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André Bueno & Gustavo Durão

NOVOS OLHARES PARA OS ANTIGOS


Interpretações da Antiguidade
no Mundo Contemporâneo

Sobre Ontens
2018
2
Revista Sobre Ontens
Edição Especial

BUENO, André & DURÃO, Gustavo. Novos olhares para os


antigos: visões da antiguidade no mundo contemporâneo.
Rio de Janeiro: Edição Sobre Ontens, 2018.
ISBN: 978-85-65996-57-0
Disponível em: www.revistasobreontens.site

3
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ............................................................................ 7
Flávia Maria Schlee Eyler

AS ANÉKDOTA DE PROCÓPIO DE CESAREIA:


TESTEMUNHOS DA MUNDIVIDÊNDIA TARDO- TARDO -ANTIGA
.......................................................................................................... 21
Victor Villon

LEI, FAMÍLIA E CASAMENTO: O QUE OS ROMANOS TÊM


A NOS DIZER? .............................................................................. 71
Claudia Beltrão da Rosa

O GOVERNO E A ALMA: PLATÃO E HERÓTODO EM


DEBATE ........................................................................................ 105
Luiz Maurício Bentim da Rocha Menezes

LEITURA DE LEITURAS: O CORPO HOMÉRICO E A


DANÇA DE L'APRÈS-
L'APRÈS-MIDI D'UN FAUNE ............................. 147
Flávia Maria Schlee Eyler e Fabrício Schlee Eyler

A FEDRA DE EURÍPIDES: UMA ABORDAGEM


PSICANALÍTICA ......................................................................... 183
Patricia Horvat

POR QUE PRECISAMOS DE CHINA E ÍNDIA? ................... 223


André Bueno

4
POR UMA HISTÓRIA ANTIGA DA ÁFRICA:
AFROCENTRISMO E AS NOVAS PERSPECTIVAS DE
NARRAR A HISTÓRIA ............................................................... 267
Gustavo de Andrade Durão

HISTÓRIA, QUADRINHOS, ENSINO DE HISTÓRIA


ANTIGA: PANORAMA TEÓRICO-
TEÓRICO -METODOLÓGICO ....... 323
José Maria Gomes de Souza Neto e Luiz Henrique Bonifácio
Cordeiro

AS DUAS FACES DA MOEDA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A


NUMISMÁTICA ROMANA PARA AS PESQUISAS
HISTÓRICAS .............................................................................. 367
Carlos Eduardo da Costa Campos

KTEMA TE ES AEI: OS (DES) CAMINHOS DA HISTÓRIA DE


TUCÍDIDES NO SÉCULO XXI ................................................. 411
Maria Elizabeth Bueno de Godoy

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6
APRESENTAÇÃO

“Sem dúvida, depois de muitas tentativas, depois de ter


partido da África, o Homo Sapiens passou pelo Canal
de Suez. Bifurcou-se inicialmente rumo ao oeste da
Europa e ao leste da Ásia de onde se bifurcou pela
segunda vez para invadir a Austrália e ainda uma
terceira vez para chegar à América pelo estreito de
Behring completando, assim, sua primeira ocupação
do mundo. Poucas espécies se adaptaram a todos os
climas do globo como a sua própria espécie e a dos
mosquitos: Homo universalis. Foi a partir dele que
múltiplas e diversas culturas emergiram (...). Dos
contornos dos continentes ao clima, do céu noturno
aos pântanos dos deltas, das espécies vivas às culturas
humanas, destas aos indivíduos, não apareceu nunca
homogeneidade ou monotonia (SERRES, 2005:278).”

Escrever a apresentação deste livro é um exercício


desafiador. Exige, de saída, alguma capacidade de
articulação a partir de planos nunca frequentados. Neste
sentido, a reflexão de Michel Serres foi de grande
inspiração e generosidade. Ao colocar em cheque as
concepções da universalidade no mundo ocidental como
uma conquista imperialista que veio de certo grupo
particular, cheio de glória e poder de dominação, ele
abre novos caminhos de reflexão. Assim, ele busca

7
integrar os conhecimentos tradicionalmente encastelados
em uma concepção de natureza que é também cultura.
Neste caso, é o próprio universo que se torna o universal
e ultrapassa antigas duplicidades e antagonismos que
serviram de base para a formação do homem ocidental.
Para ele, “os homens não se tornam universais por si
mesmos, mas sim ao buscarem o testemunho das coisas
do mundo. A natureza universaliza as culturas
(SERRES. 2005: 280)”.
Este livro de História nos convida ao pensamento
em novas direções o que, de certo modo, sinaliza a
potencialidade narrativa que constitui nossa
humanidade. Diante da percepção de que há um mundo
que já não se submete ou se reduz a uma grande e única
narrativa, cujos traços esboçavam percursos comuns
inscritos em uma ideia de História Geral, é preciso
enfrentar a correção de rumos. No entanto, mais do que
respostas, tal “correção” deve elaborar perguntas a nós
mortais, sempre assombrados e perseguidos por nossa
finitude e imprevisibilidade. A escolha da Antiguidade e
sua problematização foi certeira, pois as categorias
características da expansão ultramarina que justificaram
a dominação colonial e imperialista não existiam, pelo
menos da mesma forma. Assim, através dessa
Antiguidade que se apresenta-nos diversos textos deste
livro podemos reavaliar as fronteiras que tomamos como

8
naturais tais como as da sexualidade, das famílias, dos
poderes, dos corpos e das sensibilidades, entre outras.
Como aponta Michel Serres1, no passado nossa
história era proveniente da vida, mas agora é a vida que
entra na história. Quando o universo como um todo
penetra no tempo, aparecem níveis e etapas da história
constituída por enredos fugazes que fazem com que o
próprio espaço apareça como um mosaico temporal feito
de tempos e ritmos diversos. Aqui, nós mortais, tecemos
diariamente as tramas que entrelaçam o efêmero com o
milenar, o lento com o fulminante. Nós, historiadores,
podemos apenas mostrar, pela narrativa, alguns traços
fugidios da fragilidade humana sobre uma tapeçaria
multimilenar na qual se cruzam em nós, os estudiosos
atuais, o não mais do passado e ainda não do futuro.
Nos trabalhos que compõem este livro
encontramos perguntas, incertezas e, sobretudo, o
reconhecimento de que uma escrita da história
eurocêntrica, que em grande medida justificou o
processo civilizatório ocidental, já não dá conta do
mundo que se expandiu na violência característica do
mesmo processo. Então, é urgente que não sejamos
1
Para o autor, os homens vivem atormentados, cegos e premidos por
circunstâncias histórico-culturais imemoriais e exatamente por não se
darem conta da dimensão transcendente das suas próprias
temporalidades e criações, eles sofrem. SERRES, Michel. O
Incandescente. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p. 130.
9
paralisados pela incomensurável grandeza que ora
percebemos com espanto. Sob o termo “globalização”
reconhecemos a rica existência da variabilidade cultural,
mas ao mesmo tempo a insuficiência de nossos
instrumentos interpretativos para dizer o mundo. Por
isso, este livro escrito por múltiplas mãos é também
fruto dos limites de nossa própria subjetividade. A
presença de vários autores é uma forma de relativizar a
soberania autoral sob a qual o conhecimento ocidental
reinava. Além do mais, junto com nosso espanto diante
da diversidade cultural, encontramos a possibilidade de
transcendermos nossas próprias temporalidades.
Assim, com Michel Serres2 retomamos um
aforismo de Heráclito que diz: “tudo vem a ser segundo
a necessidade e os seres conciliam-se através de
antagonismos; tudo tem alma e está repleto de
divindades”. Tal aforismo nos remete ao
questionamento da crença de que o espaço de
representação do mundo ocidental encontrava-se
semeado por alguns marcadores de tempo que nos
impediam de apostar na universalidade da expressão
heraclitiana. Se hoje a aceitamos é porque nossa
percepção passa a constatar uma superabundância do
tempo que nos permite a saída do espaço platônico da

2
SERRES, Michel. O Incandescente. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2005, p. 16-17.
10
velha caverna e nos aproximamos da angústia de Pascal
diante do silêncio infinito das extensões cósmicas. Nós,
de alguma forma vivemos no mundo aquilo que sucedia
à angústia pascaliana isto é, o maravilhamento de quem
flutua de corpo e alma numa duração em que ritmos e
distâncias proliferam de maneira quase infinita,
desafiando a intuição tanto na formação das coisas
quanto na brevidade do momento.
Sem esquecer a carga de violência inscrita na
condição humana e expressa historicamente de modos
diversos, como veremos em alguns trabalhos deste livro,
podemos também avaliar a potencialidade da escrita de
histórias. Ainda com Serres, e com este livro, há a
possibilidade de uma semente ser jogada no solo de um
possível humanismo capaz de nascer das críticas ao
etnocentrismo a aos lugares institucionais e acadêmicos.
Para tal, é urgente e necessário o respeito às categorias de
pensamento e convenções que dão sentido às
experiências de vida em outras culturas.
Em resposta ao convite deste livro, encontramos a
historicização do conceito de Antiguidade e seus limites
em debates que vieram redimir compreensões negativas
e redutoras sobre a época. No entanto, não podemos
garantir que uma verdade foi alcançada, mas somente
admirar a fugacidade de interesses que constantemente
põem em jogo as nossas certezas.

11
Neste caso os estudos sobre a obra de Procópio de
Cesareia, intitulada Anékdota, permitem a compreensão
da mudança cultural que se operou com o advento do
Cristianismo, sobretudo, com relação à conversão e sua
profissão de fé. Neste caso, enfatizamos os debates sobre
umaperiodização negativa que teimava em se solidificar
e destituir a força cultural do período em que a força dos
costumes que assegurara a ordem social dava lugar à
obediência a Deus. Tal questão não pode ser destituída
de valor, pois como o texto aponta, ali nascia uma
reordenação de percepçõeshumanas que dão início ao
lento movimento de interiorização. Categorias de espaço
e tempo são modificados e reordenam as crenças
humanas diante do mistério. Pecado, condenação,
confissão e salvação, entre outros, constituem a trama
que articula o mundo profano com o sagrado através do
advento de uma cultura universal cristã que se estende
sobre antigas e singulares comunidades locais.
O texto sobre a lei, a família e o casamento entre
romanos antigos indaga o que eles têm a nos dizer.
Através de uma bibliografia comentada e de um debate
historiográfico, temos acesso à considerações múltiplas
sobre o tema. Sua legislação, seus rituais, cerimônias, e a
situação das mulheres diante da força do paterfamilias e
da Pietas são exercícios de alteridade. Neste caso, é
importante ressaltar, com o texto, que a análise dos

12
corpora de leis romanas nos mostra juristas que
avaliavam e revisavam frequentemente suas concepções e
regras com base do que de fato ocorria na sociedade.
Porém os fatos eram percebidos, não em si mesmos, mas
a partir da performance social. Assim, as respostas à
pergunta do título do trabalho chegam até nós como um
alerta que vale a pena ser considerado.
No trabalho intitulado “O Governo e a Alma”
encontramos Platão e Heródoto em cena com a
discussão sobre formas ideais de governo. Entre o
governo de muitos, de poucos ou de um, qual seria o
melhor? Estaria esse governo relacionado com a alma de
quem governa ou com o logos do governante? O melhor
governo seria o do melhor homem? Seria possível evitar
que um monarca se transformasse em um tirano? Com
essas e outras questões, o texto nos incita a pensar sobre
a isonomia como aquilo que constrói nos muitos
(homens) a unidade de todos. A atualidade de tal
questão é inegável quando assumimos para nossos
estudos e sua recepção a luta contra a devastação que
uma ignorância do passado pode causar.
O texto que apresenta a especificidade do corpo
em Homero pode causar estranhamento, mas é através
da arte que somos capazes de perceber nossa própria
alteridade. Quando as epopeias homéricas nos mostram
um corpo absolutamente estruturado como partes

13
sempre em movimento, imaginamos tal corpo a partir
de nossa visão já naturalizada de um corpo que se divide
em cabeça tronco, membros e possui órgãos vitais.
Pensamos o corpo também como um lugar de cisão
entre o subjetivo e o objetivo. Porém quando a dança, a
música e o enredo dos mitos e epopeias são encenadas,
como no L’après-midi d’um faune, algo acontece “como
se” houvesse apenas a experiência e não mais a
interpretação e essa é a magia da arte em sentido amplo.
As tramas do Fedro de Eurípides, indicam a
potência de atualidade das tragédias. Ao operarem no
campo das significações, as tragédias inserem seus
espectadores na linguagem ao provocarem a magia da
identificação afetiva nos conflitos políticos. A lei, o
destino e o desejo são problematizados e confrontados
diante das determinações do ethos político. A mulher
aparece e nos indaga sobre sua alteridade radical como a
loucura, o aniquilamento, e o engano. Há assim, uma
frutífera possibilidade de pensamento com a
aproximação entre história e psicanálise. Em se tratando
da antiguidade, há uma potência ainda pouco explorada
na medicina hipocrática que opera com um corpo no
qual logos e pathos se relacionam a conceitos que não
são de ordem subjetiva. Neste caso, como o texto
aponta, a tradição como uma ação retórica é capaz de

14
inserir os espectadores na linguagem por meio de uma
identificação afetiva que é política.
Mas em “Por que precisamos de China e Índia?”
encontramos, via Gilberto Freire, a presença oriental em
terras brasileiras. “Modos de viver, de trajar e de
transportar-se que não podem ter deixado de afetar os
modos de pensar (...) [e que] Só o vigor do capitalismo
industrial britânico na sua necessidade às vezes sôfrega
de mercados (...) conseguiria acinzentar (...)”. (Gilberto
Freyre. Sobrados e Mucambos, 1936, cap. 9).
Acreditamos que essa pequena citação, entre outras,
deva justificar nossas inquietações acadêmicas e
institucionais sobre a quase invisibilidade os estudos
orientais em nossa pauta acadêmica. Somente através
deles, o mundo ocidental pode mirar sua própria face o
que exige coragem e aceitação. Talvez os estudos da
antiguidade sejam os mais capazes de nos levarem para
além das polaridades que construímos em torno das
noções de corpo e alma, espírito e matéria, dentro e fora,
natureza e cultura dentre tantos outros.
No mesmo tom e sentido, compreendemos o
estudo de “Por uma História Antiga da África:
Afrocentrismo e as novas perspectivas de narrar a
História”. Aqui encontramos uma complexa reflexão
sobre toda uma história que foi narrada a partir de
categorias europeias e que, por isso, jamais atingiu

15
muitos aspectos da organização de sociedades asiáticas e
africanas. Tal redução fica ainda mais evidente quando
as interrogações se dirigem para épocas anteriores à
dominação europeia nos continentes africano e asiático.
Através de análises do pensamento afrocentrista (que vai
de Martin Bernal à Paulin Hountondji) o autor busca
mostrar um debate no qual propõe apresentar novas
narrativas históricas, colocando em cheque a
excepcionalidade da cultura europeia e a historicidade de
suas categorias que nós naturalizamos.
Com “História, quadrinhos, ensino de história
antiga: panorama teórico-metodológico” encontramos o
mapa da mina, pois apenas reconhecer as limitações do
mundo ocidental em nada modificaria a centralidade da
cultura ocidental nos estudos históricos. Deste modo,
sua reflexão ultrapassa os muros acadêmicos e se oferece
para crianças e jovens. Através da possibilidade lúdica de
se viver a vida “como se” fosse outra, podemos
experimentar facetas da vida que podem enriquecer
nossa humanidade. Certamente, a fragilidade dos
homens e a percepção da mortalidade são comuns à
espécie humana. No entanto, somente os homens,
dotados de instintos insuficientes para a sobrevivência,
precisam construir um mundo que minimamente
preserve a espécie. Como não há uma fórmula exclusiva
e fechada para essa sobrevivência, encontramos infinitas

16
possibilidades e a elas chamamos - ou deveríamos
chamar - de “cultura”. Através da História Antiga no
modo de apresentação elaborado neste texto,
vislumbramos uma urgente vivência da alteridade que os
jogos realizam.
O texto intitulado “As duas faces da moeda:
considerações sobre a numismática romana para
pesquisas históricas” nos convida a pensar o lugar, a
produção, a circulação e, sobretudo, a moeda como
símbolo e linguagem capaz de conduzir valores que, de
certa forma, nos trazem a perenidade da organização
cívica romana. Através das moedas acompanhamos fases
e tensões que marcam épocas distintas da sua história.
Elas nos dizem das trocas entre povos e cidades, da paz e
da guerra, do direito e da religião e, em Roma,
constituem um importante dispositivo de enraizamento
social e político que sustenta o potestase a auctoritas.
Enfatizamos que os estudos da numismática abrem um
caminho para o diálogo com outras áreas do saber tais
como a epigrafia, a filologia, a heráldica, a arte e a
metalurgia. Neste caso, é a própria história que
ganhapois, a dimensão do humano vai além das
circunscrições definidas.
Com “Ktema te es aei, os (des) caminhos da
História de Tucídides no século XXI” este livro chega ao
seu final. Na verdade, em nossa leitura, não há um final,

17
mas sempre recomeços. O “caráter análogo ou
semelhante” ao humano que Tucídides lança do passado
para o futuro chega até nós como exigência de reflexão e
tomada de atitudes. Ao ser amparado pelo corpus grego
em suas traduções, a obra tucidideana ganha fôlego para
o entendimento do mundo e, desde que seus leitores
assumam a abertura de sua narrativa, o “tesouro” pode
se mostrar para quem desejar vê-lo. Desde que haja
“leitores”, os mistérios da vida e da morte se oferecem
através de Tucídides. Com ele, as forças da construção e
previsibilidade tramam um fino véu diante da inevitável
corrosão e imprevisibilidade daquilo os mortais
nomeiam como destino.
Para encerrar esta apresentação retomamos a
questão do desafio diante de um mundo cuja
compreensão nos parece escapar. Neste caso, precisamos
de uma nova carteira de identidade que, retomando
Michel Serres3, seria a mescla dos múltiplos e diversos
pertencimentos que a vida encontra, experimenta e
inventa; num espaço bem diferente daquele em que a
uniformidade favorece a guerra entre as culturas, um
indivíduo ou grupo combinam as influências em
distâncias e tempos imprevisíveis. Tais representações
definem os limites das singularidades e/ou das

3
SERRES, Michel. O Incandescente Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2005, p. 129.
18
coletividades e aqui se coloca mais claramente o grande
desafio que é descrever de modo positivo essa carteira de
identidade e esse espaço para um humanismo comum
no qual a universalidade não signifique jamais um
imperialismo.

Professora Dra. Flávia Maria Schlee Eyler


Professora de História Antiga e Medieval – PUC-Rio

19
20
AS ANÉKDOTA DE PROCÓPIO DE
CESAREIA: TESTEMUNHOS DA
MUNDIVIDÊNDIA TARDO-
TARDO- ANTIGA 4
Victor Villon5

O peso da violência, o medo do sexo e da morte


criavam em todos uma culpa surda. Remetiam então às
relações pessoais com o sagrado. A relação individual
com a esfera divina torna-se, com efeito, proeminente
quando o cristianismo triunfa sobre o paganismo. A
intimidade e a interioridade transformam-se em
categorias mentais de conteúdo novo. O sagrado pagão
— nas mãos da Igreja —, a escritura, o clero e o
escriba tornam-se agentes fundamentais desses novos
comportamentos interiores e mediadores entre o
homem e Deus, portadores ou reveladores dos segredos
de cada um numa ambiguidade pesada de contínuos
questionamentos.
Michel Rouche6

4
Este capítulo, com algumas alterações, foi redigido originalmente para
a tese de doutorado intitulada: A História em Desconcerto: as Anékdota
de Procópio de Cesareia e a Antiguidade Tardia, defendida no
Programa de pós-graduação da PUC-Rio (agosto de 2014), sob
orientação da Profa. Dra. Flavia Schlee Eyler.
5
É mestre e doutor em História Social da Cultura pela PUC-Rio.
6
ROUCHE, Michel: “Alta Idade Média” in História da Vida Privada.
2010. Tradução: Hildegard Feist. p.503
21
Antes de abordarmos diretamente as Anékdota do
historiador Procópio de Cesareia e como estas podem ser
lidas como um testemunho da mundividência tardo-
antiga, é interessante, senão necessário, abordarmos o
que se entende por Antiguidade Tardia, assim como
fornecermos alguns subsídios mais específicos para
situarmos o historiador e sua obra em seu tempo, a tal
propósito visam os dois primeiros subcapítulos que
podem ser considerados como uma introdução à nossa
questão. É nos subcapítulos seguintes que teceremos a
nossa análise propriamente dita, demonstrando como as
Anékdota apresentam diversos elementos reveladores de
traços maiores que perpassam a Antiguidade Tardia
diferenciando-a do período Antigo, traços esses que
mesclam às formas de continuidade, rupturas de sentido
mais explícito, sobretudo, no que se refere à maneira de
apreensão do sagrado.

O Conceito de Antiguidade Tardia


Não é nosso intuito definir o conceito de Antiguidade
Tardia, tampouco exaurir o mais do que vasto debate
historiográfico que se vem construindo em torno desse
conceito, podemos dizer que nosso propósito é esboçar
as linhas gerais que incidiram para a gestação desse
conceito.

22
O conceito de Antiguidade Tardia relaciona-se
indiretamente àquela de Idade-Média. A visão da Idade-
Média como um período de estagnação e decadência,
entre um passado clássico Greco-romano glorioso e um
Renascimento, traz, por conseguinte, a imagem dos
estertores da Antiguidade. O prenúncio da Idade-Média
seria o Baixo Império, esse período crepuscular em que o
mundo Greco-romano entraria em franca decadência,
prenúncio da “grande noite” medieval. A visão
estereotipada incide não somente sobre a Idade-Média,
mas igualmente sobre o período que imediatamente a
precedeu.
O conceito de Antiguidade Tardia vem
justamente dar voz - se assim podemos dizer - a esse
próprio período, deixando de vê-lo como o fim dos
tempos gloriosos e o início das “trevas”. Se tal sentido de
valorização ou, pelo menos, de não depreciação é um
traço comum a praticamente todos os autores que
fizeram uso explícito do conceito, o mesmo não pode ser
dito a respeito do consenso sobre o início e o término do
período em questão. Para a historiadora inglesa Averil
Cameron, o período em questão inicia-se com a morte
do Imperador Teodósio I em 395, ficando o Império
Romano dividido entre seus dois filhos: o Oriente sob o
domínio de Arcádio e o Ocidente sob o de Honório.
Cameron justifica essa opção, relacionando-a à situação

23
de definitiva ruptura política e administrativa que daí
adveio entre as regiões ocidentais e orientais do Império:

A partir desse momento, o império romano ficou


definitivamente dividido para efeitos administrativos
em duas metades, que, à medida que foi aumentando a
pressão dos bárbaros sobre as fronteiras no correr do
século V, começaram a reagir de maneira
significativamente distinta. O ano de 395 constitui,
pois, um autêntico momento crucial na definitiva
separação do Oriente e do Ocidente7. (A tradução é
nossa)

Já para o historiador italiano Andrea Giardina a


Antiquidade Tardia iria aproximadamente de 284 até
455, podendo estender-se, no máximo, até o século VI.8
No que concerne, mais especificamente, à utilização do
conceito, segundo Lançon, a primeira menção do termo
é a que foi feita por Burckhadt, em 1853, no seu Die

7
“A partir de esse momento, el imperio romano quedó definitivamente
dividido a efectos administrativos em dos mitades, que, a medida que
fue aumentando la presión de los bárbaros sobre las fronteras a lo largo
del siglo V, empezaron a reaccionar de manera significativamente
distinta. El aão 395 constituye, pues, un auténtico momento crucial en
la definitiva separación de Oriente y Occidente”
8
Giardina, Andrea: Esplosione di Tardoantico. Studi Storici 40, 157-
180 apud: Piacente, Daniele Vittorio: Dall’ “Epiclassico” di Franz
Wieacker al “Esplosione di Tardo Antico” di Andrea Giardina. Atudia
Antiqua e Arquelogica 21 (2), p. 240
24
Zeit Constantins des Großen (O Tempo de
Constantino o grande), quando o utiliza como um
adjetivo para qualificar a palavra zeit (tempo),
“spätantike Zeit”, “tempo tardo-antigo”. Citemos ainda,
no que concerne à caracterização do período, o
historiador alemão Otto Seeck que apresentou “[...] uma
visão mais pessimista da Antiguidade Tardia”9 e o
célebre historiador francês Fustel de Coulanges que
defendeu o que para a época era algo novo, isto é: “[...]
uma continuidade romana além de 476”10.
Mas abordar a genealogia do conceito de
Antiguidade Tardia é obrigatoriamente mencionar o
nome de Alois Riegel11, esse historiador da arte que
nasceu e viveu, na segunda metade do século XIX, no
efervescente contexto cultural do Império Austro-
Húngaro. Riegel, no seu Spätrömische Kunstindustrie
nach dem Funden in Osterreich, (A Indústria da arte
tardo-romana segundo os achados na Áustria), em
resposta aos que acusavam a arte tardo-romana como
detentora de uma técnica rudimentar, defende o
argumento de que os artistas desse período estariam
preocupados em transmitir a transcendência e o

9
Lançon: L’Antiquité Tardive, 1997 p.10
10
Idem
11
(1858-1905)
25
conteúdo, mais do que elaborar uma representação
fidedigna da natureza conforme os padrões clássicos12.
No entanto, o marco para a consolidação do
termo veio com a obra de Henri- Irenée Marrou. Logo
no começo de Decadência Romana e Antiguidade
Tardia, explicita o seu propósito:

Deixemos de lado no momento os aspectos


propriamente “decadentes” que resultam nos golpes
das invasões bárbaras. É preciso que o termo
“antiguidade tardia” receba enfim uma conotação
positiva ― como, lembramos, aconteceu com a “Idade
Média”―; mas pode-se dizer que a expressão entrou
verdadeiramente no uso corrente? Em francês (como
seus equivalentes em italiano e inglês), ela conserva
ainda alguma coisa de esotérico; só o alemão, mais
plástico, parece ter recebido melhor aquele de
Spätantike. Seria preciso finalmente consentir em
admitir que a antiguidade tardia não é somente a
última fase de um desenvolvimento contínuo; é uma
outra antiguidade, uma outra civilização, que é preciso
aprender a reconhecer na sua originalidade e a julgar
por ela mesma não através dos cânones das épocas
anteriores.13 (A tradução é nossa)

12
CARRIÉ, Jean-Michel: Elitismo cultural e ‘democratização da
cultura’ no Império Romano Tardio in História. Trad. Deivid Valério
Gaia. 2010, vol.29, n.1, p.p. 456-474.
13
« Laissons pour le moment de côté les aspects proprement
« décadents» qui résultent dans le monde occidental des contrecoups des
26
É importante mencionar os trabalhos provenientes do
mundo anglo-saxão que adotaram explicitamente o
conceito de late antiquity, pois foi, em grande parte, a
partir desse espaço linguístico que o termo se afirmou.
Assim, devemos mencionar especialmente os trabalhos
fundadores para a delimitação do conceito do
historiador irlandês Peter Brown: The World of Late
Antiquity: AD 150-750 de 1971, The Making of Late
Antiquity de 1978; Society & the Holy in Late
Antiquity de 1982. Segundo Oliveira, Brown fundou
uma verdadeira escola historiográfica que defende a
visão de uma:

[...] Antiguidade Tardia como um período distinto na


história do Mediterrâneo, durante o qual um mundo
novo e extraordinariamente criativo se desenvolvera a
partir de uma dupla revolução, social e espiritual. Esse

invasions barbares ; il faudrait que le terme ‘antiquité tradive’ reçoive


enfin une connotation positive ― comme, on l’a rappelé, il est arrivé
pour ‘moyen âge’ ― ; mais peut-on dire que l’expression soit
véritablement entrée dans l’usage courant ? En français (comme ses
équivalent italien ou anglais), elle conserve encore quelque chose
d’ésoterique ; seul l’aalmeand, plus palstique, semble avoir fait meilleur
accueil à celle de Spätantike. Il faudrait enfin consentir à admettre que
l’antiquité tardive n’est pas seulement l’ultime phase d’un
développement continu ; c’est une autre antiquité, une autre
civilisation, qu’il faut apprendre à reconnaître dans son originalité et a
juger pour elle-même et non à travers les canons des âges antérieurs. »
Marrou: Décadence romaine ou Antiquité tardive ? p.12 e 13
27
bloco temporal extenso, que iria, em princípio, dos
últimos decênios do século II até o século VIII, é
caracterizado, antes de tudo, pela lenta passagem de
uma mentalidade identitária cívica a uma mentalidade
identitária religiosa. Privilegiando a história cultural e
religiosa em suas dimensões sociais e mentais, Brown,
seus colegas e discípulos, têm insistido na importância
das transformações lentas para a definição do período:
trata-se, sobretudo, de analisar o impacto das religiões
emergentes (o cristianismo e o islamismo) sobre as
concepções e os comportamentos pessoais e coletivos.
Nessa perspectiva, as mudanças políticas, como a
queda do Império do Ocidente e a conquista árabe, são
minimizadas e as fronteiras da Antiguidade Tardia são
progressivamente alargadas para abarcar, segundo
alguns autores, até o século X 14.

Outra importante contribuição proveniente do mundo


de expressão anglo-saxã são os trabalhos da já citada
historiadora inglesa Avril Cameron especialista na obra
de Procópio de Cesareia: The Mediterranean World in
Late Antiquity, AD 395-600; Dialoguing in Late
Antiquity de 2014. E ainda o volume XIV da coleção
The Cambridge Ancient History organizado por Averil
Cameron, Bryan Ward-Perkins, Michael Whitby,

14
Oliveira, Julio Cesar Magalhães de: O Conceito de Antiguidade
Tardia e as Transformações da cidade antiga: o caso da áfrica do norte.
Revista de Estudos Filosóficos e Históricos da Antiguidade.
28
intitulado: Late Antiquity: Empires and Successors, AD
425-600.
Atualmente, o termo Antiguidade Tardia é
utilizado como uma forma de ressaltar as idiossincrasias
desse período que ― ainda que de contornos
cronológicos indefinidos, visto a falta de consenso entre
os autores ― se afigura com características que o
diferenciam tanto da Antiguidade como da Idade-
Média. Tempo fincado no passado, mas ao mesmo
tempo de novas e drásticas reinterpretações desse mesmo
passado. É justamente nessa transição que encontramos
o específico da sua temporalidade histórica, como
resume Lançon:

A concepção tenebrosa de um Baixo-Império Romano


decadente e de uma pré Idade-Média bárbara
substitui-se hoje em dia pela noção de Antiguidade
Tardia. Esse período de quatro séculos não foi em
nada aquele de um desabamento. Ele viu delinear-se
progressivamente profundas mutações. Essa época,
ainda há pouco reputada de obscura, não foi uma volta
às nostalgias medrosas, mas sim a abertura em direção
do futuro graças ao domínio de um passado mais do
que milenar.15

15
“A la conception ténébreuse d’un Bas-Empire romain décadent et
d’un pré-Moyen âge barbare se substitue donc aujourd’hui la notion
d’Antiquité Tardive. Cette période de quatre siècles ne fut en rien celle
d’un écroulement. Elle vit se dessiner progressivement de profondes
29
Procópio de Cesareia
A obra de Procópio de Cesareia é considerada como
uma das principais fontes para o conhecimento do
reinado de Justiniano16, esse imperador que entrou para
a História não só pelo trabalho legislativo que ordenou
que fosse empreendido, nascendo assim o Corpus Iuris
Civilis, mas também por tentar recompor a parte
perdida do Império Romano. O nome de Procópio de
Cesareia liga-se intimamente a essa tentativa de
reconquista bélica, sobretudo, da parte ocidental do
Império Romano, visto ter o historiador presenciado
muitas dessas batalhas na qualidade de assessor do
general Belizário e resultar dessa experiência os seus três
livros: Seguramente, essa é a parte da obra de Procópio
de Cesareia que foi mais estudada, visto ser uma
narrativa que se enquadra nos parâmetros da
historiografia clássica, basta lembrar que estamos diante
de uma obra que narra os feitos políticos e militares e é

mutations. Cet âge, naguère réputé obscur, ne fut pas celui du repli sur
frileuses nostalgies, mais celui de l’ouverture vers l’avenir grâce à la
maîtrise d’un passé plus que millénaire.” Lançon, Bertrand: L’Antiquité
Tardive.1997 p.117
16
Justiniano nasceu em 482 em Tauresium, vilarejo da província da
Dardania. O local atualmente é próximo da cidade de Skopoje capital
da Macedônia. Justiniano ascendeu ao trono como sucessor de seu tio o
Imperador Justino, tornando-se imperador de 527 até 565 quando
faleceu.
30
escrita por alguém que os viveu em grande parte,
observação que nos traz imediatamente à mente a figura
dos pais fundacionais: Heródoto, e mais especialmente
Tucídides.
No entanto, a obra mais polêmica de Procópio de
Cesareia é sem dúvida as Anékdota ou História Secreta.
Esse livro, como o próprio nome pelo qual ficou
conhecido já nos indica, não só não foi publicado em
vida do autor, mas também foi dado como perdido até o
ano de 1625, quando Niccoló Alemanni publicou o
manuscrito que achara na biblioteca Vaticana.
Durante século quem quer que abordasse o
reinado de Justiniano haveria de entrar direta ou
indiretamente no debate sobre o quanto de veracidade
encerravam as Anékdota e assim o fizeram: Varillas,
Montesquieu, Gibbon e Renan entre outros.
A nosso ver o interesse principal das Anékdota
reside no fato de ser uma excelente fonte histórica para
compreendermos a mudança cultural que se operou na
Antiguidade Tardia com o advento do Cristianismo. A
excepcionalidade das Anékdota nesse ponto justifica-se
por se tratar de um panfleto difamatório elaborado
contra a memória do Imperador do Justiniano. E como
todo texto que se pretende difamatório, o autor lida com
ideias, conceitos e imagens que tenham a potencialidade
de calar fundo nos seus possíveis leitores. Procópio de

31
Cesareia principia seu texto dizendo que ali exporia tudo
que não pode dizer em seus outros livros “oficiais”, o
leitor tem assim uma sucessão de fatos que expõem os
bastidores do reinado de Justiniano. Sua crítica é
direcionada especialmente a dois casais: o Imperador
Justiniano e a Imperatriz Teodora, o general Belizário e
sua mulher Antonina. Procópio não poupa detalhes e
todas espécies de vícios são denunciados, com especial
ênfase o vício das alcovas, é assim que somos
apresentados a vida dissoluta de Teodora e Antonina
com uma descrição que chega ao requinte dos detalhes.
As medidas imperiais são vistas como totalmente
arbitrárias visando exclusivamente o proveito dos
governantes e o sofrimento dos súditos, tanto que a
justificativa para tamanha maldade, só pode ser uma aos
olhos de Procópio de Cesareia, Justiniano e Teodora
seriam na realidade demônios que teriam acendido ao
trono imperial exclusivamente para disseminar o mal.

O “Tribunal de Cristo” ou a vigilância interior


Em meados da terceira década do primeiro século da era
cristã, um judeu originário da cidade de Tarso, região da
Cilícia, seguia em direção a Damasco. Esse judeu, que
deitava suas raízes na tribo de Benjamin e que desfrutava
da qualidade de cidadão romano, havia estudado em
Jerusalém. Nessa cidade sagrada, fora discípulo de um

32
mestre chamado Gamaliel de quem recebera uma sólida
formação aferrada aos mais estritos princípios da lei
judaica. Os rígidos ensinamentos plasmaram seu espírito
de tal forma que ele se tornara um perseguidor dos
adeptos do que era ainda uma seita judaica de tendência
cismática. Mas ao decidir seguir para Damasco o
obcecado perseguidor não tinha consciência de que esse
caminho no âmbito do espaço geográfico, de Jerusalém
para Damasco, o conduziria por caminhos totalmente
contrários àqueles em que até então vivera. Já quase às
portas de Damasco, uma misteriosa bola de luz veio em
sua direção, fazendo com que fosse derrubado por terra.
Uma voz disse-lhe: “Saul, Saul, por que me persegues?”
17
Atônito diante de tal manifestação, retorquiu: “Quem
és, Senhor? ”18 e do seio da misteriosa luz provieram
essas palavras: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues. Mas
levanta-te, entra na cidade e te dirão o que deves
fazer”19.
O acontecimento hierofânico foi mais do que
suficiente para gerar uma verdadeira revolução interior
naquele homem. A partir de então, a mesma força
obstinada, que o levara a lutar contra os cristãos, o
impulsionaria a viajar incansavelmente com o objetivo

17
Atos dos Apóstolos (9:4)
18
Ibid (9:5)
19
Ibid (9:6)
33
de fazer com que todas as gentes pudessem enxergar em
seus espíritos a luz que desencadeara nele próprio essa
mudança tão radical de posição. É assim que o Ato dos
Apóstolos nos narra a surpreendente conversão de São
Paulo; paradigmática conversão ao cristianismo que bem
expressa o sentido transformador que exigiria a nova fé.
A conversão de São Paulo mostra-nos de forma
eloquente o caráter pessoal que implicava a adesão ao
cristianismo. A conversão, aliás, é uma novidade trazida
pelo cristianismo, ou seja, a possibilidade de alguém
transformar-se em uma nova pessoa ao abraçar uma
determinada crença, excluindo todas as demais.
Mas observemos que a verdadeira conversão, em
princípio e essência, não pode ser considerada um ato
coletivo. É preciso que cada indivíduo, tal qual São
Paulo, passe por uma experiência particular para que
possa se transformar. Estamos diante de um importante
traço que se situa na base da fé cristã e que irá modelar
sua mundividência. A conversão exige um
aprofundamento do que é pessoal, trata-se de um
trabalho interior que é desencadeado por um evento
específico a cada um. Ora, não é isso que vemos ao
longo dos Evangelhos, uma sucessão de conversões que
se dão em situações que se relacionam diretamente à
vida de cada um dos conversos? Temos a sensação de
que na narrativa cristã a divindade opera uma

34
modificação profunda. Mas essa modificação parece não
ser imposta pela divindade, a conversão cristã parte de
um ato de visão interior do próprio fiel. O divino parece
manifestar-se não para insuflar, mas para iluminar e
apontar o novo caminho. Assim, no relato do Ato dos
Apóstolos, não lemos nada que se assemelhe às
tradicionais descrições homéricas de deuses que insuflam
vontades e inspirações nos homens.
O episódio da conversão de São Paulo nos oferece
ainda muitas outras informações a serem analisadas,
fornecendo assim elementos para que possamos
entender o processo interior em que se dá a conversão.
Após cair por terra e escutar a voz do Cristo
ressuscitado, São Paulo, ofuscado pela magnificência da
hierofania, permanece três dias sem poder ver. O relato
dos Atos dos Apóstolos interrompe muito brevemente o
foco sobre a pessoa de São Paulo, para deter-se em
Ananias que é chamado para auxiliar no “nascimento”
desse novo homem cristão:

Ora, vivia em Damasco um discípulo, chamado


Ananias. O Senhor lhe disse em visão: “Ananias!” Ele
respondeu: “Estou aqui Senhor!” E o Senhor
prosseguiu: “Levanta-te, vai pela rua Chamada Direita
e procura, na casa de Judas, por alguém de nome
Saulo, de Tarso. Ele ora e acaba de ver um homem
chamado Ananias entrar e lhe impor as mãos, para que

35
recobre a vista”. Ananias respondeu: “Senhor, ouvi de
muitos, a respeito deste homem, quantos males fez a
teus santos em Jerusalém. E aqui está com autorização
dos chefes dos sacerdotes para prender a todos os que
invocam teu nome”. Mas o senhor insistiu: “Vai,
porque este homem é para mim um instrumento de
escol para levar o meu nome diante das nações pagãs
dos reis e dos israelitas. Eu mesmo lhe mostrarei
quanto lhe é preciso sofrer em favor do meu
nome 20 (Os grifos são nossos)
nome.

A passagem supracitada possui dois pontos que devem


ser observados. Primeiramente, temos um exemplo, mais
uma vez, da dimensão da modificação acarretada pela
conversão. É algo tão surpreendente que Ananias indaga
o seu próprio Senhor, incrédulo e sem compreender o
que ouvira. Como aquele cruel perseguidor de seus
irmãos de fé poderia agora fazer parte dos planos do seu
Deus? Como uma pessoa, que se punha totalmente
contra a mais forte razão e esperança do viver dos
cristãos, poderia agora ser beneficiada pela graça daquele
que Ananias considerava o único e absoluto Deus da
Verdade? Para convencer Ananias é preciso insistir. O
Saulo que aí vemos não é mais o mesmo, é um novo
homem, um homem de alma transformada, prestes a se
tornar o apóstolo dos gentios. Mas a transformação não

20
Ato dos Apóstolos (9:10-16)
36
é um mero passe de mágica ou um cumprimento da
ordem de Deus. Uma das condições para a conversão é o
livre-arbítrio e sem este não seria possível haver a
conversão. Algo foi despertado em São Paulo que faz
com que, a partir da sua interioridade, nasça um novo
homem, assim como séculos mais tarde a misteriosa voz
diria a Santo Agostinho “Tolle et Lege”. A cena Das
Confissões é sugestiva, aponta tanto para a interioridade
quanto para a parte de vontade que parecem estar em
jogo na conversão cristã. A conversão não se faz
simplesmente a partir da divindade, é como se ela
convidasse o futuro converso e despertasse algo em seu
interior. A voz que fala a Santo Agostinho é
transcendente, mas é a partir do seu ato de pegar o livro
e lê-lo que o processo interior será desencadeado.
No Ato dos Apóstolos, o Cristo Ressuscitado diz
a Ananias que mostraria a Saulo o quanto era preciso
sofrer pela defesa de sua palavra. O Cristo mostrará de
forma tão forte que não será possível a Saulo seguir por
um outro caminho que não seja o seu. Temos a
impressão de estar aqui mais próximos de um trabalho
de convencimento, do que da não consciência quase
hipnótica que leva muitas vezes os heróis da Ilíada e da
Odisseia a cumprir o desejo dos deuses. É um ato de
vontade específica ao converso, o divino cristão o
convence, mostra o caminho, mas não insufla

37
autoritariamente. O convencimento pode até passar por
caminhos que agem misteriosamente, incompreensíveis
à razão humana daqueles que veem ou se interam da
conversão, mas extremamente eficazes para uma espécie
de convencimento místico do fiel, um processo íntimo
em que a divindade toca de forma toda particular a
subjetividade do converso. A conversão é paradigmática
da análise interior que exige a adesão ao cristianismo. Da
mesma forma que a conversão exige esse esforço de
aprofundamento interno, exige também uma disciplina
moral, firme e constante que não pode ser quebrada em
nenhum momento.
Mas por que analisamos tão pormenorizadamente
o episódio da conversão de São Paulo? Pois ele nos
instrui de maneira exemplar sobre a tão radical e
profunda diferença entre o paganismo e o cristianismo.
O que a partir do advento e triunfo do cristianismo
estava em jogo era a salvação do indivíduo e para que
uma conversão se desse verdadeiramente era preciso que
ela tivesse lugar no mais profundo âmbito de cada um
dos novos cristãos. É aí na luta interna e cotidiana de
cada pessoa que ela haverá de obter ou não a sua
salvação, é no angustiante conflito entre a adesão e o
cumprimento às verdades irrefutáveis, por um lado, e a
sua transgressão, por outro, que se dá o drama do homo
cristianus. Como afirma Veyne:
38
Sobre esse ponto, o cristianismo distinguia-
distinguia-se por
um aspecto ainda mais acentuado:
acentuado: era uma religião
de profissão de fé.
fé Não era suficiente ser cristão, era
preciso se dizer cristão, professá-lo, pois se tinha com
Deus (como no judaísmo e os Salmos) uma relação
pessoal que o paganismo ignorava;
ignorava suportava-se o
martírio para não renegar a fé. Um pagão não
professava nada, não dizia acreditar em seus deuses:
subentendia-se que acreditava neles, visto que rendia-
lhe um culto! Cada povo, dizia-se, “havia” seus deuses,
cada indivíduo podia ter os seus (theous nomizein). (A
tradução é nossa) (Os grifos são nossos)21

O que Veyne nos descreve aplica-se perfeitamente à


conversão de São Paulo. Após o episódio da estrada de
Damasco, sua vida terá como única razão a inabalável a
fé na mensagem de Cristo e a pregação dessa mesma
mensagem. Há um corte decisivo e irreversível. A fé
possui uma dimensão que passa a ser a característica

21
“Sur ce point, le christianisme se distinguait par un trait encore plus
accusé : c’était une réligion à profession de foi. Il ne suffisait pas d’être
chrétien, il fallait se dire chrétien, le professer, car on y avait avec Dieu
(comme dans le judaïsme et les Psaumes) une relation personelle
qu’ignorait le paganisme ; on endurait le martyre pour ne pas renier sa
foi. Un païen ne professait rien, ne disait pas croire à ses dieux : il allait
sans dire qu’il y croyait, puisqu’il leur rendait un culte ! Chaque peuple,
disait-on, ‘avait’ ses dieux à lui, chaque individu pouvait ‘avoir’ les siens
(theous nomizein)” VEYNE, Paul. Quand notre monde est devenu
chrétien (312-394), 2007, p. 69-70
39
fundamental daquele homem. Tal situação tão drástica e
visceral não seria possível no paganismo: prestar libações
a um deus não proíbe prestá-las a um outro deus,
mesmo o pertencimento a um culto de mistério não
implica a negação da existência de outros deuses e o deus
impessoal dos neoplatônicos, antes um ideal filosófico
do que uma profissão de fé, não conduz seus adeptos a
missões de conversão. A adesão pessoal e total ao
cristianismo tem como corolário um comportamento
que se justifica na própria fé e não mais no costume.
O cristianismo trará ao mundo greco-romano
uma exigente disciplina moral. O cristão deve a todo
tempo policiar-se, pois há uma força superior única que
a tudo domina e que exige de cada indivíduo um cultivo
diário de palavras e atos. É Veyne que também nos
explica: “Com o cristianismo [...] a moral é ordenada
por Deus (e não pelo costume). É este último que dita
regras absolutas que não conhecem derrogação. A moral
cristã não consiste em ensinar o que se faz, mas fazer o
que Deus quer.22”.
O certo e o errado receberiam uma dimensão,
cada vez mais, interior. A vida eterna relacionar-se-ia a
cada indivíduo, condicionada às ações e escolhas dos
homens em suas individualidades. O judaísmo
preocupava-se com a retidão coletiva do povo eleito face
22
VEYNE, 2005, p.94.
40
ao seu Deus; os gregos e romanos, com o não
esquecimento, isto é, almejavam que ao morreram seus
nomes fossem inscritos na perenidade gloriosa da
memória do seu γένος (ghuénos). Além disso, não
poderíamos aplicar verdadeiramente a nenhuma dessas
religiões o qualificativo de proselitistas. O
pertencimento ao seio da comunidade judaica dava-se
por nascimento e não por conversão. Da mesma forma,
a ideia de conversão, como é vivenciada pelo
cristianismo, é, em si mesma, desprovida de sentido para
o politeísmo greco-romano; cultuar um deus não era
sinônimo de negar a verdade pertencente ao culto de um
outro deus, o panteão grego não aniquilou o panteão
romano, pelo contrário, os deuses gregos foram
assimilados e relacionados aos já existentes deuses
romanos. Cultuar determinada divindade não
significava a mudança de concepção de mundo,
tampouco acreditar em uma verdade absoluta que,
justamente por ser absoluta, possuiria o poder
indiscutível de separar o bem e o mal e ditar as leis. Um
exemplo que ilustra com perfeição a diferença da
natureza relacional entre um pagão com seus deuses e
um cristão com seu Deus, nos é oferecido por Veyne, ao
supor o que teria passado na mente dos pagãos quando
souberam que o imperador Constantino atribuíra a

41
vitória sobre Magêncio, na batalha da Ponte Mílvia, ao
deus dos cristãos:

Após a vitória da Ponte Mílvia, os pagãos poderiam


supor que, em relação ao deus que lhe dera a vitória,
Constantino teria a mesma atitude de seus
predecessores: após sua vitória em Actium contra
Antonio e Cleópatra, Augusto pagara sua dívida com
Apolo consagrando-lhe, como se sabe, um santuário e
um culto local. Ora o crisma que figurava sobre os
escudos do exército de Constantino significava que a
vitória havia sido ganha graças ao deus dos cristãos.
Isso seria desconhecer que entre esse Deus e suas
criaturas a relação era permamente, apaixonada, mútua
e íntima, enquanto que entre a raça humana e a raça
dos deuses pagãos, que viviam, sobretudo, para eles
mesmos, as relações eram por assim dizer
internacionais, contratuais e ocasionais; Apolo não
havia se adiantado a Augusto, que foi quem se dirigira
a ele, e não havia dito de vencer com o seu sinal 23. (A
tradução é nossa)

23
“Après la victoire Du Pont Milvius, lês païens pouvaient supposer
qu’envers le dieu qui lui avait donné la victoire Constantin aurait la
même attitude que ses prédécesseurs : après la victoire à Actium sur
Antoine et Cléopâtre, Auguste avait payé sa dette à Apollon en lui
consacrant, comme on sait, un sanctuaire et un culte local. Or le
chrisme qui figurait sur les boucliers de l’armée constantinienne
signifiait que la victoire avait été remportée grâce au dieu des chrétiens.
C’était méconnaître qu’entre ce Dieu et ses créatures le rapport était
permanent, passionné, mutuel et intime, tandis qu’entre la race
42
Outro importante aspecto é que o cristianismo detinha-
se em uma vida individual post-mortem, o que estava
em jogo era a “minha” salvação pessoal, nada poderia
assegurar uma salvação coletiva. A vida eterna remetia-
se, sobretudo, ao mundo da interioridade e das
intenções do crente, a forma como este conduzira seu ser
ao longo de toda sua existência enquanto pessoa. Tal
aspecto foi bem apreendido por Hanna Arendt:

Por trás das inúmeras crenças novas está claramente a


experiência comum de um mundo em declínio, talvez
moribundo; e a “a boa nova” do cristianismo, em seus
aspectos escatológicos, era suficientemente clara: a
você, que acreditou que os homens morrem mas o
mundo é perene, basta converter-se à fé de que o
mundo chega a um fim, mas você mesmo terá a vida
eterna. Assim é claro, a questão da “justiça”, isto é,
de merecer essa vida eterna, ganha importância
pessoal completamente nova 24. (Os grifos são nossos)

humaine et la race des dieux païens, qui vivaient surtout pour eux-
même, les rélations étaient pour ainsi dire internationales, contractuelles
et occasionnelles ; Apollon n’avait pas pris les devants envers Auguste,
qui s’était adressé à lui, et ne lui avait pas dit de vaincre sous son signe”
VEYNE, Paul. Quand notre monde est devenu chrétien (312-394),
2007, p. 17-18
24
ARENDT, Hanna: A Vida do Espírito, 2010. p.328.
43
Arendt aponta para o processo de uma justiça —
merecer ou não a salvação — que anda de mãos dadas
com a valoração cometida pelos atos de cada fiel. Mas
qual seria o princípio básico para se estabelecer essa
valoração? Em linhas gerais, é a obediência à vontade de
Deus. Um pagão não poderia estabelecer como
parâmetro absoluto e exclusivo de verdade a vontade de
um deus específico, visto que havia inúmeros deuses e as
suas variadas vontades poderiam perfeitamente ser
contrárias umas às outras. O máximo que poderia
chegar era justificar um dos seus atos como a vontade de
certo deus ou, no máximo, a vontade dos deuses, mas
nada asseguraria que o consenso formado por tais
deuses, algum dia, não viesse a se desfazer devido a
antagonismos divinos.
A interiorização do Homem cristão pode ser
também exemplificada na figura do santo, aquele que fez
escolhas conforme a vontade de Deus, aquele que traçou
o curso de sua vida em direção à santidade. Os santos
seriam exempla morais a serem seguidos pelos fiéis. Nas
hagiografias, os Homens poderiam se inspirar em
modelos que os guiariam na vida mais pessoal, nos mais
íntimos detalhes. A hagiografia é a sagração da
individualidade santificada. Já as anékdota apresentam-
nos um conjunto de maus exempla, as escolhas de um
soberano que levam ao pecado, o que não haveria de ser

44
seguido. Ao redigir seu panfleto, Procópio de Cesareia
reviveu nas personagens de Justiniano, Teodora,
Antonina e Belizário o repertório dos mais infames
pecados para um cristão.
O historiador irlandês Peter Brown nos fala que a
figura do santo é representativa das sensibilidades da
Antiguidade Tardia. Estamos diante do surgimento de
homens que se retiram de todo o convívio com seus
semelhantes para se refugiar nas distâncias inóspitas dos
desertos; e eles, ali mesmo, em particular e solitária
reflexão com o divino, buscam a salvação por caminhos,
até então, jamais percorridos no mundo de cultura
greco-romana:

A ideia do santo homem que impunha respeito aos


demônios e que fazia ceder a vontade de Deus por suas
orações acaba por dominar a sociedade da antiguidade
tardia. Por vários aspectos, esse conceito é tão novo
quanto a sociedade que o engendrou. Pois ele coloca
um homem, um “homem de poder”, no centro da
imaginação popular25. (A tradução é nossa)

Os santos ao contrário dos deuses são criaturas terrenas,


homens e mulheres comuns, que possuíram uma
história humana. Os Deuses, obviamente, também

25
BROWN, Peter: La Toge et la Mitre : le monde de l’antiquité
tardive. p.96
45
possuíam uma história, mas essa história diferenciava-se
por sua dimensão e pelo caráter de imortalidade que
reveste aquelas personagens. Zeus, Apolo, Athená,
Deméter ou Dionísio não se tornaram deuses, eles já
nasceram como tais e tampouco ascenderam a tal
posição por seus méritos e virtudes. Independente da
qualidade de suas ações, sempre serão criaturas imortais.
Os heróis também se diferenciam nitidamente dos
santos, ainda que sejam mortais, eles são criaturas de um
tempo pretérito e de contornos bem definidos. Basta
que nos lembremos do que diz o poeta beócio ao
escrever que Zeus teria feito “ἀνδρῶν ἡρώων θεῖον
γένος” 26, “clã de homens divinos heróis”. Os heróis não
nascem do povo, mergulham suas linhagens em tempos
imemoriais e, ainda que não possam fugir da morte,
corre em suas veias o sangue dos deuses, pois deles
descendem. A fronteira entre os heróis e o vulgo faz-se
clara no episódio da Ilíada, quando a obscura massa
anônima de soldados parece tentar, pela única vez,
manifestar-se. Referimos, como bem se sabe, ao célebre
episódio da assembleia dos aqueus, em que Tersites, o
homem do povo, ousa proferir fortes palavras a
Agamémnon, diante da aristocracia aqueia. A Tersites
resta unicamente a repreensão de Ulisses: “Não queiras
entrar sozinho em conflito com reis. Pois eu afirmo que
26
HESÍODO: Trabalhos e Dias (v.159)
46
não há criatura mortal mais abjeta que tu [...]”27. E
continua o herói de muitos ardis, ressaltando ainda mais
a fronteira instransponível à qual fazemos alusão: “Por
isso não devias andar com nomes dos reis na boca [...]”28
e faz com que Tersites volte ao seu lugar, castigando-o
com objeto de inequívoco poder simbólico, um cetro de
ouro: “Logo lhe apareceu nas costas um inchaço
ensanguentado, sob o cetro de ouro. Mas sentou-se
amedrontado; e cheio de dores, com expressão
desesperada, limpou as lágrimas.”29
Já a santidade não é atributo de uma era mítica,
não é apanágio das gentes de mais nobre cepa. Que nos
diga a fonte por excelência da mensagem cristã, os
Evangelhos, onde encontramos uma coorte de
personagens humildes e estigmatizados socialmente ―
pescadores, samaritanos, leprosos e prostitutas ― a
quem o Cristo dirige especialmente suas palavras, sendo
ele mesmo, ainda que pertencente à casa de David,
nascido em uma estrebaria e filho de um carpinteiro.
Queremos ressaltar que a santidade é
acompanhada de um aprofundamento da interioridade,
ela só é possível através de escolhas; escolhas por atitudes
de restrita moral nos mais variados campos da existência.

27
HOMERO: Ilíada, (II: 248-249). p.55
28
Idem (II: 250)
29
Idem (II: 266-267)
47
Em resumo, atitude independente e solitária de
mortificação e controle dos desejos. O filósofo busca
também o controle das paixões, mas a sabedoria que
busca não envolve o isolamento do monasticismo,
insere-se em uma tradição clássica de conhecimento
aprendida com mestres e através de debates. A santidade
não seria passível de aprendizado, seria uma viagem
solitária, pessoal em busca da revelação.
A Historia Magistræ Vitæ invertida, que se faz
presente nas Anékdota ― a perceber Justiniano como
encarnação do demônio ― é um dos primeiros textos
historiográficos que apontam nitidamente para uma
releitura da ideia de História clássica. Releitura com
cores que refletem, em muitos aspectos, o pensamento
cristão sobre a História e a forma como esta é
apreendida. Se nas hagiografias encontramos a trajetória
de um homem ou de uma mulher que, através de um
esforço constante e por vontade própria, desenvolveu
uma relação particular com Deus, obtendo a salvação
por práticas piedosas e comportamento irreprochável, já
nas Anékdota parece que Procópio nos conduz à
conclusão do caráter demoníaco de Justiniano, através
de práticas viciosas e comportamentos mais do que
reprováveis. Diríamos, estruturas semelhantes para
demonstrar extremos opostos.

48
Todo panfleto para ser verdadeiramente eficaz necessita
operar com padrões compartilhados pelo grupo social ao
qual é destinado ― e, por isso mesmo, traz em si a
expressão de determinada mentalidade histórica ―, caso
contrário, permanecerá sem efeito. Se as Anékdota são
um panfleto30, estas trazem as marcas não só do escritor,
mas, também, dos seus leitores em potencial.

A hýbris e o pecado
O que foi exposto até agora poderia ser resumido da
seguinte forma: o específico das Anékdota seria uma
crítica mais direcionada para os pecados do imperador
do que para seu governo. A Arete grega ou a virtus
romana não mais estariam em jogo, porém, sim, a
virtude cristã de como os homens e as mulheres devem
ser conforme os princípios morais e as leis criadas por
Deus. Por exemplo, Teodora, mulher de Justiniano, alvo
especial do ódio de Procópio de Cesareia, nada mais é
do que um “modelo” da pecadora, como diz Maraval:
“O que Procópio e seu meio não perdoam à esposa de
Justiniano é ser uma mulher independente, que toma
iniciativas, que longe de ser submissa, submete o marido
[...]”31. Nada mais contrário às palavras de São Paulo na

30
MARAVAL, 2009: 11
31
MARAVAL, Pierre « introduction » In CÉSARÉE, Procope de:
Histoire Secrète.2009, p.19
49
Epístola aos Efésios: “Como a Igreja está sujeita a Cristo,
estejam as mulheres em tudo sujeitas aos maridos”32.
Ainda que acredite que tal asserção é válida,
necessário será enfrentar a objeção que provavelmente
poderá ser levantada a essa leitura. A objeção à qual me
refiro é que a vida dos imperadores já havia sido exposta.
Suas misérias morais já haviam sido apresentadas à luz
através do cálamo de alguns historiadores que, com um
repúdio quase que entrecortado por arroubos de prazer,
não se furtaram em descrever os detalhes dos vícios. As
Anékdota nos fazem lembrar alguns textos da
Antiguidade que enveredam por essas sendas. Por
exemplo, o retrato do imperador romano Calígula que
nos é apresentado por Suetônio. Ora, estamos a falar de
contextos muito distintos, a vida de Suetônio
transcorreu entre meados do primeiro século até os
princípios do segundo século da era cristã, isto é, muito
distante do triunfo do cristianismo e de seus valores.
Procópio escreveria sua obra em outra realidade
histórica, tratava-se de um cristão do século VI.
Suetônio descreve Calígula como um soberano
cruel, sanguinário, despótico, capaz dos atos mais vis;
assim como Procópio nos apresenta Justiniano e
sobretudo, como descreve Teodora, a imperatriz. Para

32
Efésios, Bíblia de Jerusalém (5:24).
50
que as semelhanças possam ser visíveis, leiamos o que
nos diz Suetônio a respeito de Calígula:

Não poupou nem o seu próprio pudor nem o pudor


alheio. Conta-se que Marco Lépido Mnester, o
pantomimo., e alguns reféns foram objeto da sua
paixão, e que manteve com eles comércio infame.
Valério Catulo, jovem pertencente a uma família
consular, censurou-o, mesmo, em voz alta, dizendo
que ele o maculara, e que tinha os flancos esgotados
pelo seu comércio com Calígula. Sem falar dos seus
incestos com as irmãs e do seu amor, tão conhecido,
pela Prostituta Pirralis, não houve uma só mulher, por
ilustre que fosse, que ele não desrespeitasse. As mais
das vezes convidava-as para jantar com os maridos e,
quando passavam diante dele, examinava-as
atentamente, com lentidão, à maneira dos mercadores
de escravas, soerguendo-lhes, mesmo, a cabeça com a
mão. Se porventura a baixavam por pudor; em seguida
saía da sala de jantar, as vezes que queria, levando
consigo aquela que merecera as suas preferências, e,
quando voltava, algum tempo depois, com sinais bem
visíveis da devassidão, louvava ou criticava claramente,
ponto por ponto, o que achara agradável ou defeituoso
em cada uma e o número de relações que tivera com
elas. A algumas notificou mesmo o divórcio, em nome
dos maridos ausentes, e deu ordem para que o fato
fosse mencionado nas atas oficiais. As suas
prodigalidades ultrapassaram tudo que se podia
imaginar até então. Inventou uma nova espécie de

51
banhos e manjares e repastos de preço fabuloso,
banhando-se em essências quentes e frias, absorvendo
pérolas de um valor extraordinário, dissolvidas em
vinagre, fazendo servir aos seus convidados pão e
iguarias de ouro, repetindo a cada passo: “Que era
preciso ou ser-se econômico ou viver-se como César”.
Mais ainda, fez chover sobre o povo, do alto da basílica
Júlia, durante alguns dias, dinheiro em moedas, que
representava uma grande soma. Mandou mesmo
construir galeras liburnas com dez pares de remo, de
popas guarnecidas a pedras preciosas e velas de cores
cambiantes, onde havia banhos quentes, pórticos e
salas de jantar muito espaçosas e até mesmo vinhas e
árvores de fruto de toda espécie: aí sentados à mesa, em
pleno dia, no meio das danças e dos concertos,
percorria as costas da Campânia. Quando mandava
construir palácios ou casas de campo, primava em fazer
executar o que era considerado irrealizável. Assim,
diques foram lançados num mar tempestuoso e
profundo, lapidadas as pedras duras, com aterros
elevava planícies à altura de montanhas, nivelava altos
cumes, cavando as rochas, e, coisa extraordinária, com
rapidez incrível, pois atraso que houvesse era castigado
com a morte. E, para não descer a pormenores,
devorou, em menos de um ano, somas enormes e todo
esse fabuloso tesouro de Tibério, que ascendia a dois
bilhões e setecentos milhões de sestércios.

Encontramos a mesma descrição de uma libertinagem


desenfreada e sem limites nas palavras de Prócópio de
52
Cesareia quando nos conta sobre a juventude de
Teodora. Em um primeiro momento, poderíamos nos
perguntar: visto que autores pagãos também denunciam
a libertinagem moral, não seria possível afirmar que a
elaboração de uma obra como as Anékdota fosse,
sobretudo, o resultado de uma visão cristã? Como
constatamos, Suetônio descreveu os vícios de Calígula
da mesma forma que Procópio os descreveu em relação à
Teodora. Mas essa semelhança deve ser matizada. É
preciso que as similitudes não nos enganem, devemos
fazer uma leitura atenta às intensidades e às formas
como as diferentes críticas se realizam. Sem dúvida, há
múltiplos pontos em comum, mas é necessário que
tenhamos a percepção histórica sempre aguçada para
que percebamos as pequenas diferenças ― às vezes são
estas que nos fazem apreender de forma mais eficaz a
visão de mundo de uma época.
Os autores da Antiguidade Clássica estão
ancorados em uma moral contrária aos excessos. Um
vício não é contrário à virtude por essência, mas sim por
ser uma desmedida, um abandono da “boa medida”,
algo que desequilibra as leis do cosmos. Em Procópio de
Cesareia, os vícios de Justiniano, na verdade, são
pecados.
Ainda que acreditemos que a forma como
Procópio de Cesareia faça sua crítica ― isto é: uma
53
especial atenção aos mais particulares e íntimos pecados
de suas personagens ― possa ser considerada uma marca
da visão de mundo cristã, de um aprofundamento da
interioridade, no caso da corte de Justiniano, justamente
uma demonstração de quais caminhos a interioridade
não deve percorrer, o avesso da santidade, temos que
concordar, em parte, que é um traço muito sutil.
Entretanto, há uma característica nas Anékdota que
pode nos conduzir por caminhos mais seguros no que
concerne à interpretação dessa obra como
essencialmente marcada pela noção cristã de pecado.
Vejamos...

