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DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
Belém/PA — 2000
2
Antropologia da UFPA
Banca examinadora:
SÚMULA
ABSTRACT
The idea of a “female society” is conceived by the author as the way of the
representation of the Amazon Region. Those have been turned into archetypes
The coincidence between the Indian and European Imaginaries around the
idea of a “female society” gave to this myth/fable such a power that made it, through
AGRADECIMENTOS
tudo fez para obter textos e microfilmes de fontes de fora do estado do Pará ,na
digitador e formatador do trabalho. Por ter, a par das suas atividades de arquiteto,
grato.
Sou grato também a Elias Araújo, meu permanente consultor para assuntos
bíblicos e afins.
INTRODUÇÃO
do Novo Mundo". O "mito" das amazonas foi um dos elementos mais marcantes no
mais antiga (1500), mas da presença européia que impôs uma definição (Rio de Ias
hiperbolicamente.)
cultural muito mais amplo do que solucionar o problema de dar um nome (que
significava "tomar posse" em nome "DeI Rey") ao grande curso d'água que
do tempo. A Terra não era o que se pensava ser. Ainda mais: existiam sociedades
Acuña, que descreveu a viagem de Pedro Teixeira (1639) como documentos que
Portanto esta postura deve ser interpretada na sua lógica interna, na compreensão
controle masculino.
O mito grego das Amazonas tem numerosos mitos que lhe correspondem
O mito das "amazonas" foi um "não dito" que ganhou autonomia pelo mecanismo
7
definição que incide ao longo da História do espaço amazônico até os nossos dias.
Assim, a "luta pela definição" da Amazônia, cuja gênese reside no mito das
submetidos. Essas hipérboles ganham vida própria, podendo, por exemplo, uma
atribuída a Rangel .
para os europeus, que se impunham pelo uso das armas de fogo para a obtenção
das "flechas ervadas com peçonha". Também é verdade que as áreas desabitadas
diferentes que se tornam ora "superiores", ora "dependentes". Que, a cada evento,
seu modo de ver o mundo contra o modo nativo. Deu-se o paradoxo: o nativo
que também servia para confirmar a "monstruosidade" do Novo Mundo (do Homem)
e saqueados. Há uma coincidência dos opostos2 que impõe, por outro lado, o
leitores que, de fato, fez impor a existência social pela coincidência com o mito
OS INSTRUMENTOS TEÓRICOS
TEÓRICOS DA ANÁLISE – I
debate — que chegou aos nossos dias —, sendo que até a segunda metade do
10
século XIX era uma questão de Estado e uma questão de ciência, de relevância.4
definição do novo espaço foi profundamente marcado pelo referido encontro com
conceito de "luta pelo real" elaborado por Clifford Geertz na explicação do processo
chegada dos europeus, bem como de aspectos relevantes das duas sociedades
11
cultura:
as pessoas envolvidas.” 8
postos num plano dinâmico e, assim, refeitos a cada uma das circunstâncias que
dos autores (o "eu" e o "outro"), bem como as estratégias que orientam a ação nas
relações. Isso foge, portanto, da abordagem mais comum, que entende que a
de produção da existência.
risco na ação que poderá reproduzi-los ou modificá-los, dando curso "a reavaliação
funcional de categorias". Mas cada cultura tem uma historicidade própria que a
europeus e dos índios não implicava o simples nivelamento das duas sociedades
tinha significado diferente, pois era mito para os nativos e forma de definir a
conteúdo de relação entre pelo menos dois atores individuais, culturas ou estruturas
tem uma duração intermediária entre o evento e a longe durée, é representada aqui
Sahlins cita Robert e define conjuntura como "situación qui résult d'une
sistemas culturais, mas o que mais importa é a sua "projeção", ou seja, o que
O encontro com "mulheres guerreiras" foi visto como mero engano ("ilusão de
ótica") pelo fato dos homens indígenas usarem cabelos longos e parecerem
mulheres. Os analistas puderam pensar assim. Os atores sociais, não. Quanto mais
a uma mitopraxis, o que implica dizer que a detecção das estruturas que dão
significado aos eventos no plano analítico não podem prescindir, mas antes
maiores espaços para a recriação das regras na "arena facciosa" das relações
internas ou nas externas com o "outro". Sahlins admite que a maioria das
porque, ao se casarem, serão relacionados desta forma. O "laço prévio" não importa
conclui nosso autor, admitir que "ao nível do significado, que é o nível da cultura, ser
sociedade amazônica.
que também significavam intensa luta pelo poder de descobrir e anexar aos
Geertz definiu este processo de “luta pelo real" ao examinar as lutas pela
que está em jogo no caso que nos interessa não é apenas se a futura Amazônia
seria ibérica na cultura, possessão espanhola ou lusa, mas a luta pelo "direito de
realidade"... 17
transplantadas, mas constatar, como se verificou, a "luta pelo real" enquanto uma
teoria"19—, constitui para o autor a "análise temática", que tem como ambição
anterior "Santa Maria del Mar Dulce" ou "Rio de S. Francisco"? Por que o Santo foi
vencido pela figura perturbadora das Amazonas, que acabou por se generalizar
para toda a região no século XIX? Como a "luta pelo real" definiu o Homem e a
"interpretação" e “superinterpretação”.20
"valor estético", acaba por estender suas conclusões para os textos em geral. Os
historicamente o aspecto mais relevante. O fato é que o não dito tornou-se dito e a
texto/leitor/história.
essencialmente pela oralidade. A própria disputa entre Portugal e Espanha pelo vale
"Relações" ao Rei.
densas que os textos publicados em 1551-55, quando Oviedo 23, publicado na sua
Historia General y Natural de las índias, Islas e Tierra Firme deli Mar Oceano.24 Oviedo
à América do Sul o mesmo tema. A leitura do texto de Carbajal ficou restrita à Corte
próprio "Novo Mundo" pela existência entre os indígenas de mitos que indicavam a
história.
das Amazonas. Se "qualquer forma de pensar sempre é vista como irracional pelo
tarefa.
Eco admite que a interpretação de um texto "não tem fim", mas que isto
do ponto–de-vista dos analistas, mas talvez não seja assim do ponto de vista da
social e pode ser "separado do seu autor" e de sua "intenção" ,que é difícil de
detectar, bem como das circunstâncias concretas da sua criação", e passa a flutuar
22
qualquer coisa". "Pode significar muitas coisas, mas há sentidos que seria
despropositado sugerir" 28
princípios:
comportamento;
determinado contexto.
analógica’;
23
versa’. 29
superinterpretação’ 30
como “fundo cultural” e interpretá-lo, diz o autor, "terei de respeitar seu pano de
liminar" ou "autor no limiar", que implica em afirmar que entre a intenção de um autor
"terceira figura", um tanto "fantasmagórica", que é o "autor liminar". Eco conclui que o
Carbajal tem uma interpretação que não é arbitrária, mas que o processo cultural e
NOTAS
1
ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. Trad. de Monica Stahel . S. Paulo, Livraria
Political Metaphores...
6
GEERTZ, C. "A Política do Significado" in A Interpretação das Culturas. Trad. Fanny Wrobel. . Rio de
8
SAHLINS, op. cit., pág. 7.
9
SAHLINS, op. cit., pág. 8.
10
SAHLINS, op. cit., pág. 171.
11
SAHLINS, op. cit., pág. 171.
12
SAHLINS, op. cit., pág. 94.
13
SAHLINS, op. cit., págs. 46-47.
14
SAHLINS, op. cit., pág. 45.
15
SAHLINS, op. cit., pág. 46.
16
SAHLINS, op. cit., pág. 193.
17
GEERTZ, Cliftord, op. cit., pág. 211.
18
GEERTZ, op. cit., pág. 211.
19
GEERTZ, op. cit., pág. 208.
20
ECO, op. cit.
21
Um apanhado geral das edições impressas e dos manuscritos e "versões" impressas ou não do
texto de Carbajal encontra-se em PORRO, Antonio. As Crônicas do Rio Amazonas — Notas Etno-
Históricas sobre as Antigas Populações Indígenas da Amazônia. Petrópolis, Ed. Vozes. 1993. Outro
apanhado mais abrangente temos em La Aventura del Amazonas, editado por Rafael Dias Mademelo.
Carvajal, Fraile de la Ordem de Santo Domingo de Guzman, dei Nuevo Descubrimiento del'l Famoso
Rio Grande Que Descobrio Por Muy Gran Ventura EI Capitan Francisco de Orellana Desde Su
Nacimiento Hasta Salír A La Mar Con Cincuenta E Sete Hombres Que Trajo Consigo Y Se Echo A Su
Ventura Por EI Dicho Rio, Y Por EI Nombre Del Capitan Que Le Descubrio Se Llamó EI Rio De Orellana.
índice Occidentali. Scrifta per il Magnifico Signor Confaíno Ferdínando de Oviedo, Hittorico dell’a
Indie AI Reverandisimo & Ilustrissimo Signor iI Cardinal Bembo" in Bautista - DeIle Navigatione et Víggi
ín Molti Luoghi Conetta, et Ampliata nella QualIe si Contegono, le Descrittione dell'Africa & dei Paefe
dei Prata Ianní com Vani daíla Cittá di Lisboa & Mar Roso à Caíicut & Infim all'Isoía Moccha Done
26
Nascono Le Spetiera et Ia Navigatione Aftomo II Mondo... Venetia, nell’a Stamparia de Ciunti, 1554-
Existe um exemplar desta primeira edição (1555) na seção de obras raras do Museu Goeldi em
Belém.
24
PORRO, op. cit. págs. 38 e 219.
25
ECO, op. cit. pág. 30
26
ECO, op. cit. pág. 31
27
ECO formula a sua teoria como intentio operis, intentio auctoris e intentio lectoris; op. cit. pág. 29.
28
ECO, op. cit. págs. 48 e 50.
29
Idem ibidem, pág. 55
30
ECO, op. cit. págs. 61 e 62.
31
ECO, op. cit. pág. 62.
32
ECO, op. cit. pág. 74.
33
ECO, op. cit. pág. 81
34
ECO, op. cit. págs. 82 e 88.
27
1. QUADRO HISTÓRICO
encerra em 1492, com a queda de Granada pelas armas de Fernando e Isabel. Este
Deus.
da Inquisição: 1481.1
acima: os índios “no son ni moros ni turcos”.4 Para com mouros e turcos não cabia
pelas armas para reordenar as sociedades dominadas pela ótica espanhola que
29
valorização da riqueza.
civilização Inca. Pizarro tomou Cuzco em 1533 e logo depois fundou Lima. A tortura
e morte de Atahualpa, o Inca peruano, foi levada a efeito por Pizarro, organizador da
ainda que a sociedade ibérica já havia rejeitado Las Casas e adotado a “guerra
a) A viagem de Orellana ,que parte de Quito e percorre todo o rio, até a foz ,e
c) A viagem de Pedro Teixeira, que parte de Belém ,via Gurupá ,e sobe até Quito,
como um todo.
