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Linda Maria de Pontes Gondim

MEIO AMBIENTE URBANO E QUESTÃO SOCIAL: habitação


popular em áreas de preservação ambiental

Linda Maria de Pontes Gondim*

O artigo discute a relação entre cidade e meio ambiente como questão pública, face à multipli-
cação das ocupações de áreas de preservação ambiental por moradias de baixa renda. Embora o
meio ambiente seja parte integrante, e não mero “cenário” da vida social, é recente o reconheci-
mento da dimensão ecológica da questão urbana. A discussão é feita à luz do caso de uma
favela de Fortaleza, localizada em área de preservação permanente. Um projeto da Prefeitura
para remover seus moradores para um conjunto nas proximidades atraiu novos ocupantes,
cuja retirada imediata da área foi exigida pelo Ministério Público. Face à insuficiência de recur-
sos para garantir habitação aos “invasores”, sua remoção engendrou um dilema ético e social,
contrapondo o direito à habitação ao direito ao meio ambiente saudável.
PALAVRAS-CHAVE: meio ambiente, habitação, questão social, favela.

Este artigo discute as consequências, em ter- A primeira parte do texto mostra como a
mos teóricos e empíricos, da maior visibilidade ad- gênese da questão habitacional nas grandes ci-
quirida pela relação entre cidade e meio ambiente, dades precedeu o reconhecimento do meio am-
face à crescente ocupação, para fins habitacionais, biente como objeto de políticas públicas. Isso só
de áreas de preservação ambiental. Tal questão tem viria a acontecer a partir da década de 1970, sem
suscitado conflitos entre os direitos à moradia e ao que a questão ambiental fosse articulada aos pro-
meio ambiente saudável, pelos quais se mobilizam blemas urbanos. O uso da propriedade imobili-
diferentes atores sociais: moradores de baixa renda, ária urbana em desacordo com sua função social

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movimentos sociais, organizações não governamen- levou à escassez de terra urbanizada e à falta de
tais e agentes do Estado. Esses últimos exercem acesso dos pobres ao mercado imobiliário for-
múltiplos papéis, expressando o caráter complexo e mal. Em consequência, multiplicaram-se os as-
diferenciado da organização estatal em suas diver- sentamentos irregulares, particularmente em áre-
sas esferas de atuação (poderes executivo, legislativo as de preservação ambiental, o que contribuiu
e judiciário; níveis federal, estadual e municipal). para explicitar os vínculos entre o espaço urba-
Nesse âmbito, o Ministério Público tem sido um no e a questão do meio ambiente.
dos agentes de maior destaque, pois dispõe de auto- Essas questões são discutidas
nomia e recursos para atuar como defensor dos “di- empiricamente, na segunda parte do texto, me-
reitos coletivos” ou “difusos”.1 diante um estudo de caso relativo à favela do
*
Doutora em Planejamento Urbano e Regional. Professora Pau Fininho,2 situada em área de preservação
do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do teresses ou direitos coletivos são também transindividuais
Ceará. e indivisíveis, mas seus titulares são grupos, categorias
Av da Universidade, 2996 – 1º andar – Benfica. Cep: 60020- ou classes de pessoas “... ligadas entre si ou com a parte
181. Fortaleza – Ceará – Brasil. lindagondim@uol.com.br contrária por uma relação jurídica base.” (Lei n.° 8078, de
1
Interesses ou direitos difusos são os “... transindividuais, 11 de setembro de 1990 – Código de Defesa do Consumi-
de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas dor, art. 81, parágrafo único, incisos I e II).
2
indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”; in- O estudo de caso é parte de pesquisa apoiada pelo CNPq.

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permanente, às margens da lagoa do Papicu e vulneráveis. A questão da moradia nos grandes


nas dunas adjacentes, localizada em Fortaleza centros urbanos assumiu grande visibilidade a
(CE). Como será visto, um projeto de relocação partir das décadas de 1960 e 1970, quando a atu-
dos moradores da favela para um conjunto ação governamental, por meio do Banco Nacio-
habitacional, a ser construído nas proximidades nal da Habitação – BNH – contribuiu decisiva-
pela Prefeitura Municipal de Fortaleza – PMF –, mente para o modelo de urbanização segregadora.
motivou nova ocupação das dunas por cerca de A solução padronizada de financiar grandes con-
200 famílias, que reivindicavam inclusão no pro- juntos habitacionais em áreas distantes ou com
jeto. O Ministério Público Estadual iniciou uma pouca acessibilidade aos centros de emprego,
Ação Civil Pública – ACP – para que a Prefeitu- comércio e serviços não logrou assegurar aos
ra retirasse esses novos ocupantes da área, já que pobres o acesso à habitação digna. Assim, o pro-
não havia recursos suficientes para incluí-los blema e a crítica às suas supostas soluções atraí-
como beneficiários do projeto habitacional. A ram cada vez mais a atenção de estudiosos do
análise dos desdobramentos da ACP evidencia o urbano e de formuladores de políticas públicas,
conflito entre o direito à habitação e o direito ao constituindo o campo temático da habitação nas
meio ambiente saudável, cujo resultado foi a ciências sociais no Brasil (Valladares, 1983). A
prevalência desse último. garantia da posse da terra e a melhoria das con-
A pesquisa, realizada em 2007, utilizou dições habitacionais nas favelas e nos bairros
dados quantitativos sobre a ocupação, proveni- periféricos (acesso à água e ao saneamento, ser-
entes da Fundação para o Desenvolvimento viços e equipamentos públicos como creches,
Habitacional de Fortaleza – HABITAFOR–, e in- escolas, postos de saúde e outros) estavam na
formações obtidas em peças processuais e ou- pauta de reivindicações dos movimentos sociais
tros documentos, bem como em jornais locais. que adentraram a cena política na esteira do
Na análise dos dados, optou-se por uma incipiente processo de “abertura” do regime mi-
metodologia qualitativa, de modo a possibilitar litar, em fins da década de 1970.
a análise em profundidade de uma situação Paralelamente, outra questão passou a ocu-
microssociológica, situando-a em uma proble- par a agenda governamental e técnica do País: o
mática abordada no âmbito macrossociológico – meio ambiente, sobretudo no que diz respeito à
a relação entre meio ambiente e habitação, tal poluição do ar, da terra e das águas pela atividade
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como se expressa no conflito socioambiental que industrial (Monosowski, 1989). Entretanto, a ar-
envolveu o Poder Público e os moradores da fa- ticulação entre a problemática ambiental e a ques-
vela do Pau Fininho. tão urbana era tênue, expressando uma clivagem
epistemológica: a concepção do meio ambiente
como domínio da natureza e a de cidade como
CIDADE, HABITAÇÃO E MEIO AMBIENTE produto cultural, ou seja, fruto da ação humana.
A questão habitacional e a questão ecológica A relação entre natureza e sociedade,
muitas vezes subsumida no binômio campo e
Historicamente, a negação do direito à ha- cidade, permeia todo o pensamento ocidental
bitação foi a tônica da expansão das cidades bra- (Williams, 1990). No entanto, a ecologia huma-
sileiras, marcadas pela segregação social e espaci- na, como ramo da biologia, deu seus primeiros
al. A expressão mais notória desse processo tem passos no início do século XX. O próprio termo
sido o incremento da população residente em fa- ecologia3 é um neologismo criado em 1866, mais
velas, loteamentos irregulares e conjuntos
3
habitacionais deteriorados, geralmente localizados A palavra ecologia, formada pelos vocábulos gregos oikos
e logo, significa “ciência do habitat” e foi criada por Ernst
na periferia urbana ou em áreas ambientalmente Haekel, discípulo de Darwin (Acot, 1990, p.27-28).