A φύσις ( phýsis) e a transcendência


É preciso que entremos mais especificamente na maneira
cristã de entender a criação para que possamos dessa
forma identificar como as Anékdota se plasmam, em
grande parte, com base nesses princípios.
O divino para gregos e romanos não estava fora
da φύσις (phýsis). Os deuses são criaturas imortais, mais
fortes e poderosas do que os Homens seguramente,
porém todos se originaram do mesmo caos primevo. O
Deus hebreu, que mais tarde também será o Deus
cristão, está fora do tempo, é “alfa e ômega”, princípio e
fim; a existência da qual os seres humanos fazem parte
faz-se simples e unicamente graças a sua vontade.
54
A diferença entre os Homens e os deuses para o mundo
Greco-romano era, sobretudo, de ordem qualitativa, no
que tange às capacidades dos seres humanos e divinos.
Veyne faz um paralelo entre a visão Greco-romana e a
cristã, evidenciando essa diferença essencial:

Para nossa demonstração, tracemos sobre o quadro um


círculo, que representará o mundo segundo o
cristianismo: por sua importância, o homem será a
metade deste. E Deus? Ele é tão elevado e tão sublime
que permanecerá muito acima do quadro. Contentar-
nos-emos em puxar a partir do círculo uma flecha
apontando para cima e escreveremos ao lado dela o
sinal do infinito. Passemos para o mundo segundo o
paganismo: desenhemos um quadrado dividido em
quatro faixas horizontais, uma espécie de escada com
quatro degraus: a faixa inferior será o mundo
inanimado, ou de preferência imóvel: pedras plantas; o
degrau acima será para os animais; o penúltimo degrau
será para os homens, o degrau mais alto será aqueles
dos deuses. Consequência: a passagem dos deuses para
os homens é uma simples questão de grau. Para se
tornar deus não há a necessidade de se afastar muito
além do mundo: os deuses estão logo acima dos
homens, na escala dos habitantes do universo. Pode-se
dizer legitimamente que um deus não é nada mais do
que um sobre homem. Tanto é assim que, em latim e

55
em grego, tem-se muitas vezes interesse em traduzir
“divino” por “sobrehumano”.33 (A tradução é nossa)

Para um cristão é inconcebível afirmar que Deus é


simplesmente um ser com capacidades e potencialidades
maiores, pois Deus é em essência diferente das criaturas
que criou, é a partir Dele que emana toda a criação.
Incluamos aí a própria possibilidade de existência. Para
que tal diferença se faça ainda mais clara, comparemos o
início da cosmogonia bíblica com aquele da cosmogonia
grega. O primeiro versículo dos Gênesis afirma: “No
princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava
33
Pour notre démonstrations, traçons au tableau un cercle, qui
représentera le monde selon le christianisme : par son importance,
l’homme en sera la moitié. Et Dieu ? Il est si haut et si sublime qu’il
restera très au-dessus du tableau. Nous nous contenterons de faire partir
du cercle une flèche pontant vers le haut et nous écrirons à côté d’elle le
signe de l’infini. Passons au monde selon le paganisme : dessinons un
carré divisé en quatre bandes horizontales, une sorte d’escalier à quatre
degrés. La bande inférieur sera le monde inanimé, ou plutôt immobile :
pierres et plantes ; le degré au-dessus sera pour les animaux ; l’avant
dernière marche sera pour les hommes ; le degré le plus haut sera celui
des dieux. Conséquence : le passage des dieux aux hommes est une
simple question de degré. Pour devenir dieu point n’est besoin de
s’évader très au-delà du monde : les dieux sont tout juste au-dessus des
hommes sur l’échelle des habitants de l’univers. On peut dire
légitimement qu’un dieu n’est rien de plus qu’n surhomme. Aussi bien,
en latin ou en grec, a-t-on intérêt à traduire « divin » par « surhumain ».
Nous comprenons alors bien des choses. VEYNE : Sexe et pouvoir à
Rome. p.60-61
56
vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um sopro de
Deus agitava a superfície das águas” 34. Deus é anterior à
criação, antes de qualquer vestígio criacional sua
presença já reinava absoluta e triunfante. Não nos é
dado a conhecer a origem divina, pois esta é
intrinsecamente infinita, logo, jamais teve um começo
porque sempre existiu. Não se pode falar de uma origem
de Deus, visto que Ele já existia antes do tempo. Um
começo e um fim só são possíveis quando há a passagem
do tempo, e o tempo só passa a existir pela vontade do
Deus bíblico. A cosmogonia grega diferencia-se de
forma patente. Por tal, podemos dizer que a visão bíblica
do divino concebe Deus como o único e possível
fundador da existência.
Já a cosmogonia grega, que chegou até nós pelo
cantar de Hesíodo, descortina as origens da criação com
a imagem do caos, esse infindo vazio, “espaço aberto”,
“abismo”, “garganta funda” 35. Como diz Vernant em
relação aos Deuses gregos:

34
Gênesis 1.
A respeito do significado da palavra Chaos em grego cita-se aqui: “O
35

grego diz Chaos, não com a noção que tem para nós de “desordem”, e
consagrada a partir de autores latinos como Ouvídio (Metamorfoses,
1.5-7), mas provavelmente de um “espaço aberto” preexistente [...] o
Chaos ligar-se-ia ao verbo chaskein, “abrir a boca para gritar”, pelo que
poderia ser entendido como um ‘abismo’ ou ‘garganta funda’ anterior
57
Esses deuses múltiplos estão no mundo e dele fazem
parte. Não o criaram por um ato que, no caso do deus
único, marca a completa transcendência deste em
relação a uma obra cuja existência deriva e depende
inteiramente dele. Os deuses nasceram do mundo. A
geração daqueles aos quais os gregos prestam um culto,
os olimpianos, veio à luz ao mesmo tempo que o
universo, diferenciando-se e ordenando-se, assumia sua
forma definitiva de cosmos organizado. Esse processo
de gênese operou-se a partir de Potências primordiais,
como Vazio (Cháos) e Terra (Gaîa), das quais saíram,
ao mesmo tempo e pelo mesmo movimento, o mundo,
tal como os humanos que habitam uma parte dele
podem contemplá-lo, e os deuses, que a ele presidem
invisíveis em sua morada celeste.36

O Príncipe dos demônios37


Então, nossa atenção volta-se para importante ponto das
Anékdota, a afirmação de que Justiniano e Teodora são
demônios. Acreditamos que essa presença é algo
totalmente estranho à historiografia clássica: a clara e

tudo quanto nele se veio a desenvolver [...].” PINHEIRO, Ana Elias e


FERREIRA, José Ribeiro in Hesíodo: Teogonia
36
VERNANT, Jean-Pierre: Mito e Religião na Grécia Antiga, p.6-7
37
O título deste subcapítulo origina-se no artigo de Rubin, intitulado
‘Der Fürst der Dämonen’, publicado na zeitschrift Byzantinisch. Foi
Rubin que chamou a atenção para a expressão utilizada por Procópio de
Cesareia: “daimónon archon”, esta poderia ser traduzida como
“príncipe dos demônios”.
58
objetiva presença de uma força do mal que intervém no
curso da história e, por isso mesmo, de essencial
importância para compreendermos o caráter cristão que
perpassa a obra.
A evolução semântica da palavra δαίµων,
[daímon], “demônio”, pode ser reveladora das diferenças
entre a Antiguidade greco-latina e o cristianismo. O
daímon em princípio é um termo que faz referência a
um deus ou a um gênio que pode influir sobre a vida
dos indivíduos. Não é algo em essência mau, poder-se-
ia, ao contrário, encontrar um bom daímon. Por
exemplo, Heródoto, quando descreve os rituais egípcios
em honra da deusa Isis, emprega a palavra em sentido
preferencialmente positivo: Τὴν µεγίστην δαίµονα
ἣγηνται, isto é, “Da deusa de maior veneração”.
Tal diferenciação semântica faz-se ainda mais
clara quando nos lembramos da palavra felicidade em
grego antigo εὐδαιµονία [eudaimonía]. O prefixo “ευ-”
indica-nos geralmente algo de valor positivo. Até os dias
de hoje, encontramos esse prefixo como indicador do
mesmo significado de positividade em grego moderno,
por exemplo: ευεργετώ [everguetó], (fazer o bem);
ευδοκίµηση [evdokímissi], (êxito); εύκολος [efkólos],
(fácil). Poderíamos então dizer que εὐδαιµονία
[eudaimonía], no seu sentido primevo, referia-se a um
“bom daímon”.
59
Em Procópio de Cesareia, a palavra daímon já é
desprovida de todo o conteúdo clássico. O elemento
demoníaco aparece aqui como fator que interfere na
história e, por tal, deve ser levado em consideração para
compreendê-la. É desestabilizador da ordem. Trata-se da
fonte de todo o mal, nada mais distante do antigo
sentido da palavra. Vejamos:

14. É por isso que, para mim mesmo assim como para
a maioria de nós, essas gentes jamais deram a
impressão de serem homens, mas demônios sujos de
sangue e, como dizem os poetas, “funestos aos
mortais”, que haviam decidido conjuntamente destruir
todas as raças e todas as obras humanas tão fácil e
rapidamente quantos fossem capazes. Ao se terem
incorporado em uma forma mortal e ao se tornarem
homens-demônios, atazanaram dessa maneira o
mundo inteiro. 15. Pode-se dar a prova de tal
afirmação de várias formas, entre outras quando se
considera o poder das suas ações. Os demônios de fato
se distinguem dos homens por uma grande diferença.
16. Muitos homens, é certo, existiram durante o curso
das épocas que, por acidente ou por natureza,
mostraram-se terríveis, no mais elevado grau,
arruinando só com o seu poder algumas cidades,
outros, regiões, ou realizando alguma outra ação
semelhante, mas ninguém, senão esses dois
personagens, foram capazes de produzir a perda de
todos os homens e a infelicidade de toda a terra. É

60
verdade que o destino veio auxiliá-los nesse projeto
contribuíndo para a destruição dos homens. 17. Com
sismos, pestes, inundações, houve nesses tempos
destruições consideráveis, como vou contar agora. Por
isso, não é através de uma potência humana, mas por
outra que eles realizaram essas terríveis ações.38 (A
tradução é nossa)

38
“C’est pourquoi, à moi-même comme à la plupart d’entre nous, ces
gens n’ont jamais donné l’impression d’être des hommes, mais des
démons souillés de sang et, comme le dissent les poètes, ‘funestes aux
mortels’, qui avaient décidé de concert de détruire toutes les races et
toutes les oeuvres humaines aussi aisément et rapidement qu’ils en
étaient capables. S’étant enveloppés d’une forme mortelle et étant
devenus des hommes-démons, ils bouleversèrent de cette façon le
monde entier. On peut donner la prévue d’une telle affirmation de bien
des façons, entre autres en considérant le pouvoir de leurs actions. Les
démons en effet se distinguent des hommes par une grande différence.
Beaucoup d’hommes, certes ont existé Durant la suite des âges qui, par
accicent ou par nature, se sont montrés redoutables au plus haut dégrée,
ruinant par leur seul pouvoir les un des villes, les autres des régions, ou
accomplissant quelque autre action semblable, mais personne, sinon ces
deux personnages, ne fut capable de réaliser la perte de tous les hommes
et de produire des malheurs pour la terre entière. Il est vrai que le destin
vint en aide à leurs projets en contribuant ä la destruction des hommes.
Par des séismes, des pestes, des inondations, il eut en ce temps-là des
destructions considérable, comme je vais raconteur maintenant. Ainsi ce
n’est pas par une puissance” humaine, mais par une autre qu’ils
accomplirent de terribles actions.” Cesareia, Procopio de : Anékdota”
(XII: 14-17). p. 76
61
Para nosso autor, os males que teriam sido causados pelo
casal imperial, por serem de tamanha grandeza, só
poderiam ter sido cometidos por terrível força
sobrenatural. Tal constatação serviria para endossar a
afirmação que perpassa toda sua obra, como sabemos, o
caráter demoníaco dos governantes do império. A
relação que se estabelece entre a grandeza de como os
males se dão e a concepção cristã do demônio é
intrínseca. Lembremos que os demônios são os anjos
decaídos, justamente por desejarem rivalizar com Deus.
Se a obra da Criação é algo que extrapola qualquer feito
humano, dando-se no plano de forças incontroláveis à
ação humana, as tentativas de equiparação do demónio a
Deus também acontecerão nessa esfera. É o que
podemos constatar quando Procópio nos fala de
“sismos, pestes e inundações.” Segundo a tradição cristã,
o Verbo Divino é o criador natureza e o demônio seria o
seu constante rival. Rival este que aplicaria suas forças
em uma constante tentativa de desvirtuar e contrariar a
vontade absoluta de Deus e, por isso mesmo, seus
intentos poderiam ocorrer em escala sobre-humana. Ao
constituir uma argumentação para denegrir o casal
imperial, Procópio demonstra, de forma patente, estar
imerso na visão de mundo cristã e, por conseguinte, faz
dessa mesma visão um elemento de interpretação
histórica.

62
Contam que sua mãe teria dito a alguns de seus
íntimos que ele não era filho de seu marido Sabbatios
nem de nenhum homem. Pois, no momento em que ia
concebê-lo, um demônio a visitara. Ela não o vira, mas
teve a impressão da sua presença junto dela, da mesma
forma que quando um homem tem comércio com
uma mulher, antes de desaparecer como se estivesse em
um sonho. // Alguns daqueles que viviam com ele
encontravam-se no palácio já tarde da noite, pessoas de
alma pura, acreditaram ver em seu lugar uma espécie
de fantasma, um demônio que não lhes era familiar.
Um deles narrou que ele levantava-se repentinamente
do trono imperial e passeava de um lado para o outro
― não tinha o hábito de permanecer sentado por
muito tempo. Mas a cabeça de Justiniano desaparecia
subitamente e o resto do seu corpo parecia realizar
esses grandes passeios, enquanto que ele próprio [o que
narrara os fatos], como se não pudesse acreditar no
testemunho de seus olhos, permanecia estático,
inquieto e perplexo. Depois, quando a cabeça voltava
para o corpo, as partes que faltavam pareciam-lhe, de
maneira surpreendente, se terem juntado. // Outro
dizia que, estando perto dele quando estava sentado,
via de repente seu rosto ficar semelhante a uma carne
indistinta: sem sobrancelhas, sem olhos e sem qualquer
outro traço distintivo. Depois de alguns momentos,
podia-se novamente distinguir os aspectos dos seus
traços. Isso escrevo sem tê-lo eu mesmo visto, mas ouvi
dizer daqueles que tiveram a oportunidade de vê-lo. //
Conta-se que um monge, um grande amigo de Deus,
convencido por aqueles que viviam com ele no deserto,
63
foi enviado a Bizâncio para defender a causa das
pessoas que residiam na sua vizinhança, que eram
maltratadas e sofriam de uma maneira intolerável. Lá
chegando logo obteve uma audiência com o
imperador. 25. No momento em que ia se apresentar,
quando cruzou com um pé a soleira da porta, deu um
passo para trás e retornou. O eunuco que o conduzia e
outros presentes pediram com insistência que o
homem fosse adiante, mas, sem responder, e, como se
tivesse recebido um golpe, voltou para a casa em que
estava. Visto que aqueles que o acompanhavam
perguntaram-lhe por que havia feito isso, declarou,
diz-se, que havia visto de frente o príncipe dos
demônios sentado sobre o trono no palácio, e que não
queria nem encontrá-lo, tampouco pedir-lhe qualquer
coisa 39. (A tradução é nossa)

39
“On dit que sa mère aurait dit à quelques-uns de ses intimes qu’il
n’était pas le fils de son mari Sabbatios ni d’aucun homme. Car au
moment où elle allait le concevoir, un démon l´avait visitée. Elle ne
l´avait pas vu, mais il lui avait donné l’impression de sa présence auprès
d´elle comme lorsqu’un home a commerce avec une femme, avant de
disparaitre comme en songe. // Quelques-uns de ceux qui vivaient
auprès de lui et, tard dans la nuit, se trouvaient avec lui dans le palais,
des gens à l’âme pure, crurent voir à sa place une sorte de fantôme, un
démon qui ne leur était pas familier. L’un rapportait qu’il se levait
soudain du trône impérial et se promenait de ci de là — il n’y avait pas
l’habitude de rester assis très longtemps Mais la tête de Justinien
disparaissait subitement et le reste de son corps semblait faire ces
grandes promenades, pendant que lui-même, comme s’il ne pouvait en
croire le témoignage de ses yeux, restait, restait longuement sur place,
inquiet et perplexe. Ensuite, lorsque la tête était revenue sur le corps, les
64
Ora, como podemos ver, o daímon não é algo
intrinsecamente ruim. Ao receber uma conotação
negativa na pena dos historiadores cristãos, a
ambiguidade se desfez. A nítida dicotomia entre o bem e
o mal, típica do pensamento cristão, muito se diferencia
da visão de mundo do paganismo.
O fato do conteúdo das Anékdota ter superado,
digamos assim, o sentido original não parece ser mero
acaso. O sentido que se afirmou de “narrativa breve de

parties manquantes lui paraissaient, de manière surprenante, s’être


ajoutées // Un autre disait que, se tenant près de lui quand il était assis,
il voyait soudain son visage devenir semblable à une chair indistincte : il
n’y avait ni les sourcils, ni les yeux à leur place et n’avait absolument
aucun autre trait distinctif. Après un moment pourtant, on pouvait À
nouveau distinguer l’aspect de ses traits. Cela, je l’écris sans l’avoir moi-
même, mais je l’ai entendu dire de ceux qui avaient l’occasion de le
voir. // On raconte qu’un moine, un grand ami de die convaincu par
ceux qui vivaient avec lui dans le désert, fut envoyé à Byzance pour
plaider la cause de gens résidant dans leur voisinage, qui étaient
maltraités et avaient à souffrir d’une manière intolérable. Arrivé là, il
obtint aussitôt d’accéder auprès de l’empereur. Alors qu’il s’apprêtait à
venir en sa présence, il franchit le seuil d’un seul pied, mais revenant
soudain sur ses pas, il repartit en arrière. L’eunuque qui le conduisait et
ceux qui étaient là présents priaient l’homme avec insistance d’aller de
l’avant, mais lui, sans rien répondre et comme s’il avait reçu un coup,
revint de là dans la maison où il était descendu. Comme ceux qui
l’accompagnaient lui demandaient pourquoi il avait fait cela, il déclara,
dit-on, qu’il avait vu en face le prince des démons assis sur le trône dans
le palais, et qu’il ne voulait ni le rencontrer, ni lui demander quelque
chose.”
65
um fato engraçado ou picante”40 leva-nos a pensar que
há algo intrínseco ao próprio texto e que foi
perfeitamente percebido pelo inconsciente da grande
maioria das línguas ocidentais, tal percepção manifesta-
se no atual sentido da palavra. Podemos dizer que o
movimento semântico traz o próprio reflexo das marcas
que perpassam a análise de Procópio. Refiro-me ao fato
de que uma anedota remete-nos a algo que está na esfera
do íntimo e do familiar. Trata-se de uma narrativa que
traz à tona o comezinho dos nossos atos. Não foi
nenhum outro livro ou texto que concedeu seu título
para se tornar um substantivo dicionarizado e portador
desse significado, tal associação é diretamente vinculada
às Anékdota. A força das descrições detalhadas,
sucessivas e, até mesmo, caóticas dos desmandos de
Justiniano, Teodora, Belizário e Antonina foram mais
fortes que o sentido de “inéditos”. O historiador de
Cesareia faz-se aqui um grande olho que a tudo devassa,
perscruta não só as alcovas reais, mas também deslinda
as origens pouco nobres de seus protagonistas, os
motivos pequenos e torpes que os levaram a decidir
políticas de Estado, assim como os rumores que
circulavam pelos vastos corredores e pátios dos palácios
de Constantinopla. Aqui a comédia parece adentrar sem
cerimônia a narrativa dos feitos históricos. O que nos é
40
Dicionário Houaiss p.211
66
narrado por Procópio não é a desmedida do ser
humano, mas sim o próprio “mal”. Com um afã
descritivo, o historiador deseja não somente constatar o
“mal”, ele deseja ir mais além, almeja, sim, mostrar a
fonte de onde os padecimentos do Império proveem.
Tal fonte é tudo o que se opõe a Deus e diante de Deus
não há “desequilíbrio”, há simplesmente a cega
obediência a seus desígnios ou a desobediência da
rebelião, personificada por excelência na figura do anjo
decaído, do demônio. Para provar que Justiniano é o
“príncipe dos demônios”, Procópio não mede esforços
para convencer seu leitor: é preciso devassar a
intimidade imperial, demonstrar a seu público por quais
razões sua revelação é fundamentada. Esses indícios
devem ser identificados no cerne dos espíritos de seus
inimigos.

Bibliografia
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‘democratização da cultura’ no Império Romano
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OLIVEIRA, Julio Cesar Magalhães de: ‘O Conceito de
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antiga: o caso da África do Norte’ In Revista de Estudos
Filosóficos e Históricos da Antiguidade.
Disponível em:
http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/cpa/article/v
iew/803/615. Acesso em: 20. 07. 2014
ROUCHE, Michel: “Alta Idade Média” In Duby,
Georges (Org): História da Vida Privada. Tradução:
Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das
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VEYNE, Paul: Ce que Le christianisme a changé In
L’Histoire nº 302. Paris: Outubro de 2005.
VERNANT, Jean-Pierre: Mito e religião na Grécia
antiga. Tradução: Joana Angelica D'Avila Melo. São
Paulo: Martins Fontes, 2006.

69
70
LEI, FAMÍLIA E CASAMENTO: O QUE
OS ROMANOS TÊM A NOS DIZER? 41
Claudia Beltrão da Rosa42

Em De domo sua (“Sobre sua casa”), diante do colégio


dos pontífices, Cícero pronunciou um discurso
apaixonado a respeito da demolição de sua casa no
Palatino, no ano anterior, por seu rival P. Clódio
Pulcher. Numa passagem, Cícero defende o tópico da
casa romana como o lugar central da vida religiosa e
cívica romana:

Quid est sanctius, quid omni religione munitius quam


domus unius cuiusque civium? Hic arae sunt, hic foci,
hic di penates, hic sacra, religiones, caerimoniae
continentur; hoc perfugium est ita sanctum omnibus
ut inde abripi neminem fas sit. (Dom. 109)

41
Uma primeira versão deste texto, intitulada A familia romana,
apontamentos em torno do tema da família, foi apresentada no Fórum
Permanente de História do Direito, da Escola da Magistratura do
Estado do Rio de Janeiro, EMERJ, em 2014. Agradeço aos
organizadores desta obra pela oportunidade de revisitar o tema.
42
Professora Associada do Departamento de História da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Visitor Fellow da
School of History, Classics and Archaeology, Newcastle University,
UK. Bolsista NAF/British Academy (2016-2019).
71
[O que é mais sagrado, qual a proteção mais inviolável
de toda a religião, que a casa de cada cidadão? Nesta
estão seus altares, suas lareiras, seus Penates (deuses
domésticos), seus objetos sagrados, sua religião, seus
ritos; é um refúgio tão santo aos olhos de todos, que
seria um sacrilégio retirar dela qualquer um pela força.]

Cícero destaca, portanto, a importância central dos sacra


familiae para o ciuis, o cidadão. No tratado De legibus,
o orador acrescenta que esses ritos devem ser preservados
de geração em geração (Leg.2. 19, 22, 47). Referências
aos sacra familiae aparecem em muitos textos
ciceronianos, mas talvez seja sua correspondência que
mais bem ilustre a vida quotidiana de uma familia da
elite romana. Numa carta de 60 AEC, Terência, esposa
de Cícero, convida o amigo Ático, sua mulher e sua mãe
para juntos celebrarem o festival das Compitalia, no
início de janeiro (Att. 2.3.4). Outras cartas de Cícero,
de 50 e 49 AEC, falam das dificuldades em organizar as
cerimônias da toga virilis para celebrar a entrada de seu
filho Marcos e seu sobrinho Quinto à idade adulta (Att.
6.1.12; 9.6.1; 9.17.1; 9.19.1). Cinco anos depois, um
triste acontecimento foi tema da correspondência de
Cícero: a morte de sua filha Túlia. Cícero queria
comemorar a morte de sua filha erigindo um altar (um
fanum) que a honrasse permanentemente (ut posteritas

72
habeat religionem: Att. 12.12.2. cf. tb. 12.18.1; 12.35;
12.36; 12.37).
Em muitas cartas do orador temos acesso a
imagens de um paterfamilias preocupado e ocupado
com as atividades sociais e religiosas e, especialmente,
com as pessoas de sua família. Cícero se apresenta como
um pater zeloso de uma virtude romana que, para nós, é
de difícil tradução: pietas. Este termo não tem
correspondência em português. Sua tradução por
piedade, além de imperfeita, é equivocada. Trata-se de
uma virtude familiar, mas sua definição como o senso de
responsabilidade em relação aos membros da família,
que é correta, ilumina apenas um aspecto da pietas,
deixando de lado seus aspectos religiosos e mais afetivos.
Pietas designa o sentido de dever e respeito que se deve
às divindades, e que era exigido dos filhos em relação aos
pais, mas também designa os laços recíprocos de afeição
e de obrigações compartilhadas por todos os membros
da família. Pietas é, também e principalmente, uma
deusa que rege as relações entre parentes e amigos, e é
representada em muitas moedas do período imperial,
assim como centenas de milhares de epitáfios do mundo
romano apelam à pietas para honrar seus membros
mortos. Além disso, pietas é também um tema da lei
romana, pois com frequência é no reino da lei que a
pietas era expressa, reiterada ou violada.
73
A familia romana: algumas observações
Minha intenção, aqui, é perguntar pela familia romana
para, então, pensar a questão do casamento em Roma. A
proximidade da forma das palavras em latim e em
português muitas vezes prejudica a compreensão daquilo
que queremos observar. Meu ponto de partida será a lei.
As leis das XII Tábuas, assim como a estrutura da lei
romana através dos séculos, tinham como centro a
familia. Numa definição legal estrita, a entidade
chamada familia consistia de um indivíduo adulto do
sexo masculino, o paterfamilias, as pessoas livres que
estavam sob seu poder legal (potestas), que eram seus
filhos – nascidos de um casamento legal ou adotados –
eventualmente seus netos (na linhagem masculina), e sua
esposa, se seu casamento fosse in manus. Pertenciam à
familia, igualmente, todos os seres humanos não livres
(escravos, por exemplo), e é importante notar que o
termo familia é derivado do substantivo famuli, escravo.
A familia romana era, de certo modo, um
constructo legal, um dispositivo organizacional cuja
definição permaneceu, nos mais de mil anos de “história
romana”, virtualmente inalterada na lei (e.g., a
autoridade e as responsabilidades do paterfamilias). Sua
impressionante longevidade pode ter derivado do fato de
ter sido uma “pedra fundamental” da sociedade romana,
provendo – geralmente de modo bem sucedido e a partir

74
da figura do paterfamilias – uma base segura para o
ordenamento social romano. Quando estudamos a lei
romana relativa à familia, torna-se claro que há uma
isotopia na questão da herança, no sentido de proteger
os interesses desse grupo humano ao limitar, o quanto
possível, a dispersão da propriedade. Dizer isso não
significa, contudo, afirmar que não houve mudanças
através dos séculos. Apesar de a ênfase da lei em relação
à familia radicar na questão da sucessão, houve
mudanças, decerto, e tais mudanças podem ser vistas
como tentativas de dar resposta às mudanças da
sociedade romana, permitindo que a familia continuasse
a manter e proteger os interesses de “famílias reais”, ou
seja, aquelas que realmente viveram e apelaram aos
tribunais, pois:

a) a familia romana era inerentemente passível de


divisão: por exemplo, no caso da morte do
paterfamilias, cada indivíduo masculino que saía
de sua potestas podia se tornar um novo
paterfamilias; e
b) a formação de uma familia envolvia
necessariamente outras familiae; a viuvez, os
dotes, os divórcios, os novos casamentos eram
elementos da vida das “famílias reais”.

75
Em sendo uma sociedade androcêntrica, famílias com
muitas filhas estavam em desvantagem econômica, e
muitas vezes os dotes dilapidavam o patrimônio
familiar. Na República Média, a lei conseguiu criar um
meio de evitar que uma filha fosse absorvida na familia
de seu marido e, com ela, seu dote, criando o casamento
sine manus (cf. esp. Gaio. Inst. 1.110-11; 2. 661-
62.6.5). No século I AEC, raríssimas mulheres romanas
casavam in manus – certamente a flaminica, sacerdotisa
da religião pública, casava in manus com o flamen
Diales, mas esta era uma regra religiosa. No casamento
sine manus, as mulheres estavam fora da potestas de seu
marido ou sogro, ou seja, permaneciam como membros
de sua familia original.
Ao observamos as leis concernentes aos aspectos
legais das relações domésticas entre pessoas agrupadas
numa mesma familia, percebemos que a familia romana
é entendida como uma unidade social, política e
econômica. O que denominamos “planejamento
familiar” é um tema de grande interesse na lei romana,
tendo em vista a procriação e a socialização dos filhos
em relação a questões econômicas e políticas de cada
unidade. Do jeito que estou falando, a familia
romana pode parecer mais uma ‘empresa’ do que outra
coisa, e os exemplos de Cícero que apresentei há pouco
podem parecer estranhos. Isso porque, ao lado de

76
dispositivos que protegiam os aspectos econômicos e
políticos das familiae, outros expedientes a criavam
como um locus de pietas e de benevolentia entre seus
membros. Em outras palavras, a notável permanência da
unidade familiar romana através dos séculos não foi
apenas uma questão ligada ao seu papel instrumental de
promover a reprodução demográfica, o patrimônio
familiar e a ordem social romana. Discursos e imagens
diversas apresentavam a família como o local da
proteção e do cuidado, do afeto criado pela
proximidade, pela vida em comum. Faço notar,
contudo, que os escritores romanos, em geral, não se
referiam à sua linhagem ou à sua unidade familiar com o
termo familia, e sim, domus (que traduzimos por
“casa”), como se percebe nas citações anteriores de
Cícero. A associação da familia com a propriedade pode
ser notada pelo vocabulário: familia, muitas vezes, surge
na lei como sinônimo de patrimônio – e patrimonium é
um termo derivado de pater, notadamente (Dig.
50.16.195.1).
No mundo ocidental moderno, o protótipo legal
da família tem sido a família nuclear em seus vários
estágios, desde o estabelecimento inicial de um novo
“casal”, o nascimento e o cuidado dos filhos, até as
eventuais alterações e, mesmo, a dissolução da família
quando os filhos se afastam do núcleo, ou o casamento

77
termina pelo divórcio, ou a morte encerra a união do
casal. O “casal”, o núcleo duro do casamento, está no
centro das preocupações modernas. Em décadas mais
recentes, contudo, a atenção legal tem crescido em
relação às famílias entendidas como “não tradicionais”,
especialmente àquelas lideradas por uma pessoa solteira,
ou por casais legalmente solteiros, incluindo casais do
mesmo sexo biológico. Além disso, os aspectos legais das
atuais relações familiares têm se mesclado com
numerosos outros ramos da lei, incluindo não apenas as
áreas tradicionalmente importantes das leis de
propriedades, mas também as que regem os contratos, as
regras administrativas, as leis estatutárias, mas até
mesmo a lei constitucional. O tema da família é uma
área do direito moderno que está rapidamente se
expandindo e se alterando. E atualmente há discursos –
alguns inflamados e com potencial explosivo – contra o
que muitos consideram ser um “ataque à família
tradicional”, concebida como um dado natural ou algo
“que sempre foi assim”. Contudo, quando observamos
as formações sociais, logo históricas, com uma visão
ampliada, ou seja, quando observamos outras sociedades
distintas da nossa no tempo ou no espaço, percebemos
que é uma ingenuidade tomar qualquer formação
familiar particular como sendo autenticamente
“tradicional” e, mais ainda, como algo “natural”. É certo

78
que os requisitos biológicos para a reprodução, até bem
recentemente, impuseram alguns elementos irredutíveis
no padrão dos agrupamentos humanos que reunimos
sob a rubrica “família”. Contudo, esse substrato
biológico dificilmente serve para explicar a imensa
variedade de manifestações que esta rubrica, a “família”,
teve e tem nas diversas sociedades.
Os pressupostos da vida familiar moderna estão
tão profundamente arraigados em nós que é muitas
vezes difícil compreender o amplo espectro de
significados que as sociedades passadas ou sociedades
atuais diferentes da nossa deram a conceitos como
casamento, parentesco, filiação, co-residência etc. No
caso da sociedade romana, as continuidades de sintaxe
das palavras, por exemplo, encobriram as grandes
diferenças de facto.
As fontes legais romanas criaram um sistema de
leis familiares que diverge radicalmente daquilo que
conhecemos e vivemos hoje. Essas fontes descrevem um
regime legal que prevaleceu durante os três primeiros
séculos da nossa era, especialmente em Roma, caput
mundi. As famílias romanas, as familiae, eram as
unidades fundamentais desse regime legal. E muitos
documentos textuais romanos, como os textos de Cícero
que citei (mas, nota bene, não todos os textos
ciceronianos), às vezes induzem – por questões de

79
semelhança do vocabulário – os leitores modernos a um
senso de “familiaridade”, a despeito dos dois milênios de
distância: vemos nesses textos indícios de relações
afetivas, de interesse e mesmo do que chamamos amor
dos pais pelos filhos etc. Mas, as fontes legais sugerem
outras leituras, nas quais percebemos as diferenças entre
nós e os romanos antigos. Observemos mais de perto as
personagens principais da familia romana:

1. o paterfamilias – o chefe, masculino sempre, da


familia, o único proprietário de toda e qualquer
propriedade pertencente à familia, o
patrimonium (=o que pertence ao pater), e
dotado pela lei com um poder considerável sobre
todos os seus descendentes e dependentes, não
importa em que idade;
2. a materfamilias – que, após o nascimento de um
filho, é chamada matrona – é a esposa, unida ao
paterfamilias pelos frágeis laços do matrimonium
(e, rigorosamente falando, este termo se vincula
apenas à mulher; apenas ela está “casada”). A
matrona não compartilha com o pater nenhum
controle legal, nenhum poder sobre a riqueza
familiar, exceto aquela que ela possua por si
mesma e por seu dote, um fundo que, se era
gerenciado por seu marido, retornava a ela (ou à

80
sua familia) em caso de viuvez ou divórcio.
Ulpiano chega a dizer que uma mulher era o
início e o fim de sua própria familia, talvez
porque ela não transmitisse seu nome, nem seus
direitos de sucessão como um homem poderia
fazer (Dig. 50.16.195.5);
3. os descendentes, que são ditos “capturados” (de
captio) na estrutura familiar, que lhes permitia
pouca independência social ou econômica até que
estivessem, no caso dos descendentes masculinos,
livres da potestas paterna pela morte do pai. No
caso das descendentes, após a introdução do
casamento sine manus, mesmo as casadas
permaneciam sob a potestas paterna e, no caso da
morte do pai, passavam à tutela de um membro
masculino da família, ou de um parente ou
amigo;
4. os escravos (famuli), obviamente sem quaisquer
direitos sobre si mesmos – muitas vezes
denominados res mobilis –, estavam sob o
controle total do paterfamilias, e eram vendidos
ou herdados após a morte do pater. Os escravos
que uma mater possuísse por seu dote eram
controlados exclusivamente por ela, ou por seu
tutor legal. Os escravos podiam ser libertados pelo
pater em vida ou em testamento (neste caso, era o
81
herdeiro que realizava o ritual da manumissio).
Os antigos escravos, os liberti, nem por isso
escapavam à potestas do pater ou de seu herdeiro.
Ao ser manumitido, o ex-escravo recebia o nome,
o gentílico, da familia, e fazia parte dela por toda
a vida, exceto se a familia se extinguisse, quando
passava a ser conhecido como libertinus e, no
caso de uma ex-escrava, libertina. Se ex-escravos
fossem adotados pelo pater, passavam à condição
de filii.

As fontes legais, portanto, descrevem a familia a partir


do exercício do poder. Mesmo a pietas, que hoje muitas
vezes é mencionada como sendo o laço emocional da
familia, é definida pela lei mais como o senso de dever
do que em termos de afeição mútua entre seus
membros. E duas características da lei romana relativa à
família podem parecer surpreendentes para os
modernos:

1. Esta lei reflete os valores de uma sociedade


amplamente dominada pelos homens, na qual,
inclusive, o papel público das mulheres adultas é
restringido pelos costumes e pela lei (e.g. Dig.
26.17.3; 47.10.15.15.20-22). A lei familiar
reforça esta dominação masculina, mesmo

82
quando o modelo “arcaico” do casamento – cum
manus, no qual a mulher é parte integrante da
familia de seu marido (e.g. Dig. 23; Tituli ex
corpore Vlpiani 6.2) – deu lugar ao modelo
“clássico”, sine manus, em que a presença da
mulher na familia do marido é juridicamente
tênue – o que, se protegia sua propriedade,
herança ou dote, e sua integridade física de
desmandos de seu marido ou sogro, tornava-a
apenas um pré-requisito, indispensável decerto,
para o nascimento de herdeiros para a familia.
Esses herdeiros, contudo, pertenciam à familia de
seu pater. No caso de divórcio, os filhos, homens
ou mulheres, naturais ou adotados, pertenciam ao
pater e estavam sob sua potestas.
2. A lei romana sobre a família não diz respeito ao
bem-estar emocional – nem mesmo físico – de
seus membros, que podiam ser, inclusive, mortos
pelo pater, mas concerne apenas àquilo que tange
as estruturas familiares sobre a posse e a
disposição da propriedade. Em suma, a lei da
familia romana diz respeito a questões que
diríamos “econômicas”. O abuso (físico, sexual
etc.), a morte ou a venda de crianças, por
exemplo, não são objetos da lei romana, e
raramente há alusões a tais casos nas fontes legais,

83
apesar de serem muito frequentes na literatura
romana. Em geral, a lei parte do princípio de que
o paterfamilias, ou seu representante legal, tem
interesse na manutenção e preservação física dos
membros de sua familia. Para cada item relativo à
custódia ou à proteção física dos filhos, e.g., há
centenas relativos à herança.

Da chamada República Tardia, um discurso forense de


Cícero, o Pro Roscio Amerino, ilustra bem o ponto.
Cícero conseguiu a absolvição de seu cliente, P. Roscio
de Améria, da acusação de parricídio, considerado um
dos mais graves crimes. Se ele fosse condenado, sua pena
seria ser colocado num saco e lançado ao Tibre preso a
uma pesada pedra. Por outro lado, a literatura romana
nos traz diversos casos em que um pai mata ou manda
matar um filho ou uma filha. Se esses pais às vezes eram
considerados moralmente perversos, há casos em que são
considerados heróis, como o talvez lendário Virgínio e o
histórico C. Spurius. Em outras palavras, o direito
criminal não previa uma condenação para eles.
A partir do período augustano, a lei romana
passou a incluir uma preocupação maior com tais casos,
restringindo – um pouco – a autonomia do
paterfamilias. Alguns exemplos são: desencorajar os
impedimentos de casamentos de filhas com a intenção

84
de evitar o dote (e.g. Dig. 16.6.3.2; 23.2.19), minimizar
o assassinato de filhos ou o excesso de violência física na
edução das crianças (e.g., várias passagens do Dig. 8),
dentre outras. Contudo, direta ou indiretamente, a lei
romana permaneceu como uma lei cujo objetivo era a
proteção das propriedades de uma sociedade cuja maior
fonte de riquezas era a terra, a despeito da vitalidade e da
variedade de seus investimentos econômicos.
Em suma, a lei romana sobre a família não apenas
nos revela um mundo muito diferente do nosso – e os
sistemas jurídicos são, sempre, derivados de seu tempo e
lugar –, mas também um mundo no qual a lei operava
de modo diferente. Trata-se de um mundo no qual as
taxas de mortalidade eram muito altas – daí a presença
ubíqua das questões relativas à tutela –, um mundo em
que livres, libertos e escravos coabitavam – daí as
diversas questões relativas aos relacionamentos entre
senhores-escravos, e.g., no que tange às uniões de grupos
distintos de escravos na ocasião de um casamento (pois
escravos eram também peças de dotes), os problemas
relativos ao pecúlio de escravos; aos casamentos de livres
com libertos, ou as questões relativas à adoção, cuja
percepção era radicalmente distinta da nossa, a começar
pelo costume da adoção de adultos, e não de crianças.

85
O casamento e a lei
Para os juristas romanos, as concepções legais são regidas
por um propósito muito claro: permitir o
desenvolvimento e a aplicação de regras legais
racionalmente coerentes, e a análise dos corpora de leis
romanas permite perceber que os juristas avaliavam e
revisavam frequentemente suas concepções e regras com
base no que de fato ocorria na sociedade. Digo, então,
que a performance social é a chave da lei romana. A lei
romana não foi bem sucedida em todos os momentos e
casos, e ajustes eram aqui e ali necessários, mas isso
talvez seja uma característica de todo e qualquer sistema
legal, e o estudo das relações entre as abstrações legais e a
vida concreta das sociedades é, por si só, fascinante.
Mas, nota bene, não podemos esquecer de que a vida
concreta das pessoas é vivida no interior de instituições
sociais que são, de um modo ou de outro, determinadas
pela lei.
Vejamos um exemplo, dentre vários possíveis,
desta relação. Um caso jurídico real que aconteceu em
meados do século II AEC, e o conhecemos por um
relato de Cícero. O caso diz respeito a um sujeito, um
cidadão romano, que deixou sua mulher grávida numa
província do Império (a Hispania) e se mudou para
Roma. Em Roma, ele se casou com outra mulher, e teve
com ela um filho. Vejamos o relato:

86
Quid? Quod usu memoria patrum venit, ut pater
familias, qui ex Hispania Romam venisset, cum
uxorem praegnantem in provincia reliquisset,
Romaeque alteram duxisset neque nuntium priori
remisisset, mortuusque esset intestato et ex utraque
filius natus esset, mediocrisne res in contentionem
adducta est, cum quaereretur de duobus civium
capitibus et de puero, qui ex posteriore natus erat, et
de eius matre, quae, si iudicaretur certis quibusdam
verbis, non novis nuptiis fieri cum superiore
divortium, in concubinae locum duceretur? (De Or.
1.183)

[O quê? Pela memória de nossos ancestrais, aconteceu


que um paterfamilias, que se mudou para Roma,
deixou sua esposa grávida na província, e se casou
novamente sem enviar notícia (de divórcio) para a
primeira mulher. Ele morreu intestado, deixando um
filho nascido de cada mulher. A questão comum que
surgiu foi sobre o estatuto civil de duas pessoas: não
apenas o estatuto do menino nascido em segundo
lugar, mas também o de sua mãe, se fosse julgado que
o divórcio da primeira mulher não ocorreu, pois não
seguiu as formas verbais costumeiras (para o divórcio),
e que não ocorreu um novo casamento. Seria ela
declarada uma concubina?]

Chamo a atenção para o fato de que todo o caso ocorreu


porque o cidadão morreu intestado; se houvesse um
testamento não haveria um caso, pois a lei romana
87
garantia a liberdade de testamento, de inclusão e de
substituição de herdeiros, e apenas homens podiam
transmitir bens em testamento. Os bens de uma mulher
pertenciam a ela enquanto vivesse, revertendo à sua
familia (seu pater ou seu substituto) após sua morte. Um
bom exemplo aqui é o próprio Augusto, adotado por
Júlio César, que não tinha herdeiros masculinos, e teve
de adotar seus netos, Caio e Lúcio, e os filhos do
primeiro casamento de Lívia (dentre eles o futuro
imperador Tibério), para que pudessem ser seus
herdeiros, pois Augusto também não teve filhos do sexo
masculino. Em outras palavras, as filhas herdavam, mas
não transmitiam, sendo necessário, para a preservação
das familiae, que houvesse herdeiros legítimos
masculinos. Mesmo os netos de Augusto, Caio e Lúcio,
filhos de sua filha Júlia e de Agripa, seu amigo e braço-
direito, pertenciam à familia de Agripa e não à de
Augusto, daí as necessárias adoções.
Podemos levantar várias questões com base na
breve passagem de Cícero:

1. Cícero está aqui relatando um caso legal que


aconteceu na metade do século II AEC, cerca de
cem anos antes de seu tempo. As duas partes do
caso podem ser imaginadas por nós: de um lado,
o filho nascido do segundo casamento (herdeiro

88
legítimo, caso fosse reconhecido ter se tratado de
um casamento legal), demandando sua
legitimidade e a metade da herança paterna; de
outro, o filho nascido do primeiro casamento (a
legitimidade desta filiação era inquestionável),
tentando defender-se como único herdeiro a fim
de não dividir os bens. Pelo tom da narrativa de
Cícero, poderíamos deduzir que o filho do
segundo casamento ganhou o caso? Sim, ele
ganhou. Mas, com que base legal? Cícero diz que
este caso foi motivo de intensos debates entre
juristas (De Or. 1. 238): no tribunal, alguns
acreditavam que o homem não podia se divorciar
de sua primeira esposa sem “as formas verbais
costumeiras”, ou seja, sem verbalizar sua intenção
de divórcio e, necessariamente, notificar sua
esposa e sua familia. Mas, no que os outros
acreditaram? Que não havia requerimentos
formais para o divórcio? Talvez. Ou talvez
pensassem que um ato unilateral seria suficiente
para encerrar o casamento, mesmo em não
ocorrendo qualquer notificação. Para os segundos
– ou seja, aqueles que ganharam a causa –, o novo
casamento era uma prova de que o divórcio
ocorreu, ou era uma ação que implicava ou
fundamentava um divórcio.

89
2. Por que isso não foi considerado um caso de
bigamia? Seria por que o sujeito não retornou à
Hispania, mantendo, então, duas familiae, uma
em Roma, outra na Hispania? Parece que sim,
pois, se ele tivesse coabitado com as duas
mulheres, a lei claramente anularia o segundo
casamento com base na proibição da bigamia...
3. Poderia ser um caso de adultério? Vejamos um
caso semelhante, discutido por Papiniano (Dig.
48.5.12.12): uma mulher ouviu dizer que seu
marido, há muitos anos ausente, morrera. Ela,
então, se casou com outro homem, mas seu
primeiro marido certo dia retornou vivo.
Papiniano diz que, se a mulher foi realmente
enganada – o que deveria ser verificado por seu
“comportamento” – então, ela nada teria feito de
errado. Mas, se ela simplesmente tirou vantagem
de um rumor porque queria se casar com outra
pessoa, ela deveria ser punida como adúltera. A
decisão parece indicar que, segundo a lei, ela
permanecia casada com seu primeiro marido
mesmo depois de ter se casado novamente.
Papiniano viveu no final do século II EC, pelo
menos quatro séculos após o caso descrito por
Cícero. Talvez possamos perceber uma mudança
da lei romana pelas diferenças entre os dois casos,

90
uma mudança que teve sua base na legislação
augustana sobre o adultério, que resguardava o
primeiro casamento (neste caso, independente de
o cônjuge duplamente casado ser homem ou ser
mulher). Esta mudança pode ter se originado da
grande mobilidade humana no período imperial,
e talvez os tribunais romanos tenham sofrido com
o aumento de casos de duplos casamentos de
cidadãos romanos em locais distintos, um
problema menos comum no período republicano.
4. A legitimidade do segundo filho dependia do
segundo casamento ser considerado legítimo, o
que dependia deste segundo casamento ser uma
ação suficiente para que houvesse um divórcio
efetivo da primeira mulher. Em outras palavras: a
questão era se o novo casamento per se, sem
nenhuma notificação de acordo com as “fórmulas
verbais costumeiras”, acarretaria o divórcio.
Estamos, então, lidando com um sistema legal no
qual o divórcio podia ocorrer muito facilmente,
pela iniciativa de qualquer um dos cônjuges e a
qualquer momento, sem nenhuma notificação ou
controle pelo que denominamos Estado, e, talvez
sem, nem mesmo, a notificação do cônjuge
afetado. Podemos pensar, então, que não havia
fatores sociais que promovessem a estabilidade

91
marital, ou que criassem obstáculos legais ao
divórcio (e.g., multas sobre o dote). Assim, o
casamento em Roma não era algo a priori estável.

Desse modo, para uma melhor compreensão da familia


romana, é preciso distingui-la do casamento
propriamente dito e da tríade pai-mãe-filho que rege a
definição jurídica atual de família. Rigorosamente
falando, a família romana não é definida pelo casal e
seus filhos naturais ou adotados. Mais ainda, a lei
romana não apresenta traços de requisitos e processos
formais para o casamento. O que havia era,
simplesmente, o ius conubii, i.e., o direito reservado a
cidadãos romanos e alguns aliados romanos de terem
seus casamentos legitimados. Não ter o ius conubii, ou
seja, a realidade da imensa maioria da população do
Império, significava: a) não ter suas uniões maritais
reconhecidas pela lei romana, e b) se houvesse
coabitação, os filhos nascidos desses casamentos não
eram considerados legítimos pela lei romana – o que não
impedia esses filhos de serem reconhecidos por outras
leis, pois a lei romana nas províncias convivia com
outros sistemas legais locais. Não havia formalidades
jurídicas propriamente ditas que criassem um casamento
“legítimo”. Não havia qualquer tipo de “licença”,
“certidão” ou meio legal de registrar casamentos, ao

92
contrário do dote, pois chegaram até nós muitos tabletes
com registros de dotes, mas esses eram instrumentos
particulares, privados.
O casamento era, então, uma união privada, que
ocorria no que hoje consideramos o domínio da vida
privada. É certo que o governo romano, em caso de
conflitos oriundos de casamentos, invariavelmente
relativos a heranças ou a dotes não devolvidos após a
separação, tinha o poder de declarar casamentos válidos
ou inválidos, mas somente após o fato. Além disso,
juristas romanos também enfatizam que não havia
formalidades específicas e precisas para uma cerimônia
de casamento que o tornassem, juridicamente falando,
válido. E o primeiro caso citado na literatura de
validação de um casamento teria ocorrido em 230 AEC,
com o estabelecimento da actio rei uxoriae, uma ação
legal para a retomada do dote em um caso de dissolução
do casamento, que demandou, antes de tudo, decidir
sobre a validade do casamento e do acordo sobre o dote
(A. Gell. NA. 4.3.1-2).
Para o nosso modo de ver as coisas, a inexistência
de formalidades jurídicas para que um casamento fosse
realizado é uma das maiores diferenças entre nossa ideia
de casamento e a dos romanos antigos. No caso de
disputas, como a narrada por Cícero, a maior
dificuldade era determinar se uma relação entre duas

93
pessoas tinha sido, num momento específico, realmente
um casamento. E isso ocorria em disputas sobre dotes,
ou, mais frequentemente, no caso de um cidadão
romano (do sexo masculino) morrer intestado, como no
caso que observamos. Na falta de testamento e na
presença de conflitos, recorria-se a expedientes tais
como, após a verificação se os cônjuges realmente
tinham o ius conubii, investigar se o casal em questão
exibia-se publicamente como um casal (era o que se
chamava affectio maritalis), se as duas pessoas se
tratavam como cônjuges, se houve coabitação, e se as
familiae e os vizinhos os consideravam casados. Havia
também ritos religiosos – privados – que comemoravam
um casamento, e dentre os meios de juristas verificarem
a validade de um casamento, no caso de disputas,
estavam os depoimentos de testemunhas desses rituais;
talvez seja este um dos motivos pelos quais “dar uma
festa” fosse uma das estratégias das familiae para fazer
com que um casamento passasse ao conhecimento
público.
Outro ponto relevante, dadas as discussões atuais
sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, é que a
lei romana não proibia tais casamentos, e foi só em 230
EC, três séculos após a morte de Cícero, que um jurista,
Modestinus, definiu o casamento como uma coniunctio
maris et feminae – e o mais interessante é que seu
94
vocabulário não diz “um homem e uma mulher”, e sim,
“um macho e uma fêmea”. Esta definição é pontual e
isolada em todo o corpus das leis romanas, e não
sabemos se foi motivada por algum caso que requeria a
validação de um casamento entre pessoas do mesmo
sexo ou por outro motivo – e é preciso lembrar, aqui,
que os casamentos, uma questão privada, eram
“validados” ou “invalidados” após o fato e só se houvesse
uma disputa entre as partes. Disputas por herança eram
improváveis em casamentos de pessoas do mesmo sexo,
dada a concepção de sucessão em Roma: os filhos
herdam de seus pais, os homens podem transmitir
heranças a seus filhos legítimos ou adotados; as mulheres
podem herdar, mas, a não ser excepcionalmente, não
transmitem heranças (que retornam à sua familia após
sua morte). Casais formados por pessoas do mesmo sexo
não geravam filhos biológicos, e herdeiros eventuais de
cada um dos membros do casal seguiriam as disposições
usuais do direito das sucessões.
Há evidências de que mulheres da elite romana
tardo-republicana deixaram bens em testamento e que se
dedicaram a vendas de propriedades e outras transações
comerciais em seu próprio nome, um tema que ainda
demanda estudos aprofundados. A tutela das mulheres,
em muitos casos, parece ter sido mais nominal do que
efetiva, e houve desenvolvimentos legais no sentido do

95
reconhecimento de direitos e obrigações da mãe em
relação a seus filhos. Mas são casos isolados e (ainda)
pouco estudados. Conhecemos diversos testamentos de
mulheres após Augusto, geralmente amparadas pelo ius
liberorum augustano, mas, no caso de mulheres que
morreram intestadas, as regras davam prioridade a seus
irmãos sobre seus filhos, e as soluções em tribunais eram
ad hoc, o que sugere uma relutância em ferir os
princípios agnáticos da sucessão – era importante para
os filhos, pois, manter ótimas relações com o avô e o tio
materno, se quisesse herdar algo da mãe...
Como o casamento era uma questão privada e o
divórcio também não dependia de nenhum controle
jurídico-estatal, a comunidade de propriedade em caso
de separação do casal também não era imposta pela lei
sob nenhuma forma. Os cônjuges, no casamento
romano, preservavam suas propriedades anteriores ou
posteriores ao casamento, e há evidências de que uma
pessoa podia deixar uma herança para seu cônjuge, mas
esta herança era facilmente contestada pela familia. Em
outras palavras, no casamento romano há poucas
consequências – em termos de bens e propriedades –
para os cônjuges. Talvez por isso não tenha chegado até
nós nenhum caso de validação de casamentos entre
pessoas do mesmo sexo e haja este silêncio nas fontes
jurídicas, apesar de termos notícias de casamentos deste

96
tipo (incluindo a performance dos rituais religiosos e,
mesmo, evidências de dotes) em outros tipos
documentais. Como um casamento entre pessoas de
sexos diferentes era validado ou invalidado em caso de
disputas patrimoniais, é impossível falar sobre validade
ou invalidade de casamentos de pessoas do mesmo sexo
em Roma. Mas é possível falar da sua existência, com
base nas várias evidências sobre cerimônias de
casamentos entre pessoas do mesmo sexo – que eram
sempre privadas, tanto para casais do mesmo sexo
quanto para casais de sexos diferentes.
Tais evidências, especialmente as literárias,
atualmente têm chamado muito a atenção, o que é
compreensível devido aos debates atuais sobre as uniões
homoafetivas, se devem ou não ser consideradas
casamentos pela lei, e outras diversas questões correlatas.
Na poesia romana, as evidências mais conhecidas são
Marcial (Poema, 12.42) e Juvenal (2.117-142). Juvenal,
por exemplo, narra o casamento entre um nobre romano
– que, além de nobre, era um sacerdote – com um
jovem músico de um colégio religioso para quem o
nobre garantiu um grande dote, e as invectivas de
Juvenal contra esse casamento radicam, em grande parte,
no fato de o músico ser de uma classe social considerada
indigna para se casar com um nobre romano e,
obviamente, no valor do dote – e a questão é: para que o

97
dote, se o jovem não é uma mulher? Juvenal satiriza a
cerimônia de casamento, na qual o nobre romano se
vestiu de noiva, o que, para Juvenal, tornou-o indigno
porque efeminado – a efeminação era, esta sim, um
defeito moral para os romanos, o que radica em uma
acentuada misoginia da literatura romana, mas este é um
tema que escapa aos interesses deste texto.
Outros exemplos são os casamentos do
imperador Nero com dois homens, um de cada vez,
criticados por Tácito e Suetônio. Tácito (Ann. 15.37),
por exemplo, vitupera contra esses casamentos de Nero,
e um dos argumentos é o fato de que não geravam
descendência (um topos da invectiva atual contra as
uniões entre pessoas do mesmo sexo, mesmo que,
rigorosamente falando, a descendência legítima não
dependa da reprodução biológica, seja hoje, seja na
Roma antiga). É preciso notar que o principal ponto de
Tácito não diz respeito à ilegalidade técnica dos
casamentos, pois os casamentos não são, em nenhum
momento, postos em causa, e sim a suposta excessiva
libido e a falta de moderação do imperador. Importa
notar que a coabitação do imperador Adriano e de
Antíoco (e com outros jovens) não foi criticada nem
vituperada por Tácito ou por outros escritores de sua
época, escritores que eram senadores romanos, ou
pessoas ligadas de um modo ou de outro aos círculos de

98
poder. Seria por que não houve uma cerimônia de
casamento, ou por que havia herdeiros legítimos? Ou
seria por que esses senadores e dignitários arriscariam
suas cabeças se o fizessem, sendo mais fácil atacar Nero,
morto há muito tempo?
Seja como for, pode-se perceber que o casamento
é um dos elementos que alimentam uma familia
romana, gerando novos membros na linhagem
masculina, mas não se confunde com ela. Casamentos
de pessoas do mesmo sexo existiam e não eram nem
ilegais, nem legais, por não dizerem respeito às regras da
familia romana. Do mesmo modo, casamentos entre
pessoas de sexos diferentes tinham o potencial de gerar
filhos-herdeiros para um paterfamilias, mas eram tênues
e voláteis, dadas as características da familia romana.

À guisa de conclusão...
Volto, então, ao início deste texto, retomando a
passagem de Cícero:

Quid est sanctius, quid omni religione munitius quam


domus unius cuiusque civium? Hic arae sunt, hic foci,
hic di penates, hic sacra, religiones, caerimoniae
continentur; hoc perfugium est ita sanctum omnibus
ut inde abripi neminem fas sit. (Dom. 109)

99
[O que é mais sagrado, qual a proteção mais inviolável
de toda a religião, que a casa de cada cidadão? Nesta
estão seus altares, suas lareiras, seus Penates, seus
objetos sagrados, sua religião, seus ritos; é um refúgio
tão santo aos olhos de todos, que seria um sacrilégio
retirar dela qualquer um pela força.]

Cícero se refere aqui à domus, o centro da familia,


propriedade do paterfamilias, e dizia respeito aos seus
antepassados e seus descendentes, às suas divindades,
seus altares e seus objetos sagrados. Sua esposa, Terentia,
legalmente falando, não fazia parte de sua familia, e sim
pertencia à familia de seu pater que, no momento desta
citação, era seu irmão, o senador e escritor Marco
Terêncio Varrão. Os muitos bens e propriedades da
riquíssima Terentia não co-pertenciam a Cícero, mas
eram exclusivamente dela. Há cartas em que Cícero se
mostra preocupado com a salvaguarda dos bens de
Terentia devido à guerra civil e às proscrições, pois ele,
seu marido, era o administrador, mas não o co-
proprietário (e.g. Fam. 14.4.4.). Quando Terentia pediu
o divórcio, seus bens saíram da administração de Cícero.
Assim, não se pode confundir o casamento, muito
menos o casal, com a familia romana, pois são realidades
distintas.
Eis algumas diferenças entre nossas leis sobre a
família e as leis romanas. Mas, por que estudar a lei
100
romana em relação à família? Nas últimas três décadas, o
tema da família romana tem sido objeto de muitas
pesquisas e debates, e o fundamento deste debate é a
preocupação de abandonarmos as “ilusões de ótica” e
percebermos a ‘família’ como um conceito que cobre
uma série de formações sociais distintas no tempo e no
espaço, e não uma única e contínua instituição social. As
evidências documentais nos apresentam não uma
essência imutável, mas sim uma série de configurações
históricas diferentes para tal rubrica. Tais configurações,
que geram formações institucionais no interior das quais
as pessoas vivem, ou são “capturadas”, são formadas por
diferentes ingredientes sociais, que variam com o tempo.
Este é, a meu ver, o maior valor do estudo da
antiguidade, apesar de todas as distinções existentes
entre nós e os romanos antigos e, mais ainda, entre a lei
romana e a vida das “famílias reais” romanas: fazer com
que pensemos sobre nossas próprias questões, nossas
próprias regras e valores, nosso próprio mundo.
A lei familiar romana era uma construção, uma
abstração com base em uma ideia do que era uma
“típica” familia romana. Os juristas tentavam definir o
que era a familia e, a meu ver, a definição mais clara
surge em Dig. 50.16.195.1-5, na qual Ulpiano
claramente assimila a familia ao patrimonium. Mas,
sabiamente, eles não punham uma “fé cega” nessas

101
definições, como vemos no próprio Dig. 50.17.202, em
que o jurista diz: ... toda definição é perigosa, desde que
é raro que definições não possam ser questionadas. Esta
passagem pode ser um alerta para nós.

Bibliografia comentada:
DIXON, S. From Cerimonial to Sexualities: a Survey of
Scholarship on Roman Marriage. In: RAWSON, B.
(ed.) A Companion to Families in the Greek and
Roman Worlds. Chicester: Wiley-Blackwell 2011, pp.
245–61.
Susan Dixon apresenta um estudo de base
historiográfica sobre o casamento romano, observando
as transformações das problemáticas da escrita da
história sobre este tema.

EVANS-GRUBBS, J. Women and the Law in the


Roman Empire. A Sourcebook on Marriage, Divorce
and Widowhood. New York: Routledge, 2002.
Trata-se de uma antologia de documentos, com boas
traduções, para o estudo das leis sobre o casamento, o
divórcio e questões relacionadas à viuvez no Império
Romano.

GARDNER, J. Women in Roman Law and Society.


Bloomington: Indiana University Press, 1986.

102
Este livro é considerado um clássico para o estudo das
disposições legais relativas a mulheres no mundo
romano.

HERSCH, K. K. The Roman Wedding: Ritual and


Meaning in Antiquity. Cambridge: Cambridge
University Press, 2010.
Excelente estudo sobre diversas formas rituais e
cerimônias de casamentos romanos.

LEFTKOWITZ, M. R.; FANT M. B. (ed.) Women’s


Life in Greece and Rome: A Sourcebook in Translation.
Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press, 2005.
Outra excelente antologia de documentos textuais, com
boas traduções.

LOVEN, L. L.; STROMBERG, A. (ed.) Ancient


Marriage in Myth and Reality. Newcastle: Cambridge
Scholars, 2010.
Esta coletânea traz diversos artigos de especialistas
internacionais, que discutem o tema do casamento em
diversas sociedades da antiguidade e os mitos modernos
sobre o tema.

103
TREGGIARI, S. Roman Marriage: Iusti coniuges from
the Time of Cicero to the Time of Ulpian Oxford:
Oxford University Press, 1991.
Leitura indispensável sobre o casamento romano,
analisando os vários tipos, formas e aspectos do
casamento e da coabitação na Roma do século I AEC ao
século III EC, o período “clássico” da jurisprudência
romana.

104
O GOVERNO E A ALMA:
ALMA:
PLATÃO E HERÓTODO EM DEBATE
Luiz Maurício Bentim da Rocha Menezes43

As formas de governo quando estudadas dentro da ótica


da filosofia política são tratadas basicamente de duas
maneiras: (i) de maneira descritiva, descrevendo cada
uma delas e dizendo em que se diferenciam; e (ii) de
maneira prescritiva, onde se analisa qual é a melhor e se
faz uma hierarquia dos valores de cada uma. Tanto a
descrição como a prescrição de uma forma de governo
vai possibilitar conhecê-la detalhadamente, podendo
ainda ser comparada historicamente, dizendo-se como
cada uma delas ocorre em diferentes épocas. Entretanto,
somente a prescrição envolve um estudo minucioso dos
valores envolvidos ao tratar de suas características, o que
pode envolver formas de governo nunca antes ocorridas
na história ou reuniões entre governos diferentes, de
onde se tira o melhor da cada uma, em uma espécie de
ideal ou utopia.
Forma de governo, ou regime político, é uma
tradução, mesmo que insuficiente para a palavra grega
politeía. A análise e a classificação de regimes como
43
Professor de Filosofia Antiga e Filosofia Política da Universidade do
Estado do Amapá (UEAP).
105
sujeitos de reflexão se faz antes mesmo do uso recorrente
do termo politeía entre os gregos. Será esta noção “a
origem de um duplo modo literário que consiste tanto
em redigir a politeía de tal ou tal cidade, quanto a escrita
sobre a politeía ideal”44. Entre os governos estudados, a
tirania nos chama especial atenção por ser uma forma de
governo ambígua ao ser amada e odiada por muitos. A
palavra tirania não é de cunho grego, mas pode ser de
origem oriental, mais propriamente lídia45. Mas qual
seria propriamente o caráter de uma pólis tirânica? Entre
as formas de governo apresentadas pelos gregos, a tirania
aparece como um problema. Entre elogios e ofensas, o
governo tirânico sempre beirou entre os extremos morais
da virtude humana. Para alguns, é só mais um tipo
possível de governo, para outros, é metáfora plena da
usurpação do poder. Seja qual for a interpretação, a
tirania ainda pode ser encontrada em nossos tempos,
muitas vezes escondida sobre o viés de outro nome. O
que queremos atentar é para o cerne da tirania que se
encontra, não no governo da pólis em si, mas na alma de
seu governante, i. e., o tirano.

44
BORDES, J. Politeia dans la pensée grecque jusqu’a Aristote. Paris:
Les Belles Lettres, 1982, p. 14.
45
URE, P. N. The Origin of Tyranny. Cambridge: Cambridge
University Press, 1922, p. 134. Ver também ANDREWES, A. The
Greek Tyrants.London: Hutchinson’s University Library, 1957, p. 21-
22.
106
Dividiremos este trabalho em duas partes, da seguinte
maneira. (I) Através do estudo do debate persa
apresentado por Heródoto em suas Histórias (III.80-
82), pretendemos melhor analisar a maneira como ele
conduz o debate sobre as formas de governo e a
importância de uma distinção na alma de quem
governa. (II) A entrada de Trasímaco no Livro I da
República de Platão traz para a discussão uma maior
ênfase nos assuntos da cidade (pólis) e do governo
(arkhé). Faremos uma análise do lógos de Trasímaco
para demonstrar o paralelo existente com o debate persa
de Heródoto atráves da classificação das formas de
governo.

I
O debate persa sobre as constituições46 está relacionado
diretamente ao governo de Dario na Pérsia entre os
séculos VI e V a.C. Segundo a inscrição de Behistun,
Dario ascendeu ao trono por direito de nascimento e

46
HERÓDOTO, Histórias, III.80-82. A nossa tradução é baseada na
de Maria de Fátima Silva e Cristina Abranches Histórias, livro 3
(Lisboa: Edições 70, 1997). Utilizamos para o texto grego a edição
estabelecida por Carolus Hude, Herodoti Historiae, Tomvs I (Oxford:
Oford University Press, 1927). Demais citações a obra de Heródoto
serão abreviadas por Hdt.
107
por vontade do deus masdeísta Ahura Mazda47. A
inscrição gravada no rochedo de Behistun48 foi criada
com o intuito de ressaltar o direito hereditário legítimo
de Dario ao trono aquemênida, sendo o texto original
do próprio Dario o qual foi por este ditado aos escribas e
traduzido em diversas línguas para fins de divulgação49.
Muito possivelmente Heródoto conhecia esse texto,
senão diretamente, pelo menos indiretamente através de
uma de suas traduções ou pela oralidade. O Livro III de
suas Histórias narra os antecedentes históricos da época
da subida de Dario ao poder, assim como o seu governo
propriamente dito, sendo o debate persa peça central
para a validação desse novo governo. O debate ocorre
entre Otanes, Megabizo e Dario, onde estes discutem
47
KENT, R. G. Old Persian. Grammar. Texts. Lexicon. New Haven,
Connecticut: American Oriental Society, 1950. Ver principalmente DB
I §§ 1-10. Todas as citações da inscrição de Bahistun serão da tradução
de Kent.
48
Cf. BALCER, J. M. Herodotus & Bisitun – problems in ancient
historiography. (Historia, Einzelschriften. Heft 49). Stuttgart: Franz
Steiner, 1987, p. 21 apud SILVA, M. de F.; ABRANCHES, C.
Heródoto Histórias, livro 3. Lisboa: Edições 70, 1997, p. 95; “O
rochedo de Behistun encontra-se cerca de trinta quilômetros da atual
região de Kermanshch, no Curdistão. A inscrição foi escrita em alfabeto
cuneiforme, em persa antigo, neobabilônico e elamita, datando
provavelmente de 519-518 a.C. e é a mais longa e notável das inscrições
reais aquemênidas, redigidas entre 539 e 338 a.C”.
49
ASHERI, D. O Estado Persa. Ideologias e Instituições no Império
Aquemênida. São Paulo, Perspectiva, 2006, p. 77.
108
entre si qual seria o melhor tipo de governo a ser
formado. Apesar de este ser um debate curto, ele implica
em algumas dificuldades interpretativas que podem ser
minimizadas se entendermos, primeiro, o momento
histórico em que se encaixa e, segundo, seu status
quaestionis. Feito isso, poderemos compreender que o
governo escolhido não passa de uma tirania, tipo de
governo que traz diversos problemas para o
entendimento grego do governante oriental.
Depois de uma campanha vitoriosa contra o
Egito, Cambises, senhor da Pérsia, morre antes de
conseguir voltar à pátria, cabendo a seu irmão Esmérdis
assumir o trono. Este, no entanto, já havia sido
assassinado por Prexaspes, a pedido do próprio
Cambises. Para evitar qualquer tipo de revolta,
Prexaspes mantém o ocorrido em segredo. Os magos
resolvem aproveitar-se desta situação para armar um
plano de usurpação, onde um mago de mesmo nome
Esmérdis assumiria o poder por ser muito semelhante
fisicamente a Esmérdis, irmão de Cambises e filho de
Ciro. Colocado o plano em ação, ele reina por sete
meses, sendo desmascarado por Otanes no oitavo mês,
conforme Heródoto (Hdt. III.67-68). De acordo com a
inscrição de Behistun, Cambises matou em segredo seu
irmão Bardiya, o mesmo que Heródoto chama de
Esmérdis. Depois da partida de Cambises para o Egito,

109
o mago Gaumata se faz passar por Bardiya e promove
uma revolta incitando o povo contra Cambises, que vem
a falecer posteriormente no Egito. Gaumata mata todos
aqueles que conheciam Bardiya e ninguém se opõe a ele
até a chegada de Dario. Este irá matar o mago Gaumata,
tomar o reino dele e com o favor do deus Ahura Mazda
se tornará rei, retomando o reino de sua família (DB I
§§ 10-13).
Apesar da mudança nos nomes, a inscrição de
Behistun e a narrativa de Heródoto são semelhantes no
que tange os principais pontos. Devemos atentar para o
fato de o usurpador ser um mago, ou seja, fazer parte de
um dos seis clãs da Média (Hdt. I.101). Isso colocou
automaticamente o poder da Pérsia nas mãos dos
medos, uma retomada do poderio Medo na Ásia
anterior ao governo de Ciro. Tal fato é motivo suficiente
para que Dario derrube o mago e restaure o governo nas
mãos de um persa que, no caso, é ele mesmo. No
entanto, seria a versão oficial de Dario, oferecida pela
inscrição e utilizada para legitimar seu governo, a
verdade por trás dos fatos?
Muitas vezes os fatos podem ser alterados pelo
vencedor, mudando, dessa forma, a história a ser
contada. Nada impede que o usurpador não seja um
mago, como foi exposto acima, mas o próprio Dario.
Há possibilidade de que não exista mago algum e que o

110
irmão de Cambises, Esmérdis (ou Bardiya), tenha
chegado ao trono e posteriormente sido destronado por
Dario, que para justificar seu ato teria criado a história
do pseudo Esmérdis. Dessa forma, tendo sido o novo
governante pintado como alguém de fora da família
aquemênida e caracterizado como um mago medo,
Dario poderia facilmente legitimar seu governo através
da usurpação. Asheri coloca o problema nos seguintes
termos:

A inscrição de Behistun é um texto de propaganda,


cujo fim principal é apresentar Gaumata-Bardiya como
um impostor, um usurpador e subversor do direito
hereditário legítimo de Dario ao trono aquemênida. A
verdade fatual pode ser bem diferente: que o usurpador
seja Dario – um Aquemênida, certamente, mas do
ramo secundogênito, que provavelmente nunca deteve
o trono de Anshan. Tendo Cambises morrido sem
filhos, Dario pode ter decidido eliminar o único
pretendente legítimo, Bardiya ou Esmérdis, irmão de
Cambises, e conquistar o trono com um golpe de
estado. Não seria possível entender, de outro modo, a
insistência de Dario sobre a legitimidade de seu poder.
(ASHERI, 2006, p. 25)50
50
Ver também NYBERG, H. S. Das Reich der Achämeniden. In:
VALJAVEC, F. (Ed.). Historia Mundi, 3. Munich, 1954, p.76-77 apud
BRANNAN, P. T. Herodotus and History: The Constitutional Debate
Preceding Darius’ Accession. Traditio, v. 19, 1963, p. 431; “a inscrição
de Behistun é uma perspicaz ficção política. Dario teve que justificar sua
111
A partir da formulação da hipótese da usurpação do
trono por Dario, passaremos para a análise do debate
persa narrado por Heródoto. O fato do debate não
constar na inscrição de Behistun em nada prova que este
não ocorreu, apesar de que também nada possamos dizer
no sentido contrário. Muitos historiadores tomam o
debate como puramente ficcional. Não será esse o ponto
que iremos assumir, mas antes de apresentarmos melhor
a nossa hipótese gostaríamos de discutir brevemente
duas outras possíveis hipóteses interpretativas.
A primeira diz que o debate seria baseado em
tratado de algum sofista como Protágoras, Hípias,
Antifonte ou Pródico. Tal obra exporia a classificação
tripla dos governos: dos muitos, dos poucos e de um só.
Essa discussão tão característica do V século, já seria
bastante conhecida de Heródoto e poderia tê-lo
influenciado no momento da composição de sua obra.
Para Murari Pires,

Trata-se do horizonte mental do lógos helênico que o


texto de Heródoto assim projeta sobre a história
aquemênida. Ele transpira a ambiência dos
fundamentos retóricos da sofística. Ele discute e teoriza

subida ao trono. Ele empregou essa técnica de propaganda para fazer


isso”. Esta e demais traduções do inglês utilizadas nesse trabalho são
nossas.
112
pelo debate as formas que estruturam a política, já bem
consciente da evolução democrática cujos princípios
virtuosos (isonomia, liberdade, mérito e
responsabilidade cívica) são resolutamente
contrastados com os vícios despóticos e transgressores
dos bárbaros51.

