Sei sulla pagina 1di 79

1

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas

LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA


PORTUGUESA I

Antologia de Textos
Profa. Dra. Tania Macêdo

2008

1
2

ANGOLA
1482 Construção da primeira fortaleza pelos portugueses nas costas de Angola

1571 Paulo Dias de Novais é nomeado primeiro capitão-donatário de Angola

1576 É criada a cidade de Luanda (S. Paulo de Assumpção de Luanda).

c.1600 Aparecimento de pequenos estados entre os Ovimbundos


1617 Fundação de Benguela
Salvador Correia de Sá e Benevides expulsa os holandeses de Luanda
1648
(ocupada por estes desde 1642).

Amplia-se o tráfico negreiro em Angola. Mais de um milhão de


Séculos 17 e 18 escravos é enviado para o Brasil entre 1580 e 1680

1836 Abolição do tráfico de escravos no Atlântico


A Conferência de Berlim traça as fronteiras do norte de Angola com o Estado
Livre do Congo e concede a Portugal o território a sul, para além do enclave
1884-1885
de Cabinda. Portugal só na década de 1920 consegue 'pacificar' a totalidade
do país e concluir a definição das suas fronteiras orientais e meridionais.
1875 Publicação do Código de Trabalho Indigena
1878 Fim da escravatura
1912 Descobrem-se diamantes em Angola

2
3

1917 Inicio da Exploração dos Diamantes


O Governador de Angola Norton de Matos dissolve a Liga Angola e o
1921
Grémio Africano
Fundação em Luanda da Liga Nacional Africana e da Associação dos
1929
Naturais de Angola (Anangola)
1953 Fundação do PLUA-Partido da Luta dos Africanos de Angola
Fundação, em Leopoldeville (Kinshasa) da UPNA-União das Populações
1954 do Norte de Angola, sob a presidência de Roberto Holden.Em 1958 a
UPNA passa a chamar-se UPA-União das Populações de Angola.
7 a 17 de Março.Movimentos de greve dos trabalhadores contratados do
1956
norte de Angola
Segundo a cronologia oficial, a 10 de Fevereiro. Fundação do MPLA-
Movimento Popular de Libertação de Angola, sob a presidência de
Agostinho Neto, por fusão do PLUA e do MIA-Movimento pela
Independência de Angola.
1959 Prisões em massa em Luanda (Março e Julho).
1960 Prisão de Agostinho Neto e do Pe. Joaquim Pinto de Andrade.
6 de Janeiro. Na Baixa do Cassange negros fazem greve nas plantações
algodoeiras e lançam a Guerra de Maria, assim chamada por um dos seus
inspiradores ter sido António Mariano, próximo da União das Populações
de Angola (UPA). Queimam sementes, destroem pontes fluviais, missões
1961 católicas, lojas e casas de brancos, louvam Patrice Lumumba, e clamam
pela independência de Angola. As Forças Armadas esmagam a revolta
com companhias de caçadores especiais e bombas de napalm, lançadas
de aviões. O turbilhão de 120 mil mortos na Baixa do Cassange é omitido
da opinião pública.
4 de Fevereiro. Inicio da Guerra de Libertação. Ataques à Casa de
Reclusão, ao quartel da PSP e à Emissora Oficial de Angola em Luanda.
11961 15-18 de Fevereiro. Lança-se uma ofensiva contra propriedades e
povoações na zona de fronteira com o Congo, na Baixa do Cassange, até
às cercanias de Vila Carmona
27 de Março. A UPA e o PDA fundam a FNLA-Frente Nacional de
1962
Libertação de Angola.
Agostinho Neto evade-se de Lisboa onde estava em prisão domiciliária.
O MPLA obtém da Zâmbia e da Tanzânia importantes apoios para a
1965
guerra de libertação no leste de Angola.
1968 Inicio da Extração do petróleo em Cabinda
1974-5 Exodo de 300 mil portugueses
1975 11 de novembro - Independência de Angola
Guerra Civil entre o MPLA, UNITA e FNLA
1977 27 de maio-Intentona de Nito Alves no MPLA
Após a morte de Agostinho Neto, em setembro, José Eduardo dos Santos
1979
é nomeado Presidente da República
1991 Assinado acordo de paz. As eleições gerais são marcadas
1992 Vitória do MPLA nas Eleições
Reinicio da Guerra
1994 Acordo de Paz em Lusaca
Reinício da Guerra
2002 Morre Jonas Savimbi, dirigente da Unita
Acordo de Paz entre a Unita e o Governo de Angola

3
4

Indicadores

Capital : Luanda Localização: Costa ocidental de África, a sul do equador com 1650
km de costa maritima e 4837 km de fronteiras terrestes. Tem fronteiras com as
Repúblicas Popular do Congo, do Zaire e da Zâmbia e com a Namíbia. Clima: equatorial
e tropical Superfície:1.246.700 km2 População: 14 milhões (em 2005); Densidade
da população: 9 habitantes por Km2; Esperança de vida: 40 anos; Língua:
Português (língua oficial). Outras línguas: umbundu, kimbundu, kikongo, tchokwe,
kwanyama e mbunda Moeda: kwanza Taxa de Natalidade: 48/1000 habitantes (2005)
Taxa de alfabetização: 42% (2005) Religião: católicos - 38%; protestantes- 15%;
cultos tradicionais - 47%. Recursos naturais: Petróleo, diamantes, minas de ferro,
fosfatos, cobre, feldspato, ouro, bauxita e urânio, zinco, chumbo, volframio, manganês,
estanho, madeiras preciosas (pau-preto, ébano, sândalo, pau-raro e pau-ferro).

ÍNDICE

Cronologia e Indicadores ..............................................................................................02

Textos críticos

A oratura em Angola – Tania Macêdo 05


A memória africana – Hampatê-Ba 07
Modelos criticos de representação oralidade – Ana Mafalda Leite 09
Valores civilizatórios em sociedade negro-africanas – Fábio Leite 18
A década de 50. O movimento dos Novos Intelectuais. Ervedosa 27
...E a situação do escritor – A Memmi 39
Prefácio a Os condenados da terra – J.-P. Sartre 40
Trecho do Cap. I – Os condenados da terra- F. Fanon 49
Fragmento de ensaio – Manuel Rui 53

Textos de poesia e ficção

Agostinho Neto 55
Aires de Almeida Santos 57
Antonio Jacinto 58
Arnaldo Santos 62
Boaventura Cardoso 64

4
5

José da Silva Maia Ferreira 65


Paula Tavares 66
Ruy Duarte de Carvalho 68
Viriato da Cruz 71
Referências bibliográficas. Notas biobibliográficas 74

A oratura em Angola (trecho do livro Luanda, literatura e cidade)


Tania Macêdo

Dadas as numerosas formas de manifestação que a oratura tradicional angolana assume - a


música, a poesia, as narrativas e os provérbios e até os testos ou tampas de panela1 - optamos
por seguir a classificação proposta por Héli Chatelain a propósito dos quimbundo, a qual, deve-se
frisar, não colide com a de outros estudiosos2 como, por exemplo, Oscar Ribas (1964).
Dessa maneira, pode-se afirmar que as manifestações culturais orais angolanas
classificam-se em seis classes principais:
• a primeira delas inclui todas as estórias tradicionais de ficção, inclusive aquelas em
que os protagonistas são animais. Segundo Chatelain, elas “devem conter algo de
maravilhoso, de sobrenatural. Quando personificamos animais, as fábulas pertencem a
esta classe, sendo estas histórias, no falar nativo, chamadas de MI-SOSO. Começam
e findam sempre por uma fórmula especial” (CHATELAIN, 1964, p. 102)
A forma especial de intróito dessas narrativas se dá graças a uma utilização idiomática do
verbo ku-ta, que significa “contar”, “falar”, “expor”. Uma tradução do uso específico desse verbo
nas narrativas tradicionais equivaleria aproximadamente a “por uma estória”. Esse uso se observa
quando o contador dá início à narrativa com:
“Vou por uma estória”. A que o auditório prontamente responde: “Venha ela” (“Diize”)
Já com relação ao fecho das narrativas tradicionais, é Óscar Ribas quem informa:
No encerramento, diz-se: ‘Já expus (Ngateletele) a minha historiazinha. Se é bonita, se é
feia, vocês é que sabem.’ Quando a história é pequena, finaliza-se: “Uma criança não
põe uma história comprida, senão nasce-lhe um rabo!” (RIBAS, 1964, p. 28).

Referindo-se aos temas e personagens do mi-soso (ou misosso), o mesmo autor ainda diz
o seguinte sobre as personagens e ações dos contos tradicionais angolanos:
Os contos, ordinariamente, refletem aspectos da vida real. Neles figuram as mais variadas
personagens: homens, animais, monstros, divindades, almas. Se, por vezes, a ação
decorre entre elementos da mesma espécie, outras, no entanto, desenrolam-se
misteriosamente, numa participação de seres diferentes. (RIBAS, 1964, p. 30)

Nos mi-sosso os animais, assim como os homens, revestem-se de dignidade própria e são
dotados do dom da fala. Entre si tratam-se de forma cortês e ordinariamente as suas relações
pautam-se não pela escala de hierarquia social, mas tão-somente da familiar. Quando em
sociedade, o valor individual reside na corpulência e, por conseguinte na força, constituindo,
aparentemente, a inteligência e a astúcia, predicados secundários. Ocorre, entretanto, que via de
regra, tal como acontece entre os homens, um animal pequeno, valendo-se da sua esperteza,
vence o de porte superior e, assim pode-se verificar que grande parte dos mi-sosso acaba por
enaltecer a astúcia, em detrimento da força bruta. Dentre os animais destacam-se:

1
Para José Martins Vaz (1969- I vol. p. 9), os testos – tampas - de panela são “cartas, bilhetes esculpidos,
portadores de mensagem traduzíveis em provérbios (...)
2
Ver, a respeito, ver a exaustiva bibliografia citada e comentada por Oliveira (2000, vol. I, p. 94)

5
6

• o mbewu (cágado ou tartaruga) que normalmente é apresentado como juiz inteligente e


sagaz e cuja longevidade lembra a sabedoria dos mais-velhos;
• kandimba (a lebre ou coelho selvagem) – é também juiz, mas não raro foge às
conseqüências, ou seja, dá a sua opinião, decide mas não implementa as decisões,
preferindo esconder-se;
• njamba (o elefante) – apresenta-se como representante da força bruta, de modo na
sua representação a força física sobreleva a inteligência;
• nguli, hosi ou ndumba (leão) – assim como o elefante, é representante da força e da
ferocidade. É, no entanto, representado como facilmente enganável por um animal
mais astuto.
Os mi-sosso, também, podem ter como personagens os monstros, antropófagos quase
sempre, dentre os quais se destacam:
• os quinzáris que possuem corpo de fera (onça ou pantera), mas com pés humanos –
metamorfose obtida por magia concedida para o efeito. “Homem-fera. Palavra formada
a partir do quimbundo: kuzuma (dilacerar) + kûria (comer)” (RIBAS, 1997, p. 249);
• os diquíxis que apresentam aparência humana, mas possuem cabeças que se
reproduzem quando decepadas “limitadamente, segundos uns; ou com muitas cabeças
simultaneamente, em número variável, segundo outros”. Ainda que tenham forma
humana, esse antropófagos vivem isolados do homem. “Este estado também pode ser
obtido por magia, por um tempo determinado(...)”. A origem do vocábulo diquixi
remontaria ao quimbundo kuxiba (sorver)”. (RIBAS, 1997, p. 82).
A segunda classe das categorias da oratura angolana é a das
• MAKA – que compreenderiam as histórias verdadeiras ou reputadas como tal.
“Embora servindo também de distração estas histórias têm um fim instrutivo e útil,
sendo como que uma preparação para futuras emergências”, nos informa o autor de
Contos populares de Angola (CHATELAIN, 1964, p. 102).
Com relação à terceira categoria da oratura angolana, temos
• MA-LUNDA ou MI-SENDU. São estórias especiais, já que são transmitidas apenas
pelos mais velhos (especialmente os chefes), pois se constituem nas verdadeiras
crônicas históricas. “São geralmente consideradas segredos de estado e os plebeus
apenas conhecem pequenos trechos do sagrado tesouro das classes dominantes”.
(CHATELAIN, 1974, p. 102).
Na quarta categoria estão os
• JI-SABU - provérbios, em que avulta a concisão. São largamente usados na fala
cotidiana: “para prova das afirmações que se fazem ao correr de um discurso, para
decisão final, numa troca de impressões, a fim de destacar a idéia-mestra do diálogo;
para conclusão de julgamentos (...)” (VALENTE, 1973, p. XI)
A quinta categoria abrange
• a poesia e a música, quase que inseparáveis: Em regra, a poesia é cantada, e a
música vocal é raramente expressa em palavras. (...) Na poesia quimbunda existem
poucos sinais de rima, mas muitos de aliteração, ritmo e paralelismo” (CHATELAIN, p.
102). Essas produções são chamadas de MI-IMBU.
A sexta e última categoria é formadas pelas
• adivinhas, chamadas JI-NONGONONGO3. Têm como função principal exercitar o
pensamento e a memória. “Como noutras parte do mundo, também possuem em
Angola, as suas frases pragmáticas de iniciação. Palavra do quimbundo kunyongojoka:
voltear, torcer.” (RIBAS, 1997, p. 215).

3
A respeito, remetemos a O livro das adivinhas angolanas, de Américo Correia de Oliveira (OLIVEIRA, 2001)
que congrega mais de mil adivinhas divididas a partir de temas: Fauna, Flora, Mundo, Geografia, Objetos,
Corpo humano, Alimentação, Pessoas, Miscelânea, Impossíveis e Filosofia de vida.

6
7

Bibliografia referida

RIBAS, Óscar. Misosso - literatura tradicional angolana. Luanda: Angolana, 1964, 3 vol.
VALENTE, José Francisco. Paisagem africana (Uma tribo angolana no seu fabulário). Luanda:
Instituto de investigação científica de Angola, 1973.
OLIVEIRA, Américo Correia de. O livro das adivinhas angolanas. Lisboa: Mar além, 2001.

Prólogo - A MEMÓRIA AFRICANA

Amadou Hampâté-Ba

Muitos amigos que leram o manuscrito mostraram-se surpresos. Como é que a


memória de um homem de mais de oitenta anos é capaz de reconstituir tantas
coisas e, principalmente, com tal minúcia de detalhes? É que a memória das
pessoas de minha geração, sobretudo a dos povos de tradição oral, que não
podiam apoiar-se na escrita, é de uma fidelidade e de uma precisão prodigiosas.
Desde a infância, éramos treinados a observar, olhar e escutar com tanta atenção,
que todo acontecimento se inscrevia em nossa memória como em cera virgem.
Tudo lá estava nos menores detalhes: o cenário, as palavras, os personagens e
até suas roupas. Quando descrevo o traje do primeiro comandante de
circunscrição francês que vi de perto em minha infância, por exemplo, não preciso
me "lembrar", eu o vejo em uma espécie de tela de cinema interior e basta contar
o que vejo. Para descrever uma cena, só preciso revivê-Ia. E se uma história me
foi contada por alguém, minha memória não registrou somente seu conteúdo, mas
toda a cena - a atitude do narrador, sua roupa, seus gestos, sua mímica e os
ruídos do ambiente, como os sons da guitarra que o grÍot4 Diêli Maadi tocava
enquanto Wangrin me contava sua vida, e que ainda escuto agora ...
Quando se reconstitui um acontecimento, o filme gravado desenrola-se do começo
ao fim, por inteiro. Por isto é muito difícil para um africano de minha geração
"resumir". O relato se faz em sua totalidade, ou não se faz. Nunca nos cansamos -
de ouvir mais uma vez, e mais outra a mesma história Para nós, a repetição não é
um defeito.

CRONOLOGIA
Como a cronologia não é uma grande preocupação dos narradores africanos, quer
tratem de temas tradicionais ou familiares, nem sempre pude fornecer datas
precisas. Há sempre uma margem de diferença de um a dois anos para os
acontecimentos, salvo quando fatores externos conhecidos me permitiam situá-
los. Nas narrativas africanas, em que o passado é revivido como uma experiência
atual de forma quase intemporal, às vezes surge certo caos que incomoda os
espíritos ocidentais. Mas nós nos encaixamos perfeitamente nele. Sentimo-nos à
4
Griots: corporação profissional compreendendo músicos, cantores e também sábios genealogistas itinerantes ou ligados
a algumas famílias cuja história cantavam e celebravam. Podem também ser simples cortesãos (...). Como não existe em
português um termo equivalente para designar estas pessoas e este tipo de atividade, foi conservado o termo original em
todo o relato. (NT)

7
8

vontade como peixes num mar onde as moléculas de água se misturam para
formar um todo vivo.

ZONA DE REFERÊNCIA
Quando se fala da "tradição africana", nunca se deve generalizar. Não há uma
África, não há um homem africano, não há uma tradição africana válida para todas
as regiões e todas as etnias. Claro, existem grandes constantes (a presença do
sagrado em todas as coisas, a relação entre os mundos visível e invisível e entre
os vivos e os mortos, o sentido comunitário, o respeito religioso pela mãe,
etc), mas também há numerosas diferenças: deuses, símbolos sagrados,
proibições religiosas e costumes sociais delas resultantes variam de uma região a
outra, de uma etnia a outra; às vezes, de aldeia para aldeia.
As tradições a que me refiro nesta história são, de maneira geral, as da savana
africana que se estende de leste a oeste ao sul do Saara (território que
antigamente era chamado Bafur), e particularmente as do Mali, na área dos fula-
tucolor e bambara onde vivi.

SONHOS E PREVISÕES
Outra coisa que às vezes incomoda os ocidentais nas histórias africanas é a
freqüente intervenção de sonhos premonitórios, previsões e outros fenômenos do
gênero. Mas a vida africana é entremeada deste tipo de acontecimentos que, para
nós, são parte do dia-a-dia e não nos surpreendem de maneira alguma.
Antigamente, não era raro ver um homem chegar a pé de uma aldeia distante
apenas para trazer a alguém um aviso ou instruções a seu respeito que havia
recebido em sonhos. Feito isto, simplesmente retomava, como um carteiro que
tivesse vindo entregar uma carta ao destinatário. Não seria honesto de minha
parte deixar de mencionar este tipo de fenômenos no decorrer da história, porque
faziam - e sem dúvida, em certa medida ainda fazem - parte de nossa realidade
vivida.

Depoimento de Amadou Hampâté Bâ, recolhido em 1986 por Hélène Heckmann

HAMPATÉ-BA, Amadou. Prólogo In HAMPATÉ-BA, Amadou. Amkoullel, o menino


fula. São Paulo: Casa das Áfricas; Palas Atenas. 2003.

________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________

8
9

Modelos críticos das representações da oralidade nos textos literários africanos e


sua adequação no quadro das teorias pós-coloniais
Ana Mafalda Leite (Universidadede Lisboa)

Os estudos críticos sobre Literaturas Africanas de língua portuguesa têm partilhado de uma
contribuição teórica estrangeira fundamental, nomeadamente oriunda do mundo francófono ou
anglófono que, por razões históricas5, têm um percurso editorial e de pesquisa mais antigo. Os
ensaios e teorização provenientes destas duas áreas confirmam que só um conhecimento
aprofundado das realidades culturais subjacentes ao texto literário africano - por vezes com
vertentes teóricas especificamente africanas6 - permitirá conferir aos textos literários a sua
polivalência cultural, o seu carácter diferencial.
Com efeito, de acordo com o ponto de vista da crítica africana, os textos literários caracterizam-
se pela mobilidade da sua simbolização e convocam uma multiplicidade de metodologias para a
sua descodificação, ou para a fruição completa das suas várias interferências, linguísticas,
culturais, simbólicas, míticas, enfim, semióticas.
A obra de Locha Mateso La Littérature Africaine et sa Critique (1986) tem interesse em servir
como elemento de referência neste domínio, uma vez que faz um historial das principais
tendências críticas no campo francófono. Situa as principais fases da produção crítica sobre a
literatura africana, nomeadamente, referindo um percurso que se inicia com a crítica colonial, o
envolvimento com a época dos nacionalismos africanos e a reivindicação negritudiana, até à
instituição da área como disciplina universitária, nas universidades africanas e francesas.
A discussão sobre a validade da contribuição crítica de africanistas europeus e do contributo
das escolas ocidentais começa quando os primeiros africanos reivindicam métodos tradicionais,
baseando-se na existência secular de uma ‘escola’ e pensamento críticos no domínio da oratura,
e ao evidenciarem o desconhecimento destas poéticas, por parte da crítica de origem ocidental.
Semelhante postura, que tem na sua base a dicotomia Oralidade/ Escrita, levada ao seu
extremo, considerando que a crítica mais eficaz seria aquela culturalmente mais enraizada,
acabaria por efectuar-se num quadro já nem sequer nacional, mas étnico. Thomas Melone7 é um
dos representantes deste tipo de tendência etnológica e ancestralizante, e de teses que
conduziram a um impasse, uma vez que, entre outros aspectos, se punha em causa, a origem não
africana dos pesquisadores.
O Colóquio de Leiden (1977) sobre a Crítica Literária Africana8 discutiu questões como a
especificidade do discurso crítico africano, promovendo o ecletismo como regra, e o contributo de
vários tipos de modelos críticos, entre os quais, naturalmente, os tradicionais.
Locha Mateso expõe vários dos percursos críticos que posteriormente tiveram lugar,
nomeadamente a partir de ensaios de origem universitária, salientando, entre outros, a crítica
sociológica de Sunday Anozié, a crítica estilística de Zadi Zaouru, o modelo linguístico de J-
P.Makouta M'Boukou9, tentando fazer uma tipologia do discurso crítico africano, reconhecendo o

5
As diferentes práticas de colonização permitiram, tanto no caso francês como inglês, o desenvolvimento de
elites intelectuais africanas desde a década de trinta, e a maioria das independências ocorreram no fim da
década de cinquenta.
6
Cf. Locha Mateso, La Littérature Africaine et sa Critique, Paris, E.Karthala, 1986 ; Mineke Schipper, Beyond
the Boundaries, African Literature and Literary Theory, London, Allison & Busby, 1989; Chidi Amuta, The
Theory of African Literature, London and New Jersey, Zed Books Ltd.,1989.
7
Melone, Thomas, "La critique littéraire et les problèmes du langage: point de vue d'un africain" in Présence
Africaine, 73, 1970, p.3-19.
8
Condé M, "Non spécifité de la critique littéraire 'africaine'" in African Perspectives: Text and Context,
methodological explorations in the field of african literature, Afrika-studiecentrum, Leiden,, 1977, p.39.
9
Anozié, Sunday, Sociologie du Roman Africain, Paris, Aubier- Montaigne, 1970; Zadi Zaourou, B.,La Parole
Poétique dans la Poésie Africaine. Domaine de l'afrique de l'Ouest francophone, Thèse d'ètat, Université de
Srasbourg, 1981; Makouta M'Boukou, JP, Introduction à l'étude du roman négro-africain de langue française,
Abidjan, NEA, 1980.

9
10

contributo incontornável das correntes críticas ocidentais no desenvolvimento dos estudos


africanos, especialmente ao referir a importância do valor heurístico do conceito de "dialogismo",
como sendo particularmente operatório no estudo das culturas não europeias, sujeitas à
interpenetração de sistemas culturais diferentes: "Ainsi dans le domaine artistique ou littéraire, on
peut mettre en rapport les traditions orales et les principes de création littéraire moderne, les
interférences linguistiques dans les techniques d'écriture (...)" 1986:367.
O texto de Locha Mateso, "Le modèle traditionnel", incluído na obra referida (1986), tem
especial interesse porque desenvolve uma abordagem teórica e metodológica distinta, que assenta
sobretudo na especificação da relação entre a tradição oral africana e o romance moderno,
encarada de um ponto de vista não ortodoxo, e representado pela obra, fundamental, de dois
autores.
O primeiro, Mohamadou Kane, ensaísta senegalês, autor de Roman Africain et Tradition
(1983)10, procura novas e mais profundas abordagens, centrando-se particularmente em dar conta
da sobrevivência da tradição num contexto de modernização, consistindo o trabalho do crítico em
salientar a continuidade relativa do discurso tradicional oral no discurso escrito. A oralidade,
modelo do discurso romanesco, comporta segundo Kane dois aspectos complementares: o
"literário" concretizado pelo vasto domínio da literatura oral, e o aspecto não verbal, em que se
inscreve a sageza milenar africana11 .
É a partir da literatura oral que o autor constrói o seu modelo teórico, procurando detectar as
"formas" da sobrevivência da oralidade no romance moderno. São essencialmente seis aspectos
que o autor refere: Estrutura linear, Mobilidade temporal e espacial, A viagem iniciática, Carácter
autobiográfico, Estrutura dialógica e Imbrincação de géneros.
Assim, segundo Kane, a literatura oral, nomeadamente o género predilecto, o conto, desenvolve
uma história simples e uma acção linear e, semelhante alinhamento da intriga, visa evitar a
confusão do ouvinte; do mesmo modo o romance moderno africano recupera esta técnica
narrativa, insistindo na unidade de acção, e na simplicidade da intriga, aspectos, aliás, que podem
levar um crítico, não conhecedor das técnicas orais, a considerá-los como factor de inexperiência
ou inabilidade do escritor.
A mobilidade temporal e espacial é outra das formas de sobrevivência da literatura oral que
caracteriza o romance africano, em que o itinerário do herói evolui na mudança, partindo de uma
situação de desquilíbrio ou equilíbrio, que tende a inflectir no seu contrário, prevalencendo uma
moralidade final. Ligada a esta característica, a viagem iniciática, segundo Kane, simboliza o
drama de África, dividida entre a tradição e a modernidade, e a viagem implica aprendizagem,
conhecimento, didactismo.
Por outro lado, se a literatura tradicional está mais vocacionada para os valores comunitários do
que individuais, o romance africano revela uma vertente autobiográfica muito forte, componente
inovadora em relação à tradição; a estrutura dialógica autor-narrador/leitor convoca os
procedimentos existentes entre o contador e seu auditório, uma vez que a produção de formas
breves, como as máximas, adivinhas, provérbios, pressupõe, pelo menos, a presença de dois
indivíduos; a omnisciência e a polivalência do contador tradicional sobrevive nas formas do
narrador , que interfere e não hesita em invadir a narrativa e distanciar-se de novo.
A imbrincação de géneros é a sexta característica da sobrevivência da oralidade no romance
africano. Kane explica que na literatura tradicional não há fronteira rígida entre os diversos
géneros. "Au sein d'un même conte, le récit et le chant, la musique et le jeu du conteur, créent vite
l'impression d'un véritable théâtre. L'histoire et la légende se marient intimement; la poésie et le
chant sont partout présents"(1983:566), e que o romancista africano integra diferentes formas da
literatura oral, no decorrer da narrativa, a fim de insistir na função didáctica e moralizante, próprias
dos universos narrativos africanos, tanto orais, como, agora, os escritos.
Concluindo, a originalidade do romance africano, de acordo com o ensaísta, resulta de uma
dupla herança, tradicional e moderna, em que a oralidade sobrevive nas práticas de escrita.
Se alguns dos aspectos estudados, minuciosamente, por Kane continuam a ser úteis, outros
parecem ter perdido a sua pertinência com a produção literária pós-colonial, mais recente. Com
efeito o corpus de Kane centrou-se, em especial, em romances da década de sessenta, cuja

10
Kane, Mohamadou, Roman Africain et Tradition, NEA, 1983.
11
"C'est l'oralité implicite des comportements 'monumentalisées'", Mateso,p.340.

10
11

temática se centrava no conflito de culturas. No entanto, julgamos operatórios vários dos aspectos
apresentados.
Com efeito, algumas das particularidades das literaturas africanas de língua portuguesa
residem nesta espécie de processo, temporalmente desnivelado em relação às suas congéneres
em outras línguas. O desenvolvimento do romance moçambicano, em que nosso corpus se orienta,
inicia-se na década de oitenta, bem como a sua vertente temática da conflitualidade cultural.
Antes da independência, o registo romanesco é praticamente inexistente12, e precário,
prevalecendo a publicação, também incipiente, do conto. Por outro lado, a política, de base
marxista, que prevaleceu durante a primeira década pós-colonial, retraiu os movimentos culturais
nativistas, em favor de uma postura cultural ocidentalizada, fenómeno, aliás comum, aos outros
países africanos de língua portuguesa. Estas particularidades históricas e culturais explicam,
parcialmente, o surgimento tardio na literatura moçambicana de uma vertente, mais
acentuadamente indigenista, que tem vindo a desenvolver-se, em particular a partir da década de
noventa, com a publicação de romances e contos que tematizam e absorvem, recriados, nas
formas discursivas, os intertextos das poéticas e tradições orais.
O segundo autor, mencionado por L. Mateso, que reflecte de forma original sobre o modelo
tradicional na crítica africana, recuperando e desenvolvendo algumas das teses de Kane, é M.
Ngal.
Ensaísta e escritor, Ngal preconiza que o autor africano se deve inspirar nos mecanismos de
criação próprios da África tradicional e que o crítico da literatura africana deve orientar o seu
estudo no sentido de descobrir no texto moderno as marcas dessa tradição. A sua obra
romanesca, de que se destaca Giambatista Viko ou Le Viol du Discour Africain e L'Errance13, é
uma alegoria em que Ngal esboça as suas concepções sobre a influência da tradição oral africana
na construção do romance moderno.
Ngal define a oralidade como "tradição oral" 14, ou seja, o testemunho transmitido oralmente por
uma geração às seguintes; ao crítico compete reconhecer os "lugares textuais" onde se
intertextualiza a oralidade; todavia, além do reconhecimento de uma textualidade reconhecível,
como por exemplo o uso do provérbio, do conto, o autor assinala as declarações de intenção
paratextuais, como as introduções, dedicatórias, títulos, subtítulos, etc, bem como considera
fundamental um sólido conhecimento antropológico, que permita o reconhecimento de certos
símbolos e atitudes mentais características do espaço tradicional; no entanto, o autor considera
que as marcas de oralidade constituem um inventário em aberto, e susceptível de múltiplas
reformulações, e não um inventário constante, como o proposto por Kane.
Nos romances de Ngal há abolição da fronteira discursiva entre narração e teorização crítica; as
narrativas são usadas como um pretexto para a reflexão de pressupostos teóricos e estéticos. O
personagem, Viko, professor universitário, ocidentalizado e profundamente alienado, é poeta e
ensaísta. A sua obra romanesca conhece, no entanto, alguns impasses. Procura, então, na
tradição oral uma forma de desbloquear o seu discurso narrativo. É acusado pelos sábios africanos
de ignorância e desconhecimento. Condenado a uma errância pelas tradições africanas, Viko viaja
demorada e iniciaticamente pelo interior de África, a fim de descobrir a riqueza da oralidade e em
busca de uma escrita original.
O corpus de textos orais a que o escritor recorre, vão sendo comentados pela sua vertente
ensaística, bem como as técnicas de narração, manipulando o narrador de forma a aproximá-lo do
contador; deste modo Ngal demonstra, por exemplo, que o narrador, como na tradição oral,
desempenha um papel primordial, aproximando o acto de fala ao acto de criação.
12
As publicações mais significativas no domínio da ficção no período colonial são os livros de contos de João
Dias, Godido e Outros Contos, em 1950, de Luís Bernardo Honwana, Nós Matámos o Cão Tinhoso, em 1964
e o pequeno romance Portagem de Orlando Mendes em 1965. Todos estes livros nos narram histórias que
documentam a opressão do colonizado, e se situam no contexto da situação de discriminação racial e
económica que então se vivia na colónia portuguesa de Moçambique.
13
Ngal, M. A M., Giambatista Viko ou le Viol du Discours Africain, Lubumbashi, ed. Alpha- Oméga, 1975;
L'Errance, Yaoundé, Clé, 1979.
14
Vansina distingue quatro formas fundamentais da tradição oral:poema, fórmula, epopeia, narração .E
afirma relativamente ao conceito de tradição:"La plupart des oeuvres littéraires sont des traditions, et toutes
les traditions conscientes sont des discours oraux", "La tradition Orale et sa Méthodologie" in Histoire
Générale de l'Afrique, I, Paris, Unesco,p.170.

