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ANDRÉ NATÃ MELLO BOTTON

A REPRESENTAÇÃO DA FAVELA NA OBRA INFERNO, DE PATRÍCIA MELO

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado como requisito parcial à
obtenção do grau de Licenciado em
Letras pela Universidade Feevale.

Orientadora: Dra. Marinês Andrea Kunz

NOVO HAMBURGO
2016
UNIVERSIDADE FEEVALE

ANDRÉ NATÃ MELLO BOTTON

A REPRESENTAÇÃO DA FAVELA NA OBRA INFERNO, DE PATRÍCIA MELO

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado como requisito parcial à
obtenção do grau de Licenciado em
Letras pela Universidade Feevale.

BANCA EXAMINADORA:

________________________________________
Profa. Dra. Marinês Andrea Kunz
(Orientadora)

________________________________________
Prof. Dr. Ernani Mügge (Universidade Feevale)

________________________________________
Profa. Dra. Roswithia Weber (Universidade Feevale)
Dedico este trabalho aos meus pais, que
me ensinaram a ver o outro como um
igual a mim.
AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço aos meus pais, que sempre me apoiaram em todas


as decisões e escolhas que fiz ao longo da minha vida e que em todos os momentos
estavam disponíveis para me dar um colo, conselho ou puxão de orelha.
Também ao agradeço ao meu irmão, que mesmo no seu silêncio soube ser
um porto seguro.
Agradeço à professora Marinês, que desde 2008 se tornou não apenas
orientadora de pesquisa, mas orientadora da vida, e que aos poucos se transformou
em amiga, conselheira e mãe.
Sou grato a todos aqueles que através de sua paciência e carinho, souberam
entender os momentos que eu precisava ficar sozinho para me dedicar a este
trabalho.
E finalmente, à Universidade Feevale, pela oportunidade de fazer parte da
Iniciação Científica, experiência que possibilitou meu desenvolvimento acadêmico,
profissional e humano. Sem essa experiência, tenho certeza de que a produção
deste trabalho teria sido muito mais “dolorosa”.
“A realidade adapta-se à linguagem da
ficção e esta adapta-se àquela.”
(Renato Cordeiro Gomes)
RESUMO

O espaço urbano brasileiro contemporâneo tem sido tema de várias obras literárias
que representam uma realidade, em que os habitantes tiveram que se acostumar
com os problemas urbanísticos, sociais, políticos e de violência. Como a arte é
reflexo daquilo que está acontecendo na realidade, justifica-se o presente trabalho,
pois a partir do problema de como a favela carioca está representada na obra
Inferno, de Patrícia Melo, faz-se necessário refletir sobre a sociedade e o espaço
urbano no Brasil. A partir disso, pretende-se analisar a história do surgimento das
favelas no Rio de Janeiro desde o final da Monarquia, bem como estudar o conceito
de “representação”, para, desse modo, analisar esse espaço urbano – e sua
dinamicidade – retratado na obra Inferno. A metodologia é de cunho bibliográfico,
consistindo no estudo de obras teóricas sobre a história da favela, sobre o Rio de
Janeiro, sobre o conceito de “representação” e mímese, bem como pesquisa acerca
da violência urbana e, por fim, da análise da obra literária Inferno, de Patrícia Melo,
com base em estudos sobre a teoria da literatura. Quanto aos resultados do
trabalho, o que se pode afirmar é que a obra literária se aproxima muito da
realidade, pois muitos lugares apresentados existem na cidade do Rio de Janeiro,
deixando a história verossímil. O que acontece ao longo da história e o modo como
a diegese é organizada refletem a realidade: um espaço urbano esquecido pelas
autoridades; a polícia sobe o morro apenas para cobrar sua propina e quando
recebe ordens superiores durante as constantes lutas contra o tráfico, ou seja, um
lugar relegado ao descaso, como sempre foi desde o final do século XIX, e que
recebeu pessoas que estavam dispostas a trabalhar, mas também foi antro e
esconderijo para assaltantes e traficantes.
Palavras-chave: Favela. Representação. Mímese. Literatura. Teoria da Literatura.
ABSTRACT

The Brazilian contemporary urban space has been the theme of much literary work
representing a reality in which its inhabitants have had to live and adapt to urban,
social, political and violence-related problems. The fact that art is a reflex of reality
justifies the present study. We start by considering how the slums in Rio de Janeiro
are represented in the book Inferno, by Patricia Melo. We then reflect upon the
society and the urban spaces in Brazil. We analyze how the slums in Rio de Janeiro
have emerged since the end of monarchy in Brazil. We also study the concept of
“representation” in the urban space – and its dynamics – as portrayed in Inferno. The
methodology adopted consists of reading solid bibliography about the history of the
slums, about Rio de Janeiro, about the concept of “representation” and mimesis.
Within the urban violence scope, we analyze Inferno, by Patricia Melo. As to the
results obtained, it is possible to state that the book is very similar to reality, because
many spaces presented in it do exist in Rio de Janeiro. This makes the fictional story
highly verisimilar. What happens during the story and the way the diegesis is
organized reflects reality: an urban space forgotten by the authorities and the police
climbing up the slums only to get their share and eventually combating drug dealers;
in a nutshell, a space that is totally forgotten, as it has always been since the end of
the 19th century and that has hosted people who were looking for work, but also the
slum that was the den and hiding place to thieves and drug lords.

Keywords: Slum. Representation. Mimesis. Literature. Literary Theory.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Imagem do cortiço Cabeça de Porco ............................................................................... 16


Figura 2 - A destruição do cortiço Cabeça de Porco pela Revista Ilustrada, de 1893. ................ 16
Figura 3 - Quartel General e Morro da Providência em 1990 .......................................................... 18
Figura 4 - Vila Kennedy, década de 1960 .......................................................................................... 23
Figura 5 - Complexo do Alemão 2015 ............................................................................................... 25
Figura 6 - Casa Tela no Cantagalo .................................................................................................... 27
Figura 7 - Esquema actancial ............................................................................................................. 42
Figura 8 - Quadro actancial da obra .................................................................................................. 53
Figura 9 - Possível localização da Favela do Berimbau .................................................................. 69
Figura 10 - Locais reais que aparecem em Inferno.......................................................................... 72
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 8

1 A CIDADE FAVELA NO RIO DE JANEIRO: SURGIMENTO E CONSTITUIÇÃO 12

2 TEORIA DA LITERATURA: A REPRESENTAÇÃO .............................................. 28


2.1 FILOSOFIA E MÍMESE .................................................................................... 28
2.2 INTRODUÇÃO À MÍMESE .............................................................................. 33
2.3 A NARRATIVA ................................................................................................. 39
2.3.1 Plano da história ...................................................................................... 40
2.3.2 Plano do discurso .................................................................................... 44

3 A FAVELA NO INFERNO ...................................................................................... 48


3.1 UMA PRIMEIRA OLHADA PARA O INFERNO................................................ 48
3.2 O DISCURSO DO INFERNO ........................................................................... 62
3.3 O ESPAÇO DO INFERNO ............................................................................... 65

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 78

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 81
8

INTRODUÇÃO

Ao contrário do que se pensa, o Brasil nasceu de uma série de violências


cometidas pela classe dominante como forma de dominação social para a
construção da história brasileira. Lutas cruentas ao longo de todo o território nacional
surgiram como manifestação e insatisfação contra o governo. No entanto,

nessas lutas, índios foram dizimados e negros foram chacinados aos


milhões, sempre vencidos e integrados nos plantéis de escravos. O povo
inteiro, de vastas regiões, às centenas de milhares, foi também sangrado
em contra-revoluções sem conseguir jamais, senão episodicamente,
conquistar o comando de seu destino para reorientar o curso da história.
(RIBEIRO, 2001, p. 25-26).

Ou seja, a história do Brasil confunde-se com as mais diversas cenas de


violência. Desde a chegada dos primeiros colonizadores, incutiu-se a ideia de um
lugar conhecido como Novo Éden, um paraíso na Terra, contudo, durante o
processo de colonização esqueceu-se da ideia idílica e formou-se um povo a partir
dos mais diversos tipos de violência. Seja violência com os índios, ou com milhares
de negros trazidos da África, ou com a morte de outras centenas de milhares de
pessoas que foram tiradas de suas casas para a construção de uma cidade mais
bela, ou durante as ditaduras, ou mesmo com a crescente onda de violência que
começou nas grandes cidades, mas que atualmente está também nas pequenas
cidades do Brasil. O Rio de Janeiro do final do século XIX e início do XX é prova das
barbaridades cometidas contra pessoas que tiveram suas casas desapropriadas à
força nos morros e em cortiços do centro, pois estavam manchando a imagem do
cartão postal da cidade.
A desapropriação, que, na maioria das vezes, foi feita por meio da violência,
sem que houvesse uma compensação financeira ou mesmo um novo lugar para os
desabrigados, fez com que muitas pessoas procurassem os morros da cidade ou
fossem jogadas para a margem, afastadas do centro e esquecidas. O espaço central
foi deixado para a classe alta. O problema de tudo isso é que não houve
preocupação com o bem-estar de todas as pessoas de forma igualitária; ao
contrário, uma classe social foi preferida em detrimento da outra.
O Brasil sempre foi marcado pela ambivalência e ambiguidade. País da
mistura de raças, do hibridismo cultural, do sincretismo religioso,
considerado por alguns como sua marca identitária, sua diferença, pensado
por outros como a sua desgraça, a marca da sua inferioridade racial,
cultural e política. O seu próprio nome [...] foi objeto das ambivalências do
9

pensamento ocidental diante do seu significado: seria o paraíso ou o


inferno? Mudou de signo por isso. Antes Terra de Santa Cruz, depois Brasil,
a cor da madeira associou-o desde então ao inferno. Do mesmo modo, volta
e meia abre-se a discussão sobre a índole pacífica do seu povo ou a
violência inerente às relações sociais de um país escravista, colonizado ou
hierárquico. Antes o país modelo mundial das relações sociais pacíficas e
democráticas, hoje o inferno do apartheid mais iníquo da humanidade, pior
que os Estados Unidos, pior que a África do Sul. (ZALUAR, 2000, p. 49).

A violência discutida por Darcy Ribeiro, Alba Zaluar e outros teóricos também
está presente na Arte como um todo, e, mais especificamente, na literatura. Ao
mesmo tempo em que a sociedade percebe que há determinados problemas sociais,
a arte reflete e é reflexo daquilo que está acontecendo na realidade, indiferente do
tempo. Ao longo da história do Brasil, a literatura refletiu na ficção aspectos que
estavam presentes na realidade. Desse modo, a literatura, enquanto arte, vai
explorar as manifestações de violência no espaço urbano em diferentes tempos.
Quando estabelecemos uma relação entre a violência e as manifestações
culturais e artísticas é para sugerir que a representação da violência
manifesta uma tentativa viva na cultura brasileira de interpretar a realidade
contemporânea e de se apropriar dela, artisticamente, de maneira mais
“real”, com o intuito de intervir nos processos culturais. (SCHOLLHAMMER,
2008, p. 58).

Assim sendo, as relações humanas violentas presentes na literatura surgem


como produto daquilo que ocorre no cotidiano. A partir disso, faz-se necessário
estudar esse produto sócio-histórico-cultural contemporâneo, a favela, para pensar
os problemas sociais do país representados na literatura. Diante disso, justifica-se
este trabalho de conclusão de curso sobre a representação da favela carioca –
espaço comumente marcado pela violência urbana – na obra literária Inferno, de
Patrícia Melo, pois esta reflete e se apropria de uma realidade presente na cidade do
Rio de Janeiro.
Segundo o Censo de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), divulgado pela Folha Política1, 11.425.644 pessoas (cerca de 6% da
população do país) moram em favelas, ou conforme o nome técnico dado pelo
instituto, aglomerados subnormais2, termo adotado a partir de 1987 para os Censos

1 Disponível em: <http://folhapolitica.jusbrasil.com.br/noticias/113685444/mais-de-11-milhoes-vivem-


em-favelas-no-brasil-diz-ibge>. Acesso em: mar. 2016.
2 Segundo o site do IBGE, um aglomerado subnormal é constituído por 51 moradias ou mais

caracterizadas por ausência de título de moradia e por irregularidade nas vias de circulação e dos
tamanhos dos lotes e/ou pela falta de serviços públicos essenciais, tais como rede de esgoto, energia
elétrica, coleta de lixo, entre outros. Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/ppts/00000015164811202013480105748
802.pdf>. Acesso em: abr. 2016.
10

de 1991 e de 2000. Desse total, 1.702.073 pessoas moram em favelas na região


metropolitana do Rio de Janeiro, cidade que possui a maior favela brasileira, a
Rocinha3. Há uma década, a cidade maravilhosa possuía 1.387.889 pessoas nesses
espaços. Em vista do crescimento acelerado desses espaços marginalizados, faz-se
necessário o estudo do que está sendo produzido pela literatura, mais
especificamente a análise da representação da favela no livro Inferno. Diante dos
números, constata-se que as pessoas que moram em favelas estão longe de ser
minorias no Brasil.
Este trabalho está dividido em três capítulos: o primeiro consiste na análise
histórica do surgimento e constituição da favela carioca, desde a Abolição da
Escravatura até a contemporaneidade, apoiado no estudo de Rafael Soares
Gonçalves (2013), Mauricio de Almeida Abreu (1988), Lilia Moritz Schwarcz e
Heloisa Murgel Starling (2015), Renato Meirelles e Celso Athayde (2014), entre
outros estudiosos, faz-se necessário o estudo histórico, para uma maior
compreensão do processo de desenvolvimento desse espaço e, dessa forma,
compreender de onde a favela vem, além dos fatores que a influenciaram ao longo
de mais de cem anos de história; o segundo capítulo aborda a representação e
mímese e fundamenta-se no estudo de alguns teóricos da Teoria da Literatura e da
Representação, tais como Antoine Compagnon (2012), Lígia Militz da Costa (2001),
Luiz Costa Lima (2014), Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1988), Juracy Assmann
Saraiva (2001), Vitor Manuel de Aguiar e Silva (2011), com este estudo, pretende-se
argumentar e apontar para algumas “luzes” na filosofia e na teoria da literatura,
refletindo, assim, a respeito dos conceitos-chave para a análise da obra literária, ou
seja, a partir da discussão filosófica e literária embasar a análise de Inferno; e, por
fim, o último capítulo, compõe-se da relação entre a história e a teoria da
representação e, a partir desses elementos, da análise do livro Inferno, de Patrícia
Melo, sem perder de vista esses aportes teóricos que levaram até o último capítulo
analítico. Ou seja, analisar-se-á como a favela é representada no romance, o que
inclui a análise da espacialidade, das personagens e suas ações narrativas, ou seja,
análise discursiva.

3 Quanto ao número exato de moradores, não há um consenso, pois o censo do IBGE de 2010 diz
que há 69.161 habitantes, já as lideranças comunitárias afirmam que há entre 180 mil e 220 mil
moradores. Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2011/12/maior-favela-do-pais-
rocinha-discorda-de-dados-de-populacao-do-ibge.html> e <http://vivafavela.com.br/449-censo-nas-
favelas-e-controverso/>. Acesso em: abr. 2016.
11

Todo o estudo proposto neste trabalho de conclusão de curso quer refletir


sobre aquilo que está presente na realidade e que a arte, no caso a literatura,
discute. O que se pretende fazer ao longo desta monografia é perceber de que
modo a favela carioca está representada em Inferno, para, a partir disso, entender
os processos violentos que desde o início da colonização mancharam o solo do
Brasil. Como todo trabalho acadêmico, não é possível dizer tudo a respeito de um
mesmo tema, pois a impossibilidade de tudo dizer faz parte do trabalho teórico e da
investigação científica. Assim, o que segue é o desenvolvimento de um tema a partir
de leituras teóricas escolhidas em detrimento de outras, contudo estas poderão ser
utilizadas em um trabalho posterior durante a pós-graduação, levando-se em
consideração que o autor pretende continuar no meio acadêmico e desenvolver o
tema da Representação na Teoria da Literatura, aplicado às obras literárias que
procuram representar na ficção a favela brasileira.
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1 A CIDADE FAVELA NO RIO DE JANEIRO: SURGIMENTO E CONSTITUIÇÃO

O presente capítulo consiste na análise do processo de surgimento e


desenvolvimento da favela no Rio de Janeiro desde o século XIX até o XXI. Com
isso, pretende-se apresentar quais fatores e elementos levaram esse espaço
marginal a ser o que é.
Apenas a partir do século XIX, a cidade do Rio de Janeiro começa a ganhar
formas urbanas, pois até então era fechada, cercada pelos Morros do Castelo, de
São Bento, de Santo Antônio e da Conceição. Era uma cidade habitada em sua
maioria por escravos, pouco desenvolvida e reduzida às elites administradora, militar
e mercantil, que dirigiam a cidade. Com a vinda da família Imperial, a atenção muda,
pois acontece um desenvolvimento econômico na cidade, seja pela imposição de
uma classe social quase inexistente, seja pelo desenvolvimento do café. Além disso,
ao longo do século, o Rio de Janeiro passa a atrair capitais internacionais
(transportes, esgoto, gás, etc.), via concessões obtidas do Estado. Com o passar do
tempo, a cidade se movimentará por duas vias: a capitalista e a escravista.
Com a inauguração do primeiro trecho da Estrada de Ferro Dom Pedro II
(atual Central do Brasil), em 1858, a cidade começa a se dissolver, pois permitiu a
ocupação de outras áreas até então desabitadas, o que acontece principalmente a
partir de 1861. Com a expansão das linhas de trens e bondes, a cidade começa a se
expandir e os capitais acumulados pelos cafeeiros foram aplicados somente
próximos da linha de bonde.
Com a expansão das linhas de trem da Estrada de Ferro Dom Pedro II até os
subúrbios, consequentemente, a população nessas áreas também se desenvolveu e
aumentou consideravelmente, pois então as pessoas não precisavam morar no
centro da cidade, onde o aluguel era alto, mas podiam viver em locais mais baratos,
já que possuíam meio de transporte para chegarem ao seu local de trabalho. Com
isso, as empresas de trem começaram a adequar seus horários aos horários de
entrada e saída das empresas do centro.
Além desses fatores de desenvolvimento da cidade, a favela carioca também
é o resultado de uma série de eventos históricos do final da Monarquia e início da
República. Os primeiros morros do Rio de Janeiro foram ocupados, segundo Rafael
Soares Gonçalves (2013), por negros que foram libertados por terem lutado na
13

Guerra do Paraguai (1864-1870). Logo em seguida, a Lei do Ventre Livre de 19714,


que contribuiu para o desenvolvimento das favelas, pois assim que eram libertados,
os negros não tinham para onde ir e então se instalaram nos morros ou em pensões.
Também a Lei dos Sexagenários de 18855, que libertava os escravos com mais de
sessenta anos, contribuiu para o desenvolvimento e crescimento dos casebres nos
morros do Rio, pois, da mesma forma que a Lei do Ventre Livre, esses ex-escravos
não tinham para onde ir e, com isso, só lhes restavam os morros dessa cidade.
Esses eventos pré-abolição contribuíram para a aglomeração nos morros de
forma lenta e gradual. No entanto, o que resultou no crescimento e na expansão das
favelas de forma mais rápida foi a Abolição da Escravatura no Treze de Maio de
1888, uma vez que acelerou o processo de ocupação de morros e cortiços do Rio de
Janeiro.
Diferentemente de outros países americanos, no Brasil, após a libertação, os
escravos não receberam auxílio material e financeiro para recomeçarem suas vidas.
Além disso, em 1889, a Monarquia cai e é instaurada a República, que deveria
proporcionar mais condições não apenas aos negros, mas às camadas sociais mais
baixas, o que, de fato, não aconteceu.
Os ex-escravos, marcados pelo legado da escravidão, não conseguiram,
salvo raras exceções, competir com o estrangeiro no mercado de trabalho,
e a maioria continuou como trabalhador de enxada, num estilo de vida
semelhante ao de outrora. Alguns, atraídos pela miragem da cidade,
aglomeraram-se nos núcleos urbanos, onde passaram a viver de
expedientes, incumbindo-se das tarefas mais subalternas. Outros
abandonaram as fazendas e dedicaram-se à cultura de subsistência. A
liberdade significava para eles a possibilidade de escolher com quem,
quando e como trabalhar, e, principalmente, o direito de não fazer nada. O
esquema de vida a que estavam habituados dificultava-lhes a adaptação ao
trabalho livre. O negro será um marginal e desenvolverá formas de
comportamento típicas do marginalismo. Como a Abolição resultara mais do
desejo de livrar o país dos inconvenientes da escravidão do que de
emancipar o escravo, as camadas sociais dominantes não se ocuparam do
negro e da sua integração na sociedade de classes. O ex-escravo foi
abandonado à sua própria sorte. Suas dificuldades de ajustamento às novas
condições foram encaradas como prova de incapacidade do negro e da sua
inferioridade racial. Chegou-se a dizer que era mais feliz na situação de

4 Esta Lei mais privilegiou as elites do que os próprios negros, pois só seriam livres os negros
nascidos após a data da promulgação da Lei. No entanto, muitas datas de nascimento foram
alteradas, pois, segundo essa regulamentação, as crianças deveriam permanecer com suas mães até
os oito anos e, logo em seguida, receber a liberdade. Com isso, o dono do escravo ganhava do
governo 600 mil ou o jovem negro deveria trabalhar até os 21 anos de idade e aí seria libertado.
5 Segundo Lei de 1885, todo negro acima de sessenta e cinco anos seria livre, contudo, os que já

possuíssem sessenta anos deveriam trabalhar por mais três anos, como indenização ao seu senhor,
antes da tão sonhada liberdade. Ou seja, o negro deveria trabalhar por mais algum tempo para poder
comprar sua liberdade. Dessa forma, é possível perceber que essa Lei existiu para privilegiar os
senhores e não os escravos, mascarando a boa intenção de libertar os escravos.
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escravo do que na de homem livre, pois não estava apto a conduzir a


própria vida. (COSTA, 2010, p. 343).

Agora, os ex-escravos, além da dificuldade imanente de conseguirem um


trabalho, tinham que competir com os imigrantes que chegavam ao porto do Rio de
Janeiro e que estavam em busca de trabalho nas fazendas de café. Essa vinda para
o Brasil resultou de um esforço por parte da Primeira República em atrair imigrantes
para as fazendas de café do Sudeste e para as cidades que cresciam e ofereciam
empregos e serviços.
Enganados por uma propaganda ilusória, poloneses, alemães, espanhóis,
italianos, portugueses e, mais tarde (a partir dos últimos anos da década de
1910), japoneses, foram tomados por uma febre imigratória. O mito da
abundância dos trópicos casou-se bem com uma Europa que expelia sua
população pobre e seus pequenos proprietários endividados. [...] Estima-se
que mais de 50 milhões de europeus abandonaram seu continente de
origem em busca da tão desejada “liberdade”, que vinha sob a forma de
propriedade e emprego. (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 323).

Com a falta de trabalho no interior, pois os senhores não queriam empregar o


ex-escravo, o negro migrou para a cidade e se instalou nos morros, em casas
paupérrimas ou, quando possuíam dinheiro e conseguiam pagar, ficavam em
pensões ou cortiços no centro da cidade, contudo as cidades também estavam
cheias de imigrantes que ocupavam o espaço que poderia ser do ex-escravo. Ao
chegarem às cidades, na maioria das vezes, os negros foram para a margem, pois o
desejo da Abolição por parte da Monarquia brasileira não foi resultado da
preocupação com o ser humano, mas por pressão da Inglaterra, que cortaria o
vínculo econômico com o Brasil caso este não terminasse com a escravidão. Com
essas pressões, o Brasil foi obrigado a libertar os seus escravos mais por anseios
políticos do que humanitários, mesmo assim, a Princesa Isabel recebeu o título de
“A Redemptora”.
Em 1889, o Rio de Janeiro, enquanto capital política e administrativa, já
contava com cerca de 500 mil habitantes. Após a Proclamação da República, esse
número aumentou, resultado da vinda de ex-escravos das fazendas de café, de
açúcar ou de algodão, mais uma parte da população que veio do interior após a
crise do café, segundo Schwarcz e Starling:

No período que vai de 1872 a 1900, foi na Região Nordeste que houve
maior perda populacional, como consequência do comércio interno de
escravos que despovoou a economia do açúcar e do algodão, e reforçou a
densidade dos estados cafeeiros. Castigados pelas secas de 1870 e 1880,
grupos de migrantes dirigiram-se para o Rio de Janeiro, que funcionava
15

como chamariz cultural, além de se apresentar como provedor de empregos


em geral, e mais especificamente para o funcionalismo público e estatal.
(2015, p. 326).

