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Os sertões

de Euclides da Cunha
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Isabel Maria F. R. Loureiro
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Lourdes A. M. dos Santos Pinto
Raul Borges Guimarães
Ruben Aldrovandi
Tania Regina de Luca
Os sertões
de Euclides da Cunha:
releituras e diálogos

Organizador
José Leonardo do Nascimento
© 2002 Editora UNESP
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos /


organizador José Leonardo do Nascimento. – São Paulo:
Editora UNESP, 2002.

ISBN 85-7139-439-3

1. Cunha, Euclides, 1866-1909. Os sertões – Crítica e


interpretação I. Nascimento, José Leonardo do.

02-6364 CDD-869.98

Índice para catálogo sistemático:


1. Escritores brasileiros: Apreciação crítica:
Literatura brasileira 869.98

Editora afiliada:

4
Sumário

Apresentação
José Leonardo do Nascimento 7

O “Diário de uma expedição”


e a construção de Os sertões
Marco Antonio Villa 11

Trauma e história na composição de Os sertões


Edgar Salvadori de Decca e Maria Lucia Abaurre Gnerre 41

Uma crítica precoce à “globalização”


e uma epopéia da literatura universal:
Os sertões de Euclides da Cunha, cem anos depois
Berthold Zilly 63

A sociologia desconcertante de Os sertões


Nísia Trindade Lima 73

A terceira expedição
Ayrton Marcondes 99

5
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

Prefigurações literárias da barbárie nacional em Euclides


da Cunha, Machado de Assis e Lima Barreto
Edgar Salvadori de Decca e Maria Lucia Abaurre Gnerre 123

Por trás das palavras: fluxos e ritmos em Os sertões


Antoine Seel 149

O cosmo festivo: a propósito de um fragmento de


“A terra”
José Leonardo do Nascimento 173

A interpretação d’Os sertões, ontem e hoje


Patrícia Cardoso Borges 191

6
Apresentação

Apresentação

Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos reúne en-


saios interpretativos de um livro clássico em língua portuguesa
já centenário, mas vivo e atual.
Trata-se, paradoxalmente, de uma obra atual pela sua inatua-
lidade, no sentido que conferiu a esta palavra a Segunda considera-
ção intempestiva de F. Nietzsche: “uma ação contra o (nosso) tempo,
sobre o tempo e a favor de um tempo futuro”.
Os sertões parece agir contra as nossas certezas e expectati-
vas, contra nossos olhares condescendentes e bem-intenciona-
dos sobre a história do Brasil. Nada é simples nas relações que
os leitores estabelecem com esse livro-monumento. Talvez seja
ele muito poderoso para que possam nascer um assentimento
tranqüilo e um consenso duradouro entre a trama de seu estilo,
a matéria de suas teses e o leitor.

7
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

Esta coletânea de artigos publicada pela Editora UNESP tem


a finalidade de comemorar – de rememorar ao lado de outras
rememorações – o advento há cem anos desse território soerguido
no universo da cultura brasileira.
Foi sempre muito difícil definir o gênero de Os sertões. De con-
teúdo enciclopédico, o livro abarca os conteúdos literários, histó-
ricos, sociológicos, geográficos, antropológicos...
Os ensaios que compõem estas “releituras e diálogos”, escri-
tos por especialistas no euclidianismo, alcançam alguns desses
lugares, o artístico, o histórico, o sociológico...
Refazem também o caminho da construção do monumento
e das interpretações do livro vingador, da primeira e fundadora, a
de José Veríssimo no rodapé literário do jornal Correio da Manhã,
as mais recentes do final do século passado, as atuais e as que
despontam neste momento.
A coletânea procurou apresentar um desenho coerente e pre-
ciso na ordem de apresentação dos textos. Os dois artigos iniciais
são uma espécie de abertura: analisam Os sertões antes de Os ser-
tões, as circunstâncias de sua construção nas produções anteriores
do autor e na rede de temas emergentes no final do século XIX.
O livro é entrevisto, na seqüência, como uma epopéia que
transformou as certezas científicas, hauridas nas filosofias da his-
tória européias, em ambivalências analíticas e em matéria literária
e artística.
Seguem-se três ensaios que, apesar de suas particularidades,
consideram as inovações trazidas por Os sertões e a permanência
de suas teses e de suas imagens na cultura brasileira. Livro funda-
dor de um argumento sociológico sobre o país, muitos de seus
pontos de vista sobrevivem como um rude veredicto sobre fatos
(o episódio de Canudos) e personagens da história do Brasil (o
coronel Antônio Moreira César).
Os artigos seguintes vêem o texto na sua pulsação e ritmo, na
musicalidade escritural percebida no ato de tradução e de recria-
ção da obra para o francês e na constatação do empréstimo ou da

8
Apresentação

revitalização de um motivo literário tradicional na arte de descrever


a natureza, em uma curta passagem de “A Terra”, o locus amoenus.
O trabalho final discute as interpretações de Os sertões. Guarda
a forma de um balanço crítico e por isso fecha o volume.
A ordem seqüencial dos artigos não é, entretanto, a única pos-
sível. Critérios diferentes dariam uma conformação distinta ao
livro, mas um aspecto parece-me, entre todos, o mais relevante:
os ensaios sobre temas diversos de Os sertões, não raramente, dia-
logam, tangenciam os mesmos tópicos, referem-se, às vezes, às
mesmas passagens ou a um mesmo corpus bibliográfico.
Há tempos fortes na tessitura de Os sertões e uma espécie de
patrimônio cultural constituído, no tempo, que faculta aos intér-
pretes a conversa, o debate e a divergência.
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos debruça-
se sobre um campo de exploração amplo e inesgotável. Além dos
temas aqui considerados e debatidos, há, evidentemente, outros
igualmente procedentes.
Uma reflexão sobre a natureza das leituras do livro vingador rea-
lizadas em outros países seria, sem dúvida, proveitosa e útil para
o euclidianismo.
Ao lado da plasticidade da palheta euclidiana, acompanha
o volume desde a primeira edição em 1902 um significativo ma-
terial iconográfico, como os registros do fotógrafo expedicio-
nário Flávio de Barros e as ilustrações assinadas por artistas de
renome.
Algumas edições estrangeiras são magnificamente ilustradas,
como a dinamarquesa de 1948, e penso que as imagens vei-
culariam também as percepções ou modos de recepção do livro
nessa travessia de cem anos.
Os estudos e as pesquisas sobre o acervo euclidiano são sobre-
modo facilitados e estimulados pelas iniciativas da Casa de Cul-
tura Euclides da Cunha. O ano de 2002 comemora o centenário
de publicação de Os sertões e os noventa anos de realização da Se-
mana Euclidiana na cidade paulista de São José do Rio Pardo.

9
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

Ao professor Álvaro Ribeiro de Oliveira Neto, que na linha-


gem do euclidianismo generoso dirige atualmente a Casa de Cul-
tura, os estudos euclidianos devem muito de suas conquistas,
avanços e de seus bons resultados.

São Paulo, agosto de 2002

José Leonardo do Nascimento

10
O “Diário de uma expedição”
e a construção de Os sertões1

Marco Antonio Villa2

Os artigos e reportagens escritos por Euclides da Cunha para


o jornal O Estado de S. Paulo foram chamados de “Diário de uma
expedição”.3 São os primeiros momentos de aproximação do au-
tor de Os sertões com o tema central do seu livro: a Guerra de Ca-
nudos. Por meio dos 34 artigos e reportagens escritos entre março
e outubro de 1897, podemos percorrer os caminhos analíticos
de Euclides da Cunha – do jornalista, com colaborações esparsas

1 Apresentado na Semana Euclidiana de 2002 em São José do Rio Pardo (SP).


Agradeço os comentários do colega Roberto Ventura, a quem ofereço este
ensaio.
2 Professor de História do Departamento de Ciências Sociais da Universidade
Federal de São Carlos e autor, entre outros, do livro Canudos, o povo da terra
(Ática, 1999, 3.ed.).
3 Para a análise do “Diário de uma expedição”, utilizei a edição organizada
por Olympio de Souza Andrade (Cunha, 1967).

11
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

em O Estado de S. Paulo, ao escritor do maior clássico brasileiro,


Os sertões.
O primeiro artigo foi publicado em 14 de março de 1897, com
o título de “A nossa Vendéia”,4 onze dias após o desastre da expe-
dição Moreira César, e quando os jornais do Rio de Janeiro, espe-
cialmente, já haviam divulgado notícias detalhadas dos aconteci-
mentos militares que envolveram a terceira expedição. O
ambiente político na capital federal estava tenso desde o segundo
semestre de 1896. Os jacobinos, saudosos do período florianis-
ta, pressionavam o governo civil, enfraquecido pelas derrotas das
três expedições, pelas desavenças no Parlamento entre Francisco
Glicério, líder do Partido Republicano Federal, e ala majoritária
do Partido Republicano Paulista e pela licença médica do presi-
dente da República Prudente de Morais – que teve de passar o
governo para o vice, o baiano Manuel Vitorino, entre 10 de no-
vembro de 1896 e 4 de março de 1897. Na capital federal haviam
sido saqueadas e destruídas as sedes dos jornais monarquistas
Gazeta da Tarde, Apóstolo e Liberdade e assassinado o coronel Gen-
til de Castro, quando se dirigia para Petrópolis, com o visconde
de Ouro Preto e Afonso Celso Júnior, justamente para fugir do
clima de perseguição política predominante na cidade (Cunha,
1985, p.373).5 Como escreveu Euclides, anos depois, a “Rua do
Ouvidor valia por um desvio das caatingas”.6 Em São Paulo, a
sede de O Comércio de São Paulo, jornal monarquista de propriedade
de Eduardo Prado e dirigido por Afonso Arinos, foi atacada e sa-
queada sem que a polícia tomasse nenhuma atitude. O jornal

4 Na edição de 5 de abril de 1892 de O Estado de S. Paulo, Euclides já fala em


nossa Vendéia, só que, naquele momento, estava associando a imagem ao
manifesto dos treze generais (31 de março de 1892) contra a permanência
de Floriano Peixoto na presidência da República.
5 Em Os sertões foi omitida a morte do coronel Gentil de Castro.
6 Numa crônica de Machado de Assis, de 15 de novembro de 1896, há uma
frase de espírito sobre a mesma rua: “A Rua do Ouvidor se não tem notícias,
cai no boato”.

12
O “Diário de uma expedição” e a construção de Os sertões

República, editado no Rio de Janeiro, no dia posterior a esses fatos,


considerou que, apesar “da profunda comoção que perturbou
ontem a cidade, pode-se dizer que reinou perfeita ordem em toda
ela. Ainda segundo o jornal, “não nos consta que tivesse havido
nenhum excesso ou conflito ou violência pessoal”.7
Euclides inicia o artigo recordando que o sertão de Canudos
não era de todo desconhecido graças aos estudos de Martius,
Saint-Hilaire, do professor Caminhoá e do relatório de José C.
de Carvalho sobre o transporte do meteorito de Bendengó, em
1888. Identifica na natureza, muito mais do que nos “sequazes
de Antonio Conselheiro”, “o mais sério inimigo das forças repu-
blicanas”. Depois, com base nos autores citados, Euclides dis-
sertou sobre a natureza da região, para no final do artigo iniciar
uma discussão política. Curiosamente, não fez nem sequer uma
referência aos debates políticos, intensos, principalmente após
a derrota de 3 de março, nem ao amplo material jornalístico. Até
esse momento, o sertanejo era, para o autor, “um tipo etnologi-
camente indefinido”, e associa os conselheiristas aos vendeanos
pelo “fanatismo religioso que domina suas almas ingênuas e sim-
ples” e que “é habilmente aproveitado pelos propagandistas do
império”. Concluiu o artigo afirmando que a “República sairá
triunfante desta última prova”.8 O tom é mais ameno do que o
usado pelo editorialista de O Estado de S. Paulo, que, na semana
anterior, em 8 de março, afirmou que “a normalidade desapare-
ceu; no estado atual de coisas, o governo carece de empregar

7 O clima político da capital estava tão exacerbado, que em “Petrópolis tenta-


ram apedrejar o palácio onde viveu a Princesa Isabel que há tempos era
ocupado pela legação russa, que protestou junto ao governo” (O Estado de S.
Paulo, 13.3.1897).
8 No mesmo dia, o autor escreveu uma carta para o seu amigo João Luís Alves,
onde julgou severamente a derrota da terceira expedição: “Creio que como
eu estás ainda sob pressão do deplorável revés de Canudos aonde a nossa
República tão heróica e tão forte curvou a cerviz ante uma horda desordenada
de fanáticos maltrapilhos ... Que imensa, que dolorosa, que profunda e que
esmagadora vergonha, meu caro João Luís!” (Galvão & Galotti, 1997, p.103).

13
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

meios anormais”, linguagem próxima à usada pelo presidente


Prudente de Morais, amigo de Júlio de Mesquita, que em men-
sagem encaminhada ao Congresso Nacional prometeu que “a
causa da legalidade e da civilização vencerá a ignorância e o ban-
ditismo. Canudos vai ser atacada em condições de não ser possí-
vel novo insucesso”, e que o exército “destroçará os que lá estão
envergonhando a nossa civilização”.
Certamente, Euclides deve ter tomado conhecimento do ex-
tenso noticiário sobre Canudos publicado na imprensa carioca.
Mesmo em São Paulo, vários jornais forneceram vasto noticiário
sobre a derrota da terceira expedição. A Platea, por exemplo, pu-
blicou na edição de 8 de março, com grande destaque, notícias so-
bre o desastre da expedição. Foram transcritos dois artigos do ba-
rão de Jeremoabo, velho inimigo do Conselheiro, historiando suas
desavenças com o líder de Canudos, que, segundo ele, vinham de
1874. O próprio O Estado de S. Paulo concedeu amplos espaços à
expedição Moreira César, transcrevendo artigos publicados na
imprensa carioca.9 A edição do dia 8 de março alcançou uma tira-
gem recorde: 18.442 exemplares, esgotados no início da tarde.
Nesse dia, o editorial apontava que a “luta é contra a República. O
governo tem de defender a república, tem de sufocar o movimento
monarquista”. Ao empastelamento do jornal O Comércio de São
Paulo foi reservado um pequeno espaço; já sobre o assassinato
do coronel Gentil de Castro, no Rio de Janeiro, noticiado no dia
10, foi transcrita uma notícia da Gazeta de Notícias, afirmando que
o coronel “foi vítima de sua imprudência e temeridade”.
Entre o primeiro e o segundo artigos, temos pouco mais de
quatro meses. É possível constatar o sentimento de Euclides em
relação ao regime republicano pela sua correspondência. Ainda
em 1º de abril, em carta a João Luís Alves, escreveu que o

9 Por exemplo, no dia seguinte à publicação de “A nossa Vendéia”, saiu trans-


crito um artigo de Machado de Assis sobre Canudos.

14
O “Diário de uma expedição” e a construção de Os sertões

que me impressiona não são as derrotas – são as derrotas sem com-


bate – em que o chão fica vazio de mortos e o exército se transfor-
ma num bando de fugidos! Nunca supus que fôssemos passíveis
de desastres desta ordem! NUNCA! Será possível que a nossa re-
pública tenha quadros de tal ordem que lembram os últimos dias
de Baixo Império? Descrente destas coisas, descrente desta terra –
aonde lamento ter nascido – eu creio entretanto na vitalidade de
um princípio. A república é imortal, e já que temos a felicidade de
possuí-la, eu acredito que ela final galvanizará este povo agonizante
e deprimido ... Acho, realmente, ridículo o título de filho desta
terra depois da vasta série de escândalos de toda a sorte com que
ela tem desmoralizado a História! (Galvão & Galotti, 1997, p.105)

Em 17 de julho, Euclides voltou ao tema. Escreveu “A nossa


Vendéia” , justificando que tinha utilizado esse título em artigo
anterior. Nesses quatro meses ocorreu enorme mobilização mili-
tar. Foi nomeado o general Artur Oscar para comandar a expedi-
ção, dividida em duas colunas: uma comandada pelo general João
da Silva Barbosa e outra, pelo general Cláudio do Amaral Savaget.
Milhares de soldados de todo o Brasil foram deslocados para a
Bahia e, em 27 de junho, tivemos o primeiro grande combate da
quarta expedição, quando o general Artur Oscar foi salvo da der-
rota pela chegada da segunda coluna, comandada pelo general
Savaget, que tinha partido de Aracaju em direção a Canudos.
O artigo é dividido em três partes. Na primeira, o autor justi-
ficou as derrotas sofridas pelo exército em razão das “próprias
condições da luta” e criticou o otimismo existente quando do iní-
cio da expedição. A demora na destruição de Canudos “nada mais
é do que um progredir lento para a vitória”. Lembrou Euclides
que a Inglaterra tinha encontrado sérios problemas para vencer
os zulus, na África, e os afegãos, na Ásia, assim como a França,
em Madagascar, e a Itália, na Abissínia, pois

nada pode perturbar com maior intensidade o mais seguro plano


de campanha do que esse sistema de guerra que sem exagero de

15
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

frase se pode denominar – a tática da fuga – na qual, adaptadas de


um modo singular ao terreno e invisíveis como misteriosas falanges
de duendes, as forças antagonistas irrompem inopinadamente de
todas as quebradas, surgem de modo inesperado nas anfractuosi-
dades das serras, nas orlas ou nas clareiras das matas e, fugindo
sistematicamente à batalha decisiva, diferenciam e prolongam a
luta, numa sucessão ininterrupta de combates rápidos e indecisos.

A segunda parte do artigo foi reservada para descrever a natu-


reza da região e o teatro da guerra: “a natureza ... parece haver
estereografado toda a desordem, toda a ação violenta e tumul-
tuada dos elementos que a assaltaram”. O jagunço, “traiçoeiro e
ousado” adaptava-se perfeitamente à natureza, descrita de forma
fantástica: “zombando dos espinhos que não lhe rasgam sequer
a vestimenta rústica, vingando célere como um acrobata as mais
altas árvores, destramando, destro, o emaranhado dos cipoais”.
O combatente conselheirista – jagunço na linguagem de todos
os comentaristas da guerra – “é uma tradução justalinear quase
do iluminado da Idade Média. O mesmo desprendimento pela
vida e a mesma indiferença pela morte, dão-lhe o mesmo he-
roísmo mórbido e inconsciente de hipnotizado e impulsivo”. Fi-
nalizando o artigo, Euclides acreditava que as tropas “seguem
lentamente, mas com segurança, para a vitória”; fez uma leve crí-
tica à falta de planejamento da expedição, especialmente à ine-
xistência de uma linha segura de abastecimento ligando Monte
Santo a Canudos de forma permanente.
É provável que Euclides tenha se decidido a ir para Canudos,
cobrir in loco a guerra, como já havia ocorrido com vários re-
presentantes da imprensa carioca. Um, entre outros exemplos,
é o de Manuel Benício. Vereador na Câmara Municipal de Niterói
e capitão honorário do exército, e que em 27 de março viajou para
a Bahia como correspondente do Jornal do Comércio.10 Em 29 de

10 Benício, em artigo escrito no próprio teatro da guerra, em 10 de julho, infor-


mou que tinha lido o primeiro artigo: “Um artigo do engenheiro militar Dr.

16
O “Diário de uma expedição” e a construção de Os sertões

julho, Júlio de Mesquita enviou um telegrama para o presidente


Prudente de Morais, seu velho companheiro da propaganda repu-
blicana, com um pedido:

Quero dever-lhe o favor de conseguir que Carlos Machado


nomeie para seu Estado-Maior o Tenente Euclides da Cunha. Este
é meu companheiro na redação do Estado. Tem talento de escritor
quanto dedicação de soldado republicano. Quer prestar serviços à
República e preparar elementos para um trabalho histórico. O Sr.
compreende quanto, como redator do Estado, me interesso por esta
nomeação. Peço resposta hoje.

À margem do telegrama, o presidente anotou: “Atendido”.11


No dia seguinte, O Estado de S. Paulo publicou uma nota confir-
mando a viagem de Euclides para Canudos, onde, de acordo com
o jornal, “nos enviará correspondências do teatro das operações
e, além disso, tomará notas e fará estudos para escrever um traba-
lho de fôlego sobre Canudos e Antônio Conselheiro. Este trabalho
será por nós publicado em volume”. No dia 1º de agosto, Euclides
da Cunha viajou para o Rio de Janeiro, de onde partiu dois dias
depois para Salvador, no final da tarde, incorporado ao Estado-
Maior do marechal Bittencourt, que havia assumido o Ministério
da Guerra em 17 de maio, em meio à crise política e militar. Como
anotou, na partida ocorreu um incidente: “Logo após passar em
frente a Villegaignon, um soldado atirou-se ao mar, demorando
assim ainda mais a viagem. Foi salvo por um escaler do pequeno
vapor Itaí que entrava no porto na mesma ocasião em que o nosso
saía. O soldado estava embriagado” (Cunha, 1975, p.1).

Euclides da Cunha impressionou a todos que o leram pelo critério e ilustra-


ção com que foi ele escrito. Este jovem e inteligente militar é correspondente
de um jornal paulista e segue para Canudos. O artigo tem o título de – Nossa
Vendéia – e é transcrição de um jornal de S. Paulo” (Galvão, 1994, p.324).
11 Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Prudente de Morais. IHGB. Rio de
Janeiro, 1990. p.71.

17
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

Chegou a Salvador no dia 7 – onde permaneceu pouco mais


de três semanas –, depois “de quatro dias de verdadeira tortura”,
e imediatamente escreveu o primeiro dos dez artigos produzidos
na capital da Bahia para O Estado, ainda a bordo do navio Espírito
Santo: “rapidamente, direi mesmo vertiginosamente, acotovelado
a todo o instante por passageiros que irradiam em todas as dire-
ções sobre o tombadilho, na azáfama ruidosa da chegada”. A lin-
guagem é otimista: acredita que em “breve pisaremos o solo onde
a República vai dar com segurança o último embate aos que a
perturbam”. Três dias depois, escreveu novo artigo. Relatou o am-
biente entre a tropa, a chegada dos feridos e a partida de novos
soldados para a guerra. Concordou com as principais críticas ao
fracasso momentâneo da quarta expedição: a desorganização no
ataque ao arraial quando “baralharam-se batalhões e brigadas, con-
fundiram-se, enredaram-se, anularam-se as fileiras ... sem orien-
tação ... alvo amplíssimo sobre o qual batia, caía em cheio a sarai-
vada de balas dos jagunços sem perder um tiro” e o abandono do
comboio de munições na retaguarda “deixou-o desguarnecido,
completamente isolado” e foi “assaltado e facilmente tomado”.
Essas severas críticas ao general Artur Oscar eram propaladas
pelos oficiais da segunda coluna, comandada pelo general Sava-
get, que ficaram indignados de ter de abandonar posições conquis-
tadas com muito sacrifício para salvar o general Oscar da derro-
ta, em 28 de junho, quando estava isolado no Alto da Favela. E
foi o jornalista Manuel Benício, nas reportagens publicadas pelo
Jornal do Comércio, que propagou para todo o Brasil a incompe-
tência militar de Artur Oscar.12 Suas críticas acabaram criando
sérios problemas para continuar cobrindo a guerra, tanto que
escreve a última reportagem em 24 de julho e, ameaçado de morte

12 Em 23 de julho, Benício, entre outras críticas a Artur Oscar, escreveu: “Não


é covarde o nosso exército, não. Não lhe falta impavidez e bravura na hora
do combate; falta-lhe sim, disciplina, ordem e bom comando” (Galvão, 1994,
p.258).

18
O “Diário de uma expedição” e a construção de Os sertões

por oficias simpáticos a Oscar, acabou regressando para Salva-


dor, onde, provavelmente, encontrou-se com Euclides da Cunha,
na primeira quinzena de agosto. Chegou a Niterói, em 23 de agos-
to, onde foi realizado um ato de desagravo no Teatro Municipal
local. Na mesma matéria, sem nenhum comentário crítico, citou
a existência da degola dos prisioneiros de Canudos como algo
natural: “Vivem (os conselheiristas), inanidos quase. Diversos
soldados que inquiri afirmam – surpreendidos, que o jagunço de-
golado não verte uma xícara de sangue” e “o fanático morto não
pesa mais que uma criança”.
Euclides foi testemunha da visita que o marechal Bittencourt
fez aos feridos no hospital da Faculdade de Medicina. Ele mesmo
informou na matéria do dia 10 que estava indo aos hospitais:
“percorri-os todos”. Essa visita não foi relatada pelo correspon-
dente nas páginas de O Estado de S. Paulo, mas sim em Os sertões.
Vale lembrar desse episódio, pois faz parte do retrato do minis-
tro da Guerra traçado por Euclides, retrato severo e cruel. O mi-
nistro era um burocrata inexpressivo, segundo Euclides: movia-
se “passivo, comodamente endendato na entrosagem complexa
das portarias e dos regulamentos. Fora disto era um nulo. Tinha
o fetichismo das determinações escritas. Não as interpretava, não
as criticava: cumpria-as”. É esse insensível militar que, ao visitar
os feridos, não deu a menor demonstração de apreço quando foi
reconhecido por um antigo subordinado da Guerra do Paraguai,
que estava no hospital. O velho soldado teria se levantando do
leito com esforço e dirigido súplicas ao ministro. De acordo com
Euclides, era “empolgante a cena. Resfolegaram surdamente,
opressos, todos os peitos. Empanaram-se todas as vistas, de lágri-
mas... e o marechal Bittencourt prosseguiu, tranqüilamente, con-
tinuando a leitura maquinal das papeletas. É que tudo aqui-
lo – fortes emoções ou quadros lascinantes – estava fora do
programa. Não o distraía.” (Cunha, 1985, p.484-6).
Nessa mesma visita, o ministro estava acompanhando de
Euclides e vasta comitiva, incluindo Alfredo Silva, corresponden-

19
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

te enviado por A Notícia para cobrir a guerra, e que, aliás, acom-


panhou o autor de Os sertões até Canudos. Silva descreveu o fato
e narrou a cena de forma sensivelmente diferente. O marechal
conversou cortesmente com cada doente e quando o velho solda-
do dirigiu a súplica, o ministro o reconheceu e pediu que enviasse
os papéis solicitando a reforma, portanto, sem desconsiderar o
pedido e com comportamento digno (ver Galvão, 1994, p.414).
No dia 12, Euclides continuou acompanhando os desembar-
ques dos feridos e traçou retratos comoventes:

Os feridos chegam num estado miserando – relembrando antes


turmas extenuadas de retirantes do que restos, desmantelados em-
bora, de um exército. Dificilmente se distingue uma farda des-
pedaçada e incolor: calças não descem além dos joelhos, reduzidas
a tangas, rôtas, esburacadas, rendilhadas pela miséria; camisas em
farrapos mal revestindo corpos nos quais absoluto depauperamento
faz com que apontem, vivíssimas, todas as apófises dos ossos.

As críticas ao comando da quarta expedição continuaram:


falou da fome, da falta de munições e que, até aquele momento,
“não se fez uma guerra, subordinada a preceitos invioláveis – fez-
se uma diligência policial com oito mil homens”. E aproveitou
para mais uma vez elogiar o marechal Bittencourt: “As providên-
cias inúmeras, urgentes e seguras do Ministro da Guerra têm ten-
dido todas para a remoção de inconvenientes sérios”. É eviden-
te a simpatia do jornalista de O Estado de S. Paulo para com o
general Savaget e o coronel Carlos Teles, críticos de Artur Oscar.
Os dois estavam em Salvador tratando de ferimentos e encon-
traram-se diversas vezes com Euclides. O coronel Teles acabou
se envolvendo em uma polêmica quando escreveu uma carta para
a Folha da Tarde, jornal carioca, desmentindo informações sensa-
cionalistas sobre a Guerra e Canudos:

Canudos tem somente mil casas (ranchos) ou pouco mais e


nunca quatro a cinco mil como geralmente se diz; que calculo ao

20
O “Diário de uma expedição” e a construção de Os sertões

chegar ali a quarta expedição o número de jagunços em seiscentos


no máximo ... que não há ali fim restaurador nem mesmo influência
de pessoa estranha nesses sentido, que em Canudos não existe
nenhum estrangeiro e muito menos capitão italiano instrutor de
brigadas.

No dia 15, Euclides afastou-se do jornalismo, da busca frené-


tica por notícias, para interpretar analiticamente a guerra. Para
ele, a destruição do “arraial sinistro”, da “cidade de taipa”, como
chamou Canudos, seria simplesmente um “incidente transitó-
rio”. O que importava é que a guerra, finalmente, abriria a possi-
bilidade de construir a nacionalidade:

Índoles diversas, homens nascidos em climas distintos por


muitos graus de latitude, contrastando nos hábitos e tendências
étnicas, variando nas aparências; frontes de todas as cores – do
mestiço trigueiro ao caboclo acobreado e ao branco – aqui chegam
e se unificam sob o influxo de uma aspiração única. Parece um
refluxo prodigioso da nossa História. Depois de longamente afas-
tados, todos os elementos da nossa nacionalidade volvem brusca-
mente ao ponto de onde irradiaram, tendendo irresistivelmente
para um entrelaçamento belíssimo.

Essa “aliança moral”, ou seja, a destruição de Canudos, “diri-


mirá talvez a distância entre o Sul e o Norte, tornará com certeza
mais harmônicos os variados fatores da nossa nacionalidade”.
Traçou o primeiro retrato de Antônio Conselheiro com as infor-
mações que tinham recolhido até então, e que usará em Os ser-
tões: “espécie bizarra de grande homem pelo avesso, tem o grande
valor de sintetizar admiravelmente todos os elementos negativos,
todos os agentes de redução do nosso povo”; era um “notável
exemplo de retroatividade atávica”. Na conclusão, escreveu que
as estradas abertas na campanha militar deveriam, no futuro, ser
percorridas pelo verdadeiro vencedor: “o mestre escola”. Em ou-
tras palavras, à comunidade criada no “arraial sinistro” era negado

21
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

direito de fazer a história, a sua história. Canudos era uma socie-


dade sem história, lá só havia “fanatismo e erro”. No dia seguinte,
escreveu novo artigo, mas, percebe-se, sem nenhuma novidade,
provavelmente porque Euclides estava adoentado.13 Mesmo as-
sim, insinuou que em Salvador havia adeptos do Conselheiro, e
que “nesta hora mesma, aqui, há velas que se acedem em recôndi-
tos altares e preces fervorosamente murmuradas em prol do sinis-
tro evangelizador dOs sertões cujos prosélitos não estão todos lá”.
Dois dias depois, escreveu uma bela reportagem sobre tema
único e que intitulou “um episódio de luta”. É o ataque de doze
conselheiristas, a 1º de julho, liderados por Joaquim Macambira,
ao canhão Whitmorth 32, chamado pelos conselheiristas de a ma-
tadeira.14 Euclides fez uma brilhante descrição da organização
do ataque, da estratégia dos combatentes conselheiristas, do com-
bate e da fuga do único sobrevivente. Estranhamente, em Os
sertões, reservou somente uma dúzia de linhas ao episódio (ver
Cunha, 1985, p.433). À fuga do conselheirista, somente uma
linha, quando no jornal fez uma descrição detalhada:

Um apenas se salva, golpeado, baleado, saltando, correndo,


rolando, intangível entre os soldados, atravessando uma rede de
balas, vingando as pontas das baionetas, caindo em cheio nas
caatingas que atravessa velozmente e despenhando-se, livre afi-
nal, alcandorado sobre abismos, pelos pendores aprumados da
montanha...

No dia seguinte, fez a sua melhor reportagem em Salvador.


Entrevistou um jaguncinho – expressão dada pelo exército às
crianças e adolescentes trazidos prisioneiros de Canudos – que
veio com o coronel Carlos Teles. Chamava-se Agostinho e tinha

13 Em carta de 20 de agosto de 1987 a Reinaldo Porchat, escreveu que “depois


de grande constipação assaltou-me a hemoptise habitual”(ver Galvão &
Galotti, 1997, p.108).
14 Hoje, a matadeira encontra-se na praça principal de Monte Santo, Bahia.

22
O “Diário de uma expedição” e a construção de Os sertões

quatorze anos. Finalmente poderia ouvir da própria boca de um


morador do “arraial sinistro” informações sobre o cotidiano da
comunidade e seus principais líderes. Agostinho deu todas as in-
formações solicitadas, que estão transcritas na matéria, mas o
ponto alto encontra-se no final. Quando perguntando sobre os
milagres atribuídos ao Conselheiro, respondeu:

Não os conhece, não os viu nunca, nunca ouviu dizer que ele
fazia milagres. E ao replicar um dos circunstantes que aquele de-
clarava que o jagunço morto em combate ressuscitaria – negou ainda.
– Mas o que promete afinal ele aos que morrem?
A resposta foi absolutamente inesperada:
– Salvar a alma.

Euclides fez questão de acrescentar, no final da matéria, uma


observação pessoal. Essas revelações “têm para mim um valor
inestimável; não mentem, não sofismam e não iludem, naquela
idade, as almas ingênuas dos rudes filhos do sertão”. Só que em
Os sertões não há nenhuma referência ao garoto Agostinho; e não
há por quê; com base nas suas informações não é possível com-
patibilizar o modelo explicativo euclidiano com o cristianismo
ortodoxo do Conselheiro, não é possível imputar ao Conselheiro
o epíteto de Messias ou de líder milenarista. Como o modelo teó-
rico, nesse caso, acabou encontrando um informante que minava
suas bases, Euclides resolveu o dilema: simplesmente suprimiu o
garoto Agostinho, que não mentia e nem sofismava, de Os sertões.
No dia 20, Euclides continuava passeando por Salvador, como
“um grego antigo nas ruas de Bizâncio”. Há, no conjunto das ma-
térias escritas em Salvador, uma verdadeira geografia euclidiana
da cidade.15 Nota-se que o correspondente não tem nenhuma no-
vidade para informar aos leitores de O Estado de S. Paulo, daí ter
recolocado a discussão das questões estratégicas da luta no sertão.

15 Ele visitou a redação de vários jornais baianos, como a do Diário da Bahia.

23
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

No dia seguinte, relatou suas pesquisas nos arquivos soteropo-


litanos. Na “poeira dos arquivos”, como escreveu, encontrou o
jornal A Pátria, editado na cidade de São Félix do Paraguaçu.
Transcreveu parte de uma notícia publicada no dia 20 de maio
de 1894 com o título “Ainda o Conselheiro”, onde o articulista,
da cidade de Monte Santo, acusava os seguidores de Antônio Con-
selheiro de “canalha fanatizada e assassina”. Desde a criação de
Belo Monte – denominação dada pelo Conselheiro a Canudos –,
seus moradores não pagavam mais impostos à intendência de
Monte Santo. E o exemplo de Canudos estava se espalhando por
outros arraiais do município de Monte Santo, como Uauá, daí a
fúria do articulista contra os conselheiristas.16
Dois dias depois, Euclides continuava seu trabalho de histo-
riador, buscando fontes para melhor conhecer o sertão. Uma
delas, citada e usada diversas vezes em Os sertões, é o livro Descri-
ções práticas da Província da Bahia, de Durval Vieira de Aguiar, onde
o autor, tenente-coronel da polícia baiana, descreveu de-
talhadamente todos os municípios da província da Bahia.17 Quan-
do passava por Monte Santo, o autor acabou se encontrando com
Antônio Conselheiro e Euclides transcreveu essa passagem do
livro de Aguiar. Aproveitou o ensejo para continuar traçando o
seu retrato do Conselheiro: “maníaco imbecil”, “fanático vulgar”,
que vivia “sua insânia formidável”. Esse foi o último artigo escrito
em Salvador – era o décimo primeiro –, e o correspondente reve-
la aos seus leitores a irritação por ter ficado tanto tempo na ca-
pital e longe do campo de batalha: “Será esta a última carta que
escreverei deste ponto aonde, involuntariamente, fiquei retido,
lutando com uma falta de assunto extraordinária, que já deve ter
sido percebida”. A insatisfação de Euclides era grande e declarou

16 Para mais detalhes das relações entre o intendente de Monte Santo e a co-
munidade de Canudos, ver Villa (1995, p.68-73).
17 Durval Vieira de Aguiar realizou sua viagem pelo sertão em 1882. Morreu
em 1900, dois anos antes da publicação de Os sertões.

24
O “Diário de uma expedição” e a construção de Os sertões

de forma peremptória, em carta a Reinaldo Porchat de 20 de agos-


to: “estou há quinze dias e deves avaliar com que contrariedade ...
A vida aqui além de insípida é lúgubre – uma distração única –
assistir à chegada dos feridos, assistir à partida das tropas. Uma
coisa pavorosamente monótona” (Galvão & Galotti, 1997, p.108).
No dia 31 de agosto, enviou uma reportagem de Alagoinhas,
já a caminho de Canudos, acompanhando a comitiva do minis-
tro da Guerra. É visível a alegria do autor. Descreveu com entu-
siasmo a natureza – que conhecia especialmente, mas não só, por
meio de conversas e pelos livros de Teodoro Sampaio.18 No dia
seguinte, escreveu de Queimadas, e registrou com entusiasmo:
“entrei pela primeira vez nas caatingas, satisfazendo uma curio-
sidade ardente, longamente alimentada”. A natureza era exube-
rante: “Um quadro absolutamente novo; uma flora inteiramente
estranha e impressionante capaz de assombrar ao mais experiente
botânico”. Mas o fascínio pela natureza não encobriu o pesquisa-
dor que estava à procura das razões do crescimento de Canudos
e de sua influência na região. Citou que várias povoações – como
Tucano e Cumbe – “perderam igualmente grande número de habi-
tantes” e sob “uma atração irresistível famílias inteiras muda-
ram para Canudos que cresceu bruscamente em poucos meses”.
Foi justamente esse deslocamento de força de trabalho um dos
motivos do ódio dos grandes proprietários de terra da região para
com o Conselheiro. Já em janeiro de 1894, o intendente de Tuca-
no escreveu: “Seguiu [sic] daqui e destas imediações esta sema-
na para o Conselheiro umas 16 a 20 famílias, é um horror!”. Um
mês depois, o coronel Aristides da Costa Borges escreveu para o

18 O engenheiro e geógrafo baiano Teodoro Sampaio vivia em São Paulo em


1897. Percorreu o Rio São Francisco e a Chapada Diamantina em 1879 e
1880. Tinha escrito um livro relatando essa viagem e que só foi publicado
no início do século XX. Tudo indica que Euclides tenha lido, ao menos,
parte dos originais. O livro O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina foi
relançado em 2001, pela Cia. das Letras, com excelente introdução de José
Carlos Barreto de Santana.

25
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

barão de Jeremoabo tratando da mesma questão: “O Antonio


Conselheiro continua a ser o motivo da saída de muita gente
daqui, e outros pontos, que ameaça ficarem despovoados. O êxo-
do agora de nossa gente é grande e o Governador não pode agora
tomar providências, que são urgentes” (Sampaio, 1999, p.43 e
94). Para o correspondente de O Estado de S. Paulo, a guerra “não
deve ter exclusivamente um caráter destruidor”, era fundamen-
tal “incorporar à civilização estes rudes patrícios que – digamos
com segurança – constituem o cerne da nossa nacionalidade”.
No dia seguinte, também de Queimadas, escreveu nova re-
portagem. Inicialmente abandonou a descrição da região para de
novo tratar das questões militares e com informações otimistas,
como a de que “não há epidemias; o estado sanitário das forças
é, até hoje, o melhor possível”, o que estava muito distante da
cruel realidade da frente de batalha, onde os soldados passavam
fome e eram vítimas de tifo, varíola e cólera. Mas concluiu o artigo
comentando novamente a natureza e contando o passeio a cavalo
pela caatinga. Fez questão de anotar o encontro com a faveleira:
“Encontrei na volta um novo espécime desta flora agressiva, espé-
cime que não citei na carta que ontem escrevi daqui – a favela,
cuja folha sobre a pele, ao mínimo contato, é um cáustico infer-
nal, dolorosíssimo e de efeitos prolongados”.
No dia seguinte, Euclides enviou uma breve reportagem. Se
a natureza mereceu um amplo espaço, o mesmo não ocorreu com
as nove mulheres que chegaram prisioneiras, acompanhadas de
seis crianças, dos quais duas eram bebês de poucos meses “mir-
radas como feto”. Das outras quatro crianças, de três a cinco anos,
ficamos sabendo o nome de uma delas: José, que trazia na cabeça
um boné de soldado, mas estava ferido: “a boca é uma chaga, foi
atravessada por uma bala!”.19 As mulheres “são monstros en-

19 Dezenas de crianças prisioneiras, bem antes do final da guerra, em outubro,


eram levadas pelos soldados e abandonadas pelos caminhos. As que não esta-
vam feridas, tinham perdido as referências familiares e pessoais. Relatou o

26
O “Diário de uma expedição” e a construção de Os sertões

voltos em trapos repugnantes; fisionomias duras de viragos de


olhos zanagas ou traiçoeiros”. Somente uma mereceu descrição
simpática: “a miséria e as fadigas cavaram-lhe o rosto mas não
destruíram a mocidade ... olhos grandes e negros em que se refle-
te uma tristeza soberana e profunda”. O correspondente prefe-
riu não explorar o drama das prisioneiras: “Não vale a pena narrá-
lo”. A preocupação estava centrada nos preparativos da viagem
para Monte Santo a cavalo, pois Queimadas era o ponto mais pró-
ximo da frente de batalha servido pela estrada de ferro.20
Em 4 de setembro, estava em Tanquinho, “um lugar detes-
tável”. Sente-se que Euclides sofreu muito na viagem de cinco
léguas: “Vou riscar da minha carta o pequeno círculo com que
condecorei esse lugar maldito e substituí-lo por um ponto imper-
ceptível”. No único ponto onde era possível encontrar água, o
tanquinho, no momento que Euclides foi se abastecer, encon-
trou o que chamou de “múmia coberta de trapos”, um soldado,
bebendo daquela água: “Examinei-o e tive a fraqueza de deixar
transparecer, talvez, a invencível repugnância ao pensar que ia
beber no mesmo lugar em que tocaram aqueles lábios gretados
pela febre”.21
No dia seguinte, o correspondente chegou a Cansanção, duas
léguas depois de Tanquinho, mas que era um outro mundo: “fe-

frei Pedro Sinzig, quando estava em Queimadas, que ao perguntar a uma


criança de uns quatro anos qual era o seu nome, recebeu como resposta:
“Jagunço” (ver Sinzig, 1925, p.180).
20 Euclides escreveu em 4 de setembro uma matéria de seis linhas informando
da partida da comitiva.
21 As péssimas condições de Tanquinho e a falta de água potável devem ter
marcado profundamente Euclides. Na Caderneta de campo também deixou
registrado esse fato: “Água infame, infamíssima, de um poço pequeno onde
há seis meses bebem todos os cavalos, banham-se todos os cavalos e lavam-
se todas as feridas” (Cunha, 1975, p.10). Em Os sertões retomou o tema:
“Oficiais que se abeiravam sequiosos da ourela do pântano, davam, de cho-
fre, com espectros mal aprumados tentando fazer-lhes a continência mili-
tar; e volviam entristecidos” (Cunha, 1985, p.500).

27
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

lizmente, já merece o nome de povoado”. Até o armazém “pau-


pérrimo” é elogiado, mesmo diante das “prateleiras toscas e des-
guarnecidas”. Ficou das nove horas da manhã até às duas horas
da tarde no povoado, mas antes do churrasco “magnífico de no-
vilho sadio”, teve de assistir a uma missa numa pequena sala de
menos de dez metros quadrados: “Não me apedrejeis, compa-
nheiros de impiedade; poupai-me, livre-pensadores, iconoclastas
ferozes! ... eu não menti às minhas crenças e não traí a nossa fé,
transigindo com a rude sinceridade do filho do sertão...”. O frei
Pedro Sinzig (1925, p.182), um dos oficiantes da missa, deixou
registrado no seu diário esse momento: “Assistiram ajoelhados
à santa missa o ministro da guerra, o general e os oficiais, ao passo
que os soldados, devido à falta de lugar, ficaram na rua”.22
O fotógrafo Flávio de Barros, que acompanhava as tropas,
registrou a comitiva diante da igreja, acompanhada de uma
banda de música. É possível observar na última fila, na escadaria
da igreja, do lado esquerdo, a figura de um acompanhante que
se assemelha com Euclides da Cunha.23 Quatro horas depois
do fim do churrasco estavam em Quirinquinquá, de onde es-
creveu uma breve reportagem com rápidas observações sobre
a natureza do local.
Em 6 de setembro, depois de duas horas de marcha, “chega-
mos à nossa base de operações”: Monte Santo, onde permaneceu
pouco mais de uma semana. A cidade era um verdadeiro acam-
pamento de tropas com mais de dois mil soldados estacionados.
Encontrou velhos companheiros da Escola Militar que – contin-
gência da guerra – estavam “ajagunçados”. Descreveu na longa
reportagem a situação das tropas e forneceu uma importante in-
formação sobre os conselheiristas: “os fanáticos distribuem de

22 Os freis Pedro e Gabriel solicitaram ao ministro da Guerra a permissão de


acompanhar as tropas até Canudos, que acabou sendo negada.
23 Nas reportagens, Euclides não citou sequer uma vez o fotógrafo Flávio de
Barros, ao contrário de outros correspondentes.