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de duas décadas após a publicação de A classe Assim, o meio ambiente se tornou praticamente
trabalhadora na Inglaterra, no qual Engels uma “unanimidade” (Randolph; Bessa, 1993,
([1845] 2008) descrevia as abjetas condições sa- p.73). Ressalte-se que tal unanimidade refere-se
nitárias das primeiras cidades industriais. O tra- apenas ao reconhecimento do tema como rele-
balho de Engels foi baseado em relatórios elabo- vante, uma vez que as opiniões sobre as causas,
rados por comissões integradas por reformadores soluções e mesmo sobre o grau de importância
sociais e médicos higienistas sobre as condições dos problemas ambientais continuam quase tão
de moradia da época e as patologias sociais que variadas quanto as espécies de seres vivos.
lhes eram associadas (epidemias, delinquência, A pluralidade de pontos de vista decorre
prostituição, alcoolismo etc.), cuja solução esta- tanto da complexidade do tema como da multi-
ria muito além do alcance de práticas filantrópi- plicação de fóruns em que é tratado: políticas
cas. Nascem daí o urbanismo e o planejamento públicas, atuação de órgãos governamentais e não
urbano modernos, como tentativas de solucio- governamentais, disputas políticas dentro do
nar tais problemas em termos “técnicos” governo (entre o Executivo e o Judiciário, e en-
(Topalov, 1996). tre agências ambientais e órgãos voltados para o
Por seu turno, a definição do meio ambi- desenvolvimento econômico), entre governos e
ente como questão pública, não restrita ao meio movimentos ecológicos, entre grupos sociais com
científico, teria de aguardar até a década de 1970 interesses diferenciados... Em todos esses fóruns,
– mais precisamente, até 1972, quando se reali- a mídia se faz presente como um dos mais im-
zou, em Estocolmo, a Primeira Conferência In- portantes articuladores de interesses.
ternacional sobre Meio Ambiente e Desenvolvi- Do ponto de vista jurídico, a legislação
mento. Esse evento tem sido apontado como ambiental brasileira, aprovada em 1981 e aper-
marco do reconhecimento, por órgãos interna- feiçoada pela Constituição de 1988, trouxe ino-
cionais, das consequências do crescimento eco- vações cruciais ao atribuir ao Ministério Público
nômico para o meio ambiente e a qualidade de a função de defensor dos direitos coletivos e
vida dos seres humanos (Randolph; Bessa, 1993).4 difusos. Após a aprovação do Estatuto das Cida-
Assim, enquanto os problemas urbanos deram des, em 2001, o MP passou a interferir com mais
origem a novos campos do saber (urbanismo, vigor, assumindo a iniciativa de promover ações
planejamento urbano, sociologia e geografia ur- para garantir tanto a proteção ao meio ambien-

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banas e outros), a trajetória da questão ambiental te, como a ordem urbanística, na qual se inclui a
foi inversa: seu reconhecimento, no campo ci- função social da propriedade urbana.
entífico, precedeu a sua transformação em “ques-
tão pública”, cuja definição passou a ser objeto
de disputas políticas por diversos agentes, in- A propriedade fundiária urbana e a questão
clusive cientistas sociais e os atores leigos. ambiental
Por ocasião da Segunda Conferência In-
ternacional sobre Meio Ambiente (ECO-92), re- A questão fundiária está por trás da insus-
alizada no Rio de Janeiro, a preocupação com tentabilidade ambiental e da falta de equidade
temas ecológicos passa a integrar a pauta dos que caracterizam o uso e a ocupação do solo nas
mais diversos agentes, engendrando ou dando cidades brasileiras. A dificuldade de acesso à terra
maior visibilidade a órgãos governamentais, urbanizada, em particular, pode ser considerada
movimentos sociais, ONGs e partidos políticos. o núcleo do problema da habitação de baixa ren-
4
Na ocasião, o Brasil defendeu uma posição divergente, da no Brasil e em outros países da América Lati-
conferindo prioridade à superação da pobreza e na. Tal dificuldade leva à ocupação e à degrada-
(re)afirmando, com o sinal trocado, a dicotomia entre os
interesses da sociedade e a preservação da natureza. ção de áreas ambientalmente vulneráveis, mes-

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mo que elas estejam protegidas pela legislação Embora frequentemente [sic] mascarada por dis-
cussões aparentemente técnicas e legalistas acer-
ambiental e urbanística. ca do projeto de lei e da lei efetivamente aprova-
O processo de produção do espaço urbano da, o que sempre esteve em jogo durante o longo
processo de discussão sobre a nova lei – dentro
tem sido fortemente condicionado pelos interes-
e fora do Congresso Nacional – era, e ainda é, a
ses individualistas dos seus agentes mais podero- forte resistência dos grupos conservadores liga-
sos, entre os quais se destacam os empresários do dos ao setor imobiliário à nova concepção, pro-
posta pela Constituição Federal e consolidada
setor imobiliário. A atuação desses empresários, pelo Estatuto da Cidade, dada ao direito de pro-
muitas vezes predatória e especulativa, é favorecida priedade imobiliária urbana, qual seja, o princí-
pio constitucional da função social da proprie-
pela concepção privatista da propriedade fundiária,
dade urbana e da cidade.
que tem prevalecido no ordenamento jurídico bra-
sileiro e entre os operadores do direito. Ainda Mesmo depois da aprovação do Estatuto
que a função social da propriedade tenha sido da Cidade, a utilização dos instrumentos de con-
incluída já na Constituição Federal de 1934, seu trole da propriedade fundiária urbana permane-
conteúdo não se contrapunha à concepção indi- ceu limitada (Santos Jr; Montandon, 2011). Na
vidualista, pois apenas legitimava algumas inter- ausência de políticas públicas para tornar o uso
venções do Estado, tais como desapropriação e a ocupação do espaço urbano compatíveis com
(mediante prévio e justo pagamento em dinhei- a justiça social e os requisitos do meio ambiente
ro) e edição de normas para a construção e ocu- sustentável, a questão habitacional tem se reve-
pação de edificações, visando à salubridade e lado quase intratável. É verdade que, mesmo
segurança. Permanecia, assim, o princípio da antes da aprovação do Estatuto da Cidade, fo-
“inviolabilidade” da propriedade privada. So- ram implementadas múltiplas e diversificadas
mente a Constituição Federal de 1988 criou con- políticas habitacionais, incluindo a urbanização
dições para a efetivação da função social da pro- de favelas. Entretanto, tais políticas têm sido in-
priedade, ao relacioná-la com outros instrumen- capazes de deter o crescimento de assentamen-
tos de direito urbanístico: usucapião especial tos informais com precárias condições de
urbano (art.183), parcelamento e edificação com- habitabilidade:
pulsórios e desapropriação com pagamento em
títulos do Tesouro Nacional (art.182). A utiliza- Já é considerável a experiência brasileira de urba-
nização de assentamentos informais, produto de
ção desses instrumentos, porém, ficou condicio- uma profunda inflexão na política habitacional
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nada à edição de uma lei federal que estabelece- brasileira operada no início da década de 1980,
quando o Estado reconhece a favela como solução
ria as diretrizes gerais para a política de desen-
habitacional legítima ao alcance dos pobres. Pou-
volvimento urbano, a ser executada pelos Mu- cos avanços, no entanto, se têm registrado na luta
nicípios. A eles caberia estabelecer, por inter- contra a persistente reprodução da moradia pre-
cária e informal e contra o permanente aumento
médio do plano diretor (obrigatório para cida- de populações sem acesso à terra urbanizada, e as
des com mais de 20 mil habitantes), as “exigên- dificuldades são recorrentes nos programas de
titularidade e na questão da recuperação de cus-
cias fundamentais de ordenação da cidade” e,
tos (Furtado; Jorgensen, 2008, p.7).
consequentemente, as condições para que a pro-
priedade urbana cumprisse sua função social Na raiz desse insucesso estão não tanto os
(art. 182 da CF/1988). custos da construção de moradias, mas a ten-
Não é por acaso que o Legislativo demo- dência à valorização do solo, que se expressa no
rou mais de 12 anos para aprovar a lei prevista incremento dos preços dos imóveis em níveis
pela Constituição, que viria a se chamar Estatu- acima da inflação. Ainda que muitos bens de
to da Cidade (Lei n.º 10.257, de 10/07/2001). consumo industrializados tenham se tornado
Edésio Fernandes (2002, p.35) atribui essa de- acessíveis aos trabalhadores – como é o caso de
mora a interesses do setor imobiliário: celulares, eletrodomésticos e materiais de cons-

