Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
FACULDADE DE DIREITO
Apontamentos de
1994/1995
Professores:
٭Actualizados pelo Mestre Casimiro Pedro Davane, docente de Direito Processual Penal e Magistrado do Ministério Público, no
que respeita à legislação processual penal aprovada depois da entrada em vigor da Constituição da República de Moçambique de
2004.
1
APRESENTAÇÃO
No ano lectivo transacto – aquele em que se formou e pela primeira vez trabalhou em conjunto a
actual equipa docente de Direito Processual Penal – reconhecendo a exiguidade dos meios
bibliográficos postos à disposição dos alunos para o estudo das matérias incluidas no plano
temático da disciplina, preparámos e fomos distribuindo ao longo do semestre um conjunto de
apontamentos que serviu, basicamente, de “auxiliares na consulta das obras indicadas como
bibliografia”.
A experiência revelou-se amplamente positiva e justificou o esforço que teve, então, de ser
empreendido.
Decidimos, por isso, seguir este ano a mesma orientação, introduzindo, porém, algumas
modificações e melhorias no texto anterior, que nos foram solicitadas pelo acesso a novas fontes
bibliográficas.
Com a mesma advertência que, à guisa de introdução, deixámos expressa na primeira versão destes
“Apontamentos”- a de que eles não dispensam o estudo necessariamente mais profundo das
matérias, através da consulta dos manuais e compêndios referidos como bibliografia obrigatória –
esperamos ter prestado um bom serviço aos nossos estudantes.
Os docentes
2
I – NOÇÕES FUNDAMENTAIS
O Direito Penal (ou Direito criminal)1, considerado no seu sentido mais amplo2, constitui um
ordenamento jurídico complexo, que se reparte por três disciplinas, mas mutuamente
complementares: o direito penal substantivo (material), o direito processual penal (formal ou
adjectivo) e o direito da execução das penas (ou direito penitenciário).
Aqui, mais do que em qualquer ramo da ciência juridica, as relações entre o direito substantivo e
o direito adjectivo formam uma unidade tal que, o primeiro não pode realizar-se plenamente sem
o concurso do segundo. Na verdade - e de modo diverso do que sucede, por exemplo, com o
direito civil, que na maioria dos casos se realiza e aplica espontaneamente por livre vontade dos
interessados - , o direito penal não é de aplicação voluntária, só se efectiva por via de uma
actividade processual. Por isso, o art. 1° do CPP. Penal dispõe que “a todo o crime ou contravenção
corresponde uma acção penal, que será exercida nos termos deste código”.
Há, assim, uma relação de instrumentalidade necessária entre o direito processual penal e o direito
penal, que os distingue da conexão também existente entre os demais ramos de direito e os
respectivos processos. Isto resulta do facto de ser por meio do direito penal, globalmente
considerado, que o Estado cumpre a importantíssima função de proteger os valores fundamentais
da sociedade humana – entre as quais sobressaem o direito à vida, à integridade física e psíquica,
à liberdade sexual, à propriedade individual ou colectiva, à ordem pública, e outros - , função que
se expressa no dever de administrar e realizar a justiça penal. É o que se designa por jus puniendi
ou monopólio estadual da função jurisdicional.
Feitas estas considerações preliminares, podemos definir o direito processual penal como o
conjunto de normas jurídicas que disciplinam a aplicação do direito penal aos casos concretos,
pelos tribunais”3 ou, por outras palavras, como o conjunto de regras que asseguram “a realização
do direito penal substantivo, através da investigação e valoração do comportamento do acusado
da prática de um facto criminoso”4.
1
Sobre o debate em torno da designação mais adequada, veja-se, entre outros, Beleza, Teresa Pizarro, Direito Penal,
1° volume, AAFDL, Lisboa, 1980, pág. 17.
2
A que alguns autores chamam de direito penal (v. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, Reimpressão,
Coimbra, 1984, p.24).
3
Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. I, Lisboa, 1955, pág. 5.
4
Figueiredo Dias, op. cit. p. 28.
3
1.2. Direito Penal, Processo Penal e Direito Processual Penal
Já sabemos que o direito penal define, de um modo geral e abstracto, quais os factos ou
comportamentos humanos que devem ser considerados criminosos e quais as penas que lhes
correspondem.
Todavia, averiguar se, num dado caso concreto, um certo agente praticou um tipo legal de crime e
qual a sanção que lhe deve ser imposta, obriga a uma actividade que de modo nenhum pode ser
arbitrária, antes exige garantias de respeito pelos direitos individuais para que se obtenha uma
verdadeira realização da justiça penal.
Dissemos acima que o direito penal e o direito processual penal formam uma unidade, participam
do mesmo ordenamento jurídico, e que entre ambos prevalece uma relação de mútua
complementaridade. No desenvolvimento desta ideia, Cavaleiro de Ferreira escreve: “O direito
penal e o processo penal devem por isso ajustar-se aos mesmos princípios. Uma consideração
mais profunda da personalidade do delinquente, como é exigida pelo direito penal, permanecerá
letra morta se não for acompanhada da conformação do direito processual a idêntico fim”. As
modificações o direito penal substantivo acarretam assim, naturalmente, a conveniência da
alteração do direito processual (…). Mas se necessariamente o processo penal se deve conformar
ao espírito do direito penal vigente, por outro lado será impossível a execução do direito penal
sem um processo penal a ele adaptado”5.
Por outro lado, o direito processual exerce igualmente a sua influência na solução de certas
questões pertinentes ao direito penal substantivo. Assim, por exemplo, o actual movimento em
favor da ‹‹elitização e purificação do direito penal››, ao pretender que este só intervenha nos casos
de insuportável violação de bens fundamentais da comunidade é, sem dúvida, também
consequência da exigência processual de que os tribunais penais não sejam submersos por uma
multidão de infracções de duvidoso relevo ético-social7.
5
Cavaleiro de Ferreira, op. cit. .p. 18.
6
Exemplos apontados por Figueiredo Dias, op. cit. p.29
7
Idem,pág. 31.
4
Apesar destas mútuas influências, o certo é, porém, que não deixa de existir uma clara autonomia
entre o direito penal e o direito processual penal, resultante, desde logo, da diversidade dos
respectivos objectivos: o primeiro tem a ver directamente com a ordenação da vida em sociedade,
qualificando de forma geral e abstracta os comportamentos humanos em função dos valores
jurídicos que considera fundamentais para a comunidade e prescrevendo sanções para quem violar
esses valores; o segundo visa assegurar que os actos tendentes à decisão sobre a prática de um
crime e à aplicação da pena ao respectivo agente se realize com absoluto respeito pelos princípios
de justiça.
A função essencial do direito processual penal cumpre-se, como vimos, na decisão jurisdictional
de saber se foi praticado um crime e, em caso afirmativo, qual a consequência juridica que daí
deriva.
Por isso certos autores entendem que seu âmbito de aplicação se esgopta com trânsito em julgado
da sentença, já não abrangendo a fase de execução da pena, que teria índole puramente
administrativo. Outros, pelo contrário, sustentam que o direito de execução das penas se integra,
todo ele, no direito processual penal, pese embora a circunstância de à administração penitenciária
estar reservada uma esfera de actuação própria, que pode dizer-se livre da jurisdição.
Nesta última corrente se situa Figueiredo Dias, para quem, no entanto, é necessário distinguir a
regulamentação respeitante à determinação prática do conteúdo da sentença condenatória – e, por
conseguinte, à realização concreta da pena imposta - ,da regulamentação referente ao efeito
executivo da sentença (num sentido análogo àquele em que, no processo civil, se fala da
exequibilidade da sentença) e, consequentemente, aos preliminares ao controlo geral da excução
(incluindo os incidentes da execução. No primeiro caso, tratar-se-á de matéria substantiva e no
segundo, de matéria processual8.
Cremos poder concordar com este autor, tanto mais que, como ele próprio assinala, o C.P.Penal
vigente consagra um Título específico às execuções (o Título VIII do Livro II - arts.625 a 640) –
sem, todavia, abranger a parte respeitante às penas privativas de liberdade - , o que reforça o
argumento de ser esta, essencialmente, uma área de actuação do direito processual.
8
Fig. Dias. op.cit. p.37
5
1.4.O Objecto do processo penal
A estrutura do sistema processual penal vigente entre nós é, conforme veremos adiante9,
basicamente acusatória se bem que integrada por um princípio de investigação. Isso implica que o
tribunal só possa intervir quando solicitado por uma acusação formulada por uma entidade dele
distinta e independente (o Ministério Público), e que o conteúdo da acusação delimita a própria
actividade processual do tribunal.
Existe assim uma identidade essencial entre o conteúdo da acusação, a pronúncia e a sentença
final, que constitui importante garantia para o arguído, na medida em que só terá de defender-se
do que é acusado (e pronunciado) e só pelo que é acusado poderá ser julgado.
Disto resulta que a sentença final, salvo casos excepcionais que a lei expressamente prevê, só pode
condenar por factos constantes do despacho de pronúncia ou equivalenete. É o que dispõe o art.
447 do CPP:”O tribunal poderá condenar por infracção diversa daquela por que o réu foi
acusado, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos constitutivos sejam factos que
constem do despacho de pronúncia ou equivalente”, (o soblinhado é nosso).
No comentário a este preceito legal, Beleza dos Santos escreve: “Este limite imposto ao tribunal
de julgamento representa uma justa garantia para o réu e tem uma justificação fácil de ver. O réu
não deve ser surpreendido por uma imputação de factos feita na audiência de julgamento e tomada
em consideração na sentença, quando por tais factos não foi anteriormente pronunciado e não pôde,
por isso, organizar e deduzir a sua defesa a tal respeito, oferecer e produzir a respectiva prova, com
os prazos devidos. A lei ordena a notificação do despacho de pronúncia ou equivalente ao réu, sob
pena de nulidade (…) precisamente para que ele possa ter conhecimento dos factos que lhe são
imputados e com tempo necessário prepare a sua defesa. Por isso, haveria uma flagrante
incoerência e um manifesto contrasenso na lei se ela permitisse que o réu fosse condenado por
factos diversos daqueles que constassem da acusação de que foi notificado e de que lhe deram
cópia, por factos que ele desconhecia e que viriam a ser imputados na audiência de julgamento e
na sentença”.10
Pode, pois, concluir-se que o objecto do processo penal é o facto (ou comportamento humano)
concreto, na sua existência real, que importa averiguar e cuja verificação é pressuposto da
aplicação da pena11.
9
V. supra “A estrutura fundamental do processo penal em Moçambique”, ponto II, 5.2.
10
- in A sentença condenatória e a pronuncia em processo penal, Rev. de Legis. Jurisp., 63°Ano, págs. 385 e segts.
11
- ou, na definição de José da Costa Pimenta, “… é um conjunto de factos humanos, devidamente situados no tempo
e no espaço, que integram os pressupostos de que depende a aplicação ao seu autor de uma pena ou medida segurança
criminais” (in Introdução ao processo penal, Almedina, Coimbra, 1989, pág. 22)
6
O objecto do processo penal não se apresenta delimitado desde o início deste. É susceptível de
diferentes graus de apreciação, consoante a evolução que o próprio processo vai tendo, quer dizer,
de acordo com as fases em que se desenvolve. A um primeiro juízo de suspeita sobre o facto,
segue-se uma fase instrutória destinada precisamente a obter a confirmação desse juízo de suspeita.
Com a acusação e pronúncia, o juízo de suspeita transforma-se num juízo de probabilidade. Por
último, para que a decisão final seja condenatória é necessária a formulação de um juízo de certeza
sobre o facto objecto do processo12. É no momento da passagem do juízo de supeita para um juízo
de probabilidade – com o trânsito em julgado do despacho de pronúncia ou equivalente – que se
fixa , em termos definitivos, o objecto do processo.
Vimos acima que o processo penal visa a aplicação do direito penal substantivo aos casos
concretos. Essa função instrumental que lhe é característica exprime-se de forma simples nestas
duas máximas latinas: impunitus non relinqui facinus (nenhum criminosos deve ficar sem punição)
e innocentum non condemnari (nenhum inocente deve ser condenado).
De acordo com uma certa maneira de encarar o direito, e o processo penal em particular, a aludida
natureza instrumental impõe a este, como fim a prosseguir, a ideia de realização da justiça, que só
é possível obter com a descoberta da verdade material e o restabelecimento da paz juridica violada.
Certo é, todavia, que a realização da justiça do mesmo modo que a segurança do direito e a verdade
material – todas elas categorias axiológicas por certo compreendidas no fim ultimo do processo
penal- não podem ser estimadas como valores absolutos, antes devem entender-se na sua referência
a cada caso historicamente determinado. Tanto assim é que, frequentemente,estes valores entram
em conflito uns com os outros.
Com efeito, quantas vezes institutos como o do caso julgado, ou princípios como o in dubio pro
reo, de aplicabilidade mais do que reconhecida no processo penal, conduzem, na prática, a
condenações e absolvições materialmente injustas, em nome da segurança juridica das respectivas
decisões …No entanto, esta mesma segurança juridica tem, noutras ocasiões, de ceder perante as
exigências da ideia de justiça, como acontece no recurso de revisão (art. 673 e segs. do CPP) e na
chamada “suspensão e anulação de sentenças injustas ou ilegais” ( art. 38, alíneas c) e d), da lei n.
10/92, de 6 de Maio). Por outro lado, o princípio da verdade material sofre, também ele, evidentes
restrições – em homenagem agora à salvaguarda dos direitos fundamentais - , como acontece com
a prova da verdade dos factos no crime de difamação (art.400 do CP) ou quando se proibem certos
12
Sobre a distinção entre juízos de suspeita, de probabilidade e de certeza, v. Cavaleiro de Ferreira, op. cit. págs.33 e
II Volume, pág. 283.
7
meios de prova designadamente a narcoanálise 13o uso de detectores de mentiras, registo de sons,
entre outros, não autorizados.
O fim do processo penal deverá, pois, ser alcançado a partir de uma adequada ponderação destes
valores em conflito permanente, no sentido de saber qual deles, em concreto, haverá que dar
preferência14.
Seguindo o ensinamento de Figueiredo Dias, podemos então dizer que o fim do processo penal
consiste em obstar a insegurança do direito que necessariamente existe ‹‹antes›› e ‹‹fora››daquele
(processo), declarando o direito do caso concreto, i.é, definindo o que para este caso é, hoje e aqui,
justo”15.
Para uma certa corrente de pensamento jurídico16, desenvolvida entre os finais do século XIX, e o
começo do séc. XX, a existência de distintos ramos do direito processual – de que são exemplo o
processo civil, o processo penal, o processo administrativo, o processo fiscal, o processo
constitucional, entre outros, - com princípios básicos semelhantes, idêntica estrutura fundamental
e problemas comuns ou análogos, justificaria o surgimento de uma nova ciência, que se ocupasse
da teoria geral do processo.
Os seus defensores não conseguiram, porém, escapar às críticas que lhes foram endereçadas, a
principal das quais reside no facto de que a teoria geral “… opera com abstracções, no mundo dos
conceitos, esquecendo a vida e a realidade social. É capaz de construir um direito lindo que dê
autogratificação aos seus elaboradores, mas inadequado a resolução dos problemas concretos”17.
Não obstante a inconveniência de elaboração de uma teoria geral do processo, deve reconhecer-se
a utilidade de estabelecer a comparação entre processo penal e o processo civil, quer por se tratar
de dois tipos processuais inteiramente jurisdicionalizados – ou seja submetidos ao domínio da
13
Técnica consistente na administração, a uma pessoa, de narcóticos ou produtos equiparados que, conduzindo a um
estado de adormecimento, implica uma consequente perda do domínio da vontade.
14
Esta não é uma questão que apenas tem a ver com o direito processual penal, mas que se prende com a própria
filosofia do direito.
15
Op.cit. pág. 46; v.também, sobre este ponto, José da Costa Pimenta, op. cit. pág. 21.
16
Estamos a referirmo-nos ao direito que se desenvolveu na Europa ocidental, que forma o chamado sitema roma-
germânico, a cuja família pretence o direito português e, por via dele, o direito moçambicano.
17
V. José da Costa Pimenta, op. cit. pág. 36; Figueiredo Dias, op.cit. pág. 54.
8
actividade jurisdicional, quer porque, por força da lei18, o processo civil funciona como direito
subsidiário relativamente ao processo penal.
Destes três princípios elementares de distinção entre o processo civil e o processo penal
resultam outras diferenças que importa salientar: em processo penal, contrariamente ao que
sucede no processo civil, não domina o princípio da auto-responsabilidade das partes em
matéria de prova e por consequência, é inexigível o ónus de provar, contradizer e impugnar;
em processo penal o juíz goza de uma ampla discricionaridade na apreciação dos factos que
constituem o objecto do processo, por força do princípio da investigação ou da verdade
material, o que não acontece no processo civil; entre os participantes, não existe em processo
penal uma verdadeira contraposição de ineteresses, pois, como veremos na altura devida, o
Ministério Público não actua no sentido de obter a condenação do arguido a qualquer preço,
mas está (como o acusador particular ou o próprio defensor) obrigado a um dever de
objectividade19 – contraposição de interesses existe, sim, entre as partes no processo civil.
18
V. art, 1, & Único do CPP: “nos casos omissos, quando as suas disposuções não possam aplicar-se por analogia,
observer-se-ão as regras do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicar-se-ão
os princípios gerais do processo penal”.
19
V. art. 12, &1°, do Decreto-lei 35007, de 13 de Outubro de 1945.
9
2.2.O Direito Processual Penal como parte do direito público
Do que atrás ficou dito, fácil é concluir que, tal como o direito penal, o direito processual penal é
um ramo do direito público. É direito público porque a prevenção e repressão da criminalidade,
através da administração da justiça, constitui tarefa exclusiva do Estado que a realiza no exercício
de uma das suas funções – a função jurisdicional.
Como ramo do direito público, o direito processual penal tem na sua base o conflito permanente
que opõe os interesses e exigências da comunidade constituida em Estado aos direitos e liberdades
fundamentais dos cidadãos. A solução deste conflito e dos problemas que lhe são inerentes
pressupõe em menor ou maior medida, uma limitação do poder do Estado e depende,
fundamentalmente, do estádio de desenvolvimento social e cultural da comunidade, do nível de
consciência juridica alcançada pelos seus membros, das concepções políticas de base e das formas
concretas de actuação do Estado.
Assim, numa concepção autoritária de Estado – como a que caracterizou a monarquia absolutista
dos séculos XVII e XVIII na Europa20, ou, mais recentemente, regimes como o nazí na Alemanha,
o fascista na Itália, o de Pinochet no Chile e muitos outros - , o processo penal é dominado
inteiramente pela ideia de interesse do Estado sem que aos interesses individuais das pessoas seja
concedido real valor autónomo. O arguído é aqui encarado como mero objecto de inquisição e não
como verdadeiro sujeito processual: em nome da soberania e dos superiores interesses do Estado,
nega-se-lhes o reconhecimento dos mais elementares direitos, nomeadamente dos que se prendem
com a sua protecção perante os abusos e a parcialidade dos poderes públicos, incluindo o poder
judicial.
A esta concepção corresponde grosso modo, o processo do tipo inquisitório que, em devido
tempo,estudaremos com maior detalhe. O que, em última instância, se pretende é “…impedir que
um excessivo respeito pelos direitos individuais conduza à impunidade dos malfeitores, que não
merecem – aos … olhos (do Estado) – as garantias dos cidadãos. O que o Estado procura em
primeira linha é a eficácia (nomeadamente da repressão) e para ele os fins quase sempre justificam
os meios…”.21.
20
Cuja expressão maxima terá sido atingida em frança, com Luís XIV (1613-1715) – o Rei Sol- e a sua célèbre
proclamação “L’État c’est moi”.
21
V. José da Costa Pimenta, op. cit. pág. 64.
10
O processo penal tem aqui como pressuposto uma oposição de interesses entre o Estado e o
indivíduo, colocados num plano de inteira paridade: perante o interesse do primeiro em perseguir
os crimes e punir os seus responsáveis, levanta-se o interesse do segundo (escudado no direito de
defesa e nas garantias individuais) em subtrair-se a qualquer medida privativa ou restritiva de
liberdade. Consequentemente, a estrutura do processo penal assenta nas ideias juridico-políticas
da separação dos poderes, da subordinação dos órgãos estaduais ao direito e à legalidade, do
reconhecimento dos direitos humanos e da participação popular na administração da justiça22,
aproximando-se bastante do processo civil: vigoram entre outros, princípios como o dispositivo, o
da verdade formal ou intrapocessual, o da auto-responsabilidade probatória das partes e o da
presunção de inocência do acusado até decisão judicial definitiva.
