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Inhumas, ano 5, n. 17, jan.

2017
ISSN 2316-8102

Elogio ao Breu:
A Potência do Segredo na Arte da Performance
Luisa Marinho

O vento desarruma alguns poucos fios de cabelo. Mas é impossível


afastá-los do rosto – as mãos estão atadas às costas. A escuridão que a faixa de
pano negro traz para os olhos. O não saber para onde se está indo. Amarrado,
vendado e com protetores de ouvido que lhe tiram a audição, Vito Acconci
aparece, na imagem da sua performance Security Zone (1971), em posição
vulnerável. Privado dos seus sentidos, a poucos passos de cair no rio. E não está
só.

Figura 01: Vito Acconci, Security Zone. Píer 18, Nova York, Fevereiro de 1971.
Fotografia de Shunk-Kender. © Roy Lichtenstein Foundation

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Para guiá-lo nesse jogo de risco cego, o artista marcou um encontro, no


píer 18 da cidade de Nova York, com uma pessoa que ele conhece, mas não
confia. O píer, aquele visto tantas vezes em filmes noir1. O local das reuniões
fortuitas, onde o caminhante se esgueira pelas sombras. Aquele lugar que se
vai, sem ter a certeza do retorno para casa. A cidade não sabe o que acontece
nos abismos das águas turvas que a margeiam.
Como muitas obras performáticas, Security Zone é apresentada ao
público através do seu registro. Por dentro da moldura escura que cerca um
quadro negro com escritos e uma fotografia em preto e branco, se conhecerá a
peça (Figura 01). Refletindo sobre os diversos modos possíveis de criação,
recepção e engajamento formal, Phillip Auslander cria uma separação entre
duas categorias de registro das ações de performance: a documental e a teatral.
Na primeira, estão as obras que foram feitas para uma audiência presente, em
que os artistas criam documentos que assumem caráter de evidência de que os
atos realmente aconteceram e de que modo se deram. A performance, nesse
caso, é autônoma à sua produção documental que, além de função
comprobatória e descritiva, dá indicações através das quais a peça possa ser,
ainda que de maneira incompleta, reconstruída por quem venha a observar seus
resíduos em momento posterior ao ato. Já na segunda, e é nessa categoria que o
encontro do píer está inserido, o trabalho não é criado para uma plateia que
testemunha o ocorrido ao vivo, mas, ao contrário, são casos em que a
performance se dá para a câmera fotográfica, de vídeo, para gravadores de áudio
etc. A audiência irá encontrar-se com a obra somente através do fruto material,
dentre os quais se destacam produtos imagéticos, sonoros e textuais da
experiência.2
Assim como diversas outras peças de Vito Acconci, essa performance só
pôde acontecer sem a presença de observadores, e ser conhecida por meio dos
documentos gerados na experiência do encontro com a pessoa de quem ele

1
Vito Acconci, Security Zone, 1971. Whitney Museum of American Art. Ver em
<https://youtu.be/Mu3rSdo-2oA>. Acesso em: 12 de julho de 2016.
2
Cf. Philip Auslander, “A Performatividade da Documentação de Performance”. eRevista
Performatus, Inhumas, ano 2, n. 7, nov. 2013. Ver em:
<http://performatus.net/traducoes/perf-doc-perf/>. Acesso em: 08 de julho de 2016.

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próprio desconfia. Na teatralidade do registro, os eventos decorridos da