O debate refletiria o embate entre lógos e antilogía,


discutindo as leis adequadas para o novo governo, sendo
o argumento final de Dario uma variação do τὸ
συµφέρον sofista52.
A segunda hipótese irá fazer uma comparação
com a Atenas democrática do século V. No entanto,
dificilmente a defesa que Otanes faz do governo do povo
é semelhante à democracia ateniense da época de

51
PIRES, F. Murari. Heródoto: Mithistória do Debate Persa. In:
PIRES, F. M. Tucídides entre Maquiavel e Hobbes I: O(s) Olhar(es) da
História e as Figurações do Historiador (Modernidades Tucidideanas
II, 2011, inédito, não publicado, Registro BN 534.282). Disponível
em:<http://www.fflch.usp.br/dh/heros/FMP/DebatePersa.htm>. Acesso
em 19 de setembro de 2012.
52
Cf. BRANNAN, op. cit., p. 433. Contra ver: GAMMIE, J. G.
Herodotus on Kings and Tyrants: Objective Historiography or
Conventional Portraiture? Journal of Near Eastern Studies, v. 45, n. 3,
1986, p. 172-3; “O debate foi totalmente analisado recentemente por
Helmut Apffel, que concluiu, apesar de outras coisas, que os discursos
não refletem a influência dos sofistas, mas, com exceção do discurso de
Otanes, voltam para a Pérsia original e para uma variedade de fontes da
Iônia como também do continente grego”. Grifos nossos.
113
Péricles. Heródoto não usa o termo δεµοκρατία nas
palavras de Otanes, mas ισονοµίη, o que pode
representar, na verdade, uma crítica à democracia
ateniense. Esta crítica pode ser melhor entendida se
estabelecermos uma comparação com a descrição que
Tucídides nos apresenta daquela época como no
seguinte discurso de Cleon:

Muitas vezes no passado senti que a democracia é


incompatível com a direção de um império, mas nunca
tanto quanto agora, ao observar a vossa mudança em
relação aos mitilênios. [...] vossa fraqueza vos expõe a
perigos e não conquista a sua gratidão; sois incapazes
de ver que vosso império é uma tirania imposta a
súditos que, por seu turno, conspiram contra vós e se
submetem ao vosso comando contra a sua vontade53.

Tucídides demonstra os problemas enfrentados pela


democracia ateniense que em alguns casos pode parecer,
no seu modo de agir, com uma tirania. Dario, em seu
discurso, defende o monarca como o melhor entre os
homens, o que faz com que ele tenha com este uma

53
TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. III, 37. Tradução
de Mario da Gama Kury. (4 ed.). Brasília: Editora Universidade de
Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais; São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001.
114
distinção do inconstitucional tirano54. Se entendermos
que o debate sobre as constituições tem um cunho
filosófico, tomado por muitos comentadores como o
“início da filosofia política grega”55, poderemos entender
que o que Heródoto está a fazer nesse debate não é
apenas um relato persa, mas uma investigação sobre qual
é a melhor forma de governo56.
O primeiro a falar será Otanes que defenderá a
isonomía através do governo dos muitos, pois a
monarquia muitas vezes pelo excesso [ὕβρις] faz crescer
a inveja [φθόνος], própria da natureza humana do
homem desde que ele existe. No entanto,

um homem dado à tirania não devia conhecer a inveja,


uma vez que tem todos os bens [ἔχοντα γε πάντα τὰ
ἀγαθά]; mas é precisamente o contrário que grassa nas
suas relações com os cidadãos – inveja os melhores
enquanto vivem e estão à sua beira, e regozija-se com
os piores, sempre pronto a dar ouvidos às calúnias; [...]

54
Cf. WEBSTER, T. B. L. Political Interpretations in Greek Literature.
Manchester: Manchester University Press, 1948, p. 51.
55
Cf. HOW, W. W.; WELLS, J. A Commentary on Herodotus.
Oxford, 1928, v. I, p. 278 apud FERRILL, A. Herodotus on Tyranny.
Historia: Zeitschrift für Alte Geschichte, v. 27, n. 3, 1978, p. 393, nota
28.
56
Segundo BORDES, 1982, p. 249; “Nós devemos nos contentar de
ver nesse texto de Heródoto uma das primeiras manifestações de uma
reflexão sistemática estreitamente ligada à Atenas”.
115
adultera as leis dos antepassados [νόµαιά τε κινέει
πάτρια], como também violenta as mulheres e até
condena à morte sem prévio julgamento. [...]
Exponho-vos, pois a opinião de que, recusando a
monarquia, é o povo que devemos exaltar, porque é
em comum [κοινόν], na unidade de todos [ἐν γὰρ τῷ
πολλῷ ἔνι τὰ πάντα], que tudo deve estar. (Hdt.
III.80, 4-6)

Megabizo irá acordar com Otanes quanto ao tirano, mas


não concordará com o governo dos muitos, defendendo
em seu lugar a oligarquia. Pois sair da hýbris do tirano
para cair na hýbris do povo não é aceitável;

É que, se o primeiro dos dois, o tirano, faz alguma


coisa, fá-la com plena consciência do que está a fazer
[γνώσκων ποιέει]; enquanto o outro, o povo, nada
pode realmente saber [οὐδὲ γνώσκειν ἔνι]. [...] Que
usem, pois, as capacidades governativas do povo todos
aqueles que desejam mal aos Persas, e só esses; nós cá,
por nosso lado, elejamos uma assembleia escolhida
entre os melhores homens [ἀνδρῶν τῶν ἀρίστων], e
confiemos-lhe o poder [τὸ κράτος]. (Hdt. III.81, 2-3)

Dario irá considerar que das três alternativas


apresentadas democracia, oligarquia e monarquia,
somente a última supera as demais (Hdt. III.82, 1). Pois
na oligarquia a disputa pelo destaque entre os melhores

116
acaba por gerar o homicídio, dando lugar à monarquia
(Hdt. III. 82, 3). Quando o povo vem a governar, é
impossível não haver divergências, e as inimizades
criadas acabam por mover à conspiração, levando o
homem mais admirado pelo povo ao poder,
constituindo uma monarquia (Hdt. III, 82, 4). Segundo
Dario:

Nada poderá parecer melhor do que um só homem a


governar, desde que ele seja o melhor [ἀρίστου]: com
efeito, servindo-se do seu bom senso, tão excelente
quanto ele próprio, poderá porventura governar o
povo sem merecer censura, e melhor poderão assim ser
silenciadas as decisões tomadas contra os opositores.
(Hdt. III.82, 2-3)

A liberdade [ἐλευθερίη], segundo Dario, nasce pela


ação de um só homem e, por isso, se deve respeitar as
leis dos antepassados [πατρίους νόµους] mantendo-se a
monarquia (Hdt. III.82, 5). Ferrill em seu estudo sobre
a tirania em Heródoto defende que o termo µόναρχος
“tem um sentido neutro de ‘governante’ e era usado por
Heródoto de maneira intercambiável tanto com
βασιλεύς como com τύραννος” (1978, p. 397). O
termo τύραννος, por outro lado, não é um sinônimo de
βασιλεύς, ao contrário do que diz a maioria dos
comentadores de Heródoto, já que, segundo Ferril, há
117
nas Histórias uma clara distinção entre estes dois termos
(1978, p. 395)57. Segundo diz, “não se pode afirmar que
Heródoto era tão fortemente oposto à monarquia que
não tenha feito distinções entre o tirano e o monarca. O
debate persa acima citado demonstra que ele fez a
distinção” (1978, p. 395). Dessa forma, parece certo que
a defesa de Dario é pelo melhor governo de todos e que,
perante todos os argumentos apresentados, este só pode
ser a monarquia.
De acordo com Struve, Heródoto teve acesso a
fontes persas, mesmo que indiretamente, para compor
os três discursos sobre os regimes políticos, sendo isso
atestado pela comparação dos discursos, principalmente
o discurso de Dario, com a inscrição de Behistun58.
Asheri, a partir dos estudos de Struve irá concluir que

É incontestável que Heródoto conhecesse


perfeitamente os ideais monárquicos de Dario: o papel
decisivo do intelecto, o princípio da justiça imparcial,
o critério da verdade, a monarquia como força
mediadora entre extremos. Mas é igualmente
necessário notar que essas ideias genéricas e usuais
estão presentes nas propagandas monárquicas de todos

“Heródoto não usa o termo basileús para se referir aos tiranos gregos”.
57

58
STRUVE, V. V. Gerodot i polititcheskije tetchenija v Persii epochi
Darija J. Vestnik drevnej Istorii, v. 3, 1948, p. 12-35 apud ASHERI,
2006, p. 91.
118
os tempos e também na literatura grega de época
arcaica. (ASHERI, 2006, p. 95)

Há, consequentemente, um ardil no discurso de Dario


que permite que ele persuada os outros dois
participantes. Tal artimanha pode ser identificada da
seguinte maneira: ao fazer seu discurso, Dario contrasta
o melhor homem com o pior, a liberdade com a
arbitrariedade, o bom senso com a hýbris, o monarca
com o tirano, defendendo para isso os pátrioi nómoi.
Parece tudo bem ajustado e correto: o monarca ao ter
bom senso liberta os homens do jugo do tirano por ser
ele o melhor. Mas, o que devemos nos perguntar é o que
ele entende por melhor [ἄριστος]? Em seu discurso
somente a monarquia é a melhor porque tem o melhor
homem. Se investigarmos a inscrição de Behistun,
veremos que Dario é o rei porque é o escolhido de
Ahura Mazda. Isso legitima a sua realeza, mas será que
serve como critério para se determinar o melhor
homem? Dario em seu discurso cria um dualismo que
contrasta a monarquia em três momentos: primeiro com
o seu outro que é a tirania, depois com a oligarquia e
por último com a democracia. No entanto, podemos
entender que cada um dos três tipos de governo pode ter
seu melhor e seu pior, o que não é dito em seu discurso.
Dario parece indicar que dentre os melhores homens é

119
possível fazer uma distinção de alma que determina o
melhor governante. Somente este único homem é capaz
de governar melhor perante todos os outros, o que
legitima a monarquia como sendo o melhor governo. É
notório que Dario está fazendo uma distinção de alma
entre os homens para que se possa dar o exercício do
governo, pois, do contrário, se não houvesse tal
distinção, todos os governos seriam possíveis, o que não
o permitiria defender a monarquia como melhor entre
todos os outros tipos de governo.
Otanes, ao contrário, é único que não defende
um governo do(s) melhor(es), mas sim um governo do
koinón, já que, segundo diz com relação à monarquia,
“até o melhor dos homens [ἄριστον ἀνδρῶν], com
todo esse poder, ficaria fora dos limites do seu juízo
habitual” (Hdt. III.80, 3). Essa crítica vai de encontro
ao que Dario defende quando supõe existir um áristos
capaz de melhor governar. Otanes julga que todo
homem, por melhor que ele seja, ao ter todo o poder
para si irá se transformar num tirano. Isso indica que o
tirano não é um problema de caráter propriamente, mas
um mal do desejo que compõe a alma humana. Por isso,
a única possibilidade para se ter um bom governo é o
koinón, que constrói nos muitos a unidade de todos [ἐν
τῷ πολλῷ ἔνι τὰ πάντα]. Essa unidade defendida por
Otanes só pode ser alcançada através da isonomia,
120
palavra grega que indica um poder de direito
(BORDES, 1982, p. 240), igual para todos os que
participam desse governo koinón. Segundo Bordes,

O sinal é, além do fato de que a igualdade será um dos


critérios clássicos da democracia, o emprego da
isonomia na discussão sobre os regimes, onde
Heródoto faz do termo o nome mesmo da democracia,
do regime onde o povo comanda: πλῆθος ἄρχον.
(BORDES, 1982, p. 240)

É notório que Dario no debate está construindo os


alicerces para assumir o poder, seja pela palavra ou pela
força, vide os exemplos de homicídio e conspiração que
não apenas foram citados em seu discurso como
efetivamente praticados se levarmos em consideração a
usurpação contra o mago medo. Ao assumir a
monarquia naquele momento, Dario estaria levando o
governo para uma posterior tirania. Se olharmos por esse
lado, poderemos notar que o discurso de Otanes, e a
defesa da isonomia, é aquele que melhor combate os
valores da tirania59.
59
Segundo ASHERI, D. Book III. In: ASHERI, D.; LLOYD, A.;
CORCELLA, A. A Commentary on Herodotus Books I-IV. Oxford;
New York: Oxford University Press, 2007, p. 474; “O adjetivo
ἰσόνοµος ocorre em um famoso escólio ático dos tiranicidas do final do
sexto século e indica a liberdade como oposta à tirania. [...] É provável
que ἰσονοµία etimologicamente deriva de ἴσος e νέµειν; o sentido
121
É interessante notar que Heródoto afirma antes que os
discursos proferidos no debate não seriam críveis [λόγοι
ἄπιστοι] para a maioria dos gregos, mas que eles
realmente teriam ocorrido (Hdt. III 80, 1-2). Pensar que
um outro povo, afastado culturalmente dos gregos e
considerado como bábaros, tenha sugerido um modelo
para o que veio a se tornar a democracia é romper com
todos os paradigmas helênicos até então. A relevância do
debate persa é a maneira como ele apresenta os
diferentes modelos de governo, dos muitos, dos poucos
e de um só, sobre o contraste de olhares dos príncipes
persas. “Entre virtudes democráticas e excelência do
governo, o Oriente dava lições para quem declinasse o
vocabulário da pólis e seus derivados”60. A oposição de
discursos existentes torna rica não só a descrição de cada
modelo existente, como também faz a defesa e a crítica
de cada um deles, enriquecendo com detalhes e valores a
composição do debate.

original seria ‘igual distribuição’; parece que somente depois o termo


seria entendido como ‘igualdade perante a lei’, como derivado de ἴσος e
νόµος”. Isso reforça o discurso de Otanes como sendo o que melhor faz
oposição ao tirano.
60
LIMA, P. B. Teria o Oriente inventado a Democracia? Revista UFG,
v. 10, n. 4, 2008, p. 78.
122
II
No Livro I da República, Trasímaco, em seu diálogo
com Sócrates, irá introduzir o assunto das formas de
governo da seguinte maneira:

Εἶτ’ οὐκ οἶσθ’, ἔφη, ὅτι τῶν πόλεων αἱ µὲν


τυραννοῦνται, αἱ δὲ δηµοκρατοῦνται, αἱ
ἀριστοκρατοῦνται;
Πῶς γὰρ οὔ;
Οὐκοῦν τοῦτο κρατεῖ ἐν ἑκάστῃ πόλει, τὸ ἄρχον;
Πάνυ γε.
Τίθεται δέ γε τοὺς νόµους ἑκάστη ἡ ἀρχὴ πρὸς τὸ
αὑτῇ συµφέρον, δηµοκρατία µὲν δηµοκρατικούς,
τυραννὶς δὲ τυραννικούς, καὶ αἱ ἄλλαι οὕτως·
θέµεναι δὲ ἀπέφηναν τοῦτο δίκαιον τοῖς ἀρχοµένοις
εἶναι, τὸ σφίσι συµφέρον, καὶ τὸν τούτου
ἐκβαίνοντα κολάζουσιν ὡς παρανοµοῦντά τε καὶ
ἀδικοῦντα. τοῦτ’ οὖν ἐστιν, ὦ βέλτιστε, ὃ λέγω ἐν
ἁπάσαις ταῖς πόλεσιν ταὐτὸν εἶναι δίκαιον, τὸ τῆς
καθεστηκυίας ἀρχῆς συµφέρον. αὕτη δέ που κρατεῖ,
ὥστε συµβαίνει τῷ ὀρθῶς λογιζοµένῳ πανταχοῦ
εἶναι τὸ αὐτὸ δίκαιον, τὸ τοῦ κρείττονος συµφέρον.

Pelo visto não sabes – disse – que, dentre as póleis, há


as que vivem sob o regime da tirania, outras da
democracia e outras da aristocracia?
Como não havia de sabê-lo?
Ora, em cada pólis, não é o governo que detém a
força?
Exatamente.
123
Certamente que cada governo estabelece as leis de
acordo com a sua conveniência: a democracia, leis
democráticas; a tirania, leis tirânicas; e os outros, da
mesma maneira. Uma vez promulgadas essas leis para
os governados, fazem saber que é justo aquilo que lhes
convém, e castigam os transgressores, a título de que
violaram a lei e cometeram uma injustiça. Aqui tens,
meu excelente, aquilo que eu quero dizer, ao afirmar
que há um só modelo de justiça em todas póleis – o
que convém aos poderes constituídos. Ora estes é que
detêm a força. De onde resulta, para quem pensar
corretamente, que a justiça é a mesma em toda parte: a
conveniência do mais forte.61

Ao falar da justiça, Trasímaco parece estar preocupado


em demonstrar como esta se apresenta na prática dentro
da cidade [πόλις] e na relação que estabelece dentro do
governo [ἀρχή] instituído nesta. Tanto Sócrates como
Trasímaco concordam que em cada cidade é o governo
que detém o κράτος que, no caso estabelecido, pode ser

61
PLATÃO. República, 338d6-339a4. Utilizamos aqui a tradução de
Maria Helena da Rocha Pereira A República (Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2001). Tomaremos esta tradução como base para
nosso trabalho. Demais referências à ‘República’ serão abreviadas por
Rep. indicando-se em seguida a numeração. Para o original grego em
todo o trabalho, utilizamos o texto estabelecido por S. R. Slings,
Platonis Rempvblicam (Oxford: Oxford University Press, 2003). Em
nosso trabalho, todas as modificações na tradução da República são
nossas.
124
tanto traduzido como ‘força’ como também ‘poder’62.
Em nenhum momento da posterior discussão entre
Sócrates e Trasímaco estes discutem quem seria, de fato,
o mais forte, pois parece acordado entre eles, desde o
que foi dito em 338d9-10, que o mais forte é aquele que
exerce o poder na cidade através do governo constituído,
e este só pode ser o governante. No decorrer da
discussão, Sócrates tentará provar que, ao contrário do
que diz Trasímaco, a justiça não é a conveniência do
mais forte e que o governante deve visar a conveniência
do governado, mas não tentará inverter a relação de
força estabelecida pelos dois, como podemos ver pela
passagem demonstrada. Segundo Bordes,

[...] é precisamente porque aos seus olhos [de


Trasímaco] a arkhé desempenha, nos três regimes, um
papel exatamente semelhante, a “do mais forte”; nessas
condições, o relato entre as leis e a arkhé é também a
mesma nos três casos: as leis são interesse. Elas
dependem, desse modo, totalmente da soberania e esta
nos é apresentada por Trasímaco como um fato de
evidência indiscutível. Portanto, não há necessidade de
se demandar qual pode ser o melhor regime possível,
pelo menos em absoluto: a escolha do melhor regime é

62
Tomaremos estes termos como sinônimos neste trabalho sempre que
estivermos falando de questões relativas ao governo. Isso inclui a relação
governante e governado.
125
função do interesse de cada cidadão e do lugar onde se
situa no corpo político. (1982, p. 250)

No entanto, Sócrates irá questionar Trasímaco sobre a


possibilidade de o governante errar. Se na formulação
das leis o governante errar, essas não vão ser sempre o
mais vantajoso ao governante, mas também o contrário,
o desvantajoso (Rep., 339c-e). Ao recusar a sugestão de
Clitofonte de que o governante faz leis que ele pensa
serem benéficas a ele, Trasímaco irá perguntar a
Sócrates: “pensas que chamo mais forte aquele que se
engana, no momento em que se engana?” [ἀλλὰ
κρείττω µε οἴει καλεῖν τὸν ἐξαµαρτάνοντα ὅταν
ἐξαµαρτάνῃ;] (Rep., 340c6-7). É a partir da crítica de
Sócrates que Trasímaco vai apresentar mais um
elemento necessário para a definição do mais forte: ele
não deve errar. Mas como pode o governante não errar?
Para melhor entendermos isto, passemos à análise do
argumento da téchne. Trasímaco fala com rigor [κατὰ
τὸν ἀκριβῆ λόγον] que

nenhum artífice se engana [οὐδεὶς τῶν δηµιουργῶν


ἁµαρτάνει]. Efetivamente, só quando o seu saber o
abandona é que quem erra se engana e nisso não é um
artífice. Por consequência, artífice, sábio ou governante
algum se engana, enquanto estiver nessa função, mas
toda a gente dirá que o médico errou, ou que o

126
governante errou. Tal é a acepção em que deves tomar
a minha resposta de há pouco. Precisando os fatos o
mais possível: o governante, na medida em que está no
governo, não se engana; se não se engana, promulga a
lei que é melhor para ele, e é essa que deve ser
cumprida pelos governados. De maneira que, tal como
declarei no início, afirmo que a justiça consiste em
fazer o que é conveniente para o mais forte. (Rep.,
340e1-341a4)

Em seu comentário à República, Adam vai dizer que


Trasímaco, na passagem aqui citada, está entrando no
idealismo, pois toma o governante como infalível63.
Guthrie diz haver uma falha no argumento, pois ao
tentar demonstrar o governante real, Trasímaco acaba
por formular um governante ideal ao introduzir o
sentido estrito de que o governante não erra64. Para
Harrison, o argumento está sem um propósito adequado
e representa uma das provas da manipulação de Platão
sobre o personagem Trasímaco65. Acreditamos que a
passagem não está propriamente tratando de um
idealismo ou qualquer tipo de manipulação de Platão

63
ADAM, J. The Republic of Plato, v. 1. Cambridge: Cambridge
University Press, 1979, p. 33.
64
GUTHRIE, W. K. C. Os Sofistas. São Paulo: Paulus, 2007 (1995, 1ª
ed.), p. 92.
65
HARRISON, E. L. Plato’s Manipulation of Thrasymachus. Phoenix,
v. 21, n. 1, 1967, p. 31.
127
para fins futuros, mas que Trasímaco está estritamente
separando a função do artífice quando está a exercer a
sua arte. Dessa maneira, o médico tomado na função de
exercer a medicina não é assim chamado quando erra,
mas por ser aquele que é designado para tratar do corpo.
O homem que toma por vezes a função de médico pode
por vezes errar em seus afazeres comuns, mas não
quando está exercendo a medicina. Da mesma forma,
Trasímaco está a falar do governante como aquele que
no exercício de sua função faz leis que são melhores para
ele [τὸ αὑτῷ βέλτιστον τίθεσθαι], de acordo com a sua
conveniência, beneficiando assim o seu próprio
interesse. Segundo Santas, Trasímaco adicionou
conhecimento ao poder político como outra condição
necessária para ser o ‘mais forte’66.
A maneira pela qual Trasímaco traz o assunto das
formas de governo à tona e o modo como ele irá tratar o
assunto, faz a abertura das relações entre justiça, cidade e
alma na República. O que precisamos atentar no
momento é como ele irá conduzir o seu argumento. Se
entendermos que o governo, ao possuir o krátos, faz leis
para a sua própria conveniência, como nos diz
Trasímaco, podemos falar que cumprir a lei é beneficiar

66
SANTAS, G. Is Justice the interest of the Rulers? Is it good for us?
The Challenge of Thrasymachus. In: SANTAS, G. Understanding
Plato’s Republic. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010, p. 21.
128
o governante. Isto valeria para todos os tipos de governo
sejam eles tirânicos, democráticos ou aristocráticos (Cf.
Rep. 338d6-7). Como bem aponta Kerferd, a teoria de
Trasímaco não é necessariamente subversiva67. Em uma
democracia, por exemplo, fazer o bem alheio é fazer o
bem a todos os cidadãos que têm representação direta na
democracia, sendo esta o ‘mais forte’. Em uma
aristocracia, o benefício vai para alguns poucos no
poder. Entretanto, se nos lembrarmos do que foi dito na
passagem 340c-341a, o governo não é condição
suficiente para que o governante seja o ‘mais forte’. É
condição necessária para o governante que ele tenha
conhecimento, pois, sem este, ele não está livre do erro
e, dessa forma, não pode ser considerado o mais forte.
Somente através do conhecimento de sua arte é que um
governante pode ser considerado como sendo um
verdadeiro governante [ὡς αληθῶς ἄρχουσιν] (Rep.,
343b5) e tirar para si todos os benefícios que levam a
felicidade. Citemos como ele irá introduzi-lo:

Mas a maneira mais fácil de aprenderes é se chegares a


mais completa injustiça [τὴν τελεωτάτην ἀδικίαν],

67
KERFERD, G. B. The Doctrine of Thrasymachus in Plato’s
Republic. Durham University Journal, v. 9, 1947, reimpresso in
CLASSEN, C. J. (ed.). Sophistik. Wege der Forschung, band 187,
Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1976, p. 563 (citações
seguem a paginação da reimpressão).
129
aquela que dá o máximo de felicidade ao injusto, e a
maior das desditas aos que foram vítimas de injustiças,
e não querem cometer atos desses. Trata-se da tirania
[τυραννίς], que arrebata os bens alheios às ocultas e
pela violência, quer sejam sagradas ou profanas,
particulares ou públicos, e isso não aos poucos, mas de
uma só vez. Se alguém cometer qualquer destas partes
da injustiça não estando oculto, é castigado e recebe as
maiores injúrias. [...] Mas se este, além de se apropriar
dos bens dos cidadãos, faz deles escravos e os torna
seus servos, em vez destes epítetos injuriosos, é
qualificado de feliz e bem-aventurado, não só pelos
seus concidadãos, mas por todos os demais que
souberem que ele cometeu essa injustiça completa. É
que aqueles que criticam a injustiça não a criticam por
recearem praticá-la, mas por temerem sofrê-la. (Rep.,
344a4-c4)

Klosko e Everson argumentam que a inconsistência


existente nos argumentos é devida à incompatibilidade
da afirmação de Trasímaco de que a justiça é um bem
alheio [ἀλλότριον ἀγαθὸν] (Rep., 343c) e das leis serem
feitas pelo governante, pois, no caso do tirano, aquele
que faz as leis seria o mesmo que as infringiria68. Tais
considerações nada mais são do que uma reafirmação de
68
KLOSKO, G. Thrasymachos’ Eristikos: The Agon Logon in
Republic I. Polity, v. 17, n. 1, 1984, p. 11. EVERSON, S. The
Incoherence of Thrasymachus. Oxford Studies in Ancient Philosophy,
v. 16, 1998. p. 116-7.
130
uma definição legalista em Trasímaco. Chappell, em
resposta, irá dizer que não há evidência de que
Trasímaco espera que a justiça e a injustiça possam ser
definidas somente em termos de obedientes a lei e seus
opostos69.
O tirano não seria o completo injusto porque
infringe todas as leis, como defendem os legalistas. Ele
seria o completamente injusto, primeiro, porque ele age
em benefício próprio quando assim deseja; segundo, é o
governante e, portanto, aquele que determina o justo; e
terceiro, faz as leis em sua própria conveniência e, por
isso, é aquele que recebe todos os benefícios dos
governados quando estes cumprem seus atos com
justiça, pois domina-os com seu poder70. A questão que
nos fica é se Trasímaco consegue defender o seu modelo

69
CHAPPELL, T. D. J. Thrasymachus and Definition. Oxford Studies
in Ancient Philosophy, v. 18, 2000, p. 101-107.
70
Cf. KERFERD (1947/1976), p. 559; “em prática, a justiça (quando
olhamos do ponto de vista dos governados) equivale a procurar o
interesse do mais forte como sendo um interesse alheio, enquanto a
injustiça, que é normalmente possível para o governante somente, é
proveitosa e vantajosa por si mesma”. REEVE, Socrates Meets
Thrasymachus. Archiv für Geschichte der Philosophie, v. 67, n. 3,
1985, p. 259; “justiça é o interesse do Governante mais forte”.
SPARSHOTT, F. E. Socrates and Thrasymachus. The Monist, v. 50,
n. 3, 1966, p. 434; “a superioridade do injusto é simplesmente o
supremo controle dos meios para o poder”.
131
de governante, garantindo neste a felicidade e a bem-
aventurança do tirano.
O grande dilema que envolve tudo isso é o seguinte: se o
governante, como um artífice, é infalível na execução da
sua função, ele deve entender o limite que exige a sua
arte. No entanto, o injusto é aquele que tem a sua alma
tomada pela pleonexía71, o que faz com que ele aja
sempre em busca da sua vantagem em detrimento dos
outros. Como conciliar o limite da téchne de governar
com o desejo ilimitado de ‘ter sempre mais’ do injusto?
Penner defende que ao elevar o discurso a um
estatuto epistêmico do governante que não erra,
Trasímaco cria automaticamente uma ciência do
governo72. Como ciência73, a arte do governante deve
71
Segundo LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. op. cit., p. 1224; a palavra
πλεονεξία pode significar também ganância, apego, arrogância,
vantagem, abundância. De acordo com CHANTRAINE, P. op. cit.,
tome III, 1979, p. 913; a palavra pertence a família de πλε(ῖ)ον, que
compõe πλεονέκτης “ganancioso, que tem mais do que os outros” com
-εκτέω, -έκτηµα, -εξία, etc., cf. s.u. ἔχω. Entendemos que a palavra
tem um significado amplo e que quer dizer um desejo de ter mais do
que os outros, no entanto, na necessidade de se escolher uma tradução,
optamos pela palavra “ambição”, por considerarmos próxima do termo
original.
72
PENNER, T. Thrasymachus and the ὡς ἀληθῶς Ruler. Skepsis, v.
20, 2009, p. 206-7.
73
Penner parece utilizar a palavra ‘ciência’ do mesmo modo que
utilizamos a palavra ‘arte’, referindo-se dessa forma ao termo grego
téchne que, no Livro I da República, aparece associado à epistéme.
132
seguir uma definição precisa, não podendo fazer menção
a casos particulares (PENNER, 2009, p. 209).
Analisando se é possível se falar de um governante que
reúna todas as recompensas (misthoí) em seu próprio
benefício, Penner discorda desta possibilidade, pois
haveria uma ciência híbrida, enquanto, pelo argumento
de Sócrates, a arte dos lucros (misthotiké) é uma arte à
parte que se adiciona à outra arte (PENNER, 2009, p.
208). Mesmo que haja uma ciência geral de ganhar os
próprios benefícios ao governar tirando vantagem dos
governados, há ainda uma incoerência (PENNER,
2009, p. 210), sendo esta, que não há ciência do
completamente injusto, pois, de acordo com Penner, a
injustiça depende da justiça (2009, p. 213).
Mas o tirano é aquele que não apenas visa seu
próprio benefício como aquele que controla a justiça dos
governados. Nesse caso, o que Trasímaco está a dizer é
que a justiça está subordinada à injustiça do governante,
não o contrário, como pretendemos demonstrar.
Partindo do ponto de que a justiça é excelência e
sabedoria e a injustiça maldade e ignorância (Rep.,
350d), Sócrates pretende investigar qual das duas teria
maior capacidade e maior força [δυνατώτερον καὶ

133
ἰσχυρότερον] (Rep., 351a)74. Para isso, irá introduzir o
assunto da seguinte maneira:

πόλιν φαίνης ἂν ἄδίκως καὶ καταδεδουλῶσθαι,


πολλὰς δὲ καὶ ὑφ’ ἑαυτῇ ἔχειν δουλωσαµένην;
Πῶς γὰρ οὔκ; ἔφη. καὶ τοῦτό γε ἡ ἀρίστη µάλιστα
ποιήσει καὶ τελεώτατα οὖσα ἄδικος.
Μανθάνω, ἔφην, ὅτι σὸς οὗτος ἦν ὁ λόγος. ἀλλὰ
τόδε περὶ αὐτοῦ σκοπῶ· πότερον ἡ κρείττων
γιγνοµένη πόλις πόλεως ἄνευ δικαιοσύ-νης τὴν
δύναµιν ταύτην ἔξει, ἢ ἀνάγκη αὐτῇ µετὰ
δικαιοσύνης;

74
Como bem nota ARAÚJO, C. M. B. O Poder e o Possível – δύναµις
na República de Platão. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ,
2005, nota 29, p. 41; “Ao dizer ser a injustiça mais forte, em 344c5,
Trasímaco não diz ser ela mais poderosa [δυνατώτερον]. A menção do
termo poder só aparece em 348d6-7, onde o sentido da injustiça
completa é poder criar sob si cidades e etnias de homens [οἵ γε τελέως,
ἔφη, οἱοί τε ἀδικεῖν, πόλεις τε καὶ ἔθνη δυνάµενοι ἀνθρώπων ὑφ’
ἑαυτοὺς ποιεῖσθαι]. Mesmo que Trasímaco possa concordar com a
equivalência de força e poder, Sócrates não o fará senão como um certo
ardil de refutação. Na verdade, ele amplia o sentido desse poder, que a
princípio seria uma caracterização da injustiça, para escapar da questão
da força. Como diz ADAM (1979, p. 54): ‘Em lugar algum foi
expressamente dito que a injustiça é δυνατώτερον que a justiça, mas
καὶ δυνατώτερον foi acrescentado para ênfase’, concluindo
posteriormente (ADAM, 1979, p. 61): ‘A única seção do diálogo ao
longo da qual Sócrates passa em silêncio é a refutação do enunciado de
que a injustiça é forte’.
134
Εἰ µέν, ἔφη, ὡς σὺ ἄρτι ἔλεγες [ἔχει], ἡ δικαιοσύνη
σοφία, µετὰ δικαιοσύνης· εἰ δ’ ὡς ἐγὼ, ἔλεγον
µετ’ἀδικίας.

- Concordarias que seria injusto para uma pólis tentar


submeter injustamente outras póleis e reduzi-las à
escravatura?
- Como não? E isso é o que fará a melhor e a mais
completamente injusta.
- Compreendo, pois este é o seu argumento. Mas,
relativamente a ele, só quero examinar este ponto: uma
pólis que se assenhoreia de outra pólis exercerá a sua
dominação sem a justiça, ou será forçado a usar dela?
- Se é como há pouco afirmavas – a justiça é sabedoria
– com a justiça. Mas se é como eu disse, com a
injustiça.( Rep., 351b1-c2)

Trasímaco parece insatisfeito com o resultado da


investigação. Segundo ele, há dois caminhos possíveis
para uma pólis dominar a outra: com justiça ou com
injustiça. Não está claro ainda para ele que a excelência
esteja na justiça, pois ele julga que a melhor [ἡ ἀρίστη]
de todas as póleis usará da injustiça para dominar as
outras75. O não convencimento de Trasímaco é devido
ao argumento falacioso de Sócrates em tentar definir a
justiça como areté e sophía (Rep., 348e-349a).

75
Cf. ADAM, op. cit., p. 55; “Trasímaco se recusa a retirar sua posição
de que ἀδικία é ἀρετή”.
135
Trasímaco julga que a injustiça por sua própria força
despótica pode tomar todos os bens que deseja e fazer
seu possuidor feliz. Dessa forma, há um outro caminho
por ele apresentado, mas que não é explorado pelos
argumentos de Sócrates. O que Sócrates irá demonstrar
é que se o érgon da injustiça é causar o ódio onde quer
que surja, fazendo com que aqueles que a possuam
fiquem incapazes de empreender qualquer coisa em
comum [ἀδυνάτους εἶναι κοινῇ µετ’ ἀλλήλων
πράττειν] (Rep., 351d-e), então a injustiça não pode ser
boa para aquele que a possui. Se considerarmos somente
a injustiça entre os homens, estes viveriam em lutas e
desavenças, sem nunca chegarem a um acordo. Tal
efeito impossibilita qualquer tentativa de se estabelecer
uma pólis. Sócrates defenderá que a injustiça não pode
atuar sem a justiça e nisto consiste a força da justiça
(Rep., 352c-d). Nisso, ele ainda irá enfatizar os efeitos
da injustiça na alma:

E, se existir em um só indivíduo, produzirá, segundo


julgo, os mesmos efeitos que por natureza opera. Em
primeiro lugar, torná-lo-á incapaz de atuar, por
suscitar a revolta e a discórdia em si mesmo;
seguidamente, fazendo dele inimigo de si mesmo e dos
justos. Não é verdade? (Rep., 352a)

136
O argumento é capcioso, pois o paralelo que Sócrates faz
entre cidade e alma ainda não foi justificado como o será
no Livro IV e, portanto, não é adequado o mesmo
argumento da adynamía da injustiça tanto na cidade e
quanto na alma. Assim como nada impede um homem
de agir com injustiça com os outros, mas com justiça
consigo mesmo. Além do mais, o que é dito por Sócrates
com relação a justiça e a injustiça na cidade não vai
contra ao que expôs Trasímaco no início, pois, se bem
entendemos a exposição dos seus argumentos sobre a
justiça e a injustiça, podemos ver que ele defende que o
governante injusto deve governar com a justiça, nunca
sem ela, já que os governados devem continuar a praticá-
la para a manutenção da ordem justa estabelecida na
pólis e pelo benefício do governo encarnado na figura do
governante. A justiça nesse caso é produto da injustiça
do governante que é quem faz as leis e determinar com
estas o justo, conforme Trasímaco parece defender com
seu argumento do pastor-governante76.
O caminho que Trasímaco propõe para o argumento
concilia lei e força. Tal relação não está em desacordo

76
Cf. STRAUSS, L. On Plato’s Republic. In: STRAUSS, L. The City
and Man. Chicago, London: University of Chicago Press, 1964, p. 82;
onde se faz uma relação desta passagem com a passagem da arte do
pastor, dizendo que “isto talvez signifique uma admissão de que a
justiça possa ser um mero meio, senão um indispensável meio, para a
injustiça”. (Grifos nossos)
137
com a téchne do governo, que prevê o uso de ambas
quando necessário for. Se tais atributos também estão
em poder do governante injusto, ele pode se utilizar
tanto da lei como da força para determinar o justo para
os demais77. O problema, dessa forma, não está no
governo, mas na alma do tirano. Como conciliar a
pleonexía existente, por definição, em sua alma com a
arte de governar?
Ousamos aqui uma hipótese para responder a
questão. Um governante tem a capacidade para ter mais
que todos os outros. Isso significa dizer que ele se
utilizará de todos os meios possíveis para conseguir o seu
próprio objetivo. Em outras palavras, o governante sabe
escolher o melhor meio para atingir os fins desejados, i.
e., sua própria vantagem. Ter mais do que os outros
implica em saber como agir para tal fim e, portanto,
exige um conhecimento (epistéme), sem o qual não se
pode chegar à própria vantagem. A lei é um elemento
importante para a manutenção do tirano, pois é um
instrumento de sua própria soberania para governar os
demais. O tirano deve saber como fazer leis benéficas a
si mesmo, pois, do contrário, não conseguiria se manter
no poder. Para isso, é necessário ter uma téchne que

77
Cf. Rep., 344a7-b1; em que Trasímaco diz que a tirania “arrebata os
bens alheios a ocultas e pela violência, quer sejam sagrados ou profanos,
particulares ou públicos, e isso não aos poucos, mas de uma só vez”.
138
permita ao tirano fazer boas leis para determinar a
justiça para os governados e, com isso, ele possa se
manter no governo por uma quantidade maior de
tempo. A força também é uma das atribuições do
governante que pode ser usada a seu favor, caso haja
necessidade. Sem uma téchne adequada, o tirano não
pode atingir corretamente a sua conveniência e nem agir
plenamente com a injustiça. Ao contrário dos outros
injustos que não podem agir senão ocultamente, a
téchne do governo é o que permite ao completamente
injusto ter sempre mais que os demais e ser, segundo
Trasímaco, feliz e bem-aventurado.

III
O Debate Persa é um marco para as discussões existentes
sobre as formas de governo. Sua distinção entre governo
dos muitos, dos poucos e de um só, trás a
problematização dessas possíveis constituições e suas
considerações para se determinar o melhor governo. O
intuito de Heródoto é construir em suas Histórias um
debate que irá determinar de maneira deliberativa a
forma de governo a ser seguida entre os persas. A
proposta de Dario irá fazer uma distinção de alma entre
os tipos de governantes, entendendo que a monarquia é
o melhor governo por ter o melhor dos homens. Em
contraste, Otanes irá apresentar o tirano como uma

139
necessária deturpação do monarca, pois mesmo tendo
todos os bens [πάντα τὰ ἀγαθά] irá invejar os demais
na sua necessidade de ter sempre mais. O tirano
aparecerá nesse momento como um verdadeiro
problema para o governo.
Se tomarmos o discurso de Trasímaco, podemos
entender que ‘ter todos os bens’ e ainda ‘querer ter mais’
é característica típica da pleonexía encontrada no tirano.
Seria possível evitar que um monarca se torne um
tirano? A proposta de Dario exige a existência de um
homem melhor [ἄριστος], mas não traz nenhuma
referência de como um homem poderia atingir esse
estágio, o que torna insipiente a sua colocação da
monarquia como o melhor governo. Isso nada mais é do
que uma artimanha para se tomar o poder sobre os
demais, tomando a devida precaução de justificar seu
governo diante do povo pela propaganda da inscrição de
Behistun.
Trasímaco com seu discurso tenta associar o
melhor governante àquele que possui o conhecimento
da téchne do governo. Somente esse homem pode
melhor governar e ter para si todos os bens. Com isso,
ele irá tentar fazer o que Dario não conseguiu fazer em
seu discurso, que é associar o tirano ao governo pelo seu
conhecimento do governo. Mostrando não só que o
tirano pode ter todos os bens para si e subjugar os
140
governados ao seu poder, como também que ele faz isso
porque é o mais forte e melhor por ter a epistéme
necessária ao governo. Isso desconstrói o raciocínio de
Dario da relação do áristos com o monarca, pois, como
demonstra Trasímaco, o tirano é esse áristos que detém
o poder.
O sentido de nosso trabalho consiste em
demonstrar a dificuldade que Trasímaco trouxe ao elevar
a tirania a uma téchne do governo, entendendo nisso
uma necessidade epistêmica para o tirano poder
governar. Isso fortalece o argumento da tirania como o
melhor governo, pois associa este a epistéme, o que
torna a sua refutação muito mais difícil do que um mero
governo do melhor como pretendia Dario. A entrada de
Trasímaco no diálogo traz uma real dificuldade para
Sócrates resolver, pois não toma o tirano como uma
mera deturpação do rei (basileús), mas como um
governante de fato, que detém o poder porque é
conhecedor da téchne do governo.

Bibliografia
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Edições, traduções e comentários das Histórias de
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Helena da Rocha Pereira. 9.ª ed. Lisboa: Fundação
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146
LEITURA DE LEITURAS: O CORPO
HOMÉRICO E A DANÇA DE L'APRÈS-
L'APRÈS-
MIDI D'UN FAUNE
Flávia Maria Schlee Eyler 78
Fabrício Schlee Eyler 79

Que uma latência se mantenha para que possa haver


não latência, que um esquecimento seja preservado
para que possa haver memória: é isso a inspiração, o
transporte suscitado pela musa, que põe o homem em
harmonia com a palavra e o pensamento. (Agamben)

Hélio-Sol jamais observa-os rutilando raios ofuscantes


nem quando escala o céu urânico estelar, nem quando
deixa o urânio-céu, tornando à terra, mas a noite
funesta encobre os homens míseros [...](Homero).

78
Mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense;
Doutorado em Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro; professora da Graduação e da Pós-Graduação do
Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro; pesquisadora com alunos PIBIC no projeto: “historicidade
da retórica e literatura greco-romana” e coordenadora da área de
história Antiga e Medieval da PUC-Rio. E-mail: feyler@puc-rio.br
Link: http://lattes.cnpq.br/8964179732124324
79
Doutorando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Mestre em música
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor substituto na
Escola de Música da UFRJ. Professor do centro universitário IBMR-
Laureate.
147
Essas ninfas eu quero eternizar. / É a sua carnação, que
ela gira no ar / Sonolento de sonhos e arbustos. /
Massa de muita noite, / A dúvida se arma / Em filetes
sutis que são a própria mata, / Prova infeliz de que eu
sozinho me ofertava / À guisa de triunfo a ausência
ideal das rosas (Stéphane Mallarmé trad.Haroldo de
Campos)

Figura 1 – O Fauno de L’àpres-midi d’une faune


(https://www.flickr.com/photos/misterjyesj/3628814767/ -
retirado em 09/10/17)

Introdução
Mergulhados na crise tanto da interpretação quanto da
representação, que se desdobra nas tensões entre o
perceber e o viver a linguagem como um sistema de
representação ou como forma de vida, optamos por
seguir, nesta reflexão, a linguagem como forma de vida.
148
Neste caso, exploraremos os limites entre o verbal e o
não verbal em seus mistérios e potencialidades. A
linguagem quando tomada como representação,
alimentou o controle de seus usuários em abordagens
essencialistas, positivistas que sonhavam com verdades
absolutas capazes de dirigir planejamentos sociais e até
certa padronização da produção e do conhecimento.
Mas tais caminhos foram postos em questão pela
historicidade do conhecimento e pela arbitrariedade
cultural dos conceitos e proposições que deslocam a
reflexão para além do eixo universalizante dos grands
récitsda modernidade.
Por outro lado, a crise dos conceitos de referência
de tempo e de sujeito, que sustentavam as concepções
acima indicadas, obriga-nos a pensar a linguagem no
contexto mais amplo das redes culturais de
entrecruzamento discursivo, ou seja, através das formas
de vida que podem engendrar. Essa linguagem não tem
dentro nem fora, nenhum lugar garantido de
observação. É, portanto, um campo volátil e
inventariável de práticas histórico-sociais, desprovidas de
qualquer fundamento transcendental: como o verbal e o
não verbal mantêmlaços mutuamente constitutivos, sob
essa ótica, a linguagem é protagonista nos assuntos
humanos, atravessando todas nossas partições.

149
As contingências do mundo, da linguagem, do
conhecimento e do sujeito e suas múltiplas expressões
afastam qualquer sonho de se contar uma história
aplicável a todos os tempos e sujeitos. Como não há
uma natureza humana bruta que nos explique como o
mundo deve se organizar, de tal forma que sejamos
capazes de enunciar verdades válidas para todos – em
todos os momentos ou em todas as circunstâncias –,
devemos contar, portanto, com as determinações que
nos fazem ser de tal maneira e não de outra. Porém,
entre as contingências e as determinações da natureza e
da história, às quais estamos irremediavelmente
condenados, há novas possibilidades de questionamento
e entendimento.
O fim do “teatro cartesiano” nos leva à aceitação
de que o referente do termo “sujeito” não é nem fixo
nem universal, mas que resulta de uma rede de crenças e
desejos, historicamente determinados e expressos através
de uma linguagem que é um fenômeno público e social.
Nossas diferentes formas de agir, pensar e sentir são
manifestações possíveis da variabilidade a que está sujeita
a nossa espécie. Desse ponto de vista, a certeza daquilo
que nós somos só pode ser obtida recorrendo-se ao
tesouro dos significantes, metáforas e significados
comuns à nossa comunidade.

150
Dessa forma, a construção daquilo que reconhecemos
como realidade seria regulada pelo controle social de
estratégias que levariam a consensos ou não. Não
existiriam, assim, características inerentes aos objetos e
sim ações, processos e atores que, ao construírem
categorias e sistemas de classificação, fixariam
invariâncias cognitivas a fim de reduzir a complexidade
do mundo. As leituras de leituras que constituem nossas
percepções resultam de interações cognitivas
desenvolvidas através da interação com o meio ambiente
e nosso meio social e é intrinsecamente nosso limite
enquanto observadores. Consequentemente, aquilo que
identificamos como conhecimento são autodescrições e
não cópias do ambiente.
Ao escolhermos neste trabalho o caminho da
linguagem como forma de vida, pretendemos
experimentar a possibilidade de uma reflexão entre o
corpo do herói homérico, sobretudo da Odisseia, e o
corpo que dança o entardecer do fauno por Nijinsky e
Nureyev. Tal aproximação, absolutamente anacrônica, é
apenas um percurso escolhido para trazer sensações para
nós. Ao acreditarmos que não exista uma linha reta nem
nas coisas, nem na linguagem, talvez possamos esbarrar
na potência de um impessoal comum à sincronia. Neste
caso, “essa potência brotaria em corpos que arrastariam
o impessoal num indefinido, com um devir potente

151
demais para eles (DELEUZE, 2011, p. 11-17).” Assim,
tudo que vem do fundo dos tempos, quando nos diz
alguma coisa, nos é contemporâneo. Como aponta
Agamben (2010), ao analisar as Considerações
Intempestivas de Nietzsche, é preciso que o tempo seja a
contemporaneidade, o que exige dele que seja
contemporâneo dos textos e dos autores que examina.
Esse ajuste de contas com o nosso tempo nos absolve,
em certa medida, do “pecado” da anacronia e da
discronia que nossa cultura histórica tanto teme.

(a)quele que pertence deveras ao seu tempo, que é


deveras contemporâneo é alguém que não coincide
perfeitamente com ele nem se adapta às suas exigências
e é por isso, nesse sentido, inatual; mas precisamente
por isso, precisamente através do seu distanciamento e
do seu anacronismo, é capaz de perceber e captar o
seu tempo melhor do que os outros (AGAMBEN,
2010, p. 20).

Corpos no tempo
Neste sentido, a proposta de nosso trabalho é lidar com
homens que, de saída, mantinham uma relação singular
com seu tempo. Homero só pôde fixar a voz das musas
em suas epopeias quando percebeu que seu tempo já era
outro, ou seja, que o mundo dos heróis já não existia e
que o movimento que levava suas vidas da boca aos

152
ouvidos (tradição oral), seria compartilhado com o
movimento que levava, pela escrita, o mundo das mãos
aos olhos. A escrita, condenada ou absolvida, permitia a
sensação de que era possível fixar aquilo que já passara,
mas ao mesmo tempo, alterava a condição de evento
com suas significações temporais.

Em Homero, haveria um contato espontâneo com o


mundo sensível feito pelo corpo, um corpo que não
seria um lugar de cisão entre o subjetivo (o para si) e o
objetivo (o em si). Corpo e mundo assim entrelaçados
impossibilitam a dissociação entre aquele que vê e
aquilo que é visto; entre aquele que fala e aquilo que é
falado (EYLER, 2012, p. 50)

O teatro, que também podia tornar presente um mundo


ausente – como a vida e os mitos dos heróis encenados
nas tragédias do século V –, acentuava a impossibilidade
da antiga vida guerreira e aristocrática que desencadeara
a Guerra de Tróia. Ao encenarem a ausência dos heróis,
a guerra e as maldições míticas, tornavam acessíveis o
embate dos tempos, ou seja, a impossibilidade de fugir
ao tempo presente e ao mesmo tempo “dialogar” com o
passado.
Por outro lado, o poema de Mallarmé, musicado
por Debussy e coreografado por Nijinski e Nureyev não
pode reduzir-se apenas a uma celebração nostálgica do

153
antigo mito do Fauno apresentado por Ovídio em suas
Metamorfoses e homenageado nos cantos de Homero.
Conhecido como Pã, um deus dos campos e das
florestas, dos animais selvagens, dos rebanhos e dos
pastores, ele nascera muito feio e foi abandonado por
sua mãe. Mas para Hermes, seu pai ele era

um filho querido, espantoso de se ver,


Com pés de bode e dois chifres, barulhento e risonho.
De um salto, ela [a ninfa] fugiu – a nutriz abandonou
sua criança –,
Com medo, ao ver seu aspecto rude e barbudo.
Prontamente o benévolo Hermes tomou-o em suas
mãos [...]
Depois de cobrir a criança com as peles espessas
da lebre da montanha (h. Hom, 19: A Pã, v 36-43)

Assim, Hermes leva-o para divertir os deuses do


Olimpo. Ele também é associado a um “grito” capaz de
evocá-lo, transforma-se em epíteto de Apolo e é detentor
de um saber médico. Das epopeias homéricas ele não faz
parte, mas nos hinos homéricos ele dança nos bosques
com as ninfas e toca em sua doce flauta uma doce
canção. É atraído pelas correntezas, por picos pedregosos
de onde admira as ovelhas. Mata animais selvagens.
Dentre suas várias versões, há uma que remete à criação
da flauta. Em Ovídio, ele tentava seduzir uma ninfa de

154
nome Sírinx que, para fugir dele, se transformou em
junco e depois, em flauta. Por outro lado, ao conhecer o
filho de Hermes, os imortais se alegraram e o chamaram
de Pã, pois ele trouxera alegria a todos os corações.
Por outro lado, ao conhecer o filho de Hermes, os
imortais se alegraram e o chamaram de Pã, pois ele
trouxera alegria a todos os corações. Assim,

(...) as ninfas das montanhas, de voz clara, andam para



E para cá em sua companhia e, com pés ágeis, perto de
fontes
[de águas escuras
Cantam e dançam; e Eco ressoa no topo da montanha.
O deus se move aqui e ali, entre os coros, às vezes no
meio
Conduzindo-os com pés ágeis e uma pele de lince
Selvagem nas costas alegrando o coração com cantos
melodiosos.
(h. Hom., 18 – 25).

Reaproximações possíveis?
A dança, a música e o enredo, assim como a fixação das
epopeias homéricas pela escrita, atualizavam no presente
a ausência de uma presença que outrora também trazia
outras ausências. Neste caso, como veremos adiante, há
um embate doloroso entre uma forma de conceber a
dimensão humana cuja limitação estaria confinada ao
155
palco. No balé de Nijinsky e Nureyev assistimos aos
limites do dilaceramento de um corpo que tenta
“retomar” certa conciliação entre vida e morte. Se o caso
do Fauno, coreografado a partir de um tema mitológico
em circunstâncias históricas distintas – marcada por
uma racionalidade científica –, respondeu a demandas
precisas entre os séculos XIX e XX, hoje com as
possibilidades acima apontadas, abrem-se propostas de
sistemas abertos, sem pontos arquimedianos não
somente para a crítica, mas também para aqueles que
desejam apenas usufruir do belo e da dor. Sistemas vivos
de interconexões que não estão mais tão comprometidos
com a verdade, mas com a plausibilidade. Assim,

não é um sujeito todo-poderoso, o criador, que


estabelece o mundo, mas um sujeito participante de
uma comunidade de linguagem no interior de uma
forma de vida. Também a tradicional distinção entre
sujeito e objeto se modifica, pois, se o sujeito é
regulador do objeto pela via da linguagem, a
linguagem é reguladora dos sujeitos pelos limites do
reconhecimento público daquilo que se fala (JASMIN,
1989, p.3)

Desta forma, lidar com o corpo homérico das epopeias e


dos hinos e com o balé do Fauno nos afasta de uma
possibilidade mais pragmática da linguagem, pois
permite relacionamentos que podem ser interessantes.
156
Pensamos com Novarina (2011 p.92) que
redimensionar o texto homérico em matéria que se
arranca das profundezas do corpo moderno e também
poético de L´Après-Midi d´um Faune exige que o artista
se deixe esquartejar pelo espaço e pelo tempo, que deixe
cada pedaço do corpo falar. Cada palavra deve entrar em
seu sangue, seus músculos, seus cabelos e na ponta de
seus dedos. Não há, assim, interpretação e sim a mais
absoluta experiência tal como imaginamos o corpo
homérico em seus movimentos e luta.

Figura 2– representação da dança do Fauno


(retirado de http://2.bp.blogspot.com/-
NFLE4u2mbRI/TcL3kdm4-
RI/AAAAAAAAAQk/lfnGvZfeyVk/s1600/Vaslav%2BNijinsky%
2Bi%2BSiamesisk%2Bdans%252C%2B1910.jpg em
09/10/2017)

157
Inicialmente, identificamos a noite, citada em ambos os
poemas como essa potência excedente que, como diz
Deleuze, carrega a luz assim como o som carrega o
silêncio e a presença que carrega a ausência. O corpo
cantado e o corpo dançado, por Homero ou no L'après-
midi d'un faunepor Nijinsky e Nureyev carregam, neste
caso, ausências e presenças significativas. Para darmos
segmento ao nosso pensamento, acreditamos que possa
valer a pena um breve retrospecto que nos ajudará a
desnaturalizar nossa própria concepção de corpo que
tem atravessado reflexões de inúmeros campos de saber e
também compõe diversas relações dicotômicas como ser
e ter, natureza e cultura, dom e propriedade, alma e
espírito, etc. No entanto,

seu estatuto mais naturalizado na cultura ocidental


impõe-se como unificador de categorias ontológicas
opostas como: interior e o exterior, sensível e
inteligível, objetivo e subjetivo. O corpo é também a
morada de várias tensões como ser e devir,
incorruptibilidade e corruptibilidade, eternidade e
contingência. (CANTO-SPERBER, 2007, p. 356-
361)

Se tomarmos as antigas referências ao corpo, percebemos


a amplitude de seu território semântico diante das
dicotomias que o naturalizaram na história ocidental. A

158
palavra corpo, corpus do latim, remete ao radical indo-
europeu kar que está associado ao fazer, ao criar, ao
fabricar, em suma, ao movimento e à transformação.
Por outro lado, “há também a presença do radical
sânscrito karp que é a beleza. Assim, tal composição
sugere instrumentalidade: construção e modificação e de
outro, associa-se a uma natureza e valor intrínsecos
como beleza” (FONTANIER, 2009, p. 51).
No entanto, exatamente esta amplitude de
definições primeiras foi de certa forma redistribuída e
disciplinada. Na história ocidental, sobretudo a partir da
filosofia racional, o corpo aparece de forma contraditória
e compõe dualidades. Foi desprezado e considerado
obscuro, por perturbar a alma em sua busca da verdade e
do conhecimento. Como lugar dos afetos, das paixões,
das doenças e ilusões era também obstáculo na ordem da
conduta moral. Neste sentido, sobretudo platônico,
somente a filosofia podia purificá-lo na medida em que,
como um exercício de morte, recolhia a alma nela
mesma a partir de todos os pontos do corpo.
Contraposta ao corpo, a alma era, assim, um elemento
divino e eterno que tinha acesso ao mundo imperecível
das ideias.
A repetição da realidade mítica nas epopeias
homéricas, nas cerâmicas arcaicas e na dança do Fauno
podem ser consideradas um ato de fingir. Por este ato de

159
fingir, como Iser (1983) desenvolve, aparecem
finalidades que não pertencem à realidade repetida no
teatro, no canto ou nos vasos. Surge, então, um
imaginário que se relaciona com a realidade retomada.
Assim, o ato de fingir ganha a sua marca própria que é
de provocar a repetição no texto encenado/
cantado/pintado da realidade vivencial e por esta
repetição, atribuir uma configuração ao imaginário.
A realidade repetida se transformaria em signo e o
imaginário em efeito do que seria assim referido.
Haveria, então, uma transgressão da determinação da
realidade quando ela, ao ser repetida no fingir do teatro,
num texto ficcional ou pictórico, se transformaria em
signo aberto a múltiplos significados. A recepção pelo
ouvinte/espectador possibilita uma experiência estética,
posto que ele poderia experimentar uma realidade que,
na verdade, seria real apenas enquanto objeto de
representação, pois a realidade jamais pode ser
concretizada pelo receptor. Como sinaliza Iser:

Uma abordagem orientada pelo conceito de


comunicação permite ao mesmo tempo compreender o
texto literário [ou o espetáculo de dança] como um
processo. Esse caráter de processo é primeiro
representado pelo conceito de interação, que
determina a relação entre texto leitor [ou
dança/espectador]. (...) Ao mesmo tempo, o código do

160
leitor guia as seleções pelas quais é concretizada a
relação texto mundo, ou seja, a organização das
estruturas extratextuais. A necessidade de recepção da
inovação desloca o código habitualizado para segundo
plano (ISER, 1983, p. 375).

Na conversão da realidade vivencial repetida em signo


de outra coisa, a transgressão de limites manifesta-se
como uma forma de irrealização; na conversão do
imaginário, que perde seu caráter difuso em favor de
uma determinação, sucede uma realização do
imaginário. Há, através do ato de fingir, uma
irrealização do real eumarealização do imaginário (ISER,
1996, p. 14-15).. No caso grego, tratava-se, sobretudo,
de colocar face a face às antigas formas de vida ligadas
aos privilégios aristocráticos e ao antigo direito de
vingança de sangue, com a nova face do direito. Um
direito (diké) que a cidade instaurava como dos homens
e não mais o direito de Zeus (thémis).
Já o balé do Fauno permitiria um contato com o
sublime compreendido como algo que ultrapassa a
persuasão, que produz um arrebatamento do genial. O
sublime, na antiguidade greco-romana, requeria um
estilo elevado e um pensamento grandioso e Longino
(séc. I d.C.) aconselhava que deveríamos formular no
íntimo a pergunta: “Como diria isso Homero ou Platão,
se calhasse? [...] pois graças à emulação é que acudiriam
161
à nossa presença esses vultos e, como brilhando,
ergueriam as almas de algum modo às alturas
imaginadas.” Ainda segundo Longino:

Não é verdade que a flauta inspira nos ouvintes certas


emoções, deixa-os como fora de si, possuídos do
frenesi dos coribantes e, dando determinada cadência
obriga o ouvinte, até um totalmente ignorante de
música, a ritmar os passos e ajustá-los à melodia
(LONGINO, 2005, p.108)?

A possibilidade da arte em criar um mundo como se


fosse o próprio mundo e, através desta duplicidade não
coincidente, permitirprazer, deleite ou mesmo uma
catarse (purificação através do temor e da piedade), deve
ser pensada em Homero e no balé Fauno? Apesar do
longo percurso histórico com suas mudanças, é possível
e necessário que o pensamento possa estabelecer
contrastes provocantes. O ato de fingir como
transgressão de limites estaria intimamente ligado ao
imaginário sem se confundir com ele. Porém, que
imaginário, que ficcional e que real comporiam as
epopeias homéricas e a performancede L’après-midi
d'un faune?
Por certo, os personagens literários (e teatrais)
estão perfeitamente individualizados, mas todos os seus
traços individuais possibilitam que nasça em nós

162
(ouvintes/receptores) uma terceira pessoa que nos
destitui do poder de dizer “Eu” e nos leva à potência de
nossa própria abertura. Neste caso, Nijinsky, Nureyev e
as Musas, que dizem a Homero o passado, o presente e
o futuro, podem ser considerados “escritores”, pois do
que viram e ouviram, regressam com os olhos
vermelhos, com os tímpanos perfurados mas, ainda
assim, trazem algo do fundo dos tempos. Neste caso,
cada um a sua maneira, inventa um povo que falta
(DELEUZE, 2011, p. 13).
De modo tão diferente e distinto dos greco-
romanos, cuja estrutura tradicional baseava-se na
solidariedade e no parentesco, nós, em nossa
contemporaneidade, vivemos e vemos uma pluralidade
de eventos, mas em sua grande maioria, nenhum deles se
torna uma experiência válida, pois quase nada pode ser
compartilhado de modo significativo. “Não há mais
autoridade suficiente para garantir uma experiência que
possa constituir-se de modo válido.” (AGAMBEN,
2005, p. 21). Porém, apostamos que a constatação dessa
realidade possa esconder um grão de sabedoria no qual
podemos “adivinhar, em hibernação, o germe de uma
experiência futura” (AGAMBEN, 2005, p. 23).
Pensar as performances de Nijinsky e Nureyev e
ouvir os rumores das antigas musas, contemplar os
corpos nas cerâmicas, talvez nos permita desnaturalizar

163
lugares tão comuns e experimentar o mundo de outro
modo. De saída, eles não podem colocar em discussão a
ideia de uma “arte pela arte” assim como as limitações
da tradição mimética ocidental.80 Quando há a dança
dos bailarinos citados, são seus próprios corpos que se
oferecem em risco permanente e que potencializam sua
receptividade impactante.
A indistinção entre o artista e sua obra, no caso
dos bailarinos, a tomada do próprio corpo como palco
nos levam ao conceito de ‘experiência limite’ como “a
resposta que encontra o homem quando decide colocar-
se radicalmente em questão” (BLANCHOT, 1969, p.
302). Neste sentido, pensamos nesta experiência do
corpo como linguagem que

não é um patrimônio de nomes e de regras que cada


povo transmite de geração a geração; é antes uma
ilatência como desocultação do que estava esquecido,

80
Aproximamos aqui as reflexões desenvolvidas por Wolfgang Iser sobre
a questão das relações entre linguagem e mundo para pensar a realização
do imaginário através da tríade “real, ficcional e imaginário” nos faz
pensar que esse jogo pode produzir novos sentidos para o
espectador/ouvinte ao trazer a irrealização de um real vivenciado para a
vivência de um imaginário que, de fato, se realiza. Cf. ISER, W.
“Problemas da teoria da literatura atual: o imaginário e os conceitos-
chaves da época.” Trad. Luiz Costa Lima (org.) In: Teoria da Literatura
em suas fontes, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. p. 359-383.

164
da verdade como revelação ou descobrimento do ser;
tão impresumível que os homens habitam desde
sempre e na qual, falando, respiram e se movem. Mas
há medo em assumir essa ilatência, ou seja, fazer
experiência do seu ser falante. (AGAMBEN, 2008, p.
16-17)

O encontro de sensibilidades através da exploração do


corpo e do encontro que a performance permite,
ultrapassa os limites entre arte e vida na medida em que
rompe com a distância entre artista e expectador. Tal
experiência também compromete a experiência passiva e
exterior tal como colocava Aristóteles em sua Poética.
Mas, por outro lado, nos aproxima de um outro tipo de
corpo. Um corpo pouco estudado, mas que fala
diretamente com Homero na encenação de L'après-midi
d'un faune.
Através dos vasos que restaram da cultura greco-
romana podemos pensar que o corpo que ali se
apresenta não é atravessado por dicotomias e valorações
de partes como mostramos anteriormente a partir das
definições dos dicionários. Pelo contrário, o que se nos
apresenta, ali, é um corpo que age e sofre ações e
movimentos que co-incidem e co-movem qualidades
sensíveis distribuídas sempre nas relações de
reciprocidade entre deuses, homens e mundo. Um
corpo assim, tão diferente e estranho aos nossos
165
costumes, ao ser historicizado, se oferece ao pensamento
e alimenta a imaginação criativa.
Afinal como imaginar um corpo, como o das
epopeias de Homero registrados nos vasos gregos, que
apenas na morte e na perda dos sentidos assume sua
dualidade na divisão em corpo e alma? Enquanto soma,
o cadáver está vivo, a psyché, a alma, não se manifesta.
Apenas quando advém a morte é que psyché se torna a
imagem individualizada daquele que vivia. Soma era o
cadáver, ou seja, a unidade do homem que só se
realizava plenamente quando ele morria.

“Vi primeiro a anima (ψυχή) de Elpênor, sócio


insepulto ainda sobre a larga terra, pois que o soma,
(σώµα) seu corpo morto, nós deixáramos sem pranto e
sem sepulcro no solar de Circe, premidos por
padecimento diferente.” (Odisseia, XI, vv. 50-54)

Aqui vale a pena mostrar, a partir do trabalho de Bruno


Snell que nas representações do homem na arte arcaica
este jamais aparecia como unidade, mas como adição de
partes de partes singulares. Somente mais tarde, na arte
clássica do século V é que aparece um corpo como
unidade orgânica que pode ser percebida na tensão entre
o suporte e o peso, na oposição entre a imobilidade e o
movimento das pernas e na dependência de todas as
partes de semelhante contraposição. Há nos vasos
166
gregos, um predominante valor dado ao movimento
como podemos observar nas seguintes figuras (3 e 4):

Figura 3 - Corpos homéricos I


(http://www.efdeportes.com/efd169/jogos-olimpicos-gregos-
discussoes-historicas-01.jpg - retirado em 09/10/17)

Figura 4 - Corpos homéricos II


(https://i0.wp.com/bahumuth.chaosnet.org/images/zeus.jpg
retirada em 09/10/17)

167
No mundo ocidental, a percepção infantil dos corpos
está centrada em uma consciência de sua unidade. Há
um elemento central no qual são adicionados os
membros, o pescoço e a cabeça. “As representações de
homens na arte arcaica mostram-nos igualmente que o
corpo substancial do homem não se concebe como
unidade, mas como pluralidade (SNELL, 1992, p. 26)”.
Há a falta exatamente desse elemento central
como uma estrutura compacta. Os membros gregos
aparecem, porém diferentemente da percepção grega do
século Va.C., funcionam de modo diverso: melea ou
guya são animados por forças diferentes e significam o
corpo vivo, dotado de movimento e força. Assim, o
homem ereto, caminhando sobre as duas pernas, pode se
virar para todos os lados somente na arte clássica.
Por outro lado, essa questão do corpo inteiro ser
o cadáver (soma) tem semelhanças no domínio do
espírito e da alma, pois, espírito, como corpo animado e
alma, são conceitos opostos e cada um deles é
determinado por seu contrário. A palavra que
posteriormente significará alma (ψυχή) em Homero é
apenas aquilo que mantém o homem vivo. Ele não diz
como a psyché atua no ser vivo, menciona apenas sua
partida quando o homem morre. A alma sai pela boca e
é expirada; pode sair também pelas feridas e voa para o
Hades onde vive uma existência umbrática, como

168
“imagem” do morto. Aqui podemos relacionar essa
imagem do “sopro” como um alento vital à flauta do
Fauno. Homero, com a palavra psyché, pensa na “alma
dos mortos” por isso, quando a psyché a aparece, aponta
um morto. Para ele a vida dos homens diz respeito ao
thymós que suscita as emoções. Seria o órgão das
emoções e também determina o movimento corporal de
guya (membros) e meleia (força dos membros), mas na
morte ele os abandona.
Na morte ele deixa de existir, pois o que punha
em movimento os ossos e os membros desapareceu. Já
onóos (intelecto) em Homero suscitaria também o
espiritual-anímico, mas ele receberia as impressões, de
modo queseria, segundo Snell, um órgão mais
intelectual (SNELL, 1992, p. 33-34). Porém, essa
separação entre o emocional e o intelectual não possui
contornos precisos em Homero.81
Há um saber no thymós assim como há paixão e
emoção no nóos. Chrôs é a pele como superfície, como
limite do homem, como substrato da cor etc. Chrôs
aparece, então, no lugar do corpo. Guya (membros) e
melea (força dos membros) denotam a corporeidade do
81
Para Snell, ao interlocutor homérico basta-lhe, quando depara com
alguém, chamá-lo pelo seu nome: este é Aquiles, ou então este é um
homem. É evidente que eles tinham um corpo, mas não tinham
consciência dele “como” corpo, somente como soma de membros,
melea + guya.
169
corpo. Chrôs é apenas um limite e demas é a figura, a
estrutura e usa-se apenas no acusativo, como objeto
direto da relação. O corpo em Homero é pluralidade
assim como a visão, nada de material existe no fundo do
homem, fora sua boca aberta, sua passagem furada por
onde sua psyché se apresenta.
Diante desta breve apresentação do corpo,
podemos tentar compreender o impactode L'après-midi
d'un fauneque apresenta a radicalidade de um corpo que
como se fosse um corpo homérico, mostra um thymós
executando minuciosamente sentimentos e paixõesde
modo preciso. No corpo dos bailarinos (aqui juntamos
Nijinsky e Nureyev) há experiências com suposições e
com recordações que, como vimos, ao thymós
pertencem, mas dele também se afastam.
Neste caso surge o coração, kradie, ker, como um
órgão de sentimentos como alegria, dor, ternura, cólera,
que se associa ao termo phren que indica “mente” e se
localiza no peito, perto do coração. Assim, há esse
coração que podemos sentir no L'après-midi d'un faune
como tendo sua sede no peito. Mas essa “mente”
(phren) de difícil tradução, não possui apenas um
caráter gnosiológico, mas também prático. Como
aponta Reale, no homem homérico não há os dualismos
“modernos”.