Por último, numa época historicamente mais recente (após a II Guerra Mundial), surgiu uma outra
concepção - a do Estado-de-Direito Social- para quem a relação comunidade-pessoa (ou Estado-
indivíduo) assenta em princípios que não coincidem nem com o absolutismo, nem com o
liberalismo. O Estado assume-se como ordenador e impulsionador de formas de vida comunitária,
que permitam ao indivíduo como ser social, a livre realização da sua personalidade e das suas
capacidades.
O processo penal estrutura-se como parte dessa ordenação comunitária: mais do que mero
instrumento do aparelho repressivo estadual (concepção autoritária), ou simples meio de protecção
dos direitos individuais face ao poder coercitivo do Estado (concepção liberal), ele desempenha
agora uma função eminentemente social, no sentido de que lhe cabe assegurar as necessárias
condições para a livre realização do homem, enquanto membro de uma dada comunidade.
A referência histórica que acabou de ser feita às diversas concepções políticas do Estado e à sua
conexão com os correpondentes modelos estruturais do processo penal mostra como este está tão
intimamente relacionado com o Direito Constitucional. De tal modo essa ligação é estreita que um
autor alemão, H. Henkel,23 considera o direito processual penal como verdadeiro direito
constitucional aplicado. Isto, não só porque os fundamentos daquele representam simultaneamente
os alicerces constitucionais do Estado, mas também porque a concreta regulamentação de
problemas essenciais do processo penal é, e deve ser, conformada com a Constituição.
22
José da Costa Pimenta, op. cit. pág. 67.
23
Citado por Figueiredo Dias, op. cit. págf.74.
11
Desta conformação jurídico-constitucional do processo penal resultam, como consequências:
Pesem embora tais limitações, são estes princípios gerais do processo penal que dão sentido à
vastidão de normas vigentes, orientação ao legislador, e permitem à dogmática, não apenas
explicar, mas sobretudo compreender os problemas do direito processual e caminhar no sentido da
sua superação.
A sistematização em grandes capítulos dos princípios gerais do processo penal tem por fim
proporcionar maior clareza e uma exposição didáctica ao desenvolvimento que se segue.
24
V. Supra, (ponto 6.3.1.) em que se traduz este princípio.
12
II – prossecução ou decurso processual: princípios da investigação, da contraditoriedade e
audiência, da suficiência e da concentração;
III- prova: princípios da investigação, da livre apreciação da prova e in dubio pro reo;
Ao debruçarmo-nos sobre este princípio, há que indagar, desde logo, a quem compete a iniciativa
(impulso) de investigar a prática de uma infracção e a decisão de a submeter ou não a julgamento.
Incide tal questão no sentido de se estabelecer se uma tal iniciativa deve pertencer a uma entidade
pública ou estadual – que persegue o interesse da comunidade, constituido em Estado, na
investigação oficiosa das infracções – ou antes, a quaisquer entidades particulares, designadamente
ao ofendido pela infracção.
Sendo o Direito Penal um direito de protecção dos bens fundamentais da sociedade e o processo
penal um assunto da comunidade jurídica, em nome e no interesse da qual se tem de esclarecer o
crime, perseguir e punir o criminoso, torna-se assim compreensível que a generalidade das
legislações actuais se paute no sentido de reputar a promoção processual das infracções tarefa
estadual a realizar oficiosamente e em completa independência da vontade e da actuação de
quaisquer particulares.
O princípio da oficialidade é, na verdade, uma conquista dos tempos modernos. No direito romano
vigorava o princípio da acção popular, segundo o qual qualquer pessoa (qui vis ex populo) poderia
deduzir a acusação penal. Poderia, à primeira vista, entender-se que se estaria perante uma
privatização extrema do processo penal: todavia, tal facto traduz-se no testemunho maior da
elevada consciência da co-responsabilidade de qualquer membro da comunidadde na
administração da justiça penal, Considerava-se na asserção de Montesquieu, que “cada cidadão
tem quase no seu poder todos os direitos da Pátria”.
13
No anterior direito germânico vigorava o princípio da acusação privada, que deixava a promoção
processual penal na vontade do ofendido, ou da família ou grupo a que pertencia.
No direito processual penal vigente o princípio da oficialidade pretende receber consagração plena.
A instrução preparatória acha-se por regra confiada a entidades oficiais sem funções jurisdicionais,
que devem promover oficiosamente o conjunto de diligências destinadas a provar a culpa ou a
inocência dos arguidos: (em regra ao Ministério Público – arts. 12 e 14 do Dec-Lei 35007, de
Outubro de 1945) que pode delegar em certos casos nas autoridades policiais (art. 16 ) e
excepcionalmente a outros entes públicos.
O Dec-lei 35007, através do seu art. 1°, acentua o carácter público da acção penal no sentido de
que o Estado é titular exclusivo da acusação penal, que exerce oficiosamente por intermédio do
M°P° (art. 16) ou, em casos particulares, (art.12) de outras entidades oficiais, como as autoridades
administrativas e outros organismos do Estado com competência para a fiscalização de certa
actividade ou da execução de regulamentos especiais.
De notar, porém, que este princípio da promoção oficiosa não se afirma sem limitações, que podem
ser de ordem legal ou de ordem jurisprudencial. São de ordem legal as derivadas da existência de
crimes semipúblicos e dos crimes particulares. As de ordem jurisprudencial advêm do facto de se
continuar a admitir amplamente a possibildade de os particulares assistentes acusarem por crimes
públicos, mesmo nos casos em que o M°P° se tenha abstido de acusar.
São crimes públicos aqueles em que o M°P° promove oficiosamente e por inciativa própria o
processo penal e decide com plena autonomia – observando, porém, estritamente o princípio da
legalidade - da submissão ou não de uma infracção penal a julgamento.
Crimes particulars, latu sensu, são aqueles em que a legitimidade do M°P° para por eles acusar
precisa de ser integrada por uma denúncia ou também por uma acusação particular.
Fácil é de compreender a ratio dos crimes particulars e mesmo semi-particulares (ou semi-
públicos) se se atentar ao facto de que certas infracções, certas formas de ofensas corporais, danos,
furtos,injúrias, não se relacionam com bens jurídicos fundamentais da comunidade de forma tão
directa, de tal sorte que aquela sinta a necessidade de reagir automaticamente contra o infractor.
Se o ofendido enteder não fazer valer a exigência da retribuição, a comunidade considera que o
assunto não merece ser apreciado em processo penal: isto por um lado.
14
Por outro lado, há que reter a ideia de que em certas infracções ( v. g. crimes sexuais, furto entre
parentes) a prossecução penal contra a vontade do ofendido pode ser inconveniente ou mesmo de
consequência negativa para interesses seus dignos de toda consideração, uma vez que se encontram
relacionados com a sua esfera íntima ou familiar. Face a tal conflito de interesses juridicamente
relevantes, o legislador optou por dar prevalência ao interesse do particular.
Para além destas razões, acresce, ainda, o princípio da legalidade, que vincula estritamente o M°P°
a dar acusação por todas as infracções cujos pressupostos considera verificados.
Não havendo, assim, limitações acima referidas e, por força do princípio da legalidade, poderia
resultar que os tribunais se vissem assoberbados por um elevado número de processos penais de
duvidoso valor e interesse comunitário.
A denúncia ou acusação particular são exigências do direito penal substantivo que se assumem
como verdadeiros pressupostos processuais (v. os seguintes dispositivos do C.P.: para a denúncia,
os arts. 359, &único; 360 &único;363,&único; 369, &1°; 379,&2°; 399, referido aos arts 391 e ss,
430 e &2°, 431, & 2°, 438,450&único, 451&2°,453&2°, 455&único, 472&1°,473 &único e 477;
para a cusação particular, os arts 254,&único; 363&único,in fine; 369,&2°,in fine;401,&&3°e
4°;404 e &1°.
Com o princípio da perseguição oficiosa das infracções visa o Estado corresponder ao seu dever
de administração da justiça penal, de onde resulta a condenação de todos os culpados, e somente
deles,da prática de uma infracção. Daqui se extrai que a peça fundamental deste processo – de
modo contrário ao que acontece no processo civil, onde se dá ao autor a faculdade de aquilatar da
oportunidade de propositura da acção – o princípio da legalidade.
Tal asserção encontra fundamento em dispositivos legais, designadamente os arts. 1, 165 e 349 do
CPP e 6 do DL 35007. De acordo com tais comandos normativos, o M°P° está obrigado a proceder
e dar acusação por todas as infracções de cujos pressupostos – factuais e jurídicos, substantivos e
processuais – tenha tido conhecimento e tenha logrado recolher, na instrução, indícios suficientes.
Em processo penal não há lugar a qualquer juízo de oportunidade sobre a promoção e prossecução
processual. Pelo contrário, a promoção e a prossecução do processo penal apresenta-se como um
dever para o M°P°, uma vez reunidos os seguintes requisitos: a) existência de pressupostos
processuais (v.g. competência e inexistência de obstáculos processuais como, por exemplo, a
imunidade); b) punibilidade do comportamento segundo o direito penal substantivo (v.g. ilicitude,
culpa, condições objectivas de punibilidade; c) conhecimento da infracção (art. 165 do CPP) e a
existência de indícios suficientes (art. 349 do CPP) ou prova bastante (a contrário sensu dos arts.
345 do CPP e 26 do do DL 35007) que fundamentam a acusação.
15
A actividade do M°P° desenvolve-se, assim, sob a estrita vinculação da lei – daí o princípio da
legalidade – e não segundo considerações de oportunidade (ex. de ordem política – raison d`Etat
- , ou financeira – custas).
O interesse do Estado neste princípio é de tal ordem, que o incumprimento do dever nele contido
poderá integrar uma infracção penal (arts. 287 e 288 do CP).
Como corolário lógico do princípio da legalidade no que respeita à acusação pública, resulta o
princípio da imutabilidade. De acordo com este princípio, a acusação não pode ser retirada a partir
do momento em que um tribunal foi chamado a decidir sobre ela. Por esta via está excluida a
renúncia à acusação (art. 18 do CPP) e, bem assim, a desistência dela. Ressalva-se, no entanto, a
eficácia do perdão dos ofendidos no caso dos crimes particulares ((art 3, &único do DL 35007) e
semi-públicos, exceptuando os casos em que a sentença condenatória haja transitado em julgado,
e ainda nos casos especialmente fixados por lei (art.125, &6° do CP).
Este princípio é dominante nos crimes públicos, em relação aos quais o M°P° não só tem a
obrigação de promover a acção penal, como o dever de com ela prosseguir depois de requerida.
O princípiopda legalidade impõe ao M°P° a obrigação de promover sempre a acção penal, desde
que existam os necessários elementos (art.165 do CPP). A este princípio opõe-se o princípio da
oportunidade, que dá ao M°P° competência para deixar de exercer a acção penal quando razões
de consciência pública assim o exijam, ou quando se trate de infracções de pequena gravidade.
Vem, assim, o princípio da legalidade em reforço e confirmação de uma máxima tão importante
como a da igualdade na aplicação do direito, máxima essa com foro constitucional na República
de Moçambique ( v. arts.35, 59 n°1, 234 n°2 e 236 da CRM de 2004).
16
Depreende-se destas normas que o titular público da acusação deve exercer os poderes conferidos
por lei sem atentar no estado ou na qualidade da pessoa ou nos interesses de terceiros. Ressalvam-
se, naturalmente, as limitações derivadas dos pressupostos processuais ou de condições de
aplicabilidade do próprio direito penal substantivo25.
O princípio da legalidade defende e potencia, neste contexto, o efeito da prevenção geral que deve
estar e continuar ligado não só à pena, mas a toda a dministração da justiça penal.
Um processo de tipo acusatório (seja ele puro, como v.g., o inglês clássico, ou esteja integrado por
um princípio de investigação) supõe – para além do princípio da acusação – a aceitação da
participação constitutiva dos sujeitos processuais na declaração do direito do caso.
No direito processual vigente em Moçambique – que, como todos sabemos, é basicamente o que
herdámos do direito português – nem sempre o princípio da acusação foi adoptado plenamente.
Basta reparar que o CPP, aprovado pelo Decreto n° 16489, de 15 de Fevereiro de de 1929, e
tornado extensivo às então colónias, atribuía ao M°P° competência para deduzir acusação ( art.349)
, mas em função de uma instrução preliminar (chamado corpo de delito), dirigida pelo mesmo juíz,
a quem depois caberia o julgamento (art.171 e segs). Este sistema só se alterou com a aprovação
do DL 35007, de 13 de Outubro de 1945, mais tarde posto igualmente em vigor nas colónias, que
veio confiar ao M°P° a direcção da instrução preparatória e o exercício da acção penal.
25
De modo diverso expende Castanheira Neves, ao considerar a invocação da garantia política ou administrativa como
verdadeiro limite ao princípio da legalidade.
26
Figueiredo Dias, op. cit. pág. 136 e segs.
17
1. O tribunal a quem cabe o julgamento não pode, por sua iniciativa, começar uma
investigação tendente ao esclarecimento de uma infracção e a determinação dos seus
sujeitos. Tal só pode ter lugar numa fase processual cuja iniciativa e direcção caiba a uma
entidade diferente;
2. A dedução da acusação é pressuposto de toda a actividade jurisdicional de investigação,
conhecimento e decisão. Ela afirma publicamente que sobre alguém recai uma suspeita tão
forte de responsabilidade por uma infracção, que impõe uma decisão judicial; e, por
consequência, a afirmação pública e solene de que a comunidade jurídica chama um seu
membro à responsabilidade;
3. A acusação define e fixa, perante o tribunal, o objecto do processo. Num processo de tipo
inquisitório puro, a cognição do tribunal poderia dirigir-se indiscriminadamente a qualquer
suspeita de infracção ou de infractor, mesmo que aquela não tivesse nenhum reflexo no
contexto da acusação (se esta existisse). Segundo o princípio do acusatório, pelo contrário
- e esta é, sem dúvida a sua implicação mais relevante - , a actividade cognitiva e decisória
do tribunal está estritamente limitada pelo objecto da acusação (e da pronúncia). É a este
efeito que alguns autores chamam de vinculação temática do tribunal e é nele que se
consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou da indivisibilidade e da
consução do objecto do processo penal, isto é, os princípios segundo os quais o objecto do
processo deve manter-se o mesmo desde a acusação ao trânsito em julagado da sentença,
deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (unitária e indivisivelmente) e deve
considerar-se irrepetivelmente decidido.
Já se fez referência a este princípio como elemento integrante da estrutura basicamente acusatória
do processo penal vigente.
18
defesa, o ‹‹facto›› sujeito a julgamento, criando aquele mesmo as bases necessárias à sua
decisão”27.
Cabendo ao juiz cuidar de reunir as bases necessárias à sua decisão, não deve ele, todavia, levar a
cabo a sua actividade isoladamente, pelo contrário, deve ouvir tanto a acusação como a defesa.
Tal não significa, porém, que o juiz deva permanecer passivo e ouvir o debate que perante ele se
desenrola – o que caracterizaria um sistema acusatório puro e não um sistema como o que vigora
no nosso direito processual penal, com uma estrutura acusatória integrada por um princípio de
investigação – antes sim que toda a prossecução processual deve cumprir-se de modo a fazer
ressaltar não só as razões da acusação mas também as da defesa e, portanto, aceitando a iniciativa
própria destes sujeitos processuais.
No que se refere à fase do julgamento o preceito onde ele surge de forma mais explícita é do art.415
do CPP:
E muitos dos artigos seguintes (por ex., o art. 423) é à luz deste princípio que devem compreender-
se.
Quanto à fase chamada de acusação e defesa, a contraditoriedade transparece sobretudo nos arts.
379 e segs, 390 e 398, sendo ela própria, por outro lado, o autêntico fundamento da fase da
instrução contraditória (art.326 e segs., revogado pelo DL 35007).
27
Figueiredo Dias, op. cit. pág. 148.
19
É, de resto, para assegurar o contraditório que o art. 98, n°s 5 e 6 do CPP, considera como nulidade
principal a falta de notificação do despacho de pronúncia ou equivalente ao arguido e seu defensor,
bem como a falta de entrega do rol de testemunhas.
O princípio da suficiência vem consagrado no art. 2 do CPP. De acordo com este princípio, o
processo penal é o lugar adequado ao conhecimento de todas as questões cuja solução se revele
necessária à decisão a tomar (as excepções estão referidas nos artigos seguintes).
Na tramitação do processo que há-de conduzir a esta decisão podem surgir questões de diversa
natureza (penal, civil, administrativa, etc.), cuja resolução condiciona o ulterior
desenvolvimento do processo. Ao dar competência ao juíz penal para delas conhecer, a lei
considera que o processo penal se basta a si mesmo, que é auto-suficiente.
Pelo que acima ficou exposto, fácil é de compreender que a questão da suficiência suscita o
problema das questões prejudiciais. São questões prejudiciais “aquelas que possuindo objecto
– ou até natureza – diferente do da questão principal do processo em que surgem, e sendo
susceptíveis de constituir objecto de um processo autónomo, são de resolução prévia
indispensável para se conhecer em definitivo da questão principal dependendo o sentido deste
conhecimento da solução que lhes for dada”28.
28
Figueiredo Dias, op. cit. pág. 164.
20
de um processo independente; III) uma questão necessária à decisão da questão principal,
porque condicionante do conhecimento e decisão da questão principal.
O problema dos limites da suficiência em processo penal revela-se na sua verdadeira dimensão
e autonomia, só relativamente às questões prejudiciais não penais em processo penal.
No que respeita às questões prejudiciais penais em processo penal, a matéria vem regulada
nos arts. 4 , 153 e 154 do CPP, e bem assim no art. 97 do C. P. Civil.
Retomando agora as questões prejudiciais não penais em processo penal, o seu tratamento
vem consignado no art. 3 do CPP, Reconhece-se, neste dispositivo legal, a excepção ao
principio da suficiência. Teve, no entanto, o legislador o cuidado de acautelar que não se criem
obstáculos ao exercício do processo penal, com a devolução da questão prejudicial para o
tribunal normalmente competente (v. arts. 3, &3°, do CPP).
Considerado na sua mais ampla acepção, o princípio da concentração do processo penal exige
uma prossecução tanto quanto possível unitária e continuada de todos os termos e actos
processuais, devendo, no seu conjunto e em todas as fases do processo, desenvolver-se
concentradamente, quer no espaço, quer no tempo.
Do que atrás ficou dito extrai-se que este princípio enforma todo o processo penal e funda-se
na necessidade de conferir livre curso ao processo penal, sem obstáculos ou impedimentos ao
seu exercício.
O princípio em questão, embora presente em todas as fases do processo, ganha mais relevo e
autonomia na audiência de julgamento, associando-se aos princípios de forma, enquanto
corolário dos princípios da oralidade e de imediação (v. 76,&1°, 334, 337 e 403 do CPP).
21
julgamento e, assim, a construir autonomamente as bases da sua decisão. Deste modo se
opõem dois princípios que dizendo sobretudo respeito à maneira de adquirir para o
processo o material probatório não deixam de condicionar toda a prossecução processual:
de um lado o princípio dispositivo, de contradição ou discussão, ou da verdade formal –
que domina no processo civil; do outro, o princípio da investigação, instrutório,
inquisitório ou da verdade material – que impera no nosso processo penal.
a) É às partes que compete trazer ao processo toda a matéria fáctica e o material probatório
que há-de servir de base à decisào. Nesta, o juíz só poderá, portanto, ter em conta os factos
alegados pelas partes e as provas por elas produzidas;
ii) Dado o dever de investigação judicial autónoma da verdade, logo se compreende que
não impenda nunca sobre as partes, em processo penal, qualquer ónus de afirmar,
contradizer e impugnar, como, igualmente, que não se atribua qualquer eficácia a não
apresentação de certos factos ou ao acordo, expresso ou tácito, que se formaria sobre os
22
factos não contraditados, como, finalmente, que o tribunal não tenha de limitar a sua
convicção sobre os meios de prova apresentados pelos interessados. Por isso se diz que em
processo penal está em causa, não a verdade formal, mas a verdade material, entendida
como verdade subtraida à influência do comportamento processual da acusação e da defesa
e como verdade judicial, prática e processualmente válida.
iii) Não há aqui lugar para o princípio do dispositivo, pois se está perante a
indisponibilidade do objecto processual, a impossibilidade de desistência da acusação
pública, de acordos eficazes entre a acusação e a defesa e de limitações postas ao tribunal
na apreciação juridica do caso submetido a julgamento. Este último ponto vale, sobretudo,
perante as alegações orais na audiência de discussão e julgamento (arts. 467, 533 e 539 do
CPP). Pode o M°P° ter pedido a absolvição do arguido e o tribunal condená-lo, como pode
a defesa, considerando provado o crime, pedir apenas a condenação em uma pena leve e o
tribunal absolver o arguido.