Com essas migrações, muita gente se estabeleceu nos cortiços e morros do


Distrito Federal, pois a cidade carioca não estava preparada para receber esse
intenso movimento interno nem estava pronta para incluir todos os imigrantes que
chegavam.
Da mesma forma, os cortiços no centro do Rio de Janeiro foram importantes
para o surgimento das primeiras favelas, pois essas habitações abrigavam os
moradores que mais tarde iriam compor os assentamentos em morros e as margens
da cidade. Os cortiços são vistos como “sementes de favela”, pois dentro dos
grandes cortiços já se percebia o aglomerado de casebres e barracões, conforme o
que se verá anos mais tarde nas favelas. O primeiro grande cortiço a ser demolido
foi o Cabeça de Porco, em 1893, quando o governo do Rio de Janeiro decidiu-se por
sua demolição, ele abrigava em torno de 2 mil pessoas, e a solução encontrada por
essa gente foi a de se abrigar nos morros da cidade.
Um dos maiores cortiços da Corte ficava próximo à estação da estrada de
ferro D. Pedro II, na rua da Princesa (Barão de São Félix), denominado
Cabeça-de-Porco – nome que posteriormente, foi incorporado ao
vocabulário corrente como sinônimo depreciativo de habitação coletiva.
Segundo a pesquisadora Lilian F. Vaz, o nome do cortiço surgiu em virtude
da forma característica da entrada do conjunto: um grande portal em arcada
ornamentado com a figura de uma cabeça de porco. Era constituído por
sobrados, térreos e quartos. Em relação aos moradores, dizia-se, na época,
que eram capoeiras, ladrões, meretrizes de baixa classe e assassinos, isto
é, “classes perigosas”. Na verdade, reunia muitos dos trabalhadores da
pedreira dos Cajueiros, no morro da Providência, situada atrás do cortiço.
Apesar de inúmeras investidas para sua destruição, no final do Império, ele
só foi demolido, em 1893, já na República. (NEVES; MACHADO, 1999, p.
330).

O prefeito Barata Ribeiro ficou poucos meses no governo, pois o então


presidente Floriano Peixoto (1891-1894) nomeou-o em dezembro de 1892, contudo
o senado não ratificou essa nomeação. O governo de Barata Ribeiro durou até 26 de
maio de 1893, mesmo assim, durante esse curto período, o prefeito conseguiu
demolir o maior cortiço do Rio de Janeiro: o Cabeça de Porco. Demolição essa
baseada na sua política sanitarista de remoção dos cortiços, pois no início da
década de 1890 as epidemias haviam se agravado no Distrito Federal.
16

Figura 1 - Imagem do cortiço Cabeça de Porco

Fonte: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/rio-450-anos/noticia/2015/01/conheca-historia-da-1-favela-
do-rio-criada-ha-quase-120-anos.html Acesso em setembro de 2015.

Figura 2 - A destruição do cortiço Cabeça de Porco pela Revista Ilustrada, de 1893.

Fonte: http://www.projetomemoria.art.br/OswaldoCruz/verbetes/cabeca_porco.html Acesso em janeiro


de 2016.
17

E antes mesmo da vinda dos soldados da Campanha de Canudos, as


pessoas que perderam suas casas nos cortiços já haviam recebido a autorização do
governo de habitar o Morro da Providência (VALLADARES, 2015). A decisão de
demolição desse cortiço vinha sendo adiada, pois havia o boato que o marido da
Princesa Isabel, o Conde D’Eu era um dos proprietários desse espaço urbano
(ABREU, 1988).
Também vieram para o Rio de Janeiro, em 1897, com a autorização do
Exército, os soldados com suas mulheres que retornavam da Guerra de Canudos e
que se estabeleceram no antigo Morro da Providência, próximo ao centro da cidade
e do Ministério da Guerra, que, por sua vez, já estava sendo ocupado por pessoas
que perderam suas casas nas destruições dos cortiços do centro do Rio. “Contudo,
o que era abrigo transitório se transformou em moradia definitiva, assim como os
morros nas laterais da cidade foram sendo ocupados” (SCHWARCZ; STARLING,
2015, p. 337). A palavra “favela” surge nesse contexto, pois havia uma planta
rasteira no arraial seco de Canudos conhecida por “Favela” e que lá nomeava um
morro chamado Favela. A partir da vinda dos soldados para o Rio de Janeiro, a
associação foi feita e àqueles que vieram de Canudos deram o nome ao Morro da
Providência de Morro da Favela, ao conjunto de casebres erguidos pelos ex-
combatentes de Canudos.
18

Figura 3 - Quartel General e Morro da Providência em 1990

Fonte: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/rio-450-anos/noticia/2015/01/conheca-historia-da-1-favela-
do-rio-criada-ha-quase-120-anos.html Acesso em: janeiro de 2016.

Mais tarde, o presidente Rodrigues Alves (1902-1906) montou uma equipe


para “regenerar” o Rio de Janeiro: Lauro Müller ficou responsável pela modernização
do porto; Oswaldo Cruz, pelo saneamento da cidade e, por fim, a reforma urbana,
sob a responsabilidade de Pereira Passos. Com as políticas de embelezamento e de
higienização, Pereira Passos foi o primeiro prefeito a expulsar a população pobre do
centro do Rio de Janeiro. Assumiu a administração da cidade em 1902 e logo
começou a ditadura do “bota-abaixo”, “que demolia casas, cortiços e os hotéis
baratos” (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 327).
Pereira Passos, também conhecido como “Haussmann6 tropical”
(GONÇALVES, 2013), baseado no modelo de Paris, queria transformar o Rio de
Janeiro em uma nova cidade e, ao mesmo tempo, rivalizar com Buenos Aires, que
havia reformado a cidade segundo modelos europeus. As reformas foram: criação
de um novo porto que atendesse à demanda de importação/exportação que a capital
pedia na época, ao mesmo tempo, era preciso construir uma capital que

6Georges-Eugéne Haussmann (1809-1891), foi prefeito do departamento do Sena, em Paris, durante


os anos de 1853 e 1870. Ao longo desse período, foi responsável pela reforma urbana da capital da
França e, com isso, ficou conhecido pelo mundo todo. Seu exemplo foi seguido por outras cidades;
além do Rio de Janeiro, Buenos Aires também seguiu a mesma estrutura de reforma urbana.
19

simbolizasse o poder do país enquanto principal produtor de café do mundo.


Entretanto, com o surgimento do bonde elétrico e do automóvel, as ruas escuras e
estreitas não condiziam com a modernidade, bem como os cortiços, as carroças e os
animais. Era preciso acabar com a noção de que o Rio de Janeiro era sinônimo de
febre amarela e adequá-lo às rivais platinas com obras pela cidade. Mas
a mais importante, em termos de transformação da forma urbana, foi sem
dúvida a construção da Avenida Central (atual Rio Branco), para cuja
abertura foram demolidas “duas ou três mil casas, muitas com famílias
numerosas” [...]. Esta avenida era, sem dúvida, o complemento natural de
duas outras grandes obras que se realizavam na cidade, ou seja, a Avenida
Beira Mar (pela administração Passos) e o novo porto do Rio de Janeiro (a
cargo da União). (ABREU, 1988, p. 63).

A Avenida Central foi aberta em 7 de setembro de 1905, e sua inauguração


se deu em 15 de novembro de 1906, na véspera do encerramento do mandato de
Pereira Passos.
Em 1904, após a série de demolições da Reforma Passos, surgiu uma
manifestação popular contra as medidas que visavam erradicar a febre amarela. A
Revolta da Vacina (de 10 a 16 de novembro) foi o resultado da má informação e de
várias histórias contadas a respeito da vacina em si, pois os antigos moradores dos
cortiços foram obrigados a sair de suas casas. A maioria partiu para os subúrbios,
outros foram para cortiços que escaparam das demolições, e uma outra parte se
ajuntou nos morros da cidade. Destarte, a população foi contra o poder das brigadas
que podiam entrar nas casas e vacinar à força as pessoas. A eficácia científica da
vacina também foi questionada por muitos; bem como um discurso moralista
também surgiu devido à inconveniência do contato físico das brigadas com esposas
e filhas.
A incompreensão de parte a parte provocou uma verdadeira explosão, com
direito a quebra de meios de transporte, depredação de edifícios e ataque a
agentes higienistas. O governo reagiu com violência: decretou estado de
sítio, suspendeu direitos constitucionais, prendeu os líderes do movimento e
os deportou para o atual estado do Acre. A revolta foi finalmente controlada,
mas o saldo restou ambivalente: de um lado erradicou-se a varíola na
cidade do Rio de Janeiro; de outro, chegou a trinta o número de mortos
durante a rebelião, e a 110 os registros de feridos. (SCHWARCZ;
STARLING, 2015, p. 329).

O centro do Distrito Federal estava um caos: as madeiras que sobraram das


demolições foram incendiadas, meios de transporte foram usados como trincheiras e
os edifícios foram depredados por parte da população. A resistência popular se deu
principalmente perto do Morro da Favela, no bairro da Saúde, o que contribuiu para
20

consolidar a visão do local como perigoso, antro de marginalidade e criminalidade.


“O último ato da resposta brutal da polícia se desenrolou nesse morro: no dia 23 de
novembro, 180 soldados subiram o morro para revistar cada uma das casas. Era o
fim da revolta” (GONÇALVES, 2013, p. 55). Para Gonçalves (2013), a Revolta
terminou com a subida da polícia no morro para revistar todos os barracos, ver se
não havia ficado ninguém para “trás”. A Revolta da Vacina foi a primeira tentativa do
governo de remoção das pessoas do Morro da Favela, no entanto, não deu muito
certo. Após as coisas se acalmarem, o governo percebeu que aquela população era
necessária para a cidade, pois havia muitos trabalhadores ali que estavam
empregados na pedreira que havia atrás do morro, no cais do porto, em obras
públicas e usinas da região.
De 1906 a 1930, há uma das maiores contradições no discurso a respeito do
urbano na cidade do Rio de Janeiro, porque, na verdade, as administrações estavam
interessadas em ajustar o centro da cidade. Com o Centenário da Proclamação
Independência, em 1922, o Morro do Castelo foi desmontado, durante o governo de
Carlos Sampaio (1920-1922), de modo que cerca de 5 mil pessoas ficaram
desabrigadas. O intuito do desmonte foi o de embelezar o centro e delimitar os
limites do centro da cidade.
O desmonte do morro se justificava, assim, pela necessidade de concluir a
delimitação do centro da cidade como área de negócios, expulsando os
últimos focos de habitações vetustas e populares. Esse processo só se
encerrou com o nivelamento do Morro de Santo Antônio, realizado durante a
década de 1950. Vale observar que apenas os morros da parte leste do
centro da cidade foram arrasados. Assim fazendo, os poderes públicos
estimulavam a expansão do dinamismo das regiões centrais em direção à
Zona Sul da cidade, eliminando as barreiras naturais para a circulação entre
essa região e o centro da cidade. (GONÇALVES, 2013, p. 84).

A contradição do discurso se encontra justamente no ponto referente à


expansão urbana, pois a partir desse momento a Zona Sul da cidade começa a ser
planejada, enquanto milhares de dezenas de pessoas vêm para o Rio de Janeiro e
vão para os subúrbios e morros da cidade.
Nas administrações de 1906 a 1930 no Rio de Janeiro, a única, quase
exclusiva, preocupação da Prefeitura era com a urbanização e embelezamento da
Zona Sul e do Centro da cidade. Algumas vezes viu-se uma melhora das vias que
ligavam o Centro aos subúrbios, podendo-se acreditar que o olhar da administração
seria para esse outro lado, no entanto, o que aconteceu foi um desejo de alocação
21

de recursos, pois precisava-se de vias melhores para o abastecimento do Distrito


Federal pelos produtos produzidos no meio rural:
[...] o período de 1906-1930 caracterizou-se pela expansão notável do
tecido urbano do Rio de Janeiro, processo esse que se efetuou de maneira
distinta no que se refere aos dois grandes vetores de crescimento da
cidade. De um lado, a ocupação das zonas sul e norte pelas classes média
e alta intensificou-se, e foi comandada, em grande parte, pelo Estado e
pelas companhias concessionárias de serviços públicos. De outro, os
subúrbios cariocas e fluminenses cada vez mais se solidificaram como local
de residência do proletariado, que para aí se dirigiu em números
crescentes. Ao contrário da área nobre, entretanto, a ocupação suburbana
se realizou praticamente sem qualquer apoio do Estado ou das
concessionárias de serviços públicos, resultando daí uma paisagem
caracterizada principalmente pela ausência de benefícios urbanísticos [...].
(ABREU, 1988, p. 82).

Enquanto a atenção dos governantes estava voltada para o centro e para a


Zona Sul, uma grande parte da cidade se desenvolvia sem o menor financiamento e
apoio do Estado, pois, nesse momento, as indústrias se multiplicaram e se
instalaram nos subúrbios da cidade, aumentando para esses locais as moradias dos
trabalhadores bem como nos morros ao redor desses novos lotes de terras. Não
obstante, os Governos da União e do Distrito Federal, “representando as classes
dominantes, atuam preferencialmente na esfera do consumo, incentivando a
continuidade do processo de renovação urbana da área central e de embelezamento
da zona sul” (ABREU, 1988, p. 72).
Com o apoio de Mattos Pimenta (ora apresentado como jornalista e
engenheiro, ora como médico sanitarista, que conseguiu através da imprensa o
apoio necessário para que fossem construídas casas populares), em 1927, surge o
Plano Agache, como última tentativa do Estado de dominar e controlar o
desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro. O urbanista, arquiteto e sociólogo
francês Alfred Agache chegou ao Rio de Janeiro pela primeira vez em 1927 a
convite oficial do então prefeito Antonio Prado Junior (1926-1930). Agache ficou
responsável pelo Plano de Remodelação do Rio de Janeiro, o qual, segundo
Mauricio de Almeida Abreu (1988), não podia conceber que o Centro e a Zona Sul
abrigassem a classe pobre, de modo que essas zonas seriam destinadas às classes
alta e média, e os subúrbios, aos pobres.
As contradições por ele engendradas negavam toda a tentativa de controle
abrangente do espaço que se pretendia implantar. Em primeiro lugar,
porque aproximavam classes sociais opostas, cidadãos de primeira e
segunda classe por assim dizer. [...] Em segundo lugar, porque essa
aproximação resultava na imposição de externalidades negativas às classes
dominantes, tanto no que diz respeito à sua segurança e qualidade de vida,
22

quanto à manutenção da ordem social estabelecida [...] Em terceiro lugar,


porque os “nômades” da favela vinham se “sedentarizando” demais, isto é,
vinham tomando posse efetiva dos morros da cidade, reproduzindo inclusive
padrões de comportamento social e econômico bastante aceitáveis para o
restante da cidade, mas intoleráveis nas favelas [...]. (ABREU, 1988, p. 90).

O Plano ainda previa, após a retirada da população dos morros centrais, a


construção de casas higiênicas e práticas para que a população pudesse ter onde
morar, porque, se isso não acontecesse, as pessoas poderiam voltar para o morro
novamente. Todas essas ideias, entretanto, já haviam sido publicadas por Mattos
Pimenta, jornalista da época, e fortemente apoiadas pela imprensa e pelas classes
alta e média cariocas (GONÇALVES, 2013). Pimenta também já tinha proposto a
construção, em parceria com o Banco do Brasil, de prédios com seis andares, cada
um com 120 apartamentos para abrigar as pessoas que moravam nas favelas. No
entanto, o Plano Agache, com a Revolução de 307, nunca foi posto em prática, no
entanto, o prefeito Henrique Dodsworth (1937-1945) adotou partes desse plano na
sua administração, como, por exemplo, a construção da avenida Presidente Vargas,
que já estava prevista por Agache. Enquanto isso, o número de casebres entre 1920
e 1933 cresceu cerca de seis vezes, e já abrigava aproximadamente 70 mil pessoas
espalhadas nos morros do Rio de Janeiro.
Durante o período de 1930 a 1964, muitas casas populares nos subúrbios
foram construídas, bem como a primeira escola pública em território favelado, mais
especificamente, segundo Luis Kehl (2010), na Mangueira, durante o governo do
prefeito Pedro Ernesto (1931-1934). Isso é reflexo da política populista e paternalista
de diversos órgãos governamentais. Essas construções, se não conseguiram
recolher votos, ao menos conseguiram modificar a aparência e a forma dos
subúrbios cariocas e diminuir o número de pessoas abrigadas nos morros.
Com a “febre viária” dos anos cinquenta e sessenta, era preciso mais uma
vez reformar a cidade, reorganizá-la de modo que o acesso ao centro, à zona sul e a
outros lugares ficasse mais ágil, ou seja, fazer mais uma cirurgia urbana, abrindo
caminho para novas ruas, viadutos e túneis, tirando bairros do caminho.

7 A Revolução de 1930 deu-se a partir do golpe de estado que depôs o então presidente da República
Washington Luís e, ao mesmo tempo, o seu sucessor Júlio Prestes e colocou no poder Getúlio
Vargas, marcando o fim da República Velha. No ano anterior, houve a queda da bolsa de Nova
Iorque, o que prejudicou a economia, tendo em vista que influenciou o comércio do café produzido no
Brasil, sendo que ocorreu, inclusive, queima de sacos de café para abaixar o preço. (SCHWARCZ;
STARLING, 2015).
23

Era preciso, entretanto, que essa decisão fosse tomada formal e


“cientificamente”. Assim, tal como na década de 1920, era necessário que a
cidade viesse a ter um novo plano urbanístico, contratado agora à firma
grega Doxiadis and Associates. No que toca ao processo de estratificação
social do espaço carioca, o Plano Doxiadis pouco diferia do Plano Agache.
Pretendia “remodelar” a cidade a partir de uma série de obras que afetariam
(como afetaram) principalmente as populações mais pobres. No que diz
respeito ao momento em que ele é produzido, o plano assume entretanto
significado maior, pois ele é elaborado em pleno período autoritário. É a
partir dessa época que a revolução da cidade retoma o seu curso original –
baseado na separação das classes sociais no espaço – um curso que havia
sido apenas temporariamente sustado durante o período populista.
(ABREU, 1988, p. 95).

Com a eleição de Carlos Lacerda (1960-1964) para governador do antigo


estado da Guanabara, outras favelas que restavam no centro da cidade e na Zona
Sul foram destruídas para o término de obras viárias e a construção de viadutos,
praças, avenidas e o tão esperado aterro do Flamengo. Com a remoção das favelas,
o governador precisou criar os conjuntos habitacionais Cidade de Deus e Vila
Kennedy, que, por sinal, ficavam bem distantes do cartão postal do Rio de Janeiro,
para onde foram enviadas as pessoas que antes moravam próximas ao Maracanã e
à Zona Sul.
Figura 4 - Vila Kennedy, década de 1960

Fonte: http://ashistoriasdosmonumentosdorio.blogspot.com.br/2011/08/a-estatua-da-liberdade-de-vila-
kennedy.html Acesso em janeiro de 2016.

A partir da década de 1970, os governos começam a se preocupar e dar


maior atenção às favelas. Contudo, algo há muito tempo já estava acontecendo nos
morros: as pessoas começaram a se organizar e a formar centros comunitários ou
associações de moradores para que pudessem ter uma vida mais digna e justa
nesses lugares, ou seja, a população favelada começava a se organizar de modo
24

que uns pudessem ajudar os outros. Se os governos não se preocupavam e lhes


negavam seus direitos, era hora de fazer alguma coisa.
Sendo assim, esse processo de ajuda mútua perdura até o presente
momento, pois dentro de cada comunidade há ONG’s e outros tipos de movimentos
sociais que auxiliam no desenvolvimento dos moradores, bem como as escolas de
samba, as G.R.E.S. (Grêmio Recreativo Escola de Samba), que promovem ao longo
do ano vários eventos sociais. Exemplo que deu certo é a Central Única das Favelas
(CUFA) — desde 1996, um grupo reunia-se para debater sobre tudo, era a turma do
hip-hop. Com o tempo, foi ganhando espaço nas comunidades e outros apoiadores
surgiram para o desenvolvimento desse trabalho ao lado de MV Bill, Nega Gizza,
Celso Athayde, entre outros. Em 2014, “a organização encontrava-se presente em
27 estados brasileiros e tinha filiais em dez países, cada qual desenvolvendo
projetos adaptados à realidade local das populações carentes ou em processo de
inclusão” (MEIRELLES; ATHAYDE, 2014, p. 127).
Outro exemplo de remodelação e ajuda é o trabalho do Carteiro Amigo que
acontece na Favela da Rocinha, devido ao emaranhado de casinhas e à dificuldade
dos carteiros em entregar a correspondência, pois nas vielas e becos não há nomes
nem números. Esse trabalho complementa o serviço dos Correios e se transformou,
segundo Renato Meirelles e Celso Athayde (2014), em uma microfranquia em que,
no decorrer de uma década, mapearam 12 mil endereços na favela. O trabalho
funciona da seguinte maneira: há um centro em que as correspondências são
deixadas pelos Correios; os funcionários, na Rocinha são sete, distribuem a
correspondência, como aparelhos eletrônicos, DVDs, CDs, livros e tênis comprados
via internet pelos moradores. Com isso, agiliza o processo e auxilia na distribuição
dos produtos.
25

Figura 5 - Complexo do Alemão 2015

Fonte: Acervo pessoal

Desde o seu início, e mais precisamente após a Revolta da Vacina (1904), a


favela é vista como refúgio de marginais e bandidos,
a representação das favelas como epicentros de marginalidade urbana se
disseminou velozmente, o que serviu de justificativa para a construção de
uma retórica institucional a seu respeito, centrada sobre noções de
patologia urbana e de classes perigosas. As favelas acabaram
gradualmente tomando o lugar dos cortiços como maior problema urbano da
cidade, na ausência de uma política pública de habitação popular.
(GONÇALVES, 2013, p. 69).

Da mesma forma, Alba Zaluar e Marcos Alvito expõem o preconceito que


sempre rondou os morros das favelas,
vista pelos olhos das instituições e dos governos, é o lugar por excelência
da desordem. Vista pelos olhos de outras regiões, estados e metrópoles
que concorrem com o Rio de Janeiro pela importância cultural e política do
país, especialmente São Paulo, ela é também, por extensão, a própria
imagem da cidade. Os estereótipos que se formam da cidade são os
mesmos desenvolvidos pela favela. Ao longo deste século, a favela foi
representada como um dos fantasmas prediletos do imaginário urbano:
como foco de doenças, gerador de mortais epidemias; como sítio por
excelência de malandros e ociosos, negros inimigos do trabalho duro e
honesto; como amontoado promíscuo de populações sem moral. Com a
chegada de levas de nordestinos, que traziam outra bagagem cultural, a
favela também passou a ser vista como reduto anacrônico de migrantes de
origem rural mal adaptados às excelências da vida urbana, ignorando-se os
conflitos que advieram da convivência forçada num espaço cada vez menor
entre negros cariocas (“de raiz”) e migrantes nordestinos. (2006, p. 14-15).
26

Apesar desse olhar preconceituoso sobre a favela, ela se reinventa e cresce.