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trução –, a aquisição e mesmo o aluguel de um de industrialização tardia, o que leva à concentra-


imóvel em área incluída no mercado imobiliário ção de investimentos nas áreas habitadas pelos
formal apresentam preços proibitivos para as fa- grupos com maior poder de pressão econômica
mílias de baixa renda (Furtado; Jorgensen, 2008). ou política. Ao mesmo tempo, é o setor privado o
A tendência altista dos preços imobiliári- principal indutor de investimentos capazes de
os decorre de dois fatores. O primeiro deles, atu- (re)produzir terrenos com proximidade ou aces-
ante também em países desenvolvidos, diz res- sibilidade aos locais que concentram oportunida-
peito a uma característica própria do solo como des de empregos, comércio, serviços e amenida-
bem econômico: sua escassez, que tende a se tor- des, como proximidade do mar e de áreas verdes.
nar maior à medida que as cidades crescem. O A procura por terra para fins residenciais
segundo fator explicativo dos altos preços prati- depende das vantagens objetivas e subjetivas pro-
cados no setor imobiliário é específico de países porcionadas pelas características da localização e
tardiamente industrializados: trata-se da concep- do terreno: além da acessibilidade aos centros de
ção de propriedade imobiliária como principal comércio e serviços, as decisões locacionais das
forma de “poupança” ou “investimento”, em de- famílias consideram a quantidade de espaço dis-
corrência de políticas econômicas sujeitas a mu- ponível, a densidade populacional da área e a pro-
danças imprevisíveis, da fragilidade dos merca- ximidade de grupos com características
dos de capitais e da ameaça de inflação. Nesse socioeconômicas ou étnicas diversas das suas.
quadro, o ordenamento jurídico-político, ao con- Diferentes classes sociais atribuem pesos dife-
siderar a propriedade privada como inviolável, renciados a esses fatores. Nas cidades norte-ame-
torna a aquisição de imóveis verdadeira garantia ricanas, a presença dos pobres e de minorias ét-
contra a instabilidade econômica e a precarieda- nicas nas áreas centrais é explicada pela priori-
de dos programas de seguridade social. (Furta- dade que eles conferem à acessibilidade, de modo
do; Jorgensen, 2006). a minimizar o custo e o tempo de transporte. Já
No que diz respeito à escassez do solo ur- a classe alta e a classe média, cuja mobilidade é
bano, trata-se de algo diverso do que ocorre com maior graças ao uso de transporte individual,
outros bens econômicos, cuja oferta, idealmente, preferem localizações distantes do centro da ci-
pode aumentar em resposta a um incremento dade, por priorizarem a disponibilidade de es-
da demanda (no modelo da competição perfei- paço e, consequentemente, menores densidades

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ta). Tal não pode ocorrer com a terra urbana, de ocupação (Jorgensen, 2008). Há também pre-
porque o principal determinante do seu valor é ferência por vizinhanças mais homogêneas, em
a localização, o que torna cada parcela de solo termos das características socioeconômicas ou
única em relação às demais. Evidentemente, in- étnicas de seus moradores.
vestimentos públicos e privados em obras e ser- Nas cidades latino-americanas, esse mode-
viços podem “criar” terrenos urbanizados, pro- lo não é aplicável, uma vez que a infraestrutura,
vendo certas áreas da cidade de infraestrutura os serviços e equipamentos urbanos são muito
(redes de água, esgoto, iluminação pública etc.), desigualmente distribuídos no espaço, concentran-
serviços e equipamentos urbanos (coleta de lixo, do-se no centro e em bairros próximos. A perife-
escolas, postos de saúde, parques e praças, cen- ria precariamente servida é deixada aos pobres, o
tros culturais, shopping centers etc.). Uma alter- que acarreta elevados custos de transporte em ter-
nativa é melhorar a acessibilidade a áreas já do- mos de tempo e dinheiro. A provisão de
tadas dessas benfeitorias, o que se traduz em infraestrutura é parcial, mas não aleatória, pois
boas condições do sistema viário e disponibili-
... atinge na maioria das vezes as mesmas áreas
dade de transporte público. No entanto, são es-
cumulativamente, ou visa à expansão dessas áre-
cassos os recursos do Poder Público nos países as das cidades. Como demonstram variados es-

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tudos em cidades latino-americanas desde os em decorrência de investimentos privados ou


anos oitenta, as áreas beneficiadas são
prioritariamente as que satisfazem majoritaria- públicos para a oferta de comércio, serviços,
mente as premissas da existência de mercados infraestrutura – principalmente viária – e trans-
formais organizados, propriedades legalmente
portes. Tais investimentos contribuem sobrema-
definidas, a concentração espacial de poder eco-
nômico e político, a população de mais alta ren- neira para valorizar os imóveis e a renda daí de-
da e os mais altos valores da terra urbana. Por corrente é apropriada quase que exclusivamente
contraste, as áreas que não possuem
infraestrutura básica concentram os mercados pelos proprietários. Isso porque, em primeiro
informais de terras, os loteamentos irregulares e lugar, os impostos sobre a propriedade tendem
os assentamentos informais, a população de bai-
a ser baixos, especialmente o imposto predial.
xa renda, as áreas não cadastradas, as áreas de
propriedade ambígua, etc. (Furtado; Jorgensen, Em segundo lugar, os governos locais têm sido
2006, p.4). incapazes de implementar medidas, como a con-
tribuição de melhoria, para a recuperação de
A valorização da terra nas cidades, por- mais-valias, auferidas pelos proprietários em
tanto, tem estreita relação com a renda dos com- consequência da provisão de infraestrutura pelo
pradores e a relativa escassez das localizações setor público (Furtado; Jorgensen, 2006; 2008).
preferidas. Contudo, a definição de uma “boa Se, por um lado, a propriedade privada de imó-
localização” decorre não apenas de prioridades veis urbanos gera benefícios privados e malefícios
estabelecidas em função da renda dos compra- coletivos, por outro lado, os proprietários não con-
dores, como de estratégias de sobrevivência das tribuem de forma equitativa, por meio do paga-
famílias, as quais se transformam ao longo do mento de impostos, para que o Poder Público dis-
seu ciclo de vida. Assim, num primeiro momen- ponha de recursos para minorar a escassez de ter-
to, recém-migrantes podem optar por moradia renos servidos. Mais uma vez, prevalece a visão
de aluguel em favelas com localização mais pró- liberal-conservadora, que ignora a função social
xima a áreas onde possam trabalhar. À medida da propriedade.
que a renda familiar melhore, a tendência pro-
vável é preferir a segurança de adquirir um ter-
reno em loteamento periférico. A insustentabilidade das cidades brasileiras
Do lado da oferta, os principais fatores
determinantes do valor dos terrenos são: a legis- Segundo estudo patrocinado pelo Minis-
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lação municipal de uso e ocupação do solo, que tério das Cidades, realizado a partir de dados do
impõe restrições ao direito de construir (taxa de censo de 2000, existem, no Brasil, mais de 12
ocupação dos terrenos, afastamentos, tamanho milhões de famílias que residem em assentamen-
mínimo do lote etc.) e ao destino das edificações tos precários (Marques, 2007, p.314). Trata-se
(uso residencial, comercial, misto etc.) e a ex- de favelas, loteamentos irregulares ou clandesti-
pectativa dos proprietários quanto à valorização nos e conjuntos habitacionais deteriorados, ge-
dos seus terrenos, a qual pode levar à sua reten- ralmente situados em áreas pouco atrativas para
ção especulativa. Essa última, por sua vez, é asso- o mercado imobiliário formal, ou proibidas para
ciada a possibilidades de alterações na legislação a ocupação: periferias distantes, encostas de
urbanística, no sentido de permitir usos mais ren- morros ou dunas, margens de rios, lagoas ou re-
táveis (por exemplo, comércio em relação à habi- presas etc. São marcantes as deficiências nas con-
tação), ou parâmetros de ocupação mais permis- dições de habitabilidade desses assentamentos,
sivos, como, por exemplo, maior adensamento e incluindo serviços e equipamentos urbanos in-
gabarito mais alto dos edifícios. suficientes ou de má qualidade (em particular, o
A especulação imobiliária é associada tam- saneamento básico), construções em desacordo
bém à expectativa de valorização dos terrenos com normas de salubridade e segurança, por

