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REVISTA MAGIS
CADERNOS DE FÉ E CULTURA
Número 45 – Fevereiro de
2004.
O QUE A
ESPIRITUALIDADE
TEM A VER COM AS CIÊNCIAS?
Conselho Editorial
André Marcelo Machado Soares
Danilo Marcondes Filho
Eliana Yunes
José Carlos Barcellos
Luiz Basilio Cavalieri
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Maria Lilia Campello Pereira
Pe. Paul Schweitzer, S.J.
EQUIPE DE PRODUÇÃO
Produção Executiva
Equipe do Centro Loyola de Fé e Cultura PUC-Rio
Projeto Gráfico
Carla M. Cipolla
Felipe R. Chalfun
Diagramação
José Antonio de Oliveira
Assessoria Gráfica
Editora PUC-Rio
EXPEDIÇÃO E ASSINATURAS
Francisca Sônia R. P. Fontes
Telefone: 21 3874-8093
A Equipe
ÍNDICE
Editorial
Psicologia e Espiritualidade
Chista Freitas
A EQUIPE
O QUE A ESPIRITUALIDADE TEM A VER COM AS CIÊNCIAS EXATAS?
“Esse belíssimo sistema do Sol, dos planetas e dos cometas só poderia provir do plano
e da sabedoria de um Ser inteligente e poderoso. (...) Esse Ser rege todas as coisas, não
como a alma do Universo, mas como o Senhor de todas as coisas; e, em virtude de seu
domínio, ele sói ser chamado de Senhor Deus, ou Senhor do Universo. (...) Ele não é
apenas virtualmente, mas também substancialmente onipresente, pois a virtude não
pode subsistir sem a substância. Nele estão contidas e se movem todas as coisas. (...) É
isso o que eu tinha a dizer de Deus, e suas obras constituem o objeto do estudo da
Filosofia Natural (...)”.
1
Frei Nilo Agostini é frade franciscano, sacerdote, professor de Teologia Moral na PUC-Rio, diretor da
Faculdade de Teologia e autor de uma dezena de livros (pela Editora Vozes) e grande número de artigos
publicados em revistas especializadas.
2
Cf. ESPEJA, Jesús. Espiritualidade cristã. Petrópolis: Editora Vozes, 1995, p. 27.
Deus... O nosso mundo... se transformaria no campo aberto para o empenho histórico do
homem, sem injunções sobrenaturais”3.
No entanto, não é isto que verificamos na ebulição atual, moderna/pós-moderna, tão
forte na busca do religioso, do sagrado, do mistério. Há uma busca intensa de alimentar a
dimensão espiritual da existência humana. A própria religião “está de novo no palco histórico,
movida pela força da emoção, do encanto do sagrado, pela busca de uma identidade como que
perdida no complexo mundo globalizado, de múltiplas relações sociais, econômicas, políticas,
culturais”4. No entanto, a busca religiosa de nossos dias projeta “uma religião nos limites do
humano enquanto captado segundo a medida de cada um, segundo demandas individuais”5.
O que nos chama a atenção são os deslizes reducionistas nos quais podem incorrer as
visões acima. Estes acabam por estabelecer referenciais “relativos” para a vida, não raro com
a pretensão de estar propondo a verdade absoluta. O dualismo e sua visão negativa do mundo
e do humano, o antropocentrismo e sua proposta racionalista, o individualismo atual como
medida até do que está além de si, inclusive na busca do religioso/espiritual, revelam-se
incapazes de responder cabalmente ao ser humano, com deslizes comprometedores.
Estas visões, por si sós, geram sistemas que se bastam por si, deslizando em formas
redutoras do humano, comprometendo a qualidade dinâmica da vida. Esta, no dia a dia, não se
revela como plena quando sustentada por visões compartimentalizadas, unidimensionais,
parciais, fragmentadas ou dicotômicas. Conhecemos como é parcial e onerosa a proposta do
dualismo alma/corpo. De igual forma, a pretensão de chegar à verdade ou estipular o que é
válido a partir de um saber isolado ou de um campo exclusivo da ciência cria um cientismo
frágil por fundar-se numa proposta fragmentada da realidade. Enfim, a busca do
espiritual/transcendente, enquanto demanda estritamente individual ou mesmo individualista,
revela a busca de um Deus ou divindade que se equipara a uma “energia fluida” a disposição
de subjetividades liberadas de qualquer tipo de enquadramento institucional, moral, religioso,
ideológico, político, filosófico ou cultural, manifestando-se de maneira holista, plural e/ou
policêntrica.
Soa a hora de voltarmos ao integral humano, num movimento da vida que abarca todas
as dimensões. Com isso, superamos o risco de setorizar a própria vida espiritual, numa
separação indevida de realidades que, de fato, formam uma unidade no humano, sem
exclusões ou oposições dualistas, fragmentárias ou fluidas e sem rosto. A visão de fundo, que
se quer integral, é de inclusão de todas as dimensões fundamentais do humano, bem como de
3
Cf. CALIMAN, Cleto. Apresentação. In IDEM (org.). A sedução do sagrado: o fenômeno religioso na virada
do milênio. Petrópolis: Editora Vozes, 1998, p. 7.
4
Ibidem, p. 8.
5
Ibidem, p. 8.
todos os seres da criação, num abraço teo-antropo-cósmico. Instaura-se, assim, um dinamismo
que a espiritualidade traduz como “uma vida realizada com espírito”, o que implica em dizer
que “toda a existência humana, em todos os seus momentos e âmbitos, entra na esfera da
espiritualidade”6.
6
ESPEJA, Jesús. Op. cit., p. 28, 33.
7
Ibidem, p. 30.
8
Ibidem, p. 30-31.
9
Constituição Dogmática Dei Verbum, n° 15, in CONCÍLIO VATICANO II – Compêndio. Constituições,
Decretos, Declarações. 22ª edição, Petrópolis, Editora Vozes, 1991, p. 132; cf. Constituição Pastoral Gaudium et
Spes, n° 16; in ibidem, p. 158-159.
“devem ser descobertos e aprofundados em proveito da organização da vida humana e
social”10.
O mesmo Concílio Vaticano II, “reconhece a existência de duas ordens de saberes
distintos, o da fé e o da razão. Fala em ‘autonomia das realidades terrestres’, reconhecendo os
princípios básicos da modernidade e seu processo de secularização. Porém, a Igreja lembra
que o reconhecimento da ‘autonomia’ e da ‘diferença’ não significa aceitar a sua
‘independência’ e a ‘separação’. Não se separa fé professada e vida quotidiana”11.