170
O pensamento tem sempre um caráter de ação, ele
realiza aquilo que pensa. Este homem só pode ser
compreendido muito mais através do seu agir do que
através de um “ser” que é nosso (REALE, 2002, p. 84).
É através de seus órgãos e nas suas ações, no seu viver e
no seu morrer que nos aproximamos dele. O corpo em
Homero, lido e incorporado por Nijinsky e Nureyev,
parafraseando Novarina, “é um pensar que respira: é
soprar o espaço e levar a ele a contradição
(NOVARINA, 2009, p. 19).” O pensamento ali nada
exprime, mas dá passagem; ele levanta e desestabiliza
como podemos imaginar nas figuras abaixo. A fala do
corpo sai vitoriosa pelo real que ela fura. No balé
L'après-midi d'un faune a linguagem não segura, ela se
debate no espaço, caça e não consegue capturar. Ela leva
o vazio na matéria que a queima por dentro.
No mesmo sentido, podemos avaliar que os
corpos que são encontrados por Odisseu no Hades
possuem formas: estas são vazias, pois não há mais
nervos que retenham a ossatura e a carne. Assim que a
vida deixa os ossos brancos, a anima volátil voa e nada
mais pode se perpetuar além da memória e dos cantos.
Podemos notar que no Hades há o engano, ou seja, tudo
aquilo que parece, não é como se imagina. A ilusão
também vai permear a poesia de Mallarmé:

171
Não foram dardos hábeis da flecheira a me ferirem
mortalmente, nem alguma doença que amiúde tolhe a
vida com definhamento estígio, mas não ter a ti, teus
pensamentos agudos, Odisseu ilustre, o mel da anima
que me afagava, eis o que me roubou a vida.” (...) Mãe,
minha mãe, por que rejeitas minhas mãos que
avançam, se desejo saciar de pranto glacial a nós, aos
dois no enlace pelos ínferos? (...) Ah , filho, meu
querido, vítima de moira tão amara, filha de Zeus,
Perséfone não te iludiu, mas essa é a lei dos homens,
quando os toma Tânatos: nervos não mais retém a
ossatura e a carne, mas a voracidade flâmea os aniquila,
brilhando, assim que a vida deixa os ossos brancos, e,
feito sonho, a ânima, volátil, voa (Odisseia, XI, vv.
198-224).

Como filólogo, Bruno Snell (1992) faz um esforço para


devolver as cores originais das palavras homéricas para
que possamos perceber, deste modo, diferenças
importantes no próprio percurso da história grega.
Através da historicização, podemos reavaliar as
representações sobre o homem que vieram a ser tão
naturalizadas a ponto de se tornarem intemporalmente
válidas para nós.
Como o que aqui nos importa é o balé L'après-
midi d'un faune - através de pelo menos três camadas de
leituraque se concretizam no espetáculo-, devemos
considerar o poema de Mallarmé, a música de Debussy,

172
a coreografia de Nijinsky e Nureyev, mas, sobretudo, a
leitura que eles fizeram não apenas do corpo homérico,
mas de toda uma tradição que, ainda que ausente das
epopeias, estavam sempre presentes no fundo da
oralidade tradicional e nas cerâmicas.
Posteriormente, o tesouro que reconhecemos
como grego, mas que possui também outras influências,
foi retomado pelos romanos. Neste caso, não podemos
negligenciar a leitura de Ovídio em suas Metamorfoses,
na qual ele recupera grande parte dos mitos e lendas
gregas como o Fauno, a flauta e as ninfas.
Essa fulguração dos olhos também pode incidir
sobre algo. Neste caso, temos Penélope que ouve de sua
ama que deve ver que Odisseu voltou, ou seja, que
aquilo que só estava presente em seus olhos de sonho,
estava agora presente:

Acorda querida filha, e mira com teus próprios olhos o


que teu sono acalentava em pleno dia. O rei, tardio
embora, torna ao lar” (Odisseia, XXIII, vv. 4-7) [Mas
Penélope não acredita e diz para sua radiante criada:]
“Ama querida, não exultes em excesso. Sabes quão
prazerosa a reaparição do herói seria a todos, sobretudo
a mim e ao filho que geramos.” (Odisseia, XXIII, vv.
59-62) [A ama retruca:] “Teu coração peca por
incredulidade. Um signo claro verás: a cicatriz do javali
de alvíssimos colmilhos, que notei quando lavei.”
(Odisseia, XXIII, vv. 73-76) [Penélope responde:]
173
“Querida, embora sejas multiperspicaz, terás
dificuldade em perscrutar as intenções dos
sempiternos. Mas desejo ver meu filho, os
pretendentes mortos e o algoz (Odisseia, XXIII, vv.
80-84).

Snell ainda aponta o “olhar em volta” e o “olhar


altaneiro, alegre e livre”. Há um verbo de visão que
significa pressentir que é também determinado pelo
objeto e pelo sentimento que o acompanha. Há
gestualidades que acompanham o olhar e os movimentos
afetivos – ver abrindo a boca. Esses olhares denotam
certos sentimentos no ato de ver objetos determinados.
Há algo que é extrínseco à própria função de ver e que
depende, sobretudo, do objeto que é visto e dos
sentimentos que acompanham a visão. Em Homero, o
sentido da vista não se refere a sua finalidade própria,
como atividade peculiar do olhoque proporciona ao
homem determinadas impressões sensoriais. Não há
uma valorização da função de ver enquanto tal. Na
poesia de Mallarmé, podemos salientar determinadas
formas de olhar e ouvir:

No chuvisco impotente de uma chuva árida, / Se ouve


– não se ouvisse no horizonte liso / Sem uma ruga a
perturbá-lo, da visível / A não ser no horizonte sem
rugas a calma / O sopro artificial, visível e sereno [...] /
Daquela inspiração artificial do céu. / Daquela
174
inspiração que re-expira o céu. / Da inspiração que
volta a ascender ao céu [...] e ondulava um brancor
animal em repouso /vendo branco ondular um
repouso animal [ ...] MALLARMÉ, 1974, p.93).

Para Homero, o que nós consideramos como a função


própria, como o elemento “objetivo” da visão não era o
essencial. Neste sentido os homens homéricos não
conheciam o sentido da visão, ainda não podiam ver.
Porém, em Mallarmé, o visível aparece como ilusório tal
como a verdade do sonho noturno diante da ilusão do
dia aparece para Penélope quando ela desacredita na
volta de Odisseu. Nesta passagempodemos compreender
uma fala que não nomeia, mas chama.

“Os numes te ensandecem, casa: Têm poder de incutir


desatino em quem sobeja tino como um raio, um
relâmpago: Faze o quente apraza, mas direis aquilo que
convém / as palavras não evocam, elas atalham, racham
a pedra [...]. / Ela se adianta, / Abrindo o universo, ela
se imprime nos corpos (HOMERO)

Flauta nefasta, instrumentos de escapes, trata / Flauta,


a reflorescer nos lagos onde me ouves /no lago onde
por mim esperas! de reflorir na água onde por mim
aguardas! [...] e quando a luz das uvas tenha eu
sorvido/ E assim que chupe a luz desses cachos de uva,
e quando da razão tenha sugado a luz [...]
(MALLARMÉ, 1974, p.97)
175
Em suma, esse corpo organizado e articulado que a
narrativa de Homero nos oferece é um corpo sobretudo
poético e é perseguindo essa trilha que podemos lançar
alguns desafios à nossa contemporaneidade. Neste caso,
na proposta de uma reflexão que aproxima o
inaproximável, ou seja, o corpo homérico com o
L'après-midi d'un faune. Com esse corpo que na Ilíada
procura manter sua honra (timé) e aumentar sua glória
(kléos) e que na Odisséia busca o nostoi como o registro
de sua história, encontramos uma verdade que é vista e
não põe em evidência o psíquico. Cada um dos heróis
épicos está sob o olhar do outro, cada um existe a partir
desse olhar. “A identidade de um indivíduo coincide
com a sua avaliação social: da zombaria ao louvor, do
desprezo à admiração (VERNANT, 1992, p. 34)”. E
esse é também e sempre o risco que corremos.

Meu crime é o de abrir, com beijos o tufo/Meu crime


foi de ter contente de vencer /Selvagem dessa carga nua
que se insinua/Fugindo à boca em água ardente,
quando / meu crime foi de ter contente de
vencer/Hirsuto que tão bem mantinha um deus
cerrado; um medo insidioso, aberto ao meio do bosque
[...] Emaranhando suas tranças nos meus cornos: as
tranças amarrando aos chifres desta fronte/ aos cornos
desta fronte emaranhar as tranças [...] /Minha vida é
assim: já madura e vermelha. Minha paixão, tu sabes
que madura rubra /Toda romã explode e em abelhas
176
murmura;/Toda romã estala em zumbidos de abelhas;
toda granada explode em murmúrios de insetos
(MALLARMÉ, 1974, p.103).

Como Penélope, o Fausto está vazio de palavras “e este


corpo espesso/De palavras vazia e este pesado corpo?
Desocupada de palavras a este corpo/Sucumbem ao
feroz silêncio meridiano: no tardo meio dia, em
quietude morrem (MALLARMÉ, 1974, p. 105) e
novamente como Odisseu e Penélope também dão
adeus às ninfas, resta-nos as sombras que são a nós
proferidas.
Em um adendo a esta reflexão, gostaríamos de
arriscar um ponto de partida para a música moderna.
Poderíamos identificá-la a partir da melodia para flauta
que abre o Prelude a l’Après-Midi d’un Faune de Claude
Debussy. Talvez seja necessário justificar, hoje, o termo
moderno quando aplicado a uma obra composta há
mais de noventa anos. Obviamente o termo moderno
em música está relacionado antes à estética e à técnica
do que à cronologia. Com as óperas de Richard Wagner
e as sinfonias de Gustav Mahler e Anton Bruckner, a
tradição austro-alemã parecia ter chegado aos seus
limites em música. Limites de tamanho, de carga
expressiva e de arte de inspiração. É neste momento que
surge, então, o impressionismo como um ar fresco que
propunha princípios inteiramente novos.
177
O termo impressionismo aparece aplicado, pela primeira
vez, por volta de 1870 na obra de Monet e seu círculo
de pintores e mais tarde foi aplicado também à música.
Alguns anos depois, Renoir utilizou a expressão
“impressionistas musicais” numa discussão com
Wagner. Este mesmo termo foi empregado de forma
crítica na obra Printemps de Debussy, sugerindo que a
música pecava pela imprecisão e pelo exagero na cor.
Pensamos que há uma harmonia indisfarçável
entre o que faziam os impressionistas na música e na
pintura. Nos dois casos apontamos para a ausência de
toda ênfase, de excessos retóricos e sentimentos. Em vez
disso, encontramos no impressionismo a procura de um
toque leve que traduz a vida, o abandono das grandes
formas, em troca de um colorido, de uma nuance que
recriasse uma atmosfera desejada.
Em seu Prelude a l’Apres-Midi d’um Faune,
Debussy sutilmente suaviza as velhas relações
hierárquicas que constituem o sistema tonal, o que não
significa que seja uma obra atonal, sem tonalidade.82 Em

82
Sistema de tonalidades é o termo que designa a série de relações entre
notas, em que uma em particular, a tônica, é central. Neste sistema, diz-
se que a música tem determinada tonalidade quando as notas utilizadas
formam uma escala maior ou menor, em que a tonalidade é a tônica ou
a nota final dessa escala. A palavra tonalidade também é utilizada para
descrever grupos de notas ligados em uma hierarquia.

178
certos momentos, Debussy propõe um jogo entre o
passado e o futuro onde as relações harmônicas já não
possuíam um caráter imperativo.
No que diz respeito à forma, o Prelude a l’Après-
Midi d’um Faune também foi concebido de modo
inovador. Ao invés de escolher um tema definido e
desenvolvê-lo, Debussy utiliza uma ideia incerta e
imprópria para uma elaboração lógica à maneira
ortodoxa. Esta primeira melodia aparece por quase toda
a obra, embora às vezes expandido ou disperso em
fragmentos independentes (como o corpo homérico).
Não podemos, assim, identificar na obra uma forma
pré-determinada num desenvolvimento progressivo. O
efeito se aproxima como se fosse uma improvisação.
A espontaneidade desta obra não é apenas uma
questão de ambiguidade harmônica e liberdade formal,
ela também é fruto das oscilações de andamento e de
ritmos irregulares, assim como o sutil colorido da obra.
Até este determinado momento da história da música
ocidental, esperava-se que o desenvolvimento temático
de uma peça mantivesse certa regularidade e
homogeneidade rítmica, para que a atenção dos
espectadores pudesse encentrar-se na harmonia, na
forma melódica e os andamentos escolhidos deviam ser
escolhidos para caracterizar a música em direção a seu
fim.

179
Quanto ao colorido, Debussy foi um mestre na
delicadeza das nuances orquestrais e mais que qualquer
outra música anterior, as obras do compositor parecem
perder identidades quando arranjadas para
instrumentações diferentes. Basta ouvir uma redução do
Prelude, por exemplo, para constatar isso.
Decididamente, o que foi escrito para um instrumento,
deve permanecer intocável, e se transforma
negativamente em algo diferente ao ser executado em
outro instrumento.

Referências
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Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2010.
___________, G. Ideia da prosa, trad. João Barrento,
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clássica,trad. de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 2005.
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Paulo: 2011.

180
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morte e as paixões no mundo antigo: novas perspectivas.
Rio de Janeiro: Cassará Editora, 2012.
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São Paulo: Arx, 2003
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Ribeiro, São Paulo:Ed. UNESP, 2010
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PIGNATARI, D.org. et al Mallarmé - a conquista do
impreciso na linguagem poética. São Paulo: Perspectiva,
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181
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homem de Homero a Platão. São Paulo: Paulus, 2002.
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SNELL, Bruno. A descoberta do espírito. Lisboa:
Edições 70, 1992.
VERNANT, Jean Pierre. A “bela morte” de Aquiles. In:
A honra imagem de si ou dom de si – um ideal
equívoco. Porto Alegre: L&PM, 1992. p. 34- 56.

182
A FEDRA DE EURÍPIDES:
EURÍPIDES: UMA
ABORDAGEM PSICANALÍTICA
Patricia Horvat 83

As tragédias atenienses são importantes instrumentos


para o estudo dos valores e costumes da antiguidade e da
sua recepção pela cultura ocidental, principalmente por
permitirem perscrutar as intenções civilizatórias e seus
instrumentos discursivos e a construção de um
imaginário simbólico que, naturalizado, subjaz às
cognições que sustentam as regras de conduta da
atualidade. Abordaremos as tragédias com o interesse
voltado para a construção binária dos gêneros feminino
e masculino e para as questões que podem ser aventadas
a partir de algumas proposições da psicanálise. A
Psicanálise, apesar de pontuar a binariedade de gêneros,
conforme o modelo cientificista do século XIX, baseado
na procriação e na visão vitoriana da sexualidade, deixa
entrever, nos limiares de suas aporias, possibilidades de
entendimento que comportam maior plausibilidade e

83
Doutora em Psicanálise e Mestre em Psicanálise, em Filosofia/Estética
e em Filosofia do Conhecimento. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e
Referências da Antiguidade e do Medievo (NERO-UNIRIO) e do
Núcleo de Estudos de Representações e de Imagens da Antiguidade
(NEREIDA - UFF).
183
veracidade históricas. Nas tragédias são veiculadas
imagens das determinações da função e do papel das
mulheres na sociedade, apresentando como modelo as
personagens femininas que padecem por seu desvio em
relação à normatização social e por esquivarem-se da
obediência ao imaginário masculino.
Então, na vertente da recepção histórica,
proponho uma análise, ainda que breve, da
normatização social como resultado de um processo
imposto, naturalizado e, através dos tempos, instituído
como a Matriz Simbólica (Die Symbolik)84,
investigando como a tragédia Hipólito, de Eurípedes,
recria, na personagem Fedra, a histeria como uma
desordem mimética, uma forma de digressão de valores
do ethos figurada em comportamentos tidos como
transgressivos, a sua fundamentação discursiva nos
pressupostos culturais da época e a influência dessas
representações na psicanálise, levando em conta que a
vida cotidiana ocidental atual está impregnada de
palavras advindas da psicanálise que são muitas vezes

84
Remetemos a Die unbewusste Symbolik, o simbólico inconsciente,
termo da Estética de Hegel (Vorlesungen über die Ästhetik, 1835 –
1938), que se refere ao somatório das impressões das experiências de
vida e dos conhecimentos acerca da história do contexto de vida, que
formam a linguagem e de que não se tem consciência plena, mas são
expressas, por exemplo, nas obras artísticas. Com um sentido
semelhante pode-se entender o termo Historicidade.
184
mal compreendidas e que se consolidam em termos
holofrásicos85 que assumem caráter pétreo.
A tragédia Hipólito, de Eurípides86, encenada nas
Grandes Dionisíacas de 428 A.E.C., representa
Hipólito, filho de Teseu, rei de Atenas, como um jovem
notável por sua beleza e por sua fidelidade ao culto de
Ártemis. Afrodite se apaixona pelo jovem que a
desdenha, deflagrando sua ira. A deusa, então, tece um
plano de vingança e de morte de Hipólito, segundo o
qual sua madrasta se apaixonaria por ele, e isso
ocasionaria a morte de ambos. Fedra, sob a inspiração de
Afrodite, se apaixona perdidamente por Hipólito,
debatendo-se no conflito entre a paixão avassaladora
pelo jovem enteado e o respeito aos preceitos morais da
pólis. A ama de Fedra, preocupada com o estado
deplorável de sua rainha, insiste em saber qual a causa de
seus males e Fedra, transtornada pelos devaneios
amorosos, acaba deixando escapar a identidade do

85
As holófrases são enunciados em que uma só palavra expressa uma
frase completa. Utilizamos o termo para indicar que, em geral, as
pessoas fazem uso do léxico, que transporta os símbolos,
mecanicamente, sem se dar conta do que eles significam.
86
A primeira versão da tragédia, Hipólito velado, da qual restam apenas
comentários, foi repudiada pelos críticos e espectadores, então,
Eurípides apresentou a sua segunda versão, o Hipólito coroado. Se na
primeira versão Hipólito velava o rosto com vergonha do amor nutrido
por sua madrasta, na segunda ele vitupera contra ela.
185
jovem. A ama a incentiva a se declarar a Hipólito, o que
ela recusa. A ama, então, relata a Hipólito a paixão da
sua madrasta. Este, fanaticamente casto, vitupera contra
Fedra e, hiperbolicamente, contra todas as mulheres.
Desesperada com seu futuro catastrófico, Fedra decide
cometer suicídio e, como instrumento de resgate da sua
reputação moral, que beneficiaria seus filhos em relação
ao trono, escreve uma mensagem a Teseu em que
responsabiliza Hipólito pelo evento erótico. Teseu chega
de viagem, aproxima-se de Fedra morta e lê a tabuleta,
de cujo conteúdo o público não é informado. O rei
condena Hipólito ao exílio e pede a Poseidon, um dos
seus ‘pais’, que o aniquile, o que se realiza. Mais tarde,
Ártemis revela a Teseu a trama de Afrodite, inocenta
Hipólito e institui em sua honra um culto reservado a
heróis.87
O tema de Hipólito é a vingança de Afrodite
contra o rapaz que recusou o seu amor, preferindo
manter-se casto e exclusivamente dedicado ao culto de
Ártemis, mas o traço da peça que persiste, tornando-se o
centro das múltiplas reencenações trágicas através dos
séculos, é a angústia de Fedra diante do conflito entre a
paixão por Hipólito e o desempenho correto de seu

87
BELTRÃO, C.; HORVAT, P. Fedra: cena trágica, gênero e
aniquilamento na pintura. In LIMA, A. C. C. (org). Imagem, gênero e
espaço: representações da Antiguidade. Niterói: Alternativa. 2014.
186
papel na ordem social, como descendente de uma estirpe
nobre, filha e esposa de reis e mãe de futuros reis.
Para interpretar a personagem Fedra, situada por
Eurípides no âmbito da transgressão do ordenamento
social, a partir de sua caracterização como histérica que,
como tal, subverte o poder do antagonista com os
instrumentos da sedução, da vitimização e do
aniquilamento, apresentando os devaneios eróticos e a
identificação com o objeto de sua atenção (Hypp. vv.
204-249), parto do pressuposto que a hybris de Fedra
pode ser presumida com sendo anterior à sua ação
vindicativa, e poderia ser referida tanto à arrogância de
insistir no decoro quanto à falta de temperança e
comedimento para superar os desígnios de Afrodite.
O conflito de Fedra é apresentado como não
tendo solução possível. O coro anuncia a maleficência
do amor: Amor, que traz para os mortais consigo/ a
ruína e todas as calamidades! (Hypp. vv. 541-543) e a
ama, agente deflagrador de todo o equívoco, incita
Fedra:

(...) Tu, só tu,


profundamente mergulhada no infortúnio,
queres gabar-te de vencer os vagalhões
nadando como se estivesses em mar calmo?
Se em ti, como criatura humana, sempre o bem
prevalecesse sobre o mal, então serias
187
feliz demais! É natural, minha criança
querida! Renuncia a tanta presunção,
pois não é outra coisa este mau pensamento
de ser superior aos deuses! (...) (vv.475-476)

Se Eurípides lança mão da dominação mágica da


realidade, iniciando sua peça com a imprecação de
Afrodite, a peça apresenta a personagem trágica imersa
na materialidade concreta, presa da invencível
necessidade de responder aos impulsos “naturais”,
Ananke, aos quais resiste à toda custa e cedendo a uma
emoção violenta, Bía88, que não consegue dirigir ao
herói e volta contra ela mesma, e as duas formas podem
significar uma subversão do poder que incide sobre
Fedra:

Desde que me feriu o amor imaginei


os meios de enfrentá-lo com mais dignidade. (vv. 393-
394)
(...) Em seguida pretendi
suportar dignamente a minha inquietação,
vencendo-a pela sensatez. (vv. 398-399)
(...) Sabia eu ainda que, sendo mulher,
me tornaria o alvo da aversão geral. (vv. 405-407)

88
ENTRALGO, P. L. La curación por la palavra em la antigüedad
clássica. Anthropos. Barcelona: 2005.p. 89. Ananke significa
inevitabilidade, compulsão e necessidade e Bias, a força bruta .
188
A Tragédia habitualmente apresenta uma didática do
comportamento feminino, colocando em cena a punição
de mulheres transgressoras89, e esta era uma forma
contundente de estabelecer um ethos, ou seja, de
constituir uma matriz simbólica cuja pregnância nos
alcança ainda hoje. Acredito ser possível uma associação
entre a matriz simbólica ateniense e a psicanálise, uma
vez que é a partir do conjunto se significantes
constituintes desta matriz que se pensa uma ética como
normatização de comportamentos em sociedade, ou
como a formação do caráter tendo em vista as ações em
relação à dinâmica de hábitos. Sugiro, então, que há
uma paridade entre o que se entende por ética, como
sugestão do devir relacional de sujeitos em um ambiente
89
Cf. Nicole Loraux: “Mas há também o suicídio das esposas, que vem
complicar tudo, porque é revelado também pela narração, e não pela
visão. Estarão essas desesperadas realmente cometendo uma espécie de
transgressão, para terem de voltar a ocupar precipitadamente seu lugar –
sombrio, oculto, fantasmático – para então encontrarem a morte cuja
narração ao público dependerá de uma ama ou de um servidor? É nessa
reticência em mostrar a morte que a invenção trágica da feminilidade
encontra, sem dúvida alguma, seu limite, com essa maneira que as
esposas perdidas têm de voltar ao seu lugar para rematar uma ortodoxia.
Mas isso não é tudo: recorrer à ordem da linguagem para matar Fedra
ou Dejanira talvez seja uma das dimensões constitutivas do trágico em
sua definição grega. Ao menos não se deve subestimar o benefício
imaginário muito real que essas mortes apenas ditas deviam trazer a um
público de cidadãos.” LORAUX. N. Maneiras trágicas de matar uma
mulher. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p.11.
189
comum, na Tragédia ática e na psicanálise, cujos temas e
códigos permeiam o devir dos sujeitos em sociedade na
atualidade ocidental.
A psicanálise lida com os conflitos mentais, e com
os modos pelos quais essas emoções conflitantes e
aparentemente confusas são projetadas no mundo,
reportando a sua causa às tensões de ordem afetiva
derivadas das altercações inconscientes. A tragédia,
igualmente, lida com conflitos mentais e paixões e os
expressa, os encena, diante de seu público. Na
psicanálise, as expressões dessas emoções na fala e nos
gestos do analisante são elementos-chave para a análise, e
na tragédia, igualmente, falas e gestos90 são itens
fundamentais para buscarmos sua compreensão.
Ao tomarmos como eixo de estudo a relação entre
a tragédia ateniense e a psicanálise, trilhando os passos
de Sigmund Freud91, podemos seguir a vertente que
considera que partilhamos o substrato simbólico, nossos
90
Referimo-nos, aqui, às possibilidades interpretativas das didascálias
das tragédias.
91
A antiguidade não apenas forneceu a Freud temas eruditos para o
enriquecimento e embelezamento de seu texto, ou para fortalecer com
metáforas e analogias sua capacidade de argumentação, dadas as
características culturais de sua época, mas também deu forma tanto ao
nascimento da psicanálise quanto a seu desenvolvimento, o que é
tornado explícito pelo próprio Freud em algumas passagens de seus
textos, como, por exemplo, a referência ao Édipo sofocleano e “Totem e
Tabu”.
190
pressupostos culturais sucessivamente escolhidos pela
tradição para persistirem, com aquilo que denominamos
a “Grécia” e a Roma clássicas92. Há também, em Jacques
Lacan, a retomada constante da cultura clássica como
fundamentação e exemplo do pensamento e da ação
contemporâneos. Nosso comportamento conforme as
apropriações dos clássicos pela contemporaneidade são
uma demonstração cabal de que o ser humano atual é
herdeiro de uma didática política que lhe passa
despercebida.
A psicanálise parte do pressuposto de que o
inconsciente é o discurso de um Outro93, no sentido de
ser este grande outro composto pelos conteúdos da
cultura, o registro simbólico, uma vez que o
pensamento, bem como a constituição e o
reconhecimento dos sujeitos como tais, estão imbricados
na linguagem. Consideramos, então, os seres humanos
como seres discursivos, pertencentes a um ethos, e este
92
GOLDHILL, S. Amor, sexo e tragédia. Como gregos e romanos
influenciam nossas vidas até hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2007.
93
O Grande Outro, termo composto que designa de forma geral os
componentes semânticos do Inconsciente, pode ser considerado
imaginário coletivo que subjaz a uma cultura, tendo em vista que é um
Outro construído de modo discricionário, não consciente, pelo sujeito
em particular, a partir dos pressupostos culturais, tais como preceitos
religiosos e morais internalizados. Para Lacan, o inconsciente é
“estruturado em função do simbólico” (LACAN, 1986, p. 22)
191
ethos pode ser descrito como o ordenamento simbólico
e a sua praxis. O “ingresso no simbólico”, por meio da
adoção da linguagem, possibilitaria aos indivíduos uma
praxis ética, não solipsista, e seria a condição mesma de
ser falante, alienado pela fala deste grande Outro que se
institui. Entretanto, o inconsciente, estruturado como
uma linguagem94, não obedeceria obrigatoriamente às
regras ortogramaticais e semânticas da lógica95, podendo
instituir seu discurso, sua expressão segundo uma lógica
proposicional individual, reconstruindo uma sequência
de significantes, e/ou segundo uma lógica predicativa,
que remeteria aos referenciais do simbólico,
reordenando os significantes.
Vale lembrar que os sujeitos internalizam valores
morais à sua maneira e que a ética psicanalítica pretende
lidar com tais valores internalizados, ou seja, com as
interpretações, sempre polissêmicas, acerca do discurso
da alteridade, representadas no imaginário e a sua
relação com o mundo da vida. A psicanálise, que aborda
a expressão da subjetividade e, por meio dela, as razões
dos discursos, das encenações e das ações dos sujeitos,
interpretando as semânticas particulares, não operaria

94
LACAN, J. Seminário 20. Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar. 1985.
p. 71
95
LACAN, J. Seminário 20. Mais, ainda. Rio de Janeiro: Ed. Zahar.
1985.p. 65.
192
com uma ética do bem, entendida como as filosofias ou
o senso comum utilizam esta palavra, mas com uma
ética do bem articular em uma narrativa pessoal
internalizada o que expressa um inconsciente.
E com “ética do bem dizer”, a psicanálise
considera que a expressão do desejo implica
consentimento, um ato de deliberação, estabelecendo
que o desejo bem dito não seria mais um desejo da
ordem do necessário, volúpia desenfreada, mas um
desejo reconhecido e perpassado pelo nous96,
pensamento/razão, embora não governado por ele, ou
seja, um desejo mediado pela civilização. O que equivale
a dizer que um desejo ético é aquele cujo destino já não
estaria submetido aos desígnios pulsionais, tampouco
aquele que arrastaria consigo o recalque, mas um desejo
sublimado, ou pronto para a sublimação e apto a operar
a transmutação subjetiva de um sujeito em um ser
civilizado97. Desse modo, a psicanálise entende que os
indivíduos não podem, ou não devem, escapar aos
ditames do ordenamento social, propugnando que
busquem viver em sociedade encontrando uma forma de
consecução de seus desejos o mais adequada possível às

96
LACAN, J. O Seminário, Livro 7. A Ética da Psicanálise. Rio de
Janeiro: Ed. Zahar, 2008.p.34.
97
LACAN, J. O Seminário, Livro 1. Os escritos técnicos de Freud. Rio
de Janeiro: Ed. Zahar. 1996.p. 157 ss.
193
regras de conduta do seu meio, caso contrário os
conflitos, que tendem a ser intersubjetivos, ou entre
subjetividades e ordenamento social, se perpetuam em
atos incongruentes, produtores de angústia e
desnecessários ao devir do sujeito. Para a psicanálise,
uma Ética regeria os atos do sujeito para além do desejo,
para além das normas jurídicas e da sua vivência social.
Segundo Lacan, “é em relação a esse orthos logos, que o
principio de realidade deve guiar o sujeito para que ele
chegue a uma ação possível” 98. Esta ação possível é a
sublimação, ou seja, a socialização dos instintos, não a
supressão, mas a transformação do desejo em algo
socialmente palatável, a conveniência.

Dizem que nesta vida os exageros


de uma virtude íntegra, imutável,
causam mais decepções do que prazeres
e impedem uma existência sadia.
(Hypp. vv. 261-263)

Assim como a psicanálise busca trazer ao logos o desejo,


pelo conhecimento do fato e de sua história, com a
finalidade de ajustá-lo ao ethos, a tragédia busca trazer à
tona os desejos confrontando-os com as determinações
do ethos a fim de ajustá-los à pólis.
98
LACAN, J. O Seminário, Livro 7. A Ética da Psicanálise. Rio de
Janeiro: Ed. Zahar, 2008. p. 42.
194
Na fala de Fedra:

Trezenas que habitais esta terra distante,


umbral dos domínios de Pélops: muitas vezes
pensei, noutros momentos, em horas noturnas,
tão lentas, nas causas da corrupção humana.
Suponho que não é por natural fraqueza
que as criaturas seguem o pior caminho,
pois todas elas são dotadas de bom senso.
Eis como devem ser vistas as coisas: temos
em nós tanto a noção como o discernimento
da conveniência, mas não queremos segui-la,
umas por indolência, outras por preferirem
ao bem certo prazer que as distancia dele. (vv. 374-
386)

A psicanálise e a tragédia trazem em comum a crença na


força sugestiva da “palavra bem empregada”, no sentido
da instauração de uma ética. Como criação teatral, a
tragédia apresenta somente os fatos necessários à
transmissão didática destas regras. Então, as tragédias
são metáforas dos desejos humanos em sua errância,
contrapostos ao ordenamento social, com o Coro, a voz
da cidade, tentando compreender o desejo e explicar por
que ele pode ou não pode ser realizado, e com as
personagens coadjuvantes, representantes do superego,
incitando ou obstaculizando os desejos do protagonista e
das demais personagens. As tragédias também nos dizem
195
muito dos tragediógrafos e dos juízos praticados sem que
se explicite os valores que os determinam, e deixam
transparecer o lugar de fala99 de sua escrita, permitindo
um exame formal e semântico do que é dito. Citamos
Fabio Lessa: “As representações do mundo social são
sempre determinadas pelos interesses de grupo que as
forjam, isto porque as percepções do social não se
constituem em discursos neutros”100.
Na psicanálise, a mulher é a alteridade, uma vez
que o simbólico é o discurso masculino. As figuras
trágicas femininas são também signos da alteridade, por
serem ou estrangeiras, ou incompreensíveis, ou
transgressoras, agindo fora do ordenamento social
comum, ou para além do que uma ordem estabelecida
pela política masculina desejaria que agissem. As
mulheres que agem são entendidas como trangressoras e,
por isso, estigmatizadas. Na tragédia como na psicanálise
é enfatizada a alteridade das mulheres, como alienígenas,

99
Entendemos como lugar de fala a intenção epistemológica, conforme
Clifford Geertz, cuja antropologia interpretativa utiliza o par
intuição/emoção para analisar os sentidos produzidos pelo texto
considerando que o sentido é sobredeterminado e se constitui na
proporção de um acréscimo de significado para além do definido pelo
código.
100
LESSA, F.S. Mulheres de Atenas: Melissa do Gineceu à Agorá. Rio
de Janeiro: LHIA/UFRJ, 2001. p. 23.

196
como o outro potencialmente ameaçador. Como diz
Hipólito:

O fato é que Cípris faz a perversidade


nascer principalmente na mulher pensante;
as ignorantes não chegam a ser perversas
pelas limitações de sua inteligência.
Não deveriam as criadas acercar-se
de suas donas. Teriam de restringir-se
ao convívio silente dos irracionais;
assim não falariam a nenhuma delas
nem delas jamais ouviriam a palavra.
De fato, veem-se mulheres pervertidas
tecendo na intimidade planos pérfidos
que são levados para fora por criadas.
(vv. 642-651)

O discurso psicanalítico transcorre ao redor do falo,


termo que significa o poder estruturante da linguagem
na matriz simbólica, a autoridade internalizada por meio
das interdições pétreas e das obstaculizações dos
impulsos desejantes. O falo, frequentemente adquire o
valor de símbolo, ou índice de significantes, tendo
sempre a função de eixo da vida mental e da vida social,
uma vez que é o eixo da matriz simbólica e da
linguagem. É a partir do seu reconhecimento, ou da
introjeção da ideia de lei, ou seja, do poder que
estabelece limites, do falo, que uma pessoa pode se
197
adequar ao convívio, condição imprescindível para a
inserção na sociedade. Enquanto os homens tendem a se
adequar a priori ao universo cognitivo androcêntrico por
meio da linguagem, facilitando, ainda que
inconscientemente, o seu comportamento de acordo
com as matrizes sociais, as mulheres dele participam
sem, no entanto, identificarem-se integralmente com
essa posição, como se mantivessem um pé fora da
circunscrição, e, por isso, são definidas como alteridade
em relação ao “universal androcêntrico”, tendo sempre
uma parte de si remetida a um universo desejante
autônomo, inapreensível para a matriz simbólica e seus
registros linguísticos. Este seria o fulcro do remetimento
das mulheres à histeria desde a antiguidade.
A sobreposição do desejo político ao desejo sexual
como algo biológico é herdeiro da colocação da mulher
no lugar de ser sem logos, cuja função não seria a fálica,
mas a da procriação, mas este conceito de desejo pode e
deve ser problematizado.
Na tentativa de atualizar este anacronismo e
solucionar a questão dos laços relacionais, e entre eles o
da histeria, em um contexto que se afastava do
misoginismo vitoriano, Lacan apresenta a histeria como
um dos laços sociais, estabelecendo que, neste tipo de
laço, o sujeito do discurso não está na posição do mestre,
apesar de, à maneira de Roman Jakobson e de Michel

198
Foucault, reconhecer o ato discursivo, a prática de falar,
como o lugar "dominante" e como instrumento de
dominação. As imprecações de Hipólito, por exemplo,
pertencem ainda hoje ao senso comum:

A sorte menos má é receber em casa


alguma nulidade que, de tão obtusa,
nem é notada.Detesto a mulher pensante
e faço votos para que em meu lar futuro,
jamais haja mulher com mais inteligência
que a meramente necessária ao próprio sexo!
(vv. 638-641)

A personagem histérica passa a situar-se na posição de


subserviência ao mestre e exercita a subversão pela
sedução, ao torná-lo desejante e assim, dominá-lo pela
suspensão. Notemos que Lacan opera no campo do
habitus, da eternização do arbitrário, e que em suas
teorias subjaz a "atitude natural", ou de "experiência
dóxica", frente à naturalização do que Bourdieu chama
de "violência simbólica"101, presente no fato de só
conceber um discurso dominante feminino, o "discurso
da histérica", se este é proferido do topos da ausência e
da nulidade e dirigido ao topos do naturalmente
localizado e com lugar, ou seja, a posição feminina, da

BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand


101

Brasil. 2002. p.1.


199
assim dita "passividade" anelante de uma atenção
masculina, dirigida àquele que ocupa a posição "ativa",
desejante e realizadora de desejos. Nota-se também esta
postura ideológica de naturalização de papéis sociais
construídos pela educação dos indivíduos, no fato de se
remeter secularmente à histeria como apanágio
feminino, inscrevendo as mulheres a priori na posição de
subjacência que busca a dominação do dominador pela
sedução do desejo. Esta adesão inconteste à doxa é o
motor da "naturalização" e o que faz desconhecer in toto
o aspecto de resistência à consistência ideológica de
mecanismos de dominação e exclusão social de
indivíduos e grupos.
Conforme Claudia Beltrão:

Aprender a ser homem e aprender a ser mulher são


tarefas das mais precoces e constantes nas diversas
culturas. Delineiam-se imagens, traçam-se destinos
que, mesmo variados no tempo, no espaço e na
cultura, são limitados pelas fronteiras do que se espera
para rapazes e moças. Todas as instâncias socializadoras
das crianças e dos adolescentes de diversos tempos e
lugares investem na sedimentação dessas identidades, a
da masculinidade e a da feminilidade. E, nas
representações correntes das diversas sociedades,
assume-se masculinidade e feminilidade como o
afloramento de uma essência, explicada pela “natureza”
de cada um dos sexos. No entanto, estes atributos,

200
ditos “naturais”, vão sendo calcados em meninos e
meninas por um longo processo educativo102.

É com o advento da psicanálise, no entanto, que se


propõe a possiblidade de a histeria não ser a síndrome
das mulheres por excelência, apesar de vermos ainda a
exemplificação da histeria frequentemente no gênero
feminino, mesmo em Lacan, que propõe ser a histeria
não uma síndrome, mas uma forma de discurso
relacional, um modo de se por no mundo em uma
relação de sujeição/subversão ao poder. A histérica seria
aquela a quem o falo falta, aquela que se desmancha em
frenesi e busca se completar tomando de empréstimo,
por meio da subversão, o falo, o poder, que atribui a
outro. Fedra subverte o que pressupõe ser a
incolumidade de Hipólito:

Mas minha morte há de ser o fim de alguém


que aprenderá a não alardear orgulho
por minha perdição; levado por meus males,
alguém receberá por causa deles todos
uma lição tardia de comedimento.
(vv.727-731)

102
BELTRÃO, C. Tirocinium Fori: o orador e a criação de homens no
Forum Romanum. Rio de Janeiro: Phoînix, 13: 52-66. 2007.p.52.

201
Se disséssemos que na tragédia ateniense, associada à
medicina hipocrática, o falo ausente que provoca a
histeria nas mulheres é um órgão sexual masculino e o
falo ausente que provoca a melancolia103nos homens é
um órgão sexual feminino, ou seios, parecer-nos-ia
esquisito, tão impregnado está nosso universo
cognitivo/discursivo de que histeria, falta e avesso seriam
aspectos femininos. Essa inconsistência faz-se óbvia,
oriunda do remetimento da histeria - que pode ser
expressa por quase todos os sintomas - ao desejo intenso
e envergonhado de meninas e mulheres por um
intercurso sexual com qualquer coisa que possa gerar
filhos, uma vez que a falta de um falo físico que está em
outra pessoa, mas que também é um signo de poder,
enlouqueceria somente as mulheres. É plausível
considerar que o desejo pelo falo, movido por uma
libido fálica, se seria reprimido nas histéricas, seria
recalcado nos histéricos104. Cumpre inquirir sobre a
103
Assim com a histeria foi reputada às mulheres como explicação para
quase todos os sintomas, para os sintomas dos homens se utilizava o
diagnóstico da Melancolia.
104
Repressão seria uma operação psíquica que tende a suprimir
conscientemente uma ideia ou um afeto cujo conteúdo é desagradável, e
Recalque seria um processo que visa a manter no inconsciente as ideias
ou representações ligadas às pulsões e cuja realização, produtora de
prazer, afetaria o equilíbrio do funcionamento psicológico do indivíduo,
transformando-se em fonte de desprazer. ROUDINESCO, E. e PLON,
M. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro. Zahar, 1998.
202
possibilidade deste segundo recalque operar nos moldes
de uma Urvedrängung105, um recalque original, como
parece transparecer nos escritos psicanalíticos, caso em
que o recalque se daria, nesse momento, em função do
desejo do infante pelo pai e não do desejo edipiano pela
mãe.

A gente só recalca, o tal gozo porque não convém que


ele seja dito, e isto justamente pela razão de que dizer
não pode ser senão isto – como gozo, ele não convém.
Já adiantei isto há pouco pelo viés de ele não ser aquele
que é preciso, mas o que não é preciso.
(...) O amor é impotente, ainda que seja recíproco,
porque ele ignora que é apenas o desejo de ser Um, o
que nos conduz ao impossível de estabelecer a relação
dos... A relação dos quem? – dois sexos106.

Se tomamos como ponto de referência a obstaculização


do desejo pela lei, que se instaura pela função
denominada fálica em uma estrutura mítica que
pressupõe o sacrifício e introjeção do pai na horda
primitiva107, podemos verter a metáfora paterna para

105
LACAN, J. Seminário 20. Mais, ainda. Rio de Janeiro: Ed. Zahar.
1985.p.83.
106
Idem. pp. 83; 14.
107
A ideia de pai da ordem primitiva é uma referência a Totem e tabu,
mito criado por Freud para alegoricamente exemplificar como
funcionaria a supostamente originária instauração do poder em um
203
pelo menos três níveis interpretativos, concernentes ao
real, ao imaginário e ao simbólico, como significante
respectivamente do pênis, do pai e da falta.
Naturalmente que às mulheres, não todas na
circunscrição do simbólico androcêntrico, resta uma
paisagem mais ampla para transitar. Lacan, no processo
de análise e desconstrução da doutrina psicanalítica,
discorrendo sobre a mobilidade da diferença sexual,
sugere que as mulheres, em termos gerais, parecem
compreender e manter esta instância de classificação
restrita a uma estreita grade cognitiva, própria a um
conjunto de pessoas que concebe metade da população
mundial como o imaginário seio da própria mãe108. Por

grupo social primevo. O Pai de todos os homens da tribo “original”


usufruía dos bens e de todas as mulheres e é morto por seus filhos em
uma insurreição, o que deriva em um misto de satisfação pelo poder
adquirido e culpa pelo parricídio, para cuja expiação os filhos eregem o
pai morto em um Totem. O Totem passa a ser o símbolo
transcendental de um poder exercido sobre todos, e assim, fica
instituída a regulação de cunho religioso.
108
Cf. Lacan: “É claro que o que aparece nos corpos, com essas formas
enigmáticas que são os caracteres sexuais - que são apenas secundários –
faz o ser sexuado. Sem dúvida. Mas, o ser, é o gozo do corpo como tal,
quer dizer, como assexuado, pois o que chamamos de gozo sexual é
marcado, dominado, pela impossibilidade de estabelecer, como tal, em
parte alguma do enunciável, esse único Um que nos interessa, o Um da
relação sexual. (...) É o que demonstra o discurso analítico, no que, para
um desses seres como sexuados, para o homem enquanto que provido
do órgão dito fálico – eu disse dito -, o sexo corporal, o sexo da mulher
204
isso vemos extensamente colocado em prática um
perverso jogo de dominação sub-reptícia que remete à
Dialética do Senhor e do Escravo descrita por Hegel.
Em um ambiente no qual se obriga ao estabelecimento e
manutenção das relações pessoais segundo um modelo
de dominação que pode ser considerado artificial e que
não se presta a responder aos anseios e a solucionar os
conflitos dos seres humanos, mas a comprimi-los e
esticá-los, recrudescendo-os, a clínica psicanalítica
parece demonstrar, por seus exemplos, que a maioria dos
estados de angústia advém dos conflitos originados pela
configuração rígida dos papéis a serem desempenhados

– eu disse da mulher, embora justamente não exista a mulher, a mulher


não é nada, a não ser por intermédio do gozo do corpo. O discurso
analítico demonstra – permita-me dizê-lo desta forma – que o Falo é a
objeção de consciência, feita por um dos dois seres sexuados, ao serviço
a ser prestado a outro. E que não me falem dos caracteres sexuais
secundários da mulher, porque, até nova ordem, são os da mãe que
primam nela. Nada distingue a mulher como ser sexuado senão
justamente o sexo. Que tudo gira ao redor do gozo fálico, é
precisamente o de que dá testemunho a experiência analítica, e
testemunho de que a mulher se define por uma posição que apontei
como o não-todo no que se refere ao gozo fálico (... ) Não é de modo
algum assim que se estabelece o discurso analítico, que formulei para
vocês com oa minúsculo e com o S2 que está debaixo, e com aquilo que
isso interroga o lado do sujeito, para produzir o que? - senão a besteira.
Mas, depois de tudo, em nome do quê e que eu diria que, se isso
continua, é besteira? Como sair da besteira?”. LACAN, J. Seminário 20.
Mais, ainda. Rio de Janeiro: Ed. Zahar. 1985. pp. 15 - 22.
205
na instância da manutenção da oikos- a rede de relações
sócio- econômicas que se estabelece a partir da
casa/família - a que são obrigados os sujeitos para que
possam desfrutar das vantagens da vida em sociedade.
Como nos revela o conflito de Hipólito entre a
dedicação religiosa e a obrigação de casar e ter filhos:

Ah! Zeus! Por que impões aos homens o flagelo


de mau caráter chamado mulher e o mostras
à luz do sol? Se desejavas propagar
a raça dos mortais, não seria às mulheres
que deverias dar os meios para isso.
Em troca de ouro ou ferro ou do pesado bronze
depositado em teus altares, deverias
ter concedido aos homens meios de comprar,
segundo as suas oferendas, o direito
de ter os próprios filhos e poder viver
livres da raça feminina em suas casas.
(vv. 616-624)

Em Hipólito, a única saída que Fedra encontrou para


expiar sua desobediência à ordem social, ao desejar
sexualmente o enteado, é o suicídio. Ela não é
literalmente punida, pois o suicídio é escolha sua, mas
simplesmente suprimida da cena e da história. Podemos
aventar que o dramaturgo apresenta as punições para a
transgressão à ortodoxia vigente segundo a qual uma
mulher de boa estirpe não pode desejar senão o melhor
206
cumprimento do seu papel na pólis e, na tragédia, a
primeira transgressão é a subversão do desejo erótico; é a
personagem feminina que deseja e não o homem,
enquanto a personagem masculina desdenha o desejo
sexual e privilegia as práticas religiosas. A hybris, a
arrogância de estabelecer-se como dono do seu próprio
destino, é o motivo que faz Hipólito desdenhar o amor
de uma deusa, Afrodite, ao querer permanecer casto, não
se casando nem tendo os filhos necessários109. A hybris é
também o que motiva a Fedra desejante e a faz colocar
em perigo a honra da casa de Teseu e a sua sucessão,
desmantelando a estrutura políade e enviando
vindicativamente à morte aquele que julga causador da
catástrofe insolúvel senão com a sua própria morte110.
Quanto a Hipólito, cuja punição pela transgressão
interessa à ordem políade, é castigado com a morte, mas
resgatado da hamartía por sua divina protetora, que o
reinsere na pólis erigindo um templo para que seja
cultuado.
Segundo a ordem androcêntrica, ao homem
cumpre desejar e à mulher cumpre responder ao desejo

109
Em 428 a.C., Eurípides apresentou, nas Grandes Dionisíacas, a sua
segunda versão de Hipólito, o Hipólito coroado. Se na primeira versão
Hipólito velava o rosto com vergonha do amor nutrido por sua
madrasta, na segunda ele vitupera contra ela.
110
GOLDHILL S. Reading Greek Tragedy. Cambridge: Cambridge
University Press. 2004. p. 22.
207
masculino. É por desejar que Fedra cai em desgraça,
enquanto com Hipólito acontece justamente o
contrário: cai em desgraça por não desejar. Como citado
acima, Hipólito pergunta a Zeus por que não foi
concedido aos homens que pudessem ir aos templos e,
em troca de presentes e oferendas depositadas em altares,
ou de sacrifícios, recebessem seus próprios filhos,
podendo, então, viver livres da raça feminina em suas
casas e, desse modo, as mulheres não seriam necessárias.
(Hypp. vv. 616-624). Mas, se para Hipólito há salvação,
para Fedra não há, embora fosse considerado de igual
importância para a sociedade ateniense que homens e
mulheres tivessem relações sexuais, dessem continuidade
à casa familiar e tivessem filhos.
A ‘crise’ de Fedra/Hipólito inverte os
normalizados papéis políades da sexualidade masculina e
feminina, portanto, considerados ‘normais’, e a tragédia
rejeita tal inversão reforçando, consequentemente, a
ortho praxis111. O enredo trágico, num nível subliminar,
viola a ordem políade e os valores áticos: a existência e a
manutenção do oikos, que garante a permanência e a

Cf. Aristóteles, que, na Poética(1453b6-11), afirma que não é


111

qualquer violência que garante o choque e o horror na cena trágica,


apenas a violência que envolve philoí, violência que ameaça os laços da
philía. Tais enredos tinham o potencial de provocar nos espectadores
um sentido de reafirmação da ordem social e de seus valores morais,
revitalizando-os.
208
sucessão da família, o casamento monogâmico, o
respeito pela philía, pela ordem social e religiosa.
A hamartía de Fedra é a vertigem do desejo
expresso, incontrolável, que ela insiste em experimentar
em devaneios de estupefação erótica, mas que não realiza
na prática. Na tragédia e nos comentários literários, ela é
considerada adúltera pelo desejo, mesmo sem a sua
consecução, e apesar de ser sugerido que Teseu, seu
marido e rei de Atenas, está ausente da pólisem
aventuras com seu amante Piritoo, não se considera que
ele pode ter escapado ao seu papel social de manutenção
do oikos. É dito que ela pratica o incesto, ainda que
Hipólito seja filho de outra, e é considerada assassina do
enteado, mesmo não o tendo morto (apesar do perjúrio
que derivou em sua morte). E ainda hoje não se coloca
em questão este tipo de hiato interpretativo.
Observemos o que diz Simon Critchley em 2004:

Eu quero morrer, eu odeio a minha vida. É esta a


doença de Fedra. Mas por que Fedra padece desta
doença? Bem, adultério, incesto e assassinato de um
inocente não são meramente deslizes morais, mesmo
para uma descendente da linhagem dos deuses112.

CRITCHLEY, S. I Want to Die, I Hate My Life: Phaedra's Malaise,


112

in New Literary History-Rethinking Tragedy, Baltimore: Johns


Hopkins University Press.Vol. 35, No. 1. 2004, pp. 17-40.
209
Repito que nas tragédias, as personagens femininas
ocupam sempre o lugar da alteridade, seja por serem
estrangeiras, e que por esta ‘má influência’ incorrem em
desvios, ou por serem excessivamente religiosas,
incorrendo em superstições, ou por seus poderes
mágicos – e a pólis rejeitava a magia – ou se atinham a
costumes pré-políades, das fratrias, que a pólis
democrática rejeitava com veemência. A pólis
estabelecia um locus específico às mulheres, a
domesticidade e a esfera privada da existência humana,
excluindo-as do âmbito público da Agorá democrática.
As personagens femininas trágicas, ao se apresentarem
no espaço público histórico e no âmbito operacional da
pólis, transgrediam o espaço a elas reservado e incorriam
em hybris, e a tragédia, ao apresentar sua consequente
loucura ou aniquilamento, recolocava o elemento
feminino em seu ‘lugar natural’113.
Tal visão, contudo, não ficou restrita ao universo
políade ateniense do século V AEC., haja vista as visões
misóginas dos comentadores contemporâneos, que
representamos na citação de Critchley supra, o que
denota que as não-ações da personagem Fedra ainda
geram um grande incômodo em seus

Cf. ZEITLIN, F. I. Playing the Other: Gender and Society in


113

Classical Greek Literature. Chicago: University of Chicago Press. 1995.


p.158.
210
espectadores/leitores. Se a construção da personagem
masculina é feita pela negação do feminino, qualquer
transgressão a esta posição negativa ameaça a
‘integridade’ da identidade masculina114.
Outro exemplo desta didática da “normalidade”
aparece no Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, em que a
personagem Io, no texto em grego é denominada
asterganora parteenian, que significaria “virgem exilada
da humanidade” (Prom. vv. 894-900), porque é
estrangeira e será desterrada, condenada a errar pelo
mundo. Froma Zeitlin, por exemplo, traduz astergaanora
parteenian como “virgem que nenhum homem amou”115,
apesar de toda a sua desgraça ter ocorrido porque Zeus
estava perdidamente apaixonado por ela. A pudicícia do

114
“O gênero é, por assim dizer, o “sexo social”, ou a diferença dos sexos
construída socialmente, um conjunto dinâmico de práticas e de
representações, com atividades e papeis assignados, atributos
psicológicos, um sistema de crenças. O sexo é percebido como um
invariante, enquanto o gênero é variável no tempo e no espaço, a
masculinidade e a feminilidade – ser homem ou ser mulher ou ser
considerado(a) como tal – não tendo a mesma significação em todas as
épocas e em todas as culturas.” THÉBAUD. F. Écrire l’histoire des
femmes. Paris: ENS Éditions, 1998, p. 114. Apud BELTRÃO, C.
Religião, Gênero e Sociedade: Ordem romana, ordem sagrada. Rio de
Janeiro: Revista Maracanan. nº 9. 117-134. 2013.
115
Cf. ZEITLIN, F. I. Playing the Other: Gender and Society in
Classical Greek Literature. Chicago: University of Chicago Press.1995.
p. 166.
211
comentário de Zeitlin em relação ao desejo sexual,
pouco apropriada ao contexto de criação da peça, e a
ambiguidade em relação a este ato da protagonista em
sua condição de mulher, a faz dizer que uma mulher que
não teve relações sexuais não foi amada por nenhum
homem, o que seria uma inferência generalizante pouco
apropriada a um texto científico116. No caso de
Hipólito, ele é virgem porque quer, e tem o direito de
sê-lo, e não se faz referência ao desejo do outro, no caso,
Afrodite e Fedra.
Acredito que Hipólito desempenha, no âmbito
das escolhas afetivas, o mesmo papel que Io, no
Prometeu Acorrentado de Ésquilo, com a diferença de
que ele não é estigmatizado. A penalidade do seu
esfacelamento é corrigida por sua sacralização sem que
ele tenha uma mudança de comportamento, já Io
enlouquece e só será resgatada quando abandonar sua
índole, ceder aos desígnios da pólis e tiver o filho de
Zeus no Egito. Ioé apresentada como histérica, no
entanto, o que lhe é vedadonão é a consecução de um
desejo sexual, mas a consecução de um desejo ético, a
sublimação, ou a realização de um papel de importância
social, pois os pressupostos religiosos e cívicos a impelem

116
Poder-se-ia tecer, aqui, considerações sobre o quanto Zeitlin estaria
impregnada pela tópica do amor cortês e sua interpretação por Lacan,
no Seminário VII, mas não é o momento para esta digressão.
212
ao intercurso sexual, às núpcias reais, que a reduziriam à
instância da domesticidade. Para apersonagem ateniense,
uma figura proeminente e, portanto, modelar na
sociedade políade, cuja cultura não interdita o desejo
sexual, mas, sim, a transgressão aos deveres cívicos, que
se colocam em primeiro lugar, em detrimento de anseios
particulares, o desenvolvimento do drama trágico, a
possessão pelo quadro de histeria, consiste na punição
pela desobediência à pólis:o desterro e a loucura. Na
tragédia, não é permitido a Io transitar pela instância da
sublimação do desejo, posto queela, tida como ser de
pura fisicalidade, tem a obrigação de não ser, mas, sim,
de funcionar na sociedade obedecendo aos rituais da
mundaneidade, sem ascender à dignidade de uma
existência mais plena.
Hipólito, tendo Fedra como protagonista, foi
inúmeras vezes reescrita, comentada e reencenada desde
então, muitas vezes apresentando seus devaneios eróticos
como histéricos117. No entanto, para os atenienses
espectadores de Eurípides, a questão principal da
tragédia talvez consistisse na punição de Hipólito pela

117
CASTRO FILHO, C.. Apresentação Hipólito e Fedra, nos caminhos
de um mito. Humanitas Suplementum. Coimbra: Universidade de
Coimbra. 2012. p.9. e Kühl, P. M. Brava! Sublime! Fedra na ópera,
entre França e Itália, In Jesus, C.A.M., Castro Filho, C.; Ferreira, J.R..
Hipólito e Fedra, nos caminhos de um mito. Humanitas Suplementum.
Coimbra: Universidade de Coimbra. 2012. p. 207.
213
hybris. Ele se recusara ao intercurso sexual com Afrodite
e, ao insistir em permanecer casto, se furtava ao papel
social no que concerne à constituição e continuidade de
uma família de boa estirpe. Quando um Hipólito
declina da vida sexual, seria ele um histérico? Essa
possibilidade não é aventada, apesar de Hipólito
subverter diretamente a ordem políade e o poder
religioso e, assim, subverter obliquamente o fundamento
do ordenamento social.
As personagens femininas das tragédias atenienses
comumente se apresentam como representação
paradigmática das mulheres: como seres de pura
fisicalidade, sem consciência dos motivos de suas
aflições, irresponsáveis quanto às atribuições cívicas e,
portanto, merecedoras de tutela. A histeria, representada
com clareza conforme o senso comum da plateia
ateniense, definia o que seria uma mulher, e, dessa
forma, reiterava a hegemonia masculina, o pátrio poder
e a segregação sexual, localizando as mulheres na
submissão, na inferioridade e na domesticidade. Assim,
esse modelo aplicado ao comportamento feminino na
aristocracia, mais sujeita às formas legais, deveria
funcionar retoricamente como um argumento de
autoridade a ser eventualmente aplicado também aos
grupos menos privilegiados.

214
A tragédia tinha um cunho fortemente pedagógico,
posto que ressalta o aspecto sexual da relação conflituosa
de Io com seu destino e de Fedra com seu desejo. O
aspecto sexual pontuado é de fácil apreensão pela
população em geral, pouco afeita à reflexão, e assim a
tragédia alcança seu público pela via mais direta e
comum a todos. Reitera-se o aspecto sexual das
personagens reafirmando a exclusividade do seu
horizonte existencial em favor da normatividade da
pólis.
Procurei, então, associar as representações destas
personagens femininas modelares, ao estabelecimento da
mulher como alteridade no discurso e àquilo que
denominamos a construção da histeria como anti-lugar
reservado às mulheres, investigando a transformação de
uma instância ética em uma instância de fisionomia
ontológica, considerando que o texto trágico opera no
campo das significações sobre o discurso do senso
comum, no sentido de corroborar a tradição como uma
ação retórica que insere os espectadores no âmbito da
linguagem por meio da identificação afetiva com
conflitos que são eminentemente políticos.

215
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221
222
POR QUE PRECISAMOS DE
CHINA E ÍNDIA?
André Bueno118

Um começo

A verdade é que o Oriente chegou a dar considerável


substância, e não apenas alguns dos seus brilhos mais
vistosos de cor, à cultura que aqui se formou e à
paisagem que aqui se compôs dentro de condições,
predominantemente patriarcais de convivência
humana, em geral, e de exploração da terra pelo
homem e dos homens de uma raça pelos de outra, em
particular. E não só substância e cor à cultura: o
Oriente concorreu para avivar as formas senhoris e
servis dessa convivência entre nós: os modos
hierárquicos de viver o homem em família e em
sociedade. Modos de viver, de trajar e de transportar-se
que não podem ter deixado de afetar os modos de
pensar. Só o vigor do capitalismo industrial britânico
na sua necessidade às vezes sôfrega de mercados não só
coloniais como semicoloniais para sua produção, de
repente imensa, de artigos de vidro, ferro, carvão, lã,
louça e cutelaria – produção servida por um sistema
verdadeiramente revolucionário de transporte –
conseguiria acinzentar, em tempo relativamente curto,

118
Prof. Adjunto de História Oriental, UERJ.
223
a influência oriental sobre a vida, a paisagem e a
cultura brasileira. Pois o que parece é que, ao findar o
século XVIII e ao principiar o XIX, em nenhuma outra
área americana o palanquim, a esteira, a quitanda, o
chafariz, o fogo de vista, a telha côncava, o banguê, a
rótula ou gelosia de madeira, o xale e o turbante de
mulher, a casa caiada de branco ou pintada de cor viva
e em forma de pagode, as pontas de beiral de telhado
arrebitadas em cornos de lua, o azulejo, o coqueiro e a
mangueira da Índia, a elefantíase dos Árabes, o cuscuz,
o alfeolo, o alfenim, o arroz-doce com canela, o cravo
das Molucas, a canela de Ceilão, a pimenta de
Cochim, o chá da China, a cânfora de Bornéu, a
muscadeira de Bandu, a fazenda e a louça da China e
da Índia, os perfumes do Oriente, haviam se aclimado
com o mesmo à vontade que no Brasil; e formado com
valores indígenas, europeus e de outras procedências o
mesmo conjunto simbiótico de natureza e cultura que
chegou a formar no nosso País. É como se
ecologicamente nosso parentesco fosse antes com o
Oriente do que com o Ocidente que, em sua mística
de pureza etnocêntrica ou em sua intolerância
sistemática do exótico, só se manifestaria, entre nós,
através de alguns daqueles estilos e de algumas
daquelas substâncias inglesas e francesas de cultura
generalizadas no litoral brasileiro após a chegada de D.
João VI ao Rio de Janeiro. Ou por meio de um ou
outro arreganho de ocidentalismo ortodoxo da parte
de portugueses mais em desarmonia com o quase
instinto ou a quase política portuguesa de expansão,
que sempre se afirmou no sentido da conciliação dos
224
valores orientais com os ocidentais. (Gilberto Freyre
em Sobrados e Mucambos, 1936, cap.9)

Ao lermos esse fascinante trecho de Gilberto Freyre,


seria razoável que nos perguntássemos “mas então,
porque não estudamos a História do Oriente em nossas
escolas?”. A pergunta torna-se ainda mais complicada
quando a estendemos para o âmbito universitário, lugar
onde deveríamos aprender mais sobre os muitos
“Orientes”: O Oriente Médio, o Extremo Oriente, a
concepção Orientalista... E, no entanto, pouco se
aprende sobre isso. Alguns currículos acadêmicos
preveem o ensino de elementos básicos sobre Egito e
Mesopotâmia, repassados de forma rápida e superficial.
Israel surge, ocasionalmente, em função de preocupações
religiosas. Índia, China e Japão ainda se constituem uma
fantasia distante e exótica. Temos poucos especialistas
nesses campos. Para piorar esse quadro desolador, o
mundo acadêmico brasileiro, sobre qual paira uma
preocupante sombra de obscurantismo, tem revelado
docentes e pesquisadores que gostariam, realmente, de
excluir a História Antiga dos currículos de História.
Obviamente, tais posturas, fundamentadas em
argumentos fracos e imediatistas (o que deveria ser uma
vergonha para alguém que se considere historiador),
demonstram também que, de algum modo, o público

225
acadêmico está distante dessas preocupações. Sem um
conhecimento mais claro da longa trajetória das culturas
asiáticas, é praticamente impossível compreender a
importância de conhecê-las, e seu imenso legado para a
humanidade. Ou seja: nossos alunos (e futuros
professores) sabem pouco sobre Oriente porque pouco
aprenderam; e assim, num círculo vicioso, perdem de
vista as dimensões fundamentais desse fértil campo, sem
compreender sua valia decisiva para a construção de uma
História mundial.
Essa situação fica patente na medida em que nós,
brasileiros, revelamos o quão pouco sabemos sobre nós
mesmos. Estamos imersos numa cultura riquíssima,
referta da presença dos muitos Orientes, como nos
demonstrou Gilberto Freyre. Em seu China Tropical –
uma seleção de seus principais textos sobre a presença
asiática no Brasil – estamos próximos de constatar que o
ideal multicultural brasileiro não se assenta em falsas
premissas. Todavia, esse desconhecimento do “Oriente”
tem excluído de nosso imaginário que também temos
raízes e influências asiáticas.
Nesse espaço, gostaríamos de discutir algumas
razões pelas quais pensamos ser fundamental – e
absolutamente atual – renovarmos nossos estudos em
História Antiga, ampliando-os, inclusive, em direção ao
Extremo Oriente. Minha proposta se assenta em dois

226
elementos básicos: o primeiro provém de uma
conscientização sobre aquilo que se tem discutido e
desenvolvido, em termos de pesquisa, em outros
âmbitos universitários fora do contexto brasileiro. Isso
não deve ser encarado com estranheza; de fato, trata-se
simplesmente de observar e entender o que está sendo
feito, justamente, nos ambientes científicos nos quais o
público acadêmico brasileiro se inspira. Afinal, se
tomamos como base os modelos curriculares de outros
países para argumentarmos sobre o nosso, então,
estamos em sérios apuros. Faltam muitos temas,
conteúdos, pesquisas e mesmo, caminhos, nas várias
direções, perspectivas e contextos que a História permite
contemplar – e ainda assim, pretende-se que o nosso
currículo deve ser enxugando, tornando-nos um canto
do mundo, alienado da realidade circundante. A frase do
famoso sinólogo francês Marcel Granet (1929) continua
tão atual quanto antes: “Quem pretende ter o título de
humanista, não deve ignorar uma tradição de cultura tão
atraente e tão rica em valores duráveis.” (1929, p.5).
Colocando de outra maneira: quem se pretende
especialista em ciências humanas não pode sê-lo, de fato,
se continuar a ignorar dois terços da Humanidade – isto
é, Ásia e África. A reformulação para um currículo de
feições abrasileiradas corre o risco de nascer, já de
partida, excludente – embora proponha justamente o

227
contrário. Nesse sentido, a comparação com currículos
estrangeiros não visa desmerecer qualquer tentativa de
cunho nacional, mas sim, demonstrar que uma exigência
da contemporaneidade é a universalidade. Já de saída, é
preciso dizer que não precisamos apenas de História da
Ásia: precisamos de Ásia, de mais África, de muitos
Orientes, de América antiga e Latina, de Oceania... E se
o critério geográfico não for o mais apropriado, qualquer
tentativa de humanizar o currículo deve incluir,
inevitavelmente, a imensa plêiade de outros que
continuam a constituir os novos temas acadêmicos.
Assim, os apontamentos bibliográficos que se seguirão
não são exaustivos, mas pretendem dar uma mostra do
que se tem debatido sobre a História asiática.
O segundo ponto de minha proposta possui um
caráter pessoal, e advém de minhas experiências em
estudar e lecionar História da China e da Índia antigas.
Tendo já atuado mais de duas décadas nesse campo, me
permito incluir, aqui, algumas observações sobre as
dificuldades, necessidades e possibilidades no estudo
sobre o “Oriente” – palavra belíssima, mas que pouco
define um imenso e gigantesco mundo multifacetado,
cujas contribuições para a trajetória da Humanidade são
indiscutíveis, apesar de pouco conhecidas em suas
origens.

