente, no processo de cura não conta apenas os sintomas aparentes que se
configuram no diagnóstico médico, pois elementos simbólicos devem influenciar na
conformação do quadro diagnóstico geral do indivíduo doente. Barros assinala também
que “os esquemas simbólicos de que dispomos para interpretar a dor e o adoecer tendem a
transformar em caricaturas as interpretações que escapam à explicação científica...”322
A distinção formal entre conceitos como moderno e tradicional depende, em grande
medida, portanto, do significado que os indivíduos atribuem ao interpretar fenômenos como
a saúde e a doença.
No Ocidente, as pessoas, quando adoecem, são orientadas pela experiência cultural a
confiar de forma imperativa no diagnóstico prescrito pelos médicos, ainda que estes nem
sempre tenham uma resposta satisfatória para aliviar as suas dores. Em outras fronteiras
culturais, como entre os povos Ndembu, diante de algum infortúnio, eles consultam um
sábio em identificar a origem do mal, mas, de antemão, a sua experiência cultural
antecipadamente indicará que “toda doença persistente ou grave [deve ser] vista como
sendo causada pela ação punitiva das sombras ou pela malevolência secreta dos feiticeiros
ou das bruxas.”323
Tanto o pensamento científico moderno ocidental como os saberes tradicionais
africanos e afro-brasileiros, propõem-se a enfrentar um mesmo fenômeno – o diagnóstico e
a cura das doenças – a partir de concepções e estratégias opostas. Nem por isso, contudo,
319
Idem, p. 241.
320
Idem, p. 225.
321
BARROS, Denise Dias. Medicina negro-africana: institucionalidade, saberes e sentido do adoecer e da
loucura na África do Oeste e no Mali. Revista Imaginário/USP, Ano X, Nº 10, 2004/2005, p. 105/6.
322
BARROS, Denise Dias, p. 109.
323
TURNER, Victor. Floresta de Símbolos – aspectos do Ritual Ndembu. Rio de Janeiro: EDUFF, 2005, p.
449.
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176
deixam de ter muitos pontos de contatos e convergências. Cada um ao seu modo, e com a
sua própria gramática, falam da influência que a cultura e a sociedade exercem sobre o
físico e a mente dos indivíduos.
No conhecido estudo de Mary Douglas sobre as acusações de feitiçaria movida pelos
Lele cristianizados – com o apoio ou a omissão da cúpula da Igreja Católica –, que resultou
em torturas e assassinatos de supostos feiticeiros, a autora faz uma observação pertinente a
esta discussão: a “compreensão lele das tensões mentais e da cura psicológica merece um
estudo sério tanto quanto o de outros povos congoleses.”324 Neste mesmo sentido,
Laplantine observa que o “recurso às plantas [muito comuns nas culturas de origem
africanas] cujas diferentes utilizações estão longe de poder ser explicadas pelas
propriedades estritamente médicas que lhes são atribuídas.”325
Peter Fry faz uma interessante reflexão acerca das distinções entre as contribuições
do pensamento moderno e tradicional, ao estudar os discursos de certas igrejas evangélicas
em Moçambique: “a ciência ocidental acrescentou muito às respostas de como ocorre um
infortúnio, mas é a cosmologia local que, ao mesmo tempo, exige e providencia uma
resposta ao porque de cada evento particular.”326
O recurso discursivo adotado pelos evangélicos em Moçambique, que identifica a
“tradição africana”, aqui incluída a prática da feitiçaria e outras formas de religiosidades,
como responsável pela pobreza e a presumível desorganização social da África, pretende,
de fato, erigir a modernidade ocidental como referência única para a explicação dos
fenômenos naturais e sociais neste continente.
A permanência da feitiçaria na modernidade africana, de acordo com o argumento de
Peter Geschiere, pode ser muito bem explicada “porque o discurso da feitiçaria impregna e
condiciona as formas pelas quais as pessoas tentam lidar com as desconcertantes mudanças
modernas.”327
Para os ocidentais, a chegada da luz elétrica na África, como uma ilustração de
modernidade, talvez fosse capaz de suprimir o que se considera “tradicional”. Todavia, a
324
DOUGLAS, Mary. Os Lele revisitados, 1987 – acusações de feitiçaria à solta (versão de 1999). MANA.
Estudos de Antropologia Social. Volume 5, Nº 2, outubro de 1999, p. 27.
325
LAPLANTINE, François, p. 214.
326
FRY, Peter. O Espírito Santo contra o Feitiço e os espíritos revoltados: “civilização” e “tradição” em
Moçambique. Revista MANA, Nº 6 (2), 2000, p. 79.
327
GESCHIERE, Peter. Feitiçaria e modernidade nos Camarões: alguns pensamentos sobre uma estranha
cumplicidade. Revista Afro - Ásia, Nº 34, 2006, p. 30.
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177
tensão entre a modernidade e a tradição, leia-se feitiçaria, ainda está no centro das
preocupações e dilemas de muitas sociedades africanas. Pelo menos, isso explica porque os
funcionários públicos em uma região dos Camarões acusam as pessoas de utilizarem a
feitiçaria contra o “desenvolvimento”.328
Ainda segundo Geschiere, a permanência da feitiçaria na África moderna se deve
também à dinâmica, flexibilidade e capacidade desse fenômeno de se adaptar às mudanças:
é isso que explica porque a feitiçaria se relaciona à política atual, mas sem perder os laços
com as tradições das relações de parentesco.329 O autor credita à antropologia inglesa a
responsabilidade de ter descoberto essa ambivalência do discurso da feitiçaria, ao estudar
tanto como uma tendência de pensamento conservador ou como uma ação inclinada à
subversão, ainda que ambas contenham um forte viés moral.
Portanto, ainda que não se possa desprezar que “certos efeitos da feitiçaria sejam
perturbadores, mesmo assim é possível vê-la pelo seu viés construtivo”.330
328
GESCHIERE, Peter. Sorcellerie et Politique em Afrique – la viande des outres. Paris: Éditions
KARTHALA, 1995.
329
GESCHIERE, Peter, Sorcellerie et Politique em Afrique, 1995.
330
Idem, p. 20
331
PIERSON, Donald. O Homem no Vale do São Francisco. Rio de Janeiro: SUVALE/MINTER, 1972, p.
174.
332
Idem, p. 174.
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178
pertencente a outra pessoa. Neste sentido, a feitiçaria é uma ação humana essencialmente
mesquinha e perversa.
Donald Pierson identificou também, no Vale do São Francisco, algumas modalidades
de crenças mágicas muito próximas dos discursos e crenças construídos pela ideologia da
feitiçaria.
Vejamos esses exemplos: a) elaborar simpatias com a finalidade de curar certas
doenças menos graves; b) atribuir a Deus, a um santo ou a um ser sobrenatural qualquer
punição por se ter supostamente cometido um sacrilégio; c) relacionar o aparecimento de
certas doenças ao meio físico, às condições climáticas ou ao consumo de determinados
alimentos, especialmente certas frutas ou a mistura delas.
O mais frequente, contudo, diz o autor, era atribuir o aparecimento de doenças ao
feitiço, “palavra que parece permutável com ‘coisa feita’, ‘porcaria’ (em um dos sentidos da
palavra), ‘malefício’, e ‘mão pregada’”.333
Note-se que nas ações atribuídas à feitiçaria há uma nítida referência à agência
humana para ser eficaz à causação do infortúnio. Isso ocorre, segundo Pierson, porque se
acredita “que certas pessoas têm o ‘poder’ de causar o mal usando magia negra, quer o
desejem quer não. E este ‘poder’ pode ser exercido mesmo contra a vontade da pessoa.”334
Em contrapartida, para se evitar doenças e outros padecimentos físicos ou mentais
provocados pela feitiçaria é fundamental que se “feche”o corpo, o que requer o emprego de
uma variedade de mecanismos prescritos por um especialista. Entre esses mecanismos,
incluem-se os trabalhos indicados pelos curadores, a ação das rezadeiras, os banhos, chás,
garrafadas e infusões e o uso de plantas protetoras nos quintais e interior das casas.
A “concepção popular é que o corpo humano, embora sempre ‘aberto’ ao mal,
especialmente em certas condições, pode ser ‘fechado’ por meios mágicos a fim de protegê-
lo em especial de certos efeitos.”335
Acredita-se que o feiticeiro, de acordo com Pierson, tenha “poder” de fazer o mal, do
mesmo modo que o curandeiro será capaz de fechar o corpo do seu paciente; portanto,
ambos são possuidores de um tipo especial de “poder”. Em conformidade com esse
333
Idem, 183.
334
Idem, p. 184.
335
PIERSON, Donald, p. 185.
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179
raciocínio, o processo de cura de um paciente tratado por um curador não deve ser atribuído
tão somente “aos remédios que ele receita.”336
Na década de cinquenta do século XX, quando foi feita a pesquisa no Vale do São
Francisco, Pierson acreditava que as práticas curativas baseadas nas crenças da feitiçaria
fossem dissipadas com a urbanização das cidades e a consequente modernização da
sociedade regional. As minhas pesquisas indicam que as crenças permanecem e, de certa
forma, ampliaram sua influência, tanto nas zonas rurais onde estão situados os quilombos
como também nos centros urbanos modernos. Um exemplo empírico da ampliação dessa
influência no meio urbano é o uso de plantas protetoras contra a feitiçaria, algumas delas
originárias da África, na fachada de modernas empresas capitalistas e, até mesmo, em uma
instituição pública federal, como mostra de forma inequívoca os flagrantes fotográficos
abaixo.
336
Idem, p. 252.
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180
Qualquer que tenha sido a motivação dos que adotaram as plantas africanas em seus
estabelecimentos, não há dúvida de que as representações sociais contidas no emprego
delas continuarão sendo as de uma religiosidade que acredita na feitiçaria.
Do mesmo modo, as instituições modernas do capitalismo – tanto o Estado como as
empresas – continuarão obedecendo prioritariamente às regras inexoráveis das estruturas
econômicas e políticas que, em uma sociedade capitalista como a nossa, se orienta pela
acumulação da riqueza e do lucro.
Portanto, essa relação entre as duas expressões simbólicas – a religiosa e a secular –
não necessariamente anula ou subsume as particularidades que conformam cada uma. Nem
por isso também elas deixam de se comunicar de variadas formas, sempre mediadas pelo
contexto cultural na qual estão inscritas.
Loja Ponto Frio Digital, na Av. Duque de Caxias, em Bom Jesus da Lapa.
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182
Hotel Vieira na Av. Duque de Caxias, centro comercial de Bom Jesus da Lapa.
Lampião, quando passou pelo Vale do São Francisco, no início do século XX, deu
um exemplo extraordinário de possibilidade de convivência de extremos aparentemente
inconciliáveis. Segundo foi relatado por Donald Pierson, o cangaceiro “mesmo em meio a
uma luta com a polícia estadual, abaixava o fuzil e rezava para que seu corpo permanecesse
fechado.” Pela conhecida e sanguinária história desse famoso cangaceiro, certamente ele
sabia distinguir a proteção que lhe proporcionava as armas das rezas que ele julgava terem
a força de fechar o seu corpo. Recorrer aos dois expedientes, portanto, não deveria ser
antagônico para continuar a sua trajetória. Parece ser assim, também, o caso analisado em
que diferentes signos intercambiam, mediados e influenciados pela força da cultura na qual
se formaram.
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183
337
Refiro-me especificamente aos cultos dos orixás das conhecidas e populares nações keto, jeje, angola e
caboclo do Candomblé da Bahia; ao Xangô, de Pernambuco, Paraíba e Alagoas; ao Tambor de Mina do
Maranhão; Batuque, do Rio Grande do Sul; Macumba, do Rio de Janeiro, ao Catimbó da região amazônica;
Umbanda, do Rio de Janeiro e de São Paulo; e a variantes presentes no interior da Bahia e em outras regiões
do Brasil conhecidas como Mesa Branca e “Centros Espíritas”, como também às crenças na feitiçaria e suas
diferentes denominações êmicas, classificadas como bruxaria, trabalho feito, macumba, coisa ruim,
demandas.
338
BARBER, Karin. Como o homem cria Deus na África Ocidental: atitudes dos Yoruba para com o Órisà.
In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes. (org.) Meu Sinal está no teu corpo – escritos sobre a religião dos
Orixás. São Paulo: EDICON/EDUSP, 1989, p. 160
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184
mal que os afligia, “exatamente como fazemos quando não estamos satisfeitos com o
tratamento do primeiro médico procurado.”339
Esse mesmo sentido de religiosidade entre os africanos foi observado por Blakely,
Van Beek e Thomson, quando conceberam que a “religião é parte de uma estratégia de
sobrevivência e serve a fins práticos, sejam imediatos ou remotos, sociais ou
individuais.”340
Essa maneira de encarar a religiosidade está relacionada com o pensamento
tradicional africano em geral, como foi assinalado anteriormente, que constrói a teoria a
partir da experiência, diferente do pensar ocidental no qual “em certo sentido a teoria é que
determina a experiência.”341
339
EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, Oráculos e Magia, p. 153.
340
THONSON, Dennis L., VAN BEEK, Walter E. A., BLAKELY, Thomas D. (eds.) Religion in Africa, p.
23.
341
HORTON, Hobin. El pensamiento tradicional africano y la ciencia Occidental, p. 107.
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186
Capítulo IV
Revelações e surpresas
Iniciei a minha aventura etnográfica em Rio das Rãs, em 2007, entrevistando Mário
Nunes de Souza (66 anos), uma das lideranças mais antigas e influentes de Rio das Rãs.
Mário esteve presente nos principais episódios do conflito, desde a chegada do fazendeiro
Carlos Newton Vasconcelos Bonfim, no início da década de oitenta do século passado,
quando este afirmou ser proprietário da “Fazenda Rio das Rãs”, iniciando o já mencionado
conflito pela posse da terra que perduraria por dezoito anos. Embora seja um adepto da
Assembléia de Deus342, ele costumava dizer: “nunca arredei o pé da luta” contra o
fazendeiro. Chegou a ser presidente da Associação e sua gestão marcada por “uma onda de
roubo de gado” que o obrigou a pedir ajuda da polícia de Bom Jesus da Lapa para conter a
ação dos ladrões.
O objetivo principal da entrevista era entender as imensas dificuldades
administrativas e os conflitos políticos que ele enfrentara quando presidente da Associação
Agro-Pastoril e Quilombola de Rio das Rãs, considerado, por mim, antes de ir a campo, o
ponto de partida para a discussão sobre poder no quilombo.
No caminho da casa de Mário, cumprimentei alguns velhos conhecidos que estavam
prosando na varanda da residência do senhor Badu. Um deles, o senhor Juvêncio Pereira343,
começou a conversa se queixando da saúde precária e de uma recente cirurgia a que se
submetera na cidade de Guanambi. Felizmente, me confessou, sentia-se feliz por estar em
franca recuperação. A mesma sorte não tivera o seu filho que, repentinamente morrera. E o
senhor Juvêncio passou a relatar o ocorrido, como se estivesse aliviado por compartilhar
aquele acontecimento triste.
342
Durante o conflito pela posse da terra em Rio das Rãs, a quase totalidade dos evangélicos observava à
distância as ações políticas para garantir o direito dos quilombolas permanecerem na terra. Eles chegavam a
dizer que as iniciativas das lideranças não interessavam aos cristãos.
343
Em situações que envolvem diretamente personagens relacionados à narrativa do presente capítulo optei
por usar nomes fictícios. A intenção é a de não constranger os quilombolas de Rio das Rãs, a partir do que foi
desenvolvido na narrativa. Portanto, Juvêncio Pereira não é o nome verdadeiro da pessoa referida.
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187
O filho do senhor Juvêncio Pereira, Orlando344, sentiu uma dor no estômago e, como
era de costume, recorreu a um remédio caseiro. Não obtendo resultado, comunicou ao pai
que, encontrando uma condução, iria para Bom Jesus da Lapa para ser medicado. Foi o que
ele fez. Quando chegou ao Hospital Carmela Dutra, na manhã seguinte, e ainda sentindo
dores no estômago, o médico que o atendeu resolveu operá-lo sem que seus pais, até aquele
momento, soubessem ou estivessem presentes. Quando o senhor Juvêncio, ainda no mesmo
dia, soube da gravidade do quadro de saúde do seu jovem filho, prontamente se deslocou
para Bom Jesus da Lapa e, lá chegando, vinte e quatro horas após o internamento, o rapaz
foi submetido a uma nova cirurgia.
344
Nome fictício.
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188
Tendo feito duas cirurgias, e não alcançado êxito, os médicos tentaram transferi-lo
para Vitória da Conquista, que tem reconhecidamente um melhor serviço público de saúde.
A tentativa fracassara porque o rapaz veio a falecer horas depois da chegada do seu pai.
O mais intrigante nessa história é que os médicos de hospital não fizeram autópsia do
corpo e, até maio de 2007, os familiares não sabiam a causa mortis do jovem falecido.
Após ouvir esse relato, fiquei revoltado com o que presumia ter sido mais um caso de
deficiência no atendimento do Hospital Carmela Dutra, conhecido pela péssima reputação
em toda a região de Bom Jesus da Lapa. Conversei mais um pouco com aqueles senhores e
segui para a minha entrevista com Mário, mas a história de Orlando não me saía da cabeça.
Mais tarde, relatei o acontecimento a Emílio Pereira Costa345, proprietário da
residência onde estava hospedado. Emílio acabara de ser eleito presidente da Associação e
a minha intenção ao relatar o ocorrido era que essa instituição denunciasse a morte daquele
jovem nas dependências do Carmela Dutra, como um caso com fortes indícios de
negligência ou imperícia médica. Após ouvir o desabafo, Emílio, calmamente, procurou me
convencer de uma outra versão do acontecimento.
Orlando, o filho falecido do senhor Juvêncio Pereira, tinha um primo carnal com o
qual convivia em perfeita harmonia. Além de parentes consanguíneos, eram vizinhos em
uma gleba de terra na qual produziam feijão, milho, mandioca e outras variedades de
gêneros alimentícios com as quais sustentavam suas famílias. Num certo dia, eles se
desentenderam por algum motivo346, e o primo carnal de Orlando jurou vingança, sem,
contudo, especificar o que ele pretendia fazer.
Segundo Emílio teria sido uma imprudência Orlando não ter levado a sério aquela
ameaça, já que o rapaz que prometera vingança era filho de um conhecido e perigoso
feiticeiro, o que me fez lembrar, tempos depois de ouvir essa história, de uma máxima entre
os Azande: “bruxo ataca um homem quando motivado pelo ódio, inveja, ciúme e
cobiça.”347
345
Nome fictício.
346
É muito comum haver desentendimentos entre os moradores de Rio das Rãs na labuta diária da roça, a
exemplo do vizinho deixar os seus animais soltos e esses adentrarem a plantação do outro, não fechar
cancelas, porém, nessas e noutras situações a tendência é de que depois de uma discussão as relações pessoais
sejam restabelecidas.
347
EVANS-PRITCHARD, E.E. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande, p. 85.
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189
348
Na configuração dos Estados africanos modernos, os Azande estão situados entre a República do Sudão, o
Zaire e a República Centro Africana. Cf. EVANS-PRITCHARD, E.E. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os
Azande, p. 07.
349
EVANS-PRITCHARD, E.E. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande, p. 49.
350
O nome do Centro do Sr. Leonardo é Mesa Branca Espiritual. É uma das modalidades de religião de
possessão existente no quilombo de Rio das Rãs em que se cultuam caboclos, pretos velhos e orixás. É
comum também os freqüentadores se referirem aos mesmos como “Centro” ou “Centro de Jurema”.
351
Nome fictício.
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190
Com um riso de escárnio, mas com visível temor, Emílio fez o seguinte comentário
sobre essa senhora: “essa é outra perigosa feiticeira..., está com uma demanda contra a
própria irmã, que é médium de Leonardo.”
Foi difícil dormir nessa noite; a minha cabeça variava entre o extraordinário espanto
provocado pelos relatos e a completa incerteza de como conduzir doravante a pesquisa.
No dia seguinte a esses acontecimentos, e estando mais calmo e aliviado depois de
refletir sobre o lado positivo da descoberta, comecei a reconstruir eventos relacionados a
acusações de feitiçaria em Rio das Rãs que estavam guardados no fundo da memória, e
diretamente relacionados com essas informações para mim tão desconcertantes.
Para efeito da discussão que pretendo desenvolver neste capítulo, o termo feitiçaria
será empregado de acordo com a literatura pertinente, tendo como ponto de partida a
compreensão clássica de Evans-Pritchard, que a considera um conhecimento que se utiliza
de técnicas e rituais, com a intenção de “colocar em ordem os acontecimentos.”352 Esses
acontecimentos são engendrados por uma rede de relações sociais nas quais são decisivas,
como num círculo concêntrico, a crença e a acusação de feitiçaria. Os dois termos fazem
parte de um sistema, nos quais diferentes, e muitas vezes, antagônicos sujeitos se
relacionam: autores intelectuais e materiais da feitiçaria, sujeitos enfeitiçados, curadores e
oráculos responsáveis pela identificação e anulação da feitiçaria.
No caso específico do quilombo de Rio das Rãs, religiosos protestantes compartilham
desse sistema para tentar anular, através de rituais e exorcismos, os efeitos em indivíduos
atingidos pela feitiçaria.
As concepções dos sujeitos envolvidas no universo da feitiçaria em Rio das Rãs
variam de acordo com os interesses e os contextos para os quais a feitiçaria é empregada.
Por um lado, todos estão de acordo, ainda que não declarem explicitamente, em considerar
a feitiçaria uma ação condenável do ponto de vista moral e ético, e por violar valores
sociais estabelecidos consensualmente. As duas divergências filosóficas mais importantes
352
COUCEIRO, Luiz Alberto Alves. Pai Gavião e a Coroa da Salvação: Crença e Acusações de Feitiçaria no
Império do Brasil. Rio de Janeiro: IFCS/UFR, Dissertação de Mestrado, com orientação de Yvonne Maggie,
digitada, 2004, p. 17.
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191
“Aliás, como os fatos da religião e os da magia, numa determinada sociedade, fazem parte de um
mesmo sistema e talvez dependam de uma mesma origem, o estudo comparativo não pode deixar de
ser interessante.”353
353
MAUSS, Marcel. Ensaios de Sociologia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1981, p. 271.
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192
Mas, a ação de livrar os sujeitos de “trabalhos feitos” encetada pelos curadores dos
Centros de Jurema resulta no mesmo propósito dos evangélicos, ainda que por outros
métodos, que é o de livrar o indivíduo de um mal que o atormenta.
O não reconhecimento da feitiçaria pelos evangélicos como parte da cultura do
quilombo de Rio das Rãs, entretanto, não invalida a sua existência como uma crença de
enorme influência social nesse quilombo, aliás, prova isso o temor, inclusive, de parte
significativa dos próprios evangélicos, que estão sempre informados de acontecimentos
envolvendo a ação dos feiticeiros na comunidade.
Portanto, o poder da feitiçaria como um fenômeno social é explicado, de acordo com
a concepção de Mauss, porque as “instituições só existem nas representações que a
sociedade faz delas. Toda sua força viva lhes vem dos sentimentos de que são objeto; se são
fortes e respeitados, é porque estes sentimentos são vivazes; se cedem, é porque perderam
toda a autoridade junto às consciências.”354
A permanência dessas instituições nas sociedades atuais, como todos os fatos sociais
indubitáveis, deve ser atribuída ao que Mauss chama de “sistema das representações
coletivas.”355, no sentido durkheimiano, em que os fatos se impõem às individualidades,
independentemente do julgamento que elas possam fazer.
Os evangélicos de Rio das Rãs, embora afirmem serem contrários às crenças na
feitiçaria, reforçam as referidas crenças, mesmo porque eles são chamados
permanentemente a compartilhar com pessoas da comunidade relatos sobre os infortúnios
por elas produzidos. O que os diferencia dos curadores e seus fiéis é a concepção do que
representa a feitiçaria culturalmente para os quilombolas. Essa é a explicação porque
fenômenos dessa natureza, seja “ou não proibido ao indivíduo afastar-se deles, já existem a
partir do momento em que ele se consulta para saber como deve agir; são modelos de
conduta que eles lhe propõem.”356
É pouco provável viver no quilombo de Rio das Rãs sem que a palavra feitiçaria357
não seja mencionada. Neste sentido, há analogia com o que foi observado por Evans-
354
Idem, p. 19.
355
Idem, p.20.
356
MAUSS, Marcel. Ensaios de Sociologia, p. 11.
357
Usam-se termos como “feitiçaria”, “bruxaria”, “trabalho sujo”, “trabalho encomendado”, “coisa feita”,
“coisa enviada”, “macumba”, com o sentido análogo.
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“É fato social toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção
exterior; ou então ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência
própria, independentemente das manifestações individuais que se possa ter.”362
358
EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande, p. 57.
359
JOHNSON, Allan G. Dicionário de Sociologia – guia prático da linguagem sociológica. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1997, p. 136.
360
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985, p. 228.
361
EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos em magia entre os Azande, p. 63.
362
DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. 14. ed., São Paulo: Companhia Editora
Nacional,1990, p. 11.
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ainda que seja, para a maioria dos seus membros, uma ação abominável que se deva
combater tenazmente.
A generalização do discurso da feitiçaria no quilombo dificulta até mesmo a
compreensão de certos paradoxos individuais. Por exemplo, um evangélico que
formalmente não aceita a pertinência da feitiçaria como parte de sua própria cultura, por ter
uma doutrinação religiosa avessa a qualquer negociação com a visão de mundo e o universo
do qual a feitiçaria faz parte, no momento de aflição não duvida em recorrer aos
conhecimentos mágicos da “boa” feitiçaria para resolver algo que lhe diga respeito. Foi o
que aconteceu com dona Benvinda Pereira Nunes, esposa do senhor Celso Nunes de Souza,
76 anos.
Certa vez um filho do casal fora mordido por uma piranha em uma lagoa, provocando
um corte dilacerante no pé e um sangramento incontido. Na época, era muito difícil uma
condução para Bom Jesus da Lapa. Dona Benvinda, de acordo com as suas palavras, “olhou
para os quatro cantos” e, não vendo alternativa, lembrou-se de um conhecido feiticeiro da
comunidade. Este, após ouvir o relato sobre o estado de saúde do rapaz, recomendou a
seguinte fórmula mágica: “retire uns cabelos do seu gato, coloque em um papel e aplique
em cima da ferida, logo o sangue estancará e ele terá condição de chegar a tempo de fazer
um curativo na sede do município de Bom Jesus da Lapa.”
