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EDIÇÃO 126 | MARÇO_2017

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MAIS ESCURO
Um mês antes de morrer, aos 82 anos, Leonard Cohen lançou um álbum obcecado pela mortalidade,
impregnado da ideia de Deus – e engraçado
DAVID REMNICK
Na juventude, Cohen lembrava um Michael Corleone Antes da Queda, os olhos escuros levemente amendoados, a pele morena e os ombros um pouco caídos,
mas seu encanto estava na gentileza refinada e na fluência com as palavras FOTO: PLATON_TRUNK ARCHIVE

A
os 25 anos, Leonard Cohen morava em Londres, onde escrevia
poemas tristes em quartos mal aquecidos. Vivia dos 3 mil
dólares de uma bolsa do Conselho Canadense para as Artes. Era
o ano de 1960, e ainda faltava uma década para o Festival da Ilha de
Wight, em que se apresentaria diante de 600 mil pessoas. Àquela
altura, Cohen era um judeu que tentava uma carreira na literatura,
um provinciano em terra estrangeira, exilado do ambiente literário de
Montreal. Nascido numa família culta e de certa proeminência, tinha
uma visão irônica de si mesmo. Era um boêmio com a sobrevivência
garantida, e suas primeiras compras em Londres foram uma Olivetti
portátil e uma capa de chuva azul da Burberry. Muito antes de
conquistar um fã que fosse, tinha uma ideia clara do público que
desejava. Numa carta a seu editor, dizia querer atingir “os
adolescentes fiéis a seus valores originais, os amantes que sofrem de
angústia em qualquer grau, os platônicos decepcionados, os voyeurs
de pornografia, os monges com pelos na palma das mãos e os
papistas”.

Cohen estava cansado da umidade e do céu cinzento de Londres. Um


dentista inglês tinha acabado de arrancar um de seus dentes de siso.
Depois de semanas de frio e chuva, um dia ele entrou num banco e,
vendo o caixa tão bronzeado, perguntou-lhe como conseguira aquela
cor. O sujeito respondeu que acabara de voltar de uma viagem à
Grécia. Cohen comprou uma passagem de avião.

Não passou muito tempo e ele pousava em Atenas. Passeou pela


Acrópole, foi até o porto do Pireu, pegou uma barca e desceu na ilha
de Hidra. Mal refeito do frio nos ossos, contemplou a enseada onde
ficava o porto, as pessoas tomando vinho local, retsina, e comendo
peixe grelhado nos restaurantezinhos à beira-mar; ergueu os olhos
para os pinheiros e ciprestes, para as casas brancas encarapitadas nas
encostas. Aquela ilha tinha uma atmosfera mítica e primitiva.
Automóveis eram proibidos. Mulas transportavam água até as casas,
subindo as escadas intermináveis. A eletricidade era intermitente.
Cohen alugou uma casa por 14 dólares por mês. Mais tarde compraria
uma casinha branca por 1 500 dólares, graças a uma herança que
recebeu da avó.
Hidra prometia o tipo de vida que Cohen almejava: cômodos
despojados, a página em branco, eros à noite. Adquiriu alguns
lampiões a querosene e móveis usados: uma cama russa de ferro
forjado, uma escrivaninha, cadeiras “iguais às pintadas por Van
Gogh”. Durante o dia, trabalhava em A Brincadeira Favorita, um
romance de formação erótico e fantasioso, e nos poemas da coletânea
Flowers for Hitler [Flores para Hitler]. Alternava uma disciplina
extrema e vários graus de dissipação. Havia dias em que jejuava para
se concentrar. Tomava drogas para expandir a mente: maconha,
anfetaminas, ácido. “Eu fazia uma viagem atrás da outra, sentado em
meu terraço na Grécia, esperando ver Deus”, ele contaria anos depois.
“Em geral, o resultado era uma ressaca pavorosa.”

Aqui e ali, Cohen via de relance uma norueguesa linda. Seu nome era
Marianne Ihlen, e ela fora criada no campo, perto de Oslo. A avó de
Marianne sempre lhe dizia: “Você vai encontrar um homem com uma
voz de ouro.” E ela achava que já tinha encontrado: Axel Jensen, um
romancista norueguês entusiasta de Jack Kerouac e William
Burroughs. Os dois casaram e tiveram um filho, o pequeno Axel.
Porém, Jensen não era um marido constante – quando o bebê
completou 4 meses, ele, nas palavras dela, estava “de quatro” por
outra mulher.
Um dia de primavera, Marianne entrou com o filhinho num café
misto de mercearia. “Eu estava lá, de pé, com minha cesta, tinha ido
comprar água mineral e leite”, ela lembrou décadas mais tarde, num
programa de rádio norueguês. “E aí ele apareceu na porta, com o sol
pelas costas.” Cohen a convidou para sentar do lado de fora, com ele
e uns amigos. Usava calça cáqui, mocassim sem meia, camisa de
manga arregaçada e um boné. Parecia irradiar “uma compaixão
imensa por mim e por meu filho”. E ela se apaixonou. “Foi uma coisa
que senti no corpo todo”, contou. “Uma leveza tomou conta de mim.”

C
ohen já fazia algum sucesso com o sexo oposto. E viria a fazer
ainda mais. Para um trovador da tristeza – “mestre supremo da
melancolia”, como seria apelidado mais adiante –, ele
encontrava bastante consolo nos braços das mulheres. Na juventude,
lembrava um Michael Corleone Antes da Queda, os olhos escuros
levemente amendoados, a pele morena e os ombros um pouco caídos,
mas seu encanto estava na gentileza refinada e na fluência com as
palavras. Aos 13 anos, leu um livro sobre hipnotismo. Experimentou
a técnica com a governanta da casa da família, e ela tirou a roupa. Ao
longo dos anos, nem todo mundo se deixaria enfeitiçar no mesmo
grau. A cantora e compositora alemã Nico não cedeu, e Joni Mitchell,
que a certa altura foi sua namorada e continuou sua amiga,
costumava defini-lo como um “poeta de alcova”. Entretanto, elas
foram exceções.

Leonard passava cada vez mais tempo com Marianne. Iam à praia,
transavam, cuidavam da casa. Certa vez, quando Marianne e Axel
estavam na Noruega, e Cohen em Montreal, cavando algum dinheiro,
ele lhe mandou um telegrama: “Tenho casa vg só preciso minha
mulher e o filho dela pt Amor vg Leonard.”

Houve separações, brigas, ciúmes. Quando Marianne bebia, podia


ficar fora de si. E houve infidelidades de parte a parte. (“Deus do céu.
Todas as garotas babavam por ele”, lembrou Marianne. “Quase me
matei.”)

Em meados dos anos 60, quando Cohen começou a gravar e a fazer


sucesso no mundo inteiro, Marianne ficou conhecida por seus fãs
como uma musa à moda antiga: na contracapa do segundo lp de
Cohen, Songs from a Room, ela aparece numa foto memorável,
enrolada numa toalha e sentada à mesa da casa em Hidra. Ainda
assim, ao cabo de oito anos a relação foi se desfazendo – “como cinzas
que caem”, diria Cohen.

Ele passava cada vez mais tempo longe de casa, dedicado à carreira.
Marianne e Axel continuaram na ilha mais algum tempo, depois
foram para a Noruega. Marianne voltaria a se casar. Mas a vida teve
suas dificuldades, especialmente para Axel, que viveu constantes
problemas de saúde. O que os fãs de Cohen conheciam de Marianne
era sua beleza e o que ela tinha inspirado: Bird on the Wire; Hey,
That’s no Way to Say Goodbye e, acima de tudo, So Long, Marianne.
Ela e Cohen nunca perderam contato. Sempre que ele fazia alguma
turnê pela Escandinávia, ela ia vê-lo no camarim. Trocavam cartas e
e-mails. Quando falavam com jornalistas e amigos sobre a história
deles, era sempre em termos carinhosos.

No final de julho de 2016, Cohen recebeu um e-mail de Jan Christian


Mollestad, amigo de Marianne, dizendo que ela estava com câncer.
Da última vez que haviam conversado, Marianne lhe contara que
vendera a casa de praia para assegurar a Axel um futuro decente, mas
não disse que estava doente. Agora, ao que tudo indicava, só lhe
restavam poucos dias de vida. Cohen respondeu na mesma hora:

Bem, Marianne, chegou o momento em que ficamos realmente velhos


e nossos corpos começam a se desfazer, e acho que vou seguir o
mesmo caminho daqui a pouco. Saiba que estou perto, logo atrás de
você, se estender sua mão poderá pegar a minha. E você sabe que
sempre a amei por sua beleza e sua sensatez, mas não preciso dizer
mais nada porque você sabe disso tudo. Agora, só quero desejar
muito boa viagem. Adeus, velha amiga. Amor sem fim, vejo você
mais adiante.