2. O PERCURSO E O DESCOBRIMENTO
sul-americano.
centro-americanas. Havia quatro anos o Papa Paulo III (1537) declarara que os
índios não só eram filhos de Deus, mas também aptos à liberdade, à propriedade e
capaces de La Doctrina.” 5
dos Andes, sofrendo pesadas baixas com a morte de 100 índios. Transposta a
Próximo à confluência dos dois rios Pizarro acampou. Nesse momento a expedição
nas suas incursões, encontra nicho de canela no alto Rio Napo e, assim, descobre
o “País da Canela”, mas logo verifica que a dispersão das árvores tornava difícil a
eles dois sacerdotes católicos: Fray Gaspar de Carbajal, da ordem dos Pregadores
ganha a direção da calha central do Rio Marañon, Pizarro continua enfrentando toda
inicia a sua viagem cheia de incidentes e que dura oito meses, num percurso de
6000 Km, percorrendo o Rio Marañon (futuro Amazonas), até a foz ,e seguindo pelo
rio como Rio de Orellana, o que teve pouca repercussão e vida curta, ofuscado por
outro ato seu que foi a “visão” das Amazonas ,que se assenhoreou do rio e impôs
Andaluzia à área por ele revelada ao Velho Mundo, Orellana dela se apossa
33
penetração, mas se alça a toda a região: Nova Andaluzia. Este foi o primeiro nome
A versão que prevalece até hoje é que Orellana não conseguiu encontrar a
foz do Rio Amazonas, embora tenha identificado a faixa de água doce que marcava
Bragança. Por outro lado sua situação se agrava pela precária preparação de sua
na Espanha para completar seus suprimentos. João Lúcio D’Azevedo revela que o
pouco saber” (op. cit. pág. 20.) Um dos graves indicadores de “desordem” era a
nativos e Marañon para os espanhóis — cujo único indicativo seguro que tinha era
que no final do rio encontrariam o mar. O grupo sai “do arraial de Gonzalo Pizarro”
de partida, como era a expectativa dos que ficaram. A expedição é motivada pela
terra, quer aquelas constatadas pelo olhar, quer aquelas anunciadas pelos mitos,
Em muitas ocasiões não era possível aportar pelas hostilidades dos nativos.
Nestes casos havia duas soluções: seguir em frente ou tomar a aldeia militarmente.
ataques que os índios faziam, pois estes, nos ataques, fugiam para o interior, e
dos peixes-bois, dos beijus de mandioca, pimenta e milho. Em troca davam aos
comandava e de sua própria construção e com canoas que havia tomado dos
pescar. Só podiam comer pela mão dos índios, saqueando ou recebendo doações
destes.
fatal.
abandono das aldeias podia ser uma solução para Orellana, pois os índios
palavras.” 10
qual “toma posse” em nome da autoridade do rei e do Papa até o dizer o que será
para os altos cursos dos rios, fugas temporárias, pois logo os europeus para lá se
viajantes que nos interessam aqui: Heródoto, Carbajal e Acuña. Heródoto foi
considerado “mentiroso” por registrar os mitos dos não gregos como explicação de
pelas Amazonas que “anunciou”, afirmando que não eram, ou que não eram as
das Amazonas, o que tem garantido a reprodução social do mito ainda em plena
expansão. Outro aspecto fundamental no texto de Carbajal é definir para quem ele
diretamente.
direi.” 12
estado, tendo sido o Papa a autoridade que demarca as terras descobertas e por
descobrir.
Marañon”.13
Age ainda preventivamente contra qualquer outra versão que se possa dar aos
acontecimentos:
governador do Peru.
coisa descoberta. Junto à Igreja Católica precisa provar o zelo pela propagação da
fé.
ainda se apresentar perante o Rei, através do Conselho das Índias, para obter o
com os índios que iam encontrando ao longo da viagem ensejavam “diálogos” que
Aqui cabe uma comparação com o “falar em línguas” citado nos Atos dos
apenas confirma o que aqueles querem dizer, ouvir e demonstrar. Quase sempre as
falas são atribuídas a “um índio” capturado que surge para falar como espanhol. A
única fala dos índios que sugere o “falar em línguas” se refere ao mito das
No geral os índios não têm nomes. São referidos pelo local em que são
oceânica” 16
entre o narrador e a coisa narrada. Não há muito esforço em traduzir a
apropriar. Impor nomes é assumir poder sobre algo e enquadrar em regras antes
o nome da primeira “província”, porque o chefe indígena tem esse nome. E por lá
Capitão mandou aportar para tomar comida. Deparam, então, um rio de “água
negra ou mui turva, e por isso o chamamos de Rio Negro” (pág. 52) que corria com
tanta velocidade “que em mais de dez léguas distinguia-se uma água da outra,
43
porque aquela por onde vínhamos era vermelha.” Aqui temos a primeira descrição
como castigo. A aldeia tinha sido batizada “com muito prazer” de Corpus Christi; o
calendário católico marca as datas junto com dia, mês e ano e o nome dado ao
A “Província das Picotas” recebera este nome pela presença de estacas com
Parintins. Ainda nas “Picotas”, Orellana mandou queimar uma cabana grande e
chamaram Amazonas.”19
“uma gente artificialmente tingida de negro com tinta, e por isso os nossos
cristão dentro do bergantim com uma flecha (...) no que se viu claramente que a
flecha trazia erva venenosíssima e (assim) que subiu (o veneno) ao coração morreu,
estando com muitas dores até o terceiro dia, em que rendeu a alma a Deus que a
Abaixo das Amazonas até o mar podemos dizer que era a região do curare.
anunciada:
Verificaram que a presença européia já ocorrera ali por encontrarem uma “sovela de
sapateiro” com cabo de latão. Maravilham-se com a cerâmica “como na boa arte e
mostram “que é gente mui sutil e engenhosa, e as coisas que fazem ficariam muito
bem entre os mui esmerados oficiais de tal arte na Europa e onde quer que sejam
fez impensadamente”:
NOTAS
1
Vide BERNAND, Carmem e GRUZINSKI, Serge. História de Nuevo Mundo. Del Descrubimiento a la
espanhola com a tortura é tratada por Marvin Harris, “O Reino Canibal” in Canibais e Reis. Lisboa,
La Conversion de los Indios de Nueva España. Com el texto de los Coloquios de los Doce de
Bernardino de Sahagún (1564). México, Fondo de Cultura Economica, 1993, pág. 219.
46
6
As informações sobre a viagem de Orellana que usamos aqui estão em OVIEDO, op. cit. Vol. V, em
Antonio Porro, op. cit. e em Lia Osório Machado. Mitos e Realidades da Amazônia Brasileira no
Universitat de Barcelona. Junho, 1989, 02 volumes. Mimeo. Uma lista completa dos integrantes da
viagem de Orellana está em Oviedo, cit., incluindo a origem regional de cada um e o nome dos que
Os melhores relatos de autores regionais sobre o retorno de Orellana ao Rio Amazonas são
histórico com vários documentos inéditos. Série Lendo O Pará, no 20. Belém, SECULT, 1999 (1901) e
Henrique A. Santa Rosa. História do Rio Amazonas. Pará, Officinas Graphicas Guajarinas, 1926. A
Brasília, 1998. Trad. do grego de Mário da Gama Kury. Especialmente o livro IV. Ainda, MELPOMENE,
Heródoto. Brasília, Editora UnB, 1998. Trad. de Angela Martinazzo e HARTOG, François. O Espelho de
Heródoto — Ensaio sobre a Representação do Outro. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999. Tradução
Daniel (org.) Cultura e Subjetividade — Saberes Nômades. Campinas, Editora Papirus, 1997. E para
“Atos dos Apóstolos” vide A Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Edições Paulinas, 1985.
16
HARTOG, op. cit. pág. 252.
47
17
CARBAJAL in PORRO, op. cit. pág. 51.
18
CARBAJAL in PORRO, op. cit. pág. 52.
19
CARBAJAL in PORRO, op. cit. pág. 61.
20
CARBAJAL in PORRO, op. cit. pág. 64.
21
CARBAJAL in PORRO, op. cit. pág. 65.
48
DESCOBRIMENTO” DE ACUÑA
virtude da chegada a Belém e São Luís dos irmãos leigos franciscanos Domingos
de Brieva e Andrés de Toledo, que tinham descido o Rio Amazonas vindos do Rio
se dividiu em dois grupos: um regressou para Quito e o outro resolveu descer o rio
até chegar a Belém. A idéia partiu do português Francisco Fernandes, que vivera no
encontrar a terra do rei dourado (o “El Dorado”) e a “Casa do Sol”. O grupo era
o capitão Pedro Teixeira, experiente comandante nas lutas contra nações que
Pedro Teixeira teve problemas com a expedição aos cinco meses de viagem,
viagem estava próxima do fim e reanimou a todos. Outra medida adotada foi dividir
Quito, onde o frei Domingos de Brieva já havia chegado no grupo precursor. Brieva
O rio deixa oficialmente de ser “das Amazonas” e passa a ser nominado como Rio
mudança de nome? Homenagem à “ordem seráfica”? De fato havia forte luta entre
mar.” 1
Real Academia de Quito decidiu que a tarefa de fazer a viagem de volta até Belém
mas também de fiscais da Coroa Espanhola, foi dos jesuítas André de Artieda e
João Lúcio D’Azevedo indica que a viagem de Pedro Teixeira descrita por
pesquisa.
Real Conselho das Índias e o Rei da Espanha, Felipe IV. O relato também deve
império espanhol por terem o controle do delta do “grande rio”. No Memorial que
51
dar.” 2
essenciais para o julgamento da época. Antes, eram uma ameaça, e o bom jesuíta
descoberta”.
quase cem anos depois, vai encontrar populações devastadas pelas epidemias e
pelos massacres nas busca de escravos. Os índios não mais atacavam, pediam
“o já sabido e conhecido”.
Demonstra horror diante do tratamento dispensado pelos lusos aos índios. Teria lido
a obra de Las Casas? Libelos terríveis que descreviam os espanhóis como “diabos”
descreve com precisão e detalhes. Riquezas que eram “muitas riquezas, das quais
até então.
deriva um “vinho” “que às vezes é tão forte que, como se fosse vinho de uvas, os
embriaga e lhes faz perder o juízo”. A bebida é o “azougue” que faz reuni-los para
como mamífero de carne saborosa. O couro é forte e com ele se faz escudos. Sua
mãos ou com o timbó. Veados, pacas, cotias, iguanas, javalis, perdizes, “de boas
carnes e de bom gosto, que pouco ficam a dever às mais regaladas da Europa”
(pág. 86.)
