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Mídia e Literatura:
tematizações, correlativos, conexões
Marcelo Bulhões
Livre-docente (Unesp)
Professor de Pós-graduação em Comunicação da Unesp
E-mail: bulhões@faac.unesp.br
Introdução
engajamento político – o que não foi, cla- Outros casos, todavia – e eles não são
ro, exclusividade do século XX. Assim, não poucos –, tanto da produção literária brasi-
raramente o mundo dos meios de comuni- leira quanto internacional, poderão atenuar
cação ficou associado, na esfera do capitalis- a percepção de um tratamento conteudístico
mo ocidental, a tudo aquilo que a figura do adverso lançado ao midiático. Aliás, o qua-
intelectual-escritor, muitas vezes de extração dro da literatura mais recente demonstra
marxista, buscou combater. Portanto, tanto o uma forte tendência de abrandamento da
caminho de uma forma literária “pura”, dita “demonização” da cultura midiática. Já em
arte pela arte, rejeitou o midiático em nome fases anteriores, como no alto modernis-
do academicismo estético, quanto o seu re- mo, francas aproximações do literário com
vés, o engajamento político, o recusaria, em o midiático foram ensaiadas e produzidas
nome de conteúdos afinados com causas re- nos laboratórios formais das vanguardas. Ao
volucionárias. mesmo tempo em que estavam além da mera
Tal olhar condenatório ao midiático já tematização das mídias, tais posturas suge-
comparecia de modo nítido em obras do sécu- rem “afinidades eletivas” que estão longe da
lo XIX. No Brasil, por exemplo, um romance categórica condenação.
naturalista, Casa de Pensão, de 1883, de Aluí-
A busca de correlativos de linguagem
sio Azevedo, é trajetória de um protagonista
vitimizado pela reificação capitalista, tornado, Em uma segunda ocorrência flagram-se
no fim da narrativa, objeto de exploração de procedimentos do verbal literário em buscar
fait-divers jornalístico. No século XX, um olhar correlativos ou similitudes com o que, generi-
acusatório ao imperativo mercadológico da camente, chamaríamos de linguagens midiá-
mídia jornalística se estamparia na estreia lite- ticas. Aqui, o material literário incorpora, no
rária rumorosa de um Lima Barreto, com Re- discurso verbal impresso (em veículos como
cordações do Escrivão Isaías Caminha, de 1909. jornal e revista, mas sobretudo no formato
O teor memorialista-ficcional desse romance do livro), procedimentos afins a expedientes
“ressentido” se alia a um olhar desfavorável aos do plano da expressão que habita as mídias.
meandros de condução da imprensa jornalísti- Assim, a natureza verbal da literatura se pres-
ca brasileira. No mesmo caso brasileiro, alguns ta à elaboração de correlativos estéticos para
escritores, como Nelson Rodrigues no texto da as formas comunicativas midiáticas. Nesse
peça O Beijo no Asfalto – que estreou no Bra- caso, pois, o universo das mídias não é tema-
sil em 1961 –, não raramente põem o universo tizado ou tornado assunto da obra literária,
jornalístico-midiático em registro deplorável – mas busca-se apreendê-lo, de algum modo,
embora bem saibamos que a obra rodriguiana com a própria técnica literária. A represen-
mantém estreitas afinidades com a atividade tação artístico-literária constrói expedientes
jornalística. Em outro tom, Clarice Lispector, verbais que possuem destacada analogia com
em A Hora da Estrela, de 1977, flagra o univer- o campo midiático-tecnológico, buscando
so psicológico de sua protagonista, Macabéa, produzir, em sua textura verbal, configura-
em uma espécie de imaginário degradado nas ções de linguagem afins a gêneros, suportes
situações da personagem em audição radiofô- ou produtos midiáticos.
nica. E o que dizer de um João Antônio? Sua No caso brasileiro, tal postura pode ser
inserção na própria atividade midiática, como reconhecida, por exemplo, em escritores de
jornalista, parece ter-lhe servido para afiar fim do século XX e início do atual, como
um estilete apontado ao universo das mídias, Valêncio Xavier que, em O Mez da Grippe,
na contundência cortante do magistral conto de 1981, ou em Maciste no Inferno, de 1983,
Abraçado ao Meu Rancor, do livro homônimo, constrói o narrativo-literário acomodando-
lançado em 1986. o a um tratamento gráfico de explícita ex-
gusto de Campos, Décio Pignatari e outros) A literatura é chamada, então, não a re-
para a construção de um projeto em que definir sua natureza, mas a explorar recursos
estão inscritos tanto um Maiakovski quanto disponibilizados por suportes das mídias.
