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ISSN nº 1676-7748

REVISTA MAGIS
CADERNOS DE FÉ E CULTURA

Número 45 – Fevereiro de
2004.

O QUE A
ESPIRITUALIDADE
TEM A VER COM AS CIÊNCIAS?
Conselho Editorial
André Marcelo Machado Soares
Danilo Marcondes Filho
Eliana Yunes
José Carlos Barcellos
Luiz Basilio Cavalieri
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Maria Lilia Campello Pereira
Pe. Paul Schweitzer, S.J.

EQUIPE DE PRODUÇÃO
Produção Executiva
Equipe do Centro Loyola de Fé e Cultura PUC-Rio

Projeto Gráfico
Carla M. Cipolla
Felipe R. Chalfun

Diagramação
José Antonio de Oliveira

Assessoria Gráfica
Editora PUC-Rio

EXPEDIÇÃO E ASSINATURAS
Francisca Sônia R. P. Fontes
Telefone: 21 3874-8093

CENTRO LOYOLA DE FÉ E CULTURA


Estrada da Gávea, nº 1- Gávea
22451-260 – Rio de Janeiro – RJ
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Fax: 21 3874-8095
Email: centroloyola@openlink.com.br
www.puc-rio.br/campus/serviços/cloyola/
AGRADECIMENTOS

Agradecemos ao Sr. Paulo Mário Freire pelo contínuo e fundamental apoio à


Revista Magis.

A Equipe
ÍNDICE

Editorial

O Que a Espiritualidade tem a ver com as Ciências Exatas?


Geraldo Monteiro Sigaud

O Que a Espiritualidade tem a ver com as Ciências Humanas?


Frei Nilo Agostini, ofm

O Que a Espiritualidade tem a ver com as Ciências Sociais?


Denise Pini Rosalem da Fonseca

Psicologia e Espiritualidade
Chista Freitas

Literatura e Espiritualidade: Notas Introdutórias.


José Carlos Barcellos

Teologia: Saboreando as Razões de Nossa Fé.


Maria Clara Lucchetti Bingemer
EDITORIAL

Se for verdade o que diz um grande e controvertido teólogo contemporâneo sobre a


espiritualidade, ela não pertence apenas ao domínio da religião instituída e institucionalizada,
mas faz interface com tudo aquilo que é humano e portanto, criado pelo Ser Divino. Tudo
que é humano ou se oferece, dentro da Criação, ao espírito humano, pode ser transfigurado e
apropriado enquanto espiritualidade.
Nesse sentido, a espiritualidade não seria o monopólio das religiões ou mesmo das
Igrejas, mas uma dimensão do humano. É a capacidade do ser humano de dialogar com o Eu
profundo e com o Totalmente Outro que lhe fala. É a possibilidade dada e recebida
graciosamente de ouvir os apelos da coração e dialogar com o que nos transcende. É a
consciência que se sente inserida num todo maior e que capta o elo secreto que tudo liga e re-
liga à Fonte primeira de todo ser, que a nada se parece e de tudo difere, chamada Deus. Com
esse Deus que a ele se revela, o ser humano entretém diálogo de intimidade e de amor. A
espiritualidade é, pois, nesse sentido, a aura que sustenta os valores de solidariedade,
compaixão, cuidado e amor, fundamentais para uma sociabilidade verdadeiramente humana.
É igualmente aquilo que brota do pensar humano, o qual, no processo de um conhecimento
que não é mera intelecção teórica, mas experiência vital inseparável do amor, conduz o ser
humano na busca incansável da verdade, sempre ansiada e procurada, nunca totalmente
possuída.
Neste sentido, a Mostra PUC, evento anual que reúne algumas centenas de jovens em
torno do tema do trabalho, pediu ao Centro Loyola de fé e cultura que organizasse uma mesa
redonda que respondesse à pergunta tão central quanto estimulante: O que têm as ciências
(humanas, sociais, exatas) a ver com a espiritualidade? Ou - formulando-a inversamente – o
que têm a espiritualidade a ver com estas ciências?
Três professores da Universidade – dos departamentos de Física, Serviço Social e
Teologia - se dispuseram a partilhar sua reflexão e os belos textos que dela resultaram
encontram-se neste número de MAGIS.
Tão atual e instigante é o tema que outros decidiram contribuir para este número de
nossos cadernos a partir de suas áreas acadêmicas de pertença. É assim que se fazem
presentes ainda neste número a Psicologia, a Literatura e – não podia deixar de ser – a
Teologia.
Esperamos que a leitura seja fecunda e a partir da pergunta proposta, proponha novas e
outras perguntas, que façam igualmente pensar, refletir, suspirar, desejar...rezar. Que falem ao
espírito e ouçam o que o Espírito tem a dizer. Afinal, é de espiritualidade que se trata. E de
sua interlocução com a ciência. Oxalá ao fim da leitura deste caderno possamos perceber o
infinito alcance que a experiência espiritual tem...e traze-la mais à frente e mais ao centro da
Universidade hoje.
Boa Leitura!

A EQUIPE
O QUE A ESPIRITUALIDADE TEM A VER COM AS CIÊNCIAS EXATAS?

Geraldo Monteiro Sigaud


Departamento de Física - PUC-Rio

A pergunta acima admite uma diversidade de respostas que dependem, obviamente,


não só de quem responde, mas, também, de quando na História da Humanidade esta pergunta
é feita. Em particular nos dias de hoje, a resposta mais provável é de que há uma
incompatibilidade clara entre Ciências Exatas e Espiritualidade, mais especificamente, entre
Ciência e Fé. Entretanto, isto não só não é necessariamente verdade hoje, como não o tem
sido ao longo da História da Ciência, e das Ciências Exatas, em particular. Vou tentar expor
brevemente esta História – sem ter a pretensão de esgotá-la por falta de conhecimento da
minha parte – e tentar, no final, dar a minha resposta.
O objetivo primordial da Ciência – na verdade, talvez seu único objetivo – é a busca
de compreensão da Natureza. Esta compreensão – ou conhecimento da Natureza – é
considerada satisfatória quando se descobrem, em meio à diversidade de fenômenos
observados, certas regularidades, certos padrões de comportamento. Estas regularidades são
por nós chamadas de Leis da Natureza. O que é extraordinário nisto é que, em primeiro lugar,
estas regularidades existam e, segundo, que nós tenhamos sido capazes de descobrir pelo
menos algumas delas, em meio à absolutamente fantástica complexidade do mundo em que
vivemos. E eu não estou falando da complexidade por nós introduzida através do
desenvolvimento tecnológico que nos deu esta parafernália de objetos que tornam nossa vida
hoje mais confortável. Estou, sim, me referindo à Natureza sem a intervenção dos seres
humanos. Todos os fenômenos naturais que observamos apresentam uma complexidade
extraordinária, desde uma simples brisa até o mais forte dos temporais, desde o movimento
das asas de uma borboleta até o das estrelas e galáxias. O fato de termos conseguido descobrir
padrões ordenados e, muitas vezes, universais de comportamento para grupos de fenômenos
naturais aparentemente tão desordenados e desconectados entre si é certamente motivo de
satisfação, orgulho e – por que não? – fé.
Gostaria, aqui, de enfatizar a observação como base fundamental de toda a Ciência.
Por observação entendo eu não só a observação de fenômenos naturais que ocorrem sem a
intervenção direta do Homem, mas, também, principalmente nos últimos séculos, aquela
provocada por nós através da realização de experiências. É importante também que não nos
esqueçamos do caráter sensitivo embutido na atitude observacional. De fato, a ampliação das
possibilidades de observação, que tem, ao longo dos séculos, permitido um número cada vez
maior de novas descobertas e, conseqüentemente, servido de base experimental para o
desenvolvimento de novas teorias científicas, cada vez mais abrangentes, nada mais é do que
uma extensão dos nossos sentidos naturais: telescópios, microscópios, detectores de radiação,
de partículas, etc. Em paralelo, é claro, com a disponibilidade cada vez maior de aparatos e
equipamentos provocadores de fenômenos novos de forma tão sistemática e repetitiva quanto
for necessário, tais como, aceleradores de partículas, simuladores, novos materiais, novos
produtos químicos e biológicos, etc. A lista é infindável.
Mas, nesta busca pelo conhecimento, não basta observar os fenômenos, sejam eles
naturais ou provocados. É absolutamente necessário que o que foi observado, natural ou
sistematicamente, seja sintetizado de alguma forma em regras gerais, ou teorias. Este tem
sido, em última análise, o papel de quem tem trabalhado em Ciência ao longo destes 2500
anos desde a Grécia Antiga. Entretanto, este trabalho de síntese do já-observado tem, em toda
a História da Ciência, sofrido alguns cortes fundamentais, realizados por cientistas de gênio,
que conseguiram, a partir de teorias existentes, muitas vezes sobre assuntos aparentemente
desconectados entre si, dar passos gigantescos em direção ao novo, revolucionando não só a
Ciência como, também, as próprias idéias da Humanidade. Tratarei, agora, brevemente de
alguns destes cientistas, todos, à exceção do primeiro, ligados à Física. Esta aparente restrição
– pela qual peço desde já desculpas – reflete principalmente uma espécie de deformação
profissional minha, apesar de considerá-los – e suas idéias – como causadores de algumas
dentre as mais profundas revoluções do Espírito Humano em sua procura incessante da
Verdade e que atiçaram – e têm atiçado até hoje – de forma muito intensa o debate relativo à
comunhão/contraposição entre Ciência e Espiritualidade.
Foi na Grécia Antiga, principalmente com Aristóteles, que o que nós conhecemos hoje
como Ciência deu seus primeiros passos. A Física nasceu na Grécia há 2500 anos e foi lá que
se estabeleceu que a observação da Natureza era o estágio inicial de qualquer tentativa para
sua compreensão. Nesta época, começou a se desenvolver o que chamamos de Filosofia
Natural, isto é, a busca da compreensão dos fenômenos naturais observados através da
tentativa de descobrir leis naturais que fossem eternas, sem ter de recorrer a explicações
míticas. Provavelmente o maior de todos os filósofos naturais gregos foi Aristóteles. Na
verdade, ele foi o último dos grandes filósofos gregos e talvez o primeiro grande cientista,
principalmente porque, além de usar sua razão, ele utilizou os seus sentidos.
O aspecto fundamental da Filosofia Natural aristotélica é o conceito de que o
Universo, o Cosmos, constitui um conjunto ordenado em que reina uma hierarquia
determinada e soberana, porém obviamente subjetiva. No Cosmos aristotélico, cada coisa,
cada objeto, cada ser tem o seu lugar próprio, o seu estado próprio, o que leva a uma
“hierarquização” do Universo. Aristóteles construiu um monumento de Lógica alicerçado no
senso comum, que iria dominar, por mais de 2000 anos, o pensamento do Mundo Ocidental.
Este monumento ruiu porque não era levado em conta o papel fundamental da experiência na
elaboração de uma teoria científica. Além disso, a doutrina aristotélica, por sua própria
natureza, era incapaz de prever fenômenos ainda não observados, sendo, portanto, estéril.
Assim, Aristóteles possuía espírito científico, mas não método científico. Entretanto, não
podemos esquecer o legado que Aristóteles nos deixou em sua síntese da filosofia natural
grega: a curiosidade para a observação e o estudo da Natureza, a convicção que esta Natureza
é regida por leis universais, e a fé na capacidade humana em buscar entender estas leis.
A obra de Aristóteles, praticamente esquecida no mundo ocidental durante boa parte
da Idade Média, permaneceu viva no mundo árabe e passou a ser difundida na Europa por
volta do ano 1200, principalmente na Espanha e no norte da Itália. Esta difusão despertou
mais uma vez o interesse pelo estudo das ciências naturais que, de uma certa forma, tinha
permanecido estagnado durante todo este tempo. E, além disso, trouxe novamente à tona a
discussão sobre a relação entre a filosofia grega e a fé cristã, já surgida com a “cristianização”
das idéias de Platão por Santo Agostinho no século IV. Tornou-se imperioso que a filosofia
natural aristotélica fosse compatibilizada aos textos bíblicos, principalmente no que se refere à
Criação e à Cosmologia como um todo. Este papel de “cristianização” de Aristóteles foi feito,
como sabemos, por São Tomás de Aquino, que teve o imenso mérito – entre outros, é claro –
de ter conseguido a grande síntese entre a fé e o conhecimento. Para São Tomás de Aquino,
não há um paradoxo inconciliável entre a filosofia, ou a razão, por um lado, e a revelação, ou
a fé cristã, por outro. Na verdade, para ele havia as “verdades de fé” como, por exemplo, que
Jesus é filho de Deus, e as “verdades naturais teológicas”, que são as verdades a que podemos
chegar tanto pela fé cristã quanto pela nossa razão natural como, por exemplo, a da existência
de Deus. São Tomás de Aquino acreditava, portanto, que dois caminhos levavam a Deus: o da
fé e revelação cristãs, e o da razão e dos sentidos, sendo o mais seguro, obviamente, o da fé e
da revelação, já que, muitas vezes, a razão pode ser enganosa. São Tomás de Aquino quis nos
mostrar que só há uma verdade. Uma parte dela pode ser reconhecida através da razão e da
observação; a outra nos foi revelada por Deus através da Bíblia – estas duas partes se
sobrepõem em muitas questões como, por exemplo, a da existência de Deus. De fato, na sua
hierarquização do Cosmos, Aristóteles pressupunha a existência de um Deus, um Ser
Supremo, responsável pelo “funcionamento” de todo o Cosmos, apesar de não descrever este
Deus. Aí, segundo São Tomás de Aquino, devemos seguir a Bíblia e os ensinamentos de
Jesus. Assim, a nossa razão nos permite reconhecer que para tudo há uma “causa primordial”;
como Deus se revela a nós pela Bíblia – a “teologia revelada” – e pela razão – a “teologia
natural” – há, segundo ele, dois caminhos compatíveis para a Espiritualidade, isto é, para
Deus.
São Tomás de Aquino conseguiu, portanto, mostrar que, desde que convenientemente
interpretadas, a Cosmologia e a Física aristotélicas não conflitavam com os princípios da
doutrina cristã. Depois da publicação do seu grande monumento teológico, a “Summa
Theologica”, a Igreja não só deixou de pôr em dúvida a ortodoxia aristotélica como foi muito
mais adiante aceitando sua Cosmologia como o modelo do Universo criado por Deus e
encorajando os estudos e a propagação pelo ensino de toda a obra de Aristóteles.
O método científico, como conhecemos e aplicamos hoje, teve sua sistematização nos
“Discursos sobre Duas Novas Ciências”, escrito por Galileo e publicado em 1638. Nos
“Discursos”, Galileo deixa de lado todas as conotações medievais e transforma o estudo dos
fenômenos naturais numa investigação científica, cujos passos resumiremos a seguir. Em
primeiro lugar, há a observação do fenômeno; esta observação suscita geralmente uma
pergunta, a qual caracteriza a existência de um problema. Galileo teve a intuição, incrível
para a época, de que tanto a pergunta quanto a solução do problema devem ser elaboradas
numa linguagem especial: a linguagem matemática. É exatamente nisto que reside a chamada
“Revolução Científica do Século XVII”. Ora, para que o fenômeno estudado possa ser tratado
matematicamente, é necessário reduzi-lo a um conjunto de parâmetros suscetíveis de
medição: isto é chamado de “construção do modelo”. Este modelo deve obedecer, por decisão
ou escolha do investigador, a certas leis ou teorias preexistentes que, se não existirem, serão
substituídas por certas hipóteses de trabalho. As leis ou hipóteses impostas ao modelo levam
a certas deduções analíticas que fornecem uma resposta provisória à pergunta inicial e
permitem geralmente que se façam previsões verificáveis quanto às respostas a outras
perguntas porventura suscitadas pelo modelo, no decorrer da investigação. No entanto, por
serem as leis e hipóteses de trabalho imposições humanas feitas pelo investigador, resta ainda
saber se a Natureza “concorda” com a resposta encontrada. Só há um meio de sabê-lo:
voltar à experiência, isto é, intervir na Natureza. Somente a experiência permitirá decidir se o
modelo construído estava correto – isto é, se todos os parâmetros relevantes para a pergunta
feita foram incluídos – e, por outro lado, se as leis ou hipóteses de trabalho impostas ao
modelo estavam corretas. O grande mérito de Galileo foi ter entendido que a chave do método
científico estava precisamente na passagem do real inicial – a observação – para o real final –
a experiência. Ele foi o grande artesão da libertação da Ciência das essências aristotélicas, da
magia medieval e das qualidades ocultas, que por mais de 2000 anos haviam impedido o seu
desenvolvimento.
Com Newton, a Revolução Científica do século XVII atingiu seu apogeu. Em menos
de 50 anos, o gênio de um homem conseguiu alcançar o que 2000 anos de esforços tinham
preparado: a formulação de uma teoria científica. Newton nos fornece o exemplo típico de um
gênio que desabrochou e produziu com extraordinária fertilidade apoiado nos “ombros dos
gigantes” – conforme sua própria expressão – que o precederam, como Copérnico, Kepler e,
sobretudo, Galileo, com o seu método científico. Mas o método científico, sem uma teoria
para sustentá-lo e nutri-lo, é um esqueleto sem substância. Os modelos construídos exigem
hipóteses de trabalho para serem capazes de fazer previsões verificáveis experimentalmente.
Newton foi o primeiro a encontrar Leis que não só traduzem a regularidade do
comportamento da Natureza em classes isoladas de fenômenos, mas que, descendo a um nível
mais profundo de compreensão, vão revelar esta regularidade em todos os fenômenos – no
caso, relacionados ao movimento –, quaisquer que sejam a sua causa ou a sua origem.
É importante lembrar que a separação entre fé e razão ainda não estava totalmente
manifesta, pelo menos para Galileo e Newton, apesar dos problemas – diferentes – pelos quais
ambos passaram. Galileo, apesar de todas as divergências com a Igreja Católica da época –
que todos nós conhecemos e que só foram devidamente resolvidas recentemente –, era – e
permaneceu – profundamente católico até sua morte. E mesmo Newton, que por pouco não
foi considerado herege antes de assumir sua cátedra no “College of the Holy and Undivided
Trinity” – hoje conhecido simplesmente como “Trinity College” – em Cambridge (Newton
era “arianista”, isto é, não acreditava na Santíssima Trindade), declara, no “Escólio Geral”
que encerra sua obra-prima, os “Principia”:

