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Capa

A IRMANDADE

DO CRIME

Edgar Wallace
Segunda Capa
COLEÇÃO HORAS EM SUSPENSE
Coordenação de Paulo de Medeiros e Albuquerque

Edgar Wallace

A IRMANDADE

DO CRIME

Tradução de Mário Molina Caetano

Livraria Francisco Alves Editora S.A.

Copyright © by Penelope Wallace


Título original: The Fellowship of the Frog

Capa: Jader Marques Filho

Impresso no Brasil Printed in Brasil

1979

Todos os direitos desta tradução reservados à LIVRARIA FRANCISCO ALVES


EDITORA S.A. Rua Sete de Setembro, 177 — Centro 20.050 Rio de Janeiro, RJ
SUMÁRIO
A Irmandade do Crime, um dos melhores romances de Wallace

Introdução: As Rãs...................................... 11

1 No chalé Maytree...................................... 14
2 Uma conversa sobre Rãs ...........................21
3 A Rã ..........................................................26
4 Elk .............................................................31
5 O Sr. Maitland vai para casa .....................39
6 O Sr. Maitland vai às compras ..................51
7 Um apelo ao Sr. Maitland .........................62
8 O agressivo Ray ........................................74
9 O homem que naufragou ..........................84
10 No Harley Terrace ..................................91
11 As explicações do Sr. Broad ..................99
12 O embelezamento do Sr. Maitland ........104
13 Uma batida em Eldor Street...................114
14 Todos os grandes aqui!...........................123
15 A manhã seguinte...................................128
16 Ray sabe a verdade.................................134
17 A vinda de Mills.....................................142
18 A transmissão ........................................148
19 No bosque de Elsham ............................159
20 Hagn ......................................................167
21 Um visitante para o Sr. Johnson.............179
22 O inquérito............................................. 185
23 Um encontro...........................................193
24 O encontro com o Sr. Maitland .............198
25 A respeito de Saul Morris ......................208
26 Uma promoção para Balder ...................215
27 O Sr. Broad está interessado ..................230
28 Assassinato ............................................238
29 O mordomo.............................................246
30 Os vagabundos .......................................256
31 A corporação química ............................268
32 Na prisão de Gloucester..........................275
33 A Rã no meio da noite............................279
34 O filme estragado....................................290
35 Tentando chegar......................................302
36 A espera...................................................308
37 A escapada ..............................................316
38 O homem misterioso................................321
39 O despertar...............................................326
40 Rã.............................................................332
41 Na cabana da pedreira..............................340
42 As explicações de Joshua Broad..............346

Observação: A numeração das páginas se encontra-se no rodapé de cada página


(embaixo) do lado esquerdo.
A IRMANDADE DO CRIME, um dos melhores romances de Wallace

Edgar Wallace nasceu a 19 de abril de 1875, em Greenwich, filho ilegítimo de um casal


de atores: Marie (Polly) Richards e Richard Horatio Edgar Marriot. Este aparece no registro
de nascimento na paróquia com o nome de Walter Wallace.

Aos nove dias de idade foi adotado pelo casal George Freeman, ele carregador do
Bilingsgate Fish Market, e passou a se chamar Richard Freeman, tendo crescido
acreditando serem aqueles seus verdadeiros pais. Era um menino inteligente, vivo, porém
um aluno regular; aos 11 anos travou conhecimento com a Fleet Street, a rua dos grandes
jornais londrinos, e tornou-se um simples vendedor de jornais — um jornaleiro ambulante.

Depois de se alistar no Royal West Regiment, e tendo sido transferido mais tarde para o
Medical. Staff Corps, começou a fazer seus primeiros poemas. Iniciando na sua vida de
jornalista, tornou-se correspondente londrino na África do Sul. E surgiram os primeiros
livros.

Em 1898 é publicada sua primeira obra : The Mission That Failed; em 1900, War and
Other Poems e logo a seguir Writ in Barracks; em 1901, publicou em livros seus artigos
como correspondente na guerra na África do Sul — Unofficial Dispatches. E foi somente
em 1905 que saiu seu primeiro livro policial — The Four Just Men, publicado no Brasil
com o título Os Quatro Homens Justos.

Daí em diante, Wallace enveredou pelo gênero, tendo se tornado um dos mais prolixos
escritores (publicou cerca de 200 livros no gênero). Seus primeiros heróis (”Os Homens
Justos”) surgiram em novas aventuras. A série, além do volume de estréia em 1905,
continuou de forma alternada: The Just Men of Cordova (1917), The Law of the Four Just
Men (1921), The Three Just Men (1926) e Again the Three Just Men (1929).

Esta foi uma das poucas séries com o mesmo herói publicadas por Edgar Wallace. Além
dela vamos encontrar Mr. J. G. Reeder, Sanders, Bosambo, e outros, porém com livros
em menor número, não chegando a constituir um herói ou grupo de heróis que se possa
considerar uma série dentro da enorme obra de Wallace.

Este romance que publicamos agora — A Irmandade do Crime — pertence aos outros livros
com heróis quase que individuais em cada livro. Temos aqui, além do Inspetor Elk, Dick
Gordon.

Originalmente este livro apareceu em 1925, ano em que Edgar Wallace publicou nada
menos de oito livros, a saber: The Black Avons, The Blue Hand, The Daughters of the
Night, The Gaunt Stranger, A King by Night, The Mind of Mr. J. G. Reeder, The Strange
Countess, e o já citado que ora publicamos.

A Irmandade do Crime é, a nosso ver, um dos melhores livros de Edgar Wallace. Aliás, foi
um de seus romances favoritos, como já escreveu sua filha Penelope Wallace.

Hoje ele está na Coleção Horas em Suspense e será, certamente, um de nossos melhores
lançamentos.

Paulo de Medeiros e Albuquerque


COLEÇÃO HORAS EM SUSPENSE

INTRODUÇÃO: As Rãs

Interessaria aos que estudam a psicologia de massas que os feitos e o crescimento das Rãs
tivessem passado quase despercebidos, até que o próspero, mas ainda assim
insignificante James G. Bliss se tornasse alvo da atenção delas. Em alguns jornais do país,
houve referências enérgicas ao caráter semi-ilegal da associação. Um jornal de domingo
trazia um artigo de título engraçado:

A Sociedade ”Andarilhos” Toma a Rã como Símbolo da Ordem Mística,

e desenvolvia um texto humorístico e inteiramente fantástico sobre suas normas e seu


ritual. O homem médio fazia referências casuais:

— Você não viu essa história sobre a União dos Andarilhos? Cada membro um delegado
itinerante...

Houve um editorial, mais sério, sobre o crescimento das associações desse tipo. As Rãs
foram citadas, mas, embora de vez em quando chegassem relatos de atentados
misteriosos, que repercutiam em descrédito das Rãs, a generalidade dos cidadãos encarava
a sociedade, ordem ou fosse lá o que fosse corno algo benigno em suas intenções, ainda
que necessariamente excêntrico em sua constituição. Acreditando nisso, ado-

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tavam uma atitude de benevolente tolerância frente à sociedade.

Do mesmo modo que o povo toma conhecimento, com relativo desinteresse, de um surto
distante de epidemia que vitima umas poucas pessoas, e acorda uma certa manhã com
doença sinistra batendo às suas portas, assim também o mundo tornou-se consciente e
alarmado diante de uma onda de terror que repentinamente despontou da neblina.

James G. Bliss era um negociante de ferragens, homem bem-conhecido na bolsa, onde


aumentava os sólidos lucros da Bliss General Hardware Corporation com as vantagens
inesperadas da especulação legal. Pessoa um tanto arrogante e, em essência, agressiva,
tinha a vantagem que a mediocridade, misturada a certa generosidade perdulária,
proporciona a um homem, e desse modo não tinha inimigos. Como sua generosidade se
escorava em prudentes princípios comerciais, nem mesmo se poderia dizer sobre ele o que
tão freqüentemente se diz de outras pessoas: que seu pior inimigo era ele próprio. James
G. Bliss detinha, e ainda detém, a maior parte das ações na B .G.H. Corporation, fato que
devia ser conhecido, pois o Sr. Bliss tinha o hábito de manipular de vez em quando o
preço de suas cotas através de criteriosas operações.

Foi na mesma época do ligeiro surto da bolsa, fazendo as ações da Bliss Hardware pularem
de 12,50 para 23,75, que ocorreram os estranhos fatos que, por algum tempo, fizeram
todos os olhares convergir sobre as Rãs .

O Sr. Bliss tem uma casa de campo em Long Beach, Hampshire. É conhecida como ”A
Cabana”, mas é o tipo de cabana que o Rei Salomão podia ter construído para a Rainha de
Sabá, se esse homem aventuroso estivesse suficientemente familiarizado com
encanamentos modernos, os mais novos sistemas de aquecimento e iluminação, o exigente
requisito de choferes na última moda. Quanto a isso, o Sr. Bliss foi mais sábio que
Salomão.

Ele tinha voltado a sua casa de campo após um dia extenuante na cidade e caminhava no
jardim sob o ar frio da noite. O Sr. Bliss era (e é) casado, mas

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a esposa e as duas filhas estavam passando a primav era em Paris — um passeio inteligente,
visto que a primavera é a única estação em que Paris pode acalentar a mais ligeira
pretensão de ser uma cidade bonita.

Ele voltava dos canis e foi visto atravessando o parque da casa em direção a um abrigo
nos limites da propriedade. Ouvindo um grito, o caseiro que cuidadava dos canis e um
criado correram para o bosque, encontrando Bliss estendido inconsciente no chão, o
rosto e os ombros cobertos de sangue. Fora derrubado por uma arma pesada : havia uma
leve fratura do osso parietal e vários ferimentos muito feios no couro cabeludo.

Por três semanas, o infeliz oscilou entre a vida e a morte, apenas com intervalos de
consciência, mas incapaz, durante estes momentos de lucidez, de lançar qualquer luz
sobre o ataque, ou fazer qualquer declaração coerente com respeito a ele. Limitava-se a
murmurar: ”Rã ... rã ... braço esquerdo ... rã.”

Foi o primeiro de muitos ataques semelhantes, aparentemente sem motivo, gratuitos, que
em hipótese alguma podiam ser relacionados com roubo. Invariavelmente (exceto urna
vez), eram cometidos contra pessoas que ocupavam posições relativamente sem
importância na hierarquia social.

De repente, as rãs passaram a ser assunto de primeira mão. Descobriu-se que a doença se
tinha espalhado; homens que haviam lido, despreocupadamente, sobre atentados menores
passaram a trancar suas portas e carregar armas letais ao saírem à noite.

E agiam bem, pois havia uma força no ar que se tinha gerado no medo e amadurecido na
obscuridade (para o assombro de seu criador), trazendo em si o poder tirânico dos
governos.

A Rã colocava-se no centro de muitas ramificações, ébria de autoridade, impiedosa,


terrível. Alguma coisa que vivia duas vidas e tirava pleno prazer das duas, que todo o
tempo nutria o terror que Saul Morris inspirara numa noite enevoada em Londres, quando
as ruas enfumaçadas estavam cheias de policiais armados procurando o homem que limpara
a caixa-forte do S. S. Mantania de três milhões de libras entre o porto de Southampton e
o porto de Cherbourg.

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CAPÍTULO 1

No chalé Maytree

Um radiador seco coincidiu com um pneu estourado. A segunda coincidência foi a


proximidade do Chalé Maytree, na Estrada de Horsham. O chalé era maior que o normal
com frente de madeira e telhado de colmo. Junto do portão, Richard Gordon parou para
admirar. A casa datava de antes dos dias de Elizabeth, mas seu interesse e admiração não
eram os de um antiquário.

Nem mesmo, embora ele gostasse de flores, os de um horticultor, ainda que o amplo
jardim fosse um mosaico de cores e a fragrância das rosas lhe deliciasse os sentidos.
Nem era o ar de bem-estar e limpeza que impregnava o local, o sinuoso caminho de tijolos
vermelhos que conduzia até a porta, as cortinas imaculadas atrás de pesadas vidraças.

Foi a moça na cadeira de vime raiada de vermelho quem lhe deteve o olhar. Estava
sentada num pequeno gramado à sombra de uma amoreira, os braços jovens e
bem-torneados rigidamente estendidos, um livro na mão, uma grande caixa de chocolates
do lado. O cabelo, da cor de ouro velho, um ouro velho que conservava vida e brilho;
uma aparência impecável, e, quando ela virou a cabeça na direção dele, um par de olhos
graves e questionadores, mais profundos que foscos, mais foscos, contudo, que azuis ...

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Ela puxou apressadamente os pés esticados e se levantou.

— Lamento incomodá-la — Dick, chapéu na mão, sorriu suas desculpas —, mas queria
água para minha pobre Lizzie. Ela está com uma sede incrível.

A moça franziu um instante as sobrancelhas e depois riu.

— Lizzie, você quer dizer um carro? Se quiser ir até os fundos do chalé, eu lhe mostrarei
onde está o poço.

Dick seguiu-a, com vontade de saber quem era. Compreendeu a ligeira sugestão de
condescendência no tom de sua voz. Era um tom de menina amadurecida dirigindo-se a
um rapaz da mesma idade. Dick, que tinha 30 anos e aparentava 18, com um rosto de
garoto, liso, já fora cumprimentado outras vezes naquele estilo ”Olá, rapaz, como vai?”.
Ria por dentro.

— Aqui estão os baldes e lá está o poço — apontou eia. — Gostaria de chamar uma criada
para ajudá-lo, mas nós simplesmente não temos uma criada, nunca tivemos uma, e penso
que jamais teremos!

— Então, alguma criada perdeu um emprego muito bom — disse Dick —, pois este jardim
é uma delícia.

Ela não concordou nem discordou. Talvez se arrependesse da familiaridade que tinha
demonstrado. Transmitiu uma impressão de alheamento enquanto via os baldes sendo
cheios. Quando Dick os levou para o carro, na estrada lá fora, ela o seguiu.

— Pensei que fosse urna.,. uma . . . como você o chamou? ... Lizzie?

— É Lizzie para mim — disse Dick com voz decidida, enquanto enchia o radiador do
grande RollsRoyce — e nunca será outra coisa. Algumas pessoas acham que eu devia
chamá-lo Diana, mas esses nomes majestosos nunca exerceram qualquer atração sobre
mim. É Lizzie e será sempre Lizzie.

Ela rodeou a máquina, examinando-a curiosamente.

— Não tem medo de dirigir um carro como esse? — perguntou. Eu morreria de medo! É
enorme e... difícil de manobrar.

Dick parou com um balde na mão.

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— Medo? — gabou-se. — É uma palavra que risquei do alegre dicionário que decorei na
juventude.

Confusa por um instante, ela começou a rir baixinho.

— Veio pelo caminho de Welford? — perguntou. Dick fez que sim com a cabeça. —
Queria saber se viu meu pai na estrada? — Não vi ninguém na estrada, a não ser um
sujeito de meia-idade, cara ranzinza, que estava carregando urna grande caixa marrom nas
costas e assim violando o Sabbath.

— Onde passou por ele? — perguntou ela, interessada.

— Há duas milhas... menos que isso — disse Dick, acrescentando em dúvida: — Espero
não ter descrito seu pai?

— Ele se parece um pouco com suas descrições — disse ela, sem mostrar-se aborrecida. —
Papai é um fotógrafo naturalista. Filma pássaros e coisas; amador, é claro.

— É claro — concordou Dick. Trouxe os baldes de volta para onde os tinha encontrado e
hesitou. Procurando uma desculpa para continuar a conversa, descobriu-a no jardim. Até
que ponto ele podia ter explorado o assunto é matéria de especulação. A interrupção
surgiu na forma de um jovem, que apareceu na porta da frente do chalé. Era bonito, alto e
atlético... Dick calculou sua idade em torno de 20 anos.

— Tudo bem, Ella? Papai está de volta? — foi perguntando o jovem, antes de ver o
visitante.

— Este é meu irmão — disse a moça, e Dick Gordon cumprimentou com a cabeça. Tinha
consciência de que esse método livre e fácil de fazer amizade era devido em grande parte,
se não inteiramente, ao seu aspecto jovem. Ser tratado como um rapaz inconseqüente
tinha suas vantagens. E era o que acontecia, então.

— Estava dizendo a ele que não deviam permitir que rapazes dirigissem carros grandes —
falou a moça. — Você está lembrado do desastre terrível que houve no cruzamento de
Shoreham?

Ray Bennett riu-se. — Isso tudo é parte de uma conspiração para não

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deixar que eu ganhe uma motocicleta. Papai acha que eu matarei alguém; Ella acredita
que matarei a mim mesmo.

Talvez houvesse alguma coisa no sorriso rápido de Dick Gordon, avisando a moça de que
fora prematura na avaliação da idade dele, pois de repente, quase que abruptamente, ela
proferiu uma enfática licença para retirar-se e se afastou. Dick estava no portão quando
chegou um outro personagem. Era o homem por quem tinha passado na estrada. Alto, de
aparência desconjuntada, rosto magro e pardacento, olhou o estranho com suspeita nos
olhos profundamente cavados na face.

— Bom-dia — disse secamente. — O carro enguiçou?

— Não, obrigado. A água acabou e a senhorita .. . ahn...

— Senhorita Bennett — disse o homem. — Ela lhe deu água, não? Bem, bom-dia!

Ele se pôs de lado para deixar Gordon passar, mas Dick abriu o portão e esperou até que o
dono do Chalé Maytree entrasse.

— Meu nome é Gordon — disse. Pelo canto do olho, viu que Ella se aproximara outra vez
e ficara ao lado do irmão, a alcance de sua voz. — Fico muito grato pela gentileza.

Com um aceno de cabeça, o velho continuou carregando seu pesado fardo para a casa e
Dick, em desespero, virou-se para a moça.

— Você está errada se pensa que é um carro difícil de dirigir... Não quer experimentar? Ou
talvez seu irmão?

A moça hesitou, mas não o jovem Bennett. — Eu queria experimentar — disse ele com
avidez. — Nunca manobrei uma máquina grande como essa.

E mostrou que poderia manobrar, quando tivesse oportunidade. Viram o carro deslizar
pela esquina, a moça com uma leve expressão de desagrado se acumulando entre os olhos
e Dick Gordon esquecido de tudo, exceto de que devia aproveitar aqueles minutos extras
para estabelecer um laço mais íntimo com ela. Estava se comportando de modo tolo, disse
a si mesmo. Ele, um funcionário do Estado, um experiente advogado, estava se
comportando como um jovem irresponsável e enamo-

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rado de 19 anos. As palavras da moça acentuaram o ridículo de seu comportamento.

— Preferia que não tivesse deixado Ray dirigir — disse. — Não se ajuda um rapaz que está
sempre querendo mais do que tem pondo um belo carro nas mãos dele. Mas talvez não me
esteja compreendendo... Ray é muito ambicioso e sonha com milhões. Uma coisa dessas o
prejudica.

Nesse momento apareceu o homem mais velho, um cachimbo negro entre os dentes, e,
vendo os dois no portão, uma nuvem sombreou sua face.

— Deixou que ele dirigisse seu carro, não? — disse asperamente. — Preferia que não
tivesse... Isso foi muito gentil de sua parte, Sr. Gordon, mas, no caso de Ray, uma
gentizela equivocada.

— Sinto muito — disse o arrependido Dick. — Aí vem ele!

O enorme carro rodou na direção deles e parou diante do portão.

— É incrível! Ray Bennett saltou e olhou para a máquina com admiração e pena.

— Minha nossa, se fosse meu! — Mas não é! — disse o velho bruscamente. Depois,
como se lamentasse a impertinência, acrescentou: — Um dia talvez você possua uma
frota, Ray... Está indo para Londres, Sr. Gordon?

Dick fez que sim com a cabeça. — Talvez não se importe de parar um pouco e fazer uma
refeição muito frugal conosco? — perguntou o idoso Bennett, para surpresa e alegria de
Dick. — E talvez possa dizer a este maluco do meu filho que ter um carro grande não
significa viver sempre num mar de rosas.

O que primeiro chamou a atenção de Dick foi o espanto da moça. Aparentemente, ele
tinha sido honrado com um convite muito raro. Isso foi confirmado depois que John
Bennett os deixou.

— Você é o primeiro rapaz a ser convidado para jantar — disse ela quando ficaram
sozinhos. — Não é, Ray?

Ray sorriu. — Isso é fato. Papai não se interessa por vida

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social — disse ele. — Eu lhe pedi para convidar Philo Johnson para um fim de semana e
ele cortou a idéia no nascedouro. E, além de ser boa companhia, o velho filósofo é
secretário particular do patrão. Acho que já ouviu falar da Maitlands Consolidated?

Dick fez sinal afirmativo com a cabeça. O palácio de mármore, na Strand Embankment,
onde o fabulosamente rico Maitland operava, era um dos edifíciosvitrines de Londres.

— Trabalho no escritório dele, funcionário do câmbio — disse o jovem. — Philo podia


fazer muita coisa por mim se papai lhe mandasse um convite. Assim, pareço condenado
a ser empregado pelo resto de minha vi da .

A mão branca da moça tocou-lhe os lábios. — Você será rico algum dia, querido Ray, e
não faz sentido incriminar papai.

O jovem resmungou alguma coisa sob a mão e depois riu com certa amargura.

— Papai tentou todos os esquemas de enriquecimento rápido que a mente e a ingenuidade


do homem.. .

— E você sabe por que razão? A voz era dura, trêmula de raiva. Nenhum deles havia
notado o reaparecimento de John Bennett.

— Você está num trabalho de que não gosta. Meu Deus! E eu? Há 20 anos estou
procurando pular fora. Tenho tentado cada esquema imbecil, isto é verdade. Mas foi por
você ...

Ele parou abruptamente, à vista do constrangimento de Gordon.

— Convidei-o para jantar e estou servindo o esqueleto da família — disse, com áspero bom
humor.

Pegou o braço de Dick e conduziu-o pela trilha do jardim, por entre cerradas fileiras de
roseiras.

— Não sei por que lhe pedi para ficar, meu rapaz — disse ele. — Um impulso, creio...
talvez uma consciência pesada. Não dou a estes jovens toda a companhia que deviam ter
em casa, e eu mesmo não sou a companhia ideal para eles. É muito desagradável que
precisasse testemunhar a primeira rusga de família que acontece em anos.

A voz e as maneiras eram as de um homem educado. Dick perguntou-se qual seria o


emprego dele e

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por que esse emprego seria tão particularmente detestável a ponto de obrigá-lo a ficar
procurando uma fuga.

A moça ficou quieta durante toda a refeição. Sentou-se à esquerda de Dick e falava muito
raramente. Lançando-lhe um olhar furtivo e casual, Dick achou que parecia preocupada e
perturbada, e responsabilizou-se por isto.

Ao que tudo indicava, não havia empregados no chalé. Ela mesma serviu à mesa, e tinha
acabado de substituir os pratos quando o velho perguntou:

— Não creio que seja tão jovem quando parece, Sr. Gordon... 0 que o senhor faz para
viver?

— Sou bem velho — sorriu Dick. — Trinta e um. — Trinta e um? — Ella ofegou, ficando
vermelha. — Conversei com você como se fosse uma criança!

— Pense em mim como um homem com espírito de criança — disse ele gravemente. —
Quanto à minha ocupação, eu processo ladrões e assassinos, e maus elementos em geral.
Meu nome é Richard Gordon...

A faca caiu com estrondo da mão de John Bennett e seu rosto ficou branco.

— Gordon ... Richard Gordon? — disse ele cavernosamente.

Por um instante, os olhos dos dois se encontraram, azul-claro contra azul-sombrio.

— Sim, sou assistente do Promotor Público — disse Gordon serenamente. — E tenho a


impressão de que eu e o senhor já nos encontramos antes.

Os olhos sem brilho não piscaram. O rosto de John Bennett era uma máscara.

— Não profissionalmente, eu espero — disse ele com um tom de desafio na voz.

Dick riu com o despropósito da observação. — Não profissionalmente — respondeu com


uma solenidade zombeteira.

Naquela noite, no caminho de volta para Londres, sua memória trabalhou muito, mas ele
não conseguiu identificar John Bennett de Horsham.

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CAPÍTULO 2

Uma conversa sobre Rãs

A Maitlands Consolidated tinha crescido de um pequeno escritório para suas atuais


proporções palacianas num espaço de tempo relativamente curto. Maitland era um homem
de idade avançada, aparência patriarcal e pouca conversa. Tinha chegado a Londres sem
ser notado e subira antes mesmo que Londres tomasse consciência de sua existência.

Dick Gordon viu pela primeira vez o especulador quando estava esperando no vestíbulo
com paredes de mármore. Homem de estatura mediana, barbado até o peito, os olhos
quase escondidos sob espessas sobrancelhas brancas. Com porte enérgico e decidido,
atravessou lentamente a sala externa, onde uma vintena de empregados trabalhava sob
lustres de pantalhas verdes. Sem olhar nem para a direita nem para a esquerda, entrou no
elevador e desapareceu de vista.

— Esse é o velho. Já o tinha visto antes? — perguntou Ray Bennett que um segundo antes
viera encontrar-se com o visitante. — Ele é um respeitável velho vigarista, mas tão seguro
quanto uma porta à prova de som. Nem usando dinamite você iria conseguir tirar
dinheiro dele! Ele paga a Philo um salário que até uma secretária média acharia pouco. Se
Philo não fosse um pobre-diabo tão fácil de levar, já se teria demitido há anos.

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Dick Gordon estava se sentindo um pouco constrangido. Sua presença na Maitlands era
aberrante, sua desculpa para o telefonema tão frágil quanto pode conceber qualquer
cérebro fraco. Se tivesse dito a verdade ao jovem exaltado com quem falara ao telefone no
horário de trabalho, teria esclarecido: ”Caí de amores por sua irmã feito um idiota. Não
estou propriamente interessado em você, mas o encaro como um fio condutor que me
conduzirá a um outro encontro, por isso fiz de minha presença nas vizinhanças uma
desculpa para telefonar. E devido a esse amor maluco que estou sentindo por sua irmã,
estou disposto a encontrar até mesmo Philo, que certamente vai me amolar um
bocado.” Em vez disso, dissera:

— Você é amigo de Philo. . . Por que o chama assim?

— Porque ele tem um jeito filosófico de ver o mundo e as pessoas. Seu primeiro nome é
Philip — disse Ray Bennett com um brilho nos olhos. — Todo mundo é amigo de Philo.
É o tipo de pessoa que faz amizade f acilmente.

Nesse momento, a porta do elevador se abriu e um homem saiu. Instintivamente, Dick


Gordon percebeu que o sujeito calvo, de meia-idade, rosto bem-humorado. era o assunto
de sua conversa com Ray. A cara redonda, gorda, abriu-se num sorriso reconhecendo Ray,
e após ter passado um maço de documentos para um dos empregados, aproximou-se de
onde estavam os dois.

— Apresento-lhe o Sr. Gordon — disse Ray. — Este é meu amigo Johnson.

Philo apertou calorosamente a mão estendida. ”Caloroso” era uma palavra que tinha um
significado especial em relação ao Sr. Johnson. Ele parecia irradiar uma influência
calorosa, viva. Mesmo Dick Gordon, que não era demasiado inclinado a corresponder,
caiu sob influência imediata de sua cordialidade.

— É o Sr. Gordon da Promotoria Pública, Ray esteve me contando — disse ele. — Gostaria
que viesse um dia para processar o velho Maitland! Sem dúvida, é o homem mais
processável que já encontrei em muitos anos!

Um brincalhão o Sr. Johnson! Dick achou que era inclinado a rir de si mesmo.

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— Tenho de voltar: ele está com um acesso de cólera esta manhã. Qualquer um pensaria
que as Rãs estão atrás dele.

Philo Johnson, com um aceno bem-humorado de cabeça, correu de volta ao elevador. A


imaginação de Dick estaria lhe pregando uma peça? Podia jurar que o rosto de Ray
Bennett estava com um sombreado mais carregado de vermelho, e que havia, um ar de
ansiedade em seus olhos.

— Você foi muito gentil em cumprir a promessa e telefonar... Terei muito prazer em
almoçar com você, Gordon. E minha irmã também ficará satisfeita, estou certo. Ela está
freqüentemente na cidade.

Sua despedida foi apressada e um tanto perturbada. Dick Gordon saiu confuso para a rua.
De uma coisa estava certo: atrás da angústia do rapaz se achava aquela brincadeira com
respeito às Rãs.

De volta ao escritório, ainda irritado consigo mesmo por ter agido como um idiota ou um
caipira, fazendo investidas desajeitadas para a beldade da aldeia, deu de cara com o olhar
agitado do chefe de polícia esperando por ele. Os olhos de Dick se apertaram.

— Bem? — ele perguntou. — E Genter? O chefe de polícia fez uma careta de alguém que
estivesse tragando um remédio amargo.

— Eles me escaparam — disse. — A Rã chegou num carro, eu não estava preparado para
isso. Genter entrou e eles partiram antes que eu entendesse o que estava acontecendo.
Não que eu esteja preocupado. Genter tem um revólver, e é um incrível peso-pesado.

Dick Gordon atravessou o chefe de polícia com o olhar e disse em seguida:

— Acho que devia ter contado com o carro — disse. — Se a mensagem de Genter estava
bem-fundamentada e ele está na prisão da Rã, você devia ter esperado um carro. Sente-se,
Wellingdale.

O homem de cabelos grisalhos obedeceu. — Não estou tentando me desculpar —


resmungou. — As Rãs têm-me passado a perna. E tempos atrás eu as tratei como uma
brincadeira.

— Talvez fosse mais inteligente se as tratássemos agora como uma brincadeira — sugeriu
Dick, atirando fora a ponta de um cigarro. — Pode ser apenas uma

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sociedade secreta maluca. Os vagabundos fazem jus a seus covis de reuniões, suas senhas,
apertos de mão e emblemas.

Wellingdale balançou a cabeça. — Você não pode deixar de lado o registro dos últimos
sete anos — disse. — Não é o fato de cada novo criminoso de estrada que pegamos ter a
rã tatuada no pulso. Isso podia ser pura imitação... Em todo caso, qualquer vigarista de
mentalidade estreita tem tatuagens. Mas nos últimos sete anos tivemos uma série de
crimes muito desagradáveis. Primeiro foi o ataque ao chargé d’affaires da Embaixada dos
Estados Unidos, agredido a cacetadas até perder os sentidos, em Hyde Park. Depois foi o
caso do presidente da Northern Trading Company, atacado quando saltava do carro em
Park Lane. Depois o grande incêndio que destruiu a Mersey Rubber Stores, onde um
estoque de borracha crua no valor de 4 milhões de libras virou fumaça. Obviamente,
trabalho de uma dúzia de incendiários, pois as lojas consistiam em seis grandes depósitos
e todos pegaram fogo simultaneamente, e em dois lugares. E as Rãs estiveram nisso.
Pegamos dois dos responsáveis pelo incêndio; ambos eram ”Rãs” e ambos traziam o
totem da tribo; ambos eram ex-penitenciários, e um deles admitiu que recebera instruções
para pôr a coisa em execução, mas negou suas palavras no dia seguinte. Nunca vi um
homem mais apavorado! E não posso censurá-lo. Se metade do que se diz sobre a Rã é
verdade, sua confissão lhe teria custado caro. Aí está, Sr. Gordon. Posso citar-lhe uma
dúzia de casos. Genter está há dois anos na pista deles. Tem percorrido a pé o país,
dormido sob cercas, andado em companhia de todo tipo de vagabundo, assaltando e
roubando com eles. Quando me escreveu dizendo que tinha entrado em contato com a
organização e esperava ser iniciado, achei que estávamos prestes a agarrá-los. Segui
Genter de perto desde que ele pisou na cidade. Estou doente com o que aconteceu esta
manhã.

Dick Gordon abriu uma gaveta da escrivaninha, pegou uma pasta de couro e folheou seu
conteúdo, que consistia em páginas de fotografias de pulsos masculinos. Examinou-as
cuidadosamente, como se as estivesse vendo pela primeira vez, embora, na realidade,
estudasse

24
aqueles registros de indivíduos capturados quase todo dia, há anos. Depois, fechou a
pasta, pensativo, guardando-a na gaveta. Por algum tempo, ficou sentado, batucando com
os dedos na beira da escrivaninha, uma ruga no rosto jovem.

- A rã está sempre no pulso esquerdo, sempre uma pequena marca lateral, e sempre com
uma pequena pinta tatuada embaixo — disse ele. — Você acredita que isso seja
importante?

O chefe de polícia, que não era um homem brilhante, nada viu de importante no fato.

25
CAPÍTULO 3

A Rã

Estava ficando escuro quando os dois andarilhos, contornando a aldeia de Morby,


voltaram à estrada principal. O giro ao redor de Morby fora coisa penosa e fatigante, pois
a chuva que caíra durante todo o dia tinha transformado os campos arados em viscosos
oceanos marrons, que faziam do caminhar um teste de paciência.

Um era alto, barba por fazer, esfarrapado, o desbotado casaco marrom abotoado até o
queixo, o chapéu amarrotado e surrado posto atrás da cabeça. Seu companheiro parecia
pequeno em comparação com ele, embora tivesse o corpo bem-proporcionado, ombros
largos, acima da estatura mediana.

Não falavam palavras enquanto avançavam, a custo, pela estrada lamacenta. Por duas
vezes o homem mais baixo parou e olhou para trás na escuridão crescente, como se
procurasse um perseguidor. Uma vez ele agarrou o braço do maior e puxou-o, para se
esconderem atrás dos arbustos que margeavam a estrada. Foi quando passou uma carreta
com toras de madeira, roncando e salpicando água barrenta.

Algum tempo depois, eles se afastaram da estrada. Atravessando um campo, chegaram


aos limites de uma vasta extensão de terra inculta, cruzada por velha trilha de carro de boi.

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— Já estamos quase lá — murmurou o menor. O outro resmungou apático, mas, a
despeito da aparente indiferença, os olhos aguçados estavam assimilando cada detalhe do
cenário. Casa solitária no horizonte ... parecida com um celeiro. Condado de Essex (ele
descobriu pela placa de um carro que passara); terreno baldio, provavelmente antigo
barreiro... ou teria sido pedreira? Havia uma velha tabuleta indicativa fixada num poste
curvado, perto do portão por onde passava a trilha de carroça. Estava escuro demais para
ler a inscrição meio apagada, mas ele viu a palavra ”lime”. Limestone? De qualquer
modo, seria fácil de localizar.

O único perigo era que as Rãs estivessem presentes em grande número. Apalpou o revólver
coberto pelo sobretudo e introduziu-o furtivamente no bolso.

Se as Rãs estivessem ali em gande número, poderia haver uma dura batalha. Não haveria
qualquer ajuda, mas, de fato, nunca esperara por isso. Carlo pegara-o nos arredores da
cidade em seu carro velho e suspeito. Seguira através da chuva, sacolejando e guinando,
pegando estradas secundárias, evitando vilas e povoados. Se ele estivesse sentado ao lado
do motorista, podia ter se confundido. Mas não estava. Estava sentado na escuridão do
pequeno furgão e não viu nada. Wellingdale não estava preparado para o carro. Um
vagabundo de carro era uma coisa fantástica. Mesmo Genter ficou surpreso quando o
carro se dirigiu para a calçada onde ele estava esperando, e a voz de Carlo sibilou
”Suba!”

Atravessaram a crista de uma serra com mato crescido. Embaixo, Genter viu um trecho de
terreno coberto de troles enferrujados e trilhos retorcidos, marcado com buracos fundos,
cheios de água da chuva. Além, sobre a linha afiada da orla da pedreira, havia uma
pequena cabana de madeira. Carlo dirigia-se para lá.

— Você não está nervoso, está? — perguntou ele, com um tom de zombaria na voz.

— Não muito — disse o outro friamente. — Os caras estão naquela cabana, não?

Carlo riu baixo. — Não há outros - disse ele -, somente a própria Rã. Ele está enfiado na
fachada da pedreira. Há um lance de degraus sob a cabana. Boa idéia, hein? A ca-

27
bana está na beira do barranco e você não pode ver os degraus, mesmo se debruçando. Já
tentei uma vez. Eles nunca conseguiriam pegá-lo, mesmo se trouxessem 40 milhões de
tiras.

— E se cercarem a pedreira: — sugeriu Genter, mas o homem zombou.

— E ele não perceberia antes que estava sendo cercado? Ele sabe tudo, é a Rã.

Carlo olhou para a mão do outro. — Não vai doer — disse ele — e mesmo se doesse
valeria a pena! Você nunca mais fica sem um amigo, Harry. Se algum dia tiver
problemas, vai ter sempre o melhor advogado para defendê-lo. E você é o tipo de cara
que estamos precisando: há muita escória por aí, bobocas que querem entrar por causa de
uns trocados. Você vai pegar um trabalho grande, e quando se faz um trabalho especial
para ele, há centenas e centenas de notas esperando! Se estiver doente ou com fome, as
Rãs vão descobrir e vão ajudá-lo. Isso é incrível, não é?

Genter não disse nada. Estavam agora a cerca de 12 metros da cabana, uma sólida
construção de toras de madeira reforçada, com uma porta e uma janela de postigos.

Fazendo sinal a Genter para que ficasse onde estava, Carlo adiantou-se e bateu na porta.
Genter ouviu uma voz; depois, viu Carlo aproximar-se da janela. O postigo abriu-se uma
polegada e houve uma longa conversa em voz baixa. Em seguida, Carlo voltou.

— Ele diz que tem um serviço para você. Um serviço que renderá umas mil libras. Você
tem sorte! Conhece Rochmore?

Genter fez sinal afirmativo com a cabeça. Conhecia aquele aristocrático subúrbio.

— Lá mora um homem que tem de levar um cacete. Toda noite, às 11h5min, ele vem do
clube para casa. Vá até a casa dele. Fica no alto de uma rua escura e você pode fazer o
trabalho sem ser incomodado. Só uma bordoada e está acabado. Não é matar, você
entende ...

— Por que ele quer que eu faça isso? — o corpulento vagabundo perguntou com
curiosidade.

A justificativa foi lógica.

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— Todos os caras novos têm de fazer alguma coisa para mostrar sua coragem e decisão. O
que diz disso?

Genter não hesitou. — Vou fazer a coisa — disse. Carlo voltou para a janela e pouco
depois chamou o companheiro.

— Chegue aqui e passe o seu braço esquerdo pela janela — ordenou.

Genter puxou a manga do casaco surrado e meteu o braço nu pela abertura. Sua mão foi
apanhada num aperto firme e imediatamente ele sentiu alguma coisa mole e úmida
fazendo pressão no pulso. Um carimbo de borracha, pensou consigo mesmo, e contraiu-se
esperando a dor que viria a seguir. Ela veio como a picada rápida de mil agulhas e o fez
estremecer. Depois, o aperto em sua mão afrouxou e ele pôde puxá-la. Maravilhado, olhou
o desenho borrado de tinta e sangue que a tatuagem tinha deixado.

— Não esfregue — disse uma voz abafada da escuridão da cabana. — Agora você pode
entrar.

O postigo fechou-se e foi trancado. Depois veio o ruído de uma chave girando e a porta se
abriu. Genter penetrou na escuridão de breu da cabana e ouviu a porta sendo fechada pelo
ocupante invisível.

— Seu número é K 971 — disse a voz cavernosa. — Quando vir esse número na coluna
de anúncios pessoais do The Times, apresente-se aqui, de onde quer que você esteja.
Pegue isso ...

Genter estendeu a mão e um envelope lhe foi colocado na palma esticada. Era como se a
misteriosa Rã pudesse ver, mesmo em tal escuridão.

— Há dinheiro para a viagem e um mapa do bairro. Se gastar o dinheiro da viagem ou se


deixar de se apresentar quando for chamado, você será morto. Isso está claro?

— Sim. — Receberá mais dinheiro.., que poderá usar para suas despesas pessoais. Agora
escute. Em Rochmore, no número 17 da Park Avenue, mora Hallwell Jones, o
banqueiro...

Ele deve ter sentido o sobressalto de surpresa do recruta.

— Você o conhece?

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— Sim, trabalhei para ele alguns anos atrás — disse Genter.

Furtivamente, Genter tirou a Browning do bolso e abaixou a trava de segurança.

— Até sexta-feira ele tem de ser atacado. Não precisa matá-lo. Mas se o fizer, não importa.
Creio que a cabeça dele é bastante dura .

Genter conseguiu localizar o homem. Acostumando-se à escuridão, adivinhara, mais do que


vira, o vulto do outro. De súbito, sua mão disparou e agarrou o braço da Rã.

— Tenho um revólver e vou atirar — disse entre os dentes. — Eu quero você, Rã! Sou o
Inspetor Genter, da chefatura de polícia, e se resistir, eu o mato!

Por um instante, houve um silêncio mortal. Em seguida, Genter sentiu a coronha de sua
pistola agarrada num golpe. Golpeou com a outra mão, mas o homem se esquivou e o soco
mergulhou no ar. Mesmo assim, com um safanão, Genter arrancou a pistola da mão
enorme do outro e atracou-se com ele. Foi então que seu rosto tocou a face da Rã. Era
uma máscara o que ele estava usando? A fria mica da viseira virou-se contra a cara de
Genter. Era esta a razão da voz abafada ...

Embora forte, Genter não podia livrar-se dos braços que o cercaram. Eles se debateram para
a frente e para trás na escuridão.

Subitamente, a Rã ergueu o pé. Antecipando o chute, Genter deu urna guinada. Houve
barulho de vidro quebrado e foi então que alguma coisa alcançou o detetive — um cheiro
fraco, mas penetrante. Ele tentou respirar, mas viu que estava asfixiado. Seus braços
tombaram sem forças ao longo do corpo.

A Rã segurou-o por um minuto, depois deixou que aquela massa inerte caísse no chão
com um baque surdo. De manhã, um patrulheiro de Londres encontrou o corpo do
Inspetor Genter estendido no jardim de urna casa vazia e chamou uma ambulância. Mas
um homem envenenado pelos vapores concentrados do ácido cianídrico morre com muita
rapidez. Genter morrera 10 segundos após a Rã ter quebrado o fino cilindro de vidro que
conservava na cabana para emergências como essa.

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CAPÍTULO 4

Elk

Não havia detetive no mundo que se parecesse menos com um agente de polícia, e um
esperto agente de polícia, do que Elk. Era alto e magro. O porte ligeiramente curvado
acentuava a aparência franzina. Suas roupas pareciam mal-ajustadas e balançavam sobre
ele, em vez de vesti-lo. O rosto sombrio, cadavérico, estava permanentemente com uma
expressão da mais profunda melancolia, e poucos já o tinham visto sorrir. Seus superiores
geralmente o consideravam uma influência depressiva, pois seu modo de encarar a vida
era prejudicado, e provavelmente amargurado, por seu malogro em conseguir promoção. A
escolaridade deficiente barrava-lhe o caminho. Por 10 vezes fora a exame e por 10 vezes
fracassara, sempre na mesma matéria: História.

Dick, conhecendo-o melhor que seus chefes imediatos, acreditava que tais fracassos não
preocupavam o Sr. Elk tanto quanto as pessoas pensavam. De fato, freqüentemente
detectava em Elk um lúgubre orgulho pela incapacidade em lembrar datas históricas.
Certa vez, num momento de assombrosa confidência, Elk tinha confessado que a
promoção seria um transtorno para um homem de seu limitado horizonte cultural. No
cotidiano de Elk, o inglês era uma de suas fraquezas.

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— O que é ruim nunca acaba, Sr. Gordon — ele suspirou ao sentar-se. — Mas eu pensei
que ia tirar umas férias após minha ida aos Estados Unidos.

— Quero saber tudo sobre Lola Bassano: quem são seus amigos, por que ela se ligou de
repente a Raymond Bennett, empregado da Maitlands Consolidated. Particularmente, por
que ela o pegou na esquina de St. James Square e o levou para Horsham na noite passada.
Eu os vi por acaso, quando estava saindo de meu clube, e os segui. Ficaram sentados no
cupê durante a maior parte das duas horas em que estiveram parados, a 100 metros da
casa de Bennett. E estavam conversando. Sei disso porque fiquei na chuva, atrás do carro,
ouvindo. Se eles estivessem fazendo amor, eu teria percebido... alguma coisa. Mas estavam
falando, e falando em dinheiro. Ouvi algumas somas serem mencionadas. As 4h, ele saiu
do carro, entrou em casa, e Lola arrancou.

Elk balançou tristemente a cabeça. — De qualquer modo, Lola não falaria sobre qualquer
outra coisa que não fosse dinheiro — disse ele. — Ë como uma rainha de que não lembro o
nome, que morreu em 1077... talvez 1573. Ela se casou com o Rei Henry, talvez Charles,
não lembro. Casou porque queria uma caixa de rapé feita de ouro que ele tinha. Não estou
certo se era uma caixa de rapé de ouro ou uma cama de prata. De qualquer modo,
conseguiu o que queria . . . Não lembro a data.

— Obrigado pela comparação — Dick sorriu. — Mas Lola não está atrás de caixas de rapé
de ouro ou prata. O jovem Bennett não tem um centavo. Há alguma coisa que me
interessa muito nesse relacionamento ...

Elk fumava pensativamente, vendo a fumaça subir para o teto.

— Bennett tem uma irmã — disse ele, para espanto do outro. — Bonita como ninguém
imagina. O velho Bennett é um vigarista de alguma espécie. Não tem qualquer trabalho
regular, mas passa dias e dias fora, e volta parecendo doente.

— Você os conhece? Elk fez que sim com a cabeça. — O velho Bennett me atrai. Já se
referiram aos movimentos dele como suspeitos... a polícia local. Mas

32
eles não têm nada que fazer, exceto criar galinhas e, naturalmente, olham qualquer um que
não cria galinhas como um tipo suspeito. Mantenho o velho Bennett sob observação, mas
nunca cheguei a compreender seus movimentos. Ele tem feito muitas acrobacias
esquisitas. Uma vez escreveu uma peça e a encenou. Ela saiu de cartaz na quarta noite.
Depois passou a seguir um sistema de apostar em corridas de cavalos. Isso quase o
quebrou. Depois, abriu uma escola de correspondência em Horsham, ”Como Escrever Bem
o Inglês”, e perdeu dinheiro. Agora, está tentando ser cinegrafista.

— Há quanto tempo ele vem tentando esses métodos de ganhar a vida?

— Há anos. Descobri a pista de um escritório de datilografia há 17 anos ... Nem tudo


fracassou. Ele conseguiu algum dinheiro. Mas eu daria a cabeça para saber que diabo de
jogo é esse! As vezes, ocupa-se um mês ou dois com determinado trabalho; às vezes, e na
maioria das vezes, por sinal, desaparece e não se con segue encontrá-lo, nem ter uma
pista. Sondei cada vigarista na cidade, mas não estão menos confusos que eu. Lew Brady,
aquele sujeito forte, de pinta esportiva, que trabalha com Lola, também está interessado.
Ele odeia Bennett. Anos atrás, atracou-se com o velho e quis forçá-lo a dizer em que
negócio estava metido, mas Bennett o esmurrou violentamente.

— O velho? — Dick perguntou com incredulidade. — O velho. É forte como um touro.


Não se esqueça disso. Eu vou ver Lola. Ela não é má garota ... até certo ponto.
Pessoalmente, mulheres fatais nunca me atraíram. Disseram-me que Genter morreu, é
verdade? A Rã também está metida nisto?

— Não há dúvida — disse Dick, levantando-se. —- E aqui, Elk, está um dos homens que
o mataram.

Ele foi para a janela e olhou para fora, e Elk foi atrás. O homem que estava na calçada
tinha desaparecido.

— Onde? — perguntou Elk. — Ele se foi agora. Eu... Nesse momento, saltaram
estilhaços da janela e pedaços de vidro atingiram seu rosto. Elk jogou-se ao chão para se
proteger.

33
— Do telhado de Onslow Gardens — disse Richard Gordon calmamente. — Eu estava me
perguntando de onde os demônios iam atirar... Essa foi a segunda vez que procuraram
acertar-me desde o raiar do dia.

Um cartucho vazio no telhado em ruínas do número 94 de Onslow Gardens, além das


marcas de pés, eram as únicas evidências que o assassino tinha deixado. O 94 estava
vazio; havia somente o zelador, que admitiu ter o hábito de se ausentar toda manhã para
fazer as compras do dia. O assassino entrara pela porta da frente. Um comerciante viu o
homem penetrar na casa, carregando embaixo do braço o que parecia uma vara de pesca,
mas que sem dúvida era um rifle num estojo de lona.

— Muito simples — disse Dick —, e naturalmente, do ponto de vista da Rã, eficaz. O


atirador tinha meia dúzia de meios de escapar, incluindo a escada de incêndio.

Elk estava silencioso e sombrio. Dick Gordon também se manteve silencioso, mas
bem-disposto, até voltar com o outro ao escritório.

Foi minha investigação na garagem que os aborreceu — disse ele. — Tenho de admitir,
eles são rápidos! Eu estava voltando para casa quando fizeram o primeiro atentado. Uma
tentativa extremamente ingênua de me atropelar com um carro pequeno. A maldita coisa
chegou a subir na calçada atrás de mim.

— Chapa? — XL 19741 — disse Dick —, mas fria. Não existe tal chapa no registro. O
motorista fugiu antes que eu pudesse pegá-lo.

Elk coçou o queixo, examinando o jovem Promotor Público com um olhar vago.

— Isso está quase me interessando — disse. — Evidentemente, já ouvi sobre as Rãs, mas
não dei muita atenção. Hoje em dia as sociedades secretas são tão comuns que cada vez
que um homem aperta minha mão acho que fica um tanto desapontado se eu não puxo
minha orelha ou bato os pés. E crime organizado em grande escala, sempre encarei como
coisa que só se vê nas novelas de suspense do meu velho amigo Shylock

34
— Sherlock, e ele não as escreve — murmurou Dick.

Outra vez Elk bateu com os dedos no rosto. — De qualquer modo, não acredito nisso —
disse ele, após pensar um pouco. Não é natural que vagabundos façam alguma coisa
organizada. Parece-se muito com trabalho. Aposto que não há nada em toda essa onda,
só um monte de incríveis coincidências juntas. Aposto que as Rãs não passam de uma
sociedade tola, sem qualquer plano ou motivação. E aposto que Lola sabe tudo sobre isso
— acrescentou de forma inconseqüente.

Elk voltou ao prédio da Scotiand Yard seguindo o caminho mais difícil. Caminhando com
o velho guardachuva dependurado no braço, tinha a aparência de um amanuense
desempregado. Os óculos de aro, postos num ângulo torto, alimentavam a ilusão. Verão e
inverno, usava um sobretudo manchado e amarrotado, sempre desabotoado, por cima de
um invariável terno marromamarelado. Ninguém jamais podia lembrar-se de tê-lo visto
com outro traje. A chuva caía; não muita, mas incessante. O duro chapéu-de-coco brilhava
com a umidade, mas ele não abriu o guarda-chuva. Jamais alguém tinha visto aquela peça
aberta.

Andou até Traf algar Square, depois parou, ficou pensando por algum tempo e voltou
sobre seus passos. Do lado oposto à, Promotoria Pública havia um camelô, alto, com
uma pequena bandeja de fósforos, chaveiros, lápis e outras bugigangas. No momento, as
mercadorias estavam cobertas por um oleado brilhante. Elk não reparara nele antes e teve
vontade de saber por que o homem tinha escolhido um ponto tão desfavorável. O fim de
Onslow Gardens, o local mais cortado pelo vento e menos agradável de Whitehall, não era
um lugar onde os pedestres apressados pudessem parar e comprar, mesmo com tempo
bom. O vendedor ambulante trazia uma capa surrada que lhe chegava aos calcanhares. O
chapéu de feltro mole estava caído sobre seus olhos, mas Elk viu o rosto do camelô e
parou.

— Ocupado? — Não. Elk ficou imediatamente interessado. O homem era americano e


tentava fazer com que o sotaque passasse

35
1

pelo sotaque popular de Londres — a tarefa mais impossível já empreendida por um


americano, pois o timbre e a modulação do cockney são inimitáveis.

— Você é americano... de que Estado? — Geórgia — foi a resposta, e dessa vez o camelô
não tentou disfarçar a voz. —- Vim durante a guerra, num cargueiro que transportava
gado.

Elk estendeu a mão. — Deixe-me ver ,sua licença, companheiro — disse ele.

Sem hesitar, o homem apresentou a autorização escrita da polícia para vender nas ruas.
Fora tirada em nome de ”Joshua Broad” e estava em ordem.

— Você não é da Geórgia — disse Elk —, mas isso não importa. — Você é de
Hampshire ou Massachusetts.

— Connecticut, para ser exato — disse friamente —, mas vivi na Geórgia. Quer um
chaveiro?

Houve um lampejo de satisfação nos olhos dele, um lampejo quase imperceptível.

— Não. Nunca tive uma chave. Nunca tive nada de valor para trancar — disse Elk,
mexendo nas mercadorias da bandeja. — Este não é um ponto bom.

— Não — disse o outro. — Perto demais da Scotland Yard, Sr. Èik.

Elk atirou-lhe uma rápida olhadela. — Você me conhece? — A maioria das pessoas o
conhece, não é fato? — perguntou inocentemente o outro.

Elk olhou o vendedor das solas dos sapatos grossos até o chapéu amarrotado, e, com uma
saudação de cabeça, foi embora. O camelô acompanhou o detetive com os olhos até que
ele ficasse fora de vista. Então, pôs uma lona sobre a bandeja, apertou-a com uma correia
e caminhou na direção que Elk tinha tomado.

Saindo da Maitlands para o almoço, Ray Bennett viu um homem sombrio e malvestido de
pé no meiofio da calçada, mas não lhe deu mais que um olhar de passagem. De qualquer
modo, não conhecia Elk, e estava inteiramente inconsciente do fato de estar sendo
seguido até a pequena lanchonete, onde ele e Philo Johnson faziam uma modesta refeição.

36
Em qualquer situação, Ray não teria prestado atenção à sombra, mas naquele dia, no
estado emocional em que estava, só podia pensar em si mesmo, do mesmo modo como
não podia pensar em nenhuma outra injúria que não fosse o comportamento ultrajante do
velho e barbado Maitlands.

— O velho demônio! — disse ele, andando ao lado de Johnson. — Fazer um corte de 10


por cento nos salários e começar por mim! E os jornais dizendo esta manhã que deu 5
mil libras para os hospitais Northern!

— Ele é uma praga caridosa. Quanto ao corte, a alternativa era fazê-lo ou pôr você na rua
— disse Johnson cordialmente. — De que adianta protestar? As compras têm sido más e
o mercado de valores está morto como Ptolomeu. O velho queria pô-lo fora; disse que
você, de qualquer modo, era supérfluo. Se ao menos você olhasse para o lado positivo das
coisas, Ray..

— Positivo! — o jovem bufou, o rosto ficando vermelho de ira. — Estou ganhando um


salário de continuo e quero dinheiro grosso, Philo.

Philo suspirou, e pela primeira vez uma nuvem cobriu-lhe o rosto bem-humorado.
Depois, no entanto, relaxou-se num sorriso largo.

— Se eu pensasse do mesmo modo que você, ou ficava louco ou virava um vigarista de


primeiro time. Só ganho cerca de 50 por cento a mais que você, e o velho me deixa
mexer com centenas de milhares de libras. Isso é muito ruim.

No entanto, a ”ruindade” do avarento Maitlands não parecia interferir no apetite dele.

— A arte de ser feliz — disse Philo, afastando o prato e acendendo um cigarra — é não
querer nada. Assim, você está sempre conseguindo mais do que precisa. Como vai sua
irmã?

— Vai bem — disse Ray com indiferença. — Ella tem as mesmas idéias que você. É fácil
filosofar sobre os problemas dos outros. Quem é aquele tipo tão pouco recomendável?
— ele acrescentou, quando um homem se sentou na mesa oposta à deles.

Philo ajeitou os óculos. Era um pouco míope. — É o Elk, um sujeito da Scotland Yard —
disse com um largo sorriso para o recém-chegado, reconheci-

37
mento que, para desagrado e constrangimento de Ray, trouxe o homem surrado para a
mesa deles.

— Este é meu amigo, Sr. Bennett ... Inspetor Elk, Ray. — Sargento — Elk lembrou
sombriamente. — O destino tem estado sempre contra mim em matéria de promoção.
Não consigo decorar datas.

Longe de fazer segredo de seus fracassos, o Sr. Elk nunca se cansava de discutir-lhes a
causa.

— Por que um homem é mais bem-sucedido por saber quando George Washington
nasceu, ou quando Napoleão Bonaparte morreu, isso é um mistério para mim. Almoça
todo dia aqui, Sr. Bennett?

Ray fez que sim com a cabeça. — Penso que conheço seu pai... John Bennett de
Horsham, não é? Penso que sim...

Em desespero, Ray levantou-se com uma desculpa e deixou os dois sozinhos.

— Rapaz simpático, esse — disse Elk.

38
CAPÍTULO 5

O Sr. Maitland vai para casa

Estavam nas proximidades do imponente edifício da Maitlands Consolidated, quando o


Sr. Jonhson parou repentinamente no meio de uma interessante exposição de sua
filosofia e apertou o passo. Viu Ray Bennett diante deles na calçada, acompanhado da
figura esbelta de uma moça. Estavam de costas para os dois homens, mas Elk especulou
acertadamente quando calculou que a moça fosse Elia Bennett. Ele a vira duas vezes antes
e possuía uma maravilhosa memória para costas.

Virando-se quando aquele homem decidido se aproximou, chapéu na mão, ela o saudou
com um sorriso breve e amigável.

— É um prazer inesperado, Srta. Bennett. Subiu um tom rosado ao rosto simplório de


Jonhnson (”Apaixonado por ela”, pensou Elk com interesse) e seu aperto de mão foi
caloroso e algo mais que cordial.

— Não tencionava vir à cidade, mas papai saiu para uma de suas misteriosas excursões —
disse a moça com um riso ligeiro. — Desta vez, foi para o Oeste. Mas é curioso... Tenho
certeza absoluta de o ter visto ainda agora num ônibus, embora seu trem tenha partido há
duas horas.

Ela deu uma olhada em Elk, indeciso, mais atrás. A visão do lúgubre aspecto dele, alguma
lembrança de-

39
sagradável pareceu manifestar-se, pois saiu todo o brilho da face da moça.

— Meu amigo, Sr. Elk — disse Johnson, um tanto embaraçado. Elk fez uma saudação
com a cabeça.

— Prazer em conhecê-la, Srta. Bennett — disse ele, e observou a expressão aborrecida de


Ray com uma satisfação íntima que, num homem mais descontraído, se teria
transformado em hilaridade.

Ela curvou ligeiramente a cabeça. Depois, disse alguma coisa em voz baixa para o irmão.
Elk viu o rapaz franzir a testa.

— Não chegarei muito atrasado — disse, suficientemente alto para o detetive escutar.

Ella estendeu a mão para Johnson e agraciou Elk com uma distante inclinação de cabeça.
Depois foi embora, deixando os três homens acompanhando-a com o olhar. Dois, pois
quando o Sr. Elk olhou em volta, o rapaz tinha entrado no edifício e desaparecido.

—- Você conhece a Srta. Bennett? — De vista — disse Elk relutantemente. — Conheço


quase todo mundo de vista. Gente boa e gente ruim. E quanto melhor é a pessoa, mais
ligeiramente eu a conheço. Aquele demônio...

— Quem? — exclamou o sobressaltado Johnson. —- Você está se referindo ao pai dela?


Gostaria que ele não fosse tão frio comigo.

Os lábios de Elk se apertaram. — Espero que consiga a simpatia dele — disse,


secamente. — Até mais ver.

Foi embora caminhando ao acaso, enquanto Johnson subia as escadas da Maitlands. Mas
Elk não foi longe. Atravessou a rua e voltou pelo mesmo caminho até a porta da
chefatura de polícia.

As 4h, um táxi parou em frente à entrada majestosa da Maitlands Consolidated. Alguns


minutos depois, o velho Maitland saiu do prédio, sem olhar nem para a’-direita nem para
a esquerda. Elk contemplou-o com detido interesse. Conhecia o financista de passagem.
Fizera duas ou três visitas aos escritórios da Maitlands, devido a alguns roubos pequenos
cometidos por faxineiros. Nessa época, travara conhecimento com Philo Johnson pois o
velho Maitland delegara ao su-

4Q
bordinado a responsabilidade pelas entrevistas relativas aos furtos.

Elk estimou que o homem estivesse na faixa dos 70. Pela primeira vez, teve vontade de
saber onde ele morava e qual era seu estilo de vida. Teria amigos? Era curioso que ele não
soubesse absolutamente nada sobre o financista, o menos noticiado dentre todos os
pontentados do mundo dos negócios.

Mas o detetive nada tinha a ver com o cabeça daquela próspera firma. Sua tarefa era
descobrir a associação entre Lola Bassano e aquele empregado sem dinheiro. Ele percebia
que o interesse de Dick Gordon pelo jovem não era gratuito. Suspeitava, acertadamente,
que a bonita irmã de Ray Bennett se achava por trás disso.

Mas a vontade de conhecer alguma coisa sobre Maitland, subitamente despertada pela
lembrança de que a vida doméstica do velho era algo inteiramente desconhecido, foi
demasiado forte para resistir. Quando o táxi partiu, Elk chamou outro carro.

— Siga aquele táxi — disse ele. Sem perguntas, o chofer balançou a cabeça em sinal de
concordância, pois não havia motorista nas ruas que não conhecesse o melancólico
policial.

O primeiro táxi seguiu rapidamente em direção ao Norte de Londres, parando num


cruzamento movimentado de Finsbury Park. Essa é uma parte da cidade que os grandes
financistas não costumam escolher para morar. É um bairro operário, repleto de pequenas
casas. geralmente ocupadas por duas ou mais famílias. Quando o táxi parou e o velho
desceu com desenvoltura, a boca de Elk se abriu numa expressão de surpresa.

Maitland não pagou ao motorista; dobrou rapidamente a esquina da rua movimentada, com
Elk em seus calcanhares. Andou 100 metros e entrou num bonde. Elk disparou a toda
velocidade e conseguiu pegar o bonde, já em movimento. O velho procurou um assento,
tirou do bolso um jornal amassado e começou a ler.

O bonde desceu a Seven Sisters Road em direção a, Tottenham, onde o Sr. Maitland
saltou. Virou numa rua, lateral, de comprimento aparentemente interminável, atravessou-a
e atingiu urna rua estreita, :ainda

411
mais miserável que a outra. Depois, para espanto de Elk, empurrou o portão de ferro de
uma casinha escura e encardida, abriu a porta e entrou, fechando-a atrás de si.

O detetive olhou a rua de cima a baixo. Estava repleta de crianças pobres. Elk contemplou
novamente a casa, mal acreditando no que viam os seus olhos. As janelas estavam sujas,
viam-se cortinas encardidas e surradas, o minúsculo quintal na frente da casa dava uma
impressão de abandono. E era essa a casa de Ezra Maitland, dono de milhões, o homem
que doou 5 mil libras aos hospitais de Londres! Era inacreditável.

Ele tomou uma decisão: caminhou até a porta e bateu. Por algum tempo, não houve
resposta; depois, o detetive ouviu o ruído de chinelos arrastados no corredor e uma
senhora de rosto pálido abriu a porta.

— Desculpe-me — disse Elk. — Creio que o cavalheiro que acabou de entrar deixou cair
isto.

Tirou do bolso um lenço, que a mulher contemplou por um momento. Depois, esticando a
mão, tomou-lhe o lenço e bateu-lhe com a porta na cara.

”E esse era o último lenço bom que tu tinha”, pensou Elk amargamente.

Dera uma olhada no interior. Um corredor de aspecto sujo, com uma tira de tapete
desbotado e um lance de degraus sem corrimão. O detetive começou a fazer algumas
investigações locais.

— Maitland ou Mainland, não me lembro bem — disse o vendedor de um mercadinho na


esquina. — O velho senhor sai toda manhã às 9h e volta para casa mais ou menos a esta
hora. Não sei quem ou o quê ele é. O que lhe posso dizer é que não come muito! Compra
tudo de que precisa aqui. Aquelas duas pessoas sobrevivem com o que normalmente uma
criança saudável comeria numa refeição!

Elk tomou novamente a direção Oeste, um tanto desorientado. O avarento é um


lugar-comum da ficção, e não raramente encontrado na vida real. Mas o velho Maitland
devia ser um superavarento, ele pensou, e decidiu dar um pouco mais de atenção à
matéria. Por ora, concentraria seus esforços sobre Lola Bassano, essa interessante
senhora.

42
rigiu-se para a porta e encarou urna das lustrosas almofadas incrustadas na madeira.

— É esquisito — disse. — O que o senhor pensa disso?

Elk juntou-se a ele e, a um olhar, viu e compreendeu.

Uma pequena rã branca tinha sido gravada na almofada — uma réplica exata das que vira
de manhã, nas fotos que Dick Gordon mostrara. Uma rã agachada, ligeiramente
enviesada.

Ele a tocou. A tinta ainda estava úmida e pegou seu dedo. Foi então que aconteceu o fato
mais estranho. A porta se abriu de repente e um homem de meia-idade apareceu no
umbral. Na mão, uma Browning de cano longo, apontado para o coração do detetive.

— Mãos para cima! — disse o homem com voz áspera. Depois se imobilizou, arregalando
os olhos para o detetive.

Elk devolveu o olhar, mudo de espanto; pois o homem elegantemente vestido que estava na
frente dele era o camelô mal-encarado que ele encontrara em Whitehall!

O americano foi o primeiro a se refazer. Nenhum músculo de seu rosto se mexeu, mas Elk
viu de novo aquele lampejo de divertimento nos olhos do outro, que recuou e abriu ainda
mais a porta.

— Pode entrar, Sr. Elk — disse, acrescentando para o atordoado ascensorista: — Está
tudo bem, Worth. Estava só fazendo uma pequena brincadeira com o Sr. Elk.

O homem fechou a porta, e com um gesto convidou o detetive a entrar numa sala de visitas
elegantemente mobiliada. Elk entrou, deixando o problema da rã gravada na porta para
discussão posterior.

— Estamos inteiramente a sós, Sr. Elk. Portanto, não precisa baixar a voz quando falar de
meus deslizes. Quer um charuto?

Elk estendeu maquinalmente os dedos e escolheu um Cabana dos grandes.

Salvo total engano, creio que o vi esta manhã — começou ele.

— Não está enganado, de modo algum — interrompeu friamente o outro. — O senhor


encontrou-me

44
em Whitehall. Eu estava vendendo chaveiros. Meu nome é Joshua Broad. O senhor não
pode acusar-me de comerciar com nome falso.

O detetive acendeu o charuto antes de falar. — Este apartamento deve custar uma fortuna
— disse lentamente — e não o censuro por procurar ganhar alguma coisa por fora. Mas,
sem dúvida, parece que vender chaveiros na rua é uma ocupação muito pobre para um
homem de negócios da mais alta classe.

Joshua Broad balançou a cabeça.

— Não faturo 1 milhão com esse comércio — disse —, mas ele me diverte, Sr. Elk. Tenho
em mim algo de filósofo.

Acendeu um charuto e instalou-se confortavelmente na lona de urna funda cadeira de


braços, as pernas cruzadas, com uma expressão de contentamento.

— Como americano, tenho interesse por problemas sociais. Descobri que a melhor
maneira de compreender os muito pobres de qualquer país é juntar-me plenamente a eles.

O tom era descontraído, humilde, mas inteiramente senhor de si.

— Pensei ter-me antecipado a qualquer outra pergunta de sua parte.. . quanto a ter ou não
licença para negociar em meu nome, dizendo-lhe que tinha.

Elk ajeitou os óculos mais firmemente sobre o nariz. Seus olhos desviaram-se para o bolso
do Sr. Broad, para onde a pistola retornara.

— Estamos num país admiravelmente livre — disse ele, em seu jeito cadenciado — e
um homem pode vender chaveiros à vontade, mesmo se for membro da Câmara dos Lordes.
Mas uma coisa não deve fazer, Sr. Broad: sacar armas de fogo sob os narizes de
respeitáveis policiais.

Broad sorriu. — Creio que estava um pouco assustado — disse. — Mas a verdade é que
estava esperando há quase uma hora, esperando que alguém chegasse à minha porta.
Quando ouvi seus passos furtivos — ele balançou os ombros —, foi um erro tolo para
um homem maduro

45
cometer — disse. — Acho que estou me sentindo tão chateado quanto o senhor.

O olhar firme do Sr. Elk não se afastou do rosto do outro.

— Não insultaria sua inteligência — retomou o detetive — perguntando se estava


esperando por um amigo. Mas gostaria de saber o nome do convidado.

— Eu também — respondeu o outro — e também muita gente.

Olhando pensativamente para Elk, esticou a mão para sacudir a cinza do charuto.

— Estava esperando por um homem que tem toda razão em estar muito assustado comigo
— disse ele. — Seu nome é ... Bem, isso não importa, e eu só o encontrei uma vez em
minha vida ... E desde essa ocasião. não lhe vi mais o rosto.

— E na oportunidade, você lhe deu uma surra? — sugeriu Elk.

O outro riu. — Nem mesmo lhe dei uma surra. Na realidade, fui extremamente generoso
— disse com tranqüilidade. — Não fiquei com ele mais que cinco minutos, numa sala
escura, só com a luz de um lampião sobre a mesa. E isso é mais ou menos tudo que posso
dizer, inspetor.

— Sargento — murmurou Elk. — É curioso o número de pessoas que pensam que sou
inspetor.

Houve uma pausa embaraçosa. Elk não conseguiu pensar nas outras perguntas que queria
fazer. Além disso, seu anfitrião mostrava pouca disposição para adiantar qualquer
informação adicional.

— Os vizinhos são seus amigos? — perguntou Elk, inclinando a cabeça na direção do


corredor.

— Quem... Bassano e o amigo dela? Não. O senhor está atrás deles? — perguntou de
imediato.

Elk balançou a cabeça. — Para fazer um convite amigável — disse ele. — Só isso. Acabei
de voltar de seu país, Sr. Broad. Um bom lugar, mas com distâncias demasiado grandes.

Ele meditou, olhando o tapete por um longo tempo. — Eu gostaria — disse Elk em
seguida — de encontrar aquele seu convidado, Sr. Broad... Americano?

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Broad fez que não com a cabeça. Não falaram palavra enquanto caminharam pelo corredor
até a porta da frente. Parecia que Elk estava indo embora sem se despedir, pois
atravessou distraidamente o umbral. Voltou-se como se a questão do adeus lhe tivesse
ocorrido subitamente.

— Será um prazer encontrá-lo de novo, Sr. Broad — disse. — Talvez o veja em


Whitehall.. .

E, então, os olhos do detetive desviaram-se para a grotesca rã branca estampada na porta.


Broad não disse nada, apenas encostou o dedo na figura, que se borrou com o toque.

— Recentemente gravada — concluiu com voz arrastada. — Bem, o que podemos pensar
sobre isso, Sr. Elk?

Elk estava examinando o capacho atrás da porta. Havia uma pequena mancha branca. Ele
se abaixou e passou o dedo.

— Sim, bem recente. Deve ter sido feita pouco antes de minha chegada — disse ele.

O interesse do detetive pela Rã pareceu evaporar-se.

— Bem, tenho de continuar meu caminho — disse, balançando a cabeça.

Na sala de estar primorosamente adornada da suíte número seis, Lola Bassano


enroscou-se numa poltrona profunda e superalmofadada, os pés enfiados sob o corpo, um
cigarro fino entre os lábios, uma expressão severa sob a beleza do rosto. De vez em quando,
dava uma olhada no homem que estava junto à janela, mãos nos bolsos, olhando a praça
lá embaixo. Era alto, de compleição pesada, maxilares proeminentes, pouco atraente. Toda
a ajuda que um alfaiate e um criado particular lhe tinham dado não conseguia disfarçar-lhe
a origem. Era pugilista, tendendo para gordo. Por algum tempo, um tempo muito curto,
Lew Brady fora campeão europeu dos pesos meio-médios, um lutador magnífico com a
fibra traiçoeira que arma toda a diferença entre grandeza e mediocridade no ringue. Um
sujeito mais duro descobrira seu ponto fraco e a glória de Lew Brady esmoreceu com
impressionante rapidez. Mas ele tinha uma vantagem sobre os colegas, vantagem que o
salvara

47
de uma posterior extinção. Um filantropo o encontrara abandonado quando criança e lhe
custeara a educação. Freqüentara uma boa escola e seus companheiros foram rapazes
que falavam um bom inglês. Nunca perdera os benefícios resultantes desse coleguismo;
seu falar era tão curiosamente refinado que as pessoas que pela primeira vez ouviam esse
homem rude falando ficavam boquiabertas.

— A que horas você espera aquele seu sujeitinho? — ele perguntou.

Lola levantou os ombros vestidos de seda, tirou o cigarro da boca para bocejar e
aninhou-se mais aconchegada.

— Não sei. Ele sai do escritório às 5h. O homem afastou-se da janela e começou a andar
lentamente pela sala.

— Não sei por que a Rã se preocupa com ele — resmungou. — Sem dúvida, Lola, estou
ficando cansado da velha Rã.

Lola sorriu e soprou um anel de fumaça. —- Talvez você esteja cansado de ganhar
dinheiro sem fazer nada, Brady — disse ela. — Falando com franqueza, esse tipo de
cansaço nunca me atinge. Uma coisa é certa: a Rã não se preocuparia com o jovem
Bennett se não houvesse algo de interessante nele.

Brady pegou um relógio e deu uma olhada no mostrador.

— Cinco horas. Suponho que esse sujeito não sabe que você está casada comigo?

— Não seja tolo — disse Lola chateada. — Você esperava que eu ficasse me
vangloriando disso?

Ele sorriu, mostrando os dentes, e continuou a andar. Daí a pouco, ouviu o som fraco da
campainha e olhou para a moça. Ela se levantou, sacudiu as almofadas e fez sinal com a
cabeça.

— Abra a porta — disse, e o homem saiu da sala obedientemente.

Ray Bennett entrou com passos ligeiros e pegou a mão da garota entre as suas.

—- Estou atrasado. O velho Johnson ficou me prendendo depois que os empregados foram
embora. Puxa,

48
mas que bela sala, Lola! Não tinha idéia que seu estilo de vida fosse esse.

Conhece Lew Brady?

Sorrindo, Ray fez sinal afirmativo com a cabeça. Era a própria imagem da felicidade, e a
presença de Lew Brady não fazia a mínima diferença para ele. Encontrara Lola num clube
noturno e sabia que ela e Brady eram sócios em algum negócio. Além disso, Ray
orgulhava-se de aceitar aquela confusão de padrões que é conhecida como ”mente aberta”.
Tinha em vista uma nova condição social, superior à sujeição a formas antiquadas de
conduta, impostas a homens e mulheres em seu relacionamento mútuo. Ele era jovem, de
espírito aberto, via as coisas do modo como teria de aceitá-las. Não raro, a abertura é
acompanhada por uma limitação de conhecimento.

— Agora, o plano incrível... — disse ele, obedecendo a um gesto da garota e instalando-se


ao lado dela. — Brady sabe da coisa?

— Foi idéia de Lew — Lola respondeu descontraidamente. — Ele está sempre buscando
oportunidades ... não para si mesmo, mas para outras pessoas.

— É uma fraqueza minha — disse Lew, em tom de desculpa. — E, de qualquer modo,


não sei se gostará do plano. Eu mesmo queria levá-lo adiante, mas estou ocupado
demais. Lola já lhe contou alguma coisa?

Ray fez que sim com a cabeça, e disse: — Não posso acreditar. Sempre pensei que tais
coisas só acontecessem em histórias de revistas! Lola diz que o governo do Japão quer
um agente secreto em Londres. Alguém cuja ligação com eles possa ser negada, se
necessário. Mas qual é o trabalho?

— Agora é que você me pegou — disse Lew, balançando a cabeça. — Tanto quanto sei,
você nada tem a fazer, a não ser viver! Talvez queiram que você se mantenha na pista do
que está acontecendo no mundo policial. A única coisa que não me agrada é que você terá
de viver uma dupla existência. Ninguém deve saber que você é um empregado da
Maitlands. Pode escolher qualquer outro nome que queira. Terá de resolver sua situação
doméstica da melhor maneira possível.

49
— Isso vai ser fácil — interrompeu o rapaz. — Meu pai diz que eu devia ter um quarto na
cidade; acha que a viagem de ida e volta a Horsham, todo dia, é muito dispendiosa.
Acertamos isso no domingo. Terei de ir ao chalé algumas vezes nos fins de semana... Mas
o que tenho de fazer e com quem devo manter contato?

Lola riu suavemente.

— Pobre rapaz — ela zombou. — A perspectiva de possuir um belo apartamento e ver-me


todo dia o está deixando agitado.

50
CAPÍTULO 6

O Sr. Maitland vai às compras

Eldor Street, em Tottenham, é uma das milhares de ruas feias e pardacentas que forrmam
os subúrbios centrais de Londres. Imaginem duas fileiras de casas fixadas em ambos os
lados de uma rua retilínea, iluminada, a intervalos econômicos, por lâmpadas amarelas.
Cada casa tem uma saliência, chamada janela de sacada; cada casa é separada da estrada
por cercas de ferro, interrompidas por um portão de ferro. Há um minúsculo quintal,
onde os arbustos mais rudes debatem-se desesperadamente pela existência; há uma porta,
cujo acesso é feito por um pequeno lance de degraus, e duas janelas absolutamente
iguais no andar de cima.

Elk chegou a Eldor Street às 9h daquela noite. A chuva caía com violência e, por isso, a
rua estava deserta. A maior parte das casas estava às escuras, pois a vida de Eldor Street
habita em suas cozinhas, que ficam na parte de trás das casas. Na janela da frente do
número 47, uma fenda de luz surgia após a quina de um muro baixo. Movendo-se
furtivamente para perto da janela, ele ouvia, a intervalos longos, o murmúrio de uma
conversa.

Era difícil acreditar que estivesse na porta da casa de Ezra Maitland. Ainda naquela
manhã, os jornais tinham dado destaque à mais nova especulação da Maitlands
Consolidated: uma transação envolvendo soma

51
superior a 1 milhão de libras. E o cérebro-mestre do negócio vivia naquela miséria!