Se é verdade que, diante da variedade de ciências hoje existentes, nos deparamos com
o fenômeno da fragmentação do saber, é verdade também que cada ciência oferece uma
riqueza toda própria ao ser humano e à sociedade. Numa perspectiva de fé, está claro para a
Igreja hoje e, conseqüentemente, para a Teologia que é imprescindível “desenvolver
constantemente a reflexão não só dogmática mas também moral, num âmbito interdisciplinar,
tal como é necessário para os novos problemas”12.
10
AGOSTINI, Nilo. Teologia Moral: O que você precisa viver e saber. 7ª edição, Petrópolis: Editora Vozes,
2003, p. 27-28; cf. GS 36.
11
AGOSTINI, Nilo. Op.cit., p. 28; GS 43.
12
JOÃO PAULO II. Carta encíclica ‘Fides et Ratio’. Col. “Documentos Pontifícios” n° 275, Petrópolis: Editora
Vozes, 1998, n° 30.
13
Cf. Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n° 44, in CONCÍLIO VATICANO II – Compêndio. Constituições,
Decretos, Declarações. 22ª edição, Petrópolis, Editora Vozes, 1991, p. 192.
14
Cf. Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n° 5, in CONCÍLIO VATICANO II – Compêndio. Op. cit., p. 147.
15
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Portugal: Europa-América, 1984, p. 205.
que, ao partir desta ou daquela ciência, “aquilo que seus instrumentos não conseguem
apreender não existe”16.
“Necessário se faz que as ciências humanas rompam com o paradigma disjuntivo para
dar conta de outras dimensões da realidade humana, igualmente significativas, como o não-
organizado, o cotidiano e as manifestações do imaginário, resgatando assim, como sugere
Goldmann, o seu aspecto filosófico”17 para poderem ser portadoras de verdade. Segundo
Aristóteles, “todos os homens desejam saber”, sendo a verdade o objeto próprio deste
desejo18.
Nesta busca de saber mais, em direção à verdade, as ciências humanas podem trazer
uma inestimável contribuição. A Psicologia nos faz adentrar na interioridade da pessoa e
compreender melhor as suas potencialidades e os condicionamentos que nela subsistem. A
Sociologia nos faz compreender o ser humano no seu contexto social e cultural e como realiza
as suas opções. A Medicina desperta a nossa atenção para a vasta problemática da vida quer
humana quer de todos os seres vivos, urgindo o desenvolvimento da bioética. A Pedagogia
aponta para o poder da educação e o desenvolvimento do humano.
16
Ibidem, p. 54.
17
LOURENÇO, Mário. Razão e discurso: os católicos e o controle de natalidade. Petrópolis: Editora Vozes,
2000, p. 32.
18
Cf. JOÃO PAULO II. Op. cit., n° 25, p. 35.
19
Cf. Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n° 62, in CONCÍLIO VATICANO II – Compêndio. Constituições,
Decretos, Declarações. 22ª edição, Petrópolis, Editora Vozes, 1991, p. 214-215.
20
Ibidem. Neste mesmo parágrafo citam-se outras áreas das Ciências Humanas como: Letras, Artes, História. Cf.
JOÃO PAULO II. Carta encíclica ‘Veritatis Splendor’. Petrópolis: Editora Vozes, 1993, n° 29.
pano de fundo um paradigma integrador e humanizador21, aberto a todas as dimensões,
incluindo a transcendência, num abraço de toda a criação.
21
ANDRÉS, José Román F. Teologia moral fundamental. Tercera edición, Serie Manuales de Teología n° 8,
Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1999, p. 16-18.
22
O QUE A ESPIRITUALIDADE TEM A VER COM AS CIÊNCIAS SOCIAIS?
Denise Pini Rosalem da Fonseca
Departamento de Serviço Social (PUC-Rio)
22
Contribuição ao debate “O que a religiosidade tem a ver...”, promovido pelo Centro Loyola de Fé e Cultura, no
contexto da Mostra PUC 2003, realizado no auditório menor do RDC, no dia 28 de agosto de 2003.
Agradecemos ao Centro Loyola, na pessoa da sua Diretora professora Maria Clara L. Bingemer, pelo generoso
convite e aos professores Paul Schweitzer, SJ (Departamento de Matemática), Frei Nilo Agostini (Departamento
de Teologia) e Geraldo Monteiro Sigaud (Departamento de Física) pela oportunidade de discutir estas idéias.
do homem com a sua dimensão transcendente, ao permitir a sua continuidade sob outras
imanências.
Vamos nos concentrar, então, no tema das escolhas, que trataremos como o eixo desta
nossa conversa sobre religiosidade e Ciências Sociais.
No campo da História, constitui uma boa prática principiar todo e qualquer trabalho
com uma clara definição dos termos que delimitam o escopo e o alcance da reflexão que se
deseja enfrentar. Esta é uma discussão que trata de cotejar duas variáveis: “religiosidade” e
“ciência”, termos que caminharam historicamente juntos, porém, a partir de um certo
momento das relações de poder entre “igrejas” e “estados” ganharam novos significados,
chegando a ser entendidos como dicotômicos ou, até mesmo, opostos.
Trabalhemos primeiro com os conteúdos semânticos destas duas palavras, em busca dos
vários significados que elas possuem para os homens e mulheres da modernidade e suas
implicações culturais e sociais.23
Religiosidade [Do lat. religiositate] é uma qualidade do “homem religioso” (Eliade,
1998, p. 17) ou a sua disposição para as coisas sagradas. Por definição, tratar de religiosidade
implica falar de religião e de sagrado. Vale a pena lembrar, que foi a partir das Luzes, e
particularmente na Europa, que apenas uns poucos homens passaram a se ver como “não
religiosos” ou como “homens sem religião” sendo, muitos destes, reconhecidos homens “de
ciência”, ou seja, homens “de saber”. Foi, também, no contexto de secularização moderna que
a manutenção de uma atitude religiosa, que seguia reconhecendo correlações explícitas entre
profano e sagrado, abriu um fosso enorme entre piedade e teologia, ou seja, entre
religiosidade popular e teologia erudita. (Eliade, 1996, p. 524) Com a modernidade fundou-se
uma “religiosidade racional”, e até mesmo Deus passou por um processo de renascimento
ontológico, como sugeriu teoricamente Jung, e como observou empiricamente Pascal: “o
Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, e não o dos filósofos e sábios”. (Eliade, 1996, p. 528)
Religião [Do lat. religione], por sua vez, é a “crença na existência de uma força
sobrenatural, considerada como criadora do Universo e que, como tal, deve ser adorada e
obedecida”. Naturalmente, todos os termos desta definição podem estar colocados no plural,
porém, esta variação formal implica valores religiosos muito diferentes, indicando orientações
religiosas por vezes até mesmo conflitantes. Para evitar enfatizar conflitos, pelo menos por
enquanto, religião também pode ser definida como “a manifestação de uma crença sagrada
qualquer, por meio de doutrina e ritual próprios, que envolvem, em geral, preceitos éticos”.
