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Biopoder e Práticas Reguladoras do Uso de Drogas no Brasil:

Algumas Análises de Projetos de Lei


Biopower and Regulatory Practices of Drug Use in Brazil:
Some Analyzes of Bills
Prácticas de Biopoder Y Regulatorio del Uso de Drogas en Brasil:
Algunos Análisis de Proyectos de Ley

Artur Barbedo do Nascimento Couto


Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil
Flávia Cristina Silveira Lemos
Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil
Mariane Batista Bittencourt Couto
Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil

Resumo
O presente artigo visa analisar a prática do biopoder acionada pela internação compulsória de
usuários de drogas e pelas propostas de projeto de lei referentes a essa maneira de governar os
corpos e segmentos da população. Pensar o dispositivo de segurança articuladamente à medi-
calização e à criminalização na política sobre drogas é relevante na atualidade, sobretudo em
tempos em que a internação passa a ser usada indiscriminadamente em defesa da sociedade e
para disciplinar os corpos indóceis à lógica empresarial da vida e à mercantilização da saúde.
Operar a crítica à medicalização e à judicialização do cotidiano no plano do uso de substâncias
legais e ilegais implica em trazer para o campo analítico um analisador acerca da política de
subjetivação no tempo presente em que vivemos.
Palavras-chave: Biopoder; Política sobre drogas; Racismo.

Abstract
This article aims to analyse the practice of biopower thrown by compulsory hospitalization
of drug users and the project proposals of law pertaining to this way of govenring bodies and
segments of the population. Wonder articulately security device the medicalization and crimina-
lization in politics about drugs is relevant today, especually in times whn the hospitalization is
used indiscriminately in defense of society and to discipline the waywar bodies to business lo-
gic of life and the commodification of health. Operate the critique of medicadicalization and the
legals of everyday life in terms of the use of legal and ilegal substancies implies bringing to the

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Biopoder e Práticas Reguladoras do Uso de Drogas no Brasil: Algumas Análises de Projetos de Lei

analytical field a parser about the politics of subjectivation in the present tense in which we live.
Keywords: Biopower; Policy and Drugs; Racism.

Resumen
El presente artículo tiene como objetivo analizar la práctica del biopoder provocada por la hos-
pitalización obligatoria de los consumidores de drogas y el proyecto de ley sobre esta forma de
los órganos de gobierno y sectores de la población. Piense dispositivo de seguridad articulada
a la medicalización y la criminalización de la política de drogas es relevante hoy en día, sobre
todo en momentos en que el hospital es ahora utilizado indiscriminadamente en la defensa de la
sociedad y de la disciplina cuerpos rebeldes a la lógica de negocio de la vida y la mercantiliza-
ción de la la salud. Operar la crítica de la medicalización y judicialización cotidiana en términos
de la utilización de sustancias legales e ilegales implica traer al analizador de campo analítico
sobre la subjetividad política en el momento actual en el que vivimos.
Palabras clave: Biopoder; Politica de las drogas; Racismo

Introdução e biopolíticas, que se atualizam em “novas”


práticas de disciplinamento docilizador do
No presente artigo pretendemos pro- corpo-organismo e da regulação do corpo-
mover problematizações acerca de dois Pro- -espécie da população na criminalização e
jetos de lei (PL nº 3.450/12 e PL 4.871/12) na medicalização das condutas dos usuários
que sugerem alterações na Legislação Bra- de drogas.
sileira sobre Drogas (Lei nº 11.343/06). Inicialmente, faremos uma descrição
Para tal, acionaremos algumas ferramentas de alguns conceitos de Michel Foucault em
analíticas propostas por Michel Foucault, interface com a política de saúde e de se-
tais como: a construção da “periculosidade” gurança, na assistência tutelar às condutas e
enquanto prática que sustenta a crimina- que opera no plano criminalizante das mes-
lização em um nível das virtualidades dos mas, em um processo de jurisdicionalização
comportamentos dos corpos que utilizam da vida que aciona a saúde como regulação
drogas. medicalizadora de maneira autoritária mais
Também temos o objetivo de des- que terapêutica.
crever e interrogar intervenções de saber- Em seguida, apresentaremos uma
-poder baseada nas tecnologias disciplinares breve análise documental de projetos de lei

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que serão problematizados historicamente mos citar a criação dos Centros de Atenção
para questionarmos a naturalização de ra- Psicossocial e determinação para fechamen-
cismos presentes nos mesmos. O objetivo é to dos leitos em hospitais psiquiátricos, no
colocar em xeque as articulações que foram país.
forjadas entre os objetos risco, periculosida- A internação compulsória que deve-
de, racismo de Estado e de sociedade secu- ria ser uma medida de exceção, de excep-
ritário, disciplinas docilizadoras das condu- cionalidade, no texto da referida lei acabou
tas, medicalização da saúde e uso de drogas. sendo aplicada de maneira generalizada e é,
Novos arranjos na arte de lidar com para muitos usuários de drogas, o primeiro
as drogas no Brasil atual, especialmente a contato com os serviços de saúde. O encon-
partir de 2011, reacenderam velhos deba- tro do campo da saúde com o da segurança
tes quanto à gestão da vida dos usuários e traz à tona a capilaridade disciplinar indivi-
usuárias de substâncias legais e ilegais: dualizante simultânea aos processos de to-
internação involuntária e compulsória, fi- talização de governo da vida com o poder
nanciamento de leitos em Comunidades pastoral na atualização do dispositivo do
Terapêuticas a partir com financiamento do biopoder de um racismo de sociedade e de
Sistema Único de Saúde (SUS) entre outros. Estado (Foucault, 2005).
A prática de internação compulsória, defi- O racimo de Estado e de sociedade
nida legalmente pela Lei nº 10.216/2001, é uma prática que coloca em cena meca-
apelidada de Lei Paulo Delgado é alvo de nismos de poder, saberes, leis e instituições
críticas pela maneira como vem sendo apli- que segregam alguns grupos sociais, que
cada nos grandes centros urbanos do país passam a ser desqualificados socialmente
e também no interior como medida de um e alvo de internação, entre outros dispositi-
processo de medicalização autoritária da in- vos de retiradas dos mesmos da convivência
digência. social em nome da segurança dos que são
Apesar da Lei 10.216/2001 ter sido classificados como ameaçados em função
um avanço no campo da Reforma Psiquiá- da presença daqueles que são taxados de
trica brasileira; de um lado, por outro, ela perigosos ou em risco de sê-lo. O sistema
trouxe o dispositivo da internação compul- de classificação de risco/perigo traz uma
sória como parte de seu texto. No Artigo série de preconceitos e racismos, por isto,
nono, pressupõe a possibilidade de interna- Foucault (2005) o denominou de biopoder e
ção compulsória por requisição do juiz. No operou a crítica desse diagrama de práticas
caso dos avanços da Lei 10.216/2001 pode- securitárias em nome da vida de alguns.