Dois dias mais tarde, Cohen recebeu um e-mail da Noruega:

Caro Leonard,
Marianne adormeceu aos poucos e deixou a vida ontem à noite.
Tranquila, cercada de amigos próximos.
Quando sua carta chegou, ela ainda conseguia falar e rir, estava
totalmente consciente. Nós lemos em voz alta, e ela sorriu como só
Marianne era capaz de sorrir. Levantou a mão no trecho em que você
dizia que estava logo atrás dela, tão perto que podia tocá-la.
Foi muito reconfortante para ela que você soubesse como ela estava. E
sua bênção para a viagem deu a ela uma força extra… Em sua última
hora de vida, eu segurei a mão dela e cantarolei Bird on the Wire,
enquanto ela respirava bem de leve. E ao deixarmos o quarto, depois
da alma dela ter voado pela janela em busca de novas aventuras,
beijamos-lhe a cabeça e murmuramos para ela suas palavras eternas.

So long, Marianne…
eonard Cohen morava no 2º andar de um modesto apartamento em

L
Mid-Wilshire, uma área de Los Angeles desprovida de qualquer
encanto. Estava com 82 anos. Entre 2008 e 2013, havia passado
quase o tempo todo em turnê. Era muito improvável que sua
saúde continuasse a permitir essa empreitada. Dali a um mês, em
outubro de 2016, ele lançaria um novo disco – obsessivamente
impregnado com os temas da mortalidade e da presença de Deus,
mas ainda assim divertido, chamado You Want It Darker –, mas seus
amigos e colegas duvidavam tornar a vê-lo num palco, exceto em
participações muito limitadas: uma apresentação única, talvez, ou
uma curtíssima temporada num mesmo local. Quando lhe mandei
um e-mail com um convite para jantar, Cohen respondeu que estava
mais ou menos “confinado em seus aposentos”.

Eu havia ido à casa de Cohen não fazia muito tempo. Um de seus


visitantes mais assíduos, um velho amigo meu – Robert Faggen,
professor universitário de literatura –, havia me levado lá. Faggen
conhecera Cohen vinte anos antes numa mercearia aos pés do monte
Baldy, o mais alto das montanhas de San Gabriel, uma serra a hora e
meia de distância de Los Angeles. Os dois viviam perto dali: Bob,
numa cabana onde escrevia sobre Robert Frost e Herman Melville e
de onde descia de carro para dar aulas na Faculdade Claremont
McKenna; Cohen, num pequeno mosteiro zen-budista onde fora
ordenado monge. Um dia, Faggen estava escolhendo frios no balcão
quando ouviu os graves de uma voz familiar do outro lado da loja.
Olhou e viu um homem miúdo e seco, de cabeça raspada,
conversando animadamente com um vendedor sobre diferentes
modos de preparar uma salada de batatas. A cultura musical de
Faggen está mais para os lieder de Mahler do que para a canção
popular. Porém, admirador da obra de Cohen, ele se apresentou.
Tornaram-se bons amigos desde então.

Cohen nos recebeu sentado numa cadeira hospitalar azul, destinada a


aliviar as dores nas costas decorrentes de fraturas por compressão.
Estava muito magro, mas ainda bonito, com seus penetrantes olhos
escuros e os fartos cabelos grisalhos quase brancos. Vestia um terno
bem cortado azul-marinho – mesmo nos anos 60 sempre usava terno
–, com o colarinho da camisa preso por um belo alfinete. Estendeu a
mão com a cortesia de um chefão mafioso aposentado.

“Olá, amigos”, ele disse. “Por favor, por favor, sentem-se.” Sua voz
era tão grave e rouca que, perto dele, Tom Waits soaria como um
contratenor.

E então, como minha mãe, ele nos ofereceu o que só podia ser o
cardápio completo de sua despensa: água, suco, vinho, um pedaço de
frango, uma fatia de bolo, “talvez alguma outra coisa”. Nas horas que
passamos juntos, ele foi nos oferecendo mais e mais coisas, e sempre
com a maior gentileza. “Querem umas fatias de queijo com
azeitonas?” – proposta que um entrevistador jamais escutaria de Axl
Rose. “Uma vodca? Um copo de leite? Uma aguardente?” E, também
como quando visito minha mãe, às vezes o melhor é aceitar de vez.
Um dia, comemos cheeseburgers “com tudo” que pedimos de uma
lanchonete da vizinhança e, no outro, fatias grossas de gefilte fish
com raiz-forte.

A morte de Marianne ocorrera poucas semanas antes, e Cohen ainda


se admirava de como sua carta – um e-mail para uma amiga prestes a
morrer – tinha se tornado viral, pelo menos no universo apaixonado
por Leonard Cohen. Sua intenção não havia sido divulgar seus
sentimentos, mas quando um dos amigos mais próximos de
Marianne, em Oslo, lhe pediu licença para publicar o texto, ele não
objetou. “E como isso está ligado a uma canção, e ainda tem uma
história…”, ele disse, “uma bela história, então, de certa maneira, não
me aborreço.”

Como qualquer pessoa da sua idade, Cohen encarava as perdas como


parte da rotina. Parecia menos devastado pela morte de Marianne do
que arrebatado pelas lembranças do tempo que passaram juntos.
“Havia sempre uma gardênia na minha mesa, perfumando a sala
toda”, ele contou. “E um sanduíche ao meio-dia. Tão doce, tudo tão
doce…”
As canções de Cohen eram assombradas pela morte, tema presente
desde seus versos mais antigos. Meio século atrás, o executivo de
uma gravadora havia lhe dito: “Largue disso, garoto. Você não é um
pouco novo para essas coisas?” No entanto, apesar da saúde
problemática, Cohen permanecia lúcido e aplicado como sempre,
aferrado a uma disciplina quase militar. Acordava para escrever bem
antes do amanhecer. Na sala pequena e despojada onde nos recebeu,
viam-se alguns violões encostados na parede, um teclado de
sintetizador, dois laptops e um sofisticado microfone para gravações
de voz. Com o suporte de seu filho Adam (o produtor) e de um
antigo colaborador, Pat Leonard, Cohen fez quase todo o trabalho de
You Want It Darker naquela mesma sala, enviando por e-mail as
gravações para um tratamento adicional. A idade avançada e o fim de
uma era proporcionavam-lhe uma proveitosa, embora nem tão
desejada, atmosfera de silêncio.

“Num certo sentido, o momento atual me propõe muito menos


dispersão que outras épocas da minha vida, e me permite trabalhar
com um pouco mais de concentração e continuidade do que quando
eu me via às voltas com a obrigação de ganhar a vida, desempenhar o
papel de marido, criar os filhos”, declarou. “A esta altura, essas
distrações se reduziram radicalmente. A única coisa que me impede
de produzir o tempo todo é a condição do meu corpo”, disse.
“Por acaso”, prosseguiu, “ainda estou com o juízo perfeito. E posso
contar com muitos recursos, alguns cultivados num nível pessoal,
mas também devido às circunstâncias: minha filha e os filhos dela
moram no andar de baixo, meu filho vive a dois quarteirões daqui.
Sou um homem de muita sorte. Tenho uma assistente dedicada e
competente. Tenho Bob e mais um ou dois amigos que enriquecem a
minha vida. Num certo sentido, nunca vivi melhor… Chega um
ponto em que você ainda está com a cabeça no lugar, não enfrenta
mais dificuldades financeiras sérias e tem a oportunidade de pôr a
casa em ordem. É um clichê, mas as pessoas costumam subestimar o
alívio que isso proporciona, em todos os níveis. Pôr a casa em ordem,
quando você pode, é uma das atividades mais reconfortantes que
existem, e traz benefícios incalculáveis.”

C
ohen chegou à maioridade depois da guerra. A Montreal em
que cresceu, porém, nada tinha a ver com a Newark de Philip
Roth ou a Brownsville de Alfred Kazin. Ele foi criado em
Westmount, um bairro majoritariamente anglofônico onde viviam os
judeus mais prósperos da cidade. Os homens de sua família,
sobretudo do lado paterno, estavam entre os “figurões” da Montreal
judaica. Seu avô era “provavelmente o judeu mais importante do
Canadá”, fundador de uma série de instituições voltadas para a
colônia judaica; após uma onda de pogroms antissemitas no então
Império Russo, ele promoveu a ida de inúmeros refugiados para o
Canadá. Nathan Cohen, o pai de Leonard, dirigia a Freedman
Company, a fábrica de roupas da família. A mãe do compositor,
Masha, vinha de uma família de imigrantes mais recentes. Era
adorável e depressiva. Tinha um espectro emocional “tchekhoviano”,
nas palavras de Leonard: “Tanto ria quanto chorava intensamente.” O
pai de Masha, Solomon Klonitzki-Kline, lituano, era um reconhecido
estudioso do Talmude, autor de um Léxico de Homônimos
Hebraicos. Leonard frequentou boas escolas, inclusive a Universidade
McGill, e, por algum tempo, a Universidade Columbia. Nunca se
queixou dos confortos que a família lhe proporcionou.

“Tenho um sentido tribal muito profundo”, ele contou. “Cresci


frequentando uma sinagoga construída por meus antepassados. Eu
sentava na terceira fila. Minha família era decente. Eram gente de
bem, pessoas que jamais negavam um aperto de mão. Então, nunca
fui rebelde.”

