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O artigo discute a relação entre cidade e meio ambiente como questão pública, face à multipli-
cação das ocupações de áreas de preservação ambiental por moradias de baixa renda. Embora o
meio ambiente seja parte integrante, e não mero “cenário” da vida social, é recente o reconheci-
mento da dimensão ecológica da questão urbana. A discussão é feita à luz do caso de uma
favela de Fortaleza, localizada em área de preservação permanente. Um projeto da Prefeitura
para remover seus moradores para um conjunto nas proximidades atraiu novos ocupantes,
cuja retirada imediata da área foi exigida pelo Ministério Público. Face à insuficiência de recur-
sos para garantir habitação aos “invasores”, sua remoção engendrou um dilema ético e social,
contrapondo o direito à habitação ao direito ao meio ambiente saudável.
PALAVRAS-CHAVE: meio ambiente, habitação, questão social, favela.
Este artigo discute as consequências, em ter- A primeira parte do texto mostra como a
mos teóricos e empíricos, da maior visibilidade ad- gênese da questão habitacional nas grandes ci-
quirida pela relação entre cidade e meio ambiente, dades precedeu o reconhecimento do meio am-
face à crescente ocupação, para fins habitacionais, biente como objeto de políticas públicas. Isso só
de áreas de preservação ambiental. Tal questão tem viria a acontecer a partir da década de 1970, sem
suscitado conflitos entre os direitos à moradia e ao que a questão ambiental fosse articulada aos pro-
meio ambiente saudável, pelos quais se mobilizam blemas urbanos. O uso da propriedade imobili-
diferentes atores sociais: moradores de baixa renda, ária urbana em desacordo com sua função social
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MEIO AMBIENTE URBANO E QUESTÃO SOCIAL ...
como se expressa no conflito socioambiental que industrial (Monosowski, 1989). Entretanto, a ar-
envolveu o Poder Público e os moradores da fa- ticulação entre a problemática ambiental e a ques-
vela do Pau Fininho. tão urbana era tênue, expressando uma clivagem
epistemológica: a concepção do meio ambiente
como domínio da natureza e a de cidade como
CIDADE, HABITAÇÃO E MEIO AMBIENTE produto cultural, ou seja, fruto da ação humana.
A questão habitacional e a questão ecológica A relação entre natureza e sociedade,
muitas vezes subsumida no binômio campo e
Historicamente, a negação do direito à ha- cidade, permeia todo o pensamento ocidental
bitação foi a tônica da expansão das cidades bra- (Williams, 1990). No entanto, a ecologia huma-
sileiras, marcadas pela segregação social e espaci- na, como ramo da biologia, deu seus primeiros
al. A expressão mais notória desse processo tem passos no início do século XX. O próprio termo
sido o incremento da população residente em fa- ecologia3 é um neologismo criado em 1866, mais
velas, loteamentos irregulares e conjuntos
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habitacionais deteriorados, geralmente localizados A palavra ecologia, formada pelos vocábulos gregos oikos
e logo, significa “ciência do habitat” e foi criada por Ernst
na periferia urbana ou em áreas ambientalmente Haekel, discípulo de Darwin (Acot, 1990, p.27-28).
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de duas décadas após a publicação de A classe Assim, o meio ambiente se tornou praticamente
trabalhadora na Inglaterra, no qual Engels uma “unanimidade” (Randolph; Bessa, 1993,
([1845] 2008) descrevia as abjetas condições sa- p.73). Ressalte-se que tal unanimidade refere-se
nitárias das primeiras cidades industriais. O tra- apenas ao reconhecimento do tema como rele-
balho de Engels foi baseado em relatórios elabo- vante, uma vez que as opiniões sobre as causas,
rados por comissões integradas por reformadores soluções e mesmo sobre o grau de importância
sociais e médicos higienistas sobre as condições dos problemas ambientais continuam quase tão
de moradia da época e as patologias sociais que variadas quanto as espécies de seres vivos.