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Práticas medicalizadoras autoritárias análise de documentos do legislativo brasi-


e securitárias de internação norteiam os de- leiro a respeito da internação compulsória,
bates acerca destas intervenções, que podem após a aprovação do Plano crack: é possível
ser encontradas cristalizadas em projetos de vencer, pela Presidente Dilma Roussef.
leis, matérias cotidianas de jornais impres- Descrever mesmo que brevemente
sos e online, planos de enfrentamento do o trabalho de análise de poder-saber usado
Governo Federal durante o primeiro manda- na perspectiva genealógica é de substancial
to da Presidente Dilma como o construído importância para que o leitor possa enten-
para lidar com o crack de forma destacada der porque trabalhamos com os conceitos
às outras drogas. de biopoder, de biopolítica e de disciplina
Foucault (1979a) descreveu, em A como contribuições de Michel Foucault e
política de saúde no século XVIII que, para a relevâncias das mesmas para as reflexões
alguns grupos sociais, sobretudo, pobres, propostas nesse artigo.
passaram a ser administradas práticas de Neste artigo, nos apropriamos de
medicalização pautadas no higienismo auto- algumas ferramentas de Foucault, como o
ritário enquanto para as classes mais abasta- exercício genealógico da análise de docu-
das eram previstas medidas de cunho mais mentos que funcionam como um dispositi-
terapêutico, tais como: psicoterapias, por vo, constituído por leis e normas, resultan-
exemplo. Assim, podemos afirmar que, na tes de projetos de lei na esfera Legislativa,
internação compulsória de usuários de cra- de formulação de Programas e planos em
ck é materializada a vertente autoritária da políticas nacionais pelo Executivo e na in-
medicalização, ou seja, o higienismo como terferência cada vez mais inflacionada do
limpeza urbana e a polícia da ordem entra Poder Judiciário nas nossas existências, em
em cena. especial do que rompe com uma ordem so-
cial baseada em racionalidades de tolerância
Pensando com Foucault o documento na zero em relação aos desvios sociais e às in-
genealogia disciplinas diante das normas de saúde, por
exemplo.
Esse texto é parte das análises reali- Entendemos que todo documento
zadas em pesquisa de mestrado em psicolo- como um monumento, ou seja, um objeto
gia, com bolsa CAPES e de iniciação cien- natural. Criticar o que chamamos de do-
tífica com bolsa CNPQ. Nos dois estudos, cumento-monumento implica em pensar a
utiliza-se a genealogia como metodologia e materialidade das práticas de produção do

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mesmo, em um jogo específico de forças Há uma ordem do discurso que é


é um acontecimento cuja possibilidade de transformada e produzida como efeito de
emergência é única, singular. Sendo assim, controles sociais, de práticas sociais de po-
entendemos os documentos-monumentos der-saber que se efetuam por meio de leis,
como acontecimentos dispostos em um jogo de documentos, de textos em jornais, de
múltiplo, marcado por práticas políticas, uma arquitetura, de fotos, de repartições de
econômicas, culturais, sociais e históricas. saberes e de espaços geridos de modo disci-
Na análise-documental, o genealogista ana- plinar. Um documento é um regime de ver-
lisa as descontinuidades dos acontecimen- dade e um efeito de poder, sustenta práticas
tos, a produção e as resistências nas lutas e é uma prática correlata a outras vizinhas.
que não cessam. Para Foucault (1979b), a genealo-
Os documentos não são retratos fiéis gia é documentária e cinza porque atua na
de uma suposta realidade e, muitos menos minúcia da análise histórica sem ideais, por
são neutros e imparciais. Eles têm história e isso, se coloca nos entremeios tateando e
resultam de lutas e disputas políticas hetero- deslocando o que parecia evidência, explici-
gêneas. Devemos lembrar que “só há cons- tando as vilanias e as batalhas travadas para
tituição de um documento e de seu armaze- que um objeto emerja e ganhe visibilidade
namento em um arquivo a partir da entrada política.
em cena de práticas de poder sobre os cor-
Descrever mesmo que brevemente
pos” (Lemos et al, 2010, p. 107). Assim, os
o trabalho de análise de poder-saber usado
Projetos de Leis analisados são, aqui, pensa-
na perspectiva genealógica é de substancial
dos como documentos produzidos em uma
importância para que o leitor possa enten-
relação de poder específica. Possuem uma
der porque trabalhamos com os conceitos
história não linear e são efeitos de práticas
de biopoder, de biopolítica e de disciplina
datadas em um tempo e em um lugar.
como contribuições de Michel Foucault e
a relevâncias das mesmas para as reflexões
Gostaria de mostrar quais são as formas
propostas nesse artigo.
de práticas penais que caracterizam essa
sociedade; quais as relações de poder A genealogia nos permite desnatu-
subjacentes a essas práticas penais; quais as ralizar e marcar os acontecimentos que são
formas de saber, os tipos de conhecimento,
as condições de possibilidades de emergên-
os tipos de sujeito de conhecimento que
cia e proveniência de um objeto Pol-Droit
emergem, que aparecem a partir e no espaço
desta sociedade disciplinar que é a sociedade (2006). É um processo de insurreição de
contemporânea. (Foucault, 2011, p. 79) saberes que foram sujeitados e de abertura

