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1. Objectivos
Terá a realidade sociocultural, quadro de referência dos modelos que aqui nos
propomos discutir, mudado tão significativamente a ponto de tornar obsoletos os
sistemas teóricos provenientes do passado? Ou, num âmbito mais restrito, terá o
envolvimento estético dos nossos dias mudado tão significativamente que exija de nós
um modelo novo capaz de lhe corresponder satisfatoriamente?
Basta um relance panorâmico pela história da cultura no Ocidente (ou nem só a
do Ocidente...) para logo nos apercebermos de como o sistema das Belas-Artes, herdado
desde os Gregos, está hoje a sofrer a sua mais profunda remodelação de sempre, após ter
sobrevivido relativamente inalterável ao longo de mais de dois milénios. Isso explicará
que a questão estética tenha sido até agora uma questão pacífica e que a divisão clássica
das artes se tenha podido manter em vigor sem necessidade de grandes reajustamentos.
A própria linguagem corrente, impregnada até ao âmago por esse legado da Antiguidade,
continua a balizar nas palavras essas mesmas fronteiras tradicionais: por isso nós
continuamos a enumerar espontaneamente as artes numa série lexical de que fazem parte
a Arquitectura, a Escultura, a Pintura (aglutinadas no ramo das "artes plásticas" ou "artes
do espaço") e, num outro ramo (o das "artes rítmicas" ou "temporais") teríamos a
Música, a Dança e a Literatura (ficando o Teatro muitas vezes absorvido dentro desta
como um simples género literário).
Este modelo hexagonal, originado na tradição clássica, encontra-se hoje de tal
modo interiorizado na linguagem e nas próprias instituições (1) que por vezes se torna
difícil raciocinar fora de tais estereótipos. Contudo, este quadro empírico foi servindo
sem grandes polémicas ao longo de mais de vinte séculos, excepção feita para a área da
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Esta aglutinação das artes sobrevive ainda hoje de certo modo nas instituições consagradas entre nós ao ensino
artístico: as Escolas de Belas Artes para as artes plásticas (as artes matéricas de Hegel: arquitectura, escultura,
pintura – com exclusão da música); as Faculdades de Letras para as artes literárias (derivadas da Poesia no
sistema hegeliano – lírica, épica e dramática – bem como do Trívio medieval – gramática, retórica, dialéctica)
inseridas embora hoje numa perspectiva cultural mais ampla que engloba as línguas e a linguística como veículo
para a história das culturas nacionais ou das ciências sociais e humanas; os Conservatórios para as artes
performativas ou artes do espectáculo, as quais implicam normalmente a mediação da “interpretação” (são escolas
mais viradas para a formação do actor, do intérprete, do instrumentista, do executante - música, dança, teatro e
cinema). Mas estes são aspectos institucionais de uma divisão empírica das artes. Embora não deixe de
ser sintomática a tendência para hoje se concentrar o ensino superior artístico em Departamentos de
Comunicação e Artes, o que revela a apropriação do paradigma comunicacional por parte da actual
abordagem didáctica do fenómeno artístico.
3
2
Sobre as polémicas relações entre a Literatura e o Teatro, bem como sobre a relação entre o texto dramático e o
espectáculo teatral, abstemo-nos de as desenvolver aqui já que em um outro livro («Teoria do Teatro Moderno»,
Porto, Afrontamento, 1982) tivemos ocasião de deixar expresso o nosso próprio ponto de vista.
4
Foi no rasto desse quadro tradicional das Belas-Artes que quase todos os
sistemas classificatórios mantiveram artificialmente uma dicotomia entre artes do espaço
(as chamadas "artes plásticas" ou “artes matéricas”) e artes ditas do tempo (música,
literatura, dança, teatro, etc.). Mas a consistência de uma tal separação não tem qualquer
base sólida que a caucione: ninguém hoje defenderia a opinião de que o tempo não existe
na pintura, ainda que de uma forma petrificada num mero corte sincrónico; e que dizer
da importância do espaço no teatro, na dança, no cinema, ou mesmo na literatura, em
especial naquela vertente que vai de Sterne ou de Apollinaire até à poesia concreta? O
5
equívoco parece assentar numa análise deficiente das diferenças perceptivas entre signos
visuais e signos auditivos. Sobre este ponto parece-nos oportuno referir uma precisão
aduzida por Roman Jakobson que esclarece penetrantemente as razões de um tal
reducionismo: "Percepção visual e percepção auditiva têm ambas, evidentemente, lugar
no espaço e no tempo, mas a dimensão espacial tem prioridade para os signos visuais e a
dimensão temporal para os signos auditivos. Um signo visual complexo implica uma
série de constituintes simultâneos, enquanto um signo auditivo complexo se compõe de
constituintes seriais sucessivos" (3). É daí que vem a ilusão da diferença.
Revisitando outros sistemas classificatórios mais recentes, verificamos, contudo,
que quase todos eles pendem para uma demarcação das artes tomando como base de
referência os órgãos dos sentidos a que predominantemente se dirigem. São
classificações de pendor psicologístico, posicionadas no ângulo da recepção, e que
tendem a identificar o conceito de arte com o de estesia, quando não com o de pura
sensorialidade.
