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Mídia e Literatura:
tematizações, correlativos, conexões

Marcelo Bulhões
Livre-docente (Unesp)
Professor de Pós-graduação em Comunicação da Unesp
E-mail: bulhões@faac.unesp.br

Introdução

Início com uma imagem caricatural: um


Resumo: O propósito deste ensaio é avaliar, de modo breve, a professor – de barbas brancas e colarinho
questão das relações entre mídia e literatura, com uma abor-
dagem de teor generalista. Assim, os casos citados possuem impecável – brande os dentes para defender
caráter exemplar. Propomos a distinção de três modos funda- uma arte literária impermeável aos influxos
mentais por meio dos quais se dão as relações entre o campo
midiático e o literário. O caráter classificatório aqui esboçado
das mídias; ou, colérico, diz-se estarrecido
busca contribuir para estudos mais particularizados da ques- com inequívocas ondas de associação de
tão, ao mesmo tempo em que convida ao exercício reflexivo. manifestações literárias das últimas décadas
Palavras-chave: mídia, literatura, poéticas tecnológicas, hipertexto.
com linguagens e formatos midiáticos. A
Medios de comunicación y literatura: tematizaciones, correlati- imagem de tal professor é a de um purista,
vos, conexiones a qual certamente se apressaria, aliás, a ne-
Resumen: La finalidad del presente ensayo es evaluar, en forma
sucinta, las relaciones entre los medios de comunicación y la gar para tais manifestações – em qualquer
literatura, con un abordaje general. Por tal motivo, los casos ci- que seja o gênero – a própria designação de
tados son ejemplares. Proponemos la distinción de tres formas
fundamentales por medio de las cuales se dan las relaciones en-
literárias; ou as chamaria sumariamente de
tre el ámbito de los medios de comunicación y de la literatura. subliterárias. Afinal, segundo sua perspecti-
La clasificación esbozada busca contribuir con la elaboración va, a presença do midiático conspurcaria a
de estudios más específicos sobre el tema y, al mismo tiempo,
invita a realizar un ejercicio reflexivo. “nobreza” da literatura, pois destituiria uma
Palabras clave: medios de comunicación, literatura, poéticas tec- natureza artística que seria tão mais artística
nológicas, hipertexto. quanto mais exilada ou resistente à “banali-
Media and literature: thematizations, correlatives, connections zação” das ocorrências midiáticas.
Abstract: The purpose of this essay is to briefly evaluate the re- Essa retratação de professor purista tem
lationship that exists between media and literature in a general
approach. The referred cases are exemplary in character. We
muito de improcedência ou perigosa in-
suggest that there are essentially three ways by which media- consequência, pois, pelo mau caminho da
literature relationships come about. The classification provi- caricatura e do estereótipo, ela pode sugerir
ded herein seeks to contribute towards more detailed studies
on this matter and invites to reflection. a desqualificação da própria atitude críti-
Keywords: media, literature, technological poetics, hypertext. ca que não raramente tem lançado olhares

Líbero – São Paulo – v. 15, n. 29, p. 101-110, jun. de 2012


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desfavoráveis a certos rumos da literatura para exploradores do tema. Sua intenção –