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vezes feitas com materiais não permanentes, tos habitacionais, e as mudanças na cultura po-
arruamento e acessos irregulares, áreas públicas lítica decorrentes de pressões dos movimentos
sem demarcação ou inexistentes etc. Os mora- sociais. Entre esses fatores, destaca-se a ênfase
dores são de famílias com baixa renda e precária nos direitos de cidadania e na função social da
inserção no mercado de trabalho formal, muitos propriedade urbana, consagrados na Constitui-
deles desempregados. A relação predatória com ção Federal de 1988.
o meio ambiente agrava as condições de vida Após a aprovação do Estatuto da Cidade,
dessa população, que, em muitos casos, fica su- a regularização fundiária e urbanística dos as-
jeita a riscos de inundações, desabamentos, sentamentos informais tornou-se o paradigma
deslizamentos de encostas e outros. dominante nas políticas habitacionais, ainda que
Até os anos 1970, a temática ambiental a remoção de favelas não tenha sido descartada.
não se fazia presente no debate sobre a questão Vale salientar que essa mudança de paradigma
habitacional no Brasil, que era marcado pela encontra respaldo na atuação de instituições in-
dicotomia urbanização versus remoção de fave- ternacionais, como pode ser constatado na reco-
las. Essa última alternativa prevalecia na política mendação da UN-Habitat (2003, p.28), no senti-
habitacional implementada com recursos do Ban- do de que a urbanização de favelas (“in-situ slum
co Nacional de Habitação – BNH – fortemente upgrading”) seja a norma, e o reassentamento
criticada nos meios acadêmicos e profissionais de seus moradores só ocorra em casos excepcio-
por seu caráter autoritário e pela produção ou nais (situações de risco, por exemplo) e seja rea-
reforço de exclusões sociais e espaciais. Defen- lizado em área próxima.
dia-se, como solução mais adequada, a urbani- Se as formas de abordar a questão foram
zação de favelas, caracterizada por um conjunto alteradas, o mesmo não pode ser dito a respeito
de intervenções que aproveitassem, no todo ou dos fatores estruturais que condicionam a pro-
em parte, o traçado existente dos assentamentos dução da moradia de baixa renda. Mesmo com
precários, modificando-o apenas na medida em os avanços na concepção da propriedade privada
que fosse necessário para a abertura de acessos e advindos do efetivo reconhecimento de sua fun-
vias de circulação, provisão de espaços e equipa- ção social, são limitadas as possibilidades de cor-
mentos públicos (praças, escolas, postos de saú- reção das desigualdades espaciais resultantes da
de etc.) e instalação de infraestrutura e serviços concentração de serviços e equipamentos públi-

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urbanos (redes de água, esgoto, energia elétrica, cos nas áreas urbanas ocupadas pela população
drenagem etc.). mais afluente. De um lado, políticas redistributivas
Se, durante o regime militar, as críticas ao deparam-se com a histórica escassez de recursos
modelo adotado pelo BNH e as alternativas pro- do Poder Público para atender ao conjunto da
postas tiveram efeito limitado sobre as políticas cidade, o que reforça a tendência concentradora
habitacionais implementadas por diferentes ní- dos investimentos públicos e privados, já men-
veis de governo, a partir de meados da década cionada. De outro lado, há as ações especulativas
de 1980, a situação começaria a se modificar. do mercado imobiliário, que elevam os preços
Embora as favelas tenham continuado a ser es- dos imóveis na medida em que retêm terrenos
tigmatizadas como áreas “marginais” e redutos localizados em áreas dotadas de infraestrutura e
da violência urbana, diversos fatores fizeram com com maior acessibilidade a serviços e equipa-
que a erradicação em massa deixasse de ser vista mentos urbanos. Aos pobres, como foi dito, res-
como “solução final” (Machado da Silva, 2002): tam as periferias ou as áreas impróprias para a
o evidente fracasso da política de remoções, o ocupação, inclusive aquelas declaradas como de
processo de favelização das grandes e médias ci- proteção ambiental.
dades, atingindo, inclusive, os próprios conjun- Nesse contexto, a nova política habitacional

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que se delineia no Brasil a partir do primeiro Mudanças na conjuntura política autoritá-


governo do Presidente Lula, fomentada pelo ria e pressões dos movimentos sociais, sobretudo
Ministério das Cidades, enfrenta limitações de- a partir de 1979, levaram à adoção de programas
correntes do seu enfoque basicamente “curati- de urbanização de favelas, inclusive pelo Governo
vo”, que tem se mostrado insuficiente para pre- Federal. Paralelamente, continuou a construção de
venir a formação de novos assentamentos pre- conjuntos habitacionais, mas em menor escala,
cários, e mesmo o crescimento e a deterioração após a extinção do BNH, ocorrida em 1985. De um
daqueles já urbanizados ou em vias de urbaniza- modo geral, os programas habitacionais, inclusive
ção. Essa problemática ficará evidente na análise aqueles com maior participação do Estado e da Pre-
do caso de uma favela localizada em área de ris- feitura, não foram capazes de alterar o quadro de
co, em Fortaleza, o qual será objeto do próximo exclusão espacial vigente na cidade. Tanto é que o
item. número de favelas cresceu de 313, em 1991, para
mais de 600, em 2000 (Prefeitura Municipal de For-
taleza, 2003, p.75). Estudo patrocinado pelo Minis-
DIREITO À HABITAÇÃO E DIREITO AO MEIO tério das Cidades constatou que mais de 27% dos
AMBIENTE EM CONFLITO: a APP da Lagoa domicílios de Fortaleza estão localizados em assen-
do Papicu e a favela do Pau Fininho5 tamentos precários, onde reside uma população de
mais de 600 mil pessoas (Marques, 2007, p.87-88).
Fortaleza, atualmente com cerca de 2,5 Em 2005, toma posse como prefeita a
milhões de habitantes, cresceu de forma intensa candidata do Partido dos Trabalhadores, apoia-
e desordenada, sem fugir à regra das metrópoles da por movimentos sociais e ONGs atuantes em
brasileiras. Na década de 1930, registra-se o favelas e bairros periféricos de Fortaleza. A nova
surgimento das primeiras favelas, sendo as mai- administração comprometeu-se a executar a polí-
ores a do Pirambu, situada nas dunas da faixa tica habitacional aprovada por lei municipal no
litorânea oeste, próxima à zona industrial, e a final da gestão anterior, implantando, para tanto,
do Lagamar, nas proximidades do Rio Cocó, o a Fundação para o Desenvolvimento Habitacional
qual constitui o principal recurso hídrico da Ba- de Fortaleza (Habitafor). Entre as ações previs-
cia Metropolitana de Fortaleza (Benevides, 2009). tas, incluíam-se a construção de novos conjun-
A partir das décadas de 1960 e 1970, começou a tos habitacionais, a regularização dos existentes
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expansão periférica, fomentada pela construção e a urbanização ou remoção de assentamentos