Cite-se, por exemplo, a classificação de Charles Lalo, com base na Psicologia da
Forma, que distinguia no sistema das Belas-Artes sete estruturas e superestruturas
específicas: 1) As estruturas da audição (música, evidentemente); 2) As estruturas da
visão (pintura, desenho, etc.); 3) As estruturas do movimento (bailado, danças
folclóricas, fogo de artifício, fontes artísticas, etc.); 4) Estruturas da acção (teatro,
cinema, desenho animado, ópera, etc.); 5) Estruturas técnicas da construção
(arquitectura, escultura, arte dos jardins, etc.); 6) Estruturas da linguagem (verso, prosa);
7) Estruturas da sensualidade (que vão da gastronomia à perfumaria, passando pela arte
de amar, do erotismo à pornografia).
Um outro exemplo semelhante, mas que introduz na origem uma distinção que
nos parece pertinente, é a classificação proposta por Raymond Bayer ( 4). Ele divide as
artes em dois grandes grupos: as artes conceptuais (artes da linguagem) e as artes
sensoriais (artes que afectam os sentidos e produzem sensações); estas últimas são
depois escalonadas em sete categorias, consoante os sentidos atingidos: a visão (pintura),
o tacto (escultura), o ouvido (música), o sentido cinestésico (artes do movimento), o
sentido do peso (arquitectura), o olfacto (perfumaria) e o paladar (culinária). Perguntar-
3
“Visual and auditory signs”, in Selected Writings II, citado por Patrice Pavis em «Problèmes de Sémiologie
Théâtrale», Montréal, 1976.
6
se-á, contudo: a poesia não se dirige também aos sentidos e não produz sensações? E o
cinema, o teatro, a banda-desenhada, que se servem da palavra tanto quanto da imagem,
não possuem por isso mesmo uma dimensão conceptual? E será legítimo meter no
mesmo saco (artes do movimento) manifestações estéticas tão diferenciadas como o
cinema, o teatro, o bailado, a escultura cinética, o guinhol?
Remontando à classificação de Charles Lalo, bastará considerar um exemplo,
como o da Ópera, para sentirmos como ela fica forçadamente espartilhada entre as
superestruturas da acção (entendida esta no sentido de acção dramática, isto é, como
contraponto de personagens, de actantes em conflito): isso desvaloriza tudo aquilo que a
ópera deve igualmente às formas perceptivas da audição, da visão, do movimento, do
espaço, da construção e mesmo da linguagem...
Uma outra classificação, como a de Maurice Nédoncelle, decalcada no polígono
dos cinco sentidos, não gozaria de melhor fortuna: incluindo nas artes táctilo-musculares
a dança e o desporto; nas artes do olhar a arquitectura, a escultura e a pintura; nas artes
do ouvido a música e a literatura; nas artes de síntese audiovisual o teatro e o cinema; e
relegando para o plano das artes sem dignidade estética as do paladar e do olfacto. A
fragilidade de um tal sistema apenas oferece a vantagem de conservar da linguagem
corrente e do senso comum o termo audiovisual aplicado hoje às tecnologias do cinema e
do vídeo. Mas o teatro poderá reduzir-se à componente audiovisual? E a literatura, na
sua forma escrita, será uma arte do ouvido?
Estes exemplos servem para pôr em evidência a inadequação dos modelos que
buscam uma base classificatória nos dispositivos sensoriais com que fruímos as artes. Até
porque hoje não tem qualquer cabimento continuarmos a identificar a actividade estética
com sensação, sentimento ou emotividade, na esteira do trinómio escolar que colocava a
Ciência na esfera da racionalidade, a Moral na esfera da acção e a Estética na esfera da
emoção.
Na arte contemporânea, e sem falarmos sequer na arte programada em
computador, não é a racionalidade a componente tantas vezes prioritária? E em toda a
estética da obra aberta, para não referirmos sequer o teatro de participação, não é a
própria acção uma componente essencial da obra de arte?
4
«Traité d’Esthétique», Paris, A. Colin, 1956 (apud T. Kowzan, «Littérature et Spectacle, Mouton», La Haye,
1975).
7
Etienne Souriau precisou bem que o que especificava um "género artístico" não
era a utilização de uma dada ordem de dados sensoriais, mas sim o papel funcional
hegemónico que aí assumia uma dada gama de qualidades sensíveis (qualia): não se
tratava pois de uma especificação de sensações mas sim de "qualidades diferenciais”.
Discriminando sete gamas de qualia (5) artisticamente utilizáveis, a saber, linhas (1),
volumes (2), cores (3), luminosidades (4), movimentos (5), sons articulados (6) e sons
musicais (7), Souriau concebeu um sistema circular das Belas-Artes dentro do qual, para
cada gama de qualidades sensíveis, distinguia ainda dois níveis: um nível primário para as
artes não-figurativas, isto é, simplesmente "apresentativas" (diríamos nós, não
referenciais) - como sejam o arabesco, a arquitectura, a pintura abstracta, a música, etc. -
e um nível secundário para as artes figurativas ou "representativas" (isto é, que se
transcendem para lá da pura manifestação fenomenal, instaurando um universo
referencial, real ou imaginário) - é o caso da fotografia, da pintura figurativa, da
literatura, do cinema, etc.
No conjunto, resulta o seguinte modelo circular:
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Qualia : entendemos aqui esta palavra no seu sentido mais directo de qualidades, ou propriedades das
coisas, tal como são percebidas pelos nossos sentidos. São pois aspectos qualitativos dos nossos estados
mentais, como as sensações cromáticas, o sabor do chocolate, o prazer e a dor. A observação de uma
mancha vermelha activa um padrão de disparos nervosos. Porque é que ocorre uma sensação subjectiva
tão intensa? E porquê esta sensação e não de azul? E até que ponto esta sensação é pessoal?
