FILOSOFIA E POESIA
Gerd A. Borheim
Plato obteve éxito surpreendente ao expulsar os poetas de
sua Repiiblica: expulsou-os do reino da Filosofia. E por muito
tempo, nao obstante a escassa excecéo representada por Aristé-
teles. a poesia deixou de constituir problema para os fildsofos.
Chegou-se até a esquecer que a filosofia nasceu da poesia. € isso
nao pelo fato exterior de que a maioria dos filésofos pré-socrati-
cos expressava-se em verso; os pré-socraticos eram poetas-filé-
sofos — pré-légicos, se seu pensamento for medido pelo rigor
formal estipulado pelo Organon de Arist6teles. Dai a considera-
los pensadores menores. simples precursores da grande Filoso-
fia grega. foi um passo, e um passo dado com toda a facilidade:
os pré-socriticos praticamente desapareceram do cenério em
que se desdobrou 0 pensamento ocidental. Hoje. sabe-se que
esse esquecimento obedeceu a um processo muito menos ino-
cente do que a primeira vista possa parecer: longe de tratar-se
de mero incidente histrico, 0 que estava em jogo era a trans-
mutacao metafisica do préprio sentido da verdade. Entende-se.
assim, que, na Filosofia de um Santo Tomas ou de um Desi
tes. os poetas sequer tenham existéncia propria; e Kant, que de-
dicou sua principal obra ao problema do conhecimento da ver-
dade, s6 cita os poetas, pedantemente. para embelezar com fra-
ses latinas as suas andlises: nelas 0 poeta, a rigor, nao diz nada.
Recentemente, as coisas passaram a modificar-se. Surge
um Nietzsche. 0 pensador-poeta, e que precisamente por sé-lo
sofreu um processo de marginalizacao até hd poucos anos. E
bem verdade que Nietzsche continua sendo uma excecao, j4
que os filésofos nao voltaram a ser poetas. O que se constata.
entretanto, é uma modificagao no clima das relagées entre a Fi-
UFRIFILOSOFIA
a poesia é esquecida
pela filosofia.
a poesia é recupera-
da pela filosofia.
610 problema da verda-
de earéplica da poe
sia.
losofia. a poesia e a Literatura de modo geral. Nao penso aqui
no fato de que Gabriel Marcel e Sartre fazem Literatura — isso
ainda pertence ao dominio das excegdes e no constitui um des
derato generalizavel. Tampouco quero referir-me a proximidade
que medrou entre Filosofia e Literatura em decorréncia daquele
modo cru e inquictante de apresentar a condicéo humana, ca-
racteristico dos diversos existencialismos e boa parte da Litera-
tura produzida durante alguns lustros. Sem divida. evidenciou-
se entdo uma espécie de terreno comum aos dois campos e que
j@ no pode ser esquecido. Mas. do ponto de vista filoséfico. as
pecas e os romances de Sartre nada acrescentam de essencial
suas andlises fenomenolégicas. e nem as “completa”: sao
apenas focagens distintas de uma mesma problematica. com a
desvantagem de tornarem as vezes excessivamente filoséficas
as criagées literdrias. De qualquer forma. isso tudo jé pertence
a0 passado: as nduseas e as angiistias cederam lugar a outros e
novos problemas.
Segundo Merleau-Ponty. ‘tas tarefas da literatura ¢ a da
Filosofia nao podem mais ser separadas. E 0 principal argumen-
to do autor de Sens et non-sens a favor dessa tese prende-se a
fenomenologia. pois cabe a ela “formular uma experiéncia do
mundo, um contato com 0 mundo que preceda todo pensamento
sobre 0 mundo”. A questao esta em entender que sentido apre-
senta a precedéncia desse contato com o mundo. dessa expe-
riéncia primeva: em causa esto os conceitos de experiéncia e
de verdade. E 0 que deve ser descartado de saida é a idéia de
que a verdade patriménio exclusivo do pensamento rigoroso
ou exato — idéia que inferioriza fatalmente a poesia: a poesia s6
alcangaria a verdade na medida em que se explicitasse a filoso-
fia que Ihe fosse subjacente. Quanto Sartre diz que “toda téen
ca do romance leva a uma metafisica do romancista’”. pode-se
ter a falsa impressao de que tudo depende da elucidacao dessa
metafisica implicita e de que a obra poderia ser explicada tao-
somente pela ideologia do romancista. Desse modo. a obra en-
contraria a sua medida num critério de verdade exterior & pr
pria obra. e tudo se reduziria numa caca As metafisicas. Haveria
uma verdade preestabelecida. e caberia ao poeta curvar-se dian-
te dela e tratar de dar-Ihe nova expressao, Claro que isso tam-
bém existe: &. freqiientemente. 0 que caracteriza a poesia me-
nor.