“Esse belíssimo sistema do Sol, dos planetas e dos cometas só poderia provir do plano
e da sabedoria de um Ser inteligente e poderoso. (...) Esse Ser rege todas as coisas, não
como a alma do Universo, mas como o Senhor de todas as coisas; e, em virtude de seu
domínio, ele sói ser chamado de Senhor Deus, ou Senhor do Universo. (...) Ele não é
apenas virtualmente, mas também substancialmente onipresente, pois a virtude não
pode subsistir sem a substância. Nele estão contidas e se movem todas as coisas. (...) É
isso o que eu tinha a dizer de Deus, e suas obras constituem o objeto do estudo da
Filosofia Natural (...)”.

A Mecânica Clássica desenvolvida por Newton eliminou qualquer referência ao


finalismo aristotélico, já que, dadas as leis de força que regem um dado sistema, os
acontecimentos resultantes são uma conseqüência automática de condições iniciais
mensuráveis num dado instante. Assim, a Mecânica Clássica possibilitou um amplo
esclarecimento das questões de causa e efeito. Sabemos como o progresso tremendamente
bem-sucedido da Mecânica, baseado nesta visão determinista e causal, causou uma profunda
impressão em toda a Ciência contemporânea, chegando-se a atitudes extremas, como a
expressa na famosa concepção de Laplace sobre uma máquina universal, na qual todas as
interações de seus componentes seriam regidas pelas leis da Mecânica, dispensando, segunda
suas próprias palavras, “a hipótese de Deus”. Desta forma, uma inteligência que conhecesse
as posições e velocidades destas partes, num dado instante, poderia prever todos os
acontecimentos subseqüentes do mundo, inclusive o comportamento dos animais e dos
homens. Esta concepção mecanicista da Natureza tornou-se um ideal de explicação científica
em todos os campos do conhecimento, independentemente do modo de obtenção do
conhecimento. Além disso, o desenvolvimento desta concepção foi uma – senão a mais
importante – das causas do verdadeiro cisma entre Religião e Ciência ocorrido a partir do
Renascimento europeu. Por um lado, muitos fenômenos até então explicados pela intervenção
da Providência Divina foram identificados como conseqüências de leis gerais e imutáveis da
Natureza. Por outro lado, os métodos e pontos de vista da Física eram, muitas vezes, bastante
distintos da ênfase nos valores e ideais humanos, essenciais à Religião. Assim, prevaleceu
uma atitude de distinção entre o conhecimento objetivo e a crença subjetiva.
No final do século XIX, entretanto, surgiram diversas incompatibilidades entre a
formulação Newtoniana da Mecânica Clássica e os fenômenos eletromagnéticos e óticos. A
solução para essas incompatibilidades, inconciliáveis dentro dos modelos existentes à época,
foi dada por Einstein com sua Teoria de Relatividade Restrita. Esta solução levava à
conclusão que diferentes observadores, movendo-se com grandes velocidades em relação uns
aos outros, coordenam os acontecimentos – tanto espacial quanto temporalmente – de
maneiras distintas, devido ao fato de que a luz se propaga com velocidade finita.
O que inicialmente poderia parecer uma fonte de confusão e complicação – a saber,
que a explicação dos fenômenos físicos depende do ponto de vista do observador – revelou-
se, na verdade, um guia inestimável para desvendar leis físicas gerais, comuns a todos os
observadores. Einstein conseguiu reformular e generalizar todo o edifício da Física Clássica
(essencialmente a Mecânica e o Eletromagnetismo Clássicos), além de conferir à nossa
imagem do mundo uma unidade que superou a todo o previsto.
Além destes problemas relativos à Mecânica e ao Eletromagnetismo Clássicos, novos
e insuspeitados aspectos do problema observacional foram revelados pelo estudo da
constituição atômica da matéria. Vem da Antigüidade a idéia de um limite para a
divisibilidade dos corpos, que surgiu da necessidade de se explicar a persistência de suas
propriedades características apesar da diversidade dos fenômenos naturais. Entretanto, até
recentemente, as idéias atomísticas foram consideradas mais como hipóteses do que modelos
teóricos comprováveis, já que pareciam impossíveis de serem confirmadas pela observação,
tendo em vista a precariedade dos nossos sentidos e dos instrumentos da época. No entanto, a
teoria atômica foi ganhando corpo, não só com o grande progresso da Física e da Química até
o final do século XIX, como também, no começo do século XX, com o estudo de
propriedades recém-descobertas da matéria, como a radioatividade natural.
Embora muitas características fundamentais da matéria tenham sido explicadas por
uma imagem simples do átomo, desde logo ficou evidente que as idéias clássicas da Mecânica
e do Eletromagnetismo eram insuficientes para explicar a estabilidade observada das
estruturas atômicas. Somente através do formalismo da Mecânica Quântica, desenvolvido
pelos esforços conjuntos de toda uma geração de físicos teóricos a partir da descoberta do
quantum universal da ação por Planck em 1901, é que se conseguiu uma descrição detalhada
de uma imensa quantidade de dados experimentais referentes às propriedades físicas e
químicas da matéria. O formalismo quântico não admite as interpretações pictóricas a que
estamos acostumados no nosso cotidiano; ele tem por objetivo direto o de estabelecer relações
entre as observações obtidas em condições bem definidas. Como, num dado arranjo
experimental, diferentes processos quânticos individuais podem ocorrer competitivamente,
essas relações são de caráter intrinsecamente probabilístico, e não determinístico como em
toda a Física Clássica. O Princípio da Incerteza de Heisenberg expressa esse caráter
probabilístico através da afirmação de que, contrariamente ao estabelecido pela Física
Clássica, é impossível medir a posição e a velocidade de uma partícula com precisão
arbitrariamente grande. Neste contexto, fala-se às vezes em “perturbação dos fenômenos pela
observação”. O reconhecimento de que a interação entre os instrumentos de medida e os
sistemas físicos investigados constitui uma parte integrante dos fenômenos quânticos não só
revelou uma limitação da concepção mecânica da Natureza, como também nos forçou a
prestar a devida atenção às condições de observação. Na verdade, a Mecânica Quântica como
que elevou a observação a um novo status, no sentido de que temos de admitir que não existe
realidade sem observador.
Com isso, atingimos, a meu ver, o último grande corte na História das Ciências
Físicas, que, como os anteriores, deixou marcas profundas na própria história do pensamento
humano. (E não se esqueçam que sequer mencionei aqueles ocorridos em outros ramos das
Ciências Exatas, como a Biologia e a Química). Mas, cabe ainda uma pergunta, aquela que
talvez seja a pergunta mais fundamental da Humanidade: De onde veio o Universo? ou, em
última análise, De onde viemos?.
E isto nos remete de volta à questão da separação histórica entre Fé e Razão. Na
verdade, muitos dos físicos que estabeleceram as bases da Física Moderna admitiam e, mais,
acreditavam na existência de Deus, como, por exemplo, Einstein, Pauli e Heisenberg. Mais
recentemente, alguns físicos como Willem Drees, físico e teólogo holandês, têm buscado
estabelecer as bases da assim-chamada hipótese teológica. Esta hipótese argumenta que o
século XX foi tão cheio de sucessos científicos, em que, como esboçado aqui, a Física revelou
grande parte dos segredos da matéria e das leis naturais, que se pode discutir a questão Deus
existe e está na origem das coisas? sem escorregar para o misticismo e as superstições. Por
exemplo, a conseqüência do Princípio da Incerteza, básico da Mecânica Quântica, de que não
há realidade independente do observador, leva naturalmente à pergunta Quem foi o
observador do Universo antes da existência do Homem? A isso, responde Drees: O grande
observador, medidor e, em última análise, criador do universo foi Deus (...) que precedeu o
nascimento das leis naturais e certamente vai sobreviver a elas.
Entretanto, antes de terminar, eu gostaria de dizer como eu me ponho diante da
pergunta-tema, isto é: O que a Espiritualidade tem a ver com as Ciências Exatas para mim?
Na verdade, no meu caso particular, essa questão da Espiritualidade vs. Ciências Exatas não
tem uma importância tão fundamental. É-me tão claro que as manifestações de Deus estão em
todas as coisas, que a magnífica complexidade do Universo é um dos mais belos exemplos da
Criação Divina, que estudar a Natureza, isto é, ser um cientista é um caminho na direção de
Deus, que não faz sentido algum discutir se é ou não incompatível ser cientista e ter Fé.
Assim, a resposta à pergunta “O que a Espiritualidade tem a ver com as Ciências Exatas” é,
para mim, “Tudo”!
O QUE A ESPIRITUALIDADE TEM A VER COM AS CIÊNCIAS HUMANAS
Prof. Frei Nilo Agostini, ofm1

1. Transição: encruzilhada e busca, hoje

No tocante à espiritualidade, encontramo-nos hoje numa encruzilhada entre visões


herdadas do passado, aquelas do momento presente e outras em gestação.
Do passado, trazemos a cosmovisão do mundo repleto do divino, compondo uma
ordem estabelecida, na qual cada elemento tinha o seu lugar. A espiritualidade respirava a
onipresença de Deus, numa heteronomia ampla e difusa. Esta visão contribuiu para a
edificação de uma ordem estabelecida marcada pela uniformidade e unanimidade, na qual
padrões, papéis, ritos, costumes etc eram pré-estabelecidos. Porém, tal visão era vivida de
maneira dualista, sendo a espiritualidade uma realidade separada do corpóreo e do material. O
encontro dos seres humanos com Deus (spiritualitas, como já aparece no séc. V)2 vinha
“talhado” pela dicotomia corpo e alma. Numa visão herdada dos gregos e dos próprios
maniqueus, o corpo constituía-se numa prisão da alma. Portanto, a vida espiritual era uma
constante busca de libertar-se da vida material, degradada, com um cuidado/suspeita constante
das relações corporais, recaindo sobre a sexualidade uma visão fortemente pejorativa.
Compreendemos, então, que se tenha cultivado uma visão preponderantemente negativa com
relação ao humano, ao mundo, ao corpo, à matéria etc.
A emergência da modernidade cria um outro momento, fundado numa visão diversa.
Com a afirmação do indivíduo e a sua pretendida emancipação, o ser humano julga-se não
mais depender de normas impostas “de fora” (heteronomia), declarando a sua autonomia,
sendo ele o protagonista da ação histórica. Como sujeito livre, autônomo, cioso de seus
direitos, o indivíduo moderno navega num mundo que é secularizado; nele, Deus não tem um
lugar próprio; o pluralismo se impõe como “natural”; tudo funciona “como se Deus não
existisse”. A dimensão transcendente da pessoa não se apresenta como estruturante do existir
moderno. Assim, a modernidade proclama solenemente “que as luzes da razão moderna e o
avanço do progresso técnico científico iriam, aos poucos, apagar as trevas do mundo religioso
tradicional, entronizando o homem secular como cidadão livre das amarras da religião e de