um Cummings – além de Joyce, Mallarmé, Assim, modifica-se a própria fruição do li-
Pound, Apollinaire – na laboração de uma terário. Pois se o processo de leitura nunca
poética cuja destituição da linearidade do possa ser considerado um ato passivo, o que
verso é caminho associativo ao técnico-mi- dizer da fruição diante de meios cuja razão de
ser depende da interação explícita do leitor-
interator? Nesse caso, a literatura é convoca-
O hipertexto se faz pela da a se expressar não mais em seu formato
superação do princípio tradicional de papel impresso. Tratando-se
de uma literatura que mobiliza modos ex-
organizativo sequencial,
pressivos constituídos pelo aparelhamento
pois nas configurações midiático, sua gênese se atrela às próprias
não estão exatamente ferramentas das mídias. Ela é, pois, acolhida
definidos os limites de pelos aparatos midiáticos para se manifestar
início, meio e fim com os recursos propiciados pelo compo-
nente técnico. Meios interativos e imersivos
possibilitam novos procedimentos de cons-
trução e fruição do verbal; as manifestações
diático. Assim, desde a insurgência do grupo poéticas e da prosa exploram graças tecnoló-
que se nomeou Noigandres, o procedimento gicas do computador.
de destituição da linearidade verbal no po- Tal ocorrência logo faz ver um horizon-
ema se fez com influxos das mídias visuais
te recente de desbravamentos tecnológicos,
na página do livro. A evolução de tal pro-
com a presença de espécimes nascidos in-
cesso levou, no fim das contas, à eliminação
condicionalmente pelo advento do compu-
do próprio signo verbal. De qualquer modo,
tador e da internet e, principalmente, com a
reconhece-se na gênese de tal “radicalidade”
constatação de que dispomos de meios e su-
poética a mesma atitude da matéria literária
portes promotores da chamada hipermídia,
de laborar expedientes formais correlativos
mais particularmente, do hipertexto.
às mídias.
Mas que não paire aqui a ingenuidade
novidadeira: na verdade, tal dimensão pode
Letras nas graças tecnológicas:
ser flagrada nesse nosso velho companheiro
conexões
de deleite literário, ou suporte, de brochu-
Finalmente, um terceiro modo de avaliar ra e folhas enfeixadas de papel, o livro, essa
a questão diz respeito à franca associação (velha?) mídia que tem privilegiadamente
entre a dimensão sensível – ou técnica – do acondicionado a expressão literária há mais
campo midiático e a forma literária. Nesse ou menos 500 anos. Embora muitas vezes
caso não se trata, como víamos há pouco, da esqueçamos – ou não enfatizemos – que o
escrita verbal lançar mão de artifícios asso- livro também é uma mídia, não se pode ne-
ciativos com meios, processos ou linguagens gligenciar que a literatura nem sempre este-
das mídias, tampouco se trata de assimila- ve inconsciente de que seus efeitos estéticos,
ção conteudística do mundo dos meios de sua fruição, não estão elididos da materiali-
comunicação. Nesta terceira ocorrência, a dade ou suportabilidade da brochura enca-
própria expressão literária e os formatos ou dernada. Pode valer o exemplo de Machado
suportes técnico-midiáticos estão inteira- de Assis ao compor, em Memórias Póstumas
mente conjugados. de Brás Cubas, de 1881, sinais, via metalin-
foi algo espacial. A aventura do leitor diante positivos técnicos. Em vez de propriamente
de uma obra – claro, na acepção moderna de literatura, salta certo élan ingênuo de des-
leitura silenciosa do texto impresso – signi- bravamento. Assim, em alguns casos, o que
fica o percorrer de signos fixados na página, tem sido considerado como literatura hiper-
em uma disposição espacial bidimensional. textual ou literatura das novas mídias passa a
E dificilmente se pode negar que a escrita léguas de distância do literário propriamente
literária esteve, em diversas épocas, de al- dito, ou seja, de uma configuração estetica-
gum modo ciente de sua condição gráfico- mente válida da linguagem verbal. Não rara-
espacial. Assim, ao contrário de retificar, o mente, ressoa apenas certo tom de promessa
hipertexto potencializaria a própria nature- de um devir de possibilidades expressivas
za espacial da experiência com a literatura e para uma “nova” literatura. Ou – menos que
com a escrita de um modo geral, tornando isso – a mera demonstração de virtudes piro-
mais dinâmica e mais ostensiva a exploração técnicas dos maquinismos.
visual dos signos.
