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O desafio da complexidade1
Edgar Morin
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Edgar Morin. Ciência com consciência. Publicações Europa, 1994. 137-151.
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conhecimento. Num sentido, o pensamento complexo tenta ter em conta aquilo de que
se desembaraçam, excluindo-o, os mutiladores de pensamento, a que chamo
simplificadores e, portanto, luta não contra o incompleto, mas sim contra a mutilação.
Assim, por exemplo, se tentarmos pensar o fato de que somos seres simultaneamente
físicos, biológicos, sociais, culturais, psíquicos e espirituais, é evidente que a
complexidade reside no fato de se tentar conceber a articulação, a identidade e a
diferença entre todos estes aspectos, enquanto o pensamento simplificador ou separa
estes diferentes aspectos ou os unifica através de uma redução mutiladora. Portanto,
nesse sentido, é evidente que a ambição da complexidade é relatar articulações que são
destruídas pelos cortes entre disciplinas, entre categorias cognitivas e entre tipos de
conhecimento. De fato, a aspiração à complexidade tende para o conhecimento
multidimensional. Não se trata de dar todas as informações sobre um fenômeno
estudado, mas de respeitar as suas diversas dimensões; assim, como acabo de dizer, não
devemos esquecer que o homem é um ser bio-sociocultural e que os fenômenos sociais
são, simultaneamente, econômicos, culturais, psicológicos, etc. Dito isto, o pensamento
complexo, não deixando de aspirar à multidimensionalidade, comporta no seu cerne um
princípio de incompleto e de incerteza.
De qualquer forma, a complexidade surge como dificuldade, como incerteza e
não como clareza e como resposta. O problema é saber se há alguma possibilidade
de responder ao desafio da incerteza e da dificuldade. Muitos acreditaram durante muito
tempo, e talvez ainda acreditem, que o defeito das ciências humanas e sociais é não
poderem desembaraçar-se da complexidade aparente dos fenômenos humanos, para se
elevarem à dignidade das ciências naturais que, essas, estabeleciam leis simples,
princípios simples e faziam reinar a ordem do determinismo na sua concepção. Ora,
vemos atualmente que existe uma crise da explicação simples nas ciências biológicas e
físicas: desde então, o que pareciam ser os resíduos não científicos das ciências
humanas, a incerteza, a desordem, a contradição, a pluralidade, a complicação, etc.,
fazem hoje parte de uma problemática geral do conhecimento científico.
Devo, pois, indicar previamente e de uma forma não complexa as diferentes
avenidas que conduzem ao «desafio da complexidade».
A primeira avenida, o primeiro caminho é o da irredutibilidade do acaso ou da
desordem. O acaso e a desordem brotaram no universo das ciências físicas inicialmente
com a irrupção do calor, que é agitação-colisão-dispersão dos átomos ou moléculas;
depois com a irrupção das indeterminações microfísicas, e, finalmente, na explosão
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dos; um sistema que trabalha tem necessidade de energia fresca para sobreviver e deve,
portanto, ir buscar essa energia ao seu meio ambiente. Daí que a autonomia se
fundamenta na dependência relativamente ao meio ambiente e o conceito de autonomia
transforma-se num conceito complementar do de dependência, embora lhe seja também
antagônico. Por outro lado, um sistema autônomo aberto deve ser, ao mesmo tempo,
fechado, a fim de preservar a sua individualidade e a sua originalidade. Mais uma vez,
temos aqui um problema conceitual de complexidade. No universo das coisas simples, é
necessário “que uma porta esteja aberta ou fechada”, mas, no universo complexo, é
necessário que, um sistema autônomo esteja simultaneamente aberto e fechado. E
necessário estar dependente para ser autônomo. A proposição não é, evidentemente,
reversível e a prisão não dá a liberdade!
A oitava avenida da complexidade é o retorno do observador à sua observação.
Nas ciências sociais, era de uma forma absolutamente ilusória que se julgava eliminar o
observador. O sociólogo não está apenas na sociedade; de acordo com a concepção
hologramática, a sociedade também está nele; ele está possuído pela cultura que possui.