1
Frei Nilo Agostini é frade franciscano, sacerdote, professor de Teologia Moral na PUC-Rio, diretor da
Faculdade de Teologia e autor de uma dezena de livros (pela Editora Vozes) e grande número de artigos
publicados em revistas especializadas.
2
Cf. ESPEJA, Jesús. Espiritualidade cristã. Petrópolis: Editora Vozes, 1995, p. 27.
Deus... O nosso mundo... se transformaria no campo aberto para o empenho histórico do
homem, sem injunções sobrenaturais”3.
No entanto, não é isto que verificamos na ebulição atual, moderna/pós-moderna, tão
forte na busca do religioso, do sagrado, do mistério. Há uma busca intensa de alimentar a
dimensão espiritual da existência humana. A própria religião “está de novo no palco histórico,
movida pela força da emoção, do encanto do sagrado, pela busca de uma identidade como que
perdida no complexo mundo globalizado, de múltiplas relações sociais, econômicas, políticas,
culturais”4. No entanto, a busca religiosa de nossos dias projeta “uma religião nos limites do
humano enquanto captado segundo a medida de cada um, segundo demandas individuais”5.
O que nos chama a atenção são os deslizes reducionistas nos quais podem incorrer as
visões acima. Estes acabam por estabelecer referenciais “relativos” para a vida, não raro com
a pretensão de estar propondo a verdade absoluta. O dualismo e sua visão negativa do mundo
e do humano, o antropocentrismo e sua proposta racionalista, o individualismo atual como
medida até do que está além de si, inclusive na busca do religioso/espiritual, revelam-se
incapazes de responder cabalmente ao ser humano, com deslizes comprometedores.
Estas visões, por si sós, geram sistemas que se bastam por si, deslizando em formas
redutoras do humano, comprometendo a qualidade dinâmica da vida. Esta, no dia a dia, não se
revela como plena quando sustentada por visões compartimentalizadas, unidimensionais,
parciais, fragmentadas ou dicotômicas. Conhecemos como é parcial e onerosa a proposta do
dualismo alma/corpo. De igual forma, a pretensão de chegar à verdade ou estipular o que é
válido a partir de um saber isolado ou de um campo exclusivo da ciência cria um cientismo
frágil por fundar-se numa proposta fragmentada da realidade. Enfim, a busca do
espiritual/transcendente, enquanto demanda estritamente individual ou mesmo individualista,
revela a busca de um Deus ou divindade que se equipara a uma “energia fluida” a disposição
de subjetividades liberadas de qualquer tipo de enquadramento institucional, moral, religioso,
ideológico, político, filosófico ou cultural, manifestando-se de maneira holista, plural e/ou
policêntrica.
Soa a hora de voltarmos ao integral humano, num movimento da vida que abarca todas
as dimensões. Com isso, superamos o risco de setorizar a própria vida espiritual, numa
separação indevida de realidades que, de fato, formam uma unidade no humano, sem
exclusões ou oposições dualistas, fragmentárias ou fluidas e sem rosto. A visão de fundo, que
se quer integral, é de inclusão de todas as dimensões fundamentais do humano, bem como de

3
Cf. CALIMAN, Cleto. Apresentação. In IDEM (org.). A sedução do sagrado: o fenômeno religioso na virada
do milênio. Petrópolis: Editora Vozes, 1998, p. 7.
4
Ibidem, p. 8.
5
Ibidem, p. 8.
todos os seres da criação, num abraço teo-antropo-cósmico. Instaura-se, assim, um dinamismo
que a espiritualidade traduz como “uma vida realizada com espírito”, o que implica em dizer
que “toda a existência humana, em todos os seus momentos e âmbitos, entra na esfera da
espiritualidade”6.

2. O necessário empenho pelo humano

Se espiritualidade aponta para uma existência realizada/vivida com espírito, ela


compromete a pessoa como um todo: “em seu corpo e em sua alma, quando trabalha, come,
descansa ou reza; em seus desejos, pensamentos, ações e omissões; em sua dimensão pessoal
e social. Não é algo acrescentado; exprime a própria identidade dentro de uma situação. Em
vista de nossa condição histórica, a vida espiritual é um processo sempre inacabado, enquanto
caminhamos no tempo”7.
“Na revelação bíblica, a espiritualidade já se define como uma forma de estar no
mundo. Interpretando todos os acontecimentos à luz da fé, e agindo por impulso do Espírito
que nos liberta das idolatrias e nos transforma para criar comunidade solidária. Foi essa a
vocação da humanidade que, realizada em Jesus Cristo, se vai concretizando pouco a pouco
em nossa história de graça e de pecado”8.
Aqui urge um empenho pelo humano em sua integralidade, todas as dimensões
reunidas, baseadas na dignidade que lhe é própria, no valor da vida, na abertura ao
transcendente e num empenho para que todos tenham vida (Mc 8,35; Jo 10,10). O empenho
fundamental é o da humanização, no qual o verdadeiramente humano está intimamente ligado
ao transcendente, numa unidade entre criação e salvação. Isto se realiza na história, dentro da
qual é chamado a crescer “o conhecimento de Deus e do homem”, devendo os cristãos “unir-
se aos outros homens para procurar a verdade”9.
Todas as ciências fazem parte desta busca de um maior conhecimento de Deus e do
homem, norteadas pela busca da verdade. As ciências humanas auxiliam nisto de modo
específico ao ocupar-se do ser humano. Desde o Concílio Vaticano II (1962-1965), acolhemos
as muitas ciências, cuja diferenciação dos campos do saber, com sua organicidade própria,

6
ESPEJA, Jesús. Op. cit., p. 28, 33.
7
Ibidem, p. 30.
8
Ibidem, p. 30-31.
9
Constituição Dogmática Dei Verbum, n° 15, in CONCÍLIO VATICANO II – Compêndio. Constituições,
Decretos, Declarações. 22ª edição, Petrópolis, Editora Vozes, 1991, p. 132; cf. Constituição Pastoral Gaudium et
Spes, n° 16; in ibidem, p. 158-159.
“devem ser descobertos e aprofundados em proveito da organização da vida humana e
social”10.
O mesmo Concílio Vaticano II, “reconhece a existência de duas ordens de saberes
distintos, o da fé e o da razão. Fala em ‘autonomia das realidades terrestres’, reconhecendo os
princípios básicos da modernidade e seu processo de secularização. Porém, a Igreja lembra
que o reconhecimento da ‘autonomia’ e da ‘diferença’ não significa aceitar a sua
‘independência’ e a ‘separação’. Não se separa fé professada e vida quotidiana”11.
Se é verdade que, diante da variedade de ciências hoje existentes, nos deparamos com
o fenômeno da fragmentação do saber, é verdade também que cada ciência oferece uma
riqueza toda própria ao ser humano e à sociedade. Numa perspectiva de fé, está claro para a
Igreja hoje e, conseqüentemente, para a Teologia que é imprescindível “desenvolver
constantemente a reflexão não só dogmática mas também moral, num âmbito interdisciplinar,
tal como é necessário para os novos problemas”12.

3. O valor das ciências humanas ou a busca comum do “humanum”

As ciências humanas, buscando captar, explicitar e estudar os fenômenos humanos,


podem auxiliar o homem e a mulher no seu processo de crescimento. Não os substituem; o ser
humano permanece o protagonista deste processo, cabendo a ele a busca e até o
enfrentamento das questões últimas da existência humana. Muitas foram as conquistas a partir
da razão que as ciências humanas souberam explicitar. Ajudaram e ajudam a descobrir o rico
dinamismo do humano, da sua natureza mesma13, o que ele é, suas potencialidades e a
possibilidade de ser mais. Existem conquistas irrenunciáveis, fruto do avanço das ciências,
captadas pelo Concílio Vaticano II como uma revolução global14.
O diálogo com as ciências humanas pode ser altamente benéfico, à medida que não se
detém numa “idéia” apenas. Permanece, por isso, a possibilidade de aprisionamento na
unilateralidade da razão, ou seja, à medida que esta busca a “construção de uma visão
coerente, totalizante do universo, a partir de dados parciais, de uma visão parcial, ou de um
princípio único”, segundo o que afirma Edgar Morin15. Outro aprisionamento é o de achar

10
AGOSTINI, Nilo. Teologia Moral: O que você precisa viver e saber. 7ª edição, Petrópolis: Editora Vozes,
2003, p. 27-28; cf. GS 36.
11
AGOSTINI, Nilo. Op.cit., p. 28; GS 43.
12
JOÃO PAULO II. Carta encíclica ‘Fides et Ratio’. Col. “Documentos Pontifícios” n° 275, Petrópolis: Editora
Vozes, 1998, n° 30.
13
Cf. Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n° 44, in CONCÍLIO VATICANO II – Compêndio. Constituições,
Decretos, Declarações. 22ª edição, Petrópolis, Editora Vozes, 1991, p. 192.
14
Cf. Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n° 5, in CONCÍLIO VATICANO II – Compêndio. Op. cit., p. 147.
15
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Portugal: Europa-América, 1984, p. 205.
que, ao partir desta ou daquela ciência, “aquilo que seus instrumentos não conseguem
apreender não existe”16.
“Necessário se faz que as ciências humanas rompam com o paradigma disjuntivo para
dar conta de outras dimensões da realidade humana, igualmente significativas, como o não-
organizado, o cotidiano e as manifestações do imaginário, resgatando assim, como sugere
Goldmann, o seu aspecto filosófico”17 para poderem ser portadoras de verdade. Segundo
Aristóteles, “todos os homens desejam saber”, sendo a verdade o objeto próprio deste
desejo18.
Nesta busca de saber mais, em direção à verdade, as ciências humanas podem trazer
uma inestimável contribuição. A Psicologia nos faz adentrar na interioridade da pessoa e
compreender melhor as suas potencialidades e os condicionamentos que nela subsistem. A
Sociologia nos faz compreender o ser humano no seu contexto social e cultural e como realiza
as suas opções. A Medicina desperta a nossa atenção para a vasta problemática da vida quer
humana quer de todos os seres vivos, urgindo o desenvolvimento da bioética. A Pedagogia
aponta para o poder da educação e o desenvolvimento do humano.

A mensagem do Evangelho não pode descartar as categorias atuais advindas das


ciências humanas e sociais ao ser anunciado hoje19. Estas podem prestar um serviço à vocação
teológico/espiritual e evangelizadora da Igreja. O clima é de diálogo, assim explicitado no
Concílio Vaticano II: “Sejam suficientemente conhecidos e usados não somente os princípios
teológicos, mas também as descobertas das ciências profanas, sobretudo da psicologia e da
sociologia de tal modo que também os fiéis sejam encaminhados a uma vida de fé mais pura e
amadurecida”20.
As ciências merecem uma atenção constante e mesmo necessária, pois o ser humano é
o centro de interesse comum. A espiritualidade, junto com o todo da Teologia com suas áreas
afins, é chamada a um encontro dialogal com as ciências humanas (e outras também). Abre-se
a possibilidade e mesmo a necessidade de um enriquecimento mútuo, sem abdicar da
interpelação mútua. Afugente-se qualquer pretensão de auto-suficiência de qualquer das
partes. Importa, para isso, abraçar sempre uma visão integral do ser humano, tendo como

16
Ibidem, p. 54.
17
LOURENÇO, Mário. Razão e discurso: os católicos e o controle de natalidade. Petrópolis: Editora Vozes,
2000, p. 32.
18
Cf. JOÃO PAULO II. Op. cit., n° 25, p. 35.
19
Cf. Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n° 62, in CONCÍLIO VATICANO II – Compêndio. Constituições,
Decretos, Declarações. 22ª edição, Petrópolis, Editora Vozes, 1991, p. 214-215.
20
Ibidem. Neste mesmo parágrafo citam-se outras áreas das Ciências Humanas como: Letras, Artes, História. Cf.
JOÃO PAULO II. Carta encíclica ‘Veritatis Splendor’. Petrópolis: Editora Vozes, 1993, n° 29.
pano de fundo um paradigma integrador e humanizador21, aberto a todas as dimensões,
incluindo a transcendência, num abraço de toda a criação.

21
ANDRÉS, José Román F. Teologia moral fundamental. Tercera edición, Serie Manuales de Teología n° 8,
Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1999, p. 16-18.
22
O QUE A ESPIRITUALIDADE TEM A VER COM AS CIÊNCIAS SOCIAIS?
Denise Pini Rosalem da Fonseca
Departamento de Serviço Social (PUC-Rio)

No prólogo da versão castelhana da História das crenças e das idéias religiosas, de


Mircea Eliade (1996), um trabalho que se consolidou somente após a morte do historiador,
Ioan P. Culianu nos explica que o desejo de Eliade era o de contribuir três textos de seu
próprio punho para o que seria o terceiro e último volume daquela obra. Entre os temas que o
mestre ainda desejava enfrentar em vida, estava aquele que seria o capítulo final, sobre a
religião no mundo moderno e pós-moderno. Porém, em 1986, Eliade se foi sem nos deixar
mais que umas poucas páginas de texto, muitas notas e uma vasta bibliografia. Mais tarde,
Richard Schaeffer, professor de questões fronteiriças filosófico-teológicas da Universidade de
Bochum, Alemanha, aceitou a tarefa de escrever o capítulo final daquele volume. Seu texto,
porém, acabou por tratar de criatividade religiosa e secularização na Europa a partir da
Ilustração. Na parte inicial da sua contribuição, Schaeffer trata de explicar por que falar de
religiosidade moderna significa, antes de mais nada, tratar de criatividade religiosa, pois,
como já o observara Eliade, seria a partir do Iluminismo que ocorrera uma perfeita
camuflagem do “sagrado”, através da sua identificação com o “profano”, ou seja, o “não
religioso”. (Schaeffer, 1996, p. 517) Vale a pena lembrar que foi neste mesmo contexto de
dessacralização do mundo que surgiram as chamadas “Ciências Sociais”, como nós as
concebemos hoje, o que nos levaria a assumir, por imediatismo, que a relação entre
religiosidade e Ciências Sociais é de desencontro
Creio que esta dificuldade intrínseca ao tema da relação do homem com o sagrado no
mundo moderno, nos deixa à vontade para exercitar nossas próprias escolhas de como
interpretar os laços existentes entre religiosidade e Ciências Sociais.
Muitas têm sido as escolhas de respostas oferecidas na modernidade sobre o que
existiria de nexos possíveis entre a idéia de Deus - ou deuses - e as relações dos homens: com
a natureza; uns com outros, e com eles mesmos - os objetos das Ciências Sociais. Apenas para
ilustrar algumas delas, poderíamos citar a de Nietzche - - “Deus está morto” - condenando o
homem a viver refém da sua própria racionalidade e órfão da sua transcendência, ou Jung
argumentando que até mesmo os deuses têm história e devem morrer para que nasçam outros
símbolos que os façam renascer. Em última instância, Jung garantiria a sacralidade da relação

