Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
texto 2
A CONCEPÇÃO FILOSÓFICA DA
EDUCAÇÃO
e o estatuto da teoria
produzidas para a prática educativa. Esse procedimento inspirava-se em uma tradição didática
bastante abrangente dos grandes filósofos do passado. No entanto, o preço a pagar por esse
lustre cultural era sem dúvida excessivo: em primeiro lugar, a ênfase em um conjunto acabado
de idéias, e não na atividade de reflexão em que a filosofia, antes de qualquer outra coisa, se
relação com a realidade daquele a quem se dirige, tende a revestir-se de uma autoridade
inquestionável.
Não é ademais difícil perceber, na origem dessa tradição, as posições analisadas no texto
para se validar.
Se, todavia, a filosofia tem um papel central na formação dos educadores e dos
pesquisadores em educação é porque a natureza do fazer educativo impõe à teoria ser muito
mais do que uma série de belos desenvolvimentos, e mais também do que um corpo coerente
de explicações previamente organizado. Diante dos enigmas que a existência humana e social
colocam para a educação, qualquer teoria fracassará, se não for acompanhada de um contínuo
questionamento, se não for vivificada pela constante reflexão. E, para isso, a filosofia pode
certamente ajudar: pois de seu passado ela pode nos oferecer não somente conceitos e teorias,
pensável. Não apenas, portanto, com a totalidade daquilo que já foi pensado mas, sobretudo,
se desloca: não se trata de buscar avidamente conhecer tudo o que já foi escrito e pensado
responder a todas as questões que possam ser levantadas (projeto simplesmente insano!), mas
racionalidade humana impessoal, mas na convicção do poder da criação humana, que decerto
2
se manifesta na cultura que nos precede e que supera os limites de nossas experiências, mas
que também se manifesta em nossa própria existência. Logo, essa atitude implica uma
responsabilidade para consigo mesmo, para com seu meio, sua época, sua espécie; e implica,
igualmente, a capacidade de manter sob constante exame crítico suas próprias limitações. Em
outros termos, essa atitude só se justifica por um projeto de autonomia que sempre começa
invés de liberar nossa reflexão e criatividade, nos tornam mais alheios a nosso próprio
A filosofia é, assim, esse compromisso com a interrogação que não quer se fechar, e é
dessa forma que ela é prática de emancipação, que ela é terreno de luta pela autonomia.
àquilo que foi um dia pensado, ela nos ajuda a descortinar franjas enormes daquilo que ainda
não pensamos, daquilo que ainda não nos interrogamos em nossa atividade cotidiana. É numa
luta permanente contra nossa tendência à acomodação, nossa preferência pelas respostas, ao
alimentam, que o pensamento tenta se fazer. É isso que as grandes páginas da filosofia nos
Eis como conceber filosoficamente a educação pode significar entendê-la como terreno
«menu» de concepções a serem escolhidas para compor nosso prato feito educacional.
3
E se isso é assim, é porque a educação é, ao mesmo tempo, um enigma e uma atividade
prático-poiética. Kant decretou que ela era, juntamente com a política, «a mais difícil das artes».
Freud, a psicanálise – são atividades impossíveis. Essa é uma afirmação muito profunda, mas só
autonomia humana.
naquilo que são e na forma como se comportam por uma ciência, no sentido mais estrito do
termo: eles podem ser inteiramente explicados pela teoria. O que é uma cadeira, o que é um
cão, o que é um raio – o que é um vírus, como se comportará um ciclone, estas e outras
questões, muito mais difíceis, podem ter embaraçado e podem embaraçar, ainda, nosso
entendimento.
poderá prever totalmente seu comportamento, pela simples razão que o modo de ser do
homem, sua existência, toma a forma de autocriação incessante. Por isso não há, para ele, um
conhecimento preciso e infalível. Não se pode dizer o que o homem será ao nascer, nem ao
menos aquilo em que se tornará, a partir daí. Sempre haverá, entre a legítima necessidade de
compreender o humano e a realidade, uma enorme fenda, e esta fenda se chama criação. Por
impossibilidade da educação: como é possível educar um ser autônomo? A educação tem por
4
finalidade construir a autonomia do indivíduo, como o próprio termo (autonomia) já anuncia,
humano, para torná-lo um ser autônomo, deve-se partir e deve-se tomar como base algo que
ainda não está lá – essa própria autonomia. Por isso, diz Castoriadis, a educação é uma atividade
prático-poiética.