O que dizer entao? Que a poesia deve ignorar simplesmente
a filosofia? Que nao ha relagio entre filosofia e poesia? E a
posicao defendida por Gottfried Benn: “*O estilo esta sobrepos-iliac caer aa ana a
toa verdade"’. Mas essa tese também resulta insuficiente. ja por
uma questo de fato. Seria ocioso citar os poetas que efetiva-
mente possuem cultura filos6fica: basta 0 testemunho de T.S.
Eliot: ““A verdadeira filosofia é 0 melhor material para o grande
; poeta”. E, realmente, ha muito de aristotélico nos Quatro quar-
| tetos, muito de heideggeriano numa peca como Reuniéo de fa-
milia. Além disso, pode-se recorrer ao trivial argumento. tao en-
fatizado por Péguy. de que todo homem tem, implicita ou ex-
plicitamente. um filosofia, de que ndo se pode existir sem filoso-
fia. E nao se alcanga entender por que exatamente o poeta deve-
ria alhear-se a essa dimensao essencial do ser humano. E evi-
dente que nao se trata necessariamente de estudar filosofia ou
de encantar-se com 0 jargio filos6fico: trata-se apenas de reco-
nhecer o imperativo de ser inteligente. e. de certo modo. 0 ato
poético € por exceléncia o ato inteligente: 0 ler dentro d
sas, Mas a frequente ojeriza dos poetas pela filosofia se expli-
| ca: 0 repiidio de Benn & verdade refere-se. todas as contas fei-
tas. a um tipo de verdade e a recusa a aceité-la como norma es-
tabelecida. Porque também do poeta se deve dizer que 0 seu as-
sunto é a verdade, ¢ aquela ojeriza nao faz mais que preservar a
verdade poética. Contudo, 0 problema no esta tanto na pos-
sivel influéncia da filosofia sobre a poesia: é a verdade poética
que interessa examinar a fim de elucidar sua relacdo com a filo-
coi-
sofia.
Todo possivel didlogo entre filosofia € poesia se instaura. 0 campo da_expe-
ao menos como ponto de partida. no plano da experiéncia. Mer- _"éncia_¢ 0 didlogo
i a filosofia-poesia.
Icau-Ponty tem razo quando vincula o problema 4 fenomenolo- .
gia. justamente porque pela fenomenologia fez-se possivel um
alargamento da compreensao do campo da experiéncia. Nesse
ponto essencial, a doutrina de Husserl conseguiu realmente su-
perar a tradicao metafisica. Nao apenas a experiéncia tal como
aparece interpretada pelo empirismo inglés. racionalisticamente
reduzida a sensagao. O empirismo representa talvez a maxima
deturpacao da experiéncia. pois os ingleses. em iiltima andlise.
terminam perdendo também a sensacio. j4 que a prendem
limites estreitos do conhecimento tal como determinado pelo ra-
cionalismo cartesiano: tudo se faz a partir da sensagao, mas ela
em si mesmo nada é. Nesse particular. alias. a mesma reserva
deve ser feita a Aristételes. no obstante ter sido ele 0 maior
defensor do conceito de experiéncia no mundo grego: quando
afirma que nada existe na inteligéncia que nao tenha passado pe-
los sentidos, liga o conhecimento, sem diivida, & sua génese sen-
sivel. mas isso nao impede que toda a sua anilise termine preju- 63