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Fundação Gilberto Freyre Sebrae em Pernambuco


Presidente Presidente do Conselho Deliberativo
Sonia Maria Freyre Pimentel Josias Silva de Albuquerque
Vice-Presidente Diretor Superintendente
Maria Cristina Suassuna de Mello Freyre Murilo Roberto de Moraes Guerra
Superintendente Geral
Diretora Técnica
Gilberto Freyre Neto
Cecília Figueiredo Wanderley
Organizadora Diretor Administrativo Financeiro
Fátima Quintas Gilson Pereira Monteiro

Secretárias Sebrae na Paraíba


Germana Kaercher Presidente do Conselho Deliberativo
Eliane dos Santos Nóbrega Antônio Gomes de Lima
Diretor Superintendente
Júlio Rafael Jardelino da Costa
Diretor Técnico
Marcas
Pedro Aurélio Mendes Brito
FGF e 20 anos Diretor Administrativo Financeiro
Luiz Alberto Gonçalves de Amorim

Sebrae em Alagoas
Presidente do Conselho Deliberativo
Wilton Malta de Almeida
Diretor Superintendente
Marcos Antônio da Rocha Vieira
Diretora Técnica
Renata Fonseca de Gomes Pereira
Diretor Administrativo Financeiro
José Roberval Cabral
Revisão
Norma Baracho

Projeto Gráfico
Gisela Abad
Assistente de diagramação
Waleshka Vieira

Foto da capa
Humberto Medeiros

QUINTAS, Fátima(Org.) . A civilização do açúcar.


Recife: Sebrae, Fundação Gilberto Freyre, 2007.
192 p. Il.

1. Açúcar - Brasil, Nordeste - História.


I. Título.

CDU 664.1 981(812/814)


SUMÁRIO GERAL

Nota Introdutória | 9
Apresentação - A Civilização Açucareira | 13
Manuel Correia de Andrade
Cultura, Patrimônio e Civilização | 21
Fátima Quintas
Cana, Engenho e Açúcar | 49
Fátima Quintas
A Família Patriarcal - Personagens e Costumes | 69
Fátima Quintas
Casa-Grande, Capela e Senzala | 109
José Luiz Mota Menezes
Religiosidade - Fé, Festa & Cotidiano nas Terras do Açúcar | 125
Raul Lody
Açúcar no Tacho | 133
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti
A Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernambuco | 145
Tânia Kaufman
A Moda como Representação Social |159
Fátima Quintas
À memória de Manuel Correia de Andrade,
geógrafo,
historiador,
ensaísta,
cujos estudos sobre
a terra, o homem e o Nordeste
constituem um marco
na interpretação da cultura brasileira.
A verdade é que no Brasil, ao contrário do que se
observa noutros países da América e da África de
recente colonização européia, a cultura primitiva –
tanto a ameríndia como a africana – não se vem
isolando em bolões duros, secos, indigestos,
inassimiláveis ao sistema social europeu.
Gilberto Freyre
NOTA INTRODUTÓRIA

O presente livro é resultado de uma extensa pesquisa, com foco na


contextualização do projeto turístico Roteiro Integrado da Civilização do Açúcar
– envolvendo os Estados da Paraíba, de Pernambuco, de Alagoas –, nascida
por solicitação do Sebrae, na tentativa de aprimorar “possíveis” conceitos ao
longo da sua implementação. Fazia-se essencial uma configuração da reali-
dade para adequar os pressupostos teóricos à orientação dos ulteriores pro-
cedimentos. Duas razões demandavam tal iniciativa: a) a compreensão da
abordagem socioantropológica como estrutura de fundamentação do referido
projeto; b) a necessidade de acoplar maiores conhecimentos históricos e
conjunturais dos períodos colonial e pós-colonial, alicerces da nossa socieda-
de patriarcal.
Com este propósito foram realizados quatro grandes seminários sobre
temas relevantes: Cultura, Civilização, Patrimônio, Gastronomia, Religiosi-
dade, Moda e Presença Judaica em Pernambuco. Os textos ora publicados
refletem, portanto, a pesquisa e os debates empreendidos. Houve a preocu-
pação em atender a questionamentos enriquecedores, com o intuito de ela-
borar uma síntese fidedigna das argumentações proferidas.
Frise-se que o livro-coletivo não tem a pretensão de esgotar o assunto.
Pelo contrário: o seu objetivo recai em conceitos que venham a subsidiar as
políticas de turismo direcionadas ao Roteiro Integrado da Civilização do Açúcar.
Na qualidade de Documento-base guarda as suas limitações e carece natural-
mente de acréscimos e desdobramentos – início de uma longa trajetória –,
em razão dos postulados da Ciência Social que, pela sua própria natureza,
reivindica flexibilização e, sobretudo, incursões em tempos viventes e não-
viventes. A intersecção da História com a Antropologia – ou vice-versa –
exige densos aprofundamentos, o que vem a sugerir renovadas abordagens
em torno do complexo canavieiro do massapê nordestino.

Fátima Quintas
A CIVILIZAÇÃO AÇUCAREIRA

Manuel Correia de Andrade


geógrafo, historiador e ensaísta
Manuel Correia de Andrade

1. Dos períodos em que se costumou dividir a história econômica brasileira –


pau-brasil, açúcar, gado, algodão, ouro, café, etc. –, o da cana-de-açúcar, inega-
velmente, é um dos mais importantes, por ter ocupado maior área territorial e
por haver se prolongado por cinco séculos, o maior período de nossa história.
Na verdade, não é apropriado se denominar cada um desses períodos de ciclos,
de vez que eles não foram se sucedendo através de épocas determinadas, e sim,
com uma grande disponibilidade de espaço geográfico, se expandiram, con-
quistando novas áreas, à proporção que a demanda internacional estimulava
sua expansão. A denominação de ciclos, dada por Normano (1) para cada um
desses períodos, generalizou-se a tal ponto que, no caso da cana-de-açúcar, con-
sagrou-se no Nordeste, em face do uso da expressão, “ciclo da cana-de-açúcar,”
usada por José Lins do Rego, para denominar a coleção de livros que escreveu,
nos anos Trinta e Quarenta – Menino de engenho, Doidinho, Moleque Ricardo, Bangüê
e Usina.
2. Na verdade, a cana-de-açúcar foi trazida para o Brasil, pelos coloniza-
dores portugueses, no início do século XVI; tendo a sua cultura se iniciado na
feitoria situada na costa de Itamaracá, já na segunda década da colonização,
pelo navegador Cristóvão Jaques (2). Em seguida, com a política de povoamen-
to iniciada no governo de D. João III, numerosos donatários procuraram trazer
a gramínea das ilhas do Atlântico para cultivá-la no Brasil, dentre eles, Duarte
Coelho Pereira, de Pernambuco; Jorge de Figueiredo Correia, de Ilhéus; Pero do
Campo Tourinho, de Porto Seguro; Vasco Coutinho, do Espírito Santo, e o pró-
prio Martim Afonso de Souza, de São Vicente. As capitanias que se situavam
mais próximas de Portugal, em razão do menor custo do transporte, tiveram
produção mais expressiva nos primeiros tempos, segunda metade do século
XVI, como Pernambuco, então chamada de Nova Lusitânia, e a Bahia de Todos
os Santos, onde o governo português instalara o Primeiro Governo-Geral do
Brasil, em 1549. O açúcar produzido no Brasil ensejou a formação de empresas
artesanais de transformação da matéria-prima e a implantação de grandes áreas
de plantios de cana, com o investimento de capitais, em geral acumulados por
judeus na Europa Central. Daí admitir Celso Furtado que a “plantação”
canavieira, a plantation dos ingleses teria sido o primeiro empreendimento capi-
talista em atividade agrícola (3).
Olinda, que nos fins do século XVI era a principal aglomeração urbana da
América, serviu de ponto de partida para o avanço dos canaviais: para o Sul até
Penedo, para o Norte até Goiana, então capitania de Itamaracá, e para as capita-
nias da Paraíba do Norte e do Rio Grande. Já Salvador, que crescera como capital
de toda a Colônia, seria a responsável pelo desenvolvimento da cultura canavieira
no chamado Recôncavo Baiano, de ricos solos de massapé originários da de-
composição de rochas calcárias.

15
Apresentação - A Civilização Açucareira

Assim, nessa faixa litorânea, que se estende da foz do Potenji até a Bahia
de Todos os Santos, desenvolveu-se a chamada Civilização do Açúcar, estu-
dada em profundidade pelo mestre Gilberto Freyre, em livros magistrais como
Casa-grande & senzala (4) e Sobrados e mucambos (5), enquanto as implicações
ecológicas do avanço dessa cultura seriam analisadas em Nordeste (6).
A Civilização do Açúcar permitiu a formação de uma sociedade aristo-
crática, dominada por grandes e médios proprietários de terra, os sesmeiros,
que viviam em casas grandes, ricas e luxuosas, dispondo de uma imensa quan-
tidade de serviçais, além de artífices especializados na fabricação do açúcar e da
aguardente. Os serviçais, inicialmente indígenas nativos da América, foram em
seguida substituídos por escravos negros, trazidos da África. Os escravos for-
mavam dois grupos distintos, os que trabalhavam na agricultura, sujeitos à
submissão total, e os que eram destinados aos serviços domésticos, na casa-
grande, gozando de alguns favores e regalias. Os cronistas coloniais que vive-
ram na área e conviveram com escravos e com senhores, dão um testemunho
de grande valor, dos hábitos e costumes da sociedade colonial e das transforma-
ções que ela foi sofrendo à proporção que o tempo passava; alguns cronistas
famosos como Antonil, fizeram uma análise profunda da sociedade da época.
Mas, se no século XVI, o açúcar de cana, usado como alimento, se
generalizara na Europa, o mesmo ocorreu no Brasil; por isso, à proporção
que o povoamento se expandia através de áreas menos povoadas, sobretudo
no Sertão, expandia-se também a cultura da cana-de-açúcar, quer cultivada
em pequenas parcelas, quer, às vezes, pelos próprios agricultores livres –
pequenos proprietários ou rendeiros – com a finalidade de produzir os tabletes
de açúcar, chamados em geral de “rapadura,” e a cachaça. Essas unidades de
produção eram os engenhos rapadureiros que permaneceram primitivos até
o século XX, movidos a tração animal, em geral bovinos. Enquanto isso, os
engenhos do litoral evoluíram do engenho movido a tração animal, os cha-
mados engenhos de “bestas”, para os engenhos reais movidos a água, para
os engenhos a vapor, já no século XIX, e, finalmente, para as usinas de açúcar
de pequeno, médio e grande portes.
Os engenhos rapadureiros tornaram-se famosos no Cariri cearense, na
Ibiapaba, no Brejo Paraibano, na serra de Triunfo em Pernambuco e em áreas
úmidas dos sertões da Bahia, de Minas Gerais e de Goiás.
3. As grandes regiões açucareiras de Pernambuco e Alagoas, assim como
da Bahia, no entanto, vêm perdendo espaço e importância para outras regi-
ões açucareiras, como as situadas no Baixo Paraíba, Rio de Janeiro e, mais
recentemente, em terras situadas em Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do
Sul, Minas Gerais e São Paulo (7).
Nas áreas onde as condições climáticas, as técnicas de cultivo permiti-
rem e o mercado internacional estimular, os canaviais tendem a se estender,

16
Manuel Correia de Andrade

sobretudo em um país que dispõe de grande extensão de terras e de mão-de-


obra barata e com grande mobilidade.
4. A sociedade açucareira, porém, não apresenta grande mobilidade em
ascensão social, as várias classes estão bem estruturadas e hierarquizadas e as
diferenças sociais estão estruturadas com base nas diferenças raciais. Isto, ape-
sar de ter havido, desde o período colonial, uma grande miscigenação e de
haver no Brasil leis que incriminem o preconceito racial e, mais recentemente,
procurem favorecer a ascensão social de negros, mulatos e indígenas por meio
do acesso à educação. Mesmo assim, até hoje, no Brasil, só dois indígenas conse-
guiram obter títulos de doutorado em universidades federais.
No período Imperial, alguns negros e mulatos conseguiram ascender a
postos elevados no governo e a desfrutar de prestígio na Corte, como Rebouças,
o barão de Cotegipe e o escritor Machado de Assis. Também na República, ainda
marcada por ritos e costumes imperiais, apenas Nilo Peçanha, que era mulato,
ascendeu à Presidência, embora muitos negros e mulatos tenham ocupado po-
sições de relevo e desfrutado de riquezas.
No entanto a cultura brasileira é profundamente influenciada pela cultu-
ra negra, sobretudo nos Estados onde a escravidão foi mais intensa, como na
Bahia, no Maranhão, em Pernambuco, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e em
São Paulo.
A influência do açúcar se fez sentir nos mais variados aspectos: na organi-
zação familiar, na arquitetura, na alimentação, na religião e na cultura.
Assim, em uma sociedade latifundiária, monocultora e escravagista, como
salientou Gilberto Freyre, o proprietário de terras e de escravos tinha o domínio
absoluto sobre a família, tanto no sentido restrito, aquela formada por esposa e
descendentes, como no sentido amplo, reunindo também agregados e depen-
dentes. Poucas foram as matriarcas que resistiram às determinações dos mari-
dos e, após a morte destes, a dos filhos primogênitos, como D. Ana Paes, duran-
te o domínio holandês, no século XVII, ou D. Emerenciana da Costa Azevedo
do Engenho Barra, no século XIX. Ambas casaram três vezes.
A regra geral era o marido mandar e desmandar no seu clã, “casando e
batizando”, mantendo a casa cheia de parentes pobres, de filhos, de netos e de
agregados, vivendo muitas vezes uma vida dissoluta, emprenhando não só a
esposa como também comadres pobres e remediadas e escravas da senzala, so-
bretudo as novas e bonitas. Em geral consideravam-se brancos e nobres, embo-
ra, nos primeiros séculos, muitos tivessem sangue indígena – os descendentes
de Jerônimo de Albuquerque com a índia tabajara, que foi formalmente sua
primeira esposa – ou sangue negro, como um famoso capitão-mor de Bom
Jardim que espantou o cronista inglês Henry Koster ao encontrar um mulato
investido em um cargo tão importante (8).

17
Apresentação - A Civilização Açucareira

Na realidade, a nobreza brasileira nem sempre era branca e nobre, mas


em grande parte formada por judeus, os chamados cristãos-novos ou
marranos, por mouros com forte sangue árabe e por descendentes de outros
povos do Mediterrâneo, como os Costa e os Cavalcanti, de origem italiana, e os
Holanda, oriundos da Europa Central. Com um século de Brasil e a fortuna
acumulada com a produção açucareira, formou-se uma casta, a chamada
“açucocracia” de que falava Tobias Barreto, representada por famílias tradicio-
nais, como os Cavalcanti – Rego Barros, os Albuquerque, os Wanderley, os Sou-
za Leão e os Carneiro da Cunha. Os Cavalcanti, por exemplo, tornaram-se im-
portantes a ponto de se afirmar que “quem viver em Pernambuco/ há de estar
desenganado/ ou há de ser Cavalcanti/ ou há de ser cavalgado”. Na Paraíba, em
pleno século XX, quando Epitácio Pessoa dominou a República, dizia-se que,
“quem não é Pessoa é coisa”, ou até que “quem não é Coutinho é coitado”.
Os cronistas narram o fausto em que viviam os senhores de engenhos em
suas casas-grandes como a do Engenho Patrimônio no Recôncavo da Bahia, a
do Engenho Noruega na Mata Meridional pernambucana e a de Poço Compri-
do na Mata Setentrional deste mesmo Estado, além dos sobrados suntuosos que
construíram nas cidades, como o famoso “Sobrado Grande da Madalena” no
Recife (9), e numerosos outros construídos em cidades como João Pessoa (antiga
cidade da Paraíba), em Goiana, no Recife, em Maceió, em Penedo, em São Cris-
tóvão e nas cidades baianas de Salvador e Cachoeira.
Na organização familiar, apesar de dominar o casamento monogâmico, a
influência árabe era grande; a fidelidade conjugal não era respeitada pelo ho-
mem, podendo o chefe de família procriar em vários leitos a seu bel-prazer. Os
filhos mamelucos e mulatos eram numerosos, embora se procurasse impedir
que eles casassem com os filhos da linha chamada legítima; daí os casamentos
“arrumados” pelos pais para as filhas donzelas que deveriam casar virgens e
com pessoas escolhidas, geralmente primos. Com isso, impedia-se o casamento
com estranhos, preservando-se a fortuna e a cor da família. Essa preservação
tornava-se mais branda quando o candidato, embora mulato, fosse rico ou tives-
se um título de doutor, formado em direito, medicina ou engenharia, como
ocorreu com Tobias Barreto e, certamente, com o barão de Cotegipe.
Na alimentação, a influência não européia foi muito grande, tanto com a
inclusão de alimentos indígenas, como a farinha de mandioca, ou “de pau”,
como com o uso de animais e de numerosas frutas da terra, a exemplo do caju,
do sapoti, da goiaba, do araçá, etc., além de animais de caça – tatus, veados,
cotias, pacas, antas, etc. Também os alimentos produzidos com animais e plan-
tas da África, da Ásia e da Oceania, como as galinhas d’angola, os bodes, o sorgo,
chamado de “milho d’angola”, a manga, a jaca, a banana e o a fruta-pão se
juntaram aos produtos europeus, dando à região açucareira uma culinária mui-

18
Manuel Correia de Andrade

to rica e diferenciada. A culinária à base do milho e do feijão é típica de várias


regiões do Brasil, sobretudo do Nordeste (10).
Do ponto de vista religioso, não podemos deixar de salientar o grande
sincretismo que existe entre o catolicismo romano e as crenças religiosas dos
indígenas e dos africanos. As pessoas, sobretudo das classes populares e do meio
rural, temem entrar em uma mata, à noite, por causa da ação de seres que elas
temem que existam e que as persigam, como a caipora, o saci-pererê, o curupira,
tão divulgados na literatura infantil do grande Monteiro Lobato. As crenças
espíritas de origem africana na Bahia deram origem ao Candomblé e, em
Pernambuco, ao Xangô. Essas crenças dão origem a cultos que têm grande pe-
netração entre as pessoas humildes das capitais e de cidades do interior, mas que
são também respeitadas por pessoas ligadas às classes média e alta das grandes
cidades e que foram fortemente divulgadas em trabalhos de Antropologia, como
os de Artur Ramos, de Câmara Cascudo e de Valdemar Valente e nos romances
famosos de Jorge Amado, que nos meados do século XX foi um dos romancistas
mais lidos do Brasil.
Assim, a Civilização Açucareira tem importância tanto econômica como
social na vida e cultura brasileiras; sobretudo na região nordestina, como têm a
do Ouro e a do Café no Sudeste do Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(1) NORMANO, F.J. Evolução econômica do Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1939.
(2) ANDRADE, Manoel Correia de. A terra e o homem no nordeste. 7. ed.. São Paulo: Cortez Editora,
2005.
(3) FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1959.
(4) FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 5. ed. São Paulo: Global, 2003.
(5) ______. Sobrados e mucambos. 15. ed. São Paulo: Global, 2003.
(6) ______. Nordeste. 7. ed. São Paulo: Global, 2004.
(7) ANDRADE, Manoel Correia de. Modernização e pobreza. São Paulo: Editora Unesp, 1986.
(8) KOSTER, Henry. Viagens ao nordeste do Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1942.
(9) GOMES, Geraldo. Engenho e arquitetura. Fundação Gilberto Freyre: Recife, 1997.
(10) CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2003.

19
CULTURA, PATRIMÔNIO

E CIVILIZAÇÃO

Fátima Quintas
antropóloga e ensaísta

A lembrança é a matéria viva da cultura.


O esquecimento faz parte do desapego à tradição.
Fátima Quintas
SUMÁRIO

Em torno de um possível conceito de Cultura | 25


Quadro sinótico dos Universais da Cultura | 28
O Potlach e o Kula: especificidades culturais da sociedade primitiva | 29
Origem da Cultura | 29

Em torno de um possível conceito de Civilização |30


A morfologia das Civilizações | 32

Patrimônio: o sentimento de pertença | 34


O fenômeno da remotização | 35
Patrimônio material: a vida social das coisas | 35
Patrimônio nacional: um breve histórico de suas políticas | 38

Tradição e memória | 43

Região e regionalismo | 45

Bibliografia | 48
Fátima Quintas

EM TORNO DE UM POSSÍVEL
CONCEITO DE CULTURA
O termo cultura vem do latim cultura, ae, derivado do verbo colligere, “lavou-
ra”, “cultivo dos campos”, “colheita”, ação ou maneira de cultivar a terra ou de
explorar produções naturais. Acrescente-se que é sinônimo de agricultura –
cultura agri, do latim ager, agri, campo. Fundar cultura era, pois, plantar uma
determinada espécie ou selecionar o terreno para um cultivo adequado. Por
conseguinte, a cultura representava o exercício da inteligência humana
direcionado ao tratamento dos plantios. A acepção primeira esteve ligada à
terra e à natureza, conforme o emprego ainda da semântica usual: cultura da
cana, cultura do algodão, cultura do café, etc. Depois, a idéia de colheita
assumiu dimensão mais ampla, agregando o sentido de conhecimentos adqui-
ridos. Mesmo nessa nova contextualização, percebe-se a fidelidade etimológica,
ao denotar uma outra forma de colheita – a do espólio social. Logo, a cultura
é a contribuição humana ao habitat; aquilo que o homem adicionou à nature-
za. Em outras palavras: o modo de vida de um povo, a sua cosmovisão. Por sua
vez, a sociedade é o agregado organizado de indivíduos que adotam o mes-
mo modo de vida. Em resumo: uma sociedade é composta de um conjunto de
pessoas; o modo como se comportam essas pessoas é a cultura. A expressão,
“quanto mais distante da natureza, mais próximo da cultura”, destaca a in-
terferência do homem nas coisas da natureza, a ponto de distanciar a cultura
do seu núcleo-fonte.
Faço um parêntese: a palavra cultura relacionada à pessoa erudita pro-
vém do germanismo kultur. Na Alemanha, por volta de 1793, o termo rece-
beu a significação de aperfeiçoamento do espírito humano ou de um povo.
Ironicamente, justo na Alemanha, o marechal nazista Hermann Goering pro-
nunciou a melancólica frase: “quando ouço a palavra cultura pego no revól-
ver”. A divulgação do vocábulo foi de início uma arma política de aliciamento
intelectual – kultur kampf, luta pela cultura. A rádio oficial de Berlim, duran-
te a Segunda Guerra Mundial, sobretudo entre 1942–45, repetia insistente-
mente o slogan: “Alemanha! Defensora da Cultura!”. A propaganda popula-
rizou-se. Ainda assim, a sua decodificação vincula-se à idéia do indivíduo
que congrega um maior número de conhecimentos adquiridos, aquele que ar-
mazenou um inventário intelectual digno de ser realçado. Do que se conclui
que o “imaginário coletivo” incorpora razões nem sempre desconhecidas
pela própria razão.
Uma das melhores definições de cultura – até hoje aceita e referenda-
da pelos estudiosos – foi proposta por Edward Tylor, em 1871, no século XIX:
“Um conjunto complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei,

25
Cultura, Patrimônio e Civilização

costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem


como membro da sociedade”. Ralph Linton (1893–1953) também oferece uma
definição bastante consistente: lato sensu, cultura significa a herança social e
total da Humanidade; stricto sensu, significa determinada variante da heran-
ça social. Em consonância com a visão de Linton, cultura, como um todo,
compõe-se de um grande número de culturas, cada uma caracterizando um
certo grupo de indivíduos (cf. LINTON, Ralph. O homem, uma introdução à
antropologia. São Paulo, 1943). As duas concepções citadas opõem-se distinti-
vamente: a de Tylor, descritiva, enumerativa, quase exaustiva no seu esque-
ma seqüencial; a de Linton, mais generalista e, talvez, de melhor apreensão.
Há muitas outras definições de cultura – os antropólogos Alfred Kroeber
e Clyde Kluckhohn arrolam 164. Todas, entretanto, reconhecem alguns as-
pectos que lhe são comuns:
1. a cultura, toda ela, é aprendida. O aprendizado corresponde ao traço
diferencial que a distingue da natureza, esta, a existir per se, independente-
mente da vontade do homem. Ninguém nasce investido de cultura, mas há
um legado ancestral que é repassado através da história de vida de cada um.
Portanto, o ser cultural advém de uma ancestralidade sociológica que Gilber-
to Freyre nomeia de Sociologia genética;
2. as manifestações culturais são variáveis, múltiplas e diversificadas, o
que não implica em uma valoração de superioridade de uma cultura sobre
outra; sim de aprimoramento técnico de algumas. É de grande importância
introduzir tal critério, de modo a evitar qualquer juízo de valor;
3. a cultura é ao mesmo tempo estável e mutável, operando em uma
dualidade que se assenta no dinamismo que lhe é próprio. A vibração dos
seus elementos faz parte do estímulo do grupo, inclinando-se para mais ou
para menos, a depender dos impulsos do cotidiano. Ao lado do dinamismo,
há, todavia, um continuum estruturante que evita o esgarçamento do fio con-
dutor. O tecido social resiste a uma mutação dissolvente porque o pólo de
sustentação se defende das rupturas, embora não impeça o movimento de
mudança;
4. os processos culturais se desdobram em pensamentos, idéias, insti-
tuições e objetos materiais – a cultura material se relaciona diretamente com
o imaginário simbólico e cognitivo. Embora a expressão “cultura material” se
refira ao real/tangível, nela habitam as circunvoluções do mundo simbólico e
fantasioso. Há, por efeito, uma cultura material e outra não-material. A cultu-
ra não-material responde sobretudo às dimensões de valor e subjetivação
comunitárias. Mas nem uma nem outra coexistem isoladamente;
5. a cultura revela-se como o instrumento por meio do qual o indiví-
duo se ajusta ao cenário local/total e adquire meios de expressão criadora;

26
Fátima Quintas

6. a cultura contém o princípio da universalidade – onde há agrupamen-


to humano sua presença se instala. Na sua universalidade, prevalece uma
“adequação” ao tempo e ao espaço. As modulações são inúmeras:
especificidades e dessemelhanças, semelhanças e analogias. As singularida-
des enriquecem as culturas, tornando-as únicas, sem minorar, contudo, a
perspectiva universal;
7. a cultura deriva de componentes biológicos, ambientais, psicológi-
cos e históricos;
8. a cultura é estruturada em blocos: a cultura da arte, a cultura religio-
sa, a cultura da alimentação, etc. Importa entender essa fragmentação para
perceber a rede que se forma numa dada comunidade, tal qual uma tecela-
gem com novelos interconectados;
a esses “blocos culturais” que se disseminam com características peculiares
agregam-se os chamados Universais da Cultura. Observam-se duas apreciá-
veis convergências nessa universalidade:
a. a universalidade, enquanto critério presencial, emerge em qualquer
aglomerado humano – condição sine qua non de sobrevivência, presença real
e subjetiva;
b. a universalidade, enquanto crivo de manifestações particulares –
universal x particular –, arrebanha os desejos de cada gente. Por exemplo: o
nascer, o falar, o alimentar-se, o morar, o dormir... o morrer são inerentes ao
ser humano, porém, os rituais simbólicos que circundam tais fenômenos
modificam-se de um lugar para outro. E são únicos nas suas expressões de
cultura.

***

Tentarei adaptar os enunciados dos antropólogos Edward Tylor e Clark


Wissler em um quadro sinótico, a fim de obter resultados elucidativos quan-
to à universalidade da cultura, melhor dizendo, quanto aos tópicos culturais
aderentes a qualquer cultura, seja “primitiva” ou “civilizada”. Volto a
exemplificar: os ritos do nascimento sofrem variações de acordo com os
modelos culturais; há muitas línguas faladas entre países de fronteiras contí-
guas, às vezes, até mesmo dialetos dentro de um mesmo país; mora-se em
chalés, em casas com quintais, em sobrados austeros, em ocas, em mocambos
de palha; dorme-se em rede, em cama, no chão; os ritos funerários têm um
largo espectro demonstrativo. Todo esse pluralismo de representação não
diminui o carisma da universalidade. Portanto, onde houver aglomerado
humano, hão de existir tais tópicos.

27
Cultura, Patrimônio e Civilização

QUADRO SINÓTICO DOS UNIVERSAIS DA CULTURA

Os Universais da Cultura provêm de necessidades básicas que, por sua


vez, geram necessidades derivadas numa cadeia crescente e progressiva. As socie-
dades “primitivas” possuem uma dinâmica menos acelerada, o que provoca um
volume menor de necessidades derivadas, o mesmo não acontecendo nas soci-
edades contemporâneas ocidentais, estas infladas de estímulos exógenos e
capitalizantes de novas necessidades. A partir dos desejos satisfeitos, desenvol-
vem-se as chamadas necessidades psicoculturais, que vão além das categorias de-
rivadas, provocando um forte ritmo de desdobramentos e de incentivo às trans-
formações. Exemplifico: o abrigo é uma necessidade básica; a moradia já adicio-
na componentes a mais e, cumpridas essas etapas, a sociedade gera artifícios
prazerosos – rádio, televisão, luz indireta – que se sucedem numa aspiração
excedente do homem social. O mundo capitalista consagra um leque de amplo
espectro na emulação das necessidades psicoculturais.

28
Fátima Quintas

O POTLACH E O KULA
Especificidades culturais da sociedade “primitiva”

Com o intuito de clarificar o quanto as singularidades culturais dos grupos hu-


manos apresentam-se diversificadas, escolho duas cerimônias clássicas – bem
distantes da construção mental do “civilizado” – referentes a sinais de prestígio
entre os povos “selvagens”. O Potlach é um festival institucionalizado, no qual
ocorre a destruição de bens pelo fogo: cobertores, canoas, folhas de cobre são
queimados pelos chefes rivais. Um dos chefes inicia a destruição, demonstran-
do o máximo de desprezo pela quantidade de bens destruídos, e, dessa forma,
açulando o rival a proceder dentro dos mesmos parâmetros, até que um deles
não tenha mais nada a oferecer. O excesso de desprendimento se converte num
gesto de poder – destruir o que se tem significa opulência em demasia. Destrói-
se porque se pode reconstruir, contra-senso aberrante para o mundo em que
vivemos. E a intensidade do prestígio é proporcional ao tamanho do “incên-
dio”. Tal costume é descrito detalhadamente por Franz Boas, considerado o pai
da Antropologia americana, com a finalidade de evidenciar a luta pelo status
entre os Kwakiutl, índios da costa noroeste dos Estados Unidos.
Bronislaw Malinowski, antropólogo polonês (1884–1942), apresenta o Kula,
sistema de trocas cerimoniais intergrupais e interinsulares de braceletes por co-
lares, ritual periódico dos trobriandeses, índios do Sudoeste da Melanésia (Ilhas
Trobriand), com o igual propósito de lograr prestígio – quem obtiver mais bra-
celetes ou colares será distinguido em superioridade.
Os costumes descritos mostram-se aparentemente exóticos para nós, os
ditos “civilizados”. Podem parecer estranhos à primeira vista; no entanto, quali-
ficam tendências comuns ao homem, qual seja, a ambição pelo poder. Entre “primi-
tivos” e “civilizados” os mecanismos diferem, porém os objetivos se igualam.

ORIGEM DA CULTURA

Naturalmente que não sei contar, repetindo Câmara Cascudo, como a primeira
cultura começou e nem tampouco quais os primeiros elementos que a compu-
seram. No entanto, há indícios da importância de algumas descobertas: o fogo, o
uso dos metais, a roda para a História Social da Humanidade. Em razão desses
artefatos, outros foram se desenvolvendo no arcabouço daquilo que se chama
Cultura. No primeiro momento, objetos incipientes; hoje, sofisticados em
tecnologias.
Uma pergunta me instiga: Por que os primeiros homens escolheram a
atividade da caça e da pesca como maneira de angariar alimentos de substância
viva, implicando no ato da morte de outro ser, para manter a sua sobrevivên-
cia? A colheita de frutos praticava-se de maneira embrionária e dispersiva. A

29
Cultura, Patrimônio e Civilização

agricultura, essa surgiu posteriormente e tem origem na prática da lavoura


doméstica, realizada pela mulher na condição de sedentária, logo de repassadora
dos valores da rotina. Assim, o nomadismo masculino – caça, pesca, guerra –
não facilitou a regulação da cultura; coube à mulher, portanto, a grande parcela
de contribuição cumulativa no arquivo cultural. E pode-se eleger, de uma forma
absolutamente aleatória, que a cultura ordenada, repito, a cultura ordenada e não a
cultura per se, tem a sua consolidação no ato da sistematização da agricultura – é
bom lembrar que cultura é sinônimo de agricultura (item 1). Vale igualmente
reprisar que o nomadismo não concorreu para a fixação da cultura, porque se
afastava dos fluxos regulares e ordenadores. A aventura se opõe à rotina, e dela,
a aventura, não se extraem preceitos disciplinadores de cultura. Convém alertar
que a sobrevivência, como ponto de partida, e a curiosidade racional e intuitiva
ensejaram, ao longo do tempo, um sistema cultural mais complexo.
Arqueologicamente falando, as formas humanas partem do esqueleto do
Pithecanthropus erectus – cujo crânio e um fêmur foram encontrados por Eugène
Dubois, em 1891, em Java –, passando pelo Sinanthropus pekinensis – encontrado
em Chucutien, ao sudoeste de Pequim, em 1921 –, até o Homem de Neandertal.
Esquema simplista e discutido: a ausência de descoberta de um esqueleto com-
pleto e a fragmentação de ossos – alguns, inclusive, calcinados –, deparados nas
escavações, provocam críticas e conclusões desencontradas. Faço questão de
pincelar aspectos físicos e culturais de um passado remoto para sublinhar a
complexa carpintaria da nossa construção biológico-cultural.
Como se chegar à aurora da História do Mundo? A indagação continua,
com algumas respostas pouco precisas.

EM TORNO DE UM POSSÍVEL
CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO
Civilização vem do latim civis – cidadão, civilidade, civismo, civilização, cidade
– e diz respeito à cultura das cidades. Tal conceito, como todos os conceitos,
admite uma série de variações. Karl Marx lembra que a sede da civilização antiga
era a cidade, enquanto Aristóteles ao usar a expressão zoon politikon se referia ao
homem habitante das cidades. O homem político corresponde ao que participa
da Ágora, ou seja, do debate no espaço público. Na Grécia, o espaço público – a
Ágora – configurava a polis e era responsável pela construção da cidadania. As
idéias de cidadania floresceram em diversos períodos históricos – na Grécia e na
Roma antigas, nos burgos da Europa medieval, nas cidades do Renascimento.
Mas a cidadania moderna, embora influenciada por essas concepções antigas,
possui um caráter próprio. Primeiro, a cidadania formal é hoje quase universal-
mente definida como a condição de membro de um Estado-Nação. Em segun-

30
Fátima Quintas

do lugar, tem se tornado cada vez mais significativa a cidadania substantiva, que subs-
creve a posse de um corpo de civis (leis), políticos e especialmente líderes sociais.
A civilização grega antiga foi controlada pela cidade, volta-se a falar na
polis. As cidades da Mesopotâmia, anteriores à Grécia, já utilizavam a urbe como
pólo de atividades mercantil e cultural – por exemplo, chegavam a incluir cam-
pos e plantações de tâmaras que eram cultivadas por empresários urbanos den-
tro dos muros da cidade. A situação seria revertida na Idade Média, quando a
sede da propriedade fundiária coincidia com o locus do poder – o campo – e as
cidades existiam principalmente como mercado para a troca do excedente pro-
duzido pelos nobres em seus imensos latifúndios.
A cidade ganhou força com a formação da burguesia, o burgos, embora
não se possa desprezar o caráter fundiário que a terra assumiu como poder
econômico ao longo da História. Esta proposição levou o sociólogo Max Weber
a distinguir entre civilização com base na cidade, política no sentido literal da
palavra, pois fundamentada na polis, e civilização econômica, no sentido literal
de oikos, ou família, fundamentada na economia de núcleos familiares amplos.
O Brasil se desenvolve por entre os contatos do homem econômico com o
homem político de Weber. Tal formatação induz ao modelo que Gilberto Freyre
caracterizou como RURBANO, ou seja, uma sociedade entrelaçada de costumes
e hábitos tanto rurais quanto urbanos.

Nessa civilização regional predominantemente rural – e açucareira – já se fazia


notar uma complementação urbana, com Olinda e o Recife – o Recife como
porto de mar, importantíssimo para a exportação do açúcar e para a importação
de valores europeus e africanos. (...) Se podem esses surtos de desenvolvimento
sociocultural brasileiro ser denominados civilizações é que não lhes faltaram
características urbanas de vivência e de convivência. Mas essas características,
sobre bases e sobre espaços principalmente rurais. De onde poderem ser consi-
derados exemplos de ajustamentos toscamente rurbanos. Ou antecipações de
toscos ajustamentos rurbanos (FREYRE, Gilberto. Rurbanização, que é?. Re-
cife: Ed. Massangana, 1982. p. 12).

Cumpre registrar que o conceito de civilização traz sempre a idéia de


Progresso, como uma aspiração evolutiva de princípio irreversível, “induzindo”
Oswald Spengler a apontar A decadência do ocidente, em virtude do excesso de
tecnologias e de acentuadas materializações, em detrimento de uma cultura
mais espiritual e subjetiva.
Por outro lado, Freud, no seu livro O mal-estar da civilização, defende a
tese de que a civilização resulta da repressão do desejo sexual de cada um,
isto é, da canalização da energia libidinal – então sublimada – para projetos
culturais.

31
Cultura, Patrimônio e Civilização

Como se pode observar, o conceito de civilização sofre inúmeras


releituras, e está sujeito a grandes polêmicas, egressas da própria dificuldade
que todo conceito avoca a si mesmo.

A MORFOLOGIA DAS CIVILIZAÇÕES

Uma das principais características da cultura – conforme já foi assinalado – é a


sua estruturação em blocos, o que a pulveriza em núcleos de expressão. As partes,
todavia, não são autônomas; interconectadas em firmes ligamentos, bosquejam
a espinha dorsal da árvore germinadora. É preciso entender que o todo civilizador
é maior que a soma das partes culturais. Quando digo: cultura religiosa, cultura
da habitação ou cultura alimentar, remeto aos blocos culturais de um arranjo
macro. A dimensão civilizatória engloba todos os segmentos, mas não resulta de
uma simples adição, sim de um cimento unificador que lhe confere perfil e
singularidade. Em outras palavras: a civilização é maior que a soma de suas
partes porque constrói, na sua engenharia social, um jogo de xadrez bem encai-
xado, não obstante o diversificado volume das peças.
Todos os povos são parecidos e dessemelhantes, mesmo na coexistência
milenar. O espanhol é diferente do português; o alemão, do francês; o inglês, do
irlandês. E, no entanto, estão próximos geograficamente, sofrem influências entre
si e submetem-se a uma irradiação de costumes e hábitos em suas fronteiras. Por
mais que escoem as possibilidades de contato, vizinhança, miscigenação man-
têm distinções essenciais, intransponíveis, “insuscetíveis de exportação”. O co-
mum e o peculiar se aproximam e se afastam. Esse índice diferencial representa
a marca da individualidade do coletivo, o traço próprio de uma civilização. As
demarcações físicas não são apenas físicas; trazem uma paisagem psicológica
que as define enquanto rostos comunitários. A civilização não é transmissível.
Tentarei destrinchar melhor esse postulado.
O que se transmite é a cultura, ou melhor, os blocos culturais; propagam-se
através da divulgação, da migração, da difusão. Mas o rito de passagem, no
sentido literal da locução, não acontece dentro dos parâmetros de sua verdadei-
ra gênese. Com o deslocamento ocorre uma ressignificação dos elementos cul-
turais. O maracatu, o reisado, a capoeira terão nítidos ajustamentos se pratica-
dos por povos europeus ou asiáticos. Qualquer imitação, da mais simples a mais
complexa, sofre o efeito da recriação. O mobiliário, a moda, os sistemas de lin-
guagem disseminam-se, comunicam-se de país a país, sem que neles se inclua a
civilização originária que os produziu. O espírito criador, que é a medula da
civilização, esse não vai além do contexto em que foi desenvolvido. Observa-se
um caráter inviolável no conceito de civilização. Há uma morfologia impregnada
que não se deixa macular por processos de difusão. “A cultura bizantina foi uma
das mais divulgadas e influenciadoras e a sua civilização a mais enquistada e

32
Fátima Quintas

hermética” (CASCUDO, Luís da Câmara. Civilização e cultura. São Paulo: Global


Editora, 2004. p. 46).
A essência da civilização é intransferível. Sua conservação no tempo
extrapola o imaginável. Por vezes, a civilização entra em decadência, chega a
perder os blocos culturais, fenece em meio a novas composições, nunca, contu-
do, perde a substância mater da sua configuração. O tálamo persiste. As abstra-
ções de um ethos morto continuam a refluir no imaginário dos pósteros. Os
gregos modernos não são os gregos antigos, porém as emanações de uma civili-
zação que se excedeu em pensamento filosófico inscrevem a marca de um pas-
sado que tem cheiro de eternidade. E a Grécia contemporânea vive da sua Anti-
guidade. Os gregos modernos carregam essa história civilizatória como lastro
estruturante. Recorro, mais uma vez, a Câmara Cascudo:

O Egito perdeu o idioma, a religião milenar, administração, dinamismo cultural


típico. Manteve superstições e métodos primários rurais. O clima mental é egíp-
cio em suas soluções psicológicas populares. Na mentalidade. Na literatura oral.
Na defesa legítima do seu invisível e eterno patrimônio. Não é o egípcio turco,
árabe, romano, mas o egresso das trinta dinastias faraônicas o que sentimos
ainda (CASCUDO, Luís da Câmara. Idem, p. 47).

A continuidade morfológica da civilização atravessa o sentido material.


Os elementos invisíveis não acompanham a temporalidade. Petrificam-se em
subjetivações, transcende o apenas tangível, alongam-se em cronologias não
mensuráveis. A fisionomia de cada civilização possui morfologia própria. Tem
alma, nome e matéria. Não se desfaz facilmente. Exorta o lacre da individualida-
de dentro de um inventário coletivo. Um artista, pianista ou pintor, recebe a
técnica para a execução de suas obras, mas o esplendor da execução é o que lhe
outorga o toque de genialidade: a intuição, a sensibilidade, a harmonia no lidar
com os elementos aprendidos.
A civilização se caracteriza por emissões psicológicas que desenham o es-
pírito nacional. As acepções de cultura dizem de conteúdo; a civilização, de
continente. Para o grande sociólogo Pitirim Sorokin, as civilizações podem desapa-
recer, mas elas expandem suas partículas como átomos que se libertam de um núcleo
catalisador para girar ao redor do imaginário coletivo. Os Maias, os Incas, os
Astecas – “civilizações mortas” – continuam a jorrar o caráter de seu ideário.
Gostaria de me deter na idéia de Spengler, quando anuncia a morte da
cultura em estado civilizatório. Com isso o autor atribui a decadência ao mo-
mento em que a cultura se permite afogar numa realidade sem essência, ou
seja, ao esgarçar-se em artefatos com pobreza simbólica. A Decadência do Oci-
dente de Spengler atém-se à melancolia de uma sociedade que se deixa engolfar
por traços indigentes em simbolismo. Sem a substância do espírito, sem a

33
Cultura, Patrimônio e Civilização

alma da cultura/civilização, sem o intangível do humano, a sociedade galga-


ria o triste decesso criador.
Ao se adotar a legenda A Civilização do Açúcar, recorre-se aos blocos
culturais conectados em um determinado eixo possibilitador de irradiações. Tro-
cando em miúdos: a Civilização do Açúcar é um complexo social com base na
cana, mas seguramente expandido por todos os lados e por todos os ângulos –
uma civilização que se quis horizontal, gorda, barroca, ancha de adereços, a
extrapolar o mandala paradigmático da casa-grande, da senzala, do engenho
propriamente dito, da capela... A lavoura da cana gestou uma sociedade rica em
alinhamentos entrelaçados e enroscados numa teia híbrida e plural. A planta –
da família das gramíneas – não se isolou em si, apesar de sua tirania
monopolizante; projetou toda a orquestração das rel ações sociais do passado
colonial e pós-colonial. Por efeito, A Civilização do Açúcar é bem maior do que a
cultura do açúcar. A segunda cabe na primeira. A primeira não cabe na segunda.
E a sua morfologia aglutina fluências e confluências únicas, a estampar um qua-
dro que fala de um contexto intransmissível na sua totalidade.

PATRIMÔNIO
o sentimento de pertença
O que dá dignidade a uma pessoa é a segurança de pertencer a alguma genealogia
– tanto biológica quanto cultural. O mundo está carregado de símbolos que
fazem parte da nossa biografia individual e coletiva. O homem solto no univer-
so, sem história, sem tradição, sem origem cultural, é um homem desterrado
(Fátima Quintas).

O Patrimônio representa um conjunto de bens materiais e imateriais que


compendiam a herança da humanidade. Nele reside um forte traço pessoal:
cada indivíduo recebe o seu legado num tempo e num espaço prescrito, sem
que essa pessoalidade venha a distorcer a índole ancestral e universal. O
Patrimônio reivindica o sentimento de pertença, ou seja, a dimensão de posse de
uma sucessão de realidades acasaladas ao contexto histórico. Sem essas marcas
impregnantes, a humanidade existiria no vácuo, desintegrada dos elos afetivos
e psicológicos. O real só se funda na memória e na idéia de pertencimento. O
presente é conseqüência de uma memória transfigurada. Importante acentuar:
a única forma de se ter acesso à captação do presente advém da introspecção e
da busca das reminiscências pessoais. E o que mais pertence ao ser humano se-
não a sua própria história? A lucidez do passado – tradição – legitima o senti-
mento de pertença, fortalecendo o espírito de identidade.

34
Fátima Quintas

Todo homem – homem, no sentido de humanidade – necessita aprofundar


suas raízes para dilatar os laços de “propriedade” que lhe pertencem. À medida
que a dominação de si mesmo acontece, isto é, que o legado se introjeta verda-
deiramente, o calço para a formação da personalidade se fortifica. Quem não
pertence a nada nem a ninguém levita por entre uma existência desagregada e
dissoluta. Do que se infere: o patrimônio é estruturante, porque a consciência do
sentimento de pertença garante a vértebra da identidade e do equilíbrio humano.
Em última instância: ter identidade é pertencer a um patrimônio inalienável – o
do espólio ancestral.

O FENÔMENO DA REMOTIZAÇÃO

O nascer biológico demanda a ideologia da retrospecção. A atitude remissiva se


promulga através das circunstâncias culturais que se processam por entre
internalizações nem sempre conscientes. Quanto mais inconscientes as
internalizações, maiores os efeitos de permanência. Para tanto, a “cognição cul-
tural” – ato de conhecimento de costumes, hábitos, etc. – deve desprezar artifí-
cios de aprendizado e exaltar as naturais absorções. Todos os valores alheios à
nossa experiência pessoal trazem a conotação de efemeridade, porque a
internalização não se fez espontaneamente. A cognição, para ter autenticidade,
invoca, portanto, a legitimidade da remotização. O que não é nosso é alienígena,
isto é, está fora do tronco genético da cultura.
Ora, se a criança recebe tempos passados, presentes, futuros, em momen-
tos não fragmentados, a ela não lhe pode faltar a inserção de uma história já
construída – âncora da remotização. Digo em outras palavras: o sentido do que é
remoto oferece sustentação à biografia do homem como pilar inerente à narra-
tiva pessoal, que tem começo muito antes da data de nascimento. O que é remo-
to é anterior ao tempo social vivente, mas pertence ao tempo histórico de cada
um. Exemplificando: a remotização do brasileiro não é igual à remotização do
dinamarquês. Conseqüentemente, o fenômeno da remotização valida o sentimen-
to de pertença. É, pois, a introjeção de um remoto não-vivente que chancela o
mérito dos símbolos viventes. Em última análise: a remotização consolida a or-
dem da pertença.

PATRIMÔNIO MATERIAL
a vida social das coisas

A cultura material corresponde à forma aparentemente tangível de relação com


o mundo. Nenhum objeto tem somente um uso funcional, mas, sobretudo,
significação e representação para a época – história – e para o espaço – geogra-
fia. Não se deve pensar num artefato isoladamente; há que se entendê-lo no

35
Cultura, Patrimônio e Civilização

simbolismo e no subjetivismo que dele se desprendem. O toucador não reve-


la apenas um móvel de madeira, sucupira ou amarelo vinhático: nele rostos se
projetam, cabelos se penteiam, mãos se agitam na construção de uma imagem
feminina ou masculina. A moda, o portar-se, o alimento não coexistem dissociados
da convivência com o homem; são as relações sociais que dão pigmentação ao
subjetivismo das coisas. Os objetos oferecem um grande suporte à morfologia
das diferentes culturas. Spengler já dizia que a casa reflete a forma de ser de
quem a habita (cf. A decadência do ocidente. Rio de Janeiro: Zahar, 1964).
O vestuário designa uma das mais fortes expressões de cultura. O fraque,
o colete, os espartilhos, as saias longas e franzidas patenteiam “insígnias de pres-
tígio”, no qual o ócio se torna quase obrigatório. A cadeira de balanço e a rede
sugerem a imagem de lerdeza que a cultura patriarcal tanto preconizou. Uma
fotografia, supostamente corriqueira, remete a ilações diversas: o jeito de
empertigar-se, o toque do penteado, a brilhantina no cabelo, o olhar triste acu-
sam sensações transmitidas de um tempo que parece findo, mas não o é; os
vestígios vão seguindo um destino cultural, de gerações a gerações.
Gilberto Freyre foi o primeiro antropólogo brasileiro a dedicar um interes-
se especial à Sociologia das Coisas: a apalpar a cultura material como algo meta-
tangível; a sentir as “nuances sensoriais” de uma longa mesa de jacarandá; a
absorver os sentimentos que transitaram dentro da casa-grande. E afirmou, sem
tergiversar: “A história social da casa-grande é a história íntima de quase todo
brasileiro. [...] Nas casas-grandes foi até hoje onde melhor se exprimiu o caráter
brasileiro” (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro/São Paulo:
Editora Record, 2000. p. 56).
O ânimo proustiano de Freyre – Marcel Proust (1871–1922) foi um roman-
cista francês que facultou às coisas um valor sentimental – robustece o seu dese-
jo de tocar nos objetos para deles extrair significados mais amplos. Não é sem
razão que no seu livro Um engenheiro francês no Brasil, Gilberto inclui o diário de
Vauthier – engenheiro e arquiteto que permaneceu no Brasil entre 1840–1846 –
, assim como as suas cartas, datadas de 1840. Saliente-se que o diário do francês
foi descoberto por Paulo Prado em alfarrabista parisiense e enviado como regalo
a Gilberto Freyre – tanto que o livro supracitado é oferecido à memória de Paulo
Prado. Os comentários do francês denotam uma acuidade extraordinária no
que se refere ao detalhismo da arquitetura urbana e doméstica:

O que constitui uma cidade e lhe faz a beleza são as casas; portanto, nunca é
demais aproximá-las. Tal é ainda hoje a teoria dos brasileiros de antiga linha-
gem, para os quais o alargamento das ruas parece uma aberração. É ainda a
influência dessa idéia que explica a ausência completa de vegetação no centro das
cidades intertropicais. A vegetação significa o campo, e as árvores não são julgadas
dignas de se mesclarem às obras do homem. [...] Na arquitetura doméstica, os

36
Fátima Quintas

costumes são o espírito que engendra, a alma que dá forma à matéria (FREYRE,
Gilberto. Um engenheiro francês no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio,
1960. vol. II, p. 802, 814-815).

