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FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7ª ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2008.
INTRODUÇÃO
Inicia o texto apresentando a sua ideia de História, por antagonismo ao que considera uma
historiografia dominante: em vez de buscar as continuidades entre séries de eventos, Foucault
reivindica uma história que focalize as descontinuidades, as rupturas, as interrupções, os deslizes.
O motor dessa inversão de perspectiva reside na crítica do documento. Não se trata mais de
reconstituir o passado que emana do documento, como se este fosse contivesse uma “voz”
independente do olhar do investigador:
Ora, por uma mutação que não data de hoje, mas que, sem dúvida, ainda não se
concluiu, a história mudou sua posição acerca do documento: ela considera como sua
tarefa primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade nem qual é seu
valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo: ela o organiza, recorta,
distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente
do que não é, identifica elementos, define unidades, descreve relações. (p.7).
O documento não é mais tratado pela história como uma matéria inerte a partir da qual ela tenta
reconstruir o passado; ela procura definir, no próprio tecido documental, as unidades, regularidades,
séries, etc. Trata-se da discussão entre documento e monumento, também trabalhada por Jacques Le
Goff.
Havia um tempo era que a arqueologia, como disciplina dos monumentos mudos,
dos rastros inertes, dos objetos sem contexto e das coisas deixadas pelo passado, se
voltava para a história e só tomava sentido pelo restabelecimento de um discurso
histórico; poderíamos dizer, jogando um pouco com as palavras, que a história, em
nossos dias, se volta para a arqueologia - para a descrição intrínseca do monumento
(p.8).
Dessa postura, decorrem inúmeras consequências, como aponta o próprio autor. Uma delas, já
mencionada, é a multiplicidade das rupturas. A tarefa da história tradicional era de buscar relações
entre acontecimentos datados e procurar as semelhanças entre eles. Ela se dispõe, agora, em
construir e analisar séries de acontecimentos, não se deixar prender pela cronologia e buscar a
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temporalidade intrínseca aos eventos estudados (sejam de breve ou longa duração, raros ou
repetitivos), podendo-se constituir inclusive séries de limites ampliados, ou mesmo “série de
séries”, que o autor denomina quadros.
Um dos traços mais essenciais da história nova é, sem dúvida, esse deslocamento do
descontínuo: sua passagem do obstáculo à prática; sua integração no discurso do
historiador, no qual não desempenha mais o papel de uma fatalidade exterior que é
preciso reduzir, e sim o de um conceito operatório que se utiliza; por isso, a inversão
de signos graças à qual ele não é mais o negativo da leitura histórica (seu avesso, seu
fracasso, o limite de seu poder), mas o elemento positivo que determina seu objeto e
valida sua análise (p.10).
Terceira consequência: a passagem de uma história global (que cinge todas as descontinuidades em
torno de um centro único, numa visão de história uniforme, homogênea e linear) para uma história
geral (que desdobraria, ao contrário da primeira, um espaço da dispersão). Não mais o “rosto” de
uma época, a significação comum de uma época, o conjunto homogêneo de uma civilização, o
núcleo central de sua identidade; a história nova problematiza diretamente essas categorias:
Mas não que ela procure obter uma pluralidade de histórias justapostas e
independentes umas das outras: a da economia ao lado da das instituições e, ao lado
delas ainda, as das ciências, das religiões ou das literaturas; não, tampouco, que ela
busque somente assinalar, entre essas histórias diferentes, coincidências de datas ou
analogias de forma e de sentido. O problema que se apresenta - e que define a tarefa
de uma história geral - é determinar que forma de relação pode ser legitimamente
descrita entre essas diferentes séries; que sistema vertical podem formar; qual é, de
umas às outras, o jogo das correlações e das dominâncias; de que efeito podem ser as
defasagens, as temporalidades diferentes, as diversas permanências; em que
conjuntos distintos certos elementos podem figurar simultaneamente; em resumo,
não somente que séries, mas que "séries de séries" - ou, em outros termos, que
"quadros" – é possível constituir. (p.11).
Esses são os problemas metodológicos que a história nova deve enfrentar (e Foucault não oferece
nenhuma resposta acabada, o que afinal entraria em contradição com seu próprio discurso).
Tais transformações epistemológicas não são tão novas como se poderia pensar à primeira vista
(elas já estão prefiguradas na obra de Marx), mas seus efeitos demoraram a aparecer. Segundo o
autor, existe uma razão para esse retardamento: a dificuldade de se abrir mão de uma concepção
global de história, por ser ela o fundamento do sujeito moderno.
