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Rio de Janeiro
2015
Daniel Brasil Justi
Rio de Janeiro
2015
iii
Ficha Catalográfica
Banca Examinadora
Titulares
Gabriele Cornelli
Doutor - Universidade de Brasília
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
Suplentes
Agradecimentos
À família que ganhei por conhecer Carol. Nunca me senti tão amparado, amado e
respeitado desde que saí de casa no momento em que me acolheram. Em especial à
Cláudia e Alice, que me permitiram saber que é possível ter uma segunda mãe e uma
segunda irmã no espaço em que antes meus parentes co-sanguíneos eram mais que
suficientes.
Aos meus amigos. Alguns distantes, outros próximos. Tantos outros novos. Mas,
sempre decisivos em me fazer acreditar que a vida vale à pena. Sami, Billy e Felinto,
desde a infância, amo vocês, camaradas! Queridos companheiros da "Fix", aquele
"corredor cultural" sem vocês nunca teve graça e estará para sempre na lembrança!
Amigos do STBSB, saudades! Companheiros do LHER, especialmente Lair e Vitor
Almeida, mais chegados que irmãos, como é bom saber que não somos loucos
acadêmicos solitários! Cris, Carol, Bruno e Otávio, melhor do que tê-los conhecido só
mesmo é ter a Carol comigo!
Resumo
Este estudo tem por objetivo analisar a construção de Paulo de Tarso como um
homem divino (thĕiŏs anēr) no documento Atos dos Apóstolos. Os estudos
acadêmicos que relacionam magia e paleocristianismos enfrentam basicamente dois
desafios: os filtros de leitura impostos pela ciência moderna em polarizar
artificialmente religião (civilizada) e magia (selvagem) e religiosos comprometidos
com suas respectivas confissões de fé em inviabilizar tais estudos.
Marcado por esses obstáculos, mas igualmente comprometido em superá-los,
o modelo de homem divino (thĕiŏs anēr) responde por unificar algumas
características comuns a determinadas personagens antigas em diálogo com o
ambiente mágico. O esforço em unifica-los quer indicar que (i) não são singulares ou
únicos em cada cultura mediterrânica; (ii) essas culturas mediterrânicas estão em
constante interação, por isso mesmo dialogando e se aproximando em termos de
experiências místicas; e, (iii) a formulação de um modelo geral permite, por meio da
comparação, enquadrar essas personagens em seus ambientes místicos específicos,
bem como observar em que pontos se assemelham ou divergem com outras
experiências históricas.
Para tanto, o primeiro passo é analisar o conceito e construção do modelo
thĕiŏs anēr ao longo da história de sua interpretação, bem como propor um novo
modelo para interpretação centrado no poder (dynamis) que é marca distintiva dessas
personagens. A seguir, o milieu mediterrânico antigo em que foi possível tal
categoria é analisado, as figuras mediterrânicas que podem ser tomadas como homens
divinos são estudadas comparativamente e estudos de cultura e semântica
relacionadas à magia elucidam como este trabalho entende o ambiente em que os
homens divinos surgiram e se desenvolveram.
Por fim, Paulo de Tarso é observado em interação com esse ambiente, sua
descrição em Atos dos Apóstolos é posta à prova de acordo com o modelo formulado
por este trabalho e os resultados confirmam uma ―invenção de tradição‖ efetuada
pelo(s) autor(es) do documento bíblico a fim de inserir o apóstolo em uma tradição
corrente no mediterrâneo antigo. Dessa forma, aquele movimento místico que se
originou e se desenvolveu na periferia do Império Romano chega a sua capital.
viii
Abstract
This study aims to analyze the construction of Paul of Tarsus as a divine man
(thĕiŏs anēr) in the document Acts of the Apostles. The relationship between magic
and paleochristianity in academic studies basically face two challenges: reading filters
imposed by modern science in artificially polarize religion (civilized) and magic
(savage) and those religious people who are committed to their respective religious
confessions of faith in derail such studies.
Marked by these obstacles, but also committed to overcoming them, the divine
man model (thĕiŏs anēr) accounts for some unifying characteristics common to some
ancient characters in dialogue with the magical atmosphere. The effort to turn them
united above the same pattern helps on indicate that (i) they are not singular or unique
to each Mediterranean culture; (ii) these Mediterranean cultures are in constant
interaction, because of that, dialoguing and approaching each other in terms of
mystical experiences; and (iii) the development of a general model allows, by
comparison, framing these characters in their specific mystical environments and
observe that points are similar or differ with other historical experiences.
Therefore, the first step is to analyze the concept and construction of thĕiŏs
anēr pattern throughout the history of its interpretation as well to propose a new
model for interpretation statement centered in power (dynamis) which is distinctive of
these characters. Then, the ancient Mediterranean milieu in which it was possible that
category is analyzed, those Mediterranean figures that can be taken as divine men are
studied comparatively and culture studies and semantics related to magic elucidates
how this work understand the environment in which the divine men emerged and
were possible to be developed.
Finally, Paul of Tarsus is observed in interaction with that environment, its
description in Acts is tested according to the pattern formulated for this work and the
results confirm an "invention of tradition" made by the author of the Bible document
to insert the apostle on a chain in the ancient Mediterranean tradition. Thus, that
mystical movement that originated and developed on the outskirts of the Roman
Empire reaches its capital.
ix
Sumário
Introdução ............................................................................................................... 13
1. Quinze anos depois, quatro anos mais tarde ..................................................... 13
2. Mas, afinal, como se faz ciência da magia? ...................................................... 17
3. A escolha por estudar a figura de Paulo ............................................................ 25
4. A construção da presente tese........................................................................... 27
5. Algumas breves definições............................................................................... 29
II. O ambiente (milieu) mágico mediterrânico: visões sobre poder e magia antigos 106
1. Panorama ....................................................................................................... 106
2. Algumas definições necessárias sobre semântica, cultura e teologia ............... 106
2.1. Milagre .................................................................................................... 107
2.2. Os "sinais": Sēmĕîon, Tĕras e Ĕrgŏn ........................................................ 111
2.3. O "Poder": Kratŏs, Ischýs, Ĕxŏysía e Dýnamis ........................................ 117
3. Magia, práticas mágicas ou o imaginário da magia: a falsa dicotomia povo
(pobres) x elites (ricos) ...................................................................................... 130
x
III. Paulo de Tarso: o legítimo homem divino em Atos dos Apóstolos .................... 191
1. Panorama ....................................................................................................... 191
2. O documento Atos dos Apóstolos .................................................................. 195
2.1. Dados preliminares .................................................................................. 195
2.2. Autoria .................................................................................................... 197
2.3. Data e local de composição...................................................................... 198
2.4. Linguagem, estilo e forma literária .......................................................... 201
2.5. Unidades, estrutura, personagens ............................................................. 203
3. O Paulo de Atos e a "invenção das tradições" ................................................. 217
(a) As práticas mágicas................................................................................... 219
(b) Curas e ressurreição dos mortos: ............................................................... 228
(c) Daimŏnĕs e Exorcismos: ........................................................................... 230
(d) Domínio da natureza e interação com a mesma ......................................... 234
Lista de Figuras
Figura Página
1a: Amuleto cristão, anverso - cavaleiro
137
1b: amuleto cristão, reverso - olho
2a: Amuleto cristão, anverso - cavaleiro
138
2b: amuleto cristão, reverso - olho
3: Choús ático de figuras vermelhas 140
4: Choús ático de figuras vermelhas 141
5: Estátua de falo no Templo de Dionísio em Delos 143
6: Herma de uma oficina de Boetos
144
7: Relevo em pedra de um falo de uma casa em Pompéia
8: Filactéria de proteção contra daimŏnĕs, fantasmas e todo tipo de
164
doença e sofrimento
9: Amuleto contra febre 174
xii
Lista de Tabelas
Tabela Página
1: Datação de textos canônicos em torno da documentação sobre Paulo 25
2: Os quatro "Paulos" 26
3: Documentos não canônicos com tradições paulinas 26
4: Breve histórico da formação canônica do Novo Testamento 27
5: Ocorrências de thĕiŏs anēr na literatura antiga 35
6: O tenso debate entre Smith e Kee - aretologia como forma literária? 64-65
7: Sistematização de dados sobre a origem e consolidação do conceito thĕiŏs
100-101
anēr
8: Comparação entre as versões latina e grega para os termos
110
associados a milagres no Novo Testamento
9: Ischýs ("poder", "força") em perspectiva comparada nos evangelhos
119
sinóticos
10: Ocorrências de ĕxŏysía no Evangelho de Lucas 125
11: Ocorrências de ĕxŏysía em Atos dos Apóstolos 126
12: Ocorrências de ĕxŏysía no Evangelho de João 127
13: Ocorrências de dýnamis no Evangelho de João 127
14: As informações arqueológicas e textuais em perspectiva comparada 133
15: Textos judaicos do período helenístico e as práticas mágicas 177
16: Proposta de estrutura do texto de Atos dos Apóstolos levando-se em
206-215
consideração o modelo thĕiŏs anēr
Introdução
um campo fértil para diversos outros candidatos que começaram a percorrer a estrada
pavimentada pela primeira geração. Embora haja uma ou outra exceção nesse
processo até aqui descrito, para o caso dos homens divinos antigos no mediterrâneo,
Cornelli foi absolutamente pioneiro. Seu trabalho de qualidade e erudição
inquestionáveis tornou possível o presente estudo.
A tese do autor ítalo-brasileiro não precisa de revisão. Não foi retomada para
refutação. Continua atual, bem documentada e do ponto de vista teórico-
metodológico de altíssimo padrão científico. Quinze anos depois, o trabalho serviu
como ponto de partida para este que agora se apresenta. A abordagem, no entanto, é
outra.
Há seis anos os primeiros estudos que se desdobraram no presente trabalho
tiveram origem na Graduação em História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Dois anos mais tarde, portanto, há quatro anos, a dissertação sobre práticas mágicas
nos paleocristianismos - especificamente a respeito da crença no sistema do "mau-
olhado" por parte do apóstolo Paulo em Gálatas - foi defendida pelo autor do presente
trabalho sob valiosa supervisão do mesmo orientador que viabilizou esta tese de
agora no Departamento de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
Os desdobramentos desde aquela dissertação até esta tese de doutoramento se
fizeram necessários para ampliação de um estudo sobre os paleocristianismos em
perspectiva histórica. Não somente histórica, mas interdisciplinar, conforme os
capítulos seguintes apresentarão. Conquanto o fio condutor seja a perspectiva
comparada de história, a geração anterior e pioneira nesses estudos no Brasil se
empenhou e deixou como legado a necessidade de tal estudo que congregue as
diferentes epistemologias na observação de fenômenos religiosos antigos.
O estudo se fez necessário, pois os trabalhos que se ocupam dessa relação
entre práticas mágicas e paleocristianismos, mesmo para o contexto internacional,
demandam ainda uma ampliação e contínuo avanço. É um trabalho em curso.
Passados esses anos acima mencionados e avaliando o que está disponível
atualmente, por exemplo, se vê que a presença dos homens divinos na antiguidade
nunca conheceu uma análise sobre o apóstolo Paulo.
1
É importante notar que nesse trabalho Brox ocupa-se em refutar a magia baseando-se nos textos de
Orígenes, Crisóstomo e Agostinho afirmando a teimosia persistente de práticas mágicas entre os
cristãos (atribuído à natureza do Volksglaube) apesar da oposição do cristianismo oficial. Além de ser
muito bem referendado, o artigo deve ser lido à luz de ENGEMANN, J. Zur Verbreitung magischer
Übelabwehr in der nichtchristlichen und christlichen Spätantike. Jahrbuch für Antike und
Christentum, 18 (1975), p. 22-48; onde as evidências de práticas mágicas em meio aos círculos
clericais são discutidas. (AUNE, 1980, p. 1509).
2
Tradução pessoal de: ―als ständig drohende Dekadenz und als überall anwesende Perversion von
Religion und auch von christlichem Glauben‖.
3
Editada por Gerhard Kittel (et alli.) em alemão (Theologisches Worterbuch zum Neuen
Testament. Stuttgart: W. Kohlhammer, 1966-1973.) originalmente, mas, entre outras traduções, para o
inglês (Theological Dictionary of the New Testament. Michigan: WM. B. Eerdmans Publishing Co.,
1972), italiano (Grande lessico del Nuovo Testamento. Brescia: Paideia, 1975.) e a versão resumida
em português (COENEN, Lothar; BROWN, Colin. Dicionário internacional de teologia do novo
testamento. São Paulo: Vida Nova, 2000).
16
4
Tradução pessoal de: ―I trust that no offense will be taken at the use of the words ‗Christian amulets‘
in this chapter or elsewhere. Christian and pagans alike often wore upon their bodies objects made in
similar forms and of the same materials, thought adorned with different images and symbols. Among
the spiritual minded of both camps there was no thought of magic. But the idea of a protection derived
from a super human force source is associated with many rings stones and pendants, whether pagan or
Christian. It was not to be expected that all wearers of such objects would keep their minds clear of the
feeling that power proceeded from the thing itself, regardless of the wearer´s religious attitude. The
term ‗Christian amulets‘ is freely used by Dom H. Leclercq, who has given the best survey of them in
his article ‗Amulettes‘ in the Dictionnaire d´archéologie chrétienne.‖
5
MOMIGLIANO, A. The Conflict between Paganism and Christianity in the Fourth Century.
Oxford: Clarendon Pres, 1963. DOUGLAS, M. Witchcraft: Confessions & Accusations. London:
Tavistock, 1970.
17
6
Tradução pessoal de: ―The rise of the structural-functional method in sociology and anthropology and
the phenomenological method in comparative religions have provided scholars with theoretical
frameworks in which the value judgments of the observers are regarded as an improper intrusion into
the subject matter. Hence it is becoming increasingly less intellectually respectable to regard ancient
Mediterranean magic (no less than the magic of modern primitive societies) pejoratively‖.
18
Jesus‖ (Vie de Jesus), de 1863, ao escrever sua obra, dizia que somente o norte de
Jerusalém produzira o cristianismo, pois Jerusalém era o lar de um judaísmo
obstinado que, por estar fixado no Talmude e fundado por fariseus, atravessou a Idade
Média e chegara até os dias atuais (RENAN, E. The Life of Jesus. Prometheus
Books, 1991. Apud FREYNE, 2008:9).
No mesmo viés de desqualificação do judaísmo, bem como a partir de
critérios científicos, David Friedrich Strauss dizia que os judeus estavam totalmente
corrompidos pela casta sacerdotal e pelo farisaísmo (STRAUSS, D. F. The Life of
Jesus Critically Examined. Londres: SCM, 1972, p.264. Apud FREYNE, 2008:19).
Essa postura, bem como a de Renan revelava outras facetas acopladas ao pensamento
moderno: o imperialismo e o anti-judaísmo.
Além de calçados pelo pensamento racionalista forjado na Europa, essa faceta
imperialista da ideologia pós-iluminista moderna estava profundamente
comprometida com o colonialismo e a submissão de outras partes do mundo
historicamente subjugadas pelo projeto europeu de hegemonia. Assim, Renan e
Strauss, bem como outros intelectuais, compartilhavam de falsas suposições de seus
próprios tempos em relação à identidade étnica e localidade geográfica.
Renan escreve sua obra no momento em que estava em missão por um projeto
patrocinado pelo governo francês de mapear a Fenícia (atual Líbano) e emite seus
juízos sobre os judeus baseado em uma premissa muito comum da etnografia do
século XIX que estabelecia uma relação causal entre geografia e o caráter dos
habitantes de uma região (FREYNE, 2008:9).
Strauss também se valia de máximas ―científicas‖ para, cada vez mais,
enunciar seus pressupostos analíticos e contribuir para um pensamento anti-semita e
de raciação (bem entendido: movimentos de evolucionismo e superioridade européia
em relação a outros povos; também a eugenia, posteriormente). As atitudes
colonialistas se dirigiam também às regiões do Egito, Mesopotâmia e Palestina que
eram sistematicamente depreciadas juntamente com seus habitantes (FREYNE,
2008:9).
Tudo isso fazendo parte
8
Um sumário bastante completo e elucidativo pode ser encontrado em COLLINS, 2009:17-50.
9
WILAMOWITZ-MOELLENDORF. Der Glaube der Hellenen, I Berlin, 1931. Apud AUNE, 1980, p.
1511.
10
EITREM, S. I‘apyri Osloenses, Fasc. I. Oslo, 1925. Apud AUNE, 1980, p. 1511.
11
FESTUGIÈRE, A. J. L‘idéal religieux dês Grecs ET L‘Évangelie, Paris, 1932. Apud AUNE, 1980,
p. 1511.
23
aplicado ao cristianismo primitivo, bem como a relação que há entre a própria magia
e a religião (passos esses que moldaram as reflexões deste trabalho):
12
Tradução pessoal de: ―(1) magic and religion are so closely interwined that is virtually impossible to
regard them as discrete socio-cultural categories; (2) the structural-functional analysis of magico-
religious phenomena forbids a negative attitude toward magic. (3) magic is a phenomenon wich exists
only within the matrix of particular religious traditions; magic is not religion only in the sense that the
species is not the genus. A particular magical system coheres within a religious structure in the sense
that it shares the fundamental religious reality construction of the contextual religion. (4) magic
appears to be as universal a feature of religion as deviant behavior is of human societies.‖
24
tendo em vista a breve exposição da história de estudos sobre magia e sua definição
conceitual, pois pareceu oportuno mencionar também nesse contexto. Mas, no
capítulo 1, certamente, o tema será profundamente abordado e discutido com todas as
nuances e referências apropriadas.
Categoria/Data Documento
―História‖ (anos 100-120 e.c.) Atos dos Apóstolos
Romanos, 1ª e 2ª Coríntios, 1ª Tessalonicenses,
Autênticas (anos 50 e.c.)
Gálatas, Filipenses e Filemon
Disputadas (entre 50-100 e.c.) Efésios, Colossenses e 2ª Tessalonicenses
Não paulinas (pós 100 e.c.) 1ª e 2ª Timóteo, Tito
Tabela 1: Datação de textos canônicos em torno da documentação sobre Paulo
13
A tabela sistematiza dados apresentados e discutidos a partir dos seguintes estudos: Koester, 2005:6-
15. Barrera, 1995:175-235.
27
da ciência precisam mesmo tomar rumos distintos e buscar um diálogo posterior, mas
nunca confundidos em seus princípios epistemológicos.
Por fim, a menção ao termo "experiência(s)" permeia todo o trabalho. Esse
sim é um conceito ou uma categoria epistemológica importante. Seu emprego
depende do historiador inglês Edward Palmer Thompson (1981:180-200). A noção
epistemológica de história que este trabalho carrega consigo é inteiramente tributária
do que expõe Thompson.
Ou seja, a história é um processo, não uma sucessão teleológica de
acontecimentos que guardam entre si relações causais. Muito menos é a história um
conjunto de análises sobre grandes feitos ou instituições. História é um processo,
vivenciada e construído por agentes dotados de expectativas que sequer controlam as
variáveis desse sistema.
Exatamente o que Thompson critica é a ausência da experiência nos estudos
históricos. Sejam governos, instituições ou categorias de pensamento são construídas
por seres humanos - agentes históricos - que, em suas experiências tornam possíveis
os "grandes temas" mencionados. Portanto, operacionalizar a ciência histórica é
observar as agências de homens e mulheres no tempo, suas expectativas e o cotidiano
de suas experiências.
No mais íntimo intento de se produzir um trabalho como este é,
fundamentalmente, o objetivo de dar voz a essas experiências cotidianas, banais,
corriqueiras, ordinárias que, de fato, constroem o que se costuma chamar de ciência
histórica.
I. O conceito de thĕiŏs anēr: história e análise crítica
1. Panorama
14
Optou-se por trabalhar com as idéias desses autores tratando caso a caso, por essa razão, não estão
mencionados nesses primeiros parágrafos, mas cada um deles comparecerá ao longo da discussão aqui
proposta com suas respectivas posições quanto ao tema em debate.
32
Se não todos, pelo menos boa parte dos críticos ao modelo de homem divino,
estabelecem suas reticências a partir de um lugar de fala muito bem localizado: são os
"teólogos em missão". Para essa categoria de intelectuais, aqui inventada, a origem de
tamanha celeuma se dá no sentido de explicar que Jesus não pode ser enquadrado na
mesma categoria que outros homens divinos, magos, curandeiros, semi-deuses, etc.,
muito menos que está próximo ao campo da magia 15.
Esse conjunto de autores, que rejeita o modelo explicativo thĕiŏs anēr, está
bastante preocupado, incansavelmente, em encontrar nas fontes a literalidade, ou seja,
a expressão exata que se refira ao homem divino em questão. Ainda,
preferencialmente, uma explicação detalhada por parte do escritor do documento
antigo, que critério utilizou para empregar tal expressão e o que entendia por ela. Esse
aspecto ficará mais evidente quando os trechos coletados forem, mais adiante,
expostos.
Por outro lado, ainda que para a minoria deles, o modelo existe e é bastante
útil para inserir não somente Jesus, mas as demais personagens paleocristãs sob o
conceito de homem divino a fim de percebê-las em seu ambiente originário. Para
esses intelectuais, os paleocristianismos e suas personagens não são transplantados do
Paraíso para o mundo real, antes, estão em completa interação com o ambiente que os
cercam e vivenciam suas experiências histórico-místicas como produto dessa
realidade histórica no Mediterrâneo antigo.
A constatação de que não é, necessariamente, imprescindível a ocorrência das
palavras thĕiŏs anēr, bem como a descrição exata dessa definição, critérios e
explicações pormenorizadas se torna argumento metodológico fundante para este
trabalho (para isso, ver BETZ, 1961:102 e 1983:235; bem como KUHN, 1971:195.
Como já mencionado, essas posições serão cotejadas e explicitadas mais adiante em
seus detalhes). O eixo conceitual é expandido e as classificações rígidas demais são
pulverizadas no entendimento do modelo, o que parece ser mais factível quando o
assunto é experiência histórica cotidiana.
15
Em outro momento (JUSTI, 2011:31-66.107-115) essas discussões sobre estudos bíblicos e magia,
modernidade e o afastamento do paradigma "irracional" da história e cultura modernas e as
experiências religiosas antigas foi discutido. Cabe ressaltar que as discussões aqui travadas, derivam
daquele estudo e devem ser sempre relacionadas a esse incômodo da intelectualidade moderna com o
campo mágico nas investigações heurísticas e suas relações com as experiências religiosas paleocristãs
em especial.
33
A presença dos homens divinos ou, ao menos, o que se reconhece aqui como
modelo thĕiŏs anēr data do que se convenciona chamar de Antiguidade. A crítica de
que a expressão thĕiŏs anēr ou o conceito associada a ela não ocorre na antiguidade,
ganha maior expressão, dentre os autores analisados neste trabalho, nas palavras do
intelectual norueguês Aage Pilgaard:
"O debate a respeito das críticas a theios aner tem sido focado sobre
a relação entre o termo theios aner e o conceito theios aner, um
debate que demonstra que a definição do conceito precisa ser
considerada.
Tem sido defendido que o termo theios aner nunca ocorre na
Septuaginta e Novo testamento, e no que diz respeito ao mundo
greco-helenístico, W. von Martitz demonstrou que nas fontes pré-
cristãs o termo theios aner não é usado como um título, e também
que não há conexão próxima entre theios e o carismático até a
literatura neo-platônica e neo-pitagórica 16." (PILGAARD,
1997:103).
16
Tradução pessoal de: " In the debate concerning theios aner critics have focused upon the relation
between the term theios aner and the concept theios aner, a debate which demonstrates that the
definition of the concept needs to be considered. It has been argued that the term theios aner never
occurs in the Septuagint and the New Testament, and as regards the Greek-Hellenistic world, W. von
Martitz has shown that in pre-Christian sources the term theios aner is not used as a title, and also that
there is no close connection between theios and the charismatic until New-Platonic and New-
Pythagorean literature."
34
17
As datas entre parêntesis referem-se às edições modernas dos documentos presentes na bibliografia
que está ao final deste trabalho.
18
As datações mencionadas nesta tabela, para alguns casos, é bastante controversa e/ou difícil de
determinar quanto à origem das obras escritas. Por esse motivo, optou-se por indicar apenas as datas
prováveis de existência/atuação dos autores aqui elencados.
36
Algumas considerações devem ser feitas após a exposição dos dados na tabela
acima:
(a) já foi advertido anteriormente que essas ocorrências não perfazem um estudo
exaustivo da literatura antiga. A honestidade intelectual demanda que se diga que ela
foi sistematizada a partir dos dados coletados em Windisch (1934:24-101),
Koskenniemi (1994:99-100) e Cornelli (2001:26-27);
(b) Martitz (1972) defende que nas fontes pré-cristãs thĕiŏs anēr não é usado como
um título, e também que não há conexão próxima entre thĕiŏs anēr e o carismático
até a literatura neo-platônica e neo-pitagórica (334-40). A esse respeito, Windisch
(1934) discordaria19, sustentado pelos dados que expôs em seu texto e Holladay
(1977:241) tenderia a concordar com Martitz se, e somente se, o assunto for thĕiŏs
anēr como base para a cristologia neotestamentária;
(c) Holladay encontra em Josefo a expressão apenas uma vez (1977:55), em Fílon
duas vezes (1977:174.183ss.) e em Artápanos nenhuma vez. Para ele isso é suficiente,
obviamente acompanhado de uma análise sistemática, para defender que não encontra
nesses autores a intenção de divinizar os heróis de quem eles tratam;
(d) Pilgaard (1997:103) está correto em dizer que a expressão não ocorre na
Septuaginta e no Novo Testamento;
(e) De maneira singular, Cornelli (2011:26-27) reconhece não somente os thĕîŏi
ándrĕs na antiguidade, como também descreve os debates entre autores cristãos da
patrística com seus "adversários". Assim, Justino defende Jesus ao perceber que tem
notado uma tentativa por parte dos pagãos de imitá-lo. Orígenes argumenta contra
Celso, que entende Jesus como um charlatão. Eusébio responde a Hiérocles,
inclusive, dizendo que a nenhum homem é possível realizar milagres. Na visão dele,
somente Jesus o faria, naturalmente, pois é o próprio Deus encarnado.
De acordo com Windisch (1934), a presença dos homens divinos esteve
muitas vezes e em diferentes períodos na antiguidade atestada, ainda que não como
uma categoria solidificada. Smith (1971) também não tem dúvidas em reconhecer a
presença desses homens divinos na Bacia Mediterrânica antiga. Sua análise sobre as
19
Esse "concordar" não quer dizer, necessariamente, que o autor alemão defende que a categoria thĕiŏs
anēr é difundida, conhecida e amplamente aceita na antiguidade, mas quer sinalizar que o modelo para
estudo do homem divino não foi inventada na modernidade, antes, encontra bases suficientes na
documentação antiga para a formulação do conceito explicativo que quer entender determinadas
personagens da antiguidade.
37
20
Para uma discussão teórica em torno da idéia de um ―não-dito‖ na documentação, ver: CERTEAU,
Michel de. A operação histórica. In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (orgs.). História: Novos
Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979. p.17-48.
38
antiguidade" para este, ou seja, qual seria o motivo de tamanho salto cronológico?