O resultado dessa excêntrica receita foi tão positivo que dona Benvinda a aplicou a
outro filho, igualmente ferido após cair de um cavalo, por recomendação do mesmo
feiticeiro.
Dona Benvinda Nunes contou também a história de uma mulher muito corajosa e que
não temia lidar com cobras. É importante lembrar que em Rio das Rãs imagina-se que o
aparecimento de uma cobra no caminho de uma pessoa, sobretudo a cascavel que é a mais
temida serpente do quilombo, esteja relacionado com a feitiçaria. Daí a importância do
gesto dessa mulher, considerada uma feiticeira, de acordo com o relato de dona Benvinda:
“De manhã [...] foi que começou ir rapar. Aí agora nós foi rapano, rapano, rapano essa mandioca.
‘Minina cuidado, ói bicho dentro dessa mandioca que foi botada onte’. Rapano, rapano, rapano e a
mulé tava incostada assim na beira de uma parede assim, o forno assim... Aqui o outro era o forno e
aqui era a loca dos rodeiro entrar pra passar... E ela assim quando eu pensei que não era. ‘Ó uma cobra
aqui...’ Ela vapu no cabo dessa cobra ó, e levantou e saiu bateno no chão... Até que morreu. Até que
matou. Seguro no cabo e a cobra não voltou pro braço dela nem pras perna e ela tacava ela lá no chão
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assim... Ela matou ela de mão. ‘Minina você é doida?’ ‘Qualé doida! ‘Eu mato ela é assim, ó’. Deus
me livre...”, arrematou dona Benvinda.
Dona Imbilina foi uma das fundadoras da localidade de Pedra do Cal, onde nasceu
por volta de 1878. Morreu junto de sua parentela, aos 92 anos, na localidade de Rio das
Rãs, em 1970. As histórias sobre esta mulher são variadas, picantes, contraditórias e,
sobretudo, cheias de lacunas. Porém, uma coisa é inegável: ela é comentada e conhecida em
todas as localidades do quilombo, uma referência obrigatória. Publicamente falam ter sido
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uma “mulher solteira”363, outros a ela se referem mais explicitamente como “mulher da
vida”, por ter tido filhos com muitos homens, depois da morte precoce do seu marido, João
Nagô.
No início do século XX, provavelmente tangida por uma seca, dona Imbilina e seus
filhos migraram para a antiga localidade de Rio das Rãs, à margem do rio São Francisco.
Hoje, a maior parte dos seus descendentes se concentra em um povoado chamado de
Assentamento Rio das Rãs; a outra parte está na Brasileira. Alguns depoimentos recolhidos
sobre essa extraordinária mulher em minha pesquisa para o mestrado364 mostram como ela
era destacada e importante no quilombo:
“Ela era uma negona forte, uma negona forte, dos nêgo, da raça dos nêgo mesmo, porque veio lá de
baixo [...] Pelo menos o povo dela deve ter vindo [da África] porque ela era mesmo da raça dos nêgo
legítimo...” (Francisco Archanjo de Souza, 104 anos - Retiro)365
“Mas, a mais pioneira de dentro de Rio das Rãs que a gente vê o nome sempre mais elaborado mesmo
foi os Imbilinos, os Imbilinos veio de uma família chamada, tinha uma mulher chamada [...] Esteva,
uma velha chamada Esteva que foi essa, foi à origem, essa foi quem derramou tantos Imbilino”
(Moisés C. da Silva)366
“As famias mais fortes daqui é Tomé e os Imbilinos e minha famia também, porque evém de longas
data, são as famias mais fortes...” (Francisco Ferreira de Magalhães, 66 anos - Rio das Rãs)367
“A minha bisavó chamava Ana e ele chamava Felipe. O pai de minha mãe chamava João Nagô.
Morava aqui nesse lugar [Pedra do Cal] e morreu nesse lugar. E minha avó chamava Imbilina, Imbilina
a minha avó [...] Então, minha mãe [Esteva] era uma mulherzinha da vida, tá compreendeno? Ela não
casou, minha mãe não casou...” (Tiburtino Nunes de Souza, 78 anos - Rio das Rãs)368
363
A figura da mulher “solteira” refere-se invariavelmente a uma mulher que não se casou e que teve uma
vida sexual livre dentro da comunidade, por essa razão, a sua reputação é normalmente negativa em virtude
do perigo que ela pode representar para as mulheres casadas.
364
SILVA, Valdélio Santos. Do Mucambo do Pau-Preto a Rio das Rãs. Liberdade e escravidão na construção
da identidade negra de um quilombo contemporâneo. Dissertação de Mestrado em Sociologia pela
Universidade Federal da Bahia, 1997.
365
O Sr. Francisco A. de Souza, conhecido como Chico Tomé, faleceu com 107 anos, em 2000.
366
Moisés C. da Silva atualmente está com 45 anos.
367
O senhor Francisco F. de Magalhães atualmente está com 77 anos.
368
O senhor Tiburtino Nunes de Souza está com 91 anos e absolutamente lúcido. É neto de dona Imbilina.
Mais tarde tornou-se devoto da Assembléia de Deus, mesmo assim, alguns dizem que no passado ele teria
sido feiticeiro.
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orgulhem da descendência dos “Imbilinos”, mesmo sendo ela mulher, “solteira”, portanto
com baixo status social, e descendente de “nagôs.”369
Tiburtino Nunes de Souza (91 anos), no centro, neto de dona Imbilina, com filhos e netos.
Uma das explicações mais comuns em Rio das Rãs para a notabilidade de dona
Imbilina, é por ter sido ela, no passado, a principal organizadora da festa do Divino Espírito
Santo. Essa explicação, todavia, toma o efeito pela causa, isto porque somente as pessoas
notáveis e respeitáveis eram escolhidas para organizar essa festa da religiosidade católica
popular tão importante culturalmente para os quilombolas. Ao se atribuir como causa da
sua proeminência o fato de ter sido escolhida para liderar a festa do Divino, esquece-se de
369
Possivelmente os “nagôs” teriam sido no século dezenove uma das nações africanas que aportaram em Rio
das Rãs quando da ocupação do território pelos negros fugidos. Os depoimentos sobre os “nagôs” são
contraditórios. Há referências a sua condição de “negros legítimos”, de que “vieram da África” ou de que
“eram ritintos”, para dar uma conotação étnica positiva. Outras referências são mais depreciativas, a exemplo
de que entre os “imbilinos”, portanto, entre os “nagôs”, havia incesto ou a de que as mulheres mais destacadas
como Imbilina e Esteva, mãe e filha, eram “mulheres da vida”.
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que a própria escolha em si já revelava ser ela respeitada por seus pares. A liderança do
festejo é consequência, e não causa.
E o mais intrigante é quando a escolha é por uma mulher, numa sociedade
marcadamente patriarcal. Além disso, uma “mulher solteira”, portanto com uma reputação,
no mínimo, pouco simpática, sobretudo, entre as mulheres: o de carregar a fama de que se
casara pela primeira vez com João Nagô, já estando grávida de outro homem e, depois que
este falecera, teve muitos filhos com diferentes homens. Mesmo assim, ainda se tornou
organizadora de uma manifestação religiosa como o Divino Espírito Santo, uma espécie de
iniciação para afirmação política e moral das lideranças mais respeitadas no quilombo.
A capacidade de dona Imbilina em nomear a sua parentela com o apelido com que era
conhecida é, sem dúvida, a constatação da sua importância social no quilombo, mesmo que
tivesse em sua trajetória de vida uma conduta moral discutível para os padrões de Rio das
Rãs. Qual teria sido o segredo da notoriedade de dona Imbilina? O encanto da sua feitiçaria
facilitara relações sexuais com pessoas proeminentes? Ou ela se tornou famosa por ter
passado por cima dos preconceitos patriarcais e se firmado como liderança,
independentemente da sua conduta moral?
Nas margens do riacho Rio das Rãs, no dia 25 de junho de 2007, em um final de tarde
quente, conheci uma mulher de nome Celita370, que puxou conversa enquanto lavava as
suas roupas. Ela disse que morava em uma localidade próxima da então sede da fazenda de
Carlos Bonfim, para onde alguns quilombolas foram alocados depois do conflito com
intenção de dar ao local uma representação simbólica da vitória pela reconquista da terra. A
idéia de criar um centro cultural no local ainda não vingou. Mas, a Associação deslocou
para o povoado duas famílias, as irmãs Lúcia e Celita e os respectivos esposos e filhos.
Dona Celita me contou que teve que abandonar às pressas a roça, o pasto onde
alimentava os animais e a casa de alvenaria onde morava. A decisão de sair do lugar onde
morava se deveu ao fato de que sua irmã Lúcia desobedecera ao que havia sido
estabelecido pela assembléia do quilombo, que a obrigava a recolher o gado que invadira a
roça da irmã. Com os olhos marejados, dona Celita dizia, entretanto, estar feliz, porque o
seu marido não fizera nenhuma “besteira” com a irmã desobediente.
370
Nome fictício.
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200
Alguns aspectos chamam atenção neste episódio. Em primeiro lugar, dona Lúcia, a
presumida feiticeira, não cumprira a decisão da assembléia e nem demonstrara qualquer
receio em contrariar os poderes formais instituídos na comunidade, como a diretoria da
Associação e a assembléia geral. Independentemente do juízo de valor de quem tem ou não
razão neste conflito, não há dúvida de que dona Celita e seus familiares foram os mais
prejudicados no desfecho do processo, considerando terem perdido residência, roça, pasto,
investimentos em cerca, sem falar no impacto de sair de sua casa e ainda viver
sobressaltada com as ameaças de feitiçaria.
Fica patente neste episódio que as acusações de feitiçaria rivalizam abertamente com
o poder político formal e institucionalizado do quilombo. Ao não acatar a decisão soberana
da assembléia, a acusada de feitiçaria desafiou e constrangeu as lideranças políticas que
emergiram depois do conflito pela posse da terra, no qual Wilson Oliveira é uma das
pessoas mais destacadas. A aparente resignação de Wilson à ação ilegal da feiticeira tem a
ver com a própria experiência pessoal dele.
Certa vez ele fizera uma “olhada”, por estar com os pés adormecendo e que não
melhoravam com as drogas recomendadas pelo médico, e a curadora consultada, dona
Zenilda da Parateca/Pau D’arco,371 diagnosticara que ele estava “apiado”, ou seja,
enfeitiçado, e seria essa a razão de estar sem “rumo”, isto é, desorientado politicamente.
Em 2009, quando nos reencontramos, ele confessou que nas duas vezes em que não
conseguira se eleger vereador por Rio das Rãs, embora as avaliações fossem favoráveis a
uma vitória, teriam sido resultado de “trabalhos feitos” contra ele.
No início de 2009 ele foi acometido de uma grave doença que nunca chegara a ser
diagnosticada pela medicina convencional. Ele acreditava também que tudo isso era obra de
feitiçaria, com a finalidade de atingi-lo. Por essa razão, temia tomar qualquer iniciativa que
contrariasse uma das partes envolvidas, sobretudo, dona Lúcia, que era considerada
“perigosa” feiticeira.
Além de Wilson Oliveira, outras lideranças políticas jovens do quilombo se
consideram também vítimas da feitiçaria em Rio das Rãs. Um dessas lideranças é Simplício
Archanjo de Souza (48 anos).
371
Comunidades de quilombos que, segundo alguns relatos, seriam mais antigas do que a vizinha Rio das Rãs.
É comum os moradores que formam o território quilombola à margem do Rio São Francisco freqüentarem os
muitos Centros de Jurema e Candomblés existentes no vasto território.
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202
Neste caso, é importante salientar, que teria sido vítima de feitiçaria uma das
lideranças de maior projeção do quilombo de Rio das Rãs. Além de ter sido presidente da
Associação em duas gestões, Simplício Souza é representante da Bahia na Coordenação
Nacional das Comunidades de Quilombos; participara, em 1995, do I Encontro Nacional
das Comunidades Negras Rurais Quilombolas; foi membro de uma comissão de
quilombolas que entregou ao então presidente, Fernando Henrique Cardoso, o primeiro
documento de reivindicação dos quilombos contemporâneos; é uma liderança proeminente,
embora isso não tenha sido suficiente para livrá-lo da feitiçaria, ao contrário, o seu
currículo parece ter sido uma fonte incentivadora de ação maléfica.
Outra liderança política importante do quilombo de Rio das Rãs, Eduardo Pereira dos
Santos (54 anos), dirigente antigo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Bom Jesus da
Lapa, a primeira instituição a denunciar a grilagem das terras de Rio das Rãs pelo
fazendeiro Carlos Bonfim, teria igualmente sido vítima da feitiçaria. Ele contou em
detalhes como foi atingido:
“Foi um dia de sexta-feira, eu tava deitado e precisava de ir pra Lapa, quando mais ou menos meia-
noite, aí me chamaram. Me chamaram meu nome completo e eu não respondi. Me chamou três vezes
eu num assustei.
Tava deitado em casa com minha família. Ai eu fui pra Lapa umas quatro hora da manhã, quando eu
cheguei no fundo da minha roça, atravessei o arame, me chamou de novo outra vez. Eu segui até Lapa
e chegando lá fiquei sentindo dor de cabeça, tonto e voltei pra casa de novo. Passei na Brasileira na
casa do Sinésio e cheguei em casa deitei. Nessa deitada que eu deitei, fiquei trinta dias sem poder
andar. Me entrou como se fosse uma agulha na cintura e saiu no pé esquerdo. Fiquei trinta dias sem
poder movimentar.
Eu fui muito bobo, eu num me preveni. Antes de eu passar [por baixo do] arame, eu tinha de fazer
alguma coisa. Vestir minha roupa as avesso, isso foi que eu num fiz. Aí é onde a gente tem o corpo
aberto. Num tava prevenido. Se você não tivesse passado pelo arame não acontecia ele me pegar. Aí eu
senti dor no corpo e como se fosse uma agulha que me entrou na cintura e veio sair no pé. [Para
desfazer] essa bruxaria meu pai na época, meu pai foi [com] Niquinho em Andrelino [o mais
importante curador de Rio das Rãs] e aí ele fez o trabalho dele lá e mandou... Aí eu tomei os
medicamento, usei a roupa e Graças a Deus hoje tou bom.”
372
BALANDIER, Georges. O Contorno: poder e modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 52.
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205
“Temos que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porquê o serve ou
aplicando-o porquê é útil); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de
poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao
mesmo tempo relações de poder.”373
373
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 18. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1998, 27.
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206
“acreditam nas Escrituras Sagradas”, a exemplo do discurso da maior parte das igrejas
evangélicas em todo o Brasil, notadamente a Igreja Universal do Reino de Deus - IURD.
Os adeptos da Assembléia de
Deus, a exemplo de Francisco
Pereira Silva (48 anos), são mais
discretos quanto ao reconhecimento
da feitiçaria, mas confirmam também
a existência do fenômeno no
quilombo: “Nós sabemos que
existe.”
A opinião de outro membro da
Assembléia de Deus do
Assentamento Rio das Rãs,
Bevenuto Batista Lima (46 anos),
contudo, é mais complexa e
sofisticada. Embora não tenha ainda
se consagrado pastor, Bevenuto
analisa as crenças relacionadas à
feitiçaria de uma
perspectiva teológica e racional:
“Existe assim, por conta das pessoas. Agora a minha pessoa, eu acho que não, porque a gente é
evangélico, então volta ao sujeito. Agora eu posso, isto é, qualquer enfermidade, eu não posso dizer
que é um quebrante sem ter um diagnóstico. É uma doença praticamente sem origem. Então a gente só
pode dizer a origem da doença quando a gente tem um diagnóstico.”
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209
comprovação de propriedades químicas feitas pela ciência, e não o valor cultural atribuído
pelas experiências ancestrais.
Por não reconhecer o uso das plantas medicinais como um produto do conhecimento
local, Bevenuto demonstra resistência em validar as crenças, como também considerá-las
parte do patrimônio cultural do seu povo. A eficácia e o uso dela dependeriam, antes de
tudo, da chancela do conhecimento científico do Ocidente.
A argumentação de Bevenuto para desqualificar os referentes culturais do quilombo é
constituída de três elementos que se integram. Um é moral, ao associar o discurso da
feitiçaria exclusivamente a seu componente de maldade. O outro é técnico, ao assegurar ser
o discurso da feitiçaria inócuo e que não funciona, porque ele está fundado em suposições
ou crenças impossíveis de se comprovar objetivamente. Finalmente, e por não dispor de
provas que a validem do ponto de vista da ciência, o discurso da feitiçaria é uma ilusão.
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211
Walter Mignolo cita um texto ilustrativo de Darcy Ribeiro que pode ser útil para se
entender essa concepção de Bevenuto:
“Os colonizados, privados de sua riqueza e do fruto de seu trabalho sob a dominação colonial,
sofreram, ademais, a degradação de assumir como sua a imagem que era um simples reflexo da
cosmovisão européia...”374
“É, meu filho Esaú ele não caminhava. Ele tentava andar e no mesmo tempo caía. Aí nós oramos a
Deus e pedimos a Deus que ele entrasse em providência e aí a cura foi instantânea. Ele já levantou e
começou a andar mais de trezentos metros. Uma criança que não andava. A partir do momento que ele
começou a andar ele andou mais de trezentos metros. Trezentos metros pra ir e trezentos metros pra
voltar.”
374
RIBEIRO, Darcy. Las Américas y la civilizacion. Processo de fomación y causas del desarrolo desigual de
los pueblos. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1968, Apud MIGNOLO, Walter. Histórias locais/Projetos
Globais – colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p.
46.
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212
os seus referentes culturais distintos – não deixou por menos e, logo a seguir, cantou, de
maneira vibrante, uma reza em louvor a Jesus Cristo. Esta é a letra da canção de Eva
Batista:
Raiz de Zumbi
Geração
Geração de Zumbi
Descendente de índio africano e nagô
De nagô, de nagô
Lutamos por uma nação igual
Queremos paz e amor nacional
Nós negro tem orgulho de ser
Geração de Zumbi
Lutamos pra nos defender
Nós negros somos uma nação igual
Por isso lutamos pela paz nacional
Gera
Geração de Zumbi
Olhe o gera
Geração de Zumbi
Eu sou filho de índio
Neto de nagô
Africano eu sou.
“Olha, na verdade, as coisas não batem muito bem. Eu acho porque você pode observar que a capoeira,
por exemplo, é uma dança – a gente sabe disso – que vem mesmo lá da população negra e que a gente
pode ver que é mais pro lado, mais voltada pro lado do espiritismo, sei lá, eu particularmente acho
assim e é uma coisa que não bate muito bem com os princípios bíblicos.”
375
FRY, Peter. O Espírito Santo contra o Feiticeiro e os espíritos revoltados: “civilização” e “tradição” em
Moçambique. Revista MANA, 6 (2), p. 65-95, 2000, p. 65
376
Idem, p. 69
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214
377
Idem, p. 81.
378
Esta capela está situada na localidade da Brasileira, onde são realizadas eventualmente as poucas missas
celebradas na comunidade.
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215
integrantes desse universo é, antes de tudo, acreditar que a feitiçaria é uma ação capaz de
provocar distúrbios físicos ou mentais nos indivíduos ou alterar o desenvolvimento normal
das plantas e animais. Essas crenças foram transmitidas de geração a geração e, mesmo que
haja diferentes métodos para anular a feitiçaria, a exemplo dos que são adotados pelos
evangélicos, todos são unânimes em reconhecer a feitiçaria como capaz, no limite, de matar
um indivíduo.
O universo da feitiçaria é também um campo de produção de conhecimentos, tanto
para os que fazem feitiços como para os que se defendem das ações dos feiticeiros. Isso
resulta na acumulação de capitais simbólicos, sob a forma de saberes, práticas e
experiências que, por sua vez, possibilitam ou engendram a constituição de poderes, no
sentido político do termo. Os possuidores desses conhecimentos são reconhecidos,
respeitados e, muitas vezes, temidos pelos poderes que possuem para fazer ou desfazer a
feitiçaria.
A idéia de poder relacionada à feitiçaria é aquela que se refere “à ‘potência ou
capacidade que é tida como inerente em um indivíduo’...”379 Trata-se de uma concepção
que tem o mesmo sentido das “interpretações africanistas” de que o “acesso ao poder
político é tanto o acesso à força das instituições quanto à força dos símbolos e das
imagens.” 380
O universo da feitiçaria comporta sujeitos com diferentes competências. Mas, a
maioria se inclui nesse campo com poucas competências ou capitais simbólicos para
participar do jogo. São os quilombolas, de um modo geral, que conhecem alguns
rudimentos da prevenção contra a feitiçaria, através do cultivo de plantas na frente das
residências e o uso de amuletos no bolso, no pescoço ou em cercas e currais onde se
encontram as suas roças e animais de criação. Esses indivíduos, dotados de poucos
conhecimentos, quando são atingidos pela feitiçaria, justamente por não possuírem recursos
de defesa mais sofisticados, são obrigados a procurar os especialistas, que são os curadores,
que podem consultar os oráculos e recomendar o que fazer em cada caso específico.
379
WOLF, Eric R. Antropologia e Poder, org. Bela Feldman- Bianco e Gustavo Lins Ribeiro, Brasília:
UNB/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Editora UNICAMPI, 2003, p. 45
380
BALANDIER, Georges. O Contorno, p. 92.
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218
“Você deita de noite, sonha correno, sonha subino num pé de pau, sonha caíno num buraco.
Tudo aquilo é armado de má-vontade [feitiço], que quer destruir você. Isso é má-vontade. E
os animá, pega o bichin inocente, o bichin ta caminhano aí, pega no rabo daquele bichin e o
bichin pega a mancar.” (Maria do Carmo Silva, líder de um dos Centros de Jurema
localizado na Brasileira)
“Agora quando é coisa feita, eu digo assim: ‘olha, vocês vê [alguém] caminhando em suas
casa de noite calçando chinelo?’ Vejo. ‘E vocês vê dar três pancadas no meio da cumieira
assim ta, ta, ta?’ Eu vou falano e conferino. Eles diz, vejo. Aí volto digo assim: ‘vocês
costuma chamar três vez lá na porta da varanda?’ Eu digo vi. Eu digo: ‘isso ai tem uma
mudança, que a casa quando ela tá sadia, [não] inxiste [existe] essas coisa não, quando tá
sadia com Deus não inxiste essas coisa. Tem tentação [isto é, feitiço].’” (Leonardo J. de
Souza, foto abaixo, líder de um Centro de Jurema na Brasileira)
Muitas vezes os portadores do dom da feitiçaria nem fazem idéia do que são capazes
e, por isso mesmo, não se dão conta de estarem veiculando energias negativas. É o caso de
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220
indivíduos que, ao lançar o olhar para uma planta ou um bebê, podem com esse gesto matar
a planta ou fazer adoecer o recém nascido, conforme pode ser atestado por estes
depoimentos:
“Eu mermo vez uma filha minha, a muié falou que a minina era feia. Falou que a minina era feia, era
feia mermo e a minina duençeu na hora, com uma febre e desinteria. Aí uma [outra] fia que eu tinha
rezou ela, orou por ela, e eu já vi passar na hora.” (Auto Osório de Souza, 88 anos)
“Agora o quebranto, o quebranto a pessoa põe não é por maldade. A pessoa põe o quebranto numa
criança por ela achar bunita a criança, ele põe quebranto não é por maldade que ele vai olhar pra
criança que ele bota quebranto. Nego começa a brincar, a criança as vez ta... sei lá, pode tá cum o
corpo aberto e aquilo ali transpassa e transpassano a criança amulece, né? Que o amor dele foi muito a
criança... o organismo dela, sei lá, o Anjo da Guarda num dá pra...” (Elíndia Maria Cardoso, 44 anos)
“Tem pessoa que ele vela [põe] o olho no passarinho, o passarinho cai.” (Edivaldo da Mata Silva, 53
anos)
Aconteceu de “pessoas passar na roça assim de outras pessoas. Um feijão muito bom, muito bunito, é
como se o caso, e aquilo ali virá em nada.” (Francisco Ferreira de Magalhães, 88 anos)
Quando os portadores dessas energias negativas não têm consciência do que suas
forças sejam capazes, são alertadas, muitas vezes, por alguém mais próximo, ou eles
mesmos desconfiam quando os pais não deixam os filhos recém nascidos se aproximarem
desse sujeito. Neste caso, ainda não podem ser considerados feiticeiros, já que possuem
apenas o potencial e não agem de maneira deliberada para praticar o mal. Além disso, ser
feiticeiro requer que o sujeito aprenda técnicas de manipulação de vísceras de animais,
rezas de invocação e fórmulas que permitam enviar objetos e seres vivos para determinados
indivíduos e, assim, colocar em operação a feitiçaria.
De acordo com as crenças dos quilombolas de Rio das Rãs, o êxito da ação dos feiticeiros
depende, também, do estado em que se encontram as suas vítimas. Uma pessoa tem mais
chance de ser atingido pela feitiçaria se ela está com o “corpo aberto”; isso significa que o
indivíduo enfeitiçado não foi suficientemente previdente para rechaçar um ataque.
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222
A confidência que me foi feita pela mãe de um rapaz, de uma maneira absolutamente
natural, de que seu avô desejava iniciá-lo nas artes da feitiçaria, embora o rapaz estivesse
reticente em assumir tal responsabilidade, confirma, pelo menos neste caso, que é no
interior da mesma parentela o caminho mais comum para a reprodução dos feiticeiros, e
não através de pactos com o diabo.
381
Os mecanismos de consulta adotados pelos curadores de Rio das Rãs são variados, inclui-se o uso de bola
de cristal, copos com água e cartas. É comum as consultas serem chamadas de “olhada”, no sentido de ver o
que se passa na vida do consulente.
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224
segundo, sendo constatado o enfeitiçamento, resta tratar a vítima com limpezas, banhos e
uma série de outros procedimentos.
curadores são procurados, também, antes de uma decisão importante, como uma viagem a
São Paulo ou a compra de um gado, mas, nesses casos, o interessado em fazer a consulta
está desejando um aconselhamento espiritual sobre como agir com segurança numa
determinada situação. Portanto, a procura pelo Centro, neste caso, não está relacionada à
desconfiança de que “algum mal” esteja a caminho.