lhes eram associadas (epidemias, delinquência, A pluralidade de pontos de vista decorre
prostituição, alcoolismo etc.), cuja solução esta- tanto da complexidade do tema como da multi-
ria muito além do alcance de práticas filantrópi- plicação de fóruns em que é tratado: políticas
cas. Nascem daí o urbanismo e o planejamento públicas, atuação de órgãos governamentais e não
urbano modernos, como tentativas de solucio- governamentais, disputas políticas dentro do
nar tais problemas em termos “técnicos” governo (entre o Executivo e o Judiciário, e en-
(Topalov, 1996). tre agências ambientais e órgãos voltados para o
Por seu turno, a definição do meio ambi- desenvolvimento econômico), entre governos e
ente como questão pública, não restrita ao meio movimentos ecológicos, entre grupos sociais com
científico, teria de aguardar até a década de 1970 interesses diferenciados... Em todos esses fóruns,
– mais precisamente, até 1972, quando se reali- a mídia se faz presente como um dos mais im-
zou, em Estocolmo, a Primeira Conferência In- portantes articuladores de interesses.
ternacional sobre Meio Ambiente e Desenvolvi- Do ponto de vista jurídico, a legislação
mento. Esse evento tem sido apontado como ambiental brasileira, aprovada em 1981 e aper-
marco do reconhecimento, por órgãos interna- feiçoada pela Constituição de 1988, trouxe ino-
cionais, das consequências do crescimento eco- vações cruciais ao atribuir ao Ministério Público
nômico para o meio ambiente e a qualidade de a função de defensor dos direitos coletivos e
vida dos seres humanos (Randolph; Bessa, 1993).4 difusos. Após a aprovação do Estatuto das Cida-
Assim, enquanto os problemas urbanos deram des, em 2001, o MP passou a interferir com mais
origem a novos campos do saber (urbanismo, vigor, assumindo a iniciativa de promover ações
planejamento urbano, sociologia e geografia ur- para garantir tanto a proteção ao meio ambien-
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mo que elas estejam protegidas pela legislação Embora frequentemente [sic] mascarada por dis-
cussões aparentemente técnicas e legalistas acer-
ambiental e urbanística. ca do projeto de lei e da lei efetivamente aprova-
O processo de produção do espaço urbano da, o que sempre esteve em jogo durante o longo
processo de discussão sobre a nova lei – dentro
tem sido fortemente condicionado pelos interes-
e fora do Congresso Nacional – era, e ainda é, a
ses individualistas dos seus agentes mais podero- forte resistência dos grupos conservadores liga-
sos, entre os quais se destacam os empresários do dos ao setor imobiliário à nova concepção, pro-
posta pela Constituição Federal e consolidada
setor imobiliário. A atuação desses empresários, pelo Estatuto da Cidade, dada ao direito de pro-
muitas vezes predatória e especulativa, é favorecida priedade imobiliária urbana, qual seja, o princí-
pio constitucional da função social da proprie-
pela concepção privatista da propriedade fundiária,
dade urbana e da cidade.