negociação tácita entre o corpo vulnerável do artista e aquela única pessoa que
pôde salvá-lo da beira da água escura são parcialmente mostrados para, então,
seus efeitos permanecerem em misteriosos matizes cinzentos.
À sua frente, o homem que não tem a confiança de Acconci o toca, pela
cintura. As mãos espalmadas e a posição dos corpos, no momento congelado
pelo ato fotográfico, reforçam o caráter dúbio da proposição de Security Zone. O
fatiamento do tempo, o corte nesse instante da fotografia deixa, a quem olha, o
abandono à condição do não saber. A ideia de Instante Decisivo, de Henri
Cartier-Bresson, se enquadra bem dentro da perspectiva dessa ambiguidade. O
fotógrafo moderno ressalta a importância do uso do dispositivo para a captação
de um momento fugidio, em que aquele que pressiona o botão da câmera
aguarda a melhor situação para fazer com que a imagem aconteça. A cortina do
obturador deverá abrir caminho para a queima do negativo em um tempo
preciso, em que a imagem irá encontrar todos os elementos de que necessita
para estar em perfeito equilíbrio, de composição e narrativa.3
Na fotografia, o movimento do homem pode ser interpretado como um
apoio a Acconci, para que este não caia para trás, atingindo as águas, ou como
um ataque, um empurrão ou uma ameaça de jogá-lo para longe, em situação de
extremo risco. Angela Materno, comentando a relação entre o pensamento de
Walter Benjamin e o teatro de Bertold Brecht, destaca que o método do corte,
tão presente na obra brechtiana, é matéria prima para a reflexão do filósofo
sobre a questão do gesto. Para Benjamin, o gesto seria um ínfimo momento,
separado do fluxo contínuo das ações, que possui corpo próprio dificilmente
passível de falsificações e que apresenta um começo e um fim determinados.4 A
imagem eleita por Acconci está repleta desta materialidade da interrupção,
gestual e fotográfica, do ato performativo. O gesto cria tensão. Sobra ao
observador o arrebatamento frente à potência dramatúrgica desse instante
congelado.

3
Cf. Henri-Cartier Bresson, O Imaginário Segundo a Natureza, p. 15-37.
4
Angela Materno, "Releituras de 'O Autor como Produtor': Walter Benjamin, O Teatro e A
Técnica". Em Flora Süssekind; Tânia Dias (orgs.), A Historiografia Literária e As Técnicas
de Escrita: Do Manuscrito ao Hipertexto, p. 313-328.

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Ainda que o emoldurado se apresente, por conter em si o elemento


fotográfico, como índice 5 do ocorrido, estamos impossibilitados de saber
detalhes do evento. A imagem, em conjunto ao texto, cria um enquadramento
narrativo muito particular, distante de um relato objetivo e esclarecedor. Acconci
se utiliza de interessante estratégia de escrita para manter a característica
sigilosa dos acontecimentos passados no píer. Ao descrever a sua ação, não a
faz ao público. Dirige suas palavras ao homem do encontro, a única pessoa6 que
sabia exatamente o que houve naquela tarde de 1971. Essa decisão opera de
maneira dupla, instaurando um enigma e tensionando a atmosfera da peça.
A natureza conflituosa da relação entre as duas pessoas envolvidas na
performance fica, no texto, explícita. “You know I don’t trust you.” [Eu não
confio em você. E você sabe disso.] Acconci coloca a problemática da confiança,
e da falta dela, ao outro. O homem sabe que não tem credibilidade junto ao
artista, e justamente por isso é o escolhido para ser seu guia durante a privação
dos sentidos que acontece no píer. O convite é audacioso e coloca essa relação
com a alteridade de maneira frontal e direta, salientando o potencial
desconforto da situação soturna que o indefeso vendado se encontra.
O texto serve não apenas como uma provocação ao seu opositor, mas,
principalmente, como estabelecimento de uma estranha cumplicidade com ele.
Ao descrever a ação a uma pessoa que lá estava e tudo viveu, Acconci se furta de
entrar em detalhes. Escreve que uma confiança foi construída, mas deixa claro
que não sabe se a nova relação irá se estender para além da performance,
mantendo o motivo dessa oscilação nas sombras. Ao negar ao público o
conhecimento da minúcia das trocas que aconteceram entre aqueles dois
sujeitos, cria conivência entre eles, excluindo a todos os demais. O Stimmung,
as atmosferas e ambiências inerentes à escrita que “afetam os ‘estados de
espírito’ dos leitores”7, do texto de Security Zone, é o segredo entre os homens,

5
Rosalind Krauss, “Notes on the Index: Seventies Art in America”. October, The MIT Press,
volume 3, primavera de 1977, p. 68-81. Ver em: <http://www.jstor.org/stable/778437>. Acesso
em: 10 de julho de 2016.
6
É possível perceber, através da observação do enquadramento e ângulo da imagem, que o
fotógrafo está posicionado a uma significativa distância de Vito Acconci e seu antagonista.
7
Hans Ulrich Gumbrecht, Atmosfera, Ambiência, Stimmung : Sobre Um Potencial
Oculto da Literatura, p. 14.