Em última instância, podemos definir como religião a “qualquer filiação a um sistema
23
Nesta seção do texto, todas as definições semânticas citadas entre aspas são provenientes do Dicionário Novo
Aurélio, Séc. XXI. Versão 3.0, pois nos bastam os conceitos mais elementares contidos nas palavras que
estaremos discutindo.
específico de pensamento, que envolva uma posição filosófica, ética, metafísica” ou de
alguma outra natureza fundadora. Esta última definição, no entanto, ao ampliar as suas
fronteiras, aproxima as essências de religião e corpus de ciência.
Exploremos esta idéia de proximidade.
A palavra crença [Do lat. credentia], que aparece em quase todas as definições possíveis
de religião, tem o valor de uma verdade incontestável, que é aceita pelo homem religioso em
um ato de fé. A “crença é uma forma de assentimento que dá à certas verdades o valor de
convicção” [certeza adquirida por demonstração], e que prescinde de confirmação estando,
por esta razão, ligada à imponderabilidade, à intangibilidade e - por sua natureza - à intuição.
Transportadas estas mesmas idéias para o campo das Ciências, encontramos o conceito
axioma. Axioma [Do gr. axíoma, pelo lat. axioma], no campo da Filosofia, significa “uma
premissa imediatamente evidente que se admite como universalmente verdadeira, sem
exigência de demonstração”. Axioma é uma atitude tomada, uma decisão fundamental e
indiscutível: exatamente o que representam os dogmas para a religião [Do lat. dogma - atos,
decisão] Do ponto de vista da Lógica, axioma é “uma proposição que se admite como
verdadeira porque dela se podem deduzir as proposições de uma teoria ou de um sistema
lógico ou matemático”. Um exemplo de axioma matemático é a aceitação inconteste de que
todo e qualquer número expressado sobre zero é igual a um, uma verdade que deve ser
assumida como em um ato de fé, para a sustentação da arquitetura da Matemática.
Da mesma maneira, a exigência de disciplina nas definições de religião, sugerida pela
utilização das palavras ética, preceitos e obediência, abre uma outra possibilidade de perceber
as proximidades existentes entre religiosidade e práticas científicas. Disciplina [Do lat.
disciplina] é, entre outras coisas, a “observância de preceitos ou normas; uma submissão a um
conjunto de regras a serem cumpridas; o conjunto dos conhecimentos de determinada área de
saber”. Não há prática científica que possa prescindir das suas próprias “normas de conduta”,
que são percebidas como procedimentos técnicos ou metodológicos, sem os quais a própria
“verdade” do saber construído naquela área estaria em jogo.
Voltemos, momentaneamente, às definições de religião e suas implicações.
O sagrado diz respeito às coisas divinas e à religião mas, também, aos rituais e a todas
as formas de manifestação da divindade. É sagrado tudo aquilo que não deve ser tocado,
infringido ou violado. O sagrado é, por definição, intangível e, por esta razão, ele se manifesta
através de mediações e de mediadores. Assim como as religiões não podem prescindir de
corpos sacerdotais, responsáveis pela qualidade das mediações e pelo cuidado do
conhecimento revelado, as ciências possuem seus corpos de mediadores, que não apenas
preservam as suas “disciplinas” mas, também, constroem e transformam o conhecimento nas
suas áreas, a partir da observação ou da experimentação, segundo a natureza do seu saber.
Seriam eles os principais responsáveis pelo que Eliade chamaria de “perfeita camuflagem do
sagrado através da sua identificação com o profano” no mundo moderno. Mas a noção de
sagrado remete principalmente à idéia de segredo, justamente aquilo que as Ciências
modernas pretendem descobrir, entender e, em última instância, revelar. Desta maneira,
religião e Ciência se afastariam, quase irremediavelmente, em termos do tratamento que
oferecem aos seus materiais sagrados.
Examinemos, então, esta idéia de afastamento.
A palavra segredo [Do lat. secretu – separado, afastado] significa “tudo aquilo que não
pode ser revelado ou que se oculta ao conhecimento”. A idéia de segredo implica em sigilo,
mistério, enigma, razão misteriosa ou causa secreta. Por todas estas razões, segredo está
diretamente relacionado com confidência e confissão. Foi nos séculos XVI e XVII que a fé
cristã se transformou em “confissão”, e dela uma variedades de outras “confissões religiosas”
surgiram. Este termo inicialmente designava o “ato” de adorar a Deus e, logo depois, passou a
ser entendido com o “conteúdo” desta adoração (“se confessas com teus lábios que Jesus é o
Senhor...” [Rom 10, 9]). Daí ele caminhou para significar “consenso”, até chegar à idéia de
“comunidade”, que é o sentido moderno da palavra “confissão”. (Eliade, 1996, p. 520)
Ora, se religião e Ciência se afastam na maneira como tratam os seus materiais sagrados
- os seus segredos - é exatamente a existência deste material sagrado - o conhecimento - que
funda as confissões religiosas, pelos mesmos mecanismos que funda e mantém as
“comunidades científicas”. Uma perfeita camuflagem do sagrado através do profano! Toda a
dimensão ritualística que está associada ao sagrado - as confissões de pertencimento -, se
repete no mundo “não religioso” da Ciência, através das disciplinas que discutimos
anteriormente.
A palavra ritual [Do lat. rituale], que aparece nas definições de religião e de sagrado se
refere aos ritos e ao poder que deles emana. Ritual é liturgia, mas é também “o conjunto de
práticas consagradas pelo uso e/ou normas, que se deve observar de forma invariável em
ocasiões determinadas”. Rituais são, em última instância, práticas e procedimentos
disciplinares que garantem o sentido de pertencimento aos membros de uma determinada
comunidade. A dimensão ritual constitui, ela mesma, uma forma de “confissão” de um certo
pertencimento - sagrado ou profano -, ou seja, participar de um ritual religioso ou científico,
de acordo com as regras estabelecidas pela “comunidade”, é um sinal de reconhecimento do
seu pertencimento àquela mesma comunidade. (Eliade, 1996, p. 520) Assim se organizam as
religiões e, dentro delas, as igrejas. Assim se organiza a vida em sociedade e, no interior dela,
as Ciências Sociais.