28
O “Diário de uma expedição” e a construção de Os sertões

um modo notável a atividade, revezando-se da linha de fogo para


o campo onde cultivam mandiocas, feijão e milho! Fazem roças
que devem ser colhidas no ano vindouro!”. Se os conselheiristas
estavam plantando roças para colher no ano seguinte, isso é mais
um fator para desmontar a tese de que Canudos era milenarista.
Uma comunidade com esse perfil aguarda o final dos tempos e a
chegada do Salvador, vive do saque – afinal, o mundo vai acabar –, e
não se preocupa com o futuro, justamente o que não estava acon-
tecendo em Canudos, como informa o próprio correspondente.
Euclides continuava adoentado e preocupado em não ter condi-
ções físicas para seguir até Canudos: “Não sabemos ainda se o
Marechal Bittencourt irá até Canudos; se esta resolução for toma-
da revestirei a minha incapacidade física com a minha capacidade
moral e não abandonarei os dedicados companheiros”.
No dia seguinte, enviou nova reportagem. Voltou a enfatizar
as questões militares. Pela primeira vez, Euclides fez breve refe-
rência às mulheres que acompanhavam os soldados. Afinal, não
podiam ser ignoradas: eram centenas. Só na segunda coluna eram
512, que traziam 72 crianças, duas delas nascidas na marcha de
Aracaju a Canudos. Na frente de batalha, lavavam roupa e faziam
comida para vender aos soldados. Muitas morreram em meio aos
combates: só no dia 8 de julho, foram três. As mulheres são retra-
tadas severamente: “multidão rebarbativa de megeras esquá-
lidas e feias na maioria – fúrias que encalçam o exército”. Em Os
sertões o julgamento é o mesmo: “Algumas mulheres, amantes
de soldados, vivandeiras-bruxas, de rosto escaveirado e envelheci-
do, completavam a ilusão” (Cunha, 1985, p.468). Concluiu a re-
portagem informando que Antônio Conselheiro teria declarado
que os que morressem degolados não teriam vida futura e isso
explicaria a resistência extraordinária dos conselheiristas. Vale
registrar, que é a segunda vez que trata da degola sem emitir ne-
nhum julgamento.
Em 8 de setembro, dedicou uma reportagem exclusivamente
ao caminho da Santa Cruz, em Monte Santo. Para ele, somente

29
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

quem subia a via sacra de três quilômetros de comprimento é


que poderia avaliar a “tenacidade incoercível do sertanejo fana-
tizado”. Parte do artigo serviu como base para a descrição sobre
Monte Santo que realizou em Os sertões (ver Cunha, 1985, p.202-3
e 227). Cinco anos antes, Antônio Conselheiro havia restaurado
várias das capelas ao longo do caminho até a igreja da Santa Cruz,
bem no alto do monte. Euclides percorreu o caminho com quatro
militares e o jornalista Alfredo Silva, de A Notícia, que já estava
em Monte Santo antes da chegada do correspondente de O Estado
de S. Paulo. Silva, em artigo datado de 8 de setembro, estranhou
os trajes de Euclides, que “se apresentou de vistosas botas de
verniz, calça branca, camisa de fina seda e chapéu de fina palha”.
Certamente deve ter tido muitas dificuldades para percorrer os
três quilômetros, parte dele excessivamente íngreme, sob um sol
abrasador. O mesmo jornalista escreveu que Euclides percorreu
o caminho com uma “portátil máquina fotográfica”, não citada
em momento algum no “Diário de uma expedição” ou registrada
na Caderneta de campo. Nesse momento, a única máquina foto-
gráfica que existia em Monte Santo era a de Flávio de Barros,
que, aliás, aproveitou para registrar a estada na cidade com vá-
rias fotos do arraial e das tropas. Datou como dos dias 9 e 10
de setembro uma única reportagem, e do dia 11, outra concisa
matéria de quatro parágrafos. As duas trazem brevíssimos co-
mentários sobre as dificuldades de abastecimento das tropas
na frente de batalha e três curtos parágrafos sobre a natureza
da região: o repórter estava sem notícias e ansioso para partir
rumo a Canudos.
Finalmente, no dia 13, às cinco e meia da manhã, juntamen-
te com a segunda brigada da divisão auxiliar formada por oito-
centos homens e comandada pelo coronel Sotero de Menezes,
Euclides da Cunha rumou para Canudos. No caminho, além das
anotações sobre a vegetação, desenhou vários croquis. No dia 16
chegou ao Alto da Favela às treze horas, e ao acampamento às
quatorze horas, 43 dias depois da partida do Rio de Janeiro. Hos-

30
O “Diário de uma expedição” e a construção de Os sertões

pedou-se na cabana do capitão Abílio de Noronha, seu amigo, e


estava tão ansioso que logo foi percorrer parte da frente de bata-
lha e jantou com o general Artur Oscar, privilégio de poucos jorna-
listas.24 Logo nas primeiras palavras descreveu o seu fascínio por
ter chegado a Canudos:

E vingando a última encosta divisamos subitamente, adiante,


o arraial imenso de Canudos. Refreei o cavalo e olhei em torno. É
extraordinário que os que aqui têm estado e escrito ou prestado
informações sobre esta campanha, nada tenham dito ainda acerca
de um terreno cuja disposição topográfica e constituição geológica
são simplesmente surpreendedoras.

Descreveu detalhadamente o arraial, ao menos o que era pos-


sível ver do Alto da Favela – suas casas, ruas, bairros, igrejas –,
por meio de um binóculo: é a melhor descrição jornalística do ar-
raial. Concluiu a matéria descrevendo como, nos combates de
18 de julho, um conselheirista atrás de um umbuzeiro, onde ti-
nha cavado uma trincheira de meio metro de profundidade, con-
seguiu atacar vários batalhões do exército e sair ileso. O jorna-
lista, acompanhado do seu amigo, o tenente Gustavo Guabiru,
fez questão de contar o número de cápsulas detonadas pelo
conselheirista: “361 tiros deu aquele ente fantástico e talvez per-
desse muito poucas balas”.25

24 Foi destinado a Euclides um ordenança, o sargento João Pais. É provável


que as amizades entre os oficiais mais próximos ao general Artur Oscar
tenha colaborado para esse tratamento, único entre os correspondentes em
Canudos.
25 É provável que Euclides tenha escrito esse primeiro artigo sobre Canudos
no dia 17, como informou na Caderneta de campo: “dia 17 ... escrevi para S.
Paulo” (Cunha, 1975, p.54). Chegou às quatorze horas em Canudos, en-
controu amigos e depois jantou com Artur Oscar, dessa forma, não teria
tido tempo para observar o arraial detalhadamente, como descreveu na re-
portagem, e ter escrito a matéria.

31
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

Ficou oito dias sem escrever uma nova reportagem, mas não
foi um tempo perdido.26 No dia 17, observou o acampamento e
conversou longamente com o general Artur Oscar, “cuja dedicação
e valor pela primeira vez observo”.27 Essa observação, anotada na
Caderneta, é muito importante, pois nas matérias escritas em Ca-
nudos vai, paulatinamente, alterando o julgamento que tinha do
general comandante da expedição, e desenhando um perfil distinto
daquele das reportagens escritas em Salvador, sob influência das
conversas que teve com o general Savaget e com o coronel Carlos
Teles. No dia 18, fez diversos croquis, copiou um esquema de
Canudos, caminhou pelas redondezas e foi até as linhas de com-
bate onde “alvejado barbaramente, voltei do meio do caminho”.
Conversou longamente de novo com o general Artur Oscar e che-
gou a participar do interrogatório de um conselheirista preso, o
que demonstrava boas relações não só com o comandante da ex-

26 As observações sobre as atividades de Euclides podem ser encontradas em


Cunha (1975, p.54-6).
27 Nesse momento, a imprensa tinha amenizado as críticas ao general Artur
Oscar, a exceção era o jornal monarquista O Comércio de São Paulo. Mas a
avaliação dos superiores do comandante da expedição, no final da campa-
nha, foi negativa. O ministro da Guerra, o general João Tomaz Cantuária,
que substituiu o marechal Bittencourt, assassinado em 5 de novembro de
1897, criticou duramente a estratégia de Artur Oscar nos combates de 27 e
28 de junho: “Superando as maiores dificuldades, a coluna comandada pelo
denodado Savaget, depois do heróico feito do Cocorobó, no dia e hora mar-
cada, se achava diante de Canudos ocupando posição dominante a cidadela
maldita; ao encetar, porém, a ação em obediência à ordem que recebeu do
general em chefe, teve de abandonar as vantagens da posição, para correr
em socorro da primeira coluna, que se achava em más condições, pela falta
de munição, para fazer frente ao inimigo, que se arrojava contra nossa força
com uma impetuosidade e valor dignos verdadeiramente de melhor causa”
(Relatório do ministro dos Negócios da Guerra, 1898, p.6). Da geração de Artur
Oscar foram promovidos, depois de outubro de 1897, vários militares a
general de divisão: Mallet, Leite de Castro, Savaget (que participou da
campanha, como vimos), Solon e Argolo. Somente em junho de 1901 é
que Artur Oscar foi promovido a general de divisão e designado para co-
mandar o sétimo distrito militar, em Mato Grosso. Morreu dois anos de-
pois, aos 53 anos.

32
O “Diário de uma expedição” e a construção de Os sertões

pedição, como também com a entourage do general. À noite, feriu-


se sozinho: “Dei de noite uma canelada horrível num toco, quase
desmaiei de dor”. Teve de ser carregado pelo sargento Pais até a
barraca do capitão Abílio, onde estava hospedado.
No dia 19, começou a transcrever o diário do alferes Praxe-
des, um dos ajudantes-de-ordens do general Artur Oscar.28 Con-
versou com o coronel Siqueira de Menezes e o tenente-coronel
Olímpio da Silveira, e chegou até a contar as casas de Canudos:
“tem mais de duas mil casas”. Visitou o general Barbosa e à noite
conversou longamente com o general Artur Oscar: era a terceira
conversa em três dias.
No dia 20, continuou buscando informações sobre a guerra,
conversou novamente com Siqueira de Menezes29 obtendo infor-
mações sobre o mundo sertanejo, terminou o esboço sobre Canu-
dos e recebeu uma cortesia especial do general Artur Oscar – de-
monstrando a boa relação existente entre ambos: o plano de
ataque a Canudos.30 No dia seguinte, pela manhã, esteve com o
tenente-coronel Tupi Caldas, à tarde, com o general Artur Oscar,
com quem jantou e “continuamos a palestra fora, sentados à porta
da barraca em grupo a que chegaram o Dr. Curio, Tupi, Guabiru
e outros”. Participou também de outro interrogatório, agora de “um
jaguncinho quase inanido vindo de Cocorobó”, mas que não foi ci-
tado nas reportagens posteriores enviados a O Estado de S. Paulo.
No dia 22, assistiu a dois duros combates e esteve preocu-
pado com o jaguncinho “que me foi dado pelo general” e que es-

28 É provável que o diário de Praxedes sejam as anotações existentes nas pági-


nas 124 a 143 da Caderneta de campo onde são indicados alguns aconteci-
mentos que envolveram a primeira coluna desde o dia 9 de junho até 18 de
setembro.
29 O tenente-coronel José de Siqueira de Menezes foi também correspondente
do jornal carioca O País. Suas reportagens estão transcritas no livro já citado
de Walnice Nogueira Galvão (1994, p.457-95).
30 O plano foi enviado por telegrama e transcrito na edição de 15 de outubro
de O Estado de S. Paulo.

33
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

tava doente.31 No dia 23, parece, passou boa parte do dia no hos-
pital com o Dr. Curió.
Finalmente, no dia 24, depois de oito dias, voltou a escrever
uma reportagem, a segunda realizada em Canudos. O centro da
reportagem foi o interrogatório dos prisioneiros. O primeiro, que
pouco disse, estava ferido: “o estilhaço de granada transformou-
lhe o olho esquerdo numa chaga hedionda, de onde goteja um
sangue enegrecido”. O segundo interrogatório foi realizado com
duas prisioneiras: mãe e filha. A mãe – “esquelética e esquálida”
– nada informou. Para os interrogadores, a conselheirista, por
ter dificuldades em responder às perguntas, era uma incapaz,
quando deveria estar em estado de choque, pois seu marido, como
informou a reportagem, tinha morrido havia meia hora.32 O pró-
ximo foi um conselheirista ferido que não tinha nem condições
de falar. Chegou outro prisioneiro gravemente ferido: “é um cadá-
ver claudicante”, que vive “há dois meses, numa inanição lenta,
com dois furos no ventre, num extravasamento constante de in-
testinos”. Não foi possível nem sequer ouvir sua voz. Em seguida
chegou um bebê de seis meses. Logo após, mais uma senhora:
“uma velha com feição típica de raposa assustada”. O desfile da
barbárie republicana, tudo indica, não alterou o ânimo do coman-
dante da expedição e do jornalista fluminense, tanto que, como
anotou na Caderneta de campo, “o General Artur Oscar apostou
comigo dez caixas de charutos em como Canudos se renderá
no dia 27”.
Dois dias depois escreveu nova reportagem, logo pela manhã.
O centro foi novamente os interrogatórios, especialmente de uma

31 O menino de sete anos foi trazido para São Paulo e adotado pelo educador
Gabriel Prestes. Recebeu o nome de Ludgero Prestes. Formou-se professor
primário em 1908.
32 Na reportagem, o marido dessa senhora teria matado o alferes Pedro Simões
e pouco antes de expirar teria dito: “Estou contente! Ao menos matei um!
Viva o Bom Jesus!” Na anotação da Caderneta de campo, a frase é um pouco
distinta: “Ao menos matei um! Morro contente!” (Cunha, 1975, p.56).

34
O “Diário de uma expedição” e a construção de Os sertões

mulher – que, pelas respostas, foi a mesma descrita na reporta-


gem anterior, pois utilizou-se de expressões semelhantes. Na
sucessão de perguntas e respostas, o que chamou a atenção do
repórter foram as expressões usadas pela prisioneira, “os eufe-
mismos interessantes”. O registro do drama é de absoluta dis-
tância: “Meu marido foi morto por um lote de soldados quando
saía; o mesmo tiro quebrou o braço de meu filho de colo... Fiquei
estalada, não vi nada... Este sangue aqui na minha manga é de
meu filho, o que eu queria era ficar lá também morta...”. Con-
cluiu a reportagem incorporando uma informação fantasiosa,
muito do agrado do general Artur Oscar, pois justificava a
longevidade da campanha: “Não é possível que a munição de
guerra daquela gente seja só devida à deixada pelas expedições
anteriores”.33
No dia 27, escreveu uma reportagem como uma espécie de
diário: a primeira parte, logo pela manhã, e a segunda parte, às
nove horas da noite. É provável que esteve com problemas de saú-
de, pois concluiu a reportagem no hospital militar. Pela primeira
vez, descreveu o martírio dos conselheiristas, “gente indomável”,
cercados há três meses, quase sem comida e com enorme difi-
culdade de obter água. No texto, desarticulado, ao contrário das
reportagens anteriores, acabou reforçando mais uma vez os argu-
mentos de Artur Oscar de que os conselheiristas estavam sendo
armados pelos inimigos da República. No dia seguinte, relatou
suas conversas com Siqueira de Menezes e transcreveu suas ano-
tações sobre a temperatura da região.34 O texto, também frag-
mentado, levantou uma pergunta interessante: “E que fazer se o
trágico evangelizador se rendesse confiando na generosidade do
vencedor?”. Para sorte da República, tal não ocorreu...

33 Nas reportagens, as duas igrejas, especialmente a igreja nova, são sempre


retratadas com tons fantasmagóricos. Um exemplo: na matéria do dia 26 de
setembro, “a igreja sinistra, avulta nas trevas, dominadora, formidável”.
34 As anotações estão na Caderneta de campo (Cunha, 1975, p.57 e 77- 80).

35
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

Na matéria do dia 29, Euclides fez o que chamou de “um


passeio dentro de Canudos!”. Acompanhou no “passeio” os gene-
rais Artur Oscar e Carlos Eugênio e outros oficiais. Na Caderneta
de campo, anotou: “Não posso definir a comoção ao entrar no ar-
raial”. Descreveu detalhadamente a desorganização no arruamen-
to das casas, o interior das habitações, sua construção – que as
fotos de Flávio de Barros comprovam – e o interior das habitações
e sua mobília: “um banco grande e grosseiro (uma tábua sobre
quatro pés não torneados); dois ou três banquinhos; redes de
cruá, dois ou três baús de cedro de três palmos por dois. É toda
a mobília. Não há camas; não há mesas, de um modo geral”. Deve
ter sido um rápido passeio, que se iniciou às sete e meia da ma-
nhã e, pelo ritmo da narração, não deve ter durado mais de uma
hora. Foi a segunda e última vez que Euclides viu de perto uma
pequena parte da cidade erguida pelos conselheiristas.
Em 1° de outubro enviou a maior – e que também foi a últi-
ma – reportagem escrita em Canudos. A matéria é uma espécie de
despedida. Iniciou-se com uma declaração de amor à natureza da
região: “Não há manhãs que se comparem às de Canudos; nem
as manhãs sul-mineiras, nem as manhãs douradas do planalto
central de São Paulo se equiparam às que aqui se expandem num
firmamento puríssimo, com irradiações fantásticas de apoteose”.
Em seguida, passou a narrar o combate – o mais violento da guer-
ra – da sede da comissão de engenharia, de onde estava assistindo.
Depois de quase seis horas de batalha, à uma da tarde, anotou:

contemplei o quadro emocionante e extraordinário, compreendi o


gênio sombrio e prodigioso de Dante. Porque há uma coisa que só
ele soube definir e que eu vi naquela sanga, estreitíssima, abafada
e ardente, mais lúgubre que o mais lúgubre vale do inferno: a blas-
fêmia orvalhada de lágrimas rugindo nas bocas simultaneamente
com os gemidos da dor e os soluços extremos da morte.

O heroísmo da resistência conselheirista acabou merecendo


elogio do repórter:

36
O “Diário de uma expedição” e a construção de Os sertões

Sejamos justos – há alguma coisa de grande e solene nessa


coragem estóica e incoercível, no heroísmo soberano e forte dos
nossos rudes patrícios transviados e cada vez mais acredito que a
mais bela vitória, a conquista real consistirá no incorporá-los ama-
nhã, em breve, definitivamente, à nossa existência política.35

Depois dessa reportagem, até a queda do arraial – em 5 de


outubro às dezesseis horas –, não temos notícias confiáveis de
onde estava o repórter de O Estado de S. Paulo, mas, com certeza,
não estava em Canudos. Não narrou a rendição de Antônio
Beatinho, em 2 de outubro, que foi relatada por todos os corres-
pondentes que estavam em Canudos, nem os combates de 3 e 4
de outubro, e, muito menos, a queda do arraial. No jornal só en-
contramos telegramas de Euclides, desconexos, em absoluto con-
fronto com o que estava ocorrendo na frente de batalha e que
era noticiado pelos outros jornais.36 Tudo indica que teve de se
retirar para Monte Santo – onde estava o ministro da Guerra –, e
dali para Salvador. Estava doente desde quando partiu de São
Paulo, em 31 de julho.37 O noticiário de O Estado de S. Paulo acabou
sendo ocupado pela transcrição de jornais de outros estados e
da capital federal. Sabe-se que em 12 de outubro Euclides estava
em Serrinha, dirigindo-se para Salvador. Partiu de Salvador para
a capital federal no dia 16, no vapor Brasil; no dia anterior havia
sido exonerado como adido ao Estado-Maior do marechal
Bittencourt. Em 21 de outubro chegou a São Paulo, logo pela
manhã, vindo de trem, do Rio de Janeiro. Cinco dias depois, escre-

35 Da descrição pormenorizada do combate, pouco, ou quase nada, foi aprovei-


tado em Os sertões, como pode ser observado em Cunha (1985, p.554-63).
36 O telegrama datado de 7 de outubro, emitido de Monte Santo, é um exem-
plo. Euclides informava que o cerco final do arraial estava próximo do fim,
isso quando o arraial já havia caído há dois dias.
37 Em carta de 27 de outubro de 1897 a Reinaldo Porchat, escreveu: “Saí doen-
te – e ainda estou; ainda tenho restos da maldita febre” (Galvão & Galotti,
1997, p.110).

37
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

veu o último artigo sobre a guerra louvando o batalhão de São


Paulo, que teria seguido o exemplo histórico dos bandeirantes.
Sobre o destino dos jaguncinhos e a degola dos prisioneiros,
nenhuma palavra, e isso quando esse tema era discutido pela im-
prensa carioca e baiana. Mesmo na capital paulista, O Comércio
de São Paulo, em editorial do dia 26 de outubro – portanto, no dia
seguinte à publicação do artigo de Euclides –, denunciou o massa-
cre dos conselheiristas: o povo “saúda aqueles que souberam hon-
rar os nomes de Caxias e Herval, mas repele os carrascos frios
da degola, os bárbaros devastadores a querosene e dinamite”. No
dia 30, O Estado de S. Paulo noticiou que “a conselho de médicos,
o doutor Euclides da Cunha, nosso distinto colaborador, está nu-
ma fazenda do interior convalescendo da febre que adquiriu em
Canudos”. No dia 12 de dezembro, o mesmo jornal informou que
Euclides havia obtido, da Secretaria de Agricultura, dois meses
de licença para tratar de sua saúde.38
O “Diário de uma expedição” e a viagem para Canudos foram
essenciais para a redação de Os sertões, mas o que chama a aten-
ção são as modificações na abordagem do objeto e na mudança
de julgamento de personagens, como, entre outros, no caso do
general Artur Oscar, elogiado nas reportagens e criticado severa-
mente em Os sertões, ou a omissão nas reportagens da degola e a
citação da gravata vermelha diversas vezes no livro vingador,
como o autor chamou o seu livro máximo. Por sua vez, as críti-
cas à República, que quase não aparecem nas reportagens – isso
quando Euclides, nas cartas, manifestava-se descrente do novo

38 Dez dias depois, um editorial de O Comércio de São Paulo descreveu a situa-


ção dos jaguncinhos: “Lá ficaram espalhados, servindo como escravos a for-
necedores enricados com o dinheiro do Tesouro brasileiro, dezenas de
pobrezinhos, cujos pais foram rebentados a dinamite pelo general Artur
Oscar e cujas irmãs foram desvirginadas por soldados bestiais ... Eis a no-
breza, eis a generosidade, eis o amor da República”. No mesmo número foi
iniciada a transcrição do relatório do comitê patriótico, que continuou nos
dias 23, 24 e 25 de dezembro.

38
O “Diário de uma expedição” e a construção de Os sertões

regime –, estão presentes em diversas passagens de Os sertões.


Também não deve ser esquecido que nas reportagens raramente
se analisou o fenômeno Canudos pelo viés racial, enquanto n’Os
sertões esse será um tema dominante. Deve ser lembrado que, dos
conselheiristas entrevistados por Euclides, nenhum fez referên-
cia ao sebastianismo, no sentido clássico que a expressão acabou
adquirindo no Brasil, ou seja, na esperança do regresso do rei D.
Sebastião para libertar os pobres da opressão, ao messianismo
de Antônio Conselheiro – até pelo contrário, como vimos, ou ao
milenarismo. O que o próprio repórter apresentou foi uma luta
de resistência, como poucas na história do Brasil, em defesa de
uma comunidade fundada com base na tradição cristã e sertaneja.

Referências bibliográficas

CUNHA, E. da. Canudos e inéditos. Org. Olympio de Souza Andrade.


São Paulo: Melhoramentos, 1967.
______. Caderneta de campo. São Paulo, Brasília: Cultrix, MEC, 1975.
______. Os sertões. São Paulo: Brasiliense, Secretaria de Estado da Cul-
tura, 1985.
GALVÃO, W. N., GALOTTI, O. Correspondência de Euclides da Cunha. São
Paulo: Edusp, 1997.
______. No calor da hora. A guerra de Canudos nos jornais, 4ª expedi-
ção. 3.ed. São Paulo: Ática, 1994.
VILLA, M. A. Canudos, o povo da terra. São Paulo: Ática, 1995.
SAMPAIO, C. N. (Org.) Canudos: cartas para o barão. São Paulo: Edusp,
Imprensa Oficial do Estado, 1999.
SINZIG, P. Reminiscências de um frade. Petrópolis: Vozes, 1925.

39
Trauma e história na
composição de Os sertões

Edgar Salvadori de Decca1


Maria Lucia Abaurre Gnerre2

Página vazia

Quem volta da região assustadora


De onde eu venho, revendo, inda na mente,
Muitas cenas do drama comovente
Da guerra despiedada e aterradora

Certo não pode ter uma sonora


Estrofe ou canto ou ditirambo ardente
Que possa figurar dignamente
Em vosso álbum gentil, minha senhora

1 Professor titular do Departamento de História – IFCH – Unicamp – SP.


2 Doutoranda do Programa de História Social – IFCH – Unicamp – SP.

41
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

E quando, com fidalga gentileza


Cedeste-me esta página, a nobreza
De nossa alma iludiu-nos, não previstes

Que quem mais tarde esta folha lesse


Perguntaria: “Que autor é esse
De uns versos tão mal feitos e tristes?”
(1897)

Em uma única página, Euclides resume todo o seu estado de


espírito depois da experiência vivida em Canudos. Sintomatica-
mente, uma página vazia, sem escrita, sem começo e sem fim.
Sem história e sem enredo. Justamente aquele homem que ha-
via saído para a Bahia com um enredo pronto para dar sentido à
revolta de Antônio Conselheiro. Tratava-se afinal da Vendéia bra-
sileira, que a exemplo da francesa representava mais um momen-
to da reação monarquista às conquistas do republicanismo. Para
um homem que de antemão sabia tudo sobre aquele bando de
revoltosos, o que lhe teria acontecido a ponto de ficar sem pala-
vras? Euclides ofereceu-se para ser correspondente do jornal
O Estado de S. Paulo nessa guerra que a República recém-nascida
no Brasil travava com fanáticos religiosos e monarquistas. Logo
antes de sua partida para a cena da luta, ele escreve dois artigos
muito eloqüentes intitulados “A nossa Vendéia”, e neles não deixa
nenhuma lacuna quanto ao julgamento político que a República
deveria fazer aos revoltosos. Avalia as dificuldades a serem en-
frentadas pelo exército republicano, mas não deixa de se manter
otimista quanto ao sucesso da operação militar contra Canudos:

A marcha do exército republicano opera-se nesse labirinto de


montanhas. Não é difícil aquilatar-se a imensa série de obstáculos
que a perturba ...Vestido de couro curtido, das alparcatas sólidas
ao desgracioso chapéu de abas largas e afeiçoado aos arriscados
lances da vida pastoril, o jagunço, traiçoeiro e ousado, rompe-os,

42
Trauma e história na composição de Os sertões

atravessa-os, entretanto, em todos os sentidos, facilmente, zom-


bando dos espinhos que não lhe rasgam sequer a vestimenta rústica,
vingando célere como um acrobata as mais altas árvores, des-
tramando, destro, o emaranhado dos cipoais. Não há como perse-
gui-lo no seio de uma natureza que o criou à sua imagem – bárbaro,
impetuoso e abrupto. Caindo inopinadamente numa emboscada,
ao atravessarem uma garganta estreita ou um capão de mato, os
batalhões sentem a morte rarear-lhes as fileiras e não vêem o inimi-
go – fulminando-os do recesso clãs brenhas ou abrigados pelos
imensos blocos de granito que dão a certos trechos daquelas para-
gens uma feição pitoresca e bizarra, amontoados no alto dos cerros
alcantilados, como formas evanescentes de antigas fortalezas
derruídas... Compreendem-se as dificuldades da luta nesse solo
impraticável quase. Mas, amanhã, quando forem desbaratadas as
hostes fanáticas do Conselheiro e descer a primitiva quietude sobre
os sertões baianos, ninguém conseguirá perceber, talvez, através
das matas impenetráveis, coleando pelo fundo dos vales, derivando
pelas escarpas íngremes das serras, os trilhos, as veredas estreitas
por onde passam, nesta hora, admiráveis de bravura e abnegação –
os soldados da República. (O Estado de S. Paulo, 14.3.1897)

As escaramuças preparadas pelo jagunço ao exército nacional


em seu ambiente natural do sertão tem o seu antecendente lite-
rário em páginas lidas anteriormente pelo próprio Euclides da
Cunha. A prefiguração do enredo narrado por Euclides é revela-
dora de sua versão dos acontecimentos ocorridos no interior da
Bahia. Como adepto apaixonado da Revolução Francesa, Euclides
prefigurou Canudos por meio do romance histórico de Victor
Hugo, Quatre-vingt-treize [Noventa e três], onde o autor francês nar-
ra a revolta da Vendéia contra a República francesa. As mesmas
insinuações de Hugo quanto ao revoltoso chuan da Normandia
que vive em perfeita simbiose com as florestas, encontramos na
descrição que Euclides faz do jagunço em seu hábitat, o sertão.
É bom, contudo, lembrarmos também que tais cenas descri-
tas por Euclides têm as suas semelhanças com os relatos de via-
jantes por terras desconhecidas tão comuns no período do impe-

43
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

rialismo, mas, principalmente, têm a evocação da cena primitiva


das origens do homem, em seu estado selvagem e natural, ainda
em estado pré-civilizacional, num mundo sem Estado, guiado em
uma longa travessia por um líder religioso das hordas que profere
palavras de forte apelo emocional. Mas não queremos nos anteci-
par em nossa análise(!) e, portanto, voltemos ao ponto onde Eu-
clides declama a sua incapacidade de representação do trauma
por ele vivido.
Ao voltar da guerra distante, entretanto, Euclides declara-se
incapaz de narrar e representar aquilo que tinha vivido. Encena-
ção traumática de uma experiência vivida e que já teria se repetido
outras vezes na história brasileira. Essa atitude de Euclides põe
em relevo aquilo que fica no espaço lacunar da escrita, carrega
de significados os silêncios e prepara o momento de uma escrita
que se propõe reveladora desse trauma e dessa ferida identitária.
Por essa razão, essa primeira página se oferece vazia, em branco,
para que seja possível a investigação do processo traumático da
identidade de uma nação. A incapacidade de representação fica
muito bem encenada na poesia de Euclides quando ele próprio
diz que vem “revendo, inda na mente, muitas cenas do drama
comovente, da guerra despiedada e aterradora”. O passado aparece
como sonho ou pesadelo e paralisa as possibilidades do presente.
Investigá-lo em suas entranhas e em seus mais profundos signi-
ficados parece ter sido a mais bem elaborada das representações
literárias de sua obra Os sertões. Não deixa de ser intrigante esta
representação psicanalítica da obra euclidiana. A cena é perfeita-
mente coerente e não deixa margem a dúvidas. Num primeiro
momento, o trauma e a ausência de representação estão muito
bem encenados na poesia “Página Vazia”. Depois dessa revelação
traumática, o segundo momento de Euclides revelar-se-ia no tra-
balho psicanalítico de dar expressão ao trauma nacional, o longo
trabalho de confecção da obra monumental, Os sertões. Terceiro
e último momento, a identificação do trauma, mas nem por isso
a sua superação, porque ele se mostra não como trauma pessoal,

44
Trauma e história na composição de Os sertões

mas como trauma da nacionalidade. Não é por acaso que a obra


termina se defrontando com esse dilema nascido de um trauma
original: “É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras
e crimes da nacionalidade...” (Cunha, 1995, p.515).
Muito apropriado aos enredos literários do início do século
XX, a encenação psicanalítica é extremamente elaborada na obra
de Euclides da Cunha. A própria divisão do livro em suas três
partes pode ser traduzida como a busca da cena original, no senti-
do freudiano da investigação sobre as causas das experiências
traumáticas. A trifuncionalidade do enredo de Os sertões, com a
terra, o homem e a luta, não deixa se referir à busca de um esta-
do primitivo, onde a existência humana está imersa na natureza,
predominando os aspectos da horda humana em luta permanente
e fratricida. No entanto, o texto de maior impacto a esse respeito
ainda não existia à época da escrita euclidiana de Os sertões. Trata-
se do livro Totem e tabu, de Sigmund Freud, publicado em 1912,
em momento posterior à obra euclidiana. Porém, haveria ainda
a possibilidade de Euclides ter se revelado um leitor de Nietzsche,
principalmente do texto Assim falava Zaratustra? A terra, o ho-
mem vivendo em hordas, a luta desses homens e a figura de Za-
ratustra, líder espiritual da horda primitiva, ecoam de modo elo-
qüente nas páginas de Os sertões. Entretanto, apesar de tantas
evidências, não há menção do filósofo alemão no texto de Os ser-
tões. As referências ao messianismo das hordas primitivas inspi-
ram-se, especialmente, no famoso texto de Renan, Marco Aurélio
e o fim do mundo antigo, além, é claro, das alusões bíblicas, como a
de Moisés guiando o seu povo através do deserto.
Não é, contudo, apenas com a ausência de Nietzsche que fica-
mos intrigados ao nos debruçarmos sobre Os sertões. A problemá-
tica encenação do trauma experimentado por Euclides também
nos remete ao textos de Freud, escritos em épocas posteriores à
obra de Euclides. Não há também nenhuma menção a Freud no
que se refere ao trauma como experiências-limite, mas não é de
estranhar que a obra termine, justamente, com uma citação do

45
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

psiquiatra inglês Henry Maudsley, que escreveu textos famosos


sobre a loucura e o crime. Essa relação, aliás, é mais do que pre-
sente na obra de Euclides e em inúmeras passagens ela é men-
cionada. No entanto, mais enigmática é a composição da cena trau-
mática por ele vivida em Canudos como a cena originária de hordas
primitivas, que compõe o famoso texto de Freud Totem e tabu.
O presente ensaio se propõe, portanto, a investigar os possí-
veis recursos de representação do trauma utilizados por Euclides
da Cunha, partindo desse poema “Página vazia” como elemento
fundador da narrativa para a elaboração posterior da narrativa
de Os sertões. Trata-se de uma página impossível de ser transfor-
mada em verso, mas que vem, pouco tempo depois, traduzida
em prosa pelo mesmo autor. Terá sido na narrativa de Os sertões
que o mistério do drama inenarrável é finalmente desvelado?
Poucos anos depois, as cenas que o autor declara impossíveis de
ser transformadas em estrofes sonoras e indignas de constar em
nobres álbuns por serem demasiado tristes vêm transformadas
em uma das obras mais importantes da literatura brasileira, sem
contudo esclarecer o caráter traumático do desfecho final da luta.
Entretanto, a insinuação de uma página em branco ainda perma-
neceria enigmática no desfecho de Os sertões:

E de que modo comentaríamos, com a só fragilidade da pala-


vra humana, o fato singular de não aparecerem mais, desde a ma-
nhã de 3, os prisioneiros válidos colhidos na véspera, e entre eles
aquele Antonio Beatinho, que se nos entregara, confiante – e a
quem devemos preciosos esclarecimentos sobre esta fase obscura
da nossa história? (Cunha, 1998, p.497)

Mas, afinal, sendo seu drama central inenarrável, página em


branco, com que ferramentas imagéticas ele vai sendo trabalha-
do, sugerido, dentro da tensão crescente do enredo de Os sertões?
Buscaremos a partir do cotejo com Assim falava Zaratustra, outro
texto de imenso poder imagético e metafórico, remontar essa ten-
são crescente. O que nos permite fazer tal cotejo é a constatação

46
Trauma e história na composição de Os sertões

de que ambas as obras fazem parte de um mesmo universo de


representação de determinados temas, que emerge no fim do sé-
culo XIX. Pode-se dizer que emerge uma cena de representação
na qual a história é fundamentalmente caracterizada como trau-
ma e repetição. São, portanto, obras que fazem parte de uma mes-
ma episteme. Não temos, assim, uma relação entre os textos de
prefiguração literária, mas tal relação também não é excluída, pois
certamente Euclides da Cunha foi um leitor de Nietzsche.
Interessa-nos investigar como, a partir da descrição das perso-
nagens, o texto euclidiano começa a margear o drama, que no
entanto não é sem precedentes, mas tem sua genealogia ligada à
linhagem dos grandes dramas humanos. Vamos avaliar a traje-
tória de Os sertões centrando-nos em descrições e metáforas rela-
cionadas à sua personagem central – Antônio Conselheiro – e
buscando, no cotejo com o enredo nietzschiano, interpretações
possíveis para preencher a página em branco deixada pelo autor.
Nossa hipótese, na verdade, é de que nada foi deixado em branco
e de que se trata, talvez, de um palco em que o vazio faz parte do
jogo de cena e só vem para realçar o espetáculo.
Na lógica psicanalítica, o indizível é um elemento fundamen-
tal do repertório de reações aos grandes traumas, e é justamente
essa inefabilidade que transforma o trauma em repetição; uma
repetição que não se dá necessariamente por meio da re-experi-
mentação da situação traumática original, mas sim da sensação
traumática original. Se a página foi deixada em branco, quis Eu-
clides da Cunha justamente passar ao leitor essa sensorialidade
traumática que teria sido experimentada no momento mais dra-
mático de Canudos. Por isso falamos em jogo de cena.
Mas um autor com tamanhos recursos imagéticos e descriti-
vos obviamente não se contentaria apenas com o inefável como
recurso para potencializar seu enredo. Os sertões é uma obra que
traz, em suas páginas cheias de voltas e arabescos descritivos,
importantes indícios quanto ao caráter do trauma que Euclides
margeia. É nisso que pretendemos chegar: se a página fora de

47
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

início deixada em branco, temos já de partida uma pista de que


o enredo que quer o autor nos passar é repetição de traumas pas-
sados, e justamente por isso é capaz de ser transmitido pelo silên-
cio. O inefável diz respeito basicamente à re-experimentação, e
somente nesse contexto ele faria sentido. A investida inicial nessa
característica pressupõe justamente que faça parte do repertó-
rio de traumas conhecidos e experimentados pela condição huma-
na, aquele que agora nos dedicaremos a desvelar: o trauma de
Canudos.
Euclides da Cunha utiliza-se fundamentalmente, em suas
descrições de Antônio Conselheiro e seu povo, de dualidades con-
traditórias, metáforas e metonímias. Este parece ser um recurso
importante para, dentro da obra, expressar características supos-
tamente indescritíveis das personagens (consideraremos aqui “o
sertanejo” como uma personagem). Boa parte do repertório
imagético de Os sertões parece ser composta de forma a consti-
tuir uma descrição do indescritível. Conselheiro aparece a cada
momento revestido de uma metáfora ainda mais improvável, e
as comparações tomam rumos cada vez mais profundos em tem-
poralidade: “A exemplo de seus comparsas do passado, Antônio
Conselheiro era um pietista ansiando pelo reino de Deus, prome-
tido, delongado sempre e ao cabo de todo esquecido pela Igreja
ortodoxa do século II” (Cunha, 1998, p.150).
À medida que o palco da tragédia vai sendo montado, as per-
sonagens retrocedem no tempo, tornam-se primordiais, e então
retornam de novo ao presente, para a luta. Mas seu presente está
situado sempre mil anos3 antes da formação das repúblicas: “o
jagunço é tão inapto para aprender a forma republicana como a
monárquico constitucional ... Ambas lhe são abstrações in-

3 Ainda que o próprio autor descreva a separação entre indivíduos do litoral e


do Sertão como sendo de “três séculos” (Cunha, 1998, p175), podemos
pensar a partir das metáforas e comparações do próprio Euclides nesta dis-
tância milenar...

48
Trauma e história na composição de Os sertões

cessíveis. É espontaneamente adversário de ambas. Está na fase


evolutiva em que só é conceptível o império de um chefe sacerdo-
tal ou guerreiro” (Cunha, 1998, p.174). Talvez por isso a obra
adquira um caráter imaginário, pois parece descrever uma bata-
lha que nunca houve, um encontro improvável entre humanos
primordiais, vivendo da terra, e humanos em seus mais avança-
dos estágios de desenvolvimento. É mais um recurso de cena, e
este também tem sua relação com um enredo que funciona como
repetição traumática. Como o fluxo de sensações díspares que
cada ser humano tem dentro de si, remetendo ao seu id, ao seu
ego e ao superego, é em torno de uma batalha entre camadas de
experiências humanas, muitas delas traumáticas, que Euclides
monta boa parte de seu repertório de descrições.
O autor declara que Os sertões ainda não teve seu historiador,
e prontamente ele se dispõe a sê-lo. Mas a exemplo da Amazô-
nia, narrada alguns anos depois como “Terra sem História” (cf.
Cunha, 1994), o que vemos nesse texto pouco tem a ver com uma
tentativa de historicizar o sertão. A não ser que entendamos a
história como enredo que se repete, como passado contínuo do
qual jamais nos livramos. Se assim for, a concepção euclidiana
de história – para utilizarmo-nos de uma imagem de acordo com
as do autor – funciona como uma maldição, que retorna de tem-
pos em tempos: “Porque essas psicoses epidêmicas despontam
em todos os tempos e em todos os lugares como anacronismos
palmares, contrastes inevitáveis na evolução desigual dos po-
vos, patentes sobretudo quando um largo movimento civiliza-
dor lhes impele vigorosamente às camadas superiores” (Cunha,
1998, p.174).
A psicose que retorna, é assim que Euclides da Cunha reco-
nhece o movimento de Canudos. O eterno retorno é o modo de
funcionamento da história nessa narrativa, e também nos princi-
pais textos de Nietzsche. A República, por sua vez, é a “lei do
cão”, imagem emprestada pelo autor de versos populares citados

49
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

na página seguinte à passagem anterior. Um jogo vai sendo mon-


tado entre o eterno retorno de forças humanas caladas pela civili-
zação e a eterna permanência sobre a terra das forças que calam,
corporificadas aqui na “lei do cão”. O autor empresta dos versos
populares imagens poderosas para sua escrita por enigmas, mito-
lógica. Esses mesmos versos citam também uma outra persona-
gem cujo retorno é sempre esperado: D. Sebastião. A linguagem
críptica e oracular dos versos populares emprestados por Euclides
da Cunha consegue alcançar uma dimensão descritiva do que foi
o confronto entre Canudos e a República, que o próprio autor
com sua escrita “civilizada” é incapaz de alcançar.
Também descrita por enigmas e falando por meio de enig-
mas, Zaratustra, a personagem nietzschiana, traz em suas pala-
vras uma série de mitologias e arquétipos a serem decifrados. É
uma obra oracular, cuja personagem central é representada pelo
homem que adquire sua sabedoria por meio da experiência de
dez anos vividos na montanha, e para a qual parece-nos profícuo
o cotejo com Os sertões, pois Assim falava Zaratustra (Nietzsche,
2000) é também um livro que margeia o inefável, “um livro para
todos e para ninguém”4 . Essa é a dicotomia central da obra, que
nos diz justamente que cabe ao leitor dar o pulo da compreen-
são: a partir de sua experiência ele pode ou não ser capaz de com-
preender do que trata o livro. E é novamente a experiência do
inefável que pode, aqui, nos fornecer a chave. No caso de Assim
falava Zaratustra, esse inefável margeia a genealogia da tragédia,
do trauma, e recorre ainda ao seu eterno retorno. A tragédia aqui
diz respeito à própria trajetória humana, ao nascimento do ho-
mem que estremece de medo diante de suas contradições primor-
diais e que cria, assim, todo um aparato conceitual corporificado
em Deus, para negar sua condição de ser que é capaz de se dis-
sociar do resto do mundo. É do medo da sua própria existência

4 Obra escrita e publicada entre 1883-1891, portanto antecedendo em mais


de dez anos a produção literária de Euclides da Cunha.

50
Trauma e história na composição de Os sertões

que nasce o deus que castiga, que determina o bem e o mal e,


mais tarde, o ideal asceta, desmembrado pelo próprio autor na
Genealogia da moral. Em oposição a essa resignação determinada
aos homens, emerge a vontade de poder, o caminho para o super-
homem, que surgirá “no tempo que o homem for capaz de gerar
uma estrela dançante”. Esse caminho é trilhado na lógica de Za-
ratustra quando as idéias passam a ser atos, quando seu isola-
mento na montanha lhe fornece a experiência.
Zaratustra desce da montanha exatamente no momento em
que deseja anunciar isso aos homens da praça pública: o cami-
nho do super-humano. Mas a multidão da cidade obviamente não
tem ouvidos preparados para sua proposta. As suas palavras são
de uma ineficácia gritante, e a personagem nietzschiana beira o
ridículo. Sua companhia em seu caminho de volta à floresta passa
a ser o cadáver de um saltimbanco caído de uma corda-bamba
estirada sobre a praça da cidade. Com o cadáver, a personagem
conversa até o anoitecer... Nessas primeiras páginas da obra, ve-
mos a imagem de Zaratustra aproximar-se de um profeta bufo.
Descrição muito semelhante àquela que nos dá Euclides de
Antônio Conselheiro ao falar em praça pública:

Era truanesco e pavoroso... Imagine-se um bufão arrebatado


pela visão do apocalipse ... Ninguém ousava contemplá-lo. A multi-
dão sucumbida abaixava, por sua vez as vistas, fascinada por aquela
insânia formidável ... E o grande desventurado realizava, nesta oca-
sião, seu único milagre: não se tornar ridículo... (Cunha, 1998, p.147)

A grande diferença diz respeito à reação dos ouvintes, e isso


se compreende no contexto das obras: se Zaratustra fala em meio
ao povo de uma cidade situada no continente europeu, Conselheiro
fala em meio ao sertão, e esse é o detalhe fundamental. Pois, no
sertão, a verdade e a razão não valem como leis universais. A des-
crição que Euclides da Cunha irá elaborar do sertanejo é crucial
para a compreensão desse eco das palavras de Conselheiro.

51
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

O homem d’Os sertões é o homem que vive da terra, que não


está imerso em todo o arcabouço de imagens criadas pela civili-
zação: “o homem d’Os sertões – pelo que esboçamos – mais do
que qualquer outro está em função imediata da terra. É uma variá-
vel dependente no jogar dos elementos” (Cunha, 1998, p.126).
A essa passagem segue-se um desfile de dualidades referentes
ao sertanejo: a exaltação impulsiva e a apatia enervadora, indife-
rença fatalista e exaltação religiosa. Essas dualidades parecem
decorrer sempre da condição dual do homem perante a terra,
como nos é dado no início do parágrafo. Ao mesmo tempo que
ele está em função imediata dela, é ele também o único ser ca-
paz de utilizar-se da natureza agreste a seu favor, numa relação
simultânea de dependência e domínio. E o sertanejo não questio-
na nem teme a contradição. Pelo contrário, numa relação de pa-
limpsesto, ele escreve sobre os ideais católicos tradicionais a sua
lógica ditada pelo chão. O catolicismo lhe serve como referência
discursiva, mas não que lhe seja a Lei. Pois, como sabemos, o
jargão do sertão é a terra sem Lei.
O sertão começa onde o Estado termina. Depois de Euclides
da Cunha, tantos historiadores brasileiros se apaixonam por essa
característica sertaneja tão presente nessa obra.5 Essa é também
uma característica da terra mítica anunciada por Zaratustra, a
terra onde há espaço para o homem florescer:

Ainda existe uma vida livre para as grandes almas. Na verdade,


quando se possui pouco, tanto menos se é possuído: abençoada seja
a pobreza modesta! Onde acaba o Estado começa o homem que não
é supérfluo: onde acaba o Estado começa o canto da necessidade,
única e insubstituível melodia. Onde acaba o Estado – olhai para lá
meus irmãos! Não distinguis entre o arco-íris e as pontes que levam
ao super-humano? Assim falava Zaratustra. (Nietzsche, 2000, p.67)

5 Caio Prado Jr. (1999, p.113-4), utiliza-se em várias passagens dessa imagem
do sertanejo: “O Sertão oferece a liberdade, o afastamento de uma autoridade
incômoda e pesada. Aí a lei é a do mais forte, do mais capaz, e não da classe
mais favorecida”.