de grandes conjuntos habitacionais financiados precários, com prioridade para os 105 então si-
pelo BNH. A população favelada continuava a tuados em áreas de risco. Um desses foi a favela
crescer num ritmo bem mais intenso do que os do Pau Fininho.
programas de remoção implementados pelos
Governos Federal, Estadual e Municipal. Novas
favelas surgiam, em geral ocupando áreas desti- A ocupação das margens da Lagoa do Papicu:
nadas a ruas e praças, ou em terrenos perten- da regularização planejada à remoção impre-
centes ao Poder Público. Note-se que, anterior- vista
mente aos anos 1980, a maioria dos assentamen-
tos precários não se localizava em áreas conside- A formação da favela do Pau Fininho ini-
radas de risco (Benevides, 2009). ciou-se na década de 1980, com a ocupação de
terrenos situados nas proximidades da Lagoa do
5
Os dados e informações utilizados neste item foram Papicu, localizada no bairro de mesmo nome,
coletados para a pesquisa Direito à cidade e regularização onde predominam residências de classe média e
de assentamentos precários, a qual, desde 2009, vem sen-
do realizada pela autora, com o apoio do CNPq. alta. Os primeiros moradores da favela estabele-

122
Linda Maria de Pontes Gondim

ceram-se em algumas quadras das ruas Pereira mentos de lazer (quadra polivalente, parque infan-
de Miranda, Joaquim Lima e Desembargador til, praças, etc.), com a realização de melhorias em
Lauro Nogueira, que se conectam com outras 134 unidades mais afastadas da Lagoa, as quais
vias do bairro. Em 1998, o Governo do Estado, permaneceriam no local, e construção de conjun-
através da Secretaria de Infraestrutura do Cea- to habitacional destinado a 488 famílias a serem
rá, removeu 83 famílias para um conjunto reassentadas em terreno situado nas proximida-
habitacional situado num bairro próximo, a fim des, dotado de infraestrutura.
de possibilitar o prolongamento de duas ruas. Em fevereiro de 2007, a equipe técnica da
No mesmo ano, o governo estadual delimitou a Habitafor deu início à execução do projeto, rea-
APP da Lagoa do Papicu (Decreto n.º 25.276, de lizando o “trabalho social”, a começar pelo
30/11/1998), onde a legislação ambiental proíbe cadastramento das famílias residentes. A partir
qualquer tipo de edificação. Entretanto, perma- desse cadastramento, foi feito o “congelamento”
neceram no local os moradores não contempla- da área – procedimento que consiste em marcar
dos com novas habitações e várias famílias be- com um número todas as casas cujos ocupantes
neficiadas que venderam suas casas e retornaram serão incluídos no projeto, e fiscalizar periodi-
à favela.6 camente o local para impedir novas construções
Em 2002 – quatro anos depois da inter- ou a ampliação das existentes. Foram cadastra-
venção do governo estadual – moradores do bair- das 622 famílias, totalizando 1.861 pessoas, a
ro do Papicu denunciaram ao Ministério Públi- maioria subempregada ou desempregada, sobre-
co Estadual a deterioração das obras de urbani- vivendo com um salário mínimo ou menos. Cons-
zação realizadas, o aterramento e a construção tatou-se que a área de ocupação mais antiga, com
de casas nas margens da Lagoa e a consequente 95% das casas de alvenaria, apresentava melho-
degradação ambiental. Nessa ocasião, o MP li- res condições de habitabilidade do que as exis-
mitou-se a enviar comunicações aos órgãos esta- tentes nas margens da Lagoa e nas dunas do en-
duais e municipais envolvidos, o que não teve torno, cuja ocupação ocorreu principalmente no
efeitos práticos. Tanto que, em 2003, levanta- início do século XXI. Nessas áreas, somente 41%
mento realizado pela Defesa Civil do Estado en- das edificações eram de alvenaria; predominava
controu 73 famílias – número que rapidamente o uso de materiais precários como taipa, madei-
cresceu para 150 – assentadas na APP (Estado ra, papelão ou lona. Em decorrência da retirada

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do Ceará, 2007, p.194). da cobertura vegetal e da fixação de barracos, as
Em 2006, a Favela do Pau Fininho foi es- dunas no entorno leste da Lagoa, com acentua-
colhida nas assembleias do Orçamento da inclinação, passaram a oferecer risco de des-
Participativo da PMF como um dos assentamen- moronamento e soterramento (Prefeitura Muni-
tos prioritários para receber recursos municipais, cipal de Fortaleza, 2007).
a serem utilizados como contrapartida em pro- O percentual relativamente alto – 20%,
jeto da Habitafor, incluído no Programa de Ace- aproximadamente – de moradias cedidas,
leração de Crescimento – PAC – do Governo Fe- alugadas ou ocupadas sem o consentimento dos
deral. Esse projeto compreendia: limpeza e moradores originais indica intensa mobilidade
desobstrução da Lagoa, construção de calçadão, residencial, haja vista a ocupação relativamente
tratamento paisagístico e implantação de equipa- recente da área (Prefeitura Municipal de Forta-
leza, 2007). Outro dado indicativo dessa mobili-
6
A venda ou aluguel de moradias é um problema em pratica- dade é a procedência dos moradores: quase me-
mente todos os conjuntos habitacionais construídos pelo
Município ou pelo Estado. A existência de um cadastro tade deles é proveniente do próprio bairro ou de
unificado de beneficiários dificulta a concessão de moradia bairros e favelas situadas nas imediações; mais
para aqueles que já foram contemplados, mas não impede a
comercialização das unidades no mercado informal. de 20% vieram de outros bairros da capital

123
MEIO AMBIENTE URBANO E QUESTÃO SOCIAL ...

cearense. Isso evidencia que o crescimento desse Leitor Roberto Lima, morador do bairro Dunas
(Zona Leste), reclama do aterramento da área em
assentamento não foi diretamente associado à mi- volta da lagoa do Papicu por pessoas que estão
gração campo – cidade. Diferentemente do que invadindo o local [e] construindo casebres. Se-
gundo ele, há cerca de três meses começou a ser
ocorreu em favelas mais antigas, a expansão do
acelerada a construção de barracos, o que está se
Pau Fininho decorreu de deslocamentos constituindo num crime ambiental, pois confor-
intraurbanos, expressando a dinâmica de uma me diz, carroceiros chegam com lixo e materiais
diversos aterrando a área e em pouco tempo cons-
espécie de “mercado imobiliário informal” troem uma nova moradia. [...] Lima afirma já ter
(Abramo, 2003). denunciado diversas vezes o problema à Prefei-
tura de Fortaleza, mas até agora nenhuma provi-
Os trabalhos da Habitafor prosseguiram
dência foi tomada. [...] Outra coisa grave, diz ele
com visitas ao assentamento para resolução de [o leitor Roberto Lima], é que praticamente to-
pendências no cadastro dos moradores (confir- dos os dias estão ocorrendo roubos e assaltos a
mão armada na região, depois da chegada dos
mação de casas desocupadas, obtenção de dados novos vizinhos. [...] (Sá, 2007, grifo meu).
junto a famílias que não estavam presentes du-
rante o primeiro levantamento etc.). No final do O crescimento da favela tomou propor-
ano, após licitação, foi contratada uma empresa ções incontroláveis após a confirmação dos re-
para executar as obras, que começariam em fe- cursos para o projeto habitacional, divulgada pela
vereiro de 2008, tendo prazo de 15 meses para Habitafor em julho de 2007. Em dezembro do
conclusão. Note-se que transcorreu um ano en- mesmo ano, o Ministério Público Estadual con-
tre o inicio do “trabalho social” e a realização vocou a Habitafor, a Secretaria Executiva Regio-
das primeiras obras físicas. Esse prolongado in- nal II e a Secretaria Municipal de Meio Ambien-
tervalo de tempo, aliado à omissão da Secretaria te para dar esclarecimentos quanto à ocupação
Regional II, órgão da PMF encarregado da fisca- da APP da Lagoa do Papicu. Considerando insu-
lização, foi um dos fatores que contribuiu para ficiente a prospectiva de execução do projeto
novas ocupações no local. Os novos ocupantes, habitacional e da urbanização da área, o MP in-
em grande parte, eram provenientes da favela terpôs ação civil pública com pedido de liminar,
Luxou, situada nas proximidades e não incluída a fim de obrigar o Município a promover a reti-
no programa habitacional da Prefeitura. Os “in- rada imediata das ocupações não cadastradas e –
vasores” do entorno da Lagoa do Papicu chega- caso a ação fosse julgada procedente – de todas
ram a procurar a Habitafor para reivindicar sua as edificações, cadastradas ou não, situadas na
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inclusão no cadastro, mas não foram atendidos APP (Estado do Ceará, 2007).
porque os recursos do Ministério das Cidades e da O Município, em sua resposta, argumen-
PMF alocados ao projeto seriam suficientes para tou que não fora omisso, pois já programara a
atender apenas às 612 famílias já cadastradas. retirada das famílias ocupantes e a urbanização
Ao mesmo tempo, pessoas de classe mé- da área. Pondera que o ente municipal:
dia e alta residentes na vizinhança não paravam
de pressionar diretamente a Habitafor e a Secre- ... não pode num condão de mágica passar um
trator nas barracas e desobstruir a área, quando
taria Executiva Regional II para a retirada dos
há violenta reação [dos ocupantes]. [...] há um
“invasores”, denunciando, na mídia, a degrada- problema social no presente caso, que o Municí-
ção ambiental e o crescimento da violência na pio está tentando equacionar da melhor maneira
possível e isso demanda um certo tempo moral
área. As denuncias revelavam a persistência do (Prefeitura Municipal de Fortaleza, 2008a, p.4).
estigma que associa a condição de favelado à de
delinquente, a exemplo do seguinte trecho de Acrescenta que a demora alegada pelo au-
uma coluna diária sobre bairros, publicada em tor da ACP decorria de exigências legais perti-
um dos principais jornais de Fortaleza: nentes à atuação de um ente público: “... em se
tratando de administração pública, nada é resol-