Enquanto ele estava ali, a luz foi apagada e chegou aos seus ouvidos um arrastar de pés
num corredor sem tapete. Teve tempo de alcançar a obscuridade do outro lado da rua,
quando a porta se abriu e duas pessoas saíram: Maitland e a velha que já encontrara. Sob o
lampião da rua, viu que Maitland usava um sobretudo abotoado até o queixo. A velha
vestia um casacão comprido e carregava na mão uma bolsa de fibras encordoadas. Estavam
saindo para as compras! Era noite de sábado e a rua principal, que Elk tinha atravessado,
ficava apinhada de compradores retardatários ... Tottenham deixa as compras para mais
tarde, quando a comida pode ser, encontrada a preço mais baixo.

Depois de esperar que eles estivessem fora de vista, Elk desceu a rua até o fim e virou à
esquerda. Seguiu um muro coberto de cartazes até atingir uma abertura estreita. Era a
passagem entre os jardins — uma aléia escura, sem iluminação, com um metro de largura,
correndo entre cercas de madeira encardidas. Com a ajuda de uma lanterna, contou os
portões a sua esquerda. Pouco depois, parou diante de um deles e o empurrou
suavemente. O portão estava trancado, mas não havia ferrolho. O buraco da fechadura
aparentava uso. Elk grunhiu satisfeito e, tirando uma sacola do bolso, pegou um pequeno
cabo de madeira, onde ajustou um gancho de aço, cuidadosamente escolhido entre uma
dúzia de outros. Introduziu-o na fechadura e girou, mas a fechadura era visivelmente mais
complicada do que esperava. Tentou outro gancho, de um formato diferente, e ainda
outro. Na quarta tentativa, a fechadura cedeu e o portão se abriu suavemente.

Os fundos da casa estavam mergulhados na escuridão, o pátio cuidadosamente livre das


sucatas que ele previra encontrar. Dirigiu-se à porta que levava para dentro da casa. Para
sua surpresa, não estava trancada, e ele tornou a colocar as ferramentas no bolso. Viu-se,
então, numa pequena copa. Atravessando uma porta num corredor sem móveis, chegou à
sala onde vira luz. Era pobre e mal mobiliada. A poltrona junto à lareira tinha moias
quebradas; num canto, havia uma cama

52
desarrumada e, no centro do aposento, uma mesa coberta com uma toalha remendada.
Sobre a mesa, viamse dois ou três livros e algumas folhas de papel com a escrita
desajeitada de uma criança. Elk leu com curiosidade.

”Olhe o cachorro”, dizia. ”O homem avança para o cachorro e o cachorro late para o
homem.”

Havia outras frases de tipo semelhante. Os livros eram cartilhas de crianças, de uma das
séries elementares. Olhando em volta, viu uma vitrola barata e, sobre o bufê, meia dúzia
de discos arranhados e maltratados.

A criança devia estar em casa. Após passar um ferrolho na porta da frente para evitar
surpresas, virouse para o interruptor e acendeu a luz. Sob a luminosidade mais brilhante, a
pobreza do aposento o espantou. O tapete era surrado e cheio de buracos; não havia
sequer uma peça da mobília que não tivesse sido reformada numa época ou noutra. Em
cima do bufê, havia também um ábaco de criança — urna armação de fios de arame com
contas enfiadas, utilizada para ensinar a criança a fazer contas. Um papel sobre o consolo
chamou sua atenção. Era a cópia do contrato de 1 milhão de libras que Maitla,nol assinara
naquela manhã. Sua assinatura nítida, com o característico traço de pena embaixo, estava
no rodapé.

Elk recolocou o papel no lugar e começou a dar busca na casa. Num guarda-louça ao lado
da lareira, encontrou um cofrinho de ferro, que supôs estar quase cheio de moedas.
Havia também uma centena de cartas dirigidas a E. Maitland, na Eldor Street, 47,
Tottenham. Dando uma olhada nos envelopes, Elk percebeu que eram sem importância,
circulares de vendedores ou aqueles folhetos políticos com que os candidatos inundam o
eleitorado. E todas as cartas estavam fechadas, pois o Sr. Maitland, certamente, logo
compreendera o que estava nos envelopes e não se dera ao trabalho de abri-los.
Provavelmente, o instinto de entesouramento tinha feito com que os conservasse. Nada
mais havia na sala que pudesse despertar interesse. O detetive estava certo de que o
velho dormia naquele aposento ... Mas onde estava a criança?

53
Desligando a luz, subiu para o andar de cima. Havia uma porta trancada, e suas ferramentas
não puderam ajudá-lo, pois a fechadura era de patente exclusiva e fora recentemente
instalada. Possivelmente, a criança estava lá, ele pensou. O segundo aposento obviamente o
quarto da mulher, era tão mediocremente mobiliado quanto a sala de baixo.

Decidindo voltar para o térreo, seu pé estava pronto a pisar o primeiro degrau, quando ele
ouviu um débil ”dique”. O ruído vinha de baixo, era o som de uma porta sendo fechada.
Elk esperou, ouvindo. O som não se repetiu e ele desceu devagar. A princípio, pensou
que o velho tinha voltado, mas quando se aproximou da porta e escutou, não ouviu
barulho algum. Tornou a prender o ferrolho que tinha soltado para sair e se dirigiu para o
segundo dos quartos do andar térreo, cuja porta iluminou com a lanterna.

Elk era um observador atento; muito pouco lhe escapava e tinha absoluta certeza de que
aquela porta estava entreaberta quando passou por ela, ao entrar na casa. Agora estava
fechada, e fechada pelo lado de dentro, pois a chave aparecia na fechadura.

Seria a criança, assustada por sua presença? Elk era homem suficientemente prudente para
não se demorar demais na investigação. Saiu diligentemente para a passagem no jardim e
daí para a rua. Na rua, o detetive esperou, conservando-se numa posição que lhe permitia
ver toda a extensão da Eldor Street e a passagem aberta no muro. Daí a pouco, viu
Maitland voltando. O velho carregava a bolsa de compras, que estava cheia. Reparou no
verde de uma couve quando Maitland e a mulher passaram sob a luz. Contemplou-os até
que desaparecessem na escuridão. Depois, ouviu o som da porta se fechando. Cinco
minutos mais tarde, um vulto negro saiu da passagem atrás das casas. Era um homem, e
Elk, alerta e vigilante, lançou-se em sua perseguição.

O estranho mergulhou num labirinto de vielas, com o detetive em seu encalço. Andava
rapidamente, mas não demasiado rápido para Elk, que tinha algo de andarilho. O
estranho dobrou a esquina para a forte luminosidade da estrada principal, Elk uns 12
passos

54
atrás dele. O detetive só pôde ver o rosto de sua caça quando o homem parou ao lado de
um carro, abriu a porta e subiu. Foi então que Elk o encarou e ergueu a mão em animado
cumprimento.

Por um instante, na limusine fechada, o outro foi tomado de surpresa, mas logo abriu a
porta, dizendo:

— Saia da chuva. Entre, Elk. Elk obedeceu. — Fazendo suas compras para domingo? —
perguntou o detetive, com ar inocente. O rosto de falcão do outro relaxou-se num sorriso.

— Jamais como aos domingos — disse. Era Joshua Broad, o rico americano que vendia
chaveiros em Whitehall, morava nos mais caros apartamentos de Londres e encontrava
tempo para estar intensamente interessado em Ezra Maitland.

Ele virou-se abruptamente, quando Elk se sentou. — Diga, Elk, você viu a criança? Elk
balançou a cabeça. — Não — respondeu, e ouviu o riso reprimido do companheiro
quando o carro partiu para os civilizados bairros do Oeste.

— Eu vi — disse o Sr. Broad, soprando devagar a fumaça do charuto que acendera. —


Acredite-me, Elk, eu deixei de gostar de crianças. Sim senhor. A educação da criança
nada mais significa para mim daqui por diante.

— Onde estava ela? — É um menino — respondeu Broad com serenidade — e espero que
me dispense de responder sua pergunta... Eu já tinha entrado na casa há uma hora quando
você chegou; estava no quarto dos fundos, que está vazio, por sinal. Você me assustou.
Ouvindo-o entrar, pensei que fosse o velho São Nicolau das barbas compridas.
Especialmente quando vi a luz acesa. Eu estava com ela acesa quando você abriu a porta
da copa... Deixei-a ligada, por sinal. Não quis fugir no escuro. Bem, o que você acha?

— De Maitland? — Excêntrico, não? Você não imagina como ele é excêntrico i

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Quando o carro parou diante da porta da Caverley House, Elk quebrou um longo silêncio.

- Quem é o senhor, Sr. Broad? — Vou dar-lhe 10 chances de adivinhar — disse


alegremente o outro quando saltaram.

— Agente do serviço secreto — sugeriu Elk prontamente.

— Errado... Agente secreto americano? Não, você errou. Sou um detetive particular, cujo
hobby é estudar os tipos criminosos ... Não quer subir e tomar um drinque?

— Vou subir, mas não vou beber — disse Elk pudicamente —, não se me oferecer gim e
suco de laranja. Aquela visita aos Estados Unidos estragou minha digestão.

Broad estava colocando a chave na fechadura do apartamento, quando uma estranha


sensação de frio percorreu a espinha do policial, que agarrou o braço do americano.

— Não abra essa porta — disse, asperamente. Broad olhou em volta com espanto. O rosto
do homem da Scotland Yard estava tenso e repuxado.

— Por que não? — Não sei... Somente uma sensação, nada mais. Sou escocês de
nascimento... Temos uma palavra, fey, que significa alguma coisa sobrenatural. Essa coisa
está dizendo dentro de mim: ”Não abra essa porta.”

Broad tirou a mão dele de seu braço. — Está querendo passar por maluco ou engraçado?
— perguntou.

— Se pareço engraçado — disse Elk —, minha cara merece ser processada por injúria. Há
alguma coisa do outro lado dessa porta. Algo que não é bom. Posso até jurar, se quiser!
Dê-me a chave!

Ele pegou a chave da mão relutante de Joshua Broad, enfiou-a na fechadura e girou.
Depois, com um brusco safanão, escancarou a porta, empurrando Broad para que ele
utilizasse a parede como cobertura.

Nada aconteceu durante um segundo, mas então: — Corra! — gritou Elk,


arremessando-se pelos degraus abaixo.

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O americano viu a primeira grande nuvem verdeamarelada da névoa fumacenta, que rolava
pela porta aberta, e seguiu o outro.

O zelador estava fechando seu gabinete para a noite, quando Elk apareceu, sem chapéu e
sem fôlego.

— Pode telefonar para os apartamentos? Muito bem! Ligue imediatamente para cada um
deles, acima e abaixo do terceiro andar, e diga que em nenhuma hipótese abram as
portas. Mande que vedem todas as frestas com papel, incluindo as caixas de correio, e
que abram todas as janelas. Não discuta, faça o que estou dizendo! O edifício está cheio
de gás venenoso!

O próprio Elk telefonou para o posto de bombeiros. Em poucos segundos, o estrépito das
sirenas ressoou do lado de fora; homens com máscaras contra gases subiram as escadas
tumultuariamente.

Felizmente, exceto Broad e sua vizinha, todos os moradores estavam fora da cidade,
devido ao fim de semana.

— E a Sra. Bassano só chega de manhã — disse o porteiro.

Clareou o dia antes que, graças a mangueiras de ar de alta pressão e precipitantes


químicos, o edifício estivesse limpo. Exceto pela prataria embaciada de negro e um
depósito amarelo em todos os espelhos e vidros das janelas, o prejuízo fora pequeno. Um
odor desagradável impregnava o apartamento, apesar das janelas abertas. Mais tarde,
porém, a brisa da manhã dispersou os últimos vestígios dessa malcheirosa lembrança do
atentado.

Juntos, os dois homens vistoriaram os aposentos para descobrir de que meio o gás se
introduzira no prédio.

— Através daquela lareira aberta — Elk apontou.

— O gás é mais pesado que o ar; pode descer pela chaminé tão facilmente quanto uma
torrente de água.

Uma busca no telhado do prédio confirmou o acerto de sua teoria. Encontraram 10


grandes cilindros de gás e uma corda comprida, com um cesto de vime atado na ponta.
Além disso, um dos canos da chaminé

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(facilmente atingível do telhado) estava arranhado e descorado.

— O autor do atentado entrou no edifício quando o porteiro estava ocupado,


provavelmente trabalhando no elevador. Ele seguiu para o telhado, carregando a corda e
o cesto. Alguém na rua acomodou os cilindros no cesto, que o homem puxou para o
telhado um por um. Era mortalmente perigoso, mas engenhoso. Devem ter inspecionado
anteriormente o local com bastante cuidado; caso contrário, não poderiam saber que
chaminé conduzia a sua sala.

Voltaram ao apartamento e, dessa vez, Joshua Broad estava sério.

— Felizmente, meu empregado está tirando umas férias — disse ele. — Senão, a esta hora
estaria no céu!

— Assim espero — respondeu Elk devotamente. O sol já estava batendo nos telhados das
casas quando o detetive foi embora, um homem sonolento, que se sentia frustrado. Ouviu
o som de vozes animadas antes de chegar ao vestíbulo. Um carro grande estava parado na
entrada do prédio. Sentado ao volante, um jovem com roupa a rigor; Lew Brady sentado ao
lado dele e, na calçada, uma moça em traje de noite.

— Uma noite agradável, hein, Lola?! Quando tenho de fazer alguma coisa, sei me mexer,
hein?

A voz de Ray Bennett estava pastosa e pouco firme. Ele estivera bebendo e estava quase
bêbado.

Com um grito, reconheceu o detetive, que saíra do edifício.

— Ora! É o velho Elk, o Elk dos Elks, o grande asno! Meus cumprimentos ao mais nobre
dos tiras! Lola, apresento-lhe Elk de Elksburgo, o Sherlock de verdade, o superdetetive...

— Cale a boca! — sibilou a voz furiosa de Lew Brady nos ouvidos do rapaz, mas Ray
estava com o ânimo exaltado demais para ser silenciado.

— Onde está o inestimável Gordon? Ouça, Elk, tome conta do Gordon! Cuide do velho
Gordon ... Minha irmã está muito ligada ao Gordon.

58
— Bonito carro, Sr. Bennett — disse Elk, apreciando pensativamente o automóvel. —
Presente de seu pai?

A menção ao pai pareceu desembriagar o jovem. — Não, não é — ele respondeu


bruscamente é de um amigo. Até logo, Lola!

Ele girou a chave e bombeou o acelerador. O motor falhou um pouco, mas ele pisou outra
vez.

— Até mais ver, Elk! O carro partiu com um movimento súbito e Elk viu-o desaparecer
de vista.

— Esse rapaz sem dúvida está se arriscando a dar com a cachola na Lua — disse ele. —
Tem passado bem, Lola?

— Sim ... Por quê? Ela fixou os olhos desconfiados no detetive e esperou.

— Não se esqueceu de desligar o gás quando saiu? Se eu fosse Shylock Holmes, talvez
lhe falasse de outra coisa ... de uma mancha em sua luva que não existia antes .

— Mas o que está querendo dizer sobre o gás? Eu nunca uso o fogão.

— Alguém o fez, e quase cozinhou a mim e a um amigo meu ... quase nos deixou bem
cozidos!

Ele a viu franzir a testa. Como era mulher, esperava que soubesse representar, mas por
alguma razão ele estava prestes a acreditar na sinceridade dela.

— Houve um ataque a gás contra a Caverley House — ele explicou — e não com gás de
cozinha, aliás. Acho que você ainda sentirá o cheiro ao subir.

— Que espécie de gás? Venenoso? Elk fez que sim com a cabeça. — Mas quem o pôs
ali... o despejou, ou qualquer coisa que se faça com gás?

Elk olhou-a com aquela expressão vexada que tão justificadamente irritava suas vítimas.

— Se eu soubesse, Lola, será que estaria aqui, discutindo o assunto? Talvez meu velho
amigo Shylock

59
Holmes sim, mas eu não. Eu não sei. Fui surpreendido no apartamento do Sr. Broad.

— Esse é o americano que mora no mesmo andar que nós... isto é, que eu — disse. — Só
o vi uma vez. Parece um homem simpático.

— Alguém não pensa assim — disse Elk. — Mas Lola, o que aquele rapaz está fazendo .
.. o jovem Bennett?

— Por que me faz essa pergunta? Só sei que agora está faturando muito dinheiro e creio
que se está tornando um tanto turbulento. Como acontece com todos.

— Não sei — disse Elk —, mas se eu conseguisse dinheiro e me lançasse em alguma


coisa, escolheria um guia melhor que um lutador fracassado.

Uma tonalidade irada subiu à bela face da moça. O olhar que atirou ao detetive foi tão
letal quanto o gás contra o qual ele tinha lutado toda a noite.

— Acho que devo fazer algumas investigações no escritório central sobre as mulheres
minhas conhecidas — Elk continuou implacável. — Posso entender por que você está
ligada ao jogo. Naturalmente, sente-se atraída pelo dinheiro. Mas o que me intriga é de
onde vem o dinheiro.

— Isso não será a única coisa que o intrigará — disse ela entre os dentes, enquanto se
lançava bruscamente para a porta semi-aberta da Caverley House.

Elk permaneceu onde ela o tinha deixado, o rosto melancólico e sem expressão. Por cinco
minutos ficou assim; depois, caminhou lentamente em direção a seu modesto lar de
solteiro.

Morava em cima de uma charutaria fechada e era o único ocupante do edifício.


Atravessando a Gray’s Inn Road, olhou casualmente para as janelas de seu apartamento
e notou que estavam cerradas. Reparou em mais alguma coisa. Cada vidraça da janela
estava embaçada com uma substância amarelada, opalina.

Elk olhou de cima a baixo a rua silenciosa e, a pouca distância, viu um buraco na rua,
aberto para reparos. O porteiro noturno cochilava perto de um aquecedor e não ouviu a
aproximação de Elk, nem per-

60
cebeu sua insólita atitude. No buraco de obras, o detetive apanhou três pedras arredondadas
de um monte de cas’alho. Colocando-se no centro da estrada, atirou certeiramente uma
das pedras.

Houve um barulho de vidro quebrado quando a janela foi atingida. Elk esperou e, pouco
depois, viu um espectro amarelado de vapor venenoso descer em remoinho através da
abertura na vidraça.

— Isso está ficando monótono — disse Elk fatigado, antes de caminhar para o alarme
contra incêndio mais próximo.

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CAPÍTULO 7

Um apelo ao Sr. Maitland

Exteriormente, John Bennett aceitou a nova vida do filho como coisa muito natural de
acontecer a um jovem. Por dentro, estava inquieto e temeroso. Ray era seu único filho, o
orgulho de sua vida, embora nunca desse a perceber seus sentimentos. Ninguém conhecia
melhor do que John Bennett os alçapões que esperavam os passos de uni jovem
independente numa grande cidade. Pior de tudo, para sua tranqüilidade de espírito, é que
ele conhecia Ray.

Ella não discutiu o assunto com o pai, mas adivinhou-lhe as preocupações e tomou uma
decisão sobre o que havia de fazer.

No domingo anterior, Ray lamentara-se amargamente do novo corte em seu salário. Tinha
ficado desesperado e falara, furioso, em largar o trabalho e procurar nova colocação. Tal
possibilidade deixou Ella cheia de apreensão. Os Bennett viviam frugalmente, com uma
renda muito limitada. Era visível que o pai contava com poucos recursos, embora sempre
desse a impressão de alguém que tivesse um rendimento bastante confortável.

Bennett era proprietário do chalé e o custo de vida no local era ridiculamente barato. Toda
manhã, vinha uma mulher da aldeia para o trabalho pesado, e uma vez na semana para
lavar roupa. Era o único luxo que

62
os magros proventos do pai permitiam. Por isso, Ella encarava com alarme a perspectiva
de Ray ficar sem trabalho, e fixou uma linha de ação para resolver o problema.

Certa manhã, quando Johnson atravessava o chão de mármore dos escritórios principais
da Maitlands, viu uma deliciosa silhueta sair da porta de vaivém. Quase correu ao
encontro dela.

— Minha cara Srta. Bennett, é uma maravilhosa surpresa ... Ray não está, mas se quiser
esperar ...

— Estou contente que ele esteja fora — disse aliviada. — Queria ver o Sr. Maitland. É
possível?

A cara alegre do filósofo ensombreceu. — Receio que seja difícil — disse. — O velho
nunca recebe ninguém, nem mesmo os homens mais importantes da cidade. Detesta
mulheres e estrangeiros. Embora tenha convivido todos esses anos com ele, ainda não
tenho certeza se já se acostumou comigo! Qual é o problema?

A moça hesitou. — É sobre o salário de Ray — e depois, quando Johnson balançou a


cabeça, continuou agitada: — tão importante, Sr. Johnson. Ray tem gostos extravagantes;
um corte em seu salário significa... Bem, o senhor conhece Ray muito bem!

Ele concordou com a cabeça. — Não sei se posso fazer alguma coisa — disse, hesitante.
— Vou subir e falar com o Sr. Maitland, mas temo que haja uma chance, em 1 milhão de
que concorde em recebê-la.

Ao voltar, o rosto jovial do Sr. Johnson mostrava um sorriso largo.

— Suba antes que ele mude de idéia — disse, e conduziu-a para o elevador. — Terá de
dirigir toda a conversa, Srta. Bennett... Vai ver um diabo velho e excêntrico, duro como
pedra.

Johnson introduziu-a numa sala pequena e confortavelmente mobiliada. Depois, indicou


com a mão uma mesa coberta de papéis.

— Este é meu pequeno covil — explicou. Do ”covil”, uma grande porta de jacarandá se
abria para a sala do Sr. Maitland.

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Johnson bateu suavemente e, com o coração batendo um pouco mais rápido que de
costume, Ella foi levada à presença daquele velho estranho, que, no momento, estava
dominando o mercado financeiro.

A sala era espaçosa e o luxo do mobiliário deixou-a sem fôlego. As paredes eram de
jacarandá, com primorosas incrustações de prata. A luz vinha de lâmpadas ocultas em
cornijas e das compridas janelas de vidro colorido. Cada peça da mobília valia uma
fortuna. Calculou que o tapete, onde seus pés afundavam, custaria tanto quanto todos os
apetrechos de uma casa média.

Atrás de uma grande escrivaninha de bronze dourado estava o poderoso Maitland,


aprumado, espreitando-a sob cabeludas sobrancelhas brancas. Uns tantos fios desgarrados
de uma barba imaculada tinham caído sobre a mesa. Quando ele moveu a mão para
jogá-los no chão, a moça viu que o velho usava um par de luvas de lã sem dedeira. A
cabeça era completamente calva... Contemplou fascinada as grandes orelhas, que
pareciam querer fugir da cabeça. Patriarcal, mas repulsivo. Em torno dele, havia algo de
grosseiro e obsceno que a feria. Não era o desleixo de sua roupa, não era sua idade. A
idade traz refinamento, essa beleza da decadência que os puristas chamam caducidade.
Esse velho, no entanto, envelhecera de modo vulgar.

O exame que ele lhe fez não mostrou a segurança que a moça previra. Parecia estar
nervoso, constrangido. O olhar de Maitland passou de Ella para a escrivaninha, depois para
a bela coloração dos vidros nas janelas. Depois, furtivamente, voltou outra vez para a
moça.

— Esta é a Srta. Bennett. Como deve lembrar-se, Bennett é empregado de nossa seção de
câmbio; aliás, um colega muito dinâmico. A Srta. Bennett gostaria de que reconsiderasse
sua decisão sobre a redução de salário.

Veja o senhor — Ella interrompeu —, não estamos particularmente bem de vida e a


redução faz muita diferença para nós.

O Sr. Maitland abanou a cabeça calva com impaciência.

64
- Não me importa se estão bem de vida ou não — disse ele em voz alta. — Quando
resolvo reduzir os salários, eu o faço, está entendendo?

A moça arregalou os olhos de espanto. A voz tinha sido áspera e grosseira. A linguagem e
o tom eram da sarjeta. Na sentença, viu confirmada todas as suas primeiras impressões.

- Se ele não está satisfeito, pode ir embora. O velho fiou ;os olhos opacos no constrangido
Johnson.

— Se você também não está satisfeito, também pode ir embora. Há muitos sujeitos nas
ruas a empregar. Milhões! Isto é tudo.

Johnson saiu na ponta dos pés e fechou a porta atrás da moça.

— É um horror! — observou Ella com voz ofegante. — Como pode suportar conviver
com um homem desses, Sr. Johnson?

O obstinado Johnson sorriu com tranqüilidade. — Milhões — ele repetiu — e tem razão.
Com 1: milhão e meio de desempregados nas ruas, não posso atirar um bom emprego
pela janela...

— Lamento muito — disse ela, pousando impulsivamente a mão no braço dele. — Não
pensei que o velho fosse assim — continuou mais brandamente. — Ele é..: terrível!

— É um homem que se fez por si mesmo e ainda tem muito do artesão — Johnson sorriu
—-, mas não é realmente mau. Tinha vontade de saber por que se dispôs a recebê-la

— Não recebe ninguém? Johnson balançou a cabeça. — Só quando absolutamente


necessário, e isso acontece apenas duas vezes por ano. Não creio que haja alguém neste
edifício que já tenha falado com ele... nem mesmo os gerentes.

Ele a fez descer para a sala de recepção. Ray ainda não voltara.

— A verdade — confessou Johnson ao ser interrogado — é que Ray não esteve no


escritório esta ma-

65
nhã. Mandou um recado dizendo que não se estava sentindo muito bem. Eu consegui que
tivesse um dia de folga.

— Está doente? — a moça perguntou assustada, mas Johnson tranqüilizou-a.

— Não, falei com ele ao telefone. Há um telefone em seu novo apartamento.

— Pensei que tivesse alugado um apartamento comum! — disse ela, estupefata, com o
desassossego de uma jovem dona-de-casa. — Um apartamento ... Onde fica?

— Em Knightsbridge — respondeu Johnson serenamente. — Sim, parece custar caro, mas


acho que ele conseguiu uma pechincha. Um homem que estava de partida para o exterior
sublocou por uma ninharia. Pensei que ele lhe tivesse escrito dos alojamentos de
Bloomsbury, para onde pretendia ir. Posso ser sincero, Srta. Bennett?

— Se é sobre Ray, gostaria que fosse — respondeu com presteza.

— Ray está me preocupando um pouco — disse Johnson. — Evidentemente, quero fazer


por ele o que for possível, pois somos amigos. No momento, meu maior trabalho é dar
cobertura às suas ausências um tanto freqüentes — você não precisa mencionar isso a ele
— o que é coisa difícil, pois o velho tem um fantástico instinto para descobrir quem está em
falta com a empresa. Ray está vivendo num estilo melhor do que seria razoável esperar.
Vi-o extremamente bem-vestido ao lado de algumas das pessoas mais esnobes da cidade.
Pelo menos, pareciam pessoas da alta roda.

A moça sentiu um frio percorrer-lhe a espinha. A vaga inquietude em sua mente


transformou-se imediatamente em pânico.

— Há ... alguma coisa errada aqui no escritório? perguntou ela com ansiedade.

— Não. Tomei a liberdade de verificar os livros. Estão em ordem. Sua caixa-corrente está
perfeita até os centavos. Falando cruamente, ele não está roubando, pelo menos não da
gente. Há outra coisa ainda. Ele está usando o nome de Raymond Lester em
Knightsbridge. Descobri por acaso, e perguntei-lhe por que

66
havia adotado um nome diferente. A justificativa foi bastante plausível. Não queria que o
Sr. Bennett ficasse a par da maneira dispendiosa como estava vivendo. Tem um rendoso
trabalho extra, mas não quis dizer-me de que se tratava.

Ella ficou contente quando saiu da firma, contente em atingirr a solidão que os vastos
espaços do parque proporcionavam. Devia pensar e decidir um curso a tomar. Ray não
era o tipo de rapaz que aceitasse atitudes draconianas, partissem dela ou de John Bennett.
O pai de nada devia saber; tinha de apelar para Ray. Talvez fosse verdade que tivesse
encontrado um trabalho extra bem-remunerado. Muitos jovens ocupam o tempo de sobra
em proveito de si próprios ... O problema é que Ray não era de trabalhar.

Sentou-se numa cadeira do parque para pensar no problema. Estava tão absorvida,
tentando achar uma solução, que não percebeu que alguém se tinha aproximado por trás.

— Isso é um milagre! — disse a voz sorridente, e ela ergueu o rosto para os olhos azuis de
Dick Gordon. — Não vai me dizer qual é o problema? — ele perguntou, puxando outra
cadeira para perto da moça e sentando-se.

— Problema... quem... quem disse que tenho um problema? — ela rebateu.

— Seu rosto traiu você — Gordon sorriu. — Não repare na roupa que estou usando. Tive
de fazer uma visita oficial à Embaixada dos Estados Unidos.

Ella notou pela primeira vez o bem-talhado traje oficial, o fraque bem-ajustado, a cartola
brilhante, a gravata impecável. Antes de mais nada, observou que a vestimenta lhe caía
muito bem, deixando-o ainda mais jovem.

— Acho que está se preocupando com seu irmão — disse ele. — Encontrei-o há alguns
minutos.. . Olhe, lá está!

A moça seguiu a direção do olhar do promotor e quase se ergueu na cadeira de espanto.


Cavalgando pela pista que corria paralela à estrada que circunda o parque, vinham um
homem e uma garota. O homem

6.7
era Ray. Estava elegantemente vestido. Da ponta das lustrosas botas de montar até o alto
do chapéu cinzento, tudo devia ser creditado a um dispendioso alfaiate. A mulher que o
acompanhava era jovem, bela, delgada.

Os cavaleiros passaram sem que Ray reparasse nos dois interessantes espectadores. Seu
humor era dos melhores e o som de seu riso chegou até a irmã estarrecida.

— Mas... Não compreendo ... Conhece a senhora, Sr. Gordon?

— Muito bem, pela reputação — disse Dick friamente. — Chama-se Lola Bassano.

— uma, dama? Os olhos de Dick piscaram. — Elk diz que não, mas é uma opinião
preconcebida. Ela tem dinheiro, cultura e nome de família.

Não sei se os três predicados são suficientes para fazer uma dama. Elk diz que não, mas,
como já disse, é uma opinião consideravelmente preconceituosa.

Ella sentou-se sem dizer nada, a mente num torvelinho.

— Achei que precisava de ajuda... para ajudar seu irmão — disse Dick brandamente. —
Ele a está assustando, não?

A moça concordou com a cabeça. — Foi o que pensei. Está confundindo a mim,
também. Sei tudo sobre ele, seu salário e perspectivas, e que está vivendo uma estranha
farsa sob um nome frio. Não estou preocupado com isso; os rapazes adoram mistérios
desse tipo. Mas, infelizmente, são mistérios dispendiosos e gostaria de saber como se pode
dar ao luxo de manter essa posição tão repentinamente conquistada.

Ele mencionou uma soma e a moça empalideceu. — Custa isso tudo — disse Dick. Elk,
que tem paixão por minúcias, e que sabe com precisão de centavos quanto custa um traje
de montaria, forneceume os pormenores.

A moça interrompeu-o com tamanho ar de desespero, que ele se sentiu um bruto.

68
— O que vou fazer... o que vou fazer? — perguntava. — Todos querem ajudar: você, o Sr.
Johnson e, tenho certeza, o Sr. Elk. Mas é impossível. Ray está impossível, eu quero
dizer. Seria como lutar contra uma correnteza. E talvez lhe esteja parecendo absurdo
tanto barulho por causa de uma tola escapada de Ray! Mas significa tanto para nós, papai
e eu!

Dick não disse nada. Era um assunto delicado demais para alguém de fora se meter. Mas a
verdadeira delicadeza da situação derivava da companhia do rapaz. Como se adivinhasse
seus pensamentos, a moça perguntou de repente:

— É uma boa moça, a Srta. Bassano? Quero dizer, é alguém que sirva para andar com
Ray?

— Ela é fascinante — respondeu, após uma pausa. A irmã de Ray notou a resposta
evasiva e não levou o assunto adiante. Pouco depois, desviou a conversa para o apelo a
Ezra Maitland. Dick ouviu o relato do que aconteceu sem surpresa aparente.

— Maitland é um diamante bruto — comentou. — Elk sabe tudo sobre ele, mas não
conta. Gosta mais de confundir seus chefes do que desmascarar criminosos. Mas já ouvi
muita coisa sobre Maitland vindas de outras fontes.

— Por que usa luvas no trabalho? — ela perguntou inesperadamente.

— Luvas... Eu não sabia disso — comentou Dick, surpreso. — Mas por que não deveria
usá-las?

A moça balançou a cabeça. — Não sei... É uma idéia tola, mas pensei... Simplesmente
me ocorreu, desde que ...

Ele esperou. — Quando Maitland levantou as mãos para alisar a barba, estou quase certa
de ter visto uma tatuagem em seu pulso esquerdo... A ponta da marca tatuada apareceu
num canto da luva: a cabeça e os olhos de uma rã.

Dick Gordon pareceu fulminado.

- Tem .certeza de que não foi sua imaginação, Srta. Bennett — perguntou. o Promotor
Público. — Acho que a Rã está afetando todos os nossos nervos.

69
— Pode ter sido — concordou ela — mas eu estava muito perto dele, e um raio de luz
atingiu seu pulso por um instante.

— Falou a Johnson sobre isso? A moça balançou negativamente a cabeça. — Achei que
mesmo ele, com todos os longos anos de serviço, podia não ter observado a tatuagem.
Lembro-me agora de que Ray me contou que o Sr. Maitland sempre usava luvas, verão ou
inverno.

Dick estava perplexo. Era improvável que aquele homem, cabeça de uma grande
corporação financeira, estivesse associado a uma quadrilha de vagabundos. E contudo...

— Quando seu irmão vai a Horsham? — ele perguntou.

— Domingo — disse a moça. — Prometeu a papai ir almoçar.

— Suponho — disse o habilidoso rapaz — que não será possível convidar-me para ser
uma quarta pessoa à mesa?

— Será a quinta — ela sorriu. — O Sr. Johnson também irá. Pobre Sr. Johnson, com
medo de papai. Aliás, penso que o temor é mútuo. Pelo menos num ponto papai é
parecido com Maitland: não gosta de estranhos. Mas, de qualquer modo, você está
convidado — disse Ella, animada com a perspectiva do encontro de domingo.

Naquela noite, Elk foi ao encontro de Dick, chegando bem na hora em que este estava
saindo para o teatro. Gordon falou sobre a suspeita da moça. Para sua surpresa, Elk
encarou a alarmante teoria com grande frieza.

— É possível — disse ele —, mas é muito provável que a marca tatuada não seja de modo
algum uma rã. O velho Maitland foi marinheiro quando jovem; pelo menos, é isso que
afirma a única biografia existente sobre ele. É a metade de uma coluna de um jornal
londrino, publicada há cerca de 12 anos, quando ele comprou as cotas de Lorde Meister no
Embankment e começou a aumentar sua empresa. Só lhe digo uma coisa, Sr. Gordon:
estou com o espírito inteiramente prepa-

70
rada para acreditar em qualquer coisa que diga respeito ao velho Maitland.

— Por quê? — perguntou Dick com espanto. Ele nada sabia das descobertas que o
detetive tinha feito.

— Porque tenho minhas razões — disse Elk. — Homens que fazem milhões não são
homens comuns. Se fossem homens comuns, não seriam milionários. Vou investigar
sobre essa tatuagem.

Por uma circunstância inabitual, naquela semana a atenção de Dick Gordon desviou-se
das Rãs. Na terçafeira, recebeu uma chamada da secretária do Ministro das Relações
Exteriores e, para sua surpresa, foi recebido pessoalmente pela augusta cabeça daquele
departamento de Estado. A razão para essa honra foi então revelada.

— Capitão Gordon — disse o Ministro —, estou esperando da França o texto de um acordo


de comércio que vai ser assinado entre nós e os governos italiano e francês. É muito
importante que esse documento fique bem vigiado, porque — e digo-lhe isso em segredo
ele trata de uma revisão tarifária. Não o comprometerei dizendo de que maneira as
revisões são aplicadas, mas é indispensável que o Correio Real, que está trazendo o
tratado, circule com segurança. Desejo complementar a proteção normal da polícia
enviando o senhor para Dover, ao encontro dele. Isso está um tanto fora de seus deveres,
mas seu trabalho na Inteligência durante a guerra terá de ser minha desculpa para
sobrecarregá-lo com tal responsabilidade. Três membros das polícias secretas italiana e
francesa acompanharão o Correio até Dover, onde o senhor e seus homens se encarregarão
da guarda até que o senhor pessoalmente, veja o documento ser depositado em minha
própria caixa-forte.

Como muitos outros serviços importantes, a tarefa mostrou-se inteiramente desprovida de


excitação. Pegaram o Correio no cais de Dover e o escoltaram até um cupê Pullman que
lhe fora reservado; a caminhada até o veículo foi patrulhada por dois homens da Scotland
Yard. Na Victoria, um carro guiado por um motorista da polícia e guardado por homens
armados pegou o mensageiro e Dick, conduzindo-os para Calden Gardens. Em sua
biblioteca, o Secretário das Relações

71
Exteriores examinou cuidadosamente os selos. Depois, na presença de Dick e do
Detetive-Inspetor, que tinha comandado a escolta, colocou o envelope no cofre.

— Não pensei por um momento sequer — disse o Ministro das Relações Exteriores com
um sorriso, depois que tinham partido todos os visitantes, com exceção de Dick — que
nossos amigos, as Rãs, tivessem grande interesse no assunto. Contudo, e isso é bastante
curioso, as Rãs não saíram de minha mente. Foi por isso que tomei precauções
extraordinárias. Creio não haver mais pistas sobre o assassinato de Genter?

— Nenhuma, senhor... pelo que sei. O crime comum, na realidade, não é da alçada de meu
departamento. E qualquer tipo de crime só chega ao Promotor Público depois que o
processo contra a pessoa acusada está pronto para ser apresentado.

— É uma pena — disse Lorde Farmley. — Gostaria que o problema das Rãs não estivesse
inteiramente nas mãos da Scotland Yard. É um caso tão fora do comum, e constitui
tamanha ameaça à sociedade, que eu me sentiria mais tranqüilo se algum departamento
especial estivesse dirigindo as investigações.

Dick Gordon podia ter dito que estava ansioso para assumir o controle de tais
investigações, mas se conteve. Sua Excelência alisou pensativamente o queixo barbeado.
Era um austero senhor de 60 anos, de feições delicadas e delicadamente enrugado,
produto daquela sutil escola de diplomacia que é simultaneamente cortês e implacável,
que mata com uma inclinação de cabeça e, de fato, é tão mais perigosa quanto mais gentil.

— Falarei com o Primeiro-Ministro — disse ele. — Quer jantar comigo, Capitão Gordon?

No início da tarde seguinte, Dick Gordon foi convocado a Downing Street e informado de
que um departamento especial fora criado para tratar exclusivamente daquela ameaça
social.

— O senhor tem cante blanche, Capitão Gordon. Posso ser criticado por lhe estar
atribuindo tal incumbência, mas fico inteiramente tranqüilo por ter encontrado o homem
certo — disse o Primeiro-Ministro — e o, senhor pode empregar o funcionário da
Scotland Yard que preferir.

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— Ficarei com o Sargento Elk — disse Dick sem vacilar, mas o Primeiro-Ministro
pareceu receoso.

— Mas não é um homem da alta hierarquia — objetou.

— É uma pessoa com 30 anos de serviço — disse Dick — e creio que apenas seu fracasso
no teste educacional lhe tem impedido a promoção. Deixe que eu fique com ele, senhor, e
dê-lhe uma temporária graduação de inspetor.

O homem mais velho riu. — Faça como quiser — disse. O Sargento Elk, que andava de
cá para lá para fazer o informe dos progressos da investigação naquela tarde, foi
agraciado com um novo título. Ficou aturdido por algum tempo, mas depois um sorriso
brotou lentamente em seu rosto doméstico.

— Aposto que sou o único inspetor inglês que não sabe onde foi enterrada a Rainha
Elizabeth I — disse ele, não sem orgulho.

73
CAPÍTULO 8 O agressivo Ray Era inteiramente absurdo, disse Dick a si mesmo uma
dúzia de vezes durante os dias que se seguiram, que um homem maduro, com sua
experiência, ficasse riscando no calendário, um a um, meticulosa e solenemente, os dias
que o separavam do domingo. Um colegial poderia comportar-se dessa forma, mas só um
colegial muito inexperiente. E um colegial poderia sentar-se na escrivaninha e sonhar
durante todo o tempo que deveria ser destinado à correspondência oficial.

Um rosto bonito?... Dick tinha admirado muitos. Um porte gracioso, um sugestivo


refinamento de maneiras... ? Desistiu da tentativa de analisar a atração que Ella Bennett
exercia. Tudo que sabia era que estava esperando impacientemente pelo domingo.

Quando Dick abriu o portão do jardim, viu a rechonchuda figura do filosófico Johnson
confortavelmente refestelada numa cadeira. O secretário levantou-se com um sorriso
radiante e estendeu a mão. Dick gostava do homem. Ele pertencia àquele grupo passivo
que, debatendo-se sob o sufocante handicap de sua própria mediocridade, tem sua mais alta
virtude na lealdade e na aplicação infatigável à tarefa que cai em suas mãos.

— Ray disse-me que o senhor viria, Sr. Gordon. Ele está com a Srta. Bennett no pomar.
Vi-o por acaso,

74
ainda há pouco; parece que está ouvindo algumas verdades familiares. Que pensa disso?

— Ele desistiu de ir ao escritório? — perguntou Dick, enquanto tirava o sobretudo.

— Receio que ele esteja definitivamente fora do escritório — disse Johnson com o rosto
sombrio. — Tenho de pedir-lhe para ir embora. O velho descobriu que Ray não aparecia
no trabalho e, por algum misterioso e subterrâneo artifício de inteligência, ficou a par de
que Ray estava levando uma vida dissipada. Quis ver os livros, mas graças a Deus estava
tudo em ordem! Eu mesmo estive muito perto de ser colocado na rua.

Dick não podia desperdiçar a oportunidade. — Sabe onde Maitland mora? E em que
condições? Tem uma casa na cidade?

Johnson sorriu. — Oh, sim, ele realmente tem uma casa na cidade — disse
sarcasticamente. — Somente um ano atrás descobri onde era. Até hoje nunca disse uma
única palavra sobre o assunto e nem para o senhor darei detalhes. O velho Maitland está
morando num lugar que é mais ou menos um cortiço, morando sórdida e horrivelmente
como um operário desempregado! E tem milhões! ... É uma casa barata num subúrbio,
lugar que eu não usaria nem para alojar um boi! Ele e a irmã moram ali; ela faz o serviço
da casa. Acho que tem um emprego suave. Nunca soube que Maitland tenha gasto um
vintém consigo mesmo. Estou certo de que usa a mesma roupa que usava quando o vi pela
primeira vez. No almoço, toma uma magro copo de leite e come um pão ordinário. Vez
por outra, tenta fazer-me pagar o leite e o pão!

— Diga-me, Sr. Johnson, por que o velho usa luvas no escritório?

Johnson balançou a cabeça. — Eu não sei. Pensei que fosse para esconder a cicatriz nas
costas da mão, mas ele não é do tipo de usar luvas por causa disso. A verdade é que tem
tatuagens de bóias, âncoras e golfinhos pelo braço ...

— E rãs? — perguntou Dick serenamente, e a pergunta pareceu tomar o outro de surpresa.

— Não, nunca vi uma rã. Há um punhado de cobras num dos pulsos; isso eu já vi. Ora, o
velho Mait-

75
land não seria uma Rã, seria? — ele perguntou, e Dick sorriu com a ansiedade de seu tom
de voz.

— Eu gostaria de saber. O rosto geralmente alegre de Jonhoson ficou taciturno.

— Considero Maitland suficientemente medíocre para ser uma Rã ou qualquer outra coisa
— disse Johnson, e nesse momento Ray e a irmã se aproximaram. No semblante de Ray
pairava uma nuvem de tempestade, que se tornou mais carregada com a visão de Dick
Gordon. A jovem estava ruborizada e obviamente prestes a chorar.

— Alô, Gordon! — o rapaz começou sem qualquer outro cumprimento. — Acho que você
é o sujeito que está colocando coisas na cabeça da minha irmã. Você mandou Elk
espionar-me... Sei disso, porque o apanhei em flagrante...

— Ray, você não deve falar assim com o Sr. Gordon — interrompeu a moça com
veemência. — Ele nunca me disse nada contra você. O que sei é o que tenho visto. Parece
estar esquecendo-se de que o Sr. Gordon é um convidado de papai.

— Todo mundo está se afligindo comigo — Ray se queixou. — Até o velho Johnson!

Deu um sorriso largo e acanhado para o homem calvo, mas Johnson não retribuiu.

— Alguém tem de se preocupar com você, rapaz — disse ele.

O constrangimento da situação só foi relaxado quando John Bennett, câmara a tiracolo,


subiu o caminho de tijolos para cumprimentar os visitantes.

— Ora, Sr. Johnson, eu lhe devo muitas desculpas por não o ter convidado antes, mas,
finalmente, tenho a satisfação de vê-lo aqui. Como Ray está indo no escritório?

Johnson atirou um olhar patético e desorientado para Dick.

Ahn... Muito bem, Sr. Bennett — disse ele num impulso.

Então, não se devia contar a John Bennett que o filho se tinha lançado numa nova
carreira? O fato de

76
estar alimentando essa fraude deixou Dick Gordon um tanto constrangido, e o Sr. Johnson
mostrou-se visivelmente angustiado. O almoço transcorreu em clima de tensão; ao final,
Johnson e Dick viram-se novamente a sós no jardim, e o filósofo desabafou sua
preocupação.

— Acho que estou jogando deslealmente com o velho Bennett — disse. — Ray devia ter
contado a ele.

Dick só pôde concordar. Não tinha ânimo de discutir o caso de Ray naquele momento. O
mau humor e a autoconfiança do rapaz o irritavam. Não podia deixar de reconhecer a
franca e súbita hostilidade que o irmão de Ella Bennett mostrava com respeito a ele. Isso
era desconcertante e acentuava sua posição absurda com relação aos Bennett. Estava
descobrindo o que muitos jovens apaixonados acabam por descobrir: o fascínio que
cerca a amada não se estende a seus parentes e amigos. Fazia ainda outra descoberta: o
rechonchudo Sr. Johnson estava enamorado da moça. Ficava nervoso e incoerente na
presença dela; infeliz quando ela ia embora. Mais infeliz ainda, quando, ousadamente,
Dick pegou a irmã de Ray pelo braço e levou-a para o jardim atrás da casa.

— Não sei por que esse sujeito está aqui — disse Ray, furioso, quando os dois
desapareceram. — Não é uma pessoa de nossa classe, e, além do mais, ele me detesta.

— Não sabia que ele o detestava, Ray — disse Johnson, despertando do infeliz sonho
acordado em que parecia ter caído. — É uma pessoa extremamente gentil ..

— Histórias! — disse o outro, com escárnio. — É um esnobe! E, de qualquer modo, é um


policial, e eu detesto tiras! Se acha que ele não nos olha com desprezo, está enganado. E,
no entanto, sou tão bom quanto ele e aposto que conseguirei mais dinheiro que ele antes
de morrer!

— O dinheiro não é tudo — disse Johnson de passagem. — Qual é seu trabalho agora,
Ray?

Johnson fizera um grande esforço para voltar outra vez os pensamentos para o problema
do amigo.

— Não lhe posso dizer. É muito confidencial — disse Ray, misteriosamente. — Não pude
contar nem

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mesmo a Elia, apesar de termos conversado por horas. Não podemos falar sobre certas
tarefas sem trair segredos que não nos pertencem. E esta é uma delas.

O Sr. Johnson não disse nada. Estava pensando em Elia e se perguntava quanto tempo seu
belo acompanhante demoraria para trazê-la de volta.

Bonito e jovem. O Sr. Johnson não era bonito e já estava na faixa dos 50. E era calvo. Mas
o pior de tudo é que ficava mudo na presença da moça. Ficou um tanto atônito consigo
mesmo.

No aconchego do fundo do jardim, outro membro da família Bennett confessava seus


receios a uma pessoa que ouvia com mais simpatia.

— Sinto que papai está desconfiado — disse Ella. — Esteve fora a maior parte da noite
passada. Eu estava acordada quando ele chegou; tinha uma expressão terrível. Disse que
não parou de andar durante quase toda a noite e pela lama nas botas vi que era verdade.

Dick concordou. — Mesmo sabendo muito pouco do Sr. Bennett, dificilmente eu o


julgaria o tipo de homem que sofresse em silêncio quando o filho está envolvido — disse
ele. — Eu imaginaria com mais facilidade um alvoroço terrível... Por que seu irmão se
tornou tão agressivo comigo?

Ela balançou a cabeça. — Não sei. Ray mudou de repente. Quando me beijou esta
manhã, tinha cheiro de uísque; antes, ele nunca bebia. Sua nova vida o está arruinando...
Por que teve de adotar um nome falso se ... se o trabalho que está fazendo é direito?

Ela tinha deixado de dirigir-se a ele como ”Sr. Gordon”. A concessão de não chamá-lo pelo
nome, para evitar o senhor, agradava muito a Dick Gordon, pois ele reconhecia que era
uma concessão. O dia estava quente e o céu limpo. Ella tinha feito preparativos para
servir o chá na grama, e encontrou dois ávidos auxiliares em Dick e Johnson, animados de
febril atividade pela oportunidade de ajudar. A atitude do rapaz continuava hostil e, depois
de algumas tentativas inúteis para superá-la, Dick desistiu.

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Mesmo a presença do pai, que se mantivera afastado do grupo durante toda a tarde, não
trouxe mudanças positivas.

— O maior defeito de um policial é que ele está sempre no cumprimento do dever —


disse Ray durante a refeição. — Creio que você está armazenando na mente cada
fragmento de nossa conversa, para o caso de ter de usá-la.

Antes de responder, Dick cortou bem devagar uma fatia de pão com manteiga.

— Certamente tenho boa memória — disse ele. — Ela me ajuda a esquecer. Também me
ajuda a ficar calado em circunstâncias muito difíceis e embaraçosas.

Ray girou subitamente na cadeira. — Eu disse que ele estava a serviço! — gritou,
triunfante. — Olhe! Lá está o chefe do corpo de espiões! O fiel Elk!

Dick pareceu espantado. Deixara Elk prestes a tomar a direção Norte, para seguir uma nova
pista da Rã. E lá estava ele, as mãos apoiadas no portão, o queixo caído no peito,
olhando melancolicamente o grupo através dos óculos.

— Posso entrar, Sr. Bennett? John Bennett, pronta e diligentemente, convidou-o com um
aceno.

— Estava passando por aqui casualmente e pensei em fazer uma visita. Boa-tarde,
senhorita ... boa-tarde, Sr. Johnson.

— Dê a cadeira ao Sargento Elk — resmungou John Bennett, e o filho levantou-se com ar


carrancudo.

— Inspetor — disse Elk. — Mas obrigado, eu preferia ficar de pé, senhor. Ficar em pé para
crescer, hein? Sim, sou inspetor. As vezes me esqueço disso, em especial quando os
homens da ronda me saúdam; não me lembro de devolver a saudação. Creio que, na
América, os homens da ronda saúdam os sargentos. É assim que deveria ser.

Os olhos tristes do inspetor moveram-se de uma a outra pessoa do grupo.

— Suponho que sua promoção tenha deixado muitos tiras alarmados, hein Elk? — disse
Ray em tom de escárnio.

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— Oh, sim. Acho que foi isso mesmo. Especialmente os amadores — disse Elk. — Os tiras
que estão apenas começando. Tiras de fantasia, que pensam que sabem tudo, e se
mantêm na ilusão até que um dia alguém lhes diz: ”Pegue seu chapéu, o chefe está
chamando!” Fora disso —- Elk confessou modestamente —, a noticia não causou
sensação, e Londres continua tão cheia de vigaristas como sempre. E — Elk continuou
após um instante de reflexão — há quase tantos pugilistas fracassados vivendo de
chantagem e roubo, quanto jovens bonitas circulando em lugares perigosos e antros de
dança.

O rosto de Ray ficou abatido e vermelho. Em seguida, o inspetor voltou sua atenção para
Dick Gordon.

— Eu queria saber, capitão, se poderia ter um dia de folga na semana que vem... Tenho
um pequeno problema de familia.

Dick, que até então não sabia que o amigo tinha familia, ficou sobressaltado.

Sinto muito, Elk — disse ele com voz compreensiva.

Elk suspirou.

Custa-me muito fazer isso — disse ele -, mas acho que devia contar-lhe, Dick, se a Srta.
Bennett me der licença.

Dick levantou-se e seguiu o detetive até o portão. Elk falou em voz baixa.

—- A casa de Lorde Farmley foi assaltada à 1h desta manhã, e as Rãs levaram o tratado de
comércio!

Olhando furtivamente para os dois, a moça nada encontrou na atitude de Dick Gordon que
indicasse ter ele recebido alguma notícia que o envolvesse diretamente. Ele voltou
lentamente à mesa.

— Acho que tenho de ir — disse. — O problema de Elk é suficientemente importante


para levar-me de volta à cidade.

Viu que os olhos de Ella lamentaram e ficou satisfeito. A despedida foi breve. Era preciso
que voltasse à cidade tão depressa quanto seu carro pudesse levá-lo.

No caminho, Elk contou tudo que sabia. Lorde Farmley tinha passado o fim de semana em
sua casa

80
na cidade. Trabalhava em duas novas cláusulas, que tinham sido introduzidas a pedido do
embaixador americano, que, como de praxe, estava discretamente atento ao assunto, e
conseguiu (também como de praxe) garantir a emenda de um item que tratava de
transbordos, item que, não sendo reconsiderado, causaria prejuízos a seu país. Dick soube
de tudo isso mais tarde. No dia do almoço em casa de Bennett, não estava ciente de que
o embaixador sabia da existência do documento.

Lorde Farmley tinha guardado o documento no cofre, um ”Cham” de fabricação recente,


embutido na parede de seu escritório. Trancou e pôs o segredo nas portas de aço, ligou o
alarme contra assaltos e foi para a cama.

Só depois do almoço foi até o cofre. Aparentemente, as portas de segurança não tinham
sido tocadas. Após o almoço, pretendendo trabalhar outra vez no acordo, pôs a chave na
fechadura, mas ao girá-la percebeu que os dentes não encontravam resistência. Puxou a
maçaneta, que lhe ficou na mão. O cofre estava inteiramente aberto, e o acordo,
juntamente com notas e emendas, já não estava lá.

— Como eles entraram? — perguntou Dick, enquanto o carro sibilava velozmente pela
estrada, ainda fora da cidade.

— Pelas janelas da copa — disse Elk. — É um trabalho completo; na verdade, o trabalho


mais incrível que já vi em 20 anos. Há somente dois homens no mundo capazes de
fazê-lo. Sem impressões digitais, sem buracos feios no aço. Tudo feito de modo limpo e
bonito. É um prazer ver.

— Espero que Lorde Farmley tenha tanta satisfação com a mão-de-obra quanto você —
disse Dick severamente, e Elk torceu o nariz.

— Ele não estava rindo — disse ele —, pelo menos, não quando o deixei.

Sua Excelência não estava rindo quando Elk voltou. — Isso é terrível, Gordon. Terrível!
Esta noite, vamos reunir o Gabinete para tratar do assunto; o Primeiro-Ministro retornou à
cidade. Para mim, isto significa a ruína política.

— Pensa que as Rãs são responsáveis?

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A resposta de Lorde Farmley foi escancarar a porta do cofre. No interior, havia uma
marca branca, réplica exata daquela que Elk tinha visto na porta do apartamento do Sr.
Broad. Era quase impossível a um nãoperito descobrir como o cofre fora aberto. Foi Elk
quem demonstrou o trabalho excepcional que arrancara a maçaneta e permitira que os
ladrões despedaçassem a porta com um poderoso explosivo que não foi ouvido por
ninguém na casa.

— Utilizaram um silencioso — disse Elk. — Mas é tão fácil evitar que os gases escapem
depressa demais de uma fechadura quanto do tambor de um revólver. Eu lhe digo, há
somente dois homens que podiam ter feito isso.

— Quem são? — O jovem Harry Lyme é um deles, mas está morto há anos. O outro é
Saul Morris. E Saul também está morto.

— Como, obviamente, não se trata de um trabalho feito por dois mortos, o senhor faria
bem em pensar num terceiro — disse Sua Excelência, compreensivelmente aborrecido.

Elk balançou lentamente a cabeça. — Tem de haver um terceiro, mais esperto que todos
— disse ele, pensando em voz alta. — Conheço todo mundo: Wal Cormon, George, o
Rato, Billy Harp, Ike Velleco, Pheeny Moore... Posso jurar que não foi nenhum deles. É
um trabalho de mestre, Excelência. Trabalho ide um grande artista, como raramente se
encontra hoje em dia... E imagino que sei quem é.

Lorde Farmley, que ouvira a rapsódia com toda a paciência possível, afastou-se
furtivamente para a biblioteca, deixando os dois sozinhos.

— Capitão — disse Elk, andando atrás do outro e fechando a porta —, por acaso o senhor
sabe onde o velho Bennett esteve na noite passada?

O tom de voz de Elk era negligente, mas Dick Gordon sentiu a significação subjacente da
pergunta e, por algum tempo, percebeu tudo que se achava atrás da questão, e tudo que
isso significaria para a moça, que estava ficando mais valiosa para ele do que tinha
previsto. Sua respiração tornou-se mais rápida.

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— Ele esteve fora a maior parte da noite — disse ele. — A Srta. Bennett contou-me que
saiu na sextafeira e só voltou ao amanhecer de hoje. Por quê?

Elk tirou um papel do bolso, desdobrou-o lentamente e endireitou os óculos.

— Tenho um homem acompanhando as ausências de Bennett — disse, pausadamente. —


É um trabalho fácil, pois a mulher que toda a manhã limpa a casa dos Bennett tem uma
memória excelente. Ele esteve fora 15 vezes no ano passado. Cada vez que ele saiu, houve
um assalto sensacional em algum lugar!

Dick respirou longamente. — O que está sugerindo? — ele perguntou. — Estou


sugerindo — Elk respondeu com decisão — que se Bennett não puder dar conta de seus
movimentos na noite de sábado, terei de pegá-lo. Nunca me encontrei com Saul Morris,
nem com o jovem Wal Cormon. Eles morreram antes que eu tivesse oportunidade de fazer
um trabalho grande. Mas se minha suposição é correta, Saul Morris não está tão morto
quanto devia. Vou fazer uma visita ao irmão Bennett, e acho que vou realizar uma tarefa
de ressurreição!

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CAPÍTULO 9 O homem que naufragou Na manhã seguinte, bem cedo, John Bennett
estava trabalhando no jardim quando Elk chegou. O inspetor foi diretamente ao assunto.

— Entre a noite de sábado e a manhã de domingo, houve um assalto à casa de Lorde


Farmley. Provavelmente entre meia-noite e 3h. O cofre foi arrombado e documentos
importantes foram roubados. Queria que me falasse sobre o que fez no sábado à noite e na
manhã de domingo.

Bennett olhou o detetive diretamente nos olhos.

— Eu estava na estrada de Londres. Estava saindo da cidade. As 2h estive falando com um


policial em Dorking. A meia-noite, encontrava-me em Kingbridge, e também conversava
com um policial. Ambos me conhecem, pois vou freqüentemente a Dorking e Kingbridge.
O homem de Dorking é cinegrafista amador como eu.

Elk pensou.

— Meu carro está aí. Não se importaria de vir comigo para falar com esses policiais? —
sugeriu e, para sua surpresa, Bennett concordou de imediato.

Em Dorking, descobriram um dos policiais. Ele estava no fim do turno.

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— Sim, inspetor, eu me lembro de que o Sr. Bennett conversou comigo. Falamos sobre
fotografia animal.

— Tem certeza da hora? — Absoluta. As 2h o sargento da patrulha passa por aqui. Ele
chegou enquanto estávamos conversando.

O sargento da patrulha, despertado de seu sono matinal, confirmou a declaração. As


investigações de Kingbridge produziram os mesmos resultados.

Elk ordenou que o motorista voltasse a Horsham. — Não vou pedir-lhe desculpas, Bennett
— disse. — Conhece suficientemente bem meu trabalho para entender minha posição.

— Não estou me queixando — disse Bennett asperamente. — O dever é o dever. Mas creio
que tenho direito de saber por que, entre todo mundo, você suspeita exatamente de mim.

Elk bateu na janela do carro e o motorista parou. — Caminhemos pela estrada: poderei
explicar melhor — disse.

Os dois saíram e caminharam um pouco em silêncio.

— Você, Bennett, está sob suspeita por duas razões. Você é um homem misterioso.
Ninguém sabe como consegue viver. Não tem renda própria. Não tem ocupação.
Estranhamente, de tempos em tempos, desaparece de casa e ninguém sabe aonde vai. Se
fosse mais jovem, suspeitaria de uma vida dupla, no sentido habitual da expressão. Mas
você não é desse tipo. Esta é a circunstância suspeita número um. A número dois é a
seguinte: cada vez que você desaparece há um grande assalto em algum lugar. Imagino
que seja um trabalho da Rã. Minha teoria é que as Rãs são extremamente torpes, mas não
há, em toda a polícia, cérebro suficiente para encher uma casca de noz, muito menos para
pegar o bando. É gente extremamente inteligente, disso tenho certeza, e não é do tipo
regular que vive do crime. O criminoso comum não tem tempo para tamanho absurdo
ilegal. Planeja um trabalho e o executa — ou é preso. Se comete um arrombamento,
divide a grana com os comparsas e senta-se em cafés com garotas até

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gastar todo o dinheiro. Depois, sai em busca de mais algum. Mas as Rãs dispõem-se a
pagar bons homens de fora da organização para um trabalho extra.

— E está sugerindo que eu posso ser um dos ”bons homens”? — Bennett perguntou.

— É exatamente o que estou sugerindo. O assalto da Rã, na casa de Lorde Farmley, foi
feito por um, perito. .. assim como Saul Morris.

Os olhos vivos do inspetor fixaram-se no rosto de Bennett, mas nem pelo tremular de uma
pestana ele traiu seus pensamentos.

— Lembro-me de Saul Morris — disse Bennett com voz pausada. — Nunca o encontrei,
mas ouvi falar de seu trabalho. Ele era parecido comigo?

Elk apertou os lábios, o queixo aproximou-se do peito e o olhar se avivou ainda mais.

— Se sabe alguma coisa sobre Saul Morris — disse ele lentamente —, por certo não
ignora que ele nunca caiu nas mãos da polícia, que ninguém, exceto sua própria quadrilha,
jamais o viu. Assim, quem poderia reconhecê-lo?

Outro silêncio. — Eu não estava a par disso — Bennett afirmou. No caminho de volta
para o carro, Bennett falou outra vez.

— Não fiz nada premeditadamente. Meus movimentos são suspeitos, mas há uma boa razão
para isso. Quanto aos arrombamentos, nada sei sobre eles. Peço que não mencione este
assunto a minha filha, porque ... Bem, você não está me pedindo para dizer por quê.

Ella estava no jardim quando o carro chegou. A vista de Elk, o sorriso abandonou-lhe a
face. Elk entendeu instintivamente que a preocupação com o irmão, a possibilidade de que
ele estivesse metido em confusão eram as causas da apreensão.

— O Sr. Elk visitou-me para fazer algumas perguntas sobre o ataque contra o Sr. Gordon
— disse brevemente o pai.

Bennett podia ser lá o que fosse, pensou Elk, mas era um mau mentiroso que não
conseguia convencer.

t36
Tinha certeza de que a moça não estava convencida. E quando ficaram a sós, ela
perguntou:

— Alguma coisa errada, Sr. Elk? — Nada, senhorita. Vim até aqui apenas para esfriar a
cabeça, que, aliás, nunca foi boa, especialmente em matéria de datas. Na realidade, a única
data de que me lembro é a do desembarque de Guilherme, o Conquistador... 1140, ou
aproximadamente isso. Seu irmão voltou para a cidade?

— Partiu ontem à noite — disse ela, e acrescentou, quase em tom de desafio: — Ele está
numa posição muito boa agora, Sr. Elk

— Foi o que me disseram — disse Elk. — Espero que não esteja trabalhando no mesmo
lugar que a turma que anda com ele. Não vou perdê-lo de vista, Srta. Bennett — disse o
inspetor, num tom de voz muito gentil. — Talvez eu seja capaz de acertar com a coisa
exata num desses dias. Ele não ouviria agora se eu lhe dissesse ”Pare!”. Naturalmente, ele
está sob um estado emocional que o pressiona bastante. E, de certa maneira, está agindo
certo. O que não se conhece aos 21 anos nunca se conhecerá ... Qual é aquela palavra que
começa com um ”z”?... Zênite, é isso. Ele está no zênite de sua segurança e autoconfiança.
Daqui por diante, começará a descarregar o fardo de sonhos que tem como lastro. Mas
não gostará nada de ouvir o trabalho dos guindastes.

— Fala como um marinheiro — ela sorriu, apesar da preocupação.

— Há muito tempo — disse Elk —, fui a mesma coisa que o velho Maitland, embora
nunca tenha navegado como ele ... Acho que ele deixou o mar anos antes de eu nascer.
Gosta dele?

— Do Sr. Maitland? Não! — respondeu ela com um tremor. — Acho que é um bom
homem detestável.

Elk não discordou. Ao voltar, confessou seu engano a Dick Gordon. — Não sei por que
fui em cima de Bennett — disse. — Estou ficando bobo! ... Vi que os jornais da noite
publicaram matéria sobre o assalto.

— Mas não sabem o que foi roubado — disse Dick em voz baixa. — Isso deve continuar
em segredo.

87
Estavam num escritório interno, que Dick ocupava temporariamente. Enquanto dois
homens trabalhavam em seu escritório maior, substituindo uma divisória que fora
destroçada no atentado cometido contra ele na manhã em que Elk entrou no caso. Era
sintomático o efeito que as Rãs exerciam sobre a chefatura. Elk e Gordon, quase
maquinalmente, examinaram os braços esquerdos da dupla de trabalhadores. A visão da
divisória atingida no atentado levou os pensamentos do inspetor para um assunto que ele
já tentara abordar anteriormente: a identidade do vagabundo de nome Carlo. A despeito
das precauções que Gordon tinha tomado, e embora estivesse sob observação, Carlo tinha
desaparecido. Os esforços combinados das chefaturas e dos departamentos rurais não
conseguiram localizá-lo. Era um assunto delicado, que Elk teria de tratar com Gordon.

Pois Carlo era o célebre ”Número Sete”, o homem mais importante na organização depois
da própria Rã.

— Gostaria de me encontrar com Carlo — disse, pensativamente, o Inspetor Elk. — Não


faz sentido mandar outro homem continuar a missão de Genter. O sistema não funciona
duas vezes da mesma maneira. Tinha vontade de saber o que Lola sabe.

— Das Rãs? Eles não confiariam numa mulher — disse Dick. — Talvez trabalhe para
eles, mas, como você mesmo disse, eles pegam pessoas de fora para tarefas especiais,
pessoas que são muito bem pagas.

Elk não levou o assunto adiante e passou o resto do dia fazendo investigações infrutíferas.
Naquela noite, voltando para sua sala na chefatura, ficou por muito tempo curvado na
cadeira, as mãos enfiadas nos bolsos das calças, olhando para o mata-borrão que forrava a
mesa. Depois, tocou uma campanhia e o funcionário Balder atendeu.

— Vá até o arquivo e traga-me tudo que houver sobre arrombadores de cofres. Não
precisa preocuparse com alemães nem franceses, mas um ou dois suecos são
extremamente astutos e, naturalmente, há também os americanos.

O funcionário voltou após longo intervalo. Vinha com uma considerável pilha de papéis,
fotos e impressões digitais.

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— Pode ir agora, Balder. O homem da noite arruma a papelada.

O Inspetor sentou-se para desfrutar uma leitura pela noite adentro. Estava chegando ao
fim da pilha quando deu com o retrato de um jovem de bigodes caídos e cachos de cabelo
crespo. Era uma daquelas fotos supernítidas, bem ao gosto dos policiais não-românticos
que fotografam. Mostravam qualquer imperfeição de pele que houvesse. Embaixo da foto,
vinha o nome, cuidadosamente impresso: ”Henry John Lyme, RV.”

”RV.” era o código da prisão. Cada ano, de 1874 a 1899, era indicado por uma letra
maiúscula em ordem alfabética. Em seguida, vinham as minúsculas. O R significava que
Henry J. Lyme fora condenado a cumprir uma pena em 1891. O v dizia que sofrera um
período adicional de reclusão penitenciária em 1895.

Elk leu a ficha breve e terrível. Nascido em Guernsey, em 1873, fora condenado seis vezes
antes de completar 20 anos (as penas menores não vinham indicadas por letras no código).
No rodapé da folha, onde as particularidades do crime eram arroladas, havia as palavras:
”Perigoso; porta armas de fogo.”

Com um manuscrito de letra diferente, e com tinta vermelha, usada como fecho dos
currículos de criminosos estava escrito:

”Morto no mar. Channel Queen. Black Rock. Primeiro de fevereiro de 1898.”

Elk lembrou-se do naufrágio do paquete em Black Rock.

Virou a página para ler os detalhes dos crimes cometidos pelo morto, bem como os
comentários dos que, esporadicamente, entraram em contato oficial com ele. Em tais
fragmentos de descrição estava a biografia real. ”Trabalha sozinho”, era um comentário, e
outro: ”Não há pista de mulheres. Mulheres nunca foram vistas com ele.” Foi difícil
decifrar um terceiro fragmento, mas quando Elk por fim conseguiu dominar a letra
diabólica, chegou a erguer-se um pouco na cadeira, excitado. Dizia:

”Apresentando marcas no corpo em geral DCP 14. — rã tatuada no pulso esquerdo.


Recente. JJM.”

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A data da observação era a da última condenação do homem. Elk deixou de lado a ficha
DCP 14 e chegou a um formulário que trazia o rótulo ”Descrição do Condenado”. O
número era o da classificação. Não havia menção de rãs tatuadas; alguém tinha sido
negligente. Palavra por palavra, o inspetor leu a descrição:

”Henry John Lyme, a. Jovem Harry, a. Thomas Martin, a. Boa Paz, a. Harry Garotão
[havia cinco linhas de alcunhas e apelidos]. Altura: 1,68m. Tórax: 96. Compleição sadia,
olhos castanhos, bons dentes, boca regular, covas no queixo. Nariz aquilino. Cabelos
castanhos, ondulados e compridos. Rosto redondo. Bigodes caídos; usa costeletas. Pés e
mãos normais. Dedo mínimo do pé esquerdo amputado de uma das juntas, devido a
acidente. Penitenciária HM, Portland. Fala bem, tem boa letra. Nenhum hobby. Fuma
cigarros. Apresenta-se como funcionário público, cobrador de impostos, inspetor
sanitário, bombeiro hidráulico ou gasista. Fala francês e italiano com fluência. Nunca
bebe; joga cartas eventalmente, mas não é jogador. Esconderijos prediletos: Roma ou
Milão. Nenhuma condenação no exterior. Não tem parentes. Excelente organizador.
Imediatamente após um crime, pode ser encontrado num bom hotel em Midlands ou
trabalhando para o estaleiro Hull de navios holandeses e escandinavos. Foi reconhecido ao
visitar Guernsey.”

Depois, seguiam-se as medidas de Bertillon e as observações sobre marcas corporais, pois


a ficha datava de antes da introdução do sistema de impressões digitais. Mas não havia
menção da tatuagem da Rã no pulso esquerdo. Elk mergulhou a pena no tinteiro e anotou a
data do desaparecimento do criminoso. Embaixo, acrescentou:

”Este homem ainda pode estar vivo”, e assinou suas iniciais.

90
CAPÍTULO 10

No Harley-Terrace

Enquanto escrevia, o telefone tocou. Com seu jeito descontraído, Elk terminou suas
anotações e secou-as com o mata-borrão antes de levantar o fone.

— O Capitão Gordon quer que o senhor pegue o primeiro táxi que encontrar e vá até a
casa dele. O assunto é muito urgente — disse uma voz. — Estou falando do Harley
Terrace.

Elk procurou o chapéu e o guarda-chuva, demorouse o tempo suficiente para repor as fichas
no arquivo e ganhou o pátio escuro.

Há duas saídas da Scotland Yard: uma leva a Whitehall, sem dúvida o melhor caminho para
o inspetor, pois Whitehall está sempre cheia de táxis; a outra conduz a Thames
Embankment e, além de ser um trajeto mais longo, o deixaria num cruzamento em que,
àquela hora da noite, os táxis estariam distantes ou seriam raros. Elk estava tão
envolvido em seus pensamentos que se viu no Embankment antes de perceber para onde
estava indo. Ele virou na Bridge Street, na direção do Parlamento, achou um táxi velho e
deu o endereço. O motorista era idoso e provavelmente estava um tanto bêbado, pois, em
vez de parar no número 273, ultrapassou-o em uma dúzia de casas, só parando de todo com
a furiosa admoestação do passageiro.

91
— Que há com você, Noé? Não estamos no Monte Ararat! — Elk rosnou ao descer. —
Você está embriagado, velho.

— Queria estar — murmurou o motorista, erguendo a mão para apanhar o dinheiro.

Elk teria discutido o problema, não fosse a urgência da convocação. Enquanto esperava
que o chofer desabotoasse seus muitos casacos para dar o troco, olhou para trás, ao longo
da rua. Havia um carro parado junto à porta da casa de Dick Gordon, apenas com as
lanternas acesas. Por si mesmo, isso não era digno de nota. Já não era o caso dos dois
homens em pé na calçada. Tinham as costas viradas para o calçamento, cada um (como
Elk previra) de um lado da porta. O ronco baixo do motor do carro chegou até ele. O
inspetor chegou-se para trás e fez com que toda a extensão da calçada oposta entrasse em
seu campo de visão. Havia dois outros homens, perambulando também, do lado
exatamente oposto ao n9 273.

Elk olhou em volta. O táxi tinha parado em frente a um consultório médico. O detetive
não demorou muito para tomar uma decisão.

— Espere até que eu volte. — Não se demore — queixou-se o idoso motorista. — Os


bares vão fechar daqui a 15 minutos.

— Ora, espere Baco — disse Elk, que tinha pouca familiaridade com a mitologia antiga,
mas sabia vagamente como citá-la. ”Baco” resmungou, mas ia esperar.

Felizmente, o médico estava em casa. Elk revelou-lhe a identidade. Em poucos segundos,


falava ao telefone com a delegacia de polícia de Mary Lane.

— Aqui é Eik, do Escritório Central — disse rapidamente, dando o número de código. —


Mande quem você tiver á, mão para as proximidades do Harley Terrace, acima e abaixo
do número 273. Faça parar todos os carros no momento em que eu der um sinal: duas
piscadas de lanterna. Daqui a quanto tempo os homens estarão aqui?

— Em cinco minutos, Sr. Elk. Os carros de ronda estão na rua. Tenho aqui dois
caminhões, os motoristas foram presos por embriaguez.

92
Ele repôs o fone no gancho e foi para a sala ao lado.

— Alguma coisa errada — perguntou o médico, sobressaltado, quando Elk sacou sua
automática e empurrou a trava de segurança.

— Assim espero, senhor — disse Elk pensativamente. — Se convoquei todas as divisões


apenas porque alguns sujeitos inocentes estão debruçados nas grades do Harley Terrace,
vou meter-me em confusão.

O detetive esperou cinco minutos, depois abriu a porta e saiu. Os outros continuavam lá.
Elk viu dois caminhões entrarem no cruzamento vindos de lados opostos. Os veículos
manobraram no meio da rua e pararam.

A lanterna de bolso do detetive acendeu para a esquerda e para a direita. Depois, ele pulou
para a calçada.

Viu então que suas suspeitas eram justificadas. Na calçada oposta, os homens
atravessaram repentinamente a estrada e saltaram para o estribo do carro, que manteve os
faróis apagados ao se mover. Ao mesmo tempo, os dois que estavam vigiando a entrada
do 273 pularam para dentro do veículo. Mas os fugitivos se tinham atrasado. O carro
rodopiou para evitar o bloqueio dos caminhões, mas, ao voltar-se em direção contrária, foi
atingido por trás. Houve a colisão, o barulho de vidros quebrados e, quando Elk chegou ao
local, os cinco ocupantes do automóvel já estavam nas mãos de policiais em trajes civis,
que se tinham apinhado no outro lado da rua.

Os prisioneiros não resistiram à captura. Um deles (o motorista), que tentara


arrojadamente puxar um revólver, foi imediatamente imobilizado e algemado, mas os
outros não deram trabalho.

Na delegacia, Elk examinou os detidos. Quatro excelentes espécimes da casta dos


vagabundos, usando desconjuntadamente seus novos ternos comprados prontos. O quinto,
que deu um nome russo, era o chofer, um homenzinho de olhos pequenos e vivos, que
passeava constrangidamente o olhar de cara a cara.

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Dois dos prisioneiros conduziam revólveres carregados; no carro, os policiais encontraram
quatro bengalas muito pesadas.

— Tirem os casacos e arregacem as mangas — ordenou o inspetor.

— Não precisa preocupar-se, Elk — falou o pequeno chofer. — Todos os nossos rapazes
são boas Rãs.

— Não existem boas Rãs — disse Elk. — Existem apenas Rãs más, Rãs piores e a pior de
todas as Rãs. Mas não vamos discutir. Ponha esses homens nas celas, sargento,
separados uns dos outros. Levarei Litnov para a chefatura.

O chofer olhou abatido de Elk para o sargento de serviço.

— Qual é a grande idéia? — perguntou. — Não esqueça que sou estrangeiro.

— As leis têm se modificado — disse Elk com ar ameaçador, tornando a apertar as


algemas nos pulsos do detido.

A lei não se tinha modificado, mas o pequeno russo não sabia. Durante a viagem para a
chefatura, ele resmungou consigo mesmo. Ao ser empurrado para a sala sem adornos de
Elk, estava pronto para falar...

Quando o detetive voltou ao Harley Terrace, Dick estava à espera. Elk contou-lhe toda a
história.

— Só percebi que era um plano quando vi os rapazes ’à minha espera — disse Elk. —
Naturalmente, você não me telefonou; eles me pegaram desprevenido. É incrível! As Rãs
estão por todo lado! Esperavam que eu saísse da chefatura pela porta de Whitehall.
Tinham um táxi esperando para me levar, mas, no caso de me perderem (como de fato
aconteceu), um grupo me encontraria no Harley Terrace. Perfeito!