52
Trauma e história na composição de Os sertões

Diferentemente dos autores anarquistas e comunistas, que


publicam grande volume de obras em fins do século XIX, a pro-
posta de Zaratustra nada tem a ver com o fim do Estado, ou a
superação deste. Refere-se a uma conduta individual, ao refúgio
nos meandros da terra, nas camadas incivilizadas. É uma proposta
imediata de ação a ser tomada, uma proposta que tanto fascina
outros escritores europeus como o próprio Joseph Conrad, cuja
personagem, no coração da África, vive também sua experiência
do inefável. Mas os seres realmente capazes de viver absoluta-
mente isentos de supérfluos, no aspro, este Euclides os encontra
nos arredores de Canudos. E ninguém os encontra tão profunda-
mente como ele. Pois a identificação do autor brasileiro com o
sertanejo é muito mais profunda do que a do europeu com o afri-
cano, por exemplo (ainda que o horror de Marlow nas páginas
finais de o Coração das trevas se refira talvez ao sentimento de
identidade, que decorre justamente do fato de que selvagens são,
antes de tudo, humanos). Essa empatia não é assumida por Eu-
clides da Cunha, mas emerge em inúmeras descrições dentro da
obra. Emerge também na célebre passagem: “Estamos condena-
dos à civilização”.
Os sertanejos vêm cercados de características culturais e so-
ciais que fazem destes indivíduos um povo. E um povo sem Esta-
do é o símbolo da força na lógica nietzschiana: “Onde ainda há
um povo, aí o estado não é compreendido, mas odiado como mau-
olhado, como um pecado contra a moral e o direito ... Nascem
homens de mais: o estado foi inventado para aqueles que são su-
pérfluos” (Nietzsche, 2000, p.65). O jagunço é a antítese do su-
pérfluo, por isso mesmo inapto a aceitar seja a Monarquia seja a
República. Mas apto, sim, a aceitar um líder sacerdotal e guer-
reiro que compreenda sua moral de povo, como justamente faz
Conselheiro. Impressiona como a montagem descritiva do ser-
tanejo se encaixa, por um lado, no arquétipo montado por
Nietzsche, do povo apto a compreender o super-humano. Talvez
por isso Conselheiro, na narrativa euclidiana, é sempre ouvido

53
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

em praça pública, ao contrário de Zaratustra. A esse último fal-


ta-lhe o povo. Mas se isso é verdade, Euclides entretanto sem-
pre se esmera em adjetivar de modo a ressaltar o caráter tosco
desse povo, sua rudeza – o que transparece no misto de fascina-
ção e repulsa que toma o autor. Assim, se o sertanejo representa,
por um lado, a degeneração da raça, povo incapaz de conceber a
civilização, é, por outro, nessa inumanidade que reside sua for-
ça, sua capacidade de se amalgamar com os elementos topográ-
ficos e vegetais do sertão. E esse é justamente o elo concebido
por Nietzsche para a superação do estado humano presente.
A moral sertaneja aflora da terra, por isso “A Terra” é o pri-
meiro capítulo de Os sertões. Muito diferente da “civilização de
empréstimo” do litoral, que tem Estado mas não tem um povo
que se preste a formar sua própria moral. Uma ode ao supérfluo.
Note-se ainda que, como Zaratustra, Antônio Conselheiro é
o homem errante, seguido apenas por quem se sente apto a isso:
“De 1877 a 1887 erra por aqueles Sertões, em todos os sentidos,
chegando mesmo até o litoral, em Vila do Conde (1887)” (Cunha,
1998, p.146). Na viagem pela terra agreste se consolida seu siste-
ma simbólico decodificável apenas pelo povo sertanejo. E esse
vagar pela terra quase deserta do interior do Brasil, além de todo
aparato metafórico bíblico que carrega, tem ainda embutido um
outro elemento: a viagem representa a própria transcendência,
que se dá pela repetição da partida e da permanência. O homem
errante vive sua experiência de travessia, de transumância. Essa
é também a experiência central de Zaratustra:

Sou um viajante, um escalador de montanhas – dizia de si


para si – não me agradam as planícies e parece que não posso estar
muito no mesmo sítio. E sejam quais forem os meus destinos e as
minhas aventuras, sempre implicarão uma viagem ou uma ascen-
são de montanha; nunca se repete senão a nossa própria experiên-
cia. (Nietzsche, 2000, p.179)

A montanha é, sempre, o local privilegiado para a percepção


do enredo que se articula. Da perspectiva da montanha tudo é

54
Trauma e história na composição de Os sertões

pequeno, e tudo o que é civilizado geralmente cabe num golpe


de vista; porque dela se pode vislumbrar o movimento do todo,
que é a pulsão da história. É justamente na montanha que sobe
Conselheiro pouco antes do início da luta: “Galga a estrada co-
leante entre os declives da favela. Atinge o alto da montanha. Pára
um momento ... Considera pela última vez o povoado, embai-
xo... É invadido de súbita onda de tristeza. Equipara-se “ao di-
vino mestre diante de Jerusalém”. Mas amaldiçoou”... (Cunha,
1998, p.181).
Retornando agora à última citação de Nietzsche, ela ainda
nos fornece um elemento a ser trabalhado que é a experiência
que se repete. A viagem solitária, a experiência sem palavras, de
romper a cada dia com o próprio destino, com a lógica, com a pos-
se, pois um viajante nunca possui. A viagem é a cisão, a quebra
constante. A cada viagem, Zaratustra cria discursos, todos eles
faces do mesmo tema: a experiência do não ser, a superação do
ser na presença da terra. Ele também age pela repetição não do
trauma, mas do prazer da ruptura. Pois a ruptura pode ser pra-
zerosa. Para Euclides, no entanto, é a repetição do enredo traumá-
tico que funda as cenas da nacionalidade. Anterior a Os sertões a
revolta da armada também ganha um caráter de trauma inenar-
rável, mas cuja inenarrabilidade é a repetição da tragédia grega
clássica:

Imaginei-me, então, obscuríssimo comparsa numa dessas tra-


gédias da Antigüidade clássica, de um realismo estupendo, com os
seus palcos desmedidos, sem telão e sem coberturas, com os seus
bastidores de verdadeiras montanhas em que se despenhavam os
heróis de Esquilo, ou o proscênio de um braço de mar, onde uma
platéia de cem mil espectadores pudesse contemplar, singrantes,
as frotas dos fenícios. (Cunha, 1995, v.1, p.203)

A tradição clássica prefigura como uma maldição o trauma


da nacionalidade, como já havia sido anunciada no conto “A esfin-
ge”, de 1894. Não por acaso, Conselheiro amaldiçoa a tradição

55
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

do alto da montanha. Antônio Conselheiro, com seu catolicismo


adaptado, é descrito por Euclides cada vez mais como iconoclasta,
capaz de reviver experiências que só couberam aos primeiros
homens a pisar na terra. Pois assim é a lógica sertaneja: primor-
dial, desprovida do peso institucional que os homens do litoral
herdaram da Europa secular:

Vivendo quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que


palejam reflexos da vida civilizada, tivemos de improviso, como
herança inesperada, a República. Ascendemos, de chofre, arreba-
tados na caudal dos ideais modernos, deixando na penumbra se-
cular em que jazem, no âmago do país, um terço de nossa gente.
Iludidos por uma civilização de empréstimo; respingando em fai-
na cega de copistas, tudo o que de melhor existe nos códigos orgâ-
nicos de outras nações... (Cunha, 1998, p.174)

O homem do litoral se reveste da secularidade pesada da civili-


zação, enquanto o homem do sertão, na penumbra, se mantém apto
a experimentar a sua própria fé, a viver a sua experiência de pro-
feta. Quando Zaratustra discursa para o país da cultura, é justamente
esse o peso a que ele se refere. O peso do homem contemporâneo:

Na verdade, não podereis usar melhores máscaras do que vos-


sos próprios rostos, homens actuais. Quem vos poderia então re-
conhecer? Completamente ocultados com sinais do passado, esses
mesmos signos borrados com sinais novos, assim conseguistes
ocultar-vos de todos os intérpretes de signos. Todos os sonhos e
todo o palavreado dos séculos argumentam uns contra os outros
em vossos espíritos ... Sois estéreis por isso vos falta fé. Todos
que, porém, nasceram criadores sempre tiveram sonhos proféticos
e souberam ler presságios nas estrelas; tiveram fé na fé! (Nietzsche,
2000, p.146)

De empréstimo ao sertão, no fim do século XIX, na mitologia


euclidiana, chegara apenas um catolicismo rapidamente
reinventado. Tudo o mais fora apreendido da natureza, pelas pró-

56
Trauma e história na composição de Os sertões

prias entranhas do homem, e muitas vezes traduzido numa moral


que nem ao nível da palavra havia chegado. Os signos, por isso,
têm a força da fé. O sertanejo, ao contrário do homem do litoral,
é capaz de ter fé na fé.

A rebeldia original

Até aqui, buscamos traçar a trajetória dos elementos do con-


fronto, centrando-nos na configuração do sertão como anticivi-
lização, como o lado do conflito cuja força reside na fé, na depen-
dência e parceria com a natureza. O outro lado, porém, é o da
cultura secular, das armas de fogo, tem a força da civilização sem-
pre fadada a vencer. Afinal, o mais forte sempre vence. E essa
tentativa de remontar às forças do choque tem em vista remontar
o poder que terá esse choque anunciado, o seu poder traumático.
Mas não é apenas como resultado do choque que decorre o ine-
narrável que nos propomos desvelar, a página em branco. O cho-
que é de uma brutalidade indescritível: entre duas formas de ser
em que a simples existência de uma constitui uma afronta à outra.
Mas não é apenas isso que o torna trauma. A questão remete tam-
bém à ousadia, ao motivo que leva a esse choque, pois o sertão em
sua penumbra histórica poderia ter se mantido mudo, bárbaro, no
sentido etimológico do termo: impossibilidade de balbuciar as pa-
lavras. Poderia manter-se sem ousar nenhuma forma de expres-
são, como fora sua presença na Constituição do Brasil até então.
A partir do evento Canudos, Euclides descreve o sertão com
seus referenciais descritivos e sua compreensão centrados em au-
tores europeus, como o próprio Nietzsche, Victor Hugo, e outros.
E a partir de sua descrição, o sertão ganha singularidade em meio
ao emaranhado sem face de tudo que não é litoral. E essa singula-
ridade é incorporada à historiografia e à literatura. Mas o que pre-
tendemos ressaltar é que, essencialmente a partir do trauma, nasce
o sertão. E o trauma nasce não da simples existência de Canudos,

57
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

mas de sua postura de afronta à ordem. É na batalha de Canudos


que o interesse nacional se volta para dentro, inverte o sentido
nacional da dobra para o Atlântico. Pois mesmo nos relatos épicos
dos bandeirantes trilhando os rios em busca do ouro, as entra-
das sempre tinham como interesse o fora, o ouro para a riqueza
que se nutre da Europa. Se a batalha de Canudos em si constitui
um trauma para seus protagonistas, também é traumática para
a nação a experiência de dar-se de repente conta dos seus pecado-
res, dos incolonizados que persistem em seu interior.
Nesse momento situado quatro séculos à frente, está-se dian-
te de algo ainda mais preocupante do que no início da coloniza-
ção, quando se opunham brancos a índios, pois os rebeldes de
Canudos têm em si o sangue branco, além do sangue índio e do
sangue negro. São resultantes das condições geradas pela própria
colonização, mas representam uma parte do processo que se de-
generou, na descrição de Euclides da Cunha. Sua primordialidade
terrena e sua incivilidade são, na verdade, resultado da “decadên-
cia” de ao menos uma das raças que formam o sertanejo. No sertão
prevalece o trato que o indígena e o negro tinham com a natureza.
A língua falada, no entanto, continua sendo o português, e persis-
tem ainda muitas características somáticas dos colonizadores,
além, é claro, da religião católica. O choque vem aí da repetição
do trauma da colonização, mas agora entre semelhantes. Algo que
adquire um caráter muito mais fratricida do que o choque inicial.
Será a página em branco o horror do fratricídio? O trauma
indescritível? Essa é uma vertente possível para sua interpreta-
ção, pois a descrição que dá de Euclides da Cunha para o ímpeto
assassino do “anticristo” corresponde perfeitamente a descrições
do ímpeto genocida de conquistadores espanhóis como Cabeza
de Vaca. Repete-se a disputa pela tomada da terra, a experiência
colonizatória, porém agora entre duas parcelas do povo de uma
mesma nação recém-saída de seu período colonial. Aí sim, temos
a possibilidade do sentido prévio ao indizível, a experiência que for-
nece o repertório conhecido da sensação traumática em questão.

58
Trauma e história na composição de Os sertões

Bem no cerne da disputa, no entanto – ou na sua azão de ser –,


podemos identificar ainda outro enredo traumático. A atitude de
Conselheiro, sua postura (que na descrição de Os sertões se as-
semelha à de Zaratustra – segundo a qual, nas viagens “nunca se
repete senão a nossa própria experiência”) nos dão outra possi-
bilidade interpretativa. A experiência repetida na viagem, pode-
mos entender como a contínua ruptura e, a partir dela, como o
conhecimento. Enquanto o sertanejo vive à mercê da terra, como
uma espécie de seu refém, ele vive mudo, na penumbra. O único
uso da razão que ele faz é este: o reconhecimento dos sinais natu-
rais, da lei dos dias e das noites. É um uso que antecede a razão
como decodificação e dominação da natureza, uso esse que cons-
tituiu a força do Ocidente. Enquanto os homens do sertão vive-
ram sua mudez, pareciam se isolar em seu estado original, antes
da expulsão do paraíso. Porém, quando Antônio Conselheiro co-
meça a errar pelo sertão, ele experimenta a ruptura com esse es-
tado de aprisionamento, começa a organizar a língua do sertão,
a transformar a experiência da natureza em poder. Ele experi-
menta a própria vontade de poder. E essa vontade está justamente
no cerne do pecado original do Velho Testamento.
O sertão não é descrito em momento algum da narrativa de
Euclides da Cunha como paraíso, porém sua natureza é a fonte
da força do seu povo em Os sertões. E a tomada de Canudos pode
ter a conotação da expulsão bíblica. Não foi talvez escolha
consciente dos membros do Arraial de Canudos morder o fruto
proibido, mas ao formarem sua própria lei, cometem a infração
original, reproduzem a rebeldia da mulher que não segue o man-
damento divino e experimenta o fruto da árvore do bem e do mal.
Não aceitar a lei do progresso e da República é também uma ne-
gação de algo que no século XIX equivalia por certo aos manda-
mentos divinos. E experimentar outro modo de existência em
meio à República, ainda que seja um modo rústico, representa
uma negação do progresso e da civilização como único meio pos-
sível de existência humana. É uma espécie de pecado original in-

59
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

vertido, aquele que Conselheiro comete, seguido por seu povo. A


desordem e a rebeldia equivalem aqui a uma renúncia de toda ra-
zão que se instituiu sobre a Terra justamente após o pecado origi-
nal, a uma renúncia do conhecimento como fora instituído; e, como
resultado do pecado cometido, advém o conhecimento adquirido
pelos sertanejos de sua força derivada diretamente da terra.
A luta com as tropas republicanas teria início na própria von-
tade dos sertanejos de estabelecer sua cidade regida pela lei da
terra e de seu líder, e as cinco expedições seriam a maldição que
recai sobre os moradores por negarem a civilização de emprésti-
mo, a ordem positivista do progresso. Conselheiro recai numa
ação proibida, na ação que Eva inaugura, e é essa transgressão
que gera o trauma. Contra a transgressão se organizam os tabus,
e o próprio ato de Eva é o maior tabu bíblico.
Euclides da Cunha, pelo modo de sua escrita do episódio de
Canudos que é inaugurado pela página em branco, passa a exer-
cer uma função dentro de seu próprio enredo. Como narrador,
ele conta a transgressão da ordem pelo povo do sertão, revisitando
a experiência proibida, repetindo o pecado original. Induz assim,
de certo modo, a própria transgressão. É a interpretação de Freud
para o instinto inconsciente de deslocar as neuroses para novos
objetos, por meios associativos:

Nossa atenção é assim dirigida para o fato de que a perigosa


força do mal corresponde a dois poderes de uma espécie mais rea-
lista: o poder de fazer alguém lembrar-se de seus próprios desejos
e o poder visivelmente mais importante de induzi-lo a transgredir
a proibição em obediência a aqueles desejos. Essas funções podem
ser reduzidas a uma, entretanto, se supusermos que numa mente
primitiva o despertar da lembrança de uma ação proibida acha-se
naturalmente vinculado ao despertar de um impulso para efetuar
esta ação. Dessa forma, a lembrança e a tentação se reúnem nova-
mente. (Freud, 1996, p.51)

Freud, nesse texto, recai no mesmo procedimento de Euclides


da Cunha em Os sertões, que se caracteriza pelo objetivo de narrar

60
Trauma e história na composição de Os sertões

o inenarrável, sendo este constituído por um trauma fundador


que se repete. O tema central de sua obra, o tabu, só é compreen-
dido e estudado a partir do procedimento dos humanos com re-
lação aos tabus (que o autor apreende da leitura de J. G. Frazer).6
Depois de descritos os comportamentos de determinados povos
com relação ao totemismo e ao tabu, investigam-se as possíveis
origens de tais comportamentos, porém em momento algum o
tabu em si é destrinçado. É também essa uma obra que margeia
seu próprio tema, que discute as forças que geram o tabu em de-
terminadas circunstâncias, como se discutem em Os sertões as for-
ças primordiais que emergem de tempos em tempos. Talvez porque
esse tema depende também da experiência para a compreensão.
Assim podemos dizer que também Freud participa dessa cena de
representação da tragédia como enredo que se repete, como arte
da narrativa do inefável.
O caráter de inenarrável, de página em branco, dado ao massa-
cre de Canudos por Euclides, equivale ao estabelecimento desse
episódio como espécie de tabu histórico, coisa à qual não se deve
fazer referência, mas que também não deve ser esquecida. Poste-
riormente, ao se dedicar à memória desse episódio, a atitude do au-
tor pode ter justamente a conotação da lembrança do que foi proi-
bido, e essa lembrança vem carregada do desejo da atitude que está
em proibição. A narrativa do massacre republicano talvez seja a
indução à rebeldia, e narrar a civilização como regra universal é uma
indução a negar essa regra, a buscar, como Conselheiro, nossa pró-
pria vontade de poder traduzida numa civilização que não seja de
empréstimo. Os sertões é certamente uma narrativa tabu para a nas-
cente República, uma narrativa de uma transgressão da norma que,
como tudo que é tabu, tem, entre suas propriedades, o contágio.

6 Freud escreve sobre tabus com base nas descrições de J. G. Frazer, um estudio-
so de Antropologia comparativa, que elabora suas teses com base no conhe-
cimento já sedimentado nos relatos de viajantes sobre usos e costumes em
várias partes do mundo. Sua obra mais famosa O ramo de ouro fora publicada
em Londres em 1911, três anos antes da primeira edição de Totem e tabu.

61
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

Referências bibliográficas

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Leandro Tocantins. 2.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.
______. Obras completas em dois volumes. Org. Afrânio Coutinho. 2.ed. Rio
de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. 2v.
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Nogueira Galvão. São Paulo: Ática, 1998.
FREUD, S. Totem e tabu e outros trabalhos. In: ______. Obras psicológi-
cas completas de Sigmund Freud: edição Standart brasileira. Trad.
coord. Jaime Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
NIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra. Trad. Alfredo Margarido, 12.ed.
Lisboa: Guimarães Editores, 2000.
PRADO JÚNIOR, C. Formação do Brasil contemporâneo. 23.ed. São
Paulo: Brasiliense, 1999.

62
Uma crítica precoce à “globalização”
e uma epopéia da literatura universal:
Os sertões de Euclides da Cunha,
cem anos depois

Berthold Zilly1

A dimensão internacional da guerra nos sertões

Já antes da publicação de Os sertões, a Guerra de Canudos, que


à primeira vista nos parece assunto intrinsecamente brasileiro e
até interiorano, bem do fim do mundo, foi, durante quase todo
o ano de 1897, evento de mídia não só no Brasil, mas nas Améri-
cas e em toda a Europa, comparável na nossa época com o movi-
mento zapatista em Chiapas ou a guerra na Chechênia.
Pois aquele assalto ilegal de tropas legais contra uma comuni-
dade relativamente pacífica de vaqueiros e lavradores – sem aviso
prévio, sem negociação, sem chance nenhuma para os assaltados

1 Professor no Instituto Latino-americano da Freie Universität Berlin. Tradu-


tor de Os sertões para o alemão.

63
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

– teve não apenas traços arcaicos e bárbaros, como todas as guer-


ras, mas foi um empreendimento muito moderno e, por conse-
guinte, internacional.
O mundo inteiro se aliou ao exército agressor, concedendo
ao governo brasileiro os créditos necessários, mandando-lhe a
sua mais avançada tecnologia militar, além de alguns poucos fra-
des e filantropos, e apoiando, por meio dos grandes jornais do
mundo, a sua campanha psicológica anticonselheirista, graças ao
telégrafo que já naquela época estava reunindo os leitores dos
grandes jornais numa aldeia global.
Diferentemente de Chiapas, no caso de Canudos não havia
opinião pública mundial favorável aos atacados, o que selou a
sua extinção. Ademais, a Europa há tempos tinha preparado os
paradigmas teóricos e interpretativos para comportamentos con-
siderados bárbaros, atrasados e desviantes, de coletividades mes-
tiças, rurais e radicalmente religiosas, aparentemente incompatí-
veis com a modernização – uma ciência que era uma continuação
da guerra por meios intelectuais.
Apesar de compartilhar os preconceitos mundialmente vi-
gentes contra populações tradicionais, inconformadas, sobretudo
de cor, as que bem mais tarde o historiador inglês Eric Hobsbawm
chamaria de primitive rebels, o jornalista e engenheiro Euclides da
Cunha, tenente reformado e, portanto, perito em assuntos milita-
res, no calor da sua narração cada vez mais apaixonada, passou a
admirar aquela comunidade religiosa no longínquo sertão, calu-
niada pelos jornalistas de então e pelo próprio Euclides como atá-
vica, fanática e criminosa, o que naquela época eram acusações
tão graves quanto as de fundamentalista e terrorista hoje em dia.
Pois o povo de Canudos ia tomar o destino em suas próprias
mãos, dispondo-se a entrar no palco da história como sujeito
político, com um projeto social alternativo, regional, transétnico,
brasileiro, baseado num catolicismo tradicional, procurando obs-
tinadamente resolver os seus problemas materiais e espirituais
sem pedir licença nem ao latifúndio, nem ao Estado, nem à Igreja.

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Uma crítica precoce à “globalização” e uma epopéia da literatura universal: ...

Afinal, todos eles – nem a República com seu lema Ordem e pro-
gresso – nada haviam feito para diminuir a sua miséria e opressão,
haviam de fato agido no sentido contrário a isso.
Por que os canudenses foram perseguidos? Em última ins-
tância, por não se adequarem à ordem coronelista estabelecida,
conhecida e aceita pelas elites. É verdade que Canudos contraria-
va o monopólio da violência do Estado, mas milhares de coro-
néis, mandões discricionários pelo Brasil afora, também o faziam,
sem provocar a fúria dos guardiões da ordem estabelecida e da
Civilização.

Veracidade poética versus


preconceitos “científicos”

O escritor muitas vezes é mais clarividente do que o pensador,


o artista pode intuir o que o analista ignora; pensemos no famoso
exemplo de Balzac que, apesar de monarquista e admirador da
aristocracia, narrou, como foi mostrado por Lukács, com perspi-
cácia e com certa simpatia, a ascensão da burguesia e a emergên-
cia do proletariado na França da Restauração.
Pois bem, o ideólogo republicano e cientificista Euclides da
Cunha, repleto de preconceitos racistas, cada vez mais cede lugar,
no decorrer das descrições e narrações do seu livro, ao observa-
dor direto e empático, ao “narrador sincero”, que representa a
realidade social e histórica por meio de um “consórcio da ciência
e da arte”, tendendo cada vez mais para essa última.
Resolve, embora nem sempre coerentemente, evitar “os gar-
bosos neologismos etnológicos”, transformando pelo contrário
a própria ciência em arte, em arsenal de recursos estéticos. Em
um momento de ceticismo científico, resolve até retratar os serta-
nejos espontânea e subjetivamente, assumindo, em uma das suas
típicas hipérboles, a atitude de “simples copista” que reproduziria
“todas as impressões, verdadeiras ou ilusórias, que tivemos quan-

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2ª Prova
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do, de repente, acompanhando a celeridade de uma marcha mi-


litar, demos de frente, numa volta do sertão, com aqueles desco-
nhecidos singulares, que ali estão – abandonados – há séculos”.
Se ele lança mão da subjetividade e da fantasia na representa-
ção do espaço e da história, sempre o faz a serviço da verdade,
percebida por meio de um temperamento cheio de compaixão
por todos os seres sofridos, as pedras, as plantas, os animais,
os soldados e sobretudo os sertanejos; pois vê reinar no ser-
tão o “martírio secular da Terra” que condiciona o “martírio
do homem”.
Sugere que o martírio pode transcender o sertão, sendo atri-
buto da condição humana, da natureza, do universo, de modo
que o sertão seria o mundo, idéia que mais tarde encontramos
em Guimarães Rosa.

Crítica da razão colonialista

Sarcasticamente, Euclides desmonta não só as “fantasias psí-


quico-geométricas” da psiquiatria e craniometria da época, mas
sobretudo os discursos grandiloqüentes, hipócritas e desumanos
dos seus colegas da imprensa e do exército que legitimam o co-
lonialismo interno e o massacre dos vencidos com a pretensa
missão de salvar a República e de assegurar o triunfo da Civiliza-
ção sobre a barbárie sertaneja.
Ora, são discursos muito próximos daqueles que o próprio
autor pratica, de modo que precisa exagerar de modo caricatural
a retórica belicista dos oficiais positivistas para os quais os cabo-
clos são meros objetos de uma operação violenta de mudança so-
cial: “Era preciso que saíssem afinal da barbárie em que escanda-
lizavam o nosso tempo, e entrassem repentinamente pela
civilização adentro, a pranchadas”.
A campanha de Canudos, para o exército, mas também para
o narrador, é “uma invasão em território estrangeiro”. A crítica

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Uma crítica precoce à “globalização” e uma epopéia da literatura universal: ...

euclidiana à prática e à retórica da modernização autoritária do


seu tempo é também autocrítica, pois volta e meia o próprio autor
defende métodos tirânicos e até imperialistas de “desenvolvimen-
to”, como se diria mais tarde, comparando a campanha de Canu-
dos com a ocupação da Tunísia pela França, mencionando no Diá-
rio de uma expedição também a invasão francesa em Madagascar, a
italiana na Abissínia, a inglesa na África do Sul.
Justifica, pelo menos implicitamente, esses tipos de interven-
ção bélica pelo benefício civilizatório que trariam, construção de
açudes e estradas, por exemplo, mas do qual duvida cada vez mais,
pelo menos no caso do sertão colonizado à força. Pois diferen-
temente das colônias ultramarinas da Europa, o sertão deve ser
“incorporado à nossa nacionalidade”.
Essas dubiedades, duplicidades, ambivalências, incoerências
são típicas na escrita de um autor que disse de si mesmo: “eu
sistematizo a dúvida”, e que repassa as suas dúvidas, quando não
consegue esclarecê-las, para o leitor de Os sertões. Grande parte
das idéias e imagens nesse livro são polissêmicas ou ambíguas,
revelando à análise atenta um segundo ou terceiro sentido, mui-
tas vezes oposto ao primeiro.
Quando Euclides põe de lado as ideologias colonialistas,
passa, embora não sem hesitações, a justificar, em seu estilo amar-
gamente irônico e ao mesmo tempo solene, a resistência dos “ru-
des patrícios transviados” contra a invasão das suas terras:

O jagunço ... só podia fazer o que fez – bater, bater terrivel-


mente a nacionalidade que, depois de o enjeitar cerca de três sécu-
los, procurava levá-lo para os deslumbramentos da nossa idade
dentro de um quadrado de baionetas, mostrando-lhe o brilho da
civilização através do clarão de descargas.

Em vez do direito e da educação, o governo, como represen-


tante da Civilização, da República e da Nação, manda aos brasi-
leiros “retardatários” do sertão o exército que fala unicamente a
linguagem da violência. No combate à barbárie, recusa qualquer

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2ª Prova
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diálogo, lançando mão de métodos bárbaros: “Enviamos-lhes o


legislador Comblain; e esse argumento único, incisivo, supremo
e moralizador – a bala”.
É nos emissários do Progresso e da Modernidade, muito mais
do que nos “bárbaros” do sertão, que ressurge “a animalidade
primitiva” que degola os inimigos presos, violando todas as regras
da lei e da moral.
Se o sertão é bárbaro, ele o é mais pela ação da Civilização
colonialista do que pela sua ausência, um paralelo com a selvage-
ria do interior da África em O coração das trevas, de Joseph Conrad,
romance também publicado em 1902. “A Rua do Ouvidor valia
por um desvio das caatingas”, assim como a Bruxelas de Conrad
tem aspectos tão sombrios e tumulares quanto o Congo explora-
do e bestializado pelo colonialismo belga.
As luzes que a nação brasileira e os seus órgãos, o governo,
o exército, a imprensa pretendem levar ao sertão, num combate
contra o obscurantismo, contra as trevas da superstição e do fana-
tismo, produzem um vasto cemitério, hoje submerso num açude,
um ground zero da história brasileira.
Se o autor enfatiza a dimensão internacional desse conflito,
é que lhe atribui caráter paradigmático dentro da História Uni-
versal, como choque de culturas provocado pela expansão secular
da Civilização, que, tão sedutora quanto violenta, esmaga no
mundo inteiro aquelas sociedades tradicionais e sobretudo rurais
que não se deixam facilmente integrar ou que nem sequer têm a
chance de fazê-lo.
Diferentemente da África ou da Ásia, no Brasil essa mo-
dernidade global, atropeladora de tudo o que for diferente e in-
compreensível, não necessita de intervenções imperialistas,
pois tem como aliados e cúmplices os políticos, os intelectuais,
os cientistas, os militares do litoral aos quais o próprio autor
se inclui numa auto-acusação: “Nós ... armados pela indústria
alemã – tivemos na ação um papel singular de mercenários in-
conscientes”.

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Uma crítica precoce à “globalização” e uma epopéia da literatura universal: ...

Valorização ambígua da mestiçagem

Entre as visões inovadoras de Euclides merece destaque a va-


lorização, pelo menos no plano poético-narrativo, da mestiçagem.
A capacidade de sobrevivência do sertanejo contra as adversida-
des da natureza e da guerra é extraordinária e admirável.
A comunidade de Canudos consegue satisfazer as necessi-
dades básicas de milhares de habitantes em plena caatinga, num
semideserto, onde vivem melhor do que nas fazendas das redon-
dezas, com certa dignidade, calma e solidariedade, o que provoca
a constante migração rumo a esse arraial.
Depois da derrota da segunda expedição muitos sertanejos
pensaram que o governo e o exército “os deixariam, afinal, na
quietude da existência simples do sertão”, idéia idílica, embora
ilusória, com que simpatiza o narrador.
Esses mestiços têm uma cultura material, musical e poética
com que simpatiza o narrador; eles criam bodes e vacas, são bons
agricultores e artesãos, homens hábeis e honestos, trocam no “bar-
racão da feira” das suas vilas os seus produtos por aqueles da civi-
lização, poderiam ser felizes se essa última não os perseguisse. Mais
ainda, os sertanejos, em princípio, são maduros para absorver a
Civilização: “Aquela raça cruzada ... pode alcançar a vida civilizada”.
Euclides, ou pelo menos o narrador de Os sertões, acaba reco-
nhecendo a mestiçagem – considerada por muitos intelectuais
da época, mesmo pelo próprio autor, um estorvo para o progresso
civilizatório – como processo fundamental e positivo para a for-
mação da sociedade sertaneja e brasileira.
É especialmente na hora da morte que o sertanejo, esse con-
denado pela ciência racista do seu tempo, se transfigura em pos-
sível agente político e fazedor de sua própria história. Ele porém
é tragicamente sacrificado, de modo que na realidade não pode
dar a sua contribuição para a construção de um moderno Estado
verdadeiramente nacional, permanecendo a sua valorização mais
claramente nos níveis simbólico e estético.

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2ª Prova
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Mesmo assim, na história do pensamento social brasileiro,


Euclides, com a elevação de um mestiço a herói nacional, consti-
tui importante elo entre o viajante alemão Martius – que no seu
tratado Como se deve escrever a história do Brasil, publicado em 1844,
reinterpretou a mestiçagem como processo necessário e propício
para a constituição do Brasil como nação – e o sociólogo Gilberto
Freyre, cujo livro clássico Casa grande e senzala (1933) comprovou
e elogiou o caráter mestiço da população e da cultura no Brasil,
um marco contra o racismo “científico”.

Uma visão trágica e,


contudo, alentadora da história

Quando a República, no seu fanatismo civilizador, extermi-


na o sertanejo, ela pratica um ato de automutilação nacional –
numa guerra de assédio, cuja sombria grandiosidade lembra a
Canção dos Nibelungen, epopéia medieval alemã, transformada em
ciclo de óperas por Richard Wagner, em que um herói capaz de
redimir o mundo da maldição do ouro é assassinado pelos diri-
gentes da tribo germânica dos borgonheses, também chamados
de Nibelungen, por sua vez aniquilada pelos hunos sob o comando
de Átila.
O inimigo execrado, na hora da sua morte, se afigura como
“cerne de uma nacionalidade”, “a rocha viva da nossa raça”. Aque-
le povinho que tal qual os caboclos da Amazônia vive “à mar-
gem da história”, atrasado e analfabeto, aparentemente inferior
e estranho, quase estrangeiro dentro do Brasil, incapaz para a
construção da nação, tem de repente a sua “apoteose”, revelando-
se no ocaso como superiormente brasileiro e entrando na luz de
ribalta da história, no nível simbólico-cultural, justamente atra-
vés de Os sertões.
O sertão era “um parêntese, um vácuo, um hiato”, um não-
lugar – lembrando o Congo de Joseph Conrad, em Coração das

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Uma crítica precoce à “globalização” e uma epopéia da literatura universal: ...

trevas – que só como “ficção geográfica” fazia parte do território


nacional. Mas agora ele entra na História e passa a ser visto,
momentaneamente, quando é tarde demais, como possível berço
de um futuro Estado brasileiro, já não excludente como o era o
projeto nacional das elites, mas incorporador e participante,
embora não igualitário nem formalmente democrático – a utopia
trágica de uma cidadania autônoma dos que tinham sido manti-
dos não-cidadãos.
A glória e a atualidade de Os sertões não derivam apenas das
informações e das reflexões sobre a guerra, que se encontram
também em numerosos outros escritos da época, pois foi um exa-
gero de Euclides a afirmação de que a História não teria ido a
Canudos.
Muito se publicou sobre a guerra antes e depois de Os sertões,
mas é certo que a guerra, os sofrimentos e as realizações dos
canudenses na paz e na guerra, assim como os crimes praticados
contra eles teriam caído no esquecimento da opinião pública sem
esse livro.
O seu efeito se deve principalmente à arte presentificadora
e encenatória do autor, ao seu estilo sugestivo, sonoro e plástico,
ao seu poder imagético e escultural, à sua prosa altamente retó-
rica e poética, entre sarcástica e sublime, à sua teatralização do
meio, dos eventos, dos objetos e personagens.
Todos eles aparecem como entidades e forças típicas, não
individuais, mas concretas e vivas, representando os principais
agentes naturais e históricos, nacionais e internacionais, de modo
que o exército, mais ainda o povo e a paisagem, as pedras e plan-
tas, os ventos, mas também os canhões passam a ser os protago-
nistas, mediante o recurso estilístico da antropomorfização das
forças e dos objetos.
O principal protagonista é o sertão, que no plural, na sua mul-
tiplicidade e variabilidade, fornece o título do livro. Acima de
todos os agentes pairam, porém, o destino, a História com maiús-
cula, as leis inexoráveis e em grande parte insondáveis da Evolu-

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2ª Prova
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Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

ção e da Civilização, os deuses da Vida e da Morte. Apesar disso,


a obediência cega às leis históricas, ao avanço da Civilização
por vezes mortífera, é um crime. Em vez do soldado, ela deve-
ria ter enviado o professor e o engenheiro, pessoas como o pró-
prio Euclides.
Apesar do seu ceticismo, o autor admite que o caráter sagrado
do sertão, na visão dos canudenses, passa para a obra que é santi-
ficada pelo assunto. Não é por acaso que o seu livro maior foi
logo chamado de Bíblia da nacionalidade.
As aporias éticas, políticas, intelectuais da recente história
nacional e internacional, e as incoerências analíticas no pensa-
mento do próprio autor encontram uma solução duradoura,
exemplar e satisfatória no plano estético-metafísico.
Raramente na história da literatura a identificação entre um
segmento da realidade e a sua representação é tão intensa quanto
aqui, pois quase todos os leitores reconhecem uma simbiose en-
tre a obra, a região e o evento. Uma parte atrasada, carente, margi-
nalizada do Brasil de repente se transfigura – “transfigurar” é um
dos verbos prediletos de Euclides – em região virtualmente mode-
lar do país e até da história universal.
Os últimos serão ou poderiam ser os primeiros. À centrali-
dade geográfica dos sertões, sobretudo teórica e matemática, cor-
responde de repente uma centralidade histórica e política.
Com o seu caráter de epopéia nacional e a sua implícita e trá-
gica teologia política Os sertões é um livro fundador, uma súmula
da nacionalidade, uma obra que, com suas ambigüidades e contra-
dições, consegue constituir o Brasil e aguçar sobre ele o interesse
e as indagações do mundo.

72
A sociologia desconcertante de
Os sertões

Nísia Trindade Lima1

Livro-monumento, considerado por tantos autores marco


inicial da constituição de um argumento sociológico sobre o Bra-
sil, Os sertões tem sido analisado a partir de dicotomias clássicas
do pensamento ocidental, especialmente civilização e barbárie e
tradição e modernidade. Lembrado também como texto de para-
doxos, quer os que se originam das tensões entre discurso cientí-
fico e obra ficcional (Costa Lima, 1997, 2001); ou entre ilumi-
nismo e romantismo (Bernucci, 1995; Villas Bôas, 1998; Lima,
1999), sua análise desconcerta o leitor que insista em enquadrá-
lo em qualquer categoria rígida e precisa, seja definindo-o a partir
de algum conhecimento disciplinar – história, geologia, antropo-
logia – seja situando-o como defensor de concepções determi-

1 Diretora da Casa Oswaldo Cruz – Rio de Janeiro – RJ.

73
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

nistas, em princípio tão evidentes, ou voz dissonante diante dos


ideais de modernidade no Brasil do início do século XX (Kropf,
1996). Talvez este seja o melhor adjetivo: desconcertante, e aqui
talvez possamos também aproximar autor e obra, pois des-
concertante eram também, segundo a narrativa de Euclides da
Cunha, a paisagem e a geologia profunda d’Os sertões, o sertanejo
e a campanha de Canudos.
Em trabalho anterior, chamei atenção para a persistência da
dualidade sertão/litoral no pensamento social brasileiro, tradu-
zida como oposição entre tradição e modernidade ou entre auten-
ticidade e civilização de copistas. A percepção dessa dualidade
está relacionada à construção de dois tipos de estranhamento ou
desterro – o dos sertanejos e o dos intelectuais que sobre eles
escrevem (Lima, 1999). Neste ensaio, pretendo sugerir uma di-
mensão menos explorada da contribuição sociológica de Euclides
da Cunha e que se encontra na superação do determinismo, quer
racial quer geográfico, em sua obra. Ressalto, assim, a plasticidade
das categorias sertão e litoral, essencialmente referências simbó-
licas que, a despeito da tentativa de Euclides da Cunha em loca-
lizá-las geograficamente, sofrem no texto uma série de desloca-
mentos. São os temas da inversão de papéis e comportamentos
esperados dos habitantes do sertão e do litoral; entre sertanejos
e as forças militares que os combatiam e da transmudação dos
sertanejos e de sua realidade.
Além do tributo ao cientificismo e aos determinismos de seu
tempo que, em nenhum momento Euclides da Cunha nega ou
se propõe a superar, talvez um dos elementos mais presentes em
Os sertões esteja exatamente na dificuldade de transformar ho-
mem e circunstâncias em algo cognoscível. Surpresa, inversão e
transmudação, do ambiente físico, dos sertanejos ou de um pro-
cesso de transformações históricas esperado pelo autor, são ter-
mos recorrentes. Assim como em Terra ignota: a construção de
Os sertões, Luiz Costa Lima (1997) nos fala de ilhas caracteriza-
das pela resistência textual diante da intencionalidade do autor,

74
A sociologia desconcertante de Os sertões

discutindo a dupla inscrição do texto como ficção e obra cientí-


fica, poderíamos também falar de um tempo e uma sociedade ig-
notos na constituição do Brasil, representados plasticamente pela
categoria sertão. Na análise dos homens e das circunstâncias, o
cientificismo apareceria deslocado em vários momentos pela sur-
presa, pelo que escaparia a um determinismo mais estreito tal
como formulado em várias passagens de Os sertões.
No desenvolvimento deste texto, abordo inicialmente as con-
dições para o surgimento de argumentos sociológicos, enfatizan-
do no caso brasileiro a importância do período de transição do
Império à República e da percepção que sobre ele teve Euclides
da Cunha. A segunda parte está dedicada a uma leitura de “O
homem” e “A luta”, com o foco nos temas da transmudação e
inversão. A despeito de concordar com os autores que observam
a coerência e conexão entre as três partes constitutivas de Os ser-
tões e de como em “A terra” encontram-se prefiguradas as seguin-
tes (Galvão, 1994; Santana, 1998), optei por privilegiar os capítu-
los mais propriamente dedicados aos aspectos sociológicos da
relação entre litoral e sertão.

Debate intelectual sobre a


transição do Império à República e
gênese de argumentos sociológicos no Brasil

Em Paradigma e história: a ordem burguesa na imaginação social


brasileira, Wanderley Guilherme dos Santos sugere uma perspec-
tiva de análise que situa a segunda metade do século XIX como
momento marcante na mudança do estilo intelectual até então
característico do pensamento político-social no Brasil. Os pro-
blemas referidos à construção de uma nova ordem foram acom-
panhados pela mudança no estilo de trabalho intelectual e na
visão dos fenômenos histórico-sociais, implicando o declínio de
uma forma de pensamento que valorizava o protagonismo de ato-

75
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

res individuais, em favor de uma percepção mais abstrata e geral


dos fenômenos coletivos (Santos, 1978). A obra de Euclides da
Cunha é apontada como precursora da abordagem que aparece-
ria depois em diferentes autores durante o século XX: a identifi-
cação de contradições e polaridades e de caminhos possíveis para
sua superação. Segundo Wanderley Guilherme dos Santos (1978,
p.44-5), sua estrutura básica consiste em “descobrir uma
dicotomia à qual possa ser racionalmente atribuída a origem das
crises, traçar sua formação no passado histórico nacional e propor
a alternativa política para a sua superação.
A matriz dualista de tanta expressão e influência no pensa-
mento social brasileiro revela-se também em outras obras de Eu-
clides da Cunha, com destaque para o artigo “Da Independência
à República”.2 Um dos pontos centrais que dele pode ser extraí-
do é a idéia segundo a qual o período da Independência à procla-
mação da República pode ser mais bem compreendido quando
levamos em conta as contradições de uma sociedade que, susten-
tada pela ordem escravista, necessitava superar o localismo e a
fragmentação dela decorrentes. Daí ser possível afirmar como le-
gado do século XIX a invenção política do Brasil e é essa a tese
central implícita na obra de Euclides da Cunha (1966).
Publicado em 1900 como uma retrospectiva do Brasil do sé-
culo XIX, “Da Independência à República” apresenta interpreta-
ção original para o problema da construção da ordem no Brasil
imperial. À semelhança de outros autores, Euclides da Cunha irá
refletir sobre os dois temas que marcaram a produção intelectual
durante o século XIX: de que modo organizar o novo Estado e co-
mo organizar politicamente a sociedade que se formava (Santos,
1978, p.35). No artigo em pauta estão presentes a interpretação
dualista sobre a sociedade brasileira e a ênfase em explicações
sociológicas para os conflitos regionais que agitaram o Império.

2 Publicado originalmente, em 1900, n’O Estado de S. Paulo, sob o título “O


Brasil do século XIX”.

76
A sociologia desconcertante de Os sertões

Republicano de primeira hora, não deixa de surpreender a


avaliação positiva que Euclides da Cunha faz de parte da elite po-
lítica imperial – os moderados ou liberais-monarquistas do período
da Regência. A monarquia representativa foi vista como o único
equilíbrio possível – “equilíbrio dinâmico entre as aspirações
populares e as tradições dinásticas” (Cunha, 1966, p.338). As
várias fases do Império expressariam a preocupação maior com
a unidade nacional, positivamente avaliada pelo autor que enten-
de ter sido proclamada a República no momento oportuno, cor-
respondendo à evolução natural do processo político.
O realmente significativo e original no texto está na anteci-
pação dos argumentos das análises contemporâneas mais consis-
tentes sobre a formação do Estado Nacional no Brasil. Refiro-
me à idéia da precedência da organização do Estado uma vez que
o poder imperial antecedeu a criação da própria organização so-
cial, ao romper os vínculos coloniais e dar origem à sociedade
brasileira autônoma (Santos, 1978, p.79). “Somos o único caso
histórico de uma nacionalidade feita por uma teoria política”: a
frase de Euclides da Cunha (1966, p.341), de grande força lite-
rária, expressa com rara sensibilidade os problemas de construção
de um novo ordenamento político em uma sociedade caracteri-
zada pela fragmentação e ausência de formas de integração econô-
mica e social. É o que se pode ler na seguinte passagem:

Com efeito, legislar para o Brasil gregário de 1823 – agrupamen-


tos étnica e historicamente distintos – seria tudo, menos obedecer
à consulta lúcida do meio. Era trabalho todo subjetivo, ou capricho
de minoria erudita discorrendo definitivamente sobre alguns pre-
ceitos abstratos, alheia ao modo de ser da maioria. A nossa única
tradição generalizada era a do ódio ao dominador recente ainda
em armas, e esta, servindo como recurso de momento no propagar
a rebeldia, extinguir-se-ia com a vitória, deixando aos formadores
da nova pátria um problema ainda mais formidável erguer unido
ao regime constitucional, novo na própria Europa, um povo dis-
perso, que não atravessara uma só das fases sociais preparatórias.

77
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

Um salto desmesurado e perigoso. Incidia-se na tentativa temerá-


ria da mais grave das revoluções, a exemplo daquela paradoxal
revolução “pelo alto”, que o gênio de Turgot, poucos anos antes,
concebera como recurso extremo para salvar Luís XVI aos rumo-
res profundos de 89. (Cunha, 1966, p.342)

Deve-se notar que, a despeito das freqüentes menções ao


atraso do Brasil, na análise do autor sobressai a idéia da relativa
contemporaneidade da experiência brasileira comparativamente
às sociedades européias e às dificuldades experimentadas no pro-
cesso de construção dos Estados Nacionais. Também no texto
“Do Império à República” está presente a célebre imagem da dua-
lidade básica da sociedade brasileira: um Brasil do litoral, um
Brasil d’Os sertões, que retomaria com mais profundidade em Os
sertões. No artigo em pauta, atribui a esse fato a explicação para
alguns conflitos regionais durante o Império, como foi o caso da
Cabanagem, uma espécie de prefiguração do que ocorreria em
Canudos:

Simbolizava o repontar da questão mais séria, que passou des-


percebida à sua visão aguda, e se destinava a permanecer na sombra
até nossos dias ... Era o crescente desequilíbrio entre os homens
do sertão e os do litoral. O raio civilizador refrangia na costa. Dei-
xava na penumbra os planaltos. O maciço de continente compacto
e vasto talhava uma fisionomia dupla à nacionalidade nascente.
Ao “cabano” se ajuntariam com o correr do tempo o “balaio” no
Maranhão, o “chimango” no Ceará, o “cangaceiro” em Pernambuco,
nomes diversos de uma diátese social única. (ibidem, p.351)

As explicações para essa dualidade eram apontadas especial-


mente no isolamento dos homens dos planaltos e na distância
das elites, tal como literariamente em Os sertões destaca-se a céle-
bre imagem dos sertanejos “estrangeiros na própria terra”. A refe-
rência ao artigo, escrito no mesmo período e publicado dois anos
antes da obra maior do autor, tem interesse tanto por situar tal

78
A sociologia desconcertante de Os sertões

conflito em uma perspectiva histórica como, sobretudo, por se


dedicar à análise das elites políticas, o que permite estabelecer
interessante contraponto à denúncia e análise da experiência de
Canudos. Especialmente, vale a pena reter o argumento da inver-
são de um processo histórico idealizado – uma teoria política
que estabeleceria um ordenamento político e social, criando
uma nação.
O contraste entre litoral e sertão, ora tensão entre civilização
e barbárie; ora entre elementos alheios – cópia de outras civiliza-
ções – e os elementos virtualmente constitutivos de uma autên-
tica nacionalidade, está presente em ambos os textos e remete-
nos ao debate sobre o contraste tipológico entre duas ordens
sociais proposto por Robert Nisbet (1980) em sua análise sobre
o surgimento dos argumentos sociológicos na Europa. Nisbet
afirma que foram os conservadores, no âmbito de uma disputa
entre diferentes versões relativas ao processo revolucionário fran-
cês, os que primeiro conceberam a Revolução como um desfecho
dramático e violento ao longo processo de transformações por
que passava a vida social francesa sob o Antigo Regime. Segundo
o autor, pela crítica que fizeram ao individualismo e à noção de
uma razão universal, dissociada das especificidades culturais, foi
possível a autores como Bonald e De Maistre levantar uma série
de interrogações perante os problemas advindos da modernidade,
antecipando temas como o dos grupos intermediários, enfatizado
posteriormente por Alex de Tocqueville e Émile Durkheim.
A proposta de Nisbet atribui a gênese de um pensamento
sociológico a autores que William Kornhauser (1966) identifica
como formuladores de crítica aristocrática à formação da socie-
dade de massas, crítica que consistia, entre outros aspectos, em
uma reação à proposta do pensamento revolucionário francês de
defesa da liberação do indivíduo de todos os constrangimentos
sociais. Gustav Le Bon cristalizou esse temor em termos socioló-
gicos quando descreveu sua época como uma era de multidões,
vistas como veículos da decadência da civilização (Kornhauser,

79
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

1966, p.26). A uniformização do mundo e a ausência de inter-


mediação entre Estado e indivíduos, e o próprio conceito de in-
divíduo que emergia daquela experiência histórica eram acentua-
dos em tal crítica.3
De acordo com Nisbet, a reação conservadora teve profundas
implicações para a análise social, influenciando as abordagens
de liberais e socialistas, especialmente por meio da tipologia que
se ocupa da distinção entre tradição e modernidade. Poucas pers-
pectivas seriam tão dominantes na sociologia do século XIX quanto
o contraste tipológico de duas ordens sociais, como demonstram,
entre outras, as oposições entre status e contrato (Henry Maine);
aristocracia e democracia (Tocqueville); feudalismo e capitalis-
mo (Marx); comunidade e sociedade (Tonies).
No caso brasileiro, o contraste entre dois tipos de ordem
social não ocorreu predominantemente entre duas formas histo-
ricamente sucessivas, mas entre duas ordens que conviveriam
por longo período de tempo, em uma sociedade onde tantas vezes
a geografia, como observou Roger Bastide (1978), explicaria a
história. É desse contraste e sua expressão dramática na forma
de agudo conflito que trata Euclides da Cunha em Os sertões.
Certamente não fora fortuita a primeira idéia de título para
o livro – A nossa Vendéia.4 A comparação entre a rebelião campo-
nesa na França pós-revolucionária e a Guerra de Canudos foi ob-
jeto de muitas críticas, pelo estabelecimento de analogias entre
a experiência francesa e os problemas da recente República bra-
sileira. O próprio Euclides da Cunha alteraria sua afirmação ini-
cial sobre a importância da vitória das forças republicanas, acen-

3 De acordo com Alan Dawe (1980), o termo “indivíduo”, durante a Idade


Média, significava aquilo que não se poderia separar, indicando a importân-
cia dos vínculos comunitários naquele período histórico. A noção de auto-
nomia dos seres humanos seria formulada posteriormente consistindo em
uma das mais importantes características da modernidade.
4 Euclides da Cunha escreveu com esse título seu primeiro artigo sobre Ca-
nudos, publicado n’O Estado de S. Paulo, em 14.3.1897.