Quando Leonard tinha 9 anos, o pai morreu; foi nesse momento de


dor primal que ele pela primeira vez usou a linguagem como
sacramento. “Guardo algumas lembranças dele”, disse, e lembrou a
cerimônia fúnebre realizada na casa da família. “Descemos as escadas,
o caixão estava na sala.” Ao contrário do que prega o costume
judaico, os agentes funerários haviam deixado o caixão aberto. Era
inverno, e Cohen pensou nos coveiros: seria difícil cavar aquele solo
gelado. E ele viu seu pai descer à sepultura. “Depois voltei para casa,
fui até o armário dele e encontrei uma gravata-borboleta de laço
pronto. Não sei por que fiz isso, não sei explicar até hoje, mas cortei
uma das asas da gravata, escrevi alguma coisa numa folha de papel –
acho que uma espécie de despedida – e depois enterrei tudo num
buraco no quintal de casa. E deixei lá esse bilhete curioso… Uma
espécie de atração por uma resposta ritualizada a um acontecimento
impensável.”

Os tios de Cohen cuidaram para que Masha e seus dois filhos,


Leonard e a irmã, Esther, não passassem qualquer dificuldade
financeira depois da morte do patriarca. Leonard estudou; trabalhou
na fundição de seu tio, W. R. Cuthbert & Company, moldando pias e
tubos de metal, e na fábrica de roupas, onde adquiriu uma habilidade
que lhe foi muito útil em sua carreira de músico sempre em turnê:
aprendeu a dobrar ternos sem deixar vincos. Entretanto, como
escreveu num diário, sempre se imaginou escritor, “usando uma capa
de chuva, um chapéu amassado de aba caída por cima dos olhos
intensos, uma história de injustiça no coração, um rosto nobre demais
para a vingança, caminhando à noite por alguma avenida molhada,
acompanhado pela simpatia de um público incontável… amado por
duas ou três belas mulheres com quem jamais ficaria”.
A vida de astro de rock’n’roll nunca lhe havia passado pela cabeça.
Queria ser escritor. Como diz claramente Sylvie Simmons em sua
excelente biografia, I’m Your Man: A Vida de Leonard Cohen, a
formação do artista foi toda na área de letras. Ainda adolescente, seus
ídolos eram Yeats e García Lorca (deu o nome de Lorca a sua filha).
Na Universidade McGill, leu Tolstói, Proust, Eliot, Joyce e Pound, e
integrou um círculo de poetas no qual se destacava o canadense de
origem romena Irving Layton. Cohen, que publicou seu primeiro
poema, “Satan in Westmount”, aos 19 anos, disse certa vez a respeito
de Layton: “Ensinei Layton a se vestir, e ele me ensinou a viver para
sempre.”

Cohen também adorava música. Ainda menino, aprendeu todas as


canções da antiga coletânea de canções folk de esquerda, The People’s
Song Book. Escutava Hank Williams e outros cantores country no
rádio, e, aos 16 anos, envergando uma velha jaqueta de camurça do
pai, começou a tocar num conjunto de música country conhecido
como os Buckskin Boys.

Teve aulas informais de violão aos 20 e poucos anos, com um


espanhol que conheceu ao lado de uma quadra de tênis de um parque
de Montreal. Ao final de algumas semanas, aprendeu uma progressão
de acordes de flamenco. Quando, na quarta aula, o professor não
apareceu, Cohen ligou para a pensão onde o músico morava e soube
que ele havia se matado. Num discurso feito muitos anos depois, em
Astúrias, na Espanha, ele disse: “Nunca soube nada a respeito dele,
por que tinha vindo para Montreal… o que tinha ido fazer ao lado
daquela quadra de tênis, por que se suicidou… Foram aqueles seis
acordes que formaram a base de todas as minhas canções, de toda a
música que fiz na vida.”

Cohen adorava os grandes mestres do blues – Robert Johnson, Sonny


Boy Williamson, Bessie Smith – e os cantores-contadores de histórias,
como os francófonos Edith Piaf e Jacques Brel. Gastava suas moedas
nas vitrolas automáticas para ouvir The Great Pretender, dos Platters,
Tennessee Waltz, com Patti Page, e qualquer coisa gravada por Ray
Charles. Ainda assim, o surgimento dos Beatles o deixou indiferente.
“Eu me interesso pelas coisas que contribuem para a minha
sobrevivência”, ele disse. “Tive namoradas que me irritavam muito
com a paixão que tinham pelos Beatles. Não as condeno, e de algumas
canções, como Hey Jude, gostei muito. Mas eles não me pareciam
essenciais ao tipo de alimento de que eu precisava.”

O
s mesmos ouvidos que pela primeira vez atentaram a Bob
Dylan, em 1961, também descobriram Leonard Cohen em 1966.
Pertenciam a John Hammond, homem bem-nascido aparentado
aos Vanderbilt e de longe o produtor e descobridor de talentos mais
intuitivo de toda a indústria fonográfica americana. Hammond foi
decisivo para as primeiras gravações de Count Basie, Big Joe Turner,
Benny Goodman, Aretha Franklin e Billie Holiday. Amigos que
acompanhavam apresentações de músicos folk na zona sul de Nova
York lhe falaram de Cohen, e Hammond ligou para ele, pedindo para
conhecê-lo.

Aos 32 anos, Cohen tinha publicado poesia e romance, mas, embora


um ano mais velho que Elvis Presley, era novato em matéria de
música. Vinha se dedicando a compor basicamente porque não
conseguia ganhar a vida escrevendo. Morava no 4º andar do Chelsea
Hotel, na rua 23W, em Manhattan, e passava os dias enchendo
cadernos. À noite, apresentava suas canções em clubes noturnos e
conhecia gente da área: Patti Smith, Lou Reed (admirador de seu
romance Beautiful Losers, de 1966), Jimi Hendrix (que tocou com ele
justo Suzanne) e, por uma única noite, Janis Joplin (giving me head on
the unmade bed/while the limousines wait in the street – “me
chupando na cama desfeita/enquanto as limusines esperam na rua”).

Um dia, depois de levar Cohen para almoçar, Hammond sugeriu que


eles fossem ao hotel do compositor; sentado na cama, em seu quarto,
Cohen tocou Suzanne; Hey, That’s No Way to Say Goodbye; The
Stranger Song e mais algumas canções.
Quando terminou, Hammond deu um sorriso e disse: “Negócio
fechado.”

Alguns meses depois, Cohen vestiu um terno e foi até os estúdios da


Columbia Records, no centro de Nova York, para dar início a seu
primeiro disco. Hammond o incentivava ao final de cada sessão.
Depois de uma delas, chegou a dizer: “Bob Dylan que se cuide!”

As semelhanças entre Cohen e Dylan eram óbvias – ambos judeus,


literatos, cultores de imagens bíblicas e tutelados pelo mesmo
Hammond. Mas suas obras divergiam. Dylan, desde os primeiros
discos, buscava uma linguagem mais surrealista baseada na livre
associação, contaminada pela fúria criativa do rock’n’roll. As letras
de Cohen não eram menos carregadas ou criativas, nem menos
irônicas ou marcadas pelo autoquestionamento, mas ele era mais
claro, mais econômico e formal – mais litúrgico.

Ao longo das décadas, Dylan e Cohen se encontraram em várias


ocasiões. No começo dos anos 80, Cohen foi assistir a uma
apresentação de Dylan em Paris e, na manhã seguinte, num café,
conversaram sobre seus trabalhos mais recentes. Dylan tinha um
interesse especial por Hallelujah. Mesmo antes de 300 cantores
gravarem versões diferentes da canção, bem antes que ela fosse
incluída na trilha sonora de Shrek e se tornasse, além disso, número
quase obrigatório em todas as temporadas de American Idol, Dylan já
reconhecia a beleza dessa união entre o sagrado e o profano. E
perguntou a Cohen em quanto tempo ele havia composto a canção.

“Dois anos”, Cohen mentiu.

Na verdade, ele levara cinco anos para concluir Hallelujah. Depois de


rascunhar dezenas de estrofes, passou anos definindo quais entrariam
na versão final. Várias vezes, no processo de escrevê-la, acabou de
cuecas, batendo com a cabeça no chão de quartos de hotel.

Cohen disse a Dylan: “Eu gosto muito de I and I” – uma canção de


Dylan, do disco Infidels. “Quanto tempo você levou para compor I
and I?”

“Uns quinze minutos”, Dylan respondeu.

Quando pedi que Cohen comentasse esse episódio, ele disse: “Foram
essas as cartas que nos couberam.” Quanto à observação de Dylan, de
que as canções de Cohen “pareciam preces”, Cohen disse que nunca
havia se disposto a sondagens mais profundas sobre os mistérios da
criação.
“Não tenho muita ideia do que eu faço”, ele disse. “É difícil descrever.
Agora que estou me aproximando do fim da vida, tenho cada vez
menos interesse em discutir avaliações ou opiniões que só podem ser
muito superficiais sobre o significado da minha vida ou da minha
obra. Se já não era dado a isso quando tinha saúde, agora sou menos
ainda.”