Com a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP’s), os moradores das
favelas encontram meios para criar e ampliar negócios legais, e até mesmo os
informais. Segundo Meirelles e Athayde (2014), há um projeto para a construção de
um shopping center dentro do Complexo do Alemão; já no Chapéu Mangueira,
próximo à praia do Leme, dois empresários resolveram apostar no interesse dos
turistas e criaram um Hostel, o que inclui o Chapéu Tour, que promove passeios
pela mata e por dentro da favela; também vários bancos comunitários, em
associação a outros bancos maiores surgiram desde 1998, pois hoje a grande
maioria dos favelados possui cartão de crédito. Para aqueles que não possuem, há
um projeto que “empresta” o cartão de crédito para os moradores comprarem o que
quiserem, e o débito fica para ser pago depois. Mesmo assim, “o cidadão do morro é
considerado pelos bancos um bom pagador” (2014, p. 75); além disso, o projeto Vai
Voando também auxiliou àqueles que gostariam de fazer viagens de avião e não
tinham como: com a compra pré-paga de passagens pelo morador sem as adesões
burocráticas convencionais, é possível viajar parcelando em mais vezes a passagem
de avião. Em 2008, foi criado o Museu de Favela (MUF) pelos líderes comunitários
das favelas Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, um museu a céu aberto, que percorre
as residências de 20 mil moradores, com aulas sobre a história das favelas. Visitam
exposições, e as casas se transformam em telas para a pintura de grafite (inclusive,
são conhecidas por Casas Tela) e retratam a cultura do morro, conquistas, mas
também perdas, sofrimentos e denúncias a respeito do esquecimento desse local
pelas autoridades.
27

Figura 6 - Casa Tela no Cantagalo

Fonte: http://www.conexaocultural.org/blog/2013/05/museu-de-favela-rio-de-janeiro/ Acesso em


janeiro de 2016.

A favela hoje não é mais a mesma do final do século XIX. Ela ganhou seu
espaço e, aos poucos, os moradores estão conquistando respeito e dignidade. No
entanto, o preconceito está longe de acabar, pois a favela foi e é local de pessoas
que estão envolvidas com o tráfico, crimes e demais tipos de violência. Entretanto, a
maioria das pessoas que habita esse local é composta de trabalhadores e pessoas
honestas que querem conquistar seu espaço e ser respeitadas. A visão mostrada
até aqui a respeito da favela não foi no sentido de mascarar ou negar a violência que
há, pois antes de os traficantes dominarem os morros e periferias, os bicheiros já o
faziam (ZALUAR; ALVITO, 2006), contudo, o que se pretendeu fazer foi mostrar o
percurso histórico-social da favela, que, a despeito de todos os impedimentos do
tempo e dos governos, soube se reconstruir e conseguiu sobreviver como
construção marginal sem a atenção devida de quem poderia fazer alguma coisa.
28

2 TEORIA DA LITERATURA: A REPRESENTAÇÃO

Este capítulo está dividido em três partes: a primeira consiste em discussões


filosóficas a respeito do conceito de mimese; a segunda, a partir de autores ligados
à Teoria da Literatura, procura definir e conceituar o que é “representação” e
mímese, e, por fim, a última parte trata de estudos teóricos a respeito da análise de
obras literárias.

2.1 FILOSOFIA E MÍMESE

É impossível falar de representação sem retornar à filosofia antiga,


justamente porque estão lá algumas bases do pensamento contemporâneo que
deram o fundamento para a teoria da literatura. Segundo Antoine Compagnon,
“desde a Poética de Aristóteles [mímese8] é o termo mais geral e corrente sob o qual
se conceberam as relações entre literatura e realidade” (2012, p. 95).
Contudo, o que se percebe ao analisar os filósofos antigos é que mesmo
antes de Aristóteles e Platão, Górgias (485-380 a.C.) foi o primeiro filósofo a tratar
da poesia. Segundo Enrico Berti (2010), para os antigos, a palavra (logos) possuía
um profundo poder assim como uma ambivalência, ou seja, ela pode ser empregada
para argumentar ou para despertar paixões. Górgias atribui à poesia a função de
despertar paixões, tais como medo, piedade, assim como sugestiona, encanta e
ilude a alma.
Portanto, Górgias tem consciência de que a poesia não comunica a
verdade, mas o erro e, ao persuadir a alma daquele que a escuta, ela o
engana. Ela configura-se como uma verdadeira forma de magia, de poder
extraordinário e quase sobrenatural. E a alma não pode resistir a esse
poder, sendo por ele dominada e, assim, não é responsável pelo que faz
sob sua influência. (BERTI, 2010, p. 238).

8 Será adotado ao longo do trabalho o termo mímese, conforme aparece no Vocabulário Ortográfico
da Língua Portuguesa (Disponível em: http://www.academia.org.br/nossa-lingua/busca-no-
vocabulario. Acesso em: 20 fev. 2016). É importante fazer essa ressalva, pois diversos autores usam
termos diferentes para falar dessa forma de imitação-representação: Antoine Compagnon (2012)
utiliza mimèsis; Enrico Berti (2010), mimesis; Hans Blumenberg (2010), Arbogast Schmitt (2010),
Jean-Pierre Vernant (2010) e Luiz Costa Lima (2014) utilizam o termo mímesis; e, por fim, Lígia Militz
da Costa (2001) prefere o uso de mímese. Como não há um consenso entre os autores, o termo que
será utilizado foi escolhido conforme a aceitação na Língua Portuguesa.
29

Nesse mesmo caminho quase espiritual da poesia, Platão (427-347 a.C.)


atribui a inspiração dos poetas às divindades. No Íon, o filósofo explica o momento
quando o poeta compõe a poesia ou quando o rapsodo a recita: a razão é tomada
por uma divindade que fala pela boca do poeta ou do seu intérprete provocando
emoções seja neste ou naquele que estão descritas. Como a poesia provoca a
perda de juízo, isso também acontecerá em quem ouvi-la, logo, a poesia consegue
provocar a perda de juízo aos poetas, aos rapsodos e a seus espectadores.
A condenação, portanto, da poesia no livro X da República decorre
justamente por esse caráter de eliminação da razão. A educação, para Platão, deve
formar tanto o corpo, por meio da ginástica, quanto a alma, mediante a “música”
(tudo aquilo de que se ocupam as Musas: a música propriamente dita, a dança, o
canto e a poesia). Entretanto, deve-se tomar cuidado com o que é contado para os
guardiões (guerreiros ou governantes), pois há a boa poesia (aquela que está
voltada para a virtude e para as boas ações dos deuses) e a má poesia (que mostra
os vícios, comprometendo a integridade moral dos ouvintes, e a que apresenta as
más ações dos deuses, cujo exemplo são Homero e Hesíodo, segundo Platão). Com
isso, os poetas que se usarem da má poesia devem ser censurados da república
ideal. Outro tipo de fábula que deve ser excluída é a que suscita o medo da morte,
pois “tiraria” a coragem dos guardiões.
Segundo Enrico Berti (2010),
aqui a imitação é condenada principalmente do ponto de vista cognoscitivo:
não só não dá a conhecer a verdade, mas apresenta apenas aparências e,
portanto, afasta, desvia da verdade. Mas Platão condena a imitação
também por outro motivo. Com efeito, a poesia imitativa, representando as
paixões dos homens, permite a quem a escuta ou assiste à representação
experimentar as mesmas paixões, e dessa forma desenvolve a parte
passional da alma do espectador, enfraquecendo-lhe a parte racional. Por
exemplo, a poesia que representa um homem que chora faz chorar,
desenvolvendo assim a parte da alma propensa ao choro, e enfraquecendo
a razão, que, ao contrário, deveria evitar o choro. (p. 247-248).

Quando afirma que a poesia está distante da verdade, Platão argumenta


segundo a sua teoria a respeito do Mundo das Ideias onde estaria a Verdade. Ou
seja, “ao se remedar, ao se simular, não se está reproduzindo uma obra que seja a
cópia exata de um modelo, mas se mostrando um modo de ser que engana o outro,
que se fazia passar por outro, ao assumir as maneiras deste” (VERNANT, 2010, p.
54). Conforme o exemplo dado na República, a cama pintada pelo artista que a pinta
copiando uma que foi fabricada de madeira pelo carpinteiro, o qual copiou a Ideia de
30

cama, única e universal, fabricada, se assim pode-se dizer, pelo “deus”, é mera
cópia imitativa. Entre essas três camas – a fabricada pelo deus, pelo carpinteiro e
pelo pintor – a única verdadeira seria a do deus, pois nela está a essência da cama,
o modelo de todas as outras. A fabricada pelo carpinteiro já é uma cama menos
verdadeira, já a do pintor é tudo menos uma cama. Desse modo, acontece a “[...]
fabricação de cópias, ou antes, de cópias de cópias, distantes duas vezes, portanto,
da verdadeira realidade, fabricação de aparências, de falsidade”. (BERTI, 2010, p.
247).
Quanto, ainda, a Platão, é mister dizer que ele faz uma distinção entre poesia
narrativa, poesia imitativa e poesia mista. A pura narrativa é aquela que conta ações
executadas por outros ou discursos feitos por outros, na forma de discurso indireto,
como o exemplo citado pelo próprio Platão: os ditirambos. Já a imitativa, ao
contrário, é aquela em que o poeta faz as suas personagens falar mediante discurso
direto, ou seja, mediante os diálogos: a tragédia e a comédia. Por fim, a poesia mista
é aquela que alterna entre a imitativa e a narrativa, como, por exemplo, a poesia
épica.
Pois bem, segundo Platão, a poesia imitativa deve ser quase toda
condenada, principalmente porque não está bem que os jovens destinados
a tornar-se guardiões aprendam a imitar mais pessoas. A razão para isso é
que a imitação de uma ação é ela mesma uma ação semelhante à imitada,
e não é possível fazer bem contemporaneamente muitas ações. A poesia
deve ser eliminada por outro motivo: os jovens não devem imitar pessoas
que se comportam mal, ou escravos, ou pessoas enlouquecidas, ou
pessoas indignas de algum modo. Ao contrário, pode-se admitir imitações
de homens de bem, ainda que – Platão o reconhece – sejam menos
agradáveis. Esse reconhecimento é importante, porque isso significa que a
poesia não edificante é com frequência a mais bela, a mais sugestiva, a que
produz maior prazer. Portanto, uma vez mais, Platão mostra-se
perfeitamente consciente do enorme poder emocional da poesia, e, no
entanto, ele a submete às exigências da moralidade. (BERTI, 2010, p. 245).

Aqui imitação não é a simples cópia da realidade, mas representação de


ações e palavras que pareçam verdadeiras mesmo aquelas inventadas pelo poeta.
É exatamente esse caráter representativo, ou inventivo, que torna a poesia, segundo
Platão, por um lado eficaz e, por outro, perigosa do ponto de vista moral. Ainda uma
ressalva é importante, pois Platão, apesar da condenação da poesia, aprecia e
reconhece a grandeza dos poetas, mesmo assim, expulsa-os de sua república ideal.
Já Aristóteles (384-322 a.C), diferentemente do seu mestre Platão, discorda
da teoria do Mundo das Ideias, onde estariam os exemplares eternos das coisas, a
verdade. Para o Estagirita, a verdade das coisas seria encontrada no mundo real, no
31

sensível. A partir dessa premissa, já na Metafísica, Aristóteles declara que “todos os


homens (hoi anthropoi, ou seja, homens e mulheres, gregos e bárbaros, livres e
escravos), por natureza, tendem ao saber” (ARISTÓTELES apud BERTI, 2010, p.
10). E nessa tendência ao saber a poesia contribui, pois o imitar está presente no
homem desde a infância, sendo o que o diferencia dos animais. Através da imitação,
o homem procura o conhecimento, leva a aprender, a conhecer, não afasta da
verdade, conforme Platão afirmava. Se todos os homens, conforme Aristóteles,
desejam conhecer, do mesmo modo, conforme dito acima, pode-se dizer que todos
os homens por natureza desejam imitar, na medida em que imitar leve a conhecer.
A tendência a imitar faz parte da natureza humana e distingue o homem de
todos os outros animais, juntamente com a posse do logos e a exigência de
viver na polis. Aristóteles não só rejeita a doutrina platônica das Ideias,
porque, a seu ver, a realidade é a única realidade verdadeira (o verdadeiro
leito é aquele em que dormimos), mas afirma que a imitação é o melhor
modo de aprender uma determinada ação. (BERTI, 2010, p. 251-252).

Desse modo, na Poética, Aristóteles afirma que a poesia é imitação (mímese),


A epopeia, a tragédia, assim como a poesia ditirâmbica e a maior parte da
aulética e da citarística, todas são, em geral, imitações. Diferem, porém,
umas das outras, por três aspectos: ou porque imitam por meios diversos,
ou porque imitam objetos diversos ou porque imitam por modos diversos e
não da mesma maneira. Pois tal como há os que imitam muitas coisas,
exprimindo-os com cores e figuras (por arte ou por costume), assim
acontece nas sobreditas artes: na verdade, todas elas imitam com o ritmo, a
linguagem e a harmonia, usando estes elementos separada ou
conjuntamente. (ARISTÓTELES, 2004, p. 201).

A partir disso, conforme já dito, imitação aqui não quer dizer apenas cópia
passiva do real, mas representação, ou seja, um processo de criação baseado nas
ações de homens valorosos ou incapazes, melhores ou piores do que os que são
encontrados na vida real. Assim, os objetos principais da Poética são a tragédia, que
coloca em cena homens de valor, e a comédia, que imita homens piores do que eles
ordinariamente são (cf. ARISTÓTELES, 2004, p. 202). Nas palavras de Compagnon,
“[...] a mimèsis seria a representação de ações humanas pela linguagem, ou é a isso
que Aristóteles a reduz, e o que lhe interessa é o arranjo narrativo dos fatos em
história: a poética seria, na verdade, uma narratologia” (2012, p. 102). Dessa forma,
conforme Compagnon (2012), o que interessa a Aristóteles não é o objeto imitado ou
representado, mas o objeto imitador ou representante, isto é, a técnica da
representação, a estrutura da história. Ainda, o que interessa ao Estagirita no texto
poético é a composição, “sua poièsis, isto é, a sintaxe que organiza os fatos em
história e ficção” (COMPAGNON, 2012, p. 102).
32

Isso posto, Aristóteles define os meios com que a poesia imita a realidade: o
ritmo, a palavra, a melodia, conjunta ou separadamente tomados. Todos esses
meios tomados em conjunto numa obra artística levam ao prazer. Mas um prazer
que nasce da imitação e do aprender, como consequência. “Se os homens por
natureza desejam conhecer, quando aprendem, ou seja, quando satisfazem tal
desejo, não podem senão experimentar prazer” (BERTI, 2010, p. 252). Platão
também afirmava haver prazer na poesia, mas de modo perverso, que seria melhor
evitá-lo, pois afastaria o homem da verdade, porque só comunica a aparência, o
falso. Destarte, os dois maiores filósofos da Antiguidade reconheceram o prazer
provindo da poesia, contudo um a rejeita por motivos epistemológicos e éticos, ao
passo que o outro a aceita e a defende com base nas mesmas motivações iguais e
contrárias.
Em vista disso, Aristóteles, conforme Lígia Militz da Costa (2001), desvincula
a arte da verdade, concedendo-lhe autonomia ao relacioná-la ao princípio de
verossimilhança. Em primeiro lugar, significa dizer que a obra de arte tem como
objeto de representação o possível e não o historicamente verdadeiro
(verossimilhança externa), isso fica claro quando, na Poética, Aristóteles usa o
exemplo entre o poeta e o historiador, pois este fala de coisas que aconteceram e
aquele das coisas que poderiam acontecer; e, em segundo lugar, com grau de
importância maior, o verossímil é “o princípio ordenador da construção mimética,
baseado nas relações de causa, lógica e necessidade, o qual faz da obra um todo
coeso, uno e exclusivo (verossimilhança ‘interna’)” (COSTA, 2001, p. 17).
Aristóteles ainda expõe o efeito da comédia: o ridículo, que não causaria dano
algum do ponto de vista moral (cf. ARISTÓTELES, 2004, p. 205). Também relaciona
a tragédia à poesia épica, porque ambas imitam homens de valor e usam versos,
contudo, a épica usa apenas o hexâmero9 e a tragédia usa versificação variada. A
tragédia é um discurso direto, ao contrário da epopeia, que é uma narração; as
ações ocorrem durante um dia ou pouco mais, já a epopeia refere-se a
acontecimentos que levam um tempo indeterminado.
Aristóteles, ainda, vai explicar algumas partes da tragédia, considerando o
objeto principal da mímese como uma ação “séria”, ou seja, realizada por homens
de valor, frequentemente por heróis; ela é realizada, quer dizer, perfeita, pois possui

9 Forma métrica encontrada na Ilíada e na Odisseia, de Homero, e na Eneida, de Virgílio.


33

começo, desenvolvimento e conclusão; ela tem uma grandeza própria, com um


tamanho não casual, nem muito grande, nem muito pequena, mas na medida justa,
por isso é bela. Os ornamentos são ritmo e melodia, juntos ou separados. Como as
personagens atuam, a tragédia deve incluir além das falas e da música, a decoração
do espetáculo, a mise-en-scène, a cenografia.
Para o Estagirita, o elemento mais importante da tragédia é a trama (mythos),
pois deve passar ao espectador piedade e medo.
Como, porém, a tragédia não só é imitação de uma ação completa, como
também de casos que suscitam o terror e a piedade, e estas emoções se
manifestam principalmente quando se nos deparam ações paradoxais, e,
perante casos semelhantes, maior é o espanto que ante os feitos do acaso
e da fortuna [...], daqui se segue serem indubitavelmente os melhores os
mitos assim concebidos. (ARISÓTELES, 2004, p. 210).
Os primeiros filósofos, segundo Enrico Berti (2010), começaram a se
questionar a respeito do mundo e das coisas a partir do maravilhoso (thaumaston),
do espanto. Desse modo, ao suscitar piedade e medo, ao mesmo tempo, graças ao
efeito da mímese, a tragédia “purifica” essas paixões e as torna agradáveis, através
da catarse. Esse prazer, mais uma vez, se dá pelo prazer de aprender. Do mesmo
modo, Luiz Costa Lima (2010) afirma que “a arte, graças à sua construção mimética
e anticonceitual, oferece o meio para a visão crítica do estado de coisas em que
vivemos” (p. 33), ou seja, a visão crítica e o prazer são efeitos que a arte desperta
em quem a experimenta.
Por fim, ao falar da poesia épica, a mímese se realiza mediante a narrativa,
em torno de uma única ação, inteira e acabada, com início, meio e fim. A tragédia é
superior à épica pelo efeito da arte. “O critério para julgar o valor da poesia é sempre
o prazer: este é o “efeito da arte”, o fim da mimesis, e isso para Aristóteles é positivo,
é um valor – é exatamente o valor específico da poesia” (BERTI, 2010, p. 258).
Este estudo mais aprofundado a respeito da mímese a partir das teorias de
Aristóteles e Platão se fez necessário, pois eles conferem os fundamentos nos quais
os pensadores posteriores se apoiarão. Contudo, este estudo apoia-se
principalmente no postulo deixado por Aristóteles na Poética, além de autores como
Luiz Costa Lima (2014), Antoine Compagnon (2012), Lígia Militz da Costa (2001) e
Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1988).

2.2 INTRODUÇÃO À MÍMESE


34

Segundo as reflexões de Platão e Aristóteles, o homem é por natureza um


animal mimético. É intrínseca à natureza humana a capacidade de imitar. Os autores
que sucederam os antigos continuarão a desenvolver os conceitos tratados por
Platão e Aristóteles, mas principalmente ampliarão os julgamentos expostos na
Poética.
Em uma primeira tentativa de definição da mímese, pode-se dizer que ela
supõe a correspondência entre uma cena primeira, orientadora e geral, e
uma cena segunda, particularizada numa obra. Essa encontra naquela os
parâmetros que possibilitam seu reconhecimento e aceitação. Mas a
facilidade com que o enunciado se formula logo se complica pelos
esclarecimentos que passam a ser exigidos. Desde logo, para falarmos com
Michel Taussig, seu produto é uma “cópia que não é uma cópia”, pois nela
“a semelhança não é em si mesma suficiente”. Por isso, ao falarmos em
“cena orientadora”, a diferenciamos de cena modelar. Se a mímesis
supusesse uma cena modelar ou, mais simplesmente, um modelo,
estaríamos admitindo que ela tem um caráter normativo. O que, ao
contrário, é fundamental no fenômeno da mímesis é a correspondência
estabelecida entre uma obra particular – a cena segunda – e parâmetros
que guiam o receptor. Dizer contudo que tais parâmetros formam uma “cena
primeira” daria direito a que se pensasse que há, propriamente, uma cena
pré-traçada! Ora, não há materialmente tal cena, mas sim parâmetros
culturalmente diferenciados, que assumem a função de balizas. (LIMA,
2014, p. 24).

Fundamentalmente, há uma relação entre duas cenas: uma primeira, que


pode ser encontrada no mundo real, que vai dar alguns parâmetros para a aceitação
da cena segunda. Esses parâmetros, por sua vez, não são normativos, pois a cena
segunda pode extrapolar o real; e há uma cena segunda que é em si a ficção, ou
seja, o processo de imitação/representação. A partir dessa visão, pode-se dizer que
a cena primeira nem sempre está presente da forma que é retratada na ficção. O
que há em comum entre essas duas cenas são parâmetros que advém do real que
permitem a aceitação do receptor da obra. Desse modo, a mímese é um fenômeno
que dá a existência a uma cena segunda/ficcional que está baseada numa cena
primeira, que por sua vez pode existir no real.
É importante ressaltar a tradução usual para mímese: imitação ou
representação. Há uma distinção, no entanto, entre esses dois termos, pois
conforme os Românticos e os Modernos, a mímese é imitatio, mas também é
criação. Essa interpretação de simples cópia ou reprodução da natureza é
proveniente da falsa leitura da Poética pelos Renascentistas, pois, segundo
Arbogast Schmitt (2010), para Aristóteles, a personagem deveria ser apresentada da
“maneira como possível e verossimilmente é, por efeito de sua condição interna, de
35

modo que fale como fale, aja como aja, que seja feliz ou desgraçado, exatamente
como é” (p. 182). Assim, as leis objetivas (não empíricas) do que apresentam
estariam em desacordo com a leitura feita posteriormente no Renascimento, pois
estes olharam para a Poética como um manual de como bem escrever, ou seja, “o
poeta há de escolher ações e personagens que, em um sentido empírico (ou
segundo o juízo de alguém), são possíveis, que, portanto, `existam realmente´ no
mundo” (p. 183). Ora, representação, segundo Luiz Costa Lima (2014), não é nada
mais nada menos que re-presentar algo, ou seja, tornar algo presente mais uma vez.
Com isso, a obra não só apresenta algo, mas também, a partir da visão e da
subjetividade do artista, é capaz de produzir algo.
Segundo essa visão, a representação
nos dá a oportunidade de verificar o entrelaçamento entre a produção da
obra – como ela não apenas seleciona aspectos da realidade mas cria algo
que nela de antemão não se encontrava [...] – e a representação que
provoca. Representação, acrescente-se ainda, que, por seu caráter de
efeito, não é automática quanto à obra produzida. Assim, a recusa da
palavra exortada para uns provocará asco, para outros será apenas
intrigante, para outros ainda vista como marca de um lugar infernal, etc. Se
pensássemos que a representação-efeito é automática, estaríamos
mantendo uma das consequências, do ponto de vista da leitura, da
concepção tradicional do sujeito: à sua centralidade expressiva
corresponderia uma interpretação correta. É o contrário o que se diz: a
produção apenas começa na obra; a representação que ela suscitará
manterá seu caráter produtivo, portanto potencialmente divergente. Não é
que qualquer representação seja válida por ser um efeito. Mas tampouco
qualquer produção é válida porque é criação. (LIMA, 2014, p. 199).