Ao tratar deste matéria importa, desde logo, dar resposta cabal à seguinte questão: a
apreciação da prova deve ter lugar segundo regras legais predeterminados do valor a
atribuir-lhes (sistema de prova legal), ou antes de acordo com a livre valoração do juíz e
da sua convicção pessoal (sistema de prova livre). Tal questão tem recebido ao longo do
tempo soluções divergentes, quer nos diferentes estádios evolutivos do Direito Pocessual
Penal, quer nos diversos sistemas processuais.
Por um lado, vastas legislações do passado, receosas de que o juíz incorresse em erro na
valoração dos meios de prova, fixavam critérios de apreciação da prova fundada em regras
da vida e da experiência que tradicionalmente eram tidas por seguras. Através delas se
deterninava ou se hierarquizava o valor dos distintos meios de prova. É neste contexto que
a confissão era tida como a rainha de todas as provas, (no sistema canónico medieval)
defendia-se que, ao confessar, “o arguido exprimia uma vontade expiatória que, afinal,se
identificaria com a própria vontade da lei”. Do mesmo modo se aponta a razão de ser das
regras das Ordenações Filipinas, no que respeitava à apreciação da prova testemunhal –
unus testis nullus testis.
23
Vários factores concorrem em reforço desta ideia, designadamente a instituição do júri
como entidade competente para a apreciação da prova em processo penal, a difusão dos
chamados métodos científicos de prova que permitiria a redução da margem de erro na
livre apreciação daquela e, por último, de que só através da livre valoração se lograria
apreciar a personalidade do delinquente (v.art. 84 do CPP).
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, a valoração das provas pelo juíz não está
sujeita a critérios legais, a regras pre-determinadas que indicam o valor de certo meio de
prova. Esta valoração é feita segundo a livre convicção do juíz, convicção essa que não
pode ser puramente subjectiva, emocional, imotivável, portanto arbitrária. A apreciação da
prova deve ser racional e apoiar-se nos elementos de prova produzidos. O juíz não pode
servir-se, para fundamentar a sua decisão, de factos conhecidos fora dopprocesso – Quod
non est in actis non est in mundo…
a) No que respeita à prova testemunhal e por declarações (art. 214 e segs do CPP) o
princípio vale hoje sem quaisquer limitações, sendo este o seu campo de eleição. Todavia,
a lei dá a entender, por diversos modos, não ter a prova por declarações a mesma dignidade
probatória que a testemunhal, mas nada disto se reflecte em termos de critério de apreciação
da prova. O juíz é livre de formar a sua convicção na base do depoimento de um declarante
em desfavor de testemunho (s) contrário (s);
b) No tocante ao depoimento do arguido (arts. 244, 250 e segs. , 425 e segs. Do CPP), há
que distinguir duas situações, conforme este negue ou confesse os factos. Em caso de
negação, recorre-se por inteiro ao princípio da livre apreciação e convicção. A confissão,
contudo, está sujeita, quanto ao seu valor, a um verdeiro critério legal de apreciação. Com
efeito, o art. 174 do CPP dispõe que “ a confissão do arguído desacompanhada de
quaisquer outros elementos de prova não vale como corpo de delito”. E acrescenta no seu
&único : “ainda que o arguido tenha confessado a infracção, o juíz deverá proceder a
todas as diligências para o apuramento da verdade, devendo investigar, com todos os
elementos de que dispuser, se a confissão é ou não verdadeira”;
c) Quanto à prova pericial, afirma-se no nosso direito a ideia da absoluta liberdade da sua
apreciação pelo juíz, ao contrário do que sucedeu no deslumbramento consequente ao
advento da chamada prova científica em que se advogava que os pareceres dos peritos
deviam considerar-se como contendo verdadeiras decisões às quais o juíz tinha de sujeitar-
se;
24
d) A apreciação de factos constantes de documentos autênticos ou autenticados, traduz-se
num verdadeiro critério legal (v. art. 468, &único do CPP, arts.165 e 169 do CPC).
Vimos já que em processo penal cabe ao juíz o dever de, oficiosamente, instruir e esclarecer
o facto sujeito a julgamento: não há, em processo penal, qualquer verdadeiro ónus de prova
que recaia sobre o acusador ou o arguido. Em direito processual penal não há seguramente,
o chamado onus da prova formal, segundo o qual as partes teria o dever de produzir as
provas necessárias como fundamento das suas afirmações de facto, sob pena de os mesmos
factos não serem tidos como provados.
Se o tribunal, em processo penal, através da sua actividade probatória, não lograr obter a
certeza dos factos mas antes permanecer na dúvida, terá de decidir em disfavor da acusação,
absolvendo o arguido por falta de provas. Este é o conteúdo do princípio de, na dúvida,
dever decidir-se a favor do réu.
Estes princípios integram, por sua vez, os princípios da publicidade e da oralidade, com o
seu corolário mais importante que é o princípio da imediação.Tais princípios dizem
respeito, de modo directo, à forma sob a qual há-de decorrer e a que deve obedecer o
processo penal. Afirmam-se, no entanto, com maior expressão na fase da audiência e
julgamento, sendo esta o seu campo de eleição.
Nos termos do art. 407 do CPP , conjugado com n° 1 do art.13, da Lei n° 24/2007, de 20
de Agosto,(Lei orgânica dos tribunais judiciais), as audiências dos tribunais são públicas.
Significa isto que qualquer cidadão tem direito a assistir ao (e a ouvir o) desenrolar da
audiência de julgamento, mas que também são admissíveis os relatos públicos daquela
audiência. As excepções à publicidade da audiência de julgamento estão previstas no art.
407 do CPP.
Outro dos princípios fundamentais do processo penal a que importa fazer referência é o
princípio da oralidade que se afirma com maior relevo na fase da audiência de discussão e
julgamento.
25
Oralidade não significa exclusão da escrita, no sentido de proibição de que os actos que
tenham lugar oralmente fiquem registos, actas ou protocolos (que servem, por ex., fins de
controle de produção da prova, sobretudo em matéria de recurso). Significa, tão somente,
que a actividade processual é exercida na presença dos participantes do processo e,
portanto, oralmente.
Quando se fala de oralidade como princípio geral do processo penal, tem-se em vista a
forma oral de atingir a decisão: o processo será dominado pelo princípio da escrita quando
o juíz profere a decisão na base de actos processuais que foram produzidos por escrito
(exames, peritagens, etc.) e será, pelo contrário, dominado pelo princípio da oralidade
quando a decisão é proferida com base em uma audiência oral da matéria a considerar.
Também aqui, tal como no princípio da oralidade, o ponto de vista decisivo é a forma de
obter a decisão.
Por mero interesse de clareza de exposição, adopta-se a seguinte sistematização no que respeita às
fontes do direito processual penal: fonte material ou imediata (direito legal); fonte legislativa
internacional; fonte doutrinária e fonte jurisprudencial.
26
a) A Constituição da República de Moçambique
Especial referência deve ser feita aos seguintes dispositivos constitucionais como fontes do nosso
direito: art.35 - igualdade dos cidadãos perante a lei; art.40 - direito à vida e integridade física; o
Capítulo III repoprta-se à garantia dos direitos e liberdades, delas se destacando os arts. 56, 59,
60 a 70, entre outros; no TÍTULO IX, Capítulo I, referente aos tribunais, são disposições relevantes
para a matéria em questão os arts. 212 a 216 e 244 a 248.
O CPP é, sem dúvida, uma das mais importantes fontes do direito processual penal. Este diploma
foi aprovado e publicado através do Decreto n° 16489, de 15 de Fevereiro de 1921, e mandado
aplicar nas então colónias portuguesas pelo Decreto n° 19271, de 24 de Janeiro de 1931, com as
alterações deste constantes.
O CPP de 1929 tem por fontes principais o direito anterior, a jurisprudência portuguesa e a prática
dos tribunais, além de vários projectos que antecederam a sua aprovação. Considerando o estado
caótico da legislação e da prática processuais anteriores, o CPP de 1929 teve o grande mérito de
englobar numa concepção unitária e ordenada os princípios do direito processual penal, e de os
regulamentar dentro de um sistema livre de contradições. Com ele deu-se mais ênfase à descoberta
da verdade material como fim do processo penal, ampliou-se, consequentemente os poderes de
cognição do juíz e vedaram-se as práticas processuais abusivas e as dilações voluntárias da
prossecução processual.
O Código veio substituir a anterior concepção, de base acusatória, por outra, de índole
inquisitório, em que competia ao juíz, para além de julgar, realizar a investigaçao preliminar,
fundamentadora da acusação – a que se designou de corpo de delito. Não deixou, porém de
respeitar formalmente a concepção acusatória, na medida em que era ao M°P° que competia
deduzir a acusação. É o princípio da forma acusatória ou acusatório formal. Coincidiam na mesma
pessoa as funções de investigar e julgar, o que acarretava sérios riscos de lhe criar, naquela primeira
27
fase, um preconceito do qual, na segunda, dificilmente conseguia livrar-se – deste modo se lhe
furtava a objectividade e a imparcialidade necessárias a um correcto julgamento.
O Decreto-Lei 35007 procurou eliminar estes inconvenientes. Para tanto, atribuiu ao M°P°, não só
a titularidade da acção penal (art. 1°), como, na fase de instrução preparatória, os poderes e as
funções que, antes dele, eram atribuídas ao juíz. A grande crítica que se faz a este diploma é o
facto de atribuir a uma magistratura dependente e hierarquicamente estruturada funções e poderes
que implicam intromissões na esfera das liberdades do cidadão, sem fixar mecanismos de controle
judicial do exercício daquelas funções.
O Decreto-lei 185/72 não deu solução a este problema, muito embora tenha reformado extensas
zonas do processo penal relacionadas com a fase de instrução (preparatória e contraditória), a
acusação e defesa e as execuções. Deixou, portanto, persistir um dos maiores problemas no que
respeita à instrução – o da falta de controle judicial da actividade instrutória de todos os órgaos
do Estado (mesmo dos que cumpram funções administrativas), desde que tal actividade se prenda
com a esfera dos direitos constitucionalmente garantidos.
Tal problema só viria a ser resolvido em Portugal pela Lei n°2/72 e pelo Decreto n°343/72, que
permitiram a criação dos juízes de intrução criminal nas comarcas em que o movimento processual
assim o exigisse. Tais diplomas não chegaram, porém, a ser tornados extensivos aos territorios sob
administração colonial. No nosso país só recentemente, com a aprovação e publicação da Lei
n°2/93, de 24 de Junho, a questão veio a ser parcialmente colmatada.
Para além do CPP, há que considera a legislação avulsa pertinente ao processo penal como fonte
do nosso direito processual penal:
٭O Decreto-lei n°28/75, de 1 de Março, que alarga o âmbito de aplicação do processo sumário e
simplioica o formalismo do processo de transgressões;
٭O Decreto-lei n°4/75, de 16 de Agosto, que além de ter proibido o exercício de advocacia a título
de profissão liberal, continha disposições relativas ao exercício da acção penal pelo M°P° e à
impossibilidade de constituição de assistente;
٭A Lei n°9/92, de 6 de Maio, que imprime alterações ao formalismo processual penal e reintroduz
a figura do assistente, derrogando os arts. 17 e 19 do Decret-Lei n° 4/75;
٭A Lei n° 10/92, de 6 de Maio, Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, que veio a ser revogada pela
Lei n°24/2007,de 20 de Agosto;
٭A Lei n°2/93, de 24 de Junho, relativa à institucionalização dos juízes da instrução criminal
28
Os textos jurídicos internacionais são fonte do direito processual penal na medida em que vigorem
na ordem jurídica interna. Aflora-se aqui o problema da aplicabilidade e vigência interna do Direito
Internacional, cujo desenvolvimento encontra-se em disciplina própria.
Assim sendo, e sem pretender esgotar a matéria, nomeiam-se os textos mais significativos:
Fontes Doutrinárias
Na indicação bibliográfica distribuida aos alunos encontram-se algumas obras e artigos de revista
mais significativos da doutrina a que temos mais fácil acesso que é, apesar de tudo, a portuguesa.
Fonte jurisprudencial
A jurisprudência não constitui fonte em sentido formal, mas cabe-lhe, de algum modo, uma função
criadora do Direito. Na verdade, não se coloca ela ao mesmo nível de obrigatoriedade geral própria
da lei, nem tão pouco em conflito com ela, o que poderia suscitar uma questão de prevalência ou
hierarquização. A sua força reside no facto de o direito ter deixado de ser um conjunto de princípios
gerais e abstractos, achando-se aqui (no processo penal) aplicado a um caso concreto.
29
cognição, sobretudo em via de recurso – art. 663; à convolação – arts. 148 e segs e 447 e segs.; ao
recurso de revisão com base em factos novos – art. 673 (todas as disposições do CPP).
Uma questão particular e específica é a suscitada pela figura dos assentos, que se traduz na fixação,
pelos tribunais, de doutrina com força obrigatória geral (v. art.do CCivil e 763 e segs. do CPP),
resulta ela da necessidade de se saber se o conteúdo normativo do assento assumiria a mesma
natureza e valor próprio da lei em sentido formal. Se atentarmos ao facto de que a função do
tribunal assenta na aplicação do direito ao caso concreto, não se coadunando, portanto, com a
fixação de doutrina com força obrigatória geral, facilmente se apreenderá da delicadeza do
problema em análise.
Trata-se, com efeito, de uma questão actual e pertinente, dividindo opiniões e correntes entre a
aceitação e a rejeição desta figura por inconstitucional e se traduzir no uso, pelos tribunais, de
poderes que são próprios de um órgão legislativo. Entre nós a questão ainda não foi levantada,
sendo certo que a Lei n° 10/92, de 6 de Maio, previa no seu art. 33, alínea a) a possibilidade de o
plenário do Tribunal Supremo, funcionando como tribunal de 2ª instância “”…uniformizar a
jurisprudência, quando no domínio da mesnma questão fundamental de direito, tenham sido
proferidas decisões contraditórias nas várias instâncias do Tribunal Supremo”.
Há, em princípio, quanto aos elementos utilizados, a interpretação literal (ou gramatical) e a
interpretação lógica (ou racional). Quanto aos efeitos ou resultados, a interpretação pode ser
declarativa, extensiva ou restritiva. Em todas as formas de interpretação da lei está sempre
implícito o pressuposto de uma contradição entre a vontade do legislador e a sua imperfeita
manifestação e, por via disso, a necessidade de rectificação desta, com o objectivo de assegurar a
supremacia e predominância daquela.
De todo o modo, e nas suas linhas gerais, portanto, o problema da interpretação da lei não ganha,
em direito processual penal, autonomia em relação aos restantes ramos do direito.29 É de assinalar,
no entanto, a relevância que no direito processual penal assume a consideração do fim do processo
para uma interpretação axiológica e telológica. Na verdade, assumindo-se o direito processual
29
V. por todos, Andrade, Manuel Augusto Domingues de, Fontes do Direito- Vigência, interpretação e aplicação da
Lei, in Boletim do Ministério da Justiça, n° 102, pág. 141.
30
penal como verdadeiro direito constitucional aplicado, não será por demais acentuar a necessidade
de se tomar em conta o princípio da interpretação conforme a Constituição.
O problema das lacunas da lei e da sua integração merece, em direito processual penal, uma
consideração especial.
O art. 1, &único do CPP dispõe que, “nos casos omissos, quando as suas disposições não possam
aplicar-se por analogia, observer-se-ão as regras do processo civil que se harmonizem com o
processo penal e, na falta delas, aplicar-se-á os princípios gerais do processo penal”.
Há, pois, um triplo caminho a percorrer no processo de integração das lacunas em processo penal:
a) a analogia;
Quanto à analogia, ela é aqui permitida, ao contrário do que sucede no direito penal substantivo,
no que respeita à fundamentação da pena (incriminação) ou ao seu agravamento (arts. 5 e 18 do
CP).
Mas o facto de analogia ser permitida em processo penal não significa que ela possa ser usada em
detrimento dos direitos processuais do arguido ou para enfraquecer a sua posição processual. É
que, tal como no direito penal, o direito processual penal deve reger-se pelo princípio da legalidade,
constitucionalmente consagrado (arts.60, n°1 e 302 da Constituição).
Constituindo o princípio da legalidade a mais sólida garantia das pessoas contra possíveis arbítrios
do poder, não se vê porque não haja ele de estender-se, na medida imposta pelo seu conteúdo de
sentido, ao processo penal, cuja regulamentação pode a todo momento pôr em perigo a liberdade
das pessoas.
Não sendo possível a integração por via da analogia, há que recorrer às regras do processo civil
que se harmonizem com o processo penal. Confere-se assim às normas do processo civil o estatuto
de direito subsidiário, desde que se demonstre a sua harmonia, no caso concreto, com os princípios
do processo penal.
Só quando a lacuna não tenha podido ser colmatada com o recurso à analogia e às normas do
processo civil, é possível atender aos princípios gerais do processo penal.
31
4.3.1. Âmbito de aplicação material
O âmbito de aplicação material do direito processual penal coincide com os estritos limites da
jurisdição moçambicana em matéria penal. É, pois, demarcado pela especialidade do objecto do
processo penal, abrangendo o crime acusado, as contravenções e as reacções criminais que em
abstracto lhes caibam.
Está, naturalmente, fora de questão a autonomia das jurisdições penal e civil. Todavia, a lei manda
que o pedido civil de indemnização por perdas e danos derivada de um crime deve ser deduzido
em processo penal (art. 29 do CPP). Optou, assim, o legislador pelo chamado sistema de
interdependência ou da adesão da acção civil à penal. Sobre o assunto nos referiremos mais
detalhadamente no capítulo próprio30.
O âmbito de aplicação do direito processual penal no espaço assenta na ideia de que a jurisdição
penal se confina aos limites territoriais do Estado – vigora aqui o princípio da territorialidade.
Nada impede, porém, que à jurisdição penal moçambicana se aplique a crimes cometidos no
estrangeiro (arts. 46, 48, 49 e 50 do CPP), o que acontece naqueles precisos casos em que é
aplicável a lei penal substantiva. Significa isto que é inadmissível, salvo tratado internacional em
contrário, executar em território estrangeiro actos processuais cabidos na jurisdição nacional e
vice-versa.
Em consequência do princípio acima aludido – que domina as relações entre a jurisdição nacional
e as estrangeiras – à sentença penal estrangeira não são reconhecidos efeitos positivos ou
executórios, embora possam ser admitidos efeitos negativos. Assim, no caso de infracções
cometidas no estrangeiro, a sentença ali proferida impede que a questão seja de novo julgada em
Moçambique (art. 53, n°s 3 e 5, do CP) e , em caso de novo processo, ter-se-á em conta a pena já
cumprida pelo réu no estrangeiro (n°3 do art. 53) e, bem assim, o &4° do art 35 do CP.
O âmbito de aplicação pessoal do direito processual penal coincide com o da aplicação do direito
penal substantivo: quer dizer, estão sujeitos à jurisdição penal moçambicana todas as pessoas (e
só elas) a que seja aplicável o direito penal moçambicano. Daqui se extrai que o direito processual
30
V. infra, Capítulo III.
31
V. Resolução da Assembleia Popular n°3/89, de 23 de Março (BR, I Série, n° 12, 3° Suplemento).
32
penal não atinge apenas os arguidos ou suspeitos, mas também uma ampla gama de terceiros se
encontra sujeita a determinações processuais em matéria de prazos, de deveres de comparecer,
prestar declarações, suportar exames, buscas e apreensões, etc. Cabe, assim, ao próprio direito
processual deterninar os direitos e deveres processuais de todas as pessoas, nacionais ou
estrangeiras participantes de um processo penal, que devem submeter-se ao nosso direito.
Há, no entanto, limitações a considerar no que respeita ao âmbito de aplicação pessoal. A primeira
resulta de preceitos do direito internacional público, como expressão do princípio da
extraterritorialidade. São as chamadas imunidades diplomáticas que atingem Chefes de Estado
estrangeiros, diplomatas e agentes equiparados, suas famílias e, em parte, também o pessoal
administrativo e técnico das representações diplomáticas, pessoal de serviço e cônsules. O texto
legal mais importante é a Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas, de 28 de Abril de
1961.
A lei processual penal, como em geral toda a lei “… só dispõe para o futuro”, nos termos do art.