— Quem deu as ordens? Elk abanou os ombros. — O Sr. Ninguém Litnov recebeu as
suas pelo correio. A carta trazia ”Sete” como assinatura. Deulhe o ponto de encontro e
isso foi tudo. Diz que nunca viu uma Rã desde que foi iniciado. Não se lembra de onde
foi seu juramento de iniciação. O carro pertence às Rãs, mas fica com ele uma semana por
mês. Habitualmente, é empregado do Heron’s Club, onde dirige

94
um caminhão. Disse-me que existem mais 20 carros escondidos em algum lugar de
Londres, cada um numa garagem, e cada um tem seu próprio chofer, que vai uma vez na
semana dar uma olhada na máquina.

— Heron’s Club... É nesse clube de dança que Lola e Lew Brady estão interessados! —
disse Dick pensativamente. Elk refletiu.

— Não tinha pensado nisso. Evidentemente, isso não quer dizer que o gerente do Heron’s
saiba alguma coisa do trabalho noturno de Litnov. Vou fazer uma visita a esse clube.

Não teve de fazê-lo. Na manhã seguinte, chegando ao escritório, encontrou um homem à


espera.

— Sou o Sr. Hagn, gerente do Heron’s Club — o outro se apresentou. — Soube que um
dos meus homens se meteu em encrencas.

Hagn era um sueco alto e bem-apessoado, que falava sem qualquer vestígio de sotaque
estrangeiro.

— Como soube disso, Sr. Hagn? — perguntou Elk, com voz carregada de suspeita. — O
homem está incomunicável desde a noite passada. Não teve contato com ninguém.

O Sr. Hagn sorriu. — O senhor não pode prender pessoas e levá-las para uma delegacia
sem que alguém fique sabendo disso — disse ele com razão. — Um dos garçons viu
Litnov ser levado para a delegacia de Mary Lane. Como Litnov não se apresentou no
trabalho esta manhã, a conclusão foi evidente. Qual é o problema, Sr. Elk?

Elk balançou a cabeça. — Não lhe posso dar qualquer informação sobre o assunto —
disse.

— Posso ver Litnov? — É impossível — disse Elk. — Ele tem dormido bem e manda
lembranças a todos os amigos.

O Sr. Hagn pareceu angustiado. — É possível perguntar-lhe onde pôs a chave do porão?
— insistiu. — É muito importante saber. Geralmente, Litnov fica com ela.

O detetive hesitou.

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— Posso perguntar — disse ele e, deixando o Sr. Hagn sob os olhos vigilantes de seu
auxiliar, cruzou o pátio e chegou à cela onde o russo estava trancado.

Litnov ergueu-se da cama de tábuas quando a porta da cela se abriu.

— Há um amigo seu aqui — disse Elk. — Quer saber onde pôs a chave do porão.

Houve um insignificante raio de luz e compreensão nos olhos do homenzinho, mas Elk o
captou.

— Diga-lhe que acho que ficou com o homem de Wandsworth — explicou o prisioneiro.

— Hum . . . ! — disse Elk, voltando ao encontro de Hagn.

— Disse que a deixou em Pentonville Road — mentiu Elk, mas o Sr. Hagn pareceu
satisfeito.

Retornando às celas, Elk deparou-se com o carcereiro.

— Este homem tem perguntado para onde o levarão daqui? — Elk quis saber.

— Sim, senhor — disse o outro. — Disse-lhe que iam levá-lo para a prisão de
Wandsworth. Geralmente, dizemos aos prisioneiros para onde vão recambiá-los, para
que possam avisar aos parentes.

A conjectura de Elk fora correta. A pergunta sobre a chave estava combinada. Um


telefonema para Mary Lane, onde o resto ido grupo estava detido, resultou na curiosa
informação de que uma mulher, supostamente esposa de um dos homens, tinha ido à
delegacia naquela manhã. Como não deixaram que se avistasse com o preso, ela também
perguntou sobre a chave perdida do porão. Saiu informada de que estava com o ”homem
de Brixton”.

— Os homens serão transferidos para a prisão de Wormwood Scrubbs — ordenou Elk —,


mas ninguém lhes dirá para onde vão.

Naquela tarde, um furgão da penitenciária saiu de Cannon Row e desceu Whitehall com
estrondo. No cruzamento de St. Martin’s Lane com a Avenida Shaftesbury, o motorista
descuidado de um caminhão bateu de lado no utilitário, amassando-o junto de um dos
pára-lamas. Instantaneamente, vinda não se sabe de onde, surgiu uma multidão de aspecto
incrível. Era

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como se todos os vagabundos do mundo lá estivessem, esperando a chance de se lançarem
sobre o furgão paralisado. A porta tinha se aberto e o carcereiro de serviço gritava para
que se afastassem. Antes que ele conseguisse manobrar o furgão, de dentro dele saíram
20 homens do Escritório Central e, das ruas laterais, surgiu um grupo da polícia montada,
caceteies na mão. O tumulto durou menos de três minutos. Alguns dos homens de
aparência selvagem conseguiram escapar, mas a maioria, algemada dois a dois, teve de
seguir entre a escolta montada a cavalo.

Dick Gordon, que também tinha alguma coisa de organizador, assistiu à luta do teto de um
ônibus, que, repleto de policiais, tinha se aproximado do furgão. Depois de contida a
agitação, ele foi juntar-se a Elk.

— Você prendeu alguém importante? — perguntou.

— É cedo demais para dizer — respondeu Elk. — Para mim, são delinqüentes ordinários.
Acho que, a esta hora, Litnov já deve estar em Wandsworth. Mandei-o num carro fechado
da polícia, antes da partida do furgão.

Chegando à Scotland Yard, ele alinhou as Rãs em duas fileiras. A distância, uma multidão
de curiosos apinhava ambas as entradas. Elk inspecionou um a um os pulsas dos detidos;
em cada um, a marca tatuada estava presente.

Por fim, deu a triagem por encerrada. Os presos foram conduzidos a um pátio interno, sob
a vigilância de guardas armados.

— Um homem está querendo falar com o senhor, inspetor.

A última fila já tinha desaparecido quando um dos guardas de serviço transmitiu a


solicitação. Elk trocou um olhar com seu chefe.

— Atenda-o — disse Dick. — Não podemos nos dar ao luxo de desperdiçar qualquer
informação.

Um policial trouxe uma das Rãs diante deles — um homem alto, com barba de uma
semana, miseravelmente vestido e sujo. O chapéu surrado lhe caía sobre os olhos, os
pulsos fortes eram visíveis debaixo das

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mangas de uma jaqueta que, certamente, havia sido feita para um homem menor.

—, Bem, Rã? — disse Elk, abordando-o com veemência. — Qual é o seu pio?

— Pio é uma boa palavra — disse o homem e, ao som da voz dele, Elk olhou-o fixamente.
— Você não pensa — continuou o outro — que seu velho carro da polícia está chegando
a Wandsworth, não é mesmo?

— Quem é você? — Elk perguntou, espreitando-o com curiosidade.

— Eles estão atrás de Litnov para ajustar umas contas — disse a Rã. — Se o pobre peixe
julga que é o amor fraternal que faz a velha Rã se meter em toda esta encrenca, uma boa
surpresa lhe está reservada.

— Broad! Quê... ! O americano lambeu os lábios e apagou a rã do pulso.

— Explicarei mais tarde, Sr. Elk, mas ouça um conselho de amigo e entre em contato
com Wandsworth.

O telefone de Elk tocava furiosamente quando ele chegou a sua sala.

Era a chefatura de Wandsworth chamando. — Seu carro de polícia foi atacado no


Common, dois de seus homens estão feridos e o prisioneiro foi morto a tiros — era a
mensagem.

— Obrigado! — disse Elk amargamente.

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CAPÍTULO 11

As explicações do Sr. Broad

Posto sob custódia da policia, o Sr. Broad não parecia de modo algum surpreso ou
desconcertado. Dick Gordon e seu assistente chegaram a Wandsworth Common 10
minutos depois de saberem da notícia, e encontraram os destroços do carro da policia
cercados por grande multidão, conservada a distância pelos policiais.

O prisioneiro morto fora levado para a prisão, juntamente com um dos atacantes, capturado
por um grupo de guardas que voltavam ao xadrez depois da hora do almoço.

Um rápido exame de Litnov não revelou mais do que já sabiam. Fora alvejado no coração.
A morte devia ter sido instantânea.

O prisioneiro, trazido de uma cela, era um homem de 30 anos, mais bem-educado que a
maioria das Rãs. Nenhuma arma foi encontrada com ele, que protestava sua inocência
quanto a qualquer cumplicidade no tumulto. Conforme as declarações que prestou, era um
funcionário público desempregado que descia o Common quando a cilada foi posta em
prática. Ele assistira à luta, vira o carro que conduzia os atacantes ir embora, e fora detido
enquanto corria em perseguição dos assassinos.

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Seus captores contavam uma história diferente. O guarda diretamente responsável pela
prisão disse que o homem estava quase pulando no carro que fugia. Dera-lhe com o
cassetete e o derrubara no momento em que o carro arrancava. O grupo que escapava não
se atreveu a parar para auxiliar o companheiro. Mas a maior de todas as evidências de
cumplicidade era a tatuagem em seu pulso.

— Rã, você é um homem morto — disse Elk com sua voz mais sepulcral. — Onde você
morava quando estava vivo?

O detido confessou que sua casa ficava na parte Norte de Londres.

— Os londrinos do Norte não vêm a Wandsworth para passear no Common — disse Elk.

Ele tinha uma entrevista com o chefe da guarda e, levando o prisioneiro para o pátio, disse
sem rodeios o que estava pensando.

— Que vai acontecer se você der com a língua nos dentes, Rã? — ele perguntou.

O homem mostrou os dentes com um sorriso desagradável.

- Meus dentes ainda estão suficientemente firmes — disse ele.

Elk olhou em volta. O pátio quadrangular - era pequeno, pavimentado com pedra e
cercado por muros altos e manchados. Num deles, havia um pequeno depósito com portas
cinzentas.

— Venha cá — disse Elk. O Inspetor pegou a chave com o chefe da guarda, destrancou
as portas e empurrou-as. Elas levavam a um recinto vazio, limpo, com muros caiados.
Através do teto corriam duas fortes ripas de carvalho e, entre elas, três barras estreitas de
aço.

O prisioneiro franziu a testa quando Elk caminhou para uma alavanca comprida de aço,
junto a uma das paredes.

— Veja, Rã! — disse ele. Ele puxou a alavanca e um alçapão se abriu com um rangido,
revelando um poço profundo, com paredes de tijolos.

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— Veja esse alçapão... Está vendo a marca ”T” feita com giz? É onde o homem põe os
pés quando o carrasco lhe amarra as pernas. A corda fica pendurada naquela viga, Rã!

O rosto do preso ficou lívido e ele recuou. — Você... não pode ... me enforcar... — ele
ofegou. — Eu não fiz nada!

— Você matou um homem — disse Elk, enquanto puxava e trancava as portas. — Você é
o único sujeito que temos e terá de sofrer por todos os outros. Seus dentes ainda não
estão preparados?

O prisioneiro levou a mão trêmula aos lábios. — Vou falar tudo que sei — disse com voz
cavernosa.

Elk levou-o de volta à cela. Uma hora mais tarde, Dick corria de volta à chefatura com um
monte de informações. A primeira coisa que fez foi chamar Joshua Broad, e o
”vagabundo” com cara de águia apresentou-se com satisfação.

— Agora, Sr. Broad, quero ouvir sua história — disse Dick, fazendo sinal para que o outro
se, sentasse.

Joshua acomodou-se lentamente. — Não há muito que contar. Durante uma semana
procurei entrar em contato com as Rãs. Achei pouco provável que não se conhecessem
entre si, e resolvi aferrar-me ao primeiro vagabundo que encontrasse. Encontrei-o numa
casa de cômodos em Deptford, onde fiquei sabendo que havia uma chamada urgente para
um grande serviço hoje e comprometi-me a participar. As Rãs sabiam que o verdadeiro
ataque poderia ser alguma coisa diferente do que estavam pensando. No caminho para a
Scotland Yard, ouvi que haviam destacado um grupo para esperar Litnov em Wandsworth.

— Viu algum dos chefes? Broad balançou negativamente a cabeça. — Todos pareciam
ter a mesma importância, mas sem dúvida havia dois ou três líderes de turma em serviço.
Nenhum problema de livramento foi discutido. Eles estavam preparados para matar.
Sabiam que Litnov dissera tudo que sabia; estava condenado. Eles o pegaram, não?

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— Sim... Eles o pegaram! — disse Dick, e acrescentou: — Qual é o seu interesse nas Rãs?

— Puramente fortuito — respondeu o outro, num tom indolente. — Sou um homem rico,
com muito tempo livre à minha disposição, e tenho grande interesse pela criminologia.
Ouvi falar das Rãs há alguns anos. Isso apoderou-se de minha imaginação. Desde então,
tenho seguido a pista delas.

O olhar de Joshua Broad não se perturbou sob a inspeção de Dick Gordon.

— Seria capaz de me contar — disse Dick com serenidade — como você se tornou um
homem rico? Chegou a este país no fim da guerra, num cargueiro que transportava gado
— com cerca de 20 dólares no bolso. Contou a Elk que chegou assim, e falou a verdade.
Tenho quase tanto interesse em você quanto nas Rãs — disse ele com um meio sorriso —
e estive procedendo a algumas investigações. Você chegou à Inglaterra em 1917 e
desertou de seu navio. Em maio de 1917, você alugou uma velha cabana em ruínas perto
de Eastleigh, em Hampshire. Ali você morou, fazendo consertos na casa e sobrevivendo,
pelo que pude descobrir, com os poucos dólares que trouxe do navio. Depois, de repente,
você desapareceu, e em seguida foi visto em Paris, na véspera do Natal daquele ano.
Chamou a atenção por socorrer uma família que estava soterrada numa casa atingida por
um bombardeio aéreo. Seu nome foi anotado pela polícia, que pretendia recompensá-lo de
alguma maneira. O relatório da polícia francesa diz que estava ”vestido muito
pobremente” — pensaram que pudesse ser um desertor do Exército americano. Em
fevereiro, estava hospedado no Hotel de Paris, em Monte Carlo, com muito dinheiro e um
vasto guarda-roupa!

Joshua Broad manteve-se imóvel durante todo o relatório. Apenas o esboço de um sorriso
aparecia no canto da boca, cercada de uma barba por fazer.

— Certamente, capitão, Monte Carlo é o tipo de lugar onde um homem poderia ter
dinheiro.

— Certamente, mas se o tivesse levado para lá consigo — disse Dick e continuou: — Não
estou sugerindo que seja um mau caráter ou que seu dinheiro não tenha

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chegado de um modo lá muito honesto. Estou simplesmente afirmando que sua súbita
passagem de pobre a rico foi, pelo menos, notável.

— Sem dúvida — concordou o outro —, e, julgando pelas aparências, minha


transformação de rico em pobre apresenta-se igualmente repentina.

Dick apreciou a aparência suja do vagabundo no outro lado da mesa. Riu baixo.

— Está pretendendo dizer que se consegue disfarçar agora, também conseguia naquela
época, e que, embora estivesse aparentemente sem um tostão em 1917, poderia muito bem
já ser um homem rico?

— Exatamente — disse o Sr. Joshua Broad. Gordon ficou sério outra vez. — Gostaria
que cuidasse um pouco mais de sua aparência — disse ele. — Detesto dizer a um
americano que talvez seja obrigado a deportá-lo, pois voltar aos Estados Unidos parece
uma punição. Mas posso ficar sem outra alternativa.

Joshua Broad ficou de pé. — Isso, Capitão Gordon, é demasiado vago para soar como
insinuação e demasiado gentil para soar como ameaça — mas de hoje em diante, Joshua
Broad passa a ser um respeitável membro da sociedade. Vou comprar a casa do Príncipe
de Caux e me transformar num moderno Harun al Raschid. Tenho de achar alguma forma
de levar isso a cabo.

Com a menção daquela casa noturna, que custara a liberdade de um rei para ser construída
e o dote de uma rainha para ser mobiliada, Dick sorriu.

— Não é necessário mostrar sua respeitabilidade desse modo — disse o capitão, mas
Broad não riu.

— A única coisa que peço é que não advirta a polícia para cassar minha licença — disse
ele.

As sobrancelhas de Dick levantaram-se. — Licença? — Eu carrego dois revólveres, e


está chegando o tempo em que dois não serão suficientes — disse o Sr. Broad. — E está
chegando depressa.

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CAPÍTULO 12 O embelezamento do Sr. Maitland

Naquela noite, houve um concerto em Queen’s Hall, e o espaçoso auditório estava


amontoado de gente para ouvir o recital de verão de um grande violinista. Dick Gordon,
no meio de um trabalho noturno, lembrou-se de que reservara uma poltrona. Sentia-se
abatido, estafado, inclinado ao desânimo. Recebera um bilhete de Lorde Farmley pedindo
ação imediata para recuperar o tratado comercial perdido. Era uma nota escrita por um
homem muito preocupado, que não percebia que o tom de sua mensagem transmitiria o
pânico justamente a quem não deveria lançar-se afobadamente numa ação precipitada.
Era uma carta humana, mas imprópria a um estadista. Dick, no entanto, resolveu proceder
com planejamento.

Quando acabou de se vestir, lembrou ser mais que provável que as oniscientes Rãs
soubessem de sua reserva. Mas tinha de correr o risco, se risco houvesse. Telefonou para a
garagem onde guardara seu próprio cprro e alugou um automóvel fechado. Em 10
minutos, era uma das 2 mil pessoas que, fascinadas, ouviam o mestre. No intervalo, saiu
para fumar no vestíbulo. Praticamente, a primeira pessoa que avistou foi um homem da
chefatura, que fugiu ao seu olhar. Havia outro detetive na escada que conduzia ao bar; um
terceiro policial estava fumando nos degraus do saguão.

lÕ4
Mas a surpresa da noite não foi a constatação de que Elk tomara suas precauções. O sino
que anunciava o reinicio do espetáculo tinha soado, Dick ia jogar o cigarro fora, quando
uma esplêndida limusine parou diante do prédio. Um elegante criado desceu para abrir a
porta e um homem pisou decididamente na calçada: Sr. Ezra Maitland!

Dick ouviu um suspiro atrás dele e, virando a cabeça, deparou-se com Elk, vestido com a
única roupa a rigor que possuía.

— Pela mãe de Moisés — disse ele, com voz espan tada.

E havia motivo para espanto. Não apenas o Sr. Maitland entrava ostentando a riqueza de
um monarca reinante — adornos de prata luzindo no corpo e empregados dispendiosamente
uniformizados — mas, além disso, o velho estava usando um traje no rigor da moda. A
barba fora encurtada em algumas polegadas e uma pesada corrente de ouro rodeava o
colete imaculadamente branco. A luz da rua, muitos anéis brilhavam e chamejavam em
sua mão. Havia uma camélia na lapela impecável e, na cabeça, o mais lustroso chapéu de
seda. Apoiando-se numa bengala de ébano e marfim, ele atravessou empertigadamente a
calçada.

— Polainas de seda ... sapatos de verniz. Meu Deus! Olhe os anéis — sibilou Elk.

A irreverência do inspetor era desculpável. A imagem do esplendor atravessou as portas do


vestíbulo.

— Ele está alegre! — disse Elk numa voz abafada, seguindo o outro como um homem que
sonhasse acordado.

De onde se tinha colocado, Dick teve boa visão do milionário. Durante toda a segunda
parte do programa, Maitland conservou-sé com os olhos fechados. Começava a aplaudir
tão devagar depois de cada peça que Dick não teve dúvidas de que o velho dormia e era
despertado pelo aplauso dos outros.

Uma vez surpreendeu-o sufocando um bocejo bem no meio do segundo movimento do


concerto para violino de Elgar, que mantinha a audiência em suspenso por sua delicada
beleza. Com suas mãos enormes, agora envolvidas em brilhantes luvas brancas, cruzadas
sobre

105
o estômago, a cabeça do Sr. Maitland hesitou e caiu para a frente.

Quando finalmente o concerto terminou, ele olhou temerosamente ao redor, como se


quisesse adquirir certeza absoluta de que tinha acabado. Depois, levantouse e saiu do salão,
o chapéu de seda levado desajeitadamente na mão.

Um empresário foi apressado ao encontro dele. — Espero que tenha gostado, Sr.
Maitland, — Dick ouviu-o dizer.

— Muito bom, muito bom — respondeu grosseiramente Maitland. — Esse violinista toca
muito bem alguns tons, embora não haja nada comparável a uma trompa de pistões para
acompanhar um violino.

O empresário olhou-o de boca aberta; depois, correu para ajudar o velho a entrar no carro.

— Sorrindo ... Ele está sorrindo! — disse Elk, tão confuso quanto o empresário. — Com
mil demônios! Quem era essa pessoa?

Ele dirigiu a pergunta desnecessária ao empresário, que acabara de cumprir as honras da


casa.

— Essa pessoa é Maitland, o milionário, Sr. Elk — disse o outro. — Foi a primeira vez que
veio aqui, mas agora que ele está morando na cidade...

— Onde está morando? — Elk perguntou. — Ele arrendou a casa do Princípe de Caux,
em Berkeley Square.

Elk pestanejou diante do empresário. — Pode repetir? — Ele arrendou a casa do


Príncipe de Caux — repetiu o outro. — Ou ainda melhor, acabou de comprála... o agente
disse-me esta tarde.

Elk foi incapaz de fazer qualquer comentário e o empresário continuou o surpreendente


relato.

— Não acho que ele conheça muito de música, mas reservou lugares para todos os
grandes eventos musicais da próxima estação. Seu secretário veio aqui esta tarde. Parecia
um pouco atordoado.

”Pobre Johnsonl”, pensou Dick. — Ele queria que eu marcasse lições de dança para o
velho garotão...

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Elk levou a mão à boca e teve um insano desejo de estourar de rir.

— E o fato é que as marquei. Ele está um tanto velho, mas Sócrates ou alguém parecido
aprendeu grego aos 80 anos. Talvez o Sr. Maitland esteja lamentando os anos perdidos
de sua vida. Admito ser um pouco tarde para ele começar a freqüentar clubes noturnos...

Elk pousou repreensivamente a mão no ombro do empresário.

— Certamente, está brincando comigo, irmão — disse ele. — E fiquei engolindo tudo que
você dizia... Você com uma cara tão séria quanto o mostrador do relógio de uma casa
velha! Tenho coragem suficiente para admitir que você conseguiu me fazer de bobo.

— Não creio que nosso amigo esteja tentando fazê-lo de bobo — disse Dick com voz
pausada. — Você realmente confirma o que acabou de dizer? O velho Maitland quer
tomar aulas de dança e freqüentar clubes noturnos?

— Certamente! — disse o outro. — Ele ainda não começou a dançar, mas esta noite já foi
ao Heron’s. Ouvi-o dizer isso ao chofer.

Era inacreditável, mas um tanto divertido. Na realidade, a coisa mais divertida do mundo, a
julgar pela cara de Elk.

O detetive estava decididamente assombrado pelas novidades.

— Estou pensando no Heron’s para terminar bem a noite — disse Elk, respirando
profundamente. Ele fez sinal a um homem de sua escolta. — De quanta gente você
precisa para cobrir o Heron’s Club? — perguntou.

— Seis — foi a resposta imediata. — Dez para invadi-lo e 20 se houver arruaça.

— Pegue 30 homens! — disse Elk enfaticamente.

Do exterior, o Heron’s era uma casa simples, mas era suficiente atravessar as portas
almofadadas para esquecer as características de sua face externa. Uma sala luxuosa
suavemente iluminada, com tapetes pesados, conduzia ao grande salão, simultaneamente
restaurante e pista de dança.

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Dick ficou no umbral da porta esperando a chegada do gerente. Admirou a riqueza e a
sugestão sutil de intimidade que o salão proporcionava. As mesas ficavam em volta de um
lustroso tablado retangular; de uma galeria nos limites da sala chegavam os acordes de
uma orquestra colorida. Na pista de dança, uma dúzia de casais balançava e deslizava ao
ritmo de uma melodia em staccato.

— Vício dourado — disse Elk, desdenhosamente. — Um perfeito antro de pecado e


auto-indulgência. Eu me pergunto quanto eles cobram pela comida ... Lá está
Matusalém.

”Matusalém”, uma figura que chamava a atenção, estava sentado na mesa mais visível
do salão. A cabeça lustrosa brilhava à luz dos candelabros de cristal. A barba patriarcal
lançava sua sombra sobre a camisa branca como a neve. Dick não o reconheceu de
imediato.

Em sua frente, repousava um grande caneco cheio de cerveja.

— De qualquer modo, ele é humano — disse Elk. Hagn chegou naquele momento,
sorrindo, afável, esforçando-se por ser agradável.

— É um prazer inesperado, capitão — disse ele. — Quer que eu o introduza? Mas não há
necessidade, cavalheiro! Todo oficial de polícia de sua categoria é um distinto membro
do clube.

Mostrando grande atividade, abriu caminho entre as mesas e indicou-lhes lugares vazios
num dos compartimentos. Os rostos de alguns dos convivas revelaram alarme com a
chegada dos novos hóspedes — pelo menos um escapou furtivamente e não voltou.

— Esta noite temos muita gente importante aqui — disse Hagn, esfregando as mãos. —
Vieram Lorde Belfin e senhora ... — ele mencionou outros — e aquele cavalheiro de
barba é o grande Maitland... seu secretário também está aqui, em algum lugar. Pobre
cavalheiro, sinto que ele não está bem. Eu mesmo o convidei. As vezes, é sempre bom
escolher ... como devo dizer? ... os mais altos servidores de pessoas importantes.

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— Johnson? — perguntou Dick, com surpresa. — Onde?

Pouco depois, ele viu o filosófico homem. Estava sentado num canto afastado, parecendo
constrangido e miserável em suas velhas roupas fora de moda. Diante dele havia um
copo que, Dick, adivinhou, continha suco de laranja.

Equilibrado na ponta da cadeira, era uma figura solene e assustada, com as grandes mãos
vermelhas pousadas sobre a mesa. Dick Gordon riu ligeiramente e cochichou com Elk:

— Vá e traga-o aqui! Elk, que nunca perdia a espontaneidade, caminhou entre os


dançarinos e alcançou o Sr. Johnson, que pareceu sobressaltado e apertou sua mão com o
vigor de um náufrago resgatado de uma ilha deserta.

— Foi muito gentil em convidar-me para sua mesa — disse Johnson, enquanto
cumprimentava Dick. — isto é novo para mim, e estou me sentindo tão à vontade quanto
uma galinha num pastel.

— Sua primeira visita? — E última — disse Johnson enfaticamente. — Essa não é a


espécie de vida que me agrada. Interfere em minha leitura e ... bem, é deprimente.

Seus olhos estavam fixados num ruidoso e pequeno grupo no compartimento oposto.
Gordon viu-os quase logo que se sentou. Ray, extremamente empolgado, Lola Bassano,
bela e ousadamente vestida, e a aparência pesada do ex-pugilista Lew Brady.

Pouco depois, com um suspiro, os olhos de Johnson moveram-se para o velho e


fixaram-se nele, fascinados.

— Não é um milagre? — perguntou, com voz abafada. — Em apenas 24 horas ele modifica
seus hábitos! Comprou a casa em Berkeley Square, chamou um exército de alfaiates,
mandou-me correndo reservar assentos de teatro, comprou jóias ...

Ele balançou a cabeça. — Não posso entender — confessou —, pois o velho continua o
mesmo no escritório. É o mesmo velho egoísta de sempre. Queria que eu me tornasse seu
secretário residente, mas eu reagi. Devo levar uma vida que valha a pena ser vivida. E o
que me assusta é que ele pode

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pôr-me na rua se eu não concordar. Seu humor esteve muito amargo esta semana. Será
que Ray já o viu?

Ray Bennett ainda não vira o antigo patrão. Estava demasiadamente envolvido na alegria de
estar com Lola, muito inspirado e estimulado por outras fontes materiais para se
interessar por qualquer coisa além de si mesmo e do imediato objeto de suas afeições.

— Está agindo como um tolo, Ray. Todo mundo está olhando para você — advertiu Lola.

Ray olhou em volta e pela primeira vez começou a reparar em quem estava no salão.
Pouco depois, seus olhos caíram sobre a cabeça reluzente do Sr. Maitland. O rapaz abriu
a boca. Não podia acreditar na evidência do que via. Levantando-se, caminhou sem
firmeza pela sala, esbarrando nos outros convivas, tropeçando em mesas e cadeiras, até
chegar junto da mesa de seu expatrão.

— Meu Deus! — exclamou num tom ofegante. — É mesmo o senhor!

O velho ergueu lentamente os olhos da toalha de mesa que estivera contemplando


firmemente por 10 minutos; os olhos de aço encontraram o olhar fixo de Ray.

— Seu venerável velho pecador! — Ray sussurrou. — Vá embora — rosnou o Sr.


Maitland. — Vá embora por quê? Tenho que lhe dar algumas palavras de conselho e
advertência, velho Moisés!

Ray sentou-se bruscamente numa cadeira e encarou sua resplandecente vítima com
embriagada solenidade. As palavras de advertência não chegaram a ser pronunciadas.
Alguém agarrou-lhe o braço, obrigando-o a levantar-se; ele viu o rosto sombrio de Lew
Brady.

— Olhe aqui ... começou, mas Brady agarrou-o e levou-o de volta à mesa de onde saíra.

— Seu cretino! — ele sibilou. — Por que está querendo chamar a atenção desta maneira?
Você é uma espécie de agente secreto!

— Não preciso ouvir nenhum de seus disparates — disse Ray furioso, soltando o braço
num repelão.

— Sente-se, Ray — disse Lola em voz baixa. — Metade da Scotland Yard está no clube,
vigiando você.

110
Ele seguiu-lhe a direção dos olhos e viu Dick Gordon fitando-o com gravidade. Ao ver e
tomar consciência da vigilância, a fúria deixou-o fora de si. Cruzou o salão num salto,
aproximando-se dos policiais.

— Estão à minha procura? — ele perguntou em voz alta. — Precisam de mim para
alguma coisa?

Dick balançou a cabeça. — Seu maldito espião de polícia! — trovejou o jovem, pálido
de cólera. — Fazendo os seus sabujas me seguirem! E o que você está fazendo em
companhia deste bando, Johnson? Também virou policial?

— Meu caro Ray — murmurou Johnson. — Meu caro Ray! — escarneceu o outro. —
Você está com inveja, seu pobre-coitado! Com inveja porque consegui escapar das
garras do sanguessuga! Quanto a você — ele apontou um dedo ameaçador e trêmulo na
cara de Dick — deixe-me em paz, está ouvindo? Arranje outra coisa que fazer além de
ficar metendo histórias na cabeça de minha irmã.

— Acho que seria melhor que você voltasse para perto de seus amigos — disse Dick
friamente. — Ou, melhor ainda, vá para casa e durma.

Tudo isso acontecia numa parada da orquestra, que agora voltara a tocar. Embora a
multidão que enchia o clube continuasse a observar o que se passava, a voz alta de Ray
não conseguiu sobrepor-se aos esforços do baterista.

Dick olhou em volta, à procura, do vigilante Hagn. Sabia que o gerente, ou algum dos
empregados do clube, iria interferir instantaneamente. Não foi Hagn e sim um dos chefes
dos garçons quem se aproximou e fez com que o jovem se afastasse.

Todos estavam tão atentos na pequena cena que transcorria, no espetáculo daquele jovem
agitado lutando contra o empurrão do maitre e de outros garçons, que ninguém viu o
homem que, por algum tempo, ficou na soleira da porta vigiando a cena, antes de se
desembaraçar dos empregados que encontrou no centro do salão.

Olhando em volta, Ray ficou quase sóbrio ante a visão do pai.

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O homem severo e grisalho, com seu velho terno de lã axadrezada, formava contraste
gritante com a multidão de roupas coloridas. Com as mãos atrás das costas, o rosto pálido e
imóvel, contemplou o filho, cujos olhos abaixaram diante do pai.

— Quero que venha comigo — foi só o que disse. A pista de danças estava deserta; a
música cessara, como se o maestro tivesse sido avisado de que algo andava errado.

— Volte comigo para Horsham, rapaz. — Eu não vou — disse Ray com mau humor.
— Ele não está com o senhor, Capitão Gordon? Dick fez que não com a cabeça e a fúria
de Ray Bennett flamejou outra vez.

— Com ele! — exclamou em tom de escárnio. —- E eu andaria na companhia de um


desprezível policial?

— Vá com seu pai, Ray — era o conselho insistente de Johnson, cujas mãos tocaram por
um segundo o ombro do rapaz.

Ray desembaracou-se. — Vou ficar aqui — disse ele, num tom alto e desafiador. — Não
sou um bebê que não posso ficar sozinho na rua. O senhor não tinha o direito de vir aqui e
fazer-me passar por idiota. O senhor — Ray continuou, encolerizando-se com o pai —
reprimiu-me todos esses anos, negou-me o dinheiro que eu devia ter tido... Quem é o
senhor para ficar chocado porque estou num clube decente e usando roupas decentes?
Comigo, está tudo correto: será que o senhor pode dizer o mesmo? E se não estivesse
tudo bem comigo, o senhor poderia censurar-me? Não vai ter oportunidade de fazer um
sermão de pai...

— Vamos embora — a voz de John Bennett era áspera.

— Vou ficar aqui — disse Ray com violência. — E, para o futuro, pode deixar-me sozinho.
O corte tinha de vir algum dia, que pode muito bem ser hoje.

Pai e filho se encararam, e nos olhos cansados de John Bennett despontou um olhar de
infinita tristeza.

— Você é um rapaz tolo, Ray. Talvez não lhe tenha dado tudo que poderia ...

112
— Talvez! — interrompeu o outro em tom de escárnio. — Você sabe muito bem, deixe de
asneiras!

Quando Ray virou a cabeça e viu sorrisos reprimidos nos rostos dos freqüentadores, a
vaidade ferida o exasperou.

— Venha — disse John amavelmente, estendendo a mão para o braço do rapaz.

Com um rugido de fúria, Ray desvencilhou-se ... E num segundo a coisa aconteceu. O
soco que atingiu John Bennett fez com que ele cambaleasse, mas não o derrubou.

Depois, por entre os freqüentadores que se aglomeraram em volta de pai e filho, Ella
apareceu. Percebeu de imediato o que ocorrera. Elk levantara-se e estava de pé atrás do
rapaz, pronto para segurá-lo se ele erguesse a mão outra vez. Mas Ray Bennett continuou
imóvel, gelado de horror, mudo, incapaz de qualquer movimento.

— Papai! — a moça pronunciou a palavra com o rosto empalidecido.

A cabeça de John Bennett tombou; resignado, deixou que o levassem.

Dick Gordon quis ir atrás para confortá-lo, mas viu Johnson segui-los e retornou à mesa.
A música recomeçou. Levaram Ray Bennett de volta à sua mesa. Ele sentou-se, cabeça
entre as mãos. Lola fez sinal a um garçom para que trouxesse mais vinho.

— Às vezes — disse Elk —, o filho pródigo e o bezerro gordo parecem-se tanto que é
impossível separá-los.

Dick não disse nada, mas seu coração se apiedava do misterioso homem de Horsham. Pois
ele vira no rosto de John Bennett o tormento dos condenados.

113
CAPÍTULO 13

Uma batida em Eldor Street

Johnson não voltou e, até certo ponto, os dois homens ficaram contentes. Elk esteve à, beira
de pedir ao secretário que fosse embora, e esperava que o Sr. Maitland lhe seguisse o
exemplo. Como se lesse pensamentos, o velho levantou-se da mesa logo que o salão se
aquietou. Maitland não se mexera durante o encontro de Ray com o pai; não mostrara o
mais leve interesse no que acontecia. Era como se sua mente estivesse distante demais para
que fosse capaz de perceber o que ocorria em volta.

— Está indo embora e não pagou a conta — Elk sussurrou.

A despeito da negligência, o idoso milionário foi escoltado até a porta pelos três maitres.
Trouxeramlhe o sobretudo, o chapéu de seda e a bengala. Maitland saiu das vistas de Dick
Gordon antes que os submissos empregados se tivessem desencurvado.

Elk olhou para o relógio: faltavam cinco minutos para a 1h. Hagn não retornara —
circunstância que deixava o detetive nervoso e também era fonte de inquietação para Dick
Gordon. O divertimento dos freqüentadores atingia novamente o clímax, quando os dois
se levantaram da mesa e caminharam para a porta. Um garçom veio apressado atrás deles.

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— Monsieur, o senhor não pagou a conta. — Pagaremos depois — disse Dick e, nesse
momento, os ponteiros do relógio ’apontaram a hora certa.

Precisamente cinco minutos mais tarde, o clube estava nas mãos da polícia. Já estava
vazio à 1h15min da madrugada. Sobravam apenas os 30 detetives que deram a batida e
os empregados.

— Onde está Hagn? — Dick perguntou ao chefe dos garçons.

— Foi para casa, monsieur — disse o homem num tom mal-humorado. — Ele sempre vai
cedo para casa.

— Isso é mentira — disse Elk. — Mostre-me onde fica a sala dele.

O escritório de Hagn ficava no subsolo, parte que ficara intocada no velho prédio da
missão. Foram levados para um grande gabinete sem janelas, confortavelmente mobiliado,
sala particular de Hagn, mas o homem desaparecera. Enquanto os subordinados
revistavam os livros da casa, examinando folha por folha todos os documentos no
escritório do empregado, Elk inspecionou a sala. Num canto, havia um pequeno cofre,
onde ele afixou o selo da polícia. Uma muda de roupas, evidentemente tiradas com pressa,
estava, estendida em desordem num sofá. Elk levou-as para a luz e as examinou. Eram do
traje que Hagn usara ao levar Dick Gordon e ele até a mesa.

— Traga aquele chefe dos garçons — disse Elk. O maitre não quis ou não pôde dar
informações. — O Sr. Hagn sempre muda de roupa antes de ir para casa — disse ele.

— Por que foi embora antes de o clube fechar? O homem abanou os ombros. — Nada
sei sobre sua vida privada — concluiu, e Elk o liberou.

Numa parede havia uma cômoda e um espelho. De cada lado do espelho fora colocado um
pequeno abajur, que, à diferença dos outros abajures, não tinha quebraluz. Elk ligou o
interruptor e inspecionou a mesa. Pouco depois, encontrou dois punhados de cabelos, que
examinou contra a manga de seu casaco preto. Na gaveta, achou uma garrafinha de
aguardente e examinou o rótulo. Depois, pegou uma pequena cesta de

115
papéis e derramou o conteúdo sobre a mesa. Encontrou algumas contas rasgadas, cartas
comerciais, um anúncio, três pontas de cigarro queimadas e umas estranhas tiras de papel.
Uma delas estava coberta com goma arábica.

— Calculo que ele passou o pincel nessa coisa — disse Elk e, com uma certa dificuldade,
separou duas folhas de papel que estavam dobradas.

Estava batida a máquina e consistia em três linhas:

”Urgente. Encontrar-se com Sete no Es2. Nenhuma batida. Pegue declaração de M.

Urgente. F.1.”

Dick pegou o papel das mãos de seu subordinado e leu.

— Errou quanto à inexistência de batida — disse. - ES, evidentemente, é Eldor Street, e


dois, o número dois ou 2h.

— Quem é ”M”? — perguntou Elk, franzindo a testa.

— Obviamente, Mills, o homem que pegamos em Wandsworth. Ele assinou um


depoimento, não?

— Sim, assinou — disse Elk pensativamente. Ele revirou os papéis e, após algum tempo,
encontrou o que procurava — um pequeno envelope. Estava datilografado e endereçado a
”G. V. Hagn” e trazia no verso o selo do Serviço Distrital de Correios.

Os empregados ainda não tinham sido liberados pela polícia e Elk mandou chamar o
porteiro.

— A que horas isto foi entregue? — perguntou. O homem era um ex-soldado, o único
prisioneiro que parecia ter consciência da situação.

— Chegou por volta das 9h, senhor — respondeu prontamente, apresentando o aviso de
recebimento como confirmação. — Foi trazido por um rapaz do Correio Distrital —
explicou, desnecessariamente.

— O Sr. Hagn recebe muitos bilhetes do Correio Distrital?

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— Bem poucos, senhor — disse o porteiro, acrescentando uma ansiosa interrogação acerca
do que iam fazer com ele.

— Pode ir — disse Elk. E acrescentou: — Sob escolta, e direto para sua casa. Não poderá
comunicarse com ninguém, nem contar aos outros empregados que perguntei sobre esta
carta. Está entendendo?

— Sim, senhor. Para dupla segurança, Elk chamara o centro telefônico e colocara sob
censura toda comunicação. Eram, então, 1h45min, e, deixando meia dúzia de detetives
encarregados do clube, fez com que os restantes voltassem a tomar o carro que os trouxera.
Acompanhado por Dick, partiu a toda pressa para Tottenham.

A mais ou menos 100 jardas de Eldor Street, o carro parou e descarregou os ocupantes. O
essencial era que, fosse lá quem estivesse se encontrado com o número sete em Eldor
Street, não devia perceber a aproximação policial. Era mais que provável que Rãs espiãs
estivessem vigiando de cada lado da rua.

— Não sei por quê — disse Elk, quando Dick levantou essa possibilidade.

— Posso dar-lhe uma razão excelente — disse Dick seguro de si. — E é a seguinte: as Rãs
sabem tudo sobre nossa visita à residência de Maitland num cortiço.

— Que o faz pensar assim? — perguntou Elk surpreso, mas Dick não explicou.

Mandando os homens seguirem por rotas sinuosas, ele avançou em companhia de Elk que,
ao atingir a esquina de Eldor Street, percebeu que a suposição do chefe tinha
fundamento. Sob um poste, Elk viu a figura sombria de um homem e instantaneamente
começou uma conversa animada e estridente sobre um imaginário Sr. Brown.
Reconhecendo a intenção de despistar a Rã espiã, Gordon sustentou o tema. O homem sob
o poste parecia um tanto hesitante. Ao emparelharem com ele, Elk se virou.

— Você tem fósforo? — perguntou. — Não — o outro resmungou, mas logo depois
estava no chão, com o joelho de Elk em seu peito e a mão do detetive em volta da
garganta.

117
— Grite, Rã, e eu o esgano — sibilou ferozmente o detetive.

Não houve luta, nenhum som. A coisa foi feita tão rapidamente que, se existissem outras
Rãs espiãs na rua, não chegariam a saber o que estava acontecendo, não chegariam a
perceber a situação do camarada. O homem estava nas mãos do detetive, amordaçado e
algemado. No caminho para o carro de polícia, ainda não entendera claramente que
furacão o abatera tão brutalmente.

— Você se importa se eu cantar? — perguntou Elk ao virarem numa rua do lado oposto
àquela em que residira o Sr. Maitland.

Sem esperar permissão, Elk começou a cantar. A voz era fraca e desafinada. Como cantor,
era um completo fracasso, e nunca na vida Dick Gordon ouvira com tanta paciência sons
mais abomináveis. Mas devia haver Rãs espiãs de cada um dos lados da rua, pensou, e
logo entendeu que as precauções de Elk eram necessárias.

E, de novo, era à sombra de um lampião que se achava o outro sentinela, um homem alto,
corpulento, mais meticuloso que o colega no cumprimento do dever, pois Dick viu o
apito que lhe brilhava na boca.

”Dê-me a varinha mágica para um desejo meu”, Elk gemia, com a voz hesitando
ligeiramente, e continuava cantando: ”Olhe que meu sonho será realidade...”

E, cantando, levou a cabo seu objetivo. Sua mão se arremessou para o apito, que arrancou
da boca do homem. Num segundo, os dois saltaram sobre ele, deixando-o de cara no chão.
Elk tirou o boné do prisioneiro. Uma coisa negra e brilhante reluziu na frente dos olhos da
Rã; um cano frio e circular lhe foi encostado na orelha.

— Se der um pio, você é uma Rã morta — disse Elk, cedendo o prisioneiro para o outro
policial. — Tudo depende agora do cavalheiro que está patrulhando a passagem entre os
jardins. Se testemunhou nossa desordem...

Elk sacudiu as roupas.

118
— Se estava na entrada da passagem, viu a coisa e vai nos causar problemas.

Ao que parecia, no entanto, a sentinela estava no corredor entre os edifícios e nada tinha
ouvido. Movendo-se furtivamente para a entrada, Elk pôs-se à escuta e daí a pouco ouviu
um ruído surdo de passos. Fez sinal a Dick para que ficasse onde estava e se esgueirou
para a passagem entre os jardins, caminhando em surdina, mas não tão silenciosamente
que não pudesse ser ouvido pelo homem que montava guarda no portão dos fundos da
antiga casa de Maitland.

— Quem está aí? — perguntou, com voz áspera. — Sou eu — Elk sussurrou. — Não faça
tanto barulho.

— Você não pode estar aqui — disse o outro, num tom autoritário. — Fique embaixo do
lampião da rua...

Os olhos de Elk já se tinham acostumado à escuridão e ele conseguiu ver a outra Rã.

— Há duas pessoas estranhas na rua: quero que me ajude investigá-las — Elk murmurou.

Tudo dependia de como as Rãs procederiam agora. — Quem são eles? — perguntou o
desconhecido numa voz abafada.

— Um homem e uma mulher — Elk sussurrou. — Não creio que tenham qualquer
importância — resmungou o outro.

Quando jovem, Elk tinha jogado futebol. Avaliando a distância ele se arremessou
bruscamente e caiu sobre o adversário. O homem deu por terra numa torção que lhe tirou
todo o ar dos pulmões, deixando-o incapaz de proferir qualquer outro som além do
involuntário arquejo que se seguiu à queda. Num segundo, Elk apoderou-se dele, o joelho
em sua garganta.

— Reze, Rã — murmurou no ouvido do outro —, mas não grite!

O homem golpeado, incapaz de gritar, estava ainda sem respiração quando mãos
bem-dispostas o atiraram no carro da patrulha.

— Teremos de entrar pelos fundos — disse Elk, num murmúrio.

119
Dessa vez, sua tarefa foi facilitada pelo fato de o portão do jardim não estar trancado. A
porta da copa, no entanto, estava fechada, mas havia uma janela e Elk forçou os trincos
sem fazer barulho. Tinha tirado as botas e estava de meias, o que lhe permitiu deslizar
silenciosamente pelo corredor escuro. Aparentemente, nenhum dos móveis arruinados
fora removido da casa. Viu a mesinha que, em sua última visita, tinha observado no
vestíbulo. Girando cuidadosamente a maçaneta do quarto de Maitland, ele empurrou a
porta.

A porta estava aberta, o quarto em obscuridade e vazio. Elk voltou para a copa.

— Não há ninguém aqui, no andar de baixo — disse ele. — Vamos procurar lá em cima.

Estava a meio caminho do primeiro andar, quando ouviu o murmúrio de vozes e parou.
Levantando os olhos para o nível do chão, viu um raio de luz sob o umbral da porta do
quarto da frente, o cômodo que fora ocupado pela dona-de-casa de Maitland. Ele escutou,
mas não pôde distinguir duas palavras sucessivas. Depois, subiu os degraus que faltavam
em três saltos e voou sobre o pavimento para se atirar contra a porta. Estava trancada.
Com o som de seus passos, a luz apagou-se no interior. Duas vezes se arremessou com
todo seu peso na porta frágil, conseguindo rompê-la na terceira tentativa.

— Mãos ao alto, todo mundo! — ele gritou. O cômodo estava às escuras e havia um
silêncio completo. Agachando-se na soleira da porta, lançou o facho de luz de sua
lanterna no interior. Estava vazio!

Os subordinados também subiram, o lampião sobre a mesa foi ligado — o vidro estava
quente — e foi dada uma busca no aposento. Era pequeno demais para exigir grande
investigação. Havia uma cama, sob a qual alguém poderia ter se escondido, mas isso não
aconteceu. Num canto, perto da cama, havia um guarda-roupas, repleto de trajes surrados
suspensos em cabides.

— Afastem essas roupas — ordenou Elk. — Deve haver uma porta para a casa vizinha.

Uma olhada na janela mostrou ser impossível que os moradores da casa tivessem
escapado por ali. Pouco

120
depois, as roupas estavam amontoadas no chão e os detetives atacaram a madeira do
fundo do armário, que, de fato, mostrou ser uma porta que conduzia à outra casa.
Enquanto estavam empenhados nesse trabalho, Dick inspecionou a mesa, coberta de papéis.
Viu alguma coisa e chamou por Elk.

— O que é isso, Elk? O detetive pegou das mãos do outro as quatro folhas datilografadas.

— A confissão de Mills! — exclamou. — Há somente duas cópias, uma comigo e outra aos
cuidados de seu departamento, Capitão Gordon.

Nesse momento, o fundo do armário tombou e se despedaçou. Os detetives saíram para a


casa vizinha.

Foi então que puderam fazer a interessante descoberta de que, para todas as finalidades e
propósitos, havia comunicação contínua entre um bloco de 10 casas, que se estendiam
até o fim da rua. E não estavam desocucupadas. Três típicas Rãs ocupavam o primeiro
aposento em que irromperam. Encontraram outras no andar de baixo. Logo ficou bem
claro que o conjunto das casas constituía um dormitório para os recrutas do Reino da Rã.
Como qualquer um dos ocupantes poderia ser o Número Sete, todos foram detidos.

Agora, todas as portas comunicantes estavam abertas. Exceto na casa de Maitland,


nenhuma tentativa fora feita para camuflar as entradas, que, em todas as outras casas,
consistiam em aberturas retangulares, grosseiramente abertas nas paredes de tijolos.

— Talvez tenhamos apanhado o Número Sete, mas duvido muito — disse Elk, voltando
pelo caminho que seguira, sem fôlego, sujo. Dick examinava os outros documentos que
tinham encontrado.

— Não vi qualquer indivíduo que pareça ter um cérebro privilegiado.

— Ninguém escapou do bloco? Elk fez que não com a cabeça. — Meus homens estão na
passagem para a primeira casa e na rua. Além disso, há policiais uniformizados pelas
redondezas. Não ouviu o assobio?

O assistente de Elk aproximou-se nesse momento. — Encontraram um homem num dos


pátios, se-

121
nhor — disse ele. — Tomei a liberdade de chamar um guarda e fazê-lo prisioneiro.
Gostaria de interrogá-lo?

— Traga-o aqui — disse Elk e, alguns minutos depois, um homem ’algemado foi
empurrado para dentro da sala.

Sua altura era maior que a mediana, os cabelos louros e compridos, a barba amarelada e
aparada.

Por um momento, Dick o olhou espantado; depois, falou:

— Carlo, eu creio? — disse ele. — Hagn, estou certo! — disse Elk. — Tire esses
bigodes, sua Rã! Comecemos a falar de números, a partir de sete!

Hagn! Mesmo agora Dick não podia crer em seus olhos. A peruca era tão perfeita, a barba
tão primorosamente fixada, que dificilmente se conseguiria ver naquele sujeito o gerente
do Heron’s Club. Mas quando o capitão ouviu a voz, compreendeu que Elk tinha razão.

— Número Sete, hein? — Hagn falou com voz arrastada. — Acho que o Número Sete
atravessará seu cerco sem ser incomodado, Sr. Elk. Ele é íntimo da polícia. O que quer
de mim?

— Quero que me preste contas da participação que teve no assassinato do Inspetor-Chefe


Genter, na noite de 14 de maio — disse Elk.

Os lábios de Hagn apertaram-se. — Por que não pega Broad? Ele estava lá. Talvez ele
possa testemunhar a meu favor.

— Quando me encontrar com ele ... — Elk começou.

— Olhe pela janela — interrompeu Hagn. — Lá está ele!

Dick caminhou até a janela e, abrindo o postigo, inclinou-se no parapeito. Uma multidão
de curiosos locais assistia à transferência dos prisioneiros para os carros de polícia. Dick
vislumbrou o brilho de um chapéu de seda e a voz inconfundível de Broad o
cumprimentou.

— Bom-dia, Capitão Gordon. — Um estoque de Rãs sem grande interesse, não é? Por
falar nisso, o senhor viu o bebê?

122
CAPÍTULO 14

Todos os grandes aqui!

Elk saiu para ver o americano. O Sr. Broad estava com um impecável traje a rigor, e os
brilhantes faróis de seu carro iluminavam a rua humilde.

— Sem dúvida, você tem faro para confusões — disse Elk com respeito — e enquanto me
conta como soube desta batida, que meia hora atrás ainda não estava decidida, ficarei
olhando para você com serena admiração.

— Não soube que haveria uma batida — confessou Joshua Broad —, mas quando vi 20
homens da Chefatura Central pularem do Heron’s Club e de lá saírem dirigindo
alucinadamente, tive o direito de supor que a pressa nada tinha que ver com a ansiedade
de ir para a cama antes das 2h. Geralmente, vou ao Heron’s Club no início da noite. Sob
certos aspectos, aliás, os membros do clube são pessoas mais desagradáveis que a média
das Rãs, mas eles me divertem. E freqüentar o clube é razoavelmente instrutivo. Aí está
minha explicação . Vi quando partiu apressado e o segui. Mas deixe que repita minha
pergunta: viu o bebezinho que está aprendendo a soletrar R-A-T-O, rato?

— Não — disse Elk laconicamente. O detetive teve a sensação de que o americano, gentil
e autoconfiante, estava rindo dele.

— Entre, venha ver o chefe — disse.

123
Broad seguiu o inspetor até o quarto onde Dick juntava os papéis que, em sua apressada
fuga, o Número Sete deixara para trás. A captura era a mais importante desde que a
campanha contra as Rãs fora posta seriamente em andamento.

Além da cópia do relatório secreto sobre Mills, havia um maço de bilhetes, muito
engimáticos e ininteligíveis; alguns, contudo, vinham num inglês normal. Eram
datilografados e, obviamente, correspondiam às ordens gerais dadas a um sinistro
exército. Eram, de fato, instruções das Rãs, emitidas sob a responsabilidade do chefe
principal, pois cada uma trazia ”Sete” como assinatura. Um dos bilhetes dizia :

”Raymond Bennett deve andar mais depressa. L. para dizer-lhe que ele é uma Rã.
Qualquer coisa feita com ele deve ser posta em execução com alguém nãoconhecido como
Rã.”

Outra nota:

”Gordon comprometeu-se a jantar quinta-feira na Embaixada Americana. Pôr em ordem.


Elk instalou novo alarma sob quatro lances de escada. Elk vai amanhã para Wandsworth.
Vai avistar-se com Mills.”

Havia outros bilhetes falando de pessoas que Dick desconhecia. Gordon leu outra vez a
nota que se relacionava com ele. Sorria ante a lacônica instrução ”Pôr em ordem” quando
o americano chegou.

— Sente-se, Sr. Broad. Pelo olhar triste no rosto de Elk, presumo que já justificou
satisfatoriamente sua presença por aqui.

Sorridente, Broad fez que sim com a cabeça. — E o Sr. Elk foi bastante persuasivo no
inquérito — disse ele, voltando os olhos para os papéis sobre a mesa. — Seria indiscreto
perguntar se são coisas da Rã? — acrescentou.

— Muito — disse Dick. — Na realidade, qualquer referência às Rãs teria o peso da


indiscrição, a menos

124
que estivesse pronto a acrescentar-lhe a soma de seu próprio conhecimento.

— Sem me comprometer, posso dizer-lhe que o Número Sete conseguiu escapar —


declarou calmamente o americano.

— Como sabe disso? — Ouvi as Rãs se gabarem quando atravessaram a rua escoltadas
— Broad respondeu. — O disfarce da Sétima Rã foi perfeito... Usou o uniforme de um
policial.

Elk praguejou ligeira, mas decididamente. — É isso! — exclamou. — Só pode ter sido o
”policial” que escoltou Hagn como se o estivesse prendendo! E se nenhum de meus
homens tomou Hagn de sua guarda, não há dúvida de que ambos escaparam. Espere, que
vou verificar!

Ele saiu à procura do detetive que trouxera Hagn. — Não conheço o guarda — disse um
policial. — Meu departamento não é esse ... Ele era um sujeito alto com um grande bigode
preto. Se estava disfarçado, era um disfarce perfeito, senhor.

Elk voltou e tornou a interrogar o Sr. Broad, que, de novo, prestou declarações lógicas e
simples.

— E digo-lhe que as Rãs estavam debochando abertamente. Ouvi um deles dizer que o
chefão tinha fugido... Outro referiu-se ao fugitivo como um ”tira escorregando”. Creio que
se referia ao disfarce .. .

Elk concordou com a cabeça. — Qual é seu interesse nas Rãs, Broad? — perguntou ele
abruptamente. — Esqueça por um momento que é um criminologista de gabinete e
imagine que está escrevendo a verdadeira história de sua vida...

Broad pensou por algum tempo, contemplando o charuto que estava fumando.

— As Rãs nada significam para mim. . . A Rã significa tudo.

O americano soprou um anel de fumaça e ficou vendo ele se dissolver no ar.

— Tenho muita curiosidade em saber que jogada está fazendo com Ray Bennett — disse.
— Este, sem dúvida, é o aspecto mais intrigante da estratégia da Rã.

125
Ele se levantou e pegou o chapéu. — Invejo a busca que o senhor deu nesta velha casa
— disse ele, acrescentando com brilho nos olhos: — Não esqueça o bebê no jardim de
infância, Sr. Elk.

Quando Broad foi embora, Elk inspecionou detidamente a casa. Encontrou dois livros de
criança, ambos muito manuseados. Achou também um caderno de caligrafia elementar,
no qual a mão de uma criança cobrira vacilantemente os excelentes exemplos
ortográficos. O ábaco, contudo, não estava mais lá. No armário, fez uma descoberta. Havia
um vestuário completo, extremamente variado, para um menino de seis ou sete anos.
Cada peça de roupa era nova, nenhuma fora usada. Elk transportou a roupa para onde
Dick se debruçava, desorientado, sobre algumas das mais obscuras mensagens que o
Número Sete deixara para trás em sua fuga.

— Que acha disso? — perguntou Elk, indicando as roupas.

O Promotor examinou peça por peça, depois inclinou-se na cadeira com o olhar vago.

— Tudo novo — confirmou distraído, até que um sorriso brotou lentamente em seu rosto.

Elk, que nada tinha visto de engraçado no monte de roupas, quis saber o que divertia o
capitão.

— Acho que essas roupas fornecem uma pista muito valiosa, não pensa assim?

Gordon empurrou um papel que estava sobre a mesa e Elk leu:

”Todos os touros atendem na quarta-feira 3.1A LVMB. Importante.”

— Há 25 cópias dessa mensagem simples, mas instigante — disse Dick — e nenhuma


dessas instruções está em envelope. Só se pode presumir que seriam despachadas por
Hagn, do clube ou de sua casa... O que sabemos até agora da organização das Rãs é o
que temos aqui. A Rã Número Um trabalha através da ”Sétima Rã”, que pode ou não
saber a identidade de seu chefe. Hagn, cujo número é 13 — o que, aliás, lhe trará uma
sorte muito ruim —, é o chefe executivo

126
do departamento da Sétima Rã, e realmente tem comunicação com os chefes de seções.
Pode ou não conhecer o ”Sete”; provavelmente conhece. O Sete recebe ordens da Rã, mas
pode agir sem consultá-la em caso de emergência. Aqui está — agitou o papel — uma
justificativa do emprego de Mills, que confirma nossas suposições.

— Nada manuscrito? — Não... Nada de impressões digitais. Elk pegou um dos papéis e
suspendeu-o contra a luz.

— Watermark Three Lion Bond — leu. — Máquina nova, manejada por alguém de boa
escolaridade, mas cujo dedo mínimo da mão esquerda é fraco: o q e o a estão malbatidos.
Alguém que sabe bater a máquina: usa os dedos corretamente. Quem não aprendeu
datilografia raramente usa os dedos mínimos. Especialmente o mínimo da mão esquerda. Já
peguei um ladrão de banco através de um desses indícios...

Elk leu a mensagem de novo. — ”Todos os touros atendem na quarta-feira...” Touros são
os grandes, a Rãs mais importantes, não é isso? Onde eles atendem? ”3.1.A.”?
Certamente, isso me faz pensar, capitão... Bem, o que o senhor acha?

Dick olhava o detetive com uma expressão estranha.

— Eu não acho... — disse ele lentamente. — Na manhã de quarta-feira, aproximadamente


às 3h da madrugada, estarei atento ao sinal em código miras... Acho que vamos interceptar
uma conversa telefônica da grande Rã!

— Será que vai falar sobre o maldito tratado? — Elk rosnou.

127
CAPÍTULO 15

A manhã seguinte

Ray Bennett acordou gemendo. Os olhos estavam fundos, a língua pastosa, ressecada.
Gemeu de novo quando tentou erguer do travesseiro a cabeça dolorida. Com muita força
de vontade, conseguiu levantar-se da cama e cambaleou até a janela. Abriu as vidraças e
contemplou o verde do Hyde Park. Suas têmporas não paravam de latejar dolorosamente.

Derramou água num copo e bebeu avidamente. Sentando-se na beira da cama, a cabeça
entre as mãos, procurou pensar. Só obscuramente relembrou os acontecimentos da noite
anterior, mas estava consciente de que algo terrível acontecera. Aos poucos, a mente
começou a pôr em ordem suas experiências. Lembrouse, com uma pontada no coração, de
que tinha golpeado o pai! A recordação fê-lo estremecer. Ele deu início a uma frenética
busca mental de justificação. É comum que a arrogância da juventude arranje facilmente
desculpas para seus excessos. Ray não era exceção. Já depois do banho, e quando
começava a se vestir, chegara à conclusão de que fora maltratado. Mas lhe parecia
imperdoável ter esmurrado o pai... Tinha de escrever expressamente o quanto lamentava e
alegando sua condição de bêbado como razão para o ato. Não seria uma carta servil (ele
disse a si mesmo), mas

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alguma coisa digna e um tanto distante. Afinal, essas brigas ocorriam em toda família. Os
pais indispunhamse temporariamente com os filhos, mas no final das contas, vinha a
reconciliação. Um dia, apareceria na frente do pai como um homem rico...

Ray apertou nervosamente os lábios. Um homem rico? Agora, estava bem de vida. Tinha
um apartamento caro. Toda semana um pacote recheado de notas vinha pelo correio
registrado. Possuía um carro emprestado. .. Mas quanto tempo ia durar esse estado de
coisas?

Não era tolo. Talvez não fosse tão esperto quanto pensava, mas não era tolo. Afinal, por
que os japoneses, ou qualquer outro governo, pagariam por informações que podiam
obter em qualquer almanaque, informações que estavam ao alcance de todos, que podiam
ser conseguidas por uns poucos tostões na maioria das livrarias?

Ele afastou o pensamento negativo. Tinha o dom de tirar da cabeça os assuntos que o
incomodavam. Abrindo a porta da sala de jantar, ficou estupefato, paralisado de
assombro.

Sua irmã estava encostada na janela, o cotovelo no parapeito, o queixo apoiado na mão.
Parecia pálida e havia sombras pesadas sob seus olhos.

— Ora essa, Ella, o que diabo está fazendo por aqui? — ele perguntou. — Como
conseguiu entrar?

— O porteiro abriu a porta com a chave-mestra, quando disse que era sua irmã —
respondeu ela languidamente. — Cheguei de manhã cedo. Oh, Ray... Você não está .. .
Você não está envergonhado?

Ele franziu a testa. — Por que deveria estar? — perguntou em voz alta. — Porque o
papai quis segurar-me quando eu estava embriagado? Sem dúvida, fiz uma coisa terrível,
mas naquele momento eu não era responsável por meus atos. O que ele disse? — Ray
perguntou constrangido.

— Nada .. . Ele não disse nada. Preferia que tivesse dito. Você não vai encontrar-se com ele
em Horsham?

— Não. Deixe a coisa esfriar por um ou dois dias — disse agitadamente. Por certo, não
estava ansioso

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por deparar-se com o pai. — Se . . . se ele perdoar o que fiz, mesmo assim vai querer que
eu volte e abandone a vida que estou levando. .. Ele não tinha o direito de tratar-me
como um bebê na frente de toda aquela gente. Suponho que você veio encontrar-se com
seu amigo Gordon? — ele resmungou.

— Não — respondeu ela com naturalidade. — Saí para vir aqui e não a outro lugar. Vim
pelo primeiro trem, o que traz os trabalhadores para a cidade. Escute Ray... Seria um
sacrifício terrível desistir disto aqui?

Ele fez um gesto de impaciência . — Não é ... isto aqui, minha cara Ella, se por ”isto
aqui” você quer dizer o apartamento. É do meu trabalho que você e o papai querem que eu
desista. Mas eu pretendo manter minha posição.

— Qual é seu trabalho? — ela perguntou. — Você não entenderia — o irmão respondeu
com certa arrogância e os lábios de Ella se crisparam.

— Teria de ser algo muito excepcional para que eu não pudesse compreender — insistiu
ela. — Tem relação com o serviço secreto?

Ray ficou vermelho. — Aposto que Gordon esteve metendo coisas em sua cabeça —
queixou-se, num tom amargo. — Se aquele sujeito meter o nariz onde não é chamado, vai
se arrepender!

— Por que ele deveria agir de outro modo? — a irmã perguntou.

Ray notou que a pergunta fora feita num tom de voz mais áspero e encarou Elia de frente.
A irmã sempre tinha sido indulgente, cordata, pronta a perdoar. Um pára-raios entre ele e
as censuras do pai.

— Por que deveria agir de outro modo? — a irmã repetiu. — O Sr. Gordon tem obrigação
de conhecer alguma coisa do Serviço Secreto. Ele próprio é um homem da lei. Ou você
está agindo dentro da lei, e neste caso pouco importa o que ele venha a saber, ou está
agindo fora da lei, e de fato, então, não seria indiferente para você o que ele venha a
descobrir.

Ele a olhou interrogativamente.

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— Por que está tão interessada em Gordon? Apaixonada por ele?

Os olhos da irmã não piscaram, mas uma leve tintura rósea cobriu-lhe o rosto, empalidecido
por uma noite em claro.

— É uma pergunta que um cavalheiro jamais faria nesse tom — disse, segura de si —,
nem mesmo a uma irmã. Ray, você vai voltar para perto do papai, não é mesmo?...
Hoje?...

Ele balançou a cabeça. — Não . Não vou. Vou escrever-lhe. Admito que agi errado. Vou
dizer isso na carta . Mais, eu não posso fazer.

Ouviu-se uma batida discreta na porta. — Entre — Ray Bennett rosnou. Era o
empregado, um homem que o servia durante o dia.

— Quer receber a Sra. Bassano e o Sr. Brady? — perguntou com voz baixa e rouca,
lançando um olhar indagador para Ella.

— Evidentemente quer nos receber! — disse uma voz do lado de fora. — Por que toda
esta formalidade?... Oh, estou vendo...

O olhar de Lola Bassano caiu sobre a moça sentada junto à janela.

— Esta é minha irmã. Chama-se Ella ... Esta é a Srta. Bassano, e este o Sr. Brady.

Ella contemplou a pequena figura no umbral da porta e não pôde deixar de admirá-la. Era
a primeira vez que a encontrava face a face; achou-a fascinante.

— É um prazer conhecê-la, Srta. Bennett. Penso que veio repreender seu irmão pelo modo
infeliz como ele se conduziu na noite passada. Rapaz, sem dúvida você ficou maluco!
Era o pai dele, não é mesmo Srta. Bennett?

Ella fez que sim com a cabeça e ouviu com gratidão a zanga carinhosa nos lábios de Lew
Brandy.

— Se naquele momento estivesse perto de você, Ray, teria lhe dado urna surra. Muito
desagradável, Srta. Bennett — completou, virando-se para Ella.

Mas uma estranha sensação de frio subitamente se apoderou da moça... E um segundo


antes ela se sen-

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tira tranqüilizada pela simpatia do casal. Agora, no entanto, a suspeita de uma completa
falta de sinceridade causava-lhe calafrios. A gentileza de Lola e Brady era demasiado
fácil, demasiado superficial. O abatimento de Brady era, além disso, um tanto forçado.

— Gosta do apartamento de seu irmão? — perguntou Lola, sentando-se e esticando as


pernas cobertas de meias de seda para um raio de sol.

— É muito ... bonito — disse Ella. — Ele achará Horsham um tanto sem graça quando
voltar.

— Ele vai voltar? — Lola esboçou um sorriso para o jovem ao fazer a pergunta.

— De modo algum — disse Ray energicamente. — Estava tentando fazer com que Ella
compreendesse que meu negócio é importante demais para ser jogado fora.

Lola fez que sim com a cabeça. Apesar do clima simpático da conversa, o antagonismo
com a irmã de Ray começava a surgir.

— Qual é o negócio? — Ella perguntou. O irmão fez uma vaga e cautelosa exposição
sobre a natureza de seu trabalho. A moça ouviu sem comentário.

— Se você pensa — continuou ele — que estou fazendo alguma coisa ilegal, ou que tenho
amigos menos honestos que você e papai, pode tirar a idéia da cabeça, pois está enganada.
Não tenho medo de Gordon, Elk ou qualquer outro da mesma espécie. Esteja certa de que
não tenho medo. Nem Brady, nem a Srta. Bassano têm nada a temer. Gordon é um
daqueles detetives baratos que tiraram dos livros todas as suas fantasias.

— Essa é toda a verdade, Srta. Bennett — disse Lew pudicamente. — O defeito de


Gordon é que ele pretende ser um tanto esperto demais. Imagina que todo mundo,
excluindo ele, é vigarista. Então ele não mandou Elk investigar até mesmo a vida de seu
pai! Acredite-me, não tenho medo de Gordon ou de qualquer...

Toc... toc... toc-toc... toc. As batidas na porta eram lentas, propositais, inconfundíveis. Foi
notável o efeito sobre Lew Brady. Seu

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corpanzil pareceu estremecer, o rosto inchado ficou subitamente cavado.

Toc... toc... toc-toc... toc. Brady levou a mão trêmula à boca. Elia dirigiu seu olhar do
homem para Lola e, para seu espanto, viu que a mulher empalidecera. Brady tropeçou até
a porta, o som de sua respiração pesada deixando-se ouvir bem alto no silêncio.

— Entre murmurou ele, e escancarou a porta. Foi Dick Gordon quem entrou. O Capitão
olhou de um para o outro, os olhos sorridentes.

— As velhas batidas da Rã parecem assustá-los um pouco — disse amavelmente.

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CAPÍTULO 16 Ray sabe a verdade Foi Lola quem se recompôs mais depressa. — O
que quer dizer com... batidas da Rã? Aquela coisa da Rã continua enchendo sua cabeça,
não?

— Essas batidas são minha nova forma de cumprimentar — disse Dick com uma gravidade
zombeteira. — Quem me ensinou foi uma Rã do 339 grau. É o sinal que o velho Grande
Mestre Rã produz quando se apresenta a seus inferiores.

— Talvez sua Rã de 339 grau esteja mentindo — disse Lola, as faces recuperando a cor
natural. — De qualquer modo, Mills...

— Mas, eu não falei em Mills — disse Dick.

— Sei que se referiu a ele. A prisão saiu nos jornais.

— A prisão ainda nem saiu nos jornais — disse Dick —, a menos que a Gazeta da Rã
tenha publicado. Talvez na coluna social.

O capitão voltou o olhar para Ella. Por um momento, Ray teria passado despercebido, se
não tivesse dado um passo na direção do policial,

— Deseja alguma coisa, Gordon? — perguntou. — Queria ter uma conversa particular
com você, Bennett — disse Dick.

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— Não há nada que não possa falar diante de meus amigos — disse Ray, erguendo as
sobrancelhas.

— A única pessoa que reconheço como sua amiga é sua irmã — replicou Gordon.

— Vamos embora, Lew — disse Lola com um abanar de ombros, mas Ray Bennett os
deteve.

— Esperem um minuto! Está casa é minha, ou não é? — perguntou, furioso. — Você


pode zarpar, Gordon! Só tenho de aceitar sua intromissão até quando me parecer
conveniente. Veio aqui sem ser convidado e ofendeu meus amigos. Praticamente,
mandou-os embora. Sua desfaçatez é admirável! A porta é logo ali! Pode ir embora!

— Se é assim que você prefere, eu vou embora — disse Dick —, mas quero avisá-lo .

— Ora! Estou farto de suas advertências! — Quero avisá-lo de que a Rã decidiu que
você tem de ganhar seu próprio dinheiro! Isso é tudo.

Houve um silêncio de morte, que Ella quebrou. — A Rã — repetiu ela com os olhos
arregalados. — Mas... mas, Sr. Gordon, Ray está... com a Rã?

— Talvez isto seja uma novidade até mesmo para ele — disse Dick —, mas ele está com a
Rã. Essas duas pessoas são seus servos fiéis — ele apontou o casal. — Lola é financiada
pela organização; seu esposo também...

— Você mente! — gritou Ray. — Lola não é casada! Você é um mentiroso covarde! Vá
embora antes que eu mesmo o atire pela porta! Seu estúpido caçador de sapos, pensando
que tudo que é verde vive num charco! Saia! E não volte aqui!

Foi o apelo do olhar de Ella que fez com que Dick Gordon se encaminhasse para a porta.
Mas o olhar frio do capitão ainda se demorou em Lew Brady.

— Há muita coisa contra seu nome no livro da Rã, Brady. Cuide-se bem!

Lew estremeceu como se tivesse recebido um verdadeiro murro. Fosse mais ousado e
seguiria Gordon pelo corredor, à procura de mais informação. Toda a sua força
emocional o abandonou. Ele permaneceu imóvel, uma figura patética, olhando com
ansiedade para a porta que o visitante fechara atrás de si.

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— Pelo amor de Deus, vamos deixar que entre algum ar! — queixou-se Ray, abrindo de par
em par as janelas. — Esse sujeito empestou o ambiente! Casada! Querendo fazer com
que eu acredite nisso!

Ella tinha pegado a bolsa de cima do consolo e se preparava para sair.

— Já vai, Ella? A moça fez sinal afirmativo com a cabeça. — Diga a papai... Bem, de
qualquer modo eu vou escrever. Converse com ele e mostre-lhe que está errado.

A moça estendeu a mão. — Até logo, Ray — disse. — Talvez um dia você volte para o
nosso lado. Queira Deus que em breve sua loucura tenha um fim. Oh, Ray, aquela história
sobre as Rãs não é verdade, não é mesmo? Você não está com aquela gente?

O riso dele tranqüilizou-a, ao menos naquele momento.

— Evidentemente não. Isso é tão mentiroso quanto dizer que Lola é casada! Gordon estava
tentando fazer sensação. O que há de pior com esses detetives de terceira classe é que
eles sobrevivem pelo sensacionalismo.

Ella saudou Lola com uma inclinação de cabeça e foi acompanhada por Ray até o
elevador, Lew Brady contemplou-a com olhos ávidos.

— O que ele quis dizer, Lola? — perguntou Brady quando a porta se fechou atrás dos
dois. — Aquele tipo sabe de alguma coisa! Meu nome está marcado no livro da Rã! Isso
não me parece bom. Lola, eu queria cortar com essas Rãs! Isso está me abalando os
nervos.

— Você é um bobo — disse ela, com perfeito domínio de si. — Gordon conseguiu obter
justamente o efeito que queria. Conseguiu assustá-lo!

— Assustar-me? — exclamou ele num tom agitado. — Nada me mete medo. Você não se
assusta porque não tem imaginação... Não estou assustado, mas preocupado, pois estou
começando a ver que a Rã é uma coisa muito maior do que jamais eu poderia ter sonhado,
Mataram aquele escocês outro dia, Maclean... Não vão pensar duas vezes para acabar
comigo. Essas Rãs não fazem outra coisa senão matar... E olham a Grande

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Rã como um deus: é como se ele comandasse uma religião! Apenas fiz alguns comentários
sobre eles... Mas não perdoarão...

— Cale-se! — advertiu ela em voz baixa quando a maçaneta da porta girou e Ray entrou
de novo no apartamento.

— Ufa! — ele exclamou. — Graças a Deus minha irmã já foi embora! Que manhã! Rãs,
Rãs, Rãs! Pobre coitado!

Lola abriu uma pequena cigarreira dourada e acendeu um cigarro, apagando o fósforo com
um leve toque dos dedos. Depois, voltou os belos olhos para Ray.

— Mas, no final das contas, qual é o problema com as Rãs? — perguntou ela friamente.
— Pagam bem e exigem muito pouco.

Ray olhou-a boquiaberto. — Não está trabalhando para elas, está? — perguntou meio
atordoado. — Não passam de vagabundos que matam pessoas!

Ela balançou a cabeça. — Nem todos — Lola corrigiu. — Os vagabundos formam


somente a base da Rã. As Grandes Rãs são diferentes. Sou uma delas, e Lew também.

— Sobre que diabo você está falando? — Lew perguntou, um pouco receoso e um pouco
irado.

— Ele tem que saber... Ele saberia mais cedo ou mais tarde - disse Lola
impassivelmente. — É um rapaz demasiado esperto para continuar acreditando que os
japoneses, ou qualquer outra embaixada, estejam lhe pagando os enormes gastos que faz.
Ele é uma Rã.

Ray caiu numa cadeira, incapaz de falar alguma coisa.

— Uma Rã? — repetiu maquinalmente. — O que... você quer dizer com isso?

Lola riu. — Não sei por que acha pior ser uma Rã do que um agente estrangeiro,
vendendo os segredos de seu próprio país — disse ela. — Não seja bobo, Ray! Você
devia estar agradecido e honrado. Eles o escolheram entre milhares de outros porque
queriam uma inteli gência como a sua ...

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E assim conseguiu adulá-lo, até que a volúvel cabeça do rapaz, escondida agora nas mãos
de Lola, que o acariciava, se ergueu sem abatimento.

— Acho que está tudo bem — disse ele, por fim. — Evidentemente, eu não seria capaz de
fazer nada realmente mau.. . E não aprovo essa associação, mas . sem dúvida a Rã não
pode ser responsabilizada por tudo que os vagabundos fazem. Mas sobre um ponto estou
decidido, Lola! Não deixarei que me façam uma tatuagem!

Ela riu e estendeu o braço muito claro. — Eu estou marcada? — ela perguntou. — Lew
está marcado? Não; os grandes de modo algum são marcados. Rapaz, você tem um grande
futuro.

Ray pegou a mão dela num afago. — Lola... Sobre aquela história que Gordon contou:..
de que você seria casada: é verdade?

Ela riu outra vez e acariciou a mão de Ray entre as suas.

— Gordon tem ciúmes — disse. — Por ora, não lhe posso dizer por quê. Mas ele tem boas
razões.

Subitamente, ela se afastou, mostrando um ar cada vez mais animado.

— Escute, vou telefonar e reservar uma mesa para o almoço. Você almoçará conosco e
brindaremos à saúde da grande Rãzinha que nos alimenta.

