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Temas contemporâneos
em psicologia
Sumário
CAPÍTULO 2 – TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM PSICOLOGIA................................................ 05
2.4 Como nascem as famílias? Novas configurações familiares: os desafios para a Psicologia.14
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Capítulo 2 Temas Contemporâneos
em Psicologia
1 Introdução
Na Unidade 2, vamos discutir a relação entre Direitos Humanos e as práticas contemporâneas
do psicólogo. Retomaremos a importância dos Direitos Humanos na contemporaneidade
contextualizando sua relação com a prática do psicólogo. Nessa perspectiva, enfocaremos as
violações dos direitos das pessoas cuja identidade de gênero não é heterossexual, evidenciando
as conquistas dos movimentos LGBT nesse contexto e o modo como o psicólogo pode atuar na
defesa de tais direitos.
E, por fim, trataremos do fenômeno da terceirização dos cuidados das crianças para as
instituições, identificando-o historicamente e localizando-o diante das demandas sociais
contemporâneas. Assim, estudaremos alguns aspectos e efeitos da formação de crianças por
pais com grandes jornadas diárias de trabalho, relacionando o papel das instituições (como
creche ou escola) com o da família nesse contexto.
Os Direitos humanos são comuns a todos os seres humanos sem distinção alguma de cor da pele,
sexo, etnia, “faixa etária, incapacidade física ou mental, nível socioeconômico ou classe social,
nível de instrução, religião, opinião política, orientação sexual” (BENEVIDES, 2007, p. 337).
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Gestão de pessoas
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi promulgada em 1948, após a II Grande
Guerra Mundial, no período da criação da Organização das Nações Unidas. Os Estados
Unidos da América, junto aos demais países do mundo, assinaram o documento reconhecendo
que “o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que
ultrajaram a consciência da Humanidade”. Declaravam buscar um “mundo em que todos
gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da
necessidade” (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 2009, p. 2).
Além de buscar evitar um novo holocausto e as barbáries das guerras mundiais, os Direitos
Humanos defendem ainda a igualdade de direitos de povos que historicamente foram
mortos e explorados. Durante 400 anos, considerou-se que o negro africano, assim como seus
descendentes, não tinha direitos, porque não os merecia, pois não era considerado pessoa, mas
sim “propriedade”, sobre a qual valia apenas “a lei” dos donos. Ou seja, prevalecia a ideia
de que “ser pessoa e ter direitos”, inclusive o direito à vida, dependia de certas condições, tais
como a etnia e a cor da pele (BENEVIDES, 2007).
O caráter histórico dos Direitos Humanos é exatamente o que justifica a necessidade de sua
existência. Hoje, a defesa, a proteção e a promoção de tais direitos são critérios para que
se possa identificar uma democracia, ou até mesmo avaliar quão democrático é um sistema
político, ou uma sociedade (SILVEIRA, 2007).
Os Direitos Humanos vêm sendo cada vez mais inseridos no campo de trabalho dos psicólogos.
É possível dizer que diante da direção que as sociedades democráticas vêm tomando, a
Psicologia tem se ocupado cada vez mais com as demandas expressas na Declaração Universal
dos Direitos Humanos (SILVEIRA, 2007).
A ação preventiva, ao invés da ação punitiva, pode ser compreendida como um ponto de
partida para o crescimento individual e de uma comunidade, pois favorece a reflexão e o
despertar de uma consciência crítica da sociedade, dos seus valores, dos comportamentos e das
suas diferenças. Portanto, concretizar ações preventivas é investir a médio ou longo prazo na
cidadania, na igualdade e na garantia de direitos humanos.
Nessa perspectiva, o objetivo último da prevenção é procurar evitar que as pessoas se envolvam
em situações de risco e vulnerabilidade, e que não causem danos pessoais e sociais àqueles com
quem convivem ou se relacionam (AYRES, 2009).