11
12

Se na tradição oral as produções assumem uma dimensão de obra colectiva, a escrita assume,
também, na obra do escritor africano, um papel de recriação do legado colectivo, impregnando-o
de novas modalizações; o autor insiste nas noções de tempo e de espaço, considerando que o
escritor deve instalar-se numa espécie de eternidade, num tempo e espaço primordiais, tempo e
espaço da criação. É isto que o contador de histórias africano faz, mestre do verbo; insiste também
na reabilitação de um ‘código de arte africana’, impregnando a narrativa de uma estética do
maravilhoso, e reafirma uma necessária prática da intertextualidade.
Concluindo, ao contrário de Kane, que define inequivocamente um número restrito de estruturas
orais presentes no romance africano moderno, Ngal propõe um modelo crítico que, tendo por base
a tradição oral, procura, no entanto, uma linguagem crítica diversificada, que não rejeita a herança
da estética europeia. É precisamente aí que, segundo Ngal, reside a originalidade do romance
africano, na criação livre e eclética do escritor.
Julgamos que as propostas de Kane e Ngal em relação a um modelo crítico se complementam
e, especialmente a última, apesar de momentos de certa radicalização, propõe uma abertura
teórica e de análise úteis para o trabalho analítico sobre os modelos críticos das representações da
oralidade nos textos literários africanos
Um segundo texto, de Bill Ashcroft et al.,"African Literary Theories" (in The Empire Writes Back,
London, Routledge, 1989, p.123-132) permite situar e complementar a discussão sobre a eficácia
e o historial crítico do modelo tradicional, do ponto de vista dos africanos anglófonos. A discussão
nasce na década de sessenta em torno dos programas curriculares oferecidos pelos
departamentos de Literatura Inglesa das universidades de Ibadan, Lagos e Makerere. Escritores
como Chinua Achebe15 e Wole Soyinka16 defendem uma estética africana, em que o papel social
do artista africano é fundamental, distanciando-se daquilo que é designado como "preocupação
europeia com a experiência individual".
Esta teoria social e funcional modelou o trabalho da crítica anglófona da década de sessenta
até praticamente aos anos oitenta, insistindo-se na função social e comunitária que a literatura
africana herda da tradição oral; outro ponto de discussão é a demanda da africanidade da literatura
e a rejeição de leituras críticas de cariz universal.
O ensaio de Achebe "Colonialist criticism" 17 - " (...) should like to see the word universal
banned altogether from discussions of African literature until such a time as people cease to use it
as a synonym for the narrow, self-serving parochialism of Europe." - é paradigma de um
posicionamento crítico que defende a "descolonização" da literatura africana e reafirma a
importância de pesquisar, teorizar, o monumental legado oral africano, equivalente, segundo o
autor, à tradição literária europeia.
Estas posições atingiram o seu radicalismo máximo como grupo crítico Bolekaja, representado
pelos nigerianos Chinweizu18, Jemie e Mandubuike que, partindo das asserções de Achebe,
consideram que a literatura africana tem as suas próprias tradições, modelos e normas, rejeitando
qualquer interferência europeia; Wole Soyinka no seu artigo "Neo-Tarzanism: the poetics of
pseudo-tradition" 19, critica a atitude essencialista e reducionista dos Bolekaja, não negando a
importância do legado oral, mas afirmando a inevitável hibridação cultural resultante da história da
presença colonial.
Semelhante visão neo-romântica dos africanos, de que a originalidade ou a essencialidade
das narrativas africanas deve ser determinada apenas pela forma como filtram as tradições orais,
parece-nos desajustada dos diferentes percursos de cada uma das literaturas nacionais, do diverso
e heterogéneo continente africano, e ainda eivada de preconceitos.
Outra posição radical, já na década de oitenta, é a do escritor queniano Ngugi wa Thiong'o20
que reivindica a escrita das literaturas africanas em línguas nacionais, começando por dar o

15
Achebe, Chinua,"The Novelist as a Teacher" in Morning Yet Creation Day, New York, Doubleday, 1975.
16
Soyinka, Wole, " The Writer in an African State ", in Transition, 31, 1968.
17
Achebe,Chinua, Morning Yet Creation Day, New York, Doubleday, 1975, p.13.
18
Chinweizu et al., The Decolonisation of African Literature, Washington, Howard University Press, 1983.
19
Soyinka, Wole, "Neo-Tarzanism: the Poetics of Pseudo-Tradition" in Transition, 48, 1975.
20
Thiongo'o, Ngugi wa, Decolonising the Mind: The Politics of Language in African Literature, London,
Currey,1986.

12
13

exemplo ao escrever em gykuyu ou em ki-swahili, e ao considerar que as literaturas africanas


vivem uma fase de transição, designando-as por Literaturas Afro-Europeias.
A crítica anglófona, desenvolveu também, mais ou menos simultaneamente, uma vertente de
incidência marxista, e muitos dos ensaios procuram reafirmar o valor social e político da literatura,
sublinhando que a visão indigenista da crítica ocupa menos relevância do que o papel de
intervenção da prática social da escrita, na luta para a libertação das sociedades africanas da
injustiça económica, retrocesso e corrupção. Saliente-se a este respeito, em especial, o trabalho
do crítico zimbabweano Emmanuel Ngara21 .
No entanto, a crítica anglófona tem continuado a reflexão sobre a relação do escritor moderno
com as práticas da oralidade, relativizando as posturas radicais, mas, sempre, aprofundando o
modelo crítico tradicional, e o ensaísta Abiola Irele considera que, embora havendo
transformações na cultura africana, pelo moderno impacto da escrita, a oralidade continua a ser o
paradigma central na literatura africana : “Despite the undoubted impact of print culture on African
experience and its role in the determination of new cultural modes, the tradition of orality remains
predominant, serving as a central paradigm for various kinds of expression on the continent(...) In
this primary sense, orality functions as the matrix of an African mode of discourse, and where
literature is concerned, the griot is its embodiment in every sense of the word. Oral literature thus
represents the basic intertex of the African imagination.”22
Ensaístas como Emmanuel Obiechina, ou Ato Quayson, desenvolveram, em obras
publicadas na década de noventa, propostas muito úteis para este estudo das representações da
oralidade, que vêm complementar as propostas francófonas, anteriormente formuladas por Kane e
Ngal.
Os trabalhos críticos, produzidos com base neste modelo, pela crítica africana em língua
portuguesa, fundamentaram-se, em grande parte, em ensaios provenientes da bibliografia
francófona e anglófona, no entanto, adequando-a à textualidade em língua portuguesa. Deve-se
destacar a obra de Salvato Trigo sobre Luandino Vieira, que foi um dos ensaios pioneiros nesta
área de pesquisa.23Neste estudo da obra de Luandino constatamos um primeiro momento de
representação da oralidade, que passa necessariamente pela língua.
Saliente-se, também neste percurso analítico das representações da oralidade na literatura
angolana, o livro de Laura Padilha, Entre Voz e Letra - o lugar da Ancestralidade na Ficção
Angolana do século XX, resultado da sua tese de doutoramento, que retoma alguns destes
problemas, em especial, ao desenvolver aspectos relacionados com o género. O trabalho que
também nós viémos a desenvolver sobre a obra poética de José Craveirinha, de certo modo
executa um percurso semelhante. Este tipo de orientação veio a ser repensado teoricamente,
numa outra tese, “ A Construção da Imagem de Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto
e Ungulani Ba Ka Khosa”, da autoria de Gilberto Matusse.24
É partindo de algum deste enquadramento crítico, acerca da literatura moçambicana, que
reflectimos agora sobre a vertente pragmática destas representações da oralidade com o estudo
da obra de Ungulani Ba Ka Khosa, Ualalapi, o primeiro romance moçambicano que visa
tematicamente a questionação do passado histórico, fazendo uma releitura das fontes históricas da
época anterior ao início da colonização portuguesa. A obra concretiza uma reflexão sobre a noção
de cultura e identidade cultural, que é retrabalhada pela reabsorção de modelos de oralidade e de
uma certa mundividência mágico-mítica.
O tempo invocado em Ualalapi é a época pré-colonial, e as narrativas organizam-se em torno
da personagem Ngungunhane, imperador nguni que reinava na área geográfica, que corresponde,
ao que é hoje, o sul de Moçambique. As últimas narrativas da obra situam-se já na época colonial,
com a vitória dos portugueses nas campanhas de ocupação, e a partida do imperador, derrotado,

21
Ngara, Emmanuel, Art and Ideology in the African Novel:a Study of the Influence of Marxism in African
Writing, London, Heinemann,1985.
22
Irele, Abiola, “The African Imagination”, in Research in African Literatures, Spring 1990, p.56.
23
Salvato Trigo, Luandino Vieira O Logoteta, Porto, Brasília Editora,1981.
24
Ana Mafalda Leite, A Poética de José Craveirinha, Lisboa, Vega, 1991; Gilberto Matusse, A Construção
da Imagem da Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulani Ba ka Khosa, Universidade
Nova de Lisboa, 1993, Laura Padilha, Entre Voz e Letra- O lugar da Ancestralidade na ficção angolana do
século XX, Niterói, Editora da Universidade Federal Fluminense, 1995.

13
14

num barco, para o que seria o seu exílio açoriano.


Ualalapi, designado como romance, organiza-se num conjunto de seis contos, que funcionam
como unidades independentes, e ao mesmo tempo interdependentes. Cada uma das narrativas é
precedida de um pequeno texto em itálico (muitas vezes com atribuição de autoria, outras vezes
deprende-se que são do autor da obra, e oscilando entre o testemunho histórico e a ficção),
intitulado , Fragmentos do fim, numerados de um a seis, que estabelecem um evolução e quadro
cronológicos, até à queda do império nguni.
Estes fragmentos e outras citações de abertura, encontradas em Ualalapi, podem ser
consideradas declarações de intenção paratextuais, declarações estas que o crítico M. Ngal, no
texto teórico de Mateso, considera reveladoras dos propósitos de representação da oralidade.
Os contos sucedem-se a estes textos, e a sua temporalidade, situa-se numa dimensão mais
indefinida e mítica, num continuum intemporal, com ausência de tempo cronológico. Este
entrecruzar entre o tempo histórico e o mítico-lendário, prevalecente, mostra que o romancista
moçambicano integra uma temporalidade, característica da literatura oral, no decorrer da narrativa,
a fim de insistir na função didáctica e moralizante, própria dos universos orais, em que a repetição
atemporalizada dos enredos se adequa, criticamente, a qualquer época.
A escolha do conto como unidade narrativa leva-nos de imediato a considerar a opção, como
sendo adequada a um universo cultural que radica na oralidade. Esta narrativa é um todo,
fragmentado em histórias que, aditivamente, vão esclarecendo e diferindo os sentidos.
As narrativas da tradição oral africana têm uma forte componente didáctico-moralizante. Isto
reflecte-se na sua estruturação, através do carácter e da sequência das suas transformações. Com
efeito, algumas classificações tipológicas destas narrativas têm como critério fundamental o sentido
da transformação que altera a situação inicial e determina a situação final da história, e que pode
ser de degradação e de melhoramento.25 Distinguem-se dois tipos básicos de narrativas: as de tipo
ascendente e as de tipo descendente, conforme apresentem uma transformação de melhoramento
ou de degradação, respectivamente. O carácter didáctico das de tipo descendente está na
exemplificação da punição de um anti-herói pela transgressão das regras, enquanto que, no caso
oposto, no prémio pela exemplaridade heróica.
Na quase totalidade dos contos-romance de Khosa, apesar da complexidade de estrutura,
própria de uma narrativa escrita, insinua-se, como refere Gilberto Matusse 26, uma sucessão de
transformações baseadas no modelo das narrativas de tipo descendente, em que o protagonista
comete uma transgressão às normas vigentes na sua comunidade, para daí obter benefícios,
acabando, no entanto, por ser punido por essa mesma transgressão. A recuperação deste modelo,
mais ou menos linear, está naturalmente absorvida e retrabalhada de modo poliforme. Estes
aspectos confirmam a mobilidade temporal e espacial, enquanto formas de sobrevivência da
literatura oral que caracterizam o romance africano, conforme se assinalou no texto de Locha
Mateso, com os tópicos adiantados por Kane, em que o itinerário do herói evolui na mudança,
partindo de uma situação de desquilíbrio ou equilíbrio, que tende a inflectir no seu contrário,
prevalecendo uma moralidade final.
No que respeita ao aspecto temático, há, também, um insistência na reivindicação de valores
culturais outros, de que a tradição oral e suas formas fazem eco, como por exemplo as práticas e
crenças animistas, a dimensão mítico-mágica do universo, a singularidade dos costumes e
códigos sociais.
A narrativa Diário de Manua prefigura, neste sentido, algumas das questões problematizantes
relativas à valorização do universo da oralidade, por oposição à escrita, metáfora da inscrição
colonial. Manua é nguni, filho de Ngungunhane. Tirou um curso de artes e ofícios e deixou escrito
um diário, do qual o narrador se socorre para nos dar informações. Representa o assimilado, não é
reconhecido pelos seus, nem pelos brancos. Transgride os valores e a tradição da sua cultura, e
por isso é punido com a morte.
Manhune transmitira ao filho e ao neto de que Manua fora envenenado pelo pai, pois era uma
vergonha para os nguni ver um filho seu assimilar costumes de outros povos estrangeiros, e o pior,

25
Rosário, Lourenço, A Narrativa Africana, Lisboa, Icalp, 1989.
26
Gilberto Matusse, A Construção da Imagem da Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e
Ungulani Ba Ka Khosa, Maputo, Imprensa Universitária, 1997, p.118.

14
15

dizia Manhune, Manua parecia um chope, pois era subserviente aos portugueses. Matem-no na
próxima oportunidade, disse Ngungunhane num dos encontros que teve com os maiores do reino.
(p 106)
O conto Diário de Manua começa aliando a ideia de decadência do império com o achado do
diário. A escrita é aqui, por um lado, o símbolo maior da recusa da cultura tradicional, por outro do
início do colonialismo, enquanto rasura e transformação de valores dessa mesma cultura.
Sabe-se, historicamente, que foram os árabes e os europeus a introduzirem a escrita em África
, e neste conto faz-se referência a um árabe, e ao seu testemunho escrito, que complementa os
registos de Manua. Estas duas personagens testemunham o início da quebra de uma tradição de
oralidade e a componente irreversível da transformação da sociedade pré-colonial.
Por entre os escombros daquilo que fora a última capital do império de Gaza encontraram um
diário com uma letra tremida, imprecisa, tímida, as folhas amontoadas ao acaso, estavam metidas
numa caveira que repousava entre ossadas humanas e animais ... Não há referência ao seu autor,
mas sabe-se que pertenceu a Manua, filho de Ngungunhane (p.97) ... De 1892 a 1985, ano de sua
morte, o diário nada diz, pois a folhas foram comidas pelos ratos, as letras que restaram estão
soltas. Juntando as cinco letras tem-se a palavra morte. Ou temor. Ou tremo. Kamal Samade, que
pela capital passou, deixou as suas impressões em árabe, escritas em folhas desordenadas. Pela
sua pena sabe-se que Manua, desde a chegada tornou-se taciturno e mais bêbado do que nunca.
( p.105)
A imposição da escrita, numa sociedade de tradição oral, é um elemento de desiquilíbrio. A
escrita aqui não é um produto da evolução histórica normal e responde a uma necessidade
imposta pelo exterior. Por outro lado, a desvalorização das formas de culturas indígenas, que
caracterizou a política colonial de assimilação, contribuiu para a descaracterização e rasura de
valores ancestrais.
Khosa ao tematizar a revalorização da oralidade, encontra uma forma de manifestar a
recuperação simbólica desse estado civilizacional, anterior à introdução da escrita, em
Moçambique, reivindicando uma reposição de valores próprios, portanto, também um meio de
afirmação de uma cultura outra, que foi subjugada pela hegemonia da escrita.
A este propósito é importante recordar que a oralidade é o domínio da cultura peculiar à
maioria da população moçambicana, essencialmente rural e camponesa. Por outro lado, se o oral
coincide com o popular, este domínio da tradição oral é conotado com a camada considerada
depositária. Valorizar esse domínio é uma forma de conhecer e respeitar, reaver, talvez,
contributos importantes para a recriação e reformulação de uma cultura nacional.
Neste conto, Diário de Manua, patenteia-se, de forma relativamente explícita, uma espécie de
moral ou função didáctica: o narrador, ao problematizar o significado da escrita na sociedade
moçambicana, denega o seu valor, socorrendo-se parodicamente de uma estratégia temático-
formal, a invenção de fontes escritas, o diário achado de Manua e o testemunho do árabe. Estas
fontes forjadas no interior do texto permitem-lhe reflectir , com ironia, sobre o abandono da
oralidade, e a cultura que ela representa, enquanto uma das causas da degradação cultural.
Khosa utiliza ainda outros processos característicos da narrativa oral, a intervenção do
sobrenatural. É característica das narrativas orais as personagens possuírem poderes mágicos, e
viverem acontecimentos de ordem mágica, bem como terem de se defrontar com inimigos
possuidores desses poderes, ou serem afectados por fenómenos sobrenaturais. Nesta obra, a
presença de elementos sobrenaturais é quase constante, sendo as situações mais frequentes as
que envolvem a estranheza e a desproporção de fenómenos físicos e da natureza.
A incorporação do imaginário tradicional é uma das características distintivas desta obra
moçambicana. Há uma valorização das crenças animistas, de códigos outros, radicados no
passado, a que se atribui um valor sagrado. A isto não é certamente estranho o facto de a memória
das sociedades de tradição oral se cristalizar em torno dos antepassados ancestrais. O passado
institui-se como uma referência insubstituível, à qual a comunidade vai buscar a inspiração para a
sua conduta no presente, bem como o exemplo para a explicação dos fenómenos com que se
depara.
O carácter sagrado detecta-se numa atmosfera cuja equilíbrio precário depende da
observância das normas, tornando-se a sua explicação ou caracterização inacessíveis, pelos
menos aos não iniciados. A escolha de um cenário histórico, que se orienta para uma época
longínqua e de contornos imprecisos, relembra a sacralidade da origem e da fundação.

15
16

O mundo de ficção de Khosa apresenta-se, deste modo, numa instabilidade generalizada, é um


mundo em desintegração. As causas deste desmoronar estão ligadas ao desrespeito pelo sistema
de valores tradicionais, próprios da cultura pré-colonial. Ao trazer as formas, e ao recriar um certo
imaginário da tradição oral na sua obra, Khosa deseja provavelmente chamar a atenção para a
cultura anulada e considerada como superstição nos primeiros anos de independência, que
procurou eliminar os valores do mundo tradicional.
Trata-se de uma caracterização do caos em que a sociedade mergulha com as viragens
operadas, primeiro pelo colonialismo, depois pela independência27. Há efectivamente uma série de
valores ideológicos que acompanham o novo poder, a partir de 1975, que entram em conflito com
crenças e práticas de tradições. Ao reportar-se a um outro tempo histórico, com alguma nostalgia,
o narrador quer também, e em especial, referir o tempo actual, aquele em que vive. Curiosamente
a numerologia simbólica, que aparece repetida para designar o tempo mítico, refere o número
onze, como emblemático. Onze noites, onze dias, onze anos de governação de Ngungunhane,
onze anos de governação marxista de Samora Machel, na primeira fase pós-independência.
Por outro lado Ungulani Ba Ka Khosa, com o seu livro, Ualalapi, moderniza a ficção
moçambicana ao introduzir um género, que se enraíza no romance histórico. Os sinais que nos
permitem identificar o género são os nomes de personagens históricos e os acontecimentos que
nos convidam a ler o texto à luz de um certo conhecimento histórico. Contudo, o modelo do género
escolhido não têm a ver com o romance histórico romântico, mas antes com algumas das
estratégias de ficção histórica moderna e pós-moderna, bem como com a recuperação simultânea
da genologia oral africana, nomeadamente ao fazer do conto a forma de construção romanesca da
sua escrita.
Esta obra vem confirmar o entrosamento cultural da literatura moçambicana, que burila, de
forma mais ou menos consciente, a sua originalidade na recriação e partilha de dois universos
culturais: o europeu, que lhe legou a escrita, e o pré-colonial, de que reiventa, através da escrita, a
fictiva ancestralidade e as formas orais.
O livro termina com o conto "O Último discurso de Ngungunhane" que nos interessa aqui
destacar por vários motivos de ordem simbólica, narratológica e temática.
"Virou-se repentinamente para a multidão que o vaiava, a uns metros do paquete que o levaria
para o exílio, e gritou como nunca, silenciando as aves (...) Ngungunhane falando, e o corpo
bojudo oscilando para a direita e para a esquerda, enquanto os olhos reluziam e as tremiam ao
ritmo das palavras que cresciam, de minuto a minuto, como agora, em que Ngungunhane dizia a
todos, podeis rir, homens, podeis aviltar-me, mas ficai sabendo que a noite voltará a cair nesta
terra amaldiçoada ..." (p.115)
A forma como é descrita a profecia do imperador, convoca-nos a um paralelismo com certas
das formas das punições, descritas anteriormente na obra. A profecia apocalíptica silencia e
aterroriza os tsongas pela sua carga tremenda de maldições. O imperador punido, acusa a aliança
dos moçambicanos com os estrangeiros. Pela primeira vez, apesar da sua figura histriónica, a
personagem é apresentada com alguma dignidade, como sendo portadora de um saber/poder
oculto, com que se faz, mais uma vez, temer. Desta vez não apenas por razões de poder temporal,
mais pelo uso da palavra que o transcende.
O discurso de Ngungunhane, nesta narrativa, projecta-se até à actualidade, prevendo os males
do colonialismo, a guerra pela independência e a guerra civil pós- independência. Carregado de
hipérboles, imagens abjectas e visões aterradoras, a sua palavra refere o ódio, as pragas, doenças
hereditárias, violência cultural, desprezo pela cultura tradicional, humilhação física, violação de
mulheres, usurpação das terras, prisões e torturas, sujeição a novas práticas religiosas,
assimilação linguística e, posteriormente, todas as atrocidades da guerra civil.
A profecia de carácter apocalíptico neste conto, enquanto discurso, estabelece uma relação
entre o sujeito e o transcendente, tornando-se aquele portador de uma verdade futura,
antecipadamente anunciada. A profecia é característica por excelência de sociedades cuja tradição
é oral, e cumpre-se através da palavra dos mediadores, profetas ou feiticeiros. Mais uma vez
deparamos com uma estratégia, por parte do narrador, de tematização e de recuperação da
27
Gilberto Matusse, A Construção da Imagem da Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e
Ungulani Ba Ka Khosa, Maputo, Imprensa Universitária, 1997, p.138.

16
17

oralidade, ao colocar na boca do seu protagonista este tipo de discurso.


Observamos ao longo da narrativa de Khosa, e neste discurso em especial, a manipulação
do narrador de forma a aproximá-lo do contador, encarnando aquele a polivalência do contador
tradicional, que interfere e não hesita em invadir a narrativa e distanciar-se de novo e, tal como foi
referido por M. Ngal, demonstra, por exemplo, que o narrador, como na tradição oral, desempenha
um papel primordial, aproximando o acto de fala ao acto de criação.
Por outro lado, dada a sua temporalidade abrangente, a profecia permite relacionar o passado
com o futuro, e com o presente, sendo, por isso, adequada, às intenções críticas da narrativa
histórica. Devido às formas escolhidas, há neste processo narrativo, a valorização do tempo mítico
que se sobrepõe ao histórico. Passado, presente e futuro mais não são mais do que
consequências transcendentes e punitivas dos actos praticados pelos homens. É esta
mundividência que o narrador imprime na sua escrita.
O narrador faz uso do discurso profético, recorrendo à tradição oral, à sobrevivência e
vitalidade da palavra transmitida geração, após geração. O velho que serve de fonte ao narrador,
retransmite o seu saber, adquirido através da voz do avô:
"—Há pormenores que o tempo vai esboroando— disse o velho tossindo. Colocou duas achas
no fogo e soprou. Novelos de fumo passaram pelo rosto. Pequenas lágrimas saíram dos olhos
cansados e tocaram na pele coberta de escamas. Afastei os papéis. Olhei-o. Era noite.
—Era miúdo ainda— prosseguiu— quando o meu avô me contava histórias de Ngungunhane.
(...) E ele, ao contar-me as histórias de Ngungunhane, repisava alguns aspectos que o meu pai se
esquecia e que tu omitiste. E são pormenores importantes."(p.116/7)
Identificamos, nesta passagem, o narrador como testemunha, que finge ser imparcial. Ele ouve
o velho no ambiente adequado, numa noite de lua cheia, em redor da fogueira. Contudo, a palavra
que utiliza é escrita: "Afastei os papéis", que representa outro tempo, numa prática de
reconfigurada modelação da mundividência pré-colonial à pós-colonial, que, por sua vez exige ao
leitor, e ao crítico, uma leitura localizada das práticas históricas e culturais e, tal como insinua
Achebe, em que o domínio do conceito de universal se torna pouco operatório.

Ualalapi de Ungulani Ba Ka Khosa permite discutir parcimoniosamente, conto a conto, a


importância do tratamento de questões como a representação da oralidade no domínio temático,
do género, e da exploração dos imaginários míticos. Por outro lado, a obra permite, ainda,
evidenciar a importância crescente na literatura moçambicana de um eixo temático nativista, em
pleno desenvolvimento.

17
18

VALORES CIVILIZATÓRIOS EM SOCIEDADES NEGRO-AFRICANAS

Fábio Leite

Não obstante a tentativa de se chegar a conhecimento mais decisivo acerca das


sociedades negro-africanas recomendar abordagens diferenciais que permitam melhor captação
de suas realidades singulares, a abrangência de que se revestem certos fatores manifestados na
diversidade constitui universo privilegiado para a apreensão das propostas de organização do
mundo articuladas por essas civilizações.
Nesse sentido, alguns exemplos comuns a um grande número de sociedades podem ser
lembrados, de maneira genérica e com a ressalva de que cada grupo é detentor daqueles valores
que hes são próprios, o que lhes confere suas individualidades.
Os tópicos que se seguem referem-se prioritariamente e muito sinteticamente a três
sociedades da África ocidental - Yoruba, Agni (grupo Akan) e Senufo civilizações agrárias que,
entretanto, se distinguem fortemente em virtude de suas organizações políticas, pois que,
enquanto os Yoruba e Agni se constituem em sociedades dotadas de Estado, entre os Senufo essa
figura não se caracteriza. Apesar de que os exemplos relacionam-se basicamente, em suas
generalizações, com os grupos citados, junto aos quais desenvolvemos pesquisas de campo
durante alguns anos, parece certo que são aplicáveis, com a cautela devida às individualidades, a
um número não negligenciável de sociedades negro-africanas, como o demonstra a bibliografia
pertinente e os dados de pesquisa.