recente, tão francamente envolvida com a ou seria presunção? – é que uma abordagem
cultura midiática. E se, de fato, larga parcela avaliativa do fenômeno se desenhe com um
da literatura das últimas décadas não con- pequeno quadro organizativo, de caminhos
vida a juízos animadores, o problema pede que possam ser profícuos para quem queira
que se evite qualquer leviandade que sugira cultivar a questão de modo mais afinado ou
associação entre purismo estereotipado e o específico. Proponho, pois, uma abordagem
necessário rigor crítico. em que o traço avaliativo esteja atado a uma
intenção de caráter também classificatório,
esboçando um arranjo que também aponte
caminhos para a reflexão teórica.
A profissionalização do
A perspectiva assumida aqui não tratará
escritor na esfera do ca- de casos em que o universo literário é ape-
pitalismo industrializa- nas colhido como “matéria” narrativa por
do parece ter ­atenuado manifestações midiáticas, como nas adap-
o desatrelamento da tações literárias, em que a expressão verbal
escrita literária do da literatura passa a concorrer, ou é mesmo
campo midiático suplantada, pela ocorrência da imagem.
O que propomos é o estabelecimento de
três dimensões ou ocorrências básicas para
avaliar as relações entre mídia e literatura.
No entanto, fazendo tal ressalva, mante- Talvez não seja demais advertir – embora o
nho a imagem do tal professor aqui para que leitor já possa supor – que a atitude de classi-
ela sirva como espécie de convite provocati- ficação não representa uma disposição inco-
vo à questão das relações entre o midiático municável entre manifestações.
e o literário, tema deste artigo. E tal imagem Em um primeiro caso, o fenômeno midi-
pode servir à identificação da concepção tão ático é colhido como tema ou assunto – não
purista quanto ingênua que não admitiria necessariamente primordial – de obras lite-
a vinculação entre o universo midiático e o rárias. O midiático se insere, pois, especifica-
da literatura. Afinal, se toda manifestação mente no plano do conteúdo.
da linguagem literária prestes à difusão para Um segundo caso diz respeito à atitude da
leitura de um público nunca prescinde de linguagem literária de buscar procedimentos
uma base material-midiática, seja o livro, o associativos, ou correlativos, com processos
jornal, a revista, para ficarmos nos veículos de linguagens ou suportes das mídias. A lin-
ou suportes que hegemonicamente ou tra- guagem verbal da literatura busca produzir
dicionalmente receberam a forma impressa efeitos de similitude ao campo das mídias.
da palavra literária, as relações entre mídia Nesse caso, o horizonte das mídias é como
e literatura se impõem. Mas se impõem de que mimetizado pela linguagem literária.
modo variado, como veremos. Finalmente, um terceiro caso diz respeito
Se esses apontamentos podem assumir à plena conexão entre forma literária e a base
dimensões extensas, é preciso discernir ao sensível do aparato midiático, associação
que cabe a este artigo: trazer, de modo breve, franca entre expressão do verbal literário e
a questão das relações entre mídia e literatu- suporte midiático, destacando-se as manifes-
ra para uma abordagem geral do problema, tações da hipermídia ou do hipertexto. Neste
propondo-se um pequeno quadro sinóptico. caso, o próprio processo criativo da lingua-
Ele deseja aplainar um pouco o campo, apon- gem verbal dá-se inseparavelmente dos dis-
tar e podar algumas arestas, sugerindo trilhas positivos das tecnologias midiáticas.

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O midiático como tema: um olhar manidades. Alocada no segundo campo, às