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Gestão de pessoas
Paiva (2012) afirma que essa perspectiva preconiza a reorientação do modelo de atenção centrado
no modelo individualizado, na doença, para um modelo de atenção à saúde que busca concretizar o
princípio da integralidade, que prioriza a qualidade de vida das pessoas e do meio em que vivem.
SAIBA MAIS...
Pesquise e descreva três situações nas quaias é possível identificar a relação entre a Declaração
Universal dos Direitos Humanos na prática do psicólogo em situações de vulnerabilidade social.
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Gestão de pessoas
equivalentes. E aqueles sujeitos que não estão adequados a esse sistema e não correspondem
aos gêneros masculino e feminino, são muitas vezes invisibilizados e patologizados.
Nesse sentido, é possível dizer que a heteronormatividade é uma reiteração da norma sobre o
corpo, gênero e sexualidade, que busca a regulação do gênero como forma de manter a ordem
heterossexual, trata-se, portanto, de uma relação de poder normativa (POCAHY; NARDI, 2007).
Contudo, além de uma crítica à segregação e discriminação de gênero, tal abordagem trouxe
outras contribuições como a crítica às abordagens que referem as patologias “mentais” a
identidades individuais, diferentes das identidades sexuais heterossexuais.
A partir do momento que o gênero passa a ser compreendido como independente do sexo, ele
se torna um artifício provisório (BUTLER, 2003). Nessa perspectiva, é a repetição de atos, gestos,
discursos, de modo estilizado, que produz esse efeito e a crença na existência essencial dos
gêneros. É dessa maneira que os corpos adquirem aparências de gêneros. “A repetição imitativa
pode ocorrer como paródia, como citação ou como iteração, organizando atos performativos que
criam a ilusão de substância, unidade, coerência e identidade” (DUNKER, 2017, p. 3).
Como afirma Butler (2003, p. 28), “gênero é uma espécie de imitação persistente, que passa
como real”. Veremos a seguir como se constituíram as diferentes categorias de identidade de
gênero no contexto brasileiro.
As identidades podem ser definidas em termos relacionais e/ou como categorias, e organizam
e descrevem a experiência da sexualidade das pessoas. Mais do que isso, tanto na sociedade
brasileira quanto nas demais nacionalidades, as identidades se tornaram instrumentos para
reivindicação por respeito e garantia de direitos. As identidades de gênero e identidades
sexuais são históricas e culturalmente construídas como respostas políticas aos contextos de
iniquidade e compõem uma “estratégia das diferenças” (SIMÕES; FACCHINI, 2009).
O ativismo pelos direitos das diferentes identidades sexuais e de gênero voltou a crescer nos
anos 1990, quando encontros nacionais passaram a ocorrer com maior frequência, e com o
aumento de redes de grupos e associações. Em 1996 ocorreu o primeiro Seminário Nacional
de Lésbicas (SENALE). Travestis e transexuais se incorporaram a esses movimentos a partir
do primeiro Encontro Nacional de Travestis e Transexuais que Atuam na Luta contra a AIDS
(Entlaids), que ocorreu em 1993 (FACHINNI, 2009).
No século XXI, os movimentos LGBTT seguiram ampliando sua atuação em defesa de direitos humanos
e de resposta à epidemia de AIDS, vinculação a redes e associações internacionais de defesa dos
direitos humanos e direitos de gays e lésbicas, ação junto a parlamentares com proposição de
projetos de lei nos níveis federal, estadual e municipal, atuação junto a agências estatais.
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Gestão de pessoas
SAIBA MAIS...
A parada do orgulho LGBT de São Paulo é uma das maiores do mundo?
SAIBA MAIS...
Sabe o que é um Artigo de Opinião?
Saiba mais em: BOFF, Odete M. B.; KÖCHE, Vanilda S.; MARINELLO, Adiane F. O gênero
textual artigo de opinião: um meio de interação. ReVEL, v. 7, n. 13, 2009.