que Aristóteles1 elencou, para definir a natureza das atividades humanas: há, dizia o filósofo,
algumas atividades que têm uma finalidade determinada, que visam a produção de alguma
coisa objetivável, uma coisa ou um efeito sobre algo. A essas atividades que não têm, portanto,
fim em si mesmas, mas cujo fim é sempre exterior, Aristóteles chamou de poiesis (que se
poderia traduzir aqui como fabricação). E há, também, atividades que não visam a produção de
nada: sua finalidade está em seu próprio exercício. Aristóteles denomina essas atividades, que
têm fim em si mesmas, de praxis. Ora, essa distinção parece que não se aplica à educação. Para
ela, a autonomia deve se constituir, ao mesmo tempo, em fim a ser buscado e na própria
atividade. Em outras palavras, na educação, o processo e o produto, meio (poiesis) e fim (praxis)
buscado.
e formação: poderia a comunicação de um conhecimento ser um fim, ou deveria ela ser sempre
1
Aristóteles, Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2002
5
um meio da educação? Até onde se pode ir em uma atividade que pretenda tão-somente dar a
indissociavelmente ligada à instrução? E como pretender formar alguém sem atentar para o que
Não há respostas absolutas para essas questões, nem é possível estabelecer uma regra
para determinar onde acaba a preocupação com os meios e onde começa o cuidado com os
fins. Meios e fins só encontram justificação nessa permanente tensão que os liga – e que,
ação educativa. Mas a criatividade e a deliberação do professor não são garantias absolutas!
Quem é ou já foi professor reconhece essa característica de seu ofício: algo de absolutamente
essencial sempre escapa – e o que escapa não é nada de irrisório, mas justamente o que mais
importa, o cerne da educação: o fato de que só o próprio indivíduo pode se construir, de que
cada indivíduo necessariamente cria, cria a cada vez, nas palavras de C. Castoriadis, seu «modo
próprio de existência». Mas de que, por sua vez, essa autocriação, longe de implicar auto-
suficiência, não só admite, mas exige a saída de si, a socialização, as trocas com o mundo –
absoluto e de controle é um fato e, mais do que isso, uma preciosa oportunidade para que o
2
Essas questões serão aprofundadas no textos 3 e 4.
6
do aluno, como da própria liberdade, também. Por isso, dizer que a educação é um enigma
significa, igualmente, dizer: pode-se – e deve-se! – tentar elucidar esse enigma, mas jamais será
sobre o qual tantos filósofos, tantos políticos, tantos sociólogos tentaram teorizar – a liberdade
humana – se apresenta como realidade quotidiana. Não é, pois, à idéia de Deus, ou à noção de
um «direito natural» que ele recorre, como a teoria tantas vezes fez, para afirmar uma noção
abstrata que a prática social não cessa de negar. A liberdade que conhece esse educador se
apresenta a ele sob seu verdadeiro nome: criação humana. O humano cria, e sua primeira
espécie humana é a criação – foi e vem sendo sistematicamente ocultada. A isso Castoriadis
campo educacional, na equivocada noção de que o processo educativo pode ser inteiramente
explicado e seus resultados preditos pelas teorias, conquistados pela rigorosa aplicação dos
autonomia social e individual, a educação fica reduzida ao que não é: ao espaço de mera
não são postos em questão, disso resulta que a resistência ao controle sobre a qual falávamos
vai ser interpretada como erro, vai ser explicada pela identificação de «culpados»: de um lado, o
7
aluno – que é «rebelde», que é «violento», que é «indisciplinado», que é «incapaz»… de outro,
No entanto, contrariamente ao que se pensa, a educação não pode ser entendida como
mero domínio aplicado, como campo de aplicação de leis, teorias, determinações vindas de
fora. Por pelo menos duas razões gritantes: o aluno e o professor – dois seres que são livres,
porque são criadores. E, por mais que o poder criador possa ser limitado, e ocultado, e
obstruído, por mais que a criação de si se dê em condições de heteronomia, isso é, como mera
ratificação do que está instituído, o que resiste, tanto no professor quanto no aluno, ainda é
suficientemente expressivo, manifesto e resistente para atuar como uma espécie de denúncia
Castoriadis tem, a esse respeito, uma frase bastante eloqüente e profunda: falando da
psicanálise, – isso é, de uma outra dessas atividades «impossíveis» que, visando a autonomia
humana, sugerem uma intervenção externa ali onde só pode autocriação – ao falar da
psicanálise, Castoriadis afirma que, aí as teorias servem para não serem usadas:
como atualização das faculdades do indivíduo, como ativação de uma potência que preexistiria,
como atualização de algo que podemos definir a priori, como um poder ser alguma coisa que já
3
in As Encruzilhadas do Labirinto, vol. I. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, p. 41.