A motivação principal para se procurar os serviços dos Centros, contudo, parece estar
mesmo associado à ocorrência de algum infortúnio ou à suspeita mais evidente de que
possa estar sendo vítima de feitiçaria. Os depoimentos são categóricos quanto à necessidade
de procurar ajuda de um especialista, quando suspeitas indicam que a feitiçaria esteja em
curso contra o indivíduo ou a sua família:
“Mas muita gente acredita nele, mas eu num me cabulo não. Porque eu precisava ver e eu nunca vi,
nunca vi ninguém fazeno [feitiço]. Agora eu acho que acredito porque meu marido bebia, disse que
era isso, e hoje tá com catorze ano que ele largou e ele largou com tratamento.” (Elíndia Maria
Cardoso, 44 anos, da localidade de Capão do Cedro )
“Uma nuvia minha morreu no curral aqui. E nesse dia mermo que a nuvia morreu, morreu dois bizerro
lá na roça dele [o irmão] e falou que tudo indicaro que foi bruxaria que fizero. Agora, quem [foi] e
quem não [foi], ninguém vai [saber]...” (Renério de Joaquim Vilaça, da Brasileira)382
“Era uma pessoa amiga dos meus pais, era filha daqui de Parateca e passou a morar em São Paulo,
segundo a dona do Centro, ela fez isso [enviou um feitiço] tudo porque ela queria que o meu marido
casasse com a filha dela. Como [meu marido] não quis casar com a filha dela e casou comigo, assim
que eu tive o bebê ela fez isso. Que era pra mim morrer, ele ficar viúvo e casar com a filha dela”
(Adenir Ferreira dos Santos, 39 anos)383
382
O Sr. Renério Vilaça é evangélico, e quem procurou o Centro para fazer o diagnóstico foi o seu irmão.
383
Dona Adenir Ferreira dos Santos é da comunidade negra de Parateca, no município de Malhada e vizinha à
Rio das Rãs.
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[existe]. Não tem nada nesse mundo que num inxiste, né? Agora a [coisa] boa, a gente quer
pegar, a boa. Quem não quer se liga [à] ruim.”
Por ter convicção de que a maldade é um dado da realidade cultural de Rio das Rãs,
os quilombolas encaram a feitiçaria como um fenômeno com o qual têm que lidar
permanentemente. É, portanto, um elemento da estrutura social do quilombo. É neste
contexto que os curadores se instituem como guardiões dos quilombolas, pois são eles que
possuem os conhecimentos e a capacidade técnica para lidar com o universo complexo da
feitiçaria. São eles também que dão esperanças aos desafortunados atingidos por algum
feitiço, ou indicam cuidados a serem seguidos para evitar as constantes ameaças que
rondam a todos que acreditam, embora não aceitem, na inevitabilidade da lógica da
feitiçaria.
384
BARCELOS NETO, Aristóteles. De divinações xamânicas e acusações de feitiçaria: imagens Wauja da
agência letal. Revista MANA, 12 (2), 2006, p. 285-313, p. 301.
385
GESCHIERE, Peter. Feitiçaria e Modernidade nos Camarões: alguns pensamentos sobre uma estranha
cumplicidade. Revista Afro-Ásia, UFBA, nº 34, p. 33.
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227
386
MAIR, Lucy. La brujeria en los pueblos primitivos actuales. p. 44.
387
SAMPAIO, Tenebrosos mistérios, 2003.
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228
procurar um conhecido feiticeiro para salvar seu filho que se esvaía em sangue. Evans-
Pritchard assinala que, entre os Azande, malgrado as objeções feitas aos feiticeiros, eles
consideram a feitiçaria parte de sua constituição social: “Nada há de extraordinário num
bruxo – você mesmo pode ser um, e com certeza muitos dos seus vizinhos mais próximos o
são. Tampouco existe algo de aterrorizante na bruxaria.”388
A feitiçaria é encarada em Rio das Rãs de modo ambíguo: é um mal que deve ser
combatido, porém, sendo uma instituição constituinte da cultura do quilombo, desde a
época dos primeiros fundadores, resta aos seus descendentes saber lidar com ela e entender
as nuanças que caracterizam sua ação.
No processo de acusação de feitiçaria, não é comum em Rio das Rãs os indivíduos
declinarem publicamente nomes de conhecidos e notórios feiticeiros. Alguns deles se
tornaram, ao longo de suas vidas, cidadãos notáveis pelo respeito adquirido no quilombo;
outros, porém, jamais tiveram as suas identidades conhecidas, quer pela ação discreta ou
por ter passado despercebido pelos quilombolas. Os Azande costumavam se referir aos
feiticeiros, segundo Pritchard, como um sujeito comum: “você mesmo pode ser um...” Em
Rio das Rãs, da mesma forma natural e despreocupada, presenciei uma pessoa se referindo
ao um feiticeiro: “aquele mesmo é um...”
De um modo geral, os feiticeiros têm uma vida normal em Rio das Rãs. Para
sobreviver, os que ainda não se encontram aposentados pela Previdência Social, trabalham
pesado na roça, campeiam e se expõem às mordidas das piranhas pescando nas lagoas, ou,
quando são mulheres, cuidam dos maridos e criam seus filhos. São homens e mulheres
aparentemente comuns, que se casam e formam famílias, participam da vida social da
comunidade e podem, eventualmente, se destacar como lideranças políticas.
Segundo me foi confidenciado, algumas das lideranças mais notáveis da história de
Rio das Rãs são considerados feiticeiros, ainda que reservadamente. Uma dessas lideranças
conheci de perto, e posso atestar a enorme importância que teve na luta contra o fazendeiro
que se apossara das terras imemoriais do quilombo. Ele era um líder altivo, orgulhoso e
imponente. Certa vez perguntei por que não se relacionava e nem procurava o mais famoso
curador de Rio das Rãs, o já falecido Andrelino Xavier; a sua resposta foi a de que este
388
EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande, p. 58.
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229
curador nada tinha para ensinar-lhe, dando a entender que ele menosprezava os
conhecimentos relacionados aos poderes espirituais do citado curador.
O perfil dessa figura é exemplar, no sentido de demonstrar não haver
incompatibilidade entre a feitiçaria e o poder, da mesma maneira que filosofam os Wauja:
“Feiticeiros não são para se matar, são para se ter medo, diz a reflexão de um sábio
wauja.”389
Em Rio das Rãs não se conversa publicamente sobre os feiticeiros e tampouco sobre
as ocorrências de feitiçaria afetando a vida das pessoas. Quando se trata de suspeitas
concretas nas quais o indivíduo pode estar sendo vítima, o assunto é tratado privadamente
com uma pessoa ou com o curador de confiança.
Mas, nos momentos de descontração e brincadeira, a palavra feitiçaria pode ser
mencionada de uma forma absolutamente inesperada, quando os homens bebem nos
botecos no fim de semana, ou quando homens e mulheres encontram-se e têm uma
oportunidade de galhofar, ao viajarem juntos para Bom Jesus da Lapa nos velhos ônibus
que fazem a linha, ou mesmo numa festa comunitária. Nestes casos, a palavra feitiçaria é
usada não para se denunciar efetivamente alguém. São brincadeiras onde se fala que os
conhecidos curadores do quilombo estariam “melhorando de vida”, por estarem recebendo
uma quantidade grande de serviços espirituais; em outros momentos, falam que vão fazer
feitiço para conseguir conquistar a irmã do amigo, e assim por diante. Tudo isso em meio a
muitas gargalhadas.
Na cerimônia católica de casamento de Carlos Oliveira, o mais jovem curador do
quilombo, por exemplo, alguns “caçoavam” dele por ter supostamente uma “profissão de
futuro”. Diziam ser a atividade de curador uma “arte” lucrativa e, além disso, não precisaria
enfrentar a pesada labuta da roça.
Os quilombolas se divertem contando casos, fazendo piadas de duplo sentido,
relatando gafes cometidas por um ou outro. Em uma das viagens para Bom Jesus da Lapa e,
também, enquanto bebia em uma roda de conhecidos num fim de semana, as referências
aos feiticeiros não tinham a finalidade de denunciar, tampouco lamentar a ocorrência de
feitiçaria, e sim rir. Do tipo: “vem feiticeiro!” Tom jocoso, querendo dizer com isso ter o
389
BARCELOS NETO, Aristóteles. De divinações xamânicas e acusações de feitiçaria: imagens Wauja da
agência letal, p. 297.
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230
sujeito objeto das brincadeiras supostos poderes mágicos, ou por amedrontar alguém por
saber manipular coisas misteriosas.
390
Falecido no final de 2009 de um presumível enfarto, após ter se desentendido com um primo.
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indivíduo. De acordo com essa filosofia, tudo o que perturba a vida rotineira de um
indivíduo, da sua família, da comunidade ou que prejudique o desenvolvimento “normal”
de uma planta ou a saúde de um animal pode ter relação com a feitiçaria. Quando a
ocorrência de algum fenômeno é considerada não rotineira, imediatamente se desconfia de
“estar a caminho alguma coisa enviada”.
“Uma doença que eu tive. Um probrema. Eu mesmo já sufri um probrema que eu fiquei um ano e
três meses doente sem condição de num fazer nada. Ai em primeiro lugar eu a agradeço a Deus,
terceiro (sic) lugar eu agradeço onde ele [Andrelino] tiver, Deus vá dar um bom descanso pra alma
dele que eu sei que ele merece.”
contrário, são conhecidas pelo bom humor e a tranquilidade e levam a vida como se a
feitiçaria fosse algo que fizesse parte da rotina diária – como trabalhar, comer e dormir –,
querendo dizer com isso, ser a vida alternada de momentos de alegrias e satisfações, mas
também de tristezas e aborrecimentos.
Ouvi muitas histórias sobre feiticeiros famosos, sobre os pouco conhecidos e casos
exemplares de feitiçaria. A permanência dessas lembranças na memória social dos
quilombolas é uma forma, talvez, de confirmar a feitiçaria como um fato social. A narrativa
do mito seria a prova da sua existência, em sentido análogo ao que os antropólogos buscam
para comprovar as suas verdades com as evidências empíricas, com a diferença de que
nesse caso são as vozes dos sujeitos falando de si mesmos e de suas experiências vividas.
As narrativas sobre a feitiçaria evocam muitos significados, contudo, três elementos
comuns as aproximam: a crença em sua força, a veracidade dos seus efeitos e o poder da
feitiçaria.
Inicio os relatos com duas histórias que falam justamente de falsos
curadores/feiticeiros391 que ganharam dinheiro e lograram muitos quilombolas de Rio das
Rãs. Essas histórias são uma oportunidade para se refletir e mensurar a extensão e a
profundidade das crenças na feitiçaria no quilombo e em seu entorno.
Creusa de Brito Xavier (39 anos) e Lenice Cardoso (32 anos) me contaram que um
cidadão de nome Manoel, originário de Santa Maria da Vitória, município vizinho de Bom
Jesus da Lapa, apareceu subitamente no Enchú e no Capão do Cedro, pequenas localidades
a leste do quilombo de Rio das Rãs, em 2005, se dizendo curador. Manoel impressionava
pelo convencimento com que pronunciava as palavras, pela contrição com que rezava e,
especialmente, pelas certezas com que diagnosticava as pessoas supostamente enfeitiçadas.
Além de desvendar o enfeitiçamento através das olhadas, apresentava provas de objetos
físicos que representariam o enfeitiçamento, a exemplo de pulseiras, santinhos de metal,
391
No universo da feitiçaria há suspeitas, aqui no Brasil como também na África Central, da existência de
curadores que seriam também feiticeiros. O caso relatado é de uma pessoa que se dizia curador, mas
desconfiavam em Rio das Rãs que ele seja igualmente feiticeiro, isso depois das pessoas terem sido logradas.
Neste caso, a desconfiança existia pelo seu poder de encantar e de enganar as pessoas, considerado como um
dos muitos disfarces usados pelos feiticeiros.
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235
rosários, que teriam sido enterrados para atingir os seus alvos. Quando as pessoas cavavam
o chão e encontravam os tais objetos, aumentava enormemente a confiança nas consultas
realizadas.
Essas tais “provas” reforçavam, sobremaneira, o argumento poderoso e sedutor no
universo da feitiçaria: a de que o feitiço é um objeto “enviado” e que pode provocar
imensos prejuízos aos que são por ele alcançados.
Os quilombolas que pagaram pelos seus serviços do curador se deslumbravam com a
capacidade de convencimento de Manoel. Com isso, o falso curador arrecadou uma
fabulosa soma em dinheiro, além de levar porcos, bodes, galos e galinhas, com a
justificativa de que seriam utilizados nos trabalhos de anulação da feitiçaria.
Quando ele descobria que suas vítimas tinham alguma posse a escorcha era maior.
Foi assim que conseguiu receber como pagamento por seus trabalhos um carro velho
avaliado, em 2007, em mais de três mil reais. O mais impressionante é que ele conseguiu
ludibriar até mesmo o senhor Andrelino Francisco Xavier, tio de uma das depoentes, e o
mais querido e famoso curador de Rio das Rãs.
O senhor Andrelino, antes de falecer, após sofrer durante muito tempo com graves
restrições motoras provocadas por um Acidente Vascular Cerebral – AVC, ficava a maior
parte do tempo imóvel em uma cama ou em uma cadeira de balanço no quintal que dividia
a sua residência do barracão do seu Centro de Jurema.
Quando seus filhos souberam da presença desse famoso curador que aparecera em
Rio das Rãs, se dispuseram a pagar a elevada quantia de R$2.500,00 reais para fazer um
“trabalho” que recuperasse a saúde do velho debilitado. Manoel curador teria chegado à sua
residência e diagnosticara estar o velho enfeitiçado. Os objetos-feitiços (pulseiras e
colares), no momento da consulta, Manoel teria dito que estariam se deslocando do
barracão do seu Centro na direção de sua cadeira de balanço, onde ele ficava uma parte do
tempo recebendo e abençoando as pessoas que o procuravam. O diagnóstico do curador era
fatal: o senhor Andrelino morreria quando o feitiço o alcançasse.392
392
Muito antes de falecer, recebi um recado do senhor Andrelino Xavier para que eu o visitasse urgentemente.
Como na época, em 2003, ensinava na UNEB de Bom Jesus da Lapa atendi com celeridade ao seu chamado.
Ele queria que eu intermediasse uma consulta ao um terreiro de candomblé em Salvador para tentar desfazer
de um poderoso feitiço enviado por um ex-filho de santo dele que fundara, com a sua discordância, outro
centro. Como os contatos que tinha à época não podiam atender à sua solicitação com a celeridade pretendida,
não foi possível a realização da consulta em Salvador, como ele desejava.
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Depois que Manoel curador amealhou uma pequena fortuna dos moradores de Rio
das Rãs em dinheiro, gado, aves, moto, carro e outros objetos de valor, principalmente das
localidades de Enchú e Capão do Cedro, desapareceu misteriosamente, sem deixar rastro, e
sem que os seus consulentes nada pudessem fazer, inclusive o venerável Andrelino Xavier,
que morreria meses depois.
Os quilombolas de Rio das Rãs acreditam no poder da feitiçaria com muita
convicção, mas isso não os leva a deixar de consultar um médico quando adoecem. É
comum os curadores e os quilombolas, de um modo geral diferenciarem “coisas espirituais”
de “coisas de médicos”. A desconfiança de que possa estar em curso a feitiçaria, se dá
quando ocorre subitamente na vida das pessoas um desequilíbrio físico ou mental, sem que
haja uma explicação plausível.
A busca por evidências mais precisas, sobretudo no que se refere a ocorrências de
saúde, mostra estarem os quilombolas preocupados em buscar explicações causais para os
seus males. O mesmo não acontece com os diagnósticos médicos, quando ignoram a
possibilidade dos pacientes terem algum distúrbio provocado por fenômenos mágico-
religiosos.
Por essa razão, Montero identifica um hiato entre o diagnóstico médico e a história
apresentada pelo paciente: “o discurso religioso trabalha em continuidade com a
experiência concreta e subjetiva que o sujeito tem de sua ‘doença’, enquanto que a
Medicina produz uma ruptura entre o vivido e sua interpretação.”393
Aproveitando-se da concepção dos quilombolas de Rio das Rãs sobre a noção de
doença, um sujeito “se passando” por médico ganhou também muito dinheiro.
Esse sujeito saía de casa em casa, especialmente das pessoas mais velhas e
aposentadas, portanto com um rendimento mensal assegurado, e se apresentava como
médico. Perguntava às pessoas o que sentiam e, conforme cada caso, receitava uma
medicação que dizia ser apropriada à cura. Uma dessas pessoas a quem ele medicou, o
senhor Antonio Aparecido Soares394, foi visto no quilombo como um dos grandes
feiticeiros. Como o senhor Antonio Aparecido já dispunha, por escrito, de um diagnóstico
médico de glaucoma, foi fácil para o charlatão receitar o conhecido e antigo colírio Moura
393
MONTERO, Paula. Da doença à desordem – a magia na Umbanda. Rio de Janeiro: GRAAL, 1985, p. 98.
394
Nome fictício.
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Brasil. Como se sabe, embora o glaucoma possa ser tratado com sucesso em hospitais
especializados, é uma doença incurável, e o referido colírio tem uma composição química
neutra, e é normalmente recomendado para lavar os olhos de alguma sujeira. O senhor
Aparecido, evidentemente, não se curou do glaucoma, e o povo de Rio das Rãs não mais
ouviu falar desse “médico”.
Os casos de feitiçaria em Rio das Rãs são variados e, alguns deles, trágicos. Dona
Elíndia Maria Cardoso (39 anos), do Capão do Cedro, me falou de dois rapazes que
tratavam violentamente os pais – coisa muito rara na cultura de Rio das Rãs. Um deles, o
mais velho, terminou internado em um hospital psiquiátrico, depois que destruiu
praticamente todos os móveis de casa, após ter ameaçado os pais de morte. Depois de longo
período amarrado a uma corrente dentro de casa e usando calmantes, o rapaz terminou
morrendo praticamente isolado.
O segundo irmão (dos oito filhos que a sua mãe parira, seis morreram), antes
“calmo”, “pacato”, “obediente e trabalhador”, nas palavras de dona Elíndia, começou a
apresentar os mesmos sintomas de desequilíbrio mental do irmão mais velho sendo, porém,
muito mais violento com os seus pais. Nos estados de excitação, obedecia apenas aos
vizinhos mais idosos. No final do relato, para a minha surpresa, a informante me disse que
os estados psicóticos desses jovens eram o resultado da feitiçaria praticada pelo seu pai.
Há uma crença no quilombo, portanto, de que a feitiçaria retornaria para a família do
feiticeiro em forma de malefícios, de acordo com esta interpretação.
Domingos Nunes de Souza (36 anos), residente da Brasileira, uma das localidades
mais povoadas do quilombo de Rio das Rãs, além de acreditar na feitiçaria, já foi vítima.
Domingos tinha um pequeno comércio ao lado de sua casa e foi obrigado a fechar as
portas porque teria sido atingido pela feitiçaria. Por esse motivo, resolveu, então, procurar
os serviços de um curador para que esse fizesse uma “limpeza” em seu estabelecimento.
Concluído o trabalho, Domingos observou sinais positivos de melhora em seus negócios.
Tempos depois as mesmas dificuldades em seu comércio de peixe reapareceram. Na
interpretação de Domingos, essa recaída deveu-se a um estranho pacto dos feiticeiros com
os curadores para dividir o dinheiro dos clientes e, assim, os infortúnios não serem
totalmente superados. De acordo com Domingos, “eles num gosta de tirar do outro, pra
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238
poder derrubar do outro e aí eles pega e comunica, fica tipo comunicado [combinado]. Fica
tipo balança, nem lá nem cá.”
Carlos Oliveira, o jovem curador da Brasileira, me contou uma história de feitiçaria
para demonstrar uma tese: nem os curadores, que possuem teoricamente todas as condições
e conhecimentos para anular a feitiçaria, estão isentos de serem enfeitiçados.
Silvalino, um conhecido curador da Papaconha, localidade fronteiriça a Rio das Rãs,
foi iniciado pelo senhor Andrelino Francisco Xavier e era tido, por alguns, como o seu
provável substituto, embora seja famoso por ser um incorrigível cortejador de mulheres
solteiras e casadas. Ele começou a namorar a filha de uma conhecida feiticeira da
comunidade negra de Pau D’arco, quilombo vizinho a Rio das Rãs, no município de
Malhada.
Depois da noite de amor com a formosa filha da feiticeira, Silvalino montou em sua
moto e tomou o caminho de casa. Na estrada escura, uma coruja em um vôo rasante acertou
o seu olho, que ficou sangrando. Dias depois, e sem conseguir enxergar nada naquele olho
ferido, Silvalino convidou Carlos Oliveira ao seu Centro para fazer uma olhada e tentar
decifrar os mistérios daquele acidente. Carlos diagnosticara estar o colega curador
enfeitiçado.
Feito o diagnóstico, Carlos teria pedido licença aos caboclos do Centro de Jurema do
amigo e invocou uma reza forte, de acordo com o relato de Carlos; logo a seguir, mandou
Silvalino abrir os olhos e este se deu conta de que enxergava normalmente.
O senhor Antonio Aparecido Soares (88 anos) e sua esposa, dona Francisca Soares395,
atualmente dedicada evangélica, me contaram muitas histórias de feiticeiros. Dizem em Rio
das Rãs que ele próprio é um dos grandes feiticeiros vivos. Pela capacidade de falar do
passado e também por estar sempre informado do que acontece no Brasil e no mundo –
através do rádio, o dia todo ligado –, é uma figura interessantíssima. Eis algumas de suas
muitas histórias de feitiçaria:
“Leobino do Rosário, da Parateca, morava lá num lugar chamado Pau Torto. Aí ele tava contano [...]
que trouxe um revolve de São Paulo. Aí Leobino num tinha idéia de fazer mal ninguém, mas porque
ele achou que ele podia usar ele [o revólver], ia pra roça e só andava com ele na capinha dum lado. Aí
Leobino bateu assim um papo, que ele passasse o dedo no gatilho, ele num errava um tiro com aquele
revolve. Aí que ele pegou trabaiano, capinano, e tal. Aí lá diante tinha um toco mais alto assim que ele
395
Nome fictício.
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[Pedro] falou assim pra o Leobino: “Se você tem um papo forte por esse revolve seu, vou ver se esse
revolve seu tem resistência de fazer o que você ta bateno papo que faz”. [Pedro] tirou o chapéu da
cabeça e botou o chapéu lá na cabeça do toco e falou: “corta as seis bala no chapéu”. “Corta, pode
cortar”. Aí Leobino tirou o revolve e poc, poc. Aí ficava poc, poc e não saiu o tiro. Cadê bala quebrar?!
O sinhô tio dela [Francisca, esposa do senhor Aparecido] que chamava Pedro, ele me contou por boca
dele mermo.
[Leobino] Ficou envergonhado, aí que ele falou... Aí Leobino falou com ele Pedro: “Você não é cria
não, você é coisa do diabo. Coisa do diabo.”
“Minha mãe pediu o cavalo ao cumpade dela, era primo carnal e cumpade. Manel Antonio que
chamava ele. Chamava Manel e o pai chamava Antonio, chamava ele Mané de Antonio. O cavalo
libunho. O cavalo dele tinha assim uma orêia môca assim. Acho que deu carrapato e a orêia moçou
assim um pouquinho. Tinha uma lista na testa no meio da testa até em cima do fuçinho. Cavalo
libunho, do cabelo assim quase se fosse castanho. Bunito mesmo o cavalo. Ela pediu o cumpade e
primo o cavalo pra ir buscar essa mandioquinha na roça. Aí ele deu de boa vontade e o véio, tio meu,
irmão dela [Francisca], foi buscar essa mandioca nesse cavalo. Foi na roça, encheu a carga de
mandioca, pôs no cavalo, veio trazer na casa da roda, tudo bem. Chegou, despejou a mandioca, tornou
voltar pra buscar a outra carga, quando o cavalo chegou cum a outra carga derradeira, já chegou assim
ó... Mancano. Apois mancano, foi esse, minha mãe entregou o cavalo já chorano de preocupação. De
ver aquele cavalo que num levou pancada nenhuma, entregar o dono já daquela situação. Aí era
mancano do quarto. Apois, o dono do cavalo levou o cavalo pra roça, chegou lá abriu a porteira até
baixinha, que era uma porteira que tem pau deitado. Botou aquilo bem baixinho pro cavalo passar e
puxou o cavalo assim base assim de mais um pedaço assim na beira da porteira, as vez tava mais duro
levou lá mais pra ponta do capim, tirou o cabresto do cavalo e o cavalo não mudou o pé dali mais pra
lugar nenhum. Porque a dor... Essa dor que o cavalo não pode mais andar e nem teve corage pra tirar
nem uma bocada de capim. Dali quem carregou o cavalo foi os urubu. Quer dizer, que a sabedoria
daquele tempo era uma sabedoria mais suja.”
“Tá com uma faixa duns quatro anos ou mais, o cachorro naquela data, naquele ano o uvido do
cachorro encheu muito de carrapato, que o sinhô sabe o que é isso, né? Aí o cachorro tava correno
doido e eu de cá oiano. Vai ali, corre aculá, correno, tava doido de bicho comeno dentro do uvido.
Apareceu aqui, eu falei, ói moço, mas esse cachorro tá assim, o que... Ta com bicheira no uvido. Eu
digo, e porque não cura? “Porque ele num deixa pegar, saí com ele correno, mas se for pegar ele num
deixa”. Eu falei, eu vou fazer a caridade de curar ele. Aí eu mediquei essa cura, contano os bicho de
nove pra trás, bicho caiu tudo, nunca mais bicheira deu nele. Nunca mais ele teve bicheira. O cachorro
era um branco e um preto. O preto era bem mais velho. O mais velho desse tempo que eu derrubei o
bicho da bicheira dele, ele nunca mais pegou bicho”
No Cedro [terra de nascença do senhor Aparecido, próximo do Pau Preto e ao lado do Mucambo, estas
últimas localidades situadas dentro do território de Rio das Rãs], um moço negro de cabelo miúdo e
encarapinhado de nome Dionísio Rodrigues da Silva comprou uma terra. Mas a sua terra não era muito
boa e só dava feijão e mandioca. Ao lado da sua propriedade havia uma terra vermelha que lhe
despertou a atenção, essa dava um bom milho e o que mais se plantasse. Dionísio resolveu, então,
gastar mais um dinheiro e comprou um pedaço de terra na dita área. Na mesma época, um homem
branco de nome Aldino, de barba vermelha fechada, comprou também uma propriedade na região.