FORÇA VITAL

A questão da força vital, que foi objeto das preocupações de Tempels (1969) e Kagamé
(1976), refere-se àquela energia inerente aos seres que faz configurar o ser-força ou força-ser, não
havendo separação possível entre as duas instâncias, que, dessa forma, constituem uma única
realidade. Importa notar, entretanto, que a vitalidade universal, capaz de assim individualizar-se, é
relacionada com aspectos precisos da problemática que envolve, possibilitando objetivar as
relações que se estabelecem entre homem e natureza e aparecendo como elemento pertencente
ao domínio da consciência social.
Um aspecto que demonstra ser a força vital instrumento ligado à estruturação da
realidade consubstancia-se na figura do preexistente, que é tomado como a fonte mais primordial
dessa energia, dela servindo-se para engendrar a ordem natural total dentro de situações ligadas
especificamente a cada sociedade, que, assim, define seu próprio preexistente. A origem divina da
força vital e a consciência da possibilidade de sua participação nas práticas históricas explicam a
notável importância que lhe é atribuída e, não raro, a sacralização de várias esferas em que se
manifesta. Outra característica desse elemento estruturador é a de que sua qualidade de atributo
vital dos seres, abrangendo os reinos mineral, vegetal e animal, estabelece individualizações que
se hierarquizam segundo as espécies e faz a natureza povoar-se de forças ligadas aos seus mais
variados domínios. Deve ser ressaltado que no relacionamento existente entre força vital e
preexistente na elaboração do mundo, embora aquele se encontre na base das ações primordiais
da criação, geralmente não se ocupa da totalidade do processo nem de seus desdobramentos,
atividade que confia a certo demiurgos - entes por ele concebidos - e ao próprio homem. De fato,
uma vez ocorrida a doação da vitalidade que faz configurar a vida individualizada dos seres, estes
são complementados pelos demiurgos, o que também explica parte da dimensão sagrada de que é
portadora a natureza: quando ocorre o ato de complementação, uma parte da vitalidade desses
entes passa a integrar a constituição mais íntima dos seres, manifestando-se como dimensão
específica de sua materialidade. Mas a elaboração contínua do mundo é também tarefa do homem
nesse intercâmbio privilegiado entre natureza e sociedade, exercendo ações transformadoras ao
criar o ser humano no âmbito de sua competência, assim como aqueles elementos ligados à
organização da sociedade. É o caso, por exemplo, dos processos de socialização, com suas
etapas iniciáticas - que fazem configurar o homem proposto pela sociedade em sua dimensão
social -, e também das atividades relacionadas com outras instâncias históricas, onde as ações
humanas complementam a obra inicial do preexistente, colocando-a, com o cuidado e

18
19

conhecimento exigidos pela vitalidade que anima os seres, em estreita relação com a sociedade,
como ocorre, para criar outro exemplo, com a manipulação da terra, fator básico da produção.
Pode ser acrescentado ainda que a noção de vitalidade enquanto elemento ligado à explicação da
realidade desdobra-se mesmo até seu nível empírico mais imediato, manifestando-se na vida
cotidiana. Isso ocorre quando se considera, simplesmente, que algo ou alguém é por motivos que
estabelecem uma relação diferenciada de qualquer natureza, envolvendo real ou simbolicamente
uma propriedade distintiva. De fato, a expressão ele é forte é utilizada com grande freqüência nas
mais variadas situações.
Dessa forma, a noção de força vital não se limita às instâncias das formulações
abstratas, situando-se materialmente no interior das práticas históricas e da explicação da
realidade.

PALAVRA

Dentro do universo que lhe é próprio nessas sociedades, a palavra emerge como fator
ligado à noção de força vital e, em seu aspecto mais primordial, tem como principal detentor o
próprio preexistente. Nesse sentido, não raro, a palavra aparece como substância da vitalidade
divina utilizada para a criação do mundo, confundindo-se com o chamado sopro ou fluido vital,
sendo que no homem essa herança manifesta-se, em uma de suas formulações, através da
respiração. o conjunto força vital/ palavra/ respiração é elemento constitutivo da personalidade,
emergindo plenamente quando o homem o estrutura de maneira a criara linguagem e o exterioriza
através da voz. Outro aspecto deve ser realçado. Sendo a palavra dotada de uma parcela da
vitalidade do preexistente, é necessariamente uma força inerente à personalidade total, daí que
sua utilização deve ser cuidadosamente orientada, pois que uma vez emitida algumas de suas
porções desprendem-se do homem e reintegram-se na natureza. Nesse sentido deve ser lembrado
que a palavra é elemento desencadeador de ações ou energias vitais. De fato, ao ser dirigida para
atingir determinados fins, interfere na existência pois que, uma vez absorvida, pode provocar
reações, controláveis ou não. É por isso que o aparelho auditivo é assemelhado aos órgãos
reprodutores femininos: ambos são capazes de fazer gestar algo decisivo pela penetração, no
interior dos indivíduos, de um elemento vital desencadeador do processo.
Naquela sua configuração que a liga estreitamente às práticas históricas, a palavra é
geralmente relacionada com a problemática do conhecimento e sua transmissão, que se articula
em vários níveis da realidade social. É o caso, dentre outras, daqueles especialistas das
transformações (ferreiros, tecelões, escultores, médicos manipuladores de folhas e outros
elementos, encarregados de ritos iniciáticos e funerários - universos onde ocorrem mutações na
essência do ser humano -, agentes da magia que se servem da palavra para manipular forças
benéficas ou maléficas etc.), das manifestações da vida espiritual (cultos a ancestrais e divindades,
cerimônias envolvendo a utilização de determinadas máscaras), do domínio da própria palavra
(caso dos historiadores tradicionalistas), das explicações de certos aspectos da realidade
(conhecimento esotérico, jogos divinatórios e propiciatórios) etc. Em todos esses exemplos a
palavra sempre acompanha as ações de uma maneira ou outra a fim de estabelecer relações entre
forças vitais, as do agente e as do universo a ser explorado. A palavra é, ainda, instrumento
singular das práticas políticas negro-africanas, uma vez que as decisões da família e da
comunidade são tomadas em conjunto mediante a discussão das questões e exposição da
jurisprudência ancestral. Isso ocorre nos conselhos de família, em âmbito mais restrito, mas
também em locais públicos sacralizados para tal fim, como é o caso da árvore da palavra,
geralmente encontrada no espaço altamente diferenciado que lhe é reservado nas localidades
africanas.
A palavra, portanto, é dotada de origem divina mas encontra-se significativamente
relacionada com as atividades humanas e não deve ser considerada somente como fonte de
conhecimento, o que restringiria seu significado ao universo dominado pelos especialistas da
própria palavra, os historiadores tradicionalistas, figuras sociais bastante conhecidas nessas
civilizações. Na verdade, ela se manifesta nos mais variados níveis da realidade, e o significativo
número de instâncias onde sua exteriorização é fundamental revela a importância que lhe é
atribuída. A palavra é, sem dúvida, instrumento do saber, mas sua condição vital lhe garante o
estatuto de manifestação do poder criador como um todo, transmitindo vitalidade e desvendando

19
20

interdependências. Sua capacidade de comunicação possui essência diversa daquela proposta


pela escrita, elemento apenas cultural e estrangeiro à natureza e à dimensão mais profunda do
homem.

HOMEM

Nessas sociedades o homem é definido como síntese de alguns elementos vitais que se
encontram em interação dinâmica permanente. Em generalização ampla, é possível afirmar que o
homem é constituído de pelo menos três elementos vitais: o corpo, o princípio vital de animalidade
e espiritualidade e o princípio vital que estabelece a imortalidade do ser humano.
O corpo, manifestação visível do homem, possui um complexo externo e outro interno,
ambos se encontrando em relação constante. O primeiro é percebido pela figura, flexibilidade,
movimento e capacidade de criar espaços naturais e sociais. O complexo interno está ligado à
noção de entranhas, que define a manifestação interior de fatores naturais e sociais, abrangendo -
além da explicação relativa aos órgãos e sistemas ligados à noção de vida física - a capacidade do
homem experimentar sentimentos. Deve ser acrescentado que o significado social do corpo é
proposta precisa: ele se constitui em referencial histórico, aparecendo como fator de
individualização, de trabalho e de reprodução da sociedade. Suas mutações configuram-se como
processos sobre os quais a sociedade exerce ações eficazes tendentes a dominá-los, como, por
exemplo, nos atos iniciáticos ligados à excisão e circuncisão, onde uma das proposições é a da
tomada de consciência da natureza social de que também se revestem as práticas sexuais.
É da natureza do corpo constituir uma potencialidade de vida mas as energias que o
animam, estruturam e lhes dão dinâmica são colocadas em ação por um outro elemento
catalisador e distribuidor de forças vitais. Esse é o princípio vital de animalidade e espiritualidade -
não raro identificado como sopro ou fluido vital de origem divina - que se relaciona com a energia
primordial da qual o preexistente é o detentor, o que estabelece a vitalidade física e espiritual do
homem enquanto manifestação de uma mesma realidade. Esse elemento é decisivo para a
configuração da existência visível, pois sua ausência em um corpo - demonstrada pela falta da
respiração e da palavra - estabelece, regra geral, a separação dos elementos vitais constitutivos do
ser humano, evidenciando-se, então, a morte. Deve ser acrescentado que esse princípio tem como
uma de suas características a capacidade de fazer individualizar fortemente uma de suas porções,
que se manifesta sob a forma de duplo, concepção de significativa riqueza acerca da dinâmica dos
seres. É ainda esse elemento que permite ao homem viver os sentimentos, sempre
experimentados interiormente. Essa interioridade explica a importância atribuída à noção de
entranhas, que sintetiza essa problemática. Finalmente, pode-se ressaltar que o princípio vital de
animalidade e espiritualidade é dotado de notável capacidade de mutação e ação - fator observável
principalmente através do duplo, um dos principais agentes da magia nessas civilizações -
qualidade que, como no caso do corpo, pode ser controlada e dirigida através de práticas
específicas ligadas a processos iniciáticos extremamente complexos.
O terceiro grande elemento vital constituinte do homem é o princípio de imortalidade.
Pesquisas levadas a efeito em várias sociedades negro-africanas demonstram que esse princípio,
mais do que os outros, é inexaurível e indestrutível, resistindo plenamente com sua individualidade
e características, aos efeitos da morte. Liga-se às propriedades morais e intelectuais do homem,
para o qual estabelece uma identidade social de vez que as realizações dos indivíduos, positivas
ou negativas, são devidas às qualidades naturais desse elemento vital, que aparece também como
a dimensão em que se manifesta o destino humano. Tais atributos fazem com que esse princípio
vital se defina como a instância mais histórica do homem. Após o fim da existência visível, é ele
que propõe a imortalidade do ser humano, pois volta a fazer parte da comunidade através dos
recém-nascidos da mesma família ou insere-se na massa de antepassados privativa do grupo
social a que pertence, daí nascendo a figura do ancestral, com a qual a sociedade mantém
relações privilegiadas. Deve ser ressaltado que também neste caso a sociedade possui
consciência ótima das potencialidades e características desse elemento vital, o que lhe permite
interferir em sua progressão e, conseqüentemente, no desenvolvimento da personalidade.
A esses três grandes princípios vitais naturais que integram a noção de pessoa, devem
ser acrescentados aqueles de ordem social: o nome e a socialização com suas fases iniciáticas,
bem como, em versão ampla do conceito de existência, os ritos funerários, cuja proposta mais

20
21

fundamental é a de fazer caracterizar o ancestral, com a carga histórica da sociedade a que


pertence, após os processos caracterizadores da morte.

SOCIALIZAÇÃO

O domínio que a sociedade detém sobre as mutações do ser humano transparece


particularmente bem nos processos de socialização, com suas fases iniciáticas destinadas a fazer
configurar essa progressão que é orientada para a elaboração de uma personalidade final básica,
capaz de manter e transmitir os valores mais fundamentais do grupo social. O caráter comunitário
da existência exige que os processos de socialização estabeleçam quais os limites possíveis
dentro dos quais os indivíduos exercem sua mobilidade social, sendo por isso que a formação da
personalidade nas civilizações negro-africanas é encargo atribuído à sociedade como um todo.
Esse humanismo revela que a sociedade propõe a superação, pela consciência da realidade
existencial, das limitações materiais e instrumentais, harmonizando o homem com as práticas
sociais suficientes.
Para alcançar esses objetivos, as crianças são introduzidas em grupos formados pelo
critério de idade, nos quais ingressam logo após ultrapassadas as fases mais incipientes da
infância. Desses grupos nascem aquelas figuras sociais a que se convencionou chamar de
gerações: são indivíduos que passam por processos educacionais comuns a todos os
componentes dos grupos segundo os estágios de aprendizado em que se encontrem. Em geral as
pessoas atingem juntas a maturidade, submetendo-se coletivamente aos atos iniciáticos previstos
pelo costume e que marcam etapas vencidas. Dessa maneira, os integrantes desses grupos e
dessas gerações adquirem consciência ótima de sua condição social e dos principais valores,
direitos e deveres de sua sociedade, ligando-se estreitamente em razão da solidariedade que se
estabelece entre eles. Ao vencerem as últimas etapas, são considerados capazes de integração
social e representantes legítimos da sociedade.
A importância atribuída a esses processos é tão significativa que os indivíduos que não
se submetem a eles são considerados, de certa maneira, como pessoas sem cidadania. Sofrem as
mais severas restrições em todos os níveis: não podem estabelecer contratos de casamento e,
conseqüentemente, não obtêm cessões de terra; a eles é vedada a manifestação verbal nos
conselhos de família e da comunidade, ficando impedidos de participar das decisões; e não
chegam a assumir funções de importância para a comunidade.

MORTE

A proposta de imortalidade do homem explica em grande parte a extraordinária


importância que é atribuída à morte e às cerimônias funerárias. De fato, a morte apresenta-se
como fator de desequilíbrio por excelência, pois promove a dissolução da união vital em que se
encontram os elementos constitutivos do ser humano, estado que se faz configurar a existência
visível. Tal capacidade torna a morte um evento abrangente devido à interferência que exerce em
vários níveis da realidade, desde as concepções que definem o homem até à necessidade de
recomposição dos papéis sociais, principalmente quando sua ação recai sobre mandatários de
significado social notável, como chefes de família, de comunidade ou reis, figuras que tendem a
sintetizar as ações históricas mais expressivas para o grupo.
A sociedade, entretanto, reorganiza-se rapidamente a fim de promover a superação da
morte e restabelecer o equilíbrio, o que é conseguido através das cerimônias funerárias. Nestas,
uma proposição básica é a da superação cultural da morte através de atos tendentes a caracterizar
a natureza exterior à ordem social que lhe é atribuída. Outra dimensão fundamental das cerimônias
funerárias é a da participação efetiva da sociedade nos processos de separação dos elementos
vitais que constituem o homem, desagregados pela ação da morte, fazendo-os inserir-se em
instâncias precisas da natureza, como a terra que recebe o corpo - salvo nos casos de
mumificação e ingestão ritual - e as massas de vitalidade às quais geralmente retorna o princípio
de animalidade e espiritualidade. Já o princípio vital de imortalidade é encaminhado ao mundo
privativo dos ancestrais, no qual passa a manifestar-se, em outras condições existenciais e desde
que não venha a fazer parte de um novo membro da comunidade. Esses fatores explicam a
notável importância conferida às cerimônias funerárias que, se em parte podem ser consideradas

21
22

como ritos de passagem, de outro se constituem em ritos de permanência, pois delas nascem os
ancestrais.
A complexidade das cerimônias funerárias não é devida, assim, a fatores de ordem
psicológica: elas revelam a capacidade de a sociedade dominar a desordem provocada pela morte
e dar continuidade à vida ao elaborar o ancestral, fazendo com que a imortalidade do homem se
configure de maneira precisa e em relação vital com o grupo social. Assim como nos processos de
formação da personalidade, a tarefa de promover a superação da morte é de alçada da
comunidade como um todo.

ANCESTRAIS E ANCESTRALIDADE

Nessa complexa proposição da existência, que coloca a morte dentro da vida, os


ancestrais negro-africanos constituem, juntamente com a sociedade e sem dela separar-se, um
princípio histórico material e concreto capaz de contribuir para a objetivação da identidade
profunda de um dado complexo étnico e das suas formas de ações sociais. De fato, as principais
instâncias das práticas históricas são dotadas de alguma dimensão ancestral, tais como:
preexistente e suas interferências na sociedade; divindades e criação do mundo; natureza, homem
e sociedade; espaço e tempo; conhecimento; configuração da família e da comunidade envolvendo
relações com a produção e o trabalho; socialização e educação, natureza e legitimação do poder
estendendo-se inclusive à concepção da figura a que se denomina Estado, quando essa figura
aparece.
Nesse sentido, o princípio histórico estabelecido pelos ancestrais é elemento objetivador
das regras mais decisivas que regem a estrutura e a dinâmica dessas sociedades. Torna-se
necessário ainda indicar que esse princípio ancestral é suficientemente amplo para incluir, além
dos ancestrais nascidos do homem - os ancestrais históricos -também as divindades e até mesmo
o preexistente, pois que os dados de realidade indicam que todos esses seres estão
indissoluvelmente ligados à explicação do mundo e à organização da realidade, não obstante as
diferenças de substância.
É por tais motivos históricos, que transcendem as esferas da espiritualidade e da
religiosidade, que as relações estabelecidas pela sociedade entre as massas ancestrais e as
massas de processos sociais dotados de dimensão ancestral, produzem urna síntese que, tomada
em sua concretude e dinâmica, constitui a abstração a que denominamos ancestralidade.
Ou seja, aquilo que sem maiores fundamentos se costuma chamar de "tradição",
"tradicional", constitui-se em amplíssimo vício de linguagem ou conceito equivocado de larga
utilização, diminuindo a possibilidade de captação material das raízes de processos sociais
específicos que vão se reestruturando no tempo e no espaço sem perda da essência das principais
propostas adotadas sucessivamente.

FAMÍLIA

A família negro-africana típica em sociedades agrárias, conhecida pela denominação de


família extensa, é constituída por um grande número de pessoas ligadas pelo parentesco. Nas
sociedades de organização matrilinear, figura que aqui serve de exemplo, o parentesco formula-se
pelos laços uterinos de sangue, razão pela qual a mulher é a única fonte de legitimação das
descendências. Estas constituem, assim, o núcleo fundamental que define a família, sendo que em
suas bases encontram-se as ancestrais-mulheres que lhes deram origem. É devido a essa
configuração do parentesco que os direitos e deveres são institucionalmente transmitidos de mãe a
filha, de irmã a irmã, de tia a sobrinha e, quanto aos homens, de irmão a irmão, e de tio a sobrinho.
Esses pressupostos são válidos também para a sucessão nas chefias, inclusive para a sucessão
do rei naquelas sociedades dotadas de Estado, sendo aspirantes legítimos ao exercício desses
cargos os indivíduos ligados à ascendência uterina. Essa fórmula tende a preservar o patrimônio
genético estabelecido pela mulher para fins institucionais, pois que na organização matrilinear uma
proposição básica é a de que nenhum homem pode provar que é o pai de seus filhos, os quais,
entretanto, contém obrigatoriamente o sangue de suas mães.
Sob o prisma de sua formulação sangüínea, a família extensa de organização matrilinear
transcende, portanto, o espaço físico, abrangendo todos os indivíduos ligados pelo parentesco

22
23

uterino a ancestrais mulheres comuns. Em termos de sua estrutura física, a família extensa
compreende a família do patriarca-chefe e as famílias conjugais a ela ligadas. A primeira é
constituída pelo patriarca-chefe, sua esposa ou esposas e filhos, seus irmãos, mulheres e filhos
daqueles, suas irmãs, tias e sobrinhas solteiras ou viúvas, assim como os filhos destas últimas.
Quanto às famílias conjugais, elas são formadas pelo esposo, esposa ou esposas e respectivos
filhos. Reunidas em um mesmo espaço físico para práticas comuns ligadas à produção, essas
famílias fazem configurar a família-aldeia, unidade de produção dotada de aparatos materiais,
jurídicos e políticos destinados à sua administração. Deve ser acrescentado que a família extensa
pode constituir-se - além dos descendentes de ancestrais-mulheres comuns - de indivíduos
pertencentes a outras descendências, dos descendentes de cativos agregados e ainda de pessoas
pertencentes a outros grupos étnicos que se filiam a uma aldeia em busca de cessão de terra para
cultivo. Porém, qualquer que seja o número de estrangeiros eventualmente incorporados, a família
receptora detém os direitos e deveres ligados à administração.

PRODUÇÃO

Nessas sociedades, os processos de produção são baseados essencialmente na


suficiência destinada ao atendimento comunitário de necessidades vitais e específicas, razão pela
qual o uso alternativo dos bens de produção não constitui fator decisivo das relações econômicas.
Alguns dados, apresentados de maneira genérica, demonstram como a natureza comunitária da
produção formula-se materialmente enquanto elemento decisivo da realidade social.
A terra, principal recurso natural dessas sociedades agrárias, é considerada ela mesma
como uma divindade e sua fertilidade é tomada como doação preexistente. Dotada dessa energia
vital que a sacraliza, a terra não pode ser apropriada pelo homem, que, entretanto, está
potencialmente habilitado a ocupá-la segundo as normas ancestrais. Para tanto, é necessário
organizar e sacralizar essa relação, o que é conseguido através de pactos selados entre o homem
e a terra, daí nascendo os deveres e direitos de ocupação, sendo o principal deles a
inapropriabilidade do solo e sua transmissão, nesse estado, às gerações que se sucedem. Os
pactos são estabelecidos por famílias que ocupam uma área demarcada segundo o costume,
cabendo-lhes então o direito de usufruir da fertilidade da terra e o dever de administrá-la, podendo
inclusive praticar cessões a terceiros de algumas de suas partes sem que ocorra, entretanto, um
desmembramento da totalidade. Essas características explicam a notável importância atribuída aos
ancestrais-fundadores, que promoveram os pactos de ocupação, assim como aos zeladores da
terra e da manutenção das alianças, que os sucedem.
Outro fator decisivo da produção - os instrumentos de trabalho – também se organiza a
partir das relações estabelecidas entre o homem e a natureza. A origem divina da terra exige,
segundo os pactos, que os instrumentos destinados à sua manipulação sejam fornecidos por ela
mesma. Para esse fim, a matéria-prima necessária é retirada da terra e processada em fornos,
transformando-se em ferro, com o qual são elaboradas as ferramentas destinadas ao trabalho.
Importa notar que os aparatos tecnológicos existentes para tal fim encontram-se, como na
produção, limitados à sua utilidade específica: destinam-se exclusivamente ao atendimento de
necessidades sociais vitais da comunidade. A tecnologia suficiente de que são dotadas essas
sociedades elimina a possibilidade da criação de necessidades artificiais ligadas à concepção
segundo a qual o bem-estar depende da evolução instrumental.
Das alianças seladas com a terra pelas famílias nascem, como indicado antes, as
unidades de produção e a comunidade, elementos sintetizados na família-aldeia. Dentro dessa
proposta comunitária que orienta a existência social, o trabalho transparece como outro grande
instrumento da produção, encontrando-se vitalmente associado a ele segundo as normas de
interdependência estabelecidas por outros fatores que não os meramente econômicos. É bem
verdade que nessas sociedades o trabalho se traduz como ação comunitária por excelência, pois
que a sociedade dedica ao labor coletivo cerca de dois terços do tempo destinado às atividades
agrárias. O tempo restante é usado para o trabalho exercido em subáreas cedidas às famílias
conjugais que compõem a família extensa, possibilidade esta que é, entretanto, vedada aos
homens solteiros. Os jovens que ainda não concluíram formalmente as fases finais de iniciação
integrantes dos processos de socialização, dedicam-se integralmente ao trabalho comunitário.
Existe ainda os trabalhos em mutirão, que estabelecem reciprocidade. As pessoas jovens devem

23
24

trabalhar mais do que as de idade mais avançada, e as atividades são organizadas de maneira a
que aquelas, terminadas suas tarefas, ajudem estas a concluir as suas. Finalmente, a comunidade
assegura às pessoas idosas, sem condições de carregar e manipular a enxada, o direito de não
mais trabalhar a terra, não lhes faltando o essencial em seus celeiros até a morte. Mas o caráter
comunitário de que se reveste o trabalho não encontra sua materialidade apenas no caráter
coletivista da produção. De fato, nessas sociedades a força de trabalho faz parte da personalidade
e não se encontra separada da totalidade vital que configura os indivíduos, não podendo, portanto
ser apropriada. Ela é, assim, cedida à comunidade sob a forma de elemento estruturador de papéis
sociais, condições em que o trabalho integra-se qualitativamente nas práticas ligadas à produção
enquanto fator de vida social total, fazendo emergir o indivíduo historicamente consciente das
ações que deve à sociedade. Dentro de tais pressupostos, compreende-se melhor o alcance dos
processos de socialização, que visam elaborar uma personalidade-padrão adequada à
estruturação da sociedade.
Evidentemente a produção, nessas sociedades agrárias, é elemento estrutural cuja
importância se afigura mais ainda decisiva quando se têm em conta as duras condições de que se
reveste o trabalho da terra, único meio de subsistência. Mas a natureza sagrada da terra, impondo
os pactos e toda a normativa que estes estabelecem, garante à sociedade deter, em suas
instituições abrangentes e comunitárias, os recursos naturais, materiais e a força de trabalho como
fatores unificados da produção. Por outro lado, a produção suficiente, limitada, assim como a
tecnologia, às necessidades sociais vitais, impede a emergência de excedentes passíveis de
serem apropriados por camadas sociais privilegiadas.

PODER

Nas sociedades sem Estado o exercício do poder é fortemente concentrado em relação


às unidades de produção - as famílias pactuadas com a terra, dotadas de auto-suficiência e que
fazem configurar a família-aldeia -, mas difuso quando colocado em relação com a sociedade
global, formada pelos grupos integrantes de um determinado complexo cultural. Já nas sociedades
dotadas de Estado, a concentração do poder recai sobre um elemento centralizador, que abrange
o conjunto da sociedade e que se manifesta essencialmente na figura do rei, devendo ser
ressaltado que o Estado aparece como figura relacionada com cada grupo integrante de um
determinado complexo cultural. Em ambos os casos, entretanto, existem mecanismos
moderadores do poder, como os conselhos de família e de comunidade, as chefias de família, os
encargos ancestrais atribuídos a certos notáveis e ainda as gerações de iniciados que exercem
funções políticas. Também em ambos os casos evidencia-se uma consciência ótima acerca do
território ocupado, manifestando-se a unidade cultural, dada especialmente por uma língua básica
(não obstante suas eventuais variações regionais), origens ancestrais comuns e organização social
e política semelhantes. Nas sociedades sem Estado, a noção de território é mais fragmentada e os
limites onde ocorrem o exercício do poder restringem-se às áreas ocupadas pelas famílias-aldeias
e à comunidade originada por elas, embora estejam perfeitamente estabelecidos, entre os vários
grupos, os laços decorrentes de origens históricas comuns. Quanto às sociedades dotadas de
Estado, o território é também o conjunto de unidades de produção sobre o qual o rei exerce uma
interferência decisiva: ele é o principal guardião da unidade do Estado e de sua administração.
Uma questão específica relacionada com a configuração e legitimação do poder pode
ser aflorada com o intuito de melhor objetivar alguns aspectos da problemática, servindo de
exemplo, mais uma vez, as sociedades de organização matrilinear.
Nelas, a trama ancestral nascida do parentesco configurado através dos laços uterinos
de sangue faz emergir o papel fundamental exercido pelas mulheres na divisão do poder, pois,
devido a essa edificação das descendências e, conseqüentemente, das linhagens, elas interferem
decisivamente nos processos de sucessão, inclusive na sucessão do rei, quando é o caso. Como a
sociedade é dirigida por homens, parece haver aí uma contradição. Mas, ao contrário, essas
instâncias são complementares.
As mulheres constituem fontes de legitimação na medida em que apenas elas fazem
configurar as descendências e as posições dos indivíduos na estrutura da família para fins de
sucessão e conseqüente acesso ao poder. É o caso concreto dos conselhos de mulheres
descendentes de ancestrais-mulheres comuns, aos quais cabe indicar aos conselhos de homens

24
25

os nomes Possíveis daqueles que podem aspirar legitimamente ao acesso a um cargo, inclusive o
de rei, respeitadas as demais regras de sucessão. Quanto aos homens, eles são, enquanto chefes
e mandatários, guardiões dos pactos selados com a terra, responsáveis pelas ações do elementos
de família dentro e fora dela, zeladores da ordem e também os principais elementos de
comunicação entre a comunidade e os ancestrais pois a eles cabe a direção e mesmo a execução
dos atos mais decisivos relacionados com os cultos aos antepassados. Esta última atribuição
demonstra particularmente bem a extensão do poder patriarcal nas sociedades negro-africanas, de
vez que esse relacionamento diferenciado com os ancestrais - veículos de transmissão de força
vital e fertilidade – é fator fundamental dos valores civilizatórios propostos por essas sociedades.
Mas nas civilizações dotadas de organização matrilinear a legitimação histórica e jurídica desse
poder emana, na realidade, da mulher.
***
A observação periférica e a explicação baseada em bibliografia que tende a marginalizar
ou minimizar a abrangência dos dados de realidade tal como emergem do próprio objeto ou, ainda,
calcada em pressupostos teóricos nascidos substancialmente do pensamento estrangeiros à
realidade negro-africanas, podem constituir-se em instrumentos capazes de induzir à consideração
equivocada de que valores civilizatórios típicos do universo histórico dessas sociedades - dos quais
alguns exemplos foram citados -não mais possuem espaço para sua manifestação concreta em
face dos processos de mudança social, tratando-se de restos culturais inexpressivos e em vias de
desaparecimento rápido.
É bem verdade que processos históricos abrangentes, ligados à dinâmica das mudanças
sociais e tendentes à universalização, impactam crucialmente padrões civilizatórios pecualiares,
mas essa realidade não se aplica apenas às sociedades negro-africanas, tratando-se de fator que
se configura, menos ou mais intensamente e conforme o grau qualitativo das conjunturas, em nível
planetário. Não se pode esquecer, entretanto, que tal realidade não implica, necessariamente, na
destruição de singularidades.
Tal proposição não se formula apenas ao nível de fator histórico com o qual se
defrontam as sociedades negro-africanas na atualidade. De fato, embora tais processos
universalizantes se apresentem hoje sob formulações capitais para o conjunto da humanidade,
eles já integraram, nas modalidades próprias das etapas históricas de suas manifestações, as
realidades totais das civilizações de que se trata aqui. Realmente, a história evidencia, por
exemplo, que não obstante todos os processos desestabilizadores e desestruradores - alguns da
mais extrema crueldade - impostos a essas sociedades em épocas não tão distantes, elas
absorveram os impactos decorrentes e os transformaram, em fases - e não totalidades - de sua
realidade, fases essas que, embora marcando época, não foram suficientes para levá-las à
aniquilação. Ou seja, as sociedades negro-africanas sempre viveram suas própria realidades no
fluxo de processos sociais abrangentes, que se definem seja em relação a grupos extensos
caracterizados pelos diversos complexos culturais, seja em relação ao conjunto de civilizações
negro-africanas, que formam, mais do que uma simples constelação de povos, um universo
histórico elaborado pela rede de relações sociais totais típicas do universo social que define essas
sociedades. Em outras palavras, essas civilizações mantiveram e mantém a sua continuidade
histórica - e não apenas a sobrevivência histórica - e nesse processo a natureza singular de seus
valores civilizatórios é mecanismo de sua materialidade.
Para a tentativa de conhecimento mais amplo e verdadeiro dessas sociedades a análise
diferencial - aquela que tem em conta a realidade mais decisiva para compreensão do objeto em
situações históricas específicas – constitui-se no instrumento mais qualitativamente capaz de situar
convenientemente a singularidade das civilizações negro-africanas e, conseqüentemente, definir as
medidas e abrangências de suas realidades vitais em face dos processos de mudança social. Essa
metodologia - que implica ainda em trabalho de campo intenso a fim de conhecer os homens e as
sociedades para a elaboração de instâncias empíricas suficientemente capazes de fornecer bases
para abstrações justificadas - pode permitir ao estudioso abandonar critérios estrangeiros ao
universo a conhecer, venham de onde vierem e, mais, exercitar sua capacidade crítica com a
consciência das peculiariedades históricas com as quais se defrontará.
Adotando-se essa postura metodológica, a singularidade intrínseca dos padrões
civilizatórios das sociedades negro-africanas e sua abrangência são fatores que podem ser melhor
percebidos através de suas totalidades, consubstanciadas nas tipologias de ações e processos

25
26

históricos que estruturam as práticas sociais e fazem emergir a visão de mundo que as explicam. É
nesse contexto que se inserem os exemplos citados neste texto - e certamente muitos outros, não
abordados -, os quais constituem, de certa maneira, situações-limite, pois que dotadas de
significativa expressão. É também nessa totalidade e nessas tipologias que deve ser situada a
problemática da comunidade histórica antes referida, a qual revela, em última instância, a natureza
da dinâmica dos processos históricos dessas civilizações: elas são capazes de absorver novas
propostas, oriundas de vários horizontes, e reproduzi-las com a autonomia garantida pela sua
materialidade própria e criando novas sínteses. Essa capacidade sintética, que mantém a
singularidade na pluralidade, permite considerar que essas civilizações não se encontram fechadas
e voltadas para si.
De fato, as proposições inerentes a padrões civilizatórios específicos são válidas para a
maioria dos povos negro-africanos, e sua materialidade se manifesta, na atualidade, até mesmo
nos centros urbanos de porte - onde se adaptam às circunstâncias impostas por elas - para não
falar nas comunidades e localidades onde são perfeitamente observáveis pelo pesquisador que se
dedica ao trabalho de campo. A existência desses valores não significa a cristalização de resíduos
culturais capazes de estabelecer uma dualidade. Significa, mais apropriadamente, a existência de
uma busca constante, nas fontes originárias, de proposições consideradas mais legítimas e sua
dinamização em face de novas realidades, ou seja, a existência de uma só africanidade
construindo sua própria história. Parece prematuro avaliar se os padrões civilizatórios que integram
esse universo sofrerão mutações tão notáveis que desaparecerão completamente por força de
processos históricos tendentes a uniformizar culturas singulares. No mesmo, a proposta que
parece se colocar significativamente à reflexão é a de que essas civilizações oferecem à
humanidade perspectivas próprias que não podem ser ignoradas.