condenatório artes e à literatura cada vez mais se reivindica-
ria um sentido da autonomia de seus valores
Um primeiro – e aparentemente mais intrínsecos, dos quais não se cobrariam in-
simples – revestimento da questão diz res- tenções de natureza utilitarista da existência.
peito à literatura contemplar tematicamente Ao mesmo tempo, firmava-se a convicção de
a cultura midiática, ou manifestações dos que os fenômenos do âmbito artístico, o que
chamados meios de comunicação. Nesse incluía as belas letras, se prestariam à “eleva-
caso, o universo midiático comparece em ção do espírito”, o que conduzia à consagra-
obras literárias como aspecto fundamental- ção de um repertório de temas ou motivos
mente conteudístico, não atingindo o âmago “nobres”. Naturalmente, nessa perspectiva os
das formas de expressão. temas da literatura deveriam manter léguas
Se a vasta tradição literária não costumou de distância de um fenômeno que, no trans-
tornar o midiático tema frequente de obras, correr do século XIX, se foi tornando mais
ainda assim podem-se evocar situações em claro na ordem do dia do mundo ocidental,
que o universo da comunicação midiática se até assumir a designação genérica de meios
insere no plano temático, de modo primor- de comunicação, ou simplesmente mídia.
dial ou secundário, de determinada obra, É verdade que o processo de profissiona-
sendo configurado em versos ou, no caso da lização do escritor na esfera do capitalismo
prosa, flagrado em enredos, associando-se industrializado, no transcurso do século XIX
com a vida de personagens de ficção. para o XX, com a captação de sua atividade
Se a visada em tal ocorrência não reco- pela dinâmica da produção mercadológica,
nhece um tratamento uniformizado do conduzindo ao enfraquecimento do lume
modo como a mídia é “vista” pela literatura, que circundava a sua “aura”, parece ter ate-
gostaríamos de destacar uma tendência das nuado o desatrelamento da escrita literária
mais notáveis, pelo menos até certa altura do campo midiático. Aos poucos, ia se tor-
da tradição literária ocidental: a de um olhar nando cada vez mais nítido que o escritor
tenso ou mesmo condenatório ao universo não vivia alheio às intenções de lucro do
midiático. Tal olhar adverso – ou pelo menos mundo editorial, e sua inserção em um ter-
desconfiado – pode ser compreendido por ritório explicitamente midiático, o das em-
um certo golpe de vista histórico. Ainda que presas jornalísticas, o disponibilizaria a reco-
não de modo absoluto, durante muito tempo lher, sem rebuços, as esferas “ordinárias” do
vigeu certa concepção que associou a litera- campo midiático. Em gêneros jornalísticos
tura à efígie “sagrada” de impermeabilidade como o folhetim – designação não raramen-
a fenômenos de ordem “externa”, circundan- te imprecisa –, algum afastamento de temas
tes na vida social. Assim, em certa medida te- “elevados” permitia que o universo técnico-
ria pairado sob a própria tradição ocidental midiático fosse registrado, resguardando-se
a noção de arte literária como manifestação para o espaço consagrador da brochura do
exilada de fenômenos da vida social, toma- livro os temas “elevados”. Persistia, pois, em
dos como banais ou impróprios, o que in- larga medida, um sentido de desvalorização
cluiria o campo midiático. do midiático como tema literário.
É verdade que o desenvolvimento de tal Mesmo com posturas das mais transgres-
concepção se fez como consequência de im- sivas no âmbito estético, alguns ares do sécu-
portante conquista que se desenvolveria a lo XX respaldariam tal concepção. Reconhe-
partir do século XVIII no mundo ocidental, cida a extrema diversidade e complexidade
ou seja, o delineamento da distinção entre o do período, pode-se ver que algumas vezes
domínio das ciências empíricas e o das hu- a literatura encontrou o caminho franco do