que tem prevalecido no ordenamento jurídico bra-
sileiro e entre os operadores do direito. Ainda Mesmo depois da aprovação do Estatuto
que a função social da propriedade tenha sido da Cidade, a utilização dos instrumentos de con-
incluída já na Constituição Federal de 1934, seu trole da propriedade fundiária urbana permane-
conteúdo não se contrapunha à concepção indi- ceu limitada (Santos Jr; Montandon, 2011). Na
vidualista, pois apenas legitimava algumas inter- ausência de políticas públicas para tornar o uso
venções do Estado, tais como desapropriação e a ocupação do espaço urbano compatíveis com
(mediante prévio e justo pagamento em dinhei- a justiça social e os requisitos do meio ambiente
ro) e edição de normas para a construção e ocu- sustentável, a questão habitacional tem se reve-
pação de edificações, visando à salubridade e lado quase intratável. É verdade que, mesmo
segurança. Permanecia, assim, o princípio da antes da aprovação do Estatuto da Cidade, fo-
“inviolabilidade” da propriedade privada. So- ram implementadas múltiplas e diversificadas
mente a Constituição Federal de 1988 criou con- políticas habitacionais, incluindo a urbanização
dições para a efetivação da função social da pro- de favelas. Entretanto, tais políticas têm sido in-
priedade, ao relacioná-la com outros instrumen- capazes de deter o crescimento de assentamen-
tos de direito urbanístico: usucapião especial tos informais com precárias condições de
urbano (art.183), parcelamento e edificação com- habitabilidade:
pulsórios e desapropriação com pagamento em
títulos do Tesouro Nacional (art.182). A utiliza- Já é considerável a experiência brasileira de urba-
nização de assentamentos informais, produto de
ção desses instrumentos, porém, ficou condicio- uma profunda inflexão na política habitacional
CADERNO CRH, Salvador, v. 25, n. 64, p. 115-130, Jan./Abr. 2012
nada à edição de uma lei federal que estabelece- brasileira operada no início da década de 1980,
quando o Estado reconhece a favela como solução
ria as diretrizes gerais para a política de desen-
habitacional legítima ao alcance dos pobres. Pou-
volvimento urbano, a ser executada pelos Mu- cos avanços, no entanto, se têm registrado na luta
nicípios. A eles caberia estabelecer, por inter- contra a persistente reprodução da moradia pre-
cária e informal e contra o permanente aumento
médio do plano diretor (obrigatório para cida- de populações sem acesso à terra urbanizada, e as
des com mais de 20 mil habitantes), as “exigên- dificuldades são recorrentes nos programas de
titularidade e na questão da recuperação de cus-
cias fundamentais de ordenação da cidade” e,
tos (Furtado; Jorgensen, 2008, p.7).
consequentemente, as condições para que a pro-
priedade urbana cumprisse sua função social Na raiz desse insucesso estão não tanto os
(art. 182 da CF/1988). custos da construção de moradias, mas a ten-
Não é por acaso que o Legislativo demo- dência à valorização do solo, que se expressa no
rou mais de 12 anos para aprovar a lei prevista incremento dos preços dos imóveis em níveis
pela Constituição, que viria a se chamar Estatu- acima da inflação. Ainda que muitos bens de
to da Cidade (Lei n.º 10.257, de 10/07/2001). consumo industrializados tenham se tornado
Edésio Fernandes (2002, p.35) atribui essa de- acessíveis aos trabalhadores – como é o caso de
mora a interesses do setor imobiliário: celulares, eletrodomésticos e materiais de cons-
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lação municipal de uso e ocupação do solo, que tério das Cidades, realizado a partir de dados do
impõe restrições ao direito de construir (taxa de censo de 2000, existem, no Brasil, mais de 12
ocupação dos terrenos, afastamentos, tamanho milhões de famílias que residem em assentamen-
mínimo do lote etc.) e ao destino das edificações tos precários (Marques, 2007, p.314). Trata-se
(uso residencial, comercial, misto etc.) e a ex- de favelas, loteamentos irregulares ou clandesti-
pectativa dos proprietários quanto à valorização nos e conjuntos habitacionais deteriorados, ge-
dos seus terrenos, a qual pode levar à sua reten- ralmente situados em áreas pouco atrativas para
ção especulativa. Essa última, por sua vez, é asso- o mercado imobiliário formal, ou proibidas para
ciada a possibilidades de alterações na legislação a ocupação: periferias distantes, encostas de
urbanística, no sentido de permitir usos mais ren- morros ou dunas, margens de rios, lagoas ou re-
táveis (por exemplo, comércio em relação à habi- presas etc. São marcantes as deficiências nas con-
tação), ou parâmetros de ocupação mais permis- dições de habitabilidade desses assentamentos,
sivos, como, por exemplo, maior adensamento e incluindo serviços e equipamentos urbanos in-
gabarito mais alto dos edifícios. suficientes ou de má qualidade (em particular, o
A especulação imobiliária é associada tam- saneamento básico), construções em desacordo
bém à expectativa de valorização dos terrenos com normas de salubridade e segurança, por
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vezes feitas com materiais não permanentes, tos habitacionais, e as mudanças na cultura po-
arruamento e acessos irregulares, áreas públicas lítica decorrentes de pressões dos movimentos
sem demarcação ou inexistentes etc. Os mora- sociais. Entre esses fatores, destaca-se a ênfase
dores são de famílias com baixa renda e precária nos direitos de cidadania e na função social da
inserção no mercado de trabalho formal, muitos propriedade urbana, consagrados na Constitui-
deles desempregados. A relação predatória com ção Federal de 1988.