Desse modo, a obra traz uma seleção de aspectos da realidade – os


parâmetros já falados acima –, para a criação de uma nova realidade que antes não
existia. Essa representação gerará, segundo Luiz Costa Lima (2014), uma
representação-efeito que seria a concretização, por meio da leitura do poema já
realizado, tanto pelo sujeito que escreveu quanto por aquele que o leu. “Em outras
palavras: a referência pressupõe a existência; alguma coisa deve existir para que a
linguagem possa referir-se a ela” (COMPAGNON, 2012, p. 130), assim como na
literatura, pois o processo de representação só é possível se houver na realidade
algo que possa ser referido durante a diegese.
A partir dessa relação entre ficção e realidade, há o efeito primeiro da
mímese, segundo Luiz Costa Lima (2014), a verossimilhança, que nada mais é que
a contextualização da obra com a “verdade”, o mundo real; a ficção não representa a
verdade, mas tem-na por ponto de partida; pela mímese, o leitor acessa o
36

impensado, mas a partir das semelhanças presentes. Ou seja, é necessário à obra


fantástica10 manter um mínimo de relação com o mundo real (verdade) para que a
obra tenha “sentido”. “Pois o verossímil é o efeito primário da mímesis, no sentido
amplo e não só artístico do termo” (LIMA, 2014, p. 53). Mesmo assim, a obra não
seria a representação da verdade, mas nela estaria o ponto de partida que os seus
produtores tomaram por verdade.
Se Kafka é um dos maiores ficcionistas do século, é porque sua imaginação
produtora soube intuir que a mímesis tem uma relação paradoxal com a
verdade. Relação paradoxal: basta à mímesis manter um resto da verdade,
i.e., guardar alguma semelhança com o que uma sociedade, no caso a
europeia e ocidental, tomava por verdade (que o sujeito individual moderno
dispõe de um território de racionalidade que assegura e, ao mesmo tempo,
provê sua formação), para, sobre este resto, criar sua diferença – o
questionamento daquela crença. (LIMA, 2014, p. 52).

Em vista disso, pode-se afirmar que a mímese é produtora de semelhanças e


diferenças. Quando se apoia na realidade (na sua “verdade”) para criar uma obra
ficcional, o autor acaba realizando um ato que gera semelhanças e diferenças,
sendo que, a partir das últimas, há a possibilidade de crítica ao real. Para que, dessa
forma, seja confundida com o seu objeto, a representação deve ser independente do
objeto primeiro,
no entanto, a representação deve ser entendida em termos dialéticos e não-
dicotômicos; o que significa que entre representante e representado existe
uma relação de interdependência ativa, de tal modo que o primeiro constitui
uma entidade mediadora capaz de concretizar uma solução discursiva que,
no plano da expressão artística, se afirme como substituto do segundo que,
entretanto, continua ausente. (REIS; LOPES, 1988, p. 88).

Nesse sentido, quando desvinculou a arte da verdade, Aristóteles conferiu-lhe


autonomia. Assim,
desvinculando a arte da verdade, Aristóteles concedeu-lhe autonomia ao
relacioná-la ao princípio da verossimilhança, que significa, em primeiro
lugar, que a obra artística tem como objeto de representação o possível e
não o historicamente verdadeiro (verossimilhança “externa”); e, em segundo
lugar, o princípio interno ordenador da construção mimética, baseado nas
relações de causa, lógica e necessidade, o qual faz da obra um todo coeso,
uno e exclusivo (verossimilhança “interna”). Quanto à finalidade, a Poética
postula que a arte trágica visa à catarse do espectador, sendo o prazer, de
modo geral, mostrado como decorrente das emoções pelo reconhecimento
do que está representado e decorrente também da aprendizagem sobre o

10
Não será apresentada aqui uma definição extensa de “fantástico”, apenas a definir-se-á como Luiz
Costa Lima traz em seu livro Mímesis: desafio ao pensamento, conforme a definição de Sartre. “Para
Sartre, o fantástico se funda na apresentação do mundo pelo avesso, o qual, para que o leitor possa
aceitar, precisa ser visto de fora, i.e., como se fosse apresentado a partir de um ponto de vista fora do
mundo humano. Kafka teria feito o gênero do fantástico avançar porque, renunciando a esse olhar
não humano, adotara a posição de fora, a partir, portanto, de uma perspectiva puramente humana”.
(LIMA, 2014, p. 51).
37

objeto/situação que esse reconhecimento proporciona. (COSTA, 2001, p.


17).

Ou seja, verossimilhança interna e externa, segundo Lígia Militz da Costa


(2001), seriam formas operatórias que funcionam para avaliar a teoria mimética que
Aristóteles propõe para a arte literária. Esse desdobramento da verossimilhança em
externa e interna não está presente explicitamente na Poética, contudo serve de
apoio para estudos teóricos e críticos para a arte literária. Pode-se dizer, ainda, que
a arte trágica visa à catarse, pois o prazer se dá diante do que está sendo
representado bem como da aprendizagem que o objeto proporciona. Por isso,
na base de todas essas operações, inclusive do efeito de prazer que é a
finalidade da arte, Aristóteles coloca o raciocínio, seja verdadeiro, falso ou
verossímil. A capacidade de convencer ou iludir alguém pela linguagem,
seja pelo argumento retórico, seja pela montagem verossímil de ações do
mito (inclusive de ações inverossímeis, mas arranjadas com lógica
verossímil), é sempre resultante de um mecanismo descritível e previsível.
(COSTA, 2001, p. 17-18).

Mais uma vez, é importante ressaltar o destaque que Aristóteles dá à mímese


como forma de raciocínio, não mais como Platão, apenas pelo viés da moral e da
ética.
A mímese, ainda, é acionada pelo desejo de apresentar algo a partir de um
modelo. O desejo seria a internalização de representações (outros desejos) que
externaliza apresentações de desejos baseando-se nas representações adquiridas.
Por isso, não há como separar a mímese do mundo. Conforme Antoine Compagnon,
reintroduzir a realidade em literatura é, uma vez mais, sair da lógica binária,
violenta, disjuntiva, onde se fecham os literatos – ou a literatura fala do
mundo, ou então a literatura fala da literatura –, e voltar ao regime mais ou
menos, da ponderação, do aproximadamente: o fato de a literatura falar da
literatura não impede que ela fale também do mundo. Afinal de contas, se o
ser humano desenvolveu suas faculdades de linguagem, é para tratar de
coisas que não são da ordem da linguagem. (2012, p. 123).

Com isso, muda-se o olhar que o homem tem para a literatura, pois a mímese
é conhecimento e não cópia idêntica, ou seja, ressignifica a maneira pela qual o
homem constrói e habita o mundo. “Mesmo porque não mais amarrada à prenoção
do mundo como cosmo harmonioso, a mímesis tanto contém ecos do mundo das
coisas – a representação-efeito – como a ele se acrescenta” (LIMA, 2014, p. 233). A
mímese não revela a verdade, mas apresenta verdades baseadas no mundo do
autor. Assim, a mímese pode ser vista como uma via de mão dupla, pois não apenas
retira algo do mundo, como também lhe devolve algo que antes não tinha. “O sol da
38

pintura, já dizia Diderot, não é idêntico ao sol da terra. A maçã de Cézanne não é
idêntica à maçã que comemos. Mas, depois de sabermos o sol e a maçã da pintura,
já não os vemos como antes” (LIMA, 2014, p. 233).
Dessa forma, a atividade mimética não é vista apenas como uma atividade
passiva, associada à opinião. Mas associada ao muthos (história ou intriga),
“produção da intriga”, teria um começo, meio e fim. É a sucessão dos
acontecimentos que faz com que a narrativa seja inteligível.
Ao mesmo tempo, contudo, em que é representação ou imitação de ações, a
mímese também é criadora, “imitação criadora” (COMPAGNON, 2012, p. 127). Não
é simplesmente uma duplicação, mas algo que abre o espaço da ficção, permitindo
que haja essa possibilidade de criar. Na modernidade, conforme Hans Blumenberg
(2010), a relação entre arte e natureza não é mais obrigatória. O que se vê nas artes
é um distanciamento entre real e artístico. A imitação da natureza, presente em
Aristóteles, não está mais presente. O que acontece é um distanciamento, o homem
tornou-se criador e não mais imitador ou complementador da natureza. Com a
criação da obra, ele é o criador de um mundo novo com ou sem relação com o real.
Em consequência disso, Paul Ricouer apresenta os três níveis da mímese na
temporalidade:
o tempo prefigurado, que corresponde ao que ele [Paul Ricoeur] denomina
de mimese I, que é o tempo dos conhecimentos e das referências anteriores
à obra; o tempo configurado, que corresponde à mimese II, e que é o
tempo-ato da construção mimética ou elaboração da obra; e o tempo
refigurado, que é o tempo da leitura pelo receptor, o qual refigura, por sua
própria competência, o tempo configurado na obra. (COSTA, 2001, p. 44).

Em outras palavras, a mímese I seria a pré-compreensão do agir humano, ou


seja, a verossimilhança externa está aqui implícita no tempo prefigurado; a mímese
II se refere à ação de compor a intriga, fazendo surgir com coerência o inteligível do
acidental, aqui aparece a verossimilhança interna, no tempo configurado; e, por fim,
a mímese III voltada para a operação de avaliação pelo receptor, ou seja, a catarse
no tempo refigurado.
Por fim, o conceito de mímese conforme Aristóteles continua a ser
fundamental para os estudos teóricos e críticos da literatura na modernidade, pois
“[...] a concepção de arte como mímese ou representação, no sentido básico que lhe
deu Aristóteles na Poética, mostrou ser, irrecusavelmente, um conceito clássico e
definitivo para os estudos teóricos e críticos da literatura na contemporaneidade”
39

(COSTA, 2001, p. 78). Porque há, ainda, a valorização aos aspectos trabalhados por
Aristóteles, tais como: “o entendimento da arte como representação de emoções e
do efeito estético como experiência individualizada de prazer e de conhecimento do
mundo” (COSTA, 2001, p. 77). A partir dessa visão da literatura como
representação, faz-se necessário o estudo da teoria literária que apresenta um modo
de estudar a narrativa, pois a arte possui ao mesmo tempo, conforme Aristóteles,
duas funções: dar prazer e fazer aprender.

2.3 A NARRATIVA

Segundo Vítor Manuel de Aguiar e Silva (2011), o romance desde o seu


surgimento preocupou-se em tratar de temas relativos à psicologia, dos problemas
sociais e políticos, inovando em novas técnicas narrativas e estilísticas, sempre se
transformando. Contudo, “no decorrer dos últimos séculos, mas sobretudo a partir do
século XIX, [o romance se transformou] na mais importante e mais complexa forma
de expressão literária dos tempos modernos” (2011, p. 671). Partindo de uma
simples narrativa de entretenimento, o romance tornou-se uma possibilidade de
reflexão, em estudo da alma humana, em discussão de conceitos filosóficos e
sociais, em reportagem, etc.
Mesmo partindo do real, a natureza singular e artificial do ato de narrar,
segundo Juracy Assmann Saraiva (2001), é a ficção, pois tudo o que acontece na
narrativa, bem como os seus personagens, fazem parte de um universo criado por
um autor, diferente do mundo da realidade. No entanto, o mundo ficcional criado
pelo autor possui contornos baseados no mundo real, e são esses contornos gerais
da realidade que tornam a obra literária verossímil, pois, desse modo, ela se torna
possível e crível, desde que tenha correspondência e relação com a realidade.
A partir disso, pode-se dizer que o objetivo da narrativa seria “promover a
crença na realidade ficcional e possibilitar a compreensão da existência humana
através da adesão a esse universo contado” (SARAIVA, 2001, p. 52). Essa crença
se dá pela relação que a obra ficcional possui com a realidade, de modo que os
significantes instalados ao longo do texto possuem certa referencialidade ao real que
não é de todo anulada, mas se mantém como que suspensa (cf. SARAIVA, 2001).
Assim, o leitor, ao fazer a referência entre a ficção e a realidade, consegue refletir e
40

compreender o seu papel enquanto pessoa, pois a partir da narrativa, que apresenta
um mundo diferente do real, o homem consegue olhar para a sua realidade e
responder às mais diversas inquietações cotidianas.
Consequentemente,
entendemos por narrativa todo discurso que nos apresenta uma história
imaginária como se fosse real, constituída por uma pluralidade de
personagens, cujos episódios de vida se entrelaçam num tempo e num
espaço determinados. Nesse sentido amplo, o conceito de narrativa não se
restringe apenas ao romance, ao conto e à novela, mas abrange também o
poema épico e outras formas menores de literatura. (D’ONOFRIO, 2007, p.
46).
E é nessa história imaginária apresentada como se fosse real que a
representação está presente. Na relação entre realidade e ficcionalidade, o artifício
mimético, enquanto correspondência verossímil da realidade, relaciona personagens
que, no plano do crível e do possível, poderiam existir.
Nessa perspectiva, para o estudo da representação da favela na obra Inferno,
de Patrícia Melo, faz-se necessária a análise dessa narrativa a partir de dois planos
fundamentais de análise: o do discurso e o da história (cf. REIS; LOPES, 1988). Não
como conceitos separados, mas como níveis convergentes complementares.
Por isso, o estudo da significação da narrativa deve centrar-se na
convergência entre o que se narra e o como se narra, visto que a história só
se configura mediante o discurso, enquanto o discurso se realiza pela
apresentação da história. (SARAIVA, 2001, p. 53, grifo nosso).

Assim, a articulação desses dois planos se dará no ato de narração, de modo


que se aprofundará, no nível da história, nas ações, nas personagens e no estudo
do espaço e do tempo; já o plano do discurso constitui-se no estudo do narrador, da
focalização e da temporalidade discursiva.

2.3.1 Plano da história

O plano da história corresponde aos acontecimentos e personagens, ou seja,


à realidade que a narrativa traz. De modo que,
a história ou a fábula abrange o conjunto de acontecimentos ligados entre si
por relações de causa e efeito e dispostos sucessiva e cronologicamente.
Seus componentes são as ações, as personagens, o espaço e o tempo, que
convergem para desencadear o processo de transformação de um estado
primeiro a um estado segundo, operado por um fazer. (SARAIVA, 2001, p.
53).
41

Assim, a diegese não é um conjunto de ações jogadas no papel sem ordem e


sem ligação, mas um conjunto de ações com causa e efeito em que uma ação leva a
outra ordenada e sucessivamente.
As ações que a fábula possui são compostas por: funções distribucionais,
diretamente ligadas às ações das personagens e ao fazer, subdividias em duas
subclasses: nucleares ou cardinais, são os momentos mais importantes da narrativa,
quando acontece os momentos de risco e que advêm da lei da causalidade, e por
funções secundárias ou catálises, que são os momentos que preenchem os espaços
deixados pelas ações nucleares; bem como por funções integrativas, que por sua
vez, são compostas por outras duas subclasses: os índices, que são implícitos e
precisam de um deciframento por parte do leitor, remetendo a outros elementos,
aqui o leitor influencia diretamente na narrativa, e os informantes, que são
referenciais e que auxiliam na instalação do efeito de realidade, servindo para situar
no tempo e no espaço, e relacionar o enunciado com a enunciação. Os núcleos e os
índices estão ligados entre si pela causalidade e são indispensáveis à sucessão da
narração, enquanto as catálises e os informantes podem ser considerados “motivos
livres” (D’ONOFRIO, 2007). Todas essas ações ajudarão na caracterização das
personagens.
Assim, as ações são compostas por uma macrossequência em que uma
situação inicial de equilíbrio desperta um desequilíbrio e, por fim, um novo equilíbrio,
e que, por sua vez, são compostas por cinco microssequências: situação inicial,
perturbação, transformação, resolução e situação final (SARAIVA, 2001). Com isso,
pode-se dizer, conforme Salvatore D’Onofrio (2007), que a narração seria a
constante passagem de transformação de ações das personagens, pois o primeiro e
o último momento são estáticos, de equilíbrio, e é nos momentos intermediários que
se concentra toda a ação das personagens, ou seja, na perturbação, transformação
e resolução.
Por sua vez, o estudo das personagens está intimamente ligado à trama dos
fatos, pois o fazer das personagens deve ser coerente com o seu ser. Assim, “as
personagens constituem os suportes vivos da ação e dos veículos das ideias que
povoam uma narrativa” (D’ONOFRIO, 2007, p. 75). Em outras palavras, sem
personagens não há ação numa narrativa, sendo impossível desvincular as ações
42

de quem as executa, pois é através das ações que a personagem ganha “vida” na
narrativa.
A partir da análise das funções das personagens, é possível estudar a
personagem a partir de elementos invariáveis e comuns a todas as narrativas, que,
por sua vez, compõem o esquema actancial. Segundo Vítor Manuel de Aguiar e
Silva (2011), o esquema11 pode ser expresso da seguinte maneira:

Figura 7 - Esquema actancial

Fonte: adaptado pelo autor (2016).

No percurso narrativo, o sujeito, movido pelo querer, está em busca de um


objeto desejado. O objeto, por sua vez, é a coisa desejada, entre sujeito e objeto há
uma relação juntiva, pois o sujeito e o objeto existem um para o outro. Ao longo da
história, o sujeito recebe auxílio do adjuvante e hostilidade do oponente para
conquistar o objeto. Já o destinador comunica ao sujeito o conhecimento dos atos
que deve fazer para conquistar o objeto, expõe os valores em jogo e pode, por fim,
avaliar e julgar sua atuação. O destinatário, portanto, é quem recebe o objeto,
coincidindo na maioria das vezes com o sujeito.
É mister ressaltar o peso que o termo “personagem” possui, pois, na análise
das personagens, devem ser levados em conta o nome, as ações e as
características físicas e psicológicas que cada uma delas possui e que influenciam
ou não a trama narrativa. O nome, muitas vezes, é um indício sobre a
personalidade, como se o significante (nome) e o significado (conteúdo psicológico,
ideológico, as motivações da personagem, etc.) fossem intrínsecos.
É certo que “personagem” implica um certo número de propriedades
psicológicas, morais e socioculturais, preexistentes à acção narrativa, mas
não vemos que daí se possa extrair qualquer razão contra o seu uso na

11 Conforme Reis e Lopes (1988), p. 145.


43

teoria e na crítica literárias: na vida empírica – e nas “narrativas naturais”


que ela origina – como na ficção literária, a acção não gera ex nouo os
agentes, embora os possa modificar profundamente, não carecendo de
fundamento afirmar-se que a acção é caracterizável, em parte, como uma
função aquelas propriedades dos agentes. Nos textos literários narrativos,
quer nos textos da literatura kitsch, quer nos textos da chamada “grande”
literatura, as personagens nunca são “formas vazias” ou “puros
operadores”. Mesmo naqueles textos em que o conceito de personagem se
manifesta em crise, em que ele é contestado e corroído, as personagens –
ou simulacros, ou sucedâneos de personagens... – remetem sempre, antes
de qualquer evento, ainda que isso só se manifeste durante o evento ou
depois do evento, para um determinado horizonte de valores, para uma
determinada ideologia. (SILVA, 2011, p. 694-695).

Dessa forma, as personagens podem ser divididas em planas ou redondas.


Segundo Vítor Manuel de Aguiar e Silva (2011), “a personagem plana não altera o
seu comportamento no decurso do romance e, por isso, nenhum acto ou nenhuma
reação da sua parte podem surpreender o leitor” (p. 710). A personagem que é
dessa espécie não evolui com o decorrer da narrativa, ela estaciona e age sempre
da mesma forma, bastando ao romancista caracterizá-las apenas uma vez, e
geralmente esse tipo de personagem aparece como adjuvante. No entanto, as
personagens modeladas “oferecem uma complexidade muito acentuada e o
romancista tem de lhes consagrar uma atenção vigilante, esforçando-se por
caracterizá-las sob diversos aspectos” (p. 710). Da complexidade que essas
personagens possuem resulta muitas vezes a surpresa por parte do leitor com os
acontecimentos durante a diegese.
Com isso, as personagens são sempre compostas por valores e ideologias
que remetem para a sua função dentro da narrativa. As personagens, ao se
encontrarem em um determinado espaço, também nele influenciam ou são
influenciadas pelo local em que estão. O espaço na narrativa pode ser visto através
de uma dimensionalidade, aquele espaço que é comensurável e se divide em
horizontal e vertical, próprio do homem; e, através de uma espacialidade não-
dimensional, que é vertical, que se relaciona com o espaço divino ou sobrenatural. O
espaço não-dimensional apresenta, ainda, oposição ao espaço interior, em contraste
com o espaço exterior. O primeiro é o espaço subjetivo, interior, do eu que fala, o
espaço da enunciação, já o segundo refere-se ao mundo dos objetos, dos relatos
(cf. D’ONOFRIO, 2007).
Salvatore D’Onofrio subdivide o espaço em três: tópico, é o lugar conhecido
onde se vive em segurança; atópico, indica o lugar não-próprio, estranho; e, por fim,
44

o utópico, o lugar que não existe na realidade, o desejado. Este mesmo teórico
relaciona ainda a espacialidade com a temporalidade na narrativa:
Sua função é dúplice e antitética: de um lado, dão-nos a impressão de
naturalidade, pois as informações temporais e espaciais têm o papel de
enraizar a ficção na realidade, tornando-a inteligível; mas, do outro lado,
instauram o mundo do imaginário, suspendendo as leis do real.
(D’ONOFRIO, 2007, p. 82).

Diante disso, pode-se afirmar, contudo, que são as informações acerca do


tempo e do espaço que dão a sensação de naturalidade e verossimilhança na
narrativa, bem como estabelecem o mundo ficcional como possível.
Quanto ao tempo, toda diegese pressupõe um começo, meio e fim. O
romance possui uma complexidade de valores temporais, em que se unem o tempo
do discurso e o tempo da história. O tempo do discurso será tratado em seguida no
subcapítulo intitulado “plano do discurso”, o que interessa aqui é o tempo da história,
que se refere aos acontecimentos da história narrada, e que pode ser cronológico ou
psicológico. O tempo cronológico é medido pela natureza (sucessão dos dias, das
estações e da existência, manhã, tarde, etc.) ou pelo calendário (anos, meses, dias)
ou pelo relógio (horas, minutos, segundos). Os valores cronológicos, segundo
D’Onofrio (2007), são regidos pelo princípio de causalidade, que em narrativas de
grande coerência diegética é muito difícil de distinguir um do outro, pois tendem a
criar uma ilusão de realidade. Já o tempo psicológico não é um tempo mensurável, é
o tempo interior da personagem e nele não há passado, presente ou futuro.
Segundo Saraiva (2001), todos esses aspectos fundamentais da história
(ação, personagens, espaço e tempo), como dito acima, dependem do modo como
são apresentados na obra, sendo, por isso, necessário relacionar o enunciado com a
sua enunciação.

2.3.2 Plano do discurso

Segundo Juracy Assmann Saraiva (2001), o nível do discurso, da narração,


da enunciação, deve responder às seguintes perguntas: “Quem narra a história?
Para quem a história é narrada? Quando ocorre a narração? Como se dá a
transmissão das informações? Qual(is) o(s) ângulo(s) avaliativo(s) que perpassa(m)
o ato de narrar?” (p. 50).
45

Primeiramente, uma distinção deve ser feita: o narrador não é o autor do


texto. O narrador é
uma personagem de ficção em que o autor se metamorfoseia. O narrador é
um ser ficcional e autônomo, independente do ser real do autor que o criou.
As ideias, os sentimentos, a cosmovisão do narrador de um texto literário
não coincidem necessariamente com o ponto de vista do autor. Este pode
ocultar sua axiologia atrás do narrador ou de outra personagem, como
também pode não compartilhar as opiniões de nenhuma personagem. [...] O
autor pertence ao mundo da realidade histórica; o narrador, a um universo
imaginário: entre os dois mundos pode haver analogia, mas nunca
identidade. (D’ONOFRIO, 2007, p. 47).