80
A sociologia desconcertante de Os sertões

tuando a crítica aos excessos e às contradições do regime na luta


contra os sertanejos. De toda forma, como argumenta Leopoldo
Bernucci (1995), permanece válida a comparação entre Os sertões
e o livro Quatre-vingt-treize [Noventa e três] de Victor Hugo, dedi-
cado à rebelião da Vendéia. Também o autor francês não escapa-
ria das tensões entre a ênfase cientificista da literatura de cunho
naturalista e o romantismo, encontrando-se igualmente dividido
entre a visão de uma civilização que deveria se impor e a denúncia
de seus problemas e contradições.
A interpretação proposta por Nisbet vem recebendo críticas,
especialmente por parte de autores contrários a se atribuir papel
preponderante na elaboração de argumentos sociológicos a inte-
lectuais refratários ao tema da mudança e tão identificados à crítica
aristocrática aos fenômenos coletivos que acompanharam a en-
trada em cena de novos atores políticos. No caso do Brasil, é pos-
sível afirmar que a emergência de perspectivas sociológicas deve
ser creditada com maior propriedade não aos pensadores conser-
vadores, mas àqueles que, se identificando com ideais do pro-
gresso, oscilavam entre sua defesa inconteste e o apontamento
das contradições da nova ordem social. De fato, a emergência de
uma perspectiva sociológica esteve intrinsecamente associada à
ambivalência de pensadores como Euclides da Cunha, o que se
revela de forma magistral na célebre frase: “Estamos condenados
à civilização”(Cunha, 2001,p.155).
Nessa perspectiva, o caráter conservador, historicamente atri-
buído ao termo sertão, pode adquirir conotação negativa ou posi-
tiva, aproximando-se de dicotomias clássicas das sociedades oci-
dentais: civilização e barbárie, culturas de folk e civilização
ocidental, tradição e modernidade, cultura e civilização. Discutir,
ainda que sucintamente, o conceito de civilização pode contri-
buir para a melhor compreensão do argumento.
Segundo Norbert Elias (1990, p.24), o conceito de civiliza-
ção expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo, resu-
mindo um julgamento que fazem as sociedades ocidentais de sua

81
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

superioridade em relação às sociedades mais antigas ou às socie-


dades contemporâneas “mais primitivas”. Ao empreender o estudo
de sua gênese, o autor traz importante contribuição para que se
relacione a posição dos intelectuais e o surgimento de ideologias
de construção da nacionalidade.
A origem do termo civilização pode ser encontrada na França
do século XVIII. De acordo com Elias, o termo traz a marca da
crítica fisiocrata, na qual a proposta consistia em orientar a polí-
tica dos governantes visando compreender as leis da civilização
e de poder, de alguma forma dirigir racionalmente seu curso. A
verdadeira civilização se situaria em um ciclo entre a barbárie e
a decadência, e o papel do governante esclarecido deveria ser o
de dirigir a tendência à decadência, gerada pela superabundância
de dinheiro. Na visão desses intelectuais reformistas, a incom-
pletude caracterizava a condição social e, dessa forma, duas idéias
estavam presentes no conceito de civilização. De um lado, ele se
contrapunha a um estágio anterior a ser suplantado – o da bar-
bárie –, e, de outro, significava não simplesmente um estado, mas
um processo que implicava a eliminação do que era considerado
bárbaro ou irracional nas condições vigentes. Opondo-se às pena-
lidades legais, às restrições impostas à burguesia ou às barreiras
que impediam o desenvolvimento do comércio – “este processo
civilizador devia seguir-se ao refinamento de maneiras e à pacifi-
cação interna do país pelos reis” (Elias, 1990, p.62). Com a as-
censão da burguesia, tal conceito de inspiração reformista e que
acentuava a idéia de processo foi substituído pela noção de que
estaria concluído na sociedade francesa e, progressivamente, em
outras sociedades européias. Tratava-se agora de tornar civiliza-
dos os povos bárbaros. Assim, a palavra civilização, de aspiração
burguesa, “transforma-se em uma espécie de auto-imagem na-
cional”(ibidem, p.64).
Na Alemanha, na segunda metade do século XVIII, o debate
assumiu outra feição, com a contraposição entre os conceitos de
cultura e civilização expressando o processo mais demorado de

82
A sociologia desconcertante de Os sertões

consolidação da nação e de construção de um discurso próprio


referido a essa autocompreensão. Segundo Elias (1990), a oposi-
ção entre civilização e cultura na Alemanha foi formulada inicial-
mente por Kant, que considerava a idéia de moralidade como parte
da cultura, sendo que sua aplicação a aspectos visíveis de conduta
apenas indicava o processo civilizador (ibidem, p.27).
Ao estudar a antítese entre cultura e civilização, o autor assi-
nala a conotação de artificialidade atribuída pela intelectualidade
alemã à última palavra, identificando-a com os costumes e o culto
à aparência que caracterizariam a sociedade de corte. Para os ale-
mães, o eixo da nacionalidade residia na singularidade e suposta
autenticidade de sua experiência nacional, que emergia nos círcu-
los externos à aristocracia. Não por acaso, os estudos sobre
nacionalismo acentuam a matriz germânica do que se tem
denominado nacionalismo cultural, enfatizando que o conceito
de cultura teria um apelo inevitável para os povos que se sen-
tiram ameaçados pela moderna cultura universalista (Kohn,
1955; Oliveira, 1990).
Há ainda que considerar um aspecto relevante da oposição
entre cultura e civilização discutida por Elias. Mais do que mo-
delos rígidos e chaves classificatórias nas quais deveríamos en-
quadrar perspectivas intelectuais e contextos de formação de
ideologias da nacionalidade, tais conceitos podem ser vistos como
expressão da convivência conflituosa de dimensões tradicionais
e modernas e de intercomunicação de matrizes românticas e
iluministas. É à luz dessa perspectiva que me refiro às possibili-
dades teóricas e de análise oferecidas por Norbert Elias para o
estudo das relações entre intelectuais e construção de uma
autoconsciência nacional. O reconhecimento da convivência de
matrizes de pensamento românticas e iluministas pode tornar
mais rica a compreensão do contraste e, no limite, da oposição
entre litoral e sertão na obra de Euclides da Cunha.
No Brasil, a gênese dos argumentos sociológicos foi marcada
pelo debate sobre atraso social, cujos termos se aproximam à

83
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

experiência da intelectualidade alemã em sua reflexão sobre seu


papel na construção da nacionalidade. Do mesmo modo, o contraste
entre cultura e civilização pode ser identificado na contra-
posição entre civilização autêntica, ainda que virtual, e civili-
zação de copistas, tal como propôs Euclides da Cunha. Outro
aspecto relevante no debate intelectual brasileiro desde o último
quartel do século XIX consistiu na possibilidade de promover, pela
via das instituições e da atuação das elites, a superação do que se
considerava obstáculo para a afirmação de uma nação moderna.
Como observa Wanderley Guilherme dos Santos (1978),
imensas eram as dificuldades experimentadas pelos analistas so-
ciais ao lidar com o problema da construção da ordem em uma
sociedade recém-egressa do escravismo e que vivia o início da
experiência republicana. Não surpreende, desse modo, o forte
conteúdo político das primeiras tentativas de interpretação da
sociedade brasileira. Tratava-se de formular propostas a respeito,
a um só tempo, das vias mais adequadas para a consolidação do
Estado e de organização da sociedade. A denúncia sobre os con-
trastes entre o Brasil do litoral e o Brasil d’Os sertões, trazido à
luz pelos escritos de Euclides da Cunha, inscreve-se nesse intenso
debate sobre a adequação das instituições ao ambiente social, tão
recorrente na agenda intelectual e política do país.

Determinismo, plasticidade e mudança


no argumento sociológico de Os sertões

Três idéias básicas constituem em Os sertões, o núcleo de um


argumento sociológico definidor de uma matriz de pensamento
sobre o Brasil: o isolamento do sertanejo, a constituição de uma
camada social intermediária e com relativa autonomia (os ho-
mens pobres e livres); e a alienação das elites diante do dese-
quilíbrio entre litoral e sertão e da própria formação histórico-
social do país. Ainda que parcialmente possam ser explicadas pelo

84
A sociologia desconcertante de Os sertões

determinismo do meio geográfico, escapam de sua feição mais


rígida e adquirem a força de uma explicação mais propriamente
sociológica com impacto em inúmeros trabalhos posteriores, in-
cluindo os organizados segundo parâmetros acadêmicos da ciên-
cia social institucionalizada.
Adotando tal perspectiva, acentuo a propriedade de se reco-
nhecer na obra de Euclides da Cunha caminhos possíveis de agên-
cia humana em face dos determinismos, quer do ambiente geo-
gráfico quer da raça. A análise se concentra nas partes do livro
intituladas – “O homem” e “A luta” –, apesar de não ignorar o
fato de a primeira parte – “A terra” – prefigurar as subseqüentes,
consistindo os elementos geológicos e geográficos o cerne das
imagens e metáforas posteriormente utilizadas. Essa considera-
ção ganha mais validade, se considerarmos que o tributo ao de-
terminismo racial, efetivamente presente em “O homem”, tem
muito menor importância na construção do argumento do que a
tese do determinismo do meio. Apesar disso, para os propósitos
deste ensaio, vou me ater às duas últimas partes, pois nelas a
argumentação sociológica fundadora de uma matriz de pensa-
mento social pode ser mais bem reconstituída.
Das idéias mencionadas, a do isolamento do sertanejo cer-
tamente é a que se encontra mais elaborada no texto, e ao for-
mulá-la, Euclides da Cunha afastou-se da explicação raciológica
a que se refere em longa passagem de “O homem”. Uma primeira
questão a considerar é exatamente a da maior importância da
determinação do meio na construção do argumento do autor. Ao
discutir a impossibilidade de precisar um tipo antropológico
único como representativo do brasileiro, destaca a variabilidade
do meio físico, dificilmente captada pelos naturalistas, e que teria
importantes conseqüências para o país. A Serra do Mar se consti-
tuiria, desse modo, em importante isolador étnico e histórico
(Cunha, 2001, p.168).
É evidente que não se trata de negar a presença de teses ine-
quivocamente tributárias de determinismo racial, especialmente

85
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

a noção do retrocesso representado pela mestiçagem extremada,


destacada em três páginas de “O homem”.5 Não obstante a utili-
zação desse tipo de argumento, logo aparece uma explicação al-
ternativa:

entretanto, a observação cuidadosa do sertanejo do norte mostra


atenuado esse antagonismo de tendências ... pois o sertanejo é um
retrógrado; não é um degenerado. Por isto mesmo que as vicissi-
tudes históricas o libertaram na fase delicadíssima da sua forma-
ção das exigências desproporcionadas de uma cultura de emprés-
timo (Cunha, 2001, p.202)

A própria impossibilidade de estabelecer um tipo antropoló-


gico único – sonho dos antropólogos de seu tempo – é afirmada
tendo em conta tanto a formação étnica ancestral como a variabi-
lidade do meio e das situações históricas. A afirmação “Não há
um tipo antropológico brasileiro” (p.175) guarda semelhança
com as idéias defendidas por Sílvio Romero (1888) em sua
crítica à idealização de se buscar uma raça que caracterizasse o
Brasil.
De todo modo, temos na parte final do livro a imagem do
sertanejo como rocha viva da nacionalidade, objeto inclusive da
atenção de um crítico contemporâneo a Euclides da Cunha que
apontou essa contradição na obra. Em sua resposta, o escritor
observou que na realidade empírica os elementos pouco permeá-
veis a uma primeira observação poderiam ser encontrados se
removêssemos as camadas superficiais e chegássemos ao âmago
da nacionalidade. A analogia proposta é com o granito e suas três
rochas constitutivas, tal como observa José Carlos Santana (1998)
em estudo sobre as metáforas geológicas em Os sertões. No con-
junto da obra é possível também identificar a defesa de unidade

5 De acordo com Leopoldo Bernucci, em nota explicativa ao texto em pauta,


longo trecho dessas páginas representa uma paráfrase do artigo de Nina
Rodrigues: “A loucura epidêmica de Canudos”, publicado em 1897.

86
A sociologia desconcertante de Os sertões

étnica e social como virtualidade, prevendo-se a formação de uma


“raça histórica” como produto de evolução social, suportada pelo
caráter positivo do sertanejo.
O argumento mais relevante para a definição do “homem” d’Os
sertões é, sem dúvida, o isolamento. Este seria tratado, à semelhança
de outros temas presentes na obra, a partir de uma posição
ambivalente, pois, ao mesmo tempo, explicaria o caráter retrógrado
do sertanejo e sua proteção diante dos efeitos perversos de uma
civilização que, na perspectiva de Euclides da Cunha, revelava si-
nais de decadência e inautenticidade: “Fora do litoral, em que se
refletia a decadência da metrópole e todos os vícios de uma nacio-
nalidade em decomposição insanável – aqueles sertanistas asse-
melhavam-se a outras raças” (Cunha, 2001, p.173). Redimidos
de seu anacronismo secular, aos sertanejos se destinaria a con-
quista étnico-social do país, e, por isso, eles foram vistos como a
“rocha viva da nacionalidade” (Sevcenko, 1989, p.204).
Ao discorrer sobre a importância do Rio São Francisco,6
Euclides da Cunha ressalta mais uma vez o tema do isolamento
do sertanejo e destaca o esquecimento a que este seria relegado
pelas elites coloniais, pois a região percorrida pelo rio: “Povoara-
se e crescera autônoma e forte, mas obscura, desordenada, de
todo esquecida não já pela metrópole longínqua senão pelos pró-
prios governadores e vice-reis” (Cunha, 2001, p.188). Os serta-
nejos se criam em um país diverso (ibidem, p.196).
Do ponto de vista sociológico, o tema do isolamento associa-
se à relativa autonomia dos homens d’Os sertões, remetendo a um
debate que seria elaborado posteriormente por autores como
Emilio Willems, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Maria Silvia
Carvalho Franco – o da importância dos homens pobres e livres
na formação da sociedade brasileira e sua pouca visibilidade na

6 A importância do Rio São Francisco no estabelecimento de uma civilização


distinta da litorânea é acentuada em diversos estudos. Euclides da Cunha re-
corre ao livro História do Brasil do historiador João Ribeiro, publicado em 1900.

87
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

literatura de cunho histórico-social. Os sertões insere-se também no


debate, bem menos explorado pela literatura, sobre nomadismo e
laços sociais aparentemente frágeis dos “homens de saco e botija”,
conforme expressão de Oliveira Vianna (1952). O nomadismo apa-
rece na obra de Euclides da Cunha como uma das explicações para
as práticas religiosas prevalecentes entre os sertanejos.
Por mais imprecisa que seja a definição espacial e social de
sertão, boa parte dos autores que se volta para o tema focaliza,
de forma positiva ou negativa, a camada intermediária das áreas
rurais brasileiras – a dos “homens livres em uma ordem escra-
vocrata”,7 a dos vaqueiros, barqueiros, tropeiros, pequenos sitian-
tes, agregados e parceiros –, vista, muitas vezes, como partícipe
de um mesmo universo cultural e de um modo de vida pré-capi-
talista. Desde o Brasil colônia, pode-se perceber a coexistência
de um campesinato livre com as fazendas monocultoras e com
as fazendas de gado, provendo-as de gêneros básicos. Euclides
da Cunha e Oliveira Vianna encontram-se entre os autores que
observaram a existência dessa camada intermediária entre os se-
nhores e os escravos e, posteriormente, entre os fazendeiros e
os trabalhadores sem-terra.8

7 Tomo de empréstimo a expressão que serve de título ao livro de Maria Sylvia


de Carvalho Franco (1974).
8 Maria Isaura Pereira de Queiroz observa como uma das implicações da obra
de Euclides da Cunha a construção do mito do isolamento dos sertanejos,
dificultando que se perceba a grande variabilidade das populações sertane-
jas ou rústicas quanto aos padrões de contato e interação com núcleos urba-
nos. Observa a existência no meio rural brasileiro, durante o período colo-
nial, de uma camada intermediária de homens livres e, após a abolição da
escravatura, de sitiantes colocados entre os fazendeiros e os trabalhadores
sem-terra. Outro subgrupo era constituído por sitiantes de regiões onde
inexistiam grandes fazendas, tal como nas áreas da chamada cultura caipi-
ra, e que mantinham vínculos mais ou menos freqüentes com os núcleos
urbanos. Sua posição evidentemente não era fixa, podendo oscilar entre a
condição de pequeno proprietário ou posseiro e a de agregado ou parceiro
(Queiroz, 1965, p.311). É dessas camadas que falaria boa parte da literatura
sobre caboclos, sertanejos e caipiras.

88
A sociologia desconcertante de Os sertões

Ao lado dessas explicações de natureza mais propriamente


sociológica, encontram-se também em Os sertões, inúmeros tre-
chos em que sobressaem elementos de surpresa que desconcer-
tam o narrador e, também, porque não reconhecer, seus intérpre-
tes. Desde a geografia caracterizada pela monotonia das paisagens,
mas também por mudanças bruscas que a todo momento sur-
preendem, até a observação dos sertanejos como seres dotados
de imensa plasticidade, alterando seu comportamento e mesmo
a aparência física de acordo com as circunstâncias. Alguns auto-
res, ao analisar esse aspecto da obra euclidiana, do ponto de vista
da teoria literária, observam como ela se afasta do naturalismo
enunciado na intenção do autor, assumindo nítida feição român-
tica. Na própria descrição da natureza, progressivamente são mo-
bilizadas imagens que, em contraste com o esperado, a antro-
pomorfizam, tornando-a protagonista da guerra (Ventura, 2001;
Zilly, 1998).
No caso do sertanejo, a surpresa é quase sempre resultado
da transmudação a que as circunstâncias o impelem. A plastici-
dade desse personagem revela-se tanto em “O homem”, cujo ter-
ceiro capítulo é inteiramente dedicado a demonstrar tal argumen-
to, como em “A luta”, em que o tema da transmudação aparece
tanto na descrição de comportamentos individuais como no da
coletividade de Canudos.
No capítulo citado, que inicia com a conhecida frase “o serta-
nejo é antes de tudo um forte”, a imagem mais expressiva consiste
na do Hércules-Quasímodo. Mais uma vez o observador poderia
ser enganado pela impressão superficial, pois a um primeiro olhar
sobressai a falta de graça; o aspecto desengonçado do sertanejo.
No entanto, ao primeiro incidente, verifica-se a mudança: “... da
figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o
aspecto de um titã acobreado” (Cunha, 2001, p.208).
Em uma das mais belas passagens do livro em que o autor
descreve a arribada – o estouro da boiada –, a explosão inexpli-
cável que se manifesta coletivamente no gado resulta em um mo-

89
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

mento ímpar para que se manifestassem as energias adormeci-


das e o caráter heróico dos sertanejos. Um heroísmo forjado pela
adversidade das circunstâncias a que se encontraria exposto uma
vez que “A sua vida é uma conquista arduamente feita em faina
diuturna”(ibidem, p.215).
É interessante observar que nos últimos capítulos de “O
homem” toda essa caracterização heróica se esvanece nas primei-
ras descrições de Canudos. A localidade é mencionada como
“Tróia de taipa”, urbe maldita e infernal, bastante negativa tam-
bém a caracterização de seus habitantes e a de Antônio Conse-
lheiro. Este, contudo, não deveria ser visto como um espécimen
a ser observado pelos médicos, e sim como elemento ativo e passi-
vo da agitação de que surgiu e que seria em grande parte explicada
por alguns dados biográficos – conflito de famílias, perseguição
de fazendeiros, dissabores no casamento. Euclides da Cunha reto-
ma a caracterização heróica dos sertanejos nos capítulos finais
de “A luta”, referindo-se a alguns indivíduos e a toda a coletivi-
dade. A mesma construção literária que reconstitui processos de
súbita mudança ou transmudação de Quasímodo a Hércules apa-
rece na descrição de um prisioneiro de guerra que se transfor-
mara repentinamente em herói:

Seguiu impassível e firme; mudo, a face imóvel, a musculatura


gasta duramente em relevo sobre os ossos, num desempeno impe-
cável, feito uma estátua, uma velha estátua de titã, soterrada havia
quatro séculos e aflorando, denegrida e mutilada, naquela imensa
ruinaria de Canudos. Era uma inversão de papéis. Uma antinomia
vergonhosa... (Cunha, 2001, p.732)

Do mesmo modo, o tema da inversão de papéis domina as


páginas finais do livro em que se avolumam constantes revezes,
e os momentos que pareciam definitivos culminam com a seguin-
te afirmativa: Canudos não se rendeu. A plasticidade dos perso-
nagens que se confrontam direta ou indiretamente no conflito
encontra também expressão na possibilidade de inversão de pa-

90
A sociologia desconcertante de Os sertões

péis entre os homens do litoral e os do sertão. A imagem da Rua


do Ouvidor como ambiência da civilização era, com freqüência,
contestada pelo autor de Os sertões, que, ao comentar ações de
empastelamento de jornais monarquistas à época da Guerra de
Canudos, observou que talvez não fosse tão grande a distância
entre os citadinos e os sertanejos: “A rua do Ouvidor valia por
um desvio das caatingas. O homem do sertão encourado e bruto
tinha parceiros porventura mais perigosos”. Em diversas outras
passagens do texto, a inversão de posições entre litoral e sertão
e entre personagens como o coronel Moreira Cesar e Antônio
Conselheiro aparece como constante. E é interessante que, a des-
peito das referências a atavismos de básica étnica, as caracteri-
zações mais precisas dos personagens se voltam para temas cir-
cunstanciais em grande parte decorrentes do teatro da guerra.
A palavra utilizada com mais freqüência por Euclides da
Cunha para se referir a essa plasticidade da natureza e dos ho-
mens é transmudação. Com efeito, a idéia de transformismo
como característica básica do mundo, visto por vezes de forma
darwinista como luta incessante pela sobrevivência, pode ser
apontada como bastante presente na narrativa sobre a Guerra de
Canudos e em outras passagens de Os sertões (Valente, 1998).
O que torna o texto mais desafiador, especialmente pelo con-
traste com o arcabouço cientificista da obra, é a constante refe-
rência ao impoderável, à surpresa, como se fosse impossível, pela
via da ciência, captar o sentido da permanente transformação.
Uma hipótese instigante poderia ser formulada com referên-
cia à presença de um fio condutor de inspiração darwinista na
obra euclidiana. Como se sabe, a recepção das idéias evolucio-
nistas no Brasil de fins do século XIX e início do século XX ten-
deu ao esquematismo e a variadas formas de determinismo, dis-
tanciando-se em muito das interpretações mais ricas e complexas
da teoria da evolução de Charles Darwin. Curiosamente, na obra
euclidiana, o desconforto com as explicações científicas apresen-
tadas inicialmente como arcabouço do livro e que, segundo procuro

91
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

demonstrar, revela-se nessa constante referência a mudanças não


previsíveis e em uma crítica, por vezes manifesta, por vezes laten-
te, aos ideais de progresso e à ciência de seu tempo, guarda seme-
lhança com dimensões centrais da teoria da evolução. Refiro-me
às interpretações que sublinham o caráter não teleológico do pen-
samento darwiniano, compreendendo a evolução como um pro-
cesso não determinado, um produto de contingências históricas
referidas à interação de processos causalmente independentes.9
Sugiro, desse modo, exame mais acurado da hipótese breve-
mente anunciada pois talvez contribua para que se encontre ex-
plicação alternativa diante das tensões entre o discurso científico
enunciado pelo autor e sua perplexidade diante da natureza, da
sociedade sertaneja e do desenrolar da Guerra de Canudos. Não
se trata de negar a abordagem evolucionista, evidente em inúme-
ras passagens de Os sertões, mas de propor uma outra perspectiva
que, sem desconhecê-la, a situe em um enquadramento menos
esquemático. Talvez se possa defender a idéia de que não se trata
de uma refutação da ciência naqueles momentos considerados
de resistência textual – “ilhas que põem em xeque a intenciona-
lidade do autor”, como observa Luiz Costa Lima (2001, p.14),
mas sim de identificar a presença de um outro discurso científico
mais sutil e um tanto embrionário na perspectiva adotada por
Euclides da Cunha.
Uma segunda corrente teórica importante a requerer novos
esforços de análise e cuja referência faz-se imperiosa é o positi-
vismo. Muito já se falou inclusive da influência do positivismo
dos reformadores republicanos militares na obra de Euclides da
Cunha (Galvão, 1984; Sevcenko, 1989). Como em outras aborda-
gens evolucionistas, nela encontramos a idéia de uma sociedade
em transformação, possível de ser identificada pela ciência, ca-
paz de prever o ritmo e rumo da mudança. Onde o texto escapa
a esse determinismo mais estreito é exatamente quando observa

9 A esse respeito, consultar a obra de Richard Lewontin (2001).

92
A sociologia desconcertante de Os sertões

em seus interstícios as possibilidades de intervenção humana. É


desse modo que Os sertões pode também ser lido como um brado
de alerta para as elites litorâneas às quais se dirige. A elas caberia
romper com o isolamento d’Os sertões e acelerar o progresso social.
No primeiro capítulo de “O Homem” fica evidente a pos-
sibilidade de, pela ação política, inverterem-se os postulados
deterministas:

Predestinamo-nos à formação de uma raça histórica em futu-


ro remoto, se o permitir dilatado tempo de vida nacional autôno-
ma. Inverteremos sob esse aspecto a ordem natural dos fatos. A
nossa evolução biológica reclama a garantia da evolução social.
Estamos condenados à civilização.
Ou progredimos, ou desaparecemos (Cunha, 2001, p.157)

À semelhança do que vimos na análise da elite política do


Império, novamente o tema da inversão “da ordem natural”. O
país parecia ser feito dessas inversões. Mas há um segundo ponto
relevante e que diz respeito à construção societária motivada pela
experiência do encontro entre homens do litoral e homens do
sertão. A coletividade de Canudos transformara “Quasímodos”
em titãs acobreados. A consciência adquiria forma naquele con-
junto de sertanejos que enfrentavam a adversidade da guerra.
Vemos então um movimento diverso do apontado na vertente
conservadora da crítica à sociedade de massas: o movimento co-
letivo vivido em Canudos seria uma experiência radicalmente di-
versa da espécie de patologia social representada pelas multidões,
tal como as conceberam os conservadores franceses, e, sob essa
influência, abordou Nina Rodrigues em artigo sobre a guerra d’Os
sertões brasileiros. A experiência não só humanizara os sertane-
jos, tornando-os seres visíveis e altivos, como os transformara
em heróis, algo radicalmente distante do amorfismo social apon-
tado pela teoria da sociedade de massa.
O último parágrafo de Os sertões aborda exatamente a antro-
pologia biológica de seu tempo e a análise do fenômeno da patolo-

93
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

gia social. Ao se referir às linhas essenciais do crime e da loucura


impressas no crânio de Antônio Conselheiro, e que logo se cons-
tituiriam em objeto da ciência, Euclides da Cunha termina o texto
com a célebre frase: “É que ainda não existe um Maudsley para
as loucuras e os crimes das nacionalidades” (2001, p.781). Uma
observação superficial parece indicar o rompimento do consórcio
entre arte e ciência, pela proximidade que indicava entre a atitude
dos cientistas e o comportamento irracional que dominava o fim
do conflito e pelo anúncio da impotência do discurso científico
em explicar a tragédia vivida no sertão baiano. Ao mesmo tempo,
o texto parece indicar a necessidade de construção de uma ciência
que tomasse por objeto os temas mais profundos, formadores
da nacionalidade brasileira.
Isto só é possível quando o texto (ou o autor?) escapa da
moldura que o prende a um esquema determinista e esboça pers-
pectivas de análise das mais relevantes na formação do pensa-
mento político social no Brasil. Ao lado do estilo intelectual, tão
bem identificado por Wanderley Guilherme dos Santos (1978)
ao abordar a persistência da idéia de dualidades básicas para expli-
car a formação e alternativas da sociedade brasileira, é igualmente
possível identificar, a partir da obra de Euclides da Cunha, al-
guns temas substantivos presentes em textos centrais para a des-
coberta ou, se preferirmos, para a invenção do Brasil.
No período de institucionalização universitária das ciências
sociais, quando se intensificam os esforços de se reconstituir
historicamente a imaginação social e política no país, Florestan
Fernandes (1958) observou essa continuidade de temática e de
questões e, em artigo sobre mudança social, recorreu ao esquema
originalmente proposto por essa obra na construção de seu pró-
prio argumento.10 Quatro décadas após a publicação de Os ser-
tões, afirmava que “A realidade cultural do Brasil é e será ainda
durante alguns anos a descrita por Euclides da Cunha...” (Fer-

10 Sobre esse tema, ver Lima (1999).

94
A sociologia desconcertante de Os sertões

nandes, 1979, p.125). Observava a pouca nitidez geográfica dos


termos litoral e sertão, que apareceriam na verdade como expres-
são de um certo tipo de formação social e cultural e nos quais o
tempo, mais precisamente os contrastes entre várias fases his-
tóricas de uma civilização, seria variável mais significativa do que
o espaço. Não se tratava de distância geográfica, mas de distância
cultural que se manifestava nos contrastes, ou, no limite, nos
antagonismos e conflitos entre civilização e culturas de folk
(ibidem, p.123).
Também não foram poucos os que sublinharam a grandiosi-
dade do texto a despeito de seus equívocos, em parte produto
do cientificismo e dos preconceitos intelectuais da época em que
foi publicado. Guerreiro Ramos (1995), por exemplo, chegou a
propor, como alternativa à abordagem litorânea ou consular que
atribuía a muitos de seus contemporâneos, a adoção de uma pers-
pectiva euclidiana pelas ciências sociais, destacando como seus
elementos centrais a crítica social e a atitude refratária aos modis-
mos e ao que via como folclorização dos estudos sobre negros e
pobres na sociedade brasileira.
Não resta dúvida que se está diante de uma obra que se in-
surge contra qualquer contextualização e interpretação datada e
que ainda hoje, um século após sua publicação, ao ser revisitada,
surpreenda leitores e intérpretes. Isso a despeito de erros de abor-
dagem e mesmo de lacunas e equívocos na reconstituição histó-
rica dos eventos narrados e dos personagens retratados. Como
foi ressaltado neste texto, Os sertões representou o marco de ori-
gem da interpretação dualista com sua forte imagem de uma so-
ciedade dividida entre um pólo atrasado, no sertão, onde poderia
residir a base da nacionalidade e um pólo “civilizado” no litoral,
formado porém por copistas, elites políticas e intelectuais que
permaneciam com os olhos voltados para a Europa, de costas para
a nação. Trata-se de um livro-monumento que evoca Canudos
como um convite à reflexão sobre o Brasil.

95
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

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98
A terceira expedição

Ayrton Marcondes1

Os acontecimentos que cercaram a infausta terceira expedi-


ção a Canudos e a natureza do homem que a comandou talvez
jamais venham a ser completamente esclarecidos. Naquele de-
sastre desapareceram em campo de batalha os principais respon-
sáveis pelo ataque à cidadela. Derrotados, submeteram-se ao tre-
mendo veredicto que lhes foi reservado pela história: Moreira
César, epiléptico, louco, inconseqüente; Tamarindo, tíbio e aco-
vardado; os soldados, em sua maioria um bando de fujões que, du-
rante a retirada, internaram-se na caatinga e caminhos do sertão.
Ainda hoje pesam sobre os valorosos membros da terceira ex-
pedição as sentenças que lhes foram imputadas pelos seus con-
temporâneos. A historiografia não os tem poupado. Repetindo suas

1 Autor de Canudos, as memórias de Frei João Evangelista de Monte Marciano (Best


Seller, 1997) e Campos Salles, uma investigação na República Velha (Edusc, 2001).

99
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

façanhas e descalabros a exaustão, historiadores recontam um


mesmo discurso, um ou outro permitindo-se discretas variantes.
É dentro desse quadro que este trabalho pretende se inserir.
Refazendo os caminhos da terceira expedição, revisitando narra-
tivas e buscando o pulso dos homens que dela participaram, en-
cerra-se nele uma tentativa de busca da verdade.

Organização, percurso e ação

O insucesso da segunda expedição a Canudos, comandada


pelo major Febrônio de Brito, demandou rápidas medidas do go-
verno federal visando organizar uma nova expedição com a mis-
são de levar a termo a insurreição medrada no interior do Estado
baiano. Para isso, constituiu-se uma brigada sob o comando do
coronel Antônio Moreira César, composta de três batalhões de
infantaria, um regimento de cavalaria, um regimento de artilha-
ria, quatro bocas de fogo e outras forças que a ela seriam agrega-
das quando de sua chegada à Bahia.
Poucos dias depois, em 6 de fevereiro de 1897, o comandante
da expedição chegou a Salvador, de onde, já no dia seguinte, deslo-
cou-se de trem para Queimadas, levando consigo parte de seu
contingente. Após permanecer dez dias em Queimadas, seguiram
para Monte Santo. No trajeto para Monte Santo, num lugar cha-
mado Quirinquincá, Moreira César foi acometido por um ataque
que os médicos da expedição diagnosticaram como convulsões
epileptiformes. No dia seguinte, chegaram a Monte Santo, onde
finalmente se reuniu todo o efetivo da coluna que marcharia em
direção a Canudos. Eram cerca de 1.300 homens.
Instalado em Monte Santo, onde permaneceria por cinco dias,
dispunha o comandante de duas opções para marchar com sua
coluna em direção a Canudos. A primeira delas era a estrada do
Cambaio. Por ela seguira a infausta expedição de Febrônio de
Brito, enfrentando trajeto acidentado e pedregoso onde subita-

100
A terceira expedição

mente cessam os terrenos planos e inicia-se área montanhosa de


difícil acesso. O outro, mais longo cerca de dez léguas, oferecia a
vantagem de evitar-se a área montanhosa. Suas desvantagens, co-
mo mais tarde se constataria, seriam a travessia de um areal de
cerca de oito léguas sem água e a necessidade de abertura de uma
picada de cinco léguas. Para seguir esse caminho a coluna deveria
deslocar-se até a localidade de Cumbe, de onde partiria para o
norte em direção a Canudos.
Optando pelo trajeto mais longo, partiu a brigada para o
Cumbe, sendo deixados cem homens em Monte Santo à guisa
de retaguarda. No lugar chamado Laginha, sofreu o coronel Mo-
reira César dois ataques epilépticos consecutivos. Ainda assim
todo o efetivo reuniu-se no dia seguinte no Cumbe.
No dia 25 de fevereiro a brigada saiu do Cumbe e partiu em
direção ao seu destino. Fazendo escalas em pontos como Fazenda
Cajazeira, Serra Branca e Rosário, enfim chegaram ao Rancho do
Vigário, situado a dezenove quilômetros de Canudos. No dia 3
de março de 1897 saíram os soldados desse lugar com o plano
de percorrer dez quilômetros, parar, e só atacar no dia seguinte.
Entretanto, decidiu o comandante prosseguir e atacar imediata-
mente Canudos. Foi assim que, sob as ordens de Moreira César,
iniciou-se a ação. Eram onze horas da manhã quando os bata-
lhões de infantaria iniciaram a carga de baioneta e o entrevero,
ocupando-se a artilharia de bombardear a cidadela.
Infelizmente para as tropas do exército, as coisas não ocorre-
ram conforme a expectativa de seu comandante. Encontrando
inesperada resistência, conseguiram os soldados avançar e ocupar
parte de Canudos sem, contudo, lograr a desejada vitória. Às três
horas da tarde, o coronel Moreira César foi alvejado, assumindo
o comando o coronel Tamarindo, que, segundo relatos, não se
houve à altura da enormidade do momento. Desenhava-se a
tragédia.
Eram sete horas da noite quando os clarins soaram e os sol-
dados retornaram abandonando posições duramente conquista-

101
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

das. Bivacando num lugar conhecido como Fazenda Velha, aguar-


daram a nova manhã onde mais uma vez atacariam. Mas, em meio
à madrugada, faleceu o coronel Moreira César, e o coronel Pedro
Nunes Tamarindo, reunido com o major Cunha Mattos e outros
membros de seu estado-maior, decidiu-se pela retirada. Retor-
nariam a Rosário, onde se reorganizariam para um novo ataque.
A retirada iniciou-se ao alvorecer e deu-se de modo desor-
denado. Atacados pelos jagunços, desfizeram-se as fileiras. Aban-
donando padiolas com feridos e armas, puseram-se os soldados
a correr, internando-se na caatinga e tornando-se alvos fáceis para
os jagunços. Segundo o relato do primeiro-tenente Marcos Pradel
Azambuja,2 apenas a arma de artilharia foi disciplinada e retroce-
deu; bombardeou os inimigos para proteger a retirada da coluna,
ainda sob as ordens do coronel Tamarindo. Entretanto, mesmo
ela sucumbiu, sendo morto o seu chefe capitão Salomão da Rocha.
Por fim, foi morto o coronel Tamarindo. Relata o tenente Pra-
del que a maioria dos soldados mortos durante a retirada não
pereceu em combate regular, mas foi cortada a facão pelos jagun-
ços de Antônio Conselheiro.

Cesare Lombroso e a epilepsia

A epilepsia é uma alteração temporária e reversível do fun-


cionamento do cérebro que, durante segundos ou minutos, passa
a emitir sinais incorretos. Estes podem ficar restritos a seu local
de origem promovendo crises parciais. Caso se espalhem, ocasio-
nam crises gerais.
Nas crises parciais pode ou não haver perda da consciência.
Quando não há perda de consciência a crise se manifesta por sin-
tomas como distorções de percepção, movimentos descontrola-

2 Parte do relato do primeiro-tenente Marcos Pradel Azambuja ao major


Raphael da Cunha Matos. Arquivo do Exército, 20.3.1897.

102
A terceira expedição

dos de uma parte do corpo, distúrbios na audição e visão, medo


repentino e desconforto no estômago. Se houver perda da cons-
ciência, ao recuperar-se, a pessoa pode sentir-se confusa e mos-
trar-se esquecida.
As crises gerais iniciam-se com perda da consciência. O doen-
te cai, seu corpo fica rígido e verificam-se tremores e contrações
nas extremidades. Crises que se prolongam por mais de trinta
minutos podem prejudicar as funções cerebrais.
Cesare Lombroso (1836-1909) foi um dos maiores médicos
criminalistas de seu tempo. Em 1876 publicou a obra L’uomo de-
linqüente [O homem criminoso], com a qual passou a ser conhecido
como o “pai do criminoso nato”. Fazendo uso da anatomia patoló-
gica e da antropometria do crime, Lombroso analisou crânios de
pessoas de bem e de assassinos, valorizando dados como o ângulo
facial, capacidade, circunferência, curvas, arcos e projeção ante-
rior. Por meio desse processo, reuniu dados para descrever a fi-
sionomia encontrada na quase totalidade dos criminosos que po-
deriam ser reconhecidos por suas peculiaridades físicas: crânio
pequeno, órbitas de grandes dimensões, mandíbulas desenvolvi-
das, orelhas em forma de asa, supercílios salientes, resistência à
dor, e outras. A essas características somavam-se outras de natu-
reza psíquica que completariam o perfil do criminoso nato: ausên-
cia de remorso, impulsividade, vaidade excessiva, crueldade e
gosto por tatuagens, jogo e bebidas. Os caracteres físicos presen-
tes nos criminosos natos revelavam a sua proximidade com o ma-
caco, sugerindo que eles seriam um subproduto do atavismo, re-
sultado de uma espécie de seleção às avessas, resultante de
cruzamentos em que teria predominado a degenerescência.
Segundo Lombroso, a criminalidade pode decorrer de ano-
malias orgânicas – congênitas ou adquiridas – ou de causas ex-
ternas ao organismo, tais como fatores sociais, morais, dietéticos
e climáticos. Entretanto, são as causas orgânicas as responsáveis
pela quase totalidade dos comportamentos criminosos. A partir
daí, Lombroso divide os criminosos natos em epilépticos, loucos

103
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

morais e degenerados. Mas é a epilepsia que o médico crimina-


lista elege como a principal razão da criminalidade atávica.
No Brasil era lombrosiano o médico e professor de Medicina
Legal em Salvador, Raimundo Nina Rodrigues. Coube a ele exa-
minar o crânio de Antônio Conselheiro, surpreendendo-se por
não encontrar os sinais característicos que explicariam a sua ve-
sânia. Não os achando, Nina Rodrigues passou a explicá-la por
meio de fatores sociais e psicológicos que teriam determinado o
comportamento de Antônio Conselheiro. Suas conclusões estão
no ensaio que escreveu, “A loucura epidêmica de Canudos” (Nina
Rodrigues, 1939).
Nina Rodrigues deixou muitos discípulos: Oscar Freire, Artur
Ramos, Afrânio Peixoto e Lins e Silva, para citar alguns. Um de-
les, Afrânio Peixoto, escreveu e publicou o livro Epilepsia e crime,
(1938) no qual afirma, referindo-se ao coronel Moreira César:
“Hoje, o peso de suas culpas deve ser muito menor ... e a justiça
o torna irresponsável, pois ele obedecia às determinações de um
estado mórbido, era instrumento de sua epilepsia”.
Gilberto Freyre, em seu ensaio sobre Euclides da Cunha,
(1944), lembra que o escritor foi influenciado pelo diagnóstico
de Antônio Conselheiro feito por Nina Rodrigues. Era, pois, o
pensamento euclidiano afinado com atavismo defendido por
Lombroso, que, aliás, teve entre seus predecessores Maudsley,
cujas teorias sobre a hereditariedade da loucura moral eram tão
caras ao escritor. Daí que nenhuma surpresa existe no fato de
Euclides ter interpretado não só o caráter, como as ações de Mo-
reira César, a partir de sua conhecida condição de epiléptico: re-
publicano violento, passado sombrio, vulcão de imprevisíveis
erupções e capaz de decisões tresloucadas; assim era Moreira
César. Inconseqüente, não dera ouvidos a avisos, rejeitara ajudas
valiosas, ignorara a geografia da região onde seu exército se bate-
ria com os jagunços, e, movido pela pressa, arrastara os seus ho-
mens para a fatídica aventura na qual também ele perderia a vida.
A explicar sua irresponsabilidade a ciência determinista da época,

104
A terceira expedição

que impingia aos epilépticos atitudes criminosas. É Euclides


(1991, p.204) quem nos informa: “Tinha o temperamento desi-
gual e bizarro de um epiléptico provado, encobrindo a instabili-
dade nervosa de doente grave em placidez enganadora”. E, mais
adiante:

Realmente, a epilepsia alimenta-se de paixões; avoluma-se no


próprio expandir das emoções subitâneas e fortes; mas, quando,
ainda larvada, ou traduzindo-se em uma alienação apenas afetiva,
solapa surdamente as consciências, parece ter na livre manifesta-
ção daquelas um derivativo salvador atenuando os seus efeitos.
(ibidem, p.206)

Na doença e no atavismo residiam, pois, as causas profun-


das do desastre ocorrido com a terceira expedição a Canudos.

O veredicto de Euclides

Da vasta galeria de personagens de Os sertões, dois se agigan-


tam: Antônio Conselheiro e Antônio Moreira César. Do primeiro
pode-se dizer que tem merecido inúmeras releituras. Se Euclides
da Cunha interpretou a personalidade e a trajetória do beato se-
gundo os parâmetros científicos esposados por Nina Rodrigues,
a historiografia posterior encarregou-se de decifrá-lo. A “figura
anacrônica de Antônio Conselheiro, o louco de Canudos”, engen-
drada por Nina Rodrigues, o “gnóstico bronco”, “doente grave”
e “paranóico” das páginas de Euclides cederam lugar ao líder cuja
religiosidade e exemplo de vida catalisaram uma esperança de
liberdade para o povo esquecido e sofrido do sertão. Assim, Canu-
dos e sua gente vêm sendo reinterpretados, apaixonando estudio-
sos e permanecendo como um dos principais marcos referenciais
da nossa história.
Igual sorte não tiveram Moreira César e os soldados que par-
ticiparam da terceira expedição. Derrotados pelos jagunços, hu-

105
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

milhados, dizimados em sua trágica retirada, ainda hoje pesa


sobre eles o veredicto proferido por Euclides da Cunha nas pági-
nas de Os sertões. Acusados de erros bisonhos, sua participação
na guerra do sertão, raras vezes, terá sido revista. Cumpriu-se,
assim, em relação à terceira expedição, o malsinado destino de,
ao longo de um século, ver-se repetida ad nauseam a primeira e
única versão dos fatos ocorridos no sertão baiano. Apoiando-se
uns sobre os ombros de outros, historiadores de várias vertentes
sistematicamente ignoraram fontes primárias e descuraram-se
da pesquisa fazendo sobreviver imutável, até os dias atuais, o qua-
dro descrito pela primitiva historiografia.
Em Os sertões, Euclides da Cunha traçou memorável perfil do
coronel Moreira César:

Naquela individualidade singular entrechocavam-se, antinô-


micas, tendências monstruosas e qualidades superiores, umas e
outras no máximo grau de intensidade. Era tenaz, paciente, dedi-
cado, leal, impávido, cruel, vingativo, ambicioso. Uma alma pro-
teiforme constrangida em organização fragílima. (Cunha, 1991,
p.204)

Na história de Canudos, Moreira César é, portanto, o perso-


nagem do mal. Ele chega à Bahia fazendo lembrar, no universo
da ficção, aquele Nosferatu que mata todos os passageiros a bordo
do navio em que viaja e aporta deixando escapar milhares de ratos
que invadem a cidade. O Moreira César da historiografia passa
depressa por Salvador, mas tem tempo suficiente para mandar
esbordoar, a pranchadas, populares que se recusam a carregar
suas bagagens para a estação da Calçada. E, ainda, conforme o
noticiário do Jornal do Commércio, para distribuir pranchadas entre
os marinheiros de uma escuna estrangeira porque não auxiliam
o exército no desembarque das bagagens. Fatos esses que prevale-
cem até hoje como mostras do temperamento do coronel apesar
dos desmentidos públicos do major Cunha Mattos que acompa-
nhava Moreira César na ocasião.