o meio ambiente agrava as condições de vida Após a aprovação do Estatuto da Cidade,
dessa população, que, em muitos casos, fica su- a regularização fundiária e urbanística dos as-
jeita a riscos de inundações, desabamentos, sentamentos informais tornou-se o paradigma
deslizamentos de encostas e outros. dominante nas políticas habitacionais, ainda que
Até os anos 1970, a temática ambiental a remoção de favelas não tenha sido descartada.
não se fazia presente no debate sobre a questão Vale salientar que essa mudança de paradigma
habitacional no Brasil, que era marcado pela encontra respaldo na atuação de instituições in-
dicotomia urbanização versus remoção de fave- ternacionais, como pode ser constatado na reco-
las. Essa última alternativa prevalecia na política mendação da UN-Habitat (2003, p.28), no senti-
habitacional implementada com recursos do Ban- do de que a urbanização de favelas (“in-situ slum
co Nacional de Habitação – BNH – fortemente upgrading”) seja a norma, e o reassentamento
criticada nos meios acadêmicos e profissionais de seus moradores só ocorra em casos excepcio-
por seu caráter autoritário e pela produção ou nais (situações de risco, por exemplo) e seja rea-
reforço de exclusões sociais e espaciais. Defen- lizado em área próxima.
dia-se, como solução mais adequada, a urbani- Se as formas de abordar a questão foram
zação de favelas, caracterizada por um conjunto alteradas, o mesmo não pode ser dito a respeito
de intervenções que aproveitassem, no todo ou dos fatores estruturais que condicionam a pro-
em parte, o traçado existente dos assentamentos dução da moradia de baixa renda. Mesmo com
precários, modificando-o apenas na medida em os avanços na concepção da propriedade privada
que fosse necessário para a abertura de acessos e advindos do efetivo reconhecimento de sua fun-
vias de circulação, provisão de espaços e equipa- ção social, são limitadas as possibilidades de cor-
mentos públicos (praças, escolas, postos de saú- reção das desigualdades espaciais resultantes da
de etc.) e instalação de infraestrutura e serviços concentração de serviços e equipamentos públi-
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ceram-se em algumas quadras das ruas Pereira mentos de lazer (quadra polivalente, parque infan-
de Miranda, Joaquim Lima e Desembargador til, praças, etc.), com a realização de melhorias em
Lauro Nogueira, que se conectam com outras 134 unidades mais afastadas da Lagoa, as quais
vias do bairro. Em 1998, o Governo do Estado, permaneceriam no local, e construção de conjun-
através da Secretaria de Infraestrutura do Cea- to habitacional destinado a 488 famílias a serem
rá, removeu 83 famílias para um conjunto reassentadas em terreno situado nas proximida-
habitacional situado num bairro próximo, a fim des, dotado de infraestrutura.