O telefone estava sobre o bufê. Quando ela levantou o fone, no entanto, viu uma caixa
negra e quadrada de metal fixada à base do aparelho.

— Algum problema com seu telefone, Ray? — perguntou.

— Colocaram ontem essa caixa. É uma resistência. O homem disse-me que uma pessoa
levou um grande choque ao telefonar durante uma tempestade. Estão instalando essas
coisas a título experimental. Torna o aparelho mais pesado e mais feio, porém.. .

Lola pousou lentamente o fone e examinou a caixa. — É um detectafone — disse


calmamente. — Alguém anota todas as nossas conversas.

Foi até a lareira, pegou um atiçador de fogo e despedaçou a caixinha...

O Inspetor Eik, com um par de fones grudados nas orelhas, estava numa minúscula sala
em Thames Em-

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bankment. Pousou com um suspiro o lápis sobre a mesa, pegou seu telefone e ligou para a
central telefônica da polícia.

— Pode desligar aquele detectafone de Knightsbridge 93718 — disse ele. — Acho que não
terá mais utilidade para nós.

— Quer entrar na linha, senhor? — perguntou a voz do telefonista. — Estavam


começando a falar quando o senhor chamou.

— Já se passou muito tempo, Angus — disse Elk. O inspetor reuniu suas anotações, foi
para a escrivaninha e arrumou cuidadosamente os papéis ao lado do mata-borrão.

Caminhando até a janela, ele contemplou o rio iluminado pelo sol e sentiu paz, sossego no
coração. Na véspera, o prisioneiro Mills decidira contar tudo que sabia sobre as Rãs, em
troca da promessa de perdão e de uma passagem para o Canadá. Mills sabia mais do que
tinha contado até agora.

”Posso dar uma pista sobre o Número Sete que vai fazê-lo cair em suas mãos”, dizia um
novo bilhete do preso.

O Número Sete! Elk respirou profundamente. O Número Sete era o eixo em torno do qual
girava a grande roda.

Ele esfregou animadamente as mãos, pois parecia que o mistério da Rã seria finalmente
solucionado. Talvez a ”pista” conduzisse ao tratado perdido, e com a lembrança do
documento roubado o rosto de Elk anuviou-se. Dois ministros, um grande departamento
de Estado e inumeráveis subsecretarias gastavam horas escrevendo notas frenéticas,
cobrando providências às chefaturas sobre o roubo na casa de Lorde Farrnley.

”Eles querem milagres” pensou Elk, e se perguntou se naquele dia assistiria a um.

Ao pôr a mão no bolso do sobretudo para apanhar um charuto, seus dedos roçaram num
grande maço de papéis. Elk os puxou, atirando-os na escrivaninha. As primeiras
palavras, na primeira folha, atraíram seus olhar.

”Por deferencia do Rei, Sua Excelentíssima Majestade...”

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Elk tentou gritar, mas perdeu a voz. Agarrou a papelada e examinou o documento com
mãos trêmulas.

Era o tratado perdido! Prendendo a preciosa documentação entre as mãos, as aventuras


da noite passada desfilaram velozmente em sua cabeça. Quando tirara o sobretudo?
Quando pusera a mão no bolso pela última vez? Tirara o casaco no Heron’s Club e não
se lembrava de ter usado os bolsos desde então. Era o mesmo sobretudo leve que usava
ou carregava sempre, verão ou inverno. De manhã, trouxera-o para o escritório no braço.

No clube! Provavelmente, quando ele entregou a peça de roupa ao empregado do


vestiário. A Rã, então, deve ter entrado lá. Possivelmente, um dos garçons, disfarce
admirável para o chefe do bando. Elk sentouse para pensar.

Interrogar alguém no prédio seria inútil. Ninguém tinha mexido no casaco além dele
mesmo.

— Meu Deus! — Elk exclamou, enquanto pendurava o sobretudo.

Ao toque de sua campainha, Balder entrou no escritório.

— Balder, lembra-se de ter visto eu passar por sua sala?

— Sim, senhor. — Estava com o casaco no braço, não estava? — Não reparei — disse
Balder com ar satisfeito. Ele invariavelmente dava a impressão a Elk de que tirava
grande satisfação do fato de não poder ser útil.

— É estranho — disse Elk. — Alguma coisa errada, senhor? — Não, não exatamente.
Já sabe o que deve fazer com Mills? Ele não pode ver ninguém. Logo ao chegar, tem de
ser levado para a sala de espera ... E não deixe ninguém aproximar-se dele. Não pode
haver conversa de espécie alguma, e, se ele falar ou perguntar alguma coisa, não deve
obter resposta.

Na privacidade do escritório, Elk examinou novamente sua descoberta. Tudo estava ali, o
acordo e as anotações de Lorde Farmley. Elk telefonou para Sua Excelência e deu-lhe as
boas novas. Mais tarde, uma pequena delegação do Ministério do Exterior veio tomar

140
posse da preciosa documentação e, em nome do Ministro, agradecer a Elk pelo serviço
prestado, recuperando os documentos perdidos. Elk recebeu os agradecimentos de forma
cortês. Teriam-no amaldiçoado com o mesmo zelo, se tivesse fracassado, mesmo se
estivesse inteiramente livre de responsabilidade pelo fracasso.

Arranjou tudo para que trouxessem Mills à chefatura ao meio-dia. Faltava uma hora e ele
ocupou o tempo de folga interrogando Hagn com aspereza. Hagn, com a barba cortada,
ocupava uma cela especial, isolada dos locais habituais de confinamento no Posto Policial
de Cannon Row, que, praticamente, é a própria Scotland Yard.

Hagn recusou-se a prestar qualquer declaração, mesmo quando formalmente acusado do


assassinato do Inspetor Genter. De manhã, contudo, fizera um comentário sobre a
acusação.

— Você não tem provas, Elk — disse ele —, e você sabe que estou inocente.

— Você foi a última pessoa a ser vista na companhia de Genter — disse Elk severamente.
— Já sabemos que foi você quem trouxe o corpo de volta à cidade. Além disso, Mills
confessou tudo.

— Estou consciente do que Mills pode ter dito — observou o outro.

— Nem tanto — sugeriu Elk. — Pois vou dizer-lhe uma coisa: temos o Número Sete
trancado a chave desde esta manhã. Agora ria!

Para seu espanto, o rosto do homem dilatou-se num largo sorriso.

— Blefe! — disse ele. — E dos baratos! Pode enganar um pobre ladrãozinho, mas não
funciona comigo. Se tivesse pegado o Sete, não me estaria intimidando com tanta
arrogância. Vá e prenda-o, Elk — zombou ele — e quando o tiver preso, mantenha-o
bem-apertado. Não o deixe escapar... como fará Mills.

Elk voltou ao escritório, achando que o encontro não tinha ido tão bem quanto havia
esperado. Estava deixando o posto policial quando avistou o InspetorChefe.

— Joguei verde em Hagn esta tarde. Ponha os dois juntos e deixe-os sozinhos.

O Inspetor abanou a cabeça com ar compreensivo.

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CAPÍTULO 17

A vinda de MiUs

Na manhã em que Elk esperava a chegada do informante, foram tomadas complexas


precauções para transferir o homem para as dependências da chefatura. Durante toda a
noite, a prisão esteve cercada por um cordão de guardas armados, enquanto patrulhas
permaneciam alertas na área em que ele estava confinado.

A Rã capturada era um sujeito bem-educado, que tinha caído em má situação e fora


recrutado quando estava ”perdido”. O recrutamento deu-se por intermédio de dois
vagabundos que faziam parte da fraternidade. Desde seu primeiro depoimento, ficou claro
que tinha atuado como líder de grupo, devendo transmitir instruções e ”chamadas” através
dos demais escalões, relatar perdas e ajudar nos ataques que, de tempos em tempos, eram
perpetrados contra pessoas que haviam conquistado a inimizade da Rã. Aparentemente,
tarefas desse tipo só eram dadas aos líderes de grupo e a pessoas de confiança.

As 11h, trouxeram-no da cela. A despeito de sua anterior segurança, o homem estava


nervoso e apreensivo. Além disso, estava resfriado e não parava de tossir, o que, em parte,
também poderia ser efeito do seu estado emocional.

142
As 11h15min, os portões da prisão foram abertos, e três motociclistas tomaram a
dianteira. Um carro fechado, com cortinas abaixadas, logo os seguiu. De ambos os lados do
carro também havia motociclistas armados. Um segundo automóvel, levando homens da
Central de Polícia, fechava a escolta.

O cortejo chegou sem contratempos à Scotland Yard; as grades do portão foram fechadas
e o prisioneiro empurrado para dentro do prédio.

Balder, assistente de Elk e sargento-detetive, ficou responsável pelo detido, que estava
pálido e trêmulo. Puseram a Rã numa pequena sala, vizinha ao escritório de Elk. As
janelas tinham grades pesadas, do tempo da guerra, quando o recinto fora utilizado como
prisão de espiões. Do lado de fora, junto à porta, havia dois homens de serviço. Com ar
aborrecido, Balder se apresentou.

— Deixamos aquele sujeito na sala de espera, Sr. Elk.

— Ele falou alguma coisa? — perguntou Dick, que tinha vindo participar do
interrogatório.

— Não, senhor. Pediu apenas para fechar as janelas. Eu as fechei.

— Traga o prisioneiro — disse Elk.

Esperaram por algum tempo, ouviram chaves batendo e depois um rumor nervoso de
conversa. Balder voltou apressado.

— Ele está mal . . . desmaiado ou algo assim — falou com voz entrecortada.

Elk arremessou-se pelo corredor até a sala da guarda.

Mills estava meio sentado, meio caído contra a parede. Os olhos fechados, o rosto
acinzentado.

De manhã, Mills fora revistado até a pele, todas as suas peças de roupa tinham sido bem
reviradas. Além disso, como precaução extra, seus bolsos foram costurados. Aos dois
detetives que o acompanharam no carro, ele se tinha mostrado esperançoso em relação à
posterior viagem para o Canadá. Ninguém, a não ser os policiais, se tinha aproximado dele.
Mills não tivera comunicação com ninguém de fora.

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A primeira coisa que Dick Gordon observou foi a janela, que Balder disse ter fechado.
Estava entreaberta cerca de 17 centímetros.

— Sim, senhor, tenho certeza de que a fechei — disse enfaticamente o policial. — O


sargento Jeller me viu fechando.

O sargento confirmou a declaração do colega. Dick abriu um pouco mais a janela e olhou
para fora. Quatro barras horizontais atravessavam o espaço entre a alvenaria, mas,
esticando a cabeça, ele viu, a uns 30 centímetros da janela, rente ao muro, uma comprida
escada de aço que descia do telhado (ao que parecia) para o solo. A sala ficava no
terceiro andar; embaixo, viam-se jardins cobertos de arbustos. Mais além, havia grades
muito altas.

— Que jardins são esses? — ele perguntou, apontando a área do outro lado da cerca.

— Fazem parte de Onslow Gardens — disse Elk. — Onslow Gardens? — disse Dick
pensativamente. — Não foi de Onslow Gardens que as Rãs tentaram atirar em mim?

Elk, desanimado, balançou afirmativamente a cabeça.

— Que está sugerindo, Capitão Gordon? — Não sei o que sugerir — admitiu Dick. —
Não parece uma teoria inteligente achar que alguém desceu pela escada e passou o
veneno para Mills; seria, inclusive, improvável que ele estivesse disposto a tomar a dose.
Aí está o fato. Balder jura que a janela estava fechada e agora ela está aberta. Pode afiançar
a declaração de Balder?

Elk fez que sim com a cabeça. O cirurgião da divisão penitenciária veio logo depois, e,
como Dick esperava, anunciou que o homem estava morto e manteve o ponto de vista de
que o cianureto fora a causa da morte.

— O cianureto tem um cheiro peculiar — disse ele. — Não há qualquer dúvida de que o
homem está morto, seja por veneno administrado de fora ou por veneno tomado
voluntariamente por ele mesmo.

Depois que o corpo foi removido, Elk acompanhou Dick Gordon ao escritório de
Whitehall.

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— Nunca senti medo em minha vida — disse Elk mas essas Rãs, sem dúvida, estão
conseguindo esquentar demais minha cabeça! Um homem foi morto praticamente sob
nossos olhos Estava bem vigiado, jamais saiu de nossas vistas, exceto durante os poucos
minutos em que ficou sozinho naquela sala. E, apesar de tudo, a Rã conseguiu chegar até
ele. De fato, é assustador, Capitão Gordon.

Dick abriu a porta do escritório e levou Elk até um sofá.

— Não conheço cura melhor para nervos abalados do que um Cabana Cesare — disse
ele, num tom animado. — E, sem pretender ser fanfarrão, posso simplesmente lhe dizer,
Elk, que eles não me assustam, nem tampouco devem assustá-lo. A Rã é humana, e tem
temores também humanos. Onde está nosso amigo Broad?

— O americano? Dick fez que sim com a cabeça, e Elk, sem um segundo de vacilação
pegou o fone e discou um número.

Após curta demora, a voz de Broad atendeu. — É o senhor, Sr. Broad? Que está fazendo
agora? — perguntou Elk, no tom delicado que adotava nos contatos telefônicos.

— É Elk? Estou me preparando para sair. — Pensei tê-lo visto em Whitehall há cinco
minutos — disse Elk.

— Então deve ter visto um sósia meu — respondeu o outro —, pois estava há 10 minutos
tomando banho. Quer que eu vá ai?

— Não, não — Elk apressou-se a responder. — Só queria saber se estava bem.

— Por quê? Há alguma coisa errada? — a pergunta veio num tom cortante.

— Tudo está ótimo — mentiu Elk. — Talvez o senhor passe por aqui e resolva me ver um
desses dias, em meu escritório. Até logo!

Pousou o telefone no gancho e, levantando os olhos para o teto, fez um cálculo rápido.

— De Whitehall até Cavendish Square demora-se quatro minutos correndo bem — ele
disse. — Então, o fato de ele estar agora no apartamento nada significa.

145
Pegou o telefone e ligou para um dos ramais internos.

— Quero um homem seguindo o Sr. Joshua Broad, da Caverley House. Não deve perdê-lo
de vista até as 8h da noite de hoje. Quero que me informem depois.

Quando acabou de falar, sentou-se em sua poltrona e acendeu o charuto comprido que Dick
lhe tinha passado.

— Hoje é terça-feira — ruminou —, amanhã, quarta. Onde pretende investigar, Capitão


Gordon?

— No Almirantado — disse Dick. — Arranjei para estarmos na sala de instrumentos às


2h45min.

Comprou as primeiras edições dos jornais da noite e ficou aliviado ao constatar que não
havia referências ao assassinato, assassinato que ele acreditava ter existido. Ainda durante
o dia, olhando Whitehall pela janela, vira Elk caminhando do outro lado da rua, o
guarda-chuva pendurado no braço, o chapéu velho caído na cabeça, uma figura
desmazelada, sem qualquer imponência. Depois, uma hora mais tarde, viu-o novamente,
voltando pela direção oposta. Teve vontade de saber o que o detetive andava fazendo.
Quase por acaso, soube que Elk fizera naquele dia duas visitas ao Almirantado, mas só
descobriu a razão ao encontrá-lo mais tarde, naquela mesma noite.

— Não sei muita coisa sobre telégrafos — disse Elk —, embora não seja uma daquelas
pessoas que acreditam que, se Deus pretendia fazer-nos usar a radiotelegrafia, os postes
telegráficos já deviam ter surgido sem fios. Parece-me, no entanto, que li alguma coisa
sobre ”direcionais”. Se você quer saber de onde vem uma mensagem telegráfica você a
intercepta em dois ou três pontos diferentes...

— É claro! Como sou tolo! — disse Dick, aborrecido consigo mesmo. — Nunca me
ocorreu que nós poderíamos pegar a estação transmissora.

— Tenho idéias assim... — Elk justificou-se modestamente. — O Almirantado enviou


mensagens a Milford Haven, Harwich, Portsmouth e Plymouth, mandando que alguns
navios interceptem e nos dêem a direção... Os jornais da noite não editaram aquela história.

146
— Está se referindo ao caso de Mills? Não, graças a Deus! É certo que haverá uma
sindicância, mas consegui que adiassem por uma ou duas semanas. De qualquer modo,
sinto que vão acontecer coisas nas próximas semanas.

— Vão acontecer a nós — disse Elk, num tom sinistro. — Não tive coragem de comer nem
mesmo uma lingüiça na brasa desde que aquele sujeito foi morto! E eu gosto muito de
lingüiça.

147
CAPÍTULO 18 A transmissão Como de hábito, seu pálido assistente estava de mau
humor.

— Os registros têm sido remexidos e estão me atormentando — disse ele amargamente.


— Dão mais trabalho que toda a maldita tarefa de escritório.

A guerra entre Balder e os ”Registros”, título sucinto da seção da chefatura que coletava os
dados sobre o passado de criminosos, era coisa antiga. Os ”Registros” eram distantes,
isolados, soberbamente superiores a tudo, exceto a fatos classificáveis. Não respeitavam a
origem de ninguém; tando diziam respeito a um comissário-chefe que transgredisse seus
inflexíveis deveres quanto ao menos graduado dos guardas.

— Qual é o problema? — Elk perguntou.

— Não está lembrado de que outro dia você pegou muita coisa sobre um homem chamado
. . . Agora não consigo lembrar do nome dele.

— Lyme? Elk sugeriu.

— É, esse mesmo. Bem, parece que um dos retratos está perdido. Depois que você os viu,
na manhã seguinte, fui para os arquivos e retirei de novo os documentos, achando que ia
querer examinájlos novamente pela manhã. Como você não veio, tornei a levar

148
a pasta para o fichário. Agora estão dizendo que o retrato e alguns papéis não estão lá.

— Está querendo dizer que se perderam? — Se estão perdidos — disse o rabugento


Balder então se perderam nos próprios Registros! E acho que estão pensando que sou
uma Rã ou alguma coisa desse tipo. Sempre me estão acusando de perder fichas de
impressões digitais.

— Vou dar-lhe uma chance de ”aparecer”, Balder. Você ainda não obteve a promoção,
rapaz, porque os homens lá de cima pensam que foi um dos líderes da última greve.
Conheço muito bem essa sensação de ”ser deixado de lado”; acaba com o bom humor de
qualquer um. Quer ter uma boa oportunidade de modificar essa situação?

Balder fez que sim com a cabeça, prendendo a respiração.

— Hagn está numa cela especial — disse Elk. — Vista roupas civis, comece a
comportar-se de modo grosseiro e depois venha aqui para que eu o prenda junto com ele.
Se tiver medo, pode levar um revólver. Arranjarei as coisas para que não o revistem. Faça
Hagn falar. Diga-lhe que está preso por causa do assasinato de Dundee. Hagn não
conhece você. Represente essa história, Balder! Numa semana eu lhe porei novas divisas
no braço.

Balder concordou com a cabeça. A natureza lamuriosa de sua voz tinha se modificado
quando voltou a falar.

— É uma boa chance — disse — e obrigado, Sr. Elk, por dar-me esta oportunidade.

Uma hora depois, um detetive trouxe para Cannon Row um prisioneiro de aspecto sujo,
que foi empurrado contra as grades de aço. O único homem que o reconheceu foi o
Inspetor-Chefe, que já fora avisado da chegada daquela peça da armadilha.

Esse mesmo alto funcionário conduziu Balder para a cela isolada e jogowo dentro dela.

— Boa noite, Rã! — disse ele. A resposta de Balder foi impublicável. Após verificar que
o subordinado fora trancafiado em segurança, Elk voltou para sua sala, fechou a porta,

149
tirou o telefone do gancho e se estendeu para dormir por algumas horas. Quando
empenhado em algum trabalho que o mantinha em vigília através da noite, Elk tinha por
hábito fazer sestas intermediárias; tinha se educado para dormir quando e onde a
oportunidade se apresentasse. Não era comum, no entanto, que o Inspetor se utilizasse de
um grande sofá que havia no escritório, uma peça de mobília que não se considerava
digno de utilizar. Como seus superiores freqüentemente observavam, o sofá ocupava
espaço excessivo, que poderia ser melhor empregado. Dessa vez, contudo, apesar de
estirado no sofá, Elk não conseguia dormir. Sua mente passeava de Balder a Dick Gordon,
de Lola Bassano ao falecido Mills. Sua própria posição fora posta seriamente em perigo,
mas de modo algum era isso que o preocupava. Ele era solteiro, tinha uma boa soma
investida. O pensamento levou-o ao desorientador Maitland, cuja ligação com as Rãs fora
provada quase que por completo. E Maitland estava numa posição que lhe permitia tirar
proveito dos muitos ataques inexplicáveis que tinham sido cometidos contra pessoas ao
menos aparentemente inofensivas.

O velho tinha uma vida dupla. Durante o dia, severo homem de negócios, diante de quem
todos os empregados tremiam, homem que não hesitava em cortar salários, arguto
manipulador de propriedades; de noite, sócio de ladrões ou de gente ainda pior que
ladrões. Quem era a criança? Esse era mais um problema.

— Nada a não ser problemas! — Elk rosnou, as mãos na cabeça, o olhar irritado voltado
para o teto. — Nada a não ser problemas.

Percebendo que não conseguiria dormir, ergueu-se e perambulou por Cannon Row. O
carcereiro informou que o novo prisioneiro tinha conversado muito com Hagn, e Elk
sorriu entre dentes. Só esperava que o ”novo prisioneiro” não sentisse a tentação de abordar
suas queixas contra a administração da polícia.

As 2h45min, o Inspetor reuniu-se a Dick Gordon na sala de instrumentos do Almirantado.


Um operador fora colocado à disposição dos dois e, após algumas instruções preliminares,
Dick e Elk tomaram seus lugares junto ao painel que ele manipulava. Fascinado, Dick,
ouviu chamadas de navios distantes e o tagarelar de vá-

150
rias estações transmissoras. De repente, um rangido fraco, um som tão fraco que pensou
ter sido enganado pelos ouvidos.

— Cabo Race — disse o operador. — Ouvirão Chicago num minuto. Geralmente, ele fica
conversador em torno dessa hora.

Quando os ponteiros do relógio se aproximaram das 3h, o operador começou a alternar o


comprimento das ondas, buscando no éter uma mensagem que estava cada vez mais
próxima. Exatamente um minuto depois das 3, ele disse de súbito:

— Aqui é Lvms. Dick ouviu os sons em staccato e depois: — Ouçam todas as Rãs. Mills
está morto. O Número Sete terminou com ele esta manhã. O Número Sete recebe um
bônus de 100 libras.

A voz era clara e singularmente suave. Era de uma mulher.

— O distrito 23 providenciará para receber as instruções do Número Sete no lugar de


costume.

O coração de Dick batia com estrondo. Reconhecia a locutora, conhecia as suaves


cadências da voz, as doces entonações.

Não podia haver dúvida alguma: era a voz de Ella Bennett! Dick sentiu uma súbita
sensação de frio, mas, olhando sobre a mesa e reparando nos olhos de Elk fixos sobre si,
fez um esforço para controlar as emoções.

— Parece que nada mais está sendo transmitido — disse o operador, após alguns minutos
de espera.

Dick tirou o chapéu da cabeça e se levantou. — Devemos esperar para descobrir a direção
dos sinais — disse, tão prontamente quanto lhe foi possível.

Pouco depois, começaram a chegar sinais de telégrafo, que um oficial da Marinha ia


reunindo num grande mapa.

— A estação transmissora está em Londres — disse ele. — Todas as linhas encontram-se


em algum ponto de West End, creio; possivelmente, no centro mesmo de Londres. Teve
alguma dificuldade para captar a chamada da Rã? — perguntou ao operador.

— Sim, senhor — disse o homem. — Mas também achei que eram mandadas de muito
perto.

151
— Em que parte da cidade poderia estar a estação? — perguntou Elk.

O oficial traçou uma linha a lápis sobre o mapa. — Fica em algum lugar sobre esta marca
— disse ele.

Examinando com cuidado, Elk constatou que a linha passava por Cavendish Square e
Cavendish Place e que, enquanto o meridiano de Portsmouth perdia Cavendish Place
somente por um bloco de edifícios, o de Harwich cruzava de Plymouth um pouco ao Sul
de Cavendish Square.

— Caverley House, é óbvio — disse Dick. Ele queria desabafar, falar abertamente,
discutir com Elk tudo que a coisa possuía de monstruoso. Teria também o detetive
reconhecido a voz, ele se perguntava? Mas sua dúvida logo se dissiparia. Mal tinham
chegado a Whitehall quando Elk comentou:

— Voz muito parecida com a de uma amiga sua, Capitão Gordon?

Dick não deu resposta. — Muito parecida — disse Elk como se continuasse falando
consigo mesmo. — De fato, posso jurar o número de vezes que você quiser que sei quem
é a jovem que estava falando pela velha Rã.

— Por que ela faria isso? — Dick rosnou. — Por que, pelo amor de Deus, ela faria isso?

— Lembro-me de tê-la ouvido anos atrás... — disse Elk, em tom de reminiscências.

Dick Gordon deteve-se, virou a cabeça e arregalou os olhos para o outro.

— Você se lembra ... o que está pretendendo dizer? — ele perguntou.

— Ela fazia teatro naquele tempo . . . Era ainda uma criança. — Elk continuou. —
Chamavam-na ”Criança Imitadora”. E reparei ainda noutra coisa, Capitão: se você pega
uma lupa de boa qualidade e a dirige contra a pele, você nota todos os seus defeitos, não é
verdade? A transmissão sem fio atua como uma espécie de lupa de boa qualidade para a
voz. Ela sempre teve um leve balbucio no fundo da voz. Você pode não ter reparado
nisso, mas eu possuo ouvidos bem afiados. Ela não consegue pronunciar adequadamente
os ”esses”, subs-

152
titui-os por uma espécie de ”th”, como emitimos em inglês. Não notou nada disso?

Dick notara e concordou com a cabeça. — Não sabia sequer que ela já fez teatro — disse
o detetive, mais seguro de si. — Tem certeza, Elk?

— Absoluta. A respeito de certos detalhes, eu sou. . . qual é a palavra?... In-fa-lí-vel. Fico


um pouco atordoado com datas; saber, por exemplo, quando nasceu Henrique I. .. De
qualquer modo, nunca sou convidado para comemorações... Mas conheço vozes e ruídos.
E nunca os esqueço.

Os dois penetravam na entrada escura da Scotland Yard, quando Dick falou com
desespero na voz:

— Era a voz dela, sem dúvida. E eu nem sequer sabia que ela já fez teatro. Será que o pai
também está no negócio?

— Pelo que sei, ela não tem pai — foi a surpreendente resposta, que fez com que Gordon
parasse sobressaltado.

— Você esta maluco? — ele perguntou. — Ella Bennett tem pai...

— Não estou falando de Ella Bennett — disse o tranqüilo Inspetor Elk. — Estou me
referindo a Lola Bassano.

Houve silêncio. — Era a voz dela? — perguntou Gordon um tanto sem fôlego.

— Certamente era a voz de Lola. Foi uma imitação muito boa da Srta. Bennett, mas é fácil
imitar vozes suaves. A tranqüilidade da voz facilita a emissão .. .

— Seu mau caráter! — disse Dick Gordon, quando o peso que se acumulara em seu
coração sumiu de repente. — Sabia que estava me referindo a Ella Bennett e me deixou
sofrer até o fim!

— Pode censurar-me — disse Elk. — Que horas são? Eram 3h3Omin. Os guardas do
serviço foram reunidos e 10 minutos depois patrulhas policiais despejavam um grupo diante
da porta fechada de Caverley House. A campainha fez com que o porteiro noturno se
aproximasse. Elk foi reconhecido pelo vigia.

— Mais problemas com gás venenoso? — perguntou ele.

153
— Precisamos examinar a planta do edifício — disse Elk.

O Inspetor ficou atento às informações do porteiro, que detalhou nomes, ocupações e


peculiaridades dos moradores.

— Quem é de fato o dono do prédio? — perguntou o detetive.

— É uma das propriedades de Maitland. Pertence à Maitlands Consolidated. Possuem o


Príncipe de Caux em Berkeley Square e...

— Não precisa contar a história da família Maitland. A que horas chegou a Srta. Bassano?

— Chegou às 11h. Não saiu todo o resto da noite. — Há alguém com ela? O homem
hesitou. — O Sr. Maitland veio com ela, mas foi embora logo depois.

— Ninguém mais? — Ninguém mais esteve com ela além do Sr. Maitland.

- Dê-me sua chave-mestra. O porteiro vacilou. — Assim, vou perder meu emprego —
lamentouse — O senhor não pode bater na porta?

— Batidas são minha especialidade ... Não passo um dia sem bater na porta de alguém
— respondeu Elk -, mas preciso da chave.

O Inspetor não tinha dúvidas de que Lola trancara bem a porta e sua conjectura provou-se
correta. Tivera de bater na porta e tocar a campainha para que a luz surgisse por baixo da
porta e, num quimono Lola aparecesse

— Que significa isto, Sr. Elk? — ela perguntou, nem mesmo se preocupando em parecer
verdadeiramente surpreendida.

— Uma visita amigável... — Posso entrar? Ela abriu amplamente a porta e Elk entrou,
seguido por Gordon e dois detetives. Lola ignorou Dick.

— Amanhã falarei com o Superintendente de Polícia — disse ela. — Se ele não me


apresentar justificativas para esta intromissão, irei aos jornais. Esta perseguição é
vergonhosa. Entrar no apartamento de uma

154
moça solteira no meio da noite, quando ela está só e desprotegida .

— Pois é justamente no meio da noite que urna moça solteira deveria estar sozinha e
desprotegida — disse Elk sarcasticamente. — Quero apenas dar uma olhada em seu
pequeno lar. Tivemos informações de que foi roubada, Lola. Talvez neste exato minuto
haja um sujeito sinistro escondido embaixo de sua cama. A idéia de deixá-la sozinha, por
assim dizer à mercê de indivíduos fora da lei, repugna nossos sentimentos. Procure na
sala de jantar, William; eu vou verificar a sala de visitas ... e o quarto de dormir.

— Ficará fora de meu quarto se tiver um mínimo de senso de decência — disse a moça.

— Não tenho — admitiu Elk — , pelo menos nenhum falso senso de decência. Além disso,
Lola, sou um tipo familiar. Se houver alguma coisa pessoal que eu não deva ver, é
suficiente dizer ”Feche os olhos”, e obedecerei.

Aparentemente, nada havia que despertasse a mais leve suspeita. O banheiro


prolongava-se a partir do quarto e tinha a janela aberta. Dirigindo o facho da lanterna para
o muro do lado de fora, Elk reparou numa pequena bobina de vidro quase embutida na
parede.

— Parece urna espécie de isolante — disse ele. Voltando ao quarto, começou a procurar
algum indício de aparelhagem elétrica. Encostado numa parede, havia um grande armário
de mogno. Abrindo a porta, viu fileiras de cabides com vestidos, entre os quais empurrou
a mão.

Era o mais fino fundo de madeira que já tocara e havia certa quentura.

— Armário quente, Lola? — ele perguntou. Ela não respondeu, mas passou a observá-lo
com atenção, uma ruga na testa bonita, os braços caídos.

Elk fechou a porta e seus dedos sensíveis inspecionaram a superfície do móvel. Demorou
muito tempo para descobrir, mas, afinal, encontrou uma tira de madeira que cedeu sob a
pressão de sua mão.

Houve um ”dique” e a frente do armário começou a cair.

155
— Urna cama-armário, hein? Engenhoso para um apartamento.

Mas o que se revelou não foi urna cama (e o inspetor teria ficado desapontado se assim
fosse). Quando ele abaixou a ”cama”, surgiu uma série de válvuas, transformadores e
todo o aparato que urna radiotransmissão exige.

Elk olhou admirado. — Você tem uma licença, creio? — perguntou. O Inspetor achava
que ela não possuía qualquer autorização, pois licenças para radioamadorismo são muito
escassamente emitidas na Inglaterra. Por isso, Elk surpreendeu-se quando Lola foi a uma
escrivaninha e apresentou o documento exigido por lei. Elk leu e confirmou-lhe a
autenticidade.

— Você apresentou algo de um álibi — disse respeitosamente o Inspetor —, mas quero ver
agora sua carteirinha de Rã.

— Não tente ser engraçado, Elk — disse ela com certo sarcasmo. — Só queria saber se
você tem o hábito de acordar pessoas no meio da noite para verificar licenças de
radioamadorismo.

— Esta noite, você usou a aparelhagem para transmitir mensagens para as Rãs — Elk
acusou — e talvez queira explicar ao Capitão Gordon a razão de seu comportamento.

Pela primeira vez, ela voltou os olhos para Dick. — Não uso a aparelhagem há semanas
— disse Lola Bassano. — Mas a irmã de um amigo meu, talvez você a conheça,
pediu-me para usá-lo. Ela saiu daqui há uma hora.

— Está se referindo à Srta. Bennett, é claro — disse Gordon.

Ela ergueu as sobrancelhas com um espanto teatral.

— Mas ora! Como adivinhou? — Eu adivinhei primeiro — disse Elk. — Desde o


momento em que a ouvi fazer uma de suas famosas imitações. Creio que teve
oportunidade de observar a irmã de Ray por tempo suficiente para aprender a falar como
ela. Lola, você está frita! A Srta. Bennett estava ao meu lado quando você começou a falar
a lin-

156
guagem da Rã. Estava bem do meu lado, dizendo: ”Convenhamos, Sr. Elk, que ela fez uma
imitação bastante convincente!” Você está frita, Lola, e o melhor que tem a fazer é
sentar-se e dizer-nos toda a verdade. Vou facilitar-lhe as coisas . . . Nós pegamos o ”Sete”
na noite passada e ele nos contou tudo. Hoje a Rã estará inteira atrás das grades e vim aqui
para lhe dar uma última chance de safar-se de toda a confusão em que se meteu.

— Mas não é mesmo maravilhoso? — ela zombou. — Então, você pegou o ”Sete” e ainda
está correndo atrás da Rã! Por que não joga um pouco de sal na cauda dela?

— Sim — disse o imperturbável Elk, desenvolvendo a mentira que tentava pregar —, nós
pegamos o Sete e Hagn. Mas gosto de você, Lola; sempre gostei. Há algo em você que
me faz lembrar uma moça por quem me apaixonei . . . E com quem nunca cheguei a casar:
uma tragédia!

— Não para ela — disse Lola. — Agora, eu vou dizer-lhe uma coisa, Elk! Você não
pegou niguém e nem pegará. Você pôs um falso prisioneiro, um agente policial, chamado
Balder, na mesma cela de Hagn. Pretendeu obter informações e vai ter uma surpresa
desagradável.

Em outra situação, Dick Gordon chegaria até mesmo a se divertir com o efeito das palavras
de Lola sobre Elk. O queixo do inspetor caiu e seus olhos olharam quase desesperados
por sobre os óculos. Viram a moça, com um sorriso de triunfo. Depois, o sorriso
desapareceu.

— Hagn não falaria, porque a Rã pode atingi-lo em qualquer lugar, assim como aconteceu
com Mills e Litnov. Assim como pode atacar você quando achar que vale a pena. E agora
pode prender-me se quiser. Sou uma Rã; nunca neguei. Você sabe de toda a história que
contei a Ray Bennet. Ouviu pelo detectafone que mandou instalar. Prenda-me e me acuse!

Elk sabia não haver provas suficientes para acusála e prendê-la. Ela também sabia disso.

— Você acha que escapará dessa, Bassano? Foi Gordon quem falou, e ela voltou os olhos
furiosos para o detetive.

157
— Não o autorizei a me chamar de você, Gordon — falou com voz rude.

— Mais cedo ou mais tarde, você terá seu número de presidiária — disse Dick, senhor de
si. — Você e seu bando estão desfrutando os últimos anos de uma vida curta, talvez
porque eu seja incompetente ou desastroso. Mas um dia nós a pegaremos, eu ou alguém que
esteja em meu lugar. Você não pode transgredir a lei impunemente, pois a lei é perene e
constante.

— Não me importa que revistem o apartamento, mas não aturarei um sermão — disse ela,
sobranceiramente. — E agora, se seus homens já fizeram o que tinham a fazer, gostaria de
me deitar e dormir o sono tranqüilo de que preciso para me manter em forma.

— Você não precisa de mais nada para se manter em forma — disse Elk com ar galante, e
ela riu.

— Você não é um mau sujeito, Elk — disse Lola. — É um mau detetive, mas tem um
coração de ouro.

— Se tivesse um coração de ouro, jamais teria coragem de ficar sozinho com você — foi o
tiro de despedida do Inspetor.

158 MIL
CAPÍTULO 19

No bosque de Elsham

Dick Gordon desfrutava a súbita alegria que sentira quando descobriu que seus horríveis
temores eram sem fundamento. O detetive estava inclinado a achar que a noite tinha sido
bastante proveitosa. Esse não era o ponto de vista de Elk, que mantinha um ar
verdadeiramente grave durante o caminho de volta para a chefatura.

— Admito que essas Rãs estão me assustando — confessou. — Há um rombo muito


perigoso em algum lugar... Como ela soube que pus Balder com Hagn? Isso me deixou
tonto. Além de nós mesmos, ninguém, a não ser os dois homens, estão envolvidos na
coisa. Se as Rãs são capazes de devassar segredos desse tipo, não seria de estranhar que
Hagn soubesse do truque. Eu lhe digo, Capitão Gordon, eles me dão medo. Se
conseguissem descobrir alguns dos nossos passos, sem grande precisão de detalhes, eu já
ficaria preocupado. Mas o pior é que eles sabem de tudo!

Dick concordou com a cabeça. — O problema todo, Elk, é que a Rã não é uma
associação ilegal. Talvez seja necessário pedir que o Primeiro-Ministro proíba a
sociedade.

— Talvez ele seja também uma Rã — disse Elk sombriamente. — Não ria, Capitão
Gordon! Há pessoas

159
importantes por trás dessas Rãs. Estou começando a suspeitar de todo mundo.

Comece por suspeitar de mim — disse Gordon bem-humorado.

— Já suspeitei — foi a resposta franca. — Depois ocorreu-me que possivelmente eu


caminho durante o sono . . . Fazia isso quando garoto. É provável que eu leve uma vida
dupla: detetive de dia e Rã de noite, nunca se sabe. É evidente que existe um gênio por
trás das Rãs — continuou ele, com inconsciente falta de modéstia.

— Lola Bassano? — sugeriu Dick. — Já pensei nisso, mas ela não é boa organizadora.
Teve uma companhia ambulante aos 19 anos e a companhia faliu por falta de organização.
Talvez você ache que isso não significa que ela não possa ser uma peça importante para
as Rãs, mas significa. A inteligência necessária para controlar as Rãs é do mesmo tipo de
inteligência necessária para controlar um banco. Maitland é o homem. Estreitei o círculo
em torno dele após ter uma conversa com Johnson. Johnson diz que nunca viu livro de
contas-correntes do velho e que, embora seja secretário particular, nada sabe das
transações de Maitland, exceto que ele compra e vende propriedades. O dinheiro que o
velho faz por fora jamais aparece nos livros e Johnson ficou muito surpreso quando sugeri
que Maitland tinha muitos outros negócios, que fugiam à rotina da companhia. E a rigor
não se trata sequer de uma companhia, mas de um show-man e seu espetáculo . . . Mas
não gostaria de ter certeza, Capitão Gordon?

— Certeza de quê? — perguntou Dick, sobressaltado.

— De que a Srta. Bennett não está de modo algum metida na coisa.

— Claro que nem por um momento você pensou que ela é uma Rã? — perguntou Dick,
irritado com o pensamento.

— Meu espírito já está preparado para acreditar em tudo — disse Elk. — Não há nevoeiro
nas estradas; em uma hora podemos chegar a Horsham, e é nossa obrigação ter certeza das
coisas. A princípio, estou inteira-

160
mente certo de que não é a voz da Srta. Bennett, mas quando mandarmos os relatórios
para o pessoal lá em cima (”o pessoal lá em cima” era o símbolo que Elk
invariavelmente utilizava para qualificar seus superiores) não podemos fazer papel de tolos
e informar que ouvimos a voz da Srta. Bennett e não nos preocupamos em localizá-la.

— Tem razão — disse Dick pensativamente. Inclinando-se para o motorista, Elk deu o
endereço dos Bennett.

O clarão da manhã já surgia no céu quando o carro atravessou as ruas desertas de


Horsham e começou a subida para o Chalé Maytree, situado na encosta da Estrada de
Shoreham.

Não havia sinais de vida na casa. As janelas estavam cerradas; não havia luz de qualquer
espécie. Dick hesitou, com a mão encostada no portão.

— Não gostaria de acordar o pessoal — admitiu. — Provavelmente, o velho Bennett vai


pensar que trazemos más notícias sobre o filho.

— Não tenho tantos escrúpulos — disse Elk, avançando pela trilha entre o jardim.

Mas não foi necessário acordar John Bennett. Elk foi saudado de uma janela do andar de
cima. O misterioso Sr. Bennett tinha os cotovelos no parapeito.

— Qual é o problema, Elk? — perguntou ele em voz baixa, como se não quisesse acordar
a filha.

— Nenhum problema — disse cordialmente o inspetor. — Na noite passada, interceptamos


uma transmissão de rádio e tive a impressão de que era a voz de sua filha.

John Bennett franziu a testa e Dick achou que ele não acreditou muito nas palavras de
Elk.

— É verdade mesmo, Sr. Bennett — disse ele. — Também ouvi a voz. Escutávamos uma
mensagem de, alguma importância e ouvi a Srta. Bennett em circunstâncias que obrigam a
nos certificarmos de que não era ela quem falava.

O rosto de John Bennett animou-se um pouco. — É uma coisa muito estranha, Capitão
Gordon, mas acredito no senhor. Vou descer e fazê-los entrar.

161
Usando um velho roupão, ele abriu a porta da frente e introduziu os policiais numa sala de
estar mergulhada na obscuridade.

— Vou chamar Ella, que talvez possa convencê-los melhor de que, ontem à noite, já
estava na cama às 10h.

Bennett saiu da sala, depois de abrir as cortinas para deixar que o sol entrasse. Dick
esperou com certa sensação agradável de antecipação. Parecia mesmo contente por ter
uma desculpa para vir a Horsham. A moça ocupava-lhe a tal ponto o coração que os dias
entre os encontros pareciam eternidades. Ouviram os passos de Bennett nos degraus e,
pouco depois, o velho estava diante deles, a tristeza largamente escrita no rosto.

— Não posso entender — disse. — Ella não está no quarto! Os lençóis da cama estão
amassados, mas sem dúvida se vestiu e saiu.

Elk coçou o queixo, evitando os olhos de Dick. — Muitos jovens gostam de acordar cedo
— disse ele. — Eu mesmo, quando rapaz, sentia enorme prazer em ver o sol nascer . . .
antes de ir para a cama. Ela não costuma dar um passeio de manhã cedo?

John Bennett balançou a cabeça. — Nunca vi minha filha fazer isso antes. E é curioso que
não a tenha ouvido sair, pois dormi muito mal esta noite. Será que me dão licença,
cavalheiros?

Bennett foi para o andar de cima e voltou em poucos minutos, já vestido. Os três saíram
juntos para o jardim. Tinha clareado de todo, embora o sol ainda não tivesse atingido o
horizonte. John Bennett deu uma busca rápida, mas atenta, nos fundos do chalé, voltando,
no entanto, com a confissão de nada ter encontrado. Estava tão inquieto quanto Dick
Gordon. Era impossível que pudesse ter sido ela, que Elk estivesse enganado. Contudo,
Lola fora enfática em negar qualquer cumplicidade na transmissão. Contra isso, no
entanto, o porteiro noturno de Caverley House estava igualmente certo de que a única
pessoa a subir para o apartamento de Lola naquela noite fora o idoso Sr. Maitland; e pelo
que sabia o porteiro, ou pelo que Elk fora capaz de descobrir não havia outra entrada no
edifício.

162
— Estou vendo seu carro ali. Você não cruzou com ninguém na estrada?

Dick balançou negativamente a cabeça. — Não acha melhor procurarmos de carro,


seguindo a direção oposta à de Shoreham?

— Ia sugerir exatamente isso — disse Gordon. — Ela não corre certo perigo, caminhando a
estas horas da manhã? As estradas estão infestadas de vagabundos.

O velho não respondeu. Limitou-se a sentar ao lado do motorista, os olhos ansiosamente


fixados no caminho à frente. O carro percorreu 10 milhas em velocidade regular, depois
fez a volta e começou a busca nas margens da estrada. Quando se aproximava outra vez
do chalé, Dick apontou:

— Que bosque é esse? — perguntou indicando uma floresta densa, atravessada por uma
estrada estreita.

— É o Bosque de Elsham; ela não entraria aí — Bennett hesitou.

— Vamos tentar — disse Dick, fazendo com que o automóvel dobrasse no caminho
estreito.

Poucos minutos depois, atravessavam uma vereda de árvores altas, cujos tipos,
entrelaçados, obscureciam a vista.

— Há marcas de pneus — disse Dick repentinamente, mas John Bennett balançou a cabeça,
desanimado.

— Fazem piqueniques por aqui — disse ele, mas Dick não ficou satisfeito.

As marcas eram recentes e, pouco depois, o detetive viu-as sair da estrada para uma
picada entre as árvores. Contudo, não vislumbrou qualquer sinal de outro automóvel. A
direção dos pneus ainda não contrariava a teoria do velho. A pequena trilha acabava uma
milha adiante, num descampado repleto de samambaias e tocos de árvores, pois a
floresta fora muito devastada naquele ponto durante a guerra.

Com certa dificuldade, o carro manobrou e voltouse de ré. Os homens saltaram e


atravessaram a clareira. De súbito, Dick gritou.

John Bennett também já tinha visto a moça. Ela caminhava velozmente pela trilha e parou
na margem

163
enlameada, quando se aproxirama dela. Então, olhando para cima, viu o pai e seu rosto
perdeu a cor.

O pai correu para abraça-lá. — Minha querida — disse com ar reprovador — o que estava
fazendo a estas horas da manhã?

Parecia assustada, foi o pensamento de Dick. Os olhos de Elk estreitaram-se aos


inspecioná-la.

— Não consegui dormir, por isso me vesti e sai., papai — disse ela, e cumprimentou Dick
com a cabeça. — O senhor é uma pessoa surpreendente, Capitão Gordon. Por que está
aqui a uma hora dessas?

— Tinha vindo conversar com você — disse o detetive, forçando um sorriso.

— Comigo! — Estava verdadeiramente espantada. — Por que comigo?

— O Capitão Gordon ouviu sua voz numa transmissão radiofônica no meio da noite
passada e quis esclarecer a história — disse o pai.

Se o velho Bennett parecia aliviado, parecia também um tanto confuso. Mas pouco depois o
alívio cresceu e, com rápida intuição, Elk adivinhou por que, antes mesmo que John
Bennett fizesse a pergunta.

— Você estava com Ray? — perguntou ansiosamente. — Ele veio com você?

A moça balançou negativamente a cabeça. — Não, papai — disse com tranqüilidade. — E


quanto à transmissão radiofônica, eu nunca me aproximei de uma aparelhagem
radioamadora, e acho até que nunca vi nenhuma — completou.

— É claro que não — disse Dick. — Apenas ficamos um tanto atordoados quando ouvimos
sua voz, mas um esclarecimento do Sr. Elk, explicando tratar-se de alguém que imitava
sua voz, ou alguém de voz muito parecida, já nos satisfez inteiramente.

— Diga-me uma coisa, Srta. Bennett — disse Elk, senhor de si. — Esteve na cidade,
ontem à noite?

Ela não deu resposta. — Minha filha foi para a cama às 10h — disse John Bennett com
aspereza na voz. — Qual é o sentido dessa pergunta absurda: se ela esteve em Londres na
noite passada?

164
— Esteve na cidade no inicio da manhã de hoje, Srta. Bennett? — Elk persistiu e, para
espanto de Dick, ela concordou com a cabeça.

— Esteve na Caverley House? — Não — respondeu instantaneamente. — Mas Ella, o


que estava fazendo na cidade? — perguntou John Bennett. — Foi procurar seu infeliz
irmão?

Novamente a hesitação e depois: — Não. — Foi sozinha? — Não — disse Ella com
um tremor nos lábios. — Gostaria de que não me fizessem mais nenhuma pergunta. Não
posso falar livremente sobre o assunto. Papai, você sempre confiou em mim, não é
verdade? Confie em mim agora, está bem?

John Bennett pegou a mão da filha e a prendeu entre as suas.

— Confiarei sempre em você, minha menina — disse ele — e esses cavalheiros devem
fazer o mesmo.

Os olhos desafiadores de Ella encontraram os de Dick e o detetive abaixou a cabeça.

— Sempre compartilharei da confiança de seu pai — disse ele, e alguma coisa no olhar da
moça o recompensou.

Elk coçou febrilmente o queixo. — Sendo por natureza um sujeito não-desconfiado, de


modo algum eu duvidaria de suas palavras, Srta. Bennett. Creio nelas como em mim
mesmo.

Ele olhou para o relógio de pulso. — Acho que devemos ir embora e tirar o pobre Balder
da casa dos pecados — disse o inspetor.

— Não querem comer alguma coisa antes de partir?

Dick olhou suplicante para Elk. Com ar de resignação, o inspetor concordou.

— De qualquer modo, Balder não se importará com uma hora a mais ou a menos — disse.

Enquanto Ella preparava o café da manhã, Dick e Elk passeavam na estrada do lado de
fora.

165
— Bem, o que acha disso, capitão? — Não compreendo, mas tenho certeza de que a
Srta. Bennett não mentiu — disse Dick.

— A fé é uma coisa maravilhosa — murmurou Elk, e Dick voltou um olhar agudo para o
Inspetor.

— Que quer dizer com isto? — Quero dizer o que estou dizendo. Tenho fé na Srta.
Bennett — ele revidou num tom brando — e, afinal, ela só representa outro pedacinho
desta tremenda confusão em que nos metemos quando passamos a investigar esta peça
que tem a forma de uma Rã. E John Bennett é outro pedacinho — completou, após um
momento de reflexão.

De onde estavam, olhando para Shoreharn, podiam ver o início da pequena estrada do
Bosque de Elsham.

— A coisa que mais me confunde — Elk falava — é não conseguir entender por que Ella
estaria naquele bosque no meio da noite . . . — ele se interrompeu e baixou a cabeça,
atento. Aproximava-se um barulho ainda suave de motor de automóvel. — De onde vem
isso? — perguntou.

A resposta foi instantânea. Pouco a pouco, a dianteira de um carro foi surgindo na estrada
do bosque. Era uma grande limusine, que virou na direção dos dois, ganhando
velocidade à medida que se aproximava. Um momento depois, já estava fora de vista, e
eles só puderam notar que havia um único ocupante.

— Com todos os diabos! — exclamou Elk, que muito raramente incorria numa afirmação
profana, mas Dick achou que pelo menos daquela vez a praga se justificava. Pois o
homem da limusine era o barbado Ezra Maitland; e ele entendeu que a moça fora ao
Bosque de Elsham para encontrá-lo.

166
CAPÍTULO 20 Hagn Um minuto depois, Ella chamou-os da porta. — Não passou um
carro por aqui? — perguntou, denunciando uma nota de ansiedade no tom da voz.

— Sim — disse Elk —, era um carro grande. Não deu para ver quem ia nele, mas era um
carro grande.

Dick ouviu-a suspirar de alívio. — Não querem entrar, por favor? — perguntou a irmã
de Ray. — O café está a nossa espera.

Meia hora mais tarde, os dois partiram, cada um absorvido por seus próprios pensamentos.
Dick só falou depois que passaram o local onde o corpo de Genter fora encontrado.
Genter tinha sido assassinado perto de Horsharn, recordou ele com um ligeiro
estremecimento. Ele mesmo vira, nos arredores de llorsham, os pés do morto estendidos
na traseira de uma caminhonete. Hagn devia morrer por isso; fosse ou não fosse Rã, tinha
contribuído para o crime. Como se lesse seus pensamentos, Elk virou-se e disse:

— Acredita que haja evidências suficientemente fortes para enforcar Hagn?

— É o que me estava perguntando — disse Dick. — Infelizmente, não existem provas de


muito peso, mas há o carro apreendido no depósito e o garagista, capaz de identificá-lo.

167
— De barba? — Elk perguntou com ar enfático. — Vai ser um pouco difícil pedir
condenação para aquela Rã, pode crer, Capitão Gordon. E a menos que o velho Balder
consiga induzi-lo a fazer uma confissão, teremos extrema dificuldade para convencer um
júri. Pessoalmente — acrescentou — se me condenassem a passar uma noite em
companhia de Balder, eu contaria toda a verdade, nem que apenas para livrar-me dele.
Mas Balder é um sujeito muito esperto. As pessoas não percebem que ... ele tem tudo que
se exige de um detetive de primeira classe ... Só precisamos fazê-lo ter uma visão menos
mórbida da vida.

Elk mandou que o motorista se encaminhasse diretamente para a entrada de Cannon Row.

A mente de Dick estava ocupada com outro assunto. — O que ela queria com Maitland?
— perguntou. Elk balançou a cabeça. — Não sei — admitiu. — Sem dúvida, podia estar
tentando persuadi-lo a reintegrar o irmão na companhia, mas o velho Maitland não é o tipo
de pessoa que se levantaria no meio da noite para discutir a volta de Ray Bennett ao
emprego. Se fosse um homem mais jovem, ainda poderia agir assim. Mas ele não é jovem.
É tremendamente idoso. E é um velho perverso, pouco lhe importando se Ray Bennett
está trabalhando numa companhia como a dele ou quebrando pedras em Dartmoor. Mas
eu lhe digo, esse é um dos menores mistérios que teremos de aclarar quando todas as peças
da Rã estiverem no tabuleiro.

O carro parou na entrada do presídio de Cannon Row e os dois saltaram. O sargento de


serviço levantou-se quando eles entraram e encarou-os um tanto espantado.

— Vamos tirar Balder do xadrez, sargento. — Balder? — o outro exclamou surpreso. —


Não sabia que Balder estava aqui.

— Eu o coloquei na cela de Hagn. O funcionário do posto policial pareceu lembrar-se de


alguma coisa.

— É estranho. Não sabia que era Balder — disse ele. — Eu não estava de serviço quando
ele chegou, mas

168
o outro sargento disse-me que tinham posto um homem na cela de Hagn. Olhe, aí vem o
carcereiro.

O funcionário entrou naquele momento e ficou tão aturdido quanto o sargento ao ser
informado da identidade do segundo prisioneiro.

— Não pensei que fosse Balder, senhor — disse. — Isso explica a conversa comprida dos
dois. Conversaram até lh da manhã.

— Ainda estão tagalerando? — Elk perguntou. — Não, senhor. Agora, estão dormindo.
Ainda há pouco, dei uma olhada neles. O senhor me deu ordens para deixá-los sozinhos
e não chegar muito perto, está lembrado?

Dick Gordon e seu subordinado seguiram o carcereiro pelo longo corredor com paredes de
tijolos envernizados. Portas estreitas e negras interrompiam, a intervalos regulares, a
extensa passagem. Mais adiante, viraram à direita. O segundo corredor tinha apenas uma
porta no fim. Puxando o trinco da fechadura, o carcereiro escancarou a porta e Elk entrou.

Elk dirigiu-se para um dos homens e ergueu o cobertor que o cobria até o rosto. Depois,
proferindo uma praga, atirou a coberta no chão.

Era Balder e estava estirado na cama. Um cachecol de seda estava amarrado em volta de
sua boca; os pulsos, além de algemados, estavam também amarrados, o mesmo
acontecendo com as pernas.

Elk atirou-se sobre o tipo que dormia na cama ao lado, mas, ao tocar o cobertor, o pano
afundou sob a pressão de seus dedos. Um casaco dobrado, dando a impressão de um corpo
humano, um par de sapatos velhos, cuidadosamente equilibrados na ponta da coberta — e
era tudo. Hagn tinha desaparecido!

Levaram o policial para a sala de Elk, deram-lhe conhaque e, com muito tato, o inspetor
conseguiu que suas palavras retomassem um sentido coerente. Assim, Balder pôde
contar a história.

— Acho que tudo aconteceu por volta das 2h — começou ele. — Fiquei conversando toda
a noite com Hagn, embora nem por um momento duvidasse, com minha experiência, de
que, desde o momento em que cheguei, ele tinha notado que eu era um agente da polícia.
De

169
fato, esteve caçoando de mim a noite inteira. Contudo, eu insistia, Sr. Elk . . . Sou
daqueles homens que nunca desistem. Isso, aliás, é uma peculiaridade do meu
temperamento ...

— A maior peculiaridade do seu temperamento — disse o inspetor Elk com voz irritada —
é sua apaixonada admiração por você mesmo. Continue!

— Em todo caso, procurei — Balder continuou num tom ressentido — e cheguei mesmo a
achar que tinha conseguido vencer as suspeitas, porque, de repente, ele começou a falar
sobre as Rãs ... Disse-me que naquela mesma noite ia haver uma transmissão radiofônica
para todos os chefes. .. Naquela mesma noite, isto é, na noite passada... Disse que o
Número Sete jamais seria apanhado, porque era uma pessoa esperta demais. Perguntou
como Mills tinha sido morto, mas tive certeza absoluta, devido à maneira como formulou a
pergunta, de que já sabia da resposta. Depois da 1h da manhã, não conversamos muita
coisa. Eu me deitei às 1h15min. Devo ter caído no sono quase imediatamente. A
primeira coisa de que me dei conta foi que estavam colocando uma mordaça na minha
boca. Ainda tentei resistir, mas eles me dominaram ...

Eles? — Elk perguntou. — Quantos eram? — Talvez dois ou três ... Não tenho certeza —
Balder respondeu. — Se fossem apenas dois, inclusive, acho que teria conseguido
pegá-los, pois sou naturalmente forte. Por certo, eram mais de dois. Mas vi apenas dois
além de Hagn.

— A porta da cela estava aberta? — Sim, senhor, estava entreaberta — disse Balder,
depois de pensar por um momento.

— Como eram eles? — Usavam casacos pretos e compridos, mas não procuravam
esconder as caras. Seria capaz de reconhecê-los em qualquer lugar. Eram jovens.., pelo
menos um deles. Mas não vi nada mais que isso. Amarraram um trapo em minhas
pernas, cobriram-me dos pés à cabeça com o cobertor... Foi tudo que vi ou ouvi até que
fechassem a porta da cela. Fiquei ali a noite toda, esticado, senhor, pensando em minha
mulher e meus filhos...

170
Elk interrompeu-o bruscamente e, deixando-o aos cuidados de outro policial, saiu da sala
disposto a fazer um exame mais cuidadoso da cela. Os dois corredores tinham a forma de
um L maiúsculo, ficando a cela especial no final do braço menor. No ”cotovelo” havia uma
porta com grades, que conduzia a um pátio externo onde se fazia a triagem de
prisioneiros, que eram, a seguir, embarcados em carros de patrulha e distribuídos entre as
várias prisões. A sentinela montava guarda no topo do L, num pequeno compartimento de
vidro, onde ficavam também dois indicadores de chamadas das celas. Cada cela era
equipada com uma campainha, a ser usada em caso de doença ou mal-estar, e os sinais
eram recebidos na minúscula redoma do guarda-sentinela. De seu posto, a sentinela tinha
visão completa não apenas do corredor, como ainda da porta, de um ângulo lateral. Ao ser
interrogado, a sentinela admitiu ter estado duas vezes na sala da guarda, mas apenas alguns
minutos de cada vez. Urna vez quando um homem detido por bebedeira pedira para ver um
médico e outra, em torno das 2h3Omin da manhã, para tomar provisoriamente conta de
um ladrão, capturado durante a noite.

— E, naturalmente, foi nessa ocasião que os homens escaparam — disse Elk.

A porta que dava para o pátio estava fechada, mas não trancada. Podia ser aberta de
ambos os lados. A porta da cela também podia ser aberta tanto de fora quanto de dentro.
A esse respeito, o compartimento era diferente de todas as outras celas do presídio ... A
explicação era que aquela cela fora freqüentemente utilizada por prisioneiros importantes,
com os quais se tornava necessário desenvolver longos interrogatórios. O tipo de trinco
tinha sido escolhido para dar aos agentes de polícia que estivessem no interior do cubículo
a oportunidade de sair facilmente para o corredor, quando achassem conveniente, sem
precisar chamar o carcereiro. Tanto a fechadura da cela quanto a da porta do pátio
estavam no lugar.

Elk mandou chamar imediatamente os policiais que estavam de serviço em ambas as


entradas da Scotland Yard. O agente que montava guarda na porta de Embankment nada
tinha visto. O homem da entrada

171
de Whitehall lembrava-se de ter visto sair um Inspetor de polícia às 2h3Omin. Tinha
certeza de que se tratava de um Inspetor, pois usava o cinturão da polícia e a estrela no
ombro. Além disso, tinha-o cumprimentado dentro do regulamento, cumprimento
respondido pelo guarda.

— Pode ser ou não um deles — disse Elk. — Mas se foi um deles, que aconteceu aos
outros dois?

Faltava qualquer evidência no caso. Os homens tinham desaparecido, como que se


evaporado.

— Estamos fritos, Capitão Gordon — disse Elk — e se escaparmos sem sermos cozidos,
podemos dar-nos por satisfeitos. Felizmente, ninguém além de nós mesmos sabe que
Hagn foi preso; e quando digo ”nós mesmos”, espero estar dizendo a verdade! Mas o
melhor é ir para casa e dormir. Pelo menos para o senhor; dormi um pouco durante a
noite. Se esperar que eu mande de volta esta minha lamuriosa isca policial para a
bemlembrada família dele, posso acompanhar o senhor até em casa.

Dick estava esperando na esquina de Whitehall quando Elk juntou-se a ele.

— Naturalmente, haverá uma investigação departamental. É coisa que não podemos evitar
— disse o Inspetor. — Mas a única coisa que me preocupa é ter piorado a situação do
velho Balder ... E eu estava procurando ajudá-lo. Não sei o que os escoteiros pensariam
dessa minha opinião — continuou — mas acho que o pior serviço que podemos prestar a
um homem é tentar fazer-lhe uma boa ação.

Eram quase 10h. Dick sentia-se caindo de fome e sono, pois nada tinha comido em
Horsham. Enquanto andavam em direção ao Harley Terrace, Elk espreitou uma ou duas
vezes para os lados.

— Esperando alguém? — perguntou Dick, subitamente alertado para a possibilidade de


perigo.

— Não, não exatamente — disse Elk. — Mas tenho o pressentimento de que estamos
sendo seguidos.

— Achei ainda agora que um homem estava nos seguindo — disse Dick —, um sujeito
com uma capa lustrosa.

172
— Ah, viu ele? — disse Elk, indiferente tanto às regras gramaticais quanto à presença do
estranho. — Mas é um de meus homens! Há outro, ainda, do outro lado da rua. Não estava
me lembrando deles; por ora, meu pensamento não sai das Rãs. Importa-se se
atravessarmos a estrada? — perguntou afobado, e, sem esperar pela resposta, pegou o
braço de Gordon e levou-o para o lado oposto do cruzamento. — Nunca gostei de andar
do mesmo lado da rua em que corre o trânsito. Gosto de ver os carros de frente; não é bom
ser tomado de surpresa pelas costas... É o que penso!

Um pequeno furgão Ford, pintado com o nome de uma lavanderia, que se estivera
arrastando lentamente ao longo do meio-fio, subitamente arrancou e seguiu em frente a
toda velocidade. Elk seguiu o carro com os olhos até ele alcançar Trafalgar Square, no fim
de Whitehall. Em vez de dobrar à esquerda para Pall Mall ou à direita para Strand, o
furgão manobrou num semicírculo e voltou na direção dos detetives. Elk fez meiavolta e
deu um sinal.

— Precisamos andar de um lado para o outro, como galinhas — disse ele, cruzando de
novo apressadamente a rua.

Quando atingiram a outra calçada, Elk olhou em volta. Os policiais a seu comando tinham
compreendido o sinal e um deles pulara no estribo do furgão, fazendo com que o
motorista subisse na calçada. Houve uma conversa de alguns minutos entre o motorista e
o agente de polícia, que seguiu no carro junto com o outro.

— Esse está frito — disse Elk laconicamente. — Será levado para a delegacia sob alguma
acusação e preso. O meio mais fácil de perseguir alguém é num caminhão ou num
utilitário — disse Elk. — Um utilitário, por exemplo, pode fazer o que quiser sem
despertar suspeitas; pode parar junto à calçada, pode manobrar para um lado e para outro,
pode andar mais depressa ou mais devagar. Se fosse um automóvel, pelo simples fato de
ficar se arrastando junto da calçada, já atrairia a atenção de todos os policiais; logo o
mandariam parar. É provável até que o furgão Ford nada tenha com a história e que fosse
apenas um pressentimento meu.. . mas para mim — ele continuou com um tremor no om-

173
bro — essa caminhonete surgiu na esquina como uma morte súbita!

Fosse natural ou simulado o estado de espírito de Elk, o fato é que conseguiu impressionar
o companheiro.

— Vamos apanhar um táxi — disse Dick, que ainda vacilou, deixando passar três carros
vazios e só fazendo sinal para o quarto. — Entre — disse Dick, quando o táxi parou diante
do Harley Terrace. — Tenho um quarto vazio se quiser descansar.

Elk sugeriu que não estava com sono, mas acompanhou Gordon até a casa. O homem que
abriu a porta, afobado, tinha visivelmente alguma coisa a dizer.

— Há um cavalheiro esperando pelo senhor, Capitão. Já está aqui há cerca de meia hora.

— Como se chama? — Sr. Johnson. Johnson? — Dick exclamou surpreendido e correu


para a sala de jantar, na qual o visitante fora introduzido.

De fato, era o filósofo, embora, naquele momento, faltasse ao Sr. Johnson o equilíbrio a
que se devera seu apelido e que constituía a principal de suas características. O intrépido
personagem estava preocupado, o rosto estranhamente abatido e, quando Dick entrou na
sala, contemplou um Johnson constrangido, sentado na ponta de uma poltrona, do mesmo
modo como se sentara no Heron’s Club, os olhos tristes fixados no tapete.

— Espero que me perdoe por ter vindo até sua casa, Capitão Gordon — disse ele. — Sem
dúvida, não tenho direito de despejar minhas preocupações em cima do senhor.

— Só espero que suas preocupações sejam menos terríveis que as minhas — sorriu Dick,
apertando a mão do outro. — Conhece o Sr. Elk?

— O Sr. Elk é um velho amigo meu — disse Johnson, quase se animando por um instante.

— Bem, qual é sua queixa? — Mas, antes, vou fazer um bom lanche. Não quer me
acompanhar? — indagou Dick.

174
— Com prazer. Não comi nada esta manhã. Geralmente, faço um pequeno lanche por volta
das 11h, mas hoje não estou com muita fome. O fato, Capitão Gordon, é que fui
despedido.

Dick ergueu as sobrancelhas. — Quê? Maitland o mandou embora? Johnson fez que sim
com a cabeça. — E pensar que servi o velho diabo todos esses anos fielmente, com o
salário de um empregado de balcão! Nunca lhe dei qualquer motivo de queixas. Centenas
de milhares de libras passaram por minhas mãos ... sim, milhões! E embora não goste de
me auto-elogiar, nem sequer uma vez deixei um tostão fora de minhas contas. Aliás, se
alguma vez tivesse sido desonesto, ele descobriria a fraude de imediato, pois é o maior
matemático que já vi até hoje. E astuto como uma serpente! E pode escrever duas vezes
mais depressa que qualquer um — acrescentou, com relutante admiração.

— É um tanto curioso que alguém de aparência tão rude e fala tão grosseira possua esses
dotes — disse Dick.

— Isso também me espanta — admitiu Johnson. — De fato, ele me surpreendeu


continuamente desde que o conheci. Muitos, ao ouvi-lo falar, pensariam que é um lixeiro
ou um vagabundo, mas é um sujeito notável, de extraordinárias qualidades de educação.

— Consegue decorar datas? — perguntou Elk. — Até mesmo decorar datas — respondeu
Johnson com seriedade. — É um velho estranho, e sob muitos aspectos desagradável. E
não estou dizendo isso porque fui despedido; sempre mantive a mesma opinião. Ele é
uma pessoa destituída de qualquer vestígio de gentileza. Acho que o único sentimento
humano que cultiva é o amor por seu garoto.

— Que garoto? — perguntou Elk, imediatamente interessado.

— Nunca o vi — disse Johnson —, pois, nunca levaram a criança ao escritório. Nem


mesmo sei exatamente quem é esse menino, de quem é filho, mas imagino que seja neto de
Maitland.

Houve uma pausa. — Estou compreendendo . — disse Dick em voz

175
J

baixa, e na verdade começava a compreender alguma coisa, pois naquele instante


começava a desvendar a Rã e seu segredo.

— Por que foi despedido? — perguntou. Johnson abanou os ombros. — Foi uma coisa
estúpida; mal vale a pena falar sobre ela. Parece que o velho me viu no Heron’s Club na
outra noite. Desde então, passou a vigiar de perto minhas contas, provavelmente julgando
que eu estava levando uma vida desregrada! Além dos resmungos de hábito, no entanto,
nada havia em sua conduta sugerindo que pretendesse livrar-se de mim; mas hoje de
manhã, quando cheguei ao escritório, vi que ele tinha se antecipado, o que por si só já era
uma circunstância estranha. Habitualmente, Maitland só chega uma hora depois do início
do expediente. ”Johnson”, disse ele, ”creio que conheceu uma moça chamada Ella
Bennett.” Respondi que fui suficientemente venturoso para conhecê-la. ”E estou vendo”,
continuou, ”que almoçou uma ou duas vezes na casa dela.” ”É exato, Sr. Maitland”, eu
respondi. ”Muito bem, Johnson”, disse o velho, ”está despedido.”

— E isso foi tudo? — perguntou, Dick espantado. — Isso foi tudo — disse Johnson com
voz cavernosa. — É capaz de entender uma coisa dessas?

Dick poderia ter respondido afirmativamente, mas não o fez. Elk, mais curioso, e
tremendamente ansioso por aumentar seu conhecimento sobre o misterioso Maitland,
tinha alguma coisa a perguntar.

— Johnson, durante anos você conviveu intimamente com Maitland. Reparou qualquer
coisa particularmente suspeita no estilo de vida dele?

— Como o quê, por exemplo, Sr. Elk? — Recebia visitas estranhas? Viu-o, por exemplo,
agir de forma capaz de sugerir um envolvimento entre ele e as Rãs?

— As Rãs? — Johnson arregalou os olhos e a voz acentuou sua incredulidade. — Por


Deus, não! É inconcebível que tivesse algo a ver com essa gente. Está se referindo, é
claro, aos vagabundos que já cometeram tantos crimes? Não, Sr. Elk, jamais vi, ouvi ou li
qualquer coisa que me deixasse essa impressão.

176
— Viu os registros da maioria dos transações dele . .. Nenhuma delas poderia levá-lo a
acreditar que o velho. .. digamos, se tenha beneficiado com a morte de Maclean em
Dundee ou pelo ataque contra o comerciante de artigos de lã em Derby? Por exemplo, sabe
se esteve empenhado na compra ou venda de conhaques ou perfumes franceses?

Johnson balançou a cabeça!

— Não, senhor, ele só negocia com bens de raiz. Tem propriedades neste país, no Sul da
França e na América. Já fez um pequeno negócio no campo das trocas . . . Na realidade, já
fez uma grande transação no campo das exportações, até que surgiram problemas de
mercado .

— Que vai fazer agora, Sr. Johnson? — Dick perguntou.

O outro teve um gesto de desânimo.

— Que posso fazer, senhor? — perguntou. — Tenho quase 50 anos; perdi a maior parte de
minha vida profissional num único emprego e é muito improvável que consiga arranjar
outro. Felizmente, não apenas guardei algum dinheiro, como também fiz um ou dois
investimentos bem-sucedidos, e ao menos por eles tenho de agradecer ao velho. Não creio
que tenha ficado particularmente contente quando descobriu que eu tinha seguido um
conselho seu, mas isso é outro assunto. Pelo menos, devo-lhe esses bons investimentos. Se
levar uma vida pacata e não tentar empenhar-me em novas e extraordinárias
especulações, tenho dinheiro razoavelmente suficiente para manter-me pelo resto da vida.
Mas vim vê-lo, Capitão Gordon, para saber se não conhece alguma possibilidade... Não
gostaria de me afastar do trabalho e ficaria muito feliz se pudesse trabalhar com o senhor.

Dick ficou um pouco embaraçado, pois as oportunidades de emprego para o Sr. Johnson
eram poucas e remotas. Não obstante, estava ansioso por ajudá-lo.

— Deixe que eu pense um dia ou dois sobre o assunto — disse o detetive. — Quem
Maitland vai colocar como secretário?

177
— Não sei. Essa é minha grande preocupação. Vi uma carta na mesa dele dirigida à Srta.
Ella Bennett, e acho que pretende oferecer-lhe o lugar.

Dick mal podia crer em seus ouvidos. — Que o faz pensar assim? — Não sei, senhor, e
apenas uma ou duas vezes o velho perguntou se Ray tinha uma irmã. Por um ou dois
dias, mostrou-se muito interessado nela, mas depois não tocou mais no assunto. Isso é tão
espantoso como tudo que Maitland faz:

Elk lamentava imensamente a sorte de Johnson. Ele era óbvia e patentemente inadequado
para as rudes acrobacias da competição no mercado de trabalho. Além disso, as chances
para um homem de 50 anos, com a experiência de um único emprego rotineiro, eram
praticamente inexistentes.

— Não sei se vou poder ajudá-lo, Sr. Johnson — disse ele. — Quanto à Srta. Bennett, acho
inteiramente improvável que aceite a oferta de Maitland, supondo que houve tal oferta. De
qualquer modo, anotarei seu endereço para o caso de precisar comunicar-me com o
senhor.

— Fitzroy Square, 431 — respondeu Johnson, apresentando um cartão um pouco


manchado pelo tempo e se desculpando: — Não faço grande uso de meus cartões.

Ele se encaminhou para a porta e vacilou com a mão na maçaneta.

— Eu... eu tenho grande estima pela Srta. Bennett — disse — e gostaria de que ela
soubesse que Maitland não é tão mau quanto parece. Tenho de ser justo com ele!

— Pobre-diabo! — disse Elk, contemplando, pela janela, Johnson, que, desconjuntado,


transpunha o Harley Terrace. — É demais para ele! Você quase contou que viu Maitland
hoje de manhã! Senti isso e estava pronto a não deixar que completasse a frase, pois se
trata de um segredo da jovem.

— Gostaria de que não fosse — disse Dick com ar sincero, só então se lembrando de que
tinha convidado Johnson a ficar para o lanche.

178
CAPÍTULO 21

Um visitante para o Sr. Johnson

Há certa semelhança sinistra entre as casas de Fitzroy Square, em Londres, e as de


Gramercy Park, em Nova Iorque. Fitzroy Square é da época dos reis Jorges, quando
Soho era um subúrbio elegante e St. Martins-in-the-Fields ficava numa campina, e não
imprensado, como hoje, entre um teatro de revistas e uma galeria de pintura.

O número 431 fora dividido em três apartamentos independentes pelo proprietário.


Johnson morava no andar térreo. Havia ainda um quarto apartamento no subsolo, onde
morava um casal que fazia as vezes de síndico, e, eventualmente, tomava a seu cargo a
limpeza do apartamento de Johnson, ou fornecia ao filósofo as raríssimas refeições que
ele fazia em casa.

Eram quase 10h quando Johnson chegou em casa naquela noite. Vinha muito cansado.
Passara a maior parte do dia respondendo a anúncios de emprego em empresas
financeiras e imobiliárias. Sua busca recebia a inevitável resposta. Não havia vagas, não
havia lugar para um homem tarimbado de 50 anos, que parecia, aos olhos astutos dos
empregadores ou dos funcionários a seu mando, já ter ultrapassado a idade útil de
trabalho. Pacientemente, o Sr. Johnson aceitava cada recusa e batia na porta seguinte,
apenas para ver repetir-se a mesma experiência.

179
Ele abriu a porta, atravessou abatido a pequena sala de estar e jogou-se com um suspiro
no sofá, pois não era dado a exercícios freqüentes.

A sala era mobiliada com bom gosto, mas com móveis baratos. Um grande tapete verde
cobria o assoalho, as paredes estavam repletas de prateleiras de livros. O local
proporcionava certo aconchego que nenhum dinheiro seria capaz de comprar. Erguendo-se
pouco depois, Johnson caminhou até uma estante, abriu um volume e passou duas horas
lendo. Era quase meianoite quando desligou a luz e foi para a cama.

O quarto de dormir ficava no fim de um pequeno corredor. Em cinco minutos, ele tinha
tirado a roupa e adormecido.

Em geral, o Sr. Johnson tinha um sono leve, mas consistente e reparador. Naquela noite,
não dormira sequer uma hora antes de despertar outra vez. E antes de ficar mais desperto
que em qualquer outro momento do dia. Levantou-se, calçou os chinelos e se enrolou num
roupão. Depois, apanhando alguma coisa na gaveta de cabeceira, abriu a porta do corredor
e avançou cautelosamente pela passagem atapetada entre o quarto e a sala.

Não ouvira som algum. Foi mero pressentimento de um perigo iminente; apenas a intuição
o fizera despertar. Sua mão já tinha virado a maçaneta da porta, quando ouviu um dique
bem fraco: o barulho de um interruptor sendo desligado, e esse barulho vinha da sala de
estar.

Num movimento rápido, escancarou a porta e esticou a mão para o interruptor. Foi então
que, do fundo escuro da sala, veio a advertência de uma voz:

— Toque no interruptor e será um homem morto! Tenho você sob minha mira. Ponha o
revólver no chão, junto de seus pés; rápido!

Johnson obedeceu e pousou o revólver que tirara da gaveta de cabeceira.

— Agora volte para dentro e continue vivo — disse a voz.

— Quem é você? — Johnson perguntou de imediato.

O olhar tenso procurava vencer a escuridão e enxergar a figura. O visitante estava perto da
escrivani-

180
nha e o brilho metálico nas mãos do intruso convenceu-o de que a ameaça fora para valer.

— Não me conhece? Houve um início de riso na voz do desconhecido. — Sim, aposto


que não me conhece! Pois, amigo, você está tendo o prazer de encontrar a Rã!

— A Rã? — Johnson repetiu maquinalmente a palavra.