Embora tendesse a se inspirar mais na tradição da música country,


Cohen se entusiasmou ao ouvir Bob Dylan em Bringing It All Back
Home e Highway 61 Revisited. Uma tarde, anos depois, quando os
dois já eram amigos, Dylan foi procurá-lo em Los Angeles e disse que
queria lhe mostrar uma propriedade que tinha comprado. E seguiram
até ela no carro de Dylan.

“Uma das canções dele tocou no rádio”, lembrou Cohen. “Acho que
era Just Like a Woman, ou coisa assim. Quando a canção chegou ao
trecho antes do refrão, normalmente chamado de ponte, ele disse:
‘Essa ponte já foi cruzada por muitas jamantas.’ Para me mostrar
como era poderosa.”

Dylan continuou dirigindo. Depois de algum tempo, contou que um


compositor famoso daqueles tempos tinha dito a ele: “Tudo bem, Bob,
você é o Número 1. Mas eu sou o Número 2.”
Cohen deu um sorriso. “Mas então Dylan me disse: ‘Na minha
opinião, Leonard, o Número 1 é você. Eu sou o Número Zero.’
Querendo dizer, da maneira como entendi na ocasião – e longe de
mim a ideia de discutir essa avaliação –, que a obra dele ultrapassa
todas as medidas, enquanto a minha é muito boa.”

D
ylan, que tem 75 anos, não costuma se prestar muito ao papel
de crítico musical, mas não se furtou a discorrer sobre Leonard
Cohen. Fiz uma série de perguntas sobre o Número 1, e ele
respondeu detalhadamente, numa crítica esmerada – nada críptica
nem ambígua.

“Quando falam de Leonard, as pessoas não costumam mencionar as


melodias, que para mim, tanto quanto as letras, são da maior
genialidade”, disse Dylan. “Inclusive as linhas de contraponto – que
dão um caráter celestial e elevação melódica a todas as suas canções.
Que eu saiba, não há mais ninguém que chegue perto disso na música
moderna. Mesmo uma das canções mais simples dele, como The Law,
construída a partir de dois acordes fundamentais, tem linhas de
contraponto essenciais, e qualquer um que cogite apresentar a canção,
ou adore sua letra, não tem como ignorar as linhas de contraponto
originais.”
E continuou: “O talento, ou a genialidade, de Leonard tem uma
ligação com a música das esferas. Na canção Sisters of Mercy, por
exemplo, os versos se sucedem em quatro linhas melódicas diferentes
que se repetem a intervalos regulares… mas a música não tem nada
de previsível. A canção começa com um verso que é uma declaração
de fato. Em seguida, tudo pode acontecer, e acontece – Leonard deixa
acontecer. E num tom que não tem nada de condescendente ou
irônico. Ele é um amante contumaz que se recusa a reconhecer a
rejeição. Leonard está sempre acima de tudo. Sisters of Mercy tem
versos e mais versos de métrica perfeita em quatro linhas bem
distintas de melodia, sem refrão, e vibra de tanto drama. A primeira
linha começa em tom menor. A segunda passa de menor para maior e
sobe, alterando a melodia e a variação. A terceira linha sobe ainda
mais, atingindo outro patamar, e em seguida a quarta retorna ao
começo. É um tema musical incomum e de simplicidade só aparente,
com a letra ou sem ela. Mas é tão sutil que o ouvinte nem percebe ter
embarcado numa viagem ao fim da qual foi parar num outro lugar,
com a letra ou sem ela.”

Numa turnê no final dos anos 80, Dylan tocou Hallelujah na forma de
um blues áspero com um refrão inesperado em crescendo. Sua
interpretação lembra menos a versão embelezada de Jeff Buckley que
alguma criação de John Lee Hooker. “Esta canção, Hallelujah, tem
muitas ressonâncias para mim”, disse Dylan. “Aqui também temos
uma melodia lindamente construída que sobe, evolui e depois
retorna. Mas tem um estribilho que lhe dá coesão, e que quando vem
mostra uma força muito grande. O ‘acorde secreto’ de que a letra fala
em sua primeira estrofe e esse outro aspecto da canção, que dá a
impressão de entender cada um de nós melhor do que nós mesmos,
têm muitas ressonâncias para mim.”

Perguntei a Dylan se ele preferia as composições mais recentes de


Cohen, tão marcadas por insinuações sobre o fim da vida. “Eu gosto
de todas as canções de Leonard, tanto as primeiras quanto as mais
recentes”, ele respondeu. “Going Home, Show Me the Place, The
Darkness. São todas grandes canções, profundas e verdadeiras como
sempre, e multidimensionais, com melodias surpreendentes. Fazem
pensar e nos provocam sentimentos. Gosto de algumas das mais
recentes ainda mais do que das primeiras. Ainda assim, as primeiras
têm uma simplicidade que também me agrada muito.”

Dylan defendeu Cohen da surrada acusação de criar músicas para


ouvir cortando os pulsos. E o comparou a um outro imigrante judeu
russo, o autor de Easter Parade. “Não vejo o menor desencanto nas
letras de Leonard”, comentou Dylan. “Elas têm sempre um
sentimento direto, como se ele estivesse dizendo alguma coisa numa
conversa, falando o tempo todo – mas sem que o ouvinte se canse de
escutar. Leonard é um descendente perfeito de Irving Berlin, talvez o
único compositor popular da história moderna a quem ele possa ser
associado. As canções de Berlin produziam o mesmo efeito. Berlin
também estava conectado a algum tipo de esfera celestial. E, como
Leonard, também não deve ter tido uma formação musical clássica.
Tanto um como o outro simplesmente captam essas melodias que a
maioria de nós só consegue conquistar à custa de muito esforço. As
letras de Berlin também se encaixavam muito bem nas canções, e
consistiam em metades de versos e versos inteiros distribuídos a
intervalos surpreendentes, alongando certas palavras. Tanto Leonard
quanto Berlin são incrivelmente talentosos. Leonard, em especial, usa
progressões de acordes similares a uma forma clássica. Ele é um
músico muito mais engenhoso do que a gente imagina.”

A
presentar-se em público sempre deixava Cohen nervoso. Sua
primeira tentativa para valer ocorreu em 1967, quando Judy
Collins o convidou para cantar com ela no Town Hall, em Nova
York, num concerto contra a Guerra do Vietnã. A ideia era fazê-lo
estrear interpretando Suzanne, uma de suas primeiras canções, que
Collins transformara num grande sucesso depois de ouvi-la pelo
telefone, cantada pelo próprio.

“Não vai dar, Judy”, ele disse. “Vou morrer de vergonha.”


Em suas memórias, Collins conta que finalmente conseguiu convencê-
lo. Mas naquela noite, das coxias, ela viu que Cohen – “com as pernas
tremendo nas calças” – passava por sérias dificuldades. Depois da
metade da primeira estrofe, ele parou e murmurou um pedido de
desculpas. “Não consigo continuar”, ele disse, e saiu do palco.

Nos bastidores, Cohen apoiou a cabeça no ombro de Collins enquanto


ela tentava fazê-lo voltar, sob gritos encorajadores da plateia. “Não
posso”, ele disse. “Não vou conseguir.”

“Vai, sim”, ela respondeu, e ele acabou voltando ao palco, sob a


aclamação do público, e cantou Suzanne até o fim.

A partir de então, Cohen se apresentou em milhares de concertos por


todo o mundo, mas cantar em público só ficou fácil depois dos 70
anos. Ele não era daqueles músicos que dizem se sentir mais vivos e à
vontade no palco. Embora tenha desenvolvido algumas estratégias
eficazes para conseguir cantar em público – uma abnegação
contrariada, drogas, bebida –, o ato de se apresentar ao vivo muitas
vezes o fazia sentir-se como “um papagaio acorrentado ao poleiro”. E
Cohen também era perfeccionista: um clássico como Famous Blue
Raincoat ainda lhe parecia “inacabado”.
“Isso porque você nunca alcança a qualidade que gostaria – é essa a
causa do nervosismo”, Cohen me disse. “E a primeira vez que me
apresentei com Judy Collins não foi a última em que tive essa
sensação.”

Em 1972, Cohen, então acompanhado por uma formação mais


completa de músicos e cantoras de apoio, chegou a Jerusalém ao final
de uma longa turnê. Para ele, o simples fato de estar naquela cidade
tinha um significado especial. (No ano seguinte, durante a guerra
com o Egito, Cohen foi para Israel esperando substituir alguém que
tivesse sido convocado. “Eu me sinto comprometido com a
sobrevivência do povo judeu”, ele disse a um entrevistador, à época.
Acabou se apresentando para os soldados no front, frequentemente
várias vezes por dia.) No palco, Cohen começou cantando Bird on the
Wire. E parou, assim que o público recebeu os primeiros acordes e a
primeira frase com uma onda de aplausos.

“Fico muito satisfeito de vocês reconhecerem as minhas canções”, ele


disse. “Mas só de estar aqui já me sinto apavorado, e fico com a
sensação de que alguma coisa está errada sempre que vocês começam
a aplaudir. Então, será que ao reconhecerem a música vocês poderiam
só abanar as mãos?”
Tornou a tropeçar no começo, e o que num primeiro momento
poderia parecer charme agora se revelava o mais genuíno sinal de
ansiedade. “Peço que tenham um pouco de paciência”, ele disse.
“Para mim, essas canções se transformam em meditações, e às vezes
não consigo decolar do modo certo e acho que estou enganando a
plateia. Vou tentar de novo. Se não funcionar, paro no meio. Não tem
por que mutilar uma canção só para não passar vergonha.”