A abundância é notória:
189.)
algumas nações uma peçonha tão eficaz, que ervadas com ela as flechas, em
era(m) obrigado(s) a buscar das mãos dos inimigos, ou perecer” (pág. 224.) Agora
neste caso é deixada para a história e para o tempo. A força do imaginário local era
55
(Gaspar de Guzman) que era Primeiro Ministro “onipotente” de Felipe IV, Acuña
anuncia que “a que fui por ordem de sua magestade e o que com o maior cuidado
averiguei, com toda exatidão copiei em breves folhas, embora fosse digno de
com o leitor. Não basta anunciar que fala “do que viu” com testemunhas ou ouviu
de quem viveu as situações narradas, urge adotar cautelas com as “novidades” que
atraem o “descrédito”.
maravilha anunciada e assim dificulta a aceitação, o que implica sem dúvida quanto
bom comportamento na ação enquanto religioso. Mas a tarefa de narrar “o que viu”
é referendada por ser Acuña “pessoa desinteressada, e que só por amor ao serviço
pelo Estado aos conquistadores. Pedro Teixeira não poderia ser incluído nesta
categoria.
alega que só afirma o “que viu” e “ouviu”, que se constitui o arsenal que dará
credibilidade a Acuña.
Quando situa o Rio das Amazonas nas terras do Reino do Peru não está
espanhóis, naturalmente.
recomendação final:
294.)
NOTAS
1
D’AZEVEDO, João Lúcio. Os Jesuítas no Grão-Pará — Suas Missões e a Colonização. Belém,
Rio das Amazonas. Traduzido e anotado por C. de Melo-Leitão. São Paulo e Rio de Janeiro,
Companhia Editora Nacional. Coleção Brasiliana, 1941. Vol. 203, pág. 292.
3
ACUÑA, Novo Descobrimento. Op. cit.
4
ACUÑA, op. cit.
5
ACUÑA. op. cit.
6
ACUÑA. op. cit.
59
das Amazonas.
1. "a relação entre o mito e o real é indiscutível, mas não sob a forma de
instituições descritas nos mitos podem ser o inverso das instituições reais." (pg.
182).
Ora, o mito das Amazonas como mito fundador da região é antes de tudo um
confirmação do mito das "mulheres sem seio direito" referidas desde a Ilíada de
Amazonas.
necessário, que mesmo num caso que exclui toda proximidade geográfica ou
seus motivos tem fontes limitadas.2 Assim, pretendemos examinar de que forma as
enrolado na cabeça.
suas pessoas" 3
Orellana deu "de chofre na boa terra e senhorio das Amazonas" (pg. 58) "Nesse
pouso o Capitão tomou o índio que havia agarrado acima, porque já o entendia... e
lhe perguntou de onde era natural" (pg. 65). O índio responde que do lugar onde
fora feito prisioneiro e que o Senhor daquela terra se chamava Couinco. "Perguntou-
lhe o capitão (Orellana) que mulheres eram aquelas que tinham vindo ajudá-los e
fazer-nos guerra". "Disse o índio que eram mulheres que residiam no interior, a umas
sete jomadas da costa, e por ser este Senhor Couinco seu súdito, tinham vindo
guardar a costa" (pg. 65) "Perguntou o Capitão se estas mulheres eram casadas e o
índio disse que não, perguntou o Capitão de que modo vivem. Respondeu o índio
que viviam no interior, e que ele tinha lá estado muitas vezes e visto o seu trato e
residências, pois como seu vassalo ia levar o tributo, quando o Senhor o mandava".
Perguntou o Capitão como, não sendo casadas, nem residindo homens com elas,
emprenhavam. Ele disse que estas índias coabitavam com índios de tempos em
tempos, e quando lhes vem aquele desejo, juntam grande porção de gente de
guerra e vão fazer guerra a um grande Senhor que reside e tem a sua terra junto à
destas mulheres, e à força trazem às suas terras e os têm consigo o tempo que lhes
agrada, e depois que se acham prenhas os tornam a mandar para a sua terra sem
lhes fazer outro mal, e depois quando vem o tempo de parir, se têm filho o matam
coisas da guerra. Disse mais, que entre todas estas mulheres há uma senhora que
63
domina e tem todas as demais debaixo de sua mão e jurisdição, a qual senhora se
longo dos séculos, ensejando criticas desde a acusação de "fantasista" até a de ser
vítima de mera ilusão de ótica ao confundir as vestes, cabelos, etc. dos nativos com
mulheres. Entretanto, dos relatos dos descobridores foi o de Carbajal que mais
marcou a história das versões sobre a futura Região Amazônica. Primeiro porque
Segundo porque o evento ali relatado venceu a luta pela denominação da Região,
lutando inclusive com a denominação de Rio Orellana, "Rio Grande" ou ”Mar Dulce",
que acabou por ser conhecido como o "Rio de las Amazonas". Mas, ao contrário do
nas áreas de floresta tropical que abarcam a área da Guiana, Alto Xingu, Rio Negro,
Entre os Kamaiurá do Alto Xingu temos dois mitos coletados por Villas Boas 4
que remetem um à luta pelo poder simbolizado na posse das flautas sagradas
mulheres em migração permanente. Uma outra versão dos mesmos mitos foi
levantada por Etienne Samain (1991). Em todos os casos está em jogo a oposição
no que se refere à posse das armas, das flautas mágicas e das formas de
casamento/acasalamento.
65
Jakuí. (...)
das casas.
a Lua falou:
que sabiam". 5
que tem um sentido complementar ao acima referido, temos um mito que indica, à
seio direito" para possibilitar o manejo do arco, ou seja, o controle dos instrumentos
bicho.
(espírito).
110 e 111).
guerra (o uso do arco) aparecem como Kayaiwi-rapat (mulher com arco, dona do
O MITO DO JURUPARÍ
Schaden 6
afirma que "Os fundamentos míticos das 'festas de Juruparí',
contato com o mito da revolução social, relativo à instituição da casa dos homens,
religiosa da festa dos homens, os ritos de iniciação dos rapazes e os meios pelos
quais o elemento masculino garante o seu status dominante na vida tribal" (pág.
166).
vida social ocorre em vasta área da Amazônia e Schaden se refere ainda ao "... mito
Juruparí', constitui o background para a festa dos homens, a instituição da casa dos
O MITO DO JURUPARÍ II
como entre grupos indígenas a denominação genérica dos mitos que apontam para
a luta entre homens e mulheres pela posse das flautas sagradas e pela
73
exclusão/tabu do outro sexo que perde a sua posse, bem como de uma "casa"
Escolhemos o mito das Baniwa do Rio Içana coletado por Saake em 1958
(Schaden, 1976), denominado Kuai, que serve para definir tanto o "herói" como as
Juruparí. Nos termos de Lévi-Strauss temos narrativas diversas que mantêm uma
estrutura comum.
Tudo indica que fenômeno idêntico ocorreu com o mito do Juruparí e o mito
das Amazonas. Naquele, o termo Juruparí se generalizou para os mitos que tratam
como a idéia de cruz, concepção sem coito, fruto proibido, perda do paraíso, etc.,
pode responder à indagação segundo a qual o mito europeu das amazonas teria
tomado nome nas línguas nativas. O mito Baniwa mantém intacta a sua estrutura e
vastas áreas da Amazônia até os nossos dias. Saake (1976) nos revela que "até
hoje os Baniwa são de opinião que toda mulher que vir o Juruparí deverá morrer".
(pg. 277)
denominação que os gregos davam aos não gregos, ou seja, aos diferentes em
língua e cultura. No mito grego as amazonas são seres que se opõem ao curso
"normal" da vida social. São seu inverso indesejado. Encontramos apenas um caso
de uma cidade perfeita Platão propõe que a educação para a guerra dada às
domínio de técnica militar seria saudável para toda sociedade. Mas é caso único.
matam os filhos machos. De outro eliminam pelo fogo, pressão ou extirpação a teta
condição feminina para a condição de mulher que faz a guerra teria que superar o
277, 278).
apresentar-se a ele.
fogueira.
morreu na cruz.
homens.
82
da noite.
83
MORTAS.
(pg. 284).
etc. No caso do Juruparí temos com esta denominação não só o ser mitológico,
porque não possuem força para subir nas palmeiras. A flauta de Juruparí é feita da
que tem largo uso entre grupos indígenas da Amazônia indo desde a fabricação de
mulheres leva à derrota feminina pela incapacidade em subir nas palmeiras. Amáru
reivindica a posse das flautas, já que seu filho foi roubado. Aqui temos o tema
básico que reaparece no mito das amazonas: a posse dos filhos, que lá se "resolve"
pela divisão das filhas mulheres permanecendo com as mães e os homens sendo
construíram para si uma maloca grande, que tinha lugar para todas." (pg. 282).
através do sopro. Entretanto, Dzúri e Meriri fabricam uma arma de efeito semelhante
trovão e do raio e mata todas as mulheres, exceto Amáru, que ainda retém a flauta
Uari debaixo da axila, mas não poderá usá-la. Temos ainda que na fuga de Amáru e
uma ou duas vezes, por ano e se tornam "tributários" das amazonas que são
homens."
afirmado que o mito das amazonas é, desde a sua origem grega, um paradigmatic
têm força" e, para fazer a guerra, fonte do poder, são obrigadas a eliminar a mama
hispânico) com a mitologia dos índios regionais para apreender a síntese dai
resultante que talvez não seja tão dominantemente européia como comumente se
87
julga. A denominação Amazônia deriva do grego que significa "mulher sem o seio" e
que vive "sem homem", e acaba por definir a região "como uma falta" e como uma
habitá-la.
matriarcais nos dias de hoje não existem em parte nenhuma, e como as fontes
NOTAS
1
LÉVI-STRAUSS, Claude - A Gesta de Asdiwal in Antropologia Estrutural 2. Tradução de Maria do Carmo
Amazonas; Tradução de C. de MelIo Leitão. Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1941 e
por Sua Majestade Imperial ao seu Sócio Efetivo, o Senhor Doutor A. Gonçalves Dias. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico do Brasil. 3a série, no 17, primeiro trimestre de 1855, págs.. 5 a 70. Rio
de Janeiro.
88
4
VILLAS-BOAS, Cláudio e VILLAS-BOAS, Orlando - O Xingu - Os índios, Seus Mitos. Ed. Kuarup. 7a
A HIPÉRBOLE E O PRETEXTO
retirados das definições da Amazônia. Quanto a estas, partimos das mais correntes
regional.
negadora do instituído.
locais, que também viviam os mitos das “sociedades de mulheres”. Diz Lévi-Strauss
estendem até as metáforas. O que confirmaria, se tal fosse necessário, que, mesmo
num caso que exclui toda proximidade geográfica ou histórica, o repertório em que
“localizá-las”.
NOTAS
1
LÉVI-STRAUSS, Claude. O Olhar Distanciado. Cap. XIII — “Mito e Esquecimento”, tradução de
Carmem de Carvalho. Lisboa, Edições 70, 1983, pág. 272.
Em O Cru e o Cozido — Mitológicas (tradução de Beatriz Perrone Moisés. São Paulo, Editora
Brasiliense, 1991) Lévi-Strauss faz longas considerações sobre o tema dos mitos no Velho e no Novo
Mundos.