124
Linda Maria de Pontes Gondim

vido em curto espaço de tempo, mas em obediên- ao meio ambiente.


cia aos ditames da legalidade”, entre os quais se O Tribunal de Justiça do Ceará julgou fa-
inclui a previsão de recursos orçamentários (Pre- voravelmente a ACP no que se refere à retirada
feitura Municipal de Fortaleza, 2008a, p.5). O do- das famílias não cadastradas, estipulando o pra-
cumento questiona a não inclusão do Estado como zo de um mês para que o Município executasse
parte do processo, uma vez que a proteção da área essa decisão. Assim, durante duas semanas de
invadida também é competência do ente estadual. abril de 2008, foram retiradas cerca de 200 fa-
Em outra peça processual relativa à defesa do mílias que ocupavam a duna do Papicu. Os ocu-
Município, afirma-se que a concessão da liminar pantes concordaram em sair da área mediante
implicaria a intromissão indevida do Poder Judi- recebimento de uma “ajuda de custo”, cujo va-
ciário nas competências do Executivo Municipal, lor variou de 500 a 2000 reais, dependendo do
ao qual cabe a definição de prioridades urbanas: grau de resistência e da capacidade de barganha
“... não tem o Judiciário o poder de determinar os dos “invasores”.8 A presença ostensiva da força
tipos de despesas que devem ser realizados pela policial foi outro “argumento” utilizado para con-
Municipalidade”, as quais estão adstritas a orça- vencer os recalcitrantes.
mento previamente aprovado pela Câmara Munici- A maior parte das famílias abrigou-se tem-
pal (Prefeitura Municipal de Fortaleza, 2008b, p.7). porariamente em casa de parentes ou retornou
Em outro documento, a Procuradoria Geral para outras favelas, realimentando o processo de
do Município insiste na necessidade de citação ocupação de áreas de risco e a formação de assen-
do Estado como parte da lide, aduzindo novas ra- tamentos irregulares. As famílias cadastradas
zões, além da corresponsabilidade pela proteção aguardam as moradias prometidas, enquanto a
ambiental (Prefeitura Municipal de Fortaleza, construção do conjunto habitacional nas imedia-
2008c). Desta feita, trata-se da omissão do Estado ções do Pau Fininho prossegue lentamente.
em assumir ações de segurança pública – matéria
de sua competência –, uma vez que a Policia Mili-
tar estaria proibida de apoiar a remoção dos ocu- Direitos em conflito
pantes.7 E trata-se, também, da corresponsabilidade
do ente estadual em assegurar o direito à habita- O projeto de urbanização para a favela
ção: “Ademais, o direito fundamental à moradia Pau Fininho é exemplar no que diz respeito à

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não compete somente ao Município de Fortaleza, presença da questão ecológica no âmago da polí-
mais um motivo pelo qual deverá ser chamado o tica habitacional nas cidades brasileiras, especi-
Estado do Ceará para compor a lide em seu polo almente após a aprovação do Estatuto da Cida-
passivo” (Prefeitura Municipal de Fortaleza, 2008c, de. O dilema entre o direito ao meio ambiente e
p.6). Nota-se que, ao longo das diversas peças pro- o direito à habitação emerge claramente, ainda
cessuais, essas três linhas são a única referência que os atores envolvidos no conflito não o te-
explícita ao direito à habitação. Em contraste, no nham explicitado. De fato, é surpreendente,
mesmo documento, os argumentos sobre as com- numa ação judicial cujo objetivo era retirar pes-
petências do Estado relativas à preservação do meio soas de suas casas, que o direito à habitação seja
ambiente e à segurança pública ocupam, respec- mencionado tão brevemente e apenas na defesa
tivamente, 11 e 18 linhas (Prefeitura Municipal de da Prefeitura Municipal, estando ausente do dis-
Fortaleza, 2008c, p.5-6) – sem mencionar que toda curso que fundamenta a ACP. Tal postura pode
a ACP foi justificada apenas em nome do direito indicar uma tendência, por parte dos operadores

7 8
Na verdade, a determinação da Secretaria de Justiça do As “indenizações” totalizaram aproximadamente 70 mil
Estado era de que a PM só interferisse quando fosse reais, quantia financiada pela construtora, a ser posterior-
expedida ordem judicial para a desocupação. mente reembolsada, mediante aditivo ao contrato.

125
MEIO AMBIENTE URBANO E QUESTÃO SOCIAL ...

do direito, de conferir prioridade à “agenda ver- resses individualistas ou mesmo especulativos, em