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de campos de possibilidades reduzidos pelo direitos de uma ciência detida por alguns.
(Foucault, 1984, p. 268)
controle social disciplinar e biopolítico.
Trata-se, de fato, de um de questionamento,
de uma postura analítica e ética do pesqui- Problematizar consiste em descrever

sador de estranhamento constante com uma as relações de poder exercidas e materiali-

preocupação histórica com os intoleráveis zadas em uma determinada sociedade, im-

do presente em que vive. Pol-Droit (2006) plica em pensar que saberes são desquali-

publica o que Foucault, quando questionado ficados na política sobre drogas quando se
decide pela internação compulsória e não
sobre o seu fazer, respondeu:
pela redução de danos, por exemplo. Ain-

Eu sou um pirotécnico. Fabrico alguma da podemos destacar que há saberes das


coisa que serve, finalmente, para um cerco, humanidades e de movimentos sociais de
uma guerra, uma destruição. Não sou a educação popular em saúde que foram dei-
favor da destruição, mas sou a favor de que
xados de lado ou, no mínimo, desprezados
se possa passar, de que se possa avançar,
no lançamento do Plano crack: é possível
de que se possa fazer caírem os muros. Um
vencer, pois, a ênfase desse plano foi uma
pirotécnico é, inicialmente, um geólogo. Ele
olha as camadas do terreno, as dobras, as perspectiva biomédica e neurofisiológica
falhas. O que é fácil cavar? O que vai resistir? em termos de explicação do uso e das con-
Observa de que maneira as fortalezas estão seqüências do uso do crack.
implantadas. Perscruta os relevos que
Assim, podemos explicitar ao leitor
podem ser utilizados para esconder-se ou
que a genealogia é uma ferramenta interes-
lançar-se de assalto. Uma vez tudo isto bem
delimitado, resta o experimental, o tatear. sante para estudos documentais e para des-
(...) O método, finalmente, nada mais é que crevermos e analisarmos relações de saber
esta estratégia. (Pol-Droit, 2006, p. 69-70) e de poder, tais como o biopoder na política
de internação compulsória, que é a temática
A genealogia, para Foucault (1984), desse artigo e das pesquisa em andamentos
é um trabalho de insurreição de saberes: que realizamos na graduação e na pós-gra-
duação, em psicologia.
Trata−se de ativar saberes locais,
descontínuos, desqualificados, não
Penalidade e disciplina docilizadora
legitimados, contra a instância teórica
unitária que pretenderia depurá−los,
hierarquizá−los, ordená−los em nome de Foucault situa a reforma do sistema
um conhecimento verdadeiro, em nome dos jurídico-penal como um dos elementos que

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possibilitaram a formação da sociedade dis- promove um dano social, uma perturbação,


ciplinar, durante os séculos: XVII e XVIII. um incômodo (Foucault, 1996). Esse deslo-
Tais transformações perpassam, inicialmen- camento forja ressonâncias na produção de
te, “por uma reelaboração teórica da lei pe- subjetividade, na medida em que inventa a
nal” (Foucault, 1996, p. 80). A primeira re- figura do criminoso.
elaboração que pode ser tomada como um O criminoso, agora, é entendido en-
princípio fundamental deste sistema teórico quanto o inimigo da paz social, o pertur-
apontado pelo autor diz respeito à suposta bador da ordem social. “O criminoso é um

natureza do crime, deslocando-o de uma vi- inimigo interno” (Foucault, 1996, p. 81). Re-

são moralista para a perspectiva positivista definidos o papel e a função da lei, a noção

do Direito e atualizada na Política Crimi- de crime e a concepção de criminoso, qual

nal. Na citação, abaixo, podemos visualizar seria, então, o papel da pena nesses termos

como os juristas passam a pensar o crime apresentados? Para tal, Foucault responde:

por meio do discurso penal delimitado le-


A lei penal deve apenas permitir a reparação
galmente e só poderia existir nesse âmbito e
da perturbação causada à sociedade. A lei
não apenas por elementos do campo moral- penal deve ser feita de tal maneira que o dano
-religioso como era no direito natural, ante- causado à sociedade seja apagado; se isso não
riormente. for possível, é preciso que o dano não possa
mais ser recomeçado pelo indivíduo em
questão ou por outro. A lei penal deve reparar
O crime ou a infração penal é a ruptura com
o mal ou impedir que males semelhantes
a lei, lei civil explicitamente estabelecida no
possam ser cometidos contra o corpo social.
interior de uma sociedade pelo lado legislativo
(Foucault, 1996, p. 82)
do poder político. (...) Para que haja infração é
preciso haver um poder político, uma lei e que
essa lei tenha sido efetivamente formulada. Neste sentido, Foucault aponta qua-
Antes da lei existir não pode haver infração tro punições propostas pelos teóricos da
(Foucault, 1996, p. 80) época: a deportação, a vergonha pela pu-
blicação do crime cometido, o trabalho for-
Outro princípio exposto diz respei- çado e a pena de talião. Estas são as penas
to ao papel da lei penal. A lei, distante da apresentadas pelos teóricos e legisladores
“falta”, deve representar uma utilidade para da época. Porém, ao analisar o desenvol-
a sociedade. Deve definir ações que são no- vimento e o funcionamento da penalidade
civas ao conjunto social. O crime, assim, pouco tempo depois, Foucault aponta para
passou a ser objetivado como um ato que um acontecimento novo, uma forma de pu-

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nição pouco mencionada e discutida nos referido interesse penal em definir os atos
textos analisados: a pena de aprisionamen- em termos de risco/perigo; classificando-os
to, de prisão. Para o autor: como nocivos ou não à sociedade. Uma vez
avaliado o ato como dano social, uma das
Não só a prisão - pena que vai efetivamente punições é o afastamento da sociedade dos
se generalizar no século XIX - não estava
indivíduos classificados como perigosos da
prevista no programa do século XVIII,
mesma. Afirma Foucault:
como também a legislação penal vai sofrer
uma inflexão formidável com relação ao
que estava estabelecido na teoria. (Foucault, Toda a penalidade do século XIX passa a ser