LEITE, Fábio. África: Revista do Centro de Estudos Africanos. USP, S. Paulo, 18-19 (1).103- 118,
1995/1996.

BIBLIOGRAFIA
ABLE, Jean-Albert. Histoire et Tradition Politique du Pays Abouré. Abidjan, Imp. Nationale, 1978.
ADOUKONOU, Bartliéléiny. Pour une Problematique Anthropologique et Religieuse de la Mort dans
la Pensée Adja-Fon. In: La Mort dans la Vie Africaine. Paris, Présence Africaine, 1979.
CNRS. La Notion de Personne en Afrique Noire. Paris, CNRS, 1973.
COULIBALY, Sinali. Le Paysan Senoufo. Abidjan-Dakar, Les Nouvelles Ed. Africaines, 1978.
D'ABY, F. J. Amon. Croyances Religieuses et Coutumes juridiques dès Agni de Côte d’Ivoire. Paris,
Éditions Larose, 1960.
GRIAULE, Marcel. Dieux d’Eau: Entretiens avec Ogotemmêli. Paris, Fayard, 1966.
JOHNSON, Samuel. The History of the Yoruba. Lagos, CSS Bookshops, 1976.
KAGAME, Alexes. La Philosophie Bantu Comparée. Paris, Présence Africaine, 1976.
KOUSSIGAN, Guy-Adjété. L’Homme et la Terre. Paris, Ed. Berger-Levrault, 1966.
LAYE, Camara. Le Maitre de La Parole. Paris, Plon, 1978.
LEITE, Fábio Rubens da Rocha. A Questão Ancestral. Notas sobre ancestrais e instituições
ancestrais em sociedade africanas: loruba, Agni e Senufo. Mimeo. São Paulo, 1983.
__________. “A questão da palavra em sociedades negro-africanas”, In: Democracia e
Diversidade Humana: desafio contemporâneo. SECNEB, Salvador, Bahia, 1992.
M'BOW, Amadou Mahtar e outros. Le Nouveau Dossier Afrique. Verviers, Marabout SS, 1977.
PALAU-MARTI, Monserrat. Le Roi-Dieu au Bénin. Paris, Éditions Berger-Levrault, 1964.
TEMPELS, Placide. Bantu Philosophy. Paris, Présence Africaine, 1969.
THOMAS, Louis-Vincent. Cinc Essais sur la Mort Africaine. Dakar, Publications de la Faculté des
Lettres et Sciences Humaines/ Université de Dakar, 1968.
UNESCO. Histoire Générale de l’Afrique. Paris, Jeune Afrique/ Stock/ UNESCO, 1980. 2. vol.
ZAHAN, Dominique. Societé d’initiation Bambara: le N'Domo, le Kore. Paris, Mouton, 1960.

26
27

2.
1.
A DÉCADA DE 50. O MOVIMENTO DOS NOVOS INTELECTUAIS DE
ANGOLA. “MENSAGEM” E “CULTURA”
Carlos Ervedosa

Em 1948, aqueles rapazes, negros, brancos e mestiços, que eram filhos do pais e se tornavam homens,
iniciam em Luanda o movimento cultural "Vamos descobrir Angola!». Que tinham em mente? Estudar a
terra que lhes fora berço, a terra que eles tanto amavam e tão mal conheciam. Eram ex-alunos do liceu que
recitavam de cor todos os rios, todas as serras, todas as estações e apeadeiros das linhas férreas de
Portugal, mas que mal sabiam os afluentes do Cuanza que corria ao seu lado, as suas serras de picos
altaneiros, os seus povos de hábitos e linguas tão diversas, que liam e faziam redacções sobre a beleza da
neve ou o encanto da Primavera que nunca tinham presenciado, que desenhavam a pêra, a maçã ou a uva
sentindo apenas na boca gulosa o sabor familiar e apetecido da goiaba, da pitanga ou da gajaja, que inter-
pretavam as fábulas de La Fontaine mas ignoravam o fabulário, os contos e as lendas dos povos da sua
terra, que sabiam com precisão todas as datas de todas as façanhas dos monarcas europeus, mas nada
sobre a rainha Nzinga ou o rei Ngola.
O movimento, diz-nos o ensaísta Mário de Andrade, incitava os jovens a redescobrir Angola em todos os
seus aspectos através de um trabalho colectivo e organizada; exortava a produzir-se para o povo; solicitava
o estudo das modernas correntes culturais estrangeiras, mas com o fim de repensar e nacionalizar as suas
criações positivas válidas; exigia a expressão dos interesses populares e da autêntica natureza africana,
mas sem que se fizesse nenhuma concessão à sede de exotismo colonialista. Tudo deveria basear-se no
senso estético, na inteligência, na vontade e na razão africanas.
Enquanto estudam o mundo que os rodeia, o mundo angolano de que eles faziam parte mas que tão mal
lhes haviam ensinado, começa a germinar uma literatura que seria a expressão da sua maneira de sentir, o
veículo das suas aspirações, uma literatura de combate pelo seu povo.
Maurício de Almeida Gomes, angustiado, já interrogara:

Mas onde estão os filhos de Angola


se os não oiço cantar e exaltar
tanta beleza e tanta tristeza,
tanta dor e tanta ânsia
desta terra e desta gente?

e exortava: «É preciso forjar a poesia de Angola!»

Uma poesia nossa, nossa, nossa!


cântico, reza, salmo, sinfonia
que uma vez cantada,
rezada,
faça toda a gente sentir,
faça toda a gente dizer:
- É poesia de Angola!

Publicava este poeta, no ano de 1949, o seu melhor poema, «Estrela pequenina», e começavam a aparecer
as primeiras composições literárias marcadas, bem marcadas, pelas condições ambientais, resultantes de
um conhecimento perfeito do homem e da terra, como nos mostra esse admirável «Sô Santo», criação de
Viriato da Cruz:

Lá vai o sô Santo ... Bengala na mão


Grande corrente de ouro, que sai da lapela
Ao bolso ... que não tem um tostão.
Quando o sô Santo passa
Gente e mais gente vem à janela:
_ «Bom dia, padrinho ... »

27
28

_ «Olá ... »
_ «Como está? .. »
_ «Bo-om di-ia sô Saaanto!. .. »
_ «Olá, Povo! ... »

Mas porque é saudado em coro?


Porque tem muitos afilhados?
Porque tem corrente de ouro
A enfeitar sua pobreza?
Não me responde, avó Naxa?
- Só Santo teve riqueza.
Dono de musseques e mais musseques ...
Padrinho de moleques e mais moleques ..
Macho de amantes e mais amantes,
Beça-nganas bonitas
Que cantam pelas rebitas:

«Muari-ngana Santo
dim-dom
ual' o banda ó calaçala
dim-dom
chaluto mu muzumbo
dim-dom
Sô Santo ...

Banquetes p'ra gentes desconhecidas


Noivado da filha durando semanas

Kitoto e batuque pró povo cá fora


Champanha, ngaieta tocando lá dentro ...
Garganta cansando:
«Coma e arrebenta
e o que sobra vai no mar. .. »
«Hum-hum
Mas deixa ...

Quando o sô Santo morrer, Vamos chamar um kimbanda Para Ngombo nos dizer
Se a sua grande desgraça
Foi desamparo de Sandu
Ou se é já própria da Raça ... »
Lá vai ...
descendo a calçada
A mesma calçada que outrora subia
Cigarro apagado
Bengala na mão

.. . Se ele é o símbolo da Raça


ou vingança de Sandu ...

Desenvolvia-se um fenómeno literário original, no âmbito das literaturas de expressão portuguesa, activado
por um conjunto de jovens talentosos e cultos espalhados por Luanda e pelos centros universitários de
Lisboa e Coimbra.
Eles sabiam muito bem o que fora o movimento modernista brasileiro de 1922. Até eles havia chegado,
nítido, o «grito do Ipiranga» das artes e letras brasileiras, e a lição dos seus escritores mais
representativos, em especial de Jorge de Lima, Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, Lins do Rego e Jorge
Amado, foi bem assimilada.

28
29

O exemplo destes escritores ajudou a caracterizar a nova poesia e ficção angolanas, mas é, certamente,
num fenómeno de convergência cultural que poderemos encontrar as razões das afinidades das duas
literaturas. A mesma amálgama humana, frente a frente nas duas margens do Atlântico tropical, em
presença de condições ecológicas quase idênticas, teria de conhecer reacções e comportamentos muito
semelhantes. Da mesma forma se poderá explicar a receptividade dos angolanos em relação aos ritmos
afro-brasileiros e afro-cubanos.
Realizadas as condições para a eclosão de um movimento literário, ele não se faria esperar muito e, ainda
em 1950, surge, consciente da sua missão, com o nome de Movimento dos Novos Intelectuais de Angola.
Como centro aglutinador, o departamento cultural da Associação dos Naturais de Angola, através do qual
iniciam, em 1951, a publicação da revista Mensagem - A Voz dos Naturais de Angola, que pretendiam
fosse o veículo da sua mensagem literária e ideológica:

Mensagem sai hoje, para a rua, a cumprir a sua missão, levando em si, para vós, para o Mundo, uma mão-
cheia de esperança; um cacho de mocidade sedenta de Verdade, de Justiça e de Paz.
É a mocidade de Angola, que abraça com Mensagem os seus irmãos do Mundo; são os jovens, generosos
como a própria generosidade, confiantes da missão que cada um tem a cumprir ( ... ) .
( ... ) São os jovens que não conhecem a descrença; que não acreditam no impossível e amam a Verdade;
que lutam pela Justiça e crêem ainda na Solidariedade Humana e na Fraternidade Universal, - são esses
jovens de Angola, iguais a todos os jovens do Mundo -, são esses que Mensagem traz até vós. E
Mensagem sente-se, hoje, mais do que nunca, amanhã mais do que hoje, segura da missão que tem a
cumprir.

O Movimento dos Novos Intelectuais de Angola foi essencialmente um movimento de poetas, virados para
o seu povo e utilizando nas suas produções uma simbologia que a própria terra exuberantemente oferece.
O vermelho revolucionário das papoilas dos trigais europeus, encontraram-no, os poetas angolanos, nas
pétalas de fogo das acácias, e a cantada singeleza das violetas, na humildade dos «beijos-de-mulata» que
crescem pelos baldios ao acaso. Os seus poemas trazem o aroma variado e estonteante da selva, o
colorido dos poentes africanos, o sabor agridoce dos seus frutos e a musicalidade nostálgica da marimba.
Mas vêm também palpitantes de vida, com o cheiro verdadeiro dos homens que trabalham, o gosto salgado
das suas lágrimas de desespero e a certeza inabalável na madrugada que sempre raia para anunciar novo
dia.
Assim, os novos poetas foram cantando, com voz própria, a terra angolana e as suas gentes.
António Jacinto escreve então alguns dos mais belos poemas do Movimento, com temas que se inscrevem
tanto no mundo urbano como no mundo rural. Deste, dá-nos o escritor, entre outros poemas, a «Carta de
um contratado», onde nos transmite a angústia do homem do campo, saudoso, longe da terra e da sua
amada, escolhendo o poeta, com precisão, as palavras e as imagens, a forma em suma, que melhor
poderia servir o tema:

Eu queria escrever-te uma carta amor

uma carta que dissesse deste anseio


de te ver
deste receio de te perder

deste mais que bem querer que sinto


deste mal indefinido que me persegue
desta saudade a que vivo todo entregue

Eu queria escrever-te uma carta amor

uma carta de confidências íntimas uma carta de lembranças de ti


de ti
dos teus lábios vermelhos como tacula
dos teus cabelos negros como dilôa'
dos teus olhos doces como macongue
dos teus seios duros como maboque

29
30

do teu andar de onça


e dos teus carinhos
que maiores não encontrei por aí ...

Eu queria escrever-te uma carta amor


que recordasse nosSOS dias na capôpa
nossas noites perdidas no capim
que recordasse a sombra que nos caía dos jambos
o luar que se coava das palmeiras sem fim
que recordasse a loucura da nossa paixão
e a amargura
da nossa separação ...

Eu queria escrever-te uma carta amor


que a não lesses sem suspirar
que a escondesses de papai Bombo
que a sonegasses a mamãe Kieza que a relesses sem a frieza
do esquecimento
uma carta que em todo o Kilombo outra a ela não tivesse merecimento ...
Eu queria escrever-te uma carta amor
uma carta que ta levasse o vento que passa
uma carta que os cajus e cafeeiros
que as hienas e paIancas
que os jacarés e bagres
pudessem entender
para que se o vento a perdesse no caminho
os bichos e plantas

compadecidos de nosso pungente sofrer de canto em canto


de lamento em lamento
de farfalhar em farfalhar te levassem puras e quentes as palavras ardentes

as palavras magoadas da minha carta que eu queria escrever-te amor. ..

Eu queria escrever-te uma carta ...

Mas ah meu amor, eu não sei compreender


por que é, por que é, por que é, meu bem
que tu não sabes ler
e eu - Oh! Desespero - não sei escrever também!

A poesia tipicamente suburbana aparece-nos também, magistralmente, através de outros poetas. Poemas
de Viriato da Cruz, como «Sô Santo», já aqui referenciado, «Serão de menino», «Makezu» e muitos outros
que os antologiadores da poesia angolana se sentem sempre na obrigação de seleccionar popularizam-se
facilmente, como esse «Namoro»:

Mandei-lhe· uma carta em papel perfumado


e com letra bonita eu disse ela tinha
um sorrir luminoso tão quente e gaiato
Como o sol de Novembro brincando de artista nas acácias floridas

Espalhando diamantes na fímbria do mar


E dando calor ao sumo das mangas.

Sua pele macia - era sumaúma ...


Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosa

30
31

s sua pele macia guardava as doçuras do corpo rijo


o tão rijo e tão doce - como o maboque ...
Seus seÍos, laranjas - laranjas do Loge
seus dentes ... - marfim ...

Mandei-lhe essa carta e ela disse que não.

Mandei-lhe um cartão
que o amigo Maninho tipografou:
«Por ti sofre gente o meu coração»
Num canto - SIM, noutro canto - NÃO
E ela o canto do NÃO dobrou.

Mandei-lhe um recado pela Zefa do Sete


pedinho rogando de joelhos no chão
pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigénia,
me desse a ventura do seu namoro ...
E ela disse que não.
Levei à avó Chica, quimbanda de fama
a areia da marca que o seu pé deixou
para que fizesse um feitiço forte e segur
o que nela nascesse um amor como o meu ...
E o feitiço falhou.

Esperei-a de tarde, à porta da fábrica,


ofertei-lhe um colar e um anel e um broche,
paguei-lhe doces na calçada da Missão,
ficámos num banco do largo da Estátua,
afaguei-lhe as mãos ...
falei-lhe de amor. .. e ela disse que não.

Andei barbado, sujo e descalço,


como um mona-ngamba.
Procuraram por mim
« _ Não vi ... (ai, não viu ... ?) não viu Benjamim?»
E perdido me deram no morro da Samba.
Para me distrair
levaram-me ao baile do sô Januário
mas ela lá estava num canto a rir
contando o meu caso às moças mais lindas do Bairro Operário.

Tocaram uma rumba - dancei com ela


e num passo maluco voámos na sala
qual uma estrela riscando o céu!
E a malta gritou: «Aí, Benjamim!»
Olhei-a nos olhos - sorriu para mim
pedi-lhe um beijo - e ela disse que sim.

Outro poeta, Mário António, em «Linha Quatro» aborda um dos temas que sempre lhe foi dos mais gratos
ao longo da sua vida e nos aparece amiúde na sua já volumosa e importante obra literária: o amor. Quatro
era o número do autocarro que servia uma das zonas da periferia de Luanda - Kinaxixe, Bairro Operário,
Sambizanga, Tanque d'Água - ocupada por gente humilde que todos os dias descia à cidade, a caminho
dos seus modestos empregos:

No largo da Mutamba às seis e meia


Carros para cima carros para baixo

31
32

Gente descendo gente subindo


Esperarei.

De olhar perdido naquela esquina


Onde ao cair da noite a manhã nasce Quando tu surges
Esperarei.
Irei p'rà bicha da linha quatro
Atrás de ti. (Nem o teu nome!)
Atrás de ti sem te falar
Só a querer-te.

(Gente operária na nossa frente


Rosto cansado. Gente operária
Braços caídos, sonhos nos olhos.

Na linha quatro eles se encontram


Zito e Domingas. Todos os dias
Na linha quatro eles se encontram.
No machimbombo da linha quatro

Se sentam juntos. As mãos nas mãos


Transmitem sonhos que se não dizem.)

No machimbombo da linha quatro


Conto meus sonhos sem te falar.
Guardo palavras teço silêncios
Que mais nos unem.

Guardo fracassos que não conheces


Zito também. Olhos de cinza
Como Domingas
O que me ofereces!

No machimbombo da linha quatr


o Sigo a teu lado : Também na vida!
Também na vida subo a calçada
Também na vida!

Não levo sonhos. A vida é esta!


Não levo sonhos. Tu a meu lado
Sigo contigo: pra quê falar-te?
pra quê sonhar?

No machimbombo da linha quatr


o Não vamos sós. Tu e Domingas.
Gente que sofre gente que vive
Não vamos sós.

Não vamos sós. Nem eu nem Zito.


Também na vida. Gente que vive
Sonhos calados sonhos contidos

Não vamos sós.


Também na vida! Também na vida!

32
33

Na obra dos escritores do Movimento encontram-se com frequência, as evocações da infância associadas
a um sentimento de profundo amor à sua terra natal. As suas criações poéticas aparecem-nos carregadas
de um saudosismo pelo paraíso perdido da infância e pela sua antiga cidade, que fora o cenário desses
tempos. Poetas jovens todos eles, acabados de sair duma fase da vida que se desenrolava sem os
choques nem os problemas que o estado adulto lhes revelava, recorriam amiudadas vezes à evocação dos
anos passados, onde, apesar da dolorosa certeza do fim dos doces e fáceis tempos da infância,
encontravam um lenitivo para as agruras que começavam a enfrentar. De Mário António recolhemos uma
dessas evocações, a «Rua da Maianga»:

Rua da Maianga
Que tem o nome

De um qualquer missionári
o Mas para nós somente
A Rua da Maianga.

Rua da Maianga às duas horas da tarde


Lembranças das minhas idas para a Escol
E depois para o Liceu

Rua da Maianga dos meus surdos rancores


Que sentiste os meus passos alterados
E os ardores da minha mocidade
E a ânsia dos meus choros desabalados!
R ua da Maianga às seis e meia

Apito do comboio estremecendo os muros


Rua antiga da pedra incerta
Que feriu meus pezitos de criança

E onde depois o alcatrão veio lembrar Velocidade aos carros


E foi luto na minha infância passada!

(Nené foi levado prHospital


Meus olhos encontraram Nené morto
Meu companheiro de infância de olhos vivos Seu corpo
morto numa pedra fria!)

Rua da Maianga a qualquer hora do dia


As mesmas caras nos muros
(As caras da minha infância
Nos muros inapagados!)
As moças nas janelas fingindo costurar
A velha gorda faladeira
E a pequena moeda na mão do menino
E a goiaba chamando dos cestos
À porta das casas!
(Tão parecido comigo esse menino!)

Rua da Maianga a qualquer hora


O liso do alcatrão e as suas casas
As eternas moças de muro
Rua da Maianga me lembrando
Meu passada inutilmente belo
Inutilmente cheio de saudade!

33
34

Por outro lado, a sua cidade, a cidade que eles adoravam, a cidade que fora o tempo desses anos
descuidados, que fora o campo das suas brincadeiras, o cenário de todos os seus sonhos e a testemunha
dos seus primeiros amores, começara-se rapidamente a transfigurar, tomando uma fisionomia diferente,
criada pelo seu desenvolvimento e pelos costumes que lhe impunham os novos habitantes que a invadiam.
O desaparecimento da antiga cidade, onde a sua população fora durante largos anos como que uma
grande família, acompanhado da destruição dos lugares sagrados da infância passada, é outro tema que
nos aparece com grande frequência. Hoje / A cidade está cheia de forasteiros / De desconhecidos por
todas as esquinas / De atitudes vincadamente aburguesadas, lamentava-se Tomás Jorge no seu poema
evocativo «Infância», que fechava de forma magnífica

(...)
Hoje
A cidade está cheia de palácios
De novos-ricos, de meninos-de-bem

Passando vertiginosamente nos seus carros estupendos Denunciando luxo.

No areal a pobreza mais se multiplica


É um lamento surdo e calado, quase bíblico.

Todas as cidades que crescem desumanizam-se.


Basta.

Hoje não quero mais ter saudades de nada.


Infância é ainda esta minha vida de menino grande
Procurando cigarras na floração das acácias
Que restam nos caminhos de ontem.

Cumpre, finalmente, salientar uma das características fundamentais da poesia do Movimento: poesia
social, onde o nacionalismo angolano transparece a cada passo, apesar da forma ambígua utilizada
algumas vezes e como exigiam as apertadas limitações da época.
Humberto da Silvan proclamava:

Cantar África não é enaltecer, lascivamente,


as belezas das negras de seios túmidos,
perdidas pelos musseques e pelas libatas,
não é cantar coqueiros esguios, luares de prata,
baladas românticas cheias de ais!

Como se África fosse, apenas, um manancial de sensualismo


e os seus habitantes não sofressem algo de mais alto
que febres bacanais misturadas de marufo e exotismo!

E o poeta prosseguia, mais adiante:

Ó meus olhos de poeta, desesperado,


cerrai-vos, cerrai-vos, - e chorai;

Ó minha voz de poeta soldado,


erguei-vos, erguei-vos, - e cantai!

O canto de Agostinho Neto distingue-se, logo de início, dos restantes camaradas do Movimento. Ele
ultrapassa as fronteiras de Angola, é um canto dirigido a todos os seus irmãos de raça, da África e das
Américas, aos seus irmãos que, espalhados pelo mundo, sofrem e lutam pela sua dignificação: Eu vos
sinto / negros de todo o mundo / eu vivo a vossa dor / meus irmãos.

34
35

Mas poemas há, como «Mussunda amigo», que são bem angolanos, recheados de símbolos que
pertencem ao seu país - uma frase típica, um elemento geográfico, um facto histórico:

Para aqui estou eu Mussunda amigo

Para aqui estou eu.


Contigo.
Com a firme vitória da tua alegria
e da tua consciência.
_ ó ió Kalunga ua mu bangele!
ó ió Kalunga ua mu bangele-Ie-Ielé ...
Lembras-te?
Da tristeza daqueles tempos
em que íamos
comprar mangas
e lastimar o destino das mulheres da Funda
dos nossos cantos de lamento,

dos nossos desesperos


e das nuvens dos nossos olhos Lembras-te?
Para aqui estou eu Mussunda amigo.
A vida, a ti a devo
à mesma dedicação, ao mesmo amor com que me salvaste do abraço
da gibóia
à tua força
que transforma os destinos dos homens.
A ti
amigo Mussunda, a ti devo a vida.
E escrevo
versos que tu não entendes! Compreendes a minha angústia?
Para aqui estou eu Mussunda amigo
escrevendo versos que tu não entendes. Não era isto
o que nós queríamos, bem sei mas no espírito e na inteligência nós somos.
Nós somos Mussunda amigo Nós somos!
Inseparáveis
caminhando ainda para o nosso sonho.

Os corações batem ritmos de noites fogueirentas


os pés dançam sobre palcos
de místicas tropicais
os sons não se apagam dos ouvidos
_ ó iá Kalunga ua mu bangele ...
Nós somos!

Dentro da mesma linha de poesia social se incluem muitas outras criações, como, por exemplo, «Mamã
negra», de Viriato da Cruz, «Poema da alienação», de António Jacinto,. ou «Muimbu ua Sabalu», de Mário
de Andrade, poema que é a primeira tentativa de utilização integral do quimbundo na literatura angolana:
Mon' etu ua kasule
A mu tumisa ku S. Tomé
Kexiriê ni madukumentu
Aiué!

(...)
Mama, muene uondó vutuka
Ah! Ngongo ietu iondó biluka
Aiué

35
36

A mu tumisa ku S. Tomé

Em 1951, o Movimento dos Novos Intelectuais de Angola realizava, de acordo com o seu programa
cultural, o primeiro (e último) concurso literário. Para júri convidaram-se prestigiosas figuras portuguesas
das letras e da democracia, os escritores João de Barros, Augusto Casimiro e Julião Quintinha, residentes
em Lisboa, e a que se juntou Lília da Fonseca.
Num sarau cultural proclamaram-se os vencedores do concurso e recitaram-se poemas premiados. Do
poeta Maurício Gomes, porém, não foi permitida, pelas autoridades de então, a leitura do seu poema
«Bandeira»:

Somos um povo à parte


Desprezado
Incompreendido,
Um povo que lutou e foi vencido.
(...)
A seguir,
A vermelho-vivo,
A vermelho-sangue,
Com tinta feita de negros corpos desfeitos
Em lutas que vamos travar,
A vermelho-vivo
Cor do nosso sangue amassado

E misturado com lágrimas de sangue,


Lágrimas por escravos choradas,
Escreve, Negro, firme e confiante,
Com letras todas maiúsculas,
A palavra suprema
(Ideal eterno,
Nobre ideal
Da Humanidade atribulada,
Que por ela vem lutando
E por ela vem sofrendo)
Escreve, Negro,
Escreve, irmão.
A palavra suprema:
LIBERDADE!

À volta dessas palavras-alavancas


Semeia estrelas às mãos-cheias,
Todas rútilas,
Todas de primeira grandeza,
Estrelas belas da nossa Esperança
Estrelas lindas da nossa Fé
Estrelas que serão certeza na nossa BANDEIRA!