8
Claro que o engenho de um tal modelo circular estava mais na sua vocação para
captar a correspondência entre as artes do que as suas diferenças. Ele torna, com efeito,
visível como a posição de vizinhança sectorial entre poesia e música, por exemplo, as
vocaciona para aquela cooperação entre as duas que leva à canção, ou a proximidade
regional entre a literatura e o desenho, por outro lado, explica a sua freqüente
convivência no livro ilustrado.
Temos, porém de reconhecer que apesar da sua inegável coerência interna um tal
modelo não parece satisfazer aos dois objectivos que colocamos à partida: adequar-se
operatoriamente à realidade artística dos nossos dias e sintonizar-se com o modo como
hoje vivemos na multiplicidade das práticas estéticas, antigas e recentes. Por exemplo:
porque não é reservado um lugar autónomo ao teatro, encarado aí como "síntese" das
outras artes, quando hoje, sobretudo após a experiência redutora de um Grotowski, uma
tal definição aditiva de teatro não é sequer aceitável? E porque hão-de ser individuados
géneros artísticos tão pouco marcantes no nosso contexto cultural, como é o caso do
arabesco ou da prosódia pura? E como inserir aí, em paridade, o cinema sonoro, o
9
Como ponto de partida para uma outra forma de conceituar o actual sistema das
Belas-Artes parece-nos útil determos um pouco a atenção no fenómeno, hoje tão
corrente, das "adaptações". Se no passado podíamos colher apenas alguns exemplos de
"adaptações" de obras literárias ao teatro, hoje, mais do que nunca, a frequência e a
multiplicidade desta prática transmutadora tornou-a de todos nós familiar e bem típica
dos tempos que correm: a todo o momento deparamos com obras literárias ou peças
teatrais transpostas para o cinema, para a rádio ou para a televisão. E se este é o sentido
mais corrente das adaptações, não é raro também vermos hoje um filme reescrito sob a
forma de romance ou fixado em banda desenhada: fácil seria colhermos exemplos de
adaptações que percorrem, nos dois sentidos, a multiplicidade de quase todas as
combinatórias entre estas novas formas de expressão (romance vs cinema; teatro vs
cinema; teatro vs televisão; romance vs banda-desenhada; cinema vs fotonovela; etc.)
Vários géneros narrativos foram mesmo nascendo, destes cruzamentos híbridos, com
perfis peculiares: o radiodrama, a radionovela, o cine-romance, o telefilme, o
teledramático, a telenovela, são apenas alguns deles. É em banda desenhada ou em
seriados televisivos que os jovens de hoje tomam contacto com o universo romanesco de
«Os Miseráveis» de Vítor Hugo e é no cinema que os cidadãos apressados ficam a
conhecer a monumental história da «Guerra e Paz» de Leão Tolstoi. Autores há que
forjaram mesmo o grosso da sua obra sobre esta prática transpositiva, como foi o caso,
entre outros, do italiano Luigi Pirandello. Até obras aparentemente intransponíveis, com
o «Ulisses» de James Joyce, tão fechado na sua verbalidade inventiva, tiveram já as suas
versões, quer no teatro quer no cinema. E temos de reconhecer que em nenhum outro
tempo, como o nosso, este fenómeno da adaptação se tornou tão frequente e tão
característico.
10
É ele que, a nosso ver, está na base de uma necessidade de mudança do próprio
conceito de "arte". Se até aqui, como vimos, os teóricos buscavam esse conceito
prioritariamente na matéria de expressão utilizada, ou então na gama de sensações
activadas pela obra junto do fruidor, hoje, os caracteres distintivos para se demarcarem
entre si as várias "artes" levam-nos a considerá-las antes como linguagens ou práticas
discursivas capazes de intercambiarem, entre si, o conteúdo de uma mesma mensagem
(neste caso, a mesma “história”).
E esta parece-nos ser, de facto, a via mais operatória para um modelo sistemático
que se adeqüe ao envolvimento estético contemporâneo.
Em que consiste, pois, essa operação vulgarmente conhecida como "adaptação"?
Roman Jakobson, ao discernir vários níveis na tradução (tradução intralingual, fornecida
pelos dicionários unilingues, tradução interlingual, ou tradução propriamente dita, e
tradução intersemiótica ou transmutação (6) cunhou um termo que nos parece
apropriado: com efeito, se na tradução interlingual corrente (ao traduzir uma obra de
uma língua para outra) apenas se mudaria de código linguístico, na transposição
semiótica não é apenas o código que varia mas a própria natureza dos sinais utilizados
(na adaptação de um romance ao cinema, por exemplo, convertemos uma mensagem
expressa originariamente em signos linguísticos numa outra constituída por imagens
audiovisuais). Alargando um pouco o âmbito da noção jakobsiana, definiremos assim a
"adaptação" ou "transposição intersemiótica" como a conversão de uma mensagem em
práticas semióticas distintas.
Sem dúvida que quanto mais próximos estiverem os sistemas semióticos a
converter mais fácil se torna uma transposição e mais fiel ela pode ser ao modelo original
- o aforismo "traduttore traditore" é aqui mais pertinente do que nunca. Isso explica que
sejam tão frequentes as transposições de obras narrativas entre discursos estéticos que
incluam a dimensão temporal na estrutura da sua mensagem - literatura, cinema, teatro,
banda desenhada, rádio, televisão - já que a narratividade (a criação de uma “história”)
assenta sobre a seriação de acontecimentos no tempo.