de possibilitar o prolongamento de duas ruas. Em fevereiro de 2007, a equipe técnica da
No mesmo ano, o governo estadual delimitou a Habitafor deu início à execução do projeto, rea-
APP da Lagoa do Papicu (Decreto n.º 25.276, de lizando o “trabalho social”, a começar pelo
30/11/1998), onde a legislação ambiental proíbe cadastramento das famílias residentes. A partir
qualquer tipo de edificação. Entretanto, perma- desse cadastramento, foi feito o “congelamento”
neceram no local os moradores não contempla- da área – procedimento que consiste em marcar
dos com novas habitações e várias famílias be- com um número todas as casas cujos ocupantes
neficiadas que venderam suas casas e retornaram serão incluídos no projeto, e fiscalizar periodi-
à favela.6 camente o local para impedir novas construções
Em 2002 – quatro anos depois da inter- ou a ampliação das existentes. Foram cadastra-
venção do governo estadual – moradores do bair- das 622 famílias, totalizando 1.861 pessoas, a
ro do Papicu denunciaram ao Ministério Públi- maioria subempregada ou desempregada, sobre-
co Estadual a deterioração das obras de urbani- vivendo com um salário mínimo ou menos. Cons-
zação realizadas, o aterramento e a construção tatou-se que a área de ocupação mais antiga, com
de casas nas margens da Lagoa e a consequente 95% das casas de alvenaria, apresentava melho-
degradação ambiental. Nessa ocasião, o MP li- res condições de habitabilidade do que as exis-
mitou-se a enviar comunicações aos órgãos esta- tentes nas margens da Lagoa e nas dunas do en-
duais e municipais envolvidos, o que não teve torno, cuja ocupação ocorreu principalmente no
efeitos práticos. Tanto que, em 2003, levanta- início do século XXI. Nessas áreas, somente 41%
mento realizado pela Defesa Civil do Estado en- das edificações eram de alvenaria; predominava
controu 73 famílias – número que rapidamente o uso de materiais precários como taipa, madei-
cresceu para 150 – assentadas na APP (Estado ra, papelão ou lona. Em decorrência da retirada
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cearense. Isso evidencia que o crescimento desse Leitor Roberto Lima, morador do bairro Dunas
(Zona Leste), reclama do aterramento da área em
assentamento não foi diretamente associado à mi- volta da lagoa do Papicu por pessoas que estão
gração campo – cidade. Diferentemente do que invadindo o local [e] construindo casebres. Se-
gundo ele, há cerca de três meses começou a ser
ocorreu em favelas mais antigas, a expansão do
acelerada a construção de barracos, o que está se
Pau Fininho decorreu de deslocamentos constituindo num crime ambiental, pois confor-
intraurbanos, expressando a dinâmica de uma me diz, carroceiros chegam com lixo e materiais
diversos aterrando a área e em pouco tempo cons-
espécie de “mercado imobiliário informal” troem uma nova moradia. [...] Lima afirma já ter
(Abramo, 2003). denunciado diversas vezes o problema à Prefei-
tura de Fortaleza, mas até agora nenhuma provi-
Os trabalhos da Habitafor prosseguiram
dência foi tomada. [...] Outra coisa grave, diz ele
com visitas ao assentamento para resolução de [o leitor Roberto Lima], é que praticamente to-
pendências no cadastro dos moradores (confir- dos os dias estão ocorrendo roubos e assaltos a
mão armada na região, depois da chegada dos
mação de casas desocupadas, obtenção de dados novos vizinhos. [...] (Sá, 2007, grifo meu).
junto a famílias que não estavam presentes du-
rante o primeiro levantamento etc.). No final do O crescimento da favela tomou propor-
ano, após licitação, foi contratada uma empresa ções incontroláveis após a confirmação dos re-
para executar as obras, que começariam em fe- cursos para o projeto habitacional, divulgada pela
vereiro de 2008, tendo prazo de 15 meses para Habitafor em julho de 2007. Em dezembro do
conclusão. Note-se que transcorreu um ano en- mesmo ano, o Ministério Público Estadual con-
tre o inicio do “trabalho social” e a realização vocou a Habitafor, a Secretaria Executiva Regio-
das primeiras obras físicas. Esse prolongado in- nal II e a Secretaria Municipal de Meio Ambien-
tervalo de tempo, aliado à omissão da Secretaria te para dar esclarecimentos quanto à ocupação
Regional II, órgão da PMF encarregado da fisca- da APP da Lagoa do Papicu. Considerando insu-
lização, foi um dos fatores que contribuiu para ficiente a prospectiva de execução do projeto
novas ocupações no local. Os novos ocupantes, habitacional e da urbanização da área, o MP in-
em grande parte, eram provenientes da favela terpôs ação civil pública com pedido de liminar,
Luxou, situada nas proximidades e não incluída a fim de obrigar o Município a promover a reti-
no programa habitacional da Prefeitura. Os “in- rada imediata das ocupações não cadastradas e –
vasores” do entorno da Lagoa do Papicu chega- caso a ação fosse julgada procedente – de todas
ram a procurar a Habitafor para reivindicar sua as edificações, cadastradas ou não, situadas na
CADERNO CRH, Salvador, v. 25, n. 64, p. 115-130, Jan./Abr. 2012
inclusão no cadastro, mas não foram atendidos APP (Estado do Ceará, 2007).