Fonte: www.shutterstock.com.br
Nessa perspectiva, a resolução no 01/99 aponta no Art. 3° que “os psicólogos não devem praticar
qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas”, assim
como é vetado ao psicólogo ações coercitivas que tendam a orientar homossexuais para tratamentos
que eles próprios não solicitaram (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 1999, p. 13).
Ainda que o termo “homofobia” seja usado para atribuir sentido a muitas das violações dos direitos
humanos, apresenta problemas, uma vez que “fobia” remete tal discriminação a instâncias da psique
humana ou ao inconsciente, podendo justificar uma questão social, cultural e política com elementos
da ordem do não racional. Isso seria uma forma distorcida de entender o problema da violência
da norma sobre o gênero e a sexualidade, que se trata de uma violação de direitos. A noção
de homofobia, como vem sendo utilizada nos contextos GLBTT, nomeia todo tipo de violência e
discriminação contra prostitutas, transexuais, lésbicas e bissexuais (POCAHY; NARDI, 2007).
Para Pocahy e Nardi (2007, p. 49), “a homofobia não se limita a constatar uma diferença: ela
interpreta e tira suas conclusões materiais”. Os autores narram uma experiência de intervenção junto
a um grupo de jovens marcados pela vulnerabilidade social relacionada à discriminação étnica; aos
regramentos morais que valoram negativamente as expressões de sexo-gênero; às desigualdades
referentes à classe social; ao empobrecimento e à miséria (POCAHY; NARDI, 2007).
Além de realização de oficinas, foram produzidas festividades planejadas pelos jovens, que
viabilizaram a ampliação de espaços de participação e reflexão, oferecendo visibilidade de
expressões políticas de modo receptivo (POCAHY; NARDI, 2007).
Foi ainda observada outra contribuição à defesa dos direitos civis no caso de uma jovem que,
depois de ter sido humilhada por um vendedor, procurou a ajuda policial para a defesa de
seus direitos. Ela tomou como apoio a ONG e os pesquisadores para comparecer à delegacia
para o registro da ocorrência. Na sequência, retornaram ao local onde ocorreu a violência
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Gestão de pessoas
acompanhados de um policial para indiciarem sujeito. Esse exemplo indica, para Pocahy e
Nardi (2007), as diversas faces do Estado, que se por um lado pode agenciar normalização e
discriminação, por outro pode buscar a garantia de igualdade de direitos.
Junto a outros profissionais, o psicólogo pode, portanto, articular diferentes estratégias que
ampliem a participação cidadã, política e cultural das pessoas com identidade de gênero
não heterossexuais, fortalecendo, inclusive, sua capacidade para conquistar e fazer valer seus
direitos, dentre eles, o direito ao casamento.
A seguir buscaremos trabalhar com a questão da formação das famílias no mundo contemporâneo
em suas diversas configurações possíveis.
Frente a um cenário tão fluido e diversificado, cabe-nos a pergunta “O que é uma família?”.
Héritier (1991, apud CECCARELLI, 2007, p. 95) afirma que:
embora todo mundo acredite saber o que é uma família, é curioso constatar que por mais vital,
essencial e aparentemente universal que a instituição família possa ser, não existe para ela,
como é também o caso do casamento, uma definição rigorosa.
Roudinesco (2003) retoma Lévi-Strauss para lembrar que a vida familiar se apresenta em
praticamente toda a sociedade humana. Em seus estudos, Lévi-Strauss (1976) demonstra que a
família não é um fenômeno substancialmente natural, nem fundamentalmente biológico. A partir
de uma perspectiva histórica, a família se configura como uma expressão da cultura sobre a
natureza. Nesse sentido, a monogamia, por exemplo, não se tornou predominante na organização
familiar por razões biológicas, mas por razões de ordem religiosa, moral e econômica.
Para Roudinesco (2003), não basta definir a família a partir de um único ponto de vista.