1996, p. 84) um controle, não tanto sobre se o que fizeram


os indivíduos está em conformidade ou não
com a lei, mas ao nível do que podem fazer,
Para Foucault (1996), a legislação do que são capazes de fazer, do que estão
penal vai se desviar do que os reformado- sujeitos a fazer, do que estão na iminência
res entendiam como utilidade social da pena de fazer. (Foucault,1996, p. 85)

para promover um ajustamento e uma corre-


ção, conforme a citação acima aponta. Fou- Então, decidiu-se não mais aplicar a
cault ressalta que a prisão é uma instituição legislação penal sobre um ato apenas, mas
disciplinar e não era alvo do debate dos pe- juntamente retribuir o dano promovido pelo
nalistas na reforma da legislação penal. O ato criminoso. Existe, a partir desta nova
inquietava estudar porque a prisão se torna racionalidade penal, um esforço maior em
a pena prioritária e porque ela também pas- criar uma noção de pena condizente com a
sou a funcionar no regime de internação dos de sujeito que teria motivações, uma biogra-
corpos considerados desviantes da socieda- fia de desvios, o desenvolvimento de uma
de, também no plano das políticas de saúde, personalidade patológica. A virtualidade das
de assistência social e na educação. ações é investigada e julgada. Pergunta-se
Como exemplo deste deslocamento, se: pode este sujeito reincidir em sua atitude
o autor aponta o destaque crescente das “cir- criminosa? Sua pena deve ser prolongada?
cunstâncias atenuantes”, ou seja, a possibi- Deve ser reduzida? Quem é esse sujeito que
lidade de o juiz ou o júri modificar a penali- cometeu esse crime e que história ele teve?
dade aplicada ao indivíduo em julgamento, Nota-se que, a partir da relação cada
contradizendo o princípio de universalidade vez mais próxima entre norma e lei, entre
da lei enquanto representante dos interesses prisão disciplinar e pena corretiva, aumen-
sociais. Outro apontamento do autor é um ta-se o controle social preventivo por meio

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do que Foucault criticou como dispositivo para produzir verdade e punir. As práticas
de “periculosidade” e seus efeitos na produ- de poder funcionam disciplinando os cor-
ção do chamado sujeito-criminoso: pos, organizados os saberes, encaminhando
e docilizando os corpos de acordo com as
A noção de periculosidade significa que avaliações de peritos a respeito do campo
o indivíduo deve ser considerado pela
de segurança e de saúde atrelado ao risco e
sociedade ao nível de suas virtualidades e
ao perigo a ser gerido.
não ao nível de seus atos; não ao nível das
infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das A partir das problematizações de
virtualidades de comportamento que elas Foucault acerca dos deslocamentos nos fa-
representam. (Foucault, 1996, p. 85) zeres penais e disciplinares do século XVIII
e XIX fica claro que alguns elementos le-
Tais reformulações no fazer penal vam o autor a qualificar esta sociedade (e
são concomitantes a uma série de práticas sua forma jurídica) como sociedade discipli-
que passam a ofertar suporte disciplinar na nar: não somente o inquérito, mas o acrésci-
gestão do risco-perigo. O controle penal, a mo do exame; não mais investigar apenas a
vigilância e a correção dos indivíduos pas- verdade de um ato cometido, mas também
sam a ser diretrizes de uma rede, que passou corrigir as virtualidades dos comportamen-
a funcionar paralela ao sistema judiciário, tos dos indivíduos; não mais apenas a pe-
como a polícia, a escola, o hospital, o asilo, nalização do ato cometido, mas a correção
etc. Para Foucault: ao nível dos perigos das condutas; não mais
um poder irregular e descontínuo, mas a vi-
Toda essa rede de um poder que não é gilância permanente e o controle intensivo.
judiciário deve desempenhar uma das
Em Vigiar e Punir, Foucault (1999)
funções que a justiça se atribui neste
destaca que o poder disciplinar funciona
momento: função não mais de punir as
infrações dos indivíduos, mas de corrigir aumentando a produtividade dos corpos e
suas virtualidades. (Foucault, 1996, p.86) os docilizando politicamente para que se
tornem obedientes. A segregação pode ser
Outro deslocamento apontado pelo disciplinar e punitiva ao mesmo tempo para
autor diz respeito à produção da verda- corrigir e tratar seja na saúde e na seguran-
de e do fato penal em que o inquérito ten- ça; todavia, os mecanismos de controle dis-
de a ser articulado à tecnologia do exame. ciplinar não são apenas de isolamento na
Lei e norma são articuladas com a relação internação, podem ocorrer também em meio
entre o inquirir e o examinar em verdade aberto nas ruas, na comunidade e na famí-