porque os recursos do Ministério das Cidades e da O Município, em sua resposta, argumen-
PMF alocados ao projeto seriam suficientes para tou que não fora omisso, pois já programara a
atender apenas às 612 famílias já cadastradas. retirada das famílias ocupantes e a urbanização
Ao mesmo tempo, pessoas de classe mé- da área. Pondera que o ente municipal:
dia e alta residentes na vizinhança não paravam
de pressionar diretamente a Habitafor e a Secre- ... não pode num condão de mágica passar um
trator nas barracas e desobstruir a área, quando
taria Executiva Regional II para a retirada dos
há violenta reação [dos ocupantes]. [...] há um
“invasores”, denunciando, na mídia, a degrada- problema social no presente caso, que o Municí-
ção ambiental e o crescimento da violência na pio está tentando equacionar da melhor maneira
possível e isso demanda um certo tempo moral
área. As denuncias revelavam a persistência do (Prefeitura Municipal de Fortaleza, 2008a, p.4).
estigma que associa a condição de favelado à de
delinquente, a exemplo do seguinte trecho de Acrescenta que a demora alegada pelo au-
uma coluna diária sobre bairros, publicada em tor da ACP decorria de exigências legais perti-
um dos principais jornais de Fortaleza: nentes à atuação de um ente público: “... em se
tratando de administração pública, nada é resol-
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Na verdade, a determinação da Secretaria de Justiça do As “indenizações” totalizaram aproximadamente 70 mil
Estado era de que a PM só interferisse quando fosse reais, quantia financiada pela construtora, a ser posterior-
expedida ordem judicial para a desocupação. mente reembolsada, mediante aditivo ao contrato.
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ambiente não se resume à escassez de recursos. Tra- mercado imobiliário formal parece ignorar e o
ta-se de questões estreitamente imbricadas, só po- Poder Público tem sido incapaz de atender.
dendo ser compreendidas quando se considera o O segundo aspecto indicativo da problemá-
processo de produção do espaço urbano numa pers- tica relação entre habitação, meio ambiente e ex-
pectiva social e política, e não meramente jurídica pansão urbana é a maior precariedade ambiental,
(formalista). Com efeito, a degradação ambiental é urbanística e habitacional da área de ocupação mais
tributária da insuficiente oferta de moradias popu- recente (início do século XXI) da favela do Pau
lares pelo mercado imobiliário formal, incluindo-se Fininho, situada, majoritariamente, na duna à mar-
aí tanto o Poder Público como a iniciativa privada. gem da Lagoa do Papicu, contrastando com aquela
Essa situação, de imediato, leva à ocupação de áre- onde se iniciou a favela (na década de 1980), situa-
as impróprias para fins residenciais, especialmente da em área plana. Isso indica que Fortaleza está a
as áreas de preservação ambiental. Ao invés de caminho de um esgotamento da “fronteira de ex-
culpabilizar a população de baixa renda, há de se pansão” das ocupações populares em áreas com
reconhecer o papel decisivo desempenhado pelos melhores condições de habitabilidade (Abramo,
agentes e instituições que controlam a terra urbana 2003).9 Consequentemente, a ocupação de áreas
e asseguram o seu uso para beneficiar apenas inte- impróprias para a habitação, inclusive aquelas
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consideradas de preservação ambiental, tenderá ... são valores e direitos sociais constitucionalmen-
te protegidos, tendo a mesma raiz conceitual, qual
a aumentar, caso não se adote uma política ca- seja, o princípio da função socioambiental da pro-
paz de alterar substancialmente o quadro da pro- priedade. O desafio, então, é compatibilizar esses
dois valores e direitos, o que somente pode ser
priedade fundiária em Fortaleza.