Sendo independente do autor, é o narrador quem


coloca as personagens em cena, invade seus pensamentos, adere a seu
olhar, adota seus pontos de vista e descreve seu entorno, fazendo-as
desfilar diante do leitor como se tivessem vida própria e prescindissem
dessa voz que as enuncia. É também a partir do ângulo do narrador que
são definidas as coordenadas espaço-temporais, que garantem às mais
fabulosas ações a base referencial para instituir o universo fictício.
(SARAIVA, 2001, p. 56).

Dessa forma, nem sempre o narrador se mostra na narrativa como tal, na


maioria das vezes ele está camuflado, identificando-se como uma das personagens.
O narrador pode estar presente ou ausente da narração. Em terceira pessoa, “o
narrador não tem um envolvimento direto nas ações que relata, estando, pois,
ausente da história, embora seja responsável por sua enunciação” (SARAIVA, 2001,
p. 56), contudo, na narração em primeira pessoa, “o narrador participa das ações
que ele próprio narra, anulando-se a distinção entre o objeto do enunciado e o
sujeito da enunciação” (SARAIVA, 2001, p. 56).
Assim, os acontecimentos da narrativa podem ser expostos através da
relação entre narrador-narratário, pois todo relato é emitido por alguém e se dirige a
outrem. Desse modo, a narrativa precisa de um receptor que interprete e dê “vida”
ao que está sendo relatado. Ou seja, o narrador precisa do narratário, sendo que
este último, muitas vezes, representa o leitor.
Para Aguiar e Silva (2011), a voz narrativa pode ser, primeiramente, dividida
em heterodiegética e homodiegética. A primeira se refere a uma instância narrativa
que não participou da história que está narrando. Na segunda, contudo, o narrador
responsável pela focalização é agente, ou seja, participa dos fatos que está
46

narrando, e quando é protagonista esse tipo de narração é chamado de


autodiegética12.
Por conseguinte, o narrador dá a conhecer os acontecimentos através de três
perspectivas, o que se refere à focalização13: através da focalização zero ou
focalização onisciente, quando o narrador está distante dos fatos relatados,
entretanto, “o narrador comporta-se como entidade demiúrgica, controlando e
manipulando soberanamente os eventos relatados, as personagens que os
interpretam, o tempo [...], os cenários” (REIS; LOPES, 1988, p. 255); pela
focalização interna, entende-se a perspectiva de um narrador inserido na narração, o
que disso decorre é a escassez de informações sobre as personagens, “podendo
ser assumida por uma única personagem (fixa), por vários personagens (múltipla) ou
por diferentes personagens alternadamente (variável)” (SARAIVA, 2001, p. 60), ou
seja, na primeira, a perspectiva é centrada apenas em uma personagem, geralmente
o protagonista; na segunda, a múltipla, aproveita-se o conhecimento de um grupo de
personagens a respeito de um fato, e a variável, como o nome diz, é a perspectiva
dada por várias personagens ao longo do romance; e, por fim, por meio da
focalização externa, o narrador dá as características superficiais observáveis a olho
nu de uma personagem, de um cenário ou das ações, muitas vezes essa
perspectiva do narrador é basicamente descritiva.
Nos romances de focalização externa, as personagens podem ser descritas
e representadas na sua fisionomia, no seu vestuário, nos seus hábitos, nos
seus gestos e actos, mas sem qualquer análise ou esclarecimento acerca
das suas motivações subjectivas. O narrador não demonstra possuir, por
conseguinte, qualquer conhecimento sobre a interioridade das personagens,
sobre os seus pensamentos e sentimento não exteriorizados. (SILVA, 2011,
p. 774).

Vale dizer que a variação do foco narrativo é totalmente possível, ora, o


narrador não é obrigado a manter desde o início da obra até o final determinado tipo
de focalização.

12A partir deste ponto, para a análise dos tipos de narrador, os termos utilizados nos estudos de Reis
e Lopes (1988) e Aguiar e Silva (2011) serão assumidos. Ambos os trabalhos teóricos se utilizam das
expressões: narrador autodiegético, narrador heterodiegético e narrador homodiegético, para
caracterizar e diferenciar as diferentes variedades de narradores que podem ser encontrados em
narrativas literárias.
13 Para Vítor Manuel de Aguiar e Silva (2011), “a focalização compreende as relações que o narrador
mantém com o universo diegético e também com o leitor (implícito, ideal e empírico), o que equivale a
dizer que representa um fator de relevância primordial na constituição do texto narrativo”. (p. 765).
47

O modo como o narrador conta a história depende da temporalidade


discursiva assumida. O tempo da diegese e o tempo do discurso, ou seja, a ordem
dos eventos na história e a ordem pela qual o discurso narrativo produz e transmite
os acontecimentos, tem uma importância capital na organização do romance.
A temporalidade da narrativa se manifesta ainda pelo desacordo entre o
tempo da história e do discurso: enquanto o primeiro é pluridimensional,
uma vez que vários acontecimentos podem ocorrer simultaneamente, o
segundo é unidimensional e linear, pois somente um evento pode ser
narrado a cada vez. Dessa forma, o discurso submete a multiplicidade dos
acontecimentos à emissão sequencial, ou seja, à dinâmica da
sucessividade, apresentando-se segundo sua ordenação lógico-sucessiva,
ou rompendo com ela para introduzir anacronias. (SARAIVA, 2001, p. 58).

Anacronia é “todo o tipo de alteração da ordem dos eventos da história,


quando da sua representação pelo discurso” (REIS; LOPES, 1988, p. 229), podendo
ser subdividida em prolepse e analepse. Quando há enunciação de um fato antes de
sua ocorrência na história este recebe o nome de prolepse, em outras palavras, é
uma antecipação, dentro do plano do discurso, de um fato que só deveria ser
narrado mais tarde. Quando, ao contrário, há intercalação de um momento posterior
à realização, como um flash-back, é denominado de analepse, ou seja, esse recurso
permite esclarecer o narratário e/ou o leitor a respeito de acontecimentos
antecedentes de uma determinada situação ou sobre uma personagem introduzida
pela primeira vez na narração.
A teoria exposta guiará o estudo da obra Inferno, de Patrícia Melo, na
tentativa de perceber como a favela, enquanto espaço urbano real, está
representado, através da história e do discurso, no mundo ficcional, pois “[...] a arte
é ficção, não realidade, muito embora seja difícil estabelecer limites entre os dois
mundos” (D’ONOFRIO, 2007, p. 104).
48

3 A FAVELA NO INFERNO

No primeiro capítulo, foi estudada a história e o desenvolvimento da favela até


o que é visto atualmente nos morros cariocas; além disso, no segundo capítulo, o
estudo foi desenvolvido a partir da teoria da representação e da teoria da narrativa.
Dessa forma, neste último tópico, tratar-se-á da análise da obra literária de Patrícia
Melo, Inferno, a partir dos estudos realizados até aqui, levando em consideração a
formação desses aglomerados marginais do Rio de Janeiro. Para a análise da obra,
no item 3.1, estudar-se-ão as ações, as personagens e o tempo, no 3.2 será
analisado o discurso e, por fim, no 3.3, o espaço onde a história acontece.

3.1 UMA PRIMEIRA OLHADA PARA O INFERNO

A narrativa, para fins analíticos, foi dividida em seis partes, a fim de que o
trabalho ficasse estruturado e as ações estivessem expostas dentro de um plano
maior. A primeira parte, que vai do primeiro ao décimo capítulo, diz respeito a uma
visão geral da vida no morro e à descrição de alguns personagens, contudo, o foco é
apresentar a vida de Reizinho e como entrou, definitivamente, no tráfico de drogas.
Assim, a história começa com uma primeira visão da favela do Berimbau através do
olhar do jovem José Luís Reis, que enquanto sobe o morro interage com os
habitantes e tudo o que compõe aquele espaço. Nesse início, a vida do morro é
apresentada ao narratário, bem como a descrição de algumas personagens. O
narrador em terceira pessoa logo no início apresenta o garoto, diz que ele trabalha
como “olheiro” no Berimbau, cujo chefe do tráfico é Miltão. Um dia, enquanto
observa o movimento, Reizinho se distrai e não vê a polícia chegar; horas após o
confronto entre traficantes e policiais, já na casa do chefe do tráfico, por ter errado,
leva um tiro na mão. Mesmo não tendo cumprido seu papel de observador, Miltão
paga o que é devido ao jovem. Após horas sem saber o que fazer, José Luís resolve
dar o dinheiro para a mãe, Alzira, que trabalha como doméstica na casa de dona
Juliana, no Leblon. A mãe, contudo, não aceita o dinheiro e ainda espanca o menino
por estar envolvido com o tráfico.
Toda essa violência em sua casa faz com que José Luís entre para o mundo
das drogas e, pela primeira vez, aos onze anos de idade, após descobrir que sua
irmã, Carolaine, tem relações sexuais com outro homem, ele se droga. Além disso, a
49

irmã é a única que apoia Reizinho, em casa, a trabalhar no tráfico. O menino passa
a morar com a avó e, durante esse tempo, sempre está drogado e começa a vender
os bens que há na casa em troca de drogas. Quando a sua avó percebe, ameaça
Reizinho dizendo que vai devolvê-lo para a mãe, de modo que ele promete parar de
roubar. Contudo, começa a assaltar no trânsito. Certo dia, enquanto volta para casa,
no ônibus, conhece um de seus melhores amigos, Fake, e volta a fumar crack. Alzira
prepara uma festa de aniversário para Reizinho, que completa doze anos. A mãe diz
que terá uma surpresa para o filho, de modo que ele vai à festa, pois pensava que a
surpresa seria a visita do pai, a quem ele não conhece. Quando descobre que a
surpresa da mãe é um trabalho, ele fica com raiva dela e a ameaça com uma pedra.
Alzira e Reizinho vão, então, até a praça Argentina, onde o pai vive como mendigo.
Reizinho começa a trabalhar de boy na agência de turismo de Rodrigo,
marido de dona Juliana, onde faz pequenos furtos para trocar por drogas. Um dia ele
rouba um maço de dinheiro, mas não gasta tudo de uma vez e, mais tarde, é
roubado por policiais que o levam para um Centro de Recolhimento de Menores.
Após oito dias, a avó o busca. Quando retorna, após o desespero de todos de sua
família, Reizinho faz uma proposta para a sua mãe de que ele nunca mais usaria
drogas se ele pudesse voltar a trabalhar para Miltão, ao que a mãe cede, e o menino
volta a ser “olheiro” do traficante.
A segunda parte da história, do capítulo onze ao dezesseis, começa quando
Reizinho volta a trabalhar para Miltão, seu desenvolvimento no mundo do tráfico e
seu crescimento nesse trabalho. Logo no início dessa parte, Reizinho mata pela
primeira vez, ou como os traficantes dizem, foi “batizado”. Alzira, após perceber as
manchas de sangue na roupa do filho, começa a participar dos cultos de um templo
evangélico e fala para o pastor a respeito do filho. Reizinho cresce no esquema do
tráfico e passa a avião, ou seja, transporta ou faz “tele-entrega” da droga por todos
os cantos da cidade. Ao mesmo tempo, Alzira descobre que Carolaine está grávida.
José Luís namora Kelly, contudo, em um baile funk, conhece uma menina que
mudará sua vida, Marta. Nesse mesmo baile, Fake é preso por estar vendendo
cocaína. Suzana, amiga de infância de Reizinho, mulher de Miltão, larga o traficante
para morar com o chefe do tráfico do morro dos Marrecos, Zequinha Bigode. Com
isso, inicia uma guerra entre os dois morros. Logo que se torna soldado, Reizinho e
Miltão, com outros homens, invadem o morro dos Marrecos para resgatar Suzana,
50

mas isso não foi possível. Reizinho reencontra Marta na praia. Agora, oficialmente
os dois morros estão em guerra por causa de Suzana.
Leitor, um dos braços direitos de Miltão, começa a anunciar que eles
precisam de um novo líder, e esse líder deveria ser, segundo ele, Reizinho, pois
Miltão está fora de si, bate e mata quem ele quer, e, de sua casa no alto do morro,
derruba um helicóptero da Polícia Militar a tiros, o que leva a PM a cercar o morro do
Berimbau. A guerra entre os dois morros passa por uma trégua, mesmo assim,
Leitor insiste na ideia de que Reizinho deve assumir o tráfico na favela. Ao mesmo
tempo, Reizinho começa a se aproximar do pai.
Conforme a divisão estabelecida para a análise, a terceira parte diz respeito à
ascensão de Reizinho ao controle e ao domínio do tráfico no morro do Berimbau,
que inicia no capítulo dezessete e vai até o vinte. Miltão, fora de si, quer matar o
pastor da igreja, que o desafia em suas prédicas. Miltão, após saber da traição de
Fake, manda Reizinho matar o amigo, mas ele, pela primeira vez, pensa a respeito
das ideias de Leitor. Leitor e Reizinho, entretanto, contrariando as ordens do chefe,
não matam Fake. Reizinho encontra-se no shopping com o amigo, e este lhe faz a
proposta de se associar a Zequinha Bigode, para tirarem Miltão do poder. Carolaine
encontra o pastor, e pai do seu segundo filho, morto na igreja, e todos do morro do
Berimbau acusam Miltão. Com isso, Reizinho aceita a ajuda de Zequinha Bigode e
sobe o morro dos Marrecos para conversar com o chefe do tráfico. Faz acordo com
o líder do morro dos Marrecos e, nesse mesmo dia, descobre que Marta é filha dele.
A quarta parte da narrativa inicia quando Reizinho se torna líder do morro do
Berimbau, do capítulo vinte e um ao vinte e quatro. José Luís resolve todos os
problemas da favela, traz seu pai para morar ali e admite que não gosta da mãe. Ele
é visto como herói após salvar um garoto que fora sequestrado e estava no
Berimbau. Reizinho encontra-se com Nobre, antigo chefe do tráfico do Berimbau,
antes mesmo de Miltão, e faz alguns acordos. Reizinho ganha uma arma de
Zequinha e invade uma favela a pedido do líder do morro dos Marrecos. Ele e Marta
brigam. Reizinho é visto por todos como dono do Berimbau e se encontra com um
publicitário norte-americano, que quer gravar um comercial na favela. Reizinho
conhece Zé Gavião, um dos maiores traficantes de drogas do Rio de Janeiro.
Zequinha desconfia da relação de sua filha Marta com o líder do Berimbau.
51

A partir disso, a quinta parte diz respeito ao início da queda de Reizinho, ou


seja, a alguns fatos que sucederam ao da sua deposição, isso está presente nos
capítulos vinte e cinco ao vinte e oito. Tudo começa quando José Luís encontra o
pai, Francisco, bêbado. Além disso, joga uma granada no carro de uns policiais que
o chantagearam. Marta ouve um plano de Zequinha para matar Reizinho.
Acreditando que Fake é o traidor, Reizinho o mata em um lixão. Zequinha tem mais
vontade de matá-lo ao descobrir que ele e sua filha estão namorando. Durante esse
tempo, Reizinho se torna conhecido da imprensa como um dos maiores traficantes
do Rio de Janeiro. Ele cai em uma cilada de Zequinha, e Leitor nesse mesmo dia
leva um tiro e fica tetraplégico. Reizinho, para se vingar, invade o morro dos
Marrecos, mata Zequinha Bigode e torna-se líder dessa favela também. Após,
constrói para sua mãe uma igreja. Dona Juliana e seu Rodrigo descobrem que
Reizinho é o líder do tráfico e decidem despedir Alzira. O nome de José Luís
aparece quase todos os dias nos jornais. Francisco bate a Kombi que o filho lhe deu.
Alzira é despedida e recebe um cheque com o valor correspondente a trinta e seis
salários. Reizinho encontra-se com Suzana, que lhe diz que quem o entregou não foi
Fake, mas Negaço, um de seus braços direitos.
A sexta parte, do capítulo vinte e nove ao trinta e três, definitivamente, diz
respeito à queda de Reizinho. José Luís é preso em um almoço para Zino,
açougueiro do morro do Berimbau. Marta, agora no controle dos morros, mata
Suzana, acusando-a de traição. Carolaine gasta todo o dinheiro da mãe. Reizinho
foge da cadeia após subornar um carcereiro com o dinheiro de Leitor. Há uma festa
para receber Reizinho, e Marta fica de lado. Leitor diz para Reizinho que Marta é
uma traidora dentro do esquema do tráfico. Reizinho visita sua mãe e lhe oferece
dinheiro, mas ela não aceita. Alzira descobre que a filha gastou todo o dinheiro que
dona Juliana lhe dera. Reizinho encontra-se com a mãe de Suzana e descobre que
quem armou sua prisão foi Marta. Onofre, o dono do bar do morro do Berimbau,
avisa Reizinho para não voltar mais ao morro, de modo que ele e Kelly fogem para
Depósito Novo, em Roraima. Marta é morta por outros traficantes. Alzira, em
decorrência de uma úlcera varicosa, amputa sua perna. Reizinho é abandonado por
Kelly e decide voltar para o Rio de Janeiro.
A narrativa não possui uma macrossequência definida, pois ao longo da
história, conforme exposto, há vários momentos de desequilíbrio, equilíbrio e, mais
52

uma vez, desequilíbrio. Isso pode ser percebido pelo final que não configura um
equilíbrio, mas uma situação que pode desencadear outras ações, pois o
protagonista recomeça a sua subida no morro após voltar de Roraima: “José Luís
subiu lentamente o morro, sem saber exatamente o que iria fazer, os cachorros na
frente, latindo” (MELO, 2010, p. 391). Ou seja, nem a personagem sabe o que faria
ali, pois ela se questiona em um parágrafo anterior se o novo líder do morro, Volnei,
já teria sido avisado pelos olheiros da sua chegada. Também ele não é esperado por
ninguém; apenas os cachorros Jaboti e Guliver o esperam.
Aqui há uma referência a dois cachorros que guardam a entrada do
Berimbau: Jaboti e Guliver, ou seja, dois cães que estão na entrada do inferno. Uma
clara referência ao cão infernal da mitologia grega, Cérbero, que possui três cabeças
e, em volta do pescoço, serpentes (cf. BULFINCH, 2006, p. 259). O inferno na
mitologia é o lugar para onde os mortos vão e de lá não têm mais volta, é o fim.
Assim também acontece para Reizinho, que retorna ao Berimbau, não possui o
mesmo poder de antes, não é reconhecido, pois caiu no esquecimento das pessoas,
ou seja, perdeu sua identidade (cf. WELFER; RODRIGUES, 2009, p. 138). No
entanto, não se sabe se é o fim dele ou o que vai acontecer com ele; como muitas
narrativas contemporâneas, fica para o leitor a questão aberta a respeito do que irá
acontecer.
Na análise, contudo, é possível delimitar uma microssequência apenas em
uma parte do texto, pois a situação inicial é exposta logo no início da narrativa,
quando apresenta o morro do Berimbau, a vida de Reizinho e de seu núcleo familiar.
A primeira perturbação acontece quando Reizinho para de trabalhar para o traficante
Miltão gerando, com isso, uma transformação na personagem, uma vez que
modifica seu modo de vida: deixa de morar com a mãe e entra para o mundo das
drogas. Contudo, a resolução que deveria acontecer, segundo a microssequência,
não aparece diretamente na história, e quando há alguma resolução ela não é única
e nem fecha a narrativa, deixando-a aberta. Por exemplo, quando volta a trabalhar
para Miltão, Reizinho também retorna a trabalhar para o tráfico de drogas e para o
crime organizado, e, a partir disso, passa durante toda a sua vida por outras
perturbações, transformações e resoluções. Ou seja, a narrativa não possui um
sistema fechado de macro e microssequência, mas apresenta várias perturbações,
transformações, equilíbrios e desequilíbrios, característica da complexidade do
53

romance. Todavia, não há uma situação final de equilíbrio, já que a narrativa


encerra, como já dito, com a volta de Reizinho para o Berimbau sem saber o que
fazer e o que irá acontecer.
Como visto, não é possível desvincular as ações de uma narrativa das
personagens, pois “o estudo das personagens está intimamente relacionado com a
trama dos fatos, pois as ações dos atores são geralmente coerentes com suas
características psicológicas” (D’ONOFRIO, 2007, p. 138). Dessa forma, é possível
traçar um esboço das principais personagens envolvidas na trama, porque em torno
de e em relação a Reizinho a maioria muda seu posicionamento quanto ao domínio
dos morros. A partir do esquema actancial, antes da análise dessas personagens, é
possível ter o plano a seguir:

Figura 8 - Quadro actancial da obra

Fonte: desenvolvido pelo autor (2016).

A personagem principal de toda a narrativa é José Luís Reis, o Reizinho, que,


ao longo da história, mesmo inconscientemente, deseja ser o dono da Favela do
Berimbau, ideia reforçada pelo significado e pela força de seu nome. Entretanto,
quando Leitor percebe que Miltão está prestes a cair e começa a avisar Reizinho
que é ele quem deve assumir o posto, o rapaz nega isso, mas no fundo sabe que lhe
cabe essa posição. “Temos que ter um sucessor. Você. Eu já disse mil vezes. Você.
Se, por um lado, Reizinho não se prontificava a discutir o assunto com Leitor, por
outro não pedia mais que não dissesse bobagens´. Ouvia atento, pensativo,
nervoso” (MELO, 2010, p. 180). Em outras palavras, em um primeiro momento,
54

Reizinho nega os avisos de Leitor, mas com o passar do tempo, ao ver as bobagens
que Miltão fazia, começa a se “conformar” com o que pode acontecer.
Seu nome diz muito sobre ele, tendo em vista que “José Luís Reis” é um
nome comum no Brasil, entretanto, naquela favela,
Excluindo Reizinho, ninguém ali é José, Luís, Pedro, Antônio, Joaquim,
Maria, Sebastiana. São Giseles, Alexis, Karinas, Washingtons, Christians,
Vans, Daianas, Klebers e Eltons, nomes retirados de novelas, programas de
televisão, do jet set internacional, das revistas de cabeleireiras e de
produtos importados que invadem a favela. (MELO, 2010, p. 9).

Naquele espaço, começando pelo nome, ele é diferente de todos, ele é único,
podendo-se inferir que, por essa diferença, ele seria o único a pertencer àquele
espaço. Da mesma forma, o seu apelido, Reizinho, já que todo rei possui um trono,
súditos e etc.. Entretanto, o apelido em diminutivo dá a atender que ele não chegará
a ser rei por completo, mas será em um grau menor. No entanto, quando José Luís
assume o domínio do morro, as pessoas reconhecem nele a sua majestade, e com
quase dezessete anos era verdadeiramente líder:
Mais gordo, mais alto, mais falante, e principalmente mais confiante,
sorrindo, sambando, acenando para os convidados, José Luís não guardava
nenhuma semelhança com o adolescente tímido que assumira o poder seis
meses antes. Com quase dezessete anos, era um líder, no sentido literal do
termo. (MELO, 2010, p. 260).