É o próprio Freyre que reconhece em Vhautier sua sensibilidade para


com a arquitetura do século XIX em Pernambuco:

Como deixar [...] de exprimir o meu espanto ao ver nas cartas de Vauthier, ainda
mais do que no seu diário, voltar-se o francês para as casas-grandes e os sobra-
dos de Pernambuco da primeira metade do século XIX, com o olhar de quem,
fixando-se por mais tempo no problema, acabaria talvez descobrindo aí os prin-
cipais pontos de referência para o estudo da nossa história social (FREYRE,
Gilberto. A casa brasileira. Rio de Janeiro: Grifo Edições, 1971. p. 82).

A importância concedida por Freyre à cultura material é reverenciada por


vários escritores, entre eles o historiador inglês Peter Burke que realça, no seu extra-
ordinário artigo A cultura material na obra de Gilberto
Freyre, a antevisão do escritor pernambucano. Ao mes-
mo tempo, Burke analisa as possíveis fontes que in-
fluenciaram esse olhar visionário, citando alguns es-
tudiosos que antecederam a Freyre: Franz Boas com
seu rigor etnográfico e espírito descritivo; Oswald
Spengler e os enunciados sobre a casa; Thorstein
Veblen, famoso sociólogo que se ateve com precisão
ao valor das coisas; Walter Peter (1839–1894), escritor inglês que buscava compreen-
der como as pessoas viviam, o que elas eram realmente, e como elas se mostravam,
este último também bastante enfatizado por Maria Lúcia Pallares-Burke no seu
livro Gilberto Freyre: Um vitoriano dos trópicos (São Paulo: Ed. Unesp, 2005).
A cultura material tem, sem dúvida, um lugar exponencial na História das
Mentalidades. É símbolo. É complexo social. É reflexo de um contexto gerado
pelo homem em um período histórico e em uma região distinta. Gilberto Freyre,
ao se inclinar para a narrativa íntima do brasileiro, não poderia esquecer os
artefatos que cercaram a vida dos antepassados, como afirma Peter Burke no
artigo acima citado: “Não seria possível uma história da vida cotidiana sem as
evidências da cultura material, assim como a história da cultura material seria
ininteligível se esta não fosse colocada no contexto da vida cotidiana” (BURKE,
Peter. “A cultura material na obra de Gilberto Freyre”. In: FALCÃO, Joaquim;
ARAÚJO, Rosa Maria Barboza de. [Orgs.]. O imperador das idéias. Rio de Ja-
neiro: Fundação Roberto Marinho/Topbooks, 2001. p. 68).
As coisas possuem vida. Não são inertes na sua concretude. O que faz
delas, coisas, dotadas de alma e matéria, é a sua interação com o homem.

37
Cultura, Patrimônio e Civilização

Cada móvel com um sigilo, com uma cumplicidade, com um afeto quase
externo e dizível. Um aparador do século XIX guarda silenciosamente histórias
de várias gerações. E como são discretos no seu gesto confessional!
A representação do que é táctil ultrapassa a simples materialidade física –
matriz indispensável para o acervo da História. Basta pensar nas escarradeiras,
nas conversadeiras, no urinol, na cama de solteirão,
nas namoradeiras, no hábito de deixar um pouco de
comida no prato como sinal de boa educação, nos
lustres dos salões, nas cortinas pesadas a esconder o
ambiente, nos severos leitos nupciais... para ideali-
zar-se os interiores das moradas dos séculos XVII,
XVIII e XIX. As fachadas das casas exprimem teste-
munhos valiosos. Esclareço o tema com mais uma
citação de Freyre:

Há casas cujas fachadas indicam todo o gênero de vida dos seus moradores. Os
mais íntimos pormenores, os gostos, os hábitos, as tendências. Mas não são
apenas as casas que falam e revelam a vida, o espírito e o gosto dos donos. Falam
também por sinais esses outros surdos-mudos que são os móveis (FREYRE,
Gilberto. Artigos de jornal. Recife: Edições Mozart, [s.d.]. p. 82).

PATRIMÔNIO NACIONAL
um breve histórico de suas políticas

A primeira iniciativa brasileira relacionada à proteção de monumentos históri-


cos data de meados do século XVIII, precisamente de 5 de abril de 1742. (cf.
LEMOS, Carlos A. C. O que é patrimônio histórico. São Paulo: Brasiliense, 1981). O
nobre português, D. André de Melo e Castro, Conde de Galveias, Vice-Rei do
Estado do Brasil, entre 1735 e 1749, ao tomar conhecimento das intenções do
governador de Pernambuco, Luís Pereira Freire de Andrade, enviou uma carta
de protesto pelo projeto que transformaria o Palácio das Duas Torres, construído
pelo Conde de Nassau, em quartel de tropas locais. O teor da carta demonstrava
indignação no trato com a obra holandesa, esta, merecedora da integridade que
honra as construções públicas de natureza estética e artística.
O segundo registro remete a um século depois, quando o ministro do
Império, Conselheiro Luiz Pereira de Couto Ferraz, mais tarde Visconde do
Bom Retiro, ordenou aos Presidentes das Províncias que guardassem as cole-
ções epigráficas, assim como cuidassem da reparação dos monumentos, de modo
a não dilapidar as inscrições neles gravadas – a epigrafia é a parte da paleontologia
que estuda as inscrições, isto é, a escrita antiga em matéria resistente (pedra,
metal, argila, etc.), incluindo sua decifração, datação e interpretação.

38
Fátima Quintas

Três décadas depois, o chefe da Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacio-


nal, Alfredo do Vale Cabral, percorreu as províncias da Bahia, Alagoas,
Pernambuco e Paraíba, recolhendo a epigrafia dos monumentos da região (cf.
Proteção e revitalização do patrimônio cultural do Brasil: uma trajetória, Ministério
da Educação e Cultura, Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
Fundação Nacional Pró-Memória, Brasília, 1980).
O Imperador D. Pedro II sempre demonstrou simpatia pelos estudos his-
tóricos, mas apesar dessa vocação “acadêmica” nenhuma providência foi toma-
da durante o seu reinado para proteger os monumentos nacionais.
Com o advento da República, alguns escritores, tais como, Araújo Viana e
Afonso Arinos, preocupados com a questão do patrimônio nacional, reivindica-
ram medidas efetivas, porém não obtiveram sucesso.
Em 1922, o arquiteto Lúcio Costa, ainda estudante – formou-se em 1924 –
, empreendeu uma viagem pelas cidades históricas de Minas, com a intenção de
realizar um estudo sobre os monumentos artísticos da região. Suas impressões
foram decisivas. Ao chegar a Diamantina, maravilhado, confessa que caiu “em
cheio no passado no seu sentido mais despojado, mais puro; um passado de
verdade, que eu ignorava, um passado que era novo em folha para mim. Foi
uma revelação”. (Apud PUNTONI, Pedro. “A casa e a memória: Gilberto Freyre e
a noção de patrimônio histórico Nacional”. In: FALCÃO, Joaquim; ARAÚJO,
Rosa Maria Barboza de. [Orgs.]. O imperador das idéias. Rio de Janeiro: Fundação
Roberto Marinho/TopBooks, 2001. p. 27). Para Lúcio Costa, a arquitetura brasi-
leira colonial emblemava o que havia de mais recôndito na formação do brasilei-
ro e, vê-la de perto, transportava-o para o sentimento de origem, o núcleo inici-
al responsável pela consubstanciação do espírito nacional. O desvanecimento
do menino arquiteto denunciava o sentimento de pertença necessário à elabora-
ção da personalidade individual e coletiva. E a epifania de Diamantina provo-
cou-lhe um forte insight:

Quem viaja pelo interior de Minas percorrendo suas velhas cidades, Sabará,
Ouro Preto, São João Del-Rei, Mariana e tantas mais, não pode deixar de ter a
impressão triste que tive, a pena infinita que se sente vendo completamente
esquecidos aqueles vestígios tão expressivos do passado, de um caráter tão mar-
cado, tão nosso. Vendo aquelas casas, aquelas igrejas, de surpresa em surpresa,
a gente como que se encontra, fica contente, feliz, e se lembra de cousas que a
gente nunca soube, mas que estavam lá dentro de nós. Não sei – Proust devia
explicar isso direito. (“O Aleijadinho e a arquitetura tradicional”, artigo pu-
blicado na Edição Especial de O Jornal, em 1929).

Quando Manuel Bandeira escreve, em 1938, seu Guia de Ouro Preto


(informe-se que, em 1934, Gilberto Freyre publicou o primeiro Guia de cida-

39
Cultura, Patrimônio e Civilização

de no Brasil, o Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife, com


ilustrações de Luís Jardim, e em 1939, Olinda – 2º Guia prático, histórico e senti-
mental de cidade brasileira) partilha do sentimento comum ao seu grupo-geração
– o de fisgar da arquitetura vernacular a verdadeira história do Eu brasileiro. Dessas
casas proviam os fantasmas do passado. A vida dos que lá moraram dizia da vida dos
indivíduos que integram a Nação brasileira. O poeta Bandeira, assim se coloca:

Para nós brasileiros, o que tem força de nos comover são justamente esses
sobradões pesados, essas frontarias barrocas, onde alguma coisa de nosso come-
çou a se fixar. A desgraça foi que esse fio de tradição se tivesse partido (BAN-
DEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. Rio de Janeiro: Editora da Casa do
Estudante do Brasil, 1957. p. 43-45).

Retorno à cronologia das políticas adotadas em defesa do patrimônio na-


cional. Em 1924, ocorre a histórica viagem a Minas, capitaneada pelos modernis-
tas de São Paulo – Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral,
acompanhados de d. Olívia Guedes Penteado, René Thiollier e Godofredo da
Silva Telles. Tal viagem simbolizou um marco na história do patrimônio brasilei-
ro e teve o propósito de levar o poeta francês, Blaise Cendrars, a conhecer as
cidades históricas mineiras. O esclarecedor artigo de Pedro Puntoni, já
referenciado, traz à tona inúmeras questões de grandeza incontestável. Alerta:

O fato dos nossos modernistas irem mostrar ao homem da vanguarda francesa


nossas velhas cidades, com seus casarões e igrejas carcomidas pelo tempo, não
passa de aparente paradoxo. Antes de tudo, revela muito da necessidade de cons-
trução de uma identidade no bojo do movimento de atualização estética
(PUNTONI, Pedro. Op. cit., p. 83).

Provavelmente Puntoni se refere à avidez inovadora da Semana de Arte


Moderna, aconte cida em São Paulo, em 1922. É da máxima relevância frisar que
o autor não lhe subtrai o devido valor – o que é sabido e consabido por todos os
que cultuam uma vida intelectual. O que não se deve, entretanto, aqui realço
uma opinião pessoal – que fique bem clara, apenas opinião pessoal –, é procla-
mar unilateralmente uma convergência quase fatalista dos sopros lançados pela
Semana de Arte Moderna. Entre exaltações e extremismos, há um equilíbrio que
deve nortear a emoção mesmo daqueles que empunharam bandeiras
vanguardistas. O Brasil “transigiu” na pintura, na prosa, na poesia, enfim, na
arte e na escrita, mas “transigiu” basicamente na forma que, embora alavancada
pelos ecos modernistas, jamais deixou de imprimir o ex-libris da brasilidade. A
Semana de Arte Moderna sintetizou um divisor d’águas: para uns, com fustigantes
criações; para outros, com derrotismos importados aleatoriamente.

40
Fátima Quintas

Não é demais repetir: Gilberto Freyre sempre se aliou à cultura material,


vista pelo ângulo arquitetônico e pelo aspecto interacional homem-artefato. Já
havia se impressionado com as palavras de Lúcio Costa, publicadas em 1929, em
edição especial de O Jornal, tanto que as utilizou no Prefácio à primeira edição
de Casa-grande & senzala. Aproveito para transcrever parte da carta de Manuel
Bandeira, escrita em 23 de março de 1935, de Cambuquira, Minas Gerais, na
qual se observa a troca de idéias entre os dois amigos, ambos susceptíveis aos
encantos dos casarões, dos telhados, das ruas antigas.

Afinal desencantei a viagem a Cambuquira. Estou aqui desde o dia 15, e parece
que as águas estão me fazendo grande bem. [...] Anteontem fui numa excursão
a Campanha, cidadezinha morta que fica a uns ¾ de hora daqui. Faz agora
justamente 30 anos que cheguei lá carregado. Verifiquei que era um camelo em
1905, pois não senti então a delícia que são aquelas ruas tão simples, tão modes-
tas, com os seus casarões quadrados, quase todos com bicos de telhado em forma
de asa de pombo. Há lá uma rua Direita (hoje tem nome de gente) que é um
encanto: tão genuinamente brasileira, tão boa, dando vontade de morrer nela
(Arquivo da Fundação Gilberto Freyre).

O poeta e o ensaísta se complementavam, desde então, em claras aproxi-


mações. Freyre, ao antecipar os estudos de vida íntima na Antropologia, numa
época em que a abordagem positivista exortava os “dogmas” da metodologia
científica, lança novos olhares para o social, trazendo a lume discussões verda-
deiramente madrugadoras. Tanto que o primeiro estudo sobre a arquitetura
vernacular brasileira publicado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, em 1937, tem a assinatura de Freyre.
A mentalidade patrimonial começava a florescer de maneira sistêmica. Já
não era possível frear os apelos de um grupo de intelectuais empenhados na
luta pela criação de um órgão ligado à defesa dos monumentos nacionais. Cou-
be a Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde (1934–45), transformar
a iniciativa em lei federal. São suas as palavras:

Nos princípios de 1936, sendo Ministro da Educação, e às voltas que então já


andava com os nossos múltiplos assuntos culturais, lembrou-me mandar fazer
o levantamento da obras de pintura, antigas e modernas, de valor excepcional,
existentes em poder dos particulares, na cidade do Rio de Janeiro. [...] Mas vi
que isso só, sendo embora coisa relevante, não teria o sentido compreensivo e
geral de um cometimento de tal natureza. [...] A idéia inicial, deste modo, se
transformava num programa maior que seria organizar um serviço nacio-
nal para a defesa do nosso extenso e valioso patrimônio. [...] Logo me ocor-
reu o caminho: Telefonei para o Mário de Andrade, então Diretor do Departa-

41
Cultura, Patrimônio e Civilização

mento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Expus-lhe o problema e lhe pedi


que organizasse o projeto. (CAPANEMA, Gustavo. “Rodrigo: espelho de
critério”, In: A lição de Rodrigo. Recife: Amigos do DPHAN, 1969, p. 41).

Consigne-se, por dever de justiça, que Rodrigo Melo Franco de Andrade


exerceu um papel imprescindível na implantação desse programa, razão pela
qual, em 1936, foi nomeado diretor do recém-criado Serviço do Patrimônio His-
tórico e Artístico Nacional (SPHAN), ainda em fase de experimentação, embora
aprovado pelo presidente da República, Getúlio Vargas. Finalmente, no dia 30
de novembro de 1937 foi promulgado o Decreto-lei nº 25, efetivando a institui-
ção em moldes oficiais. O projeto de Mário de Andrade recebeu algumas altera-
ções de Rodrigo M. F. de Andrade, não sendo afetado, entretanto, nas suas
linhas gerais. A chamada “fase heróica” do SPHAN estende-se de 1936 a 1967,
período da gestão de Rodrigo M. F. de Andrade, o grande incentivador das
políticas públicas direcionadas ao tema.

Ainda em 1930, quando o único serviço de proteção do patrimônio se estruturava


no Museu Histórico Nacional, sob a direção de Gustavo Barroso, Rodrigo M. F.
de Andrade pensara em nomear Gilberto Freyre para a função. O que lhe impe-
diu foi a situação política do sociólogo, que se via, então, no exílio em Lisboa. [...]
Segundo Lauro Cavalcanti [no artigo “O cidadão moderno”, Revista Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, 24; p. 114, 1996], quando o SPHAN
foi finalmente criado, ter-se-ia cogitado a nomeação do sociólogo para diretor
(regional?), o que foi vetado por Agamenon Magalhães. Em uma carta de 14 de
janeiro de 1938 endereçada a Capanema, o interventor recusou a indicação por
esse “haver participado do movimento comunista de 1935” [sic] e se recusado,
em 1937, “a fazer uma preleção anticomunista, ordenada pelo reitor”
(PUNTONI, Pedro. Op. cit., p. 91-92)

Durante o “período heróico”, comandado por Rodrigo de M. F. de


Andrade, ocorreram 689 tombamentos, sendo que 529 referentes à fase colonial,
confirmando a importância da arquitetura vernacular do oitocentos, como
arcabouço fundante da nossa identidade. Não há como hesitar: a cultura mate-
rial representa a grande depositária do espaço arquitetônico e social da memória
coletiva do brasileiro – “é um passado que se estuda tocando em nervos, um
passado que emenda com a vida de cada um”, adverte Gilberto Freyre (Casa-
grande & senzala, p. 56).
A segunda etapa do SPHAN é chefiada por Renato Soeiro e vai de 1967 a
1979, devendo-se assinalar que, em 27 de julho de 1970, por Decreto, o Ministé-
rio da Educação e Cultura transforma a Diretoria do Patrimônio Histórico, Ar-

42
Fátima Quintas

tístico Nacional em Instituto, o IPHAN. Resumindo o caminho percorrido pelo


Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), elenco:
a. a sua criação, no dia 30 de novembro de 1937, Decreto-lei nº 25, com o
nome Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN);
b. transformação em Diretoria (DPHAN), em 2 de janeiro de 1946, pelo
Decreto-lei nº 8.534;
c. Finalmente Instituto (IPHAN), em 27 de julho de 1970, por novo Decre-
to-lei nº 66.967, designação até hoje utilizada.
Há nomes que devem ser lembrados na luta pelo patrimônio: o de Aluízio
Magalhães – idealizador do Centro Nacional de referência Cultural –, o de Pau-
lo Duarte, o de Mário Melo, o de Aníbal Fernandes, o de Airton Carvalho, entre
outros. À obstinação e à tenacidade de um grupo de intelectuais brasileiros do
Nordeste, do Sudeste e de outras regiões, deve-se o surgimento de um pensa-
mento voltado para a riqueza do nosso patrimônio vernacular. Sem essa dispo-
sição para inventariar a cultura material do Brasil, teria sido muito difícil recapi-
tular os meandros por onde transitaram os nossos antepassados.

***

Preservar não é somente guardar o artefato, mas mantê-lo vivo na sua


contextualização. Os museus, por exemplo, requerem um tratamento de todo
especial, de modo a escapar do isolamento e de um possível estatismo do objeto
exposto. A sociedade se mostra como uma tecelagem cuja urdidura se fabrica
em bases relacionais – fenômenos entrançados e interativos. A cultura material
faz parte dessa trama cheia de ramificações. As genealogias objetivas e subjetivas
“nomeiam” as entrelinhas do fato social, não importando se egressas de
concretudes visíveis ou de subterfúgios implícitos à realidade em mira.

TRADIÇÃO E MEMÓRIA
Os nexos de uma consciência vivente perduram enquanto há memória. O traço
de individualidade tributa às lembranças acumuladas um crédito de valor
intransferível. Recordar pode vir a ser uma leveza de fruição ou um peso trau-
mático do passado que vai e que vem num círculo vicioso. O escritor colombia-
no Gabriel García Márquez diz na epígrafe da sua autobiografia: “A vida não é a
que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”.
Desse contar ribomba a construção existencial de cada um. As biografias hu-
manas comportam vivências extraordinárias, ou seja, experiências para além
do que é plausível à observação ordinária. A elas outorga-se a consistência
ontológica, porque a ausência do não feito redundaria no nada. Na memória
habita a textura do ser.

43
Cultura, Patrimônio e Civilização

Somos tempos: passado, presente, futuro. O passado conserva a soli-


dez do acontecido – fundação do ciclo vital do indivíduo. Há um passado-
vivente e um passado não-vivente. O que quero dizer com isso: o passado-vivente
resulta das experiências de ontem, de um passado participante da nossa histó-
ria, o que já foi vivido em sentido pleno. Ao distanciar-se da presentificação, o
factual adentra em um tempo que se aloja na memória, resistindo, assim, às
várias “interrupções” e recriando-se no processo da transmutação. As lembran-
ças cabem nessa memória, mas já não são vivências, e sim recordações transfi-
guradas. Do passado-vivente, a memória reelabora o experienciado através de
uma narrativa fantasmática. O passado não-vivente é o que se desloca até a
ancestralidade – herança recebida de uma história da qual não participamos,
ainda que sujeito posteriori desta história, então incrustada dentro de uma famí-
lia, de um sistema de parentesco, de alianças afetivas, enfim de uma comunida-
de, ou seja, daquilo que é comum ao grupo. O passado-vivente e não-vivente con-
cebe pactos de pertença, de modo a ajustar o homem às suas referências psicoló-
gicas e culturais.
Tradição, do latim traditio, traditionis, derivado do verbo tradere, significa
entregar, transmitir, legar à geração seguinte. Embora o verbo se referisse, de
início, à transmissão de coisas triviais, ao termo acresceram-se as reservas
marcantes de um passado que repercute no presente e, presumivelmente, no
futuro. Logo, tradição é a transmissão oral de fatos, lendas, acontecimentos, de
idade em idade, de geração em geração através do fio condutor dos testemunhos.
Aqui dois aspectos sobressaem: o da oralidade e o da transmissão. O da oralidade
reúne a concepção primeira, no sentido de veicular os costumes e hábitos que
incidiam no imaginário coletivo dos povos ágrafos. Tal versão perdurou por lon-
go tempo e ainda perdura com bastante vigor ao acoplar os nichos de contami-
nação de uma realidade para outra, isenta de registros escritos. Naturalmente
que a tradição vem sofrendo reelaborações e, na contemporaneidade, o signifi-
cado se alarga, abarcando escrituras reveladoras de passados. Entretanto, os
estudiosos mais ortodoxos aceitam a tradição apenas no seu viés de oralidade.
Na tradição escrita perder-se-iam os elementos de espontaneidade e a força da
narrativa verbal, ou seja, a força do significante.
A transmissão se acasala à tradição numa simbiose perfeita. Não se pode
pensar uma sem a outra. Ambas se equivalem em grau e intensidade. Jamais
acontecerá tradição sem transmissão, embora nem toda transmissão seja tradi-
ção. Transmitir não é sinônimo de tradição; tradição é sinônimo de transmissão.
Por conseguinte, a etimologia da palavra tradição conserva a chama da
historicidade.
O homem tem na tradição o seu ponto de origem. E precisa não só recebê-
la como espólio de um passado não-vivente, como aceitá-la para se construir em
humanidade. A tradição diz do passado não-vivente, da memória ancestral, de

44
Fátima Quintas

um longe que parece não ser nosso, mas que o é, com todos os seus fluxos e
refluxos. Arredios aos resíduos desse legado, os continuísmos se romperiam,
desagregando a pirâmide psíquica. Um homem sem raízes é um homem morto
na sua integração ao mundo – alado, solto, imbuído da síndrome de orfandade
cultural.
Reavivo o princípio da pertença porque é deste sentimento que se sugam
os ajustes e os desajustes do Sujeito pensante. A sua ausência inflamará sérias
distorções, provocadas pela carência sociocultural. Os conluios formados pelos
grupos carimbam exatamente a necessidade dos selos coletivos: ligamentos cultu-
rais que se firmam para sancionar a homogeneidade do complexo sociológico.
Cumpre afiançar que o patrimônio, a memória, a tradição confluem em
um mesmo direcionamento, qual seja, o do sentimento de pertença. Sem ele, tor-
na-se complicado sedimentar laços identitários, uma vez que a pessoalidade
demanda um mastro de valores comuns para os quais converge a imprescindí-
vel sensação de pertencer a alguém ou a algo que assegure solidez existencial.

REGIÃO E REGIONALISMO
Os tópicos acima referenciados vão desaguar na idéia de região-regionalismo.
Por região, aqui se conceituam os vetores físicos e culturais delimitados pelo
espaço; por regionalismo, amplia-se o conceito a padrões atinentes a um grupo
cultural que pode estar inserido em um dado espaço ou dele transcender, im-
portando para outros locais os pressupostos valorativos que o balizam. Tomo
como exemplo as manifestações culturais congêneres em regiões diferentes.
Ressalte-se, contudo, que o regionalismo encrava-se dentro do processo
civilizatório mais amplo, isto é, dentro da Civilização onde os blocos culturais se
encaixam. Portanto, o regionalismo subjaz à Civilização e não extrapola, na sua
dimensão autêntica, os seus pontilhados.
O mundo globalizado, por incrível que pareça, tem recrudescido os prin-
cípios do regionalismo justamente porque abala o sentimento de pertença, trisca
as raízes, uniformiza realidades. Pertencer a um mundo anônimo e impessoal
não é pertencer a uma região que tem nome e proximidade. Há um fosso enor-
me entre uma coisa e outra. O mundo representa a exterioridade maior, algo
superior à apreensão de cada um, aquilo que se esgueira para além das possibi-
lidades do indivíduo. Igualar diferenças é anular identidades. Padronizar costumes
é dissolvê-los numa atmosfera de ninguém. Por essa razão, que leva a uma
outra, a da busca de origem, o regionalismo tende a fortalecer os sinais pecu-
liares a um conjunto cultural: seus padrões distintivos. E antes do homem
diluir-se nos fantasmas da globalização, ele vem intentando realçar os
atavismos, o que quer dizer: as aderências à origem.
O regionalismo não pode ser compreendido em oposição ao

45
Cultura, Patrimônio e Civilização

universalismo. Esse aspecto é de natureza primordial para um bom


discernimento do postulado. Um depende do outro para que se assentem
em estacas duradouras. Do contrário, prevaleceriam extremos inaceitáveis.
Da pequena aldeia de Tolstoi se desenhará o mundo, assertiva de caráter
indiscutível. A linha de intersecção que cabe entre a parte e o todo estabele-
cerá a primazia da unidade.
No Brasil, a primeira voz a levantar-se em favor de uma visão regional
foi a de Gilberto Freyre, em 1923, quando cria informalmente o Centro
Regionalista:

Toda terça-feira, um grupo apocalíptico de “Regionalistas” vem se reunindo


em casa do professor Odilon Nestor, em volta da mesa de chá com sequilhos
e doces tradicionais da região – inclusive sorvete de Coração da Índia. Discu-
tem-se então, em voz mais de conversa que de discurso, problemas do Nor-
deste (FREYRE, Gilberto. Manifesto Regionalista. QUINTAS, Fátima
(Org.). 7. ed. Recife: Editora Massangana, 1996. p. 49).

Ao voltar de viagem dos Estados Unidos e Europa – onde permaneceu


cinco anos –, exatamente em 1923, Freyre se estonteia com a devastação do Reci-
fe, sentindo-se agredido na sua própria cidade, onde o traçado urbanístico mais
remoto desmantelava-se. O Recife começava a doer-lhe, como segredava
Unamuno em relação à Espanha. Reagindo à descaracterização causada por
uma falsa modernidade, realiza, em 1926, o primeiro Congresso Regionalista a seu
modo Modernista, momento no qual leu o seu manifesto. Eis alguns fragmentos:

Pois de regiões é que o Brasil, sociologicamente, é feito, desde os seus primei-


ros dias. [...] Somos um conjunto de regiões antes de sermos uma coleção
arbitrária de “Estados”, uns grandes, outros pequenos. [...] Regionalmente é
que deve o Brasil ser administrado. É claro que administrado sob uma só
bandeira e um só governo, pois regionalismo não que dizer separatismo. [...]
Regionalmente deve ser estudada, sem sacrifício do sentido de sua unidade, a
cultura brasileira, do mesmo modo que a natureza; o homem da mesma
forma que a paisagem (FREYRE, Gilberto. Ibid., p. 50, 51).

Com o igual propósito de conclamar a gênese do povo, Freyre já orga-


nizara, em 1925, o Livro do nordeste, comemorativo do centenário do Jornal
Diario de Pernambuco, livro esse que foge dos parâmetros esperados e trans-
forma-se em um verdadeiro hino ao ethos nordestino. Mais uma vez o escri-
tor pernambucano encorpa o sentido de brasilidade, evocando o passado
arquitetônico vernacular em todos os seus matizes: materiais e subjetivos.

46
Fátima Quintas

O respeito ao regionalismo engrandece a imagem do Nordeste: da sua


cultura, da sua fecundidade, do seu pluralismo. Ter consciência dos frutos
que desabrocharam da história do massapê equivale a enaltecer as tradições,
o patrimônio, a memória, enfim, o complexo civilizatório que se difundiu a
partir da monocultura açucareira. Nunca é demais esmiuçar a edificação so-
cial do triângulo rural – casa-grande, incluindo a senzala, engenho/fábrica e
capela – para alcançar um ethos que se espraiou, com as devidas adequações,
por todo o território brasileiro. Não temo afirmar que as fazendas de café, de
cacau, de gado adotaram o mesmo modelo patriarcal das construções
vernaculares do massapê canavieiro. Mesmo os que enriqueceram com o
ciclo da mineração desejaram alongar-se nos referenciais do sistema agricul-
tor. O brasão da agricultura se impôs verdadeiramente no Brasil dos nossos
bisavôs – o escudo imagético lá estava, no modus vivendi do senhor patriarca.
Reacendo as palavras de Gilberto Freyre para tonificar o pensamento
que almejo repassar:

Talvez não haja região no Brasil que exceda o Nordeste em riqueza de tradi-
ções ilustres e em nitidez de caráter. [...] O Nordeste tem direito de conside-
rar-se uma região que já grandemente contribuiu para dar à cultura ou à
civilização brasileira autenticidade e originalidade e não apenas doçura ou
tempero. [...] Apenas nos últimos decênios é que o Nordeste vem perdendo a
tradição de criador ou recriador de valores para tornar-se uma população
quase parasitária ou uma terra apenas de relíquias: o paraíso brasileiro de
antiquários e de arqueólogos (FREYRE, Gilberto. Ibid., p. 52-53).

Concluindo esse primeiro tema, gostaria de enfatizar que a


internalização dos princípios do regionalismo resulta no calço estruturante
da personalidade psíquica e cultural do homem, sem a qual não se concebe o
desenvolvimento, nele, homem, indivíduo ou coletivo, do espírito de identi-
dade e de caráter nacional. A estima pela cultura nasce do autoconhecimento,
e para se galgar a condição de persona, faz-se iminente a descoberta de si
através de um olhar de alto-alcance que venha a penetrar no fenômeno da
remotização – o que é remoto, o que é longínquo, o que é ancestral. São os
longes que consubstanciam o ser e o estar no presente. Os rasgos de criatividade
alimentam-se do passado. Só o processo da aquisição prescinde dele. Dos
antepassados emanam a nossa história, a nossa compreensão do universo e,
conseqüentemente, os nossos pertencimentos.

47
Cultura, Patrimônio e Civilização

BIBLIOGRAFIA

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48
CANA, ENGENHO E AÇÚCAR

Fátima Quintas
antropóloga e ensaísta

A cana-de-açúcar é de todas as plantas domesticadas


pelo Homem a que mais implicações teve na História
da Humanidade. (...) A chegada ao Atlântico, no
século XV, provocou o maior fenômeno migratório
que foi a escravatura de milhões de africanos.
Alberto Vieira
SUMÁRIO

Origem da cana | 53

A Capitania de Pernambuco: berço da civilização do açúcar | 53

O massapê | 56

Engenho: a manufatura do açúcar | 57

A escravidão | 64

Sabor e doce: do alimento à gastronomia | 65

Bibliografia | 67
Fátima Quintas

ORIGEM DA CANA
Originária do Sudeste asiático (provavelmente da Índia), a cana-de-açúcar
alcançou a Pérsia e dali foi levada pelos conquistadores árabes à costa orien-
tal do Mediterrâneo (CASCUDO, Câmara. Sociologia do açúcar, 1971; FREYRE
Gilberto. Açúcar, 1987; ANDRADE, Manuel Correia de. Cinco séculos de coloni-
zação, 2004; GOMES, Geraldo. Engenho e arquitetura, 2006). Há, entretanto, os
que admitem ser a planta nativa do Pacífico, talvez da Papua, Nova Guiné, onde
já era conhecida há cerca de 12 mil anos (NUNES, Naidea Nunes. Palavras doces,
2003). Ao migrar pelo Mediterrâneo, os árabes levaram-na a Gênova, Veneza,
Sicília e ao sul da Espanha; em Portugal, a sua cultura teve início no Algarve,
ao tempo de D. João I (1385–1433), Mestre de Avis, no ano de 1404, posterior-
mente, transportada pelo Infante D. Henrique para a Ilha da Madeira, cen-
tro de grande irradiação do cobiçado produto. Bom lembrar que a Ilha da
Madeira, no século XV, foi a maior produtora de cana do mundo, cuja ascen-
dência vertiginosa correspondeu ao seu proporcional declínio, então nos mea-
dos do século XVI, diante da efervescência do cultivo no Brasil. Acrescente-se
que foi dessa mesma Ilha da Madeira que a planta chegou até nós pelas mãos
dos colonizadores portugueses, nas primeiras décadas do quinhentos.
Segundo o historiador F. A.Varnhagen (História geral do Brasil antes da sua
separação e independência de Portugal, 1975), baseado em documentos relativos a
pagamentos de impostos à Alfândega de Lisboa do açúcar proveniente de
Pernambuco, datados de 1526, a cana-de-açúcar já havia sido introduzida no
Brasil antes da chegada do seu primeiro donatário. E mais: no período da feitoria
de Cristóvão Jacques, teria sido cultivada “parcimoniosamente” em Itamaracá,
em 1516. Do que se infere que ela fez parte da paisagem pernambucana desde o
início do século XVI. Oficialmente a sua introdução na Terra de Vera Cruz se
deu por meio de Martim Afonso de Souza, em São Vicente, no ano de 1532.

A CAPITANIA DE PERNAMBUCO
berço da civilização do açúcar
Vingando a cana-de-açúcar na Ilha da Madeira, os portugueses a cultiva-
ram em Cabo Verde, Açores e São Tomé, tentando potencializar um produto em
alta no mercado internacional. Afinal, o ouro branco, assim chamado o açúcar,
representava uma das melhores e mais caras iguarias da Europa, bastante cobi-
çada pelos reis, desejosos de aumentar os seus impérios. Para tanto, fazia-se
necessário terra propícia à fertilização de uma gramínea poderosa no tocante à
comercialização e a lucros avantajados. Os olhos do mundo voltavam-se para os
grãos brancos, brancos, brancos e doces e fustigadores da gula econômica.

53
Cana, Engenho e Açúcar

Com a decepção da descoberta do Brasil, em 1500, Portugal, desolado,


quase abandonou a empreitada da colonização. Gilberto Freyre tece a feliz
metáfora: O “Brasil foi uma carta de paus puxada num jogo de trunfo em
ouro. Um desapontamento para o imperialismo que se iniciara com a viagem
à Índia de Vasco da Gama” (Casa-grande & senzala, 2000, p. 263-264). Durante
as três primeiras décadas do século XVI, não houve por parte do Reino lusi-
tano um olhar de efetiva fixação nas terras tropicais. O Brasil tinha pouco a
oferecer quanto a atividades extrativistas e exigia deslocamentos humanos
duradouros para o cultivo de uma terra com imensa extensão territorial. A
população portuguesa, à época do descobrimento, correspondia a 1 milhão
de habitantes e suas conquistas já se espalhavam pela África, Índia e até Ex-
tremo Oriente. Uma pergunta se impunha: O que fazer?
O português adquirira experiência colonizadora com o sistema de ca-
pitanias hereditárias nos Açores, na Ilha da Madeira e em Cabo Verde. Resol-
veu transferir esse modelo para o Brasil. Assim, D. João III (1521–1557), Rei
de Portugal, entregou a Duarte Coelho a Carta Régia de Doação – em 10 de
março de 1534 –, concedendo-lhe o direito e usufruto de novas terras. “Ses-
senta léguas de terra... as quais começarão no Rio São Francisco (...) e acaba-
rão no rio que cerca em redondo toda Ilha de Itamaracá, ao qual ora nova-
mente ponho o nome de Rio Santa Cruz...” Dizendo de outra forma, o terri-
tório da capitania de Pernambuco estendia-se de Itamaracá à foz do Rio São
Francisco, com as ilhas e as terras da margem esquerda, até a sua nascente,
na Serra da Canastra, no atual Estado de Minas Gerais.
As capitanias de Pernambuco e de Itamaracá nasceram juntas, além de
limítrofes. Itamaracá foi uma capitania frustrada, como assevera Manuel
Correia de Andrade, apesar de possuir uma razoável delimitação territorial,
que se espalhava de Igaraçu até o Rio Grande do Norte. Pero Lopes de Sou-
za, o seu donatário – irmão de Martim Afonso de Souza –, nunca morou na
capitania, desenvolvendo uma administração assistemática, o que resultou
no fracasso de uma faixa de terra predisposta à semeadura. Por esse motivo,
Itamaracá esteve sob a jurisdição informal da capitania de Pernambuco du-
rante um século, tendo sido, por fim, legalmente anexada, em 1763, amplian-
do o universo geográfico da região da cana.
O primeiro engenho de açúcar de Pernambuco, o São Salvador, posteri-
ormente conhecido como Engenho Velho de Beberibe, foi edificado por Jerônimo
de Albuquerque, sob a invocação de nossa Senhora da Ajuda, em lugar hoje
denominado “Forno da Cal”. A Civilização do Açúcar iniciou-se realmente
com o donatário Duarte Coelho que, com habilidade administrativa, não
tardou em solicitar ao Reino de Portugal a presença de mestres-de-açúcar da
ilha da Madeira, assim como a importação de mão-de-obra da África, além de
capital judeu para levar a termo o seu empreendimento. A Capitania Duartina

54
Fátima Quintas

se desenvolveu à larga, abençoada por um solo especial, uma terra puxando


para a cor de sangue, ora arroxeada, ora quase avermelhada, o massapê.

***

Duarte Coelho chegou ao Brasil, com projeto de moradia, a 9 de março de 1535,


em companhia da esposa, D. Brites de Albuquerque, do cunhado Jerônimo de
Albuquerque e de uma numerosa comitiva de pessoas, amigos, aventureiros,
nobres decadentes. Chamou sua capitania de “Nova Lusitânia” e ao pequeno
povoado que erigiu denominou de Igaraçu, uma corruptela do tupi Igara-Açu,
que quer dizer “barco grande, canoa enorme”, como os indígenas designavam
as grandes embarcações de Duarte Coelho. Em seguida, construiu uma Igreja
de Ação de Graças dedicada aos santos Cosme e Damião. O donatário tomou a
direção para o sul e fundou a vila de Olinda (1537), consolidando, assim, a sede
do governo. Sacramentava-se, dessa forma, a colonização do Brasil.
O nome Nova Lusitânia não se firmou, prevalecendo o vocábulo indí-
gena Pêra-Nhambuco, que quer dizer “furo do mar, pedra furada, ou buraco
no mar ”, em alusão à abertura nos extensos arrecifes naturais de pedra ali
existentes, por onde entravam os navios no ancoradouro.
Uma única cultura parecia viável na exploração do massapê: a cana.
Portugal, como já foi dito, tinha experiência com a planta na Ilha da Madeira
e, logo, Duarte Coelho fez uso do cabedal de conhecimentos. A mão-de-obra
seria trazida da África, cuja prática de trabalho escravo acontecia – negros
eram objeto de comércio por parte de árabes e de africanos arabizados.
Tomadas as devidas providências, a prosperidade da cana agigantou-se
em Pernambuco e provocou uma forte concentração econômica, outorgando à
capitania um vigoroso poder territorial. Os resultados favoráveis decorreram da
eficiente administração duartina, de grande valia para o processo colonizador.
O ouro branco destacava-se no mercado internacional com tal proemi-
nência que, na Europa, representou, segundo Paulo Prado, dote distintivo
entre os enxovais dos nobres casamentos. Se os lusitanos não encontraram
os metais preciosos da América espanhola – Astecas, Incas, Maias –, depara-
vam-se com uma realidade nova, indicativa de promissores lucros. Investir
na terra que “em tudo se plantando dá”, fazia-se urgente. A incansável dili-
gência de Duarte Coelho suscitou a proliferação de engenhos pelas várzeas
dos rios Capibaribe, Beberibe, Jaboatão, Una... E o percentual de fabrico se-
guiu em progressão geométrica.
A repercussão do açúcar da capitania de Pernambuco no circuito inter-
nacional foi estrondosa. O crescimento dos engenhos fez-se célere,
correspondendo à seguinte ascensão: em 1570, 23 engenhos; em 1583, 66 en-
genhos; em 1608, 77 engenhos. Em 38 anos, um avanço substantivo. A alta

55
Cana, Engenho e Açúcar

produção, o solo favorável das terras nordestinas brasileiras, a especiaria em


alta, geraram a cobiça de outros países. As atenções voltavam-se para o gran-
de porto comercial do Recife, olhos gulosos de desejo mercantil. Tanto e
tanto, que o açúcar representou a senha aliciadora da invasão holandesa e
não as pedras preciosas como a alguns possa parecer. A criação da Compa-
nhia das Índias Ocidentais (1623) fortalecia o ímpeto, cada vez maior, de le-
var aos Países Baixos considerável quantidade do “melaço” para as suas sô-
fregas e rentáveis refinarias. Só em Amsterdam quantificavam-se 26. Os ho-
landeses permaneceram 24 anos em Pernambuco, fomentando um desen-
volvimento urbanístico e artístico de reconhecido valor. Mostraram-se ex-
cepcionais apreciadores da SACCHARUM OFFICINARUM. As frutas crista-
lizadas os enlouqueceram, acepipes preferidos dos nórdicos de Haia. O Reci-
fe, a nova capital, transbordava sensações dulcíssimas.
Não se podem desprezar alguns elementos que contribuíram para que
Pernambuco se distinguisse como uma das primeiras e mais importantes capita-
nias hereditárias do Brasil. Sua história é a história do Brasil. Impossível separar
uma da outra. Pernambuco foi o açúcar, com todos os benefícios e malefícios.
Dos períodos em que se costuma dividir a história econômica do Brasil – pau-
brasil, cana, gado, ouro, café, algodão, etc. – o da cana é sem dúvida o mais
expressivo. Por quê? Há razões que justificam tal enunciado. Cumpre apontá-
las, de forma didática, com o objetivo de destrinchar melhor a trilha vitoriosa:
a. pelas condições favoráveis do solo, o massapê;
b. pela grande extensão territorial ocupada pelas plantations, denomi-
nação inglesa utilizada para a lavoura da cana;
c. por sua cultura haver se prolongado durante quatro séculos ininterruptos.
Ainda hoje o plantio da cana acontece com safras bem significativas;
d. pela situação geográfica de Pernambuco – o ponto mais próximo da
Europa e da África.

O MASSAPÊ
O massapê – terra que se agarra aos pés com “modos de garanhona” – é o
solo predominante da Zona da Mata, de aparên-
cia viscosa, oleosa, cor avermelhada (aluviais de
massapê e aluviais de barro vermelho) que, aliado
à condição climática – clima quente e úmido com
duas estações bem pronunciadas durante o ano,
uma seca, outra chuvosa – oferece condições ex-
cepcionais para a semeadura da cana-de-açúcar.
Assim se pronuncia Freyre:

56
Fátima Quintas

Há quatro séculos que o massapê do Nordeste puxa para dentro de si as


pontas de cana, os pés dos homens, as patas dos bois, as rodas vagarosas dos
carros, as raízes das mangueiras e das jaqueiras, os alicerces das casas e das
igrejas, deixando-se penetrar como nenhuma outra terra dos trópicos pela
civilização agrária dos portugueses (FREYRE, Gilberto. Nordeste, 1985, p. 6).

Sem essa argila especial, sem esse húmus generoso, sem essa resistên-
cia de terra, a paisagem do Nordeste não teria se alterado tão decisivamente
no rumo de um latifúndio canavieiro ancho de demandas sociais e humanas.
A qualidade do solo tornou possível o avanço civilizador da cana. O que
chama a atenção é o que essa gleba fascinante representou para a civilização
moderna mais sedentária que o português fundou nos trópicos: uma civili-
zação que escapou do extrativismo do pau-brasil, fixando-se numa região e
gestando uma sociedade singularíssima, no sentido material e sociocultural.

ENGENHO
a manufatura do açúcar

Havia três tipos de engenhos:


a. os reais, movidos a água, os preferidos dos senhores de engenho por
acelerar a produção e oferecer uma maior rentabilidade;
b. os trapiches, aqueles que utilizavam a tração animal. O boi, pachor-
rento, porém dotado de grande força, suportou a ciranda das almanjarras.
Documentos bibliográficos e iconográficos do período holandês registram a
presença de bois para movimentar a moenda dos engenhos de açúcar. Porém
éguas, as célebres bestas, velozes e obstinadas foram as prediletas. Trabalha-
vam incessantemente, repetindo a circularidade de uma moenda artesanal.
O movimento ensejava uma penosa dedicação. Pelo excesso de esforço, rit-
mo acelerado e continuado, as éguas morrim com
uma freqüência indesejada, o que ocasionou o apa-
recimento do cemitério das bestas – a besta morta.
Na verdade, tal imagem fixou-se no imaginário
popular e provém do sentimento de respeito ao
trabalho do animal, um reconhecimento românti-
co, uma vez que não existia concretamente um
cemitério, e sim um local onde se enterravam as
bestas, de ordinário, uma várzea que, em momen-
to posterior, acolhia o plantio da cana. Até na morte a besta doou-se em adu-
bo animal;

57
Cana, Engenho e Açúcar

c. os a vapor, surgidos no século XIX, em de-


corrência da modernização da técnica.

A denominação bangüê aplicava-se a todos


os tipos de engenho, porque o bangüê
consubstanciava um ícone no transporte da cana:
espécie de padiola de cipós trançados na qual se
levava o bagaço da cana ou os pães de açúcar para
a seca – a seca do açúcar. Os termos bangüê e engenho merecem um parêntese.
O nome engenho refere-se à dimensão engenhosa que os mouros atilaram na
construção da moenda, pois se tratava de um mecanismo habilidoso e astu-
to, cujo funcionamento dependia de uma engrenagem à base de encaixes.
Assim, bangüê e engenho acabaram sendo sinônimos da gravura do passa-
do: insígnia da manufatura do açúcar.
O complexo do engenho desmembrava-se em casa-grande, senzala,
engenho (também chamado de fábrica) propriamente dito e capela. A distribui-
ção dos “edifícios” dava-se em um terreno com ondulações pré-estabelecidas, a
perfilar uma ordem de interesse geopolítico. Assim, dividiam-se:
a. o engenho. Assentava-se na parte baixa, o que se justificava pela maior
proximidade da água. Os rios foram de importância fundamental porque
atenderam à energia hidráulica demandada pela moenda, à constância do
umedecimento do terreno e à distribuição do produto além terra – escoa-
douro eficiente. Daí os engenhos terem se desenvolvido à beira dos rios e
deles dependerem, sobretudo dos rios menores, perenes, mais confiantes,
humildes e serviçais. Os rios grandes foram os rios dos bandeirantes.

Muito deve o Brasil agrário aos rios menores porém mais regulares: onde
eles docemente se prestaram a moer as canas, a alagar as várzeas, a enverdecer
os canaviais, a transportar o açúcar, a madeira e mais tarde o café, a servir
aos interesses e às necessidades de populações fixas, humanas e animais,
instaladas às suas margens; aí a grande lavoura floresceu, a agricultura
latifundiária prosperou, a pecuária alastrou-se (FREYRE, Gilberto. Casa-
grande & senzala, 1966, p. 98-99).

b. a casa-grande. No patamar intermediário, local ideal para a eficiente


vigilância do patriarca sobre a dura e sistemática labuta do açúcar;
c. a capela. Ao cimo, pela sacralidade que dela emanava. Igualmente
para se resguardar dos possíveis ataques dos índios;
d. a senzala. Um pouco afastada do engenho, em terreno de similar
latitude, à vista do senhor “aristocrata”.