Cornelli (2001:27) parece responder adequadamente à questão: "com o sucesso
histórico - por assim dizer - do cristianismo, perde-se interesse na questão
apologética, e conseqüentemente, na comparação de Jesus com as grandes figuras de
thĕîŏi ándrĕs da época."
Em meados do século XIX, um renovado interesse no estudo de experiências
religiosas mediterrânicas surge com muito fôlego e desdobramentos decisivos para
que se chegue, já na década de 30, do século XX, à consolidação do modelo thĕiŏs
anēr. Esse impulso, contudo, deve ser entendido à luz de dois momentos marcantes
nos estudos de Novo Testamento e paleocristianismos: a assim chamada "escola
mitológica" e, de igual forma, a assim nomeada "escola de história das religiões".
Nenhuma dessas duas "escolas" deve ser entendida como movimentos
organizados ou premeditadamente estruturados, no sentido de se inaugurar uma
percepção dos paleocristianismos. Elas têm em comum duas características básicas:
(i) intelectuais, individualmente, interessados nos estudos de experiências religiosas
mediterrânicas e marcados por interesses nas culturas greco-romanas desenvolveram
seus trabalhos rumo a um mapeamento da mística antiga e seus respectivos
desdobramentos; (ii) ao perceberem seus objetos de estudo em um cenário mais
amplo, lançaram possíveis interpretações heurísticas sobre os fenômenos religiosos
greco-romanos e, por extensão, inferiram idéias sobre os paleocristianismos.
E, por outro lado, todavia, se afastam em suas conclusões e desdobramentos
quanto ao método de estudo. Ao passo que a escola mitológica assume, em primeiro
momento, a palavra "mito" como algo inverossímil, fantasioso ou falso, a escola de
história das religiões toma as experiências religiosas mediterrânicas em perspectiva
comparada e, através da diacronia, estuda as bases e ideologias por trás dos mitos de
cada experiência religiosa sem, contudo, duvidar de sua historicidade. Ou seja, os
próprios mitos já são história.
Outro aspecto que afasta as percepções dessas escolas reside no fato de que, a
escola de história das religiões busca a inserção dos paleocristianismos no ambiente
cultural em que estavam interagindo com as mais diferentes culturas, a escola
mitológica, por sua vez, entende que os mitos (portanto, invenções) paleocristãos são
influenciados pelas culturas que os cercam. Assim, as narrativas paleocristãs não
passam de projeções fantasiosas de seus autores e/ou comunidades na construção de
39
21
STRAUSS, David Friedrich. The Life of Jesus Critically Examined. Philadelfia: Fortress Press.
22
Os exemplos dessas respostas que precisaram ser dadas a ataques externos quanto à veracidade de
acontecimentos se multiplicam no estudo da história da composição de narrativas evangélicas. Os
textos de Chevitarese (2011) e, juntamente com Cornelli (2007), são extensos casos explicativos desse
aspecto.
40
23
Tradução pessoal de: "[a] general conception of the qei/oj a'nqrwpoj [divine human] ..., according to
which such a divine man combines within himself, on the basis of a higher nature and personal
holiness, the profoundest knowledge, vision, and the power to work miracles."
41
24
A Formgeschichte (história das formas) aplicada aos estudos de Novo Testamento, deixam
importante contribuição na pesquisa dos escritos neotestamentários, pois busca uma análise textual
sobre a história da composição dos textos do ponto de vista linguístico e de gêneros literários. Essa
concepção está fortemente marcada pela perspectiva de estudo que toma por base o texto como
construto linguístico, semântico e sintagmático como testemunha de acontecimentos registrados de
forma escrita, mas prescinde de dados arqueológicos e imagéticos para tal feito. Revela-se
imprescindível (e para isso ela existe) na análise textual, mas falha em demonstrar em suas conclusões
uma história mais ampla em que o texto está inserido, justamente por tomar como parte de toda
realidade o aspecto particular que é o registro escrito.
43
vai-se ganhando aderentes para Jesus 'o Senhor'. Resulta lógico, por
conseguinte, que em sua obra Marcos faça uso tanto de paradigmas
como narrativas curtas25". (DIBELIUS, 1984:99).
de 10 até início dos anos 30 do século XX, que fez com que o modelo thĕiŏs anēr
conhecesse sua origem literal.
Literal, porque foram os trabalhos de Wetter (1916), Weinreich (1926),
Windisch (1934) e Bieler, em 1935 (1967) que transformaram o então corrente thĕiŏs
anthōpŏs de Reitzenstein (1978:26) em thĕiŏs anēr. Uma mudança terminológica
sensível que veio acompanhada de uma percepção mais ampla do que sejam as vidas
desses homens divinos antigos. Para Wetter (1916:153), por exemplo: "O Evangelho
segundo São João aparenta ser a conseqüência necessária para o fato de que a fé cristã
é agora confessada por tais pessoas que tiveram previamente se reunido ao redor de
Simão, Dositheu e outros como eles."
Será, por fim, com o extenso trabalho de Bieler (1967), em 1935, através de
uma "larga seleção de materiais, entre eles: Luciano, vários filósofos e sofistas, poetas
e monges lendários, o Novo Testamento, Suetônio e Heliodoro" (CORNELLI,
2011:29) que o termo thĕiŏs anēr se tornará comum (PILGAARD, 1997:101). O que
Bieler pretendeu em seu trabalho foi o de criar um "tipo ideal" - a quem chamou
homem divino - para classificar e analisar personagens antigas.
Bieler chegou a mencionar que na sua concepção, thĕiŏs anēr tratava-se de
uma idéia platônica (1967:19-20), seria, portanto, muito mais um padrão para
explicar diferentes ações de personagens históricas, do que um modelo consolidado
em si. O modelo de Bieler parte, decisivamente, do Jesus dos evangelhos canônicos e
de Apolônio de Tiana. Esse ponto de partida, para que depois se busque outros
exemplos na documentação antiga, motivou muitas críticas ao seu trabalho em anos
posteriores, notadamente na década de 70 do século XX, como mais à frente, neste
texto, será demonstrado.
Para o autor alemão, o núcleo do modelo é: o nascimento do homem divino é
profetizado, com o seu nascimento o milagre é realizado; desde sua iminente
juventude, ele é um professor com autoridade que atrai multidões de pessoas e realiza
grandes milagres; ele é tido como filho de deus, desta maneira, as pessoas o
respeitam, mas, de igual forma, ganha inimigos por esses mesmos motivos; acusado
de práticas mágicas, é morto e, após isso, ressuscita de forma miraculosa e aparece
aos seus discípulos.
As similitudes desse modelo com a história de Jesus são evidentes. Por essa
razão, muitos estudiosos o considerarão como problemático para entender como Jesus
45
teria sido construído com base em um modelo de thĕiŏs anēr já existente na cultura
helenística, se o próprio modelo parece ter sido pensado a partir de Jesus. Como se
verá mais adiante será essa crítica que permitirá aos "teólogos em missão" criticar a
categoria de homem divino para a cristologia de Jesus, inclusive, defendendo esse
modelo de Bieler como único e exclusivo para o caso de Jesus, mas, naturalmente,
sem adotá-lo, apenas invalidando-o como categoria que não estava na cultura
helenística e impossível de usá-la como parâmetro para quaisquer outras personagens.
O trabalho de Bieler, como uma primeira tentativa de sistematizar e propor
uma análise de diferentes personagens antigas e pensá-las em conjunto, foi
impactante e marcante em seus objetivos. Porém, as duras críticas que recebeu de
autores posteriores o colocaram em dúvida. Koskenniemi (1998:462) aponta para o
fato de que o modelo de Bieler "entra em colapso" se o material sobre Apolônio e
Jesus dos evangelhos canônicos sai de cena. Ou seja, a proposta de Bieler não é capaz
de englobar outras personagens antigas. Essa crítica é completada por Smith
(1971:191-92) quando afirma que às vezes, as referências documentais que Bieler
fornece são falsas e a escolha do material é questionável.
Embora se consiga extrair do período até aqui analisado, como modelo,
apenas o que Bieler desenvolveu, as discussões em torno das histórias de milagres e
aretologias específicas de personagens da bacia mediterrância, lançaram bases
heurísticas em torno das documentações antigas. Esses esforços acabaram por se
tornar decisivos na consolidação de plataformas, a partir das quais, os estudos em
torno dos homens divinos fossem consolidados.
Mesmo com as posteriores críticas ao modelo de Bieler, a percepção de que
figuras proeminentes da antiguidade operavam a partir de uma alegada (e na maioria
das vezes reconhecida!) presença divina em suas existências históricas se tornou
fundante para a história do conceito thĕiŏs anēr. Inclusive, é exatamente essa
presença divina, decorrente dela: o ato de a todos maravilhar, que a atuação desses
thĕîŏi ándrĕs casou é o lugar em que se localiza o centro da tese de Bieler.
Após essa publicação de Bieler, em 1937 o livro de Pfister, Hércules e Cristo,
contribuiu para que se desacreditasse do método, mas em 1938, Rose, com seu
Hércules e os Evangelhos eliminou os males que a leitura de Pfister causaram26.
Antes da II Grande Guerra, duas publicações ainda ampliaram o leque de estudos
26
As referências bibliográficas e o juízo sobre as mesmas, aqui, dependem de Smith (1971:192).
46
E, finalmente, Les mages hellénisés, de Bidez e Cumont que, segundo Morton Smith,
"arrastaram à luz esse suspeito homem divino 28".
Resistência a esse processo de perceber estudos neotestamentários à luz do
ambiente místico greco-helenístico já se observava desde os anos 30, quando, a partir
de 1933, Gerhard Kittel, reconhecido antissemita29, fundou e dirigiu a edição dos
cinco primeiros volumes do Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament:
27
Tradução de: "not only collected data on Jews cast in the role of divine men, but also threw light on
the circles of Plato's disciples and disciples' disciples Heraclides Ponticus, Philip of Opus, Xenocrates,
Clearchus of Soli - who seem to have transmuted Platonic philosophy into popular flimflam."
28
Tradução de: "which dragged out into the light these shady divine men."
29
Tendo se filiado ao Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães em 1933 desenvolveu,
como professor de Novo Testamento em Tübingen, estudos científicos depreciando o povo judeu.
30
Tradução de: "... the rise of the Biblical theology movement was accompanied by a strong reaction
against the notion that ancient Mediterranean magic could have influenced early Christianity in any
substantive way. The authors of many of the articles in the 'Theologisches Wörterbuch zum Neuen
Testament', most of whom consider themselves Biblical theologians, write as if they were involved in a
conspiracy to ignore or minimize the role of magic in the New Testament and early Christian literature.
However, for those who know the ways of birds there are signs in abundance that Graeco-Roman
magic is again being considered a potentially fruitful subject which may illuminate important aspects
of the religion of early Christians."
47
31
Para esse momento das discussões bibliográficas dos anos 50, tanto a bibliografia, quanto os
encaminhamentos críticos, dependem de Morton Smith (1971:192-194). Porém, algumas observações
próprias deste trabalho comparecem na discussão sobre como se percebe, aqui, os estudos
mencionados.
48
Simon, em 1951, o admirável texto de McCasland - Pelo dedo de Deus - que coletou
importante material sobre exorcismos em curas religiosas na Palestina, aquele de
Festugière: La Révélation d'Hermès Trismégiste (4 volumes, entre 1950-54) e o de
co-autoria, também do francês com Nock, entre 1945-1954, quando da publicação da
edição do Corpus Hermeticum.
Para além desses estudos de destacada relevância, outros tantos surgiram sem
muito impacto para a percepção do ambiente de reconhecimento de Jesus como um
homem divino e, por conseguinte, para a composição do conceito. Foi assim com
Bieneck, em 1951, quando disse que o conceito de "Filho de Deus (ui`o.j qeou/)"
aplicado a Jesus não deve ser entendido com o significado grego, pois ocorre em
ambiente judaico. O ambiente é judaico, mas o idioma é grego, logo, parece óbvio
que os autores dos evangelhos entenderam Jesus como judeu e o usaram para
propósitos no interior dessa mesma cultura judaica.
E a intenção de retirar a compreensão de Jesus como homem divino a partir
dessa idéia é pouco útil, pois, assim como o uso do idioma e a referência conceitual
que se que denotar são gregos, o modelo de Jesus como homem divino era do idioma
grego, mas elencar em que língua ou que cultura se adota no uso do vocabulário,
ajuda pouco ou quase nada em determinar a procedência do padrão ao qual o homem
divino se originou.
Em 1952-53, Preisker defendeu que a ressurreição de Lázaro não possuía as
mesmas características dos milagres realizados por homens divinos, pois os
elementos "Reino de Deus" e "fé em Jesus" seriam distintivos e inéditos de Jesus. A
isso, objeta Smith (1971:193, notas 124-25) argumentando que as histórias de
milagres por trás do Evangelho de Marcos, sobretudo, não traziam essas
compreensões mais elaboradas. E mesmo que esses elementos lá estivessem não
serviriam de base para tais afirmações, pois as histórias de milagres poderiam ter sido
facilmente adaptadas pelos autores bíblicos para seus próprios intentos.
Buscando uma origem mais primitiva para o emprego dos termos filho de
Deus (hyiŏs thĕŏû) para Jesus, em 1953, Maurer infere que, para Marcos (13,1 em
diante), em que está a expressão filho de Deus, o correspondente palestino mais
antigo seria servo de Deus (paîs thĕŏû), que, por sua vez, depende de Sabedoria
(2,13.18) e de Isaías (42, 50, 53 - o "servo sofredor"). Com essa pré-história palestina
49
originária, para Marcos, segundo, Maurer, Jesus estaria fora do modelo homem
divino, pois seu título de "servo de Deus" o tornaria mais antigo.
Essa tentativa fracassa, pois a leitura dos termos em Sabedoria depende das
comunidades falantes do idioma grego, fora a constatação de que Sabedoria usa as
duas expressões. Além disso, o termo filho teria mais sentido aplicado ao Cristo
ressuscitado do que o de servo, constata o próprio Maurer, assim, eis o porquê de se
ter usado um em detrimento do outro: os objetivos eram diferentes, logo, nem os
termos, nem as idéias de cada um podem ser os mesmos. Para além dessas
constatações, Maurer entende que o helenismo tem resistência ao conceito alguém
servindo a um deus, sem, contudo, indicar o que quer dizer com isso.
Maurer depende do trabalho de Joachim Jeremias e Zimmerli, 1954, para suas
idéias. No mesmo ano, contudo, é que Jeremias propõe seu estudo sobre o termo,
segundo ele, aramaico Abba. A idéia é a mesma da qual parte Maurer, ou seja,
alguma reminiscência pré-helenística em Jesus o tornaria mais original. Porém, como
o próprio Jeremias dizia, o uso do termo pressupõe uma experiência psicológica
individual de Jesus para com Deus no uso desse termo. Dessa maneira, nenhuma
prova é possível para qual sentido o nazareno histórico teria atribuído ao termo.
Dentre os autores representativos que se pode observar na década de 50
discutindo o tema está, sem dúvidas, Rudolf Bultmann. Em 1958, em sua Teologia do
Novo Testamento, o autor alemão dialoga com o modelo thĕiŏs anēr, mas resiste em
usá-lo aplicado a Jesus. Antes, entende que o conceito de "Filho de Deus" está acima
do de homem divino e que havia compreensão helenística sobre essa categoria
(BULTMANN, 1985:131). O curioso é que ele reconhece a presença desses thĕîŏi
ándrĕs como reconhecidos no mundo helenístico, mas a eles Jesus não está associado.
Em outro momento, a tese thĕiŏs anēr é refutada quando Bultmann aborda a
questão do Espírito (pnĕyma). Aqui, ele descreve o homem divino como um
indivíduo de natureza mais elevada que os mortais comuns e detentor de uma
misteriosa potência divina que o faz capaz de conhecimento e ações prodigiosas. Mas,
logo em seguida complementa que essa potência que está no homem divino é o poder
(dýnamis), não o Espírito (pnĕyma) que está no cristianismo primitivo
(BULTMANN, 1984:156).
Na mesma seção, mais adiante, quando a personagem tratada é Paulo, o autor
alemão adverte que o apóstolo não conhecia tal expressão de thĕiŏs anēr e, inclusive,
50
32
As informações tomadas de Schulz estão em diálogo com Smith (1971:194).
52
33
Sobre a leitura de Jesus como ariano, o anti-judáismo europeu, os impactos nos estudos de Novo
Testamento e a formatação de um cristianismo ocidental com fortes elementos racializados, cf.
53
vida de Jesus estava atento a toda e qualquer teoria que não tivesse em conta uma
pertença radical de Jesus ao Judaísmo. O modelo thĕiŏs anēr nunca conheceu uma
fase de pesquisa em que o horizonte de suas conclusões fosse o anti-judaísmo ou a
percepção de um Jesus ariano, mas, por ser controverso em sua aproximação entre
paleocristianismos e magia, alertava a quem desse modelo discordasse para essa
possibilidade.
Já para Luz, ao analisar as fontes e vida de Jesus, a cristologia thĕiŏs anēr foi
superada. A questão de um homem divino na qualidade de sábio/professor e operador
de milagres ou apenas um desses tipos, tendo o outro como subtipo, só é relevante
para cenários em que Jesus é apresentado como professor e operador de milagres ao
mesmo tempo, o que, segundo Luz, não se observa. Seguindo a mesma linha de
análise dos dois autores precedentes, em 1967, Schille defendeu que as histórias de
milagres dos evangelhos não foram influenciadas pelo padrão ou conceito de homem
divino, antes, vieram de um movimento missionário galileu que já estava em curso no
tempo de Jesus.
A esses últimos estudos, em 1968, reagiu Hans Betz. O autor alemão propôs
uma cristologia de homem divino a Jesus em relação com outras cristologias
neotestamentárias, descrevendo-as, indicando passagens nas quais podem ser
encontradas e mostrando como os evangelistas, de diferentes modos, adaptaram essas
passagens para seus próprios pontos de vista. Dessa maneira, se Betz está correto,
segue que a cristologia do homem divino era mais originária, e depois disseminada,
para a composição de qualquer Evangelho existente.
O modelo dessa cristologia proposta por Betz está assentado na constatação de
que muitas cristologias diferentes aparecem no Novo Testamento (BETZ, 1968:114-
15). Assim sendo, o autor alemão parte do pressuposto de historicidade de Jesus
enunciado por Käsemann (p.114ss.) para encontrar uma base comum do que ele
entende ser possível recuperar através do Jesus histórico. As diferentes cristologias do
Novo Testamento se contradizem, isso é explicado pelos distintos propósitos que
cada autor do cânon neotestamentário tiveram ao compor seus retratos de Jesus
(p.115.130).
Com essa questão no horizonte de investigação, Betz identifica três
cristologias diferentes no material do Novo Testamento: (i) a cristologia do "Filho do
34
"Embora ele não se visse como tal" (BETZ, 1968:128). O fato de Jesus não parecer se ver como
homem divino pouco muda o cenário no contexto do estudo dos homens divinos. Na medida em que,
do ponto de vista arqueológico nada restou sobre o Jesus histórico, a pessoa em si, e o material mais
abundante sobre a pessoa, em si, para conhecer ou buscar Jesus são as recepções de materiais
canônicos ou dêutero-canônicos em torno da figura do nazareno, decorre que a imagem que se fará
dele virá acompanhada dessas percepções. Além do que, o modelo thĕiŏs anēr é muito mais um
construto moderno de análise e classificação de figuras extraordinárias da antiguidade do que algo
formulado e criteriosamente exposto nas fontes antigas.
57
Ainda como desdobramentos do que se estudava nos anos 60, autores que se
dispuseram a analisar os homens divinos ou histórias variadas de feitos
extraordinários de personalidades antigas, acabaram por aprofundar ou criticar
profundamente o modelo thĕiŏs anēr. Se o que se deseja é apontar uma época em que
58
o modelo sofreu mais críticas, sem dúvidas, esses são os trabalhos desenvolvidos nos
anos 70 do século XX. Foi nessa década em que os estudiosos oscilaram entre duas
posições básicas: (i) aqueles que aprofundaram e ampliaram as discussões, seja para
formular novos conceitos, seja para sedimentar os precedentes; e, (ii) aqueles que
negaram completamente seu emprego em contexto de paleocristianismos ou
buscaram a desconstrução completa do modelo como um todo.
No fim dos anos 60 e com publicação em 1970, os volumes III a V da História
dos Judeus na Babilônia, de Neusner, contribuíram para o primeiro estudo
consistente e estendido de se perceber o Rabbi judaico como homem divino e a
taumaturgia rabínica. Desde o século XIX essas histórias talmúdicas foram coletadas,
mas foi mesmo essa obra de Neusner que primeiro explorou a figura do Rabbi com
um papel social, em seu ambiente, como um centro de poder sobrenatural (SMITH,
1971:195).
A década de 70 viu nascer o trabalho que mais desenvolveu, detalhou e
solidificou a categoria thĕiŏs anēr como base para o Evangelho marcano, em
particular. Trata-se de dois textos escritos por Paul Achtemeier (1970 e 1972) no
Journal of Biblical Literature (Revista de Literatura Bíblica). No primeiro deles
(1970), Achtemeier lança bases documentais, em Marcos, para, a seguir, em seu texto
de 1972 analisar com detalhes como as histórias que serviram de fonte para Marcos
servem como provas da percepção antiga de Jesus como homem divino.
A proposta, então, de Achtemeier no primeiro artigo (1970) é resumida nas
primeiras linhas de seu segundo trabalho (1972:198):
35
Uma possível tradução seria "correntes", ou seja, como empregado no artigo: "correntes de
milagres". A intenção de Achtemeier ao usar esse termo está explicada em seu artigo de 1970:266,
nota 2. Trata-se de uma discussão terminológica que se iniciou em Smith (1965 e 1971) e avança até
hoje rumo às tentativas de analisar aretologias ou narrativas que contenham milagres. Achtemeier
busca termos que já não tenham sido utilizados na bibliografia de então para designiar os modelos que
quer analisar. Assim, ele usa "ciclo" para designar a seqüência de material narrativo sobre atos de Jesus
e "correntes de milagres" para se referir à fonte específica de Marcos que ele pretende isolar.
59
36
Tradução de: "The most likely background out of which the catenae were formed is to be found in
(hellenistic-) Jewish traditions about Moses; the groups which formed the catenae drew from those
traditions in ways similar to those in which Paul's opponents in Corinth drew upon them; the catenae
were formed as part of a liturgy which celebrated an epiphanic Eucharist based on breadb roken with
the qei/oj avnh,r, Jesus, during his careera nd after his resur-rection; and Mark sought to overcome that
view of Jesus and of the Eucharist by the way in which he used the catenae in his own narrative."
60
momento nenhum propõe uma definição tácita da palavra. Antes, prefere assumir que
os feitos extraordinários de homens na antiguidade possuem variadas formas e
distintas recepções.
Para Smith, as coleções de milagres advindas da antiguidade são poucas
(1971:177, nota 27) e mais, não parecem ser, como coleções, muito similares
literariamente aos evangelhos canônicos (1971:178-79). Nesse sentido, o historiador
reabilita Justino para identificar, nos textos bíblicos, um modelo diferente: herói. Esse
modelo distinto às aretologias também dão conta de homens divinos, mas não negam
a existência das aretologias, apenas limitam os exemplos que ele encontra para
homens divinos (1971:179). Um bom exemplo desse enunciado é dado quando
Orígenes, respondendo a Celso, não diz que homens divinos não existem, mas apenas
diz que esses tais homens não fizeram nada, se comparado ao que fizeram os profetas
do Antigo Testamento (SMITH, 1971:180).
Para o caso dos homens divinos, Smith reconhece pelo menos cinco modelos:
heróis, deuses que tiveram aventuras como homens, pessoas que aparentavam ser
deuses, semi-deuses que se tornaram deuses e homens que se viam e se consideravam
como deuses (SMITH 1971: 181-82). Mais adiante, o autor norte-americano sustenta
essa variedade de modelos defendendo que, por trás dessa "ralé" de homens divinos
ou deificados, está a noção grega de que homens sendo como deuses, possuindo
virtudes humanas em alto nível e dons extraordinários dialoga com o que os homens
desejavam sobretudo: imortalidade e juventude eterna (SMITH, 1971:184).
A complicação que essas noções trazem quando se tem o estudo do Novo
Testamento por objetivo é que o modelo de homens divinos era complexo e instável,
sendo, assim, difícil de estabelecer um padrão único para classificação (SMITH,
1971:184). Contextualizando esse dado, Smith sugere que o desenvolvimento da
figura de homem divino no mundo greco-romano estava em diálogo com a
imaginação de mundo e desejos que esses homens aspiravam (SMITH, 1971:186),
isto é, torna-se volátil para qualquer tentativa de padrão.
Por fim, Smith ainda lembra algo que ficou patente em todo seu texto, ou seja,
as dificuldades no aproximar-se das fontes para estudo, o que contribuiria, também,
para o complexo de modelos não unívocos (SMITH, 1971:187-88). O que se segue,
na segunda metade do texto é um vigoroso estado atual das discussões bibliográficas
nesse tema até então. Desse seminal trabalho, mais à frente, este texto indicará como
61
em que afirma que a definição do autor alemão é por demais generalizante. A tese de
Tiede é que, se empregada a definição de Bieler, as tantas características postas pelo
autor alemão ao homem divino típico, seria difícil encontrar algum herói da
Antiguidade a quem não se pudesse atribuir, no mínimo, várias dessas qualidades, e é
talvez igualmente difícil encontrar uma descrição de alguém, anterior ao século III
e.c. que confira a seus heróis a lista completa dessas características (TEIEDE,
1972:246).
Avançando ao ano de 1973, Howard Kee publica um artigo sobre aretologia e
Evangelho em que faz duras críticas ao que Smith havia produzido em 1965 (cf. item
I.5 acima) e em 1971 (cf. neste mesmo item, acima). Esse artigo está inserido em uma
série de debates com (ou contra!) Smith, assim, esquematicamente:
64
37
Conferir a apresentação desse trabalho no item I.5 acima e a respectiva obra na bibliografia ao final deste texto.
38
Recupera-se esse trabalho - não publicado como artigo - em quatro momentos: (i) o livro de Kee, H. Jesus in History. New York, 1970 (com a observação de que
essa obra já havia sido publicada por Kee antes da apresentação desse paper, portanto, a apresentação oral é posterior, e como resultado, do livro). Reeditado em
1995; (ii) nos comentários de Smith (1971:195-198); (iii) na reafirmação das suas posições em Kee (1973:402-22); e, finalmente, em Smith (1978:335-45),
reeditado em 1996 por Cohen (1996:37-8). O debate também foi lembrado por Cornelli (2001:86), mas sem mencionar, nesse contexto, o quarto trabalho aqui
listado. Porém, ele o conhecia, pois o analisa em outras partes do texto (CORNELLI, 2001: 31, nota 46; 35, nota 62). Acrescenta-se, ainda, nesse contexto, a
resposta de Smith a Tiede (SMITH, 1996:37-8).
39
Conferir a apresentação desse trabalho neste mesmo item I.6, acima e a respectiva obra na bibliografia ao final deste texto.
40
A apresentação dessa obra comparece no presente quadro e a referência bibliográfica ao final deste trabalho.