— Um nome tão bom ou tão mau como qualquer outro. Ele se ajusta bem a mim — disse
o estranho. — Atire a chave da escrivaninha.

Houve um instante de silêncio. — Não tenho a chave aqui — disse Johnson. — Ela está
no quarto.

— Continue parado onde está — advertiu a voz. Johnson, aos poucos, tirara os chinelos,
para sentir com o pé o cano da pistola que, sob o choque de um primeiro momento de
surpresa, pousara docilmente no chão. POUCO, depois, encontrou a arma e tentou puxá-la
para mais perto com os pés descalços.

— O que você quer? — perguntou, para ganhar tempo.

— Quero ver os papéis que trouxe do escritório ... Todos os papéis que trouxe da empresa
de Maitland.

— Aqui não há nada de valor — disse Johnson. Já então ele localizara com segurança o
revólver, e se preparava para abaixar-se rapidamente e pegar a arma logo que percebesse
com exatidão onde se achava o atacante. No entanto, embora seu olhar cada vez mais se
acostumasse com a escuridão, não conseguia enxergar o dona da voz.

— Chegue mais perto — disse o estranho — e levante as mãos.

Johnson fingiu fazer o que o outro mandava, mas jogou-se decididamente no chão para
pegar a arma. A detonação o aturdiu. Ele ouviu o grito, viu, no clarão do tiro, o contorno
escuro de um homem, mas em seguida alguma coisa o golpeou.

Após 10 minutos, recobrou a consciência, vendo a sala vazia. Levantou cambaleante,


acendeu a luz e caminhou com passo incerto de volta ao quarto. Examinou a gravidade
dos ferimentos. Tocou com a ponta dos dedos na inchação que se avolumara em sua
cabeça

181
e fez uma careta de dor. Alguém estava batendo na porta da frente do apartamento. Era
uma batida imperiosa, autoritária. Segurando uma toalha molhada contra a cabeça ferida,
atravessou o corredor e abriu a porta da sala. Deparou-se com dois policiais nos degraus
da escada e uma pequena multidão amontoada na calçada.

— Houve tiroteio aqui? — Sim, seu guarda — disse Johnson —, dei um tirinho, mas
acho que não atingi ninguém.

— Está ferido, senhor? Eram ladrões? — Não sei. Entrem — disse Johnson, que conduziu
os policiais para a biblioteca em desordem.

As cortinas balançavam ao vento, pois a janela, que se abria para uma rua lateral, estava
escancarada.

— Levaram alguma coisa? — Não, creio que não — disse Johnson. — Acho que não foi
um simples assalto. Vou telefonar para o Inspetor Elk da Scotland Yard e penso que seria
melhor não mexerem em nada até que ele chegue.

Elk estava em sua sala, diligentemente preparando um relatório sobre a fuga de Hagn,
quando o telefone tocou. Ele ouviu atentamente e disse:

— Vou até aí, Johnson. Diga ao guarda para não mexer em nada; chame-o para eu falar
com ele.

Quando Elk chegou, o filósofo já estava vestido. — Está com um belo galo na cabeça —
disse Elk, examinando a contusão com olho profissional.

— Não esperava o ataque. Deve ter-me golpeado quando atirei.

— Disse que foi a própria Rã? — quis saber o Inspetor Elk, com ar cético. — Duvido
muito. A Rã nunca empreende uma tarefa por sua própria conta, pelo que sei e posso
lembrar.

— Foi a própria Grande Rã ou um emissário de confiança — disse Johnson com um


sorriso bem-humorado. — Veja isso.

No centro de um mata-borrão alaranjado havia a marca inevitável da Rã. Outra Rã fora


também gravada na madeira da porta.

— Suponho que seja uma advertência, não acha? — perguntou Johnson. — Bem, de
qualquer modo, nem

182
mesmo tive tempo de me familiarizar com o aviso antes de ser atacado!

— Há coisas piores que uma paulada — disse Elk num tom jovial. — Não deu pela falta
de nada?

Johnson balançou a cabeça. — Não, nada. Elk inspecionou rápida, mas completamente a
sala. Perto da janela aberta, onde o vento inflava as cortinas, encontrou um talão de
depósito de encomenda. Era uma tira de papel verde, acusando o recebimento de um
malote. Fora emitida no terminal da Great Northern Railway.

— Isto é seu? — perguntou. Johnson pegou o talão, examinou-o e abanou a cabeça.

— Não — respondeu —, nunca vi esse talão. — Ë provável que alguém que freqüente seu
apartamento tenha um malote na estação de King’s Cross?

Johnson abanou de novo a cabeça e sorriu. — Não há ninguém mais neste apartamento —
disse.

Elk pôs o papel sob um abajur e verificou a data do selo. A encomenda fora depositada
duas semanas antes e, como é comum nesses talões, o nome do depositante não era
mencionado.

— Até mesma o vento pode ter trazido este papel do jardim — disse ele. — Esta noite há
urna brisa bastante forte... O que, no entanto, não posso conceber é que alguém deixe o
talão de urna bagagem importante voando por aí. Vou investigar a coisa — completou,
guardando cuidadosamente o talão entre as folhas de seu livro de bolso. — Não chegou a
ver o homem?

— Só um vislumbre, quando atirei. Tenho impressão que estava mascarado.

— Reconheceu a voz? — Não — disse Johnson, balançando a cabeça. Elk examinou a


janela. O ferrolho tinha sido habilmente forçado. ”Habilmente” porque se tratava de uma
nova patente, com a qual nem mesmo Elk estava bem-familiarizado. O inspetor não se
lembrava de já ter visto arrombarem aquele tipo de trinco anteriormente. Instintivamente,
seu pensamento voltou-se para o assalto na casa de Lorde Farmley, para aquele arrom-

183
bamento incrivelmente meticuloso. Sem dúvida, a comparação entre os dois trabalhos se
impunha; havia uma semelhança de trabalho e acabamento que imediatamente
impressionava.

E quem cometera um arrombamento tão notável foi alguém que, pela primeira vez,
reclamara ser a própria Rã. Nunca, anteriormente, a Rã dera prova tangível de sua
existência. E Elk compreendia a organização suficientemente bem para perceber que
nenhum dos dóceis escravos da Rã teria ousado usar o nome da Grande Rã. Mas por
que consideravam que Johnson merecia atenção tão pessoal?

— Não — disse Johnson, em resposta a uma pergunta do Inspetor —, os documentos que


possuo não têm o menor valor. Costumava trazer muito trabalho da firma para fazer em
casa; na realidade, às vezes eu trabalhava durante toda a noite. Acho que por isso minha
demissão se torna uma ingratidão ainda mais escandalosa.

— Nunca teve em casa papéis particulares de Maitland, papéis que talvez tenha esquecido
de devolver? — perguntou Elk gravemente, mas o sorriso ingênuo de Johnson e seu piscar
de olhos logo forneceram a resposta.

— Foi um modo muito interessante de fazer uma pergunta delicada — disse ele. — Mas
não, não tenho aqui nenhum documento de Maitland. Se quiser, pode verificar em todos
os armários, gavetas e compartimentos. Sou um homem metódico, sei de todos os papéis
que guardo comigo e não possuo nada de Maitland.

Caminhando para casa, Elk estudou o motivo de tão surpreendente ataque. Para dizer a
verdade, o inspetor chegava a estar contente por ter um problema extra a ocupar-lhe a
mente, livrando em parte sua imaginação da entrevista muito desagradável a que seria
submetido no dia seguinte de manhã. O Capitão Dick Gordon assumiria toda a
responsabilidade e, provavelmente, os comissários livrariam Elk de qualquer censura por
comportamento negligente. Mas o inspetor continuava assustado com as ”pessoas de lá de
cima”, que, para ele, eram quase tão formidáveis quanto a própria Rã.

184
CAPÍTULO 22

O inquérito

Ele pretendia ir logo de manhã a King’s Cross para examinar o conteúdo do malote, mas
ao acordar, no dia seguinte, o inquérito do caso Hagn ocupava toda a sua mente,
excluindo qualquer outro assunto. Embora tivesse reportado muito cuidadosamente o
assalto à casa de Johnson em seu fichário, embora tivesse guardado o talão do malote com
muita atenção, Elk estava demasiado absorvido e preocupado para proceder
imediatamente às investigações que se faziam necessárias.

Quando Dick chegou para o inquérito, seu assistente deu-lhe um rápido informe do
arrombamento em Fitzroy Square.

— Deixe-me ver o talão — pediu ele. Abrindo o cofre, Elk apresentou a tira de papel
esverdeado.

— Este talão esteve colado a alguma coisa — disse Dick, observando a papeleta à luz da
janela. — Tem marca de cola, e marca recente. Isso pode dar-nos alguma informação
extra — disse o detetive, devolvendo o papel.

— É muito improvável — disse Elk desanimado, enquanto fechava o cofre a chave. O que
me preocupa agora é que aquelas pessoas lá de cima vão nos meter num inferno.

185
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— Não se preocupe tanto — disse Dick. — Garanto-lhe que nossos amigos lá de cima estão
se congratulando tanto por terem recuperado o tratado de comércio que não se incomodarão
demais com o caso de Hagn.

Foi uma profecia notável, admiravelmente cumprida. Elk ficou satisfeito e surpreso quando,
ao ser chamado à presença do comissário-chefe e do chefe de polícia do condado —
sentados em volta de uma tribuna verde de julgamento, ao lado de quase todos os
delegados do condado — descobriu que a atitude de seus chefes era antes de benevolente
interesse que de censura.

— Com uma organização dessa natureza, temos de estar preparados para os mais
surpreendentes acontecimentos — disse o comissário-chefe. — Em condições normais, a
fuga de Hagn exigiria que tomássemos medidas severas em relação aos responsáveis.
Mas, neste caso, em particular, não podemos agir assim. Balder parece ter-se
comportado de forma perfeitamente correta. Também acho que o senhor agiu bem
colocando-o na cela de Hagn e não sei até que ponto se pode culpar o carcereiro. A
verdade é que a Rã é incrivelmente poderosa, mais poderosa que os agentes de um
governo inimigo, pois trabalha com conhecimentos adquiridos inteiramente de dentro e
além disso, naturalmente, é constituída por gente do nosso próprio povo. Pensa que é
possível, Capitão Gordon, encurralar a Rã? Seria uma formidável realização. Poderia ser
tentada?

Dick balançou a cabeça. — Não, senhor — ele respondeu. — As Rãs são muito
numerosas e os homens verdadeiramente perigosos vão dar muito trabalho para serem
identificados. E chegou a nosso conhecimento que os chefes da organização, pelo menos
alguns deles, não são tatuados.

Nem todos os membros da comissão de inquérito foram tão benevolentes quanto o


comissário-chefe.

— O fato — disse um chefe de polícia com cabelos brancos — é que no espaço de uma
semana tivemos dois prisioneiros assassinados sob os olhos da polícia, e um que
praticamente saiu passeando da cela onde estava sendo guardado por um agente, sem ser
detido e sem deixar qualquer pista sobre o método que as Rãs empre-

186
garam para soltá-lo. — O velho balançou a cabeça. — Isso é mau, Capitão Gordon!

— Talvez fosse preferível que se encarregasse pessoalmente das investigações, senhor —


disse Dick. — Não estamos tratando de homicídios ou furtos comuns . E lembro-me de ter
trabalhado com um caso seu, no Departamento da Promotoria, um caso, aliás, bem
menos complicado, e no qual o senhor não foi mais bem-sucedido que eu e meus
subordinados em nossa perseguição às Rãs. O senhor deve permitir-me maior amplitude
de movimentos e cultivar uma paciência maior que de hábito. Eu conheço a Rã — disse
ele simplesmente.

Por algum tempo, não perceberam bem o que o detetive pretendeu dizer.

— O senhor a conhece? — perguntou incredulamente o Comissário-Chefe.

Dick fez que sim com a cabeça. — Se lhes dissesse quem é, é provável que os senhores
ririam de mim. É possível assegurar a prisão de alguém, mas não é tão fácil apresentar
evidências irretorquíveis de sua culpabilidade. Preciso de mais tempo para ser
bem-sucedido.

— Mas como descobriu o segredo, Capitão Gordon? — perguntou o comissário-chefe.

Elk, que ouvira assombrado a declaração de seu superior, esperou pela resposta sem
respirar.

— Tudo ficou claro para mim — disse Dick, continuando lenta e decididamente — quando
soube pelo Sr. Johnson, que foi secretário de Maitland, que em algum lugar secreto da
casa do velho havia uma criança misteriosa. — Ele sorriu ao fitar os rostos inexpressivos
dos membros da comissão. — Isso não parece muito convincente, receio, mas, não
obstante, todos saberão, no tempo devido, por que, quando fiz a descoberta, fiquei
inteiramente certo de que pegaria a Rã no momento que julgasse adequado. Não é
necessário dizer que, conhecendo como conheço, ou, pelo menos, estou convencido de
conhecer, a identidade de tal indivíduo, os acontecimentos de agora em diante tomarão um
curso mais interessante e mais satisfatório. Admito não ser capaz de explicar como Hagn
conseguiu escapar. Tenho

187
uma suspeita, mas não passa de suspeita ... Mesmo essa ocorrência, no entanto, se
esclarecerá plenamente se minha outra teoria estiver correta, como não tenho dúvidas de
que está.

Só depois de encerrado o encontro e quando se viu em sua sala a sós com Gordon foi que
Elk voltou a falar... Antes, porém, fechou cuidadosamente a porta:

— Se tudo isso foi um blefe, Capitão Gordon, foi o mais fino que já ouvi... Mas algo me
diz que não foi um blefe.

— Não foi um blefe — disse Dick calmamente. — Estou convencido de que sei quem é a
Rã.

— Quem é? Dick abanou a cabeça. — Ainda é cedo demais para lhe contar. Não vejo
qualquer proveito em espalhar meus pontos de vista, nem mesmo em comentá-los com
você. Por que não tratamos do talão do malote?

Dick não acompanhou o inspetor até King’s Cross. pois tinha algum trabalho a fazer em
sua sala. Elk foi sozinho para a estação. Apresentando o talão, pagou a taxa extra pelo
período adicional de depósito e recebeu de um empregado uma bolsa de couro marrom,
fechada.

— Agora, filho — disse Elk, após revelar sua identidade —, talvez possa lembrar-se de
quem trouxe esta bolsa...

O outro arreganhou os dentes. — Minha memória não é das melhores — disse. — Eu o


entendo — disse Elk. — Mas é possível que, concentrando-se um pouco, consiga recordar
alguma coisa. Rostos não são datas.

O empregado folheou um livro para ter certeza. — Sim, eu estava de serviço naquele dia.
— A que horas recebeu a encomenda? Ele examinou os canhotos. — Por volta das 11h
da manhã. — O rapaz balançou a cabeça. — Não consigo lembrar quem trouxe.
Recebemos muita coisa a essa hora da manhã. É quase impossível lembrar a fisionomia de
uma pessoa em particular. Mas uma coisa eu garanto; era alguém sem nada de curioso,
pois senão eu me lembraria.

188
— Está dizendo que era um tipo comum? Seria um americano?

O empregado tornou a pensar. — Não, acho que não era americano, senhor — disse. —
Estou-me lembrando que há semanas não temos visto americanos por aqui.

Elk levou a sacola para a sala do posto policial da estação e, com a ajuda de sua
chave-mestra, soltou a fechadura e abriu a bolsa. Continha coisas estranhas. Uma muda
de roupa, com uma camisa, colarinho e gravata, um novo modelo de aparelho de barbear,
uma pequena garrafa de Annatto, alguns rótulos coloridos que os leiteiros usavam, um
passaporte emitido em nome de ”John Henry Smith”, mas sem fotografia, uma pistola
Browning totalmente carregada, um envelope com 5 mil francos e letras de câmbio no
valor de 500 dólares — e isso era tudo.

Elk examinou os artigos espalhados na mesa do policial.

— Que pensa disso? O guarda da estrada de ferro abanou a cabeça. — É uma bagagem
bem completa — disse. — Você quer dizer a bagagem de alguém em fuga? Pois é isso
que penso — disse Elk — e aposto que em cada estação ferroviária de Londres há uma
dessas bolsas guardada!

A roupa não tinha etiquetas, a Browning era de procedência belga, o passaporte podia ou
não ser falsificado, mas o papel era sem dúvida autêntico. (Uma investigação subseqüente,
feita através do Ministério do Exterior, comprovou que, de fato, o documento não fora
oficialmente emitido.)

Elk pôs tudo na bolsa de novo. — Tenho de levar a sacola para Scotland Yard. Talvez os
senhores sejam chamados . .. Mas é provável que não haja necessidade.

Elk saiu da sala do inspetor da estrada de ferro para uma ampla plataforma, refletindo
sobre qual seria verdadeiramente a melhor maneira de proceder. Devia deixar a sacola no
depósito e mandar um homem ficar vigiando?... Isso seria um tanto inútil, pois ninguém
podia reclamar a encomenda se não tivesse o talão. Não

189
queria ocupar em vão um bom agente policial. Decidiu, por fim, levar a bolsa para a
Scotland Yard, e fazer um exame mais completo de seu conteúdo.

Um dos expressos do Norte acabava de chegar à gare, com duas horas de atraso devido a
uma avaria na linha. Elk apreciou sem muito interesse o fluxo de passageiros atravessar
a plataforma e, de repente, viu um rosto familiar. A familiaridade, no entanto, só lhe
ocupou verdadeiramente a atenção quando o homem já estava fora de vista. Era John
Bennett, uma figura furtiva, apressada, com a velha maleta na mão e um chapéu de feltro
escuro puxado sobre os olhos.

Elk percorreu a plataforma até deparar-se com um funcionário da estação.

— De onde vem esse trem? — Aberdeen, senhor. — É a última parada? — perguntou


Elk. — A última parada é em Doncaster — respondeu o outro.

E foi enquanto falava com o empregado que o inspetor viu Bennett retornando. Ao que
parece, tinha esquecido alguma coisa, pois tinha o rosto franzido de contrariedade. Ele
forçava caminho por entre o fluxo de pessoas que desembarcavam, e Elk ficou curioso em
saber qual o motivo de um retorno tão afobado. Mas não teve de esperar muito para
descobrir.

Quando Bennett surgiu outra vez, carregava uma pesada caixa marrom, amarrada com
correias. Elk reconheceu a grande câmara e o tripé que o estranho personagem utilizava
em seu gratificante hobby.

— Sujeito esquisito! — disse Elk consigo mesmo e, chamando um táxi, ordenou ao


motorista que o levasse de volta à chefatura.

Guardou a sacola no cofre e chamou dois de seus melhores homens.

— Quero que procurem bolsas deste tipo nos depósitos de todos os terminais ferroviários
de Londres — disse ele, mostrando a sacola. — Provavelmente, em cada estação há uma
bagagem como essa, depositada há semanas. Façam as perguntas de costume quanto a
quem fez o depósito, reúnam todas as bolsas pareci-

190
das e, como medida de segurança, abram-nas no mesmo lugar em que as pegarem, sem
movimentá-las demais. Se contiverem uma completa aparelhagem de barba, um revólver,
um passaporte e dinheiro, devem ser trazidas para a Scotland Yard e mandadas para meu
gabinete.

Gordon, a quem o Inspetor encontrou mais tarde, concordou com a interpretação que ele
deu para tão interessante descoberta.

— A qualquer hora do dia ou da noite, ele está pronto para safar-se em segurança — disse
Elk com admiração. — Aposto que, em cada terminal, encontraremos dinheiro, uma muda
de roupas, um aparelho de barba, o indispensável passaporte para deixá-lo fora do país,
Annatto para mudar um pouco o tom da pele no rosto e nas mãos e... acho que ele mesmo
deve levar uma fotografia. Aliás, por falar em fotografias e filmes, encontrei John
Bennett.

— Na estação? — Dick perguntou. Elk fez que sim com a cabeça. — Estava voltando do
Norte, de uma dessas cinco cidades: Aberdeen, Arbroath, Edimburgo, York ou Doncaster.
Ele não me viu e eu não me aproximei. Capitão, qual é sua opinião sobre esse tal de
Bennett?

Dick não respondeu. — Será ele a sua Rã? — Elk desafiou, e Dick deu uma risadinha.

— Espero que não tente descobrir minha Rã pelo processo de eliminação. Você pode
poupar-se inúmeros aborrecimentos se tirar da cabeça a idéia de que obterá bons
resultados me investigando paralelamente.

— Nunca teria uma idéia tão tola — disse Elk. — Mas John Bennett faz-me pensar. Se
fosse a Rã, não poderia ter estado na noite passada no apartamento de Johnson.

— Não, a menos que corresse de automóvel até Doncaster e apanhasse um trem para
servir de álibi — disse Dick, e prosseguiu: — Eu me pergunto se a polícia de Doncastter
vai pedir auxílio às chefaturas em Londres ou se pretende contar apenas com seu próprio
departamento local de inteligência.

191
— A propósito de quê? — perguntou Elk espantado.

— Mabberley Hall, que fica numa das saídas de Doncaster, foi assaltado na noite passada
— disse Dick — e a tiara de diamantes de Lady Fitz Herman foi roubada... Isso dá mais
força à sua teoria, não é mesmo, Elk?

Elk nada respondeu, mas desejava ardentemente ter tido alguma desculpa para examinar a
bagagem de John Bennett.

192
CAPÍTULO 23 Um encontro O Heron’s Club tinha sido fechado temporariamente por
ordem da polícia, mas agora lhe fora dada permissão para que reabrisse suas portas. Ray,
invariavelmente, almoçava no Heron’s, a menos que estivesse com Lola, que preferia uma
atmosfera mais luminosa que a oferecida pelo clube ao meio-dia.

Só algumas mesas estavam ocupadas quando ele chegou. O estigma da batida policial
ainda pesava sobre o Heron’s, e os clientes mais cautelosos ainda se mantinham afastados.
Até certo ponto, era do conhecimento geral que alguma coisa acontecera a Hagn, o
gerente, pois o homem não aparecia desde a noite da batida. Havia rumores
não-confirmados sobre sua prisão. Ray não esperava receber uma carta ao atravessar o
vestíbulo, pois recebia pouca correspondência no clube. Por isso, ficou surpreso quando o
garçom, após ter ouvido sua escolha no cardápio, voltou acompanhado do mensageiro do
clube, que trazia duas cartas na mão, uma cuidadosamente selada e de grande peso, a outra
menor.

Primeiro, Ray abriu o envelope grande e, ao tentar puxar o papel, percebeu que continha
apenas dinheiro. Não quis retirar as notas e contá-las, embora houvesse poucos
freqüentadores àquela hora no clube. Dando uma olhada, no entanto, sentiu-se satisfeito
com

193
o número e as cifras das cédulas. Não vinha qualquer mensagem, mas a outra carta estava
endereçada pela mesma letra manuscrita. Ele rasgou o envelope. Inexistia data ou
endereço de remetente, mas a mensagem batida a máquina dizia:

”Sexta-feira de manhã, vestirá a roupa que lhe será enviada e seguirá para Nottingham
pela rodovia. Usará o nome de Jim Carter; você encontrará os papéis de identificação com
este nome nos bolsos do traje que um mensageiro especial levará até sua casa amanhã.
A partir de agora e até sexta-feira, não deve aparecer em público, barbear-se, receber ou
fazer visitas. Seu negócio em Nottingham lhe será comunicado em tempo útil. Lembre-se
de que vai viajar por estrada de rodagem, dormindo em alojamentos na beira do
caminho, tabernas ou abrigos do Exército da Salvação, freqüentados em geral por
vagabundos. Em Barnet, na Rodovia do Grande Norte, perto do nono marco de
quilometragem, encontrará um conhecido seu e cumprirá com ele o resto da jornada. Em
Nottingham receberá novas instruções. É bem provável que ninguém lhe faça perguntas e,
certamente, o trabalho que lhe é exigido de modo algum vai comprometê-lo. Lembre-se de
que se chama Carter. Lembre-se de que não deve barbear-se. Lembre-se também do nono
marco de quilometragem na manhã de sextafeira. Quando tiver decorado essas
recomendações, pegue a carta, o envelope, inclusive o envelope contendo dinheiro,
leve-os para a lareira do clube e queime-os. Eu irei vê-lo.”

A carta estava assinada ”Rã”. Então chegara o momento de as Rãs precisarem dele. Já
pensara nesse dia, e até certo ponto o esperava como alguém que estivesse curioso para
descobrir o pior.

Seguiu fielmente as instruções. Sob o olhar curioso dos outros freqüentadores, levou a
carta e os envelopes

194
para a lareira apagada, acendeu um fósforo e queimou-os, pisando as cinzas com os pés.

Seu pulso batia um pouco mais depressa, a batida do coração também ficou um tanto
acelerada. Depois Ray retornou ao prato que ainda não tocara. Então a Rã queria vê-lo:
estava ali! Olhou em volta para as poucas mesas ocupadas e logo encontrou a expressão
de um homem, cujos olhos o fitavam desde que se sentara. O rosto parecia simultaneamente
familiar e desconhecido. Fez sinal para o garçom.

— Não olhe imediatamente. — disse em voz baixa — mas diga-me quem é aquele senhor
do segundo compartimento.

O garçom olhou negligentemente em volta. — É o Sr. Joshua Broad — respondeu.


Quase que enquanto o garçom falava, Joshua Broad levantou-se e atravessou o salão,
aprsximando-se de Ray.

— Bom-dia, Sr. Bennett. Creio que ainda não nos falamos, embora eu também seja
membro do Heron’s e já o tenha visto muitas vezes por aqui. Meu nome é Broad.

— Não quer sentar-se? — Ray teve alguma dificuldade em controlar a voz. — Prazer em
conhecê-lo, Sr. Broad. Já terminou sua refeição? Se ainda não acabou, talvez não se
importe em mandar trazê-la para minha mesa.

— Não — disse o outro — já terminei de almoçar. Como muito pouco. Mas, se não o
incomodo, vou pegar um cigarro.

Ray apresentou seu maço.

— Sou vizinho de uma amiga sua — disse Broad, tirando o cigarro. — Srta. Lola
Bassano. Ela tem um apartamento de frente para o meu em Caverley House ... Acho que é
lá, aliás, que o vejo com maior freqüência.

Agora Ray se lembrava. Era o estranho americano que morava do lado oposto a Lola, e
sobre cujos negócios ouvira Lola e Lew Brady especularem tantas vezes.

195
— E acho que temos um amigo em comum, o Capitão Gordon — sugeriu o outro, os olhos
astutos fixados sobre o rapaz.

— O Capitão Gordon não é amigo meu — disse Ray imediatamente. — Não sou
particularmente inclinado a ter gente da polícia entre minhas amizades.

— As vezes são pessoas incrivelmente interessantes — disse Broad —, mas posso entender
muito bem seu ponto de vista. Conhece Brady há muito tempo?

— Lew? Não, não posso dizer que o conheça há muito. É um sujeito muito agradável —
disse Ray sem entusiasmo. — Não é exatamente o tipo de amigo que eu teria escolhido,
mas ele é muito íntimo de uma amiga minha.

— Da Srta. Bassano — disse Broad. — Você andava muito na firma de Maitland, não?

— Já estive por lá — respondeu Ray com indiferença e, por seu tom de voz, alguém seria
capaz de imaginar que fora um simples visitante atraído à empresa por curiosidade
mórbida.

— Um demônio velho e estranho, o Maitland. — Sei muito pouca coisa sobre ele —
disse Ray. — É um sujeito muito esquisito. E mesmo assim conseguiu uma secretária
fabulosa.

— Não é secretária; é um homem, Johnson — Ray sorriu. — O pobre velho filósofo


perdeu o emprego!

— Mas não me diga! Quando aconteceu? — a voz do Sr. Broad era insistente, ávida de
informação.

— Outro dia ... Não sei quando. Encontrei Johnson esta manhã e ele me contou. Mas não
sei como o velho vai se arranjar sem o Philo.

— Estava pensando o mesmo — disse Broad em voz baixa. — Fico assombrado com isso.
Sabia que o velho era nervoso, mas não acreditei que chegasse a um ponto desses.

— Nervoso? — exclamou Ray, um tanto aturdido. — Não acho que alguém menos que
intragável despedisse um sujeito como Johnson.

Um rápido sorriso desenhou-se no rosto duro do americano.

— Eu quis dizer que só os nervos de um homem do caráter de Maitland seriam capazes de


mandar embora

196
um empregado que deve compartilhar um número considerável de segredos da empresa.
Não que esteja pensando que houvesse muita confiança entre os dois, mas . O que
Johnson está fazendo agora?

— Está procurando emprego, creio — disse Ray já um pouco irritado pela persistência das
perguntas do outro. Tinha uma sensação de estar sendo ”feito de bobo”. Talvez o Sr.
Broad pressentisse a suspeita do rapaz, pois interrompeu o fluxo de perguntas e mudou
de assunto para a batida da polícia, uma fecunda fonte de discussão entre os membros do
Heron’s.

Ray, confundido, seguiu-o com o olhar quando, pouco mais tarde, ele se levantou e saiu.
Por que tamanho interesse em saber de todas aquelas coisas? Estaria sendo testado por
Broad? Sentiu-se contente por ver-se sozinho, livre para pensar na extraordinária missão
que lhe fora destinada. O caráter de aventura e segredo da tarefa era particularmente
atraente para o romantismo do jovem, que, aliás, existia em boa dose. Havia uma espécie
de deliciosa sensação de perigo, uma sugestão empolgante de aventura à margem da lei
naquelas instruções. Qual poderia ser o fim da brincadeira, era coisa que não lhe passava
pela cabeça. E foi bom, para sua tranqüilidade mental, que ele nada tivesse de profeta,
pois, caso contrário, naquele mesmo instante teria se descoberto buscando algum lugar
remoto, algum buraco no chão onde se pudesse esticar e tremer escondido.

197
CAPÍTULO 24

O encontro com o Sr. Maitland

Ella Bennett preparava o jantar quando o pai entrou, colocando a pesada câmara no chão
da sala de estar, mas levando, como de hábito, a valise para o quarto. Ouviu quando ele
bateu a porta do armário e a trancou a chave, mas já há muito tempo deixara de se
perguntar por que, invariavelmente, o velho deixava a maleta fechada no guarda-roupa.
John Bennett parecia muito cansado e abatido; os olhos estavam muito fundos e a palidez
da face era muito pronunciada.

— Fez boa viagem, papai? — perguntou ela. Era a pergunta de sempre e, como sempre, a
única resposta era uma inclinação de cabeça.

— Quase perdi minha câmara hoje de manhã. Esqueci-a no trem — disse. — Felizmente,
consegui pegála, mas jamais devo deixar outra vez a câmara longe de mim. Achei um
pedaço de campo cheio de aves selvagens e fiz umas tomadas realmente boas. Se me
limitasse aos arredores de Horsham, as possibilidades seriam muito limitadas. Acho que
levarei a máquina comigo sempre que sair de casa.

Sentou-se numa velha poltrona, perto da lareira, e encheu lentamente o cachimbo.

— Vi o Inspetor Elk na plataforma de King’s Cross — disse. — Creio que estava


procurando alguém.

198
— A que horas o senhor partiu de onde estava? — a filha perguntou.

— Na noite passada — respondeu ele laconicamente, sem dar qualquer outra informação
sobre seus movimentos.

A moça entrava e saía da cozinha, ocupada em pôr a mesa. Não falou ao pai do assunto
que lhe oprimia o peito, até vê-lo levantar-se da poltrona.

— Hoje de manhã recebi uma carta de Ray, papai. Foi a primeira vez que Ella mencionou
o nome do irmão desde a noite de triste memória no Heron’s Club.

— Sim? — o pai indagou, sem erguer os olhos do prato.

— Quer saber se leu a carta que lhe mandou. — Sim, eu li a carta — disse John Bennett
— mas não respondi. Se Ray quiser ver-me, sabe perfeitamente onde estou. Teve notícias
de mais alguém? — o pai perguntou, com uma calma surpreendente.

A filha tivera medo da reação que o nome de Ray poderia despertar.

— Tive notícias do Sr. Johnson. Ele saiu da Maitlands.

Bennett bebeu um copo d’água antes de continuar a conversa.

— Johnson tinha um bom emprego. Lamento por ele. Será que não conseguia mais
suportar o velho?

Devia contar-lhe?, era a dúvida da filha. A moça não sabia se convinha fazer do pai um
confidente, mas...

— Papai, eu me encontrei com o Sr. Maitland — disse ela.

— Eu sei. Foi vê-lo em seu escritório; você já me contou.

— Encontrei-me de novo com ele ... Não se lembra daquela manhã em que saí de casa e o
Capitão Gordon veio aqui? A manhã em que fui até o bosque?... Pois fui encontrar-me
com o Sr. Maitland.

Bennett pousou a faca e o garfo para encarar a filha com incredulidade.

— Mas por que razão, por Deus, foi avistar-se com ele àquela hora da manhã? Já tinha
combinado o encontro com o velho?

199
_I

11

A moça balançou a cabeça. — Não podia sequer imaginar que o encontraria — disse —
mas, naquela noite, fui despertada por alguém que atirou uma pedra no vidro da janela.
Pensei que fosse Ray, que estivesse voltando tarde. Isso era um hábito dele; nunca lhe
contei, mas, às vezes, ele chegava realmente muito tarde; e costumava acordar-me dessa
maneira. Estava amanhecendo e, quando olhei para fora, para meu espanto vi o Sr.
Maitland. Com o seu jeito estranhamente grosseiro, pediu-me que descesse. Pensei que
houvesse algum problema com Ray, vesti-me e saí pelo jardim, não me atrevendo a
acordar o senhor. Caminhamos pela estrada até o carro dele. Foi a entrevista mais estranha
que se possa imaginar ... Ele não disse ... nada .

— Nada?

— Bem, perguntou-me se concordaria em ser amiga dele. Se fosse qualquer outra pessoa,
eu teria ficado assustada, mas com o Sr. Maitland foi diferente. Estava tão patético, tão
velho, tão suplicante. Ficava repetindo ”Vou lhe contar uma coisa, Srta.”, mas cada vez
que tentava falar olhava em volta com ar assustado. ”Vamos para onde ninguém nos
veja”, disse ele, implorando-me para subir no carro. É lógico que eu recusei; até descobrir
que o motorista era uma mulher... Uma mulher muito idosa, irmã dele. Foi uma
experiência absolutamente fantástica. Acho que ela deve ter cerca de 70 anos, mas
aprendeu a dirigir automóveis durante a guerra e parecia estar usando o uniforme do
verdadeiro chofer. Deu um suspiro engraçadíssimo, que o senhor nem pode imaginar, no
instante em que percebi que era uma mulher ... Deixei que me levassem para o bosque e
perguntei: ”É o problema de Ray”? Mas não era o problema de Ray e tudo o que ele
queria era falar. Ele foi tão incoerente, tão estranho, que realmente me deixou nervosa. E
depois, quando começou a se recompor e conseguiu interligar alguns pontos do raciocínio,
viu você chegar no carro do Sr. Elk. Ficou apavorado e tremeu da cabeça aos pés!
Suplicou-me que fosse embora e quase caiu de joelhos implorando que eu não dissesse a
ninguém que estivera com ele. - — Ufa! — John Bennett puxou a cadeira para trás. —
E você não ficou sabendo de nada?

200
A moça balançou a cabeça. — Ele veio outra vez na noite passada — disse a filha —
mas dessa vez eu não quis sair de casa e ele se recusou a entrar. Fiquei muito
impressionada. Parecia um homem que esperava cair numa arapuca.

— Ele não lhe deu qualquer idéia do que pretendia dizer?

— Não, mas era alguma coisa de vital importância para ele, eu acho. Não consegui
entender metade do que disse. Falava num sussurro alto e penso que já lhe contei como a
voz dele é rude.

Bennett acendeu de novo o cachimbo e ficou por algum tempo com os olhos baixos,
revolvendo o problema em sua mente.

— Da próxima vez, é melhor deixar que eu me encontre com o velho — disse John
Bennett.

— Não acho, papai — respondeu ela com serenidade. — Se ele tem algo muito importante
a dizer, penso que eu devia descobrir o que é. Tenho a sensação de que está pedindo
ajuda.

O pai levantou os olhos. — Um milionário pedindo ajuda? Isso me parece muito


estranho.

— E é estranho — insistiu ela. — Quando o encontrei pela primeira vez, ele parecia
absolutamente terrível. Havia algo de trágico em torno dele, algo muito triste. Voltará esta
noite e prometi encontrá-lo. Posso cumprir a promessa?

O pai refletiu. — Pode, desde que não se afaste deste jardim. Prometo que não vou
interferir, mas ficarei por perto. Você acha que é o problema de Ray? Será que Ray
cometeu algum ato de loucura, que Maitland quer contar a você? — perguntou Bennett
com um traço de ansiedade na voz.

— Não penso que seja, papai. Maitland está inteiramente indiferente a Ray ou a qualquer
coisa que Ray tenha feito. Não sei se deveria contar a mais alguém o que está se
passando...

— Ao Capitão Gordon ou ao Sr. Elk - sugeriu secamente o pai e a moça corou. — Você
gosta desse

201
jovem, Ella? Não, não estou me referindo ao Elk; ele é tudo menos jovem; estou falando
de Dick Gordon.

- Gosto — respondeu ela ao fim de uma pausa. — Gosto muito.

— Só espero que você não se apaixone por ele, meu bem — disse John Bennett, e seu
olhar encontrou o da filha.

— Por que não, papai? — respondeu como se tivesse sido ferida.

—- Porque ... — ele parecia não saber como continuar — porque não é aconselhável. Ele
ocupa uma posição diferente da nossa, mas não é essa a única razão. Não quero que você
sofra, e digo isso sabendo que, se houver sofrimento, eu terei sido o causador.

— Que quer que eu faça? — perguntou a filha, com a expressão transtornada.

O pai levantou-se devagar, caminhou até ela e abraçou-lhe os ombros.

— Faça o que quiser, Ella — disse John Bennett brandamente. — Caiu uma maldição
sobre mim e você terá de pagar por meu pecado. Talvez ele nunca venha a saber, mas já
estou cansado de esperar milagres.

— Papai, o que quer dizer? — perguntou Ella com ansiedade.

— Não sei o que quero dizer — respondeu, acariciando o ombro da filha. — Podem
acontecer coisas estranhas, como em romances. Talvez ... — Bennett ruminou por algum
tempo o pensamento. — As cenas que filmei ontem podem ser minha realização, Elia,
algo que indique novos caminhos. Mas já pensei o mesmo de muitas outras coisas.
Sempre parece haver uma grande possibilidade aberta e sempre acabei sendo desapontado.
Mas estou pegando o jeito do negócio. Tudo está saindo esplendidamente, e o homem que
compra os filmes tem uma loja em Wardour Street — disse-me que a qualidade do
trabalho está melhorando a cada nova seqüência. Filmei uma pata no ninho, justamente
quando os filhotes estavam rompendo as cascas dos ovos. Não sei muito bem como o
filme vai sair, porque tive de me manter a alguma distância do ninho para conseguir
filmá-lo. E mesmo assim, quase assustei a pobre patinha quando fixei o tripé.

202
Muito argutamente, Ella não insistiu no assunto que lhe era doloroso.

Naquela tarde, a moça viu um homem estranho do outro lado da estrada, de frente para o
portão e contemplando o chalé. Era um cavalheiro bem-vestido, que fumava um grande
charuto. Devido aos óculos de aro, achou que fosse um americano, e quando ele falou, o
sotaque da Nova Inglaterra não deu margem a dúvidas. O homem aproximou-se do portão,
chapéu na mão.

— Creio que estou falando com a Srta. Bennett. não? — perguntou, e quando a moça
concordou com a cabeça: — Meu nome é Board. Estava dando uma vol ta e me lembrei
de que a senhorita morava em algum lugar das vizinhanças. Acho, aliás, que foi seu irmão
quem me deu essa informação no almoço.

— É amigo de Ray? — a moça perguntou.

— Não, não — disse Broad com um sorriso. — Não posso dizer que seja amigo do Sr.
Bennett; sou o que se pode chamar um conhecido do clube.

Broad não procurou aproximar-se muito da moça e, possivelmente não esperava ser
convidado para entrar pelo simples fato de ser um conhecido de Ray Bennett. Pouco
depois, com um lugar-comum sobre o tempo (adquirira perfeitamente o hábito inglês), o
americano afastou-se. Do portão, a moça viu-o caminhar para a estrada que conduzia ao
bosque. O caminho do bosque era o estacionamento preferido dos carros que circulavam
pelos arredores. A irmã de Ray não se espantou quando, alguns minutos depois, viu o
carro descendo a pequena estrada. O Sr. Broad levantou o chapéu ao passar e
cumprimentou rapidamente com um aceno alguém que ela não conseguia enxergar. A
curiosidade açulada, Ella abriu o portão e atravessou a estrada. Pouco abaixo, havia um
homem sentado num tronco de árvore, lendo o jornal e fumando um grande cachimbo
curvo. Urna hora mais tarde, quando ela saiu outra vez, o sujeito ainda estava lá, mas tinha
se levantado. O homem era alto, parecia estar vigiando alguma coisa e virou a cabeça
quando a moça olhou em sua direção. Um detetive, pensou, ela, desanimada.

203
Seu instinto não lhe traíra: disso tinha certeza. Por uma ou outra razão, estavam vigiando
o Chalé Maytree. A princípio, ficou assustada; depois indignada. Quase se dispôs a ir até a
aldeia, telefonar para Elk e exigir explicações. Por alguma razão, não lhe ocorreu dirigir
a ira contra Dick Gordon, o único responsável pelos homens que a vigiavam dia e noite.

Foi cedo para a cama, acertando o despertador para as 3h. Acordou, no entanto, antes que
a campainha tocasse. Vestiu-se rapidamente e desceu para fazer café. Quando passou pela
porta do quarto do pai, ouviu-o chamar.

— Estou acordado, se precisar de mim. — Obrigado, papai — disse com voz gentil.
Ficava contente em saber que o pai estava por perto. Sentiu uma sensação de segurança
que nunca experimentara antes nos contatos com o velho.

As primeiras luzes da manhã despontavam no céu, quando viu o vulto do Sr. Maitland
desenhado na luminosidade da aurora. Ouviu o leve barulho do ferrolho sendo
destrancado e o portão se abrindo. Não tinha ouvido nem visto o carro do velho. Dessa
vez, Mailtand certamente o deixara a alguma distância da casa.

Como de hábito, parecia nervoso, mudo, estupefato. Um grosso sobretudo, não


inteiramente novo, estava abotoado até o pescoço; um grande chapéu cobria-lhe a cabeça
calva.

— É a senhorita? — perguntou o velho num murmúrio rouco.

— Sim, Sr. Maitland. — Virá comigo para um pequeno passeio, não?... Tenho algo a lhe
contar... Muito importante, senhorita Bennett.

— Podemos fazer a volta no jardim — disse a moça, em voz baixa.

Maitland não gostou da idéia. — E se alguém nos vir, hein? Seria uma prova terrível
para mim! Só uma pequena caminhada pela estrada, senhorita — suplicou. — Ninguém
nos ouvirá.

— Podemos falar no gramado. Há algumas cadeiras aqui.

204
— Todos estão dormindo? Mesmo as empregadas? — Não temos empregadas — sorriu.
O velho balançou a cabeça. — Não a reprovo por isso. Também detesto empregados.
Tenho seis sujeitos de uniforme em minha casa. Eles me deixam alarmado!

A moça o levou pelo gramado, apanhou uma almofada, instalou-o numa cadeira e esperou.
Os inícios das entrevistas sempre pareciam muito promissores, mas logo depois o Sr.
Maitland divagava por profundidades em que a irmã de Ray não conseguia penetrar.

— A senhorita é uma boa moça — disse Maitland com voz rouca. — Pensei assim desde a
primeira vez que a vi... Creio que não magoaria um pobre velho. não é verdade?

— É claro que não, Sr. Maitland. — Eu sei que não. Disse a Matilda que você não faria
uma má ação. Ela também confia ... Já esteve no asilo para mendigos?

— No asilo? — a moça exclamou, sorrindo apesar de tudo. — Ora, não, nunca estive num
asilo.

O velho olhou de um lado para o outro com receio. Espreitou sob as sobrancelhas brancas
um monte de arbustos que podiam estar escondendo alguém.

— Já esteve num xadrez? A moça não percebeu o que o velho dizia. — Eu já — ele
continuou. — Estou me referindo à prisão, é claro.

Maitland olhou novamente em volta. — Imagine se estivesse em meu lugar... O problema


todo é esse... Imagine se estivesse em meu lugar!

— Receio não estar entendendo, Sr. Maitland. A moça viu-o espreitar atemorizadamente
os arredores do jardim e depois inclinar-se para perto dela.

— Aqueles sujeitos querem me pegar — disse o velho lentamente, num tom de voz
impressionante. — Querem a mim e querem Matilda. E deixei todo o meu dinheiro para
uma certa pessoa. Essa é a piada. Essa é a grande piada, Srta. Bennett. — Maitland riu
nervosamente entre os dentes. — E, por isso, eles também querem pegá-lo...

205
O velho deu uma palmada no joelho, agitando-se num riso silencioso. A moça acreditou
verdadeiramente que estivesse louco e foi-se afastando dele vagarosamente.

— Mas tive uma grande idéia ... Quando vi a senhorita tive uma grande idéia. Foi uma das
maiores idéias que já tive até hoje. Sabe datilografar, senhorita Bennett?

— Datilografar? — ela sorriu. — Não, consigo escrever alguma coisa, mas não sou boa
datilógrafa.

A voz de Maitland ficou abafada, tornou-se quase ininteligível.

— Um dia a senhorita subirá a meu escritório e ouvirá urna grande piada. Não pensava
que eu contasse anedotas, certo? Faço piadas há 87 anos, senhorita. Irá a meu escritório e
eu a farei rir!

De repente, o velho tornou-se mais sério. — Estão querendo a mim, eu sei. Não disse nada
a Matilda porque ela começaria a gritar. Mas eu sei. E o bebê!

A lembrança do bebê pareceu dar imensa satisfação ao velho Maitland. Um sorriso


envolveu-lhe o rosto sombrio até que um acesso de tosse o atacasse.

— Isso é tudo, Srta. Bennett. A senhorita irá a meu escritório. Johnson não está mais lá. A
senhorita irá encontrar-se comigo. Nunca recebeu uma carta minha, não é mesmo? —
perguntou bruscamente ao se levantar.

— Não, Sr. Maitland — ela respondeu surpresa. — Mas já lhe escrevi uma carta — disse
ele. — Talvez não a tenha posto no correio ... Talvez tenha pensado melhor ... Não sei!

Maitland começou a se afastar, mas virou-se quando alguém apareceu na porta da frente da
casa.

— Quem é? — perguntou o velho, e Elia sentiu-lhe a mão trêmula em seu braço.

— É meu pai, Sr. Maitland — disse a moça. — Acho que estava um pouco preocupado
com minha demora.

— Seu pai, então? O velho pareceu mais aliviado que ressentido. — Para todos os
efeitos, chama-se John Bennett.

206
Não lhe diga que já estive no asilo — pediu num tom nervoso — ou na prisão. Eu já estive
na prisão, senhorita Bennett. Conheci todos os grandes, cada um deles. E fora da prisão
também encontrei alguns. Aposto que sou o único homem neste país que já se encontrou
com Saul Morris, a peça mais importante de todas. Vi-o apenas urna vez, mas jamais o
esquecerei.

John Bennett viu os dois conversando e ficou indeciso, sem saber se se juntava a eles ou
não, ignorando se Ella desaprovaria tal atitude. Maitland decidiu o assunto, dirigindo-se
a ele:

— Bom-dia, senhor. Estive conversando com sua filha. Um tanto cedo demais, não é
verdade? Espero que não se importe, Sr. Bennett.

— Fique à vontade — disse John Bennett. — Não quer entrar, Sr. Maitland?

— Não, não, não — disse o outro com ar temeroso. — Tenho de ir embora. Matilda está
me esperando. Não se esqueça, senhorita: vá ao meu escritório para conhecer aquela
piada!

Maitland não estendeu a mão nem tirou o chapéu. Sem dúvida, suas maneiras eram
deploráveis. Uma ligeira inclinação de cabeça para a moça, e depois:

— Bem, até mais ver, senhor ... — ele ia dizendo, quando John Bennett se afastou da
sombra da casa e disse:

— Até logo, Sr. Maitland. Maitland ficou mudo. Seus olhos arregalaram-se com terror, o
rosto ficou branco como o de um morto.

— O senhor... o senhor! — exclamou quase num tom estridente. — Oh, meu Deus!

O velho pareceu cambalear e a moça correu para ajudá-lo, mas o milionário conseguiu
recompor-se, fez a volta e deslizou pela trilha do jardim com uma agilidade surpreendente
para alguém de sua idade. Abriu o portão com violência e desapareceu rapidamente ao
longo da estrada. Alguns soluços sufocados do velho Maitland chegaram até os Bennett.

— Papai — a moça murmurou assustacia —, ele conhecia o senhor? Ele o reconheceu de


algum lugar?

— É o que me pergunto — disse John Bennett de Horsham.

207
CAPÍTULO 25 A respeito de Saul Morris Dick Gordon telefonou para a chefatura e Elk
informou de imediato.

— Descobri seis grandes sacolas preparadas para uma fuga. Cada uma equipada tão
completa e exatamente como a bolsa que encontrei em King’s Cross.

— Nenhuma pista sobre a pessoa que as depositou? — Não, nem uma única pista.
Procuramos impressões digitais, mas obtivemos poucos resultados. As sacolas já tinham
passado pelas mãos de uma meia dúzia de empregados das estradas de ferro. Por esse
caminho, acho que não conseguiremos muita coisa. Podemos tentar, mas é tudo!

— Elk, eu daria alguns anos de minha vida para penetrar de vez no mistério das Rãs.
Tenho seguido Lola, mas não creio que ela seja uma peça importante, ao menos por ora.
Não conheço ninguém menos parecido com o tipo vagabundo do que Lola Bassano! Lew
desapareceu. De manhã, mandei um homem descobrir o que acontecera ao jovem Sr.
Raymond Bennett. O jovem Ray não queria ver ninguém. Alegou que estava doente e
disse que ficaria o dia todo no apartamento. Elk, quem é a Rã?

Mais tarde, diante de Dick, Elk andava de um lado para o outro em sua sala, as mãos nos
bolsos, os aros

208
de metal dos óculos deslizando cada vez mais para baixo ao longo do nariz comprido.

— Há somente duas possibilidades. Uma é Harry Lyme, um ex-presidiário, que


supostamente se afogou há alguns anos atrás no Channel Queen. Coloco-o entre os
suspeitos, porque tudo que temos dele no fichário o aponta como um brilhante
organizador, um supervigarista, um dos dois homens capazes de arrombar o cofre de
Lorde Farmley e descobrir o segredo da nova marca de fechadura na janela de Johnson. E
pode crer, Capitão Gordon, que foi um artista que cometeu o ataque contra Johnson!

— A outra possibilidade? — perguntou Dick. — Também um homem supostamente


morto — prosseguiu Elk com ar sério. — Saul Morris, o mais esperto de todas. É um páreo
duro com Lyme, Capitão. Examinei 2 mil fichas de criminosos conhecidos e encontrei as
suspeitas sobre esses dois ... Só que ambos estão mortos! Dizem que os mortos não
deixam pistas. Se a Grande Rã é Morris ou Lyme, a observação é inteiramente cabível.
Lyme morreu afogado. Morris morreu num acidente ferroviário nos Estados Unidos. O
problema é saber sobre qual dos dois fantasmas concentraremos as acusações.

Dick Gordon abriu a gaveta da escrivaninha, tirou um envelope com a inscrição da


Western Union e o jogou sobre a mesa.

Que é isso, Capitão Gordon? — É uma resposta à sua dúvida. Você já mencionara Saul
Morris anteriormente e fiz investigações em Nova Iorque sobre a morte dele. Aqui está a
resposta.

Era um telegrama do Chefe de Polícia de Nova Iorque.

”Em resposta a sua solicitação, venho informar que Saul Morris está vivo. Acreditamos
que nesse momento se encontre na Inglaterra. Aqui não há qualquer acusação contra ele,
mas suspeita-se de que seja o responsável pela limpeza na caixa-forte do ss Mantania, em
17 de fevereiro de 1898, em Southampton, Inglaterra, roubo no valor de 55 milhões de
francos.”

209
Elk leu e releu o telegrama, depois dobrou-o cuidadosamente, recolocou-o no envelope e
devolveu a Dick.

— Saul Morris na Inglaterra — disse maquinalmente. — Isso parece explicar muita coisa.

A busca nos terminais ferroviários revelara a existência de nove sacolas, de conteúdo


idêntico. Sempre havia aparelhos de barba, uma camisa, dois colarinhos, uma gravata,
uma pistola Browing carregada, um passaporte falso sem fotografia, o Annatto e dinheiro.
A esse respeito, houve apenas uma diferença. Em Paddington, a polícia descobriu uma
bolsa um pouco maior que as outras, a qual, além daqueles apetrechos, tinha grande
quantidade de cheques, cada um de uma agência diferente e de um banco diferente. Havia
cheques do Credit Lyonnais, do Ninth National Bank of New York, do Burrowstown
Trust, do Banco da Espanha, de bancos da Itália e da Romênia, além de 50 agências dos
cinco principais bancos ingleses. Estando muito ocupado, Elk não tivera tempo de fazer
uma investigação muito detida, mas, naquela manhã, decidira tratar seriamente do
problema dos cheques. Estava certo de que a inspeção nos diferentes bancos revelaria
diversos depositantes, mas, apesar de tudo, poderia dar-lhe pistas de um homem ou de um
grupo de homens.

Quando as bolsas eram trazidas, examinavam-nas superficialmente, antes que Elk as


guardasse no cofre. Os conteúdos eram retirados e guardados em outros lugares. Cada
bolsa fora numerada e rotulada com o nome da estação em que tinha sido encontrada, o
nome do agente que a trouxera e particularidades referentes ao que continha. Essas
providências eram indispensáveis, como posteriormente se comprovou.

Elk chegou ao escritório logo após as 10h, tendo desfrutado da primeira noite completa de
sono em muitas semanas. Como assistentes, Elk contava com Balder e um
sargento-detetive chamado Fayre, jovem promissor, no qual Elk depositava boa dose de
confiança. Dick Gordon chegou quase ao mesmo tempo que Elk. Os dois entraram
juntos no prédio da Scotland Yard.

— Não há qualquer chance de acharmos algo de concreto seguindo a pista desses cheques
— disse Elk.

210
Estou mais esperançoso com a possibilidade de as sacolas conterem uma ou outra coisa
que não descobrimos no primeiro exame. Todas as bolsas são forradas; é possível que
tenham fundo falso. Vou rasgá-las de uma ponta a outra. Se as Rãs tiverem escondido
alguma coisa, sem dúvida acharemos.

Balder e o sargento-detetive esperavam no escritório. Elk foi buscar a chave. O


aparecimento da chave do cofre sempre tinha algo de um ritual desenvolvido por Elk.
Dick Gordon tinha a impressão de que o Inspetor ia despir-se, pois a chave ficava
invariavelmente guardada em alguma região misteriosa entre o forro do casaco e o
colete. Devia estar num bolso qualquer, num lugar impossível de haver qualquer bolso.
Pouco depois, a cerimônia estava encerrada. Solenemente, Elk pôs a chave na fechadura
e abriu a porta.

O cofre ficara tão entulhado de sacolas que estas começaram a cair por cima dele. O
Inspetor tirou bolsa por bolsa, enquanto Fayre as ia colocando sobre a mesa.

— Pegaremos primeiro a que encontramos em Paddington — disse Elk, apontando a maior


de todas as sacolas. — Dê-me outra faca, Balder.

Elk e Gordon encaminharam-se para a sala de Balder, deixando Fayre sozinho.

— Pode ver o fim dessa coisa, Capitão Gordon? — Elk perguntou.

— O fim das Rãs? Ora, é claro, penso que posso ver o fim das Rãs. Quase posso dizer que
tenho certeza de que verei o fim das Rãs.

Os dois haviam chegado à porta da sala e deram com Balder segurando a faca.

— Aqui está ... — ele começou, mas um instante depois Dick foi atirado violentamente no
chão, com Elk em cima dele.

Houve o estardalhaço de vidros quebrados, uma rajada de vento e o trovão ensurdecedor de


uma explosão.

Elk foi quem primeiro se levantou e correu para a sala ao lado. A porta pendia em suas
dobradiças, todas as vidraças estavam em pedaços, os caixilhos das janelas se tinham
rompido. Uma grande e pesada nuvem de fumaça saía do escritório, mas. Elk mergulhou
nela

211
sem hesitar. Mal deu um passo e deparou-se com o sargento Fayre estendido no chão. Ele o
suspendeu e o arrastou para o corredor. Um simples olhar deixou patente que, se o homem
não estava morto, as esperanças de recuperação eram sem dúvida bem escassas. Os
alarmes contra incêndio soavam por todo o edifício. Um barulho nervoso de pés nos
degraus e o esquadrão de bombeiros correu pêlo corredor arrastando as mangueiras
d’água.

O fogo foi rapidamente dominado, mas o escritório de Elk ficou em ruínas. Mesmo a
porta de uma caixaforte tinha sido arrancada dos trincos. Não sobrara uma única peça de
mobília inteira e um grande buraco tinha se aberto no,chão.

— Leve essas sacolas para um lugar seguro — disse Elk e voltou a se ocupar do homem
ferido. Só depois de ver o assistente socorrido por uma ambulância, preocupou-se em
verificar os estragos que a bomba tinha feito.

— Oh, sim, foi uma bomba — disse Elk. Um grupo de velhos funcionários da Yard
permanecia no corredor, contemplando as ruínas.

— E uma bomba de alto poder explosivo. A impressionante sorte é que eu e o Capitão


Gordon não estávamos lá. Eu mandei Fayre rasgar a sacola, mas pensei que ele fosse
esperar que voltássemos com a faca. Pretendíamos examinar o forro. Fayre rompeu o forro
e a bomba explodiu.

— Mas as sacolas não foram examinadas antes? — perguntou, furioso o comissário.

Elk fez que sim com a cabeça. — Examinei ontem mesmo todas as bolsas, uma por
uma. Tudo que havia na sacola encontrada em Paddington foi posto sobre minha mesa e
catalogado. Eu mesmo tornei a colocar todo o conteúdo dentro da bolsa. Não havia
bombas.

— Mas como a bomba pode ter sido colocada depois? — perguntou o outro.

— Não sei, senhor. A única pessoa que possuía uma chave do cofre, além de mim, é o
Subcomissário do meu departamento, Coronel McClintock, que está de férias ... De fato,
todos nós podíamos ter sido mortos.

212
— Qual era o explosivo? — Dinamite — respondeu Elk prontamente. — Fez muito
estrago.

O inspetor apontou para o buraco no assoalho. — A nitroglicerina espalha-se para o alto e


para os lados — ele fungou. — Não há dúvida de que foi dinamite.

Na busca que deu na sala, Elk encontrou uma espiral amassada, de aço muito fino, e mais
adiante um mostrador enegrecido e praticamente esmagado de um despertador barato.

— O fio de contato e o marcador de tempo— disse ele. — Essas Rãs não estão dando
folga.

Levou tudo que pôde descobrir para a sala de Balder.

Havia pouca chance de que a explosão pudesse ser abafada das manchetes dos jornais.
Afinal, a janela fora atirada na rua, junto com pedaços de tijolos das paredes. Toda uma
multidão tinha sido atraída para as vizinhanças de Embankment. Na verdade, quando Elk
deixou a chefatura defrontou-se com o acontecimento estampado nos jornais.

Sua primeira visita foi a um hospital das proximidades, para onde tinham levado o infeliz
Fayre, mas recebeu informações encoraj adoras. Os médicos achavam que, com alguma
sorte, além de salvar a vida do homem, o poupariam de qualquer mutilação grave.

— Talvez perca um ou dois dedos; teve muita sorte — disse o cirurgião. — Não posso
entender como a bomba não o deixou em pedaços.

— O que não consigo entender — disse Elk enfaticamente — é como eu não fiquei em
pedaços.

O cirurgião concordou com a cabeça. — Esses altos explosivos pregam algumas peças
curiosas — disse o médico. — A força da explosão arrancou a porta de uma caixa-forte e,
no entanto, este pedaço de papel, que devia encontrar-se dentro do alcance da bomba, só
está um pouco chamuscado.

Tirou do bolso uma tira quadrada de papel; as bordas enegrecidas, uma das pontas
queimadas, mas praticamente inteiro.

213
— Estava na roupa do policial ferido, mas pode ter aderido a ela quando a bomba detonou
— disse o cirurgião.

Elk pegou cuidadosamente o papel e leu: ”Com os cumprimentos do Número Sete.”


Com o mesmo cuidado, dobrou o pedaço de papel. — Vou levar isso comigo — disse,
guardando-o com carinho na caixa dos óculos. — Acredita em pressentimentos, doutor?

— Refere-se a premonições? — sorriu o cirurgião. — Até certo ponto, acredito.

Elk balançou a cabeça. — Tenho o pressentimento de que vou encontrar o Número Sete..
. muito em breve — disse ele.

214
CAPÍTULO 26

Uma promoção para Balder

Transcorrera uma semana e a explosão na chefatura já era história antiga. O policial ferido
fazia progressos evidentes para a recuperação e, de certo modo, a situação geral estava
estacionária.

Aparentemente, Elk aceitava os fracassos como algo inevitável; parecia mesmo


hipnotizado por uma aceitação fatalista da situação. Mas sua atitude era enganosa. No
sexto dia após a explosão, a chefatura dera uma batida nos depósitos das estações
ferroviárias e, outra vez, como Elk previra, tirara pacotes suspeitos de cada terminal,
sacolas de novo formato, mas com exatamente o mesmo conteúdo que as primeiras. A
única diferença é que a sacola achada em Paddington não era diferente das outras.

As sacolas foram abertas por um especialista em explosivos, depois de testes preliminares


muito rigorosos; mas não continham nada mais mortal que pistolas de procedência belga,
além dos inevitáveis passaportes, dessa vez emitidos em nome de ”Clarence Fielding”.

— Por certo, as Rãs estão por toda parte — disse Elk com relutante admiração,
examinando o resultado da caçada.

— Vai guardar essas bolsas em seu escritório? — perguntou Dick, mas Elk balançou
melancolicamente a cabeça.

215
— Acho que não — respondeu. Esvaziara imediatamente as sacolas e mandara os
conteúdos para o Departamento de Pesquisa. As bolsas, inclusive, estavam agora
retalhadas em tiras de couro e aço, pois desta vez foram cientificamente cortadas em
pedaços, centímetro por centímetro.

— Em minha opinião — disse Balder premonitoriamente —, existe alguém na própria


chefatura de polícia trabalhando contra nós. Já venho pensando nisso há muito tempo e,
após consultar minha mulher...

— Não consultou seus filhos, também? — disse sarcasticamente o Inspetor. — Quanto


menos falar de problemas da chefatura em seu círculo doméstico, tanto maiores serão
suas chances de promoção.

O Sr. Balder fungou. — De qualquer modo, isso já não me preocupa mais — disse
amargamente. — Sei que estou nos livros negros. Tempos atrás, achei que teria uma
chance . Até que o senhor me pôs na cela de Hagn

— Ora, mas que ingratidão! — exclamou Elk . — Quem é o Número Sete, senhor? —
perguntou Balder. — Pensando sobre o assunto, e tendo discutido com minha esposa,
cheguei à conclusão de que é uma das Rãs mais importantes. Se conseguíssemos pegá-lo,
pouparíamos um longo caminho para chegar aos outros grandes da organização.

Elk pousou a caneta — estava escrevendo um relatório — e agraciou o subordinado com


um sorriso paciente, porém amarelo.

— Você devia ter seguido a carreira política — disse o Inspetor, fazendo sinal para que
Balder saísse do escritório e levasse com ele as lamúrias e as especulações.

O Inspetor tinha concluído o relatório e o estava lendo com olho crítico, quando o
interfone anunciou um visitante.

— Mande-o subir — disse Elk, depois de perguntar o nome do recém-chegado.

Tocou a campainha chamando Balder. — Este relatório vai para o Capitão Gordon —
ordenou.

216
Quando punha o informe dentro de um envelope, Joshua Broad surgiu no umbral da porta.

— Bom-dia, Sr. Elk. Dirigiu também a Balder um aceno de cabeça, embora jamais o
tivesse encontrado.

— Bom-dia — respondeu o Inspetor. — Entre e sente-se, por favor. A que devo o prazer
de sua visita?

Houve uma pausa. — Desculpe minha excessiva gentileza — continuou Elk —, mas de
manhã cedo eu fico assim. Bem, Balder, você pode sair.

Broad ofereceu a caixa de charutos ao detetive. — Venho trazer uma curiosa informação
— disse o americano.

— Jamais alguém veio à chefatura por outro motivo — replicou Elk.

— Diz respeito a um vizinho. — Lola Bassano? — O marido dela — disse o outro. —


Lew Brady. Elk ajeitou os óculos. — Não me diga que ela é legalmente casada com
Lew Brady? — o Inspetor perguntou, espantado.

— Creio não haver qualquer dúvida sobre isso — disse Broad —, embora eu tenha certeza
absoluta de que o jovem Bennett não sabe da história. Brady ficou uma semana em
Caverley House e durante todo esse tempo não saiu um só instante, nem colocou a cara
fora da porta. E o que é mais estranho: o rapaz também não foi até lá. Não creio que tenham
brigado. Algo me diz que existe alguma coisa bem mais profunda que uma briga. Vi
Brady por acaso ao sair de casa; aconteceu de a porta de Lola Bassano estar aberta, pois a
empregada estava pegando o leite. Consegui ver Brady de relance. Tem o maior par de
costeletas que já vi na cara de um pugilista aposentado. Isso deixou-me intrigado — disse
Broad, batendo cuidadosamente no cinzeiro a cinza do charuto — e eu fiquei imaginando
se existiria alguma relação entre sua súbita desconfiança do barbeiro e as ações de Ray
Bennett. Fui à casa do rapaz ... Falei outro dia com ele no clube, e tinha como pretexto
meu encontro posterior com Ella Bennett . Na casa dele, como ia dizendo,

217
um criado — um cara que vai todo dia para lhe escovar as roupas e arrumar o apartamento
— disse-me que Ray não estava bem de saúde e não poderia sair do quarto.

O Sr. Broad soprou um anel de fumaça e contemplou-o pensativamente.

— O fato é que o criado, não tendo muito contato com o patrão, não era de modo algum
uma pessoa de confiança — continuou o americano. — Esses empregados diaristas não
convivem suficientemente com o dono da casa para adquirir sentimentos de fidelidade.
Custou-me, à taxa atual de câmbio, 2 dólares e 35 centavos descobrir que o Sr. Ray Bennett
está sofrendo da mesma aversão aos barbeiros. Se estivéssemos em tempo de eleições,
poderia acreditar que os dois tivessem feito uma promessa de só se barbearem de novo
quando seus partidos voltassem ao poder. E se Lew Brady fosse realmente um desportista,
poderíamos acreditar que houve uma aposta entre os dois. O que me intriga é o modo
como se estão passando as coisas.

Elk empurrou o charuto de um canto a outro da boca.

— Não estou muito familiarizado com o assunto — disse ele —, mas tenho a impressão
de que não existe qualquer lei que impeça as pessoas de usarem barbas e costeletas. A...
como é a palavra?.., a psi...

— Psicologia — sugeriu Broad. — Exatamente. A psicologia das barbas e costeletas


nunca me interessou. O senhor é americano, não, Sr. Broad?

— Tenho essa honra — disse o outro, com aquele meio sorriso que lhe subia tão
prontamente aos olhos.

— Ah! — Elk exclamou com ar distraído, olhando pela janela. — Já ouviu falar de
alguém chamado Saul Morris?

Olhou repentinamente para o rosto do outro, mas o Sr. Joshua Broad parecia apenas estar
franzindo a testa num esforço para lembrar.

— Creio que me lembro desse nome. Era um grande criminoso... Era americano, se não
estou enganado? Sim, já ouvi falar dele. Lembro-me agora de que morreu há alguns anos
atrás.

218
Elk coçou o queixo com irritação. — Gostaria muito de falar com alguém que tivesse
visto o enterro dele — disse o Inspetor —, alguém em quem eu pudesse acreditar
cegamente.

— Não está sugerindo que Lew Brady — Não. Nada estou sugerindo acerca de Lew
Brady, exceto que se trata de boxeador sem grandes recursos. Vou pensar nesta lamentável
competição de barbas, Sr. Broad, e lhe agradeço muito a informação.

Mas Elk não estava especialmente interessado nas excentricidades de Ray. Às 5h, Balder
entrou e perguntou se podia ir para casa.

— Prometi a minha esposa ... — ele começou. — Cumpra a promessa — disse Elk.
Após a partida do subordinado, chegou uma carta oficial dirigida ao Inspetor Elk, e,
abrindo o envelope, Elk sorriu. Era um comunicado do superintendente que controlava
as carreiras dos oficiais de polícia da chefatura.

”Senhor” — dizia a carta — ”fui instruído pelo Comissário-Chefe de Polícia para


informar-lhe de que a promoção do agente policial J. J. Balder à categoria de sargento
foi aprovada. A nomeação terá a data de 19 de maio.”

Elk dobrou o papel e sentiu-se verdadeiramente satisfeito. Ia tocar a campainha chamando


Balder, mas lembrou-se de que já mandara o subordinado para casa. Elk tinha a noite
livre e, de coração alegre, decidiu levar pessoalmente as boas novas.

— Afinal, gostaria de conhecer sua esposa — disse Elk, falando consigo mesmo — e as
crianças!

Elk procurou no registro de endereços da polícia e descobriu que Balder morava na


Leaford Road, 93, em Uxbridge. Para desapontamento de Elk, os nomes da esposa e dos
filhos não estavam anotados. Nenhuma outra anotação fora feita no espaço reservado a
Balder, desde a catalogação inicial.

Seu carro de policia levou-o para Leaford Road, 93. Era uma casa austera e pequena,
exatamente o tipo

219
de casa imaginado por Elk. A porta foi aberta por uma senhora idosa, que se estava
preparando para sair. Elk ficou surpreso ao ver que ela usava um uniforme de
enfermeira.

— Sim, o Sr. Balder mora aqui — disse, aparentemente surpresa por ver o visitante. — Ou
melhor, tem dois aposentos aqui, embora muito raramente passe a noite neles.
Geralmente vem aqui para mudar de roupa e, depois, acho que sai com amigos.

— A esposa dele mora aqui? — Esposa? — perguntou a mulher, espantada. — Não


sabia que era casado.

Elk tinha levado a ficha de Balder, por causa de alguns dados que deviam ser confirmados
para fins de pensão. Junto ao endereço de Balder, reparou, pela primeira vez, que outra
rua e outro bairro tinham sido anotados. Leaford Road fora riscada com uma tinta tão
apagada que só então, com o papel à luz do dia, a rasura se tornava visível. O segundo
endereço era em Stepney.

— Acho que foi um engano — disse o Inspetor. — Seu endereço é na Orchard Street, em
Stepney.

A enfermeira sorriu. — Ele morou aqui durante muitos anos — disse ela —, depois foi
para Stepney. Como os bombardeios foram muito fortes a Leste de Londres, voltou para
cá durante a guerra. Mas tenho a impressão de que ainda mantém um quarto em Stepney.

— É mesmo? — Elk exclamou, pensativamente. O Inspetor já estava no portão, quando a


enfermeira o chamou.

— Não creio que Balder esteja em Stepney, embora não saiba se devo falar da vida dele a
um estranho ... Se precisa mesmo vê-lo, creio que o encontrará em Slough. Vi o carro dele
duas vezes, passando pela Slough Road em direção a Seven Gables. Acho que deve ter
um amigo por lá.

— Carro de quem? — Elk perguntou sobressaltado. — Carro dele ou do amigo — disse a


enfermeira. — Balder é seu conhecido?

— De certa forma, sim — disse cautelosamente o Inspetor.

220
Ela pensou por um momento. — Quer entrar, por favor? Elk seguiu a enfermeira,
entrando numa pequena sala de visitas, limpa e bem-arrumada.

— Não sei por que lhe digo isso, não sei por que lhe estou falando com tanta liberdade —
disse —, mas a verdade é que pedi ao Sr. Balder que se mudasse. Ele faz muitas queixas,
é muito difícil de agradar, e eu não consigo satisfazê-lo. E não pense que ele me paga
muito dinheiro ... Tinha um lucro muito pequeno com o aluguel que me pagava; agora,
inclusive, poderei alugar os quartos por um preço melhor. Além disso, há o problema das
cartas. Tenho uma caixa de correio na porta, que às vezes transborda. Não sei qual é o
outro negócio dele. As cartas que chegam vêm da Didcot Chemical Works.
Provavelmente, está me julgando uma mulher muito difícil de contentar, porque, afinal,
ele fica fora o dia todo e raramente dorme aqui à noite.

Elk respirou profundamente. — Penso que é a pessoa mais gentil que já encontrei até hoje
— disse o inspetor. — Vai sair agora?

Ela fez sinal afirmativo com a cabeça. — Tenho um doente que me ocupará a noite
inteira. Não voltarei até as 11h de amanhã. O senhor teve muita sorte de me encontrar em
casa.

— Creio que disse ”o carro dele”. Que tipo de carro? — perguntou Elk.

— Um automóvel preto, não sei de que marca, mas acho que é americano. Se não é o
dono, tem alguma coisa a ver com o proprietário. Uma vez encontrei um monte de
catálogos de pneus na cama dele, alguns tipos de pneus estavam marcados a lápis ...

Elk fez uma última pergunta. — Ele não costuma vir aqui à noite, depois que a senhora
sai?

— Muito raramente, eu creio — respondeu a mulher. — Ele tem sua própria chave... Eu
saio com muita freqüência à noite, de modo que não tenho certeza se vem aqui ou não.

Elk já estava com um pé no estribo do carro. — Talvez possa deixá-la em algum lugar,
mada-

221
me? — ele disse, e a mulher idosa aceitou de bom grado.

Após deixá-la, Elk voltou para a chefatura, abriu a gaveta da escrivaninha e retirou
algumas coisas de que ia precisar. Em seguida, deu uma ou duas instruções mais urgentes
e voltou ao carro, que ficara esperando na rua. Mandou que o motorista seguisse para o
Harley Terrace. Naquela noite, Dick Gordon tinha ido assistir a uma peça de teatro com os
membros da Embaixada Americana. O detetive estava num dos camarotes do Hilarity
Theatre, quando Elk abriu a porta devagar, bateu-lhe no ombro e levou-o para o corredor,
sem que outras pessoas notassem a súbita retirada.

— Alguma coisa errada? — perguntou Gordon. — Balder conseguiu a promoção — disse


solenemente o outro, e Dick arregalou os olhos. — É sargento agora — Elk continuou —
e não conheço nenhum posto melhor que esse na Scotland Yard. Quando ele, a mulher e
os filhos souberem da novidade, ficarão muito felizes, pode crer.

Elk nunca bebia : foi o primeiro pensamento de Dick; mas era possível que as ansiedades
e preocupações das últimas semanas lhe tivessem subido à cabeça.

— Estou muito contente com a promoção de Balder — disse Gordon amavelmente — e


alegro-me também por você, Elk, pois sei de seu empenho em fazer com que o pobre
coitado desse um passo na direção certa.

— Pode dizer o que estava pensando — disse Elk. — Eu não estava pensando em nada
— Dick riu. — Você achou que eu devia estar sofrendo de insolação ou não teria vindo
tirá-lo de seu confortável teatro para anunciar a promoção de Balder. Mas agora, Capitão
Gordon, o senhor pegará seu casaco e virá comigo. Tenho outras novidades sobre Balder.

Aturdido, mas sem fazer perguntas, Gordon foi até o vestiário, pegou o casaco e
encontrou o Inspetor no vestíbulo.

— Vamos para Slough, para Seven Gables — disse Elk. — É uma boa casa. Ainda não a
vi, mas sei que é uma ótima casa, muito bem-aparelhada, com uma elegante mobília, luz
elétrica, telefone e um banheiro

222
moderno. Isso é dedução. E lhe direi mais alguma coisa ... dedução, também. Há
armadilhas no gramado, alarmes contra ladrões nas janelas, aproximadamente uns 100
empregados ...

— Afinal, de que raio você está falando? — Dick perguntou, e Elk riu histericamente por
entre os dentes.

Atravessavam a Estrada de Uxbridge, quando um imenso automóvel passou zunindo por


eles, a toda velocidade. Ia cheio de homens que se entulhavam pelos assentos, sentados
alguns nos joelhos dos outros.

— É apenas um grupo de amigos se divertindo — disse Dick.

— Apenas — Elk respondeu, laconicamente. Alguns segundos depois, um segundo carro


também os ultrapassou, com velocidade ainda maior que o primeiro.

— Parece que é um de seus carros de polícia — disse Dick.

O segundo carro também ia apinhado. — Certamente é parecido com um de meus carros


de polícia — Elk concordou. — Na América, eles têm melhor disfarce. Como
provavelmente você não ignora, possuem excelente sistema de caminhonetes-patrulhas.
Gostaria de introduzi-lo em nosso país; é muito inteligente e funcional.

Quando o carro diminuiu a marcha para atravessar a estreita rua de Colnebrook, cheia de
calombos, um terceiro automóvel gigantesco passou a toda pressa e dessa vez não
houve engano. Era um carro da polícia. Dick reconheceu o detetive-inspetor que ia ao lado
do motorista. Ele deu uma piscadela para Elk, que piscou de volta com grande solenidade.

— Qual é a idéia? — perguntou Dick, a curiosidade inteiramente acirrada agora.

— Vai haver uma festa — disse Elk — para comemorar a promoção de Balder. E vai ser
um dos maiores sucessos da história de nossa força policial. Teremos os irmãos Mick e
Mac, os ciclistas malucos, com seu número iningualável...

Ele balbuciava, rindo como um louco. Em Langley, foram ultrapassados por mais dois
carros da polícia. Dick começara a acreditar que a

223
marcha lenta mantida pelo automóvel que o transportava era proposital. O motorista teria
ordens de deixar que os outros o ultrapassassem. Depois de Langley, a Estrada de
Windsor vira abruptamente à esquerda. Eik inclinou-se sobre o motorista e deu instruções.
Não havia mais sinal dos carros de polícia: ao que parece, tinham continuado para
Slough. Um solitário policial, de pé em um dos cruzamentos, contemplou-os desaparecendo
na poeira com apático interesse.

— Vamos parar por aqui — disse Elk, e o carro saiu da estrada, subindo na relva verde do
acostamento.