Para completar estas nossas digressões pelo campo semântico, examinemos os muitos
significados que estão associados à palavra ciência [Do lat. scientia] que é,
fundamentalmente, “conhecimento”. Constitui ciência “qualquer saber que se adquire pela
leitura e meditação, instrução ou erudição”. Por outro lado, as Ciências
...são conjuntos de conhecimentos socialmente adquiridos ou produzidos,
historicamente acumulados, dotados de universalidade e objetividade que permitem sua
transmissão, e estruturados com métodos, teorias e linguagens próprias, que visam
compreender e orientar a natureza e as atividades humanas. (Holanda, 2003, v. 3.0)
No campo da Filosofia, ciência é “o processo pelo qual o homem se relaciona com a
natureza visando a dominação dela em seu próprio benefício”. No imaginário popular, no
entanto, ciência é uma habilidade intuitiva, uma sabedoria adquirida por alguma forma de
revelação. De saída existe um fosso enorme entre as definições de “ciência” e “Ciência”, e as
razões que diferenciam uma da outra têm a ver com as razões que separam o Deus de Abraão
do Deus dos homens “de saber”, ou seja, a racionalidade moderna.
As Ciências se constituem e se organizam entorno dos seus objetos próprios, assim
como as religiões se organizam entorno dos seus saberes sagrados. Por esta razão, vale a pena
nos determos uns momentos para entender a natureza da matéria fundadora das Ciências.
Objeto [Do lat. objectu, part. de objicere – “pôr, lançar diante”, “expor”] é “tudo aquilo que é
apreendido pelo conhecimento, que não é o sujeito do conhecimento ou o conhecimento” em
si. Enquanto para a religião a matéria sagrada é o conhecimento revelado, para as Ciências a
consagração está na apreensão do conhecimento. Mais do que apreender a realidade, as
Ciências aspiram dominá-la para torná-la manipulável em benefício dos homens. O problema
é que desde a sua raiz semântica o conceito de objeto se identifica com a idéia de projeto [Do
lat. projectu - “lançado para diante”], ou seja, uma decisão de realizar algo no futuro. O
objeto é, portanto, por definição, um plano, um intento e um desígnio, mesmo que seja ele um
objeto “científico”.
O caráter fixo e estável dos objetos remete à ponderabilidade e a tangibilidade
intrínsecas das matérias das Ciências. No entanto, quando avançamos na direção das Ciências
Sociais nos complicamos bastante com estas duas premissas, sobretudo por que no centro
delas, como objeto principal de estudo, está o homem - com toda a sua imponderabilidade - e
as suas relações - com toda a sua intangibilidade.
Voltemos à questão que nos ocupa neste texto: o que a religiosidade tem a ver com as
Ciências Sociais? Para respondê-la devemos fazer escolhas. Há que definir os elementos da
linguagem que utilizaremos e dependendo da maneira que perguntarmos poderemos deduzir a
resposta a ser encontrada.
Façamos um primeiro ensaio.
O que axiomas, sistemas específicos de pensamento, normas que devem ser observadas
de forma invariável - idéias que fazem parte das definições de religião e sagrado - têm a ver
com as Ciências?
A resposta é: tudo!
Façamos, agora, a mesma pergunta no sentido inverso.
O que tangibilidade, ponderabilidade, conhecimento apreendido pela observação do
concreto - idéias que fazem parte da definição de objeto científico - tem a ver com religião?
E a resposta é: nada!
Em realidade, este é um falso dilema que instalamos apenas com o objetivo de ilustrar
que nas Ciências - e particularmente nas Ciências Sociais - o autor “constrói” o seu objeto a
partir das suas próprias hipóteses e paradigmas, que poderíamos chamar de “crenças” ou
“axiomas”. Para resolvê-lo, é bom conhecer um pouco da História de como as Ciências
Sociais foram parcelando o conhecimento humano entorno de objetos específicos, para tratar
de preencher os vazios que foram abertos na Teologia com o desenvolvimento de uma
“religiosidade racional”.
A partir do Iluminismo, com a secularização do conhecimento e a ampliação do
antropocentrismo, as sociedades modernas foram criando outras formas de mediação entre as
vivências humanas e os seus conteúdos sagrados. Com o aprofundamento das disputas de
poder entre Estados Nacionais em processo de organização e a Igreja de Roma, seguidas pelos
cismas entre as distintas confissões cristãs e destas com as demais confissões religiosas,
instalou-se um generalizado afã de controle dos legados do passado, para manipulá-los em
benefício dos homens ou, pelo menos, em benefício de alguns dos seres humanos. A
consolidação dos Estados Nacionais nos séculos XVIII e XIX fez surgir a necessidade de
construção de um “material sagrado” fundador da idéia de nação, o que constituiu um terreno
fértil para o desenvolvimento das Ciências Sociais. Estas passaram a ser parceiras
privilegiadas dos jovens Estados na construção da “comunidade nacional”, uma nova forma
de confissão profana a exigir mediações e mediadores.
Examinemos, então, a natureza da relação que existe entre religiosidade e Ciências
Sociais, sabendo que dela participa também o Estado, desde a fundação de ambos. Para tanto,
vamos nos concentrar na experiência brasileira, por ser aquela que vivemos e a que mais nos
interessa. Não temos a pretensão de oferecer aqui uma análise das principais “confissões” que
organizaram a comunidade científica brasileira, desde a consolidação do Estado Nacional, em
meados do século XIX, até o começo do século XXI. Apenas gostaríamos de apontar alguns
marcos históricos, que significaram verdadeiros pontos de inflexão em termos das filiações
ideológicas predominantes, e que foram determinantes para a construção do edifício das
Ciências Sociais brasileiras. No interior de cada um desses momentos históricos, tentaremos
sugerir a relação que foi, ou tem sido, possível manter entre sagrado e profano.
Se é que se pode traçar sobre a linha do tempo um acontecimento para identificá-lo
como o gesto fundador das Ciências Sociais no Brasil, este corresponderia à fundação do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - IHGB - , em 21 de outubro de 1838. Naquela
data, reuniu-se um grupo de notáveis no Rio de Janeiro para constituir aquele que seria o
centro propagador da civilização brasileira, cuja tarefa era “coligir, metodizar, publicar e
arquivar os documentos necessários para a história e geografia do Brasil” (Barbosa, 1839, p.
10)
Aos domingos, membros da elite brasileira, literatos e intelectuais, comprometidos com
o processo da consolidação da Monarquia, se encontravam para debater como seria
escrita a nossa História, objetivo maior da Instituição. O IHGB desejava criar a História
do Brasil destacando suas grandes personagens e heróis, trazendo "à luz o verdadeiro
caráter da Nação brasileira". A necessidade de se estruturar a História da Pátria pode ser
observada nas palavras de um de seus sócios, Carlos Frederico de Martins, em 1844: "A
História é mestra, não somente no futuro como também no presente. Ela pode difundir
entre os contemporâneos sentimentos e pensamentos... sobre o patriotismo". Criar uma
historiografia para o Brasil significava, portanto, a própria fundação da nacionalidade, a
construção da identidade do povo brasileiro. (MULTIRIO, 2003)
As palavras dos próprios atores são absolutamente transparentes. Tratava-se de
organizar sentimentos e pensamentos, criando uma nova confissão: um novo sentido de
pertencimento para o “povo brasileiro”. Este seria o papel da História e da Geografia do
Brasil, as decanas das Ciências Sociais brasileiras. Os homens “de saber”, que
corresponderiam ao primeiro “corpo sacerdotal” desta nova confissão, eram os literatos e
intelectuais notáveis da sociedade. Posto que fossem todos eles membros da elite econômica
“nacional”, é de se supor que eles fossem todos do sexo masculino, de pele e cultura brancas,
de ancestrais europeus e, possivelmente educados em Europa. Assim sendo, é quase certo
serem todos eles cristãos e, embora estivem atualizados com o pensamento positivista
europeu, praticariam uma religiosidade católica mais ligada à sua expressão barroca do
mundo americano, ou seja, mais ligada aos ritos religiosos populares, que à “religiosidade
racional” ilustrada.