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engajamento político – o que não foi, cla- Outros casos, todavia – e eles não são
ro, exclusividade do século XX. Assim, não poucos –, tanto da produção literária brasi-
raramente o mundo dos meios de comuni- leira quanto internacional, poderão atenuar
cação ficou associado, na esfera do capitalis- a percepção de um tratamento conteudístico
mo ocidental, a tudo aquilo que a figura do adverso lançado ao midiático. Aliás, o qua-
intelectual-escritor, muitas vezes de extração dro da literatura mais recente demonstra
marxista, buscou combater. Portanto, tanto o uma forte tendência de abrandamento da
caminho de uma forma literária “pura”, dita “demonização” da cultura midiática. Já em
arte pela arte, rejeitou o midiático em nome fases anteriores, como no alto modernis-
do academicismo estético, quanto o seu re- mo, francas aproximações do literário com
vés, o engajamento político, o recusaria, em o midiático foram ensaiadas e produzidas
nome de conteúdos afinados com causas re- nos laboratórios formais das vanguardas. Ao
volucionárias. mesmo tempo em que estavam além da mera
Tal olhar condenatório ao midiático já tematização das mídias, tais posturas suge-
comparecia de modo nítido em obras do sécu- rem “afinidades eletivas” que estão longe da
lo XIX. No Brasil, por exemplo, um romance categórica condenação.
naturalista, Casa de Pensão, de 1883, de Aluí-
A busca de correlativos de linguagem
sio Azevedo, é trajetória de um protagonista
vitimizado pela reificação capitalista, tornado, Em uma segunda ocorrência flagram-se
no fim da narrativa, objeto de exploração de procedimentos do verbal literário em buscar
fait-divers jornalístico. No século XX, um olhar correlativos ou similitudes com o que, generi-
acusatório ao imperativo mercadológico da camente, chamaríamos de linguagens midiá-
mídia jornalística se estamparia na estreia lite- ticas. Aqui, o material literário incorpora, no
rária rumorosa de um Lima Barreto, com Re- discurso verbal impresso (em veículos como
cordações do Escrivão Isaías Caminha, de 1909. jornal e revista, mas sobretudo no formato
O teor memorialista-ficcional desse romance do livro), procedimentos afins a expedientes
“ressentido” se alia a um olhar desfavorável aos do plano da expressão que habita as mídias.
meandros de condução da imprensa jornalísti- Assim, a natureza verbal da literatura se pres-
ca brasileira. No mesmo caso brasileiro, alguns ta à elaboração de correlativos estéticos para
escritores, como Nelson Rodrigues no texto da as formas comunicativas midiáticas. Nesse
peça O Beijo no Asfalto – que estreou no Bra- caso, pois, o universo das mídias não é tema-
sil em 1961 –, não raramente põem o universo tizado ou tornado assunto da obra literária,
jornalístico-midiático em registro deplorável – mas busca-se apreendê-lo, de algum modo,
embora bem saibamos que a obra rodriguiana com a própria técnica literária. A represen-
mantém estreitas afinidades com a atividade tação artístico-literária constrói expedientes
jornalística. Em outro tom, Clarice Lispector, verbais que possuem destacada analogia com
em A Hora da Estrela, de 1977, flagra o univer- o campo midiático-tecnológico, buscando
so psicológico de sua protagonista, Macabéa, produzir, em sua textura verbal, configura-
em uma espécie de imaginário degradado nas ções de linguagem afins a gêneros, suportes
situações da personagem em audição radiofô- ou produtos midiáticos.
nica. E o que dizer de um João Antônio? Sua No caso brasileiro, tal postura pode ser
inserção na própria atividade midiática, como reconhecida, por exemplo, em escritores de
jornalista, parece ter-lhe servido para afiar fim do século XX e início do atual, como
um estilete apontado ao universo das mídias, Valêncio Xavier que, em O Mez da Grippe,
na contundência cortante do magistral conto de 1981, ou em Maciste no Inferno, de 1983,
Abraçado ao Meu Rancor, do livro homônimo, constrói o narrativo-literário acomodando-
lançado em 1986. o a um tratamento gráfico de explícita ex-

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tração midiática. Em O Mez da Grippe, por de uma espécie de “cinematógrafo literário”,