E Cohen começou a cantar One of Us Cannot Be Wrong: “I lit a thin


green candle…”

E tornou a parar, com um riso nervoso. Mais hesitação, novas


tentativas de fazer graça.

“Eu também tenho os meus direitos aqui em cima do palco, sabiam?”,


ele disse com um sorriso. “Se eu quiser, posso ficar só falando.”

Àquela altura, era evidente que havia um problema. “Olhem, se a


coisa não melhorar, vamos encerrar o concerto e eu devolvo o
dinheiro”, disse Cohen. “Sinceramente, estou com a sensação de que
hoje estou enganando vocês. Há noites em que você sente que decola
do chão, e noutras não há meios de levantar voo. E não adianta
mentir. Hoje não estamos conseguindo decolar, e a Cabala ensina…”
O público riu à menção dos textos místicos judaicos. “A Cabala ensina
que, se você não consegue sair do chão, é melhor ficar por lá mesmo!
Não, a Cabala ensina que, a menos que Adão e Eva fiquem de frente
um para o outro, Deus não pode sentar em seu trono, e por algum
motivo as minhas partes homem e mulher estão se recusando a ficar
frente a frente na noite de hoje – e Deus não tem como se instalar em
seu trono. E é terrível que isso aconteça em Jerusalém. Então vou
fazer o seguinte: agora vamos deixar o palco e tentar alguns
momentos de meditação profunda no camarim, para nos
recuperarmos.”

Comentei com Cohen sobre esse incidente – está registrado num


documentário que circula na internet –, e ele se lembrava bem do
episódio.

“Estávamos no final da turnê”, ele contou. “Achei que nada estava


indo bem, voltei para o camarim e encontrei um pouco de ácido na
caixa do meu violão.” E tomou o ácido. Enquanto isso, o público
começou a cantar para Cohen, como que para inspirá-lo e chamá-lo
de volta. Era uma canção tradicional judaica, Hevenu Shalom
Aleichem [A paz esteja convosco].

“Certas plateias são de uma gentileza…”, lembrou Cohen. “Então


voltei para o palco com a banda… e decidi cantar So Long, Marianne.
Vi Marianne bem à minha frente, e comecei a chorar. Virei para trás e
todos os músicos da banda também estavam chorando. E então
aconteceu uma coisa que hoje parece quase cômica: a plateia inteira se
transformou num único judeu! E o judeu me dizia: ‘O que mais você
tem para me mostrar, garoto? Já ouvi muita coisa, e isso aí não me
impressiona tanto assim.’ Era o lado cético da nossa tradição, não só
amplificado, mas se manifestando como se fosse uma única criatura
gigantesca! Estar sob julgamento nem chega perto de descrever a
coisa toda. Experimentei uma anulação e uma irrelevância que
legitimaram a sentença, porque esses sentimentos sempre estiveram
presentes na minha psique: com base no que você vem aqui e se
manifesta? Para quê, e para quem? Quão profunda é a sua
experiência? Alguma coisa do que você tem a dizer tem algum
significado?… Acho que essa situação realmente me levou a
aprofundar minha prática. Cavar mais fundo, até onde fosse, levar
tudo mais a sério.”

De volta ao camarim, Cohen chorava copiosamente. “Não vou


conseguir”, ele disse. “Não estou gostando disso, e ponto final. Então
vou embora.”

E saiu mais uma vez para conversar com a plateia.

“Escutem, amigos, eu e a minha banda fomos chorar no camarim.


Estamos muito mal para continuar. Mas eu queria agradecer a todos e
desejar boa noite.”

No ano seguinte, declarou à imprensa, em tom meio sério, que a


“vida de roqueiro” era demais para ele. “Não me vejo levando uma
vida cheia de muitos bons momentos”, disse a um repórter da
Melody Maker. “E por isso decidi largar tudo. E ir embora.”

P
or muitos anos, os discos de Cohen eram mais reverenciados do
que comprados. Embora vendessem razoavelmente bem, nem
chegavam perto da escala dos principais nomes do rock. No
início da década de 80, quando entregou à gravadora as canções de
Various Positions – um disco magnífico, trazendo entre outras
Hallelujah, Dance Me to the End of Love e If It Be Your Will –, Walter
Yetnikoff, presidente da cbs Records, discutiu a seleção das faixas
com ele.

“Escute, Leonard”, disse Yetnikoff, “a gente sabe que você é demais, a


gente só não sabe se você é bom.” Pouco depois, Cohen tomou
conhecimento de que a cbs tinha decidido não lançar o disco nos
Estados Unidos. Anos mais tarde, ao receber um prêmio, ele
agradeceu à gravadora: “Sempre me comoveu o comedimento do
interesse deles por minha obra.”
Suzanne Vega, cantora e compositora de pouco menos de 60 anos, às
vezes conta em seus shows uma história engraçada sobre como a
admiração por Cohen servia de senha. Quando tinha 18 anos, Vega
ensinava dança e canto popular numa colônia de férias nos montes
Adirondacks. Certa noite, conheceu um rapaz bonito, conselheiro de
outra colônia de férias não distante da sua. E a primeira coisa que ele
lhe perguntou foi: “Você gosta de Leonard Cohen?”

Isso foi há quase quatro décadas e, pelo que Vega se lembra, àquela
altura os admiradores de Cohen compunham uma espécie de
“sociedade secreta”. E mais: havia uma forma correta de responder à
pergunta semi-inocente do rapaz: “Sim, eu adoro Leonard Cohen –
mas só em certos estados de espírito.” Senão o interlocutor poderia
achar que você sofria de depressão.

No entanto, como o rapaz em questão era inglês, o que o liberava da


“animação forçada” dos americanos, ele respondeu: “Adoro Leonard
Cohen o tempo todo.” E o resultado foi um caso amoroso que duraria
até o fim do verão.

Nos anos seguintes, as canções de Cohen foram fundamentais para a


própria Suzanne Vega desenvolver o rigor e o lirismo de sua arte. “A
maneira como ele escreve sobre coisas complicadas”, ela me declarou
recentemente, “é extremamente íntima e pessoal. Dylan transportava
os ouvintes para os pontos mais distantes do universo em expansão,
nos oito minutos de Mr. Tambourine Man, e eu adoro o que ele
criava, mas isso não tem nada a ver com o que eu fazia ou podia vir a
fazer – não era muito desse mundo. Já as canções de Leonard
combinam detalhes muito concretos com uma sensação de mistério,
como uma prece ou um sortilégio.”

E ainda havia mais uma coisa. Certa vez, depois que Cohen e Vega
ficaram amigos, ele ligou e convidou-a para visitá-lo em seu hotel. Os
dois se encontraram à beira da piscina, e Cohen perguntou se ela
queria ouvir sua última canção.

“E enquanto eu escutava Leonard recitar a canção – que era bem


comprida –, várias e várias mulheres, todas de biquíni, foram se
acomodando nas espreguiçadeiras atrás dele”, relembra Vega.
“Quando ele terminou, perguntei se havia reparado em todas aquelas
mulheres de biquíni instaladas perto dele. E sem mover um músculo
do rosto, sem olhar em volta, Leonard respondeu: ‘Funciona
sempre.’”

Um mundo cheio dessas tentações cobrava caro, não era só feito de


recompensas. Nos anos 70, Cohen teve dois filhos, Lorca e Adam,
com a mulher com quem viveu sem se casar, Suzanne Elrod. A
relação se esgotou mais ou menos no fim da década. Viajar tinha seus
encantos, mas também era desgastante. Em 1993, ao fim de uma
turnê, Cohen sentiu-se absolutamente extenuado. “Eu vinha bebendo
pelo menos três garrafas de Château Latour antes de cada
apresentação”, ele contou. “A conta dos vinhos era enorme. Mesmo
naquela época, acho que custava mais de 300 dólares a garrafa. Mas
combinava tão bem com a música! Não sei por quê. Quando tentei
tomar o Latour sem me apresentar em seguida, o efeito foi zero.
Poderia ter tomado um vinho ordinário qualquer. Quer dizer, tanto
fazia”.