12 do C. Civil. Todavia, a aplicação da lei processual penal a actos ou situações que decorram na
sua vigência mas que se ligam a uma infracção cometida no domínio da lei processual penal antiga,
não deve contrariar nunca o conteúdo da garantia conferida pelo princípio da legalidade. Resulta
daqui que não deve aplicar-se a nova lei processual penal a um acto ou situação processual que
ocorra em processo pendente ou derive de um crime cometido na vigência da lei antiga, sempre
que da nova lei possa resultar um agravamento da posição processual do arguido ou, em particular,
uma limitação do seu direito de defesa32.
5. Introdução
32
V. a propósito, o princípio consagrado no artr. 60 da Constituição de 2004.
33
Dissemos acima33 que o processo penal se pode definir como uma sequência de actos
juridicamente pre-ordenadas e praticadas por certas pessoas legitimamente autiorizadas com vista
a lograr a decisão sobre se foi praticado um crime e, em caso afir mativo, sobre as respectivas
consequências jurídicas e a sua justa aplicação.
Essas pessoas e entidades que, investidas nas suas diversas funções, desenvolvem actividades no
processo, recebem a designação genérica de participantes processuais.
Mas nem todos os participantes processuais realizam uma função determinante, a ponto de
imprimirem ao processo uma certa direcção ou fisionomia própria. Os funcionários judiciais, por
exemplo, colaboram no processo e, no entanto, a sua actuação não é decisiva. O mesmo se passa
com as testemunhas, os declarantes e os peritos, que intervêm como meios de prova, mas não têm
poder de iniciativa nem de decisão relativamente às questões processuais.
Aos participantes a quem, por força da sua particular posição jurídica, são reconhecidos direitos e
deveres processuais autónomos, no sentido de poderem condicionar a concreta tramitação do
processo, costuma chamar-se sujeitos processuais34.
Assim, são sujeitos processuais, além do tribunal (ou por outras palavras, o juiz penal), o
Ministério Público, o arguido e o seu defensor, o ofendido e o assistente.
Iremos estudar detalhadamente cada um deles. Antes, porém, convirá fazer uma breve referência
à estrutura fundamental do processo penal com particular relevo para o que resulta da legislação
em vigor.
Alguns autores – Eduardo Correia, Cavaleiro de Ferreira, Castanheira Neves e os italianos Manzini
e Carnellutti, entre outros, definem como partes os sujeitos processuais que discutem a causa e
esperam do juíz uma apreciação do mérito dela. É nesta perspectiva que eles consideram o
processo penal como um processo de partes, não em sentido puro, mas em sentido meramente
formal, porquanto os sujeitos que discutem a causa – o Ministério Público e o acusado – apenas
formalmente estão colocados em campos opostos.
33
V. “Direito Penal, Processo Penal e Direito Processual Penal”, ponto 1.1.2.
34
A distinção entre sujeitos e simples participantes processuais – ou, como preferem alguns autores, entre sujeitos
principais e sujeitos secundários ou axcessórios – é meramente doutrinal, não tem reflexo na lei. Apresenta, todavia,
um certo interesse sistemático, como veremos adiante, ao estudar a posição jurídica de cada um deles no processo.
34
Na verdade, ao Ministério Público – já o dissemos35, não cabe o dever de obter a condenação do
arguido, mas, como tal ao juíz, um dever de objectividade (v. Art. 12, &1° e 25 do Decreto-Lei n°
35007 e art. 647, n°1 do CPP). Por outro lado, ao arguido cabe indiscutivelmente um direito de
defesa, mas não, por certo, um dever de defesa (não se lhe exige que se oponha à acusação), pelo
que bem pode acontecer não se verificar uma necessária contraposição de interesses entre o
Ministério Público e a defesa.
Outros –Figueiredo Dias e alguns autores alemães -, dando ao conceito de parte um sentido
processual material, definem como tal os titulares de interesses contrapostos que no processo se
discutem e se encontram concretamente em jogo. Para estes não se pode, relativamente ao processo
penal, falar em processo de partes, nem mesmo em sentido formal, já que, precisamente por não
existir uma necessária contraposição de interesses entre a acusação e a defesa, e distinção que se
pretende assinalar (entre os sujeitos que pretendem fazer valer, perante o juíz, as suas posições)
nada contribui para explicar a estrutura íntima do processo penal.
Esta estrutura processual (resultante do modo de actuação dos sujeitos) explica-se, de acordo com
esta corrente, através da referência aos modelos estruturais que historicamente se desenvolveram,
sobretudo o de tipo inquisitório e o do tipo acusatório.
O processo inquisitório (que, como já foi referido, teve a sua consagração nas legislações
europeias continentais dos séculos XVII e XVIII, embora surja em épocas mais recentes nos
Estados de regime autoritário), é o exemplo-padrão de um processo sem partes. Nele, a
investigação da verdade e, de uma forma geral, o domínio do processo estão concentrados num
único órgão – o juíz: a este competia simultaneamente inquirir, acusar e julgar, sem que intervenha
qualquer outra entidade oficial encarregada da acusação. O processo é, em regra, totalmente escrito
e secreto, do que resulta a impossibilidade, para o arguido, de exercer efectivamente o seu direito
de defesa. Todos os meios, incluindo a tortura, são considerados legítimos para extorquir do réu a
confissão tida como rainha das provas.
35
- Uma vez que o sentido substantivo, ligado que está à ideia de acção material, se encontra hoje superada, mesmo
no processo civil (v. Figueiredo Dias, op. Cit. Pág. 243).
35
cross-examination, como se diz em inglês jurídico) das testemunhas, dos peritos e do próprio
arguido (que pode testemunhar em causa própria). O papel do juíz é unicamente o de dirigir a
audiência, velando sobretudo por que as partes não se afastem do formalismo prescrito, e proferir
a decisão final na base das provas apresentadas pela acusação e pela defesa.
Face aos modelos estruturais acabados de descrever, e em função do que acima foi dito, quer a
propósito do objecto do processo, quer das diferenças entre os processos penal e civil, facilmente
se conclui que o tipo de processo penal definido na legislação entre nós não corresponde a um puro
processo de partes.
٭Contrariamente ao que sucede com as partes naquele tipo de processo, o Ministério Público e o
arguido não se encontram, de facto e de jure, ao mesmo nível – as suas posições não são idênticas,
nem entre ambos se verifica uma absoluta igualdade de oportunidades no tratamento do objecto
do processo. Na realidade, o Ministério Público beneficia de uma posição jurídica supraordenada
em relação à do arguido: dispõe de um aparelho investigativo e coactivo (formado pelos chamados
órgãos auxiliares do Ministério Público – a PIC e as outras forças policiais, os estabelecimentos
especializados de investigação, enfim, todos os organismos do poder do Estado), de que pode e
deve fazer uso o que falta por completo ao arguido; pode impôr ao marguido a prisão (art. 293 do
CPP, na nova redacção que lhe foi dada pela Lei n°2/93, de 24 de Junho) e requerer ao juíz da
instrução criminal outras medidas coercivas de limitação ou privação da liberdade.
٭O Ministério Público não tem, como as partes em processo civil, o domínio do objecto do
processo: não lhe cabe qualquer margem de discricionaridade em acusar ou não acusar, nem a
acusação pode ser retirada a partir do momento em que o tribunal for chamado a decidir sobre ela.
Por outro lado, a confissão do arguido não produz qualquer efeito processual quando
desacompanhada de outros elementos de prova (v. Art. 174 do CPP), nem sobre aquele recai
responsabilidade alguma pela não-produção de uma prova36, ao mesmo tempo que – por força do
princípio da verdade material - nada obsta a que o tribunal, por sua iniciativa, realize as diligências
que entender necessárias, mesmo que tenham o arguido por objecto.
Do exposto resulta que o processo penal em Moçambique é tipicamente um processo sem partes,
embora isso não signifique que a sua estrutura se confunde com a do tipo inquisitório (pelo menos
na sua forma pura). Ele é, na verdade, um processo basicamente acusatório, mas integrado por
um princípio de investigação, que, como vimos, está consagrado com carácter geral no art. 9 do
CPP.
36
- v. Figueiredo Dias, Ónus de alegar e de provar em processo penal?, in Revista de Legislação e Jurisprudência,
ano 105, pág. 125 e segts.
36
6. O Tribunal
São diversos os sentidos que pode assumir o termo jurisdição. Etimologicamente, a palavra
significa dizer o direito (do latim= juris dicere) e é empregue, na linguagem jurídica, para designar:
- o conjunto dos órgãos do Estado aos quais compete o exercício desse poder ou função,
ou seja, os tribunais; e
É este último sentido o que agora nos interessa, para caracterizarmos o sujeito processual a quem
cabe, em exclusivo, a declaração do direito do caso. Na verdade, superada que está, historicamente,
a época da vindicta privada37, há muito que o Estado chamou a si o jus puniendi, o poder-dever de
administrar a justiça penal. Fá-lo através de órgãos próprios - os tribunais, e só eles - que reúnem
uma série de características particulares, a que nos referiremos em seguida.
A jurisdição penal integra, assim, um conjunto de poderes e deveres cuja finalidade é a declaração
(ou não) do facto como crime e do arguido como seu responsável (ou não), a aplicação da pena e
sua execução, quando for caso disso, e bem assim a verificação dos pressupostos das medidas de
segurança criminais, sua aplicação e execução.
A jurisdição como função soberana do Estado, é exercida em exclusivo pelos tribunais. Este
princípio está consagrado na Constituição (de 1990) ao estabelecer, no seu art. 168, n°138, que:
37
Característica das sociedades pré-estaduais, de poder descentralizado, em que os conflitos juridicamente relevantes
entre os seus membros eram resolvidos por acordo voluintário ou pela força,
38
Corresponde ao art. 225 da Constituição de 2004.
37
“Na República de Moçambique a função jurisdicional é exercida através do Tribunal
Supremo e demais tribunais estebelecidos por lei”.
- Mas quais os tribunais, de entre os que a Constituição enumera, exercem a jurisdição penal e em
que medida?
A jurisdição penal pertence aos tribunais judiciais, hierarquicamente organizados de acordo com
o estabelecido na respectiva Lei Órgânica (Lei n° 24/2007, de 20 de Agosto), e aos tribunais
militares, estes com competência especializada e a organização definidas na Lei n°17/87, de 21 de
Dezembro.
Assim, nos termos da referida Lei n° 24/2007, (art. 29, n°1) , existem as seguintes categorias de
tribunais judiciais:
- Tribunal Supremo;
-Tribunais Judiciais de Distrito (poderão ser de 1ª ou 2ª classes – v. Art. 78, n°2 da Lei n°
24/2007)39.
Como tribunal de instância única, compete-lhe, com força do estatuido no art.46 alíneas a), b) e
c), da Lei 24/2007, julgar os processos-crime em que sejam arguidos o Presidente da República,
O Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-Ministro, os Juízes Conselheiros do
Tribunal Supremo e do Tribunal Administrativo, o Procurador-Geral da República, Procuradores-
gerais Adjuntos, o Provedor de Justiça e os juízes eleitos do Tribunal Supremo.
Às secções do Tribunal Supremo, como tribunal de segunda instância, cabe, de acordo com o
preceituado no art. 50 da Lei n°24/2007, “julgar os recursos das decisões proferidas pelos
tribunais superiores de recurso; conhecer dos conflitos de competência entre tribunais
superioress de apelação e entre estes e os tribunais judiciais de província”, entre outras
competências.
39
Ao nivel da base da organização territorial, definida no art. 7, n°1, da Constituição, nos postos administrativos e
localidades -, bem como nos bairros dos principais centros urbanos, funcionam os chamados Tribunais Comunitários,
que se regem por lei própria (Lei n° 4/92, de 6 de Maio) e não fazem, portanto, parte do sistema judiciário formal.
38
Como tribunal de primeira instância compete-lhe, nos termos do art. 51 da Lei n°24/2007, julgar
em primeira instância os processos crime em que sejam arguidos deputados da Assembleia da
República, membros do Conselho de Ministros e do Conselho de Estado e outras entidades
nomeadas pelo Presidente da República, excepto os previstos no art. 46 da mesma Lei; julgar em
processos crime os juízes profissionais dos tribunais superiores de recurso e magistrados do
Ministério Público junto dos mesmos; julgar os processo crime instaurados contra os juízes eleitos
dos mesmos tribunais superiores de recurso; e julgar processos de extradição.
Aos tribunais judiciais de província funcionando como tribunal de primeira instância, cabe,
segundo o art. 73, n° 2 da lei 24/2007, “julgar as infracções criminais cujo conhecimento não seja
atribuido a outros tribunais (alínea a); conhecer os processos crime em que sejam arguidos juízes
profissionais dos tribunais judiciais de distrito e magistrados do Ministério Público junto dos
mesmos (alínea b).
Funcionando como tribunal de segunda instância, compete-lhes conhecer dos recursos interpostos
das decisões dos tribunais judiciais de distrito e dos demais que, por lei, lhe devam ser
submetidos; conhecer dos conflitos de competência entre tribunais de distrito da sua área de
jurisdição; conhecer dos pedidos de habeas corpus que lhe devam ser remetidos, nos termos da
lei. (art. 74 da Lei 24/2007 alíneas a, b, e d ).
Aos tribunais judiciais de distrito de 1ª classe, compete julgar em primeira instância, as infracções
criminais cujo conhecimento não seja atribuido a outros tribunais; julgar as infracções criminais
que correspondem a pena não superior a 12 anos de prisão maior. ( art. 84, n°2 da lei 24/2007).
Finalmente, aos tribunais judiciais de distrito de 2ªclasse, compete julgar, em primeira instância,
as infracções criminais cujo conhecimento não seja atribuido a outros tribunais; julgar as
infracções criminais que correspondam a pena não superior a oito anos de prisão maior. (art. 85,
n°2, als. a e b da lei n°24/2007).
A lei n°24/2007, de 20 de Agosto, no seu art. 1 define os tribunais como órgãos de soberania que
administram justiça em nome do povo.
39
No que que toca ao processo penal, quer isto dizer que os tribunais são os únicos órgãos
competentes para como representantes da comunidade jurídica e do poder do Estado decidirem os
casos juridico-penais que processualmente sejam levados à sua apreciação, aplicando o direito
penal substantivo40.
Sendo, por conseguinte, os tribunais no seu conjunto – e cada um dos juízes de per si – órgãos de
soberania, e pertecendo só a eles a função judicial (cujo exercício se consubstancia na actividade
a que se costuma designar por jurisprudência), tem forçosamente de concluir-se que a
independência material (objectiva) dos tribunais – reforçada pela independência pessoal
(subjectiva) dos juízes que se formam – é condição indispensável da administração da justiça.
Daí que a Constituição consagre o princípio da independência dos tribunais (art.217, n°1) princípio
que é retomado e desenvolvido pelo Estatuto dos Mguirados Judiciais (Lei n°10/91, de 30 de Julho)
e que constitui a característica fundamental destes órgãos.
A independência dos tribunais, quando analisada em pormenor, nos seus elementos essenciais,
assume diversos significados e comporta várias consequências:
Avulta aqui o significado político da independência: os tribunais gozam, em tudo quanto respeita
à função judicial – e, designadamente à decisão a proferir em cada caso concreto - de plena
autonomia e liberdade, que os ponha a coberto de quaisquer influências e pressões, directas ou
indirectas, de outro órgão de poder do Estado;
b) Em segundo lugar, independência perante quaisquer grupos ou entidades da vida pública, como
os partidos políticos, os grupos de interesse ou de pressão, os lobbies, os meios de comunicação
social e outros.
40
Esta exclusividade do exercício da função judicial pelos tribunais tem, como se sabe, a sua origem remota na
doutrina de separação de poderes, de Montesquieu (séc. XVIII), que está na base da construção do moderno Estado-
de-Direito.
41
O Presidente da República, a Assembleia da República, o Conselho de Ministros e o Conselho Constitucional,
segundo a enumeração contida no art. 133 da Constituição.
40
conjunto de condições que permitam a independência subjectiva dos juízes, nomeadamente nos
domínios social e económico42.
Evidentemente que esta independência diz respeito ao exercício da função judicial propriamente
dita (ou seja, à decisão que ao juíz cumpre tomar nos casos submetidos à sua apreciação), e não a
assuntos relacionados com a organização e fiscalização dos serviços judiciais. Neste domínio
existe uma hierarquia a respeitar – Presidente e Vice-Presidente do Tribunal Supremo, Juízes
Conselheiros, Juizes de Direito e Juízes (dos tribunais judiciais de distrito). Além disso, a própria
lei ressalva o dever de acatamento, pelos tribunais inferiores, das decisões proferidas, em via de
recurso, pelos tribunais superiores ( art. 4 da lei n°10/91).
Intrinsecamente ligado ao princípio da independência judicial, e como seu limite está o dever que
sobre os juízes impende de obediência à lei ( art. 217, n°1 da Constituição).
Nos termos do art. 3, n°3, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, esse dever “... não pode ser
afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo”, o que traduz
uma concepção estritamente legalista e positivista de encarar o direito43.
A independência dos tribunais constitui uma garantia, não só para os juízes como para os próprios
cidadãos da actuação livre daqueles, perante pressões ou influências que lhes possam ser dirigidas,
tanto de dentro como de fora do sistema judiciário.
Mas isto não basta para que fique preservada e defendida a objectividade da actuação dos tribunais:
é necessário, para além dessa garantia geral, que não seja posta em causa ou em dúvida a
42
Parece ser esse, pelo menos no plano das intenções, o caminho preconizado no art. 59 do Estatuto dos Magistrados
Judiciais, ao estabelecer que: “1. O Estado garantirá a independência económica dos magistrados judiciais, mediante
uma remunaração adequada à dignidade das suas funções; 2. O regime de remuneração referido no número anterior
é fixado por diploma legal, tendo em conta a especificidade da função judicial,a categoria e tempo de serviço prestado
pelo magistrado”.
43
V. Figueiredo Dias, op. cit. pág. 312.
41
imparcialidade dos juízes, já não em face de pressões externas, mas em virtude de especiais
relações que os liguem com o caso concreto que devam julgar.
Podem, com efeito, e por razões diversas, levantar-se dúvidas sobre a capacidade de um juíz se
revelar isento e imparcial no julgamento. Todavia, os fundamentos em que essas dúvidas se
baseiam não produzem sempre o mesmo efeito jurídico: umas vezes conduzem à impossibilidade
de o juíz intervir no processo, a qual deve ser declarada independentemente de qualquer objecção
suscitada pelos participantes processuais – estaremos, então, perante um dos impedimentos
enumerados no art. 104 do CPP; outras vezes, limitam-se a dar aos sujeitos processuais a
possibilidade de recusarem a intervenção do juíz no processo – temos, neste caso, uma que deve
ser levantada com base num dos fundamentos do art. 112 do mesmo Código.
Os impedimentos devem ser declarados oficiosamente pelo juíz (é a regra do judex inhabilis) em
qualquer altura do processo; quando o não sejam deve o Ministério Público e podem o assistente
e o arguido requerer a sua declaração, de acordo com os prazos e mediante o formalismo que se
acham prescritos no arts 110 do CPP.
Nos termos do art. 111, a arguição dos impedimentos por qualquer dos sujeitos processuais (que
não o próprio juíz, pois este não argui, declara) suspende o andamento do processo, que pode,
porém, seguir seus termos conjuntamente com os dos incidentes, se o juíz entender tratar-se de
simples expediente dilatório.
A Suspeição não pode ser voluntariamente declarada pelo juíz mas pode ser levantada pelo
Ministério Público, pela parte acusadora ou pelo arguido (é a regra do judex suspectus), no prazo
de cinco dias a contar daquele em que o recusante interveio no processo, depois de conhecido o
fundamento da suspeição (art.114 do CPP, que também se refere ao processo a seguir na dedução
e decisão desta).
A dedução da suspeição suspende o andamento do processo até ela ser julgada, podendo, no
entanto, o juíz que conhecer do incidente praticar quaisquer actos urgentes do processo principal
(art.115 do diploma em referência).
Não se ficam, no entanto, por aqui, as implicações deste princípio fundamental. Também no
processo penal ele se manifesta através do chamado princípio do “juíz natural”, ou do juíz legal,
42
que representa o direito fundamental dos cidadãos a que uma causa seja julgada por um tribunal
previsto como competente por lei anterior, e não designado arbitrariamente.
2- A fixação do tribunal e da sua competência têm de ser feitas por uma lei vigente ao
tempo em que foi praticado o facto criminoso que será o objecto do processo;
O princípio do juíz natural tem, hoje, assento constitucional (art.65, n°4 da Constituição) e legal
(art.37 da Lei 24/2007), segundo o qual:
“Nenhuma causa pode ser deslocada do tribunal competente para outro, excepto nos casos
especialmente previstos na lei”.
Veremos quais são esses casos que a lei especialmente prevê, quando nos referirmos à chamada
competência por remoção.