***

58
Fátima Quintas

O processo da manufatura do açúcar seguia etapas seqüenciadas:

1. Preparo da terra – O massapê, dotado de uma viscosidade agregadora,


representou a terra ideal para o plantio da cana. Prestou-se como nenhuma
outra ao desenvolvimento artesanal da sua lavoura, quase que repelindo
qualquer tipo de tecnologia. Gleba mais materna que paterna, hospedou com
generosidade o sêmen salvador. O açúcar nela vicejou com independência e
auto-suficiência. A enxada, apenas a enxada na mão do homem, sumarizou o
instrumental precípuo. Até o século XIX não houve mudanças no tamanho
dessa terra tão receptiva ao aconchego do vasto canavial. O visgo arenoso de
um barro vermelho ofereceu resistência ao uso do arado puxado por bois. A
argila pegajosa optou – tiranicamente, não se pode negar – pelos pés dos
escravos. Aos poucos, entretanto, as técnicas infiltraram-se, mas com lerde-
za, atraso provocado pela empáfia dos nutrientes do solo e pela topologia do
terreno, com altos e baixos, pouco afeito ao recebimento de máquinas;
2. Plantio – A etapa mais simples da manufatura do açúcar. O barro
esteve sempre à espera da fertilização da semente salvadora;
3. Colheita – Tarefa penosa. Trabalho lento. Ainda hoje se faz com facão
e foice. Exige do homem uma energia vital incomum. Debaixo do sol, a céu
aberto, do amanhecer ao anoitecer, o negro embrenhou-se no canavial, a
cortar a cana uma a uma, deixando-se alagar em suor não somente pelas
altas temperaturas com também pelo esforço desprendido em uma ocupa-
ção rude e primária. O eito significou um espaço representativo de força e
resistência – o trabalho manual no seu paroxismo. Tanto que a expressão
“cair no eito” denota o sentido pejorativo de quem não possui habilidades
para tarefas menos sacrificadas;
4. Moagem – Problema maior da produção do açúcar, isto é, aquele que
invocou inteligência, criatividade e permanente conservação. A roda d’água,
utilizada com freqüência nos “bangüês” até o século XIX, sintetizou uma
brilhante inventividade da engenharia mecânica. Os moinhos de roda d’água
foram introduzidos pelos mouros em Portugal e posteriormente levados para
a Ilha da Madeira. “A roda d’água, sempre na vertical, tinha o diâmetro de
aproximadamente sete metros. Acoplada ao mesmo eixo da roda d’água ha-
via uma outra roda menor, dentada, chamada
rodete, que transmitia o movimento a uma roda
maior, esta horizontal e com o mesmo diâmetro da
roda d’água e que se chamava bolandeira. Assim,
enquanto o rodete girava três vezes a bolandeira gi-
rava uma só. O eixo vertical da bolandeira, revesti-
do de um cilindro dentado e reforçado com aros
de ferro, transmitia o movimento a outros dois ci-

59
Cana, Engenho e Açúcar

lindros paralelos, um de cada lado, igualmente dentados e reforçados. Entre


esses cilindros é que passava a cana. Por três séculos, esse engenho manteve-
se sem significativas alterações, mas considerando-se a sua complexidade,
pode-se imaginar os cuidados que inspirava para que não fossem interrom-
pidas as operações de moagem” (GOMES, Geraldo. Engenho & arquitetura,
1998, p. 14-15).
A primeira modificação na técnica de moagem deu-se em relação aos
tambores que esmagavam a cana. Inicialmente verticais; posteriormente ho-
rizontais. As moendas horizontais resultaram num avanço porque facilita-
vam o encaixe da cana e diminuíam os perigos de acidentes, embora não os
eliminassem.
Repito: alguns engenhos recorreram à tração animal, porém a utiliza-
ção da roda d’água deu-se mais assiduamente, em virtude da sua agilidade
produtiva. Só no século XIX as inovações nas técnicas da moagem iriam sur-
gir. A máquina a vapor referendou a grande “revolução” na feitura do açú-
car. Importada da Inglaterra, subtraiu esforços humanos em favor de uma
melhor qualidade de trabalho. O primeiro engenho a vapor em Pernambuco
reporta-se ao ano de 1817, embora Haiti e Cuba, centros de grande produção
açucareira, tenham-se locupletado de seus favores ainda no século XVIII;
5. Cozimento – O caldo extraído da moagem era acomodado no parol,
(o caldo frio), dando início ao cozimento. Várias tachas de cobre recebiam o
sumo da cana, cada uma delas aquecida em isolados fornos de lenha. A ino-
vação nessa etapa aconteceu igualmente com um século de atraso em relação
às Antilhas, quando da adoção das fornalhas contínuas, ou seja, a dissemina-
ção de um único fogo para várias bocas, através de um túnel que diminuía
de diâmetro até chegar a uma chaminé, cujo cilindro dependia do tamanho
da fornalha. Tal invento denominou-se de trem jamaicano, por ter sido utili-
zado na Jamaica, outro centro de produção açucareira de reconhecimento
internacional;
6. Purga ou Purificação – Após o cozimento, despejava-se a calda em
recipientes com modelagem de cones. Colocadas invertidas em andaimes de
madeira, essas formas tinham um furo na base, orifício por onde escorria o
mel durante alguns dias. Bom lembrar que somente após a cristalização do
açúcar, o que acontecia entre 5 e 8 dias, os orifícios eram desarrolhados, de
modo a provocar quase um processo inverso de decantação, no qual o líqui-
do “sorvido” da sacarose caía em um porão, sendo de lá retirado pelo coco –
utensílio de longa vara com uma extremidade em molde de cuia, larga e
funda. Esse mel concentrado seguia para a destilação com o fim de transfor-
mar-se em cachaça. A cachaça parece ter sido uma bebida nascida entre os
escravos: No início, a espuma da primeira fervura do caldo de cana, conside-
rada inútil, era abandonada em cochos, ao relento, para a alimentação dos

60
Fátima Quintas

animais. Esse mosto, ao receber os efeitos do sol, fermentava com facilidade.


Os escravos, talvez por necessidade de ingerir algo exótico, ou por simples
acaso, passaram a apreciar o seu sabor. Converteu-se então em uma bebida a
que chamavam de “água-ardente”. O Reino proi-
biu o seu consumo e a sua fabricação por conside-
rar os efeitos nocivos ao rendimento do trabalho.
O fabrico, entretanto, aumentou e, para surpresa de
todos, ascendeu à condição de símbolo de resistên-
cia ao domínio português – bebida de patriotas,
nativista (cf. CAVALCANTI, Maria Lectícia. Açúcar
no tacho, 2006).
Volto à purificação. Com o objetivo de chu-
par as impurezas, costumava-se colocar um pouco de massapê e de água no
caldo grosso depositado nos cones. Decorridos os dias necessários, os “cris-
tais” de sacarose apresentavam-se prontos para as etapas subseqüentes. Após
a maturação, ou seja, o condensamento do caldo, então solidificado em grãos,
o açúcar acomodava-se em 3 camadas: o mais branco, de melhor qualidade, ocu-
pava a parte superior da forma, enquanto o mais escuro – o mascavo – assenta-
va-se nos espaços inferiores, sendo que, por último, repousava o cabucho, qua-
se preto, para uso animal. Os volumes, depois de retirados das formas, chama-
vam-se pães de açúcar.
Originariamente as formas de pães de açúcar foram de barro, o que
vem a explicar a presença de olarias nos engenhos desde o século XVI. Com
o passar dos anos, despontaram as de madeira e as de ferro. Os açucares de
cores e valores diferentes atraíam igualmente lucros diferentes.
A casa de purgar normalmente era espaçosa porque lá o açúcar perma-
necia por alguns dias – entre 5 e 8 –, enquanto que na moenda e na casa das
caldeiras a sua passagem fazia-se rápida. Costumava-se dizer que pela casa
de purgar conhecia-se a produtividade do engenho, tal era a sua importân-
cia no complexo açucareiro. Segundo João Correia de Andrade, proprietário
do Engenho Jundiá, que me concedeu uma longa entrevista, a casa de pur-
gar costumava ser bem protegida, e até escura, como se o local necessitasse
de descanso e afagos extremados para a boa geração do produto;
7. Secagem ao Sol – Seguia-se a secagem ao relento, método natural,
artesanal e quase primitivo. O local da secagem recebia o nome de bagaceira,
ou seja, a seca do açúcar que poderia ser a seca do bagaço ou dos referidos
pães. Assinale-se que o nome bagaceira adquiriu um conceito maior, repre-
sentativo da paisagem africana no engenho;
8. Pesagem e embalagem – Depois de cuidadosamente pesado, era o
açúcar embalado em caixas de madeira, com a finalidade de serem transpor-
tadas e comercializadas. Tais caixas derivavam dos troncos das árvores da

61
Cana, Engenho e Açúcar

densa e robusta floresta, o que denunciava um perverso desmatamento. So-


mente no século XIX, surgiu o armazenamento em sacos de algodão.
A Mata Atlântica, ainda inviolada, viu-se devastada por vários motivos:
habitat do canavial, lenha de fornalhas, material para as caixas de armazenamento
do açúcar e para o fabrico de portas, janelas, altares, púlpitos e mobiliário... em
Portugal. Uma exportação que vingou sem clemência. A arribação de muita
madeira de lei acentuou-se após o terremoto de 1755, em Lisboa, quando houve
maciços embarques para a Europa de jacarandá, pau d’arco e sucupira
(ANDRADE, Manuel Correia de. Geografia de Pernambuco, 1974, p. 27).
Na luta aguerrida pelo açúcar, o desmatamento deu-se de maneira
agressiva, sem o menor respeito, como se a avidez da cana não permitisse
migalhas de prudência, sôfrega na sua invasão, com receio de possíveis con-
tra-ataques, a usurpar o que não era seu. E a devastação florestal avançou
com a jactância da intemperança.

O canavial desvirginou todo o mato grosso do modo mais cru: pela queima-
da. A fogo é que foram se abrindo no mato virgem os claros por onde se
estendeu o canavial civilizador mas ao mesmo tempo devastador (FREYRE,
Gilberto. Nordeste, 1985, p. 45).

Os transportes preferidos pelos senhores de engenho foram o fluvial e


o marítimo. Fluvial até a costa. Marítimo até o ponto de destino. De tal ma-
neira os rios tiveram importância na vida da bagaceira que se responsabiliza-
ram pela localização dos engenhos ao longo de três séculos. A partir da im-
plantação das estradas de ferro (segunda metade do século XIX), construídas
pelos ingleses, a paisagem veio a modificar-se. Na verdade, os ingleses possi-
bilitaram a interiorização dos engenhos ao introduzir um novo meio de trans-
porte. A maioria dos rios, em Pernambuco, encontra-se na Zona da Mata, e
os engenhos, por sua vez, localizavam-se na Mata Úmida, isto é, na Mata Sul,
onde o massapê floresce com a galhardia dos tirânicos imperadores. Irmana-
dos ao rio, outros fatores “condicionaram” o desenvolvimento do bangüê: a
proximidade da Mata e a distância dos índios. Ambos interligaram-se aos
princípios seletivos da propriedade do senhor de engenho.
O atraso ocorrido nas inovações técnicas na região de Pernambuco é
fato incontestável. Durante três séculos, do XVI ao XVIII, as mudanças ocor-
ridas foram poucas. Provavelmente o massapê, com generosidade de nutri-
entes, associado às condições climáticas e à regularidade pluviométrica, retar-
dou os avanços agrícolas. O arado, por exemplo, aqui chegou com um século de
retardo (já implantado nas Antilhas), porque o barro vermelho, úmido e vis-
coso, opunha-lhe resistência. Por outro lado, a topografia do terreno, com
aclives e declives, também empurrou o trator para terras mais planas.

62
Fátima Quintas

Houve um imobilismo técnico em Pernambuco. As regiões das Anti-


lhas e do Caribe mostraram-se precoces nas mudanças; quiçá porque o solo
não fosse tão fértil. É o caso da Jamaica, que teve de conviver com uma terra
pobre, vitimada por fortes ventos e por constantes tormentas. Assim sendo,
os grandes melhoramentos em Pernambuco vêm a acontecer somente no
século XIX. Entre eles, distingo:
a. utilização sistemática da irrigação, drenagem e adubos animais;
b. mudança de matéria-prima na feitura dos pães de açúcar; fabricados
inicialmente de barro, passam a ser de madeira, de ferro ou de estanho;
c. caixas de madeira para a comercialização são substituídas por sacos
de tecido, poupando assim a agressão à Mata Atlântica;
d. aparecimento da chaminé na casa das caldeiras. Antes, a fumaça
esvaía-se pelas precárias frestas das telhas;
e. implantação do trem jamaicano – fornalha contínua – em substitui-
ção às fornalhas “individuais”;
f. utilização do bagaço da cana como combustível, desprezando-se a
lenha da madeira retirada da Mata Atlântica;
g. inversão da posição das moendas, de vertical para horizontal;
h. substituição da cana crioula pela cana caiana, mais sumarenta e rica
em concentração de açúcar.
Tais melhoramentos vão culminar com o aparecimento da máquina a
vapor (as primeiras, importadas da Inglaterra) que, apesar de ter sido
introduzida em 1817, ganhou realmente maior consistência a partir de 1870.
Por incrível que possa parecer, ainda no século XX, com a ascensão das usi-
nas e da industrialização, Pernambuco conviveu com engenhos moendo a
roda d’água. “No recenseamento efetuado em 1920 para todo o Nordeste,
encontram-se 5.370 engenhos movidos a animais, 1.609 a vapor e 444 a água.
O elevado número de engenhos na região é explicável pelo fato de que mui-
tos deles eram pequenos, espalhados pelo Sertão e dedicados à produção da
rapadura” (Apud GOMES, Geraldo. Engenho e arquitetura, 2006, p. 39).
Em um panorama geral, sem entrar em minúcias de detalhes quase
sempre necessárias ao entendimento dos fenômenos, o Ciclo do Açúcar no
Nordeste brasileiro esboçou um gráfico inicial de grande prosperidade. Nos
séculos XVI e XVII, Pernambuco foi o maior representante mundial do pro-
duto. No século XVIII, a descoberta do ouro nas Minas Gerais suscitou uma
migração interna de escravos, desarrumando os núcleos da produção
canavieira. Mesmo o enriquecimento na mineração não dirimiu a cobiça pela
terra. Esta, sim, trazia a hegemonia de que tanto cobiçava o colonizador. Os
que se favoreceram com o Ciclo da Mineração não deixaram de lado o apeti-
te pela agricultura porque dela manavam os possíveis títulos de nobreza. Em
paralelo à efervescência do ouro, o Haiti, então colônia francesa, conquistou

63
Cana, Engenho e Açúcar

o posto, no século XVIII, de maior produtor do mundo, o que vem a engros-


sar ainda mais a crise interna no Brasil. Com a Revolução dos Escravos ocor-
rida em 1791, no Haiti, dissolveu-se por lá a estrutura canavieira, impulsio-
nando Cuba a assumir o papel de maior produtora mundial do século XIX.
Cuba soube, e bem, aproveitar a situação pós-revolucionária, ao importar do
Haiti escravos, mão-de-obra e processos técnicos adotados para o plantio. A
concorrência do Caribe e das Antilhas, junto com o Ciclo do Ouro, abalou,
sem dúvida, a “bonança” açucareira de Pernambuco, levando-o a um declínio
que vai reflorescer no século XIX, com menos vigor em razão do Ciclo do
Café. O surgimento da usina, no final do século XIX, sustentou o poder
canavieiro por alguns anos, mas não o “perpetuou” em Pernambuco – a
excelsa capitania da sacarose – para além dos primórdios da segunda metade
do século XX. Embora o aparecimento de uma burguesia, descendente da
aristocracia açucareira, tenha firmado o seu papel social em décadas passa-
das, apresentando contemporaneamente rasuras por interferências outras,
hoje, o Estado de Pernambuco reage às oscilações de produtividade do açú-
car. Desde 1980, constata-se um surto renovador entre as usinas exportado-
ras. O cenário modifica-se em circunstâncias sociais, sem que a terra, contu-
do, venha a perder o seu brasão de fidalguia, ainda que a alternância dos
ciclos açucareiros tenha assinalado uma das fortes variantes no “desmonte”
– entre aspas naturalmente – da oligarquia das famílias patriarcais.

A ESCRAVIDÃO
Assim como o engenho não perdeu a sua força social, a escravidão iguala-se
na mesma intensidade, com uma diferença fundamental: a ela adere a
culpa de uma sociedade que almeja deslembrar a mácula histórica. Uma
patologia social que traz o gosto amargo de fel, tão distante da doçura de mel
do dulcíssimo açúcar. Rima cruenta que exibe a fereza do sistema escravocrata.

Julgados em conjunto, os brasileiros têm o que os psiquiatras chamam um


passado traumático. A escravidão foi o seu grande trauma. Para muitos a
cor menos branca foi, em certo tempo, lembrança de-
sagradável de situação social infeliz de pais ou avós ou
de episódio vergonhoso do passado pessoal ou de famí-
lia (FREYRE, Gilberto. Novo mundo nos trópicos,
1971, p. 124).

O negro patenteou a representação do trabalho, da dureza de uma


atividade que reivindicou energia física e psicológica. Não lhe bastava
apenas o vigor orgânico, mas igualmente o vigor mental para suportar as

64
Fátima Quintas

péssimas condições de trabalho e as inúmeras horas desprendidas no esfor-


ço repetitivo e monótono. A paisagem da bagaceira revelava-se de tal manei-
ra insólita que o trabalho da manufatura do açúcar avocou a si a qualificação
do deplorável, do tirânico, do bestial. O português afirmou-se indolente di-
ante de uma escravidão que não nasceu no Brasil, já conhecida pelo lusitano
desde 1448, quando da importação de mil escravos para serviços domésticos
– registre-se que, em 1551, Lisboa contabilizava um número equivalente a
mais de 9 mil escravos –, não nasceu a escravidão no Brasil, por certo, porém
aqui se estendeu por quase quatro séculos.
O desprezo pelo trabalho manual na socie-
dade brasileira decorre seguramente da escravidão,
um trabalho com rótulos de indignidade, portan-
to, não merecedor de reverências. O açúcar foi o
negro e o seu empenho expressou-se com tama-
nho esmero que freou a revolução técnica na agri-
cultura em Pernambuco. Mais um paradoxo da Ci-
vilização do Açúcar. E por quê? Porque o negro
responsabilizava-se pelo volume e otimização de tarefas passíveis de serem subs-
tituídas pela máquina. Postulado esdrúxulo tanto quanto verdadeiro, como to-
das as ambigüidades que evoluíram na sociedade brasileira.
O eito reclamou o negro, uma vez que o índio não se adaptou ao ritmo da lide
agrícola. Bom lembrar que o indígena era nômade, vivia da caça, da pesca, da
guerra; logo, de atividades da aventura, pouco convivendo com a partitura do
cotidiano – a agricultura, essa surgiu com a mulher e decorreu das tímidas cul-
turas de sobrevivência. Sem a aptidão física nem psicológica do autóctone para o
cultivo da cana, restava um outro tipo de escravidão: a africana. E o Brasil entregou
ao negro o processo civilizatório. Um débito que acusa o lado doloroso da cultura.

SABOR E DOCE
do alimento à gastronomia

Tudo que se mostra agradável, prazeroso, instigante, é doce. Do adjetivo


latino dulcis e, tem sabor como o do mel ou o do açúcar. Dá água na boca e
instiga as sensações palatais. Por analogia, percorre um vocabulário amplo,
ao fustigar os sentidos e consolidar emoções de deleite – basta rememorar
algumas expressões: “Quem a boca do meu filho adoça, a minha beija”; “lua-
de-mel”; chamar a bem-amada de “doce” é elogio. Dizer que alguém é um
“alfenim” equivale a dizer que é uma pessoa frágil – o alfenim derrete-se em
contato com a saliva, lhano como a sua aparência.

65
Cana, Engenho e Açúcar

A satisfação de saborear um doce foi tão intensa que não se comia açú-
car nos engenhos na sexta-feira santa por representar um prazer incompatí-
vel com a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.
O gosto deriva do cultural. Aprende-se a saborear aqueles pratos que
fazem parte da nossa culinária. O sabor se educa; por isso gostamos de uma
determinada receita e não de outra. Há todo um aparato estimulativo para a
escolha do que se quer comer. E este sabor depende do jeito de preparar o
alimento. Daí a importância em separar-se o alimento in natura do alimento
cozinhado, regado a temperos, feito para açular o apetite. A gastronomia
resulta da cultura, ou seja, da combinação dos ingredientes e da forma do
cozinhamento. O antropólogo Levi-Strauss, no seu livro O cru e o cozido,
apresenta com clareza essa dupla função: o cru equivale ao estado de nature-
za; o cozido, ao cultural. Exemplificando: a casa-grande preferia os alimen-
tos cozidos, enquanto os africanos apreciavam os assados.

Na cozinha da casa-grande fervia-se mais do que se assava. Fervia-se fritan-


do com manteiga inglesa, azeite doce de Portugal, banha de porco mineiro,
óleo de dendê, de Angola, Congo e Guiné. A “constante” do passado canavieiro
era o caldo das carnes cozidas (CASCUDO, Câmara. Sociologia do açúcar,
1971, p. 173).

Torna-se relevante entender tal conceituação, de modo a desvendar o


processo da culinária que vai do natural à gastronomia; do que a natureza
oferece ao que o homem reelabora; do que se refere ao alimento per se ao
alimento transformado em acepipes pantagruélicos. Enfim, dos nutrientes
virgens à comensalidade refinada.
Tudo indica que o sabor doce é oriental. Excessivamente doce.
Dulcíssimo. Os mouros o disseminaram pelo mundo afora. Impressionante
o consumo de mel no Oriente. As carnes salgadas servidas com doce – costu-
me que julgamos saxônico – são de origem moura. Mulheres gordas, barro-
cas, as árabes, fartas de lambuzar-se no melaço. E o doce pernambucano é o
mais doce dos doces. Sobressai, inclusive, entre as outras regiões do Brasil.
Doce para ninguém botar defeito; tanto que o açúcar usado nos doces de
fruta canibalizam o sabor da fruta, esta imolada pela arrogância da glicose.
Os nossos índios e os africanos que para cá vieram – da África Ociden-
tal – não conheciam o açúcar. Usavam mel na preparação das receitas. E
cabem também aos árabes, desde tempos remotos, a difusão do mel pela
Europa e o modo de como usá-lo na preparação de bolos e doces. Os mostei-
ros portugueses aprimoraram-se como produtores de mel, hábeis apiculto-
res. Os frades engendraram sobremesas e velas de mel.

66
Fátima Quintas

À Europa o açúcar chegou, oficialmente, no


século XV, embora já se tenha notícias de sua pre-
sença nos séculos XIII e XIV. Foi utilizado inicial-
mente como remédio – calmante, cicatrizante, di-
gestivo, diurético. Na verdade, os começos deram-
se pelos laboratórios dos boticários. (cf.
CAVALCANTI, Maria Lectícia. Açúcar no tacho, p.
3, 2006).
Pernambuco é o açúcar. O massapê. A cana. Na Zona da Mata abrolhou
a Civilização do Açúcar, por entre o vasto latifúndio de uma planta que se
quis única, absoluta, autoritária.

BIBLIOGRAFIA
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tecnologia do açúcar. Região autônoma da Madeira: Centro de Estudos de História do Atlântico,
1975.

67
A FAMÍLIA PATRIARCAL

Personagens e Costumes

Fátima Quintas
antropóloga e ensaísta

O senhor de engenho não foi


apenas um ser econômico, mas uma
entidade social com dotes vitalícios de
imagem e de poder.
Fátima Quintas
SUMÁRIO

Família: da origem lusitana à formação personalizada | 73


A plasticidade do português | 73
Família: a unidade colonizadora | 74
Uma sociedade monista | 76
Tédio e ócio em um Brasil de genitalidade |76

A população nativa |88


A fêmea | 77
O macho | 79

Os corredores da casa-grande | 80
A reclusão da portuguesa | 80
O rito de passagem da Primeira Comunhão | 82
A festa de casamento | 84
O círculo da endogamia | 86
Decadência da sinhá-dona |88

Ecos da africanidade | 90
A imagem da mãe-preta | 90
A prostituição doméstica | 91
A culinária e a negra | 94
A influência deletéria da sífilis | 99
A religião do sexo | 101

Bibliografia | 106
Fátima Quintas

FAMÍLIA
Da origem lusitana à formação personalizada
A PLASTICIDADE DO PORTUGUÊS

O caráter cosmopolita do português – uma mistura de raças e culturas –


assegurava-lhe uma boa capacidade de adaptação, transformando-o, antes
de tudo, num desbravador de caminhos, um plástico em sua maleabilidade
cultural. Do cosmopolitismo assomou a flexibilidade psicológica que facilitou o
ajustamento, esse quase eclético, a emendar-se da terra à gente da terra. A
“indefinição” étnica lhe trouxera grandes vantagens que, somadas ao tempera-
mento latino, fez do português um arauto da aventura. As adversidades do
trópico não chegaram a ser uma barreira de difícil enfrentamento, o que teria
sido obstáculo intransponível para o inglês, reservado no seu “purismo” étnico.
Várias razões contribuíram para que o processo de estabilização ocorresse em
aparente harmonia. Em primeiro lugar, Portugal detinha características
bicontinentais, influenciado pela cultura européia e africana. Configurava-se,
em alguns momentos, mais África que Europa. Essa bicontinentalidade, analisa-
da à luz do processo de acomodação de um povo, produziu conseqüências
relevantes: protegeu o potencial adaptativo do reinol ao tempo em que alargou
os horizontes culturais, ao evitar a formação de uma personalidade social ensi-
mesmada em sectarismos e ortodoxias.
Além dessa plástica cultural instigadora de mentalidades mais transigen-
tes, o português guardava a plástica religiosa. Duas religiões o envolviam – o
cristianismo e o islamismo. Fortes na sua expressão ritualística, deixaram marcas
profundas no espírito místico do lusitano.
Bicontinentalidade, plástica cultural e dualismo religioso dizem do portu-
guês como um elemento propício aos desdobramentos geográficos e à
aclimatação, superando em proporções significativas a reclusão étnica de ou-
tros povos. O eurocentrismo atenuava-se na mescla ibérica. Há ainda que se
considerar a importante, a importantíssima influência moura. Não somente na
religião ela se embrenhou, como também nos costumes, nos hábitos, na arquite-
tura, nas normas sociais e, sobretudo, no aprendizado de técnicas agrícolas.
Aliás, de técnicas especialmente tropicais. Não fora essa predominância, o por-
tuguês estaria inapto a assumir o mundo brasileiro nordestino.

Sem a experiência moura, o colonizador teria provavelmente fracassado nes-


sa tarefa formidável. Teria fracassado, impotente para corresponder a condi-
ções tão fora de sua experiência propriamente européia (FREYRE Gilberto.
Casa-grande & senzala, 1966, p. 229).

73
A Família Patriarcal

FAMÍLIA
a unidade colonizadora

A dimensão histórica da família patriarcal justifica


seu grau de importância na sociedade brasileira; fi-
gurou, no passado colonial, como a instituição de
maior peso. Aliás, contemporaneamente, ainda agre-
ga variáveis de superior valia.
A história do brasileiro não poderia ser
reconstituída ao largo da engrenagem familiar, uma
vez que uma e outra dialetizam-se na formação de
um núcleo de caráter doméstico. O Brasil antigo foi um Brasil essencialmente de
família. Nela se processaram os outros brasis: o político, o monárquico, o federa-
tivo e o republicano.
Um Brasil de pais, de mães, de filhos, de netos, de bisnetos, de escravos,
de noras, de genros, de tias, de tios, de comadres, de compadres... reverencia-
vam uma família extensa e cristocêntrica. Extensa, por incorporar membros aos
refúgios mais íntimos, os tradicionais agregados; cristocêntrica, por adotar o
cristianismo como força motriz da sua dinâmica. Um Brasil alimentado por re-
lações domésticas, cheio de filigranas e de rotinas. Um Brasil submerso na con-
vivência do casulo privado.

E nenhuma história mais natural do homem – ou de uma sociedade – que a de


sua vida de família; e esta, em termos crus, é a história do seu sexo. O sexo do
indivíduo não apenas biológico mas social. (...) da raiz dos seus cabelos, sensível
ao cafuné ou ao trinco voluptuoso por mão de mulata em cabeça de ioiô ou de
iaiá, às pontas dos dedos dos pés aristocráticos, por sua vez vibráteis às comi-
chões provocadas pela extração, às vezes doce como uma carícia sexual, de bi-
chos aí encravados (FREYRE, Gilberto. Vida, forma e cor. 1962, p.114).

Tudo leva a crer que o caráter exacerbado da fundação familiar no passa-


do patriarcal é proporcional à ausência do Estado na empreitada da coloniza-
ção. A maximização do esteio familiar em muito decorreu do deslocamento do
público para o privado. Tendo sido tarefa de particulares, tornou-se mais fácil a
sua viabilização através de batalhas individualizadas e distantes da burocracia
impessoal. É bom que se enfatize que o processo colonizador não foi obra do
Estado nem tampouco de nenhuma companhia de comércio, e sim de pessoas
isoladas que se aventuravam em terras longínquas e inóspitas. Afinal os trópicos
significavam um território desconhecido, onde tudo poderia acontecer. E acon-
teceu.

74
Fátima Quintas

O Estado, afastando-se do controle sobre o indivíduo, concorreu direta-


mente para o familismo da sociedade patriarcal, propiciando uma ambientação
mais doméstica, erigida em bases de parentesco, consangüinidade, afinidades e
relações de dependência.
Parecem tão indubitáveis os nexos convergentes do privatismo doméstico
que a estrutura da casa-grande, com o seu alto poder de aderência social, cano-
nizou as diversas faces do patriarcalismo. Exemplifico: os nascimentos, os
batizados, a Primeira Comunhão, o casamento, os partos, a morte, e até o cemi-
tério, compuseram o cenário do doméstico. Nada esteve fora do seu alcance.
Dentro da concavidade de família tudo desfilou.
O lastro doméstico, portanto, arregimentou o domínio de forma fundante.
Nem mesmo a Igreja, que surge como uma flâmula de alta, altíssima ingerência,
pôde lhe fazer frente. Disputou, disputou, disputou... Mas não conseguiu so-
brepujar-se em vantagens. No final das contas, perdeu a batalha. Assim, o priva-
do revelou-se único na auto-suficiência e no “governo” régio. Uma família
acasalada ao massapê, hierática na condição de senhora nobre e fidalga.
Os seus aspectos econômicos, sociais e organizacionais sobrepujaram os
possíveis elementos competitivos. Do que se conclui que a família albergou a
unidade produtiva máxima, a célula mestra do aparelho colonial. Lastreada na
dimensão extensa e cristocêntrica, no patriarcalismo polígamo, e na trilogia ét-
nica, constituiu-se substantivamente plural. O domínio de todas as instâncias
disseminou-se através de sua morfologia, nervo polarizador de ânimos diversi-
ficados e do poder unitário e múltiplo. O que quero dizer com isso: a família
reuniu todas as ramificações da sociedade; nela preponderou uma ação
centrípeta, capaz de albergar os mais variados problemas.
A soberania da casa-grande transcendeu os limites do doméstico, sem sair
do doméstico, ao ensejar um cenário autocrático e oligárquico, onde o
paterfamilias atraiu para si um arrogante monopólio. Autocrático por ser repre-
sentado por uma única pessoa; oligárquico por ser o poder dominado por uma
classe ou grupo de famílias. Em suma: o paterfamilias referenciou o sinal distin-
tivo do cerco privado. Os nossos bisavôs prezaram a união de todas as confluên-
cias personificadas no absolutismo familiar. A célula mater concentrou o ponto
angular das gentes que habitaram os engenhos de outrora. Tudo se resumia às
circunstâncias privadas, ponto alto e mais que exponencial de suas vidas.
A casa-grande consignou a estrutura clássica – clássica no sentido socioló-
gico – da engenharia de família; perdurou por quatro séculos, chegando até os
nossos dias, não enquanto edifício arquitetônico, mas enquanto figuração
emblemática da história colonizadora. Tentarei percorrer os seus desvãos: es-
conderijos, aposentos, alpendres, de modo a pintar um quadro capaz de dar
visibilidade aos segredos que por lá deambularam. E o que se passou nessa casa-
grande?

75
A Família Patriarcal

UMA SOCIEDADE MONISTA

O português plasmou-se ao contexto que emergia: gerou uma sociedade pauta-


da no monismo – concepção segundo a qual a realidade é constituída por princí-
pios únicos –, com uma agricultura imperativa, monocultura, com uma concen-
tração de renda latifundiária, monoeconomia, com uma regência isolada do pa-
triarca, monopoder, com uma sexualidade dirigida ao macho, monossexual, o
que a identifica como sociedade patriarcal, isto é, reveladora de convergências
para o patriarca. Do que se deduz que visões monistas e autoritárias fizeram
parte do cenário colonizador. Aristocrática – a terra como título nobiliárquico –
, excludente – a escravidão selando fortes marginalidades –, plena de exuberân-
cias – da cana ao esplendor das festas –, a sociedade patriarcal ergueu-se à som-
bra e ao sol dos pilares do açúcar.

TÉDIO E ÓCIO EM UM BRASIL DE GENITALIDADE

O cotidiano doméstico sexualizou-se por entre as etnias que o formaram. Sob


formas diferentes: umas moderadamente, outras exacerbadamente. O por-
tuguês, um lúbrico por excelência, emprenhou à brava. Para cá veio uma
massa de machos dispostos a cumprir a tarefa do povoamento. Cumpriram-
na com vontade e com garra. Ciosos, que o eram, de sua virilidade, cerca-
ram-se de estímulos genitais, os mais extravagantes. Nesse aspecto, os lusita-
nos comportaram-se com magnitude.
O regime robusteceu o ócio que, quando bem conduzido, é o melhor
celeiro de criatividade, a lerdeza, a preguiça e, conseqüentemente, o erotismo.
Quanto maior o número de horas vagas dos senhores, maior o número de es-
cravos e tanto maiores o erotismo e a depravação. Uma relação de causalidade
entre o poder econômico e o desadoro sexual. O ócio atingiu tal monta que se
chegou a associá-lo ao açúcar no sangue. Engano. O açúcar responsabilizou-se
apenas indiretamente pela promiscuidade moral e sexual. No fundo, a sua inter-
ferência concentrou-se no monopólio da cana, na repulsa à policultura e no
apelo à escravidão, todos geradores de modelos deformantes.
O ócio aliou-se à genitalidade para desenhar as matrizes dominadoras do
mundo colonial; foi o grande cúmplice das fantasias eróticas, da permissividade
sexual e da imaginação da libido. A ele se atribui a maior dose do tempero sexual
que o português conservou. Devotado ao nada fazer, o patriarca ia levando a
vida com o objetivo de enriquecer em meio a uma rotina monótona, flanando
de um lado para o outro, à disposição da própria criatividade e à disposição dos
arroubos penianos. A inação gera necessidades sexuais provenientes dos vazios
psicológicos. O pórtico da casa-grande cheirava ao prazer da carne e à canseira
de homens indolentes que deliravam ao vigor dos sonhos da concupiscência.

76
Fátima Quintas

(...) A vida dos aristocratas do açúcar foi lânguida, morosa. (...) Os dias se
sucediam iguais; a mesma modorra; a mesma vida de rede, banzeira, sensual. E
os homens e as mulheres, amarelos, de tanto viverem deitados dentro de casa e
de tanto andarem de rede ou palanquim (FREYRE, Gilberto. Casa-grande &
senzala, 1966, p. 466-467).

A rede – de origem ameríndia – resumia o escudo da preguiça dentro do


molusco patriarcal. Interessante assinalar que os índios dela fizeram um uso
benéfico. Entretanto, portugueses e portuguesas apropriaram-se de maneira
escandalosa do seu lado negativo, ou melhor, transformaram-na em objeto de
moleza e de lascívia. A tão decantada rede acomodou a inatividade do patriarca.
Rede que aconchegava o corpo encharcado da astenia do tédio. Rede confor-
tando o cansaço do cansaço inútil. Rede reservatório de insuperáveis inoperâncias.

Ociosa, mas alagada de preocupações sexuais, a vida do senhor de engenho tor-


nou-se uma vida de rede. Rede parada, com o senhor descansando, dormindo,
cochilando. Rede andando, com o senhor em viagem ou a passeio debaixo de
tapetes ou cortinas. Rede rangendo, com o senhor copulando dentro dela. Da
rede não precisava de afastar-se o aristocrata para dar suas ordens aos negros;
mandar escrever suas cartas pelo caixeiro ou pelo capelão; jogar gamão com
algum parente ou compadre. De rede viajavam quase todos – sem ânimo para
montar a cavalo: deixando-se tirar de dentro de casa como geléia por uma colher
(FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 466).

Em cada aposento da casa-grande, a sexualidade expressou-se. Cedo se


desenvolveu na penumbra do vácuo. Esteve presente em quase todos os mo-
mentos da vida cotidiana: no quarto de dormir, nos marquesões da sala de jan-
tar, na sonolenta rede que exercia uma sedução especial...
A família patriarcal consolidou-se numa paisagem sensual, polarizada entre
o relaxamento e as sensações libidinosas. A pasmaceira e o sêmen invadiram o
doméstico. Adultos perdidos no “atoleiro da carne” e na inércia do corpo. Pre-
guiçosos, mas reprodutores infalíveis, orgulharam-se da viril aristocracia. O Brasil
colonizador particularizou-se por intensas modorras e por “teimosas” sexualidades.

A POPULAÇÃO NATIVA

A FÊMEA

Dona de um corpo rijo em musculatura, sem as terríveis estrias, as


deformantes celulites ou quaisquer outras mazelas que o desgaste do mundo

77
A Família Patriarcal

contemporâneo imprime ao feminino, a mulher indígena sorriu alegre para o colo-


nizador. Anestesiada como uma criança diante do brinquedo recebido. O mundo
derramava-se aos seus pés; ela, vigorosa na capacidade de entregar-se inteira, cabelos
molhados, pele bronzeada pelo sol causticante, pronta para a oferenda do prazer.
Alumbrou-se a cunhã diante do colono recém-chegado, pleno de afeta-
ção nos seus trajes europeus: roupas indevidas, adereços modernizantes, porte de
ocidental. Dele brotavam o desconhecido, o fantástico, o misterioso, o que por trás da
cortina pode acontecer de enigmático. Mais ainda: os “cosméticos” sofisticados,
com saibos de civilização, alguma coisa fantástica, sem tradução imediata. De
longe, de caminhadas adversas, falando língua diferente, com a tez branca e os
cabelos pretos, enfeitiçava a gentia, ansiosa por experienciar as carícias européias.
Tudo lhe era excitante no litoral brasileiro. Do cheiro da pele ao perfume ativo, exa-
lando aromas afrodisíacos. E a mulher deixou-se seduzir por esse homem
divinizado. Não hesitou diante de tanta novidade. O europeu trazia o progresso
com todas as incontáveis vantagens. A cunhã aquiesceu doando-se freneticamente.

O ambiente em que começou a vida brasileira foi de quase intoxicação sexual.


O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da
Companhia precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne.
Muitos clérigos, dos outros, deixaram-se contaminar pela devassidão. As mu-
lheres eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais ardentes indo
esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses. Davam-se ao europeu por
um pente ou um caco de espelho (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala,
1966, p. 103, o grifo é meu)

A própria distância cultural serviu de bússola para o fascínio. Os rituais,


os mimos sofisticados e as “bugigangas” importadas pontuaram chamamentos
irresistíveis. A cerimônia exibia o êxito completo. A índia vivenciou-a sem restri-
ções, como presas passivas, à mercê do exercício absoluto do encanto – homens-
deuses. Para aquém e para além dos mares, o lusitano espraiava-se na proeza do
hedonismo, ele, um franco atirador, acostumado a beijar donzelas portuguesas.
Paulo Prado, ensaísta do livro Retrato do Brasil, espantou-se diante das
primeiras impressões que os cronistas nos deixaram sobre a moral sexual entre o
gentio. Impressões de pasmo e de horror. O mesmo acontece com Gabriel Soa-
res de Souza em relação aos Tupinambás: são desregrados e não há pecado de
luxúria que não cometam. O padre Nóbrega também se alarma com o elevado
número de mulheres que os portugueses têm e com a facilidade com que as
abandonam. As descrições falam de uma moral lassa, desmedida, em face dos
desejos sexuais. Para se compreender o complexo indígena, torna-se necessário
desprender-se dos princípios ocidentais. As idéias de fidelidade e de sexualida-
de afastam-se dos parâmetros por nós concebidos. A cunhã sentiu-se atraída

78
Fátima Quintas

pelo homem branco – o oposto dos seus pares: índios nômades. Daí o espanto
das discrições acima textualizadas.
E para cá, ressalte-se, não desembarcou nenhuma elite portuguesa com
dotes de primorosa educação. Nem a erudita nem a sexual. Ao contrário, restos
de homens, vocações explícitas para o erótico, sobras do banquete ibérico. Se
não foram os degredados tão anunciados, historicamente falando – em decor-
rência das Ordenações Manuelinas (1521) –, foram homens ambiciosos, capazes
de enfrentar duros obstáculos para atender aos ímpetos da intemperança.

Para a formidável tarefa de colonizar uma extensão como o Brasil, teve Portugal
de valer-se no século XVI do resto de homens que lhe deixara a aventura da
Índia. E não seria com esse sobejo de gente, quase toda miúda, em grande parte
plebéia e, além do mais, moçárabe, isto é, com a consciência de raça ainda mais
fraca que nos portugueses fidalgos ou nos do Norte, que se estabeleceria na
América um domínio português exclusivamente branco ou rigorosamente euro-
peu (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p.103).

E alumbrou-se a cunhã. Quem sabe, o caminho mais próximo da sua


condenação.

O MACHO

Tanto a índia quanto o índio congregaram o capital básico que o colono encon-
trou em terras brasileiras, ou seja, as referências para o prazer e para o trabalho.
No prazer, a fêmea satisfez plenamente; no trabalho, o macho decepcionou.
Decepcionou por incompatibilidade cultural, por incapacidade de submeter-se
ao sistema do eito. Não resistiu; foi aniquilado pelas exigências técnicas e
emocionais da lavoura da cana, a requerer uma saúde física e mental inigualável,
que só o africano, mais tarde, ostentaria.
Em estágio cultural nômade, os nossos indígenas estavam acostumados a
um ir e vir permanente: a caça, a pesca, a guerra. Os atos repetitivos da rotina
não lhes agradavam. Apenas o conviver com a natureza lhes renovava o apetite
de vida. Tais elementos dificultaram o português a fazer uso da massa autóc-
tone. Sem as maravilhosas iguarias da Índia, restava a imensidão da terra a
ser explorada. A agricultura seria o germe latente da colonização que se ini-
ciava. Não havia outra alternativa. Levar a termo o trabalho da lavoura re-
presentava a saída possível. Assim foi feito. A princípio, com o índio escravi-
zado, mas sem os resultados à altura da ambição portuguesa.
E o reinol, melhor dizendo, o português, apelou para o africano.

79
A Família Patriarcal

OS CORREDORES DA CASA-GRANDE
A RECLUSÃO DA PORTUGUESA

A bagaceira não poupou a vida da mulher. Fê-la um ser amorfo, sem vonta-
de, pronta para agradar à paisagem da cana, tão imperativa nos seus quere-
res. Madrugadoramente aprendeu a portuguesa o caminho da sujeição por-
que assim a ordem social determinava. O modelo patriarcal usou de todos os
artifícios, contanto que essas mulheres introjetassem sentimentos de sujei-
ção e pacatez. E apressou-se em entronizá-las em retiros quase religiosos;
guardá-las para não serem vistas; reservá-las em ermos enigmáticos; cobri-
las com o véu da pudicícia. Assim garantia uma feição doméstica adequada
aos ditames do patriarcalismo.
E o retraimento começava pelos próprios aposentos. A disposição dos
cômodos mostrava uma arquitetura conventual, a recatar a mulher, ou me-
lhor, a marginalizá-la na vida cotidiana. Além da reclusão física, sofreu a vigi-
lância de argutos observadores: da mucama, sempre ao seu lado; do marido,
com olhos e ouvidos atentos para repreendê-la; do pai, a mensurar o tama-
nho da prole. Ao derredor, dedos em riste.

O isolamento árabe em que viviam as antigas sinhás-donas, principalmen-


te nas casas-grandes de engenho, tendo por companhia quase que exclusiva-
mente escravas passivas. (...) Basta recordarmos o fato de que, durante o
dia, a moça ou menina branca estava sempre sob as vistas de pessoa mais
velha ou da mucama de confiança. Vigilância que se aguçava durante à noite.
À dormida das meninas e moças reservava-se, nas casas-grandes, a alcova,
ou camarinha, bem no centro da casa, rodeada de quartos de pessoas mais
velhas. Mais uma prisão que aposento de gente livre. Espécie de quarto de
doente grave que precisasse da vigília de todos (FREYRE, Gilberto. Casa-
grande & senzala, 1966, p. 363-364).

O “isolamento árabe” de que fala Freyre alongava-se na discrição de


sequer expressar-se diante dos questionamentos do marido. Sua voz não de-
veria ser ouvida entre conversas de homem, a não ser para pedir vestido
novo ou rezar pelos filhos. Às vezes cantar modinhas para afugentar a
pasmaceira da casa-grande. A medida do retraimento deveria corresponder
à intensidade da polidez feminina.
Guardadas em fortalezas babilônicas, a mansidão muçulmana exortava
modelos a seguir – verdadeiros cativeiros que deveriam abafar os arrufos de
libertação. Mulheres acanhadas, porque assim evitavam desconfortos para
maridos conscientes da sua empáfia, a viver nos seus claustros, sufocadas na

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Fátima Quintas

solidão de quem não pode se pronunciar nem tampouco alimentar enleios


para além dos muros, dos grossos muros de suas alcovas.
A prisão física indicava outras prisões: a social, a cultural, a política. O
que se queria era que essa mulher estivesse alheia aos acontecimentos impor-
tantes, ou pelo menos distanciada dos trâmites que a cana reivindicava. Em
casa, sob os olhos vigilantes que a orbitavam ela se viu cerceada nos apelos
pessoais.
O excesso de mordomia agigantava os níveis de cobrança. Ela, a mulher,
raramente se sentia à vontade, ora acudindo a um, ora acudindo a outros, e
esquecendo-se de acudir a si mesma. Sem buscar um aprendizado educacional
compatível à sua posição de esposa de patriarca, falhou na relação a dois. A
reclusão fabricou um quadro de timidez e de acídia diante do volume de escrú-
pulos que não lhe foram poupados. Com uma subserviência dependente, sem
os brios do conhecimento, conviveu com homens solitários porque reduzida no
seu potencial reflexivo. Um ser de estufa, medularmente postiço.
A ratificar o estilo da casa-grande, a preocupação de resguardar os perso-
nagens ali viventes prevaleceu. A mulher talvez tenha sido o elemento mais
sacrificado. Não só foi envelopada em folhagens artificiais, como protegida da
ambiência externa.

Mas a essa mulher passiva, ante o marido, tocava a distinção de ser uma espécie
de objeto quase religiosamente ornamental dentro da cultura de que fazia parte,
especialmente como esposa e como mãe (FREYRE, Gilberto. Modos de homem
& modas de mulher, 2002, p. 42).

A casa compendiou o espaço que lhe confiaram e, assim mesmo, até certo
ponto: com parcimônia e prudência, sem exageros de individualidade; a prestar
contas de seus atos, mínimos atos, como se a vida dela exigisse o máximo de
perfeição.

Mas através de toda a época patriarcal – época de mulheres franzinas o dia


inteiro dentro de casa, cosendo, embalando-se na rede, tomando o ponto dos
doces, gritando para as mulecas, brincando com os periquitos, espiando os ho-
mens estranhos pela frincha das portas, (...) parindo, morrendo de parto
(FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos, 1981, p. 94-95).

Clausuras femininas eclodiram desse ambiente de cárcere. As visitas, quan-


do aconteciam, eram das comadres e dos padres. Das comadres que vinham
conversar sobre assuntos prosaicos ou queixar-se de doença ou de falta de di-
nheiro; do padre, para aferir o grau de religiosidade ou recomendar novos apri-
moramentos – a perfeição em primeiro lugar. Exemplo de comportamento.

81
A Família Patriarcal

Cópia fidedigna de Maria, a Virgem Santíssima. O culto à Virgem Maria, no


Brasil, foi exageradamente praticado. Talvez com a finalidade de neutralizar o
autoritarismo da casa-grande, assim como apaziguar as contradições que o
patriarcalismo exaltou.

(...) A devoção católica pela Virgem Maria, glorificada como Rainha – Regina –
, em nenhuma outra região do mundo parece se ter tornado tão forte como no
Brasil. Resultado, talvez da extrema idealização da mulher aristocrática e mes-
mo da mulher negra – através do simbolismo da Mãe Preta – como componen-
tes básicos e vitais do complexo de vida familiar nas plantações. Complexo de-
senvolvido durante os dias da escravidão (FREYRE, Gilberto. Novo mundo nos
trópicos, 1971, p.177).

E de quantas Marias constituíram-se as casas-grandes?

O RITO DE PASSAGEM DA PRIMEIRA COMUNHÃO

O circuito patriarcal produziu ritos de passagem bruscos, repentinos. Não se


preocupou com as cronologias, tampouco com elaborações psicológicas conve-
nientes. A cana exigiu um amadurecimento precoce em nome da sua prosperi-
dade. Que homens e mulheres se tornassem adultos o mais rápido possível.
Sem ajustamentos. Do dia para a noite. Não havia tempo para delongas. Aliás, a
categoria infantil não foi valorizada. As crianças eram suportadas enquanto
anjinhos de cachos nos cabelos, beicinhos de bebê, rostos gorduchos e risonhos
de quem não sabe de nada, pequeninas, ainda capazes de suavizar o mau-hu-
mor dos mais velhos. Até aí, acarinharam-nas com doses de ternura. Idolatradas
em nichos beatificados, confundiam-se com as imagens dos santos.

Até certa idade, era idealizado em extremo. Identificado com os próprios anjos
do céu: andando nu em casa como um Menininho Deus. (FREYRE, Gilberto.
Sobrados e mucambos, 1981, p. 68).

Mas esperem. Não se contentem com tamanha benevolência. Logo mais a


inversão de papéis acontecerá. Pois é. Depois alongavam-se, essas mesmas ado-
ráveis criancinhas, em indesejados meninos e a etapa subseqüente emergia de
pronto. Transformavam-se em artificiais adolescentes, hirtos e endurecidos na
falsa condição de adultozinho. Até os 6 ou 7 anos, bem-vindos. A partir daí,
rechaçados e, até mesmo, ostensivamente repelidos.

O tornar-se “maduro” assumiu ares de imperativo categórico, porque o


canavial não permitia deslizes de infância. Portanto, os ritos de passagem foram

82
Fátima Quintas

praticados com um rigor inigualável. Rigor e precocidade. Por conseguinte, a


criança pouco se entendeu com a meninice. Foi órfã da sua puerilidade. A impa-
ciência de um crescimento fora de hora encarregou-se de arrancar-lhe dos bra-
ços as bonecas de pano feitas pelas negras. Afinal, o Brasil precisava de gente
para colonizar terras tão vastas e os úteros ainda virgens clamavam por fecun-
dação. Crianças por pouco tempo.

Havia uma hierarquia a ser respeitada: homens ditadores, mulheres sub-


missas, crianças esquecidas e abafadas. Ao invés de brincar, aprender o mais
rapidamente as regras adultizantes. Ciclos vitais interrompidos. Nada de trans-
gredir um processo que se quer vitorioso desde que montado na direção certa.
E vitórias não faltaram ao empório açucareiro, ainda que à custa do sacrifício da
mulher e da criança. E por que não admitir, do homem também, severamente
entronizado na “arrecadação” vinda do massapê.

Desde os tempos primeiros, a família brasileira teve como sustentáculo uma


tripeça imutável: pai soturno, mulher submissa, filhos aterrados. (PRADO,
Paulo. Retrato do Brasil, 1962, p.106).

Sob o verde do canavial, dogmas espalhavam-se, alguns culturais, ou-


tros cristãos. A trama sociológica demandava para a mulher estados de can-
didez e para as crianças “constrangimentos” infantis. Cedo, as crianças de-
veriam começar a rezar porque os pecados não tinham idade. A sociedade
patriarcal exortou precocidades em todos os ângulos, inclusive no arquite-
tar pecados antes do tempo. E antes do tempo absolvê-los. Para tanto, fazia-
se necessário injetar doses de santidade.

Meninas de doze, treze, quatorze anos. “Santas imaculadas”. “Pálidas madonas”.


“Marias do Céu”. “Marias da Graça”. “Maria das Dores”. “Marias da Glória”.
E eram de fato umas Nossas Senhoras (FREYRE, Gilberto. Casa-grande &
senzala, 1966, p. 369).

Prematuramente as crianças tornavam-se homens e mulheres. Deixavam


as espontaneidades para adotar obrigações dissociadas da idade mental e bioló-
gica. E o começo dava-se na liturgia da Primeira Comunhão, mediante a qual
asseguravam o caminho da virtuose, convictas do crédito de meninas beatifica-
das, então prontas para catar as ordens dos adultos.