Como seria de esperar, o Movimento dos Novos Intelectuais de Angola acabou por ser alvo da repressão
policial. A Mensagem terminou a sua publicação ao fim do segundo número e o Movimento teve de se
desmembrar. A maior parte desses jovens acabaria por se reunir, mais tarde, não à volta de um movimento
cultural, mas já sob a bandeira de um movimento político, o MPLA.
Movimento de poetas, contistas e ensaístas, foi essencialmente através da poesia que aquele grupo de
jovens, no dealbar da segunda metade do século vinte, se impôs e logrou virar uma página da história da
literatura angolana.
Pouco tempo de actividade lhes foi permitido. Publicaram-se apenas dois números da revista, realizou-se
um concurso literário e publicou-se uma pequena antologia. Mas restou um punhado de poemas que

36
37

circularam durante anos, clandestinamente, pelas mãos dos jovens angolanos, que os copiavam e
declamavam nas suas reuniões privadas.
Apesar do fim rápido e até da pequena expansão da Mensagem, ela permaneceu, contudo, como um
verdadeiro símbolo. O espírito que a animava, diz-nos o poeta Mário António, se não teve uma realização à
altura, nem por isso deixou de ser - e isso é que é importante - o elemento de catálise de um despertar lite-
rário que já hoje tem uma obra a defini-Ia. Poetas, contistas, ensaístas da Mensagem deram, ao longo dos
anos decorridos, um corpo ao sonho que a revista não foi capaz de concretizar.
Entretanto, em Dezembro de 1956, o MPLA distribuía em Luanda o seu I Manifesto, no qual se podia ler:
(...) o colonialismo português não cairá sem luta. E por isso que o povo angolano só se poderá libertar pela
guerra revolucionária. Será apenas vitoriosa com a realização de uma frente unida de todas as forças anti-
imperialistas de Angola, que não esteja ligada à cor, à situação social, a credos religiosos e tendências
individuais; será vitoriosa graças à formação de um vasto movimento popular de libertação de Angola.
A ele começaram de imediato a aderir o proletariado, a burguesia e os intelectuais do país. E seria com o
apoio constante destas três componentes que o MPLA levaria de vencida, através dos anos, todos os
obstáculos que lhe foram surgindo pela frente.
Desmembrada e extinta a Mensagem, com as suas principais figuras engajadas na luta política, aberta ou
clandestina, uma nova camada juvenil surge a preencher os lugares deixados vagos, prosseguindo,
especialmente na Sociedade Cultural de Angola, na Associação dos Naturais de Angola e na Casa dos
Estudantes do Império, a tarefa de consciencialização e unidade nacional através da cultura.
Porém, nos sete anos que medeiam a publicação de Mensagem e a reaparição de Cultura, jornal de artes e
letras fundado em 1945 mas que, em dada altura, suspendera a publicação, outros escritores, mais velhos,
foram isoladamente publicando os seus livros: Óscar Ribas, já referenciado anteriormente, que na década
de 50 publica o romance Uanga, um livro de contos, Ecos da Minha Terra, e outro de carácter etnográfico,
Ilundo, no qual, entre valioso material recolhido sobre ritos e divindades, podemos encontrar alguns
excelentes contos tradicionais dos habitantes da região de Luanda. Este autor, no prosseguimento da sua
valiosa actividade de recolha dos contos tradicionais, dar-nos-ia, já nos anos de 60, os livros Missosso e
Sunguilando.
Ernesto Cochat Osório, o segundo escritor a mencionar, finalizado o seu curso superior em Portugal,
regressa à sua terra, e publica em 1956 e 1957, respectivamente, o livro de poesias Calema, e o de contos
Capim Verde, os quais, porém, contrariamente ao que os títulos sugerem, pouco ou nada representam de
tipicamente angolano. Mas alguns anos depois, já em 1960, reatado o encontro com as coisas e gentes de
Angola, dá-nos um terceiro livro inspirado na sua cidade, terra de contrastes coloridos, na vegetação, nas
casas e nos homens, livro de poesia sugestivamente intitulado Cidade.
Em 1966 Cochat Osório publica novo livro, Biografia da Noite, de imediato apreendido pela PIDE. Através
das suas páginas, o poeta narra a longa noite da opressão e anuncia o raiar da madrugada que chegaria a
25 de Abril de 1974.
Em 1957 a Sociedade Cultural de Angola reinicia, como dissemos, a publicação do seu jornal Cultura, que,
na senda da Mensagem, irià revelar novos valores.
No seu primeiro número, Cultura afirmava em editorial:
Não é apenas de hoje a necessidade de um jornal cultural em Angola.
Noutras épocas, outros homens realizaram a mesma tarefa. Porém, há vários anos, em virtude de
circunstâncias que não interessa agora referir, não existe em Angola qualquer órgão cultural,
specificamente cultural.
No entanto, os problemas continuaram a sua marcha inexorável e os homens continuam presentes,
portadores, já agora, de novas necessidades, novos anseios e novas coragens. Também maiores em
número, consequentemente em qualidade. Mais conscientes, mais aptos e mais responsáveis.
Características que se foram afirmando, mercê da agudização de certos problemas cujo processo vem de
lá de trás ( ... ).

Durante dois anos, que foi o período de vida permitido ao novo jornal, publicaram-se doze números de bom
nível cultural, com uma colaboração que ia desde a científica, normalmente a cargo de intelectuais
progressistas portugueses residentes em Angola, à literária, esta exclusivamente preenchida peloss
escritores locais. Uma nova fornada de poetas, contistas, críticos, etnólogos e ilustradores se revelam nas
páginas de Cultura. Poetas como Arnaldo Santos, Costa Andrade, João Abel, Manuel Lima, Henrique
Guerra, Caobelo, Ernesto Lara Filha' contistas como Luandino Vieira, Mário Guerra, Hélder Neto, um

37
38

ensaísta como Adolfo Maria, um etnólogo como Henrique Abranches, a maior parte deles espraiando-se
pela poesia, conto ensaio, com grande facilidade.
Mas enquanto em Cultura a poesia e o conto continuavam a ser a forma literária dominante através dos
seus mais assíduos colaboradores, pela pena de Ernesto Lara Filho, surge pela primeira vez a «crónica
angolana», repassada de poesia e saudosismo como é timbre da geração literária angolana em que se
enquadra. Ernesto Lara Filho daria também à poesia o seu valioso contributo com os livros Picada de
Marimbondo, O Canto de Martrindinde e Seripipi na Gaiola, de cunho vincadamente angolano.
Durante o ano de 1959, promovido pela Sociedade Cultural de Angola, realizava-se em Luanda o primeiro
colóquio sobre a poesia angolana. Abriu-o uma palestra de Mário António, que apresentou então a primeira
tentativa de classificação da poesia feita em Angola: «Poesia tradicional dos povos de Angola», «Poesia de
Angola», «Poesia angolana», «Poesia negra de expressão portuguesa» e «Poesia».
A eles se referiu o poeta Mário António na forma que, abreviadamente, apresentamos:
A «Poesia tradicional dos povos de Angola» uma realidade riquíssima e viva, tão rica e viva que se passa
bem do desinteresse de poetas e da de poetas e da pouca consideração de críticos. Além do mais, porque
é uma poesia socialmente enquadrqda e servindo fins sociais. Ela está presente em quase todas as
manifestações da sabedoria popular, quer associada ao canto, quer subjacente às diferentes formas de
literatura oral: canto, provérbio, adivinha.
«Poesia de Angola», termo que aceito para enquadrar as maniifestações poéticas de indivíduos europeus
ou europeizados ql1e, elegendo Angola para motivo principal das suas composições, não conseguiram
contudo passar de aspectos exteriores, paisagísticos ou de preconceito psicológico.
«Poesia angolana», produto cultural do homem angolano, tal qual ele é - pelo menos o que
intelectualizado (e só este até agora tem sido capaz de expressão literária) -, que através da sua formação
europeia, não perdeu elementos culturais negros nem a sua consciência de homem COm determinada
posição.
«Poesia negra de expressão portuguesa», que é, mais do que uma revelação, afirmação de uma posição
em face de um problema. A sua posição em relação à vida, releva do puro aspecto ideológico.
E, finalmente, «Poesia», poesia só, sem adjetivação.
Se o Movimento dos Novos Intelectuais de Angola se pode considerar um movimento essencialmente de
poetas (Mário António, autor de 100 Poemas, Era Tempo de Poesia, Rosto de Europa e Coração
Transplantado, só mais tarde se afirmaria igualmente como ficcionista de mérito em Crónica da Cidade Es-
tranha, Farra no Fim de Semana e Mahêzu), da Cultura, além de poetas, sairia já um lote de prosadores,
entre os quais se destacariam Luandino Vieira, Arnaldo Santos e Benúdia (Mário Guerra) ..
Mas qualquer destes movimentos literários, bastante isolados do grande público, não conseguiu, na altura
em que se manifestou, ultrapassar o meio intelectual que os criava ou apoiava, e ganhar a projecção que
mais tarde acabariam inevitavelmente por atingir. E compreende-se. Sem uma editora que lhes publicasse
os livros e ignorados pelos grandes meios de informação, os jovens escritores angolanos só lograriam
afirmar-se quando os seus trabalhos reunidos em colectâneas ou livros individuais, começaram, a partir de
1958, a circular com a chancela prestigiada da Casa dos Estudantes do Império, que, dessa forma e no
cumprimento dum plano de divulgação dos valores culturais dos seus povos, dava início à Colecção
Autores Ultramarinos.
Simultaneamente, com fins mais amplos, destinada à divulgação de autores de língua portuguesa, surgia
no Lubango a editora Imbondeiro, que lança uma colecção de livros de poesia e ficção.
Na esteira deste movimento editorial, também na planáltica cidade do Huambo se dava início à Colecção
Bailundo, com um livro do malogrado poeta Alexandre Dáskalos, precocemente surpreendido pela morte a
meio duma carreira científica que começava a dar os seus primeiros frutos.

ERVEDOSA, Carlos. Roteiro da literatura angolana. 4 ed. Luanda: UEA, s/d (p. 81-105

________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________

38
39

...E A SITUAÇÃO DO ESCRITOR

Albert Memmi

Espantamo-nos de que o colonizado não tenha literatura viva na sua própria língua. Como
recorreria a ela, se a desdenha? Como, se é afastado de sua música, de suas artes plásticas,
de toda sua cultura tradicional Sua ambigüidade lingüística é o símbolo, e uma das maiores
causas de sua ambigüidade cultural. E a situação do escritor colonizado é disso uma perfeita
ilustração.
As condições materiais da existência colonizada bastariam, sem dúvida, para explicar sua
raridade. A miséria excessiva do maior número reduz ao extremo as oportunidades
estatísticas de ver nascer e crescer um escritor. Mas a história nos mostra que basta uma
classe privilegiada para prover de artistas um povo interior. De fato, o papel do escritor
colonizado é por demais difícil de sustentar: encarna todas as ambigüidades, todas as
impossibilidades do colonizado, levadas a um grau extremo.
Suponhamos que tenha aprendido a manejar sua língua, até mesmo a recria-la em obras
escritas, que tenha vencido sua profunda recusa a servir-se dela; para quem escreveria, para
que público? Se se obstina em escrever na sua língua, condena-se a falar para um auditório
de surdos. O povo é inculto e não lê língua alguma. Os burgueses e os letrados só entendem
a do colonizador. Uma única saída lhe resta, que se apresenta como natural: escrever na
língua do colonizador. Como se não fosse senão mudar de impasse!
É preciso, sem dúvida, que supere seu handicap. Se o bilingüe colonial tem a vantagem de
conhecer duas línguas, nenhuma domina totalmente. Isso explica igualmente a lentidão com
que nascem as literaturas colonizadas. É preciso malbaratar muita matéria humana, fazer
inúmeras tentativas para ter a oportunidade de um acaso feliz. Após o que, ressurge a
ambigüidade do escritor colonizado, em forma nova porém mais grave.
Curioso destino o de escrever para um povo que não o seu! Mais curioso ainda o de escrever
para os vencedores de seu povo! Surpreende a aspereza dos primeiros escritores
colonizados. Esquecem-se de que se dirigem ao mesmo público cuja língua tomam
emprestada. Não se trata, porém, nem de inconsciência, nem de ingratidão, nem de
insolência. A esse público, precisamente, já que ousam falar, que irão dizer a não ser seu
mal-estar e revolta? Esperavam palavras de paz daquele que sofre de uma longa discórdia?
Reconhecimento por empréstimo a juros tão altos?

39
40

Por um empréstimo que, aliás, nunca será senão um empréstimo. A rigor, substituímos aqui a
descrição pela previsão. Mas é tão legível, tão evidente! A emergência de uma literatura de
colonizados, a tomada de consciência de escritores norte-africanos, por exemplo, não é um
fenômeno isolado. Participa da tomada de consciência de si mesmo de todo um grupo
humano. O fruto não é um acidente ou um milagre da planta, mas o sinal de sua maturidade.
Quando muito o surgimento do artista colonizado precede um pouco a tomada de consciência
coletiva da qual participa, que acelera com sua participação. Ora, a reivindicação mais
urgente de um grupo que se recupera é certamente a libertação e a restauração de sua
língua.
Se me surpreendo, em verdade, é de que possam surpreender-se. Somente essa língua
permitira ao colonizado retomar seu tempo interrompido, reencontrar sua continuidade perdia
e a de sua história. A língua francesa é apenas um instrumento, preciso, eficaz? Ou esse
cofre maravilhoso, onde de acumulam as descobertas e as conquistas, dos escritores e dos
moralistas, dos filósofos e dos sábios, dos heróis e dos aventureiros, onde se transformam
em uma só legenda os tesouros do espírito e a alma dos franceses?
O escritor colonizado, que chegou penosamente à utilização das línguas européias – a dos
colonizadores, não o esqueçamos – não pode deixar de servir-se delas para reclamar em
favor da sua. Não se trata nem se incoerência nem de reivindicação pura ou cego
ressentimento, mas de uma necessidade. Não o fizesse e todo o seu povo acabaria por fazê-
lo. Trata-se uma dinâmica objetiva que ele alimenta, certamente, mas que o nutre e que
continuaria sem ele. Fazendo-o, se contribui para liquidar seu drama de homem, confirma,
acentua seu drama de escritor. Para conciliar seu destino consigo mesmo poderia tentar
escrever na sua língua materna. Mas não se refaz tal aprendizagem em uma vida humana. O
escritor colonizado está condenado a viver suas rupturas até a morte. O problema só pode
resolver-se de duas maneiras: pelo esgotamento natural da literatura colonizada; as próximas
gerações nascidas na liberdade escreverão espontaneamente na sua língua recuperada. Sem
ir tão longe, outra possibilidade pode tentar o escritor: decidir-se a pertencer totalmente à
literatura metropolitana. Deixemos de lado os problemas éticos suscitados por tal atitude. É
então o suicídio da literatura colonizada. Nas duas perspectivas, só o prazo diferindo, a
literatura colonizada de língua européia parece condenada a morrer jovem.

MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Trad. R.


Corbvisier e M. Pinto Coleho. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 98-100.

40
41

PREFÁCIO a Os condenados da terra, de Franz Fanon


Jean-Paul Sartre

Não faz muito tempo a terra tinha dois bilhões de habitantes, isto é, quinhentos milhões de homens
e um bilhão e quinhentos milhões de indígenas. Os primeiros dispunham do Verbo, os outros
pediam-no emprestado. Entre aqueles e estes, régulos vendidos, feudatários e uma falsa
burguesia pré-fabricada serviam de intermediários. Às colônias a verdade se mostrava nua; as
“metrópoles” queriam-na vestida: era preciso que o indígena as amasse. Como às mães, por assim
dizer. A elite européia tentou engendrar um indigenato de elite; selecionava adolescentes, gravava-
lhes na testa, com fero em brasa, os princípios da cultura ocidental, metia-lhes na boca mordaças
sonoras, expressões bombásticas e pastosas que grudavam nos dentes; depois de breve estada
na metrópole, recambiava-os, adulterados. Essas contrafacções vivas não tinham mais nada a
dizer a seus irmãos; faziam eco; de Paris, de Londres, de Amsterdã lançávamos palavras:
“Partenon! Fraternidade!”, e, num ponto qualquer da África, da Ásia, lábios se abriam: “...
tenon!...nidade!” Era a idade de outro.
Isto acabou. As bocas passaram a abrir-se sozinhas; as vozes amarelas e negras falavam ainda do
nosso humanismo, mas para censurar a nossa desumanidade. Escutávamos sem desagrado
essas corteses manifestações de amargura. De início houve um espanto orgulhoso: Quê! Eles
falam por eles mesmos! Vejam só que fizemos deles! Não duvidávamos que aceitassem o nosso
ideal porquanto nos acusavam de não sermos fiéis a ele; por esta vez a Europa acreditou em sua
missão: havia helenizado os asiáticos e criado esta espécie nova: os negros greco-latinos.
Ajuntávamos, só para nós, astutos: deixemos que se esgoelem, isso os alivia; cão que ladra não
morde.
Surgiu uma outra geração que alterou o problema. Seus escritores, seus poetas, com incrível
paciência trataram de nos explicar que nossos valores não se ajustavam bem à verdade de sua
vida, que não lhes era possível rejeita-los ou assimila-los inteiramente. Em suma, isso queria dizer:
de nós fizestes monstros, vosso humanismo nos supõe universais e vossas práticas racistas nos
particularizam. E nós os escutávamos despreocupados; os administradores coloniais não são
pagos para ler Hegel, aliás lêem-no pouco, mas não precisam desse filósofo para saber que as
consciências infelizes se emaranham nas próprias contradições. Nenhuma eficácia. Por
conseguinte, perpetuemos-lhes a infelicidade, que dela não resultará coisa alguma. Se houvesse,
diziam-nos os peritos, uma sombra de reivindicação em seus gemidos, outra não seria que a de
integração. Não se trata de outorgá-la, é claro, isso arruinaria o sistema, que repousa, como se
sabe, na superexploração. Mas bastaria acenar-lhes com essa patranha: viriam correndo. Quanto à
possibilidade de revolta, estávamos tranqüilos. Que indígena consciente iriam massacrar os filhos
da Europa com o fim único de se tornar europeu como eles? Numa palavra, estimulávamos essas
melancolias e não achamos mau, uma vez, conceder o prêmio Goncourt a um negro. Isso ocorreu
antes de 39.
1961. Escutai: “Não percamos tempo com litanias estéreis ou mimetismos nauseabundos.
Deixemos essa Europa que não cessa de falar do homem enquanto o massacra por toda a parte
onde o encontra, em todos as esquinas de suas próprias ruas, em todas as esquinas do mundo.
Há séculos... que em nome de uma suposta ´aventura espiritual´ vem asfixiando a quase
totalidade da humanidade”. Este tom é novo. Quem ousa adotá-lo? Um africano, homem do
Terceiro Mundo, antigo colonizado. Acrescenta ele: “A Europa adquiriu uma velocidade tão louca,
tão desordenada... que a arrasta para o abismo, do qual é melhor que nos afastemos.” Em outras
palavras: ela está atolada. Uma verdade que não é boa de dizer mas da qual – não é mesmo,
meus caros co-continentais? – estamos todos intimamente convencidos.
Cumpre fazer uma ressalva, porém. Quando um francês, por exemplo, diz a outros franceses:
“Estamos atolados!” – o que, pelo que sei, se verifica quase todos os dias desde 1930 – trata-se de
um discurso passional, ardente de cólera e amor, em que o orador se compromete com todos os
seus compatriotas. E depois geralmente acrescenta: “A menos que...” Sabe-se o que isto significa:
é impossível enganar-se a este respeito: se suas recomendações não forem seguidas à risca,
então e somente então o país se desintegrará. Enfim, é uma ameaça seguida de um conselho, e

41
42

essas conversas chocam tanto menos quanto jorram da intersubjetividade nacional. Quando
Fanon, ao contrário, diz que a Europa cava a sua própria ruína, longe de soltar um grito de alarma,
apresenta um diagnóstico. Este médico não pretende nem condena-la sem apelação – há tais
milagres – nem lhe fornecer os meios de cura; constata que ela agoniza. De foram baseando-se
nos sintomas que pôde recolher. Quanto a tratá-la, não. Ele tem outras preocupações na cabeça;
pouco se lhe dá que ela arrebente ou sobreviva. Por este motivo, seu livro é escandaloso. E se
murmurais, entre divertidos e embaraçados: “Que é que ele nos propõe?”, deixais de perceber a
verdadeira natureza do escândalo, uma vez que Fanon não vos “propõe” absolutamente nada; sua
obra – tão abrasadora para outros – para vós permanece gelada; amiúde fala de vós, mas nunca a
vós. Acabaram-se os Goncourt negros e os Nobel amarelos; não voltará mais o tempo dos
laureados colonizados. Um ex-indígena “de língua francesa” sujeita esta língua a exigências novas,
serve-se dela para dirigir-se apenas aos colonizados: “Indígenas de todos os países
subdesenvolvidos, uni-vos!”. Que rebaixamento; para os pais, éramos os únicos interlocutores; os
filhos nem nos consideram ais como interlocutores admissíveis: somos os objetos do discurso.
Evidentemente Fanon menciona de passagem nossos crimes famosos, Sétif, Hanói, Madagascar,
mas não perde o seu temo a condená-los; utiliza-os. Se desmonta as táticas do colonialismo , o
complexo jogo das relações que unem e opõem os colonos aos “metropolitanos”, faz isso para
seus irmãos; seu objetivo é ensiná-los a desmantelar-nos.
Numa palavra, o Terceiro Mundo se descobre e se exprime por meio desta voz. Sabemos que ele
não é homogêneo e que nele se encontram ainda povos subjugados, outros que adquiriram uma
falsa independência, outros que se batem para conquistar a soberania, outros enfim que obtiveram
a liberdade plena mas vivem sob a constante ameaça de uma agressão imperialista. Essas
diferenças nasceram da história colonial, isto é, da opressão. Aqui a Metrópole contentou-se em
pagar alguns feudatários; ali, dividindo para reinar, fabricou em bloco uma burguesia de
colonizados. Mais além matou dois coelhos de uma só cajadada: a colônia é ao mesmo tempo de
exploração e de povoamento. Assim a Europa multiplicou as divisões, as oposições, forjou classes
e por vezes racismos, tentou por todos os meios provocar e incrementar a estratificação das
sociedades colonizadas. Fanon não dissimula nada: para lutar contra nós, a antiga colônia deve
lutar contra ela mesma. Ou melhor, as duas formas de luta são uma só. No fogo do combate, todas
as barreiras interiores devem derreter-se. A impotente burguesia de negocistas e compradores, o
proletariado urbano, sempre privilegiado, o lumpenproletariat das favelas, todos têm de se alinhar
nas posições das massas rurais, verdadeiro reservatório do exército nacional e revolucionário; nas
regiões cujo desenvolvimento foi deliberadamente sustado pelo colonialismo, o campesinato,
quando se revolta, aparece logo como a classe radical: conhece a opressão nua, suporta-a muito
mais que os trabalhadores da s cidades e, para que não morra de fome, precisa nada mesmos que
de um estouro de todas as estruturas. Triunfando, a Revolução nacional será socialista; detido seu
ímpeto, a burguesia colonizada toma o poder, e o novo Estado, a despeito de uma soberania
formal, continua nas mãos dos imperialistas. O exemplo de Katanga é bastante ilustrativo 28. Assim,
a unidade do Terceiro Mundo não está concluída: é um empreendimento em curso, que passa pela
união, em cada país, antes de também depois da independência, de todos os colonizados, sob o
comando da classe camponesa. Eis o qeu Fanon explica a seus irmãos da África, da Ásia, da
América latina: realizaremos todos em conjunto e por toda a parte o socialismo revolucionário ou
seremos derrotados um a um por nossos antigos tiranos. Não dissimula nada, nem as fraquezas,
nem as discórdias, nem as mistificações. Aqui o movimento começa mal; ali, após êxitos,
fulminantes, perde velocidade; noutra parte está parado: para que se reinicie, é necessário que os
camponeses lancem sua burguesia ao mar. O leitor é severamente acautelado contra as
alienações mais perigosas: o líder, o culto da personalidade, a cultura ocidental e, também o
retorno do longínquo passado da cultura africana; a verdadeira cultura é a Revolução; isso que
fizer que ela se forja a quente. Fanon fala em voz alta; nós, os europeus, podemos ouvi-lo: a prova
28
Katanga é a província mais rica do Congo, devido aos seus depósitos de cobre, cobalto e urânio. Quando
da independência do país, em junho de 1960, Katanga tentou ser um Estado autônomo. As tropas do governo
moveram-se contra ela em agosto de 1960, mas foram barradas no estado de minas de diamante de Kasai e
massacraram centenas de pessoas das tribos Baluba. Paralelamente, Joseph Mobutu deu um golpe militar
em setembro de 1960, depondo o Primeiro Ministro Patrice Lumumba (1925-1961), que foi morto em
circunstâncias misteriosas em fevereiro...

42
43

é que temos nas mãos este livro. Não teme ele que as potências coloniais tirem proveito de sua
sinceridade?
Não. Não teme nada. Nossos processos estão peremptos; podem talvez retardar a emancipação,
mas não a impedirão. E não imaginemos que poderemos reajustar os nossos métodos: o
neocolonialismo, sonho preguiçoso das Metrópoles, é vão; as “Terceiras Forças” não existem ou
são falsas burguesias que o colonialismo já colocou no poder. Nosso maquiavelismo tem poucos
poderes sobre este mundo extremamente vigilante que desmascarou uma após outra as nossas
mentiras. O colono só tem um recurso: a força, quando esta ainda lhe sobra: o indígena só tem
uma alternativa: a servidão ou a soberania. Que importa a Fanon que leiamos ou não a sua obra?
É a seus irmãos que ele denuncia nossas velhas artimanhas, para as quais não dispomos de
sobressalentes. É a eles que Fanon diz: a Europa pôs as patas em nossos continentes, urge
golpeá-las até que ela as retire; o momento nos favorece; nada acontece em Bizerta, em
Elizabethville, no deserto argelino, que não chegue ao conhecimento de toda a Terra: os blocos
tomam partidos contrários, encaram-se como respeito; aproveitemos essa paralisia, entremos na
história e que nossa irrupção a torne universal pela primeira vez; na falta de outras armas, a
perseverança da faca será suficiente.
Europeus, abri este livro, entrai nele. Depois de alguns passos na noite, vereis estrangeiros
reunidos ao pé do fogo, aproximai-vos, escutai; eles discutem a sorte que reservam às vossas
feitorias, aos mercenários que as defendem. Eles vos verão talvez, mas continuarão a falar entre
si, sem mesmo baixar a voz. Essa indiferença fustiga o coração: os pais, criaturas da sombra,
vossas criaturas, eram almas mortas, vós lhes dispensáveis a luz, eles só se dirigiam a vós, e vós
não perdíeis tempo em responder a esses zumbis. Os filhos não fazem caso de vós; um fogo os
ilumina e aquece, e vós vos sentireis furtivos, noturnos, transidos; a cada um a sua vez; nessas
trevas de onde vai surgir uma outra aurora, os zumbis sóis vós.
Nesse caso, direis, joguemos este livro pela janela. Por que temos de o ler se não foi escrito para
nós? Por dois motivos. O primeiro é que Fanon vos explica a seus irmãos e desmonta para eles o
mecanismo de nossas alienações; aproveitai para vos descobrir a vós mesmos em vossa verdade
de objetos. Nossas vítimas nos conhecem por suas feridas e seus grilhões; é isto que torna seu
testemunho irrefutável. Basta que nos mostrem o que fizemos delas para que conheçamos o que
fizemos de nós, Isso é útil? Sim, visto que a Europa está na iminência de rebentar. Mas, direi vós
ainda, vivemos na Metrópole e reprovamos os excessos. É verdade: não sois colonos, mas não
sois melhores do que eles. São vossos pioneiros, vós os enviastes para o ultramar, eles vos
enriqueceram; vós os tínheis prevenido: se fizessem correr muito sangue, vós os reprovaríeis com
desdém; da mesma forma, um Estado – qualquer que seja – mantém no estrangeiro uma turba de
agitadores, de provocadores e espiões, aos quais reprova quando são apanhados. Vós, tão
liberais, tão humanos, que levai os amor da cultura até ao preciosismo, fingis esquecer que tendes
colônias e que nelas se praticam massacres em vosso nome. Fanon revela a seus camaradas – a
alguns dentre eles, sobretudo, que continuam um pouco ocidentalizados demais –a solidariedade
dos “metropolitanos” e seus agentes coloniais. Tende a coragem de o lar, por esta primeira razão
de que ele fará com que vos sintais envergonhados, e a vergonha, como disse Marx, é um
sentimento revolucionário. Vede: eu também não posso desprender-me da ilusão subjetiva. Eu
também vos digo: “Tudo está perdido, a menos que...” Europeu, furto o livro de um inimigo e faço
dele um meio de curar a Europa. Aproveitai.
Eis o segundo motivo: se rejeitarmos a lenga-lenga fascista de Sorel, veremos que Fanon é o
primeiro desde Engels a repor em cena a parteira da história. E não se creia que um sangue
demasiado ardente ou desventuras da infância lhe tenham dado para a violência não sei que gosto
singular: ele se faz intérprete da situação, nada mais. Mas isso basta para que ele constitua, etapa
por etapa, a dialética que a hipocrisia liberal oculta de nós e que nos produziu tanto quanto a ele.
No século passado a burguesia considerava os operários invejosos, corrompidos por apetites
grosseiros, mas teve o cuidado de incluir esses selvagens em nossa espécie: se não fossem
homens e livres, como poderiam vender livremente sua força de trabalho? Na França, na
Inglaterra, o humanismo pretender ser universal.
Com o trabalho forçado, dá-se o contrário; nada de contrato; além disso, é preciso intimidar;
patenteia-se portanto a opressão. Nossos soldados no ultramar rechaçam o universalismo
metropolitano, aplicam ao gênero humano o numerus clausus; uma vez que ninguém pode sem
crime espoliar seu semelhante, escravizá-lo ou matá-lo, eles dão por assente que o colonizado não