Considerações finais
Se no caso da prosa, o hipertexto tem
franqueado a construção de uma arquite- A questão das relações entre mídia e o li-
tura narrativa aberta a distintos caminhos, teratura não constitui novidade. Pode-se ad-
em que o destino da história se multiplica mitir, todavia, que a partir do último século
em vários possíveis, na poesia as graças da ela adquiriu maior vulto entre estudiosos. Nas
hipermídia possibilitam um alargamento últimas décadas, o tema tem se apresentado
de expedientes formais como associações com certo ar de urgência, agitando-se inevi-
verbo-voco-visuais em espaço tridimensio- tavelmente com o advento das “novas mídias”.
nal, ou com “elos” que permitem ao signo Mas, mesmo antes, uma “midiatização do li-
poético abrir-se a outros signos. Trata-se, na terário” ou uma “literatura midiática” já fora
verdade, de expedientes que alardeiam tecni- tratada em nosso meio acadêmico, como no
camente processos estéticos apontadas pelas caso das relações entre a prática jornalísti-
poéticas modernas de final do século XIX e ca e gêneros literários como o romance, por
início do XX, de que o poema “Un Coup de exemplo, recebendo abordagens provenientes
Dés” (1897), de Mallarmé, há muito tem ser- do campo da comunicação e das letras, para
vido como emblema. A menção a Mallarmé ficarmos naqueles âmbitos em que ela estaria
evoca, ainda, a utopia que o poeta francês so- “por direito” acondicionada.
nhou em Le Livre, projeto de escrita permu- Aliás, a pertinência da questão e o mate-
tatória com outros livros, há algum tempo rial analítico que ela rende já fariam avistar
viável em nosso horizonte técnico. a possibilidade de um estudo de maior fôle-
No entanto, o mais acertado talvez seja go, como uma peculiar História das relações
afirmar que a conexão do literário ao cam- entre mídia e literatura, trabalho que, pelo
po técnico das “novas mídias” faz ver, mais menos no caso brasileiro, fica como um
do que a constituição de um novo cânone devir tão complexo quanto tentador. Mas,
estético, a própria atitude pesquisa, o labor com o que temos, o tratamento da questão
que busca desenvolver nas malhas dos apara- já tem se revestido de alguns matizes, ao
tos recentes uma forma esteticamente válida mesmo tempo em que desponta certa avi-
para uma leitura significativamente distinta. dez por novas formulações, dado o caráter
Se por um lado algumas realizações, como as expansivo do universo midiático, com seu
da escrita hipertextual de um Michael Joyce, permanente desbravamento tecnológico,
parecem indicar inserção no âmbito de uma em irreprimível mutação, convidando-nos
forma literária válida, outras práticas não ul- a permanentes reavaliações.
trapassam o mero encantamento com os dis- A tonalidade didática aqui configurada,
com o discernimento de três dimensões para ria é gestada no interior de dispositivos das
a avaliação da questão, talvez não sufoque atuais mídias. Ao mesmo tempo, a presença
reflexões diante do cenário da contempo- do hipertexto se por um lado significa uma
raneidade. E, como menção final: se, como busca experimental válida de soluções cria-
vimos, as relações entre mídia e literatura tivas, por outro parece redefinir o próprio
vão da tematização – em que muitas vezes a conceito de autor, uma vez que a natureza do
literatura condenou veementemente o midi- gênero impele à exacerbação da atuação do
ático – à presença das letras da literatura nas leitor, retirando do autor o papel exclusivo
graças tecnológicas contemporâneas, talvez de criador individual. Isso parece provocar
estejamos lidando com redefinições profun- um duro golpe em parâmetros que se con-
das, cujas consequências ainda nos sejam di- sagraram para a avaliação da literatura como
fíceis de divisar. Se há muito se dissolveu a fenômeno estético.
crença em uma literatura “pura”, elidida dos O que se avista por aí – e o que já se avis-
processos de mediação técnicos, e se para tou – demanda de nós um olhar tanto imune
muitos essa compreensão não implicou em à ingenuidade novidadeira quanto perme-
julgamento desfavorável, cumpre aos crí- ável à revisão de parâmetros consagrados.
ticos contemporâneos a valoração estética Não, não é tarefa fácil.
das manifestações em que a forma literá- (artigo recebido fev.2011/ aprovado nov.2011)
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