Com estes “quadros de mediadores” começamos a exercitar a construção dos corpus das
Ciências Sociais brasileiras, e na verdade, muito embora em termos ideológicos os campos se
dividissem entre Liberal e Conservador, do ponto de vista das práticas políticas, e da
sensibilidade religiosa, não ocorreram mudanças de grande significado neste quadro até, pelo
menos, o advento da grande crise de valores que se instalou no começo da década de 1930.
A falência mundial do Liberalismo e a emergência das primeiras grandes expressões de
desassossego de uma sociedade que se urbanizava, se industrializava, se mobilizava para
enfrentar desigualdades seculares, forçou a todos a buscar novas respostas que pudessem
aquietar corações e mentes e, mais uma vez, as Ciências Sociais foram convocadas a prestar
serviço. Não seria possível, no entanto, responder a todas estas exigências a partir do esforço
de cavalheiros com boas intenções e um passado escolar. Havia que profissionalizar os novos
mediadores, de tal maneira que eles pudessem se beneficiar das melhores e mais eficientes
respostas a serem encontradas, naturalmente, na França: o berço das Luzes, da secularização e
da racionalidade moderna. De lá foram trazidos professores “missionários” para, em 1934,
fundar a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, juntamente
com a própria Universidade.
Em 1934, a fundação da Universidade como a da Faculdade de Filosofia veio responder
a um projeto de um segmento da burguesia paulista que buscava uma modernidade
política aos moldes dos conceitos liberais. Assim, a educação foi tomada como meio de
transformação, seguindo o projeto de conformar o pensamento individual com certos
cânones ideológicos, políticos e sociais. Foi buscada conformidade social, a
consolidação da pirâmide da sociedade criando-se uma elite e não um homem público;
caracterizando a educação como instrumento de organização social. (Silva, 2003)
O que se buscava era, através das Ciências Sociais, ajustar o pensamento nacional, ou
pelo menos o da futura elite dirigente, à certos cânones aceitos na Europa de então, imersa, ela
mesma, no crescimento dos nacionalismos exacerbados, do socialismo internacional, da
xenofobia, dos ódios raciais, da pobreza e de todo os seus corolários de dor. A partir destes
cânones, construídos em tempos de verdades incertas e cegas convicções, não havia muito
espaço na academia para a delicada fé religiosa. As Ciências Sociais brasileiras abandonaram,
então, o imaginário positivista e passaram a operar com o idéia de conflito, afastando-se
também da religiosidade racional. Para se manter em campo seguro, no entanto, elas passaram
a supervalorizar o método ou a se filiar a rígidos paradigmas acadêmicos, muitas vezes
mimetizando as Ciências Exatas e da Natureza, para se manter como membros da
“comunidade” científica nacional.
Foi a partir daí que as Ciências Sociais brasileiras conheceram o cisma das incontáveis
“confissões” ideológicas - que encontravam as suas racionalidades através de elaboradas
formulações científicas - , e que formavam verdadeiras comunidades no interior do
pensamento social nacional. Nos anos de 1970, no interior da própria USP, estes grupos de
pensadores formavam núcleos tão fechados e fervorosamente divergentes, que passaram a ser
conhecidos como “igrejinhas” - o que sugere “seitas” - , deixando muito clara a camuflagem
da qual nos falou Eliade. Foi também quando o pensamento marxista inundou o imaginário da
elite intelectual brasileira que, pela primeira vez, pudemos ouvir alguns dos nossos
pensadores sociais mais valiosos declarando-se ateus, pois esta afirmação tinha, então, o valor
de um panfleto libertário.
Porém, todas as nossas certezas foram sendo desmontadas durante a década de 1980.
Primeiro veio a constatação dos limites da Economia, em uma década perdida para todos.
Logo os da Política, com uma redemocratização que não significou maturidade de escolhas,
igualdade ou justiça social. Depois foi a vez da poderosa Medicina baixar a crista frente a
AIDS e às indestrutíveis super-bactérias e, a partir daí, todo o edifício científico ficou abalado
nas suas estruturas. Se é verdade que a queda do muro de Berlim enterrou alguns sonhos, é
certo também que fez nascer outros. Mas, logo depois, nós assistimos ao renascimento dos
fundamentalismos religiosos, dos ódios étnicos e de tantas outras mazelas que pensávamos
esquecidas. Permaneceu a contingência humana, o sofrimento, o horror da doença e a certeza
da morte; temas que nem a nação, nem as Ciências Sociais foram, ou jamais serão, capazes de
solucionar. Racionalizada, secularizada, dessacralizada, a vida moderna tornou-se também
vazia de esperança e ávida de uma religiosidade que traga saciedade, que possa ser consumida
rapidamente para promover alívio e tornar a vida suportável.
Desde então, apareceram outros temas sociais no cenário internacional para os quais
os nossos instrumentos científicos tem se mostrado inócuos. As Ciências Sociais não estavam
preparadas para enfrentar questões relativas ao meio ambiente, às identidade culturais
emergentes, às identidades nacionais agonizantes, ao paradigma nacional aos frangalhos, aos
grandes sistemas sociológicos desmontados, invalidados pela experimentação humana. A
incerteza se fez presente e, embora tenhamos passado mais de um século tentando construir
garantias de sucesso e remédios para mitigar a dor, nossos instrumentos carecem de algo que
talvez a religiosidade conheça melhor que as Ciências de uma forma geral, e as Ciências
Sociais em particular. Quem sabe seja chegada a hora de ressacralizar o conhecimento, e a sua
apreensão, ao convidar a intuição e a revelação a tomar parte do nosso fazer científico. Mas
para isso deveríamos ser capazes de abrir mão das nossas certezas, de correr riscos aceitando
a imponderabilidade, de abdicar do afã de controle, de entender que a natureza é sagrada, de
aprender a ouvir uns aos outros e sobretudo, de saber com o que, e com quem, está a nossa
lealdade. Para tudo isso, teríamos que aprender a não camuflar o sagrado sob as inúmeras
aparências que o profano possa assumir no mundo.