Elk desceu.

— Vá dar um passeio até lá adiante enquanto converso com o Capitão Gordon — disse ao
motorista. O que Elk falou, Dick ouviu espantado e com ar de descrédito.

— Agora — disse Elk —, temos de andar cerca de cinco minutos, se não me falha a
memória. Já há tanto tempo não vou às competições de Windsor que quase nem me
lembro de onde fica a casa.

Entre duas cercas cobertas de arbustos, encontraram a entrada de Seven Gables. Não havia
portão. Um caminho largo e rodeado de altos pinheiros levava a uma casa que não se
podia ver da estrada. Elk foi um pouco à frente. Pouco depois, parou e fez um aceno para
o outro. Dick aproximou-se e, olhando por sobre os ombros do detetive, teve sua primeira
visão de Seven Gables.

Era uma casa grande, com altos muros cobertos de hera e chaminés compridas.

— Pseudo-elisabetana — disse Dick, com admiração.

— 1066 — murmurou Elk — ou talvez 1599? É de urna dessas épocas!

Estava escurecendo, e as luzes de uma grande janela destacavam-se na extremidade oposta


do prédio. Estavam diante de uma porta em forma de arco.

— Vamos voltar — sussurrou Elk, e iniciou a retirada acompanhado de Dick.

224
Esperaram que a noite avançasse para se aproximarem outra vez da casa. A luz ainda surgia
na janela, mas as cortinas cor de creme estavam puxadas.

— Sempre é mais seguro manter-se afastado de qualquer porta — murmurou Elk. — Olhe
sempre à esquerda e à direita!

O Inspetor cobriu os sapatos com um par de meias muito grossas e deu um segundo par ao
companheiro. Com uma lanterna elétrica na mão, Elk começou a mover-se furtivamente
ao longo da trilha que corria paralelamente à construção. Pouco depois, parou.

— Atravesse com cuidado — ele cochichou. Olhando para baixo, Dick viu uma vala
comprida e funda interrompendo a trilha. Com muita cautela, venceu o obstáculo.

Mais alguns passos e Elk parou outra vez. Mostrou com um aceno a segunda armadilha,
uma vala semelhante e quase invisível, mesmo sob o poderoso clarão da lanterna.
Fizeram um meticuloso exame do caminho à frente antes de prosseguir, providência que
se mostrou muito proveitosa, pois a terceira armadilha, feita com um fio de arame, estava a
menos de um metro da segunda vala.

Demoraram meia hora para atravessar as 20 jardas que os separavam da janela. A noite era
quente e um dos postigos estava aberto. Elk arrastou-se bem rente à janela, os dedos
sensíveis procurando o alarme que ele esperava encontrar perto do peitoril. Conseguiu
apalpá-lo e esquivar-se dele. Levantou a mão e, cuidadosamente, entreabriu a cortina da
janela.

Viu uma sala grande, com paredes de carvalho, luxuosamente mobiliada. A espaçosa
lareira de pedra estava cheia de flores; ao lado, numa mesa pequena, havia dois homens
sentados. Um deles era Balder — inequivocamente Balder, e com uma aparência
estranhamente boa. Seu nariz não estava mais vermelho. De traje a rigor, mantinha entre
os dentes uma grande piteira de âmbar.

Dick viu tudo isso também, o rosto encostado na cabeça de Elk, o ouvido percebendo o
ritmo nervoso da respiração do Inspetor.

O outro homem era Maitland.

225
Maitland estava sentado com o rosto entre as mãos. Balder fitava-o com um sorriso
cínico.

A distância não permitia ouvir o que diziam, mas era evidente que Maitland estava sendo
repreendido por alguma coisa. O velho levantou a cabeça após alguns instantes, depois
ficou de pé e começou a falar. Elk e Dick podiam ouvir o estrondo da voz excitada do
magnata, mas as palavras continuavam ininteligíveis. Viram-no erguer o punho e
brandi-lo em direção ao sorridente Balder, que limitou-se a encará-lo calmamente, com
pouco interesse, como se algum inseto estranho lhe estivesse passando diante dos olhos. A
atitude de desafio fez com que o velho Maitland se atirasse para fora da sala e batesse a
porta atrás de si. Poucos minutos depois, saiu da casa, mas não pela porta da frente, como
Dick e Elk previam; é provável que tenha utilizado um portão no outro lado da cerca, pois
viram o clarão dos faróis de seu carro, que passou junto deles.

Ficando sozinho, Balder serviu-se de um drinque e chamou um empregado. O homem que


entrou na sala chamou de imediato a atenção de Dick. Usava o uniforme convencional
de um mordomo, calças escuras e colete listrado, mas, pelo modo de andar, era fácil ver
que não se tratava de um empregado comum. Era um homem alto e forte, lento e
curiosamente decidido em cada gesto. Balder disse-lhe alguma coisa e ele concordou
com a cabeça. Pegou a bandeja e saiu com a mesma lentidão, quase solenidade de
movimento, jeito que caracterizara sua entrada.

Foi então que virou os olhos para Dick e o detetive pôde sussurrar uma palavra nos
ouvidos de Elk.

— Cego! Elk fez que sim com a cabeça. De novo a porta se abriu. Dessa vez, vieram três
empregados, carregando uma mesa de aparência pesada, coberta com uma lona. A princípio
Dick Gordon pensou que fosse o jantar de Balder, mas logo desco briu a verdade. Acima
da lareira havia uma lâmpada apagada, pendurada num fio comum. Subindo numa
cadeira, um dos empregados desatarraxou a lâmpada e introduziu um plug, no fim do qual
corria uma conexão metálica com a mesa.

226
— São todos cegos — disse Elk sussurrando. — Aí está uma aparelhagem de
radiotransmissão sendo montada. A antena já está ligada à lâmpada.

Os três empregados saíram e, levantando-se, Balder caminhou até a porta e trancou-a.

Na sala, havia outras janelas, que davam para um dos lados da casa. Balder trancou uma
por uma. Já se estava aproximando do posto de observação de Elk e Dick, quando o
inspetor apoiou o pé numa falha de tijolo e, abrindo bruscamente a cortina, saltou para
dentro da sala.

Com o barulho, Balder girou nos calcanhares. — Boa-noite, Balder — disse Elk. Balder
não respondeu. Ficou contemplando aquele que costumava ser seu chefe, e os olhos não
piscaram.

— Tive idéia de vir informá-lo de sua promoção— disse Elk — à categoria de sargento, a
partir de 19 de maio. Sem dúvida, em reconhecimento pelos serviços que prestou ao
Estado envenenando Mills, soltando Hagn e estilhançando meu escritório com uma bomba
instalada por você durante a noite.

O outro, contudo, não respondeu, nem se moveu; e foi inteligente, pois o cano longo da
pistola na mão de Elk estava apontado para um dos botões de seu traje a rigor.

— E agora — disse Elk, com um rasgo de triunfo na voz —, você dará um pequeno
passeio comigo . . . Eu fico com você, Número Sete!

— Será que não cometeu um engano? — Balder rosnou, com voz tão diversa do timbre
habitual que Elk chegou a recuar por um momento.

— Nunca cometi um erro, exceto quanto à data em que Henrique VIII se casou — disse
Elk.

— Quem está imaginando que eu seja? — perguntou o outro, com ar extremamente afável.

— Já não imagino qualquer coisa sobre você, Balder: eu já sei!

De um salto, Elk aproximou-se dele e dirigiu-lhe o cano da pistola contra o peito.

Levante as mãos e fique de costas — disse ele. Balder obedeceu. Tirando um par de
algemas do bolso, Elk prendeu-a, nos pulsos do outro, depois de

227
ter-lhe puxado as mãos para trás das costas, a fim de impedir que fizesse qualquer
movimento.

— Isso incomoda muito — disse Balder. — Tem o costume de cometer erros deste tipo,
Sr. Elk? Meu nome é Collett-Banson.

— Seu nome é Moleque — disse Elk —, mas estou disposto a ouvir tudo que disser.
Preferia que começasse com suas opiniões sobre o ácido cianídrico. Pode sentar-se.

Dick viu um brilho estranho nos olhos do homem; relampejou por um segundo e
desapareceu. Sem dúvida, Elk também observou.

— Perca as esperanças em qualquer truque de circo que seus subordinados pudessem


tentar para libertá-lo — disse Elk. — Em volta desta casa, tenho 50 de meus homens, a
maioria dos quais o conhece pessoalmente.

Balder riu. — Felizmente estão em volta da casa — disse o outro. — Assim não preciso
preocupar-me. Garantolhe, inspetor, o senhor cometeu grave erro. Um erro que lhe custará
caro. Se um cavalheiro não pode sentar-se em sua própria sala — ele olhou de relance a
mesa — para ouvir um concerto em Haia sem interferência policial, então é melhor fechar a
Scotland Yard.

Ele caminhou negligentemente diante da lareira; depois, parando de costas para ela,
chutou com o pé, um dos atiçadores, que caiu barulhentamente ao lado. Era uma atitude
nervosa, um comportamento de um homem muito preocupado, que quase não tinha
consciência do que estava fazendo. Até mesmo Elk, com todas as suas suspeitas, nada
encontrou naquele gesto que desse motivo para apreensões.

— Acredita que eu me chame Balder, certo? — o homem continuou. — Bem, tudo que
posso dizer é que. ..

Subitamente, ele se jogou no chão, mas Elk foi mais rápido. Um alçapão comprido se
abrira sob o pesado Balder, mas o Inspetor conseguiu pegá-lo pelo colarinho e, ajudado
por Dick, trazê-lo de volta para a sala.

228
Num segundo, os três estavam engalfinhados e, em seu desespero, mesmo algemado,
Balder debatia-se com inacreditável violência. Mas seu grito de socorro foi ouvido. Veio
um pesado sopro de ar pela porta, o tumulto de vozes iradas do lado de fora; depois, do
terreno em redor da casa, uma série de fortes explosões. O exército de policiais corria pelo
gramado, esquecido da existência das armadilhas.

A luta foi breve, ainda que acirrada. Os seis homens cegos, que compreendiam o aparato
doméstico do Número Sete, foram dominados... No último carro a partir da casa, viajava
o agora Sargento Balder, o formidável Número Sete, o braço direito e esquerdo da
terrível Rã.

229
CAPÍTULO 27 O Sr. Broad está interessado Dick Gordon terminou seu encontro
com o Sr. Ezra Maitland às 3h da madrugada, indo depois para a chefatura, onde
encontrou a sala da guarda em Cannon Row estranhamente vazia. Quando partira dali, no
entanto, fora quase impossível abrir caminho entre a multidão de detetives que enchiam o
lugar ou se amontoavam em suas proximidades.

— De um modo geral, Pentonville é uma prisão mais segura e mandei-o para lá. Pedi ao
diretor para já deixá-lo numa das celas destinadas aos condenados, embora isso fuja às
regras. Sem dúvida, Pentonville é o lugar mais seguro que conheço. Acho que, a menos que
as Rãs consigam comer pedras, ninguém o soltará. O que Maitland tinha a dizer, capitão?

— Maitland disse que foi visitar Balder atendendo a um convite dele. ”O que você faria se
um policial o chamasse?”, foi a pergunta que ele me fez. Sem dúvida, é irrespondível.

— Mas também não há dúvida — disse Elk — de que Maitland sabia quem era Balder...
Não foi como policial que o velho o visitou. É praticamente certo que Maitland está
ligado às Rãs, mas vai ser muito difícil provar.

230
— Maitland confunde-me — disse Dick. — É insolente, mas parece também um velho
assustado. Pensei que ele fosse desmaiar quando me identifiquei e revelei a finalidade de
minha visita. E quando mencionei o fato de que Balder fora preso, ele quase desmaiou.

— Essa pista tem de ser seguida — disse Elk, pensativamente. — Mandei chamar o Sr.
Johnson. Deve estar chegando aqui. Não é possível que Johnson não conheça nada dos
negócios do velho. Além disso, pode ser uma testemunha muito valiosa.

O filósofo chegou meia hora mais tarde. Fora acordado no meio da noite e avisado de que,
na chefatura, exigiam de imediato sua presença.

— O Inspetor Elk vai lhe contar algo que em breve será de domínio público — disse
Gordon. — Balder foi detido a pretexto da explosão que ocorreu no escritório de Elk.

Foi necessário explicar exatamente a Johnson quem era Balder. Dick contou-lhe da visita
que Maitland fizera à casa de Slough. Johnson balançou a cabeça.

— Não sabia que Maitland tinha um amigo com esse nome — disse. — Balder? Usava
algum outro nome?

— Disse chamar-se Collet-Banson — respondeu o detetive, e um olhar de entendimento


transpareceu no rosto de Johnson.

— Esse nome eu conheço muito bem. O Sr. Banson freqüentemente ia ao escritório,


geralmente bem tarde da noite. Maitland passava três noites por semana trabalhando
depois da saída dos empregados. Banson era um tanto alto, bem-apessoado e com cerca de
40 anos, não?

— Sim, é esse sujeito. — Ele tem uma casa perto de Windsor. Nunca estive lá, mas sei
disso porque pus algumas cartas no correio dirigidas a ele.

— Que tipo de negócio Collet-Banson tinha com Maitland?

— Nunca pude descobrir, mas sempre achei que fosse um homem com propriedades para
vender, pois esse era o único tipo de estranho que Maitland consentia em

231
receber. Lembro-me de que a criança ficou com ele cerca de uma semana ...

— Isto é, a criança da casa de Maitland? — Não sabe que ligação existe entre a criança e
os dois homens?

— Não, senhor, mas tenho certeza de que o Sr. Collet-Banson ficou algum tempo com o
garoto. Eu lhe mandei brinquedos, engenhos mecânicos ou alguma coisa desse tipo. Foi na
época em que Maitland fez seu testamento, há cerca de 18 meses. Recordo-me
particularmente do dia em que o documento foi assinado, pois julguei que Maitland me
pediria para assinar como testemunha e, em vez disso, chamou dois outros empregados do
escritório. Essas coisinhas sempre me afetam um pouco — acrescentou ele.

— O testamento foi feito em favor da criança? Johnson balançou a cabeça. — Não tenho
a menor idéia. O velho nunca discutiu o assunto comigo e nem sequer utilizou os serviços
de um advogado. Na realidade, jamais o vi contratar um advogado, exceto para tratar das
escrituras das propriedades que negociava. Disse-me que tinha copiado a forma do
testamento de um livro, mas apesar de ser um velho e fiel empregado dele, nada me
confiou sobre o assunto e, de qualquer modo, eu também não estava muito interessado
na coisa. Recordo também que, na manhã da assinatura do documento, tive de ir a uma
loja, comprar um monte de brinquedos e levá-los para o escritório. O velho brincou com
eles a tarde inteira!

Na mesma manhã, Dick Gordon interrogou o prisioneiro de Pentonville, encontrando-o de


humor rebelde.

— Nada sei de bebês ou crianças, mas se Johnson diz que enviou brinquedos, está
mentindo. Recuso-me — Balder continuou em tom de desafio — a fazer qualquer
declaração sobre Maitland ou sobre minha ligação com ele. Estou sendo vítima de
injusta perseguição policial e desafio vocês a conseguirem qualquer prova que me possa
incriminar seja lá do que for, a menos que viver como um cidadão honrado constitua
crime.

232
— Quer mandar algum recado para sua mulher e seus filhos? — perguntou Dick
sarcasticamente, e as feições soturnas do outro descontraíram-se um pouco.

— Não. Elk cuidará deles — disse bem-humorado. As mais estritas precauções tinham
sido tomadas para evitar uma fuga e impedir qualquer comunicação entre o Número Sete
e o mundo exterior. Foi formalmente acusado em Bow Street, uma hora antes do horário
habitual. A detenção foi autorizada e ele foi removido para Pentonville num furgão
guardado por homens armados.

Na terceira noite do encarceramento de Balder, a aventura penetrou na vida do subchefe


da guarda da Prisão de Pentonville. Ele era relativamente jovem e solteiro,
razoavelmente bonito, e morava com a mãe viúva em Shepherd’s Bush. Era seu costume
voltar para casa de ônibus. Naquele dia, ao saltar do veículo, uma senhora que tentara
descer na frente dele tropeçou e caiu. De imediato, ajudou-a a levantar-se. Era jovem e
incrivelmente bonita, reparou o chefe da guarda ao acompanhá-la até a calçada.

— Não foi nada — disse ela sorrindo, mas com uma careta de dor. — Foi tolice minha ter
vindo de ônibus; ia visitar uma velha empregada minha que está doente. Poderia me
chamar um táxi, por favor?

— Certamente, madame — disse o galante chefe da guarda.

Um táxi que passava viu o aceno do policial e parou. A moça olhou em volta com ar
desamparado.

— Gostaria de encontrar algum conhecido. Não quero ir sozinha para casa; tenho muito
medo de desmaiar.

— Se não faz objeção à minha escolta — disse o policial, com todo o fervor de coração que
o suspiro de uma mulher aflita desperta no peito de um homem impressionável —, posso
levá-la em casa.

A moça atirou-lhe um olhar cheio de gratidão e aceitou a escolta. Num murmúrio,


lamentou o contratempo que estava causando.

Morava num belo apartamento. O chefe da guarda achou que nunca vira senhora tão
graciosa e encantadora, nem casa tão adequada à proprietária. Estava cer-

233
to. Ele se dispôs ao incômodo de prestar-lhe assistência, mas a desconhecida sentia-se
muito melhor, logo chegaria uma empregada e o chefe da guarda não precisaria molestar-se
mais que o tempo de um uísque com soda e um cigarro. Ela mostrou onde os cigarros
podiam ser achados e durante uma hora o chefe da guarda falou de si mesmo. Foi uma
noite agradável.

— Fico-lhe muito grata, Sr. Bron — disse à despedida. — Sinto muito que tenha perdido a
noite comigo.

— Posso assegurar-lhe — disse o Sr. Bron fervorosamente — que se isto foi tempo
perdido, então o tempo não serve para coisa alguma!

Ela riu. — É gentileza sua — disse a moça — e se quiser pode telefonar amanhã e se
encontrar comigo.

O policial anotou meticulosamente o endereço: era uma das residências exclusivas de


Bloomsbury Square. Na noite seguinte, o subchefe da guarda viu-se tocando a
campainha, mas dessa vez sem uniforme.

Saiu às 10h, um homem extático, cuja cabeça estava longe, cheia de sonhos dourados, pois
a fragância do fascínio da jovem senhora (como mandou dizer-lhe numa carta)
”permeava todo o seu ser”. Dez minutos após a partida do chefe da guarda, a moça saiu do
apartamento e ganhou a rua. O homem de ar preguiçoso que estivera andando de um lado
para o outro da calçada atirou fora o charuto.

— Boa-noite, Srta. Bassano — disse ele. A jovem senhora esticou o olhar. — Receio
que esteja enganado — disse empertigada.

— De modo algum. É a Srta. Bassano e minha única desculpa para abordá-la é que sou seu
vizinho.

Ela o encarou com maior atenção. — Oh, Sr. Broad! — exclamou, num tom bastante
gracioso. — Vim visitar um amigo meu que está muito doente.

— Já me tinham dito isso. Seu amigo mora num apartamento muito agradável — disse o
americano e continuou, quando Lola emparelhou com ele. — Já pensei em alugá-lo... Há
alguns dias. Esses apartamentos mobiliados são difíceis de encontrar. Acho que foi

234
semana passada ... Sim, foi na semana passada que estive aqui — acrescentou
cautelosamente. — Um dia antes de seu lamentável acidente em Shepherd’s Bush.

— Não estou entendendo bem aonde quer chegar — disse Lola, subitamente em guarda.

— A verdade — disse o Sr. Broad, em tom de desculpas — é que também procurei chegar
a Bron. Estive fazendo um exame muito atento do pessoal da prisão nos últimos dois
meses e consegui uma lista da rapaziada mais ”sociável”, que me custou muito dinheiro
compilar. Creio que você ainda não atingiu um estágio capaz de persuadi-lo a falar de seu
interessante prisioneiro? Eu já tentei na semana passada — continuou ele, num tom
reminiscente. — Ele freqüenta um clube em Hammersmith e consegui contactá-lo através
de uma moça por quem está apaixonado ... Porque, diga-se de passagem, a senhora não é
a única jovem paixão da vida dele.

Lola riu suavemente. — O senhor é um homem muito inteligente, Sr. Broad! — disse a
Srta. Bassano. — Não, não estou muito interessada em prisioneiros. Aliás, quem é a
pessoa a quem se está referindo?

— Estou me referindo ao Número Sete, que está na Prisão de Pentonville — disse Broad
com voz fria — e tenho idéia de que ele é seu amigo.

— O Número Sete! O ar perplexo de Lola Bassano teria convencido alguém menos duro
que Joshua Broad.

— Tenho idéia — ela continuou — de que isso tem algo a ver com as Rãs!

— Isso tem algo a ver com as Rãs — o outro concordou com gravidade — e aposto que,
sobre as Rãs a senhora já ouviu falar.. Srta. Bassano, vou fazer-lhe uma oferta.

— Ofereça-me um táxi, pois estou cansada de andar — disse Lola. Quando os dois já
estavam sentados lado a lado, ela perguntou: — Que oferta?

— Eu lhe ofereço tudo que quiser para sair do pais e viver alguns anos no exterior, até que
essa velha Rã estoure... Pois vai estourar! Há muito tempo que a ve nho observando e,
espero que não me considere inopor-

235
tuno, gosto da senhora. Há alguma coisa na senhora que me atrai muito ... Não me
interrompa, pois não estou pretendendo brincar, nem sugerir que a senhora é a única
garota que consegue fazer nicotina passar por melaço. Gosto da senhora numa espécie de
jeito devotado, e não precisa ficar ofendida com isso . . . Não quero ver a senhora se
machucar.

Broad estava muito sério. Ela reconheceu a sinceridade dele; a palavra sarcástica que quase
lhe brotou aos lábios permaneceu improferida.

— Está falando sem qualquer segunda intenção? — ela quis saber.

— Pelo que lhe diz respeito, sim — respondeu o americano. — Vai haver um quebra
tremendo, e é mais que provável que a senhora esteja no caminho de alguma lasca
esvoaçando.

Ela não respondeu logo. Tudo que o americano dissera lhe tinha aguçado a sensação de
inquietude.

— Acho que sabe que sou casada? — Imaginava — Broad respondeu. — Leve seu marido
junto com a senhora ... O problema é aquele rapaz...

— Está falando do Ray Bennett? Era curioso que Lola não tentasse disfarçar nem sua
posição nem o papel que estava desempenhando. Ela mesma admirou-se de sua atitude
quando chegou em casa. Mas Joshua Broad tinha um jeito persuasivo, e não lhe passara
pela cabeça enganá-lo.

— Não sei — disse ela. — Preferia que Ray não estivesse metido na coisa. Está me
pesando na consciência ... Está rindo?

— Por saber que tem consciência? Não. Imaginava que tivesse. E a barba grande?

Ela não riu. — Nada sei sobre isso. Sei apenas que recebemos... Por que estou lhe
dizendo tanta coisa? Quem é o senhor, afinal?

Broad riu entre dentes. — Um dia lhe conto — disse o americano — e prometo que, se
cooperar, será a primeira a saber. Vá devagar com esse rapaz, Lola.

236
Ela não se ressentiu do emprego de seu primeiro nome. Ao contrário, sentiu-se mais
inclinada a gostar do misterioso americano.

— E escreva ao Sr. Bron, subchefe da Guarda da Prisão de Pentonville, dizendo que vai
sair da cidade e só poderá encontrá-lo de novo daqui a 10 anos.

Lola não respondeu. Broad deixou-a na porta da casa e pegou-lhe a mão delicada entre as
suas.

— Se quiser dinheiro para ir embora, deixarei um cheque em branco com você — disse.
— Não daria um cheque em branco a nenhuma outra pessoa sobre a face da terra, pode
crer.

Ela baixou a cabeça. Lágrimas incrivelmente raras correram em seus olhos. Lola perdia a
fibra sob a tensão a que estava submetida, e ninguém percebia isso melhor que o sujeito
de cara de falcão que a contemplou entrar no apartamento da Caverley House.

237
CAPÍTULO 28 Assassinato A pedra que despertou Ella Bennett foi atirada com
tamanha força que a vidraça quebrou. A moça pulou rapidamente da cama e abriu as
cortinas. Tinha havido uma tempestade durante a noite; o céu estava tão escuro, com
tantas nuvens pesadas, que a irmã de Ray mal conseguiu distinguir o vulto do homem
postado sob a janela. De seu quarto, John Bennett ouviu o barulho e também se levantou.

— É Maitland? — perguntou ele. — Penso que sim — disse a moça. O pai franziu a
testa. — Não posso entender essas visitas — disse. — Acha que ele está louco?

A filha balançou a cabeça. Após a fuga precipitada do velho na última visita, não pensou
que ele voltasse outra vez, e conjecturou que somente um assunto da maior urgência o
traria de novo. Ouviu que o pai andava de um lado para o outro no quarto quando
atravessou a obscuridade da sala de jantar e entrou no corredor, que dava diretamente no
jardim.

— É a senhorita? — uma voz tremeu na escuridão. — Sim, Sr. Maitland. — Ele está de
pé? — o velho perguntou num murmúrio assustado.

238
— Está se referindo a meu pai? Sim, está acordado.

— Preciso encontrar-me com a senhora — o velho quase gemeu. — Eles o levaram.

— Levaram quem? — Ela perguntou com voz abafada.

— Aquele sujeito, Balder. Eu sabia que o fariam. Ella Bennett lembrou-se de já ter ouvido
Elk mencionar o nome de Balder.

— O policial? — perguntou. — O assistente do Sr. Elk?

Mas o velho Maitland mudou novamente de rumo. — Ele está atrás de você. — Ele se
aproximou e agarrou-a pelo braço. — Eu estou avisando, não esqueça que estou avisando.
Diga-lhe que a avisei. Ele levará isso em conta a meu favor, não levará? — ele quase
implorou.

A moça compreendeu confusamente que aquele ”ele” a quem se referia o velho milionário
era Dick Gordon.

— Ele passou a maior parte da noite comigo, fazendo perguntas sem parar. Tive uma noite
terrível, senhorita, terrível — o velho quase soluçou. — Primeiro Balder e depois ele.
Está atrás de você . . . Não estou me referindo ao policial, mas à Rã. Foi por isso que lhe
escrevi a carta, pedindo que fosse a meu escritório. Não recebeu a carta, não foi?

Para a moça, as palavras do velho não tinham pé nem cabeça. Maitland continuava
balbuciando a história de seus receios, cheia de imprecações violentas contra ”ele”.

— Conte a seu pai, minha cara, o que lhe estou dizendo.

Maitland tornou-se subitamente mais calmo. — Matilda achava que eu devia ter contado
tudo a seu pai, mas tive medo dele, minha cara. Tenho medo dele!

Maitland acariciou as mãos da jovem. — Você intercederá a meu favor, não? Ella
Bennett percebeu que o velho estava chorando, mas não conseguiu ver seu rosto com
nitidez.

239
— Naturalmente, estou pronta para ajudá-lo, Sr. Maitland ... Mas será que não deveria ir a
um médico? — perguntou com ansiedade.

— Não, não, nada de médicos em volta de mim. Mas você lhe dirá não é mesmo? Não
estou me referindo a seu pai, mas ao outro sujeito ... Você dirá que fiz por você tudo
que estava a meu alcance... É por isso que estou aqui. Eles já têm o Balder...

Maitland interrompeu bruscamente sua fala e esticou a cabeça para a frente.

— Será que é seu pai? — perguntou num murmúrio roufenho.

A jovem ouviu os passos de John Bennett nos degraus. — Penso que sim, Sr. Maitland.

Ouvindo essas palavras, Maitland afastou as mãos de seu braço, avançou rapidamente pela
trilha do jardim, atravessou a estrada e sumiu de vista.

— O que ele queria? — Na verdade, eu não sei, papai — disse a moça. — Mas acho que
não estava muito bem.

— Está ouerendo dizer que está louco? — Sim, mas tem alguns momentos de lucidez.
Disse que pegaram Balder.

John Bennett nada respondeu e a filha pensou que tivesse falado baixo.

— Pegaram Balder, o assistente do Sr. Elk — repetiu. — Foi o que disse Maitland. Será
que o prenderam?

— Creio que sim — disse John Bennett, acrescentando: — Você, meu bem, devia estar na
cama. Para que lado foi Maitland?

— Tomou o caminho de Shoreham — disse a moça. — Vai atrás dele papai? — perguntou
espantada.

— Vou caminhar pela estrada. Gostaria muito de encontrá-lo — disse John Bennett. —
Você volta para a cama, minha querida.

Mas a jovem continuou parada na porta, muito depois que os passos do pai cessaram de
ecoar estrada

240
afora. Passaram-se cinco minutos, 10, um quarto de hora, e então ela ouviu o ruído de um
carro. Uma grande limusine cruzou correndo o portão, salpicando lama, voando em
direção a Londres. Depois, John Bennett voltou.

— Não está deitada? — ele perguntou, quase asperamente.

— Não, papai, perdi o sono. E já é tarde agora. Acho que vou fazer alguma coisa na
cozinha. Viu Maitland?

— Maitland? Sim, consegui avistá-lo por um ou dois minutos.

— Falou com ele? — Sim, falei com ele. John Bennett não parecia disposto a estender o
assunto, mas Ella insistiu.

— Papai, por que ele se assusta com você? — Não quer fazer café? — Bennett tentou
desviar a conversa.

— Por que ele se assusta com você? — Como posso saber? Não faça tantas perguntas,
meu bem. Você me aborrece. Maitland me conhece, Maitland me viu e se assustou; e isso
é tudo. Balder foi acusado de assassinato. Penso que é um péssimo elemento.

Naquele mesmo dia, mais tarde, a jovem tornou a puxar o assunto da visita de Maitland.

— Queria que não viesse mais — disse. — Ele me assusta.

— Ele não virá mais — disse John Bennett profeticamente.

***

A casa de Berkeley Square que passara a ser propriedade de Ezra Maitland fora construída
por um nobre, para quem o dinheiro nada significava. Exaustivamente descrita como uma
das residências-vitrines da metrópole, pouquíssimos estranhos tiveram oportunidade de
maravilhar-se com a beleza de seus interiores. Era um palácio, embora ninguém o
imaginasse baseando-se apenas em seu exterior, um tanto convencional. No

241
suntuoso salão, com colunas de bronze, lareiras de ônix e prata, paredes delicadamente
almofadadas e lustres esplêndidos, o Sr. Ezra Maitland estava sentado, um tanto
encolhido, numa grande poltrona Luís XV, um copo de cerveja na frente, um cachimbo
enegrecido entre as gengivas. As marcas lamacentas de seus passos transpareciam no
inestimável tapete persa; o chapéu semi-escondia urna Vênus dourada de Marrionnet, num
pedestal a seu lado. Com as mãos enlaçadas no estômago, ele fitava o chão com os olhos
abatidos sob as sobrancelhas brancas. Um abajur quebrava a obscuridade, pois as cortinas
de seda estavam fechadas e a luz do dia não penetrava no aposento.

Pouco depois, com grande esforço, ele esticou a mão, pegou a caneca de cerveja e
tragou-a de uma vez. Depois afundou de novo na poltrona, novamente envolvido em
torpor. Houve urna leve batida na porta e um criado entrou na sala.

— Três cavalheiros desejam vê-lo, senhor. Capitão Gordon, Sr. Elk e Sr. Johnson.

O velho empertigou-se bruscamente. — Johnson? — exclamou. — O que ele quer? —


Os três estão na saleta, senhor. — Mande-os entrar — rosnou o velho. Parecia
indiferente à presença dos dois agentes de polícia. Foi Johnson a quem primeiro se dirigiu:

— O que você quer? — perguntou com violência. — Que pretende vindo à minha casa?

— Fui eu quem sugeri que o Sr. Johnson devia vir — disse Dick.

— Oh, foi sugestão sua? — disse o velho, e sua atitude pareceu estranhamente insolente
comparada com o abatimento do início da manhã.

Os olhos de Elk caíram sobre a caneca de cerveja vazia e ele se perguntou quantas vezes
tinha sido enchida desde que Ezra Maitland voltara para casa. Adivinhou que o velho se
excedera na bebida, pois havia uma truculência em seu tom de voz, um desafio em seu
olhar que sugeriam algo mais que mera exaltação espiritual.

242
— Não vou responder a nenhuma pergunta — disse em voz alta. Não vou dizer nada que
seja verdade, nem nada que seja mentira.

— Sr. Maitland — disse Johnson hesitantemente — esses cavalheiros estão ansiosos por
saber alguma coisa sobre a criança.

O velho fechou os olhos. — Não vou contar nenhuma verdade, nem vou contar nenhuma
mentira — repetiu monotonamente.

— Agora, Sr. Maitland — disse Elk de bom humor — esqueça sua sensata resolução e
conte-nos por que morava naquele cortiço em Eldor Street.

— Nenhuma verdade e nenhuma mentira — murmurou o velho. — Pode prender-me se


quiser, mas nada direi. Prenda-me. Meu nome é Ezra Maitland; sou um milionário e
tenho milhões, milhões e milhões! Posso comprá-los, como posso comprar a maioria das
pessoas! O velho Ezra Maitland! Já estive num asilo e também já estive no xadrez.

Dick e o Inspetor entreolharam-se. Elk balançou a cabeça, dando a entender que seria
inútil qualquer tentativa de interrogatório. Mesmo assim, Dick tentou outra vez.

— Por que foi a Horsham de manhã? — perguntou ele, mas gostaria de ter mordido a
língua ao perceber o erro crasso de ter feito tal pergunta.

Instantaneamente, o velho despertou por completo do torpor.

— Nunca fui a Horsham — ele rugiu. — Não sei sobre o que está falando. Nada tenho a
lhe dizer. Vá embora com eles, Johnson!

Outra vez na rua, Elk fez uma pergunta ao antigo secretário.

— Não, nunca o vi beber anteriormente — Johnson respondeu. — Sempre o conheci


como abstêmio. Nesta nossa entrevista, no entanto, logo percebi que não conseguiria
fazê-lo falar.

— Nem eu, disse Dick Gordon, afirmação que surpreendeu o Inspetor, e não pouco.

Dick fez uni sinal a Elk para que tentasse livrar-se de Johnson. O Inspetor agradeceu a
colaboração do filo-

243
sófico cavalheiro e mandou-o embora. Gordon falou com afobação:

— Devemos ter dois homens vigiando essa casa. Mas que desculpa poderíamos apresentar
para plantar detetives espreitando Maitland?

Elk apertou os lábios. — Não sei — admitiu. — Temos que conseguir um mandado
judicial para prendê-lo; depois, seria fácil conseguir outro mandado para dar uma busca na
casa ... Caso contrário, não poderemos vigiá-lo, a menos que ele peça proteção policial.

— E se o prendêssemos? — Sob que acusação? — Sob suspeita de estar associado com


as Rãs. Poderíamos levá-lo para o posto policial mais próximo. Mas isso teria de ser feito
logo.

Elk estava meio tonto. — Não é assim tão fácil prender um milionário, você sabe,
Capitão Gordon. Talvez seja simples na América, e me disseram que o próprio presidente
poderia ser detido se alguém o encontrasse com uma arma no bolso. Mas aqui é um
pouco diferente.

Dick verificou que de fato era diferente, quando teve de proceder às diligências para
conseguir os mandados necessários. As 4h, no entanto, a papelada lhe foi entregue pelo
assistente de um relutante magistrado. Acompanhado por outros agentes de polícia, o
detetive voltou à casa de Maitland.

O mordomo que os foi receber disse que o Sr. Maitland estava repousando e não queria que
o perturbassem. Para mostrar que não mentia, chamou um segundo criado, que confirmou
as instruções.

— Em que quarto ele está? — Gordon perguntou. — Sou um agente da polícia e quero
vê-lo.

— No segundo andar, senhor. O mordomo conduziu-os a um elevador e os cinco


policiais subiram para o andar superior. De frente para a saída do elevador, havia uma
grande porta dupla, de madeira pesada e dourada.

— Parece antes a entrada de um teatro — disse Elk a meia voz.

244
Dick bateu na porta. Não houve resposta. Bateu mais forte. Novamente, não houve
resposta. Para espanto de Elk, o detetive atirou-se bruscamente contra a porta com toda a
sua força. Houve um som de madeira fendida e a porta se abriu. Dick parou no umbral,
como se tivesse criado raízes no solo.

Ezra Maitland jazia obliquamente na cama, as pernas pendendo num dos lados. Aos pés
dele, repousava a figura prostada da velha que ele chamava Matilda. Ambos estavam
mortos e a fumaça penetrante da pólvora ainda se amontoava, numa nuvem azul, logo
abaixo do teto.

245
CAPITULO 29

O mordomo.

Dick correu para a cama e uma olhada nas figuras imóveis convenceu-o do que queria
saber.

— Mortos a tiro — disse, voltando os olhos para a fumaça ainda densa sob o teto. —
Deve ter acontecido há pouco; cerca de 15 minutos. Mas o cheiro de pólvora mantém-se
ativo por horas.

— Prenda todos os empregados da casa — disse Elk a meia voz para os homens que
estavam ao seu lado.

Uma porta conduzia a um quarto menor, sem dúvida ocupado pela irmã de Maitland.

O tiro partiu daqui — disse Dick. — Provavelmente foi usado um silencioso, mas
descobriremos isso mais tarde.

Deu uma busca no assoalho e encontrou dois cartuchos de uma automática de grosso
calibre.

— Também queriam matar a mulher, sem dúvida — disse o detetive, pensando em voz
alta. — Se ao menos tivesse deixado alguns homens na casa ...

— Você já esperava por isso? — Elk perguntou, atônito.

Dick fez que sim com a cabeça. Estava inspecionando a janela do quarto da mulher. Ela
estava aberta, e levava a um parapeito estreito, protegido por uma

246
grade baixa. Dali havia acesso imediato a um outro quarto no mesmo andar. O assassino
não tentara dissimular o fato de que o caminho utilizado fora exatamente aquele. A janela
do outro quarto estava escancarada, e havia pegadas recentes no chão. Era um quarto de
hóspedes, atulhado de móveis. Ao que parecia, a governanta amontoara móveis em excesso
no aposento, esquecida da utilidade do sótão. A porta abriase para o corredor, e ficava de
frente para um estreito lance de degraus que conduzia aos quartos dos empregados, no
andar de cima. Elk ajoelhou-se e examinou detidamente as pisadas no tapete.

— Ele foi por aqui — disse Elk, e precipitou-se na frente de Gordon.

O terceiro andar consistia inteiramente em quartos de empregados. Elk levou algum tempo
para descobrir as pegadas, que conduziam diretamente ao número um. Mexeu na maçaneta,
mas a porta estava trancada. Tomando distância, deu um pontapé na porta. Esta se abriu, e
ele se viu num aposento destinado aos criados, mas vazio. Uma água-furtada se abria para
um telhado oblíquo, ao fim do qual havia uma balaustrada. Sem um segundo de hesitação,
Dick pulou para fora, seguindo o estreito e precário caminho que margeava o telhado.
Pelas grades de ferro que o protegiam, concluía-se que aquela era uma das saídas em caso
de incêndio. Ele seguiu por ali e, após atravessar três telhados, chegou a um pequeno
lance de degraus de ferro, que desembocavam no telhado plano de uma casa vizinha, de
onde partia outra escada de incêndio. Havia um portão de ferro no início dessa segunda
escada, inteiramente escancarado, e Dick desceu os degraus até atingir um pátio de
concreto, cercado de três lados por muros muito altos e, no quarto lado, bloqueado pela
parede dos fundos de uma casa, que parecia desocupada, pois todas as cortinas estavam
cerradas.

Mas havia um portão entreaberto no terceiro muro. O detetive atravessou-o e chegou a um


quintal onde um homem estava lavando um automóvel, a menos de 12 passos do
policial. Dick correu para ele.

— Sim, senhor — respondeu o lavador, limpando o suor da testa com as costas da mão
—, vi um homem

247
passar por aqui há cerca de cinco minutos. Era um criado, mordomo ou coisa desse tipo.
Não reconheci exatamente quem era . .. Parecia muito apressado.

— Estava usando chapéu? O outro pensou. — Sim, senhor, penso que usava um chapéu.
Saiu por ali — ele apontou.

Dick e Elk correram na direção indicada, saíram em Berkeley Street e, enquanto isso, o
lavador de carros voltou-se para uma porta fechada nos fundos do quintal e deu um
assobio baixo. A porta abriu-se lentamen te e o Sr. Joshua Broad saiu por ela.

— Obrigado — disse ele, e uma nota nova e estalante passou para as mãos do lavador.

Já estava bem longe dali, quando Dick e o Inspetor voltaram de sua busca inútil.

Dick não tinha dúvidas sobre quem era o assassino. Um dos mordomos desaparecera. Os
demais empregados eram gente respeitável, de caráter impecável. O suspeito chegara na
casa ao mesmo tempo em que o Sr. Maitland e, embora usasse uniforme de mordomo,
não possuía, ao que parece, qualquer experiência anterior naquele tipo de trabalho,
desconhecendo as obrigações que lhe cabiam. Era um homem desagradável, que falava
muito pouco, que ”ficava fechado em si mesmo”, conforme a descrição dos outros; não
tomava parte em nenhum dos divertimentos e em nenhuma das conversas dos outros
criados; nunca ficou nas dependências dos empregados um segundo a mais que o
necessário.

— Obviamente uma Rã — disse Elk, que só recuperou o bom humor quando soube que
havia na casa uma fotografia do homem.

A foto deveu-se a uma brincadeira proposital e inofensiva, que teve como vítima a
cozinheira. O mordomo mais jovem bateu uma foto do esquivo e feio empregado e a pôs
na mochila da moça, a qual se tornou objeto de pilhéria.

— Está reconhecendo? — Dick perguntou, olhando o retrato.

Elk fez que sim. — Ele já esteve em minhas mãos, e não creio que

248
tenha grande dificuldade em me lembrar de quem é, mas, por ora, seu nome me escapa.

Uma pesquisa nos arquivos, contudo, revelou a identidade do homem desaparecido. A


noite, a foto ampliada do mordomo, seu nome e suas características gerais estavam
estampados em todos os jornais londrinos.

Um dos empregados ouvira o tiro, mas pensou que fosse o bater de uma porta — engano
perdoável, pois o Sr. Maitland tinha o costume de bater as portas.

— Maitland era realmente uma Rã — informou Elk, depois de ver o corpo ser removido
para o necrotério. — Tinha inclusive a tatuagem no pulso esquerdo... sim, um pouco de
lado. Esse é um dos pontos que nunca ficaram claros para mim, Capitão Gordon. Posso
entender o que simbolizava a tatuagem no pulso esquerdo, mas por que sempre gravaram a
Rã meio de lado continua sendo um mistério para mim.

— Este é um dos pequenos mistérios que só resolveremos quando pegarmos os ”grandes”


da organização — disse Gordon.

Naquela tarde, o empregado que desaparecera havia recebido um telegrama, mas esse fato
só foi lembrado depois que Elk já estava de volta à Central da Yard. Um telefonema para
o correio local resultou numa cópia da mensagem, que era muito simples. ”Liquide o
caso”, eram as três palavras, mas não havia assinatura do remetente. A mensagem havia
sido enviada às 2h daquela tarde, e o assassino não perdera tempo em cumprir suas
instruções.

O escritório de Maitland estava nas mãos da polícia, e uma busca sistemática de seus livros
e documentos já tinha sido iniciada. As 7h da noite, Elk foi para Fittzroy Square e
Johnson logo lhe abriu a porta. Olhando em volta, Elk viu que o corredor estava entulhado
de mobília e pacotes. Lembrou-se de que, de manhã cedo, o antigo secretário dissera que
estava de mudança, que alugara dois cômodos mais baratos no Sul de Londres.

— Já está se mudando? Johnson concordou com a cabeça. — Odeio ter de deixar este
lugar — disse ele —,

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mas é muito caro para mim. Parece que nunca conseguirei outro emprego, e é melhor
enfrentar o fato de forma sensata. Se for para Balham, poderei morar confortavelmente. E
meus gostos não são muito dispendiosos.

— Mas se fossem, nada mais o impediria de satisfazê-los — disse Elk. — Encontramos o


testamento do velho. Ele deixou tudo para você!

A boca de Johnson se abriu, seus olhos se arregalaram.

— Não está brincando? — perguntou. — Nunca falei com mais seriedade em toda a
minha vida. O velho deixou para você cada centavo que possuía. Aqui está uma cópia do
testamento: achei que gostaria de vê-lo.

O Inspetor abriu a maleta, tirou uma folha de papel almaço e Johnson leu:

”Eu, Ezra Maitland, domiciliado em Eldor Road, 93, no Condado de Middlesex, declaro
ser este documento minha última vontade e testamento, e formalmente revogo qualquer
outro testamento ou dispositivo para seu cumprimento. Lego toda a minha propriedade,
móvel ou imóvel, todos as terras, casas, benefícios, ações de toda e qualquer companhia,
bem como toda a joalheria, reversões de capital, equipagens, automóveis e absolutamente
toda e qualquer outra posse, a Philip Johnson, domiciliado em Fitzroy Square, 471, no
Condado de Londres. Declaro reconhecêlo como o único homem honesto que encontrei em
toda a minha longa e lastimosa vida, rogando-lhe neste ato que se devote com
perseverante atenção à destruição da sociedade ou organização conhecida pelo nome de
Rã, a qual por 24 anos extraiu de mim grandes somas como chantagem.”

A assinatura era familiar a Johnson e o documento vinha testemunhado por dois outros
homens, cujos nomes ele também conhecia.

250
Johnson sentou-se. Não conseguiu pronunciar palavra durante um bom tempo.

— Li sobre o assassinato no jornal da noite — disse em seguida. — Fui até a casa e os


policiais mandaram que eu me dirigisse ao senhor, mas eu sabia que estava muito ocupado
para ser incomodado ... Como ele foi morto?

— Tiros — disse Elk. — Pegaram o assassino? — Vamos prendê-lo de manhã —


disse Elk, confidencialmente. — Agora que pegamos Balder, não há ninguém para dar
orientação às outras Rãs.

— Isso é realmente terrível — disse Johnson após algum tempo. — Mas o testamento —
ele contemplou o papel — me deixou completamente atordoado. Não sei o que dizer...
Onde encontraram o documento?

— Numa caixa onde ele guardava documentos. — Preferia que ele não tivesse feito isso
... — disse Johnson, enfaticamente. — Quero dizer, deixar seu dinheiro para mim. Detesto
responsabilidade. Sou emocionalmente inadequado para tratar de grandes negócios ..
Preferia que isso não tivesse acontecido!

— Qual a reação dele? — perguntou Dick quando Elk voltou à chefatura.

— Ficou completamente aturdido. Pobre coitado, sinto muito por ele, mas nunca pensei
que um dia sentiria pena de um homem que se tornasse rico. Estava justamente se
mudando para uma casa mais barata quando cheguei. Não creio que vá morar na mansão do
velho... Já lhe ocorreu que a mudança na vida de Johnson talvez possa afetar as
perspectivas de Ray Bennett?

— Já pensei nessa possibilidade — disse Dick laconicamente.

Ele tinha uma entrevista, naquela tarde, com o titular da Promotoria Pública. Trataria do
caso de Balder, e aquela respeitada autoridade não hesitaria em externar seus temores:

— Não sei como poderemos conseguir um veredicto de assassinato contra esse homem,
embora esteja claro como o dia que foi ele quem envenenou Mills e

251
preparou o atentado a bomba. Mas não se pode deixar um homem na cadeia apenas com
suspeitas, mesmo que não existam dúvidas quanto à veracidade de tais suspeitas. Como
ele assassinou Mills? Você já tem alguma idéia?

— Mills estava resfriado — disse Dick. — Tossira sem parar no carro da polícia; chegara
a pedir a Balder para fechar as janelas da sala da guarda. Provavelmente, Balder passou
um tablete de veneno para o homem, dizendo que era remédio para resfriado. É bem
admissível que Mills tenha aceito e engolido o tablete. Estou certo de que foi o que
ocorreu. Demos uma busca na casa de Balder, em Slough, e encontramos duplicatas de
várias chaves, uma das quais abria o cofre de Elk. Balder deve ter entrado de manhã cedo
e instalado a bomba. Sabia que Elk e eu abriríamos as sacolas naquela manhã.

— E Balder também ajudou Hagn a fugir — disse o promotor público.

— Isso foi muito mais simples — opinou Dick. — Aposto que foi Hagn o Inspetor que
viram sair às 2h3Ornin daquela noite, pela porta da frente da prisão. Ao entrar na cela
para fazer companhia ao prisioneiro, Balder deve ter levado consigo um uniforme de
policial, sob a roupa civil, bem como as algemas e chaves necessárias à fuga. Não o
revistaram ... Quanto a isso, fui tão culpado quanto Elk. Balder tornou-se particularmente
perigoso devido à intimidade que mantinha conosco, e devido à sua capacidade de
comunicar imediatamente à Rã tudo o que fazíamos. Seu nome verdadeiro é Kramer, e é
lituano de nascimento. Aos 18 anos, foi expulso da Alemanha por atividades
revolucionárias. Dois anos depois, veio para a Inglaterra, onde se alistou na polícia. Não
sei quando entrou em contato com as Rãs, mas está bastante claro, em face das
evidências que obtivemos, que o homem esteve ligado a várias operações ilegais, anos a
fio. Sem dúvida, receio que tenha razão quanto ao caso Balder: será extremamente difícil
conseguir um veredicto de culpa antes de termos capturado a própria Grande Rã.

— E acha que conseguirá pegar a Grande Rã? Dick Gordon sorriu com ar confiante.

252
Não havia novidades sobre o assassinato de Maitland e da irmã. O detetive resolveu
aproveitar a oportunidade que a calmaria temporária proporcionava . .

Ella Bennett estava na horta, ocupada em colher umas batatas. Tirou as luvas de couro
quando correu na direção de Gordon.

— Mas é uma esplêndida surpresa — disse ela, procurando refrear um pouco o entusiasmo.
— Pobre homem, você deve andar com muito trabalho! Li os jornais desta manhã. Não foi
terrível o que aconteceu a Maitland? E pensar que esteve aqui ontem de manhã...

Dick baixou a cabeça em sinal de pesar. — É verdade que o Sr. Johnson herdou toda a
fortuna de Maitland? Isso não é incrível?

— O que acha de Johnson? — perguntou o detetive.

— É um homem muito gentil e atencioso — respondeu ela. — Não sei muita coisa sobre
Johnson, pois só o encontrei uma ou duas vezes, mas sei que foi grande amigo de Ray,
e que chegou a encobrir faltas de meu irmão ao emprego. As vezes me pergunto se, agora
que Johnson está rico, conseguirá persuadir Ray a voltar a trabalhar na Maitlands.

— E eu me pergunto se conseguirá persuadi-la . Dick interrompeu a frase. —


Persuadir-me a quê? — perguntou, com espanto, a filha de John Bennett.

— Johnson está um tanto apaixonado por você . E nunca tentou dissimular o fato ... Ele
agora é um homem rico; não penso que isso faça alguma diferença para você —
acrescentou de imediato —, mas se não sou rico, ao menos estou bem de vida e ...

— Não sei — disse a Srta. Bennett. — Papai acredita... — continuou hesitando. — Acho
que papai não gostaria. Acredita que existe uma diferença muito grande de nível social.

— Asneiras! — disse Dick, esquecendo-se momentaneamente da polidez.

— E há mais alguma coisa . A Srta. Bennett teve de fazer um bom esforço para concluir.

253
— Não sei o que papai faz para ganhar a vida, mas é ... uma ocupação sobre a qual nunca
quer falar; algo que parece encarar como uma desgraça.

As últimas palavras foram pronunciadas em voz tão baixa que Dick quase não as ouviu.

— E se eu já soubesse de tudo, mesmo do pior, sobre seu pai? — perguntou o detetive,


tranqüilo, seguro de si.

Ella Bennett recuou um pouco e examinou-o franzindo a testa.

— O que está querendo dizer? O que há, Dick? O policial balançou a cabeça. — Talvez
eu saiba e talvez não saiba. Por enquanto, é apenas uma suposição. Mas você nada deve
dizer-lhe sobre nossa conversa, nem que eu suspeito de algo. Faria isso por mim?

— E se você vier a ter certeza, fará alguma diferença quanto a mim? — ela perguntou.

— Nenhuma. A moça pegara uma flor de um arbuSto vizinho e, distraída, ia arrancando


pétala por pétala.

— É muito terrível? — perguntou. — Ele cometeu um crime? Não, não, não me conte
nada.

Dick se aproximara e lhe abraçava os ombros que tremiam. A mão do detetive tocou-lhe o
queixo.

— Minha querida! — murmurou o jovem Promotor Público, esquecido de que no mundo


existiam coisas como roubo e assassinatos.

John Bennett ficou contente em vê-lo, satisfeito pela oportunidade de falar-lhe dos
recentes triunfos que conseguira em seu trabalho como cinegrafista. Abriu uma gaveta
cheia de recortes de jornais... ”Maravilhosa Investigação da Natureza. Cenas Notáveis
Obtidas por um Amador”, dizia um título de artigo. Diversos outros elogios também
tinham sido publicados ... e recebera um cheque que o deixara sem fôlego.

— Isto significa muito para mim, Sr. Gordon, ou Capitão Gordon.. Sempre esqueço que
tem um título militar — disse ele. — Quando aquele meu rapaz recuperar o juízo e voltar
para casa, vai ter tudo com que sempre sonhou. Na idade dele, a maioria dos jovens faz
asneiras; é uma idade de auto-afirmação, o senhor sa-

254
be. Se alguns rapazes se voltam para a introspecção nessa época da vida, a maior parte faz
proesas de que mais tarde não gostará de lembrar-se. E, provavelmente, Ray seguiu um
dos caminhos menos perigosos.

Foi um alívio ouvir John Bennett falar assim. Dick sempre pensou em Ray Bennett como
um daqueles jovens que seguem caminhos sem retorno.

— No ano que vem, já poderei dedicar-me sem preocupações à filmagem da natureza —


concluiu John Bennett, que parecia 10 anos mais moço.

Dick ofereceu-se para levá-lo de carro até a cidade, mas Bennett tinha de ir a Dorking. Ao
que parece, no correio daquela vila havia cartas endereçadas a ele (foi a filha quem
informou o detetive), cartas que diziam respeito às suas misteriosas perambulações. Dick
partiu de Horsham com o coração mais feliz, desafogado do peso que trouxera de
Londres, e nesse estado de espirito pôde aturar facilmente o Inspetor Elk, que mergulhara
em profunda melancolia desde que percebera que não havia provas suficientes para levar
Balder a julgamento.

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CAPÍTULO 30

Os vagabundos

Com ar abatido, Lew Brady estava sentado na bonita sala de estar de Lola Bassano. Era a
figura mais destoante que se possa imaginar naquele delicado cenário. A barba crescida de
uma semana lhe tinha transfigurado as feições, deixando-o com uma cara de bandido
terrível. As roupas velhas e surradas que usava, as botas sujas e gastas, a camisa
manchada, ao lado de uma aparência geral de sujeira, davam-lhe um aspecto asqueroso.

Foi o que Lola pensou, olhando-o com angústia, um mau pressentimento no coração.

— Vou cortar com a Rã — resmungou Brady. — Ela paga bem; é evidente que paga! Mas
quanto tempo isso vai durar, Lola? E foi você que me meteu nisso!

Brady atirou um olhar feroz a Lola Bassano. — Eu o meti nisso quando você quis se
meter em alguma coisa — revidou ela, senhora de si. — Você não podia viver
eternamente à minha custa, Lew, e já era tempo de conseguir algum dinheiro por si
mesmo.

O ex-boxeador brincava com um selo prateado, fazendo-o escorregar por entre os dedos, os
olhos fitando sombriamente o chão.

— Balder está preso e o velho está morto — disse. — E eles eram importantes. Que
chance temos nós?

256
— Quais foram suas instruções, Lew? — Lola perguntou pela 20.a vez naquele dia.

O homem balançou a cabeça. — Não pretendo correr nenhum risco, Lola. Não confio
em mais ninguém, nem mesmo em você.

Lew tirou uma garrafinha do bolso e olhou atentamente para ela.

— Que é isso? — a outra perguntou curiosa. — Urna espécie de narcótico. — Faz parte
das instruções? Lew fez que sim com a cabeça. — Vai usar seu nome verdadeiro? —
Não, não vou — vociferou ele. — Não faça perguntas. Não vou lhe contar coisa alguma,
está entendendo? Esta viagem vai durar 15 dias. Quando ela acabar, eu também estarei
acabado para as Rãs.

— O rapaz ... Ele vai com você? — Como posso saber? Vou encontrar-me com alguém
em algum lugar, e é tudo que sei.

Brady olhou para o relógio e levantou-se com um resmungo.

— Esta é a última vez que me sento numa sala de visitas decente durante os próximos 15
dias.

Despediu-se com um movimento brusco de cabeça e caminhou até a porta.

Havia uma entrada de empregados, um corredor que partia da cozinha. Lew Brady desceu
as escadas sem ser observado e penetrou na noite.

Estava escuro quando chegou a Barnet; seus pés doíam; sentia calor e desânimo. Tivera de
suportar o vexame de ser empurrado para fora da calçada por um policial que ele podia
derrubar com uma das mãos. A cada passo, amaldiçoava a Rã. Ainda havia um longo
caminho à sua frente. Quando o relógio da aldeia bateu às 11h da noite, ele alcançou uma
figura sentada na margem da estrada, quase invisível à luz pálida do luar, mas cuja voz
ele reconheceu.

— É você? — perguntou a figura. — Sim, sou eu. Você é Carter, não é? — Ora, bolas!
— Ray arfou ao reconhecer a voz do outro. — É Lew Brady!

257
— Não é nada disso! — rosnou Brady. — Meu nome agora é Phenan. O seu é Carter.
Vamos sentar um pouco. Estou morto de cansaço.

— Qual é a idéia, afinal! — perguntou o jovem, quando os dois estavam sentados lado a
lado.

— Como eu posso saber, diabos? — disse o outro asperamente.

Brady descalçou as botas e esfregou os pés doloridos.

— Nunca imaginei que fosse você quem deveria encontrar-me — disse Ray.

— Eu não tinha dúvidas de que era você — replicou o outro. — Mas por que me tinham
de mandar para este maldito lugar, só Deus sabe!

Pouco depois, Brady sentiu-se novamente disposto a continuar a caminhada.

— Na próxima aldeia, há um celeiro ao lado de uma loja. Por alguns trocados, nos
deixarão dormir ali.

— Por que não procuramos um quarto? — Não seja bobo — Lew estrilou. — Quem
você acha que vai aceitar uma dupla de vagabundos? Nós sabemos que tomamos banho,
mas eles não. Temos de agir do mesmo modo que os outros vagabundos.

— Para onde vamos? Para Nottingham? — Não sei. Mas se lhe falaram em Nottingham,
pode crer que é o último lugar do mundo a que nos mandariam. Tenho um envelope
selado no meu bolso. Só quando chegarmos a Baldock é que poderei abri-lo.

Naquela noite, dormiram no celeiro — um barracão sujo, cheio de galinhas e ratos. Ray
teve maus sonhos e saudades de sua cama no Chalé Maytree. Estranhamente, não se
lembrava mais do luxuoso apartamento em Knightsbridge.

Chovia no dia seguinte, e só alcançaram Baldock no fim da tarde. Encostado numa cerca,
Brady abriu o envelope e leu a mensagem. Ray o contemplava na expectativa.

”Você sairá de Baldock e tomará o próximo trem para Bath. Depois, seguirá por estrada de
rodagem até Gloucester. Na aldeia

258
de Laverstock, revelará a Carter que de fato está casado com Lola Bassano. Com esse
objetivo, você o levará para o Leão Vermelho e lhe contará a verdade da forma mais
ofensiva possível, de modo a forçar uma briga, ainda que de modo algum essa briga deva
fazêlo afastar-se de você. Continue a viagem até Ibbley Copse. Encontrará uma clareira
defronte a três árvores secas. Você vai parar nesse lugar, negar o que disse sobre sua
relação com Lola e pedir desculpas. Você está levando uma garrafa de uísque; nesse ponto
da missão, deve misturar o uísque com o narcótico. Depois que Ray tiver adormecido,
dirija-se a Gloucester, à Rua Henrdy, 289, onde uma completa muda de roupa estará a
sua espera. Faça a barba nesse endereço e volte à cidade pelo trem das 2h19min.”

Leu repetidas vezes cada palavra e cada sílaba, até tornar-se senhor de todos os detalhes.
Depois, acendendo um fósforo, tocou fogo no papel e ficou apreciando as cinzas.

— Quais são as ordens? — Ray perguntou. — As mesmas que as suas, acho. O que você
fez com elas?

— Também as queimei — respondeu o outro. — Sabe agora para onde vamos?

— Devemos tomar a estrada para Gloucester, o que significa ter de atravessar o campo até
a estrada de Bath... Mas podemos tomar um trem para Bath.

— Graças a Deus por isso! — disse Ray com entusiasmo. — Sinto-me como se não
conseguisse dar nem mais um passo.

As 7h daquela noite, dois vagabundos saíram de um vagão de terceira classe na estação de


Bath. O mais jovem mancava um pouco e teve de sentar-se num banco da plataforma.

— Vamos logo, não podemos demorar — disse o outro asperamente. — Acharemos uma
cama na cida-

259
de. Há um abrigo do Exército da Salvação em algum lugar de Bath,

— Espere um pouco — disse o jovem. — Estou tão pregado com a viagem naquele vagão
infernal que quase nem consigo andar.

Eles tinham apanhado o trem para Bath na estação de Reading. Havia uma multidão de
pessoas chegando e saindo da estação. Ray olhou-os cheio de inveja. Tinham casas para
onde ir, camas limpas e confortáveis para dormir. Sentia-se angustiado, quando viu uma
figura que o fez encolher-se ainda mais. Um homem alto e magro carregava uma caixa
pesada numa das mãos e uma sacola na outra.

Era seu pai. John Bennett desceu as escadas com um olhar casual para os dois sujos
vagabundos, jamais podendo supor que um deles fosse seu filho.

John Bennett tivera uma noite ruim e uma manhã ainda pior. Pegara a câmara numa
cervejaria dos arredores da cidade, onde a tinha deixado por algum tempo. Ajustando as
correias improvisadas, pôs a câmara nas costas e, com a sacola numa das mãos, tomou a
estrada. Um policial vacilara em detê-lo quando ele deixou o estabelecimento, mas quase o
fizera. A disposição e o vigor daquele homem sombrio eram notáveis. Subiu uma colina
sem afrouxar o passo. Chegando ao topo, continuou por uma estrada secundária com a
mesma energia. Abaixo dele estendiam-se os prados de Somerset, prados extensos, cheios
de rebanhos, raios de luz brilhando onde passava o rio, no alto, o céu azul, manchado de
nuvens aqui e ali. Enquanto caminhava, John Bennett não sentia peso no coração. Tudo
que o cercava transpirava vida e felicidade. Suas mãos deslizaram maquinalmente para o
bolso do casaco, onde guardara os preciosos recortes de jornais que trouxera da cidade e
lera e relera nas horas de insônia durante a noite.

Pensou na filha, em tudo que a filha significava, e pensou em Dick Gordon... mas a
lembrança fê-lo estremecer e voltar ao consolo de suas fotos. Um homem no trem lhe
falara que naquela região encontraria um verdadeiro paraíso para os amantes da natureza,
e era em direção àquele lugar que ele continuava seguindo,

280
auxiliado apenas por um mapa, que tinha comprado na noite anterior numa loja da
plataforma ferroviária.

Ele viu uma doninha, fugindo velozmente de um coelho e, pouco depois, encontrou o
”cenário” que procurava, a entrada habilidosamente disfarçada da toca de um texugo.

Nos anos em que se dedicara ao hobby de filmar, tinha superado muitas dificuldades,
aprendido muita coisa. Alguns fracassos lhe tinham ensinado a arte de dissimular a
câmara. Dessa vez, a lente apenas despontava de uma moita de arbustos selvagem, pois o
texugo é um animal muito esquivo. Havia também filhotes na toca, e um filhote de
texugo é duplamente tímido.

Bennett ligou o mecanismo que lhe permitia disparar a câmara a distância e esperou em seu
posto, a oito jardas de distância, procurando acomodar o corpo do modo menos
desconfortável possível. Tirando o casaco, colocou-o como travesseiro para seus cotovelos,
e deixou os binóculos ao alcance da mão.

Estava esperando há meia hora, quando pensou ter visto um movimento na entrada da
toca. Com movimentos lentos, pegou o binóculo e ajustou o foco. Viu a ponta do nariz do
texugo e aproximou a mão do disparador, pronto para apertá-lo. Passaram-se muitos
minutos — cinco 10, 15 — mas não houve qualquer movimento na boca da toca.
Estranhamente, no entanto, John Bennett sentia-se feliz, pois o calor agradável do dia,
combinado com a posição relaxada em que se deitara, davalhe uma rara sensação de
descanso corporal e bem-estar. O clima de tranqüilidade envolveu-o cada vez mais
profundamente; era como uma neblina que penetrasse em tudo que se pudesse ver e ouvir.
John Bennett adormeceu e sonhou com o sucesso de suas filmagens, com a paz restituída
a seu coração, livre, por fim do fardo que há muito carregava. Era como se um suave rio
de vida corresse para dentro dele. Em determinado momento do sonho, porém, ouviu
vozes que não conseguia identificar e um som agudo, forte, como de um tiro. Mas ele
sabia que não se tratava de um tiro, e apenas seu corpo estremeceu um pouco. Ele
conhecia aquele ”ruído” e, mergulhado no sono, apertou convulsivamen-

281
te as mãos. O disparador elétrico ainda estava em sua mão direita.

***

Às 9h daquela manhã, dois vagabundos chegaram mancando a Laverstock, embora um


deles mancasse mais que o outro. O mais alto parou na porta do Leão Vermelho. Um
sujeito com cara de poucos amigos espreitou os dois por detrás da cortina que
proporcionava uma semiprivacidade aos freqüentadores do bar.

— Vamos entrar — rosnou Lew Brady. Ray obedeceu de bom grado, mas o corpo pesado
do proprietário bloqueou a entrada.

— O que querem? — perguntou. — Eu quero um drinque. — Não vendemos fiado por


aqui — disse o dono da casa, olhando os dois de alto a baixo.

— Por que está falando em fiado? — Lew perguntou com vóz áspera. — Meu dinheiro é
tão bom quanto o de qualquer outro.

— Se isso é verdade, por que não mostra o que traz? Lew puxou um punhado de moedas
de prata e o proprietário do Leão Vermelho recuou.

— Pode entrar — disse ele —, mas não tente transformar meu bar numa taberna de beira de
estrada. Tome seu drinque e vá embora.

Lew sentou-se com Ray e o dono do bar serviu duas doses de uísque.

— Aqui está o seu, Carter — disse Lew, e Ray tragou febrilmente a bebida.

— Este trabalho pode ser muito bom para homens solteiros — Lew continuou em voz
baixa. Mas dá muita preocupação a quem tem uma esposa esperando, mesmo que a esposa
não tenha um comportamento dos mais impecáveis.

— Não sabia que era casado — disse Ray, sem grande interesse.

— Há muita coisa que você não sabe — o outro murmurou. — Evidentemente, sou
casado. Aliás, você já ouviu isso uma vez, mas lhe faltaram miolos para acreditar em
certas verdades ...

262
Ray encarou o companheiro de boca aberta, — Está querendo dizer... que era verdade o
que Gordon ...

O outro concordou com a cabeça. — Está querendo dizer que Lola é sua esposa? — Sim,
sem dúvida ela é minha esposa — disse Lew friamente. — Não sei quantos maridos já
teve, mas sei que sou o atual.

— Oh, meu Deus! Ray sussurou as palavras. — E o que isso pode interessar-lhe? Não
fique com esse olhar tão estúpido — disse Lew Brady com malícia. — Não lhe estou
censurando por se ter apaixonado por ela. Gosto de ver as pessoas admirarem minha
mulher, mesmo garotos como você.

— Sua esposa! — Ray exclamou outra vez. Ainda não conseguia acreditar no que ouvia.
— E ela ... É também uma Rã?

— E por que não haveria de ser? — disse Brady. — E fale baixo. O velho atrás do balcão
está procurando ouvir nossa conversa... Naturalmente ela é uma Rã e uma vigarista. Todos
nós somos vigaristas. Você também. Aliás, é a única possibilidade de chegar ao coração de
Lola. Ela prefere os escroques. Talvez você tenha urna chance ... após ter feito um ou dois
trabalhinhos

— Seu animal! — sibilou Ray, e golpeou em cheio o homem no rosto.

Antes que Lew Brady conseguisse pôr-se de pé, o proprietário do Leão Vermelho já estava
entre eles.

— Fora! Todos os dois! — gritou ele, e, empurrando-os para a porta, vociferou meia dúzia
de palavrões.

Lew Brady deixou de cambalear e encarou o companheiro.

— Um dia, Sr. Carter, o senhor saberá tudo sobre a Rã — disse. — E eu ajustarei as


contas ...

— E, por Deus, eu também ajustarei as minhas com você! — revidou o jovem Bennett
com ar furioso. — Não pretendo mais ficar um só minuto a seu lado — acrescentou, o
rosto pálido, a voz trêmula. — E vou cortar pela raiz com todos os outros tipos de sua laia.
Vou voltar!

263
— Você não vai voltar — disse Lew. — Escute, rapaz, não seja louco! Temos de ir até
Gloucester e cumprir nossa missão. Se não me acompanhar. . . Bem, pode ir na frente se
quiser, mas os riscos são seus.

— Vou sozinho — disse Ray. — Não seja tolo — disse Lew Brady correndo atrás dele e
segurando-lhe o braço.

Por um instante, a situação pareceria grave a qualquer observador, mas depois, com um
abanar de ombros, Ray Bennett afrouxou o braço.

— Não acredito em você — disse ele, e eram as primeiras palavras que pronunciava em
meia hora de caminhada. — Mas não entendo a razão dessa sua mentira.

— Não suporto mais seus bons modos, essa é a verdade, Ray. Simplesmente, você tem um
jeito que me chateia até a morte. Se não lhe fizesse perder a cabeça, eu é que perderia a
minha.

— ... Mas é mesmo verdade essa história sobre a Lola?

— Evidentemente, não é verdade — Brady mentiu para contemporizar. — Você acredita


que eia ia que- ! rer alguma coisa cora um tipo como eu? Não acredite! Lola é uma
boa moça. Esqueça tudo que eu disse, Ray. 1

— Perguntarei a eia. Creio que não seria capaz de mentir para mim — disse o rapaz.

- B claro que não mentiria para você — concordou o outro.

Aproximavam-se do lugar onde havia as três árvores secas mencionadas nas instruções
recebidas por Brady. Os olhos de Ima, Brady tentavam avidamente enxergar os troncos
atingidos por um relámpago. Pouco depois, conseguiu descortiná-los.

— Vamos até ali e lhe contarei tudo sobre este assunto — disse ele. — Hoje, já não
agüento seguir viagem. Meus pés estão em carne viva. Poderiam ser cozinhados sem
tempero!

Seguiram a trilha entre as árvores e pouco depois pararam.

— Sente-se aqui, rapaz — disse Lew. — Vamos tomar um trago e fumar um cigarro.

264
Ray sentou-se com a cabeça entre as mãos, uma figura de aspecto tão incrivelmente
miserável que qualquer outro homem, exceto Lew Brady, teria sentido pena dele.

— A verdade — Lew começou com voz pausada — é que Lola é uma mulher muito
perigosa para você, rapaz.

— Então, por que você disse aquilo? Subitamente, ele olhou em volta. — Que foi isso?
— Isso o quê? — perguntou Lew, com os nervos também muito abalados.

— Pensei ter ouvido alguém sé mover. — Um barulho qualquer, sem importância.


Coelhos, talvez; há milhares de coelhos por aqui — disse Lew. — Não, pode crer, Lola é
uma boa moça. — Brady tirou uma garrafa do bolso, pegou um copo no forro do casaco
desabotoado e repetiu: — É urna boa moça; e talvez jamais deixe de ser uma boa moça!

Ele encheu o copo e examinou o uísque que sobrara na garrafa.

— Vou beber à saúde dela. Não, não ... Você primeiro.

Ray balançou a cabeça. — Não gosto dessa coisa — disse. O outro deu uma gargalhada.

— Partindo de um sujeito que dormiu em maus lençóis noite após noite, é um ponto de
vista muito interessante — disse ele. — Se nem à saúde de Lola você for capaz de tomar
um gole de uísque, bem, você não passa de um...

— Dê-me logo isso. Ray agarrou o copo, entornou um pouco sem querer, mas, tomando
um bom gole, devolveu a bebida ao companheiro.

— Ufa! Não gosto nada desse uísque. Aliás, nem desse nem de qualquer outro uísque.
Nada é pior que pretender gostar de álcool somente para não decepcionar os amigos.

— No princípio, ninguém gosta — disse Lew. — Mas é como tomates... um hábito que se
cultiva.

Ele contemplava o rapaz com ansiedade.

265
— De Gloucester vamos para onde? — Ray perguntou.

— Não vamos para lugar nenhum de Gloucester. Só o que temos a fazer é ficar um dia por
lá. Depois, mudamos de roupa e voltamos para casa.

— Isso não faz sentido — disse Ray Bennett, apertando os olhos e bocejando. — Quem é a
Rã, Lew?

Ele bocejou outra vez e estendeu-se na grama, as mãos sob a cabeça.

Lew Brady entornou o resto da garrafa na relva, depois levantou-se e se aproximou do


rapaz adormecido.

— Ei, acorde! — disse ele. Não houve resposta. — Levante-se, vamos!

Com um gemido, Ray virou de bruços, a cabeça apoiada nos braços unidos, e não mais se
moveu. Lew Brady teve um mau pressentimento. E se o rapaz estivesse morto. Brady
empalideceu. A briga, tão habilidosamente maquinada pela Rã, seria suficiente para
deixá-lo comprometido em público. Brady tirou a garrafa de uísque do bolso e colocou-a
no bolso do casaco de Ray. Foi então que ouviu um barulho e, virando-se, viu um
homem que olhava para ele. Lew arregalou os olhos, abriu a boca para falar e:

Plop! Viu o brilho da detonação antes que a bala o atingisse. Tentou novamente abrir a
boca para falar e: Plop!

Antes de tocar no solo, Lew Brady já estava morto.

O assassino removeu o silencioso da pistola, caminhou devagar para Ray Bennett e pôs a
arma perto de sua mão entorpecida. Depois, virou o corpo do morto, olhando-o bem na
face. Tirou-lhe um charuto do bolso do casaco, acendeu e repôs meticulosamente o
fósforo apagado dentro da caixa. Gostava de fumar charutos, em especial charutos dos
outros. Então, sem afobação, voltou pelo mesmo caminho que tinha vindo, chegou à
estrada principal depois de um cuidadoso reconhecimento, e entrou no carro que deixara
estacionado no acostamento.

266
Dentro do carro havia um jovem de olhos vidrados, que nada fitavam. Usava um terno que
lhe caía mal e uma das pontas de seu colarinho estava solta.

— Conhece este lugar, Bill? — Sim, senhor. — A voz era carvernosa, rouca. — Ibbley
Copse.

— Você acabou de matar um homem: você atirou nele, exatamente como declarou em sua
confissão.

Semi-inconsciente, o jovem concordou com a cabeça.

— Eu matei porque o odiava — disse. A Rã concordou com a cabeça e tomou assento ao


volante.

John Bennett acordou sobressaltado. Pouco depois, alcançou a moita onde escondera a
câmara, mas, para seu desespero, verificou que todo o filme estava estragado. Como se o
texugo zombasse dele, viu novamente a ponta negra de seu nariz e brandiu o punho na
direção do animal. Mais além, no entanto, viu dois homens estendidos, ambos dormindo, e
ambos, aparentemente, vagabundos.

Carregou a câmara até onde deixara seu casaco, vestiu-o, pôs a máquina nas costas e
tomou o caminho de volta para a aldeia de Laverstock, onde, se seu relógio estivesse
certo, poderia pegar o trem local que o levaria a Bath, ainda a tempo de embarcar no
expresso de Londres. Enquanto caminhava, remoía na cabeça todas as cenas perdidas.

267
CAPÍTULO 31

A corporacão química

Elk prometera jantar no clube de Gordon. Dick esperou-o até 20 minutos depois da hora
marcada, mas Elk não apareceu nem telefonou.

Foi com 25 minutos de atraso que ele chegou correndo e agarrou a manga de Dick, que já
se preparava para sair.

— Meu Deus! — exclamou ele com voz abafada, olhando para o relógio da parede. —
Não pensei que fosse tão tarde, capitão. Eu tenho de comprar um relógio de pulso.

Foram os dois para o salão de jantar. Elk sentia-se como se estivesse entrando numa
igreja, tamanha era a solenidade que cercava o recinto, com seus afetados e silenciosos
freqüentadores.

— Aqui, sem dúvida, há um pouco mais de tranqüilidade que no Heron’s — disse Dick. —
Que houve com você, Elk? Não estou me queixando, mas ao ver que não chegava, fiquei
preocupado, julgando que lhe podia ter acontecido alguma coisa.

— Nada me aconteceu — disse Elk, cumprimentando amavelmente um garçom


embaraçado. — Mas tive de acompanhar uma investigação em Gloucester. Pensei que
tivéssemos outro caso da Rã, mas os dois homens envolvidos não tinham tatuagens.

268
— Quem eram? — Phenan é um deles ... E está morto. — Um assassinato? — Acho
que sim — disse Elk, atracando-se a uma sardinha. — Penso que já estava morto há
algum tempo quando o encontramos em Ibbley Copse. Pegaram o sujeito que estava com
ele, bêbado. Ao que tudo indica, a dupla tinha estado em Laverstock, e brigou a socos no
bar do Leão Vermelho... A polícia foi informada mais tarde da luta, e mandou que um
guarda rodoviário ficasse de olho nos dois sujeitos, que viajavam por estrada de rodagem.
Como eles não aparecessem, um posto policial mandou um patrulheiro procurá-los de
motocicleta, pois tem havido alguns arrombamentos de domicílio naquela região.