22
Contribuição ao debate “O que a religiosidade tem a ver...”, promovido pelo Centro Loyola de Fé e Cultura, no
contexto da Mostra PUC 2003, realizado no auditório menor do RDC, no dia 28 de agosto de 2003.
Agradecemos ao Centro Loyola, na pessoa da sua Diretora professora Maria Clara L. Bingemer, pelo generoso
convite e aos professores Paul Schweitzer, SJ (Departamento de Matemática), Frei Nilo Agostini (Departamento
de Teologia) e Geraldo Monteiro Sigaud (Departamento de Física) pela oportunidade de discutir estas idéias.
do homem com a sua dimensão transcendente, ao permitir a sua continuidade sob outras
imanências.
Vamos nos concentrar, então, no tema das escolhas, que trataremos como o eixo desta
nossa conversa sobre religiosidade e Ciências Sociais.
No campo da História, constitui uma boa prática principiar todo e qualquer trabalho
com uma clara definição dos termos que delimitam o escopo e o alcance da reflexão que se
deseja enfrentar. Esta é uma discussão que trata de cotejar duas variáveis: “religiosidade” e
“ciência”, termos que caminharam historicamente juntos, porém, a partir de um certo
momento das relações de poder entre “igrejas” e “estados” ganharam novos significados,
chegando a ser entendidos como dicotômicos ou, até mesmo, opostos.
Trabalhemos primeiro com os conteúdos semânticos destas duas palavras, em busca dos
vários significados que elas possuem para os homens e mulheres da modernidade e suas
implicações culturais e sociais.23
Religiosidade [Do lat. religiositate] é uma qualidade do “homem religioso” (Eliade,
1998, p. 17) ou a sua disposição para as coisas sagradas. Por definição, tratar de religiosidade
implica falar de religião e de sagrado. Vale a pena lembrar, que foi a partir das Luzes, e
particularmente na Europa, que apenas uns poucos homens passaram a se ver como “não
religiosos” ou como “homens sem religião” sendo, muitos destes, reconhecidos homens “de
ciência”, ou seja, homens “de saber”. Foi, também, no contexto de secularização moderna que
a manutenção de uma atitude religiosa, que seguia reconhecendo correlações explícitas entre
profano e sagrado, abriu um fosso enorme entre piedade e teologia, ou seja, entre
religiosidade popular e teologia erudita. (Eliade, 1996, p. 524) Com a modernidade fundou-se
uma “religiosidade racional”, e até mesmo Deus passou por um processo de renascimento
ontológico, como sugeriu teoricamente Jung, e como observou empiricamente Pascal: “o
Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, e não o dos filósofos e sábios”. (Eliade, 1996, p. 528)
Religião [Do lat. religione], por sua vez, é a “crença na existência de uma força
sobrenatural, considerada como criadora do Universo e que, como tal, deve ser adorada e
obedecida”. Naturalmente, todos os termos desta definição podem estar colocados no plural,
porém, esta variação formal implica valores religiosos muito diferentes, indicando orientações
religiosas por vezes até mesmo conflitantes. Para evitar enfatizar conflitos, pelo menos por
enquanto, religião também pode ser definida como “a manifestação de uma crença sagrada
qualquer, por meio de doutrina e ritual próprios, que envolvem, em geral, preceitos éticos”.
Em última instância, podemos definir como religião a “qualquer filiação a um sistema

23
Nesta seção do texto, todas as definições semânticas citadas entre aspas são provenientes do Dicionário Novo
Aurélio, Séc. XXI. Versão 3.0, pois nos bastam os conceitos mais elementares contidos nas palavras que
estaremos discutindo.
específico de pensamento, que envolva uma posição filosófica, ética, metafísica” ou de
alguma outra natureza fundadora. Esta última definição, no entanto, ao ampliar as suas
fronteiras, aproxima as essências de religião e corpus de ciência.
Exploremos esta idéia de proximidade.
A palavra crença [Do lat. credentia], que aparece em quase todas as definições possíveis
de religião, tem o valor de uma verdade incontestável, que é aceita pelo homem religioso em
um ato de fé. A “crença é uma forma de assentimento que dá à certas verdades o valor de
convicção” [certeza adquirida por demonstração], e que prescinde de confirmação estando,
por esta razão, ligada à imponderabilidade, à intangibilidade e - por sua natureza - à intuição.
Transportadas estas mesmas idéias para o campo das Ciências, encontramos o conceito
axioma. Axioma [Do gr. axíoma, pelo lat. axioma], no campo da Filosofia, significa “uma
premissa imediatamente evidente que se admite como universalmente verdadeira, sem
exigência de demonstração”. Axioma é uma atitude tomada, uma decisão fundamental e
indiscutível: exatamente o que representam os dogmas para a religião [Do lat. dogma - atos,
decisão] Do ponto de vista da Lógica, axioma é “uma proposição que se admite como
verdadeira porque dela se podem deduzir as proposições de uma teoria ou de um sistema
lógico ou matemático”. Um exemplo de axioma matemático é a aceitação inconteste de que
todo e qualquer número expressado sobre zero é igual a um, uma verdade que deve ser
assumida como em um ato de fé, para a sustentação da arquitetura da Matemática.
Da mesma maneira, a exigência de disciplina nas definições de religião, sugerida pela
utilização das palavras ética, preceitos e obediência, abre uma outra possibilidade de perceber
as proximidades existentes entre religiosidade e práticas científicas. Disciplina [Do lat.
disciplina] é, entre outras coisas, a “observância de preceitos ou normas; uma submissão a um
conjunto de regras a serem cumpridas; o conjunto dos conhecimentos de determinada área de
saber”. Não há prática científica que possa prescindir das suas próprias “normas de conduta”,
que são percebidas como procedimentos técnicos ou metodológicos, sem os quais a própria
“verdade” do saber construído naquela área estaria em jogo.
Voltemos, momentaneamente, às definições de religião e suas implicações.
O sagrado diz respeito às coisas divinas e à religião mas, também, aos rituais e a todas
as formas de manifestação da divindade. É sagrado tudo aquilo que não deve ser tocado,
infringido ou violado. O sagrado é, por definição, intangível e, por esta razão, ele se manifesta
através de mediações e de mediadores. Assim como as religiões não podem prescindir de
corpos sacerdotais, responsáveis pela qualidade das mediações e pelo cuidado do
conhecimento revelado, as ciências possuem seus corpos de mediadores, que não apenas
preservam as suas “disciplinas” mas, também, constroem e transformam o conhecimento nas
suas áreas, a partir da observação ou da experimentação, segundo a natureza do seu saber.
Seriam eles os principais responsáveis pelo que Eliade chamaria de “perfeita camuflagem do
sagrado através da sua identificação com o profano” no mundo moderno. Mas a noção de
sagrado remete principalmente à idéia de segredo, justamente aquilo que as Ciências
modernas pretendem descobrir, entender e, em última instância, revelar. Desta maneira,
religião e Ciência se afastariam, quase irremediavelmente, em termos do tratamento que
oferecem aos seus materiais sagrados.
Examinemos, então, esta idéia de afastamento.
A palavra segredo [Do lat. secretu – separado, afastado] significa “tudo aquilo que não
pode ser revelado ou que se oculta ao conhecimento”. A idéia de segredo implica em sigilo,
mistério, enigma, razão misteriosa ou causa secreta. Por todas estas razões, segredo está
diretamente relacionado com confidência e confissão. Foi nos séculos XVI e XVII que a fé
cristã se transformou em “confissão”, e dela uma variedades de outras “confissões religiosas”
surgiram. Este termo inicialmente designava o “ato” de adorar a Deus e, logo depois, passou a
ser entendido com o “conteúdo” desta adoração (“se confessas com teus lábios que Jesus é o
Senhor...” [Rom 10, 9]). Daí ele caminhou para significar “consenso”, até chegar à idéia de
“comunidade”, que é o sentido moderno da palavra “confissão”. (Eliade, 1996, p. 520)
Ora, se religião e Ciência se afastam na maneira como tratam os seus materiais sagrados
- os seus segredos - é exatamente a existência deste material sagrado - o conhecimento - que
funda as confissões religiosas, pelos mesmos mecanismos que funda e mantém as
“comunidades científicas”. Uma perfeita camuflagem do sagrado através do profano! Toda a
dimensão ritualística que está associada ao sagrado - as confissões de pertencimento -, se
repete no mundo “não religioso” da Ciência, através das disciplinas que discutimos
anteriormente.
A palavra ritual [Do lat. rituale], que aparece nas definições de religião e de sagrado se
refere aos ritos e ao poder que deles emana. Ritual é liturgia, mas é também “o conjunto de
práticas consagradas pelo uso e/ou normas, que se deve observar de forma invariável em
ocasiões determinadas”. Rituais são, em última instância, práticas e procedimentos
disciplinares que garantem o sentido de pertencimento aos membros de uma determinada
comunidade. A dimensão ritual constitui, ela mesma, uma forma de “confissão” de um certo
pertencimento - sagrado ou profano -, ou seja, participar de um ritual religioso ou científico,
de acordo com as regras estabelecidas pela “comunidade”, é um sinal de reconhecimento do
seu pertencimento àquela mesma comunidade. (Eliade, 1996, p. 520) Assim se organizam as
religiões e, dentro delas, as igrejas. Assim se organiza a vida em sociedade e, no interior dela,
as Ciências Sociais.
Para completar estas nossas digressões pelo campo semântico, examinemos os muitos
significados que estão associados à palavra ciência [Do lat. scientia] que é,
fundamentalmente, “conhecimento”. Constitui ciência “qualquer saber que se adquire pela
leitura e meditação, instrução ou erudição”. Por outro lado, as Ciências
...são conjuntos de conhecimentos socialmente adquiridos ou produzidos,
historicamente acumulados, dotados de universalidade e objetividade que permitem sua
transmissão, e estruturados com métodos, teorias e linguagens próprias, que visam
compreender e orientar a natureza e as atividades humanas. (Holanda, 2003, v. 3.0)
No campo da Filosofia, ciência é “o processo pelo qual o homem se relaciona com a
natureza visando a dominação dela em seu próprio benefício”. No imaginário popular, no
entanto, ciência é uma habilidade intuitiva, uma sabedoria adquirida por alguma forma de
revelação. De saída existe um fosso enorme entre as definições de “ciência” e “Ciência”, e as
razões que diferenciam uma da outra têm a ver com as razões que separam o Deus de Abraão
do Deus dos homens “de saber”, ou seja, a racionalidade moderna.
As Ciências se constituem e se organizam entorno dos seus objetos próprios, assim
como as religiões se organizam entorno dos seus saberes sagrados. Por esta razão, vale a pena
nos determos uns momentos para entender a natureza da matéria fundadora das Ciências.
Objeto [Do lat. objectu, part. de objicere – “pôr, lançar diante”, “expor”] é “tudo aquilo que é
apreendido pelo conhecimento, que não é o sujeito do conhecimento ou o conhecimento” em
si. Enquanto para a religião a matéria sagrada é o conhecimento revelado, para as Ciências a
consagração está na apreensão do conhecimento. Mais do que apreender a realidade, as
Ciências aspiram dominá-la para torná-la manipulável em benefício dos homens. O problema
é que desde a sua raiz semântica o conceito de objeto se identifica com a idéia de projeto [Do
lat. projectu - “lançado para diante”], ou seja, uma decisão de realizar algo no futuro. O
objeto é, portanto, por definição, um plano, um intento e um desígnio, mesmo que seja ele um
objeto “científico”.
O caráter fixo e estável dos objetos remete à ponderabilidade e a tangibilidade
intrínsecas das matérias das Ciências. No entanto, quando avançamos na direção das Ciências
Sociais nos complicamos bastante com estas duas premissas, sobretudo por que no centro
delas, como objeto principal de estudo, está o homem - com toda a sua imponderabilidade - e
as suas relações - com toda a sua intangibilidade.
Voltemos à questão que nos ocupa neste texto: o que a religiosidade tem a ver com as
Ciências Sociais? Para respondê-la devemos fazer escolhas. Há que definir os elementos da
linguagem que utilizaremos e dependendo da maneira que perguntarmos poderemos deduzir a
resposta a ser encontrada.
Façamos um primeiro ensaio.
O que axiomas, sistemas específicos de pensamento, normas que devem ser observadas
de forma invariável - idéias que fazem parte das definições de religião e sagrado - têm a ver
com as Ciências?
A resposta é: tudo!
Façamos, agora, a mesma pergunta no sentido inverso.
O que tangibilidade, ponderabilidade, conhecimento apreendido pela observação do
concreto - idéias que fazem parte da definição de objeto científico - tem a ver com religião?
E a resposta é: nada!
Em realidade, este é um falso dilema que instalamos apenas com o objetivo de ilustrar
que nas Ciências - e particularmente nas Ciências Sociais - o autor “constrói” o seu objeto a
partir das suas próprias hipóteses e paradigmas, que poderíamos chamar de “crenças” ou
“axiomas”. Para resolvê-lo, é bom conhecer um pouco da História de como as Ciências
Sociais foram parcelando o conhecimento humano entorno de objetos específicos, para tratar
de preencher os vazios que foram abertos na Teologia com o desenvolvimento de uma
“religiosidade racional”.
A partir do Iluminismo, com a secularização do conhecimento e a ampliação do
antropocentrismo, as sociedades modernas foram criando outras formas de mediação entre as
vivências humanas e os seus conteúdos sagrados. Com o aprofundamento das disputas de
poder entre Estados Nacionais em processo de organização e a Igreja de Roma, seguidas pelos
cismas entre as distintas confissões cristãs e destas com as demais confissões religiosas,
instalou-se um generalizado afã de controle dos legados do passado, para manipulá-los em
benefício dos homens ou, pelo menos, em benefício de alguns dos seres humanos. A
consolidação dos Estados Nacionais nos séculos XVIII e XIX fez surgir a necessidade de
construção de um “material sagrado” fundador da idéia de nação, o que constituiu um terreno
fértil para o desenvolvimento das Ciências Sociais. Estas passaram a ser parceiras
privilegiadas dos jovens Estados na construção da “comunidade nacional”, uma nova forma
de confissão profana a exigir mediações e mediadores.
Examinemos, então, a natureza da relação que existe entre religiosidade e Ciências
Sociais, sabendo que dela participa também o Estado, desde a fundação de ambos. Para tanto,
vamos nos concentrar na experiência brasileira, por ser aquela que vivemos e a que mais nos
interessa. Não temos a pretensão de oferecer aqui uma análise das principais “confissões” que
organizaram a comunidade científica brasileira, desde a consolidação do Estado Nacional, em
meados do século XIX, até o começo do século XXI. Apenas gostaríamos de apontar alguns
marcos históricos, que significaram verdadeiros pontos de inflexão em termos das filiações
ideológicas predominantes, e que foram determinantes para a construção do edifício das
Ciências Sociais brasileiras. No interior de cada um desses momentos históricos, tentaremos
sugerir a relação que foi, ou tem sido, possível manter entre sagrado e profano.
Se é que se pode traçar sobre a linha do tempo um acontecimento para identificá-lo
como o gesto fundador das Ciências Sociais no Brasil, este corresponderia à fundação do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - IHGB - , em 21 de outubro de 1838. Naquela
data, reuniu-se um grupo de notáveis no Rio de Janeiro para constituir aquele que seria o
centro propagador da civilização brasileira, cuja tarefa era “coligir, metodizar, publicar e
arquivar os documentos necessários para a história e geografia do Brasil” (Barbosa, 1839, p.
10)
Aos domingos, membros da elite brasileira, literatos e intelectuais, comprometidos com
o processo da consolidação da Monarquia, se encontravam para debater como seria
escrita a nossa História, objetivo maior da Instituição. O IHGB desejava criar a História
do Brasil destacando suas grandes personagens e heróis, trazendo "à luz o verdadeiro
caráter da Nação brasileira". A necessidade de se estruturar a História da Pátria pode ser
observada nas palavras de um de seus sócios, Carlos Frederico de Martins, em 1844: "A
História é mestra, não somente no futuro como também no presente. Ela pode difundir
entre os contemporâneos sentimentos e pensamentos... sobre o patriotismo". Criar uma
historiografia para o Brasil significava, portanto, a própria fundação da nacionalidade, a
construção da identidade do povo brasileiro. (MULTIRIO, 2003)
As palavras dos próprios atores são absolutamente transparentes. Tratava-se de
organizar sentimentos e pensamentos, criando uma nova confissão: um novo sentido de
pertencimento para o “povo brasileiro”. Este seria o papel da História e da Geografia do
Brasil, as decanas das Ciências Sociais brasileiras. Os homens “de saber”, que
corresponderiam ao primeiro “corpo sacerdotal” desta nova confissão, eram os literatos e
intelectuais notáveis da sociedade. Posto que fossem todos eles membros da elite econômica
“nacional”, é de se supor que eles fossem todos do sexo masculino, de pele e cultura brancas,
de ancestrais europeus e, possivelmente educados em Europa. Assim sendo, é quase certo
serem todos eles cristãos e, embora estivem atualizados com o pensamento positivista
europeu, praticariam uma religiosidade católica mais ligada à sua expressão barroca do
mundo americano, ou seja, mais ligada aos ritos religiosos populares, que à “religiosidade
racional” ilustrada.
Com estes “quadros de mediadores” começamos a exercitar a construção dos corpus das
Ciências Sociais brasileiras, e na verdade, muito embora em termos ideológicos os campos se
dividissem entre Liberal e Conservador, do ponto de vista das práticas políticas, e da
sensibilidade religiosa, não ocorreram mudanças de grande significado neste quadro até, pelo
menos, o advento da grande crise de valores que se instalou no começo da década de 1930.
A falência mundial do Liberalismo e a emergência das primeiras grandes expressões de
desassossego de uma sociedade que se urbanizava, se industrializava, se mobilizava para
enfrentar desigualdades seculares, forçou a todos a buscar novas respostas que pudessem
aquietar corações e mentes e, mais uma vez, as Ciências Sociais foram convocadas a prestar
serviço. Não seria possível, no entanto, responder a todas estas exigências a partir do esforço
de cavalheiros com boas intenções e um passado escolar. Havia que profissionalizar os novos
mediadores, de tal maneira que eles pudessem se beneficiar das melhores e mais eficientes
respostas a serem encontradas, naturalmente, na França: o berço das Luzes, da secularização e
da racionalidade moderna. De lá foram trazidos professores “missionários” para, em 1934,
fundar a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, juntamente
com a própria Universidade.
Em 1934, a fundação da Universidade como a da Faculdade de Filosofia veio responder
a um projeto de um segmento da burguesia paulista que buscava uma modernidade
política aos moldes dos conceitos liberais. Assim, a educação foi tomada como meio de
transformação, seguindo o projeto de conformar o pensamento individual com certos
cânones ideológicos, políticos e sociais. Foi buscada conformidade social, a
consolidação da pirâmide da sociedade criando-se uma elite e não um homem público;
caracterizando a educação como instrumento de organização social. (Silva, 2003)
O que se buscava era, através das Ciências Sociais, ajustar o pensamento nacional, ou
pelo menos o da futura elite dirigente, à certos cânones aceitos na Europa de então, imersa, ela
mesma, no crescimento dos nacionalismos exacerbados, do socialismo internacional, da
xenofobia, dos ódios raciais, da pobreza e de todo os seus corolários de dor. A partir destes
cânones, construídos em tempos de verdades incertas e cegas convicções, não havia muito
espaço na academia para a delicada fé religiosa. As Ciências Sociais brasileiras abandonaram,
então, o imaginário positivista e passaram a operar com o idéia de conflito, afastando-se
também da religiosidade racional. Para se manter em campo seguro, no entanto, elas passaram
a supervalorizar o método ou a se filiar a rígidos paradigmas acadêmicos, muitas vezes
mimetizando as Ciências Exatas e da Natureza, para se manter como membros da
“comunidade” científica nacional.
Foi a partir daí que as Ciências Sociais brasileiras conheceram o cisma das incontáveis
“confissões” ideológicas - que encontravam as suas racionalidades através de elaboradas
formulações científicas - , e que formavam verdadeiras comunidades no interior do
pensamento social nacional. Nos anos de 1970, no interior da própria USP, estes grupos de
pensadores formavam núcleos tão fechados e fervorosamente divergentes, que passaram a ser
conhecidos como “igrejinhas” - o que sugere “seitas” - , deixando muito clara a camuflagem
da qual nos falou Eliade. Foi também quando o pensamento marxista inundou o imaginário da
elite intelectual brasileira que, pela primeira vez, pudemos ouvir alguns dos nossos
pensadores sociais mais valiosos declarando-se ateus, pois esta afirmação tinha, então, o valor
de um panfleto libertário.
Porém, todas as nossas certezas foram sendo desmontadas durante a década de 1980.
Primeiro veio a constatação dos limites da Economia, em uma década perdida para todos.
Logo os da Política, com uma redemocratização que não significou maturidade de escolhas,
igualdade ou justiça social. Depois foi a vez da poderosa Medicina baixar a crista frente a
AIDS e às indestrutíveis super-bactérias e, a partir daí, todo o edifício científico ficou abalado
nas suas estruturas. Se é verdade que a queda do muro de Berlim enterrou alguns sonhos, é
certo também que fez nascer outros. Mas, logo depois, nós assistimos ao renascimento dos
fundamentalismos religiosos, dos ódios étnicos e de tantas outras mazelas que pensávamos
esquecidas. Permaneceu a contingência humana, o sofrimento, o horror da doença e a certeza
da morte; temas que nem a nação, nem as Ciências Sociais foram, ou jamais serão, capazes de
solucionar. Racionalizada, secularizada, dessacralizada, a vida moderna tornou-se também
vazia de esperança e ávida de uma religiosidade que traga saciedade, que possa ser consumida
rapidamente para promover alívio e tornar a vida suportável.
Desde então, apareceram outros temas sociais no cenário internacional para os quais
os nossos instrumentos científicos tem se mostrado inócuos. As Ciências Sociais não estavam
preparadas para enfrentar questões relativas ao meio ambiente, às identidade culturais
emergentes, às identidades nacionais agonizantes, ao paradigma nacional aos frangalhos, aos
grandes sistemas sociológicos desmontados, invalidados pela experimentação humana. A
incerteza se fez presente e, embora tenhamos passado mais de um século tentando construir
garantias de sucesso e remédios para mitigar a dor, nossos instrumentos carecem de algo que
talvez a religiosidade conheça melhor que as Ciências de uma forma geral, e as Ciências
Sociais em particular. Quem sabe seja chegada a hora de ressacralizar o conhecimento, e a sua
apreensão, ao convidar a intuição e a revelação a tomar parte do nosso fazer científico. Mas
para isso deveríamos ser capazes de abrir mão das nossas certezas, de correr riscos aceitando
a imponderabilidade, de abdicar do afã de controle, de entender que a natureza é sagrada, de
aprender a ouvir uns aos outros e sobretudo, de saber com o que, e com quem, está a nossa
lealdade. Para tudo isso, teríamos que aprender a não camuflar o sagrado sob as inúmeras
aparências que o profano possa assumir no mundo.
Como conclusão, vale recolocar a questão inicial para, sem falsos dilemas, oferecer a
nossa escolha de resposta.
O que a religiosidade tem a ver com as Ciências Sociais?
Diríamos que é uma questão de escolha pessoal. Religiosidade e Ciências Sociais terão
tanto mais a ver, quanto melhor nos conhecermos, e quanto mais reconhecermos o que há de
nosso nos objetos que estudamos. Quanto mais ou menos sejamos capazes de apreender o
tangível e intuir o intangível, respeitando os limites do sagrado, para melhor mediar a relação
entre as dimensões imanente e transcendente dos nossos leitores e de nós mesmos.