43
44

é o semelhante do homem. Nossa tropa de choque recebeu a missão de transformar essa certeza
abstrata em realidade: a ordem é rebaixar os habitantes do território anexado ao nível do macaco
superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga. A violência colonial não tem
somente o objetivo de garantir o respeito desses homens subjugados; procura desumaniza-los.
Nada deve ser poupado para liquidar as suas tradições, para substituir a língua deles pela nossa,
para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossa; é preciso embrutecê-los pela fadiga. Desnutridos,
enfermos, se ainda resistem, o medo concluirá o trabalho: assestam-se os fuzis sobre o camponês;
vêm civis que se instalam na terra e o obrigam a cultivá-la para eles. Se resiste, os soldados
atiram, é um homem morto; se cede, degrada-se, não é mais um homem; a vergonha e o temor
vão fender-lhe o caráter, desintegra-lhe a personalidade. A coisa é conduzida a toque de caixa,
por peritos: não é de hoje que datam os “serviços psicológicos”. Nem a lavagem cerebral. E no
entanto, malgrado tantos esforços, o objetivo não é atingido em parte nenhuma: no Congo, onde se
cortavam as mãos dos negros, nem em Angola onde, bem recentemente, furavam-se os lábios dos
descontentes para os fechar com cadeados. E não afirmo que seja impossível converter um
homem num animal: digo que não se chaga a tanto sem o enfraquecer consideravelmente; as
bordoadas não bastam, é necessário recorrer à desnutrição. É o tédio, com a servidão. Quando
domesticamos um membro de nossa espécie, diminuímos o seu rendimento e, por pouco que lhe
demos, um homem reduzido à condição de animal doméstico acaba por custar mais do que
produz. Por esse motivo os colonos vêem-se obrigados a parar a domesticação no meio do
caminho: o resultado, nem homem nem animal, é o indígena. Derrotado, subalimentado, doente,
amedrontado, mas só até certo ponto, tem ele, seja amarelo, negro ou branco, sempre os mesmos
traços de caráter: é um preguiçoso, sonso e ladrão, que vive de nada e só reconhece a força.
Pobre colono: eis sua contradição posta a nu. Deveria, dizem, como faz o gênio, matar as vítimas
de suas pilhagens. Mas isso não é possível. Não é preciso também que as explore? Não podendo
levar o massacre até ao genocídio e a servidão até ao embrutecimento, perde a cabeça, a
operação de desarranjo e uma lógica implacável há de conduzi-la até à descolonização.
Não de imediato. A princípio o europeu reina: já perdeu mas não se dá conta disso; ainda não sabe
que os indígenas são falsos indígenas; atormenta-os, conforme alega, para destruir ou reprimir o
mal que há neles. Ao cabo de três gerações, seus instintos perniciosos não renascerão mais. Que
instinto? Os que compelem os escravos a massacrar o senhor? Como não reconhece nisto a sua
própria crueza voltada contra ele? A selvageria dos camponeses oprimidos, como não reencontra
nela sua selvageria de colono, que eles absorveram por todos os poros e de que não estão
curados? A razão é simples. Esse personagem arrogante, enlouquecido por todo o seu poder e
pelo medo de o perder, já não se lembrar realmente que foi um homem: julga-se uma chibata ou
um fuzil; chegou a acreditar que a domesticação das “raças inferiores” se obtém através do
condicionamento dos seus reflexos. Negligência a memória humana, as recordações indeléveis; e
depois, sobretudo, há isto que talvez ele jamais tenha sabido: nós não nos tornamos o que somos
senão pela negação íntima e radical do que fizeram de nós. Três gerações? Desde a segunda, mal
abriram os olhos, os filhos viram os pais serem espancados. Em termos de psiquiatria, ei-los
“traumatizados”. Para a vida inteira. Mas essas agressões incessantemente renovadas, longe de
os induzir à submissão, atiram-nos numa contradição insuportável pela qual cedo ou tarde o
europeu pagará. Depois disso, o aprendizado a que por sua vez serão submetidos, aprendizado de
humilhação, dor e fome, suscitará em seus corpos uma ira vulcânica cujo poder é igual ao da
pressão que se exerce sobre eles. Será, dizei vós, que só conhecem a força? Por certo; de início
será apenas a do colono e, pouco depois, a deles, isto é, a mesma que recai sobre nós da mesma
maneira que o nosso reflexo vem do fundo de um espelho ao nosso encontro. Não nos iludamos;
por essa cólera louca, por essa bile e esse fel, por seu desejo permanente de nos matar, pela
contração constante de músculos poderosos que têm medo de se esticar, eles são homens: pelo
colono, que os quer servos, e contra ele. Cego ainda, abstrato, o ódio é o seu único tesouro. O
Patrão provoca-o porque procura bestializá-lo, falha em destruí-lo porque seus interesses o detêm
a meio caminho. Assim, os falsos indígenas ainda são humanos, pela força e a impotência do
opressor que se transformam neles numa obstinada recusa à condição animal. Quanto ao mais, já
se sabe: são preguiçosos, é claro, e isso é sabotagem. Dissimulados, ladrões, sem dúvida; seus
pequenos furtos assinalam o começo de uma resistência ainda desorganizada. Isso não basta;
para que se afirmem têm de investir desarmados contra os fuzis. Estão os seus heróis, e outros se

44
45

fazem homens assassinando europeus. São mortos. Bandidos e mártires, seu suplício exalta as
massas aterrorizadas.
Aterrorizadas, sim. Neste novo momento a agressão colonial se interioriza em Terror entre os
colonizados. Não me refiro somente ao temor que experimental diante de nossos inesgotáveis
meios de repressão como também ao que lhes inspira seu próprio furor. Estão entalados entre as
armas que apontamos contra eles e as tremendas pulsões, os desejos de carnificina que sobem do
fundo do coração e que eles sempre reconhecem, porque não é de início a violência deles, mas a
nossa, voltada para trás, que se avoluma e os dilacera; e o primeiro movimento desses oprimidos é
ocultar profundamente essa cólera inconfessável que a sua moral e a nossa reprovam e que,
todavia, é o último reduto de sua humildade. Leiamos Fanon: descobriremos que, no tempo de sua
impotência, a loucura sanguinária é o inconsciente coletivo dos colonizados.
Essa fúria contida, que não se extravasa, ainda à roda e destroça os próprios oprimidos. Para se
livrarem dela, entrematam-se: as tribos batem-se umas contra as outras por não poderem atacar
de frente o verdadeiro inimigo – e podemos contar com a política colonial para alimentar essas
rivalidades; o irmão, empunhando a faca contra o irmão, acredita destruir, de uma vez por todas, a
imagem detestada de seu aviltamento comum. Mas essas vítimas expiatórias não lhes aplacam a
sede de sangue. Abstendo-se de marchar contras as metralhadoras, eles se tornarão nossos
cúmplices: vão por sua própria autoridade acelerar os progressos dessa desumanização que lhes
repugna. Sob o olhar divertido do colono, premunir-se-ão contra eles mesmos com barreiras
sobrenaturais, oura reavivando velhos mitos terríveis, ora atando-se fortemente com ritos
meticulosos; assim o obsesso livra-se de sua exigência profunda abandonando-se a manias que o
solicitam a todo instante. Dançam, e isto os ocupa, aliviando-lhes os músculos dolorosamente
contraídos. De resto, a dança exprime por mímica, secretamente, muitas vezes sem que o saibam,
o Não que não podem dizer, os homicídios que não se atrevem a cometer. Em certas regiões
valem-se deste último recurso: a possessão. O que era outrora o fato religioso em sua
simplicidade, uma certa comunicação do fiel com o sagrado, se transforma numa arma contra o
desespero e a humilhação; os zars, as loas, os Santos descem neles, governam-lhes a violência e
a dissipam em transes até ao esgotamento. Ao mesmo tempo esses altos personagens os
protegem; isso quer dizer que os colonizados se defendem da alienação colonial voltando-se para
a alienação religiosa. No fim de contas, o único resultado é a acumulação de duas alienações,
cada qual reforçada pela outra. Assim, em certas psicoses, cansados de serem insultados todos os
dias, os alucinados imaginam de repente ouvir uma voz de anjo que nos cumprimenta; por outro
lado, não cessam as graçolas, que dia em diante alternam com a saudação. É uma defesa e é o
fim de sua aventura: a pessoa está dissociada, o doente se encaminha para a demência.
Acrescentemos, para alguns infelizes rigorosamente selecionados, essa outra possessão de que já
falei anteriormente: a cultura ocidental. No lugar deles, direis vós, eu preferia meus zars à
Acrópole. Bom, compreendestes. Não completamente, porém, porque não estais no lugar deles.
Ainda não. De outro modo, saberíeis que não podem escolher e acumulam. Dois mundos, isso faz
duas possessões: dançam a noite inteira e de manhã apinham-se na igreja para ouvir missa; a
fenda aumenta sem parar. Nosso inimigo trai seus irmãos e se faz nosso cúmplice; seus irmãos
fazem outro tanto. O indigenato é uma neurose introduzida e mantida pelo colono entre os
colonizadores com o consentimento deles.
Reclamar e renegar, a um só tempo, a condição humana: a contradição é explosiva. Efetivamente
explode, vem o sabemos. E vivemos no tempo da deflagração: quer o aumento da natalidade
amplie a miséria, quer os recém-chegados devam recear viver um pouco mais que morrer, a
torrente da violência derruba todas as barreiras. Na Argélia e em Angola os europeus são
massacrados onde aparecem. É o momento do bumerangue, o terceiro tempo da violência: ela se
volta contra nós, atinge-nos e, como das outras vezes, não compreendemos que é a nossa. Os
“liberais” ficam aparvalhados; reconhecem que não fomos bastante polidos com os indígenas, que
teria sido mais justo e mais prudente conceder-lhes certos direitos na medida do possível; eles
pretendiam apenas ser admitidos em massa e sem padrinhos nesse clube fechadíssimo que é a
nossa espécie; e eis que esse desencadeamento bárbaro e louco não os poupa assim como não
poupa os maus colonos. A Esquerda Metropolitana inquieta-se: conhece a verdadeira sorte dos
indígenas, a opressão impiedosa de que são objeto, não lhes condena a revolta, sabendo que tudo
fizemos para provocá-la. Mas, ainda assim pensa ela, há limites: esses guerrilheiros deveriam
empenhar-se em mostrar certo cavalheirismo; seria o melhor meio de provar que são homens. Às

45
46

vezes ela os censura: “Vocês estão se excedendo, não os apoiaremos mais”. Eles não dão bola:
ela bem que pode pegar esse apoio e pendurar no pescoço. Desde que sua guerra começou, eles
perceberam esta verdade rigorosa: nós todos valemos pelo que somos, todos nos aproveitamos
deles, e eles não têm que provar nada, não dispensarão tratamento de favor a ninguém. Um dever
único, um único objetivo: combater o colonialismo por todos os meio.s E os mais avisados dentre
nós estariam, a rigor, prontos a admiti-lo, mas não podem deixar de ver nessa prova de força o
recurso inteiramente desumano de que se serviram os sub-homens para se fazer outorgar uma
carta de humanidade: vamos concedê-la o mais depressa possível e que eles tratem então, por
métodos pacíficos, de a merecer. Nossa bela alma é racista.
Ela só terá a lucrar com a leitura de Fanon. Essa violência irreprimível, ele o demonstra
cabalmente, não é uma tempestade absurda nem a ressurreição de instintos selvagens e nem
mesmo um efeito do ressentimento; é o próprio homem que se recompõe. Sabíamos, creio eu, e
esquecemos esta verdade: nenhuma suavidade apagará as marcas da violência: só a violência é
que pode destruí-las. E o colonizado se cura da neurose colonial, passando o colono pelas armas.
Quando sua raiva explode, ele reencontra sua transparência perdida e se conhece na medida
mesma em que se faz; de longe consideramos a guerra como o triunfo da barbárie; mas ela
procede por si mesma à emancipação progressiva do combatente, liquidando nele e fora dele,
gradualmente, as trevas coloniais. Uma vez iniciada, é impiedosa. É necessário permanecer
aterrorizado ou tornar-se terrível, quer dizer: abandonar-se às dissociações de uma vida falsificada
ou conquistar a unidade natal. Quando os camponeses tocam nos fuzis, os velhos mitos
empalidecem, e caem por terra, uma a uma, as interdições. A arma do combatente é a sua
humanidade. Porque, no primeiro tempo da revolta, é preciso matar; abater um europeu é matar
dois coelhos de uma só cajadada, é suprimir ao mesmo tempo um opressor e um oprimido: restam
um homem morto e um homem livre; o sobrevivente, pela primeira vez, sente um solo nacional sob
a planta dos pés. Nesse instante a Nação não se fasta dele; ele a encontra aonde for, onde estiver
– nunca mais longe, ela se confunde com sua liberdade. Mas, após a primeira surpresa, o exército
colonial reage: então é necessário unir-se ou deixar-se massacrar. As discórdias tribais atenuam-
se, tendem a desaparecer em primeiro lugar porque põem em perigo a Revolução e, mais
profundamente, porque não tinham outra função que desviar a violência para falsos inimigos.
Quando continuam – como no Congo – é porque são alimentadas pelos agentes do colonialismo. A
Nação põe-se em marcha; para cada irmão ela está em toda a parte onde outros irmãos
combatem. Seu amor fraternal é o inverso de ódio que eles nos votam: irmãos pelo fato de que
cada um deles matou ou poderia de um instante para outro ter matado. Fanom mostra a seis
leitores os limites da “espontaneidade”, a necessidade e os perigos da “organização”. Mas, seja
qual for a imensidade da tarefa, a cada desdobramento da empreitada a consciência revolucionária
se aprofunda. Desvanecem-se os derradeiros complexos; não nos venham falar no “complexo de
dependência” do soldado do Exército de Libertação Nacional. Livre dos seus antolhos, o
camponês toma conhecimento das suas necessidades: matavam-no mas ele tentava ignorá-las;
descobre-as agora como exigências infinitas. Nessa violência popular – que dura cinco anos, oito
anos como no caso dos argelinos – não se podem distinguir as necessidades militares, sociais e
políticas. A guerra, suscitando o problema do comando e das responsabilidades, estabelece novas
estruturas que serão as primeiras instituições da paz. Eis então o homem instaurado até as
tradições novas, filhas futuras de um horrível presente, ei-lo legitimado por um direito que vai
nascer, que nasce cada dia no fogo da batalha. Com o último colono morto, reembarcado ou
assimilado, a espécie minoritária desaparece, cedendo lugar à fraternidade socialista. E isso ainda
não é suficiente: esse combatente queima as etapas; cuidais que ele não arriscará a pele para se
reencontrar ao nível do velho homem “metropolitano”. Vede sua paciência: é possível que ele
sonhe algumas vezes com um novo Dien-Bien-Phu29; mas ficai certos de que não conta realmente
com isto; é um mendigo lutando, em sua miséria, contra ricos poderosamente armados. Esperando
as vitórias decisivas e muitas vezes sem nada esperar, atormenta seus adversários até ao enfado.
Isso é inseparável de perdas tremendas; o exército colonial torna-se feroz: patrulhas, operações de
limpeza, reagrupamentos, expedições punitivas; mulheres e crianças são massacradas. Sabe disto
esse homem novo; ele começa sua vida pelo fim; considera-se um morto virtual. Será morto, e não

29
Batalha de 5 meses ocorrida entre 1953/1954 e que resultou em 7 mil franceses mortos e 11 mil deles,
totalmente estropiados, sujeitados aos vietnamitas.

46
47

somente aceita o risco mas tem a certeza de que será eliminado. Esse morto virtual perdeu a
mulher e os filhos e viu tantas agonias que antes quer vencer que sobreviver; outros aproveitarão a
vitória, não ele, que está cansado demais. Contudo, essa fadiga do coração está no princípio de
uma coragem inacreditável. Encontramos nossa humanidade do lado de cá da morte e do
desespero, ele a encontra do lado de lá dos suplícios e da morte. Fomos os semeadores de
ventos; ele é a tempestade. Filho da violência, extrai dela a cada instante a sua humanidade;
fomos homens à custa dele; ele se faz homem à nossa custa. Um outro homem, de melhor
qualidade.
Aqui Fanon faz alto. Mostrou o caminho; porta-voz dos combatentes, reclamou a união, a unidade
do continente africano contra todas as discórdias e todos os particularismos. Atingiu seu objetivo.
Se quisesse descrever integralmente o fato histórico da descolonização, teria de falar e mós, o que
certamente não é seu propósito. Mas o livro, depois que o fechamos, continua a acossar-nos,
apesar de seu autor, porque sentimos o vigor dos povos em revolução e respondemos com a força.
Há, portanto, um novo momento da violência e é para nós ,desta vez, que temos de nos voltar,
porque ela nos está transformando na medida em que o falso indígena se transforma através dela.
Cada qual poderá conduzir suas reflexões como quiser. Contanto, porém, que tenha isto em
mente: na Europa de hoje, completamente aturdida com os golpes que lhe são desferidos na
França, na Bélgica, na Inglaterra, a menor distração do pensamento é uma cumplicidade criminosa
com o colonialismo. Este livro não precisava de prefácio, tanto menos porque não se dirige a nós.
Contudo, eu lhe fiz um para levar a dialética até ao fim. É necessário que nós, europeus, nos
descolonizemos, isto é, extirpemos, por meio de uma operação sangrenta, o colono que há em
cada um de nós. Examinemo-nos, se tivermos coragem, e vejamos o que se passa conosco.
Encaremos primeiramente este inesperado: o strip-tease de nosso humanismo. Ei-lo inteiramente
nu e não é nada belo: não era senão uma ideologia mentirosa, a requintada justificação da
pilhagem; sua ternura e seu preciosismo caucionavam nossas agressões. Têm boa aparência os
não-violentos: nem vítimas nem verdugos! Vamos! Se não sois vitima,s quando o governo que
referendastes num plebiscito e quando o exército em que serviram vossos jovens irmãos levaram a
cabo, sem hesitação nem remorso, um “genocício”, sois indubitavelmente verdugos. E se escolheis
ser vítimas, arriscar um ou dois dias de cadeia, escolheis simplesmente livrar-vos de uma
embrulhada. Mas não vos livrareis; é mister permanecer nela até ao fim. De resto é necessário
compreender isto: se a violência tivesse começado esta note, se nunca a exploração nem a
opressão tivessem existido na face da terra, talvez a não-violência alardeada pudesse apaziguar a
contenda. Mas se o próprio regime e até os vossos não-violentos pensamentos estão
condicionados por uma opressão milenar, vossa passividade só serve para vos colocar do lado dos
opressores.
Sabeis muito vem que somos exploradores. Sabeis que nos apoderamos do ouro e dos metais e,
posteriormente, do petróleo dos “continentes novos” e que os trouxemos para as velhas
metrópoles. Com excelentes resultados: palácios, catedrais, capitais industriais; e quando a crise
ameaçava, estavam ali os mercados coloniais para a amortecer ou desviar. A Europa,
empanturrada de riquezas, concedeu de jure a humanidade a todos os seus habitantes; entre nós,
um homem significa um cúmplice, visto que todos nós lucramos com a exploração colonial. Este
continente gordo e lívido acabou por dar no que Fanon chama com justeza o “narcisismo”. Cocteau
irritava-se com Paris, “esta cidade que fala o tempo todo de si mesma”. E a Europa, que faz ela? E
esse monstro supereuropeu, a América do Norte? Que tagarelice: liberdade, igualdade,
fraternidade, amor, honra, pátria, que seu eu? Isso não nos impedia de fazermos discursos
racistas, negro sujo, judeu sujo, etc. Bons espíritos, liberais e ternos – neocolonialistas, em suam –
mostravam-se chocados com essa inconseqüência; erro ou má-fé: nada mais conseqüente, em
nosso meio, que um humanismo racista, uma vez que o europeu só pode fazer-se homem
fabricando escravos e monstros. Enquanto houve um indígena, essa impostura não foi
desmascarada; encontrávamos no gênero humano uma abstrata postulação de universalidade que
servia para encobrir práticas mais realistas: havia, do outro lado dos mares, uma raça de sub-
homens que, graças a nós, em mil anos talvez, teria acesso à nossa condição. Em resumo,
confundíamos o gênero com a elite. Hoje o indígena revela sua verdade; de repente, nosso clube
tão fechado revela sua fraqueza: não passava de uma minoria. Há coisa pior: uma vez que somos
os inimigos do gênero humano; a elite exibe sua verdadeira natureza: uma quadrilha de bandidos.
Quereis um exemplo? Lembrai-vos destas palavras grandiloqüentes: como é generosa a França!

47
48

Generosos, nós? E Sétif? E esses oito anos de guerra feroz que custaram a vida da mais de um
milhão de argelinos? Mas compreendamos que não nos censuram por termos traído não sei que
missão, pela boa razão de que não tínhamos nenhuma. É a própria generosidade que está em
causa; essa bela palavra sonora só tem um sentido: estatuto outorgado. Para os novos homens
emancipados que nos enfrentam, ninguém tem o poder nem o privilégio de dar nada a ninguém.
Cada qual tem todos os direitos. Sobre todos. E nossa espécie, quando um dia se fizer a si
mesma, não se definirá como a soma dos habitantes do globo mas como a unidade infinita de suas
reciprocidades. Paro aqui. Concluiríeis o trabalho sem dificuldade. Basta que olheis de frente, pela
primeira e última vez, as nossas aristocráticas virtudes; elas rebentam, e como sobreviveriam à
aristocracia de sub-homens que as engendrou? Há alguns anos, um comentarista burguês – e
colonialista – só achou isto para defende o Ocidente: “Nós não somos anjos, mas pelo menos
temos remorsos”. Que confissão! Outrora nosso continente tinha outros sustentáculos: o Partenon,
Chartres, os Direitos do Homem, a suástica. Sabemos agora o que valem e não pretendemos mais
salvar-nos do naufrágio senão pelo sentimento muito cristão de nossa culpabilidade. É o fim, como
vedes: a Europa faz água por todos os lados. Que aconteceu então? Simplesmente isto: éramos os
sujeitos da história e atualmente somos os objetos. Inverteu-se a correlação de forças, a
descolonização está em curso; tudo o que nossos mercenários podem tentar é retardar-lhe a
conclusão.
É preciso ainda que as velhas “Metrópoles” metam o bedelho, empenhando todas as suas forças
numa batalha, de antemão, perdida. Essa velha brutalidade colonial, que fez a glória duvidosa dos
Bugeaud30,vamos reencontrá-la, no fim da aventura, decuplicada, insuficiente. Envia-se o
contingente para a Argélia, e ele lá se mantém há sete anos sem resultado. A violência mudou de
sentido; vitoriosos, nós a exercíamos sem que ela parecesse alterar-nos: decompunha os outros e
a nós, os homens, mas nosso humanismo continuava intacto; unidos pelo lucro, os metropolitanos
batizavam com os nomes de fraternidade e amor a comunidade de seus crimes. Agora, a violência,
por toda parte bloqueada, volta-se contra nós através de nossos soldados, interioriza-se e nos
possui. Começa a involução: o colonizado se recompõe e nós, fanáticos e liberais, colonos e
“metropolitanos”, nós nos decompomos. Já o furor e o medo estão nus; mostram-se a descoberto
nas “pexotadas” de Argel. Onde estão agora os selvagens? Onde está a barbárie? Não falta nada,
nem mesmo o tantã. As buzinas ritmam “Argélia Francesa” enquanto os europeus queimam vivos
os muçulmanos. Não faz muito tempo, lembra Fanon, psiquiatras em Congresso afligiam-se com a
criminalidade indígena. Esses homens se entrematam, diziam eles, isso não é normal; o córtex do
argelino deve ser subdesenvolvido. Na África Central outros estabeleceram que “o africano utiliza
muito pouco seus lobos frontais”. Esses sábios achariam interessante prosseguir hoje sua
investigação na Europa e particularmente entre os franceses. Porque nós também, de alguns anos
para cá, devemos estar sofrendo de preguiça frontal: Os Patriotas assassinam um pouco os seus
compatriotas; em caso de ausência, fazem ir pelos ares o porteiro e a casa. É apenas um início: a
guerra civil está prevista para o outono ou a próxima primavera. Nossos lóbulos, porém, parecem
em perfeito estado. Não será que, por não poder esmagar o indígena, a violência se concentra, se
acumula dentro de nós e procura uma saída? A união do povo argelino produz a desunião do povo
francês: em todo o território da ex-metrópole as tribos dançam e preparam-se para o combate. O
terror deixou a África para instalar-se aqui, porque há os furiosos que com toda a simplicidade
querem obrigar-nos a pagar com nosso sangue a vergonha de termos sido batidos pelo indígena e
há também os outros, todos os outros, igualmente culpado - após Bizerta, após os linchamentos de
setembro, quem foi à rua para dizer: chega? – mas bem mais sossegados: os liberais, os duros
dos duros da Esquerda mole. Neles também a febre sobe. E o mau humor. Mas que cagaço!
Mascaram a raiva sob mitos, sob ritos complicados; para retardar o ajuste de contas final e a hora
da verdade, puseram à nossa frente um Grande Feiticeiro cuja unção é manter-nos a todo custo na
escuridão. Inutilmente; proclamada por uns, recalcada pelos outros, a violência volteia: um dia
explode em Metz, no outro em Bordéus; passou por aqui, passará por ali; é o jogo do anel. Por
nossa vez, passo a passo, percorremos o caminho que leva ao indigenato. Mas para que nos
tornássemos inteiramente indígenas seria necessário que nosso solo fosse ocupado pelos antigos
colonizados e que morrêssemos de fome. Isto não acontecerá; não, é o colonialismo decaído que
nos possui, é ele que nos cavalgará dentro em breve, decrépito e soberbo; aí estão nosso zar,31
30
Figura importante na conquista e colonização da Argélia.
31
Dança cerimonial/religiosa do norte da África

48
49

nossa loa. E vós vos persuadireis, lendo o último capítulo de Fanon, que é preferível ser um
indígena no pior momento da miséria que um ex-colono. Não é bom que um funcionário da polícia
seja obrigado a torturar dez horas por dia; nessa marcha, seus nervos ficam abalados a menos que
se proíba aos algozes, em seu próprio interesse, de faze horas suplementares. Quando se quer
proteger, com o rigor das leis, o moral da Nação e do Exército, não é bom que esta desmoralize
sistematicamente aquela. Nem que um país de tradição republicana confie centenas de milhares
de seus jovens a oficiais golpistas. Não é bom, compatriotas, vós que conheceis todos os crimes
cometidos em nosso nome, não é realmente bom que não digamos nada a ninguém, nem sequer a
nossa alma, por temor de termos que nos julgar. A princípio ignoráveis, concedo, depois tivestes
dúvidas, presentemente sabeis, mas continuais calados. Oito anos de silêncio, isto degrada. E em
vão: hoje o sol ofuscante da tortura está no zênite, alumia o país inteiro; sob essa luz não há mais
um riso que soe justo, um rosto que não tria nossos desgostos e cumplicidades. Basta hoje que
dois franceses se encontrem para que haja um cadáver entre eles. E quando eu digo: um... A
França, outrora, era o nome de um país; tomemos cuidado para que não seja em 1961 o nome de
uma neurose.
Nós nos curaremos? Sim. A violência como a lança de Aquiles, pode cicatrizar as feridas que ela
mesma fez. Hoje estamos agrilhoados, humilhados, doentes de medo, arruinados. Felizmente isso
ainda não é suficiente para a aristocracia colonialista; ela não pode concluir sua missão
retardadora na Argélia enquanto não tiver primeiro acabado de colonizar os franceses. Recuamos
cada dia diante da luta, mas ficai certos de que não a evitaremos: os matadores precisam dela e
vão precipitar-se sobre nós e moer-nos de pau. Assim terminará o tempo dos feiticeiros e dos
fetiches: ou nos bateremos ou apodreceremos nas prisões. É o momento final da dialética:
condenais esta guerra mas ainda não ousais declarar-vos solidários com os combatentes
argelinos; eles vos obrigarão a lutar. Talvez então, levados à parede, desenfreareis enfim essa
violência nova que velhos crimes requentados suscitam em vós. Mas isto, como dizem, é outra
história. A do homem. Aproxima-se o tempo, estou certo disso, em que nós nos juntaremos
àqueles que a fazem.

(Setembro de 1961)

SARTRE, Jean-Paul. Prefácio. In FANON, Franz. Os condenados da terra. 2 ed. Trad. J. L. de


Melo. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1979, p. 3-21.

_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________

Trecho do Cap. I – Da violência – de Os condenados da terra

Franz Fanon

Libertação nacional, renascimento nacional, restituição da nação ao povo.


Commonwealth, quaisquer que sejam as rubricas utilizadas ou as novas fórmulas
introduzidas, a descolonização é sempre um fenômeno violento. Em qualquer nível que a
estudemos – encontros interindividuais, denominações novas dos clubes desportivos,
composição humana das cocktails-parties, da polícia, dos conselhos administrativos dos
bancos nacionais ou privados – a descolonização é simplesmente a substituição de uma
“espécie” de homens por outra “espécie” de homens. Sem transição, há substituição total,
completa, absoluta. Sem dúvida poder-se-ia igualmente mostrar o aparecimento de uma
nova nação, a instalação de um novo Estado, suas relações diplomáticas, sua orientação
política, econômica. Mas nós preferimos falar precisamente desse tipo e tabula rasa que
caracteriza de saída toda descolonização. Sua importância invulgar decorre do fato de
que ela constitui, desde o primeiro dia, a reivindicação mínima do colonizado. Para dizer a
verdade, a prova do êxito reside num panorama social transformado de alto a baixo. A
extraordinária importância de tal transformação é ser ela querida, reclamada, exigida. A

49
50

necessidade da transformação existe em estado bruto, impetuoso e coativo, na


consciência e na vida dos homens e mulheres colonizados. Mas a eventualidade dessa
mudança é igualmente vivida sob a forma de um futuro terrificante na consciência de uma
outra “espécie” de homens e mulheres: os colonos.