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que desperta inquietudes aos que, cegos aos fatos, têm acesso apenas ao
quadro imagem-texto.
À pessoa que se depara com a obra através do seu registro, permanecem
incômodas perguntas. O que haveria feito o homem para ganhar o descrédito de
Acconci? O desconfiar é somente de Acconci em relação ao homem, ou será que
o homem também tem suas dúvidas sobre a idoneidade de Acconci? Teria o
artista se sentido verdadeiramente ameaçado em algum momento durante a
ação? O que realmente aconteceu com os corpos envolvidos naquele embate e
de que maneira saíram transformados da experiência? Na proposição de
Security Zone, os dois homens têm, no momento posterior à ação, mais do que
uma memória em comum: eles obtêm um pacto. Ficam com a lembrança e
todas as outras pessoas do mundo estão de fora, tentando espiar por trás da
muralha de estranhamento construída a partir da aura do segredo.
Quase quinze anos após o encontro no píer, a cidade de Nova York foi
palco de outro cruzamento de subjetividades que marcou a arte da performance.
Um homem, uma mulher. Um imigrante ilegal taiwanês, uma norte-americana
branca. Ele, com seu anseio por conhecer, com o corpo, os aspectos filosóficos
da experiência da vida. Ela, com a potência de moldura que têm as palavras,
transmutando o cotidiano em arte. Ele, a determinação do monge ateu. Ela,
cercada pelas imagens disciplinares da juventude imersa no espiritualismo
católico. Dois, que eram desconhecidos antes. Dois, que então passaram a
dividir os cômodos e as calçadas.8
O programa performativo9 de Rope Piece (Figura 02) de Tehching Hsieh e
Linda Montano determina que ambos deverão permanecer amarrados, um ao
outro, pela cintura durante um ano. A performance se iniciou em 4 de julho de
1983 e teve seu fim em 4 de julho de 1984. Cada um em sua mesa de trabalho,
cada um em sua cama. Um pouco mais de dois metros de corda os separavam.
Nunca portas.

8
Cf. Tehching Hsieh; Linda Montano, “One Year Art/Life Performance: Interview with Alex and
Allyson Grey”. Em Kristine Stiles; Peter Selz (orgs.), Theories and Documents of
Contemporary Art: A Sourcebook of Artists' Writings, p. 907-911.
9
Cf. Eleonora Fabião, “Programa Performativo: O Corpo-Em-Experiência”. Revista do Lume,
n. 4, Dezembro de 2013.

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Figura 02: Tehching Hsieh e Linda Montano, Art/Life One Year Performance 1983-1984
Statement. © 1984 Tehching Hsieh, Linda Montano | Cortesia dos artistas e Sean Kelly Gallery,
Nova York

Afirmando suas individualidades, seguiram sempre juntos. Na luta que é


aprender a lidar com a alteridade, ocuparam o mesmo espaço, dividindo um ano
inteiro. Não se tocaram, mas grunhiram, sussurraram lamúrias pelas
madrugadas, gesticularam com as mãos, mudaram um ao outro de direção com
bruscos puxões no cordão. E falaram. Os artistas produziram um acúmulo de
fitas cassetes com conversas que chegaram a ocupar até seis horas dos seus
dias.10 As intensas trocas entre a pessoa que precisa interromper o que está
fazendo para caminhar até a cozinha e o outro, que tem sede. A abstenção das
relações sexuais. Os problemas do cotidiano. A amizade construída. As
confissões trocadas. O que foi dito entre eles está gravado, compondo, em
conjunto aos textos e fotografias, o arquivo da performance.
Na teoria do arquivo, este não é apenas composto pela sua materialidade
e função de registro. Ele está repleto de uma “aura simbólica” própria, é um

10
Cf. Adrian Heathfield, “I Just Go In Life: Tehching Hsieh and Adrian Heathfield”. Em Adrian
Heathfield; Amelia Jones (orgs.), Perform, Repeat, Record: Live Art in History, p. 457-
467.