2
O Cru e o Cozido. Op. cit. pág. 14.
92
A HIPÉRBOLE
Pe. Antônio Vieira (1608-1697), por ser cunhada por um contemporâneo dos fatos
receptor.
pendular recorrente.
espaço por ele criado? Tudo indica que não. O processo Amazônico tem nuances
grande parte intacta até o fim de século XIX e início do século XX.
logo assume uma força expansionista apreciável, reforçada pela coincidência dos
pelas viagens, temos outro exemplo da pulsão da hipérbole, muito embora a obra
encaminham as avaliações das coisas e fatos para o grau maior, para o extremo da
avaliação.
Teixeira (1637). Rojas, que subiria o Rio Amazonas, foi o primeiro autor a revelar a
específico, vivido como hipérboles dos eruditos. Outra vez é Lévi-Strauss que,
viajantes e aí vai situar que a “Amazônia, o Tibé e a África invadem as lojas sob a
a preocupação do efeito domina demais para que o leitor possa apreciar o valor do
testemunho por eles trazidos. Longe de despertar o seu espírito crítico, solicita ele
qualidades “prodigiosas”.
de construção/reprodução da hipérbole-matriz:
dos imaginários) num processo de conquista que era caracterizado pela negação
modo de pensar pelo outro e pelo mesmo, criando uma forma de imperialismo da
imaginar.
criou um espaço comum do pensar que tinha face dupla; é embaraçosa porque o
bárbaro pensa como o nós; e é uma solução que confirma a viabilidade da empresa
colonial.
que foi de 1542 até 1639 ,e o isolamento regional que se prolonga até a segunda
do Amazonas e das regiões dos baixos afluentes. A fuga era a regra desde a
depois (séc. XVII) se transforma em transumância para os altos cursos dos afluentes
99
amanhã. Certamente que este imaginário tem conotações diversas em cada cultura
pioneirismo do mito. Não é mito fundador por ser o primeiro pós-Orellana. Era mito
antes do descobrimento. Não é a data, nem o nome que decidiram. Foi a fórmula
NOTAS
1
VIEIRA, Pe. Antônio apud TAVARES, Hênio. Teoria Literária. Belo Horizonte, Editora Itatiaia LTDA., 1974
5a edição, pg. 356.
Tavares não cita a obra de Vieira da qual tirou a referência.
Vide também Ducrot, Oswald e Todorov, Tzvetan que definem hipérbole como o “aumento
quantitativo de uma das propriedades de um objeto, de um estado”. In Dicionário das Ciências da
Linguagem (tradução de Antônio José Massano et alli. Lisboa, Publicações D. Quixote, 1982, 6a
edição.
2
O Cru e o Cozido. Op. cit. pag. 321.
100
3
PAES LOUREIRO, João de Jesus. Cultura Amazônica — Uma Poética do Imaginário. Belém, Editora
CEJUP, 1995. Especialmente a introdução — “Isolamento e Identidade”.
4
Tristes Trópicos. Op. cit. pág. 387.
5
ROJAS, Alonso de in CARVAJAL, Gaspar de; ROJAS, Alonso de e ACUÑA, Cristobal de. Descobrimento
do Rio das Amazonas. Tradução de C. de Melo-Leitão São Paulo, Cia. Editora Nacional. 1941.
A consciência da hipérbole se repete ao longo da história e é sempre impotente diante do
imaginário que a tudo supera. A razão capitula diante da pulsão hiperbolizante.
Euclides da Cunha reproduz a mesma lógica: “... mas como todos nós desde mui cedo
gizamos um Amazonas ideal, mercê das páginas singularmente líricas dos não sei quantos viajantes
que desde Humboldt até hoje contemplaram a Hileia prodigiosa, com um espanto quase religioso —
sucede um caso vulgar de psicologia: ao defrontarmos o Amazonas real, vemo-lo inferior à imagem
subjetiva há longo tempo prefigurada” (pág. 223)
“Parece que ali a imponência dos problemas implica o discurso vagaroso das análises: às
induções avantajam-se demasiado os lances da fantasia. As verdades desfecham-se em hipérboles.
E figura-se alguma vez em idealizar afornado o que ressai nos elementos tangíveis da realidade
surpreendida, por maneira que o sonhador mais desensofrido se encontra bem, na parceiria dos
sábios deslumbrados” (pág. 225)
CUNHA, Euclides da. À Margem da História. Obra completa, vol. I. Rio de Janeiro, Cia. José Aguilar
Editora, 1966.
“Nós afirmamos que, para descrever como se deve a terra encantada das Amazonas, é
preciso tê-la visto muito e a ter deixado desde certo tempo”. (Pág. 15)
“Os viajantes que se limitam a atravessar um país, não gozam destas vantagens.
Permanecem frios ou incompletos. Se, se apaixonam, é antes através da imaginação que do
coração. Falseiam, então, a realidade, seja diminuindo-a, seja aumentando-a além de toda medida.
Alguns aspectos que os impressionaram absorvem todas as suas preferências.
101
A maior parte dos autores que escreveram sobre a Amazônia encontram-se neste caso. O
naturalista só registra certas particularidades da flora e da fauna. O geógrafo só anota dados
geográficos; o comerciante apenas se atém aos fenômenos da produção; o homem das lêtras se
contenta em explorar o pitoresco, visando suas descrições. Nenhum deles estuda a região na sua
totalidade, na sua harmoniosa unidade” (pág. 15.)
“Acreditamos que (o livro) é um meio de dar a conhecer à Europa, esta Província das
Amazonas, que pessoas do nosso conhecimento ainda consideram uma terra fantástica, e que
confundem facilmente com a antiga e misteriosa região, onde mulheres guerreiras cavalgam cavalos
tártaros às margens do Tanais” (pág. 15.)
SANTANA NERY, Barão de. O País das Amazonas. Tradução de Ana Mazurspira. Belo Horizonte,
EDUSP/Livraria Itatiaia Editora LTDA. , 1979. A primeira edição é de Librairie Guillaumim et CIE. Paris,
1899.
“Ó Amazonas!
Ao pronunciar esta palavra todo o coração brazileiro estremece. Os que o têm visto sabem
que a seu respeito se tem escrito mais ou menos do que a verdade: os que o não viram ainda
conservam e guardam lá em um dos escaninhos d’alma o desejo de a avistar ainda algum dia” (pág.
136).
GONÇALVES DIAS, A . Viagem pelo Rio Amazonas — Cartas do Mundus Alter. Cartas a Antônio
Henriques. Manaus, 20 de Dezembro de 1861 in Meditação. Rio de Janeiro/ H. Garnier. Obras
Póstumas. Paris, s/d.
projeta-se num babilonismo sugestivo, até a mente dos que de longe observam, envolvendo-a na
dúvida, no mistério, no terror. Desse erro de visão atordoada sobressaem as lendas, as fábulas, as
percepções errôneas e deformadas, que a ignorância e o pavor inspirado por tais paragens
fantásticas entretecem no cérebro dos observadores longínquos e desavisados.
Para quantos ousam palmilhar a região se não um erro de visão, certamente um distúrbio
perceptivo se processa, à excitação do tônus da vida hiperativa, exagerada, intensa, com que toda
natureza ambiente envolve os sentidos e os domina. Por isso ficam os forasteiros perplexos ante o
esplendor de natureza opulenta e grandiosa, que se esboça nas linhas imprecisas, mal definidas,
fugidias da paisagem em seu conjunto panorâmico. E, ao assalto dessas sensações, irrompe a
explosão lírica, inspirada pela fascinação do colorido, gerando um superlativismo contagioso,
enfático, retórico, que contamina a quase todos os descritores desses cenários”. (Págs. 227 e 228)
ARAÚJO LIMA, J. F. de. No Reino das Náiades — Amazônia — A Terra e o Homem (1933) in Roque,
Carlos. Antologia de Cultura Amazônica. Vol. VI, São Paulo, Amazônia Edições Culturais, 1971.
“Só, na verdade, o interesse. Porque, na generalidade, essa literatura é que tem prejudicado
o conhecimento exato de sua realidade.
REIS, Arthur Cesar Ferreira. A Amazônia que os Portugueses Revelaram. Belém. Secretaria de Estado
de Cultura, Coleção Lendo o Pará, no 17, 1994, 2ª edição. A 1a edição é de 1956.
“Parece que a própria grandeza natural da região somente pode suscitar atitudes extremas,
que oscilam entre o deslumbramento e a decepção mais profundas, um e outra” (Pág. 29.)
Nos nossos dias podemos verificar que o repertório que compõe os elementos do
diagnóstico permanece. Numa referência aos ‘modelos econômicos’ paraense e amazonense
BENCHIMOL assim se expressa: “Comparando os dois modelos acima, costumo dizer que o modelo
high-tech da ZFM acostumou o amazonense a viver perto do céu, a caminho do inferno, na medida
em que se aproxima a sua morte, anunciada no ano de 2013, enquanto que o modelo paraense é
terra-a-terra dos grandes projetos de recursos naturais — adotado também pelos ademais estados
da Amazônia — fez com que os paraenses se conformassem em viver perto do inferno, a caminho
do céu...” (Págs. 6 e 7.)
BENCHIMOL, Samuel. Amazônia — Quatro Visões Milenaristas. Belém, Banco da Amazônia, 1999.
6
Tristes Trópicos. Op. cit. pág. 389.
7
Idem, págs. 9 a 10.
8
A questão da permanência de imagens “fantasmáticas” que atravessam os séculos estão bem
sintetizadas por François Laplantine no capítulo 1 de A Pré-História da Antropologia — A Descoberta
das Diferenças pelos Viajantes do século XVI e a dupla resposta ideológica in Aprender Antropologia.
(Trad. de Marie-Agués Chauvel. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1988.)
9
GEERTZ, Clifford. Mistura de Gêneros: a Reafirmação do Pensamento Social in O Saber Local (Trad.
Vera Mello Joscelyne). Petrópolis, Editora Vozes, 1998.
10
O conceito de riscos culturais na experiência histórica está em SAHLINS, Marshall. Ilhas de História.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar editor, 1990 e em GEERTZ, C. O Saber Local — Novos Ensaios de
Antropologia Interpretativa. Petrópolis, Editora Vozes, 1998.
11
SAHLINS, op. cit. pág. 114.
104
está na Relación de Gaspar de Carbajal, que assinala que desde Quito ouvira
relatos “porque alí falam muito destas mulheres”, e para vê-las vêm “muitos índios,
João Batista, precursor de Cristo, e foi servido Deus que, dobrando uma que o rio
Vejamos que a narrativa aponta para um quadro festivo pela data religiosa e
conjuntamente por ter chegado na “boa terra” das Amazonas. O texto conota um
esperavam o encontro, os índios também “já avisados e sabiam de nossa ida, e por
isso nos vieram receber no caminho por água, mas não com boa intenção.”