Como poderia ele encontrar o ponto de vista solar, o ponto de vista divino donde
julgaria a sua própria sociedade e as outras sociedades? Foi esta a carência lamentável
da antropologia do início deste século, em que os antropólogos como Lévy-Bruhl
pensavam que aqueles a quem eles chamavam “primitivos” eram adultos infantis que só
tinham um pensamento místico e mágico. Mas então - a pergunta foi feita por
Wittgenstein, entre outros - como é que eles são capazes de fabricar - com que astúcia
técnica e com que inteligência? - flechas reais e como é que eles são capazes de as atirar
e de matar verdadeiramente o animal, enquanto praticam feitiços e ritos mágicos? O
erro de Lévy-Bruhl vinha do seu ocidentalocentrismo racionalizador de observador
inconsciente do seu próprio lugar no devir histórico e da sua particularidade sociológica;
ingenuamente, ele julgava-se no centro do univeso e no topo da razão!
Donde, esta regra de complexidade: o observador-conceptor deve integrar-se na
sua observação e na sua concepção. Deve tentar conceber o seu hic et nunc
sociocultural. Tudo isto não é apenas o regresso à modéstia intelectual, é também o
retorno à aspiração autêntica à verdade. O problema do observador não se limita às
ciências antropossociais; doravante, diz respeito às ciências físicas; de forma que o
observador perturba a observação microfísica (Heisenberg); qualquer observação que
englobe aquisição de informação paga-se em energia (Brillouin); finalmente, a própria
cosmologia reintroduz o homem pelo menos no princípio chamado “antrópico” - não de
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entropia, mas de “anthropos” - segundo o qual a teoria da formação do universo deve ter
em conta a possibilidade da consciência humana e, bem entendido, da vida (Brandon
Carter).
A partir daqui, podemos formular o princípio da reintegração do conceptor na
concepção: a teoria, qualquer que ela seja e trate do que tratar, deve relatar o que
torna possível a produção dessa mesma teoria e, se ela não pode relatá-lo, deve saber
que o problema permanece em aberto. E mais: a complexidade está na própria origem
das teorias científicas, incluindo as teorias mais simplificadoras. Antes de mais, como
estabeleceram, de formas diversas, Popper, Holton, Kuhn, Lakatos, Feyerabend, há um
núcleo não científico em toda a teoria científica. Popper deu ênfase aos “pressupostos
metafísicos” e Holton salientou os themata ou temas obsessivos, que animam o espírito
dos grandes cientistas, a começar pelo determinismo universal, que é, simultaneamente,
postulado metafísico e tema obsessivo. Lakatos indicou que há naquilo a que ele chama
os programas de investigação um “núcleo duro” indemonstrável e Thomas Kuhn, em La
Structure des Révolutions Scientifiques, revela que as teorias científicas são organizadas
a partir de princípios que não têm qualquer relação com a experiência, que são os
paradigmas.
Por outras palavras, e trata-se de um paradoxo espantoso, a ciência desenvolve-
se, não só apesar do que há nela de não científico, mas também, graças ao que há nela
de não científico. A tudo isso acresce um problema-chave, que é o problema da con-
tradição. A lógica clássica tinha valor de verdade absoluta e geral e, desde que se
chegasse a uma contradição, o pensamento devia fazer marcha atrás; a contradição era o
sinal de alarme que indicava o erro. Ora, Bohr notou, a meu ver, um acontecimento de
importância epistemológica fundamental quando, não por fadiga mas por consciência
dos limites da lógica, suspendeu o grande jogo entre a concepção corpuscular e a
concepção ondulatória da partícula, declarando que era necessário aceitar a contradição
entre as duas noções tornadas complementares, visto que as experiências levavam
racionalmente a esta contradição.
Da mesma forma, quando se pensa na “grande explosão” cósmica, não se nota,
de maneira nenhuma, que é o passo empírico-racional que conduz à irracionalidade
absoluta. Com efeito, visto que se constatava uma dispersão das galáxias, era necessário
supor uma concentração originária e, visto que se descobria nos horizontes do universo
o testemunho fóssil de uma explosão, era necessário supor que esta explosão estava na
própria origem deste universo. Por outras palavras, é por razões lógicas que se chega a
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este absurdo lógico em que o tempo nasce do não tempo, o espaço do não espaço e a
energia do nada. A partir daí, está iniciado o diálogo com a contradição. Somos levados
a estabelecer uma relação simultaneamente complementar e contraditória entre as
noções fundamentais que nos são necessárias para conceber o nosso universo.