Muito cedo, no Brasil de nossas avós e bisavós, as meninas se arredondavam em


senhoras. Aos nove ou dez anos estavam moças. Faziam então a primeira co-
munhão. E era um grande dia, o de vestir a meninazinha o vestido comprido

83
A Família Patriarcal

de comungante, todo de cassa e guarnecido de folhos, o corpete franzido, a


faixa de fita azul caindo atrás, em pontas largas, a bolsa esmoleira de tafetá, o
véu de filó, os sapatos de cetim, as luvas de pelica, o livrinho de missa encaderna-
do em madrepérola – tudo branco ou azul (FREYRE, Gilberto. Região e tradi-
ção, 1968, p. 160-161).

A solenidade da Primeira Comunhão impunha o maior respeito. O esme-


ro subscrevia a ordem social. Momento de grande importância no volteio
patriarcalista. A benção da adultização. A preparação para o casamento. Primei-
ro, o batismo; depois, a Primeira Comunhão; por fim, o Matrimônio.
Mesmo sem saber ler, essas meninas carregavam o livrinho de missa com
a máxima satisfação. A vida na fé. Felizes por se saberem capazes de ajudar a
família que delas aguardava condutas irretocáveis. O degrau iniciatório da res-
ponsabilidade confirmava-se.
E a partir do dia da Primeira Comunhão, já se sentia mulher, o que quer
dizer: habilitada para o casamento. Iniciava-se a angústia pela procura do mari-
do. E os jogos de sedução aumentavam e aumentavam, procurando escapar de
algum inesperado infortúnio.
Debaixo de rígidos ritos de passagem, a sociedade patriarcal fixou etapas
no ciclo de vida de homens e de mulheres. Não fez por menos. Atribuiu-lhes
papéis irrefutáveis. Pouco importavam as rupturas biológicas; valia a pena aplau-
dir seus critérios de precocidade.

A FESTA DE CASAMENTO

Casavam-se com maridos 10, 15, 20 anos mais velhos, as portuguesinhas. Sisu-
dos, circunspectos, empavonados de tantos gáudios. Barbudos senhores de en-
genho, bacharéis, médicos, oficiais ou, mais tarde, espertos negociantes... Bigo-
des lustrosos de brilhantina, gordos, arredondados em largas barrigas, suíças
enormes, grandes diamantes no peitilho da camisa, nos punhos e nos dedos...
Os bacharéis ostentavam rubi no dedo.

Aí vinha colhê-las verdes o casamento: aos treze e aos quinze anos. Não havia
tempo para explodirem em tão franzinos corpos de menina grandes paixões lúbricas.
(...) Abafadas sob as carícias de maridos (...) muitas vezes inteiramente desco-
nhecidos das noivas (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 364).

Vestia-se a rigor a menina-moça no grande dia do casamento. De branco


e com adereços de pureza. Trajo especial, cintura adelgaçada, saias redondas,
longas, um figurino previamente desenhado. O enxoval, confeccionado por frei-
ras, assinalava o capricho típico das religiosas, únicas na feitura artesanal de

84
Fátima Quintas

peças delicadas, bordados, pontos de cruz, renascenças, tarefas que exigem re-
quintes de devoção. A excelência dos trabalhos atingia níveis de tal detalhamento
que o enxoval era publicamente exposto aos convidados para ser apreciado em
valor e em beleza. Cumpria-se assim um dos objetivos da festa: o de demonstrar,
da forma mais prepotente possível, todos os “encantos” da noiva. Encantos que
se revestiam mais de dotes materiais que de outra coisa. E um bom dote não
deve ser escondido a sete chaves.
A festa do casamento pontificava um fato aguardado com arquejos de
gozo. Durava entre 6 e 7 dias. Às vezes, para maximizar a emoção, simulava-
se a captura da noiva pelo noivo. Regras de etiqueta, convenientes à celebra-
ção do conluio mais espalhafatoso do patriarcalismo. Momento, inclusive,
em que as evidências deveriam ser expostas a fim de evitar suspeitas indevidas.
O reconhecimento social do status familiar estava em jogo. Era chegada,
pois, a hora de queimar os cartuchos na saudação à vitória do açúcar. Indíci-
os econômicos, indícios sociais, indícios pessoais. Alardear sinais de sólidas
prosperidades apontava o desregramento desses banquetes. Escravos, bens,
riquezas. Quanto maior a ostentação, maior o grau de riqueza. Um Potlach
com todas as letras. O império da casa-grande media-se muitas vezes pela
extravagância das solenidades, que funcionavam como termômetros indica-
dores de prestígio do senhor de engenho. Não se poupavam esforços no
sentido de levar às “últimas conseqüências” os detalhes da cerimônia e,
adjetivamente, indicar o demonstrativo do fausto.

O casamento era um dos fatos mais espaventosos em nossa vida patriarcal. (...)
Preparava-se com esmero a “cama dos noivos” – fronhas, colchas, lençóis, tudo
bordado a capricho em geral por mãos de freiras; e exposto no dia do casamento aos
olhos dos convidados. Matavam-se bois, porcos, perus. Faziam-se bolos, doces e
pudins de todas as qualidades. Os convivas eram em tal número que nos enge-
nhos era preciso levantar barracões para acomodá-los. Danças européias na
casa-grande. Samba africano no terreiro. Negros alforriados em sinal de regozi-
jo. Outros dados à noiva de presente ou de dote: “tantos pretos” “tantos muleques”,
uma “cabrinha” (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 374).

A exibição da carta de alforria de alguns poucos escravos, revelava um


aparato esbanjador, uma vez que o senhor do engenho, ao emancipá-los,
estava com isso metralhando o seu poder de fogo. Prescindir de velhos es-
cravos equivalia a jogar dinheiro fora, indicativo de excesso de riqueza, e
repito, demonstrativo das iguais exibições perdulárias dos índios Kwakiutl,
no ritual do Potlach. Outros seriam comprados, mas a felicidade do momen-
to invocava verdadeiras “aberrações” econômicas. A ocasião permitia
“espernear” a magnificência e o luxo. “Legitimar” a liberdade dos escravos,

85
A Família Patriarcal

por exemplo – mão-de-obra indispensável à labuta do eito –, denotava uma


maneira efetiva de manifestar desprezo em relação ao que poderia ser
readquirido sem o menor desequilíbrio econômico. Compras de novos escra-
vos aconteciam no próprio “duelo” do casamento. Um duelo claro, claríssimo,
de delírios orçamentários.
Iguarias de todo tipo faziam da mesa do banquete uma oferenda de qua-
lidade inigualável. Explodia a Festa-Mãe, em exibições pantagruélicas, a reivin-
dicar insondáveis exageros.
Nada faltava. Nem as mandingas fetichistas para o amor dar certo.

A família brasileira tem sido através do tempo o instrumento disciplinador por


excelência, produzindo e conservando a ordem social numa sociedade em forma-
ção (QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida políti-
ca brasileira e outros ensaios, 1976, p. 194).

O homem colonizador contraiu matrimônio muitas vezes devido à morte


das esposas. Na segunda, terceira ou quarta núpcias, o casamento já se con-
vertia em rotina. Para a mulher, não: uma experiência diversa das anteriores.
O receio da noite nupcial estampava-se: uma noite tão desejada quanto
repelida pelo imaginário sexológico feminino. A vida a dois. A alcova. A so-
lidão do quarto de dormir. E tantas obrigações!!!
Cerrada a imponente cortina da festa do casamento, o medo alonga-
va-se em caráter definitivo. Principalmente o medo do marido: um estra-
nho, agora dono de sua carne, de seu pálido prazer e de sua vontade.
A festa, a grande festa, ficava apenas na lembrança recondicionada em
saudade.

CÍRCULO DA ENDOGAMIA

A cadeia matrimonial dos tempos de outrora referendou-se em lastros


parentais – uma circularidade interna que fortalecia a ampliação dos bens, a
fixidez do status, a conservação de uma aristocracia oligárquica. Em última
instância, priorizava o enquistamento dos bens.
Maria Graham, cronista inglesa, encantou-se com a vida de família no
Brasil, mas notou a inconveniência de os casamentos efetuarem-se entre pa-
rentes, principalmente tios com sobrinhas. Um excesso de zelo tão forte com
pessoas do mesmo sangue que a ela pareceu o espírito de clã dos escoceses.
Nesse capítulo, o Brasil pontificou, ao arregimentar elos para que o
domínio econômico-consangüíneo não fosse abalado. Famílias fechadas em
focos étnicos, culturais e mercadológicos.

86
Fátima Quintas

O casamento era questão de grande importância; os pais escolhiam cuidadosa-


mente as alianças ou para reforçar os laços de parentesco e resguardar a propri-
edade de mãos estranhas (...) ou para aumentar poder e prestígio, indo se
unir a outras famílias de (...) nomeada fortuna (QUEIROZ, Maria Isaura
Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios,
1976, p. 45).

A casa-grande preservou-se sob todos os ângulos. O casamento entre fa-


mílias foi por ela estimulado, de modo a agigantar o caráter endogâmico das
relações conjugais, isto é, relações dentro da mesma linha de consangüinidade.
O privatismo da família patriarcal incentivou o mais possível o seu fechamento
em sólidos pactos.

(...) Casamentos, tão freqüentes no Brasil desde o primeiro século da coloniza-


ção, de tio com sobrinha; de primo com prima. Casamentos cujo fim era eviden-
temente impedir a dispersão dos bens e conservar a limpeza do sangue de origem
nobre ou ilustre. (...) Indivíduos que, casando-se, apertavam os laços de solidari-
edade de família em torno do patriarca. Era esse o fim dos casamentos de tios
com sobrinhas (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala,1966, p. 366-367).

O português, embora voltado para intercursos sexuais com mulheres exó-


ticas, raramente legalizou os rebentos que provieram dos encontros clandesti-
nos. O que equivale a dizer: se o reinol não acatou o arianismo étnico – segura-
mente não o fez –, acatou o “arianismo familiar”, evitando a inserção de filhos
bastardos no mosaico parental. Do legítimo leito nupcial nasceram, sim, os fi-
lhos descendentes diretos da linhagem européia.
A endogamia escudou as uniões oficiais envoltas em regras “proselitistas”,
enquanto as clandestinidades acobertaram-se de razões mais prazerosas do que
de raciocínios cartesianos. Hospedou a casa-grande os dois tipos de amplexos
sexuais, sendo os primeiros aqueles legitimados e ordenadores do esteio famili-
ar; os demais, olhados de soslaio, por transgredirem as instruções prescritas. Os
contatos episódicos, não outorgados pela sociedade privada, rolaram como ra-
mificações de uma árvore de tronco sólido.
Viúvos precocemente, os portugueses adotavam uma sucessão
endogâmica: casavam com as irmãs solteiras da esposa, com primas ou paren-
tes próximos. Ratificavam, assim, a circularidade do eixo doméstico para o
qual nunca arrefeceram os recursos intrafamiliares. Um sistema com ten-
dências a castas e à entronização de uniões fechadas. A família endogâmica e
cristocêntrica cresceu à sombra de uma privacidade excessiva.
A parentela consolidou-se em claustros e revigorou a coesão da família.
Uma aderência decantada em prosa e verso. Basta salientar a convivência com

87
A Família Patriarcal

os mortos, muito significativa na defesa de uma circunferência amparada em


vínculos de consangüinidade. Os mortos, enterrados na capela do engenho –
que representava uma puxada da casa-grande –, perpetuavam-se na memória
familiar, incorrendo numa presença menos etérea que materializada. Mortos
coabitando o mesmo espaço dos vivos, ou porque os vivos perderam o prestígio
ou porque os mortos contabilizavam brasões denotativos, ou ainda, porque os
mortos canibalizavam posições sociais que começavam a ruir. A convivência
mais com os mortos do que com os vivos estreitava-se.
Os mortos sedimentavam a coesão e gravavam sua ingerência com pode-
res maiores do que os dos vivos. Ainda hoje, muitas famílias sobrevivem à luz de
imagens fisicamente mortas, mas sociologicamente vivas. Os mortos arrebatam
a vida dos vivos. Na família patriarcal, a interação deu-se tão forte que os mortos
ganharam a forma de fantasmas, assombrações que se presentificavam para ali-
mentar a lembrança. Tanto que os seus retratos guardavam-se no santuário,
bem à mostra, misturados às imagens dos santos, com direito à mesma luz votiva
de lamparina de azeite e às mesmas flores devotas, indulgentes. E as tranças dos
cabelos das senhoras falecidas e os cachos dos meninos com igual sorte
complementavam o adorno do orago das saudades. Um culto doméstico com
semelhanças aos dos antigos gregos e romanos.

Abaixo dos santos e acima dos vivos ficavam, na hierarquia patriarcal, os mor-
tos, governando e vigiando o mais possível a vida dos filhos, netos, bisnetos
(FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. XXXVII).

O especial procedimento endogâmico cerziu arestas com a finalidade de


apaziguar possíveis desacertos. O patriarcalismo teve no sistema cilíndrico de paren-
tesco um aliado portentoso para enfrentar os reveses do cotidiano. Embora incon-
gruências e ambivalências destaquem-se na fotografia da realidade doméstica,
impossível aplacar o fenômeno do fechamento grupal da família, que procurou, de
todas as maneiras, assentar as vigas mestras da era colonial e pós-colonial.
Com o aprimorar dos esquemas endogâmicos, as uniões matrimoniais
entre portugueses estavam conferendadas; e inscrito e subscrito o perfil centrípeto
da casa-grande. Em conseqüência, assegurada a chama da coesão familial. O
engenho, com habilidade, asilou um encontro de gentes que em muito ajudou
a selar o elo da pirâmide hierárquica.

DECADÊNCIA DA SINHÁ-DONA

As precocidades levam ao envelhecimento antes do tempo – relação de causa e


efeito. O sistema patriarcal excedeu-se em precocidades. E as sinhás-donas, de
súbito, transformavam-se em senhoras. Amadurecidas em estufas. Frutos que

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Fátima Quintas

feneciam ao susto dos ritos de passagem. Num piscar de olhos, velhas.


O afear-se correspondia ao fluxo do desleixo. Mulheres engordando.
Consumidas em corpos abandonados. Com dezoito anos, matronas, pesadas,
largadas à não-sorte. Aos vinte anos, a ruína. A sociedade de antanho foi cruel
com a portuguesa. Cedo se fez tarde nessas jovens. Quando tudo deveria come-
çar, o ocaso emergia exuberante a usurpar-lhes as últimas forças. Após os vinte
anos, a derrocada instalava-se em um corpo exaurido por indébitas invasões.
Adquiriam papadas. Tornavam-se másculas, assumiam ares de homem. Per-
diam a feminilidade.

As mulheres amadureciam cedo. Os anos de infância raras vezes estouvada


eram curtos. Aos quatorze ou quinze anos, a menina vestia-se já como uma
grave senhora. Os daguerreótipos da época trazem até nós figuras de meninotas
amadurecidas antes de tempo em senhoras: senhoras tristes, tristonhas (FREYRE,
Gilberto. Vida social no Brasil nos meados do século XIX, 1977, p. 86).

O homem conservou melhor o corpo, uma vez que a rotina impunha-lhe


alguns deveres. Andou a cavalo, percorreu o canavial em esporádicas dili-
gências, levou uma vida mais próxima da natureza. Não por livre vontade;
antes, pelas obrigações que o eito lhe demandavam. A pálida musculatura
manteve-se mais rija – nada de formas exemplares – e, lembrem-se, a sua
relação com o corpo deu-se com ruidosa intimidade, porque os amores clan-
destinos ofertaram-lhe momentos de extraordinária vibração.
À guisa da submissão muçulmana, a mulher submergiu em um completo
sedentarismo. Passeava de rede para poupar energia. O desmazelo vencia o
regozijo de viver. Naturalmente que a negligência derivava de diversos fatores,
uns e outros em constante intersecção. A auto-anulação aparentava-se ao desâ-
nimo e, juntos, migraram para o desabamento existencial. Até mesmo à Igreja a
lusitana ia refestelada em redes. Imagine-se a inércia que se apoderava desse
corpo! Somente mais tarde, tal ostentação – a de chegar em recinto religioso em
cômodas redes amparadas por escravas – foi proibida pelo caráter desditoso
que a cena denunciava. Outrossim, o esbanjar escravos submissos, carregando
em palanquins senhoras indolentes, acusava um péssimo exemplo para um cris-
tianismo que deveria apregoar preceitos menos desiguais.
Aos vinte e cinco anos, mulheres velhas no quinto ou oitavo parto.
Arruinadas, como se tivessem sessenta. O feminino definhou em “frívo-
los” circunlóquios. Autoflagelou-se em estados de apatia. Tombou cedo
numa visível pusilanimidade. Feneceu: e o fenecimento é o princípio do
fim. Precocemente a portuguesa disse adeus à infância, aos verdes anos,
à beleza. Murchou em imagens melancólicas. Acenou lenços brancos de
despedida sensual.

89
A Família Patriarcal

Pena que tão cedo se desfolhassem essas entrefechadas rosas. Que tão cedo mur-
chasse sua estranha beleza. Que seu encanto só durasse mesmo até os quinze
anos. Idade em que já eram sinhás-donas; senhoras casadas. Algumas até mães
(FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 373).

ECOS DA AFRICANIDADE
A IMAGEM DA MÃE-PRETA

As mães-pretas despontavam no picadeiro familiar patriarcal como as verdadeiras


mães-de-criação. Quase onipotentes em relação às frágeis portuguesas, ocuparam
posições destacadas na estrutura da família, quer pela sua importância como ele-
mento de vitalidade, quer pela contribuição ao doméstico. Apoderaram-se da
ordenação, no sentido “ritualístico”, do espaço privado. Ordenação essa que
interferiu largamente na teia afetiva. Gordas, pachorrentas, embalavam bebês,
acariciando-os como filhos seus. O exercício da maternagem acabou por lhes incutir
prerrogativas de muito bom alvitre para o patriarcalismo. Quando alforriadas, per-
maneceram no seu papel regulador, os meninos tomavam-lhes a bênção, os escravos
tratavam-nas de senhora, os boleeiros andavam com elas de carro. Nos dias de festa,
comandavam a cerimônia, dando ordens e aparentando senhoras bem-nascidas.
Imbuíram-se de tal maneira da posição de mãe “postiça” que defenderam
ardorosamente os ímpetos da criançada. O que teria sido da infância na casa-
grande sem a africana a distribuir promessas de felicidade? Sem as narrativas
noturnas que ninavam meninos e meninas? Sem as histórias de bicho ou de
monstros com cara de gente? Sem o seu espírito também infantil?
A compleição orgânica representou o fator decisivo no impulso da africa-
na à amamentação dos recém-nascidos. A harmonia física carreou o estímulo
mais contundente na história da mãe-preta – peitos rijos, dentes brancos, saúde
a vender. Não lhe faltaram vantagens. Ademais, acrescidos aos fatores biológi-
cos, reunia melhores condições de higiene, pois se identificava, por motivos
óbvios, com os ruídos da tropicalidade. A união dos trunfos, orgânicos e cultu-
rais, elegeu-a indispensável. Dos seios da negra, rebentou o leite da vida.

(...) Negra ou mulata. Peitos de mulheres sãs, rijas, cor das melhores terras
agrícolas da colônia. Mulheres cor de massapê e de terra roxa. Negras e mulatas
que além do leite mais farto apresentavam-se satisfazendo outras condições, das
muitas exigidas pelos higienistas portugueses do tempo de D. João V. Dentes
alvos e inteiros (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 386).

O quinhão não se restringiu somente ao leite. A mãe-preta substituiu o


afeto da mãe portuguesa, quase arruinada pelos excessos do clima, ela, que não

90
Fátima Quintas

conhecia os destros caminhos de um Brasil ambicioso em contrastes e em desa-


fios; que não sabia como comportar-se diante de um trópico escaldante e, me-
nos ainda, diante de tradições, costumes e hábitos estranhos. Tudo lhe era des-
conhecido. E não lhe permitiram adaptar-se; logo, invocaram-lhe as exigências
biológicas da maternidade. A negra correspondeu às lacunas deixadas pela branca.
Abraçou, mimou, deu carinho. Nada melhor que um bom dengo para sarar as
feridas do cotidiano. Dengo para o menino. Dengo para a gente grande. Dengo
para adultos sacrificados pelo desassossego do massapê.
A sua influência foi tanta que chegou a levar alguns estudiosos a argu-
mentos de natureza psicológica – o ato de mamar, sendo de extrema importân-
cia na formação da criança, geraria conseqüências imediatas na construção dos
desejos. Desejos que se perpetraram no futuro, oriundos de raízes de significa-
ção sexual – quantos portugueses só conseguiram atingir o êxtase sexual no
contato com negras! Como se a atração física da fase ulterior retomasse a direção
da meninice. Será que não retoma? É sabido que a primeira infância representa
o alicerce do edifício psicológico. O lusitano cobiçou a negra com olhos gulosos.
O encontro entre as raças deu-se desde o “instinto” do seio materno – “instinto”
primitivo – aos instintos de adulto, expressivos e determinados.
Amamentados por negras, acariciados por negras, aconchegados por ne-
gras, meninos portugueses criaram dependências decorrentes das pulsões do
aleitamento. Quase todos os brasileiros do período colonial e pós-colonial foram
educados por negra. A sua ascendência fez-se direta em vários momentos. Um
olhar de troca em constante reciprocidade. Um mimetismo que bosquejou as
linhas do rosto do mundo português em estreita sintonia com o mundo
brasileiramente africano.

A PROSTITUIÇÃO DOMÉSTICA

Terra [o Brasil] de todos os vícios e de todos os crimes. Segundo o próprio teste-


munho dos escritores portugueses contemporâneos, a imoralidade dos primei-
ros colonos era espantosa, e excedia toda medida (PRADO, Paulo. Retrato do
Brasil, 1962, p. 27).

Sem a glória econômica de tempos outros, Portugal não temeu alarde-


ar a glória fálica. A nobreza perdida reclamava um drama não resolvido –
país ferido na honra de navegador insuperável. A Escola de Sagres conheceu
o brilho da excelência marítima, mas Portugal declinava no seu esplendor náu-
tico. O Brasil bem que poderia transformar-se na Terra Prometida, pelo menos
na esperança perdida. E a glória fálica apontava como uma paisagem messiânica.
A escravidão favorecia excessos sexuais. Para tanto, bastava usufruir das
vantagens que o sistema oferecia. Não precisou de muito o português para lan-

91
A Família Patriarcal

çar-se ao êxtase do sexo. A sensualidade da negra encimou o patriarca em visões


paradisíacas. Era tudo o que ele queria. Dos contactos clandestinos, nem sem-
pre houve ternura. Ou quase sempre não houve. A volúpia da carne foi mais
forte que qualquer outro sentimento. Casos ocorreram de amor. Raros. Na sua
maioria, apelos apenas epidérmicos por parte do colonizador. Entretanto foram
as negras acusadas de desvirtuarem os dignos valores da casa-grande, canali-
zando-os para caminhos pouco louváveis, como o de terem sido a principal
mentora das fantasias do senhor de engenho. Também recebeu acusações de
musa iniciatória do menino – esse geralmente conduzido pela mucama às coisas
do amor.

O que a negra da senzala fez foi facilitar a depravação com a sua docilidade de
escrava; abrindo as pernas ao primeiro desejo do sinhô-moço. Desejo, não: or-
dem. (...) O que houve no Brasil (...) foi a degradação das raças atrasadas pelo
domínio da adiantada (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p.
397-398, 463).

Não há escravidão sem prostituição – uma verdadeira sentença para a


dialética patriarcal. A relação de dominação provoca blocos ditatoriais de inten-
sa periculosidade para a moral sexual. Impulsiona distorções. Açula inconsis-
tências e impropriedades. Os limites apóiam-se em autoritarismos arbitrários e
danificam o equilíbrio das relações interpessoais.

É absurdo responsabilizar-se o negro pelo que não foi obra sua nem do índio,
mas do sistema social e econômico em que funcionaram passiva e mecanica-
mente. Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do
regime. Em primeiro lugar, o próprio interesse econômico favorece a deprava-
ção, criando nos proprietários de homens imoderado desejo de possuir o maior nú-
mero possível de crias (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 341).

Se Joaquim Nabuco extraiu de um manifesto escravocrata de fazendeiros


palavras como “a parte mais produtiva da propriedade escrava é o ventre cria-
dor”, não há como hesitar diante da premissa de Freyre – “é da essência do
regime escravista a depravação sexual”. Logo, não foi a negra que optou pela
prostituição, e sim os contextos absolutistas que a estimularam a aceitar a
permissividade como um caminho de ingênua libertação. Sério equívoco que
confundiu frios diagnósticos.
Qualquer estrutura de dominação instiga efeitos deletérios. A escravidão
revelou-se ímpar nessa hedionda cadeia. A promiscuidade emergiu categóri-
ca, enfática e decisiva. A poligamia ilegítima, porém socialmente aceita, alas-
trou-se como norma a ser seguida, uma vez que do uso sexual de várias

92
Fátima Quintas

mulheres surgiriam múltiplos ventres geradores. Em nenhum momento, a


poligamia doméstica colonial sofreu ataques. Ao contrário, recebeu pródigos
elogios. Sinônimo de diversidade de encontros carnais, bailou nos salões da
aristocracia lusitana.

A posse da terra gerou a propriedade sobre os homens e a utilização dos domina-


dos ao bel-prazer e aos caprichos dos poderosos (ANDRADE, Manuel Correia
de. O escravo negro e a intimidade da casa-grande, 1995, p. 103).

O sistema “deletério” da escravidão selou a forte fagulha do passa-


do colonial. Atraiu para si tantos defeitos e tão poucas virtudes que fabricou um
quadro com pinturas dissonantes. É indispensável entender que o negro ou a
negra escravizados separam-se do negro ou da negra visualizados sob o prisma
da etnicidade.

Sempre que consideramos a influência do negro sobre a vida íntima do


brasileiro, é a ação do escravo, e não a do negro per se, que apreciamos.
(...) Parece às vezes influência de raça o que é influência pura e simples
do escravo: do sistema social da escravidão. Da capacidade imensa desse
sistema para rebaixar moralmente senhores e escravos (FREYRE, Gil-
berto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 339).

Se a prostituição da casa-grande viu na negra a cúmplice insuspeita, as


virtudes da senhora branca, decantadas e homenageadas, arrimam-se, em par-
te, nos deslizes da escrava fêmea. Pecando umas e santificando outras, os
dualismos sedimentavam-se. Os erros tornavam-se mais explícitos enquanto os
acertos assomavam proporções significativas. A portuguesa no cetro da
sacralidade; a negra, no da profanidade. Opostos que se agigantavam na medi-
da da perfeição ou da devassidão consentida.
O amor precoce da mucama com os filhos do patriarca nem sem-
pre foi analisado com condescendência. Uma moral contraditória que
estimulou o menino à depravação e ao desregramento no uso do corpo
da negra, ao tempo em que a acusou de promiscuidade por acicatar o
pequeno adolescente aos “subornos” da carne. Esse jogo sádico trouxe
uma mística confusa à ideologia da casa-grande, se não confusa, pelo
menos unilateral e tendenciosa: esqueceu que, antes da cor, a africana se
submeteu ao caos da escravidão.

Diz-se geralmente que a negra corrompeu a vida sexual da sociedade


brasileira, iniciando precocemente no amor físico os filhos-família. Mas
essa corrupção não foi pela negra que se realizou, mas pela escrava. Onde

93
A Família Patriarcal

não se realizou através da africana, realizou-se através da escrava índia


(FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 340).

A imoralidade foi decorrente e não causal. Resultado de detestáveis cone-


xões com princípio e fim, os meios a justificarem os objetivos. A prostituição da
casa-grande consignou a prostituição do patriarcalismo, a prostituição da
monocultura, a prostituição do servilismo que se engalonaram sob a maquila-
gem da escravidão.
E se há hábito que faça o monge, esse é o do escravo.

A CULINÁRIA E A NEGRA

O espaço adstrito à cozinha da casa-grande agrupou o encontro de raças, com-


binando emoções com temperos, sentimentos com receitas culinárias, saudades
com cheiro e gosto de condimentos. Nesse desvão, aparentemente resguarda-
do, desfilaram as enormes proezas da convivência doméstica. Oráculo de con-
fissões, de fuxicos, de troca de sigilos. Zona de confraternização. Locus de inter-
câmbio. Na “sagrada” cozinha, a conversa mole, os mexericos, o disse-me-disse
alçaram a moldura da intimidade. Entre o preparo de um prato e de outro,
muitas histórias foram verbalizadas.
Tanto quanto o confessionário, o suposto esconderijo do fabrico das
guloseimas sumarizou o grosso caudal por onde escoaram conversações em
tom introspectivo, sonhos recônditos, mistérios femininos. Debaixo do manto
da solidão, a larga e tosca mesa da cozinha agasalhou os pudores de mulhe-
res acanhadas – lugar de especial atrativo para o transbordamento de dize-
res porventura perigosos ou pecaminosos. Com a devida reserva, a palavra
ali soada e ressoada exerceu importante função libertadora. Pretas velhas,
mucamas, sinhazinhas, sinhás-donas, nhonhôs coabitaram os momentos de
relaxamento que o forno e o fogão possibilitavam. Entre receitas, o rastro
dos apetites, seja qual for a etiologia – palatal ou sexual –, deixou-se singrar
em discursos reprimidos.
Pamonha, milho assado, pão-de-ló, arroz-doce, alfenins, alféloa empare-
lharam-se à mesa da casa-grande em uma demonstração de hibridismo de pala-
dares. As negras, exímias cozinheiras, redondas de tanto comerem, esmeravam-
se no preparo de “acepipes” para o regalo do menino, da sinhá ou do patriarca.
Imensos panelões compunham a paisagem da comensalidade patriarcal. Passa-
va-se o dia a beliscar e a provar pratos temperados ao saibo preferido da próxi-
ma refeição ou à blandícia da donzela enfraquecida – a necessitar de cuidados
especiais. Do café da manhã à ceia noturna, o dedo decisivo da negra. Do sim-
ples caldo de pintainho à gordurosa feijoada. Da mesa repleta de convidados ao
almoço trivial. A qualquer hora, a chaminé fluindo o olor das especiarias.

94
Fátima Quintas

[O negro ensinou] o brasileiro a explorar todas as possibilidades das papilas da


língua, bem como os nervos do faro, com a sua magia culinária (RIBEIRO,
Darcy. Ensaios insólitos, 1979, p. 94).

Os serviços da cozinha tiveram um prévio escalonamento. As pretalhonas, as


escolhidas, instigaram o paladar com vocação de tecelã. Mas houve negros incapazes
de servir no eito, com tendências a maricas, que foram inigualáveis no preparo de
quitutes. Homens efeminados a desejarem manifestar os seus pendores no espa-
ço dedicado à mulher, o da cozinha. Talvez até para provar a capacidade de
executar tarefas de tradição não masculina, capricharam em sutilezas, agudamente
“primorosas” no que tange à expressão de uma gastronomia sofisticada.
Desse modo, a culinária brasileira africanizava-se, capitalizando a inspira-
ção exótica dos seus acepipes. Exuberante e indiscreta. Gordas e alegres, as pre-
tas orgulhavam-se dos pratos que elas próprias elaboravam. Novidades a toda
hora. Temperos excêntricos vindos de uma África não menos excêntrica. A van-
tagem aconteceu na adequação a um regime tropicalmente correto. Uma dieta
que se adaptava ao calor excessivo de regiões quentes e úmidas. Ao mesmo
tempo, refeições buriladas em pimentas e molhos, o que sugeria incoerências
para um clima de altas temperaturas. O clima, com certeza, não determinou,
mas concorreu para a extroversão gastronômica. O Nordeste aceitou de bom
grado as ambrosias de uma etnia que injetou atavismos ao erudito modo de ser
de um Ocidente civilizado. A mistura deu certo.
Criou-se um sincretismo culinário, de sabores vivos e, alguns, até berran-
tes. Introduzido com a cautela dos “invasores”, o menu ajudou a atenuar dissi-
dências e a acalmar arestas. Na culinária, manifestou a negra títulos professorais.
Senhora de densos “refogados”, atraiu para si atenções que se anelavam em
“armadilhas” capazes de nublar a faísca da portuguesa. Exerceu com uma certa
maledicência o desafio da mesa. Há que se render vênia a essa emulação. Quem
duvidará da sua competência na arte de cozinhar?

(...) Mocotós, vatapás, mingaus, pamonhas, canjicas, acaçás, abarás, arroz-de-


coco, feijão-de-coco, angus, pão-de-ló-de-arroz, pão-de-ló-de-milho, rolote de cana,
queimados, isto é, rebuçados etc. (...) É nossa opinião que no preparo do próprio
arroz-doce, tradicionalmente português, não há como o de rua, ralo, vendido
pelas negras em tigelas gordas donde o guloso pode sorvê-lo sem precisar de
colher. Como não há tapioca molhada como a do tabuleiro, vendida à manei-
ra africana, em folha de bananeira (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & sen-
zala, 1966, p. 490-491).

Africano também é o acarajé, prato precioso na Bahia: feito com feijão


fradinho ralado na pedra; como tempero leva cebola e sal; a massa é aquecida

95
A Família Patriarcal

em frigideira de barro onde se derrama um bocado de azeite-de-cheiro. Além


das receitas genuínas, a africana sobressaiu-se no apuro dos doces lusitanos
à terra do pau-brasil. E atenuando asperezas, ajeitando ali e acolá, os ingredien-
tes foram dosados com o toque do amálgama cultural.
Dentre os pratos africanos que se impuseram à mesa patriarcal e firma-
ram-se até com uma certa arrogância, distinguem-se o caruru e o vatapá. Os
eleitos. Os mais apreciados. Os que se fixaram quase genuinamente. Sem reto-
ques significativos. Puros e absolutamente distintos.
Por muito tempo a mesa do engenho foi africana. O paladar girou em
torno das circunvoluções da negra, que habilmente articulou doses “marotas”
de condimentos. Arte, acima de tudo arte, subscreveu a mescla dos influxos, ao
incorporar especiarias e ao retirar as possíveis indisposições. Com mais ou me-
nos pimenta, retemperou a culinária. Durante séculos, afiançou o relevo da
gastronomia, do sentido mais figurado ao sentido mais biológico.
Não se pode falar em culinária nacional sem remeter ao mastro balizador
da desembestada glicose. A arte do doce espargiu-se do Nordeste para o Brasil
afora. A sua expressão – sociológica, econômica, sentimental – advém da família
patriarcal, extensa, cristocêntrica, horizontal, a repousar na imensidão de um
monopólio canavieiro. A escravidão propiciou o culto da hipérbole da sacarose.
Na gangorra do açúcar não se mediram estímulos para acirrar o
degustativo. A escrava revelou-se única na produção do doce. As intermináveis
receitas reivindicavam o exercício da persistência, longas tardes à beira do fo-
gão, a vigiar as panelas em que se preparavam caldas em ponto de visgo. Por-
ções estrambóticas entornaram quilos de açúcar, de rapadura, de mel – o mel de
abelha indígena que, segundo José de Alencar, morava nos lábios de Iracema.
Ovos e mais ovos esbanjavam dos tachos, esfumando o creme, que se transfor-
maria em refinados postres. Exigiu-se o máximo de perseverança para levar a
termo os “preciosismos” da doçaria. A constância da africana acentuou-se na
realização das fórmulas prescritas.
Somente a pasmaceira da casa-grande permitia operacionalizar o fabrico
de doces complicadíssimos. Tempo. Horas. Pacatez. Os vagares do patriarcalismo,
alguns foram preenchidos com a carpintaria do doce. O complexo da cana, com
as suas derivações, jamais teria se validado, com tamanha efervescência, não
fossem a quantidade de escravas, o tédio das horas mornas e intermináveis, a
lerdeza do badalar do relógio, os minutos por consumir, o longo intervalo do
nada... Cedo começava o preparo. Receitas demoradas, demoradíssimas, só
explicadas pelo excesso de ócio. Sinhás-donas gulosas e adictas de glicídios à
espera do gozo alimentar. Houve, no Brasil, uma maçonaria do doce, isto é, um
poder coeso de mulheres sobre o sigilo da feitura dos bolos de família. O cader-
no de receitas – período em que as mulheres já escreviam – foi repassado de

96
Fátima Quintas

geração em geração, mediante um inventário sentimental. Não se banalizou a


ementa gastronômica em mãos à toa. Prevaleceu uma intencional escolha na
descendência dos bolos e doces de família – a doçaria patriarcal recebeu a filha-
sobrinha eleita, aquela que garantisse a discrição do claustro da glutonaria. A
história do açúcar guarda fortes veios de privacidade. De enigmas de família.
De endogamia também culinária.
O doce e a escravidão “afinaram-se” em prolongados passadios. Um e
outro estiveram tão juntos que parece difícil elidi-los. A paisagem acoroçoou o
desenvolvimento de deliciosas guloseimas, em razão da matéria-prima abun-
dante. A cana, o massapê, a escravidão. Subtraindo um desses elementos, certa-
mente a doçaria não teria alcançado o paroxismo da culinária brasileira dos tem-
pos de antanho.
Exalte-se a tipologia das frutas, essas dulcíssimas, a aliarem-se à cana na
conjugação do supinamente melífluo. O paladar ajustou-se, por efeito, ao que
vinha de fora – de Portugal e da África. O endógeno e o exógeno acasalaram-se.
Tudo contribuiu para que, na Nova Lusitânia, as receitas com base na blandícia
proliferassem. De Portugal, sobretudo dos mouros, chega-nos uma herança sin-
gularmente açucarada.
A representação do doce no Nordeste se dá com tamanha veemência que
aponta para a formulação de uma Sociologia do Doce, eivada de traços de confei-
taria, pastelaria e estética de sobremesa, o que leva a implicações socioculturais
da maior relevância. A ritualística açucareira invocou refinamentos sensoriais.
O regime escravista possibilitou a arte da sobremesa através do exercício
da paciência bíblica. Os caprichos foram completos. Nada se rejeitou para anular a
acidez da casa-grande, e o açúcar vinha a calhar, preenchendo os vazios que se alas-
travam nos seus corredores. Em torno do doce brotou uma doutrina quase mitológi-
ca. O doce exigiu finas devoções. A liturgia reivindicou o máximo de reverência.
O doce nordestino, com a sua origem nos bangüês – “um dos rituais mais
sérios da antiga vida de família das casas-grandes e dos sobrados” – detém uma
história sentimental. Não é um rebuçado qualquer. É uma sacarose que as nos-
sas bisavós comeram; logo, um regalo que carrega ancestralidade. Quando se
reproduz uma receita antiga, há de ressaltar-se a ternura e o carinho que a en-
volveram, encerrando um bem-querer de todo especial, prolongamento de ou-
tros bem quereres que se perderam a meio do caminho. Haverá melhor iguaria
que aquela receita da vovó?
Os pratos ou tabuleiros nos quais se acomodavam as guloseimas eram
enfeitados de modo a alucinar os olhos. As negras recortadoras aperfeiçoa-
ram-se em detalhes e mais detalhes: ritmos inventivos, inspirações fantásti-
cas, visando a embelezar a oferenda do produto. E o princípio da gula é
antes de mais nada plástico, com acentos pictóricos. O olhar antecipa o olfato
na “fermentação” do apetite. A estética do ornamentar aprimorou o espetáculo

97
A Família Patriarcal

do paladar que não se conformou com a simples degustação. Foi mais além,
alongando-se na “poesia óptica”.
E a arte fez-se também no açúcar e por meio do açúcar. Os tabuleiros
ficaram famosos pela delicadeza do rendilhado e pela coreografia lúdica. As
negras especializaram-se no preparo não somente do doce, mas também do
arranjo que o complementaria. Com papel azul ou encarnado enfeitaram-no e re-
cortaram-no em corações, passarinhos, peixes, galinhas. Neles abrolhavam uma arte
com sugestões fálicas, totêmicas e barrocas. Negras, algumas forras, iam vendê-los na
rua, exibindo seus dotes, tanto físicos como culinários. As célebres “Mães Ben-
tas” ilustram as nuances de um cenário dual em glutonaria e plasticidade.
Com a desafricanização da mesa nas primeiras décadas do século XIX, o
brasileiro perdeu o hábito de vegetais e verduras, tão do agrado do negro. Tor-
nou-se abstêmio de vegetais. O pão surgiu como a grande novidade. Antes pre-
dominaram o beiju de tapioca ao almoço e, ao jantar, a farofa. Ainda: o pirão
escaldado ou a massa de farinha de mandioca espalhada no caldo do peixe ou
de carne. O feijão representou o prato do cotidiano – feijoada com carne salga-
da, cabeça de porco, lingüiça, muito tempero africano. Após a Independência, a
cozinha brasileira sofreu a influência direta da francesa. Na verdade, nesse
período, o Brasil aderiu a galicismos de toda ordem.
O gelo foi introduzido em 1834, trazido pela primeira vez ao Brasil por um
navio americano, o Madagascar. A sua chegada avultou em sucesso, pois os “no-
vos” brasileiros eram grandes bebedores de água em virtude do calor tropical,
do excesso da pimenta e da quase libidinal ingestão do açúcar – a pimenta, já
antiga conhecida dos índios, reforçaram-na os negros e os portugueses, esses
com a pimenta do Reino. Com a introdução do gelo, as frutas brasileiras que já
eram utilizadas como doces e geléias, tornaram-se sorvetes e gelados. O sorvete
trouxe uma importante revolução: desbancou a sobremesa patriarcal normal-
mente quente ou ao natural. Também funcionou como um traço de dissolução
dos serões em volta dos chás fumegantes com sequilhos, bolo de goma, queijo
do sertão e pão torrado na hora. O sorvete provocou mudanças de hábitos me-
recedoras de realce: nos idos de 1840, as moças elegantes do Rio de Janeiro iam
à Capela Imperial não somente ouvir música como deliciar-se com sorvete – o
chamado doce gelado.
O processo de desafricanização, todavia, não se operou de forma radical.
Veio aos poucos, mas não subtraiu o paladar silvestre do continente negro; na
verdade, expandiu-o, atenuado por novas combinações, embora algumas de-
notem a originalidade na feitura – o caso do caruru e do vatapá. Outras sofre-
ram alterações. A maioria perdurou afinada numa simbiose eletiva: indígena,
portuguesa, africana – o triângulo brasileiro da antropologia da alimentação.
Diante dos purismos da europeização, a alimentação original dos africa-
nos sofreu algumas emendas para que o resultado ocorresse sem conflitos. De

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Fátima Quintas

sorte que a exuberância alimentar da culinária negra recebeu retoques


acomodatícios. Uma certa parcimônia não lhe caía mal ante o exotismo dos
sabores. Cumpre ressaltar esse aspecto extravagante por envolver a
emocionalidade de um povo que não hesitou em doar seus valores comensais
quase sem polimento; em estado puro; em paz com a sua natureza ruidosa. Os
quitutes excederam-se em pigmentações degustativas. Um roteiro, o afro-brasi-
leiro, com enorme vocação para os transbordamentos.
Não há cozinha mais explícita que a africana, como não há canção de
ninar mais embaladora que a da mesma africana. A negra dominou e foi
percuciente no passado de nossas bisavós. Polifônica. Polissêmica. Polivalente. A
sua influência destacou-se não somente nos quitutes e nos arranjos das traves-
sas, como na abundância e na diversidade da mesa brasileira, cuja variedade de
timbres confere-lhe um caráter peculiar, extralusitano e marcadamente atávico.

A INFLUÊNCIA DELETÉRIA DA SÍFILIS

A sífilis fez sempre o que quis no Brasil patriarcal. Matou, cegou, deformou à
vontade. Fez abortar mulheres. Levou anjinhos para o céu. Uma serpente criada
dentro de casa sem ninguém fazer caso de seu veneno. (FREYRE, Gilberto.
Casa-grande & senzala,1966, p. 343).

O Brasil, na sua enxurrada pela carne, padeceu de um mal de ordem


sexual. A sífilis campeou abertamente, sem a menor cerimônia, como uma alia-
da às alcovas clandestinas. E não só as clandestinas. Ao mais legítimo leito nupcial.
Contaminados ou contaminadas, homens e mulheres difundiram o lues.
Por dever de justiça, impõe-se recorrer à história, demonstrando que, antes
do português, europeus em visita ao Brasil já propalaram a doença. Entrementes,
com a vinda em massa de lusitanos pela instalação colonizadora, a patogenia
alastrou-se à semelhança de uma praga, a espargir nefastas conseqüências, tan-
to sociais quanto genéticas. Um flagelo que alterou a plástica do brasileiro e
arrecadou respostas drásticas para o desenvolvimento biológico de um povo
em formação.

De todas as influências sociais talvez a sífilis tenha sido depois da má nutri-


ção, a mais deformadora da plástica e a mais depauperadora da energia eco-
nômica do mestiço brasileiro. (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala,
1966, p. 51).

O português procurou culpabilizar o africano pela ação patogênica da sífilis.


Na verdade, ele, o africano, foi o principal receptor, contraindo com absoluta
involuntariedade o mal de lues, sem sequer conhecer os vieses danificantes de

99
A Família Patriarcal

seus efeitos. Na condição de escravo infestado, recebeu a disgenia do “civilizador”.


Data do princípio do século XVI a grossa difusão da sífilis no Brasil. Da
chegada dos portugueses, os grandes contaminadores. Os franceses foram, contu-
do, os primeiros a jorrarem a doença entre os autóctones durante as visitas à Amé-
rica. Registre-se que, já no mesmo século, o Brasil era considerado o país da
sífilis por excelência. Não é difícil imaginar o quão galopante se deu a sua propa-
gação! A França viveu a temida peste sifilítica no século XVI, o que leva a inferir a
origem da doença. Os franceses verteram o mal para o resto da Europa, contami-
nando corpos sadios e difundindo o que deveria ter sido erradicado rapidamen-
te. As condições da medicina – ainda em atraso significativo – não possibilitaram um
combate eficaz, razão pela qual a doença ganhou terreno sem um antídoto à altura.
Da casa-grande, a sífilis invadiu a senzala, o massapê, o canavial... Nasceu
na intimidade da família portuguesa e de lá se entranhou por entre os recantos
do engenho. Meninos brancos, os nhonhôs, de 12, 13 anos, já exibiam sobran-
ceiros a marca da sífilis, confundida com o emblema de virilidade. Desde os
tenros anos, aos meninos dóceis, mais inclinados a empinar papagaio que a
outra coisa, cobravam-lhes o exercício da sexualidade. Cedo sifilizaram-se em
nome de uma petulante falocracia. O distintivo sifilítico, por incrível que pare-
ça, arrogou-se de insolências de macho. Sifilítico, mas macho, ninguém poderia
questionar a pronta e eficiente varonia. O corpo denunciava a mancha do falo.
Ferida de guerra, a sífilis sacralizou muitos heróis, dentro de casa, na perigosa
dimensão do que é familiar – a familiaridade quebra a perspectiva do intenso,
anulando as proporções e amortecendo os riscos. O que é familiar é próximo, não
causa receio. Pequeninos em idade, mas protagonistas de façanhas de adulto.
Negrinhas virgens, as mais apetitosas, constituíam o alvo dos meninos
sifilíticos. Dizia-se até que nada melhor do que uma negrinha virgem para a
cura da doença. Sórdida lenda que se teceu em tempos coloniais. Como se o
excesso de saúde da africana pudesse neutralizar o despautério do lues. Cruel
argumento que vem somente a ratificar o abuso do corpo da negra.

Negras tantas vezes entregues virgens, ainda mulecas de doze e treze anos, a
rapazes brancos já podres da sífilis das cidades (FREYRE, Gilberto. Casa-gran-
de & senzala, 1966, p. 341).

Numa sociedade onde os intercursos lúbricos foram vistos como sinôni-


mo de exuberância, nada mais natural que as doenças sexualmente transmissíveis
– as DSTs – se propagassem à larga, sobretudo quando não avultavam meios
para preveni-las, menos ainda para curá-las.

É claro que, sifilizadas – muitas vezes ainda impúberes – pelos brancos seus
senhores, as escravas tornaram-se, por sua vez, depois de mulheres feitas, gran-

100
Fátima Quintas

des transmissoras de doenças venéreas entre brancos e pretos. O que explica ter
se alagado de gonorréia e de sífilis a nossa sociedade do tempo da escravidão
(FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 342).

O elixir e as garrafadas – com estampas estranhamente devotas, de ima-


gens do Menino Deus, cercado de anjinhos, a aconselhar o elixir tal – tiveram a
função de chamar a atenção para a doença, mas não alcançaram a plenitude da
cura. A casa-grande ensaiou várias tentativas, algumas homeopáticas, que não
surtiram os efeitos almejados; serviram apenas como denúncia de um mal que
inundava o sangue imoderadamente. A política sexual fora sempre a de cultuar
a licenciosidade em níveis elevados, o que ocasionou a veiculação da sífilis em
um campo aberto à ação devastadora.
Lamentável dizer: o Brasil não se civilizou diante de tantas intempéries.
Sifilizou-se antes. A prostituição doméstica deu cancha à livre revoada de uma
enfermidade implacável, que a ninguém poupou, nem mesmo aos recém-nasci-
dos, esses contaminados pelo leite materno. Como se pode inferir, o efeito che-
gou a gentes que não praticaram sexo. A ama-de-leite contagiou-se com o meni-
no no peito ou vice-versa. Verificou-se, portanto, a ingerência pela via da
amamentação, ocasionando prejuízos irreversíveis.

Costuma dizer-se que a civilização e a sifilização andam juntas: o Brasil, entre-


tanto, parece ter-se sifilizado antes de haver civilizado (FREYRE, Gilberto.
Casa-grande & senzala,1966, p. 51, o grifo é meu).

O Brasil, ainda no século XIX, quantificava uma grande massa de sifilíti-


cos. A erradicação da doença foi lenta e gradual. Os higienistas demonstraram
preocupação com o evoluir de um grave mal. Por ignorância ou por deficit cien-
tífico, a sífilis perdurou durante muito tempo e impregnou a população brasilei-
ra de uma moléstia inspiradora de inquietantes astenias sociais.