E mais a frente:
Mas não devemos nos enganar: o que tanto se lamenta não é o desaparecimento da
história, e sim a supressão desta forma de história que era em segredo, mas
totalmente referida à atividade sintética do sujeito (p.16).
Trata-se de uma empresa pela qual se tenta medir as mutações que se operam, em
geral, no domínio da história; empresa onde são postos em questão os métodos, os
limites, os temas próprios da história das ideias; empresa pela qual se tenta desfazer
as últimas sujeições antropológicas; empresa que quer, em troca, mostrar como essas
sujeições puderam-se formar. (p.17).
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PRIMEIRA PARTE – AS REGULARIDADES DISCURSIVAS
Neste capítulo o autor propõe uma reflexão teórica sobre a análise histórica por ele proposta
(descontinuidade, ruptura, limite, série, etc.).
O autor sublinha que há, em primeiro lugar, uma “tarefa negativa” a ser realizada: deve-se abondar
as noções que se ligam ao tema da continuidade.
Primeiro a noção de tradição: conceito que permite impor à dispersão da história uma visão de
continuidade; reduz os começos difusos pela ideia de origem, pois “graças a ela [a noção de
tradição] as novidades podem ser isoladas sobre um fundo de permanência” (p.23-24).
Outras noções devem ser abandonadas, como influência (que atribui uma relação de causalidade
necessária aos fenômenos de repetição e semelhança); desenvolvimento ou evolução (que organiza
os eventos dispersos a um único princípio organizador); mentalidade ou espírito (que atribuem à
“consciência coletiva” o princípio da unidade e explicação da história).
“Mas, sobretudo, as unidades que é preciso deixar em suspenso são as que se impõem da maneira
mais imediata: as do livro e da obra.” (p.25). Como falar em unidade material do livro, ou em
unidade do discurso? “É que as margens de um livro jamais são nítidas nem rigorosamente
determinadas: além do título, das primeiras linhas e do ponto final, além de sua configuração
interna e da forma que lhe dá autonomia, ele está preso em um sistema de remissões a outros livros,
outros textos, outras frases: nó em uma rede” (p.26).
O conceito de obra suscita problemas ainda mais difíceis. O que é a obra de um autor? Apenas a
soma de textos escritos por uma pessoa? Só o que ele publicou na forma de livro? Ou dever-se-ia
acrescentar o que ele também desejava publicar, mas não o fez? Só os trabalhos de maior fôlego?
Ou cartas? Bilhetes e recados? Rascunhos? Esboços abandonados? As questões poderiam se
multiplicar aqui.
Finalmente, deve-se renunciar a dois temas da continuidade, que se ligam um ao outro e ao mesmo
tempo se opõem:
O primeiro princípio condena a análise histórica do discurso a ser uma busca indefinida por uma
origem; o segundo a destina a ser uma interpretação de um já dito que é, ao mesmo tempo, um não
dito. O autor propõe, ao contrario, que o discurso deve ser entendido na sua própria historicidade,
compreendê-lo como um momento na dispersão da história, renunciar a definir a sua origem, e
tratá-lo no jogo da sua instância.
Essas formas prévias de continuidade, todas essas sínteses que não problematizamos
e que deixamos valer de pleno direito, é preciso, pois, mantê-las em suspenso. Não
se trata, é claro, de recusá-las definitivamente, mas sacudir a quietude cora a qual as
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aceitamos; mostrar que elas não se justificam por si mesmas, que são sempre o efeito
de uma construção cujas regras devem ser conhecidas e cujas justificativas devem
ser controladas; definir em que condições e em vista de que análises algumas são
legítimas; indicar as que, de qualquer forma, não podem mais ser admitidas. (p.28).
Nesse momento, todo um domínio de análise passa a ser liberado, que Foucault define da seguinte
forma:
Uma vez suspensas essas formas imediatas de continuidade, todo ura domínio
encontra-se, de fato, liberado. Trata-se de um domínio imenso, mas que se pode
definir: é constituído pelo conjunto de todos os enunciados efetivos (quer tenham
sido falados ou escritos), em sua dispersão de acontecimentos e na instância própria
de cada um. (...) Aparece, assim, o projeto de uma descrição dos acontecimentos
discursivos como horizonte para a busca das unidades que aí se formam. (p.29-30).