Referências bibliográficas

BARBOSA, Januário da Cunha. “Discurso”. Revista do Instituto Histórico e geográfico


Brasileiro. Rio de Janeiro: 1(1): 9-18, 1839.
ELIADE, Mircea. Historia de las creencias y de las ideas religiosas. Desde la época de los
descubrimientos hasta nuestros días. Traducción J. M. López de Castro do original em
alemão Geschichte der religiösen Ideen, III/2 . Friburgo de Brisgovia: Verlag Herder,
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HOLANDA, Aurélio Buarque de et alli. Dicionário Novo Aurélio, Séc. XXI. Rio de Janeiro:
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MULTIRIO, “Brasil Monárquico – Período Regencial”, Centro de Informações da História
do Brasil, 2003. http://www.multirio.rj.gov.br/historia/modulo02/reg.html
SCHAEFFER, Richard. “Creatividad religiosa y secularización en Europa desde la
Ilustración”, em ELIADE, Mircea. Historia de las creencias y de las ideas religiosas.
Desde la época de los descubrimientos hasta nuestros días. Traducción J.M. López de
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SILVA, Franklin Leopoldo e. “A atuação da FFLCH no panorama brasileiro”. São Paulo:
USP, 2003. Terceira palestra do ciclo sobre a Universidade.
http://www.fflch.usp.br/sdi/imprensa/noticia/025_2003.html
PSICOLOGIA E ESPIRITUALIDADE

Christa Freitas

Abordar o assunto que levanta reflexões à cerca da espiritualidade sob o ponto de vista
da Psicologia é bastante delicado. A Psicologia, como a conhecemos atualmente, é uma
ciência relativamente nova, que, em muitos aspectos se mescla com a Filosofia da qual se
originou. Concentra-se bastante em perguntas que tem em comum com a Filosofia, em
especial, a pergunta: “Quem sou eu?”.
A vasta gama de linhas de estudo em Psicologia se concentra na busca de definições
do que é o ser humano, como ele se constitui mentalmente, como reage aos estímulos do meio
em que se encontra, quais são seus padrões de comportamento. Muitas dessas linhas
psicológicas derivam da Psicanálise, que pode ser considerada a escola de psicoterapia que
mais se difundiu e influenciou o pensamento da própria Psicologia bem como lançou suas
idéias e concepções além das fronteiras da Psicologia a outras áreas do conhecimento
humano. A Psicanálise, entretanto, surgiu e foi estruturada por Freud num período em que as
ciências estavam tendo um grande avanço, assim como a tecnologia e o pensamento
materialista. Ciência, tecnologia e materialismo tornaram a Psicanálise com traços fortes de
cientificismo e mecanicismo, que refletem uma busca de se enquadrar e ser aceita como
“ciência” confiável, experimentável, com leis, causas e efeitos, na tentativa de se afastar da
própria Filosofia.
Se, por um lado, isso pode ser considerado positivo, por outro, torna-a limitada. Isso
ocorre, principalmente, no que concerne a área da espiritualidade. Poucas escolas de
Psicologia aceitam essa dimensão como característica própria da imagem de homem. Bastaria,
entretanto, uma breve reflexão e observação para se constatar que a espiritualidade é parte
integrante da constituição do ser humano e que uma das formas da sua expressão, ao lado de
outras características, é a religiosidade propriamente dita, que ocorre em toda a humanidade,
independente de origem ou raça.
Algumas poucas escolas de Psicologia já aceitam o lado espiritual do ser humano. A
Psicologia Analítica de Jung, por exemplo, não rejeita esse aspecto espiritual, embora ainda
não a considere uma dimensão propriamente dita na constituição do ser humano. Muitos o
criticam, no entanto, por discutir excessivamente o ocultismo, o misticismo e a religião, não
se baseando em investigações experimentais. Segundo Jung, há bastante evidência da
existência desses aspectos não sendo necessário a sua confirmação por não se tratarem de
fatos físicos, mas sim psíquicos.
Outras escolas, como as Análises Existencial e Fenomenológica (Binswager, Boss)
rejeitam o positivismo, o determinismo e o materialismo, incluindo entre seus conceitos
básicos a responsabilidade, a liberdade e a transcendência. Mas nenhuma considera o homem
pluridimensionalmente como a Logoterapia de Viktor Frank. Para esse autor, o homem é
constituído de uma dimensão biológica, uma psíquica e uma espiritual.
A dimensão somática coordena todos os fenômenos corporais do homem. Na
dimensão psíquica é onde existem as disposições, sensações, impulsos, instintos, esperanças,
aspirações, desejos do homem, em suma, os fenômenos psíquicos, seus talentos, seus
costumes e padrões comportamentais. A dimensão espiritual é aquela onde há a tomada de
posição livre em face das condições impostas por parte do somático e do psíquico. Nela se
encontram as decisões pessoais da vontade, o interesse, o senso artístico, o pensamento, a
religiosidade, a intencionalidade, o senso ético, a compreensão de valor.
Para Frankl essa dimensão espiritual, assim como a psíquica, também inclui uma parte
inconsciente, onde se encontra a religiosidade inconsciente, a ser compreendida como relação
de transcendência entre o EU e o TU. Sendo inconsciente, nem sempre é explicitada, mas
podendo ser evocada a partir de uma psicoterapia como a Logoterapia, em que se resgata a
partir do espiritual. A religião tem mais a haver com decisão pessoal, às vezes, até a nível
inconsciente, do que com arquétipos religiosos do inconsciente coletivo como Jung presumia.
Religiosidade é, portanto, uma decisão, não um impulso.
Percebemos que nos últimos anos tem surgido uma “onda” esotérica, que indica uma
necessidade do homem, insatisfeito com o seu afastamento do sagrado, de buscar um resgate
de formas ou fórmulas usadas por seus antepassados. Essa busca se processa, porém, de
forma bastante desordenada, por vezes, imatura, com apelos a magia, característica de povos
com traços ainda primitivos que atribuem poderes a atitudes, objetos e fenômenos naturais.
Mas o importante é fazer notar que há essa busca, e, se há uma busca, é porque existe
uma necessidade não satisfeita que a motiva, que existe um para quê da existência que não
consegue ser descoberto pelo mecanicismo, pelo materialismo, pelo cientificismo.
Evidentemente, não se trata de impor-se uma espiritualidade, mas sim de garantir a
liberdade de escolha de cada um em se comprometer com uma religião pela qual opta
livremente.
Referências Bibliográficas