65
O que está em jogo nesse debate acalorado, e Cornelli (2001:85-86) tem razão, é a presença da aretologia como possível
antecedente à composição dos Evangelhos. Cornelli entende que sim, a aretologia está por trás dos evangelhos (2001:85) e, inclusive
assume os sinóticos como aretologias (2001:87-92). Nesse aspecto, o presente texto se afasta do autor brasileiro, pois (i) os Evangelhos
contêm narrativas de milagres, mas não somente. Seguindo Betz (1968, ver item I.5 acima) eles adaptam prováveis histórias de milagres
pré-marcas e, inclusive, pré-Q para seus respectivos propósitos e, também, trazem elementos teológicos que aretologias nem sempre
trazem; e mais, (ii) Smith é categórico e, por vezes, repetitivo em dizer que não é possível classificar aretologias como gênero literário
formal e estável. Assim, o mais adequado parece ser seguir Betz, quando assume que há formas literárias antigas aos propósitos
evangélicos e Crossan (ver este mesmo item acima, quando da articulação de suas idéias com as de Achtemeier) que as segmenta e
demonstra como elas foram adaptadas nos evangelhos.
41
A versão consultada neste texto é aquela de 1996, reabilitada por Cohen (ver bibliografia, ao final deste texto, sob o nome de Smith).
66
É o caso do primeiro deles, Charles Talbert que, em 1975 articula sua análise
do modelo thĕiŏs anēr com o conceito de imortais na antiguidade mediterrânica.
Segundo Talbert, o critério decisivo para a definição dos homens divinos é a posição
no que diz respeito ao binômio: moralidade-eternidade. Assim, distingue dois tipos de
thĕîŏi ándrĕs: (i) aquele que mostra/revela presença divina em sua vida histórica; e,
(ii) um grupo mais seleto que, alcançando imortalidade, se distingue dos que são
eternos (TALBERT, 1975:429-32).
Nesse caso, Jesus aparece como um homem divino por excelência, pois as
realizações históricas que desenvolveu e no contexto social em que se inseriu,
transformou radicalmente sua experiência terrena e dos demais que dele se
aproximaram. De igual forma, a narrativa marcana do túmulo vazio é um não-dito,
segundo Talbert, que revela a quem a conheceu que ele foi mesmo imortal
(TALBERT, 1975:432-36). Talbert, por vezes, vale-se de modelos de homens divinos
já sistematizados na documentação como, por exemplo, do de Tiede (ver exposição
acima) para integrar a sua própria percepção do que entende em seu próprio esquema
explicativo (TALBERT, 1975:431).
Concluindo as reflexões dos anos 70, de forma consistente, aparece, em 1977,
o trabalho de Carl Holladay. Através de um percurso em textos de Josefo, Fílon e
Artapano, um interessante caminho é feito pelo autor para evidenciar o uso da
categoria thĕiŏs anēr no Judaísmo Helenístico como possível background para uma
cristologia thĕiŏs anēr nos paleocristianismos. A conclusão de Holladay é negativa
sobre esse aspecto. De imediato, a hipótese thĕiŏs anēr é analisada (1977:15-18) e o
autor norte-americano identifica a tese geral de que homem divino era uma figura
reconhecível no mundo helênico.
Ainda, segundo essa tese geral, essas figuras eram conhecidas por tais
características "divinas", como realização de milagres, pronunciamentos oraculares,
habilidade retórica, e assim por diante. Ele também percebeu, no curso da revisão
bibliográfica que operou, que o Judaísmo da diáspora, como resultado do impacto da
helenização, reinterpretou heróis bíblicos como Moisés e os patriarcas, conformando-
os, assim, com a imagem thĕiŏs anēr.
Dessa maneira, conforme enunciaram os autores anteriores a Holladay, o
alicerce é assentado no background cultural do cristianismo para o surgimento de
uma cristologia tipicamente thĕiŏs anēr em que Jesus e os apóstolos por vezes são
68
apresentados como homens divinos de acordo com esse suposto tipo ideal existente.
Essas são as conclusões de Holladay quando as apresenta de uma forma muito sucinta
em seu primeiro capítulo ("O Debate thĕiŏs anēr", 1977:1-45). Convém mencionar,
ainda, que nessa análise de Holladay, ocupa papel mais central os pontos de vista dos
estudiosos que defendem a apropriação do "homem divino" como construto do
judaísmo helenístico.
Para refutar essas noções iniciais, Holladay dedica um capítulo a cada autor
antigo para debater se o modelo thĕiŏs anēr é mesmo decisivo para se perceber a
recepção dele em autores paleocristãos e para além deles (Josefo: 1977:47-102; Fílon:
1977:103-98; e Artapano: 1977:199-232). O que está em jogo para o autor norte-
americano é em que medida esses autores judeus pretendiam deificar seus heróis
bíblicos e acaba por enunciar que há muita reserva nesse sentido por parte dos
documentos antigos.
Na última seção de seu texto, Holladay (1977:233-42) resume o que concluiu
de seu estudo inferindo que a expressão thĕiŏs anēr, independentemente do sentido
que tenha no mundo helenístico, não quer dizer "operador de milagres" em suas
fontes, no particular, e no século I em especial. Com isso, defende que o modelo
thĕiŏs anēr é uma categoria "inutilizável para a discussão cristológica"
(HOLLADAY, 1977:241). No que diz respeito ao estudo desenvolvido por Holladay,
alguns aspectos precisam ser ressaltados.
O modelo thĕiŏs anēr não é frontalmente analisado. As discussões que
desenvolve no centro de suas reflexões dizem muito mais respeito ao grau de
helenização da Palestina - justamente para tentar refutar o modelo thĕiŏs anēr como
presente naquela cultura - (HOLAADAY, 1977:6.15-17.237-38) do que um estudo
sobre o impacto que tal fenômeno tenha causado. O olhar dele está muito mais
voltado para as particularidades da interação cultural e menos para os impactos que
tenham causado.
A escolha dos autores como fontes do estudo parece lhe conceder indulgência
para enunciar o significado que o modelo thĕiŏs anēr tenha em todo o século I e.c..
No livro mencionado, em momento algum uma discussão, por exemplo, sobre as
fontes dos evangelhos compareceram, a despeito de extensa bibliografia existente
sobre o assunto. Com isso, o valor de Holladay está em como disseca as fontes
69
escolhidas, mas, por outro lado, peca pelos silêncios, não ditos e ausência de
confrontação conceitual do modelo a que se propõe rotular como "inutilizável".
Os anos 70 do século XX foram marcantes no estudo do modelo thĕiŏs anēr.
Um fôlego profundo refinou, sedimentou ou tentou sepultar o uso da categoria como
válida para os contextos paleocristãos. Segue-se que muita discussão ficou por fazer.
Mais perguntas do que respostas foram postas, se o que se tem no horizonte é uma
definição mais precisa e positiva para o modelo thĕiŏs anēr.
A razão é que "não havia acordo unânime quanto a uma única ‗imagem‘ de
sociedade, atividade humana e natureza divina" (GALAGHER, 1980:178). Isso
dizendo respeito a uma leitura cultural mais ampla de que esses homens divinos
estavam disseminados e amplamente aceitos na bacia mediterrânica. Sequer, para o
autor, havia "conexão entre homem divino, aretalogia e propaganda religiosa". Pois,
continua ele, "não é possível isolar propaganda religiosa da apologia, pois o cenário
missionário na Antiguidade Tardia era muito complexo." (GALAGHER, 1980:173).
Assim, desferindo os últimos golpes fatais no modelo, Galagher afirma que os
homens divinos podem ser encontrados "em largo alcance de textos, não
especificamente em formas biográficas." (GALAGHER, 1980:174). Portanto, sinaliza
Galagher, que o critério decisivo para a classificação de thĕiŏs anēr deve ser
encontrado em um nível ético: para o homem ser um thĕiŏs anēr deve ser um bom
homem e comunicar coisas boas aos homens, mas o critério para o que é bom pode
variar radicalmente (GALAGHER, 1980:175).
As propostas de Galagher quanto ao modelo thĕiŏs anēr e seu debate com
autores precedentes se assemelham muito com a postura de Celso quando ataca
duramente o cristianismo. Com um raso entendimento das propostas de Betz (1968),
por exemplo, e pouco demonstrando consistência em suas refutações metodológicas
(quando faz!) é um trabalho que precisa de pouca refutação.
71
São afirmações um tanto contraditórias que postula o autor alemão. Se, por
um lado, ele desconstrói o gênero evangelho e, inclusive, até diz que eles devem
muito mais ser percebidos como um gênero biográfico helenístico do que algo
próprio ou particular dos paleocristianismos, por outro, afirma que, por ser de difícil
enquadramento e categorização, o modelo thĕiŏs anēr não ajuda na determinação do
gênero literário dos evangelhos.
Ora, seria exatamente esse o argumento que sustentaria, do ponto de vista do
método, a existência do modelo em diálogo com os textos evangélicos. Se os
esquemas rígidos e generalizantes de classificação devem ser pulverizados e formas
literárias (como indica o título do livro) menores e mais articuladas com os estilos
helenísticos de escrita que circulavam na bacia mediterrânica devem ser identificadas,
porque abrir mão de uma forma literária que serviu de base para a construção de Jesus
como homem divino em Marcos?
A resposta a essa pergunta não foi evidenciada pelo autor alemão. Talvez
porque ele julgasse um risco o conceito de aretologia ou não tivesse percebido bem,
ainda, com incluir as tais "narrativas de milagres" que optou por abrir mão. A
pergunta anterior ficou mesmo sem resposta. Cornelli (2001:89, nota 218) percebeu o
mesmo desconforto e optou por seguir Berger no que diz respeito a não perder o lugar
de classificação das "narrativas de milagres evangélicas".
Mas, em contrapartida, o autor brasileiro é mais ousado e assume que as
narrativas evangélicas de milagres contaram com a forma mais antiga da aretologia
em sua pré-configuração original, por isso mesmo entende que, por meio da
aretologia, de alguma forma presente nos evangelhos canônicos, pode-se falar de
Jesus como um homem divino. Uma vez que, segundo Cornelli (2001:89) "falar de
aretologia é falar de homem divino".
Não será tanto por essa conclusão que este trabalho prosseguirá em seus
próximos capítulos. Aqui, entende-se que o estudo de formas literárias não quer,
necessariamente, provar a dependência entre textos semelhantes ("biografias"
presentes em Plutarco e Evangelhos, por exemplo) ou que um foi "influenciado" por
outro. Mas, quer sinalizar que a presença de diferentes formas literárias circulando na
bacia mediterrânica pode ter servido de base para a composição dos textos do Novo
Testamento.
73
Uma vez que os autores bíblicos não estavam isolados, mas interagindo com
seu universo cultural mediterrânico helenístico usaram (prova de dependência) ou
moldaram suas narrativas (ou seja, compartilhavam técnicas de escrita de seus
contemporâneos ou técnicas presentes em seu universo cultural) de acordo com as
formas de escrita que tinham conhecimento. É, sobretudo, um processo de interação
cultural que determinaria ou explicaria a intercambialidade das histórias de homens
divinos presentes em textos de diferentes espaços e tempos (aqui já está o indicativo
preliminar das discussões teóricas e "factuais" a partir das quais o último capítulo
deste trabalho será construído).
Como última obra de destaque a ser mencionada nos anos 80 aparece a de
Gail Corrington que, em 1986, lançou um estudo em que buscava analisar as origens
e funções do modelo thĕiŏs anēr nas religiões populares mediterrânicas. De acordo
com a pesquisadora, está para além de qualquer dúvida que pregadores de salvação
itinerantes que autenticavam suas mensagens através de poderes miraculosos
abundavam no século I e.c. na bacia mediterrânica (CORRINGTON, 1986:159-81).
Corrington está segura em afirmar que os paralelos entre essas figuras e o
material neotestamentário devem ser vistos nas fontes que evidenciam a crença
popular nesse fenômeno a partir de buscas em fontes documentais de caráter menos
"oficial", como Josefo e Fílon, por exemplo. Assim, em Artápano, "[em seu retrato
sobre Moisés] encontramos o retrato popular de um herói nacional judeu que combina
virtude filosófica com poderes maravilhosos: resumindo, um thĕiŏs anēr
(CORRINGTON, 1986:143).
Para o caso de Jesus, consoante Betz (1968), Corrington afirma que se podem
encontrar traços de thĕiŏs anēr no próprio entendimento que o nazareno tinha de si
mesmo como mensageiro escatológico e alguém que era representante de Deus e
inspirado pelo Espírito de Deus na realização de milagres e curas (CORRINGTON,
1986:128).
Incluindo, ainda, a literatura Hermética, os Papiros Mágicos Gregos (pp.110-
30) e os evangelhos canônicos (p.35) Corrington estabelece bases consistentes para
apontar a presença dos homens divinos na antiguidade. O que permite a intelectual
norte-america conceber tal fenômeno e unificar a difusa categoria thĕiŏs anēr sob
uma única rubrica é o conceito de poder (dýnamis).
74
O modelo desenvolvido por Corrington, bem como sua aplicação, será mais
explorado nos capítulos seguintes, pois como é o caso do material de Hans Betz, este
trabalho encontra as bases fundamentais para o tratamento que quer dar à análise
documental que irá proceder e vinculação dos paleocristianismos em diálogo com o
modelo thĕiŏs anēr em contexto de século I e.c.. Porém, de todo o exposto até aqui,
no que diz respeito às reflexões de Corrington, o que chama mais atenção é o
tratamento que o estudo da norte-americana recebeu pela bibliografia especializada ao
longo dos anos 90 e 2000.
Como trabalho consistente e sólido, foi bastante citado tanto nas revisões
bibliográficas, quanto em algumas discussões a partir do início dos anos 90. O que
mais impressiona é que o modelo nunca foi refutado. Sequer uma mínima seção
dedicada ao trabalho dela foi exposta no sentido de endossá-la ou refutá-la. No
entanto, os não-ditos é que deixaram, com eloqüência, a evidência de imposturas
intelectuais observadas na bibliografia especializada. Rapidamente, dois exemplos
merecem ser expostos: Koskenniemi (1998) e Blackburn (2008).
O primeiro caso: (i) vê-se no artigo de Koskenniemi (1998:458-59) uma
crítica veemente ao uso do termo mana para estudo dos homens divinos, por tratar-se
de um modelo "Imperialista" e "Ocidental" em que se percebem as religiosidades de
outros povos como primitivas. Segundo o finlandês, o emprego desse termo deve ser
refutado por evocar um darwinismo social maléfico e nefasto nos estudos de história
das experiências religiosas. Cornelli concorda com o autor finlandês e ainda
acrescenta observações pertinentes sobre estudos de magia que têm apresentado forte
teor machista e epistemologicamente positivista "por excluir do horizonte de
experiência religiosa tanto o irracional quanto o feminino." (CORNELLI, 2000:44).
Ambos os autores aqui apresentam uma justa crítica ao modelo de estudos
sobre experiências mágicas a partir de um viés distorcido por certa ciência praticada
nos pós-iluminismo. No entanto, no que se refere a Koskenniemi, um não dito é
76
extremamente explícito, qual seja, se ele elabora uma crítica tal como fez, porque não
ofereceu ao leitor o modelo alternativo de Corrington à concepção de poder (dýnamis,
da autora norte-americana e não mana, de Wetter) no estudo e compreensão dos
homens divinos?
Isso se torna assombroso se levado em conta que um artigo de 12 páginas e
com 66 notas de rodapé, com exaustiva revisão bibliográfica do tema, não mencione a
obra de Corrington. A opção visível foi rotular intelectuais da década de 10 do século
XX como darwinistas sociais, mas nunca entrar na discussão sobre o conceito, em si,
de thĕiŏs anēr; E mais: porque não enfrentar o problema de definição sobre homens
divinos sob a perspectiva de poder (dýnamis), ao invés de simplesmente descartá-lo
em contexto de paleocristianismos? O modelo proposto por Corrington parece dar
conta desse "detalhe".
Avançando ao segundo exemplo: (ii) Blackburn (2008:7775) cita o trabalho
de Corrington em sua brevíssima bibliografia quando comenta o verbete thĕiŏs anēr
no dicionário sobre o Jesus Histórico. Há que se sublinhar que o exíguo espaço para
exposição do verbete permite menção apenas ao que de mais significativo já se
produziu sobre o tema até então: 2008, último registro bibliográfico encontrado por
este trabalho sobre o tema. Ao longo das páginas da exposição de Blackburn, nunca a
obra de Corrington é mencionada com intenção de análise ou crítica.
Sequer para desqualificar ou apontar conclusões do estudo da autora norte-
americana existe algum espaço. Esse fato é ainda mais estranho se o que se considera
é que todas as obras mencionadas na bibliografia final são comentadas no verbete,
exceto a de Corrington. Parece ficar claro, portanto, que ao longo dos debates
bibliográficos, quando se associa, por meio de provas documentais e modelos
epistemológicos consistentes, os paleocristianismos ao campo da magia
mediterrânica, as críticas oscilam entre aspectos periféricos ao modelo
epistemológico proposto, sem nunca se atingir o núcleo da argumentação ou, o que se
vê é o simples silêncio e negligência quanto ao assunto.
Outros exemplos são numerosos a esse respeito, mas, pela economia da tese,
adotar-se-á o procedimento de expor, como tem sido feito até aqui, as posições dos
autores que discutiram a temática e deixar que as escolhas por esse trabalho na
adoção da análise do tema também anunciem seus não-ditos e caminhos pelos quais
irá trilhar no estudo do thĕiŏs anēr que, como se sabe, está longe de ser o mais
77
43
Tradução pessoal de: designates a rather clear concept personified in several historical figures in the
Hellenistic-Roman period. The substantial element in the concept is that men can participate in
divinity, and that this divine quality is demonstrated primarily through miraculous power and
extraordinary wisdom. Sociologically, men, classified under the concept, were itinerant preachers of
salvation, or they were by their adherents preached as divine saviours, a status which was emphasized
by appeal (primarily) to their miraculous power. The miraculous deeds of the divine men were
communicated through a specific genre, the aretalogy. The concept as well as the missionary activity
were taken over by Hellenistic Judaism in the Diaspora to defend and promote the Jewish religion.
Hellenistic Judaism so functioned as medium for the transfer of the concept to early Hellenistic Jewish
Christianity.
81
44
Tradução pessoal de: By means of this concept a specific christology developed, a theios aner
christology. This explains the origin of collections of miracle stories (= aretalogies) functioning as
handbooks for the missionaries. Theologically, this christology is classified as a theologia gloriae in
opposition to a theologia crucis. It was in order to combat or modify this theologia gloriae in favour of
a theologia crucis that Mark wrote his gospel. To achieve this goal he used the Messianic secret.
82
Esse aspecto fica evidente quando Pilgaard explica que a definição de thĕiŏs
anēr envolve a relação entre humano e divino e vice versa. Nessa definição, o
humano ocupa um polo e o divino o oposto e a relação entre esses dois polos em
ambas as direções são decisivas para cada polo. A definição antropológica deve levar
em consideração a teologia subjacente: se ela é politeísta, panteísta, cosmológica ou
uma dinâmica monoteísta (PILGAARD, 1997:105). A última frase explica muito bem
que tipo de relações entre Jesus e cultura helenística preocupa o autor norueguês.
Com isso, Pilgaard oferece a leitura com a qual ele mais está de acordo. Ao
retomar Gallagher, uma precaução contra qualquer mal entendido pode ser resolvida.
Concordando com Gallagher, o norueguês entende que definir o conceito de thĕiŏs
anēr tem um aspecto ético que pontua para a ambigüidade dessas figuras. Um thĕiŏs
anēr precisa de veridicção: ele pode ser aceito ou desmascarado, por exemplo, como
um mago. Assim, Gallagher demonstrou que o uso tradicional da expressão thĕiŏs
anēr é um conceito bastante estreito (PILGAARD, 1997:106-7).
Betz e Gallagher ocupam papel de destaque na crítica ao modelo thĕiŏs anēr
estudado por Pilgaard. Tantos outros autores e suas críticas, de alguma maneira, já
foram aqui explicitadas. O que chama a atenção é que Pilgaard parece criterioso
demais na definição de termos ou critérios. Vale a indagação: todo esse rigor
conceitual estava na mente de escritores do século I e.c. (ou outros séculos) quando
da produção de textos para suas personagens?
E mais: as diferenças entre os variados homens divinos não seriam tributárias
de suas respectivas épocas e contextos em que seus materiais relacionados foram
produzidos? Se fossem comparadas as descrições de Jesus nos diferentes textos em
que ele é apresentado, será que seria possível enquadrá-lo em um único conceito ou
definição? Os diferentes títulos que recebe (Messias, Filho de Deus, Filho do
Homem, etc.) se enquadram em um tipo característico comum?
Se, para o caso de thĕiŏs anēr, as fontes são problemáticas e não há como
estabelecer uma categoria que englobe todas as personagens a quem se atribui o
título, como proceder a essa classificação no caso de Jesus, valendo-se dos
Evangelhos? Todas essas questões já foram respondidas pelas diversas pesquisas
sobre o Jesus Histórico, mas a retórica delas diante do trabalho de Pilgaard
funcionariam bem para revelar sua verve apologética e prosélita.
83
45
Tradução pessoal de: "Wegen unterschiedlicher Meinungen warten viele religionsgeschichtliche
Fragen noch auf eine eindeutige Antwort. Die Aufgabe dieser Arbeit wird im weiteren Verlauf von
folgenden Gesichtspunkten festgelegt:
(i) theios aner (anthropos) ist kein fester Begriff und überhaupt keine antike Kategorie, sondern ein
moderner, hypothetischer Versuch, ein antikes Phänomen zu verstehen.
(ii) Das Wort theios aner hat eine weite Bedeutung, die sich nur teilweise mit der Anschauung der
Griechen deckt, dass ein Mensch göttlich verehrt werden konnte.
(iii) Die göttliche Verehrung eines Menschen - eines Heros oder eines Herrschers - bedeutet nicht
unbedingt, dass ihm Wunder zugeschrieben wurden. Es geht um zwei verschiedene Fragestellungen,
die nach dem jahrzehntelang herrschenden Durcheinander wenigstens zunächst je für sich betrachtet
werden müssen.
(iv) Am bedeutsamsten für die theiosAN hypothese sind von Anfang an die Wundertäter, von denen
Apollonios der wichtigste ist. Darum muss in der Weiterführung der Diskussion zunächst die Evidenz
der heidnischen Wundertäter überprüft werden. Dabei fällt der Apollonios-Forschung eine besondere
Aufgabe zu."
85
construção da presente tese, por essa razão, os paralelos entre aquele trabalho e este
serão, nos capítulos vindouros, amplamente expostos e explorados.
Por fim, ao lado de Blackburn (2008), Almeida (2008), em seu artigo
publicado na revista NEARCO, do Núcleo de Estudos da Antiguidade da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, perfaz o que de mais recente se encontra
nos debates acadêmicos sobre o tema dos homens divinos. Com discussões
sistematicamente travadas tendo por base Cornelli (2001), Betz (1968) e Morton
Smith (1971), Almeida situa a historiografia brasileira com o que de mais relevante
sobre o modelo thĕiŏs anēr está disponível.
A essa altura das reflexões analíticas em torno dos modelos, críticas e debates
no que diz respeito ao conceito de thĕiŏs anēr, convém empreender um balanço
conclusivo a respeito do que se levantou até aqui. Como dito na abertura deste
capítulo, as obras cotejadas para esse estudo não esgotam o tema - não é a pretensão
aqui, muito menos se pensa ser possível tal feito -, mas, seguramente, no que diz
respeito ao debate thĕiŏs anēr, as obras clássicas estão aqui presentes. Por "obras
clássicas", bem entendido, quer-se referir àquelas que (i) foram fundantes para o
debate; (ii) a partir delas, tantas outras surgiram; e, finalmente, (iii) foram
consolidadas, por parte dos estudiosos do tema, como referência nas discussões
centrais sobre o conceito/compreensão dos homens divinos assim como a temas
corolários46.
Gail Corrington (1986:2-4) estava correta em afirmar que o debate estava
longe de ter um fim. Essa idéia pode ser sustentada ainda nos dias de hoje. Inclusive,
deve-se concordar com ela que esse debate carece de mais definições e maior
precisão. O impasse em definir thĕiŏs anēr ficou marcado, fundamentalmente por
46
As obras aqui mencionadas, bem como os comentários adicionais aqui realizados, têm por objetivo
mapear e sistematizar quais foram os passos decisivos na construção do conceito thĕiŏs anēr ao longo
da história de sua interpretação. Se nas seções precedentes o foco foi ambientar o cenário mais amplo
em que os modelos de homens divinos tiveram lugar e que debates circundaram o tema, bem como
suas aceitações, críticas ou rejeições, aqui, esse passo se faz necessário a fim de que se construa a
trajetória de origem até o momento atual em que está o debate acadêmico exclusivamente enfocando
os modelos de thĕiŏs anēr. Esse percurso servirá de base para sustentar o modelo conceitual de thĕiŏs
anēr que este trabalho quer sugerir no tópico seguinte e final desse capítulo.
86
foi mencionado aqui, anteriormente, convém destacar a lista a partir da qual o autor
alemão entende o modelo thĕiŏs anēr47:
(i) sua relação com um deus é especial seja por testemunhar aquele deus,
ser inspirado por ele ou receber conhecimento secreto da parte dele;
(ii) o thĕiŏs anēr é legitimado por meio da realização de milagres, eles
provam que o homem divino possui a virtude divina (göttliche Kraft);
(iii) seu nascimento e morte são acompanhados, legitimados ou
evidenciados por prodígios e maravilhas;
(iv) a vida do homem divino é errante, acompanhado de poucos
discípulos leais, os quais mantêm sua memória viva após sua morte;
(v) sua morte é quase sempre o resultado de um martírio com seu próprio
consentimento e é acompanhado, legitimado ou evidenciado por meio de
prodígios e maravilhas;
(vi) após sua morte, freqüentemente, o então homem divino se torna deus.
Ressurreição e aparições corpóreas são características de sua vida após a
morte.
48
Tradução pessoal de: "the source for all subsequent aretalogies, pagan and Christian."
49
Tradução pessoal de: "We may define it as a formal account of the remarkable career of an
impressive teacher that was used as a basis for moral instruction. The preternatural gifts of the teacher
often included the power to work wonders/ often his teaching brought him the hostility of a tyrant,
whom he confronted with courage and at whose hands he suffered martyrdom. Often the circumstances
of his birth involve the miraculous."
90
grau de helenização da Palestina - justamente para tentar refutar o modelo thĕiŏs anēr
como presente naquela cultura (HOLLADAY, 1977:6.15-17.237-38) - do que um
estudo sobre o impacto que tal fenômeno tenha causado. A contundente crítica que
faz está em negar que em autores específicos (Artapano e Josefo) exista o gênero
aretologia e, por conseqüência, o modelo thĕiŏs anēr.
Pilgaard, por sua vez, sistematizando de que forma o modelo foi construído ao
longo da história da interpretação, acaba por enunciar dados parciais, incompletos ou
intencionalmente selecionados, pois negligencia - nesse resumo, não no artigo como
um todo - uma série de elementos problematizados ao longo dos estudos como
aqueles aqui já apresentados. Segundo ele, o modelo thĕiŏs anēr:
50
Tradução pessoal de: designates a rather clear concept personified in several historical figures in the
Hellenistic-Roman period. The substantial element in the concept is that men can participate in
divinity, and that this divine quality is demonstrated primarily through miraculous power and
extraordinary wisdom. Sociologically, men, classified under the concept, were itinerant preachers of
salvation, or they were by their adherents preached as divine saviours, a status which was emphasized
by appeal (primarily) to their miraculous power. The miraculous deeds of the divine men were
communicated through a specific genre, the aretalogy. The concept as well as the missionary activity
were taken over by Hellenistic Judaism in the Diaspora to defend and promote the Jewish religion.