exemplo, o romance mimetiza graficamente anunciando-se logo cinema na folha de rosto,
as páginas de um jornal, imprimindo a am- a qual se assemelha a um cartaz que veicula o
biguidade factual-ficcional. espetáculo cinematográfico, com título, crédi-
Mas tal atitude não é exatamente atu- tos e um arranjo gráfico plenamente sugestivo
al. No século XIX, por exemplo, a presença da abertura e fechamento de um filme.
do escritor literário na dinâmica industrial
jornalística produziu certa disponibilida-
de do literário para acolher procedimentos
afeitos ao jornalismo, o qual também seria, Nesse sentido, espécimes
em alguns dos seus gêneros, contagiado pela como o romance poli-
literatura. Nesse sentido, espécimes como o cial que possui relações
romance policial, por exemplo, que possui estreitas com o folhe-
relações estreitas com o folhetim, é gênero tim, é gênero literário
literário tocado pela marca do jornalístico- tocado pela marca do
factual. Daí as ficções literárias do mundo do
­jornalístico-factual
crime possuírem marcas claras de fait-divers.
Assim, sugestões do campo midiático são
capturadas esteticamente por ficcionistas.
Tal caminho de apropriação da expressão
jornalística pelo literário, aliás, se espraia- Algo de espírito similar encontra-se na
ria consideravelmente no século XX, sendo prosa cubo-telegráfico-cinematográfica de
muito farto qualquer levantamento de obras Oswald de Andrade, em Memórias Sentimen-
literárias reveladoras, no plano da lingua- tais de João Miramar, de 1924, aclimatando de
modo desabusado o futurismo de Marinetti
gem, da captação explícita de um “modo de
e afinando-se, de alguma maneira, com o que
ser” midiático.
Joyce fizera em Ulysses, de 1922. A associação
Mas uma atitude de fato arrojada no en-
literária com as linguagens das mídias nesse
gendramento de formas estéticas correlativas
caso se faz com um discurso verbal que bus-
às linguagens midiáticas despontará, de modo
ca similitudes com o código cinematográfico
programático até, com as poéticas de início
e telegráfico, atingindo um efeito de simul-
do século XX. Futuristas, cubistas, dadaístas
taneidade e descontinuidade. A transgres-
– também o modernismo brasileiro – desdo-
são da ordem discursiva, por meio de uma
braram e expandiram, com estrondo, um ca-
estrutura fraseológica sincopada, formando
minho já sugerido por alguns nomes de fins planos díspares, rompendo com a sequência
do XIX, como Mallarmé. Um nome como o linear, estabelece similitudes com a fragmen-
de Apollinaire, que transitava entre o futu- tação da montagem e a sintaxe analógica do
rismo e o cubismo, chegou mesmo a avistar cinema de Eisenstein, por exemplo.
o futuro de uma poética correlata a mídias Décadas depois, em meados dos anos
como telefone, fonógrafo, telégrafo e cinema. 1950, a promoção que o movimento concre-
É que os ares do início do século reque- tista brasileiro faria da poética oswaldiana
riam mesmo uma literatura infundida artis- se inscreve em um projeto estético de cons-
ticamente com a dinâmica midiática, como tituição de uma espécie de cânone moder-
faz Antônio de Alcântara Machado, em Pa- no que respalda uma poética assentada, em
thé-Baby, de 1926. O livro, cujo título é de- outros tantos aspectos, em correlativos às
signação de uma máquina de filmar amado- linguagens midiáticas. O que em Oswald é
ra, configura-se como correlato narrativo do fragmentação cubo-cinematográfica interes-
cinema. Constrói-se como dispositivo verbal sa aos concretistas (Haroldo de Campos, Au-