A RELIGIÃO DO SEXO

O catolicismo brasileiro vestiu-se de túnicas líricas. Resultou de encontros


ecléticos, quase holísticos. Portugal, já por si, evidenciava um misticismo car-
regado de “hiperestesias”, talvez até despersonalizado nas múltiplas raízes: ro-
manas, mouras, judias, bárbaras, pagãs, cristãs... Do islamismo advieram inú-
meras influências que embrandeceram o quadro religioso em vigor. A seu jeito,
esculpiu a mentalidade do português ou fê-la conviver com outras formas de
conhecimento religioso, aumentando a percepção para além de si mesmo.
Religião com cheiro de carne. O cristianismo rendeu-se a outros prin-
cípios para apaziguar a fúria civilizatória. E apaziguou muito bem. Com

101
A Família Patriarcal

esbanjadores acenos. Com artifícios meticulosos. Com focos exagerados de


lubricidade. A rotina entremeou-se de apelos sexuais que animaram a festa da
carne, religiosamente permitida, o que já lhe conferia ganhos adicionais – rega-
los divinos, abençoados pela liturgia da fé.
Santos de carne e com o mesmo sensualismo de homens desejosos de
copular. A religião reacendeu a pulsão já inflamada pela libido portuguesa. Sob
o arrimo da Igreja, o sexo tornou-se leve e solenemente outorgado por mãos que
não eram humanas. Mãos sacrossantas com o poder de amortecer o maior dos
defeitos. Machos e fêmeas desfrutaram o êxtase de uma sexualidade acaricia-
da por Deus. Que mais se poderia almejar para que o desejo se realizasse
com a plena anuência dos “imortais”? O corpo fez-se enlouquecidamente
cobiçado na tríade das etnias. Basta citar as alusões aos Santos, à Virgem, ao
Menino Jesus, ao quotidiano do bangüê: Nossa Senhora do Ó adorada na
imagem de uma mulher prenhe; São Gonçalo do Amarante a desdobrar-se
para atender aos rogos das mulheres que tanto o arreliavam com promessas e
fricções; São João Batista, moço bonito, namorador, solto entre as moças que lhe
dirigiam pilhérias. A diversidade do hagiológio católico em muito ajudou a ale-
goria da festa sexual.
Até mesmo os azulejos – de influência moura – transformaram-se em ta-
petes decorativos nas capelas, nos claustros, nas residências. E os desenhos,
então assexuados, adquiriram, na arte cristã, formas afrodisíacas, quase obsce-
nas. Mais uma ingerência muçulmana à qual se adicionaram pinceladas eróti-
cas. Nas sacristias e interiores das igrejas, as grandes paredes cobriram-se de
azulejos com cenas de plástica sexual.
Brancos, negros, índios pacificavam-se no mutirão da religião. O catolicis-
mo pontuou a peça fundamental de família na obra colonizadora. O cimento da
união. O lastro propulsor de proles desvairadas. Só uma barreira mostrava-se
intransponível no Brasil colonial: a da heresia. Essa era vista com repúdio, des-
prezo, rejeição. Tudo se aceitava, menos a mancha do ateu, a obliqüidade do
ímpio e sua frigidez estéril que empurra almas à condenação. O Brasil precisava
ser um Brasil de santos ou, pelo menos, de guardiões da fé. Assim foi.
Exageradamente defensor dos valores cristãos e jesuíticos.
Católicos, sim. Hereges, nunca. A obra de cristianização referendou
um processo seletivo, vivenciado com bravura pelo Brasil de nossos ante-
passados. Que chegassem machos e fêmeas em graça. Desinfetados da peste
da heresia. Pelo batismo, estariam prontos para o ofício da “governância”,
isto é, para o ofício de administrar os seus corpos em permanente erupção
de desejo. A orgia da carne disse da celebração do patriarcalismo. A religião
chegou a abençoar com o sinal-da-cruz os “devassos” de moralidade sexual.
Pais-nossos e ave-marias rezavam-se ao compasso da cerimônia do amor e
das fustigantes sandices da paixão.

102
Fátima Quintas

No Brasil, a catedral ou a igreja, com a sua estrondosa arquitetura barroca,


seria substituída pela humilde capela do engenho – pálida na engenharia de
pedra e cal, porém excelsa na simbologia de um poder único. O clericalismo
não floresceu apesar dos esforços dos padres da Companhia. A catedral per-
deu para a capela de engenho; esta, tão pequena, simples e rusticamente
construída; aquela, erigida em alicerces e em dimensões artísticas inigualáveis.
Mas a soberania “plástica” não foi suficiente para defrontar-se com o impé-
rio dos oligopólios açucareiros.
Os aposentos do engenho sediavam uma procissão permanente. Andava-
se de rosários na mão, relicários, santinhos, águas-bentas, um aparato quase
bélico para agradar aos dois senhores: o da terra e o do céu. Orava-se pela ma-
nhã, à hora das refeições, à noite. Conversava-se com os santos, como se eles
fizessem parte da família, com presença corpórea definida, a responderem e a
trocarem idéias. Os santos deambulavam dentro de casa lembrando íntimos
convidados.

Foi esse cristianismo doméstico, lírico e festivo, de santos compadres, de santas


comadres dos homens, de Nossas Senhoras madrinhas dos meninos, que criou
nos negros as primeiras ligações espirituais, morais e estéticas com a família e
com a cultura brasileira (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p.
380).

Essa fusão de deidades – umas fetichistas, outras católicas – induziu a


equalizações desejáveis à medida que o negro encaixou a herança religiosa afri-
cana à realidade, não menos religiosa, européia. Emergiu um quadro de justa-
posição, bem ao gosto dos atavismos de cada raça. As aderências proliferaram,
penetrando no imaginário coletivo do povo brasileiro, que hoje defende suas
ondulações místicas entre flexibilizações de todo louváveis.
Uma vida de rezas. Um cotidiano cheio de superstições e de convic-
ções religiosas. Nas cadeiras de balanço, as nossas bisavós muito pediram ao
Menino Jesus: saúde para os netos, casamento para a sinhá, prosperidade
para a cana... Do santuário à cozinha, a ebulição da fé. Porém, uma fé
ecumênica, que não se restringia às normas exclusivas do catolicismo. Pre-
sunçosa de fetiches, de atavismos, de misturas sadias que concorriam para o
bem-estar familiar. A idéia de Deus corporificada. Santos carnais. Com senti-
mento e com cheiro de gente, o que lhes conferiam dividendos extraordinários
mediante fortes laços de solidariedade.
Um Deus presente e partícipe de uma vida nem sempre cativa de opulên-
cia. Um Deus que chora, que ama, que ri, que aplaude os bons e condena os
maus. Um Deus imediatista num mundo secular; logo, com sentenças bem de-
finidas para a desarmonia do universo.

103
A Família Patriarcal

Dessa intimidade entre o sagrado e o profano deriva a mescla humanizada,


indecomponível que transforma nosso catolicismo numa crença sem mística
especulativa e sem ascética, antes idílico e sensual (MOUTINHO, José Geral-
do Nogueira. O sentimento religioso em Casa-grande & senzala, 1985, p. 101).

Rezava-se a Santo Antônio para arrumar casamento; a Nossa Senhora do


Bom Parto para auxiliar a hora do nascimento; às Nossas Senhoras e aos Santos
para colaborarem nas decisões mais complicadas do dia-a-dia. Uma relação amiga,
com trocas de confiabilidade.
Na ocasião da botada – primeiro dia da moagem da cana –, lá se postava
o padre para assegurar o sucesso do eito. Nada se fazia sem sacralizar o profano.
O mundo, sabia-se, estava cheio de maus-olhados. Com Deus como patrono, o
trabalho firmava garantias preliminares em base de futuras prosperidades.

O sacerdote primeiro dizia missa; depois dirigiam-se todos para o engenho, os bran-
cos debaixo de chapéus de sol, lentos, solenes, senhoras gordas, de mantilha. Os ne-
gros contentes, já pensando em seus batuques à noite. Os muleques dando vivas e
soltando foguetes (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 471).

As etapas religiosas cumpridas, assim o engenho penhorava safras


alvissareiras. A ordem divina guiaria a ordem do melaço e, em decorrência, a da
economia. Orações, muitas. Uma casa-grande inundada de preces. Não só ora-
vam mulheres brancas. As negras, sobretudo. Eram tão rezadoras, as negras,
que passavam o dia cantarolando músicas “sacras”, recitando credos e versos
moralistas. Sílvio Romero afirma ter-se tornado religioso diante do exemplo de
sua escrava Antônia, a mais devota mulher que conheceu. Passava o dia a rezar
e a benzer-se, rogando a Nosso Senhor permissão para tudo.

Quando se perdia dedal, uma tesoura, uma moedinha, Santo Antônio que desse
conta do objeto perdido. Nunca deixou de haver no patriarcalismo brasileiro,
ainda mais que no português, perfeita intimidade com os santos. O Menino
Jesus só faltava engatinhar com os meninos da casa; lambuzar-se na geléia de
araçá ou goiaba; brincar com os muleques. (...) Com Santo Antônio chega a
haver sem-cerimônias obscenas. E com a imagem de São Gonçalo jogava-se
peteca em festas de igreja dos tempos coloniais (FREYRE, Gilberto. Casa-gran-
de & senzala, 1966, p. XXXVII, 246-247).

A intimidade entre o devoto e o santo consagrou a flexibilidade do


cristianismo colonial. Uma interação que se quis acondicionada em pousos
familiares, o divino a ocupar relações próximas, de rara afinidade com o huma-
no. Este quadro simbiótico agregou o singular feitio da mística do passado.

104
Fátima Quintas

Assim a hegemonia religiosa, comum ao cristianismo clássico, perdeu


terreno no contato com a africanidade. Ao amaciar a religião, lançando toques
de mundanidade, o negro retirou-lhe o ar de punição, ressignificando-a em
veios mais complacentes e, sobremaneira, mais altruístas.
O Brasil desenvolveu-se sob a miragem benéfica do catolicismo plural e
esbanjadoramente repositório de crenças alienígenas. A potencialidade em acei-
tar e em conviver com o “exógeno”, à orla da Bíblia lusitana, ofertou-lhe um
amplo caleidoscópio, verdadeiro oráculo de “gêneses” possíveis. Sem discrimi-
nações, aceitou as variadas influências, unificando-as em balizas de polifonia e
polissemia.

(...) O Catolicismo foi o elemento mais vigoroso nesse conjunto, mas ele mesmo
é, sob certos aspectos, aqui no Brasil, “superstição católica” (MARTINS, Wil-
son. Livro definitivo na vida intelectual do Brasil, 1985, p. 273).

Sensualidade não faltou ao Catolicismo colonial. A religião chegou a con-


descender com a profusão de intercursos genitais. Os padres, a quem se atribuía
a virtude do celibato, não conseguiram controlar-se diante de tamanha
permissividade. Tanto que, em nome da moral religiosa, houve iniciativas de
preservar, sem o sucesso esperado, a condição de abstinência sexual dos sacer-
dotes, sugerindo-se a moradia do capelão fora da casa-grande. E, ainda: com
escrava velha para servi-lo, dotada de poucos atributos físicos. Evitar-se-iam,
dessa maneira, as numerosas tentações. Pelo menos, o clero deveria corresponder
aos princípios louvados pela Igreja, entre os quais, o mais pudorosamente de-
fendido, o da sublimação sexual. Que os leigos se afogassem no prazer orgástico.
Os padres, não. Tudo leva a crer, contudo, que a libido superou o presbítero,
estimulou o desejo e anulou os supremos dogmas católicos. Mas tentativas ocor-
reram. Se não lograram os resultados perseguidos, colaboraram para tranqüili-
zar a consciência dos mais austeros padres da Companhia de Jesus, esses, uns
donzelões convictos.
Do ateu ao religioso, o brasileiro traz dentro de si uma colméia de amuletos.
As superstições integram o seu imaginário com uma gama vastíssima de lances
mágicos. E ai do brasileiro que não respeite os seus babalorixás, o seu Deus, os
seus santos protetores! Um tanto à mercê dos suspiros lendários, elabora a pró-
pria mitologia, marcada pelo improviso e pela versatilidade.
Quermesses, festas de igreja, sorteios, rifas sincronizavam o cunho alegre
e telúrico da secularização do cristianismo que se desenvolveu sob o crivo das
oblações jesuíticas. Uma laicização que alfinetava a sexualidade, enquanto esta-
belecia adereços eróticos na dinâmica patriarcal. Basta recorrer a ainda usual
denominação dos doces, hoje populares, porém, anteriormente, confecciona-
dos em conventos peritos na técnica de estímulos seráficos e não menos

105
A Família Patriarcal

fesceninos: sonhos, olhos-de-sogra, babas-de-moça, suspiros, manjar-dos-deu-


ses, nuvens-de-coco, barriga-de-freira, bolo-de-beata, bolo engorda marido, bolo
divindade, espera-marido, come-e-cala, bolinhos do amor, esquecidos, melin-
dres, paciência, beijos-de-freira, abraços, caladinhos, saudades, triunfos-de-frei-
ra, capela-de-freira, fatias-de-freira, toucinho do céu, cabelos da Virgem, papo-
de-anjo, celestes, queijinhos de hóstia, conselheiros, velhotes, orelhas de abade,
galhofas, lérias, casadinhos, viúvas, jesuítas, arrufadas, sopapos, desmandadas...
Nomes sensuais outorgaram à ação degustativa fermentos instigantes e
aliciadores da prática do amor. Um surto de fascínio alimentar e libidinal
para picar os desvãos da casa-grande nas coisas do sexo. A negra provou ser
excelente nesse condimento. Exerceu uma função preponderante na exegese
do cristianismo lírico.
Do negro, todos nós aprendemos um pouco. Reminiscências religiosas,
as suas, estão presentes como insígnias culturais que ultrapassarão o tempo,
alongando-se na unidade brasileira, qual refrão de velhos contrastes coloniais.
E o cristianismo sensual e lírico resultou de uma partitura em três tempos.

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107
CASA-GRANDE,
CAPELA E SENZALA

José Luiz Mota Menezes


arquiteto, urbanista e historiador

A casa-grande, completada pela


senzala, representa todo um sistema
econômico, social e político:
de produção (a monocultura latifundiária);
de trabalho (a escravidão);
de transporte (o carro de boi,
o bangüê, a rede, o cavalo);
de religião (o catolicismo de família,
com capelas subordinado ao pater
família, culto dos mortos, etc.).
Gilberto Freyre
José Luiz Mota Menezes

UMA OBSERVAÇÃO PERTINENTE


Quando se deseja escrever sobre o tema Engenho de Açúcar se vive uma grande
dificuldade e isso talvez se explique diante do que disseram sobre esse assunto muitos
e bons pesquisadores. Sendo a existência dos engenhos e os resultados deles obtidos
logo no primeiro século da colonização a explicação mais justa de uma auto-
sustentabilidade da Capitania de Duarte Coelho e ainda por se tratar de um sistema
de produção de grande interesse, em face de sua organização ter sido realizada nos
moldes referidos no Brasil, essencialmente no primeiro século e nas mais antigas
capitanias, a questão de imediato despertou o interesse daqueles pesquisadores inte-
grantes das mais diversas ciências. Assim, é possível que no presente texto se informe
alguma coisa de novo ou em nada ele contribua para a questão. Mesmo assim nos
gratifica a possibilidade de debruçar sobre o tema o vendo com nossos olhos.
Por vasto reduziremos o tema principalmente aos engenhos de Pernambuco
das Capitanias ao Norte, excluindo em parte a da Bahia diante de sua maior
complexidade. É possível que o aquilo dito sobre Pernambuco possa se aplicar
aos engenhos da Bahia, mas não nos aventuramos a tanto.

A CASA DE LAVRADOR NO MINHO – PORTUGAL

“Como resultante das dominantes geográficas locais, e da prolongada evolução


da sociedade rural minhota, o povoamento disseminado caracteriza-se, em opo-
sição às demais formas de ocupação humana do território, pela fixação do lavra-
dor e da sua família junto às terras que trabalha.

Tendo em conta o intenso retalhado do solo, o tecido rural apresenta-se-nos


salpicado de propriedades de todo o tamanho, a que os serpenteados caminhos
vicinais dão à necessária coesão. À margem destes, mas cravados no seu próprio
agro, despontam as casas de lavrador, que se constituem como organismos
unifamiliares e auto-suficientes, composta pela moradia e as construções ane-
xas, erguidas consoantes as necessidades.”

“Quando o proprietário rico, e também lavrador, ainda vive nas suas terras, em
que a falha dos campos domina e enforma o seu caráter, a casa de lavrador, como
um prolongamento direto da vida do agro, amplia-se e as instalações tomam as
proporções que as necessidades exigem. E, embora o tamanho aumente, o esque-
ma mantém-se igual ao da casa do remediado, e os objetos, animais e pessoas
albergam-se, na mesma, lado a lado”.

A modificação sofrida resume-se, portanto, à magnitude das dimensões.

111
Casa-Grande, Capela e Senzala

Para melhor exemplificar apresenta-se a Casa de Calvelho, em Creixomil, cujas


características notáveis nos servem à maravilha.

Ao lado da habitação, de traçado igual a tantas outras, instala-se a capela, que só


por si dá o tom e classe das pessoas que nela viviam. Depois, rodeando pelo
Norte e pelo Sul o terreiro, lá está a teoria completa de abrigos para as diversas
coisas e operações.

Atente-se na sua vastidão e nas dimensões de párea coberta, e verificar-se-á que


estamos em presença duma grande casa de lavrador fidalgo.

Apesar disso, não transparece a menor ostentação, antes, pelo contrário, tudo se
mede pelos cânones de vida sóbria e digna, que se prolongam em gestos, hábitos
e objetos marcadamente rústicos.”
(In: Arquitectura Popular em Portugal, SNA, 19611)

A ORGANIZAÇÃO DA UNIDADE PRODUTORA


DE AÇÚCAR NO BRASIL

Quando, no século XVI, a exemplo em Pernambuco se organizam as primeiras


unidades de produção de açúcar no Brasil, com emprego de engenhos para
esmagar a cana e os demais componentes da fábrica, além da moradia do se-
nhor, dos escravos e a capela, tudo se constituiu em uma experiência pratica-
mente nova para os lusitanos, apesar das instalações existentes na Ilha da Ma-
deira. O novo consistiu na organização do território e na montagem de um
sistema que garantisse pouca improvisação. Isso no que se refere entre outras
coisas ao uso do rio como elemento auxiliar do transporte do produzido desde
os armazéns, passos, de guarda do açúcar, e segura instalação da moenda, quan-
do se tratava de uso da roda d’água.
Para materializar tal sistema de produção, considerando aquela apropria-
ção do espaço, onde se situaria a plantação, o lavrador parece ter feito uso de sua
memória e experiência vivenciada por ele na Península Ibérica, embora relacionada
com outro tipo de produção, por exemplo, a do vinho. Desse modo, no conjunto
que vai tomando forma nos primeiros assentamentos relacionados com a produção
do açúcar ele não vai dispensar, considerando a dimensão do empreendimento, o
que em Portugal seria a sua moradia antes descrita. Isto é, teria que dotar a proprieda-
de rural no Brasil de uma casa, onde quais fossem as suas dimensões estas não afeta-
riam o modo de distribuição interna dos cômodos e a presença daquela varanda

1
VVAA, Arquitectura Popular em Portugal. Lisboa: Edição do Sindicato Nacional dos Arquitetos,
2 v. 1961. p. 40 e seguintes.

112
José Luiz Mota Menezes

voltada para a plantação. Nos mesmos termos ele


não dispensaria a existência da capela, colada ou iso-
lada da casa. Uma situação que nos parece natural
ao se considerar o relativo isolamento do conjunto
em relação às vilas e povoações. O número bem maior
de empregados e escravos o conduziria à constru-
ção de casas para trabalhadores livres e habitações
coletivas, a senzala, esta por conta do número razoável de famílias negras. Natu-
ralmente a diferença do sistema adotado em Portugal para o do Brasil estaria na
matéria-prima produzida, ou seja, o açúcar e a máquina (o engenho propria-
mente dito, a moenda) de obtenção do caldo, os equipamentos de cozimento e
de cura que requerem espaços diferentes e não existentes naturalmente naquele
conjunto antes descrito.
No Brasil vão-se multiplicar as capelas rurais e elas passam a existir indife-
rentemente das dimensões e posses do proprietário. Quase todo engenho tinha
sua capela ou um oratório doméstico de bom porte. Trata-se de uma necessida-
de de proteção dos santos que está acima da situação de cada senhor de enge-
nho, seja senhor de grande ou pequena propriedade rural.
Diante de tal premissa, assim como em Portugal temos de considerar a
capela do engenho e aquelas que se edificam nas povoações que se organizam
nas proximidades daqueles e que em alguns casos podem se transformar em
igrejas paroquiais vinculadas às freguesias.
Quer a capela rural ou a outra situada na povoação não parecem ser dife-
rentes na arquitetura senão naquilo que deriva do poder e do orgulho do se-
nhor do engenho no sentido de aformosear mais sua casa de Deus. A vida rús-
tica desprovida de luxos é marcante na maioria das propriedades rurais, no
entanto os grandes proprietários, contrariando o modelo de vida existente no
Norte ou Sul de Portugal, passam a viver com mais requinte. Na maioria dos
casos o melhor da ornamentação será destinado à casa de Deus, mas alguns
senhores se dão ao direito de bem tratar a decoração interna da casa-grande, sua
moradia, se bem que com maior intensidade isso ocorra já no século XVIII e
seguinte.
Havia propriedades somente de plantio de cana, onde o senhor não pos-
suía recurso para construir o engenho e as que instalavam engenhos eram de
mós de pedra, ou de paus movidos por meio de bestas, almanjarras, ou por
força de uma roda de água. Tecnologias mecânicas conhecidas e empregadas
desde muitos tempos em Portugal.
Com fim de estabelecer uma melhor forma de apreensão do assunto, divi-
diremos a questão segundo os tipos de edificações que compunham o conjunto
de produção do açúcar. Não deixaremos de lado os mobiliários das casas-gran-
des e das capelas.

113
Casa-Grande, Capela e Senzala

Em cada um dos tipos estudados procuraremos localizar se possível os


prováveis modelos em Portugal. Também se adotará um sentido cronológico e
relacionado com o gosto arquitetônico vigente.

A CASA DE MORADIA DO SENHOR DO ENGENHO


OU DE APENAS PLANTAÇÃO DE CANA-DE-AÇÚCAR

Nem todos os senhores de terras doadas para plantar e moer eram dotados de
meios para construir um engenho. Este era de alto custo e exigia mão-de-obra
especial, além da aquisição de metais para os tachos. Assim existiam proprieda-
des somente de plantio outras que moíam uma vez que dotadas de moita e
maquinaria necessária a todas as etapas da produção.

AS PRIMEIRAS CASAS – SÉCULOS XVI E XVII

Percorrendo um inventário, realizado em Portugal pelo Sindicato Nacional dos


Arquitetos2, já referido, encontramos algumas casas que muito nos ajudam para
uma melhor análise do tipo construtivo da casa de um lavrador de cana-de-
açúcar no Brasil. Elas estão situadas no Minho e nas Beiras. A maior parte delas
na região primeira.
A aparência externa dessas moradias tem como elemento de destaque a
varanda correndo por quase toda uma das fachadas. Desta varanda, situada na
maioria dos exemplos no pavimento superior, tem-se acesso aos cômodos (ou casas)
de usos diversos: sala, alcovas, cozinha e sala do oratório, a das rezas. As alcovas são
escuras ou abertas à luz se situadas na extremidade da varanda. Para tal varanda se
tem acesso por escada quer ao ar livre outras vezes com proteção de um telhado. A
varanda se abre geralmente para uma ampla paisagem3. Em alguns casos a cozinha
fica no pavimento inferior e, para acesso a ela, existe escada própria assim como para
a adega4. Em casas desse tipo, menores, o gado no inverno se abriga no térreo.

2
Arquitectura Popular em Portugal. Lisboa: Edição do Sindicato Nacional dos Arquitetos, 2 v. 1961.
3
“cabe, pois, referir aqui um aspecto não mencionado e que é fundamental para a compreensão
do fato: como ressalta da análise mais circunstanciada da planta, semelhante às outras casas, as
varandas são principalmente corredores que ligam a entrada da casa com qualquer quarto ou sala
e serão tanto mais compridas quanto mais dependências existirem alinhadas e convenha servir.
Apoiadas em pilares isolados; retraídas ou projetadas suspensas, de traves lançadas desde o
interior e de lajes de pedra engastada na parede; abertas ou entaipadas, recolheram-se exemplos
interessantes que nos mostram a relativa semelhança de soluções dispersas, numa faixa que se
pode referenciar por locais ou povoados como Nespereira, ao Sul do Douro, em terras de Cinfães;
Celorico de Basto. Ao longo da estrada que daqui segue para Vieira do Minho, Monção e Merufe.”.
Arquitectura Popular em Portugal, 1961, op. cit. p. 84.
4
Vários exemplos existem na referida publicação do Sindicato e algumas das casas estão
reproduzidas no presente texto.

114
José Luiz Mota Menezes

Para saber de que forma foram construídas as mais antigas casas-grandes,


assim chamada as dos engenhos no Brasil, diante de não nos ter chegado
exemplares íntegros aos nossos dias, temos que nos valer do representado
nas pinturas do século XVII de origem holandesa. Elas têm seus partidos
arquitetônicos vinculados quer a uma arquitetura de teor erudita, com uso
de arcadas, pilastras, capitéis, base, tudo regido por composições de arquite-
tura que segue o determinado nos Tratados ou nas anotações dos engenhei-
ros militares ou mestres-de-obras. Elas se apresentam nas pinturas de duas
formas: simples, em taipa de mão sobre pilares de tijolos, ou rebuscadas e
fiéis a tais Tratados ou anotações. Mas, em ambas, tudo faz crer que a dispo-
sição dos cômodos interiores de um modo geral se filia àquela das casas do
Minho, em Portugal.
A presença da varanda, também uma necessidade no Brasil imposta
pelo clima, não seria somente à frente da edificação,
em um bom número de casos ela faz a volta ao
redor do núcleo central onde estão os demais am-
bientes de viver. Quando a casa era térrea, a va-
randa corria à volta e a cozinha situava-se quer
fora do corpo ou na parte posterior da moradia.
Em Portugal, assim também no Brasil, aque-
las edificações em qualquer período de tempo fo-
ram edificadas em taipa, alvenaria de pedra ou em alvenaria de tijolos. Quando
em pedra, vai requerer o uso de canteis e a obra lavrada terá ares de erudi-
ção. Sendo em taipa, no Nordeste, com freqüência a simplicidade da cons-
trução pode conduzir a uma composição de linhas sóbrias, mas em certos
casos não é a arquitetura da casa desprovida de erudição. Uma sobriedade
resultante do sistema construtivo, mas que não deixa à margem excelentes
proporções quanto ao desenho, qual a Casa-Grande do Engenho Poço Com-
prido, em Vicência, Pernambuco. Nas pinturas do artista Frans Post, vindo
com o Governador João Maurício de Nassau (1637–1644), podem-se ver tais
tipos eruditos ou simples no trato da arquitetura rural5.
Um grande inventário dessas casas rurais já existe em estudo publica-
do e realizado por um arquiteto na qualidade de Tese de Doutoramento em
São Paulo. Posteriormente a tese referida foi condensada e editada pela Fun-
dação Gilberto Freyre.

5
No quadro Casa de Plantação com Torre (número 15), reproduzida no Livro sobre Frans Post de
Joaquim de Sousa-Leão (Livraria Kosmo, Rio de Janeiro, 1973), a casa de taipa assenta em pilares
de tijolos. Na pintura Engenho (número 17), temos um exemplar erudito com dois torreões
ladeando um terraço em arcadas sobre um andar térreo muito fechado, talvez uma arrecadação.
Outros exemplares são apresentados pelo autor, mas não fogem muito a tais modelos.

115
Casa-Grande, Capela e Senzala

A CASA-GRANDE NO SÉCULO XVIII

Nos séculos XVIII, ao dominar em Portugal o Barroco também nas constru-


ções rurais, as casas-grandes de engenho seguirão aquele gosto quando de
teor mais rebuscado. Exemplares em Pernambuco6 demonstram essas novida-
des do Reino em termos de gosto e tal ocorrerá, como veremos com mesma
modernidade nas capelas.
No entanto essas edificações sempre manterão um tratamento que está
mais vinculado às características do “estilo” Chão (Plain Style) do que as do
Barroco, inclusive no que refere ao uso da superfície curva e de um espaço
interior de acordo com as idéias de Borromini. Em algumas casas, raras, pintu-
ras nos forros lembram esse gosto artístico.

O SÉCULO XIX

No século seguinte, onde predominam o Neoclássico e o Ecletismo, revestem-se


desses “estilos” as casas rurais de Pernambuco7.
Nesse século XIX em termos de elementos de modenatura e modulação a
casa-grande do engenho seguiu o mesmo tipo de composição da residência urba-
na, guardadas aquelas características de organização dos ambientes típica do mo-
delo rural. O seguir as diretrizes dos estilos em voga denota o interesse do senhor
de não ficar em situação inferior ao outro seu vizinho que reformou ou cons-
truiu nova casa aos moldes dessa ou daquela modernidade. Pernambuco detém
belos exemplares, todos mobiliados segundo o que a casa exigia naquele século.

AS CAPELAS RURAIS

Em Portugal capelas rurais estão presentes junto às casas dos lavradores desde o
mais recuado tempo, segundo a data da fundação de cada propriedade, as quais
estão sempre integradas. Assim, suas características arquitetônicas acompanha-
ram segundo aquele tempo o gosto dominante no lugar, sejam elas eruditas ou
edificações simples.
6
As Casas-Grandes da Bahia ostentam maior luxo que as de Pernambuco. No entanto nesta
Capitania se pode assinalar a Casa-Grande e capela do Engenho Poço Comprido e a capela do
Engenho Bonito como exemplares de excelente qualidade artística.
7
Grande número de Boas Casas-Grandes de Pernambuco é exemplar do século XIX. Algumas são
frutos de remodelações nessa centúria ou construções novas que substituíram antigas. Podemos
citar entre elas: a Casa-Grande do Engenho Morenos, em Jaboatão; do Engenho Monjope, em
Igaraçu; do Engenho Gaipió, em Ipojuca; do Engenho Preferência, em Escada; do Novo da
Conceição, no Cabo; do Engenho Mattas, no Cabo; do Engenho, depois usina Pumaty, em Joa-
quim Nabuco; do Engenho da Madalena, no Recife e do Engenho São João, adquirida, pois em
estrutura metálica, importada da Bélgica.

116
José Luiz Mota Menezes

No Brasil dois fatores se associam na questão da arquitetura daquelas ca-


pelas: os recursos disponíveis do proprietário e o gosto presente entre os mes-
tres-de-obras, em grande maioria seus projetistas e executantes. Em qualquer
das situações no conjunto da fábrica a atenção maior será voltada para as cape-
las, diante da necessária proteção divina em lugares às vezes hostis. A distância
entre as propriedades, na maioria das vezes define a dimensão da capela e sua
importância para a gente ao redor.
Quanto às características arquitetônicas e artísticas da capela, pode-se di-
zer que elas seguiram com o desenrolar do tempo os modelos que podem se
associar do Maneirismo8 ao Neoclássico, onde inclusive os últimos exemplares
serão vinculados ao Ecletismo. No Brasil, o longo tempo de duração da Colônia
(1500–1822) se inclui no tempo do Barroco e em apenas numa pequena parte do
gosto artístico que o antecedeu na Europa, ora chamado de Protobarroco ou de
Maneirismo1. Depois da Independência, as capelas reconstruídas ou construídas
se vincularão aos estilos que sucederam ao Barroco.
Parece-nos, diante dos exemplares ainda existentes, que a capela rural acom-
panhou a moda das urbanas. Apesar de destinadas ao culto pelo Senhor e assim
domésticas, a capela rural recebeu a gente do engenho a seu redor segundo a
importância que ela adquiriu no lugar. Com a extinção dos engenhos, algumas
delas foram transformadas em paroquiais, e no Recife e seus arredores, com o
desaparecimento dos engenhos, se farão matrizes de freguesias.
Quanto ao estilo dessas capelas, não se pode esquecer a filiação delas ao
gosto lusitano presente nas capelas rurais ibéricas. Para entender o gosto pre-
sente nessas capelas, também entra no jogo a memória dos senhores e a origem
de cada um, e tal situação pode influir na arquitetura dessas edificações. A se
saber que a arquitetura será diferenciada no resultado, seja ela do Norte ao Sul
de Portugal, e também se acredita que tal situação pode ter caracterizado as
capelas edificadas no Brasil na zona açucareira. Assim, não se deve analisar de
uma maneira geral o que ocorreu, e sim verificar cada situação segundo tais
parâmetros, o que ainda não se fez devidamente9.
Seguindo aquele caminho natural do correr do tempo, verifica-se que as
capelas dos dois primeiros séculos seguem as diretrizes do gosto pelo
Protobarroco, com predomínio da simplicidade nas suas linhas, mesmo quando
seguem os Tratados de Arquitetura, onde em algumas delas a esse tratamento
sóbrio do exterior se contrapõe, quando as condições assim o permitem,
uma maior riqueza no interior, esta representada através do retábulo princi-

8
Não se pode esquecer a classificação de Kubler em Estilo Chão (Plan Style), grande parte da
produção arquitetônica portuguesa dos séculos XVI e seguinte.
9
Os estudos no Brasil tendem a generalizações e deste modo ao esquecimento de tais situações
singulares e decorrentes de particularidades que se tornam importantes.

117
Casa-Grande, Capela e Senzala

pal ou nos demais quando tal ocorre. Nos retábulos a imaginária acolhe a
mesma linguagem e dá a nota divina ao culto seguindo a devoção da gente.
Cada um daqueles estilos artísticos antes citados tem linguagem pró-
pria e características que direcionaram o gosto do construtor da casa-grande
e essencialmente o da capela. Em termos de características artísticas, anda-
mos, da sobriedade de uma linguagem mais atenta às formas da arquitetura,
para um maior domínio da escultura decorativa. De um modo Apolíneo, no
ver de Gilberto Freyre, ao de Dionísio.
As capelas mais antigas, pertencentes a engenhos dos dois primeiros
séculos, não chegaram ao nosso tempo todas elas10. As que temos hoje são
produtos que sofreram intervenções salvo raros exemplares. No entanto,
graças às pinturas do paisagista Frans Post, artista já referido, se conhecem
exemplares, a maioria não identificados, de capelas rurais. São elas situadas
próximas das casas-grandes e ora são de uma arquitetura erudita, outras
vezes construídas em taipa de mão e muito simples. Os dois tipos têm plano
reduzido a uma sala, a nave, que se interliga por um arco cruzeiro à capela-
mor. Dois espaços interligados com uma sacristia anexa ora do lado direito
ou esquerdo. De um modo geral, ausência de sineiras em construção isolada
ou colada ao corpo da capela. Algumas adotam sineiras sobre a fachada late-
ral ou na frontal. Um elemento de interesse em algumas capelas representa-
das é um alpendre à frente da contrafação principal. Esse alpendre, às vezes
chamado copiar, é um espaço aberto e bem afim com a galilé da igreja cristã.
No caso das capelas construídas à luz dos Tratados de Arquitetura a compo-
sição é cuidada, e a se crer tenham existido eram exemplares de grande bele-
za11.
A decoração interior dessas capelas teria retábulos de boa feitura. A
tomar como referência a descrição do Reverendo Joan Baers de Olinda, elas

10
A capela do Engenho Velho, na Bahia, única peça que resta de uma casa-grande construída no
século XVII, seguiu o modelo das capelas de corpo com planta-baixa ao quadrado e elevação de
mesma altura que o lado dessa figura geométrica, tendo uma cúpula, em meia esfera, assente
sobre pendentes esféricos. Solução de arquitetura muito semelhante à da capela-mor da igreja
dos franciscanos do convento do Recife (1608), onde as fontes dessa composição são as capelas do
litoral da Estremadura em Portugal. A capela do Engenho Velho também recebeu, qual a do
Recife, revestimento azulejar. Uma capela também de grande interesse é a da casa dos Garcia
D’Ávila em Tatuapera, na Bahia. Esta tem planta hexagonal e cúpula em barrete de clérigo.
11
As pinturas de Frans Post não se realizaram todas no Brasil. Somente um pequeno número ele
pintou no Brasil. A maioria realizou a partir de um possível caderno de modelos e as situou em
paisagens fictícias, porém tiradas de desenhos ao natural e montadas aleatoriamente. Assim tais
construções, quer sejam casas-grandes ou capelas, são representações ou não de edificações reais.
Acreditamos que o sejam, mas a dúvida ainda persiste à luz de uma documentação onde o
exemplar não mais existe. Uma capela com copiar que ainda existe é a capela de Nossa Senhora do
Socorro, em Santa Rita, Paraíba.

118
José Luiz Mota Menezes

seriam adornadas com belos retábulos dourados e com a imaginária adquirida


em Portugal ou feita no Brasil.

CAPELAS DA SEGUNDA METADE


DO SÉCULO XVII E SEGUINTES

Com a derrota holandesa em 1654, apesar de se passar a conviver com uma


economia difícil em face do desmonte de grande número de enge nhos, a
febre de agradecimentos a Deus motivou novas construções ou ampliações das
antigas. Nos engenhos, quando refeitos, a casa-grande deve ter passado por
reformas para adaptar-se ao novo gosto e assim também a capela.
Não existe documentação capaz de fixar com exatidão quantos engenhos
tomaram tais iniciativas, mas tendo, por exemplo, o que ocorreu na área urbana,
onde se reformularam tantas edificações religiosas, pelo menos as capelas foram
remodeladas segundo o gosto do Barroco então surgindo como modernidades no
panorama artístico de Pernambuco da segunda metade do século XVII.
Uma mudança de gosto no trato interior dessas capelas pode ter derivado
da introdução da talha dourada no Recife, revestindo todo o espaço interior da
conhecida Capela Dourada. Os retábulos que entalhados e dourados emprega-
vam colunas torsas surgem no século XVII em Pernambuco. No entanto,
o maior exemplar, estonteante, foi a referida capela dos III de São Francisco12.
Toda essa mudança de gosto foi lenta e somente está identificada com o século
XVIII por conta de uma necessidade didática. Ocorreu tal mudança na verdade
de modo contínuo e defasado segundo cada situação.
Assim, as capelas rurais de engenhos vão sentir no século XVIII transfor-
mações não somente no seu aspecto interior, onde a talha dourada segue as
diretrizes do Barroco D. João V, mas nos exteriores, que se acomodam aos dita-
mes de uma composição que perde a sobriedade do estilo Chão se revestindo de
curvas e contracurvas nos seus ricos frontões e onde os pórticos em pedra lavra-
da acompanhavam o gosto lúdico do Barroco. Um dos exemplares mais interes-
santes desse período é a capela do Engenho Bonito de rico lavor interior.
Interessante passou a ser o contraste que se instalou entre o tratamento
arquitetônico da casa-grande e da capela. Essa em um “estilo” que revela uma
sobriedade quase que arcaizante apesar de algum luxo interior, representado
este pelo mobiliário e uso cada vez maior de serviços em porcelana, quer adqui-
rida em Portugal, nesse momento na sua maioria, ou depois na França e In-
glaterra. A casa-grande cresceu, mas não criou nenhuma relação, senão
em poucos casos, com os palácios urbanos desde que ela seria um palácio

12
Senhores de engenhos e comerciantes bem-sucedidos eram irmãos da Ordem III de São
Francisco do Recife nesse momento vivido por Pernambuco e o Recife.

119
Casa-Grande, Capela e Senzala

rural em tese. Na Bahia, isto no final do século XVIII e no século seguin-


te, algumas casas podem ser identificadas com palácios portugueses, mas
são casos raros. O mesmo se pode dizer da capela.

MOBILIÁRIO E IMAGINÁRIA

Em princípio as casas-grandes e as capelas teriam sido decoradas com móveis cujas


características os filiam aos modelos conhecidos e sóbrios de Portugal. Cadeiras de
couro lavrado e mesa de discos e bolachas. Bancos de madeira. Rústicos ou ornamen-
tados ainda se encontram nem sempre nos lugares de origem, mas em museus. Nas
casas mais antigas, o mobiliário teria acompanhado a moda dos usuários e no século
XIX se renovou toda a mais antiga mobília por ser antiquada e não representar o luxo
desejado pela gente e seu tempo. Ainda em Pernambuco engenhos guardam no
interior da casa-grande os móveis desse tempo de mudanças. Assim destacaríamos o
Engenho Giapió, o Morenos, o Novo da Conceição e finalmente o Engenho Mattas.
O mobiliário aí encontrado é de gosto Eclético e foram fabricados no Recife, a exem-
plo, os de Julião Berangèr, ou adquiridos na Europa através de Catálogos dos fabri-
cantes. Pode-se encontrar nesses engenhos, isolada, alguma peça mais antiga, esca-
pada da sanha de modernidade, porém a maioria dos móveis é de tal momento de
importações em larga escala desde o Velho Mundo. Os jornais atestam tal situação
em informações diárias.
Quanto à capela, esta também, no seu interior, acompanhará tais mudan-
ças artísticas. Aquelas onde as talhas eram de feitio notáveis permaneceram sem
alterações. Outras, cuja simplicidade do altar exigia renovação, passaram a ser deco-
radas com retábulos de alvenaria e estuques decorativos de relativo bom gosto.
A imaginária de todas essas capelas de engenho era de grande valor. Qua-
se tudo se desviou de lugar e parou na mão de antiquários ou colecionadores. A
decadência ou desaparecimento dos engenhos levou a tal dispersão13. Peças exis-

13
Com o surgimento no século XIX dos engenhos centrais, depois das usinas, fontes de maior
capacidade produtiva do açúcar e que refletiam um capitalismo concentrador, onde o poder
restava nas mãos de poucos, ao qual se somou uma produção mecanizada pelo desenvolvimento
das máquinas a vapor, se terá de considerar no sistema então existente, havia a necessidade de
mais cana para moenda. A forma de resolver tal problema foi se adquirir ou arrendar engenhos
à volta. Eles passaram a ser apenas lugares de plantio. Quando tal aconteceu nessas propriedades
rurais, desmontou-se aquele modelo consagrado. As Casas-Grandes deixaram de abrigar os seus
antigos senhores e as capelas serviram para outra gente ou deixaram de ter usuários. A decadên-
cia de tais construções foi inevitável. Por outro lado, com a libertação dos escravos, nem toda a
senzala se manteve com os seus moradores. Na maioria dos casos os velhos engenhos passaram
a ser coisas do passado e dependentes de uma cultura representativa dos tempos decorrentes e
relacionados com os novos senhores rurais, os usineiros. Estes talvez não integrados ao que
eram para aqueles antigos senhores os engenhos. A morte do engenho foi também a de uma
cultura a ele interligada. Passou tudo a ser páginas viradas e esquecidas de álbuns de família.

120
José Luiz Mota Menezes

tem, mas elas nem sempre estão onde deveriam ser alvos de devoção. São peças
de decoração de casas urbanas. A rica variedade dos santos representados e a
notável execução levam as autorias para bons santeiros de Pernambuco ou de
Portugal. Muitas vezes o engenho associou seu nome ao santo de devoção do
proprietário. Assim estão assinalados vários deles em mapas holandeses do sé-
culo XVII da Capitania de Pernambuco e demais desenhadas pelo cartógrafo
J.Vingboons em c.1665.

AS SENZALAS

A grande quantidade de escravos condicionou o aparecimento de um tipo cons-


trutivo de certo modo igual em todos os engenhos: as senzalas. Um grande
terraço, cuja coberta era sustentada por colunas de alvenaria, de um modo ge-
ral, corria à frente de dois pequenos cômodos interligados em seqüência. São
longas construções que em alguns casos, qual no Engenho Monjope, em
Igaraçu, formavam simetricamente o terreiro à frente da casa-grande e da
capela. Nesses dois cômodos, em princípio, vivia uma família. Era coberto o
grande corpo com um telhado em duas águas que vinha do terraço aos fun-
dos da parte mais longa. Poucas variantes existiam desse modelo consagra-
do. Singularmente o Governador Nassau fez uso dessa forma de abrigar fa-
mílias de colonos pobres em algumas quadras da Cidade Maurícia, a se acre-
ditar ser verdadeira representação da realidade a pintura de Frans Poste exis-
tente em Potsdam, na Alemanha.

PALAVRAS FINAIS SOBRE A APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO PARA A


INSTALAÇÃO DOS ENGENHOS

Algumas palavras finais se devem permitir à questão da apropriação do es-


paço para a instalação dos engenhos e a relação entre eles. Com se disse a
memória da forma de produção do vinho levou a se conceder, ao saber o que
podia produzir cada interessado, parcelas de terra na forma de sesmarias
para nelas se fundar a plantação e construir as demais partes necessárias à
produção do açúcar.
Um outro problema a que se deve ficar atento é o do escoamento para
o porto de embarque do produzido. Não era logo possível, diante da confi-
guração geográfica dos lugares, quer em Pernambuco como em outras par-
tes, se construir logo pontes sobre rios e dar continuidade aos caminhos que
seguiriam com o açúcar produzido para o porto. A solução foi usar a navega-
ção pelos rios. Isso condicionou a localização das doações nas proximidades
de um rio e que seguisse na direção daquele porto. Outra maneira, mais

121
Casa-Grande, Capela e Senzala

difícil seria a proximidade do mar que também poderia ser útil ao transporte
do açúcar. Preferiu-se como forma inicial e imediata a primeira solução. As-
sim as datas de terras doadas ficavam junto aos rios existentes próximos a
Olinda e ao porto dos arrecifes. A teia começou a se organizar lentamente.
Ela era resultado de sistematização cuja base lógica era bem fiel à nova razão,
esta talvez resultante de um mundo mercantil nascente.

O DESENVOLVIMENTO DA GRANDE TEIA


Finalmente a fórmula instalada vencera. Apaziguados os índios, afastados do
litoral (ou dizimados) ao fim do século XVI, a boa produção dos engenhos per-
mitiu em Pernambuco que Olinda pudesse ser comparada com “uma Lisboa
Pequena”, por um jesuíta. Nos Diálogos das Grandezas do Brasil, com orgulho,
seu autor fala desse novo Paraíso, malgrado os males decorrentes das feras e
doenças. Restava ampliar a produção para além da sede da capitania quer para
o Norte, até o limite legal da doação, e para o Sul, enquanto houvesse terra
capaz da plantação. O modelo seguido foi o mesmo embora os rios fossem
diferentes. E nos vales desses rios se instalaram lugares de produção. Para o
Sul, com datas de terras maiores por conta de nova gente que, sabendo da
vitória dos primeiros, vinha com mais capital. Assim foi com João Pais Barreto
o qual ocupou larga porção de terra ao redor do Cabo de Santo Agostinho,
até onde a vista alcançava, lembrando frase tão conhecida. Ao examinar os
mapas que ilustram livros holandeses sobre o período de ocupação do Nor-
deste, pode-se verificar a certa localização desses lugares de produção tudo
segundo aquela teia dos caminhos e com a presença dos rios navegáveis se-
guindo para portos instalados ao longo da costa da capitania. Uma organiza-
ção que talvez tenha sido fruto do acaso, mas que se duvida o seja.
O Estado das Alagoas, antes parte de Pernambuco, não teve situação dife-
renciada quanto ao sistema de localização da produção do açúcar. O que é de
interesse na antiga Comarca é a presença de duas lagoas que por sua vez gera-
ram um tipo de relacionamento com os engenhos à volta com respeito ao trans-
porte que então foi vinculado à Vila de Santa Maria Madalena na Lagoa do Sul,
ou seja, a Alagoas ad Austrum dos holandeses. Outro lugar importante foi o do
entorno ao Rio de São Miguel mais para o Sul da Capitania.

CONCLUSÕES
O conjunto fabril, os engenhos numa designação genérica, eram verdadeiros
complexos em termos de números de edificações e, entre elas, as Casas-Grandes
constituíam obras-primas de arquitetura rural sobre as quais um escritor che-

122
José Luiz Mota Menezes

gou a rotular com propriedade de “Escuriais” do


Nordeste, tendo como referência o grande palácio
filipino espanhol. Ainda hoje as que permanecem
de pé são atrações à parte daqueles antigos cami-
nhos.
O açúcar não é um produto isolado. Dele sur-
gem subprodutos e ele forma hábitos e modifica cos-
tumes. Câmara Cascudo, quando fala da anatomia
do açúcar, destacou a importância dos doces e bolos
nas sobremesas e a variedade desses diante da in-
venção das sinhazinhas e das doceiras quer nas ci-
dades ou no meio rural. Henry Koster, inglês e se-
nhor de engenho em Pernambuco nos primeiros anos
do século XIX, numa de suas viagens nos informa
sobre a quantidade de doces e bolos que lhe foi ofe-
recida após uma refeição, dita ligeira! O prazer da
sobremesa passou a ser o de toda a hora e a perdição de quem não deseja engor-
dar. Desde finais da Idade Média, os cremes de leite, frutas secas no mel, por
confiture, reinavam no dessert; levantar, desservir, o derradeiro serviço sobre a
mesa, hora amável e leve da despedida gentil. Não apenas os mais diversos
doces seriam subprodutos da cana-de-açúcar, outro é a aguardente. A aguar-
dente, destilada da garapa ou do mel, possui no Brasil projeção econômica e
presença na Cultura Popular como outro líquido da mesma origem em qual-
quer paragem do Mundo. Outro produto ainda hoje de grande predileção é a
rapadura. A rapadura teria vindo das Ilhas espanholas.
Outro aspecto de interesse na produção do açúcar era a festa da Botada, o
engenho passava a ser um pátio de feira. Os escritores sobre tal momento da
produção escreveram belas páginas.
Nos engenhos a capela tinha função de grande interesse. As missas e as
festas das padroeiras dessas capelas traziam muita gente do redor para o terreiro
da casa-grande, onde os festejos eram variados. Depois esses foram deslocados
para os povoados com êxito. O Pastoril, auto do Natal e vivido com intensidade.
As capelas o lugar onde na riqueza das talhas estava espelhado o pedido de
perdão do dominador em termos do males causados aos dominados. Que todos
rezem uma Ave-Maria e um Padre-Nosso para esse pecador, assim dizia a inscri-
ção de uma sepultura magistral. Ricas capelas, ornamentadas pelos melhores
artistas constituem um dos melhores atrativo dessa civilização do açúcar.
Será que tudo se desmanchou no ar?

123
RELIGIOSIDADE
FÉ, FESTA & COTIDIANO
NAS TERRAS DO AÇÚCAR

Raul Lody
antropólogo, museólogo e ensaísta

Navegar é preciso
Crer, também é preciso
Raul Lody – paráfrase de Fernando Pessoa
Raul Lody

Crer é re-ligar, juntar, trazer, unir, fazer com que o homem consiga entender por que
nasce, por que morre, por que encontra nos símbolos mais ancestrais e fundamentais
seus sentimentos de pertença, de singularidade, de alteridade.
É necessário justificar a criação do mundo, do
homem. É necessário criar mitos, deuses, santos, orixás,
seres diferenciados das relações físicas, carnais, essenci-
ais, como buscar abrigo, comida, afeto, lúdica, jogos,
regras e hierarquias para sistematizar papéis sociais, lu-
gares de homens, mulheres e crianças.
Trazer o amplo conceito de religião, aqui melhor
situado na compreensão de religiosidades, é trazer prin-
cipalmente a história, a sociedade, a cultura nos seus mais dinâmicos processos de
trocas, de permanências, de transformações, de patrimônios, de acervos experimen-
tados nos cotidianos, no tempo das festas, nas casas, nas ruas, nos templos, nos
santuários, nos terreiros.
Assim, olhar para as manifestações da religiosidade de maneira generosa e não
preconceituosa é um dos papéis da ação turística, dando valor, reconhecendo e res-
peitando a diferença e o direito a essa diferença.