Hellenistic Judaism so functioned as medium for the transfer of the concept to early Hellenistic Jewish
Christianity.
92
derrotado na cruz. A imagem que ficara era de mais um "milagreiro" itinerante que
tivera seu caminho interrompido pela morte.
O contraditório fora, então, superado pela morte, agora, redentiva de Jesus.
Pilgaard rechaça o modelo thĕiŏs anēr. No entanto, Betz o adota, mas identifica que
as cristologias neotestamentárias oscilam entre duas percepções: aderir e seguir Jesus
é (i) estar, já, além da morte e participando do "Reino de Deus" como realização
histórica do plano de salvação universal idealizado e cumprido por Deus agindo como
thĕiŏi anthōpŏi (humanos divinos), segundo a visão lucana; ou (ii) participar do
sofrimento e morte de Jesus, como entendem Marcos, Mateus, João e a idéia paulina
de imitar Jesus. (BETZ, 1968:130).
Entre as críticas ao modelo thĕiŏs anēr de Holladay (1977) e Pilgaard (1997),
nos anos 80, há uma análise que parece ser a mais consistente já proposta na história
da formação e consolidação do conceito de homem divino. Trata-se do modelo
proposto por Gail Corrington (1986). De imediato, a autora norte-americana retoma
Betz (1961:102; 1968:117) concordando que a ocorrência do termo em fontes antigas
não é decisiva para a existência/validade do conceito e, indo adiante, enuncia que a
audiência para quem os thĕîŏi ándrĕs se dirigiam é absolutamente decisiva para
compreensão do fenômeno. Preliminarmente, formula a autora norte-americana
(CORRINGTON, 1986:43):
"O que coletamos [da revisão bibliográfica feita até este ponto] é
que o termo theios anēr, mesmo não ocorrendo muito
freqüentemente como um termo na literatura antiga, é uma forma de
categorizar ou classificar olhares por parte de certa audiência,
especificamente uma audiência missionária, e conseqüentemente,
lidar com a resposta daquela audiência a certas características da
propaganda missionária, com mais ou menos resultados definitivos
baseados nos pressupostos daquela mesma audiência51."
51
Tradução pessoal de: "What we have gathered is that the term, theios anēr, while not occurring very
often as a term in ancient literature, is a way of categorizing or classifying the views of a certain
audience, specifically a missionary audience, and therefore, of dealing with the response of that
audience to certain characteristics of missionary propaganda, with more or less definite results based
upon that audience's presuppositions."
93
52
Tradução pessoal de: "Nevertheless, what has already been attempted in theios anēr research seems
to point to the construction of an ideal 'type', a pattern of thought or a trajectory to which discrete
phenomena conform, but which need not be manifested in its totality by all phenomena which belong
to it. This 'type' can then serve as a basis for comparison with other 'types' or trajectories."
94
53
Cornelli (2000:31, nota 45) deixa claro que o uso que faz da palavra está em oposição a
"univocidade", e não que ela esteja ligada ao campo semântico do "equívoco". Esclarecimento bastante
pertinente especialmente se o que se tem em vista é a celeuma que a construção e análise do modelo de
homem divino causaram na bibliografia especializada.
54
Partido dos argumentos de Wilson, Corrington objeta Holladay. Para além dessa resposta da autora
norte-americana, pode-se também construir uma crítica a Holladay a partir de três elementos: (i) ele
falha ao exigir que um modelo geral atenda a todo e qualquer caso particular mencionado no interior
desse mesmo modelo. Do ponto de vista da ciência moderna, o procedimento de Holladay tem valor,
no entanto, os dois outros aspectos seguintes explicam melhor o porquê de ter adotado tal
procedimento; (ii) Holladay é bastante zeloso para com a fé cristã ortodoxa, por assim dizer. A
assunção do conceito de homem divino, em alguma medida, destitui Jesus e demais líderes dos
movimentos paleocristãos de suas posições unívocas e singulares. Tal como já mencionado, essa
postura de "teólogo em missão" pretende muito mais inviabilizar a investigação heurística do que
submeter o modelo thĕiŏs anēr à investigação criteriosa dos diferentes modelos epistemológicos da
ciência moderna. Logo, (iii) a inexistência da aplicação de um termo técnico "thĕiŏs anēr" na
documentação antiga mais o tensionamento do conceito e limites do que seja a helenização do
judaísmo perfazem o arcabouço teórico-metodológico que o levam a refutar o conceito de homem
divino quando aplicado a Josefo, Artapano e Fílon.
95
Após estabelecer a noção que está por trás do homem divino como um
modelo, a autora norte-americana define propriamente o que entende por thĕiŏs anēr
(p.46):
55
Discussões e evidências deste fato são tratadas de forma mais aprofundada em Crossan (2004), Faria
(2009 e 2011), Gamble (1995), Kloppenborg (2000), e Young (1998 e 1998a). Aqui estão apenas
indicados, mas no item II.1 a seguir (II capítulo do presente trabalho) serão detalhados e
problematizados para atender a essa mesma discussão.
56
O mesmo pode ser observado o que está na nota 55. Para do que já foi dito, uma perspectiva mais
recente, ou seja, a "escola" da performance (o movimento não iniciou como uma "escola", mas acabou
por se consolidar e tomar forma de um grupo específico nessa abordagem -
www.biblicalperformancecriticism.org) busca reconstruir as narrativas antigas, no geral, e bíblicas, no
particular, sob o ponto de vista da maneira com a qual esses textos eram "desempenhados" em leituras
ou recitações públicas. Essa performance ou desempenho constitui-se no esforço em reconstruir um
cenário no qual textos que não foram produzidos para leitura - dada a altíssima taxa de não letrados na
bacia mediterrânica -, mas para ritualização coletiva. Esse tema também voltará a ser abordado no item
acima apontado - segundo capítulo deste trabalho.
98
57
Dois excelentes referenciais para sustentar essa realidade em culturas mediterrânicas são Bonner
(1950) e Balch (2003). Bonner elaborou um sistemático catálogo de amuletos, moedas, entre outros
artefatos de cultura material que testemunham a ampla disseminação de elementos mágicos presentes
nos mais diferentes espaços cotidianos - casas e cemitérios, por exemplo, para o espaço público e
amuletos de uso pessoal (espaço privado, mas também de exposição pública) - que perfazem um
conjunto significativo de elementos "informativos" que impossibilitam a classificação social de seus
portadores na dicotomia entre o que é de acesso por parte de uma audiência mais ou menos
"sofisticada". Balch também expõe um espectro de afrescos no interior de casas e templos em Pompéia
que dão conta do amplo uso da iconografia material como elementos informativos da audiência
mediterrânica, de igual modo, impossíveis de determinar sua procedência quanto a uma classificação
social no que diz respeito ao acesso de uns em detrimento de outros. Trata-se de evidências incontestes
de que o acesso a temas mágicos vão muito além de textos. Torna-se, assim, impossível afirmar que
textos ou imagens têm alvos específicos, especialmente se o que se leva em conta é a condição social
ou de letramento de grupos sociais na plêiade de experiências culturais cotidianas mediterrânicas. No
próximo capítulo, também, esse tema voltará a ser explorado.
99
Reafirma a posição de que o conceito de homem divino está por trás das
Koester (1971)
cristologias neotestamentárias como camada mais antiga;
poder (dýnamis) como eixo central para agrupar essas diferentes experiências
místicas. É o poder de controlar ou manipular forças divinas, por parte de um ser
humano, que primeiramente o qualifica com uma natureza superior aos demais seres
vivos58.
A partir desse núcleo fundamental, a expectativa (demanda) da audiência pela
realização histórica e concreta, material, portanto, desse poder que motivará a
personagem na realização de algum feito admirável, maravilhoso, fantástico. O
homem divino deverá exercer esse poder como prova visível de que o conhece e tem
meios para manipulá-lo. Trata-se da performance, demonstração ou manifestação do
poder propriamente dito.
Por conseguinte, o último e imprescindível passo para a consolidação do
modelo será a reação da audiência. O ato de poder realizado pelo homem divino pode
gerar seguidores ou detratores. Mas, o fim último da ação desses homens divinos é
gerar credulidade e aderência por parte daquela audiência. Eis o modelo graficamente
representado:
A - Audiência
58
A questão semântica e a forma como esse "poder" deve ser entendido será objeto de análise no
capítulo seguinte. Há distintas formas de se usar o termo "poder" em grego, logo o conceitoassociado a
cada uma dessas diferentes formas de poder precisa ser analisado. Dýnamis é o preferido para essa
classigicação, pois, como será exposto mais adiante, é através desse "poder" (concedido ou adquirido)
que os atos mágicos propriamente ditos acontecem.
105
1. Panorama
O ponto de partida para a questão das definições pode ser iniciado através das
observações de Georg Luck. Em uma obra originalmente de 1985, mas reeditada em
2006, no capítulo que dedica a discutir os "milagres", de imediato ele define o termo:
"(...) eventos extraordinários presenciados por testemunhas, mas que não podem ser
107
explicados como efeitos do poder humano ou pelas leis da natureza 59." (LUCK,
2006:177). A seguir, problematizando a definição que acabara de oferecer, atesta a
dificuldade da mesma, pois,
2.1. Milagre
59
Tradução pessoal de: "(...) extraordinary events that are witnessed by people but cannot be explained
in terms of human power or by the laws of nature."
60
Tradução pessoal de: " The definition, tentative as it may be, shows us how di˜cult it is to separate
miracles from the power of performing magic (the Greek word dynamis covers both), because magic
does produce miraculous evects, and miracles can be attributed to magic."
61
Tradução pessoal de: " The problem is partly semantic, partly cultural, partly theological."
108
Ainda na etimologia, conforme sugerido pelo dicionário trata-se de uma palavra que
tem sua origem no antepositivo mir-:
62
Tradução pessoal de: "(...) To rephrase it, one person‘s religion may be another person‘s magic."
63
A seguir, será continuada a discussão e análise que envolve a questão semântica no estudo das
experiências místicas mediterrânicas e práticas mágicas. Cumpre, porém, observar que não se trata de
um estudo exaustivo dos termos e fontes na literatura grega e paleocristã, por extensão, pois (i) esse
estudo exaustivo não faz parte do escopo do capítulo; e, (ii) não se julga possível um estudo tão
111
aprofundado e detalhado a ponto de analisar cada ocorrência em toda literatura grega e paleocristã no
que se refere ao emprego e estudos dos termos. No entanto, apontamentos cuidadosamente
selecionados e amplos quanto possíveis terminarão por relacionar os termos e articulá-los entre si para
atingir o que se pretende neste estudo.
64
Um esclarecimento no que diz respeito à escolha desses dois grupos de palavras se faz pertinente. Os
seis termos mencionados são os que fazem parte do campo semântico do que a literatura
neotestamentária e da Tradição Cristã se utilizam para relatar "milagres" e quem os realiza. Feito um
levantamento nos Evangelhos Sinóticos, João e Atos, esses termos são decisivos nesse contexto, não
há outros. No interior do corpus neotestamentário há outros termos e menções ao ambiente e práticas
mágicas, obviamente. Porém, o que se deseja aqui é perceber muito mais uma questão de nomenclatura
(milagres em si e quem é capaz de realizá-los) do que um levantamento exaustivo de episódios
contidos nas narrativas bíblicas que atestem as próprias práticas mágicas ou seus respectivos contextos.
O mesmo levantamento não foi realizado em toda literatura grega (ver nota 63), mas, para os seis
termos aqui relacionados, sempre que possível, estabelecer-se-á as relações entre os seus usos na
literatura paleocristã e naquela que não o é.
65
Para testemunhar a história da evolução do termo, Liddel & Scott lançam mão de três importantes
corpora epigráficos gregos: IG (Inscriptiones Graecae), IPE (Inscripitiones orae septentrionalis) e
CIG (Corpus Inscriptionum Graecarum). Dos três, destaca-se aqui o IG. Trata-se de um conjunto de
inscrições advindos da Grécia e Ásia Menor cobrindo datação desde VI século a.e.c. até o VI século da
era comum. Algumas edições foram publicadas desse material, notadamente a de Wilhelm
Dittenberger, entre 1917-1920, com comentários em latim. Trata-se de um importante material
112
epigráfico que testemunha diferentes situações cotidianas de regiões mediterrânicas que adotaram, em
algum momento, o idioma grego. As referências aqui cotejadas estão presentes em Liddel & Scott, no
entanto, quando mencionadas em outros momentos desse trabalho seguirão as indicações presentes em:
"Searchable Greek Inscriptions" (disponível em: http://epigraphy.packhum.org/inscriptions/), um
projeto oriundo do "The Packard Humanities Institute", desenvolvido e mantido pela Cornell
University e Ohio State University; e, também, do "Attic Inscriptions Online", um projeto
desenvolvido e mantido pelas universidade de Cardiff (Inglaterra) e Utrecht (Alemanha). O primeiro
deles apresenta o material em grego, enquanto que o segundo traz as traduções disponíveis para o
inglês. Conquanto sejam poucas as traduções, no que diz respeito a este trabalho, tornam-se
significativos, pois, uma vez assentados os termos apropriadamente - de acordo com o objetivo acima
traçado de discutir a semântica dos termos gregos oriundos do ambiente mágico - será possível obter
evidências de seu emprego em contextos específicos, bem como as estatísticas pertinentes quanto ao
uso deles.
Entre parêntesis, os nomes das respectivas localidades que testemunham tais ocorrências.
113
sēmĕîon. Sua definição no dicionário é mais simples (LIDDEL & SCOTT, 1997):
"sinal", "maravilha", "prodígio" - "sinal" de batalha iminente, "sinais" no céu. Do
ponto de vista da etimologia não foram observadas alterações em seu significado para
além do que acaba de ser mencionado.
Há, ainda, outros dois significados secundários: (a) em sentido concreto,
"monstro": de uma serpente, esfinge, etc., ou se referindo a "nascimento de um
monstro", "monstruosidade"; (b) em linguagem coloquial, "maravilhoso" ou
"incrível". Em termos de emprego quanto ao seu sentido concreto, observa-se uma
proximidade entre tĕras e pĕlōr ("terrível", "sinal miraculoso", "o monstro"), no
entanto, por fazerem parte do mesmo campo semântico, não se faz necessária outra
abordagem a esse respeito.
A forma mais pertinente de se compreender o emprego de tĕras é que ele
submete o que é percebido à questão do propósito para o qual é realizado, sempre,
vinculado a quem ou o que o realizou. (RENGSTORF, 1995a:124). Logo, em si, não
adquire valor miraculoso, mas aponta para tal ato e quem o realizou. Embora faça
parte do campo semântico de práticas mágicas, seu uso, primariamente reivindica o
propósito de sua realização, bem como aponta para o agente de tal ação.
No Novo Testamento tĕras aparece sempre acompanhado de sēmĕîon,
portanto, enquanto termo isolado, não desempenha papel significativo
(RENGSTORF, 1995:230). Nas ocorrências em Atos dos Apóstolos os dois termos
aparecem de duas formas: sēmĕîa kaì tĕrata (4,30; 5,12; 14,3; 15,12) e tĕrata kaì
sēmĕîa (2,19.22.43; 6,8; 7,36).
A alternância de termos parece indicar uma sutileza semântica interessante.
Nos casos em que aparecem sēmĕîa kaì tĕrata a ênfase recai sobre Deus, que é aquele
que, através de sua operação, confere um novo significado ao tempo presente. Ou
seja, os "sinais e prodígios" acontecidos são a prova ou expressão que apontam para a
iniciativa de realização da parte de Deus.
Agora, para o segundo caso, tĕrata kaì sēmĕîa, "os prodígios e sinais"
colocam a ênfase no ato que é realizado como demonstração do poder (dýnamis) de
Deus (ou Espírito Santo, em Atos 2, episódio do Pentecoste). A dinâmica é gerar o
espanto, maravilhamento (tĕrata), através de um sinal (sēmĕîa) que prova seu poder
(dýnamis) e gera adesão àquela fé. É o ato em si que aponta para o poder de Deus67.
67
Deus (ou Espírito Santo) como agente divino de poder e sujeito da ação que envolve tĕras se
assemelha ao que vê-se em contexto de literatura grega. Para o caso de Homero, o emprego do termo
115
O que se torna conclusivo a partir da análise dos termos sēmĕîon e tĕras é que
ambos desempenham função semântica de "sinalizar" ou "apontar" para a realização
de um feito por parte de alguma coisa ou alguém. Em todos os casos em que são
empregados (em muitos casos são usados em conjunto, como, por exemplo, no Novo
Testamento, em que só aparecem juntos) na literatura grega têm esse significado
primário. Ainda sim, devem ser percebidos em contexto de práticas mágicas, mesmo
quando sua ocorrência é carregada de valor teológico.
Por fim, outro termo significativo nesse contexto é ĕrgŏn. A definição
(LIDDEL & SCOTT, 1997) é bastante ampla e com significados não tão elaborados
em contexto de literatura não neotestamentária. Quanto à etimologia, em dialeto
dórico, conforme IG 4.800 (vi século a.e.c.), tem alteração apenas na grafia, mas não
em sentido primário: "trabalho". Inclusive, é esse seu sentido básico.
Por extensão de significado, entretanto, assume as outras formas: (i)
"trabalho", "feitos", "ações"; (ii) "trabalhos" ou "feitos" de tecelagem, na terra, em
batalhas, colheitas, pesca. Para além de sua acepção como "trabalho" em sentido mais
comum, será sua possibilidade de sentido enquanto "feitos" que implicará em usos
distintos na literatura paleocristã:
está sempre vinculado aos deuses, são os casos de Ilíada 4,398; 4,408 e 6,183 (HOMERO, 2004); na
Odisséia 12,394 (HENDERSON, 2014): Zeus é o único divino autor de tĕras e, eventualmente, o
concede a demais divindades do Olimpo. (BERTRAM, 1995:636).
68
Tradução pessoal de: "It is only in the NT, however, that along with the reference to the wonderful
works of God we have a clear awareness of His saving work and activity on the basis of the divine will
to redeem which is consistently attested in all the individual works. If the concept of the ἔπγα θεοῦ
corresponds to a comprehensive view of the work of salvation, it is not surprising that it is for the most
part lacking in the Synoptic tradition. Only in Mt. 11:2 do we read that John the Baptist in prison hears
of the acts of Jesus (...). The Baptist cannot evaluate them as acts of Christ (as in most of the MSS
from the standpoint of the Christian readers and possibly the author), and therefore he cannot regard
them as the work of salvation."
116
69
Embora não se encontre atestação da palavra ĕrgŏn em sentido religioso fora do material
paleocristão, cumpre observar que na filosofia platônica e aristotélica seu uso adquire um sentido mais
complexo do que sua simples acepção ordinária. Em Platão está associado a tĕchnē (técnica). Bem
como a arĕtē (virtude). A palavra ĕrgŏn está ligada à esfera da civilização, não a uma natureza
orgânica. E mais, para o homem, a ĕrgŏn psuchēs é central. No caso de Aristóteles, o termo é aplicado
não só aos seres humanos, mas às espécies não humanas. Assim, a arĕtē (virtude) de cada criatura
consiste em cumprir o seu próprio e específico ĕrgŏn, por exemplo: o olho do cavalo de corrida deve
ver e guiar a corrida. O correto cumprimento dessa função (ĕrgŏn) resulta na sua arĕtē (virtude).
(BERTRAM, 1995:635).
117
No idioma grego, basicamente, quatro termos são usados para denotar "poder"
(dýnamis), "força" (kratŏs, ischýs) ou "autoridade" (ĕxŏysía). Nas culturas
mediterrânicas, é notório o ambiente de constante competição e conflito, o mundo é
visto como habitado por demônios e homens com poderes extraordinários, os quais
desempenhavam um papel regular e ameaçador na esfera humana. Um mundo em que
as misteriosas forças da magia estão atuando em toda parte (ELLIOTT, 2008:223).
Em tal contexto, manipular, conhecer ou interagir com essas forças tornam
indivíduos, além de protegidos, privilegiados por interagirem com forças complexas e
estranhas à maioria.
118
70
(i) "força" física, da tempestade, no trabalho; (ii) "poder" personificado, político, de propriedade,
autoridade; (iii) "senhorio", "vitória"; (iv) "ligamentos" do corpo humano, assim chamados pela
medicina; e, finalmente, (v) usado como numeral dez. (LIDDEL & SCOTT, 1997).
71
LIDDEL & SCOTT, 1997 e MICHAELIS, 19995.
119
Uma vez apresentadas as narrativas convém listar o único outro caso, nos
sinóticos, em quem alguém "mais poderoso" (ischyrŏtĕrŏs) aparecerá em cena, trata-
72
Optou-se aqui por inserir os textos em língua portuguesa, a partir da versão Almeida Revista e
Atualizada (ARA) de 1993. Mas, a discussão pertinente considerará o verbete grego em destaque.
120
"14
De outra feita, estava Jesus expelindo um demônio que era
mudo. E aconteceu que, ao sair o demônio, o mudo passou a falar; e
as multidões se admiravam. 15 Mas alguns dentre eles diziam: Ora,
ele expele os demônios pelo poder de Belzebu, o maioral dos
demônios. 16 E outros, tentando-o, pediam dele um sinal do céu. 17
E, sabendo ele o que se lhes passava pelo espírito, disse-lhes: Todo
reino dividido contra si mesmo ficará deserto, e casa sobre casa
cairá. 18 Se também Satanás estiver dividido contra si mesmo, como
subsistirá o seu reino? Isto, porque dizeis que eu expulso os
demônios por Belzebu. 19 E, se eu expulso os demônios por
Belzebu, por quem os expulsam vossos filhos? Por isso, eles
mesmos serão os vossos juízes. 20 Se, porém, eu expulso os
demônios pelo dedo de Deus, certamente, é chegado o reino de
Deus sobre vós. 21 Quando o valente, bem armado, guarda a sua
própria casa, ficam em segurança todos os seus bens. 22 Sobrevindo,
porém, um mais valente do que ele, vence-o, tira-lhe a armadura em
que confiava e lhe divide os despojos. 23 Quem não é por mim é
contra mim; e quem comigo não ajunta espalha." (Almeida Revista
e Atualizada, 1993).
73
Um interessante paralelo aqui pode ser traçado com a dinâmica de exorcismo praticada por Salomão
presente no "Testamento de Salomão". Neste documento do século I o autor desenvolve a explicação e
atuação de Salomão de acordo com o poder que Deus o concedeu para o exorcismo. Por meio de um
anel oferecido a Salomão, através de um toque no possuído, um anjo correspondente ao demônio que o
possui é amarrado e o, agora, exorcizado trabalhará na construção do Templo. Essa a justificativa
apresentada pelo documento à destruição do Templo no ano 70 e.c.. Sobre essa dinâmica e a
conseqüente relação entre Salomão e Jesus como "Filho de Davi" (Mc 10,47), ver Pilgaard, 1995:72-
87 e Chevitarese e Cornelli, 2007:103-150.
121
(c) após o desenrolar do episódio, o autor faz Jesus contar uma história e a
relacionar com o que acabara de acontecer. Nela, alguém "valente
(ischyrŏs)" protege sua própria casa (v.21). No entanto, quando alguém
"mais valente" (ischyrŏtĕrŏs) ataca a casa e vence o guardião ganha como
recompensa os bens daquela casa.
74
A consulta ao Dicionário de Teologia do Novo Testamento (TDNT, doravante) revela o estudo
analítico de cada verbete por parte de um autor específico. Em alguns casos, um mesmo autor assina
mais de um verbete. É o caso de ischýs e dýnamis, ambos assinados por Walter Grundmann. Essa nota
se justifica por conta da biografia do autor. Alemão que viveu na primeira metade do século XX, foi
um teólogo protestante e ativo colaborador do regime nazista. Não apenas atuou, como foi um
importante articulador da ideologia anti-judaica alemã nesse período estando à frente do "Instituto para
a pesquisa e eliminação da influência judaica na vida alemã". Dentre outras tarefas, esse instituto
liderado por Grundmann foi o responsável por (i) sistematizar idéias e teorias que defendiam um Jesus
ariano, não judeu, mas galileu; (ii) a tradução do Novo Testamento em que todas as referências ou
palavras de origem judaicas fossem eliminadas do texto; (iii) consolidou bases para um "novo espírito
religioso alemão" que sustentou a fé cristã durante o Terceiro Reich re-significando-a e atualizando-a
de acordo com os preceitos do Regime. O aprofundamento dessas discussões podem ser vistas em
STEIGMANN-GALL (2004) e MENDES (2014), dentre outras presentes nesses textos. Para o caso
particular, aqui, convém ressaltar que sua análise dos verbetes coloca em evidência a contundente
repulsa em associar o movimento "cristão" desde Jesus até a patrística ao ambiente das práticas
mágicas mediterrânicas. A contextualização e razões para esse empenho, de alguma forma, já foram
apresentadas na introdução do presente trabalho. Por fim, convém observar que é praxe entre estudos
heurísticos a crítica e fundamentação de dados centrado no paradigma epistemológico da dúvida e
diálogo entre autores especialistas em temas de que se faz uso. Para este caso, porém, merece destaque
a rejeição, por parte desse trabalho, às conclusões do referido autor quando se trata de qualquer tema
ligado a inferências sobre as diferentes expressões dos judaísmos ao longo da história e um cuidado
bastante crítico quanto ao que conclui o autor sobre as experiências místicas mediterrânicas.
122
Não restam dúvidas que o emprego desses termos denota uma atuação e
presença de uma esfera metafísica em seus respectivos contextos. No entanto, o
preciso entendimento semântico dos verbetes aplicados em cada contexto é que
fornecerá base para articular semântica, cultura e teologia no entendimento das
experiências místicas mediterrânicas de acordo com seu milieu próprio. Cumpre, por
conseguinte, avaliar outros dois termos importantes para essa discussão.
Ĕxŏysía tem, basicamente, quatro significados 75:
75
LIDDEL & SCOTT, 1997 e FOERSTER, 1995.
123
76
Tradução pessoal de: "First, unlike expressions for indwelling, objective, physical or spiritual power
(κπάηορ, ἰζσύρ, δύναµιρ), it denotes the power which decides, so that it is particularly well adapted to
express the invisible power of God whose Word is creative power. The ἐξοςζία of Jesus and the
apostles is of the same character. Secondly, this power of decision is active in a legally ordered whole,
especially in the state and in all the authoritarian relationships supported by it. All these relationships
are the reflection of the lordship of God in a fallen world where nothing takes place apart from His
ἐξοςζία or authority. They are based upon this lordship. Thus the word ἐξοςζία can refer to the fact
that God‘s will is done in heaven. It can also denote the fact that His will prevails in the sphere of
nature as an ordered totality (ἔπγον). Indeed, ἐξοςζία is given to Antichrist for his final activity, so that
nothing takes place apart from the ἐξοςζία or will of God. Especially in the community the word is
indispensable to express the fact that we cannot take anything, but that it has to be given to us. Thus
124
ἐξοςζία describes the position of Jesus as the Head of the Church to whom all power is given and who
gives it to His disciples. This ἐξοςζία which is operative in ordered relationships, this authority to act,
cannot be separated from its continuous exercise, and therefore thirdly ἐξοςζία can denote the freedom
which is given to the community." (FOERSTER, 19995:566).