Os arranjos familiares são tão diversificados quanto às culturas das quais fazem parte,
além dos contextos históricos. Sendo assim, interrogamo-nos: quais são os arranjos familiares
predominantes no século XXI? É possível definir o que seria a família na contemporaneidade?
“A regulamentação do casamento gay no Brasil completa quatro anos neste domingo (14), com
cerca de 15 mil registros oficializados em todo o país. O número representa um aumento de
51,7% em relação ao primeiro ano de vigor da norma, segundo dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE).”
Fonte: https://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/casamento-gay-no-brasil-comple-
ta-4-anos-de-regulamentacao-leia-historias.ghtml.
•• 2. A família moderna, que aparece entre o fim do século XVIII e início do XX, representando
uma ruptura com o modelo tradicional de família ao apontar a reciprocidade dos sentimentos.
Esse modelo valoriza a divisão do trabalho entre os cônjuges, apontando para uma divisão de
tarefas. “A atribuição da autoridade torna-se, então, motivo de uma divisão incessante entre o
Estado e os pais, de um lado, e entre os pais e as mães, de outro” (ROUDINESCO, 2003, p. 19);
•• 3. A família contemporânea, que aparece em meados dos anos 1960 e une dois indivíduos
em busca de realização. Nesse período, a transmissão da autoridade vai se tornando
cada vez mais frágil, o que impulsiona o aumento no número de divórcios, separações e
recomposições conjugais. Nesse momento, passa a prevalecer a democracia como aspecto
central dos laços conjugais.
SAIBA MAIS...
O exercício da parentalidade na contemporaneidade: um estudo sobre a transmissão.
Daniela Teperman
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Gestão de pessoas
É a essa resistência da família que se debruça a autora para abordar os possíveis legados
da transmissão. Ela lembra que os autores que se dedicam à investigação em torno da família
e da contemporaneidade, partem de um cenário comum: o cotidiano das grandes cidades, a
complexidade das relações, o anonimato urbano, a crise da família moderna (divórcios, famílias
monoparentais, famílias recompostas, famílias homoparentais, etc.). E quais seriam, nesse cenário,
os possíveis legados de uma transmissão familiar, ou, dito de outro modo, uma filiação?
A autora retoma Julien (2000 apud Teperman, 2009) para afirmar que o nascimento/a chegada
de um filho cruza a fronteira entre o privado e o público: no reconhecimento legal, inaugura-se
a autoridade parental, ou seja, a construção de uma filiação. À pergunta “o que transmitimos
aos nossos filhos?”, Julien (2000, p. 25 apud Teperman, 2009) responde: “a resposta passa
pelas leis do bem-estar, do dever e do desejo”.
Entender os aspectos históricos é importante para reconhecer que não há uma concepção ideal e
naturalizada de família, mas há famílias possíveis. Não são os laços consanguíneos que constituem
o núcleo familiar de uma criança, mas sim os vínculos com as pessoas que são responsáveis por ela.
Fonte: www.shutterstock.com.br
Casal homossexual e família.
Entre as mudanças socioculturais mais significativas dos últimos tempos, pode-se destacar o
avanço da cultura digital. Bento (2006) nos lembra sobre o amor que navega pela Internet:
“ama-se e desama-se pela rede” (p. 11). A autora comenta sobre a fluidez e a efemeridade
das relações amorosas na contemporaneidade que atravessam os espaços reais e virtuais
nos tempos atuais. O termo “fluidez”, utilizado pela autora, remete ao conceito do sociólogo
polonês Zygmunt Bauman, para quem a “pós-modernidade” ou “modernidade tardia” pode ser
caracterizada como “líquido mundo moderno”.