A FÉ A PARTIR DO AÇÚCAR

Sem dúvida, a Civilização do Açúcar no Nordeste traz estilos próprios de ocupações


e de representações espaciais e simbólicas.
No século XVI, o então chamado ouro branco, o açúcar, inicialmente rara espe-
ciaria só comparada em valor comercial ao grama do ouro, é a grande abertura do
encontro de povos, de continentes, de sociedades de várias partes do mundo.
Esse processo tão rico e dinâmico do açúcar funda no Brasil um sistema de
relações fortemente associado ao regime escravista.
A partir do século XVI, estendendo-se até o XIX, por período de 350 anos,
estima-se a chegada no Brasil de mais de quatro milhões de homens e mulheres na
condição escrava.
Vindos de diferentes localidades do continente africano e de culturas diversas,
foram os então escravos co-formadores do Brasil colônia, como aponta Gilberto Freyre
em Casa-grande & senzala.
Aliás, as relações entre a Península Ibérica – Portugal e Espanha – com a África,
já há muito se haviam estabelecido com os povos do Magreb, na muçulmana África
do Norte, atuando decisivamente na formação e na construção de uma civilização
euro-africana.
É ainda Gilberto Freyre quem aponta para uma forte biafricanidade que une o
Norte, o Ocidente, as regiões austral e oriental do continente africano, unindo os

127
Religiosidade – Fé, Festa & Cotidiano nas Terras do Açúcar

muçulmanos e o longo tráfico de escravos, dando ao Nordeste, às terras do


açúcar, uma decisiva ação matricial e formadora do brasileiro.
A escravidão africana foi muito estimulada pelo Vaticano (séculos XV,
XVI, XVII), enquanto uma ação cristã de dar alma àqueles seres que viviam
sem conhecer o verdadeiro Deus.
Certamente os interesses comerciais dominavam e configuravam os ver-
dadeiros motivos para esse tráfico exercido por Portugal no continente africano.
Destaca-se que no Brasil à época do descobrimento (para muitos histo-
riadores, invasão) havia milhões de indígenas organizados em centenas de grupos
étnicos e culturais, com os quais entrou em confronto o europeu faminto de
açúcar, iniciando o longo processo de dizimação desses povos nativos. Isso é
acompanhado pela implantação da monocultura da cana-de-açúcar na Mata
Atlântica, gerando processos de profundas transformações no meio ambiente;
tema tão bem tratado por Gilberto Freyre em Nordeste, livro em que, pela pri-
meira vez em língua portuguesa, se publica o conceito e a palavra ecologia.
Ecologia e cultura formam um dos mais importantes eixos da obra de
Gilberto para interpretar o nordestino, especialmente o pernambucano, se-
gundo suas teorias de uma ciência por ele chamada de tropicologia.
Os vários estilos de ocupar as terras do açúcar são assentados na fé, nas
religiões, criando devoções interpretadas na crença multicultural em santos,
orixás, no Deus do olhar judaico, nos mitos indígenas, em Alá; e, mais, por
convivências e conivências decorrentes dos contatos com os holandeses (sé-
culo XVII), no calvinismo; ou em muitos outros sistemas religiosos, por in-
termédio dos imigrantes do Oriente, libaneses, por exemplo.
A fé agrega e compõe identidades – no caso da saga do açúcar, dos
engenhos às cidades, constata-se um rico patrimônio partilhado e vivenciado
por milhões de nordestinos, de brasileiros de outras regiões e de estrangeiros
que estão no Nordeste.

A FÉ NOS ALTARES, NOS PEJIS, NOS TEMPLOS,


NAS ALDEIAS, NA CASA E NA RUA

A Civilização do Açúcar formou e fortaleceu uma religiosidade doméstica, da


casa, da casa-grande, da senzala, ampliando-se para os sobrados, os mocambos,
as casas das cidades, estabelecendo intimidade com os santos, trazendo-os para
o cotidiano, como membros da família, como bem situa Gilberto Freyre em Casa-
grande & senzala, relatando cenas de crianças convivendo com o Menino-Deus,
tão próximo, que certamente também brincava e comia doce de araçá.
Os altares dos interiores das casas, das capelas dos engenhos, das igrejas, alta-
res múltiplos com imagens de santos da devoção portuguesa, como Santo Antônio,
Sant’Ana, São Francisco, Nossa Senhora do Carmo – além de presépios, também arte

128
Raul Lody

sacra; no seu conjunto alegórico do nascimento


do Menino-Deus marcando o Natal –, são dos
mais significativos elementos da religiosidade
nas terras do açúcar 14,15.
No Natal as festas religiosas se estendem da
casa à rua.
Pastoris, bois, reisados, guerreiros, cheganças, nau-
catarineta, marujada, coco-de-roda; trazendo música, dança, teatro medieval adap-
tado e reinventado nos canaviais, nos engenhos, nas praças e nos adros das igrejas.
Ainda no Natal nordestino, mesas fartas, barrocamente opulentas, reunindo
frutas secas próprias do inverno europeu em pleno verão tropical e emblematizadas
por rabanadas suculentas ao leite, ao coco, ao vinho do Porto, ungidas de canela,
açúcar, sim, muito açúcar.
A fé continuada na boca, no corpo, e que se expande no tempo das fogueiras,
de louvar os santos de junho, Santo Antônio, São João e São Pedro. É tempo do milho
maduro, da safra, que é plantada no dia de São José (março) e colhida no São João,
santo que é lembrado no fogo, símbolo mais antigo que o cristianismo, relembrando
cultos agrários milenares que unem o sol e a purificação da terra. Também o
fogo sagrado das fogueiras inclui-se nas festas religiosas afrodescendentes dos

14
Santos em madeira e barro são fortes expressões do artesanato tradicional de Pernambuco,
Paraíba e Alagoas, reunindo centenas de homens e mulheres que se dedicam a trabalhar temas
religiosos que afirmam identidades portuguesas, aquelas implantadas quando do longo processo
do plantio da cana-de-açúcar e da fabricação de açúcar. Assim, santos da fé de além-mar são
rememorizados no trabalho familiar, de comunidades que se distinguem com a produção de
imagens de Santo Antônio, São João, São Francisco, São Sebastião, Nossa Senhora do Carmo,
Santa Luzia, Santo Amaro, Sant’Ana, São José, entre outros.
As comunidades de Goiana e de Tracunhaém, em Pernambuco, são reconhecidas pelos santos
feitos de barro, e a de Ibimirim pelos santos feitos de madeira.
Ainda pintores, gravadores, fotógrafos e outros artistas têm na vasta imaginária católica seus
temas preferenciais para interpretar e trazer estéticas que aproximam e justificam o sagrado do
homem.
15
Exemplos magníficos da arquitetura sacra católica são visíveis nas igrejas, nos claustros dos
conventos, nas capelas dos engenhos, nos altares internos de algumas casas patriarcais, aproxi-
mando sempre o santo, a devoção ao caráter e à fé de uma família, de um estilo próprio de crer
construído no processo multicultural da civilização do açúcar.
Altares e retábulos entalhados em madeira de lei, matéria-prima abundante da Mata Atlântica;
recobertos de folhas de ouro. Arcos romanos, colunas salomônicas, todos repletos de volutas,
cachos de uvas, pássaros e outros motivos decorativos confirmando nosso barroco tardio do final
do século XVIII estendendo-se ao XIX. Ainda alguns ambientes em barroco rococó convivendo
com o neoclássico das fachadas, das colunas, dos altares, trazendo novos usos dos estilos dórico,
jônico e coríntio. Azulejos bicromáticos – azul e branco –, expressiva cantaria, pedra trabalhada,
juntos oferecem uma arte devotada a Deus. Igrejas do Recife, Goiana, Igaraçu, Olinda, Pernambuco;
igrejas em João Pessoa, Paraíba; igrejas em Penedo, Alagoas, são testemunhos vivos da opulência
comercial do açúcar no Nordeste brasileiro

129
Religiosidade – Fé, Festa & Cotidiano nas Terras do Açúcar

terreiros, homenageando o orixá Xangô, que é Obá, rei, senhor da justiça e


do fogo para os Iorubá (África Ocidental).
Junho é um ciclo festivo especialmente nordestino. Fogueiras domés-
ticas diante das casas, comidas à base de milho: canjica, pamonha, bolos que
se integram ao espetáculo das quadrilhas, conjunto de danças cujo imaginá-
rio europeu é adaptado ao sentimento sertanejo, telúrico, da Civilização do
Açúcar16.
Outro ciclo de expressiva religiosidade tradicional e popular é o da
Semana Santa, precedido, porém, pela festa da carne, o carnaval, que se in-
clui, assim, no amplo imaginário do sagrado.
Nas ruas encontram-se as expressões afrodescendentes dos maracatus
de baque-virado ou maracatus de nação, urbanas e características da cidade do
Recife, ou os muitos grupos de maracatus de baque solto ou maracatus rurais,
originários das áreas dos canaviais na zona da mata. Esses maracatus vêm
das irmandades religiosas de homens negros e pardos, reunindo grande quan-
tidade de escravos e libertos nas igrejas dedicadas a Nossa Senhora do Rosá-
rio, São Benedito, Santa Ifigênia, Santo Elesbão, entre outros. Reunindo-os
para relembrar os reinados do Congo, base dos maracatus e de inúmeras
outras manifestações, como cambindas, pretinhas do congo na Paraíba e as
taieiras de Alagoas.
Cabe, nos maracatus de Pernambuco, destaque para as calungas, bone-
cas feitas de madeira e que representam os orixás Iansã, Oxum e Xangô,
fazendo uma extensão no carnaval da religiosidade dos antigos e tradicio-
nais terreiros, como o Obá Ogunté Seita Africana Obá Omim – popularmen-
te conhecido como o Sítio ou Sítio de Pai Adão, no Recife.
Em âmbito afrodescendente o sagrado é amplo e convive de maneira
interativa com as festas, a do carnaval incluída.
Contudo os muitos terreiros que estão nas terras do açúcar têm prin-
cípios ecológicos fortemente fundamentados nas próprias tradições de po-
vos africanos, respeitando e valorizando a natureza17.
16
Só comparáveis às escolas de samba do Rio de Janeiro em variedade e espetacularização são as
centenas de quadrilhas juninas, fenômenos de massa, organizadas em associações, agregando
outros ritmos regionais e tradicionais, como o baião, o coco, o forró, resultando em dinâmicas
coreografias e indumentárias criativas e revitalizadoras do imaginário nordestino, ainda que com
base num conjunto de danças francesas do século XIX.
17
Árvores monumentais marcam os espaços afrodescendentes nos terreiros e em outros locais,
traduzindo maneiras de se relacionar com a natureza, manifestando sensibilidade ecológica e
inclusão no sagrado do verde das plantas, das águas dos rios e do mar, dos animais e, conseqüen-
temente, do homem.
Destaca-se o terreiro Obá Ogunté Seita Africana Obá Omim, preservando centenária gameleira,
árvore sagrada dessa comunidade reconhecida como patrimônio cultural de Pernambuco, rece-
bendo tombamento no ano de 1983.

130
Raul Lody

A religiosidade afrodescendente é orientadora de hierarquias, conheci-


mentos sobre etnobotânica e línguas, como Iorubá, Kikongo, Kimbundo, Fon, Ewe,
entre muitos outros saberes patrimoniais.
Em meio às festas e aos ciclos religiosos do Nordeste, retomemos a anunciada
Semana Santa, repleta de manifestações públicas, como procissões teatralizadas, cor-
tejos que relembram a fé medieval, profundamente alegórica; além de celebrações
nas casas, mantendo o costume de uma culinária à base de coco: arroz de coco, feijão
de coco, bredo ao coco, bacalhau ao coco, mungunzá, entre outras delícias de ver e
de comer18.
O sábado de Aleluia culmina um ciclo, anunciando a reabertura dos terreiros,
geralmente com festas dedicadas a Ogum, orixá guerreiro, sendo interpretado no
processo do sincretismo como São Jorge, um dos santos mais populares, juntamente
com S. Cosme e S. Damião, Santa Bárbara, entre outros da plural fé afrocatólica19, 20, 21.

18
Marcadas pela teatralização da fé da Idade Média na Europa, vêem-se nas procissões da Semana
Santa nas capitais da civilização do açúcar, permanências de uma estética que comove multidões
por um conjunto de andores, santos, alfaias em prata, bandeiras, cenas públicas que ainda expres-
sam as interpretações misturadas do barroco nordestino com a fluente fé afrodescendente das
Irmandades de Homens Negros e Pardos, formadas por africanos e crioulos e hoje por seis
herdeiros, mantenedores dessas memórias nascidas no açúcar e preservados na fé popular.
As cenas de devoção nas ruas, os trajetos dos cortejos, unem-se aos cenários das cidades e de
suas populações, sendo exemplos os mais comoventes de fé interpretada pelo homem regional,
pelo nordestino.
19
Os muitos terreiros afrodescendentes são abertos ao público no período das festas, seguindo
calendários de base católica, conforme as datas consagradas aos santos e suas relações de
sincretismo com os orixás. Por exemplo: São Jorge, Ogum, 25 de abril; São João, Xangô, 24 de
junho; Nossa Senhora do Carmo, Oxum, 16 de julho; Nossa Senhora da Conceição, Iemanjá, 8 de
dezembro; Nossa Senhora Sant’Ana, Nana, 26 de julho.
Geralmente as festas são rituais coletivos em que música, dança, comida, indumentárias e
objetos especiais marcam e caracterizam cada celebração, preservando estética sagrada de pro-
funda interação com o barroco.
As muitas festas da Igreja agregam formas ritualizadas em torno dos espaços sagrados, por
meio de comida e música e principalmente cortejos processionais na terra, no mar e nos rios.
Assim, unem-se os patrimônios arquitetônicos de capelas, santuários, igrejas e demais monu-
mentos cristãos às manifestações populares por meio de teatro de rua, danças, entre outras
expressões de devoção aos santos.
20
As comemorações familiares nos terreiros e nas ruas em louvor aos santos gêmeos em 27 de
setembro são devoções de catolicismo popular e de sincretismo com os Ibejis, gêmeos sacralizados
pelos Iorubá, presentes na mitologia dos terreiros de Xangô em Pernambuco e Alagoas. São
verdadeiros cultos da fertilidade, identificados nas celebrações de oferecimento de doces de
diferentes tipos, indo do nego bom aos bolos mais elaborados. É, sem dúvida, a culminância do
açúcar na fé popular do Nordeste.
21
O mês de dezembro marca o calendário das festas no mar, homenageando Iemanjá, orixá do rio
Ogum (Nigéria) que no Brasil é a dona do mar; também conhecida como rainha do mar, sereia do
mar, Dandalunda, entre outros nomes freqüentes na religiosidade afrodescendente.
Justamente a partir de 8 de dezembro, dia consagrado a Nossa Senhora da Conceição, os

131
Religiosidade – Fé, Festa & Cotidiano nas Terras do Açúcar

O imaginário de santos nas casas, nos altares de estabelecimentos comerciais,


nos carros, nas roupas, em uma moda fashion sacra, juntamente com outras repre-
sentações materiais como os ex-votos – objetos que atestam o milagre do santo –
, expressa tecnologias e estéticas da oficialidade da Igreja com as fortes matrizes
africanas, determinando soluções visuais que testemunham essa mistura de
povos, etnias e culturas tão marcadas e próprias das terras do açúcar22,23.
Os diálogos etnoculturais da região tocam formas expressivas e antigas
tradições dos povos indígenas, que nas suas aldeias preservam estruturas de
saber religioso, destacando-se o toré – ritual de contato com os antepassados,
retomando memórias e assim marcando identidades.
Em contextos afrocatólicos vê-se o mito do caboclo enquanto ancestral
nativo, senhor das matas, figura emblematizada também em muitos terreiros,
convivendo com os orixás e outras divindades criadas desses encontros dinâmi-
cos e multiculturais que representam as heranças patrimoniais da saga do açú-
car, do homem nordestino.

muitos terreiros do Nordeste realizam rituais públicos nas praias, com o oferecimento da panela
– uma panela de barro, comidas, perfumes, fitas e muitas flores lançados ao mar. No litoral do
Recife, destacam-se as praias do Pina, Boa Viagem; em João Pessoa, as praias de Manaíra e Cabo
Branco, e, em Maceió, as praias da Pajuçara, Ponta Verde, como principais locais das festas públicas.
Ainda no mês de dezembro, as festas do Ano Novo, também nas praias, integram-se às
manifestações de religiosidade afrodescendente.
22
Ex-votos – manifestações especialmente visuais e que retratam o milagre, a ação divina na vida do
homem. No Nordeste, especialmente nas terras do açúcar, vê-se ampla produção de objetos ex-
votivos, especialmente entalhados na madeira, de forma e estética fortemente afrodescendente. Luís
Saia, que acompanhou Mário de Andrade nas suas missões de pesquisas na região, destaca o traço
africano, herdeiro da estatuária e das máscaras da África Ocidental presentes nas soluções estéticas de
cabeças e outras partes do corpo humano, exemplos das memórias e das criações do Nordeste. Além
das esculturas de madeira, há outras, de barro e de diferentes materiais, com os chamados riscos de
milagres – pinturas, desenhos – dos quais é excelente exemplo o conjunto de três pinturas sobre tábuas,
retratando as ações divinas de S. Cosme e S. Damião, protegendo a população de Igaraçu; acervo do
museu-pinacoteca do Convento de Santo Antônio, naquela cidade de Pernambuco.
Os ex-votos são formas artísticas da religiosidade nordestina apresentando-se, geralmente,
em conjuntos de centenas de objetos, vistos em igrejas, capelas, santuários de estradas e outros
locais que marcam devoção a diferentes santos, profetas, mitos criados na região, como Padre
Cícero, entre outros.
As técnicas empregadas no entalhe são as mesmas realizadas para a feitura de bonecos do
mamulengo, expressão do teatro de manipulação da região.
23
O amplo e variado conjunto de objetos que fazem a cultura material dos terreiros de Xangô, de
Jurema e de outras expressões da religiosidade afrodescendente e afro-indígena pode ser visto e
comercializado em barracas no interior do Mercado São José, no Recife – ervas, instrumentos musicais
de percussão, destacando-se o adjá, sineta de metal de uso litúrgico nos terreiros, fios-de-contas (colares)
e demais peças da joalheria ritual, além de amplo conjunto de modelagem em gesso policromado.
É sem dúvida um importante acervo de arte de base etnocultural de matriz africana, além das
presenças indígena e católica, todas reveladoras de estilos e manifestações próprias das terras do açúcar.

132
AÇÚCAR NO TACHO

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti


pesquisadora gastronômica

Numa velha receita de doce ou bolo


há uma vida, uma constância, uma capacidade
de vir vencendo o tempo sem vir
transigindo com as modas.
Gilberto Freyre (Açúcar)
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti

Impossível esquecer o cheiro do doce quase no ponto, incensando a casa


com aromas de banana, caju, coco, goiaba, como a avisar que vinha che-
gando a hora de raspar o tacho. Esse tacho era de cobre pesado, herança
portuguesa, duas alças, largo quase três palmos
grandes, ardendo sobre velhos fogões de lenha.
Tudo sob o olhar vigilante de velhas pretas que,
com experiência e sem pressa, cuidavam para que
não passasse do ponto. A doçaria nordestina foi
se formando assim, aos poucos, nesse ambiente
de gostos e fumaças, fino equilíbrio entre as cozi-
nhas portuguesa, indígena e africana. Na medida
certa e com muita harmonia. Aproveitando imagem de Ronald de Carvalho,
nossa própria alma foi nascendo também assim – “da saudade portuguesa
adoçada pela sensibilidade ibérica, da inquietação índia e do travo do senti-
mento resignado dos africanos”.
Mas esse açúcar, tão essencial para o preparo dos doces, nem sempre
existiu por aqui. Que na cultura indígena, antes do colonizador português,
doce era o mel de abelha. Tomado puro, apenas como gulodice. Ou em bebi-
das fermentadas, preparadas de muitos jeitos. Às vezes apenas combinando
mel e água. “Com mel pode-se preparar licor, sem levá-lo ao fogo, apenas
misturando-o com água da fonte e deixando-o ao relento”, observou Johan
Nieuhof (Memorável viagem marítima e terrestre ao Brasil, 1682). Outras ve-
zes, misturavam aquele mel a raízes e frutas. Com mandioca faziam aipij,
caracu, caxiri, cauim (de todas, a mais conhecida), paiauru, tikira; com bata-
ta-doce, ietici; com milho, abatií, aluá e aruá; com pacova, pacobi; com ana-
nás, nanai; com caju, acaijba; com jenipapo, ianipapa. Para as crônicas da
época, eram bebidas deliciosas no sabor, mas repugnantes na preparação. É
que as raízes e frutas desse preparo, primeiro mastigadas, acabavam depois
cuspidas em jarras de barro, já misturadas com saliva, para dar início à fer-
mentação. “As mulheres é que fazem a bebida. Tomam as raízes de mandioca
que fervem em grandes potes. As moças sentam-se ao pé e mastigam essas
raízes”, assim descreveu Hans Staden (Viagens e aventuras no Brasil, 1554) o
preparo do cauim. Índias moças, segundo Gândavo (História da província de
Santa Cruz a que vulgarmente chamamos de Brasil, 1576). Ou velhas, segundo
Marcgrave (História natural do Brasil, 1648). Tanto faz. Steinen (Entre os povos
nativos do Brasil Central, 1884) se referia a essas bebidas como “ponche de
ptialina”. Só lembrando, a palavra “ponche” tem raiz no Indostão (atual
Índia), onde “pânch” significava “cinco”, o número dos ingredientes que
entrava em sua composição – açúcar, aguardente, canela, chá, limão. De lá
vieram para a Inglaterra (“punch”), França (“ponche”) e ganharam o mun-
do. Cada tribo fazia sua própria bebida. Nas festas iam os da terra em pere-

135
Açúcar no Tacho

grinação, de uma oca a outra, bebendo tudo que lhes fosse servido. Durante
a noite inteira cantavam e dançavam entre fogueiras. Até a exaustão. “Be-
bem sem comer e comem sem beber”, escreveu Câmara Cascudo (História
da alimentação no Brasil, 1983). Depois passou a concorrer com as poucas
bebidas que o português trouxe com ele, para o Brasil colônia – um fermen-
tado (vinho), um destilado (bagaceira) e sangria (mistura de vinho, água,
açúcar e rodelas de limão). Para os nossos índios, essas bebidas, vindas de
tão longe, eram “cauim-tatá” (bebidas de fogo).
Negros da África Oriental e Mediterrânea conheciam bem o açúcar –
produzido com canas plantadas nessa região por árabes, que as trouxeram
da Índia. Mas não os escravos que por aqui chegaram, todos vindos da Áfri-
ca Ocidental (Angola, Guiné, Gana). Também eles usavam mel na prepara-
ção de suas receitas. A cana só se popularizou, ali, a partir do século XVI –
quando já havia começado, no Brasil, o ciclo da escravatura. Foram aqueles
árabes, bom lembrar, que desde muito antes difundiram o mel pela Europa,
ensinando como usá-lo na preparação de bolos e doces. Em Portugal as col-
méias tão importantes eram que, por segurança, acabavam cultivadas sem-
pre perto das casas. Havia “meleiros” – que retiravam o favo das colméias; e
“apicultores” – que viviam de vender o mel. No reinado de D. João III, tanto
prestígio tinham que até impostos podiam ser pagos com ele.
Os mosteiros se tornaram, por essa época, grandes produtores desse
mel – usado então, especialmente, para preparar sobremesas e fabricar ve-
las. Havia neles fartura de tudo, em razão das heranças deixadas por famílias
ricas ou por pecadores interessados na redenção de suas almas. Como D.
Maria Francisca Isabel, filha do rei D. Pedro II – o português, claro. Que o
Pedro II brasileiro, filho de D. Pedro I (que em Portugal era Pedro IV), não
foi nunca rei na terra em que morreria velho e triste. Conta-se que essa
princesa chegou a pagar a fortuna de 1.200.000 réis por 12.000 missas a serem
celebradas após sua morte. Dada tanta opulência, ou pela origem nobre de
freiras educadas no requinte da corte, nesses mosteiros se faziam banquetes
que em nada lembravam o rigor próprio das regras monásticas. Foi assim,
especialmente do reinado de Dom Afonso IV, “O Bravo” (início do século
XIV), até o fim da Inquisição. Em decreto de 19 de dezembro de 1834, ainda
no reinado de Dom Miguel I, “O Absoluto”, o ministro Joaquim Augusto
Aguiar aboliu as ordens religiosas e confiscou seus patrimônios. Além de ter
ratificado a expulsão dos jesuítas, de 3 de setembro de 1759, e a extinção da
Ordem, em 21 de julho de 1773; passando a ser por isso conhecido como “o
Mata-Frades”.
A nós chegaram receitas de bolos e doces que, em Portugal, continua-
vam sendo feitas com mel de abelha. Como o bolo de mel e o folhado com
mel. Ou como o alfenim, pelo povo mais conhecido como alfeninho – do

136
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti

árabe “al-fenie”, que significa “cor branca”. Diz-se também, em corruptela,


de pessoa delicada e melindrosa. Trata-se de massa seca e muito alva, feita
com mel (depois, também com açúcar), farinha e clara de ovo. Ao chegar no
ponto, é moldada em diferentes formatos – reproduzindo animais, flores e
santos. Nas mesas portuguesas era servido em bandejas de prata, somente a
nobres e pessoas de posses. Mas, em Pernambuco, foi sempre doce popular.
Cumprindo ainda falar do alféloa (ou alfelô ou alfeloa), do árabe “al-halaua”,
que chegou a Portugal com a invasão moura no século VIII. Por considerá-la
privilégio de mulheres e crianças, proibiu D. Manuel I, “o Venturoso”, fosse
vendida por homens. Sob pena de prisão e açoite. Em Pernambuco passa-
mos a fazê-lo também com mel de engenho (ou açúcar). O mel vai ao fogo
até ficar em ponto firme – sendo a pasta então esfriada aos poucos, enquan-
to se puxa com as mãos até embranquecer. Por conta desse jeito de preparar,
acabou conhecido como “puxa-puxa”.
À Europa o açúcar chegou, oficialmente, só no século XV. Por mãos
mouras. Transportado em caravanas terrestres que vinham da Ásia para os
portos de Veneza e Gênova, daí seguindo pelo resto do continente. Mas há
registros esporádicos da presença desse açúcar bem antes disso, em dispen-
sas nobres – como as do palácio de D. Dinis I (1279–1325). A princípio, era
usado apenas como remédio – calmante, cicatrizante, digestivo, diurético.
“Entrou no mundo pelo laboratório dos boticários”, disse Brillat Savarin (“A
Fisiologia do Gosto”), em fins do século XVIII, quando afinal se tornou
gastrônomo – depois de ser Juiz de Direito e fugir da Revolução Francesa,
sobrevivendo na Suíça de ensinar francês e violino. Diferente no aspecto de
como o conhecemos hoje, esse açúcar tinha então a forma de cristais gran-
des, irregulares, perfumados, com essências de violeta e limão. Para os por-
tugueses, seria “sal índico” – pela semelhança de seus grãos com o sal mari-
nho e pela origem do lugar em que primeiro foi produzido o açúcar, a Índia.
Também conhecido como “açúcar-cande” (ou “Cândi”) – o nome vemo do
sânscrito “khanda”, que os árabes converteram em “qándi”. Naqueles boti-
cários passaram a ser vendidos ainda o “shurba”, um xarope escuro de apa-
rência viscosa; e um açúcar em ponto de bala, aromatizado com ervas, co-
nhecido como “bolas de sal doce”.
Aos poucos, passou o açúcar a ser usado também para conservar fru-
tas por mais tempo. E acabou tomando o lugar do mel, na elaboração das
receitas dos conventos – junto com a gema de ovo que ali era entregue pelas
vinícolas. Que do ovo, à época, se usava apenas as claras – para purificar
vinhos e engomar roupas. Açúcar e gema passaram a ser base de todas as
sobremesas. Sendo usado, ainda, na fabricação de vinhos de missa e de lico-
res. Com esse açúcar, chegou à Península Ibérica, também trazidos pelos
árabes, outros ingredientes que começaram a fazer parte das receitas de bo-

137
Açúcar no Tacho

los e doces – amêndoas e cardamomo (Java), canela e anis (Ceilão), cravo e


gengibre (Moluas), figos (Turquia), noz-moscada (Banda), passas (de Málaga),
tâmaras (Síria), damasco, nozes, avelãs, pistache (Índia). Mas o açúcar, na-
quele tempo, continuava sendo privilégio de bem poucos. Nele “estava uma
fonte de riqueza quase igual ao ouro”, escreveu Gilberto Freyre (Açúcar, 1939).
Em 1440, uma arroba (15 quilos) de açúcar valia 18,3 gramas desse metal.
Produzir açúcar passou a ser sonho de reis. Uma tarefa difícil, na Europa,
por exigir solo rico, úmido e, o que quase não havia por lá, especialmente
quente. Com o domínio das técnicas de produzir, cumpria buscar terras
mais amplas. Navegar era preciso. O Brasil estava pronto para ser descober-
to.
Durante muito tempo, acreditou-se que a cana-de-açúcar teria chega-
do nesta terra, a que primeiro chamaram Vera Cruz, em 1532. Com Martim
Afonso de Souza, na capitania de São Vicente. Só mais recentemente vindo
a público registro da alfândega de Lisboa, indicando pagamento de direitos
sobre o açúcar já produzido em Pernambuco desde 1526. Mas o primeiro
engenho oficialmente reconhecido em Pernambuco foi o de Jerônimo de
Albuquerque, instalado no mesmo ano que aqui chegou (1535) – acompa-
nhando seu cunhado, o donatário da capitania Duarte Coelho Pereira. Era o
“São Salvador”, depois conhecido como “Engenho Velho de Beberibe”. Fi-
cava bem perto da cidade de Olinda, em lugar hoje conhecido como “Forno
da Cal”. Por ser generosa essa terra, e como em se plantando tudo nela dava
mesmo, engenhos foram tomando o lugar da Mata Atlântica nas várzeas dos
rios – Beberibe, Capibaribe, Jaboatão, Una. Dado se prestarem esses rios,
magnificamente, “a moer canas, a alagar as várzeas, a enverdecer os canavi-
ais, a transportar o açúcar ”, descreveu Gilberto Freyre (Casa-grande & senza-
la, 1933). Depois se espalhou por todo o Nordeste. E assim, como nas pala-
vras de João Cabral de Melo Neto, tudo foi se transformando “num mar sem
navios” formado “pelo anônimo canavial” (O vento no canavial).
Com os engenhos vieram casas-grandes que na arquitetura, por conta
do nosso clima quente, não foram cópias perfeitas das casas portuguesas do
além-mar. Para diminuir o calor, faziam cozinhas afastadas das salas e dos
quartos – fora de casa, debaixo de um puxado. Em seu interior havia utensí-
lios das três culturas que nos formaram. Dos portugueses herdamos
alguidares, almofariz, caldeirões, chaminés “francesas”, fogões, fumeiros,
potes, tachos de cobre; além de objetos de cozinha como formas de bolo em
formatos diversos – coração, estrela, meia-lua, pássaro; mais enfeites e re-
cortes de papel para adornar bandejas (de estanho e prata). Dos índios “jirau”
(mesa feita com varas de madeira usada para preparação e armazenamento
de alimentos), panelas de barro, pilão, “trempe” (tripé de pedra onde se
apoiavam, no fogo, as panelas), urupema; mais cabaça e cuia, por Gabriel

138
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti

Soares de Souza (Tratado descritivo do Brasil, 1587) chamadas “porcelana dos


índios”. Dos africanos colher de pau, gamelas de madeira (para preparação
dos alimentos), quengo (metade da casca dura do coco, com cabo de madei-
ra, usado como concha), ralador de coco, tanque, tigelas e um pilão mais
sofisticado que o dos índios. Mas não apenas utensílios se misturavam na-
quele ambiente. Havia lá sobretudo ingredientes, hábitos, receitas e técnicas
dessas três culturas. Devemos isso ao colonizador português, aberto a novas
experiências, a novos sabores; e prontos sempre a substituir, sem preconcei-
to, produtos de suas receitas originais pelos do Novo Mundo. Também foi
assim por razões utilitárias, que as senhoras de engenho não participavam
diretamente do trabalho doméstico. Limitavam-se a determinar o que queri-
am comer. Ficando o preparo dos pratos por con-
ta das escravas.
Pernambuco chegou a ser, nos séculos XVI
e XVII, o maior produtor mundial de açúcar. Por
conta de tanta riqueza, foi se formando aqui uma
aristocracia que Tobias Barreto (1839–1889) chama-
va de “açucarocracia”. Padre Fernão Cardim (Tra-
tado da terra e da gente do Brasil, 1625) descreveu o
fausto desses engenhos decorados com “móveis de jacarandá ou vinhático,
louça da Índia, baixelas e talheres de prata, lençóis de linho franceses com
monograma, brasões em cima de portais ... a casa cheia”. Dos seus donos,
disse apenas que “parecem uns condes e gastam muito”. Por conta dessa
opulência, foi surgindo, no Nordeste, uma das mais importantes doçarias
do mundo. Com receitas passadas oralmente de mãe para filha – por não
saberem escrever as mulheres da época ou para esconder seus segredos cu-
linários. Açúcar branco era privilégio das casas-grandes. Com ele se faziam
bolos e sobretudo compotas, geléias, doces secos e cristalizados – conserva-
dos, por meses, em potes de barro vermelho ou em caixas rústicas de madei-
ra. Raramente frutas frescas eram servidas ao natural – por temor dos seus
efeitos, na saúde. Às senzalas eram destinadas essas frutas e também caldo,
melaço e açúcar mascavo – de cor escura e cheio de pedras. Esses ingredien-
tes eram pelos escravos misturados à farinha, de mandioca ou de milho,
formando uma pasta muito apreciada – por seu gosto primitivo e pelo forte
cheiro de álcool. Acrescentando água fria a essa pasta, faziam “jacuba” – por
gerações, base da primeira refeição do dia. Essa pasta acrescidaca
escravosmais finos.. Também rapadura – “tijolos que podem ser de 5 a 6
polegadas, bastante grossos, com cor, gosto e cheiro mais ou menos do açú-
car queimado”, descreveu Auguste de Saint-Hilaire (Viagem às nascentes do
rio São Francisco e pela província de Goyaz, 1847). Uma rapadura que, ainda
hoje, é feita do mesmo jeito – com caldo da cana bem fervido e bem batido,

139
Açúcar no Tacho

depois colocado em moldes de madeira até que esfriem; após o que, tiradas
das formas, são embrulhadas em papel simples ou palha de bananeira.
Nessas senzalas nasceu também nossa cachaça. A espuma da primeira
fervura do caldo da cana, por não ter à época outra serventia, era colocada
em cochos, ao relento, para alimentação dos animais. Esse mosto, por conta
do clima quente, fermentava com facilidade. E pouco a pouco, meio por
acaso, começaram os escravos a apreciar suas qualidades. Converteu-se em
bebida, para eles estranha, a que chamavam “água ardente”. O Reino tentou
proibir, primeiro, o consumo; depois, sua própria fabricação. Que a concor-
rência diminuía o uso da “bagaceira” (e o volume dos tributos daí decorren-
tes). Em vão. Nessa briga tendo os nativistas apoio, inclusive, de comercian-
tes que usavam cachaça (e também fumo) como moeda na compra e venda
de escravos. Acabou elevada à condição de símbolo de resistência à domina-
ção portuguesa. Bebida de patriotas. Na Revolução Pernambucana, como
em Canudos, brindar com vinhos (especialmente portugueses) ou outra be-
bida importada significava alinhar-se aos colonizadores.
Uma parte importante dessa doçaria está intacta, ainda hoje, fiel a suas
raízes portuguesas. Continuamos fazendo o mesmo pão-de-ló à moda do
Convento dos Amarantes. Bolo-de-bacia, com receita anotada no mais anti-
go livro de culinária de Portugal (A arte de cozinha, 1680), de Domingos
Rodrigues – cozinheiro de D. Pedro II (o de Portugal, já vimos). Pena que
por aqui não tenham chegado toucinho-do-céu, pastel de Santa Clara, cre-
me-da-abadessa, barriga-de-freira, mimos-de-freira, sonhos-de-freira, nuvens,
morcelas de Arouca e bolinhos de Amor, Ciúmes, Esquecidos, Paciência, Raiva
e Ternura. Bolo-de-noiva é adaptação do “panis farreus” romano – compar-
tilhado, pelos casais, como símbolo da vida em comum que se iniciava com
a “confarreatio”. No Brasil, esses bolos de casamento têm preparos diferen-
ciados. Os do Sul usam massa branca e recheios variados. Em nada lembran-
do aqueles de Pernambuco, feitos com massa escura à base de ameixas, pas-
sas, vinho e frutas cristalizadas – tradição britânica que chegou a bem pou-
cos lugares do Brasil. Tudo coberto com pasta de amêndoa e, depois, tam-
bém com glacê branco. Sendo, por fim, decorado com flores em relevo, fei-
tas de goma e açúcar – um hábito que nos veio da Ilha da Madeira. Esse bolo
também está presente em outras festas importantes – aniversário, batizado,
primeira comunhão, noivado e Natal.
Em nosso ambiente foram também nascendo variações desses doces e
bolos a partir de ingredientes novos – amendoim, castanha de caju, coco,
frutas tropicais, mandioca, milho –, adicionados às velhas receitas de Portu-
gal, até então feitas com amêndoas, canela, cravo, gengibre, noz-moscada,
pinhões. Usamos também claras e gemas dos ovos de galinha. Nossos índios
não conheciam esse animal, trazido por Cabral quando por aqui passou a

140
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti

caminho de Calicute. Seus ovos preferidos continuaram sendo os de jacaré


e de tartaruga. Algumas receitas sofreram adaptações. Ao manjar branco
(criado no Convento de Santa Maria das Celas, em Guimarães), e também
ao beijo (originalmente denominado beijo-de-freira, criado no Convento de
Vila do Conde), acrescentamos leite de coco. No pastel de nata trocamos a
massa folhada por outra um pouco mais simples, preservando quase inte-
gralmente o recheio (aqui usando leite, em lugar de nata). O arroz doce com
desenhos de canela, criado no Convento de Guimarães, foi abrasileirado
com o acréscimo do leite de coco. Aos filhoses jun-
tamos uma calda – algumas vezes feita com açú-
car, outras com mel de engenho. O quindim do
reino ganhou coco, cravo e canela; o nome se man-
teve, acrescido de complemento em homenagem
às meninas e moças que os saboreavam – quindim
“de Iaiá”. No colchão-de-noiva, substituímos o
recheio de amêndoa por creme de goiaba, enro-
lando a massa em finas camadas, daí surgindo nosso bolo-de-rolo – em
Pernambuco, com uma delicadeza no fazer que o distingue do rocambole
carioca e de variações dos outros Estados nordestinos.
Mas um pedaço importante dessa doçaria, cumpre registrar, é autenti-
camente daqui. Veio do desejo de fazer coisas com nossos gostos. Assim
nasceram doces e compotas de todas as frutas da terra – abacaxi, araçá, ba-
nana, caju, carambola, coco, goiaba, jaca, laranja-da-terra, manga, mangaba.
Além da cocada, claro – branca, queimada, de colher, de cortar, por Gilberto
Freyre considerada “o mais brasileiro dos doces”. Para acompanhar, queijos
muitos – coalho, do reino (assim se chamando por vir de Portugal) ou do
sertão. Nasceram também biscoitos e bolos variados – de batata-doce,
macaxeira, milho, pé-de-moleque. Em alguns casos, concebidos para home-
nagear movimentos sociais – 13 de Maio, Cabano, Dom Pedro II, Guararapes,
Legalista, Republicano, Santos Dumont. Ou pessoas – Dr. Constâncio, Dona
Dondon, Dr. Gerôncio, Luiz Felipe, Tia Sinhá. Ou, ainda, famílias que os
criaram – Assis Brasil, Cavalcanti. Sem esquecer o Souza Leão, ato exemplar
de rebeldia gastronômica – em que ingredientes europeus foram substituí-
dos por sabores nordestinos: trigo, pela massa de mandioca; manteiga fran-
cesa “Le Pelletier”, por aquela feita de leite do próprio engenho. É receita de
Dona Rita de Cássia Souza Leão Cavalcanti, casada com o coronel Agosti-
nho Bezerra da Silva Cavalcanti, senhor do engenho São Bartolomeu (em
Muribeca).
Nasceu também a misteriosa “Cartola”, que tem como ingredientes
banana, queijo do sertão, açúcar e canela. Sem que se saiba o engenho onde
foi pela primeira vez produzida, nem quem a inventou. O nome se deve

141
Açúcar no Tacho

provavelmente à cor escura dada pela canela, e o formato alto do queijo


sobre a banana, que lembra (remotamente) aquele tipo de chapéu que se
usava na época. Nasceram também beijus ensinados por índios, feitos com
massa de mandioca espremida que denominavam “tipioka”. Da massa feita
desse jeito, surgiram tapiocas de todo tipo – enroladas na manteiga, rechea-
das com coco ralado, com queijo de coalho. E, melhor exemplo dessa misci-
genação, a tapioca de coco – mais conhecida como “ensopada”, que usa
mandioca (da culinária indígena), sal e açúcar (da portuguesa) e leite de
coco (da africana). Cumprindo lembrar, também, sabores que marcam nos-
sas festas: filhós, no Carnaval; bolos, tortas e ovos de chocolate, na Páscoa;
bolo de frutas, pastel doce, passas recheadas, fatia parida (ou “de parida”),
no Natal. Além de receitas do São João, sempre com muito milho. Esse mi-
lho, no começo da colonização, era alimento apenas de animal e escravo. O
próprio Gabriel Soares de Souza ( Tratado Descritivo do Brasil, 1599) confirma
que “portugueses plantam o milho para mantença de cavalos, galinha, ca-
bra, ovelha, porco e também dos negros da Guiné”. A partir desse milho
farto nas senzalas, juntando leite de coco e açúcar, foram nascendo angu,
canjica, mungunzá, pamonha. E, também, um cuscuz muito melhor que
aquele conhecido por portugueses e africanos – por lá feito com farinha de
sorgo, farinha de arroz e até farinha de trigo.
A doçaria nordestina é resultado dessa mistura. “Com as comidas in-
dígenas e negras iam circulando as amostras da doçaria portuguesa”, disse
Câmara Cascudo (A cozinha africana no Brasil, 1964). Inclusive doces de rua,
de tabuleiro, bombons e confeitos, decorados com papel recortado – muito
mais bonitos que aqueles aprendidos com as senhoras portuguesas. Uma
culinária, no fundo, feita a partir de experiências de outros povos; mas, tam-
bém, moldando essas experiências a nossos jeitos de ser. Uma culinária que
resultou única. Criativa, como nossa gente. Altiva, como nosso espírito. For-
te, como nossa história. Generosa, como nossa alma.

BIBLIOGRAFIA BÁSICA
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A MEMÓRIA JUDAICA NO MUNDO DO
AÇÚCAR EM PERNAMBUCO
Tânia Kaufman
historiadora e ensaísta

Permanências, rupturas ou continuidade?


Como fica a memória histórico-cultural
judaica em Pernambuco, quando a mais
natural das fronteiras do tempo – os
séculos – perde seus limites em favor
de um retorno à História?
Tânia Kaufman
PRIMEIRAS PALAVRAS
passado judaico presente em Pernambuco

Neste ensaio apresenta-se um panorama da Memória Judaica no Mundo do Açúcar


em Pernambuco com vistas à elaboração de uma relação de engenhos pertencentes a
cristãos-novos e judeus, reunidos por município com seus respectivos históricos.
Não é novidade que há uma importante permeabilidade entre a história
da Civilização do Açúcar no Nordeste do Brasil e a memória histórico-cultural
dos judeus e cristão-novos que aportaram com os primeiros colonos portugue-
ses, a partir de 1500. Depois, por volta de 1630, os judeus portugueses de Ams-
terdã chegaram com a ocupação holandesa. Espalharam-se pelo Nordeste brasi-
leiro: dedicavam-se, sobretudo, aos negócios do açúcar, que ainda hoje é umas
das principais riquezas daquela parte do Brasil.
Com o fim do domínio holandês e a retomada de Pernambuco pelos por-
tugueses, em 1654, pelas mesmas razões de intolerância com que seus ancestrais
haviam sido expulsos da Península Ibérica, uma nova “passagem” conduz um
dos grupos de refugiados para Nova Amsterdam, mais tarde, Nova Iorque. Des-
ta vez, na bagagem eles levaram, além das singularidades do judaísmo, também
o conceito de “cidadania”, apreendido e aprendido no curto espaço do tempo
de Maurício de Nassau no período do Brasil Holandês.
Trezentos e cinqüenta anos depois, tenta-se
compreender como se deu a relação da cultura ju-
daica com a estrutura da economia açucareira, bási-
ca na formação do Brasil. Sabe-se que foi significati-
vo o número de engenhos que tiveram o controle de
cristãos-novos e judeus. E que também, as sinago-
gas, enquanto funcionavam clandestinamente, esta-
vam espalhadas pelas ruas da vila do Recife e seus
arredores, mas de preferência eram erguidas nos
engenhos.
Embora os vínculos religiosos e
sociocomunitários daquela população estivessem
desfeitos, a teia cultural mostra-se, até hoje, resis-
tente e unifica os sobreviventes através de novos per-
sonagens que emergem da clandestinidade, auto-
identificando-se como descendentes dos antigos cris-
tãos-novos. É possível haver uma relação com costumes e tradições de uma
cultura e de uma língua herdada dos judeus espanhóis. No Nordeste do Brasil,
A Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernambuco

não é difícil perceber que foram gradativamente se incorporando como parte


do patrimônio material e imaterial brasileiro.
O conceito de nossa pesquisa foi “olhar” a cultura judaica como uma teia
de múltiplos fios; nenhum, tecido sozinho, nem qualquer deles, cortado defini-
tivamente, porque são ligados por elementos herdados de uma ancestralidade
nacional, religiosa e cultural. Também porque, ethos e costumes judaicos são
antigos e esclarecedores para os cotidianos contemporâneos.
Para este ensaio, tomamos como referência o caminho trilhado por José
Alexandre Ribemboim – Senhores de engenho judeus – e Fábio Arruda, autor da
Relação dos engenhos coloniais da capitania de Pernambuco. Estamos investindo
num inventário, por município e época, dos engenhos que pertenceram a cris-
tãos-novos e judeus sefardim, assim como, as diferentes categorias ocupacionais
em que também atuaram na dinâmica da produção do açúcar.
São importantes sobretudo os suportes dos estudos de Gilberto Freyre,
Anita Novinsky, Elias Lipiner, Oliveira Lima e José Antônio Gonsalves de Mello,
pois revelam os passos de uma intensa vida judaica nos subterrâneos da socie-
dade colonial. Os estudos genealógicos de Fábio Arruda permitem refazer os
laços familiares que uniam as propriedades açucareiras.
Foi no comércio do açúcar que se destacaram, através de redes comerciais
constituídas muitas vezes por laços familiares, partindo de carregadores de açú-
car na colônia, consignatários em Portugal e agentes comerciais no norte da Europa.
Existe também uma bibliografia à margem do mercado editor, constituído por escri-
tos particulares, como forma de registrar as histórias antigas de cada família.
Se por um lado foi importante o papel do judeu na economia canavieira;
por outro, a economia canavieira foi importante para a fixação do cristão-novo
e como esse sucesso foi determinante para que aqueles personagens fizessem
destas terras tropicais seu novo lar.
Hoje, na visita a alguns engenhos, fica o sentimento de “ouvir” os ecos
dos passos das pessoas que ali viveram seus cotidianos e suas práticas religiosas,
na inquietação de um suceder de dias que oscilava entre a hostilidade ou o
afrouxamento da vigilância. Por isso, valorizamos as denunciações registradas
na obra Primeira visitação às partes do Brasil. Denunciações e confissões de
Pernambuco. 1593-1595, cujo conteúdo representa historicamente os fatos políti-
co-religiosos que regulavam a vida da América Portuguesa. As práticas
judaizantes denunciadas eram realizadas no espaço privado do lar, dos enge-
nhos e da vila, onde viviam os denunciados.
Contudo, é preciso avançar com as pesquisas que podem consolidar e
expandir, quantitativa e qualitativamente, as informações sobre a distribuição de
uma população judaica na estrutura econômica e social do mundo do açúcar.
Estão previstas algumas limitações relativas à historicidade desse fenôme-
no. Observa-se que, na maioria dos autores citados, o tema das relações entre os

148
Tânia Kaufman

judeus e a economia agroexportadora da colônia revela contradições, que po-


dem ser atribuídas à escassez de documentação já estudada. Há também os
casos em que apenas um dos cônjuges era judaizante e, nem sempre, o cônjuge
cristão-velho sabia da origem judaica do outro. Por outro lado, nos casos de
casamentos entre cônjuges cristãos-novos, era freqüente a troca de nomes em
cada lugar para onde se deslocavam por conta dos interesses dos negócios.
Outro fator de limitação para estudos dessa natureza aponta para a
extensividade e diversidade de funções também exercidas por judeus, ligadas à
produção do açúcar. Eles atuaram como técnicos, mercadores, carregadores de açú-
car, feitores, lavradores, implicando freqüentemente numa mobilidade espacial.
Diante do exposto e por ser consistente uma memória cultural judaica,
atávica ou silenciada, visível nos modos de viver de parcelas da população do
Nordeste do Brasil, é que ao reunirmos as informações sobre o lastro de vida
desse contexto, levamos em consideração a necessidade de dividir em etapas as
pesquisas sobre o assunto.
Como lembra o genealogista Fábio Arruda, é preciso analisar as famílias
colaterais e seus casamentos; delimitar os acontecimentos correspondentes a
cada homônimo tais como: cargo/atividade que ocupou, lugarejo onde viveu,
quem são os filhos, esposa, etc.; considerar a temporalidade dos dados pessoais
dos principais personagens enfocados; aliar os estudos de Genealogia e Demografia
Histórica para cotejo das informações levantadas. Também é requerida uma revisão
na bibliografia para contextualização na historiografia brasileira e judaica.
Com a identificação dos personagens de origem judaica na história da
Civilização do Açúcar, parte-se para a construção do Roteiro Judaico dos Enge-
nhos em Pernambuco consolidando o projeto Novos Produtos, Novas Trilhas: Os
Judeus no Mundo do Açúcar em Pernambuco.

A MEMÓRIA JUDAICA NO MUNDO DO AÇÚCAR


Da “Espanha das três culturas”, onde conviviam muçulmanos, cristãos e
judeus desde o século XIII, alternando épocas de maior ou menor intransigência
político-religiosa, os judeus sefardim foram alvo de uma nova ordem social, po-
lítica, econômica, cultural e geográfica. Deixaram Portugal, desde o final do sé-
culo XV, à procura de outro destino para driblar a rede inquisitorial, já mais
regulamentada e enraizada em toda a Península Ibérica no final do século XV.
Entre outros rumos, dirigiram-se ao Brasil, primeiro como conversos ou
cripto-judeus e depois, com os holandeses, vieram os “judeus portugueses de
Amsterdam” ou judeus sefardim. Os primeiros incorporaram-se aos planos de
Portugal para povoamento e expansão geográfica do Reino, inclusive na forma-
ção dos primeiros núcleos de engenhos, e os últimos vieram atraídos pelos ne-
gócios do açúcar.