FRANKL, Viktor E. – 1978, Fundamentos Antropológicos da Psicoterapia, Zahar


Editores, Rio de Janeiro.
_______ - 1985, A Presença Ignorada de Deus, Imago-Sinodal-Sulina, S.Leopoldo.
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FREITAS, Christa – 2002, Violencia e Modernidade, que Sentido pode ter a Vida?, Paulinas,
S.Paulo.
HALL, Calvin, LINDZEY, Gardner – 1984, Teorias da Personalidade, EPU, S. Paulo.
LUKAS, Elisabeth – 1989, Logoterapia, a Força Desafiadora do Espírito, Ed. Loyola,
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PAREJA, Guillermo – 1989, Viktor E. Frankl, Comunicación y Resistência, Premiá, México.
XAUSA, Izar – 1988, A Psicologia do Sentido da Vida, Vozes, Petrópolis.
LITERATURA E ESPIRITUALIDADE: NOTAS INTRODUTÓRIAS

José Carlos Barcellos


Universidade Federal Fluminense

A multiplicação de trabalhos acadêmicos que procuram, de algum modo, relacionar


literatura e religião é um dado inquestionável no atual panorama universitário brasileiro, tanto
no âmbito dos estudos literários, quanto no da teologia ou das ciências da religião. O que
mais chama a atenção, nesse novo e promissor campo de pesquisa, é a diversidade de
perspectivas teórico-metodológicas que fundamentam as aproximações propostas pelos
diferentes estudiosos que se ocupam dessa temática. Essa diversidade, se, por um lado, deve
ser saudada, por outro, não pode deixar de ser vista como um sintoma muito eloqüente do
estágio ainda embrionário em que se encontra esse tipo de investigação entre nós.
De fato, uma das grandes dificuldades em se recortar um novo campo de estudo
consiste precisamente na delimitação e construção rigorosa de seu objeto. No nosso caso,
literatura e religião, literatura e sagrado, literatura e teologia, literatura e cristianismo ou
literatura e espiritualidade, por exemplo, são temáticas não apenas distintas, mas, muitas
vezes, irredutíveis entre si. Apesar de apresentarem várias interfaces, estão em jogo, em cada
caso, conceitos provenientes de distintos campos teóricos e que, portanto, requerem
tratamento diferenciado. Por isso mesmo, impõe-se com a máxima urgência uma discussão
séria acerca dos pressupostos teórico-metodológicos implicados nas diferentes aproximações
críticas entre literatura e religião, teologia, espiritualidade etc. etc., que têm vindo a lume,
discussão esta que procuramos encaminhar em textos anteriores (BARCELLOS, 1998, 2000 e
2001). Neste artigo, vamo-nos ater a um aspecto dessa problemática, qual seja o da
aproximação entre literatura e espiritualidade.
Como ponto de partida para o tratamento dessa questão, podemos recordar as palavras
de Jean-Pierre Jossua e Johann Baptist Metz, quando, no editorial de um número da revista
Concilium consagrado ao tema "Teologia e literatura", afirmam que
"(...) não se trata de dar continuidade às tentativas de uma
teologia '
poética'ou da ' espiritualidade'
, conhecidas de
todas as épocas e caracteriza pelo vago e arbitrário. O que se
pretende, pelo contrário, é encontrar na forma literária um novo
rigor que permita à teologia prosseguir seu trabalho peculiar,
numa época que não se parece nem com a da abstração nem
com a do sistema. É evidente que o que está em causa é mais
que um certo estilo, é uma preocupação dominante em recorrer
à experiência cristã, a observação profunda dos intercâmbios
incessantes entre essa experiência e a confissão de fé".
(JOSSUA,METZ, 1976)
Temos aí, expostos com singular clareza, todos os elementos relevantes da questão. O
primeiro grande escolho do tipo de estudo de que estamos falando é deixar-se levar pelo vago
e pelo arbitrário. Aproximações arbitrárias de textos literários com afirmações de fé, com
passagens bíblicas ou com temas teológicos sempre são possíveis e, eventualmente, podem
até ser muito belas e profundas. No entanto, se queremos pensar a relação entre literatura e
espiritualidade (ou, conforme o caso, literatura e teologia, literatura e sagrado etc. etc.) dentro
de parâmetros rigorosos, que possam a justo título reivindicar o estatuto de pesquisa
acadêmica, esse tipo de aproximação subjetiva e aleatória deve ser descartado de antemão.
Para se proceder a um estudo verdadeiramente interdisciplinar, é preciso respeitar com
escrúpulo os métodos de trabalho das disciplinas envolvidas. Só assim, no nosso caso, o
resultado obtido poderá ser reconhecido como sendo efetivamente crítica literária e reflexão
teológica sérias.
No próprio trecho citado, encontramos uma pista muito fecunda para o
encaminhamento de nossa questão. Com efeito, conforme Jossua e Metz apontam, para a
teologia, a importância do diálogo com a literatura consiste em encontrar uma nova forma de
articulação para seu próprio discurso, que já não pode mais se pautar pelos princípios da
abstração e da sistematização, sob pena de condenar-se à irrelevância no panorama cultural da
atualidade. O diálogo com a literatura e com as outras artes aparece, assim, como uma
preciosa oportunidade, facultada ao pensamento teológico, para manter-se em contato vital
com a realidade sócio-cultural hodierna e, dentro dela, com a experiência cristã, em particular.
No que tange à espiritualidade, uma dificuldade de monta consiste no próprio recorte
dessa noção. Foi bastante árduo o caminho empreendido pelo pensamento teológico, ao longo
do século XX, no sentido de discernir com clareza e rigor o que se poderia entender por
espiritualidade ou por vida espiritual no âmbito do cristianismo e, conseqüentemente, quais
seriam os parâmetros de uma autêntica teologia espiritual (BARCELLOS, 2001). Se partirmos
da idéia de que o cristianismo, ao contrário de outras religiões, não deve ser entendido
fundamentalmente como uma doutrina de perfeição moral ou espiritual, mas, sim, como
oferecimento inteiramente gratuito da salvação de Deus em Jesus Cristo pelo dom do Espírito
Santo, conclui-se que a perfeição cristã não pode ser outra senão a caridade, conforme ensina
São Paulo na Carta aos Colossenses (Cl 3, 14) ou no célebre capítulo 13 da Primeira Carta aos
Coríntios, e que a vida espiritual corresponde tout court à vida cristã, como mistério de fé,
esperança e amor.
Nessa linha, uma definição bastante equilibrada de teologia espiritual poderia ser a de
Federico Ruiz Salvador:
"Teologia espiritual é a parte da teologia que estuda
sistematicamente, com base na revelação e na experiência
qualificada, a realização do mistério de Cristo na vida do cristão
e da Igreja, que se desenvolve sob a ação do Espírito Santo e a
colaboração humana, até chegar à santidade".
(RUIZ SALVADOR, 1991, p.33)

Desse modo, a teologia espiritual ou teologia da espiritualidade seria a disciplina


teológica que se ocuparia do dinamismo da vida cristã na sua densidade existencial e na sua
concretude histórica particulares. Determinados teólogos contemporâneos, influenciados pelo
pensamento de Hans Urs von Balthasar, não vêem a possibilidade de uma distinção clara entre
a teologia espiritual, assim compreendida, e a teologia dogmática propriamente dita. É o caso,
por exemplo, de Santiago G. Arzubialde:
"A Theologia Mystica unitária é e foi desde sempre a unidade
perfeita da Dogmática e da Espiritualidade. Existe uma
Theologia Spiritualis unitária, como doutrina eclesial-objetiva,
acerca da apropriação da Palavra da revelação na vida de fé,
esperança e caridade. Mas as articulações fundamentais dessa
vida cristã pertencem ao conteúdo essencial da Dogmática. Por
isso, para dizer a verdade, não é possível distinguir
perfeitamente a Dogmática da Espiritualidade".
(ARZUBIALDE, 1989, p. 20s)

Essa visão parece-nos, em princípio, muito fecunda e produtiva. De fato, no


cristianismo, a espiritualidade não pode ser outra coisa senão a vida da graça que, pela ação
do Espírito Santo, conforma o fiel ao próprio Cristo, introduzindo-o na dinâmica da vida
trinitária. Mas essa economia salvífica é o próprio objeto da Dogmática. Desse modo, no
cristianismo, a espiritualidade identifica-se inequivocamente com a vida cristã, enquanto
seguimento de Cristo na fé, esperança e caridade. Nesse sentido, o conceito teológico de
espiritualidade distingue-se com nitidez de uma noção ampla da mesma, muito freqüente na
linguagem corrente, que a identificaria com "a atitude prática ou existencial fundamental de
uma pessoa, conseqüência e expressão de sua maneira de entender a vida religiosa ou, em
sentido mais geral, a vida eticamente comprometida" (BALTHASAR, 1985 a, p. 283).
Se assim é, que sentido haveria, então, em falar de espiritualidade e, mais ainda, de
espiritualidades no âmbito do cristianismo e de um pensamento por ele informado? Por outras
palavras, qual a rentabilidade desse conceito para o pensamento teológico e,
conseqüentemente, para estudos interdisciplinares como os que se propõem sob a rubrica
"literatura e espiritualidade"?
Parece-nos que o conceito de espiritualidade deva ser perspectivado a partir da
dinâmica encarnatória do cristianismo, de que o dogma de Calcedônia é a expressão
paradigmática. De fato, assim como em Cristo a divindade está hipostaticamente unida à
humanidade "sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação (...) conservando cada
natureza sua propriedade" (D 148), a vida da graça tampouco suprime, anula, subverte ou
justapõe-se à humanidade e criaturalidade do ser humano agraciado por Deus. Pelo contrário:
sem se justapor à natureza humana nem suprimi-la, a graça a supõe e a aperfeiçoa, como é
doutrina comum.
É precisamente no espaço entre criação e salvação que se pode encontrar a raiz
teológica da/s espiritualidade/s. Se o mistério de Cristo é único e universal, a inserção nele de
cada homem ou mulher dá-se sempre a partir da situação concreta (biológica, psicológica,
social, cultural e religiosa) em que ele ou ela se encontra. Como escreve Arzubialde, "quando
a revelação, procedente de Deus, advém à pluralidade das individualidades históricas
particulares de maneira pessoal-singular, refrata-se numa multiplicidade qualitativa de
experiências diversas" (ARZUBIALDE, 1989, p.24). É essa multiplicidade de formas que a
experiência de recepção da graça adquire, consoante a imensa variedade das realidades
humanas assumidas por Deus em Cristo, que se designa pelo conceito de espiritualidade/s.
É próprio da teologia de Hans Urs von Balthasar chamar a atenção para o fato de que o
encontro do ser humano com Cristo se dá sempre na emergência de uma forma singular: "O
ser cristão é, de fato, forma. E como poderia não ser, se é graça, possibilidade da existência
aberta para nós pelo Deus que nos justifica, mais ainda, pelo Deus feito homem que nos
redime?" (BALTHASAR, 1985b, p. 19). Desse modo, a teologia de Balthasar abre caminhos
muito produtivos não só para a compreensão da espiritualidade cristã, em sua unidade e
variedade, mas também para a maneira como ela se articula com a literatura e a arte.
Nessa ótica, a noção de espiritualidade, entendida como forma que assume, no aqui e
agora da vida do ser humano, seu encontro com Cristo, abre as condições de possibilidade de
uma autêntica estética teológica, como a que o próprio Balthasar desenvolveu na primeira
parte de sua trilogia (Glória, Teodramática, Teológica). As diferentes espiritualidades cristãs,
como a inaciana, a franciscana, a cartusiana, a beneditina ou a carmelita, por exemplo, seriam,
antes de tudo, formas diversas de configuração da recepção da única graça salvífica, que é o
encontro do ser humano com Cristo. Suas nítidas distinções adviriam precisamente da
dinâmica encarnatória da salvação cristã que nelas se dá. Na medida em que toda a
polifacética realidade humana e cósmica é assumida em Cristo, abre-se um leque inaudito de
experiências de recepção da graça, no âmbito da única economia salvífica, pois, como escreve
o próprio Balthasar, "o ponto sintético entre Deus e o mundo e integração concreta do mundo
em Deus estão em Cristo" (BALTHASAR, 1985a, p. 293).
Nessa perspectiva, como pensar a relação entre literatura e espiritualidade? Por outras
palavras, como pensar a relação entre a forma que a experiência da graça adquire para um
indivíduo ou para um grupo humano determinado e a/s forma/s literária/s em que este
indivíduo ou grupo se exprime?
Para nos ajudar a responder a essa pergunta, podemos recorrer ao pensamento de Luigi
Pareyson, seguramente um dos mais lúcidos pensadores que se dedicaram ao estudo da
estética. Em sua obra fundamental, Estética: teoria da fomatividade, Pareyson emprega o
conceito de espiritualidade, entendido em sentido amplo, e lhe dá um lugar de relevo na
compreensão do fenômeno artístico:
"Dizer que a espiritualidade viva do artista é o conteúdo da
arte é como dizer que quem faz arte é uma pessoa singular e
irrepetível, que, para dar forma, se vale de toda a própria
experiência, do próprio modo de pensar, viver, sentir, do
próprio modo de interpretar a realidade e de se colocar diante
da vida, e também que o seu modo de dar forma'é o único
que pode ter quem pensa, vive, sente daquele modo, quem
tem aquela visão de mundo e tem aquele tipo de vida (...)"
(PAREYSON, 1974, p.28).