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gusto de Campos, Décio Pignatari e outros) A literatura é chamada, então, não a re-
para a construção de um projeto em que definir sua natureza, mas a explorar recursos
estão inscritos tanto um Maiakovski quanto disponibilizados por suportes das mídias.
um Cummings – além de Joyce, Mallarmé, Assim, modifica-se a própria fruição do li-
Pound, Apollinaire – na laboração de uma terário. Pois se o processo de leitura nunca
poética cuja destituição da linearidade do possa ser considerado um ato passivo, o que
verso é caminho associativo ao técnico-mi- dizer da fruição diante de meios cuja razão de
ser depende da interação explícita do leitor-
interator? Nesse caso, a literatura é convoca-
O hipertexto se faz pela da a se expressar não mais em seu formato
superação do princípio tradicional de papel impresso. Tratando-se
de uma literatura que mobiliza modos ex-
organizativo sequencial,
pressivos constituídos pelo aparelhamento
pois nas configurações midiático, sua gênese se atrela às próprias
não estão exatamente ferramentas das mídias. Ela é, pois, acolhida
definidos os limites de pelos aparatos midiáticos para se manifestar
início, meio e fim com os recursos propiciados pelo compo-
nente técnico. Meios interativos e imersivos
possibilitam novos procedimentos de cons-
trução e fruição do verbal; as manifestações
diático. Assim, desde a insurgência do grupo poéticas e da prosa exploram graças tecnoló-
que se nomeou Noigandres, o procedimento gicas do computador.
de destituição da linearidade verbal no po- Tal ocorrência logo faz ver um horizon-
ema se fez com influxos das mídias visuais
te recente de desbravamentos tecnológicos,
na página do livro. A evolução de tal pro-
com a presença de espécimes nascidos in-
cesso levou, no fim das contas, à eliminação
condicionalmente pelo advento do compu-
do próprio signo verbal. De qualquer modo,
tador e da internet e, principalmente, com a
reconhece-se na gênese de tal “radicalidade”
constatação de que dispomos de meios e su-
poética a mesma atitude da matéria literária
portes promotores da chamada hipermídia,
de laborar expedientes formais correlativos
mais particularmente, do hipertexto.
às mídias.
Mas que não paire aqui a ingenuidade
novidadeira: na verdade, tal dimensão pode
Letras nas graças tecnológicas:
ser flagrada nesse nosso velho companheiro
conexões
de deleite literário, ou suporte, de brochu-
Finalmente, um terceiro modo de avaliar ra e folhas enfeixadas de papel, o livro, essa
a questão diz respeito à franca associação (velha?) mídia que tem privilegiadamente
entre a dimensão sensível – ou técnica – do acondicionado a expressão literária há mais
campo midiático e a forma literária. Nesse ou menos 500 anos. Embora muitas vezes
caso não se trata, como víamos há pouco, da esqueçamos – ou não enfatizemos – que o
escrita verbal lançar mão de artifícios asso- livro também é uma mídia, não se pode ne-
ciativos com meios, processos ou linguagens gligenciar que a literatura nem sempre este-
das mídias, tampouco se trata de assimila- ve inconsciente de que seus efeitos estéticos,
ção conteudística do mundo dos meios de sua fruição, não estão elididos da materiali-
comunicação. Nesta terceira ocorrência, a dade ou suportabilidade da brochura enca-
própria expressão literária e os formatos ou dernada. Pode valer o exemplo de Machado
suportes técnico-midiáticos estão inteira- de Assis ao compor, em Memórias Póstumas
mente conjugados. de Brás Cubas, de 1881, sinais, via metalin-

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guagem, de que o fluxo da narrativa que um de intertextualidade. Ele convida o leitor à