feito através da construção não de cenários ide-
A dinâmica das novas ocupações é bem ais, certamente não de cenários inadmissíveis, mas
ilustrada no caso analisado, em que 200 casas de cenários possíveis. (grifo meu)
foram erguidas sobre as dunas em um ano – mais
de 40% do total de moradias previsto no projeto Para a “construção de cenários possíveis”,
da Habitafor para urbanização da área. Em con- é preciso que os agentes que controlam o uso do
traste, nesse lapso de tempo, sequer foi iniciada espaço urbano – incluindo-se aí os operadores
a construção do conjunto habitacional, o que, do direito – atuem de modo a integrar as agen-
aliado a outros fatores, como a ineficiência da das “verde” e “marrom”, o que implica conceber
fiscalização, contribuiu para que a invasão fu- o meio ambiente como um “problema social”,
gisse ao controle da Habitafor. Tal descompasso estreitamente ligado à “questão da habitação”.
apenas em parte pode ser creditado às formali- Conforme Edesio Fernandes (2006, p.256), tra-
dades burocráticas e legais, como prazos e nor- ta-se de compreender devidamente o conceito
mas de licitação, às quais o Poder Público tem de meio ambiente apresentado na Constituição
de se sujeitar. Provavelmente, um fator mais re- Federal (art.225), o qual propõe
levante para explicar a lentidão dos trabalhos
... a visão holística e processual do meio ambi-
foi a opção por uma metodologia segmentada ente como padrão de interação entre elementos
para a execução do projeto, pela qual a Habitafor naturais, artificiais e culturais que permite o de-
senvolvimento equilibrado da vida humana. Esse
encarregou-se dos estudos preliminares e do ca-
equilíbrio não é absoluto, mas é política e histo-
dastro, cabendo à empresa vencedora da licita- ricamente determinado e tem de levar em conta
ção o projeto urbanístico e ambiental e as res- a questão crucial da moradia social.
pectivas obras.
De um modo geral, é problemática para a Desse modo, a percepção da dimensão
democracia a retirada de ocupantes de uma área ecológica do espaço urbano não pode estar au-
de preservação ambiental, sem que seja atendido, sente da política habitacional.
concretamente, o direito à habitação. No caso ana-
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na segunda metade do século XX o meio ambiente dos significou a negação do seu direito à mora-
viria a ser reconhecido como questão digna de aten- dia, remetido para o nebuloso futuro dos cadas-
ção do governo e do público leigo. tros da Habitafor.
Se, no caso da habitação, sempre foi claro Uma boa novidade da atuação do Poder
o viés de classe social, o meio ambiente foi apre- Público foi a retirada dos “invasores” mediante
sentado como uma questão de natureza negociação, evitando o uso da violência explíci-
universalista, pertinente ao interesse de sujeitos ta. Contudo, permaneceu a velha tendência de
indeterminados, como a humanidade, a socie- recorrer a paliativos como a “ajuda de custo” e o
dade como um todo, ou, ainda, o planeta terra cadastramento das famílias retiradas, ao invés
(Fuks, 2001). Apesar de a problemática ambiental de se buscar uma solução capaz de impedir a
ser oriunda das ciências naturais e inicialmente reprodução do problema. Nesse sentido, é preci-
restrita aos meios científico, técnico e governa- so ter em mente que nem mesmo a urbanização
mental, sua publicização foi acompanhada de de todas as favelas da cidade impediria essa re-
uma crescente politização. A recepção do meio produção, já que o déficit habitacional continua-
ambiente como objeto de estudo das ciências ria, alimentado pelo elevado contingente de famí-
sociais acompanhou o debate público sobre a lias com renda insuficiente para atendimento pelo
temática, capitaneado pelos movimentos sociais. mercado imobiliário formal. Dito de outra forma,
A questão ambiental tornou-se pervasiva, dei- garantir o direito à habitação significa propiciar a
xando o nicho de uma “natureza intocada” para todos o acesso à terra urbanizada, o que só será
emergir, de forma conspícua, em uma realidade possível mediante intervenções do Poder Público
representada como o seu outro: a cidade. Nela, capazes de alterar a valorização do solo urbano e,
o encontro da “agenda verde” com a “agenda consequentemente, as formas excludentes de fun-
marrom” deu-se de forma conflituosa, em dis- cionamento do mercado imobiliário. Medidas
putas sobre o uso e a ocupação do solo em áreas dessa ordem contribuiriam não só para garantir o
protegidas pela legislação ambiental, particular- direito à habitação digna, como para efetivar o
mente naquelas consideradas de risco. direito ao meio ambiente saudável.