Assim, na perspectiva pareysoniana, a obra de arte tem como conteúdo a própria


pessoa do artista, não no sentido de ser este o seu tema, mas no de que o modo segundo o qual
ele dá forma ao material com que trabalha é próprio de quem tem aquela espiritualidade
específica e não outra, e, desse modo, a revela de maneira cabal e insofismável. Como se
percebe facilmente, essa visão da questão estética abre pistas fecundas e instigantes para o
problema de que nos ocupamos neste texto.
De fato, em perspectiva teológica, essa espiritualidade de que fala Pareyson é o
locus de atuação da graça salvífica, que não a anula nem a destrói, mas a vivifica desde
dentro, dando-lhe, por força da encarnação de Cristo, um alcance sobrenatural. Como escreve
Balthasar, "a incardinação das espiritualidades humanas à forma da revelação do Deus
Unitrino do amor significa sua refundação numa Origem e Princípio que lhes é inalcançável
por suas próprias forças" (BALTHASAR, 1985 a, p.292). Desse modo, a graça assume e
transfigura as multiformes espiritualidades humanas que se exprimem na arte e na literatura
de todos os povos, convertendo-as em lugares de encontro com Cristo. Melhor dizendo, em
lugares nos quais Cristo vem ao encontro do ser humano necessitado de salvação.
O sentido teológico de espiritualidade, portanto, distingue-se e, ao mesmo tempo,
articula-se intimamente ao sentido lato do mesmo termo. Não pode haver espiritualidade
cristã, vale dizer, vida cristã, sem espiritualidade humana, não obstante não se poder reduzir
uma à outra. Na compreensão da maneira como ambas se articulam, o paradigma é sempre a
doutrina cristológica ("sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação"), entendida
como expressão da fé ortodoxa, isto é, da correta compreensão do mistério de Cristo como
mistério da graça salvífica de Deus.
Feita essa distinção fundamental entre espiritualidade em sentido lato (as
espiritualidades humanas de que fala Balthasar) e espiritualidade em sentido teológico e,
simultaneamente, estabelecida sua possibilidade de articulação, cabe apresentar, à guisa de
conclusão destas notas introdutórias, alguns princípios metodológicos decorrentes dessa
particular impostação do problema que estamos abordando. Vamos fazê-lo em cinco tópicos,
para facilitar a visualização do encadeamento desses mesmos princípios:
1- Para se trabalhar a relação entre literatura e espiritualidade, é preciso distinguir
com clareza sentido lato de sentido teológico da noção de espiritualidade:
identificá-los inadvertidamente leva à ampliação desmesurada do âmbito do
pensamento teológico, que passa a ser um discurso sobre o sentido enquanto tal, e
à conseqüente dissolução da especificidade do conceito de espiritualidade cristã,
que é absorvida, sem mais, no mare magnum da experiência humana.
2- Em decorrência dessa distinção, demarcam-se com rigor os limites entre uma
leitura teológica de um texto literário, que sempre é possível, independentemente
do texto em questão, uma vez que nenhuma problemática humana é alheia à
mensagem evangélica, e o trabalho propriamente interdisciplinar, que, ao se deter
na articulação entre os dois conceitos de espiritualidade, vistos, em termos
pareysonianos, como modo de formar da obra literária, pode pretender a justo
título ser, ao mesmo tempo, crítica literária e reflexão teológica.
3- Ainda segundo a lição de Pareyson, não se vai confundir o estudo da presença de
temas religiosos ou teológicos na obra literária com reflexão teológica
propriamente dita, pois, para a configuração da pesquisa interdisciplinar em
literatura e espiritualidade, não se trata de buscar a presença ou não de temas
específicos, mas, sim, de investigar o processo mediante o qual uma determinada
espiritualidade converte-se em modo de formar da obra.
4- Cumpre evitar com afinco uma certa perspectivação das relações entre literatura e
espiritualidade segundo a qual a literatura colocaria questões que seriam
respondidas, de maneira íntegra e cabal, pela teologia: consoante o que acima foi
exposto, a graça não anula a densidade própria das experiências humanas, que,
pelo contrário, mantêm toda a sua autonomia e legitimidade. Desse modo, o
trabalho interdisciplinar com literatura e espiritualidade leva a sério a consistência
própria do fenômeno literário como lugar das mais altas e pungentes indagações
humanas e tem presente que a revelação cristã, longe de explicar os enigmas da
existência humana, propõe um caminho de fé, esperança e amor, que, em Cristo e
por meio dele, se abre ao mistério inefável e insondável de Deus. Como ficou dito
acima, a revelação não anula as grandes questões colocadas pelas espiritualidades
humanas, mas as refunda, dando-lhes um novo e inaudito alcance.
5- Finalmente, é preciso ter em conta que, na linha do pensamento de Hans Urs von
Balthasar, um estudo interdisciplinar de literatura e espiritualidade, ademais de
crítica literária, deve ser compreendido como teologia em sentido próprio e estrito.
Não se trata de uma aplicação de algumas noções de uma disciplina a um domínio
que, em princípio, lhe seria alheio. Pelo contrário: de acordo com o grande teólogo
suíço, se, por um lado, não se pode distinguir perfeitamente a teologia espiritual
da teologia dogmática, por outro, o estudo da forma literária plasmada por uma
espiritualidade específica não é outra coisa senão o estudo da forma que, naquele
caso particular, assume o encontro com Cristo. E esse mistério de salvação é o
objeto próprio da teologia. Desse modo, a estética teológica, que ele propõe, é
efetivamente teologia.
Feito este rápido percurso introdutório, cabe dizer que há muito o que se esperar desse
novo campo de pesquisa que se abre entre nós. No entanto, é fundamental que não se
descurem as questões de ordem teórico-metodológica, para que se tenha clareza acerca do
estatuto epistemológico do discurso que se está produzindo. Sem estarmos atentos à
pertinência das aproximações críticas empreendidas, dificilmente poderemos reivindicar sua
relevância como contribuição efetiva ao debate de idéias entre nós.

Referências bibliográficas

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PAREYSON, Luigi. Estetica: teoria della formatività. 3 ed. Florença: Sansoni,1974
RUIZ SALVADOR, Federico. Caminos del Espíritu: compendio de teología espiritual. 4 ed.
Madri: Espiritualidad, 1991
TEOLOGIA: SABOREANDO AS RAZÕES DE NOSSA FÉ

Maria Clara Lucchetti Bingemer


Doutora em Teologia, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e Diretora do
Centro Loyola de Fé e Cultura

É fato relevante, hoje em dia, a volta da espiritualidade ao campo da reflexão


teológica. Até recentemente, a teologia acadêmica não se via devedora nem tampouco
vinculada à experiência cristã de Deus como critério, ou como ponto de partida para a
elaboração do seu pensar e seu discurso. Assim fazendo, aventurou-se por aquilo que o Pe.
Henrique de Lima Vaz chamou de “linguagens de empréstimo”, correndo o risco de realizar
aventuras outras que não a aventura primordial de dar razão da fé através e a partir da
experiência desta mesma fé.24
A discriminação entre teologia e espiritualidade tem sua origem no divórcio ocorrido a
partir do século XVI, de conseqüências nefastas, tanto para a espiritualidade, a qual se viu
reduzida em consistência e vigor, como para a teologia, que perdeu em movimento, beleza e
flexibilidade, tornando-se uma teologia doutrinal puramente explicativa e dedutiva.25
O momento atual re-descobre para dentro da reflexão teológica o direito de cidadania
da espiritualidade cristã, que não é simplesmente vulgarização teológica, mas fonte rica e
consistente de ensinamento novo e irrepetível, sopro do Espírito na história, que permite à
teologia de hoje dizer novas palavras.26
Esta comunicação que pretende falar sobre a vocação e o ministério do teólogo
propõe-se, então, tomar esta linha de reflexão: a da imbricação da teologia com a
espiritualidade. Assim fazendo, estamos conscientes de que imprimimos um viés e um
direcionamento a nossa reflexão. Poderíamos tomar outras vias e caminhos para falar do lugar
que é o nosso - o da reflexão sobre a fé - dentro da Igreja. Escolhemos este, e nossa opção é
consciente, feita deliberadamente, pouco menos de um mês depois que o Papa proclama
doutora da Igreja a Teresinha de Lisieux.
Se o ministério dos teólogos está - nas listas paulinas de 1 Cor 12, 1-11; 27-30 -
identificado na categoria dos doutores, daqueles que têm a palavra da ciência da fé, é
importante que deixemos que a jovem doutora Teresinha e outras testemunhas do Espírito de

24
Cf os dois textos do Pe. Vaz nos livros: M.C.BINGEMER (org) O impacto da modernidade sobre a religião ,
SP, Loyola, 1992, e M.C.BINGEMER e R.dos SANTOS BARTHOLO (org) Mística e política, SP, Loyola,
1994
25
Cf. J. SOBRINO, Espiritualidade e Teologia, In Liberación con Espíritu, Santander, Sal Terrae, 1985, pg 60
(trad. port., Vozes, 1987)
26
Cf. H.U.VON BALTHASAR, Teologia y Espiritualidad, In Selecciones de Teologia 13 (1974) pg 142
ontem e de hoje, intercedam por nós e nos ensinem as raízes mais profundas dessa vocação e
desse ministério.

De onde vem o saber?

Iniciando, portanto, uma reflexão sobre a Teologia e o ministério do teólogo, sentimos


que estamos trazendo de volta a velha questão da possibilidade de colocar em diálogo fé e
razão. Tal tema, tal conflito e tal questão podem encontrar sua provocação inicial numa
pergunta evangélica. A pergunta que os contemporâneos de Jesus fizeram sobre ele mesmo,
ao ouvirem-no falar com um conhecimento e um "saber" diferente do "saber" dos filósofos e
teólogos da época: os escribas e fariseus.
Essa pergunta é : "De onde lhe vem essa sabedoria?" ou "De onde lhe vem o saber...?"
(Mt 13,54). Ao ouvir Jesus que ensinava com autoridade e que, assim fazendo, dava mostras
de ser possuidor de um "saber" até então desconhecido, os sábios e doutores da época, assim
como todos os que o ouviam, se questionavam sobre a origem desse saber que não
conseguiam identificar.
Parece-nos, ao início desta reflexão, que a questão crucial para pensar o que seja a
Teologia estaria na pergunta sobre a origem do "saber" que lhe determina a identidade e o
discurso. Sendo processo de conhecimento, e tendo portanto que haver-se com a razão, de
onde viria a essa mesma Teologia a possibilidade e a condição de colocar em marcha a razão
que vai pretender pensar e falar sobre o objeto que lhe é proposto?
Ora, a Teologia, mais que conhecimento de Deus, mais que discurso sobre Deus, é
também e sobretudo, conhecimento e discurso a partir de Deus, possibilitado por iniciativa e
desejo do próprio Deus. Mais ainda ao se tratar da Teologia cristã.
A Sagrada Escritura mostra que Aquele que o homem, após experimentar na fé, busca
conhecer pela inteligência e expressar por intermédio da linguagem, é Ele quem possibilita e
constitui esse conhecimento e essa linguagem, por ser a Fonte da qual procede e jorra todo
pensar e saber sobre Si próprio. Pensar e saber que o homem, entregue às suas próprias forças,
seria incapaz de atingir e muito menos de articular em discurso coerente e inteligível (Rom
1,19; 1 Cor 13, 9-12; 2 Cor 4,6; 1 Tim 2,3-4). É Deus mesmo, portanto, que se revela ao ser
humano na sua totalidade - inteligência, sensibilidade, liberdade, memória, vontade -
possibilita a este mesmo ser humano a graça de conhecê-Lo.
A Teologia então, para ser fiel a sua identidade que vem d'
Aquele que é ao mesmo
tempo a possibilidade e o objeto de seu conhecimento e seu discurso, deve fazer uma série de
rupturas com o projeto da racionalidade. A primeira delas nos é recordada justamente por
dois textos do NT.
Um deles é 1 Cor 1,19:" Destruirei a inteligência dos inteligentes", referindo-se a Is
29,14. A destruição, a anulação, não de toda inteligência, mas da inteligência dos
"inteligentes", daqueles que se ufanam de saber, que se comprazem no manejo de categorias
racionais, que fazem da razão seu ídolo e da ciência que incha seu deleite, é condição para
pensar o Deus da Revelação, objeto por excelência da Teologia. Pois Ele, esse mesmo Deus,
se revelou aos pobres e simples, aos pequenos, aos sem importância. Como diz outro texto,
Mt 11, 25-27:"Eu te bendigo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas
aos sábios e doutores e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do teu
agrado". Para saber adequadamente de Deus, portanto, o teólogo tem que estar disposto
primeiramente a não saber, ainda que saiba porque não sabe.
Outra condição é a negativa decidida, seja a qualquer fundamentalismo e fideísmo que
caia na tentação de repetir a Bíblia positivisticamente, sem fazer o necessário trabalho
hermenêutico, seja ao confinamento apenas na hermenêutica, que pode resolver a questão do
sentido, mas não a da verdade. Esta - a questão pela verdade - constitui a questão última que
o teólogo tem a obrigação de continuar colocando, diante da Escritura, para além de toda
hermenêutica, até‚ que ela seja, enfim, plenamente manifestada.
Postas essas condições prévias, o teólogo pode, então, entregar-se ao seu trabalho, que
consiste em admitir plenamente o Deus da Bíblia no terreno do conhecimento racional e
assumi-lo aí, reconhecendo os direitos estritos da razão a se pronunciar sobre toda realidade,
embora devendo,sempre, inclinar-se diante de Outro, diferente e maior do que ela, que vem a
ser seu próprio Fundamento. A fé não pode ser absurda e opaca à razão. Cabe à Teologia a
missão de assegurar a transparência da fé à razão, através do instrumental cientifico e
especulativo que maneja. Pois Deus ultrapassa todo entendimento, mas não o suprime. Eis
porque o Deus verdadeiro, o Deus da revelação pode e deve ser pensado racionalmente,
teologicamente, até o fim, sob pena de que a Teologia se converta num mero repetir da fé ao
nível da razão e ao risco de que o Deus sobre quem se fala não seja mais capaz de falar aos
homens e mulheres, seus contemporâneos.(5)