Em suma, trata-se não mais de buscar unidades coerentes, nem as intenções dos autores, mas sim
em compreender os enunciados, as regras e as condições de sua existência, suas correlações com
outros enunciados que lhe antecedem e lhe seguem. Tampouco se trata de fechar o discurso nele
mesmo, mas sim de buscar outras formas de relações.
Tal tarefa não tem como objetivo apenas disseminar uma poeira de fatos, mas sim de abandonar
certos operadores de síntese puramente psicológicos (intenções do autor, a forma de seu espírito, o
rigor do seu pensamento) e buscar por outros tipos de regularidades: (p.32).
a) Relações entre os enunciados (mesmo que escapem à consciência do autor; mesmo que se
trate de enunciados que não têm o mesmo autor; mesmo que os autores não se conheçam);
b) Relações entre grupos de enunciados assim estabelecidos (mesmo que esses grupos não
remetam aos mesmos domínios nem a domínios vizinhos; mesmo que não tenham o mesmo
nível formal; mesmo que não constituam o lugar de trocas que podem ser determinadas);
c) Relações entre enunciados ou grupos de enunciados e acontecimentos de uma ordem
inteiramente diferente (técnica, econômica, social, política).
Mas Foucault também faz um alerta importante: “Fora de cogitação, entretanto, está o fato de se
poder descrever, sem limites, todas as relações que possam assim aparecer.” (p.33). Deve-se ter em
mente que a totalização não é apenas inviável, como também leva a ilusões que precisamos nos
desfazer.
Em vez de uma totalização, deve-se aceitar, inicialmente um recorte provisório, o que o autor
chama de “região discursiva” (p.33). Mas como circunscrever essa região? Foucault não oferece
respostas definitivas, mas sugere algumas problematizações tais como:
a) Por um lado, é preciso, empiricamente, escolher um domínio em que as relações corram o
risco de ser numerosas, densas e relativamente fáceis de descrever (como as ciências, em
primeiro lugar, mas também discursos políticos, cerimoniais, etc.);
b) Centralizar a análise nas regras de aparecimento do discurso.
c) Compreender períodos temporais amplos para abandonar as categorias de obra, unidade,
continuidade, e ao mesmo tempo, para perceber essas regularidades de novo tipo.
d) Ter no horizonte de análise não o entendimento das disposições dos sujeitos falantes ou dos
autores, mas antes considerar “o conjunto de enunciados através dos quais essas categorias
se constituíram – o conjunto de enunciados que escolheram como ‘objeto’ o sujeito dos
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discursos (seu próprio sujeito) e que se dispuseram a desenvolvê-lo como campo de
conhecimentos?” (p.33).
Questiona o que seriam, afinal, as unidades discursivas sugeridas no capítulo anterior. Afinal, o que
é a medicina, a gramática, etc.? Seria possível abandonar tais conceitos com os quais os
historiadores se habituaram a utilizar, e buscar outras formas de disposição dos discursos na sua
dispersão?
O autor assinala quatro hipóteses que poderiam dar conta de tal questão, para logo em seguida
desconstruí-las e sugerir, novamente, o primado da dispersão e descontinuidade para uma análise
histórica dos discursos (em especial os discursos científicos).
A unidade dos discursos sobre a loucura não estaria fundada na existência do objeto
"loucura", ou na constituição de um único horizonte de objetividade; seria esse o
jogo das regras que tornam possível, durante um período dado, o aparecimento dos
objetos: objetos que são recortados por medidas de discriminação e de repressão,
objetos que se diferenciam na prática cotidiana, na jurisprudência, na casuística
religiosa, no diagnóstico dos médicos, objetos que se manifestam em descrições
patológicas, objetos que são limitados por códigos ou receitas de medicação, de
tratamento, de cuidados. Além disso, a unidade dos discursos sobre a loucura seria o
jogo das regras que definem as transformações desses diferentes objetos, sua não-
identidade através do tempo, a ruptura que neles se produz, a descontinuidade interna
que suspende sua permanência (p.37).
Segunda hipótese: em vez de focar na “unidade do objeto”, as unidades discursivas poderiam ser
encontradas na forma e no tipo de encadeamento realizado no discurso. Mas não há nenhum sistema
de codificação imune à mudança temporal. (O discurso médico e o econômico, por exemplo,
passaram por alterações radicais na forma da enunciação).
Terceira hipótese: as unidades discursivas podem ser encontradas determinando-lhes o sistema dos
conceitos permanentes e coerentes que nelas se encontram em jogo. Mas também os conceitos se
transformam historicamente (Cf. Koselleck). Assim, em vez de tentar construir uma arquitetura dos
conceitos mais gerais onde todos os outros podem ser incluídos, o autor propõe analisar o jogo de
seus desaparecimentos e de sua dispersão.