106
A terceira expedição

É esse Moreira César que partirá para o sertão de onde ja-


mais voltará. Não é estranho o desinteresse em reabrir o seu caso.
Ele está bem como está, em seu papel de vilão. A história de Ca-
nudos não seria a mesma sem a participação de personagem de
tal envergadura. Morto, será mitificado. Como agente do mal,
emprestará seu nome à narrativa oral e permanecerá vivo em his-
tórias para sempre contadas entre as gentes do sertão. Fantas-
ma errante nas caatingas, será sempre lembrado por seus erros
em textos que, com a sua participação, muito ganharão em cor e
luz. Estranho o destino desse homem a quem a morte negou o
benefício do relato de sua própria aventura.

Realidade e ficção

Na introdução do seu livro Canudos, o povo da terra, o historia-


dor Marco Antônio Villa (1995) escreve que apesar da grandio-
sidade de Os sertões, o livro, como fonte de conhecimento do con-
flito ocorrido em Canudos, foi danoso. Ao comentar que
obviamente não se pode culpar Euclides da Cunha pela repetição
de suas análises, o historiador conclui afirmando que Os sertões
transformou-se “em uma barreira para o conhecimento histórico
da comunidade criada por Antônio Conselheiro”.
Um dos biógrafos de Euclides – Olímpio de Sousa Andrade,
em História e interpretação de Os sertões (1966) – fala-nos, por sua
vez, sobre as tentativas de classificar o livro num dos ramos da
atividade intelectual, tais como história, sociologia, geografia,
etnologia e outras. Afirmando que, quando o livro é colocado em
seu lugar – a literatura –, a questão se complica dada a “tendên-
cia para ver nela, além do que já foi visto, um pouco de ficção”,
acrescenta:

É ociosa, portanto, essa vontade de se colocar, rigidamente,


entre fronteiras claramente delimitadas, um livro que agita as mais
diversas questões e participa de vários gêneros literários, colocando-

107
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

se bem apenas no território livre da arte, realizada, principalmen-


te, através da História, como o seu autor a entendia.

Ociosa ou não, a verdade é que a questão persiste. Ainda que


sejam irrelevantes as tentativas de classificação de Os sertões, pre-
valece o fato de não se poder descartar do universo de probabili-
dades de uma obra a intervenção por parte do autor no julgamen-
to e biografia de seus personagens, caso eles sejam reais. No caso
de Euclides da Cunha, ainda que a culpa pela repetição de suas
análises não possa lhe ser atribuída, o fato é que elas ainda hoje
vicejam, emprestando o seu colorido aos perfis dos homens de
verdade que o autor tomou como personagens. Esse raciocínio,
estendido ao comandante da terceira expedição, ilustra como o
texto de Euclides da Cunha veio completar não só a sua fé de
ofício como soldado, mas, também, as memórias que se arquiva-
ram sobre a sua personalidade.
Existiria em Euclides da Cunha algum ranço de natureza
pessoal em relação a Moreira César? Embora tal pergunta não
possa jamais ser respondida, torna-se lícito refletir sobre ela,
dadas as implicações das afirmações com que Euclides distinguiu
Moreira César.
Em primeiro lugar, devemos nos lembrar de que o coronel
Moreira César tornara-se o braço direito de Floriano Peixoto no
período em que eclodiu a Revolta da Armada (1893), e, posterior-
mente, quando da união dessa Revolta com a Revolução
Federalista, ocasião em que se constituiu um governo provisó-
rio dos revoltosos, em Desterro, capital de Santa Catarina. Mo-
reira César bateu-se contra os insurgentes da Armada em com-
bates travados na Ilha do Governador, e, mais tarde, foi designado
por Floriano governador de Santa Catarina, logo após a queda
do governo provisório instalado naquele estado.
À época desses acontecimentos, contudo, Euclides da Cunha
estava no exército e servia como engenheiro na construção de
trincheiras. Numa noite, segundo seu relato, dirigia a constru-
ção de uma delas quando viu acercarem-se dois vultos. Um de-

108
A terceira expedição

les era Floriano Peixoto. Não seria essa, aliás, a única ocasião em
que o escritor se encontraria com o marechal. Tempos antes, ti-
nha sido chamado para uma conversa sobre a escolha de uma
posição nos quadros do governo. Em outra, Euclides dirigira-se
ao Itamarati para rogar a Floriano sobre o seu sogro, general Sólon
Ribeiro, que, segundo se dizia, seria fuzilado.
Esteve Euclides, portanto, bem próximo do florianismo e do
jacobinismo. Moreira César não lhe foi estranho. Aliás, em Os
sertões, Euclides afirma tê-lo visto em ocasião que não determina
com precisão mas que indica ter sido após a proclamação da
República.
Feitas essas considerações, ouçamos o que nos diz Nelson Wer-
neck Sodré (1959) em seu ensaio Revisão de Euclides da Cunha.
Werneck Sodré destaca as numerosas incompreensões de Eu-
clides da Cunha:

Incompreensões por desconhecimento do problema, incom-


preensões por refratariedade, incompreensões por aceitação de teorias
falsas, incompreensões por deficiência de método de análise, e até
incompreensões por mero ressentimento injustificado. (1959, p.26)

Em meio às incompreensões de Euclides que aponta,


Werneck Sodré comenta “aquela que foi nele quase obsessão –
sobre Floriano”. Linhas adiante, acrescenta:

Euclides não compreendeu jamais, mesmo ao rever os seus


conceitos sobre Floriano, o que representara o papel do Marechal
de Ferro no processo republicano – porque não compreendeu o
próprio processo.
Levou a sua incompreensão desse processo ao extremo de uma
posição contra o militar. Nessa posição poderia ter havido, e houve
por certo, resíduos de família, ressentimentos pessoais, mas houve
principalmente incompreensão política. (ibidem)

Se é verdade que em Os sertões Euclides da Cunha traça perfis


glorificadores de militares que participaram da campanha, tam-

109
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

bém o é que para alguns não reservou a menor benevolência.


Entretanto, a virulência das palavras com que distinguiu Moreira
César não a aplicou a nenhum outro. Esse fato nos remete a ou-
tro biógrafo de Euclides da Cunha, Elói Pontes. Na introdução
de seu livro A vida dramática de Euclides da Cunha, Pontes (1938)
nos lembra de que ao tempo em que Euclides foi aluno da Esco-
la Militar da Praia Vermelha, essa escola se constituía num mag-
nífico laboratório de cultura, e “os cadetes estavam em dia com
os problemas literários”. Levando em consideração o ambiente
em que se formavam os alunos, Pontes destaca que um tempera-
mento exposto às solicitações de sensibilidade como o de Eucli-
des da Cunha jamais poderia vir a “ser homem de ação”. Mais
adiante afirma o biógrafo:

De todas as tentativas, contrárias ao prazer de fixar, por escri-


to, quanto pensa ou sente, Euclides da Cunha sai triste, frio, enfa-
dado ... É o que se quer demonstrar. Os próprios lances da vida
íntima teimaram em arrancá-lo aos enlevos espirituais. Fugiram-
lhe sempre os estímulos da compreensão afetuosa, que reprime as
tiranias das vísceras subalternas. Homem de letras, por decretos
orgânicos e poderosos influxos hereditários, Euclides da Cunha
viveu no falso pressuposto de que poderia ser homem de ação.

O falso pressuposto de que poderia ser um homem de ação...


A energia para a ação que não faltaria a Moreira César, segundo
a descrição de Euclides:

A fisionomia inexpressiva e mórbida completava-lhe o porte


desgracioso e exíguo. Nada, absolutamente, traía a energia
surpreendedora e temibilidade rara de que dera provas, naquele
rosto de convalescente sem uma linha original e firme: pálido, alon-
gado pela calva em que se expandia e fronte bombeada, e mal alu-
miado por olhar mortiço, velado de tristeza permanente. (Cunha,
1991, p.203)

E mais adiante:

110
A terceira expedição

Aos que pela primeira vez o viam custava-lhes admitir que


estivesse naquele homem de gesto lento e frio, maneiras corteses
e algo tímidas, o campeador brilhante, ou o demônio crudelíssimo
que idealizavam. Não tinha os traços característicos nem de um,
nem de outro. Isto, talvez, porque fosse as duas coisas ao mesmo
tempo. (ibidem, p.204)

Eram, pois, Euclides e Moreira César, dois homens profun-


damente diferentes. Talvez na identificação com Floriano, ou, ain-
da, na difusa assimilação de pendores que lhe faltaram para a
ação, numa dessas hipóteses ou em ambas, tenha Euclides da
Cunha encontrado fomento para traçar o perfil devastador do co-
ronel Moreira César que inseriu nas páginas de Os sertões.

Subsídios historiográficos

A vinculação do desastre da terceira expedição à ação de seu


comandante tornou-se indissociável. Passados mais de cem anos
e soterradas as teorias calcadas no atavismo, no determinismo
biológico e na vesânia das coletividades, ainda hoje somos atraí-
dos pelo assunto e buscamos, sob a luz da ciência e conhecimen-
tos da nossa época, explicações para perguntas que o tempo não
logrou jamais calar. Dentro desse quadro e dado o crescente nú-
mero de publicações sobre a guerra ocorrida no sertão, é de per-
guntar por que certas afirmações feitas por Euclides da Cunha
em relação à terceira expedição continuam a fazer parte de to-
dos os textos sem que sobre elas se tenha feito nenhuma revi-
são. Se algumas afirmações foram posteriormente rechaçadas –
a revisão do andamento militar da expedição pelo general-de-
exército Tristão de Alencar Araripe (1985) é um bom exemplo
disso – outros aspectos têm sido negligenciados, entre eles até
mesmo alguns já estudados pela historiografia e ainda não in-
corporados aos estudos canudenses. Entre esses últimos, mere-
ce especial destaque a participação do coronel Moreira César em

111
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

Santa Catarina, relatada por Euclides da Cunha e de há muito


revista por historiadores catarinenses.

Episódios frisantes

Referindo-se à carreira militar de Moreira César – que lem-


bra ser correta como poucas –, Euclides da Cunha afirma que
sobre ela amiúde interferiam episódios frisantes que a abalavam.
Tais episódios, marcados por perda da serenidade, eram intercala-
dos por períodos de calma, caracterizando-se assim a fatalidade
biológica que subjugava o coronel e que mais tarde se manifesta-
ria por meio de convulsões epilépticas. A seguir são abordados
alguns episódios que envolveram a participação de Moreira César.

A Revolução Federalista em Santa Catarina

Em 1893, ascendeu à presidência do Estado do Rio Grande


do Sul o republicano, adepto do positivismo, Júlio de Castilhos.
Aos republicanos se opunham os federalistas liderados por
Gaspar Silveira Martins e com o apoio de Joca Tavares e do cau-
dilho Gumercindo Saraiva. A Revolução Federalista, guerra civil
entre republicanos e federalistas, teve início no mesmo ano de
1893. Luta terrível, estendeu-se por dois anos e meio e teve como
saldo milhares de mortos.
A Revolução Federalista estendeu-se até Santa Catarina. Na
capital do Estado, Desterro, os federalistas se uniram aos inte-
grantes da Revolta da Armada. Esta tivera início em setembro
de 1893, quando os navios estacionados no Rio de Janeiro se in-
surgiram contra o governo do presidente Floriano Peixoto.
Comandada pelo almirante Custódio de Mello, a esquadra bom-
bardeou a cidade do Rio de Janeiro. Tempos depois, uma parte
da esquadra deslocou-se para o sul e ocupou Desterro, aí se unin-
do aos federalistas. Foram as tropas resultantes dessa união que
mais tarde invadiram o Paraná e conquistaram Curitiba.

112
A terceira expedição

Declarando Santa Catarina separada da União, os federalistas


estabeleceram em Desterro um governo provisório da República.
Essa situação perdurou até abril de 1894, quando a Esquadra
Legal, comandada pelo almirante Jerônimo Gonçalves, torpedeou
o encouraçado Aquidabã, em poder dos revoltosos e então fun-
deado perto da Ilha de Anhatomirim. Era o fim do governo provi-
sório. Dois dias depois, chegava a Desterro, enviado por Floriano
Peixoto, o coronel Moreira César.
Em Os sertões, Euclides da Cunha enfatiza que nos primeiros
tempos do novo regime Moreira César, então capitão, jamais
havia arrancado a espada em combate, possuindo uma “fé de ofí-
cio de burocrata inofensivo e tímido”. Tinha, portanto, “a espada
inteiramente virgem”. Tal afirmação não resiste ao confronto com
dados reais da carreira do militar. No livro História da revolta de 6
de setembro de 1896, Felisbelo Freire (1896) relata ações das tropas
do exército, na Ilha do Governador, contra os revoltosos da Arma-
da nas quais há ativa participação de Moreira César. O fato tam-
bém é lembrado por Lima Barreto (1993) que se refere com muita
simpatia a Moreira César por intermédio de seu personagem
Policarpo Quaresma. De modo inverso. Euclides da Cunha traça
em Os sertões, em relação a Moreira César, o perfil militar dado a
missões pacíficas e que só mais tarde revelaria a sua selvageria
ao ser enviado a Santa Catarina por Floriano Peixoto para onde,
consoante as suas palavras,

Seguiu; e em ponto algum do nosso território pesou tão firme


a tão estrangulador o guante dos estados de sítio.
Os fuzilamentos que ali se fizeram, com triste aparato de im-
perdoável maldade, dizem-no de sobra. Abalaram tanto a opinião
nacional que, ao terminar a revolta, o governo civil, recém-inaugu-
rado, pediu contas de tais sucessos ao principal responsável. A
resposta, pelo telégrafo, foi pronta. Um “não”, simples, seco, atre-
vido, cortante, um dardo batendo em cheio a curiosidade impru-
dente dos poderes constituídos, sem o atavio, sem o rodeio, sem a
ressalva da explicação mais breve. (Cunha, 1991, p.205)

113
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

A participação de Moreira César, então coronel, como gover-


nador de Santa Catarina, entre outras, é abordada em três obras:
A República em Santa Catarina, de Jali Meirinho (1982); Militares e
civis num governo sem rumo, de Carlos Humberto Correia (1990);
e A Revolução Federalista em Santa Catarina, de Carlos da Costa Pe-
reira (1990). Sobre os fuzilamentos ocorridos na Ilha de Anha-
tomirim durante a administração de Moreira César afirma Carlos
Humberto Correia:

O fuzilamento secreto de militares e políticos federalistas, por


seu lado, realmente abalou grande parte da população, envolven-
do sua administração mais numa nebulosas de boatos do que pro-
priamente fatos. (1990, p.144)

Ainda segundo Carlos Humberto Correia, existe divergência


entre os autores quanto ao número de mortes havidas em Santa
Catarina. Apesar de historiadores recentes falarem em números
mais altos, os números apurados por dois contemporâneos da
Revolução divergem em muito das inúmeras mortes propagadas.
Para Lucas Boiteux (1912, p.421), teriam sido 42, e para Duarte
Paranhos Schuttel seriam 34. Pereira também informa que, em
maio de 1913, os restos mortais das vítimas foram transferidos
da Ilha de Anhatomirim para Florianópolis. Na ocasião, os restos
couberam em apenas duas urnas, concluindo-se que foram pou-
cos os fuzilados. Finalmente, Correia lembra que, um ano depois,
vários federalistas que se julgava mortos por fuzilamento foram
pronunciados em juízo e compareceram.

O barão de Batovi

Fato freqüentemente abordado nos textos sobre Canudos é


o do fuzilamento, em Anhatomirim, do marechal Manoel de Al-
meida Lobo D’Eça, barão de Batovi. Robert M. Levine (1995) cita
o fato e se refere a Moreira César cuja selvageria chegou a cho-
car a opinião pública. Levine afirma que Moreira César instaurou

114
A terceira expedição

um reino de terror em Santa Catarina e mandou prender cidadãos,


pilhar suas casas, além de autorizar fuzilamentos de oficiais.
O barão de Batovi era um herói da Guerra do Paraguai. Teve
ativa participação favorável aos federalistas. Foi ele quem coorde-
nou a capitulação da guarda militar, deixando os militares livres
para aderirem aos federalistas ou adotarem posição de neutralida-
de. A capitulação da guarda e a solidariedade da assembléia esta-
dual com os revoltosos declarando o Estado separado da União,
enquanto Floriano Peixoto permanecesse na presidência da Repú-
blica, permitiu a instalação do governo provisório da República
presidido pelo capitão-de-mar-e-guerra Frederico Guilherme de
Lorena. Meses depois, após a retomada da Ilha de Santa Catarina
por tropas federais, os federalistas fugiram. Seus líderes, como
Lorena e o barão de Batovi, e ainda outros que não lograram se
exilar, foram executados.
O que houve de fato em Santa Catarina? A historiografia nos
dá conta da ocorrência de uma luta fratricida na qual prevaleceram
o ódio e a intolerância entre as partes conflitantes. Carlos da
Costa Pereira (1990, p.101), baseando-se em Oswaldo Cabral,
informa sobre a violência e atrocidades praticadas pelos revol-
tosos. Degolamentos, vitupérios, roubos, estupros, perseguições
e toda sorte de crimes manchavam a bandeira branca da Revolu-
ção. Obviamente, o procedimento monstruoso dos federalistas
sobre o qual nos alertam Correia e outros autores não justifica
igual procedimento por parte dos republicanos. Para o barão de
Batovi e outros, em vez da aplicação dos Códigos de Justiça Mili-
tar, prevaleceu a “Lei de Talião”: “Olho por olho, dente por dente”.
Como bem diz Jali Meirinho: “A violência não se justifica. Foi,
entretanto, fruto de ação correspondente dos federalistas que pas-
saram por Santa Catarina”.
Quanto a Moreira César, sobre ele pesa a culpa pelos acon-
tecimentos. Embora jamais se tenha confirmado que Moreira
César tenha ordenado ou assistido a qualquer fuzilamento, ain-
da assim permanece como o grande responsável. Vivendo recluso

115
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

em seu palácio, as ações ficavam por conta do chefe de polícia,


tenente Manoel Belerofonte de Lima. Jali Meirinho acredita que
as ordens do governador tenham sido dadas sob inspiração de
políticos locais, pois, apenas a uma semana na cidade, não teria
facilidade para identificar tantos federalistas. De resto, a pena
de Euclides da Cunha e outros autores lhe foram madrastas ao
inculpá-lo por uma prolongada matança em Santa Catarina. Ma-
tança essa, aliás, estendida por alguns autores ao Paraná, onde
Moreira César não esteve e cujo chefe do distrito militar, general
Ewerton Quadros, era homem de confiança de Floriano. A chama-
da “Matança do quilômetro 65,” em que o barão de Serro Azul e
outros paranaenses foram fuzilados dentro de um trem, na ferro-
via Curitiba–Paranaguá, não poderia ter sido executada sob as
ordens de Moreira César como crêem alguns autores.
Por fim, resta lembrar que para além dos aspectos relativos
à guerra, o governo de Moreira César em Santa Catarina foi pro-
dutivo. Segundo Walter Fernando Piazza (1993), o coronel An-
tônio Moreira César, como governador civil e militar do Estado
de Santa Catarina, além de normalizar a ordem pública, procedeu
à normalização político-administrativa. Fez também valer a Cons-
tituição de 1891, e, em nome dela, convocou eleições para o go-
verno do Estado e para a representação catarinense nos poderes
legislativo, estadual e federal. Nas eleições realizadas em setem-
bro de 1894, o engenheiro Hercílio Pedro da Luz foi eleito gover-
nador do Estado.

O assassinato de Apulcro de Castro


Segundo Euclides da Cunha, um episódio ilustra bem a ener-
gia selvagem de Moreira César:

Foi em 1884, no Rio de Janeiro. Um jornalista, ou melhor, um


alucinado, criara, agindo libérrimo graças à frouxidão das leis re-
pressivas, escândalo permanente de insultos intoleráveis na corte
do antigo Império; e tendo respingado sobre o Exército parte das

116
A terceira expedição

alusões indecorosas, que por igual abrangiam todas as classes, do


último cidadão ao monarca, foi infelizmente resolvido por alguns
oficiais, como supremo recurso, a justiça fulminante e desespera-
dora do linchamento. (Cunha, 1991, p.205)

A executar a sentença em plena rua, entre os subalternos,


um oficial mais graduado, o capitão Moreira César. “E foi ele o
mais afoito, o mais impiedoso, o primeiro talvez a esfaquear pelas
costas a vítima”, assim narra Euclides.
O jornal A Província de São Paulo, de 27 de outubro de 1883,
publicou telegrama de seu correspondente sobre um fato ocor-
rido na Corte, o assassinato de Apulcro de Castro, moço baiano
redator e proprietário de O Corsário. Relatava o correspondente
que no dia anterior, às três horas da tarde, Apulcro havia se apre-
sentado ao desembargador chefe de polícia pedindo garantias por
sua vida estar ameaçada. Pouco depois, grupos de indivíduos reu-
niram-se perto da delegacia com a intenção de agredir Apulcro,
tendo sido convidados a se retirar pelo delegado e pelo tenente
Lyrio. Como não se retiraram, o chefe de polícia chamou um deles
e informou que Apulcro estava sob proteção da polícia, daí acon-
selhar a todos que se retirassem. O indivíduo garantiu ao chefe
de polícia que ele e seus camaradas nada fariam. Como os grupos
continuassem reunidos, decidiu-se prevenir o quartel-general em
relação ao fato. Em conseqüência, às quatro da tarde chegou à
polícia o capitão Ávila, ajudante-de-ordens do Sr. Ajudante-de-
General do Exército. O capitão Ávila entendeu-se com os grupos
e, pouco depois, saiu com Apulcro, tomando um carro de praça.
Quando rodavam em direção à Rua do Rezende, o carro foi cer-
cado por grande número de indivíduos que agrediram Apulcro
com punhais, estoques e tiros de revólver. Debalde o capitão Ávila
tentou proteger Apulcro, tendo aliás recebido um ferimento. Por
sua vez, Apulcro tentou puxar um punhal, mas foi morto.
A notícia do assassinato de Apulcro também foi publicada pelo
Jornal do Commércio de 26 de outubro de 1883. O relato é semelhante

117
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

e conta que o carro foi assaltado na Rua do Lavrádio por um grupo


de indivíduos, tendo Apulcro recebido sete ferimentos nas costas
provocados por punhal, um tiro na boca e outro na ilharga.
No dia 27 de outubro de 1884, o Jornal do Commércio noticiava
que o chefe de polícia, Des. Berlarmino Peregrino Gama e Mello,
fora demitido. Também informava que, instaurado o inquérito, não
se descobriu quem eram os paisanos que haviam atacado Apulcro.
A Província de São Paulo de 28 de outubro de 1884 comentava
a inaptidão mostrada pela polícia que permitira o assassinato de
Apulcro na sua presença; era habitual na Corte, onde capoeiras
e moleques faziam manifestações livremente. Na mesma página
noticiava-se o resultado da autópsia feita no cadáver de Apulcro
de Castro. Verificou-se a existência de dezesseis ferimentos e três
contusões, sendo dez ferimentos punctórios, dos quais dois pene-
trantes no tórax, cinco incisivos e um por arma de fogo. À exceção
dos ferimentos observados na coxa, mão direita e braço em nú-
mero de seis, todos os outros foram observados na face posterior
do cádaver.
À época do assassinato de Apulcro de Castro era adjunto da
Promotoria Pública do Rio de Janeiro o então jovem João Baptista
de Sampaio Ferraz, que mais tarde ocuparia o cargo de chefe de
polícia durante o governo republicano do Marechal Deodoro da
Fonseca. A participação do jovem promotor no caso Apulcro é
encontrada em Subsídios para a biografia de Sampaio Ferraz. Sampaio
Ferraz acusa a polícia imperial como autora do crime. Sobre isso,
escreve Mário de Sampaio Ferraz (1952):

O Promotor está a explorar o caso, em favor da República –


murmurava o Conselho de Ministros. Dias depois Sampaio requer
a exumação do cadáver. No cemitério, Barata Ribeiro, médico, não
resiste à exalação e perde os sentidos. Sampaio Ferraz, presente,
intervém puxa o morto para fora e determina imediata autópsia. O
exame não desmente o libelo do Promotor, mas o Conselho faz
considerações, impugna a atitude da justiça pública, dando-a como
suspeita. Pedro II pede moderação. Admirador de Sampaio, o Im-

118
A terceira expedição

perador não atende ao pedido de exoneração apresentado por três


ministros. (p.21)

O relatório do chefe de polícia da Corte,3 publicado em 1884,


relata que o Dr. Theodoro Macedo Sodré, segundo delegado de
polícia ouviu testemunhas e conseguiu colher provas exuberan-
tes que fizeram parte do inquérito enviado ao juiz competente.
Segundo o chefe de polícia, a impossibilidade de prender os crimi-
nosos em flagrante explicava-se pelo fato de eles terem se afastado
do lugar do crime após tê-lo cometido.
O relatório do ano de 1883 do Ministério da Justiça4 informa,
na página seis, o episódio ocorrido na Rua do Lavrádio. Afirman-
do que a linguagem difamatória utilizada por Apulcro de Castro
em O Corsário havia levantado grande indignação, o relatório
conta a história semelhante à publicada anteriormente nos jor-
nais. Finalizando, informa que se procedeu ao inquérito ficando
indiciados onze militares como autores do delito.
Indiciado, o capitão Antônio Moreira César, do 19º BI, respon-
deu processo juntamente com o tenente Bento Ferraz Gonçalves,
do 1º BI, e dois alferes do 1º Regimento de Cavalaria Ligeira, An-
tônio Manuel de Aguiar e Silva e Isnard Caetano Pereira do Lago.
Se não ação conjunta do grupo que atacou Apulcro provocando
em seu corpo vários ferimentos foi Moreira César o mais afoito e
impiedoso, o primeiro a esfaquear, isso não se soube. Tal compor-
tamento, porém, acomodava-se na medida justa ao temperamento
de alguém que tinha a responsabilizar-se pelos seus atos a epilep-
sia. De qualquer modo, a participação no assassinato de Apulcro
de Castro não consta em sua fé de ofício pela qual se sabe apenas
que, durante ano de 1883, o capitão ficou duas vezes doente.

3 Relatório do chefe de polícia da Corte. Dr. Tito A. P. de Mattos, 4 de março


de 1884.
4 Brasil. Ministério da Justiça. Ministro Francisco Prisco de Souza Paraiso.
Relatório do Ano de 1883 apresentado à Assembléia Geral Legislativa na 4ª
Sessão Legislativa (publicado em 1884). Inclui Anexos.

119
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

Conclusão

É Gilberto Freyre (1944, p.36) quem afirma em seu ensaio


sobre Euclides da Cunha: “Quem nos deixou, como Euclides da
Cunha, páginas de que saltam intuições verdadeiramente gerais
não precisa de condescendência de crítico nenhum”.
Por sua vez, Wilson Martins (1996) nos adverte em relação
à ciência de que se serviu Euclides da Cunha:

No fundo, pouco importa que a ciência de Euclides da Cunha


esteja “certa” com relação aos conhecimentos científicos atuais: o
que importa é que, no seu tempo, ele haja conciliado a mais rigorosa
informação científica disponível com a mais rigorosa concepção
de estilo literário.

Tendo em mente essas afirmação e em perspectiva o grande


livro que é Os sertões, este ensaio quis mostrar: 1. o efeito da in-
fluência dos conhecimentos científicos disponíveis à época em
que viveu Euclides da Cunha na caracterização de seus persona-
gens; 2. a prevalência de afirmações sobre personagens reais fei-
tas em Os sertões até os dias de hoje.
Tomando-se o caso específico do coronel Moreira César, con-
clui-se que em Os sertões verificou-se uma adaptação do perfil do
personagem real ao perfil esperado para um epiléptico, conside-
rando-se que, na época, era a epilepsia sinal quase que patogno-
mônico de desvios de comportamento e atitudes criminosas.
Levando em conta esse ponto de vista, parece-nos carecer de sen-
tido a prevalência em áreas não-ficcionais do perfil de Moreira
César proposto por Euclides da Cunha.

120
A terceira expedição

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121
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122
Prefigurações literárias da barbárie
nacional em Euclides da Cunha,
Machado de Assis e Lima Barreto

Edgar Salvadori de Decca1


Maria Lucia Abaurre Gnerre2

Neste ensaio, pretendemos abordar algumas inter-relações


entre a confecção da obra Os sertões e os escritos de outros autores
que, de uma maneira direta ou indireta, fazem referência aos
acontecimentos de Canudos ou que, na forma de paródia, reescre-
veram a tragédia euclidiana. Referimo-nos, particularmente, aos
textos de Machado de Assis sobre Canudos, no jornal Gazeta de
Notícias entre 1892 e 1897, e ao romance de Lima Barreto O triste
fim de Policarpo Quaresma, publicado na forma de livro em 1915.
A distância que separa o desfecho da guerra contra Antônio
Conselheiro e a obra Os sertões representa o tempo de construção
do monumento à memória das vítimas do primeiro massacre do
regime republicano brasileiro. Sabemos que Euclides da Cunha,

1 Professor titular do Departamento de História – IFCH – Unicamp – SP.


2 Doutoranda do Programa de História Social – IFCH – Unicamp – SP.

123
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

como enviado do jornal O Estado de S. Paulo, participou da quarta


e última expedição do exército contra Canudos, mas não presen-
ciou o final da luta. Ao lermos os diários da expedição e as suas
reportagens, constatamos um silêncio constrangedor a respeito
das atrocidades ocorridas no final dos combates, que pode ser
imputado tanto à sua ausência dos campos de batalha quanto à
censura imposta pelos próprios jornais, ou então, ao extremo
impacto psíquico que esta guerra lhe causou. Houve na época
outras vozes que chegaram a denunciar os crimes cometidos pelo
exército republicano no final da campanha. Dentre elas, desta-
ca-se a de Afonso Arinos, que muitos críticos não dão o devido
valor, por se tratar de um defensor do regime monárquico.
Mas devemos lembrar também das crônicas de Machado de
Assis, que durante os anos de existência de Canudos construíram
uma visão dos acontecimentos bem menos demonizadas do que
aquelas primeiras impressões de Euclides da Cunha. Essa visão
de Machado de Assis é pouco conhecida e foi o historiador Clí-
maco Dias, no artigo “Canudos: poesia e mistério de Machado
de Assis,3 quem primeiro desenvolveu o tema. Além dessa visão
machadiana, há um indício intrigante sobre a trajetória euclidiana
em busca d´Os sertões que também estaria sutilmente apresen-
tada no romance paródia de Lima Barreto, o Triste fim de Policarpo
Quaresma. Diríamos de forma muito antecipada que Canudos
como acontecimento relevou na escrita de ficção brasileira uma
visão trágica da nacionalidade, em Os sertões de Euclides da
Cunha, uma visão épica romântico-anarquista na percepção de
Machado de Assis, e uma visão tragicômica na paródia de Lima
Barreto. As duas primeiras percepções de Canudos estão banha-
das pela inspiração romântica de Victor Hugo, ao passo que a vi-
são de Lima Barreto não é diretamente relacionada ao aconteci-
mento, mas ao autor da obra que perpetuou Canudos na memória
nacional. Apesar de um ar tragicômico do romance de Lima Bar-

3 In Revista Canudos, Universidade do Estado da Bahia, ano 1, n.1, 1996.

124
Prefigurações literárias da barbárie nacional em Euclides da Cunha...

reto, o autor transforma o seu herói Quaresma em um herói supe-


rior, digno de um Marco Aurélio de Renan, autor citado em epí-
grafe da obra. Embora essa aproximação seja muito apropriada,
o herói de Lima Barreto assemelha-se mesmo é a Euclides da
Cunha. Ambos são autores de textos seminais sobre a naciona-
lidade, e em ambos sentimos a total incapacidade de seus escritos
modificarem os rumos da história. Podemos iniciar o nosso per-
curso com a personagem principal de nosso enredo, o escritor
Euclides da Cunha.
A enorme predileção de Euclides pelo escritor francês Victor
Hugo se faz presente desde o momento em que Euclides sabe
das primeiras notícias sobre o movimento de Antônio Conselhei-
ro. Escrevendo para o jornal O Estado de S. Paulo, Euclides no-
meia o movimento de Conselheiro como “A nossa Vendéia”, fa-
zendo alusão ao movimento político anti-republicano ocorrido
na França durante a Revolução e que se perpetuou no romance
de Victor Hugo Quatre-vingt-treize [Noventa e três]. Diga-se de pas-
sagem, Euclides, muito antes de Canudos, buscou o modelo das
revoltas anti-repulicanas na história brasileira e acreditava que
“as nossas Vendéias” poderiam consolidar a República brasileira.

A república brasileira tem também a sua Vendéia perigosa.


Não fazemos, nesta aproximação histórica, a injustiça de compa-
rarmos em tudo, aos perturbadores de hoje os rudes bretões, que
se fizeram os últimos cavaleiros da velha monarquia derruida ...
Rebelados e ousados, extinguindo, numa desordem maravilhosa,
a admirável simetria dos batalhões republicanos, procurando as
vitórias através dos incêndios e das ciladas – ligava-lhes entretan-
to os corações o liame indestrutível de um sentimento comum.
Não encontramos isto nos que, unicamente pela maneira por que
perturbam o começo da república, se equiparam aos heróicos
vendeanos ... A República vencer-los-á, afinal, como a grande re-
volução à Vendéia, com uma diferença fundamental porém – a gló-
ria do republicano francês foi verdadeiramente brilhante, graça a
própria grandeza dos vencidos... (Cunha, 1995, p.650)

125
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

Diante de um texto tão eloqüente, podemos imaginar de que


modo o movimento de Canudos veio preencher essa expectativa
épica de Euclides da Cunha em seu desejo de consolidar o regime
republicano. Canudos, ao contrário de outras manifestações anti-
republicanas, projetava a imagem de algo grandioso e ousado,
algo maravilhoso e heróico. Nesse sentido, a grandeza dos ven-
cidos é o que traria as glórias republicanas e essa visão romântica
e heróica dos vendeianos Euclides aprendeu a apreciar nas pági-
nas do romance histórico de Victor Hugo. Entretanto, a adoção
do modelo de enredo histórico da Vendéia de Victor Hugo só se
tornaria definitiva depois da publicação dos dois artigos in-
titulados “A Nossa Vendéia”, no jornal O Estado de S. Paulo.
A construção d’Os sertões, obra monumental de engenharia
literária e científica, ganha os primeiros contornos, portanto, nos
dois emblemáticos artigos escritos para o jornal O Estado de S.
Paulo com o título de “A nossa Vendéia”, publicados em abril e
em junho de 1897, antes de o autor viajar para o sertão da Bahia.
Se o título dos artigos e o seu conteúdo nos revelam à primeira
vista o engajamento político do republicano Euclides e sua ira
contra o movimento de Canudos monarquista, há também, nesse
momento, o deslocamento de um acontecimento histórico da
Revolução Francesa para se referir ao movimento de Antônio
Conselheiro. Primeiro efeito de deslocamento do discurso eu-
clidiano com relação ao referente, Canudos ganha outro nome e
uma primeira interpretação: ele passa a ser conhecido como a
“nossa Vendéia”, imagem, aliás, muito difundida e muito difícil
de ser desconstruída, tanto pelo autor do discurso como no que
se refere ao imaginário de Canudos vazado pela historiografia bra-
sileira. Mas na construção de Canudos como a “nossa Vendéia”
há um outro deslocamento do discurso com relação ao referente.
Nesse caso, como estamos tratando da literatura e de seus enre-
dos, o referente do discurso de Euclides desloca-se para o roman-
ce de Victor Hugo Quatre-vingt-treize, texto emblemático no que
se refere à cristalização da imagem literária da Vendéia.

126
Prefigurações literárias da barbárie nacional em Euclides da Cunha...

Victor Hugo, contudo, não foi referência apenas a Euclides


da Cunha para a caracterização do movimento de Canudos. O
próprio Machado de Assis, que escreveu também sobre Antônio
Conselheiro, utilizou-se de Victor Hugo para construir as suas
imagens sobre o acontecimento histórico de Canudos, sem se
valer, contudo, do romance Quatre-vingt treize. Apesar do prestí-
gio literário de Machado de Assis, essas imagens retiradas de ro-
mances de Victor Hugo e utilizadas por ele em suas crônicas não
conseguiram se perpetuar na memória social e tampouco no dis-
curso literário sobre Canudos. O que mais intriga, em se tratando
de um autor de prestígio como Machado de Assis, é que a sua
versão de Canudos foi obscurecida pela própria obra de Euclides.
Evidentemente, a obra de Euclides serviu de expiação da culpa
dos intelectuais e dos homens públicos de seu tempo, na medida
em que reconhecia o erro de julgamento sobre Canudos e assu-
mia a responsabilidade por ter incentivado a brutalidade da guer-
ra. Entretanto, Machado de Assis, ao tomar conhecimento de Ca-
nudos, projetou o acontecimento nos moldes de uma utopia
novecentista e aprofundou de maneira absolutamente impressio-
nante as imagens de um personagem utópico de características
românticas e anarquistas, utilizando-se, justamente, da poesia
de Victor Hugo.
Por não serem conhecidas, as imagens criadas por Machado
merecem ser apresentadas e gostaria de citá-las em algumas pas-
sagens onde fica muito patente o modo como, ao contrário de
Euclides, o autor relativiza o suposto crime cometido por Antô-
nio Conselheiro. Distingue-se, nesse sentido, a postura de Ma-
chado, que não precisou se conflitar com as suas próprias convic-
ções a respeito das elites brasileiras. Chamo a atenção para o
conteúdo utópico do texto de Machado e também para o modo
de ficcionalização do acontecimento como postura crítica diante
das atitudes das elites brasileiras (muito diferente da postura ini-
cial de Euclides, que ficcionaliza Canudos com a imagem da Ven-
déia francesa e como movimento monarquista anti-republicano).

127
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

Essa ficcionalização do acontecimento nos moldes machadianos


mostra a tênue linha divisória entre o crime e a justiça, entre o
bem e o mal, capaz de nivelar os algozes e as vítimas que suposta-
mente os ameaçam. De modo diverso do de Euclides, que cons-
trói o acontecimento pela lógica dos contrários, as figuras do An-
tônio Conselheiro de Machado e de Canudos são banhadas de
ambivalência e patenteia-se a equivalência entre o bem e o mal,
entre o interior e o litoral, entre a boa e a má sociedade, entre o
crime e a justiça. Clímaco Dias, em seu artigo, sugere de modo
muito original que a presença de Conselheiro nos escritos de Ma-
chado tem as mesmas insinuações de ambivalência características
dos personagens de Memórias Póstumas de Brás Cubas ou de Capitu,
personagem de D. Casmurro. Vejamos, portanto, os textos de Ma-
chado, percebendo de que modo o movimento de Antônio Con-
selheiro, para este autor, não estava carregado de um mal maior
do que aqueles existentes na boa sociedade e que, por se tratar
de uma coisa da mesma matéria do que a nossa, não poderia me-
recer a ação repressiva e militar:

Telegramma da Bahia refere que o conselheiro está em Canudos


com 2.000 homens (dous mil homens) perfeitamente armados.
Que Conselheiro? O Conselheiro. Não lhe ponhas nome algum,
que é sair da poesia e do mysterio. É o Conselheiro, um homem
dizem que fanatico, levando consigo a toda a parte aquelles dous
mil legionarios. Pelas ultimas noticias tinha já mandado um con-
tingente a Alagoinhas. Temem-se no Pombal e outros logares os
seus assaltos.4

O Conselheiro enche-se de ambigüidade e o próprio Machado


procura manter essa eqüidistância entre os contrários. Envolve-o
num manto de arte e mistério. Ao mesmo tempo, ele é um faná-
tico e um desencadeador de fantasias utópico-românticas capa-
zes de mobilizar milhares de pessoas. Logo em seguida, percebe-

4 Citações feitas diretamente dos jornais, mantendo-se a grafia da época. (N. E.)

128
Prefigurações literárias da barbárie nacional em Euclides da Cunha...

se melhor essa equivalência dos contrários, na medida em que a


presença de Conselheiro faz transbordar a poesia, que se levanta
em meio à prosa dura do final do século. Essas imagens de forte
conteúdo romântico, como já havíamos anunciado, têm também
seu ancoradouro em Victor Hugo, especialmente em sua “Canção
de Piratas”. Mais adiante estarão presentes sinais desses piratas
de Victor Hugo, mas para nos mantermos fiéis às citações ma-
chadianas, transcrevemos trechos da “Chanson des pirates”, que
lhe serviu de inspiração e que fez transbordar de romantismo a
sua visão do Conselheiro:

La belle fille, il faut vous taire, Il faut nous suivre. Il fait bon vent. Ce
n’est que changer de couvent. Le harem vaut le monastère. Sa hautesse
aime les primeurs, Nous vous erons mahométane ... Dans la galère capitane
Nous étions quatre-vingts rameurs...

(Victor Hugo, 1802-1885)

Evidentemente, esses delírios de imaginação foram extrema-


mente apropriados para a sutil reverberação do texto machadiano
no universo letrado das elites do final do século XIX. Ao contrário
do fanatismo heróico do Conselheiro de Euclides, este de Machado
exala poesia e contestação à ordem vigente, não porque fosse mo-
narquista, mas pela sua capacidade de subverter as cadeias do
próprio tempo social.

Jornaes e telegrammas dizem dos clavinoteiros e dos sequazes


do Conselheiro que são criminosos; nem outra palavra póde sair
de cerebros alinhados, registrados, qualificados, cerebros eleito-
res e contribuintes. Para nós, artistas, é a renascença, é um raio de
sol que, atravez da chuva miuda e aborrecida, vem dourar-nos a
janella e a alma. E. a poesia que nos levanta do meio da prosa
chilra e dura deste fim de seculo. Nos climas asperos, a arvore que
o inverno despiu é novamente enfolhada pela primavera, essa eterna
florista que apprendeu não sei onde e não esquece o que lhe ensina-
ram. A arte é a arvore despida: eis que lhe rebentam folhas novas
e verdes. Sim, meus amigos. Os dous mil homens do Conselheiro,

129
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

que vão de villa em villa, assim como os clavinoteiros de Belmonte,


que se mettem pelo sertão, comendo o que arrebatam, acampando
em vez de morar, levando moças naturalmente, moças captivas,
chorosas e bellas, são os piratas dos poetas de 1830. Poetas de
1894, aí tendes materia nova e fecunda. Recordae vossos paes; cantae,
como Hugo, a canção dos piratas...

A menção ao poema de Hugo na caracterização de Antônio


Conselheiro é bastante eloqüente e assinala o modo como Ma-
chado de Assis vai aos poucos prefigurando a história a partir da
literatura. O modelo de enredo literário machadiano contrasta
de modo significativo com aquele escolhido por Euclides. Entre-
tanto, observamos que ambos os autores prefiguram o passado
a partir de enredos literários de um mesmo autor, Victor Hugo.
No texto que segue existe referência ao componente român-
tico das representações de corsários e aventureiros inspiradas
diretamente de Victor Hugo:

Entrae pela Hespanha, é ainda a terra da imaginação de Hugo,


esse homem de todas as patrias; puxae pela memoria, ouvireis
Espronceda dizer outra canção de pirata, um que desafia a ordem
e a lei, como o nosso Conselheiro. Ide a Veneza; ahi Byron recita
os versos de Corsário no regaço da bela Guiccioli. Tornae à nossa
América, onde Gonçalves Dias também cantou o seu pirata. Tudo
pirata. O romantismo é pirataria, é o banditismo, é a aventura do
salteador que estripa um homem e morre por uma dama.

O texto a seguir revela a imensa sensibilidade de Machado


de Assis na percepção poética do movimento de Conselheiro. Sua
prefiguração do acontecimento de Canudos se aproxima do modo
como o poeta Baudelaire, em As flores do mal, representa o mundo
da modernidade e desenha de modo sensível o lugar e a possibi-
lidade da arte e da poesia, neste mundo marcado pelos regula-
mentos, pelas horas e pelos relógios.

Crede-me, esse Conselheiro que está em Canudos com os seus


dous mil homens, não é o que dizem tellegrammas e papeis pu-

130
Prefigurações literárias da barbárie nacional em Euclides da Cunha...

blicos. Imaginae uma legião de aventureiros galantes, audazes, sem


officio nem beneficio, que detestam o calendario, os relogios, os
impostos, as reverencias, tudo o que obriga, alinha e apruma. São
homens fartos desta vida social e pacata, os mesmos dias, as mes-
mas caras, os mesmos acontecimentos, os mesmos delictos, as
mesmas virtudes. Não podem crer que o mundo seja. uma secreta-
ria de Estado, com o seu livro de ponto, hora de entrada e de saida,
e desconto por faltas. O proprio amor é regulado por lei; os con-
sorcios celebram-se por um regulamento em casa do pretor, e por
um ritual na casa de Deus, tudo com etiqueta dos carros e casacas,
palavras symbolicas, gestos de convenção. Nem a morte escapa a
regulamentação universal; o finado há de ter velas e responsos,
um caixão fechado, um carro que o leve, uma sepultura numerada,
como a casa em que viveu... Não, por Satanaz! Os partidarios do
Conselheiro lembraram-se dos piratas romanticos, sacudiram as
sandalias á porta da civilização e saíram à vida livre.
A vida livre, para evitar a morte igualmente livre, precisa co-
mer, e dahi alguns possiveis assaltos. Assim tambem o amor livre.
Elles não irão ás villas pedir moças em casamento. Supponho que se
casam a cavallo, levando as noivas á garupa, enquanto as mães fi-
cam soluçando e gritando á porta das casas ou à beira dos rios. As
esposas do Conselheiro, essas são raptadas em verso, naturalmente.

As imagens, entretanto, que permaneceram foram aquelas


de Euclides inspiradas no romance de Victor Hugo Quatre-vingt-
treize. O monumento euclidiano Os sertões tem em sua arquitetura
algumas referências explícitas ao arquiteto literário Victor Hugo.
Comparem-se os capítulos “A terra” e “O homem” da obra de
Euclides, com o capítulo “As florestas” e “O homem” da obra
de Hugo. Como engenheiro de pontes, Euclides procurou em
seus artigos para o jornal O Estado de S. Paulo fazer a ponte histó-
rica que os acontecimentos da Vendéia com os de Canudos. Mas
a aproximação dos dois acontecimentos irá possibilitar algo mais
ambicioso: fazer que Euclides se aproxime literariamente de
Victor Hugo. Sabemos o quanto a literatura de Victor Hugo é va-

131
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

lorizada no final do século XIX aqui no Brasil. Além disso, esse


movimento de Euclides em direção à obra de Victor Hugo o apro-
xima também de um campo de texto, nesse caso o texto histo-
riográfico. Isso porque, ao lado de Victor Hugo, encontra-se tam-
bém a figura monumental da historiografia da Revolução
Francesa que é Michelet. Aliás, é bastante conhecida a paixão de
Euclides pela Revolução Francesa, a ponto de ter escrito na sua
juventude uma série de poesias de qualidade duvidosa, sobre essa
revolução e os seus líderes.