de”, em detrimento da “agenda marrom” franca oposição ao princípio da função social da
(Fernandes, 2004). Vale lembrar que a petição propriedade.
inicial do Ministério Público Estadual requeria, Não é por acaso que pesquisa realizada no
caso a ação fosse julgada procedente, que a PMF Rio de Janeiro sobre Ações Civis Públicas relati-
fosse obrigada a retirar “... todas as edificações vas a conflitos ambientais constatou que elas
levadas a efeito na área de preservação perma- envolviam, em sua maior parte, disputas sobre
nente – APP da lagoa do Papicu, nesta urbe, ca- o uso do solo urbano, incluindo a presença de
dastradas ou não.” (Estado do Ceará, 2007, p.22; ocupações de baixa renda em APPs (Fuks, 2001).
grifos meus). O julgamento, pelo Tribunal de No caso discutido aqui, os efeitos do padrão
Justiça do Estado do Ceará, do pedido de sus- excludente e predatório da expansão urbana
pensão de liminar apresentado pelo Município manifestam-se, particularmente, em dois aspec-
manteve a decisão de remover apenas os ocu- tos. O primeiro é a existência, na favela do Pau
pantes não cadastrados. O magistrado menciona Fininho, de unidades habitacionais não ocupadas,
que a retirada de toda a população da área obriga- ou ocupadas sem permissão dos moradores origi-
ria o Poder Público Municipal a alojar os ocupan- nais, o que configura a situação absurda de “inva-
tes em algum conjunto habitacional, “... tendo sores” de “invasões”, indicando a dinâmica do
em vista não poderem ser retirados de seus lares mercado imobiliário informal, no qual há lugar
e deixados à própria sorte.” (Estado do Ceará, 2007, para a ação de intermediários e “especuladores”
p.73). Contudo o argumento que utilizou para (pessoas que detêm mais de um barraco ou par-
fundamentar sua decisão não foi o direito à habi- cela de terreno no local ou em outros assenta-
tação, e sim o fato de que obrigar o Município a mentos). Essa forma de ocupação contrasta com
fazer uma ampla remoção, não planejada por ele, o padrão mais conhecido de formação de favelas,
significaria uma intromissão indevida do Judiciário que se dava mediante autoconstrução em terreno
nas políticas públicas municipais, o que, inclusive, desocupado e posterior aumento da edificação
poderia ser incompatível com os recursos orçamen- para abrigar novos membros da família. Para além
tários disponíveis (Estado do Ceará, 2007). de julgamentos morais, é preciso admitir que a
A dificuldade do Poder Público em atender ação de intermediários (“especuladores”) é
simultaneamente os direitos à moradia e ao meio indicativa de uma demanda habitacional que o
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ambiente não se resume à escassez de recursos. Tra- mercado imobiliário formal parece ignorar e o
ta-se de questões estreitamente imbricadas, só po- Poder Público tem sido incapaz de atender.
dendo ser compreendidas quando se considera o O segundo aspecto indicativo da problemá-
processo de produção do espaço urbano numa pers- tica relação entre habitação, meio ambiente e ex-
pectiva social e política, e não meramente jurídica pansão urbana é a maior precariedade ambiental,
(formalista). Com efeito, a degradação ambiental é urbanística e habitacional da área de ocupação mais
tributária da insuficiente oferta de moradias popu- recente (início do século XXI) da favela do Pau
lares pelo mercado imobiliário formal, incluindo-se Fininho, situada, majoritariamente, na duna à mar-
aí tanto o Poder Público como a iniciativa privada. gem da Lagoa do Papicu, contrastando com aquela
Essa situação, de imediato, leva à ocupação de áre- onde se iniciou a favela (na década de 1980), situa-
as impróprias para fins residenciais, especialmente da em área plana. Isso indica que Fortaleza está a
as áreas de preservação ambiental. Ao invés de caminho de um esgotamento da “fronteira de ex-
culpabilizar a população de baixa renda, há de se pansão” das ocupações populares em áreas com
reconhecer o papel decisivo desempenhado pelos melhores condições de habitabilidade (Abramo,
agentes e instituições que controlam a terra urbana 2003).9 Consequentemente, a ocupação de áreas
e asseguram o seu uso para beneficiar apenas inte- impróprias para a habitação, inclusive aquelas

126
Linda Maria de Pontes Gondim

consideradas de preservação ambiental, tenderá ... são valores e direitos sociais constitucionalmen-
te protegidos, tendo a mesma raiz conceitual, qual
a aumentar, caso não se adote uma política ca- seja, o princípio da função socioambiental da pro-
paz de alterar substancialmente o quadro da pro- priedade. O desafio, então, é compatibilizar esses
dois valores e direitos, o que somente pode ser
priedade fundiária em Fortaleza.
feito através da construção não de cenários ide-
A dinâmica das novas ocupações é bem ais, certamente não de cenários inadmissíveis, mas
ilustrada no caso analisado, em que 200 casas de cenários possíveis. (grifo meu)
foram erguidas sobre as dunas em um ano – mais
de 40% do total de moradias previsto no projeto Para a “construção de cenários possíveis”,
da Habitafor para urbanização da área. Em con- é preciso que os agentes que controlam o uso do
traste, nesse lapso de tempo, sequer foi iniciada espaço urbano – incluindo-se aí os operadores
a construção do conjunto habitacional, o que, do direito – atuem de modo a integrar as agen-
aliado a outros fatores, como a ineficiência da das “verde” e “marrom”, o que implica conceber
fiscalização, contribuiu para que a invasão fu- o meio ambiente como um “problema social”,
gisse ao controle da Habitafor. Tal descompasso estreitamente ligado à “questão da habitação”.
apenas em parte pode ser creditado às formali- Conforme Edesio Fernandes (2006, p.256), tra-
dades burocráticas e legais, como prazos e nor- ta-se de compreender devidamente o conceito
mas de licitação, às quais o Poder Público tem de meio ambiente apresentado na Constituição
de se sujeitar. Provavelmente, um fator mais re- Federal (art.225), o qual propõe
levante para explicar a lentidão dos trabalhos
... a visão holística e processual do meio ambi-
foi a opção por uma metodologia segmentada ente como padrão de interação entre elementos
para a execução do projeto, pela qual a Habitafor naturais, artificiais e culturais que permite o de-
senvolvimento equilibrado da vida humana. Esse
encarregou-se dos estudos preliminares e do ca-
equilíbrio não é absoluto, mas é política e histo-
dastro, cabendo à empresa vencedora da licita- ricamente determinado e tem de levar em conta
ção o projeto urbanístico e ambiental e as res- a questão crucial da moradia social.
pectivas obras.
De um modo geral, é problemática para a Desse modo, a percepção da dimensão
democracia a retirada de ocupantes de uma área ecológica do espaço urbano não pode estar au-
de preservação ambiental, sem que seja atendido, sente da política habitacional.
concretamente, o direito à habitação. No caso ana-

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lisado, o problema foi simplesmente “empurrado
para debaixo do tapete”, na medida em que as CONSIDERAÇÕES FINAIS
famílias removidas foram incluídas no cadastro
de inscritos para os programas habitacionais da Ao longo deste trabalho, discutiu-se a emer-
Habitafor, sem prazo nem garantia de serem aten- gência de duas questões públicas e sua relação
didas. Em termos práticos, o Judiciário, ao obri- com “a questão social”: o meio ambiente urbano
gar a Prefeitura a remover os “invasores” dentro e a habitação. A questão habitacional é contem-
de um prazo exíguo, fez prevalecer o “direito ao porânea das primeiras críticas às cidades indus-
meio ambiente saudável”.10 Vale ressaltar que es- triais, na segunda metade do século XIX, quando
ses direitos não são necessariamente incompatíveis, higienistas e reformadores sociais denunciaram a
como mostra Edesio Fernandes (2004): insalubridade das moradias dos trabalhadores. Ain-
da que tais críticas apontassem condições sanitári-
9
Essa tendência é aqui colocada em forma de hipótese, já as e ambientais extremamente precárias, somente
que um estudo de caso não é suficiente para permitir ge-
neralizações. na verdade, foram moradores mais afluentes dos bairros
10
Ainda que, em princípio, a preservação do meio ambiente Papicu e Dunas, que reivindicavam a expulsão dos vizi-
seja um interesse do conjunto da sociedade, no caso ana- nhos favelados, acusando-os de serem responsáveis pelo
lisado, os beneficiários diretos da ação do Poder Público, aumento da violência no bairro (Espínola, 2009).