228
Prossigamos, pois, em tentar entender as razões pelas
quais deveria ser fundamental e indispensável para nós,
brasileiros, estudar as Histórias antigas dos asiáticos.

Liberdade acadêmica
Pode parecer estranho, mas, o primeiro de meus
argumentos para defender o estudo da História antiga
asiática em nosso currículo é, simplesmente, o de
liberdade acadêmica. Esse, talvez, devesse ser o último
dos argumentos, uma espécie de conclusão desse texto.
Todavia, a opção pelos temas historiográficos deveria ser
uma condição acadêmica, e não um processo de
encaminhamento. Embora estejamos a falar de modo
geral, a própria escolha por cursar uma faculdade de
História é uma opção individual. Muitos alunos, porém,
evadem do curso, pelas mais diversas razões. Uma dessas
razões, de certa maneira bastante significativa, é o caráter
restritivo de muitos cursos, que dão poucas alternativas,
em termos de pesquisa, ao desenvolvimento dos alunos.
Há uma tendência generalizada a reduzir os campos de
investigação disponíveis para a realização de
monografias, muitas vezes dirigidas a História regional.
Novamente, ressalto que o problema central não é
criticar outros campos historiográficos, mas sim, a
postura de docentes e pesquisadores que, ao restringirem
a diversidade temática, em nome de um suposto

229
pragmatismo político e científico, suprimem a liberdade
de escolha. Mais uma vez, surge o velho argumento –
falacioso e tautológico – de que “não há especialistas em
determinado tema para orientar”, e por isso, os
estudantes dificilmente podem escolher temas fora de
um elenco restrito e pré-determinado; assim, nunca se
formam, também, os especialistas que poderiam atender
as demandas diferentes do usual.
Por isso, a construção de um especialista em
História Oriental no Brasil depende, em muitos casos,
da visão de futuro e da boa vontade de uma parcela
reduzida de docentes e pesquisadores realmente abertos
a novos temas historiográficos. A reprodução infindável
de pesquisas sobre os mesmos temas pode fortalecer um
determinado grupo no âmbito burocrático, mas é
extremamente nociva à iniciativa científica. As pesquisas
têm-se repetido exaustivamente, sem inovações
significativas, e não circulam fora do ambiente
acadêmico, tendo pouca divulgação junto ao público.
Não se deve estranhar, por conseqüência, que poucos
historiadores têm conseguido alcançar parcelas mais
amplas de leitores, renovando o interesse pela História.
No caso da História asiática, principalmente de China e
Índia, esse espaço, no Brasil, é completamente ocupado
por publicações de especialistas estrangeiros e/ou de
outras áreas fora da História. Para termos uma ideia

230
dessa situação: até hoje não há um manual de História
geral da Índia escrito por brasileiros; sobre a História
chinesa, repete-se o comentário anterior – as obras, em
geral, são estrangeiras ou de escritores (não-
historiadores). Nesse sentido, a criação do Projeto
Orientalismo (atualmente em www.orientalismo.site)
em 2000 tentou, de alguma maneira, suprir essas
lacunas.
O critério estatístico aqui é uma demonstração do
quanto pode ser deletéria uma formação excludente na
universidade. Estamos despreparados para lidar com
essas civilizações, e não dispomos de especialistas a quem
possamos nos dirigir em questões relativas a elas.
Todavia, o problema central desse nosso primeiro
argumento é, ainda, a questão da liberdade acadêmica. A
universidade brasileira usa intensamente teorias,
métodos, técnicas e conceitos de pesquisas importados
do exterior. Muitos de nossos “autores preferidos” se
formaram em universidades europeias ou americanas,
construindo suas contribuições para a historiografia
nesses ambientes. A pergunta, pois, é simples e direta:
mas o que aconteceria, por exemplo, se um Jacques Le
Goff não pudesse estudar História medieval, e tivesse
que estudar outro tema qualquer, direcionado pelo seu
orientador? Quais seriam os desdobramentos dessa
mudança de curso em sua carreira acadêmica?

231
Obviamente, essa pergunta é meramente especulativa,
mas ela coloca em questão se não estamos podando os
futuros historiadores em suas habilidades de pesquisa e
mesmo, em sua paixão pelo campo da História.
Alguém poderia argumentar que o objetivo de
um curso de História é fornecer o instrumental
necessário para a realização da pesquisa e da docência, o
que pode ser bem feito em qualquer área do currículo
por um profissional qualificado. Assim, o estudante
aprenderia a estudar por conta própria, independente
dos temas que lhe foram direcionados na graduação. Ao
concordarmos com essa afirmativa, podemos continuar a
questionar, porém, porque estudantes e pesquisadores
não podem desenvolver seus trabalhos nos assuntos que
mais lhes interessam, já que o centro da argumentação
reside em supervisionar o desenvolvimento do trabalho
científico, e não determiná-lo a priori. Por essas razões,
muitos alunos desiludem-se com a universidade por se
sentirem tolhidos, não podendo escolher suas futuras
áreas de pesquisa. Há um interesse significativo pelas
áreas de História antiga, medieval e mesmo pelo Oriente
– motivado muitas vezes por uma cultura popular de
jogos, games, romances, filmes e livros de mitologias –
que se esvai com a pressão exercida ao longo da
graduação, para que esses alunos sejam direcionados a

232
temas mais “práticos, mais adequados, mais viáveis, mais
pertinentes, etc.”.
Essa problemática postura acadêmica revela, para
nós, uma condição de extremo preconceito. Voltemos
ao “Caso Jacques Le Goff”: por qual razão alguns de
nossos estudantes e professores se permitem assimilar e
debater as contribuições historiográficas desse autor
(como História: Novos problemas, 1978, ou A História
Nova, 1990), mas seguem tentando ignorar e excluir
História medieval dos currículos? Obviamente, alguém
pode refutar que Le Goff era francês, e por isso, seria
natural que ele estudasse História medieval como parte
de sua História nacional. A questão, porém, é se
podemos separar seu trabalho como medievalista de suas
posições na historiografia. Um é resultado do outro, e
ambos se engendram. Ignorar um dos lados é tentar
excluir parte da trajetória que permitiu a formulação dos
conceitos e propostas. Isso sim, é inviável – e por tentar
fazê-lo é que observamos o quanto nossos professores e
historiadores tem alcançado suas graduações e pós-
graduações com falhas profundas em suas formações.
Tendo examinado o caso de Le Goff, presença
marcante na vida de todos os historiadores brasileiros, é
possível, agora, dar um exemplo mais claro dessa linha
de argumentação: o caso de Edward Said, e seus estudos
sobre o Orientalismo (Orientalismo: o Oriente como

233
invenção do Ocidente, 1998). Said não era historiador,
mas seu trabalho é amplamente empregado em estudos
historiográficos sobre alteridade, pós-colonialismo e
imagem. Ora, toda a teoria de Said foi construída a
partir da análise da estética orientalista criada no século
19, e que até hoje influencia, com grande força, o
imaginário ocidental sobre o “Oriente”. Os estereótipos
orientalistas funcionam de forma ativa, e muitas vezes
são decisivos em decisões políticas e culturais
(investimentos econômicos, debates sobre migrações,
etc.). Assim, será possível separar as teorias de Said de
suas opções de estudo?
Do mesmo modo, poderíamos especular se Le
Goff ou Said não seriam bons intelectuais em qualquer
campo que pesquisassem. Seja qual for a resposta que
quisermos dar a essa reflexão, a questão é que ambos os
autores conquistaram sua projeção nos espaços que
escolheram, manifestando suas potencialidades nos
assuntos que mais lhes atraíam e interessavam. Isso
implica em admitir que existem bons historiadores em
quaisquer áreas: mas, sua capacidade de influenciar os
debates acadêmicos está indissociavelmente vinculada ao
trabalho em suas áreas de preferência intelectual.
A questão da liberdade acadêmica vem de
encontro aos dois argumentos que apresentarei no seguir
desse texto. Há uma percepção generalizada de que

234
China e Índia estão retomando seus espaços de
protagonismo na dinâmica mundial, após dois séculos
de profundas dificuldades políticas, sociais e
econômicas. Esse contexto tem proporcionado a revisão
da escrita histórica em relação ao “Oriente”,
estimulando uma série de novos estudos sobre as
conexões e diálogos interculturais entre as diversas partes
do mundo desde a antiguidade. Não é estranho, pois,
que um aluno adentre hoje o curso de História
buscando aprofundar-se no estudo de uma dessas
civilizações. Nesse momento crucial, gerar a
possibilidade ao aluno de optar pelos seus futuros temas
de estudo pode ser responsável por uma real renovação
da universidade, atualizando e diversificando seus
campos de atuação, estimulando o desenvolvimento
teórico e metodológico, e ampliando significativamente
a estrutura acadêmica dos cursos de História. No caso
específico de China e Índia, veremos agora as razões para
investir nesses campos de estudo, e que contribuições
elas podem nos oferecer.

Reescrever a História

Uma anedota recente conta que, em meio a uma das


reuniões da Organização Mundial de Comércio, os
representantes chineses estavam mais uma vez sendo
questionados pelo desrespeito a propriedade intelectual
235
na China. Patentes quebradas, além de uma
incontrolável cultura de cópia de produtos, criaram
um ambiente de pesadas perdas de lucros paras as
empresas ocidentais. Políticos de vários países exigiam
indenizações financeiras, e ameaçavam com retaliações
comerciais e embargos. No auge das pressões para que
fosse tomada uma atitude sobre o assunto, um dos
representantes chineses teria se levantado e dito:
“Podemos concordar com todas as exigências de
propriedade intelectual e indenização que nos são
pedidas, se vocês ocidentais também concordarem em
reconhecer a propriedade intelectual dos produtos
chineses, bem como nos indenizarem por todas as
nossas perdas.” Os representantes ocidentais ficaram
estupefatos com essa afirmação. Um deles teria se
levantado e perguntado: “E você pode nos explicar a
que produtos chineses se referem?”, ao que o chinês
respondeu: “Pólvora, bússola, papel, imprensa, leme de
popa...”

Essa piada nos chama atenção para o fato de que


desconhecemos, em grande parte, o papel das
civilizações asiáticas na História mundial. Para os
brasileiros, em geral, a História de China e Índia é uma
incógnita, pela qual se passeia brevemente na “época das
grandes navegações” (século 16) ou na História
contemporânea. A ausência é tão marcante que, como
vimos no item anterior, foi preciso recorrer a autores
mais conhecidos (porém, nenhum deles indólogo ou
236
sinólogo) para elaborar uma digressão absolutamente
especulativa. Não temos praticamente nenhum contato
com a História asiática, e ela pouco parece nos
interessar.
É notável pensar que nem sempre foi assim. No século
19, o debate sobre a imigração chinesa para o Brasil, em
substituição a mão de obra africana, envolveu a
intelectualidade do império, e luminares como Joaquim
Nabuco e Machado de Assis se manifestaram sobre a
questão. Uma missão foi enviada a China para conhecer
mais sobre sua cultura e História (Lisboa, 1880). O
projeto fracassou, mas o estigma orientalista sobre os
chineses permaneceu: e os brasileiros, se julgando de
certa forma europeus, relegaram ao esquecimento o
estudo das civilizações asiáticas.
Essa atitude não é estranha, nem despropositada.
Desde essa época, a História foi escrita de maneira
eurocêntrica, e as vozes afro-asiáticas estavam
emudecidas, em função do período colonial. Somente
na década de 50 do século 20 vemos autores como K.
Panikkar proporem mudanças nessas perspectivas.
Panikkar era indiano, mas formado na Inglaterra, e seu
livro A Dominação Ocidental da Ásia (1977) nos
mostra que o modelo historiográfico da dominação
ocidental sobre o “Oriente” era artificial, cheio de falhas,
e não dava conta de provar que o processo colonial fora

237
avassalador e absoluto como se propunha. Ele durara
muito pouco em termos de História mundial -
basicamente, apenas a primeira metade do século 19 até
a primeira metade do século 20 – mas conseguiu criar a
impressão de um domínio absoluto, perene, como se a
Europa sempre fora o centro do mundo.
Poderíamos pensar, assim, que a visão
eurocêntrica pesou decisivamente na liberdade
acadêmica, determinando os campos e temas a serem
estudados nas academias ocidentais, e excluindo em
definitivo as civilizações afro-asiáticas dos currículos.
Mas não foi assim. A mesma Europa – fosse pelas
necessidades coloniais, ou pelo puro e simples interesse
científico – percebe um fenômeno de abertura de
cadeiras em Sinologia e Indologia em suas universidades.
É provável que esse movimento incorporasse razões
estratégicas, mas ele consolidou o entendimento de que
o ensino universitário, em ciências humanas, deveria
contemplar o mundo oriental – sem o que, a sua
proposta de Humanidade estaria absolutamente
incompleta.
Foi esse tipo de atitude que fez com que no século
19 os europeus se dedicassem avidamente a traduzir as
obras clássicas da literatura chinesa e indiana. Expoentes
como James Legge (1815-1897), Richard Wilhelm
(1873–1930), Seraphin Couvreur (1835–1919) ou

238
Edouard Chavannes (1865–1918) são apenas exemplos
destacados entre uma plêiade de pesquisadores que
surgem nesse período. Marcel Granet (1884–1940), já
citado aqui, foi um dos introdutores da abordagem
sociológica na História, inovando no âmbito das teorias
e metodologias historiográficas por meio de seus estudos
referenciais em Sinologia da China antiga.
Em todo esse período, portanto – desde o século
19 até agora – existe uma ativa produção mundial nos
campos da Sinologia e da Indologia, que nós, brasileiros,
desconhecemos de forma preocupante. A única exceção
destacada é o sinólogo Ricardo Joppert (1979), formado
na França, e com um profundo trânsito na arte e na
cultura da China Antiga. Alguns autores brasileiros já se
debruçam sobre temas chineses e indianos, mas com
forte ênfase na contemporaneidade.
Isso nos remete a piada no início dessa segunda
parte. É possível compreender a História mundial isenta
do protagonismo asiático? Até onde somos capazes de
sustentar versões históricas que não se assentam em um
exame mais cuidadoso das fontes?
André Gunder Frank, em seu livro ReOrient
(1998) propõe uma completa revisão desse quadro,
clamando por uma reescrita da História. Até o século
18, as civilizações mais avançadas do mundo, em todos
os sentidos, eram a Chinesa e a Indiana. A própria

239
insistência em buscar novas rotas para o Oriente desde o
século 16 (o ‘Caminho das Índias’, entre outros), nos
revela de modo cabal que eram os europeus que iam
comprar seus artigos de luxo na Ásia. A exploração das
Américas estava intimamente ligada ao fornecimento de
ouro e prata, utilizados na aquisição dessas mercadorias
(seda, porcelana, especiarias, etc.). Essa atividade
comercial foi amplamente lucrativa para o império
chinês, apesar de todas as restrições impostas ao trânsito
de europeus em seu território. No entanto, não
podemos nos limitar a análise superficial das relações
comerciais. Existem aspectos fundamentais no trânsito
cultural que se deram entre essas culturas.
Armesto (1999) propôs em seu livro Milênio –
uma história de nossos últimos mil anos um quadro
sinótico totalmente diferente do usual. Iniciando sua
narrativa da história mundial por China e Japão, ele
redimensionou as relações de equilíbrio, poder e
influência no mundo do último milênio, mostrando que
não havia uma predominância clara do Ocidente nesse
período. Por seu turno, Hobson (2006) sustenta que os
elementos econômicos e tecnológicos chineses foram
decisivos para o surgimento de uma revolução industrial
ocidental. Os modelos produtivos da China serviram de
inspiração para o desenvolvimento das corporações
européias – principalmente a inglesa – em direção ao seu

240
processo de revolução industrial. Esse, sim, seria o passo
decisivo para que os europeus começassem a virar a
balança da preponderância asiática no século 19.
Tais considerações se tornaram possíveis graças ao
referencial trabalho de Joseph Needham (1900–1995),
que em sua vasta obra Science and Civilization in China
(datas), demonstrou que as numerosas conquistas
tecnológicas chinesas foram essenciais para o
desenvolvimento da Humanidade ao longo da História.
Os próprios chineses consideram que o trabalho de
Needham foi fundamental para compor uma trajetória
científica e intelectual chinesa, antes fragmentada em
sua própria escrita historiográfica. É notável pensar,
portanto, o quanto a História mundial deve as
inumeráveis descobertas científicas chinesas –
concebidas em um ambiente cujos conceitos e métodos
eram amplamente diferentes dos ocidentais.
Recentemente, o historiador Jack Goody (1919-
2015) em seu livro O Roubo da História (2009)
colocou, de modo bem claro, que a História das
civilizações asiáticas foi vilipendiada pelas construções
eurocêntricas. Não se trata apenas de comentar o
processo de exclusão que os ‘orientais’ sofreram na
escrita da História ocidental; mas também, de ressaltar
os processos de apropriação cultural que os europeus
levaram a cabo, transformando elementos asiáticos dos

241
mais diversos gêneros em formas europeurizadas de
saber e cultura. Nesse contexto, vale relacionar o trecho
de Gilberto Freyre, citado logo no início de nosso texto,
com a perspectiva de Goody; o quanto somos ‘orientais’
e nem o sabemos? O que, e quanto, de nossa cultura, são
resultado de apropriações, mestiçagens e hibridizações
com conceitos, ideias e práticas vindas de Índia e China?
Tais processos, aliás, são milenares. O
desenvolvimento da Rota da Seda, no século 3 AEC nos
mostra que, desde aquele período, o Mediterrâneo
romano consumia avidamente produtos, ideias e a arte
vindas do Oriente. Trabalhos como os de F. Hirth
(1875) e G. Coedes (1910) já nos revelavam o quanto
romanos, indianos e chineses se inter-relacionavam,
num processo de diálogo cultural fértil e rico. São
inúmeras as citações sobre a China na documentação
Greco-romana, bem como os chineses comentavam,
com certa regularidade, suas relações com o mundo
romano. Tanto Hirth como Coedes nos alertaram que
as raízes de uma dinâmica euro-asiática eram muito mais
antigas do que supúnhamos – e, no entanto, preferíamos
ignorá-las.
Isso nos mostra que a cegueira intelectual foi
sempre uma opção. Por mais que a documentação
textual fosse capaz de mostrar o contrário, a atitude de
ignorar o ‘Oriente’ era, muitas vezes, deliberada.

242
Trabalhos como de Young (2001), Ball (2000) e Bueno
(2002) nos mostram que a conexão estabelecida por
essas civilizações durou séculos – e embora crises
periódicas afetassem o funcionamento desse sistema
mundial – ele perdurou de modo constante até o século
16, quando a descoberta da América influenciou
substancialmente a mudança desse quadro. Mesmo
assim, devemos lembrar que a busca por rotas marítimas
para a Ásia (que culminaram com a descoberta das
Américas) visava à manutenção dessas relações, e não o
contrário. Recentemente, Raoul MacLaughlin (2010)
tem explorado mais profundamente as relações
comerciais entre o império romano e mundo asiático,
incorporando as descobertas arqueológicas em curso e
expandido amplamente o quadro dessas interações.
Tais pesquisas nos levam a repensar a escrita da
História em novos patamares. Os processos de interação
cultural na antiguidade não são fenômenos isolados, mas
compreendem vastas e complexas redes de trocas
materiais e simbólicas. Um exemplo clássico e bem
conhecido no campo da História da arte é o da
formação da iconografia budista – um longo processo
intelectual e estético que envolve elementos gregos,
romanos, indianos e chineses, e que é estudado desde o
início do século 20. A arte budista manifesta plenamente
a capacidade de diálogo e hibridização dos antigos, por

243
meio de um cânone artístico flexível e bem elaborado,
calcado na primeira experiência religiosa proselitista da
Humanidade. (Bueno, 2015)
Nesse ponto, é preciso aprofundar ainda mais o campo
das interações históricas que compõem o mundo antigo.
A conhecida Rota da Seda, que desde o século 3 AEC
unia a Europa a China, conectando outras rotas conexas
(como a Rota do Marfim da África, ou a Rota da
Pimenta do Oceano Índico) propiciou um dos primeiros
fenômenos de globalização da História mundial. As
religiões encontraram vias seguras para expandirem suas
doutrinas, alcançado as mais diversas partes da Ásia,
Europa e África. O Mediterrâneo dos séculos 1 ao 3 EC
era um palco de disputas religiosas (Woolf, 2009),
enquanto a China tornara-se gradualmente um
ambiente receptivo para experiências de mestiçagem
cultural desses cultos.
Liu Xinru (2010) nos traça um quadro bastante
rico do processo de circulação das religiões pela Rota da
Seda, demonstrando que é impossível falar de
religiosidades absolutamente isentas de qualquer
influência externa. Ao contrário: a sobrevivência do
Monoteísmo (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo)
deriva, em parte, de sua capacidade em dialogar,
adaptar-se e lidar com os desafios impostos pelas
religiões politeístas tradicionais. Há que se perguntar,

244
ainda, qual das grandes religiões atuais – mesmo no
Ocidente – não tem origem Oriental, revelando a sua
importância na formação de nossas mentalidades.
Na tentativa de dar a conhecer ao mundo acadêmico um
pouco mais do rico panorama da Rota da Seda, bem
como dos fenômenos culturais que cobrem suas áreas de
trânsito, a UNESCO promoveu a referencial coleção
History of Civillizations of Central Asia (1999),
envolvendo os especialistas asiáticos na produção de suas
próprias Histórias. Essa foi uma valiosa experiência de
protagonismo, na qual as narrativas, construídas dentro
dos formatos científicos reconhecidos
internacionalmente, projetaram a existência das
academias ‘orientais’ como produtoras de saberes
legítimos.
O campo dos estudos antigos euro-asiáticos,
porém, abriu outra frente de pesquisa. Mittag e
Mutschler (2008) propuseram, mais recentemente, um
estudo comparativo entre os impérios romano e chinês.
Em sua compreensão, os impérios não apenas criaram
um sistema internacional de trânsito político e
econômico, mas também, enfrentaram desafios sociais e
culturais semelhantes. A perspectiva comparatista, aqui,
é capaz de nos prover uma interessante análise sobre as
dinâmicas imperiais dos primeiros séculos EC. Neste
mesmo sentido, Walter Scheidel (2009 e 2014) tem

245
promovido constantemente a necessidade de analisar o
mundo mediterrânico e asiático de forma interligada, na
qual decisões militares, econômicas e culturais
envolviam um pensamento estratégico geopolítico,
levando em conta as variantes representadas pelos outros
impérios. Isso denota uma relativa consciência sobre o
que se passava no eixo euro-asiático, quebrando
definitivamente a concepção de um mundo antigo
compartimentado e isolacionista. Por fim, autores como
Obenga (1990) e Lloyd (2006) têm alertado para a
necessidade de aprofundar as relações entre o
pensamento grego com o egípcio, indiano e o chinês,
inserido num movimento atual de reescrita da História
da filosofia, que compreende a sua gênese e
desenvolvimento como um continuum, a partir de
matrizes afro-asiáticas (Egito, Mesopotâmia, Israel,
Pérsia e Índia). Até mesmo autores controversos como
Ferguson (2012), cuja teoria propõe que práticas
culturais e tecnológicas das sociedades influenciam em
sua capacidade de desenvolvimento (importando a
linguagem e conceitos da informática para demonstrá-
las), sustentam que todo e qualquer processo
comparativo, na história, não pode mais excluir o
Oriente.
Essa pequena recolha de autores pode nos
proporcionar uma visão mais ampla da questão. É

246
necessário reformular a cronologia histórica mundial,
levando em conta a dinâmica de suas relações
geopolíticas, desde a antiguidade, e a formação de redes
complexas de trocas, que permeavam o desenvolvimento
das culturas. O trânsito dos mais diversos elementos
materiais e intelectuais ensejou transformações
constantes nas sociedades, gerando uma fértil
diversidade que hoje pode ser constatada nos mais
diversos avanços arqueológicos. Tais considerações, por
si só, já nos permitiriam propor que é inevitável estudar
a História asiática para compreender as raízes das
civilizações humanas, e sua inserção na História
mundial. Todavia, um terceiro campo se apresenta
necessário para levar a termo essa proposta: a questão
conceitual.

Problemas conceituais
Uma tradição popular no meio musical conta que, para
as comemorações da abertura do Canal de Suez (1869),
foi encomendado ao grande músico italiano Giuseppe
Verdi (1813-1901) a composição de uma ópera, que
seria conhecida mais tarde como Aida. A estréia seria
feita no próprio Egito, então sob mandato turco-
britânico. Verdi concebera uma História de contornos
clássicos. A narrativa de Aida passava-se no tempo dos
faraós. A princesa egípcia Amnéris estava prometida em

247
casamento ao general Radamés, que havia saído
vitorioso da guerra contra os etíopes. No entanto, um
fator inusitado ocorre: Radamés apaixona-se pela
princesa etíope Aida, sua prisioneira, e começava aí o
desenrolar de uma longa e trágica peça envolvendo os
personagens. A História dramática desse triângulo foi
aplaudida entusiasticamente pela platéia presente no dia
de sua apresentação, e a ópera alcançou a consagração
imediata. Todavia, essa estréia não foi no Egito, como
inicialmente planejado, mas em Milão. Somente dois
anos depois, em 1871, ela seria encenada, de fato, no
Cairo. Mesmo assim, o imaginário popular registrou que
sua primeira encenação teria se dado no Egito, em frente
às pirâmides. O mais interessante, contudo, foi a
recepção da peça. Foram convidados membros das elites
locais - europeus, turcos e egípcios. Os europeus a
saudaram como uma tradução perfeita do Oriente,
manifestando mais uma vez seu fascínio absoluto por
essa ópera. Uma parte do público, porém, não gostou e
nem compreendeu a peça: para os convidados
muçulmanos presentes naquela noite, além da
musicalidade estranha e ininteligível, a História lhes
parecera uma rematada bobagem. Afinal, em seu
entendimento, o general poderia se casar com as duas se
quisesse, resolvendo o problema desde o início.

248
Esse episódio, descrito em pormenores por Said (1995),
é bastante elucidativo para que possamos compreender o
que se trata o problema conceitual a que nos referimos.
No campo do conhecimento histórico, filosófico e
científico, uma série de conceitos vem sendo
desenvolvidos há séculos, pretendendo dar sentido e
universalidade a uma série de situações, problemas e
categorias existentes. Essas injunções e classificações,
laboriosamente trabalhadas no campo intelectual,
continham em si a pretensão de dar uma resposta
essencial as questões humanas. A situação enfrentada
pela Aida de Verdi foi apenas uma, entre milhares de
situações, em que esse trabalho praticamente falhou. O
conceito de matrimônio entre os muçulmanos era
diferente dos cristãos; a beleza estética e musical da
ópera europeia era agradável a um público treinado em
compreendê-la, mas continuava inacessível e
incompreensível para aqueles que desconheciam esse
gênero. O que ficara claro, ali, é que as diferenças
culturais pareciam decisivas para um entendimento
multifacetado de determinados conceitos que,
aparentemente, deveriam ser universais (ao menos, na
“perspectiva ocidental”). Os europeus dessa época,
porém, estavam convencidos de que a incompreensão
alheia para com suas obras de arte, sua filosofia e sua
técnica se deviam a algum tipo de atraso intelectual ou

249
moral desses povos. Eles se permitiam essas afirmações
em função do imenso poder político e tecnológico que
angariaram no século 19, colocando-os numa situação
de preponderância nunca antes vista em relação ao
mundo. Mas, para embasar esse ponto de vista, era
necessário um bom argumento.
Foi com Hegel (1770-1831) que o Ocidente
aprendeu, basicamente, que só deveria estudar a sua
própria História, e que todo o restante do mundo
constituía um imenso e indistinto detalhe. Ao criar a sua
gaiola logocêntrica, que colocava os gregos na origem da
razão, Hegel pretendia determinar um ponto de partida
para o pensamento ocidental, europeu e científico. A
História do pensamento tornar-se-ia, assim, a História
da conquista de seus conceitos, capazes de traduzir o
mundo em leis, práticas e costumes. E, no ponto
culminante dessa trajetória, estava a Europa, herdeira
natural dessas ideias, mantenedora das riquezas da
antiguidade. Somente essa explicação poderia justificar a
situação de domínio que os europeus pareciam exercer
no restante do mundo (Bueno, 2005). Essa construção
histórica encontrou uma boa acolhida na academia
europeia, numa época em que o Imperialismo europeu
manifestava suas pretensões sobre a África e a Ásia.
Contudo, os mesmo europeus se ressentiam da falta de
conhecimentos acerca dessas civilizações, ainda que seus

250
interesses primeiros fossem de ordem prática, como a
dominação militar e a exploração econômica.
Na época de Hegel, os europeus sabiam muito
pouco sobre o restante do mundo, e podiam se sentir a
vontade com seu logocentrismo eurocêntrico. No
entanto, o surgimento da Sinologia e da Indologia foi,
gradualmente, forçando uma revisão dessa postura.
Ambas as civilizações possuíam tradições intelectuais
milenares, estruturadas a partir de suas próprias
fundações culturais, e cuja continuidade temporal
desafiava as melhores elaborações europeias.
Analisemos os dois casos em separado. A Índia
antiga possuía um senso histórico singular, que nunca
enfatizou o registro dos eventos ou da cronologia, e que
compreendia o tempo como um elemento móvel de suas
construções narrativas. Por causa disso, os indianos
tradicionais foram muitas vezes considerados como “a-
históricos”. A preocupação fundamental de seus escritos
era a fixação de determinados valores morais e
espirituais, por meio de passagens narrativas ilustrativas.
Em função disso, seus principais textos históricos
antigos, tais como o Mahabharata, o Ramayana e os
puranas estavam muito mais próximos da Ilíada e da
Odisséia de Homero do que da História de Heródoto.
Todavia, a preocupação fundamental dos indianos era

251
preservar as suas formas de religiosidade, o que eles
alcançaram com sucesso notável.
Os indianos se desviaram da preocupação de
registrar formalmente seus eventos, para enfocar na
manutenção de uma série de conceitos e tradições que
consideravam essenciais. Essa condição permitiu que o
Hinduísmo chegasse aos dias de hoje com um vasto
corpo literário de textos, capaz de nos orientar sobre as
crenças e costumes indianos através de séculos. No
entanto, foi preciso que os ingleses começassem suas
escavações arqueológicas para descobrir as civilizações do
Vale do Indo, revelando que a Índia antiga era bem
anterior aos seus próprios textos, e que já desfrutava de
regulares relações comerciais com a Mesopotâmia. A
cronologia histórica da Índia, tal como conhecemos
hoje, é praticamente uma invenção inglesa; e, no
entanto, ao estudarmos o hinduísmo, acessamos
diretamente um conjunto de narrativas históricas,
filosóficas e antropológicas milenares, cuja preservação
duradoura coloca em questão a necessidade dessas
mesmas construções cronológicas (Panikkar, 1975).
Totalmente diferente é o caso chinês, que desde
épocas muito remotas começou a registrar seus
acontecimentos históricos, seus discursos, personagens, e
eventos fundamentais. A escrita chinesa surgiu, de fato,
para viabilizar consultas oraculares, e seus resultados

252
eram zelosamente guardados, fazendo surgir os
primeiros arquivos chineses em um período em torno do
século 18 AEC. A História, para os chineses, fornecia o
seu sentido de civilização. Por essa razão, os escritos
históricos chineses, desde sua origem, tendem a um
pragmatismo revelador. Eles não se preocupavam, por
exemplo, em relacionar mitos de criação do universo:
simplesmente eles não estavam lá para registrá-lo, e,
portanto, qualquer consideração nesse sentido seria
meramente especulativa. A História chinesa era feita de
documentos, de pesquisas aos antigos arquivos e da
reconstituição narrativa do passado. Eles estavam
absolutamente conscientes de que essas reconstruções
eram imaginadas, e por isso, sabiam também que elas
poderiam ser modificadas com o tempo. No século 6
AEC, quando o sábio Confúcio (551 – 479 AEC)
reorganiza e edita os principais clássicos chineses, ele
trabalhava com textos já estabelecidos desde os séculos
12 ou 13 AEC. Mesmo assim, ele reclamava da falta de
fontes, o que dificultava o seu trabalho de historiador. A
literatura historiográfica chinesa, portanto, é riquíssima,
e continuou sendo produzida ininterruptamente até os
dias de hoje. Estima-se que algo em torno de um quarto
de todas as obras chinesas já escritas, desde a
antiguidade, constitui-se de livros de História
(Vandermeersch, 1987). Esse fenômeno não encontra

253
paralelo no Ocidente; o mais próximo disso seriam as
tradições religiosas, tais como o Judaísmo e o
Cristianismo, que continuam a existir desde a
antiguidade. O caso chinês, porém, é radicalmente
diferente: a unidade de sua civilização assentava-se no
conhecimento de sua História, e por isso, sua
conservação era indissociável de sua continuidade.
Existe, ainda, uma condição histórica própria de ambas:
são civilizações que se encontram em desenvolvimento
contínuo, desde suas fases pré-históricas, sem
interrupções. As culturas ocidentais têm uma imensa
dificuldade em compreender e traçar um paralelo com
essa realidade (Larre, 1975).
O encontro dos europeus com essas duas
realidades foi chocante. No caso indiano, o desafio era
compreender como uma cultura poderia durar tanto, e
manter tão duravelmente suas tradições, prescindindo
do instrumento indispensável da História; já o caso
chinês parecia ainda mais complexo, tendo em vista que
os chineses haviam sido capazes de conceber, pensar e
produzir História, com seus próprios conceitos, métodos
e materiais, desconhecendo absolutamente as discussões
européias nesse sentido. As discussões em relação a esses
dois problemas foram – e continuam – extensas, não
cabendo aqui estendê-las. Basta-nos entender que, ao
confrontar com essas realidades, a pretensão de

254
universalidade dos conceitos científicos europeus teve
que passar por mudanças e transformações.
Nesse ultimo momento, pois, nos deparamos
com duas situações distintas: a primeira diz respeito a
como determinados conceitos podem ser aplicados a
outras culturas, como instrumentos referenciais, mas que
precisam ser adaptados ou reinterpretados ao longo de
uma pesquisa. A segunda, de como outras culturas
apresentam conceitos novos, desconhecidos para nós,
que poderiam enriquecer nosso cabedal de ideias e
interpretações sobre o mundo.
Essas duas situações nos colocam no caminho de
um necessário diálogo intercultural. Raimon Panikkar,
pensador indo-espanhol (1918-2010), propôs uma
metodologia nova para compreender os processos de
tradução, conversão e entendimento de conceitos
(1997). Para ele, o reconhecimento de um conceito não
se dava, a princípio, no plano das ideias, mas no plano
simbólico. A tendência de muitas culturas é a de entrar
em contato com a manifestação de um conceito
qualquer enquanto forma, imagem, máquina, hábito ou
prática, sem atingir de imediato sua essencialidade.
Somente o aprofundamento gradual em seu sentido
pode estabelecer a ponte idealística entre duas ou mais
mentalidades diversas, propiciando um verdadeiro
diálogo intercultural. Panikkar cita, por exemplo, o

255
conceito de tempo histórico entre os indianos: somente
o termo “tempo” é expresso de variadas formas em
sânscrito, o que torna complexa a sua associação com a
ideia de “História”. Painkkar chama a atenção para as
dificuldades e alternativas que uma efetiva compreensão
dos saberes asiáticos implica (1975).
Por seu turno, o sinólogo e filósofo francês
François Jullien (2009) propôs igualmente uma via para
o entendimento do pensamento chinês, e sua
aplicabilidade em termos acadêmicos. Jullien defende, a
partir de uma perspectiva deontológica, que os chineses,
como qualquer outra civilização, foram capazes de
inferir certos conceitos ao longo de sua História. O
crucial é saber o que eles foram capazes de conceber, e
como. O proveito de estabelecer um intenso diálogo
com o pensamento chinês é de levar até ele os nossos
problemas conceituais, e observar as suas respostas
possíveis. São essas clivagens que torna possível, aos
poucos, acessar a imensa construção intelectual da
História e do pensamento chinês, e inferir de que
maneiras ela pode se preservar, se transformar e se
expandir. Por fim, se é possível, e como, aplicar algumas
dessas soluções chinesas para nossas questões
intelectuais, sociais, humanas enfim.
O interesse acendido por essa historiografia
chinesa tradicional tem chamado a atenção de

256
importantes pensadores ocidentais no campo da teoria
histórica. Novamente, para citarmos um exemplo, Jörn
Rusen (2015), em suas mais recentes publicações, tem
dirigido seu interesse para compreender como
funcionava, para os chineses, o problema dos ciclos
históricos. Note-se que a questão já foi objeto de estudo
de vários pesquisadores da área da Sinologia, mas
raramente ela é abordada pelos teóricos da História, cuja
insistência em negá-la reproduz infindavelmente o ciclo
de exclusão.

Conclusões possíveis

Nunca ouviu falar do sapo na fontezinha? O sapo disse


à tartaruga do Mar Oriental - "Que vida boa a minha!
Pulo até a ribanceira que cerca a fonte e vou descansar
no buraco de alguns tijolos. Nadando, flutuo sobre os
sovacos, pondo meu queixo justamente fora d'água.
Mergulhando na lama, enterro meus pés até as curvas e
nenhum dos mariscos, caranguejos ou rãs que vejo ao
meu redor, conseguem fazer o mesmo. Além disso,
morar em tal charco sozinho e possuir o recanto da
nascente - ser feliz como ninguém mais pode sê-lo. Por
que não vem visitar-me?"- Ora, antes que a tartaruga
do Mar Oriental tivesse descansado no chão a perna
esquerda, o joelho direito já tinha se enterrado
profundamente na lama e ela o retirou depressa,
recuando e pedindo desculpas. Contou depois ao sapo

257
muita coisa sobre o mar, dizendo - "Mil pé não dariam
para medir sua largura, nem mil braças darão para
medir-lhe a profundidade. Nos dias do Grande Yu
havia nove anos de cheia, em dez: porém isso nada
acrescentava a ele. Nos dias de Tang, havia sete anos
de seca, em oito; porém isso não fazia com que suas
praias recuassem. Não ser atingido pelo perpassar do
tempo e nem sofrer pelo aumento ou pela diminuição
d'água - tal é a grande felicidade do Mar Oriental".
Ante essa narração, o sapo da fonte ficou
profundamente surpreso e sentiu-se muito pequeno,
como alguém que se tivesse perdido.
(Zhuangzi, cap. 7)

Para concluirmos esse ensaio, nunca é demais lembrar


essa conhecida História chinesa. O sapinho, no fundo
de seu poço, desconhece todo o restante. Ele acreditava
que tudo que precisava se circunscrevia ao mundo na
qual vivia. Mas vem a tartaruga revelar que há um
mundo maior lá fora. Como sábio de Platão, que tenta
salvar os homens de sua caverna mental, a tartaruga
buscava salvar o sapinho de seu desconhecimento.
A analogia parece pertinente a questão do ensino
de História asiática em nosso país. Temos um imenso
conjunto de fatores imediatistas para justificar essa
postura: o crescimento das economias asiáticas, a
retomada de seu papel protagonista no mundo atual, o
intenso fluxo das migrações, que põe em atrito as mais
258
diversas culturas... Mas, como historiadores e
educadores, estamos preparados para dar resposta a
alguma dessas questões? Como vimos, a questão de
estudar os ‘Orientes’ no Brasil emperra-se por um
triângulo pernicioso, formado pela falta de liberdade de
pensar, pelo desconhecimento e, por fim, por visões
conservadoras e excludentes de compreensão histórica.
Não parece difícil compreender esse panorama, tanto
quanto ele parece redundante; mas urge modificá-lo.
A ignorância representa um custo pesado em
termos de formação humana. Todo e qualquer discurso
relacionado ao desenvolvimento histórico das
civilizações precisa compreender a necessidade de
ampliar seus horizontes, englobando as culturas asiáticas.
Civilizações como Índia e China continuam a
representar, para o pensamento brasileiro, importantes
oportunidades epistemológicas. E assim posto, é preciso
então por mãos à obra, e dar continuidade a esse longo,
enriquecedor e indispensável processo de aprendizado.

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263
264
POR UMA HISTÓRIA ANTIGA DA
ÁFRICA: AFROCENTRISMO E AS
NOVAS PERSPECTIVAS DE NARRAR A
HISTÓRIA
Gustavo de Andrade Durão119

Conversa Inicial
Mesmo após da implementação da lei 10.639/03 que
instituiu a obrigatoriedade do ensino de História da
África e da cultura afro-brasileira atendendo às
demandas dos grupos sociais, ainda é um desafio para o
ensino das disciplinas relacionadas a essa temática.
Aliado a isso, alguns educadores não conseguem elaborar
material crítico para utilizar na sala de aula recorrendo a
manuais e enciclopédias cujo conteúdo pode ser
questionado. Aliado a isso, o ensino da História Antiga e
das antiguidades encontra a mesma dificuldade,
aprofundando os problemas dos educadores no que
tange às abordagens responsáveis pelo despertar de
interesse dos jovens e adultos nas tradições, contos e
lendas concernentes a História e a antiguidade que a
internet e as mídias digitais ainda não conseguiram

119
Doutor em História Comparada (UFRJ)/ Pós-doutorando PPG em
História (UFRRJ) Mail: gdurao@outlook.com
265
adaptar às novas linguagens atraentes para arecente
geração de discentes.
Nessa breve apresentação se espera
relacionaralguns questionamentos referentes ao modo de
se ensinar História, analisando alguns pontos de
interseção entre a antiguidade e o afrocentrismo.
Questionando os velhos modelos europeus (e por vezes
etnocêntricos) como medida ideal para as reflexões em
sala de aula se observa como a antiguidade ainda tem
muitas características interessantes de serem estudadas e
pesquisadas com profundidade. Nesse sentido, essa
breve intepretação busca fazer comparações, analogias e
interpretações divergentes do que se encontra nos
manuais e em algumas operações historiográficas sobre a
antiguidade e sobre o pensamento africanista.
A delimitação dos documentos e pouco acesso,
sobretudo, em relação às civilizações africanas antigas
deixam algumas más interpretações feitas pelos
administradores, pesquisadores e exploradores europeus
que carregavam, na maioria das vezes, suas noções
científicas repletas de um olhar etnocêntrico e
imperialista para o mundo não-branco-ocidental.Quem
chama a atenção para essa centralidade do saber
ocidental (ou europeu) é o Historiador Jack Goody:

266
Depois de uma permanência de vários anos entre
“tribos” africanas e em um reino em Gana me vi
questionando a pretensão europeia de ter inventado
formas de governo (como a democracia), formas de
parentesco (como a família nuclear), formas de troca
(como o mercado) e formas de justiça, quando, pelo
menos, embrionariamente, tais formas já estavam
presentes em outros lugares (Goody, 2015, p.12)

Ao questionar os conceitos, bem como as definições


cunhadas pelo pensamento europeu compreende-se o
papel de destaque das classificações criadas para explicar
o pensamento ocidental, mas também para combinar-se
as características sociais, políticas e culturais dos povos
fora desse eixo de conhecimento. Aliado a isso percebe-
se que as noções temporais de antiguidade, feudalismo e
capitalismo muitas vezes não atingiram parte das
civilizações asiáticas e africanas (Goody, 2015,p. 15).
No caso africano a oralidade também foi quase
totalmente desconsiderada, legitimando para os
pensadores europeus a noção de que a África não tem
História, visto que a História só pode ser definida
através dos documentos escritos.
A noção cronológica da Idade Média, por
exemplo, foi utilizada para definir a passagem da
antiguidade para a era moderna. Mas essas noção
cronológica causou um problema para a historiografia

267
que passava a se preocupar com a divulgação desse
“modelo” para todos os outros contextos históricos.
Referindo-se a Idade Média Hilário Franco Jr. lembra o
problema das clivagens cronológicas:

Trata-se de um período da história européia de cerca


de um milênio, ainda que suas balizas cronológicas
continuem sendo discutíveis. Seguindo uma
perspectiva muito particularista (às vezes política, às
vezes religiosa, às vezes econômica), já se falou,
dentreoutras datas, em 330 (reconhecimento da
liberdade de culto aos cristãos), em 392 (oficialização
do cristianismo), em 476 (deposição do último
imperador romano) e em 698 (conquista muçulmana
de Cartago) como o ponto de partida da Idade Média
(Franco Jr., 2001, p.14).

Nesse aspecto, mais ou menos do século II até o séc.


XVI houve uma passagem lenta e gradual da Idade
Antiga até a Modernidade, e o advento do
Renascimento foi visto como o ponto culminante dessa
Nova Era. Mais uma vez somos levados a uma história
tradicional européia a qual serve de parâmetro, mas não
pode limitar a construção Historiográfica da África e
tampouco da Antiguidade.
Sob esse aspecto a presente análise pretende
caracterizar o afrocentrismo como algo realmente
importante para essa oposição ao eurocentrismo e suas
268
consequências diante das visões de mundo ou mesmo da
historiografia recente.
Abordando o pensamento de Cheikh Anta Diop
e Martin Bernal é possível exemplificar como dois
intelectuais contemporâneos sentiram a necessidade de
realizar um mergulho no passado para trazer a
antiguidade novamente para o debate. As suas
produções foram criticadas por representarem uma certa
idealização do que era a África ou de seus valores,
contudo, eles encontraram espaço para um debate
fundamental: como trazer as contribuições africanas para
o campo do saber universal. Ou dito de outra maneira
como o afrocentrismo pode trazer valores culturais do
homem negro para o cenário intelectual, mais
especificamente da história?
No terceiro e último momento serão abordados
os reinos núbios e algumas descobertas de africanistas
comprometidas com o recorte africano na narrativa e nas
análises historiográficas. Além de seu caráter
informativo, percebe-se como as civilizações africanas de
Cuxe e Meroé representam avanços intelectuais,
tecnológicos e culturais para as interpretações antigas do
território do Nilo. As questões levantadas por
M’Bokolo, Ki-Zerbo e Alberto Costa e Silva são apenas
um pequeno recorte de pesquisas antropológicas,
arqueológicas e históricas que vieram somar nas últimas

269
décadas a defesa de um argumento de que a África não
estava isolada do mundo e que os povos de
“pelequeimada” socializaram, conviveram, e por vezes, se
contribuíram com persas, árabes e egípicios.

Afrocentrismo
A História da África e o pensamento dos povos africanos
foram desconsiderados das grandes contribuições
intelectuais da História e das ciências em geral. Foi
necessário o trabalho de pensadores como Joseph Ki-
Zerbo no seu História da África Negra para lembrar que
o argumento de Hegel sobre o não pertencimento da
África na História do mundo era falacioso. As
populações africanas não eram compreendidas como
parte importante da História, mesmo que o Egito
estivesse no continente africano. O preconceito com os
estudos africanos foi germinado durante muito, contudo
no século XIX, as produções escritas concretizaram que
o “continente africano quase nunca era considerado uma
entidade histórica” (Giordani, 2010, p.9-10).
Foi somente a partir do final da Segunda Guerra
Mundial que as antigas colônias africanas, durante os
processos de independência, tiveram a possibilidade de
retormar o protagonismo de pensar suas sociedades,
tradições e estórias. Historiadores como Théophile
Obenga elucidavam algumas das justificativas para que a

270
África ficasse fora do domínio de Clio, sendo analisadas
através da visão eurocêntrica que em nada contribuíram
para representar a pluralidade dos povos desse
continente, contribuindo para legitimar uma dominação
(Giordani, 2010, p.10).
O primeiro momento de “redescobrimento da
África” esbarrou na dificuldade de análise de fontes
orais, das análises das civilizações e nas dúvidas de como
se organizavam e quais os períodos históricos que
adotaram quais sistemas políticos nas suas configurações.
Um outro problema seria algo bem próximo do que
aponta Goody (2015) pois as especificidades dos estudos
africanos são vistas com olhares ainda muito limitados
de acordo com a experiência ocidental européia.

Uma segunda dificuldade concerne à terminologia que


o historiador da África anterior aos descobrimentos
deve empregar ao expor os acontecimentos e
instituições da maior parte dos povos africanos. Assim,
por exemplo, se falar em reinos, impérios etc., está
usando termos que, no conconcernente à África,
sugerem muitas vezes ao leitor “noções inadequadas”
(Giordani, 2010, p.11).

O estudo do afrocentrismo passa por essa necessidade de


uma maior reflexão sobre a África e os processos
coloniais, pós-coloniais e originários das populações

271
negro-africanas. Nesse sentido, compreender as noções
desse pensamento “africanista” é também inserir a África
nos processos de globalização-integração passando pelos
temas que envolvem história, filosofia, das obras escritas
e dos massacres ocorridos no seu vasto território
(Amselle, 2001, p.7).
A compreensão das sociedades africanas, como
por exemplo a mandinga sempre passaram pelos signos
europo-ocidentais e uma ideia de “tradicional” acabou
remontando valores imaginários, muitas vezes alheios
aos concebidos pelos africanos. Essa noção dos
estigmasafrocêntricos deve ser problematizada como um
fator analisado de fora para dentro, pois os autores
africanos são quase sempre desconsiderados. Ou seja,
pensar como o outro, conceber a sua identidade não é
abordar uma identidade africana ou mesmo uma noção
concreta do que representou o afrocentrismo (Amselle,
2001, p.10).
Em uma perspectiva da antropologia social
percebe-se que a tentativa de apagar a cultura africana
ou desvalorizar as especificidades das muitas Áfricas
acabou depondo contra o contato colonial e
desmonstrou com as conexões foram fundamentais para
o processo de constituição das identidades. Nesse
sentido, a reflexão de Jean-LoupAmselle é elucidativa:

272
Nenhuma cultura sem cultura, e isso se aplica a todas
as épocas, a atual fase de globalização foi precedida,
como já disse, por fases anteriores de globalização, cada
umafornece os espelhos sem os quais a imagem das
diferentes culturas não saberia se formar (Amselle,
2001, p.14).120

As redes intelectuais formavam-se entre 1930 e 1960


fora do continente e esse fator deve ser levado em
consideração nos estudos africanos. Pode-se afirmar,
inclusive que graças ao acesso à universidade muitos
desses pensadores conseguiram articular com suas elites a
necessidade dos processos de independência. Não foi
por acaso que a retomada dos valores históricos
legitimaram a necessidade da emancipação política
concreta, pois quando os povos compreendiam a
dominação cultural os outros processos de controle
ficavam mais claros (Déves-Valdés, 2008, p.102-3)
As histórias africanas acabaram passando pela
mesma dificuldade de outras realidades ainda marginais
nas análises historiográficas. Isso porque aqueles
responsáveis pela organização dessas experiências eram

120
“Pas de cultures ans cultures, et cela vaut pour toutes les époques, la
phase de globalisation actuelle ayant et éprécédée, comme on l’a déjà
dit, par dês phases de globalisation antérieures, qui chacune fourni lês
miroirs sans lesquels l’image des diferentes cultures ne saurait se former
(Amselle, 2001, p.14).”
273
comprometidos com seu passado histórico,
extremamente voltado para um passado comum
europeu. Como lembra Goody (2015, p.15):

Uma das formas que essa atitude pode tomar é o


etnocentrismo, postura que, não é de surpreender,
caracterizou gregos e romanos, assim como de resto
todas as comunidades. Todas as sociedades humanas
exibem um certo etnocentrismo que, em parte, é um
requisito de identidade pessoal e social de seus
membros.

No caso do contexto africano e das contribuições


intelectuais de pensadores como Mohamed Sahli, Ki-
Zerbo e, mesmo Cheikh Anta Diop viram desde a
década de 1970 a possibilidade de reabilitar os seus
valores às novas realidades dos governos de
independência. Os valores de afrocentrismo, de unidade
e de pan-africanismo podem ser vistos como formas
encontradas por uma elite intelectual negra para atingir
um protagonismo na sua trajetória histórico-cultural. De
algum modo esses escritores apropriaram-se da ideia de
“regenerar a África” dos etnólogos que os procederam
(Barry, 2000 p.52).
De modo geral, a explicação sobre o
afrocentrismo se baseia na resposta aos preceitos do
racismo científico do século XVIII e XIX segundo os

274
quais a dominação ariana seria atrelada aos fatores
civilizacionais gregos categorizando os outros povos
como atrasados intelectual e moralmente. Essas posturas
eram atacadas pelos afrocentristas e muitas vezes os
debates acadêmicos mantinham-se em enfrentar o
racismo, mesmo que o conceito de raça fosse apropriado
com esse propósito (Amselle, 2007, p. 82-3).
Por isso, uma primeira base da perspectiva
afrocentrica está na presente na fala de MolefiAsante
(2009, p. 95):

No interior da proposta afrocentrada não há sistemas


fechados, ou seja, não existem ideias vistas como
absolutamente fora dos limites da discussão e do
debate. Assim, o emprego da afrocentricidade na
análise ou na crítica abre caminho para o exame de
todos os temas relacionados ao mundo africano.

A afrocentricidade abre espaço para diversas perspectivas


de análise tais como a filosofia da négritude e da
creolidadecujas ideias seriam retomadas com mais afinco
depois de 1960. O afrocentrismo compreendia, assim
como a África tinha sido retirada do mundo, por isso era
a hora de tomar uma atitude radical com a qual seria
possível inverter todos os valores de desvalorização e
exclusão. Em uma atitude similar a prometeu era
necessário afirmar os valores africanos e sua origem
275
absoluta desafiando a civilização ocidental para se livrar
do seu domínio (Amselle, 2007,p.83).

Um debate sobre a África Antiga


O afrocentrismo foi importante nessa discussão visto
que acabou assumindo um espaço importante em
algumas ciências como o pós-modernismo, o pós-
estruturalismo, pós-marxismo e porque não dizer pós-
colonialismo. As teorias analíticas e parte da
historiografia não pode ignorar a importância dos
estudos de Cheik Anta Diop, de Martin Bernal, de Paul
Gilroy entre outros pensadores responsáveis por tais
análises responsáveis por posicionar o elemento negro
nas narrativas históricas e culturais (Howe, 1999, p.vii).
O princípio fundamental para compreender-se a
importância do afrocentrismo é a aceitação de que os
estudos das ciências humanas e exatas foram alicerçados
nas bases eurocêntricas e mesmo quando se voltavam
para o continente americano, continuavam fazendo
parte de um cânone concernente a uma elite intelectual
branca. De algum modo o eurocentrismo, o
colonialismo e o racismo foram atrelados às ciências
humanas dentre elas o pós-estruturalismo, o pós-
colonialismo e o pós-modernismo podem ter grande
responsabilidade nesse processo (Howe, 1999, p.vii).

276
O afrocentrismo é fruto de uma vontade de demonstrar
as raízes africanas em grande parte dos ramos do
conhecimento histórico e suas múltiplas interpretações.
Não necessariamente uma “redescoberta da África”, mas
esteve ligado a essa perspectiva mais voltada para os
estudos étnico-raciais, diaspórico e da valorização do
conhecimento dos povos africanos em si mesmos. Na
perspectiva do historiador Joseph Ki-Zerbo (1999, p.9):

Para os Africanos trata-se da procura da identidade por


meio da reunião dos elementos dispersos de uma
memória colectiva. Este ardor subjectivo tem, ele
próprio, o seu funcionamento objectivo no acesso à
independência de inúmeros países africanos.

A luta anti-colonial legitimou personalidades como o


professor Ki-Zerboresponsável por uma militância
através da produção do conhecimento histórico,
visando, sobretudo desfazer o preceito das teorias
racialistas que julgavam os povos negros como pouco
evoluídos intelectualmente. Ou em uma escala mais
profunda a resposta dos pensadores negros era
desconstruir os apontamentos de filósofos como Hegel
que decretavam que a África não era uma parte histórica
do mundo. No seu “Curso sobre a Filosofia da História”
de 1830 o filósofo alemão afirmava categoricamente a
exclusão dos continentes africano e asiático na História
277
da humanidade, relegando o pensamento africano e seus
contributos ao ostracismo (Ki-Zerbo, 1999, p. 10).121
As análises raciais do século XIX surgiam para
além de classificar os tipos humanos, gerar uma certa
acomodação ao ideal abolicionista – principalmente à
partir de 1840. As noções difundidas no Ensaio sobre a
Desigualdade entre as raças de Arthur Gobineau “foi
claramente difucultada pelo modo como sua tese de
miscigenação e degeneração penetrou nas divisões
existentes entre os dois campos principais, nos debates
da raça (Young, 2005, p.143).
A teoria racial surgia com muita força e adentraria
o século XX, influenciando os estudos não só sobre a
raça, mas fazendo as relações entre o corpo humano e as
capacidades intelectuais.

Na teoria racial, os domínios da linguagem e da


anatomia, anteriormente modos separados e
descontínuos de analisar diferenças raciais foram
reconciliados e unificados sobre uma nova ênfase no
volume craniano, que foi tanto medido quanto
mostrado de forma visual através de reproduções de
crânios e cérebros. A diferença de volume foi então

121
Defensor do pensamento de Cheikh Anta Diop, Ki-Zerbo contribuiu
para os estudos da arqueologia, da linguística, do incentivo à oralidade e
para as áreas que pudessem contradizer os mitos de que a África não
tinha História ou valores substanciais para as ciências.
278
conectada com diferenças na realização cultural e nos
graus de civilização (Young, 2005, p.148).

Certamente as criações da ciência racialista, fortemente


influenciada pelo evolucionismo de Darwin geravam um
farto material que surgia para legitimar a superioridade
do caucasiano. Em meados do século XX alguns
pensadores puderam gerar importantes questionamentos
em relação a essas “ciências” responsáveis pela
marginalização do pensamento afrocentrico. Dentre eles
além do já citado Diop, Molefi Asante, Kwame Appiah,
Valentin Mudimbe e Elikia M’Bokolo são apenas alguns
nomes do pensamento intelectual africano (Howe,
1999, p. viii).
Em uma perspectiva crítica o afrocentrismo deve
ser compreendido, problematizado e visto em seu
contexto de dominação ou de luta política em resposta a
uma imposição europeia no âmbito dos campos de
produção do saber. O ponto relevante do pensamento
afrocêntrico é justamente essa busca da afirmação da
identidade africana, contudo, o orgulho do negro era
compreender a História Africana, as suas origens e a
cultura sobre o continente para além dos estereótipos, na
maioria das vezes negativos referentes aos territórios
colonizados.

279
O afrocentrismo chamou a atenção para novas maneiras
de se pensar as tradições e as raízes dos afro-descendentes
iniciando-se no continente americano, sobretudo na
América do Norte e nas ilhas do Caribe. Na outra
margem do Atlântico o tratado de Berlim (1884-85)
dividia a África gerando uma série de prejuízos para a
História do continente e legitimando o domínio
colonial. Iniciava-se um longo processo de exploração
cuja consequencia maior seria a rejeição dos fatores
culturais. Desde as primeiras décadas do século XX,
surgia de modo embrionário um pensamento pan-
africano preconizando a noção ideológica de que haveria
uma “cultura comum” africana tanto ligada por uma
conceituação de “nação africana” e todo tipo de relação
que esse pertencimento faria com a noção de raça
(Carrilho, 1975, p.48).
Como lembra o filósofo Kwame Anthony Appiah
a centralidade da raça esteve presente nos discursos de
pan-africanistas clássicos como Alexander Crummell e
Edward Blyden mas isso ocorreu em função das
operações mentais para refutar o racismo e a
inferioridade intelectual dos negros. Principalmente
entre os afro-americanos o discurso racial teve maior
ênfase, influenciando uma noção de retorno ao
continente africano e também um sentido de unidade
comum ligando afro-americanos à afro-caribenhos numa

280
idealização de que partilhavam uma “ancestralidade
parcipalmente africana” em comum (Appiah, 1997, p.
22-3).
A força do afrocentrismo foi responsável ainda
pela invenção de tradições e por uma mítica de um
passado comum aos povos negros sem a qual seria
impossível a articulação politico-intelectual responsável
pelo desmantelamento das ideais coloniais ou
excludentes do racismo (Howe, 1999, p.2).
Não obstante, uma “africanidade” inspirou
grande parte de uma intelectualidade negra que percebia
no estudo do Egito Antigo um método novo na
operação de questionar a centralidade do argumento de
uma civilização grega antiga como exemplo de
civilização e de onde teria se originado a humanidade. O
processo que se convencionou chamar de “diáspora
africana” gerou algumas controvérsias, sobretudo porque
ocorreu em um período em que os afro-americanos
buscavam elementos teóricos para legitimar a luta contra
a segregação racial nos Estados Unidos (Howe, 1999,
p.2). 122

122
O trabalho de Paul Gilroy no livro “O Atlântico Negro” representou
uma nova perspectiva para a compreensão dos trabalhos relativos aos
estudos da diáspora. Por um viés Gilroy buscouna cultura um campo
frutífero para os estudos dos pensadores afro-americanos e além diso,
analisou suas produções intelectuais como meio para se pensar uma
identidade diaspórica em construção.
281
A visão de um afrocentrismo extremo foi apropriada
pelos seus críticos visando deixar em segundo plano toda
uma construção que abrangia desde a descoberta dos
primeiros fósseis até a perspectiva de que um Egito
negro teria influenciado a cultura humana. Como ponto
de partida a produção dos afrocentristas tinha o objetivo
de ir contra a raciologia do século XVIII e XIX,
relacionada muito fortemente com a tese de que a
Grécia teria ditado os valores para uma dominação
ariana (Amselle, 2001, p.81).
A importância do pensamento afrocentrico é
tamanha que não é exagero afirmar que ele incentivou as
noções de négritude (francofonia) e creolidade
(antilhas). Como afirma o antropólogo Jean-Loup
Amselle:

Assim é possível mostrar que os dois termos da


alternativa afrocentrismo-eurocentrismo, mais
precisamente a anexação da Grécia com a África em
um caso, ou a Europa em outro caso, criam em uma
exata medida a anunciação deles na cultura grega como
entidade fixa. Ao isolar um elemento do seu conjunto
relacional para efetuar uma conexão exclusiva, se
constitui as culturas enquanto sistemas fechados, e é

282
nessa configuração que toma parte o afrocentrismo
(Amselle, 2001, p.82). 123

O afrocentrismo pode ser facilmente explicado através


dessa oposição entre eurocentrismo e o “resto” , sendo
possível que a resposta mais extrema dos pensadores
negros tenha vindo de um certo romantismo do
continente como algo imaginado ou idealizado.
Contudo, os afrocentristas lidaram com a exclusão da
História de modo tão radical quanto seus detratores
gerando narrativas tão centradas nos seus ideais que
excluíam o mundo ocidental branco, o que levou a uma
fuga do debate e do diálogo mais aprofundado entre as
culturas.
Quando pensadores como C.A. Diop exaltavam
as nações negras e as culturas havia uma vontade de
demonstrar as contribuições do Egito antigo, agindo
metodologicamente para demonstrar o que os povos
negros produziram e seu papel nas realizações humanas.

123
"On peut ainsi montrer que les deux termes de l’alternative
afrocentriste-eurocentriste, autrement dit le rattachement de la Grèce à
l’Afrique dans un cas, ou à l’Europe dans l’autre, créent dans l’exacte
mesure de leur énonciation la culture grecque comme entité figée. En
isolant un élément de son ensemblerelationnel pour effectuer un
branchement exclusif, on constitue les cultures en tant que systèmes
clos, et c’est de cette configuration que participe l’afrocentrisme
(Amselle, 2001, p.82)."
283
Contudo, a resistência do mundo ocidental ainda era
um grande entrave para ele.

O nacismento da Egiptologia será portanto


caracterizada pela necessidade de destruir a qualquer
preço e em todos os espíritos a memória de um Egito
negro, de maneira total e completa. Doravante, o
denominador comum de todas as teses dos
egiptólogos, o parentesco íntimo deles e a sua
afinidade serão resumidos em uma tentativa
desesperada de refutar a tese de um Egito Negro
(DIOP, 2007, p. 62 – tradução livre do autor). 124

Mesmo que houvesse um fator idealizado no


pensamento afrocêntrico, havia um desejo legítimo de
alcançar a unidade e de demonstrar que a África nunca
esteve excluída dos grandes desenvolvimentos humanos
e tanto os povos negros como as formas culturais
africanas mereciam o estudo. Desse modo, aprofundado
o modo de conceber a cultura e buscando ao mesmo
tempo compreender a identidade e a militância diante

124
“La naissance de l’Egyptologie sera donc caracterisée par la necessite
de détruire à tour prix et dans tous les esprits, le souvenir d’une Egypte
nègre, de la façon la plus complète. Désormais le dénominateur
commun de toutes les thèses des égyptologues, leur parenté intime, leur
affinité prófonde ses résumeront à une tentative désespérée de réfuter la
thèse d’Une Egypte nègre (DIOP, 2007, p.62).”

284
da exclusão (promovida historicamente pelo mundo
europeu ocidental) foi que os afrocentristas estiveram
pleiteando um novo espaço no diálogo com outros
lugares do mundo (Hountondji, 1996, p.22).

O Egito e os seus contornos


Diodoro da Sicília e Heródoto são os primeiros
elementos que ligam o Egito da Etiópia elaborando a
descrição daqueles cidadãos de aparência “queimada”.
Heródoto elaborou algumas narrativas sobre os etíopes
(os primeiros ocupantes da Líbia) e Diodoro da Sicília
deu as informações mais ricas sobre as relações Egito-
Etiópia. Para ele os etíopes eram os primeiros homens a
surgir, os verdadeiros nativos.
Claramente as análises de Diodoro da Sicília são
bastante parciais mas ele realiza uma espécie de primeira
etnografia dos costumes dos povos que habitavam a
Etiópia no primeiro século a.C. Ele criticava o poder do
Rei e dos seus pares esboçando a configuração do poder
de Napata, a capital, ao lado da ilha de Meroé a qual
fazia fronteira com o Egito. Para Diodoro da Sicília os
etíopes eram na sua maioria selvagens e aqueles
civilizados não tinham a pele tão escura e os cabelos tão
embaraçados, demonstrando talvez uma primeira
hierarquização utilizando-se o critério da pigmentação
da pele (Amselle, 2001, p.83).

285
A noção Egípcia por sua vez era sempre carregada de
valores éticos e responsáveis pela elaboração de uma
narrativa a qual primava por uma organização branca.
Isso pode ter afastado alguns dos estudiosos da
antiguidade de uma busca pelo “fator negro” na
sociedade antiga do Nilo. Com uma separação entre
Etiópia e Egito, entre negros e brancos era possível
caracterizar-se também os valores culturais e políticos
em detrimento da cor da pele e das origens étnicas de
cada povo.125
A busca pelos valores raciais do século XIX e XX
levaram a uma associação concreta de que o racismo
tinha se originado da métrica Egito-Grécia,
influenciando a origem intelectual da humanidade e
Etiópia e reinos núbios uma parte marginal não só da
História, como dos povos amaldiçoados por Cam
(Amselle, 2001, p. 84).
O debate arqueológico poderia iluminar de outro
modo essa questão, mas o objetivo não é esvaziar o
debate, mas demonstrar como há um amplo campo de
diálogos responsáveis por rehabilitar as discussões
teóricas em relação ao afrocentrismo. O campo da
125
Para o movimento negro internacional essas perspectivas afrocêntricas
legitimaram a continuidade nos estudos africanos e ainda forneceram as
bases da luta anti-racismo. O trabalho do historiador Pap Ndiaye no
livro “La Condition Noire” (2001) é um bom exemplo para essa nova
vague dos Black Studies.
286
filosofia se ocupa dessa análise, sobretudo, quando
compreende o impacto das teorias das disciplinas como
a etnologia, cuja base em si já desconsiderava qualquer
forma de expressão cultural que não fosse escrita
(Hountondji, 1996, p.12).
A etnologia francesa foi vista com grande
desconfiança por parte dos afrocentristas, sobretudo, por
conta de influência da obra de Arthur de Gobineau
(1816-1882) na fundamentação das suas bases teóricas.
Esse pensador do racialismo trouxe suas teorias
“científicas” as quais caracterizavam o negro como a
“raça” menos evoluída dentre todos os tipos humanos.
As teorias de Gobineau foram retomadas no Entre-
guerras para justificar o Imperialismo europeu e a
etnologia reproduziu alguns de seus preceitos (para não
dizer pré-conceitos) para afirmar a classificação de que o
homem branco ocupava o topo e o negro o fim da
pirâmide social (Tobner &B eti, 1989, p.120).
O filósofo da Costa do Marfim Paulin
Hountondji (1996, p.12) não se ausenta da crítica ou
uma espécie de “ditar das regras” de uma cultura
ocidental da qual todos tivemos grande influência,
contudo ele explica que todo o começo de construção de
um saber é algo que necessita de certa aproximação
epistemológica com o que veio antes. Isso, não quer
dizer que as teorias do darwinismo social ou as noções

287
de história de Hegel devam ser levadas em conta, mas
até mesmo essa contestação do etnocentrismo europeu
precisam ser culturalmente desarticuladas sobre o risco
de se reconstituírem sobre novos alicerces “pseudo
científicos”.
O debate realizado pela filosofia problematiza o
pensamento africano como uma raiz do pensamento
filosófico grego e, portanto, ocidental. Principalmente
quando se compreende que: “Começando com a
frequente distinção feita por Platão entre doxa (opnião)
e sophia (sabedoria), o significado da filosofia e sua área
de concentração diz respeito ao que formou a questão
central da reflexão filosófica no mundo ocidental
(Hountondji, 1996, p.7).”126
As disciplinas foram se organizando em função do
desconhecido, como ocorreu com a etnologia, mas
também a geografia e a própria antropologia carregam o
triste estigma de terem catalogado populações,
territórios e costumes em detrimento da empresa
colonial. A filosofia de Hountondji resgata o diálogo
através da tão polêmica noção de “filosofia primitiva” de
Lévy-Bruhl, na intenção de demonstrar como a

“Beginning with Plato’s often made distinction between doxa


126

(opnion) and sophia (wisdom), the meaning of philosophy and its area
of concern have formed a central question of philosophical reflection in
the Western world (Hountondji, 1996, p.12).”
288
contribuição das disciplinas europeias tinham a função
de hierarquizar os valores ocidentais, elevando-os ao
patamar de “alta cultura”, ditando os valores para outros
povos “fora desse eixo”ocidental europeu (Hountondji,
1996, p. 13).
Apenas como breve exemplo percebe-se a
repetição entre os meios intelectuais da oposição
estabelecida por Hegel no seu debate sobre a História da
Filosofia em que utilizava-se de um dialética baseada nas
dicotomias branco-preto, ocidente-oriente, civilizado-
atrasado.127
Retomando o debate sobre a centralidade dos
estudos africanos ou a teoria do que convencionou-se
chamar afrocentrismo, percebe-se o comprometimento e
seriedade de dois pensadores cujo Egito ocupou um
papel importante em suas obras. O pensador britânico
Martin Bernal questionando as origens egípcias (ou
gregas) da sociedade ocidental eo pensador senegalês
Cheikh Anta Diop, quemrealizou análises fundamentais
em seusestudosdentre as quais visavacompreender as
raízes negras no pensamento egício, mudando os

127
No Brasil também utilizou-se parte desse pensamento, sobretudo, no
início do século XX quando o ideário positivista influenciou as
explicações sobre o avanço ou atraso das nações. Os trabalhos de Robert
Swarcz e Renato Ortiz demonstram exemplarmente isso.
289
paradigmas em relação à História da África e da História
Antiga.
Através dessa breve apresentação tem-se uma
hipótese de que o construto afrocentrismo tenha surgido
dessa necessidade de trazer um novo protagonismo para
os povos negros, buscando aproximar o Egito das suas
relações com a Etiópia, mas também compreendendo de
que modo os povos negros foram afastados da História e
de narrativas que legitimaram majoritariamente o
branco europeu. Dito de outra maneira, é claro que o
afrocentrismo foi constituído no contexto da luta contra
o racismo, colonialismo e todo tipo de segregação
(associado aos valores europeus) contudo sua parte
“mito” e sua parte “realidade” devem ser levadas em
consideração (Howe, 1999, p.5; Hountondji, 1996, p.
11).
Do mesmo modo, é possível afirmar que o
Afrocentrismo tenha sido primeiramente um fenômeno
cultural ou psicológico, mais do que uma empreitada
pedagógica (Howe, 1999, p.5). A sua relação com a
História Antiga demonstra o quanto as narrativas foram
revisitadas e de que maneira os povos negros, bem como
a noção de cultura, precisavam entrar nessa dinâmica de

290
modernidade de uma historiografia recente ainda hoje
buscando se reinventar.128
Contudo, uma breve definição de afrocentrismo e
sua relação com a História pode ajudar a esclarecer a
importância do presente debate:

O afrocentrismo não são dados, mas uma orientação


para eles. É como abordamos os fenômenos. [...] É
necessário dizer também que a história não é a
afrocentricidade, é uma disciplina no interior de sua
própria esfera. Ela possui certos atributos,
pressupostos, métodos e objetivos que podem ou não
ser compatíveis com os da afrocentricidade (Asante,
2009, p. 105).