Por outro lado, chegou-se a outro tipo de limitação da lógica. O teorema de
Gõdel e a lógica de Tarski mostravam em conjunto que nenhum sistema explicativo
pode explicar-se totalmente a si próprio (Tarski) e que nenhum sistema formalizado
complexo consegue encontrar em si a sua própria prova. De uma forma mais clara, abre-
se um grande problema para o pensamento complexo: será que pode substituir-se a
lógica bivalente, dita aristotélica, por lógicas polivalentes? E necessário infringir esta
lógica? Em que condições? Não se pode nem escapar a esta lógica nem fechar-se dentro
dela; é necessário infringi-Ia mas regressar a ela. Por outras palavras, a lógica clássica é
um utensílio retrospectivo, seqüencial e corretivo, que nos permite corrigir o nosso
pensamento seqüência por seqüência, mas, logo que se trata do seu próprio movimento,
do seu próprio dinamismo e da criatividade que existe em qualquer pensamento, pois
bem, efetivamente, a lógica pode, quando muito, servir de muleta, nunca de pernas.
A complexidade parece negativa ou regressiva, visto que é a reintrodução da
incerteza num conhecimento que tinha partido em triunfo à conquista da certeza
absoluta. E preciso pôr luto por este absoluto. Mas o aspecto positivo, o aspecto
progressivo que pode dar a resposta ao desafio da complexidade é o ponto de partida
para um pensamento multidimensional. Qual é o erro do pensamento formalizador
quantificador que dominou as ciências? Não é, de maneira nenhuma, o fato de ser um
pensamento formalizador e quantificador, não é, de maneira nenhuma, o fato de pôr
entre parênteses o que não é quantificável nem formalizável. É o fato de ter acabado por
acreditar que o que não era quantificável ou formalizável não existia, sonho delirante,
porque nada é mais louco que a coerência abstrata.
É necessário reencontrar o caminho de um pensamento multidi mensional que,
evidentemente, integre e desenvolva formalização e quantificação, mas que não se fecha
dentro delas. A realidade antropossocial é multidimensional; abrange sempre uma
dimensão individual, uma dimensão social e uma dimensão biológica. O econômico, o
psicológico, o demográfico, que correspondem a categorias disciplinares especializadas,
são outras tantas faces de uma mesma realidade; são aspectos que, evidentemente, é
necessário distinguire tratar como tais, mas não devem ser isolados e tornados não
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claramente determinado, com rigor e exatidão, como sucedeu com as leis da natureza,
mas também entrar no jogo do claro-obscuro que é o da complexidade.
O imperativo da complexidade é também pensar organizadamente; é
compreender que a organização não se resume a alguns princípios de ordem, a algumas
leis; a organização necessita de um pensamento complexo extremamente elaborado. Um
pensamento de organização que não compreenda a relação auto-eco-organizadora, isto
é, a relação profunda e íntima com o meio ambiente, que não compreenda a relação
hologramática entre as partes e o todo, que não compreenda o princípio da
recursividade, tal pensamento está condenado à chateza, à trivialidade, quer dizer, ao
erro...
Estou convencido de que um dos aspectos da crise do nosso século é o estado de
barbárie das nossas idéias, o estado de pré-história do espírito humano que ainda é
dominado pelos conceitos, pelas teorias, pelas doutrinas que ele produziu, exatamente
como pensámos que os homens arcaicos eram dominados pelos seus mitos e pela sua
magia. Os nossos predecessores tinham mitologias mais concretas. Nós sofremos o
controle de poderes abstractos. Daí que o estabelecimento de diálogos entre os nossos
espíritos e as suas produções coisificadas em idéias e sistemas de idéias seja uma coisa
indispensável para defrontar os problemas dramáticos do fim deste milênio. A nossa
necessidade de civilização abrange a necessidade de uma civilização do espírito. Se
ainda podemos ousar ter esperança em alguns melhoramentos, em algumas alterações
nas relações dos humanos entre si (quero dizer não apenas entre impérios, não apenas
entre nações, mas entre pessoas, entre indivíduos e mesmo entre cada um e si próprio),
então este grande salto civilizatório e histórico abrange também, a meu ver, o salto em
direção ao pensamento da complexidade.
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