77
Talvez as sucessivas etapas de redação desse texto justifique sua organização tão refinada e
programática, pois, após 3 ou 5 etapas redacionais (a bibliografia especializada sobre o tema diverge
entre essas duas possibilidades) justamente na última um "homem eclesiástico" ordena e sistematiza o
material conferindo o formato conhecido hoje. Acerca dessas discussões e o que foi e será enunciado
sobre o Evangelho de João, ver: BROWN, 1999 e Haenchen, 1984 (Parte I).
125
Evangelho de Lucas:
Texto Conteúdo
4,6 Diabo oferece a autoridade de controlar todos os reinos, pois essa autoridade lhe
foi dada;
4,32 Jesus tem autoridade para o ensino;
4,36 os que estavam na Sinagoga disseram que Jesus tinha autoridade de expulsar
demônios;
5,24 Jesus cura um paralítico e diz ter autoridade para isso, pois é o Filho do Homem;
7,8 Centurião diz ter autoridade sobre seus soldados;
9,1 Jesus deu autoridade aos discípulos para expulsar demônios;
10,19 Jesus dá autoridade aos discípulos para pisar em serpentes e escorpiões e contra
todo poder (dýnamis) do inimigo;
12,5 Jesus diz aos discípulos e à multidão que devem temer a quem tem autoridade de
lançar-lhes no Geena (parece indicar o Diabo);
12,11 discípulos não devem temer as autoridades (poderosos: governantes ou líderes
religiosos) na hora de falar.
19,17 Jesus conta uma parábola em que o bom servo, por seu bom proceder, terá
autoridade sobre dez cidades.
20,2 judeus questionam com que autoridade age. Quem o deu tal autoridade?
20,8 Jesus se recusa a dizer de onde vem essa autoridade.
20,20 escribas e chefes dos sacerdotes queriam entregar Jesus à quem tem autoridade
(governantes);
22,25 Jesus diz que os reis da terra exercem senhorio e autoridade sobre seus
governados;
22,53 Jesus diz aos chefes do Templo e à guarda do Templo, por ocasião de sua prisão,
que a autoridade das trevas chegou.
23,7 Pilatos envia Jesus a Herodes, pois é quem detinha a autoridade naquela
jurisdição (Jerusalém).
Tabela 10: Ocorrências de ĕxŏysía no Evangelho de Lucas
Evangelho de João
Texto Conteúdo
1,12 Sujeito é Deus. Ele é quem tem o poder de determinar acontecimentos;
5,27 Sujeito é Deus. Ele deu autoridade para Jesus julgar a todos;
10,18 Sujeito é Jesus. Ele tem autoridade para dar ou tirar a vida;
17,2 Sujeito é Deus. Somente Deus tem autoridade para conceder vida eterna;
19,10 Pilatos é o sujeito. Ele declara que tem autoridade para crucificar ou libertar
Jesus;
19,11 Jesus refuta a autoridade de Pilatos, pois Deus não a concedeu;
Tabela 12: Ocorrências de ĕxŏysía no Evangelho de João
Texto Conteúdo
5,30 Jesus nada pode (dýnamai) fazer por si só, apenas aquele que o enviou;
13,37 Pedro não pode (dýnamai) seguir a Jesus quando este estiver morto;
14,5 Tomé não sabe para onde Jesus vai depois de morto, por isso não pode
(dýnamĕtha) saber o caminho;
Tabela 13: Ocorrências de dýnamis no Evangelho de João
- dýnamai (i) "ser capaz", "ser capaz de". É usado em um sentido mais
fraco. É muito comum na literatura grega desde os textos de Homero. É a
partir desse termo que há um desenvolvimento notável desde a
"habilidade", como meio de "capacidade" ao conceito de "poder" ou
129
78
Tradução pessoal de: "Alongside the physical are spiritual and intellectual powers, so that all moral
and spiritual and intellectual life may be traced back to the δςνάµειρ of man. Human δςνάµειρ are only
one part of the powers of the cosmos generally. Animals, plants and stars also have their δςνάµειρ, and
the underlying physical forces of the cosmos, the capacities of subsistence and motion, are also called
δύναµιρ."
130
controle desse poder permitem que humanos participem da(s) divindade(s) e das
forças cósmicas que regem o mundo. Essa dinâmica que concebe o poder ou poderes
permeando a esfera humana desde sempre esteve ligado às concepções de religião
(CORRINGTON, 1986:65).
Conhecer, controlar e manipular os poderes cósmicos, originalmente
atribuição divina, são características e provas concretas da taumaturgia. Aquele que é
capaz de demonstrá-las, na antiguidade, era visto como uma epifania ou revelação dos
deuses a quem estavam vinculados, ou seja, o thĕiŏs anēr. Outros termos os designam
nas fontes, visto que thĕiŏs anēr é uma hipótese científica moderna: filósofos,
governantes com grande poder político sobre a terra, figuras religiosas, magos,
profetas ou feiticeiros - charlatães (gŏētai).
Obviamente que a terminologia empregada depende da fonte de que se serve.
Corrington (1986:46-48) defende a ideia (também em muitas outras passagens do
livro) de que o grau de sucesso ou hierarquia social é que determinada o "título" que
recebiam esses teurgos. E vai mais além dizendo que as camadas mais populares
(leia-se: pobres, iletrados, "povão", em resumo) não eram capazes de diferenciar um
charlatania (gŏētĕía), feitiçaria (magĕía, pharmakĕía), operação de prodígios
(tĕratĕía), etc., uma vez que os efeitos desses atos tinham o mesmo resultado.
Segundo ela, somente a literatura de caráter mais refinado era capaz de tal
operação e, portanto, é a partir dela que se devem observar as impressões antigas
sobre a magia (CORRINGTON, 1986:47). Cornelli (2001:34), consoante Smith
(1978:74) propõe a mesma ideia quando afirma que homens divinos são reconhecidos
por serem mais poderosos, ou seja, o "mago bem de vida", de "classe alta".
Entretanto, esse parece uma conclusão equivocada e que será objetada a seguir na
segunda e última etapa propedêutica antes de avaliar o milieu mágico mediterrânico.
79
Tradução de: "There likely is a class element to the message expressed in the art. Patrons who could
afford sarcophagi were likely middle- to uper middle class citzens, while aderents to magic were
among the lower, uneducated. […] It seems logical that magical use would be associated with the
poor."
132
específicos. Essa ação, portanto, não é aleatória, casual, individual, mas se alinha
conforme padrões, entre os quais se incluem os objetivos e projetos ideológicos
pertinentes às respectivas culturas em que estão inseridos (MENEZES, 1983:112).
Assim, o conceito pode tanto abranger artefatos, estruturas, modificações da
paisagem, como coisas animadas (uma sebe, um animal doméstico), e, também, o
próprio corpo, na medida em que ele é passível desse tipo de manipulação
(deformações, mutilações) ou, ainda, os seus arranjos espaciais (um desfile militar,
uma cerimônia litúrgica) (MENEZES, 1983:112). Se o que se toma é o enunciado de
Jefferson a respeito de algum tipo de cultura material inacessível a camadas
empobrecidas, ato contínuo, a pergunta que se impõe é acerca do alcance desse
material.
Para além disso, cumpre observar o potencial da documentação arqueológica,
pois (i) sua ubiqüidade não encontra paralelo na documentação textual; (ii) tem um
menor grau - em relação à documentação textual - de permeabilidade ideológica do
segmento material; (iii) a valiosa possibilidade de tratamento quantitativo e
comparativista: esse aspecto da serialidade fundamenta investigações sincrônicas e
diacrônicas de investigação semiológica; e, finalmente, (iv) o caráter
preponderantemente de anonimato (MENEZES, 1983:112).
Tal caráter de anonimato, associado à serialidade, à repetição, faz dos
artefatos excepcional veículo para estudo de um domínio para cuja importância
visceral os historiadores, nos últimos anos, têm chamado a atenção: o quotidiano, o
domínio do banal, da purificação do evento, das tendências quase em estado ―natural‖
(MENEZES, 1983:112). As razões para a equivocada alegação de Jefferson ou
Corrington, dentre tantos outros autores que se ocuparam das investigações acerca
das práticas mágicas ao longo dos diferentes momentos da história encontram eco na
ausência de diálogo entre as disciplinas história e arqueologia.
Praticamente por padrão, a postura de historiadores em relação à arqueologia
oscila entre três pressupostos: (i) a simples marginalização; (ii) o uso de aspectos da
vida material, mais precisamente, da informação arqueológica, de maneira puramente
instrumental; e, (iii) o uso ilustrativo (MENEZES, 1983:103-105). Não é difícil de
encontrar, por exemplo, em livros didáticos destinados ao ensino básico ou médio a
presença dessas três posturas.
Em geral, os capítulos destinados às experiências históricas de corte
cronológico modernas ou contemporâneas o elemento arqueológico não comparece.
133
No que diz respeito às culturas antigas, na sua maioria, o uso é meramente ilustrativo
ou instrumental, pois as "figuras" oriundas de pesquisas arqueológicas desempenham
o papel de ilustrar o que o texto propôs ou apenas confirmar as conclusões advindas
de análises centradas na documentação textual.
As alegações para tal comportamento - como se não bastasse o equívoco
monodisciplinar, por si só - fundamentam-se em premissas igualmente descabidas,
como sistematiza a tabela abaixo (ver MENEZES, 1983:106-111):
A fim de avaliar o alcance que a cultura material atinge opta-se aqui pela
apresentação do sistema de crença no mau-olhado80. Básica a essa crença era a noção
de que certas pessoas, animais, demônios ou deuses tinham o poder de ferir ou lançar
um feitiço (baskainein, katabaskainein, fascinare) sobre cada objeto, animado ou
inanimado, em que seu olhar fosse direcionado. Através do poder de seus olhos, que
poderia funcionar involuntariamente, bem como intencionalmente, os possuidores do
mau-olhado eram considerados capazes de danificar ou destruir, através de seus olhos
malignos, a vida e a saúde, os meios de sustentação e vida, a honra familiar e o bem-
estar pessoal de suas vítimas não-afortunadas.
A proteção contra o mau-olhado é, naturalmente, uma grande preocupação em
culturas que assimilaram essa crença, sejam as antigas ou as modernas
80
O trabalho completo (problemática, fontes, discussão bibliográfica, sistematização e análise dos
dados) que apresenta e analisa esse tema pode ser encontrado em Justi, 2011, Dissertação de Mestrado.
135
81
Derivado do verbo trŏpē, o termo designa algum elemento material capaz de reter o mau que lhe é
direcionado e devolvê-lo ao emissor original.
136
expressão, praefiscini ... dixerim (ELLIOTT, 1994:58), que quer dizer ―nenhuma
fascinação/mau-olhado pretendido‖.
Um costume semelhante é encontrado entre os judeus de língua iídiche na
frase ―kein ayin horeh‖ (―olho mau não se destina‖), ou entre árabes e italianos que
precedem seus cumprimentos com as palavras ―Mashallah‖ (―Deus seja louvado‖) e
―Grazia a Dio” (―graças a Deus‖), assim reprovando qualquer inveja e agradecendo a
Deus pelas benções recebidas por outros.
É exatamente através desses meios de proteção contra o mau-olhado que se
pode perceber a ampla disseminação dessa crença, seja por meio de documentação
literária ou arqueológica. Algumas referências de natureza material contribuem para
atestação e amplitude de alcance dessa prática mágica:
(a) amuletos:
82
Descrição do amuleto (por Newell, In: BONNER, 1950, p.302): anverso (figura 4a): cavaleiro
areolado galopando para a direita, transfixando uma figura feminina prostrada com uma lança. Leão
abaixo de pé virado para a direita. Inscrição: ―ei-j qeo,j o` nikw/n ta. Kaka,‖ (um Deus que vence o mal).
O mal, representado pela mulher, está imóvel em pingentes de bronze com o cavaleiro desenhado,
enquanto que nas hematitas, ela levanta sua mão em súplica. Reverso (figura 4b): Iaw Sabawq Micael
bo,hqi, abaixo do qual está o desenho do olho mau. O olho mal é perfurado por cima por um tridente e
por uma unha (ou cabeça de uma lança) de cada lado dele. De baixo é atacado por cinco animais, da
esquerda para a direita, leão, cegonha, escorpião, cobra, cachorro manchado ou leopardo.
137
O amuleto acima é feito de bronze, em uma placa oval (43x25cm) com uma
presilha suspensa, para que seja passada o laço que o prenderá. O anverso traz uma
figura igualmente conhecida na antiguidade, o cavaleiro (vitorioso) montado sobre o
cavalo, submetendo sua vítima83. Já o anverso, traz a imagem do olho e as tentativas
de subjugá-lo. Trata-se de um amuleto proveniente da Palestina, datado por volta do
século III e.c., portanto, presente nas comunidades que primeiro experimentaram a
difusão do cristianismo (BONNER, 1950, p.211).
83
Para uma discussão desse modelo de cavaleiro sobre o cavalo entre os primeiros cristãos, ver
CHEVITARESE e CORNELLI, 2007.
138
E, figura 284:
84
Descrição do amuleto (BONNER, 1950, p.303): anverso (figura 2a): mesmo desenho que a
precedente, mas em uma placa maior, mas estreita em proporção à sua altura e com uma presilha
suspensa para o laço que a sustenta. Reverso (figura 2b): mesmo desenho e inscrição da precedente, as
letras são mais estreitas em proporção à sua altura. Material em bronze. Placa de altura oval, 61x30cm.
139
não sugere classe social, pois nada há no amuleto que indique pertencer a uma família
rica o pobre.
Para além desse fato, seu uso contínuo quer sugerir que o controle de acesso a
essa crença não parece estar confinado a um ambiente doméstico ou íntimo. Antes, o
uso desse artefato indica presença constante, em espaço público, da referência a
crença e práticas mágicas. O uso de amuletos também não sugere classificação etária,
como o exemplo a seguir demonstra.
Figura 3: Choús ático de figuras vermelhas. Atenas, Collection G. Empedokles. Data: 420-10 a.e.c.
Bibliografia: VAN HOORN, 1951, n 25.
Descrição: Menino nu, voltado para a esquerda, cabeça coroada. Ele está com ambos os braços
levantados. A sua mão direita segura um choús coroado, enquanto que a esquerda segura a parte
superior do seu carrinho. Ele se aproxima de uma pequena mesa com pão branco em forma piramidal e
um bolo redondo (ou uma fruta?). Há um cordão pendurado no seu ombro esquerdo com amuletos
cruzando o seu peitoral.
141
Figura 4: Choús ático de figuras vermelhas. Atenas, National Museum. Inventário: 14528.
Proveniência: Atenas. Data: 420 a.e.c..
Bibliografia: VAN HOORN, 1951:102, n 26.
Descrição: Menino nu, cabeça voltada para a direita, segura com a mão esquerda o seu choús,
enquanto que na outra mão ele tem uma pedra pronta para ser arremessada. Há uma faixa ao redor da
sua cabeça e um cordão pendurado no seu ombro esquerdo com amuletos cruzando o seu peitoral. À
sua direita está um homem nu (ou uma das kéres?), calvo, voltado para a esquerda, tentando tomar o
choús do menino.
O chŏýs, pequeno cálice ou copo no qual o vinho era bebido, retrata cenas
bastante antigas que atestam a presença e uso de amuletos como forma de proteção.
142
Nesses casos, a cultura material é decisiva no diálogo com o aparato textual para a
reconstrução do antigo festival. Também em espaço público, suas múltiplas
atestações de práticas mágicas dão conta de uma disseminação praticamente
impossível de determinar se pertencem a elites ou empobrecidos.
Como mensurar ou determinar que grupos sociais tivessem acesso a esse ou
aquele material? Se fosse ainda o caso, mesmo que pobres não dispusessem de
recursos para possuir esse tipo de material, o argumento de Jefferson fica ainda mais
comprometido. Pois, se apenas ricos tinham acesso a elementos materiais duráveis, e
magia era algo próprio de pobres, porque esses testemunhos materiais não seguem
aquela lógica?
Poder-se-ia argumentar, ainda, por amor ao debate, que amuletos poderiam ser
mais baratos, que a festividade ateniense, por seu caráter "global", ou seja, que
envolve toda a pólis servisse gratuitamente o chŏýs às crianças e, por conseguinte,
tratando-se de maioria campesina evidenciasse essa crença mágica em artefatos para
fazer dialogar política e "populares"... Os argumentos descabidos não teriam fim.
Entretanto, cumpre evidenciar mais testemunhas de que a leitura de Jefferson
(Corrington e tantos outros) está mesmo equivocada.
85
Foto de Jonathan L. Reed (CROSSAN e REED, 2007:238). A descrição oferecida pelos autores
segue na citação a seguir.
143
Eis as figuras (586 e 687) a que Crossan e Reed fazem referência na citação
acima:
86
J. Paul Getty Museum, Workshop of Boethos, Herm. 100-50 a.e.c., bronze com aplicação de
marfim; 79.AB.138. (Apud CROSSAN e REED, 2007:238 e 383).
87
Museo Archeologico Nazionale, foto de Scala, Art Resources, NY. (Apud CROSSAN e REED,
2007:240 e 383).
144
Figura 6: Herma de uma oficina Figura 7: Relevo em pedra de um falo de uma casa em
de Boetos. Pompéia.
88
Expressão empregada a partir do texto de Hopkins (1999), no livro em que mais crédito obteve pelo
seu brilhante título - "A World full of Gods" - do que por seu conteúdo propriamente dito. É um estudo
interessante, mas pelo caráter romanceado impresso na narrativa e interpretação dos dados históricos e
arqueológicos não foi adotado por este trabalho.
146
Buscar esses sinais ou indícios não é tarefa das mais simples de se realizar. É
demandado por parte do "investigador" alguns procedimentos para tornar seu objetivo
palpável. Dessa forma, optou-se por alguns critérios na exposição documental a
seguir:
89
Paradoxo creditado ao bem humorado (irônico, quem sabe) historiador italiano.
147
90
Klaus Berger (1984 e 1998) foi, e ainda o é, a principal obra no estudo de formas literárias no
material neotestamentário. Diferentemente de Bultmann, Berger prefere não adotar a idéia de "gênero"
literário, mas de "formas" (BERGER, 1998:15). Segundo Berger, gêneros são construções muito mais
complexas e, quando se trata de documentação antiga (fragmentária), por vezes, esse gênero fica um
tanto comprometido. Além disso, uma concepção fundamental de Berger é que mesmo dentro da
definição de chamado gênero, muitas e variadas formas literárias comparecem sem, necessariamente,
terem sido construídas conscientemente por parte dos seus autores. Logo, é preciso que se faça um
levantamento das formas literárias para se perceber de que artifícios comunicativos lançam mão os
autores antigos em seus textos e qual relação guardam com seu contexto originário (BERGER,
1998:276-280).
148
91
Tradução pessoal de: " Now, Dibelius and Bultmann had already admitted that miracle stories were
―narratives‖ or ―tales,‖ and quite distinct from apophthegms, which belonged to ―sayings.‖ They
needed to recognize that any narrative automatically holds a possibility for portraiture, and in the case
of the miracle stories, even more so, since no objective criterion was known for them in the ancient
world, except that they tell about a miraculous happening. Any ancient author was free to tell the story
his/her own way, turning it to whatever purpose might seem most attractive or advantageous. We have
to see that these supposed ―similarities‖ between apophthegms and miracle stories with respect to their
purpose and focus are entirely artificial. The ―miracle-story‖ writer was creating a story, and s/he was
free of such restraints."
92
A coleção Loeb, conhecido projeto da universidade de Harvard, com mais de 520 volumes de
documentação grega e latina bilíngüe (grego ou latim/inglês), desde Setembro de 2014, lançou a versão
digital de suas traduções. Disponível para compra no site
(http://www.hup.harvard.edu/catalog.php?isbn=9780674425088), a assinatura anual dá direito a
pesquisa no material, reprodução e citações em trabalhos acadêmicos. As referências à documentação
serão feitas de acordo com o autor do texto, número do livro e seção em que se encontra o trecho
escolhido. Portanto, as referências aqui expostas devem ser localizadas na coleção Loeb seja em sua
versão impressa ou naquela digital. Nas referências bibliográficas, ao final deste trabalho, a citação
poderá ser encontrada em HENDERSON, Jeffrey (2014). As demais referências à documentação
citadas neste trabalho, quando não retiradas daqui, seguirão a citação apropriada indicada
imediatamente no momento de seu respectivo uso.
149
4.1. Curas
(a) Hércules
93
Dois testemunhos dão conta de que hoje se conhece muito pouco do que uma vez já existiu sobre
esse material de caráter mágico. No material neotestamentário, em Atos 19:19 é relatada uma grande
queima de livros mágicos. Suêtonio, em Augusto 31.1, relata que Otaviano, no ano 13 a.e.c., ordenou
que mais de 2.000 rolos mágicos fossem queimados. Há, também, diversos relatos de que nos
primeiros séculos da Era Comum muitos outros livros mágicos - ou os próprios acusados de magia -
foram incendiados. Logo, o que hoje se conhece de testemunhos textuais, epigráficos ou de cultura
material representa apenas uma parcela do que já existiu desse material. No entanto, como se poderia
supor, o advento e disseminação dos cristianismos não fez com que essas práticas fossem extintas. Ao
contrário, há disponível significativo conjunto de testemunhos documentais de que essas práticas
persistiram continuadamente (BETZ, 1992:xli-liii).
150
94
Tradução de: "For when Heracles, purified in the manner told, left the human race, Apollo
immediately proclaimed the establishment of temples to Heracles and that sacrifices be made to him as
to a god, and at that he revealed it to Athens which was the oldest Greek city, and as it were, a guide
for all men in the matter of piety toward the gods and in all other serious activities. Further it also had
many other ties of friendship with Heracles, including the fact that he was the first foreigner to be
initiated, while he was among men. And the manifestation of the Athenians‘ zeal was so great and his
position was adjudged as so very much superior that they even changed all the shrines built in honor of
Theseus throughout the demes and made them shrines in honor of Heracles instead of Theseus in the
belief that Theseus was the best of their citizens, but that Heracles was beyond human nature."
95
Tradução de: "But why should we speak of ancient history. For the activity of the god is still now
manifest. On the one hand, as we hear he does marvelous deeds at Gadira and is believed to be second
to none of all the gods. And on the other hand, in Messene in Sicily he frees men from all diseases, and
those who have escaped danger on the sea attribute the benefaction equally to Poseidon and Heracles.
One could list many other places sacred to the god, and other manifestations of his power."
151
―Agora Pélias havia prometido dar a sua filha [Alceste] para aquele
que colocasse um jugo em um leão e um javali, e Apollo juntou e
deu-lhes a Admeto, que os trouxe a Pélias e assim obteve Alceste.
Mas para oferecer um sacrifício em seu casamento, ele se esqueceu
de sacrificar a Ártemis; portanto, quando ele abriu a câmara de
casamento, ele a encontrou enrolada em muitas cobras. Apolo
ordenou-lhe que apaziguasse a deusa e obtivesse, como um favor
das Parcas, que , quando Admeto estivesse prestes a morrer, ele
poderia ser libertado da morte, se alguém escolhesse
voluntariamente morrer por ele. E quando o dia de sua morte
chegou nem o pai nem a sua mãe morreram por ele, mas Alceste
morreu em seu lugar. Mas a donzela [Artemis] a enviou novamente
ou, como alguns dizem, Hércules lutou com Hades e trouxe-a até
ele. 96" (Apolodoro, Buiblioteca, 1.9.15).
(b) Asclépio
96
Tradução de: "Now Pelias had promised to give his daughter [Alcestis] to him who should yoke a
lion and a boar to a car, and Apollo yoked and gave them to Admetus, who brought them to Pelias and
so obtained Alcestis. But in offering a sacrifice at his marriage, he forgot to sacrifice to Artemis;
therefore when he opened the marriage chamber he found it full of coiled snakes. Apollo bade him
appease the goddess and obtained as a favour of the Fates that, when Admetus should be about to die,
he might be released from death if someone should voluntarily choose to die for him. And when the
day of his death came neither his father nor his mother would die for him, but Alcestis died in his
stead. But the Maiden [Artemis] sent her up again, or as some say, Hercules fought with Hades and
brought her up to him."
152
97
Tradução pessoal de: "Ambrosia from Athens, blind of one eye. She came as a supplicant to the god.
As she walked about in the Temple she laughed at some of the cures as incredible and impossible, that
the lame and the blind should be healed by merely seeing a dream. In her sleep she had a vision. It
seemed to her that the god stood by her and said that he would cure her, but that in payment he would
ask her to dedicate to the Temple a silver pig as a memorial of her ignorance. After saying this, he cut
the diseased eyeball and poured in some drug. When day came she walked out sound."
98
Tradução pessoal de: "Alcetas of Halieis. The blind man saw a dream. It seemed to him that the god
came up to him and with his fingers opened his eyes, and that he first saw the trees in the sanctuary. At
daybreak he walked out sound."
99
Tradução pessoal de: "To Valerius Aper, a blind soldier, the god revealed that he should go and take
the blood of a white cock along with honey and compound an eye salve and for three days should
apply it to his eyes. And he could see again and went and publicly offered thanks to the god."
100
Tradução pessoal de: "Arata, a woman of Lacedaemon, dropsical. For her, while she remained in
Lacedaemon, her mother slept in the temple and sees a dream. It seemed to her that the god cut off her
daughter‘s head and hung up her body in such a way that her throat was turned downwards. Out of it
came a huge quantity of fluid matter. Then he took down the body and fitted the head back on to the
neck. After she had seen this dream she went back to Lacedaemon, where she found her daughter in
good health; she had seen the same dream."
154
"Um menino sem voz . Ele veio para o Templo como um suplicante
em favor de sua voz. Quando ele tinha realizado os sacrifícios
preliminares e cumprido os ritos habituais, o servo do templo, que
traz o fogo para o deus, olhando para o pai do menino, exigiu que,
se ele tiver obtido a cura pela qual ele tinha vindo, ele deveria
prometer trazer, dentro de um ano, a oferta de agradecimento para a
cura. Porém, o menino de repente disse: "Eu prometo." Seu pai
ficou assustado com isso e pediu-lhe para repetir. O menino repetiu
as palavras e depois ficou bem101."
101
Tradução pessoal de: "A voiceless boy. He came as a supplicant to the Temple for his voice. When
he had performed the preliminary sacrifices and fulfilled the usual rites, thereupon the temple servant
who brings in the fire for the god, looking at the boy‘s father, demanded he should promise to bring
within a year the thank-offering for the cure if he obtained that for which he had come. But the boy
suddenly said, ―I promise.‖ His father was startled at this and asked him to repeat it. The boy repeated
the words and after that became well."
102
Tradução pessoal de: "I, M.Julius Apellas, was sent forth by the god, since I fell sick often and was
stricken with indigestion. On the journey to Aegina, not much happened to me. When I arrived at the
sanctuary, it happened that my head was covered for two days during which there were torrents of rain.