Como conclusão, vale recolocar a questão inicial para, sem falsos dilemas, oferecer a
nossa escolha de resposta.
O que a religiosidade tem a ver com as Ciências Sociais?
Diríamos que é uma questão de escolha pessoal. Religiosidade e Ciências Sociais terão
tanto mais a ver, quanto melhor nos conhecermos, e quanto mais reconhecermos o que há de
nosso nos objetos que estudamos. Quanto mais ou menos sejamos capazes de apreender o
tangível e intuir o intangível, respeitando os limites do sagrado, para melhor mediar a relação
entre as dimensões imanente e transcendente dos nossos leitores e de nós mesmos.
Referências bibliográficas
Christa Freitas
Abordar o assunto que levanta reflexões à cerca da espiritualidade sob o ponto de vista
da Psicologia é bastante delicado. A Psicologia, como a conhecemos atualmente, é uma
ciência relativamente nova, que, em muitos aspectos se mescla com a Filosofia da qual se
originou. Concentra-se bastante em perguntas que tem em comum com a Filosofia, em
especial, a pergunta: “Quem sou eu?”.
A vasta gama de linhas de estudo em Psicologia se concentra na busca de definições
do que é o ser humano, como ele se constitui mentalmente, como reage aos estímulos do meio
em que se encontra, quais são seus padrões de comportamento. Muitas dessas linhas
psicológicas derivam da Psicanálise, que pode ser considerada a escola de psicoterapia que
mais se difundiu e influenciou o pensamento da própria Psicologia bem como lançou suas
idéias e concepções além das fronteiras da Psicologia a outras áreas do conhecimento
humano. A Psicanálise, entretanto, surgiu e foi estruturada por Freud num período em que as
ciências estavam tendo um grande avanço, assim como a tecnologia e o pensamento
materialista. Ciência, tecnologia e materialismo tornaram a Psicanálise com traços fortes de
cientificismo e mecanicismo, que refletem uma busca de se enquadrar e ser aceita como
“ciência” confiável, experimentável, com leis, causas e efeitos, na tentativa de se afastar da
própria Filosofia.
Se, por um lado, isso pode ser considerado positivo, por outro, torna-a limitada. Isso
ocorre, principalmente, no que concerne a área da espiritualidade. Poucas escolas de
Psicologia aceitam essa dimensão como característica própria da imagem de homem. Bastaria,
entretanto, uma breve reflexão e observação para se constatar que a espiritualidade é parte
integrante da constituição do ser humano e que uma das formas da sua expressão, ao lado de
outras características, é a religiosidade propriamente dita, que ocorre em toda a humanidade,
independente de origem ou raça.
Algumas poucas escolas de Psicologia já aceitam o lado espiritual do ser humano. A
Psicologia Analítica de Jung, por exemplo, não rejeita esse aspecto espiritual, embora ainda
não a considere uma dimensão propriamente dita na constituição do ser humano. Muitos o
criticam, no entanto, por discutir excessivamente o ocultismo, o misticismo e a religião, não
se baseando em investigações experimentais. Segundo Jung, há bastante evidência da
existência desses aspectos não sendo necessário a sua confirmação por não se tratarem de
fatos físicos, mas sim psíquicos.
Outras escolas, como as Análises Existencial e Fenomenológica (Binswager, Boss)
rejeitam o positivismo, o determinismo e o materialismo, incluindo entre seus conceitos
básicos a responsabilidade, a liberdade e a transcendência. Mas nenhuma considera o homem
pluridimensionalmente como a Logoterapia de Viktor Frank. Para esse autor, o homem é
constituído de uma dimensão biológica, uma psíquica e uma espiritual.
A dimensão somática coordena todos os fenômenos corporais do homem. Na
dimensão psíquica é onde existem as disposições, sensações, impulsos, instintos, esperanças,
aspirações, desejos do homem, em suma, os fenômenos psíquicos, seus talentos, seus
costumes e padrões comportamentais. A dimensão espiritual é aquela onde há a tomada de
posição livre em face das condições impostas por parte do somático e do psíquico. Nela se
encontram as decisões pessoais da vontade, o interesse, o senso artístico, o pensamento, a
religiosidade, a intencionalidade, o senso ético, a compreensão de valor.
Para Frankl essa dimensão espiritual, assim como a psíquica, também inclui uma parte
inconsciente, onde se encontra a religiosidade inconsciente, a ser compreendida como relação
de transcendência entre o EU e o TU. Sendo inconsciente, nem sempre é explicitada, mas
podendo ser evocada a partir de uma psicoterapia como a Logoterapia, em que se resgata a
partir do espiritual. A religião tem mais a haver com decisão pessoal, às vezes, até a nível
inconsciente, do que com arquétipos religiosos do inconsciente coletivo como Jung presumia.
Religiosidade é, portanto, uma decisão, não um impulso.
Percebemos que nos últimos anos tem surgido uma “onda” esotérica, que indica uma
necessidade do homem, insatisfeito com o seu afastamento do sagrado, de buscar um resgate
de formas ou fórmulas usadas por seus antepassados. Essa busca se processa, porém, de
forma bastante desordenada, por vezes, imatura, com apelos a magia, característica de povos
com traços ainda primitivos que atribuem poderes a atitudes, objetos e fenômenos naturais.
Mas o importante é fazer notar que há essa busca, e, se há uma busca, é porque existe
uma necessidade não satisfeita que a motiva, que existe um para quê da existência que não
consegue ser descoberto pelo mecanicismo, pelo materialismo, pelo cientificismo.
Evidentemente, não se trata de impor-se uma espiritualidade, mas sim de garantir a
liberdade de escolha de cada um em se comprometer com uma religião pela qual opta
livremente.
Referências Bibliográficas
Referências bibliográficas
24
Cf os dois textos do Pe. Vaz nos livros: M.C.BINGEMER (org) O impacto da modernidade sobre a religião ,
SP, Loyola, 1992, e M.C.BINGEMER e R.dos SANTOS BARTHOLO (org) Mística e política, SP, Loyola,
1994
25
Cf. J. SOBRINO, Espiritualidade e Teologia, In Liberación con Espíritu, Santander, Sal Terrae, 1985, pg 60
(trad. port., Vozes, 1987)
26
Cf. H.U.VON BALTHASAR, Teologia y Espiritualidad, In Selecciones de Teologia 13 (1974) pg 142
ontem e de hoje, intercedam por nós e nos ensinem as raízes mais profundas dessa vocação e
desse ministério.