Como as duas fazendas eram contíguas eles teriam que acertar quanto a melhor forma de definir uma
divisa. Acertaram, então, de comum acordo, que cada um cederia um metro e meio de suas respectivas
áreas para fazer a picada dividindo as fazendas. Depois do acerto, Dionísio descumpriu o acordo e
estendeu a sua cerca sem considerar a área para a construção da picada. Aldino resolveu cortar o arame
de Dionísio. Este, por sua vez, fez o mesmo com o arame do moço branco. Após esse desentendimento
entre os dois vizinhos, e sem haver expectativa de acordo entre os dois, o homem branco disse que ia
fazer uma viagem para Cachoeira de São Felix, mas antes de viajar ele teria ameaçado Dionísio: para
que “aquele nêgo não cortasse mais arame de ninguém”. Depois dessa viagem de Aldino, Dionísio
começou a sentir uma dor no pé do umbigo que nenhuma reza, chá de folhas do mato e de casca de pau
foi capaz de aliviar. Os vizinhos resolveram então levar o doente de carro de boi, que era o único
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transporte na época, para a sede município de Palmas de Monte Alto, um lugar distante do pequeno
povoado do Cedro. O coitado não conseguiu chegar ao destino, morreu no caminho.
Um grupo de homens teria chegado a Feira de Santana vindo de Alagoas, eles viajavam em direção a
São Paulo. Em Feira, o grupo resolveu comprar bolo de umas mulheres negras gordas, de “beiços
carnudos” e vestidos compridos, conforme a narrativa do senhor Aparecido. Chegaram perto de um
dos tabuleiros e um deles apertou com as mãos os bolos de uma das mulheres e disse que não
compraria aquele bolo com cheiro de ovo. Quando deu as costas, a mulher se sentiu ofendida com
aquele gesto descortês e atirou um pequeno bolo nas costas do alagoano que na mesma hora desabou o
corpo pesado no chão e lá ficou tremendo as pernas. A vendedora vizinha dessa mulher que atirara o
bolo, depois que passou um tempo e o homem continuasse estendido, resolveu se levantar e dizer: “Oh,
porque fazer isso com ele!”. Enquanto falava a mulher deu três voltas em torno do corpo moribundo do
alagoano segurando as suas longas saias de baiana. Completadas as três voltas, o homem recobrou os
sentidos e se levantou ainda meio assustado e nunca mais, lógico, passou por ali.
ainda, que a anularia e, ainda, condenaria o invejoso a sofrer a pena de sua própria maldade.
Ou seja, se a inveja é uma modalidade de feitiço, pode existir outro feitiço ainda mais
poderoso que o anula. Dito de outra forma, existe feitiçaria e contra-feitiçaria.
Outro aspecto presente na moral dessa história é quando se verifica que o moço
prejudicado pelo invejoso recorreu a uma instância “superior” para resolver o conflito; pelo
menos é esta a fama que corre com relação aos feiticeiros de Cachoeira.
Um feiticeiro pode se notabilizar pela maldade que pratica, que é a marca mais
destacada da feitiçaria, mas também pela capacidade de mostrar quem tem poder,
independentemente se sua ação tenha ou não um sentido moral generoso. A cura da
bicheira do cachorro, mais do que um ato de compaixão, é uma demonstração de força e
poder.
Por fim, a alegoria envolvendo a “baiana” de Feira de Santana possui uma
representação análoga àquela em que o senhor Aldino foi compelido a recorrer aos
feiticeiros de Cachoeira. Como se sabe, a fama que associa o povo de candomblé –
representada na história por uma baiana – à feitiçaria vem desde o período da escravidão no
Brasil. Mas, nessa história, o poder da feitiçaria se encontra igualmente presente em duas
versões complementares: a de fazer o feitiço e também de desfazer, conforme a
conveniência dos envolvidos. Nos dois casos, é também o poder que sobressai no sentido
demonstrativo de força.
Não foi possível observar, entre os quilombolas de Rio das Rãs, comportamentos
compulsivos que os levassem a associar automaticamente algum sintoma de doença à
ocorrência da feitiçaria. Ao contrário, muitos quilombolas chegam a afirmar não existir
feitiçaria, querendo dizer que a sua proliferação está relacionada, em grande parte, ao
exagero da crença de algumas pessoas.
A excessiva preocupação com que alguns quilombolas tratam suspeitas de feitiçaria é
severamente criticada, inclusive pelos curadores, que deveriam ser os mais interessados em
alimentar esse imaginário, até por ganharem dinheiro para fazer consultas e realizar
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trabalhos para anular a feitiçaria em seus consulentes. Eis dois casos de suposta feitiçaria
criticados pelos curadores:
“Eu tenho anos de obrigação que eu tou falando, mas eu só vou até onde acho que tá certo. Cumo as
tarefa que parece: ‘meu fejão morreu, foi um feitiço; meu gado ta acabano, foi um feitiço.’ [...] E não é
feitiço...” (Leonardo José de Oliveira).
“Tem pessoa que tá cum dor de coluna. Aí tem pessoa que cabula de bruxaria, né? Aí aquela dor fica
dueno e ele vai num médico, já vai pro médico um pouco meio runhe e descobre...[que era coluna]”
(Carlos Oliveira).
De um modo geral os quilombolas sabem distinguir entre o que pode ser feitiçaria e
as doenças que aparecem por causas fisiológicas. Essa distinção entre as “doenças naturais”
e a feitiçaria é feita a partir de uma escala de procedimentos, na verificação dos sintomas
observados pelos quilombolas.
Orientados pela experiência acumulada ao longo do tempo, os quilombolas de Rio
das Rãs adotam os seguintes procedimentos para acompanhar e enfrentar as alterações
inesperadas na saúde humana, nas doenças dos animais e no pouco desenvolvimento das
plantas: tratar as enfermidades através do uso de ervas disponíveis no meio ambiente local e
usando os métodos de manipulação transmitidos pelos antepassados. São chás, banhos,
infusões, garrafadas e rezas simpáticas que algumas pessoas mais idosas do quilombo
conhecem.
A doença não sendo debelada, a família começa a se preocupar e, imediatamente,
aciona o serviço de saúde pública em Bom Jesus da Lapa. Após o uso das medicações, caso
os sintomas da doença se mantenham inalterados, um curador é procurado para fazer uma
olhada em um dos quatro Centros de Jurema existentes em Rio das Rãs, ou nos muitos
outros espalhados no vasto território quilombola do Sub-Médio São Francisco. Antes
mesmo de fazer a olhada, é possível que o indivíduo doente já tenha recebido passe de um
caboclo em algum desses Centros. É comum também que, nesse primeiro momento, a
família faça uso dos serviços de alguma experiente rezadeira existente no quilombo.
No caso de doenças e outras alterações súbitas envolvendo animais ou as plantações
dos quilombolas, órgãos públicos responsáveis pela assistência técnica serão procurados
para ajudá-los a combater possíveis pragas e doenças das plantas e animais, caso sejam
estas as razões dos infortúnios.
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de se estabelecer uma ordem lógica nos acontecimentos que afligem as pessoas. Não a
lógica científica exclusivamente – que teria respostas absolutas para a explicação dos
fenômenos –, mas a lógica que inclui uma zona em que nem todas as coisas são
objetivamente visíveis e concretas.
Para Paula Montero, “o que mais parece importante nas descrições que nossos
informantes fazem de suas sensações ou comportamentos mórbidos é a ‘extraordinariedade’
que os torna sujeitos a uma lógica que escapa à causalidade natural.”396
É um sério engano imaginar que o sistema de cura consagrado culturalmente em Rio
das Rãs despreze explicações razoáveis para os males que atormentam os quilombolas.
Mauss, já advertira sobre isso: a visão de mundo mágico-religiosa dá “extrema importância
ao conhecimento e este é uma de suas molas principais; vimos, de fato, e por diversas
vezes, que, para a magia, saber é poder.”397
Na vida cotidiana em Rio das Rãs, exagero à parte, todos desconfiam que, em algum
momento, podem ser atingidos por uma “coisa enviada”, embora essa maneira de encarar o
mundo não torne os quilombolas apreensivos e tensos, como à primeira vista se possa
depreender. Ao contrário, eles são invariavelmente tranquilos e alegres. Ao mesmo tempo,
sabem e têm consciência dos perigos da feitiçaria, por esse motivo adotam rigorosas
receitas de prevenção.
Os quilombolas de Rio das Rãs plantam nos terreiros de suas residências conhecidos
arbustos protetores das energias negativas, alguns deles de origem africana, como Espada
de Oxossi, Espada de Ogum, Espada de Santa Bárbara, Comigo-ninguém-pode, Andu,
Preto Velho. Além dessas plantas, usam-se amuletos, pulseiras, colares e patuás; evita-se
comer ou beber em casas de pessoas suspeitas, passar por baixo de cerca de arame para não
“abrir” o corpo; evita-se também fazer sexo ou beber durante os períodos de tratamento, e
muitos outros procedimentos e proteções contra a inveja, o ciúme, o mau-olhado, o
quebranto e outras energias ou objetos enviados por algum feiticeiro.
A forma mais eficaz de anular a feitiçaria, tendo ela atingido uma pessoa, é buscar a
proteção em um sistema de cura especializado, ou seja, um Centro de Jurema. Nesse Centro
é possível identificar, através da olhada, se a pessoa está ou não enfeitiçada e, caso esteja,
396
MONTERO, Paula. Da doença à desordem, p. 102.
397
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia, p. 171.
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dizem não aceitar “trabalhos” que “prejudiquem alguém”; falam também que os Centros de
Jurema são espaços religiosos em que se pratica o bem.
Espada de Ogum
“Eu não acredito Valdélio, porque a planta jamais ela vai ter esse poder. As pessoas muitas vezes,
quando mete na mente, como às vezes tem pessoas que anda a noite e vê alguma coisa. Tem se dado o
conhecimento que pessoas vai andando na estrada e vê alguém. Aí ele diz, eu vi tal coisa, eu vi isso, vi
aquilo, uma visagem e quando vai fazer o apuramento, é um pé de planta, é um pé de lona, é um pé de
malva. Muitas vez as pessoas elas não procura a realidade, fazer um diagnóstico daquilo que ele vê e
vai falando que viu alguém, viu defunto.”
“E como a gente trabalha? Pedindo a Deus pra libertar essas pessoas. A gente em si não pode fazer
nada. Não existe banho, não existe sal, não existe isso ou aquilo não. Aqui é oração.” (Pastor
Rubenildo Nascimento, de Bom Jesus da Lapa)
“Olha, Andrelino era o seguinte [...], ele falava pra você: ‘Olha, você sente isso, isso, isso e isso. Você
vai usar o tal remédio assim, assim que você vai ficar bom.’ Você chegava lá usava o remédio, voltava
são, são... ‘Andrelino eu sarei’. [Andrelino dizia]: ‘Você tem que ir no médico, que esse problema aqui
seu, é preciso você ir no médico. O problema seu é médico. Depois que você vai lá no médico, trata e
volta que tem um problema aqui que eu vou tratar de você’”.
[Em outro momento ele dizia]: “‘Vem aqui, se o médico não te operar eu te opero’. Ele operava.”
Em 2007 ele cobrava R$105,00 por uma consulta médica. No meu retorno em 2009
para entrevistá-lo novamente, portanto, apenas dois anos depois, o preço da consulta já
havia sido elevado para R$150,00, em uma região das mais pobres do sertão nordestino.
Os quilombolas de Rio das Rãs por ele atendidos em caravanas quinzenais, até
poucos anos atrás, não tinham em suas residências luz e água potável; as casas eram
construídas de taipas e infestadas de barbeiros. Uma parte das localidades do quilombo, a
exemplo de Enchú, Capão do Cedro, Mucambo, Arriba, entre outras, ainda hoje não dispõe
em suas residências de água potável. Mesmo assim, quinzenalmente um caminhão médio se
desloca para Carinhanha, a cerca de 100 Km de distância – cada passageiro pagando
R$20,00 pela passagem –, levando quase duas dezenas de quilombolas para serem
atendidos pelo famoso médico.
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“A pergunta que você devia fazer é a seguinte: ‘Eu dou importância à religião para o tratamento
médico’? Claro. Eu sou católico, não muito praticante por falta de tempo, né? O pessoal de lá é de uma
doutrina mais espírita, né? Voltadas pras crenças de curandeirismo e por aí.”
O Dr. Cleber da Silva tem uma noção exata acerca da estreita relação entre o seu
sistema de cura e as crenças religiosas dos seus pacientes e sabe também, como veremos a
seguir, o papel que essas crenças têm no diagnóstico e, sobretudo, na cura das doenças.
Mas, de acordo com a sua concepção médica, ele não admite serem tais crenças influentes
no processo de cura dos pacientes.
Além de afirmar não haver influência das crenças religiosas no processo de cura,
motivo pelo qual, paradoxalmente, parte dos quilombolas o procura, ele desdenha dessas
crenças:
“E muitas vezes o pessoal vem com umas idéias errôneas, dessa parte de curandeirismo e a gente tenta
aqui, na maioria das vezes esclarecer e orientar eles assim ... Que vêm com aquelas estórias que o
curador falou isso, que o curador falou aquilo, então a gente ... O trabalho que é feito de
conscientização é de tentar tirar isso aí da idéia deles, né? Eles acreditam que tudo é espiritual, que
tudo é dessa origem, aqui então a gente tenta mostrar a parte real...”
A “parte real” a que ele se refere é o discurso que argumenta serem os fatos médicos
explicados pela ciência e esta não admitiria, portanto, a interferência de crenças incapazes
de penetrar na essência da doença, mostrá-la com uma tangibilidade indiscutível. Para isso
ele tem um aparelho de ultrassonografia que encanta os quilombolas, não só porque projeta
o interior do corpo em um monitor como também porque o médico afirma, ou os
quilombolas assim entenderam, que esse aparelho é capaz de “ver a doença andando dentro
do corpo”.
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O Dr. Cleber Pereira deve saber que esse artifício de “mostrar” a doença é eficaz para
a cura do paciente, até porque parte do sucesso entre os quilombolas deve-se à
representação que os pacientes fazem do aparelho que ele usa em suas consultas,
supostamente capaz de “ver todas as doenças.” Mas, ele não desfaz essa alegoria,
possivelmente por ser ela alimentadora do mito.
“Conscientizar” parece ter o sentido de reforçar a validade demonstradora de sua
máquina que tem o poder de “mostrar” ao próprio paciente aquilo que não é possível
através das olhadas e jogos de adivinhação. A sua vantagem no sistema de diagnóstico, em
comparação com os métodos dos curadores tradicionais de Rio das Rãs, é a de que os seus
pacientes podem “ver as doenças”, assim como também compartilhar com o médico ao
vivo as apreensões que os atormentam.
De acordo com Paula Montero, “‘ver’ a doença constitui-se, nas representações que
as camadas populares têm sobre os fenômenos mórbidos, condição sine qua non da própria
existência da doença. Se ela não pode ‘ser vista’, é porque ela não está lá.”398
Em outra parte deste capítulo vimos como o falso curador conseguiu enganar as
pessoas de Rio das Rãs procurando “mostrar” a materialidade do feitiço – enquanto um
instrumento transmissor de doenças – na forma de objetos (pulseiras, brincos, ossos) que se
movimentavam em direção ao corpo.
A idéia de doença para o imaginário dos quilombolas de Rio das Rãs, como se vê,
está associada à representação da doença como algo que pode ser percebido pelos sentidos,
ou através de sintomas que acarretem desordem na rotina diária do indivíduo, ou pela
incapacidade do corpo de realizar tarefas requeridas para a sua sobrevivência e de sua
família. É assim que os quilombolas diferenciam a doença física da espiritual, quando o
sintoma “supera a ordem do puramente fisiológico e se torna indicador da presença de
forças sobrenaturais cuja natureza, origem e intenções cabem ao médium, e não ao médico,
investigar.”399
Por ter uma concepção de cura diferente da dos seus pacientes, embora a utilize e a
manipule conscientemente em favor de sua prática de cura, o Dr. Cleber Pereira da Silva
mostra-se hostil e preconceituoso com as crenças dos quilombolas:
398
MONTERO, Paula. Da doença à desordem, p. 121.
399
Idem, p. 123.
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“Muitas pessoas vêm com idéias de que estão com “encosto”, que estão... São pessoas assim de nível
cultural bem baixo, né? Não entendem, então algum pessoal lá da região mesmo fala assim: “Tem uma
sombra, tem isso, tem aquilo”. E aqui a gente tenta mostrar pra eles que essas coisas na verdade são
doenças psicológicas, no caso de depressão, são doenças neurológicas mesmo, baixo nível intelectual,
que eles não entendem muito bem as coisas e aí ficam encabulados e se sentem doentes, na maioria das
vezes eles não estão tão doentes, mas, lógico que sentem, né?”
Em 2007, quando entrevistei o Dr. Cleber Pereira, ele considerava que setenta por
cento dos quilombolas de Rio das Rãs por ele atendidos sofriam de “depressão” e muitos
tinham sintomas de “retardo mental”. No ano de 2009, voltei a entrevistá-lo e as suas
convicções sobre a sanidade mental dos quilombolas se mantiveram:
“São as doenças psiquiátricas. Desde as doenças mais leves, depressão, ansiedade até as doenças mais
graves esquizofrenia, mania, transtorno bipolar. Então tudo isso eles tem, mas pela raça, as doenças
cardíacas, também são bem frequentes. Hipertensão arterial é muito comum. Praticamente todos...”
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Na opinião do médico, os curadores do quilombo de Rio das Rãs e região são doentes
mentais e trapaceiros, ao vincular os presumidos sintomas psiquiátricos dos mesmos com a
deliberada manipulação da loucura, com a finalidade espúria de ganhar dinheiro:
“São todos com doenças psiquiátricas graves. São pacientes que tem delírios de grandeza, então eles
acreditam ser pessoas poderosas. Então eles escutam vozes dos delírios dele então interpretam aquelas
vozes como uma mensagem ou alguma coisa assim e passam a usar isso, de uma forma pra viver, pra
ganhar dinheiro.
A avaliação do Dr. Cleber Pereira de que os quilombolas de Rio das Rãs sofrem de
problemas psiquiátricos, generaliza um diagnóstico psiquiátrico sem, contudo, ter feito,
pelo que pude constatar, testes comprobatórios para chegar a tal conclusão.
Ele próprio confessou, em 2009, que somente no ano anterior fizera um curso de
especialização em psiquiatria. Mas, ele já tinha essa opinião desde 2007, o que certamente
não lhe daria autoridade para chegar a tal conclusão mais recentemente. Além do mais, ele
não pesquisou em campo para atestar as impressões superficiais que um diagnóstico clínico
permite.
O que se pode depreender, a partir dos seus próprios depoimentos, é que a conclusão
do diagnóstico deve ter sido baseada em premissas falsas.
A primeira é que não se pode estabelecer uma relação de causa e efeito entre as
crenças religiosas dos quilombolas de Rio das Rãs e a sua saúde mental. As crenças
religiosas estão afetas à dimensão da cultura e dos comportamentos e não poderiam estar,
portanto, relacionadas às de “doenças graves”, como ele assinala. O fato de os quilombolas
creditarem estar a eficácia do tratamento prescrito pelo Dr. Cleber associada ao aparelho de
ultrassonografia que “vê a doença” é porque a idéia de doença por eles construída está
vinculada a uma cultura que valoriza a percepção dos sintomas. Portanto, isso não
configuraria um déficit mental, e sim uma visão de mundo diferente da do médico.
O Dr. Cleber Pereira considera também serem os quilombolas portadores de doenças
psiquiátricas porque, ao terem contato com a televisão, “não tem muitas vezes cultura para
interpretar o que tá vendo, o que tá aprendendo, tudo muito novo, então, às vezes se
transforma em ansiedade, em depressão, em outras coisas.”
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255
Essa idéia de ser a televisão geradora de depressão não tem qualquer comprovação
científica, além do mais o contato dos quilombolas de Rio das Rãs com a televisão não é
recente. A quase totalidade dos habitantes de Rio das Rãs não deixou de viajar para Bom
Jesus da Lapa, São Paulo e outros lugares em que podiam assistir à televisão, portanto,
muito antes da luz elétrica chegar ao quilombo, há doze anos. Não há prova também de que
eles tenham qualquer predisposição genética para contrair doença no contato com imagens.
A avaliação negativa do Dr. Cleber Pereira sobre os quilombolas de Rio das Rãs
decorre de sua incapacidade de entender que a maior parte de seu sucesso se deve,
justamente, à concepção de doença dos quilombolas. A visão de mundo dos quilombolas é
que torna eficaz o tratamento e a cura de suas doenças, mas o médico insiste em validar,
mesmo que dela se aproveite para fazer fama e obter fabulosos lucros400.
A tentativa do médico em desqualificar a referência cultural dos quilombolas, fica
explícita quando ele desdenha da importância da subjetividade no processo de tratamento
médico. Desse modo, o sucesso alcançado por seu tratamento, que deveria ser
compartilhado com os seus pacientes pela contribuição que eles dão para o processo
curativo, é atribuído apenas aos seus próprios conhecimentos. O que deveria ser um
compartilhamento dialógico – médico e paciente – termina sendo uma demonstração
unilateral de presumida supremacia do conhecimento científico. Isso fica patente quando
ele tenta negar a participação dos quilombolas no processo de cura e o significado que os
mesmos atribuem aos poderes mágico-religiosos:
“Acredito e as pessoas me dizem isso, tá entendendo? Eu fico calado, eu não tenho respostas a dar,
então as pessoas falam: “Então doutor, só de eu vim aqui eu já estou curado, eu não preciso de
remédio, eu tô bom, só nossa conversa aqui, eu só tava era perturbado, com medo, eu tô bom”.
O Dr. Cleber Pereira, como se vê, tem consciência de que manipula as crenças e
representações simbólicas dos quilombolas de Rio das Rãs para favorecer os resultados do
seu saber científico.
Mas, será que existem outros elementos simbólicos que induziriam os quilombolas a
terem essa imagem tão positiva desse médico e de sua capacidade de obter resultados
favoráveis para as doenças trazidas pelos seus pacientes?
400
Ele disse que está inaugurando em breve uma rede de clínicas em toda a região Oeste da Bahia, graças ao
sucesso obtido inclusive pela propaganda que os quilombolas de Rio das Rãs e região fazem dele.
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256
A crença de que o Dr. Cleber trabalha com os dois lados, o da medicina e a dos
poderes mágicos, foi construída ou reforçada no decorrer da sua prática médica, ao que
tudo indica, intencionalmente. A evidência disso foi quando ele revelou que rezar era o
primeiro ato antes de atender aos pacientes quilombolas após chegarem em caravanas na
sua clínica: “O que a gente reza, a gente faz aqui todo dia pela manhã, minha tia, que é
minha secretária, ela reúne todo dia e reza um Pai Nosso, canta parabéns para quem é o
aniversariante do dia, aquela coisa...”
Esse ritual, certamente, tem um significado marcante na interpretação dos pacientes
que distinguem perfeitamente doenças físicas e doenças espirituais, mas que consideram,
por outro lado, não haver um hiato tão grande a separar as duas dimensões.
A reza, aparentemente despretensiosa, é a razão pela qual os quilombolas acreditam
que ele não só releva como efetivamente trabalha com dimensões que extrapolam a
racionalidade médica. E, no final da entrevista, o Dr. Cleber Pereira da Silva forneceria a
informação chave para elucidar cabalmente que o sucesso pessoal e do seu tratamento
médico derivam da crença formada pelos quilombolas de ele ser um médico especial, já que
conseguiu o “milagre” de fundir as crenças médicas com as de origem religiosas:
mesmo tempo ser capaz de desqualificar os “saberes sujeitados”401 dos quilombolas sobre
doença e cura, ele submete o corpo dos sujeitos de Rio das Rãs a uma condição de campo
de experimentação, consequentemente mantendo-os sob seu controle. Na concepção de
Foucault, é a expressão típica do poder disciplinar: “O corpo, tornando-se alvo dos novos
mecanismos de poder, oferece-se a novas formas de saber.”402
Quando os evangélicos e o Dr. Cleber Pereira da Silva classificam pejorativamente os
antídotos empregados pelos curadores para anular a feitiçaria, afirmando que são
“crendices” e “superstições”, certamente não percebem que a feitiçaria é uma prática
discursiva, como outros conhecimentos. Da maneira como Foucault nos ensina: “As
práticas discursivas, caracterizam-se pelo recorte de um campo de projetos, pela definição
de uma perspectiva legítima para o sujeito do conhecimento, pela fixação de normas para a
elaboração de conceitos e teorias.”403
A feitiçaria, ou os poderes mágico-religiosos a ela associadas, deve ser pensada
“como um discurso, no sentido proposto por Stuart Hall; não só é um fato social com
efeitos tão reais como o é qualquer outra prática social, mas também o necessário mediador
na realidade de qualquer outra prática social aparentemente tão distanciada do sentido
discursivo, a exemplo do que têm pretendido os discursos econômico ou tecnológico”.404
A influência poderosa do Dr. Cleber da Silva entre os quilombolas no tratamento e
cura das doenças deve-se ainda, em grande parte, à sua capacidade de manipular os
símbolos que conformam a cosmovisão dos quilombolas de Rio das Rãs – do mesmo modo
como são os eficazes tratamentos dos curadores – através das representações imagéticas de
suas doenças que ele tão bem utiliza em sua clínica.
A percepção de doença dos quilombolas, neste sentido, não é, consequentemente,
incompatível com a modernidade e os recursos técnicos oferecidos no mercado. Para
Balandier, o “corpo se descobre como um mundo novo ao adquirir completa visibilidade
401
“Por ‘saberes sujeitados’, eu entendo igualmente toda uma série de saberes que estavam desqualificados
como saberes não conceituais, como saberes insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, saberes
hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível do conhecimento ou da cientificidade requeridas.”
FOUCALT, Michel. Em defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.12.
402
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 18.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1998, p. 132.
403
FOUCAULT, Michel. Resumo dos Cursos do College de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1997, p. 11.
404
RESTREPO, Eduardo. Essencialismo Étnico y Movilizacion Política: Tensiones em las Relaciones entre
Saber y Poder in BARBARY. Olivier (Coord.). Gente Negra em Colómbia: dinámicas sociopolíticas em Cali
y El Pacífico. Medellín: CIDSE/IRD/COLCIENCIAS/Editorial Lealon, 2003.
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259
graças às imagens de uma grande precisão que o revelam em ondas sucessivas (tomografia)
ou através de funcionamento de órgãos...”405
O Dr. Cleber Pereira da Silva, ao vincular a modernidade de suas técnicas às crenças
de cura tradicionais dos quilombolas, mediado por rituais religiosos semelhantes aos da
magia, visto como algo vindo de outro lugar, facilita e compatibiliza a comunicação entre
duas linguagens. Assim, é possível entender por que essas práticas sociais e discursivas,
como a medicina e a feitiçaria, não são tão díspares entre si como aparentam.