Inclusive, ele mudou, porque passa a ser ambicioso e a desejar o poder: “não
queria ser simplesmente mais um líder de morro do tráfico. Reizinho ambicionava
receber o título de o maior comerciante de drogas da América do Sul” (MELO, 2010,
p. 261). Com isso, é possível afirmar que Reizinho, enquanto sujeito da história que
possui por objeto de desejo o domínio do Morro do Berimbau, é uma personagem
redonda, por toda a sua complexidade e pela evolução ao longo da narrativa. É
importante destacar a idade desse jovem, já que a história inicia quando Reizinho
tem onze anos e termina quando tem dezessete, isto é, tudo se passa na
adolescência. Praticamente não teve infância, porque a história inicia e ele trabalha
com Miltão; entre um momento e outro do seu trabalho, ele brinca com seu pai
imaginário e ideal, diferente daquele que encontrará. Também a escola não era um
espaço que lhe agradava, frequentara até a quarta série e depois abandonara os
estudos.
A principal oponente de Reizinho ao longo de toda a história é Alzira, a
própria mãe, personagem que não muda sua posição ao longo da narrativa. Mesmo
quando pede ajuda a Miltão, é obrigada a ceder à chantagem do filho.
55

Eu paro, disse Reizinho, paro de bagulhar, juro aqui mesmo que nunca mais
fumo, nem cheiro, nem nada, nunca mais, com uma condição. Qual?,
perguntou Miltão. Volto a trabalhar com você. Pirou, disse Miltão, rindo.
Pirou total, o neguinho. Sua mãe, cara. Pirou. Sua mãe, esqueceu?
Neguinho me enche o saco, cara. Você me dá canseira. É minha condição,
disse o menino. Miltão coçou a cabeça, riu, e ao fazer isso, Reizinho notou
a arma, na cintura. Reizinho foi até a janela. Alzira conversava com Suzana.
Mãe, ele disse, vem cá. Alzira entrou, desconfortável com a situação, aflita.
Mãe, disse José Luís, a partir de hoje eu trabalho com o Miltão. Nunca mais,
na vida, a senhora vai me ver drogado. Alzira suspirou, agoniada. O que
mais poderia fazer? (MELO, 2010, p. 104-105).

Ao longo de toda essa cena, Alzira está fora da casa, não queria se meter na
conversa do bandido com o seu filho. Quando é chamada, fica desconfortável com
aquela situação: o filho lhe diz que volta a trabalhar com Miltão e faz a promessa de
nunca mais usar drogas. Em sua agonia e aflição, ela aceita a proposta, pois não
havia mais nada que pudesse fazer. Toda essa revolta contra o tráfico é própria de
uma mãe que vê crianças e jovens morrerem por causa da guerra no morro entre
traficantes e policiais, ou mesmo entre os traficantes que disputam bocas de fumo.
Ademais, Alzira é uma típica religiosa, acredita que tudo o que acontece na sua vida
e na dos filhos faz parte da tentação do Demônio, segundo as instruções da Igreja
Evangélica Rebanho do Puríssimo Amor do Nosso Senhor Jesus Cristo.
A mãe de Reizinho trabalha na casa de Juliana e Rodrigo, que moram na
Zona Sul do Rio de Janeiro, mais propriamente no Leblon. Durante o tempo em que
trabalha nessa casa, Alzira a todo o momento é chamada de burra, sonsa, ignorante
e outros adjetivos pelos patrões:
Fale baixo, Rodrigo. Os amigos na sala, e Rodrigo contando, a Alzira é a
prova de que Deus, se existe, é um filho da puta: Alzira é feia, pobre, burra
e ignorante. Adoramos a Alzira, disseram. Mas ela é muito burra. Tão burra
que, outro dia, anotou um número de telefone assim: 5554477333333333,
querendo com isso escrever 35 24 27 93. (MELO, 2010, 188).

Nesse trecho, pode-se perceber o desprezo dos patrões pela empregada, no


entanto, em um momento anterior a este, todos eles, antes de saírem de casa,
enquanto Alzira está na faxina, pedem coisas e favores a ela. Isso mostra que Alzira
quando é útil aos patrões é importante, mas, ao mesmo tempo, é alvo de piadas e
outras humilhações devido a sua condição social de mulher, pobre, semianalfabeta e
moradora de uma favela.
Além disso, Alzira também sofre com a filha Carolaine, que engravida quatro
vezes ao longo da narrativa, sendo que nenhum dos filhos é assumido pelos pais.
Logo no início da história, quando Reizinho encontra a irmã com um homem na
56

cama, ela sai correndo e aconselha-o a trabalhar para Miltão, mostrando-se


adjuvante de José Luís. Carolaine não trabalha, fica em casa o dia todo comendo e,
aos catorze anos, engravida primeiro de um homem mais velho e casado, depois do
pastor Walmir, em seguida, de Leitor e, por fim, está em dúvida se estaria grávida de
Edson, o porteiro do prédio de dona Juliana, ou de Zino, o açougueiro, ou, ainda, de
outro rapaz que conhecera em uma festa.
Ela demonstra completa fascinação pelas novelas a que assiste, desejando
ser atriz ou modelo:
[...] devia ser mais dura com Carolaine, dizer-lhe que parasse com aquela
história de quero-ser-modelo. Menina boba. Todas as moças da favela
queriam ser loiras, modelos, apresentadoras de televisão. [...] E mais, que
Carolaine soubesse de uma vez por todas, Carolaine não seria modelo.
Conhecia a vida, as coisas simplesmente não acontecem para nós, dizia.
Foi até o portão, nunca vingavam, coisas boas, Carolaine não havia
chegado do curso de computação. Coisas ruins acontecem a toda hora.
Meninas estupradas. Meninas grávidas. Meninas que se envolviam com os
traficantes. A pior coisa do mundo era ter uma moça em casa. Virgem.
Varreu a sala, o banheiro. Um inferno, ser mulher. (MELO, 2010, p. 27).

Nesse trecho, percebe-se o desejo das moças da favela em serem parecidas


ou iguais às mulheres que viam na televisão, dessa forma, idealizam um modelo de
vida, de relacionamento, de corpo e beleza, a partir daquilo que a mídia transmite. E
Carolaine também. Nessa mesma passagem, percebe-se o pessimismo de Alzira já
conformada com a vida e com medo de que a filha passe pelo mesmo sofrimento
por que ela passou ao longo do tempo. Com isso, pode-se perceber que Carolaine é
uma personagem plana, pois ao longo da narrativa não aprende e não muda seu
comportamento e estilo de vida.
Outra personagem importante é Miltão, que, em um primeiro momento da
narrativa, é adjuvante de Reizinho, pois é ele quem ensina o garoto a como trabalhar
no tráfico:
seja um rato, esse é o conselho que dou para meus homens, quanto mais
rato, melhor, na hora de largar o dedo nos vermes, neguinho tem que ter
vantagem, e a vantagem é nossa, eles sabem entrar, atacar, mas sair, fugir,
só nós sabemos. Seja um rato. (MELO, 2010, p. 106).

Esse é um dos primeiros conselhos de Miltão a Reizinho após recontratá-lo


no “esquema”: pede que ele seja como um rato, que conheça cada canto da favela
para que, quando os policiais ou outros traficantes subirem o morro, a vantagem
seja dos traficantes do Berimbau. Contudo, após a morte do pastor Walmir, como o
único acusado do assassinato era Miltão, este se torna oponente de Reizinho:
57

Foram três horas de combate. Seus homens [de Reizinho] avançavam


rapidamente, alguns conheciam bem o traçado das ruelas íngremes do
morro do Berimbau. Os soldados de Miltão se renderam quando as tropas
de José Luís atingiram o alto da favela. Não houve resistência. Só Miltão
continuou atirando pela janela, de um dos cômodos de seu barraco. Foi o
próprio José Luís quem o matou, e isso não lhe deu nenhum tipo de
satisfação nem sensação de vitória, embora seus companheiros não
parassem de elogiar seu desempenho. José Luís manteve a tradição dos
grandes líderes do tráfico do Rio de Janeiro. Arrastou o corpo de Miltão até
o bar do Onofre, disparou sua metralhadora para o céu e comunicou que, a
partir daquele momento, o Berimbau estava sob seu comando. (MELO,
2010, p. 227-228).

O próprio Reizinho mata Miltão e assume, segundo a tradição do local, o


domínio do morro do Berimbau. A cena mostra um líder que será grande, pois ele
arrasta o corpo de Miltão até o bar do Onofre e de lá atira para o céu, como os
grandes líderes do Rio de Janeiro. A partir desse momento, o novo líder do
Berimbau é Reizinho.
Miltão também é mais uma personagem complexa, pois ele muda, ao longo
da narrativa. Começa como um líder bom para a sua favela, mas, após Suzana
abandoná-lo, ele muda completamente, torna-se mais obsessivo pelo trabalho,
começa a ter relação sexual com várias meninas da favela e atira de modo
descontrolado em policiais, chamando, assim, a atenção da mídia e da PM para o
morro.
O principal adjuvante e destinador de Reizinho é Leitor, o qual não possui
nome, sendo conhecido por todos pelo seu apelido. Ele vive em um quartinho cheio
de livros, as suas duas paixões são ler e transar. Leitor é o pai do terceiro filho de
Carolaine, fuma apenas cigarros, acredita que a maconha e outras drogas devam
ser legalizadas, pois conforme lera em um estudo, isso traria apenas benefícios para
o Brasil, e ao longo da história se torna uma das únicas personagens a não “mudar
de lado” em relação a José Luís. Desde o início, preocupa-se com o garoto, às
vezes sendo um pouco indiscreto e abusivo, tudo o que Reizinho não gostava nele,
mas, ao longo da narrativa, Leitor torna-se seu conselheiro. O primeiro conselho
Leitor dá quando percebe que o garoto anda sempre drogado: “Venha cá, escute,
garoto, você mudou, não é? Não te vejo mais surrado. Mudou. E, agora, só te vejo
chapado. Cara, você vai se foder, logo, logo. Estou sabendo” (MELO, 2010, p. 60).
Como previsto por Leitor, semanas depois Reizinho vai para o Centro de
Recolhimento. Leitor é a única personagem, fora do núcleo familiar, que presenteia
58

José Luís no seu aniversário de doze anos, dando-lhe o livro A ilha do tesouro14,
mesmo assim Reizinho recusa, pois não lhe interessa ler, na verdade, mal sabe ler.
A personagem de Stevenson, Jim Hawkins, aos doze anos conhece e recebe de um
capitão de um navio um mapa do tesouro, do qual vai em busca. Leitor, no
aniversário de doze anos de Reizinho, lhe dá o livro e, com esse ato, é capaz de
relacionar José Luís e Jim Hawkins, de Stevenson, ao perceber que ambos, com a
mesma idade, saem de seu espaço cômodo e devem conquistar um local, este
último a Ilha Perdida com o tesouro e Reizinho, o morro do Berimbau.
E antes de Reizinho assumir o controle do Berimbau, Leitor é a primeira
personagem a dizer que ele deve assumir o domínio da favela:
Não demorou muito para que Leitor, humilhado, começasse a falar no
“sucessor de Miltão”. Sempre em voz baixa, olhando para os lados. Na
maioria das vezes, seu interlocutor era Reizinho. Você é o único que pode
assumir o comando, dizia. Você tem liderança. É bravo. É inteligente. Sabe
o que quer. Com a guerra, Reizinho ganhara fama no morro. Fora ele quem
matara Branquelo, o braço direito de Zequinha Bigode. E o Capixaba
Corcunda. Matara também um pai de família, trinta e cinco anos, vítima de
uma bala perdida. Mas isso José Luís não sabia. Só sabia que estava cada
vez mais poderoso, e entrevia a vida na favela depois que assumisse a
liderança. No entanto, não admitia essa possibilidade para ninguém. Não
quero ser líder, respondia para Leitor, toda vez que o assunto vinha à tona.
Agora que se tornara o homem de confiança de Miltão, o único a ter
ascendência sobre ele, não iria trair o amigo. Sim, Mitlão era seu amigo.
Confiava nele. Não iria apunhala-lo pelas costas. Nunca. Jamais. E se
Miltão morresse? Sim, se Miltão morresse, eram outros quinhentos. Mas
matar Miltão, jamais. Nunca mais repita isso, Leitor. Para o teu próprio bem.
(MELO, 2010, p. 169-170).

Essa é a primeira vez que aparece na narrativa o conselho de Leitor referente


às qualidades de Reizinho e à sua capacidade de liderança. Leitor vê no amigo
todas as características de um bom líder, entretanto, essa cena aparece logo após
Miltão ter humilhado Leitor, ou seja, há uma mistura de ressentimento e verdade na
sua fala. Desse modo, pode-se concluir que Leitor é uma típica personagem plana,
pois desde o início é sensato, não muda de opinião e de lado, e ainda possui a
capacidade, talvez por ler muito, de ver além daquilo que está acontecendo.
Já Fake, que aparece como adjuvante de Reizinho, é mais uma personagem
complexa. Quando se conhecem, o primeiro deixa claro quem ele é,
Fake era seu nome, óculos espelhados, cabelos rapados, boné, ia ser
Conan, meu nome, mas aí descobri que já existia um Conan por aí, na vida.
Quero ser único, brother. [...] O hip-hop me fez ver as coisas. Entender.
Consciência. Sei quem sou, mano, graças ao hip-hop. Sou preto. Sou preto

14 A ilha do tesouro, de Robert Louis Stevenson, foi escrito em 1883 e conta a história de Jim
Hawkins, um menino que recebe de um marujo um mapa do tesouro. Após a morte do marujo, Jim
foge e vai atrás do tesouro que o mapa prometia.
59

e quero minha parte. Vou ser um rapper famoso. Contrato com a Coca-
Cola, me aguarde. Dinheiro. Nós, os negões, somos poderosos. Vou ser
rico. Fake levou Reizinho para a rádio do morro. Sou o deejay da nossa
rádio a cabo. Equipamentos eletrônicos novinhos. Sou mano do Miltão. Na
visão de Reizinho, aquele seria o único defeito de Fake, a amizade com
Miltão. É a irmandade negra, mano. É você quem coloca as músicas no
alto-falante da praça?, perguntou Reizinho. Fake, em pessoa. Eu mesmo.
Você gosta do som? Reizinho adorava. (MELO, 2010, p. 70-71).

Logo no primeiro encontro, Reizinho fica encantado por Fake, e a relação dos
dois cresce, pois quando voltava do trabalho, aquele ia direto para a rádio consumir
drogas com o novo amigo. O que Reizinho não sabia é que Fake trabalhava como
informante de Zequinha Bigode, até mesmo Leitor o aconselhou a se afastar do DJ
da favela. O nome “Fake”, em inglês, quer dizer “falso”, ou seja, o apelido do amigo
de José Luís corresponde a um significado que não é compreendido por grande
parte das personagens daquele espaço, talvez Leitor soubesse, mas não revela.
Mesmo assim, esse significado dá pistas do caráter da personagem. Por fim, quando
Marta ouve o pai conversando com alguém no quarto sobre matar Reizinho e
percebe que aquela voz é de Fake, ela avisa José Luís que o mata em um lixão.
José Luís, anos mais tarde, ainda se lembraria da atitude de Fake, não se
ajoelhe, ele ordenou, com raiva, eu te arrebento os miolos aqui mesmo,
cara. Levanta e corre. Porra. Fake implorava, brother, não faça isso, estou
limpo, cara. Corre, eu avisei. Fake correu, olhando para trás, José Luís
ainda esperou alguns segundos antes de começar a atirar. Três disparos.
No quarto, Fake caiu. Reizinho caminhou alguns metros, segurou o braço
de Fake para ver a pulsação. Nada. Porra. (MELO, 2010, p. 298).

Reizinho mata Fake com muita raiva, pois para ele traição era coisa grave, e
quando se lembra que o amigo havia traído e roubado Miltão, fica com mais raiva
ainda. Mesmo Fake dizendo que não havia feito nada, Reizinho o mata. Algum
tempo depois, Suzana vai revelar que quem traiu Reizinho fora Negaço e que Fake,
na verdade, estava limpo. O nome de Fake pode remeter à falsidade, mas ao longo
da história o DJ não fora falso com Reizinho. Antes de morrer, quando questionado
porque não havia incluído José Luís na sua banda, Fake responde que nunca
imaginou que o amigo quisesse participar, com um ar de ingenuidade e de
veracidade na sua fala. Fake é mais uma personagem redonda, que se torna
complexa a partir das suas principais experiências: no Centro de Recolhimento,
onde aprendeu a ser bandido, e quando se alia a Reizinho no tráfico.
Suzana é mais uma personagem que transita entre adjuvante, destinadora e,
por fim, oponente de Reizinho. Ela é a vizinha que acompanhou o crescimento de
José Luís: “Suzana, bonita, cabelos ondulados, calças justas, de boca larga, o
60

umbigo de fora, tamancos vermelhos, dezoito anos” (MELO, 2010 p. 36). Muitas
vezes, ela se meteu na casa para salvar o menino das surras da mãe: “[...] e muitas
vezes, quando o garoto estava sendo espancado, Suzana invadia a casa de Alzira,
esbaforida, arrancava o garoto da mãe, levava-o para casa” (MELO, 2010, p. 36).
Algum tempo mais tarde, ela também protege o garoto de Miltão e, por fim, quando
largou Miltão para ficar com Zequinha Bigode, foi Suzana quem apresentou e
introduziu Reizinho ao traficante do morro dos Marrecos.
A conversa foi objetiva. Fake contou que agora vivia sob a proteção de
Zequinha Bigode. Um preto sensacional. Muito dever. Humano para
caralho. E competente. Ele quer levar um lero contigo, brother. E isso não
tem nada a ver com tuas qualidades, Zé. É a Suzana mesmo, tua fada
madrinha, que está por trás de tudo. Suzana é uma fodona no morro dos
Marrecos. Manda e desmanda, a mulha. Sabe o que isso significa? Chegou
a tua vez, brother. Você está entendendo? Ser king, que tal? Hein? Captou
a ideia? É isso, brother. Se você não quer ser pau-mandado do Miltão o
resto da vida, pronto, chegou a hora. O homem está disposto a te ajudar.
Quer marcar um encontro. Que tal? Vai ficar mudo? Enguiçou? Decida,
brother. O que eu digo para eles? (MELO, 2010, p. 197).

Contudo, após Reizinho ter matado Zequinha Bigode, Suzana se torna


oponente de José Luís. No final da 5ª parte, Reizinho e Suzana se encontram pela
última vez, quando ela revela que quem o traiu não foi Fake, mas Negaço, seu novo
braço direito.
Agora, não pense que eu estou aqui te contando isso porque sou sua
amiga, porque quero te alertar sobre o perigo. Para mim, Zé, você pode
morrer na minha frente, juro, não estou nem aí. Quero que você se foda.
Não te conheço mais. Se estou te contando, é que eu quero que você sofra
um pouco mais. Você matou seu melhor amigo injustamente, e espero que
se lembre disso todos os minutos do que resta da sua vida miserável. É
isso. Falei tudo. Tchau. (MELO, 2010, p. 333).

Por fim, Suzana, por volta dos 24 anos, é morta por Marta, que nunca gostou
da madrasta e também porque, segundo a mãe de Suzana, Dirce, Marta a teria
matado porque ela sabia demais. Portanto, Suzana é mais uma personagem
redonda, complexa, pois seus atos, ao longo de toda a narrativa, mudam conforme
os atos das outras pessoas se modificam em relação a ela.
Zequinha Bigode aparece pela primeira vez na história como inimigo de Miltão
e, consequentemente, de Reizinho. Zequinha conhece Suzana e por ela se
apaixona. Pouco tempo depois, a garota vai morar com ele no Morro dos Marrecos.
Zequinha é viúvo e mora com sua mãe, suas filhas Marta e Priscila, e é o chefe do
tráfico no Morro dos Marrecos, vizinho do Berimbau. Primeiramente, de modo
indireto, Zequinha é oponente de Reizinho, em seguida, influenciado por Suzana,
61

torna-se adjuvante, pois o auxilia na conquista do Berimbau, da mesma forma que


se torna um dos grandes destinadores, pois é graças a sua ajuda que Reizinho mata
Miltão e assume o poder. Contudo, no final da história, Zequinha se torna, mais uma
vez, oponente de Reizinho, pois ambos disputam o domínio do tráfico e de Marta.
Marta é o grande amor de Reizinho e, ao mesmo tempo, a grande decepção.
Eles se conhecem em um baile funk por intermédio de Fake. No entanto, acabam se
perdendo e não trocam contatos. Semanas mais tarde, eles voltam a se encontrar,
por acaso, na praia, mas mais uma vez não conseguem trocar contato.
Definitivamente voltam a se ver apenas quando Reizinho vai até a casa de Zequinha
para acertar a tomada do morro do Berimbau. A partir desse dia, eles começam a se
ver quase sempre, no entanto, o pai dela é drasticamente contra o namoro das filhas
com homens que não possuem diploma.
A segunda guerra instaurada no morro, entre Zequinha Bigode e Reizinho, se
dá quando Marta ouve o pai combinando de matar o namorado. Ela foge da casa
paterna e vai ficar com José Luís. Com isso, inicia um dos maiores conflitos entre os
morros do Berimbau e dos Marrecos. Reizinho com seus homens mata Zequinha, e
a filha fica com ódio do namorado, mesmo sabendo que, se não o matasse, ele seria
morto pelo pai da namorada. Após a prisão de Reizinho, planejada como vingança
por Marta, é ela quem assume o domínio dos dois morros. Quando foge da prisão,
José Luís descobre, pela mãe de Suzana e por Leitor, que Marta é uma traidora,
Marta, na época, não pensava em matar José Luís, queria apenas que ele
fosse preso, queria mostrar que ele não era tão grande quanto pensava,
ploc, que era vulnerável, mas depois, com a prisão de José Luís, as coisas
foram ficando piores, ploc, e ela também foi tomando “gosto pelo esquema”,
e ganhando dinheiro, e também seus sentimentos em relação a José Luís
ficaram mais confusos, à medida que seus negócios com Gavião ficaram
mais complexos. (MELO, 2010, p. 376).

Ou seja, quem planeja a prisão de José Luís é Marta. Após saber de tudo
isso, Onofre avisa Reizinho para não voltar para o Berimbau, pois tudo está muito
estranho, uma vez que ela quer matá-lo. Reizinho descobre, em Roraima, pela irmã,
que Marta foi metralhada na rua principal do Berimbau, pelos homens de Volnei, o
novo chefe do morro. Marta, de temperamento impulsivo e forte, oscila também entre
adjuvante, destinadora e oponente de Reizinho, sendo uma personagem complexa
que muda o seu comportamento conforme o espaço e os fatos.
Kelly é a primeira namorada de Reizinho, adjuvante que o apoia em tudo, no
entanto, quando os dois estão morando em Roraima ela perde o encanto por ele e
62

foge com Anderson, um baiano que possui uma lanchonete em Salvador e que é
cantor em churrascarias. Ela abandona José Luís, pois agora ele não é mais o
Reizinho, mas dono de uma lancheria em um lugar que nem parecia pertencer ao
Brasil.
Onofre é quem narra alguns fatos sobre a vida das pessoas na favela. Graças
ao seu bar, ele sabe de tudo e de todos. Ele no início da narrativa não é importante
para Reizinho, contudo, é ele quem o ajuda a sair da prisão e quem o avisa a não
voltar para o morro, após perceber que tudo está estranho por lá. Desse modo, ele é
um adjuvante na história, pois permanece em todos os momentos ao lado de
Reizinho.
Todas essas personagens influenciam e são influenciadas pelo espaço em
que estão, seja no morro do Berimbau ou dos Marrecos. A narrativa começa quando
Reizinho tem onze anos e termina quando ele tem mais de dezessete anos, ou seja,
todas as ações acontecem durante cerca de seis anos, durante a adolescência de
José Luís dos Reis.