Ao mesmo tempo, a longa relação que manteve com a atriz Rebecca


De Mornay começava a se desfazer. “Ela percebeu quem eu era no
fundo”, disse Cohen. “E viu que eu era um sujeito que, no final das
contas, simplesmente não conseguiria corresponder. Não me casaria
de novo, não teria mais filhos e assim por diante.” De Mornay, que
continuou amiga de Cohen, declarou à biógrafa Sylvie Simmons que
ele “tinha todas essas relações com as mulheres em que não se
comprometia a sério… enquanto mantinha uma relação duradoura
com a carreira, embora achasse que era a última coisa que queria
fazer”.
esde os dias em que recitava preces em hebraico ao lado dos tios, na

D
sinagoga do seu avô, Cohen sempre esteve numa busca
espiritual. “Qualquer coisa: catolicismo, budismo, lsd; para
mim serve qualquer coisa que funcione”, ele disse certa vez. No
final dos anos 60, quando vivia em Nova York, estudou por um
tempo num centro de cientologia e saiu com um certificado em
“Gradiente iv”. Em tempos menos remotos, passou várias manhãs de
shabat e noites de segunda-feira na sinagoga Ohr HaTorah, no Venice
Boulevard, conversando sobre textos cabalísticos com o rabino local,
Mordecai Finley. Em comemorações de Rosh Hashaná e do Yom
Kippur, Finley, para quem Cohen era “um grande escritor litúrgico”,
já leu do púlpito trechos de seu Book of Mercy, uma coletânea de
“salmos contemporâneos” lançada em 1984, profundamente
influenciada pelos Salmos de Davi. “Participei de todas essas
procuras que atraíram as mentes da minha geração naquele tempo”,
disse Cohen. “Dancei e cantei com os hare krishnas – nunca me
enrolei naquelas roupas nem entrei para a seita, mas experimentei de
tudo.”

Ao longo de sua vida, Cohen costumava mergulhar na leitura de uma


edição em vários volumes do Zohar, o texto fundamental do
misticismo judaico, da Bíblia hebraica e de textos budistas. Em nossas
conversas, ele falou dos evangelhos gnósticos, da cabala luriânica, de
vários livros de filosofia hindu, da Resposta a Jó, de Carl Jung, e da
biografia que Gershom Scholem dedicou a Sabbatai Sevi, místico
judeu que se autoproclamou Messias no século xvii. Cohen também
costumava percorrer os rincões espirituais da internet, onde ouvia as
palestras de Yakov Leib HaKohain, cabalista que já se converteu, pela
ordem, ao Islã, ao catolicismo e ao hinduísmo, e vive nas montanhas
californianas de San Bernardino na companhia de dois pit bulls e
quatro gatos.

P
or quarenta anos, Cohen seguiu o mestre zen japonês Kyozan
Joshu Sasaki Roshi. (Roshi é o tratamento honorífico usado
para um mestre venerado, e era assim que Cohen sempre se
referia a ele.) Roshi, que morreu em 2014 aos 107 anos, chegou a Los
Angeles em 1962, mas nunca aprendeu muito bem a língua de seu
país de adoção. Por meio de seus intérpretes, porém, adaptou vários
koans tradicionais japoneses para a iluminação de seus discípulos
americanos: “Como você pode se dar conta da natureza de Buda
enquanto dirige um carro?” Roshi era baixinho, corpulento e gostava
de tomar saquê e uísque escocês. “Eu vim aqui para me divertir”,
disse certa vez sobre sua permanência nos Estados Unidos. “Quero
que os americanos aprendam a rir de verdade.”
Até o início dos anos 90, Cohen costumava passar com Roshi, no
Centro Zen do Monte Baldy, na Califórnia, vários períodos de estudo
e meditação que se estendiam por dois a três meses a cada ano.
Considerava Roshi um amigo próximo, um mestre espiritual e uma
influência profunda em sua obra. E assim, pouco depois de voltar
para casa ao final da turnê do Château Latour, em 1993, Cohen tornou
a subir o monte Baldy. Dessa vez, ficou quase seis anos no alto da
montanha.

“Ninguém desembarca num mosteiro zen como turista”, Cohen


contou. “Tem gente que age assim, mas acaba indo embora ao final de
dez minutos, porque lá a vida é muito rigorosa. Você acorda às duas e
meia da manhã; os outros despertam às três, mas você precisa
acender os fogos no zendô, a sala de meditação. As cabanas só são
aquecidas algumas horas por dia. A neve entra por baixo das portas
de madeira mal-acabadas. Você passa metade do dia removendo neve
com uma pá. E a outra metade sentado no zendô. Num certo sentido,
você fica mais rijo. Se isso tem um aspecto espiritual ou não, é
discutível. Mas sempre ajuda você a se tornar mais resistente, e a
queixa passa a ser a resposta menos adequada a qualquer provação.
Só por isso, já é muito valioso.”

Cohen ocupava uma cabana bem pequena, que equipou com uma
cafeteira, uma menorá, um teclado e um laptop. Como os demais,
limpava as privadas. Tinha a honra de cozinhar para Roshi, e mais
tarde acabou se mudando para outra cabana, que se comunicava com
a do mestre por uma passarela coberta. Meditava várias horas por
dia, sentado em posição de Meio Lótus. Se ele, ou qualquer outro,
cochilasse durante a meditação ou deixasse a posição correta, um dos
outros monges se aproximava e, com uma vara de madeira, desferia
um golpe seco no ombro do sujeito.

“As pessoas têm essa ideia de que um mosteiro é um lugar de


serenidade e contemplação”, disse Cohen. “Mas não é nada disso. Na
verdade é um hospital, e muitos dos que vão parar lá mal conseguem
caminhar ou falar. Assim, boa parte da atividade consiste em fazer as
pessoas aprenderem a andar, falar, respirar e preparar as próprias
refeições, ou limpar a neve durante o inverno.”

Allen Ginsberg certa vez perguntou a Cohen como ele conciliava o


judaísmo e o zen. Cohen respondeu que não estava à procura de uma
nova religião, estava satisfeito com a sua. O zen não fazia menção
alguma a Deus, não exigia devoção a qualquer livro sagrado. Para ele,
o zen era mais uma disciplina, uma prática de estudo, que
propriamente uma religião. “Eu usava aquelas roupas porque ali era a
escola de Roshi, e o uniforme era aquele”, ele disse. Se Roshi fosse
professor de física na Universidade de Heidelberg, dizia Cohen, ele
teria aprendido alemão e ido morar em Heidelberg.
Roshi, perto do final de sua vida, foi alvo de denúncias envolvendo
abusos sexuais. Nunca foi formalmente acusado, mas algumas de
suas ex-alunas escreveram em chats da internet ou enviaram cartas ao
próprio Roshi relatando bolinações ou coerção de monjas e noviças.
Uma comissão budista independente concluiu que esse
comportamento teria ocorrido a partir dos anos 70, e que todos “que
decidiam falar a respeito eram silenciados, exilados, ridicularizados
ou punidos de outras formas”, contou o Times.

Certa manhã, Bob Faggen me levou de carro morro acima até o


Centro Zen. Antiga sede de um alojamento de escoteiros, o centro
compreende uma série de cabanas rústicas cercadas de cedros e
pinheiros. Àquela altura, tinha pouquíssimos ocupantes. Um monge
me disse que Roshi não tinha deixado sucessor e que o centro ainda
não havia se recuperado do escândalo. Cohen, por sua vez, se
esforçou para explicar as transgressões de Roshi sem desculpá-las.
“Roshi”, ele disse, “era um sujeito bem indecente.”

E
m 1996, Cohen se tornou monge, mas isso não o salvaguardou
da depressão que o atormentava havia muito – dois anos mais
tarde, ele sucumbiu. “Vivi às voltas com a depressão desde a
adolescência”, contou. “Períodos debilitantes, em que tinha
dificuldade até para levantar do sofá, se alternavam a épocas em que
eu funcionava plenamente, mas sempre sob o predomínio do ruído
de fundo da angústia.” Tentou antidepressivos. Tentou se livrar deles.
Nada funcionou. Finalmente, disse a Roshi que ia “descer da
montanha”. Na coletânea de poemas Book of Longing, escreveu:

I left my robes hanging on a peg


in the old cabin
where I had sat so long
and slept so little.
I finally understood
I had no gift
[1]
for Spiritual Matters.

Na verdade, porém, a busca de Cohen não terminara. Ele voltou para


casa e na semana seguinte tomou um avião até Mumbai e foi estudar
com outro guia espiritual. Alugou um quarto num hotel modesto e
compareceu diariamente às satsangs, sessões de discussão espiritual,
no apartamento de Ramesh Balsekar, ex-presidente do Banco da Índia
e mestre de Advaita Vedanta, uma doutrina hindu. Cohen havia lido
o livro de Balsekar, Consciousness Speaks [A Consciência Fala], que
prega a consciência universal única, sem “você” ou “eu”, e contesta o
livre-arbítrio individual, a mera ideia de que uma pessoa faz o que
quer.
Cohen viveu quase um ano em Mumbai, visitando Balsekar pela
manhã e passando o resto do dia nadando, escrevendo e caminhando
pela cidade. Por motivos que classificou de “impenetráveis”, sua
depressão cedeu. Ele estava pronto a voltar para casa. Essa história, e
a maneira como Cohen a contou, temperada de incerteza e modéstia,
lembrou-me o refrão de Anthem [Hino/Antífona], uma canção que
ele demorou dez anos para compor e gravou pouco antes de subir a
montanha:

Ring the bells that still can ring


Forget your perfect offering
There is a crack in everything
[2]
That’s how the light gets in.

Ainda que à época se visse livre da depressão, a crise seguinte não


tardou.