Ambos ansiavam pelo encontro. A “boa terra” das Amazonas era o lugar de riqueza
aproximavam-se e diziam que andássemos, pois ali abaixo nos esperávamos, para
defender a sua aldeia e a flechar-nos, e como a gente era muita, parecia que
choviam flechas.” O próprio Carbajal é flechado “levando uma flecha na ilharga, que
tornada possível pela tributação dos súditos. Na economia política do imaginário vai
A compra da proteção militar pelos súditos precisa ser explicada. Por que as
defendiam.”
pelos espanhóis: o arco e a flecha. Esta poderia estar “ervada com peçonha”, isto
na cabeça.
dos bergantins.”
índios semelhantes aos demais. Na cor da pele nem na altura. Também na força:
Os espanhóis, movidos pelo apoio divino, (“foi Nosso Senhor servido dar
mulheres”.
Estruturalmente não é possível a verificação empírica das Amazonas. Seu reino fica
É o lugar mítico ao qual não se pode chegar. Está sempre mais além. Mortas
conseguem aportar.
“índio” não tem nome ou seu nome não é referido. Índio tem direito a nome? Se não
aos índios no caso dos “senhores”, como é o caso de Couynco, senhor destas
terras. Vale notar também que nos “diálogos” os índios sempre confirmam as
dos conquistadores. O índio não fala de si, fala para o outro. Só adquire fala na
do outro.
Como viviam, então? Viviam “no interior” e o índio informante revela ainda
que freqüentou muitas vezes o lugar das Amazonas levando os tributos. As aldeias
são setenta e com edificações de pedra com acesso por estradas militarmente
protegidas.
dispensados, “sem lhes fazer outro mal”. As fêmeas impõem o sexo aos machos.
Estes são seus objetos sexuais que garantem a reprodução da sociedade exclusiva.
fêmeas “criam com grande solenidade e a educam nas coisas da guerra”. (pág. 66)
109
Conhori.
prata.”
depositados em santuários com ídolos de ouro e prata, vestem roupas finas e vivem
em “cinco casas grandes”. As suas coroas de ouro têm largura de dois dedos. 3
O perfil mítico das Amazonas se traça por faces duplas, indo do requinte
imperial até a barbárie do infanticídio dos filhos nascidos machos. São a negação
versão “grega” de Acuña queimam ou amputam o seio direito para permitir o uso do
eliminação da teta, obstáculo natural que indica a não destinação feminina para a
guerra.
da condição humana.
110
Satânicas e ricas. O satânico atesta o exotismo do Novo Mundo que deve ser
em arquétipo.
os alimentos, etc.”
111
às culturas antigas da Ásia, Europa e da América. Mais ainda: Eliade afirma que as
anterior à criação” 4
Por esta razão o caos é ordenado por atos que repetem o ato da criação:
repete numa série” não se funda num modelo divino revelado como as “tábuas da
descobridor, ao nomear, consagra. Ao tomar posse fixa o domínio pela cruz e pelo
poder real.
NOTAS
1
CARBAJAL. Op. cit. pág. 67.
2
Idem, ibidem pág. 58.
3
Idem, ibidem, págs. 59 a 67.
4
ELIADE, Mircea. O Mito do Eterno Retorno. Perspectivas do Homem. Lisboa e Rio de Janeiro, Edições
precisa ser colocada nos seus devidos termos. Porro1 faz um esforço para resgatar
No seu texto faz restrições de fundo ao trabalho de Altino Berthier Brasil e uma das
conclusões que anuncia é que concorda com o autor quando este “conclui que as
adequada do “por que foi assim” e “como é que é assim até hoje”. Os argumentos
reprodução social das Amazonas. Estas se mantêm como um tema vivo por se
coincidência com o imaginário espanhol. Este se erige não como uma afirmação de
Vale do Rio Amazonas que, aliás, lhes deve o próprio nome. Carbajal se curva ao
imaginário dos indígenas, assim como Acuña. Ambos repetem nos seus relatos as
lembrando que é o que se diz desde o vice-Reino do Peru até o Baixo Amazonas.3
115
povoavam o imaginário do bom padre, o que é pouco provável ,na medida em que
às mulheres que encontrara e sobre os mitos que davam como certa a existência
delas:
não percebe que Carbajal afirma que “entre nós chamamos impropriamente de
do texto”, que permite fazer o que todos os autores fizeram: atribuir a Carbajal a
do leitor” tentado pela hipérbole sugerida pelo texto. Neste, a lógica inaugurada ou
das Amazonas pela via da afirmação e da negação que dão vida e atualidade à
contemporâneos.
E continua :
Ora, tanto Carbajal quanto Acuña produzem textos que permitem afirmar que
“texto enquanto tal representa uma presença confortável, o ponto ao qual nos
agarramos.” 7
que o ímpeto da idéia das Amazonas e sua presença ostensiva no rio, na região e
colombianas e nas necessidades sociais ditadas pela “luta pela definição”, que se
apreensão da região até os nossos dias. O analista tem outro privilégio no esforço
de análise que permite assegurar que se “o texto enquanto tal” nega serem
Amazonas os seres que “habitam” o grande vale, isto não invalida, nem
social feita pelos que leram e pelos que ouviram (estes são maioria esmagadora)
imaginário. Essa conclusão pode ser sustentada adotando uma estratégia metódica
essa via, com efeito, uma certa tradição na Amazônia de imputar a vários autores
conceitos que, a rigor, eles não criaram, mas tal como são consagrados pela
conceitos analíticos.
nosso tema neste trabalho, o seguinte: o conceito de “Inferno Verde”, por exemplo,
utilizada por um personagem num delírio febril e, pela difusão através de leitores e
imputa uma imagem da Amazônia como “celeiro do mundo”. Nas nossas consultas
alemão que viveu na Amazônia. Sioli afirmou que a Amazônia não era a grande
que a destruição da floresta seria catastrófica para toda a Terra. Sioli negou
eruditos. Tudo indica que o mesmo processo ocorreu com Carbajal e Acuña no
análise de Marx sobre a mercadoria, temos neste caso a hipérbole ganhando vida
convencimento.
Antes vamos rastrear um outro conceito de Eco. O nosso autor aponta que
os “textos sagrados (no sentido literal)” podem ter seu sentido sacro transmitido em
que reúne barbárie e riqueza. Tanto em Carbajal como em Acuña a relação entre
comarca tesouros que dão para enriquecer o mundo todo”. Lendo o mundo como
Amazonas/riqueza/arquétipo hiperbolizante.
confiante que no símbolo há algo mais e que ele lhe confere “um essencial e
NOTAS
1
PORRO, Antônio. As Crônicas do Rio Amazonas. Petrópolis, Editora Vozes, 1993.
2
PORRO, Antônio. Como Nasce uma Lenda in O Povo das Águas — Ensaios de Etno-História
porque ali falam muito nestas mulheres e para vê-las vêm muitos índios 1.400 léguas rio abaixo”. Op.
Acuña: “Só lanço mão do que ouvi com os meus ouvidos e com cuidado averiguei desde que
puzemos pé neste rio, no qual não há geralmente coisa mais comum, e que ninguém ignora, que se
dizer que nele habitam estas mulheres, dando sinais tão particulares, que concordando todas as
suas informações umas com as outras, não é crível que uma mentira se pudesse ter enraizado em
tantas línguas e tantas nações com tantos visos de verdade.” Op. cit. pág. 266.
sociedades do Vale Amazônico. O mito do Jurupari, muito conhecido, é apenas um dos exemplos.
Os Kamayurá do Alto Xingu vivem hoje o mito das Iamuricumá que é um mito das mulheres sem o
especialmente o capítulo I, “Les Amazones”, que se refere a Orellana, Wallace, Guido, Kanter,
Justino, Diodoro de Sicile, Apolônio, Quintus, Polyen, Pomponius, Strabon, Plínio, Lysias, Ptolomeu,
De fato, Carbajal foi bombardeado pelo imaginário indígena e registra isto de forma
inquestionável: “Esse índio, na relação que deu daquelas mulheres, não discrepava daquilo que
antes, em Quito e no Peru, diziam outros índios; ao contrário, lá diziam muito mais, porque desde o
123
(território do) Cacique de Coca, que fica a 50 léguas de Quito, que é na nascente do rio a mais ou
menos 1.500 léguas dos povoados de que esse índio falava, trouxemos essa notícia por mui certa e
averiguada, uma vez que todos os demais índios que se tomaram o disseram, e alguns sem lhes ser
perguntado. Dizia (também) esse índio que deixamos (para eles) essas mulheres num rio mui
povoado que entra nesse em que navegávamos pela mão direita de como vínhamos.”
pág. 104.
Salmos 5:9
Trata-se de uma alocução que era lida para os índios, através da qual se lhes
exortava a submeter-se ao Rei de Castela e à Igreja Católica (ao Rei e ao Papa), sob
escravização.
caciques e pelos índios e, além disto, era feita a tanta distância que mesmo que
125
isto é, os praticantes de outras religiões, são como os judeus ibéricos, pessoas que
padres da era do descobrimento. Nunca aquilo que era abominável no outro foi tão
Por outro lado, como alegara Las Casas, os índios não eram “ni moros, ni
turcos” e assim não poderiam ser submetidos pela simples força, sem antes
semelhante à dos mouros, turcos e judeus. Se a ameaça militar dos índios parecia
contornável pelo uso das armas de fogo, dos cães e dos cavalos, as formas de vida
As duas expectativas não poderiam ser atendidas pelos índios. O Deus dos
europeus exigia a destruição dos deuses nativos e o ouro era apenas objeto de
adorno de pessoas e templos e não era “equivalente geral de valor” a que tudo
comprava e subordinava.
expansão.
forma nítida por Montaigne nos Ensaios, esta obra surpreendente que em 1580
antecipa uma série de concepções que somente a Ciência Social dos nossos dias
OVIEDO:
porte de armas pelo cortejo do Inca, fica definido que estes não portariam armas,
suspeita pretextual de que havia a possibilidade do Inca comparecer “de mal arte”.
mandó al capitán de la artilleria que tuviese los tiros asestados hacia el campo de
Atabalipa, e cuando viese que convenia, que las pusiase fuego. Y en las calles que
entran en la plaza, mandó estar gente de pie, porque si hobiese celada por las
estuviesen secretas, sin que fuesen vistos. E com sua persona tomó el gobernador
128
veinte hombres de pie e com elles estuvo en su aposento, porque estos tuviesen
parescia que venia, com tanto número de gente como traía; e mandó que fuese
tornado a vida, e a todos los demos mandó que no saliesen alguno de su posada,
aunque viesen entrar los contrarios en la plaza, hasta que viesen soltar la artilleria. E
dijo que él ternia atalayas para que viendo que veniam de mal arte, avisaran quando
habiesen de salir, e saldrian todos de sus aposentos a caballo, cuando ovesen decir
‘Santiago’”.
‘Santiago’
séquito do rei índio “traian armas secretas debajo de las camisetas, vestidos
lengua:”
A partir da senha gritada por Pizarro iniciou-se uma carnificina sem tamanho.