Cheese and bread were brought to me, celery and lettuce. I bathed alone without help; was forced to
run; lemon rinds to take; soaked in water; at the akoai in the bath I rubbed myself on the wall; went for
a stroll on the high road; swinging; smeared myself with dust; went walking barefoot; at the bath,
poured wine over myself before entering the hot water; bathed alone and gave the bathmaster an Attic
drachma; made common offering to Asklepios, to Epion [his wife], to the Eleusinian goddess; took
milk with honey. I used the oil and the headache was gone. I gargled with cold water against a sore
throat, since this was another reason that I had turned to the god. The same remedy for swollen tonsils.
I had occasion to write this out. With grateful heart and having become well, I took leave."
155
"Eu encontrei alguns, sobre quem foram relatados que teriam sido
ressuscitados por ele [Asclépio], a saber, Capaneus e Licurgo;
conforme Steicoro relatou em Eriphyle; Hipólito, autor de
Naupactica também relata; Tyndareus, como diz Panyasis;
Hymenaeus, conforme os relatos Órficos; e Glaucus, filho de
Minos, conforme Melasagoras relata. Mas Zesus, temendo que
aquele homem [Asclépio] pudesse também adquirir a arte da cura
que tinha [Zeus] e viesse ao resgate do outro, o feriu com um
raio103." (Apud COTTER, 1999:26).
103
Tradução pessoal de: "I found some who are reported to have been raised by him, to wit, Capaneus
and Lycurgus, as Stesichorus [645–555 BCE] says in the Eriphyle; Hippolytus, as the author of the
Naupactica [sixth cntury BCE] reports; Tyndareus, as Panyasis [circa 500 BCE] says; Hymenaeus, as
the Orphics report; and Glaucus, son of Minos, as Melasagoras [fifth century BCE] relates. But Zeus,
fearing that men might acquire the healing art from him and so come to the rescue of each other, smote
him with a thunderbolt." Notas entre colchetes são inserções explicativas de Cotter.
156
século II (120 e.c.) em Dança 45, confirmou a informação de Plínio afirmando que
Zeus ficara zangado com Asclépio pelo mesmo motivo. Em outra obra, Diálogos dos
Deuses: Zeus, Asclépio e Hércules 15, também por volta do ano 120 e.c., Luciano
conta que Zeus tivera que intervir nas disputas entre Asclépio e Hércules sobre quem
seria o maior.
Inclusive, mais uma vez, é Hércules quem lembra a Asclépio o castigo dado
por Zeus a ele por ser "médico" que ressuscita homens. Zeus coloca fim na disputa,
para que o jantar dos deuses siga em paz, dizendo a Hércules que Asclépio é maior
por ter conhecido a morte primeiramente. O conjunto desses testemunhos mitológicos
desempenha um papel social em seus respectivos contextos históricos.
Dois elementos, no entanto, são interessantes para destaque aqui. O primeiro
deles diz respeito à variabilidade e dinâmica dos mitos narrados nessa antiguidade
mediterrânica, pois mitos não são estáticos. Justamente por variar em seus conteúdos,
intencionalmente construídos e ritualizados com fins de intervenção social, esses
mitos são dinâmicos em seus propósitos e dificilmente conhecem versões monolíticas
ou singulares.
O que vai além dessa observação de ordem teórico-metodológica de analisar
narrativas mitológicas é o fato de que comumente Asclépio é bastante associado aos
episódios de ressurreição. A audiência mediterrânica é constantemente informada de
que há um deus a quem se deve recorrer quando da necessidade ou busca por
imortalidade. Dessa maneira, embora a variabilidade do mito deva ser levada em
conta, não há dúvidas de que, seja homem divino, seja uma divindade, Asclépio é
famoso na bacia mediterrânica por seus atos de cura, milagres ou ressurreições 104.
Pausânias, atuante no II século e.c., em sua Descrição da Grécia 1.26.4-5
busca sistematizar as tradições sobre Asclépio em Epidauro por meio de uma breve
apresentação das origens do mesmo. Esse relato dá conta do nascimento miraculoso
de Asclépio e suas peregrinações pela terra realizando curas e ressurreições.
É motivo, sem dúvida, de consideração as questões levantadas em torno do
material de Pausânias quanto ao seu grau de confiabilidade e precisão. No entanto,
não é essa a questão que está em pauta aqui. Mesmo ciente dessa problemática quanto
104
Chevitarese (2015:97, nota 24) ressalta uma importante afirmação feita por Jefferson (2010:229,
nota 14) e que está diretamente associada à questão semântica no caso de Asclépio quanto ao poder de
ressuscitar os mortos. Os relatos de Plínio e Luciano apontam que Asclépio foi morto por Zeus, logo
ainda que Asclépio tivesse o poder (dýnamis) de ressuscitar os mortos, o controle e autoridade
(ĕxŏusia) sobre a vida e a morte somente a Zeus pertencia.
157
(c) Vespasiano
105
Nesta seção serão expostos três testemunhos relacionados a um único suposto evento, no entanto, na
seção seguinte, quando será analisado o ambiente mágico em contexto judaico, outra narrativa estará
presente.
158
. Vespasiano cura um homem cego e outro coxo (Suetônio, Vidas dos Césares 7,2,
primeira metade do I século e.c.):
A narrativa contada por Suetônio está também presente em Tácito, mas com
algumas diferenças em termos de detalhes do evento que teria acontecido e de uma
forma mais ampliada. No entanto, o sucesso em realizar as curas tem a mesma
verificação:
. Vespasiano cura um homem cego e a mão de outro (Tácito, Histórias 4.81, segunda
metade do I século e.c.):
106
Tradução pessoal de: "Vespasian as yet lacked prestige and a certain divinity, so to speak, since he
was an unexpected and still new-made emperor; but these also were given him. A man of the people
[i.e. in Alexandria] who was blind, and another who was lame, came to him together as he sat on the
tribunal, begging for the help for their disorders which Serapis had promised in a dream; for the god
declared that Vespasian would restore the eyes, if he would spit upon them, and give strength to the
leg, if he would deign to touch it with his heel. Though he had hardly any faith that this could possibly
succeed, and therefore shrank even from making the attempt, he was at last prevailed upon by his
friends and tried both things in public before a large crowd; and with success."
159
. Vespasiano cura um homem cego e a mão atrofiada de outro (Díon Cassio, História
Romana 65.8, início do III século e.c.):
107
Tradução pessoal de: "During the months while Vespasian was waiting at Alexandria for the regular
season of the summer winds and a settled sea, many marvels occurred to mark the favour of heaven
and a certain partiality of the gods toward him. One of the common people of Alexandria, well known
for his loss of sight, threw himself before Vespasian‘s knees, praying him with groans to cure his
blindness, being so directed by the god Serapis, whom this most superstitious of nations worships
before all others; and he besought the emperor to deign to moisten his cheeks and eyes with his spittle.
Another, whose hand was useless, prompted by the same god, begged Caesar to step and trample on it.
Vespasian at first ridiculed these appeals and treated them with scorn; then, when the men persisted, he
began at one moment to fear the discredit of failure, at another to be inspired with hopes of success by
the appeals of the suppliants and the flattery of his courtiers; finally he directed the physicians to give
their opinion whether such blindness and infirmity could be overcome by human aid. Their reply
treated the two cases differently: they said that in the first [the case of the blind man] the power of
sight had not been completely eaten away and it would return if the obstacles were removed; in the
other [the useless hand], the joints had slipped and become displaced, but they could be restored if a
healing pressure were applied to them. Such perhaps was the wish of the gods, and it might be that the
emperor had been chosen for this divine service; in any case, if a cure were obtained, the glory would
be Caesar‘s, but in the event of failure, ridicule would fall only on the poor supplicants. So Vespasian,
believing that his good fortune was capable of anything and that nothing was any longer incredible,
with a smiling countenance, and amid intense excitement on the part of the bystanders, did as he was
asked to do. The hand was instantly restored to use, and the day again shone for the blind man. Both
facts are told by eye-witnesses even now when falsehood brings no reward."
160
108
Tradução pessoal de: "Following Vespasian‘s entry into Alexandria the Nile overflowed, having in
one day risen a palm higher than usual; such an occurrence, it was said, had taken place only once
before. Vespasian himself healed two persons, one having a withered hand, the other being blind, who
had come to him because of a vision seen in dreams; he cured the one by stepping on his hand and the
other by spitting upon his eyes. Yet, though Heaven was thus magnifying him, the Alexandrians, far
from delighting in his presence, detested him so heartily that they were for ever mocking and reviling
him. For they had expected to receive from him some great reward because they had been the first to
make him emperor, but instead of securing anything they had additional contributions levied upon
them."
161
feitiçaria, charlatanismo (gŏētĕía) ou, por oposição, se fosse bem vista ou salvadora
nesse contexto receberia o título de divindade, herói ou homem divino.
Portanto, a titulação de um exorcista ou praticante de magia que envolva
interação com espíritos de qualquer natureza, mais tem a ver com as disputas de
memória em torno de quem conta aquela história e que olhar imprime aos atos da
respectiva personagem, do que alguma implicação social. Carrega juízo de valor, pois
as disputas de memória em torno de um ou outro personagem (quase) sempre visam à
depreciação do antagonista à personagem central, por isso sua descaracterização 109.
Um passo anterior, portanto, na consideração sobre a presença do daimŏn na
documentação antiga deve ser perceber como essas entidades são concebidas na
documentação mediterrânica disponível àquela audiência. Plutarco, um autor do I
século e.c. reflete a leitura que se tinha sobre isso:
. Almas que perdem o controle de si mesmas podem tomar forma carnal novamente
(De Defectu Oraculorum 415C):
"Agora, se o ar que está entre a terra e a lua fosse para ser retirado,
a unidade e associação do universo seriam destruídas, uma vez que
ficaria um espaço vazio e desconectado no meio. Da mesma forma,
aqueles que se recusam em permitir a raça de semi-deuses
estabelecerem as relações entre deuses e homens remotas e
estranhas por acabar com a 'natureza interpretativa e ministratória',
como Platão a chamou. Ou ainda, eles nos forçam à confusão
desordenada de todas as coisas, na qual nós trazemos deus às
109
Atentando para esses fatos e para a caracterização repleta de juízos de valores presentes nas
diferentes fontes que serão consideradas optar-se-á por entender o termo daimŏn presente na
documentação não exclusivamente como "demônio", pois trata-se de um rótulo eminentemente cristão.
Dependendo do contexto, a tradução aqui poderá manter o termo original ou traduzi-lo como "espírito"
ou "entidade".
110
Tradução pessoal de: " But with some of these souls it comes to pass that they do not maintain
control over themselves, but yield to temptation and are again clothed with mortal bodies and have a
dim and darkened life, like mist or vapour."
162
111
Tradução pessoal de: "Now if the air that is between the earth and the moon were to be removed
and withdrawn, the unity and consociation of the universe would be destroyed, since there would be an
empty and unconnected space in the middle; and in just the same way those who refuse to leave us the
race of demigods make the relations of gods and men remote and alien by doing away with the
―interpretative and ministering nature‖ as Plato has called it; or else they force us to a disorderly
confusion of all things, in which we bring the god into men‘s emotions and activities, drawing him
down to our needs, as the women of Thessaly are said to draw down the moon."
112
Tradução pessoal de: "I believe Plato when he asserts that there are certain divine powers holding a
position and possessing a character mid-way between gods and men, and that all divination and the
miracles of magicians are controlled by them."
163
visão positiva com que aborda e instrui na aquisição de um daimŏn assistente quer
evidenciar o risco em precipitações ao rotular o termo como algo demoníaco.
Por sua vez, no entanto, a postura positiva do PGM I não é observada no PGM
IV. Nas seções 86-87, 1227-1264 e 3007-3086 o daimŏn é algo negativo e precisa ser
combatido ou exorcizado. O PGM IV. 86-87 apresenta uma fórmula mágica:
"Filactéria contra daimŏnĕs: HOMENOS OHK KOURIĒK IAPHĒL, entregue,
EHENPEROOU BARBARCHAOUCHE." O papiro indica que seu uso deve ser feito
como uma filactéria (escrito em um pequeno pedaço de papiro ou pergaminho, colado
ou inserido em um recipiente e usado pendurado no pescoço). Os nomes grafados em
letras maiúsculas indicam os nomes de divindades correspondentes que protegerão o
portador da filactéria.
Nos trechos PGM IV. 1227-1264 e 3007-3086 outros rituais são formulados
para exorcizar o daimŏn. Eles têm em comum a invocação de deuses do panteão
judaico e paleocristão. Ramos de oliveira devem ser colocados diante do possesso e, à
frente dele, as divindades devem ser invocadas. São mencionados: deus de Abraão,
Isaque e Jacó; Jesus, Espírito Santo, Filho do Pai; Iao Sabaoth (provavelmente o
nome do deus hebreu - Javé). Satã é o responsável pela possessão. Após a recitação
das palavras mágicas, outra fórmula deve ser escrita em uma filactéria e usada pelo
possesso, agora liberto.
Digno de nota é que já no IV século Jesus e Javé são concebidos como
poderosas fontes de antagonismo aos poderes de Satã. Além do mais, nesse
documento, o significado de daimŏn, anteriormente conhecido especialmente nas
tradições filosóficas gregas tem seu significado alterado e uma nova conotação
aparece para o seu entendimento:
Alternativamente, ainda por volta dos séculos IV-V e.c., o PGM VII. 505-528
ensina como encontrar-se com daimnŏn de si mesmo. As invocações às divindades
apropriadas devem ser feitas. Após as invocações deve-se escrever uma fórmula
mágica em dois ovos que originarão galos (havia a crença na documentação antiga de
que, pelo formato do ovo, era possível determinar o sexo do animal, BETZ,
1992:132) e, com um deles, a pessoa deveria se purificar, ao fim de sete dias
repetindo a fórmula mágica anterior e, o outro, deveria ser ingerido ao fim do ritual.
Curiosamente, postura contrária em outra seção do papiro, PGM VII. 579-590,
testemunha que os daimŏnĕs também poderiam ser nocivos. Uma filactéria de
proteção serviria contra eles, fantasmas e todo tipo de doença e sofrimento. As
instruções orientam a pessoa a escrever a fórmula mágica ao redor e dentro de uma
oroboro (serpente que morde a própria cauda, conhecido símbolo mágico de
eternidade e proteção por evocar o círculo, forma geométrica perfeita e não
vulnerável, BETZ, 1992:134), logo em seguida, pronta a filactéria, deveria ser usada
com o nome de que a possuir (ver a sigla "NN" na figura, indicativo do local em que
o nome do portador deve ser escrito).
Figura 8: Filactéria de proteção contra daimŏnĕs, fantasmas e todo tipo de doença e sofrimento.
Por fim, dois outros exemplos dessa relação ambígua com os daimŏnĕs. O
PGM LXXXV. 1-6 é um material muito fragmentado, mas inteligível no que diz
165
respeito à atestação de uma fórmula que visa adquirir ou afastar um daimŏn (o texto
não é conclusivo nesse sentido). O tradutor desse fragmento, Roy Kotansky (BETZ,
1992:301) argumenta que dois elementos tornam-se relevantes nesse material: (i) a
expressão "outro feitiço" indicaria que se tratava, em conjunto como os demais
fragmentos, de uma coleção de feitiços com esse teor, portanto, talvez, um manual de
feitiços; e, (ii) a datação provável do I século e.c. indicaria a ampla disseminação
desse tipo de crença e prática também nesse período.
Por sua vez, o PGM XCIV. 17-21, igualmente traduzido por Kotansky (BETZ,
1992:304), traz nitidamente as palavras "para aqueles possuídos por daimŏnĕs". Esse
fragmento constitui parte do PGM XCIV que propõe uma lista de feitiços para
variados fins. Digno de nota é a menção a "Salomão". Essa última referência faz
supor um rito de exorcismo propriamente dito de algum demônio.
"―Eu sou senhora dos rios, dos ventos e do mar... Eu acalmo o mar
e faço ele crescer ( ... ) Eu sou a Senhora da vela ( ... ) eu torno as
coisas inavegáveis, navegáveis, quando isso poderia ser a minha
glória 114."
113
Tradução pessoal de: "As he [Herostratus of Naucratis] approached Egypt a storm suddenly broke
out upon him and it was impossible to see where in the world they were; so they all took refuge at the
statue of Aphrodite, begging her to save them. The goddess, being friendly to the Naucratites, suddenly
caused everything that lay beside her to be covered with fresh green myrtle, filling the ship with a most
plesant odour, when the men sailing in her were by this time despairing of their safety…then the sun
shone forth and they could see their anchorage, and so arrived in Naucratis."
114
Tradução pessoal de: "I am Mistress of rivers, and winds and sea…. I calm and swell the sea (…) I
am the Mistress of sailing (…) I render navigable things unnavigable when it might be to my glory."
115
Tradução pessoal de: "Behold, Lucius, moved by your prayers I [Isis] have come, I the mother of
the universe, mistress of all the elements, and first offspring of the ages; mightiest of deities, queen of
the dead, and foremost of heavenly beings my one person manifests the aspect of all gods and
goddesses. With my nod I rule the starry heights of heaven, the health-giving breezes of the sea, and
the plaintive silences of the underworld."
167
Ainda nos círculos pitagóricos outro homem divino era capaz de realizar os
mesmos feitos de Pitágoras a ponto de ser conhecido pelo sobrenome de
"Apaziguador de Vento", trata-se de Empédocles:
"Já era outono e o mar não era confiável. Todos [as pessoas
navegando para Aeolia] eles consideravam Apolônio como alguém
que era mestre da tempestade e do fogo e pergios de toda sorte, e
muito desejavam ir a bordo com ele, e imploraram para permitir-
lhes partilhar a viagem118."
116
Tradução pessoal de: "Many other more admirable and divine particulars are likewise unanimously
and uniformly related of the man, such as infallible predictions of earthquakes, rapid expulsions of
pestilences, and hurricanes, instantaneous cessations of hail, and tranquillizations of the waves of
rivers and seas, in order that his disciples might the more easily pass over them."
117
Tradução pessoal de: "The power of effecting miracles of this kind [predictions of earthquakes,
expulsion of diseases and hurricanes, instantaneous cessations of hail and tranquilizations of seas and
rivers] was achieved by Empedocles of Agrigentum, Epimenes the Cretan and Abaris the
Hyperborean, and these they performed in many places. Their deeds were so manifest that Empedocles
was surnamed 'the Wind-Stiller', Epimenes an 'expiator' and Abaris an 'air-walker'."
118
Tradução pessoal de: "It was already autumn and the sea was not to be trusted. They [the people
sailing for Aeolia] all then regarded Apollonius as one who was master of the tempest and of fire and
of perils of all sorts, and so wished to go on board with him, and begged him to allow them to share the
voyage with him."
168
"Disse Cleodemo, 'E mesmo era mais incrédulo que você no que diz
respeito a essas coisas [maravilhas]; pois eu pensava que de
nenhuma maneira possível essas coisas poderiam acontecer; mas,
quando pela primeira vez eu vi um forasteiro voar - ele veio da terra
dos hiperboreanos, ele disse -, eu acreditei e fui conquistado após
longa resistência. O que estava eu a fazer quanto o vi planar através
do ar em plena luz do dia e andar sobre a água e sobre o fogo em
com os próprios pés? 'Você viu isso?' disse eu - 'o hyperboreano
voando ou andando sobre a água?'
'Certamente', disse ele, 'com brogues nos pés, do jeito que essas
pessoas do campo normalmente usam119'".
119
Tradução pessoal de: ""Said Cleodemus, 'I myself was formerly more incredulous than you in
regard to such things [wonders]; for I thought it in no way possible that they could happen; but when
first I saw the foreign stranger fly - he came from the land of the Hyperboreans, he said -, I believed
169
Muito embora a narrativa como um todo tenha por fim satirizar a crença em
poderes sobrenaturais, não deixa de ser notável a necessidade de se desconstruir
crenças em feitos prodigiosos naquele contexto por Luciano. O que está em jogo
nessa questão é a visão negativa sobre uma prática aceita em alguns ambientes ou na
mentalidade de certas audiências.
Como mencionado no tópico acima (4.2), muitas vezes, a intencionalidade de
autores se volta para a refutação ou confirmação de feitos sobrenaturais. Entretanto,
independentemente da crença ou não em realizações sobrenaturais, aqui, o que
interessa é que essas histórias circulavam com adeptos e detratores, mas circulavam e
tornavam a crença nas práticas mágicas ou homens detentores de poderes
sobrenaturais possíveis.
and was conquered after long resistance. What was I to do when I saw him soar through the air in
broad daylight and walk on the water and go through fire slowly on foot?'
'Did you see that?' said I - 'the Hyperborean flying, or stepping on the water?'
'Certainly,' said he, 'with brogues on his feet such as people of that country commonly wear'.‖"
120
Tradução pessoal de: "Sorcerers who profess to do wonderful miracles, and the accomplishments of
those who are taught by the Egyptians, who for a few obols make known their sacred law in the middle
170
of the market place and drive daemons out of men and blow away diseases and invoke the souls of
heroes…"
171
121
Tradução pessoal de: "Persons possessed of powers of witchcraft and of the evil eye, along with
many peculiar characteristics of animals I have spoken of when dealing with the marvels of the
nations; it is superfluous to go over the ground again. Of certain men the whole bodies are beneficent,
for example the members of those families that frighten serpents. These by a mere touch or by wet
suction relieve the bitten victims. In this class are the Psylli, the Marsi, and the Ophiogenes, as they are
called, in the island of Cyprus. And envoy from this family, by name Evagon, was at Rome thrown by
the consuls as a test into a cask of serpents, which to the general amazement licked him all over. A
feature of this family, if it still survives, is the foul smell of its members in the spring. Their sweat also,
not only their saliva, had curative powers. But the natives of Tentyris, an island on the Nile, are such a
terror to the crocodiles that these run away at the mere sound of their voice. All these peoples, so
strong their natural antipathy, can, as is well known, effect a cure by their very arrival, just as wounds
grow worse on the entry of those who have ever been bitten by the tooth of snake or dog. The latter
also addle the eggs of a sitting hen, and make cattle miscarry; so much venom remains from the injury
once received that the poisoned are turned into poisoners. The remedy is for their hands to be first
washed in water, which is then used to sprinkle on the patients. On the other hand, those who have
once been stung by a scorpion are never afterwards attacked by hornets, wasps or bees. He may be less
surprised at this who knows that moths do not touch a garment that has been worn at a funeral, and that
snakes are with difficulty pulled out of their holes except with the left hand."
122
Tradução pessoal de: "In the previous part of my work I have often indeed refuted the fraudulent
lies of the Magi, whenever the subject and the occasion required it, and I shall continue to expose
them. In a few respects, however, the theme deserves to be enlarged upon, were it only because the
most fraudulent of arts has held complete sway throughout the world for many ages."
123
Tradução pessoal de: "By magic arts and prayers commingled do wives oft hold fast their husbands.
I have bidden the trees grow green in the midst of winter‘s frost, and the hurtling lightning stand; I
have stirred up the deep, though the winds were still, and have calmed the heaving sea; the parched
earth has opened with fresh fountains; rocks have found motion; the gates have I rent asunder and the
172
O relato de Sêneca aponta para muitas situações que envolvem controle sobre
a natureza, mas o início da citação é bastante curioso, pois revela práticas mágicas
entendidas e utilizadas para fins eminentemente cotidianos, triviais. Essas
experiências místicas estavam absolutamente presentes na vida ordinária das
sociedades mediterrânicas e desempenhavam papéis extremamente úteis em contextos
nos quais a medicina no seu sentido moderno não estava amplamente difundida.
Ademais, "o conceito de 'medicina' era facilmente associado com 'magia 124'"
(COTTER, 1999:201). Logo, os escritores de histórias milagres tinham alguma idéia
da seriedade das queixas relativas a doenças e, inclusive, eles mesmos devem ter
testemunhado alguns tratamentos comuns aos males causados por elas. (COTTER,
1999:202). Entre as mais comuns que se tem notícia (ainda hoje) estão a febre, dor de
cabeça e desejo de excelente saúde desejado pelas pessoas em geral.
O PGM XCIV.7-9 prescreve uma fórmula para ser utilizada como amuleto a
fim de que se obtenha uma "excelente saúde: escreva em um amuleto: 'ABRAO
…ARON BARA BAR…A…O.'‖. Em caso de dor de cabeça, por exemplo, o PGM
VII.199–201 orienta: "Para dor de cabeça migratória: Tome olho em suas mãos e
profira a feitiço / 'Zeus costurou a semente de uva: ela não parte do solo; ele não a
semeou; ela não brota125.‖ Aparentemente sem muito sentido ao leitor moderno, o
PGM VII tem em sua primeira parte um conjunto de 216 versos isolados de textos
atribuídos a Homero.
Esses trechos funcionariam como espécie de oráculo individual a quem
buscasse respostas para inúmeras questões da vida e existência. Funciona como um
manual de provérbios que orientam quem precisa de direcionamentos diversos quanto
a questões cotidianas da alma e do corpo físico. Nas seções seguintes, muitos e
variados feitiços são baseados nessa coletânea homérica e, além de responder às
questões individuais de natureza metafísica e corpórea, também prescrevem
sucessivas fórmulas para o bem estar do corpo. Amuletos, filactérias, receitas e outras
prescrições presentes no PGM VII constituir-se-iam em um importante manual ou
receituário geral para a vida ordinária de quem dele lançasse mão.
shades of Dis, and at my prayer‘s demand the spirits talk, the infernal dog is still; midnight has seen
the sun, and day, the night; the sea, land, heaven and Tartarus yield to my will, and naught holds to law
against my incantations. Bend him we will; my charms will find the way."
124
Tradução pessoal de: "the concept of 'medicine' was easily burred with 'magic'."
125
Tradução pessoal de: " For migraine headache: Take oil in your hands and utter the spell / ―Zeus
sowed a grape seed: it parts the soil; he does not sow it; it does not sprout."
173
Muito semelhante aos dois anteriores é o PGM VII.211–212. Nele lê-se: "Para
febre com tremores: Pegue olho em suas mãos e diga sete vezes ―SABAOTH‖. E
espalhe o olho desde o início da coluna até os pés." Entretanto, com a menção de
"Sabaoth", nome identificado com a divindade hebréia Javé, o que parece ser uma
releitura de outras fórmulas mágicas em contexto de crença na divindade dos judeus.
Igualmente preocupado com esses temas, o PGM XVIIIb.1-7 oferece uma
fórmula mágica palíndromo para afastar as dores de cabeça:
126
Tradução pessoal de: ―GORGOPHONAS ―I conjure you all by the
ORGOPHONAS sacred name to heal Dionysius
RGOPHONAS or Anys, whom Heraklia bore,
GOPHONAS from every shivering fit and fever,
OPHONAS whether daily or intermittent [fever]
PHONAS by night or day, or quartan fever,
ONAS immediately, immediately, quickly,
NAS quickly.‖
AS
S‖
174
O texto reconstruído, deriva do formato com que deveria ser escrito e usado
para o ritual, e posterior aplicação, sobre a vítima da febre. O nome Gorgophonas
pode ser uma referência ao epíteto de Atená, a "assassina de Gorgo" (BETZ,
1992:255). Ou à filha de Peseu e Andromeda que teria sido a primeira mulher a se
casar com dois reis. Por esse motivo - e a forma de vagina da figura - podem indicar
as antigas referências homéricas à mulher como hábil em práticas mágicas e detentora
de tais poderes em âmbito principalmente doméstico.