Mais difícil de conceber, porém, já seria a transposição de uma escultura para
música, por exemplo, ou a conversão de uma melodia em literatura: uma tal transposição
acabaria sempre por ser mais uma "re-criação" a partir do mesmo tema, idéia, atmosfera
6
Cf. "Aspects linguistiques de la traduction", in «Essais de Linguistique Générale», Editions Minuit, Paris, 1963.
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5. A Arte e as artes
Considerar, contudo uma tal correspondência das artes não vem subestimar a
necessidade de as demarcarmos na sua individualidade, isto é, de as considerarmos na
sua autonomia estética. Apenas nos desvia para a discussão de um outro problema, que é
o de determinar quais são essas características gerais comuns a todas elas: por outras
palavras, aquilo que define uma mensagem como mensagem estética.
Designaremos assim sob o termo "artisticidade" (de preferência a "esteticidade",
que comporta uma conotação mais valorativa) aquilo que de comum percorre as várias
artes: esse ou esses elementos caracterizadores da Arte - questão que de momento se
situa fora do nosso propósito - é o que nos permite, mesmo empiricamente, distingui-la
contrastivamente de todas as outras actividades culturais. O simples senso comum sabe
distinguir, no interior da esfera cultural, a Arte da Ciência, da Técnica, da Filosofia, do
Direito, do Jogo ou do Desporto. Por esta óptica, a questão da artisticidade parece
deslocar-se mais para o plano do conteúdo; enquanto o problema da distinção das várias
"artes" parece situável prioritariamente no plano da expressão: entre uma fotografia
artística e o retrato pintado da mesma pessoa, é antes do mais a matéria de expressão
que difere.
Com efeito, como a possibilidade prática da transmutação semiótica implica, não
parece haver temas ou conteúdos que possamos dizer exclusivamente literários ou
cinematográficos ou pictóricos ou teatrais... Ou, na medida em que os haja, eles apenas
7
Cf. «Metamorfoses do Real: arte, imaginário e conhecimento estético», Afrontamento, Porto, 1993. Se
neste livro de estética geral se analisou a Arte como modalidade de conhecimento ou de apreensão
específica do real (gnosestesia), neste ensaio sobre o problema da “classificação das artes” abordamos as
diferentes linguagens através das quais a “gnosestesia” (ou cognição estética) se manifesta e comunica.
8
Sobre a “artisticidade” e a gnosestesia com que a definimos, apetecia-nos hoje ironizar e dizer o
seguinte: para uma minhoca (cega e surda) uma obra de arte, se fizesse sentido existir, seria de certeza
olfactiva ou táctil...
13
parecem derivar das condicionantes impostas pelos meios de expressão (pelos media)
que lhes são próprios, pelo que a possibilidade ou impossibilidade de transmutação lhes
servirá de teste probatório: se a escultura, ao contrário do teatro ou do cinema, por
exemplo, não explora tão insistentemente relações de conflito entre personagens, é
porque a própria matéria de expressão lhe cerceia a possibilidade de contar uma história,
desenvolvendo-a no tempo, pois que a dimensão temporal se encontra nela contraída ou
anulada às dimensões de um único instante. Falarmos de literariedade, cinematicidade,
teatralidade, plasticidade, musicalidade, etc., só parece ter cabimento se as estes
conceitos atribuirmos delimitações que tomem raiz na especificidade de cada um dos
"discursos estéticos" que os suportam, isto é, na especificidade dos seus “media”,
enquanto sistemas semióticos distintos entre si, mas capazes, todos eles, de veicularem a
artisticidade.
A questão que aqui nos ocupa não é pois a interrogação geral, sempre infindável
- o que é a Arte? - mas a interrogação mais particular: o que são as várias artes?
Postularemos, assim, que as diferentes artes são meios de comunicação distintos,
ou melhor, práticas semióticas distintas capazes de veicular uma mensagem estética. Os
efeitos que estas possam exercer sobre o plano do conteúdo são, quanto a nós,
reverberações derivadas do facto de que (como salientou McLuhan) o medium também é
mensagem; ou, numa outra perspectiva, são resultado da interdependência irredutível dos
dois planos: expressão e conteúdo.
6. Dois postulados
É sobre este quadro de idéias que se avança aqui um mapa sinóptico no qual se
traçam, esquematicamente, os perfis semióticos para cada uma das "práticas estéticas"
mais representativas hoje em dia. Não obstante a sua aparente prolixidade, um tal quadro
parece-nos possibilitar uma maior precisão no campo da reflexão estética e tem a
vantagem de permanecer em aberto a quaisquer outras modalidades discursivas que se
queiram referenciar, bem como a quaisquer novas práticas artísticas que venham
entretanto a surgir. Por outro lado, dado o múltiplo jogo combinatório que proporciona,
este modelo parece-nos dotado da flexibilidade bastante para que sejam definidas, nas
zonas de intersecção, todas e quaisquer sub-modalidades intermediárias menos
representativas e que, por isso mesmo, aqui não se enumeram.
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visuais
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imagem indicial
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filme,
luminusida som +
videocassete,
Cinema des palavra + ExT e’x t’
DVD
Artes áudio- (indícios) 2 indícios
L .T audiovisual ER Transmissão:
visuais
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Desenho Transmissão:
des palavra + (ExT = e’x t)
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+
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sons 3 Presencial
Dança L .T ícone audição, ExText
corpo (espectáculo)
tactilmuscular,
humano
ritual etc) ER
+
sons
8. Aparas
9
Para a distinção aqui feita entre “artisticidade”, “esteticidade” e “pragmaticidade”, permito-me remeter
para o livro «Metamorfoses do Real: arte, imaginário e conhecimento estético», onde a questão foi já
aflorada.