Inca:
español alguno.”
Hernando Pizarro a notícia de que todos estão bem e que apenas um cavalo tivera
um pequeno ferimento.
replicó e dijó:
Domingo e foi veedor das Fundições de Ouro da Tierra Firme e assim expressa
133
pretextual que buscamos explicar. Verifique-se que Oviedo narra sem problematizar
teatral da leitura do requerimiento, onde são dadas ordens que o ordenado sequer
da barbárie ameaçadora que deve ser contida pela força justificada no “benefício”
bradava que os índios não eram “ni mouros, ni turcos” estava negando a
destruidora estava justificada. É oportuno verificar que nenhuma ação social é feita
como elemento central da vida moderna, de outro. Aos índios restava agradecer a
Leiamos Montaigne:
infantis...”
muita acuidade. Primeiro tenta-se o domínio pela rendição sem luta dos nativos. Os
cães e armas. É poupar tempo numa tarefa tão grande que era a de submeter
lógica deste e, por outro lado, pertencem aos invasores de acordo com a partilha
européia das terras novas entre as nações católicas para a glória da Fé.
poderia ser negado pelos índios. Mas não desejavam a presença de estranhos
conosco estabeleceram, os indígenas do Novo Mundo, que não nos eram inferiores
em clarividência e perspicácia.”
138
executa-se o rei. As novas matanças são diferentes da primeira que mais parecia
ser queimado vivo, embora seja executado por outro método. Aos judeus exigia-se
vítima em responsável pela sua própria morte por contrariar a ordem da conquista e
do conquistador.
Majestade, e em seu nome tomou posse da terra; e assim o repetiu com os outros
que vieram depois a esta província, que, como disse, eram treze.” 4(Pág. 23)
contas. Tudo indica que estas falas além de serem tentativas de obter comida, eram
espanhol. Orellana estava em Aparia, região compreendida pelo baixo rio Napo e a
quem não tinha culpa, sua intenção era somente de saber a verdade e tirar aos
cristãos o temos do veneno. Para esse fim passaram nos braços de uma índia que
vinha nos bergantins aquilo que se pensava ser erva das venenosas que em muitas
partes de Tierra Firme os índios usam; e como não morreu, os temerosos saíram da
cobaias. É mais provável que o braço da “índia” tenha sido ferido para receber o
betume suspeito de ser “erva com peçonha”. Os espanhóis sabiam que o curare
espanhóis nas aldeias mesmo nos casos em que a recepção era amistosa,
alimento com o acréscimo de mais de meia centena de homens à mesa, quer pelas
nativos a enviá-los para longe — na direção da terra firme ou rio abaixo — como
forma de apressar as suas retiradas. Por outro lado as estruturas dos mitos criam
lugares remotos nos quais não só habitam os seres míticos, como concentram-se
riquezas abundantes.
142
Resta explicar por que os índios afirmavam “que já estiveram lá.” Lévi-Strauss
apenas um adorno. A obsessão dos espanhóis pelo metal pode ter sido utilizada
conquistar e colonizar.
eram rebeldes.
pai.
pessôas.
E arremata Acuña:
ouro e escravos. O escravo é riqueza viva e assim os índios não podem permanecer
admirados pelo fato do Deus cristão ter permitido que a expedição de Pedro
Teixeira transitasse por territórios de povos tão diversos e hostis e retornasse sem
sofrer danos, concluíam que o Deus dos cristãos seria muito mais poderoso que os
dos nossos, que como tão poderosos em tudo, o conservasse e aos seus vassalos
aldeia o “estandarte da cruz”, de acordo com a tradição lusa. Mas a intenção dos
busca obter comida. Quando trata com o sagrado, teatraliza no sentido de polarizar
Aos conquistadores era permitida a escravização dos índios “de corda”, isto
com os seus cativos. Acuña imagina que o bom tratamento dado aos cativos indica
exibi-lo orgulhosamente e casá-lo com mulheres da tribo que o prendera. Faltar algo
estavam espalhados pela costa brasileira de Sul a Norte e haviam migrado para o
que “há neste rio gente caribe, que em certas ocasiões não tem horror de comer
envolviam a antropofagia não permitiam esta prática, além de que só podia ocorrer
venda, que não fazia qualquer sentido na sua estrutura econômica e cultural.
outras formas que induziam à condição não humana dos habitantes. Com o início
daquele.
A lógica pretextual visa impor ao outro uma imagem com o fim de torná-la
“outro”.
mas sim uma construção erigida com os materiais do imaginário, elaborado pelas
do outro.
indizível”. 14
NOTAS
1
BERNAND, Carmem e GRUZINSKI, Serge. Historia del Nuevo Mundo — del Descubrimiento a la
Conquista. La experiencia europea 1492-1550.Trad. Maria Antônia Meira Bigorna. México, Fondo de
Pensadores. Trad. de Sérgio Milliet, 1972, págs. 417, 418. Para a relação entre Requerimiento e
pretexto ver LESTRIGNANT, Frank. O Canibal — Grandeza e Decadência. Trad. Mary L. M. Del Priori.
in PORRO, Antonio. As Crônicas do Rio Amazonas. Petrópolis. Editora Vozes, 1993. Pág. 56.
6
CARBAJAL. Op. cit.
7
ACUÑA, Cristobal de. Op. cit.
8
ACUÑA. Op. cit.
9
ACUÑA. Op. cit.
10
ACUÑA. Op. cit.
151
11
METRAUX, Alfred. A Religião dos Tupinambás. A Antropofagia ritual dos Tupinambás. A antropofagia
ritual dos Tupinambás. Trad. de Estevão Pinto. São Paulo, EDUSP/Editora Nacional. Brasiliana,1979,
Vol. 267.
12
ACUÑA. Op. cit.
13
ACUÑA. Op. cit.
14
LINS, Daniel. Como Dizer o Indizível? in Cultura e Subjetividade — Saberes Nômades. Daniel Lins
Pinzón fora o “El Capitán” da Niña, caravela que, junto com com a Pinta,
havia sido mobilizada por Martin Alonso Pinzón, seu irmão, e compunha a
quando Vicente Pinzón recebe licença imperial para viajar para o Ocidente e
buscar descobrir novas terras, desde que não tocasse nas terras já descobertas
em que é referido desde o Diário de Colombo e até hoje continua com largo uso
seus sobrinhos Diogo Hernandez e Ayres Perez e pilotadas por Juan Jerez, Juan
Quinteros e Juan de Umbria que haviam participado com Colombo das viagens
Brasil.
Daí tomou rumo Norte e dias depois foi surpreendido por um fenômeno
doces, deante do qual como que (se) haviam recuado as águas do oceano.” Era
salinidade marinha causa espanto. O despejo das águas do futuro rio Amazonas
adoçava o mar só reconhecido pelo forte movimento das ondas e das marés.
d’água. Mar pela grandeza e doce pelo sabor das águas. Formula-se o paradoxo
Atlântico torna-se doce no período das chuvas e o rio avança “vinte léguas ao
mar”.
pois o mesmo padrão definidor foi utilizado em 1511 por Juan Diaz de Solis que
a água não era salgada: “Pero el peso de las ilusiones triunfó sobre el realismo”3
estrito senso.
dias.
O “Mar Dulce” de Pinzón era conhecido nas duas nascentes andinas com
região. Tudo começou pelo rio, definido hiperbolicamente como Mar Dulce.
Oviedo faz uma longa descrição de “Tierra Firme”, que abarca desde o Rio de la
Plata até o Mar Dulce.4 Oviedo também já sabia que o Mar Dulce era o Rio
de Pinzón.
o rio Marañon com a legenda: —“O rio Marañon é muito grande e nelle entram os
navios pela água doce e tomam água doce vinte léguas ao mar”.5
naturais. Mar Dulce porque o rio sobrepujava o oceano por muitas léguas. Tierra
proximidades dos Andes até a foz tem origem controversa e indefinida. Para
continua Rio Marañon até hoje e até o séc. XVIII a denominação rivalizou com a
grande curso d’água e que significa Rio Grande, acrescido de “tinga” que
representa água clara cor de barro. Ao mesmo tempo que nominavam o rio
que institui e consagra (denominou o rio de Rio de las Amazonas e tomou posse
em nome do rei) tomou uma nova direção. Antes vimos que Tierra Firme e Mar
Novo Mundo. “Vistas” nos combates contra os espanhóis nas imediações do Rio
considerada litigiosa, não tendo sido ainda possível definir a quem pertence.
até então inusitada. A partir daí o nome Rio Marañon começou a declinar quanto
ao uso e o nome que costumeiramente era usado para designar uma descoberta
O Rio de Orellana teve vida precária e curta. Quando usado era junto com
dos Incas no Peru. O anúncio das Amazonas era algo providencial. Na calha do
de Colombo teve este sentido, formulado enquanto contrato prévio. Não bastava
ficava a “oito jornadas” do local de onde nela se falava. Lugar este que não é
físico, mas localizado imaginário e assim não se pode encontrar para saquear a
longo da viagem.
159
que em nenhuma das regiões do Novo Mundo o mito das amazonas teve tanta
Tudo indica que estamos diante da seguinte fórmula: onde faltam grandes
XIX.
Mas ainda nos séculos XVII e XVIII o nome Rio Marañon ainda era o mais
percebe-se a partir dos títulos que o nome mais usado era Rio Marañon, embora
naturais Paramanguaso, que quer dizer Rio Grande. É esse o Marañon, que
desce do Peru e por isso chama-se o nosso rio Napo de Marañon, e depois que
Partimo deste (rio) dito dos Condurises ou rio das Amazonas com nosso
soldado português e com os índios que ali nos deram e no terceiro dia que
navegamos por nosso grande rio de San Francisco abaixo chegamos ao que
chamam dos trapajosos e (que) entra no nosso pela banda do sul, e na outra
capitão Manuel de los Santos, um dos oficiais da armada portuguesa que foi a
Quito com nosso irmão Fr. Domingo, quando descobriu e navegou o nosso
grande rio”.9
denominação do rio dos Condurises, que é apenas um dos braços que ligam o
comandantes: as Amazonas.
diz:
montante para socorrer a tropa. Não o faz e segue descendo o rio até atingir a
“traição” por parte de Orellana, por “ter abandonado” seu comandante talvez por
“ambição”.
nativos que usam estes seres “desviantes” para rotular a região inteira no
que inquiria: —“Onde é essa Amazônia de que o nobre deputado tanto tem
Aqui Mâncio Ribeiro ao lado da dura ironia não reivindica para si a autoria
do conceito. Afirma que é anterior à sua fala. Mas seus adversários também
estavam certos, pois era um conceito que reivindicou uma identidade particular e
deve ter surgido no início dos anos 80 do século XIX com o boom da borracha.
Amazônia. A obra tem ares oficiais, pois é feita por encomenda do Presidente da
Amazônica 1888.