Em relação a cada feito criminal, a cada caso penal em concreto, importa, pois, que a lei determine
qual de entre os tribunais existentes, deve apreciar e julgar a causa. É nisto que se traduz a
deterrninação da competência em processo penal.
1- Qual o tribunal que, segundo a sua espécie (porque existem diferentes espécies de
tribunais penais – os tribunais de polícia, os tribunais criminais, os tribunais militares, os tribunais
marítinmos, etc.), deve conhecer de uma infracção penal de certa natureza (uma contravenção ao
Cód. da Estrada, um furto simples, um homicídio qualificado, um crime de deserção, uma violação
das leis sobre pesca nas águas jurisdicionais, etc.). Trata-se aqui do problema da determinação da
competência material;
2- Qual o tribunal que, entre os da mesma espécie, deve segundo a sua localização no
território, ser chamado para conhecer do mérito da causa. É o problema da determinação da
competência territorial.
43
Deste modo, o problema da determinação da competência resolve-se definindo a natureza e sede
territorial do tribunal e a sua categoria, dando lugar às três espécies de competência que
apontamos: competência material, territorial e funcional.
Vejamos em seguida quais os critérios seguidos pela doutrina e pela lei vigente para a definição
de cada uma destas espécies de competência.
Na distribuição da competência para apreciação dos feitos criminais pelas várias espécies de
tribunais existentes, pode o legislador servir-se de um de dois métodos ou vias de procedimento:
As legislações que se baseiam no método de determinção abstracta – como é o caso que vigora
entre nós – utilizam, geralmente, três tipos de critérios distintos:
II) um critério qualitativo - que leva em conta a natureza das infarcções em causa;
Embora o critério mais utilizado na nossa legislação seja o quantitativo44, os outros dois também
aparecem referenciados45.
44
Quer fazendo a lei traduzir o máximo da pena aplicável no facto de se utilizar uma certa forma de processo (v. Arts.
63, 64 e 65 do CPP, aplicável por força e com as alterações constantes doart.11 do Decreto n°19271, de 24 de Janeiro
de 1931 – o diploma que pôs em vigor nas então colónias o Código de Processo Penal -, e o art. 1 do Decreto-Lei,
n°28/75, de 1 de Março), quer referindo-o directamente a certa categoria de tribunais (v.arts. 84, n°2, e 85, n°2, da Lei
n°24/2007).
45
V. art. 66 do CPP quanto ao critério qualitativo, e os arts. 46, alíneas a), b) e c); 51, alíneas a), b) e c), art. 73, n°2,
alínea b), todos da Lei n°24/2007, quanto ao critério fundado na qualidade da pessoa do arguido.
44
É de realçar o disposto no n°2 do art.29 da Lei n°24/2007, que permite a criação de tribunais de
competência especializada, como é o caso do Tribunal de Menores de Maputo, a quem cabe a
aplicação de medidas de prevenção criminal (relativas a menores inimpuitáveis).
A situação inversa não pode verificar-se, pois que se estaria perante a excepção da incompetência
prevista no art. 138, 1°, do CPP, pelo que o caminho a seguir será o de proceder nos termos do
&2° do art. 447, com a consequente aplicabilidade do art. 145 (remessa do processo ao tribunal
competente), ambos do mesmo Código.
Assim, a competência por excesso está coberta pela prorrogação, mas se ela for por defeito dá
lugar à excepção atrás referida.
A regra geral para a determinação da competência territorial é a do locus delicti, segundo a qual é
competente para o conhecimento da infracção o tribunal do local da sua prática ou da sua
ocorrência.
Mas como apurar o local da ocorrência de uma infracção para efeitos de determinação da
competência?
45
3- o critério da antecipação da consumação – o qual leva a definição do locus delicti como
o espaço em que tenha começo a produção do evento, mesmo que a produção do resultado típico
só finde noutra área.
Mas como nem todos os crimes atingem o estado da consumação, é evidente que o princípio geral
da determinação da competência territorial - baseado no critério de resultado – não se aplica sem
excepções.
Assim, o &1° do art. 45 do CPP estabelece que “se a infracção não chegou a consumar-se é
competente o tribunal em cuja área se praticou o último acto de execução ou facto punível”. Este
preceito aplica-se às hipóteses de tentativa e frustração, bem como aos actos preparatórios cuja
punição esteja prevista como crime autónomo (exemplos: art. 444 do CP - fabrico de gazuas e
artifícios para abrir fechaduras – arts. 5 e 6 da lei n°19/91, de 16 de Agosto – Lei dos crimes contra
a Segurança do Estado), e por identidade de razão, aos crimes formais.
Nos termos do & 2° do mesmo preceito, sendo a consumação efectuada por factos sucessivos ou
reiterados, como acontece nos crimes habituais (ex: lenocínio- art. 405 do CP, com a redacção
dada pela lei n° 8/2002, de 5 de Fevereiro), ou de um acto ou omissão susceptível de se prolongar
no tempo e no espaço, como sucede com os crimes permanentes (ex. cárcere privado- art. 330 do
CP), o locus delicti é o da cessação da consumação (que se verifica com o termo do evento nos
crimes materiais) ou da prática do último facto (que se verifica com o termo da execução nos
crimes formais).
Aos crimes cometidos no estrangeiro a que seja aplicável a lei moçambicana – v. Arts.
4946 e 50;
46
Já no tempo colonial esta disposição devia harmonizar-se com o estatuido no art. 6 do Decreto n°19271 de 24 de
Janeiro de 1931. Segundo tal preceito, “para conhecer das infracções contra a segurança, a autoridade e o bom nome
do governo de uma colónia ou dos superiores órgãos ou instituições da sua administração, quando cometidas em país
estrangeiro e a elas seja aplicável lei penal vigente na colónia, é competente o juízo criminal da capital dessa
colónia”. Uma interpretação actualizada de ambas as normas levará a considerar competentes para conhecimento das
46
Aos crimes cometidos nos limites territoriais de diversos tribunais da mesma espécie
(por exemplo, nos limites de dois ou mais tribunais judiciais de província, ou de dois
ou mais tribunais judiciais de distrito), quando houver dúvidas acerca do lugar em que
o foi – v. &3° do art. 45 (princípio da prevenção da jurisdição);
Aos crimes praticados em local desconhecido – art. 47 (princípio do forum
deprehensionis);
Aos crimes cometidos a bordo de navio ou aeronave – art. 48.
A conexão objectiva verifica-se quando uma determinada infracção foi levada a cabo
por diversos agentes (dá-se assim uma comparticipação criminosa a que se refere o art
56 do CPP) , ou quando diversas infracções foram levadas a cabo na mesma ocasião,
reciprocamente ou por várias pessoas reunidas (v. Art. 57 do CPP), ou ainda quando,
tratando-se de diversas infracções cometidas em ocasiões diferentes, umas foremcausa
ou efeito das outras (art. 58 do CPP). Nos dois primeiros casos (dos arts. 56 e 57), a
conexão é obrigatória, pois funciona ope legis e, no terceiro caso (art. 58), é facultativa,
sendo declarada ope judicis.
infracções contra a segurança e o crédito do Estado moçambicano, cometidas em país estrangeiro e a que seja aplicável
a lei penal moçambicana, as Secções Criminais do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo.
47
Além dos exemplos cabados de referir de conexão entre várias infracções ou agentes
da mesma infracção, a regra geral de determinação da competência territorial pode
sofrer ainda um outro desvio. Trata-se dos casos de remoção da competência, também
chamada de desaforamento por motivos muito especiais, que têm de estar previstas na
lei, a infracção criminal é julgada por um tribunal diferente do normalmente
competente.
A essas situações de desaforarmento e ao seu carácter excepcional se referem os arts.
37 e 45, alínea d), da lei n°24/ 2007, de 20 de Agosto, e os arts.671, 683 e 698 do CPP.
48
A terceira categoria, admitida por alguns autores, é a da competência funcional por
órgãos, pela qual se faz a distinção entre o juíz monocrático ou singular e o juíz
colegial. Ora, como sabemos, segundo a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (já ssim
era na vigência da lei n°12/78, de 2 de Dezembro), todos os tribunais da República de
Moçambique têm uma composição colegial, não existindo a figura de juíz singular,
pelo menos para efeitos de julgamento e decisão.
7. O Ministério Público
49
e revolucionárias do séc. XVIII em França, devia substituir o anterior processo de
estrutura inquisitória.
50
Esta tese é rejeitada por muitos autores, com a argumentação de que a função
judicial se concretiza, materialmente, pela declaração do direito do caso (ou seja, pela
aplicação das normas jurídicas a um caso penal concreto), através de uma decisão
susceptível de transitar em julgado. E esta possibilidade está vedada ao M°P°: ele
participa dessa função, é verdade, como dela participam os outros sujeitos processuais,
mas não lhe pertence declarar o direito do caso, nem as suas decisões assumem a
característica ou virtualidade de caso julgado.
Daqui decorre a exigência de que, em todas as suas intervenções no processo penal, obedeça a
critérios de estrita objectividade jurídica.
51
Com efeito, ao Ministério Público compete trazer ao processo e ajudar a esclarecer, não só os
factos que possam demonstrar a culpa do arguido, mas também todos os indícios da sua inocência
ou da sua menor culpa.
Para que o Mistério Público possa cumprir o seu dever de objectividade, é necessário que esteja
assegurada a sua imparcialidade. Daí que os arts. 105 e 113 do CPP tenham tornado extensivo aos
agentes do MP o sistema de impedimentos e suspeições que anteriormente vimos ser aplicável aos
juízes.
Quanto à estrutura do Minsitério Público, e como reflexo dos critérios de actuação acabados de
referir, há que assinalar a sua autonomia em relação aos demais órgãos do Estado – consagrada no
art. 2, n°2 da lei n° 22/2007, de 1 de Agosto) - incluindo os tribunais.
Aliás, relativamente a estes, o n°1 do art. 37 da antiga lei orgânica da Procuradoria Geral da
República Lei n°6/89, de 19 de Setembro), dispunha que
Por tudo isto – pela sua autonomia e organização hierárquica, pela objectividade, isenção e
obediência à lei – é que os magistrados do Ministério Público estão apenas sujeitos às directivas e
ordens do respectivo superior hierárquico, terminando no Procurador-Geral da República.
De acordo ainda com a Lei Orgânica da Procuradoria-geral da República e com o estatuto dos
magistrados, esta magistratura tem a seguinte representação:
47
- E aparecem reafirmadas na Lei Orgânica da Procuradoria-geral da República – Lei n°22/2007, de 1 de Agosto,
nomeadamente no seu art. 2, n°2.
52
- o Vice-Perocurador Geral da República substitui o Procurador-geral nas
suas faltas e impedimentos;
- Os Procuradores Gerais Adjuntos representam o MP juntodas Secções do
Tribunal Supremo, do Tribunal Administrativo.
- Os Sub- procuradores gerais da república representam o MP nas secções
dos Tribunais Superiores de Recurso;
- Os procuradores da república de principais, de 1ª, de 2ª e de 3ª, classes
representam o MP nos tribunais judiciais provinciais e de distrito.
- Os procuradores distritais representam o MP nos tribunais judiciais de
(cfr. Art.5 da Lei n°22/2007, de 1 de Agosto).
O princípio geral nesta matéria é posto clara e correctamente em evidência pelo já citado art.37 da
lei n°6/89, de 19 de Setembro48, segundo a qual “a magistratura do Ministério Público é paralela
à magistratura judicial e dela independente”.
1- Os tribunais (os juízes) não podem dar quaisquer ordens ao Ministério Público49.
2- O Ministério Público não pode dar quaisquer ordens ou instruções aos tribunais;
48
Este Diploma foi revogado pela Lei n° 22/2007, de 1 de Agosto, que já não faz referência a este paralelismo, mas
que se deduz dos articulados referentes à representação do M°P° junto de cada tribunal aos diversos níveis.
49
A situação prevista nos arts. 44 (segunda parte) do Decreto-lei n°35007 e 346 do CPP – segundo os quais, se o MP
tiver promovido que o processo se arquive ou aguarde a produção de melhor prova finda a instrução contraditória e o
juíz entender que há elementos para se prosseguir no processo, assim o declarará em despacho fundamentado,
ordenando que volte com vista ao MP, para deduzir acusação – têm de considerar-se aqsolutamente excepcionais e só
justificáveis pela posição de predomínio processual que a natureza das coisas obriga a atribuir ao juíz em qualquer
fase judicial do processo penal.
53
3- Ninguém pode, simultaneamente, actuar como MP e como juíz no mesmo processo
50
penal .
Ainda no contexto das relações entre o Ministério Público e os tribunais, cabe dizer que os
agentes do M°P° não estão vinculados à jurisprudência dos tribunais (jurisprudência, no sentido
de decisões judiciais, de precendtes formados através da aplicação do direito substantivo aos casos
concretos), mas em nome da unidade da aplicação do direito, devem respeitá-la como orientação
a seguir.
Como órgão encarregado de promover a preseguição dos crimes e outras infracções à lei
penal, compete ao Ministério Público, em primeiro lugar, proceder à sua completa investigação e
ao seu possível esclarecimento.
Para lhe permitir a plena realização desta finalidade, a lei atribui-lhe a direcção da instrução
preparatória – art. 14 do Decrdeto-lei n° 35007. Esta regra geral sofre, no entanto, algumas
restrições constantes dos preceitos seguintes do mesmo diploma legal.
O art.16 estabelece:
50
Já vimos isso a propósito dos impedimentos – art. 104, n°3, do CPP.
51
Redacção constante da Portaria n° 17076, de 20 de Março de 1959, que tornou extensivo a Moçambique e às
restantes ex-colónias portuguesas o Decreto-Lei n° 35007. Também os arts. 16 e 17 sofreram alterações introduzidas
pela mesma Portaria.
54
Por sua vez, o art. 17 determina:
- “Nos casos em que outras autoridades, além do Ministério Público, podem exercer acção
penal, a elas compete a instrução preparatória dos respectivos processos, podendo, contudo, o
Procurador da República ordenar que a instrução seja cometida à Polícia Judiciária”.
As autoridades que, além do Ministério Público, podem exercer acção penal são as
enumeradas no art. 2 do mesmo Decreto-Lei:
1 - As autoridades judiciais nos tribunais onde não haja representante titular do M°P°52.
Órgãos privativos de polícia judiciária – expressão utilizada no art. 18 – são vários ramos
em que se organiza e estrutura a PRM (Polícia da República de Moçambique). Com efeito,
os diversos ramos policiais são órgãos da administração (do Poder Executivo – daí a sua
subordinaçao ao Ministério do Interior) que tem por fim último zelar pela ordem e
tranquilidade públicas. A sua actividade inscreve-se na prevenção e luta contra a
criminalidade nas áreas específicas para que estão vocacionados – protecção geral,
criminalidade nos transportes e comunicações, criminalidade no trânsito automóvel, etc.
Ora, no exercício de tal actividade, por razões práticas e de eficiência, esses órgãos podem
receber competência para a prática de actos (designadamente actos instrutórios) que se
repercutem no processo penal. Por isso eles agem como auxiliares da administração da
justiça e os actos que praticam podem considerar-se como actos de polícia judiciária.
52
Uma interpretação actuializada deste preceito leva necessariamente a concluir que o Ministério Público está hoje
representado em todos os tribunais – arts. 4, n°1, alínea a) e 5 da Lei n° 22/2007, de 1 de Agosto -, pelo que em
situiação alguma as autoridades judiciais podem exercer a acção penal.
55
Quanto à PIC (Polícia de Investigação Criminal), constitui sem dúvida o órgão de polícia
judiciária por excelência. A sua existência é uma necessidade da vida moderna, pois
nenhum país pode hoje dispensar uma polícia altamente especializada e dotada de poderes,
meios e instrumentos para exercer uma completa investigação criminal. A PIC funciona
como o mais precioso auxiliar do Ministério Público no exercício da sua função de
perseguição do crime.
Um aspectro que não pode deixar de ser realçado é o de que as restrições apontadas à
realização da instrução preparatória pelo Ministério Público não põem minimamente em
causa a função de direcção que lhe está cometida.
53
V. art. 4, n°1, alíneas c) , h), j) e q) da Lei n° 22/2007, de 1 de Agosto.
56
O Ministério Público não detém, todavia, o monopóplio exlcusivo da dedução da acusação.
Desde logo, nos crimes particulares a acusação principal – e que pode ser a única – está a
cargo dos próprios particulares (v. Art. 3, &único, do Decreto-Lei n° 35007). Mas também,
como vimos, outras entidades públicas gozam – nos termos do art. 2 do mesmo diploma –
de competência para, relativamente a certas infracções, exercer a acção penal54.
A função do Ministério Público no que toca à acusação não se esgota, porém, na sua
dedução, mas abrange a sua representação em julgamento.
Esta forma de agir assume particular relevo e importância na fase das alegações orais (arts.
467, 533, 539 e 559, in fine, do CPP), durante a qual deverá tomar posição, quer sobre a
questão-de facto, quer sobre a questão-de-direito.
- “Se se verificar não ter havido crime, ou estar extinta a acção penal, ou se houver
elementos de facto que comprovem a irreponsabilidade do arguido, o Ministério Público
abster-se-á de acusar, declarando nos autos as razões de facto e de direito justificativas”.
- “Se não houver prova bastante dos elementos da infracção, ou de quem foram os
seus agentes, o Ministério Público acusará provisoriamente e requererá a instrução
contraditória, se for de presumir que possa completar-se a prova indiciária, ou abster-se-
54
- O que significa que essas autoridades realizam o acto processual correspondente à acusação – v. Art. 543 e segs.
do CPP. Para a forma de processo de transgressões, e art. 556 e segs. Para a forma de processom sumário.
57
á de acusar, comunicando o facto ao Procurador da República hierarquicamente superior
nos termos do art. 23”55, (o sublinhado é nosso)
Estão aqui as duas hipóteses de abstenção da acusação, à qual se refere também o art. 343
do CPP.
Dado que a acção penal é pública ( v. art.1 do Decreto-Lei n° 35007), e que o Ministério
Público constitui uma magistratura paralela a judicial e dela independente, o controlo
da decisão de abstenção do M°P° só pode fazer-se, segundo a legislação em vigor, por
via hierárquica. E esta fiscalização hierárquica da abstenção de acusação pode ser
desencadeada por um dos seguintes meios:
Vê-se, assim, que, em qualquer dos casos – seja qual for o meio utilizado – é ao Procurador da
República imediatamente superior a que se absteve de acusar, que compete decidir em último
termo se deve ou não ser proferida a acusação.
55
De harmonia com a Lei n° 22/2007, de 1 de Agosto, as comunicações são dirigidas ao Procurador hierarquicamente
superior, (v. alínea e), n° 2 do art. 42 da Lei n° 22/2007) ; alínea g), n° 1, do art. 43, e alínea e) , n° 2, do art. 45, todos
da referida Lei n° 22/2007.
58
vigor. Assim, e atendendo o disposto na lei n° 22/2007, de 1 de Agosto, é de admitir que, do
despacho de abstenção de acusação proferido por um Procurador Distrital se deva recorrer para o
Procurador provincial e do despacho deste para o Sub- Procurador Geral da República, tendo em
conta que a lei (...) criou esta nova categoria de magistrados previstas no art. 83 da lei n° 22/2007,
que se situa entre o Procurador Geral Adjunto da República e o Procurador Principal. No mesmo
sentido de progressão hierárquica devem os magistrados do Ministério Público aos vários níveis
dar cumprimento ao disposto no art. 23 do Decreto-lei n° 35007.
Tudo quanto se acaba de dizer refere-se à abstenção da acusação que tenha tido lugar após a
instrução preparatória. Se a abstenção da acusação tiver lugar após a instrução contraditória (o
que poderá acontecer no caso previsto na primeira parte do art. 26 do Decret-Lei n° 35007), há que
ter em atenção o disposto no art. 346 do CPP, a que já se fez referência56.
Outro aspecto a salientar é que a abstenção da acusação do Ministério Público pode dar ao
processo dois destinos diferentes:
Quando o processo fica a aguardar a produção de melhor prova, é entendimento mais ou menos
generalizado de que a decisão assim proferida adquire força análoga a do caso julgado, mantendo-
se sob reserva da cláusula conhecida pela expressão latina rebus sic stantibus – quer dizer, a força
de caso julgado fica condicionada à superveniência de factos ou elementos de prova que devam
considerar-se novos em relação aos já apreciados.
Relativamente ao arquivamento do processo nos termos do art. 343 do CPP é que se levantam
divergências no entendimento dos efeitos a atribuir à respectiva decisão.