Tríade de forças históricas

Outros deslocamentos podem ser observados e já foram


mencionados pelos comentadores de Euclides. Contudo, por es-
tarmos tratando de deslocamentos de discursos com relação aos
seus referentes, torna-se necessário observar que a monu-
mentalidade de Os sertões está referida, especialmente, ao cam-
po literário. É como obra literária que Os sertões se monumenta-
lizou. Esse deslocamento da obra em relação ao seu referente fez
que ela se tornasse mais significativa do que o próprio aconteci-
mento ao qual, supostamente, ela se refere. Ela, em si mesma, é
um acontecimento cujas implicações ainda merecem avaliação
profunda tanto de críticos literários como de historiadores. Existe
por parte dos que se dedicam ao estudo da obra um apelo muito
grande de julgá-la à luz de novos documentos relativos ao seu
referente acontecimental. Enorme sedução euclidiana, que en-
feitiça o próprio terreno da crítica literária e historiográfica. Os
historiadores, especialmente, ainda permanecem presos à ilusão
do referente, como se o acontecimento ao qual a obra suposta-
mente se refere antecedesse ao discurso, como instância do real.
Os sertões é obra de um leitor das epopéias trágicas. Por essa
razão, explica-se o deslocamento do discurso de Euclides em
direção a outros textos épicos. A dimensão trágica do herói lite-

132
Prefigurações literárias da barbárie nacional em Euclides da Cunha...

rário de Antônio Conselheiro encontra paradeiro na obra Os he-


róis de Thomas Carlyle. Dentre os vários modelos de heróis elabo-
rados por Carlyle em seu livro, Euclides vai recolher nos meno-
res detalhes os traços que irão constituir a figura do Conselheiro,
como se ele pudesse ter as características positivas e negativas
de todos os heróis que viveram na história. A partir desse deslo-
camento em direção à obra de Carlyle, Os sertões eleva o herói
Conselheiro às alturas de Maomé, de Dante, Lutero, Cromwell
e Napoleão. A partir de alguém absolutamente desconhecido da
história, a obra de Euclides constrói uma figura literária de grande
significação simbólica, que irá dar uma posteridade honrosa ao
homem comum, que foi o monge de Canudos.
Mas a obra de Euclides sugere outros deslocamentos. Eles
são responsáveis por ornamentos essenciais de sua arquitetura.
A narrativa que Euclides se inspira como modelo exemplar é
A guerra do Peloponeso, esperando se tornar o Tucídedes dos tem-
pos modernos, escrevendo a história do ponto de vista de quem
visitou a cena onde transcorreu a ação.
Toda a arquitetura de Os sertões, entretanto, encontra-se
alicerçada em um deslocamento discursivo que acaba por mar-
car a obra em sua forma definitiva. Esse deslocamento talvez seja
o mais decisivo, porque é ele quem dá a forma ao conjunto da
obra. Refiro-me aqui ao modelo determinista de interpretação
histórica da civilização de H. Taine, que se baseia na análise das
três forças: a raça, passando pela caracterização do meio, alcan-
çando, por último, o momento. Apesar de vários comentadores
apontarem a presença de Taine para além da epígrafe do livro,
não existe ainda um estudo propriamente historiográfico d’Os
sertões à luz do modelo de interpretação histórica de Taine. As
bases desse método histórico Taine apresentou na introdução de
sua obra L’histoire de la litterature anglaise com o título de L’histoire,
son présent et son avenir. François Léger, autor da introdução do
livro de Taine Les origines de la France contemporaine, faz um resumo
brilhante do método de história total de H. Taine, onde o autor

133
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

constrói o seu modelo de interpretação em uma tríade de forças


históricas, a raça, o meio e o momento. Podemos perceber, de acor-
do com esse método histórico, a maneira pela qual a obra de Eu-
clides desloca-se para o terreno da historiografia, muito mais do
que para o terreno da literatura. Esse modelo de interpretação
de Taine será, posteriormente, depurado dos seus elementos
deterministas e raciais pela Escola de historiografia francesa dos
Annales, que propondo um modelo estruturalista de interpreta-
ção histórica transformará aquelas três forças que formam as civi-
lizações, nos tempos de longa, média e curta durações. Entretanto,
Euclides não viveu o tempo suficiente para conhecer a Escola dos
Annales para refazer as balizas do modelo determinista criado por
Taine. Mas não devemos deixar de apontar para a estruturação
da obra de Euclides por meio da tríade de forças que atuam na
história, a terra, o homem, a luta.

Ferida identitária

Interessa-nos, particularmente, esse deslocamento rumo ao


discurso historiográfico, pois é ele quem estabelece as bases de
uma teoria do conhecimento em Euclides da Cunha. São essas
balizas epistemológicas que sustentam todas as teorias sobre o
determinismo do meio e da raça presentes em Os sertões. A conju-
gação metodológica dos dois primeiros campos de força, a raça e
o meio, darão o impulso à terceira força, o momento, isto é, a luta
sangrenta travada em torno de sentimentos, costumes e ideais
antagônicos. Assim, a obra Os sertões é monumento historiográ-
fico, apesar da crítica dos historiadores. Não existe nenhum tra-
balho teórico levado a cabo pelos historiadores, visando analisar
o método histórico de Euclides, que se modela a partir das propo-
sições de H. Taine.
Mas os deslocamentos de Euclides são ainda muito mais in-
trigantes. Deslocamentos que se operam no plano da linguagem,

134
Prefigurações literárias da barbárie nacional em Euclides da Cunha...

onde falar sobre o outro, o sertanejo, vai desvendando aos poucos


o mal de uma civilização que é a nossa. Na segunda parte da obra,
Euclides, por efeito metonímico, fala de um homem em particu-
lar, o Conselheiro, que aos poucos vai se transformando no Ho-
mem, com maiúscula, genérico, que seria a síntese verdadeira
do Brasil, em contraste com a civilização de empréstimo que vive
no litoral. Por efeito metonímico Os sertões se transforma em
Brasil, apagando e esmaecendo a imagem da civilização litorâ-
nea, construída a partir de fora, dobrada para o exterior em dire-
ção à Europa.
Ainda sobre os efeitos dos deslocamentos, pode-se perceber
que em toda a obra de Euclides a imitação é o elemento central da
constituição de uma cultura. O litoral se dobra para o exterior,
imitando a Europa. Contudo, essa imitação, em vez de produzir
uma civilização original, permanece sendo uma cópia malfeita do
exterior. Ao contrário, o sertanejo imita e supera a sua imitação.
O exemplo mais marcante na obra de Euclides é a terceira parte
“A luta”, onde o sertanejo encena a guerra, com uma bravura e uma
crueldade muito maior do que aquele que vem como portador da
civilização. Ao enfrentar o inimigo com grandeza, o sertanejo vai
mostrando que, apesar de distante dos melhores cruzamentos
civilizacionais, é uma raça forte com amplas possibilidades de adap-
tação, imitação e superação de seu estágio mais atrasado. Eviden-
temente, com todas as teorias raciais do século XIX na cabeça, o
nosso autor não poderia referir-se ao sertanejo de maneira muito
diferente daquela ditada pelos preconceitos de raça. Contudo, o
que torna Os sertões uma obra magistral é o fato de ela não conde-
nar o sertanejo, ou, por metonímia, o brasileiro, à condição de
atraso. Ao contrário, fica-se com a impressão de que Euclides via
o homem do sertão com muito mais condições de criar uma ci-
vilização nacional do que aquele que vivia no litoral. Por isso mes-
mo, no final da obra Euclides reconhece que a campanha de Ca-
nudos representou um massacre da nacionalidade, e que sua obra
pretenderia tornar-se um documento contra a barbárie.

135
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

Gostaria, a partir desse referencial euclidiano, de desdobrar


as referências literárias responsáveis pela formação de percep-
ções, visões e projetos políticos. Sabemos muito bem o impacto
dessa obra sobre a intelectualidade brasileira das primeiras déca-
das do século XX. Afinal de contas, nenhuma obra teve a capaci-
dade de mostrar a ferida identitária da nacionalidade que o regime
republicano procurou esconder. Segundo essa obra magnífica, so-
mente a redenção do sertão poderia servir de remédio para a
doença da crise de identidade. Além disso, escancaravam-se as
portas de uma República que, além de seu forte proselitismo po-
lítico, pouco realizou quanto a direitos sociais e cidadania. As-
sim, desde o princípio, a obra de Euclides estava fadada a se tornar
emblemática para a questão da identidade nacional, uma vez que
incorporava na história como problema ainda não resolvido o pró-
prio povo brasileiro.

Recuperação literária

Não é de estranhar, portanto, que em plena década de 1920


os ecos da obra de Euclides fossem ouvidos através do Brasil,
tendo como porta-vozes, militares insatisfeitos com os rumos da
República. Os revolucionários da década de 1920 eram militares
como Euclides da Cunha e pretendiam refazer a epopéia eucli-
diana do lado dos vencidos da República. Não mais lutar para a
liquidação do povo brasileiro, como havia ocorrido em Canudos,
mas chamá-lo para uma grande marcha cívica, que, partindo do
sertão, atacaria o litoral, com a sua civilização de empréstimo.
Essa primeira mitologização do campo brasileiro a partir da obra
de Euclides se dá com a famosa Coluna Prestes, disposta, assim
como o movimento modernista que lhe é contemporâneo, a re-
descobrir o Brasil a partir de seu interior e do sertão. De Macu-
naíma a Luís Carlos Prestes, chegando a Glauber Rocha e à guerri-
lha rural, há um enredo literário na política brasileira a partir d’Os

136
Prefigurações literárias da barbárie nacional em Euclides da Cunha...

sertões e seu desfecho trágico na guerrilha do Araguaia na década


de 1970, ainda é uma página aberta da história contemporânea.
Mas os deslocamentos dessa visão literária euclidiana não se
restringem a esse período e mesmo à visão deturpada que os ven-
cedores de 1930 iriam fazer do legado euclidiano à literatura na-
cional. Em nome do povo, eles também pretenderam instituir
uma nova etapa da história nacional criando, aliás, a imagem de
um chefe Conselheiro capaz de conduzir a nação rumo ao pro-
gresso. Ele também vinha anunciando o fim de uma república
de reguletes e excludente, sem mostrar, contudo, a sua face pro-
fundamente autoritária, como que justificando um mal necessá-
rio. Isto é, a dificuldade de instituir um Brasil popular, em face
dos privilégios, sempre foi tão grande, que apenas um chefe auto-
ritário teria forças para enfrentar tão grandes obstáculos.
Não foi, contudo, somente nessas décadas que a imaginação
política brasileira se revelou sensível à obra de Euclides da Cunha.
Muito mais radical do que a leitura e o projeto político revolucio-
nário dos “tenentes”, foi a releitura de Os sertões realizada pelos
movimentos culturais dos anos 1960. Começaremos identifican-
do a obra de Euclides em um dos momentos inaugurais do cinema
novo que foi o filme de Glauber Rocha, Deus e o Diabo na terra do
Sol, que consagrou definitivamente a metáfora da natureza, “o
sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”, apontando o projeto
político nacional mais uma vez para o interior do Brasil. Assim
como havia prenunciado o Conselheiro, os anos 1960 eram tem-
pos de mudança e de transformação, um tempo apocalíptico. As
energias nacionais estavam adormecidas no sertão e metaforica-
mente com uma câmara na mão (objeto muito parecido com o
fuzil) Glauber Rocha pretendia inaugurar uma nova fase da revo-
lução brasileira. O movimento estudantil da década de 1960 foi
o responsável pela recuperação literária de Os sertões no plano da
política. Uma vez mais, a intelectualidade brasileira colocou para
si a responsabilidade da realização do sonho político popular
igualitário como um modo de expiar uma culpa que se acumulava

137
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

desde os tempos de Euclides. Assim, o intelectual da década de


1960 deveria se colocar ao lado do povo do sertão, inaugurando
uma nova etapa revolucionária, por meio de uma guerra de guer-
rilhas contra o sistema político vigente, assim como havia sido
feito por Conselheiro. Não é por acaso que o mito revolucioná-
rio dessa década, o Che, tem uma representação ainda mais em-
blemática aqui no Brasil.
Mas, dentre todas as recuperações literárias da obra de Eu-
clides, gostaria de examinar alguns elementos muito intrigantes
que fazem do romance de Lima Barreto, O triste fim de Policarpo
Quaresma, uma paródia d’Os sertões e do próprio Euclides da
Cunha. A começar pela epígrafe de Renan que abre o livro, a gran-
deza e a tragédia de Quaresma se equivalem à de Marco Aurélio,
imperador romano, e por que não afirmar também que essas se
ligam ao destino do próprio Euclides da Cunha. Ele, assim como
Quaresma, também acreditou ser possível implantar um verda-
deiro projeto nacional impulsionado, primeiramente, pelo sonho
de uma república jacobina, e impôs para si um sacrifício pessoal,
indo ao encontro dos inimigos liderados pelo fanático Conselhei-
ro. Acreditou ser possível preservar uma idéia que aos poucos
lhe escapava e viu o projeto de nacionalidade tornar-se ruína n’Os
sertões baianos. Como não mais tinha capacidade de agir, decidiu
escrever, acreditando ser possível mudar o sentido da história por
meio de seus escritos que deveriam penetrar nas entranhas da
nacionalidade. Quaresma também projeta um percurso parecido
ao de Euclides.
No romance de Lima Barreto (1997, p.15), as pistas são indi-
retas, mas, ao mesmo tempo, provocativas. O major tem a mesma
predileção no que se refere aos estudos da natureza brasileira e

durante os lazeres burocráticos estudou, mas estudou a Pátria,


nas suas riquezas naturais, na sua história na sua geografia, na sua
literatura e na sua política. Quaresma sabia as espécies minerais,
vegetais e animais que o Brasil continha, sabia o valor do ouro,

138
Prefigurações literárias da barbárie nacional em Euclides da Cunha...

dos diamantes ... Defendia com azedume e paixão a proeminência


do Amazonas sobre todos os demais rios do mundo.

E por ser um fervoroso admirador de Floriano Peixoto, pre-


tende erradicar aqueles vícios que tornam o brasileiro um imita-
dor de costumes europeus. A começar pela língua nacional, que
por sinal, é européia. Amante dos romances naturalistas e india-
nistas, o major Quaresma elabora um projeto de nacionalidade
que substitui a língua portuguesa pelo tupi-guarani. Fracassado
no seu intento de convencer o Marechal de Ferro a modificar a
língua nacional, Quaresma é internado no hospício e lá fica tran-
cafiado por vários meses.
Não deixa de ser instigante essa alusão à loucura no texto de
Barreto. Embora saibamos que ele mesmo chegou a ser internado
em um manicômio, o tema da loucura associado ao fanatismo e
à utopia estava em voga naquele período de virada de século. O
próprio Euclides cunhou uma definição implacável de Antônio
Conselheiro, definindo-o como

um paranóico indiferente ... A regressão ideativa que patenteou,


caracterizando-lhe o temperamento vesânico, é certo, um caso
notável de degenerescência intelectual, mas não o isolou – incom-
preendido, desequilibrado, retrógrado – no meio em que agiu ... A
sua frágil consciência oscilava em torno desta posição ... entre o
bom senso e a insânia. Parou aí indefinidamente, nas fronteiras
oscilantes da loucura, nessa zona mental onde se confundem fací-
noras e heróis, reformadores brilhantes e aleijões tacanhos, e se
acotovela gênios e degenerados. Não a transpôs. Recalcado pela
disciplina rigorosa de uma sociedade culta, a sua nevrose explodi-
ria na revolta, o seu misticismo comprimido esmagaria a razão.
(Cunha, 1995, v.2, p.206-7)

A paródia barretiana faz de Quaresma um personagem pa-


recido com a figura do Conselheiro delineada por Euclides, mas,
ironicamente, essa mesma definição serviria ou estaria muito pró-
xima ao modo como o próprio Euclides abraçou a causa republica-

139
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

na e com uma exagerada dose de fanatismo cunhou o movimento


de Canudos como “a nossa Vendéia”.
Após alguns meses de reclusão, Quaresma sai do hospício e
vai viver em um sítio que ironicamente se chama Sossego..., onde
decide se regenerar da loucura passada e decide transformar a
terra ignota da região em terra produtiva para a lavoura nacional.
Aqui a paródia atinge um de seus pontos mais altos, porque nela
estão dispostos numa mesma composição aqueles elementos que
se consagraram na obra Os sertões de Euclides da Cunha. Todo o
enredo dessa parte do romance de Barreto transcorrida no sítio
Sossego repete a mesma composição da obra euclidiana, isto é, a
Terra, o Homem, a Luta. No primeiro movimento, Quaresma se apres-
sa a conhecer a terra com toda a carga de preceitos científicos:

As primeiras semanas que passou no “sossego”, Quaresma as


empregou numa exploração em regra sua nova propriedade. Havia
nela terra bastante, velhas árvores frutíferas, um capoeirão grosso
com camarás, bacurubus, tinguacibas, tibibuias, munjolos, e ou-
tros espécimens. Anastácio que o acompanhara, apelava para as
suas recordações de antigo escravo da fazenda, e era quem ensina-
va os nomes dos indivíduos da mata a Quaresma, muito lido e
sabido em coisas brasileiras.
O major logo organizou um museu dos produtos naturais do
“Sossego”. As espécies florestais e campesinas foram etiquetadas
com os seus nomes vulgares, e quando era possível com os cientí-
ficos. Os arbustos, em herbário, e as madeiras, em pequenos to-
cos, seccionados longitudinal e transversalmente.
Os azares de leituras tinham-no levado a estudar as ciências
naturais e o furor autodidata dera a Quaresma sólidas noções de
Botânica, Zoologia, Mineralogia e Geologia...
Encomendou livros nacionais, franceses, portugueses; com-
prou termômetros, barômetros, pluviômetros, higrômetros,
anemômetros. Vieram estes e foram arrumados e colocados con-
venientemente. (Barreto, 1997, p.98-9)

140
Prefigurações literárias da barbárie nacional em Euclides da Cunha...

Essa descrição de Policarpo parece ser a própria descrição de


Euclides da Cunha e de seus artifícios para narrar sua viagem ao
sertão baiano. Esse autor tinha tamanha fascinação pelos apare-
lhos científicos de sua época que insere de sopetão em diferentes
momentos de sua obra, referências diretas a higrômetros e barô-
metros no meio das suas célebres descrições barrocas e serpen-
teantes da natureza. Produz, assim, um texto que acaba aclima-
tando o seu cientificismo junto ao seu aparato literário, às
reflexões filosóficas e às expressões populares colhidas no sertão:

Ali, no pleno dos estios quentes, quando se diluem, mortas


nos ares parados as últimas lufadas de leste, o termômetro é subs-
tituído pelo higrômetro na definição do clima. As existências deri-
vam numa alternativa dolorosa de vazantes e enchentes dos gran-
des rios. Estas alteiam-se sempre de um modo assombrador. O
Amazonas refeito salta fora do leito, levanta-se em poucos dias o
nível das águas, de dezessete metros...
A enchente é uma parada na vida. Preso nas malhas dos
igarapés, o homem aguarda então, com estoicismo raro ante a fa-
talidade incoercível, o termo daquele inverno paradoxal de tempe-
raturas altas. (Cunha, 1998, p.69)

Nas páginas de Os sertões, bem como em À margem da história,


Euclides da Cunha sempre se esmera a dar as denominações apro-
priadas cientificamente, sejam biológicas, geológicas ou químicas
para elementos da paisagem e da vida sertaneja. Essa postura de
se valer sempre do olhar culto e científico para descrever o arcaico
marca bem o distanciamento do narrador com relação à cena nar-
rada, chegando por vezes a gerar metáforas incrivelmente híbri-
das, misturando elementos do imaginário do sertanejo com a cul-
tura clássica, como é o caso da célebre descrição de Canudos como
sendo a “Tróia de taipa”.
É exatamente essa postura de “misturar-se a distância” com
as coisas do Brasil que tem Policarpo Quaresma. Ele vai para o
sítio “Sossego”, mas sempre cercado de todo esse aparato civili-

141
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

zado para compreender as coisas consideradas mais simples para


os homens do interior (como o referido Anastácio), que apenas
com a sua percepção são capazes de concluir o mesmo que os
muitos “...ometros” de Policarpo. Esse conflito entre o modo ci-
vilizado da personagem de Lima Barreto, marcado por mil pre-
parativos para lidar com a terra, e o modo objetivo e perceptivo
do sertanejo fica marcado nesta passagem que se segue àquela
citada anteriormente:

Anastácio assistia a todos esses preparativos com assombro.


Para que tanta cousa, tanto livro, tanto vidro? Estaria o seu antigo
patrão dando para farmacêutico? A dúvida do preto velho não du-
rou muito. Estando certa vez Quaresma a ler o pluviômetro, Anastá-
cio ao lado, olhava-o espantado, como quem assiste um passe de
feitiçaria. O patrão notou o espanto e disse:
– Sabes o que estou fazendo Anastácio?
– Não, “sinhô”.
– Estou vendo se choveu muito.
– Pra que isso, patrão? A gente sabe logo “de olho” quando
chove muito ou pouco... Isso de plantar é capinar, pôr a semente
na terra, deixar crescer e apanhar... (Barreto, 1997, p.99)

Nesse caso, vemos com clareza que a própria figura de Eucli-


des pode ter servido como inspiração imagética para a persona-
gem tragicômica de Barreto. Na narração de Os sertões emerge
em diferentes passagens essa dualidade entre a crença científi-
ca do autor, responsável pelo vocabulário fundamental para a
composição da obra, e o assombro descritivo do narrador diante
da improvável eficácia do saber sertanejo, pautado sempre por
percepções.
Esse assombro descritivo com relação à eficácia de certos mé-
todos e elementos da vida sertaneja se transforma ao longo do
texto em admiração pelo modo de existência humana que ali se
desenvolvera. Mas essa é sempre uma admiração a distância, co-
mo se admira algo que não nos pertence, um costume exótico.

142
Prefigurações literárias da barbárie nacional em Euclides da Cunha...

É um modo descritivo ao qual o autor sujeita a sua admira-


ção que serve também para marcar uma distância identitária com
o objeto descrito. Se, por um lado, Euclides busca e aprecia o Bra-
sil, e vê no sertão uma manifestação da pátria brasileira; por ou-
tro, é sempre com olhar estrangeiro que o faz. Apreende o saber
de seus compatriotas como europeu numa colônia distante. É
precisamente esta a postura de Policarpo em seu sítio. E o mo-
mento da admiração pelo saber simples e pautado pela percepção
se dá quando a personagem, depois de trazer toda sua parafernália
científica, se rende aos conselhos de Anastácio, e passa a se dei-
xar ensinar certas coisa básicas para o trato da terra:

E os dous iam continuando. O velho preto, ligeiro, rápido,


raspando o mato rasteiro, com a mão habituada, a cujo impulso a
enxada resvalava sem obstáculos pelo solo, destruindo a erva má;
Quaresma furioso, a arrancar torrões de terra daqui, dali, demo-
rando-se muito em cada arbusto e, às vezes, quando o golpe falha-
va e a lâmina do instrumento roçava a terra, a força era tanta que
se erguia uma poeira infernal, fazendo supor que por aquelas pa-
ragens passara um pelotão de cavalaria. Anastácio, então, intervi-
nha humildemente, mas em tom professoral:
– Não é assim “seu majó”. Não se mete a enxada pela terra
adentro. É de leve, assim.
E ensinava ao Cincianto inexperiente o jeito de servir-se do
velho instrumento de trabalho.
Quaresma agarrava-o, punha-se em posição e procurava com
toda boa vontade usá-lo da maneira ensinada. Em vão. (Barreto,
1997, p.100-1)

Antes de mais nada, devemos fazer uma importante obser-


vação sobre essa passagem, um desfecho das anteriores. Note-
se que, aqui, Lima Barreto, ao chamar Policarpo de “Cincinato
inexperiente”, se vale de um dos aparatos descritivos de Euclides
da Cunha para o sertanejo, ou seja, o paralelo de situações e per-
sonagens nacionais com elementos clássicos que atestam a cul-
tura do narrador. Quintino Cincinato fora um estadista romano

143
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

célebre por sua austeridade e simplicidade dos costumes, que


vivera durante o século V a. C. Nesse contexto, a sua figura produz
um efeito irônico (pois vem acompanhada do adjetivo inex-
periente e se aplica a Quaresma) e ao mesmo tempo parecido
com um efeito descritivo comum em Os sertões. Cincinato, inex-
periente na arte de carpir a terra, parece ser uma metáfora bas-
tante plausível para a figura de Euclides da Cunha, por sua cul-
tura e erudição e simultaneamente por seu estupor (que denota
inexperiência) perante a capacidade de sobrevivência do serta-
nejo apenas com os elementos da terra.
Outra passagem que marca a presença da figura do famoso
escritor como inspiração provável para a figuração de Policarpo
é a carta enviada por essa personagem à sua irmã, Adelaide. Nessa
carta, a narrativa da “luta” pelo punho de Policarpo não deixa
dúvida quanto ao seu referencial, situado na célebre narrativa de
“A luta” de Euclides:

Querida Adelaide. Só agora posso responder-te a carta que


recebi há quase duas semanas. Justamente quando ela me chegou
as mãos, acabava de ser ferido, ferimento ligeiro é verdade, mas
que levou à cama e trar-me-á convalescença longa. Que combate,
minha filha! Que horror! Quando me lembro dele, passo as mãos
pelos olhos como para afastar uma visão má. Fiquei com horror à
guerra que ninguém pode avaliar ... Uma confusão, um infernal
zunir de balas, clarões sinistros, imprecações – e tudo isto no seio
da terra profunda da noite... Houve momentos que se abandona-
ram as armas de fogo: batíamo-nos à baioneta, a coronhadas, a
machado, facão. Filha: um combate de trogloditas, uma coisa pré-
histórica... Eu duvido, eu duvido, duvido da justiça de isso tudo,
duvido da sua razão de ser, duvido que seja certo e necessário tirar
do fundo de nós todos a ferocidade adormecida, aquela ferocidade
que se fez e se depositou em nós nos milenários combates com as
feras, quando disputávamos a terra a elas ... Eu não vi homens de
hoje; vi homens de Cro-Magnon, do Neanderthal armados com
machados de sílex, sem piedade, sem amor, sem sonhos genero-
sos, a matar, sempre a matar... Este teu irmão que estás vendo,

144
Prefigurações literárias da barbárie nacional em Euclides da Cunha...

também fez das suas, também foi descobrir dentro de si muita bru-
talidade, muita ferocidade, muita crueldade... eu matei, minha irmã;
eu matei! E não contente de matar, ainda descarreguei um tiro quando
o inimigo arquejava a meus pés... (Barreto, 1997, p.239-40)

A narrativa de Quaresma em primeira pessoa prima por um


reforço nas cores descritivas, por um rebuscamento dos adjeti-
vos, assim como pela construção das metáforas de estilo intenso.
É um texto que difere estilisticamente das páginas do narrador
em terceira pessoa construído por Lima Barreto. O texto de Po-
licarpo parece-se em vários aspectos, a começar pelo estilo e pelos
recursos literários, com o de Os sertões. É uma paródia dele. Come-
cemos pelo horror à guerra: antes de narrar o combate, a perso-
nagem barretiana marca seu horror com relação à situação da qual
participou. Recurso idêntico ao que vemos no poema de Euclides
“Página Vazia”5 que antecede sua obra em prosa e traz na pri-
meira estrofe frases como “...revendo, inda na mente/Muitas
cenas do drama comovente/Da guerra despiedada e aterradora”.
Depois, na seqüência das balas e clarões, como que de
sopetão, o combate de Quaresma transforma-se numa luta
neandertal, pré-histórica. Essa metaforização da luta com o re-
curso imagético dos homens pré-históricos, como se naquele ins-
tante da batalha a barbárie primordial se restabelecesse intacta
após milênios, é largamente utilizada por Euclides da Cunha na
descrição dos jagunços de Canudos. A ferocidade adormecida que
retorna à cena, que é acordada pelo momento histórico: é justa-
mente essa a explicação de Euclides, bem como da personagem
barretiana para o movimento de Canudos. Uma manifestação do
eterno retorno à barbárie que a civilização soterrara. Mas ao fim
da narrativa, o próprio Quaresma, após questionar a justiça des-
se confronto, assume também seu lado Cro-Magnon, e afirma

5 A esse respeito, ver o ensaio “Trauma e história na composição de Os ser-


tões” de Decca & Gnerre, neste volume.

145
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

“Eu matei!”. Aí vemos a personagem de Lima Barreto dar um


possível desfecho improvável, mas interessante, para a própria
passagem de Euclides em meio à batalha de Canudos, pois o ho-
mem culto e civilizado se torna também um neandertal, e final-
mente sela sua identidade com as camadas incivilizadas.
O homem culto que se torna feroz é uma representação que
transcende a figura de Euclides da Cunha, e como enredo certa-
mente serve também para questionar personagens centrais da
República brasileira (o próprio Floriano Peixoto?) que se encon-
trava no início do século XX em plena fase de consolidação. As
características tragicômicas do enredo de Quaresma parecem se
confundir com uma crônica de Euclides publicada em 1894, “A
esfinge” – que também faz referência à revolta da Armada –, inclu-
sive no que tange aos aspectos da carnavalização utilizada como
artifício literário por Lima Barreto. A civilização ocidental assis-
te de camarote à encenação tragicômica da República brasileira:

A civilização, espectadora incorruptível, observa-nos, dentro


de camarotes cautelosamente blindados: a França, na Arethuse
veloz; a Inglaterra, entre as amuradas da Beagle veleira, cujos pas-
seios diários fora da barra dão tanto que pensar; e a Alemanha, e
os Estados Unidos, e o próprio Portugal sobre o convés pequeno
da Mindello...
Aplaudem-nos?
É duvidoso. Representamos desastradamente. Baralhamos os
papéis da peça que deriva num jogar de antíteses Infelizes, entre
senadores armados até aos dentes, brigando como soldados, e
militares platônicos bradando pela paz – diante de uma legalidade
que vence pela suspensão das leis e uma constituição que estran-
gulam abraços demasiados apertados dos que a adoram.
Daí as antinomias que aparecem. Neste enredo de Eurípedes,
há um contra-regra – Sardou. Os heróis desmandam-se em
bufonerias trágicas. Morrem, alguns, com um cômico terrível nes-
ta epopéia pelo avesso. Sublimam-se e acalcanham-se. Se há por aí
Aquiles, não é difícil descobrir-lhes no frêmito da voz imperativa a
casquinada hilar de Trimalcião. (Cunha, 1995, p.203)

146
Prefigurações literárias da barbárie nacional em Euclides da Cunha...

Ao assumir seu papel de Cro-Magnon e dizer “Eu matei!”,


Policarpo encena o próprio drama de Euclides, que diz em pri-
meira pessoa, no texto de “A esfinge”, “representamos desastra-
damente. Baralhamos os papéis da peça que deriva num jogar de
antíteses infelizes”. A inversão não pára por aí. Os heróis eucli-
dianos tornam-se tragicômicos, exatamente como o anti-herói
Policarpo, que se desmanda em “bufonerias trágicas”. O que o
romance de Lima Barreto deixa entrevisto é um conjunto de pistas
e sinais da encenação da tragédia nacional prefigurada por
Euclides da Cunha. Em vez de escolher Os sertões como a repre-
sentação eloqüente desse drama, a sutileza literária de Lima
Barreto é a de ter percebido a prefiguração de Os sertões na crônica
“A esfinge”. Esse conto é a encenação do trauma que falta em Os
sertões. Desse modo, Os sertões fornece a Lima Barreto os elemen-
tos necessários para a caracterização de figuras da nacionalida-
de, incluindo o próprio Policarpo, mas será o conto “A esfinge”
que fornecerá o enredo do trauma nacional, página ainda deixada
em branco pela nossa literatura.

Referências bibliográficas

ASSIS, M. de. Canção dos piratas. julho de 1894. In: ______. Obra com-
pleta. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994.
BARRETO, L. Triste fim de Policarpo Quaresma. Ed. crítica coord. por An-
tônio Houaiss e Carmem Lúcia Negreiros. Madrid, São Paulo: Alca
XX, Scipione Cultural, 1997.
CUNHA, E. da. Obras completas em dois volumes. Org. Afrânio Coutinho.
2.ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. 2v.
______. Os sertões: campanha de Canudos. Ed. crítica de Walnice No-
gueira Galvão. São Paulo: Ática, 1998.

147
Por trás das palavras:
fluxos e ritmos em Os sertões

Antoine Seel1
Tradução de Jorge Coli

Diante de um tal monumento, o tradutor deve apreender, em


primeiro lugar, a vida do texto. Não sua estatura, sua grandeza,
mas seu ritmo, seu movimento – ou antes, seus movimentos, ín-
fimos ou grandiosos, mínimos ou enfáticos. Imerso nessa mul-
tiplicidade de ritmos, ele deve também descobrir uma economia,
uma organização dessa pluralidade. Ou, para ser mais preciso,
já que a palavra organização talvez seja rígida demais, ele deve
descobrir um certo número de eixos, ou de tendências, que dese-
nham como que a respiração do texto.
Lendo e relendo esse texto, tendo a alegria de traduzi-lo com
meu amigo brasileiro Jorge Coli, fui surpreso pela repetição de
um certo número desses ritmos. Primeiro, pela onipresença de

1 Professor de Literatura Francesa e tradutor de Os sertões para o francês.

149
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

mutações bruscas, súbitas; de saltos qualitativos. O texto se abre


bruscamente, se interrompe, balança. Como uma falha súbita,
como um rasgo. A descrição, majestosa, precisa, científica, desdo-
brando suas complexidades, rompe-se de repente sobre uma
abrupção, uma ravina. Ou a narração, ofegante, precipitada, sus-
pende-se, estacando sobre um abismo.
Euclides da Cunha quer conferir à sua obra o tom de uma
descoberta, ou antes, de uma seqüência incessante de descober-
tas. Para tanto, transforma-se em observador e em viajante que,
de chofre, pára, surpreso diante da natureza e do homem.

E o observador que seguindo este itinerário deixa as paragens


em que se revezam, em contraste belíssimo, a amplitude das ge-
rais e o fastígio das montanhas, ao atingir aquele ponto estaca
surpreendido...
***
Está sobre um socalco do maciço continental, ao norte.
(Cunha, s. d.)
Reproduzamos, intactas, todas as impressões verdadeiras ou
ilusórias, que tivemos quando, de repente, acompanhando a
celeridade de uma marcha militar, demos de frente, numa volta do
sertão, com aqueles desconhecidos singulares, que ali estão – aban-
donados – há três séculos. (Cunha, s. d., p.127)

As forças vivas, naturais ou humanas, obedecendo a um mes-


mo ritmo de surpresas, de mudanças bruscas, podem fazer pensar
nas teorias atuais do caos. Elas insistem na complexidade de cer-
tos sistemas que não se deixam compreender pelas formas de-
terministas clássicas, operando por rupturas qualitativas, im-
previsíveis, em vez de grandes progressões uniformes.
Veja-se o curso do Vaza-Barris:

As mais das vezes cortado, fracionando-se em gânglios estagna-


dos, ou seco, à maneira de larga estrada poenta e tortuosa, quando
cresce, empanzinado, nas cheias, captando as águas selvagens que
estrepitam nos pendores, volve por algumas semanas águas barren-

150
Por trás das palavras: fluxos e ritmos em Os sertões

tas e revoltas, extinguindo-se logo em esgotamento completo, va-


zando como indica o dizer português, substituindo com vantagem a
denominação indígena. (Cunha, s. d., p.34, os grifos são do autor)

O ritmo da progressão e da queda brusca se acompanha, aqui,


por uma reflexão sobre o léxico, e de uma utilização de todas as
suas possibilidades, denotativas e conotativas. O vocabulário
metafórico, “poético”, é empregado em sua precisão e intensi-
dade, para marcar os diferentes patamares, os diversos estados
desse ritmo ternário.
O tradutor, aqui, deve ser humilde e, ao lado dos termos fran-
ceses, só pode lembrar as palavras portuguesas que põem em mo-
vimento, que fazem viver a etimologia do termo topográfico; que
explicam – no sentido original: que desdobram – essa etimologia,
aliando preocupação pedagógica e beleza literária.
Um pouco mais longe, dois termos irão precisar o alcance
estético desse ritmo de surpresas:

Entretanto, inesperado quadro esperava o viandante que su-


bia, depois desta travessia em que supõe pisar escombros de terre-
motos, as ondulações mais próximas de Canudos.
Galgava o topo da Favela.

“Quadro”, “imprevisto”: a surpresa, a ruptura temporal, per-


mite a estetização do espaço. Quando o fio linear se rompe, o
espaço revela sua beleza: o poeta e pintor que Euclides da Cunha
é pode fixar o espaço, emoldurá-lo e assim transfigurá-lo em
quadro, em obra de arte.
Tomemos alguns outros exemplos dessa ruptura para mos-
trar a constância daquilo que não é uma fórmula, mas uma
estetização, quer dizer, uma metamorfose poética dos dados.
Essas descobertas, essas surpresas pontuam Os sertões, do começo
ao fim. Elas possuem, desta forma, uma função musical, inter-
vindo em intervalos regulares. Mas, nessa obra de arte total que
é a ópera de Os sertões, elas dramatizam também os dados mais
abstratos, transformando cada descoberta em “coup de théâtre”.

151
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

O sertão aparece sempre como uma surpresa. Leiamos ain-


da o percurso de uma vereda:

Vadeado o Jacurici, volvendo águas rasas e mansas, ela enfia-


va, inflexa, pelas chapadas fora, ladeada, em começo, por uma ou-
tra que demarcavam os postes da linha telegráfica recentemente
estabelecida.
A linha férrea corre no lado oposto. Aquele liame do progres-
so passa, porém, por ali, inútil, sem atenuar sequer o caráter ge-
nuinamente roceiro do arraial. Salta-se do trem; transpõem-se
poucas centenas de metros entre casas deprimidas; e topa-se para
logo, à fímbria da praça – o sertão...
Está-se no ponto de tangência de duas sociedades, de todo
alheias uma à outra. (Cunha, s. d., p.550)

Contraste entre duas terras, contraste entre dois povos. Con-


traste também entre a velocidade do viajante vindo do sul, com
o meio de transporte ilustrando a modernidade, e o imobilismo
inquietante do sertão – sua imobilidade ilusória, que permite
pressagiar outros movimentos inesperados, outras surpresas
imprevisíveis.
Pois o próprio sertão será abalado por tais rupturas: assim, a
noite, que cai bruscamente; ou a seca que se abate, ou ainda a
ressurreição da terra, quando o sertão, de súbito, torna-se um
paraíso.
O sertanejo, ele também vive em sua própria carne, sua psi-
cologia e seus costumes, essas rupturas e essas surpresas. Mas
esse eterno cansado desperta inesperadamente:

É o homem permanentemente fatigado.


Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em
tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar
desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência
constante à imobilidade e à quietude.
Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.
Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de im-
proviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos,

152
Por trás das palavras: fluxos e ritmos em Os sertões

transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer inci-


dente exigindo-lhe o desencadear das energias adormidas. O ho-
mem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas
linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre
os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e
corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos
os efeitos dos relaxamentos habituais dos órgãos; e da figura vulgar
do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto
dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento
surpreendente de força e agilidade extraordinárias.
Este contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-se a todo
momento, em todos os pormenores da vida sertaneja – caracteri-
zado sempre pela intercadência impressionadora entre extremos
impulsos e apatias longas. (Cunha, s. d., p.130)

O Conselheiro ilustra, em seu caráter e na evolução de sua


carreira, esse ritmo particular, composto de uma sucessão de
rupturas que tecem um crescendo, uma aceleração feita de séries
sucessivas. Mas, se lemos atentamente, reencontramos esse
mesmo ritmo na evolução doentia de Moreira César. Arrastado
numa sucessão cada vez mais rápida de crises epiléticas, suas de-
cisões são inesperadas e sua própria morte verá se opor, num
contraste súbito, numa solução de continuidade expressa pelo
assíndeto, a tranqüilidade das palavras e a morte instantânea.
Na verdade, é a sociedade brasileira no seu todo que progride
então por saltos, como o enunciou Euclides. Toda a campanha
de Canudos será à sua imagem: uma sucessão de surpresas, de
efeitos teatrais.
O tradutor deverá respeitar a riqueza estilística dessas ruptu-
ras; deverá ter cuidado em não cansar o leitor, evitando transfor-
mar essa repetição, estrutural e musical, num mecanismo, uma
série previsível que seria o contrário dos efeitos buscados.
Ele deverá ficar atento à carga emotiva dessas surpresas. As-
sim, quando essas rupturas se repetem num lapso de tempo cada
vez mais estreito, elas têm por efeito criar a angústia dos perso-

153
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

nagens e do leitor. Por um efeito de redundância e de simetria, o


mesmo horror da guerra. Algumas páginas se respondem em eco.
Assim, por duas vezes, surge a imagem tão forte, da criança an-
dando lentamente, solenemente, e revelando de repente a natu-
reza horrível da guerra, inscrita nas suas carnes como um estigma
indelével.
Cabe ao tradutor, portanto, recriar toda a brutalidade dessas
rupturas. Mas também respeitar a função paradoxal dessas solu-
ções de continuidade, que permitem ligar um capítulo a outro,
ou mesmo uma parte a outra.
Com efeito, essas rupturas nunca são tão fortes como quando
fazem agir um efeito de contraste. E, de maneira espantosa, o
contraste servirá para ligar esses diversos elementos que, sem
essas rupturas, sem esses rasgões, seriam tomados por um movi-
mento centrífugo contínuo.
Essas rupturas tendem a se opor, e já vimos alguns exem-
plos, às lentas progressões, aos crescendos majestosos. Ou en-
tão, elas se fazem seguir por silêncios literários. Silêncios muito
difíceis de traduzir, de fazer soar, ressoar, na língua. Essas pausas
sublimes onde o tempo faz sentir tanto seu peso quanto sua be-
leza, sua paz e sua grandeza, correspondem a uma abertura do
texto – uma abertura que, dessa vez, não é um rasgo ou uma fa-
lha, mas um desdobramento de infinito, uma abertura na qual o
texto se perde, confrontado àquilo que não tem limites.
O poeta faz ouvir o eco das solidões, ou a quietude universal
das coisas, ou ainda o silêncio do meio-dia. Como é difícil traduzir
essa música do silêncio! Como seria fácil confundi-la com o es-
tilo empolado, com uma simples pausa, ou pose, da ênfase! Pois
Euclides da Cunha confere uma dimensão cósmica a seu texto, e
o parágrafo se entrega não à surpresa, mas ao êxtase, no sentido
etimológico da palavra: aquilo que sai da stase, da posição imó-
vel. A escrita defronta então sua impossibilidade, não podendo
mais descrever ou narrar, mas apenas sugerir. E o positivista nos
lembra então que ele pertence também a uma geração fortemente

154
Por trás das palavras: fluxos e ritmos em Os sertões

marcada pelo simbolismo – uma geração que queria elevar a lite-


ratura à altura transcendente daquilo que lhe parecia ultrapassá-
la: a música, e o silêncio dessa música.
Pensemos nesses toques da Ave-Maria, que emanam das igre-
jas de Canudos como um leitmotiv. Temos aqui não a música do
silêncio, mas ao silêncio da música que permite a percepção do
sagrado.
Euclides da Cunha podia ser um espírito científico, não im-
porta: ele se mostra sensível à intensidade das preces, à beleza
desses apelos ao infinito, em direção do infinito, ou, ainda, à fú-
ria das maldições. Os anátemas ligam a história contemporânea
e o passado bíblico, que permite, também, reler o passado o mais
sacralizado à luz do presente o mais concreto.
Há uma certa majestade na religiosidade de Canudos, mas essa
majestade se transformará em furor, quando ouvimos o grito da
morte, a cusparada da morte dessas velhas megeras de Canudos,
que vão lutar até seu último alento, e lançar terríveis maldições.
Enfim, último exemplo, nesse final do livro, onde vêm fundir-
se a surpresa, a ruptura da surpresa, a vertigem diante do infinito
e o sentimento do inefável – o todo unido na morte, na presença
concreta, e incompreensível, inapreensível, da morte.
Essas aberturas têm, portanto, como tarefa, encerrar tal ou
qual parte do texto, que se acaba no inacabado. E o tradutor deve
então, nessa vertigem de grandeza, preocupar-se com os menores
detalhes, às conjunções coordenativas e, por exemplo, cujo papel
é crucial. Para dar vida a essas aberturas em direção ao sublime,
o tradutor deve tentar transformar-se num músico das palavras,
atento às nuanças da pontuação. Ouvindo a música das frases,
das inflexões de um respirar que se atenua lentamente, que se
perde suavemente, para dar lugar a uma outra respiração, um ou-
tro sopro, sem palavras, mas sem limites.
Mas, por vezes, o ritmo se acelera, as frases se alongam e se
cortam, ao mesmo tempo – a febre toma conta do texto. Outro

155
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

ritmo. Outros momentos essenciais. Febre da terra, febre do ho-


mem, febre das batalhas.

E foi uma debandada.


Oitocentos homens desapareciam em fuga, abandonando as
espingardas; arriando as padiolas, em que se estorciam feridos;
jogando fora as peças de equipamento; desarmando-se; desapertan-
do os cinturões, para a carreira desafogada; e correndo, correndo
ao acaso, correndo em grupos, em bandos erradios, correndo pelas
estradas e pelas trilhas que a recortam, correndo para o recesso
das caatingas, tontos, apavorados, sem chefe... (Cunha, s. d., p.375)

Essas febres – note-se a importância dessa palavra, com co-


notações médicas que não são inocentes, que tentaremos elucidar
daqui a pouco – se escrevem, o mais freqüentemente, no modo
da refrega.
Essas refregas fascinam Euclides da Cunha. Elas o fascinam
como um objeto nojento, repugnante. Pois essas massas, essas
almas, esses amontoados são uma espécie de negação da vida –
negação da vida não pela aniquilação, mas pela própria vida.
Quando a vida se confunde, não consegue mais agir, quando ela
se emaranha ou, para retomar o gauchismo citado pelo próprio
Euclides da Cunha, quando ela se entrelisa.
Eis o que mais choca Euclides da Cunha. Que a vida não possa
mais se desenrolar, nas suas individualidades, mas que ela tenda
à imobilidade pela acumulação, que ela se superponha a si pró-
pria para não mais existir.
Essas refregas fixam os corpos. Elas os fixam num lugar que
não cessa de encolher. O próprio símbolo dessas refregas é, de-
certo, o centro d’Os sertões, a meca dos sertanejos, o objetivo das
campanhas: Canudos. Canudos como um fundo, uma bacia geo-
gráfica – o que significa e encarna a regressão dos sertanejos.
Refrega repugnante, para Euclides da Cunha, a própria organi-
zação social dos sertanejos; amontoado asqueroso, a ausência de
propriedade, e o tradutor seria quase tentado por se metamor-

156
Por trás das palavras: fluxos e ritmos em Os sertões

fosear em psicanalista amador quando descobre, no coração des-


sas repugnâncias, o asco ante a promiscuidade dos sertanejos, a
rejeição sem apelo da união livre que se praticava em Canudos,
o nojo ante essa tebaida turbulenta.
Essa cidade sem ruas, sem bairros, essa cidade que não é uma
cidade, já que não é organizada, essa cidade-amontoado gravita
em volta de sua igreja principal. Esta representa, para Euclides
da Cunha, a própria imagem da feiúra:

Levantava, volvida para o levante, aquela fachada estupenda,


sem módulos, sem proporções, sem regras; e estilo indecifrável;
mascarada de frisos grosseiros e volutas impossíveis cabriolando
num delírio de curvas incorretas; rasgada de ogivas horrorosas,
esburacada de troneiras; informe e brutal, feito a testada de um
hipogeu desenterrado; como se tentasse objetivar, a pedra e a cal,
a própria desordem do espírito delirante. (Cunha, s. d., p.214)

A feiúra artística é, portanto, definida em termos de mistura,


de heterogeneidade. Essas igrejas representam, pelo menos, um
eixo vertical que se destaca do amontoado horizontal de Canudos.
Mas quando a cidade perde suas duas balizas, seus dois pontos
de referência, ela não será mais do que uma mistura heteróclita,
uma indizível mescla – e dessa vez, esse indizível não será mais
o do infinito, da música e do silêncio, mas o inefável, negativo,
das palavras que se confundem e se travam mutuamente.
Canudos vai se encolher entrelaçando suas ruelas. Vai opor
às tropas sucessivas a resistência do informe. Os textos religiosos
encontrados nos escombros, assim como o entulho que se amon-
toa nos casebres, compõem a figura de uma palavra atolada, es-
magada, sem essa transcendência das preces, dos sinos da Ave-
Maria. Palavras fechadas, opostas às aberturas que estudamos
antes.
Na realidade, Canudos encontra-se à imagem da natureza que
o envolve e que, ela também, apresenta-se como uma armadi-
lha, um labirinto de galhos no qual vêm se perder os soldados.