Descrição do livro:
A modernidade líquida, “um mundo repleto de sinais confusos, propenso a mudar com rapidez e de
forma imprevisível”, em que vivemos, traz consigo uma misteriosa fragilidade dos laços humanos, um
amor líquido. Zygmunt Bauman, um dos mais originais e perspicazes sociólogos em atividade, investiga
de que forma nossas relações se tornam cada vez mais “flexíveis”, gerando níveis de insegurança sem-
pre maiores. A prioridade a relacionamentos em redes, os quais podem ser tecidos ou desmanchados
com igual facilidade - e frequentemente sem que isso envolva nenhum contato além do virtual -, faz
com que não saibamos mais manter laços a longo prazo. Mais que uma mera e triste constatação, esse
livro é um alerta: não apenas as relações amorosas e os vínculos familiares são afetados, mas também
a nossa capacidade de tratar um estranho com humanidade é prejudicada. Como exemplo, o autor
examina a crise na atual política imigratória de diversos países da União Europeia e a forma como a
sociedade tende a creditar seus medos, sempre crescentes, a estrangeiros e refugiados. Com sua usual
percepção fina e apurada, Bauman busca esclarecer, registrar e apreender de que forma o homem
sem vínculos - figura central dos tempos modernos - se conecta.
Fonte: https://www.saraiva.com.br/amor-liquido-sobre-a-fragilidade-dos-lacos-humanos-155666.html.
No contexto da hospitalização, por exemplo, a perspectiva da família propicia reflexões sobre estratégias
que favoreçam vivências produtivas e menos traumáticas (PEREIRA NETO; RAMOS; SILVEIRA, 2016).
Esse tem como elemento fundamental o encontro entre sujeitos, e produz subjetividades e modos de viver
e sentir a experiência de cuidado. Esses modos de subjetivação constituem o processo de transformação
da família e dos diferentes arranjos familiares (PEREIRA NETO; RAMOS; SILVEIRA, 2016).
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Em pesquisa realizada por Pereira Neto, Ramos e Silveira (2016), muitos profissionais descreveram
as famílias atendidas como desfeitas, desestruturadas e em processo de falência das relações.
Existem situações em que há apenas uma pessoa acompanhando a criança, outras em que as
crianças estão abandonadas, ou ainda famílias em que a criança circula por diversos cuidadores.
Por outro lado, são também identificadas famílias com muitos “agregados”, nas quais a criança
vive juntamente com membros da família extensa (PEREIRA NETO; RAMOS; SILVEIRA, 2016).
Apesar das distintas configurações familiares de crianças internadas, as mães continuam sendo
identificadas como as mais presentes no cuidado em saúde. A mulher segue como principal
cuidadora, sendo frequentemente percebida ao lado dos pacientes. E na ausência da mãe,
outras figuras femininas, como a avó, a tia, a vizinha ou a madrinha desempenham esse papel
(PEREIRA NETO; RAMOS; SILVEIRA, 2016).
Ainda que as funções materna e paterna sejam problematizadas, é percebido que muitas
famílias têm seguido o perfil tradicional. A mulher assumindo função materna, afetiva e de
apoio, e o homem, a função de provedor. (PEREIRA NETO; RAMOS; SILVEIRA, 2016).
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Família LGBT.
Nesse sentido, as novas configurações familiares conservam algumas das antigas funções
de cuidado e provisão, muitas vezes fragmentadas e pouco compartilhadas entre os diversos
membros da família. Se por um lado, essa família tem contemplado certas necessidades básicas
dos envolvidos, por outro, tem negligenciado em muitos casos as funções consideradas principais
pelos filhos, ou seja, o apoio e as relações afetivas. Muitas famílias, ou membros dessas, têm
se preocupado, sobretudo, com seu papel de provedor dos cuidados, terceirizando a vida e a
convivência com as crianças e os adolescentes, sob o preço de colocar em jogo seu vínculo afetivo.
A família moderna se individualiza e se volta para o núcleo pai, mãe, filhos. Antes disso, no
período medieval, a organização era por linhagem, um modelo coletivo. A modernidade
descobre o sujeito, seus direitos e desejos, e isso vale também para a criança. É, portanto,
na modernidade, que a infância passa a ocupar um lugar de importância e, inclusive, de
preocupação social. Nesse contexto, a criança passa a ser objeto de investimento da família. É
aqui que começam a surgir as demandas de educação infantil e a valorização da religiosidade
para a transmissão dos valores culturais (WAGNER; VIEIRA; MACIEL, 2017, p. 82).