127
MEIO AMBIENTE URBANO E QUESTÃO SOCIAL ...

na segunda metade do século XX o meio ambiente dos significou a negação do seu direito à mora-
viria a ser reconhecido como questão digna de aten- dia, remetido para o nebuloso futuro dos cadas-
ção do governo e do público leigo. tros da Habitafor.
Se, no caso da habitação, sempre foi claro Uma boa novidade da atuação do Poder
o viés de classe social, o meio ambiente foi apre- Público foi a retirada dos “invasores” mediante
sentado como uma questão de natureza negociação, evitando o uso da violência explíci-
universalista, pertinente ao interesse de sujeitos ta. Contudo, permaneceu a velha tendência de
indeterminados, como a humanidade, a socie- recorrer a paliativos como a “ajuda de custo” e o
dade como um todo, ou, ainda, o planeta terra cadastramento das famílias retiradas, ao invés
(Fuks, 2001). Apesar de a problemática ambiental de se buscar uma solução capaz de impedir a
ser oriunda das ciências naturais e inicialmente reprodução do problema. Nesse sentido, é preci-
restrita aos meios científico, técnico e governa- so ter em mente que nem mesmo a urbanização
mental, sua publicização foi acompanhada de de todas as favelas da cidade impediria essa re-
uma crescente politização. A recepção do meio produção, já que o déficit habitacional continua-
ambiente como objeto de estudo das ciências ria, alimentado pelo elevado contingente de famí-
sociais acompanhou o debate público sobre a lias com renda insuficiente para atendimento pelo
temática, capitaneado pelos movimentos sociais. mercado imobiliário formal. Dito de outra forma,
A questão ambiental tornou-se pervasiva, dei- garantir o direito à habitação significa propiciar a
xando o nicho de uma “natureza intocada” para todos o acesso à terra urbanizada, o que só será
emergir, de forma conspícua, em uma realidade possível mediante intervenções do Poder Público
representada como o seu outro: a cidade. Nela, capazes de alterar a valorização do solo urbano e,
o encontro da “agenda verde” com a “agenda consequentemente, as formas excludentes de fun-
marrom” deu-se de forma conflituosa, em dis- cionamento do mercado imobiliário. Medidas
putas sobre o uso e a ocupação do solo em áreas dessa ordem contribuiriam não só para garantir o
protegidas pela legislação ambiental, particular- direito à habitação digna, como para efetivar o
mente naquelas consideradas de risco. direito ao meio ambiente saudável.
No estudo de caso da Favela do Pau Fini-
nho, em Fortaleza, o Ministério Público Estadu-
al, atendendo a reivindicações de moradores de (Recebido para publicação em 04 de fevereiro de 2011)
(Aceito em 08 de junho de 2011)
CADERNO CRH, Salvador, v. 25, n. 64, p. 115-130, Jan./Abr. 2012

classe média e alta da vizinhança, promoveu uma


Ação Civil Pública, visando a determinar que a
PMF expulsasse do local os ocupantes da APP REFERÊNCIAS
da Lagoa do Papicu – inicialmente, aqueles que
não estivessem inscritos no projeto de urbaniza- ABRAMO, Pedro. A teoria econômica da favela: quatro no-
tas sobre a localização residencial dos pobres e o mercado
ção da área, e, depois, caso a ACP fosse julgada imobiliário informal. In: ______. (Org.) A cidade da
procedente, também os moradores cadastrados. informalidade. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2003. p.189-223.
ACOT, P. História da ecologia. Rio de Janeiro: Campus, 1990.
No embate jurídico, não foi apenas o MP esta-
BENEVIDES, Amanda. Diagnóstico sócioambiental das áreas
dual que praticamente ignorou o direito à habi- de risco em Fortaleza Ceará. In: ENCUENTRO DE
tação: mesmo o Município, em sua argumenta- GEÓGRAFOS DE AMÉRICA LATINA, 12, 2009, Montevideo.
Disponível em: http://egal2009.easyplanners.info/area07/
ção contrária à retirada dos “invasores”, alegou 7054_ BENEVIDES_Amanda.pdf Acesso em: 21 jun. 2009.
razão de ordem jurídico-administrativa (a intro- ESPÍNOLA, Ana Lídia Ribeiro. Sobre as dunas: o conflito
sócio-ambiental da Lagoa do Papicu, Fortaleza. 2009.
missão indevida do judiciário nas políticas pú- Monografia (Graduação) – Curso de Ciências Sociais da
Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2009.
blicas municipais), sendo corroborado pelo Tri-
ESTADO DO CEARÁ. Poder Judiciário. Processo n.º
bunal de Justiça do Estado do Ceará. Em termos 2007.0034.0759-2. Ação Civil Pública. Fortaleza, 2007.
práticos, a retirada dos moradores não cadastra-

128
Linda Maria de Pontes Gondim

FERNANDES, Edésio. Do código civil de 1916 ao estatuto da situação habitacional do município de Fortaleza. jun.
da cidade: algumas notas sobre a trajetória do direito urba- 2003.
nístico no Brasil. In: MATTOS, Liana Portilho (Org.) Esta-
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CADERNO CRH, Salvador, v. 25, n. 64, p. 115-130, Jan./Abr. 2012

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MEIO AMBIENTE URBANO E QUESTÃO SOCIAL ...

URBAN ENVIRONMENT AND SOCIAL ISSUE: ENVIRONNEMENT URBAIN ET QUESTION


popular housing in environmental protection SOCIALE: les habitations populaires dans des
areas aires de préservation environnementale
Linda Maria de Pontes Gondim Linda Maria de Pontes Gondim

The article discusses the relationship Dans cet article, on estime que la relation
between the city and the environment as a public entre la ville et l’environnement est une question
matter, given the proliferation of low-income d’intérêt public étant donné que l’occupation des
housing within environmental protection areas. aires de préservation environnementale par les
Although the environment is not just an habitations populaires s’est accrue. Bien que
“ornament”, but a vital part of social life, the l’environnement fasse partie intégrante de la vie
ecological dimension of urban settlements has only sociale et ne soit pas considéré comme une simple
recently been acknowledged. The current analysis “toile de fond”, reconnaître la dimension écologique
is based on the example of a slum in Fortaleza, dans la question urbaine n’est que chose récente. La
located in an area of permanent protection. A City discussion se fait à la lumière de l’étude de cas d’une
Hall project to remove the illegal residents to a favela de Fortaleza, située en pleine aire de
housing complex nearby ended up attracting new préservation permanente. Um projet municipal de
occupiers, whose eviction was immediately déplacement des habitants vers une zone résidentielle
determined by the Court of Justice. Due to a lack of proche a attiré de nouveaux habitants, mais leur retrait
funds to provide housing for the new “squatters”, a immédiatement été exigé par le Ministère Public.
their eviction turned into an ethical and social Vu l’insuffisance des ressources permettant de ga-
dilemma, by weighing the right to housing against rantir le logement des “envahisseurs”, leur évacuation
the right to a healthy environment. a suscité un dilemme éthique et social qui met en
opposition le droit au logement et le droit à un
environnement sain.

KEYWORDS: environment, housing, social issue, MOTS-CLÉS: environnement, habitation, question


slum. sociale, favela.
CADERNO CRH, Salvador, v. 25, n. 64, p. 115-130, Jan./Abr. 2012

Linda Maria de Pontes Gondim – Doutora em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade de
Cornell. Professora da Universidade Federal do Ceará, vinculada ao Curso de Graduação em Ciências
Sociais e ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Coordena o Laboratório de Estudos da Cidade e
tem experiência nas áreas de Planejamento Urbano e Regional, Sociologia Urbana e Sociologia do Direito,
atuando principalmente nos seguintes temas: movimentos sociais urbanos, participação popular,
habitação e planos diretores. Outra área de seu interesse é metodologia de pesquisa. Suas principais
publicações são os livros O Dragão do Mar e a Fortaleza pós-moderna e Uma dama da Belle Époque de
Fortaleza. Publicações recentes: Espaço Público, requalificação urbana e consumo cultural: o Centro
Dragão do Mar de Arte e Cultura e seu entorno. O público e o privado (UECE), v. 17, p. 59-69, 2011;
Promessas e desafios do Estatuto da Cidade. Cadernos Inesp, v. 5, p. 09-29, 2011; O dragão e a cidade:
lendas do Ceará. Revista Museologia e Patrimônio, v. 2, p. 13-23, 2009.

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