— Ele os encontrou? Elk fez que sim com a cabeça. — Um deles morto e o outro
embriagado. Ao que parece, depois da briga, o bêbado deu um tiro no companheiro.
Ambos eram vagabundos, marginais de alguma espécie. Parecem ter vindo de Gales.
Tinham dormido em Bath na noite passada... Isso foi tudo que conseguimos saber. Carter
é o assassino. Levaram-no para a prisão de Gloucester. É um caso muito simples e a
polícia de Gloucester deu um sorriso malicioso à simples idéia de chamar a chefatura em
Londres. Sem dúvida, é um crime inteiramente à altura do nível intelectual da polícia da
região.

Dick apertou os lábios. — Esta noite — Elk continuou —, encontrei John Bennett em
Paddington. Estou sempre esbarrando com ele nas estações ferroviárias. Sem dúvida,
trata-se de um viajante nato. Levava, como sempre, a velha câmara. Desta vez me
aproximei e tentei uma conversa, mas ele parecia extenuado, queria dormir, tinha dormido
em frente à toca de um texugo, calcou o disparador durante os sonhos que teve e gastou
uma fortuna no filme que estragou. Mesmo assim, no entanto, parecia satisfeito consigo
mesmo, e não é difícil saber por quê: outro dia vi uma nota sobre seu trabalho num jornal
de Londres. Parece estar vibrando como um estreante, que pela primeira vez lê seu nome
nos jornais.

269
— E sinceramente, espero que faça sucesso — disse Dick calmamente, ainda que alguma
coisa em seu tom de voz tenha feito o Inspetor fitá-lo nos olhos.

— Acabei de me lembrar — disse Elk — de que recebi um bilhete de Johnson pedindo-me


o endereço de Ray Bennett. Dizia que já o procurou no Heron’s Club, mas há dias que
ele não é visto por lá. Johnson arranjou-lhe um emprego. Uma posição muito boa, parece.
De fato, Johnson é uma excelente pessoa. — Você deu o endereço?

Elk balançou a cabeça afirmativamente. — Dei o endereço e telefonei para o rapaz, mas
ele não está na cidade. Já saiu há alguns dias e deve ficar uns 15 dias viajando. Vai ser
muito ruim para ele perder o emprego que Johnson está oferecendo. Pensei que Johnson
estivesse magoado com o jovem Bennett, mas.... talvez exista alguma outra coisa em jogo
— acrescentou o Inspetor com certa malícia.

Dick percebeu que o outro queria referir-se a Ella Bennett, mas não desdobrou o tema.

Após o jantar, foram para a sala de estar e, enquanto Elk fumava voluptuosamente um de
seus melhores charutos, Dick escreveu um rápido bilhete para a moça, que lhe ocupara o
dia inteiro os pensamentos. Na verdade, o bilhete era inteiramente desnecessário, e o
pretexto fora proporcionado pelas novidades de Elk sobre a possibilidade de um bom
emprego para Ray. No entanto, apenas quando terminou de escrever e selou o envelope,
foi que o detetive se deu conta disso. Quando voltou a sentar-se ao lado de Elk, o Inspetor
brindou-o com outra novidade.

— Tenho um homem fazendo algumas investigações sobre uma fraude que descobrimos
em uma indústria química — uma falsa indústria, inexistente na verdade; menos de uma
dúzia de empregados e, mesmo assim, só esporadicamente em serviço. Mas tem uma
potente instalação elétrica, um aparato realmente impressionante. É uma velha fábrica de
gás venenoso. Foi comprada por uma ninharia por dois indivíduos que estão em nossa
mira.

— Onde fica essa fábrica? — perguntou Dick. — Entre Newbury e Didcot. Parece que,
quando es-

270
tava sob intervenção do governo, a fábrica assumiu o compromisso de dar uma
contribuição anual para a Brigada de Fogo de Newbury. Agora, os novos proprietários
recusam-se a cumprir o contrato. Já pediram várias vezes aos bombeiros para desligarem a
fábrica de seus serviços de alarme, mas a Brigada de Fogo de Newbury insiste no
cumprimento do acordo, que, aliás, tem ainda a validade de três anos.

Dick não tinha o menor interesse naquela disputa entre a indústria química e o corpo de
bombeiros. Mais tarde, ele se sentiria feliz por ter ouvido casualmente toda a história; no
momento, porém, havia coisas que não podia prever.

— É uma história incrível — disse, com ar distraído.

***

Uma quinzena depois de Ray Bennett ter desaparecido da cidade, Elk aceitou um convite
do americano para almoçar. Era convite antigo, mas só agora aceito pelo Inspetor, pois
lhe tinha surgido na mente uma dúvida acerca de Joshua Broad, dúvida que ele queria
transformar em certeza.

Elk, para quem o tempo não tinha qualquer significação especial, chegou 10 minutos depois
da hora marcada, encontrando Broad a sua espera.

— Já passam 10 minutos da 1h — disse o Inspetor. — Não consigo chegar na hora em


lugar algum. Tive muito trabalho no escritório. A nova caixaforte está dando muita
confusão. Há alguma coisa errada com ela; nem mesmo o fabricante da fechadura
consegue descobrir-lhe o segredo.

— Não conseguem abri-la? — O problema está justamente aí. Não conseguimos abri-la, e
eu tinha de apanhar alguns papéis extremamente importantes — disse Elk. — No caminho
para cá estive pensando se, com a experiência que possui de casos de roubo e homicídio,
não teria ouvido falar em algum modo de abri-lo. Creio que precisaremos de um bom
técnico e, se não estou enganado, você me disse uma vez que era um técnico, não foi isso?

271
— Sua memória lhe pregou uma peça — disse calmamente o outro, abrindo o guardanapo e
fitando o detetive com um brilho nos olhos. — Abrir cofres não é minha especialidade
— completou.

— E também nunca achei que fosse — Elk respondeu num tom cordial. — Mas não há
dúvida de que os americanos sempre souberam usar melhor as mãos que o povo inglês.
Pensei que me pudesse dar ao menos um conselho.

— Talvez possa apresentá-lo o meu arrombador favorito — disse Broad, como se falasse a
sério, e os dois riram. — Que juízo você faz de mim? — perguntou inesperadamente o
americano. — Não quero que me dê seus pontos de vista sobre meu caráter ou minha
aparência pessoal, mas gostaria de saber o quê, exatamente, pensa que estou fazendo em
Londres. Cavando aqui e ali? Entregando-me de corpo e alma a um trabalho de detetive
amador?

— Nunca me preocupei muito em pensar no que faz ou deixa de fazer, mas, como é
americano, sempre achei que fosse alguém fora do comum...

—Não me adule, Sr. Elk. — Não seria capaz de adulá-lo — Elk protestou. — Tenho
repugnância a toda e qualquer bajulação.

Ele abriu um vespertino que trouxera. — Continua procurando aqueles anfíbios sem
cauda?

— Quê? — Elk olhou-o sem entender. — Rãs — o outro explicou. — Não, não estou
exatamente procurando Rãs, embora não tenha dúvidas de que algumas delas estão atrás
de mim. Para falar a verdade, os jornais trazem sempre muito pouca coisa sobre esses
interessantes animaizinhos, mas aposto que, mais dia menos dia, estarão cheios deles.

— Quando? A pergunta era desafiante. — Quando pegarmos a Rã Número Um. — E


acha que conseguirão pegar a Número Um antes de mim? — perguntou ele, senhor de si, e
Elk fitou-o através dos óculos, com curiosidade.

272
— Foi o que já me perguntei muitas vezes — respondeu o Inspetor.

Por um instante, os olhos dos dois se encontraram. — Acha mesmo que posso pegá-lo —
Broad perguntou.

— Se certas conjecturas que faço estiverem certas, creio que sim — respondeu Elk, e,
subitamente, sua atenção concentrou-se num parágrafo do jornal. — Trabalho rápido —
disse ele. — Nós superamos vocês, americanos, a esse respeito.

— A respeito de quê? — perguntou Broad. — Sou suficientemente cosmopolita para


admitir que há muitas coisas que os ingleses fazem melhor que os americanos.

Elk olhou para o teto. — Quinze dias? — Sobre o que está falando? — Estou
pensando naquele homem, Carter ... que atirou num vagabundo perto de Gloucester —
disse Elk.

— O que aconteceu a ele? — perguntou o outro. — Foi sentenciado à morte hoje de


manhã — respondeu o Inspetor.

Joshua Broad franziu a testa. — Setenciado à morte esta manhã? Carter, diz você? Ainda
não li a história do assassinato.

— Não é uma história complicada — disse Elk. — Dois vagabundos brigaram, acho que
estavam bêbados, e um atirou no outro. O assassino foi encontrado dormindo ao lado da
vítima, embriagado. O prisioneiro recusa-se a fazer qualquer declaração, sequer a se servir
de um advogado... Deve ter sido um dos julgamentos mais rápidos da história.

— Onde aconteceu isso? — perguntou Broad, conseguindo despertar do devaneio em que


caíra.

— Perto de Gloucester. O informe processual não traz muita coisa, de fato, não foi um
assassinato que despertasse grande interesse. Não há mulheres envolvidas nele, pelo
menos é o que mostram todas as evidências, e ninguém se importa com um crime entre
dois vagabundos.

Ele dobrou o jornal e o pôs de lado. Pelo resto da refeição, deixou-se empolgar por um
tema dos mais fascinantes: os métodos policiais empregados nos Esta-

273
dos Unidos; e, ao que parece, o Sr. Broad era uma autoridade no assunto.

Estava bem clara a finalidade do convite do americano. Por várias vezes ele tentou desviar
a conversa para o homem detido, Balder, mas sempre que procurava abordar o problema,
Elk passava a discutir empolgadamente os méritos do terceiro grau* como método de
detenção de criminosos.

— Elk, você está tão fechado quanto uma ostra — disse Broad, fazendo sinal a um
garçom para trazer a conta. — E, no entanto, sei praticamente o mesmo que você sobre
Balder.

— Diga-me em que prisão está — desafiou Elk. — Está em Pentonville, em Sétima


Divisão, na cela 84 — revidou imediatamente o outro, e Elk quase pulou na cadeira. — E
não precisa preocupar-se em transferi-lo para outro lugar, apenas porque conheço
exatamente sua presente localização; eu estaria igualmente bem-informado se ele estivesse
em Brixton, Wandsworth, Holloway, Wormwood Scrubbs, Maidstone ou Chelmsford.

No original, third degree. Método severo de interrogatório desti• nado a extorquir uma
confissão. (N. do T.)

274
CAPÍTULO 32

Na prisão de Gloucester

Há uma cela na prisão de Gloucester; a última cela num longo corredor do velho prédio. A
porta seguinte é outra cela, que nunca está ocupada, e por uma ótima razão. A cela de
Ray Bennett era mais dispendiosamente mobiliada que qualquer outra do presídio. Havia
uma cama com armação de aço, uma boa mesa, uma confortável poltrona Windsor e duas
outras cadeiras, numa das quais, dia e noite, velava um guarda.

As paredes eram de um rosa desbotado. A luz entrava por uma janela grande, bem alta, com
grades pesadas e vidraças opacas. Na abóbada do teto, um globo com lâmpada elétrica
ficava aceso todo o tempo.

Três portas partiam da cela: uma para o corredor, outra para um pequeno anexo onde
havia um banheiro, a terceira para a cela desocupada, com assoalho de madeira, no centro
do qual havia um alçapão quadrado. Ray Bennett não sabia como estava próximo do
compartimento da morte, mas, se soubesse, não teria se importado. Pois a morte era o
menor dos terrores que o oprimiam.

Quando despertara do sono entorpecido, encontrara-se numa cela de presídio rural e ouvira,
atordoado, a acusação de assassinato. Quase não se lembrava do que tinha acontecido.
Sabia apenas que sentira raiva de Lew Brady e quisera matá-lo. Recordava-se, também, de

275
ter caminhado com ele e de vê-lo sentado a seu lado em algum lugar.

Disseram-lhe que Brady estava morto e que tinham achado em sua mão a arma do crime.
Ray torturara seu cérebro num esforço para lembrar se tinha um revólver ou não. Devia
ter. E, sem dúvida, fora narcotizado. Beberam no Leão Vermelho, Lew deve ter dito
alguma coisa de Lola e ele o matou. Era estranho que não pensasse mais em Lola com
ternura. Sua paixão por ela se dissipara. Pensava em Lola como pensava em Lew Brady,
como algo sem importância que pertencia ao passado. Tudo que importava agora era que
o pai e a irmã não soubessem elo que lhe estava acontecendo. A desonra não deveria
atingi-los. Ray Bennett tinha esperado com impaciência febril que o julgamento chegasse
ao fim, que pudesse ver-se livre do olhar curioso do público. Felizmente, o crime não
despertava interesse suficiente sequer para amontoar no tribunal um grande número de
fotógrafos. Queria que tudo acabasse de uma vez, ir embora anonimamente da vida. Seria
para ele a maior tragédia que o conseguissem identificar.

Não se atrevia nem mesmo a pensar em Ella ou no pai. Era Jim Carter, sem parentes ou
amigos; se cometera um crime como Jim Carter, devia passar seus últimos dias de vida
como Jim Carter. Não estava assustado; não sentia mais medo, e seu único pesadelo era que
o pudessem reconhecer.

O guarda que ficava em sua cela, apesar de não ter permissão de lhe falar, comentara que,
pela lei, deviam transcorrer três domingos entre a sentença e a execução. O capelão e o
diretor da prisão visitavam-no todo dia. Uma batida na porta da cela alertou-o para a
visita deste último. Ele ficou de pé quando o homem de cabelos grisalhos entrou.

— Algum problema, Carter? — Nenhum, senhor. — Deseja alguma coisa? — Não,


senhor. O diretor olhou para a mesa. O bloco de escrever que fora colocado à disposição
do prisioneiro não tinha sido utilizado.

276
— Não quer escrever nenhuma carta? Creio que sabe escrever, não?

— Sim, senhor, mas não quero escrever nenhuma carta.

— Quem é você, Carter? Você não é um vagabundo ordinário. É mais bem-educado que
essa casta.

— Sou um vagabundo ordinário, senhor — disse Ray com tranqüilidade.

— Tem todos os livros de que precisa? Ray fez sinal afirmativo com a cabeça e o diretor
saiu. Diariamente havia perguntas desse tipo. As vezes, o diretor fazia referências aos
amigos de Ray, mas ele se esquivava a qualquer resposta e mostrava-se cansado de ser
alvo de tantas investigações.

Ray Bennett alcançara um estágio de consciência em que mais nada havia a lamentar.. Era
inevitável. Fora enredado na trama das circunstâncias e empurrado lentamente para o
lugar da queda. Toda tarde e toda manhã passeava pelo pátio quadrado do presidio,
vigiado por três homens de uniforme e cuidadosamente protegido do olhar dos outros
prisioneiros. A tranqüilidade de Ray espantava a todos que o viam. Ele fora apanhado pela
engrenagem e sabia que tinha de rodar. Era capaz até mesmo de sorrir, observando-se com
os olhos neutros de um estranho. E não conseguia chorar, pois nada havia a lamentar.
Já se sentia um homem morto. Sem dúvida, ninguém iria preocupar-se em pedir a
suspensão da pena; era um assassino sem nenhuma importância. Os jornais não o
noticiavam em manchetes, não pediam novo julgamento. Nenhum advogado de renome
faria uma apelação à Corte. Cometera um crime e devia morrer por isso.

Uma vez, quando ia mergulhar a mão na água para lavar o rosto, viu o reflexo de sua face e
não pôde reconhecer-se, pois a barba crescera como erva daninha. Limitou-se a rir e,
quando percebeu o olhar admirado dos guardas, esclareceu:

— Só agora estou começando a cultivar certo senso de humor. Um tanto tarde, não
acham?

Podia ter recebido visitas, podia ter visto qualquer pessoa que desejasse, mas
experimentava uma estranha satisfação em permanecer isolado. Tinha rompido com

277
tudo que a vida possuía de artificial e emocional. Lola? Balançava a cabeça quando
pensava nela. Era muito bonita. Tinha vontade de saber o que Lola faria agora, depois da
morte de Lew, e o que estaria fazendo naquele momento. Pensava também em Dick
Gordon; lembravase de ter simpatizado com ele no dia em que pôde passear no grande
Rolls-Royce. Como tudo isso parecia estranhamente distante! E, no entanto, tudo
acontecera somente há alguns meses.

Um dia, o diretor do presídio entrou em sua cela com um ar muito cerimonioso. Junto
dele, ia um cavalheiro que Ray já vira no tribunal. Era o Vice-Corregedor, e havia uma
importante comunicação a ser feita. O diretor teve de limpar duas vezes a garganta.

— Carter — disse, num tom um pouco vacilante — a Secretaria de Estado informou que
não vê razão para interferir no curso da lei. O corregedor fixou a manhã da próxima
quarta-feira, às 8h, como data e hora de sua execução.

Ray inclinou a cabeça. — Obrigado, senhor — disse ele.

278
CAPÍTULO 33

A Rã no meio da noite

John Bennett saiu do celeiro de madeira, por ele convertido num laboratório fotográfico,
carregando uma caixa quadrada em cada mão.

— Não fale comigo agora, minha filha — disse ele, ao ver a moça levantar-se da grama
onde, ajoelhada, tratava do jardim — ou vou misturar as coisas. Aqui — ele sacudiu a
mão direita — estão cenas de uma truta... e são ótimas cenas — completou com
entusiasmo. — Um criador de trutas deixou-me filmá-las através de um vidro. Era um belo
dia de sol.

— Que há na outra mão, papai? — Um fracasso — respondeu ele com voz queixosa. —
Quinhentos pés de filme estragados! Posso ter conseguido registrar alguma coisa por
acaso, mas não me posso dar ao luxo de revelar tudo isso só para ter certeza. De
qualquer modo, vou guardar o filme; se algum dia tiver dinheiro sobrando, satisfaço
minha curiosidade.

Levou as caixas para dentro de casa e rotulou as duas com etiquetas adesivas. Acabava de
preenchê-las quando a voz cordial de Dick Gordon atravessou a janela aberta. Bennett
recebeu-o com ansiedade.

— Bem, Capitão Gordon, conseguiu? — perguntou.

279
— Consegui — respondeu o detetive com voz solene, agitando um envelope numa das
mãos. — Você é o primeiro cinegrafista amador a obter permissão para trabalhar no
Jardim Zoológico... Mas creia que não foi nada fácil extrair esta licença!

O rosto pálido de John Bennett coloriu-se de prazer.

— É uma notícia formidável — disse. — O Jardim Zoológico nunca foi filmado, e Selinski
prometeu-me uma soma fabulosa se eu conseguisse boas tomadas.

— Então, já pode considerar que tem todo esse dinheiro no bolso, Sr. Bennett — disse Dick
— e estou satisfeito por o senhor ter falado a respeito.

Ella não se lembrava de ter visto antes um sorriso nos lábios do pai.

Ele não contou a John Bennett que soubera pela filha de sua inabilidade em conseguir a
permissão necessária para filmar nos terrenos do zoológico.

John Bennett voltou para perto de suas caixas, completou as inscrições nos rótulos e saiu
de novo para o jardim. Sentiu uma ternura no coração que perduraria por muito dias.

Ella — perguntou o velho Bennett —, lembrase em que caixa guardei a truta?

- A que estava na sua mão direita, papai — a moça respondeu.

— Foi o que pensei — disse Bennett, de novo se afastando para terminar seu trabalho.
Pouco depois, saía com o filme da truta debaixo do braço em direção ao correio da vila.

— Nenhuma noticia de Ray? — Dick perguntou. A moça balançou a cabeça. — O que


seu pai está achando do sumiço do filho? — Ele não fala sobre Ray; eu também não tenho
feito comentários.

A moça e o detetive passeavam pelo jardim, seguindo na direção de uma casa em miniatura
que John Bennett construíra quando o filho era criança.

— As vezes, penso que você sabe de tudo que está se passando — disse Ella. — Já
descobriu quem matou o Sr. Maitland?

280
— Não — disse Dick. — Acho que só depois de pegarmos a própria Grande Rã é que
conheceremos o assassino.

— Vai conseguir? — ela perguntou. Ele inclinou afirmativamente a cabeça. — Sim, seja
lá quem for o assassino, não conseguirá esquivar-se eternamente de nós. Mesmo Elk está
ficando mais otimista. Ella — Dick interpelou bruscamente — você é do tipo de pessoa
capaz de cumprir uma promessa?

— Sim — a moça respondeu espantada. — Sejam quais forem as circunstâncias, você é


capaz de manter uma promessa que tenha feito?

— É claro que sim. Se achar que não conseguirei cumpri-la, não farei a promessa. Aonde
pretende chegar?

— Bem, eu quero que me faça uma promessa... e que a cumpra — disse ele.

— Depende da promessa. — Quero que prometa que vai se casar comigo disse Dick
Gordon.

Dick pegou-lhe a mão e ela não fugiu ao contato. — É... é um negócio ... muito sério, não
é mesmo? — disse a Srta. Bennett, mordendo o lábio inferior.

— Vai prometer? A moça olhou em volta, lágrimas nos olhos, embora seus lábios
sorrissem. Dick pegou-a nos braços.

Naquele dia, John Bennett esperou muito tempo pelo almoço. Ao procurar pela filha,
deparou-se com Dick, que lhe contou tudo em poucas palavras. Uma expressão de dor
transpareceu no rosto do velho Bennett.

— Ella me deu sua palavra e não voltará atrás — disse o policial. — Seja o que for que
aconteça ou que ela venha a saber.

O detetive ergueu os olhos e fitou o outro atentamente.

— E você manterá sua promessa? — perguntou John Bennett com voz rouca. — Seja o
que for que venha a saber?

— Eu sei — disse Dick com simplicidade.

281
Ella Bennett andava com a cabeça à roda naquela tarde. Um novo e esplêndido colorido
lhe envolvera o ser, uma grande segurança que afastava todos os temores e todas as
dúvidas, uma espécie de luz que revelava panoramas tranqüilos.

Naquela tarde, o pai foi até Dorking, mas logo regressou, com um olhar estranho, que a
filha não gostou de ver.

— Agora tenho de ir até a cidade, meu bem. Há dois dias uma carta espera por mim.
Tenho ficado tão absorvido com minhas filmagens que cheguei a esquecer as outras
responsabilidades que tenho.

Na hora de partir, o velho Bennett não procurou a filha no jardim para se despedir. Foi
embora com tanta pressa que esqueceu a câmara.

Mas Ella não se importou de ficar sozinha; mesmo quando Ray estava em casa, passava
muitas noites no chalé vazio, e a casa situava-se na estrada principal que conduzia à vila.
Preparou um pouco de chá e sentou-se para escrever uma carta a Dick, que, no entanto,
fora embora a não mais que duas ou três horas. Mesmo assim, ela escreveu, pois amor e
lógica raramente andam juntos.

A 100 jardas de distância, havia uma caixa de correio; era uma noite enluarada, e muita
gente conversava nos portões de suas casas. Ella ouvia fragmentos de conversas, enquanto
subia a estrada com a carta na mão. A carta caiu dentro da caixa, a moça voltou para o
chalé, entrou, trancou a porta com chave e ferrolho, e sentou-se com uma cesta de crochê
no colo, para ocupar o tempo que a separava da hora de dormir.

Dick Gordon enchia-lhe todos os pensamentos. Uma ou duas vezes, a lembrança do pai e
do irmão conseguiu atravessar sua mente, mas era sempre em direção a Dick que a
cabeça da Srta. Bennett rodava.

A aconchegante sala de jantar era iluminada por uma única lâmpada de querosene. Posta
na extremidade da mesa, proporcionava a Ella Bennett luz suficiente para seu trabalho. Em
volta da lâmpada, porém, tudo era escuro. A moça dava o retoque final num par de meias
do pai, e suspirava ligeiramente, quando seus

282
olhos se voltaram para a porta da cozinha. Estava entreaberta, e alguém continuava a
abri-la lentamente.

Após um instante de terror que a deixou parali sada, conseguiu pôr-se de pé.

— Quem está aí? — gritou. Um vulto surgiu na penumbra do umbral. A moça sufocou
um grito na garganta. A figura parecia alta, devido ao justo e comprido casaco negro
que usava. O rosto e a cabeça estavam escondidos sob uma repugnante máscara de
borracha e mica. O reflexo da lâmpada brilhava na viseira de mica onde saltavam os
olhos, enchendo-os de um fulgor sinistro.

— Não grite e não se mova! — disse o mascarado: sua voz soava abafada e distante. —
Não vou machucá-la.

— Quem é você? — ela pôde balbuciar. — Sou a Rã — disse o estranho. Por um tempo
que lhe pareceu uma eternidade, Elia Bennett foi incapaz de qualquer movimento. Então,
o estranho falou novamente.

— Quantos homens gostam de você, Srta. Bennett? — perguntou a voz. — Gordon e


Johnson... e a Rã, que a ama mais que todos os outros!

O mascarado fez uma pausa, como se esperasse uma réplica da moça, mas não houve
resposta.

— É para as mulheres que os homens trabalham; é para as mulheres que os homens


matam; atrás de tudo que, respeitáveis ou sem escrúpulos, os homens fazem, sempre
existe uma mulher — disse a Rã. — E é você a mulher por quem pratico minhas ações.

— Quem é você? — conseguiu perguntar a Srta. Bennett.

— Eu sou a Rã — ele repetiu — e saberá meu nome em breve... Quero você! Não agora
— ele ergueu as mãos, ao ver que o terror se estampava no rosto da moça. — Você virá
para mim por livre e espontânea vontade.

— Você está louco! — gritou a Srta. Bennett. — Não sei quem é. Como acha que eu
poderia ... ora, é loucura sugerir... por favor, vá embora!

— Já vou, não se atormente — disse a Rã. — Você se casará comigo, Ella?

283
Ella Bennett balançou a cabeça. — Se casará comigo? — ele perguntou outra vez. —
Não. A moça recuperara seu autocontrole e uma certa

calma.

— Eu lhe darei... — Mesmo que me desse todo o dinheiro que há no mundo, eu não me
casaria com você — replicou.

— Eu lhe darei algo mais precisoso. A voz do estranho agora soava doce, quase inaudível.

— Eu lhe darei uma vida! A moça pensou que a Rã se referia a Dick Gordon, mas por
pouco tempo.

— Eu lhe darei a vida de seu irmão. Por um segundo a sala pareceu rodar, e a Srta.
Bennett teve de apoiar-se numa cadeira para não cair.

— Sobre o quê está falando? — Eu lhe darei a vida de seu irmão, que está encerrado no
Presídio de Gloucester, condenado à morte’ — disse a Rã.

Fazendo um supremo esforço, Elia conseguiu sentar-se.

— Meu irmão? — perguntou, com voz sufocada. — Sentenciado à morte?

— Hoje é segunda-feira — disse a Rã. — Na quarta-feira, ele vai morrer. Se me der sua
palavra de que irá comigo se eu o devolver a você, esteja certa de que poderei salvá-lo.

— Como poderá salvá-lo? A moça fizera a pergunta maquinalmente. — Um homem


assinou uma confissão. Um homem chamado Gill, um sujeito meio maluco que pensa ter
matado Lew Brady.

— Brady? A Rã concordou com a cabeça. — Isso não é verdade — exclamou ela com
voz ofegante. — Está mentindo! Está tentando me assus-

tar, me intimidar!

— Você se casará comigo? — ele repetiu. — Nunca, nunca! — a moça gritou. — Eu


preferia morrer. Você está mentindo.

284
— Quando se decidir, é só me chamar — disse a Rã. — Ponha um cartão branco na
janela... e eu salvarei seu irmão.

A Srta. Bennett debruçou-se na mesa, a cabeça escondida entre os braços cruzados.

— Isso não é verdade, não é verdade — murmurou.

Não houve mais resposta. Erguendo os olhos, Ella viu que a sala estava vazia. Foi para a
cozinha cambaleando e não encontrou sinal do homem na obscuridade do jardim.
Conseguiu arrastar-se até seu quarto e mergulhar na cama, onde desfaleceu.

A luz do sol resplandecia nas janelas quando a moça acordou. Sentia-se extremamente
cansada, os olhos vermelhos de lágrimas, a cabeça em torvelinho. Passara uma noite de
horror — mas nada daquilo era verdade, não podia ser verdade. Não soubera de
assassinato nenhum e Ray não era um criminoso. Saberia de alguma coisa, se alguma
coisa houvesse; Ray teria mandado chamar o pai.

Arrastou as pernas doloridas até o banheiro e tomou uma ducha fria. Meia hora mais tarde
recuperara o equilíbrio emocional, e já podia ordenar seus pensa:- mentos. Ray estava
bem. O homem tentara apenas assustá-la ... Mas quem era ele? A Srta. Bennett estremeceu
.

Encontrou apenas uma maneira de resolver o dilema. Após uma xícara de chá, vestiu-se,
desceu até a vila e pegou o primeiro trem para Londres. Em momento algum pensou em
se submeter às exigências do estranho; nunca teria de deixar um cartão branco na janela
para salvar a vida do irmão. No fundo do coração, no entanto, a moça suspeitava de que
jamais aquele homem a procuraria com tal história se não estivesse bem-fundamentado.
A Rã não agiria levianamente. Afinal, o intruso nada tinha a ganhar inventando toda aquela
tragédia. Mas usar o cartão branco não lhe passava pela cabeça ...

Dick estava tomando seu café quando ela chegou. Ao primeiro olhar, o detetive percebeu
que as notícias não eram boas.

285
__-�

— Não vá embora, Sr. Elk — disse a moça, quando o Inspetor puxou a cadeira para
se levantar. — O se-

Não vá embora, Sr. Elk — disse a moça, quando

o Inspetor puxou a cadeira para se levantar.

O se

nhor deve ficar a par da história.

O mais sucintamente possível, ela narrou os acontecimentos da noite anterior.


Encolerizando-se pouco a pouco, Dick ouviu-a chegar ao clímax da história.

— Ray sentenciado? — exclamou com incredulidade. — Evidentemente não é verdade!

— Onde o estranho disse que o rapaz está? — perguntou Elk.

— No presídio de Gloucester. A Srta. Bennett aproximava-se de um choro convulso.

— No presídio de Gloucester? — Elk repetiu pausadamente. — Há alguém em Gloucester


condenado à morte, um homem chamado — ele fez força para lembrar — Carter! É isso
mesmo, Carter, um vagabundo. Matou um outro vagabundo de nome Phenan.

— É claro que não é Ray — disse Dick, segurando a mão dela. — Aquele sujeito tentou
intimidá-la. Para quando ele disse que a execução estava marcada?

— Para amanhã. Ela caíra em pranto. Com a tensão relaxada pelo desabafo, suas
reservas de ânimo e energia pareciam esgotadas.

— É quase certo que Ray esteja no continente — Dick procurou tranqüilizá-la.

Elk, porém, não estava tão convencido quanto Gordon de que a Rã tinha blefado. Logo que
entrou na sua sala, o Inspetor chamou seu novo assistente.

— Revire os arquivos — disse ele. — Quero todos os detalhes sobre um homem chamado
Carter, que está sentenciado à morte no presídio de Gloucester. Quero fotos, impressões
digitais e o relatório do crime.

Dez minutos depois, o funcionário voltou com uma pasta.

— Ainda não recebemos qualquer fotografia, senhor — disse. — Nos casos de homicídio,
só depois da execução é que nos enviam os relatórios completos.
Elk amaldiçoou o mecanismo burocrático e pôs-se a estudar atentamente o dossiê. As
informações que obteve foram quase nulas. Não obstante, o peso e a

286
altura do condenado eram as de Ray. Não havia marcas corporais, mas havia uma barba . . .

Ele estremeceu na cadeira. A barba! Ray Bennett deixara crescer a barba por algum
motivo. Lembrou-se de sua conversa com Broad.

— Mas é impossível! — exclamou, atirando a pasta para o lado, pasta que continha as
impressões digitais do irmão da Srta. Bennett.

Era impossível, e contudo . Apanhou um papel próprio para telegrama e redigiu:

”Diretor, HM Prisão, Gloucester. Urgentíssimo. Enviar, mensageiro especial, foto James


Carter, condenado à morte. Mensageiro deve tomar primeiro trem. Urgentíssimo.”

Tomou a liberdade de assinar o telegrama com o nome do Comissário-Chefe. Despachado


o telegrama, voltou a examinar a pasta e pouco depois viu uma observação que
negligenciara da primeira vez.

”Marcas de vacina no antebraço direito.” Era coisa rara. Geralmente, as pessoas são
vacinadas no braço esquerdo, um pouco abaixo do ombro. Anotou o fato em seu bloco de
apontamentos e desviou, provisoriamente, a atenção do assunto. Ao meio-dia, chegou um
telegrama de Gloucester, dizendo que a fotografia estava a caminho. Pelo menos essa era
uma boa notícia; entretanto, mesmo que ficasse comprovado que Carter e Ray eram a
mesma pessoa, o que podia ser feito? Elk desejou, do fundo do coração, que a Rã
estivesse blefando.

Pouco antes da 1h, Dick telefonou convidando-o para almoçar no Auto Club, convite que
de modo algum o Inspetor recusaria, pois tinha paixão por conhecer clubes.

Ao chegar — desta vez precisamente no horário —, encontrou Ella Bennett em


companhia do detetive. A moça estava calma, parecia até mesmo alegre. O olho astuto
do Inspetor percebeu o anel num dos dedos da Srta. Bennett. Naquela manhã, sem dúvida,
Dick Gordon aproveitara muito bem seu tempo livre.

— Acho que estou negligenciando meu trabalho, Elk — disse ele quando os três se
sentaram à mesa na

287
suntuosa sala de jantar do Auto Club —, mas creio que, pelo menos esta manhã, não lhe
fiz falta nenhuma.

— Foi uma manhã muito interessante — Elk comentou. — Ouvi boatos na chefatura de que
haveria vacina obrigatória para todo o pessoal. E se há alguma coisa que não aprovo é
uma vacinação em massa. Eu, pelo menos, acho que já me tornei imune a todo e qualquer
vírus que pulule à minha volta.

A moça riu.

- Pobre Sr. Elk! Concordo com o senhor. Eu e Ray tivemos maus momentos quando nos
vacinamos há cinco anos, durante a grande epidemia. Mas Ray ainda passou pior do que
eu só não foi pior porque tínhamos um médico excelente, com alguns pontos de vista muito
curiosos acerca de vacinas.

Ela arregaçou a manga da blusa e mostrou três cicatrizes minúsculas no lado de baixo do
antebraço direito.

— Nosso médico dizia que nos devíamos deixar marcar nos lugares mais invisíveis que
pudéssemos descobrir. Não foi uma boa sugestão?

— Sim — disse Elk com voz pausada. — E seu irmão também foi vacinado do mesmo
jeito?

Ela fez que sim com a cabeça e depois perguntou: — Qual é o problema, Sr. Elk? —
Engoli um caroço de azeitona. Não entendo por que ainda não começaram a cultivar
azeitonas sem caroço. — O Inspetor olhou pela janela. — Está fazendo um belo dia,
Srta. Bennett. Combina com sua companhia — disse ele, atirando-se numa condenação
fantástica ao clima inglês.

A refeição pareceu interminável para Elk, mas finalmente os três saíram do Auto Club. A
moça disse que voltaria à casa de Gordon para examinar alguns catálogos de mobiliário
que o detetive pedira que mandassem para o Harley Terrace.

— Não vai até o escritório? — perguntou Elk, olhando para Dick.

— Não. Acha que é preciso? — Queria falar uns 10 ou 15 minutos com você —
respondeu o outro.

— Por que não acompanhamos a Srta. Bennett até minha casa?

288
— Bem, eu não estava pensando exatamente em ir até sua casa — disse Elk. — Talvez
possamos conversar em algum outro lugar. Creio que a Srta. Bennett não se importaria ..
.

— Ora, claro que não — ela exclamou. Quando Dick entrou na sala de Elk, na Scotland
Yard, encontrou o Inspetor com um charuto na boca, os cotovelos na mesa, as mãos
magras e ásperas alisando o queixo. Parecia examinar, com olhos de profundo
conhecedor, os recortes da madeira no teto.

— Qual é o problema, Elk? — perguntou Gordon ao sentar-se.

— O homem condenado à morte é Ray Bennett — disse Elk, indo diretamente ao ponto.

289
CAPÍTULO 34 O filme estragado O rosto de Dick empalideceu. — Como sabe disso?
— Bem, há uma fotografia a caminho; estará em Londres hoje à tarde; mas eu não preciso
vê-la. Esse homem sob sentença de morte tem três marcas de vacina no antebraço direito.

Houve um silêncio sinistro. — Bem que eu estranhei sua conversa sobre as vacinas —
disse Dick pausadamente. — Desconfiei que havia alguma coisa errada... Que podemos
fazer?

— Vou lhe dizer o que você não pode fazer — disse Elk. — Você não pode deixar aquela
moça saber de nada. Por boas e suficientes razões, Ray Bennett decidiu não revelar sua
identidade, e será executado na quarta-feira. Sua tarde não será nada agradável, Capitão
Gordon — disse Elk com voz amável — e eu preferia não ter sido obrigado a lhe causar
tanto aborrecimento. Mas acho que terá de manter seu sorriso nos lábios ou aquela jovem
vai perceber que há algo errado.

— Meu Deus! Isso é terrível! — disse Dick em voz baixa.

— Sim, é terrível — Elk admitiu —, mas nada podemos fazer. Temos de aceitar como fato
consumado que Ray tem de pagar por um crime. Se pensarmos de qualquer outro modo,
ficaremos loucos ... Mesmo que

290
ele fosse inocente como eu ou você, que chance teríamos de conseguir uma revisão do
processo ou a suspensão de uma sentença com execução marcada?

— Pobre John Bennett! — disse Dick num tom abafado.

— Você está ficando sentimental — rosnou Elk, piscando furiosamente os olhos. —


Temos de ver as coisas de modo prático.

— Ouça, não sei como vou encarar Ella Bennett. Vá até lá em casa comigo.

Elk hesitou, mas depois concordou de má vontade. Ella não poderia supor, a julgar pelas
aparências, o horror que se havia instalado na mente daqueles dois homens. Elk voltou a
discutir sobre a história e datas, assunto fecundo e favorito.

— Graças a Deus trouxeram os catálogos! — disse Dick ao ver, com um suspiro de alívio,
a imensa pilha de folhetos sobre sua escrivaninha.

— Por que ”graças a Deus”? — perguntou a moça, sorrindo.

Elk foi em socorro do outro. — Porque está com remorsos na consciência; quer urna
desculpa para estar matando o trabalho.

A tensão era tão grande, no entanto, que mesmo ele quase não a suportava. Só depois de
algum tempo, após um olhar de apoio para o outro, o Inspetor conseguiu levantar-se com
uma expressão jovial.

— Agora, vou embora, Srta. Bennett — disse. — Creio que estarão a tarde toda ocupados
com a mobília do futuro chalé. Não se esqueçam de me convidar — continuou com um
sorriso forçado. — Pena que não haja muito espaço para novos móveis no Chalé Maytree.

Logo que saiu, o detetive ouviu vozes no hall — a voz nervosa de uma mulher, aguda,
estridente, histérica. Antes que Dick pudesse chegar à porta, ela estava escancarada; Lola
atravessara correndo.

— Gordon! Gordon! Oh, meu Deus! — soluçava. — Você já sabe?

— Cale a boca! — disse Dick, mas Ella Bennett estava ao seu lado.

— Pegaram Ray! Vão enforcá-lo! Lew está morto. O mal estava feito. Ella aproximou-se
lentamente da outra, o corpo rígido de medo.

291
— Meu irmão? — perguntou. Foi quando Lola a viu pela primeira vez e concordou com a
cabeça.

— Consegui descobrir — soluçava. — Desconfiei de alguma coisa e escrevi... Tenho uma


foto de Phenan. Reconheci Lew de imediato e adivinhei o resto. Foi a Rã! Ele planejou;
já há muitos meses andava planejando tudo. E não lamento por Lew; posso até jurar, se
quiserem, que não lamento por Lew! É o rapaz. Fui eu que o pus no caminho da morte,
Gordon...

Lola caiu numa crise de soluço histérico. — Leve-a daqui — disse Gordon, e Elk pegou-a
nos braços, levando-a para a sala de jantar.

— Então, era verdade! — Ella sussurou as palavras e Dick abanou a cabeça.

— Lamentavelmente é verdade, Ella. A moça sentou-se vagarosamente. — Gostaria de


saber onde achar papai — disse a moça, calma como se estivesse discutindo alguma
ocorrência cotidiana.

— Você não pode fazer nada. Ele não sabe de coisa alguma. Acha correto contar-lhe?

Ela o encarou com surpresa. — Creio que você tem razão. Sem dúvida, você tem razão,
Dick. Estou certa de que tem razão. Papai de nada deve saber... Mas eu não poderia
vê-lo?... encontrar-me com Ray, é o que quero dizer?

Dick sacudiu a cabeça. — Ella, se Ray tem guardado silêncio para poupála de tudo isso,
toda a paciência dele, toda a coragem dele terão sido inúteis se você for encontrá-lo.

Seus lábios se entreabriram. — Sim. Você está pensando corretamente. A moça encostou
a mão no braço do detetive e ele não a sentiu tremer.

— Não sei o que posso fazer — dsse a Srta. Bennett. — Tudo isso é tão... assombroso.
Que posso fazer?

— Nada, minha querida. O braço de Dick a enlaçou. A cabeça cansada de Ella Bennett
caiu no ombro dele.

— Não, não posso fazer nada — a moça murmurou. Elk veio da sala de jantar.

292
— Um telegrama para a Srta. Bennett — disse ele. — O mensageiro acabou de trazê-lo.
Foi reenviado de Horsham, creio.

Dick pegou o papel. — Abra, por favor — disse a moça. — Pode ser de meu pai. Ele
rasgou o envelope. O telegrama dizia:

”Copiei o filme. Impossível entender o assassinato. Está tentando o ramo da ficção?


Venha ver-me. Silenski House, Wardour Street.”

— O que isso significa? — ela perguntou. — É grego para mim — disse Dick. —
”Impossível entender o assassinato.” Seu pai está fazendo cinema de ficção?

— Não, querido. Tenho certeza de que não. Ele teria me falado.

— O que seu pai mandou copiar? — Cenas de uma truta — disse a moça, tentando
ordenar seus pensamentos. — Mas talvez tenha filmado outras coisas... enquanto dormia.
Estava no campo, esperando um texugo sair da toca; e cochilou. Acabou acionando o
disparador; achou que nada de importante tinha sido filmado. O telegrama não pode estar
se referindo ao filme da truta. Por certo se refere ao filme que julgou ter estragado ...

— Vamos a Wardour Street. Foi Elk quem falou com voz decidida, foi Elk quem
chamou um táxi e empurrou. Dick e a noiva para dentro do carro. Quando chegaram a
Wardour Street, o Sr. Silenski saíra para almoçar e ninguém sabia de coisa alguma sobre
o filme ou estava autorizado a mostrá-lo.

Esperaram uma hora e meia, nervosos, num pequeno escritório. Alguns rapazes saíram à
procura de Silenski, que finalmente chegou, um pequeno judeu de maneiras gentis e
agradáveis, que foi todo desculpas, embora ninguém tivesse pedido que se desculpasse;
afinal, ele não esperava visitas.

— Sim, é um filme curioso — disse. — Seu pai, senhora, é um amador dos melhores; de
fato, agora já é um

293
profissional... E se ele realmente conseguir trabalhar no zoológico, entrará para o time dos
melhores fotógrafos naturalistas.

Subiram com ele um lance de escadas, penetrando numa grande sala onde havia uma fileira
de cadeiras. Uma pequena tela branca cobria a parede frontal; nos fundos, um tabique de
ferro com dois buracos quadrados.

— Este é nosso cinema — explicou ele. — Sabe se seu pai está tentando o cinema de
ficção? Se está, a cena que tenho aqui foi muito bem dirigida, aliás, mas não posso
compreender por que foi rotulada de ”Truta num. Lago” ou alguma coisa desse tipo. Não
existe truta, nem tampouco lago!

Houve um ruído de comutador e a sala ficou escura; a seguir, surgiu na tela uma
seqüência de cinema. De início, junto a um terreno arenoso, surgia a entrada de uma
toca, fora da qual pulava um animal de olhar estranho.

— É um texugo — explicou o Sr. Silenski. — O início parece muito promissor, mas não
entendo o que aconteceu depois. Como verão, a câmara mudou de posição em seguida.

Enquanto ele falava, apareceu uma tomada resultante de um ligeiro movimento para a
direita, como se a câmara tivesse sido empurrada com violência depois do fotograma
anterior. Apareceram dois homens, obviamente vagabundos. Um deles sentado com a
cabeça entre as mãos, o outro, junto do primeiro, enchia um copo de uísque.

— É Lew Brady — sussurrou Elk com voz agitada. Na foto seguinte, o outro homem
estava de cabeça erguida e Ella Bennett gritou.

— É Ray! Oh, Dick, é Ray! Não havia dúvida disse. A barba do rapaz estava iluminada
pela luz do sol. Seguindo a seqüência das fotos, viram Brady oferecer-lhe um drinque,
viram-no recuar e devolver o copo; viram-no quando seus braços se espreguiçaram
acompanhando um bocejo; e viram-no enroscar-se para dormir, estender-se na relva e
Lew inclinar-se sobre ele. Viram ainda Lew colocar alguma coisa no bolso do outro.
Havia um reflexo de vidro.

294
— A garrafa — disse Elk. Viram a figura de Lew Brady começando a se afastar e, em
seguida, um vulto de homem, cujo rosto não era visível, caminhar para ele. Em momento
algum o recém-chegado virou o rosto para satisfazer a curiosidade da pequena platéia.

Viram o braço do estranho se erguer, e o relâmpago de dois tiros. Sem respiração,


fascinada, horrorizada, Elia permaneceu atenta até que a tragédia chegou ao fim.

O estranho pôs o revólver ao lado do adormecido Ray. Era o último fotograma.

— Aí acaba o filme — disse o Sr. Selinski. — Só Deus sabe o que isso significa.

— Ele é inocente! Dick, é inocente! — a moça gritava descontrolada — Você não viu? Não
foi ele quem atirou.

Estava enloquecida de mágoa e terror. Dick pegou-a com firmeza pelos ombros, enquanto o
assombrado Silenski tentava compreender alguma coisa da cena extra.

— Você vai voltar para minha casa e descansar! Está me ouvindo, Ella? Você não vai sair
nem fazer qualquer outra coisa; sentar e ler! Pouco importa o quê: a Bíblia, o almanaque
da Scotland Yard, qualquer coisa. Mas você tem de tirar toda essa história da sua cabeça.
Elk e eu faremos tudo que for possível.

A moça dominara o terror que sentira e procurava sorrir.

— Sei que farão tudo que for possível — disse, embora seus dentes não parassem de bater.
— Leve-me para sua casa, Dick, por favor.

Elk foi para a Rua Fleet colher todas as informações que havia sobre o crime nas redações
dos jornais. Dick levou a moça de volta ao Harley Terrace. Ao sair do táxi em
companhia da noiva, viu um homem de pé rios degraus do edifício. Era Joshua Broad. Ao
primeiro olhar, Dick percebeu que ele já sabia tudo sobre o as sassinato.

Broad esperou no vestíbulo, até que Dick instalasse a Srta. Bennett em seu estúdio e lhe
pusesse na frente

295
revistas ilustradas e todos os livros que conseguiu encontrar.

— Lola contou-me tudo que aconteceu. — Foi o que pensei — disse Dick. — Que acha
de toda essa história?

— Já sabia que os dois se tinham disfarçado de vagabundos — disse Broad — mas pensei
que tivessem ido para o Norte. Foi um trabalho da Rã... Mas por quê?

— Não sei ... Oh, sim, eu sei — Dick emendou bruscamente. — Na noite passada, a Rã
foi à casa da Srta. Bennett e pediu-lhe que se casasse com ele, a Grande Rã. Prometeu
que salvaria seu irmão se ela concordasse. Mas custa-me acreditar que toda a diabólica
trama tenha sido planejada apenas com esse objetivo.

— Mas foi — disse Broad com frieza. — Você não conhece a Grande Rã, Gordon! O
homem é um grande estrategista, provavelmente o maior estrategista do mundo. Posso
fazer alguma coisa para ajudar?

— Poderia ficar e tentar distrair a Srta. Bennett — Dick começou.

— Não poderia ter me pedido coisa mais agradável — disse calmamente o americano.

Havia sofrimento no olhar da moça quando o visitante entrou no estúdio. Ela julgou que
não toleraria a presença de um estranho naquele momento, que não resistiria a qualquer
outra situação tensa. Encarou Dick com olhos de súplica.

— Se não quiser que eu fique, Srta. Bennett — sorriu Broad — é só falar e eu irei embora.
Mas escute o que lhe vou dizer: seu irmão não será executado.

— Ainda há tempo? — perguntou ela em desespero, quase gritando, mas ninguém


respondeu.

Dick telefonou para a garagem e mandou que lhe trouxessem o carro, o mesmo automóvel
que Ray Bennett dirigira na primeira vez em que os dois se encontraram. O primeiro lugar
que se dirigiu foi o gabinete do Promotor Público, a quem relatou todos os fatos.

— É uma história inacreditável, mas nada posso fazer. Por que não fala logo com o
Secretário de Estado, Gordon?

296
— Ele está aqui na Câmara dos Comuns, senhor? — Não, não... Creio que o Secretário —
que é o único homem que pode fazer alguma coisa a estas alturas — está fora da cidade.
Talvez tenha ido ao Continente. Mas não tenho certeza. Na semana passada, houve uma
conferência em Sm Remo ,tenho impressão de que ele compareceu ...

O coração de Dick quase parava. — Será que não há mais ninguém que possa ajudar?

— Só o Subsecretário. Vá falar com ele. A Promotoria Pública ficava no prédio do


Departamento de Estado e Dick não perdeu tempo em sair à procura de quem pudesse
prestar auxílio rápido e eficaz. O encarregado do escritório, a quem ele explicou a
situação, abanou a cabeça.

— Receio que me seja impossível tomar qualquer providência de imediato, Gordon —


disse ele. — O Secretário de Estado está no campo, e muito doente.

— Onde está o Subsecretário? — perguntou Dick em desespero.

— Está em San Remo. — A casa do Sr. Whitby fica muito longe da cidade? O
funcionário pensou. — Fica a cerca de 30 milhas, perto de Tunbridge Wells’

Dick anotou o endereço num pedaço de papel. Meia hora mais tarde, um grande
Rolls-Royce amarelo atravessava voando a ponte de Westminster, ameaçando o tráfego
com uma indiferença que deixou muitos motoristas de coração na mão e provocou não
poucas palavras ásperas. Quarenta minutos depois que saíra de Whitehall ele entrava, a
toda pressa, numa avenida ladeada de pinheiros que conduzia à casa do Secretário de
Estado.

O mordomo que o atendeu não foi dos mais encoraj adores.

— Receio que o Sr. Whitby não possa recebê-lo, senhor. Está com um ataque bastante
grave de gota e os médicos proibiram-no de desenvolver qualquer atividade.

297
— Mas é uma questão de vida ou morte — disse Dick. — Tenho de vê-lo ... Porque se ele
não puder me receber, terei de procurar o Rei.

Suas palavras chegaram até o inválido, que o convidou a subir as escadas.

— O que está havendo, senhor? — perguntou com voz áspera o Ministro, quando Dick
entrou em seu quarto. — Tenho de me afastar de todo e qualquer problema político. Estou
sofrendo as penas do inferno nestes meus pés do demônio. Agora diga-me: o que está
havendo, senhor?

Gordon relatou rapidamente o caso. — Urna história assombrosa — disse o Ministro,


gemendo de dor. — Onde está o filme?

— Em Londres, senhor. — Eu não posso ir a Londres; é humanamente impossível.


Alguém do Departamento não poderia certificar-se do caso? Quando o homem será
enforcado?

— Amanhã de manhã, senhor, às 8h. O Secretário de Estado refletiu, coçando o queixo


com ar irritado.

— Forçosamente eu terei que ver o filme, mas não posso ir até a cidade, a não ser que me
levem de ambulância. Telefone para Londres e mande vir uma; ou melhor, mande vir do
hospital local.

Tudo parecia conspirar contra Gordon, pois a ambulância do hospital local estava em
reparos. Por fim, conseguiram de uma cidade próxima a promessa de que, em 10
minutos, uma ambulância estaria lá.

— Urna história extraordinária, absolutamente espantosa! Se ficar de fato convencido de


que todo o romance é verdadeiro, talvez esta noite mesmo nos encontraremos com o Rei. Já
lhe posso quase prometer a suspensão da execução. Mas minha morte pesará em sua
consciência se eu me resfriar.

Só duas horas mais tarde a ambulância chegou. O chofer tivera de trocar os pneus no
caminho. Com extremo cuidado, proferindo furiosas imprecações o doente foi levado para a
ambulância.

Para Dick, a viagem pareceu interminável. Tinha telefonado a Silenski, pedindo-lhe para
deixar a loja aberta até que chegasse com o Secretário de Estado.

298
Eram 8h quando se instalaram na sala de projeção e as cenas passaram a desfilar em
seqüência na tela.

O Sr. Whitby assistiu ao drama com o mais vivo interesse. Ao final respirou
profundamente.

— Tudo parece estar certo — disse ele —, mas como posso ter certeza de que tudo isso não
é encenação para conseguir a suspensão da sentença? E como vou ter certeza que aquele
infeliz vagabundo é o seu homem?

— Pode confiar em mim, senhor — disse Elk. — Recebi esta tarde uma fotografia tirada no
presídio de Gloucester.

Mostrou duas fotos, uma de perfil e uma de frente. Pousou-as sobre a mesa diante do
Secretário de Estado.

— Vamos ver o filme outra vez — ordenou ele, e de novo a pequena platéia assistiu à
tragédia. — Mas, como, afinal, pôde alguém conseguir este filme?

— Um cinegrafista amador estava naquele momento pelas redondezas. Pretendia filmar um


texugo ... O Sr. Silenski me deu todas as informações sobre a feliz coincidência.

O Sr. Whitby ergueu os olhos para Dick. — Ocupa um cargo na Promotoria Pública, não é
mesmo? Lembro-me muito bem do senhor, Capitão Gordon. Creio que devo aceitar sua
palavra. Este caso não exige apenas uma prorrogação, mas uma suspensão da sentença,
até que tudo tenha sido novamente investigado.

— Obrigado, senhor — disse Dick, enxugando o suor da testa.

— Seria melhor que me levassem de uma vez para o Departamento — resmungou o


Secretário de Estado. — Se amanhã estiver me sentindo pior, amaldiçoarei seu nome e
sua memória, esteja certo ... Quero ficar com esse filme.

Tiveram de esperar Silenski acondicionar o filme em sua lata; depois, tiveram de ajudar o
Secretário de Estado a embarcar outra vez na ambulância.

Às 8h15min, uma suspensão da sentença, faltando apenas o selo régio, estava nas mãos de
Dick, e o milagre que o Sr. Whitby não se atrevera a esperar tinha acontecido. Ele foi
capaz, ajudado por uma bengala, de coxear até um automóvel. Diante do grande palácio, o

299
tráfego era intenso. Era a noite do primeiro baile da estação; as entradas do palácio
ofereciam um espetáculo deslumbrante. A cintilação das jóias femininas, o escarlate, o
azul e o verde dos uniformes diplomáticos, o brilho de inumeráveis comendas, não menos
que a organização de tão esplêndida festa, despertavam a atenção de Dick, figura
estranhamente contrastante, parada defronte ao palácio, observando o cortejo que passava
por ele,

O Secretário de Estado tinha desaparecido numa ante-sala, mas pouco depois voltou e fez
sinal com o dedo. Dick seguiu-o por um corredor atapetado de vermelho, cheio de lacaios
com uniformes escarlates e dourados e perucas brancas. Finalmente, chegaram a uma
porta, diante da qual outro lacaio montava guarda. Algo foi sussurrado, o lacaio bateu na
porta e uma voz mandou-os entrar. O servo abriu a porta eles penetraram no aposento.

O homem que estava sentado na mesa levantou-se. Usava o uniforme escarlate de um


general; no peito, a faixa azul da Ordem do Garter. Havia em seus olhos uma
amabilidade e uma humanidade que Dick não imaginava encontrar.

— Não querem sentar-se? Agora, por favor, contemme a história o mais sucintamente
possível, pois tenho uma entrevista marcada em outro lugar e a pontualidade é a
soberana das cortesias — completou sorrindo.

Ele ouviu atentamente, interrompendo de vez em quando para fazer uma pergunta.
Quando Dick acabou, Sua Majestade imediatamente pegou uma caneta e anotou alguma
coisa: tinha uma letra juvenil, de traço vigoroso. Secou cuidadosamente a mensagem com
mataborrão e passou-a para o Secretário de Estado.

— Aqui está sua pena suspensa. Estou muito contente — disse.

Cumprimentando a mão estendida, Dick sentiu um triunfo musical na alma, esquecido por
um instante do terrível perigo que pesara sobre o rapaz; e esquecido, também, do mais
importante de tudo — a Rã, ainda vigilante, ainda vingativa, ainda poderosa!

Depois de voltar do Departamento de Estado, onde, com a mais calorosa expressão de


gratidão, se despediu

300
do irrascivel, mas bondoso Secretário, Dick subiu correndo os degraus que levavam até sua
sala na Scotland Yard e pegou o telefone.

— Ligue-me com Gloucester 8585. É uma chamada oficial.

Esperou que a telefonista completasse a ligação. — Lamento senhor, não posso completar
a chamada — disse ela, após alguns minutos. — Os circuitos estão defeituosos. As
linhas-tronco foram cortadas.

Dick pousou lentamente o fone no gancho. Só então se lembrou de que a Rã ainda estava
viva.

301
CAPÍTULO 35

Tentando chegar

Quando Elk chegou à sala de Dick, este estava sentado na mesa, escrevendo telegramas.
Todos eram endereçados ao diretor da prisão de Gloucester e continha uma breve
notificação de que a suspensão da sentença contra James Carter estava a caminho. Cada
um dos telegramas seguiria por um caminho diferente.

— Qual é a idéia? — perguntou Elk.

— Os circuitos telefônicos para Gloucester estão defeituosos — disse Dick, e Elk mordeu
o lábio pensativamente.

É mesmo? — exclamou ele com voz arrastada. Mas se não conseguirmos usar o telefone
...

— Nem quero pensar nisso — disse Dick . Elk pegou o aparelho. — Ligue-me com os
Telégrafos, senhorita — disse ele. — Quero falar com o chefe do expediente ... Sim, é o
Inspetor Elk da Scotland Yard.

— Estou tentando entrar em contato com Gloucester. Creio que os circuitos estão
desimpedidos, não? — perguntou ao funcionário.

Nem um músculo se moveu no rosto do inspetor quando ele ouviu a negativa.

302
— Estou entendendo — disse. — Não há qualquer modo de se entrar em contato com
Gloucester? Qual é a cidade mais próxima? ... É mesmo? Obrigado.

Ele pôs o aparelho no gancho. — Todas as comunicações com Gloucester estão


impedidas. Os fios foram cortados em três lugares diferentes. A conexão com Birmingham,
que corre num conduto subterrâneo, também foi dinamitada em três lugares.

Os olhos de Dick se estreitaram. — Tente o rádio — disse ele. — Há uma estação em


Devizes e uma outra nos arredores de Cheltenham. Eles podem mandar uma mensagem.

Elk agarrou-se novamente ao telefone. — É da central de rádio? Fala o Inspetor Elk, da


Scotland Yard. Precisamos enviar uma mensagem para Gloucester, para a prisão de
Gloucester... ahn? Mas pensei que fossem capazes de enfrentar um problema desses. Há
quanto tempo estão interferindo?... Obrigado ...

Pela segunda vez, o Inspetor pousou o telefone no gancho.

— Há uma interferência muito forte — disse. — Não é possível enviar mensagens. Dizem
que alguém está usando um aparelho secreto, que foi empregado pelos alemães durante a
guerra. Não é possível transmitir qualquer sinal.

Dick olhou para o relógio. Eram 9h3Omin. — Você pode tomar o trem das 10h5min para
Gloucester, Elk, mas algo me diz que ele não chegará a seu destino.

— Como os telefonemas — disse Elk, tirando outra vez, pacientemente, o fone do


gancho. — Tenho muitas das qualidades do chamado homem persistente. Alô! Ligue-me
com a estação ferroviária de Great Western, por favor. Com o chefe da estação de Great
Western Como vê, Dick minha voz ao telefone é perfeita e ... e tenho uma tremenda dose
de paciência ... e acredito piamente na pessoa com quem vou falar ... Alô? É o chefe da
estação? ... Inspetor Elk. Já não falei com você sobre ... oh, não! foi com outra pessoa. É o
Inspetor Elk, da Scotland Yard. Algum problema na linha esta noite?

303
Houve uma longa pausa. — Ora veja! — Elk exclamou, sem grande emoção. — Alguma
chance de atravessar? ... Nenhuma, mesmo? Quando acha que o tráfego será
restabelecido? ... Obrigado.

Ele se virou para Dick. — Três interrupções na via férrea e uma ponte caída em
Swindon, explodia às 7h; dois homens foram detidos e um está morto. Levou um tiro do
guarda ferroviário. Em Sloubh, a linha também foi atingida pela dinamite. Creio que não
vale a pena pedir informação sobre as outras vias de acesso a Gloucester, porque... bem,
a Rã está em toda parte.

Dick Gordon abriu um armário e pegou um casaco e um capacete de couro. Tirou duas
pistolas Browning da gaveta e, depois de verificar se estavam carregadas, colocou-as no
bolso. Selecionou, depois, meia dúzia de charutos e guardou-os cuidadosamente no bolso
da frente do capote.

— Você não vai sozinho, Gordon?— perguntou Elk num tom severo.

Dick assentiu com a cabeça. — Eu vou sozinho — disse. — Se não conseguir atravessar,
você vai atrás de mim. Mande um carro de polícia seguir-me. Diga para dirigirem atentos
aos obstáculos que possam surgir na estrada. Creio que posso completar a jornada antes
que anoiteça. Informe a Srta. Bennett de que a suspensão da pena já foi determinada e
que eu estou a caminho de Gloucester.

Elk não disse nada, mas seguiu seu chefe até a rua. Enquanto Dick examinava
cuidadosamente os pneus e o tanque de gasolina, o inspetor ficou postado, atônito, ao
lado do policial que estivera tomando conta da viatura.

Assim, Dick Gordon tomou a estrada de Bath; e os atiradores que o esperavam nos dois
aeroportos de Londres, preparados para alvej á-lo quando ele tentasse deixar a cidade por
via aérea, esperaram em vão. Ele evitou a estrada que conduzia diretamente a Reading,
tomando um caminho mais longo, secundário. Às 11h, chegou a Newbury, onde foi
informado da ocorrência de novos atentados a dinamite. Dois trens estavam de-

304
tidos na estação e os passageiros aglomeravam-se nas velhas ruas da pequena cidade.
Conversou com o inspetor da polícia local. Ao que parecia, o restante da estrada estava em
ordem, pois 10 minutos antes da chegada de Dick passara um carro vindo de Swindon.

— Pelo menos até Swindon, sei que não há problema — disse o inspetor. — Embora o
campo tenha sido recentemente invadido por um bom lote de vagabundos, meus
patrulheiros não viram nenhum deles nas estradas.

Dick pensou alguma coisa, e levou o inspetor até a delegacia de polícia, entrando junto
com ele.

— Quero um envelope e papéis com timbre oficial — disse repentinamente o detetive.

Sentando-se numa escrivaninha, rabiscou uma cópia da ordem de suspensão da sentença,


repleta de uma terminologia antiquada, selou o envelope com lacre e colocou-o no bolso.
Depois, pegou o documento original e o escondeu dentro da meia, sob a sola de um dos
pés. Pulando para o carro, reiniciou a jornada, tomando a direção de Didcot. Seguia
cautelosamente, não muito depressa, urna das pistolas no banco do lado.

Contra o clarão do pôr-do-sol, aquela luminosidade fraca e pálida que é o esplendor do


final do verão, Dick observou a silhueta de uma construção que lhe pareceu um
aeródromo. E então se lembrou do que Elk lhe dissera sobre a indústria química.
Provavelmente, aquele era o lugar, e ele redobrou a atenção ao volante. Tinha feito uma
curva, quando à sua frente, viu três luzes vermelhas ao longo da estrada. Perto delas,
havia um policial. O detetive diminuiu a marcha e parou a poucos metros do agente de
polícia.

— O senhor não vai poder prosseguir viagem, cavalheiro. A estrada está impedida.

— Há quanto tempo interditaram a estrada? — Dick perguntou.

— Houve uma explosão, senhor há cerca de 20 minutos — foi a resposta. — Se voltar uma
milha, encontrará uma estrada secundária. Ela o levará para o outro lado da linha férrea. De
lá, o senhor poderá seguir viagem. Se quiser, pode manobrar aqui — ele comple-

305
tou, indicando um portão que conduzia à fábrica de produtos químicos.

Dick engrenou uma marcha-à-ré e a traseira do Rolls-Royce foi se aproximando da


entrada da fábrica. Sua mão estava pronta para manobrar o volante quando o policial, que
se tinha colocado ao lado do carro, o atingiu

A cabeça de Gordon pendeu. Ele foi incapaz de resistir. Somente o capacete que usava
salvou-o da morte. Não viu mais nada. Subitamente, o mundo havia se tornado negro.
Pouco depois, meia dúzia de homens saíram da sombra. O corpo inerte do detetive foi
retirado do carro. Alguém tomou-lhe o lugar ao volante e fez o carro recuar um pouco
mais. Depois, os faróis foram desligados. Outro homem tirou as lâmpadas vermelhas do
meio da estrada. O policial curvou-se sobre a figura prostada de Dick Gordon.

— Pensei que tivesse acabado com ele! — exclamou, desapontado.

— Não seja por isso, acabo com ele agora — disse alguém na escuridão, mas as intenções
do atacante já eram outras.

— Hagn vai querê-lo vivo — disse. — Vamos carregá-lo.

Arrastaram o corpo inanimado pelo terreno áspero, atravessaram uma porta e uma sala
mal-iluminada da fábrica, onde não havia qualquer tipo de máquina. Na parede oposta,
havia uma divisão de tijolos, formando uma espécie de escritório. Carregaram-no para lá e
o largaram no chão.

Aqui está seu homem, Hagn — rosnou o policial. — Creio que ainda está inteiro.

Hagn levantou-se de uma escrivaninha e andou até onde jazia Gordon.

— Acho que está inteiro até demais — disse Hagn. — Não se pode matar um homem que
esteja usando um capacete desses. Tirem essa coisa da cabeça dele.

Tiraram o capacete da cabeça do homem inconsciente e Hagn fez um rápido exame.

— Ele está bem — disse. — Entornem um pouco d’água encima dele. Oh, não, esperem!
É melhor revistá-lo primeiro. Esses charutos — ele apontou para o bolso da frente —,
esses charutos eu quero.

306
A primeira coisa encontrada foi o envelope azul, que Hagn abriu e leu.

— Isto é muito interessante — disse, trancando o papel numa das gavetas da escrivaninha.
— Agora, joguem água!

Dick voltou a si com a cabeça latejando e uma sensação de ressentimento contra a força
agressora que o derrubara. Sentou-se esfregando o rosto como alguém que estivesse
despertando de um sono pesado. Franziu os olhos ante o brilho da luz e, cambaleando, se
pôs de pé, olhando em torno de si, fitando um por um os rostos sinistros, que sorriam
mostrando os dentes.

— Oh! — ele exclamou afinal. — Parece que fui atingido. Quem me bateu?

— Bem, daqui a pouco nos apresentaremos — Hagn murmurou. — Para onde estava
indo a esta hora da noite?

— Estou indo para Gloucester — disse Dick. — Como você é estúpido! — Hagn falou
com voz de escárnio. — Vamos rapazes, levem-no para cima!

Saindo do escritório, havia um lance de degraus, de madeira descascada. Dick foi em


parte empurrado, em parte arrastado. A sala no andar de cima fora usada durante a
guerra como uma torre de vigia improvisada. Tinha uma janela ampla, com vista para toda
a área da frente da fábrica. A janela estava agora coberta de fuligern e o assoalho
entulhado de detritos, que os atuais ocupantes não se davam ao trabalho de remover.

— Revistem-no de novo. Precisamos ter certeza absoluta de que ele não traz nenhum
revólver. Tirem-lhe também as botas — Hagn ordenou.

Uma pequena lâmpada com filamentos de carvão lançava uma desagradável luz amarela
sobre o sinistro grupo que cercava Dick Gordon. O detetive procurava as possíveis
saídas, pela janela, era impossível escapar; o teto era coberto com tábuas de madeira,
outrora envernizadas, e não mostrava qualquer ponto de apoio que pudesse facilitar um
golpe. Não existia qualquer meio de fuga, salvo a escada.

— Você terá de ficar aqui por um dia ou dois, Gordon, mas talvez, se o diretor da prisão
nos devolver Balder, você possa escapar com vida. Caso contrário, adeus.

307
CAPÍTULO 36

A espera

Dick Gordon sabia que qualquer discussão com seus captores seria um desperdício de
fôlego, que toda argumentação seria inútil. Sua cabeça doía, mas logo que se viu sozinho
fez um exercício terapêutico que lhe haviam ensinado. Pôs o queixo no peito e as duas
mãos abertas atrás do pescoço, com as pontas dos dedos apertando bem a nuca; depois,
lentamente, foi erguendo a cabeça (e foi um suplício fazer esse movimento), enquanto
descia os dedos até a altura da jugular. Repetiu o exercício três vezes e conseguiu aliviar
um pouco a dor.

A porta era de madeira fina e facilmente poderia ser forçada, mas a sala embaixo estava
cheia de homens. Pouco depois, no entanto, a luz se apagou no andar de baixo. Tudo
ficou às escuras. Ele conjecturou que Hagn não queria que, da estrada, vissem luzes.
Era improvável que seus carcereiros quisessem interrogá-lo ainda naquela noite e ele
resolveu agir.

Não lhe tinham tirado a caixa de fósforos; Dick riscou um palito e olhou em volta. Junto
de uma lareira, repleta de um indescritível amontoado de papéis semiqueimados e de
cinzas, havia um disco de aço, com buracos para rebites, sem dúvida parte de um antigo
tanque de guerra desmontado. Havia também uma chave elétrica na parede e Dick puxou-a,
na esperança de

308
que ela comandasse a luz; mas ela parecia estar ligada a outro circuito, provavelmente o
mesmo circuito que acionava as luzes no andar de baixo. Acendeu outro fósforo e
inspecionou a caixa que abrigava a chave elétrica. Dali a pouco, encontrou um cabo grosso
e negro que percorria a quina da parede e o teto. Ele terminava abruptamente à direita da
lareira; pelas marcas no assoalho, Dick acreditou que antigamente uma oficina de solda
havia funcionado naquele aposento. Ele recolocou a chave na posição inicial e sentou-se
para considerar qual a melhor coisa a fazer. Podia ouvir o murmúrio das vozes no andar de
baixo; deitando-se no assoalho, encostou o ouvido num alçapão e escutou, atento, a
conversa. Hagn era quem mais falava.

— Se explodirmos a estrada entre este lugar e Newbury, eles vão desconfiar de nossa
localização — dizia ele.

— Claro, isso seria uma idéia estúpida, Hagn. Que pretende fazer com aquele sujeito lá
em cima?

— Não sei. Tenho de esperar as ordens da Rã. Talvez a Rã ache melhor matá-lo.

— Ele seria uma boa presa para trocar por Balder. Contudo, se a Rã julgar que não vale a
pena . .

Lá pelas 5h, Hagn, que saíra do escritório por algum tempo, voltou e disse em voz baixa:

— A Rã determinou que ele deve morrer.

As 4h da manhã, havia duas pessoas no estúdio de Dick Gordon. Pela 20.a vez, Elk tinha
ido até a chefatura e pela 20.a vez logo estaria de volta. Ella Bennett tentara seguir com
empenho as instruções de Dick, folheando resolutamente livros e revistas, mas não
conseguia ver ou ler coisa alguma. Largou um dos livros com um suspiro profundo e
entrelaçou as mãos, os olhos fixos no relógio.

— Acha que ele conseguirá chegar a Gloucester? – perguntou.

— Claro que sim — disse Broad confiantemente. — Aquele rapaz conseguiria chegar a
qualquer lugar. É o tipo de homem que ninguém pode deter.

309
A moça pegou novamente o livro, mas não olhou para á página impressa.

— Afinal, o que aconteceu aos carros de polícia? Na noite passada, o Sr. Elk falou um
bocado sobre eles, mas hoje ainda não fez qualquer comentário.

Joshua Broad molhou os lábios secos. — Oh, toda a polícia está tentando chegar a
Gloucester — disse ele vagamente.

Não contou que dois carros de polícia tinham caído numa vala propositalmente aberta
entre Newbury e Reading, que tinham ficado em pedaços, e que três homens tinham sido
feridos por uma bomba arremessada contra eles. Nem falou das notícias que um
motociclista trouxe de Swindon, informando que o carro de Dick não fora avistado.

— É uma gente terrível, terrível! — exclamou ela num tremor. — Como pode existir uma
coisa dessas, Sr. Broad?

A pedido da moça, Broad estava fumando uma cigarrilha comprida e fina em lugar do
charuto. Ele tragou longamente antes de responder.

— Creio que sou o pai das Rãs — disse por fim, para espanto da Srta. Bennett.

— O senhor! Ele balançou afirmativamente a cabeça. — Eu não sabia que estava criando
tamanho monstro, mas não posso negar a paternidade.

Naquele momento, Joshua Broad não parecia disposto a dar maiores explicações.

Ele levantou-se logo que ouviu o toque da campainha, julgando que fosse Elk. Atravessou
o corredor e abriu a porta. Não era Elk.

— Desculpe incomodar. É o Sr. Broad, não? O visitante espreitou o vestíbulo escuro à sua
frente. — Sim, eu me chamo Broad. É o Sr. Johnson, creio? Pode entrar, Sr. Johnson.

O americano fechou a porta atrás do outro e acendeu a luz. O corajoso recém-chegado


estava num estado de lastimosa agitação.

— Na noite passada, fiquei acordado até de manhã — ele começou — e um empregado


trouxe-me a primeira edição do Post Herctid.

310
— Então o senhor sabe, hein? — É terrível, terrível! É inacreditável! Ele tirou o jornal
amassado do bolso e olhou a manchete, como se quisesse confirmar o que tinha lido.

— Não sabia que já estava nos jornais. .. — refletiu o americano.

Johnson passou-lhe o exemplar do Post Herald. — Aposto que foi o velho Whitby quem
passou a história adiante.

— Acho que foi aquele homem dos filmes, Silenski, quem deu a notícia. Mas é mesmo
verdade que Ray está sob sentença de morte?

Broad concordou com a cabeça. — Isso é chocante! — disse Johnson com voz abafada.
— Graças a Deus ficamos sabendo a tempo da situação de Ray! Espero, Sr. Broad — ele
acrescentou com empolgação — que Elia Bennett não se esqueça de que pode contar
comigo até meu último centavo para provar a inocência de seu irmão. Creio que haverá
suspensão da pena e novo julgamento, não? Nesse caso, podemos lançar mão dos
melhores advogados.

— A Srta. Bennett está aqui. Não quer entrar e falar com ela?

— Aqui? — exclamou Johnson boquiaberto. — Não imaginava — ele balbuciou.

— Venha. Broad voltou para perto da moça. — Aqui está um amigo seu... Sr. Johnson.
O filósofo atravessou o aposento com passos rápidos e nervosos, estendendo ambas as
mãos para a irmã de Ray.

— Lamento muito, Srta. Bennett — disse —, não sabe o quanto lamento! Tudo isso deve
ser terrível para a senhorita, terrível! Posso ser útil em alguma coisa?

A moça balançou a cabeça, lágrimas de gratidão nos olhos.

— É muita gentileza sua, Sr. Johnson. O senhor tem feito muito por Ray; o Inspetor Elk
contou-me que o senhor já ofereceu a meu irmão um cargo na empresa.

Johnson balançou a cabeça. — Isso não é nada. Sou muito amigo de Ray e, de

311
fato, o rapaz tem as melhores aptidões. Logo que o livrarmos desta enrascada, vou pô-lo
novamente de cabeça erguida. Seu pai ainda não sabe o que está havendo? Estou pedindo a
Deus por isso!

— Mas agora que os jornais noticiaram... — disse a moça, quando soube como Johnson
ficara a par dos acontecimentos.

— Silenski, evidentemente — disse Broad. — Um homem que negocia com filmes de


publicidade usaria o próprio funeral para se promover. Como está se sentindo em sua nova
posição, Johnson? — perguntou ele, para aliviar um pouco a mente da Srta. Bennett dos
pensamentos trágicos que a envolviam.

Johnson sorriu. — Estou perplexo. Não posso entender por que o pobre Sr. Maitland fez
isso. Mas hoje recebi meu primeiro aviso da Rã, o que, aliás, fez com que me sentisse quase
importante.

Do bolso surrado do casaco, tirou uma folha de papel com três palavras:

”Você é o próximo!”

e com o símbolo da Rã rabiscado a mão.

— Não sei que mal fiz a essas pessoas, mas presumo que tenha causado um dano
considerável, pois 10 minutos depois de ler o bilhete, o porteiro trouxe-me a xícara de
chá que sempre tomo à tarde ... Bebi um gole, mas o gosto toi tão amargo que lavei a boca
com um desinfentante.

— Quando foi isso? — Ontem — disse Johnson. — Esta manhã recebi a análise do
laboratório . Eu tinha colocado o chá numa garrafa e mandado para um laboratório
químico... Continha uma quantidade de ácido cianídrico suficiente para matar uma
centena de pessoas. O químico ficou surpreso por eu ter conseguido tomar um gole sem
sofrer qualquer conseqüência. Hoje vou levar o caso ao conhecimento da polícia.

A porta da frente se abriu e Elk entrou. — Quais são as novas? — perguntou avidamente
a moça, erguendo-se para ir ao encontro do Inspetor.

312
— Ótimas! — disse Elk. — Não precisa mais se preocupar, Srta. Bennett. Gordon, sem
dúvida, sabe muito bem o que faz. Aposto que já está em Gloucester, dormindo na
melhor cama da cidade.

— Mas o senhor sabe que ele está em Gloucester? s — a moça perguntou


obstinada.

— Não recebi notícias precisas, mas posso afiançarlhe que não há qualquer notícia ruim —
disse Elk. — Quando a Scotland Yard não recebe notícias, pode estar certa de que as
coisas estão andando bem. E o Sr. John, son, como soube das novidades?