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lugar de memória onde reconstruímos acontecimentos e escrevemos história.11 O


arquivo tem a função de revelar uma ausência. Quando encontramos um
documento, se sabe que muitos outros registros sobre a coisa já não existem ou
estão em uma zona de inacessibilidade. Todas as informações, que se perderam
e permanecerão na obscurescência sobre um fato, se mostram pelo negativo. Se
essa característica do arquivo como “indício de uma falta” 12 é corrente em
documentos abertos, onde a imaginação já trabalha a operação de sentido nos
meandros dos dados aparentes, um documento mantido em segredo é um
gatilho, ainda mais potente, para o devaneio de quem tenta conhecer e
desvendar a essência caliginosa dos acontecimentos.
Com o intuito de preservar a intimidade da intensa e delicada relação
construída na performance, Hsieh e Montano optaram por manter em sigilo o
conteúdo das gravações. Em entrevista a Adrian Heathfield, o artista afirmou
que as fitas, que foram seladas para impossibilitar sua escuta, estariam, para a
obra, como a caixa preta está para os aviões. Tirar o lacre, revelar seu conteúdo,
ouvir as palavras que ali estão gravadas, seria como abrir uma caixa de Pandora
para dentro da escuridão que a privacidade contém na sua essência. 13 No
entanto, marcando a impossibilidade de se acessar o real da obra de arte através
do seu registro, secreto ou não, Tehching Hsieh estimula à pessoa que tiver
contato com a documentação de suas obras para que esta entre com dimensões
da sua própria história, chegando a compôr, para si, uma ideia do que foram
suas peças. No caso do sigiloso registro de Rope Piece, o observador é ainda
mais instigado. Cabe à imaginação fabricar o conteúdo das conversas, forjar
mentalmente as frases, ruídos e afetos que preenchem os incontáveis metros
de segredo que foram deitados sobre as fitas magnéticas. O documento,
portanto, deve ser visto em si como performance pela audiência e não apenas
como uma comprovação indicial de que a peça aconteceu.14 O filósofo Jacques
Derrida muito refletiu sobre a importância do segredo na literatura,

11
Cf. Pierre Nora, “Entre a Memória e a História: A Problemática dos Lugares”. Projeto
História, São Paulo, n. 10, dezembro de 1993, p. 7-28.
12
Henry Rousso, “O Arquivo ou O Indício de uma Falta”. Estudos Históricos, v. 9, n. 17, 1996.
13
Cf. Adrian Heathfield, op. cit.
14
Cf. Philip Auslander, op. cit.

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especialmente nos livros Paixões e Donner la Mort. Pesquisadora de sua obra,


Carla Rodrigues apresenta um olhar atento sobre o conceito do segredo em
Derrida, que pode ser um bom instrumento para pensar o potencial
dramatúrgico que o oculto traz para as obras Security Zone e Rope Piece.
A passagem bíblica que aponta o sacrifício de Abraão, ordenado por Deus
a imolar seu filho Isaque como demonstração da sua lealdade, é diversas vezes
retomada na tradição filosófica como disparador de questões do pensamento.
Um duplo segredo se dá nesse contexto: Abraão esconde de seus familiares o
comando da divindade, ao passo que Deus esconde de Abraão as suas
motivações para tal pedido. O abismo do segredo é a fonte do dilema ético na
qual o personagem do capítulo vinte e dois de Gênesis está encurralado. E é
neste momento do mysterium tremendum, quando Deus consegue enxergar o
sujeito mas este não é capaz de desvelá-lo, na sensação de ser retirado das
sombras para a vulnerabilidade de ser observado, no quando do “Ele me vê” ou
do “Ele tudo sabe”, que Derrida aponta que Abraão está tomado pelo imperativo
da responsabilidade infinita, que é o desengano trazido pelo reconhecimento da
heteronomia.15
Na medida desproporcional entre a visão divina, que a tudo alcança, e a
finitude obscura da experiência humana, ocorre um imediato confronto com o
desconhecido, com o externo. Derrida aponta que esse mysterium tremendum
está representado no cristianismo sob a égide da figura de Deus, mas que sua
forma estrutural é a mesma em todo o contato com qualquer outro ser. “Mesmo
que se tirasse Deus dessas frases – e se substituísse pela palavra alteridade –,
ainda nos restaria uma experiência de tremor.”16 O tremor é, portanto, aquilo
que acontece frente ao inacessível e ao que não podemos controlar. O outro é
abismo. Tudo é segredo.
A medida de responsabilidade estaria, portanto, em assumir eticamente
a dimensão do não saber. O sujeito, fadado a errar pelas sombras limítrofes do
conhecimento humano, deve incorporar outros paradigmas, que não o da