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Entretanto, talvez fosse descoberta uma unidade discursiva se a buscássemos não na
coerência dos conceitos, mas em sua emergência simultânea ou sucessiva, em seu
afastamento, na distância que os separa e, eventualmente, em sua incompatibilidade
(p.40).
Quarta hipótese: a identidade e a persistência dos temas. A unidade discursiva residiria então na
constância de certos temas, como o tema fisiocrático na economia, ou evolucionista na biologia.
Mas aqui também encontramos dificuldades, pois a mesma temática pode ser trabalhada a partir de
dois tipos de discurso completamente diferentes (o evolucionismo na cosmologia, na filosofia e na
biologia, por exemplo).
Mais do que buscar a permanência dos temas, das imagens e das opiniões através do
tempo, mais do que retraçar a dialética de seus conflitos para individualizar
conjuntos enunciativos, não poderíamos demarcar a dispersão dos pontos de escolha
e definir, antes de qualquer opção, de qualquer preferência temática, um campo de
possibilidades estratégicas? (p.42).
Nesse momento, o autor propõe uma nova definição-mestra para a análise do discurso,
abandonando certas palavras que podem trazer problemas de significação (em vez de unidade
discursiva, falar em formação discursiva):
E ainda,
São essas as categorias que o autor vai testar no restante dessa parte do livro. Vale assinalar que os
próximos capítulos estão diretamente alinhados às quatro hipóteses levantadas neste capítulo: a
formação dos objetos, das modalidades enunciativas, dos conceitos, das estratégias.
“Uma formação discursiva não desempenha, pois, o papel de uma figura que para o
tempo e o congela por décadas ou séculos: ela determina uma regularidade própria
de processos temporais; coloca o princípio de articulação entre uma série de
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acontecimentos discursivos e outras séries de acontecimentos, transformações,
mutações e processos. Não se trata de uma forma intemporal, mas de um esquema de
correspondência entre diversas séries temporais.” (p. 83)
“Atrás do sistema acabado, o que a análise das formações descobre não é a própria
vida em efervescência, a vida ainda não capturada, mas sim uma espessura imensa
de sistematicidades, um conjunto cerrado de relações múltiplas. Além disso, essas
relações, por mais que se esforcem para não serem a própria trama do texto, não são,
por natureza, estranhas ao discurso. Pode-se mesmo qualificá-las de "pré-
discursivas", mas com a condição de que se admita que esse pré-discursivo pertence,
ainda, ao discursivo, isto é, que elas não especificam um pensamento, uma
consciência ou um conjunto de representações que seriam, mais tarde, e de uma
forma jamais inteiramente necessária, transcritas em um discurso, mas que
caracterizam certos níveis do discurso, definem regras que ele atualiza enquanto
prática singular. Não procuramos, pois, passar do texto ao pensamento, da conversa
ao silêncio, do exterior ao interior, da dispersão espacial ao puro recolhimento do
instante, da multiplicidade superficial à unidade profunda. Permanecemos na
dimensão do discurso.” (p. 85).
Apesar do título, Foucault não faz uma definição geral do enunciado nesta seção, mas apenas faz
algumas reflexões para se aproximar do problema do enunciado.
O enunciado é a unidade básica do discurso. Mas como podemos defini-lo? Segundo o autor, o
enunciado não é redutível a conceitos como de proposição (na lógica), de frase (na gramática) e de
“ato de fala” (filósofos ingleses).
Ainda não é hora de responder à questão geral do enunciado, mas podemos, de agora
em diante, delimitar o problema: o enunciado não é uma unidade do mesmo gênero
da frase, proposição ou ato de linguagem; não se apoia nos mesmos critérios; mas
não é tampouco uma unidade como um objeto material poderia ser, tendo seus
limites e sua independência. Em seu modo de ser singular (nem inteiramente
linguístico, nem exclusivamente material), ele é indispensável para que se possa
dizer se há ou não frase, proposição, ato de linguagem; e para que se possa dizer se a
frase está correta (ou aceitável, ou interpretável), se a proposição é legítima e bem
constituída, se o ato está de acordo com os requisitos e se foi inteiramente realizado.
(p.97-98).
Assim, o enunciado não é uma estrutura, mas antes uma função que se realiza no discurso. Não a
unidade material de signos, mas exatamente aquilo que torna possível o encadeamento de signos.