Levando em consideração a complexidade do tema e sua


atualidade, é fundamental trabalharmos com a
perspectiva de um historiador responsável pela noção de
afrocentrismo e pela divulgação de um Egito Negro.

Cheik Anta Diop


A identidade cultural era um fator importante para a
constituição dos valores relacionados as tradições e
também a história de qualquer civilização. As
abordagens linguísticas, psicológicas e históricas são

128
A própria noção de modernidade só era possível seguindo a métrica
das teorias europeias.
291
componentes importantes para as análises coletivas de
todo grupo social (Munanga, 2009, p. 53-4). A
importância do pensamento de Cheikh Anta
Diop(1923-1986) se deve por conta dele ter sido o
fundador de uma ciência arqueológica associada aos
valores africanos na busca por essa identidade comum.
Senegalês foi estudar na França em 1945 e especializou-
se em matemática, filosofia e todo um conjunto de
ciências construídos e incentivados pela metrópole.
Combateu algumas das teses racistas como a de
Levy-Bruhl sobre a mentalidade primitiva, porém se
inspirou no pensamento arqueológico de Léo Frobenius
cuja trajetória intelectual foi voltada para a defesados
valores de uma civilização negro-africana (Tobner &
Beti, 2007, p.90).
Apesar de criticada a sua obra buscou
compreender esses fatores que definiriam a coletividade,
os povos negros, as origens africanas das civilizações. O
estudo da história, por exemplo, seria um mecanismo do
negro se reconectar com os seus valores, com sua
nacionalidade e assim, constituir um lugar no mundo
em um movimento que aconteceria de dentro para fora
(Munanga, 2009, p, 54).
Apesar de toda a sua produção intelectual e da
luta pelos estudos comparativos entre os sistemas
político-sociais da África e da Europa Cheik Anta Diop

292
sofreu grande repressão por conta da falta de interesse
dos valores africanos, sobretudo, por parte dos
intelectuais europeus. A sua preocupação com a
formação dos Estados Nacionais esteve por trás de quase
todas as suas produções escritas, além disso, a obra
“Nations Négres et Culture” (Nações Negras e Cultura -
1954) foi um exemplo das dificuldades pelas quais
passou, pois era a sua tese de doutorado pela qual ele
teve o título de doutor recusado (Tobner&Beti, 2007,
p.91):

Os historiadores negros africanos esmiúçam os grandes


impérios e reinos de ontem, mostrando a África negra
não como uma tábula rasa, e sim como um teatro de
brilhantes culturas e civilizações, cujos atuais vestígios
desmentem as teses colonialistas. Afirmam ainda que, a
África é o berço da humanidade (Munanga, 2009, p.
54).

Tomando como exemplo a trajetória de Théophile


Obenga e Cheikh Anta Diop, Kabengele Munanga
estabelece alguns pontos de interpretação do estudo da
antiguidade onde o negro não se encontrava
representado. Vale dizer que as civilizações negras não
tinham interagido com o Egito Faraônico e que os
egiptólogos haviam apagado a presença africana de seus
apontamentos (Munanga, 2009, p. 54). Isso foi tão forte

293
que nas representações cinematográficas de Cleópatra,
geralmente, ela era representada por atrizes do porte de
Elizabeth Taylor demonstrando a reificação da
branquitude nos filmes desse gênero.
A ruptura com esse paradigma ganhou força
através das obras de Diop com as quais o negro poderia
“tomar consciência do seu passado histórico glorioso,
através da civilização do Egito faraônico”. As produções
de Diop deram uma maior materialidade à retórica de
que era preciso legitimar a civilização africana (ou as
civilizações africanas), contudo, concedendo uma
narrativa ao negro-africano ele conseguiria bases
sociológicas e materiais dos discursos afrocentrados
(Munanga, 2009, p.75; Hountondji, 1996, p.22).

A maestria cultural de seu próprio passado, atrelado ao


discurso estrangeiro, é para o homem africano, o
primeiro passo para o controle do poder dos
conhecimentos criativosdo poder dentro do concerto
do mundo moderno. A morte prematura de C. A.
Diop enfatiza a dificuldade que há no pensamento
africano em florescer (Tobner & Beti, 2007, p.91).129

129
"La maîtrise culturelle de son propre passé, arrachée au discours
étranger, est, pour l’homme africain, le premier pas vers la maîtrise des
connaissances créatrices de pouvoir dans le concert savant du monde
moderne. La disparition prématurée de C.A. Diop souligne la difficulté
qu’a la pensée africaine créatrice pour s’épanouir (Tobner&Beti, 2007,
p.91)."
294
A obra Nations Négres et Culture merece destaque pois
explica através de bases arqueológicas as origens negras
através da civilização egípicia, a qual teria recebido forte
influência da cultura negra. Diop acabava por criticar a
aceitação tácita de que o Egito teria repercutido na
civilização grega clássica – base do pensamento
ocidental, mas a Europa também tinha seu débito com
as heranças do continente africano na antiguidade
(Hountondji, 1996, p.22).
Um aspecto historiográfico de Diop pode ser
percebido na sua tentativa de encontrar a continuidade
das tradições egícias em costumes ainda existentes na
África contemporânea (Hountondji, 1996, p.22). Mas o
autor também contribuiu para reflexões sobre a unidade
pan-africana e isso esteve presente no livro L’Unité
culturelle de l’Afrique noire (1955) e mais tarde Les
Fondements culturels, techniques et industriels d’unétat
fédéral d’Afrique noire (1960). Os seus três primeiros
livros tinham alguns dos argumentos apreentados na tese
de doutorado dele, apenas desenvolvidos e explicados
mais detalhadamente (Howe, 1999, p.165).
A orientação marxista de Diop foi muito forte e já
em 1946 se ligava à Association dês étudiants africains
de Paris e lá teve contato com alguns integrantes do
Rassemblement Démocratique Africain (RDA) partido
engajado na luta pelos direitos raciais no continente

295
africano. Por ser visto como um político radical, Diop
teve problemas para permanecer no Senegal sendo
apoiado pela Féderation dês étudiants d’Áfrique Noire
en France (FEANF) quando tentou voltar para o
Senegal no pós-Segunda Guerra, mas precisou se exilar
(Bah, 2015, p.73).
A oposição a Cheikh Anta Diop veio dos políticos
ligados aos valores coloniais, tais como Léopold Senghor
um dos principais opositores do pensamento de Diop.
Essa rixa surgiu pois Diop rejeitava as mistificações
coloniais racistas que atrapalhavam a investigação dos
fatores históricos de um passado das populações negras
em seu contato com o Egito dos faraós (Howe, 1999, p.
165). A maior contribuição do historiador senegalês
pode ter sido o resgate das lições filosóficas dos povos do
vale do Nilo e isso incomodava àqueles que acreditavam
ser impossível fazer uma história da África sem as
contribuições europeias (Howe, 1999, p. 166).
O pensamento de Cheikh Anta Diop foi
marcante para as novas gerações de pensadores africanos
que o suscederam:

Cheikh Anta Diop é o primeiro, em sua obra,


Nationsnègres et cultures, publicada em 1955, a
fundar sua ação política no reconhecimento da
historicidade da África, que remonta à origem das
civilizações – pois o Egito é negro. Cheikh Anta Diop
296
quer devolver aos africanos uma confiança neles
mesmos. A reconstrução da história africana abre a
África ao universal pelo Egito faraônico e a afirmação
da unidade cultural africana legitima seu pan-
africanismo e seu federalismo. [...] Assim a África toma
pé na história pela grande porta e Cheikh Anta Diop
privilegia a continuidade dessa história: é por isso que
põe em evidência as semelhanças entre as instituições
da África pré-colonial e as do Egito antigo (Barry,
2000, p.22). 130

A participação de Diopdeve ser rememorada visto que


ele forma uma corrente de valorização do pensamento
africano, legitimamente projetada por suas pesquisas,
fundando inclusive a Escola de Dakar – centro de
excelência para os estudos das tradições orais e escritas
da África (Barry, 2000, p. 23). O ambiente de produção
de Cheikh Anta Diop foi bastante difícil, tanto por
conta do material que precisava pesquisar, quanto pelo
predomínio de fontes escritas em francês que
comprometiam as interpretações do historiador.
O historiador Cheik Anta Diop se inspirava na
contribuição do arqueólogo alemão Léo Frobenius,
sobretudo, porque ele foi o responsável pela redescoberta
dos estudos africanos e a consequnte repercussão deles

130
BARRY, Boubacar. Senegâmbia: O Desafio da História Regional. Rio
de Janeiro: Centro de Estudos Afro-Asiáticos (UCAM)- SHEPIS, 2000.
297
nos meios científicos europeus. Ao afirmar a riqueza de
uma civilização africana Frobenius incentivava
pesquisadores do escopo de Diop para que continuassem
as investigações dos vestígios de um passado glorioso no
seio do continente africano (Howe, 1999, p. 167). 131
A obra desse notável historiador insere a
pespectiva africana nas ciências e tira do panorama
idealizado do negro as noções de africanidade, trazendo
o Egito para as perspectivas africanas de análise e porque
não dizer ressignificando a negritude (Mazama, 2008,
p.118). Nesse sentido, a obra de C. A. Diop têm
surpreendido por conter análises de alto nível
relacionando linguística, arqueologia e história na busca
por provar as raízes negras na civilização ocidental
egípicia.

Martin Bernal
Não se pode façar em afrocentrismo sem abordar o
trabalho de Martin Bernal. O renomado professor
britânico deixou sua pesquisa inicial sobre China e
Vietnam para debruçar-se na antiguidade egípcia
tornando-se uma referência nessa área. Sua obra Black
Athena é dividida em três volumes: a primeira investiga

131
Para Diop era mais importante estudar as civilizações egípicias e
meroíticas do que a latinidade e o mundo helênico (Howe, 1999,
p.169).
298
a fabricação da Grécia Antiga (1987), o segundo
investiga as fontes escritas e arqueológicas e o terceiro
volume interpreta a historiografia antiga nas bases afro-
asiáticas da civilização, formando uma uma espécie de
trilogia investigativa. Ao contrário do que se imaginava
Bernal era branco e no fundo defendia uma geração de
pesquisadores afro-americanos envolvidos com o
antiquarismo (Howe, 1999, p.193-4).132
Martin Bernal estava bastante envolvido com o
cenário de lutas políticas da década de 1980, em que
grande parte do movimento negro ainda não era
representado nos livros de história norte americanos.
Nesse sentido, ele foi visto como um defensor dos
direitos dos afro-americanos, tendo ocupado um papel
tendencioso em suas análises.

O que é importante observar é que a descrição


acadêmica do Egito não foi simplesmente influencida e
modificada pelo racismo e racionalismo crescentes,
mas realmente ofereceu a explicação para os
argumentos e constituiu a prova da própria teoria
racial (Young, 2005, p. 154).

132
O primeiro volume editado por Bernal foi o “Black Athena: The
Afroasiatic roots of Classical Civilization” (1987) que se debruçava
sobre a fabricação da Grécia Antiga, o segundo volume (1991) possuía o
mesmo título sendo mais voltado para as evidências arqueológicas e
escritas, e o terceiro e último volume (2006) voltava-se para a
investigação das evidências linguísticas na antiguidade.
299
Apesar das críticas pelas quais passou Bernal pode ser
visto como alguém que praticamente fundou o debate
étnico-racial nos Estados Unidos e inseriu os estudos
helenistas nas perspectivas afrocênticas. Através desse
debate Bernal não só respondia aos preceitos do racismo
mas apregoava uma visão historiográfica voltada para
anaisar as trocasentre Egito e Etiópia, mas ainda
buscando compreender os silenciamentos de uma
historiografia europeia nesse sentido. Ao retomar o tema
dos faraós negros o autor estava influenciado pelo debate
racial norte-americano na busca pela revisão da crítica
aos debates no século XIX (Howe, 1999, p.196).
Tal como Molefi Asante, Martin Bernal tinha a
intenção de inserir as contribuições das civilizações
africnas na História Mundial e isso fez com que ele
entrasse em choque com a historiografia tradicional
europeia, responsável por negar as grandes contribuições
das civilizações africanas. Nesse sentido, foi natural
associar-se o afrocentrismo de Bernal a um radicalismo,
já que este se empanhava em mostrar a exclusão da
civilização branca ocidental em relação aos povos do
continente africano (Khapoya, 2015, 91-2).
Martin Bernal produziu com afinco para cumprir
o objetivo de provar as potencialidades dos africanos e
dos afro-americanos, e parte do debate acadêmico
demorou a acolher o seu trabalho, vendo-o com

300
desconfiança. Entretanto, Bernal não se equipara a um
C. Anta Diop, pois não se aprofundou tanto no debate
afrocêntrico de modo mais radical (Howe, 1999, p.
202). “O que Bernal fez em relação à origem grega da
civilização, Cheikh Anta Diop já havia feito com
respeito à civilização em geral (Asante, 2009, p. 100
apud Diop, 1974).”
De uma maneira ou de outra a sua perspectiva
críticaatendeu não só à temporalidade mas a um recorte
historiográfico menos eurocêntrico segundo o qual se
buscava uma legitimação da narrativa mais adaptada aos
interesses dos intelectuais afro-americanos. Bernal
desmonta o modelo ariano que era associado como
alicerce responsável por fornecer as bases intelectuais da
civilização ocidental. A sua exaltação trazia justamente
como consequência um racismo e um chauvinismo
intelectual cujo efeito foi tornar mais tendenciosa toda
uma historiografia e filosofia referente aos povos
africanos (Bernal, 1987, p.2).

Um dos mitos mais permanentes a sustentar a


hegemonia europeia talvez seja o da origem grega da
civilização. Agora se tem demonstrado que esse foi um
exagero cometido por intelectuais desejosos de provar a
superioridade cultural europeia. A obra Atenas negra,
de Martin Bernal (1987) demoliu a ideia de que a

301
Grécia antecedeu a África, particularmente o Egito, em
termos de civilização. (Asante, 2009, p.100).

As análises de Bernal foram tidas como ensaísticas e


incomodaram a direita liberal, cujo pensamento das
origens gregas era intrínseco aos mecanismos de
identidade cultural tão presentes no âmbito do
imperialismo quanto no mundo do capital (Bernal,
1999, p.2). A obra de Bernal trouxe uma movimentação
na academia e fora dela, pois questionavam não só a
historiografia, mas os mitos em torno das origens da
humanidade, fornecendo material crítico para o debate
racial e historiográfico nos Estados Unidos.

Eles são os guardiões do status quo acadêmico e tem


um investimento intelectual e muitas vezes emocional
nisso. Em alguns casos os acadêmicos até defendem a
posição deles com a alegação de que a era heroica dos
amadores, que no campo deles já foi uma vez
necessária, agora acabou (Bernal, 1987, p.5).133

A fala de Bernal deixa muito clara a sua defesa em


relação aos estudos do afrocentrismo realizados por ele.
133
“They are the guardians of the academic status quo and have an
intellectual and often emotional investiment in it. In some cases
scholars even defend their position with the claim that the heroic age of
amateurs, which in their field was once necessary, is now over (Bernal,
1987, p.5).”
302
A sua intenção é romper com os paradigmas da ciência
ainda fortemente pautada nos mesmos preceitos que a
erigiu no século XIX. De certo modo a sua empreitada
foi no mínimo inovadora, apesar das inúmeras críticas
pelas quais passou. O seu primeiro volume de Black
Athena chegoua receber alguns prêmios como o
American Book Award em 1990.
Esse afrocentrista forneceu-nos importantes
indícios para compreendermos as raízes afro-asiáticas na
antiguidade e se sua intenção era desconstruir o discurso
hegemônico europeu, ele foi se aproximou bastante
desse intento. Demonstrando que a civilização egícia era
“claramente baseada na riqueza das culturas pré-
dinásticas do Alto Egito e da Núbia” M. Bernal
comprova a origem africana incontestável nesse espaço
geográfico (Bernal, 1987, p.15). As suas análises
contribuem tanto para a História da África quanto para
a História Antiga, demonstrando um vasto campo de
investigação, sobretudo, para remontarmos as origens
africanas na História Mundial.

Núbia e a África interna


Depois de perceber algumas conceituações do
afrocentrismo e de como uma visão de África ficou
relegada na historiografia e nas narrativas da ciência
histórica, acredita-se que as análises dos reinos núbios

303
também sejam importante para demonstrar as
descobertas relativamente recentes dos povos africanos.
E buscando desfazer do preceito de que estudar a África
Antiga é algo difícil por conta da bibliografia será
apresentado um recorte do que alguns pesquisadores que
exaltam a importância dos reinos núbios.
As narrativas dos reinos núbios estiveram ligadas
ao Egito faraônico que tem desde o século IX a.C. um
momento de grandes trocas culturais com esses
territórios vizinhos. Os egípcios invadiram o Reino
Cuxe localizado ao sul da catarata do Nilo. Ao fazerem
isso, colocaram um vice-Rei responsável por acatar as
decisões do Faraó e estenderam ainda mais o seu
domínio. Com o passar do tempo a aristocracia núbia
incorporava os costumes dos egípcios aos seus hábitos, e
isso provocou a autonomia do território e no século XI
a.C. o Reino do Cuxe se tornava independente e
adotava Napata como sua capital.

O Cuxe, Meroé e as populações do vale do Nilo


Em 900 a.C. os soberanos avançam ainda mais seu
território se expandindo até outra parte do Nilo. Em
750 a.C. avançam mais um pouco chegando a fechar
todo um cinturão do território às margens do Nilo,
retornando ao controle do Egito. A 25ª dinastia dos
Cuxe estabeleceria uma aliança com o Egito, retornando

304
com o título de faraós. Nesse sentido, as ligações
tornavam-se maiores a expansão à Napata se estenderia a
outro Reino, o de Meroé (Fage, 2010, p.x).
As características principais do Meroé eram o seu
desenvolvimento de uma agricultura e pecuária, foi um
dos primeiros locais a trabalhar com a metalurgia e com
peças de madeira. Os meroítas já tinham experiência
com navegação e realizavam trocas com mercadores
gregos. Depois da conquista de Alexandre, o Grande ao
Egito no século IV a.C. as trocas culturais com os
egípcios diminuíram.
A escrita dos meroíticos era semelhante aos
hieróglifos, e ainda hoje não foi totalmente decifrada.
Séculos mais tarde o reino do Meroé declina e durante
século I d.C., devido ao degaste do solo e a
impossibilidade de continuar a agricultura, ele foi
ameaçado pelo crescimento do Reino Axum. Graças ao
seu crescimento político e econômico Axum deslocou o
contingente populacional para esse que seria um dos
primeiros grandes reinos etíopes, representando o
declínio dos Reinos Núbios.
O Egito antigo abrigou civilizações que existiram
há milênios nas margens do Rio Nilo, o qual
popularizou a expressão de Heródoto: “O Egito é uma
dádiva do Nilo”. Muito recentemente percebeu-se que
os povos egípcios não ficaram isolados e com freqüência

305
estabeleceram relações com os povos da Ásia, com o
mediterrâneo e com as sociedades africanas (Ki-Zerbo,
2009, p.81).
Cuxe ou Kush (na grafia britânica) foi um nome
dado pelos gregos fazendo referência a Cuxe (filho de
Cam) e Egito significava Misr, curiosamente o outro
filho de Cam. O Cuxe foi composto por povos que
vinham de vários locais e queriam fugir da seca causada
pela situação de desertificação. A geografia da região não
era das melhores, possuindo um solo acidentado e
pedregoso, contudo, a presença de uma das cataratas do
rio Nilo era uma das coisas que deixava a região mais
atrativa ao povoamento.
A proximidade de Cuxe dos domínios do Faraó
gerou o temor de que aquela região fosse ocupada e
poderia tornar-se um ponto estratégico dos povos
inimigos. Aliado a isso outra dificuldade encontrada por
Ramsés II era de compreender a escrita dos cuxitas, o
que levou a uma assimilação dessa região, deixando-a
mais e mais próxima do Egito. Por conseqüência a
região do Meroé também foi cobiçada, pois ela seria
capaz de criar um reforço à barreira aos povos que viam
do sul (Yoyotte, 2010, p.81-2)
De acordo com o historiador (Ki-Zerbo, 2001,
p.86): “Há duas espécies de escrita meroíta: a que é
derivada dos hieróglifos egípcios e a outra escrita cursiva.

306
São decifradas letra por letra, mas, como a língua
permanece desconhecida, o texto é incompreensível.”
Com a tomada de Tebas pelos assírios no século
VI a.C. o Egito ficava mais desprotegido e o Cuxe vinha
cumprir a sua função não mais somente de escudo, mas
de realizar a batalha para a defesa do Faraó. Contudo, a
resistência não foi bem suscedidae os invasores causaram
grandes prejuízos para a organização egípcia (Ki-Zerbo,
2001, p.87-8). Devido à pressão vinda do norte e através
das dificuldades climáticas, esse reino não conseguiu
proteger a sua integridade do ataque dos egípcios e a
capital foi transferida para Napata.
Toda a alta hierarquia do Faraó foi transferida
para Meroé, o segundo reino no foco da organização
faraônica e há vestígios de que as trocas culturais entre
os dois povos foi maior do que os arqueólogos puderam
afirmar (Ki-Zerbo, 2001, p.88). Em uma referência
interessante a Meroé Ki-Zerbo levanta que: “Toda essa
cultura traz a marca da civilização egípcia, mas
distingue-se dela, no entanto, por um estilo mundo
original. Pouco a pouco desapareceu o conhecimento
dos hieróglifos.”134

134
Isso seria um indício de que a escrita seria abandonada e voltariam a
usar a oralidade.
307
A língua egípcia altera-se; é sob os símbolos
hieroglíficos – que podem adquirir aspectos um tanto
fantásticos – que se devem buscar, talvez de modo mais
acurado, notações do estado contemporâneo da língua
– na realidade demótica – e também reflexos do
meroíta, a língua dos cuxitas (Leclant, 2010, p.283).

As populações nômades haviam tomado o controle da


organização político-social egípcia e Napata foi
totalmente ocupada, deixando Meroé relegada ao
esquecimento e às próprias dificuldades climáticas que
causavam o empobrecimento do solo. Uma organização
inicial desses territórios pode ser percebida
espacialmente no mapa abaixo:

308
Figura 1 – A África e o Mundo Antigo. In: FAGE, J.D. Capítulo
2 – África e as Antigas Civilizações do Próximo Oriente e do
Mediterrâneo

O Reino do Cuxe – apogeu e declínio


Durante o século IX a.C. os constantes conflitos civis no
Egito e na Núbia foram sendo negligenciados, o Cuxe
deixou de ser um vice-Reino e tornou-se independente.
Até o século VII a.C. os cuxitas tiveram relativa
tranquilidade nas relações com o Egito e com a
conquista dos assírios a 25ª dinastia precisou se retirar
dessa região. Sua capital era Kerma, localizada perto da
terceira catarata do Nilo (Fage, 2010, p.46).
A cultura cuxe teve grande absorção das tradições
egípcias, sobretudo, no que diz respeito por conta da
proximidade do templo de Amon-Rá. Ainda no século
VII a.C as províncias ao norte se tornaram mais
importantes do que o centro do Egito, e a cidade de
Meroé ganhou maior representatividade tornando-se o
centro das decisões políticas do reino (Fage, 2010,
p.47).
Os cuxitas possuíram grandes quantidades de
marfim, concentrando alguns utensílios de cobre e
produtos artesanais que exportavam para o sul. Por
conta da ligação comercial que tinham com o Sul, o
Egito via como ameaça o Cuxe, em uma região
estratégica para as trocas. Contudo, após a conquista por
309
parte dos egípcios o reino do Cuxe passou a abrigar
fortalezas que tinham como função repelir as etnias
invasoras (Fage, 2010, p.48).
O Cuxe foi objeto de estudo dos africanistas pois
para historiadores, arqueólogos, lingúistas e antiquários
não havia um conhecimento tão disseminado de que
esses reinos núbios, compostos por homens de pele
escura, representaram formas bastante especificas de
organizações político-econômicas dessa sociedade.135
Para compreender mais um pouco da estrutura dessas
sociedades situadas nas bordas do Nilo é importante
ressaltar o papel de Meroé, uma das cidades mais
importantes dessa configuração dos reinos núbios.
Meroé pode ter sido o resultado de uma boa adaptação
de duas culturas diferentes (núbios e egípcios) em um
período dessas civilizações. Ele foi um dos primeiros
reinos assentados nos princípios da realeza sagrada
(M’Bokolo, 2009, p,83). De modo semelhante ao
aspecto político-religioso dos faraós a integridade física
do rei estava diretamente relacionada à condição do
reino, ou seja, quando este ficasse doente ou morresse
era um sinal de que a organização política estava ruindo.
Poderia haver ainda a organização de uma
execução ritual, a qual poderia ocasionar o suicídio do

135
Para mais é importante ver o capítulo 11 da História Geral da África
sobre a civilização de Napata e Meroé.
310
rei se este fosse considerado o responsável pelas
catástrofes naturais. O reino gozava de posição
privilegiada e obteve recursos próprios que fizeram dele
um local de destaque na relação internacional devido a
sua mobilidade junto às civilizações antigas (M’Bokolo,
2009, p,84). Apesar da seca e com pouca quantidade de
terra para o cultivo, Meroé tinha uma grande agricultura
praticada por grande parte da população. Produzia
diversos produtos como: trigo, centeio, uvas, lentilhas,
abóboras e o algodão tinha grande penetração no
artesanato local.136
O declínio da civilização egípcia ocorreu
concomitantemente com o de Meroé, que em tese
deveria ser o último bastião dos faraós. Pouco antes da
era cristã os egípcios perderam todo o seu poder e sua
cultura foi praticamente toda depredada. Como afirma o
historiador da História Geral da África (Ki-Zerbo, 2001,
p. 89):

Pelo menos, Meroé era independente, enquanto o


Egito passava sucessivamente para o domínio dos
assírios, depois dos persas de Cambises, dos Gregos de
Alexandre, dos romanos de Augusto, que puseram

136
Como já foi levantado anteriormente, a bibliografia sobre o tema
menciona que os meroíticos tinham bom relacionamento com seus
vizinhos e funcionavam como cidades satélites do antigo poderio do
Faraó.
311
fogo aos tesouros da biblioteca de Alexandria, antes de
ser ocupada pelos bizantinos e pelos árabes. Mas
sobretudo Kush e Meroé tinham prestado serviços
relevantes à civilização egípcia.

Era possível afirmar que tanto Cuxe como Meroé eram


reinos satélites para o Egito e que representaram a
presença africana diante da contribuição egípcia. A
relação passou pela via política e econômica, mas
também cultural, em que o culto dos antepassados, os
rituais e várias representações religiosas foram absorvidas
por esses dois reinos. A contribuição também passou
pela via da defesa e participação na civilização que
envolveu todo o Nilo. Como aponta o africanista J. D.
Fage em seu estudo sobre a História da África Antiga:

Do ponto de vista africano, é preferível considerar o


reino do Meroé como um país onde as tradições
egípcias e negra se puderam encontrar e fundir,
fundir e de
onde as regiões interiores do Sudão puderam contactar
com os mundos greco-helenísticos e romanos e com o
comércio e a cultura do mar Vermelho e oceano índico
(Fage, 2010, p. 49 – grifos nossos).

A riqueza do reino de Meroé era muito baseada no


comércio exterior e isso causou grandes problemas,
impossibilitando seu crescimento econômico. Desde o
século III d.C. Meroé foi decaindo em parte por conta
312
dos povos nômades e também devido ao grande
desenvolvimento do comércio no mediterrâneo,
movimento no qual o reino não conseguiria
acompanhar (M’Bokolo, 2009, p.86).
Sem entrar no debate historiográfico de se o
Egito era “africano” ou não compreende-se que os
acontecimentos que envolveram esses povos
representaram importantes relações de troca e que ainda
demandam um estudo mais aprofundado. Nesse sentido
percebe-se assim de que modo a participação dos povos
negros no desenvolvimento egípcio foi por tanto tempo
ignorada, ou talvez omitida, mas compreende-se a
importância e urgência do estudo aprofundado dessas
interações. Em sua abordagem dos reinos cuxitas e
meroítaso historiador J.D. Fage defendeu que a primeira
grande civilização (a egípcia) surgiu na África e isso não
pode ser ignorado (Fage, 2010, p.43).
Não obstante as aproximaçãoes entre os reinos, a
História de uma África Subsaariana atrelada aos estudos
da antiguidade fazem perceber de que modo estava tudo
mais ligado e relacionado do que os autores europeus
puderiam cogitar. Apenas como exemplo, observa-se
dois fatores: o primeiro foi o fato da Núbia ter sido um
dos principais caminhos para a expansão do
conhecimento da metalurgia do ferro para os outros
povos e, aliado a isso, a hipótese dos aspectos da cultura

313
e religião antiga dos egípcios terem influenciado
significativamente os povos doMeroé e do Cuxe.
Compreende-se assim essa semelhança da
organização religiosa egípcia na organização monárquica
dos povos subsaarianos nos primeiros séculos depois de
Cristo. O rei era como um descendente dos deuses,
quando não era um deus, e os rituais representavam a
permanência do cultoaos antepassados mantido pelos
povos egípcios. Além disso, as condições climáticas e
cultivo da agricultura também estavam atreladas ao
soberano, como na civilização do Egito antigo (Fage,
2010, p. 49).
Uma das principais diferenças entre o Cuxe e o
Meroé foi que enquanto o primeiro parecia ter
assimilado mais fortemente a cultura do Egito antigo
(tendo adotado inclusive um modelo monárquico), o
mesmo não aconteceu com Meroé.
Na sucessão dos reinos núbios o de Axum pode
ter recebido a influência direta dos antigos habitantes
dos dois reinos e no século III d.C. adaptou o
conhecimento dos povos cuxitas ao saber semita,
inclusive adotando uma vertente cristã influenciada
pelas línguas afro-asiáticas. O Ge’ez foi a língua adotada
no Reino de Axum, e no século IV, o governante desse

314
reino buscou recuperar a história e tradições dos cuxitas
(Fage, 2010, p.64).137

Se a pertença do Egito ao mundo negro-africano


continua a sucitar controvérsias, Kush e Axum são os
Estados africanos a respeito dos quais estamos assaz
bem informados, tanto no que se refere à sua história
factual como no que diz respeito à organização do
Estado e à evolução das estruturas políticas (M’Bokolo,
2009, p.76).

As relações entre o Cuxe e o Meroé são muito fortes e


estes espaços geográficos podem terser vistos como
lugares que se beneficiaram da grande riqueza deixada
pelos Faraós, investindo na economia e desenvolvendo
uma autonomia cultural e política muito peculiares.

Qualquer que seja a importância dessa penetração de


influências meroítas no restante da África, o papel de
Kush não pode ser subestimado: durante mil anos,
primeiro em Napata e depois em Meroé, floresceu uma
civilização muito original que, sob a aparência
razoavelmente constante de um estilo egípcio,
permaneceu profundamente africana (Leclant, 2010,
p.292)

137
Provavelmente Axum seria o continuador na genealogia dos reinos
núbios com a especificidade de já ter outros elementos na sua formação
como o cristianismo já inserido nas dinamicas socio-culturais.
315
Desse modo, para compreender a sucessão dos reinos é
necessário compreendê-los como protagonistas da
História dos povos negros e também da humanidade.
Dito de outra maneira, os estudos sobre o Cuxe e o
Meroé ilustram como apesar das rupturas e
permanências as civilizações africanas tiveram grande
importância na História Universal.

Considerações finais
Nessas breves reflexões buscou-se demonstrar a
existência de um debate historiográfico rico em fontes e
análises inseridas com as quais é possível se pensar em
uma perspectiva menos eurocêntrica. Ao realizar o
debate sobre a África Antiga enfatizando alguns dos
elementos principais dessa representação, era esperado a
apresentação de alguns problemas dos quais a História
Antiga não consegue se desvencilhar.
A reificação de conceitos e asseparações temporais
fixas, por vezes restritivas, afastam as perspectivas mais
afrocentradas dos estudos da antiguidade. Nesse sentido,
buscou-se demonstrar como o afrocentrismo foi uma
resposta aos problemas do campo intelectual
(acadêmico) cuja base não estava voltada para a
representatividade do ser humano e ainda fortemente
carregadas de etnocentrismo e de chauvinismo cultural.

316
A escolha por Cheik Anta Diop e Martin Bernal foi
pontual mas acredita-se na existência de inúmeros
outros pensadores responsáveis pelo estudo da
antiguidade com os quais foi possível compreender os
povos africanos na antiguidade. O trabalho de Jack
Goody se aproxima bastante da crítica aos estudos
clássicos mais “tradicionais” e pontua algumas das novas
tendências em buscar-se novas narrativas.
O objetivo aqui não foi de demonstrar novas
“verdades absolutas” ainda mais em tempos de novas
representações da História e o rompimento com uma
“história única” para usar a expressão de Chimamanda
Adichie. Essa empreitada buscou lançar os reinos núbios
nessa perspectiva mais afrocentrada defendendo a
possibilidade de uma narrativa que dialogue com os
estudos da antiguidade, inserindo História da África no
que ficou definido como História Antiga, destacando
ainda a importância da interdisciplinaridade.
Apresentando o Cuxe e Meroéespera-se fornecer
ao pesquisador, professor ou educador uma maneira de
dar uma aula e divulgar a africanidade nas narrativas da
antiguidade. Os conhecimentos nesse aspecto ainda
estão muito distantes do livro didático, visto que muitas
vezes as análises são reducionistas ou muito extensas
para uma leitura mais pontual. Assim, a História da
África antiga ainda é um campo amplo de debates com

317
os quais pode-se questionar o etnocentrismo, o racismo
e o falso preceito de que não havia uma História na
perspectiva africanista. Ao entrar em contato com essa
bibliografia é possível ver inúmeras questões abrangendo
Histórias plurais que narram nossas raízes e demonstram
o conhecimento filosófico na constante busca por
respostas às antigas perguntas ainda não respondidas.

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321
322
HISTÓRIA, QUADRINHOS, ENSINO DE
HISTÓRIA ANTIGA: PANORAMA
TEÓRICO-
TEÓRICO-METODOLÓGICO
José Maria Gomes de Souza Neto 138
Luiz Henrique Bonifácio Cordeiro139

As primeiras décadas do século XXI impõem, aos que


enveredam pelo curso de História, amplos desafios: as
exigências político-pedagógicas demandam habilidades
múltiplas, nas quais o rigor científico da pesquisa alia-se
aos ofícios de professor e extensionista. Neste cenário,
qual o papel a ser desempenhado pela História Antiga?
Não obstante os questionamentos sobre o porquê de se
estudar tal matéria, os argumentos esboçados por
Norberto Luiz Guarinello são bem claros:

A História chamada de Antiga faz parte do repertório


cultural dos brasileiros. Não apenas é ensinada nas
escolas, nos ensinos fundamental, médio e

138
Professor de História Antiga da Universidade de Pernambuco –
Campus Mata Norte, pós-doutor em Educação pela Universidade
Federal de Sergipe. Líder do Leitorado Antiguo – grupo de ensino,
pesquisa e extensão em História.
139
Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História
Política da UERJ. Membro do Leitorado Antiguo – grupo de ensino,
pesquisa e extensão em História.
323
universitário, como representa, para muitos brasileiros,
uma espécie de História das nossas origens como
cultura e civilização. (...) A História Antiga ocupa,
assim, uma parte importante em nossa identidade
como pessoas e como nação. Pensar sobre a História
Antiga é uma maneira de pensarmos e repensarmos
nosso lugar em um mundo em rápida
transformação140.

As questões prementes do mundo que nos cerca –


conflitos e crises, mudanças e permanências, alteridades
e identidades, contatos e resistências – eram pertinentes
na Antiguidade como ainda o são em nossos dias, e as
respostas lá encontradas servem de espelho à nossa
própria humanidade, reflexo daquilo de que somos
capazes diante dos desafios mais diversos. O professor de
História Antiga enfrenta um duplo desafio: as
orientações curriculares emitidas pelo Ministério da
Educação propugnam declaradamente a “significação
dos temas/assuntos a serem estudados pelos educandos,
no âmbito do viver em sociedade amplo e particular dos
mesmos” e a “soma de espaços de vivências sociais
diretas e indiretas, nas quais os educandos identificam e
constroem/reconstroem conhecimentos a partir da
mobilização de conceitos, competências e habilidades
próprios de uma determinada área e/ou disciplina

140
GUARINELLO, 2013, p. 7, 8.
324
escolar” 141, tarefa a qual denominam “contextualização”,
sentido distinto daquilo que, normalmente,
compreendemos como contexto, qual seja, a inserção do
assunto em seu próprio tempo – elemento, saliente-se,
pouco valorizado pelas diretrizes governamentais142.
Destarte tais demandas, a construção do
conhecimento histórico, bem o sabemos, requer
contextualização, e ao professor de História Antiga tal
necessidade é ainda mais premente, dadas as distâncias
espaço-temporais que separam seus educandos dos temas
abordados; seu esforço tem de ser redobrado: apresentar
a Antiguidade em suas particularidades – sem as quais
seria incompreensível – e, ao mesmo tempo, inseri-la no
universo presente dos seus educandos, permitindo-os
utilizá-la na construção da sua visão analítica do mundo
e das realidades circundantes.

141
SECRETARIA 2006, p. 22.
142
Como bem se percebe a partir deste trecho: “A tradição existente,
senão em todas mas ao menos na maioria das propostas de trabalho que
envolvem as disciplinas da área de Ciências Humanas e suas
Tecnologias, costuma vincular a noção de contexto à condição de
conjunto de aspectos gerais, que supostamente fazem as vezes de “pano
de fundo” ou “cenário” no qual se desdobram os acontecimentos sociais
apresentados como relevantes por essa mesma tradição. No entanto,
quando aqui nos referimos à noção de contextualização como parte
necessária da prática docente comum, que alicerça um trabalho
efetivamente interdisciplinar”. SECRETARIA, 2006, p. 23.
325
Necessário se faz, portanto, aquilo que Pedro Paulo
Funari chamou de “renovação do ensino da História
Antiga”: novas estratégias de ensino, incentivando o
aspecto lúdico do aprendizado e da pesquisa, a produção
de conhecimento histórico sob a capa da
espontaneidade. Importante pensar essas estratégias
iniciando no ensino superior, capacitando os futuros
professores do ensino médio, onde tais recursos serão
certamente ainda mais bem-vindos:

(...) tanto mais se poderá usar de recursos lúdicos e


pedagógicos, como podem ser as leituras dramáticas de
comédias latinas ou gregas adaptadas para isso. Uma
leitura dramática envolve tanto os alunos que se
apresentam como os que assistem à apresentação.
Exige uma pesquisa sobre a obra, autor, contexto
histórico e social, desenvolve os talentos dos leitores
dramáticos e produzem efeitos muitíssimo duradouros
nas mentes dos educandos” 143.

É interessante que se perceba a precisão com que Funari


aborda o repto de duplo fio imposto pelas diretrizes
ministeriais: insere novas abordagens para o ensino da
História Antiga sem, contudo, abdicar da
contextualização fundamental; constrói pontes para
diminuir as distâncias espaço-temporais, procura

143
FUNARI, 2005, p. 97.
326
soluções para comunicar valores e conceitos que,
amiúde, estão presentes à nossa volta; ao fim, denuncia a
existência de uma Antiguidade “dada, acabada, a ser
decorada pelo aluno”144, trabalhada não como
possibilidade, como construção das várias épocas que
sobre ela se debruçaram e refletiram, mas como algo que
nada mais possui a dizer, a ser interpretado, Estéril. E
perante tais considerações, a literatura em geral, e os
quadrinhos em especial145, emergem como poderosos
elementos para o ensino da História146.
Quando chamamos a atenção à relevância da
História Antiga para a formação do profissional de
História, mencionamos conflitos, crises, mudanças,
permanências, alteridades, identidades, contatos e
resistências, questões essenciais à nossa
contemporaneidade que são iluminadas sempre que nos

144
FUNARI, 2005, p. 98.
145
Embora utilizemos o vínculo entre quadrinhos e literatura,
reconhecemos que não é pacífico: “Quadrinhos são quadrinhos. E,
como tais, gozam de uma linguagem autônoma, que usa mecanismos
próprios para representar os elementos narrativos. Há muitos pontos
comuns com a literatura, evidentemente. Assim como há também com
o cinema, o teatro e tantas outras linguagens.” RAMOS, 2014, p. 17.
146
Debate muito bem situado por Selva Guimarães Fonseca: a literatura
“pode falar ao historiador sobre a história do que não ocorreu, sobre as
possibilidades que não vingaram, sobre os planos que não se
concretizaram (...) mais do que dar um testemunho, ela revelará
momentos de tensão”. FONSECA, 2003, p. 165.
327
voltamos à Antiguidade; a literatura é um local
extremamente rico para se acercar de tais questões
precisamente porque pode mostrar a sociedade que a
gerou a contrapelo, e ao invés de simplesmente descrever
certo número de fatos, questiona-lhes as possibilidades,
convida à comparação com o conhecimento prévio e o
tempo vivido.
A literatura age continuamente como processo de
experimentação e, por isso, não pode se deixar de
apreender sua noção monumental, pois ela está sempre
rememorando ou comemorando algo, mesmo que no
intuito de protestar ou provocar um silenciamento. Tal
como afirma Françoise Choay, o termo monumento
tem origem latina e refere-se àquilo que “traz à
lembrança alguma coisa”147. Nesse sentido, não se pode
deixar de salientar sua extensão tipológica, cronológica e
geográfica, que é acompanhada pelo seu público,
evidenciando sua natureza afetiva e, pois, as emoções
presentes em sua comunicação: o monumento tem o
objetivo de “contribuir para manter e preservar a
identidade de uma comunidade étnica ou religiosa,
nacional, tribal ou familiar”148, agindo como um
referente do espaço-tempo no qual foi produzido, mas
também sobre o qual retrata.

147
CHOAY, 2001, p. 71.
148
CHOAY, 2001, p. 18.
328
O conceito de monumento foi debatido também por
Michael Pollak, que o relacionou não só a elementos
materiais palpáveis, mas também àqueles imateriais que
provocam a lembrança de ritos e símbolos vividos
pessoalmente ou em coletivo. Para esse autor, o
monumento institucionaliza memórias e por isso é um
espaço de relembrar, comemorar, silenciar ou mesmo
propagar certos símbolos149. Na mesma linha teórica
trilhada por Pollak, está a concepção de Jacques Le
Goff150, para quem todo documento escrito tem um
caráter monumental ao armazenar informações,
marcando, memorizando e fazendo uma transfusão das
informações do auditivo para o visual, o que permite
alterar, bem ou mal, a naturalidade da informação.
Os quadrinhos, pois, como outras produções
culturais, estão passíveis de inquietações humanas,
servindo, portanto, a anseios, comemorações ou
rememorações da realidade, por mais distorcidas que
sejam, e por isso devem ser objeto de importância ímpar
para o profissional de História – como bem colocou
Jorge Larrosa, o “modo como o presente assinala o
ausente, o dito aponta para o não dito, o sentido se situa

149
POLLAK, 1992, p. 200.
150
LE GOFF, 1990, p. 433.
329
para além do escrito”151, exaltam uma perspectiva na
qual a arte sequencial152 encaixa-se perfeitamente.
Optamos pela utilização do conceito de arte
sequencial por representar, para o professor de História
Antiga, uma grande oportunidade de relacionar seu
objeto de trabalho ao tempo vivido, pois como bem
observou Scott McCloud, é a definição mais neutra em
termos de limites, sem se constranger a um gênero ou
traço específico, mas tão-somente à justaposição de
imagens com um significado continuado entre si,
instrumental metodológico que rompe a data
convencional de invenção dos quadrinhos e abre novas
perspectivas:

(...) essa definição pode levar os quadrinhos bem longe


no futuro e bem longe no passado, antes do ‘ponto de
partida’ artificial em 1896 e ‘The Yellow Kid’...
chegando mais de três mil anos atrás! Há uma riqueza

151
LARROSA, 2010, p. 101.
152
Usando a definição de Scott McCloud, “o mestre Will Eisner usa o
termo arte sequencial para descrever as histórias em quadrinhos.
Tomadas individualmente, as figuras não passam disso... figuras. No
entanto, quando são partes de uma sequência, mesmo uma sequência de
duas, a arte da imagem é transformada em algo mais: a arte das histórias
em quadrinhos! Note que esta definição é estritamente neutra em
questão de estilo, qualidade ou assunto.” McCLOUD, 2005, p. 05.
330
incrível nos quadrinhos antigos, e alguns podem ter a
chave pro futuro desse meio!153

Se este recuo representa um ganho para a arte per se,


não significa menos para o ensino de História, pois
vários artefatos antigos podem (“devem” seria mais
exato) ser interpretados à luz do conceito da definição de
arte sequencial, o qual restaura um pouco da vitalidade
que originalmente possuíam, amiúde negada nas
abordagens convencionais de peças da Antiguidade. Um
bom exemplo dessa análise é o Estandarte de Ur, um dos
objetos sumerianos mais reverenciados pela cultura
contemporânea. Preservado no British Museum, em
Londres, consiste na caixa de ressonância de uma lira,
executada no sul da Mesopotâmia por volta de 2600
a.C.; de forma trapezoidal, seus dois lados maiores
apresentam cenas da vida quotidiana (a “face da paz”) e
dos combates “(a face da guerra) da antiga
Mesopotâmia.
Vistas em separado, as pequenas figuras humanas
feitas em madrepérola sobre um fundo azul de lápis-
lázuli são interessantes; contudo, quando compreendidas
utilizando o conceito de arte sequencial, são percebidas
em uma série de cenas de ação: primeiro, o palafreneiro
segura quatro asnos atrelados a uma carruagem de

153
McCLOUD, 2005, p. 199, 200.
331
guerra, enquanto uma figura em traje de combate segura
cordas mais atrás; em seguida, este personagem, já
embarcado, toma as rédeas, e tem atrás de si um
lanceiro; por último, o conjunto está em plena ação,
com o lanceiro exercitando sua arte mortífera enquanto
o carro passa por sobre um inimigo caído.
O Estandarte de Ur é um dos muitos exemplos de
obras de arte oriundas da Antiguidade que ganham
ritmo quando vistas sob os óculos da arte sequencial: o
afresco dos jovens cretenses saltando sobre um touro,
rapazes atenienses montados em seus cavalos dos frisos
do Pártenon, a procissão de nobres romanos do Ara
Pacis construído pelo imperador Otávio Augusto...
todos originalmente elaborados para serem vistos e
compreendidos como uma sucessão, condição perdida
pelo tempo e passível de restauração quando aplicado o
instrumental teórico apropriado.
A recuperação do movimento e do ritmo – numa
palavra, da vitalidade – da Antiguidade é um dos
desafios da Historiografia contemporânea; em recente
entrevista, um dos mais proeminentes especialistas na
reconstituição do mundo antigo em 3D, Fritz Göran
Vöpel, deixa claros os objetivos de sua atividade: “a
conexão com os achados científicos e a transmissão
social dos resultados das pesquisas”154, a transformação
154
VÖPEL 2015.
332
em linguagem visual acessível dos mais recentes achados
arqueológicos, conferindo compreensibilidade a
elementos cuja interpretação, fora dos grupos
especializados seria, de outra forma, muito restrita – em
suas próprias palavras, a “transmissão social” do
conhecimento científico.
Este desafio pertence, igualmente, ao profissional
de História que milita na trincheira do ensino: ele
precisa resgatar a vitalidade dos seus objetos, conferir-
lhes sentido para uma juventude progressivamente
imersa na cultura audiovisual; neste particular a arte
sequencial ocupa nicho destacado, seja aperfeiçoando a
compreensibilidade de determinados artefatos antigos
(através da valorização do movimento que já possuíam,
mas fora perdido), seja aliando a imagem à palavra
através das histórias em quadrinhos.

As metáforas visuais
Em seu texto Os quadrinhos na aula de História, Túlio
Vilela situa com precisão a inserção dessa literatura na
sala de aula, caracterizando-a como “mais um recurso
pedagógico que pode trazer bons resultados se bem
empregados”, mas alerta: como o cinema e a literatura
ficcional, “os quadrinhos são muitas vezes vistos pelo
professor como apenas suporte de um conteúdo. Eles

333
podem ser mais do que isso” 155. Ao nosso ver, tal
equiparação entre as artes vem bastante a calhar, pois a
utensilagem teórica disponível, por exemplo, para a
análise do cinema no ensino de História, é igualmente
pertinente para os quadrinhos, perspectiva apoiada no
trabalho de Scott McCloud:

O raciocínio tradicional há muito tempo tem


sustentado que obras de arte e literatura só são
realmente boas quando mantidas a uma certa distância
uma da outra. Palavras e figuras juntas são
consideradas, na melhor das hipóteses, uma diversão
pras massas; na pior das hipóteses, um produto do
comercialismo crasso. (...) Enquanto isso, as palavras e
o cinema fascinam o mundo com seu charme, mas eles
tem que se esforçar pro seu potencial ser
compreendido.156

Como bem colocou a historiadora Maria Wyke, o


cinema possui uma “profunda função” na constituição
de uma consciência histórica, uma visão de estudos
clássicos que objetiva não somente revelar a
Antiguidade, e sim “expor, ao invés de ocultar, os
interesses ideológicos locais – as várias misoginias,
etnocentrismos, elitismos e imperialismos – tanto da

155
VILELA, 2005, p. 106.
156
McCLOUD, 2005, p. 140, 141.
334
Antiguidade quanto das suas apropriações
157
subsequentes” , de modo que longe de compor uma
narrativa de feitos e realidades dadas e acabadas, num
reflexo da nossa compreensão contemporânea do
passado, busca o contrapelo, os conflitos, sem se eximir
de “definir e debater nossa relação com aquele mundo”.
A arte sequencial não está ausente desta perspectiva:
quadrinhos, os mais fidedignos como os nem tanto, ao
recriar o passado, são sempre agentes de construção de
cultura histórica, fato claramente perceptível nas
produções das editoras comerciais – e como poucas
publicações podem ser mais mainstream do que as
Disney, comecemos analisando um clássico do gênero, a
História e Glória da Dinastia Pato158.
Para uma criança ou um adolescente no Brasil de
1974, quando a primeira parte da saga foi lançada, ou
de 1987, publicação do seu inteiro teor na edição
número 100 da coleção Disney Especial159, esta narrativa
da árvore genealógica do Pato Donald, cuja primeira
etapa passa-se no Egito Antigo, pode muito bem ter sido
um dos primeiros contatos com o conjunto de imagens

157
WYKE, 1997, p. 7.
158
EDITORA, 2009.
159
Storia e gloria della dinastia dei paperi foi, originalmente, publicada
na Itália, entre abril e maio de 1970, na revista Topolino, seguindo o
roteiro de Guido Martina, um dos mais importantes escritores italianos
da Disney, com desenhos de Romano Scarpa e Giovan Battista Carpi.
335
que associamos, quase osmoticamente, ao país do Nilo:
lá estão a pirâmide e os camelos, o deserto e a rainha
Cleópatra (chamada Cleopata e “vivida” pela
Margarida). As imprecisões são abundantes, como
reconhecido pela própria editora na versão mais recente
do álbum, mas ao invés de provocar a rejeição da obra
na sala de aula, elas devem, pelo contrário, servir ao
aprendizado. Os quadrinhos não podem jamais ser
utilizados sem a intervenção do professor, o qual deverá
discuti-los com seus alunos e contextualizá-los, e nesse
processo, como bem colocou Túlio Vilela, “os erros
podem servir de ponto de partida para informações
historicamente corretas”160: na época na qual se passa a
história (grosso modo, o Império Tardio161), pirâmides
ainda eram construídas? Existiam camelos ou
dromedários domesticados? Havia ampla cunhagem de
moedas? A resposta para tais perguntas é ‘não’, mas este
é o momento preciso da edificação do conhecimento, de
questionamento do tempo vivido e de construção do
conhecimento baseado na Historiografia: os erros são
corrigidos, mas o diálogo estabelecido entre a imagem
(lúdica) e o saber construído em sala não se perdeu.
Estas licenças poéticas, contudo, podem ser
abordadas de outra maneira, e para refletirmos sobre

160
VILELA, 2005, p. 121.
161
Entre 525-332 a.C. Cf CLAYTON, 2004.
336
elas, retomamos nosso diálogo com o cinema. O
historiador norte-americano Robert Rosenstone
compara o filme à produção historiográfica, pois tanto
um quanto outra não só elaboram e rearranjam os
vestígios legados pelo passado162 quanto, quando
necessário, se permitem inventar fatos para compor suas
narrativas:

[...] as ricas imagens e metáforas visuais que nos


fornecem contribuem para que pensemos
historicamente’ (...) o objetivo não é fornecer verdades
literais acerca do passado (como se a nossa história
escrita pudesse fazê-lo), mas verdades metafóricas que
funcionem, em grande medida, como uma espécie de
comentário, e desafio, em relação ao discurso histórico
tradicional163.

162
“Podemos realmente representar o passado, de maneira factual ou
ficcional, como ele era? Ou sempre apresentamos apenas alguma versão
de como ele possivelmente era ou poderia ter sido? E, em nossas
representações, não alteramos inevitavelmente o passado, fazendo-o
perder parte do seu sentido pra si mesmo, ou seja, para os seus atores
históricos e, ao mesmo tempo, impomos outros significados (os nossos
significados) aos acontecimentos e momentos que talvez sejam muito
difíceis de reconhecer para aqueles que os vivenciaram? (...) sempre
violamos o passado, mesmo quando tentamos, a despeito da mídia
usada, preservar a sua memória (...) esta violação é inevitável, faz parte
do preço de nossas tentativas de entender a palavra extinta dos nossos
ancestrais’. ROSENSTONE, 2010, p.199.
163
ROSENSTONE, 2010, p. 24.
337
Compreendemos que a arte sequencial pode ser
trabalhada como uma metáfora sobre o passado, uma
leitura elaborada a posteriori, mas que fala sobre o
conhecimento então disponível sobre o tema – e nesse
sentido, o fato de Pah-Tih-Nhas, tesoureiro da rainha
Cleopata, transformar o tesouro real em moedas de ouro
e estocá-las numa pirâmide (num período em que a
cunhagem de moedas ainda engatinhava e a construção
destas estruturas havia sido abandonada justamente
porque eram excessivamente chamativas164) fornece ao
professor que lida com esta leitura amplas oportunidades
de envolvimento com seus alunos, e de desenvolvimento
do seu conhecimento histórico165.
Sobre estas construções metafóricas, há que se
perguntar qual seu interesse no retorno ao passado: mera
“ambientação exótica” para a narrativa, ou efetiva
interação “com aquele discurso, fazendo e tentando
responder perguntas que, há muito tempo, circundam

164
Há, inclusive, uma piada a esse respeito na própria revista: o tio Pah-
Tih-Nhas apresenta aos seus sobrinhos o depósito secreto, a pirâmide.
“Isso é um depósito secreto? Que construção mais estranha!” dizem os
meninos. “Eu mandei fazer assim! As coisas incomuns chamam atenção
Ah, ah, ah! Esse é o meu segredo”. EDITORA, 2009, p. 66.
165
Discussão bem situada por Raquel dos Santos Funari quando diz:
“indiscutivelmente, as revistas de HQ, por fazerem parte importante do
universo de crianças e jovens, podem ser igualmente utilizadas como
ferramenta pedagógica criativa e eficiente”. FUNARI, 2004, p. 152.
338
um determinado tópico”?166 No caso específico da
História e Glória da Dinastia Pato, conquanto seu autor
tivesse formação em Letras e Filosofia, e a Itália possua
uma longa tradição de recepção da Antiguidade167, ela
integra o primeiro grupo; há, porém, exemplos diversos
de diálogo entre os quadrinhos, as fontes clássicas e a
historiografia, como Os 300 de Esparta168, de Frank
Miller.
Quando do seu lançamento, em 1998, esta obra
foi alvo do mais amplo criticismo, desencadeando,
inclusive, batalhas verbais entre seu autor e outros
artistas, como o respeitado Alan Moore, que o acusou de
imprecisão histórica ao apresentar os espartanos
criticando seus rivais atenienses por suas práticas
pederásticas. Por outro lado, quando a Graphic Novel
foi levada às telas, em 2007, a exposição fílmica trouxe à
tona a natureza supostamente racista do texto, que
caracterizava os gregos como heróis e os persas como
166
ROSENSTONE, 2010, p. 74.
167
“(...) o Império Romano ajuda a construir os pertencimentos, as
identidades, as nacionalidades, em universo de empréstimos simbólicos,
sentidos construídos e interpretações falseadas, em muitas tentativas das
nações europeias de estabelecer ‘passados apropriados’. A expressão
invenção das tradições, cunhada por Hobsbawm, a isso se aplica com
perfeição. Para ele, toda tradição inventada utiliza a história como
legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal”. SILVA,
2007, p. 36.
168
MILLER, 2006.
339
bárbaros horrendos – ambas posições excelentes para a
discussão histórica, e amparado nela, o profissional de
História tem à disposição um amplo leque de
possibilidades para abordar o conteúdo.
O retrato que Frank Miller faz dos persas está
longe de ser criação sua; na realidade, o autor traduziu,
em palavras e imagens, representações em voga desde a
Antiguidade, e que vem sendo amiúde retomadas desde
o início da Idade Moderna para opor de modo
irreconciliável duas esferas, a saber: o Oriente e o
Ocidente. Como bem colocou François Hartog,

(...) essa Europa polêmica169 dos gregos, que iria ser


também uma Europa política. As guerras médicas
serviram de catalisador para a oposição entre gregos e
bárbaros. Ora, qual seria, em suma, a diferença
essencial entre uns e outros? (...) uns são ‘livres’, os
outros submetidos a um senhor. (...) um significado
preciso, dotando o antônimo de um rosto – o do persa
– e conferiram-lhe um território, a Ásia, que ele
reivindicava como seu.170

169
Aqui o autor faz um jogo de palavras, e remete ao termo grego para
guerra (πόλεµος), no sentido de que a fundação da ideia de Europa se
fez a partir de marcos bélicos, e cita nominalmente A Guerra de Troia,
retratada por Homero em A Ilíada, e as Guerras Médicas, narradas por
Heródoto em suas Histórias.
170
HARTOG, 2003, p. 101, 102.
340
Esta oposição não se extinguiu; muito pelo contrário,
permanece viva e se manifesta com frequência: o
Ocidente se constituiu como espaço em oposição
polêmica ao Oriente171, à Ásia, e tem buscado naquelas
que considera suas raízes primeiras, a Grécia, a expressão
mais recuada deste choque, onde encontrou a descrição
da liberdade, da participação política, da individualidade
e da autonomia, em contraposição aos asiáticos
dominados e subservientes172 – nas palavras de
Heródoto, cuja narrativa é o marco fundador dessa
tradição, “todos compreenderam claramente, inclusive o
próprio Xerxes, que os Persas possuíam muitos homens,
mas pouco soldados”173. Este universo foi

171
Seria impensável lidar com essa oposição sem ao menos referenciar
um dos mais importantes intelectuais que sobre ela se debruçou,
Edward Said: “O Oriente não é apenas adjacente à Europa; é também o
lugar das maiores, mais ricas e mais antigas colônias europeias, a fonte
de suas civilizações e línguas, seu rival cultural e uma de suas imagens
mais profundas e mais recorrentes do outro (...) também ajudou a
definir a Europa (ou o Ocidente) com sua imagem, ideia,
personalidade, experiência contrastantes (...) uma parte integrante da
civilização e da cultura material europeia”. SAID, 2007, p. 27, 28.
172
Comentando o pensamento oitocentista, escreveu François
Hartog:“Diversamente do Oriente, submetido a castas sacerdotais, a
Grécia revelara-se ‘professora’ de liberdade até na sua religião, que
nenhum colégio de sacerdotes dominou (...) pôs ênfase na
espontaneidade e na humanidade do ‘gênio grego’, que era juventude
no desabrochar”. HARTOG, 2003, p. 146.
173
HERÓDOTO. História. Livro VII, CCX., p. 869.
341
magnificamente recuperado por Frank Miller e levado às
páginas de sua Graphic Novel, pois em sua bizarrice e
horrenda figura, o persa é o antípoda do heleno:
frequentemente tem a pele escura, seus traços faciais são
meramente esboçados, e mesmo a elite do exército
invasor, o Batalhão dos Imortais, tem aparência
assustadora, pois usa capacetes com máscaras
semelhantes às da tragédia grega.
A feiura persa destaca a beleza grega. Os
espartanos são agrestes, com barbas cerradas, cabelos em
longos cachos chegando até os ombros, faces duras e
longilíneas; diversamente dos seus inimigos, indistintos e
obscuros, a personalidade lhes transparece no semblante.
Seus corpos são bem torneados, nádegas duras,
empinadas, coxas musculosas; em várias cenas usam
meramente capas e tapa-sexos, e quando relaxados, no
entorno da fogueira, amiúde estão completamente nus, e
bem no início da Graphic Novel, quando Dilios, o
contador de histórias, está narrando a infância do rei
Leônidas, aparece de costas, com a cabeleira crespa
arrumada em longa trança, as mãos nas cadeiras, os
músculos das costas retesados, como que em
movimento, salientando as formas do traseiro, grande e
redondo – formas que, diga-se de passagem, também
deitam suas raízes em ideais estéticos helênicos, para

342
quem a liberdade política era expressa pelo tônus
corporal dos cidadãos174.
Nossa detalhada descrição tem um sentido, pois
considerar Os 300 de Esparta como um trabalho
homofóbico, como foi dito em inícios dos anos 2000,
parece-nos demasiada simplificação. Há, de fato, uma
fala na qual se pode compreender o discurso anti-
homossexual: quando o mensageiro de Xerxes chega a
Esparta, pede ao rei uma oferenda de terra e água,
símbolo da submissão da cidade-estado ao império, a
resposta de Leônidas, com o perdão do trocadilho
proposital, é lacônica: “Hmm. Temos um pequeno
problema. Boatos dizem que os atenienses já rejeitaram a
sua proposta. E se aqueles efeminados175 tiveram essa
coragem... afinal, nós, espartanos, temos uma reputação
a zelar”176.
Da maneira como foi colocada, fica parecendo
que a prática dos relacionamentos homossexuais em
Esparta era criminalizada, ao contrário do que ocorria

174
“O corpo do cidadão é propriedade pública (...) estava lá para ser
observado e comentado (...) vendo que Epigenes, um de seus
companheiros, apresentava uma condição física precária para um
homem jovem, (Sócrates) disse: ‘você tem o corpo de alguém que
simplesmente não está envolvido em questões públicas!’”. GOLDHILL,
2007, p. 27.
175
Boy-lovers, no original.
176
MILLER, 2006, p. 12.
343
em Atenas; esta ideia, contudo, não condiz com o que a
historiografia traz sobre o assunto: entre os espartanos,
estas relações, mais que incentivadas, eram um tanto
institucionalizadas e forçadas: estes homens, apartados
de suas famílias durante boa parte da vida, viviam em
acampamentos militares, exerciam sua sexualidade entre
si e frequentemente em direção aos meninos de oito,
nove anos, recém-chegados ao treinamento, ou aos
moços que já participavam dele há mais tempo – o que
torna a expressão original em inglês, “Boy-lovers”, ainda
mais incorreta do ponto de vista histórico, e merecedora
da desaprovação, e como apresentou ainda no século
XIX o intelectual alemão Karl Otfried Müller, na obra
pioneira Die Dorier (1824)177, as práticas pederastas
eram parte de um comportamento iniciatório inerente à
pré-história militar dos dórios, tendo se propagado
como ocorrência comum em diversas partes do mundo
grego, inclusive entre os peloponésios de Esparta. Há,
contudo, outros aspectos a serem levados em conta.
Conforme o próprio Miller observou em resposta
às críticas que sofreu, os espartanos tendiam a criticar
seus rivais atenienses; fontes nativas de Esparta são raras,
e conhecemos seus cidadãos, majoritariamente, através
do olhar de seus algozes áticos (e certamente foi essa a
referência que o autor conhecia quando elaborou sua
177
MÜLLER apud HALPERIN, 1990, p. 11.
344
obra), os quais os apresentam como hipócritas
moralistas, fanáticos religiosos e devotos de uma
existência excessivamente voltada para o dever e sem
liberdade. Logo, a opinião de Leônidas sobre o a prática
homoerótica178 ateniense seria muito mais indício de um
despeito simplório do que, efetivamente, afirmação da
inexistência das tais práticas entre os espartanos, para
quem a suposta efeminação ateniense (e nesse sentido, a
tradução brasileira foi extremamente feliz) era, aí sim,
motivo para censura.
O teor xenofóbico com o qual se constituía o “ser
cidadão grego”, tanto em uma pólis conservadora, como
Esparta, quanto numa liberal como a Atenas do período
democrático, permite notar que as acusações espartanas
178
Evitamos por ora o vocábulo “homossexual” por ser um signo
linguístico que não comporta uma expressão sexual presente entre os
gregos e por ser um conceito desenvolvido por e para a sociedade
moderna no século XIX, o que por si só já é objeto para o debate do
profissional de História em sala de aula. Não podemos considerar a
existência de uma homossexualidade entre os gregos, tal qual existe na
atualidade, devido ao que se chama hoje de opção ou orientação sexual.
Tal como afirma Luana Neres de Souza “a ideia de opção sexual entre
os atenienses, e entre os gregos no geral, não existia. Um homem não
era classificado por sua preferência por rapazes ou moças, mas por como
essa preferência era controlada e executada [...]” (SOUZA, 2013, p. 45).
Quando utilizamos o termo “homoerotismo” para os gregos estamos
direcionando o conceito para as práticas sexuais entre iguais, como por
exemplo o coito entre dois homens, e as conotações eróticas presentes
nessas práticas.
345
eram uma das formas que estas duas comunidades
políades tinham de se exaltar perante si. Além disso, há
também o fato de que as Guerras Médicas ocasionaram
uma expansão de poder dos atenienses sobre boa parte
do mundo grego, o que Maria Regina Candido179
chamou de “liderança unipolar”, que se traduziu em
uma hegemonia econômica e militar, alertando os
espartanos para uma possível ameaça ateniense em suas
áreas de influência.
Segundo Halperin180, desde o advento da história
enquanto conhecimento acadêmico, a área da
sexualidade foi mobilizada por ativistas que buscaram
apresentar a pederastia e as práticas homoeróticas entre
os gregos não como elas devem ter sido constituídas,
mas como eles (esses estudiosos) gostariam que fosse,
defendendo posicionamentos ideológicos. Por várias
décadas, “interesses acadêmicos e políticos pelo “amor
grego” desenvolveram-se lado a lado”181; no entanto, nas
últimas décadas do século XX começou-se a observar
uma amplitude maior de estudos preocupados mais com
o teor histórico do que ideológico do discurso, como foi
o caso do já citado Karl Müller, evitando dicotomizar a

179
CANDIDO, 2010. p. 7.
180
HALPERIN, 1990, p. 19.
181
HALPERIN, 1990, p. 11.
346
homossexualidade e promovendo uma reformulação das
imagens construídas sobre esta categoria linguística.
Nesse contexto, os quadrinhos de Frank Miller
apresentam as conotações políticas que os próprios
gregos deram às suas práticas sexuais, pois eles mesmos
as julgaram. Quando se referem àqueles que não fazem
parte de seu grupo como “efeminados”, este referente
não se associa estritamente aos signos sexuais, mas à falta
de virilidade para lidar com questões públicas
relacionadas à pólis, uma vez que a dimensão simbólica
do corpo associava-se, entre os gregos, a representações
sociais e políticas182. Portanto, havia críticas tanto do
lado dos espartanos, como é possível debater a partir do
texto de Miller, quanto do lado dos atenienses, que
utilizavam em sua literatura com conotação sexual
expressões como kusolakon (ânus espartano),
euryproktos (ânus largo), katapygon (nádegas abertas),
kinoumenos (agitar, agitado - no sentido sexual), binein
(penetrar ou ser penetrado, a depender do contexto),
laikastes (penetrador, fornicador), lakkoproktos (ânus-
tanque), entre outras, referindo-se, segundo Jam
Bremmer183 e Kenneth Dover184, a desprezos e ofensas
proferidos à passividade numa relação erótica sexual

182
Cf. SENNETT, 2003.
183
BREMMER, 1995, p. 11-26.
184
DOVER, 2007.
347
entre iguais. Isso não quer dizer que se tenha que
formular teorias sobre a atual homofobia entre os gregos,
pois isso seria cair num determinismo e simplismo
anacrônico e grosseiro. É possível discutir os significados
extra-sexuais presentes nas críticas à pederastia entre os
gregos, observando as conotações simbólicas da relação
entre os parceiros e também por isso não apresentar as
críticas antigas e modernas como mera coincidência,
uma vez que a moderna homofobia tem também
caracteres políticos e ideológicos, uma vez que o
erotismo pode ser compreendido, não apenas entre os
gregos, mas também no mundo moderno como uma
força de coesão social, como um senso de conjunto.
Entre os gregos, "eros era a vontade de unir-se a algo, a
força de manter a vida em movimento" 185, enquanto
que hoje o entendemos como um impulso de
aproximação que visa a uma satisfação não apenas com
conotação sexual, mas que provoca um bem estar
geral186.
A descrição que fizemos dos espartanos se
destinou a caracterizar a natureza homoerótica da obra
de Frank Miller, perceptível cada vez que um espartano
está em foco, representação que poderia, no limite,
caracterizar Os 300 de Esparta como uma obra da

185
SOUZA, 2013, p. 44.
186
Cf. BRANCO, 2004; BATAILLE, 1987.
348
literatura gay187, não como homofóbica. Há que se levar
em consideração também que a Graphic Novel não é,
somente, a linguagem escrita, mas sua associação às
imagens, ambas formando as metáforas visuais a que nos
referimos anteriormente.
Há, entretanto, uma exceção à beleza masculina
espartana: o traidor Efialtes. Heródoto o introduz de
modo breve: “málio188 de nascimento e filho de
Euridemo, veio procurá-lo [Xerxes] na esperança de
receber uma recompensa”189, mostrando aos invasores
uma rota secreta para cercar os defensores no Estreito
das Termópilas. Frank Miller optou por uma
abordagem diversa: fez dele espartano de nascimento,
mas deformado – e todos os recém-nascidos com
deformidades naquela cidade eram destruídos. E assim
ele se apresenta ao rei Leônidas: “O amor de minha mãe
fez meus pais fugirem de Esparta para eu não ser
eliminado. Meu pai se tornou um pastor... mas me
187
Embora esta discussão fuja ao escopo deste artigo, parece-nos
oportuno citar o postulado de Mark Lilly: “Finally, a word about the
term ‘gay men’s literature’. There is no consensus at the moment as to
its scope, and it can therefore include some or all of the following
categories Works that deal with homossexuality written by
heterosexuals; Works by closeted homosexuals without direct reference
to homosexuality, whose meaning is nevertheless informed by the
writer’s sexuality (...)”. LILLY, 1993, p.XV.
188
Natural da região de Mális, próxima às Termópilas.
189
HERÓDOTO. História. Livro VII, CCX. p. 870.
349
ensinou o caminho do guerreiro. Eu lhe imploro, bravo
rei, que me deixe redimir o nome de meu pai lutando
por você”190.
Esta criatura é a versão bizarra dos espartanos: usa
as mesmas roupas, mas enquanto nestes a capa e o tapa-
sexo exsudam sensualidade, nele causam horror; o
capacete, que tão bem emoldura os olhares dos
guerreiros quando prestes a atacar, no deforme sequer
lhe entra na cabeça, pendente que fica de um lado sobre
o cocuruto; corcunda, com os braços excessivamente
longos e grossos, sua forma não permite que lute na
falange, formação cerrada e disciplinada, e Leônidas não
acata o seu pedido. Contrariado e furioso, vai buscar sua
vingança traindo aqueles que o tinham recusado.
Efialtes é um ogro grotesco191, e a opção de Miller
por representá-lo assim ecoa antigos padrões helênicos: a
feiura de suas carnes transparece a de seu caráter, forma
de representação que encontra paradigma na mais
reverenciada literatura helênica, n’A Ilíada, de Homero:

190
MILLER, 2006, n/p.
191
“a figura do rebaixamento (bathos na retórica clássica), operado por
uma combinação insólita e exasperada de elementos heterogêneos, com
referência frequente a deslocamentos escandalosos de sentido, situações
absurdas, animalidade, partes baixas do corpo fezes e dejetos – por isso,
tida como fenômeno de desarmonia do gosto, ou disgusto, (...)
suscitando um mesmo padrão de reações: riso, horror, espanto,
repulsa”. SODRÉ; PAIVA, 2002, p. 17.
350
no Canto II, Tersites, um grego ousou questionar as
lideranças heroicas de sua própria gente, em clara
demonstração de indiscutível desonestidade, algo que o
poeta tornou bastante perceptível através de sua
descrição:

Era o mais feio de quantos no cerco de Troia se


achavam.
Pernas em arco, arrastava um dos pés; as espáduas,
recurvas,
se lhe caíam no peito, e, por cima dos ombros, em
ponta,
o crânio informe se erguia, onde raros cabelos
flutuavam192.