15
Carla Rodrigues, Rastros do Feminino: Sobre Ética e Política em Jacques Derrida,
p. 170-173.
16
Ibidem.

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certeza, para o fruir de sua existência. Torna-se necessário enlaçar-se com a


natureza da dúvida, assumindo a estrutura do talvez e do como se17 na fundação
estrutural do seu modo de pensamento.
Essa responsabilidade infinita está diretamente vinculada, na filosofia
de Derrida, ao campo do secreto. O que se esconde está sempre presente na
relação com a alteridade e é necessário para que o sujeito mantenha-se fora da
tradução daquele real, que aparece metaforizado na imposição divina, para a
linguagem. Há uma violência na demanda por uma quebra desse segredo
fundamental, conclamada por Kant através do seu chamado constante de trazer
tudo à luz, de apresentar justificativas a todos os atos e gestos do ser humano.18
Abraão estaria, se revelasse a natureza de seu segredo para os familiares,
tirando de si a responsabilidade da decisão e a passando para o outro. A escolha
do patriarca pelo sacrifício deveria se manter silenciosa para evitar que se
rarefizesse a singularidade do real dentro dos meandros do sistema de
enunciados, que aconteceria no momento do discurso. Falar sobre uma
experiência é uma tradução. Traduzir é torcer, modificar a realidade para que
esta se adéque aos paradigmas próprios da linguagem.
É nesse dilema ético, apresentado na passagem bíblica, que Derrida
sintetiza sua forma de operar a conceituação do segredo na literatura. Em
oposição à filosofia racionalista, o literário, que tem na sua ontologia a condição
da ficcionalidade, seria então o espaço de habitar para todos os segredos. Esse
modo do querer dizer particular da literatura abraça a condição enigmática do
seu próprio modo de fazer que, sem compromisso com uma busca pela verdade,
foge à objetividade e está sempre em negociação com a alteridade.19
Security Zone e Rope Piece têm a vibração do tremor da experiência que
é o contato com o outro. Ambas as peças apresentam uma “desconstrução da
representação”, característica da arte da performance, que se dá no
posicionamento objetivo de enunciados que desencadeiam atos de

17
Jacques Derrida, Papel-máquina.
18
Carla Rodrigues, op. cit.
19
Ibidem, “Paixões da Literatura: Ética e Alteridade em Derrida”. Sapere Aude, v. 4, n. 7, p. 47-
59. Ver em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/5473>. Acesso
em: 18 de julho de 2016.

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experimentação. 20 São propostas de fazer acontecer coisas no mundo,


diretamente e sem qualquer conotação alegórica. No entanto, ambas as obras
possuem muito de literário em sua constituição. Este não reside apenas nas
possibilidades de inscrições de sentido feitas por um observador, que tem o
potencial de deslocar quaisquer práticas para um lugar de instauração de uma
teatralidade, a partir de um determinado tipo de enquadramento intencional do
olhar, criando uma ruptura no cotidiano.21 Mas, para além do significativo dado
da teatralidade, o literário se faz efetivamente presente na constituição
dramatúrgica das peças, que está permeada pela atmosfera do segredo.
Trazendo o secreto para os registros das obras performáticas, os artistas
instauram nestas um potencial de fábula inerente à literatura, ramificando
possibilidades de criação semântica por aquele que entra em contato com as
narrativas disparadas pela intangibilidade do enigma. Na performance que
guarda seus segredos, esse lugar de memória do arquivo pode ser um espaço do
literário, uma faísca de criação, um dado aberto que propicia a fabricação de
sentidos e uma maneira de manter a obra viva, para além da temporalidade da
sua realização.
Se a performance ao vivo crava na memória como uma espora, sabemos
que logo após o ato ela irá desaparecer e seus registros documentais não serão
nunca suficientes para dar conta da amplitude da experiência22; o segredo do
arquivo da performance lida e opera semanticamente com uma inquietação
semelhante, pois ressalta ao público as suas impotência e impossibilidade de
conhecer. Nós, público de Security Zone e Rope Piece, somos como Abraão,
condenados à cegueira de uma espera infinita, arrebatados por uma ânsia
constante de que a revelação surja, mesmo que já saibamos, de antemão, que
aquilo que tanto queremos saber permanecerá nas trevas. A certeza da
impossibilidade de desvendar o segredo faz com que o conhecimento da sua

20
Cf. Eleonora Fabião, op. cit.
21
Cf. Patrícia Leonardelli, “Teatralidade e Performatividade: Espaços em Devir, Espaços do
Devir”. Revista Cena, n. 10, 2011. Ver em:
<http://seer.ufrgs.br/index.php/cena/article/view/20891/15303>. Acesso em: 12 de julho de
2016.
22
Cf. PHELAN, Peggy. “A Ontologia da Performance: Representação sem Produção”. Em
Revista de Comunicação e Linguagens.