10
Confronte-se, a este respeito, a distinção estabelecida por Alain entre artes solitárias e artes
colectivas, bem como, numa outra perspectiva, a demarcação entre artes autográficas e artes
alográficas avançada por Gérard Genette em «L’Oeuvre de l’Art», 2 vols., Paris, Seuil, 1997, vol.1,
p.23.
18
11
Pedro Burmester, JL de 30/6/1999)
19
Sublinhe-se que o esquema aqui proposto não é definitivo, nem tão pouco
pretende ser exaustivo. Mesmo assim, quer-nos parecer que uma sistematização feita
nesta base se revela desde logo operatória - por exemplo, na análise das transformações
impostas a uma dada obra aquando da sua adaptação ou transposição de um discurso
para outro discurso diferente.
Claro que a presente tabela constitui um sistema aberto: nele se podem inserir
indefinidamente novos discursos estéticos à medida que o desenvolvimento tecnológico
os vai produzindo e a cultura individualizando. Mas nele também se podem considerar
todas as artes mistas ou práticas semióticas de intersecção (é o caso das chamadas
“instalações”, “performances”, etc.) para as quais é sempre possível traçar, caso a caso,
o respectivo perfil semiológico.
Muitas são as reflexões que a propósito deste modelo gostaríamos de
desenvolver e não poucos serão também os seus pontos controversos. Na
impossibilidade de o fazermos ao longo destas páginas, iremos restringir-nos a umas
tantas observações esparsas, abrangendo algumas das quadrículas horizontais e verticais.
9.1.1 Música
22
A não-referencialidade dos sinais musicais não implica que estes não desprendam
um significado, não possuam uma dimensão semântica; o que com isto sugerimos é o
facto de não ser possível fazer corresponder a um som, ou a uma frase musical, um
objecto preciso da realidade tal como acontece com uma palavra ou uma imagem visual.
A referencialidade musical, a existir, só numa extensão metafórica nos parece admissível,
pois ela parece ligar-se, quando muito, à esfera das emoções ou das estruturas abstractas
(como sejam as configurações matemáticas). Aliás, pelo seu carácter formalista e
marcadamente sintáctico, já a música tem sido chamada de “matemática das artes”.
Mesmo quando a música se quer descritiva, ou figurativa, como nas ambições realistas
de um Mussorgsky, podemos reparar que são os títulos e os subtítulos das peças,
expressos em palavras, que antes de mais nada nos induzem à vaga referencialidade dessa
música. Aliás, mesmo neste caso, não parece haver referência, mas tão-só um maior grau
de iconicidade, ou de analogia, entre os sons musicais e os ruídos próprios das cenas
evocadas (sinos de uma aldeia, o rodar lento de um carro de bois...): ora isto não passa
de um mero efeito de "harmonia imitativa" semelhante àquele que por vezes se detecta
no interior da própria linguagem poética, quando o som pretende imitar o significado.
Referencialidade, a bem dizer, só parece legítimo falar-se dela no caso específico
da música concreta: feita, como é, de ruídos, ou seja, de “indícios” emanados de objectos
concretos (sirenes de uma fábrica, alarme de ambulância, silvo do vento, rumor das
ondas do mar, etc.). A música é constituída por elementos distintivos, mas estas unidades
elementares (as “notas”) são assignificantes em si mesmas; só adquirem valores
expressivos quando inseridas num trecho musical.
9.1.2 Arquitectura
sinais de que era portadora: deste modo a rádio vai promover, não propriamente o
nascimento de "novas artes", mas sim de "géneros artísticos" próprios: caso do rádio-
drama ou da rádio-novela. A novidade destes géneros narrativos radiofónicos residiu
precisamente no hibridismo com que fundia elementos sonoros de vários outros
discursos estéticos. Mas ao revitalizar a dimensão oral da palavra literária, ou ao
associar-lhe a música e o ruído, temos de reconhecer que uma tal combinatória nem
sequer é específica da rádio, pois o disco, ou qualquer outro suporte sonoro, pode
cumprir do mesmo modo uma tal missão: e quantas das crianças que fomos não ouviram,
no gira-discos, a história do Capuchinho Vermelho?
Outrotanto poderíamos dizer a respeito da televisão, enquanto meio de
transmissão de imagens audiovisuais. Analisando o seu perfil semiológico, a linguagem
televisiva identifica-se quase inteiramente com a linguagem cinematográfica: só a
simultaneidade temporal na relação comunicativa instaurada (pormenor que adiante
retomaremos) é que lhe vai dar alguma especificidade, como acontece nos tão
proclamados "programas ao vivo" e nas "transmissões em directo". Também os géneros
narrativos a que dará origem - tele-teatro, telefilme, telenovela... - apenas comportam
como novidade um certo hibridismo estilístico, já que em nada se diferenciam
semioticamente do cinema. As experiências de seriados televisivos do tipo “Você
decide”, apenas resultam da acoplagem de um outro meio, como é o telefone, tirando
partido da transmissão em directo: isso permite plebiscitar o final pretendido pela
audiência, numa simples agulhagem dicotómica da narrativa, já que, é preciso não
esquecê-lo, os dois finais possíveis se encontravam pré-gravados, limitando-se o público
a uma escolha e não a uma verdadeira interferência no conteúdo da mensagem fílmica...