Percebe-se, pois, que o horrendo Efialtes não por acaso


tem essa aparência: ainda que influenciado pelo cinema
(um filme sobre os 300 de Esparta foi feito em 1962, e
impressionou muito o futuro autor), Frank Miller
registrou em sua obra antiquíssima perspectiva, trazendo
assim para o mundo moderno (tanto na cronologia
como na colonização de uma mídia até então intocada
pelo tema) visões éticas e estéticas cultivadas pelos gregos
ao longo de sua história.

192
HOMERO. A Ilíada, Canto II, 216-219, p. 83.
351
Alteridade e Barbárie
Num passado indeterminado, o príncipe herdeiro de um
império poderoso vagueia pelo ermo, explorando-o sob
ordens paternas, e em uma caverna repleta de joias e
tesouros, acha o monumento a uma figura antiga:
Conan. Imediatamente, Sua Alteza ordena ao seu vizir,
chamado Wazir, que busque nos documentos
encontrados a identidade daquele personagem, e ele,
embora a contragosto, apresenta o resultado de sua
pesquisa:

(...) entre os anos em que os oceanos tragaram a


Atlântida e as cidades resplandecentes, e o período em
que surgiram os filhos de Aryas (...) nessa era surgiu
Conan, o cimério, de cabelos negros, olhar sombrio, e
espada em punho. Um ladrão, salteador, matador,
dono de gigantesca melancolia e gigantesca jovialidade,
ele veio para esmagar os tronos adornados da Terra sob
as sandálias que calçavam seus pés.193

O trecho acima provém da releitura feita entre 2004 e


2005 do universo criado por Robert E. Howard em
1932 e popularizado através dos quadrinhos na década
de 1970. Escrita por Kurt Busiek e ilustrada por Cary
Nord, Thomas Yeates e Dave Stewart, representou um
retorno luxuoso à antiga saga dos quadrinhos, então

193
BUSIEK, 2005, p. 10-17.
352
distante da popularidade de que desfrutou até os anos
1980.
As palavras de Busiek e o traço dos desenhistas
construíram uma metáfora poderosa: o príncipe e sua
corte têm a aparência árabe, com véus, turbantes e afins,
situando a compreensão do leitor no período medieval
(mais precisamente durante o Califado Abássida,
quando os monarcas de Bagdá, de fato, enviaram
embaixadas para regiões distantes); logo, a era à qual se
referiam (ainda mais pela referência à Atlântida) haveria
de situar-se na mais recuada Antiguidade, um período
cuja memória se esvaíra no tempo. Corte e Conan
funcionam como um par dissonante: as vestes suntuosas
de uns e as peles do outro; o tédio principesco e a
vivacidade barbárica; a presença dos escravos e a luta
pela libertação dos cativos. Acima de tudo, o Príncipe e
o Bárbaro encarnam a oposição entre a civilização e a
barbárie.
Estamos em território marcado pela discussão
antiga: o bárbaro foi uma criação conceitual helênica,
termo polissêmico já em plena Antiguidade,
reinterpretado e rediscutido em diversas oportunidades,
mas conservando um aspecto essencial: a “divisão dos
povos e terras habitadas em dois conjuntos, nos quais,
na mais nítida forma de oposição, um tende a construir

353
o reflexo invertido do outro”194. Uma visão maniqueísta,
que supervalorizava o éthos do cidadão grego a partir da
crescente exclusão da diferença, inicialmente dentro da
pólis (a mulher, o grego estrangeiro, o meteco, o
escravo) e posteriormente o resto do mundo, cujos
habitantes são despossuídos de si mesmos (na forte e
precisa expressão de Catherine Peschanski) e reduzidos a
esboços de seres humanos.
A experiência das guerras contra os persas,
anteriormente referida, acentuou o sentimento de
oposição em relação aos estrangeiros: Heródoto
arquitetou uma detalhada geografia da barbárie, na qual:

(...) quanto mais distante (dos gregos), mais ignorante


(à vista dos gregos), até chegar-se às terras de gentes
que, de tão afastadas, eram a rigor mais bestas que
humanos. Todavia, ao descrever tais terras longínquas,
com seus costumes exóticos (...) os helenos descreviam
a si mesmos – seus valores, suas expectativas – e
partiam do exemplo negativo.195

Os cimérios foram incluídos nesta classificação:


Heródoto os situa no encontro da Europa com a Ásia,
entre o sul da Rússia e o Cáucaso196, nas fímbrias do que

194
CASSIN, LORAUX, PESCHANSKI, 1993, p.56, 57.
195
SOUZA NETO, 2013, p. 26.
196
HERÓDOTO, 2001, p. 440.
354
considerava sociedades organizadas. O personagem de
Robert E. Howard tem muito pouco a ver com essa
referência, pois suas características são mais célticas que,
propriamente, indo-europeias (Conan é um nome do
antigo irlandês). Logo, a chave de compreensão para o
personagem não reside na referência antiga incluída, e
sim na condição de antípoda do mundo civilizado que
sua condição de bárbaro evoca (tão bem elaboradas pelas
metáforas visuais construídas pelo texto e pelas imagens
de Conan, o cimério), um debate cujo alcance está longe
de se encerrar à esfera da Antiguidade. Em verdade,

chamaremos de bárbara toda cultura que não


disponha, em seu próprio cerne, de estruturas que lhe
permitam admitir, assimilar ou reconhecer outra
cultura – ou seja, a simples possibilidade de outra
forma de humanidade. Também chamaremos de
bárbaro, consequentemente, todo costume ou toda
prática que, qualquer que seja a cultura específica a que
pertença, tem como finalidade ou efeito negar uma
forma específica de existência humana197.

Os quadrinhos são um excelente local para discutir tais


exclusões, em especial aqueles que apelam para a
sátira198, pois como diziam os romanos: ridendo castigat

197
WOLFF, 2004, p. 41.
198
Cf VILELA, 2005, p. 122.
355
mores (o riso purifica os costumes); neste campo, os
livros da série Asterix, de autoria de René Goscinny
(texto) e Albert Uderzo (desenho), são paradigmáticos:
amplamente conhecidos e há muito utilizados no ensino
de História199, situam-se na Antiguidade, no ano 50
a.C., quando Júlio César já havia conquistado toda
Gália, com exceção de uma pequena aldeia ao norte, na
Armórica, onde seus habitantes resistem aos invasores
graças à poção mágica preparada pelo seu druida. A
situação cronológico-temporal permite ao professor de
História Antiga múltiplas utilizações em sala de aula, e
mais além, pois sua verve e humor sarcástico
comumente fazem referência ao tempo vivido,

199
Uma das utilizações mais recuadas das revistas de Asterix no Ensino
de História teve como autora Zélia Lopes da Silva, e foi publicada em
1985. Sobre os princípios que nortearam sua experiência, comentou: “o
desafio de passar aos alunos a ideia de que a História é uma ciência que
trata da vida do homem e não de coisas mortas, ideia difundida pelas
abordagens positivistas que transformam a História em ‘depósito de
coisas velhas’, sem utilidade prática e que serve apenas como ‘ilustração’
(...) procurávamos trabalhar o pressuposto de que a história do homem
é a história de sua luta tendo em vista o atendimento de suas
necessidades vitais e de subsistência, buscando a partir de tal
pressuposição estabelecer a ligação entre o passado histórico e o
momento atual (...) a operacionalização de tal pressuposto passava por
um entendimento da História que apontava para o resgate do cotidiano
dos homens: suas lutas, sonhos e desejos”. SILVA, 1985, p. 238, 239.
356
estabelecendo pontes de compreensão que precisam ser
exploradas.
Não poucas vezes os quadrinhos de Asterix
trazem a discussão da civilização: os romanos afirmam
trazer junto às legiões as benesses do modo de vida
civilizado, como a arquitetura, a economia
monetarizada, os costumes refinados, e aos seus olhos os
gauleses só tem a ganhar com a submissão – a
perspectiva tradicional do Império como civilizador dos
bárbaros, criada na Antiguidade para justificar a
conquista militar. Sob esta ótica, os irredutíveis
habitantes da aldeia armoricana, por sua própria
condição de irredutíveis, são o tempo todo chamados de
bárbaros, com toda a carga conceitual que esta palavra
carrega. Ainda assim, as metáforas visuais elaboradas
pelos autores descerram um horizonte cultural mais
complexo, pois a resistência à submissão não é vista
como manifestação da barbárie, mas antes como
manutenção de um modus vivendi, direito inalienável à
autodeterminação, à busca pela felicidade e à
perseverança diante de um poder muito superior – seja a
Roma do primeiro século a.C. ou os Estados Unidos no
século XX. A maioria da juventude francesa da geração
de Goscinny e Uderzo conheceu os clássicos latinos na
escola, principalmente os Comentários sobre a Guerra
Gálica, escritos por Júlio César; portanto, é possível que
357
este tenha sido um dos pontos basilares da produção
desses autores, que partindo desse referencial da
literatura clássica, não se abstiveram em discutir as
questões mais espinhosas que os cercavam – sempre com
extremo bom humor.
As diferenças culturais são frequentemente
trabalhadas nas revistas. Às vezes, basta os personagens
trafegarem em outra cidade gaulesa para que os
costumes, os sotaques e os valores sejam confrontados;
mas é nas viagens para outros “países”200 que seu humor
se manifesta de maneira mais ferina: tomemos como
exemplo Asterix nos Jogos Olímpicos (Astérix aux Jeux
olympiques), décimo-segundo álbum da série, publicado
em 1968. Os gauleses vão à Grécia participar das
Olimpíadas, um ambiente recheado de referências à
superioridade cultural nativa, como bem se percebe
durante uma reunião do Bulentérion, o senado
olímpico, quando seu presidente, Tiragóstenes diz:

(...) se não dermos a esses romanos bárbaros a ocasião


de conquistar uma palma, nossos jogos não
interessarão mais aos estrangeiros...e como diz meu
primo Xistossomós, sem visitantes, nada de dinheiro, e

200
Os autores, propositalmente, relacionam as regiões antigas aos países
que ocupam seu território atualmente – a Bretanha (Inglaterra), a
Helvécia (Suíça), a Hispânia (Espanha) – num jogo que enriquece o
diálogo entre o tempo vivido e o passado antigo.
358
nada de negócios! Nossos belos monumentos cairão
em ruínas, sem interessar mais a ninguém.201

Nessa fala, a situação se inverte, e são os romanos


conquistadores que são percebidos como bárbaros pelos
conquistados, uma abordagem que traz ecos de
discussões travadas desde a Antiguidade202, e que
certamente tem lugar no ensino da História.
Salientar a primazia dos gregos sobre os romanos,
todavia, significaria, somente, trocar um superior pelo
outro (embora a simples adjetivação de ‘bárbaro’ em
relação aos romanos já seja bastante atraente); desta
forma, na própria revista ocorre uma crítica a essa
concepção, quando Abracurcix, o chefe dos gauleses
irredutíveis, se dirige aos seus compatriotas na chegada a
Atenas: “Bem, rapazes, representamos a Gália! Sejamos
dignos dela! Não vamos chamar a atenção e nem caçoar
dos nativos, apesar deles não terem nosso passado
glorioso e nossa cultura”203.

201
UDERZO,; GOSCINNY, 1985, p. 41.
202
“(...) quando os homens submetidos a nossas ordens pertencem a
uma raça que, além de civilizada, passa por ser o próprio berço da
civilização (humanitas), sem a menor dúvida eles tem o supremo direito
de receber de nós o que deles recebemos.” Cícero apud HARTOG,
2003, p. 119.
203
UDERZO; GOSCINNY, 1985, p. 22.
359
Mas esta fala também extravasa concepções
etnocêntricas de mundo, satirizando o conhecido
chauvinismo francês e o protagonismo com o qual
compreendem sua herança cultural. As metáforas criadas
pelos autores se manifestam em camadas, situadas ao
longo do álbum, fragmentadas entre um diálogo e outro,
uma situação e outra, disfarçadas sob a capa dos
anacronismos propositais e do riso, oportunidades
ocultas que o professor de História Antiga pode explorar
junto aos seus educandos, num contexto de construção
do conhecimento histórico – um dos objetivos primeiros
expressados nesse artigo.

Conclusão
Em suma, percebemos que as metáforas visuais
conjuradas na arte sequencial proporcionam um rico
local de discussão para o Ensino de História. Em suas
formas mais palatáveis (ou comerciais) ou em seus
exemplos mais autorais, ilustram conceitos pertinentes à
formação do conhecimento histórico, e cabe ao
profissional preparar-se metodológica e teoricamente
para compreendê-las, ou como bem colocou Paulo
Ramos, “ler quadrinhos é ler sua linguagem. Dominá-la,
mesmo que em seus conceitos mais básicos, é condição

360
para a plena compreensão da história e para a aplicação
dos quadrinhos em sala de aula e em pesquisas.”204

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365
366
AS DUAS FACES DA MOEDA:
CONSIDERAÇÕES SOBRE A
NUMISMÁTICA ROMANA PARA AS
PESQUISAS HISTÓRICAS
Carlos Eduardo da Costa Campos205

Diversas são as tipologias documentais às quais o


pesquisador poder utilizar-se no processo de operação
historiográfico. Destaca-se que cada documento usado
traz consigo uma visão de mundo pertencente a um
grupo e detém uma historicidade, a qual é passível de ser
analisada pelos pesquisadores. Quando pensamos em
documentação para o estudo das sociedades antigas
percebemos que não há essa escassez de indícios
205
Carlos Eduardo da Costa Campos integra os Grupo de Pesquisa
ATRIVM-UFRJ, GEMAM- UFSM e LECA/Poiema - UFPel. O
referido pesquisador é graduado pela UERJ. Campos também é mestre
e doutorando em História (com bolsa CAPES), na linha de pesquisa
Política e Cultura, do Programa de Pós-Graduação em História da
UERJ, sob supervisão das Professoras Doutoras Edna Maria dos Santos
– UERJ e Regina M. da Cunha Bustamante - UFRJ. Campos possui
estágios supervisionados de pesquisa na Ecole Francaise D'Athenes
(2012) e na Universidade de Coimbra (nos anos de 2012 e 2014), além
da atividade de pesquisa no Centro Arqueológico de Saguntum /
Valência- Espanha (2012). As áreas de atuação do pesquisador são:
Política, Religião e Magia no Principado de Augusto; Colégios
Sacerdotais Romanos; Teoria e Metodologia para o ensino de História.
367
históricos como, insistentemente, até mesmo de forma
perversa, é disseminado pelo público não especializado
em Estudos da Antiguidade. O que existe é uma
quantidade difusa, diversificada e complexa a qual não
reside apenas no âmbito da Literatura Antiga. Vale
mencionar os vários esforços internacionais para a
disponibilização desses materiais arqueológicos,
numismáticos e epigráficos em bases digitais, gratuitos e
acessíveis para a maioria da população mundial.
Entretanto, o que necessitamos é de uma rígida atenção
metodológica e com base interdisciplinar, para
aproveitarmos os dados contidos nesses suportes para a
construção de uma pesquisa.
Entre essa ampla gama documental, apontamos o
valor do estudo sobre a moeda por ela propiciar a
compreensão de questões inerentes à dinâmica social de
períodos antigos, bem como dos atuais206. Assim,
frisamos que, em geral, a produção de moedas está
ligada a alguma forma de poder e carrega um conjunto
de imagens e inscrições, as quais, na maioria dos casos,
são historicamente documentadas. O consumo (uso) e a
circulação das moedas, normalmente, envolvem vários
níveis da sociedade e também podem ser rastreados pelos
pesquisadores.

206
É importante frisar que em nossa abordagem partimos da análise
metodológica das moedas por um olhar histórico sobre esse objeto.
368
Na visão de Jonathan Williams e Andrew Meadows
(2006, p.173-182) essa área de pesquisa é muito antiga e
esteve, num primeiro momento, no interior das análises
sobre as artes. Tanto, que no período do Renascimento,
as moedas passaram a serem apreciadas e coletadas junto
às gemas, medalhas, estátuas e outros objetos
relacionados com a Antiguidade. Os pesquisadores
pontuam que o campo apresentou avanços
significativos, principalmente, a partir das novas técnicas
e métodos arqueológicos usados para a detecção e
escavação de sítios arqueológicos, no decorrer dos
séculos XX e XXI. Logo, as moedas passaram a ser
refletidas por seus valores econômicos, políticos, sociais
e configurando-se como uma área de pesquisa científica
denominada de numismática207. Esse campo necessita do
diálogo interdisciplinar com outras áreas do saber como:
a história, a metrologia, a epigrafia, a filologia, a

207
Podemos compreender a numismática como uma ciência que estuda
as moedas, papéis-moedas, medalhas e outros objetos levando em
consideração os seus elementos formais e o funcionamento dos mesmos
no meio social. Para o nosso recorte temporal, em específico,
concebemos a numismática como um saber que atua sobre os objetos
metálicos e refletimos as suas configurações impressas no pedaço de
metal, como em sua composição, valores econômicos, circulação e,
principalmente, a comunicação que as mesmas veiculavam para as
sociedades antigas, bem como para as atuais (ASINS; ALONSO;
MORÁN; MINÓN, 2009, p.133; CARLAN; FUNARI, 2012, p.19-
28).
369
heráldica, a iconografia, a geografia, a economia, a
política, assim como noções dos processos de
metalurgia e de história da arte, entre outros campos
que podem ser abordados. Através dessa perspectiva de
análise interdiscisplinar observaremos, com maior
detalhe, o complexo conjunto da imagem, texto,
suporte, contexto de produção e circularidade, os quais
se combinam e formam uma composição essencial para
o pesquisador. Devido a essa interação, as moedas são
fontes vitais para as pesquisas. Afinal, as moedas se
movem dentro das sociedades e formam uma teia entre
as estruturas de uma sociedade e a agência do indivíduo.
Entre as ramificações desse campo de pesquisa,
nosso diálogo é realizado com a numismática romana,
cujas preocupações estão centradas nas moedas
produzidas por Roma, no decorrer da República e do
Império (MEADOWS, 2009, p. 48-58). Ressaltamos
que essa área de reflexão possui importantes publicações
realizadas ao longo do século XX. Entre tais obras
indicamos os catálogos elaborados por Herbert A.
Grüber, em Coins of the Roman Republic in the British
Museum, em três volumes e publicado 1910; assim
como as pesquisas de Harold Mattingly, em Coins of
the Roman Empire in the British Museum, seis volumes
e publicada em 1970; não deixando de mencionar o
numismata Michael H. Crawford, em Roman

370
Republican Coinage, editado em dois volumes, no ano
de 1974; também citando os esforços do pesquisador C.
H. V. Sutherland e R. A. G. Carson, nos livros The
Roman Imperial Coinage, os quais foram elaborados em
dez volumes, entre os anos de 1923–94; para encerrar
citamos Robert A. G. Carson, em Coins of the Roman
Empire, publicado em 1990. Esse amplo conjunto de
fontes e métodos, aqui citados, fornecem as bases para
novas interpretações sobre a circulação de riquezas,
ideias, práticas culturais e poderes em Roma.

Breve análise sobre a inserção e denominações de


moedas na República Romana
Para Michael H. Crawford (1985, p.25-51) as
evidências arqueológicas de Roma indicam que até
meados do século IV A.E.C. não havia emissões
monetárias na região. Para Crawford, isso se deve à
própria política romana sem tributações sobre as demais
cidades itálicas que eram suas aliadas. Esse cenário veio a
modificar-se em finais do século IV e no decorrer do
século III A.E.C., pois autores como Michael H.
Crawford (1974), Christopher Howgego (1995) e
Charles Hedrick JR. (2006, p.126-143) argumentam
que a República Romana passou a adotar práticas de
cunhagem através de suas interações culturais com
gregos e etruscos. Ademais, apontamos que o uso da

371
moeda como meio de troca tornou-se onipresente no
mundo romano, principalmente após a Segunda Guerra
Púnica (III A.E.C.) pelo processo de expansão
mediterrâneo. Possivelmente, tal escolha se deu pela
moeda ser um elemento pensado e organizado a partir
de um tipo de metal que corresponde a uma medida e
carrega uma forma a qual facilita as trocas.
Pedro Paulo A. Funari e Claudio U. Carlan
(2012, p.44-49) ressaltam que esse processo de
produção das moedas também necessitou de um aparato
logístico, de práticas e atividades que giravam em torno
de oficinas monetárias. Logo, o local de fabricação
deveria ser especializado para a formulação das mesmas.
Andrew Meadows (2009, p.48-58) evidencia que tais
oficinas necessitavam da autorização dos governantes
romanos e detinham peculiaridades nos trabalhos de
seus artesãos, os quais podem possibilitar aos
pesquisadores rastrearem a distribuição e a circulação
desses objetos, nos dias de hoje. Funari e Carlan
complementam Meadows ao ressaltarem que havia dois
tipos de oficinas: 1) as que eram consideradas como
pequenos ateliês e 2) as oficinas centrais. O primeiro
funcionava em casas ou edifícios simples, com
instalações e equipes modestas. O segundo em prédios
imponentes, em lugares centrais, com uma ampla gama
de artesãos e instrumentos para a produção. Em Roma a

372
officina monetae (oficina monetária) situava-se no
Capitólio, ao lado do templo da deusa Juno Moneta.
Funari e Carlan elucidam que “O próprio nome,
Moneta, está na origem do nosso termo “moeda” e
deriva da palavra latina “moneo”” (CARLAN;
FUNARI, 2012, p.44-49). Assim, vale mencionar que o
termo latino moneo significa avisar, instruir e lembrar,
por exemplo. Logo, moneta, enquanto divindade pode
ser compreendida como aquela que nos traz a memória
(LEWIS; SHORT, 1891, p.1161). No que tange essa
relação com as moedas podemos pensar que as mesmas
também trazem à memória dos homens informações
sobre os seus pesos, os valores e as suas medidas.
Indicamos que tais pedaços metálicos eram feitos
em larga escala, pois seguiam um molde com o intuito
de ser semelhantes, ou seja, havia um protótipo e, por
conseguinte, as mesmas deviam ser permutáveis e
duradouras no sistema comercial. Evidenciamos que o
processo de cunhagem romano perpassou por
adaptabilidades, transformações e (re)padronizações no
período republicano e imperial, o que possibilitou ao
mesmo formar um extenso vestígio documental
numismático que pode ser detectado em vários locais
sob domínio de Roma.
Segundo Howgego (1995, p.25-38), em Roma
houve uma introdução do sistema de denominações

373
monetárias com base no denarius (denário), no período
da Segunda Guerra Púnica (211 A.E.C.) e a sua
circulação durou muitos séculos, até as reformas de
Diocleciano. Seu nome derivava dos vocábulos deni
(cada dez) e aes (bronze) e era cunhada em prata. Desse
modo o mesmo equivalia a dez asses de bronze. No
decorrer do tempo algumas mudanças importantes
foram efetuadas, sendo a mais notável o retarifamento
do denário de dez para dezesseis asses em 146 A.E.C.
(ASINS; ALONSO; MORÁN; MINÓN, 2009, p.64).
No que tange ao as208(asses) pontuamos que ele deteve
uma longa circularidade na sociedade romana. Essa
moeda entrou em circulação no começo do século III
A.E.C., pelo processo de derramamento de metal
fundido (bronze) e depois passando para a cunhagem.
Teve seu uso, provavelmente, até finais do século III
E.C.. Era uma unidade de medida que detinha
múltiplos como o denário (10), quinquesse (5),
quadrusse (4) tresse (3), dupôndio (2). Também possuía
em seus padrões de valoração divisores como: semisse
(1/2), triente (1/3), quadrante (1/4), sextante (1/6),
onça (1/12), semúncia (1/24) (SEAR, 2000, p.17-26).
Ainda no bojo do período republicano
destacamos o sestércio que era uma moeda de prata e

208
A mesma levava a marca V impressa para indicar a sua equivalência
com cinco asses.
374
equivalente a dois asses e meio. Valia assim ¼ de denário
ou meio quinário. Com as reformas de Augusto209, o
sestércio (sestertius) passou a ser cunhado em bronze no
novo sistema de unidade asse até o século III E.C..
Ainda nesse contexto indicamos o quinário (quinarius)
que era feito de prata e foi intensamente cunhado no
século I A.E.C., o mesmo equivalia a cinco asses, ou
seja, a metade do denário. Quanto ao dupôndio
(dupondius) podemos ressaltar que o mesmo era feito de
bronze ou latão e equivalia ao dobro do as. Mediante
análise etimológica verificamos que essa moeda deriva
das palavras latinas duo (dois) e pondus (peso). Durante
o período republicano é comum encontrarmos na
mesma uma marca impressa indicando o valor II. Outra
209
Para Luiz Aranha Corrêa do Lago e Vincent Lannoye, Augusto (27
A.E.C a 14 E.C.) empreendeu uma modificação no sistema monetário
da época, mantendo o denário e introduzindo a cunhagem regular do
aureus de ouro, que seria equivalente a 25 denários de prata, elemento
esse que antes era cunhado apenas de forma esporádica. Também fixou
o sistema das moedas a partir do as. Promoveu a emissão do sestércio
equivalente a ¼ de denário, e suas sub-divisões. Charles Hedrick pontua
que os governantes romanos em virtude das práticas comerciais
influenciaram a qualidade e o peso das cunhagens, como no caso de
Augusto. Afinal as diversas cidades deveriam atingir o uso de moedas
em consonância com o padrão do poder dominante em sua região. Na
visão de Hedrick, o estudo da História das Moedas pode, por essa razão,
ser periodizado de acordo com o sistema de cunhagem dominante e
assim desvelando fatos políticos (LAGO, 2004, p.14-5; HEDRICK,
2006, p. 126-143; LANNOYE, 2011, p.64-68).
375
moeda que devemos destacar e que detiveram uma
circulação importante em Roma foi o áureo (aureus). A
mesma era feita de ouro e suas primeiras emissões são
datadas como do século III A.E.C. Há uma estimativa
que as mesmas possuíam marcas em seu campo metálico
indicando três valores, os quais se acreditam que seja o
equivalente a sessenta, quarenta e vinte asses (ASINS;
ALONSO; MORÁN; MINÓN, 2009, p.35-76-154-
162; SEAR, 2000, p.17-26).
Essa incorporação das moedas nas múltiplas
cidades romanas ocorria para trocas de diversos
tipos210como: as aquisições de artefatos de luxo,
cotidianos, produtos agrícolas e alimentícios, sem nos
esquecer de sua funcionalidade para a cobrança de
impostos, remunerações dos militares, créditos e até
mesmo os pagamentos e/ou jogos envolvendo a
prostituição.
Em síntese, compreendemos que o uso da moeda
no mundo romano era multifacetado e atendia a várias
funções básicas, tais como: 1) ser o ponto de
intermediação para as trocas; 2) ser passível de agilidade
no transporte do mesmo; 3) conferir valor para um
objeto, bem como forma de unidade de contagem; 4)

210
Não deixando de assinalar que, em muitos períodos, o uso das
moedas também conviveu com outras formas de trocas comerciais
locais, assim permitindo a sua acomodação e incorporação.
376
reserva de valor211, também servindo como expressão de
riqueza; 5) dispositivo de pagamentos para diversas
finalidades profanas e sagradas; 6) forma de comunicar
concepções, imagens e valores dos dirigentes sociais
(POLANYI, 1968, p.175-203; LOPES, 1998, p.19;
CARLAN; FUNARI, 2012, p.19-28). Nesse sentido o
uso das moedas apresenta um raio de ação amplo na
sociedade, por seu alcance também nas áreas imperiais.
Nesse texto o enfoque consiste na moeda como um

211
Em alguns casos as reservas desses valores podem formar um tesouro
que é uma coleção de moedas que foram enterradas, provavelmente em
panelas ou em bolsas. As moedas eram enterradas por questões de
segurança. Charles Hedrick JR. argumenta que pode haver vários
motivos para manter o valor seguro: os comerciantes podiam enterrar
seus recursos para preservá-los dos ladrões; ladrões poderiam também
enterrar seu objeto furtado para preservar-se de possíveis apreensões; o
enterramento poderia ser uma forma de preservar os recursos de forma
secreta e etc. Hedrick prossegue argumentando que esse tesouro que os
arqueólogos descobrem, em nossa atualidade, são depósitos que os
proprietários não voltaram ao local para levar. Para Hedrick isso era
mais comum de ocorrer em períodos que datam de ações generalizadas
de violência e revolta, por exemplo, quando uma cidade está sendo
invadida por um exército. Em muitos casos esses proprietários não
recuperaram seus recursos, pois não sobreviveram à destruição da cidade
ou foram escravizados, como pode ser cotejado arqueologicamente a
data aproximada do enterramento junto a um episódio histórico da
cidade. Há também possibilidades de esquecimento do local ou de
morte do proprietário e assim a falta de informação sobre o local para
encontrar os recursos, porém para o autor essas são questões mais
incomuns (HEDRICK JR, 2006, p. 126-143).
377
veículo de comunicação de imagens e poder por Otávio
Augusto.

Moedas e Imagens: Iconografia e análise semiótica


para as configurações de poder
A análise sobre as cunhagens é interessante para o
historiador, pois, lhe permite aprender com as moedas
fatos sobre o passado, que são desconhecidos de outra
maneira. Não devemos esquecer que as moedas são,
indubitavelmente, objetos arqueológicos e assim
possuem singularidades que devem ser levadas em
consideração na hora de seu tratamento metodológico
(MATTINGLY,1932, p. 74-78). Logo, elas necessitam
ser interpretadas em conjunto com outros dados para
minimizarmos as possibilidades de erros. Nesse sentido,
as moedas devem ser entendidas como fontes primárias e
de caráter contemporâneo ao tema estudado.
Principalmente, por seu testemunho não ser
necessariamente imparcial, com elas podemos acessar
vestígios dos grandes líderes de uma sociedade que
circularam em um território.
Mediante o exposto, percebemos que o estudo
numismático nos possibilita entender as ações dos
dirigentes políticos de Roma. O estudo das moedas
atesta eventos da história militar e política da
antiguidade em, pelo menos, dois aspectos importantes.

378
Primeiro, eles próprios são as consequências materiais
das decisões políticas do percentual emitido de moedas
por parte das cidades, impérios e outros tipos de
comunidades. Afinal, as emissões não acontecem por um
simples acidente. Em segundo lugar, as moedas e suas
imagens podem fornecer informações sobre eventos
históricos, das práticas culturais e de elementos
identitários.
Um procedimento que devemos tomar para
construir nosso corpus documental é o estabelecimento
do catálogo de moedas o qual iremos empregar em nossa
pesquisa. Para tanto, nesse texto recorremos às moedas
que foram sistematizadas pelo catálogo C. H. V.
Sutherland e R. A. G. Carson, em The Roman Imperial
Coinage, em seus 10 volumes, entre os anos de 1923–
94. Desse modo, através de leituras das edições devemos
ter cuidados com as seleções dos objetos de acordo com
o nosso recorte espaço-temporal para não gerar conflitos
em nossos resultados. Assim, o pesquisador deve iniciar
a formulação de sua prancha de análises212, as quais
podem ser numeradas tomando como base perspectivas

212
As pranchas, aqui, foram desenvolvidas com base em: CAMPOS,
Carlos Eduardo da Costa Campos. A estrutura de atitudes e referências
do imperialismo romano em Sagunto (II a.C. – I d.C.). Dissertação
apresentada ao Programa de Pós Graduação em História, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, para obtenção do título de
Mestre em História, 2013.
379
cronológicas, temáticas ou por convergência de suportes,
por exemplo. Vale mencionar que em nossas pranchas
iniciamos com a inserção das imagens, primeiramente,
de forma que as inscrições contidas no anverso e reverso
sejam visualizadas. Em seguida passamos para os
mecanismos de identificação, assim analisando: tipo de
moeda, período, região, o material utilizado na sua
composição, as dimensões físicas das mesmas e quantas
recorrências dos objetos foram detectadas. A segunda e
terceira fase de análise apresentam as imagens e as
inscrições contidas nas moedas, assim separando as
descrições referentes a cada campo, ou seja, do anverso e
do reverso. A quarta parte da prancha consiste em inserir
a referência de obras que abordem sobre esse objeto
(vide anexo 1).
Entre as possibilidades de análises que a
numismática detém em seu campo, uma área que vem
despertando o interesse dos estudiosos contemporâneos
é a iconografia, por ser um valioso instrumento de
pesquisa. Segundo Vagner Carvalheiro Porto (2007,
p.92-100) o estudo da moeda possibilita-nos conhecer
elementos da propaganda política e dos cultos religiosos,
os quais intensamente permearam as sociedades antigas.
Para empregarmos esse eixo de reflexão necessitamos
recorrer ao uso de um crítico aparato metodológico que
permita maior embasamento e fundamentação de nosso

380
horizonte de pensamento sobre os elementos imagéticos.
Como a arqueóloga Carolina Kesser Barcellos Dias
(2009, p.38-40) ressalta: “[...] a imagem não é simples
ilustração do discurso oral ou escrito, nem uma
reprodução fotográfica do real, ela é uma construção
[...]”. Endossamos os apontamentos da autora, com uma
de suas matrizes de análise, isto é, Jean Pierre Vernant
(1984). O referido pesquisador frisa que a imagem é
uma cultura flexível, a qual formula uma linguagem que
detém arbitrariedades e intencionalidades.
Ao pensarmos a imagem como uma construção
devemos perceber que ela é formulada sistematicamente
e, com o apoio da análise semiótica, poderemos observar
a lógica contida na elaboração de cada imagem e no seu
conjunto. Afinal, convergimos com François Lissarrague
(1990), Claude Bérard (1983) e Vagner Carvalheiro
Porto (2007, p.92-100) que toda imagem contém um
repertório de signos e para conhecermos os significados
da mesma, torna-se necessário observar as unidades
mínimas de forma articulada com o todo. Afinal,
sabemos que os itens contidos nas imagens formam
discursos, os quais detêm significado e profundidade em
sua historicidade.
Complementamos o viés de análises de
Lissarrague e Bérard, com os estudos da numismata
Maria Caccamo Caltabiano (1998,p.33-40). A

381
numismata argumenta que a junção da imagem com a
legenda forma um importante emaranhado discursivo,
os quais são vitais na construção de uma análise
iconográfica pelo campo numismático. Dessa forma, a
imagem possui um valor histórico e social, o qual
devemos explorar em nossas pesquisas. Para
estabelecermos o nosso caminho de reflexão iconográfico
optamos pela proposta de Christopher Howgego (1995,
p.39-60). Nossa seleção deve-se ao referido numismata
estabelecer no livro Ancient History from Coins, um
olhar atento para as possibilidades de leituras que as
imagens e legendas das moedas constituem para os
pesquisadores.

Estudo de Caso sobre as Moedas Augustanas


Nos debates atuais sobre a Antiguidade podemos ver a
República Romana sendo acentuadamente abordada
pela historiografia, sobretudo, como um exemplo para
os homens atuais, no que concerne aos modelos de
organização cívica. Para Claude Nicolet, essa perenidade
romana pelas diversas temporalidades deve-se à
capacidade dessa sociedade em: “[...] fascinar e a obcecar
o inconsciente coletivo de muitos políticos”. Nicolet
prossegue apontando que tal encantamento residiria na
forma como os romanos conseguiram “[...] conquistar,
pacificar e unificar um espaço gigantesco – um terço do
382
mundo (mundo conhecido)”. Logo, “[...] tanto na
grandeza como na sua depravação, Roma é o modelo
admirado ou temido. Oferece à humanidade a panóplia
completa do cidadão”. Desse modo, tais discursos
desvelam uma gama de atributos culturais que
configuraram Roma como uma das matrizes culturais da
Europa e de seus sistemas político-sociais (NICOLET,
1981, p.21).
Um tema recorrente na historiografia romana e
que consideramos instigante são as medidas do
aristocrata romano Caio Júlio César Otaviano Augusto.
Todavia, nos indagamos sobre quais foram os motivos
para essa rememoração em larga escala sobre o período
de governo e a imagem do próprio Otávio? Um ato que
no mínimo gera curiosidade e instiga os pesquisadores
sobre o tema. Observamos que nos eventos sobre os dois
milênios da morte de Augusto foi a celebração de sua
imagem, como o consolidador da pax romana e salvador
dos cidadãos. Ao recorrermos às possíveis matrizes dessa
argumentação, podemos indicar o historiógrafo clássico
Veleio de Patérculo. Tal autor mencionou que no século
I A.E.C. “[...] o destino salvífico para a República e para
a terra inteira reclamavam [Augusto] como o
fundamento e protetor em nome de Roma” (História
Romana, II, 60, 1). Logo, nesse discurso reside uma
representação de Otávio como perspicaz político, o qual

383
conseguiu revitalizar Roma de uma vasta crise sócio-
política, na qual a República havia agonizado em meio a
sucessivas guerras civis, no século I A.E.C..
Augusto apresenta-se em muitos textos literários
latinos e gregos como um “modelo” de bom governante,
exemplum, sendo o responsável por manter a ordem
social, tanto que ainda hoje o mesmo se configura como
um paradigma para a grande maioria das sociedades
ocidentais (ALBADORNOZ, 2014, p. 02-11;
CAMPOS, 2014; GOLDSWORTHY, 2014;
RICHARDSON, 2012; WILLIAMS, 2014). O
historiador Adrian Goldsworthy frisa que não há como
se estudar a história romana sem perpassar pela figura de
Augusto e do seu legado para o Mundo Ocidental.
Goldsworthy em Augustus - First Emperor of Rome
(2014, p.1-5), também nos aponta que há uma
complexidade na figura augustana, por sua capacidade
de adaptar-se aos mais variados contextos sociais para
assegurar-se ao poder. Nesse caso, indicamos as próprias
nomeações de Augusto, as quais denotam as suas
interconexões sociais e transformações políticas.
Percebemos que há um consenso acadêmico, por chamar
o primeiro imperador de Otávio, no período
compreendido entre 63-44 A.E.C.; de Otaviano após o
processo de adoção elaborado por Júlio César, assim
delimitando-se entre 44 -27 A.E.C. e de Augusto a

384
partir 27 A.E.C. até sua morte em 14 E.C. devido ao
epíteto religioso que o mesmo assumiu. Tal assertiva
demonstra as modificações político-religiosas que se
conectavam ao próprio nome do aristocrata, as quais
ratificavam o seu poder diante de toda sociedade
romana. Afinal, na Roma Antiga pertencer a uma gens
(família) é integrar uma densa rede de sociabilidades.
Convergimos com Andrew Wallace Hadrill, no
livro Augustan Rome (2012) ao argumentarmos que
Augusto necessitou de um amplo jogo de poder para
enfrentar as tensões que o mesmo encontrou após a
morte de Júlio César. Pois, naquele contexto havia dois
competidores em potencial, na busca pelo controle
político de Roma: o segundo homem em comando das
tropas do falecido dictator (ditador)213 e que era
consul214 nesse mesmo ano, Marco Antônio; já o outro

213
A partir dos escritos de Peter Jones, percebemos que a ditadura seria
uma função atribuída a um cidadão romano proeminente na
magistratura, no contexto de uma crise política, para regularização da
ordem social e posterior devolução do poder às instituições
(JONES,1997, p.9-10).
214
Os consules eram magistrados romanos eleitos anualmente, em par, e
com igualdade de direitos e poderes. O cargo de consul era de grande
prestígio e poder político dentro do cursus honorum, ocupando o ápice
da hierarquia das magistraturas. As suas atribuições variaram de acordo
com cada contexto histórico. Entretanto, podemos pontuar um
consenso acadêmico de que, durante as diversas fases da Res Publica,
aos consules foi atribuído o controle político-militar de Roma, sendo os
385
era o sobrinho-neto, que foi adotado por meio do
testamento e assumiu com isso o nome e a fortuna de
Júlio Cesar, isto é, Augusto. As disputas de ambos
tornaram-se uma batalha duradoura pela ampliação do
domínio pessoal.
Tal conflito terminou favoravelmente para o filho
de Júlio César, pois com o apoio de suas redes de
sociabilidade, como Agripa, o mesmo conseguiu
derrotar Marco Antônio e Cleópatra no épico confronto
intitulado de Batalha do Ácio, a qual ocorreu em 31
A.E.C.. Com isso, Augusto ampliou seu jogo político
para a implantação de sua nova ordem social, ou seja, a
formulação de uma complexa e interconectada rede de
sociabilidade. Desse modo, partilhamos do pensamento
de que “Nenhum homem é uma ilha na sua totalidade,
cada homem é um pedaço do continente”, ao
parafrasearmos o poeta John Donne, em Meditações
(2007). Com essa reflexão, postulamos que um sujeito
apartado do seu meio social é falacioso, assim como
devemos repensar as figuras dos heróis e/ou grandes
líderes por si, como Augusto, pois essa perspectiva
também nos parece dotada de certo equívoco. Os
mesmos precisam de apoio e aceitação na sua sociedade.
De acordo com Edward Carr, em O que é a História?

mesmos os detentores do poder de imperium sobre os cidadãos romanos


(HUMBERT, 1877-1919, p.1455-1466).
386
(2002), um sujeito desvinculado da vida coletiva seria
incapaz de falar, de se projetar de forma política e social.
Afinal, o desenvolvimento da comunidade e o do
indivíduo encontram-se atrelados e condicionam-se um
ao outro. Nesse sentido, nos instiga compreender os
dispositivos utilizados por Augusto, os quais foram
capazes de fazer os cidadãos romanos conferirem a ele a
potestas215 e posteriormente a desejada auctoritas216.
Nesse sentido quando Otaviano recebeu o título de
Augusto em 27 A.E.C. o mesmo declarou que “Depois
disso, vi-me à frente de todos pela auctoritas, porém eu
não tive nenhuma potestas a mais do que os meus
outros colegas de magistratura” (Res Gestae, 34). A

215
A potestas seria um poder de cunho formal e legado aos magistrados
em suas eleições. Também era concedida ao pater famílias no âmbito
doméstico. Nesse caso o portador pode empregar a coercitio como uma
forma de punição ou correção contra um infrator, com modo de sanar
um problema que naquele contexto foi gerado pelo punido
(GALINSKY, 1996, p. 381-387; ROWE, 2013, p.1-15).
216
Autoridade conferida ao portador (auctor) pelos demais cidadãos,
pela credibilidade de que o mesmo possuía uma elevada qualidade
moral para liderar os demais devido ao seu conjunto de virtudes tais
como: a virtus, a clementia, a iustitia, a pietas e a ciuilitas. Assim lhe
conferindo o direito de falar em público e persuadir seus concidadãos
com suas propostas. Tal autoridade se encontrava acima da potestas e
não era calcada na coerção, sendo considerada um dos mais elevados
graus do poder conferido a um sujeito, por seu prestígio social (EDER,
1993, p. 71-122; GALINSKY, 1996, p. 381-387; ROWE, 2013, p.1-
15).
387
partir de tal passagem podemos perceber que Augusto
expressava o ápice de seu processo de apoderamento
político e social217 com a obtenção da auctoritas, pois a
mesma era uma forma fundamental de poder não-
coercitivo, o qual era conferido e reconhecido como um
grau acima dos demais valores sócio-políticos da época.
Era a valorização de uma integração social, para o seu
governo era central.
Tanto que em seus próprios escritos Augusto
evidencia que “[...] restituí a libertas à Res Publica
oprimida” (Res Gestae, I). Na citação selecionada
verificamos que Augusto se colocou como um
representante legal dos interesses romanos, o qual estaria
resguardando Roma de possíveis crises sociais e
preservando a libertas218da sociedade. A concepção de
liberdade é um elemento essencial na literatura romana,
por estar relacionada com a liberdade que um cidadão
poderia exercer nas funções do cursus honorum, por
217
Concebemos o processo de apoderamento como um ato de
elaboração relacional, no qual um agente particular ou uma associação
institui-se sobre os outros grupos sociais utilizando-se de diversos
instrumentos com o objetivo de controlar o poder.
218
A libertas pode ser compreendida enquanto a segurança dos direitos
políticos e sociais dos cidadãos, os quais eram assegurados pelas
magistraturas, pelo senado e pelo tribuno da plebe. Dessa forma a
mesma se calca no equilíbrio de poder, no qual produziria a concordia
entre os romanos (PEREIRA, 2009, p. 377-381; ROWE, 2013, p.1-
15).
388
exemplo, ou de falar publicamente sobre determinado
assunto no senado sem o perigo da coercitio219.
Nesse sentido, Augusto ao escrever as suas Res
Gestae possui uma intencionalidade de evidenciar o seu
papel como restaurador da paz e preservador da Res
Publica. Salientamos que o mesmo discurso se repete em
vários momentos possivelmente buscando uma
ratificação de sua trajetória política (Res Gestae, XII,
XIII, XXIV). Logo, a libertas de modo algum era uma
causa morta, pois, desde Júlio César tal concepção social
tinha sido utilizada por homens que acreditavam que
poderiam restituir a libertas aos demais cidadãos,
mediante a morte daquele que consideravam como um
tirano.
A visão acima pode ser complementada, por nós,
com a de Nicolau de Damasco em Vida de Augusto. Na
referida obra o biógrafo augustano do século I A.E.C.,
argumentou que “Augusto, a quem todo o poder tinha
sido justamente legado, de acordo com a autoridade de
quem havia obtido, em primeira instância, e por causa
de seu relacionamento com ele, foi, dotado de
autoridade” (FGrH 90 F. 130.28). Logo, Augusto
configurava-se no discurso de Nicolau como o

A coercitio pode ser compreendida como o direito de poder corrigir,


219

castigar ou punir pessoas dentro das áreas imperiais romanas


(SARAIVA, 2006, p. 241).
389
verdadeiro herdeiro de Júlio César, aquele que perante
os homens e os deuses era designado para assumir a
auctoritas sobre Roma. Ao cotejarmos as duas obras
torna-se perceptível que o debate em torno da
autoridade possui uma centralidade no regime de
Augusto, por produzir a preservação do seu poder na
sociedade através da aceitação e consenso dos cidadãos.
Pois, o poder augustano não se daria apenas por mero
formalismo ou por um amplo uso da violência física.
Baseados nas reflexões acima, postulamos que o
poder institucionalizado ou em vias de
institucionalização necessita da formulação de múltiplos
dispositivos culturais para a sua integração social e
preservação ao longo dos tempos. Desse modo, a nova
ordem de Augusto tinha como intuito assegurar a sua
governabilidade, através de medidas que viessem incutir
a aceitação social do mesmo como legítimo líder
político. Para isso, Augusto elaborou um novo
repertório carregado de símbolos na literatura clássica,
porém, em diversas outras formas de suportes também,
as quais refletiam a modificação cultural que os romanos
vivenciavam em seu governo. Andrew Wallace-Hadrill,
Augustan Rome (2012) e Paul Zanker O Poder das
Imagens (1992) argumentam que o uso de imagens
promovidas por Augusto foi uma constante durante o
seu regime. Essa prática emergiu como uma

390
característica central da sua autocracia, com o intuito de
monopolizar grande parte dos símbolos de autoridade
romana. Os autores pontuam que essas imagens
desvelam o seu projeto de legitimação no poder naquele
período.
Imersos na iconografia augustana, retomamos o
valor da necessidade de diálogo com as moedas, por elas
refletirem em seu corpo físico o valor de uma medida e a
autoridade impressa de quem as emitiu. Assim, a
propagação da efígie de Augusto era o sinal mais latente
que podemos observar de demarcação do seu regime em
nosso corpus documental. Reiteramos que não tomamos
tais medidas de Augusto como inovações. Logo, as
compreendemos como apropriações de práticas já
realizadas anteriormente em Roma, porém, as quais
foram acentuadamente aplicadas em seu projeto
político. Dessa forma elencamos o tema de Augusto
como Salvador de Roma e de seus cidadãos. Esse
repertório analisado possui um total de trinta e sete
recorrências de moedas, as quais foram detectadas em
nossas leituras sobre o RIC e inseridas em nossas
pranchas de análise. Os tipos de suportes em que
encontramos esse tema são: as moedas de áureo, com
quatro objetos; e as moedas de sestércio, com trinta e
três recorrências, todas da Península Itálica. O período

391
de produção seria entre 27 e 01 A.E.C. Momento esse
de consolidação do Principado de Augusto.
Em nossa prancha de análise 32, a qual possui
registro no RIC I (277), temos uma moeda de áureo
com quatro recorrências do objeto, cunhadas
provavelmente em 27 A.E.C. no anverso da moeda
encontramos uma efígie de Augusto virada para a
direita. Ainda no anverso é possível encontrar a legenda
CAESAR COS VII CIVIBVS SERVATEIS – Cesar
Consul pela sétima vez / Por ter salvo os cidadãos (em
ablativo absoluto). No reverso detectamos a Águia, com
suas asas expostas e em pé. A ave possui sua face virada
para a esquerda e segura com suas patas uma coroa de
flores. Atrás de suas asas há dois ramos de louro. Como
legenda do reverso encontramos a seguinte inscrição:
AVGVSTVS S C (Senatus Consultum) – Para Augusto
por decreto do Senado.

392
Tipo de Moeda: Áureo - Ouro; Período: c.a 27 A.E.C.; Região:
Península Itálica. Período – VII Consulado de Augusto; Prancha:
32; Referência: RIC I 277.

Uma variação dessa moeda de áureo pode ser encontrada


em nossa prancha de análise 107, com registro no RIC
(547-B), em que temos uma moeda de sestércio, feita
em bronze e com duas recorrências do objeto, as mesmas
cunhadas provavelmente em 23 A.E.C. No anverso da
moeda encontramos uma efígie de Augusto virada para a
direita. Ainda no anverso é possível encontrar a legenda
IMP AVGVST TR POT – Imperador Augusto Poder
de Tribuno. No reverso vemos um m círculo linear, no
campo da moeda. No centro do campo, uma coroa
cívica com a legenda em seu interior: OB CIVIS
SERVATOS – Por ter salvo os Cidadãos.

393
Tipo de Moeda: Sestércio - Bronze; Período:do: c.a 23 A.E.C.;
Região: Imprecisa- Prov. Península Itálica. Período – Principado
de Augusto; Prancha: 107; Referência: RIC I 547-B.
547

Em nossa prancha de análise 77, com registro no RIC


(323), temos outra moeda de sestércio, feita em bronze e
com quatro recorrências do objeto, as mesmas cunhadas
provavelmente em 18 A.E.C. No anverso da moeda
encontramos a Coroa Cívica no centro do campo e nas
bordas laterais dois ramos de louro. Ainda no anverso é
possível encontrar a legenda OB CIVIS SERVATOS –
Por ter salvo os cidadãos. No reverso a legenda
egenda em torno
e no centro do campo S C – Por decreto do Senado. No
entorno vemos: Q AELIVS L F LAMIA IIIVIR A A A F
F - Q. Aélio L. F. Lamia Triúnviro Áureo, Argento,
Aere, Flando, Feriundo.

394
Tipo de Moeda: Sestércio - Bronze; Período: c.a 18 A.E.C.;
Região: Península Itálica. Período – Principado de Augusto;
Prancha:77; Referência: RIC I 323.

Acrescentamos em nossos estudos a prancha de análise


79, com registro no RIC (325), em que temos um
sestércio, feito em bronze e com três recorrências do
objeto, as mesmas também cunhadas provavelmente em
18 A.E.C., como a prancha anterior. No anverso da
moeda encontramos a Coroa Cívica no centro do campo
e nas bordas laterais dois ramos de louro. Ainda no
anverso é possível encontrar a legenda OB CIVIS
SERVATOS – Por ter salvo os cidadãos. No reverso a
legenda em torno e no centro do campo S C – Por
decreto do Senado. No entorno vemos: C MARCI L F
CENSORIN AVG IIIVIR A A A F F – C. Marcio L. F.
Censorino Augure Triúnviro Áureo, Argento, Aere,
Flando, Feriundo.

395
Tipo de Moeda: Sestércio - Bronze; Período: c.a 18 A.E.C.;
Região: Península Itálica. Período – Principado de Augusto;
Prancha: 79; Referência: RIC I 325.

Para finalizar, acrescentamos em nossos estudos a


prancha de análise 81, com registro no RIC (327), em
que temos um sestércio, também feito em bronze e com
duas recorrências do objeto, as mesmas também
cunhadas provavelmente em 18 A.E.C., como vimos nas
demais pranchas. No anverso da moeda encontramos a
Coroa Cívica no centro do campo e nas bordas laterais
dois ramos de louro. Ainda no anverso é possível
encontrar a legenda OB CIVIS SERVATOS – Por ter
salvo os cidadãos. No reverso a legenda em torno e no
centro do campo S C – Por decreto do Senado. No
entorno vemos: T QVINCTIVS CRISPINVS SVLPIC
IIIVIR A A A F F – T. Quintio Crispino Sulpicio
Triúnviro Áureo, Argento, Aere, Flando, Feriundo.

396
Tipo de Moeda: Sestércio - Bronze; Período: c.a 18 A.E.C.;
Região: Península Itálica. Período – Principado de Augusto;
Prancha: 81; Referência: RIC I 327.

Michael Crawford, Coinage and Money under the


Roman Republic: Italy and the Mediterranean Economy
(1985:256-280), Christopher Howgego, em Ancient
History from Coins (1995:39-60) e David Sear, Roman
coins and their values (2000:17-26) endossam nossa
perspectiva do uso do sestércio como uma das moedas
que mais propagaram a imagem de Augusto entre
27220A.E.C.-14 E.C., por sua alta emissão a partir das
reformas monetárias de Augusto, que foram promovidas
na década de vinte. Facilitou a sua alta circulação entre
os cidadãos também o seu valor de uso cotidiano. Com
isso, ressaltamos que tal uso não se limitou à Península
Itálica, mas também foi estendido pelas áreas

220
Quanto a essa datação estamos seguindo ao modelo proposto para
Península Itálica pelo RIC, Vol. 1, na página 59.
397
provinciais, pelas trocas comerciais. No que tange ao
áureo, por seu valor em ouro, o mesmo era uma moeda
importante para o comércio, principalmente de
produtos de alto valor, assim como para a captação de
recursos e demonstração de poder. Desse modo, cunhar
em áureo demonstrava o interesse de difusão política da
sua imago principis, principalmente entre os meios
abastados, como foi mencionado por Christopher
Howgego. Logo, os receptores desses discursos podem
ser pensados como amplos, afinal englobavam diversas
regiões da Vrbs e das províncias. Assim, é notório que
havia uma grande interação dos cidadãos e não-cidadãos
com as moedas. Quanto à imagem e à linguagem,
observamos que as moedas augustanas apresentam a
transmissão de imagens referentes a símbolos cívicos que
deviam propagar a imagem do princeps. A linguagem
imagética na Península Itálica ratificava um programa
político augustano de ordenador do mundo conhecido.
Diversos são os comentários que podemos tecer
sobre tais moedas. Tomando Howgego como nossa
fundamentação teórico-metodológica, frisamos que o
repertório de Augusto como o Salvador dos Cidadãos de
Roma se insere no tema da legitimação do poder. Uma
das preocupações dessa tônica é com as qualidades
morais e as titulaturas assumidas, mediante aprovação da
população. Com a moeda como suporte, a linguagem

398
monetária transmite ao receptor que tal governante está
apto para o governo e assim manter a ordem social e
cósmica do mundo romano.
O que as três pranchas podem evidenciar em uma
perspectiva conjuntural de análise iconográfica?
O primeiro ponto que podemos destacar é a
repetição da legenda do anverso que confere a Augusto o
papel de Salvador dos Cidadãos, ou seja, propagando a
ideia de auctoritas augustana, para os cidadãos. Segundo
Seth William Stevenson e Frederic Madden, em A
dictionary of roman coins, republican and imperial
(1889:582), a legenda OB CIVIS SERVATOS, era uma
inscrição comendatória, a qual foi conferida para poucos
homens na história da República Romana. Era uma
atribuição que no imaginário social romano elevava um
cidadão diante dos demais, como também percebemos
nos textos de Michael Crawford, Christopher Howgego
e David Sear. Do mesmo modo, notamos nas referidas
moedas que estas também possuem a complementação
SC , a qual indica Senatus Consultum. Essa legenda
ratifica o discurso contido na moeda, pois significa que a
mesma foi cunhada com a chancela pública do Senado,
de acordo com a Constituição da República, e as regras
da casa da moeda em que ela foi produzida, como foi
postulado por Stevenson e Madden, em A dictionary of
roman coins, republican and imperial (1889:719).
399
O segundo ponto que podemos elencar é o uso dos
símbolos cívicos romanos que se entrelaçam com a
concepção de salvador de Roma, ou seja, a coroa cívica e
os ramos de louro. Iniciamos expondo que a coroa
cívica, pode ser pensada como uma guirlanda de
carvalho. Durante a República Romana e no
Principado, a mesma foi considerada como uma das
mais altas condecorações militares que um cidadão
poderia receber. Assim, ela foi reservada para
comandantes que salvaram a vida dos concidadãos. Em
27 A.E.C., a mesma foi colocada na porta de Augusto,
como o mesmo argumenta nas Res Gestae. Mediante
leituras de Howgego, apontamos que os ramos de louro
são insígnias que, associadas ao OB CIVIS SERVATOS
e à coroa cívica, conferem que o seu detentor era um
cidadão vitorioso que foi capaz de salvar os romanos do
caos. O mesmo formava o repertório com os demais
signos da moeda.
Outro dado que notamos nas pranchas 77, 79 e
81, respectivamente, são os nomes dos magistrados Q.
Aélio L. F. Lamia, C. Marcio L. F. Censorino Augúrio,
T. Quintio Crispino Sulpicio. Tais homens integravam
no período de Augusto, o colégio dos tresuiri monetalis
(tresviros monetários), os quais eram encarregados pela
tradição republicana da amoedação e selecionados por
uma eleição. Michael Crawford sugere que durante a

400
República os senadores controlavam as questões
monetárias como o próprio colégio dos tresuiri
monetaris. Entretanto, com a subida ao poder de Otávio
Augusto, uma aparente "diarquia" parece ter sido
formulada em Roma. O Senado passou a cuidar das
taxas públicas sobre os metais que iriam ser cunhados.
Enquanto a emissão de moedas de ouro e prata, no
primeiro momento, foi colocada sob a tutela augustana.
Contudo, H. Mattingly (1977) e Jonatham Williams
(2007, p.143-163) convergem que o Senado na
realidade não teria mais esse poder de controle ou
decisão em finais do século I A.E.C.. Tanto que esses
magistrados começaram a exercer as suas escolhas
pessoais sobre os símbolos e personalidades que
deveriam aparecer na cunhagem romana,
principalmente, com base em temas referentes à sua
gens, nas dos seus aliados e, posteriormente, do
princeps. Assim, os indicados provavelmente se
encontravam sobre influência direta ou indireta de
Augusto, pois eram selecionados e/ou aprovados por ele.
Em suma, o uso das moedas romanas como fonte
histórica deve ser contextualizado com o segmento
político dirigente do período como foi apontado por
Christopher Howgego. Temos em vista que o poder se
expressa de inúmeras formas, assim as imagens são
veículos essenciais para propagação ideias de soberania e

401
valores sociais. A moeda, como um dos suportes de
representações imagética e gráfica, era objeto de uso
cotidiano na sociedade, o que permitia uma constante
exposição de mensagens para o público. Como as áreas
sob o domínio augustano na Península Itálica, e fora
dela, eram extensas, as moedas funcionavam como uma
forma de comunicação ao fixar no imaginário os feitos
de Augusto enquanto herói vitorioso, ou seja, o salvador
dos cidadãos de Roma, do período de desordem,
anteriormente vivenciado. Enfim, um repertório que
servia para a auctoritas, do então princeps de Roma
perante a sociedade.