Salvo poucos luxos, Cohen não tinha a obsessão da opulência. “Meu


projeto era completamente diverso dos meus contemporâneos”, ele
disse. Seu círculo de Montreal valorizava a modéstia. “O ambiente
que permite a você trabalhar com um mínimo de distração e o
máximo de liberdade estética depende de uma atmosfera modesta.
Um palácio, um iate representariam um desvio imenso do projeto.
Minhas fantasias sempre foram na direção oposta. O modo como eu
vivia em Monte Baldy era perfeito para mim. Eu gostava da vida
comunitária, de viver numa cabana.”

Ainda assim, Cohen acumulou uma fortuna considerável com as


vendas de seus discos, seus concertos e os direitos de publicação de
suas canções. Hallelujah foi gravada tantas vezes e em tantos países
que Cohen, brincando, chegou a dizer que não permitiria novas
versões. O dinheiro que tinha lhe bastava com folga para dar toda
segurança aos dois filhos e à mãe deles, além de alguns outros
dependentes. Antes de se lançar a suas aventuras espirituais, Cohen
entregara o controle quase absoluto de seus interesses financeiros a
Kelley Lynch, administradora de seus negócios por dezessete anos e,
durante algum tempo, também sua namorada. Em 2004, contudo,
descobriu que suas contas estavam zeradas. Milhões de dólares
haviam desaparecido. Ele rompeu seu contrato com Lynch e abriu um
processo contra ela. A causa foi decidida em favor de Cohen,
destinando-lhe uma indenização de mais de 5 milhões de dólares.

No Tribunal Superior do Condado de Los Angeles, Cohen afirmou


em seu depoimento que Lynch ficara tão indignada com o processo
que havia começado a ligar para ele de vinte a trinta vezes por dia,
entupindo sua caixa de entrada com e-mails, alguns dos quais com
ameaças, e finalmente ignorando uma ordem judicial de afastamento.
Isso o deixou “muito sobressaltado”, segundo a matéria do jornal The
Guardian sobre o julgamento. Sempre que via “um carro reduzir a
velocidade”, ficava “preocupado”. Lynch foi condenada a dezoito
meses de prisão e mais cinco anos de condicional.

Depois de agradecer ao juiz e a seu advogado com a elegância


costumeira, Cohen se pronunciou sobre sua antagonista. “Eu rezo”,
ele disse ao tribunal, “para que a sra. Lynch se refugie nos sábios
ensinamentos de sua religião, que um espírito de compreensão
converta em remorso o ódio do seu coração, sua raiva em gentileza,
sua embriaguez letal de vingança em práticas humildes de
autotransformação.”

Cohen nunca recebeu a indenização que lhe foi concedida e, como


quando nos encontramos a situação ainda estava sub judice, ele
preferiu não falar a respeito. Mas uma coisa ficou clara: ele teve de
voltar aos palcos. Até os monges zen precisam merecer suas moedas.

O
encanto pessoal de Cohen tinha algo de irresistível. Quem
quiser uma prova que assista ao clipe disponível no YouTube,
Why It’s Good to Be Leonard Cohen [Por que É Bom Ser
Leonard Cohen]: Cohen é filmado nos bastidores enquanto uma linda
atriz com sotaque alemão tenta convencê-lo, diante de um camarim
repleto, a “ir para algum lugar” com ela, o que ele acaba recusando
constrangido. E seu encanto não era menor com os homens.

Assim, fiquei perplexo quando Faggen e eu voltamos à casa de Cohen


numa determinada tarde, certos de nossa pontualidade, e ele nos
informou, com uma severidade implacável, que estávamos atrasados.
Na verdade, Cohen, de terno escuro e chapéu de feltro, instalado em
sua cadeira hospitalar, nos passou o sabão mais intragável que levei
desde a escola primária. Sou um sujeito metódico, desses que nunca,
ou quase nunca, se atrasam; sempre chego ao aeroporto, como os
velhos, várias horas antes do embarque. Mas parece que ocorrera um
mal-entendido quanto ao horário da visita, e nossa mensagem de
texto para ele e sua assistente não tinha sido recebida. Cohen não
aceitou nossos reiterados pedidos de desculpas nem a explicação do
sucedido, e ainda nos lembrou de seus problemas de saúde. Aquilo
era um abuso do seu tempo. Uma violação. E mais: uma forma de
“maus-tratos a um idoso”. Mais desculpas nossas, mais recusas dele a
aceitá-las. Não era uma questão de irritação, nem era o caso de pedir
desculpas, continuou ele. Não estava com raiva, isso não, mas
precisávamos entender que nenhum de nós é uma “pessoa que faz
coisas”, nenhum de nós tem livre-arbítrio… E assim por diante.
Reconheci a linguagem de seu mestre de Mumbai. Mas nem por isso
fiquei menos magoado.
O sermão – gélido, enfático, terrível – estendeu-se por um bom
tempo. Senti-me humilhado, mas também caí na defensiva. Na
dinâmica que predomina em qualquer desabafo, quem fala fica mais
leve, mas quem escuta sente-se acuado e infeliz.

Finalmente, Cohen pôs-se a falar de outras coisas. E o assunto que o


deixou mais contente foi a turnê destinada a restaurar suas finanças,
depois de ter sido roubado. Em 2007, começou a planejar essa turnê
com uma banda completa de músicos: três cantoras nos vocais de
apoio, dois guitarristas, um baterista, um tecladista, um baixista e um
saxofonista (mais tarde substituído por um violinista). Ensaiaram por
três meses.

“Fazia quinze anos que eu não tocava nenhuma daquelas músicas”,


ele contou. “Minha voz tinha mudado. Meu alcance era outro. Eu não
sabia o que fazer. Não havia modo de transpor as posições que eu já
conhecia.” Em vez disso, afinou as cordas de seu violão dois tons
abaixo do normal, de modo que, por exemplo, a corda mi mais grave
passou a tocar o dó abaixo. A voz de Cohen sempre tinha sido íntima
e profunda, mas, com a idade e após uma infinidade de cigarros, ela
se transformara num extraordinário grunhido – rouco, confiante,
poderoso. Ao vivo, ele sempre extraía risadas da plateia com seus
versos de Tower of Song:
I was born like this, I had no choice
[3]
I was born with the gift of a golden voice

Neil Larsen, tecladista da banda de Cohen, contou que a preparação


foi meticulosa: “Ensaiamos quase tanto como se fôssemos gravar.
Repetimos e repetimos cada canção, fazendo infinitos ajustes. E ele
também aproveitava para decorar as letras. Geralmente, quando uma
turnê começa, ela ainda não está bem pronta. Mas essa não. Já
partimos totalmente preparados.”

Começaram pelo Canadá e dali seguiram para toda parte nos cinco
anos seguintes – foram 380 récitas, de Nova York a Nice, de Moscou a
Sydney. No início de cada apresentação, Cohen dizia que ele e a
banda iam “dar tudo que tinham”, e nunca mentiu. “Acho que ele
estava querendo competir com Bruce Springsteen”, brincou Sharon
Robinson, uma de suas cantoras e muitas vezes coautora, referindo-se
à duração dos espetáculos. “Em certas noites, os shows duravam
quase quatro horas.”

C
ohen tinha mais de 70 anos, e seu empresário fez o possível
para que o artista aproveitasse ao máximo as suas energias. A
produção era de primeira classe: um avião particular, em que
ele podia escrever e dormir; bons hotéis, onde podia ler e compor
com um teclado; um carro para levá-lo ao hotel no minuto em que
deixasse o palco.

Algumas das performances musicais mais memoráveis que Cohen


viu na vida foram de Alberta Hunter, a cantora de blues que nos anos
70 se apresentou por uma longuíssima temporada no Cookery Club,
no Greenwich Village, em Nova York. Hunter tinha passado décadas
afastada da música, trabalhando como enfermeira, e voltou a se
apresentar nos seis últimos anos de sua vida. Leonard Cohen seguiu
seu exemplo: um homem idoso mas cheio de vigor, cantando o
melhor que podia, horas a fio, várias vezes por semana.

“Todo mundo estava preparado, não só em relação às notas, mas


também em algo não dito”, lembrou Cohen. “No camarim, quando ia
se aproximando a hora do concerto, o comprometimento de todos era
palpável.” Dessa vez, não havia aquecimento com Château Latour.
“Eu não bebia nada. Tomava ocasionalmente meia cerveja Guinness
com Neil Larsen, mas não tinha mais interesse por álcool.”

A apresentação que vi, no Radio City Music Hall, em Nova York, foi
um dos espetáculos mais comoventes da minha vida. Cohen, um
velho mestre de sua arte, nos serviu a nata do seu catálogo com a
ajuda de um grupo inspirado de excelentes músicos. Em vários
momentos, interpretava suas músicas, além de simplesmente cantá-
las, dobrando um joelho em gratidão ao objeto de seu afeto ou
dobrando os dois para enfatizar sua devoção – ao público, aos
músicos, às canções.