157
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

O tradutor descobre na mescla, na refrega, um ritmo parti-


cular, uma modalidade de existência, que o autor atribui a diver-
sas entidades, que, todas, merecem sua condenação.
Voltemos a esse personagem de Moreira César, que Euclides
da Cunha descreve comparando-o, implicitamente, ao próprio
Conselheiro. Por uma série de fórmulas, por uma seqüência de an-
tinomias, de oxímoros, Euclides da Cunha revela o caráter febril e
proteiforme do militar, antes de concluir por uma definição que é,
ao mesmo tempo, uma condenação. A mistura é o desequilíbrio,
portanto, a loucura. E nós reencontramos essas misturas nas dife-
rentes derrotas do exército, ou na confusão das notícias que suce-
deram o revertério de Uauá – confusão, dessa vez, no coração da
sociedade civil, contaminada, ela também, por essa febre doentia.
Essas febres conduzirão inelutavelmente à morte. Canudos,
de tanto encolher, transformou-se em gruta, como uma caverna
de homens pré-históricos e, depois, em fosso. A esse fosso, Eu-
clides da Cunha conferirá uma prodigiosa dimensão: esse fosso,
como o horror encarnado, vai viver, respirar, aspirar, devorar
aqueles que se aproximam, numa imagem de morte que fascina
e enoja Euclides da Cunha. Morte que fervilha, morte de carniça.
Morte na promiscuidade, morte no indefinido, no indefinível,
morte que pulula.
A essa morte repugnante, Euclides da Cunha oporá as ima-
gens tão belas dos cadáveres ressecados, isolados, intactos.
Cadáveres sublimados por suas qualidades científicas e estéti-
cas, cadáveres-estátuas, tão belos que não cessam de triunfar
da morte. Pois Euclides da Cunha detesta essa morte que não
termina nunca, essa morte que contrafaz a vida, em seu pulular,
em seu fervilhar. E, em seu imaginário da morte, tão rica de figu-
ras marcantes, ele opõe a essa putrefação dos vivos, eles próprios,
a decomposição instantânea da natureza, o desaparecimento
como uma chama, quer dizer, como um acesso de vida.
Recapitulemos. O tradutor está, primeiro, à escuta de seu
texto. E nos pareceu, nessa polifonia tão rica de Os sertões, des-

158
Por trás das palavras: fluxos e ritmos em Os sertões

cobrir três ritmos maiores, que não cessam de se repetir: o ritmo


da ruptura, da surpresa; ritmo da violência, da brutalidade, como
as pulsões súbitas do texto. Depois as aberturas do texto, em
direção à música, para além das palavras, do silêncio ou do sa-
grado. Momentos um pouco mais raros, mas não menos decisi-
vos. Enfim, como os nós do texto, onde as frases se apressam e
sugerem sua impossibilidade repugnante e fascinante: esse ritmo
tão freqüente da febre, da refrega, que designa, que denuncia, o
exato contrário da música amada por Euclides da Cunha.
A partir daí, o tradutor pode compreender – com-preender,
quer dizer apreender consigo, arrastar na música do texto que
ele se esforça em interpretar da melhor maneira – a filosofia do
autor. Filosofia, e não ideologia. Não aquilo que o autor pôde
escrever aqui ou ali, fora da obra, a fim de afirmar suas opiniões,
de tomar posição. Mas pensamento trabalhando dentro do texto,
pensamento que vive no texto, e se confunde com ele, como um
conjunto de tendências, de atrações, de repulsões, necessaria-
mente complexo, porque vivendo numa criação artística.
O primeiro ponto que se evidencia, então, é que Euclides da
Cunha detesta a imobilidade, o estatismo. Para ele, tudo se anima,
tudo vive. Tudo vive, tudo se anima, porque tudo é organismo.
O geólogo e o poeta farão viver a matéria inanimada. A própria
morte será vida, agonia, convulsão torturada, ou ainda, fusão en-
tre vida e morte. É que a própria Terra surge como um organis-
mo, onde se abolem as diferenças entre essas duas modalidades
de existência que são a vida e a morte.
Tudo vive, tudo se anima, porque tudo é plural, no mundo
de Euclides da Cunha. O cientista detesta os esquemas rígidos,
os quadros fixos. Recusa as explicações unívocas, os simplismos
redutores.
A natureza é plural: ela é formada de um número indefinido
de forças, de organismos, que entram em conflito. Esses conflitos,
Euclides da Cunha os mostra em suas ações, em seus dramas. A
palavra é rica, a palavra é justa. Pois drama significa também re-

159
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

presentação para espectadores, representação de atores destina-


dos a espectadores – representação. Todo conflito é representação
para Euclides da Cunha.
O teatro pode ser explícito quando os espectadores intervêm
como tais. Então, o tom se faz irônico, a ação degenera em repre-
sentação burlesca. O teatro cria a antiepopéia.
Os diretores de cena podem também ser designados, nomea-
dos. Então, essas cenas que se repetem são plenamente trágicas.
Desaparece o tom irônico, a irrisão burlesca. Ao contrário, a mor-
te só surge em todo seu horror quando ela é, assim, posta em
cena. Transfigurada e iluminada pela vontade estética, sublime
e cruel, dos jagunços.
Os sertanejos são, eles próprios, prodigiosos atores: atores
fantásticos, nas fímbrias entre real e irreal. Seus combates são
feitos de coups de théâtre, de aparições e desaparições dramáticas,
no sentido forte do termo. Vítimas de uma tragédia que os ultra-
passa, eles se tornam atores sobrenaturais, que parecem transcen-
der o plano da humanidade. Enquanto seus inimigos, atores bru-
tais de cenas bárbaras, mergulham num nível infra-humano, onde
se revela o avesso do cenário, a face oculta da tragédia.
Euclides da Cunha estetiza, teatraliza, portanto, esses confli-
tos. Ele o faz por um jogo complexo de enunciação – intervindo
raramente como narrador, não se declarando o autor dessa peça.
Prefere se transformar em observador, na terceira pessoa, por-
que a intervenção direta do EU arruinaria a distância necessária
ao espectador. Esse espectador é, no mais das vezes, anônimo,
ou é encarnado por personagens amados pelo autor, nos quais
Euclides da Cunha se projeta mais ou menos: Manuel Quadrado,
o último jagunço da lista, que sabe amar e observar a natureza, e
assim exercer um papel humanitário ou, mais ainda, S. Meneses,
a antítese do Conselheiro, espécie de Jesus científico, que viaja
n’Os sertões para observá-los, estudá-los, e não fomentar a revolta.
Com efeito, o espectador desse drama deve ser também um
viajante. Euclides da Cunha não saberia escrever a imobilidade,

160
Por trás das palavras: fluxos e ritmos em Os sertões

já o vimos, e o observador se desloca, viaja, como a própria cena,


natural ou humana, não cessa de se mover. Espectador móvel de
um teatro em movimento, o observador pode assistir à tragédia
da terra e do homem. Estará nos primeiros camarotes desses múl-
tiplos palcos, terríveis ou grandiosos, que compõem os atos desse
drama.
O tradutor deverá tomar essas palavras – palcos, cenas, atos,
drama, tragédia –, tão freqüentemente empregadas por Euclides
da Cunha, ao pé da letra; não ver aí simples metáforas, mas a
indicação de uma linguagem dramática, feita de rupturas e de
repetições, que se mescla à linguagem narrativa, conferindo-lhe
intensidade.
A objetividade do narrador – ou, antes, e sem conotação pe-
jorativa, a pose, a representação de objetividade – é necessária à
dramatização. Para que ela obtenha seus efeitos mais fortes, mais
incisivos.
É aí que se encontra a união, a fusão, tão particular a Euclides
da Cunha, tão espantosa aos nossos olhos: o autor estetiza, drama-
tiza esses conflitos, ao analisá-los, tomando-os como pacientes.
Como toda força é um corpo, um organismo, Euclides da
Cunha pode escrever ao mesmo tempo o drama desses corpos
em conflito, e o diagnóstico desses combates e desses combaten-
tes. Euclides da Cunha se quer cientista e escritor. E essa união,
essa harmonia tão perfeitamente obtida, é permitida por sua
concepção dos corpos em movimento, em conflito.
Um dos elementos decisivos do pensamento de Euclides da
Cunha – não exclusiva dele, está claro – é a transformação de todo
grupo – social, humano, mas também natural – em indivíduo. Tra-
balho de personificação que conduz a considerar esses grupos
como corpos, como organismos. Organismos, portanto entidades
mortais, que vivem antes de morrer. Mas corpos que se desenvolvem
em meio a outros corpos, no modo do conflito e da hierarquia.
Euclides da Cunha faz, assim, viver uma filosofia do progres-
so, da evolução. Na espécie humana, como voltaremos a vê-lo,

161
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

as raças superiores terminam por ser vitoriosas sobre as inferio-


res. Mas esse progresso é feito de lutas, quer dizer, de saltos, de
febres, de regressões mais ou menos longas. É essa complexida-
de, esse movimento que seduz Euclides da Cunha, e não a pers-
pectiva uniforme da progressão, lenta e segura, em direção de
um futuro melhor. Euclides da Cunha é um poeta do conflito.
Gosta de fixar seus momentos fortes, ilustrando-os por fatos mar-
cantes, gosta de passar do detalhe à massa e da massa ao deta-
lhe. Gosta de estetizar, de dramatizar esses conflitos, e sua paixão
pela ciência não contradiz em nada essa arte da transfiguração
estética. Outros autores, dentre os contemporâneos de Euclides
da Cunha, ilustrarão uma tal aliança. Penso em particular – já
que sou professor de literatura francesa – em Émile Zola. Ele tam-
bém crê em um progresso necessário, devido à razão. Ele também
personaliza os grupos, confundindo, aliás, as noções de raça e
de nação. Ele também escreve os dramas sangrentos de uma repú-
blica que se cria. Releiamos La débâcle [A derrocada], que data de
1892, para constatar a perspectiva racial de Zola (tão difícil de
compreender hoje, para nós, sobretudo vinda da parte do autor
do J’accuse) que opõe raça francesa e raça alemã. Ele mostra a na-
ção francesa se construindo sobre o assassinato dos loucos, dos
desequilibrados que são, para ele, os communards. Esse crime não
provoca em Zola nenhuma simpatia pelas vítimas, contrariamen-
te aos sentimentos complexos sentidos por Euclides da Cunha.
Constatemos o quanto uma certa linguagem científica,
marcada pelo positivismo e pelo cientificismo, se alia harmonio-
samente a uma mise-en-scène grandiosa desses conflitos – mas uma
mise-en-scène mais enfática, menos seca, menos nervosa da de Eu-
clides da Cunha: La débâcle, de um ponto de vista literário, não
tem a mesma estatura de Germinal, por exemplo.
Tendo chegado a esse ponto, o tradutor pode então compreen-
der – no sentido que já atribuímos a esse verbo, quer dizer, repor
num movimento de conjunto, numa economia geral desse movi-
mento – o que há de mais chocante na filosofia de Os sertões.

162
Por trás das palavras: fluxos e ritmos em Os sertões

Refiro-me a essas páginas que condenam a mestiçagem, des-


sas páginas racistas, escandalosas, que tratam a mestiçagem de
um ponto de vista médico. Euclides da Cunha inspira-se sobre-
tudo em Gumplowicz. E o tradutor não pode mais se contentar
em ler o texto. Deve se transformar em pesquisador, em detetive,
para descobrir as fontes de seu texto, e para apreender como essas
fontes se expandem no fluxo da obra.
Ludwig Gumplowicz, professor de Ciências políticas na Uni-
versidade de Graz, não tem hoje a mesma celebridade que em
seu tempo. Sua obra principal foi traduzida em francês, dez anos
mais tarde, sob o título de A luta das raças. Esse livro teve um
impacto considerável, elaborando uma teoria racista da evolu-
ção humana, reivindicando-se como ciência, e se opondo expli-
citamente à noção marxista e universalista de luta de classes.
Primeiro ponto que pode seduzir Euclides da Cunha: a exis-
tência de um mundo plural, o postulado de “um número infinito
de tribos, de hordas e de bandos”. Gumplowicz se alia à opinião
polifilética, ao poligenismo que o autor de Os sertões comparti-
lha. Euclides da Cunha afirma a existência de uma raça autônoma,
americana, refutando a idéia de uma origem única da humani-
dade. Segundo ponto: a insistência sobre os conflitos. Nesse pro-
cesso natural da história, como diz Gumplowicz, “todo elemento
étnico ou social poderoso busca fazer servir a seus objetivos todo
elemento fraco que se encontra no raio de alcance de seu poder,
ou que nele penetre”. Esses conflitos e essas guerras não ces-
sam de se repetir, e nesse domínio da ética não pode haver verda-
deiro progresso – concepção à qual Euclides da Cunha subscre-
veria sem problema, quando ele denuncia a barbárie, comum aos
dois campos, da guerra de Canudos. Gumplowicz desmistifica
as guerras modernas nestes termos:

No fundo, as guerras das nações civilizadas não são outras


coisas senão “formas superiores” dessas primitivas expedições de
pilhagem. Apenas, os homens primitivos são mais francos e mais

163
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

sinceros, e não querem parecer melhores do que de fato são, en-


quanto as guerras das nações civilizadas se fazem ao abrigo de
todas as espécies de frases possíveis, sob pretextos de “idéias
civilizadoras” e “políticas”, pela “liberdade”, pela “humanidade”,
pela “fé”...

Último ponto, enfim, que só poderia harmonizar-se à sensi-


bilidade de Euclides da Cunha: as raças são forças em movimen-
to. Existe, segundo Gumplowicz, “uma perpétua lei de movimen-
to, em conseqüência da qual as raças são propulsadas numa
circulação contínua à volta do globo terrestre”. Essa lei de movi-
mento cria um processo de amálgama que está na origem do pro-
gresso civilizador:

um perpétuo processo de amálgama atravessa a história inteira da


humanidade. Esse processo forma raças ... aproxima, estreita e
amálgama certos grupos heterogêneos em comunidades cada vez
maiores, em povos, em nações e em raças; não cessa de conduzi-
las à luta contra outros povos, outras nações e outras raças ... ele
as conduz, por essa luta, à domínios de dominação e de civilização
sempre novos, onde, ainda uma vez, o que é heterogêneo se funde
e se amalgama.

Pluralidade, conflitos, movimentos: eis os pontos onde essas


concepções raciais e racistas podiam se aliar, harmoniosamente,
à sensibilidade própria ao autor de Os sertões, que impregna sua
poética como sua filosofia.
Para Euclides da Cunha, a sub-raça dos sertanejos é, portanto,
condenada, pelas leis inflexíveis, invariáveis, da luta de raças. Esse
caráter inelutável transforma o conflito em uma tragédia, no sen-
tido pleno da palavra: combate cuja saída é conhecida de ante-
mão, e cujos atores são os instrumentos cegos de um destino
insensível às suas irrisórias vontades individuais. Pois, se os Deu-
ses estão ausentes desse drama da era moderna, as leis daquilo
que Gumplowicz chama “a ciência natural da humanidade” exer-
cem um poder que não é menos implacável, e metamorfoseiam

164
Por trás das palavras: fluxos e ritmos em Os sertões

o tempo e o espaço em um tempo e espaço plenamente trágicos:


um espaço que não cessa de se fechar, de se encolher, até tomar
a forma de um fosso que aspira tudo; e um tempo que se preci-
pita, ofegante, para o caos.
Pois esse conflito de raças não poderia ser simples. Uma raça,
ou sub-raça, mestiça, não pode ser estável. Ela é feita de saltos,
de bruscas mudanças qualificativas, de febres ou de íctus, para
retomar a linguagem médica de Euclides da Cunha. E eis o ponto
onde reencontramos essa predileção pelas mutações súbitas,
pelas metamorfoses espontâneas.
Essas mutações podem ser regressões. Euclides da Cunha é
fascinado por essas regressões, por esses retornos à barbárie. Em
sua “Nota preliminar”, depois de ter citado Gumplowicz, “maior
do que Hobbes”, Euclides da Cunha se põe sob o patronato de
Taine, evocando os deveres do “narrador...”
Fortalecido por esta “sim-patia”, quer dizer, por essa sensibi-
lidade que permite sofrer os sofrimentos dos outros, Euclides
da Cunha (s. d., p.65) pode assinalar essas regressões na terra,
nos homens, nos conflitos. Regressão da terra: “Ora, Os sertões
do Norte, a despeito de uma esterilidade menor, contrapostos a
este critério natural, figuram talvez o ponto singular de uma evo-
lução regressiva”.

Porque o Cambaio é uma montanha em ruínas. Surge, disfor-


me, rachando sob o periódico embate de tormentas súbitas e inso-
lações intensas, disjungida e estalada – num desmoronamento se-
cular e lento. (ibidem, p.291)

A sua (de Cocorobó) conformação topográfica instiga esta


retrospecção genealógica. Com efeito, as serranias cortadas de
angusturas, fracionando-se em serrotes de aclives vivos, figuram-se
ruínas de uma barragem aluída e rota pelas enchentes. (ibidem, p.434)

Regressão dos primeiros indígenas: Euclides da Cunha, ao


contrário da literatura indianista, não idealiza o índio de modo
algum, e não possui nenhuma atração pelas figuras do bon sauvage.

165
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

Regressão dos séculos, presente no próprio caráter do Con-


selheiro, cuja vida encarna um precipitado da decadência.
Regressão da luta dos sertanejos, cujo milenarismo não é
mais que a ressurgência de um sectarismo muito arcaico e bár-
baro, remontando aos primeiros séculos do cristianismo.
Seria interessante estudar, nesse teatro racial, o personagem
do judaísmo e da raça judia: o judaísmo é considerado uma regres-
são diante do cristianismo que, ele próprio, não passa de um es-
tado intermediário da evolução da humanidade, para Euclides da
Cunha. Mas o narrador, além dessas concepções abstratas, admi-
ra a beleza da mulher judia, que ele associa, aliás, à beleza grega, à
beleza clássica. Essa ambigüidade lhe permite escapar do anti-
semitismo presente, de modo explícito, na obra de Gumplowicz.
Mas Euclides da Cunha denuncia essa barbárie nos dois cam-
pos, pondo em paralelo as regressões atávicas republicanas e ser-
taneja. O entusiasmo cego pela república se equivale à idolatria
suscitada pelo Conselheiro. Pois nada é mais odioso que o fanatis-
mo. O fanatismo é transformar o ser humano, o corpo, a força,
em fetiche, quer dizer em máquina. O fanatismo é imobilizar, é
estatuar. E Euclides da Cunha, já o vimos, detesta esses estases –
que são erros, ou pior, negação da vida. Eis o que ele escreve de Carlos
Machado de Bittencourt, onde se misturam recusa do fetichismo,
do homem-máquina, e sua denúncia dos seres proteiforme:

Sem ser uma organização militar completa e inteiriça, afeiçoara-


se todavia ao automatismo típico dessas massas de músculos e ner-
vos feias para agirem mecanicamente à pressão inflexível das leis.
Mas isto menos por educação militar sólida que por tempera-
mento, inerte, movendo-se passivo, comodamente endentado na
entrosagem complexa das portarias e dos regulamentos. Fora disso,
era um nulo. Tinha o fetichismo das determinações escritas. Não as
interpretava, não as criticava: cumpria-as. (Cunha, s. d., p.533-4)

Retenhamos ainda seu desdém por esse ideal pretensamente


moderno do homúnculo, homem-objeto que é apenas supersti-
ção, adoração, e não domínio do progresso.

166
Por trás das palavras: fluxos e ritmos em Os sertões

Mas existem também saltos – embora efêmeros – em direção


ao que Euclides da Cunha chama de raça superior. E esses saltos
não cessarão de se multiplicar, nos sertanejos, na medida em que
o texto avança. Mais os jagunços se aproximam de seu fim trágico,
mais eles crescem e suas qualidades intrínsecas surgem exalta-
das. Mais e mais, eles aparecem como uma raça, e não mais como
uma sub-raça. Há aqui uma falha, uma contradição, em Os ser-
tões, que seria interessante aprofundar.

Um negro, um dos raros negros puros que ali havia, preso em


fins de setembro ... Chegou arfando, exausto da marchas aos
encontrões e do recontro em que fora colhido. Era espigado e seco.
Delatava na organização desfibrada os rigores da fome e do com-
bate. A magreza alongara-lhe o porte, ligeiramente curvo. A grenha,
demasiadamente crescida, afogava-lhe a fronte estreita e fugitiva;
e o rosto, onde o prognatismo se acentuara, desaparecia na lanu-
gem espessa da barba, feito uma máscara amarrotada e imunda.
Chegou em cambaleios. O passo claudicante e infirme, a cabeça
lanzuda, a cara exígua, um nariz chato sobre lábios grossos entre-
abertos pelos dentes oblíquos e saltados, os olhos pequeninos,
luzindo vivamente dentro das órbitas profundas, os longos braços
desnudos, oscilando – davam-lhe a aparência rebarbativa de um
orangotango valetudinário.
Não transpôs a coiceira da tenda.
Era um animal. Não valia a pena interrogá-lo
O general de brigada João da Silva Barbosa, da rede em que
convalescia de ferimento recente, fez um gesto. Um cabo-de-es-
quadra, empregado na comissão de engenharia e famoso naquelas
façanhas, adivinhou-lhe o intento. Achegou-lhe um baraço. Dimi-
nuto na altura, entretanto, custou a enleá-lo ao pescoço do conde-
nado. Este, porém, auxiliou-o tranqüilamente; desdeu o nó
embaralhado; enfiou-o pelas próprias mãos, jugulando-se...
...
E viram transmudar-se o infeliz, apenas dados os primeiros
passos para o suplício. Daquele arcabouço denegrido e repugnante,
mal soerguido nas longas pernas murchas, despontaram, repenti-

167
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

namente, linhas admiráveis – terrivelmente esculturais – de uma


plástica estupenda.
Um primor de estatuária modelado em lama.
Retificara-se de súbito a envergadura abatida do negro
aprumando-se, vertical e rígida, numa bela atitude singularmente
altiva. A cabeça firmou-se-lhe sobre os ombros, que se retraíram
dilatando o peito, alçada num gesto desafiador de sobranceria
fidalga, e o olhar, num lampejo varonil, iluminou-lhe a fronte. Se-
guiu impassível e firme; mudo, a face imóvel, a musculatura gasta
duramente em relevo sobre os ossos, num desempeno impecável,
feito uma estátua, uma velha estátua de titã, soterrada havia qua-
tro séculos e aflorando, denegrida e mutilada, naquela imensa
ruinaria de Canudos. Era uma inversão de papéis. Uma antinomia
vergonhosa... (Cunha, s. d., p.600-1)

Essa metamorfose, essa transfiguração, é estetizada pela refe-


rência à estatuária. Mas essa estetização é tomada por uma emo-
ção que se acentua. O texto se faz mais rápido, mas entrecortado;
os parágrafos tornam-se mais breves. As escritas se multiplicam,
como um apelo à vida, à transcrição brutal dos acontecimentos. A
partir de um certo momento, Euclides da Cunha nos oferece um
diário do conflito. Não é para introduzir uma escrita do EU –
Euclides da Cunha precisa sempre que vai escrever “um” diário, e
não “seu” diário. É antes para acelerar o ritmo, para impedir toda
fixação nos fins trágicos ou épicos. O tradutor, então, deve respei-
tar um certo desajeitamento nessa escrita imediata, de tornar legí-
vel essa recusa categórica da ênfase. Ainda mais que Euclides da
Cunha chega até a sugerir a existência de outras subescritas, evo-
cando os grafites indizíveis da soldadesca, ou mesmo uma palavra,
aquém ou além dos conflitos ideológicos. Palavras impossíveis, in-
terrompidas pelas fuziladas, mas que enriquecem, por sua vez, essa
polifonia crescente da escrita de Os sertões. Essa polifonia é a única a
poder exprimir o conflito em todas as suas ressonâncias – tanto
afetivas quanto intelectuais. É então que o texto, ele também, é to-
mado por essa febre que invade os acontecimentos – dessa mesma
febre que o cientista denunciava como um sintoma de regressão.

168
Por trás das palavras: fluxos e ritmos em Os sertões

Paradoxo da escrita viva. Euclides da Cunha, teoricamente,


não cessa de celebrar as virtudes da lentidão, da paciência. Em
vez de atacar os sertanejos, teria sido necessário educá-los, trazê-
los progressivamente, devagar, à cultura e à civilização superiores.
Mas a escrita de Os sertões pouco se atarda sobre esses deveres
pedagógicos. Ela faz viver os crimes, as barbáries, as regressões.
Ela é atravessada por todas essas tensões, por todas essas febres.
Impossível ir com tempo e vagar, pois o tempo que a escrita en-
carna, arrebata e arranca, nessa precipitação que se dirige para a
morte. A maneira de escrever de Euclides da Cunha – como seu
caráter e sua maneira de viver, provavelmente – não podia se do-
brar a esse ideal civilizador tão belo, mas tão lento, tão pouco
dramático. O texto tem sede de surpresas, de viravoltas. O texto
é ávido por violências – mesmo se isso o faça estupefato, aterrado,
diante do horror da tragédia, e a confessar sua impotência dian-
te do inefável da morte que, só ela, pode pôr termo a essa febre.
Confissão de impotência, que não é figura retórica, preterição,
mas paroxismo da emoção, da sim-patia.
É preciso entender bem esse termo de sim-patia. Euclides
da Cunha não mostra nenhuma admiração pelo messianismo dos
sertanejos. Se ele descreve longamente suas crenças, consagra
apenas algumas linhas à sua organização social, ao seu comu-
nismo, que teria podido fascinar tantos pensadores do século XIX
e do século XX: para tomar um exemplo radicalmente oposto a
Euclides da Cunha, é possível citar Bloch, que distingue, no mes-
sianismo de Thomas Münzer ou de outros, uma figura da espe-
rança e da crítica, uma distinção revolucionária entre o homo eco-
nomicus e o homo spiritualis – este último, rico de porvir, apesar de
seu “obscurantismo”.
A simpatia de Euclides da Cunha não é filosófica. Ela se dirige
a indivíduos – indivíduos dos dois campos, mas sobretudo do
campo dos vencidos.
É uma compaixão pelos atores da tragédia, que são as vítimas
do trágico. Quando o observador lúcido descobre a realidade da

169
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

“luta de raças”, o drama que se esconde sob as teorias tão frias e


cruéis de Gumplowicz.
O tradutor precisa, então, restituir essa escrita ofegante, pro-
teiforme. Ele deve transmitir essa emoção do autor – e talvez,
também, além da compaixão, esse sentimento de perturbação que
nos parece descobrir nas últimas páginas de Os sertões, quando o
narrador se sente perdido diante do horror que escapa a qual-
quer controle – incluindo o controle de suas próprias palavras,
no entanto tão precisas, tão terríveis.
O tradutor é um barqueiro que vai de uma língua a outra, de
uma cultura a outra. Ele atravessa um mundo incerto, um fluxo
de significações que não pertence a margem alguma, mas que
pertence às duas e, às vezes, leva tudo de roldão.
Diante da vertigem desse mundo intermediário, o tradutor
teria a tentação de fixar os textos – de imobilizar a obra que ele
deve transmitir, e fixar seu ponto de chegada, para maior seguran-
ça. Quando sua tarefa, ao contrário, é a de ficar à escuta dos ritmos
da escrita, a fim de re-escrever o movimento interno da obra viva.
E quando ele se encontra diante daquilo que é aparentemen-
te o mais sólido, o mais rígido – quero dizer, desses quadros
conceituais da obra, de sua armação intelectual –, ele deve captá-
las no próprio trabalho, compreendê-las nesse ritmo, nessa
respiração.
Com Euclides da Cunha, ele deve colocar essas teorias hoje
muito datadas e esquecidas (felizmente esquecidas, poderíamos
acrescentar, pois tiveram um eco funesto na história mais trágica
do século XX), o tradutor, portanto, deve substituir essas bases
teóricas no movimento mais complexo da obra inteira.
E é então que ele pode, enfim, encarar a estátua que o inti-
midava tanto, de início. Pois Euclides da Cunha criou, de fato,
um monumento – transformando o episódio de Canudos numa
tragédia verdadeira, metamorfoseando a história que lhe era con-
temporânea num mito fundador de uma nação. Cabe à história
detectar as constantes dos mitos das origens, ou, mais precisa-

170
Por trás das palavras: fluxos e ritmos em Os sertões

mente, traços específicos de certas histórias modernas dos Esta-


dos-Nações – esses Estados tão freqüentemente fundados no
sangue, no massacre dos indígenas, e justificando seus crimes
conferindo-lhes uma dimensão estética e sagrada. Euclides da
Cunha também, por sua linguagem científica e dramática, grava
o acontecimento mais recente transformando-o em História com
maiúscula. Mas – e está aí toda ambigüidade e sua grandeza –
faz mais do que isso: ele se emociona, ele denuncia. Não conse-
gue se contentar com seu papel de observador e diretor de cena.
Sua pena vibra com toda a paixão do espectador e do ator. E nós
mesmos, tradutores que nos tornamos simples leitores, a quem
é, enfim, entregue o frescor da primeira descoberta, nós também
vibramos ao longo dessa viagem que desemboca num crime, num
fosso, numa ferida que nada poderia cicatrizar.
Toda tradução é descoberta. Descoberta lenta, paciente,
modesta. Descoberta de um texto que escapa, que nós gostaría-
mos de segurar, possuir, mas que não cessa de se deslocar, de fugir.
O resultado só pode ser provisório – como a interpretação de uma
composição musical, mais ou menos pertinente, profunda ou
brilhante, mas destinada a ser suplantada por outras interpreta-
ções que nem por isso serão “melhores”. Jogo com o texto, tanto
quanto com o tempo.
Todas essas dificuldades e essas alegrias se exacerbam diante
de uma obra como Os sertões. Ele é um monstro, de fato, um mons-
tro literário. Monstro pelo número de suas páginas. Monstro pe-
los conhecimentos sem-número do autor e, simultaneamente, pelas
diversas leituras exigidas do leitor. Monstro sobretudo, porque a obra
não cessa de atravessar fronteiras, entre ciência e ciência, entre li-
teratura e ciência, entre obra literária e monumento histórico, entre
obra-prima estilística e mito fundador da nação brasileira.
Blaise Cendrars, esse outro barqueiro entre fronteiras, esse
grande descobridor da modernidade, poeta das novas terras ou,
antes, das novas visões, romancista das loucuras e das paixões,
e enfim, viajante no Brasil, escreveu, a propósito de Os sertões:

171
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

Euclides da Cunha é o genial autor de Os sertões, o maior livro


da literatura brasileira moderna e seu clássico. É a história de uma
rebelião mística no interior do Estado da Bahia em 1896/7. Uma
tradução em francês desse belo livro que é, ao mesmo tempo, epo-
péia, tratado de geografia humana, ensaio de etnografia, foi
publicada2 . Lamento, pois eu ia empreender a tradução quase
irrealizável desse livro difícil sob o título de Selvageria.

São palavras assustadoras, capazes de transformar o livro


numa estátua imponente, esmagadora. Monumento que aterrori-
za tanto o estudioso quanto o tradutor. Monumento que incita à
fuga, como diante da estátua do Comendador, por medo de ser
carbonizado pelas chamas de sua vingança, e de ser precipitado
no inferno dos maus tradutores, que conseguiram ser, apenas,
bons traidores.

Referência bibliográfica

CUNHA, E. da. Os sertões. Estabelecimento de texto de Annamaria


Skinner. 37.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, s. d.

2 Cendrars se refere à tradução de Sereth Neu.

172
O cosmo festivo:
a propósito de um fragmento de “A terra”

José Leonardo do Nascimento1

As juremas, prediletas dos caboclos – o seu haxixe capitoso,


fornecendo-lhes, grátis, inestimável beberagem, que os revigora
depois das caminhadas longas, extinguindo-lhes as fadigas em mo-
mentos, feito um filtro mágico – derramam-se em sebes, impe-
netráveis tranqueiras disfarçadas em folhas diminutas; refrondam
os marizeiros raros – misteriosas árvores que pressagiam a volta
das chuvas e das épocas aneladas do verde e o termo da magrém –
quando, em pleno flagelar da seca, lhes porejam na casca resse-
quida dos troncos algumas gotas d’água; reverdecem os angicos;
lourejam os juás, em moitas; e as baraúnas de flores em cachos, e
os araticuns à ourela dos banhados... mas, destacando-se, esparsos
pelas chapadas, ou no bolear dos cerros, os umbuzeiros, estrelando

1 Livre-docente e professor de História da Cultura e da Arte do Instituto de


Artes da UNESP – SP.

173
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

flores alvíssimas, abrolhando em folhas, que passam em fugitivos cam-


biantes de um verde pálido ao róseo vivo dos rebentos novos, atraem
melhor o olhar, são a nota mais feliz do cenário deslumbrante.

E o sertão é um paraíso...
Ressurge ao mesmo tempo a fauna resistente das caatingas:
disparam pelas baixadas úmidas os caititus esquivos; passam, em
varas, pelas tigüeras, num estrídulo estrepitar de maxilas percutin-
do, os queixadas de canela ruiva; correm pelos tabuleiros altos, em
bandos, esporeando-se com os ferrões de sob as asas, as emas
velocíssimas; e as seriemas de vozes lamentosas, e as sericóias
vibrantes, cantam nos balsedos, à fímbria dos banhados onde vem
beber o tapir estacando um momento no seu trote brutal, inflexivel-
mente retilíneo, pela caatinga, derribando árvores; e as próprias
suçuaranas, aterrando os mocós espertos que se aninham aos pares
nas luras dos fraguedos, pulam, alegres, nas macegas altas, antes
de quedarem nas tocaias traiçoeiras aos veados ariscos ou novi-
lhos desgarrados...

Sucedem-se manhãs sem par, em que o irradiar do levante


incendido retinge a púrpura das eritrinas e destaca melhor, en-
grinaldando as umburanas de casca arroxeada, os festões multi-
cores das bignônias. Animam-se os ares numa palpitação de asas,
céleres, ruflando. – Sulcam-nos as notas de clarins estranhos. Num
tumultuar de desencontrados vôos passam, em bandos, as pom-
bas bravas que remigram, e rolam as turbas turbulentas das ma-
ritacas estridentes... enquanto feliz, deslembrado de mágoas, segue
o campeiro pelos arrastadores, tangendo a boiada farta, e entoando
a cantiga predileta...
Assim se vão os dias...
Passam-se um, dous, seis meses venturosos, derivados da exu-
berância da terra, até que surdamente, imperceptivelmente, num
ritmo maldito, se despeguem, a pouco e pouco, e caiam, as folhas
e as flores, e a seca se desenhe outra vez nas ramagens mortas das
árvores decíduas...

Verde e magrém, termos com que os matutos denominam as quadras


chuvosas e as secas

174
O cosmo festivo: a propósito de um fragmento de “A terra”

O trecho citado é um fragmento da primeira parte de Os ser-


tões, “A terra”, um subitem, um locus amoenus no interior da ari-
dez e do desconforto da geografia d’Os sertões do norte. Nas onze
primeiras edições, este excerto não era destacado no interior do
capítulo IV de “A terra” com nenhuma designação específica, sur-
gia como parágrafos que encerravam o capítulo. Foi somente após
a décima segunda edição que recebeu, em algumas edições, os
subtítulos ou entretítulos de “O sertão é um paraíso” e de “Ma-
nhãs sertanejas”.
Trata-se de um momento paradisíaco, de uma ilha de delícias,
de transbordamento da vida no mesmo lugar em que antes vigia
a aspereza e a existência magra e exígua da flora, da fauna e dos
homens. Esse intervalo é, pois, uma espécie de anverso de tudo
que anteriormente havia sido escrito sobre as agruras da geografia
do sertão de Canudos.
É um momento, sucede à seca, é a intromissão do tempo na
descrição do espaço e desenha uma temporalidade específica da
existência sertaneja, marcada pela intercadência entre as quadras
áridas e as deslumbrantes ou, para empregar uma expressão uti-
lizada pelo autor, entre as épocas do “verde” e da “magrém”.
Euclides da Cunha, numa nota de rodapé informa estar utili-
zando expressões e termos regionais, impressos no livro em itá-
lico (como mais embaixo a palavra “arrastadores”), para diferi-
los do vocabulário mais propriamente do autor. E esse é um éthos
específico de Euclides da Cunha, distinguindo o que é seu, erudito
e culto, e o que é sertanejo e popular. Há aí uma fronteira que o
autor não deixará de traçar e de tornar visível para os leitores. O
narrador intenta manter-se distanciado do objeto de sua narra-
tiva e de sua análise.
Percebe-se por meio do fragmento citado que o tempo nos
sertões é cíclico, determinado pelas alternâncias entre o “verde”
e a “magrém”, e assim transcorre, no entender do autor, a vida
sertaneja. Mas as quadras explicam-se e esclarecem-se mutua-
mente, referindo-se a uma torna-se a outra mais nítida, mais fes-

175
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

tiva uma ou mais melancólica a outra. Por isso, o desenho do fla-


gelo da seca ganha relevo se observado por uma fresta, pela frincha
da quadra chuvosa na região da caatinga.
A análise abarcará alguns poucos parágrafos. São alguns pará-
grafos intercalados por duas orações sintéticas: “E o sertão é um
paraíso...” e “Assim se vão os dias”. A arquitetura da narrativa
euclidiana é transparente neste fragmento de Os sertões, parágra-
fos longos entrelaçados por frases curtas e explicativas.
A frase “E o sertão é um paraíso” resume uma apoteose, que
se esboçando antes nos marizeiros que prenunciavam a volta das
chuvas, nos angicos reverdecidos e nos juás lourejando em moi-
tas, e nas flores em cacho das baraúnas ou nas “flores alvíssimas”
e nos “rebentos novos” dos umbuzeiros, completa-se de pronto.
A oração sugere uma complementação, é a expressão de uma
transição realizada e permite, portanto, que a narrativa se volte
para a quadra auspiciosa dos dias de abastança. Define uma fron-
teira, torna nítida uma passagem e enfeixa o movimento que vi-
nha sendo descrito anteriormente.
“Assim se vão os dias” exerce a mesma função e marca outro
limite e resume a agitação recorrente e álacre dos “meses venturo-
sos”. Como se após descrever, o autor sentisse a necessidade de
sintetizar o que foi dito, de torná-lo ainda mais explícito ou de
nuançar a passagem de um máximo de vida exígua para outro
máximo de vida à larga ou ainda de narrar acontecimentos que
se transcorreram num tempo longo com poucas palavras. As fra-
ses curtas são assim passagens, transições, abertura (“E o sertão
é um paraíso”) e fechamento (“Assim se vão os dias”)...
Nas palavras de Nereu Corrêa (1978, p.7) no artigo “A tape-
çaria lingüística de Os sertões”:

(observemos) aqueles períodos entrecortados de pontos-e-vírgulas,


onde a idéia central se desdobra e tresdobra em várias orações tri-
butárias. É um recurso freqüente, que revela o escritor abundante
de expressão copiosa, mas freada por um rigoroso senso de discipli-

176
O cosmo festivo: a propósito de um fragmento de “A terra”

na e contenção. Daí a harmonia, a proporção e o equilíbrio dentro


(da) linguagem densa, cheia de frêmitos nervosos, porém intervalada,
de longe em longe, por breves hiatos, como um refreio, uma parada
brusca, um momento de repouso. É a frase solta, isolada, que re-
ponta como uma ilha solitária no meio da corrente. Nessa frase ele
remata duas, três páginas compactas, resumindo em poucas pala-
vras a impressão que procurou transmitir em todo um capítulo.

E é esse um traço do estilo de Euclides, a utilização recorrente


de “frases-síntese”, presente nessa curta passagem. Esse frag-
mento compendia a escrita euclidiana em geral e denota a linha
de força de seu pensamento. É isso que vou procurar demons-
trar a partir de observações que se seguem...
Em princípio, farei referência a um traço da sintaxe euclidia-
na: a precedência da ação ao ator: “disparam pelas baixadas úmi-
das os caititus esquivos; passam em varas, pelas tigüeras, num
estrídulo estrepitar de maxilas percutindo os queixadas de canela
ruiva; correm pelos tabuleiros altos ... as emas velocíssimas...”.
Parece haver uma ordem de sucessão quase invariável na nar-
rativa euclidiana: a ação, os locais e, finalmente, os agentes... Os
verbos de movimento são mais ou menos sinônimos: disparar,
passar, correr. E estão conjugados no mesmo modo verbal, e na
mesma pessoa, no presente do indicativo e na terceira pessoa do
plural. A insistência na ação desenha, em certa medida, uma si-
tuação hiperbólica.
Este procedimento da antecipação do verbo aos sujeitos re-
pete-se ainda mais à frente: “sucedem-se manhãs ... animam-se
os ares ... sulcam-nos as notas ... passam as pombas bravas ...
rolam as turbas turbulentas das maritacas ... segue o campeiro...”.
Como o essencial, porém, seria a expressão literária do mo-
vimento – e pour cause a ação precede no texto ao ator –, a narra-
tiva se fosse essencialmente uniforme e repetitiva não representa-
ria a vida transbordante e a agitação do período do “verde”. Se a
fauna e os homens se movessem no mesmo compasso haveria,

177
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

de fato, fixidez e uniformidade determinadas ou impostas pela


constância. É a sensação da alteridade que deixa perceptível a mu-
dança. Ela se define em relação a um ponto parado. Vejam que
em seguida a sintaxe modifica-se, os atores precedem as ações e
a agitação amaina-se: “as seriemas e a sericóias cantam nos bal-
sedos ... as suçuaranas pulam nas macegas altas...”.
Observa-se, portanto, que a narrativa insiste na pulsação da
vida variada e múltipla. É um quadro em que se compõem o mo-
vimento e a fixidez. Porém, os dois lados, o dos que se agitam e
o dos que estão parados, posicionam-se, um em relação ao outro,
de maneira simétrica.2
Os animais que se agitam são os caititus, os queixadas e as
emas. Os imóveis são as seriemas (“de vozes lamentosas”), as
sericóias e o tapir (“estacando um momento no seu trote”). Por-
tanto, três animais se agitam e três se estacam... Há assim medi-
da na paisagem como se houvesse nos dois lados de uma tela pin-
tada equilíbrio de peso.
As suçuaranas, porém, “pulam e quedam”, resumindo as duas
situações anteriores, a do movimento e a da fixidez. Fazem uma
espécie de compêndio dos aspectos distintos da narrativa, tra-
çam uma sorte de eixo simétrico em torno do qual transcorre a
existência álacre dos “tempos felizes” do sertão.
As movimentações da fauna ressurgem também compensa-
das simetricamente: a correria dos caititus, dos queixadas, das

2 A palavra simetria foi empregada pela primeira vez por Vitrúvio no tratado
De Architectura, no século I a. C., cuja etimologia (Sum Metron) significa com
medida. (cf. Ecco, 1989). A propósito da influência do tratado de Vitrúvio
na Idade Média, escreve o autor: “O outro autor através do qual a teoria das
proporções transmite-se à Idade Média é Vitrúvio, a quem se remeteu tanto
os teóricos quanto os tratadistas práticos, do século IX, em diante, encon-
trando em seus textos não só os termos de proportio e symmetria, mas defini-
ções como: Isto é de simetria, em toda obra, dos elementos de uma determi-
nada parte e do todo, e de harmoniosa concordância dos elementos da obra
e correspondência das partes separadas de uma determinada parte à ima-
gem inteira (ibidem, p.46).

178
O cosmo festivo: a propósito de um fragmento de “A terra”

emas é retilínea e os “pulos” da suçuarana gravam no espaço a


imagem de um salto sinuoso nos arbustos. Ou seja, a narrativa
sugere uma ordem composta: movimentos retilíneos e parabóli-
cos ou curvos; agitação e fixidez. Mas o conjunto – fixidez e ação,
movimentos retilíneos e curvos – constitui um quadro em que
se distingue a ordem.
A imagem da vida no período chuvoso é simétrica, porque
as atividades opostas se compensam, e há uma igualdade numé-
rica entre animais ativos e animais parados. E um felino agita-se
e estaca-se. De maneira que se retirássemos um animal que se mo-
vimenta ou um que se mantém parado, o todo seria desestabi-
lizado e alterado. A relação das partes aparece, nessas circuns-
tâncias, como necessária.
Além das simetrias notadas na paisagem, uma outra menos
evidente se insinua no afresco pintado pelo autor. Dessa vez sub-
jaz uma oposição simétrica entre a ordem e a desordem, entre o
movimento ordeiro e o desordenado, entre o movimento tran-
qüilo do campeiro e a agitação de asas nos ares: “Num tumultuar
de desencontrados vôos passam, em bandos, as pombas bravas
... e rolam as turbas turbulentas das maritacas estridentes... en-
quanto feliz, deslembrado de mágoas, segue o campeiro pelos
arrastadores, tangendo a boiada farta, e entoando a cantiga
predileta...”.
A pintura euclidiana da paisagem, embora simétrica, é densa
nos traços. Os contornos das imagens são duplamente acentua-
dos: ao significado das palavras acrescentam-se os efeitos da prosa
poética. No aspecto semântico, “clarins estranhos” e “turbas tur-
bulentas ... estridentes” contrapõem-se à “cantiga predileta” do
campeiro “feliz” e “sem mágoas”. As aliterações em r produzem
uma estrutura sonora áspera, acentuando o tumulto.
A narrativa, mediante procedimentos poéticos como as ali-
terações, ganha traço grosso e cores quentes. A sonoridade aco-
plada ao significado de “estrídulo estrepitar de maxilas percu-
tindo” esboça uma hipérbole, e assim fere os sentidos do leitor

179
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

da mesma forma que o conteúdo semântico de “percutir” é acen-


tuado pela percussão dos vocábulos.3
As aliterações se harmonizam com a acepção dos vocábulos:
“pelos tabuleiros altos, em bandos, esporeando-se com os fer-
rões de sob as asas, as emas velocíssimas ... as seriemas de vozes
lamentosas, e as sericóias vibrantes, cantam nos balsedos, à fím-
bria dos banhados ... Animam-se os ares numa palpitação de asas,
céleres, ruflando ... rolam as turbas turbulentas das maritacas es-
tridentes...”. Ao efeito estilístico produzido pelas aliterações
acrescentam-se as rimas: “veados ariscos novilhos desgarrados”...
Este estrato de “A terra” condensa procedimentos estilísticos
recorrentes e atuantes em Os sertões, permitindo que se observe
no detalhe a lógica do todo. São conhecidos os prefixos habitu-
almente empregados por Euclides da Cunha: o prefixo des deno-
tando movimento contrário, para trás nos termos “desgarrados;
desencontrados; deslembrando; despegar”, e o re como prefixo
de intensidade, tingindo novamente de rubro o que já é por na-
tureza rubro no período “...o irradiar do levante incendido retinge
a púrpura das eritrinas...”.4
Um efeito geral acompanha essas intensificações produzidas
pela prosa poética ou pelos prefixos, efeito que sensibiliza com
agudeza o leitor e adensa a forma e o colorido das paisagens pin-
celadas. A ação parece assim desenrolar-se no presente, confun-
dindo-se o espaço narrado com o da fruição. Os universos fic-
cionais e reais se tornam miscíveis e a escrita reveste-se de um
tônus dramático e de um sopro avassalador e sinestésico.
Os procedimentos da palheta euclidiana reaparecem, em
suma, condensados neste fragmento de “A terra”: a precedência

3 Nereu Corrêa (1978, p.13) utiliza para definir essa passagem de Os sertões a
expressão “imagem auditiva”: “E, como uma antecipação do quadro visual,
primeiro ouvimos o som, o estrépito das maxilas, e só depois é que vemos a
imagem, isto é, os queixadas de canelas ruivas passando” (ibidem).
4 No fragmento citado na abertura deste texto, aparecem outros exemplos de
emprego do prefixo re: “refrondam”, “ressequida”, “reverdecem”.