8
sei de antemão que ele é, tal como a filosofia tradicionalmente concebeu. Na educação, o
projeto de autonomia depende da atualização de um poder poder ser. Explique-se: este «poder
poder» ser significa que não há um conteúdo objetivo para definir como o humano é
determinado desde o nascimento, não há uma virtude específica, uma predisposição particular
que definam o que o humano é ao nascer. Esse modo de conceber a educação, que entende sua
tarefa como a de simples atualização de germens, das «potencialidades» que estão presentes em
cada indivíduo é, sem dúvida, muito corrente em educação. É com base nessa concepção que,
discípulos, para determinar aqueles que deveriam ser objeto de maior ou de menor
injustiças que acaba por legitimar, esta posição apóia-se em uma falsa antropologia. Se ela fosse
consistente, o humano nada criaria, apenas teria a opção de desenvolver, ou não, talentos
rigidamente determinados por sua disposição natural. Mas são muitas as evidências de que a
natureza humana é infinitamente mais rica, e deve ser definida como possibilidade de criar suas
suas causas e causa que seus efeitos não esgotam», a teoria, que só considera o que é universal,
não esgota os sentidos que ele tem. Por isso, aquilo que o indivíduo é não pode ser reduzido a
uma formulação teórica, por mais perfeita que ela seja. Pode-se, pois, dizer que o que
permanecerá, para a teoria, como irredutível, já que resiste às «explicações» que para ele são
9
fornecidas, ao controle que os métodos proclamam, ao fazer automático que as técnicas
É claro, porém, que isso não significa que o indivíduo seja o incognoscível absoluto, mas
sim que, diz ainda Castoriadis, a criação não pode ser inteiramente explicada, sua origem nunca
pode ser inteiramente identificada. Não se pode explicar o que o humano é de forma acabada e
exaustiva e, assim, não se pode prever a criação. Pode-se explicar inteiramente os fenômenos
físicos e biológicos, mas não o chamado «fenômeno humano». É claro que a teoria pode dar
conta de muitos aspectos da condição e da existência humana – pode explicar como o indivíduo
as condições objetivas desta queda são controladas e levadas em conta. Mas nada disso é
suficiente para explicar o que realmente nos importa aqui, o mais fundamental: o fenômeno
pelo qual o homem é como ele é – diferente, a cada vez, dos outros homens. E o fenômeno pelo
qual ele se cria a si mesmo a cada vez como singularidade, como ser absolutamente único ainda
que interessa à educação, não pode explicar, prever e controlar tudo, ela pode e deve elucidar.
No que se refere à realidade humana e social, a finalidade da teoria não é a de explicação, mas a
elucidação.
conhecimento objetivo, explicativo e preditivo que caracteriza outras atividades teóricas. Não é
um conhecimento que produz certezas, leis a serem aplicadas, mas interrogações que não serão
10
jamais totalmente respondidas, ainda que sobre elas se deva, na prática, deliberar. Assim, a
deliberação nunca será determinada, fornecida de antemão pela teoria – pois, de outro modo,
ela não seria uma deliberação. Deliberar é uma atividade criadora que cabe ao educador.