No estudo de caso da Favela do Pau Fini-
nho, em Fortaleza, o Ministério Público Estadu-
al, atendendo a reivindicações de moradores de (Recebido para publicação em 04 de fevereiro de 2011)
(Aceito em 08 de junho de 2011)
CADERNO CRH, Salvador, v. 25, n. 64, p. 115-130, Jan./Abr. 2012
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PREFEITURA MUNICIPAL DE FORTALEZA. Diagnóstico
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MEIO AMBIENTE URBANO E QUESTÃO SOCIAL ...
The article discusses the relationship Dans cet article, on estime que la relation
between the city and the environment as a public entre la ville et l’environnement est une question
matter, given the proliferation of low-income d’intérêt public étant donné que l’occupation des
housing within environmental protection areas. aires de préservation environnementale par les
Although the environment is not just an habitations populaires s’est accrue. Bien que
“ornament”, but a vital part of social life, the l’environnement fasse partie intégrante de la vie
ecological dimension of urban settlements has only sociale et ne soit pas considéré comme une simple
recently been acknowledged. The current analysis “toile de fond”, reconnaître la dimension écologique
is based on the example of a slum in Fortaleza, dans la question urbaine n’est que chose récente. La
located in an area of permanent protection. A City discussion se fait à la lumière de l’étude de cas d’une
Hall project to remove the illegal residents to a favela de Fortaleza, située en pleine aire de
housing complex nearby ended up attracting new préservation permanente. Um projet municipal de
occupiers, whose eviction was immediately déplacement des habitants vers une zone résidentielle
determined by the Court of Justice. Due to a lack of proche a attiré de nouveaux habitants, mais leur retrait
funds to provide housing for the new “squatters”, a immédiatement été exigé par le Ministère Public.
their eviction turned into an ethical and social Vu l’insuffisance des ressources permettant de ga-
dilemma, by weighing the right to housing against rantir le logement des “envahisseurs”, leur évacuation
the right to a healthy environment. a suscité un dilemme éthique et social qui met en
opposition le droit au logement et le droit à un
environnement sain.
Linda Maria de Pontes Gondim – Doutora em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade de
Cornell. Professora da Universidade Federal do Ceará, vinculada ao Curso de Graduação em Ciências
Sociais e ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Coordena o Laboratório de Estudos da Cidade e
tem experiência nas áreas de Planejamento Urbano e Regional, Sociologia Urbana e Sociologia do Direito,
atuando principalmente nos seguintes temas: movimentos sociais urbanos, participação popular,
habitação e planos diretores. Outra área de seu interesse é metodologia de pesquisa. Suas principais
publicações são os livros O Dragão do Mar e a Fortaleza pós-moderna e Uma dama da Belle Époque de
Fortaleza. Publicações recentes: Espaço Público, requalificação urbana e consumo cultural: o Centro
Dragão do Mar de Arte e Cultura e seu entorno. O público e o privado (UECE), v. 17, p. 59-69, 2011;
Promessas e desafios do Estatuto da Cidade. Cadernos Inesp, v. 5, p. 09-29, 2011; O dragão e a cidade:
lendas do Ceará. Revista Museologia e Patrimônio, v. 2, p. 13-23, 2009.
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