narrador-personagem-defunto escreve está mutabilidade incessante da textualidade e a
assentado em uma base material, cunhada se perder em outros textos e à transformação
na convenção de que à linearidade do verbal do texto que está em sua frente.
impresso corresponde a sucessão das pági- Na verdade, o mais válido é perceber que
nas, padrão a ser seguido pelo leitor. a própria natureza hipertextual é essencial-
Mas o exemplo do livro serve mais para mente desconstrutora, ausente da noção de
marcar o próprio traço de diferença desbra- pureza ou estabilidade. Ao fazer isso, o hi-
vada pelos novos maquinários, engendrado- pertexto literário parece colocar em xeque
res de novas possibilidades expressivas. Aí a própria concepção de escrita calcada na
se destaca o hipertexto, em que o abandono construção autoral, tão cara à noção de gênio
da página do livro, da revista ou do jornal, individualizado e à ideia de escrita individu-
conduz o texto para o espaço multifuncio- al, única e inconfundível, desestabilizando,
nal do computador, agenciador de uma ar- por tabela, a convencional relação entre au-
quitetura não-linear, no qual a tela também tor e leitor. Afinal, outro é o patamar de me-
pode ser franqueadora do tridimensional. A diação. No limite, o hipertexto parece decre-
escrita é convidada à superação da linearida- tar a morte do autor, pelo menos do modo
de do verbo, e se permite anunciar-se como como concebemos durante grande parte da
rede, não como escritura acabada, imutável. trajetória histórica da literatura.
Como se sabe, o hipertexto se faz com blocos Alardear, todavia, que no caso do hiper-
de texto interconectados entre si, cujas sequ- texto cada leitura é uma leitura única pode
ências mutantes nunca são estáveis. Implica- conduzir à ingenuidade de teor novidadeiro.
do, pois, estará o leitor em outro modo de Afinal, na fruição de uma literatura “conven-
fruição do literário: sua atitude será franca- cional” cada leitura é do mesmo modo única,
mente participativa, ou melhor, fisicamente pois é sempre multivalente, ambígua, propi-
ativa, pois o arranjo do texto tem sua razão ciadora de diversos significados. A inflação
de ser com os comandos do leitor-interator. de interpretações e releituras de obras que
A índole digital franqueia ao leitor a condi- vão de um Shakespeare a um Joyce ou Kafka
ção de um usuário que avança na leitura na atesta tal fenômeno. O traço distinto é que o
ordem que escolher. A estrutura interativa hipertexto modifica o ato da leitura, pois ela
promove uma leitura que não se repete e se torna fruição com participação física, ma-
dota a construção da obra do expediente de nifestação de “resposta”, espécie de “devolu-
uma trama textual aberta a diversas trilhas. ção” ao estímulo provocado àquela instância
As graças do hipertexto se fazem muito que antes deveria ser meramente contempla-
pela superação do princípio organizativo tiva, o leitor com um livro aberto nas mãos.
sequencial, destituindo o estatuto estável, Diante de um romance hipertertextual como
recusando a letra talhada em bronze da im- Afternoon, a Story, lançado em 1997, de Mi-
pressão da página, pois nas configurações hi- chael Joyce, o destino da narrativa depende
pertextuais não estão exatamente definidos da interferência física do leitor. Não se trata
os limites de início, meio e fim. Sem delimi- apenas de dizer que o leitor elege os passos
tar fronteiras, o hipertexto se insere na rede do seu processo de leitura, mas de ver que
de outros usuários, retificando da experiên- na ação de escolher está a própria razão de
cia literária a noção de obra singularizada ser da obra.
em um suporte fechado. Assim, atinge ao No entanto, tais graças técnicas parecem
seu modo a noção de obra aberta – para lem- evidenciar uma questão que sempre esteve
brarmos uma noção já muito batida –, ou a presente na relação texto-leitor: a espaciali-
amplifica, tornando sui generis a ocorrência dade. Afinal, o contato com a escrita sempre