Importa sempre em casos como este distinguir o que é uma arte (enquanto
prática estética dotada de sinais específicos) e o que pertence ao domínio técnico do seu
suporte de registo ou de transmissão. Para o caso do cinema, se ele se constituiu como
linguagem autónoma, foi pela sua capacidade de registar a imagem em movimento (e
essa é que foi a sua inovação semiótica) – o facto de ser gravado em película, vídeo ou
disco digital tem a ver com o meio técnico de suporte, tal como o facto de ele ser
apresentado em ecrã ou num monitor de televisão ou de computador diz respeito ao
meio de transmissão utilizado – uma obra como Tempos Modernos, do Chaplin, é
sempre a mesma obra em qualquer das situações, como é óbvio.
25
Isto não nos deve, contudo, fazer esquecer uma propriedade fenomenológica do
cinema tão importante, ainda, no domínio do cinema de carácter científico: é que o
cinema manifestou-se também como uma espécie de telescópio temporal. Telescópio e
microscópio temporal capaz de contrair ou dilatar o movimento inobservável a olho nu:
o desabrochar de uma flor ou a morte de um condutor num acidente de automóvel.
Em suma: importa não confundir aqui dois níveis de análise: aquele, mais geral,
que visamos com o presente estudo e que tem a ver com uma "tipologia das artes"
enquanto práticas sígnicas dotadas de autonomia estética, e esse outro, quando falamos
em "radioteatro", "teleteatro" ou "telenovela", que se situa num outro nível, e que tem a
ver com o problema da "teoria dos géneros" (14).
A rádio e a televisão aparecem, de facto, com uma particularidade inovadora no
que respeita à situação de comunicação; no campo dos meios de difusão de massa
(relação: um/todos), elas particularizam-se pela transmissão em directo (E x T = e' x T) – o
que lhes granjeia uma relativa especificidade estitística. Mas o facto de terem dado
origem a novos géneros socialmente marcantes tem mais a ver com a sua força
institucional do que com a sua especificidade semiótica – o telefone (relação um/um),
por exemplo, que também teve as suas tentativas de aproveitamento estético (nos contos
ao telefone, Favole al telefono, de Gianni Rodari), não teria a mesma fortuna. (15)
Isto, porém, entra já no campo da sociologia da arte e da estética da recepção. A
este nível não são estranhas as condicionantes técnicas e sociais que, num dado momento
histórico, afectam as condições de produção das respectivas mensagens: é nesta
perspectiva que não podemos desligar um género literário tão em voga no século
passado, como foi o romance em folhetins, da eclosão da era da imprensa periódica e da
popularidade de que o jornal, então, gozava. Do mesmo modo, se queremos reflectir
comparativamente sobre os géneros cinematográficos e os géneros televisivos, por
exemplo, uma análise estilística não dispensará que se tenham em linha de conta
condicionantes tecnológicas, económicas e mesmo institucionais, que tão profundamente
têm marcado quer o cinema quer a televisão. Se a "telenovela", retomando para o
audiovisual a tradição do folhetim literário em episódios diários, se constituiu como um
género característico da televisão, tal não deriva de qualquer particularidade semiótica
14
Reservamos a discussão deste problema para uma outra oportunidade: “Liricidade e narratividade
como categorias estéticas gerais” (a publicar).
15
Salvo o caso, em extinção com a Internet, dos “telefones eróticos”.
26
mas sim das condições sociológicas que enquadram a própria instituição televisiva: a TV
entra em nossa casa, onde diariamente nos costumamos (ainda) encontrar à hora das
refeições, ao passo que seria bem difícil levar todas as noites os espectadores ao cinema
para verem um filme projectado ao longo de 365 episódios! É fundamentalmente por
isto, e não por razões de ordem puramente estética, que a "telenovela" se apresenta hoje
como um género narrativo caracteristicamente televisivo e não cinematográfico.
O mesmo tipo de reflexões se poderiam hoje fazer para a narrativa literária
“interactiva” surgida com a explosão da Internet e da Web-arte.
Por si mesmos, os media, quer sejam de registo ou de transmissão - livro, jornal,
disco, audiocassete, telefone, rádio, filme, videocassete. televisão, etc. -, não dão origem
a "artes" propriamente ditas: apenas as registam, transferem e difundem, consoante a
vocação tecnológica para que foram concebidos. A definição das artes, como vimos,
assenta as suas raízes na organização em sistema de um determinado tipo de sinais.
analógico VS digital
motivado VS arbitrário
natural VS convencional
É por isso que todos usamos no bilhete de identidade uma fotografia e não um
retrato pintado e muito menos uma caricatura: é que a fotografia, tal como a impressão
digital, constitui um indício individualizador da nossa pessoa física. Pela mesma razão os
jornais vêm carregados de fotografias como prova testemunhal dos factos noticiados.
Todavia, hoje, a imagem de síntese, produzida por computador, pode bem estar a
revolucionar ou a esbater todo este estado de coisas: não foi ainda há muitos dias que,
fazendo zapping na televisão, ficámos abismados com um documentário da BBC que
reconstituía, com perfeição cinematográfica, todo o ambiente de uma floresta jurássica
povoada de dinossauros – milhões de anos depois do desaparecimento desses seres, a
computação gráfica permitia-nos visualizar todo aquele período da história da Terra tal
qual os dados científicos o fazem supor...