405
BALANDIER, Georges. O contorno: poder e modernidade, p. 261.
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260
Esta concepção leninista de poder pode ter alguma utilidade nos marcos de uma
análise macropolítica em que transformações de longo alcance pretendam estabelecer um
nexo entre o sistema de classes sociais e as relações de produção correspondentes em uma
determinada época histórica. Numa realidade nas quais os fenômenos estejam relacionados
a um grupo social particular, como um grupo étnico, a referida noção de poder não
contribui em quase nada para entender microrrelações sociais.
Por esse motivo, a idéia de poder mais adequada para entender o significado político
da feitiçaria está mais próxima de algumas concepções antropológicas verificadas em
sociedades africanas:
“O poder possui numerosas fontes: força, sedução, eloquência, etc. Para os antigos beti, a sua fonte
secreta reside no próprio poder de agir mal, pelo uso anti-social da feitiçaria, faculdade que pode ser
entretanto utilizada ao serviço da sociedade; este ponto de vista revela a desconfiança de tais
sociedades em relação ao poder.”407
406
LENINE, V. I. O Estado e a Revolução. Obras Escolhidas, V. 2, São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1980, p.
239.
407
LABURTHE-TOLRA, Philippe, WARNIER, Jean-Pierre. Etnologia, Antropologia. 2. ed. Petrópolis:
Vozes, 1999, p. 133.
408
BALANDIER, Georges. O contorno: poder e modernidade, p. 92.
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261
quilombolas. Ela é vista como uma força, e os que a controlam e a manipulam têm poder,
no sentido de orientar, influenciar e, muitas vezes, determinar o sentido das ações dos
sujeitos na vida social.
A percepção e o reconhecimento de que existem pessoas portadoras de poderes
especiais funcionam para os quilombolas de Rio das Rãs no sentido durkheimiano, como
um controle dos impulsos individualistas, mas também como uma advertência contra os
que procurem desafiar as tradições ancestrais, em outras palavras, confirmar a sociedade
como referência e fonte principal de coesão grupal.
Para Eric Wolf, “há diferentes modos de poder, cada um deles concernente a um nível
distinto de relações sociais.”409 Em Rio das Rãs, a feitiçaria, vista como um poder, não
implica desconhecer outras fontes igualmente importantes para influenciar a ação dos
sujeitos; é o caso das relações de gênero, onde é visível o deslocamento das mulheres dos
centros de decisão do quilombo.
Mas, o poder da feitiçaria é distinto de outras modalidades: os feiticeiros desdenham
do poder formal, onde eles, de um modo geral, não estão presentes. A influência do
discurso da feitiçaria no quilombo de Rio das Rãs deve-se ao temor com que esse fenômeno
foi disseminado como algo intrínseco à cultura dos quilombolas, e, portanto, não há como
dele fugir.
O enorme temor despertado pela feitiçaria junto aos quilombolas de Rio das Rãs
explica, em boa parte, a sua influência410 no âmbito das relações sociais. Influência que
decorre também de um sentimento incorporado de serem os poderes do feiticeiro tão reais
quanto a sua existência social.
A feitiçaria se constituiria em um instrumento de poder pois, de acordo com o
imaginário corrente em Rio das Rãs, ela é uma linguagem que influencia, orienta e define o
sentido, a movimentação e a natureza das relações entre os sujeitos no quilombo.
O feiticeiro não é um ser externo ao quilombo, contudo, ele é parte da mesma cultura
na qual estão presentes as crenças na feitiçaria. Desse modo, quem media a relação entre os
feiticeiros e demais quilombolas são as crenças e as acusações de feitiçaria. São esses
409
WOLF, Eric R. Antropologia e Poder. Bela Feldman – Bianco e Gustavo Lins Ribeiro (Orgs.) Brasília:
Editora UNB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Editora UNICAMPI, 2003, p. 325.
410
O conceito de influência aqui usado é de DAHL, Robert. Análise Política Moderna. 2. ed. Brasília: Editora
UNB, 1998. Para este autor, “se há duas pessoas num sistema, A e B, A influenciará B na medida em que o
comportamento de B se alterar no sentido desejado por A.” p. 36.
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262
elementos fundamentais que compõem o mosaico do que foi chamado, no início deste
texto, de universo da feitiçaria.
Enquanto categoria revestida de poder, a feitiçaria se converteu em um disputado
campo de disputas política e simbólica no quilombo. Os principais grupos que disputam a
primazia de combater a feitiçaria são os adeptos das religiões afro-brasileiras e os
evangélicos. Os primeiros se colocam francamente no universo da feitiçaria, ao mesmo
tempo em que buscam anular as consequências nefastas de sua influência com as armas
adquiridas pela tradição. Os evangélicos, por outro lado, igualmente combatem a feitiçaria.
Mas as razões invocadas são distintas. Para eles, a feitiçaria é a representação do demônio
na terra e, por isso, consideram possível combatê-lo através das práticas recomendadas
pelos ensinamentos bíblicos; além disso, a feitiçaria estaria vinculada às concepções
epistemológicas alimentadoras de crenças “irracionais” e, portanto, fariam parte de
“crendices”.
A tensão que opõe os evangélicos e os adeptos dos Centros de Jurema coloca em
evidência experiências religiosas e referências culturais que se chocam. Os curandeiros e
seus adeptos, por um lado, recorrem aos orixás, caboclos e outras divindades para “livrar”
as pessoas dos feitiços enviados. Para isso, utilizam-se de rituais de purificação, passes,
banhos de infusão, plantas protetoras, patuás e outros expedientes que “limpam”,
“protegem” e “fecham” o corpo dos adeptos de tais crenças. Os pastores das igrejas
evangélicas e seus fiéis, por outro lado, partem da premissa teológica de que as pessoas
enfeitiçadas estão sob a “influência” ou “dominadas” pelo demônio e, para conter ou anular
qualquer influência maléfica, os que estejam enfeitiçados precisam primeiro renunciar às
“crendices” dos Centros e a suas receitas de como conter a feitiçaria.
De acordo com esta visão, a ação dos curadores para conter os feiticeiros é análoga ao
sistema de crença dos próprios feiticeiros, e ambos são vistos como “ilusões” ou
“superstições”. Para anular os resultados maléficos do enfeitiçamento, os evangélicos
sugerem rituais de exorcismo mediante demoradas invocações e preces, ao longo da noite,
para livrar as pessoas do controle do “demônio”. Na prática, e por também acreditar na
existência da feitiçaria, ainda que a nomeiem de “endemoniamento”, os evangélicos
terminam por incidir nos mesmos propósitos que dizem combater. Da mesma forma que
procuram o Dr. Cleber Pereira da Silva para tratar dos males que os atormentam, mesmo
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263
sabendo que ele é conhecido como um profissional que “trabalha dos dois lados”, os
evangélicos, ao combater a feitiçaria como prioridade, mesmo que adotem uma estratégia
própria, terminam sendo atraídos pela lógica do universo da feitiçaria.
Os dois modelos de religiosidade, que, de fato, não são antagônicas, disputam junto
aos quilombolas espaços de reconhecimento e legitimidade sociais, nas suas distintas
concepções metodológicas, para anular a feitiçaria, vista, por ambos, entretanto, como um
mal que deve ser contido. A tentativa de afirmação dos dois discursos pode ser interpretada
como uma modalidade particular de disputa política em Rio das Rãs.
Cada um ao seu modo – e com as referências epistemológicas para explicar o mundo
e, dentro dele, como se conformam as relações entre os indivíduos e a natureza –,
pretendem, de fato, legitimar o seu regime de verdade, no sentido foucaultiano411. A
intenção de cada discurso é legitimar a estratégia considerada mais apropriada e
verdadeira para livrar as pessoas da feitiçaria, tida, por todos, como um pesadelo.
Episódios envolvendo tentativas de constrangimentos de dirigentes políticos da
Associação, conforme foi exemplificado anteriormente, mostram a relação de intimidade da
feitiçaria com a ação política em Rio das Rãs.
O ex-presidente da Associação, Simplício Arcanjo de Souza, uma das lideranças mais
importantes da comunidade, relatou que, durante uma acirrada disputa pelo poder na
Associação, constatou que um caroço que aparecera repentinamente ao lado do seu peito
teria sido, segundo o curador consultado, um feitiço enviado para acabar com ele. Lembrou
também que nas disputas pelo poder da Associação quase “todos são parentes”, mas nem
por isso a ação dos feiticeiros reflui em suas tentativas de eliminar os oponentes políticos.
Há evidências, portanto, da relação íntima entre feitiçaria e política, entendida como
um “processo social através do qual o poder coletivo é gerado”412. O conflito entre
feitiçaria e interesses afetos ao poder faz parte do jogo de relações sociais em Rio das Rãs.
Mas, o caso mais exemplar do envolvimento da feitiçaria com o poder ocorreu
quando os antagonistas no conflito pela posse das terras do quilombo de Rio das Rãs – os
quilombolas e o fazendeiro Carlos Bonfim – se confrontaram no plano da religiosidade para
411
“A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos
regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é,
os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros...” FOUCAULT, Michel. Microfísica do
Poder. 25 ed. Rio de Janeiro: GRAAL, 2005. p. 12
412
JOHNSON, Allan G. Dicionário de Sociologia, p. 178.
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264
atacar e contra-atacar com as armas da feitiçaria. O desfecho dessa inusitada disputa é o que
veremos a seguir.
O conflito pela posse do território de Rio das Rãs durou dezoito anos e envolveu
cerca de duzentas famílias do quilombo e o fazendeiro Carlos Newton Vasconcelos
Bonfim. Somente para se ter uma idéia do poder econômico concentrado nas mãos deste
homem, no auge das suas atividades empresariais em Rio das Rãs, ele chegou a cultivar
quatro mil hectares de algodão irrigados com um sistema de pivô central e criou nas terras
do quilombo mais de vinte mil cabeças de gado bovino.
Durante os dezoito anos de conflitos, plantações e residências foram destruídas,
animais mortos a tiros, rios envenenados e um planejado sistema de vigilância foi
implantado com a participação de capangas armados, que impediam a circulação livre dos
quilombolas que se apossaram dessas terras no início do século dezenove. O referido
fazendeiro tinha o respaldo político e institucional, no Estado da Bahia e nas instituições
federais, do conhecido ex-governador e senador da Bahia Antonio Carlos Magalhães, a
quem se referia com frequência e familiaridade.
A primeira alusão à feitiçaria relacionada ao conflito foi após a realização de uma
reunião envolvendo representantes dos quilombolas de Rio das Rãs e lideranças da
Comissão Pastoral da Terra – CPT; Movimento Negro Unificado – MNU; e a Fundação
para o Desenvolvimento do Vale São Francisco - FUNDIFRAN, em 1994, quando se
discutiam alternativas políticas e legais para resolver o conflito.
Naquele momento, a situação dos quilombolas era muito difícil. Muitas famílias
foram obrigadas a evadir. O fazendeiro incendiava as plantações, colocava o seu gado nas
roças dos quilombolas e derrubava as residências dos que estavam mais dispersos dentro do
território. Não havendo outra opção, muitos se mudaram para São Paulo; outros
procuravam serviços em fazendas vizinhas. As quase duzentas famílias que resistiram na
terra eram alimentadas pelas contribuições de campanhas de solidariedade no Brasil e junto
a instituições filantrópicas da Europa.
Ao término da reunião que discutia essa situação crítica, fui procurado por Eduardo
Pereira dos Santos (54 anos), Manoel Preto, já falecido, e então presidente do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Bom Jesus da Lapa, e o senhor Petronílio Francisco dos Santos
(76 anos), conhecido como Patu. Todos eram destacadas lideranças em Rio das Rãs.
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265
de Rio das Rãs. Mas, em virtude da distância que separa Salvador de Rio das Rãs e das
dificuldades de comunicação à época, não foi possível colocar as partes, os quilombolas e
as mães de santo, em contato.
De volta a Rio das Rãs para a pesquisa de campo, em 2007, e após a feitiçaria se
impor como um tema fundamental para entender as relações de poder no quilombo, resolvi
conversar com Eduardo Pereira dos Santos, um dos personagens envolvidos naquele
episódio de 1994. O meu interesse era o de saber mais detalhes sobre o que motivara aquela
solicitação. Gravemente enfermo, o senhor Petronílio não poderia participar da conversa;
enquanto Manoel Preto havia falecido em circunstâncias trágicas, e não poderia mais
contribuir para refazer a memória daqueles acontecimentos.
Eduardo Pereira dos Santos me fez o seguinte relato:
“Procuramos, porque nós ficamos sabendo que nossa luta aqui tinha alguma coisa pegando. Nós tinha
aqui nosso companheiro Andrelino [o curador] e repetia que as coisa pegava mesmo. E dizendo pra
gente que a gente saísse lá fora e conseguia alguém que fazia esse trabalho.”
“Ele dizia que o próprio Carlos Bonfim ele era pai-de-santo, ele trabalhava também com esses
problemas e segurava saco [...] Não sei qual é o motivo. Eu sou linha branca, eu não entendo bem
dessas coisas, mas que ele trabalha com essas coisas. Então que procurasse uma pessoa que
desmanchasse esse laço.”
Eduardo dos Santos confirmou, em 2007, portanto, a suspeita de que Carlos Bonfim
utilizou-se da feitiçaria para impedir que o conflito tivesse um resultado favorável aos
quilombolas. O curador Andrelino Xavier teria diagnosticado a feitiçaria como o mais
importante obstáculo para a solução do conflito. Ele próprio se considerara impotente para
anular as forças espirituais protetoras do fazendeiro, daí ter indicado a alternativa de
procurar alguém em Salvador que tivesse uma força correspondente à utilizada pelo
fazendeiro.
Para minha surpresa, os quilombolas consideravam que o próprio fazendeiro Carlos
Bonfim era um feiticeiro! O que me fez lembrar o imaginário da feitiçaria dos brancos,
presente na África e no Brasil, seja como contratantes de feitiçaria ou mesmo como
feiticeiros.413
Após o diagnóstico de que o quilombo de Rio das Rãs estava enfeitiçado, e não
havendo uma resposta em tempo hábil às consultas feitas em Salvador, os líderes políticos
413
Cf. LABURTHE-TOLRA, Philippe, WARNIER, Jean-Pierre. Etnologia, Antropologia, 1999;
GESCHIERE, Peter. Sorcellerie et Politique em Afrique – la viande des outres. Paris : KARTAHALA, 1995.
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267
“Foi ótimo. A gente logo, logo viu o resultado. Ele veio aqui fez o trabalho, fechou e falou com nós
que logo, logo a gente tinha o resultado. [Ele fez] uma limpeza. Ele veio numa moto, rodou toda a área
e fez uma limpeza na área.”
“Eu lembro Valdélio de nosso amigo Mané Preto, que chamava Manoel do Sindicato, e ele tinha uma
questão sempre na Batalha além de ser dali, e o pessoal conhecia ele como líder do sindicato e entrou
naquela briga com o pessoal da Batalha e a gente viu que ele sofreu uma questão como se fosse um
derrame, mas a gente vê que a questão dele foi mais através de macumbaria. Quando ele veio a falecer
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268
ele dava menos de um metro e vinte. Era bem alto. Um homem de um metro e oitenta, daí pra frente. E
morreu magro. Nem só magro como encolheu. Ficou encolhido. A gente sabe que aquilo foi obra de
macumbaria. Sem dúvida.
Ele lutava pelo direito da terra com o pessoal da Batalha e ele [o fazendeiro, proprietário da Batalha,
Celso Teixeira] achou por bem, que ele era o líder, [e] castigo ia ter, ele não ligou muito... Ele era uma
pessoa até muito seguro [isto é, sabia se prevenir], mas facilitou.”
Ao final da entrevista com Eduardo dos Santos, ele confessou estar Carlos Bonfim
atualmente morando em Caetité e, hoje, é uma pessoa pobre, apesar de todo o dinheiro
ganho com a indenização milionária feita pelo INCRA com a desapropriação da fazenda
Rio das Rãs, para fins de Reforma Agrária, em 1998. Como se vê, a máxima no universo da
feitiçaria teria se confirmado: “o feitiço voltou contra o feiticeiro”.
Do que foi exposto, pode-se depreender que o discurso da feitiçaria do quilombo de
Rio das Rãs e região é visto como um poder mortal e desconcertante. Ele pode ser, ao
mesmo tempo, uma arma letal e perversa contra pessoas inocentes, mas também uma força
capaz de desmontar o poderio econômico, político e bélico de um fazendeiro como Carlos
Bonfim.
A ambivalência, como vimos ao longo do texto, acompanha os passos da feitiçaria.
Mas, a partir dos diferentes relatos dos personagens e acontecimentos aqui citados, pode-se
concluir que a feitiçaria é também um poder a serviço dos interesses dos negros
quilombolas de Rio das Rãs.
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269
Capítulo V
de escravos, coincide com as narrativas verificadas em Rio das Rãs e em outras formações
quilombolas da região.
Duas hipóteses podem ser aventadas para se entender a dualidade escravos/homens
livres na formação do quilombo: os escravizados serviram como mão de obra da “fazenda
Mangal”, antes de se constituírem em uma comunidade de homens livres; segundo, com a
abolição de 1888, os negros tornaram-se livres, embora continuassem residindo dentro da
fazenda Mangal. Pelo menos é este o sentido da narrativa do senhor Isauro Lobo dos Santos
(78 anos):
414
MESSEDER, Marcos Luciano Lopes, NASCIMENTO, Marco Tromboni de S. Relatório de Identificação
da Comunidade de Mangal. Fundação Cultural Palmares. Salvador: Digitado, agosto de 1998, fls. 18.
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271
415
OLIVEIRA, Sandra Nivia Soares de. De Mangazeiros a Quilombolas: terra, educação e identidade em
Mangal e Barro Vermelho. Dissertação defendida no Mestrado de Educação da Universidade do Estado da
Bahia – UNEB, 2006, p. 41.
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272
reinava nas vizinhanças, pois outros depoimentos coletados “nos permite especular sobre a
possibilidade de existência de um tratamento diferenciado para os negros do Mangal...”416
Como vimos no Capítulo I, na história de constituição do Mangal, o nome do Capitão
João Duque é mencionado como o fazendeiro que se dizia proprietário das terras ocupadas
pelos mangazeiros desde o início do século XIX.
O fato de serem conhecidos em toda a região com o gentílico de “mangazeiro”, isto é,
com uma identidade própria, reforça a hipótese de não terem sido escravos de João Duque,
como defendeu dona Celestina, embora este tratamento tivesse um sentido aviltante por
estar associado à acusação de serem os “mangazeiros” “perigosos feiticeiros”. De todo
modo, essa designação indicaria ter o grupo, de fato, o status de autonomia na relação com
os fazendeiros escravistas da região, inclusive na época em que o capitão João Duque os
considerava “agregados”.
A opinião da jovem liderança João Conceição dos Santos (29 anos), de a procedência
dos habitantes do Mangal ter sido Barra do Rio Grande, parece estar se referindo
especificamente à parentela dos Lobo, à qual o depoente pertence, que teria, de acordo
como outros relatos, vindo de localidades próximas ao atual território do Mangal, como
ocorreu na formação da maior parte dos quilombos na região, inclusive em Rio das Rãs.
A hipótese de os negros que fundaram e nomearam o povoado do Mangal não terem
sido escravos do capitão João Duque, portanto, é lógica e coerente.
A doação de uma légua quadrada de terras aos mangazeiros em um determinado
momento de sua história foi outro acontecimento importante na constituição do Mangal. E
as versões são também conflitantes. Todos os depoentes concordam que uma mulher
chamada Gertrudes doou as terras aos mangazeiros para cumprir uma promessa feita a
Nossa Senhora do Rosário. As principais divergências se referem às motivações pelas quais
Gertrudes fizera a doação e a quem ela doara as terras.
Na versão do senhor Beatriz Martins dos Santos (77 anos), o capitão João Duque teve
um romance com uma mulher negra da família Maria do Carmo, considerada uma das
fundadoras do povoado negro do Mangal. Desse romance nascera uma menina de nome
Gertrudes. O senhor Beatriz, que se diz descendente dessa família, insinua que o capitão
engravidara sua própria filha. Vejamos o depoimento dele:
416
OLIVEIRA, Sandra Nivia Soares de, p. 41.
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273
[Como o capitão João Duque era adivinho] “Disse que viu um menino chorar dentro de casa, aí ele
levantou e foi lá, ela [Gertrudes, filha dele] tava dormindo e o menino chorou na barriga dela. Aí ele
falou assim: ‘ Óia, você vai ser divinhão que nem eu, mas você não cria’. E não criou mesmo.
O menino. Que tava na...[barriga de Gertrudes]
Que a Gertrudes era filha do Capitão João.
Ela ganhou o menino, mas não criou.
Porque ele falou... Se ele era divinhão e disse que ele não criava. Aí se aborreceu. Se aborreceu e veio
embora. Chegou aí, [o capitão João] tirou meia légua de terra daí da baixinha donde ta fazendo essas
casa. Daí lá em cima na ponte.
[Deu] Pra ela. Pra fia.[filha]
É. Falou pra ela... Que a mãe dela era daqui desse lugar. [O capitão João] Disse: ‘Toma. Isso aqui é pra
você e sua família’. “E com isso, quando ela ganhou esse menino o menino morreu e ela passou a mão
e soltou essa escritura na mão não sei de quem e ela sumiu nesse mundo pros lado das Lavra e por ali
morreu.”
Será que o desgosto do capitão João, neste relato do senhor Beatriz, estava
relacionado ao fato de ter engravidado a própria filha? Caso seja isto que o depoente quer
transmitir, a doação da terra à negra Gertrudes seria um gesto de arrependimento ou para
expiação dos pecados cometidos, pois, além de engravidar a filha, ele jurara que o filho não
cresceria, mesmo sendo um predestinado na arte de adivinhação.
Gertrudes, por sua vez, teria razões para doar parte das terras recebida à sua família
Maria do Carmo, na interpretação do senhor Beatriz?
Está implícito na interpretação do senhor Beatriz que o capitão doara a meia légua de
terras a Gertrudes e sua família como um ato de arrependimento por ter cometido o incesto.
Gertrudes doara as terras à santa igualmente arrependida com o acontecido, mesmo que
tenha sido forçada a se relacionar com o próprio pai.
A versão de incesto envolvendo o capitão João e sua filha Gertrudes é insinuada por
dona Clara (falecida em 2006 com 93 anos) em depoimento prestado a Sandra Oliveira. É o
que se pode inferir do seu depoimento: “ ‘Ai, eu nem sei minha irmã, ninguém num pode
nem conversá, num sabe? (...) Pois é, ontonce, ele bulia com ela [Gertrudes] (...) Capitão
João foi quem fez a lezêra cum ela. Ela é parente desse povo aí, Isaro, tudo, tudo, tudo.’”417
O senhor Isauro Lobo dos Santos afirma que o capitão João Duque era um adivinho,
porém não explicita a relação incestuosa, ainda que deixe uma pista quando afirma “ele
[capitão João] acho que encostou [namorou]...”
417
OLIVEIRA, Sandra Nivia Soares de, p. 55.
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274
Na versão do neto do senhor Isauro Lobo dos Santos, João da Conceição dos Santos,
desgosto e reprovação motivaram a doação das terras. O capitão João Duque ficara
chateado por sua filha ter sido engravidada por um escravo. Nesta versão, pergunta-se por
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275
que, nesse caso, a reação do capitão João deveria se voltar contra o escravo e não para punir
a filha. Vejamos o depoimento de João Conceição dos Santos:
“A filha do Capitão João [era] uma mulher chamada Gertrudes. Ela doou... Essa Gertrudes era filha do
Capitão João com uma negra. Era filha do Capitão João e ela se envolveu com um escravo. Aí o
Capitão foi embora, por conta da filha dele se envolver com um escravo e largou tudo lá com a filha.
Aí a filha ficou um tempo, um período lá, foi embora, doou essa parte da terra pra Santa e a outra ela
vendeu.”
O senhor Isauro diz que o capitão João Duque, depois desses acontecimentos, teria
adoecido e se mudado para a Barra do Rio Grande, sua terra natal, que no século XIX era
das mais importantes vila do Médio São Francisco. Ao retornar a Barra, logo falecera. A
maior parte de suas terras teria sido entregue aos filhos (legítimos) Osório e Artur. Mas, no
momento da partilha, os filhos do capitão João não se entenderam e Osório terminou
matando o irmão Artur. Eis o relato:
“Então aí eles quando veio de lá quando passou os tempo eles fôro dividir o terreno e o gado. E aí eles
viero partino do Jatobá. Da Barra. Começaro partir a fazenda da Barra. De lá viero praqui ali eles... O
Jatobá ali embaixo. Fica lá por conta de Paratinga era dele também que ele era quem mandava. Lá eles
partiro o gado tudo. Os dois irmão. Viero de lá. Quando eles acabaro de partir o Jatobá viero praqui.
Pra essa fazenda aqui.
E os povo... Quem morava aqui, morava tudo aqui. Não mudaro não.
Aí eles viero partir o gado. Começaro a partir o gado. (...) Aí depois que eles acabaro de partir o gado
todo sobrou um boi. Vá que o Artur ferrava com dois ferro.
Eles ferrava com dois ferro... O Osório ferrava com um A sozinho e o Artur ferrava com dois A. (...)
Fôro dividir o gado, partiro tudo, depois de partido sobrou um boi na partia. Aí o Osório pediu o Artur
o boi. Porque ele vinha tendo dois gado na frente dele. Toda laçada que dava no curral, ele ferrava dois
gado e o outro só ferrava um. Então sobrou esse boi ele pediu ele. Ele pediu ele o boi, ele disse: ‘Não.
Eu não posso dar não’. Aí começaram demandar. Aí o Osório matou o irmão.” (Isauro Lobo dos
Santos, 78 anos)
O capitão João Duque, por ser um adivinho, teria registrado em seu testamento a
previsão de que o seu filho Artur seria assassinado pelo irmão Osório; por isso mesmo ele
fizera constar no texto testamental que a parcela dos bens pertencentes a Artur ficaria
automaticamente com a nora Neném, que nem chegara a se casar com seu filho:
“O pai já deixou notado que o Artur ia casar com uma filha da Barra. Chamava-se Dona Neném.
Depois que o Osório matou o Artur, já ficou assinado no papel no documento do Capitão João, como
viúva. Ia casar com o fio [filho] dele. Mas ela já ficou seno viúva, a Dona Neném.”
“Acho que já tava começando encostar, namorar mesmo.”