149
A Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernambuco

Partimos do pressuposto de que a integração dos judeus no Nordeste do


Brasil, predominantemente nas diferentes funções da economia açucareira, foi
suficientemente forte para produzir um processo de interculturalidade com
base na polissemia das manifestações culturais e religiosas da população. Um
dos vértices dessa polissemia expõe as práticas judaicas clandestinas e a reserva
mental do judaísmo, profundamente enraizado nos cotidianos dos engenhos.
Aos olhos de quem percorre as trilhas de velhos engenhos localizados
nas antigas freguesias e atuais municípios da Mata Norte, Mata Sul, Grande
Recife, Olinda, Camaragibe, São Lourenço da Mata e também no sertão de
Pernambuco, Paraíba e Alagoas, abre-se um passado conquistado ao tempo e
preservado na memória coletiva da população, silenciada atavicamente em
nome de deuses estranhos.

PASSAGEM
Novo destino

Para contar esta história, é preciso iniciar por um breve olhar sobre a matriz
dos acontecimentos que traçaram o perfil dos primeiros atos para efetivar a
ocupação das terras recém descobertas. Só então poderemos entender a he-
rança judaica subjacente ao patrimônio histórico e cultural brasileiro com
sua base na economia açucareira. Houve um elo de continuidade no propó-
sito de engajamento dos judeus em todos os ciclos econômicos colonizado-
res. Todos tiveram os mesmos fatores atrativos: as “passagens”, as diásporas,
as migrações compulsórias.
Os planos de Portugal para o povoamento e a expansão geográfica no
Novo Mundo, em muito favoreceram a participação judaica nos desloca-
mentos para o Brasil. Primeiro, foi o arrendamento das novas terras a um
consórcio de mercadores cristãos-novos já em 1502. Afirma-se que muitos
desses mercadores, por serem de origem judaica, viam os projetos coloniza-
dores de Portugal como possibilidades de negócios e como lugar de refúgio
para a população ameaçada diante das pressões inquisitoriais.
Depois, em 1504, a política de doação de terras, costeiras e insulares,
atraiu Fernão de Noronha, rico cristão-novo, radicado em Portugal. Datam
dessa época os primeiros núcleos populacionais de europeus, para não dizer,
de cristãos-novos, estabelecidos na colônia como resultado dos acordos dos
consórcios. Segundo Wiznitzer24 existem documentos que confirmam ter sido

24
WIZNITZER, Arnold. Os judeus no Brasil colonial. Tradução de Olívia Krähenbühl. São Paulo:
Livraria Pioneira Editora, Editora da Universidade de São Paulo, 1966.

150
Tânia Kaufman

esse o início do vínculo histórico dos judeus com os projetos colonizadores


que evoluíram para a implantação da estrutura agrária na produção do açúcar.
Diante da dificuldade de recrutamento e do desinteresse pela oferta de
terras de pessoas do Reino português não é de estranhar as facilidades con-
cedidas por Portugal para estabelecer as relações comerciais e arrendamento
da colônia a mercadores e consórcio de cristãos-novos.
Celso Furtado25, analisando os fundamentos sociais da expansão lusita-
na, lembra que, entre os candidatos às capitanias brasileiras no início do pro-
jeto, não se contou com as classesricas do Reino.

PRIMEIROS MORADORES
E COLONOS CRISTÃOS-NOVOS NO BRASIL
Francisco Antônio Dória26, analisando a estrutura social da oligarquia agrária no
Brasil, lembra que, em 1530, a população portuguesa era estimada em 1.200.000
indivíduos, período em que se inicia a exploração e colonização sistemática do
Brasil. Destes, 20% eram judeus ou cristãos-novos, alguns procedentes de Castela
e da Andaluzia, expulsos em 1492 pelos reis católicos, mas os demais eram nasci-
dos ou residentes na região lusitana da Península Ibérica.
Considerando esse percentual, é possível afirmar que foi bastante signifi-
cativo o contingente que se deslocou para o Brasil em busca de “passaporte”
para a vida. O principal fator de atração e integração na vida colonial do Brasil
português e do Brasil holandês foram, sem dúvida, as atividades ligadas à cultu-
ra açucareira, predominante na época como principal demanda de negócios do
mercado europeu.
Como se sabe, entre os cinco primeiros engenhos da Capitania erguidos
com a chegada de Duarte Coelho, o primeiro donatário de Pernambuco em
1535, um deles teve como sócios importantes figuras do cripto-judaísmo do
Brasil quinhentista: Diogo Fernandes e sua esposa Branca Dias, além de Pedro
Álvares Madeira, o provável técnico de produção de especulada procedência da
Ilha de Madeira, então o maior centro produtor de açúcar no Atlântico.
Estas figuras se encaixariam na discussão apresentada por Arnold
Wiznitzer ao citar Oliveira Lima no comentário sobre os feitores treinados e
os trabalhadores qualificados trazidos por Duarte Coelho, da Madeira e de
S. Tomé para o Brasil – eram “pela maior parte judeus, que constituíam o

25
FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Ed. Hucitec e
Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica.
26
DÓRIA, Francisco Antônio. Os herdeiros do poder. 2. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro:
Editora Revan Ltda., 1994.

151
A Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernambuco

melhor elemento econômico do tempo, e lucravam com fugir à fúria religi-


osa que grassava na Península”.
O sociólogo brasileiro Gilberto Freyre também afirma que “a mecânica
judaica da indústria do açúcar teve de ser importada pelo Brasil”. Entretan-
to, ele deixa de mencionar o fato histórico de que eram muitos em todo o
Brasil os judeus senhores de engenho.
Desde o século XVI, instalaram-se principalmente em Pernambuco, na
Paraíba e nas Alagoas, e daqui se espalhando para outras regiões do país. São
muitos os dados materiais e muitas são as histórias que alimentam o imaginário
nordestino impregnado da cultura sefardi na região.
Segundo Wiznitzer, no ano de 1639 havia 166 engenhos no Brasil holan-
dês, dos quais 120 estavam funcionando. Dos 166 engenhos, 60% pertenciam a
luso-brasileiros, 32% aos holandeses e 6% a judeus. Sem dúvida, alguns dos luso-
brasileiros seriam de origem judaica, que viviam clandestinamente o judaísmo.
Muitos mercadores judeus atuavam simultaneamente como senhores de
engenho, e também possuíam criação de gado no sertão. Estavam sempre em
mobilidade entre as diferentes propriedades e também por conta das ligações
com os negócios do açúcar na Europa.
Aparentemente não se enraizavam nas suas terras conforme comenta José
Antônio Gonsalves de Mello citando relações de 1609 e 1623 que revelam a
descontinuidade na posse dos engenhos na mesma pessoa, em parentes ou em
descendentes seus. Tanto essa mobilidade como a questão das várias identida-
des assumidas publicamente pelos judeus pode ser explicada pelas circunstân-
cias que envolviam os familiares que permaneceram em Portugal. Muitas vezes,
na metrópole, eles estavam respondendo a processos de denúncias e era preciso
mudar no Brasil. Desse modo, a sistematização de uma relação de propriedades
merece uma busca acurada.

PARTICIPAÇÃO NA PRODUÇÃO AÇUCAREIRA


O manuscrito intitulado “Os livros das saídas das urcas do Porto do Reci-
fe, 1595–1605”27 relativo aos anos de 1596 a 1605 confirma a importância da par-
ticipação dos homens de negócio cristãos-novos nas exportações do açúcar. Pe-
los totais recolhidos desse manuscrito, o exportador de maior volume do açúcar
naquele período foi o cristão-novo Duarte Ximenes: 5.375 arrobas ou 80.625 qui-
los. Manuel Nunes de Matos, também cristão-novo, foi o segundo maior expor-
tador segundo a mesma fonte, que indica: 4.662 arrobas ou 69.930 quilos. Filho
de Gonçalo Nunes do Porto, era casado no Reino com Ana de Milão, filha de

27
MELLO, J. A. Gonsalves de. In: Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico
Pernambucano. Vol. LVIII, Recife, 1993.

152
Tânia Kaufman

Henrique Dias Milão e Guiomar Gomes, cunhado de Manuel Cardoso Milão,


Gomes Rodrigues Milão Paulo de Milão e Antônio Dias de Milão.
Todos fizeram sua aprendizagem comercial em Olinda – e todos eles
eram cristãos-novos. Irmão de Manuel era João Nunes de Matos, que de
Olinda também exportava açúcar para os mesmos consignatários do irmão.
Das filhas de Branca Dias e Diogo Fernandes, casadas com senhores de
engenhos cristãos-velhos – Holanda, Leitão, Barbalho, Alpoim, Costa Favella
(Arruda), etc., dos filhos de Diogo Soares da Cunha e Catarina de
Albuquerque e Manoel Leitão... casados com Leitão Arnoso/Vieira de Mello;
dos filhos de Miguel Álvares de Paiva e Beatris Mendes (de Leão); dos filhos
da Família Soeiro, entre outros, saem grande parte dos Senhores de Enge-
nho de Pernambuco.

MEMÓRIAS E LEMBRANÇAS
Devemos atentar que a história de uma nação, de uma cidade, de uma região
não é registrada apenas pelo patrimônio material. Ela está também no acervo
imaterial, que expressa as relações entre o espaço concreto e os acontecimentos
do passado. Encontramos a história viva dos vestígios daqueles tempos nos rela-
tos de muitas famílias espalhadas em toda a região.
Eles evocam o uso de objetos e de artefatos de culto ou de uso doméstico,
de costumes e de ritos, desvendando a formação do sincretismo a que foram
induzidos os judeus, por séculos de censura e de perseguição. Confrontadas com as
denúncias registradas, é possível perceber como se desenrolaram os seus cotidianos:

...esteve em casa do ditto Balthesar Leitão hum delles foi sabbado dia de trabalho
no qual sabbado sendo dia de trabalho vio que Ines Fernandes cristaã nova molher
do ditto Baltnesar Leitão se vestio de festa com huã saya de tafeta azul e jubão de
olanda lavado e toucado na cabeça lavado e em todo o ditto dia de sabbado sendo de
trabalho guardou e não trabalho, por que nos mais dias da semana a vio estar com huã
saia de pano fiando e no ditto sabbado não tomou roqa nem fez outro serviço algum...
(Denunciações: 106)

Foi feito um levantamento no Livro das Denunciações28 sobre as principais


práticas denunciadas. É interessante observar que a “celebração do shabat” teve
a maior incidência (25%), seguindo-se “descrença em santos e imagens católi-
cas” (16,7%); “blasfêmia da fé e ritos católicos” (10,7%), “negação de Jesus como
Deus” (10,7%); “fazer esnoga e festas judaicas” (9,5%); “cerimônias judaicas de
morte e sepultamento” (9,5%); “descrédito na autoridade católica” (4,8%); “as-

28
SERBIM, Aleksandra. Dissertação de mestrado em Antropologia, 2003.

153
A Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernambuco

sumir ou ter fama de judeus” (4,8%); “costumes alimentares judaicos” (4,8%);


“possuir a torah em casa” (3,6%); “possuir literatura hebraica” (2,4%).
É comum descobrir gestos que são repetidos mecanicamente dentro dos coti-
dianos de algumas famílias espalhadas, tanto na área rural como na área urbana, até
que um fato desperta para uma possível ascendência judaica. São pessoas que desco-
brem que mesmo pertencendo a outras denominações religiosas, surpreendem-se
“enterrando” seus mortos de forma diferente, seguindo algumas restrições em hábi-
tos alimentares, invocando sempre o Deus de Israel e outras manifestações.

...a minha família, lá em V., não trabalhava no sábado. Tinha gente que ainda
dizia que éramos comunistas. Tinha um costume na minha família de reunir,
várias vezes por ano os familiares que viviam nos arredores de V. Havia uma
valorização muito grande da família. Minha mãe até contava, que antes, as
reuniões eram na mata, escondidos. Ela também contava que as orações e as
músicas tinham um sotaque diferente. Contavam-se muitas parábolas de Israel.
(I.S.F. mais ou menos 40 anos na data da entrevista).

Muitos lembram as histórias contadas nas reuniões íntimas sobre um cos-


tume de reunir periodicamente os familiares para um jantar. O chefe da família
ficava do lado de fora da casa, esperando o surgimento da primeira estrela no céu. Só
então, tinha início a refeição. Como se sabe, o dia no calendário judaico começa
com o surgimento da primeira estrela e termina no dia seguinte à mesma hora.
As celebrações judaicas começam sempre no entardecer. Essa memória está rela-
cionada à “reserva mental” utilizada pelos cristãos-novos como forma de driblar
a vigilância inquisitorial e a dos vizinhos, para manter ativa, pelo menos, o que era
tradição no judaísmo. Esse padrão de resistência incluía artifícios de substituição
mental de figuras cristãs por outra judaica. Assim relata Lipiner (1999, p. 214):

...os cristãos-novos assistiam o novo culto nas igrejas, murmurando para si


frases e expressões restritivas. Deveriam pronunciar mentalmente tais fórmulas,
sem que se proferissem palavras com os lábios... No Brasil, durante a Visitação do
Santo Ofício em Pernambuco, o Visitador, no dia 15 de Dezembro de 1594, registrou
uma denúncia contra o cirurgião cristão-novo Fernão Soeiro que “à missa, quando o
sacerdote alçava a Deus, alçando a hóstia sagrada” foi visto estar de joelhos e batendo
nos peitos para dissimular, mas pronunciando “eu creio no que creio”...

Daniel Breda29, analisado quantitativamente a presença judaica no mun-


do do açúcar em Pernambuco, lembra: na época, nem todos estariam registrados

29
Daniel Breda é mestrando na UFRN e pesquisador do AHJPE.
30
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: cristãos-novos e judeus em Pernambuco

154
Tânia Kaufman

seja como declarantes ou como denunciados. José Antônio Gonsalves de Melo30,


a partir de diversas fontes, estima uma população de 7.000 moradores brancos
em 1584. Considerando o mesmo total para 1593, quando se iniciou a Visitação
do Santo Ofício em Pernambuco, dos 7.000 moradores brancos 14% seriam cris-
tãos-novos, isto é, 910 pessoas.
Breda entende a cautela de José Antônio, primeiro porque considera os
cristãos-novos 14% da população porque esta é a percentagem de cristãos-novos
declarantes, isto é, que compareceram à presença do Inquisidor para confessar-se ou
fazer denúncia. Em Pernambuco foram 38 cristãos-novos declarantes. O fato é que
somente o número de denunciados cristãos-novos supera em muito esta marca
e portanto o número total de nomes cristãos-novos registrados no livro é superior ao
de cristãos-velhos, o que acabaria nos dando uma estatística de que a maior parte da
população branca de Pernambuco em 1593 seria de cristãos-novos.
Outro problema citado pelo pesquisador é a imprecisão na quantidade de
engenhos existentes na segunda metade do século XVI em diante. Buscando em
Gente da nação (Mello Recife, 1990, p. 8), a respeito de cristãos-novos senhores de
engenho e a respeito do total de engenhos, ele encontra que no início do século
seguinte esse número aumentou, como se pode comprovar pelas relações dos
engenhos existentes em Pernambuco e Itamaracá em 1609 e 1623.
Dessas relações recolhemos (por ordem alfabética):

Em Pernambuco o número de engenhos passou de 23 em 1570


(Gândavo) para 66 em 1583 ([Padre Fernão] Cardim) e para 77 em 1608 (Cam-
pos Moreno): em trinta e oito anos o número mais que triplicou.
Assim, José Antônio indica, da segunda metade do século XVI até 1623,
20 senhores de engenho cristãos-novos em Pernambuco.
José Alexandre Rimbemboim em Senhores de engenho judeus em
Pernambuco colonial 1542-1654 (5. ed. Recife, 2000), acrescenta a esta lista 12
nomes: Abraham Izhack Ferreira, Antônio Barbalho Pinto, Briolanja Fernandes,
Carlos Francisco Drago, Cristóvão Paes D’Altero, Diogo Soares, Duarte de

155
A Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernambuco

Sá, Felipe Diniz do Porto, James Lopes da Costa [Jacob Tirado], João Luiz
Henriques, Leonardo Ferreira, Simão Soeiro e Simão Vaz.
Além disso, recolhemos das Denunciações... (Recife, 1984) o nome de Nuno
Alvares, citado como senhor de engenho, além de André Pinto, Diogo Roiz
[Rodrigues], Estevão Cordeiro, Estevão Rodrigues, Francisco Mendes, Francis-
co Mendes da Costa, Francisco Pardo, Gaspar Rodrigues, Jacome Lopes, João da
Rosa, João Diaz o Felpudo, Jorge Thomaz Pinto, Manoel de Andrade e Simão
Fernandes, citados os 13 como lavradores de cana.
Extraímos das Denunciações e confissões (Recife, 1984) uma lista de 35 merca-
dores cristãos-novos:

156
Tânia Kaufman

PALAVRAS FINAIS
Ao final deste ensaio, retornamos à indagação inicial para apresentar os re-
sultados preliminares de nossa reflexão visando à integração dessas informa-
ções ao projeto maior que destaca a Civilização do Açúcar:

Permanências, rupturas ou continuidade? Como fica a memória histórico-


cultural judaica em Pernambuco, quando a mais natural das fronteiras do
tempo - os séculos – perde seus limites em favor de um retorno à História?

Mais de três séculos se passaram após o “silenciamento” dos judeus


em Pernambuco. Todavia, ficaram os fragmentos recolhidos entre historia-
dores, narradores, escritores e também no imaginário da população que, agora,
permitem devolver à história o papel dos cristãos-novos, dos cripto-judeus,
dos judeus sefardim e ashkenazim na composição do patrimônio histórico e
cultural brasileiro.
Aliando-se as atividades diretamente ligadas à produção de açúcar nos
engenhos, deve-se também considerar que foi no comércio do açúcar que se
destacaram os cristãos-novos nos séculos XVI-XVII da História de
Pernambuco. Não é de se estranhar que os judeus vindos de Portugal, tão
bem adaptados às atividades comerciais na Europa, viessem para o Brasil
com o intuito de exercer também atividades urbanas. É, de fato, muito supe-
rior o número de cristãos-novos cujas atividades estão ligadas aos ofícios da
economia açucareira, rural e urbana, mas principalmente ao comércio quase
que exclusivamente do açúcar.
Há ainda muito para estudar, ensinar e contar. Na tentativa de alinhar
a cultura judaica aos estudos sobre a cultura de outras etnias que também
“ficaram” em Pernambuco é que se vem investindo em abordagens não
dogmáticas sobre o judaísmo no Brasil. A Memória Judaica no Mundo do
Açúcar é uma dessas vertentes. O apoio de pesquisadores atraídos pela
temática – Fábio Arruda, Leonor Medeiros, Branca Dias, Daniel Breda – ga-
rante uma progressiva ampliação desse conhecimento.
Também a palavra “passagem” foi referida anteriormente. Ela está sen-

157
A Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernambuco

do lembrada como síntese da vida do povo judeu: a vida como passagem,


itinerário, sucessão de chegadas e partidas. Passagens que são caminhos,
pontes entre os homens e entre mundos distantes, identificados quando pas-
samos a visitar os interstícios da cultura nordestina. Nela, entramos em con-
tato com um imaginário de outrora sobre tradições, costumes e padrões de
comportamento judaico trazido de longe.
Agora, com a história “pedindo passagem” tenta-se confirmar que o
papel dos judeus na CIVILIZAÇÃO DO AÇÚCAR foi mais consistente do
que ficou registrado na historiografia clássica brasileira e nos estudos antro-
pológicos que se dedicaram ao fenômeno da interculturalidade no Nordeste
do Brasil.

BIBLIOGRAFIA
ARRUDA, Fábio. Relação dos engenhos coloniais da capitania de Pernambuco. Levantamento
genealógico e histórico. Alagoas, 2005.
FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo. Ed. Hucitec e
Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica
DÓRIA, Francisco Antônio. Os herdeiros do poder. 2. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro:
Editora Revan Ltda., 1994.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Editora Record, 1997.
KAUFMAN, Tânia Neumann. Passos perdidos, história recuperada: a presença judaica em
Pernambuco. Recife: Editora Bagaço, 2000.
MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro:
Topbooks Editora, 1997.
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos flamengos. Recife: Editora Massangana, 1987.
______. Gente da nação. Recife: Editora Massangana, 1989.
Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Vol. LVIII. Recife.
1993.
RIBEMBOIM, José Alexandre. Senhores de engenho judeus em Pernambuco colonial. 1542-1654. 20
Comunicação e Editora, 1998.
WIZNITZER, Arnold. Os judeus no Brasil colonial. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1960.
Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil; Denunciações e Confissões de Pernambuco 1593-
1595. Prefácio de José Antônio Gonsalves de Mello. Recife: Fundarpe. Diretoria de Assuntos
Culturais, 1984. (Coleção Pernambucana, 2ª. Fase, 14)

158
A MODA COMO

REPRESENTAÇÃO SOCIAL

Fátima Quintas
antropóloga e ensaísta

A moda parece ter uma função


antropológica bem definida, que se
deve a sua ambigüidade (...) Une
fantasticamente o inteligível – sem
o qual os homens não poderiam
viver – e o imprevisível
ligado ao mito do viver.
Roland Barthes
SUMÁRIO

A força social da moda |163

A indumentária no mundo patriarcal | 169


Modas de sinhazinha, sinhá-dona e senhores portugueses |169
Moda de mulher negra |180

A moda no Brasil | 187

Bibliografia | 190
Fátima Quintas

A FORÇA SOCIAL DA MODA


Georg Simmel, sociólogo alemão, nascido em Berlim em 1851, é considerado
um dos maiores intérpretes do tema em foco. Segundo a sua visão, a moda
constitui um sistema de coesão e coerção social que permite conciliar dialeticamente
a postura do indivíduo no grupo e a sua relativa independência, resultante des-
se entrosamento estético. Algumas características por ele apontadas se desta-
cam: a da imitação e a da distinção. Imita-se para criar alianças e ao mesmo tempo
para distinguir-se nas alianças. O processo de imitação estimula o de superação e
o de aspirar ao topo de uma recriação do que antes foi pura cópia-imitação. A
moda subseqüentemente detém uma dimensão paradoxal – a de selar pactos
coletivos e, a partir da consistência dos pactos, galgar patamares individuais de
expressão exterior. Simmel a define como um sistema de contrastes entre a sua
ampla difusão e o seu rápido envelhecimento – rito de alta mutação –, o que permite
ao sujeito social apoderar-se do direito de ser infiel à moda. A rotatividade sazo-
nal do estilo acata a síndrome da traição. Com isso, o sociólogo alemão reforça o
poder coesivo da moda, mesmo em face da célere circularidade estilística: ora
de um jeito, ora de outro. Mas sempre colada a um corpo desejante de exposi-
ções públicas. Trocando em miúdos: a moda age como força coercitiva e coesiva
e faculta ao indivíduo a possibilidade de distinguir-se dentro do grupo, mesmo
traindo as tendências dos figurinos de épocas anteriores.
Georg Simmel vai além: outorga ao vestir-se o fenômeno de tensão cultu-
ral, que oscila entre o pertencer a um espaço público e o reverenciar um conjun-
to de regras estéticas, inconstantes enquanto moda e enquanto exposição estéti-
ca. Com vistas a reconhecer-se nesse grupo, cada um traz a lume demarcações
pessoais através do narcisismo individual. A estruturação das grandes cidades
contemporâneas rende vênias ao narcisismo coletivo, por multiplicar os âmbi-
tos de convergência dos agregados, esses, sensíveis
ao culto da “reciclagem do corpo”. Fica claro que a
moda consigna uma das expressões mais contun-
dentes do sentimento de pertença, isto é: o trajo ca-
rimba níveis de adesão a um determinado grupo
ou a vários grupos, uma vez que há grupos princi-
pais e secundários. Pela forma de vestir as pessoas
se alojam em núcleos diferenciados. A aparência ex-
terna individual sinaliza o pertencimento comunitá-
rio: o cabelo, os adereços, o perfume, o porte, a
indumentária dizem de símbolos de ligação que so-
mente reforçam a noção de pertencimento, noção
indispensável à construção de personalidades indi-
viduais e coletivas.

163
A Moda como Representação Social

A análise simmeliana exalta o narcisismo como fonte de vitalidade neces-


sária à existência, cujo clímax é alcançado com a expressividade da moda. O
respeito e o embelezamento de si mesmo tornam-se condição sine qua non de
ajustamento individual e social. Um corpo vestido é um corpo social que realiza
o que significa, ou seja, a ostentação da performance exterior. E a sociedade
reivindica aparências vistosas, a beirar sentimentos de virtuose e perfeição,
pessoas bonitas, bem arrumadas, talhadas à semelhança dos “deuses”. Não é
à-toa que atores e atrizes são objeto de admiração, especialmente no tocante à
imagem. Aqui uma pergunta merece destaque: até que ponto os grupos sociais
perseguem ícones condizentes com os valores em vigor? Quando falo em ícones,
remeto à idéia do visual – do que é visível – como figuração de um desejo ali-
mentado e retroalimentado pelo “mercado” das trocas sociológicas. Simmel,
autor do século XIX, é absolutamente atual na concepção de narcisismo, enten-
dido como introspecção individual e extroversão coletiva de uma sociedade que
celebra a valoração do ego, a um tempo, e a valoração da massa a outro tempo.
E não poderia ser de outra forma. A anulação do eu seria a anulação do nós. Os
campos sociais nutrem-se da imperiosa permuta do individuo com o grupo.
Um e outro se irmanam na formação do mundo, do micro ao macro.
Em 1931, Edward Sapir, lingüista e antropólogo americano de origem
lituana, incursiona no estudo da moda e estabelece concepções de moda, gosto
e costume. O gosto seria uma tendência pautada na sedimentação de valores
artísticos, enquanto que a moda veicularia autonomias comprometidas com a
economia de mercado. Tento explicar: existe uma autonomia de estilos – talvez
pela sua própria arbitrariedade –, não existe, entretanto, uma autonomia de
decisões sociológicas. O estilo muda a seu bel-prazer, a sociedade segue-o ou
dele se afasta, o que pode acarretar em uma marginalização dos grupos diver-
gentes. Na verdade, a sociedade é um continuum com evidentes compromissos
históricos e antropológicos. Não há como apartar-se dos grilhões que gravitam a
sua esfera, até certo ponto fechada nos circuitos coercitivos e coesivos. Quanto
ao costume, esse mostra-se relativamente estável, com durabilidade mais exten-
sa e menos precária que a moda. O costume corresponde ao ato de vestir-se; a
moda, ao fluxo desse vestir-se, a depender das estações, da oferta, da demanda,
da instabilidade do desejo. Desejo no sentido de falta, daquilo que não se tem,
de um sujeito sempre em busca de alguma coisa: no caso, de uma nova roupa,
de um novo adereço, de uma nova aparência. Um sujeito insatisfeito, em per-
manente falta, buscando, buscando, buscando...
A infidelidade às silhuetas serve de calço à frenética permuta e à traição ao
mundo das exterioridades. Traição que se materializa na ordem do que é objeti-
vo, não do que é subjetivo. Esclareço: a traição à moda se dá de maneira incon-
seqüente, sem remorsos e sem culpas, uma traição à margem do sentimento, de
natureza apenas funcional, ao largo de possíveis arrependimentos. A avidez

164
Fátima Quintas

mutativa não permite o mínimo de reflexão. Ela, a moda, chega para assenhoriar-
se dos corpos sociais e raramente não o consegue. Domina por um período, mas
reinventa-se com autoridade inconteste, sem pedir licença a ninguém. A cada
reinvenção, insere aportes adicionais aos modelos antigos, em algum momento
decantados como beleza padrão. São as variâncias que atualizam os estilos e
provocam o desprezo pelas passarelas ultrapassadas para enaltecer o manequim
do presente. A moda, pois, resume-se no agora, não obstante o seu efetivo ro-
deio. Dela se esperam renovações iminentes que incitem as pessoas a confiar na
sua exigüidade. Talvez represente o efêmero desejável. É a nova estação que se
aproxima, recriando modelos e estilos; desprezando o que antes parecia aceitá-
vel; ditando outras normas estilísticas sem dó nem piedade. O mundo da moda
glorifica a traição com o enlevo de quem espera a primavera, o verão, o inverno,
o outono. Por entre estações, a sociedade capitalista envaidece-se de ter os seus
figurinos em dia. Um mecanismo de parciais rupturas claras.
O trajo em alta retrata a indumentária sincrônica dominante. Equivale,
assim, ao fato social total enunciado pelo sociólogo Marcel Mauss. E o que é um
fato social total? Um fenômeno que congrega um leque de representações capa-
zes de traduzir os elementos fundamentais da sociedade. Imbuído de seus ma-
tizes, o observador estará apto a compreender o intricado da rede sociológica.
Nele, fato social total, reside uma convergência de atitudes, hábitos e costumes
reveladores da linguagem sociocultural dominante. Quando falo em linguagem,
faço-o com o intuito de atribuir ao social as estruturas classificatórias –
taxionômicas – de uma possível realidade. Possível por demonstrar fatos regula-
res, sistemáticos, repetitivos naquele instante em que é alvo de perscrutação.
Importa realçar que a sincronia da moda se associa à sua circularidade, jamais à
perspectiva histórica, rica em episódios altercados e em significações sucessivas.
O sincrônico equivale ao corte temporal, momentâneo, presentificado; o
diacrônico ressalta a retrospecção dos fatos, isto é, a leitura histórica.
A aparência do sujeito social reproduz as variações que orbitam o sistema
comunitário. A sociedade presta muita atenção no vestir-se porque dele depen-
de uma série de tópicos que definem as classes e outras categorias responsáveis
pela tessitura social. Vestir-se de acordo com os parâmetros esperados indica, no
mínimo, um equilíbrio de exterioridades. O indivíduo que se amolda às conjun-
turas reais é um indivíduo que se integra aos costumes editados pela comunida-
de. Sem exageros de adaptação. Igualmente sem exageros de inadaptações. Um
ou outro denuncia versões tanto divergentes quanto convergentes e consolida
nichos de acomodação ou de contestação; logo, faz parte do xadrez social.
A moda possui uma natureza circular e espiralada; prende-se a uma mu-
dança periódica de estilo, como já se falou. Vai e volta; circula, mas no seu giro
não retorna com as mesmas feições. Daí a concepção espiral. Nunca inteiramen-
te igual, porém com uma topologia em aclive ou em declive. E obedece a regras que

165
A Moda como Representação Social

são veiculadas através de figurinos consoantes à época


vivida. A sua volúpia rotativa invoca ajustamentos con-
tínuos: acentua o poder coercitivo, ao confirmar modos
e modas que devem balizar a trajetória dos seus segui-
dores. Nesse sentido, a roupa é temporal e circunstan-
cial; oscila de acordo com as nuances que simboli-
zam os cosméticos de uma superficialidade aceita e
deferida pelo sociológico.
Estar na moda é estar no topo da hierarquia
da indumentária, é creditar ao coletivo a capaci-
dade de discernir entre o belo e o feio. Entre o uso
e o gosto. O gosto de que Sapir menciona. O belo
consubstancia a estética cobiçada, enquanto que
o feio, a desprezível. Mas o que é feio e o que é
belo em se tratando de somas, conjuntos, jogos
pessoais? Tanto no homem como na mulher, as
vestes gozam de atributos especiais, equivalentes a
uma engenharia de privilégios ou de restrições: podem ser sinal de prestígio,
como sinal de estigma. Uma roupa desleixada, suja, rasgada constitui um estig-
ma de classe. Um paletó bem talhado em um corpo perfumado assegura dotes
de prestígio. Quando se quer agradar a alguém ou a alguma instituição, recorre-
se ao velho truque da boa aparência. A sociedade escalona padrões de
exterioridades e não há como fugir do cerco da indumentária. Nem no amor,
nem nos negócios. Ou se procuram exterioridades de prestígio ou de estigma. A
marca negativa quase sempre é alheia ao desejo de cada um. Resulta de uma
estratificação social na qual as camadas se debatem entre si, nem sempre com
respostas positivas. Tal dualidade imprime caráter identificatório, como alguns
“fetiches” de dominação. A moda é, pois, conotativa e denotativa. Conotativa
porque comunica a imagem imediata e denotativa porque, dessa comunicação,
deriva uma seqüência de simbolizações e desdobramentos que se deslocam do
visual para o não-visual, do palpável para o que há de subliminar na forma
projetada. A aparência tem valor de signo na medida em que sedimenta outros
signos e outras simbologias. Não estanca em si; dela desprendem-se ilimitadas
ressonâncias. Ao lado de uma rotatividade sazonal, cunha juízos sociológicos.
Pela roupa conhece-se sociologicamente o dono da roupa, razão pela qual
o vestuário catalisa legendas valorativas. A sociedade capitalista explora ao má-
ximo a circularidade da moda em padrões intermitentes – renovados em perío-
dos simétricos, o que evidentemente encarece e onera o trajar. O preço da ele-
gância é alto. Mas vale a pena persegui-lo, uma vez que garante o reconheci-
mento pelo grupo, outorgando-lhe a fiança social. Uma mulher bem posta de-
clara-se uma mulher respeitada. Um homem bem posto sugere um homem

166
Fátima Quintas

prestigiado. A Sociologia da Moda impõe deveres a machos e fêmeas. Que eles


sejam cumpridos, visando a aceitação de seus corpos sociais.
A moda também acusa escolhas de sedução que vão do homem para a
mulher, da mulher para o homem. Há o desejo masculino e o feminino, atração
mútua, tendências que maximizam ou minimizam a interação dos sexos. A rou-
pa utilizada tem finalidades próprias, dado que ela integra uma circunferência
dinâmica em que os pólos de gênero se aproximam ou se afastam. O imperativo
cultural do consenso prevalece, apoiado num sistema normativo tão arbitrário
quanto homologado pelo coletivo. Assim, a mulher veste-se para seduzir o ho-
mem, para chamar a atenção da sociedade e para se distinguir das outras mulhe-
res. Como afirma Simmel, para distinguir-se e liderar o grupo a que pertence, ao
assumir a posição de mais formosa, de mais esbelta, de mais charmosa. E o
homem igualmente veste-se para adequar-se ao status que lhe é atribuído. A
emulação da beleza faz-se com claras evidências no manejo do trajo. Que a
aparência indica um escudo de respeito social, ninguém duvida.

Assim, moda, como uso, hábito ou estilo geralmente aceito, variável no tempo
e resultante de determinado gosto, idéia, capricho, ou das influências do meio.
Uso passageiro que regula a forma de vestir, calçar, pentear etc. Arte e técnica de
vestuário. Fenômeno social ou cultural, mais ou menos coercitivo, que consiste
na mudança periódica de estilo, e cuja vitalidade provém da necessidade de con-
quistar ou manter, por algum tempo, determinada posição social (FREYRE,
Gilberto. Modos de homem & modas de mulher, 2002, p. 17).

O nexo coercitivo da moda é polarizador, porque inclui ou exclui indiví-


duos na arena social. Por efeito, infunde um duplo sentido – o de exclusão ou o
de inclusão. O indivíduo na moda – quer homem ou mulher – insere-se no
contexto da atualidade. Fora dela, exclui-se e resvala para hiatos desfocados. A
função coercitiva e a função coesiva possuem mão e contramão no “trânsito” da
estética da roupa.
O assunto é palpitante: expressão social e estética, complemento de bele-
za, de elegância, de prazer. De prazer porque garante a posição social e pode
ensejar mobilidade vertical positiva, ou seja, ascensão na escala do prestígio.
Uma dialética em constante alerta, sem abrir brechas para fortuitos relaxamen-
tos. Por algum tempo a moda esteve mais ligada ao feminino, talvez pela própria
concepção de feminilidade, afeita aos pressupostos da delicadeza e da finura.
Mulher frágil. Mulher dócil. Mulher bela. Do homem esperavam-se outros
predicados: virilidade, coragem, valentia, insígnias que não condiziam com a
“frivolidade” do vestuário. Contemporaneamente o complexo da indumentária
estendeu-se ao homem em uma visível exacerbação do corpo e do trajo. O para-
mento sempre se aliou à projeção social, tanto que, o já citado Edward Sapir,

167
A Moda como Representação Social

entendia que as mulheres mais inclinadas à adoção da moda são as menos jo-
vens para as quais novos estilos podem beneficiar o inexorável envelhecimento.
Julián Marías, outro grande estudioso do tema, afirma que a moda se alicerça na
inovação. Mais ainda: na ruptura. E confirma-se pelo reconhecimento social,
do contrário não seria transmissível. Só é transmissível aquilo que tem apro-
vação do grupo ou de parte dele. Portanto, a sua viabilidade dependeria da
aceitação dos que estão submetidos ou não à adesão das sugestões aponta-
das. E interpela o pensador espanhol no seu notável trabalho acerca da mu-
lher no século XX: O que verdadeiramente interessa ao homem e à mulher?
A reposta aponta na direção da vivência recíproca dos dois sexos, cada um
com uma experiência distinta, com uma perspectiva histórica situada em
modos de vida dessemelhantes. Histórias pautadas, as de machos e fêmeas,
em culturas milenarmente construídas.
Sabe-se que com o processo da globalização, visões simplificadoras vêm
ganhando terreno através de elementos uniformizantes ou unissexualizantes.
Entretanto, repetindo Julián Marías, a força psicológica de cada sexo tende a
firmar-se por meio de diferenciações que balizam a moda, bipolarizando apa-
rências femininas e masculinas. O que quero dizer com isso: ainda que o merca-
do aproxime a maneira de vestir de ambos os sexos, haverá um sentimento de
identidade sexual e existencial que preponderará sobre a tentativa de padroni-
zação. Modos bissexuais perdurarão com a finalidade de aumentar os encantos
entre os sexos.
Do que se pode inferir que a moda contrapõe os sexos; acentua as diferen-
ças; feminiliza a mulher e masculiniza o homem. Constrói “esculturas” de refe-
rência. É mister que para cada sexo haja atrativos específicos que sirvam de
traços distintivos. Em suma, uma das funções da moda é embelezar para con-
quistar não somente degraus sociais, mas igualmente a ambos os sexos mediante
saudáveis descobertas. Cores, tecidos, talhes deságuam em estilos que se ajus-
tam a apetites diversificados. Homem e mulher expõem modelos de roupa que
louvam feminilidade e virilidade. De um lado, os caracteres da fêmea; do outro,
os caracteres do macho. Ambos guarnecidos do invólucro da beleza.
O trajo permeia a vida privada e a pública. Veste-se em casa de maneira
informal e, na rua, de maneira formal. Porém, o paramentar é uma presença
incontestável no ser humano habitante das sociedades ditas civilizadas. Quanto
mais se cobre o corpo, maior o prestígio social. O homem nu grava o estigma da
barbárie. Os escravos andavam despidos e sequer tinham o direito de adornar-
se com dignidade. Vivenciavam a humilhação dos desprovidos de vestes. A
civilização prescreve o vestuário como manto diferenciador. As monarquias tra-
dicionais, por exemplo, excediam-se em roupas, longas roupas, majestáticas,
ostensivas, únicas na sua representação de reis e rainhas, de príncipes e prince-
sas, de cortesãos e áulicos.

168
Fátima Quintas

O certo é que a indumentária atravessa as fronteiras do privado e penetra


o público, sua desembocadura preferencial, confraternizando os espaços num “es-
piral cênico”. Se o âmbito privado se acomoda à rotina, a esfera pública reclama
dimensões mais eficazes. O status do vestir começa necessariamente na casa e se
propala na exibição pública, palco de maiores apreciações. Dessa maneira, granjeia
emblemas bipolares que acabam por verter na encruzilhada da posição social. Po-
sição essa que já traz embutida a sexualidade do indivíduo num trajo formalmente
reconhecido pelo desenho do tempo e do espaço, seja no privado ou no público.

De fato o problema das vestes, como o da vida sexual, participa da área


privada e da pública: projeta-se daquela sobre esta e reflui desta para aquela,
como em um movimento pendular. A tradição corresponde a uma distinção
entre traje de casa e traje de rua, distinção que se acentua nos contextos
mais formais, e que o professado “informalismo” de nossos dias ainda não
conseguiu extinguir de todo. Um pedaço de pano pode alterar o “efeito” da
figura humana, e nas civilizações mais conhecidas a dignidade social sempre
corresponde a um tanto mais de tecido ou de adornos sobre o personagem
(SALDANHA, Nelson. O jardim e a praça, 1993, p. 33).

A imagem do que sou socialmente advém de uma imagem produzida. O


cabelo penteado de uma certa forma, a roupa discreta ou extravagante, os tons
berrantes ou neutros dos tecidos tipificam modos de inserção na hierarquia
comunitária. Do mais romântico ao mais racional; do mais agressivo ao mais
tímido; do mais aristocrático ao mais popular. As gradações corresponderão à
intenção do postar-se. A rede sociológica é elaborada em razão das relações
interpessoais. Portanto, convém privilegiar construções culturais sob a hélice
estetizante, de modo a obter-se o efeito desejado: o de consignar pertencimentos
grupais e o de ratificar posições hegemônicas.

A INDUMENTÁRIA NO MUNDO PATRIARCAL


MODA DE SINHAZINHA, SINHÁ-DONA
E SENHORES PORTUGUESES

A preguiça e a letargia dominaram as lentas horas da portuguesa, como já foi


analisado; mas faz-se necessário repetir para contextualizar a vestimenta da
mulher branca. Envolta na aura de colonizadora, pouco teve o que fazer, a não
ser dar ordens às mucamas e tagarelar conversa mole na cozinha. A modorra era
tanta que se distendeu por sobre os mais variados filamentos. O vestuário, por
exemplo, respondeu a essa desastrosa indolência. E, diga-se que o ócio, quando

169
A Moda como Representação Social

bem administrado, é um excelente aliciador de criatividade; não o foi, entretan-


to, no engenho do passado. Talvez pelo exagero da dose.
Mulheres ansiosas à espera do casamento ou do filho para nascer. As pri-
meiras, angustiadas diante da incerteza do advir; as outras, exauridas de parir,
parir, parir... Ambas, amarfanhadas por um cotidiano abúlico. As sinhás-donas,
decepcionadas com um matrimônio sem amor: quase contratos econômicos,
com a finalidade de abonar a prosperidade da cana através de enlaces
endogâmicos. Tristes. Um filho atrás do outro. O corpo se deformando, os seios
em desleixo, a pele ressequida pelo mormaço tropical. Mulheres às avessas, a se
entregarem à inércia de condutas relapsas.
Os cronistas da época falam que as sinhás-donas, em casa, vestiam-se de
cabeção e chinelo, arrastando os pés, como se arrastassem o peso de uma
vida mal vivida. Sem a mínima expressão de zelo ou de cuidado no
paramentar-se, deixaram vir à tona as plangentes dores psicológicas. Mulhe-
res abandonadas. Quase sujas. Perdidas na gordura, na obesidade, no colesterol
alto – proveniente das dosagens desequilibradas dos lipídios, da gula pelo açú-
car, enfim, da alimentação mal balanceada. Sem o élan e o frisson da juventude
que ainda latejava em suas veias.
A mulher européia, diga-se a portuguesa, arruinou-se através de uma
nadificação chancelada, e obteve dividendos desfavoráveis à sua personalidade.
A negação surgiu como um meio contundente de destruição. Ignorando a esté-
tica do vestir, confinou-se à lassidão de uma malemolência prejudicial ao desen-
volvimento. Na esfera privada, onde as frustrações poderiam evolar sem medo
de censura, a população feminina branca manifestou a anulação de si mesma. O
desleixo com a vestimenta remetia a atitudes de acídia e, conseqüentemente, a
fracassos individuais. Diante da insipidez sexual, e conhecedora das clandesti-
nidades do “companheiro” – a mulata foi sua permanente rival –, aceitou
agigantar o cerco da displicência. Cabisbaixa, por entre os corredores frios, lon-
gos, nostálgicos, anuiu a um estágio próximo à flagelação. Não se pode incriminá-
la por esta reação de constrangimento. O espaço privado hospedou graves pa-
radoxos e resumiu o refúgio de um viver mal construído. O pior de tudo era
que, no palco patriarcal, o doméstico prevaleceu; do que se conclui que preva-
leceram as insatisfações femininas.
Se em casa, entre as paredes do solar do engenho, o relaxamento prepon-
derava, na rua, entretanto, a pompa reinava. E com ares babilônicos. Uma figu-
ração um tanto exótica, no mínimo estranha. Enfeitavam-se, as mulheres, em
demasia. Adereços, jóias, braceletes. Uma verdadeira quermesse de variedade e
riqueza. Porém, um luxo mal combinado. Sem a lucidez necessária. De tudo
faziam para se travestir de dondocas. Uma coisa é certa: nossas bisavós arruma-
vam-se exclusivamente para sair, como se tivessem vergonha de sua própria
imagem dentro de casa. Ou de sua silenciosa humilhação social.

170
Fátima Quintas

Na missa, vestidas de preto, cheias de saias de baixo e com um véu ou man-


tilha por cima do rosto; só deixando de fora os olhos – os grandes olhos
tristonhos. Dentro de casa, na intimidade do marido e das mucamas, mulhe-
res relapsas. Cabeção picado de renda. Chinelo sem meias. Os peitos às vezes
de fora. Maria Graham quase não conheceu no teatro as senhoras que vira de
manhã dentro de casa – tamanha a disparidade entre o trajo caseiro e o de
cerimônia (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 373).

A cor escura predominou entre as silhuetas patriarcais, fiéis adeptas


do estilo europeu, sobretudo no século XIX quando se deu a chegada da
Corte para o Brasil, em 1808, e a abertura dos portos às Nações européias –
particularmente ao comércio britânico. Com o advento do Império, o Brasil
perdeu o seu relativo isolamento, acatando quase anestesiadamente a influên-
cia da moda parisiense. O relativo isolamento a que me refiro remete a uma
Ibéria ainda sem o gosto de Europa – mais África que Europa –, sem a aceitação,
contudo, de tal ambigüidade, abraçando e repassando o quanto podia os fidal-
gos preceitos europeizantes. Os anúncios de jornais mostram a chegada de cos-
tureiras francesas, estilistas, de tecidos inapropriados, de toda uma sorte de va-
riações em torno dos referenciais de beleza da cidade das luzes, Paris.

Em 1857, anúncio no Diario de Pernambuco tornava evidente o que vinha sen-


do, há anos, a europeização de trajo e de calçado no Brasil, através não só da
importação de artigos europeus como de chegadas, ao nosso país de, além de
artistas, artesãos. No referido anúncio, informa-se terem acabado de chegar de
Paris um Sr. Blanchin, “optimo official de sapateiro, e Madame Blanchin, perita
engomadeira de roupa fina...” Ofereciam seus préstimos “por se acharem com todos
os aparelhos necessários para as suas artes. Evidente requintes novos para o Brasil,
sendo de presumir dos sapatos que já fossem de aparências discretas” (FREYRE,
Gilberto. Modos de homem & modas de mulher, 2002, p. 119-120).

A reeuropeização da moda vingou com facilidade. E a vestimenta da por-


tuguesa aprimorou-se em critérios antiecológicos, tanto nas cores quanto nos
modelos exageradamente abafados e pesados. D. Pedro II e a Imperatriz mostra-
vam-se fiéis representantes dos trajos escuros. Ele, de sobrecasaca preta e de
cartola também preta, ela, de vestidos tristonhamente escuros, a revelar a pre-
dominância de “gravidade” e de “solenidade” que caracterizaram o Brasil patri-
arcal e escravocrata do longo reinado do segundo Pedro. Se da Monarquia ema-
navam austeros visuais, segui-los dizia de um bom receituário na etiqueta da
elegância. Afinal, as referências aristocráticas ditavam as normas da boa postu-
ra. E o Brasil esteve sempre na esteira da aristocracia, mesmo ao impacto do seu
declínio. Por ela lutou até os últimos estertores.

171
A Moda como Representação Social

A moda brasileira de mulher foi, assim, por algum tempo, uma moda vinda da
França, sem nenhuma preocupação, da parte dos franceses, de sua adaptação a
um Brasil, diferente no clima, da França. Uma moda imposta à mulher brasilei-
ra e à qual essa, quando de gentes mais altas, das cidades principais, teve de adaptar-
se, desabrasileirando-se e, até, torturando-se, sofrendo no corpo, martirizando-se
(FREYRE, Gilberto. Modos de homem & modas de mulher, 2002, p. 106).

Importavam-se da França enxovais inteiros de casamentos e batizados.


O Brasil parecia não reagir a esse imperialismo exógeno. As modas de cores
de vestidos, de enfeites de chapéus, de espartilhos,
de penteados, foram seguidas passivamente, sem o
menor gesto de resistência. Impostas e tiranicamen-
te obedecidas por adultos e crianças. Modas que
correspondiam a climas temperados e frios, longe da
tropicalidade do nosso país. A ditadura francesa alonga-
va-se dos perfumes às loções, do ruge aos vestidos, de bai-
le ou de dias comuns, dos sapatos às meias de seda, dos
espartilhos às roupas íntimas... E luvas. Imaginem lu-
vas em um ambiente absolutamente arredio a tais ade-
reços! Na Belle Époque não se permitia que uma brasi-
leira saísse sem as suas respeitosas luvas. Existiam modis-
tas exclusivas de luvas e chapéus. Não chapéus leves e
apropriados ao sol, mas modelos tipicamente parisienses.
O pince-nez ostentou um dos toques estéticos mais
franceses adotados no Brasil. Homens e mulheres dele fizeram uso com o pro-
pósito de culminar a esbelteza. Nesse Brasil miloitocentista de fim de século, o
pince-nez era completado por jóias: trancelim, camafeu, anéis, brincos, broches,
pulseiras... E dentes de ouro como insígnia de fartura econômica. Joaquim
Nabuco, por exemplo, homem reconhecidamente belo e airoso, foi acusado por
seus adversários do uso de pulseira, alfaia pouco apreciada pelos homens machistas
da época. Afirme-se que rara era a esposa de brasileiro rico do fim do século XIX e do
começo do XX que não andasse sobrecarregada de jóias e perfumada da cabeça aos
pés. E quanto às jóias de mulher, a preferência se dava pelos anéis de brilhante,
brilhantes grandes chamando a atenção, broches cheios de brilhante, grandes
também, cordão de ouro com medalha e crucifixo de brilhantes. Havia uma
clara predileção por essas pedras, embora o rubi e a esmeralda ocupassem espa-
ços de distinção. E nessas jóias a cruz referendou o símbolo mais em voga. O
catolicismo abençoou a cultura brasileira em seus mais variados aspectos.
Gilberto Freyre, na sua argúcia em pesquisar anúncios de jornais, anota
mais um relativo às caracterizações de cores para a indumentária feminina, co-
res no mais alto grito de Paris:

172
Fátima Quintas

Para vestidos de passeio, à escolha, cores como “cinzento rato, toupeira, castanho não
muito escuro... resedá, musgo, beige carregado, tijolo, violeta”; para “toilettes de
visita e cerimônia: campagne heliotrópio, cinzento pérola, beige claro, groselha, azul
Sèvres, verde esmeralda, mordoré, rubi escuro, violeta de Parma”; e para “toilettes
de baile, soirée e teatro: rosa desde o tom mais suave até ao mais carregado, azul
celeste, verde água, branco, amarelo canário, marfim, creme, rubi, gris, verde muito
claro, gema de ovo, palha e pêssego” (FREYRE, Gilberto. Modos de homem & modas
de mulher, 2002, p. 141).