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lia. O modo de disciplinar difere de acordo ção, em que a gerência dos corpos ocorre
com os objetivos e com as resistências ocor- com o governo da vida, deslizando entre a
ridas aos processos de adestramento. segurança, a penalidade, a prevenção médi-
No caso do uso de drogas legais e co-psicológica educativa, a performance do
ilegais, é colocada a questão da disciplina corpo, a produção em avaliações e no tra-
no campo da saúde, da educação, da famí- balho, o tratamento de doenças e anestesia
lia, da segurança e do trabalho em termos de sentimentos, a estimulação de ações e os
de drogas que ajudam a fazer obedecer e prazeres.
de drogas que auxiliam a desobedecer. En- Dessa maneira, se instala uma ques-
tão, a pena poder ser pela venda e pelo uso tão, de que drogas e que usuários são alvo
também, mas não se esgota neles, pois, as das políticas de Estado? Por que a o uso
drogas podem ser parte do atendimento em de drogas acaba indo para o fundo fren-
saúde, do processo educativo, da punição, te ao legal e ao ilegal e em nome de quais
em práticas esportivas e do aumento de pro- interesses? Que indústrias entram em cena
dutividade no trabalho, por exemplo. e quais não podem entrar no mercado das
Há pessoas que são internadas pelo drogas? Por que se pode ficar anestesiado
uso de drogas e pessoas que são cuidadas com psicotrópicos e em nome de quais jo-
com drogas, pessoas que são punidas com gos de poder, de saber e por quais processos
tratamentos; ou seja, há especialistas que de subjetivação? Ora, são muitas perguntas
prescrevem drogas legais para usuários de que nos auxiliam a problematizar e a ana-
drogas ilegais, recomendam drogas para es- lisar que há muitas linhas de força, nesse
tudar e para dormir, para trabalhar e para diagrama e, que tentar reduzi-lo apenas com
controlar, para aliviar a dor e para anestesiar. a lógica explicativa causal e com a decisão
Vivemos em uma sociedade que pune a ven- política simplista de internação compulsória
da e o uso de algumas drogas e fomenta e lu- é um equívoco ou mesmo um paradoxo na
cra com o sistema de repartição do lícito e do sociedade atual, que afirma governar a vida
ilícito, disciplinando saberes e corpos tam- e cuidar da saúde.
bém com a administração de outras drogas.
Trata-se de um paradoxo da discipli- Racismo de Estado e de Sociedade:
na e da prescrição de controles na saúde e medicalização securitária
na segurança, na economia e na política, na
esfera do biopoder. Estamos falando de um Michel Foucault pronunciou suas
processo de medicalização e de judicializa- problematizações acerca do que é conhe-

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cido como “Racismo de Estado” em uma te, concluindo: “É essencialmente um direi-


aula no dia 17 de Março de 1976. O con- to de espada” (Foucault, 2005, p. 287).
junto de aulas apresentadas pelo pensador Foucault, então, percebe um deslo-
francês no ano de 1976 foi organizado no camento, uma modificação no direito po-
livro “Em Defesa da Sociedade”. O autor lítico a partir do século XIX que o leva a
inicia sua aula propondo um fechamento pensar em uma inversão dos termos apre-
para o que foi trabalhado durante o ano, ou sentados: não mais fazer morrer e deixar
seja, a guerra das raças como um analisador viver. O direito político tornar-se-ia fazer
político-estratégico. Sua conclusão é que o viver e deixar morrer. Para dar luz à infle-
tema da raça não desapareceria, pelo contrá- xão apresentada, o autor faz suas análises
rio, seria retomado pelo racismo de Estado. não problematizando a teoria política, “mas,
Esse processo ocorreria por alguns motivos. antes, o nível dos mecanismos, das técnicas,
Em primeiro lugar, Foucault cita a entrada das tecnologias de poder” (Foucault, 2005,
da vida nos jogos de poder, ou: p. 288). Desse modo, a biopolítica é a de-
cisão de fazer viver alguns e deixar morrer
[...] uma tomada de poder sobre o homem, outros.
enquanto ser vivo, uma espécie de
No século XVII e XVIII, Foucault
estatização do biológico ou, pelo menos,
analisa técnicas e procedimentos de poder
uma inclinação que conduz ao que se
poderia chamar de estatização do biológico. focados no corpo individual, que têm por
(Foucault, 2005, p. 286) efeito a produção de corpos dóceis: corpos
potencializados em sua força de produção
Para mostrar como isto se deu, Fou- através de exercícios e treinamentos, organi-
cault retoma o modelo político da soberania zados no tempo e no espaço, estudados em
e a dinâmica do poder sobre a vida nestes seus detalhes, sistematizados, vigiados, hie-
termos: o soberano é capaz de fazer mor- rarquizados e classificados. Tal conjunto de
rer ou deixar viver. Aponta que o direito de técnicas é trabalhado pelo autor como tec-
vida e de morte exercia um papel funda- nologia disciplinar do trabalho. No entanto,
mental, estando o súdito em uma condição a partir da segunda metade do século XVIII,
de neutralidade, haja vista sua existência ou Foucault aponta para o surgimento de uma
extinção estar vinculada ao poder exercido tecnologia de poder diferente da disciplinar
pelo soberano. Poder dissimétrico, diz Fou- e que não se destina a substituir esta, porém
cault, uma vez que o direito sobre a vida só complementá-la, modificá-la parcialmente,
era exercido a partir do direito sobre a mor- somar-se com. Tecnologia esta que possui

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outro alvo: não mais o corpo singular, mas o ma, etc.) ou os meios produzidos pela pró-
corpo-espécie, o corpo enquanto massa glo- pria vida humana: o problema das cidades.
bal de uma sociedade, influenciada por pro- Foucault vai apontar alguns ele-
cessos da própria vida, como o nascimento, mentos desta transformação que considera
a morte, a doença, a produção, entre outros. importante, a saber: o aparecimento de um
Foucault, sobre essa transformação: corpo novo, a população, enquanto proble-
ma político e científico; uma modificação
Depois da anátomo-política do corpo na natureza dos fenômenos: não mais fe-
humano, instaurada no decorrer do século
nômenos individuais, mas fenômenos cole-
XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo
tivos e; a implantação de mecanismos que
século, algo que já não é uma anátomo-
política do corpo humano, mas que eu possuem funções diferentes dos mecanis-
chamaria de uma “biopolítica” da espécie mos disciplinares: a biopolítica vai se ocu-
humana. (Foucault, 2005, p. 289) par de fenômenos globais e intervir no que
existe de global nos fenômenos (estímulo na
Este conjunto de processos está rela- natalidade, aumentar a expectativa de vida
cionado à tentativa de dar conta de questões da população) através de regulamentações,
como os nascimentos, as mortes, a longevi- de estabelecimento de médias, de mecanis-
dade, as doenças, a partir de técnicas como mos de previdência, de otimização da vida
a estatística, a demografia, o controle de na- (Foucault, 2005).
talidade, a medicina social, a higiene públi- É valido relembrar que estes con-
ca, entre outros, visando responder a proble- juntos de mecanismos disciplinares e re-
mas que afetam diretamente a capacidade e guladores não são excludentes, mas atuam
o custo de produção, seja pela redução da articuladamente, uma vez que incidem em
capacidade na força de trabalho, no tempo níveis diferentes do corpo: corpo-organismo
de trabalho ou pelo custo dispensado no (disciplina) e corpo-população (biopolítica).
tratamento das doenças. Preocupação esta E é justamente este ponto de articulação en-
também estendida aos idosos, aos acidenta- tre estas tecnologias de poder que Foucault
dos, aos anormais. Estes processos tentarão atribui à norma. A norma é o que possibilita
aumentar a vida, controlar as eventualida- um corpo a ser disciplinado e a população a
des, os acidentes, as deficiências. Tentarão, ser regulamentada. É a partir desta articula-
por último, dar conta da relação da espécie ção que é possível pensar, para o autor, uma
humana com as condições do meio em que definição mais exata de sociedade de nor-
habitam, sejam estes naturais (pântanos, cli- malização:

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Couto, A.; Lemos, F.; Couto, M.