Uma vez que, por envolver seres humanos, cada situação educativa é única, o educador,
por mais que apoiado nas teorias, nos métodos e técnicas que tem a seu dispor, está sempre
diante desse grande enigma, de uma interrogação que não lhe cabe desvendar, nem responder,
Nessa perspectiva, deve-se dizer que, também para o próprio aluno, o seu poder ser é
um enigma, que supera qualquer previsão, mas que depende de sua criação incessante, ao
longo de sua vida: pode-se, pois, afirmar que educar é, essencialmente, ter em mente esse fato
e ajudar o aluno a tomar consciência da responsabilidade que lhe cabe em sua autocriação.
Educar é construir, a cada momento, o sentido do que é educar, tanto quanto viver é, a cada
momento, fazer e refazer o sentido do que é viver, e existir é fazer e refazer incessantemente o
buscar nas teorias pedagógicas e educacionais e nos métodos e técnicas que delas derivam
aquilo que não podem fornecer, os educadores, longe de melhorar suas perfomances, ao menos
no que diz respeito à construção da autonomia dos alunos e à luta pela emancipação humana,
teorias, métodos, técnicas e procedimentos que poderiam servir de bons aliados passam a ter a
11
função de tornar os educadores «…surdos ao novo, a essa emergência [sempre imprevisível que
é a] singularidade do sujeito.»4
Diante da singularidade humana, fica claro que nem mesmo a posteriori, isso é, nem
explicar uma vez por todas o ato educativo, o aluno, seu modo de ser, de aprender, de se auto-
construir.
A auto-alteração dos indivíduos, que a educação ajuda a provocar e de que deve tornar
cada aluno consciente, nunca é, em suma, o resultado da aplicação de uma teoria, «produto» de
um fazer técnico. Mas cabe à educação cuidar para que o aluno tome consciência de sua
autonomia; de que ele não está, apesar das aparências, inteiramente condicionado pelas
indivíduo passa a ser dotado, pela reflexão, de tomar consciência de seu poder de deliberar. As
tornar, pela educação, pela psicanálise, pela reflexão, conscientes. Usando um exemplo: a
psicanálise pode, a partir daquilo que chamam «um sintoma», voltar até as condições que
ocasionaram o trauma. Mas ela jamais explicará porque o indivíduo reagiu ao trauma por
avaliar mais ou menos objetivamente o que o aluno aprendeu, mas jamais se poderá prever
4
ibid, p. 97.
12
aquilo que fará, ou explicar aquilo no que se tornou como resultado direto de uma ação
educativa objetivada.
No entanto, elucidar aquilo que somos, ou aquilo em que nos tornamos é perceber que
o que somos não resulta de uma fatalidade, mas sempre, também, de uma escolha, de uma
mesmo e diante da sociedade, nunca é passivo, é a tomada de consciência de seu poder criador.
Talvez mais ainda do que a psicanálise, a verdadeira função da educação seja a de denunciar a
suposta fatalidade que se acredita pesar sobre a sociedade e sobre os indivíduos – sobre os
alunos, sobre a escola, sobre a própria prática. Esta é a missão emancipadora que a educação
Por fim, todas estas reflexões levam a reconsiderar o status que se deve conceder ao campo
educacional.
incompleto, provisório. Como prática de atuação, a educação é uma recriação constante dos
procedimentos, dos métodos, do modo como nos relacionamos com as técnicas pedagógicas e
instrucionais, mas é também o terreno em que se operam essas e outras deliberações mais
5
Ibid. p. 94-5.
13
importantes, que não podem ser garantidas ou determinadas a priori, legitimadas pela
Sobre essas decisões, o professor tem que poder prestar contas a seu aluno, aos pais, à
sociedade. Pois dizer que educar é criar o sentido de educar implica em devolver ao professor a
Elucidar o que é e o que se pensa que deve ser a educação é concebê-la filosoficamente.