(5)
Cf.A.GESCHÉ, Le Dieu de la Bible et la Théologie Spéculative, In Ephemerides Theologicae Lovainenses
51 (1975) pp 10-12
Saber e sabor
A Teologia é, pois, saber recebido, experimentado. Naquele que se propõe " conhecer"
a Deus com o instrumental da razão e da ciência, mas que ao mesmo tempo só pode ser
movido pela experiência da fé, este "conhecer" tem uma característica "mística" porque a
experiência da fé é sempre e necessariamente experiência do Mistério e de sua revelação.
Mas - perguntamos nós - pode a razão "experimentar" a proximidade ou mesmo a
soberania do Mistério e continuar existindo como razão, com seus pressupostos,
características, método, rigor? Pode a razão entrelaçar-se com a fé e não fazer concessões que
coloquem em perigo seu estatuto mesmo de razão?
Ora, a fé é uma experiência globalizante e radical. Dirige-se e abarca a pessoa inteira,
em todas as suas dimensões, não só a racional, não só a inteligência. Por isso, para o filósofo
que vive a dimensão da fé o grande desafio é avançar com sua inteligência e seu método
seguindo o fio da razão. E reconhecendo, no entanto, o Saber maior no "sabor" que precede
seu saber e que se dá a "conhecer" e experimentar como condição de possibilidade de
existência da mesma razão enquanto tal, e como horizonte maior que, implacável e
incessantemente, vai mostrar à razão seus pequenos e modestos limites.
No fundo, a experiência da fé purifica a razão, no sentido de que lhe mostra, no
interior mesmo de sua atividade rigorosa e teórica, a precariedade de suas conquistas,
inseparável de sua dignidade. A experiência da fé vai permitir ao cientista de qualquer
disciplina aventurar-se pelo verdadeiro conhecer e o verdadeiro saber que não releva apenas
da razão, porque encontra sua origem em "outro" Saber ou no saber de Outro.
Uma vez recebido este Saber, o teólogo experimenta o sabor de "ser conhecido" antes
de conhecer, conhecido por esse Outro que é o fundamento mesmo da razão que lhe permite
fazer ciência e teologia, e adentrar-se em direção ao ato de conhecer profundo. Este caminho
vai lhe mostrando e re-velando seu saber e possibilitando-lhe fazer ciência como gosto e sabor
da verdade, da "theoria" contemplada e por ele "apropriada" no rigor do método, ao mesmo
tempo que lhe vai confirmando a experiência da fé como paixão pela verdade, verdade que
não se rende plenamente ao esforço da ciência, mas se inscreve num conhecimento que é
inseparável do amor.(6)
Por sua vez, o teólogo é chamado a, antes de mais nada, colocar-se à escuta de uma
Palavra que o precede, acolhe-la e obedece-la. Não haveria Teologia se Deus não houvesse
(6)
Cf. sobre essas reflexões meu texto Saber, sabor e sabedoria, In Fé, política e cultura, Desafios atuais, São
Paulo, Paulinas, 1991, pp 83-98
rompido o silencio e falado sobre Si próprio. Assim como não pode haver Teologia se o ser
humano não se dispõe a escutar e acolher e crer que o que foi dito e está escrito é verdade.
Essa Palavra, porém, é pronunciada e acolhida no seio de uma história e uma tradição.
É no meio da trama dessa história que a Teologia é convidada a transmitir uma interpretação
que encontra sua fonte também na inspiração do próprio Deus presente na mesma história.
Nesse sentido, o próprio discurso elaborado pela Teologia e comunicado aos outros é uma
intervenção do divino na história, não diretamente, não magicamente, mas através da lenta e
contínua sucessão das testemunhas da Tradição que vêm desembocar na vida do Povo de
Deus, nessa comunidade chamada Igreja.
Toda teologia que se queira privada e independente não pode reivindicar para si,
portanto, o estatuto de cristã. É no meio do Povo de Deus, no interior da comunidade que crê,
que o teólogo pode levar avante sua missão de buscar conhecer e falar sobre o Deus em quem
crê ajudado pelo instrumental da razão e da ciência.
Mobilizado pela escuta dessa Palavra, inserindo-se nessa tradição, confessando-se
membro dessa comunidade eclesial, o teólogo pode entregar-se a sua missão de pensar
rigorosamente e organizar um discurso sobre Aquele que mostrou Seu rosto e disse Seu nome
na trajetória do povo de Israel e na Encarnação, vida , morte e ressurreição de Jesus Cristo.
Poder nomear Aquele que é o conteúdo mesmo do seu saber é o passo primeiro e necessário
para que a teologia possa, enfim, pensar e falar organizadamente sobre Ele.
(7)
Cf. H. de LIMA VAZ, Religião e modernidade filosófica, In M.C.BINGEMER (org) O impacto da
modernidade sobre a religião, Col. Seminários Especiais - Centro João XXIII, São Paulo, Loyola, 1992, pg 105
instrumental adequada para um saber e um pensar que repousa sobre a afirmação da
transcendência absoluta de Deus e a unicidade igualmente absoluta do evento Cristo?(8)
Por outro lado, o teólogo tem que se defrontar hoje com outro fenômeno que lhe
complexifica o quadro aonde se desenvolve seu trabalho e sua reflexão: o da pluralidade
religiosa e a interpelação do diálogo inter-religioso. Não só as antigas e tradicionais religiões
parecem crescer de importância e se tornarem interlocutoras de peso para o Cristianismo
histórico como também novos movimentos religiosos surgem de todos os lados, suscitando
perplexidade e interpelações diversas aos adeptos das Igrejas tradicionais e, no nosso caso,
concretamente , da Igreja Católica.
Uma coisa que aparece clara neste quadro é que, por um lado, o Cristianismo histórico
percebe que perdeu a hegemonia que havia secularmente adquirido, sobretudo,
concretamente, em países como o Brasil, latino, tradicionalmente católico, onde a pertença
cristã, mais que escolhida livremente na idade adulta, era herdada desde o seio materno. Ser
cristão hoje não é mais evidente e o cristianismo é chamado a encontrar o seu lugar em meio a
uma pluralidade de outras tradições e confissões religiosas dos mais diversos matizes.
Por outro lado, essa pluralidade religiosa levanta para o Cristianismo algumas
interpelações bastante sérias quanto a conteúdos mesmo do depósito de sua fé. Para realmente
dialogar num mundo pluri-religioso, há que estar dispostos, da parte dos cristãos, a encontrar
palavras novas para dizer coisas antigas e tradicionais e fazer-se entender.
A adesão à fé é, sem dúvida, uma escolha livre. Mas esta escolha comanda toda
teologia cristã autêntica. E a fé em Jesus Cristo não é fechada, mas aberta, não mesquinha,
mas de dimensões cósmicas. A teologia das religiões estabelece, na escala do cosmos, uma
maravilhosa convergência no mistério do Cristo, de tudo que Deus em seu Espírito, realizou
ou continua a realizar na história da humanidade.