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foi algo espacial. A aventura do leitor diante positivos técnicos. Em vez de propriamente
de uma obra – claro, na acepção moderna de literatura, salta certo élan ingênuo de des-
leitura silenciosa do texto impresso – signi- bravamento. Assim, em alguns casos, o que
fica o percorrer de signos fixados na página, tem sido considerado como literatura hiper-
em uma disposição espacial bidimensional. textual ou literatura das novas mídias passa a
E dificilmente se pode negar que a escrita léguas de distância do literário propriamente
literária esteve, em diversas épocas, de al- dito, ou seja, de uma configuração estetica-
gum modo ciente de sua condição gráfico- mente válida da linguagem verbal. Não rara-
espacial. Assim, ao contrário de retificar, o mente, ressoa apenas certo tom de promessa
hipertexto potencializaria a própria nature- de um devir de possibilidades expressivas
za espacial da experiência com a literatura e para uma “nova” literatura. Ou – menos que
com a escrita de um modo geral, tornando isso – a mera demonstração de virtudes piro-
mais dinâmica e mais ostensiva a exploração técnicas dos maquinismos.
visual dos signos.
Considerações finais
Se no caso da prosa, o hipertexto tem
franqueado a construção de uma arquite- A questão das relações entre mídia e o li-
tura narrativa aberta a distintos caminhos, teratura não constitui novidade. Pode-se ad-
em que o destino da história se multiplica mitir, todavia, que a partir do último século
em vários possíveis, na poesia as graças da ela adquiriu maior vulto entre estudiosos. Nas
hipermídia possibilitam um alargamento últimas décadas, o tema tem se apresentado
de expedientes formais como associações com certo ar de urgência, agitando-se inevi-
verbo-voco-visuais em espaço tridimensio- tavelmente com o advento das “novas mídias”.
nal, ou com “elos” que permitem ao signo Mas, mesmo antes, uma “midiatização do li-
poético abrir-se a outros signos. Trata-se, na terário” ou uma “literatura midiática” já fora
verdade, de expedientes que alardeiam tecni- tratada em nosso meio acadêmico, como no
camente processos estéticos apontadas pelas caso das relações entre a prática jornalísti-
poéticas modernas de final do século XIX e ca e gêneros literários como o romance, por
início do XX, de que o poema “Un Coup de exemplo, recebendo abordagens provenientes
Dés” (1897), de Mallarmé, há muito tem ser- do campo da comunicação e das letras, para
vido como emblema. A menção a Mallarmé ficarmos naqueles âmbitos em que ela estaria
evoca, ainda, a utopia que o poeta francês so- “por direito” acondicionada.
nhou em Le Livre, projeto de escrita permu- Aliás, a pertinência da questão e o mate-
tatória com outros livros, há algum tempo rial analítico que ela rende já fariam avistar
viável em nosso horizonte técnico. a possibilidade de um estudo de maior fôle-
No entanto, o mais acertado talvez seja go, como uma peculiar História das relações
afirmar que a conexão do literário ao cam- entre mídia e literatura, trabalho que, pelo
po técnico das “novas mídias” faz ver, mais menos no caso brasileiro, fica como um
do que a constituição de um novo cânone devir tão complexo quanto tentador. Mas,
estético, a própria atitude pesquisa, o labor com o que temos, o tratamento da questão
que busca desenvolver nas malhas dos apara- já tem se revestido de alguns matizes, ao
tos recentes uma forma esteticamente válida mesmo tempo em que desponta certa avi-
para uma leitura significativamente distinta. dez por novas formulações, dado o caráter
Se por um lado algumas realizações, como as expansivo do universo midiático, com seu
da escrita hipertextual de um Michael Joyce, permanente desbravamento tecnológico,
parecem indicar inserção no âmbito de uma em irreprimível mutação, convidando-nos
forma literária válida, outras práticas não ul- a permanentes reavaliações.
trapassam o mero encantamento com os dis- A tonalidade didática aqui configurada,

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Marcelo Bulhões – Mídia e Literatura: tematizações, correlativos, conexões
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com o discernimento de três dimensões para ria é gestada no interior de dispositivos das
a avaliação da questão, talvez não sufoque atuais mídias. Ao mesmo tempo, a presença
reflexões diante do cenário da contempo- do hipertexto se por um lado significa uma
raneidade. E, como menção final: se, como busca experimental válida de soluções cria-
vimos, as relações entre mídia e literatura tivas, por outro parece redefinir o próprio
vão da tematização – em que muitas vezes a conceito de autor, uma vez que a natureza do
literatura condenou veementemente o midi- gênero impele à exacerbação da atuação do
ático – à presença das letras da literatura nas leitor, retirando do autor o papel exclusivo
graças tecnológicas contemporâneas, talvez de criador individual. Isso parece provocar
estejamos lidando com redefinições profun- um duro golpe em parâmetros que se con-
das, cujas consequências ainda nos sejam di- sagraram para a avaliação da literatura como
fíceis de divisar. Se há muito se dissolveu a fenômeno estético.
crença em uma literatura “pura”, elidida dos O que se avista por aí – e o que já se avis-
processos de mediação técnicos, e se para tou – demanda de nós um olhar tanto imune
muitos essa compreensão não implicou em à ingenuidade novidadeira quanto perme-
julgamento desfavorável, cumpre aos crí- ável à revisão de parâmetros consagrados.
ticos contemporâneos a valoração estética Não, não é tarefa fácil.
das manifestações em que a forma literá- (artigo recebido fev.2011/ aprovado nov.2011)

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