180
O cosmo festivo: a propósito de um fragmento de “A terra”

da ação ao agente, a prosa poética, a prefixação e uma corres-


pondência entre o conteúdo da análise e o estilo. Nesta passa-
gem aparece, ainda, a novidade da idealização do “verde”.
Há uma espécie de chave de ogiva que sustenta as descrições
do sertão num momento de abastança: é a alegria provocada pelo
término da quadra seca e maninha. Seria esse o motivo essencial
da narrativa deste trecho de Os sertões. Mas o autor procura variá-
lo, diversificá-lo, descrevê-lo sem monotonia ou monocromatis-
mo. Os períodos anteriores ao fragmento aqui citado anunciavam
o renascimento da vida.
O paraíso despontava, lentamente, nas aparências da flora
sertaneja (Cunha, 1985, p.125). Interrompeu-se durante o parên-
tese da descrição analítica da resistência do umbuzeiro ao meio
agro, empregando o autor para isso teorias darwinistas de adap-
tação das espécies ao meio (ibidem, p.126). Fechado o parêntese,
novos sinais anunciadores do fim da secura da terra vestem as
espécies vegetais para, em seguida, o paraíso espraiar-se no es-
paço sertanejo, desenhando um lugar aprazível na caatinga anterior-
mente áspera.
Euclides da Cunha revisita, nesse entrecho, um topos tradicio-
nal da descrição da natureza de origem clássica, embora magni-
ficamente presente na literatura medieval, estendendo-se mesmo
até o século XVI (cf. Curtius, 1996, p.254).
De acordo com Ernest Curtius, o locus amoenus é a antípoda
da reação espontânea e “impressionista” do escritor à natureza
acolhedora. O topos é estruturado como se o artista, ao bosquejá-
lo, tivesse que cumprir cânones estritos. Ao tema, o conjunto na-
tural aprazível, acresce-se o esquema dos números.
Os elementos da paisagem que compõem o lugar aprazível são
em número de seis: fontes, plantações, jardins, ares suaves, flores e
cantos de pássaros. Curtius (1996) sintetiza as regras de compo-
sição do lugar prazeroso: “A riqueza proveniente de percepções dos
sentidos é submetida a uma ordem ditada por meios conceptuais
e formais. A mais bela fruta amadurece na latada” (p.256).

181
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

Na Idade Média, a partir de 1170, observa o autor de Litera-


tura européia e Idade Média latina: “Com a inclusão das frutas, é ele-
vado a sete o número dos encantos da paisagem, enumerados
primeiro com os cincos sentidos e depois com os quatro elemen-
tos” (ibidem, p.256). Sempre de acordo com Curtius, o lugar ame-
no foi assimilado pelos poetas cristãos com a finalidade de figura-
rem através dele o Paraíso. A descrição dos Campos Elíseos por
Virgílio transmudou-se no paraíso cristão sob a pena de poetas
medievais que adicionaram ao quadro virgiliano as árvores frutí-
feras, fundamentais na idealização cristã em razão do relato bíbli-
co do pecado e do fruto proibido (ibidem, nota 43, p.258).
A lógica estrita dos números pressupõe um cânon, semelhan-
temente ao das teorias das proporções do corpo humano nas artes
plásticas: sete encantos da paisagem, cinco sentidos e os quatro
elementos do universo. O locus amoenus, como um topos bem deli-
mitado da descrição de paisagens, comporta, entretanto, alguma
variância, revestindo-se no decurso da história da literatura de
tipos diversos.
O romance cortesão em verso, surgido na França em meados
do século XII, apresentava, como um de seus motivos principais,
o tema da floresta bravia. Pois segundo Curtius, a selva selvaggia
abrigava, às vezes, um locus amoenus sob a forma de um vergel
(ibidem, p.260). O topos ressurgia, em alguns textos, situado em
plena floresta selvagem. Além disso, as descrições do “lieu plai-
sant”5 não eram isentas da representação do conjunto através da
união e da “harmonia de contrastes” (Curtius, 1996, p.261).
A novidade do texto euclidiano é que a natureza se torna
amena por meio de um devir perceptível na leitura das espécies
vegetais. O tipo assemelha-se, no entanto, ao do vergel em meio
à floresta bravia por se tratar do advento da amenidade nos áridos
sertões do norte do Brasil. O lugar não é propriamente alcançado

5 Expressão de Guillaume de Lorris, Romance da Rosa (cf. Curtius, 1996, nota


51, p.261).

182
O cosmo festivo: a propósito de um fragmento de “A terra”

por alguém que viaja por alguma silva horrida, é o próprio lugar
que se transmuda no compasso da substituição da “magrém” pelo
“verde”. Este dinamismo é euclidiano.
A mudança apresenta também uma ordem sucessiva: é amena
primeiramente a flora, seguida pelos animais e pelos pássaros,
encerrando-se com os homens, figurados pelo campeiro tangendo
o gado pelos “arrastadores”. Há uma seqüência determinada e
ordenada neste locus euclidiano.
A lógica dos números, exigida pelo cânon medieval, foi aten-
dida pela escritura do autor de Os sertões na última parte (a par-
tir da indicação com asteriscos) do capítulo IV de “A terra”. Sete
é o número dos encantos da paisagem: os banhados; as planta-
ções, figuradas pelas tigüeras (roças depois da colheita); pela con-
cepção da flora sertaneja renascida como uma espécie de pomar
e pelo desenho narrativo de um jardim sugerido pela referência
ao paraíso;6 os ares “animados”; as flores “alvíssimas”; os cantos
dos pássaros “nos balsedos”; as frutas do umbuzeiro, das juremas...
Cinco são os sentidos humanos: o sabor da beberagem for-
necida pelas juremas ou – em passagem imediatamente anterior
– o “sabor esquisito” do fruto da umburana e o “sumo acidulado
das suas folhas” (Cunha, 1985, p.126); as numerosas impressões
do olhar; a audição também provocada pelas “notas de clarins”; as
sugestões tácteis derivadas das alusões à “casca ressequida dos tron-
cos” dos marizeiros, às “baixadas úmidas” ou aos “ares animados”;7
o olfato sensibilizado pelas umburanas que “perfumam os ares, fil-
trando-os nas frondes enfolhadas...” (Cunha, 1985, p.126).

6 Pouco antes, Euclides havia escrito que a “copa arredondada” do umbuzeiro


recorda “plantas ornamentais entregues à solicitude de práticos jardinei-
ros” (cf. Cunha, 1985, p.126). No capítulo V de “A terra”, Euclides apresen-
ta o sertão na época das chuvas como “um vale fértil ... um pomar vastíssimo,
sem dono” (ibidem, p.129).
7 Um pouco antes, o autor escreveu: “ramalham, ressoantes, os marizeiros
esgalhados, à passagem das virações suaves...” (Cunha, 1985, p.125). A
suavidade é, evidentemente, apercebida pelo resvalar da viração na pele.

183
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

Quatro são os elementos que compõem o universo: a terra


(“exuberante”), a água (dos “banhados”, das “cacimbas”), os ares
(“animados”, “suaves”), as chamas (“do levante incendido”).
Numa passagem anterior, o autor, descrevendo as umburanas,
“a árvore sagrada do sertão”, pintou as labaredas que consomem
a terra sertaneja, fora da quadra amena: “Foi, talvez, de talhe mais
vigoroso e alto – e veio descaindo, pouco a pouco, numa inter-
cadência de estios flamívomos e invernos torrenciais...” (ibidem,
p.126).
A palheta euclidiana, expressando a regra do lieu plaisant,
busca alcançar a totalidade, esgotar as possibilidades de expres-
são da amenidade no espaço do sertão: baixadas, tabuleiros altos,
tigüeras, balsedos, fímbria dos banhados, macegas e ares.
A lógica dos números, porém, se distribui de maneira simé-
trica, e, nessa última, faz-se presente um sentimento de contraste
e de harmonia das partes. O texto euclidiano desenha formas e
cores simetricamente compensadas.
Ressaltam-se cores múltiplas e desenhos vários com os ele-
mentos medidos a régua e ao compasso. A amenidade euclidiana
é regrada, feita de partes que conspiram na diversidade, para a
harmonia. É variada e simétrica. É nessa medida que conteria
um atributo do topos, talvez o mais subido, o da beleza.
Euclides da Cunha não escreveu, em nenhuma passagem do
seu livro, que a beleza deriva de relações específicas entre as par-
tes de um composto; manifestou, entretanto, julgamentos esté-
ticos de maneira explícita, como ao descrever a natureza “em
roda” do rio Vaza Barris: “Nada mais dos belos efeitos das des-
nudações lentas, no remodelar dos pendores, no desapertar os
horizontes e no desatar – amplíssimos – os gerais pelo teso das
cordilheiras, dando aos quadros naturais a encantadora grandeza
de perspectivas em que o céu e a terra se fundem em difusão lon-
gínqua e surpreendedora de cores...” (Cunha, 1985, p.107-8).
Comparando a caatinga com a estepe, o autor observou que
na segunda “o viajante tem o desafogo de um horizonte largo e a

184
O cosmo festivo: a propósito de um fragmento de “A terra”

perspectiva das planuras francas. Ao passo que a caatinga o afoga;


abrevia-lhe o olhar...” (Cunha, 1985, p.118).
Referiu-se, em suma, a uma espécie de condição necessária
para que a observação do mundo pelos sentidos fosse agradável.
O olhar “perturba-se” na constância, na repetição do “mesmo ce-
nário desolador” (ibidem, p.124) e “descansa-se” diante da diver-
sidade e da pluralidade regrada.
A natureza composta de partes, como na estação chuvosa,
cumpre as condições da boa observação. O olhar satisfeito pode
sorver a beleza dos horizontes rasgados pelas perspectivas. Si-
metria e perspectiva, as duas faces do padrão renascentista – e
clássico – da beleza plástica.
Mas se o diverso e o múltiplo distinguem os tempos felizes
do “verde”, qual seria a fisionomia da seca?

léguas e léguas, imutável no aspecto desolado ... galhos estor-


cidos ... lembrando um bracejar imenso, de tortura, da flora agoni-
zante ... as suas árvores, vistas em conjunto, semelham uma só
família de poucos gêneros, quase reduzida a uma espécie invariá-
vel, divergindo apenas no tamanho, tendo todos a mesma confor-
mação, a mesma aparência de vegetais morrendo, quase sem tron-
cos, em esgalhos logo ao irromper do chão. (ibidem, p.118-9)

Naqueles ermos:

Toda a flora, como em uma derrubada, se mistura em baralha-


mento indescritível ... Vingado um cômoro qualquer, postas em
torno as vistas, perturba-as o mesmo cenário desolador: a vegeta-
ção agonizante, doente e informe, exausta, num espasmo doloro-
so. (ibidem, p.124)

Na “magrém” não há propriamente partes, nem ordem com-


posta, mas a repetição do mesmo, do que é igual, de maneira mo-
nótona e desconfortável para o olhar. Sem partes, sem simetria
e sem a lógica do número que pressupõe o topos, os sentidos se
exaurem na contemplação da uniformidade.

185
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

A seca é una, sem partes e sem beleza. Após escrever sobre a


simetria dos cereus, o autor vitupera contra a monotonia, a cons-
tância e a uniformidade dos mandacarus:

No fim de alguma tempo ... são uma obsessão acabrunhadora.


Gravam em tudo monotonia inaturável, sucedendo-se constantes,
uniformes, idênticos todos, todos do mesmo porte, igualmente
afastados, distribuídos com uma ordem singular pelo deserto.
(ibidem, p.122)

O autor apresentou semelhante ponto de vista estético ao


descrever às vestes do vaqueiro de sertão: “Nada mais monóto-
no e feio, entretanto, do que esta vestimenta original, de uma só
cor – o pardo avermelhado do couro curtido – sem uma variante,
sem uma lista sequer diversamente colorida” (ibidem, p.183).
Os mandacarus resumiriam esse aspecto acabrunhador da uni-
formidade entediante.
O imenso prólogo de Os sertões, “A terra”, é fortemente ca-
racterizado pelo prazer ou pelo sofrimento do olhar de um via-
jante eventual pela caatinga e exprime, pois, um vivo sentimento
do espaço e da forma.
Mas ao lado do prazer do olhar, importa ao narrador conhe-
cer o segredo da descrição da natureza. O autor depura e seleciona
no fio do olhar os infinitos aspectos da natureza que serão des-
critos. O topos constituiu-se numa sorte de esquema anterior que
facultou ao narrador a construção da paisagem do sertão de Canu-
dos na quadra auspiciosa das chuvas. À terra sucedeu-se assim a
sua paisagem ou a sua representação.8

8 Luiz Pérez Oramas (1999) distinguiu paisagem e natureza: “Nenhuma paisa-


gem é ingênua: a ingenuidade da paisagem é um efeito de ilusão gerado
pela crença segundo a qual a natureza é a paisagem”. Em outra passagem,
volta ao argumento: “Uma distância estritamente teórica separa pois a terra
(ou natureza) da paisagem. Esta não será daquelas mais do que uma escritu-
ra, um perfil, um rasto descritivo, o alfabeto de suas sombras perfurando a
memória de quem a representa. A paisagem, que é por definição metanatural,

186
O cosmo festivo: a propósito de um fragmento de “A terra”

Permitiu, igualmente ao escritor, referir-se à totalidade dos


aspectos da paisagem, aos quatro elementos, a todas as posições
da vida da flora, da fauna e dos homens no espaço. Mas algo mais
parece mover o interesse euclidiano pela natureza.
O fragmento de “A terra” condensa os pressupostos da análise
euclidiana desenvolvida em Os sertões. Há, no entender do autor,
uma determinação do meio geográfico sobre a existência, um ne-
xo essencial e estreito da terra com a vida. A arquitetura tripartite
de Os sertões tem como fundamento “A terra” – seguem-se a ela
“O homem” e “A luta” – é a partir dela que se inicia a longa expla-
nação dos motivos da luta sertaneja. Mas entre todos, ela conserva
a primazia.
O fragmento aqui analisado resume, mais uma vez, o dese-
nho geral do livro. Na ordem dos fatores que ditam as existências,
há uma precedência da terra: “Passam-se um, dous, seis meses
venturosos, derivados da exuberância da terra...”. Plantas, ani-
mais e homens, cravados no mesmo solo sertanejo no momento
do “verde”, vibram na mesma freqüência intensa e harmônica
de vida solta e alegre. É o cosmo que se alegra e o sertanejo, em
outras passagens de Os sertões, heróico no combate ao meio ma-
ninho, pulsa no mesmo acorde dos ritmos vitais, dissolvendo-
se, por assim dizer, no todo da natureza.9 Na seca a harmonia se
desfaz. Como já foi observado, a feição da paisagem sertaneja no
período da seca é absurdamente uniforme e homogênea. O “ver-
de” é multifacetado e heterogêneo.
Trata-se, porém, de uma heterogeneidade particular, vincu-
lando-se necessariamente às partes. Vimos que para o autor de

pode-se produzir com certa liberdade, com certa autonomia caprichosa em


relação à terra que descreve e à qual submete uma espécie artificiosa de
reinvenção” (ibidem, p.218-9).
9 Esse fragmento recorda a passagem da dissolução de Augusto Matraga –
conto “A hora e vez de Augusto Matraga” de Sagarana de João Guimarães
Rosa (1.ed., 1946) – no mundo e que sucede a fase de sua purificação median-
te o autocontrole e o trabalho como ascese.

187
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

Os sertões, a heterogeneidade assim constituída é a condição da


observação prazerosa. A narrativa euclidiana parece refinar-se na
consideração dos atributos da beleza da natureza, e, sem nomeá-
la explicitamente, incorporar a teoria geral da beleza formulada
na Antigüidade.10
É, sem dúvida, clássica a definição aristotélica que a definia
como ordenamento e inter-relações das partes: “o belo, num ser
vivente ou num objeto composto de partes, deve não somente
apresentar ordem em suas partes como também comportar certas
dimensões” (Aristóteles, s. d., cap.VII, p.250).
No capítulo VIII de A poética, Aristóteles explicita o que en-
tende sobre a ordem no relacionamento das partes:

que as partes estejam de tal modo entrosadas que baste a suspen-


são ou o deslocamento de uma só, para que o conjunto fique mo-
dificado ou confundido, pois os fatos que livremente podemos ajun-
tar ou não, sem que o assunto fique sensivelmente modificado,
não constituem parte integrante do todo. (ibidem, cap.VIII, p.251)

O olhar do viajante (um grego antigo na caatinga baiana?) que


atravessa a terra sertaneja perquire e encontra na época das chu-
vas os predicados que fariam belos aqueles ermos desconhecidos.
A sensibilidade estética do autor é um dos elementos da constru-
ção literária de Os sertões.
Há outras vigas essenciais para a sustentação do edifício e
para o seu levantamento do solo. Vejamos esses outros aspectos
relevantes, o da concepção da sociedade e o da mudança histórica.
Euclides entendia que a sociedade civilizada, de acordo com
Spencer e com o funcionalismo do século XIX, era basicamente

10 Talvez não seja inteiramente verdade a afirmação que Euclides da Cunha


não se referiu à concepção da beleza como relação proporcional das partes
de um todo. Ao descrever a Igreja Nova de Canudos, observou: “Levantava,
volvida para o levante, aquela fachada estupenda, sem módulos, sem pro-
porções, sem regras...” (Cunha, 1985, p.242).

188
O cosmo festivo: a propósito de um fragmento de “A terra”

composta por grupos distintos, heterogêneos, embora integrados


pela divisão cooperativa das tarefas sociais. Via a evolução como
a marcha do homogêneo em direção ao heterogêneo.
A crítica a Canudos derivava desse arcabouço conceitual. De-
finiu a sociedade canudense como inconsistente e homogênea,
desprovida de partes ou de órgãos sociais especializados e coo-
perativos: “comunidade homogênea e uniforme, massa incons-
ciente e bruta, crescendo sem evolver, sem órgãos e sem funções
especializadas, pela só justaposição mecânica de levas sucessi-
vas, à maneira de um polipeiro humano” (Cunha, 1985, p.237).
Um aspecto é, assim, fortemente definidor do pensamento
de Euclides da Cunha. Há uma relação de harmonia entre a con-
cepção ontológica (o heterogêneo é o desenvolvido), a sensibili-
dade estética (vínculo integrado e equilibrado da diversidade) e
a filosofia da história, entendendo a evolução como a marcha da
homogeneidade em direção à partição da sociedade em grupos
socialmente heterogêneos e mutuamente dependentes.
A evolução é, em resumo, um movimento produtor de diver-
sidades articuladas, pacificadas e simétricas. Escrevendo sobre
a luta sertaneja, Euclides ponderava, a cada passo, sobre o caráter
anacrônico das guerras na vida dos povos.
Mas o que parece conferir força e eficácia às suas teses sobre
a sociedade e a história do Brasil é a coerência de base de seus
postulados, o princípio comum que os une e vincula a um mesmo
marco explicativo.
É a distribuição equilibrada de partes ou de forças (dinâmicas
e/ou estáticas) que parece, aos olhos do autor de Os sertões, funda-
mental à existência social, à mudança histórica, à conformação dos
majestosos cenários naturais e à extesia da observação humana.
Há, portanto, uma linha de força conceitual na arquitetura
do livro vingador que confere a um texto de dimensão enciclopédica
unidade, solidez e precisão analítica.

189
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

Referências bibliográficas

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Janeiro: Ediouro, s. d.
CORRÊA, N. A tapeçaria lingüística d’Os sertões e outros estudos. São Paulo,
Brasília: Edições Quíron/MEC, 1978.
CUNHA, E. da. Os sertões. Edição crítica por Walnice Nogueira Galvão.
São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, Brasiliense, 1985.
CURTIUS, E. R. Literatura européia e Idade Média latina. Trad. Teodoro
Cabral e Paulo Rónai. São Paulo: Hucitec: Edusp, 1996.
ECCO, U. Arte e beleza na estética medieval. Trad. Mário Sabino Filho. Rio
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HERKENHOFF, P. (Org.) O Brasil e os holandeses, 1630-1654. Rio de Ja-
neiro: Sextante Artes, 1999.

190
A interpretação d’Os sertões,
ontem e hoje

Patrícia Cardoso Borges1

Há cem anos era publicado o livro que entusiasmaria e intri-


garia toda uma geração. Euclides da Cunha escreve Os sertões de-
pois de ter sido por cinco anos o correspondente do Estado de S.
Paulo na Guerra de Canudos.
Nossa intenção é entender e analisar a primeira recepção
crítica d’Os sertões, assim como sua recepção mais recente, ou seja,
a dos últimos anos do século XX e as primeiras do século XXI.
Como o livro de Euclides foi recebido? Como o leram?
A primeira crítica publicada foi a de José Veríssimo, em
3.12.1902 no Correio da Manhã. Em sua crítica, Veríssimo não
mede elogios a Euclides, considerando seu livro ao mesmo tem-
po, “...o livro de um homem de ciência, um geógrafo, de um ho-

1 Mestranda em Literatura Brasileira da Universidade do Rio de Janeiro – RJ.

191
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

mem de pensamento, um etnógrafo, um filósofo, um sociólogo,


um historiador, e de um homem de sentimento...”. Ou seja,
Euclides foi elogiado pelos seus conhecimentos, apresentados no
livro, sobre o solo brasileiro, sobre a raça sertaneja, isto é, o mes-
tiço brasileiro, sobre a história nacional. Além de tudo, Euclides
era um “homem de sentimento”, tocou o fundo da alma de seus
leitores, emocionando-os com sua história.
Se Euclides dependesse, portanto, de seu aval a obra merece-
ria glórias, com apenas uma ressalva:

Pena é que conhecendo a língua ... tenha o Sr. Euclides da


Cunha viciado, já pessoal e próprio ... sobrecarregado a sua lin-
guagem de termos técnicos, de um boleio de frase como quer que
seja arrevesado, de arcaísmos e sobretudo de neologismos ... Mas
este defeito é de quase todos os nosso cientistas que fazem litera-
tura... (Correio da Manhã, 3.12.1902)

Essa ressalva foi imediatamente respondida por Euclides no


dia seguinte à sua publicação. Para o autor, o discurso literário e
o discurso científico poderiam e deveriam coexistir na mesma
obra. Euclides acredita no “consórcio da ciência e da arte, sob
qualquer de seus aspectos, [esta] é hoje a tendência mais elevada
do pensamento humano” (Galvão & Galotti, 1997, p.143). Ele
pretendeu, porém, que sua obra fosse alicerçada em bases cientí-
ficas, não restando à literatura senão o papel de ornamento. E
para a primeira recepção o discurso eloqüente e retórico conferia
ao texto o aspecto literário.
Podemos dizer que Veríssimo foi o paradigma das próximas
críticas d’Os sertões, pois este foi bem recebido por críticos renoma-
dos na época, como Coelho Neto, Araripe Júnior e Sílvio Romero.
Para os críticos, o livro de Euclides é uma obra-prima, um
exemplo de páginas verdadeiras, empolgantes, um exemplo de
nacionalidade. A primeira crítica busca como critério a estética
e o documento.
Para o juízo crítico da época em questão, Euclides correspon-
deu às expectativas de um grande escritor nacional. Ou seja, em

192
A interpretação d’Os sertões, ontem e hoje

seu texto é possível perceber o conhecimento e a preocupação


em entender a terra, o homem, a psicologia das massas, o homem
na sociedade, as raças, enfim, todos os requisitos que um texto
deveria ter para ser o construtor de uma nacionalidade.
Explicável, pois, é o posicionamento da primeira crítica
euclidiana, já que com a legitimação da história como ciência
moderna e a adesão ao projeto nacionalista, a história da litera-
tura conquistara o século XIX. No empenho em pretender-se ciên-
cia, a história da literatura acolhe saberes de outras áreas, como
a psicologia, a sociologia, a filologia etc. Cada nação se distingui-
ria por particularidades físico-geográficas, culturais, étnicas etc.,
“funcionando à maneira de um espelho em que o espírito nacional
pode mirar-se e reconhecer-se” (Souza, s. d., p.6).
Os sertões foi – como diria – “um prato cheio” para a crítica
da época, pois Euclides conseguiu reunir todas essas caracterís-
ticas identificadoras de uma nação em um só texto.
A descrição, tanto do homem como da terra e o sentimento
de “páginas empolgantes” foram a base dos critérios necessários
para que um livro pudesse ser bem aceito pela crítica.
A leitura d’Os sertões é um conhecimento e um reconhecimen-
to da nossa terra e do homem sertanejo, da raça, ou melhor, do
mestiço brasileiro. O cuidado de Euclides em documentar e a sua
preocupação em mencionar suas fontes deram credibilidade à sua
obra, mesmo que tais interpretações pudessem vir a ser errôneas.
A emoção causada pelo texto, também critério de aceitação crí-
tica, pode ser explicada como uma identificação, mesmo que tar-
dia – já que a guerra havia acontecido há cinco anos –, pelos he-
róis vencidos, fortes na dignidade e na coragem, assim como os
brasileiros. Euclides foi o responsável por causar tal emoção nos
leitores da época por relatar um fato cruel e verdadeiro numa
linguagem bem articulada e eloqüente.

***
Com o passar dos anos, a crítica tomou outros rumos ? Como
ela lê, hoje, Os sertões?

193
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

Para Silviano Santiago, Euclides, em um primeiro momento,


pela influência do meio em que vivia e motivado pelos instrumen-
tos que dispunha na época, acreditava e apelava para a República.
Entretanto, a partir do momento em que presencia a realidade
de Canudos de perto, é percebida uma reviravolta em seu dis-
curso – opinião, aliás, corroborada por Walnice Galvão – “Assu-
me plenamente a defesa dos jagunços, fazendo a crítica do mun-
do intelectual e da classe dirigente de então, como também a sua
autocrítica, a partir do lugar dos vencidos” (Santiago, 1982, p.99).
Para Silviano, essa reviravolta não quer dizer que Euclides
passou do lado dos republicanos para o lado dos monarquistas,
quer dizer que voltou seus olhos para a rebelião, perdendo, por
um lado, a certeza da ciência ocidental, e ganhando, por outro, a
certeza da reflexão do lado dos vencidos. Desse modo, Euclides
passa a enxergar nestes “uma verdade que escapa às diretrizes
excludentes da modernização”. Seria, então, o texto de Euclides
dedicado aos excluídos.
Para Silviano, Euclides procurou um discurso conciliador do
ponto de vista crítico entre as “diretrizes modernizadoras da Re-
pública e os desprestigiados da nação”. Euclides assume a defesa
dos jagunços e tem-se aí uma reviravolta ou procura a conciliação?
Para o crítico, Euclides foi duplamente corajoso. Politicamente,
por ter denunciado a covardia em Canudos; e, intelectualmente, por
ter colocado em questão a segurança e a certeza do pensamento
da sua época. Resta saber se a segurança e a certeza foram postos
em questão por conta da reviravolta ou do discurso conciliador.

***
Walnice Galvão, assim como Silviano, também acredita na
mudança de Euclides. Para essa crítica, há uma diferença entre o
narrador do Diário de uma expedição e o narrador de Os sertões. Para
ela foi necessário que o escritor estivesse em Canudos “para
reformular suas idéias e escrever o verdadeiro libelo que consti-
tui seu livro” (Galvão, 1976, p.67).

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A interpretação d’Os sertões, ontem e hoje

O processo de mudança de Euclides para Walnice já pode ser


sentido no Diário de uma expedição, para ser mais preciso, na corres-
pondência do dia 16 de agosto. Nesta, segundo a autora, Euclides
começa a questionar sobre a razão que preside a resistência dos
jagunços.
Na dúvida Euclides, então, apresenta o “perfil de um homem
honesto, que quer descobrir a verdade, mesmo que ela lhe doa e
lhe custe o duro preço de suas ilusões ...” (ibidem, p.71).
E sua certeza se dá na última correspondência, em que pode
ser percebida uma atitude reflexiva e reticente, na qual fica mais
evidente a preocupação de Euclides com o destino dos jagunços
dizimados em Canudos. Para Walnice Galvão, Os sertões tem cará-
ter de denúncia e de oposição aos poderes constituídos.

***
Várias são as contradições encontradas na obra de Euclides.
Sejam elas por falhas em seus fundamentos teóricos, sejam de
base ideológica. As fundamentações apresentam-se fracas por
meio dos impasses que acontecem à medida que Euclides se man-
tém fiel ao discurso científico.
O nacionalismo euclidiano é baseado em frágeis alicerces.
Entretanto, para a primeira recepção de Euclides, apenas as des-
crições são suficientes para legitimar seu discurso nacionalista.
Por que frágeis alicerces? Porque acreditar, por exemplo, que
o tempo serviria de cura para que o sertanejo retrógrado – favorecido
pelo isolamento geográfico – pudesse se tornar a raça forte, o cerne
da nacionalidade contradiz o discurso científico.2 Euclides nos
prova a existência de dois tipos de mestiços: um retrógrado e
outro degenerado, porém não conseguiu o respaldo científico
para explicar o cerne da nacionalidade.
Se todos estavam predestinados a desaparecer em virtude da
“força motriz da história”, o crime de Canudos somente teria
apressado o que o destino lhes guardava. Entretanto, o crime se

2 Para maior aprofundamento, ver Costa Lima, 1997, cap.II, V e VI.

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Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

torna mais violento à medida que o alvo era o representante da


“rocha-viva da nacionalidade”.
E quanto à guerra? O que esperar (e como explicar) de uma luta
entre um grupo de mestiços retrógrados liderados por um psicótico
com um outro grupo de mestiços degenerados liderados por um
desequilibrado? A longa duração da luta, vencida três vezes pelos
mestiços retrógrados, prova sua vantagem, já que os mestiços
“proteiformes” estavam infectados pelos sucessivos cruzamentos.
Apesar de tudo, Euclides insiste em absolutizar a ciência.
Se a vitória final é dos mestiços degenerados, a prova não é a
de que o avanço tecnológico foi capaz de influir nas possibilidades
etnicamente definidas?
É percebido outro tipo de contradição. Apesar de Euclides
parecer defender os sertanejos, e optar por defendê-los denun-
ciando o crime cometido em Canudos, deparamos com exemplos
que demonstram outra posição.
Por exemplo, quando Euclides se refere aos sertanejos, cha-
ma-os de “rebeldes”, “inimigos”, “fanáticos”, “gente estranha”,
“bárbaro inimigo” e “adversários”, ao passo que, ao se referir ao
exército, utiliza expressões como “nossa vitória”, “nossos solda-
dos” e “nossas baixas”. Tais exemplos são notados tanto no Diá-
rio de uma expedição como no livro Os sertões, e neste último eles
podem ser confirmados do início ao fim. Euclides não deixou de
ser o homem civilizado e republicano.

***
Euclides é uma testemunha que narra sobre a guerra em Ca-
nudos, cinco anos depois do fato ocorrido. Ao selecionar os fatos
para produzir seu texto foi necessário combinar suas lembranças
e suas anotações em sua caderneta de campo, feitas no momento
da guerra. Partiremos do princípio de que a verdade – assim como
queria Euclides, objetiva – não é e nem poderia ser única.
Segundo Todorov (2002), o historiador pode trabalhar com
dois tipos de verdade: a verdade de adequação – aquela em que

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A interpretação d’Os sertões, ontem e hoje

são relatados locais e datas, verdade necessária para o estabele-


cimento dos fatos – e verdade de elucidação – aquela que é inter-
pretada pelo enunciador, ou seja, necessária para a construção do
sentido.
A verdade de elucidação, ou seja, a verdade interpretada, é a
responsável pela parcela de subjetividade no discurso do escritor,
o que não quer dizer que esse discurso seja inventado ou ficcio-
nalizado. Os dois tipos de verdade se completam, pois o escritor
dá sentido ao que diz por meio de suas pesquisas e lembranças.
O relato de testemunho trabalha com os dois tipos de verda-
de, e seu interesse é relatar aquilo que testemunhou e dar a sua
impressão dos fatos, consciente ou inconscientemente. O que não
quer dizer de maneira nenhuma que a parcela de subjetividade
no discurso do autor, causada por suas interpretações, dê ao
texto um caráter ficcional e suas anotações são seus aliados nessa
produção.
Segundo Todorov (2002, p.152), “se for apagada toda fron-
teira entre discurso verídico e discurso de ficção, a História não
tem mais razão de ser”.
Euclides tentou fincar seu discurso nas raízes da ciência, pro-
curou relatar a verdade, a sua verdade com o máximo de objetivi-
dade possível; porém, ao chegar a Canudos e tornar-se a testemu-
nha ocular dos fatos, Euclides sem perceber questiona suas
verdades, mas não as encara. O que podemos perceber é que Eu-
clides tentou impor a sua verdade, mas suas lembranças o impe-
diram. Por que as lembranças? Porque somente cinco anos de-
pois foi possível perceber que suas indagações o incomodavam,
mas mesmo assim Euclides não as encarava: “Sejamos simples
copistas”; “Deixemos de divagações”, assim como suas reticên-
cias ao final de cada período em que tenta refletir sobre elas. Não
encontramos esses exemplos de fuga no Diário de uma expedição.

***

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Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

Euclides não quis escrever nem a história de vilões nem a de


heróis. Apesar de republicano e homem civilizado, não conseguiu
ficar isento à covardia cometida no sertão. Mesmo que sua razão
o tivesse levado para um lado, sua memória o levou para o lado
oposto. Por essa razão, sua obra parece contraditória. Por meio
das lembranças que escapam à sua memória, podemos perceber
tais indagações, que permitem as contradições.
Afrânio Peixoto define bem o que acontece com Euclides: “é
apenas um livro que conta o efeito d’Os sertões sobre a alma de
Euclides da Cunha” (O Estado de S. Paulo, 15.8.1911).
Euclides relata o que viu e nos dá a sua interpretação, é a sua
verdade de elucidação. Ele descreve a terra, assim como suas im-
pressões e segue nesse paradigma com o homem e a luta. Euclides
precisa tanto de suas anotações em sua caderneta, assim como
de suas lembranças. Não importa se Euclides ficou pouco ou
muito tempo em Canudos, o que presenciou foi suficiente para
o colocar em uma situação de extremo limite, já que estava no
meio da guerra, vivendo toda a tensão que o momento permite
“não poderei prolongar-me mais hoje. Acaba de recrudescer o ti-
roteio e o assobio das balas ressoa sobre todos nós lembrando
uma ventania furiosa” (Cunha, 2000b, p.196).
As lembranças de Euclides, ou suas diferentes formas de lem-
brar da guerra, não estiveram a serviço do bem ou do mal, mesmo
porque Euclides não tomou partido, não nomeou carrascos ou
agressores e outros pobres excluídos. Não podemos nos esque-
cer de que para protagonistas ou antagonistas, vencidos ou vence-
dores, bons ou maus, os sertanejos foram sempre os excluídos.
Euclides não toma partido, mas nem por isso a sua narrativa
apresenta um texto isento. Pelo contrário, ora parece defender
um lado ora o ataca, ora defende outro lado ora o ataca. No capí-
tulo de título “A dinamite”, na Parte III do livro, temos um exem-
plo de que Euclides não toma nenhum partido, pois podemos
ler o capítulo sem entender ao certo o que ele defende.

***

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A interpretação d’Os sertões, ontem e hoje

Seu relato de testemunho poderia levá-lo a uma narrativa de


um historiador ou de uma testemunha. Esta convoca suas lem-
branças para dar forma ao seu discurso; aquele procura como
princípio a verdade impessoal. Porém, “nos últimos tempos essa
verdade tem sido questionada pelas inevitáveis intervenções do
sujeito que investiga” (Todorov, 2002, p.152).
Euclides utilizou os dois tipos de discurso, pois procurou a
objetividade do historiador e sua memória refletiu a subjetividade
da testemunha. Essa subjetividade somente é percebida nos desli-
zes de seu discurso, ou seja, quando questiona, indaga, interpreta.
Euclides tem as suas verdades, acredita na verdade da ciência,
mas ela não foi capaz de explicar a força dos sertanejos, a sua
dignidade na hora da luta e da morte, enfim a sua resistência em
defender a terra.

E quando afinal, jugulados, eram conduzidos à presença dos


chefes militares, iam conformados ao destino deplorável. Reves-
tiam-se de serenidade estranha e uniforme, inexplicável entre luta-
dores de tão variados matizes ... variando díspares, na índole e na
cor. (Cunha, 2000a, p.543)

***
O que Euclides não contava era que suas crenças não coinci-
dissem com o que presenciava, pois algo mais do que objetivo e
possível de explicação científica acontecia no sertão. Euclides não
conseguia entender e muito menos explicar, por isso, quando as
lembranças afloram, ele não as encara, ou porque não as percebe
de fato ou porque estaria pondo em ruínas toda sua bagagem in-
telectual. “E estas cousas não impressionavam...” (ibidem, p.545).

Mas que entre os deslumbramentos do futuro caia, implacá-


vel e revolta; sem altitude, porque a deprime o assunto; brutal-
mente violenta, porque é um grito de protesto; sombria, porque
reflete uma nódoa – esta página sem brilhos... (ibidem, p.548)

***

199
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

Entretanto, os críticos do final do século passado o lêem como


discurso do mea-culpa, pois essa seria uma maneira de “corrigir”
o mal ocorrido em Canudos – denunciando. Romanceá-lo tam-
bém é um dos caminhos escolhidos. Fazer d’Os sertões um roman-
ce é transportar a covardia real cometida em Canudos para o
mundo real da verossimilhança – preocupada com a aparência
da verdade. Vale lembrar que Euclides estava preocupado com a
verdade dos fatos.

***
Não podemos sacralizar o passado nem ficar presos às leituras
ou paradigmas do início do século, senão ficaremos impedidos
de compreender sua obra.
As pessoas, em geral, e os leitores, mais especificamente, pre-
cisam polarizar as narrativas, ou seja, colocar de um lado o bom
e o mal; o herói e o vilão; o certo e o errado; a verdade e a mentira.
Assim também, como lhes dar um caráter finito, ou seja, uma
história com início, meio e fim.
É percebido nas críticas que a tentativa em dar um lado, um pólo
para que Euclides se posicione é muito grande. Assim como fic-
cionalizar uma história de covardia é um meio de tomar posição.
A leitura feita pelos críticos torna-se, então, contraditória
pelo simples fato de desejarem que o texto euclidiano tome uma
posição. Desse modo, a contradição de Euclides não é compreen-
dida, mas continuada.

***
Tornar herói o vencido, o excluído, é uma característica mo-
derna. Todorov aborda essa questão na Europa, mas fica evidente
que aqui não é diferente. A identificação faz que criemos os nos-
sos heróis.
A verdade traumática é reconstituída, nunca fielmente rela-
tada. Ela permanece silenciosa. Muito mais em Euclides que pre-
tendeu se manter fiel às suas verdades. Euclides escreve Os ser-

200
A interpretação d’Os sertões, ontem e hoje

tões em nome da memória para impedir que tal fato aconteça no-
vamente, ou para não esquecer?

***
Pode ser que Euclides não tivesse encarado suas interpreta-
ções pelo fato de estar preso a formas culturais, já que era republi-
cano, positivista e acreditava na ciência européia; portanto, seu
universo cultural não permitiu que suas interpretações ou indaga-
ções as colocassem em ruínas.
Ele depara com situações opostas às suas verdades. Euclides
não conseguiu manter-se fiel às suas idéias. As contradições acon-
tecem justamente porque Euclides não encara essa “infidelidade”.

***
O que podemos tirar de comum e incomum entre as leituras
do início do século e a leitura atual?
A primeira, do início do século, precisava legitimar a naciona-
lidade, e no texto deveria conter marcas que exprimissem a dife-
rença da cultura brasileira. A segunda recepção analisada
procurou na pena do escritor um herói e um vilão. Leu-se o texto
euclidiano como denúncia de uma covardia cometida em solo
brasileiro.
O caráter da necessidade de um texto nacionalista ainda é
percebido – das descrições locais para o herói vencido.
É preciso que se leia Os sertões além dos olhos de Euclides,
enxergar seus tropeços é mostrar que o autor tentou fazer mais
do que podia. Podemos com seu texto entender melhor suas ten-
tativas e suas limitações (suas e do seu tempo).
Um relato de testemunho – mesmo que contraditório – nos
faz pensar o passado para entender o presente. No caso de
Euclides, entender o presente depende de cada leitor, desde que
nos desprendamos dos paradigmas do passado e possamos nos
permitir aprender com os nossos erros e tropeços.

***

201
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

Em Diário de uma expedição, Euclides é um observador que


narra a situação do ponto de vista do exército. A sua preocupa-
ção com a resistência dos sertanejos é simplesmente pelo fato
de a guerra se estender e o exército ter o número de baixas au-
mentado. O seu desejo é que a guerra acabe o mais rapidamente
possível, já que a vitória é inevitável e certa. “Os jagunços conti-
nuam inamolgáveis, na resistência. Tivemos ontem cerca de 50
baixas e as de hoje não serão menores...” (Cunha, 2000b, p.190)
– “há três dias acreditei que os nossos antagonistas não poderiam
resistir três horas...” (ibidem, p.196) – “Realmente alguma coisa
de anormal passava-se em frente, no arraial; e os corações come-
çavam já a bater febrilmente ante a quase evidência da vitória
longamente esperada ... Incompreensível e bárbaro inimigo!”
(ibidem, p.199).
N’Os sertões, Euclides também é um observador, mas não
apenas se preocupa com a resistência, como também a questiona,
tentando entendê-la.
No capítulo II da parte “O homem”, temos um exemplo de
que Euclides não pretendia aprofundar o que sua imaginação co-
meçava a indagar: “Se nos embaraçássemos nas imaginosas li-
nhas dessa espécie de topografia psíquica, de que tanto se tem
abusado, talvez não os compreendêssemos melhor. Sejamos sim-
ples copistas” (Cunha, 2000a, p.118).
Talvez se Euclides tivesse, desde então, encarado e aprofun-
dado a questão da mestiçagem, do entendimento do outro, pode-
ria ter obtido respostas às suas questões que o perseguiram do
início ao fim do livro.
Em Diário de uma expedição, Euclides mostra que reconhece algo
de estranho na coragem dos sertanejos, “nossos rudes patrícios
transviados”, e que, ao conquistar a bela vitória, sua “conquista
real consistirá no incorporá-los, amanhã, em breve, defini-
tivamente, à nossa existência política” (Cunha, 2000b, p.208). Ou
seja, Euclides não aceita o outro, quer transformá-lo. Sua intenção
era que todos pertencessem à mesma cultura, aos mesmos ideais.

202
A interpretação d’Os sertões, ontem e hoje

Essa impossibilidade de entender ou de querer entender o


outro, seja de outra cultura, de outra região, de outra religião,
de outras crenças, enfim, estar aberto às diferenças, fez do texto
euclidiano um mar de contradições.
N’Os sertões, Euclides não nos permite conhecer de fato os
seus pensamentos, mas somente chegar à conclusão que em sua
narrativa há vestígios de indagações com as quais o autor depara.
Indagações estas que o incomodam e que não são percebidas no
Diário de uma expedição.
Essas indagações começam a lhe incomodar a partir do mo-
mento em que precisa recorrer à memória para escrever sua nar-
rativa. Assim como o escritor precisa selecionar o que irá escre-
ver ou não, também a memória seleciona os fatos a serem
lembrados ou esquecidos. Dessa forma, Euclides, querendo ou
não, depara com suas indagações, questioná-las é uma opção –
opção esta tomada consciente ou inconscientemente por ele.

***
Até o final da narrativa, Euclides continua sem entender a re-
sistência dos sertanejos, assim também como não entende a co-
vardia cometida pelo exército. Durante as 584 páginas do livro,
Euclides desconhece o “inimigo”, mas quer acabar com ele, ou
seja, quer vencer a guerra, e acredita que ela é necessária. Entre-
tanto, algo de no mínimo curioso acontece na guerra, pois o que
era previsível – a vitória rápida do exército – se torna imprevisível,
já que os sertanejos resistem de forma admirável.
Nos últimos dias da guerra Euclides depara com os “inimi-
gos”, com os prisioneiros que se entregaram. Ao presenciá-los,
Euclides sente-se envergonhado em vencer uma batalha onde
os adversários são, nada mais nada menos, um bando de
“caqueirada humana”. A quem estavam matando? O que espan-
tava era sua integridade, pois apesar de fracos, sujos e famin-
tos andavam de cabeça erguida. Mas não deixavam de ser mes-
tiços e estranhos.

203
Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos

O livro de Euclides se torna, então, mesmo que contraditó-


rio, uma maneira de atentarmos para a diferença, tema não fortui-
tamente importante para repensarmos o que acontece nos dias
atuais.

Referências bibliográficas

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Civilização Brasileira, 1997.
CUNHA, E. da. Os sertões. Rio de Janeiro: Record, 2000a.
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do Centro de Estudos Virginia Cortes de Lacerda, v.1, n.1, 1995-1996.

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A interpretação d’Os sertões, ontem e hoje

SOBRE O LIVRO

Formato: 14 x 21 cm
Mancha: 23 x 44,5 paicas
Tipologia: Iowan Old Style 10/14
Papel: Offset 75 g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250 g/m2 (capa)
1a edição: 2002

EQUIPE DE REALIZAÇÃO

Coordenação Geral
Sidnei Simonelli
Produção Gráfica
Anderson Nobara
Edição de Texto
Nelson Luís Barbosa (Assistente Editorial)
Nelson Luís Barbosa (Preparação de Original)
Ada Santos Seles (Revisão)
Editoração Eletrônica
Lourdes Guacira da Silva Simonelli (Supervisão)
Luís Carlos Gomes (Diagramação)

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