127
Ver nota 74 acima.
128
Essa tradição não é recente. Conheceu sua origem a partir do cânon de Marcião (II século e.c.).
Derivado de uma leitura parcial e deformada dos textos paulinos, Marcião propôs que se
176
desconsiderasse do cânon cristão todo o "Antigo Testamento" (rótulo depreciativo à Bíblia Hebraica,
tida como a antiga ou ultrapassada aliança de Deus com os homens). Seus argumentos sustentavam que
o Deus do AT era violento e vingativo, portanto precisava da releitura, através de Jesus e o
conseqüente entendimento paulino. Para Marcião, o Deus (por meio de Jesus) cristão era superior ao
do AT e sua Revelação (Evangelhos) opunha a lei dos judeus àquela apresentada pelos evangelistas e
Paulo. Sustentado por essas idéias construiu um cânon somente com os Evangelhos (hoje canônicos) e
textos de Paulo. Essa postura só conheceu refutações no início do III século e.c. com Tertuliano,
primeiramente, e depois com Justino, Eusébio e outros "pais" da igreja. No entanto, ganhou eco com
Celso ainda no II século. (BeDUHN, 2013:20-23).
129
A literatura judaica é vastíssima. Por essa razão, filtros precisaram ser aplicados na exposição a
seguir: (i) literatura que se ocupasse de contar histórias de milagres; (ii) articulado com o item anterior,
histórias que fossem contadas, mas que elegessem figuras centrais na tradição judaica e, portanto,
representativas, do ponto de vista da repercussão e circulação. Foram tomadas por base no caminho a
seguir duas obras centrais: (a) KOSKENNIEMI, 2005; (b) CORRINGTON, 1986. No entanto, tanto no
que diz respeito a comentários e/ou exposição de documentos, quanto comentários ou historiografia
aos temas apresentados, outras obras serviram de sustentação. Essas últimas, por conseguinte, serão
mencionadas em momento oportuno.
177
130
O que se seguirá, daqui por diante, é uma discussão literária. No entanto, conforme outras seções
deste trabalho apontaram a atenção devida deve ser dada à questão semântica. Para uma completa
revisão e análise das relações entre thĕiŏs anēr e os correspondentes termos hebraicos (semanticamente
falando) associados ao conceito, ver HALLEVY, Raphael. (1958). Man of God. In: Journal of Near
Eastern Studies. Volume 17, Nº 4. pp. 237-244.
178
demônios). Esse poder seria útil aos judeus de então, com o objetivo de controlar o
mau e ajudar a humanidade em se ver livre dele.
Ezequiel e Artapano são conhecidos por meio de fragmentos em outros
escritos, muitos deles, entretanto, cristãos, oriundos da Patrística. Em ambos os textos
os milagres desempenhavam papel decisivo na releitura da história do Êxodo. Os dois
autores sentiram-se bastante livres para reescrever e conferir novos formatos, bem
como inserir novas informações, àquela narrativa constante no texto homônimo da
Bíblia Hebraica. O que é central para esses autores é a constatação de que Moisés -
como um poderoso homem divino - era capaz de superar qualquer inimigo que se
interpusesse a ele, legítimo representante de Deus.
De todos os documentos mencionados, ao lado de Josefo, Fílon é o mais bem
preservado material dessa série. Para o autor residente e educado em Alexandria os
milagres realizados por Moisés e a conseqüente liberdade do povo judeu da
escravidão são provas incontestes da ação e favor de Deus. Inclusive, sem sombra de
dúvidas, esses feitos miraculosos foram decisivos em moldar a história nacional
judaica. O retrato pretendido por Fílon de Moisés é de um líder que carrega consigo
as evidências da presença de Deus - o poder dado a ele de realizar tantos milagres.
Em termos de crítica da forma, se comparado a um modelo tipicamente
helenístico e amplamente conhecido e usado nesse período, o texto As Vidas dos
Profetas é o mais próximo desse estilo literário. A coleção consiste em pequenas
biografias dos profetas repletas de histórias de milagres realizados por (ou por
intermédio) (d)eles. O tom apocalíptico que é dada às pequenas biografias é atestado
pela associação direta com a necessidade da realização de feitos extraordinários.
Igualmente aos demais textos, Deus é o agente dos feitos prodigiosos, mas confere
aos seus profetas a função de torná-los reais.
O Livro das Antiguidades Bíblicas está provavelmente ambientado no
contexto pós-destruição do Templo de Jerusalém. O sentimento que perpassa as
narrativas recontadas pode ser situado em um dilema tradicionalmente observado na
longa Tradição Judaica: Deus está distante ou pode ser concebido de forma pessoal,
próximo à esfera humana? A resposta para essa questão é dada pelo texto
comprovando que Deus está no céu, talvez em seu trono, mas intervém na história.
Prova incontestável de sua intervenção é o poder que concedeu às personagens
históricas que construíram a Nação Judaica. Os homens (divinos) enviados por Deus
estavam repletos do Espírito d'Ele e agiram poderosamente nesse sentido. Desde Ben
179
Sira, no qual o passado da Nação é relembrado pelos heróis do povo, passando pelo
Livro dos Jubileus, em que as realizações miraculosas das personagens Abraão e
Moisés venceram a guerra entre as forças do mal e a bondade de Deus, até Fílon que,
consoante o Livro das Antiguidades Bíblicas viram em Moisés a eficaz e poderosa
intervenção de Deus por meio de feitos incríveis.
O material de Pseudo-Fílon é uma releitura e, fundamentalmente, atualização
de como o passado se faz presente no I século e.c.. O olhar desse autor ao passar em
revista toda a história judaica parece indicar que um novo líder brevemente virá para
cumprir a sempre constante ação de Deus em intervir e julgar justamente a história. É
com essa força de Deus, por meio de seus homens (divinos) enviados, que o material
revisa a história judaica e evidencia as recompensas e punições concretizadas nos
feitos miraculosos de Deus.
Flávio Josefo é um autor cercado de polêmicas. Seja pela acusação de traição
ao povo judeu, seja por fazer parte da corte de Vespasiano como historiador oficial, a
bibliografia especializada sempre está pronta para rotulá-lo de muitas maneiras. Três
posturas principais acompanham a interpretação sobre o historiador judeu quando o
assunto é sua relação com as histórias de milagres: (i) eles as racionaliza
freqüentemente; (ii) ele relaciona e constrói suas narrativas de milagres a partir de
seu particular ponto de vista político; (iii) ele constrói as personagens associadas a
milagres se utilizando do modelo de homem divino.
Não é a intenção aqui discutir as peculiaridades interpretativas a respeito de
Josefo, muito menos julgá-las. O que se faz central aqui é constatar que se trata de
mais um testemunho documental de que práticas mágicas ou feitos miraculosos são
corriqueiros e abundantes na bacia mediterrânica. Moisés, Josué, Sansão, Salomão,
Elias e Eliseu estão completamente identificados com esse aspecto no material de
Josefo. Não somente essas personagens da história judaica, mas Eleazar que,
igualmente, comprova que, entre os judeus, há quem domine perfeitamente essas
práticas:
131
Tradução pessoal de: "And this kind of cure [Solomon‘s forms of exorcisms] is of very great power
among us to this day, for I have seen a certain Eleazar, a countryman of mine [Josephus], in the
presence of Vespasian, his sons, tribunes and a number of other soldiers, free men possessed by
demons, and this was the manner of the cure: he put to the nose of the possessed man a ring which had
under its seal one of the roots prescribed by Solomon, and then, as the man smelled it, drew out the
demon through his nostrils, and, when the man at once fell down, adjured the demon never to come
back into him, speaking Solomon‘s name and reciting the incantations which he had composed. Then,
wishing to convince the bystanders and prove to them that he had this power, Eleazar placed a cup or
foot-basin full of water a little way off and commanded the demon, as it went out of the man, to
overturn it and make known to the spectators that he had left the man. And when this was done, the
understanding and wisdom of Solomon were clearly revealed, on account of which we have been
induced to speak of these things, in order that all men may know the greatness of his [Solomon‘s]
nature and how God favoured him, and that no one under the sun may be ignorant of the king‘s
surpassing virtue of every kind."
181
132
Excelentes estudos nesse sentido estão, por exemplo, em SCARDELAI, Donizete. (1998).
Movimentos messiânicos no tempo de Jesus: Jesus e outros messias. São Paulo: Paulus; e
HORSLEY, Richard A. & HANSON, John S. (1995). Bandidos, Profetas e Messias. Movimentos
Populares no Tempo de Jesus. São Paulo: Paulus.
183
memórias construídas sobre ele pelos autores dos evangelhos - hoje canônicos - dão
conta das provas requeridas para um líder dessa natureza. Foi exatamente na interação
com esse milieu mediterrânico que as histórias sobre o nazareno conheceram sua
forma final.
A relação entre a fixação escrita dessas memórias - e conseqüente propagação
- com o milieu mediterrânico proposto até aqui deve ser entendida através da
perspectiva das interações culturais. Recentemente, no ano de 2011, a editora Loyola
lançou dois volumes de um estudo exaustivo sobre o ambiente (político, religioso,
mágico, social) no qual os paleocristianismos surgiram. Trata-se do excelente texto
do autor alemão Hans-Josef Klauck.
O título original da obra, Die religiöse Umwelt des Urchristentums: Stadt- und
Hausreligion, Mysterienkulte, Volksglaube, em tradução livre, O ambiente religioso
do cristianismo primitivo: Religião Civil e doméstica, cultos de mistério, crença
popular conheceu a versão em língua portuguesa sob o seguinte título: O entorno
religioso do cristianismo primitivo: Religião civil e religião doméstica, cultos de
mistérios, crença popular.
A diferença fundamental entre o título original e a tradução está na palavra
Umwelt, em alemão, para "entorno", em português. Por mais que se assemelhe a
preciosismo semântico, o entendimento dessa distinção tem conseqüências relevantes
para o tema aqui discutido. Para o vocábulo alemão, "ambiente" parece bastante
apropriado. O termo "entorno", em português, entretanto, traz a noção básica de que o
"cristianismo primitivo" (no singular e "primitivo" com a noção de "mais original")
apenas ficou à margem das práticas religiosas, mágicas ou de crenças populares na
bacia mediterrânica. Surgiu e se desenvolveu incólume aos acontecimentos
circundantes.
Essa noção deturpada das experiências místicas paleocristãs não se esgota na
questão semântica. O elemento cultural é decisivo para elucidar essa questão.
Conceber relações culturais vai muito além da perspectiva do "entorno", pois no
encontro entre culturas nenhuma delas permanece a mesma após a interação. Sahlins
(1990) teoriza essa interação e fornece elementos preciosos para a perspectiva a partir
da qual este trabalho apresentará as visões paleocristãs aplicadas às suas personagens.
Segundo o autor norte-americano, a cultura é historicamente reproduzida e
alterada na ação (1990:7). Portanto, se a cultura está inserida na história, ela está em
constante movimento, transformando-se. Logo, ela é, no tempo, a síntese de
184
Asclépio curava a cegueira (ver inscrições sobre a cura de uma mulher e um homem
cegos acima, pp. 152 e 153 acima), Vespasiano de igual forma (ver Suetônio p. 158;
Tácito pp. 158-159 e Cássio Díon, p.160, acima), Jesus também possuía esse poder
(Mc 8, 22-26; Mc 10, 46-52 // Mt 20, 29-34 // Lc 18, 35-43).
Essa congruência de episódios, muito longe de parecer uma "paralelomania",
ambienta Jesus em um contexto em que, do ponto de vista sincrônico e diacrônico,
essas práticas era usuais a quem fosse tido como um homem divino. São exatamente
essas múltiplas atestações que tornam (i) homens divinos conhecidos e disseminados
na bacia mediterrânica; e, (ii) apresentam um Jesus que não está fora de seu tempo,
mas intensamente interagindo com ele.
Do ponto de vista da plausibilidade histórica cumpre observar essa questão da
epistemologia da história, em que homens e mulheres agem em seus respectivos
espaços ao longo do tempo. O tema não é, em absoluto, a discussão sobre
factualidade ou comprovação empírica da existência da personagem Jesus e suas
experiências históricas. O que se pretende com essa ambientação de Jesus em seu
tempo é notar como escritores paleocristãos lançavam mão de seus recursos culturais
na apresentação de suas personagens. Se históricas, precisas, verdadeiras ou não, a
discussão está muito além do que se pretende aqui.
A cultura, enquanto síntese de estabilidade e mudança, de passado e presente,
de diacronia e sincronia (SAHLINS, 1990:180) revela que autores neotestamentários
narraram ou construíram suas personagens de acordo com a síntese cultural que
sistematizaram interagindo com a cultura mediterrânica. A adoção do modelo thĕiŏs
anēr, nesse sentido, foi central. A seguir, alguns exemplos na adoção desse modelo
para o caso de Jesus133.
(a) Curas:
. Uma mulher com hidropsia (edema) é curada (Lc 14, 1-6), ver também o caso de
Asclépio p. 153:
133
Para a exposição que se segue convém atentar para as seguintes referências: os textos
neotestamentários foram reproduzidos a partir da tradução disponível na Bíblia de Jerusalém (BJ). A
documentação não bíblica que for mencionada indicará o número da página correspondente à citação
efetuada em outros momentos deste mesmo capítulo.
186
"1
Certo sábado, ele entrou na casa de um dos chefes dos fariseus
para tomar uma refeição, e eles o espiavam. 2Eis que um hidrópico
estava ali, diante dele. 3Tomando a palavra, Jesus disse aos legistas
e aos fariseus: "É lícito ou não curar no sábado?" 4Eles, porém,
ficaram calados. Tomou-o então, curou-o e despediu-o. 5Depois
perguntou-lhes: "Qual de vós, se seu filho ou seu boi cai num poço,
não o retira imediatamente em dia de sábado?" 6Diante disso, nada
lhe puderam replicar."
. Muitas curas realizadas por Jesus - Mt 15, 29-31 (// Mc 7, 31-37), ver também o
caso de Asclépio pp. 152-154; o caso de Hércules, pp. 150-151; Vespasiano, pp.158-
160, etc.:
"29
Jesus, partindo dali, foi para as cercanias do mar da Galiléia e,
subindo a uma montanha, sentou-se. 30Logo vieram até ele
numerosas multidões trazendo coxos, cegos, aleijados, mudos e
muitos outros, e os puseram aos seus pés e ele os curou, 31de sorte
que as multidões ficaram espantadas ao ver os mudos falando, os
aleijados sãos, os coxos andando e os cegos a ver. E renderam
glória ao Deus de Israel."
. Um homem coxo é curado134 (Jo 5,1-9), ver também Vespasiano, pp. 158-160:
"1
Depois disso, por ocasião de uma festa dos judeus, Jesus subiu a
Jerusalém. 2Existe em Jerusalém, junto à Porta das Ovelhas, uma
piscina que, em hebraico, se chama Betesda, com cinco pórticos.
3
Sob esses pórticos, deitados pelo chão, numerosos doentes, cegos,
coxos e paralíticos ficavam esperando o borbulhar da água. 4Porque
o Anjo do Senhor descia, de vez em quando, à piscina e agitava a
água; o primeiro, então, que aí entrasse, depois que a água fora
agitada, ficava curado, qualquer que fosse a doença. 5Encontrava-se
aí um homem, doente havia trinta e oito anos. 6Jesus, vendo-o
deitado e sabendo que já estava assim havia muito tempo,
perguntou-lhe: "Queres ficar curado?" 7Respondeu-lhe o enfermo:
"Senhor, não tenho quem me jogue na piscina, quando a água é
agitada; ao chegar, outro já desceu antes de mim". 8Disse-lhe Jesus:
"Levanta-te, toma o teu leito e anda!" 9Imediatamente o homem
ficou curado. Tomou o seu leito e se pôs a andar. Ora, esse dia era
um sábado."
. Uma mulher é curada da febre que a acometia - Mc 1, 29-31 (// Mt 4, 1-11 // Lc 4,1-
13), ver também PGM VII.211–212; PGM XCIV.7-9, pp.172-173:
134
Sobre esse episódio narrado no Evangelho de João, um interessante e profundo estudo pode ser
encontrado em: CHEVITARESE, A. L. (2013). Entre João e os atuais leitores de seu Evangelho: um
comentário sobre filtros de leitura. In: Gilvan Ventura da Silva e Leni Ribeiro Leite. (Org.). As
Múltiplas Faces do Discurso em Roma. Vitória: EDUFES. pp. 180-195. Entre outros assuntos, o
autor discute a relação entre Jesus e Asclépio no que diz respeito às práticas mágicas e curas atribuídas
às duas personagens.
187
"29
E logo ao sair da sinagoga, foi à casa de Simão e de André, com
Tiago e João. 30A sogra de Simão estava de cama com febre, e eles
imediatamente o mencionaram a Jesus. 31Aproximando-se Ele a
tomou pela mão e a fez levantar-se. A febre a deixou e ela se pós a
servi-los."
"22
Certo dia, ele subiu a um barco com os discípulos e disse-lhes:
'Passemos à outra margem do lago'. E fizeram-se ao largo.
23
Enquanto navegavam, ele adormeceu. Desabou então uma
tempestade de vento no lago; o barco se enchia de água e eles
corriam perigo. 24Aproximando-se dele, despertaram-no dizendo:
'Mestre, mestre, estamos perecendo!' Ele, porém, levantando-se,
conjurou severamente o vento e o tumulto das ondas; apaziguaram-
se e houve bonança. 25Disse-lhes então: 'Onde está a vossa fé?' Com
medo e espantados, eles diziam entre si: 'Quem é esse, que manda
até nos ventos e nas ondas, e eles lhe obedecem?'"
. Jesus caminha sobre as águas, Mc 6, 45-52 (Mt 14,22-32; Jo 6,15-21), ver também
Luciano, p. 168:
No que diz respeito à interação com a natureza, Sêneca (p.171 ) dizia que a
magia alterava sua constituição. O episódio de Jo 2, 1-11, no qual Jesus transforma
água em vinho oferece um paralelo interessante. Plínio (p. 170) também menciona
picadas de animais como usualmente motivos de curas. Não deixa de ser interessante
observar a seguinte passagem do Evangelho de Marcos (16, 17-20):
1. Panorama
135
Tradução pessoal de: " there is no suggestion in any Christian material that magic was considered as
anything but completely negative, no matter where it occurred. (...) For the Christian community,
―magic‖ was a negative label for Jesus‘ heavenly empowerment by the Holy Spirit."
192
Jesus e seus discípulos, bem como (ii) esses elementos mágicos ganham outro
significado quando associados aos mesmos. A percepção de Cotter pode ser
parcialmente útil nos dois casos que se seguem: Atos 8, 9-13 e 19, 17-20.
Primeiramente, o texto de Atos 8, 9-13 (Bíblia de Jerusalém):
que tratarão da questão (A - A' e B - B'). Assim, Simão que era mago, deixa de sê-lo.
Aquele que fascinava, agora é o fascinado. Antes, possuía e era reconhecido pelo
poder, mas após o encontro com Felipe, não está mais centrado no poder de Deus,
mas no Reino de Deus, no qual Felipe é o legítimo portador do grande poder.
Outro caso presente em Atos e que tem servido para sustentar a idéia de que as
práticas mágicas são rejeitadas pelas comunidades paleocristãs é a referência de Atos
19, 17-20, eis a transcrição (Bíblia de Jerusalém):
eram assimiladas e devem ser entendidas. A chave para essa compreensão está na
abertura do texto de Atos. Logo na abertura do documento o autor explica:
136
O Acts Seminar, ou Seminário de Atos, em tradução livre, é uma organização norte-americana,
sediada no Weststar Institut, que ao longo de 10 anos promoveu reuniões regulares reunindo diversos
especialistas no tema para discutir e dissecar o documento em questão. Ao final desse período, o grupo
publicou seus resultados no formato de um comentário a todo o texto de Atos com análises exegéticas e
breves ensaios sobre os temas considerados chaves para o entendimento do documento (SMITH e
TYSON, 2013:ix-x). Na introdução ao relatório, 10 conclusões básicas foram listadas como resumo ao
que o Seminário conseguiu realizar de mais importante na revisão bibliográfica e estudo de Atos
(SMITH e TYSON, 2013:1-4). Ato contínuo, as questões introdutórias foram sumariamente expostas
no entendimento do que deve ser ponto de partida para o estudo desse material, hoje, considerado
canônico no assim chamado Novo Testamento. O procedimento fundamental adotado foi o de, ao
longo dos 10 anos, passo a passo, (i) escolher o objeto de investigação; (ii) os diferentes intelectuais
envolvidos propunham suas investigações conclusivas sobre cada tema; (iii) os intelectuais e público
convidado votavam de acordo com os encaminhamentos sugeridos; (iv) a votação seguia o critério de
plausibilidade de acordo com as seguintes categorias: (a) o que era considerado provável ou plausível
de se concluir sobre o documento era marcado na cor vermelha; (b) em rosa o que era possível de se
concluir; (c) na cor cinza aquilo que se percebeu como duvidoso; e, por fim, (iv) deixado em preto o
que se deliberou como improvável (SMITH e TYSON, 2013:4-5). Esse é um procedimento
amplamente estabelecido desde os estudos que envolviam a pesquisa sobre o Jesus Histórico,
desenvolvido desde a década de 80 do século XX pelo Jesus Seminar, sediado no mesmo Instituto. A
despeito das críticas e controvérsias em torno desse procedimento ele é aqui adotado, pois é o único
estudo sistemático, profundo e que visa o estudo completo da documentação neotestamentária que
apresenta critérios bem definidos, rigor heurístico e publicização dos dados. As críticas e rejeições aos
empreendimentos do Weststar Institut pairam sempre em particularidades mínimas ou censuras de
criptoteólogos, portanto, religiosos programáticos, interessados em inviabilizar um estudo acadêmico
centrado nos cânones científicos.
197
2.2. Autoria137
137
Os dados a seguir são o resultado de sistematização dos seguintes textos: Pervo, 2009:5-7;
AcstSem, 2013:9-10; Fitzmyer, 2010:49-51. Os textos pouco divergem entre si por conta de um
considerável consenso acadêmico sobre o tema. Nos casos em que informações particulares de cada
autor forem relevantes elas serão indicadas apropriadamente.
138
Pervo (2009:6) argumenta que a autoria anônima do texto também se justificaria por conta da
onisciência do narrador ao longo da obra. Não parece um elemento central, mas se comparada essa
informação com outras narrativas mediterrânicas, Homero, por exemplo, esse argumento ganharia
força. No entanto, na segunda metade de Atos o autor se insere na história pelo uso do pronome "nós"
em diferentes episódios. Alexander (2007:29-32 e PERVO, 2013:395, nota 79) vê aqui paralelos com a
literatura de historiadores gregos que se apresentam em seus respectivos prólogos como testemunhas
oculares, portanto, seus relatos seriam mais verídicos. Sobre esse último aspecto, desde as origens da
interpretação, Atos vem sendo posto lado a lado com a literatura grega oriunda de historiadores
antigos. Justino e Papias não viram problema em permanecer com o texto de Lucas-Atos no anonimato,
apenas Irineu é quem tematizou essa questão (PERVO, 2009:7).
139
Memória oficial, memórias subterrâneas, disputas de memórias e enquadramento delas são temas
absolutamente caros e decisivos na discussão de documentação antiga, especialmente aquela de
natureza cristã, criptocristã ou apócrifa. Não sem atenção a essa realidade este trabalho segue as
propostas teóricas de M. Pollak (1989 e 1992). Inclusive, toma deles os termos mencionados e sua
carga semântico-conceitual.
198
Heresias 3,14:1). A referência para tal argumentação está localizada em: Carta aos
Colossenses 4,14, Filemon 24 e 2ª Carta a Timóteo 4,11. Em todos esses textos Paulo
se refere a um companheiro chamado "Lucas".
Inclusive, ao mesmo "Lucas" Irineu atribuiu a autoria do terceiro Evangelho,
hoje canônico (Irineu, Contra as Heresias 3,1:1). A referência é óbvia, pois nas
primeiras linhas de Atos o próprio autor menciona ter composto a primeira obra sobre
Jesus. Outro argumento para a atribuição de autoria lucana são as passagens em que o
narrador de Atos menciona "nós" no contexto das narrativas. Essas passagens serão
abordadas, aqui, posteriormente. A imensa maioria dos estudiosos concorda que o
autor de Lucas e Atos é a mesma pessoa, inclusive os religiosos. No entanto, a
maioria discorda que o autor de Atos tenha sido um companheiro de Paulo conforme
Irineu defendia.
O bispo de Lyon não dispunha dos dados heurísticos atuais que dão conta que
somente Filemon, das três mencionadas acima, fosse carta legítima de Paulo.
Ademais, muitos indícios apontam para o fato de que "Lucas" não poderia ser uma
pessoa próxima ao apóstolo. Um forte argumento é que a teologia, idéia e imagem
que o próprio Paulo tinha de si mesmo (advindo das suas cartas autênticas) não é a
mesma que aquela proposta pelo autor de Atos.
Para além da dificuldade cronológica (a próxima seção tratará disso) outras
divergências igualmente apontam para a impossibilidade de "Lucas" ter sido um
companheiro de Paulo. Por que nunca mencionou que Paulo era escritor de cartas?
Por que nunca nomeou Paulo como apóstolo conforme contínuos reclames do próprio
acerca de si mesmo? (ActsSem, 2013:10). E, acrescentando, por que "Lucas" relata
tantos feitos miraculosos operados por Paulo se o mesmo nunca os relatou?
As divergências são incontáveis. Porém, segue-se mencionando "Lucas" como
autor dos textos apenas por uma questão de comodidade e senso comum acadêmico
para evitar mal-entendidos. Mas, sabendo-se que (i) Atos dos Apóstolos é um
documento anônimo; (ii) seu autor ou autores nunca conviveram com Paulo ou outras
personagens relatadas no texto; (iii) o período cronológico de redação desse
documento aponta para outro contexto no qual seu(s) autor(es) quis(eram) intervir.
Assume-se que Atos seja um documento datado por volta dos anos 110-120
e.c. e que tenha sido produzido em Éfeso (ActsSem: 2013:6). A controvérsia é maior
quanto à questão da datação. Há, basicamente, três propostas principais sobre essas
datas: (i) meados dos anos 60 e.c.; (ii) início do II século e.c., em torno de 100-130
e.c.; ou (iii) nas décadas entre 80-90 e.c. (FITZMYER, 2010:51-55). Trata-se de uma
questão razoavelmente polêmica, mas a opção aqui efetuada quanto aos dados básicos
acompanha as conclusões apresentadas pelo Acts Seminar pelas razões já
mencionadas.
Convém mencionar que um dos elementos centrais em torno dessa polêmica
está ligado à discussão sobre as fontes utilizadas pelo autor de Atos. Com certa
segurança é possível determinar que seu autor tenha se servidos de três fontes básicas:
(i) cartas de Paulo; (ii) Septuaginta; (iii) literatura grega clássica (ActsSem, 2013:10-
14). Os estudos contemporâneos têm atingido certo consenso quanto a isso. Muito
embora ainda exista quem questione tais dados140.