Fonte: www.shutterstock.com.br
Parada Gay de São Paulo, 2014.
Além da criança, a mulher também passa a ganhar lugar de destaque com o processo de
industrialização. No Brasil, principalmente no início do século XX, acompanhamos o crescente
ingresso das mulheres no mundo universitário e também no mundo das fábricas. Na Europa,
basta lembrarmos da Revolução Industrial, durante o século XIX, que também levou muitas
mulheres a ingressar no mundo do trabalho.
Paschoal e Machado (2009) apontam que no Brasil, diferentemente de países Europeus, as primeiras
creches, asilos e orfanatos foram criados com caráter assistencialista, com o objetivo de auxiliar as
mulheres que trabalhavam fora de casa e as viúvas desamparadas. Não havia profissionalização
nessa área e o uso desse recurso era visto com desconfiança. Famílias com condições socioeconômicas
mais favoráveis inicialmente não usavam esse recurso, pois mantinham a estrutura de patriarcado,
em que a mulher permanece no lar (WAGNER; VIEIRA; MACIEL, 2017, p. 83).
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Com a crescente independência financeira da mulher, a família passou por novas e grandes
transformações. Dados de 2010 apontam que, no Brasil, aproximadamente 40% dos lares
brasileiros são liderados por mulheres (IBGE, 2010). Para os autores, a terceirização é um
fenômeno que ocorre desde sempre na humanidade, o que mudam são as formas de terceirização
e as justificativas utilizadas para sustentá-la como prática social.
Diante do grande esforço demandado na tarefa de educar na atualidade e, ainda, diante das longas
jornadas de trabalho dos pais e/ou responsáveis pela criança, o trabalho realizado por algumas
instituições que se intitulam “de tempo integral” (creches e/ou escolas, principalmente) acabam
assumindo muitas funções que seriam das famílias. Por isso o nome “terceirização de cuidados”.
Wagner, Vieira e Maciel (2017, p. 78), pesquisadores do referido grupo, afirmam que:
A terceirização dos cuidados infantis é um termo que tem sido utilizado para designar o
fenômeno da transferência dos cuidados da criança para terceiros. Os “terceiros” podem
ser, por exemplo, babás, vizinhos, parentes e instituições, aqui incluída a escola. Entender e
contextualizar esse fenômeno não é tarefa fácil.
Os autores defendem que esse tema deve ser amplamente investigado e discutido de forma
livre de preconceitos.
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Criança brincando na pracinha.
Temos, atualmente, um cenário marcado por pais e mães que possuem longas jornadas de
trabalho e que, por isso, optam por deixar os filhos em berçários e em escolas de tempo integral.
Ou, ainda, que matriculam os filhos em diferentes atividades ao longo da semana: aula de música,
esportes, aula de língua estrangeira, etc. A criança, muitas vezes, acompanha uma longa jornada
de atividades e passa a maior parte do tempo com professores, babás, cuidadores e ajudantes
em geral. Como foi visto, esse fenômeno tem ligação com a função provedora que as famílias têm
assumido com relação a seus filhos (WAGNER; VIEIRA; MACIEL, 2017).
SAIBA MAIS...
Artigo da Revista Pais & Filhos: Você está terceirizando a educação do seu filho? Disponível
em: http://paisefilhos.uol.com.br/pais/voce-esta-terceirizando-a-educacao-do-seu-filho/.
Diante desse cenário, é imprescindível fazer uma reflexão sobre as consequências dos discursos
e cuidados de outros sobre a criança: do outro professor, do outro pediatra, da outra babá.
Muitas vezes, os discursos técnicos se sobrepõem ao discurso familiar. É o que nos alertam
Teperman (2009) e Rosa (2006).