Isto conduz à necessidade (salientada ainda por Umberto Eco no Trattato) de se
conceber o iconismo, não como uma delimitação estanque, mas como um conceito
susceptível de gradação contínua consoante o maior ou menor grau de analogia mantido
pela mensagem com a realidade designada: neste sentido poder-se-á dizer sempre que
uma fotografia é mais icónica do que uma pintura ou que o cinema é mais icónico do que
o desenho animado; ou ainda, cotejando estilos, que o estilo naturalista é mais icónico do
que o estilo romântico ou o estilo expressionista mais icônico do que o estilo cubista.
Estas precisões evitarão alguns equívocos na interpretação da correspondente
quadrícula.
numa "vivência estética" do que na mera "vidência" à qual se vinha resumindo o teatro
tradicional que acentuou, durante séculos, o lado meramente espectacular
(unidireccional). Todas as demais peculiaridades semióticas que definem a teatralidade
podem igualmente explicar-se pela situação de comunicação que lhe é própria: a pluri-
sensorialidade da mensagem (sensações audiovisuais, mas também tácteis, motrizes,
olfactivas, gustativas, térmicas e outras) numa activação plural de todos os sentidos,
propiciando, como lhe chamou Barthes, uma verdadeira "polifonia informacional"; e a
tridimensionalidade real dos seus signos possibilita, enfim, o envolvimento completo dos
espectadores no interior da mensagem, como sucede com o teatro ambiental, criando
uma variedade infinita de espaços cénicos envolventes (o espaço teatral encarado à
maneira da página em branco do poeta). É deste modo que pode ser criada uma
verdadeira vivência estética (16) - poder que só o teatro, e mais nenhuma arte, detém. ( 17)
Mesmo quando a televisão venha a adquirir uma autêntica bidireccionalidade
(videoconferência, vídeotelefone e futura televisão interactiva) ou mesmo a
tridimensionalidade (holográfica ou em tecnologia RV, já futurizável), a ligação mútua
das pessoas no eixo do tempo continua a conjugar-se, por definição, com a sua
separação no eixo do espaço: pode então surgir o diálogo e o contacto verbal, sonoro,
visual ou mental. Mas algum dia haverá a ilusão perfeita do contacto físico, táctil,
corpóreo?
Um sistema de videoconferência 3D, já hoje previsível, apenas poria dois amantes
em contacto audiovisual, verbal e psíquico: colocados frente a frente, poderiam despir-
se, exibir os seus corpos, trocar palavras amorosas, mas ficariam irremediavelmente
condenados à masturbação simultânea (esse é o equívoco sensacionalista do tão
proclamado “sexo virtual”). Só a relação teatral (entenda-se, em co-presença) lhes
facultaria o contacto físico, a relação sexual procriadora - enfim, o corpo-a-corpo de
uma relação humana na dimensão mais plena.
16 Cf. Pedro Barbosa, “Em prol de um teatro vivencial”, in «Letras & Letras», Porto, ano III, Nº 32,
Agosto 1990; e também “Considerações em prol de um teatro vivencial”, comunicação apresentada ao
11º Congresso da Associação Internacional de Críticos de Teatro, realizada na Fundação Gulbenkian,
Lisboa, 11-15 de Setembro de 1990, texto publicado no livro trilingue «O Teatro e a Interpelação do
Real» («Theatre: a Dialogue with Reality/Théâtre et Interpellation du Réel»), Lisboa, APCCT/Edições
Colibri, 1992, pp. 124-129.
17 Abstemo-nos de analisar aqui mais detalhadamente toda a questão da "teatralidade", bem como as
relações contrastivas entre teatro-cinema-televisão, porquanto tivemos já ocasião de o fazer num livro
anterior, atrás mencionado, «Teoria do Teatro Moderno».
32
Esse terá sido o sentido com que, nos idos anos setenta, Franck Jotterand
definiria provocatoriamente o teatro: «Un rapport sexuel entre la scène et la salle». ( 18)
É que só o Teatro permite a plena manifestação do ser vivo num espaço
multidimensional que, segundo a fórmula de Henri Prat (19), vem definido assim:
l3 . tn . em . is
INFORMAÇÃO
ENERGIA
18
Cf. Franck Jotterand, Le Nouveau Théâtre Américain, Paris, Seuil, 1970, p. 58.
19 Cf. Henri Prat, L'Espace Multidimensionnel, Presses de l’Université de Montréal, Canadá, 1971 ;
citado por Jean Cloutier em «A Era de Emerec», Lisboa, Instituto de Tecnologia Educativa (MEIC),
1975.
20
“Este hiper-espaço já não é concebido como sendo formado por pontos sem extensão (conforme
tradicionalmente nós representamos o espaço), nem por instantes sem duração (como concebemos
muitas vezes o tempo) mas sim por micro-hiper-volumes infinitesimais, englobando cada um energia-
matéria, informação, extensão, duração e manifestação de campos de força, formas diversas de um
mesmo campo unitário, podendo ser compreendidas como deformações desses hiper-volumes.” (Ibid, p.
226).
33
É também aqui que função prática e função estética se interseccionam (21) – mas
só quando um objecto é trasladado de um para o outro lado dessa fronteira, ou seja, do
mundo físico para o mundo simbólico, é que ele assume o estatuto artístico. É também
esta a razão pela qual o preço de uma obra de arte, em termos económicos, se rege mais
por um valor simbólico de ordem cultural do que pelo seu custo de produção (ignorem-
se aqui as aberrações da massificação e do consumismo).