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409
410
KTEMA TE ES AEI
OS (DES) CAMINHOS DA HISTÓRIA DE
TUCÍDIDES NO SÉCULO XXI
Maria Elizabeth Bueno de Godoy221

Introdução
Tucídides abre sua História com a clara proposição de
seu intuito: escrever “a guerra dos peloponésios e
atenienses, como a fizeram uns contra os outros”.222 E,
expondo seus objetivos ao relatá-la, no prólogo, declara:

E para o auditório o caráter não fabuloso (τὸ


µὴµυθῶδες) dos fatos narrados parecerá talvez menos
atraente; mas se todos quantos querem examinar o que
há de claro nos acontecimentos e nos que, um dia,
dado ao seu caráter humano (τὸ ἀνθρώπινον), virão a
ser semelhantes ou análogos, virem sua utilidade, será
o bastante. Constituem mais uma aquisição para

221
Doutora em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
Professora Adjunta Substituta do Colegiado de Filosofia da
Universidade do Estado do Amapá (UEAP-AP).
222
TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Livro I. Tradução
e apresentação de Anna Lia Amaral de Almeida Prado. Texto grego
estabelecido por Jacqueline de Romilly. São Paulo: Martins Fontes,
2008. (Tuc., I, 1). As demais referências ao Livro I seguirão a
abreviação citada.
411
sempre (κτῆµ µά τε ἐς αἰεί) que uma peça para um
auditório do momento.223

Com isso, estabelece duas premissas: a primeira, que sua


obra, se ancorada na escrita - do verbo syggrápho224,
compor por escrito - ultrapassava os estritos instantes de
uma apresentação pública, afastando dela todo e
qualquer adorno narrativo, ou, tò mythôdes. A segunda,
que dado ao caráter humano intrínseco dos eventos
narrados, estes viriam a ser “semelhantes ou
análogos”225, conferindo à sua narrativa o estatuto de
ktema es aei, uma aquisição para sempre.
Os estudos da obra tucidideana, ao longo desses
mais de dois mil anos, traduzem a perenidade de sua
arte histórica, validada nas variadas acepções de suas
premissas, no justo arrazoamento da utilidade da
História. Assim revigorando, em cada nova abordagem e
(re) leitura, o epíteto de tesouro, porque se valessem os
homens de sua narrativa. No longo percurso dos
caminhos entre sua recepção e interpretação, Tucídides
ganha novos contornos, vozes e sentidos. Os leitores

223
Tuc., I.22.4.
224
LIDELL&SCOTT, An Intermediate Greek-English Lexicon.
Seventh Edition. Oxford, 1888, p.3130; Συγγράφω, redigir, compor
por escrito.
225
Tuc., I.22.4.
412
pós-tucidideanos revalidam-no de acordo com seu
próprio tempo, atribuindo à narrativa renovado fôlego.
Como, portanto, entender sua utilidade a cada
(re) leitura e interpretação? Qual o lugar da narrativa de
Tucídides no século atual e, neste sentido, por que
caminhos se delineia a recepção contemporânea, na
plena acepção do seu estatuto de aquisição para sempre
(κτῆµ µά τε ἐς αἰεί)? Indagações investigadas no presente
estudo.226
Todavia a proposta não contempla todas as
recepções e leituras de Tucídides no século XXI, não
obstante lhes reconheça a valia.227 Para a abordagem

226
As citações da obra de Tucídides no corpo textual foram todas
transcritas para a língua portuguesa, em tradução indireta do texto em
língua francesa estabelecido por Jacqueline de Romilly, exceto pelas do
Livro I, que seguem a tradução oficial de Anna Lia Prado. As citações às
obras editadas em língua inglesa, assim como referências e citações aos
estudos de H.D. Westlake, Individuals in Thucydides, Lowell
Edmunds, Chance and Intelligence in Thucydides, entre outros,
seguirão o mesmo padrão, com a passagem original citada em nota de
rodapé.
227
Refiro-me aos estudos contemplados em três recentes compêndios,
cujas diferentes abordagens demonstram a riqueza de apropriações e
interpretações da obra tucidideana entre antigos, modernos e
contemporâneos. Para esta apreciação consultar também:
TSAKMAKIS, Antonis; TAMIOLAKI, Melina. (Eds.) Thucydides
between History and Literature. De Gruyter, 2013; RENGAKOS,
Antonios; TSAKMAKIS, Antonis. (Eds.) Brill’s Companion to
Thucydides, 2006.
413
presente optou-se pelas orientações que, primeiramente,
discutissem as implicações de suas traduções (inclusive
para a língua portuguesa), no desenvolvimento das
referidas pesquisas, e, em seguida, por aquelas que
discutissem a perenidade da fórmula já anunciada por
Tucídides: a importância dos eventos narrados dada a
condição humana nestes ensejada. Ou seja, o relato de
uma perspectiva humana, destinado aos leitores que
pudessem nele enxergar sua utilidade, pois, mesmo dele
distanciados, lhes aproximariam os humanos conflitos,
em sua obra contemplados.
Destarte, foram selecionadas as seguintes
traduções: do Livro I, a tradução para a língua
portuguesa, acompanhada do estudo e comentário de
Anna Lia Amaral de Almeida Prado, a partir do texto
grego estabelecido por Jacqueline de Romilly. Dos
Livros II ao VIII, a tradução francesa de Romilly,
devidamente acompanhada do estudo e comentário, em
parceria com Louis Bodin e Raymond Weil, editada pela
Belles Lettres de Paris.228 As considerações acerca das
dificuldades de interpretação do texto grego de
Tucídides, além do enfrentamento de sua leitura em
228
THUCYDIDE. La Guerre du Péloponnèse. Tommes I-V. Livres I-
VIII. Texte établi et traduit par Jacqueline de Romilly. Paris: Les Belles
Lettres, 2003-2009. As referências a esta tradução seguirão citadas no
corpo textual da abreviação do nome do autor (Thuc.), seguido do
Livro em romano, e do capítulo e parágrafo em arábico.
414
outros idiomas, foram consideradas a medida em que a
temática se impôs ao processo de apreensão da escrita e,
mesmo, ao desenvolvimento das pesquisas acerca da
obra tucidideana.
Neste sentido, apresentam-se as análises e
considerações de Gregory Crane, Hunter R. Rawllings
III, Emily Greenwood e Clifford Orwin, publicados no
recente compêndio tucidideano, editado pela Wiley
Blackwell229, em que se discute os desafios no ensino da
História nos dias atuais, bem como a pertinência de sua
leitura num cenário onde as Humanidades, enquanto
disciplinas, parecem sofrer a mesma retração já vivida
pelos estudos dos antigos. Estaria a narrativa tucidideana
assim destinada a um público tão restrito?
Os estudos estabelecidos por Francisco Murari
Pires apresentam o caminho trilhado por alguns desses
leitores pós-tucidideanos, no justo arrazoamento aqui
proposto, em que se validasse a utilidade da obra na
corte dos humanistas, a partir do Quattrocento de
Lorenzo Valla, e, em linhas gerais, em sua recepção
também nos séculos XIX e XX. Os estudos do professor
Murari Pires referem-nas “ambiguidades da voz”,

229
LEE, Christine; MORLEY, Neville. A Handbbok to the Reception
of Thucydides. Wiley Blackwell, 2015.
415
porque Tucídides silenciasse em seu relato aquilo que
seus leitores fizessem dele ressoar.230
Fórmula que orienta a obra de Emily Greenwood,
em seu Thucydides and the Shaping of History,
publicado pela Bloomsbury231, onde a autora discorre
sobre a evolução da escrita da história a partir de sua
moldagem suscitada pela obra tucidideana. Para além de
uma recepção historiográfica, o estudo de Greenwood
oferece deslocamentos que reiteram a perenidade da
História, enfatizando a perspectiva humana nos relatos,
validando sua apreensão em termos antropológicos,
portanto, pertinentes a quaisquer leitores, em qualquer
tempo.
Abordagem essa contemplada na tese de Hans-
Peter Stahl232, cuja reedição em 2003, (originalmente
publicada em 1966), reforça a importância das leituras
que se debrucem sobre o lugar do homem na História,
cuja perspectiva enseja os arrazoamentos outrora
declarados pelo historiador ateniense: Pois, “se todos
quantos querem examinar o que há de claro nos

230
MURARI PIRES. F. Modernidades Tucidideanas: Ktema es Aei.
Tomo I. No Tempo dos Humanistas. Volume I (Res) Surgimentos. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2007.
231
GREENWOOD, Emily. Thucydides and the Shaping of History.
Bloomsbury, 2006.
232
STAHL, Hans-Peter. Thucydides. Man’s Place in History. (1966)
The Classical Press of Wales, 2003.
416
acontecimentos passados e nos que um dia, dado ao seu
caráter humano, virão a ser semelhantes ou análogos,
virem sua utilidade, será o bastante.”233

A Syggraphé Tucidideana entre tradução e recepção


Da “guerra dos peloponésios e atenienses”234, sabe-se
que Tucídides narrou vinte dos vinte e sete anos do
conflito, tendo iniciado sua escrita (syggraphé) logo após
a eclosão, em 431 a.C. Conflito cujo desenvolvimento
testemunhou tanto como cidadão ateniense, quanto, em
424 a.C., como strategós na defesa de Anfípolis. A
derrota ateniense nesta campanha lhe custou a pena do
exílio de vinte anos na Trácia. Não obstante seu retorno
a Atenas coincidir com o término da guerra, e a rendição
de Atenas aos espartanos (404 a.C.), sua narrativa se
interrompe bruscamente no Livro VIII, no ano de 411
a.C.
Segundo nota Anna Lia Prado, no estudo
estabelecido à referida tradução do Livro I da obra,
Tucídides afirma que este exílio lhe possibilitou acesso
às informações de ambos os lados envolvidos, e “embora
tenha procurado dar uma visão imparcial e objetiva dos
acontecimentos, toda a narração é feita a partir do ponto

233
Tuc., I, 22,4.
234
Tuc., I,1.
417
de vista de Atenas.”235 Para a autora, evidência clara de
que sua obra revelasse, além do declarado por ele, seu
profundo envolvimento com as (humanas) questões de
seu tempo. Assim ela o descreve:

Em seu relato Tucídides não menciona, como seus


contemporâneos, a guerra dos Dez Anos ou de
Arquidamo (431-421 a.C.), a guerra da Sicília (415-
413 a.C.) e a guerra da Decélia e da Jônia (414-404
a.C.) como processos diferentes, mas, sem distingui-
las, divide sua exposição em seções que correspondem
cada qual a uma campanha anual. Embora a tradição
nos proponha uma participação de oito livros (...) a
narração de cada ano da guerra parece indicar que seria
essa a divisão essencial do texto (...). Desse plano está
excluído apenas o primeiro livro, que supõe um outro
esquema de exposição por tratar-se de uma introdução
geral à obra e de um estudo das causas da guerra.236

O fato de não possuirmos traduções para o português


(devidamente acompanhadas de estudos e comentários),
dos demais livros da História, conforme o estabelecido
por Anna Lia Prado - à exceção da edição portuguesa
publicada pela Calouste Gulbenkian, em 2010, já

235
PRADO, Anna Lia A. de A. “Introdução”, op.cit., 2008, pp. ix-x.
236
Ibid, pp. xv, xvi.
418
esgotada237 – reforça a premissa de tratar-se de leitura
difícil, comprometendo, neste ínterim, o interesse em
seu estudo mais aprofundado entre os graduandos do
curso de história, e mesmo entre acadêmicos de outras
áreas. A notória rigidez do texto tucidideano, portanto,
se impõe, limitando os (des) caminhos de quem se
aventure a decifrá-lo. Como nota Jacyntho Lins
Brandão238, a tarefa de traduzir Tucídides, a quem se
refere “príncipe e princípio de excelência”, modelo de
composição rigorosa, figura, entre os estudantes de
grego, alegria e tormento, face uma “obra em que nada
sobra, falta ou se encontra onde devia”.239
Neste sentido, urge-nos indagar: por que
Tucídides? E, ainda, como justificar a (re) atualização de
sua narrativa no século XXI, já tão distado dos eventos
nela descritos? A escassez de traduções que se impõe aos
que ensejam fazê-lo também revela que o enfrentamento
dos estudos tucidideanos, no Brasil, mereceriam uma
237
TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Tradução e edição
literária Maria Gabriela Granwehr e Raul Miguel Rosado Fernandes.
Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
238
Jacyntho Lins Brandão é Professor Titular de Língua e Literatura
Grega da Faculdade de Letras da UFMG, autor da obra, Que venha a
Sra. Dona, de 2007, entre outras.
239
BRANDÃO, J.L. “O Príncipe dos historiadores”, Jornal A Folha de
São Paulo, 09 de outubro de 1999.
[http://www1.folha.uol.com.br/fsp/resenha/rs0910199909.htm].
Acesso em 19 de abril de 2017.
419
renovada atenção. Destinado aos estudantes dos
primeiros períodos do curso de história240, raramente
discutido nos congressos e simpósios nacionais, e isolado
na categoria das Antiguidades, Tucídides parece
convidar àqueles que se aventuram por sua syggraphé a
uma espécie de exílio auto imposto, ou mesmo à
caminhada errante em um labirinto minoico.241 Enfim,
Tucídides convida à exegese, não raro, solitária.
Mesma indagação que Gregory Crane242 estende
ao estudo dos Clássicos no século XXI, em particular, às
Humanidades, que parecem sofrer a mesma retração e
isolamento experimentado pelo estudo dos antigos em
outras áreas, nos últimos anos. Em seu capítulo
publicado no compêndio, A Handbook to the
240
Refiro-me exclusivamente aos cursos de bacharelado e licenciatura
em História, não obstante reconheça-se a leitura da obra tucidideana
entre os estudantes de Filosofia, Relações Internacionais, entre outros,
guardadas as devidas especificidades em suas abordagens.
241
Labirinto construído na ilha de Creta pelo artífice Dédalo, a pedido
do Rei Minos. Nele aprisionado, o mítico Minotauro aterrorizava os
jovens atenienses, mandados todos os anos a Creta, como parte do
tributo pago por Atenas. Maldição que seria quebrada com a chegada
do jovem filho de Atenas, o herói Teseu, que, com a ajuda da princesa
cretense Ariadne, a lhe entregar o fio que guiaria seus passos pelo
labirinto, derrotaria a criatura, libertando, assim, Atenas da paga anual.
242
Gregory Crane é Professor Titular da cadeira intitulada Classics na
Tufts University, e autor de duas obras referenciais nos estudos de
Tucídides: The Blinded Eye, de 1996, e Thucydides and the Ancient
Simplicity, de 1998. É também editor e chefe do Projeto Perseus.
420
Reception of Thucydides243, o autor toma o enunciado
no proêmio da História como uma espécie de
extremidade neste emaranhado novelo narrativo. Tal
qual o fio fino de Ariadne, orientando-lhe os
direcionamentos à solução da questão, conduzindo-nos
neste princípio do caminho argumentativo.
Declara Tucídides: “se todos quantos querem
examinar o que há de claro nos acontecimentos passados
e nos que um dia, dado ao seu caráter humano, virão a
ser semelhantes ou análogos, virem sua utilidade será o
bastante.”244 À condição humana, portanto, dever-se-ia
a (provável) recorrência dos eventos, e o exame daqueles
narrados na História constituem preciosa aquisição
(ktema es aei)245 à posteridade, ultrapassando a fruição
momentânea do auditório comum.246 Asserção cujos
arrazoamentos Crane busca associar às justificativas dos
estudos históricos nos dias atuais, divulgadas nas
universidades norte americanas, para, assim, indagar o
lugar da narrativa histórica tucidideana nesta dinâmica.

243
CRANE, Gregory. “Everywhere Monuments of Good and Evil:
Thucydides in the Twenty-First Century”, in A Handbook to the
Reception of Thucydides. Wiley Blackwell, 2015, pp.568-578.
244
Tuc., I,22,4. (O grifo é meu).
245245
Na passagem, “(...) Κτῆµµ ά τε ἐς αἰεἱ µᾶλλον ἤ ἀγώνισµα ἐς τὸ
παραχρῆµα ἀκούειν ξύγκειται. ”(Tuc., I, 22, 4).
246
Idem.
421
Da seleção de ementas dos cursos de história de algumas
eminentes universidades do país (Harvard, Yale,
Princeton), divulgadas em seus sítios eletrônicos e
voltadas a um público mais eclético e amplo, o autor
destaca o vídeo publicado na página da Universidade de
Harvard, intitulado “Why History?”247, (Por que
História?). Dos dois minutos e meio de sua duração,
contemplados com testemunhos de alguns dos
professores mais tradicionais da instituição, elege o
comentário da professora Maya Jasanoff248, que lhe
parece o mais adequado a elucidar o enigma:

Creio que história realmente forneça a base para


tornarmo-nos cidadãos em um mundo globalizado.
Pode parecer apelativo, mas o campo da história
realmente se desenvolveu com a própria nação, e
ensinou as pessoas sobre o pertencimento na
coletividade. Acredito que hoje, como vivemos em
uma sociedade global, seja ainda mais importante
sabermos algo sobre ‘de onde viemos’ e ‘onde nos
encontramos’. Talvez, isto nos prepare para tomar

247
CRANE, G. Op. Cit., 2015, pp.570-571.
248
Professora titular e pesquisadora da Universidade de Harvard; autora
de The Dawn Watch: Joseph Conrad in a Global World a ser publicado
pela Penguin Press em novembro de 2017.
422
melhores decisões acerca do lugar para ‘onde iremos’
no futuro.249

Da declaração de Jasanoff Crane ressalta o elemento que


a difere das demais, clássicas razões, enaltecidas por seus
colegas, porque justifique o estudo da história em sua
aplicabilidade na vida prática: capacitar cidadãos ao
exercício da convivência em comunidade. Para além das
projeções de uma pura excitação intelectual, ou da
fruição de uma carreira rentável, a assertiva remete
àquela formulada na obra tucidideana sobre a utilidade
de sua narrativa histórica. Fórmula análoga, lembra o
autor, reiterada na obra do historiador romano Tito
Lívio250, no século de Augusto:

O que torna, principalmente, benéfico e útil o estudo


da história é isto: que se retenham as lições de todo

249
“I think history really provides a foundation for being a citizen in a
global world. You know it may sound hokey but the field of history
really came of age with the nation state and it taught people to belong
in a collective society. And I think that now that we live in a global
society it is more than ever important for us to know something about
where we come from, where we`re at, and hopefully it equips us to
make better decisions about where we`re going in the future.”
(CRANE, G. Op. Cit., 2015, p.571).
250
Refiro-me à clássica Ab Urbe Condita Libri. Para os estudos recentes
da obra de Tito Lívio, ver: COLLARES, Marco Antonio. Visões
historiográficas sobre a obra de Tito Lívio. São Paulo: Editora UNESP;
São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010; 193p.
423
tipo de experiência narrada como se inscritas num
notável monumento; destes pode-se, para si e para seu
próprio bem, selecionar o que imitar, e, o mesmo, para
evitar o que seja vergonhoso por sua concepção, ou por
seu resultado.251

Utilidade que Tucídides cuidara em anunciar, ao


distanciar sua escrita daquela de Heródoto, cuja
investigação (historía), critica, pois afasta dela todo e
qualquer adorno (tò mythôdes), destinado à fruição do
momento.252 Para Crane, Tucídides incita uma espécie
de resposta emocional em seus leitores, o que torna sua
narrativa viva, geração após geração, e a própria razão
pela qual façamos o seu uso prático até hoje. Ao longo
da História, recorrentes lições do que pode advir de bom
ou mal das ações/escolhas de atenienses do século V
a.C., apontam para a sua imanência nos invariáveis (des)
caminhos de nossos (humanos) conflitos no XXI.253

251
“What chiefly makes the study of history wholesome and profitable
is this, that you behold the lessons of every kind of experience set forth
as on a conspicuous monument; from these you may choose for yourself
and for your own commonwealth what to imitate, from these mark for
avoidance what is shameful in the conception and shameful in the
result.” LIVY. 1. Preface, translation after Foster. Apud, CRANE, G.
Op.cit., 2015, p.572.
252
Tuc., I,22,4.
253
CRANE, G. Op. Cit., 2015, p.577.
424
Em seu artigo, “Why We Need to Read Thucydides -
Even When “We” Are Only a Few?”254, o professor
Hunter Rawlings255 indaga as razões para o imanente
paradoxo tucidideano: ignorado por tantos, tão
apreciado entre tão poucos. Pois, “diferentemente de
Platão, Aristóteles, Sófocles e Eurípides, Tucídides não é
um nome familiar”.256 Uma leitura para poucos? Para
Rawlings, sim. Composta em um estilo narrativo
considerado, mesmo entre os antigos, obscuro e
ininteligível,257sua narrativa dominou e moldou a escrita
da história por muito tempo, tornando-se, entre os
humanistas, parâmetro da historiografia ocidental.
Registro de paradigmas do comportamento humano sob
o drama dos conflitos, a História objetiva o relato da
guerra que os gregos infligiram contra outros gregos,

254
RAWLINGS III, H.R. “Why We Need to Read Thucydides – Even
When “We” Are Only a Few?”, in LEE, C., MORLEY, N., op.cit,
2015, pp. 551- 559.
255
Professor Titular da cadeira de Classics da Cornwell University e
presidente da American Universities Association, publicou sobre os
estudos tucidideanos, entre outras, The Structure of Thucydides
History (1981).
256
“Unlike Plato, Aristotle, Sophocles and Euripides, Thucydides is not
a household name.”, RAWLLINGS III, H.R. Op. cit., 2015, 551.
257
Refiro-me a Cícero, o ilustre senador romano, para quem Tucídides,
não obstante seu rigor forense aplicado à narrativa da guerra, pecara
pela obscuridade em seus modos discursivos. Para o argumento e estudo
ver: MURARI PIRES. F. Op.cit., 2007, p. 173.
425
destinando-se àqueles que possam lê-la, compreendê-la e
apreendê-la no porvir.258
Portanto, ler Tucídides, porque dependa das
traduções estabelecidas àquela do texto grego original, e,
neste sentido, imersas na trama de interpretações e
ressignificações de seu estilo, se interpõe como o
primeiro problema a ser enfrentado. Debruçada sobre a
valia dos estudos tucidideanos e ancorada à
necessidade/contingência do material, hoje,
disponibilizado aos leitores contemporâneos, Emily
Greenwood demarca em seu artigo “On Translating
Thucydides”259, o território qualitativo dessas traduções
para o inglês e o francês, destacando-lhes algumas
interessantes considerações.
Primeiramente, que face a dificuldade do texto
tucidideano, já salientada nos comentários de Jacyntho
Lins Brandão à cuidadosa e acurada tradução do Livro I
por Anna Lia Prado260, faz-se imperioso adotar um texto
que contemple, minimamente, a referência ao corpus
grego estabelecido, devidamente acompanhado do
estudo e dos balizamentos bibliográficos do
tradutor/estudioso da obra. Neste caso, uma tradução

258
RAWLINGS III, H.R. Op. cit., 2015, 553. (O grifo é meu).
259
GREENWOOD, Emily. “On Translating Thucydides”, in LEE, C.,
MORLEY, N., op.cit., 2015, pp. 91-121.
260
BRANDÃO, J.L., p.cit., 1999.
426
direta do grego, ou, em se tratando de uma tradução
indireta, adotada a partir do texto já convertido em
outros idiomas: primeiramente, ao latim; em seguida, às
línguas modernas.261
Vejamos alguns exemplos ilustrativos: A tradução
de Claude de Seyssel (1527) para o francês, estabelecida
a partir do texto em latim, anteriormente traduzido do
grego por Valla (1452), é o exemplo de uma tradução
indireta. Já o corpus tucidideano traduzido por
Jacqueline de Romilly parte do texto grego (por ela
estabelecido); o mesmo adotado por Anna Lia Prado em
seu estudo. Detalhe que ultrapassa o mero pedantismo,
afirma Greenwood, pois, “não se pode apurar a eficácia e
adequação de uma tradução de Tucídides, a não ser pela
referência ao texto grego estabelecido para tal.”262
Destarte, conclui:

Para a grande maioria dos leitores contemporâneos,


em se tratando Tucídides de um “Tucídides
traduzido”, qualquer recepção está mediada por uma
anterior, estabelecida pelo próprio tradutor, seja esta a
de Valla, a de Crawley, a de Romilly, ou a de
Lattimore. (...) A tradução é também uma recepção no

261
GREENWOOD, E., op.cit., 2015, p.91.
262
“We cannot evaluate the accuracy or adequacy of a particular
translation of Thucydides unless we know which Greek edition(s) of
Thucydides the translator used.” (Ibid, p.93).
427
sentido em que o tradutor interpreta o autor à luz de
variados diferentes contextos: cultural, histórico,
literário, acadêmico/erudito, e em consonância com as
traduções preexistentes.263

Contudo, se para Rawlings a leitura de Tucídides estaria


encerrada ao restrito círculo dos ‘poucos’ capazes de
apreciá-la, para além dos seletos nomes de Lorenzo Valla
e Thomas Hobbes na modernidade264, reflexões e
estudos contemporâneos contemplam as preciosas
análises de alguns intelectuais brasileiros.265 A obra do

263
“For the vast majority of Thucydides’ contemporary readers, insofar
as Thucydides is Thucydides in translation, any reception is mediated
by a prior reception on the part of the translator, a Valla, a Crawley, a
de Romilly, or a Lattimore. Translation is reception in the sense that
the translator interprets an author in light of several different contexts:
cultural, historical, literary, academic/scholarly, and in conscious
engagement with existing translations.” (Ibid, pp.91-92).
264
Lorenzo Valla traduziu a obra tucidideana para o latim entre os anos
de 1448 e 1452, a pedido do Pontífice romano, Nicolau V. A primeira
tradução para a língua inglesa foi a estabelecida por Thomas Hobbes,
em o1628. Para o estudo ver, MURARI PIRES, F. Op.cit., 2007.
265
Entre os mais recentes, além da obra completa do professor Francisco
Murari Pires, destaco os estudos de: Anderson Zalewski Vargas,
“Ambiguidade e Barbárie. A natureza dos relatos de desordem da
Guerra dos Peloponésios e Atenienses, de Tucídides”, tese de doutorado
defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, em 2001; e a tese de Luiz Otávio de
Magalhães, intitulada “O Herói dissimulado: a narrativa tucidideana e
428
Professor Francisco Murari Pires, da Universidade de
São Paulo, é notável, neste sentido.266 Ao passar-lhe a
condução do intricado novelo narrativo de Tucídides, o
estudo oferece-nos as atualizações da História entre os
humanistas, precedidas de uma minuciosa exposição de
suas apropriações desde o Quattrocento de Valla, às
diversas clivagens assumidas pelas (re) leituras do século
XX.
Da cuidadosa pesquisa, a perenidade da obra
assume os contornos do que Murari Pires denomina por
“ambiguidades da voz e ecos do silêncio” tucidideano.
Pois, daquilo objetivamente encerrado no rigoroso e
austero estilo de sua syggraphé, tantas vezes silenciado
por sua “práxis historiante”267, ressoavam as vozes de
seus leitores a atualizá-la. Como, por exemplo, a de
Euclides da Cunha268, em resposta ao crítico que lhe
questionava a (des) caraterização dos agentes nacionais,
“mercenários inconscientes”269, do episódio de Canudos
por ele narrado:

as modalidades poéticas de apreensão das ações humanas”, também


defendida na FFLCH-USP, em 2002.
266
MURARI PIRES, F. Op. cit., 2007.
267
Ibid, p.15.
268
O conhecimento desta referência é atribuído pelo autor a Anderson
Zalewski Vargas, em: MURARI PIRES, F.Op. Cit., 2007, p.14.
269
Idem.
429
Estranhou-se a expressão. Mas devo mantê-la;
mantenho-a. Não tive o intuito de defender os
sertanejos, porque este livro não é um livro de defesa;
é, infelizmente, de ataque. Ataque franco e, devo dizê-
lo, involuntário. Nesse investir, aparentemente
desafiador, como os singularíssimos civilizados que nos
sertões, diante de semibárbaros, estadearam tão
lastimáveis selvatiquezas, obedeci ao rigor incoercível
da verdade. Ninguém o negará. E se não temesse
envaidar-me em paralelo que não mereço, gravaria na
primeira página a frase nobremente sincera de
Tucídides, ao escrever a história da guerra do
Peloponeso – porque eu também, embora sem a
mesma visão aquilina, escrevi “sem dar crédito às
primeiras testemunhas que encontrei, nem às minhas
próprias impressões, mas narrando apenas os
acontecimentos de que fui espectador ou sobre os
quais tive informações seguras”.270

Por analogia desse mesmo “olhar antropológico”271


suscitado por Euclides da Cunha, Murari Pires recupera
da narrativa tucidideana o relato do décimo-nono ano
da guerra, que descreve o retorno de um bando de mil e
trezentos trácios, contratados e autorizados por Atenas,

E. da Cunha, Obra Completa, vol. II, 1995, p.99.


270

271
“Mirada do olhar antropológico” de Tucídides que Murari Pires
endereça ao contemplado nas obras de Marshal Sahlins: “Ilhas de
História, Esperando Focault, Cultura na Prática e Apologies to
Thucydides, 2003”, apud MURARI PIRES, F. Op.cit., 2007, p.14.
430
em seu percurso, a causarem toda a espécie de mal ao
inimigo.272 Alcançando no caminho a (in) significante
cidadezinha de Micalessos, assim procederam:

Apressando-se por Micalessos, os Trácios saquearam os


santuários assim como as casas, enquanto massacravam
as pessoas, sem poupar nem velhos, nem jovens,
matando indiscriminadamente quem cruzasse seu
caminho, e até mulheres, crianças, animais de carga e
quaisquer seres vivos. A raça trácia, sabe-se, da mesma
forma que bárbaros da pior espécie, é ávida de sangue
quando crê nada a temer. Nestas circunstâncias, entre
os atos de desordem inomináveis se deu, especialmente
um ataque a uma escola de meninos, a mais
importante daquela região, cujos alunos acabavam de
adentrar, durante o qual todos foram mortos. Aquele
massacre foi uma calamidade pior que qualquer outra,
e a mais imprevista e trágica já vista.273

272
MURARI PIRES, F. Op.cit., 2007, p.13
273
“Se ruant dans Mycalessos, les Thraces saccagent les sanctuaires aussi
bien que les maisons et massacrent les gens, sans épargner ni la viellesse
ni la jeunesse, tuant indistinctement quiconque se trouvait sur leur
chemin, y compris femmes et enfants, les bêtes de somme même, et
généralement tout ce qu’ils apercevaient de vivant. Les Thraces, quando
ils croient n’avoir rien à craindre, sont avides de sang, à l’égal des races
barbares les plus sanguinaires. Dans la circonstance, parmi des actes de
désordre sans nombre, des scènes de meurtre de toutes sortes, il arriva
qu’ils se jetèrentsur une école, la plus importante du pays, et, comme les
enfants venaient justement de rentrer, ils les abttirent jusqu’au dernier.
Ce fut là pour la cité tout entière un événement passant les pires
431
Relato que atribui à insignificância de Micalessos no
mundo grego, “(in) dignidade historiográfica, de modo
a entrar para a História, se bem que pelo modo sinistro
de memorização.”274 De forma analogamente lúgubre,
ressoam os ecos antigos atualizados no início do mês de
setembro de 2004, no massacre perpetrado na escola de
Beslan275, na Rússia, nota o autor.276 Por sua vez,
ressoados nos inomináveis ataques desferidos aos civis da
guerra da Síria, que não poupam hospitais, escolas, vilas,
credos, etnias.277

desastres, plus imprévu à la fois et plus tragique qu’aucun autre.”


(Thuc., VII, 29, 4-5).
274
MURARI PIRES, F. Op.cit., 2007, p.13.
275
Conhecido também como a crise dos reféns da escola de Beslan, na
região russa da Ossétia do norte, o conflito iniciou-se em 1°de setembro
de 2004, quando terroristas chechenos fizeram mais de 1200 pessoas
reféns, entre crianças e adultos. Durante três dias a escola esteve sob
ameaça armada e minada por explosivos. No terceiro dia de
negociações, as forças nacionais russas, autorizadas a adentrarem e
atacarem os sequestradores, deflagram o massacre dos civis. Um saldo
de 334 civis mortos, dentre os quais 186 crianças, foi o desfecho das
deliberações humanas desta crise.
276
MURARI PIRES, F. Op.cit., 2007, p.14.
277
A guerra da Síria teve seu início com uma série de protestos
populares contra o governo do atual presidente, Bashar al-Assad, em 26
de janeiro de 2011. Seis anos depois, os sírios vivem a pior crise
humanitária, desde a Segunda Guerra Mundial, em uma escalada de
violência cuja imbricada rede de interesses políticos e diplomáticos que
envolvem, além da caótica esfera doméstica síria, os (des) mandos de
nações estrangeiras. Nos primeiros dias do mês de abril de 2017, um
432
Por que outros desvios levam os valiosos ensinamentos
de sua narrativa, arrazoando-lhe, portanto, o estatuto de
uma aquisição para sempre? Indagação reiterada por
Murari Pires na apresentação de seu livro:

O tesouro é bem conhecido, depositado em A Guerra


dos Peloponésios e Atenienses. Porém, porque, como o
lembra John Barth, se a chave do tesouro é o tesouro,
que lugar a esconde, sob qual fim de arco-íris? Quem a
achou? Nos já mais de dois milênios de travessia da
obra de Tucídides pelo tempo da história ocidental,
por qual valia útil cada contemporaneidade atualizou
sua própria (re) leitura que desse a chave a desvendar
o(s) sentidos (s) desse saber histórico tucidideano?278

É à obra de Emily Greenwwod279 que, mais uma vez, se


entrelaça o novelo tuidideano, a justificar sua
perenidade. Dos estudos desenvolvidos pela autora,
destaca-se seu Thucydides and the Shaping of History,
de 2006.280 Não obstante distanciado tematicamente do

ataque aéreo químico a uma zona rebelde, a noroeste do país, teve como
alvo civis. Segundo fontes do Observatório Sírio dos Direitos
Humanos, com dezenas de mortos e centenas de feridos, em sua vasta
maioria, mulheres e crianças.
278
MURARI PIRES, F., op.cit., 2007.
279
Professora do Departamento de Classics da Universidade de Yale.
280
GREENWOOD, E. Thucydides and the Shaping of History.
Bloomsbury, 2006.
433
que concerne a tradução da História, a obra se desloca
para o tema de sua recepção/apreensão, apresentando
uma criteriosa análise sobre a ‘construção’ da arte
histórica de Tucídides.
Em seu prefácio, Greenwood estabelece dois
ditames: primeiramente, o foco de seu objeto temático:
a forma pela qual Tucídides molda nossa concepção de
história, a partir da apreensão mesma de seus leitores;
algo que nos remete à fórmula indicada pela expressão
de Francisco Murari Pires, “as ambiguidades da voz”
porque nós, leitores pós tucidideanos, o validamos; e,
por outra via, mesmo distante de seu objeto, reconhece
o padrão presente na narrativa tucidideana, apontando
para o que parece ser a tese central da História: o valor
inerente atribuído à condição humana no encadeamento
dos relatos. A despeito da profícua discussão
encaminhada pela tese central proposta por Greenwood,
optamos pelo desvio que ela oferece em sua digressão
temática.
Não obstante direcionar seus estudos para o que
concerne a composição da obra tucidideana, a autora
enaltece as abordagens voltadas ao elemento humano na
narrativa, reconhecendo-lhes a valia. Um exemplo desta
linha de estudos é a obra de H. D. Westlake, Individuals

434
in Thucydides, reeditada em 2010281, cujo objeto se
volta especificamente ao tratamento tucidideano dos
indivíduos na História, atento às divergências que
identifica em suas observações, entre a primeira e a
segunda metade da narrativa.282 O intervalo, afirma,
recai sobre a divisão estabelecida pela Paz de Nícias, em
421 a.C., que separaria o texto entre a guerra de
Arquidamo (431-421 a.C.), e a segunda parte, do
período da paz à queda de Atenas, em 404 a.C. O autor
reitera, contudo, que mesmo debruçado sobre a
condição humana como objeto de suas indagações,
“nenhum trabalho sobre a História pode ignorar o
problema da composição narrativa, por sua relevância a
quaisquer abordagens à obra”.283 No caso de Westlake, a
orientação que examina o tratamento dado aos
principais líderes narrados por Tucídides. No de
Greenwood, no desvio de seu argumento para a análise
do Livro VIII, consonante à tragédia sofocliana: “New
Theatres of War: Book 8 and Sophocles’ Philoctetes”.
A proposta da autora, mesmo associada ao corpus
central de sua tese, oferece uma interessante clivagem ao
aproximar contextualmente a narrativa histórica de

281
WESTLAKE, H. D. Individuals in Thucydides. Cambridge
University Press, (1968), 2010.
282
Ibid, p. 1.
283
Ibid, p.2.
435
Tucídides à narrativa poética de Sófocles, cuja tragédia é
encenada durante o exílio do historiador, na Trácia, em
409 a.C. Por este detalhe biográfico, a autora não
aponta ou sugere qualquer intercâmbio textual.
Enquanto o historiador narra os eventos ocorridos em
411 a.C., a peça de Sófocles seria encenada em Atenas,
dois anos depois. Ambas abordam a mesma temática,
não obstante distadas em seu cenário: a crise moral no
cenário político ateniense após o golpe oligarca, de 411
a.C. É o paralelo temático que interessa em sua reflexão.
Sobre a narrativa do Livro VIII, nota que por sua
interrupção no vigésimo primeiro ano do conflito, justo
em 411 a.C., ela se converte “no relato de uma guerra
sem fim”. No comentário à sua tradução, Jacqueline de
Romilly assim o define: surpreendente, pelo
detalhamento dramático dos eventos e pelos
comentários de Tucídides; paradoxal, por sua narrativa
pouco clara.284 Sem, contudo, deixar de lamenta-lo,
pois, “agora que apresentava grandes homens e
interessava-se, em especial, pelos papéis dos indivíduos
envolvidos, a maior parte de suas personalidades
permanece envolta em mistério.”285

284
De ROMILLY, J. Notice, op.cit., 2003, p.xi.
285
Jacqueline de Romilly indica algumas das severas críticas à narrativa
do Livro VIII em seu comentário, por exemplo, as suas em Thucydide
et l’impérialisme athénien, Belles Letres, 1947, pp.51, 192; e de F. E.
436
Para Greenwood, um reflexo das intrigantes
tramas ali descritas; espécie de desfecho trágico ao que já
havia sido anunciado, tanto nos discursos antecedentes à
deflagração do conflito, em 431 a.C.286, quanto àquele
alertado por Péricles sobre a política doméstica de
Atenas: “ela paira sobre vós como sua maior ameaça”.287
Péricles dirige-se aos atenienses por ocasião de suas
penúrias durante o período da peste, no segundo ano da
guerra. O povo (dêmos), irado contra seu líder, face os
terríveis sofrimentos vividos até então, voltava-se agora
contra ele, acusando-o de sua presente má fortuna. A
narrativa de Tucídides, então voltada à descrição de seus
“fins e méritos”288, destaca-lhe do discurso o alerta aos
verdadeiros males que pairassem sobre a pólis. Não
aqueles infligidos pelos espartanos, ou pela peste,
infortúnio de caráter imprevisível, mas aos que, pelo
hábito ateniense, fossem infligidos a si mesmos.
Muito além da trama enganosa da persuasão
discursiva, Tucídides assim descreve, no Livro VIII, o
golpe oligarca: nascido das frotas atenienses ancoradas
em Samos289, inebriadas na esperança (elpís) de maiores

Adcock, Thucydides and his History, Cambridge University Press,


1963, p.83-ss. (Idem).
286
Tuc., I, 144.
287
Thuc., II, 65, 7.
288
Thuc., II, 65.
289
Thuc., VIII, 48, 1.
437
ganhos e lucros (misthos)290, fomentadoras de maiores
enganos, e da crise moral que se instala em Atenas291,
doravante intranquila, lar dos que suspeitam (hypoptos),
sob a sombra da desconfiança (apistía).292 “Malefício de
um clima político em que, não raro, o silêncio
prevalecia”, afirma a autora.293

(...) Não obstante, Conselho e Assembleia, escolhidos


por sorteio, ainda se reunissem, não tomavam
quaisquer decisões previamente aprovadas pelo partido
dos conspiradores, e os oradores faziam também parte
da conspiração, e suas falas eram previamente
combinadas. As pessoas tinham medo quando
constatavam o seu número e ninguém do restante do
corpo político falava contra eles, temendo quando
viam o tamanho do grupo de conspiradores. Se
alguém, por acaso, se opusesse, imediatamente morria
por meios convenientes, e nenhuma investigação
acontecia para encontrar os responsáveis, tampouco
algum processo legal era instaurado, mesmo contra os

290
Thuc., VIII, 48, 3. “(...) à promessa de um soldo (µισθοῦ) pago pelo
Rei persa”.
291
O golpe, ou “revolução” oligarca tem início nas frotas ancoradas em
Samos, esperançosas da volta triunfal de Alcibíades do exílio, apoiadas
na crença de uma aliança e financiamento do Rei persa, chegando a
Atenas, onde um clima de desconfiança, perseguição e traição se
instaura entre os cidadãos. (Thuc., VIII, 48, 1).
292
Thuc., VIII, 66, 2-5.
293
GREENWOOD, E. Op.cit, 2006, p.95.
438
suspeitos. Ao invés disso, as pessoas permaneciam em
silêncio, e em tal estado de choque que cada indivíduo
considerava uma vantagem se não sofresse tratamento
brutal, mesmo tendo permanecido calado. E porque
pensassem que a conspiração fosse muito maior, seu
arrazoamento se enfraquecia, e eram incapazes de saber
qualquer coisa sobre ela, pelo tamanho da cidade e seu
desconhecimento uns dos outros. Razão pela qual não
fosse possível a qualquer indivíduo se lamentar sobre
esta situação, ou mesmo tramar vingança, pois saberia
que o homem com quem falasse lhe seria
desconhecido, ou, mesmo conhecido, mas não
confiável. A população de cidadãos se abordava com
desconfiança, como se cada homem tivesse parte com
o que estava acontecendo. Pois, certamente havia entre
os que tramavam pessoas que ninguém nunca
imaginara apoiar a oligarquia. Eram estes homens que
criavam a sensação de desconfiança entre o povo e que,
acima de tudo, promoviam a segurança da minoria
oligarca pelo estabelecimento da falta de confiança
entre o corpo político.294

294
“1
1 (...) Le peuple pourtant se réunissait bien encore, ainsi que le
Conseil désigné ar le sort, mais rien n’y était décidé qui n’eût l’accord
des conspirateurs; qui plus est, les orateurs étaient des leurs, et leur
avaient soumis d’avance leurs interventions. 2 En outre aucun des
autres citoyens ne protestait plus, par crainte, à voir le nombre des
conjures; s’il y avait par hasard um protestataire, il se trouvait
immédiatement supprimé par quelque méthode appropriée, sans qu’il y
eût ni êenquête sur les coupables ni poursuite s’ils étaient soupçonnés:
le peuple ne bougeait pas, en proie à une épouvante telle qu’on
s’estimait heureux, même en gardant le silence, de ne pas subir de
439
Enquanto o relato tucidideano, neste ínterim, volta-se
aos eventos de 411 a.C., a trama do Filoctetes, de
Sófocles295, encenada no teatro de Dioniso, em 409
a.C., tem como pano de fundo outro conflito: a divisão
interna entre os aqueus durante a heroica guerra de
Troia. A trama se resume no resgate do herói Filoctetes
da ilha de Lemnos, onde havia sido abandonado por
Odisseu, no início da guerra, após cair gravemente
ferido. Guardião das lendárias armas de Héracles, seu
retorno a Troia era tido como improvável, pela desonra

violence. 3 Croyant les conjures beaucoup plus nombreux qu’ils ne se


trouvaient l’être, les gens avaient un esprit de vaincus, et ils ne
pouvaient découvrir la vérité, parce que les dimensions de la cité et
l’ignoranceoù ils étaient les uns des autres les en reandaient incapables.
4 Pour cette même raison encore il était impossible, fût-on révolté, de
dire seulement à autrui as douleur, de façonà monter um projet de
riposte; car on êut trouvé alors pour confidente, ou bien quelqu’um
qu’on ne connaissait pas, ou bien une relationà qui on ne se fiait pas. 5
Dans le peuple, em effet, tous s’abordaient avec suspicion, au cas où
l’autre aurait part aux événements. De fait, il y em avait bien là dont on
n’eût jamais cru qu’ils donneraient dans l’oligarchie; et ce sont eux qui
portèrent à son comble la défiance dans les rapports à l’intérieur de la
masse et qui conribuèrent le plus à la sécurité des oligarches, en leur
permettant de compter sur cette défiance du peuple envers lui-même.”
(Thuc., VIII, 66, 1-5).
295
SÓFOCLES. Filoctetes. Edição bilíngue. Tradução, posfácio e notas
de Trajano Vieira. Ensaio de Edmund Wilson. São Paulo: Editora 34,
2014.
440
sofrida e os ressentimentos contra os, outrora,
companheiros de armas aqueus.
Da embaixada enviada a Lemnos para sua captura
– do que dependia o destino de toda a coletividade grega
– encarregam-se Neoptólemo, filho de Aquiles, e,
paradoxalmente, o próprio Odisseu. Toda a peça gira
em torno dos recíprocos enganos e persuasivas manobras
que os três agentes operam em nome de seus interesses,
revelando os humanos conflitos implicados em suas
respectivas deliberações, em face das contingências da
coletividade.
Sem dirimir as possíveis abordagens e reflexões da
tragédia em questão, Greenwood opta por identificar na
Revolução Oligarca de 411 a.C. o cenário empático
àquela audiência ateniense de 409 a.C., “consciente da
guerra interna em seu passado recente, e daquela guerra
externa que precisavam desesperadamente vencer, para
quem a dissenção entre os aqueus em Troia, pareceria
significativa”296. Vejamos como a autora resume suas
considerações ao paralelismo, então sugerido, entre as
duas narrativas:

As tramas paralelas que estabeleci entre o Livro 8 da


História e o Filoctetes de Sófocles sugerem uma
complexa interrelação entre ‘história’ e ‘texto’. As

296
GREENWOOD, E. Op.cit., 2006, p. 99.
441
tramas do Livro 8 correspondem às históricas, da
realidade: pessoas haviam sido mortas durante o
regime de fachada do governo dos Cinco Mil pelo,
então de fato, governo dos 400 oligarcas. Os temas
sobrepostos em Tucídides e Sófocles indicam que, para
os atenienses, a história deste período compunha um
texto rico, senão trágico, imbuído de suas próprias
tramas, potenciais para uma representação teatral. O
que se aproxima da asserção de Hans-Peter Stahl, de
que a tragédia em Tucídides emerja dos fatos em si, ao
contrário de constituir-se no resultado de uma trama
preconcebida e imposta pelo historiador (...). A relação
entre as tramas da tragédia e a história se torna mais
simples se lembrarmos que a tragédia era uma
instituição da pólis, nela atuando: a metáfora do ‘palco
político’ na política ateniense, que parece ter sido
associada às revoluções de 411 a.C. e seus desfechos,
guarda afinidade natural com o real palco político,
encenado no coração da pólis, em que atenienses
pudessem assistir a uma versão distante de seus
próprios problemas.297

297
“The parallel plots that I have traced in Book 8 of the History and in
Sophocles’ Philoctetes suggest a complex interrelationship between
‘history’ and ‘text’. The plots in Book 8 correspond to real historical
plots: people were killed behind the façade of the Five Thousand put
forward by the ‘real’ government of the 400 oligarchs. The overlapping
themes in Thucydides and Sophocles indicate that, for Athenians, the
history of this period was a rich, if tragic, text, imbued with its own
plots and potential for theatre. This comes close to Hans-Peter Stahl’s
claim that tragedy in Thucydides emerges from the facts themselves, as
opposed to deriving from a pre-formulated plot that the historian
442
Asserção que encaminha a discussão, aqui proposta, ao
breve detalhamento de alguns outros estudos
debruçados sobre o tratamento tucidideano dos
indivíduos, reforçados pelo então declarado, no proêmio
da História, acerca do caráter humano atribuído aos
eventos, elemento intrínseco à utilidade de sua obra.298

Qual Humanidade? O Caráter Humano na


Syggraphé de Tucídides
Em 1961, era encenada e transmitida, na França, uma
adaptação de Os Persas, de Ésquilo, cuja repercussão,
afirma Nicole Loraux, “foi classificada de transmissão
histórica.”299 O impacto sobre a audiência não poderia
estar simplesmente reduzido à notória beleza e qualidade
da produção. Para a autora, produzira-se naquele
episódio uma katarsis generalizada, fenômeno que leva a

imposed on his subject matter. (…) The relationship between tragic


plots and history becomes simpler if we recall that tragedy was an
institution in and of the polis: the metaphor of the political stage in
Athenian politics, which seems to have been associated with the
revolutions of 411 BC and their aftermath, has a natural affinity with
the actual political stage in the heart of the polis on which the
Athenians could watch a distant version of their own problems.” (Ibid,
pp.107-108).
298
Tuc., I, 22, 4.
299
LORAUX, N. “A Tragédia Grega e o Humano”, in: Ética. Vários
Autores. Organização Adauto Novaes. São Paulo: Cia de Bolso (Cia das
Letras), 2007, p.22.
443
plateia ao sentimento comum, experiência coletiva
remetida aos sentimentos de compaixão e temor,
suscitados pela tragédia. Mas, o que poderia estar alhures
à mera apreciação estética? O fato de aquela audiência
compartilhar um mesmo momento histórico: a Guerra
da Argélia caminhava para seu fim, mas ainda sem
definições. “Duas semanas antes da transmissão,
argelinos manifestavam nas ruas de Paris, e eram, todos
os dias, reprimidos com violência. ”300
Da pertinência catártica, considerados os
deslocamentos em tempo e espaço, a identificação era,
no mínimo, delicada, já que à França, de tradição
republicana, não correspondia aquela Atenas, vitoriosa
contra a tirania persa. A mensagem consistia,
justamente, no malogro e morte, destinados ao
imperialismo pela peripécia das esperanças, em desastre e
ruína.301 Deste algo cognoscível e familiar ao humano,
dimensão e emoção daquilo que lhe é comum, chama-se
o efeito trágico, imanente em suas atualizações.302
Murari Pires lembra que, não apenas pela
semelhança de suas imagens, mas pela similaridade de
suas ações, aproximam-se deuses e homens nas
concepções helênicas. “Mesmas paixões e sentimentos,

300
Ibid, p.23.
301
Idem.
302
Ibid, pp.24-25.
444
análogas ações e comportamentos”.303 No entanto, se na
perspectiva de suas figuras e ações, assemelham-se
homens e deuses, no que diz respeito à essência que os
define, opõem-se radicalmente:

Os homens são os mortais. Três denominações assim


especialmente os qualificam em Homero: thnetoí,
brotoí e méropes. A mortalidade - o fato de que a vida
supõe a morte - define a essência da condição humana.
A existência humana é estigmatizada pela finitude: um
fim, o termo que a morte sela, encerra necessariamente
o viver de todo e qualquer indivíduo humano. Assim, a
vida humana impõe uma duração demarcada por dois
extremos factuais: o nascimento que a principia e a
morte que a termina.304

Em seu controverso Thucydides Mythistoricus305, (sobre


o qual não nos alongaremos aqui), F. M. Cornford
afirma que, em Tucídides, a natureza humana sofre dois
tipos de influência: a que corresponde à sua própria
vontade, fruto do ato de discernir, e outra, atribuída às
vicissitudes do acaso, elemento externo que lhe escapa.
Assim definidas, gnóme e týche, cujo enfrentamento se

303
MURARI PIRES, F. “O Ser Divino e a Condição Humana” in:
Mito e História (Homero, Tucídides e os Princípios da Narrativa),
DH-FFLCH, 1995, p.1.
304
Idem.
305
CORNFORD, F. M. Thucydides Mythistoricus. Cambridge, 1907.
445
dá tanto na hora do súbito triunfo, quanto do penoso
fracasso. Antítese (gnóme-týche), abordada por Lowell
Edmunds na tese, Chance and Intelligence in
Thucydides, publicada pela Harvard University Press306.
Estudo que se debruça sobre a notável recorrência desta
antítese na História, não obstante ter sido utilizada
também por Ésquilo, Górgias e mesmo no pensamento
socrático, como afirma o autor.307
Para Edmunds, Tucídides faz amplo uso da
antítese para descrever os evidentes contrastes entre os
variados indivíduos retratados em sua narrativa, fossem
atenienses ou espartanos. No Livro IV da obra,
sobretudo: na ênfase dada às vicissitudes da fortuna no
episódio crucial da tomada de Pilos por Atenas;
vantajoso cerco, cujos desfechos figuram entre um dos
mais significativos exemplos estudados nesta linha
argumentativa.308 Mesmo reconhecendo sua pertinência,
o autor aborda a antítese tucidideana pelo caráter
atribuído aos agentes envolvidos: a Atenas, a gnóme,
base da estratégia política representada por seu líder,
Péricles, e “princípio orientador da vida ateniense”309; a

306
EDMUNDS, Lowell. Chance and Intelligence in Thucydides.
Harvard University Press, 1975.
307
EDMUNDS, L. Op.cit., 1975, p.2.
308
Episódio descrito em sua extensão na passagem Thuc., IV, 2-40.
309
EDMUNDS, L. Op.cit, 1975, p.10-ss.
446
Esparta, o respeito a týche, veneranda potência que
escapa aos meros arrazoamentos humanos.310
Segundo Edmunds, Tucídides teria se utilizado dos
conceitos para descrever as contrastantes perspectivas de
Atenas e Esparta, assim como dos vários indivíduos
envolvidos no conflito, fazendo-os – em seus referidos
discursos - se conceberem sob os termos desta antítese.
Não obstante ele próprio relatasse ou insinuasse, por
exemplo, que forças sociais e econômicas fossem as
verdadeiras determinantes no processo. Contudo,
Tucídides realmente via gnóme e týche como forças
históricas, e enxergava os eventos nesses termos, entre
outros.311
A profundidade dos argumentos propostos em
sua tese reclama por uma discussão extensa, que fugiria
ao intuito aqui proposto. Todavia, é preciso notar
minimamente como o autor estabelece a relação
supracitada. Vejamos como ele a resume, na introdução
ao seu estudo:

A diferença entre Atenas e Esparta pode ser vista nas


antíteses týche-techne e týche-gnóme. Péricles, um
ateniense par excellence, é o exponente de ambas,
techne e gnóme, especialmente desta última, no que se
refere à política inteligente. Os espartanos também

310
Ibid, p.91-ss.
311
Ibid, pp.3-4.
447
pensam nestes mesmos termos da antítese entre týche e
gnóme. Contudo, concedendo à týche um maior
espaço do que Péricles concede, além de significarem
por gnóme o persistente apego aos seus hábitos
tradicionais.312

Ao argumento de Edmunds, complementa-se o estudo


de Hans-Peter Stahl, que do novelo tucidideano desfia
os nós, a conferir (re) significações de sua utilidade. Sua
tese, Thucydides. Man’s Place in History313, (publicada
originalmente em 1966; reeditada em 2003), reforça a
valia da obra de Tucídides, centrada “nos sofrimentos
que o homem se impõe”.314 À versão original acresce
novas considerações e um capítulo conclusivo315, além
do novo prefácio. Todavia, são os argumentos
encadeados nos capítulos 7 e 8 do estudo, os que melhor

312
“The difference between Athens and Sparta can be seen in the tyche-
techne and tyche-gnome anthitheses. Pericles, who is the Athenian par
excellence, is the exponent of techne and of gnome, especially of gnome
in the sense of intelligent policy. The Spartans, too, think in terms of
the tyche-gnome anthithesis. They, however, grant tyche a wider scope
than does Pericles, and they mean by gnome a tenacious adherence to
their traditional ways.” (Ibid, p.91).
313
STAHL, Hans-Peter. Thucydides. Man’s Place in History. (1966).
The Classical Press of Wales, 2003.
314
Ibid, p. vii.
315
Capítulo dedicado aos Livros que narram a expedição à Sicília
(Livros VI, VII), intitulado “Literary detail and historical crisis point:
the Sicilian Books”, Ibid, pp.189-222.
448
ilustram a relação entre planejamento e desfecho,
apontados na narrativa tucidideana.316
O autor crê, nesta chave argumentativa,
identificar o ‘simbolismo’ no encadeamento dos fatos
relatados na História, reiterando o já proposto no
proêmio da obra, acerca da perspectiva dos humanos
conflitos ensejados no curso de suas ações. Para tal, H.-
P. Stahl volta-se, primeiramente, às razões porque paire
sobre esta uma “aura moderna”, reforçada nas
apropriações e (re) leituras ao longo do tempo, fazendo
de Tucídides “uma testemunha central à causa de
qualquer um”317, fosse qual verdade lhe atribuíssem.
Neste ínterim, critica a querela entre as
ressonâncias a ela aplicadas, pois disputam encerrá-la
entre rígidos ditames: por um lado, o cientificista, do
século XIX; e por outro, o artístico, balizado pela
dissonante tese de F. M. Cornford a lhe sugerir a leitura
mithistórica, identificada na preeminência de potências
como a fortuna (týche), a (nefasta) esperança de êxitos
(elpís), e nas personificações do excesso (hýbris), na
narrativa. Às provocativas sugestões de Cornford,
porque se opusesse à asserção de Tucídides, afastando o

316
Refiro-me aos intitulados, “Recurring structural elements of event
sequences (Books 3.94-114; 4.2-5.14)” e “Behaviour in extreme
situations (5.84-113)”, Ibid, pp.129-172.
317
Ibid, p.13.
449
ornamento maravilhoso (tò mythôdes) de seu relato
histórico318, a reação positivista, por sua vez, cuidou de
lhe restaurar a aura, recuperando sua fama de historiador
objetivo, comprometido com a verdade dos fatos.319
Às referidas projeções, H.-P. Stahl aponta os
excessos. E à inquestionável presença de týche,
sobretudo em sua já referida preeminência nos relatos do
Livro IV, considera os possíveis impeditivos que ela
impõe ao caráter rigoroso, então atribuído a obra
tucidideana. Se a condição humana se apresenta
previsível, conferindo a História sua utilidade ao porvir,
Tucídides também adverte em seu relato ao papel da
fortuna, ou àquilo que escapa a previsibilidade humana.
Assim, “se Tucídides escrevera sua obra para os líderes
políticos, a presença de týche deve ter representado,
tanto para ele, quanto para sua ‘era racionalista’,
verdadeiro estorvo.320” Como solucioná-lo? Após breves,
porém pontuais, considerações acerca de algumas (re)

318
Tuc., I, 22, 4.
319
Para o argumento ver, MURARI PIRES, F. Mithistória. São Paulo:
Humanitas: 2003.
320
A asserção de H.-P. Stahl dirige-se aos argumentos que encerram a
obra tucidideana em ditames cientificistas, sobretudo as que a
interpretam à luz da obra de Hipócrates, contemporâneo de Tucídides,
autor do corpus médico.
450
leituras ao longo do século XX321, cujas orientações
esforçaram-se por justificar a racionalidade do relato,
H.-P. Stahl conclui:

A tarefa do intérprete de Tucídides é buscar os


elementos estruturais e justificativas narrativas no
próprio curso dos eventos, que se desenvolve além dos
princípios organizacionais ditados por considerações
causais e cronológicas. Pelo fato da narrativa ser, no
mínimo, tão importante quanto os discursos, segue-se
que devamos orientar nossa tentativa de esboçar a visão
tucidideana do homem essencialmente de acordo com
o curso dos eventos. O que significa procurar e
observar o homem em ação, evitando o perigo de
assumir as declarações dos agentes envolvidos no
conflito como sendo declarações do próprio autor.322

Sobre a própria definição da expressão tò anthrópinon,


indaga-se o quanto de sua acepção traduz-se no “que é
humano”, ou “da condição humana”, (conforme as
traduções vigentes), e pode se limitar à de natureza? Ou
seja, àquilo que pertence a ordem humana, ou ao
alcance do homem decidir, deliberar e agir em

321
Para o argumento na íntegra ver o capítulo I de sua tese, intitulado
“Retrospective. (The state of Thucydidean studies; methodology)”, em,
STAHL, H.-P. Op.cit., 2003, pp. 13-36.
322
STAHL, H.-P., op.cit., 2003, p.28.
451
contraposição às vicissitudes da fortuna (týche).323
Embasado nas considerações de Tucídides, logo em
seguida à já referida expressão em seu proêmio324, o
autor toma da descrição da natureza e gravidade do
conflito, no chamado Excursus, a razão porque se
atribuísse à obra o caráter de ktema es aei. Pois, em se
considerando tanto os humanos conflitos, quanto os
aspectos externos que escapam aos seus arrazoamentos, a
dita guerra, então objeto de seu relato, acarretara para
toda a Hélade provações sem igual:

Jamais tantas cidades foram capturadas e devastadas,


umas por bárbaros, outras pelos próprios povos que
estavam em luta (algumas houve que, capturadas,
trocaram os habitantes), nem tantos exílios e mortes,
devidos quer à própria guerra, quer a revoltas internas.
Também o que por conta da tradição se dizia, mas que
a realidade muito raramente confirmava, não pareceu
inverossímil: terremotos que, ao mesmo tempo,
atingiram grande extensão de terra e foram os mais
fortes; eclipses de sol que em relação ao que se lembra
de tempos antigos ocorreram com maior frequência;
grandes secas em certas regiões e, em consequência
delas, fome e ainda o que foi causa de dano
considerável e, em parte, e destruição, a epidemia da

323
Ibid, p.29.
324
Tuc, I, 22,4.
452
peste. Tudo isso, de fato, se acumulou junto com esta
guerra.325

Aquisição para sempre, pois a perspectiva tucidideana do


conflito é uniforme, tomada pela ótica dos sofrimentos
humanos. Vaticínio já anunciado pelo rei de Esparta,
Arquidamo, então comandante das tropas que
invadiriam a Ática, devastando-a: “Este dia marcará o
início de grandes infortúnios para todos os gregos.”326
Perspectiva que prova seu potencial no episódio
supracitado, da tomada do porto de Pilos por Atenas, e
no sítio à ilha de Esfactéria, o qual resumimos
brevemente antes das considerações suscitadas na análise
da referida passagem, por H.-P. Stahl.
Segundo Jacqueline de Romilly, no sétimo ano da
guerra, entre os anos de 425 a 424 a.C., toda atenção
está voltada para quatro episódios principais: o da
ocupação de Pilos (na costa oeste do Peloponeso), o da
Sicília, que representa uma breve digressão dentro do
próprio relato de Pilos, (IV. 24-25), a campanha da
Beócia e, finalmente, o episódio na fronteira da região
da costa trácia.327 A autora crê em uma espécie de
equilíbrio nas circunstâncias narradas de lado a lado do

325
Tuc., I, 23, 2-3.
326
Thuc., II, 12, 3.
327
de ROMILLY, J. (iv), p.ix.
453
conflito, influenciando sua estrutura como um todo.328
Indica, também, um reverso entre dois polos narrativos:
o início, em Pilos, e sua antítese, ao final, com a
audaciosa campanha espartana de Brasidas, na Trácia.
Do sucesso à derrota ateniense – que precede o período
da paz de Nícias – “a fortuna muda, trocando seu lado
na guerra, e revertendo o sucesso em seu contrário.”329
O episódio da ocupação de Pilos ocupa os
parágrafos 2 a 41, exceto pela digressão relacionada às
disputas na Sicília (24-25)330, e, segundo Romilly, exalta

328
Ibid, pp.ix-x.
329
« Les deux épisodes les plus importants en occupent le début et la fin.
Le premier relate un succès des Athéniens ; la conséquence en sera de
laisser entre leurs mains des otages précieux, sous la forme de
prisonniers spartiates que Sparte ne cessera de vouloir récupérer et dont
le souci la contraindra finalement à traiter. L’épisode final, au contraire,
relate des succès du Lacédémonien Brasidas dont la campagne
audacieuse en bordure de la Thrace amène une vague de soulèvements
chez les alliés d’ Athènes et, en ébralant l’Empire, inquiète assez les
Athéniens pour les amener à traiter. Entre le premier de ces succès et
l’autre, la fortune change de camp et le sort de la guerre se joue. » (Ibid,
p.x).
330
O episódio é uma digressão para o cenário na Sicília, no qual os
siracusianos, tendo reunido suas forças em Messene (antiga aliada de
Atenas), tentavam um combate naval contra os atenienses e seus aliados
de Région. O alvo da disputa é o estreito constituído pelo braço de mar
que separa Région (promontório da Itália) e Messene, na Sicília. Nesse
encontro entre os mares da Sicília e o Tirreno as águas têm fama de
perigosas por causa das fortes correntes; é também nesta passagem onde
a Sicília é mais próxima do continente. Uma vez controlada e protegida
454
o rigor narrativo de “um dos melhores relatos de batalha
da obra”.331 Nele Tucídides descreve a tomada e
fortificação do porto cujos reversos, favoráveis a Atenas,
evidenciam a surpreendente mudança de fortuna, a
despeito de toda a humana previsibilidade no que tange
tanto a estratégia de batalha, quanto aos fatores externos
que escapam ao cálculo de ambas as tropas envolvidas.332
No fim, todo o plano espartano, cujo maior contingente
e larga experiência na região deveriam garantir seu
sucesso na retomada do local, acaba por resultar no
cerco às próprias tropas lacedemônias na ilha de
Esfactéria (em frente a baía do referido porto), pelas
atenienses ali estacionárias.333 Toda a ação converte-se,
portanto, em um impasse a ser decidido na assembleia
deliberativa, em Atenas.
É para a cena dos debates sobre a ocupação de
Pilos que se desloca a argumentação de H.-P. Stahl,
debruçada sobre o discurso dos mensageiros espartanos.
Alertando os atenienses sobre sua boa fortuna, os

do assédio ateniense, a passagem garantiria maior fôlego à resistência


siciliana às invasões do inimigo. Tucídides lembra também que o
estreito é conhecido como Caríbdis, local por onde o herói Odisseu
teria passado com seus homens em sua viagem de retorno à Ítaca.
(Thuc., IV. 24-25).
331
Idem.
332
Thuc, IV, 8-9.
333
Thuc., IV, 12-14, 2.
455
emissários lembram-nos da sempiterna máxima que a
acompanha: que os mesmos inesperados bons ventos
pudessem, inadvertidamente, mudar a direção,
revertendo a fortuna em seu contrário.334 Discurso que
nota ser diametralmente oposto ao dos coríntios,
proferido no prelúdio da guerra335, em Esparta. Segundo
seu entendimento, um “vaticinium ex eventu”336, que se
aplica tanto às lições futuras – naquela ocasião do
conflito ainda não deflagrado – quanto à, então, boa
fortuna experimentada por Atenas, em 424 a.C.:

Sábio daquele que faz da boa fortuna, devido ao seu


caráter inconstante, um uso ponderadamente calculado
(na desventura, do mesmo modo, somos suscetíveis ao
mesmo comportamento moderado), e sabe que a
guerra não espera por esta ou aquela escolha humana
sobre qualquer evento, mas segue para onde o acaso o
leve. Os homens dessa natureza são menos sujeitos ao

334
Thuc., IV, 17,4-18,5.
335
“Temos à mão também outros meios para a guerra: a defecção dos
aliados, que significaria principalmente a supressão dos tributos de onde
tiram sua força, a construção de baluartes dentro do território inimigo e
quantos outros meios que agora ninguém seria capaz de prever. A
Guerra segue muito pouco os rumos estabelecidos, pois é ela própria
que tira de si mesma a maior parte dos artifícios segundo as
circunstâncias. Nela quem a enfrenta com sangue frio é o mais firme, e
aquele que se deixa inflamar não é o que menos tropeça.” (Tuc., I,
122,1).
336
STAHL, H.-P., op.cit, 2003, p.142.
456
malogro, por não se exaltarem, confiantes em seu
sucesso: é quando a fortuna lhe sorri que estarão mais
suscetíveis a um acordo. E deste modo, atenienses,
faríeis bem em acordar conosco, assim evitando, caso
rejeitem nossa proposta, verdes o malogro de vossos
planos (o que pode acontecer), evidenciando que vosso
sucesso foi devido ao acaso – vós que podeis, sem
riscos, deixar à posteridade um renome de força e
ponderação.337

Sobre a pertinência do episódio supracitado,


notadamente menor na cadeia de eventos que leva à
ruína ateniense, em 404 a.C., H.-P. Stahl crê que ele
reforce e ilustre, particularmente, a tese tucidideana

337
« 4 C’est être sage que de faire du bonheur, en se réglant sur
l’incertain, un usage sûrement calculé (dans le malheur, de même, on
est susceptible de se comporter avec plus de jugement) et se dire une
chose sur la guerre : c’est que le lien noué avec elle n’est pas fonction du
fait que l’on désire la pratiquer dans telles ou telles limites, mais dépend
du sort qui nous conduit. Les hommes de cette sorte sont moins que
personne sujets à broncher, car ils ne s’exaltent pas, confiants dans ses
réussites : c’est quand la fortune leur sourit qu’ils seraient le plus
susceptibles de traiter. 5 Et cela, vous avez, Athèniens, une belle
occasion de le faire avec nous : vous éviterez ainsi plus tard, si jamais,
faute de nous écouter, vous voyez vos calculs déjoués (ce qui peut
arriver en bien d cas), de laisser croire que dejá dans vos succès actuels
votre supériorité était due au sort – vous qui êtes à même, sans rien
risquer, de laisser derrière vous un renom de puissance et de jugement
dans le temps futurs. » (Thuc., IV,18, 4-5).
457
declarada no proêmio de sua obra338, porque expresse o
curso da guerra da perspectiva dos agentes nela
envolvidos, e reitere o declarado sobre a sua utilidade.
Para o autor, a rejeição da proposta de paz durante a
crise do cerco ateniense em Pilos/Esfactéria é decisiva
para o tema (a guerra), e para a tese (condição humana
intrínseca aos eventos narrados) de Tucídides.339 Pois,
equiparadas às deliberações que antecedem a decisão da
deflagração das hostilidades, em 431 a.C., estabelecem,
entre a decisão de ir à guerra (Esparta), e a trágica
decisão de não a encerrar (Atenas), em 425 a.C., a
contradição das fragilidades humanas diante de suas
próprias paixões.
Acerca da tragicidade da História, considerados os
eventos da guerra de Arquidamo, e o próprio
detalhamento daqueles descritos nos livros da Sicília,
conclui: “Tucídides escreve não meramente a tragédia de
Atenas, mas num sentido mais alargado, a tragédia
humana em si.”340

Considerações finais
Da presente leitura, delineada pelos argumentos que
reiterassem a valia da História, como o já declarado em

338
Tuc., I, 1, 1.
339
STAHL, H.-P., op.cit., 2003, pp. 145-ss.
340
Ibid, p.152.
458
seu proêmio, ensejou-se destacar sua pertinência nos dias
atuais. Como tornar a narrativa histórica de Tucídides
relevante aos seus prováveis leitores, neste caso,
estudantes dos primeiros períodos de história? Em seu
artigo “Why teach Thucydides today?”, Clifford Orwin
afirma: “a forma mais importante de recepção
tucidideana em qualquer geração é precisamente sua
recepção entre os estudantes.”341
Se partirmos da experiência, sabe-se, de antemão,
que o historiador ateniense permanece impenetrável à
maioria dos que se aventuram por suas páginas nos
primeiros passos, ainda tímidos, dos primeiros anos da
graduação em história. Abordou-se neste artigo a
dificuldade da leitura de sua syggraphé, mesmo pelos
mais experientes pós-graduandos (candidatos ao
mestrado e doutorado), nas universidades brasileiras.
Impõe-se o rigor da escrita no grego – tarefa para
poucos, como salientado pelo professor Jacynhto Lins
Brandão – e, no caso das versões em outros idiomas, a
própria barreira do domínio destes no Brasil. Vimos que
o cenário, guardadas as peculiaridades e distâncias entre
os contextos acadêmicos abordados, não difere tanto
assim no enfrentamento das traduções em francês, ou
inglês.

341
ORWIN, Clifford. “Why Teach Thucydides Today? (And If We’re
At It, How?)”, in: LEE, C.; MORLEY, N. Op. cit., 2015, pp. 560-567.
459
Tucídides, uma leitura para poucos?A extensa obra
publicada pelo professor Francisco Murari Pires indica-
nos um caminho possível aos estudos de Tucídides, no
Brasil. Além do aqui contemplado, uma profícua rede de
estudiosos – não raro seus orientandos na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo – reforça a perenidade da obra tucidideana
em tantas (re) leituras que lhe ressoem os ecos daquilo
(por vezes) silenciado, tornando-a relevante.
Na caminhada, seguindo os passos de Emily
Greenwood e Hans-Peter Stahl, a relevância que
validasse a utilidade das premissas tucidideanas
convergiu-se à perspectiva humana dos eventos, fosse
nas análises que permitissem seu diálogo com o gênero
trágico, ou na perspectiva antropológica cujos desvios
nos permitissem (re) significar a obra tudidideana em
lúgubres ecos contemporâneos daqueles mesmos
(humanos) conflitos nela narrados. Pois, mesmo
guardados os distanciamentos que nos apartam dos
antigos, “é nas diferenças que podemos buscar elementos
de análise para fenômenos terrivelmente atuais”, nota
Catherine Darbo-Peschanski.342
No caso de Tucídides, pela dualidade que se faz
presente, em seu relato, entre as faculdades racionais e as

342
DARBO-PESCHANSKI, Catherine. “Humanidade e Justiça na
Historiografia Grega”, in: NOVAES, A. Op.cit., 2007, p.50.
460
humanas paixões, expressas nos desejos, impulsos e
esperanças.343 Porque evoquem as violências e distúrbios
de nossos (humanos) conflitos, arrazoam, destarte, o
estatuto de sua obra, κτῆµά τε ἐς αἰεί.

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