A jurisprudência dos tribunais portugueses e a doutrina representada por autores como Cavaleiro
de Ferreira57 e Fernandes Afonso58 entendem que os despachos de arquivamento proferidos pelo
Ministério Público têm natureza administrativa e não judicial – não estabelecem caso julgado e
nem são susceptíveis de recurso, só podendo ser alterados por via de reclamação hierárquica.
56
V. ponto 7.1.3.
57
Op. cit. vol. III, págs. 163
58
- O caso julgado e os despachos de abstenção de acusar proferidos pelo Ministério Público, in Scientia
Juridica,Tomo XIII, pág. 153.
59
Outros autores como Eduardo Correia59 e Figueiredo Dias60 opinam que a transferência de poderes
para o Ministério Público, operada pelo Decreto-lei n° 35007, não implicou a impossibilidade às
respectivas decisões o regime dos arts. 343 e sgs. do CPP ou de adquirirem força de caso julgado,
para efeitos dos arts. 148 e segs. Assim, a definitividade do arquivamento do processo, a que se
refere o &único do art. 29 do Decreto-Lei n° 35007 corresponde ao reconhecimento, pela lei, dos
efeitos de caso julgado à respectiva situação.
O Prof. Eduardo Correia expende ainda que, mesmo que a decisão de arquivamento seja
considerada acto administrativo, terá de ser considerada um acto constitutivo de direitos, dominada
pelo princípio da legalidade e não pelo da oportunidade. E sendo assim, também não poderá tal
decisão deixar de esgotar o jus puniendi do Estado relativamente aos factos apreciados e de criar,
para o arguido, o direito de por eles não voltar a ser perseguido.
Até aqui indicaram-se as funções mais importantes que o Ministério Público desempenha no
processo penal: a direcção da instrução preparatória, a dedução da acusação, a sua represntação
em julgamento e a abstenção de acusar.
São estas as actividades que melhor caracterizam a posição jurídica que o Ministério Público
assume no processo penal.
Todavia, há que fazer igualmente referência, ainda que meramente sumária, a outras funções que
ao Ministério Público cabe realizar:
- A intervenção na instrução contraditória, nos termos do art. 330 do CPP, a direcção desta
fase processual incumbe ao juíz. O Ministério Público exercerá ali a sua função geral de
fiscalização da legalidade e de colaboração na descoberta da verdade material e na
realização do Direito;
59
“Despacho de arquivamento do processo e caso julgado”, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 99, pág.
33
60
Op. cit. pág. 411 e segs.
60
- A promoção da execução das penas e medidas de segurança: veja-se o disposto no Art.
627 do CPP.
Já atrás dissemos61 que a Polícia de Investigação Criminal constitui o mais precioso auxiliar
do Ministério Público no exercício da sua função de perseguir os crimes e de dirigir a
instrução preparatória do processo penal.
8.1. O arguido
“É arguido aquele sobre quem recaia forte suspeita de ter perpetrado uma infracção, cuja
existência esteja suficientemente comprovada”.
A lei dá-nos, assim, uma definição concreta de arguido, exigindo, por um lado, que
a existência da infracção esteja suficientemente comprovada e, por outro lado, que haja
61
Ponto 7.2.1.
61
forte suspeita – radicada em elementos constantes do processo de que tenha sido perpetrada
por determinada pessoa (arguido).
Réu será considerado unicamente o indivíduo pronunciado, ou seja, aquele que já foi
solenemente chamado à responsabilidade perante a comunidade jurídica através de uma
acusação aceite ou recebida por um juíz.
Esta distinção conceitual entre arguido, suspeito e réu tem valor meramente doutrinal . O
Código de Processo Penal refere-se em muitos dos seus preceitos, a réu, querendo abranger
também o arguido em fase anterior à pronúncia (vejam-se, por exemplo, os arts. 22 e segs
e art. 98, n° 4, ambos do CPP), do mesmo modo que utiliza indistintamente outras
expressões, como acusado (v. art.379 e segs), indiciado (v. arts. 366, 369, 370, etc.) e
mesmo – ainda que impropriamente – culpado (v. art.243). por isso, no dizer de Figueiredo
Dias “... Deve ser repudiada como conceitualista-formal qualquer tentativa de partir do
qualificativo para se lhe ligarem efeitos jurídico-materiais”62.
62
Op. cit. pág. 427.
62
O estatuto jurídico que a lei providencia ao arguido no processo penal constitui um
elemento fundamental para se avaliar que tipo de relações se estabelece entre o Estado e a
pessoa individual e a consequente posição desta na comunidade.
Num Estado de Direito democrático o arguido é sujeito e não objecto do processo, sendo-
lhe assegurada uma posição jurídica que lhe permite uma participação determinante na
declaração do direito do caso concreto, através de concessão de autónomos direitos
processuais legalmente definidos. Esses direitos processuais deverão ser respeitados por
todos os intervenientes no processo penal.
Isto não significa que o arguido não possa, nos termos expressamente definidos pela lei,
ser objecto de medidas coactivas e constituir, ele próprio, um meio de prova. Significa
apenas – e fundamentalmente – que as medidas coactivas e probatórias que sobre ele se
exerçam não poderão nunca radicar-se na extorção de declarações ou de qualquer forma de
autoincriminação, pois todos os actos processuais do arguido deverão ser expressão da sua
livre personalidade.
Vejamos então quais são, concretamente, os principais direitos e garantias que a lei
assegura ao arguido, como sujeito do processo penal:
a) Direito de audiência, o arguido tem o direito de ser ouvido quanto aos factos que lhe são
imputados. Esse direito expressa-se no chamado interrogatório do arguido, o qual sendo
um meio de prova, é igualmente um meio de defesa por excelência.
O interrogatório do arguido (a que a lei também chama de perguntas – v. arts 250 e segs
do CPP) tem, portanto, esta dupla característica, a qual já não está presente nas chamadas
declarações do arguido (art. 244), que funcionam como um simples meio de prova.
Existe, desde logo, o chamado primeiro interrogatório, o qual é realizado “logo que, com
base na denúncia ou no resultado de diligências probatórias, a instrução preparatória seja
dirigida contra pessoa determinada...”(art. 250), ou quando tiver ocorrido a prisão de um
réu, quer em flagrante delito, quer fora dele (arts. 290 e 311).
O regime jurídico deste primeiro interrogatório não é o mesmo que se aplica aos
interrogatórios subsequentes, pois enquanto aquele é feito exclusivamente pelo juíz da
63
instrução criminal.(ou do juíz da causa ou do lugar da prisão)63, estes são feitos pelo
Ministério Público na instrução preparatória e pelo juíz da causa na instrução
contraditória64. Há ainda a referir os interrogatórios em julgamento, que são feitos pelo
juiz-presidente (v. art. 425 do CPP).
A lei impõe que o inquiridor advirta o arguido antes do início do interrogatório, de que a
certas matérias ele não é efectivamente obrigado a responder. Assim, o arguido é obrigado
a prestar certas declarações quanto à sua identidade e antecedentes criminais (v. art. 254,
1°) – sob pena de desobediência (art. 188 do CP), ou de falsidade em caso de falsas
declarações (art. 242 do CP) – podendo omitir qualquer declaração relativamente aos factos
que lhe são imputados (art. 254, 3° ).
O juíz ao interrogar o arguido, deve esclarecê-lo claramente quanto aos factos que lhe são
imputados, indicando, se não houver prejuízo para a continuação da instrução, as provas
em que se baseia a imputação e as suas fontes ( art.254, 2°).
Prestando declarações, o arguido poderá confessar ou negar os factos de que vem acusado.
Confessando, haverá que aplicar-se o disposto nos atrs. 256, 258 e 174, &único, do CPP.
Neste caso, gozará da atenuante da confissão espontânea enunciada no n° 9 do art. 39 do
CP. Se negar, o art. 259 permite ao juíz confrontar o arguido com depoimentos anteriores
e fazer-lhe ver a eventual inconsitência da negativa quanto à matéria de facto.
63
- V. arts. 1, n°2, alínea a), e 2, n°2, da Lei n° 2/93, de 24 de Junho, e arts 253 e 311 do CPP.
64
V. arts. 264 e 265 do CPP.
64
ser feito valer processualmente contra si, ao mesmo tempo que garantir-lhe uma relação de
imediação com o juíz e com as provas.
* no art. 203, &2°, quanto às buscas, às quais o arguido estará presente sempre que
o juíz entenda necessário, ou se estiver preso;
* como regra geral aplicável ao julgamento, no art. 418 – disposição que excepciona
dessa obrigatoriedade os réus em processos de transgressões 65relativa a infracções
a que não corresponda pena de prisão, os quais poderão fazer-se representar por
advogado (v. art.547 ), podendo, no entanto, o juíz tornar obrigatória essa
comparência (&&1° e 2° deste preceito).
Reconhecida como um direito e imposto, por vezes, como um dever, a presença do arguido só
muito excepcionalmente será vedada por lei. A maioria das situações legais em que esta excepção
ocorre é, aliás, alvo das maiores críticas e pode mesmo considerar-se inconstitucional...
A primeira excepção resulta, quanto à instrução prepaeratória, do próprio carácter secreto desta
fase (v. art. 70 do CPP), do qual decorre que, em princípio, o processo só pode ser mostrado ao
arguido ou ao respectivo advogado quando não houver incoveninte para a descoberta da verdade
(v. & 1° do art. 70). Sucede, porém, que, mesmo na fase preparatória, logo que a instrução seja
dirigida contra uma pessoa determinada (que, neste caso, deverá ser interrogada como arguida), o
segredo de justiça cede perante o direito que assiste à defesa de tomar conhecimento de certas
peças processuais, nomeadamente:
Para efeito desta consulta, os autos ficarão patentes na secretaria pelo prazo de três dias, sem
prejuízo do andamento do processo (v. & 1° do art. 70).
Quanto à instrução contraditória, permite-se ao juíz que determine a não assistência do arguido a
certas diligências – art. 39, & único, do Decreto-Lei n°35007 e art. 330, & 1°, do CPP -, tendo
65
No concernente ao processo sumário, v. art. 5° do Decreto-Lei n° 28/75, de 1 de Março.
65
estes preceitos sido largamente criticados e considerados incostitucionais em Portugal, após a
Constituição de 1976.
No que toca ao julgamento, sendo, como vimos, a regra geral a da comparência obrigatória do réu
(art.418), mesmo assim, a lei faculta o julgamento sem a presença daquele, no caso de julgamento
de réus ausentes.
Tal julgamento pauta-se por um conjunto de princípios especiais destinados a garantir, por um lado
o direito de defesa do réu, e por outro o interesse da justiça em proferir uma decisão que muitas
vezes é necessária para a definição da situação dos co-réus presentes.
Tratando-se de ausência justificada a lei estabelece dois regimes distintos, conforme a ausência
seja de carácter temporária ou definitiva – v. & 1° e corpo do art. 566. No caso de ausência
injustificada (v. arts. 563 e 565), o julgamento decorrerá sob forma especial, designada processo
de ausentes, cuja tramitação está prevista no art. 571 do CPP.
c) Direito à assistência de defensor – este direito constitui uma emanação directa e necessária do
próprio direito de defesa, garantido pelo art. 62 da Constituição.
O direito de defesa pressupõe, na verdade, que o arguido seja esclarecido - por pessoa da sua
confiança ou que em todo o caso, tenha por função velar exclusivamente pelo interesse da defesa
– quanto ao objecto da culpa e da prova.
Veremos adiante, com mais pormenor, este direito à assistência de defensor, que é referido no art.
22 do CPP.
Na altura própria será também estudada a matéria referente aos recursos em processo penal.
66
Fez-se atrás referência ao regime jurídico dos interrogatórios a que o arguido é submetido nas
diversas fases do processo. Também se disse que o conteúdo essencial da posição do arguido como
sujeito (e não objecto) do processo está em que todos os actos processuais que pratique deverão
ser expressão da sua livre personalidade.
A lei processual penal vigente avança muito pouco na regulamentação desta matéria. Segundo o
art. 255 do CPP, o arguido não pode ser “obrigado a responder precipitadamente”– ou, em todo
o caso, sem o tempo conveniente para obter recordações exactas – a qualquer pergunta. Por seu
turno, o art. 261 dispõe que “as perguntas não serão sugestivas nem cavilosas, nem acompanhadas
de dolosas persuasões, falsas promessas ou ameaças”. E acrescenta o & único que “o juíz ou
agente do Ministério Público que violar o disposto neste artigo incorrerá na respectiva pena
disciplinar”.
Sendo isto praticamente tudo quanto se encontra na nossa legislação processual penal sobre a
ilegitimidade dos meios de obter declarações do arguido, torna-se evidente que esta disciplina terá
de ser interpretada nos termos mais amplos e complementar-se-á com os preceitos da Constituição
(nomeadamente com referências aos arts. 40, 41 e 56 da CRM/2004).
Do mesmo modo se devem considerar ilegítimos dois outros métodos de interrogatório que
utilizam técnicas mais modernas, nomeadamente a narcoanálise, a que já foi feita referência66 e o
polígrafo67;
66
V. supra, ponto 1.5.
67
- Aparelho que se liga à pessoa a interrogar e que regista os traçados da sua respiração, pulsação, tensão arterial,
transpiração cutânea, etc.. Sobre estes métodos, v. Figueiredo Dias, op. Cit. pp. 455 e ss.
67
b) Estes meios de interrogatório e de obter declarações acabados de referir devem continuar
considerar-se proibidos e processualmente inadmissíveis ainda que o arguido consinta na
sua utilização. Desde logo, um tal consentimento só muito raramente poderia considerar-
se livre, visto estar o arguido coagido pelo receio de que a negação do consentimento
pudesse ser interpretado como indício da sua culpa. Além disso, tal consentimento seria
ineficaz por recair sobre bens ou valores indisponíveis - a autonomia e dignidade da pessoa
humana e sua liberdade de vontade e decisão ...;
Já se disse que o arguido é um sujeito processual e que, em razão dessa qualidade, o seu estatuto
comporta um complexo de direitos e deveres atrás enunciados.
Importa agora referir a especial tutela de que goza por imperativo constitucional: a presunção de
inocência.
O art. 59, n° 2 da Constituição de 2004 estabelece que “os arguidos gozam de presunção de
inocência até decisão judicial definitiva”. O mesmo princípio acha-se consagrado na Carta
Africana dos Direitos do Homem e dos Povos e no Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos, instrumentos de direito internacional ratificados pela Assembleia da República e, como
tal, integrados na ordem jurídica interna68.
O princípio da presunção de inocência é, no dizer de Marques da Silva :”... antes de mais uma
regra política que revela o valor da pessoa humana na organização da sociedade e que recebeu
68
- A Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, adoptada pela XVII Conferência dos Chefes de Estado e
de Governo da OUA, em Junho de 1981, em Nairobi, Kenia, e ratificada pela Resolução n° 9/88, de 25 de Agosto, da
Assembleia da República, dispõe, no seu art. 7, n° 1: “Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja apreciada.
Esse direito compreende : ...b) o direito de presunção de inocência, até que a sua culpabilidade seja estabelecida por
um tribunal competente...”. Por sua vez, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, adoptada pela
Assembleia Geral das Nações Unidas em 16 de Dezembro de 1966, e ratificado pela Resolução n° 5/91, de 10
Dzembro, da Assembleia da República, estatui, no seu art. 14, n°2 : ‘Qualquer pessoa acusada de uma infracção
penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida”.
68
consagração constitucional como direito subjectivo público, direito que assume relevância
prática no processo penal num duplo plano: no tratamento do arguido no decurso do processo e
como princípio de prova”69.
8.2. O Defensor
Num verdadeiro processo penal de partes – como vimos ser característica dos paises de inspiração
anglo-saxónica - , a função exercida pelo defensor e a posição jurídica por ele assumida não
levantaria dúvidas de grande monta: trata-se aí, como no processo civil, de uma autêntica
representação judiciária do arguido, cabendo ao defensor a prática, em nome e no interesse
daquele, de todos os actos processuais para os quais lhe tenha sido concedida procuração bastante.
Mas não é essa a situação prevalecente na nossa legislação processual penal. No nosso caso
estamos, como já foi dito, perante um processo sem partes, em que tanto ao juíz como ao Ministério
Público cabe oficiosamente velar pela protecção dos direitos processuais do arguido e, inclusivé,
pela sua própria defesa. Todavia, é evidente que não pertence ao juíz nem ao Ministério Público,
como função característica e essencial, exercer os misteres da defesa do arguido. Justamente
porque o juíz e o M°P° têm de comportar-se imparcial e objectivamente, só a existência de um
órgão a quem caiba actuar – ainda que, também ele, objectivamente – no exclusivo interesse da
defesa, pode dar a garantia de que os factos que constituem objecto do processo serão
esgotantemente investigados, e de que procurará evitar, até onde é humanamente possível, erros
desfavoráveis ao arguido, na apreciação daqueles factos.
69
- Curso de Processo Penal, vol. I, Editora Verbo, Lisboa, 1993, pág. 219.
69
Assim se caracteriza a função do defensor em processo penal – exclusivamente a de fazer avultar
no processo tudo quanto seja favorável ao arguido. Através dela pode-se, então, determinar a
posição jurídica do defensor.
Deste modo, embora o art. 22 do CPP possa dar a entender que o defensor é um mero representante
judiciário do arguido – nos casos em que ele não seja obrigado a estar pessoalmengte em juízo -,
o certo é que o fundamento da prática, pelo defensor, de actos processuais não reside na
procuração forense ou nos poderes representativos concedidos pelo arguido, mas encontra-se
directamente no pode-dever que a lei lhe confere de realizar a função de defesa sem estar
condicionado às instruções ou vontade do arguido. Neste sentido, pode e deve afiramar-se que a
função de defesa é pública, tem o seu assento no direito público e não no instituto jurídico-privado
da representação;
Também não basta, para caracterizar a posiçào jurídica do defensor, dizer que a sua função é de
assistência jurídica do arguido. Se por assistência quisermos entender uma mera função de auxiliar
processual, então terá de concluir-se que tal caracterização é inexacta, pois o exercício da função
de defesa não está essencialmente subordinada às intenções ou à vontade do arguido, nem
exclusivamente dependente do interesse subjectivo deste ( p.ex. o de obter a absolvição a todo o
custo);
A exacta caracterização da posição do defensor é, pois, a seguinte: tal como o M°P°, também o
defensor, seja ou não advogado, é um órgão autónomo de administração da justiça, como tal lhe
cabendo basicamente colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na relaização do Direito.
A função da defesa ultrapassa o eventual interesse subjectivo do arguido para cumprir uma tarefa
que diz directamente respeito à própria comunidade jurídica – a de que só sejam punidos em
processo penal os verdadeiros culpados e, para isso, a de que sejam protegidos todos os arguidos.
70
O Estatuto da Ordem dos Advogados de Moçambique foi aprovado pela Lei n° 28/2009, de 29 de Setembro.
70
defensor tem de encontrar equilíbrio da sua actuação, sendo através deles que se alcança o essencial
da sua posição jurídica no processo penal.
Nos termos da 1ª parte do art. 49 do Decreto-lei n° 35007, “o arguido pode constituir Advogado
em qualquer altura do processo”. Por esta forma dá a lei a entender que o exercício da função de
defesa é admissível em qualquer processo e em qualquer fase em que este se encontre.
Mas apesar deste princípio geral de admissibildade, o certo é que só em alguns casos a defesa se
torna, por lei, necessária ou obrigatória. Assim, de acordo com a 2ª e 3ª partes do citado art. 49, é
obrigatória a nomeação de defensor oficioso, se ainda não houver advogado constituido, no
despacho de pronúncia provisória em processo de querela (como desapareceu,entretanto, o
despacho de pronúncia provisória, a referência a ele feita deve entender-se como o despacho que
recebe o requerimento para abertura da instrução contraditória). Nos processos de polícia
correccional deverá ser nomeado para julgamento. Nos processos sumários e transgressões, o
juíz é obrigado a nomear defensor oficioso se o arguido o pedir ou se houver lugar a aplicação
de medidas de segurança.
Além destes casos, também é obrigatória a intervenção (a presença) de defensor nos interrogatórios
de quaisquer arguidos presos, durante a fase da instrução preparatória, nos termos dos arts. 253 e
264 do CPP.
Segundo o art. 98, n°4 do CPP, a falta de nomeação de defensor ao réu, quando necessária,
constitui nulidade principal do processo penal, cujo regime é regulado pelo &5° do mesmo
preceito. Para além disso, há que ter em conta o disposto no art, 268 do CPP, segundo o qual ‘” é
nulo ... qualquer interrogatório sem a assistência de defensor, quando obrigatória, ou se o
advogado foi indevidamente impedido de assistir, quando facultativa”.