O novo milionário explicou. — Eu devia ter mandado Silenski e seu empregado ficarem
de boca fechada — disse Elk pensativamente. — Esse pessoal que lida com cinema não
sabe ser discreto. E qual é a sensação de ser um homem rico, Johnson? — perguntou o
Inspetor.

— O Sr. Johnson não acha que seja uma sensação lá muito boa! — Broad exclamou. —
Ele já atraiu a atenção da velha Rã.

Elk examinou cuidadosamente o bilhete. — Quando recebeu a nota? — Encontrei-a


ontem de manhã em minha mesa — disse Johnson, e falou novamente do chá envenenado.
— Acredita, Sr. Elk, que algum dia conseguirá pôr as mãos sobre a Rã?

— Isso é tão certo quanto eu estar aqui de pé. E essa Rã vai se sair muito mal se Dick .

Elk se interrompeu de repente, mas felizmente a moça não estava ouvindo.

Já amanhecia quando Johnson foi embora. Elk acompanhou-o até a porta e o contemplou
atravessando a rua.

— Sem dúvida, Johnson é um homem de sorte! Mas até agora não entendi por que o velho
não deixou o dinheiro para aquele seu bebê.

— E afinal, encontrou o bebê? — interrompeu Broad.

— Não, não. Não há sinal dessa inocente criança na casa. É outro mistério da Rã que tem
de ser esclarecido.

313
Johnson tinha chegado à esquina. Broad e o Inspetor Elk viram-no cruzar a rua
transversal, quando um homem se aproximou dele. Houve uma rápida troca de palavras,
e então Elk viu um clarão e ouviu o som de um tiro. Johnson cambaleou e o atacante
fugiu. Num segundo, Elk estava correndo pela rua em direção ao filósofo.
Aparentemente, Johnson não fora atingido, embora não parasse de tremer.

O inspetor disparou pela esquina, mas o assassino desaparecera. Voltou para perto do
filósofo, que se sentara no meio-fio.

— É, acho que não fui ferido, mas tive um grande choque — Johnson falou com voz
arquejante. — Eu estava inteiramente despreparado para esse tipo de ataque.

— O que aconteceu exatamente? — perguntou Elk. — Mal posso compreender — disse o


outro, que parecia aturdido. — Ia atravessando a rua, quando um homem se aproximou e
perguntou se meu nome era Johnson; depois, antes mesmo que eu percebesse o que
acontecia, ele atirou.

Seu casaco tinha manchas de pólvora, mas a bala devia ter passado longe. Mais tarde, Elk
encontrou-a cravada na parede de tijolos de uma casa.

— Não, Sr. Elk, eu vou para casa; não creio que repitam o atentado — disse Johnson
quando o inspetor sugeriu que ele deveria permanecer na casa de Dick.

O filósofo foi escoltado até sua casa por um dos detetives que vigiavam o Harley Terrace.

— Sem dúvida, a Rã pretende ocupar-se de tudo e de todos — disse Elk, balançando a


cabeça. — Acha que a Rã iria satisfazer-se apenas com o trabalho que está cumprindo
em Gloucester? Ela sempre desenvolve linhas paralelas de ação.

— Quando souber tudo que eu sei da Rã, sem dúvida não se surpreenderá com coisa
alguma — disse Joshua Broad, rompendo um longo silêncio, mas sem desenvolver a
enigmática observação.

Um relógio bateu 6h, mas não chegou qualquer notícia nova. Às 7h, o estado emocional de
Elia Bennett tornou-se deplorável. Durante toda a noite, a moça tinha superado seus
temores com uma coragem que

314
despertou a admiração dos homens que lhe faziam companhia, mas, naquele momento,
quando os minutos se esgotavam tão rapidamente, a Srta. Bennett parecia estar à beira do
colapso. As 7h30min, o telefone tocou e Elk atendeu.

Falava o chefe de polícia de Newbury. — O Capitão Gordon passou em Didcot uma hora
atrás — era a mensagem.

— Didcot! — exclamou Elk com voz arfante e consternada.

O Inspetor olhou para o relógio. — Há uma hora.. . e ele tem que chegar a Gloucester em
menos de 30 minutos!

A moça, que fora para a sala de jantar e tentava tomar um café preparado pela empregada
de Gordon, entrou subitamente no estúdio, e Elk não ousou continuar a conversa.

— Tudo bem — disse em voz alta, e pousou com violência o fone no gancho.

— Quais são as novidades, Sr. Elk? — a voz da Srta. Bennett era um gemido.

— As novidades — Elk respondeu, torcendo o rosto num sorriso — são ótimas.

— O que disseram? — ela insistiu. — Ao telefone? — perguntou Elk, olhando para o


mesmo. — Na realidade, era um amigo meu, convidando-me para jantar com ele esta noite.

A moça voltou para a sala de jantar, não de todo convencida, e Elk chamou o americano
para perto de si.

— Vá buscar um médico — disse, em voz baixa. — Peça-lhe para trazer alguma coisa que
faça esta jovem dormir durante umas 12 horas.

— Por quê? — Broad perguntou. — As notícias são más?

Elk respondeu afirmativamente com a cabeça. — Não há a menor chance de salvar o


rapaz... Não há qualquer sombra de possibilidade! — disse ele.

315
CAPITULO 37

A escapada

Dick, com o ouvido colado ao assoalho, ouviu as palavras ”A Rã diz que ele tem de
morrer”, e em seus lábios entreabertos formou-se um riso sardônico.

— Ouviram algum movimento lá em cima? — per guntou Hagn.

— Não, acho que ele está dormindo — respondeu alguém. — Teremos de esperar que
amanheça. Nada podemos fazer às escuras. Correríamos o risco de atirar num de nós.

Dick concluiu que a maioria de seus captores estava presente: contou seis vozes. Acendeu
um fósforo para examinar outra vez o aposento e de novo seu olhar fixou-se no cabo
elétrico. Teve então uma idéia. Arrastando-se silenciosamente pelo chão, conseguiu erguer
um pouco o corpo e agarrar o cabo que puxou com firmeza. Com o puxão, ele se partiu e,
num golpe de sorte, caiu sobre o monte de entulho perto da lareira, quase sem fazer
barulho. Durante meia hora, o detetive trabalhou febrilmente, descascando a camada de
borracha isolante que cobria os fios de cobre. As mãos do policial sangravam, as narinas
arfavam; mas, após meia hora de trabalho árduo, ele tinha conseguido raspar o
revestimento de borracha. A porta do aposento se abria para fora — Dick lembrou-se com
satisfação — e, erguendo o prato de aço, encostou-o firmemente contra a

316
porta, para dificultar a entrada de qualquer intruso inoportuno. Depois, juntou os fios de
cobre, bastante resistentes, e passou a pregá-los em alguns dos cravos presos à parede.
Mal terminara essa tarefa, quando ouviu sons abafados nos degraus da escada.

O dia clareava e a luz se derramava pelo telhado de vidro da fábrica. Escutou alguns
sussurros, e ainda o estalido fraco de uma arma sendo destravada. Os ferrolhos da porta
foram abertos. Dick arrastou-se rapidamente para um interruptor de luz, ligado a um
circuito elétrico independente, e desligou-o.

A porta se abriu subitamente e um homem esbarrou no prato. Antes que seu grito pudesse
alertar quem o seguia, também o segundo do grupo estava caído sem sentidos no chão.

— Que diabo está acontecendo aí? Era a voz de Hagn. Ele subiu correndo os degraus.
embaraçou um dos pés nos fios elétricos e ficou imóvel durante um segundo. Depois, com
um soluço convulso, caiu para trás e Dick ouviu-o rolar as escadas.

O detetive não esperou mais tempo. Pulando sobre o prato e evitando os fios, ele saltou
escadas abaixo, atropelando o corpo desacordado de Hagn. A salinha de baixo estava
vazia. Havia uma pistola sobre a mesa. Ele a pegou e deslizou a toda pressa pelo chão de
cimento do vestíbulo, transpondo uma porta para o ar livre. Ouviu gritos de raiva e,
olhando para trás, viu dois homens do bando correndo em sua direção. O detetive
apontou a pistola e apertou o gatilho. Houve apenas um estalido — Hagn esvaziara o
tambor.

Mas uma Browning é uma arma excelente, mesmo descarregada. Dick Gordon lançou a
coronha com força esmagadora contra a cabeça do homem que se preparava para
derrubá-lo. Depois, virou-se e fugiu.

Ele cometera um erro ao julgar que só havia seis pessoas no prédio; existiriam pelo menos
20, mas a maioria em pânico absoluto.

Ele tentou alcançar a estrada e apenas alguns arbustos o separavam dela. Os arbustos,
porém, ocultavam uma cerca de arame farpado; o detetive teve de se arrastar pelo chão
muito áspero e o movimento foi doloroso para seus pés, calçados apenas de meia. Seu

317
lento progresso deu vantagem aos homens que o perseguiam, mas Dick desviou para o
segundo bloco da fábrica e verificou novamente o tambor da pistola. De fato, estava
vazio.

Agora, os homens de Hagn se aproximavam dele. Gordon podia ouvir-lhes a respiração e


ele mesmo estava à beira do completo esgotamento. Foi então que viu à sua frente um
enorme alarme contra incêndio fixado a uma parede. Com mãos nervosas, o policial
quebrou o vidro e tentou acionar o alarme, mas seus perseguidores caíram sobre ele. Dick
lutou desesperadamente, mas parecia definitivamente destinado a perder a batalha. Tinha
de ganhar tempo.

— Por que isso, seus estúpidos! — gritou. — Hagn está morto.

Foi uma afirmação das mais infelizes, pois, naquele momento, Hagn saiu do bloco
vizinho, muito machu cado, mas vivo. Vinha pálido de raiva e balbuciava uma língua
que Dick não compreendia, provavelmente sueco.

— É você, cachorro, quem vai experimentar o choque elétrico!

Hagn apontou o punho para o rosto do prisioneiro, mas Dick desviou bruscamente a cabeça
e o soco foi parar no muro de tijolos, do edifício. Com um grito de dor, Hagn pulou
sobre ele, tentando agarrar-lhe o pescoço com as mãos espalmadas, o que foi a salvação do
detetive . . . Os outros homens afastaram-se para deixar que o chefe agisse sozinho e
livremente. Dick conseguiu fazer com que um golpe repercutisse eficientemente por todo
o corpo do adversário e com um grunhido Hagn desmoronou. Antes que os outros se
dessem conta do que acontecera, Dick já estava correndo, rápido como o vento, dessa
vez na direção do portão.

Tinha alcançado as grades do portão, quando as mãos de um dos perseguidores caíram


sobre ele. O policial conseguiu livrar-se e, num movimento brusco, saltou para a estrada.
No mesmo instante, houve um barulho de sirena. Um carro de bombeiros aproximava-se a
toda velocidade.

Por algum tempo, os perseguidores agrupados em volta do portão pararam estupefatos.


Depois, sem esperarem mais tempo pelos acontecimentos, deram meia-

318
volta e tentaram fugir. Com uma palavra, o chefe dos bombeiros ficou a par da situação.
Outra viatura também se aproximava a toda pressa ...

Enquanto Hagn estava sendo conduzido para um dos carros, Dick consultou o relógio;
eram 6h. Ele correu para seu carro, esperando o pior. Hagn, contudo, não tentara deixar o
carro fora de ação. Provavelmente, julgara que o próprio bando tiraria proveito do veículo.
Três minutos depois, desgrenhado, sujo, com as marcas das solas dos sapatos de Hagn no
rosto, Dick arremessou-se estrada afora, dirigindo para Gloucester o capô alongado do
carro. Não podia ter ido mais rápido, mesmo se tivesse percebido que seu relógio estava
parado.

Passou a toda velocidade por Swindon e logo entrava na rodovia para Gloucester.
Consultou novamente o relógio. Os ponteiros ainda marcavam as 6h e o detetive arfou.
Ele viajaria agora sem a noção do tempo e a estrada era ruim, cheia de buracos e curvas
fechadas. Uma vez, quase saiu da pista ao derrapar num acostamento.

Um estouro de pneu e o detetive custou a controlar o veículo, mas mesmo assim


continuou em marcha, embora a velocidade caísse consideravelmente. O carro esquentava
e a estrada corria milha após milha sem nenhum sinal da cidade.

Subitamente, porém, a Catedral de Gloucester mostrou suas torres do outro lado de uma
colina — mas um segundo pneu estourou. Dick não podia parar. Tinha de continuar,
nem que chegasse a Gloucester em pedaços. Agora a velocidade estava incrivelmente
reduzida, em comparação com a pressa frenética em que o carro atravessara Berkshire e
Wiltshire, nos limites de Somerset.

Ele entrava nos subúrbios dispersos da cidade. O caminho era sinuoso e terrível.
Desobedeceu ao sinal de um guarda de trânsito, quase se chocou com a traseira de um
grande e lento trator e viu as horas num relógio de rua — faltavam dois minutos para as
oito horas; a prisão estava a meia milha de distância. Ele apertou os dentes e rezou.

319
Os pêndulos da catedral batiam 8h, quando o detetive viu à sua frente os portões do
presídio. Para Dick Gordon, os sinos da igreja soaram como notas de um cortejo fúnebre.

Dificilmente ele conseguiria fazer com que a sentença fosse suspensa. Talvez Ray Bennett
estivesse destinado a morrer com pontualidade. A agonia do enforcamento foi uma idéia
que o deixou sombrio. Dick jogou o carro contra o meio-fio em frente aos portões da
prisão e tocou a campainha que anunciava os visitantes. Repetiu o gesto por duas vezes,
mas os portões continuaram fechados. Dick tirou a meia e puxou o documento que
suspendia a execução, um papel amassado e manchado com o sangue que lhe escorria dos
pés. Novamente tocou os sinos com fúria e desespero. Foi então que uma portinhola se
abriu e despontou a expressão carrancuda de um guarda.

— O senhor não pode entrar — disse ele laconicamente. — Não sabe o que está
acontecendo aqui?

— Vim a mando do Departamento de Estado — gritou Dick, atropelando as palavras. —


Trago uma mensagem! Trago uma ordem de suspensão da pena!

O postigo tornou a fechar e, após uma eternidade, a chave girou na fechadura e a pesada
porta recuou.

— Sou o Capitão Gordon — falou Dick com voz ofegante — do escritório do Promotor
Público. Trago uma ordem de suspensão da execução de James Carter.

O guarda balançou a cabeça. — A execução já foi cumprida há cinco minutos, senhor


— disse ele.

— Mas o relógio da Catedral — Dick rosnou. — O relógio da Catedral está quatro


minutos atrasado — disse o guarda. — Sinto muito, mas Carter está morto.

320
CAPÍTULO 38

O homem misterioso

Ray Bennett despertou de um sono reparador e sentou-se na cama. Um dos guardas, que o
estivera vigiando durante toda a noite, se aproximou.

— Não quer suas roupas, Carter? — disse ele. — O diretor acha que você não se importaria
em usar aqueles seus velhos trapos.

— E ele tem razão — disse Ray, num tom agradecido. — Esses velhos trapos ainda me
vestem muito bem — acrescentou o prisioneiro enquanto punha as calças.

O guarda tossiu. — Sim, ainda são uma boa roupa — ele concordou. O guarda não disse
mais nada, mas sua atitude constrangida traiu a verdade. Eram aquelas as roupas com
que um homem seria enforcado; as mãos de Ray, contudo, não tremeram quando ele
ajustou o cinto. Pobre roupa para vestir alguém numa ocasião tão desagradável! O
condenado esperou que elas suportassem a crueza da experiência.

Trouxeram-lhe o café da manhã às 6h. O olhar do jovem Bennett deslizou vagamente pelo
bloco de escrever, em branco sobre a mesa ... Quando acabou de tomar o café, entrou o
capelão, um homem tranqüilo e paramentado, de expressão viva, que o bem-marcado

321
traçado fisionômico acentuava. Os dois falaram por algum tempo. Depois o guarda sugeriu
que Ray fizesse algum exercício e exercitasse os músculos no pátio externo. Bennett ficou
satisfeito com o privilégio. Queria olhar mais uma vez o céu azul, sentir nos pulmões o
bálsamo do ar mandado aos homens por Deus.

Mas ele sabia que não se tratava de uma gentileza gratuita. Percebeu a razão de lhe
concederem tal privilégio ao caminhar lentamente em volta do pátio, de braço dado ao
vigário. Sabia agora o que o esperava atrás da terceira porta. No compartimento da morte,
os carcereiros testavam a forca, e, tinham permitido que Ray passeasse no pátio externo
para que não presenciasse a triste cena.

Em meia hora, o condenado estava de volta a sua cela.

— Não quer confessar-se Carter? Este é seu nome, não?

— Não, não é meu nome, senhor — disse Ray com serenidade —, mas isso não importa.

— Você matou aquele homem?

— Não sei — disse Bennett. — De fato, senti vontade de matá-lo, e é provável que o tenha
feito.

Quando faltavam 10 minutos para as 8h, chegaram o Diretor e o Corregedor. O relógio da


prisão movia-se devagar, mas inexoravelmente para a frente. Ray podia vê-lo através da
porta aberta da cela e, reparando nisso, o diretor mandou que a fechassem. Faltava
apenas um minuto para as 8h; logo a porta seria outra vez aberta. Ray viu a porta
mexer-se. Por um segundo, seu autocontrole pareceu querer abandoná-lo. Virou as costas
para o homem que entrava com um passo rápido, entrelaçou as mãos e apertou-as.

— Meu Deus, perdão! Que Deus me perdoe! — murmurou alguém atrás do prisioneiro.

Ouvindo o som daquela voz, Ray virou-se depressa e encarou o executor.

O carrasco era John Bennett! Pai e filho, executor e condenado prestes a morrer.

322
Os dois olharam-se fixamente; depois, com voz quase inaudível, John Bennett soprou a
palavra:

— Ray! Ray baixou a cabeça. Era estranho que, naquele momento, sua mente se voltasse
para as misteriosas perambulações do pai e avaliasse o ódio que, por certo, o velho
Bennett nutria pela ocupação que as circunstâncias o forçavam a cumprir.

— Ray! — o homem soprou novamente a palavra. — Conhece este homem? Era o


diretor quem perguntava, a voz trêmula de emoção.

John Bennett virou-se para ele. — É meu filho — disse o carrasco, e fez um movimento
para se afastar.

— Terá de cumprir sua tarefa, Bennett. -A voz do diretor foi severa, terrível. — Cumprir
minha tarefa? — repetiu John Bennett maquinalmente. — Executar minha tarefa? Matar
meu próprio filho? O senhor está louco? Pensa que eu também estou?

O velho Bennett abraçou o rapaz, a face contra a barba crescida de Ray.

— Meu filho! Oh, meu filho! — disse ele, acariciando os cabelos de Ray, como fazia
quando ele ainda era criança. Depois, recompondo-se subitamente, empurrou o rapaz pela
porta aberta até a câmara da morte, e trancou-se com ele no pequeno compartimento.

Aquela era a única porta que conduzia à forca e somente John Bennett possuía a chave.
Ninguém poderia abri-la pelo lado de fora. Ray contemplou as paredes nuas da câmara, a
corda, a forca, e se encostou num canto, os olhos fechados, tremendo. Então,
aproximando-se do alçapão, John Bennett cortou a corda em pedaços. Depois:

Crac, crac! As duas tampas do alçapão se abriram e o velho Bennett atirou a corda em
pedaços na fenda escura.

323
— Pai! Ray o fitava de olhos arregalados. Esquecido dos golpes que choviam sobre a
porta trancada, o velho caminhou na direção do filho, tomou-lhe o rosto entre as mãos e o
beijou.

— Você poderá perdoar-me, Ray? — perguntou, com voz entrecortada. — Eu tinha de


trabalhar nisso. Fui forçado a fazê-lo. Eu passava fome antes. Um dia aproximei-medo
carrasco anterior, um médico falido que aceitara o trabalho. E o médico adoeceu... E eu
pendurei o primeiro assassino. Eu também acabara de sair da Escola de Medicina e não
via perspectivas. Além disso, no início, o trabalho não me pareceu tão terrível. Sempre
procurei encontrar outro jeito de ganhar dinheiro; sempre tive medo de que alguém
apontasse o dedo em minha direção e dissesse: ”Lá vai o velho Benn, o carrasco.”

— Benn, o carrasco! — Ray exclamou atônito. -— Você é Benn?

O velho concordou com a cabeça.

— Saia daí, Benn! — gritou a voz do outro lado da porta. — Dou-lhe minha palavra de
honra que a execução ficará transferida até amanhã. Você não pode continuar aí trancado
com o prisioneiro.

John Bennett estremeceu e olhou para a corda rompida. A execução de fato não poderia
prosseguir. Mandava a rotina da morte que a corda saísse sempre da chefatura da cidade.
Nenhuma outra corda servia. Toda a parafernália de uma execução, desde o pedaço de giz
que marcava o ponto exato em que o condenado tinha de pôr os pés, todo e qualquer
detalhe do ritual da morte devia ser meticulosamente descrito e aprovado pela chefatura
distrital, como devia ser meticulosamente cumprido. ..

Certo, então, de que a sentença não poderia ser levada a cabo, John soltou o trinco da
fechadura, abriu a porta e saiu.

Na cela do condenado, os funcionários da prisão tinham um aspecto cadavérico. O rosto do


Diretor estava contraído e branco, o médico da prisão parecia bêbado: o xerife sentara-se
na cama, as mãos na cabeça.

324
— Vou mandar um telegrama para Londres e explicar a situação — disse o Diretor do
presídio. — Eu não o condeno pelo que fez, Benn. Teria sido monstruoso esperar que um
pai fizesse... uma coisa dessas.

Um guarda aproximou-se e transpôs a porta da cela. Atrás dele, um homem descabelado,


sujo, pálido, o rosto arranhado, manchas de sangue na pele, os olhos vermelhos de
cansaço. Durante algum tempo, John Bennett não o reconheceu.

— Trago uma ordem de suspensão da pena, com a assinatura do próprio Rei — disse Dick
Gordon com voz trêmula, cambaleando, entregando ao Diretor um envelope amassado.

325
CAPÍTULO 39

O despertar

Durante toda a noite, Ella Bennett ficou meio desperta, meio adormecida. Lembrava-se da
vinda do médico, lembrava-se da insistência de Elk para que bebesse uma dose de remédio.
A irmã de Ray suspeitou que fosse um tranqüilizante e, a princípio, recusou-se a pegar o
copo. Por fim, aceitou um gole e mergulhou sem forças no sofá. Estava determinada,
contudo, a não adormecer, até que a informassem do melhor ou do pior. Estava exausta
com a luta mental que travara consigo mesma para manter-se lúcida e atenta durante todo
o dia. Afinal, sentiu-se um pouco entorpecida.

Teve vaga consciência de que alguém a deitava numa cama, tirava-lhe os sapatos,
soltava-lhe os cabelos. Com um tremendo esforço, abriu os olhos e viu uma mulher,
sentada perto da janela, lendo. Tudo que havia no quarto, porém, era visivelmente
masculino, não excluindo um cheiro fraco e disperso de fumaça.

— É a cama de Dick — murmurou, e a mulher pousou o livro e se levantou.

Ella fitou-se atordoada. Por que usaria aquelas tiras brancas em volta do cabelo? E aquele
uniforme branco? Era uma enfermeira, sem dúvida. Satisfeita por ter esclarecido suas
dúvidas, a irmã de Ray cerrou os olhos e voltou para a terra dos sonhos.

326
Mas acordou de novo. A mulher ainda estava lá, mas dessa vez a mente da Srta. Bennett
estava em ordem.

— Que horas são? — perguntou. A enfermeira veio com um copo d’água e Ella Bennett
bebeu sem resistir.

— São 7h — disse a outra. — Sete! — A moça estremeceu e, com um grito, tentou


erguer-se da cama. — Já é noite! — exclamou com voz ofegante. — Oh, o que terá
acontecido?

— Seu pai está lá embaixo — disse a enfermeira. — Vou chamá-lo.

— Meu pai.. . aqui? Elia Bennett franziu a testa. — Chegou alguma noticia? — O Sr.
Gordon também está lá embaixo ... acompanhado do Sr. Johnson.

A enfermeira transmitia laconicamente as instruções que recebera.

— Ninguém ... ninguém mais? — perguntou Ella num suspiro entrecortado.

— Não, senhora, o outro cavalheiro virá amanhã ou depois de amanhã ... É seu irmão, eu
creio.

Com um soluço, a moça enterrou o rosto no travesseiro.

— Você não está dizendo a verdade! — Oh, sim, estou — disse a outra. A enfermeira riu
e a Srta. Bennett virou-se para encará-la, mas ela já saía do quarto. Pouco depois, voltava
com John Bennett. Instantaneamente, pai e filha se abraçaram, entre soluços.

— É verdade, é verdade, papai? — Sim, minha querida, é verdade — disse Bennett. —-


Ray estará aqui amanhã. Temos apenas de esperar o cumprimento de algumas
formalidades; a libertação não pode ser tão imediata quanto nos livros policiais. Lá
embaixo, estávamos conversando sobre o futuro de Ray. Oh, minha menina, minha pobre
menina!

— Quando ficou sabendo da suspensão da pena, papai?

— Esta manhã — ele respondeu serenamente.

327
— O senhor ... o senhor não estava se sentindo terrivelmente aflito? — a filha perguntou.

— Ele concordou com a cabeça. — Johnson quer colocar Ray como gerente da Maitlands
Consolidated — disse John Bennett. — Seria uma coisa esplêndida para Ray. Nosso
rapaz está muito mudado, minha filha.

— O senhor já esteve com ele? — a moça perguntou surpreendida.

— Sim, estive com ele hoje de manhã. Ella Bennett achou natural a resposta e não fez
mais perguntas; nem se perguntou como teria ele conseguido atravessar os portões
rigorosamente guardados do presídio.

— Mas acho que Ray não aceitará a oferta de Johnson — disse o pai. — Estou
praticamente certo de que não aceitará. Não há de querer que lhe entreguem numa
bandeja uma posição dessas; creio que vai preferir fazer-se por si mesmo. Está voltando ao
nosso convívio e ao nosso modo de pensar.

Ela quis perguntar-lhe mais alguma coisa; teve receio, porém, de magoar o pai.

— Quando Ray voltar, papai — a moça começou após um longo silêncio —, o senhor não
poderá abandonar esse ... esse trabalho que lhe causa tanto desgosto?

— Já o abandonei, minha querida — respondeu serenamente o velho Bennett. — Nunca


mais . . . nunca mais ... nunca mais, graças a Deus!

Não olhou para o rosto do pai, mas sentiu o tremer nas mãos que lhe acariciavam os
cabelos.

No andar de baixo, o estúdio estava azulado de fumaça.

— É muita gentileza sua, Johnson — disse Gordon. — Eu me pergunto se o jovem


Bennett aceitará sua oferta. Honestamente, você pensa que ele é suficientemente
competente para gerenciar uma empresa de tão grandes proporções?

Johnson parecia em dúvida. — Ele trabalhou na Maitlands. É possível que já possua


todas as qualidades exigidas de um bom administrador.

328
— Você não está sendo um tanto otimista demais? — Não sei. Talvez ... — disse Johson
com voz pausada. — Naturalmente, só estou querendo ajudar... Mas talvez existam
outras posições menos importantes... Talvez Ray até mesmo prefira um cargo de menor
responsabilidade.

— Estou certo disso — afirmou Dick num tom decidido.

— Está me parecendo — emendou Elk — que já estamos prestando grande ajuda ao


retirar o jovem Bennett das garras da Rã. Uma vez uma Rã, sempre uma Rã, e podemos
estar certos de que a Grande Rã vai tentar reagir. Tivemos uma prova de sua determinação
ontem de manhã. Dispararam em Johnson nesta mesma rua.

Dick tirou o cachimbo da boca e soltou uma nuvem de fumaça.

— A Rã está acabada — disse. — Agora, só precisamos conseguir arrematar devidamente o


final do caso. Balder está preso; Hagn também; Lew Brady, um dos mais importantes
agentes da Rã, embora não ocupasse nenhuma posição executiva na organização ... Lew
está morto; Lola ...

— Lola partiu — foi o americano quem falou. — Embarcou esta manhã para os Estados
Unidos. Tomei a liberdade de facilitar-lhe a saída, e a passagem .. . Resta apenas a
própria Grande Rã e um resto sem importância do bando. Peguem o cabeça e a organização
terá sido exterminada.

John Bennett desceu naquele momento e a conversa tomou outro rumo; logo após, Johnson
e Joshua Broad saíram juntos.

— Não disse nada a Ella, Sr. Bennett? — Sobre mim? ... Não. Será preciso? — Creio
que não — disse Dick com voz pausada. — Deixe que o segredo continue ... como
segredo. Há muito tempo eu sabia de tudo. Quando Elk me contou que o tinha visto
saltar na King’s Cross... depois da execução de uma sentença... Li nos jornais sobre o
enforcamento na prisão de York. Por meio de algumas investigações, fiquei sabendo que
suas ausências coincidiam com o cumprimento de sentenças de morte. Hou-

329
ve, de fato, muitas coincidências. O senhor, por exemplo, estava em Gloucester quando o
assassino de Hereford foi executado, estava também...

— O senhor sabia, e no entanto. — Bennett interrompeu balançando a cabeça.

— Não conheço as circunstâncias que o levaram a aceitar um trabalho desses, Sr.


Bennett — disse amavelmente o detetive. — Mas, para mim, o senhor foi simplesmente
um agente da lei ... nem mais, nem menos terrível que eu, que contribuí para mandar
muita gente à forca. Não mais terrível que os juízes que proclamam as sentenças de
morte e assinam mandados de execução. Nós somos instrumentos da Ordem.

Ella e o pai permaneceram aquela noite em Harley Terrace e pela manhã foram à Estação
de Paddington para encontrar o rapaz. Nem Dick nem Elk os acompanharam.

— Aconteceram duas coisas notáveis — disse Elk, voltando-se para o detetive. — Uma
delas: nenhum de nós reconheceu Bennett.

— Por que deveríamos reconhecê-lo? — perguntou Dick. — Nenhum de nós assiste a


execuções e a identidade do carrasco sempre foi mais ou menos desconhecida, exceto para
umas poucas pessoas. Bennett sempre procurava ocultar-se, evitava circular pelas estações
das cidades onde ocorriam as execuções, às vezes viajava por caminhos secundários e
chegava a pé aos presídios. O chefe da guarda em Gloucester contou-me que ele só
chegava à prisão na véspera das execuções e depois da meia-noite. Ninguém o via chegar
ou partir.

— O velho Maitland devia saber que ele era um carrasco.

— Exato — concordou Dick — Maitland já estivera na cadeia. Alguns prisioneiros, em


especial prisioneiros privilegiados, podem avistar casualmente o carrasco. Por
”prisioneiros privilegiados” quero referir-me a homens que, por sua boa conduta, recebem
permissão para circular livremente pelas instalações do presídio. Maitland disse à Srta.
Bennett que já estivera no ”xadrez”, e estou certo de que falou a verdade. Bennett recebia
todas as cartas oficiais em Dorking, onde, durante anos, manteve um quarto alugado. Suas
miste-

330
riosas viagens não despertavam a atenção dos habitantes de Dorking, que não o conheciam
de nome e, talvez, nem sequer de vista.

Para surpresa de Elk, quando voltou a Harley Terrace Dick não estava mais lá. A
empregada disse que o patrão fizera uma sesta, vestira-se e saíra. Não tinha dito para onde
ia. A saída misteriosa e solitária fugia aos hábitos de Dick, mas o primeiro pensamento de
Elk foi que o companheiro tinha ido a Horsham. O Inspetor jantou e, cansado,
lembrou-se saudoso do conforto de sua cama. Mas não queria ir dormir antes de se ter
avistado com o chefe.

Resolveu voltar para o estúdio de Dick e nele instalar-se. Acabara de adormecer quando
alguém sacudiu-o amigavelmente pelo ombro. Era Dick.

— Olá! — Exclamou sonolento o Inspetor. — Pretende ficar acordado a noite inteira?

— Estou com meu carro parado lá fora — disse Dick. — Vista o casaco. Você vai a
Horsham comigo.

Elk bocejou e olhou o relógio. — Ela deve estar pensando em dormir — protestou ele.

— Espero que sim — disse Dick —, mas tenho meus temores. A Rã foi vista esta noite, às
9h, na estrada de Horsham.

— Corno sabe disso? — Elk perguntou, já inteiramente desperto.

— Eu a estive seguindo durante o final da tarde — disse Dick —, mas ela me escapou.

— Esteve vigiando a Rã? repetiu Elk lentamente. — Você conhece a Grande Rã?

— Eu a tenho observado por quase todo um mês — disse Dick Gordon. — Pegue seu
revólver.

331
CAPÍTULO 40

Existe na vida uma felicidade sem paralelo: o reencontro de alguém muito querido. Ray
Bennett postou-se ao lado da cadeira do pai, contente por absorver o amor, a ternura que
todo o aposento irradiava. Parecia um sonho aquela volta ao aconchego do lar, o aroma
suave da alfazema, a chaminé, as grades floreadas das janelas, a irmã, a mais esplêndida de
todas as visões. A tempestade que caía lá fora realçava o sossego, a paz do chalé. De vez
em quando Ray passava os dedos pelo rosto já barbeado, o ar distraído. O contato de sua
própria pele era a única evidência inegável de que não estava sonhando, de que sua
sensação de felicidade pertencia ao mundo real.

— Puxe uma cadeira, rapaz — disse John Bennett, quando Ella passou com uma tij ela
cheirosa, que pôs sobre a mesa.

Obediente, Ray sentou-se numa das grandes cadeiras Windsor, que ele sempre utilizara
antigamente, nas refeições no chalé, ao lado direito do pai.

A cabeça de John Bennett pendia para a frente. Os mínimos sinais, os mínimos gestos do
pai adquiriam agora um significado inteiramente novo para Ray.

— Por todas as bênçãos hoje recebidas — orou o velho Bennett —, possa o Senhor
ouvir-nos agradecer.

332
Foi uma refeição maravilhosa, bem mais que qualquer refeição do Heron’s ou dos
restaurantes caros que o rapaz freqüentara. Pão caseiro, comida caseira, chá com a
fragrância de um buquê de flores. Ele pousou faca e garfo, abrindo os lábios num sorriso
de alegria.

— Lar — disse simplesmente, e o pai apertou-lhe as mãos, tão fortemente que o rapaz
tremeu.

— Ray, Johnson convidou-o para assumir a gerência da Maitlands. Que acha disso, meu
filho?

Ray balançou a cabeça. — Sou tão inadequado para a gerência da Maitlands quanto para a
presidência do Banco da Inglaterra — disse ele com um riso ligeiro. — Não, papai,
minhas ambições são agora menores que outrora. Penso que sobreviveria agradavelmente
negociando batatas . Penso que seria feliz!

O velho fitou pensativamente a toalha de mesa. — Ta ... talvez eu precise de um


assistente, se meus filmes de fato estiverem obtendo o sucesso tão proclamado por
Silenski. Talvez você possa esperar para negociar com batatas depois que Ella estiver
casada.

A moça ruborizou-se. — Ella vai se casar? É verdade, Ella? Ray pulou da cadeira e
beijou a irmã. — Lamento todos os problemas que lhe causei... — ele sussurrou.

— Não pense mais nisso ... O rosto da moça, no entanto, anuviou-se. — Qual é o
problema — John Bennett perguntou. ao ver a nuvem que se apossara do rosto da filha.

— Um pensamento desagradável passou-me pela cabeça, papai — disse a moça, e, pela


primeira vez. falou do odioso visitante, da Grande Rã.

— A Rã queria desposá-la? — perguntou Ray franzindo a testa. — Mas isso é incrível!


Você viu o rosto dele?

Ella Bennett balançou a cabeça. — Estava mascarado — respondeu. — Mas não falemos
mais sobre isso!

A moça levantou-se rapidamente e começou a tirar a mesa. Pela primeira vez, em muitos
anos, Ray ajudou-a.

333
— Foi uma noite terrível — disse ela, quando voltou da cozinha. — O vento abriu as
janelas e as luzes se apagaram. A chuva está caindo em torrentes!

— Agora todas as noites serão mais agradáveis — disse Ray, quase num soluço.

Houve silêncio, acordo tácito de que todo o pesadelo não devia sair da região dos maus
sonhos.

— Vá fechar a porta dos fundos, querida — disse John Bennett, acompanhando-a com o
olhar.

Os dois homens acenderam cigarros, cada um absorvido por seus próprios pensamentos.
Foi então que Ray falou de Lola.

— Não acho, papai, que fosse uma pessoa má. Na verdade, não podia adivinhar o que ia
acontecer. A coisa foi tão diabolicamente planejada que eu mesmo acreditei ter
assassinado Brady. Gordon é que me tirou da dúvida, contando toda a história. A Grande
Rã deve ter o cérebro de um general.

Bennett concordou com a cabeça. — Antigamente, eu pensava — Ray continuou — que


Maitland tinha alguma coisa a ver com as Rãs. Talvez tivesse, inclusive ... Uma de minhas
suposições...

O pai mostrou um súbito sinal de preocupação. — Ella! — gritou John Bennett. Não
veio qualquer resposta da cozinha. — Não quero que ela fique lá fora se molhando. Vá
até lá, meu rapaz, vá buscá-la.

Ray levantou-se da mesa e abriu a porta da cozinha. O cômodo estava às escuras.

— Traga uma lanterna, papai. A lâmpada deve ter queimado.

John Bennett veio correndo. A porta externa da cozinha estava fechada, mas não
trancada. Alguma coisa branca jazia no degrau do jardim e Ray abaixou-se para pegá-la.
Era uma fita do avental que Ella usava.

Os dois se entreolharam; Ray subiu correndo ao seu quarto, pegou uma grande lanterna
elétrica e desceu imediatamente.

334
— Pode estar no jardim — disse ele com voz tensa. A tempestade não cedera. Ray
mergulhou na chuva torrencial.

No solo havia pegadas, que desapareciam junto ao final do gramado. Ray, já agora
seguido pelo pai, continuou avançando para um prado que se estendia atrás do Chalé
Maytree. Ray foi o primeiro a ver as marcas dos pneus de um carro. Correndo pela
estrada, viu que as marcas faziam uma curva à direita.

— Temos de procurar outra vez no jardim — disse o rapaz — para ficarmos certos de que
levaram Ella. Vou pedir ajuda a alguns vizinhos.

John Bennett revistou o jardim de uma ponta à outra, bem como o interior da casa, mas,
de fato, a moça desaparecera.

— Vá até a vila — John Bennett ordenou ao filho que retornara ao chalé — e telefone
para Gordon.

A voz do velho Bennett mostrava uma estranha calma.

Quinze minutos mais tarde, Ray saltava de uma velha bicicleta junto ao portão do Chalé
Maytree e trazia más notícias.

— O cabo telefônico foi cortado — disse nervosamente. — Pedi um carro emprestado.


Vamos tentar seguir as marcas.

Quase em seguida, os faróis do carro de Dick despontaram na estrada. Gordon foi


informado do rapto antes que desligasse o motor. Saltou rapidamente do carro, examinou
as pegadas nos jardins e as marcas de pneus. Elk, sem esperar qualquer conclusão de seu
chefe, examinava o solo do outro lado da rodovia.

— Também aqui existem marcas de uma roda — disse ele. — Pesadas demais para uma
bicicleta, demasiado leves para um carro; parecem marcas de motocicleta.

— Era um carro — disse Gordon laconicamente - e um carro enorme.

Embrulhados em pesadas capas de borracha, os quatro homens embarcaram no carro.

Por cinco milhas, as marcas foram visíveis; depois, havia um povoado. Um policial
informou ter visto um

335
carro passar ”pouco tempo atrás” — e também uma motocicleta.

— O motociclista seguia o carro? — perguntou Elk. — Vinha umas 100 jardas atrás dele
— respondeu o policial. — Tentei fazer a moto parar, porque o farol estava apagado ...
mas ela passou em disparada.

Prosseguiram por mais uma milha e, nas vizinhanças de uma estrada bloqueada, todas as
marcas desapareceram. Continuaram, porém, ainda por uma milha, atingindo um ponto
onde a rodovia se bifurcava em três pistas divergentes; duas calçadas com saibro, sem
marcas de rodas, e uma terceira, que também não apresentava qualquer rastro e era de
barro. Dick achou que era uma das duas primeiras, e ordenou que seguissem a da direita.

— Esperemos que esta seja a estrada certa! — exclamou Dick.

Pouco depois, atingiam outro povoado. Um guarda de trânsito balançou a cabeça quando
Dick o interrogou.

— Não, senhor, há duas horas nenhum carro passa por aqui.

— Temos de voltar atrás — disse Dick, num tom desesperado. O carro retornou a toda
velocidade para a bifurcação da estrada de Horsham, onde um motorista prestou valiosas
informações: um carro o ultrapassara há 45 minutos; descreveu minuciosamente o veículo
chegando mesmo a indicar a marca ... Disse ainda que o motociclista conduzia uma Red
Indian.

Novamente o motociclista! — Ia muito atrás do carro? — Aproxidamente umas 100


jardas, creio — foi a resposta.

Receberam ainda novas informações do carro, ao escolher uma segunda dentre as três
alternativas da bifurcação rodoviária, mas, numa pequena povoação, ninguém tinha visto
o motociclista e, daí para a frente, todas as informações referiam-se exclusivamente ao
automóvel.

Passava da meia-noite quando encontraram o carro que procuravam: estacionado do lado


de fora de uma garagem na estrada de Shoreham.

336
Elk foi o primeiro a aproximar-se. A carro estava vazio; dentro da garagem, o proprietário
do estabelecimento procurava arranjar vaga para um recém-chegado.

— Sim, senhor, uns 15 minutos atrás — disse ele, quando Elk mostrou as credenciais. —
O motorista disse que estava à procura de acomodações na cidade.

Com a. ajuda de uma lanterna poderosa, os dois policiais fizeram um cuidadoso exame no
interior do carro. Não havia dúvidas de que Ella viajara no carro. Um pequeno broche de
marfim que John Bennett lhe dera num aniversário foi achado, quebrado, num canto do
chão.

- Não adianta agora procurar o motorista — disse Elk. —- Nossa única chance é que ele
volte para a garaefem.

A polícia local foi informada. — Shoreharn é um distrito muito grande — disse o chefe
de polícia. — Se o homem está acompanhado de uma quadrilha de vigaristas, é muito
provável que não consigam encontrá-lo, é possível que ele jamais volte à garagem.

Uma coisa confundia Elk mais que qualquer outra: o desaparecimento do motociclista. Se
era verdade que ele seguira a umas 100 jardas do carro e se desviara entre dois
povoados, devia estar muito longe dali. Existiam alguns chalés na margem da estrada,
num dos quais ele poderia ter-se abrigado, mas Elk descartou a possibilidade.

Acho que devemos fazer o caminho de volta — disse o Inspetor. — É quase certo que a
Srta. Bennett foi tirada do carro e obrigada a subir na motocicleta em algum lugar da
estrada. Agora, o motociclista é nossa melhor pista, pois, sem dúvida, ela foi com ele. E se
o motociclista não é a própria Grande Rã, é um de seus homens.

— Devem ter desaparecido em algum lugar entre Shoreham e Morby — disse Dick. — O
senhor conhece bem esta região, Sr. Bennett. Há algum lugar, nos arredores de Morby,
para onde poderiam ter ido?

Conheço a região — concordou Bennett e estou procurando pensar. Não existe nada a não
ser

337
umas poucas casas nas proximidades de Morby ... Naturalmente, há os Campos de Morby,
mas não posso conceber que tenham levado minha filha para lá.

— O que são os Campos de Morby? — perguntou Dick, enquanto o carro iniciava


lentamente a volta pelo mesmo caminho em que tinha vindo.

— Os Campos de Morby, na realidade, são uma pedreira abandonada. A companhia faliu


alguns anos atrás — respondeu Bennett.

Passaram muito devagar em Morby, parando na da— legacia local para saber se havia
novidades. Não receberam, contudo, qualquer outra informação.

— Tem certeza absoluta de que não viu o motociclista?

— Tenho certeza absoluta — respondeu o delegado — O carro passou rente a mim; tive
de subir na calçada para não me sujar de lama . .. mas não havia motociclista. De fato,
cheguei a ter a impressão de que o carro estava vazio.

— Por que está dizendo isso? — perguntou Elk de imediato.

— Porque o chofer estava fumando — disse o outro. — Eu sempre associei choferes


fumantes com carros vazios.

— Filho — disse Elk ironicamente —, você tem possibilidades na chefatura...

— Estou inclinado a concordar com esse policial — disse Dick, enquanto os dois
caminhavam de volta ao automóvel. — O carro já devia estar vazio quando passou por
aqui; o motociclista já se desviara com Ella. Temos de procurar entre Morby e Wellan.

Partiram ainda mais lentamente. Os faróis foram regulados para inspecionar também as
margens da estrada. Não tinham andado 500 jardas, quando Elk gritou:

— Pare! — e pulou para a estrada. Ele se afastou por alguns minutos; depois chamou
Dick. Os três homens foram para o lugar onde estava o inspetor, apreciando uma grande
moto vermelha, abrigada numa espécie de gruta, num paredão de rocha muito pontiagudo.
Foi o reflexo da luz do farol no espelhinho que despertou a atenção de Elk.

338
Dick voltou para o carro e dirigiu em cheio o foco dos faróis para a moto. A máquina era
quase nova; estava coberta de lama e os faróis de acetileno estavam muito frios. Elk teve
uma inspiração. Havia um pesado alforje embaixo do assento de trás, atado por uma
correia grossa. O inspetor começou a abri-lo.

— Se a moto é nova, o construtor deve ter gravado o nome e o endereço do proprietário


no alforje — disse.

Pouco depois, a sacola estava aberta e Elk dirigiu a lanterna para seu interior.

— Por Moisés! — exclamou. Havia uma inscrição nitidamente gravada no couro:


”Joshua Broad. Caverley House, 6, Cavendish Square.”

339
CAPÍTULO 41

Na cabana da pedreira

A primeira impressão que Ella Bennett tivera ao retornar à cozinha e fechar rapidamente a
porta de comunicação com a sala foi que o fogareiro do chá se apagara. Foi então que um
braço a envolveu, a mão tapoulhe a boca, sua cabeça foi empurrada para trás. A moça
tentou gritar, mas abafaram-lhe o grito. O raptor agarrou-a pela cintura e levou-a com ele.
Ouviu que alguém rasgava alguma coisa e, depois, uma tira de pano foi amarrada em seus
tornozelos. Sentiu o frio da tempestade quando abriram a porta do jardim; um segundo
depois, estava sendo arrastada para longe da casa.

— Ande — gritou uma voz, quando ultrapassaram o portão e ela percebeu que lhe
desamarravam os pés.

Nada conseguia ver; sentia apenas a chuva fria batendo no capuz que lhe envolvia a cabeça,
e o vento nos braços. O capuz lhe apertava tanto a cabeça que mal podia respirar. Não
sabia para onde a estavam levando, mas quando sentiu a lama em torno dos pés entendeu
que pisava no acostamento da estrada. Foi empurrada para dentro de um carro; ouviu um
corpo deslizar no assento do lado e o veículo disparou. Depois, num gesto rápido e hábil,
um dos homens sentados perto dela tirou-lhe e) capuz. frente, no único assento dian-

340
teiro ocupado, viu um vulto escuro, de costas, a face voltada para a estrada que seguia
adiante.

— Que estão fazendo? Quem são vocês — perguntou ela.

Logo que ouviu a resposta, reconheceu a voz, reconheceu que estava em poder da Grande
Rã.

— Vou dar-lhe uma última chance. Após esta noite, não haverá mais nenhuma.

Ela tentou controlar o tremor na voz e pronunciou com esforço:

— O que está querendo dizer com . última chance? — perguntou.

— Você terá de casar-se comigo e sair comigo da Inglaterra amanhã de manhã. Ainda
tenho tamanha fé em você que aceitarei apenas sua palavra — disse a voz do homem.

A moça balançou a cabeça em desespero. — Jamais farei uma coisa dessas — respondeu,
procurando controlar-se.

Nenhuma outra palavra foi pronunciada durante toda a viagem. Uma vez atendendo a uma
ordem murmurada pelo mascarado, uma das Rãs olhou pelo vidro traseiro.

— Nada — disse o homem. Elia Bennett, quando o carro atravessava um povoado, viu o
reflexo da máscara de mica da Grande Rã no retrovisor. Não lhe fizeram qualquer
violência; não foi empurrada, nem teve seus movimentos muito restringidos, mas sabia
que toda e qualquer possibilidade de fuga estava inteiramente fora de cogitação.

O veículo corria por uma estrada escura; de repente, diminuiu a marcha e parou. Os
passageiros desceram rapidamente; ela foi a última. Um homem pegoulhe o braço quando
ela desceu e conduziu-a através de uma picada na beira da estrada, para o que parecia ser
um lugar previamente combinado.

A outra Rã ia atrás dela; lançou-lhe um casaco sedoso nos ombros e ajudou-a a caminhar
pelo chão enlameado.

Chovia torrencialmente. A Srta. Bennett ouvia al guns sussurros trocados entre seus
raptores. A Grande Rã tomou a frente, olhando para trás apenas uma vez.

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Ela tropeçou e cambaleou; teria caído se a mão de um dos homens não a apoiasse.

— Estão me levando para onde? —- ela perguntou por fim.

Não houve resposta. Ela perdera toda a esperança de escapar por si mesma, embora a
escuridão talvez pudesse facilitar uma fuga. Súbito, a moça viu um clarão de água à
direita, uma espécie de poça redonda e fantasmagórica.

— São os Campos de Morby — disse ela de repente, reconhecendo o lugar. — Vocês


estão me levando para a pedreira!

Novamente, nenhuma resposta. Eles continuavam caminhando, e ela percebia que já não
haveria grande distância a percorrer. Perguntava-se que destino seria o seu quando,
finalmente, recusasse a proposta da Grande Rã, como, aliás, recusaria. O terrível homem
tentaria matá-la?

— Espere — disse subitamente a Rã, e desapareceu na escuridão.

Então ela viu uma luz, que vinha de uma pequena casa de madeira; na verdade, dois
contornos de luz, um alongado e um quadrado — uma janela e uma porta. Depois, a
figura da Grande Rã surgiu silhuetada no umbral da porta.

— Venha — disse o homem, e Ella Bennett se adiantou.

Na porta da cabana, a jovem teve um movimento de recuo, mas a mão no seu ombro
apertou com mais força. Foi empurrada para o interior. A porta foi batida e trancada.

Estava sozinha com a Rã! A curiosidade superou o medo. A moça olhou em volta,
examinando o pequeno aposento. Tinha cerca de 10 pés de comprimento por seis de
largura. A mobília era simples: uma cama, uma mesa, duas cadeiras e uma lareira. Um
tapete velho e encardido forrava o assoalho de madeira. Junto a uma das paredes, havia
duas caixas também de boa madeira, madeira nova. O mascarado seguiu-lhe a direção dos
olhos e ela ouviu seu comentário abafado e lento:

342
— Dinheiro — disse ele, sucintamente —, seu dinheiro e meu dinheiro. Há 1 milhão aí.

Ela olhou, fascinada. Perto das caixas, estava quatro altos cilindros de vidro, contendo um
líquido ou substância opaca — a moça não conseguia ver com clareza de onde estava.

A Rã não fez comentários sobre os tubos de vidro. — Sente-se — disse ele. Suas
maneiras eram formais, mas ostentavam certa jovialidade. A moça esperou que ele tirasse a
máscara, sentando-se do lado oposto, mas a Grande Rã desapontou-a. Sentou-se sem despir
o capuz de mica; olhos duros contemplavam a moça através de duas aberturas.

— Bem, Ella Bennett, o que você tem a dizer? Vai casar-se comigo ou vai cair no
esquecimento eterno? Você vai sair desta cabana como minha esposa . . . ou vamos sair
juntos . . . mortos!

Levantou-se e se aproximou dos cilindros de vidro. Pegou um deles.

— Vou esmagar um desses tubos com os pés. Vou tirar minha máscara. Você terá, pelo
menos, a satisfação de saber quem sou eu antes de morrer . . . mas somente antes de morrer!

Ela o fitou com firmeza no olhar. — Nunca me casarei com você — disse a moça —
nunca! Se não houvesse nenhuma outra razão, o simples plano infame para acabar com a
vida de meu irmão... irmão...

— Seu irmão é um tolo — disse a voz cavernosa. — E nunca precisaria ter passado por
aquela agonia, se você tivesse prometido casar-se comigo . . . Naquela noite em que a
visitei, lembra-se? Tinha outro homem pronto a confessar o suposto crime praticado pelo
também suposto James Carter. Eu mesmo correria o risco de confirmar-lhe a confissão.

— Por que pretende casar-se comigo? — perguntou ela.

Aquilo parecia banal, estúpido. Contudo, a proposta em si já era tão grotesca, que a moça
conseguia falar do assunto a sangue-frio, quase sem emoção.

— Porque amo você — foi a resposta. — Se é o mesmo tipo de amor que Dick Gordon lhe
dedica, não sei,

343
mas creio que é maior . Você me surgiu como alguma coisa inatingível, extremamente
preciosa Nunca me senti enredado em tamanho desejo.

— Eu receberia de bom grado a morte — replicou ela de imediato, mas ouviu uma espécie
de riso abafado.

— Há coisas piores que a morte para uma mulher sensível — disse enfaticamente a Rã —,
há muitas coisas piores que podem preceder a morte.

Ele não voltou a falar. Tirando um baralho do bolso, jogou paciência durante uma hora.
Depois, atirou as cartas na lareira e ficou de pé.

Contemplou a moça fixamente. Havia algo nos olhos da Grande Rã que fez o sangue gelar
no corpo da Srta. Bennett.

— Talvez você nunca chegue a ver meu rosto — disse ele, pegando o lampião de gás que
estava sobre a mesa.

A chama diminuiu mais e mais ... Foi então que uma batida suave foi ouvida na porta.

Toc... toe... toc-toc... toc... A Rã permaneceu quieta, a mão no lampião. Toc... toc...
toc-toc... toc... De novo as batidas. Ele aumentou um pouco o lampião e se aproximou da
porta.

— Quem está aí? — Hagn — disse urna voz cavernosa. A Rã teve um sobressalto, tirou
a tranca pesada, puxou uma chave do bolso, meteu na fechadura e perguntou:

Hagn, como conseguiu escapar? A porta foi empurrada com tamanha violência que
atirou o mascarado contra a parede. Elia gritou de alegria.

De pé, no umbral, estava um homem calvo, num casaco brilhante.

Era Joshua Broad. — Afaste-se! ordenou à jovem. Ella Bennett recuou um pouco.
Ambas as mãos de Broad estavam enfiadas no casaco; seus olhos não se desviavam do
mascarado.

— Você sabe o que eu quero, Harry — disse brandamente o americano.

344
A mão de Joshua Broad moveu-se tão rapidamente que a moça não pôde seguir-lhe o
movimento.

Dois tiros fizeram a Rã cambalear contra a parede. Seu pé estava a poucas polegadas dos
cilindros de vidro e ele ainda tentou esmagá-los. Broad atirou outra vez e a Rã caiu para
trás, batendo com a cabeça na lareira.

Houve um barulho de vozes do lado de fora, um arrastar de pés na trilha lamacenta e John
Bennett entrou na cabana. Num instante a moça estava em seus braços. Broad olhou em
volta. Elk e Dick Gordon achavam-se no umbral.

— Cavalheiros — disse Joshua Broad , peço o testemunho dos senhores para provar que
matei esse homem em legítima defesa.

— Quem é? — Dick perguntou. — É a Rã — respondeu Joshua Broad calmamente. —


Seu outro nome é Harry Lyme. Trata-se de um condenado pela Justiça inglesa.

— Já sabia que era Harry Lyme foi Elk quem falou. — Ele está morto?

Broad parou e meteu a mão sob o colete do homem. — Sim, está morto — anunciou o
americano friamente. — Lamento ter-lhe roubado a presa, Sr. Elk, mas era
imperiosamente necessário matá-lo antes que ele me matasse. Um de nós tinha de morrer
esta noite!

Elk ajoelhou-se ao lado do cadáver e começou a livrá-lo da terrível máscara.

— Foi aqui que mataram Genter — disse Dick Gordon em voz baixa. — Está vendo o
cilindro de gás?

Elk olhou para os cilindros. Depois, seus olhos retornaram a cabeça calva do americano.

Saul Morris, eu creio? — ele perguntou, e ”Joshua Broad” fez que sim.

Elk apertou pensativamente os lábios e seu olhar voltou-se para o corpo inerte.

— Agora, Rã, deixe-me ver seu rosto— disse ele, acabando de puxar a máscara.

Os olhos de todos caíram no rosto de Johnson, o filósofo!

345
CAPÍTULO 42

As explicacões de Joshua Broad

A luz do sol derramava-se pelas janelas do Chalé Maytree; as xícaras do café da manhã
ainda estavam sobre a mesa, quando o americano começou sua história.

— Meu nome, como certamente o Sr. Elk já suspeitava, é Saul Morris. De acordo com
todos os padrões morais, sou um criminoso, embora não tenha sido acusado de nenhum
crime nos últimos 10 anos. Eu nasci em Hertford, Connecticut. — Não vou apresentar
desculpa alguma, convencional ou não, por minhas opções; nem insultarei suas
inteligências pedindo-lhes simpatia por minhas primeiras falhas. Creio que nasci com
dedos ágeis e grande desejo por dinheiro, que não sabia como ganhar. Não fui
corrompido, não fui tentado, não tive más companhias; de fato, os primeiros passos de
minha carreira foram singularmente diversos dos passos iniciais das carreiras de outros
criminosos. — Estudava a técnica de meus assaltos a bancos como um médico estuda
anatomia. Tinha completo conhecimento de cada sistema de segurança bancária — que,
aliás, não passavam de dois, um dos quais é eficaz, e o outro produz um número
considerável de diretores desonestos. A isso, acrescentei profundo conhecimento a
respeito de fechaduras. Um arrombador que começa a agir sem compreender as
dificuldades e obstáculos que tem de superar é, para me servir de uma comparação que já

346
empreguei, como um médico que começasse a operar sem conhecer as artérias, os tecidos
e os nervos que deve cortar. A diferença entre um cirurgião e um açougueiro é que um
não sabe o nome dos tecidos que retalha, e outro sim! — Quando me decidi a seguir tal
carreira, servi por cinco anos na fábrica do maior fabricante de caixas-fortes em
Wolverhampton. Estudei fechaduras, cofres, as propriedades do aço, até sentir-me
auto-suficiente. A toda hora, a todo momento, eu me aplicava a meu estudo. Sem dúvida,
um campo de estudos capaz de ocupar integralmente o tempo de um homem.

O americano pigarreou e prosseguiu. — Voltei à América com a idade de 25 anos. Trazia


comigo um grande e estranho conjunto de ferramentas, que me custou muitos milhares de
dólares. Com essas ferramentas estranhas, sozinho, assaltei o Ninth National Bank,
fugindo com 300 mil dólares. Foi meu primeiro trabalho. Não darei aos senhores a longa
lista de meus inúmeros crimes; alguns já foram convenientemente esquecidos por mim;
outros são demasiado insignificantes, demasiado decepcionantes para serem detalhamente
narrados. E o interessante é que, além de minha palavra, os senhores não possuem
nenhuma prova de que eu tenha sido responsável por qualquer desses assaltos. Meu
nome só foi associado a um crime: o roubo da caixa- forte do Mantania. — Em 1898, fui
informado de que o Mantania levava para a França 55 milhões de francos em
papel-moeda. O dinheiro ia guardado em duas resistentes embalagens de madeira,
anteriormente submetidas a pressão hidráulica para reduzir o volume. Numa das caixas
havia 35 pacotes, cada um contendo 1 milhão em notas; na segunda, 20 pacotes. Peço que
não se esqueçam de que havia duas caixas, pois só assim compreenderão o que
aconteceu depois. — Soube que o navio atracaria num porto francês; pensei no Havre, já
que, naquela época, os transatlânticos não atracavam em Cherbourg. Tinha feito todos os
meus planos para fugir com o dinheiro, que a essa altura já estava em meu poder. No
cofre-forte do Mantania, deixei duas caixas exatamente iguais às que continham o dinheiro,
e que eu havia levado comigo ao embarcar. Eu mesmo as fabriquei. Por azar,
enfrentamos uma tempestade na

347
costa irlandesa e o capitão dó Mantania decidiu navegar para Southampton, sem tocar no
porto francês, onde eu preparara um esquema de fuga.— Para alguém de minha
profissão, uma mudança de planos era quase tão embaraçosa quanto urna mudança de
planos no meio de uma batalha. Naquela época, eu tinha um assistente, um homem que
posteriormente veio a morrer de deliriam tremens. Era absolutamente impossível trabalhar
sozinho; todas as tarefas eram demasiado complexas e meu assistente era, sem dúvida, um
homem em quem eu podia confiar.

— Harry Lyme? — sugeriu Elk. ”Joshua Broad” balançou negativamente a cabeça. —


Não, o senhor errou. Não vou dizer-lhes o nome dele; o homem está morto e foi um
companheiro muito leal, muito fiel, embora inclinado à bebida, fraqueza que nunca me
permiti. Entretanto, a razão do grande embaraço que a tempestade me causou a bordo do
Mantania, foi que, se desembarcássemos no porto francês, o roubo no cofre-forte não
seria descoberto de imediato, pois era de esperar que somente em Southampton fossem
apanhar o dinheiro. No Havre, eu já tinha tudo preparado, inclusive uma passagem rápida
pela alfândega. A mudança do porto de atracação significava que eu e meu assistente
tínhamos de improvisar um método de escapar, antes que descobrissem a burla.. . Mas
parecia difícil que pudéssemos ser bem-sucedidos. —— Felizmente, houve neblina em
Solent. Navegávamos muito lentamente, mas, apesar de todos os cuidados do comandante,
o Mantania colidiu com uma draga a vapor que ia para Portsmouth. Foi então que vi
despontar uma oportunidade inigualável, que não podia ser desperdiçada. Em meio à
confusão do acidente, eu e meu companheiro pulamos, com nossas bagagens, para o
convés da draga, onde só fomos descobertos depois que o Mantania já estava longe. A
história que contamos ao comandante da draga foi a mais simples possível: pensáramos
que fosse a lancha que contratáramos para nos apanhar. Ele se apressou em aceitar nossa
justificativa, juntamente com uma nota de 20 dólares que lhe demos. -,Após mais alguns
tropeços, chegamos a Portsmouth, já bem tarde da.. noite. No cais em que
desembarcamos,

348
não havia alfândega •e levávamos conosco todas as nossas bagagens, sem excluir, é claro,
o dinheiro. Quis per noitar na, cidade, mas depois de ter encontrado um hotel, eu e meu
assistente fomos tomar um trago num pequeno barzinho, onde ouvi rumores que me
deixaram muito apreensivo. Ouvimos que o roubo fora descoberto e a polícia procurava
dois homens que tinham desembarcado da draga ... Como foi o próprio comandante da
draga que nos recomendou o hotel, receei que não conseguiríamos voltar ao quarto e sair
de lá com nossa bagagem, sem sermos capturados.: — Contudo, conseguimos despistar a
polícia. Eu carregava a mala mais pesada, meu amigo a mais leve e, após, uma longa
caminhada a pé, chegamos a um lugar chamado Eastleigh. Foi para Eastleigh, como o
senhor deve estar lembrado, Sr. Elk, que eu fui, quando ,desei do navio carregado de
bois durante a guerra para posar de jogador rico em Monte Carlo. — Esse ponto explicarei
mais tarde. Quando cheguei a Eastleigh, tive uma discussão com meu companheiro,
discussão um tanto áspera. O fato e que ele saiu para comprar comida no centro da vila e
não voltou mais. Indo atrás dele, encontrei-o caído na rua, irremediavelmente
embriagado. Nada mais havia a fazer, a não ser abandoná-l.o. Deixando-lhe um pouco de
comida, peguei as duas malas -e segui estrada afora. As malas, no entanto, eram pesadas
demais para mim, e tive de refletir detidamente sobre a situação_ Na margem da estrada,
havia -um velho chalé, com uma. anúncio de que, estava à venda. Anotei o endereço; a
placa trazia o = nome, de um advogado de Winchester. Pulei a cerca e inspecionei o
terreno. .. Descobri que, no fundo do jardim, ha,via, um, poço velho, fora de uso,
Cercado de ripas de madeira apodrecidas. Enfiei a mala mais leve no poço, que cobri com
entulhos de madeira, folhas secas e parte do lixo que enchia o terreno. Apenas uma parte
do dinheiro estava ali... Carreguei coMigo a mala mais pesada. Chegando a Winchester,
comprei urna muda de roupas e passei um dia tranqüilo na vila entrando em contato corri
o advogado dono do chalé.

”Joshua 13road” tornou fôlego e. prosseguiu : _

Tinha algum. dinheiro inglês na bolso fiz a

349
compra da propriedade. Dei instruções severas para que não mexessem em nada da casa
ou do jardim, para que tudo fosse mantido no estado em que se encontrava até que eu
voltasse de uma suposta viagem à Austrália ... Apresentei-me como um australiano rico,
que estava recuperando a casa em que nascera ... — De Winchester, cheguei a Londres,
jamais sonhando estar em perigo. Meu companheiro me dera o nome de um vigarista
inglês, um conhecido dele, o melhor arrombador de cofres da Europa na opinião de muita
gente: chamava-se ”Lyme” e, como descobri muitos anos mais tarde, era o mesmo Harry
Lyme que conhecemos. Ele me dissera que Lyme seria de grande auxílio em qualquer
emergência. — E logo surgiu a emergência. O primeiro homem que vi ao pôr os pés na
plataforma de Waterloo foi o comissário de bordo do Mantania, acompanhado, aliás, do
detetive do navio. Logo me afastei e, por sorte, havia um trem suburbano saindo da
plataforma oposta. Fui então para Surbiton, voltando a Londres por outro caminho. Pouco
depois, soube que meu companheiro fora detido e, num estado de semi-inconsciência,
dissera tudo que sabia. O importante, naquele momento, era esconder o dinheiro: 35
milhões de francos. Lembrei-me imediatamente de Harry Lyme. Sempre soube que entre
ladrões não existe honra; só um provérbio estúpido afirma o contrário... Mas julguei que,
tomadas algumas precauções, Lyme poderia ajudar-me na enrascada. — Soube, pelos
jornais, que havia uma força especial de polícia procurando por mim, e que os homens
estavam dando batidas nas casas de criminosos conhecidos, por onde, segundo o
julgamento deles, eu poderia gravitar. A princípio, pensei que fosse um blefe jornalístico,
mas logo descobri que era a mais pura verdade. Cheguei à casa de Lyme, perto de um
cruzamento de má reputação em Camden Town. A névoa era densa e amarelada; tive
alguma dificuldade em achar o caminho. Era uma casa pequena, numa rua tortuosa e
pobre. De início, ninguém atendeu à porta; por fim, no entanto, abriram-na
cuidadosamente. — ”É Lyme?” — eu perguntei. ”Ele não está”, disse o homem, que sem
dúvida teria batido a porta se meu instinto não me alertasse de que era o próprio Lyrne
quem estava falando comigo — meu pé

350
impediu que a porta entreaberta se trancasse de novo. ”Entre”, disse ele afinal,
levando-me para um pequeno aposento, iluminado apenas por um lampião sobre a mesa.
Com a janela aberta, a sala enchera-se de neblina. Fora uma precaução de Lyme, para um
caso de fuga apressada. ”Você é o tal americano?”, ele perguntou. ”Está louco vindo até
aqui. A policia vigia este lugar desde hoje à tarde.” Contei-lhe sucintamente meu
problema. ”Tenho 35 milhões de francos aqui, isto é, 1.300 mil libras”, disse eu, ”dinheiro
suficiente para nós dois. Não pode ajudar-me a escondê-lo enquanto eu mesmo me
mantiver escondido?” ”Sim, posso”, disse ele. ”Mas quanto ganho com isso?” ”Metade”,
prometi, e ele pareceu satisfeito. — Fiquei surpreso Lyme falar com o timbre de um
homem educado; soube mais tarde que tivera boa instrução, mas preferira caminhos fáceis
para ganhar a vida. Acho que não acreditarão em mim, mas juro-lhes que não vi o rosto
de Lyme, pois toda a minha atenção concentrou-se obsessivamente na rã tatuada em seu
pulso ... Parece que depois, pagando muito dinheiro, ele conseguiu que um médico
espanhol, especializado em trabalhos desse tipo, removesse a tatuagem em Valiadolid. A
rã estava tatuada no pulso, como já disse, um pouco de lado ... Eu sabia, e ele também,
que, mesmo que eu não me lembrasse de seu rosto, aquela marca me levaria sem dúvida
a reencontrá-lo. — Combinamos que, quando eu voltasse à América, lhe mandaria um
telegrama e um endereço. Ele deveria, então, mandar-me o dinheiro por um vale postal
registrado, para o Grand Hotel, em Montreal; deveria mandar a metade do dinheiro que
iria esconder. Para abreviar um pouco a história, consegui escapar e atingir o continente
através da Holanda. Sem qualquer bagagem, o trajeto foi consideravelmente facilitado. No
devido tempo, parti para os Estados Unidos, saindo de Bremen, na Alemanha.
Imediatamente após minha chegada, enviei o telegrama para Lyme, indo depois para
Montreal onde o dinheiro devia ser entregue. Mas o dinheiro não chegou. Mandei
novamente um telegrama, mas de novo o dinheiro não chegou... — Fiquei meses a fio sem
saber o que acontecera. Um dia, li num jornal que Lyme se afogara a caminho de
Guernsey, mas, de fato, o homem

351
continuava muito vivo. Tinha cerca de 6 milhões de dólares em dinheiro francês.
Primeiro, mudou-se para uma pequena cidade, onde, por seis meses, aparentou ser um
homem de negócios; nesse meio tempo, mudou também inteiramente de aparência,
raspando o bigode e conseguindo uma calvície artificial, pela aplicação de alguma
substância química. — Para sentir-se efetivamente seguro, Lyme fundou a Irmandade da
Rã, cujo objetivo era disseminar a marca de identificação pela qual eu poderia
localizá-lo... Talvez ele não possuísse qualquer outra intenção ao fundar a sociedade,
provavelmente, pretendia apenas espalhar por muitos outros pulsos o estigma da rã, Um
pouco obliquamente tatuada, sempre uma réplica exata de sua própria tatuagem.
Obviamente, seria difícil achar gente disposta a sofrer gratuitamente as dores torturantes de
uma tatuagem. Assim, começou essa curiosa associação de vagabundos, que se
deixavam marcar em troca de uns poucos tostões e... e prontos, também, a realizar
algumas tarefas para a Grande Rã. De um pequeno grupo inicial, a organização da Rã
expandiu-se enormemente. Um dos primeiros homens com que Lyme entrou em contato foi
um velho criminoso chamado Maitland, homem que não sabia ler nem escrever.

Houve uma exclamação. — Sim, aí está! — disse Elk, batendo no joelho com
impaciência. — Aí está a explicação do bebê.

— Nunca existiu um bebê — sorriu ”Broad”. — O bebê era o próprio Johnson. Os


brinquedos eram também invenções para confundir a polícia. Jamais existiu qualquer
bebê! Um dia, Johnson veio para Londers e a Maitlands Consolidated foi constituída.
Maitland tinha apenas que sentar-se numa grande mesa e posar como figura pitoresca. O
suposto empregado, um dos atores mais hábeis que conheci, era o verdadeiro cabeça de
todo o negócio. Quando viu as suspeitas se voltarem contra ele, ele próprio se demitiu; e
quando temeu que o tivessem identificado com a Rã, fez com que um de seus homens
lhe desse tiros de pólvora seca, perto do Harley Terrace. Era ele, Johnson, o verdadeiro
Maitland! Quando a Rã cresceu como organização, ele pensou em como _utilizar mais
amplamente a sociedade em seu pra-

352
veito. O dinheiro estava se acabando e, naturalmente, isso o preocupava. A cada dia
surgiam novos recrutas, e todos custavam dinheiro. Mas dentre toda a sua gentalha, ele
conseguiu apenas uma, ou melhor, duas mentes brilhantes. Primeiro Balder, depois Hagn .
Talvez houvesse outros homens de valor, mas é possível que nunca venhamos a saber.
Através da Maitlands Consolidated, ele podia pôr livremente os francos em circulação.
Fazia com que a Maitlands investisse em vários campos e, quando havia algum fracasso
aqui ou ali, usava de todos os meios para recuperar-se dos prejuízos. Sempre que fosse
necessário aliciar um homem, fosse ele um militar ligado ao corpo diplomático ou um
mero comerciante negociando seus própios estoques, Johnson nunca hesitava. Sabia
exatamente o que fazer com todas pessoas que o importunavam, mas cometeu um grande
erro ... Deixou Maitland morar como um porco numa casa que comprara. Foi uma
loucura! Quando Johson descobriu que o velho fora seguido, levou-o para uma mansão
em Bekerley Square, vestiu-o num bom alfaiate, fez com que o vissem luxuosamente
paramentado num teatro, mas, afinal, assassinou-o a sangue-frio, quando ele se atreveu a
ir até Horsham. Vi o assassino escapar, pois estava no telhado quando deram os tiros.
Aliás eu é que quase não escapei . .. Mas, voltando à minha narrativa . .. Há cinco anos, eu
estava sem dinheiro e resolvi fazer outra tentativa para conseguir meus milhões. Demorei
muito tempo a me convencer de que não seria mais reconhecido, e então, com documentos
falsos, embarquei num navio que conduzia gado e desembarquei, como contei ao Sr. Elk,
em Southampton, com uns poucos dólares no bolso. Fui diretamente para a casa que
tinha comprado em Eastleigh, já num lamentável estado de abandono. Lá me instalei,
tentando sobreviver da melhor maneira possível. Noite após noite, remexia o velho poço,
tentando recuperar uma das malas, onde havia urna soma de dinheiro nada desprezível.
Quando consegui encontrá-la, fui para Paris . O resto da história os senhores conhecem,
pois os fatos tornaram-se públicos. Então, comecei a investigar a Rã. Logo entendi que,
se subordinasse minhas investigações à identificação da tatuagem, jamais conseguiria che-

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gar à Grande Rã. Evidentemente, quando descobri (e descobri depressa) que Maitland era
uma Rã, estreitei minha esfera de pesquisa àquele escritório. Descobri que Maitland era
analfabeto usando o simples expediente de pará-lo um dia na rua, perto de sua casa, e
mostrarlhe um envelope em que estava escrito ”Você é um estúpido”, perguntando se
conhecia o endereço. Ele apontou para uma casa no fim da rua e se afastou
precipitadamente.

— Eu soube que Maitland não sabia ler nem escrever quando fui informado de que as
roupas da criança tinham sido deixadas em Eldor Street — disse Dick. — A partir
daquele momento também fiquei sabendo que Johnson era a Grande Rã.

”Joshua Broad” concordou com a cabeça. — Acho que contei tudo que tinha a dizer.
Johnson era um gênio. O modo como manejou aquela enorme organização da qual
praticamente só se ocupava em seu tempo livre, isto é, quando não estava no escritóio, foi
surpreendente . . . Ele puxava todo mundo para sua rede e, contudo, ninguém o
descobria. Balder era o mensageiro do deus; talvez fosse o mais bem-pago do bando.
Aposto que sua renda era contabilizada em seis algarismos.

***

Depois que ”Joshua Broad” saiu em direção a Londres, Dick acompanhou Elk até o portão.

— Vou tirar umas férias — disse ele. — Já esperava por isso — disse Elk. — Mas
explique-me uma coisa, Capitão Gordon . . . Que aconteceu àquelas duas caixas de
madeira que estavam na cabana da pedreira, ontem à noite?

— Eu não vi as caixas. — Eu vi — disse Elk confirmando a declaração com a cabeça. —


Estavam lá quando tirei a Srta. Bennett da casa, mas quando voltei com a polícia tinham
desaparecido, e ”Joshua Broad” esteve o tempo todo na cabana . — acrescentou ele.

Os dois policiais se entrolharam.

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— Acho que não devemos insistir no assunto — disse Dick. — Sinto que devo alguma
coisa a ”Broad”.

— Posso dizer o mesmo — disse Elk com um certo entusiasmo. — Sabe que ele me
ensinou uns versos ontem à noite? Eram cerca de 150 estrofes, mas só me lembro de
quatro. Começa assim:

Guilherme, o Conquistador, começa seus truques. Batalha de Hastings, 1.076

São bons versos, Capitão Gordon. Se eu soubesse há 10 anos, a essa altura já seria
Comissário-Chefe! ...

Desceram a estrada até a estação, pois pretendiam voltar de trem a Londres. O sol brilhava
nas grades molhadas de chuva que cercavam os jardins das casas. Foi então que uma
minúscula figura esverdeada surgiu entre os mourões de uma cerca. Elk parou para
contemplá-la. O pequeno anfíbio olhou em volta; depois encarou o detetive com olhos
muitos pretos e arregalados.

— Rã, — Elk levantou um dedo reprovador —, tenha coração e volte para casa. Este não
é um dia bom para você!

E, como se compreendesse as palavras do Inspetor, a rã deu um salto para trás e se


escondeu na relva crescida.

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Última capa

Coleção Horas em Suspense

Lançamentos de EDGAR WALLACE

O HOMEM DE MARROCOS

Um homem misterioso — conhecido como o Homem de Preto — ameaça Londres com


seus arrojados roubos a bancos. Nunca a Scotland Yard conseguiu localizá-lo. Sem
deixar rastros e vestígios, torna-se um ladrão excêntrico por roubar somente as caixas de
depósito e não propriamente o dinheiro depositado. Neste romance, o leitor acompanhará
as aventuras de James Morlake na Inglaterra e em Marrocos, sempre envolvido no clima
de mistério e suspense característico das obras de Wallace.

OS OLHOS VELADOS DE LONDRES

Um milionário é encontrado morto às margens do Tâmisa. Um homem sobre o qual nada


se sabe. As estranhas circunstâncias da descoberta do corpo levam a Scotland Yard a
suspeitar de assassinato. Para solucionar o enigma, Larry Holt é chamado de volta de suas
férias e encarregado do caso. Unindo todos os elementos de suspense e investigação, Edgar
Wallace cria um romance vibrante para o leitor, que certamente empolgará todos os
aficcionados do gênero.

Próximo lançamento UM PERFIL NA SOMBRA

Francisco Alves.

Digitalização e Revisão:
Lívia Fleury Motta Torres,
Biblioteca Braille José Álvares de Azevedo,

Goiânia, julho de 2018.

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