XIX, sendo que a José Veríssimo coube a tarefa de divulgá-la no plano dos
NOTAS
1
Diário de Colon. Francisco Morales Padron (Ed.) Prólogo: Paolo Emílio Taviani. Ediciones
Guadalquivir. Sevilla, 1995;
2
SANTA ROSA, Henrique A. – História do Rio Amazonas. Officinas gráphicas Guajarinas. Pará, 1926;
3
BERNAND, Carmem y Gruzinski, Serge. História del nuevo mundo – del descubrimiento a
conquista. La experiência europea, 1492-1550. Fondo de cultura económica. México, 1996;
4
OVIEDO, Gonzalo Fernandez de – História General y natural da Las Indias. Vol II. Ediciones Atlas.
Madrid, 1959, especialmente caps. VI e VII;
5
SANTA ROSA, op. Cit. Pág. 77;
6
Vide Samuel Benchimol O homem e o rio na Amazônia: uma abordagem eco-sociológica in
Amazônia: desenvolvimento econômico, desenvolvimento sustentável e sustentabilidade de
recursos naturais. José Marcelino Monteiro de Costa (org.). UFPa/Numa. Belém, 1995;
7
Para os conceitos de nominação/nomeação/apropriação simbólica e “Programa de percepção”
Vide Pierre Bourdieu – Linguagem a Poder Simbólico in A Economia das trocas linguísticas: O
que falar quer dizer. Edusp. S.Paulo, 1996. Para o conceito de arquétipo Vide Gilbert Durand – O
Imaginário – Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Difel. Rio de Janeiro, 1998 e
Mircea Eliade – O Mito do Eterno Retorno. Edições 70. Lisboa, 1993.
166
8
Os relatos de Laureano de La Cruz e Samuel Fritz bem como a citação acima estão em Antonio
Porro As Crônicas do Rio Amazonas. Editora Vozes. Petrópolis, 1993.
9
Vide Laureano de La Cruz in PORRO, Antonio op. cit. pag. 148.
10
MACHADO, Lia Osório. Mitos e Realidades da Amazônia Brasileira no contexto geopolítico
Internacional ( 1540-1912). Tese Doutorado. 2 vols. Departamento de Geografia Humana.
Universitat de Barcelona. Mimeografada. 1989. Vol. 1. Pag. 325.
11
No séc. XIX as Amazonas são no Brasil um problema de Estado e um grave problema para a
ciência. Em 14 de Dezembro de 1853 o Imperador do Brasil propõe a Gonçalves Dias a seguinte
“Programa” para ser desenvolvido em uma das sessões do instituto: “É este assunto um
programa dado por S.M.I. Ao autor e por este desenvolvido em uma das sessões do instituto.
Saiu publicado no tomo XVIII, Pag. 5 da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil –
1885. Abaixo transcrevo o “Programa” proposto pelo Imperador:
14 de Dezembro de 1853
“Se existiram Amazonas no Brasil ? Se existiram, quais os testemunhos de sua existência; quais
seus costumes, usanças e crenças ? Se se assemelhavam ou indicavam originaram-se das
Amazonas da Cítia e Líbia, e quais os motivos de seu rápido desaparecimento ? Se não existiram,
que motivos tiveram Orellana e Cristovão da Cunha, seu fiador, para nos asseverarem a sua
existência?” (pags. 05,06)
importante na formulação do “Programa” é que a estrutura do pensar as Amazonas se mantém: o
dilema, existem/ não existem garantiu a reprodução do mito ao longo dos séculos. Deixamos de
comentar a resposta de Gonçalves Dias porque não é nosso tema específico.
Aliás, Gonçalves Dias viveu na região e produziu outros textos igualmente relevantes.
12
CABRAL DE MELO, E. O Norte agrário e o Império. Editora Nova Fronteira/ Pró memória/ Instituto
Nacional do livro, Rio de Janeiro, 1984.
13
BAENA, Antonio Ladislau Monteiro. Typografia de Santos & Menor. Rua da Alfama n015. S/D.
14
A coleção da “Revista Amazônia” editada por José Veríssimo (1883-84) existe no Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. O museu Emílio Goeldi de Belém tem a coleção incompleta.
A Universidade Federal do Pará publicou em 1970 “Estudos Amazônicos ”de José
Veríssimo, onde reedita alguns trabalhos publicados na “Revista Amazônica”.
Em Belém foi publicado em 1886 o jornal “A Amazônia”. Número único.
167
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não se pode tratar um assunto até esgotá-lo. Já foi dito que “abandonamos
dizer o que imaginamos ser e desejar ser. O imaginário traduz o ser e o querer ser,
autocomiseração.
antecipando que em algum momento ela irá perder as suas certezas. Estas são
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO LIMA, J. F. de. No Reino das Náiades — Amazônia — A Terra e o Homem (1933)
in Roque, Carlos. Antologia de Cultura Amazônica. Vol. VI, São Paulo, Amazônia Edições
Culturais, 1971.
BAENA, Antonio Ladislau Monteiro. Typografia de Santos & Menor. Rua da Alfama n015.
S/D.
1996.
CABRAL DE MELO, E. O Norte agrário e o Império. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira/
CARBAJAL, Gaspar de; ROJAS, Alonso de e ACUÑA, Cristobal de. Descobrimento Do Rio
Nacional, 1941.
CUNHA, Euclides da. À Margem da História. Obra completa, vol. I. Rio de Janeiro, Cia.
José Aguilar Editora, 1966.
Arquetipologia Geral (trad. de Hélder Godinho) São Paulo, Editora Martins Fontes, 1997.
DURAND, Gilbert. O Imaginário – Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio
GEERTZ, Clifford. "A Política do Significado" in A Interpretação das Culturas. Trad. Fanny
Wrobel. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1978.
GEERTZ, Clifford. “Mistura de Gêneros: a Reafirmação do Pensamento Social” in O Saber
Local (Trad. Vera Mello Joscelyne). Petrópolis, Editora Vozes, 1998.
GEERTZ, Clifford. O Saber Local — Novos Ensaios de Antropologia Interpretativa.
Petrópolis, Editora Vozes, 1998.
GONÇALVES DIAS, Antônio. Amazonas — Memória Escrita em Desenvolvimento do
Programa dado por Sua Majestade Imperial ao seu Sócio Efetivo, o Senhor Doutor A.
Gonçalves Dias. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil. 3a série, no 17, Rio
GONÇALVES DIAS, A . Viagem pelo Rio Amazonas — Cartas do Mundus Alter. Cartas a
Antônio Henriques. Manaus, 20 de Dezembro de 1861 in Meditação. Rio de Janeiro/ H.
Garnier. Obras Póstumas. Paris, s/d.
GRUZINSKI, Serge. Las Repercussiones de la Conquista: La experiencia Novohispana in
HARRIS, Marvin. “O Reino Canibal” in Canibais e Reis. Lisboa, Edições 70, 1978.
MADEMELO, Rafael Dias. La Aventura del Amazonas. Madri, Cronicas de America, 19.
antropofagia ritual dos Tupinambás. Trad. de Estevão Pinto. São Paulo, EDUSP/Editora
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Trad. de Sérgio Milliet. Cap. VI, “Dos coches”. São
Paulo. Abril Cultural. Coleção Os Pensadores, 1972.
OVIEDO, Gonzalo Fernandez de. História General y natural da Las Indias. Vol II. Madrid,
DUVERGER, Christian. La Conversion de los Indios de Nueva España. Con el texto de los
PORRO, Antonio. “Como Nasce uma Lenda”” in O Povo das Águas — Ensaios de Etno-
Euclides da Cunha. 4a edição. Tours (França), Typografia Arrault & cia., 1927.
SAHLINS, Marshall. Historical Metaphors and Mythical Realíties - Structure ín the Early
History on the Sandwich lsland Kingdom. Ann Arbor, The University of Michigan Press.
1981.
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1990.
SAMUEL, Pierre. Amazones, Guerrières et Gaillardes. Prefácio de F. d’Eaubonne.
Pará, 1926.
SANTANA NERY, Barão de. O País das Amazonas. Tradução de Ana Mazurspira. Belo
TAVARES, Hênio. Teoria Literária. Belo Horizonte, Editora Itatiaia LTDA., 1974, 5a edição.
TODOROV, Tzvetan. Descobrimento da América — A Questão do Outro.
DO EUROPEU
Humana.
enfrentá-la é abraçar uma pesquisa “sem fim”1. A implicação mais grave desta
Amazônia deve ser apreendida no amplo quadro cultural espanhol e no produto que
América. 2
da Espanha, aliás dois acontecimentos que moldam a lógica da “guerra santa” que
Ainda mais, o almirante anuncia que a função primordial da viagem que propiciou o
Tartárea, o Grande Cã, solicita ao papa cem teólogos para convertê-los a Cristo, e o
almirante comunicara o fato aos príncipes de Espanha, muito embora lamente que
“muitas vezes ele e seus antecessores mandaram pedir que Roma lhes enviasse
que nunca o Santo Padre os quis atender e que se perdiam tantos povos em
Salvacionistas”: os “outros” não só não resistirão ao “nós”, mas pedem para deixar
grande-can, cujo imaginário europeu já elegera como alguém que desejaria tornar-
dos nativos.
putrefação.
177
mundo cristão. Por outro lado, os “índios” investigavam a humanidade dos brancos,
que julgavam inicialmente como seres vindos “do céu”, como deuses anunciados
como as armas de fogo e de ferro, os cavalos (“viados sem chifres”) e das “torres”
“com barbas”, solução só encontrável pela morte e putrefação dos corpos, o que os
referências.
espanhóis “... tinham sido recebidos de maneira mais solene, segundo o costume
por nativos, registrando que “Encontraram o povoado vazio; era de mil casas e mais
de mil habitantes. O índio que os christãos levavam correu através delas, aos
brados, pedindo que não tivessem medo que os cristãos não eram caraíbas, antes,
pelo contrário, vinham do céu, e que davam muitas coisas bonitas a todos os que
encontravam”.
cacique Guacanagari quando “... mandou dar-lhe algumas coisas e ele e toda a
uma atitude inicial de completa admiração e submissão aos espanhóis o que irá se
conquista.
próprio Montezuma, o qual ao analisar o “sétimo presságio” pelo exame de uma ave
como visse tantas visões e tão disformes, mandou chamar seus agoureiros e
advinhos que eram tidos por sábios”6. No “oitavo presságio” (Versão de Camargo)
eram vistos como “prognósticos de fim e ruína, porque diziam que haveriam de ser
criados, outros novos povos e viriam outros novos habitantes do mundo. E assim
andavam tão tristes e apavorados que não sabiam que juizo fazer em relação a
essas coisas tão raras, peregrinas, tão novas e nunca vistas e ouvidas”.
180
entenderam senão que eram os deuses que haviam descido do céu, e assim com
tão estranha novidade, voou a nova por toda a terra em pouca ou em muita
população. Seja como for, ao final soube-se que havia chegado uma estranha e
monarquia”.