(5)
Cf.A.GESCHÉ, Le Dieu de la Bible et la Théologie Spéculative, In Ephemerides Theologicae Lovainenses
51 (1975) pp 10-12
Saber e sabor

A Teologia é, pois, saber recebido, experimentado. Naquele que se propõe " conhecer"
a Deus com o instrumental da razão e da ciência, mas que ao mesmo tempo só pode ser
movido pela experiência da fé, este "conhecer" tem uma característica "mística" porque a
experiência da fé é sempre e necessariamente experiência do Mistério e de sua revelação.
Mas - perguntamos nós - pode a razão "experimentar" a proximidade ou mesmo a
soberania do Mistério e continuar existindo como razão, com seus pressupostos,
características, método, rigor? Pode a razão entrelaçar-se com a fé e não fazer concessões que
coloquem em perigo seu estatuto mesmo de razão?
Ora, a fé é uma experiência globalizante e radical. Dirige-se e abarca a pessoa inteira,
em todas as suas dimensões, não só a racional, não só a inteligência. Por isso, para o filósofo
que vive a dimensão da fé o grande desafio é avançar com sua inteligência e seu método
seguindo o fio da razão. E reconhecendo, no entanto, o Saber maior no "sabor" que precede
seu saber e que se dá a "conhecer" e experimentar como condição de possibilidade de
existência da mesma razão enquanto tal, e como horizonte maior que, implacável e
incessantemente, vai mostrar à razão seus pequenos e modestos limites.
No fundo, a experiência da fé purifica a razão, no sentido de que lhe mostra, no
interior mesmo de sua atividade rigorosa e teórica, a precariedade de suas conquistas,
inseparável de sua dignidade. A experiência da fé vai permitir ao cientista de qualquer
disciplina aventurar-se pelo verdadeiro conhecer e o verdadeiro saber que não releva apenas
da razão, porque encontra sua origem em "outro" Saber ou no saber de Outro.
Uma vez recebido este Saber, o teólogo experimenta o sabor de "ser conhecido" antes
de conhecer, conhecido por esse Outro que é o fundamento mesmo da razão que lhe permite
fazer ciência e teologia, e adentrar-se em direção ao ato de conhecer profundo. Este caminho
vai lhe mostrando e re-velando seu saber e possibilitando-lhe fazer ciência como gosto e sabor
da verdade, da "theoria" contemplada e por ele "apropriada" no rigor do método, ao mesmo
tempo que lhe vai confirmando a experiência da fé como paixão pela verdade, verdade que
não se rende plenamente ao esforço da ciência, mas se inscreve num conhecimento que é
inseparável do amor.(6)
Por sua vez, o teólogo é chamado a, antes de mais nada, colocar-se à escuta de uma
Palavra que o precede, acolhe-la e obedece-la. Não haveria Teologia se Deus não houvesse

(6)
Cf. sobre essas reflexões meu texto Saber, sabor e sabedoria, In Fé, política e cultura, Desafios atuais, São
Paulo, Paulinas, 1991, pp 83-98
rompido o silencio e falado sobre Si próprio. Assim como não pode haver Teologia se o ser
humano não se dispõe a escutar e acolher e crer que o que foi dito e está escrito é verdade.
Essa Palavra, porém, é pronunciada e acolhida no seio de uma história e uma tradição.
É no meio da trama dessa história que a Teologia é convidada a transmitir uma interpretação
que encontra sua fonte também na inspiração do próprio Deus presente na mesma história.
Nesse sentido, o próprio discurso elaborado pela Teologia e comunicado aos outros é uma
intervenção do divino na história, não diretamente, não magicamente, mas através da lenta e
contínua sucessão das testemunhas da Tradição que vêm desembocar na vida do Povo de
Deus, nessa comunidade chamada Igreja.
Toda teologia que se queira privada e independente não pode reivindicar para si,
portanto, o estatuto de cristã. É no meio do Povo de Deus, no interior da comunidade que crê,
que o teólogo pode levar avante sua missão de buscar conhecer e falar sobre o Deus em quem
crê ajudado pelo instrumental da razão e da ciência.
Mobilizado pela escuta dessa Palavra, inserindo-se nessa tradição, confessando-se
membro dessa comunidade eclesial, o teólogo pode entregar-se a sua missão de pensar
rigorosamente e organizar um discurso sobre Aquele que mostrou Seu rosto e disse Seu nome
na trajetória do povo de Israel e na Encarnação, vida , morte e ressurreição de Jesus Cristo.
Poder nomear Aquele que é o conteúdo mesmo do seu saber é o passo primeiro e necessário
para que a teologia possa, enfim, pensar e falar organizadamente sobre Ele.

Teologia , razão moderna e diálogo inter-religioso

No seio , porém, de uma modernidade em crise, é na teologia que continua se dando o


encontro - ainda que problemático - entre religião e razão moderna. Foi nesse terreno que a
religião encontrou seu lugar no espaço intelectual das modernidades clássicas, e é nesse
terreno que pode dar-se o reconhecimento de jure de um lugar para a religião como fonte de
um saber objetivamente legitimado, no espaço intelectual da assim chamada, no dizer do Pe.
Henrique de Lima Vaz, "modernidade moderna".(7)
Uma questão a ser hoje refletida e aprofundada, entre teólogos e representantes das
outras ciências, seria a da viabilidade de um pensamento teológico intrinsecamente articulado
aos pressupostos filosóficos da modernidade pós-cartesiana. Serão estes mediação científica

(7)
Cf. H. de LIMA VAZ, Religião e modernidade filosófica, In M.C.BINGEMER (org) O impacto da
modernidade sobre a religião, Col. Seminários Especiais - Centro João XXIII, São Paulo, Loyola, 1992, pg 105
instrumental adequada para um saber e um pensar que repousa sobre a afirmação da
transcendência absoluta de Deus e a unicidade igualmente absoluta do evento Cristo?(8)
Por outro lado, o teólogo tem que se defrontar hoje com outro fenômeno que lhe
complexifica o quadro aonde se desenvolve seu trabalho e sua reflexão: o da pluralidade
religiosa e a interpelação do diálogo inter-religioso. Não só as antigas e tradicionais religiões
parecem crescer de importância e se tornarem interlocutoras de peso para o Cristianismo
histórico como também novos movimentos religiosos surgem de todos os lados, suscitando
perplexidade e interpelações diversas aos adeptos das Igrejas tradicionais e, no nosso caso,
concretamente , da Igreja Católica.
Uma coisa que aparece clara neste quadro é que, por um lado, o Cristianismo histórico
percebe que perdeu a hegemonia que havia secularmente adquirido, sobretudo,
concretamente, em países como o Brasil, latino, tradicionalmente católico, onde a pertença
cristã, mais que escolhida livremente na idade adulta, era herdada desde o seio materno. Ser
cristão hoje não é mais evidente e o cristianismo é chamado a encontrar o seu lugar em meio a
uma pluralidade de outras tradições e confissões religiosas dos mais diversos matizes.
Por outro lado, essa pluralidade religiosa levanta para o Cristianismo algumas
interpelações bastante sérias quanto a conteúdos mesmo do depósito de sua fé. Para realmente
dialogar num mundo pluri-religioso, há que estar dispostos, da parte dos cristãos, a encontrar
palavras novas para dizer coisas antigas e tradicionais e fazer-se entender.
A adesão à fé é, sem dúvida, uma escolha livre. Mas esta escolha comanda toda
teologia cristã autêntica. E a fé em Jesus Cristo não é fechada, mas aberta, não mesquinha,
mas de dimensões cósmicas. A teologia das religiões estabelece, na escala do cosmos, uma
maravilhosa convergência no mistério do Cristo, de tudo que Deus em seu Espírito, realizou
ou continua a realizar na história da humanidade.
Em nossos dias, e dadas as circunstâncias descritas, parece-nos urgente que a teologia
volte seus olhos para aquilo que é central em seu saber e em seu discurso, ou seja‚ a
experiência de Deus, o religioso vivido, a concretude da vida da graça na exemplaridade da
santidade cujos exemplos - louvado seja Deus! - abundam na tradição cristã e também em
outras tradições.
Diante da experiência da santidade, ou mesmo da experiência de Deus tout court,
parecem emudecer as filosofias, as ciências da religião e todo outro saber que pretenda
abordar a questão de Deus seja sob que perspectiva for. Pois a palavra, nesse caso, é dada ao
santo, ao místico, ou mesmo ao simples cristão que nas raízes mais profundas de sua

(8)
Ibid
existência, foi atingido e tocado pelo Mistério do Deus vivo, tornando-se a partir daí, para
sempre vulnerável, afetado, nova criatura.
Ainda segundo o Pe. Vaz, essa experiência só admite uma interpretação autêntica:
aquela que é oferecida pela teologia mística, ramo outrora tão florescente nas antigas
teologias e que contemporaneamente parece colocada à sombra.(9)
Na linguagem e experiência dos santos e místicos de todos os tempos, a teologia vai
poder encontrar, certamente a pista da fonte do seu saber, o que lhe permitirá exerce-lo - esse
saber - sem desvirtuá -lo ou traficá -lo nas novas seduções das quais está cheio o mundo
moderno.
Ao cientista moderno, por outro lado, cuja atividade e trabalho releva primordialmente
do campo da razão e da inteligência, coloca-se, por sua vez, hoje mais que nunca, um duplo
desafio: ser plenamente uma pessoa de razão, alguém que tem verdadeiramente a razão como
"meio" por excelência de trabalho, como instrumental, como caminho. Levar a sério a razão e
suas implicações, trabalhando com competência, rigor, austeridade, sem concessões na busca
da verdade.
Se nesse caminho, experimenta no entanto o sabor agridoce da fé, seu horizonte já
não pode ser apenas o do cientista filho da modernidade, ou do adepto de uma tradição
fechada sobre si mesma , mas do sábio, que sabe o mais importante e que talvez possa dar à
sua época, tão carente de guias e de mestres, não só as respostas precisas, rigorosas, mas
sempre limitadas da ciência, porém também a grande pergunta existencial que constitui a
porta estreita de ingresso à vida e à verdade, a mesma feita sobre Jesus de Nazaré‚ por seus
contemporâneos: “De onde vem o saber?"

A identidade do teólogo no mundo contemporâneo

A partir do quadro acima, então, podemos concluir que o teólogo é chamado a ser,
antes de tudo, um hermeneuta: um intérprete da tradição de um texto que vem de muito longe,
um texto aberto e polifônico. Texto este que está inserido na corrente de uma tradição
interpretativa e que o teólogo tem como função ou finalidade, interpretar. Interpretar aqui é
mais do que simplesmente fazer a exegese do texto. O que o teólogo visa, no texto utilizado
como espelho, é nem tanto interpretar o texto, quanto a vida; a vida das pessoas que lêem o
texto, nesta comunidade de interpretação que se constitui como Igreja. Texto que nessa
comunidade, interpretado pelo teólogo, não é simplesmente um texto antigo, mesmo que o
seja, mas um texto atual. Ou um texto que, no seu anacronismo, se torna, sempre que

(9)
Ibid, pp 106-107
proclamado, contemporâneo. Neste sentido um texto não anacrônico, mas catacrônico; não
contemporâneo, mas extemporâneo, que se situa fora do tempo entendido como kronos. E
para o teólogo cristão, isto é ainda mais forte, mais singular - e, para quem vê de fora, também
mais estranho - no sentido de que todas as palavras do texto que compõem o tecido do texto
bíblico, em Jesus Cristo se tornam “a “palavra; a Palavra de Deus.
Nesse sentido, o teólogo, por vocação, profissão e ministério, tem por obrigação não
tanto responder a perguntas, mas responder a, ou ser responsável por, ou ser ouvinte de
apelos. Apelos que vêm de Deus, na Escritura, original ou originariamente, mas que -na
Escritura também, - com maior freqüência, vêm de outro ser humano. Neste sentido, o teólogo
é a memória da responsabilidade, entendida como a capacidade de ouvir e responder ao outro
ou ao apelo do outro.
Na tradição bíblica ( e, portanto, também no exercício da teologia cristã) o elemento
ético ou prescritivo é anterior a qualquer outro elemento e certamente anterior ao elemento
gnoseológico. Trata-se, porém, de uma ética que está indissociavelmente ligada a uma
mística, ou seja, a uma experiência do mistério. A teologia que assim trabalha com essa
mística inseparável dessa ética é chamada, então, a ser teologia mistagógica, ou seja,
pedagoga para o mistério que, experimentado, leva à responsabilidade pelo outro e à prática
em favor do outro.
Estando disto consciente, o teólogo é chamado a elaborar o seu discurso utilizando o
modo da “homologia”ou seja, do agradecimento, do reconhecimento. E nesta homologia, a
teologia se descobre ao mesmo tempo como um discurso de atestação, no qual quem fala -
falando da sua fé ou da fé dos outros, da sua experiência de Deus ou da experiência dos outros
- fala dando testemunho. Dando testemunho do ser humano que, sendo criatura, sente-se
gratuito e agraciado. Dando testemunho de Deus que se revela a este ser humano enquanto
Graça e Verdade.
O sentir-se gratuito e agraciado não é, segundo a tradição cristã, aproveitar-se das
benesses da divindade. É às vezes sofre-la acerbamente, como no caso de Jó. Sentir-se
gratuito e agraciado é saber que sua liberdade está sempre exposta ao possível fracasso. Daí a
necessidade da alteridade que altera o discurso e a prática, pois é a única que pode redimir
verdadeiramente o ser humano. Não só a alteridade divina, mas a alteridade do outro homem,
do outro ser humano, do outro que me faz reconhecer que minha posição originária não é o
cartesiano “cogito” ou o “eu “narcisista. Mas o acusativo que diz: “eis-me aqui”!27
O que faz o teólogo ser teólogo, portanto, é sua responsabilidade - que é única - sua
vocação, seu apelo, tanto por parte de Deus como por parte dos outros, o que faz com que só

27
Cf. o que sobre isso diz E. LEVINAS, Totalité et infini , Nimega, Martinus Hifjosenhalff, 1977
ele ou ela seja ele ou ela mesmos. Neste sentido, a pessoa é sempre vocação, sempre procura
de realização, nunca acabada e sempre objeto de esperança. E a teologia cristã é chamada a,
com a ajuda da “nuvem de testemunhas”que iluminam estes 2000 anos de estrada, a “dar
razão “desta esperança.

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