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existência nos apareça intermitentemente, tocando na superfície da lembrança,


mas sem nunca fixar em nada. Na impossibilidade de agarrar a matéria-
pensamento do isso foi, ficamos reféns das imagens voláteis do que pode ter
sido, sempre vasculhando os fugidios cantos escuros do mistério.

BIBLIOGRAFIA
ACCONCI, Vito. Security Zone, 1971. Whitney Museum of American Art.
Ver em <https://youtu.be/Mu3rSdo-2oA>. Acesso em: 12 de julho de 2016.
AUSLANDER, Philip. “A Performatividade da Documentação de
Performance”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 7, nov. 2013. Ver
em: <http://performatus.net/traducoes/perf-doc-perf/>. Acesso em: 08 de
julho de 2016.
BRESSON, Henri-Cartier. O Imaginário Segundo a Natureza.
Barcelona: Editorial Gustavo Gili, SL, 2004.
DERRIDA, Jacques. Papel-Máquina. Trad. de Evando Nascimento. São
Paulo: Estação Liberdade, 2004.
FABIÃO, Eleonora. “Programa Performativo: O Corpo-Em-Experiência”.
Revista do Lume, n. 4, Dezembro de 2013.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Atmosfera, Ambiência, Stimmung :
Sobre Um Potencial Oculto da Literatura. Trad. de Ana Isabel Soares. Rio
de Janeiro: Contraponto/Editora PUC Rio, 2014.
HEATHFIELD, Adrian. “I Just Go In Life: Tehching Hsieh and Adrian
Heathfield”. In: HEATHFIELD, Adrian; JONES, Amelia (orgs.). Perform,
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HSIEH, Tehching; MONTANO, Linda. “One Year Art/Life Performance:
Interview with Alex and Allyson Grey”. In: STILES, Kristine; SELZ, Peter (orgs.).
Theories and Documents of Contemporary Art: A Sourcebook of
Artists' Writings. Berkeley: University of California Press, 2012.
KRAUSS, Rosalind. “Notes on the Index: Seventies Art in America”.
October, The MIT Press, volume 3, primavera de 1977, p. 68-81. Ver em:
<http://www.jstor.org/stable/778437>. Acesso em: 10 de julho de 2016.

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LEONARDELLI, Patrícia. “Teatralidade e Performatividade: Espaços em


Devir, Espaços do Devir”. Revista Cena, n. 10, 2011. Ver em:
<http://seer.ufrgs.br/index.php/cena/article/view/20891/15303>. Acesso em:
12 de julho de 2016.
MATERNO, Angela. “Releituras de 'O Autor como Produtor': Walter
Benjamin, O Teatro e A Técnica”. In: SÜSSEKIND, Flora; DIAS, Tânia (orgs.). A
Historiografia Literária e As Técnicas de Escrita: Do Manuscrito ao
Hipertexto. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa; Vieira e Lent., 2004.
NORA, Pierre. “Entre a Memória e a História: A Problemática dos
Lugares”. Projeto História, São Paulo, n. 10, dezembro de 1993, p. 7-28.
PHELAN, Peggy. “A Ontologia da Performance: Representação sem
Produção”. In: Revista de Comunicação e Linguagens. Lisboa, n. 24, 1997.
RODRIGUES, Carla. “Paixões da Literatura: Ética e Alteridade em
Derrida”. Sapere Aude, v. 4, n. 7, p. 47-59. Ver em:
<http://periodicos.pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/5473>.
Acesso em: 18 de julho de 2016.
__________________. Rastros do Feminino: Sobre Ética e Política
em Jacques Derrida. Tese (doutorado) – Orientador: Paulo Cesar Duque
Estrada. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de
Filosofia, 2010.
ROUSSO, Henry. “O Arquivo ou O Indício de uma Falta”. Estudos
Históricos, v. 9, n. 17, 1996.

PARA CITAR ESTE TEXTO


MARINHO, Luisa. “Elogio ao Breu: A Potência do Segredo na Arte da
Performance”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 5, n. 17, jan. 2017. ISSN:
2316-8102.

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy


Edição de Da Mata
© 2017 eRevista Performatus e a autora

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