A maior das polêmicas envolvendo a discussão sobre datação, local de
composição e fontes para Atos, porém, está em explicar o porquê de seu autor, na
primeira metade do documento, usar a primeira pessoa do singular (Eu) e, na segunda
metade, utilizar a primeira pessoa do plural (nós). Os comentaristas nomearam esses
últimos trechos como "we-passages" (passagens-nós) e não com pouca discordância
explicam as razões.
Pervo (2013:392-396) sistematiza bem as discussões a esse respeito. Dentre as
possibilidades apresentadas, a mais plausível, no entanto, parece ser a de que o "nós"
nessas passagens tenha relação com o local de composição do documento: Éfeso. A
explicação assumida por Pervo (2013:396) deriva de duas conclusões básicas: (i) Atos
é dividido em duas partes, capítulos 1 ao 14 e 16-28, logo, o capítulo 15 marca a
separação entre essas duas unidades; (ii) o emprego do "nós" marca a inserção da
comunidade por trás da autoria anônima de Atos.
A idéia geral é que o Evangelho de Lucas narra a fase de formação e
consolidação do movimento derivado de Jesus. A primeira parte de Atos (1-14)
delimitaria, dessa maneira, o movimento que se seguiu a Jesus e a disseminação da
mensagem e movimento atrelado a Jesus. Por fim, a parte final (16-28), orientado
140
Argumentos favoráveis a esse conjunto de fontes são apresentados nos seguintes trabalhos:
ActsSem, 2013:10-14; 116-117; Pervo, 2009:12-14. Argumentos contrários são apresentados em
Fitzmyer, 2010:80-88, muito embora o autor apenas enuncie sua discordância, mas não apresente as
razões para tal postura (ver, especialmente, p.88).
200
instaurado por uma longa Tradição Cristã que faz crer que desde o início do I século
e.c. Jesus e o movimento derivado dele são, já naquele momento, "cristãos". Visão
equivocada, pois em diferentes momentos é clara a pertença dessas lideranças a um
tipo de judaísmo particular, mas ainda sim judaico.
A controvérsia presente em Atos, portanto, é intra-judaica. Os escritores
neotestamentários não se vêm estranhos ao judaísmo, mas observantes da Lei. O que
está em jogo é de que forma se deveria entender o judaísmo após Jesus. Por
conseguinte, para os documentos neotestamentários, o problema não estava no
Judaísmo em si, mas na correta observância dele admitindo Jesus como o Messias.
Finalmente, Atos, em particular, será responsável por recolocar os rumos das
controvérsias e correta observação religiosa no interior do judaísmo e não à parte
dele, conforme Marcião. Cumpre, assim, observar que Atos opõe suas personagens a
um tipo de judaísmo equivocado por não se (re)configurar a partir do projeto de
Jesus, ou seja, não é o Judaísmo que deve ser superado, mas suas práticas é que
precisam ser conformadas de acordo com o evento Jesus (ActsSem, 2013:268-170).
considerar que o material textual narrava apenas uma ficção. Hengel foi o responsável
por delimitar algumas fronteiras sobre as duas posturas. Se Atos não era mera ficção,
muito de seus episódios narrativos demandavam contextualização. Certamente, um
procedimento desde então é o de inserir o documento em suas culturas circundantes e
naquela em que teve origem para perceber melhor sua natureza. Esse procedimento já
foi amplamente discutido até aqui.
Decorrente desse outro patamar em que Hengel logrou êxito em propor para
Atos, por exemplo, e para o que interessa aqui neste trabalho, empenhou-se muita
discussão sobre ser Atos uma aretologia dos "heróis" paleocristãos. Essa discussão
ganhou muito mais fôlego concernente à atribuição desse gênero literário aos
evvangelhos, no contexto da vida de Jesus. Atos, nesse cenário, acabou por ficar
menos em foco.
Seja na discussão sobre homens divinos ou "heróis", Morton Smith (1971),
cuidadosamente, avaliava que aretologias são de difícil reconstrução e pouco do que
sobreviveu não é suficiente para a constituição de um gênero literário bastante
disseminado. Inclusive, em sua polêmica com Howard Kee em 1978 (SMITH, 1996),
textualmente, Smith afirma que essa forma literária fixa (aretologia) não existia.
De maneira mais profunda, ainda dizia que a presença de histórias de milagres
em quaisquer fontes não é, em absoluto, sinal da presença da aretologia. Logo,
consoante Smith, é altamente improvável que Atos tenha se servido de uma forma
literária como a aretologia para construir sua história e personagens. A defesa desse
modelo se assemelha mais a uma forçosa necessidade em constituir um contexto
literário para os textos bíblicos do que um procedimento exegético adequado.
Em tentativa mais recente e preocupada na contextualização documental de
Atos, Adams (2013) identifica que Atos pertenceria ao gênero "biografias coletadas"
(ADAMS, 2013:111-114). Dessa forma, o(s) autor(es) por trás do documento, estaria
interessado em reunir memórias de suas personagens e construir um realato unificado
e progrmático do que teria sido a origem do cristianismo.
Essa proposta falha, no entanto, no entendimento deste trabalho, em dar conta
da segunda metade do texto de Atos, em que algumas seções em prosa e de cunho
historiográfico antigo (obviamente, no sentido que se entendia historiografia naquele
contexto) não se encaixam no modelo. O próprio prólogo do Evagelho de Lucas e
Atos refutam naturamente essa idéia.
203
Concílio de Jerusalém: alguns fariseus apontam para a necessidade de circuncisão dos gentios. Pedro discursa e Barnabé e Paulo relatam os muitos
sinais e prodígios que realizaram. Tiago discursa sobre a intervenção histórica de Deus em favor dos judeus. Foi deliberado que a circuncisão não
15
era necessária e que somente se evitasse carnes imoladas a ídolos, do sangue e carnes sufocadas, além das uniões ilegítimas. Todos os apóstolos
são dispersos para pregar em todas as regiões essas deliberações.
Após escolher Timóteo o circuncida por As comunidades cresciam em número a
1-5 Paulo se dirige a Derbe e Listra
conta dos judeus da região cada dia
Impedidos pelo Espírito a anunciar a Palavra O Espírito aparece em visão a Paulo e o Após a visão de Paulo partimos para a
6-10
em diversos lugares chegam a Trôade manda para a Macedônia Macedônia
Chegando a Filipos (principal cidade da Paulo pregava às mulheres que lá estavam e Lídia é batizada e nos oferece
11-15
Macedônia) fomos ao rio orar o Espírito lhes abria o entendimento hospedagem
16 No caminho para a oração, Paulo e Silas são
Na mesma hora o espírito se foi. Por conta
16-24 surpreendidos por uma escrava que tinha Paulo a exorcizou
disso, Paulo e Silas são açoitados e presos
espírito de adivinhação
O carcereiro, imaginando que os
Um terremoto abala os alicerces do cárcere prisioneiros tivessem fugido tentou
25-40 Paulo e Silas cantam na prisão
e todas as portas são abertas suicidar-se. Paulo o impediu, pregou a ele
e este foi batizado
Alguns judeus, gregos e não poucas
mulheres da sociedade os seguiram, mas
1-9 Em Tessalônica Paulo e Silas vão à sinagoga Ensinam sobre Jesus outros judeus causaram tumulto contra
eles e os expulsaram da cidade sob
17
acusação de violação ao culto a César
Muitos aderiram à fé, também gregos e
Na Beréia Paulo e Silas foram para a
10-15 Ensinaram na sinagoga durante um tempo mulheres e homens de alta posição social
sinagoga
abraçaram a fé. Novamente os judeus de
212
firmava poderosamente
Gaio e Aristarco, companheiros de Paulo,
A assembléia é dispersada sob risco de
Os ourives de Éfeso protestam contra a são arrastados para a Assembléia e ouvem
23-40 acusação de sedição por parte dos
pregação de Paulo e seus companheiros as declamações de que Ártemis é a grande
romanos
mãe e deus dos efésios
Paulo deixa Éfeso, vai em direção à
Macedônia e chega à Grécia. Depois de três Em todas as viagens e por onde passava
A conspiração dos judeus contra Paulo
1-6 meses vai à Síria e, por fim, volta à Paulo exortava e ensinava os discípulos a
forçou-o a muitas viagens
Macedônia e encontra os discípulos em permanecerem firmes
Trôade
Paulo e os demais voltaram para o recinto,
20 Paulo prega por muito tempo e um menino
7-12 Paulo o toma pelos braços e o ressuscita partilharam do pão e os ensinamentos se
cai da janela e morre
seguiram até o amanhecer
Paulo deseja ir à Jerusalém para a festa de Em longo discurso, Paulo apresenta uma Todos choram compulsivamente e o
Pentecoste. No entanto, se revela preocupado defesa de si e de suas atividades como beijam. Temem não ver mais a face de
13-38
quanto ao que pode lhe acontecer quando lá exclusivas da pregação, principalmente, Paulo, conforme próprias palavras do
chegar sustento próprio. apóstolo. Segue cortejo até o navio.
Em Tiro, os discípulos, movidos pelo
Espírito, diziam a Paulo que não fosse à Em todos os momentos Paulo recusa as
De Éfeso a Tiro e depois até Cesaréia
1-14 Jerusalém; Em Cesaréia, Ágabo profetiza, palavras e visões e diz que é a vontade de
partiram Paulo e os demais em viagem
em nome do Espírito Santo, que Paulo será Deus que ele siga até Jerusalém
21
preso
Todos glorificam a Deus. Os discípulos
Em Jerusalém, Paulo foi à casa de Tiago com Paulo relata todas as atividades que
15-26 propuseram a Paulo que se purificasse no
os demais discípulos e se reuniram cumprira junto aos gentios
Templo para evitar acusações por parte
214
dos judeus
Protegido pelos soldados e tribuno romano
Paulo é preso no Templo após ser
27-40 Paulo é conduzido à prisão, mas antes Todos os judeus buscavam matá-lo
reconhecido por judeus da Ásia
deseja discursar à multidão
Paulo inicia um longo discurso em sua própria defesa. Ele relata entrar em êxtase após ter visto a luz que brilhou do céu e como cumpriu o
chamado de Deus para disseminar os ensinos sobre Jesus. Quando, porém, menciona que estendeu sua mensagem aos gentios a multidão se
22
revolta. Ao ser novamente preso, declara-se cidadão romano e o tribuno teme por decidir algo que não é de sua alçada. No dia seguinte leva-o ao
Sinédrio.
Paulo segue sua defesa e, diante dos judeus, argumenta ter recebido a missão do próprio Deus, por meio da aparição de um anjo. Na noite seguinte
o Senhor aparece a Paulo e diz a ele para que não temesse, pois era necessário que sua pregação atingisse Roma. Os judeus, irredutíveis,
23
comprometem-se em jejum até que Paulo esteja morto. O tribuno, temendo tomar decisão fora de sua competência decide transferir Paulo para
Cesaréia e entregá-lo ao governador da região.
Paulo defende-se diante do governador romano e estabelece como argumento principal sua missão a partir do entendimento de que justos e
24 injustos hão de ressuscitar dos mortos. O governador, no entanto, buscava encontros com Paulo na expectativa de conseguir algum dinheiro para
liberá-lo. Diante da esposa do governador, mulher judia, Félix temia as palavras de Paulo.
25 Diante do impasse com relação a sua prisão, Paulo apela para o julgamento de César. O rei Agripa, de passagem pela região, decidiu ouvir Paulo.
Paulo apresenta sua defesa diante de Agripa. Novamente Paulo relata sua experiência extática de chamado divino e diz cumprir as ordens divinas
26
que recebera. Agripa o considera inocente, mas diante a apelação de Paulo para ter com César ele ficou impossibilitado de libertá-lo.
Embarcaram, pois no navio em direção a Roma. Uma tempestade assolou a embarcação. Paulo parece ter controle da situação: v.10: Paulo adverte
que o navio deveria aportar em terra para aguardar a tempestade; v.15: o navio não resistia ao vento e ficou à deriva; v.18: a carga começou a ser
lançada ao mar; v.19: a tripulação lançou ao mar os apetrechos do navio; v.20: por vários dias não viam nem sol nem estrelas e as esperanças de
27 salvarem-se eram pequenas; v. 21:Paulo intervém, v.22: Paulo motiva os tripulantes para que tenham ânimo, pois a vida de todos será poupada;
v.23-26: Paulo relata uma visão de que Deus garantira a vida de todos, mas era necessária uma pausa na viagem. Diante da tentativa de fuga dos
marinheiros Paulo exortou-os a permanecer para que suas vidas fossem salvas. Também sugeriu que todos se alimentassem. Assim, v.34-35:
tomou do pão, partiu entre todos, deu graças a Deus e comeram. O capítulo se encerra com a chegada em Malta, todos conseguiram atingir terra
215
firme. O centurião poupou a vida de Paulo diante de sugestão que a tripulação matasse a todos para que não fugissem.
Em terra firma, Paulo tomou alguns gravetos
ao que uma víbora prendeu-se a sua mão (os
nativos julgaram que se tratava de um Paulo sacudiu o animal ao fogo e não Os nativos mudaram o parecer e passaram
1-6
assassino, pois tendo sobrevivido ao sofreu mal nenhum a vê-lo como um deus
naufrágio, os deuses enviaram uma víbora
para atacá-lo)
Abrigados na propriedade de Públio, o mais Paulo orou, impôs-lhe as mãos e o curou. No momento da partida, uma embarcação
28 7-10 importante cidadão da ilha, Paulo foi Tantos outros da ilha vieram ter com Paulo com todas as provisões necessárias foram
chamado, pois Públio tinha febre e disenteria e foram, também, curados dadas para que chegasse a Roma
Os judeus declaram que não sabiam das
Paulo discursou e contou da oposição que
Chegado em Roma, após longa viagem e acusações, mas que a mensagem de Paulo
vinha recebendo dos demais judeus. Falou
algumas pausas e encontros com outros havia se espalhado por toda a parte.
11-30 sobre o Reino de Deus e ficou mais dois
discípulos no caminho, Paulo estabelece Alguns abraçaram a fé e outros, no
anos em Roma ensinando a quem o
contato com os judeus de Roma entanto, recusaram-se. Mas, não
procurasse
impediram que Paulo continuasse a atuar.
Tabela 12: Proposta de estrutura do texto de Atos dos Apóstolos levando-se em consideração o modelo thĕiŏs anēr
Após a leitura do documento de Atos sob essa perspectiva, convém retomar
uma idéia de Klaus Berger enunciado no item 4 do capítulo II deste trabalho. Dizia o
autor alemão que "histórias de milagres" (categoria proposta por Bultmann) não se
constituem como gênero, mas um rótulo moderno para agrupar diferentes narrativas,
com variadas formas literárias, que identificam ali o elemento mágico ou sobrenatural
(BERGER, 1998:276).
De acordo com o entendimento de Berger, portanto, "histórias de milagres"
fariam parte de formas menores inseridas nos gêneros literários. E é a essas formas
menores que se deve recorrer para, do ponto de vista da análise formal (Crítica da
Forma), perceber que peculiaridades cada um tem para, somente após esse
procedimento, classificá-las e agrupá-las.
Essa operação está longe de ser o escopo deste trabalho no geral e nesta seção
no particular. Evocar esse entendimento tem um objetivo muito mais pragmático
aqui. Ou seja, pela natureza textual de Atos parece estar longe do horizonte de
expectativa do autor que forma, gênero ou categoria literária ele lançará mão para
empreender seu relato. Antes, cumpre oferecer um quadro bastante claro e objetivo
sobre que demanda ou situação existe, para cada respectiva situação, qual a
demonstração ou prova de poder (dýnamis) os discípulos repletos desse poder
oferecem e seus resultados convincentes.
Esse é precisamente o sitz im Leben (situação vivencial) de Atos: a realidade e
atuação dos homens divinos centrados na autoridade (ĕxŏusia) concedida por Deus
para intervir na história. A partir desse ponto de vista é que Atos deve ser entendido
como a história dos paleocristianismos. É essa a marca ideológica que orientou o uso,
alteração e invenção de dados por parte de quem está por trás dessa composição.
Pedro e Paulo são, majoritariamente, as personagens centrais em Atos. As
duas personagens dominam cerca de 90% do material lucano. Dos 28 capítulos do
documento, Pedro domina a cena em nove (32,14), enquanto que Paulo é protagonista
absoluto em dezesseis deles (57,14%). De acordo com a percepção de Lucas essas são
as duas personagens centrais para a formação, expansão e consolidação dos
paleocristianismos. A intenção do autor é, portanto, fazer com que a origem do
movimento seja mesmo em Jerusalém, a partir da centralidade conferida a Pedro.
Paulo, por sua vez, é visto como aquele que desempenha o papel do propagador das
idéias tanto a judeus como a gentios.
217
141
O procedimento de exposição documental foi assim organizado: (i) o texto de Atos é citado com
breve descrição; (ii) exposição do(s) texto(s) de Atos dos Apóstolos referendado no tópico; (iii) será
indicado em qual outra seção deste trabalho poder-se-á fazer o confronto entre os testemunhos
documentais (a referência se dará pela página correspondente neste texto). Todas as citações de Atos
dos Apóstolos foram retiradas da tradução oferecida pela Bíblia de Jerusalém (2002).
220
(a.1) Conversão (9, 1-19): Paulo fica cego, mas é curado. Recebe o Espírito e é
batizado:
. Confrontar com:
(i) curas de cegos: Asclépio, p.153; Vespasiano, p.158-159; Jesus, p. 186;
(ii) receber um daimŏn: PGM, p. 162-164;
. Confrontar com:
(i) os temas relativos à cegueira: Asclépio, p.153; Vespasiano, p.158-159; Jesus, p.
186;
(a.3) Ensino e discurso sobre intervenções de Deus na história judaica 142 (13, 13-43;
17, 1-15; 19, 8-10; 20, 1-6; 21, 27-40; 22; 23; 25; 26; 28, 11-30).
Em virtude de serem muitas e extensas narrativas, elas não foram aqui
expostas. Mas estão adequadamente referendadas e devem ser confrontadas com as
estruturas dispostas em documentos trabalhados no item 5 do capítulo segundo (ver
páginas 175-182).
142
Sobre o tema constante em que Paulo é levado a julgamento, também é possível observar que se
trata de um aspecto comum em culturas mediterrânicas. Em muitos deles, a acusação é de magia ou
violação contra os desues. Para o aprofundamento da questão, ver: Pervo, 2009:196 e 592.
222
. Confrontar com:
(i) Hércules curas todas as doenças, p. 150; Jesus também realiza muitos sinais e
prodígios, p. 186;
(ii) a magia deve ser vista como a mais fraudulenta das artes: Plínio, p. 171;
O fato de que o(s) autor(es) de Atos faz Paulo e Barnabé serem confundidos
com divindades, quer indicar que a audiência mediterrânica estava informada sobre a
quem é dado o poder de realizar feitos extraordinários. A identificação dos apóstolos
com essas divindades, ainda, indubitavelmente, provoca um efeito retórico nos
ouvintes-leitores desse texto em termos de comprovação da grandeza de Paulo e
Barnabé.
223
143
Conferir Pervo, 2009:409-411 e ActsSem, 2013:72.
224
(a.8) Judeus exorcistas não conseguem expulsar o espírito mal se servindo do nome
de Paulo e Jesus e são envergonhados. Os que ficaram com medo queimaram livros
mágicos e confessaram suas práticas (19, 13-20)
. Confrontar com:
(i) exorcismos: PGM, p. 163-165; Jesus, p. 188;
(ii) magia como arte fraudulenta: Plínio, p. 171;
(iii) uso de nomes com autoridade para exorcismos: PGM, p. 163-165; o uso do nome
de Salomão por parte de Eleazar, narrado em Josefo, pp. 179-180;
(a.9) Paulo não recebe dinheiro por praticar magia (20, 13-38)
34. Paulo (ou o texto o faz) declar que nenhum de seus atos ou atividades visavam
"ouro ou prata", pois o sustento pessoal ele conseguiu com as próprias mãos.
É bastante provável que a advertência de Celso (ver p. 169) e Orígenes (ver p.
170) sobre magos terem interesse somente em dinheiro por meio de seus feitos era
uma informação sabida da audiência mediterrânica. Assim, o apóstolo estaria
absolvido dessas acusações.
(a.10) Paulo relata aos discípulos suas ações prodigiosas entre os gentios (21, 15-26)
. Confrontar com:
(i) visões sobre Hércules, p.150;
(ii) visões sobre Asclépio, pp. 152-155;
(iii) visões sobre Afrodite, pp. 165-166;
(iv) visões sobre Ísis, p. 166;
(v) o relato de Plínio acerca de "nações" que tinham entre seus homens aqueles
capazes de realizar feitos extraordinãrios, ver p. 170-171;
228
(vi) igualmente, Jesus concede poder àqueles que o seguem para realizar tais feitos
extraordinários, ver p. 189.
(a.11) Paulo é picado por uma víbora e nada lhe acontece (28, 1-6)
. Confrontar com:
(i) Plínio e o relato daqueles que nada sofrem diante de picadas de animais, ver. 189;
(ii) Sêneca, quando informa que a magia tem a capacidade de alterar elementos
naturais, ver p. 171;
"8Um homem aleijado dos pés vivia lá" sentado, coxo desde o seio
de sua mãe, sem jamais ter andado. 9Ele ouvira Paulo falar. E Paulo,
fixando nele os olhos e vendo que tinha fé para ser curado, 10disse-
lhe com voz forte: "Levanta-te direito sobre teus pés!""
. Confrontar com:
(i) Vespasiano, p. 158 e Jesus, p. 186;
. Confrontar com:
(i) curas à distância: uma inscrição grega que aponta para a cura de uma menina com
hidropsia à distância, pois é a mãe quem está no santuário de Asclépio, p. 153-154;
(ii) um interessante episódio é narrado em Marcos 5. Ao passar por uma cidade, em
meio à multidão, uma mulher que sofria de fluxo contínuo de sangue toca a roupa de
Jesus e é curada.
. Confrontar com:
(i) ressurreição de mortos: Hércules, p. 151; Asclépio, p. 155; Jesus, p. 187;
(b.4) Paulo trabalha em nome da pregação sobre a ressurreição de mortos (24, 10-21)
. Confrontar com:
(i) a preocupação em se ter boa saúde é atestada no PGM, p. 172;
(ii) amuletos também são usados na cura da febre, p. 172;
(iii) Jesus também curou a febre, p. 187;
(c.1) Paulo tem uma visão do Espírito (16, 6-10; 18, 1-11; 22, 6-21; 23, 1-11)
231
. Confrontar com:
(i) em sonho ou presencialmente, outras pessoas viam a divindade ou o procedimento
da cura: Asclépio, p. 153-154;
(ii) daimŏnĕs podem adquirir forma carnal, p. 161;
(iii) o Cosmo está repleto de daimŏnĕs, pp. 161-162;
(iv) daimŏnĕs são intermediários ente os homens e os deuses, p. 162;
(v) as pessoas podem conseguir daimŏnĕs assistentes, pp. 162-163;
(vi) é possível encontrar-se com o daimŏn de si mesmo, p. 164;
233
(c.2) O Espírito abre o entendimento das mulheres na pregação de Paulo (16, 11-15)
. Confrontar com:
(i) o Cosmo está repleto de daimŏnĕs, pp. 161-162;
(ii) daimŏnĕs são intermediários ente os homens e os deuses, p. 162;
(iii) as pessoas podem conseguir daimŏnĕs assistentes, pp. 162-163;
. Confrontar com:
(i) daimŏnĕs podem ser nocivos, p. 164;
(ii) deve-se evitar ser possuído por um daimŏn, p. 165;
234
(c.4) Convertidos e batizados por Paulo recebem o Espírito e falam em línguas (19, 1-
7)
. Confrontar com:
(i) daimŏnĕs podem adquirir forma carnal, p. 161;
(ii) o Cosmo está repleto de daimŏnĕs, pp. 161-162;
(iii) daimŏnĕs são intermediários ente os homens e os deuses, p. 162;
(iv) as pessoas podem conseguir daimŏnĕs assistentes, pp. 162-163;
(v) é possível encontrar-se com o daimŏn de si mesmo, p. 164;
. Confrontar com:
(i) Afrodite salvou marinheiros de um naufrágio em meio à tempestade, pp. 165-166;
(ii) Isís domina os mares, p.166;
(iii) em círculos pitagóricos ou neo-pitagóricos muitos têm domínio sobre as águas e
os ventos, p. 167;
(iv) Julio César também não teme os mares, p. 168;
(v) Andar sobre as águas é um feito poderoso de alguns homens divinos, p. 168;
(vi) Jesus controla a tempestade e anda sobre as águas, p. 188-189.
como homem divino. E esse episódio coincide com a última realização do homem
divino Paulo, pois seu destino era Roma. A metáfora é evidente: uma experiência
religiosa judaica, na fronteira do Império Romano, se desenvolve milagrosamente no
curso dos anos e chega à capital do Império. Coube a Paulo, agora plenamente
identificado com o modelo thĕiŏs anēr cumprir essa missão.
Conclusão
toma o historiador em seu ofício precisa ser variada, de natureza pública ou privada,
anônima ou oficial, material ou textual. Uma história construída a partir de
documentos exclusivamente oriundos de apenas uma ou outra esfera do cotidiano
acaba por incorrer em conclusões danosas e parciais de uma realidade que não é
aquela pretendida, ou seja, do evento que se quer tratar, mas orientada por questões
do tempo presente do próprio cientista.
Talvez essa seja a razão da tamanha celeuma ou temor em se vincular estudos
de paleocristianismos e práticas mágicas. Para o Mediterrâneo Antigo, esses dois
aspectos estão indissociáveis do ponto de vista do cotidiano. Este trabalho também
não se pretende a última palavra em modelo teórico-metodológico ou detentor de uma
"verdade" contextual absoluta. Mas, certamente, se declara preocupado em atender a
essa demanda específica, conquanto saiba que também é uma abordagem limitada
pelas regras do jogo científico.
É orientado por essas questões que se constituiu o presente texto. As
experiências místicas paleocristãs, no particular, e a de culturas mediterrânicas, no
geral, demandavam muito mais do que retórica, textos sagrados ou instituições
consolidadas que respondessem as suas questões. Suas percepções de interação com
as forças cósmicas demandavam, sobretudo, provas concretas de que o divino se fazia
presente na história palpável.
Os cristianismos, após longa Tradição e consolidação como instituição que
detém o monopólio do discurso sobre o poder, conseqüentemente, tentou se afastar
das práticas que julgou danosas ou impassíveis de controle. As práticas mágicas
estão, precisamente, nesse contexto. Muito embora, elas foram gradativamente re-
significadas e tomaram outras formas.
Mesmo para aquilo em que se transformaram, hoje, as experiências cristãs, o
elemento mágico e as demonstrações de poder continuam a ser demandas por parte de
sua audiência. Mas, essas instituições consolidadas lograram algum êxito em
controlá-las. Ainda que temporariamente. Os diferentes catolicismos e
protestantismos (evoca-se aqui a Tradição Cristã, não as experiências religiosas como
um todo em suas múltiplas percepções que não essa cristã) racionalizaram
eficazmente suas práticas a ponto de não se perceberem mais como co-participes das
práticas mágicas.
240
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