A turnê não se limitou a restaurar (com folga) as finanças de Cohen –


também produziu um sentimento de satisfação raramente associado
ao compositor e cantor. “Certa vez perguntei a ele no ônibus: ‘Você
está gostando de se apresentar?’ E ele nunca admitia totalmente que
sim”, lembrou Sharon Robinson. “Mas um dia, depois que acabamos,
estive na casa dele e ele reconheceu que aquela turnê lhe havia
proporcionado uma plenitude; ela completou o ciclo de sua carreira
de um modo que ele não esperava mais.”

Em 2009, Cohen se apresentou pela primeira vez em Israel desde


1985, num estádio de Ramat Gan, e doou a renda para organizações
de paz israelo-palestinas. Também quis se apresentar em Ramallah,
na Cisjordânia, mas grupos palestinos julgaram a ideia politicamente
insustentável. Ainda assim ele insistiu, dedicando o concerto à causa
da “reconciliação, tolerância e paz”, e sua canção Anthem, aos
sobreviventes da violência. Ao final do espetáculo, Cohen ergueu as
mãos, num gesto rabínico, e recitou em hebraico o Birkat Kohanim, a
bênção sacerdotal, para a plateia.
“Não foi um gesto deliberadamente religioso”, Cohen me disse. “Sei
que foi descrito assim, e não me aborrece. Faz parte da falácia
intencional. Mas quando vejo James Brown percebo uma dimensão
religiosa. Qualquer coisa profunda me provoca isso.”

Quando perguntei se suas apresentações pretendiam exprimir uma


espécie de devoção, ele hesitou. “Será que a dedicação artística é
capaz de se encontrar com a devoção religiosa?”, ele retrucou. “Meu
ponto de partida é a dedicação artística. E sei que, se você estiver com
o espírito, ele vai tocar os outros humanos que estão assistindo. Mas
não me atrevo a partir da outra extremidade. É como pronunciar o
nome sagrado – uma coisa que não se faz. Mas se você está num dia
de sorte, tocado pela graça, e a plateia se encontra numa condição
especialmente benéfica, essas reações mais profundas se produzem.”

A última noite da turnê ocorreu em Auckland, na Nova Zelândia, no


final de dezembro de 2013, e foi encerrada por canções de despedida:
If It Be Your Will, que é quase uma prece, e depois Closing Time, I
Tried to Leave You e, finalmente, uma recriação de Save the Last
Dance for Me, originalmente gravada pela banda The Drifters. Os
músicos todos sabiam que era não só a noite final de uma longa
viagem mas, para Cohen, talvez a última viagem. “Todo mundo sabe
que tudo precisa acabar em algum momento”, disse Sharon Robinson.
“Por isso, quando saímos do palco, todo mundo estava pensando:
‘Acabou.’”

O
mais provável é que nunca mais houvesse uma turnê. Cohen só
pensava na família, nos amigos e no trabalho imediato. “Eu
tinha uma família para sustentar, não há nada de virtuoso
nisso”, ele me disse. “Nunca vendi tanto a ponto de me despreocupar
com dinheiro. Tinha dois filhos e a mãe deles para sustentar, além de
a mim próprio. E por isso jamais cogitei parar de todo. Trabalhar se
tornou um hábito. Além disso, preciso levar em conta a questão do
tempo, que é poderosa, com seu incentivo para deixar tudo
arrumado. Mas ainda não estou perto do fim. Acabei algumas coisas.
Não sei quantas outras vou conseguir deixar prontas, porque a esta
altura tenho sentido um cansaço profundo… Há horas em que preciso
me deitar. Não consigo mais tocar, e minhas costas também estão se
acabando depressa. As coisas espirituais, baruch Hashem [graças ao
Senhor], chegaram ao devido lugar, pelo que sou profundamente
grato.”

Cohen tinha poemas inéditos para rever, letras inacabadas para


completar e gravar ou publicar. Pensava preparar um livro em que os
poemas, como as páginas do Talmude, viriam emoldurados por
textos de interpretação.

“A grande mudança é a proximidade da morte”, ele disse. “Sou uma


pessoa muito arrumada. Gosto de deixar todos os laços amarrados, se
puder. Se não puder, também não há problema. Mas meu impulso
natural é terminar tudo aquilo que comecei.”

Cohen disse que tinha uma “canção bonitinha” em que vinha


trabalhando, uma de muitas, e, de repente, fechou os olhos e começou
a recitar a letra:

Listen to the hummingbird


Whose wings you cannot see
Listen to the hummingbird
Don’t listen to me.
Listen to the butterfly
Whose days but number three
Listen to the butterfly
Don’t listen to me.
Listen to the mind of God
Which doesn’t need to be
Listen to the mind of God
[4]
Don’t listen to me.
Ele abriu os olhos e parou por um instante. Depois falou: “Eu não
acho que eu vá conseguir terminar essas canções. Talvez, quem sabe,
eu ainda tenha fôlego, sei lá. Mas não pretendo me agarrar a uma
estratégia espiritual. Isso não. Eu ainda tenho trabalho a fazer. Cuidar
dos negócios. Estou pronto pra morrer. Espero que não seja muito
desconfortável. Isso é tudo pra mim.”

As mãos de Cohen doíam, por isso tocava violão com menos


frequência – “perdi minha ‘pegada’” –, mas ele me mostrou seu
sintetizador. Programou uma progressão de acordes com a mão
esquerda, apertou alguns botões para determinar a sonoridade e
tocou a melodia com a mão direita. A certa altura, escolheu um
“modo grego” e dali a pouco estava entoando uma canção de
pescadores gregos, como se de repente tivéssemos viajado no tempo
de volta à Taverna Douskos, “na noite profunda de estrelas fixas e
cadentes” da ilha de Hidra.

Em sua cadeira, Cohen rechaçava com um aceno qualquer ideia do


que poderia vir depois da morte. Eram coisas além da compreensão e
da linguagem: “Não procuro informações que provavelmente não
seria capaz de processar, mesmo que me fossem concedidas.”
Persistir, viver até a última gota, as pontas soltas, o trabalho — isso
sim o interessava. Uma canção de cinco anos atrás, Going Home,
deixava clara a sua ideia dos limites:
He will speak these words of wisdom
Like a sage, a man of vision
Though he knows he’s really nothing
[5]
But the brief elaboration of a tube

O
disco mais recente de Cohen começa com a canção-título, You
Want it Darker, e no refrão o cantor declara:

Hineni Hineni
[6]
I’m ready, my Lord

Hineni, em hebraico, significa “Eis-me aqui”, “Aqui estou”. É a


resposta de Abraão quando Deus lhe ordena o sacrifício de seu filho
Isaac. A canção era um claro anúncio que os preparativos se
encerraram: um homem, no final da vida, pronto para seu serviço e
sua devoção. Cohen pediu a Gideon Zelermyer, o cantor da sinagoga
Shaar Hashomayim, aquela que ele frequentou na Montreal de sua
juventude, para entoar os vocais de apoio. E, mesmo depois disso,
aquele homem sentado numa cadeira hospitalar estava longe de se
entregar ou admitir a derrota.
“Sei que a vida de todo mundo tem um aspecto espiritual, queira-se
ou não lidar com ele”, disse Cohen. “Esse aspecto sempre está
presente, e qualquer um pode senti-lo nas pessoas – o reconhecimento
da existência de alguma realidade em que não é possível penetrar,
mas que afeta o estado de espírito e a atividade. De modo que ele está
sempre ativo. E em certos momentos do dia ou da noite exige uma
resposta. Às vezes é só: ‘Você está perdendo muito peso, Leonard.
Está morrendo de qualquer jeito, não precisa exagerar.’ Vá comer um
sanduíche.”

E continuou: “O que eu quero dizer é que nessa hora você escuta a Bat
Kol.” A voz divina. “Você ouve essa realidade mais profunda
cantando pra você o tempo todo, e quase nunca consegue decifrar.
Mesmo quando eu não estava doente, já era sensível a ela. E nessa
altura do campeonato, é essa voz que eu escuto: ‘Leonard, continue
com aquilo que você tem que fazer.’ É uma coisa de compaixão, no
ponto em que eu me encontro. Mais do que em qualquer outro
momento da vida, não tem mais aquela voz dizendo: ‘Você está
fazendo merda.’ O que, afinal de contas, é uma bênção e tanto.”

[1]
Deixei meu hábito pendurado num prego/na velha cabana/onde
passei tanto tempo sentado e tão pouco dormindo./Finalmente
compreendi/que não tenho dom/para Questões Espirituais.

[2]
Toque os sinos que ainda tocam/Esqueça a oferenda
perfeita/Existe uma rachadura em tudo/É assim que entra a luz.

[3]
Nasci assim, não tive escolha/Nasci com o dom de uma voz de
ouro.

[4]
Atente para o beija-flor/Cujas asas não pode ver/Atente para o
beija-flor/Não faça caso de mim.// Atente para a borboleta/Cujos
dias são só três/Atente para a borboleta/Não faça caso de mim.//
Atente para a mente de Deus/Que não precisa existir/Atente para a
mente de Deus/Não faça caso de mim.

[5]
Ele vai pronunciar essas palavras profundas/Como um sábio, um
homem de visão/Embora saiba que na verdade/Não passa da breve
elaboração de um tubo.

[6]
Eis-me aqui, eis-me aqui/Estou pronto, meu Senhor.

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