Em nossos dias, e dadas as circunstâncias descritas, parece-nos urgente que a teologia
volte seus olhos para aquilo que é central em seu saber e em seu discurso, ou seja‚ a
experiência de Deus, o religioso vivido, a concretude da vida da graça na exemplaridade da
santidade cujos exemplos - louvado seja Deus! - abundam na tradição cristã e também em
outras tradições.
Diante da experiência da santidade, ou mesmo da experiência de Deus tout court,
parecem emudecer as filosofias, as ciências da religião e todo outro saber que pretenda
abordar a questão de Deus seja sob que perspectiva for. Pois a palavra, nesse caso, é dada ao
santo, ao místico, ou mesmo ao simples cristão que nas raízes mais profundas de sua
(8)
Ibid
existência, foi atingido e tocado pelo Mistério do Deus vivo, tornando-se a partir daí, para
sempre vulnerável, afetado, nova criatura.
Ainda segundo o Pe. Vaz, essa experiência só admite uma interpretação autêntica:
aquela que é oferecida pela teologia mística, ramo outrora tão florescente nas antigas
teologias e que contemporaneamente parece colocada à sombra.(9)
Na linguagem e experiência dos santos e místicos de todos os tempos, a teologia vai
poder encontrar, certamente a pista da fonte do seu saber, o que lhe permitirá exerce-lo - esse
saber - sem desvirtuá -lo ou traficá -lo nas novas seduções das quais está cheio o mundo
moderno.
Ao cientista moderno, por outro lado, cuja atividade e trabalho releva primordialmente
do campo da razão e da inteligência, coloca-se, por sua vez, hoje mais que nunca, um duplo
desafio: ser plenamente uma pessoa de razão, alguém que tem verdadeiramente a razão como
"meio" por excelência de trabalho, como instrumental, como caminho. Levar a sério a razão e
suas implicações, trabalhando com competência, rigor, austeridade, sem concessões na busca
da verdade.
Se nesse caminho, experimenta no entanto o sabor agridoce da fé, seu horizonte já
não pode ser apenas o do cientista filho da modernidade, ou do adepto de uma tradição
fechada sobre si mesma , mas do sábio, que sabe o mais importante e que talvez possa dar à
sua época, tão carente de guias e de mestres, não só as respostas precisas, rigorosas, mas
sempre limitadas da ciência, porém também a grande pergunta existencial que constitui a
porta estreita de ingresso à vida e à verdade, a mesma feita sobre Jesus de Nazaré‚ por seus
contemporâneos: “De onde vem o saber?"
A partir do quadro acima, então, podemos concluir que o teólogo é chamado a ser,
antes de tudo, um hermeneuta: um intérprete da tradição de um texto que vem de muito longe,
um texto aberto e polifônico. Texto este que está inserido na corrente de uma tradição
interpretativa e que o teólogo tem como função ou finalidade, interpretar. Interpretar aqui é
mais do que simplesmente fazer a exegese do texto. O que o teólogo visa, no texto utilizado
como espelho, é nem tanto interpretar o texto, quanto a vida; a vida das pessoas que lêem o
texto, nesta comunidade de interpretação que se constitui como Igreja. Texto que nessa
comunidade, interpretado pelo teólogo, não é simplesmente um texto antigo, mesmo que o
seja, mas um texto atual. Ou um texto que, no seu anacronismo, se torna, sempre que
(9)
Ibid, pp 106-107
proclamado, contemporâneo. Neste sentido um texto não anacrônico, mas catacrônico; não
contemporâneo, mas extemporâneo, que se situa fora do tempo entendido como kronos. E
para o teólogo cristão, isto é ainda mais forte, mais singular - e, para quem vê de fora, também
mais estranho - no sentido de que todas as palavras do texto que compõem o tecido do texto
bíblico, em Jesus Cristo se tornam “a “palavra; a Palavra de Deus.
Nesse sentido, o teólogo, por vocação, profissão e ministério, tem por obrigação não
tanto responder a perguntas, mas responder a, ou ser responsável por, ou ser ouvinte de
apelos. Apelos que vêm de Deus, na Escritura, original ou originariamente, mas que -na
Escritura também, - com maior freqüência, vêm de outro ser humano. Neste sentido, o teólogo
é a memória da responsabilidade, entendida como a capacidade de ouvir e responder ao outro
ou ao apelo do outro.
Na tradição bíblica ( e, portanto, também no exercício da teologia cristã) o elemento
ético ou prescritivo é anterior a qualquer outro elemento e certamente anterior ao elemento
gnoseológico. Trata-se, porém, de uma ética que está indissociavelmente ligada a uma
mística, ou seja, a uma experiência do mistério. A teologia que assim trabalha com essa
mística inseparável dessa ética é chamada, então, a ser teologia mistagógica, ou seja,
pedagoga para o mistério que, experimentado, leva à responsabilidade pelo outro e à prática
em favor do outro.
Estando disto consciente, o teólogo é chamado a elaborar o seu discurso utilizando o
modo da “homologia”ou seja, do agradecimento, do reconhecimento. E nesta homologia, a
teologia se descobre ao mesmo tempo como um discurso de atestação, no qual quem fala -
falando da sua fé ou da fé dos outros, da sua experiência de Deus ou da experiência dos outros
- fala dando testemunho. Dando testemunho do ser humano que, sendo criatura, sente-se
gratuito e agraciado. Dando testemunho de Deus que se revela a este ser humano enquanto
Graça e Verdade.
O sentir-se gratuito e agraciado não é, segundo a tradição cristã, aproveitar-se das
benesses da divindade. É às vezes sofre-la acerbamente, como no caso de Jó. Sentir-se
gratuito e agraciado é saber que sua liberdade está sempre exposta ao possível fracasso. Daí a
necessidade da alteridade que altera o discurso e a prática, pois é a única que pode redimir
verdadeiramente o ser humano. Não só a alteridade divina, mas a alteridade do outro homem,
do outro ser humano, do outro que me faz reconhecer que minha posição originária não é o
cartesiano “cogito” ou o “eu “narcisista. Mas o acusativo que diz: “eis-me aqui”!27
O que faz o teólogo ser teólogo, portanto, é sua responsabilidade - que é única - sua
vocação, seu apelo, tanto por parte de Deus como por parte dos outros, o que faz com que só
27
Cf. o que sobre isso diz E. LEVINAS, Totalité et infini , Nimega, Martinus Hifjosenhalff, 1977
ele ou ela seja ele ou ela mesmos. Neste sentido, a pessoa é sempre vocação, sempre procura
de realização, nunca acabada e sempre objeto de esperança. E a teologia cristã é chamada a,
com a ajuda da “nuvem de testemunhas”que iluminam estes 2000 anos de estrada, a “dar
razão “desta esperança.