A sociedade de normalização é uma dos modernos, atuando pela via da biologi-


sociedade em que se cruzam, conforme uma
zação cientificista. Em primeiro lugar ele
articulação ortogonal, a norma da disciplina
tem por função fragmentar a população em
e a norma da regulamentação. Dizer que o
poder, no século XIX, tomou posse da vida, raças, grupos, alguns melhores e outros in-
dizer pelo menos que o poder, no século feriores; em segundo lugar, possui uma fun-
XIX, incumbiu-se da vida. (Foucault, 2005,
ção legitimadora, de aceitabilidade do ex-
p. 302)
termínio do outro, a partir da lógica de que,
para que eu-espécie possa viver, é necessá-
Foucault, após apresentar como esta
rio que o outro-espécie-inferior não sobre-
transformação no direito político se passou
viva, é necessário que os perigos externos e
e apresentar caminhos possíveis no fazer vi-
internos sejam eliminados:
ver, problematiza o outro lado da moeda: o
deixar morrer. Afinal, não seria um parado-
A morte do outro não é simplesmente a
xo esta relação? Como um poder cujo obje-
minha vida, na medida em que seria minha
tivo é potencializar a vida pode permitir o
segurança pessoal; a morte do outro, a
seu avesso, o ponto de fuga deste poder, o morte da raça ruim, da raça inferior (ou do
seu limite, o ponto onde o poder não pode degenerado, ou do anormal), é o que vai
ser exercido, a saber, a morte? Eis aí a inter- deixar a vida em geral mais sadia; mais

venção do racismo de Estado e sociedade, sadia e mais pura (Foucault, 2005, p. 305)

mecanismo que só fora possível pela emer-


gência do biopoder. Sobre o racismo, Fou- Neste sentido, o autor afirma: “A
cault aponta: raça, o racismo, é a condição de aceitabili-
dade de tirar a vida numa sociedade de nor-
Com efeito, que é o racismo? É, primeiro,
malização” (Foucault, 2005, p. 306). Para
o meio de introduzir afinal, nesse domínio
o Estado poder matar ou deixar morrer é
da vida de que o poder se incumbiu, um
corte: o corte entre o que deve viver e o que necessário que acione o racismo. Foucault
deve morrer. (...) Em resumo, de estabelecer alerta para as mortes possíveis nos Estados
uma cesura que será do tipo biológico no
modernos nas sociedades de normalização,
interior de um domínio considerado como
sendo precisamente um domínio biológico.
onde funciona o biopoder em que está em
(Foucault, 2005, p. 304) jogo não apenas tirar a vida diretamente,
mas expor à morte, multiplicar o risco à
O racismo de Estado e de sociedade morte para alguns grupos, matar politica-
encarrega-se de algumas funções nos Esta- mente, excluir, rejeitar, expulsar, etc.

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Biopoder e Práticas Reguladoras do Uso de Drogas no Brasil: Algumas Análises de Projetos de Lei

Outro elemento a ser analisado no cina, da psiquiatria, da psicologia, entre ou-


aparecimento do racismo de Estado é o des- tros.
taque dado à teoria biológica evolucionista Nesse aspecto, podemos pensar que
do século XIX. O evolucionismo propor- internar e internar compulsoriamente e em
cionou uma possibilidade de pensar as co- lugares em condições precárias pessoas pelo
lonizações, as guerras, a criminalidade, a uso de drogas bem como aprisionar os que
loucura, a doença mental, as diferenças de comercializam drogas classificadas como
classes, etc. A relação do evolucionismo ilícitas são práticas que entrecruzam: disci-
com o racismo de Estado pode ser pensado plina policial-penal com biopolítica racista,
a partir da relação entre ciência e Estado, na vertente correção médico-psicológica
conhecimento científico “neutro” e legiti- securitária. A medicalização autoritária é
midade de ações, discursos e produção de mais presente na internação do que qual-

verdades. Ainda sobre o racismo, Foucault quer lógica terapêutica. Na pena de prisão

pensa a constituição e a gestão da crimina- para venda de drogas, o pequeno tráfico e

lidade e da loucura nos Estados que operam sua ponta se tornaram crimes intensamente

o biopoder: penalizados com recrudescimento cada vez


maior. Nas duas situações, medicalização e
Se a criminalidade foi pensada em termos de jurisdicionalização são articuladas por meio
racismo foi igualmente a partir do momento do dispositivo racista do biopoder.
em que era preciso tornar possível, num
mecanismo de biopoder, a condenação à
Projetos de Lei como práticas sociais
morte de um criminoso ou seu isolamento.
Mesma coisa com a loucura, mesma coisa medicalizadas e jurisdicionalizadas
com as anomalias diversas. (Foucault, 2005,
p. 308) Os Projetos de Lei aqui analisados
foram selecionados seguindo o critério da
É através do racismo de Estado e de atualidade. São projetos que sugerem alte-
sociedade que é possível legitimar a morte rações no plano da lei sobre drogas no Bra-
de um grupo, de uma raça, ou mesmo de sil. O Projeto de Lei nº 3.450 de 2012, de
um criminoso, de um louco. É operando o autoria do Sr. Alfredo Kaefer, pretende au-
contínuo biológico do duo corpo-organismo torizar o poder público a internar compul-
e corpo-espécie que emerge e constitui-se o soriamente crianças, adolescentes e adultos
racismo. Racismo este sustentado, muitas em situação de risco em função do uso de
das vezes, pelo arcabouço teórico da medi- drogas. O Projeto de Lei nº 4.871 de 2012,