O defensor pode ser chamado a assumir a sua posição no processo penal pelo arguido ou pelo
tribunal. Se for o arguido a chamá-lo, estaremos perante uma constituição de advogado (ou
defensor) – ART. 49 do Decreto-lei n° 35007 ; se for o tribunal, depararemos com a nomeação de
defensor oficioso (art. 22 && 1° e 2° do CPP).
71
O princípio que rege nesta matéria é o da liberdade de escolha de defensor e , portanto, da
sobreposição da constituição à nomeação. Em qualquer altura do processo em que o arguido
constitua defensor, cessam as funções do defensor que tiver sido nomeado oficiosamente (v. art.
22, &3° do CPP). Portanto, só quando o arguido não faça uso do seu direito de escolha e que caso
se trate de defesa obrigatória, o juíz lhe nomeará defensor oficioso. Além desta distinção entre
defensores constituidos e nomeados, há que ter em conta o que dispõe o Estatuto do IPAJ sobre a
determinação das pessoas que podem intervir no processo penal como defensores (distinção entre
advogados, técnicos jurídicos e assistentes jurídicos).
Para o caso de serem vários os arguidos, dispõe o corpo do art. 23 do CPP que “cada um poderá
ser representado no processo e até na audiência de julgamento por um advogado”.
O defensor não pode ser considerado impedido ou suspeito – seja por força da lei ou por acção do
juíz ou do Ministério Público – apesar de, como se disse, também ele deve ser tido como órgão
de administração da justiça. Todavia, é claro que, tratando-se de advogado constituido, pode o
arguido em qualquer altura escolher novo defensor e, por este caminho, afastar da defesa o
advogado anteriormente constituido – dá-se a revogação do mandato, nos termos do art. 39 do
CPC. Se se tratar de defensor oficiosamente nomeado, estatui o art. 26 do CPP que o juíz poderá
sempre substitui-lo, a requerimento do arguido, por causa justificada.
Hipótese diferente desta é a da retirada da palavra ao defensor pelo tribunal, confiando a defesa
a outro advogado – v. art. 412 do CPP.
No concreto exercício da função que lhe está confiada, como órgão da administração da justiça, o
defensor goza de certos direitos e está sujeito a determinados deveres que iremos agora em breve
síntese analisar.
O defensor deve, antes de tudo, prestar ao arguido o mais completo e esclarecedor conselho
jurídico de que for capaz. Não deve limitar-se estar ao lado do arguido, a assisti-lo ou representá-
lo nas suas diversas intervenções processuais: a assistência ou representação só ganham sentido
quando cada intervenção seja, sempre que possível, precedida do esclarecimento da situação
jurídica material e processual.
Naturalmente que, logo nesta matéria, se lhe podem começar a pôr alguns problemas resultantes
do conflito entre o seu dever de defesa e a participação na descoberta da verdade e na justa
72
realização do Direito. Contra o dever de verdade (procurada, como vimos, no exclusivo interesse
do arguido), actuará o defensor que aconselhe o arguido a proferir afirmações inexactas ou que
sabe serem falsas, mesmo quando elas possam conduzir a uma absolvição ou a uma atenuação da
pena.
Tal não significa que o defensor não possa ou não deva procede ràs suas próprias averiguações
complementares, sempre que isso seja imposto ou aconselhado pela função de defesa – por ex.,
exame ao local da infracção, procura de testemunhas ou declarantes relevantes para a defesa e
comprovação do seu conhecimento e da sua razão de ciência – sem, evidentemente, tentar
influenciar, expressa ou encobertamente, o sentido das suas declarações.
O direito de assistência do defensor durante a fase da instrução preparatória não é tão ampla e
eficazmente assegurado porque, nesta fase, deve respeitar-se o segredo de justiça a que já
anteriormente nos referimos. Vejamos o que dispõe o art. 70 do CPP:
73
ficarão patentes, avulsos, na secretaria, pelo prazo de três dias, sem prejuízo do andamento do
processo. A todos é imposto o dever de guardar segredo de justiça...”(os sublinhados são nossos).
A função atribuida ao defensor em processo penal só poderá ser eficazmentye cumprida se, além
do mais, lhe for conferido um amplo direito de consulta dos autos e de exame dos objectos da
prova.
Já vimos que, durante a instrução preparatória, rege o disposto no &1° do art. 70 do CPP. Após a
notificação do despacho de pronúncia ou equivalente, é aplicável o disposto no art. 72 do mesmo
Código.
Outro dos direitos fundamentais do defensor penal é o de comunicar, oralmente e por escrito, com
o arguido. Se este se encontra em liberdade, o problema não se põe, pois é óbvio que a liberdade
de comunicação é total. Se o arguido se encontra preso, o problema do exerício do direito de
comunicação com o advogado ganha então particular realce.
Nos termos do &1° do art. 311 do CPP, os presos não poderão comunicar com pessoa alguma
antes do primeiro interrogatório. E o &2° acrescenta que, “depois de terminada a
incomunicabilidade, e enquanto durar a instrução preparatória, o agente do Ministério Público
pode proibir a comunicação do arguido com certas pessoas, ou condicioná-la se tal se mostrar
indispensável para evitar tentativas de perturbação da instrução do processo”.
Estas disposições foram, com razão, objecto de severas críticas na doutrina71, pois não se vê
justificação plausível para elas num Estado de Direito. Se é compreensível que a lei imponha a
incomunicabilidade do arguido antes do primeiro interrogatório, já não é de aceitar a extensão
dessa incomunicabilidade a pessoa do defensor. Em muitos países a legislação processual penal
dá maior relevância ao asseguramento da comunicabilidade entre o arguido e o seu defensor em
reais condições de liberdade, segurança e segredo, do que propriamente a obrigatoriedade de
assistência do defensor aos interrogatórios. É o que se passa nos direitos inglês e americano, que
consideram nulidade do processo o incumprimento, pelos órgãos policiais e instrutórios, do dever
de advertirem o arguido, no momento da prisão, de que tem o direito de se consultar com um
advogado antes de prestar quaisquer declarações.
71
- Figueiredo Dias escreve, a propósito, no seu Direito Processual Penal, págs 500 e segs. : “É absurdo que a lei
se tenha preocupado seriamente (como vimos ter sucedido com o DL n° 185/72) em assegurar a assistência do
defensor a qualquer interrogatório de arguidos presos, durante a instrução preparatória, e ao mesmo tempo tenha
tirado quase toda a eficácia real a tal assistência, decretando a incomunicabilidade total antes do primeiro
interrogatório e frustrado, assim, o direito de comunicação prévia entre arguido e defensor. Uma tal contradição só
existiria, é claro, se a assistência de defensor aos interrogatórios tivesse por único fim desencorajar ou impossibilitar
o uso sobre o arguido de sevícias ou quaisquer outros métodos ilegítimos de interrogatório. Mas sabe-se que assim
não é o que uma tal assistência visa também garantir o mais possível a pureza real dos autos, evitar declarações
emitidas por equívoco, confusão, receio ou ignorância, permitir, enfim, a plena consistência futura do direito de
defesa. Ora, é medianamente evidente que nada disto se logrará se não for permitida a consulta e comunicação prévia
do arguido com o seu defensor...”.
74
9. O OFENDIDO E O LESADO
De um ponto de vista estritamente penal, ofendido é a pessoa que, de acordo com o tipo legal de
infracção preenchido pela conduta criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico-penal por
aquela conduta violado ou posto em perigo.
Por outras palavras, na definição de Beleza dos Santos, é o “titular dos interesses que a lei quis
especialmente proteger quando formulou a norma penal”.
Este conceito estrito ou típico de ofendido é o que resulta do disposto no art. 4, n° 2 do Dec-Lei
n° 35007 (que reproduz nessa parte o art.11 do CPP) e assume relevância quando se trata de
matérias especialmente penais.
Uma definição mais lata de ofendido ( ou lesado) é utilizada quando estão em causa normas de
direito civil, para salvaguarda de interesses particulares juridicamente protegidos. Neste caso,
ofendido será a pessoa que, segundo as normas de direito civil, tenha sido prejudicada em
interesses juridicamente protegidos. A ela deve, por isso, ser reconhecida legitimidade para
deduzir, em processo penal, um pedido civil de indemnização ou qualquer outro de natureza
patrimonial, derivado de uma infracção penal.
Conforme vimos, na determinação das pessoas legitimadas para intervir como assistentes em
processo penal, a legislação em vigor parte do conceito estrito de ofendido – como tal se
considerando o titular do interesse ou interesses que a lei penal especialmente quis proteger com a
incriminação (art. 4, n° 2, do Decreto-Lei n° 35007).
Deste princípio geral resulta que, relativamente a certos crimes públicos, ninguém poderá
constituir-se assistente, uma vez que o interesse protegido pela incriminação é exclusivamente
público: é o que sucede nos crimes contra o Estado, contra a boa administração da justiça, contra
a ordem e tranquilidade públicas, e outros.
Pelo contrário, “qualquer pessoa nos processos relativos aos crimes de peculato, peita, suborno,
concussão e corrupção” pode constituir-se assistente (art. 4, n° 5) o que se traduz, na prática, por
75
um alargamento daquele conceito de ofendido, justificado pelo desejo de uma colaboração de
todos os particulares na detecção e perseguição de tais crimes que põem em causa a imagem e o
prestígio do Estado.
O mesmo se passa, em certa medida, nas outras hipóteses de constituição de assistente previstas
nos n°s 3 (‘o marido nos processos por infracções em que seja ofendida a mulher, salvo oposição
desta72) e n°4 (“o cônjugue não separado de pessoas e bens, ou viúvo, ou qualquer ascendente,
descendente ou irmão no caso de morte ou de incapacidade permanente do ofendido para reger a
sua pessoa”).
Quanto à forma de constituição de assistente dispõe o & 3° do art. 9 do Decreto-lei 35007 que ela
pode fazer-se por meio de declaração prestada no processo ou por meio de requerimento.
Tratando-se de crime particular, a declaração é obrigatória, conforme estabelece no & 3° do art. 9
do Decreto- Lei 35007.
Nos termos do art. 5 do referido Decreto-Lei, “os assistentes deverão ser sempre representados
por advogado. Havendo vários assistentes, serão todos representados por um só advogado, sem
prejuízo do disposto no & 1° do art. 21 do CPP, e, se divergirem quanto à sua escolha, decidirá
o juíz”.
72
“- Figueiredo Dias considera esta hipótese questionável: o seu fundamento residia no dever que, segundo o art. 39
do Decreto n° 1, de 24 de Dezembro de 1910, competia ao marido de defender a pessoa e os bens da mulher; hoje o
dever de assistência é mútuo (v. art. 1673, n° 1, do C. Civil) e não parece que possa ver-se inscrito um especial dever
de defesa da mulher na posição do marido como chefe de família (v. art. 1674 do mesmo Código), posição esta também
discutível do ponto de vista constitucional.
76
Para melhor compreender as formas de que se pode revestir a actuação do assistente no
processo penal, importa distinguir as diversas fases processuais, designadamente a instrução
preparatória, a instrução contraditória, a acusação, o julgamento e a fase dos recursos.
Os && 1° e 2° do art. 70 do CPP dão ao assistente ou ao seu advogado, nesta fase, o popder de
consultar o processo, o direito de tomar conhecimento das declarações do arguido, dos autos de
diliogências de prova a que pudessem assistir e de incidentes ou excepções em que devam intervir,
bem co0mo o direito de lhes serem facultados os autos de instrução preparatória, para o efeito de
formular a acusação.
No que diz respeito à acusação, compete em especial aos assistentes, nos termos do art. 4, &2°,
n°1, do Dec-Lei n° 35007 “formular a acusação independentemente da do Ministério Público e
ainda que este se tenha abstido de acusar”. Se bem repararmos nesta redacção do preceito, tal
como foi posta em vigor em Moçambique pela Portaria n° 17076, de 20 de Março de 1959,
verificaremos que lhe foi acrescentada a frase que sublinhamos (“... e ainda que este se tenha
abstido de acusar”), relativamente à redacção vigente no continente português. Este acréscimo
evitou de certo modo que, entre nós (e nas restantes ex-colónias portuguesas), se pusesse a
controvérsia e debatida questão de saber se a faculdade de os assistentes deduzirem a acusação
quando o ministério Público se tenha abstido de acusar abrangia também os crimes públicos e
semi-públicos ou tão somente os crimes particulares. A resposta – que, por via jurisprudencial, já
era dada em Portugal no sentido de abranger tanto os crimes particulares como os crimes públicos
– tem de ser no sentido de ver abrangidos pela disposição legal as diferentes espécies de crimes.
77
Quanto à intervenção do assistente no julgamento, cabe dizer que, atribuindo-lhe a lei, como
vimos, o direito de formular independentemente a acusação, por certo que teria de lhe conceder de
igual modo os poderes necessários para sua efectivação na fase de julgamento. Assim, o art. 415
do CPP contém um afloramento do princípio do contraditório ao determinar que “o juíz ouvirá
sempre o Ministério Público e os representantes da parte acusadora sobre os requerimentos dos
representantes da defesa e estes sobre o que tenham requerido aqueles”73. Podem lhe ser tomadas
declarações em qualquer altura durante a produção da prova (v. art.428), possuindo em
contrapartida o direito de interrogar e contra-interrogar as testemunhas (art. 435).
Finalmente, no que toca à fase dos recursos, têm os assistentes, nos termos do art.4 & 2°, n°3, do
Dec.Lei n° 35007, competência para “recorrer do despacho de pronúncia ... e da sentença ou do
despacho que ponha termo ao processo, mesmo que o Ministério Público não o tenha feito”. Este
princípio sofre, porém, a restrição constante do &4° do mesmo artigo: “quando os assistentes
formulem acusação por factos diversos dos que constituem objecto da acusação do Ministério
Público, não poderão recorrer da decisão do juíz se este receber a acusação do Ministério
Público”. Esta restrição só tem cabimento nos processos que não dependam da acusação particular
(por crimes públicos e semi-públicos), como se depreende do estatuido no & único do art. 3 do
Dec-Lei 35007.
73
Quando estejam presentes, pois a falta de advogado dos assistentes não determina a suspensão ou adiamento da
audiência (v. art. 417, & 3°, do CPP) e a comparência do próprio assistente não é, em princípio, obrigatória (v. art.
420 do CPP).
78
III – AS PARTES CIVIS E A RESPONSABILIDADE CIVIL
Em muitos casos e de parceria com a lesão ou o perigo para bens jurídicos fundamentais da
comunidade, a infracção criminal acarreta uma lesão de direitos civis patrimoniais de certas
pessoas: os ofendidos, isto é, os jurídico-civilmente lesados pela infracção. Importa, no caso em
apreço, não o conceito típico ou estrito de ofendido que se extrai do Art. 4, n° 2 do Dec-Lei n°
35007. Há que atender aqui a uma ampla gama de pessoas a quem deve ser dada a legitimidade
para deduzir, em processo penal, um pedido cível de indemnização, ou qualquer outra de natureza
patrimonial derivado de uma infracção penal. O conceito lato ou extensivo abrange todas as
pessoas civilmente lesadas pela infracção penal. É este que interessa reter para a matéria que a
seguir se vai tratar.
Daqui se extrai a relevância jurídico-civil de uma facto criminoso. Dele pode resultar, pois, danos
indemnizáveis, os quais podem não ter, necessariamente, natureza patrimonial. É exemplo disso o
caso da ressarcibilidade dos danos morais emergentes do ilícito penal (v. & 2° do art. 30 do CPP;
causa de pedir de pretensões civis distintas – por exemplo, o adultério que, sendo crime74,
fundamenta o pedido de divórcio litigioso, ou qualquer crime cometido pelo donatário que é
fundamento para a revogação da doação (art. 976, n° 3 do C. Civil); e pode ser fonte de obrigação
de restituir nos casos em que haja privado o lesado da propriedade ou da posse de determinada
coisa (v. art. 75, n° 2 do C. Penal).
Interessa, portanto, para o nosso estudo, considerar o facto criminoso quando dele resultem danos
indemnizáveis (sejam de natureza patrimonial ou não) e quando seja fonte de obrigação de restituir.
O problema da indemnização em processo penal suscita, desde logo, várias questões no que toca
à sua natureza e bem assim ao tratamento que lhe tem sido reservado. Dividem-se opiniões entre
os que acentuam o carácter civil da indemnização e os que perfilham o seu carácter social, sendo
ela parte integrante da sanção penal. Voltaremos a esta questão mais adiante.
Por sua vez, a problemática do ressarcimento dos danos emergentes do facto criminoso, coloca um
conjunto de questtões, de que se destacam:
74
O adultério deixou de ser considerado crime pela Lei n° 8/2002, de 5 de Fevereiro, mantendo-se no entanto como
um dos fundamentos para pedido de divórcio em matéria de família.
79
٭a que consiste em saber se o particular lesado pelo crime poderá obter, numa acção penal
pendente, um ressarcimento desses danos;
٭se, para o efeito, terá de deduzir um pedido autónomo, desencadeando um processo próprio, ou
se o juíz tem poderes para, independentemente do pedido, condenar o réu no pagamento de uma
quantia a título de reparação pelos danos sofridos pelo lesado;
٭se o pedido do lesado terá de efectuar-se obrigatoriamente na acção penal que estiver pendente
ou poderá ser deduzido em separado;
٭se , por último, o encargo da indemnização deve ser suportado por quem seja réu no processo
criminal, ou por entidades públicas.
A razão de ser desta última questão reside no facto de certas teorias modernas dominantes na
Criminologia pugnarem pela ideia de co-responsabilidade do Estado e da comunidade no que
respeita ao agravamento da criminalidade. Tome-se como exemplo a cultura institucionalizada da
violência, disseminada pelas mais diversas formas e meios, de que se destaca a televisão, o cinema
e o vídeo. Em reforço ainda desta ideia vem o facto de, não raras vezes, ser a própria vítima que
se coloca em circunstâncias favoráveis à perpetração do crime.
No que respeita às demais questões acima enunciadas, a sua resposta será encontrada ao longo do
desenvolvimento que segue.
No tocante à interrelação entre a acção cível e acção penal, várias soluções têm sido adoptadas ao
longo do tempo. De acordo com os sistemas actuais vigentes, a impossibiliodade de o lesado obter,
no processo penal, o ressarcimento dos danos emergentes de uma infracção criminal só não é
admitida nos sistemas em que se consagra uma absoluta independência ou separação das acções
penal e civil. Nestes últimos, tende-se a purificar o processo penal de todas as questões relativas à
reparação pecuniária do dano causado pelo facto criminoso.
Este sistema é aquele que aglutinava os dois sistemas processuais (civil e penal) o que reflecte um
estádio primitivo no tratamento deste problema. É o chamado sistema da identidade a que se fez
referência por mero interesse histórico. Corresponde a uma fase da evolução da ciência jurídica
em que se confundia o direito penal com o direito civil e a uma concepção do processo penal onde
não está ainda presente o interesse da sociedade na punição do culpado, mas apenas o interesse da
vítima em obter vingança e reparação, o que denota o estado primitivo das legislações.
80
Sistema da absoluta independência
Preconiza este sistema a absoluta independência dos dois processos. Esta é a orientação
acentuadamente individualista e tradicional no direito anglo-saxónico (Inglaterra e EUA).
O fundamento deste sistema está na necessidade de se acautelar os perigos que possam advir para
a satisfação plena dos direitos civís do lesado no sistema de adesão, dada a natureza distinta dos
sistemas processuais. Segundo este sistema, o lesado escolhe livremente ou a jurisdição penal ou
a jurisdição civil para apreciar o seu pedido cívil resultante da infracção. Contudo, escolhida uma
via, não poderá o lesado lançar mão de outra: una via electa non datur recursus ad alteram (é o
sistema vigente na França, Alemanha, Itália e Espanha).
Outros sistemas, porém, tendo em conta as particulares necessidades sociais que só ficam
satisfeitas com a efectividade da indemnização devida por um crime, determinam o carácter
oficioso do arbitramento da indemnização e chegam mesmo a considerá-la uma autênctica parte
da sanção penal. Daí a consequente obrigatoriedade de adesão da acção civil ao processo penal
e da fixação da indemnização em caso de condenação.
É esta a solução adoptada, entre nós, pelo art.29 do CPP, quando dispõe:
“O pedido de indemnização por perdas e danos resultantes de um facto punível, por que
sejam responsáveis os seus agentes, deve fazer-se no processo em que correr a acção penal . . .”