A filosofia tem esse papel importante, e ineliminável, em toda educação que se quer
emancipadora: tal como a teoria, ela não fornece à prática educacional garantias, ela não pode
justificar nem antecipadamente nem posteriormente as nossas ações, ela não pode se substituir
à iniciativa que é sempre a do professor; mas ela é o instrumento pelo qual se pode ganhar
deve ser a educação?» Ela permite tomar consciência e prestar contas daquilo que se faz de si
mesmo mim e de sua prática e, desta forma, permite participar de modo sempre próprio e
elucidação dos sentidos que a educação veio adquirindo e adquire em cada contexto social e
histórico particular, e ela permite identificar todas estas questões como essenciais para a
prática da educação.
E, assim, fica claro que a concepção filosófica da educação é uma tarefa de auto-reflexão
individual e coletiva, e que seu objeto parte e tem como fim a emancipação humana e,
14
IMMANUEL KANT
15
CORNELIUS CASTORIADIS
Nossa relação com a história da filosofia cria, por si só, uma questão
filosófica de primeira grandeza – o que é natural, já que toda reflexão é
também auto-reflexão, e a reflexão não começa hoje. Dos múltiplos
aspectos dessa questão, um é particularmente importante aqui. Ruptura do
fechamento, a reflexão tende, no entanto, demaneira irresistível, a se
fechar novamente sobre si mesma. Isso é inevitável… já que, de outro
modo, a reflexão se limitaria a ser um ponto de interrogação indeterminado
e vazio. Mas a verdade da filosofia é a ruptura do fechamento,
desestabilização das evidências recebidas, inclusive e sobretudo as
filosóficas. Ela é esse movimento, mas um movimento que cria o solo sobre
o qual caminha, e que não é, nem pode ser uma coisa qualquer – ele define,
delimita, forma e determina. 0 próprio de uma grande filosofa é permitir
que se vá além de seu próprio solo, e inclusive incitar a isso. Como ela
tende – e deve tender – ao compromisso com a totalidade do pensável,
tende a fechar-se sobre si mesma. Mas, se é grande, nela encontraremos,
ao menos, as evidências de que o movimento do pensamento não pode se
deter aí e até parte dos meios para prossegui-lo. Tanto uns quanto outros
tomam a forma de aporias, de antinomias, de francas contradições, de
nódulos heterogêneos.
CASTORIADIS, C. Feito e a ser feito; as encruzilhadas do labirinto V. Rio de
Janeiro: DP&A, 1999. p. 27.
A pedagogia começa na idade zero, e ninguém sabe quando termina. O objetivo da pedagogia – falo,
evidentemente, de um ponto de vista normativo – é ajudar o recém-nascido, esse hopeful and dreadful
monster a tornar-se um ser humano. O fim da paidéia é ajudar esse feixe de pulsões e de imaginação a
tomar-se um anthropos, no sentido indicado mais acima, de um ser autônomo. Podemos também dizer,
lembrando Aristóteles: um ser capaz de governar e ser governado.
A pedagogia deve, a todo instante, desenvolver a atividade própria do sujeito, utilizando, por assim
dizer, essa mesma atividade própria. O objeto da pedagogia não é ensinar matérias específicas, mas
desenvolver a capacidade de aprender do sujeito – aprender a aprender, aprender a descobrir, aprender
a inventar. Isso, evidentemente. a pedagogia não pode fazer um ensinar certas matérias – tampouco a
análise pode progredir sem as interpretações do analista. Mas, assim como essas interpretações, as
matérias ensinadas devem ser consideradas como degraus ou pontos de apoio, servindo não só para
tomar possível o ensino de uma quantidade crescente de matérias, mas para desenvolver as
16
capacidades da criança de aprender, descobrir e inventar. A pedagogia deve necessariamente também
ensinar – desse ponto de vista, devemos condenar os exageros de vários pedagogos modernos. Mas
dois princípios devem ser firmemente defendidos: – todo processo de educação que não visa a
desenvolver ao máximo a atividade própria dos alunos é mau; – todo sistema educativo incapaz de
fornecer uma resposta racional à pergunta dos alunos – por que deveríamos aprender isso? – é
defeituoso.
CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do labirinto III: o mundo fragmentado. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1992. p. 156-157.
Id., p. 258-259.
JEAN-JACQUES ROUSSEAU
17
Todo animal tem idéias, posto que tem sentidos; chega mesmo a
combinar suas idéias até certo ponto e o homem, a esse respeito, só se
diferencia da besta pela intensidade. Alguns filósofos chegaram mesmo a
afirmar que existe maior diferença entre um homem e outro do que entre
um certo homem e certa besta. Não é, pois, tanto o entendimento,
quanto a qualidade de agente livre possuída pelo homem que constitui,
entre os animais, a distinção específica daquele. A natureza manda em
todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influência,
mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é sobretudo na
consciência dessa liberdade que se manifesta a espiritualidade de sua
alma, pois a física, de certo modo, explica o mecanismo dos sentidos e a
formação das idéias, mas no poder de querer, ou antes, de escolher e no
sentimento desse poder só se encontram atos puramente espirituais que
de modo algum serão explicados pelas leis da mecânica.
Mas, ainda se as dificuldades que cercam todas essas questões deixassem, por um instante, de causar
discussão…, haveria uma outra qualidade, muito específica, que os distinguiria e a respeito da qual não
pode haver contestação – é a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das
circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie
quanto no indivíduo; o animal, pelo contrário, ao fim de alguns meses, é o que será por toda a vida, e
sua espécie, no fim de milhares de anos, o que era no primeiro ano desses milhares. Por que só o
homem é suscetível de se tornar imbecil? Não será porque volta, assim, ao seu estado primitivo e –
enquanto a besta, que nada adquiriu e também nada tem de bom a perder, fica sempre com seu
instinto – o homem, tornando a perder, pela velhice ou por outros acidentes, tudo o que sua
perfectibilidade lhe fizera adquirir, volta a cair, desse modo, mais baixo do que a própria besta? Seria
triste, para nós, vermo-nos forçados a convir que seja essa faculdade, distintiva e quase ilimitada, a
fonte de todos os males do homem; que seja ela que, com o tempo, o tira dessa condição original na
qual passaria dias tranqüilos e inocentes; que seja ela que, fazendo com que através dos séculos
desabrochem suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, o torna com o tempo o tirano de si mesmo e da
natureza. Seria horrível ter de louvar como um ser benfeitor o primeiro a sugerir aos habitantes das
margens do Orinoco o uso dessas tabuazinhas que aplicam nas têmporas de seus filhos e que, pelo
menos, lhes asseguram uma parte de sua imbecilidade e de sua felicidade original.
Id.
18
É fácil de ver, com efeito, que entre as diferenças que distinguem os homens,
inúmeras, consideradas como naturais, são unicamente obra do hábito e dos
vários gêneros de vida que os homens adotam em sociedade. Assim, um
temperamento robusto ou delicado, a força ou a fraqueza, que dele derivam,
resultam mais freqüentemente da maneira dura ou afeminada pela qual se
foi educado, do que da constituição primitiva dos corpos. A mesma coisa
acontece com as forças do espírito; a educação não só estabelece diferença
entre os espíritos cultos e os que não o são, como também aumenta a que
existe entre os primeiros na proporção da cultura, pois, quando um gigante e
um anão andam pelo mesmo caminho, cada passo que um e outro dêem
trará uma vantagem a mais ao gigante. Ora, fazendo-se uma comparação
entre a diversidade prodigiosa de educação e de gêneros de vida que reina
nas várias ordens do estado civil e a simplicidade e uniformidade da vida
animal e selvagem – na qual todos se alimentam com os mesmos alimentos,
vivem da mesma maneira e fazem exatamente as mesmas coisas –
compreender-se-á quanto deve a diferença de homem para homem ser
menor no estado de natureza do que no estado de sociedade e quanto
aumenta a desigualdade natural na espécie humana por causa da
desigualdade de instituição.
Id., p. 257.
19