A descolonização, que se propõe mudar a ordem do mundo, é, está visto, um programa


de desordem absoluta. Mas não pode ser o resultado de uma operação mágica, de um
abalo natural ou de um acordo amigável. A descolonização sabemo-lo, é um processo
histórico, isto é, não poder ser compreendida, não encontra a sua inteligibilidade, não se
torna transparente para si mesma senão na exata medida em que se faz discernível o
movimento historicizante que lhe dá forma e conteúdo. A descolonização é o encontro de
duas forças congenitamente antagônicas que extraem sua originalidade precisamente
dessa espécie de substantificação que segrega e alimenta a situação colonial. Sua
primeira confrontação se desenrolou sob o signo da violência, e sua coabitação – ou
melhor, a exploração do colonizado pelo colono – foi levada a cabo com grande reforço
de baionetas e canhões. O colono e o colonizado são velhos conhecidos. E, de fato, o
colono tem razão quando diz que “os” conhece. É o colono que fez e continua a fazer o
colonizado. O colono tira a sua verdade, isto é, os seus bens, do sistema colonial.

A descolonização jamais passa despercebida porque atinge o ser, modifica


fundamentalmente o ser, transforma espectadores sobrecarregados de inessencialidade
em atores privilegiados, colhidos de modo quase grandiosos pela roda-vida da história.
Introduz no ser um ritmo próprio, transmitido por homens novos, uma nova linguagem,
uma nova humanidade. A descolonização é, em verdade, criação de homens novos. Mas
esta criação não recebe sua legitimidade de nenhum poder sobrenatural; a “coisa”
colonizada se faz no processo mesmo pelo qual se liberta.
Há portanto na descolonização a exigência de um reexame integral da situação colonial.
Sua definição pode, se queremos descrevê-la com exatidão, estar contida na frase bem
conhecida: “Os últimos serão os primeiros”. A descolonização é a verificação desta frase.
É por isto que, no plano da descrição toda descolonização é um triunfo.

Exposta em sua nudez, a descolonização deixa entrever através de todos os seus poros,
granadas incendiárias e facas ensangüentadas. Porque se os últimos devem ser os
primeiros isto só pode ocorrer em conseqüência de um combate decisivo e mortal entre
dois protagonistas. Esta vontade de fazer chegar os últimos à cabeça da fila, de os fazer
subir com cadência (demasiado rápida, dizem alguns) os famosos escalões que definem
uma sociedade organizada, só pode triunfar se se lançam na balança todos os meios,
inclusive a violência, evidentemente.

Não se desorganiza uma sociedade, por mais primitiva que seja, com tal programa se não
se está decidido desde o início, isto é, desde a formulação mesma deste programa, a
destruir todos os obstáculos encontrados no caminho. O colonizado que resolve cumprir
este programa, tornar-se o motor que o impulsiona, está preparado sempre para a
violência. Desde seu nascimento percebe claramente que este mundo estreito, semeado
de interdições, não pode ser reformulado senão pela violência absoluta.
O mundo colonial é um mundo dividido em compartimentos. Sem dúvida é supérfluo, no
plano da descrição, lembrar a existência de cidades indígenas e cidades européias, de
escolas para indígenas e escolas para europeus, como é supérfluo lembrar o apartheid na
África do Sul. Entretanto, se penetrarmos na intimidade desta divisão, obteremos pelo
menos o benefício de por em evidência algumas linhas de força que ela comporta. Este
enfoque do mundo colonial, de seu arranjo, de sua configuração geográfica, vai permitir-

50
51

nos delimitar as arestas a partir das quais se há de reorganizar a sociedade


descolonizada.
O mundo colonizado é um mundo cindido em dois. A linha divisória, a fronteira, é indicada
pelos quartéis e delegacias de polícia. Nas colônias o interlocutor legal e institui8cional do
colonizado, o porta-voz do colono e do regime de opressão é o gendarme ou o soldado.
Nas sociedades de tipo capitalista, o ensino religioso ou leigo, a formação de reflexos
morais transmissíveis de pai a filho, a honestidade exemplar de operários condecorados
ao cabo de cinqüenta anos de bons e leais serviços, o amor estimulado da harmonia e da
prudência, formas estéticas do respeito pela ordem estabelecida, criam em torno do
explorado uma atmosfera de submissão e inibição que torna consideravelmente mais leve
a tarefa das forças da ordem. Nos países capitalistas, entre o explorado e o poder
interpõe-se uma multidão de professores de moral, de conselheiros, de “desorientadores”.
Nas regiões coloniais, ao contrário, o gendarme e o soldado, por sua presença imediata,
por suas intervenções diretas e freqüentes mantêm contacto com o colonizado e o
aconselham a coronhadas ou com explosões de napalm, a não se mexer. Vê-se que o
intermediário não torna mais leve a opressão, não dissimula a dominação. Exibe-as,
manifesta-as com a boa consciência das forças da ordem. O intermediário leva a violência
à casa e ao cérebro do colonizado.

A zona habitada pelos colonizados não é complementar da zona habitada pelos colonos.
Estas duas zonas se opõem mas não em função de uma unidade superior. Regidas por
uma lógica puramente aristotélica, obedecem ao princípio da exclusão recíproca: não há
conciliação possível, um dos termos é demais. A cidade do colono é uma cidade sólida,
toda de pedra e ferro. É uma cidade iluminada, asfaltada, onde os caixões de lixo
regurgitam de sobras desconhecidas, jamais vistas, nem mesmo sondadas. Os pões do
colono nunca estão à mostra, salvo talvez no mar, mas nunca ninguém está bastante
próximo deles. Pés protegidos por calçados fortes, enquanto que as ruas de sua cidade
são limpas, lisas, sem buracos, sem seixos. A cidade do colono é uma cidade saciada,
indolente, cujo ventre está permanentemente repleto de boas coisas. A cidade do colono
é uma cidade de brancos, de estrangeiros.
A cidade do colonizado, ou pelo menos a cidade indígena, a cidade negra, a medina32, a
reserva, é um lugar mal afamado, povoado de homens mal afamados. Aí se nasce não
importa onde, não importa como. Morre-se não importa onde, não importa de quê. É um
mundo sem intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre
as outras. A cidade do colonizado é uma cidade faminta, faminta de pão, de carne, de
sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade acocorada, uma cidade
ajoelhada, uma cidade acuada. É uma cidade de negros, uma cidade de árabes. O olhar
que o colonizado lança para a cidade do colono é um olhar de luxúria, um olhar de inveja.
Sonhos de posse. Todas as modalidades de posse: sentar-se à mesa do colono, deitar-se
no leito do colono, com a mulher deste, se possível. O colonizado é um invejosos. O
colono sabe disto; surpreendendo-lhe o olhar, constata amargamente mas sempre alerta:
“Eles querem tomar o nosso lugar”. É verdade, não há um colonizado que não sonhe pelo
menos uma vez por dia em se instalar o lugar do colono.
Este mundo dividido em compartimentos, este mundo cindido em dois, é habitado por
espécies diferentes. A originalidade do contexto colonial reside em que as realidades
econômicas, as desigualdades, a enorme diferença dos modos de vida não logram nunca
mascarar as realidades econômicas, as desigualdades, a enorme diferença dos modos de
vida não logram nunca mascarar as realidades humanas. Quando se observa em sua
imediatidade o contexto colonial, verifica-se que o que retalha o mundo é antes de mais
nada o fato de pertencer ou não a tal espécie, a tal raça. Nas colônias a infra-estrutura
32
Cidade árabe ao lado da qual se erguem edificações para europeus

51
52

econômica é igualmente uma superestrutura. A causa é conseqüência: o indivíduo é rico


porque é branco, é branco porque é rico. É pior isso que as análises marxistas devem ser
sempre ligeiramente distendidas cada vez que abordamos o problema colonial. Não há
nem mesmo conceito de sociedade pré-capitalista, bem estudado por Marx, que não
exigisse ser repensado aqui. O servo é de essência diferente da do cavaleiro, mas uma
referência ao direito divino é necessária para legitimar essa diferença estatutária. Nas
colônias o estrangeiro vindo de qualquer parte se impôs com o auxílio dos seus canhões
e das suas máquinas. A despeito do sucesso da domesticação, malgrado a usurpação, o
colono continua sendo um estrangeiro. Não são as fábricas nem as propriedades nem a
conto no banco que caracterizam em primeiro lugar a “classe dirigente”. A espécie
dirigente é antes de tudo a que vem de fora, a que não se parece com os autóctones, “os
outros”.

A violência que presidiu ao arranjo do mundo colonial que ritmou incansavelmente a


destruição das formas sociais indígenas, que arrasou completamente os sistemas de
referências da economia, os modos da aparência e do vestuário, será reivindicada e
assumida pelo conolnizado no momento em que, decidindo ser a história em atos, a
massa colonizada se engolfar nas cidades inrterditas. Fazer explodir o mundo colonial é
doravante uma imagem de ação muito clara, muito compreensível e que pode ser
retomada por cada um dos indivíduos que constituem o povo colonizado. Desmanchar o
mundo colonial não significa que depois da abolição das fronteiras se vão abrir vias de
passagem entre as duas zonas. Destruir o mundo colonial é, nem mais nem menos, abolir
uma zona, enterrá-la profundamente no solo ou expulsá-la do território.

FANON, Franz. Os condenados da terra. 2 ed. Trad. J. L. de Melo. Rio de Janeiro:


Civilização brasileira, 1979, p. 25-30.

52
53

(Fragmento de ensaio) - Eu e o outro – O Invasor ou


Em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto

Manuel Rui

Quando chegaste mais velhos contavam estórias. Tudo estava no seu lugar. A água. O
som. A luz. Na nossa harmonia. O texto oral. E só era texto não apenas pela fala mas
porque havia árvores, paralelas sobre o crepitar de braços da floresta. E era texto porque
havia gesto. Texto porque havia dança. Texto porque havia ritual. Texto falado ouvido e
visto. É certo que podias ter pedido para ouvir e ver as estórias que os mais velhos
contavam quando chegastes! Mas não! Preferiste disparar os canhões.

A partir daí, comecei a pensar que tu não eras tu, mas outro, por me parecer difícil aceitar
que da tua identidade fazia parte esse projeto de chegar e bombardear o meu texto. Mas
tarde viria a constatar que detinhas mais outra arma poderosa além do canhão: a escrita.
E que também sistematicamente no texto que fazias escrito intentavas destruir o meu
texto ouvido e visto. Eu sou eu e a minha identidade nunca a havia pensado integrando a
destruição do que não me pertence.

Mas agora sinto vontade de me apoderar do teu canhão, desmonta-lo peça a peça,
refazê-lo e disparar ao contra o teu texto não na intenção de o liquidar mas para
exterminar dele a parte que me agride. Afinal assim identifico-me sempre eu/até posso
ajudar-te à busca de uma identidade em que sejas tu quando eu te olho/em vez de seres
o outro.

Mas para fazer isto eu tenho que transformar e transformo-me. Assim na minha oratura
para além das estórias antigas na memória do tempo eu vou passar a incluir-te. Vou
inventar novas estórias. Por exemplo o espantalho silenciosos que coloco na lavra para
os pássaros não me comerem a massambala passa a ser o outro que não fazia parte do
texto. Também vou substituir a surucucu cobra maldita. Surucucu passa a ser o outro. E
cobra no meu texto inventado agora passa a ser bela e pacífica se morder o outro com o
seu veneno mortal.

E agora o meu texto se ele trouxe a escrita? O meu texto tem que se manter assim
oraturizado e oraturizante. Se eu perco a cosmicidade do rito perco a luta. Ah! Não tinha
reparado. Afinal isto é uma luta. E eu não posso retirar do meu texto a arma principal. A
identidade. Se o fizer deixo de ser eu e fico outro, aliás como o outro quer. E agora? Vou
passar o meu texto oral para a escrita? Não. É que a partir do momento em que eu o
transferir para o espaço da folha branca, ele quase morre. Não tem árvores. Não tem
ritual. Não tem as crianças sentadas segundo o quadro comunitário estabelecido. Não
tem som. Não tem dança. Não trem braços. Não tem olhos. Não tem bocas. O texto são
bocas negras na escrita quase redundam num mutismo sobre a folha branca.

O texto oral tem vezes que só pode ser falado por alguns de nós. E há palavras que só
alguns de nós podem ouvir. No texto escrito posso liquidar este código aglutinador. Outra
arma secreta para combater o outro e impedir que ele me descodifique para depois me
destruir.

Como escrever a história, o poema, o provérbio sobre a folha branca? Saltando pura e
simplesmente da fala para a escrita e submetendo-me ao rigor do código que a escrita já
composta? Isso não. No texto oral já disse não toco e não o deixo minar pela escrita arma

53
54

que eu conquistei ao outro. Não posso matar o meu texto com a arma do outro. Vou é
minar a arma do outro com todos os elementos possíveis do meu texto. Invento outro
texto. Interfiro, descrevo para que eu conquiste a partir do instrumento escrita um texto
escrito meu, da minha identidade. Os personagens do meu texto têm de se movimentar
como no outro texto inicial. Têm de cantar. Dançar. Em suma, temos de ser nós. “Nós
mesmos”. Assim reforço a identidade com a literatura.

Só que agora porque o meu espaço e tempo foi agredido para o defender por vezes
dessituo do espaço e tempo e tempo mais total. O emendo não sou eu só. O mundo
somos nós e os outros. E quando a minha literatura transborda a minha identidade é arma
de luta e deve ser ação de interferir no mundo total para que se conquiste então o mundo
universal.

Escrever então é viver.


Escrever assim é lutar.

Literatura e identidade. Princípio e fim. Transformador. Dinâmico. Nunca estático para que
além da defesa de mim me reconheça sempre que sou eu a partir de nós também para a
desalienação do outro até que um dia virá e “os portos do mundo sejam portos de todo o
mundo”.

Até lá não se espantem. É quase natural que eu escreva também ódio por amor ao amor!

(São Paulo, 23/05/1985)

RUI, Manuel. Eu e o outro – O Invasor ou Em poucas três linhas uma maneira de pensar
o texto. In MEDINA, Cremilda. Sonha Mamana África. São Paulo: Epopéia, 1987.

54
55

AGOSTINHO NETO
ASPIRAÇÃO CRIAR
Ainda o meu canto dolente
e a minha tristeza
no Congo, na Geórgia, no Amazonas Criar criar
criar no espírito criar no músculo criar no nervo
Ainda criar no homem criar na massa
o meu sonho de batuque em noites de luar criar
criar com os olhos secos
ainda os meus braços
ainda os meus olhos
ainda os meus gritos Criar criar
sobre a profanação da floresta
Ainda o dorso vergastado sobre a fortaleza impúdica do chicote
o coração abandonado criar sobre o perfume dos troncos serrados
a alma entregue à fé criar
ainda a dúvida criar com os olhos secos

E sobre os meus cantos Criar criar


os meus sonhos gargalhadas sobre escárneo da palmatória
os meus olhos coragem na ponta da bota roceiro
os meus gritos força no esfrangalho das portas violentadas
sobre o meu mundo isolado firmeza no vermelho sangue da insegurança
o tempo parado criar
criar com os olhos secos
Ainda o meu espírito
ainda o quissange Criar criar
a marimba estrelas sobre o camartelo guerreiro
a viola paz sobre o choro das crianças
o saxofone paz sobre o suor sobre a lágrima do contrato
ainda os meus ritmos de ritual orgíaco paz sobre o ódio
criar
Ainda a minha vida criar paz com os olhos secos
oferecida à Vida
ainda o meu desejo Criar criar
criar liberdade nas estradas escravas
Ainda o meu sonho algemas de amor nos caminhos paganizados do
o meu grito amor
o meu braço sons festivos sobre o balanceio dos corpos em
a sustentar o meu Querer formas simuladas
E nas sanzalas
criar
nas casas
criar amor com os olhos secos.
no subúrbios das cidades
para lá das linhas
nos recantos escuros das casas ricas
onde os negros murmuram: ainda

O meu desejo
transformado em força
inspirando as consciências desesperadas.

(Sagrada esperança)

55
56

AGOSTINHO NETO

56
57

O CAMINHO DAS ESTRELAS MUSSUNDA AMIGO

Seguindo
o caminho das estrelas Para aqui estou eu
pela curva ágil do pescoço da gazela Mussunda amigo
sobre a onda sobre a nuvem Para aqui estou eu.
com as asas primaveris da amizade Contigo.
Simples nota musical Com a firme vitória da tua alegria
indispensável átomo da harmonia e da tua consciência
partícula - o ió Kalunga ua mu bangele-le-lelé!
germe o ió Kalunga ua mu bangele-le-lelé.
cor Lembras-te?
na combinação múltipla do humano Da tristeza daqueles tempos
Preciso e inevitável em que íamos
como o inevitável passado escravo comprar mangas
através das consciências e lastimar o destino
como o presente das mulheres da Funda,
Não abstrato dos nossos cantos de lamento,
incolor dos nossos desesperos
entre idéias sem cor e das nuvens dos nossos olhos.
sem ritmo Lembras-te?
entre as arritmias do irreal Para aqui estou eu
inodoro Mussunda amigo
entre as selvas desaromatizadas A vida, a ti a devo
de troncos sem raiz à mesma dedicação, ao mesmo amor
Mas concreto com que me salvaste do abraço
vestido do verde da jibóia
do cheiro novo das florestas depois da à tua força
chuva que transforma os destinos dos homens.
da seiva do raio do trovão A ti
as mãos amparando a germinação do riso amigo Mussunda, a ti devo a vida.
sobre os campos de esperança E escrevo
A liberdade nos olhos versos que tu não entendes!
o som nos ouvidos Compreendes a minha angustia?
das mãos ávidas sobre a pele do tambor Para aqui estou eu
num acelerado e claro ritmo Mussunda amigo
de Zaires Caláaris montanhas luz escrevendo versos que tu não entendes.
vermelhas de fogueiras infinitas nos Não era isto
capinzais violentados o que nós queríamos, bem sei
harmonia espiritual de vozes tam-tam mas no espírito e na inteligência
num ritmo claro de África nós somos.
Assim Nós somos
o caminho das estrelas Mussunda amigo
pela curva ágil do pescoço da gazela Nós somos!
para a harmonia do mundo. Inseparáveis
caminhando ainda para o nosso sonho.

57
58

AIRES DE ALMEIDA SANTOS

58
59

A MULEMBA SECOU MEU AMOR DA RUA ONZE

A mulemba secou. Tantas juras nos trocamos,


No barro da rua, Tantas promessas fizemos,
Pisadas Tantos beijos roubamos,
Por toda a gente, Tantos abraços nos demos.
Ficaram as folhas
Secas, amareladas Meu amor da Rua Onze,
A estalar sob os pés de quem passava. Meu amor da Rua Onze,
Já não quero
Depois o vento as levou... Mais mentir.

Como as folhas da mulemba Meu amor da Rua Onze,


Foram-se os sonhos gaiatos Meu amor da Rua Onze,
Dos miúdos do meu bairro. Já não quero
Mais fingir.
(De dia,
Espalhavam visgo nos ramos Era tão grande e tão belo
E apanhavam catituis, Nosso romance de amor
Viúvas, siripipis Que ainda sinto o calor
Que o Chiquito da Mulemba Das juras que nos trocamos.
Ia vender no Palácio
Numa gaiola de bimba. Era tão bela, tão doce
De noite, Nossa maneira de amar
Faziam roda, sentados, Que ainda pairam no ar
A ouvir, As promessas que fizemos.
De olhos esbugalhados
A velha Jaja a contar Nossa maneira de amar
Histórias de arrepiar era tão doida, tão louca
Do feiticeiro Catimba.) Qu'inda me queimam a boca
Os beijos que nos roubamos.
Mas a mulemba secou
E com ela, Tanta loucura e doidice
Secou também a alegria Tinha o nosso amor desfeito
Da miudagem do bairro: Que ainda sinto no peito
Os abraços que nos demos.
O Macuto da Ximinha
Que cantava todo o dia E agora
Já não canta. Tudo acabo.
O Zé Camilo, coitado, Terminou
Passa o dia deitado Nosso romance.
A pensar em muitas coisas.
E o velhote Camalundo, Quando te vejo passar
Quando passa por ali, Com o teu andar
Já ninguém o arrelia, Senhoril,
Já mais ninguém lhe assobia, Sinto nascer
Já faz a vida em sossego.
E crescer
Como o meu bairro mudou, Uma saudade infinita
Como o meu bairro está triste Do teu corpo gentil
Porque a mulemba secou... De escultura
Cor de bronze,
Só o velho Camalundo Meu amor da Rua Onze.
Sorri ao passar por lá!...

59
60

ANTONIO JACINTO

60
61

O GRANDE DESAFIO

Naquele tempo
A gente punha despreocupadamente os livros no chão
ali mesmo naquele largo - areal batidos dos caminhos passados
os mesmos trilhos de escravidões
onde hoje passa a avenida luminosamente grande
e com uma bola de meia
bem forrada de rede
bem dura de borracha roubada às borracheiras do Neves
em alegre folguedo, entremeando caçambulas
... a gente fazia um desafio...
O Antoninho
Filho desse senhor Moreira da taberna
Era o capitão
E nos chamava de ó pá,
Agora virou doutor
(cajinjeiro como nos tempos antigos)
passa, passa que nem cumprimenta
- doutor não conhece preto da escola.
O Zeca guarda-redes
(pópilas, era cada mergulho!
Aí rapage - gritava em delírio a garotada)
Hoje joga num clube da Baixa
Já foi a Moçambique e no Congo
Dizem que ele vai ir em Lisboa
Já não vem no Musseque
Esqueceu mesmo a tia Chiminha que lhe criou de pequenino
nunca mais voltou nos bailes de Don´Ana, nunca mais
Vai no Sportingue, no Restauração
outras vezes no choupal
que tem quitatas brancas

Mas eu lembro sempre o Zeca pequenino


O nosso saudoso guarda-redes!
Tinha também
tinha também o Velhinho, o Mascote, O Kamauindo...
- Coitado do Kamauindo!
Anda lá na casa da Reclusão
(desesperado deu com duas chapadas na cara
do senhor chefe
naquele dia em que lhe prendeu e lhe disparatou a mãe);
- O Velhinho vive com a Ingrata
drama de todos os dias
A Ingrata vai nos brancos receber dinheiro
E traz pro Velhinho beber;
- E o Mascote? Que é feito do Mascote?
- Ouvi dizer que foi lá em S. Tomé como contratado.

É verdade, e o Zé?
Que é feito, que é feito?
Aquele rapaz tinha cada finta!
Hum... deixa só!
Quando ele pegava com a bola ninguém lhe agarrava

61
62

ANTONIO JACINTO

CARTA DE UM CONTRATADO

Eu queria escrever-te uma carta


amor,
uma carta que dissesse Eu queria escrever-te uma carta
deste anseio amor,
de te ver que a não lesses sem suspirar
deste receio que a escondesses de papai Bombo
de te perder que a sonegasses a mamãe Kiesa
deste mais que bem querer que sinto que a relesses sem a frieza
deste mal indefinido que me persegue do esquecimento
desta saudade a que vivo todo entregue... uma carta que em todo o Kilombo
outra a ela não tivesse merecimento...
Eu queria escrever-te uma carta
amor, Eu queria escrever-te uma carta
uma carta de confidências íntimas, amor,
uma carta de lembranças de ti, uma carta que ta levasse o vento que passa
de ti uma carta que os cajus e cafeeiros
dos teus lábios vermelhos como tacula que as hienas e palancas
dos teus cabelos negros como dilôa que os jacarés e bagres
dos teus olhos doces como macongue pudessem entender
dos teus seios duros como maboque para que se o vento a perdesse no caminho
do teu andar de onça os bichos e plantas
e dos teus carinhos compadecidos de nosso pungente sofrer
que maiores não encontrei por aí... de canto em canto
de lamento em lamento
Eu queria escrever-te uma carta de farfalhar em farfalhar
amor, te levassem puras e quentes
que recordasse nossos dias na capôpa as palavras ardentes
nossas noites perdidas no capim as palavras magoadas da minha carta
que recordasse a sombra que nos caía dos que eu queria escrever-te amor...
jambos
o luar que se coava das palmeiras sem fim Eu queria escrever-te uma carta...
que recordasse a loucura
da nossa paixão Mas, ah, meu amor, eu não sei compreender
e a amargura da nossa separação... por que é, por que é, por que é, meu bem
que tu não sabes ler
e eu - Oh! Desespero - não sei escrever
também!

(Poemas)

62
63

ANTONIO JACINTO
MONANGAMBA

Naquela roça grande não tem chuva


é o suor do meu rosto que rega as Quem?
plantações:
Quem faz o milho crescer
Naquela roca grande tem café maduro e os laranjais florescer
e aquele vermelho-cereja - Quem?
são gotas do meu sangue feitas seiva.
Quem dá dinheiro para o patrão comprar
O café vai ser torrado maquinas, carros, senhoras
pisado, torturado, e cabeças de pretos para os motores?
vai ficar negro, negro da cor do contratado.
Quem faz o branco prosperar,
Negro da cor do contratado! ter barriga grande - ter dinheiro?
- Quem?
Perguntem às aves que cantam,
aos regatos de alegre serpentear E as aves que cantam,
e ao vento forte do sertão: os regatos de alegre serpentear
e o vento forte do sertão
responderão:
Quem se levanta cedo? quem vai à tonga? - "Monangambééé..."
Quem traz pela estrada longa
a tipóia ou o cacho de dendém? Ah! Deixem-me ao menos subir às
Quem capina e em paga recebe desdém palmeiras
fuba podre, peixe podre, Deixem-me beber maruvo, maruvo
panos ruins, cinqüenta angolares e esquecer diluído nas minhas bebedeiras
"porrada se refilares"?
- "Monangambééé..."

(Poemas)

63
64

ARNALDO SANTOS

64
65

A MENINA VITÓRIA

Transferiram-no no meio do ano letivo para o colégio do Pucha Beatas, por causa dos
piolhos da Escola 8 e da prosódia, em que os professores o achavam muito fraco.
O Sr. Sílvio Marques, embora pouco exigente consigo em relação à pronúncia – trocava
amiúde os vv pelos bb -, era no entanto muito cuidadoso a fechar as vogais. Ralhava severamente
o Gigi sempre que lhe ouvisse algum desconchavo, ou então abria-lhe muito os olhos, o que
significava o mesmo. Também os amigos dele, aos domingos, debaixo da mulembeira e entre uma
ou outra jogada de sueca, comentavam as incorreções do Gigi. E sibilavam (alguns eram da Beira
Alta), lamentando que a pronúncia do garoto se estragava, que era preciso afasta-lo da companhia
dos criados e dos colegas dos musseques. Todos concordavam que era pena, porque ele já se
podia considerar como um branco, embora D. Angelina fosse mulata, mas enfim... era senhora de
princípios. O Sr. Sílvio ouvia-os atento, w considerava conscienciosamente a crítica, porque afinal
se tratava do futuro do seu secretário, como dizia referindo-se ao filho.
Assim, embora com sacrifício, porque o colégio era caro, a transferência teve que se fazer.
Mas valia a pena, anunciara a mão às vizinhas. “Aqueles meninos muito arranjadinhos, levados
pela mão dos criados, e alguns até de carro...! Que diferença!” – exclamava, não escondendo a
vaidade, no dia em que o levou ao colégio.
Gigi ganhou roupa nova, uma sacola bordada e muitos conselhos de D. Angelina, que se
afligia com a sua aparência. Mas da mudança mesmo o que o Gigi mais gostou foi dos passeios na
moto com carro lateral, em que o pai o levava ao colégio. O assento era tão baixo que, pelo trajeto,
ele podia apanhar pequenos tufos de capim. Isso passou a ser a sua única alegria, porque o Gigi
estranhou o colégio.
A professora da 3ª classe, a menina Vitória, era uma mulatinha fresca e muito empoada,
que tinha tirado o curso na Metrópole. /Renovava o pó-de-arroz nas faces sempre que tivesse um
momento livre, e durante as aulas gostava de mergulhar os dedos nos cabelos alourados e
sedosos de uns meninos que se sentavam nas primeiras filas.
Olhou-o com desconfiança e depois do primeiro exame mandou-o para uma carteira do
fundo da aula, junto de um menino com cara de puco, a quem chamavam cafuzo, por ser muito
escuro. Mas o menino cafuzo chamava-se Matoso, o que, de início, pareceu ao Gigi insuficiente
para justificar o seu mutismo. Vergado na cadeira, não tirava os olhos do livro, nem mesmo quando
a menina Vitória se referia a ele, quase sempre com desprezo, ao recriminar outro aluno. “Pareces
o Matoso a falar...”, “Sujas a bata como o Matoso...”, “Cheiras a Matoso...” – e ele guardava-se
cada vez mais à carteira, transido por aqueles comentários impiedosos.
Fora também transferido de Escola 8 e, mesmo no dia da apresentação, a menina Vitória
não escondera a sua má impressão, com alusões veladas à sua bata de brim grosso. Porém o seu
azedume cresceu quando, tempos depois, o Matoso lhe responde distraidamente em quimbundo.
“O quê, julgas que eu sou da tua laia...!?” Daí por diante o seu nome era jogado pela aula com
crueza, criando um símbolo maldito, que o Gigi mais tarde, atemorizado, reconheceu facilmente.
Era uma imagem familiar. Estava muito perto de si e dos seus companheiros do Kinaxixe. Mas por
que ele irritava tanto a professora e lhe merecia aquela troça? O Gigi retraiu-se.
Olhava os colegas de soslaio, inseguro. Eles iriam troçar também dele, da sua bata modesta de
brim, dos seus sapatos puídos, quase rotos? E não respondia quando da menina Vitória o
chamava à lição, receando um despropósito que o identificasse com o Matoso. “Vêm para aqui
neste estado e depois querem milagres!” – suspirava a professora. Era com certeza do método de
ensino da Escola 8, ou da sua influência perniciosa. Mas tolerava-o lá no fundo da aula. E o Gigi
diminuía-se ainda mais para não se tornar notado, esforçando-se num mimetismo impotente por
imitar os gestos dos meninos da baixa. Tenho que ser como eles, refletia no recreio, afastando-se
dos alunos da 4ª classe, que eram, na maioria, os seus companheiros de vadiação do Kinaxixe.
Ficava então a jogar os estames dos botões que caíam das acácias, e reprimia a vontade de trepar
ao cima delas, para colher os botões compridos de estames longos e curvos, que venciam todos os
outros.
Nas suas redações vagueava então tímido sobre as coisas, com medo de poisar nelas,
decorava nomes das árvores, das aves, dos jogos descritos no seu livro de leitura. Procurava
esquecer o colorido vivo das penas dos maracachões, dos gungos, dos rabos-de-junco que ele
perseguia na floresta e cujo canto escutava. Imitava passivamente a prosa certinha do gosto da
menina Vitória. Esvaziava-a das pequeninas realidades insignificantes que ele vivia, das suas