3.2 O DISCURSO DO INFERNO

Quanto à análise do discurso na obra Inferno, estudar-se-á a voz, a


focalização, o tempo da narrativa e o discurso, para, desse modo, perceber como a
estrutura do texto está relacionada aos fatos narrados, ou seja, estudar como os
acontecimentos estão expostos ao longo da narrativa.
O narrador configura-se como heterodiegético, pois não participa da história e
não tem envolvimento direto com as ações relatadas, pois “o narrador relata uma
história à qual é estranho, uma vez que não integra nem integrou, como
personagem, o universo diegético em questão” (REIS; LOPES, 1988, p. 121). Isso
se percebe no trecho em que o narrador, que está fora da ação, explica ao narratário
a situação de Fake em relação ao tráfico.
Na realidade, Fake trabalhava para Zequinha havia dois anos. Recebia um
salário generoso para manter o líder do morro dos Marrecos informado
sobre as transações importantes relacionadas ao tráfico de drogas no
Berimbau. Nem durante o período em que estivera preso, Fake deixara de
trabalhar para Zequinha. Semanalmente passava para o traficante as
informações que Reizinho lhe trazia durante as visitas. Horas mais tarde,
Fake se arrependeria de não ter contado toda a verdade para o amigo.
(MELO, 2010, p. 219-220).
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Nesse ponto, há uma pausa na narração das ações, para que o narrador
explique o que de fato estava acontecendo com Fake. Como não participa da
história, o narrador sabe o que as personagens pensam e conhece todas as suas
ações antes e depois do tempo presente da narrativa.
O trecho citado comprova ainda a perspectiva narrativa que se dá através da
focalização onisciente, pois o narrador conhece a verdade em relação a Fake e sabe
quais serão os sentimentos dele horas mais tarde após o encontro com Reizinho. A
focalização onisciente ou zero pode ser entendida como
[...] toda a representação narrativa em que o narrador faz uso de uma
capacidade de conhecimento praticamente ilimitada, podendo, por isso,
facultar as informações que entender pertinentes para o conhecimento
minudente da história; colocado numa posição de transcendência em
relação ao universo diegético [...], o narrador comporta-se como entidade
demiúrgica, controlando e manipulando soberanamente os eventos
relatados, as personagens que os interpretam, o tempo em que se movem,
os cenários em que se situam etc. (REIS; LOPES, 1988, p. 255).

No entanto, a enunciação é permeada também pela focalização interna


múltipla, que “consiste no aproveitamento (quase sempre momentâneo e episódico)
da capacidade de conhecimento de um grupo de personagens da história,
artificialmente homogeneizados para esse efeito” (REIS; LOPES, 1988, p. 251).
Assim, em Inferno, o narrador permite que a história seja vista através de vários
pontos de vista por meio do discurso indireto livre:
Ruas estreitas, sem pavimentação, esburacadas, poças, galinhas, carcaças
de automóvel, e, no céu, aviões voando baixo, aterrissando no Galeão.
Gente magra. Reizinho caminhando. Observando. Mulheres gordas. Na
favela, os meninos são muito magros e as adolescentes, gordotas. As
mulheres são obesas e os homens ventrudos. É a regra. Reizinho andava
devagar, olhando, sentia-se cansado. (MELO, 2010, p. 46).

Esse trecho exemplifica o modo como o narrador dá a conhecer os


acontecimentos. O foco da cena não é apenas dado pelo narrador, mas pelo olhar
de Reizinho, que observa o espaço onde está inserido. Os olhares do narrador e da
personagem se confundem, sendo que o narrador se aproveita da visão de Reizinho
para descrever o lugar e presentificar a cena em questão.
O tempo na narrativa é mais ou menos linear, pois não apresenta prolepses,
no entanto, possui analepses em boa parte da narração, a fim de “relatar eventos
anteriores ao presente da ação e mesmo, em alguns casos, anteriores ao seu início”
(REIS; LOPES, 1988, p. 230).
64

Naquela noite, pastor, ele chegou em casa de madrugada, tão atormentado,


tremendo, entrou no banheiro, apressado, me evitando, deixou o chuveiro
ligado pensando que eu não escutaria, mas eu escutei, pastor. Ele gemeu
de um jeito estranho, não era um lamento, era um grunhido, um som
horrível, ele vomitou, pastor, vomitou, chorou, escutei tudo, com meu ouvido
colado na porta do banheiro. Saiu do banho com os olhos vermelhos, o
rosto branco como uma assombração, ligou a TV, só para me evitar.
Preparei um leite quente para ele, conte para sua mãe, eu disse, o que está
acontecendo? Comi carne demais, ele respondeu. No outro dia, quando fui
lavar as roupas dele, notei, era sangue. (MELO, 2010, p. 121).

Alzira quando vai à igreja encontra-se com o pastor e narra o que acontecera
na noite anterior quando Reizinho chegou a casa após ter matado um homem. O
narratário não sabia, até então, o que havia acontecido com José Luís, somente com
o relato da mãe ao pastor é que se sabe o que acontecera com o menino. O tempo
da narrativa apresenta uma pausa, para que pela memória e através do olhar de
Alzira se descubra qual era o estado emocional de Reizinho após ter tirado a vida de
um homem. Essa analepse permite recuperar um evento importante para a história,
pois confere coerência própria da descrição de Reizinho.
O discurso das personagens na obra está representado pelo discurso indireto
livre, segundo Reis e Lopes (1988, p. 277), “é um discurso híbrido, onde a voz da
personagem penetra a estrutura formal do discurso do narrador, como se ambos
falassem em uníssono fazendo emergir uma voz ‘dual’.” Com esse tipo de discurso,
a obra atinge um grau de complexidade igual ou maior àquele espaço em que está
representada, pois muitas vezes confunde-se a voz do narrador com a de algum
personagem.
Desde que chegara não dissera nenhuma vez obrigado. Ale-ale-Aleijadinho.
Marta se sentiu feliz por ter tomado certas atitudes. O rei da arte mulata.
Abrira uma conta em seu nome, e não dissera nada a José Luís. Ale-ale-
Aleijadinho. E também comprara dois terrenos em seu nome. Filho da
escrava Isabel. E nada dissera. Agira corretamente. E comprara também os
novos aliados. Brasil perfeito tesouro. Tudo vai dar certo. Seria a líder do
Berimbau em muito menos tempo do que aqueles bostas poderiam supor.
Ploc. (MELO, 2010, p. 362).

Após a saída de Reizinho da prisão, ele retorna ao Berimbau e é recebido na


quadra da escola de samba com uma festa. A namorada, Marta, que agora é a nova
chefe do tráfico no morro, parece não gostar muito do seu retorno, pois está sendo
ignorada pela população da favela. Ao longo do parágrafo citado, contudo, a voz do
narrador é substituída pela voz de Marta, por exemplo, em: “Desde que chegara não
dissera nenhuma vez obrigado”, ou, “Tudo vai dar certo. Seria a líder do Berimbau
65

em muito menos tempo do que aqueles bostas poderiam supor”. Isso faz com que a
focalização, aqui múltipla, e o discurso indireto livre, contribuam para instaurar
complexidade e concordância entre as duas vozes. Além disso, a letra do samba-
enredo da escola de samba pode também auxiliar na representação de José Luís.
Ou seja, enquanto o narrador e Marta apresentam a sua visão sobre o retorno de
Reizinho ao Berimbau, a letra do samba também contribui, em alguns momentos,
para descrever quem é José Luís. Por exemplo, na parte “Filho da escrava Isabel”
para dizer sobre Aleijadinho, poder-se-ia dizer a respeito de Reizinho “Filho da
escrava Alzira”, devido à rotina de trabalho que a mãe de José Luís tem. Além disso,
Aleijadinho era um gênio da escultura nacional, apesar de suas limitações físicas em
decorrência da lepra. Na mesma medida, pode-se inferir que, apesar da pouca idade
e de suas limitações, Reizinho é um gênio daquela vida de tráfico no crime.

3.3 O ESPAÇO DO INFERNO

A partir do estudo histórico a respeito da origem e formação das favelas,


pode-se concluir que esse espaço marginal, por muito tempo, foi excluído e negado
por grande parte da sociedade brasileira. Com isso, as pessoas que habitavam
esses lugares, muitas vezes por falta de habitação digna, por terem sido expulsas de
onde moravam ou por buscarem melhores condições de vida através da migração,
tiveram que fazer dos morros do entorno das grandes cidades seu lar. Como não
receberam dos governos a ajuda de que necessitavam para começar ou recomeçar
a sua vida, essas populações que vieram para os grandes centros urbanos, tiveram
que improvisar, buscando soluções que estavam ao seu alcance.
Soluções esdrúxulas é verdade, mas são as únicas que estão a seu
alcance. Aprende a edificar favelas nas morrarias mais íngremes fora de
todos os regulamentos urbanísticos, mas que lhe permitem viver junto aos
seus locais de trabalho e conviver como comunidades humanas regulares,
estruturando uma vida social intensa e orgulhosa de si. (RIBEIRO, 2001, p.
204).

Assim também acontece em Inferno, de Patrícia Melo. O narrador apresenta


um espaço marginal ao narratário sem escrúpulos ou máscaras, pois ali está
exposta a dura realidade da violência e da margem em que aquelas personagens
estão. A narração e a descrição são paralelas, principalmente, por exemplo, quando
Reizinho sobe e desce o morro, à procura de seus comparsas, de modo que é difícil
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separá-las. Ou seja, o narrador de Inferno não para de narrar a fim de descrever um


espaço, mas o faz simultaneamente:
Durante a caminhada morro acima, domésticas sorriem para ele, passam,
crianças, gente indo para o trabalho, oi Reizinho, pedreiros, cumprimentam,
crianças, cachorros, eletricistas, oi, acenam as mãos, latem, cadelas, babás
e digitadores, cachorros, encanadores, gigolôs, porteiros, ladrões de carros,
crianças, sorriem, moças nas janelas, manobristas, assaltantes, costureiras,
sorriem, traficantes de armas, o local é tumultuado, crianças, lamentos, é
barulhento, confuso, entulhado, sujo e colorido. Reizinho passa por tudo,
dando atenção especial para os cachorros que cruzam seu caminho.
(MELO, 2010, p. 10).

Logo no início da narrativa, enquanto Reizinho sobe o morro, o narrador faz


pequenas interferências na narração para caracterizar as pessoas que habitam
aquele espaço: são domésticas, crianças, pedreiros, eletricistas, babás, digitadores,
encanadores, gigolôs, porteiros, ladrões de carros, manobristas, assaltantes,
costureiras, traficantes de armas. Além dos criminosos, também há naquele lugar
pessoas que querem ganhar a vida de forma honesta com o seu trabalho, uma vez
que, em sua maioria, trabalham como empregadas e operários. Contudo, aquele
lugar também é, assim como a cena do menino subindo o morro, barulhento,
confuso, entulhado, sujo e colorido. O que se pode perceber é que ao logo da
narrativa, mais especificamente no trecho citado, é que a cena narrada e a cena
descrita estão ambas em relação, não há uma quebra ou uma pausa para que uma
entre e a outra saia, mas uma intercalação entre ambas.
A descrição origina sem dúvida uma pausa ou uma paragem na progressão
textual da acção diegética, mas não se pode afirmar que a descrição se
oponha funcionalmente, exceptuando os casos da sua proliferação e da sua
expansão anómalas, à narração. Quer no retrato, quer na figuração do
espaço geográfico-telúrico e do espaço social, a descrição mantém uma
interacção contínua com os eventos diegéticos. Como ficou dito, não só
veicula indícios e informações sobre as personagens, os objetos e os
respectivos contextos situacionais, contribuindo para tornar verossímil, para
enraizar no real a diegese, ou, ao contrário, para a inscrever num universo
fantástico, mas também gera significados simbólicos ou alegóricos que são
indispensáveis para compreender as personagens e as suas acções. Em
muitos romances, as descrições são portadoras de conotações que
configuram um espaço eufórico ou disfórico, idílico ou trágico, que é
inseparável das personagens, dos acontecimentos e da mundividência
plasmada na diegese [...]. (SILVA, 2011, p. 741-742).

A pausa ao longo do Inferno não acontece, como já foi dito, já que a descrição
dos espaços está intercalada com as ações. Isso prova a interação e a importância
dos espaços descritos com o evento diegético narrado, pois são as informações
sobre os espaços que tornam a obra verossímil, que instalam a sensação de
realidade e fazem com que ela seja crível. A partir disso, os espaços fictícios
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descritos ganham lugar no real, ou o contrário também é válido, pois muitos espaços
podem ser encontrados na realidade. Por exemplo, a rua Santa Clara, lugar do
encontro de Reizinho e a mãe de Suzana, ou a rua da casa da dona Juliana, a
General Artigas, no Leblon, ou até mesmo a cidade do Rio de Janeiro, que ganha
mais duas favelas durante a narração: o morro do Berimbau e o morro dos
Marrecos. Esses e outros espaços são indispensáveis para a caracterização das
personagens. Reizinho só é rei quando está no Berimbau. Quando parte para a
cidade de Depósito Novo, em Roraima, com Kelly, ele deixa de ser Reizinho e se
torna apenas José Luís. Ou seja, o espaço da favela é que configura a personagem
em sua principal característica identitária: ser líder. Esse espaço é inseparável da
personagem, e, por isso, a história precisa acabar com a volta dele ao Rio de
Janeiro: ele já não se reconhece mais, porque perdera sua identidade.
O processo mimético de representar na ficção o real não é a simples cópia,
mas a possibilidade de (re)criar uma cena segunda (ficção) baseada em uma cena
primeira (realidade) (cf. LIMA, 2014), que pode, conforme já dito, extrapolar o real. A
partir disso, a criação como uma concepção da mímese é uma via de mão dupla,
pois a narrativa é capaz, através do processo mimético, de alterar o modo como é
vista a realidade, conferindo novo sentido e significado ao que se lê e vê, e da
mesma forma que a realidade, pelo processo de mímese, pode ressignificar e
interferir no que é visto e lido.
A criação de verossimilhança é uma decorrência da circulação da obra. E
isso dentro de uma concepção de mímesis que, em sua relação com a
realidade, se vê como uma rua de mão dupla – ela não só recebe o que
vem da realidade mas é passível de modificar a própria visão da realidade.
Fenômeno existensivo que não se restringe à arte pois, em seu sentido
clássico, abrange toda a tekhné, a mímesis apresenta um desafio ao
pensamento. (LIMA, 2014, p. 27).

Disso decorre a importância de Inferno ao representar um espaço da


sociedade que foi posto de lado por muito tempo: a favela. Talvez por medo de
pensar esse espaço, a sociedade tenha negado na arte uma realidade que se fazia
presente desde o final do século XIX. No entanto, autores contemporâneos têm se
preocupado em denunciar, através da ficção, o que foi negado. Esse mesmo medo
pode ser justificado, ao pensar a via de mão dupla de que Luiz Costa Lima fala, pois
se através do processo mimético a literatura pode mudar a visão sobre a favela real,
instaurando novo sentido e significado, a favela real também pode interferir na visão
da favela ficcional, ou seja, realidade e ficcionalidade, através da mímese estão
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unidas, de modo que uma contribui para a significação da outra. “Lá do alto, veem-
se muitas parabólicas e telhas Eternit. Aviões voando baixo. Lixo. Cachorro
defecando no mato. Trens. Prédios de dois andares. Orelhões, filas. O vento está
forte.” (MELO, 201, p. 10). O narrador apresenta uma visão do alto do Berimbau, lá
de cima, Reizinho pode ver toda a favela e parte da cidade que está embaixo.
Quando desce o morro e vai para a praia, Reizinho concluiu que “o Rio de Janeiro
era uma cidade bonita de verdade” (MELO, 2010, p. 25), por mais que antes,
enquanto se dirigia para a praia, através da janela do ônibus, ele visse uma outra
cidade:
A cidade pela janela, indústrias, conjuntos habitacionais, depósitos,
empresas, terrenos, garagens, depósitos, demorou para aparecerem os
prédios, prédios, prédios, lojas, e o mar, mar, mar, muita gente correndo,
bicicleta, patins, caminhadas, sorvete, água de coco e saúde, Reizinho
desceu no Leblon. (MELO, 2010, p. 24).

É importante dizer que a conclusão a respeito da beleza do Rio de Janeiro,


Reizinho não faz sobre a favela, por mais que ele saiba que o morro é o seu lugar,
contudo, em nenhum momento ele diz que aquele espaço é belo, “sou o José Luís,
filho da Alzira, irmão da Carolaine, neto de Cândida, morador do Berimbau” (MELO,
2010, p. 193). Ele é morador daquele espaço, pertence ao morro, possui identidade,
história e família: segundo sua avó Cândida, o avô, “o melhor pedreiro deste morro,
que construiu esta casa e a casa onde você nasceu” (MELO, 2010, p. 61), também
ajudou a construir aquele lugar.
O narrador, contudo, também dá a sua visão e apresenta, com isso, a favela
contemporânea,
Havia sempre muito tumulto e barulho na entrada da favela, pela Epitácio
Pessoa. Os carros eram obrigados a diminuir a marcha para não atropelar a
multidão, que se acotovelava nas estreitas calçadas de pedra e na única rua
pavimentada do morro. Não era preciso andar muito para obter qualquer
tipo de produto ou serviço. Além do açougue, havia caixa eletrônico,
automecânica, várias butiques, farmácia, lojas de material de construção,
eletricistas, barracas camelôs, academia de ginástica, a maioria
funcionando ilegalmente. (MELO, 2010, p. 34).

Nesse trecho, o narrador indica o local exato da favela no Rio de Janeiro, pela
Epitácio Pessoa. Se o narrador se refere à Avenida Epitácio Pessoa, a que circunda
uma parte da Lagoa Rodrigo de Freitas, então a possível localização da favela do
Berimbau seria onde está o Parque Municipal José Guilherme Merquior (conforme
imagem abaixo, com o marcador vermelho).
69

Figura 9 - Possível localização da Favela do Berimbau

Disponível em:
https://www.google.com/maps/d/edit?hl=en&authuser=0&mid=1ddDDYKpxmvmoTFmcP4UUH1m0H6
8 (Adaptado pelo autor, 2016).

O que se percebe é que a favela do Berimbau não está localizada à margem


da cidade do Rio de Janeiro, afastada do centro como muitas outras, mas assim
como Rocinha, Vidigal, Pavão-Pavãozinho, Cantagalo, Babilônia, Santa Marta, etc.,
está na Zona Sul, próxima do trabalho de muitos moradores que trabalham em
bairros nobres da cidade como Copacabana, Leblon, Ipanema, Botafogo, entre
outros.
Nesse mesmo trecho, além disso, há uma série de fatores que marcam a
modernidade das favelas atuais, pois comportam serviço de caixa eletrônico,
automecânica, butiques, camelôs, farmácias, academias de ginástica, etc.. Boa
parte, conforme narrado, funcionando ilegalmente, mas que compõe aquele lugar.
Centro tradicional de atividade empreendedora, a Rocinha é outra
referência para as comunidades em busca de fórmulas de desenvolvimento.
Mais que um bairro, é uma cidade, com escolas, casas de show, academias
de ginásticas, lojas de fast-food e serviços de todos os tipos, que reúne de
costureiras a cabeleireiras, de técnicos em computação a dedetizadores. De
acordo com o Censo Empresarial de 2010, a Rocinha tinha 130 mil
habitantes e aproximadamente 6 mil empreendimentos, a maior parte deles
atuando na informalidade. (MEIRELLES; ATHAYDE, 2014, p. 73).
70

Com isso, pode-se fazer uma relação com a realidade expressa na pesquisa
feita pelo Data Favela e a ficção que o livro Inferno apresenta. Ou seja, as atividades
empresariais apresentadas pela obra ficcional correspondem às encontradas na
realidade pelos pesquisadores Renato Meirelles e Celso Athayde em uma das
maiores favelas do Rio de Janeiro, a Rocinha. Portanto, as pessoas moradoras dos
morros se adaptaram às necessidades e viram que seria mais fácil ter certos
serviços próximos ao morro do que ir até o centro da cidade.
Quanto ao espaço, Salvatore D’Onofrio afirma que,
o espaço da ficção constitui o cenário da obra, onde as personagens vivem
seus atos e sentimentos. As descrições de cidades, ruas, casas, móveis etc.
funcionam como pano de fundo aos acontecimentos, constituindo índices da
condição social da personagem (rica ou pobre, nobre ou plebeia) e de seu
estado de espírito (ambiente fechado – angústia; paisagens abertas –
sensação de liberdade). A correspondência da isotopia espacial com o tema
geral da obra se dá particularmente na estética do realismo, que confere
extrema importância às influências do ambiente na constituição da psique
da personagem. Em certas obras literárias, como nas cenas de várias
categorias de filmes, um indisfarçado determinismo leva a prever com
exatidão quais são as ações e as reações das personagens, uma vez
descrito seu espaço vital. (2007, p. 83).

Assim, é importante perceber como o espaço da ficção se constitui, em que


momento da narrativa ele é descrito, pois ele influencia e é influenciado pelas
personagens. O espaço da favela do Berimbau também é apresentado conforme as
ações de seus moradores. Como, por exemplo, quando os moradores perseguem
Miltão para matá-lo, pois ele é o principal acusado pela morte do pastor:
Logo, homens, mulheres e crianças se armaram com pedaços de pau, facas
e pedras, e, como uma matilha, saíram pela favela à procura de Miltão.
Vários grupos de dez, vinte pessoas vasculhavam as diferentes ruelas
tortuosas do morro, fazendo barulho e chamando às janelas as poucas
pessoas, na maioria velhos, que não tinham ido à festa. Como ninguém
sabia ao certo o endereço do traficante, vagavam errantes, sem alvos.
Cercaram e apedrejaram a casa da irmã de Miltão. Puseram fogo num
ponto de venda de drogas. Miltão não foi encontrado em nenhum de seus
esconderijos. Ninguém sabia dele. Alguém disse que ele estava em Caxias.
É mentira. Assassino. (MELO, 2010, p. 205).

Primeiramente, aquelas pessoas são comparadas a cachorros, como uma


matilha, os mesmos cães que ao longo da história são apresentados. Em seguida,
os grupos percorrem os becos e ruelas tortuosas do morro, ou seja, a favela é
apresentada conforme a dificuldade de as pessoas, moradoras daquele lugar,
encontrarem o traficante. Essa não é a primeira vez em que na narrativa há a
comparação das pessoas com animais. Esse processo de animalização aparece
também quando Miltão aconselha Reizinho a ser como um rato para, desse modo,
71

conhecer bem o espaço, cada canto, e para que, durante as lutas contra a polícia,
os traficantes tenham vantagem por conhecerem bem o espaço da favela. Com isso,
percebe-se que a animalização está presente no decorrer da obra, pois as pessoas
daquele espaço, em algumas vezes, são comparadas a animais, o que remete à
uma depreciação daquela vida, uma perda de humanidade.
Além do Berimbau, também o morro dos Marrecos é apresentado a partir da
situação das personagens, no caso aqui exemplificado, conforme Reizinho vive.
Quando sobe a favela vizinha para encontrar Zequinha Bigode, José Luís compara
os dois morros e percebe muitas melhorias no morro dos Marrecos e que antes,
durante os conflitos, não pode perceber, pois o motivo de sua subida era diferente.
Nesse momento, com mais calma, ele pode ver o morro com “outros olhos”, pois o
espaço também se lhe apresenta de outra forma, menos hostil.
José Luís já havia subido o morro dos Marrecos, várias vezes, sempre
guerreando. Como soldado, conhecia bem a entrada, e a ruela estreita que
levava até a padaria era, naquelas ocasiões, apenas mais um capo de
batalha. Na guerra, o importante é localizar o alvo, o inimigo, o abrigo, o
melhor ângulo de ataque. Naquela noite, porém, com céu estrelado e lua
cheia, subindo numa missão de paz, o local lhe parecia totalmente diferente,
muito acolhedor e organizado. Orelhões em vários locais, canaletes para o
escoamento do esgoto, pontos de luz em toda a favela, e boas casas. O
que mais lhe agradou foi ver, em muitos locais, plaquinhas com os nomes
das ruas. Uma ideia muito boa. José Luís sabia que um dos problemas do
favelado, na hora de procurar emprego, era não ter endereço. Dessa forma,
ficava melhor, rua da Paula, número 5. E pronto. (MELO, 2010, p. 212).