Aí já ficou tudo notado como o irmão tinha que matar o outro e ela Neném que era herdeira do Capitão
João.” (Isauro Lobo dos Santos)
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276
Com a morte do capitão João Duque, a fazenda Mangal passa a ser administrada por
herdeiros que não reconhecem os mangazeiros como tradicionais ocupantes de um território
onde eles estão desde o século XIX.
418
VANSINA, Jan. A tradição oral e sua metodologia. In: KI-ZERBO, Joseph (Coord.). História da África –
metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática/UNESCO, 1982, pp. 157-179, p. 157.
419
LE GOFF, Jacques et. ali. História e memória. 2.ed. Campinas: Editora Unicamp, 1992, p. 476.
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277
“E ele chegou num canto e sentou num lajedo. Aí ele achou... Sentou cansado... E acho que as coisa
quando tinha que acontecer, né... Que ele sentou, que olhou... A Santa! Ele ficou olhando... Vou
panhar essa Santa. A pedra já tava escrita a marcação das reza, quando era o dia de rezar. O dia santo
dela. Já tava escrito na pedra. Ele leu aquilo tudo direitinho, que ele sabia ler, leu. Aí tava escrito em
cima: ‘Nossa Senhora do Rosário’”.
“Que era mais experiente, que sabia rezar e aí que ela ficasse, tomasse conta da Igreja com a Santa. Aí
ela ficou agino, rezano. Aí foi quando ela morreu, aí ela deu pra Bertulina. Ela deu a chave: ‘Ói aqui a
chave, oi já num tou mais...’” (Beatriz Martins dos Santos, 77 anos)
A versão de João Conceição dos Santos (28 anos), liderança ativa da família dos
Lobo, repete o fundamento básico do relato do senhor Beatriz – o de que Benedito Caboclo
teria achado a imagem da santa –, mas o seu difere em alguns pontos importantes da versão
anterior. Por exemplo, Benedito Caboclo teria sido escravo, informação que o senhor
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Beatriz nega. Além disso, e essa parece ser a diferença mais importante, João dos Santos
diz que Benedito Caboclo teria feito a promessa antes de ir para a guerra, sugerindo,
portanto, que pudesse ter encontrado a santa ainda quando se encontrava no território do
Mangal, o que não está em conformidade com a narrativa do depoente anterior. Vejamos o
relato de João dos Santos:
“Esse escravo [Benedito Caboclo] foi uma das pessoas que iam pra guerra e quando ele ia pra guerra
ele achou uma Santa e pôs dentro da capanga. Aí ele fez uma promessa pra ela. Se ele fosse pra guerra,
lutasse e voltasse ele construía uma igreja, uma capela. Aí ele foi conseguiu que ele lutou, voltou,
chegou sadio e construiu a capela. A terra foi doada pra Santa, Nossa Senhora do Rosário.”
O senhor Albertino Lobo dos Santos (75 anos), o segundo mais velho da família dos
Lobo no Mangal, pela sua idade e por pertencer a uma parentela forte dentro do quilombo,
é um personagem importante.
Ele é conhecedor do significado de Nossa Senhora do Rosário para a cultura dos
quilombolas, a padroeira do Mangal, e, certamente, deve estar informado sobre as histórias
que se conta no quilombo sobre a chegada da santa. Daí o significado do seu relato, por
estar em completo desacordo com os depoentes anteriores, que são seus parentes
consanguíneos. João dos Santos é sobrinho-neto e o senhor Beatriz, além de primo, se
coloca abertamente como membro da família dos Lobo, com a intenção de provocar e se
confrontar com os Gomes.
Vejamos, portanto, o que o senhor Albertino Lobo dos Santos nos conta a respeito da
chegada da imagem da santa ao Mangal:
“Moço, essa Santa, foi um bisavô nosso que trouxe de lá da Lavra [Diamantina].
A Lavra fica pra cá. As Lavras.
Não viu falar nas Lavras?
Cá na Bahia. Que tinha sempre o garimpo que o pessoal véio falava.
Meteu essa briga por lá e teve esse fogo e teve um negócio por lá, de forma que essa Santa, ele fez
tudo, mas com ela na capanga.
Chamava Julio Masceno, da Ponta D’Água.”
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“Sim. Aí chegou essa Santa, veio não por aqui. Saiu por cima da cabeceira do Rio e veio se parar aqui.
Ele era filho daqui. De forma tal que chegou aqui, o pessoal era bobo, não tinha quem sabia [rezar]
nera. Quem sabia essas coisas era Tontonha, uma mulher que chamava Antonia, mas o apelido era
Tontonha. Ele deu...”
indivíduo (Benedito Caboclo ou Júlio Masceno) da família dos Lobo. Não importa se a
santa tenha sido achada nas Lavras ou na Guerra do Paraguai, mas os personagens desse
grande feito simbólico teriam sido os Lobo.
Mas, há outro relato que diverge dessa linha. Trata-se do depoimento do senhor
Arnaldo Gomes Pereira, pai das principais lideranças políticas do quilombo, e o ancião
mais velho da família dos Gomes. Eis o que ele nos diz sobre a chegada da imagem de
Nossa Senhora do Rosário no Mangal:
“Contam os velho que foi um sinhô Zé Estevo que trouxe de Salvador. De primeiro se chamava Bahia,
nera? Bahia, né?
Primeiro veio assim, disse que de tropa pela cabeceira do Rio [São Francisco]. E chegou e fez [deu de]
presente aqui essa Nossa Senhora aqui pra igreja.
Num sei do onde [Zé Estevo] era não. Morava aí pro lado de cima da Gameleira [distrito de Sítio do
Mato, ao lado do Mangal]. Assim contano os véio, né. Num foi do meu tempo não, né.
Mais ou meno é eu acho que [o presente da imagem] era amizade que tinha, né. Eu penso que era isto,
né?” (Arnaldo Gomes Pereira, 74 anos)
Mais adiante em seu depoimento, o senhor Arnaldo Pereira confirma que imagem da
santa teria mesmo sido entregue aos cuidados de sua bisavó, dona Antônia [Tontonha]
Gomes, que é o personagem de consenso em todos os relatos.
Quando o provoquei a comentar sobre as outras versões da chegada da imagem da
santa, ele foi enfático:
negras em Salvador e Recôncavo, seria compatível com o perfil de uma comunidade negra
como a de Mangal.
A conclusão inicial que se pode chegar é a de que todos os relatos sobre a chegada da
santa ao quilombo possuem coerência interna e compatibilidade com acontecimentos
históricos regionais. Mas, um dado que enfraquece as versões dos membros da família
Lobo é o seguinte: por que a imagem da santa teria ido parar justamente nas mãos de uma
pessoa proeminente da família Gomes, ou seja, dona Antonia [Tontonha] Gomes, a bisavô
do seu Arnaldo Gomes Pereira?
De acordo com meus cálculos, Antonia [Tontonha] e Marçal Gomes, sempre citado
como o mais antigo casal da parentela dos Gomes, teriam se casado em torno da metade do
século XIX, dando início, possivelmente, à fundação do quilombo do Mangal. Todas as
informações coletadas indicam também que os cuidados com a capela e a imagem de Nossa
Senhora do Rosário, desde a fundação do quilombo, foi de responsabilidade exclusiva da
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referida família, conforme foi descrito por dona Amélia Gomes Pereira, sobrinha do senhor
Arnaldo Pereira e atual zeladora da capela:
“Sempre é minha família que toma a frente, né. É quem toma a frente de tudo aqui, das reza. Quer
dizer que tem uns. Uns morre, outros toma a frente. As vez não tem quem tome a frente. Aqui se eu
não tomar a frente aqui pra rezar as novena do Rosário e as reza dos festejo, fica parado que não
tem...” (Amélia Gomes Pereira)
Esta mesma informação é confirmada pelo senhor Beatriz Martins dos Santos: “A
chave [da capela] é parte dessa família Gomes.”
A família Gomes não é responsável apenas pelos bens físicos de Nossa Senhora do
Rosário – a capela, os móveis e imagem da santa –, ela é também detentora da memória das
rezas, que é o instrumento fundamental para a preservação do patrimônio religioso. Dona
Amélia, além de ser a chaveira/zeladora da capela de Nossa Senhora do Rosário e preservar
os seus bens físicos e imateriais, guarda também a coroa de ouro da santa.
Por essas razões, é difícil entender como foi possível que esse patrimônio cultural,
que envolve Nossa Senhora do Rosário, fosse entregue aos Gomes, conforme argumenta os
Lobo, simplesmente por seus antepassados não saberem rezar.
Acrescente-se, ainda, o seguinte: tudo indica que os mais proeminentes personagens
da família dos Lobo, como o citado Benedito Caboclo e outros antepassados desta família,
nem nasceram no Mangal. Sendo verdadeira essa informação, as famílias Gomes e Sá, que
o senhor Beatriz prefere chamar família Maria do Carmo, de quem descende a negra
Gertrudes, que doara as terras aos mangazeiros por promessa a Nossa Senhora do Rosário,
seriam as mais antigas do Mangal. A vinda dos Lobo para o Mangal teria se concretizado
através do casamento de um antepassado dessa família com uma mulher da família Maria
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do Carmo, de acordo com o senhor Arnaldo Gomes Pereira: “Esses Lobo que nem o pai de
Isauro, eles veio de Santo Onofre. Agora a mãe dele é fia daqui.” A mãe do senhor Isauro
era uma mulher que se chamava Constância Maria do Carmo. O senhor Beatriz Martins dos
Santos confirma também que, no início de Mangal, só havia duas famílias: “Era duas
família de gente. A famia Gomes e a famia Maria do Carmo.”
Portanto, a versão dos Gomes parece a mais consistente.
O reconhecimento do senhor Beatriz de que os Gomes e os Sá (que ele nomeia como
família Maria do Carmo) sejam os fundadores do quilombo não significa que ele se dobre
pacificamente à hegemonia política dos Gomes no quilombo. Muito pelo contrário. Em sua
entrevista, ele faz questão de renunciar ao seu parentesco com a família Maria do Carmo
para se assumir como Lobo, como uma forma de confrontar o peso político dos Gomes
dentro do Mangal, já que os Gomes controlam a capela e os cuidados com Nossa Senhora
do Rosário, comandam a Marujada, dirigiram a Associação dos Quilombolas do Mangal
por cinco mandatos consecutivos, desde a sua fundação em 1998, e presidem a maioria dos
festejos católicos, entre outros espaços de poder.
Para acentuar as tensões envolvidas nas relações entre os Gomes e os Lobo, o senhor
Beatriz, como aliado desta última, lembra, maliciosamente, que a negra Gertrudes, filha do
capitão João, que doara em plena escravidão meia légua de terra aos mangazeiros para
cumprir uma promessa com Nossa Senhora do Rosário, seria descendente da parentela de
Maria do Carmo.
Analisada a história do Mangal dessa perspectiva, segundo o ponto de vista do senhor
Beatriz Martins dos Santos, os Gomes deveriam ser considerados, de fato, “agregados”.
Vejamos o seu raciocínio:
“É que é [na história do Mangal] duas família [Gomes e Maria do Carmo]. Quer dizer que eles aqui
não tem parte nessa parte. A parte que era da menina [Deltrudes] era da família Maria do Carmo, ela
doou pra família dela.
É. Eles é herdeiro nosso. Eles [os Gomes] é agregado nosso. Porque a família Maria do Carmo é nossa.
E eles é Gomes. É de outra parte.” (Beatriz Martins dos Santos, 77 anos)
Mais adiante, o senhor Beatriz pondera que essas disputas não fazem mais sentido
nos dias atuais e, portanto, é um assunto que deve ser esquecido. Mas o fato de manter na
memória essa versão revela que ele não quer mesmo esquecer.
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Mas, enquanto o senhor Beatriz argumenta que a doação de Gertrudes da meia légua
de terra confere aos seus parentes a prioridade pelas terras primevas do Mangal, os Gomes
contra-atacam com a revelação de um aspecto sutil dessa história da doação. Vamos
conferir o depoimento do senhor Egídio Gomes Pereira sobre o assunto:
“E aí ela [Gertrudes] doou pra Nossa Senhora do Rosário, que eu não sei nem onde essa mulher foi
parar. Que disse que essa mulher era fia do Capitão João com uma negra. E então disse que deu essa
terra pra ela e ela doou pra Nossa Senhora do Rosário.” (Egídio Gomes Pereira, 61 anos)
O depoente confirma que a terra teria sido doada por Gertrudes, a mulher negra filha
do capitão João que se engravidara do próprio pai. Para purgar o pecado cometido, o
capitão João deixou, em seu testamento, uma parte de suas terras para sua filha Gertrudes e,
possivelmente, mãe do seu filho bastardo. Como essa Gertrudes era uma negra do Mangal,
não se sabe se forra ou ainda escrava, ela teria feito a doação de meia légua de terra a Nossa
Senhora do Rosário, para atenuar o seu pecado, mesmo que tenha sido forçada a fazer sexo
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com o próprio pai, o que é o mais provável. Mas, o que é importante distinguir no
depoimento do senhor Egídio é que a doação teria sido feita à santa e não à família de
Gertrudes, como argumentou o senhor Beatriz.
Neste sentido, cairia por terra o ponto central do raciocínio deste, que concluiu serem
os Gomes seus “agregados”. Leve-se em consideração também o fato de os Gomes serem
os zeladores da santa e chaveiros da capela; isso os autoriza, portanto, a se responsabilizar
por todos os bens simbólicos e materiais de Nossa Senhora do Rosário, inclusive as suas
terras.
As disputas políticas e simbólicas entre as parentelas dos Gomes e dos Lobo do
Mangal confirmam serem as identidades sociais alicerçadas também na linguagem do
parentesco. A relação de parentesco consanguíneo ou por afinidade, muitas vezes
consideradas frágeis e evanescentes por nem sempre expressarem uma concretude biológica
comprovável, mostra, assim, a sua extraordinária força simbólica e fonte inesgotável de
poder.
“Seu poder não advém de uma delegação institucional, como acontece com o poder do clero oficial,
mas de um reconhecimento que é produzido pela própria comunidade ou grupo social no qual radica
suas práticas.”420
420
STEIL, Carlos Alberto. Catolicismo e cultura. In. VALLA, Victor Vincent (Org.). Religião e cultura
popular. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p. 25.
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421
A zeladora da capela de Nossa Senhora do Rosário, dona Amélia Gomes Pereira, confirmou a existência
dessa famosa coroa de ouro que poucos conhecem no quilombo. Eu pedi autorização para fotografá-la, mas
ela educadamente recusou a solicitação.
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“‘Dança direito fulano, você não tá dançando no ritmo dos outro’. Porque o Marujo tem de pegar o
mesmo ritmo do outro, né. Ele já enfada e tal, então aquela pessoa num... Eu mesmo afastei um. Um
próprio irmão meu. Chegou na igreja ele não quis... Chutou a barritina. A barritina dele caiu ele
chutou. Eu falei, a partir de agora em diante você não vai mais poder ser Marujo. Porque você
desrespeitou a gente aqui dentro da igreja. Aqui dentro da igreja você foi fazer isso. Pronto ele nunca
mais dançou Marujo.” (Martinho Gomes de Sousa, 49 anos, Mestre da Marujada)
“Aquele que não tá fazendo a coisa certa. Aí ele [o Careta] bate. E aquele que...
Com chicote. Com uma taca. Ele tem uma taca. Se aquela pessoa não gostar, aí ele vem onde tá eu [o
Mestre], os outro Marujo tá lá ouvindo, aí nós agora afasta aquele. Aquele não dança mais. Porque ele
não tá concordando com a brincadeira dele, não é?” (Martinho Gomes de Sousa)
A rigidez com que os relapsos são tratados pode dar a impressão de que a Marujada é
uma manifestação sisuda que não comporta risos, brincadeiras e diversão. Ao contrário.
Durante o ritual é exigido muito rigor, porém, terminadas as obrigações todos são liberados
para beber e cair no samba:
“Depois da janta todo mundo vai tirar essa roupa, vai tomar seu banho e agora vai sambar. Brincar no
samba até amanhecer o dia. Depois de manhecer o dia nós torna trocar de roupa e torna ir pra
Marujada. Brinca um pouco, vem pra igreja, despede da Santa e aí desce pra lá pra casa da festa e da
casa da festa nós fica dançando, quando é meio dia nós encerra. Aí vamos almoçar e aí encerrou tudo.
Encerrou a festa. Já é no dia nove.” (Martinho Gomes de Sousa)
422
A fotografia foi gentilmente cedida pela pesquisadora Sandra Nívia Soares de Oliveira.
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290
A Marujada é uma metáfora que sintetiza diferentes planos da vida social do Mangal,
e é também uma forma de revivência religiosa de antigas cerimônias ancestrais. Como
todos os integrantes do corpo de danças são homens – as mulheres assistem às cerimônias e
dão apoio no preparo da alimentação, após o ritual elas bebem e sambam junto com os
homens –, ela é também uma manifestação que veicula a expressão moral patriarcal do
quilombo de Mangal, e neste sentido, contém uma explícita dimensão de gênero.
O São Gonçalo é outra celebração, de origem católica, que foi adaptada ao perfil
cultural dos quilombolas de Mangal. Ao contrário da Marujada, o São Gonçalo é encenado
exclusivamente por mulheres.
A intenção ritual da Roda de São Gonçalo é apaziguar os espíritos de pessoas
falecidas, que cobram de seus parentes a realização de uma celebração religiosa e festiva
para toda a comunidade. É ritualizado com cânticos religiosos católicos e súplicas para que
o espírito do morto descanse em paz; encerradas as cerimônias religiosas, mulheres e
homens são chamados a cair na festa regada a muita comida, bebida e samba.
A Roda de São Gonçalo é encomendada tanto para pagar uma promessa por uma
graça recebida como também para acalmar o espírito de alguém que esteja perturbando a
vida de um familiar. Para os quilombolas, promessa não cumprida é sinal de que o morto
poderá voltar para cobrar do parente o que não fizera em vida. Os familiares do morto
arcam com todas as despesas da Roda de São Gonçalo, para provar simbolicamente a
continuidade e reciprocidade que as relações de parentesco representam para os
quilombolas. Assim, a Roda consagra também o rigor moral da palavra empenhada, mesmo
depois que o indivíduo falece.
A disciplina na Roda do São Gonçalo é equivalente ao da Marujada. As mulheres
integrantes da Roda são obrigadas a guardar uma vestimenta branca especial, que deve ser
preservada de qualquer impureza que comprometa a sacralidade do ritual. Caso as
componentes da Roda errem no ritmo da dança, na sincronia dos passos ou nos cânticos
previstos em cada cerimônia realizada em torno da capela de Nossa Senhora do Rosário,
todo o ritual será comprometido e o responsável pela encomenda da promessa terá que
repeti-la em outra oportunidade. Como as despesas com alimentação e bebidas são
elevadas, não se deve nem pensar em cometer erros.
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Tanto o São Gonçalo quanto a Marujada são formas de religiosidades populares que
foram adaptadas à cultura do quilombo do Mangal, para representar metaforicamente
códigos morais. O sentido de religiosidade presente nas referidas manifestações coloca em
primeiro plano a interdependência e compartilhamento entre os seres humanos e os seus
deuses. A doação que uma família quilombola faz de um boi e de outros animais, para
alimentar a comunidade durante o ritual de pagamento de uma promessa, reafirma o
compromisso daquela família com o grupo social ao qual ela está vinculada. Do ponto de
vista religioso, as duas manifestações, a Marujada e a Roda do São Gonçalo, revelam a
confiança e a crença da comunidade na força do santo que atendeu as súplicas do indivíduo
ou de sua família que se responsabilizaram pelos compromissos com seus mortos.
A retribuição simbólica ao santo, sob a forma de uma oferenda grandiosa e cara,
demonstra o valor que a comunidade quilombola deposita naquela divindade. Dessa
maneira, os santos, os espíritos dos mortos, a comunidade e os fiéis que pagam as
promessas são valorizados nessa forma de religiosidade.
Aldo Natale Terrin não aceita a redução proposta por Durkheim ao considerar que “o
rito religioso desaparece enquanto tal, ou melhor, transfere toda a sua força simbólica para
o social.”423 A concepção que o citado autor defende, a partir dos acréscimos sugeridos por
Mary Douglas, Meyer Fortes e Robert Firth, é que o ritual “tem uma função agregativa e dá
força moral e espiritual, em virtude dessa dinâmica intrínseca pela qual ele tem forte
capacidade de agregação simbólica tomada de empréstimo do mundo religioso...”424 Esse
viés sugerido pelo autor pode ser observado tanto na Marujada como também na Roda do
São Gonçalo.
Desde a época do Capitão João Duque, no século XIX, circula em todo o Médio São
Francisco a representação de que o “povo do Mangal é feiticeiro”. Pela maneira corriqueira
como esse atributo negativo permaneceu na sociedade regional e até mesmo em tom de
423
TERRIN, Aldo Natale. O rito: antropologia e fenomenologia da ritualidade. São Paulo: Paulus, 2004, p.
52.
424
Idem, p. 52.
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292
brincadeira, não me interessei em perguntar a uma pessoa do Mangal como se sentia com
tal acusação.
Após a “descoberta” de que a linguagem da feitiçaria fazia parte do cenário das
relações sociais no quilombo de Rio das Rãs, fui instado por meu orientador a conhecer
outra experiência quilombola em que a feitiçaria estivesse presente. Imediatamente me
ocorreram às referências às famosas lendas sobre os “feiticeiros” do Mangal que circulam
em todo o território quilombola do Médio São Francisco.
Entre abril e maio de 2009, aportei no quilombo do Mangal para realizar a pesquisa
de campo, após uma viagem de barco que durou três horas. A minha expectativa era a de
que o tema da feitiçaria faria parte do “cardápio diário”, durante a minha estada no
quilombo e, mais do que isso, que todos me relatariam os mais ilustrativos casos
envolvendo a feitiçaria para confirmar a fama que o quilombo ostentava. Para a minha
decepção, os quilombolas de Mangal muito pouco falaram de feitiçaria, na maior parte dos
quase trinta dias em que pude observar atentamente a vida social no quilombo.
Em virtude de não encontrar dados consistentes, refiro-me especificamente a relatos
de acusações que confirmassem a fama de feiticeiros imputadas aos quilombolas de
Mangal, já nos primeiros dias pensei em alterar o planejamento inicial de pesquisa, o que
reduziria também drasticamente o tempo de permanência no quilombo.
Mesmo com as referidas dificuldades, resolvi prosseguir. Mas, a cada dia que passava
aumentava o tormento. Os quilombolas não se furtavam em conversar sobre a feitiçaria,
mas faziam de uma maneira completamente diversa daquilo que constatara em Rio das Rãs.
Neste quilombo, a feitiçaria é encarada como um assunto muito sério, o que faz com que as
pessoas não comentem publicamente sobre o assunto, a não ser em tom de galhofa e
pilhéria, porque a feitiçaria pode causar danos à saúde de pessoas, provocar desarmonia em
família, prejudicar a produtividade de uma plantação e até tirar a vida de um animal ou
mesmo de uma pessoa.
O que mais me chateava nessa primeira fase da pesquisa, ao não identificar indícios
de ser a feitiçaria um fenômeno importante na vida social dos quilombolas do Mangal, era o
fato da escolha de pesquisar sobre a feitiçaria não ter sido aleatória. Além de conhecer,
desde o início da década de noventa, as muitas lendas que se contavam sobre os feitos dos
“feiticeiros do Mangal”, havia entrevistado em 2007 uma liderança do quilombo, João
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Conceição dos Santos, que reconhecia a existência da fama, embora esta tivesse prosperado
a partir de preconceitos raciais contra os quilombolas.
Segundo João Santos, imaginava-se fora do quilombo que o saravá – um ritual
praticado às escondidas para cultuar caboclos e orixás – fosse uma modalidade de feitiçaria,
isto é, um ritual com finalidades cruéis. Tanto é que o depoente, ao longo de sua vida,
quando era inquirido fora do Mangal sobre essa religiosidade, negava peremptoriamente:
“Não tinha consciência do que era uma religião e [quando] as pessoas me perguntavam se eu era de
Mangal, eu dizia que não, que eu era de Brasileira, que eu era de Paratinga, pra fugir desse preconceito
que existia. Hoje é tranquilo e eu entendo e se me perguntar se somos terra de feiticeiro, eu vou falar
que sou não tem problema nenhum.” (João Conceição dos Santos, 28 anos)
No dia seguinte à minha estada em Paratinga, conversei com outra pessoa do Mangal
que lá residia, o senhor Otávio. Este confirmou, sem rodeios, serem os mangazeiros
conhecidos em Paratinga e região como “feiticeiros”. Mas, ele fez uma ressalva de ser
folclore a história de que os feiticeiros do Mangal fossem capazes de parar barco em pleno
Rio São Francisco. Os mais velhos de Mangal, segundo ele, falavam de pessoas capazes de
curar bicheiras em animais, rezar pessoas doentes e até livrar os que estivessem ameaçados
de serem picados por cobra, mas não passava disso.
A passagem por Paratinga, antes de chegar ao Mangal, serviu para aumentar ainda
mais a expectativa de conhecer a experiência dos quilombolas com o discurso da feitiçaria.
Mas, com a simpatia e o trato educado com os visitantes que os caracteriza, os quilombolas
do Mangal, no máximo, se referiam à feitiçaria, com discursos recorrentes para afirmar o
seguinte: a feitiçaria é um ato abjeto e eles não estão envolvidos com essas crenças; as
acusações de feitiçaria contra o povo do Mangal são “lendas” que remontam ao período da
escravidão; os acusadores confundem as antigas práticas de cura adotadas pelos seus
antepassados com feitiçaria; a má fama que os mangazeiros carregam de feitiçaria é uma
atitude deliberada de preconceito pelo fato de eles serem negros. Eis o que alguns dos
entrevistados no Mangal declaram sobre a feitiçaria, após minha chegada ao quilombo:
De acordo como o senhor Beatriz Martins dos Santos, o seu avô Juliano “sempre falava: ‘oh meu fio, o
povo aqui fala que é feiticeiro, mas não é feiticeiro. O povo tem alguma oração que sabe livrar o corpo
pruma coisa e pra outra. Num tem feiticeiro aqui não meu fio’.”
Francisco Gomes Pereira (49 anos) no mesmo sentido argumenta que o povo antigo sabia “rezar de
quebranto, uma dor de barriga, uma dor de dente, uma dor de cabeça, ai criou esse tabu de aqui no
Mangal o povo era feiticeiro. E ai criaram meio mundo de que eu chamo lendas.”