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Couto, A.; Lemos, F.; Couto, M.

de autoria do Sr. Francisco Escórcio, preten- comportamento do infrator, que ele esteja
acometido de dependência química grave,
de acrescentar à Lei nº 11.343 de 2006: Lei
o juiz poderá, de ofício ou a requerimento
de Drogas, especificamente em seu vigési-
da autoridade policial ou do Ministério
mo oitavo artigo, encaminhamento (coerci- Público, determinar que seja o próprio
tivo ou não) à investigação pericial sobre o submetido, coercitivamente se necessário,
objeto dependência química para que o juiz a exame pericial. § 1.º. Se confirmada a
dependência, o juiz determinará a internação
possa, de acordo com os resultados da perí-
compulsória do infrator em instituição que
cia técnica, determinar ao infrator a pena de
atenda usuários ou dependentes de drogas,
internamento compulsório. pelo prazo determinado no laudo pericial.
A primeira problematização que (Projeto de Lei nº 4.871 de 2012, de autoria

gostaríamos de interrogar é o fato de que os do Sr. Francisco Escórcio)

Projetos de Lei estar organizados e sustenta-


dos pelo saber-poder das ciências humanas Passetti (1991) ajuda-nos a pensar a
e da saúde. As ciências “psi” aparecem, his- relação ciência-Estado e a construção dos
toricamente, enquanto discursos legitimado- “problemas sociais”, força importante no
res da gestão das condutas dos usuários de avanço da administração do cotidiano pelo
drogas no Brasil. Vê-se, assim, dois movi- Estado:
mentos que devem ser destacados: a cons-
trução dos “problemas sociais” e a “resolu- Assim, a ciência aparece construindo,
esquadrinhando, propondo e definindo os
ção” destes problemas criados. Para ilustrar:
problemas sociais em áreas específicas,
através de estudos interdisciplinares, com
Art. 1º. Esta lei autoriza o Poder Público a o objetivo de conter e administrar soluções
internar, compulsoriamente, as crianças, os possíveis. Batalhões de cientistas dos
adolescentes e adultos usuários de drogas mais diversos ramos do saber, diretamente
e em situação de risco, para tratamento vinculados a órgãos criados, recriados ou
médico especializado. (...) §1º A Comissão recém-criados, sob as variadas concepções
referida no caput será composta de três de mundo, se aninham ou se vinculam ao
membros com notória experiência acerca da Estado para, dotados de verbas, encontrarem
dependência química, sendo pelo menos um as soluções plausíveis. (Passetti, 1991, p. 15)
deles médico, nos termos regulamentares.
(Projeto de Lei nº 3.450 de 2012, de autoria
do Sr. Alfredo Kaefer)
Foucault (2011) problematiza a fun-
ção dos discursos de verdade na sociedade

Art. 28–A. Em havendo indícios, pela disciplinar enquanto suporte para o sistema
natureza da substância apreendida e pelo penal que se instaura:

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Biopoder e Práticas Reguladoras do Uso de Drogas no Brasil: Algumas Análises de Projetos de Lei

Penso ainda na maneira como um conjunto tráfico de drogas) ou pela via da correção-
tão prescritivo quanto o sistema penal
-internação, modelo de tratamento impos-
procurou seus suportes ou sua justificação,
primeiro, é certo, em uma teoria do direito, to ao usuário enquanto penalidade para o
depois, a partir do século XIX, em um ato de se drogar.
saber sociológico, psicológico, médico,
psiquiátrico: como se a própria palavra da
Um dos mais graves problemas que assolam
lei não pudesse mais ser autorizada, em
o nosso país é o flagelo das drogas e, mais
nossa sociedade, senão por um discurso de
verdade. (Foucault, 2011, p.18-19) recentemente, mas de forma avassaladora,
do “crack”, que se revelou uma substância
com poder de destruição que poderíamos
Assim, nos Projetos de Lei aqui
classificar como devastador. (Projeto de Lei
analisados, observamos uma atualização
nº 4.871 de 2012, de autoria do Sr. Francisco
da relação Estado-ciência na construção
Escórcio)
e gestão do problema da droga no Brasil.
As ciências da saúde sustentam e reafir-
Quando Estado e sociedade situam
mam um sistema de disciplinamento pela
nas drogas, em especial, nas ilícitas e naque-
correção das condutas desviantes (uso de
le que delas faz uso como um dos mais gra-
drogas). Correção esta que também é cam-
po destes saberes, uma vez que a interna- ves problemas que assola o país; podemos

ção compulsória é a medida sugerida, em perceber o quanto o racismo está presente.


ambos, para tratamento e ajustamento dos Encontramos um corte possível dentro da po-
indivíduos. pulação: aqueles que usam e produzem pro-
Outra força que atua na gestão dos blemas considerados indesejáveis à nação e
comportamentos dos usuários de drogas aqueles que não usam, portanto, sofrem com
no Brasil é a demonização da droga, do
as consequências dos atos dos primeiros. Re-
traficante e do usuário. O problema das
tomando as análises de Foucault, temos:
drogas vai ser encarado como um fator
que impede o desenvolvimento do país,
A morte do outro não é simplesmente a
situando nos sujeitos envolvidos nesta tra-
minha vida, na medida em que seria minha
ma a noção de “inimigo a ser combatido”,
segurança pessoal; a morte do outro, a
seja pela via da criminalização-penaliza- morte da raça ruim, da raça inferior (ou do
ção (observamos cotidianamente progra- degenerado, ou do anormal), é o que vai
mas de televisão, jornais e afins claman- deixar a vida em geral mais sadia; mais
do por maiores e “melhores” penas para o sadia e mais pura. (Foucault, 2005, p. 305).

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Couto, A.; Lemos, F.; Couto, M.