Ao passar muito tempo de sua jornada diária em instituições, a criança é atravessada por discursos
de especialistas. É o professor, o cuidador ou o diretor da escola que “sabem” a respeito da
criança. Para Teperman (2009) e Rosa (2006), temos aí um atravessamento do discurso técnico-
científico que incide sobre o laço social entre a criança e sua família: no lugar de recorrer aos pais e
às mães, que sabem (ou que deveriam saber) sobre seus filhos, recorre-se aos relatórios escolares,
aos relatórios do fonoaudiólogo e/ou do psicólogo, às avaliações pediátricas, correndo-se o risco
de cair em uma “transmissão asséptica”, uma vez que se constituiu apartada do convívio familiar.
Voltolini traduz da seguinte maneira o que seria o ideal da educação para Freud: "desejar
coisas para os filhos, tolerar suas escolhas". Desse modo, encontramos já em Freud esta clareza:
a educação sustenta-se em marcas de desejo, marcas que não são garantias. Marcas que
implicam em um arriscar-se, marcas para além do "para o seu bem" ou "porque era meu dever",
marcas de desejo (TEPERMAN, 2009, p. 5).
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Dessa forma, a autora nos lembra sobre o legado freudiano: educar um filho está relacionado
a uma questão de desejo, de transmissão de marcas. (TEPERMAN, 2009). Ao terceirizar os
cuidados de uma criança, a família leva junto a possibilidade de transmitir marcas de desejo
e dá abertura, ao mesmo tempo, para que outros discursos técnicos, científicos e pedagógicos
incidam e atravessem essa criança.
Essas são algumas das marcas principais do legado das instituições contemporâneas: o aumento
da incidência de discursos técnicos e de especialistas sobre a criança. Tal fenômeno não
caracteriza somente cenários negativos, mas convoca à constante reflexão sobre seus efeitos.
O Conselho Federal de Psicologia aponta como uma das atribuições profissionais do psicólogo
no Brasil a "atuação junto a organizações comunitárias, em equipe multiprofissional no
diagnóstico, planejamento, execução e avaliação de programas comunitários, no âmbito da
saúde, lazer, educação, trabalho e segurança" (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2007, p.
27). Nesse sentido, a resolução n.o 13/2007, do Conselho Federal de Psicologia, complementa
tal determinação definindo como atribuição do Psicólogo Escolar articular conhecimentos
psicológicos nas atividades escolares por meio de análises e intervenções, “referentes ao
desenvolvimento humano, às relações interpessoais e à integração família-comunidade-escola,
para promover o desenvolvimento integral do ser" (2007, p. 34).
A resolução n.º 13/2007 preconiza que o psicólogo “atua no âmbito da educação formal
realizando pesquisas, diagnóstico e intervenção preventiva ou corretiva em grupo e
individualmente” (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2007, p. 18).
A resolução n.º 13/2007 preconiza que o psicólogo deve envolver, “em sua análise e
intervenção, todos os segmentos do sistema educacional que participam do processo de ensino-
aprendizagem. Nessa tarefa, considera as características do corpo docente, do currículo, das
normas da instituição, do material didático, do corpo discente e demais elementos do sistema”.
É necessário, portanto, o desenvolvimento de estudos e a análise constante das relações entre o
homem e o “ambiente físico, material, social e cultural quanto ao processo ensino-aprendizagem
e produtividade educacional” (2007, p. 18).
Quem são os responsáveis pela filiação da criança? A quem cabe a transmissão de um nome,
um sobrenome e uma marca na história familiar?
É evidente que as instituições por onde a criança circula e constrói vínculos com outros adultos
e colegas vão fazer parte de sua história. Mas há que se resgatar os vínculos primeiros de
sua inscrição na cultura. Quem é responsável por ela na vida? São esses laços que devem ser
resgatados e ressignificados pela atuação do psicólogo.