A professora Guilhermina Farias dos Santos (44 anos) aceita que as histórias de feitiçaria no Mangal
são verdadeiras, porém, elas se referem ao passado: “Que antigamente bem que tinha mesmo...”
A professora Clene Farias dos Santos (27 anos) já não é tão enfática em considerar que no passado
houvesse feiticeiros, porém, concorda com a professora Guilhermina ao asseverar que essa fama está
relacionada ao passado: “Ah, às vezes as pessoas mais velhas sabia de alguma coisa [mas] não
deixou...”
O senhor Albertino Lobo dos Santos (75 anos) é mais enigmático e escorregadio quando afirma que
“até hoje tenho essa idade não vi aqui nada.”
O que se pode deduzir das falas dos depoentes é que o imaginário da feitiçaria é uma
construção externa a Mangal. Essa construção seria derivada de uma deliberada confusão
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295
425
BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da Magia: feiticeiros, adivinhos e curandeiros em Portugal
no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 178.
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população portuguesa, ao contrário, a “procura das elites [por trabalhos mágicos] permite-
nos caracterizar melhor a influência e a posição social das feiticeiros...”426
A utilização da feitiçaria pelos senhores escravistas, da maneira ambígua como
ocorreu em Portugal, se verificou igualmente na colonização espanhola da Colômbia, de
acordo com os estudos da antropóloga Juana Camacho Segura: os “poderes [das feiticeiras]
foram temidos e muitas vezes solicitados pelos brancos, mas também usados como
argumentos legais para perseguir e controlar as populações afros e inclusive para eliminar
os praticantes.”427
No Brasil, o discurso da feitiçaria, além de fazer parte do ambiente social da
sociedade escravocrata, influenciava a conduta de diferentes segmentos sociais. Como
acontece até os dias atuais, o medo, segundo Nicolau Parés, era o mais importante substrato
presente na mentalidade da época para se temer a feitiçaria como arma mortal. Por isso
mesmo, esse medo era muito bem manipulado pelos feiticeiros africanos.
Mas o discurso da feitiçaria tinha uma amplitude ainda maior na sociedade da época,
acrescenta o autor: “a ameaça real ou imaginada da feitiçaria (no seu sentido agressivo e
anti-social) jogou um papel importante nas relações entre senhores e escravos, mas também
intervinha amiúde nas esferas micropolíticas dos africanos, por exemplo, nas rivalidades
pelo poder nas irmandades.”428 A feitiçaria, comumente usada para o mal, podia também
ser empregada com finalidades sociais.
Para Laura de Mello e Souza, as práticas de feitiçaria por parte dos escravizados
colocavam os senhores diante do dilema de como agir, pois enxergá-los exclusivamente
“como feiticeiros, por sua vez, foi uma das manifestações da paranóia da camada senhorial
na colônia.”429
No Brasil do século XIX, era comum associar os batuques ou candomblé a atos
contrários ao sistema escravista. A referência ao candomblé, neste período, em grande parte
estava relacionada aos temores que cercavam as práticas de feitiçaria com a finalidade de
426
Idem, p. 217.
427
ROJAS, Maurício Pardo. Marcos da Investigacion sociale, histórica e territoriale no Pacifico
afrocolombiana. In ROJAS, Maurício Pardo, MOSQUERA, Claudia, RAMÍRES, Maria Clemência
(Editores). Panorámica afrocolombiana – Estúdios sociales em el Pacífico. Bogotá: Instituto Colombiano de
Antropologia e História – Icanh/Universidade de Colômbia, 2004, p. 18.
428
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé, p. 112.
429
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz, p. 205.
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298
430
REIS, João José. Domingos Sodré, p. 147.
431
Idem, p. 149.
432
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz, p. 155.
433
MALIGHETTI, Roberto. O quilombo de Frechal – Identidade e trabalho de campo em uma brasileira de
remanescente de escravos. Edições do Senado Federal. V. 81. Brasília: Senado Federal, 2007, p. 214.
434
PIERSON, Donald et ali. O homem no Vale do São Francisco, p. 174.
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299
435
Idem, p. 183.
436
EVANS-PRICHARD, E. E. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande, p. 49.
437
BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da Magia, p. 12/13.
438
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz, p. 149.
439
Idem, p. 166.
440
PIERSON, Donald et ali. O homem no Vale do São Francisco, p. 184.
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comunidades livres, deveriam ser tratados com muito cuidado: tanto pela capacidade de
rebelião como também pelos poderes mágicos usados, que poderiam ser mortais para os
senhores de escravos.
É neste contexto que se explica a repressão policial contra curandeiros e feiticeiros,
iniciada no período colonial e que se estendeu pelo século XX, conforme assinala Donald
Pierson: “motivada, pelo menos em parte, pelo fato de alguns deles terem assumido, ou se
pense assim, o papel de feiticeiros, entregando-se a magia negra.”441
As práticas de feitiçaria e do chamado curandeirismo durante a escravidão, e no
período posterior à abolição da escravatura, eram controladas legalmente ou reprimidas a
partir de qualquer suspeita que indicasse insubordinação dos negros. É de se imaginar,
portanto, o que representou para os quilombolas de Mangal serem acusados de feitiçaria.
Os quilombolas do Mangal reagiram às acusações de feitiçaria procurando se
distanciar de qualquer vinculação com elementos simbólicos de origem africana, inclusive
aqueles não necessariamente associados à feitiçaria. Esse comportamento foi notado pela
pesquisadora Sandra Nivia Soares de Oliveira, ao observar que a “negação da prática do
Saravá faz parte de todo um processo para desfazer a fama de negros feiticeiros da
comunidade na região.”442
O distanciamento dos quilombolas das simbologias africanas dentro do quilombo, de
acordo com as minhas observações de campo, pode ser notado em atitudes individuais para
impedir qualquer associação com as suas religiosidades ancestrais. É comum no Mangal
saber de pessoas angustiadas por não conseguirem de médicos consultados respostas
satisfatórias para doenças sem causas aparentes ou inconformadas por receberem avisos
através de sonhos. Pessoas que mudam de comportamento bruscamente. Enfim, ocorrências
e acontecimentos pessoais que seriam, de acordo com especialistas do próprio quilombo,
por causas “espirituais”.
Desde o fim da década de noventa do século passado, quando o conflito pela posse da
terra tornou o Mangal conhecido na região, circulavam informações de que no quilombo se
praticava um ritual afro-brasileiro chamado por eles de Saravá443. Mas, ao se procurar
441
Idem, p. 259.
442
OLIVEIRA, Sandra Nivia Soares de. De Mangazeiros a Quilombolas, p. 42.
443
Segundo o dicionário eletrônico de Antonio Houaiss, a palavra saravá era a maneira que os negros bantu
pronunciavam o termo português salve. No âmbito da umbanda e de alguns candomblés foi adotada como
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informação sobre esse culto, ninguém da comunidade aceitava entrar em detalhes sobre o
que ele representava e como era praticado no quilombo. A impressão que se tinha era de
que o temor em expor publicamente o Saravá estivesse associado aos temores das antigas
perseguições legais e policiais sofridas pelos cultuadores das religiões afro-brasileiras na
Bahia. As perseguições somente tiveram fim com a Lei 25.095 de 15 de janeiro de 1976, de
autoria do governador Roberto Santos, que conferiu às religiões afro-brasileiras o direito de
“exercitar o seu culto, independentemente de registro, pagamento de taxa e obtenção de
licença junto a autoridades policiais.”444
Na convivência diária como os quilombolas de Mangal, porém, foi possível juntar
elementos que comprovaram, mais tarde, ser o discurso da feitiçaria em Mangal, no
passado como no presente, parte fundamental de sua experiência cultural.
uma saudação. No caso de Mangal, o Saravá equivalia a um culto afro-brasileiro praticado às escondidas
pelos negros do quilombo.
444
BRAGA, Julio. Na Gamela do Feitiço, p.184.
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302
A conclusão a que cheguei, após ouvir inúmeros relatos dos quilombolas, e conhecer
também na literatura as experiências dos africanos e seus descendentes no período colonial,
foi a de que a imputação da pecha de feiticeiros aos quilombolas do Mangal, desde o
período da escravidão, pretendeu isolar os negros livres do Mangal em seu território. Isso,
para impedir ou dificultar a sua movimentação em outras áreas que pusessem em perigo a
estabilidade das fazendas de gado que utilizavam mão de obra escrava na região.
Mesmo com as limitações impostas para se movimentarem fora do seu território, os
mangazeiros eram obrigados a se deslocar para vender a mão de obra nas fazendas da
região, já que a “meia légua de terras doada” por Gertrudes tinha uma extensão insuficiente
para prover as suas necessidades. Além disso, eles precisavam fazer compras de gêneros
essenciais nos distritos de Sito do Mato e Gameleira e na sede de Paratinga. Mas, com essa
pecha de feiticeiros que carregavam, ao sair dos seus domínios, eram recebidos e vistos
sempre como indivíduos perigosos.
A segregação dos mangazeiros em seu território ou a circulação deles nas áreas
vizinhas carregando o estigma de feiticeiros, evidentemente, os impedia de exercer
qualquer influência política junto aos negros que ainda continuaram submetidos à
escravidão em toda a região. Fora do seu território, os mangazeiros passaram a ser
hostilizados não somente entre os senhores de escravos como também junto aos indivíduos
que acreditavam nas proezas e perversidades que um feiticeiro era capaz de fazer.
A abolição da escravidão no Brasil, em 1888, que poderia minorar as representações
negativas dos mangazeiros, ao que parece, não alterou substancialmente o peso do fardo de
“feiticeiro”. E, além disso, o estigma foi incorporado psicologicamente pelas gerações
atuais de mangazeiros como algo absolutamente negativo, já que o estigma reforçava o
isolamento deles na sociedade regional no presente. Não é exagero, assim, imaginar
possíveis repercussões físicas e psicológicas na estrutura de personalidade dos quilombolas.
Após as acusações de feitiçaria se transformarem em estigma para os quilombolas, o
termo “feiticeiro” passou a ser tão repudiado, que as reações, muitas vezes, beiravam a
neurose, no seu sentido de fuga, de afastamento. Por exemplo, as pessoas com indícios de
“problemas espirituais” preferiam o sofrimento (doenças persistentes, diagnósticos
inconclusos) a ter que se submeter a uma consulta com um curador, já que esse recurso era
visto como parte do mesmo complexo da religiosidade afro-brasileira em que está situada a
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“Quem quer conta com aquele povo do Mangal, que são tudo feiticeiro! Inclusive, nós fomos uma
festa na Gameleira quando eu era solteira ainda. Eu e minha prima e uma irmã minha. Aí quando a
gente tava lá na festa apareceu um rapaz que ele era de Serra Dourada. Aí a gente conversando ele
falou: ‘De onde são vocês?’ ‘Nós somos do Mangal’, respondemos. Ele começou a bater palma. ‘Ave-
Maria, Ave-Maria!’ Eu falei, Olha, tá vendo ali, ele tá falando aquela Ave-Maria porque tá achando
que a gente é feiticeira. E na verdade a gente não sabia nada coitada. O que é que nós sabia? Mal o Pai-
Nosso, né?” (Professora Guilhermina Farias dos Santos, 44 anos)
“Rapaz, eu sempre alcancei sempre essa história que nós era feiticeiro, né?
445
GOFFMAN, Erving. Estigma – notas sobre a manipulação da Identidade deteriorada. 4. ed. Rio de
Janeiro: LTC, 1988, p. 14.
446
GOFFMAN, Erving. Estigma, p. 150.
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Eu tinha catorze anos e minha mãe veio me buscar aqui no Mangal pra gente ir a Juazeiro da Bahia. E
a viagem era de vapor. Trinta dia parece pra chegar. E nessa viagem a gente não pegou o vapor aqui na
Comunidade, a gente desceu pra Paratinga, pra pegar o vapor lá. E aí eu perguntei: ‘mas por que a
gente não pega o vapor no Mangal?’ Ela disse: ‘Não, pra eles não saber que nós somos do Mangal’. Aí
depois de Paratinga nós veio pegou o vapor e aí dentro do vapor ela falou pra mim: ‘se alguém
perguntar’... (Que eu era muito bisbilhoteiro, andava muito). Ela falou: ‘Se alguém perguntar se você é
do Mangal, você diga que não. Você diga que é de Paratinga’. Aí eu disse: ‘porque mainha não pode
dizer?’ Ela disse: ‘não, porque eles não gostam.’” (Carlos Alberto Gomes, 45 anos)
447
OLIVEIRA, Sandra Nivia Soares de. De Mangazeiros a Quilombolas, p. 134.
448
GOFFMAN, Erving. Estigma, p. 22.
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Essa nova leitura política das denúncias de feitiçaria contra os mangazeiros, ainda que
não apagasse totalmente os traumas psicológicos que o isolamento racial os impunha,
colocava-os em uma posição mais digna nas relações sociais que antes eram, sobretudo, de
subordinação e aceitação. Esse processo de reversão, contudo, é muito recente. Para se ter
uma idéia, somente no ano de 2006 os mangazeiros tornaram públicas as suas práticas
religiosas de origem africana, com a fundação do Terreiro Ilê Axé Nanã Burokê,
comandado pela mãe-de-santo Maria Guedes da Rocha, conhecida como Maria Domingas.
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“Preconceito. De longe é aí preconceito. Eles que fala aí. Preconceito desse povo de fora, né?
Num sei se porque a gente era negro. Num sei.
Vem muito tempo que aqui era feiticeiro, dizia que aqui parava lancha e num foi do meu tempo. Aqui
eu nunca vi falar. “Porque feiticeiro nós não somos agora macumbeira, sou.” (Maria Guedes da Rocha,
44 anos, líder do Terreiro Ilê Axé Nanã Burokê, do Mangal)
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“Mudou também porque às vezes as pessoas não aceitava quando fosse chamado de feiticeiro, de
negro. Porque era o racismo, o preconceito que as pessoas lá fora tinha com a gente. Hoje eu não me
importo não. Eu sou negra com muito orgulho, quilombola e posso até ser feiticeira. Mas eu não sou
feiticeira porque eu não sei mesmo.” (Guilhermina Farias dos Santos, 44 anos)
[As pessoas] “falavam assim: ‘Ah, aqueles negos do Mangal’. Então pra mim, era um tipo de
discriminação muito séria que a gente sentia na pele e a gente andava assim, recolhido, né? ‘Ah
mangazeiro, pé nêgo, nêgo do beição, nêgo do pezão, do pé rachado, num-sei-o-que’. Então era uma
discriminação muito grande. Então chegou tanto essa discriminação que a gente ia pro lugar, pra
Bom Jesus da Lapa, pra outros lugar maior, a gente nunca dizia que era do Mangal. Sempre dizia que
era de Paratinga.” (Carlos Alberto Gomes, 44 anos).
“Essa fama aí, ela agora tá parando, mas essa fama aí ela correu de muitos tempos atrás, porque é
aquela questão que eu sempre digo que o negro foi escravizado e a imagem que ficou é que o negro
não poderia ter nada que fosse bom. O negro tinha que ser assim considerado bicho, ele não tinha
que ter nada que fosse bom. Então eu não sei se existe o feitiço, não sei se ele mata, não sei se não
mata, mas surgiu a uns longos anos que o pessoal aqui era feiticeiro...”
“É porque as pessoas que sabia se defender. Porque o defender é isso. É você fazer o inimigo calar a
boca, é você fazer seu inimigo quando vê você abrandar o coração. E aí o que? Para os brancos era
um feitiço. Porque foi a questão do Candomblé que eu sempre falo por aí. Porque que o Candomblé
foi tão discriminado no Brasil? Porque o primeiro padre que veio para o Brasil, ele veio de Portugal.
Ele era branco. E aí ele colocou logo que o Candomblé era coisa de Cão e aquilo cresceu, né. ‘Ah! É
coisa de Cão!’ E quem é que quer coisa de Cão? Ninguém queria.” (Egídio Gomes Pereira, 61 anos)
“Eu sofri muito com isso porque não tinha conhecimento do que era o candomblé, não tinha
consciência do que era uma religião e as pessoas me perguntavam se eu era de Mangal, eu dizia que
não, que eu era de Brasileira, que eu era de Paratinga, pra fugir desse preconceito que existia.” (João
Conceição dos Santos, 28 anos)
“Tem deles que ficam triste, porque feiticeiro, quem quer, né? Aí tem deles que as vez se sente
revoltado, porque se sente também rejeitado. A sociedade em alguns lugares tem pessoas que olha
diferente e aí por um motivo de ter um nome ou até fama, que na verdade não pratica.” (Clene Farias
dos Santos, 27 anos)
Ele “consentiu em explicar que Exu presidia à magia, na grande revolta dos escravos contra o regime
de opressão a que estavam submetidos, tornando-se o protetor dos negros (magia branca), ao mesmo
tempo em que dirigia cerimônias contra os brancos para enlouquecê-los, matá-los, arruinar as
plantações (magia negra).”449
449
BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 162.
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“Tem. Tem. E precisa. Tudo tem que ter. Eu digo assim, no mundo o que tem de bom tem de ruim.
Então Deus fez as coisa tudo certo. Deus não fez nada de errado, não. Tem aí um problema aí entre os
evangélicos e nós católicos, né? Ah, não pode beber, não pode fumar, não pode não-sei-o-quê. Deixe
de besteira! Tudo o que Deus deixou no mundo foi pro homem. Agora não pode é exagerar. O que não
pode é abusar. Mas se ficou no mundo, foi pra o homem. Porque o que foi para os animais taí. O capim
é isso aí. O capim nós sabe que é pros animal. Mas o resto... Tudo o que tem no mundo, ele vai ter uma
serventia. Acho que o bom combate com o bom e o mau combate é com o mal.” (grifos meus) (Egídio
Gomes Pereira, 61 anos)
Com essa mesma concepção filosófica do senhor Egídio Pereira, que em certo sentido
busca afugentar os males psicológicos causados aos mangazeiros pelo estigma da feitiçaria,
outra entrevistada justifica a importância e o significado de Exu para a concepção de
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religiosidade hoje praticada à luz do dia no Mangal. Segundo a depoente, Exu deve ser
visto como um mensageiro e como tal ele é o responsável para enfrentar demandas
consideradas perigosas. Exu é o que está mais capacitado, portanto, a responder aquilo de
negativo que foi enviado, um feitiço, por exemplo, com a intenção de atingir alguém. Eis o
raciocínio da depoente:
“Porque se tiver uma coisa ruim. O que é bom não vai pegar coisa ruim. Não vai não. Por exemplo,
tem o orixá se tem um espírito mau, tem que tirar pra levar pra sujeira, orixá não vai lá não que o orixá
é de luz. Quem vai é o mensageiro. O mensageiro é quem vai. Que o povo chama de Exu.” (Lídia
Guedes dos Santos, 58 anos)
Como se pode observar, há uma similaridade entre essa idéia de Exu ser destinado a
enfrentar demandas perigosas e, ao mesmo tempo, ser considerado um paradigma de
maldade, de acordo com a essência da filosofia do senhor Egídio, segundo a qual o mal não
é uma aberração, mas simplesmente o oposto do bem. Mesmo que a concepção de
religiosidade de dona Lídia dissocie Exu dos demais orixás – visão que, aliás, é muito
comum, sem ser uma unanimidade, entre os praticantes das religiões de origem africana em
Salvador –, ele, ainda assim, é visto como uma entidade de capital importância, como
combatente de maldades que os demais orixás não são capazes, segundo o raciocínio da
depoente. Exu também é visto pela líder do Terreiro Ilê Axé Nanã Burokê do Mangal,
Maria Guedes da Rocha, com a mesma responsabilidade no complexo de crenças religiosas
afro-brasileiras sugeridas por dona Lídia dos Santos:
“Com mau intenção. Mau intenção quem for, chega lá [no Terreiro] já acabou tudo. Porque pra isso
nós tem Exu pra carregar as maldade.
Por isso que eu toco primeiramente pra ele. Peço força a Deus e toco primeiro pra Exu. Que é pra tirar
as maldade, as perseguição, os descaminho. Pra não criar probrema.” (Maria Guedes da Rocha, 44
anos)
“Porque às vezes você vai pro médico e num dá nada. Aí queixa uma coisa, toma remédio, queixa uma
coisa, queixa outra. E a gente sabe por que a gente não quer falar porque se falar vai falar que a gente
tá mentindo, quando a coisa é coisa de caboclo. A gente fica calada, guarda pra nós mesmo, porque a
gente sabe que aquela pessoa não acredita. A gente vai falar... Se desmaiou a gente não pode abrir a
boca, que a gente tá conhecendo que é caboclo. Fala que a gente tá mentindo. A gente deixa eles
sofrer.” (Domingas Farias de Sá, 30 anos).
“Moço não consigo entender se é vergonha que tem de ir. Não sei se é uma discriminação. Eu fico sem
saber.”
“Acontece. Acontece que ao mesmo tempo não gosta, fala mal, ao mesmo tempo precisa e quer uma
ajuda e fica com vergonha de ir lá.
Precisa dos Cabôcos benzer, tem vontade de fazer alguma coisa pra benzer, tá sentindo uma coisa e
fica com vergonha de ir lá. Vai sofrer.” (Deltrudes Gomes Pereira, 41 anos)
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314
Vale a pena destacar também um depoimento do senhor Egídio Gomes Pereira, onde
ele fala sobre a traumática experiência religiosa de sua família, por não assumir as
religiosidades que a afligiam. O resultado, como veremos, foi trágico: desaparecimento,
loucura e morte. Depois desses acontecimentos, o senhor Egídio foi obrigado, pelas
circunstâncias, a liderar um processo que resultou na fundação, no ano de 2007, de um
Terreiro de candomblé na localidade de Capim, próximo ao território do Mangal450. Esse
terreiro cultua Caboclos e Orixás. Por estar em fase de estruturação, ainda não recebeu um
nome ou, segundo o senhor Egídio, “não foi ainda registrado.” No relato dele, um resumo
da experiência dos seus familiares, que não aceitaram os apelos das religiosidades
ancestrais que cobravam reciprocidade:
Domingas Farias de Sá
450
A fundação do Terreiro fora do Mangal não foi, infelizmente, aprofundada com o depoente. Mas, pela
grande disponibilidade de terras no quilombo depois da titulação é de se imaginar que decisão pode ter sido
baseada na forte resistência dentro do Mangal para que se assumissem publicamente as religiosidades negras
que, durante muito tempo, foram amaldiçoadas pelos preconceitos da sociedade regional.
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315
“E aí ela [sua mãe, Anísia Lopes de Oliveira] não se desenvolveu, não procurou desenvolver aquela
coisa que tinha na mente dela, aquela coisa que ela nasceu com ela, ela não tratou e aí ficou aí e depois
foi afetando a família. Foi de uma maneira que ela morreu paralítica, não é? Ficou dois anos de cadeira
de roda. E aí foi afetando a família. Começou pelo filho mais velho. São, trabalhando, trabalhador,
bem estudado, quando pensa que não começou chorando e tal e isso foi de uma maneira que levei em
São Paulo duas vez e tal. E a gente era hora que precisava de amarrar. Levei em Conquista, não teve
lugar. E aí que acabou que ele sumiu no mundo aí. Doente, começou caminhar no mundo, no mato. E
alguma pessoa disse: ‘Problema desse rapaz aí é espiritual, ele tem corrente pesada’. Levamos em
Brasília onde tá uma mulher que tinha lá num lugar por nome do Vale do Amanhecer. Levamos lá. Os
secretários dela falou: ‘Esse rapaz tá com uma corrente muito forte’. Ele caminhamos pra lá e pra cá
nas coisa do centro aí quando ela chegou, olhou pra ele assim: ‘Não. Já sei o que é que esse rapaz tem.
Pode levar ele pra lá. Eu só quero o nome dele, a idade dele e endereço que daqui eu cuido dele’. Eu
digo: Ah! Não acreditei não. E como de fato não valeu nada, né. Eu sei que até ele levou a morte. Aí
passou mais por dois, né.
Mais dois. Assim também. Geralmente assim, adoecia assim, que ficava ruim que ia pra corda.
Entendeu? Ia pra corda.” (Egídio Gomes Pereira, 61 anos)
É evidente que há uma estreita relação entre a recusa dos quilombolas de Mangal em
aceitar os sinais das suas religiosidades ancestrais, com as marcas indeléveis das influências
religiosas africanas e, por isso mesmo, vistas por alguns quilombolas no mesmo plano da
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“A dupla participação de muitos africanos e crioulos nos desfiles e procissões das irmandades e nos
calundus e danças supersticiosas não era vivida, como já foi dito, como uma contradição, mas como
uma justaposição benéfica de recursos conceituais para lidar com a adversidade do cotidiano.”454
451
Um dos exemplos são as chamadas “pastorais afros” que têm procurado nos últimos anos incluir nos
rituais católicos elementos simbólicos de origem africana, como o uso de atabaques e outros instrumentos nas
missas.
452
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do candomblé, p. 111; Cf. também FERRETI, Sérgio Figueiredo.
Repensando o sincretismo. São Paulo: Editora USP; São Luis: FAPEMA, 1995.
453
BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia, p. 29.
454
PARÉS, Luis Nicolau, A formação do candomblé, p. 111.
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é possível. Por conseguinte, o fato de os quilombolas de Mangal serem católicos pode ter
influenciado, em alguma medida, a decisão de recusarem as religiosidades de origem
africana, porém, pelas razões evocadas, não tiveram um peso decisivo.
A minha hipótese é a de que o medo de “cair em transe” pode ter tido uma influência
maior nas decisões individuais para a recusa das religiosidades africanas no quilombo e, tal
atitude, do meu ponto de vista, não teve uma relação direta com a estratégia de se distanciar
das acusações de feitiçaria, vindas de fora do quilombo.
Com essa conclusão não pretendo afirmar que todas as pessoas com potencialidades
de mediunidade tenham medo de entrar em transe. Alguns entrevistados que frequentam a
Casa de Nanã, por exemplo, demonstraram, de maneira consistente, satisfação e muita
alegria em cultuar o candomblé no quilombo de Mangal. Vejamos alguns destes
depoimentos que atestam tal assertiva:
“Ah! Eu gosto muito, né. Depois que eu me desenvolvi, minha irmã fez um [banho de] amassi455 muito
boa, muito bonita em mim, né? E eu gostei muito e tenho muita fé graças a Deus. O que eu faço, né?
Eu acho que eu realizo, o que eu penso eu realizo meu sonho, né? E acho que a gente tem que ter fé,
tem que acreditar, confiar no que tem.” (Delmira Rodrigues Viana, 60 anos)
“Por enquanto, não tem nada assim que eu não gostei. Tudo lá eu gosto.