A análise de Foucault sobre as virtu- sensível da criminalidade, visto que muitos

alidades dos atos também pode ser eviden- dependentes buscam no crime as condições
financeiras para o sustento de seu vício.
ciada nas justificativas dos Projetos de Lei.
(Projeto de Lei nº 4.871 de 2012, de autoria
Observamos uma racionalidade que situa o do Sr. Francisco Escórcio)
usuário de drogas enquanto um perigo para
si e para a sociedade, uma vez que todo uso
Conclusões provisórias
de drogas (ilícitas) vai ser entendido como
danoso. O usuário é produzido enquanto
Na análise dos Projetos de Lei, po-
sujeito perigoso, que deve ter suas virtuali-
demos perceber articulações possíveis entre
dades corrigidas, deve retornar à norma, em
a gestão das condutas dos usuários de dro-
função de apresentar um perigo potencial.
gas, a dinâmica das virtualidades dos com-
Deve ser corrigido ao nível de suas virtuali-
portamentos associados ao uso (e seu trata-
dades no presente, em busca de uma norma-
mento) e o racismo de Estado e sociedade,
lização no futuro.
enquanto produtor de segregações, de cortes
dentro da população, legitimadores do “dei-
Ora, receber “socorro em quaisquer
circunstâncias”, inclui, evidentemente, a xar morrer” (morte política, exclusão) ca-
intervenção indispensável do Poder Público racterísticos do que identificamos enquanto
num momento em que o jovem é encontrado sociedade de normalização.
se drogando, situação que coloca em risco
O usuário vai sendo produzido en-
sua vida. (Projeto de Lei nº 3.450 de 2012,
de autoria do Sr. Alfredo Kaefer)
quanto sujeito potencialmente perigoso para
si e para os outros. Logo, em nome de sua
própria vida (capturada enquanto integri-
Por último, a racionalidade também
dade “física e mental”) e em nome da so-
é produzida a partir da noção médico-psi-
brevivência do corpo-espécie, legitimam-se
cológica de que o usuário de drogas, em si-
políticas de exclusão, de internamento em
tuação de abstinência (ausência de droga),
massa.
pode comprometer sua saúde e a saúde dos
O biopoder atualiza-se na dinâmica
outros quando procura retroalimentar sua
das forças do “problema” droga: discipli-
suposta ação, nomeada de maneira patologi-
zante como compulsão. Evidenciamos estes nando o corpo-organismo, pela vigilância

elementos na citação, abaixo: ao excesso (exame pericial, exames de san-


gue) e a obrigação da reforma, na punição

Essa verdadeira legião de desassistidos, pelo tratamento enquanto penalidade para o


inclusive, vem contribuindo para o aumento uso de drogas não autorizadas pelo Estado

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Biopoder e Práticas Reguladoras do Uso de Drogas no Brasil: Algumas Análises de Projetos de Lei

e; regulamentando o corpo-espécie, o cor- Referências


po da população, governando, em nome da
sobrevivência da ordem social, o cotidiano Foucault, Michel. (1979a) “A política de

deixar morrer voltado para os grupos sub- saúde no século XVIII”. Microfísica
do poder. Rio de Janeiro: Graal.
jetivados enquanto perigos internos: os ma-
Foucault, Michel (1979a) “Nietzsche, a
táveis.
genealogia e a história”. In: Microfísica
Tais acontecimentos têm sido discu-
do poder. Rio de Janeiro: Graal.
tidos pela grande mídia nacional sensacio-
Foucault, Michel. (2011). A ordem do
nalista, por grupos de parlamentares e par- discurso. São Paulo: Edições Loyola.
tidos com fins eleitoreiros e com interesses Foucault, Michel. (1984). Microfísica do
econômicos. O sofrimento de familiares de poder. 25. ed. Rio de Janeiro: Graal.
usuários tem sido capturado em uma agenda Foucault, Michel. (1999). Vigiar e punir:

de retorno da internação com características a história da violência nas prisões.

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Foucault, Michel (1996). A verdade e as
e parlamentares que visam comercializar a
formas jurídicas. Rio de Janeiro:
saúde e segregar os refugos produzidos pela
Nau.
sociedade contemporânea.
Foucault, Michel. (2005). Em defesa da
Em resistência a esse processo, foi
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criada a Frente Nacional Drogas e Direitos Fontes.
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Federal de Serviço Social e a Ordem dos In: Pimentel, A.; Rodrigues, M.;
Nicolau, R. F., Lemos, F. C. S.
Advogados do Brasil, por movimentos so-
(orgs.) Itinerários de pesquisa em
ciais: Movimento de Luta Antimanicomial,
psicologia. Belém: Amazônia.
Movimento Nacional da População em Si-
Passetti, Edson. (1991). Das fumeries ao
tuação de Rua, Marcha da Maconha, pelas
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mídias alternativas de maneira mais crítica,
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Associações de pesquisadores e entidades Entrevistas. São Paulo: Graal.
de direitos humanos, entre outros.

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Couto, A.; Lemos, F.; Couto, M.

Artur Barbedo do Nascimento Couto: UNESP, Doutora em história/UNESP, Bol-


Psicólogo. Mestrando do Programa de Pós- sista de produtividade em pesquisa CNPQ
-Graduação em Psicologia da Universida- E: mail: flaviacristinasilveiralemos@
de Federal do Pará (UFPA). Conselheiro yahoo.com.br
do Conselho Regional de Psicologia da 10ª
Mariane Batista Bittencourt Couto: Pe-
Região (Pará e Amapá). Membro da Frente
dagoga/UEPA. Psicóloga/UFPA. Integrante
Paraense sobre Drogas e Direitos Humanos
da Frente Paraense sobre Drogas e Direitos
E: mail: arturcoutopsi@yahoo.com.br
Humanos
Flávia Cristina Silveira Lemos: Profa. adj. E: mail: maribatista07@hotmail.com
III em psicologia social/UFPA. Psicóloga/
UNESP, Mestre em psicologia e sociedade/
Recebido em: 16/11/2013 – Aceito em: 17/03/2014

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