Ilhas que os espanhóis freqüentavam desde 1492 e onde, já haviam feito enormes
tomados pela certeza de que a “volta dos deuses” era algo incontornável como sua
com grande chance de êxito, não fosse encetada nos primeiros momentos. São
deuses que chegam para consumar o fim. A condição divina dos estranhos
pelos espanhóis e isto repercutiu muito por toda a região até o México e ainda mais
pelo fato dos Tlaxcaltecas terem-se “aliados aos deuses”, pois assim eram
chamados os nossos (os espanhóis) em toda terra deste mundo novo sem que
cheguei as margens do grande mar e vi andar pelo meio do mar, uma serra ou morro
grande, que andava de um lugar para outro sem chegar às margens, e isso jamais
nós vimos”.
181
mais que nossas carnes, exceto que todos têm barbas longa e seu cabelo vai até a
espanto causou-lhe o ouvir como explode uma canhão, como retumba o seu
adereços de guerra são todos de ferro: ferro vestem, ferro põem como capacete em
suas cabeças, ferro são suas espadas, ferro seus arcos, ferro seus escudos, ferro
suas lanças.”
São carregadas nos lombos dos seus “veados”. Ficam tão altos como
os tetos das casas. Seus corpos estão cobertos por todas as partes, aparecem
somente seus rostos”. “... seus cães são enormes, de orelhas ondulantes e
achatadas, de grandes línguas pendente; têm olhos que derramam fogo, estão
entregar o tesouro e diz aos seus embaixadores “ – Ide sem demora. Acatai nosso
Senhor o Deus. Dizei a ele: “Envia-nos aqui teu lugar – tenente Montezuma. Eis aqui
espanhóis uns seres imortais, pensando tivessem descido do céu e como tais os
recebiam”. 9
como “Filhos do Sol”, a exemplo do que outros espanhóis haviam feito, e recebe
182
muita alegria, tendo-nos por santos ou pessoas celestiais, porque elas adoram e
dos “cristãos”. A estratégia consistia numa ardil para afogar um rapaz de nome
agrados com alimentos e “mostrádole mucho amor” atraí-lo para a travessia do Rio
183
Guarabo: “Senhor, queres que te atravessemos, para que não te molhes?” Salcedo
morían.
afastada pela experiência feita com Salcedo, embora os indígenas ainda relutassem
184
concepção dos recém chegados, foram antes “bestas” não humanas passando
índios, que quando buscam reagir não dispõem mais de condições reais para
rechaçar os europeus. Aqui reside a base dos argumentos que apontam o sucesso
da conquista – do ponto de vista europeu – por razões culturais dos nativos e não
invasores vinha sempre junta com um comportamento evitativo por parte do nativo.
Colombo, na primeira viagem, constrói uma imagem favorável do nativo para depois
transformá-lo numa peça de sua coleção de história natural. A fuga constante dos
Carbajal e Acuña.
185
alternam.
achamento do futuro Rio Amazonas, foi um dos mais dramáticos no que tange a
controvérsia girava em torno da eticidade das “guerras justas” contra os índios com
prático, sendo levados à Coroa Espanhola para tratamento oficial e decisão. Fray
Rei, uma denúncia contra os colonos por massacrarem os índios. Cria-se então o
questão. A Junta, formada por três freis Jerônimos se deslocou até a Ilha Espanhola
imundos”.
Las Casas e pela condição de “cães imundos”, reunindo-os nas “reduções” para
Em 1537 a Papa Paulo III emite a Bula Sublimus Dei que declara que
os índios eram “verdadeiros homens” e que “possuíam alma”. Paulo III (Alessandro
Sublimus Dei parte dos evangelhos e afirma que Deus disse: “Vai e
prega a todas as nações”. Insiste a Bula que Cristo disse “todas”, “sem exceção”
É o “inimigo da raça humana” que se opõe aos bons desígnios para salvar o
do Sul e outros povos dos quais tivemos conhecimento recente, devam ser tratados
como seres brutos (“as dumb brutes”) postos a nosso serviço, pretendendo
inclusive que sejam eles incapazes para receber a “Fé Católica”. No imaginário da
humana dos habitantes do “Novo Mundo” era a pedra de toque do sentido das
teológica, mas de uma questão central, muito embora, como veremos adiante, a
mais: não podem ser escravizados por nenhum meio e qualquer forma de
fronteira econômica.
direito de preservar suas formas de crença religiosa. A Bula de 1537 concluí que os
“pelo exemplo de uma vida santa”. Se prega a conversão, não admite o uso da
chega a aceitar a diferença enquanto mera diferença, mas pretende suprimí-la pela
conversão do outro.
todos os outros povos que vierem a ser descobertos deverão receber o mesmo
pelo Fray Gaspar de Carbajal (1541-42) e que é um dos pontos principais deste
mão-de-obra indígena.
189
“Dice que todo lo que SS. AA. han mandado guardar por sus leys, no
han guardado ni guardou cosa alguna, salvo las que a los españoles cumplen para
haber más indios, antes diz que haceu ordenanzas e despensaciones contrarias a
Las Leys e ordenamientos que SS. AA. mandarou guardar, e declara muchos
personas a quien fuerou dados indios, los cuales usando mal dalhos e tustandolos
àsperamentente, los más dellos murierou. O trecho acima é uma definição perfeita
lei e de ética de metrópole. Acima da autoridade civil e religiosa. Ainda mais: passa
190
obra se repetiu no Pará e no Maranhão onde o Padre Antônio Vieira fez a mesma
Vieira.
converte em questão teórica que precisa ser justificada à luz da literatura cristã. A
escravidão será injusta (Las Casas) porque não encontra justificativa nos textos
192
“sagrados”. E será justa (Sepúlveda) porque encontra plena razão perante Deus
corte será Las Casas, mas Sepúlveda prevalecerá como força histórica: a
Las Casas busca submeter os indígenas por uma pedagogia de efeito lento e
seguro.
Deus com seus cultos. O uso da violência para impor a justa crença e a justa
civilização.
já demonstrara que existem escravos por natureza e este era o caso dos indígenas.
Las Casas ficava numa posição de quem caminha contra a corrente de seu tempo.
Belli Causis apud Indos, que havia sido escrito em 1547 fosse proibido pelo
determinação Real.
América.
prossegue.
194
nação?
Las Casas puderam expressar o novo imaginário que surge com o descobrimento e
idolatria, canibalismo, de sacrificar homens aos seus “ídolos” se justifica junto aos
diferença.
Não cristão é igual a meio animal. A discriminação não é racial, mas cultural.
acusava Las Casas. Humano e moderno. A tensão se põe entre a nova categoria de
destruir”.
NOTAS
LAS CASAS, Bartolomé de Brevissima Relação da Destruição das Indias – o “Paraíso Destruído. 2a. ed.
CARBAJAL, Gaspar de; ROJAS, Alonso de e ACUÑA, Cristobal de. Descobrimento do Rio das Amazonas.
OVIEDO, Gonzalo Fernandez de. História general y natural de las Indias. Vol. II. Edición de Juan Perez
de Tudala Bueso. Biblioteca de autores Españoles. Ediciones Athas. Madrid, 1959. pgs. 99 e 100.
O processo de destruição das sociedades e das populações americanas está discutida por Las
Casas na Brevíssima Relação da Destruição das Índias, op. cit., e recentemente por Tzvetan Todorov
196
PAUL III POPE. Sublimus Dei. Made available to the world by Steve Creps
(creps@Lateran.UCS.Indiana.edu).
BUENO, Eduardo. Apresentação. Genocídio de Ontem e Hoje in LAS CASAS, Frei Bartolomé. O Paraíso
Destruído. Trad. de Heraldo Barbuy. Li & PM Editiones. Porto Alegre, 1984, pg. 24.
LAS CASAS, Fray Bartolomé de. Representación a los regentes cisneros y adrino (extração – 1516) in
Obras Esgocidas. Vol. V. O rúsculos, cartas y memoriales. Ilustración preliminar y edicio por Juan
Veres de Tudala Buess. Biblioteca de autores Españoles desde la formación del linguaje hasta
O tom das denúncias foi se tornando progressivamente mais duro. Em 1518 escreve outro memorial
de Remédios para Las Índias onde denuncia abertamente o massacre. Ainda em 1518 escreve o
“Memorial de Remédios” dirigido à conquista da “Terra Firme”. Em 1519 escreve a “Retición al grau
Canciller acerca de la capitulacion de Tierra Firme”. Em 1531 e 1534 escreve as “Carta al Consejo de
Las Casas, Fray B. Carta al Consijo de Indias (20-1-1531) in Obras Escogidas. Op. cit., vol. V, pgs. 54
e 55.
NOTAS
1
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América — A questão do Outro. S. Paulo, Martins Fontes.1993.
2
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Trad. Barbara Sette. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores. 1990.
Pág. 9.
3
DIAZ, R. in CARVAJAL, C. de; ALMESTO, P. de y ROJAS, Afonso de. Introdución. In La Aventura del
outros autores os definiam como “bárbaros – e os clérigos católicos como “religiosos” no “Prólogo
do Bispo de Chiapa aos Senhores da Assembléia que era a apresentação de sua defesa dos índios
Sepulveda in Frei Bartolomé de Las Casas – Brevissima Relação da Destruição das Índias – O Paraíso
Destruído. 2a. edição. Trad. de Herald Barbuy. L & PM. Editiones Porto Alegre, 1984.
5
LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. Lisboa, Editorial Presença. Trad. Inácia Canelas. 1973 (1952).
6
COLOMBO, Cristovam. Diários da descoberta da América – As quatro viagens e o testamento. Trad.
de Milton Person. Porto Alegre, L & PM Editiones. 2a. edição. 1984. Págs. 47, 59, 72 e 77.
7
Todas as referências aos aztecas estão na História General de Las Casas de Nueva Espanha de LAS
CASAS. Tomo I e no Livro XII do Códice Florentino de Fray Bernardino de Sahagún e na História de
Tlaxcala de Diego Munoz Camargo publicados in A Visão dos Vencidos – A tragédia da conquista
narrada pelos astecas de Miguel León-Portilla. Trad. de Carlos Urbin e Macques Wainberg, Porto
Mas na comparação com o calendário ocidental Camargo afirma de os sinais apareceram em 1517,
gênero humano in Jorge Larossa e Nuria Nérez de Lara (orgs.) Imagens do outro. Petrópolis, Editora
Vozes, 1998.
13
TODOROv, op. cit., principalmente cap. III.
198
ÍNDICE
SÚMULA 3
ABSTRACT 3
AGRADECIMENTOS 4
INTRODUÇÃO 5
1. Quadro Histórico 27
2. Percurso e o Descobrimento 30
3. A “Relacion” de Gaspar de Carbajal e a “Nova Andaluzia” 34
A HIPÉRBOLE E O PRETEXTO 89
A HIPÉRBOLE 92
Seres que
que Transgridem e Constroem
um Paraíso Exclusivo e Feminino 110