65
66

BOAVENTURA CARDOSO
NOSTEMPO DE MIÚDO

CARDOSO, Boaventura. Dizanga dia Muenhu. São Paulo: Ática, 1982, p. 27-30

Manecas na baliza imobilizou o avanço. Bola marchando, Pedrito puxa para Lito, este corre já
em direção à linha divisória, entretanto, o sete recebe-lhe o esférico, finta brasadamentc,
tenta distribuir o jogo, corta agora Nené Gordo, miá, Cachaça dono do esférico, vai agora!
remata rasteiro para Zeca em progressão, estica para o lado direito e a bola lateralmente
fugindo. Pontapé no canto. Zero zero, tabuada em branco. Pernas velozes pisávamos espaço
retangular, suarentas catingas, transpirávamos, nós camisolados, eles costas reluzentes. Na
corrida outra vez, jogada agora no campo de lá, avança Totoxe (tem Xaxa - do nome dele
outro), corta, miá, miá, mialalá*, Paulo aparecendo leva faiscadamente o esférico, atenção!,
jogada lixada, defensiva formada na batiza azarenta, e remata por cima da trave! Jogo
renhido no Campo da Companhia Indígena. Trumuno* com altos e baixos, ninguém que tinha
tempo para descansar só. Bola que andava já, jogo ainda em campo metade, o cinco domi-
nando a situação, tenta passar para o oito, surge Paulo, não consegue, jogo então veio no
nosso campo. Bucho se defende, Quinzé secunda, faz uma revienga*, miá, dá para Rataças.
É pontapé de baliza. Maxinde contra Quinze de Agosto. Defensiva preparada, Zeca capitão
da turma na voz de comando. Suor banhando corpos movimentados. Rasteiradamente a bola
corre a nos trazer azar, mas surge Manecas ... Boa defesa!
Jogávamos esquecidos de tudo, até dos exames que estavam vizinhos. Traquinice nos tempo
de miúdo. Paramos e olhamos. Respiração batucante ainda. Manecas traz a bola! -
vozeamos. Guardião na fuga rápida com o esférico de borracha. A interrogação prendia
nossos pensamentos. Ó Manecas, traz a bola! - vozeamos juntamente. Olhares de pergunta
nos outros. Rataças, corpo mosquito, dá também de correr. Corre! Lhe agarra mesmo! -
dissemos no íntimo.de cada um. Nos enganamos. Pedrito, Lito, Totoxe, quê que há?, também
no ensaio do passo corrido. Companhia Indígena toda, cinturões desapertados, eué!, no
cerco do retângulo. Vão nos agarrar!
Manecas foi o primeiro quem lhes topou na preparação do cerco. Desafio suspenso no
campo dá desafio fora do jogo, sem penalidade. A velocidade nos pés era grande, nem
mesmo que compreendíamos só como é que estávamos a correr então. Nené Gordo
empalitava maravilhosamente na berrida. Muros altos eram terra plana em nossas pernas
correndo. Soldados disparados atrás de nós, cavalgando metros.
Que que foi, meninos? - Tia Cristina pegou susto.
A resposta ninguém que dava. Nem já só fala para falar. Nada. Cada um na busca de lugar
seguro. Ouvimos então as vozes e os passos soldadescos. Aí o coração que se ia lixando.
No entendimento da nossa aflição, Tia Cristina lhes esperou mesmo lá fora. Aqui? Não,
senhor, não vi meninos entrar.
Traquinice nos tempo das férias? Eh! Se vos conto, me pagas quê então? Bem. Era uma
vez ... , não me lembro mais. Ih! Não faz mais truques, pá. Conta lá, pá. Gente de paz, é a
história que vou pôr. Aconteceu nos tempo das confusões um dia; palavra d'honra. Ninguém
si ri.
Já nos tinham avisado. Seis horas recolher. Patrulha atirar só. Sessenta e um * quente.
Cuidado! Pimentel barbudo sanguinário, olhos na mira fúnebre. Sô Rocha nacionalista fogoso
já lhe mataram então. Cuidado! Seis horas recolher. Patrulha atirar só. Sessenta e um
quente.
Vínhamos andando assustados. Nove horas da noite, a corneta tocara fazia tempo. Maxinde-

66
67

Katepa parecia tinha distância. Na porta d'armas ainda que passamos bem. Sentinela só nos
olhou mau. Fomos andando, andando. Silêncio, ninguém que passava só. Capim alto era
surpresa escondida no caminho da noite.
Zeca (pai dele lhe chamavam Canhoto) me deu coragem: "Se nos perguntarem quem vem aí,
vamos falar é gente de paz. Em Luanda uma vez ma safei assim". Nem lhe ouvi mais. Podia?
O medo sempre comigo.
Caminho andado com a vizinhança do perigo. Vontade de falar perdemos. Ouvíamos só
nossos passos e o vento cortante nas árvores nos punha susto. Segurei na mão de Zeca.
Cuidado! Sessenta e um quente. Seis horas recolher. Vamos morrer! Quem vem ai? - a
pergunta sinistra que esperávamos. Paramos. Quietos. Nem mais um passo. Zeca falou
baixo: "Vamos falar é gente de paz. Anda!" Fala está onde então? Minhas pernas
desmaiando. Quem vem ai? Arma. fogando já quase. Coração frio, sangue glacial. Encontro
com a morte certa. Gente de paz!!! - Zeca gritou com toda a força. Não queria morrer.
Pópilas* a vida é só uma! Em sentido. Ali. Estávamos. Quietos. Nem mais um passo. Vamos
morrer! Minha mão na mão de Zeca. Selagem fraterna. "Nossa mãe está doente, fomos na
farmácia" - o guarda queria saber adonde vínhamos. Foi Zeca que conseguiu responder.
"Meninos, tenham cuidado, não são horas de andar. Podem passar." Chui* ainda tinha
coração dele bom. Nossa sorte. Começamos então a sentir a vida renovada. Andamos só um
bocado e a morte outra vez ali perto. Paramos. Nem mais um passo. Nosso guarda atira? -
bala na câmara, ximba perguntou. Nosso guarda atira?! O guarda não estava ouvir. Vamos
morrer desta vez. Nosso guarda atira? Bala na câmara faltava pouco para sair a nos matar. A
morte e a vida em luta. Já nos tinham avisado. Sessenta e um quente. Seis horas recolher.
"Não, deixa passar!" Estávamos safos. Corrida louca começamos já. Mas ... no escuro da
noite ameaçando furar nossas barrigas, uma baioneta. Zeca bravou: "Nosso guarda já nos
disse para passar, ximba * dum raio, mé". "Eu ximba? Eu ximba?" - a mão da morte fazia-nos
recuar. De repente alguém gritou a ordem de passagem. Nem já as poças d'água chuvosa se
víamos. Era só correr. Sempre em frente.
Já nos tinham avisado. Seis horas recolher. Patrulha atirar só. Sessenta e um quente.
Cuidado! Pimentel barbudo sanguinário, olhos na mira fúnebre. Sô Rocha nacionalista fogoso
já lhe mataram. Cuidado! Seis horas recolher. Sessenta e um quente.

Vocabulário

Chui - policial
Miá, miá, mialalá - torcida (N. E.)
Pópilas - exclamação equivalente a "ora bolas!" (N. E.)
Revienga - finta, drible (N. E.)
Sessenta e um – 1961, ano em que tiveram início as ações armadas nacionalistas contra
o colonialismo (N.E.)
Trumuno - desafio de futebol (N. E.)
Ximba (cipaio)– policial angolano a serviço da repressão colonial portuguesa (N.E.)

67
68

JOSÉ DA SILVA MAIA FERREIRA


À MINHA TERRA
(No momento de avistá-la depois de uma viagem)
Dedicação
Ao meu compatriota O Ilmo. Sr. Joaquim Luis Bastos

De leite e mar – lá desponta Navega pois, meu madeiro,


Entre as vagas sussurando Nestas águas de esmeraldas,
A terra em que cismando Vai junto do monte às faldas
Vejo ao longe branquejar! Nessas praias a brilhar!
É baça e proeminente, Vai mirar a natureza,
Tem da África o sol ardente, Da minha terra a beleza,
Que sobre a areia fervente Que é singela, e sem fereza
Vem-me a mente acalentar. Nesses plainos de além-mar

Debaixo do fogo intenso, Da leite o mar, - eis desponta


Onde só brilha formosa, Lá na estrema do horizonte,
Sinto na alma fervorosa Entre as vagas – alto monte
O desejo de a abraçar: Da minha terra natal;
É minha terra querida, É pobre, - mas tão formosa
Toda da alma, - toda-vida, - Em alcantis primorosa,
Que entre gozos foi fruídas Quando brilha radiosa,
Sem temores, nem pesar. No mundo não tem igual!

Bendita sejas, ó terra,


Minha terra primorosa,
Despe as galas – que vaidosa
Ante mim queres mostrar:
Mesmo simples tens fulgores, Espontaneidades da minha alma
Os teus montes têm primores, 1949
Que às vezes falam de amores
A quem os sabe adorar!

68
69

PAULA TAVARES
(SEM TÍTULO) A MANGA

Fruta do paraíso
As coisas delicadas tratam-se com cuidado companheira dos deuses
(Filosofia cabinda) as mãos
tiram-lhe a pele
dúctil
como, se de mantos
Desossaste-me se tratasse
cuidadosamente surge a carne chegadinha
inscrevendo-me fio a fio
no teu universo ao coração
como uma ferida leve
uma prótese perfeita morno
maldita necessária mastigável
conduziste todas as minhas veias o cheiro permanece
para que desaguassem para que a encontrem
nas tuas os meninos
sem remédio pelo faro
meio pulmão respira em ti
o outro, que me lembre
mal existe

Hoje levantei-me cedo


pintei de tacula e água fria
o corpo aceso
não bato a manteiga
não ponho o cinto

VOU (Ritos de passagem, 1985)


para o sul saltar o cercado

(Ritos de passagem, 1985)

69
70

PAULA TAVARES
A MÃE E A IRMÃ AMARGOS COMO OS FRUTOS

A mãe não trouxe a irmã pela mão


viajou toda a noite sobre os seus próprios "Dizes-me coisas tão amargas como os
[passos frutos..." Kwanyama
toda a noite, esta noite, muitas noites
A mãe vinha sozinha sem o cesto e o peixe
[fumado Amado, porque voltas
a garrafa de óleo de palma e o vinho fresco com a morte nos olhos
[ das espigas vermelhas e sem sandálias
A mãe viajou toda a noite esta noite muitas como se um outro te habitasse
noites todas as noites
num tempo
com os seus pés nus subiu a montanha pelo
para além
[ leste
do tempo todo
e só trazia a lua em fase pequena por
[companhia
e as vozes altas dos mabecos. Amado, onde perdeste tua língua de metal
A mãe viajou sem as pulseiras e os óleos de a dos sinais e do provérbio
[proteção com o meu nome inscrito
no pano mal amarrado
nas mãos abertas de dor onde deixaste a tua voz
estava escrito: macia de capim e veludo
meu filho, meu filho único semeada de estrelas
não toma banho no rio
meu filho único foi sem bois Amado, meu amado
para as pastagens do céu o que regressou de ti
que são vastas é tua sombra
mas onde não cresce o capim. dividida ao meio
A mãe sentou-se é um antes de ti
fez um fogo novo com os paus antigos as falas amargas
preparou uma nova boneca de casamento. como os frutos
Nem era trabalho dela
mas a mãe não descurou o fogo
enrolou também um fumo comprido para o
[cachimbo.
As tias do lado do leão choraram duas vezes
e os homens do lado do boi
(Dizes-me coisas amargas como os frutos)
afiaram as lanças.
A mãe preparou as palavras devagarinho
mas o que saiu da sua boca
não tinha sentido.
A mãe olhou as entranhas com tristeza
espremeu os seios murchos
ficou calada
no meio do dia.

(Dizes-me coisas amargas como os frutos)

70
71

RUY DUARTE DE CARVALHO


(Sem título)
NYANEKA
Ndapewa oilonga idiu kombala
Okuhondya omufya wediva
Okuhumbata omeva m’osimbale
Okutoma ongobe n’onyala Não espanta o gado, a palavra
Okuka omuti n’enyala Quando é boa
Okunyaneka oufila k’ombada yomeva Nem apodrece
Quando exposta ao tempo...
Os duros trabalhos que lhe foram dados para
fazer na ombala: Herdei-a sozinho
Vedar com uma linha um rombo num tanque
Não a como assim:
Varrer as macutas sem usar vassoura
Com a ajuda de um cesto transporta a água
Abater um boi apenas com as mãos O dar não molesta o braço
Derrubar um pau só com as próprias unhas ]nem dorme com espinho a mão que afagou
Secar a farinha espalhando-a na água. durante o dia.

abater um boi com a ajuda de um cesto Zebras sem guiam perdidas na corrida....
derrubar um pau sem usar vassoura Raia o sol, continuamente
secar a farinha apenas com as unhas E o povo pensa que há contentamento.
transportar a água espalhando-a na água Mas não nos surge a lua
varrer as macutas servido de agulha
Destroçada
derrubar as águas sem usar as unhas A renovar-se sempre
vedar com uma linha um rombo nas mãos Mutilada?
abater macutas com a ajuda de um cesto
com a ajuda de um boi abater um tanque Hás os limites, bem sei
transportar um boi esfolado com as unhas Do céu e da terra...
derrubar as unhas apenas com as mãos Quem os conhece?

derrubar a água secar a farinha transportar as


unhas (Ondula, savana branca, 1989, p. 38)
espalhar as agulhas abatendo os cestos varrer
as vassouras servido de um tanque
com a ajuda dos rombos.

Vedar a farinha
Derrubar as unhas
esfolar as agulhas
abater os tanques
transportar os rombos
varrer as ajudas
secar os apenas
derrubar as linhas

derrubar as linhas
derrubar as linhas
derrubar as linhas.
(Hábito da terra)

71
72

RUY DUARTE DE CARVALHO

Ferreiro

e então pensei:

este ferreiro aqui a trabalhar o ferro, senta-se assim numa


pedrita baixa e tem dois foles mesmo à sua frente, sai-lhe
das pernas um canal comprido, maneja as varas para empurrar o
vento, o ar circula pelo tubo adentro e vai verter-se na
fornalha acesa,
eis um ferreiro entregue ao seu labor,
eis uma coisa antiga, sim senhor.

e então pensei:

este ferreiro assim na posição que tem, sai-lhe das pernas um


canal comprido, masturba as varas para empurrar o vento, verte-o
- de que linhagem vens?
e ele respondeu,
de costas:
- o meu sopro é o do metal.
afasta-te, mulher, que uma palavra minha
pode gerar-te um crime.
postou-se nu perante a tempestade
para embeber-se do poder do fogo.
e ouviu a voz de um morto
que dizia:
- o teu desejo pede mais que a carne.
extinguiu-se em ti a exaltação das virilhas.
és aprendiz de Deus, semearás pelo verbo.
o pensamento, em ti, há-de escorrer pelos braços
e ele é tão puro que incandesce a terra.
trabalha a pedra.
da tua entrega acordarás fecundo
para inaugurar uma linguagem nova.

(Sinais misteriosos... Já se vê...)

72
73

VIRIATO DA CRUZ

NAMORO

Mandei-lhe uma carta em papel perfumado


e com letra bonita eu disse ela tinha
um sorrir luminoso tão quente e gaiato
como o sol de Novembro brincando
de artista nas acácias floridas
Esperei-a de tarde, á porta da fabrica,
espalhando diamantes na fímbria do mar
ofertei-lhe um colar e um anel e um broche,
e dando calor ao sumo das mangas
paguei-lhe doces na calçada da Missão,
ficamos num banco do largo da Estátua,
Sua pele macia - era sumaúma...
afaguei-lhe as mãos...
Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando
falei-lhe de amor... e ela disse que não.
a rosas
sua pele macia guardava as doçuras do
corpo rijo
tão rijo e tão doce - como o maboque... Andei barbudo, sujo e descalço,
Seus seios, laranjas - laranjas do Loje como um mona-ngamba.
seus dentes... - marfim... Procuraram por mim
Mandei-lhe essa carta "-Não viu...(ai, não viu...?) não viu
e ela disse que não. Benjamim?"
E perdido me deram no morro da Samba.
Mandei-lhe um cartão
que o amigo Maninho tipografou: Para me distrair
"Por ti sofre o meu coração" levaram-me ao baile do Sô Januario
Num canto - SIM, noutro canto - NÃO mas ela lá estava num canto a rir
E ela o canto do NÃO dobrou contando o meu caso
as moças mais lindas do Bairro Operário.
Mandei-lhe um recado pela Zefa do Sete
pedindo, rogando de joelhos no chão Tocaram uma rumba - dancei com ela
pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigenia, e num passo maluco voamos na sala
me desse a ventura do seu namoro... qual uma estrela riscando o céu!
E ela disse que não. E a malta gritou: "Aí Benjamim !"
Olhei-a nos olhos - sorriu para mim
Levei À Avo Chica, quimbanda de fama pedi-lhe um beijo - e ela disse que sim.
a areia da marca que o seu pé deixou
para que fizesse um feitiço forte e seguro
que nela nascesse um amor como o meu...
E o feitiço falhou.

1961

73
74

74
75

VIRIATO DA CRUZ
SERÃO DE MENINO MAKEZU
O pregão da avó Ximinha
É mesmo como os seus panos,
Na noite morna, escura de breu, Já não tem a cor berrante
enquanto na vasta sanzala do céu, Que tinha nos outros anos
de volta de estrelas, quais fogaréus,
os anjos escutam parábolas de santos... Avó Xima está velhinha
Mas de manhã, manhãzinha,
na noite de breu, Pede licença ao reumático
ao quente da voz E num passo nada prático
de suas avós, Rasga estradinhas na areia...
meninos se encantam
de contos bantos... Lá vai para um cajueiro
“Era uma vez uma corça Que se levanta altaneiro
dona de cabra sem macho... No cruzeiro dos caminhos
....................................... Das gentes que vão p’ra Baixa.
... Matreiro, o cágado lento
tuc...tuc... foi entrando Nem criados, nem pedreiros
para o concelho animal... Nem alegres lavadeiras
(“- Tão tarde que ele chegou!”) Dessa nova geração
Abriu a boca e falou - Das “venidas de alcatrão”
deu a sentença final: Ouvem o fraco pregão
“-Não tenham medo da força! Da velhinha quitandeira.
Se o leão o alheio retém
- luta ao Mal! Vitória ao Bem! “Kuakié!...Makèzù, Makèzù...”
tire-se ao leão, dê-se à corça.” “Antão, véia, hoje nada?”
Mas quando lá fora “Nada, mano Filisberto...
o vento irado nas frestas chora Hoje os tempo tá mudado...”
e os ramos xuaxalham de altas mulembas
e portas bambas batem em massembas “Mas (*) tá passá gente perto...
os meninos se apertam de olhos abertos: Como é aqui tás fazendo isso?”
- Eué
É casumbi... (*) - Não sabe?! Todo esse povo
E a gente grande - Pegô um costume novo
bem perto dali Qui diz qué civrização:
feijão descascando para o quitande - (*) Come só pão com chouriço
a gente grande com gosto ri... Ou toma café com pão...

Com gosto ri, porque ela diz E diz ainda pru cima,
que o casumbi males só faz (Hum... mbundo kène muxima...)
a quem não tem amor, aos mais Qui o nosso bom makèzù
seres buscam, em negra noite, É pra veios como tu”
essa outra voz de casumbi
essa outra voz - Felicidade... Eles não sabe o que diz...
Pru qué qui vivi filiz
(*) Onomatopéia. O barulho do vento na copa das
E tem cem ano eu e tu?
árvores “É pruquê nossas raiz
(*) Massembas- umbigada Tem força do makèzù...”
(*) Kazumbi – Fantasma
(*)Quitande: purê de feijão

75
76

VIRIATO DA CRUZ
Sô Santo
“Muari-ngana Santo
Lá vai o sô Santo... dim-dom
Bengala na mão ualó banda ó calaçala
Grande corrente de ouro, que sai da lapela dim-dom
Ao bolso... que não tem um tostão. chaluto mu muzumbo
dim-dom...”
Quando sô Santo passa
Gente e mais gente vem à janela: Sô Santo...
- "Bom dia, padrinho..."
- "Olá!..." Banquetes p´ra gentes desconhecidas
- "Beçá cumpadre..." Noivado da filha durando semanas
- "Como está?..." Kitoto e batuque pró povo cá fora
- "Bom-om di-ia sô Saaanto!..." Champanha, ngaieta tocando lá dentro...
- "Olá, Povo!..." Garganta cansado:

Mas por que é saudado em coro? 'Coma e arrebenta


Porque tem muitos afilhados? e o que sobra vai no mar...'
Porque tem corrente de ouro
A enfeitar sua pobreza?... Hum-hum
Não me responde, avó Naxa? Mas deixa...
Quando Sô Santo morrer,
- "Sô Santo teve riqueza... Vamos chamar um Kimbanda
Dono de musseques e mais musseques... Para ngombo nos dizer
Padrinho de moleques e mais moleques... Se a sua grande desgraça
Macho de amantes e mais amantes, Foi desamparo de Sandu
Beça-nganas bonitas Ou se é já própria da Raça..."
Que cantam pelas rebitas:
Lá vai...
descendo a calçada
A mesma calçada que outrora subia
Cigarro apagado
Bengala na mão...

... Se ele é o símbolo da Raça


ou a vingança de Sandu...

1961

76
77

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Fernando Costa. Poesia com armas, Lisboa: Sá da Costa, Lisboa, 1975
ANDRADE, M. A Antologia temática de poesia africana. Lisboa: Sá da Costa, 1979
CARVALHO, Ruy Duarte. Hábito da terra. Luanda: União dos escritores angolanos, 1988.
CARVALHO, Ruy Duarte. Ondula, savana branca. 2 ed. Luanda: União dos escritores
angolanos, 1989.
CAVACAS, Fernanda & GOMES, Aldónio. Dicionário de autores de literaturas africanas
de língua portuguesa. 2 ed. Lisboa: Caminho, 1998.
CRUZ, Viriato. Poemas. Luanda; Salvador: Maianga, 2004.
FERREIRA, José da Silva Maia. Espontaneidades da minha alma / Às senhoras africanas.
3 ed. Luanda: União dos escritores angolanos, 1985.
JACINTO, Antonio. Poemas. Luanda; Salvador: Maianga, 2004.
LEITE, Fábio. África: Revista do Centro de Estudos Africanos. USP, S. Paulo, 18-19
(1).103- 118, 1995/1996.
NETO, Agostinho. Sagrada esperança. São Paulo: Ática, 1985.
RUI, Manuel. Eu e o outro – O Invasor ou Em poucas três linhas uma maneira de pensar
o texto. In MEDINA, Cremilda. Sonha Mamana África. São Paulo: Epopéia, 1987.
RUI, Manuel. Regresso adiado. Lisboa: edições 70, 1978.
SANTOS, Arnaldo. Kinaxixe e outras prosas. São Paulo: Ática, 1981.
TAVARES, Ana Paula. No lago da lua. Caminho, 1999.
TAVARES, Ana Paula. Ritos de passagem. Luanda: União dos escritores angolanos,
1985.
VIEIRA, José Luandino. Luuanda. São Paulo: Ática

NOTAS BIOBIBLIOGRÁFICAS

Antonio AGOSTINHO NETO - (*Kaxikane, 1922 - + Moscou, 1979) Médico, foi presidente
do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) e primeiro presidente da
República Popular de Angola. Publicou: Poemas (1961); Sagrada esperança (1974); …e
ainda o meu sonho (1978). A renúncia impossível (edição póstuma)

AIRES da Silva ALMEIDA SANTOS (*Chinguar, 1922 - + Benguela, 1992). Poeta,


contabilista e jornalista, com intensa militância política. Publicou: Meu amor da rua onze
(1991).

ANTONIO JACINTO do Amaral Martins (*Luanda, 1924 - + Luanda, 1991). Usou também
como contista o pseudônimo de Orlando Távora. Participou ativamente da luta de
libertação nacional, tendo ficado preso por 14 anos no campo de concentração do
Tarrafal, Cabo Verde. Após a independência de Angola, exerceu vários cargos públicos,
entre os quais o de Ministro da Educação e Cultura da República de Angola. Publicou:
Poemas (1961), Vovô Bartolomeu (1979), Sobreviver em Tarrafal de Santiago (1991)

77
78

ARNALDO SANTOS (*Luanda, 1935) Fez os estudos primários e secundários em


Luanda. Na década de 50 integrou o chamado "grupo da Cultura". É membro fundador da
UEA. Passou a infância e a adolescência no bairro do Kinaxixi, topónimo que ocupa um
lugar privilegiado na sua produção narrativa. Publicou Fuga (1960, poemas); Quinaxixe
(1965); Tempo do Munhungo (1968); Poemas no tempo (1977); Prosas (1977); Kinaxixe e
outras prosas; Na Mbanza do Miranda (1985); Cesto de Katandu e outros contos (1986);
Nova memória da terra e dos homens (1987) A Boneca de Quilengues (1991). A casa
velha das margens (1999); Crônicas ao sol e à chuva (2002); O brinde seguido de A
palavra e a máscara (2004); O vento que desorienta o caçador (2006).

JOSÉ DA SILVA MAIA FERREIRA (Angola, junho de 1827 - Angola, séc.XX - 1867
ou 1881). Tendo estudado na cidade de Lisboa, possívelmente obteve instrução
superior à primária. Teria vivido, na infância, alguns anos no Brasil, para onde
voltaria, mais tarde (1847-1849), Amanuense da Secretaria do Governo Geral de
Angola, tesoureiro da alfândega de Benguela, oficial da Secretaria do Governo de
Benguela, esteve por alguns meses no Brasil. Candidato às eleições para
senadores e deputados, realizadas em 1839. Colaboração no Almanach de
Lembranças, Lisboa, 1879. Publicou, pelo menos: Espontaneidades da minha
alma / As senhoras africanas, Luanda, 1849.

Fernando COSTA ANDRADE (*Lépi, 1936). Poeta, contista, artista plástico. Atualmente,
deputado na Assembléia Nacional pelo MPLA. Publicou: Terra das acácias rubras (1961);
Tempo angolano em Itália (1963), Armas com poesia e uma certeza (1973), Poesia com
armas (1975), O regresso e o canto (1975), O caderno dos heróis (1977), No velho
ninguém toca (1979), O país de Bissalanka (1980), Literatura angolana(Opiniões) (1980);
Estórias de contratados (1980); O Cunene corre para o sul (1981); Ontem e depois
(1985); No velho ninguém toca (1985); Falo de amor por amar (1985); Os sentidos da
pedra (1989); Lenha seca (1989); Terra gretada (2000); Página e meia (2003); Adobes de
memória (2004); Ascendências (2005); Com verso comigo (2005); Opiniões, critérios
(2007).

MANUEL RUI Alves Monteiro (*Huambo, 1941) Advogado. Poeta, prosador e letrista de
música popular. Também escreveu para crianças. Atuou na Casa dos Estudantes do
Império. Membro do corpo editorial da revista Vértice. Publicou: Poesia sem notícias
(1966), Regresso adiado (1973), A onda (1973), Memória de mar (1980), Quem me dera
ser onda (1982), Cinco vezes onze (Poemas em novembro) (1985), Crônica de um
mujimbo (1989), Um morto e os vivos (1992), Rioseco (1997), Da palma da mão (1998),
Saxofone e metáfora (2002); Um anel da areia (2002), Maninha (2002); Nos brilhos
(2002); O manequim e o piano (2005); A caso do rio (2007); Ombela (2007).

Ana PAULA TAVARES (*Huíla, 1953) Poeta. Doutora em História. Professora. Publicou:
Ritos de passagem (1985), O sangue da buganvília (1998), O lago da lua (1999), Dize-
mes coisas amargas como os frutos (2001), Ex-votos (2003), A cabeça de Salomé (2004);
Os olhos do homem que chorava no rio (2005); Manual para amantes desesperados
(2007).

RUY Alberto Duarte Gomes DE CARVALHO (*Santarém, 1941). Poeta, contista, artista
plástico, cineasta, antropólogo. Fez curso de Regente Agrícola, tendo sido técnico de café
e de bovinos no sul de Angola. Durante 1973 frequentou a London Film and Television
Academy. É Doutor, pela Sorbonne, em Antropologia. Professor da Universidade

78
79

Agostinho Neto, em Angola. Publicou: Chão de oferta (1972), A decisão da idade (1976),
Como se o mundo não tivesse leste (1977), Exercícios de crueldade (1978), Sinais
misteriosos…já se vê…(1980), Ondula, savana branca (1982), Lavra paralela, (1987), O
camarada e a câmera (1984), Lavra paralela (1987), Hábito da terra (1988), Ordem do
esquecimento (1997), Ana a Manda, os filhos da rede (1990), Vou lá visitar pastores
(1999), Os papéis do inglês (2000); Observação directa (2000), Actas da Maianga (2003);
Lavra (2005); Desmedida (2006).

VIRIATO Clemente DA CRUZ (*Amboim, 1928 - +Pequim, 1973). Membro fundador e


Primeiro Secretário-Geral do MPLA. Um dos promotores do Movimento dos Novos
Intelectuais de Angola. Publicou: Poemas (1961).

79

Potrebbero piacerti anche