Tal sistema tem por fundamento, e em primeira linha, a ideia defendida pela escola positivista
italiana, representada por E. FERRI75, do interesse social existente na obrigatoriedade de o
delinquente reparar o prejuízo civil decorrente do crime; o dano ex delicto, essencialmente distinto
do dano ex contracto e subsistente em qualquer infracção penal, deveria ser sempre
obrigatoriamente reparado no interesse da defesa social. Não constituindo teoricamente pena, é
todavia uma sanção reparatória, consequência necessária da infracção a ser imposta não só para a
75
- in Principii di Dirito Criminale e Sociologia Criminal.
81
legítima reparação da parte lesada, mas também como sanção suficiente para a violação decorrente
de lei penal.
“O juíz, no caso de condenação, arbitrará aos ofendidos uma quantia como reparação por
perdas e danos, ainda que lhe não tenha sido requerida”.
Tem-se assim que a lei processual penal (art. 29) manda cumular com a acção penal o pedido de
indemnização do dano causado pela infracção penal. No que respeita à restituição das coisas,
aplicam-se as regras dos arts. 29 e ss. do CPP, não obstante ser um meio de indemnização. No
caso, porém, de as ditas coisas não poderem ser restituidas, valem as mesmas regras, e bem assim
no que respeita às despesas feitas pelo lesado para obter a indemnização. Estas últimas não se
comfundem com a indemnização, pois não resultam do crime.
Deste modo, os arts. 29 e ss. referem-se apenas à responsabilidade civil emergente da infracção.
Esta solução adoptada pelo nosso Código não é de todo pacífica, havendo em seu redor argumentos
a favor e contra.
. a parte lesada, intervindo no processo penal, pode auxiliar a acção do tribunal criminal;
. o juíz cível não está, muitas vezes, em tão boas condições para avaliar o dano moral como o juíz
criminal, perante o qual o delito aparece com toda a veemência;
. muitos lesados não têm meios para demandar a indemnização no juízo civil;
Em contrário, observa-se:
82
. os critérios para apreciação da responsabilidade são também diferentes dado que, na
responsabilidade criminal, é precisa a imputabilidade moral do delinquente, enquanto que na
responsabilidade civil, não tem a mesma importância;
. o objecto das sentenças é distinto, pois, na sentença penal pune-se o delinquente na sua pessoa e,
na sentença civil, ele é condenado a indemnizar com os seus bens;
. a acção penal compete ao MP (acção pública), sendo dispensável que o lesado se constitua parte
acusadora, ao passo que na acção cível tem de ser intentada pelo lesado;
. a acção penal só pode ser movida contra o réu, enquanto que a acção civil tem natureza
patrimonial, podendo a obrigação ser exigida aos herdeiros e a co-devedores solidários sem
responsabilidade criminal;
. a acção penal, com o seu ambiente sentimental, pode postular a serena apreciação dos factos;
O Código de Processo penal vigente optou pela doutrina da acumulação (art. 29 e 34 do CPP).
Na verdade, muitas pessoas lesadas pelo facto ilícito deixariam de receber a indemnização, se esta
não fosse fixada em processo penal, porquanto a necessidade de intentar, no tribunal civil, a acção
de indemnização levaria a um desencorajamento de muitos lesados.
Para além disso, economiza-se tempo, incómodos e despesas, evitam-se decisões de certo modo
contraditórias. De considerar ainda que o juíz penal está, em regra, em melhor situação de julgar a
questão da indemnização, pois tem de conhecer da infracção e das suas circunstâncias.
Não se têm levantado dúvidas dignas de realce quanto à natureza civil desta reparação. Trata-se
de uma verdadeira indemnização de perdas e danos.
Com efeito, no processamento do respectivo pedido são observados pelo tribunal penal os
princípios fundamentais do processo civil. Têm aqui plena aplicação os princípios ne procedat
judex ex officio e ne eat judex vel extra petita partium. São também observadas as regras do direito
civil substantivo no que respeita, sobretudo, à determinação do objecto e do montante a fixar na
83
indemnização. Mais ainda, a decisão condenatória que conheça do pedido civil constitui caso
julgado nos termos em que a lei atribui essa eficácia às sentenças cíveis.
Invoca-se, a favor desta orientação dominante, o teor literal do art. 29 do CPP quando manda
cumular o pedido de indemnização por perdas e danos no processo penal. Todavia este argumento
não tem grande peso, porquanto se refere apenas à natureza do pedido e não à natureza da resposta
a ser dada pelo tribunal. De todo o modo, seria contraproducente esperar-se que de um pedido civil
se obtenha como resposta uma decisão de natureza diversa. Acresça-se que mesmo em caso de
absolvição em processo penal, haverá lugar a indemnização, sendo o pedido civil bem fundado.
São estes os argumentos que sustentam a teoria dominante, perfilando a seu lado outras em
contrário. Ressalta, em primeiro lugar, o facto de a lei mandar cumular a acção civil com o processo
penal sem que a primeira perca a sua natureza estritamente civil. No entanto, o art 34 do CPP não
admite a possibilidade de transacção e, mais do que isso, viola um princípio basilar do processo
civil que é a necessidade do pedido, ao impôr ao juíz penal a reparação “...ainda que não lhe
tenha sido requerida”.
Por outro lado, o art.34 considera a reparação como um efeito necessário ou mesmo automático da
condenação penal (art.450, n° 5 do CPP).
Um problema prático que se coloca com acuidade é o de saber se a decisão sobre o pedido civil
cumulado com o processo penal terá ou não valor de caso julgado perante a jurisdição civil. Não
se têm levantado problemas quando o montante da indemnização fixada é superior ou igual ao
valor pedido pelo lesado. As opiniões divergem quando o valor arbitrado é inferior ao pedido.
Umas encaminham-se no sentido de que a decisão do tribunal penal tem efeito de caso julgado,
não podendo o lesado recorrer à jurisdição cível. Outros advogam precisamente o contrário,
argumentando-se que a reparação arbitrada em processo penal é como que uma extensão da
condenação penal e, como tal, não constitui caso julgado para a acção civil76.
76
- E contrário expende Luis Nunes de Almeida ( Natureza da Reparação de perdas e Danos Arbitrada em Processo
Penal, in Rev. Ordem dos Advogados, Ano 29, 1989, pág. 5 e ss.) :”...a reparação de perdas e danos arbitrada em
processo penal assume natureza civil, produzindo consequentemente efeitos civis, isto é, uma vez arbitrada a
84
De um modo geral, podem resumir-se da seguinte forma as correntes dominantes no que respeita
a esta questão:
b) Em contrário, sustenta-se que a reparação civil arbitrada em processo penal tem uma natureza
específica penal. Esta é a posição dominante na jurisprudência portuguesa e é defendida por alguns
autores, como Figueiredo Dias, Castanheira Neves e Eduardo Correia.
Posto isto, há que examinar o problema da determinação das partes quanto à acção civil que deverá
seguir as disposições pertinentes do CPC. Todavia, a influência da orgânica do processo penal
sobre a estrutura da acção civil conexa é manifesta. A acção civil acha-se acomodada e absorvida
pela acção penal.
A conexão da acção civil com o processo penal pode alterar ou exigir um complemento à doutrina
das partes em processo penal. Não é pois exclusivamente em função dos preceitos do processo
civil que se determina a capacidade e a legitimidade das partes na acção civil em processo penal.
Qual, então, a influência modificadora do processo penal incidente sobre esta particular questão
na acção civil? O art. 29 do CPP declara que os réus são os agentes da infracção. Poderá, no
entanto, haver outros responsáveis civilmente, que não sejam os autores da infracção penal. Quanto
a estes, o CPP não prevê a sua intervenção no processo. A acção civil no processo penal só pode
ser exercida contra aqueles responsáveis civis que forem conjuntamente arguidos no processo
penal. Estão, assim, de fora todos aqueles que com eles sejam solidariamente responsáveis ou aos
quais cabe uma responsabilidade subsidiária, e ainda os garantes da responsabilidade, ou seja, os
seguradores para os quais tenha sido transferida a obrigação resultante da responsabilidade civil.
reparação em processo penal não poderá o lesado vir pedir uma posterior correcção da indemnização ao tribunal
civil”.
77
- Cavaleiro de Ferreira, op. cit. vol. I, p. 177.
85
Diferentemente se passa, porém, no que respeita aos processos penais que tenham por objecto
infracções previstas no Cód. da Estrada. Na verdade, do art. 67 daquele diploma legal extrai-se
que poderão intervir na acção civil, mesmo quando exercida em acção penal, os responsáveis
civilmente pelo facto imputado ao arguido. Têm, pois, intervenção como parte no processo penal,
e relativamente ao objecto da acção civil, pessoas que, como partes, não têm intervenção no
processo penal.
O CPP não prevê a intervenção dos credores, do ponto de vista activo no processo penal, mesmo
daqueles que podem intervir como parte acusadora ou assistentes, todos eles legitimados
independentemente de qualquer posição de credores em razão do direito civil à indemnização.
Nem o conteúdo do & n°1 do art. 34 do CPP permite tal facto, embora parecer indicar o contrário.
Dispõe, tão somente, que no processo penal se concederá indemnização mesmo àqueles que não
podem intervir como partes. Concede, assim, a lei reparação civil a pessoas diversas dos ofendidos
pelos crimes.
A este respeito, o Cód. da Estrada não veio trazer qualquer inovação. É também omisso quanto à
possibilidade de intervenção, como parte, de qualquer credor por indemnização civil que não possa
figurtr na posição de parte acusadora ou assistente.
As partes civis na acção penal têm uma intervenção limitada, de tal modo que devem normalmente
coincidir com quem possa revestir de igual modo a posição de parte na acção penal.
Como regra, o pedido de indemnização por perdas e danos resultante de um facto punível deve
fazer-se no correspondente processo penal (art. 29 do CPP). Só pode fazer-se separadamente
perante o tribunal cível nos casos em que a acção penal não tenha tido andamento normal,
designadamente:
. se seis meses após a denúncia do facto criminoso, o Ministério Público não exercer acção
penal ou a acção penal se extinguir;
. se o processo penal instaurado tiver sido arquivado ou o réu absolvido e bem assim nos
casos em que, ou não o se instaurou a acção penal, ou instaurada, se extinguiu, ou terminou sem a
verificação do facto criminoso;
86
. se, finalmente, o processo esteve sem andamento durante seis meses (arts. 30 e 33 do
CPP).
A lei processual vigente estabelece uma forma de conexão entre o direito à acçào civil e o
direito de acusação particular ou de participação do crime em juízo, nos chamados crimes semi-
públicos.
Nestes casos a acção civil recobra inteira autonomia e pode ser livremente intentada na
jurisdição civil, mas o uso desta liberdade equivale à renúncia à acusação particular em processo
penal, e à invalidade da denúncia em juízo, nos casos em que a denúncia particular condiciona o
exercício da acção penal. Em consequência disso, a transacção na acção civil tem idêntico efeito
(art. 30 & 1° e 2° e art. 31 do CPP).
Autores na acção civil podem ser todos os que sejam partes legítimas segundo as normas
de proceso civil. Não é necessário que possam constituir-se ou se tenham constituido assistentes
em processo penal (arts 32 e 34 &1° do CPP).
Quanto aos titulares passivos da indemnização civil são, em regra, os réus na acção penal.
A indemnização deve ser, em princípio, pedida em requerimento ou petição articulada, mas a
concessão da indemnização não depende da formulação expressa do pedido (arts. 32 &2° e art. 34
do CPP).
Pelas perdas e danos pode ser responsável civilmente outrem além do autor do crime. Prevê
ainda a legislação e, em alguns casos, uma responsabilidade civil de terceiro, pelo quantitativo da
pena de multa. Tal acontece em algumas hipóteses de direito aduaneiro.
De considerar ainda que a responsabilidade civil de terceiros, que não podem intervir no
processo em que ela é verificada, pode determinar a condenação destes sem defesa processual
directa.
Só o Cód. da Estrada é que veio permitir a intervenção em processo penal por infracções
previstas no mesmo código de todos os responsáveis civis pelo facto imputado aos arguidos (art.
67 do De4c. Lei n°39672, de 20 de maio de 1954).
RESUMINDO:
I - As partes na acção civil conexa com a acção penal podem ser o lesado (que seria o Autor
na correspondente acção declarativa de condenação em processo civil) ; os demandados (que
87
seriam os réus na correspondente acção em processo civil) ; e os terceiros intervenientes (que
abrangem as várias figuras de terceiros previstas no art. 320 do CPC e que assumam a posição de
parte na acção civil conexa com a criminal, do mesmo modo que é permitido no processo civil).
Os menores de 18 anos carecem de capacidade judiciária civil (arts. 122 e 123 do C. Civil
e 9, n°2 do CPC) e a sua (in)capacidade é suprida por representação. O menor, relativamente ao
pedido de indemnização civil, tem de ser representado pelo pai, mãe, tutor ou administrador dos
bens. O mesmo se passa em relaçao aos interditos e inabilitados.
Legitimidade têm também todos os titulares, segundo a lei civil, o direito à indemnização
(vg. os herdeiros do ofendido – como é o caso dos filhos da vítima de homicídio - direito por
sucessão.
Tem legitimidade passiva quem for arguido em processo penal. Esta é a regra básica.
Exceptuam-se, no entanto, as pessoas apenas civilmente responsáveis (art.67 do Cód. da Estrada,
conjugado com os arts. 57, 503 e ss. 507 do CPP).
Decorre da regra básica acima citada que esta legitimidade passiva não poderá ser extensiva
analogicamente aos casos de danos causados por qualquer infracção.
III – No que respeita à representação, o lesado tem de ser representado, ou pelo Ministério
Público, ou por advogado (v. & 1° do art. 32 do CPP).
88
Todavia, a lei substantiva prevê a responsabilização de terceiros pelo pagamento de multas
e indemnizações aplicadas ao arguido (v. art. 5 da Lei n° 9/87, de 19 de Setembro). Não se tata,
porem, da responsabilidade meramente civil pelos danos, casos em que estes terceiros devem ser
demandados como partes no pedido civil, mas de responsabilidade, ainda que de natureza civil,
pelas multas e indemnizações em que os representantes foram penalmente condenados.
À volta desta questão, a doutrina divide-se sobre a melhor solução. Para uns, a acusação
deveria ser também deduzida contra a pessoa civilmente responsável pelo pagamento das multas
a que o arguido fosse penalmente condenado. Outros consideram que a acusação apenas deveria
ser deduzida contra o responsável penal, servindo a sentença de condenação de título executivo
também contra a pessoa apenas civilmente responsável, podendo esta, porém, defender-se na
execução mediante embargos. Não parece, porém, que esta última posição seja sustentável. Na
verdade, no processo de execução a legitimidade toma um aspecto formal e determina-se pela regra
do art. 55 do C.P. Civil. Veja-se também, a propósito o que dispõe o art. 57 do mesmo diploma
legal.
IV – OS ACTOS PROCESSUAIS
Sabemos já que o processo penal prossegue um fim bem definido, que é, sucintamente, o
de obter a declaração do direito no caso concreto, historicamente determinado.
Para a prossecução desse fim, o processo penal conta com uma dinâmica própria,
constituida por uma multiplicidade de actos jurídicos, da mais variada natureza e de conteúdo e
funções diversas, que são os actos processuais.
Embora já se tenha tentado construir uma teoria geral dos actos processuais, tal não
constitui tarefa fácil, porquanto os princípios que dominam a sua regulamentação nem sempre são,
na mesma medida, aplicáveis a todos eles. Por outro lado, a lei também não lhes dá um tratamento
89
sistematizado, pelo que o interesse na construção de uma teoria geral dos actos processeuais não
se afigura de grande relevância78.
Mais do que a enumeração dessas tentativas de classificação, cuja utilidade seria reduzida,
uma vez que nehuma assume preponderância decisiva, importa indicar alguns dos critérios com
base nos quais se constroem tais classificações.
Actos finais serão aqueles que consubstanciam o fim do próprio processo e se resolvem na
punição. Actos instrumentais são os que preparam ou colocam os meios idóneos para tornar
possível aquela finalidade.
Nos actos instrumentais – que constituem a grande massa – podem distinguir-se os actos
de governo processual, os actos de aquisição, de elaboração e de verificação.
. Um segundo critério é o do conteúdo dos actos, atendendo aos seus efeitos jurídicos ou à
sua estrutura.
78
- v. Cavaleiro de Ferreira, op. cit., Vol. I, pág. 240 e segts.
90
Quanto aos efeitos jurídicos, os actos processuais podem ser principais ou acessórios. Os
principais subdividem-se em constitutivos e extintivos, e os acessórios em impeditivos e
modificativos.
. Finalmente, o critério dos agentes que praticam o acto. Distinguem-se, deste modo, actos
judiciais e actos não judiciais.
ACTOS PROCESSUAIS
Actos finais
c) actos de elaboração
d) actos de verificação
principais: a) constitutivos
b) executivos
91
16. Validade e eficácia dos actos processuais –
O acto inválido não produz efeitos jurídicos, porque lhe falta algum elemento constitutivo
(a vontade, o fim a que se destina, a forma).
O acto ineficaz também não produz efeitos jurídicos por lhe faltar algum requisito externo
(a capacidade, a legitimidade a idoneidade do seu objecto).
As nulidades relativas, pelo contrário, podem ser sanadas e constituem a maioria: são as
que se encontram previstas nos n°s 1,2,3, 4 (quando cometida antes de transitar em julgado o
despacho de pronúncia ou equivalente), 5 e 6 do citado art. 98. Às formas de sanação referem-se
os diversos && do mesmo preceito legal.
Quando não tiverem sido sanadas, podem sê-lo, geralmente, em qualquer estado do
processo, por qualquer tribunal, mesmo de recurso, oficiosamente ou a requerimento dos
interessados. Exceptuam-se as nulidades do n°2 , quando consistam no emprego de forma de
processo comum mais solene em vez de outra menos solene, caso em que só poderá ser arguida
até ao dia em que se realize a audiência de julgamento79, e dos n°s 5 e 6 , que só podem ser arguidas
até ao interrogatório do réu na audiência de julgamento80.
79
- V. & 1° do Art. 99 do CPP. Na verdade, seguindo-se uma forma de processo mais solene do que a prevista no caso
concreto, não só se não prejudicou em nada o fim do processo, como se concedeu mais garantia de defesa ao arguido.
80
- V. & 2° do art. 99. O fundamento desta excepção é o de que, depois do interrogatório, já o réu tem conhecimento
dos factos da pronúncia e do rol de testemunhas, encontrando-se, assim, satisfeito o princípio do contraditório.
92
O vício da inexistência verifica-se quando ao acto faltam elementos que são essenciais à
sua própria substância, de modo que em caso algum pode produzir efeitos jurídicos.
A lei processual vigente não faz alusão expressa à inexistência, mas tanto a doutrina como
a jurisprudência referem-se a esta espécie de vício dos actos processuais81.
O acto inexistente não carece de ser anulado, pois não tem virtualidade para produzir
efeitos jurídicos nem pode originar caso julgado. Mas os actos inexistentes não determinam, por
si só e necessariamente, a anulação de todo o processo no qual foram praticados . De acordo com
Cavaleiro de Ferreira:
Embora as decisões inexistentes não produzam efeitos jurídicos e nem possam estabelecer caso
julgado, não necessitando, por isso, de ser declarada a inexistência, considera-se que é sempre útil
fazer tal declaração, que deve ser requerida ao juíz da causa.
Além das nulidades absolutas e relativas e da inexistência jurídica, os actos processuais podem
ainda sofrer de vícios menos graves, a que o CPP chama de irregularidades do processo e faz
referência do art. 100.
Mas, como atrás se salientou, a lei processual penal não regula todas as nulidades dos actos
processuais. Nomeadamente, no que aos vícios da sentença diz respeito, aplica-se a lei geral (v.
art.668 do CPC), pelo que não estão submetidos ao regime dos arts. 98 ou 100 do CPP.
Para que acto ferido de irregularidade (nos termos do art. 100) seja válido e produza efeitos, não é
necessária a sua sanação. Pelo contrário, só deixará de produzir efeitos se for invalidado, quer
dizer, o acto imperfeito só se torna ineficaz mediante intervenção dos interessados destinada a
obter a declaração dessa ineficácia.
81
- Por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, de 1 de Abril de 1964 (in V. B.M.J.,n°136,
pág. 232), decidiu que existe, como espécie autónoma, o vício de inexistência, de sentença ou acórdão, no caso de a
decisão ter sido proferida por quem não está investido de poder jurisdicional – v.g. sentença proferida pelo Ministério
Público ou por um funcionário da secretaria.
82
V. Cavaleiro de Ferreira, op. cit. p. Vol. I, p. 269.
93
A irregularidade determina, pois, a anulabilidade do acto e não a sua nulidade.
V – A PROVA
94