Os espartilhos e as anquinhas denotavam um enorme sacrifício para a


mulher. O espartilho acarretou males para a sua saúde, ao prender os pul-
mões e trazer um imenso desconforto aos apelos da mobilidade. Cinturas
finas em sinhazinhas já depauperadas ou em corpos arredondados das sinhás-
donas, arredias às linhas perfeitas da anatomia desejada. Mulheres que se
lambuzavam de açúcar em caldeirões apetitosos e que se levavam pela gula
diante de um bolo irresistível ou de um doce, a dar água na boca. O martírio
desses corpos em espartilhos desumanos açulava a veia da competição entre
os produtores. Como, por exemplo: na tentativa de substituir o colete docloresse
surgiu o colete devant droit com uma excelente propaganda – garantia uma
“comodidade inexcedível”, recomendado, inclusive, por higienistas brasileiros.
O devant droit, asseguravam os vendedores, era rigorosamente científico. Quem
poderia comprovar semelhante afirmação? Aliás, o mito do espartilho recebeu a
condenação explícita dos cientistas mais esclarecidos. As anquinhas eram incô-
modas, porém não chegavam a acarretar danos à saúde.
A morte no Brasil patriarcal cercou-se de rituais solenes e necessários ao
mundo sociológico. Morria-se a toda hora, de parto, de doenças banais, de pro-
saicas infecções. Crianças recém-nascidas subiam ao céu como anjinhos inocen-
tes. Mães desesperadas, sem ao menos abraçar os filhos no colo, beijá-los,
amamentá-los, amá-los vivos. E a morte ceifava o primeiro, o segundo, o tercei-
ro... A medicina não alcançara ainda meios para curar doenças rotineiras, quase
familiares e inexpressivas. Diante de tantas perdas, não bastavam as exéquias
para demonstrar o sofrimento, mas a elas se juntava o ritual do luto, que incluía
estilos de trajo. Luto fechado, tratando-se de pai ou mãe, avó ou avô, esposa ou
esposo, filho ou filha. Luto fechado por um ano, sem transgressões porventura
dissociadas da dor do adeus: vestido preto, chapéu preto, sapatos pretos... O
luto aliviado se traduzia em vestidos pretos salpicados de branco ou vestidos
roxos; daí nunca faltar vestidos roxos no guarda-roupa feminino dos engenhos
de outrora.
O luto fechado incluía, ortodoxamente, a moda do chamado chorão para
as viúvas, que consistia num véu escuro que escondia o rosto durante o período
do luto. A roupa preta se impunha também em casa. Até as crianças submete-

173
A Moda como Representação Social

ram-se a essa rigidez. Os homens também, esses com maiores liberdades por-
que, em se tratando da perda da esposa, casavam-se com uma certa rapidez.
Guardavam, assim, um luto ameno. As viúvas, ah, as viúvas!, isolavam-se do
mundo real, a entristecer-se e a lamentar o malfadado destino do cônjuge. Às
vezes o uso do preto estendia-se aos escravos domésticos, considerados mem-
bros sociológicos de uma família brasileiramente patriarcal.
As modistas em voga esmeravam-se em confeccionar vestidos elegantes
de luto. A homenagem do trajo fúnebre patenteou uma aguda demonstração
nos tempos dos nossos antepassados por motivos sociológicos de coesão famili-
ar e de tributo a entes queridos que partiam tão cedo. Para tanto, uma moda
especialíssima: a dos vestidos requintadamente de luto. E depois, requintada-
mente de lutos aliviados, com relevos brancos ou palmas “bordadas a prata”.
Um luxo que se incorporou à morte. Aliás, sobretudo na morte, porque o
adeus era eterno. Não só: cumpre salientar que a sociedade patriarcal fez de
seus mortos ícones inabaláveis, a adentrarem a vida cotidiana com mais vigor
que os próprios vivos. Os mortos comandaram a cena de outrora porque o
prestígio de muitos ultrapassava o “crédito social” dos que ficavam. Render-
lhes láureas era uma forma de conservar um status em perigo. E nada melhor
para manter hierarquias que veementes saudações ao mundo celestial. De lá, da
esfera inabitada por matéria corpórea, manavam as ordens do cotidiano e, con-
seqüentemente, as ordens da estabilidade hegemônica.
A mulher portuguesa “mesclou” duas vidas. Dois comportamentos. Duas
atitudes. A de casa, submersa na indolência; a da rua, resplendendo formosura.
Maria Graham não se eximiu de revelar o seu espanto em não reconhecer as
mulheres nos espetáculos públicos, tamanha a diferença entre o estar em casa e
o estar na rua. Adornavam-se não para os maridos, mas para outras mulheres por-
que, na verdade, não ousavam fazê-lo para homens estranhos, o que denotava
a ansiedade de demonstrar em público elevados níveis de afortunamento.
Na roupa, projetava-se a situação econômica, que se queria próspera no
ranking do latifúndio monocultor. Enfeitadas da porta da rua para fora: nos
teatros, nas festas religiosas, nas praças públicas e, ordinariamente, nos cos-
tumeiros rituais da Igreja.
Somente os olhos não podiam mentir. Denunciavam a cor da tristeza.
O íntimo. O interior. O que ninguém vê. Enganar as exterioridades, muito
fácil. Cobrir-se de preto ou de rosedá, conforme a ocasião, mais fácil ainda.
Embrulhar-se em mantilhas, em véus, em lenços, como representação de
humildade e recato, fazia parte do espetáculo. Isolar-se na nobreza dos para-
mentos, um artifício muito utilizado. O que não se podia esconder, aí sim,
não se podia esconder mesmo, era o olhar melancólico. Este presidiu a vida
da mulher portuguesa. Em todas as idades, em todos os espaços, em todos os
tempos patriarcais.

174
Fátima Quintas

Na Igreja, a mise-en-scène esperada. Um certo retraimento. No teatro,


outra performance, porque ali o exibicionismo deveria assumir feições re-
tumbantes. O corpo parecia pouco para expor o “mercado persa” de jóias,
brincos, pulseiras, colares... O exagero de aparatos significava manifestações
externas de ilusionismo. O que se passava no interior de cada uma somente
os espelhos conhecidos seriam capazes de delatar. E deles a memória históri-
ca pouco preservou. Os esconderijos encarregaram-se de embaçar os pade-
cimentos, subtraindo algumas lamentações que apenas escamoteavam lágri-
mas, jamais as eliminavam.
O excesso de alfaias oferecia um espetáculo desagradável. A mulher, ao
tentar embonecar-se com exóticos aportes, acabava por enfear-se. Sedas, velu-
dos, rendas, chapéus, enfeites variados reuniam o instrumental das portugue-
sas em apresentações públicas.

(...) As sinhás-moças, vestidas de ricas saias de cetim, camisas de cambraia


finíssima, cobertas de jóias de ouro, cordões, pulseiras, colares, braceletes e
balagandãs (PRADO Paulo. Retrato do Brasil, 1962, p.117).

Não há como empalmar o gosto colonizador: a portuguesa escandalizou a


estética com uma mistura de arranjos que a caricaturou em esboços de espanto.
Para alcançar a comenda da aristocracia, a mulher enformou-se em confusos
paramentos, um verdadeiro picadeiro circense que a afastou dos princípios bá-
sicos da arte do bem vestir.

(...) A julgar por Mrs. Kindersley, que não era nenhuma parisiense, nossas avós
trajavam-se que nem macacas: saia de chita, camisa de flores bordadas, corpete
de veludo, faixa. Por cima desse horror de indumentária, muito ouro, muitos
colares, braceletes, pentes (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966,
p. 370).

A cronista extasiou-se com a variedade de ornatos que as mulheres


carregavam ao mesmo tempo. Falta de senso estético, de harmonia de cores,
de equilíbrio de estilos – uma bizarria. Necessidade por vezes de simular
opulências nem sempre condizentes com o entorno açucareiro. Exposição
que patenteou um grande marco na sociedade do passado, tão dependente
de anuências sociais.
Disfarçar a tristeza ou qualquer outro sentimento que pusesse em xe-
que a coesão familiar foi a ordem do dia no mundo patriarcal. Nada de exibir
sinais que viessem a acusar baixas econômicas. Isso, jamais. A indumentária
evidenciava um escudo protetor para corpos pouco amados. Brasão que

175
A Moda como Representação Social

realçava a altivez de uma família pautada em condecorações latifundiárias e


escravocratas. Homenagens e homenagens à sombra do açúcar, o mais exigente
em ditaduras ostensivas. A roupa estrondava como uma aliada importante que
servia de ornamentação alegórica a uma rua tão estreitamente ligada à cancela
do engenho – instrumento poderoso na coreografia teatral. Que os fingimentos
nublassem os possíveis esboços de declínio canavieiro.
O estilo de vestir da portuguesa explorou excessivamente requintes de
complementos: rendas, babados, bicos. E na cabeça, o chapéu trabalhado com
plumas, bem ao modo da Belle Époque – no próximo capítulo, discorrerei sobre o
tema com mais detalhes. Para o retrato de família, uma aparência ideal: todos
bem postos, roupas adequadas, chapéus de aba larga, saias armadas, espartilhos
adelgaçando o corpo, ternos escuros, coletes abotoados, sapatos finos, bengalas
no grito da moda...
A mulher ibérica não se acanhava das suas formas arredondadas,
protuberâncias visíveis, um pendor para o Barroco, não somente no excesso
de adornos como também na anatomia de um corpo ancho de curvas e volu-
mes. Interessante observar que, quando sinhazinhas, apresentavam-se pálidas,
comendo caldinhos de pintainhos, quase anêmicas, a deixar restos de alimento
no prato para não parecer famintas ou gulosas. Trancafiadas em camarinhas,
recatadas e longe do sol, das luzes, dos holofotes que porventura a espiassem
em pormenores. Sempre debaixo das sombras, amarfanhadas na insipidez de
uma juventude condenada à perfeição. Santas. Seráficas. Virgens de vida. Um
tipo de beleza doentio, com ares de anjo, corpos franzinos a sugerirem levita-
ções. Após o casamento – com a garantia de maridos para fecundá-las e sustentá-
las –, as mulheres engordavam, adquiriam papadas, assumiam jeito de matronas.
Ancas largas, acentuadamente largas. Bom lembrar que Portugal, em decorrência
da arabização, idealizou a mulher de sangue mourisco através do mito da “moura
encantada”. Uma moura encantada que se avantajava em quadris amplos e on-
dulantes. E não foi difícil obtê-los debaixo do manto da preguiça e da lerdeza.
Não é insignificante o vocábulo cadeiras ser sinônimo de ancas em portu-
guês. O brasileiro ainda nos dias atuais dá muita importância à região glútea. O
termo cadeiras caiu inclusive no uso popular com múltiplas recorrências a esse
aspecto sensual. Basta reavivar a expressão mulher descadeirada olhada como
deficiente de corpo, ou mulher de quartos caídos. Recorde-se que D. Ana Rosa
Falcão, a célebre madrinha de Joaquim Nabuco, por ele tão maternalmente ama-
da, era uma mulher bastante corpulenta.
O homem patriarcal igualmente cobriu-se de modos especiais: o do cha-
ruto e o do rapé, por exemplo. O charuto o embevecia, após o almoço ou jantar,
com licor para acompanhar as tragadas ou mesmo para molhar o fumo no líqui-
do aromático. E o rapé? Este foi um modo predominantemente masculino. Ra-
pés guardados por homens em requintadas bocetas – sinônimo de caixa em

176
Fátima Quintas

Portugal; denominativo que no Brasil tornou-se posteriormente obsceno. Rapé


fabricado na Bahia, famosa pelo seu fumo, ou vindo diretamente de Lisboa.
Algumas mulheres patriarcais, até mesmo baronesas, usaram charutos na emu-
lação com barões empertigados. Barões com chapéus, cartolas soleníssimas, pés
metidos em botinas liturgicamente pretas. Quanto ao rapé, não. A este, só ho-
mens aderiram. Talvez por não se conformarem apenas com o gozo sexual, care-
cendo de sensações de orgasmos outros – o espirro.
A letargia estendeu-se ao homem; não o poupou. Nem poderia deixar de
ser assim. Ainda que, vez por outra, saísse a cavalo nas suas incursões pelos
canaviais, o seu corpo não se modelou em espátula de Hércules. Quando adul-
tos, casados, com filhos, homens barrigudos, pouco musculosos, longe, bem
longe de belezas de macho. E na moda, o masculino também refletiu a desastra-
da inação. Freyre demonstrou, com originalidade ímpar, que esse homem che-
gou a ser “feminino”, tamanha a manifestação de apuros de vaidade. Cuidava-
se em demasia ou descansava em demasia: mãos delicadas, pés amanhados com
assiduidade, cabelos com brilhantina, bigodes lustrosos, barbas talhadas, enfim,
tratos exagerados que lhe conferiam um perfil mais feminino que masculino. A
lassidão em que vivia não lhe possibilitava uma musculatura desenvolvida. A
lerdeza, a languidez, a inércia triangulizavam uma bandeira favorável à anato-
mia debilitada. Quando jovens, corpos franzinos, que se moldavam à imagem
de mulher. A pele macia misturava-se a características de sexo frágil. As diferen-
ças entre homem e mulher, no período patriarcal, subscreveram hiatos mais
sociológicos que biológicos. O reforço às desigualdades culturais serviu para
cristalizar as idealizações de fragilidade e de virilidade. Mas a essência anatômica
do homem mostrou-se debilitada, em conseqüência de sua inapetência às ativi-
dades físicas. As regalias sociológicas responsabilizaram-se, outrossim, em
masculinizá-lo através de um machismo autoritário e implacável. O certo é que
a “feminilidade adquirida”, nos idos da bagaceira – salvo nas sinhazinhas –,
pouco foi detectada. O mundo sociocultural hauriu excelentes aromas de arro-
gância nesse homem, homem até debaixo d’água.

(...) O homem, no Brasil rural patriarcal, foi a mulher a cavalo. Quase o mes-
mo ser franzino que a mulher, debilitado quase tanto quanto ela pela inércia e
pela vida lânguida, porém em situação privilegiada de dominar e de mandar alto
(FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos, 1981, p. 101).

Do que se observa que o tálamo sociológico, com os seus melindres de


santuário intocado, alvitra construções simbólicas a bel-prazer, com uma inde-
pendência quase patógena. Manda e desmanda na engrenagem normativa. Foi
assim no passado e ainda o é no presente. E há de ser nos futuros próximos e
longínquos. Vestidos a caráter, é verdade, porém entregues aos cafunés das

177
A Moda como Representação Social

mucamas em redes que os acolhiam em aconchegos quase uterinos. Outro modo


de homem: o cafuné. E coligado à concupiscência de um afago não de todo
desinteressado. Afago com cheiro de lascívia.
As mudanças na indumentária masculina começaram por baixo: pelas
calças brancas, de influência inglesa. Depois, o terno perde o colete embora
não altere a sua terminologia triádica. As casacas – que se derreavam até os
joelhos – diminuíram e foram obtendo contornos mais leves. De um modo
geral, as alterações no trajo masculino são menos ousadas do que as do femi-
nino. Este ponto merece questionamentos. Pelo menos deixo uma indaga-
ção: Por quê?
Pode parecer estranho, mas uma moda feminina muito corrente nos
séculos XVIII e XIX era a do banho de rio. O exotismo não estava nos banhos
de rio, mas na maneira como as sinhazinhas se lançavam nas águas doces do
Capibaribe. Pois essas jovens deliciavam-se inteiramente nuas com banhos
astuciosos e aguardados. Em começos do século XX o hábito ainda reinava:
Manuel Bandeira a ele se referiu quando poetizou a bela recordação da
sinhazinha nua – “um dia eu vi uma moça nuinha no banho/ fiquei parado
o coração batendo/ Ela se riu/ Foi o meu primeiro alumbramento”. E
Tolennare, cronista francês, também se contaminou com a surpresa bem-
vinda, uma sinhazinha nuinha em banho no rio, no arrabalde da Madalena.
De olhos arregalados, alegrou-se com a espontaneidade! Um novo
alumbramento.
Quando os banhos de mar passaram a substituir os de rio – inicialmente
como prescrição médica, indicativo à cura de certas doenças –, os primeiros
trajos seguiram a linha vitoriana: nem decotes, nem pernas à mostra, dado que
os calções das mulheres iam até os tornozelos. Roupas incômodas que não per-
mitiam a liberdade do corpo em águas tão maravilhosas. As mulheres se satisfa-
ziam com um lazer pela metade. O rio ainda evocava a saudade de uma entrega
total aos gozos de uma distração recheada de tagarelices e conversas moles. Ah,
os rios! Famosos pelo seu chamamento à sensualidade.
Cabelos longos, mãos bem tratadas, pés cuidadosamente calçados, esses
os traços diferenciadores de classe. Emblema de respeito. Escudo de prestígio.
Marca de nobreza. Mãos, pés e cabeça, um trinômio bem significativo na confi-
guração das extremidades. Mãos delicadas, mãos que não trabalhavam. Pés de-
licados, pés que se escondiam do massapê, calçados com sapatos, por vezes
pouco confortáveis, para formatarem a delicadeza artificial do ethos da época –
pés pequenos, mimosos, pueris.
Cabelos compridos requerem cuidados especiais, um demonstrativo de
ócio a ensejar penteados laboriosos, subseqüentemente, de horas vagas, para
não dizer: de longas, longuíssimas horas vagas. O cabelo, tanto na mulher como no
homem, referendava um privilégio somente digno das camadas aristocráticas.

178
Fátima Quintas

(...) A ostentação de cabeleira e de pé bem tratado e bem calçado foi, no Brasil


patriarcal, ostentação mais de raça branca ou de classe alta – ou pelo menos de
classe livre – do que de belo sexo. Mas não desprezemos o fato de que foi também
ostentação de sexo belo, ornamental, como que nascido principalmente para
agradar o outro: o forte. Física e economicamente forte (FREYRE, Gilberto.
Sobrados e mucambos, 1981, p. 100).

Exercera tamanha significação a arte do cabelo, dos pés tratados e de mãos


delicadas que suas exibições tornaram-se proibitivas à mulher negra, sempre de
cabelo curto ou pano na cabeça, pés e mãos desgastados pelo eito ou pela lide da
casa. O cabelo, ao natural, guardava um toque de liberdade, uma variável
conotativa para a interpretação sociológica. O penteado teve uma representa-
ção hierárquica tão forte que seus estilos extravagantes atingiram o esquisito.
Formas elaboradíssimas, alfaiadas com pentes, coques volumosos, grandes tran-
ças. Facho diferenciador, a beirar o caricatural. Os próprios nomes indicavam o
viés pejorativo: tapa-missa, trepa-muleque... A cabeça sinalizou um ponto de
distinção. Cobri-la traduzia-se em perda de autonomia: um manto humilhante
com estereótipos de inferioridade e posições excludentes. Assim, mãos delga-
das, pele fina, compleição suave, estilo de cabelo denunciavam o repouso, a
desídia, a folga, só permitidos à senhora de engenho.
A moda ajudava a exaltar conceitos impregnados no imaginário coletivo.
O homem de barba, o homem sem barba, a mulher de cabelo comprido, a de
cabelo curto arrematavam os ideais do grupo dominante. A barba tanto signifi-
cou na pirâmide patriarcal, que um galã de teatro – já no final do Segundo
Reinado – foi estrondosamente vaiado quando apareceu no palco sem barba
nem bigode. A força de quem determina os padrões normativos infere
conceptualizações de gênero e de classe, definidas em polimentos selecionados
como referenciais de legitimidade. O indivíduo, homem ou mulher, precisa
chancelar a sua identidade e a sua cidadania para enaltecê-las segundo a lógica
da sociedade na qual se insere.
A mulher portuguesa obedeceu a caprichos que provieram não somente
do gosto masculino como do concerto patriarcal, um e outro a destilarem for-
mas de indumentária. Vestir adequadamente, para diferenciar status e aumen-
tar as distâncias sociais. No fim do século XIX, o francês Max Leclerc, em suas
Lettres du Brésil (1890) registrava a pouca presença das senhoras nas ruas, isto já
durante a República brasileira. Mulheres em casa, a serviço de seus maridos.
A aparência fortalece as desigualdades e robustece o fosso entre ricos e
pobres. Seguindo os princípios da ostentação, a mulher branca fazia uso de
recursos estéticos com o objetivo de dividir classes e reforçar a sanfona da
hegemonia. Sentia-se gratificada sob a capa do desejo dos que a olhavam.
Porventura seus maridos?

179
A Moda como Representação Social

A indumentária acompanhou a escala social. Muitas jóias, muitos enfei-


tes, muita arrogância. A figuração agigantou o poder da cana. E não houve
poder mais histriônico que o do massapê. Com roupas extravagantes, adornos
não menos extravagantes, cabelos compridos, penteados exagerados –
burlescos, grotescos, até ridículos –, mãos bem tratadas, pés recolhidos em
formatos civilizatórias, a portuguesa credenciou-se, à base de pura superfici-
alidade, em senhora faustosamente paramentada.

MODA DE MULHER NEGRA

Os idos patriarcais editaram figurinos ao compasso dos padrões de conduta de


classe. Há uma sinergia entre a vida e o poder, a orquestrar as partituras em
realce. A beleza da indumentária da mulher esteve circunscrita à casa-grande,
com diferenciações nítidas de direitos e deveres para cada “fratria” – os princí-
pios da arte a serviço da elite. A normatização do social privilegiou uma minoria
que se animou sob a égide das excelsas referências. Os insulados, na base da
pirâmide, que tratassem de respeitá-las porque sociologicamente inferiores.
O açúcar deu forma à casa-grande ou a casa-grande prescreveu as
regras do torneio doméstico? Um confronto que nem sempre interagiu so-
bre pressupostos lógicos e subseqüentes. Inclino-me a acreditar que o açúcar
tiranizou a casa-grande, levando a reboque o escravismo que se fecundou
em terras submersas na cana e exploradas pela ascendência que qualquer
monopólio impinge. O social possui os seus cosméticos; esses são inevitáveis
na fixação de pólos que se atraem e se repelem ao mesmo tempo. Existem o
pólo ditador e o pólo receptor. Ambos se laçam com vistas a recrudescer as
diferenças. No patriarcalismo, essas diferenças foram berrantes e espelharam
funções opositivas. Se houve classes sociais, houve necessariamente pólos
eqüidistantes. Ratificá-los e endurecê-los fazia parte da política discriminatória.
Nada melhor que o vestuário para oferecer visibilidade aos contrários e para
exacerbar o que deve ser acentuado: as aparências. E o que mais se desejava
senão o fortalecimento das elites e o enfraquecimento dos segmentos subordi-
nados? A moda serviu, e muito, para mover os tombadilhos do poder.
O vestir marca a posição social de cada um – pode sinalizar um ato de
despojamento ou um ato de grave ostentação. Indica, sem eufemismo, uma
pirâmide em cascata. Com diáfana clareza. Veste-se aquilo que agrada os olhos,
com apoio, evidentemente, no aceite dos outros, e respeita-se uma expectativa
da qual não se deve fugir. O trajo tem uma força significativa incomum. Até
mesmo as cores determinam os estamentos sociais. Cores neutras, pouco defini-
das não agradam às mulheres de baixa-renda. Entre as destituídas de mais-valia
econômica, observa-se um privilegiar das tonalidades firmes e exuberantes, de
modo a consensualizar, um gosto marcado, avesso a estranhas especulações intelec-

180
Fátima Quintas

tuais. Vale sugerir um aprofundamento nessa análise, apoiada na simbologia das


cores e na sua adequação à pedagogia do oprimido. Merece um estudo à parte.
No período dos bangüês, as diferenças agudizaram-se e marcaram, com manifestas
exibições, classe e etnia. Ainda hoje apontam modelos sociológicos bem delineados,
mas sem a rigidez de outrora; ao contrário: com consistentes entrosamentos. No passado,
o fosso existiu e deu-se com claríssimas atitudes hierárquicas. Sob o prisma da fidalguia,
imperou a influência das modas francesa e inglesa, que desfilavam largamente na Europa.
Absorveu a portuguesa os estilos importados que a honravam no “último grito” da
elegância. Os insumos exteriores da beleza arquearam o referencial da civilização vitoriosa.

Em O Carapuceiro (Recife, 1843), dizia o Padre Lopes Gama que (...) “As
nossas sinhasinhas e yayás já não querem ser tratadas senão por demoiselles,
mademoiselles e madames. Nos trajes, nos usos, nas modas, nas manei-
ras, só se approva o que é francez; de sorte que não temos uma usança, uma
prática, uma coisa por onde se possa dizer: isto é próprio do Brasil” (FREYRE,
Gilberto. Sobrados e mucambos, 1981, p. 102).

Apesar da observação do padre Lopes Gama, válida para o século XIX,


com as devidas ressalvas, como ele próprio as expressou, a portuguesa exa-
gerou na aparência – séculos XVI, XVII, XVIII, XIX e começo de XX, quando
as viagens à Europa eram pouco freqüentes ou quase impossíveis –, enfei-
tando-se demais, como já se aludiu no capítulo anterior. E na ânsia de pro-
duzir adornos para se distinguir aristocraticamente, quase sem perceber os
limites do ridículo, provocou o desenvolvimento da arte da renda e do bico,
objetivando valorizar a exuberância dos vestidos. Ainda: da arte da pluma
para encantar os chapéus, o que veio a originar o aparecimento das unida-
des produtivas domésticas do país. Por conseguinte, tal arte se processou,
até o século XIX, dentro de casa, e teve grande repercussão na linguagem
estética da moda em virtude da sua delicadeza de detalhes.
O fato é que a compulsividade da lusitana em fazer-se bela contribuiu
para a fabricação das mimosas rendas nordestinas, plenamente cobiçadas
pelos estrangeiros, que se alumbravam com o feitiço e a artesanalidade do
produto. Tanto assim que, em tempos atuais, com o avanço da industrializa-
ção e o acesso a tecnologias de ponta, tais trabalhos equivalem a excêntricos
preciosismos, conseqüência da disponibilidade de uma mão-de-obra barata,
hereditariamente especializada. Com paciência evangélica, a execução de
peças delicadíssimas chama a atenção pela sua natureza exclusivista. A arte
da renda e do bico é artesanal, escapando aos chamamentos da maquinaria
avançada de produção em série. Impossível fabricar os desenhos de uma
dúctil renascença sem o apuro de mãos francamente esmeradas.

181
A Moda como Representação Social

A mulher patriarcal no Brasil – principalmente a do sobrado –, embora andasse


dentro de casa de cabeção e chinelo sem meia, esmerava-se nos vestidos de apa-
recer aos homens na igreja e nas festas, destacando-se então, tanto do outro sexo
como das mulheres de outra classe e de outra raça, pelo excesso ou exagero de
enfeite, de ornamentação, de babado, de renda, de pluma, de fita, de ouro fino, de
jóias, de anel nos dedos, de bichas nas orelhas (FREYRE, Gilberto. Sobrados e
mucambos, 1981, p. 98-99).

Sem os requintes de paramentos da portuguesa – bicos, rendas, penas,


plumas –, as escravas vestiam-se de acordo com sua posição social. Como se não
bastassem as etiquetas de um jugo arbitrário, sucediam-lhes outras, essas de
origem estilística. À parte, visualizadas em estéticas distintas, aceitavam o impé-
rio absoluto das arianas e cobriam-se com panos, quase sempre estampados ao
gosto africano, ou seja, alheios às normas da beleza ocidental. A competição
entre portuguesas e negras deveria ser evitada a qualquer custo. Na qualidade
de subalternas, o ostracismo impunha-se-lhes como uma luva, um imperativo
exterior que gotejava do regime escravista. Não foi à-toa a discriminação. A rou-
pa sempre serviu de instrumento de validade de poder e de estigma de exclu-
são. Plugadas pelos lustros da ordem vigente, as mulheres lusitanas respalda-
vam-se mais uma vez em critérios distintivos.
Sob o crivo da escravidão, a negra não escapou das modulações
inferiorizantes do trajar. Paramentava-se com roupas “desdenhosas”, isto é, com
roupas indicadoras da situação de subalternidade. Usava turbantes ou lenços
na cabeça, porque tais adereços referendavam estereótipos estigmatizantes.
Cobrindo a cabeça, ela cobria a liberdade e respondia à expectativa social: a de
enquadrá-la na real postura de sujeição. Ao menor lampejo de desobediência, a
norma editada falava mais alto. O ocultar a cabeça tinha um significado impor-
tante, por predispor o rótulo representativo de pessoas sem prestígio. Cabelos
compridos e bem hidratados para as portuguesas. Reservavam-se o direito, como
senhoras de patriarca, de alardear belos penteados, contanto que prevalecesse o
destaque da fidalguia – os cabelos eram repuxados para trás em exagerados
coques e conferiam ao rosto uma moldura nem sempre embelezadora, mas su-
postamente requintada. Todos os esforços valiam a pena na tentativa de fortale-
cer o culto à estereotipia feminina e à divisão de classes sociais.
Um preceito a mais sobrelevava a liturgia da submissão africana: escon-
der os cabelos debaixo de lenços ou turbantes... Requisito que acusava o status
inferior de cada uma. As mulatas, na saudável ambição de ascenderem e de se
confundirem com os figurinos da branca, reagiram a este sinal de expurgo soci-
al. E já se sentiam libertas, quando se independentizavam da cabeça coberta:
uma mancha agregadora de sintomas de humilhação. Ainda hoje, do cobrir a
cabeça latejam interpretações do passado. Na zona rural do Nordeste brasileiro,

182
Fátima Quintas

é muito comum o hábito de usar lenços nos cabelos, a evocar chapéus proteto-
res, expressão de pudor e de recato, principalmente entre camponesas que se
retraem à medíocre situação de marginalidade. Ademais, há o estereótipo nega-
tivo do chamado cabelo ruim, que agregou durante muito tempo um enxame de
preconceitos. O pixaim não se enquadrava na escala do belo e deveria ser escon-
dido ou alisado para alçar os parâmetros estéticos perseguidos pela sociedade
aristocrática ou burguesa. Quem tivesse o seu cabelo “brigado com Deus” –
expressão típica de desdém –, que tratasse de reabilitá-lo; do contrário, estaria
expondo-se ao ridículo ou, pelo menos, infringindo os moldes já legitimados.
Hodiernamente, os conceitos foram-se modificando com a explosão da
ideologia negra. As nominações pejorativas persistem, ainda que mitigadas pe-
las correntes defensoras do naturalismo e da beleza espontânea. Registra-se na
cultura brasileira um enaltecimento dos valores africanos, etnicamente negróides.
Parece que no cabelo ou, pelo menos, na cabeça, leia-se no alto, sedimenta-
se a graduação do poder. Basta recordar as Monarquias com os seus símbolos
bem patentes: coroa, cetro, bastão. Mas coroa em primeiro lugar. Os toques
elitizantes começam pela cabeça, como prêmio ou galardão de recompensa. Gló-
ria, honra, distinção; cimo, cume, topo. A exuberância de uma bela cabeleira, ou
o excesso de demonstração de vestuário indicava categorias nítidas de classe.
Exibicionismo ou retraimento.
A própria Igreja Católica recomendou, durante muito tempo, o uso do
véu para expressar humildade no louvor a Deus. De cabeça coberta, as fiéis
solidarizavam-se numa atitude de respeito ao divino. Um sinal de pudor, como
se a cabeça coberta explicitasse o reconhecimento público da reverência. O véu
teve até pouco tempo sua representatividade, e ninguém entrava na igreja de
cabeça descoberta. Ninguém, não; diga-se, mulheres; porque dos homens não
se lhes exigia tal costume. Antes, retiravam o chapéu e ainda o retiram ao pene-
trarem em recintos fechados e, sobretudo, sagrados.
Note-se que as freiras escondem o cabelo com mantos exageradamente
largos, padrão opressor, objetivando a ocultação de madeixas porventura pre-
sunçosas e mundanas. Os padres não carecem de tal privação. Tudo leva a crer
que a condição de gênero masculina acarreta, na religião católica, algumas rega-
lias. Estão, todavia, a ocorrer reformulações nos fundamentos da Igreja, miran-
do torná-los mais equânimes. Pela sua natureza humanitária, a religião tende a
destruir preconceitos, o que implica no anulamento dos bolsões discriminatórios
de gênero. Na acepção moderna, o véu caiu de uso e a própria comunhão é
ofertada pela mulher, embora a consagração da hóstia ainda lhe seja vetada.
Resistem algumas prerrogativas hierárquicas que beneficiam o homem, como a
celebração da missa e outras cerimônias análogas. À mulher, falta-lhe ocupar
espaços mais destacados na liturgia da religião cristã. Conquistas aconteceram e
merecem registro no contexto histórico, porém a paridade ainda não se efetivou.

183
A Moda como Representação Social

A exibição das “madeixas” particularizava modelos estéticos metaforizados


em púlpitos de exaltação. Revelavam características superlativas que não se des-
locavam para as negras, escravizadas e sujeitas a uma mobilidade social bastante
precária. O poder entroniza concepções refinadas, arroga-se per se de categorias
de beleza, logo, enaltecê-lo, ratifica juízos pré-concebidos. No momento em que
a sociedade reconhece e acumplicia a formação de castas institucionalizadas,
tudo que vier a fortalecer os lastros de autoridade será aceito com regozijo. E os
rótulos se firmavam: à mulher branca, cabelos compridos e escovados; à mulher
negra, cabelos curtos, estigmatizados e encobertos.
Havia exceções. Algumas negras conseguiam vestir-se no mais puro
requinte do trajo africano, à custa, todavia, dos amantes que lhes pagavam as
despesas do luxo. Representavam uma pequena minoria que tirava proveito
de uma situação especial, na qual sabiam barganhar o preço da clandestini-
dade. Em todo caso, valiam-se de um instrumento de inferioridade – a pecha
de concubinas – para converter os vezos discriminatórios em lucros que
explicitassem os matizes estéticos. Usavam o escudo da ilegitimidade como
uma fração, embora diminuta, de vantagem pessoal. Malgrado a postura
desconfortável, usufruíram de alguns ganhos que, no frigir dos ovos, apenas
arrematavam a empáfia do senhor patriarca. O importante é que não aderiram
à moda européia. Arrancavam de dentro do peito os atavismos sufocados e
transmitiam os enlevos da terra dos seus ascendentes – a arte africana. Este
aspecto traduz a força da cultura de origem.

(...) Amantes de ricos negociantes portugueses e por eles vestidas de seda e


cetim. Cobertas de quimbembeques. De jóias e cordões de ouro. Figas da Guiné
contra o mau-olhado. Objetos de culto fálico. Fieiras de miçangas. Colares de
búzio. Argolões de ouro atravessados nas orelhas (FREYRE, Gilberto. Casa-
grande & senzala, 1966, p. 337-338).

Essas negras-rainhas souberam desfilar garbosamente o ar de fidalguia


que apregoavam. O requinte no trajar chamava a atenção e apontava para o
grau de versatilidade de que tanto se muniram. Distinguiram-se pela liberdade
conquistada – a preços altos, naturalmente. A graça do talhe e o ritmo do andar
compendiavam a elegância de quem não perde o porte de majestade.
Mãos e pés, cuidadosamente tratados, insinuavam inatividade: recusa a
trabalhos manuais pesados, negação de esforços físicos, demonstração de nada
fazer e de nada produzir – pré-requisitos de segmentos privilegiados. Por fim,
revelação de superioridade de classe. Quem mais poderia cultivar o repouso
senão a mulher branca e o patriarca? Para esses, o tempo resumia-se em mais
um instrumento de brincadeira. Foram exímios na arte de driblá-lo, sobretudo o
homem que se dava ao luxo de dormitar em imensas horas de “folga”.

184
Fátima Quintas

Impossível para as negras ou para as mucamas e, menos ainda, para as


trabalhadoras agrícolas, conservarem a higiene perfeita dos pés e das mãos, elas
que eram verdadeiras burras-de-carga, quer na casa-grande, a cuidar dos afaze-
res domésticos, quer no eito, a lavrar, a plantar, a extrair a colheita... Pés e mãos
contabilizavam as mais valiosas ferramentas de trabalho. Como tal, não lhes
restavam sobras de tempo para dedicação a esses cuidados. Pele grossa, calos
nas mãos, pés mal tratados calcinavam a labuta diária, labuta que sequer possi-
bilitava momentos de asseio pessoal.
Assim, a negra não pôde cultuar o corpo: não fez uso de cosméticos repa-
radores, tampouco acudiu às “cicatrizes” temporais. Espelhou-se diafanamente,
em estado puro, longe da sofisticada pintura dos reparadores estéticos. Sem
consagrar-se aos princípios da “encenação pessoal”, envelheceu a céu aberto,
desconhecendo os retoques de beleza, tão aplaudidos e tão generosamente en-
ganadores. Há de se admitir que os recursos da estética agem com uma eficácia
indiscutível. Cabelos em mise-en-plis, vestidos de bom corte, mãos e pés tratados
dão à aparência lances mágicos, quase de ilusionismo. Hoje em dia, costuma-se
dizer que não há mulheres feias; há, sim, mulheres mal produzidas. Um postu-
lado que não induz a contestações.
Do espartilho aos estranhos penteados, a artificialidade da aparência se
fez tônica de representação de elite. Os adereços denunciaram claros separatis-
mos. O costume de roupas inadequadas – à maneira européia – determinou
mais uma distorção do ethos patriarcal. E o que se referiu à moda de cabelo
seguiu parâmetros semelhantes.
As negras e os negros forros fizeram uso de belas cabeleiras, talvez para
desafiar o preconceito de cabeças cobertas em africanas submetidas ao regime
da escravidão. O esmero nos penteados revela a altivez de uma liberdade que
não se queria contestada. E os sinais exteriores começavam pela cabeça; todo o
esforço de exibi-la ao ar da faceirice seria pouco na neutralização de rejeitáveis
estrabismos.

Quanto aos cabelos, repita-se que os negros forros, os caboclos e os mulatos


livres se esmeravam quase tanto quanto os brancos em trazê-los bem penteados
e luzindo de óleo de coco, os homens caprichando quase tanto no penteado quan-
to as mulheres (FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos, 1981, p. 101).

Negros de brilhantina, com cabelos assentados à semelhança do senhor


de engenho; importando o jeito empertigado de fazer jus à sua alforria. Adota-
ram posturas de reis. E foram reis, com certeza, nas suas Nações africanas.
As criadas de dentro da casa-grande recebiam um trato particularizado,
quer pela questão do asseio pessoal – afinal iam cuidar dos meninos e meninas
portuguesas –, quer pela natureza da família patriarcal sociologicamente exten-

185
A Moda como Representação Social

sa, orgulhosa de seus agregados, não obstante ocuparem posições de parentes


pobres, tal qual as mirradas ramificações de uma árvore crescida em tronco
sólido e germinador. Uma ressalva: as amas-de-leite, como a famosa Mônica,
retratada duas vezes em épocas diferentes, indicam as “sinuosidades” da condi-
ção de escrava. No seu desconfortável vestido de tafetá não esconde a timidez
do olhar, tampouco a tensão das mãos nas duas fotografias. A primeira, ainda
jovem, com uma criança a derrear a cabeça sobre o seu ombro em uma atitu-
de de afeto bastante tangível; a segunda, com uma adolescente em igual ati-
tude de carinho, uma Mônica envelhecida, cabelos brancos, corpo decaído,
magra, a acusar o declínio físico. As duas fotografias, comparadas, denotam
a posição social por ela ocupada – o mesmo vestido de tafetá em datas dife-
rentes e distanciadas cronologicamente, com o acréscimo apenas de um xale,
possivelmente para aquecer seu corpo já debilitado. Essas negras, amas-de-
leite, representadas por Mônica, parecem ter possuído a sua roupa de gala,
única por toda a vida: para os dias de festa e para a pose da fotografia. O retrato
da velha ama-de-leite constitui uma peça histórica da máxima valia, porque a
imagem pode camuflar uma mirada desprevenida, jamais um olhar atento,
perscrutador. A lupa não engana.
Às negras proibia-se também o uso de jóias e de tetéias com finalidades
análogas, de marcarem distâncias sociais. Mais uma fronteira a assinalar afasta-
mentos e exclusões. Enquanto as brancas se atopetavam de ouros e finas bijute-
rias, a ponto de sugerirem apelidos pejorativos de macacas – tal a injunção de
braceletes, cordões, fitas, pratas –, às negras lhes eram interditados aparatos que
porventura pudessem ferir a faísca da sua oponente. À beleza associavam-se o
poder e o mando, devendo-se evitar possíveis manifestações de equanimidade.
De modo geral, obedecendo ao rigor das angulações de classe, a moda da
mulher negra era simples, porém colorida e alegre, a refletir o temperamento
extrovertido da raça. Normalmente, usava “Panos da Costa” com listras verme-
lhas, vestidos de matames, babados brancos e lenço na cabeça. Quantas vezes
ela teve que despir as vestes de malês para enfrentar a europeização da
indumentária! Uma desafricanização que não conseguiu anular a sua
performance. Conservaram-se muitos dos seus traços: a abundância de baba-
dos, a riqueza coreográfica, a escala cromática, o jogo de tons, alguns berrantes,
as estampas florais, a cenografia lúdica das saias.
A moda narra a sociedade no espaço e no tempo. Um potente instrumen-
to de análise socioantropológica. Os daguerreótipos e retratos do passado expla-
nam as oscilações no paramentar-se mediante minúcias enriquecedoras do cai-
xilho temporal: tetéias, xales, diademas, sapatos, chapéus, babados, rendas, ves-
tidos longos, turbantes, babados, saias coloridas... Pela roupa identifica-se o ho-
mem no seu traçado sociológico. Um e outro estão relacionados com o mito da
beleza introjetado na vida ocidental.

186
Fátima Quintas

Na moldura da bagaceira, a mulher simbolizou o objeto de procriação,


bibelô de carne, ser abafado pelo “totem” do macho. Mas se queria uma mulher
no rigor da moda. Sinhazinha pálida, lhana, com o heroísmo das santas e a
fragilidade de corpos infantis. Perfeitas, virtuosas. A aguardar pela saga de um
futuro previsto – esposa e mãe, que Deus a livrasse de ficar solteirona. Sinhá-
dona barroca, plena de curvas, seios volumosos, um conjunto de ostentações
que propugnavam paramentos de beleza. O objeto desejado deveria atender às
solicitações de quem o deseja. Se não atendesse satisfatoriamente, merecia ser
escanteado e trocado por outro em melhores condições. Quantas e quantas ve-
zes a mulher branca foi relegada diante do fascínio da negra? A escolha partia
sempre do homem, que a ambas manipulava com o peito inflado de gozo.
A roupa, o jeito de trajar, o porte, uma época. Estilos de cabelo, penteados,
cortes, vestidos bem talhados ou não, roupas desleixadas ou elegantes, saias
rodadas, cores berrantes ou neutras somam-se ao clipe instantâneo da fotogra-
fia. E revelam a síntese do modo de estar de uma gente. Modos e modas, de
homens e de mulheres. No caso, de mulheres negras. Moda ou antimoda?
A proibição de jóias, a cabeça coberta, as mãos e os pés mal tratados, s
vestidos descuidados resumiam o tom da submissão da indumentária feminina
negra. A roupa externou os labirintos de uma sociedade acimentada em tirâni-
cas “castas”. Para a africana patenteou um estigma a mais na escala da dominação.

A MODA NO BRASIL
Os ciclos de vida da moda brasileira têm acompanhado as variações dos centros
internacionais, com bastante veemência no eixo francês, como aludido nos itens
precedentes. O Brasil recebeu influência direta francesa por adotar uma filoso-
fia pedagógica europeizante, voltada com vigor para os valores intelectuais fran-
ceses. E na moda não foi diferente. Se Paris representava o cânone da elegância
da mulher ocidental, não é de admirar o culto às suas Casas de Alta-Costura. O
contrário é que seria de estranhar. Durante os séculos XIX e meados do XX as
repercussões da moda francesa são insofismáveis.
Apesar do clima tropical, as temperaturas quentes não foram suficientes,
nos “mastros” colonial, imperial e republicano – pelo menos até 1960 –, para
gerar um tipo endógeno de vestuário. A abertura dos portos às Nações européi-
as, em 1808, quando da chegada de D. João VI à Terra do pau-brasil, vem forta-
lecer ligações européias, antes menos impregnantes em razão dos ecos mais
direcionados à tradição portuguesa, ou melhor, à Península Ibérica. Assim, o
período colonial se ateve aos modelos lusitanos que não deixavam de ser igual-
mente europeus, porém primordialmente ibéricos. Com o Império, as ingerên-
cias se ampliaram e, no caso da moda, adquiriram a verve parisiense. Ademais,

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A Moda como Representação Social

o Brasil aderiu à doutrina comtista – Augusto Comte (1798–1857), pensador fran-


cês e sistematizador do positivismo –, a ponto de formular uma República em
figurinos positivistas, bem endossados pela legenda da bandeira nacional: Or-
dem e Progresso.
A mulher seguiu à risca o que a França a orientou no tocante à moda. O
homem pautou a sua indumentária sob o signo da Inglaterra, capital do refina-
mento masculino. Perfumes, cosméticos, penteados, adereços tiveram o lacre
de Paris ou Londres e também da Itália em tempos mais recentes. Anúncios de
jornais transcritos por Gilberto Freyre revelam o afrancesamento e o anglicismo
na moda dos brasileiros:

13 de abril de 1861: “enfeites de cabeça para senhoras de bom gosto”, tanto pretos
como de lindas cores. Eram última moda de Paris. Haviam chegado por vapor
francês. A 25 do mesmo abril, a loja recifense de Burle Júnior anunciava ter
recebido pelo “último vapor de Havre... borzeguins de Meliés todos de bezer-
ro e de cordovão”. Novidade francesa. [...] O escuro em paletós e casacas
para homens caracterizaria também casimiras inglesas, admitindo-se, po-
rém, calças de cores, sem que se voltasse, neste particular, a casacas de cores
dos dias coloniais (FREYRE, Gilberto. Modos de homem & modas de mulher,
2002, p. 121-122).

O século XX, o século das mudanças no vestuário, a começar pela libertação


dos espartilhos, das anquinhas e de outras medidas similares, ainda permite florescer,
e muito, a moda europeizante. Nas suas últimas quatro décadas, contudo, detecta-se
uma forte mutação nas tendências brasileiras, ao se adicionar elementos ecológi-
cos de grande sustentação na indumentária feminina e masculina. Os trópicos se
impõem, o clima quente reivindica uma roupa apropriada, mulheres e homens
são afetados diretamente pela ambiência de um espaço abaixo da linha do Equa-
dor. Bom frisar que tais transformações germinaram em momentos paralelos ao
movimento hippie, esse com o seu apelo à formação de uma ideologia de
contracultura. Tempos de contestação. Tempos de redefinições. Tempos de in-
subordinação. Respeito às minorias e abaixo os preconceitos. O filme Hair, de
1968, provocou ruídos relevantes, abalando estruturas consolidadas. Os reflexos che-
garam ao vestuário, que se modificou a bem de uma adequação lugar-clima.
Adstrito a uma submissão eurocêntrica, o Brasil ao final do século XX
superou o passado opressor para incorporar uma firme identidade, o que vem a
desconstruir os paradigmas emblemáticos até então cortejados. Com isso, as
nuances africanas se mostram em evidência, espargindo uma leitura afro-negra
bem acentuada. O conotativo da moda contemporânea brasileira advém de uma
mistura de culturas e de classes, com fronteiras tênues ou acentuadas. A africa-
na, ao longo do tempo – a história faz-se com tempo e muito tempo –, embora

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Fátima Quintas

subjugada às normas impostas, conseguiu estabelecer um fluxo e um refluxo de


cores e de estilos que vão desaguar no tipo brasileiríssimo de vestir. Atualmente,
ressalta-se a malha estética com “bilros” de africanidade, a ocupar espaço na
sociedade nacional. A moda em alta rendeu-se à complexidade das diferenças,
com ênfase nas etnias formadoras do ethos brasileiro.

O que hoje se apresenta como um tipo nacionalmente brasileiro de sociedade


e de cultura tanto resulta do que se pode considerar, nesse conjunto, sua
predominante feição civilizada avançada como sua sobrevivente primitividade:
um complexo sociocultural antropológico nada insignificante quando assim
misto. Para tal concorreu grandemente o afronegro (FREYRE, Gilberto.
Modos de homem & modas de mulher, 2002, p. 88).

A combinação de “civilidade” e “primitividade” embeleza a plástica da


aparência à luz de excelentes cintilações que cativam olhares internacionais.
A mescla ensejou invejáveis derivativos, enfatizando as particularidades de
um Brasil incorporado às origens. O primitivo induz ao simples e ao
despojamento; o civilizado invoca a fidalguia dos salões aristocráticos. De
um e de outro, depreende-se a composição esteticamente aplaudida pelos
mais aficionados figurinistas ocidentais.
Naturalmente, a síntese deu-se com o passar dos séculos, quando a
cultura africana se embrenhou na sociedade brasileira de maneira mais fir-
me. A revolução no vestuário se inicia com uma reelaboração de todo estru-
tural: explodem as cores vívidas, as estampas, os berloques em contas de
plantas e de frutos, extravagantes, ousados... enfim, a miscigenação cultural
se dá entre modos e modas de homens e mulheres. O trópico rebenta com a
força do sol e da luminosidade, o vestir ganha a prevalência das temperatu-
ras quentes, tecidos leves, finos, decotes exagerados, vestidos de alça, biquí-
nis do tipo fio dental... Os estilistas brasileiros alcançam as passarelas euro-
péias com autenticidade e orgulho, o grito de independência no trajo espouca
em realismo e em mistura étnica.
Ainda que o mundo globalizado repouse em uma ideologização com
nítida propensão a padrões massificadores, os traços culturais brasileiros
emergem com propósitos deliberados. E a moda aponta para uma das maio-
res mutações no campo da identidade nacional. Corajosa, intrépida, e por
que não dizer?, um tanto petulante por tardia na sua demonstração estética.
Não há como reverter um processo que se quer vitorioso em todos os senti-
dos. Os corpos biológicos se adaptam aos corpos sociais e culturais numa
simbiose alegórica e astuciosamente singular. O Brasil define a sua
indumentária em bases multirraciais, em estilos transnacionais e em mistu-
ras saudavelmente tropicais.

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