É tudo o que eu vejo por lá, eu gosto.” (Gertrudes Gomes Pereira, 41 anos)
“O que o povo [do Mangal] fala pra nós, entra num ouvido e sai do outro, porque nós, não é de agora
que a gente vem sofrendo preconceito, não ligo mais pro que o povo fala.”
“Às vezes as pessoas que vai para lá, chega lá fica com vergonha. Vai mas acho que não se sente assim
que é de lá do Saravá. Agora nós que já tem costume, chega lá se solta e não tá nem aí. Fica a
vontade.”
“Eu faço parte da assistência, mas me disseram que um dia vou ser uma grande médium. Eu só espero
dar manifestação mesmo.” (Domingas Farias de Sá, 30 anos)
[Boiadeiro] “Representa muita coisa boa, porque eu gosto dele, eu amo ele. Não é Orixá de fazer mal.
Eu também não tenho esse coração de fazer mal a ninguém e pra mim é uma bênção. Meu Orixá pra
mim é uma bênção.” (Lídia Guedes dos Santos, 58 anos)
455
Banho de folhas cheirosas usadas no candomblé para acalmar o corpo e a mente.
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320
“Nesta fase dos quatorze anos, fiquei um pouco revoltada quando as pessoas falavam que o meu
problema [de saúde] era espiritual. Eu pensava que essa não poderia ser a forma dos Orixás dizerem o
que queriam.”456
“Tinha dia que eu sentia uma tremedeira, uma tremedeira... Por isso que eu não gosto muito de ir [ao
candomblé]. O que será isso mesmo?”
“Tenho [medo]. O cabelo do corpo arrepiava, ficava...”
“Eu não sei a razão do medo.”
“A razão do medo eu não sei. Tinha vezes que eu ficava tremendo. Tremendo, tremendo mesmo que
tinha que vim embora, me sentia mal. Agora, só que assim... Tinha umas pessoas aí, tinha um homem
de fora que falou assim que eu tenho um... Que eu tenho né. Eu não gosto que fique falando essas
coisas, como é que ele vai falar uma coisa que ele não sabe. Disse que eu tenho um santo. Eu falei:
‘Oh! Pelo amor de Deus, não fica colocando coisa em minha cabeça. Eu... No dia...’ Se for mesmo de
cabeça, tudo é permissão de Deus, não é não?” (Guilhermina Farias dos Santos)
“Era tanto probrema que eu não sei que até tinha hora que eu ficava assim naquela dúvida. Eu só me
sentia mais à noite. Eu não podia comer. Aí eu não podia dormir. Os remédio que o médico passava eu
não tomava. Quando eu pegava os remédio pra tomar eu via aquela voz dizendo ‘não bebe que você
vai morrer aí’, eu não bebia. Tenho vários remédios em cima dessa casa que eu jogava que eu não
podia beber. Tinha hora que eu andava parecia que tinha um baticum que eu ficava ruim. E tinha coisa
que eu ia fazer que eu nem...” (Maria Guedes da Rocha, 44 anos)
456
OLIVEIRA, Valnízia. Resistência e fé: fragmentos da vida de Valnizia de Airá. São Paulo: All Print
Editora, 2009, p. 25.
457
LEWIS, Ioanm. Êxtase Religioso: um estudo antropológico da Possessão por espírito do xamanismo. São
Paulo: Editora Perspectiva, 1977, p. 79.
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A professora Clene Farias dos Santos (28 anos) relata algumas experiências que ela conhece no
Mangal: “Tem delas que é problema assim de desmaio, ficam desmaiando, né? E o desmaio é assim,
não falam nada, ficam aquela coisa de queixo serrado, não fala e fica aquela... E tem deles que as vez
começam a conversar assim, falar certos tipos de coisas que não tem nada a ver. Vem aquela coisa:
‘Ah! É porque é fulano, é pessoas que já morreram que tão apoderando’”.
“E também tem pessoas que dentro de casa é bonzinho com o pessoal de fora, e chega em casa não
respeita ninguém, acaba aquela briga, tá aquela rivalidade dentro de casa e fora às mil maravilhas para
as pessoas de fora. Então isso aí acontece aqui... E dentro de casa é com a mãe, com os irmãos, com o
pai briga e tudo...”
Por todas as razões evocadas, o fator medo deve ter sido uma importante influência
para que as religiões de origem africana não tivessem uma aceitação maior no quilombo do
Mangal, afora a tentativa estratégica dos quilombolas de dissimularem as suas
religiosidades para atenuar os efeitos do estigma da feitiçaria.
O medo do transe pode muito bem ser compreendido, a partir da observação de
Lewis, quando ela afirma que em muitas sociedades “àqueles que os deuses chamam, eles
primeiro humilham com aflição e desespero.”458
458
LEWIS, Ioanm. Êxtase Religioso, p. 84.
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lugares não conseguiam se afirmar como sujeitos diante dos outros. Por esse motivo, a
identidade dos quilombolas é fragilizada pelo efeito da insegurança e o temor de ter
descoberto a pecha de “feiticeiros”. De acordo com Goffman, quando “um indivíduo
desempenha um papel, implicitamente solicita de seus observadores que levem a sério a
impressão sustentada perante eles.”459
Até quando puderam esconder a identidade de “mangazeiro”, considerada negativa
fora das fronteiras do quilombo, os quilombolas foram discriminados como “negros”, mas
não como “feiticeiros”, o que os tornaria anda mais perigosos diante dos outros. Desse
modo, tornar-se pouco visível nas relações sociais externas foi outro caminho adotado pelos
quilombolas de Mangal.
Essa “invisibilidade” era uma maneira de não serem abordados. Nessa condição, os
mangazeiros se encaixavam bem na definição de “não-pessoa” de Goffman, aquelas que
“não assumem o papel nem de atores nem de platéia...”460 Ouvi relatos contando que os
mangazeiros, em salas da aula, sentavam-se nos fundos da sala, e as amizades eram as mais
restritas possível, por medo dos seus colegas de se “poluírem”, mas também por temor de
serem atingidos pelos “perigosos feiticeiros”.
A incorporação, pelos mangazeiros, da identidade quilombola, por conseguinte,
processo que se deu no decorrer da luta em defesa de suas terras ancestrais, contribuiu para
a elevação da autoestima, no contato com os outros fora do seu território. As novas
identidades, contudo, aumentaram as tensões nas relações sociais dentro do quilombo. Isso
porque a estratégia de conduta dos que escolheram o caminho da negação ou da
dissimulação para se livrar da pecha de feiticeiros, ou de recusar religiões de origem
africana dentro da comunidade, foi cada vez mais se enfraquecendo.
Enquanto isso, aumentavam as ocorrências de pessoas carentes de serem tratadas
através dos sistemas de curas preconizadas pelas religiosidades de origem africana. Os
indivíduos que reconheciam a legitimidade de serem tratadas mediante estas indicações
religiosas contavam, agora, com especialistas e templos dentro e fora do Mangal. Esses
portadores da nova identidade poderiam, portanto, mostrar às claras que eles cultuavam o
candomblé e não precisavam mais se esconder.
459
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. 8.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, 25.
460
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. p. 141.
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323
“Tem deles que [dizem]: ‘Como eu queria saber que era pra fazer tal coisa assim pra fulano, cicrano’.
Só que às vezes eles fazem assim brincando. Mas eles comentam que pra ficar só no nome [de
feiticeiro], a gente teria que tá mesmo... Quer dizer que alguém teria que ter aprendido pra tá passando
pra gente, que é pra gente fazer neles, inda mais praqueles [que] ficam julgando, falando uma coisa
que você não é, aí eles queriam né...” (Clene Farias dos Santos, 27 anos)
“Eu acho que tinha [feiticeiros]. Eu acho que tinha mesmo. Eu acho que as pessoas aumenta, mas não
inventa. Eles aumenta alguma coisa. Que antigamente era assim... Alguns falava que tinha uma mulher
que falava: ‘Xô passarinho!’ e os passarinho caia tudo. Que quando vinha uma lancha que parava a
lancha no meio do rio. Isso tudo é dos antepassados. Não é do meu tempo. Agora, uma mulher eu
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conheci ela e tal... Ela chamava cobra e matava com o chinelo. Sabia rezar cobra e tal.” (Guilhermina
Farias dos Santos, 44 anos)
esposa de Caboje, de tê-la enfeitiçado, após uma partida de futebol entre os nativos do
quilombo e os empregados da fazenda. A acusação ocorreu depois que a mulher do gerente,
que torcia pelo time dos empregados, foi vaiada quando assistia a partida. Ao chegar em
casa, chateada com o gesto dos torcedores, terminou adoecendo, motivo pelo qual acusa
dona Maria de feitiçaria.
Uma importante liderança da comunidade me revelou que os Lobo têm sérias
desconfianças de ser de alguém da família Gomes a responsabilidade de ter enfeitiçado um
rapaz que bebe descontroladamente, e essa condição do rapaz é razão de grande sofrimento
de sua família. O informante disse, ainda, que a suspeita de feitiçaria é antiga nos conflitos
entre as duas famílias. A novidade nessa denúncia de manipulação da maldade como arma
sórdida de combate é que os envolvidos, os Lobo e os Gomes, estão no centro das disputas
pelo poder no quilombo; a denúncia relaciona-se, portanto, com históricas rivalidades
familiares. Vamos conhecer outros depoimentos envolvendo acusações de feitiçaria e as
estratégias para se proteger dos ataques:
“Acredito que as pessoas coloca o olho em cima de outro e a pessoa acaba não indo pra frente porque
tem outros que não deixa ir pra frente. Tem pessoas muito mau, sabia. Tem pessoas muito mau e com
olho grande. E não tem feitiço maior no mundo do que olho grande não.”
“Mas meu Deus, depois que eu me mudei aqui pra dentro dessa casa, nós não conseguimos colocar
mais nada aqui dentro dessa casa, a não ser o que a gente trouxemos de lá pra cá. O senhor acredita,
vou falar aqui pra o senhor, que quando nós mudamos praqui, tinha gente com inveja da casa da
gente.” (Guilhermina Farias dos Santos, 44 anos)
“É aquele negócio. Quem tá lá fora tem medo que aqui é terra de feiticeiro, mas aqui dentro da terra
também, eles têm um medo aqui mesmo.” (Francisco Gomes Pereira, 49 anos)
“Meu pai morreu foi feitiçaria. Hoje falo. Se fosse agora, como hoje eu sou desenvolvido no
Candomblé, num tinha chegado essa parte. Só que o sonho... Eu sonhei onde meu pai tava. Eu não
trabalhava, não era desenvolvida quando eu sonhei, aí quando saiu, foi dito e certo. Ele foi pra fora e
falou que tava passado. Que era isso. Pelo sonho que eu sonhei. Se fosse agora eu tinha corrido atrás
mais cedo.” (Maria Guedes da Rocha, 44 anos)
“Tem muitas pessoas com esses problemas aí. Aí tem aquela coisa... Diz que é problema espiritual, só
que tem outras pessoas que já leva praquele lado, aquele negócio de feitiçaria. ‘Ah, fizeram coisa pra
fulano’ e, no caso, as vez não é. E as vez...”
“Sempre ando com um dente de alho. Quando não é dente de alho é folha de alecrim, de arruda dentro
da minha bolsa, quando não é na bolsa é no bolso da roupa que eu ando. Quando é roupa que não tem
bolsa, enfio no meio da cabeça.” (Clene Farias dos Santos, 27 anos)
O jardim com uma variedade enorme de espécies e o belo pomar nos fundos na casa
de dona Ana é uma mostra dos cuidados que as mulheres mangazeiras têm com as plantas.
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Na frente da casa, no entanto, além das plantas ornamentais, o que prevalece no seu
jardim e no da maior parte dos quilombolas do Mangal são as plantas protetoras contra a
inveja, o mau-olhado e o feitiço. Assim, mesmo que o discurso sobre a feitiçaria tenha sido
substituído pelo silêncio, ele continuou se expressando através das plantas protetoras em
quase todas as casas do quilombo, para denunciar a permanência inabalável, nas
simbologias, das crenças mágicas.
Os depoimentos não deixam dúvidas de que as acusações de feitiçaria no quilombo
do Mangal estruturam o discurso dos quilombolas para explicar eventos relacionados à
saúde, ao crescimento familiar e pessoal dos indivíduos; mas, sobretudo, orientam, de um
modo geral, o sentido da ação dos sujeitos, fenômeno comum a todas as sociedades onde
existe a crença na feitiçaria. É importante frisar que tal crença se configura de diferentes
maneiras nos diferentes contextos de ocorrência.
No quilombo de Mangal, a ambiguidade entre negar a ocorrência da feitiçaria, para
fugir do estigma que os afastou da sociedade regional, e a necessidade política de relatar
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327
CONCLUSÃO
461
GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade, p. 235.
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329
“Somente quando, em virtude desse sentimento, as pessoas começam de alguma forma a orientar seu
comportamento pelo das outras, nasce entre elas uma relação social – que não é apenas uma relação
entre cada indivíduo e o mundo circundante –, e só na medida em que nela se manifesta o sentimento
de pertencer ao mesmo grupo existe uma ‘relação comunitária’”.462
462
WEBER, Max. Economia e sociedade. 3. ed. V. 1. Brasília: Editora UnB, 1994, p. 26.
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As relações de solidariedade entre os negros nessa região se estenderam para além dos
marcos geográficos de Rio das Rãs e Mangal e moldaram o que eu estou chamando
território quilombola do Médio São Francisco.
Esse território negro foi conformado ao longo da ocupação do Oeste da Bahia no
período da escravidão. Os africanos e seus descendentes, transportados como escravos para
a região, passaram a se relacionar entre si nas duras condições do sistema escravista. No
decorrer dos séculos XVII, XVIII e XIX, serviram como mão de obra cativa nas minas de
salitre, diamantes e ouro e nas fazendas de criação de gado, de cultivo de cana de açúcar, de
algodão e de cereais. Alguns escravizados conseguiram evadir das fazendas e das minas, ou
dos comboios de tropas procedentes da costa baiana, quando eram transportados para servir
na ocupação da região. Os que fugiram se juntavam aos negros livres para se estabelecer
como grupos em terras desocupadas, sobretudo, às margens do Rio São Francisco.
Ainda hoje se encontram no Vale do São Francisco pequenos núcleos familiares
negros vivendo em terras devolutas nas partes mais altas da caatinga ou em áreas de
vazantes e ilhas formadas pelo rio. Sobreviveram nessas terras, sem qualquer
documentação que atestassem a ocupação imemorial, por isso mesmo, estiveram expostos
às violências dos especuladores de terras, dos grileiros e fazendeiros. É o caso dos
pequenos povoados negros de Tomé Nunes, no município de Malhada; Barreiro Grande e
Capão, em Serra do Ramalho; Campinas e Cedro, em Riacho de Santana; Barra do Pau
Preto, em Palmas do Monte Alto; e Jatobá, no Muquém do São Francisco.
Estes povoamentos negros no Vale do São Francisco tiveram importante contribuição
na formação dos quilombos de Rio das Rãs e Mangal. A partir da segunda metade do
século XIX, os quilombolas buscavam os seus cônjuges justamente nestas pequenas
localidades. Os contatos ocorriam normalmente nas celebrações festivas de samba de roda e
umbigadas, ao término das festas religiosas católicas. O senhor Isauro Lobo dos Santos
estima que a “metade [da população do Mangal] veio de fora”. Ainda que o informante
possa ter excedido na proporção, o que ele quer sinalizar é que, na constituição demográfica
do quilombo, foi fundamental a junção das famílias fundadoras com indivíduos de outras
localidades vizinhas.
Os encontros e as uniões de indivíduos de diferentes procedências no âmbito regional,
além de possibilitar as trocas matrimoniais e o equilíbrio demográfico das populações de
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331
Rio das Rãs e Mangal, serviram também como canais de comunicação e espaços de
relacionamentos para a constituição de uma identidade negra no território quilombola.
Esses contatos, inicialmente casuais e esporádicos, tornaram-se, a partir dos do
fortalecimento dos laços de parentesco, das relações de vizinhança e dos
compartilhamentos entre os indivíduos com diferentes experiências culturais, mais
frequentes, e assim, contribuíram para consolidar a cultura desses quilombos.
Com essa aproximação entre os negros do Médio São Francisco, foi possível também
a troca e o fortalecimento de saberes nas áreas de medicina fitoterápica, da musicalidade
negra, sobretudo o samba de roda, da agricultura, da pesca, da criação e da conformação de
uma religiosidade negra regional. Esta religiosidade teve a influência de cultos indígenas,
do catolicismo popular e do espiritismo que, segundo Da Matta, citado por Ferreti, “se
enquadra nas características desta capacidade brasileira de relacionar coisas que parecem
opostas.”463
A aproximação viabilizou também estratégias políticas comuns. Neste âmbito da
política, a celebração dos negros da região em comemoração à abolição da escravatura na
Gruta do Bom Jesus da Lapa, em junho de 1888, foi, provavelmente, o evento mais
emblemático desse processo. A recente e intensa mobilização política das comunidades
negras da região, que reivindicam o direito de legalização de suas terras como
“remanescentes de quilombos”, é um exemplo da continuidade dessa relação entre os
negros do Médio São Francisco. É parte desse processo, também, a comemoração conjunta
(Ver foto a seguir)464, que se realiza há cerca de dez anos, do Vinte de Novembro como
símbolo de uma nova consciência negra. Participam dessas comemorações comunidades
negras rurais como Araça-Cariacá, Rio das Rãs, Juá/Bandeira, Batalhinha, Lagoa dos
Peixes, Piranhas, Bebedouro (Bom Jesus da Lapa), Mangal/Barro Vermelho (Sítio do
Mato), Jatobá (Muquém do São Francisco), Pau D’arco/Parateca e Tomé Nunes (Malhada)
e Barra do Parateca (Carinhanha).
Os fazendeiros e senhores de terras, em aliança com as estruturas de poder locais,
eram os principais obstáculos para a organização, a liberdade de circulação e a
sobrevivência física dos povoamentos negros do Médio São Francisco. Por isso mesmo, a
463
FERRETI, Sérgio Figueiredo. Repensando o sincretismo, p. 17.
464
Fotografia gentilmente cedida pelo historiador da UNEB, Nivaldo Osvaldo Dutra.
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união das diferentes parentelas de Rio das Rãs e Mangal foi decisiva para a formação,
consolidação e a continuidade destes quilombos.
Mas, é enganoso imaginar, por outro lado, que não tenha havido, ao longo do
processo de constituição destes quilombos na região, competições e conflitos entre as
parentelas e, muitas vezes, entre indivíduos da mesma ou de parentelas distintas. Os
desentendimentos entre parentes e vizinhos poderiam ocorrer por causa da escolha de um
local para plantar na vazante, onde o espaço é mais exíguo, pela invasão de um animal em
uma roça, a demonstração de pouca disposição de um indivíduo para o trabalho produtivo
ou mesmo pelo caráter permissivo na criação de um filho. Os conflitos entre os
quilombolas, portanto, podem ser originados tanto por rixas rotineiras envolvendo
desencontros pessoais como também por interpretações morais conflitantes. Os que não
seguem os padrões tradicionais, de ter uma roça bem cuidada para prover com alimentação
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a sua família ou algum convidado ou possuir animais no pasto que sirvam como poupança
para alguma emergência, são duramente censurados.
Os conflitos entre os quilombolas eram geralmente resolvidos com a palavra sóbria de
um idoso respeitável. Alguns anos antes de falecer, senhor Francisco Tomé de Souza, que
morreu em 2003 aos 107 anos de idade, confessou que em Rio das Rãs não era preciso a
presença da polícia ou da justiça, porque eles sabiam como resolver os seus
desentendimentos. Depois do conflito pela posse da terra, em que lideranças políticas mais
jovens ascenderam ao poder, esses conflitos passaram a ser mediados pelas associações
juridicamente legalizadas. Com isso, os quilombolas mais idosos foram deslocados do
centro das decisões políticas.
A modernização dos costumes nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal, com a
legalização das terras, oferecimento da educação em larga escala, construção de casas de
alvenaria, instalação de serviço de água e energia elétrica e, também, criação das
associações, que transferiram o poder para os mais jovens, em quase nada alterou, nos dois
quilombos, a condição subalterna das mulheres na vida social.
A divisão das atividades produtivas separa homens e mulheres em fronteiras mais ou
menos demarcadas. O que se considera trabalho feminino no quilombo, como lavar, passar,
cozinhar, cuidar das hortas, da residência e dos filhos, somente é exercido pelas mulheres.
Os homens que, porventura, se arriscam a fazer tais atividades são recriminados. Dessa
forma, as mulheres se consideram em desvantagem na comparação com as atividades
exercidas pelos homens.
A liberdade concedida aos homens para ter relações sexuais fora do casamento é
outro aspecto que denota a existência de desequilíbrio nas relações entre homens e
mulheres. Neste caso, a situação mais evidente de privilégios para os homens polígamos foi
a de Rio das Rãs, possivelmente, por este quilombo ter uma população mais numerosa e
difusamente distribuída em um enorme território de 39 mil hectares de terras.
Em Mangal, segundo o depoimento de uma informante, o mais comum é que os
homens tenham relações sexuais com as suas amantes, discretamente, fora do quilombo.
É privativo dos homens beberem cerveja ou pinga nos fins de semanas nos recentes
botecos em funcionamento nos dois quilombos.
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Em Rio das Rãs e Mangal as formas de afetividade nas relações entre homens e
mulheres ocorrem privadamente, por isso mesmo não se vê casais de mãos dadas, se
abraçando ou se beijando em público. Algumas mulheres reclamam desse hábito
tradicional, outras, entretanto, não consideram apropriado que homens e mulheres tenham
as suas intimidades expostas à luz do dia. Mas, esse relativo distanciamento dos casais nos
espaços públicos termina por favorecer os homens: já que a demonstração pública de
afetividade é encarada como algo privado, não há porque também as mulheres
manifestarem sentimentos como o ciúme. Assim sendo, os casais e as amantes dos homens
polígamos podem frequentar, sem susto, os mesmos ambientes sociais. Talvez por isso, eu
não tenha presenciado, em Rio das Rãs e Mangal, uma cena sequer de briga entre casais,
ainda que as mulheres afirmem ter ciúmes dos seus maridos.
No processo de conformação dos quilombos de Rio das Rãs e Mangal, os legados
culturais e religiosos de origem africana tiveram um papel fundamental para nortear a ação
dos indivíduos e das parentelas em seus respectivos territórios. A feitiçaria é um desses
legados.
A feitiçaria é uma prática condenada moralmente em toda a sociedade brasileira,
porém, a realidade atual é muito diferente do enquadramento estabelecido pela Inquisição
no período colonial ou da criminalização das práticas mágicas mediante regras inscritas no
Código Penal, que prevaleceu do final do século XIX até a primeira metade do século XX.
Mas, “diferentemente de muitas sociedades onde é forte a crença na feitiçaria, aqui não se
pune feiticeiros com a pena de morte.”465
Nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal, a prática da feitiçaria é igualmente
condenada moralmente, pois os quilombolas, de um modo geral, a consideram um ato de
perversidade contra indivíduos indefesos. Porém, não existe qualquer iniciativa, individual
ou coletiva, no sentido de abolir essa prática da vida social dos quilombos. A explicação
para isso é que a crença na feitiçaria está inscrita na experiência dos quilombolas como um
bem cultural.
Da mesma forma que parte ou a totalidade das mulheres quilombolas não se
conformam com as relações extraconjugais de seus maridos, elas reconhecem, entretanto,
que a poligamia não é um ato isolado de um ou outro homem, ao contrário, é um costume
465
MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço, p. 22.
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inscrito na sua cultura, daí a explicação para a ausência de protestos ou mesmo de vingança
das mulheres. Do que foi possível observar, as mulheres quilombolas não se consideram
traídas, diferentemente do imaginário feminino predominante em nosso meio urbano. A
feitiçaria, em Rio das Rãs e Mangal, é igualmente repudiada, entretanto, ela é encarada
como um componente da cultura dos quilombolas.
A reação cabível em Rio das Rãs e Mangal para se opor aos atos dos feiticeiros, além
de denunciar – na maior parte dos casos, secretamente – a ocorrência do enfeitiçamento, é
usar os conhecimentos, os objetos e as orientações oferecidos no universo da feitiçaria
como arma de proteção e defesa.
O conceito de universo da feitiçaria foi empregado no corpo da tese como um campo
de relações sociais no qual circulam conhecimentos especializados e poder. Acrescento,
aqui, a idéia de que ele é constituído também de uma economia. A economia da feitiçaria
ordena e estrutura a utilização de recursos necessários para operar as suas práticas ofensivas
e defensivas.
Como em toda a economia, é intensa a circulação de capitais simbólicos e monetários
nesse universo. Informações, conhecimentos, produtos e serviços são comprados, vendidos,
permutados e doados. Por ser um espaço regido por alguma racionalidade – ainda que a
feitiçaria tenha caráter manifestamente religioso –, levam mais vantagem os sujeitos mais
especializados e competentes, isto é, os que conseguem acumular mais capitais e convencer
os adeptos da feitiçaria sobre a eficácia dos seus predicados. O pagamento pelos serviços
prestados para se fazer ou desfazer a feitiçaria e a existência de um mercado onde se
comercializam bens e produtos relacionados ao universo da feitiçaria comprovam a
materialidade dessa economia da feitiçaria.
A feitiçaria é uma prática sistêmica, ou seja, ela impacta a vida do conjunto dos
quilombolas de Rio das Rãs e Mangal, o que significa dizer que ela é uma ação estruturada,
com regras de funcionamento, uma ética própria e, ademais, goza do reconhecimento de
todos como instituição dessas sociedades quilombolas.
Por ser o universo da feitiçaria um espaço de relações entre os sujeitos, portanto, um
espaço de comunicação, nele circulam, inexoravelmente, relações de poder. É nessa
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336
466
Cf. BALANDIER, Georges. O contorno.
467
MAGGIE, Ivonne. Medo do feitiço, p. 186.
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337
“Tem uma fitinha vermelha que a gente coloca na criança é pra não pegar quebranto, mau-olhado.”
(Domingas Farias de Sá, 30, anos, de Mangal);
“Essa tradição, isso aí já veio desde os velhos, dos tempos passados. Quem toma pinga, você coloca
gergelim preto na pinga, você coloca um alho roxo, você coloca um tipi-gambá, você coloca o tipi-
preto mermo que é o tipi cabôco. Você vai colocano vários remédio. Arruda, o alecrim, você usa uns
banho, você usa difumador” (Edivaldo da Mata Silva, 49 anos, de Rio das Rãs)
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