Em um primeiro momento, o morro dos Marrecos também possui ruelas


estreitas sem grandes diferenças. Mas à medida que sobe a favela, ele se sente
acolhido em um lugar organizado com: orelhões, luz, canaletes para o esgoto, boas
casas e nomes nas ruas. A favela dos Marrecos era para Reizinho, até aquele
momento, um espaço inimigo, mas a situação que fez ele subir o morro, para uma
conversa/acordo com Zequinha, fez com que o seu olhar também mudasse, da
mesma forma que a favela que se lhe apresentou.
Com efeito, a descrição é um elemento textual privilegiado de que o
narrador dispõe para produzir o “efeito de real” a que se refere Barthes e
por isso mesmo os indícios e sobretudo as informações da diegese se
encontram com tanta frequência e com tanta relevância nas descrições.
(SILVA, 2011, p. 740-741).

Esse efeito de real aparece ao longo de toda a narrativa a partir dos


informantes que são dados, locais reais pelos quais a diegese perpassa, seja com
as ações de Reizinho ou de outras personagens. Por exemplo, a rua General
Artigas; a rua Venâncio Flores; Avenida Ataulfo de Paiva; a praça Argentina, local
72

em que Reizinho encontra seu pai; a rua Barão de Capanema, local onde Reizinho
deve ir para entregar alguns documentos; a Central do Brasil, que aparece como
referência ao apartamento do amante de dona Juliana; o Hospital Miguel Couto,
onde Carolaine dá a luz a seus filhos; a praia do Pepino, onde Reizinho encontra
pela segunda vez Marta; o Catumbi, onde fica a casa do pastor Walmir; rua Nossa
Senhora da Paz, local de encontro entre Reizinho e Marta; a Avenida Brasil, onde
Reizinho joga uma granada dentro do carro dos policiais; a rua Santa Clara;
Rodoviária do Rio de Janeiro, de onde Reizinho e Kelly partem para Roraima. Todos
esses espaços são reais e aparecem ao longo da narrativa.

Figura 10 - Locais reais que aparecem em Inferno

Disponível em: https://www.google.com.br/maps/@-22.8812759,-


43.4151629,11z/data=!3m1!4b1!4m2!6m1!1s1JV-AVRpZgSIxAAaBJNE1MDQ5z4o?hl=en-GB
(Adaptado pelo autor, 2016).

Entretanto, alguns lugares apresentados ao longo da narrativa são fictícios,


mas nem por isso deixam de ser verossímeis, pois “o verossímil, como insistirão os
teóricos, não é, pois, aquilo que pode ocorrer na ordem do possível, mas o que é
aceitável pela opinião comum, o que é endoxal e não paradoxal, o que corresponde
ao código e às normas do consenso social” (COMPAGNON, 2012, p. 103). Todos os
lugares criados estão relacionados à ordem do possível, pois são passíveis de
existirem também na realidade, isto é, possuem alguma relação com o real e
contribuem para o “efeito de real”. Por exemplo: a favela do Berimbau é um espaço
que não existe na realidade, no entanto, com as descrições, é possível imaginá-lo; o
Centro de Recolhimento de Menores Tereza Guimarães Moraes, para onde Reizinho
é levado após ter sido preso; o Núcleo de Apoio e Terapia de Recuperação para
73

Dependentes Químicos; o Presídio Padre Moraes; o Centro de Reintegração do


Menor São Francisco de Assis, para onde Fake é levado após ter sido preso; o
Morro dos Marrecos; o Hotel Copacabana Queen, onde Rosa Maria fica hospedada
quando vem visitar o Brasil, mas que também era o seu ponto de prostituição; o
Morro do Sambacuim, que foi invadido por Reizinho a pedido de Zequinha; a rua
Sete de Abril na entrada do morro do Berimbau. Esses lugares por onde as
personagens transitam, uns mais à margem outros mais centrais, contribuem para
instaurar a verossimilhança, de modo que denunciam um espaço social esquecido
pela sociedade.
Por fim, outro elemento que se faz necessário analisar é a representação da
violência na favela, pois o espaço urbano da favela, conforme já dito, desde o início,
recebeu trabalhadores e criminosos. Antoine Compagnon diz que
[...] nos mundos possíveis, para que proposições sejam válidas, não é
necessário que tratem do mesmo repertório de indivíduos que no mundo
real; basta pedir aos indivíduos dos mundos possíveis que sejam
compatíveis com o mundo real. Como já dizia Aristóteles: “O papel do poeta
é de dizer não o que se realiza realmente, mas o que poderia realizar-se na
ordem do verossímil e do necessário.” Em outras palavras, a referência
funciona nos mundos ficcionais enquanto permanecem compatíveis com o
mundo real [...]. A literatura mistura continuamente o mundo real e o mundo
possível: ela se interessa pelos personagens e pelos acontecimentos reais
[...] e a personagem de ficção é um indivíduo que poderia ter existido num
outro estado de coisas. (2012, p. 133).

Em outras palavras, as personagens e as suas ações são compatíveis com o


mundo real, pois muitas das ações violentas retratadas na obra poderiam acontecer
na realidade. Desse modo, o necessário e o possível presentes em Inferno estão
representados sob a perspectiva do espaço e da violência, misturando, espaços e
ações reais e possíveis, o que instala a verossimilhança.
A violência retratada está presente em vários âmbitos daquele espaço, não
apenas no confronto entre traficantes ou com a polícia, mas dentro da casa de
Reizinho. O que se percebe é que o espaço familiar desde sempre esteve permeado
pela violência: do pai para com a mãe, da mãe para com os filhos e do filho para
com a mãe.
É seu pai. Acabou com a minha vida, esse homem. Você não sabe nem de
um terço, Zé Luís. Os horrores que ele fez em casa. Todo dia, chegava
bêbado, e começava o meu tormento. Ficava com uma faca atrás de mim,
você no meu colo, um bebezinho. Uma vez, Zé Luís, nem vou contar, ela
disse, desistindo. Para quê? Vá lá. É seu pai. Não sinta pena, Zé Luís. Não
se iluda. Seu pai é um filho da puta. (MELO, 2010, 92-93).
74

O trecho apresenta uma das agressões que Alzira sofreu de Francisco. No


entanto, anos mais tarde, Alzira continua, como que inserida em um círculo vicioso
de violência, não mais como vítima, mas como agressora ao perceber que o filho
possui traços do pai ou por vê-lo cada vez mais envolvido com os traficantes do
morro.
Alzira pegou a mão do filho e arrancou a faixa de gaze encardida que
envolvia o ferimento. Você está metido com esses bandidos, José Luís?
Observou a ferida, eu sabia, ela disse. Eu sabia. Responda. Com esses
traficantes? Eu me matando para você ir na escola, garoto. Alzira havia
prometido que não bateria mais no filho, prometera para si mesma, mas
aquilo era de matar, incontrolável, a mão se levantou, com força, ninguém
poderia detê-la, menino sonso, nem ela mesma, a dona da mão, a mão ia
sozinha, sabia o caminho, menino burro, e bateu, fala menino, nem
precisava falar, e era bom que não falasse, agora, burrice não tem perdão,
que apanhasse, bater na cabeça, na bochecha, nem ia mais na escola, o
burro, Miltão e todos aqueles cafajestes que morriam aos vinte anos, taf,
sentia uma vontade feroz de machucar o menino, espancar, e batia, idiota,
batia, e ele não reclamava, não dói? Tem que apanhar para aprender.
(MELO, 2010, p. 31-32).

Por mais que prometesse não bater mais no filho, Alzira não conseguia deixar
de agredi-lo. Além disso, as agressões que Reizinho sofria não eram apenas físicas,
também eram de ordem psicológica. Segundo Alzira, essa era a única solução para
o menino aprender.
Reizinho, contudo, se revolta contra a mãe apenas uma vez, no dia do seu
aniversário ao perceber que a surpresa não era a visita do pai, mas o trabalho que
ela lhe arranjara.
Você vai aceitar o emprego, sim. Vai mesmo. E ai de você. Ai de você. Não
vou, respondeu Reizinho, interrompendo a mãe. Lembrou-se de Leitor.
Perdedor. Alzira tomou a resposta negativa como uma ofensa pessoal.
Levantou a mão, o menino se abaixou, pegando uma pedra. [...] Ah, é?
Você vai me jogar uma pedra?, perguntou a mãe, arregalando os olhos.
Não, ele disse. Vai, apedreja sua mãe. Seu idiota, imbecil, ela gritou,
entrando na casa para se atirar no colo da mãe, que via televisão. (MELO,
2010, p. 84).

Ao longo do texto, na casa de Alzira, as ações violentas são expostas como


situações-limites, em que as personagens não veem mais solução a não ser a
agressão física ou moral. Assim,
a violência aparece não só como mero fenômeno de agressão física, mas
também como linguagem, como ato de comunicação. Não por qualquer
decisão consciente de suas vítimas ou praticantes, mas por ser a
expressão-limite de conflitos para cuja solução não se pode contar com
formas institucionalizadas de negociação política ou jurídica legítimas.
(RONDELLI, 2000, p. 147).
75

O que não acontece na família é o diálogo, pois a mãe dita normas e diz o
que pode ou o que não pode ser feito, e os filhos, nem sempre por desejo, mas
instintivamente vão contra tudo o que ela lhes diz. Como o que acontece dentro de
casa não é o esperado, a única solução encontrada por Alzira e por Reizinho é a
violência.
Esse núcleo familiar está cercado por outras formas de violência que por
vezes acabam influenciando o convívio. Uma das primeiras surras narradas no texto
de Alzira para com Reizinho é impulsionada pelo tiro que o menino levou na mão. A
violência que está presente na favela extrapola as paredes da casa e entra naquele
espaço que deveria ser acolhedor.
Reizinho também tem contato com outras formas de violência enquanto
criança, pois ele assalta no centro da cidade (cf. MELO, 2010, p. 64) e com doze
anos mata pela primeira vez.
Uma sensação de desconforto tomou conta de Reizinho quando Miltão
colocou o revólver nas suas mãos. Era a primeira vez que segurava uma
arma. Sentiu o toque frio do metal nos seus dedos. Não havia muito o que
pensar. Eficácia. Matar um homem. Sabia que isso aconteceria, só não
imaginava que iria ser num dia em que seu estômago estava tão cheio.
Reizinho mirou na cabeça de Duque e disparou. Errou o primeiro tiro. Foi só
naquele momento que o garoto olhou de verdade para a sua vítima. Os
olhos gritavam, pedindo penico. Porra. Os homens de Miltão pareciam se
divertir com aquilo. Estreante é fogo, disseram. O segundo disparo acertou
na bochecha de Duque e fez um buraco do tamanho de um tomate. Pronto.
O negócio estava feito. Por alguns segundos, todos ficaram em silêncio,
ouvindo o som abafado dos soluços e engasgos da vítima, sangue saindo
pela boca e ouvidos. (MELO, 2010, p. 114-115).

Reizinho está claramente desconfortável com a situação ao segurar o


revólver, e o que se percebe é que a personagem não está muito preocupada com
quem deve matar, pois só percebe a agonia do outro após o primeiro tiro, quando
“olhou de verdade para a sua vítima”, contudo os homens de Miltão se divertem com
a cena. Quando finalmente Reizinho acerta o seu alvo, o “negócio estava feito”, a
morte é tratada como um acerto de contas no esquema do tráfico, pois Duque havia
entregado o esquema de Miltão e agora a única forma de acertar tudo era matando
o delator. Após Reizinho ter matado, Miltão afirma que assim que gostava de avaliar
o potencial de um novo membro do grupo, matando um traidor (cf. MELO, 2010, p.
115).
A narrativa também apresenta a violência na favela de um modo geral. Um
primeiro tipo de conflito é entre os traficantes dos morros e a polícia.
76

Uma perua Chevrolet embicou na ladeira dos Papagaios, em frente ao


açougue do Zino, e subiu lentamente, forçando o motor. Logo em seguida,
cento e vinte policiais, com escudos, carros blindados e armas pesadas,
surgiram do nada, como uma matilha de cães da floresta, cercando o morro,
bloqueando os acessos da favela. Metralhadoras abriram o caminho. Os
soldados avançaram, foram recebidos a bala pelos homens do Miltão. José
Bezerra, comandante responsável pela operação, morreu logo nos
primeiros minutos de combate, com o corpo estraçalhado por uma granada.
O motorista da Chevrolet foi espancado e teve sua perua destruída. O motor
foi desmontado, os bancos retirados para fora do carro, nada foi
encontrado. A chuva encharcava as ruelas, aumentava a lama, e isso foi
bom para os traficantes. Os soldados abriram fogo, invadiam barracos,
acordavam famílias, estapeavam miseráveis e chafurdavam na lama. Trinta
pessoas foram presas, e todas elas, sem exceção, soltas no dia seguinte, já
que não havia nada que as ligasse ao tráfico. (MELO, 2010, p. 42).

O que se percebe é uma cena de guerra com direito a metralhadoras e


granadas. Essa cena aconteceu baseada em uma denúncia feita por um informante
de que um carregamento de cinquenta quilos de cocaína chegaria em uma
Chevrolet e seria levada para um barraco de porta azul, entretanto, antes disso,
todas as portas dos barracos do morro foram pintadas de azul, dificultando, assim, o
trabalho da polícia. Há a narração de cenas de confronto entre polícia e traficantes,
como, por exemplo, após Miltão ter derrubado a tiros um helicóptero da Polícia
Militar que rondava o morro (cf. MELO, 2010, p. 171), porém a polícia não “se mete”
quando há conflito entre grupos distintos de traficantes.
Resolvido, disse a voz do outro lado da linha, pode avançar. José Luís
desligou o celular e fez sinal para seus homens. Se olhasse para trás, veria
os fundos de um quartel do Exército, e isso não preocupava o bando de
José Luís. A polícia jamais entrava espontaneamente numa guerra de
traficantes, muito menos sem ter informações prévias sobre os líderes e os
armamentos utilizados pelos bandidos. (MELO, 2010, p. 256).

No entanto, a guerra entre o morro dos Marrecos e do Berimbau acontece


motivada por mulheres, diferente do que ocorria no tempo de Nobre, que disputava
pontos de distribuição de drogas (cf. MELO, 2010, p. 151). A primeira guerra
acontece após Suzana ter abandonado Miltão, chefe do Berimbau, para morar com
Zequinha Bigode, que era chefe do outro morro (cf. MELO, 2010, p. 157). E o
segundo grande conflito ocorre após Zequinha Bigode saber que Marta fora morar
com Reizinho no Berimbau. Para o chefe do morro dos Marrecos era inadmissível
filha sua se casar com um favelado, para ele o seu genro deveria ser formado.
Contudo, Leitor argumenta que isso foi só desculpa para Zequinha começar uma
guerra por domínio do tráfico.
No fundo, dizia Leitor, o problema não é a Marta. Faz tempo que ele
suspeita que vocês estão juntos. O problema, na cabeça do Zequinha, é a
nossa independência. A história da porcentagem, ele nunca engoliu aquilo.
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O cara vê nosso esquema se ampliando, vê a gente crescendo, fica doido.


(MELO, 2010, p. 305).

Conforme a narrativa avança, percebe-se que o espaço ali representado está


permeado por incertezas, pois são poucas as personagens que confiam umas nas
outras. Além do mais, não há espaço para certezas: eles não sabem se vão ganhar
no desfile da escola de samba, não sabem o que será do futuro dos filhos, etc..
Nada é certo, de modo que sobre o outro também não há certezas, a relação entre
as personagens é construída a partir de trocas e acordos, as dúvidas e incertezas
permeiam todo o espaço favelado. A narrativa encerra com outras incertezas, pois
Reizinho não sabe o que vai acontecer consigo.
Quando desceu no Berimbau, em frente ao açougue do Zino, viu Rosa
Maria chegando de uma noite de trabalho. [...] Notou também a
movimentação dos novos moleques do tráfico, não conhecia nenhum deles,
certamente já estariam avisando Volnei sobre a sua chegada na favela.
Nada havia mudado afinal. Àquela altura, alguma metralhadora a laser já
deveria tê-lo sob mira. [...] Não havia nenhuma nuvem no céu, e o sol fazia
tudo brilhar e arder. A previsão, naquele dia, era de que a temperatura
subisse a quarenta e dois graus, fato anormal naquela época do ano,
comentara o cobrador do ônibus. Porra. José Luís subiu lentamente o
morro, sem saber exatamente o que iria fazer, os cachorros na frente,
latindo. (MELO, 2010, p. 391).

Ao retornar ao Berimbau, Reizinho não sabe o que vai acontecer, se será


morto ou se irá se reconciliar com os seus rivais que agora dominam a favela. O
espaço é o mesmo, reconhece alguns lugares, a Rosa Maria, mas os meninos que
trabalham no tráfico não reconhece nenhum deles; os únicos que reconhecem
Reizinho são os seus cachorros. Por fim, a narrativa encerra com a alusão ao clima,
remetendo à representação comumente apresentada sobre o inferno, o Berimbau
está a quarenta dois graus. Nesse clima, próprio de um inferno, Reizinho volta a
trilhar a sua subida para o topo do morro, sem saber o que o espera.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estudar a cidade e os seus desdobramentos é um trabalho que nunca acaba.


O espaço que o ser humano escolheu para habitar está em constante mudança e
desenvolvimento. Ou seja, o que é dito hoje a respeito de um lugar amanhã pode já
não ser mais confirmado sobre ele. E é este o sentimento ao chegar ao final desta
monografia, pois ao olhar para a favela de cem anos atrás é possível dizer que ela
evoluiu e se adaptou aos mais diversos conflitos que encontrou pelo caminho, desse
modo, todo aquele que se aventurar a escrever e estudar sobre a cidade pode ter
certeza de que em seu trabalho, por mais completo que esteja, sempre faltará
alguma coisa, tendo em vista a dinamicidade desses espaços.
Em um primeiro momento, o que se pretendeu fazer neste trabalho de
conclusão de curso foi olhar para o passado e entender o processo histórico-social
de surgimento e desenvolvimento desses espaços urbanos e marginais. Ao estudar
o nascimento das primeiras favelas do Rio Janeiro, é possível afirmar que esses
locais aparecem na cidade, primeiramente, como moradia para pessoas que vieram
de fora em busca de trabalho e de melhores condições de vida, e que se
estabeleceram no entorno das ferrovias de trens e bondes na medida em que estes
avançavam pelos subúrbios da cidade. Além disso, as favelas surgem como única
opção para ex-escravizados e refugiados que não tinham mais local para ficar e a
sua única opção eram os morros e os locais desabitados, tendo, muitas vezes, que
morar em casas feitas com restos de madeira e galhos de árvores. Mais tarde, esses
locais foram ocupados por pessoas desabrigadas que perderam suas casas no
centro do Rio de Janeiro em virtude de incêndios ou desapropriações que foram
justificados pelos vários projetos de higienização e de melhoramento do centro feitos
pela prefeitura do Rio de Janeiro. Todos esses projetos desabrigaram centenas de
milhares de pessoas, assim sendo, os governantes não providenciaram outros
locais, quando muito, construíram algumas vilas, mas que não eram suficientes para
receber todas as pessoas. E, por fim, uma última fase de desenvolvimento das
favelas acontece com a vinda de várias pessoas, na sua maioria, nordestinos que
buscavam trabalho e vieram para o Sudeste fugidos da seca e da fome.
Após esse estudo, procurou-se versar a respeito do conceito de
representação e mímese, principalmente na obra de Luiz Costa Lima (2014; 2010).
O que se pode dizer a respeito disso é que toda obra literária possui estruturas
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miméticas capazes de relacionar a ficção com o real, seja pela verossimilhança seja
pelas diferenças expostas, assim sendo, a mímese necessita de estruturas claras e
definidas:
A obra de arte circula porque a “outra natureza” que a enforma encontra um
parâmetro nem natural, nem consciente: a forma de classificação da
sociedade em que se elabora ou em que é recebida. A mímesis não tem
pois um modelo mas traz em si um outro que a alimenta, que o motiva, se
não o orienta. Neste sentido, a mímesis funciona como o análogo de uma
língua: a diferença que uma signature (Deleuze) nela introduz só é legível
em função das estruturas que a circundam. Sem visar imediatamente à
comunicação, a obra de arte traz em si aquilo de que a comunicação
depende: a comunidade de um código, mesmo que, na obra, haja do código
apenas restos, a exemplo de, em The unnamable, de Beckett, a cabeça e o
tronco enterrados em uma jarra, restos do código “sujeito psicológico”. A
mímesis é teorizável a partir do confronto (mental e inconsciente) do gesto,
da atitude, da inflexão da voz, da disposição do objeto, em suma, do
mímema, em que se perfaz, com a classificação com que eles são lidos. Por
isso o mesmo mímema, ao ser recebido por outra forma de classificação,
sofre inevitável mudança de leitura. É ingênuo pensar que a leitura
“estrangeira” seja necessariamente melhor ou pior que a nativa. (LIMA,
2014, p. 47).

O mímema, ou a produção da ação de imitar, que segundo Aristóteles é


intrínseco a todo ser humano, é o elemento que permite a todo leitor decodificar uma
obra literária, mesmo que não faça parte de sua realidade. No meio da relação entre
realidade e ficção, a mímese está presente decodificando a sociedade que a
circunda e que é representada. E aqui está o ponto chave deste trabalho, pois o que
se pretendeu fazer foi verificar como essas estruturas miméticas, no caso a favela e
a violência, como elementos que conferem veracidade à saga de Reizinho estão
representadas em Inferno. O narrador da obra, ao representar o espaço marginal,
apresenta o seu olhar sobre aquele mundo, muitas vezes, tomando de empréstimo o
de algumas personagens. Do mesmo modo, o leitor apropria-se da obra a partir
desses olhares, no entanto, o que acontece é que a obra é capaz de alterar o que
vem da realidade e de modificar o olhar sobre a realidade, dando novo sentido
àquilo que se lê e vê. Assim, o processo de representação depende em muito do
receptor que decodificará o que está expresso, por isso, justifica-se a análise da
obra a partir de conceitos presentes na teoria da narrativa, no nível da história e no
do discurso.
Por fim, o que se pode dizer a respeito da obra Inferno, de Patrícia Melo, é
que a representação da favela está em total acordo com o que é percebido na
realidade. Conforme visto, ao longo de toda a narrativa, é apresentado um local
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marginalizado e negligenciado pela sociedade do centro da cidade do Rio de


Janeiro. O que chama a atenção da sociedade em geral é a guerra do tráfico,
sempre transmitida pela mídia. Além disso, a sociedade também “vê” o morro
quando a polícia recebe ordens superiores para interferir na guerra do tráfico, muitas
vezes, entretanto, não intervindo na disputa entre os traficantes. Além disso, para
tornar a narrativa mais verossímil, o narrador também apresentou muitos lugares
que existem na realidade, salvo os que foram criados, como o morro do Berimbau. A
narrativa se torna verossímil ao expor a dura realidade das personagens que
habitam aquele espaço em meio à pobreza e à violência, no entanto, conforme a
realidade, lutam para conseguir melhores condições de vida sem deixar de sonhar e
de se reinventar. A respeito do Berimbau é possível afirmar também que ele é
Lugar do todo e da flor que nele nasce, lugar das mais belas vistas e do
maior acúmulo de sujeira, lugar da finura e elegância de tantos sambistas,
desde sempre, e da violência dos mais famosos bandidos que a cidade
conheceu ultimamente, a favela sempre inspirou e continua a inspirar tanto
o imaginário preconceituoso dos que dela querem se distinguir quanto os
tantos poetas e escritores que cantaram suas várias formas de marcar a
vida urbana no Rio de Janeiro. (ZALUAR; ALVITO, 2006, p. 8).

Assim sendo, a narrativa Inferno cumpre com o seu papel de representar essa
realidade em contraste com o modo como é percebida na realidade. Ademais, a
obra é capaz de levar o leitor à reflexão, a se colocar no lugar das personagens que
ali estão, afinando, assim, as emoções, sem deixar de lado a beleza com que é
concebida, ou seja, cumpre o papel inerente da literatura, que é a capacidade de
desenvolver “em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais
compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante” (CANDIDO,
2004, p. 180).
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