É também por isso que se torna perversa e não faz sentido a questão «Para que
serve a obra de arte?», quando colocada ao mesmo nível de perguntas como «Para que
serve uma ponte?» ou «Para que serve uma garrafa?». É que a “utilidade” da Arte, ou
melhor, a sua função, situa-se ao nível da significação na esfera cultural (no mundo dos
bits) e não no mundo das coisas, que é a esfera da acção prática (o universo dos
átomos). É assim que as Bucólicas, de Virgílio, continuam a “significar”, a produzir
sentido, ou seja, a funcionar como obra poética, apesar do desgaste ou mesmo da morte
dos livros que lhes foram servindo de suporte. É assim que funcionam as imagens
materializadas na tela por Bosch ou as estruturas sonoras preservadas nas partituras por
Beethoven.
Em Arte estamos no reino dos sinais: imperam aqui as estruturas de informação,
não quaisquer estruturas de átomos vazias de sentido.
Hoje, cada vez mais os novos meios tecnológicos incorporam nas suas mensagens
diferentes sistemas sígnicos transferindo para o mesmo suporte digital diferentes
linguagens historicamente diferenciadas. O visual, o acústico e o verbal interpenetram-se
na forma de mensagens autónomas: os intermédia e os multimédia são disso exemplo,
consoante a tónica é colocada na síntese ou no somatório de linguagens. Tais
manifestações estéticas promovem o diálogo intersensorial, sinestésico, entre as várias
práticas semióticas: arte computacional, poesia concreta, videoarte, videotexto,
21
Permitimo-nos remeter aqui de novo para o nosso livro «Metamorfoses do Real: arte, imaginário e
conhecimento estético», onde a distinção entre objectos de uso prático, objectos estéticos e obras de arte
foi objecto de abordagem num enquadramento de teor cognitivista.
35
Faça-se, enfim, uma referência breve a esta nova tecnologia cujo princípio assenta
precisamente na manipulação de sinais: a informática. Uma das suas vertentes, próxima
da Inteligência Artificial, expande-se directamente sobre o domínio da criação artística:
da música às artes plásticas, do cinema à literatura. Porque não lhe abrimos então uma
rubrica entre as demais práticas estéticas novas?
Exactamente porque a "arte gerada por computador" não constitui, a nosso ver,
uma arte nova mas tão-só uma nova forma de produzir arte: o computador não manifesta
peculiaridades sígnicas que o individualizem como um discurso estético distinto dos
demais; limita-se a manipular, segundo modelos previamente programados, sinais
próprios das outras artes: linha, cores, imagens, palavras, sons.
22
Cf. Arlindo Machado, Máquina e Imaginário (o desafio das poéticas tecnológicas), 2ª edição, São
Paulo, Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP), 1996.
23
Cf. o site do Centro de Estudos sobre Texto Informático e Ciberliteratura:
http://www.ufp.pt/units/cetic/index.htm
36
1ª mensagem 2ª mensagem
Emissor Máquina Receptor
programa + dados produtos estéticos executados
24 «A Literatura Cibernética 1: autopoemas gerados por computador» - Porto, Edições Árvore, 1977; «A
Literatura Cibernética 2: um sintetizador de narrativas» - Porto, Edições Árvore, 1980; «Máquinas
Pensantes: aforismos gerados por computador» - Lisboa, Livros Horizonte, 1988; «Teoria do Homem
Sentado» (livro electrónico em disquete incluindo o gerador textual automático "Sintext"); em
colaboração com Abílio Cavalheiro - Porto, Edições Afrontamento, 1996; «O Motor Textual» (livro
electrónico infinito em CD-ROM, c/ colaboração de J. M Torres) - Porto, Edições UFP, 2001; «A
Ciberliteratura: criação literária e computador» - Lisboa, Edições Cosmos, 1996.
37
Em cada homem
há uma viagem para um planeta longínquo...
(J. Gomes Ferreira)
38
KOWZAN, Tadeusz - “Dans un système général des arts”. In Littérature et Spectacle, cit.,
pp. 11-78.
LAUFER, R. ; SCAVETTA, D. - Texte, Hypertexte, Hypermedia. Paris: P.U.F., 1992.
MOLES, Abraham - “Cybernétique et oeuvre d'art”. In Revue d'Esthétique, nº 2, 1965,
pp. 163-182; em inglês: in Progress in Biocybernetics, vol. 3, Amsterdam, Elsevier
Publishing Company, 1966, p. 21-40.
MOLES, Abraham - Teoria da Informação e Percepção Estética. Rio de Janeiro, Tempo
Brasileiro, 1969
MOLES, Abraham - Art et Ordinateur. Tournai, Casterman, 1971
PRAT, Henri - L 'Espace Multidimensionnel. Canadá, Presses de L'Université de
Montréal, 1971
REIS, Pedro – Poesia Concreta: uma prática intersemiótica. Porto, Edições UFP, 1998.
SOURIAU, Étienne - La Correspondance des Arts. Paris, Flammarion, 1969
Pedro Barbosa
«Delineamento de uma classificação semiótica das artes» -
publicado inicialmente na revista «Logos», Lisboa, Nº 4, Dezembro de 1985
e reformulado em:
«Pistas para uma tipologia semiótica das artes» - in «Da Semiótica» (Actas do II Colóquio
Luso-Brasileiro de Semiótica), Lisboa, Editorial Vega, 1988, pp. 51-74.