Donald Winnicott (1985), pediatra e psicanalista inglês, já afirmara suas proposições acerca do
papel da escola e das famílias, da “mãe suficientemente boa” especialmente – que é um conceito
que não se refere necessariamente à mãe biológica, mas ao cuidador principal da criança:
Logo, o autor nos lembra que a escola não deve operar como um substituto da educação
familiar. Do mesmo modo, seguindo o mesmo princípio, a nenhuma instituição cabe a tarefa de
substituir os cuidados familiares.
Nesse sentido, vale lembrar o cuidado que o psicólogo deve ter de resgatar os discursos
familiares que carregam as marcas de um desejo por uma criança, e ter sensibilidade de
trazê-los à tona, no sentido de que as famílias devem resgatar e ressignificar os seus vínculos
afetivos. Dessa maneira, ele assume uma posição ética de não fazer a transposição de um
discurso técnico-científico que se sobreponha ao discurso familiar (ROSA, 2006).
Como já afirmara Winnicott (1985), não há nada que um pediatra e psicanalista possa afirmar
sobre uma criança que uma mãe já não o tenha visto ou sentido de alguma forma. Em outras
palavras, é necessário colocar em questão se os valores, o discurso e o vínculo da família,
em relação à criança, estão sobrepostos ou desautorizados pelo discurso médico, científico e
especializado sobre a criança. Uma atuação comprometida e ética demandará questionamentos
a cerca dos fenômenos familiares, subjetivos e culturais em constante transformação, muito mais
do que certezas acabadas e aplicadas sobre os modos de viver.
Fonte: www.shutterstock.com.br.
Mãe com o seu filho na cozinha.
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Gestão de pessoas
Síntese
Caro aluno,
Nesta unidade, conhecemos a importância histórica dos Direitos Humanos e como eles se tornaram
critérios para identificar uma sociedade democrática. A psicologia como ciência e profissão reconhece
e se compromete a contemplar os Direitos Humanos, definindo-os como parâmetros de atuação em
seu Código de Ética profissional.
A reflexão acerca dos Direitos Humanos embasou a discussão sobre os direitos à Identidade
de Gênero e a manifestações de sexualidades não heterossexuais dos movimentos LGBTT. Tais
movimentos são fruto de conquistas históricas de direitos de pessoas que sofreram violências e
violações de direitos durante muito tempo. A conquista desses direitos é reconhecida pelos Conselhos
de Psicologia que ressaltam a necessidade do comprometimento do profissional psicólogo em sua
atuação com relação às formas de discriminação, negligência, exploração, violência e opressão.
Além da referência aos direitos às manifestações não heterossexuais, esta unidade introduziu uma
discussão acerca das novas configurações familiares, seja com casais homoafetivos ou não, e sua
relação com o cuidado e desenvolvimento dos filhos. Nesse sentido, o fenômeno entendido por
alguns pesquisadores como “terceirização da infância” foi abordado como possível reflexão acerca
das singularidades da relação entre as famílias contemporâneas e as instituições para as quais
delegam os cuidados das crianças e dos adolescentes.
Tendo passado por tais reflexões, seguiremos a discussão sobre os direitos humanos e populações
negras, imigrantes, povos indígenas e pessoas em situação de vulnerabilidade na unidade seguinte.
Até a próxima!
AZEVEDO ROSSINI, Luiz Eduardo; BARROS, Mari Nilza Ferrari. Ações preventivas no contexto
da vulnerabilidade social. Serviço Social em Revista, v. 15, n. 1, p. 108-136, 2012.
BENTO, Carla Aparecida Alves. A fluidez das relações amorosas: uma análise dos romances
Solo Feminino, de Lívia Garcia-Roza e Obsceno Abandono, de Marilene Felinto. Dissertação
(Mestrado). Faculdade de Letras – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.
BENEVIDES, M. V. Direitos humanos: desafios para o século XXI. In: SILVEIRA, R. M. G. et al.
(Orgs.). Educação em direitos humanos: fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Edi-
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