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Carlos Drummond de Andrade, Claro Enigma, 1951

(todos os poemas comentados)


Prof. Valdir
Epígrafe: “Les événements m’ennuient” (os acontecimentos me extinguir-se na cor do galo?
dão tédio)
Esta rosa é definitiva,

ainda que pobre.


Parte 1 - Entre Lobo e Cão

Imaginação, falsa demente,


Dissolução
já te desprezo. E tu, palavra.
Escurece, e não me seduz
No mundo, perene trânsito,
tatear sequer uma lâmpada.
calamo-nos.
Pois que aprouve ao dia findar,
E sem alma, corpo, és suave.
aceito a noite.
Comentário

Drummond atribui grande importância simbólica à noite e ao


E com ela aceito que brote momento do anoitecer. Enquanto o dia e a luz representam a
atividade, a vida social e a esperança, a noite e a treva
uma ordem outra de seres representam a inércia, a solidão e o momento em que tudo se
confunde na escuridão. A noite é o momento da dissolução dos
e coisas não figuradas.
seres, que desaparecem nas sombras. Por isso, a noite está
Braços cruzados. associada à morte. O anoitecer é o momento do envelhecimento e
do declínio, do desejo de repouso e da resignação. Era assim que
Drummond via a sua vida naquele momento.

Vazio de quanto amávamos, Nas duas estrofes iniciais, o eu-lírico diz que está resignado diante
do fato de que anoitece e aceita, de braços cruzados, que uma
mais vasto é o céu. Povoações ordem diferente se instale em sua vida. Ao contrário de Camões,
que acreditava num Céu onde as almas seriam eternamente felizes,
surgem do vácuo.
Drummond considera que o céu é vasto e vazio, pois está
Habito alguma? destituído de tudo o que amou. O eu-lírico se questiona se nesse
vácuo há algum lugar que ele possa habitar.

Com a chegada da noite, o eu-lírico sente que seu próprio ser se


E nem destaco minha pele confunde com tudo que está à sua volta (ele também está se
dissolvendo na escuridão). Tudo se encaminha para o mesmo fim,
da confluente escuridão. que se aproxima de maneira hesitante. E já não tem mais razão de
ser o espírito agressivo e lutador próprio da luz do dia, pois não há
Um fim unânime concentra-se
mais nada pelo qual lutar. Com a noite, vem a paz própria de tudo o
e pousa no ar. Hesitando. que acabou e foi destroçado. O eu-lírico se pergunta se essa paz
vai durar eternamente ou vai acabar na hora do amanhecer
(“extinguir-se na cor do galo?”) e conclui que ela é definitiva, apesar
de tão pobre (pois não tem beleza sem emoção).
E aquele agressivo espírito

que o dia carreia consigo,


Na última estrofe, o eu-lírico confessa seu desprezo pela
já não oprime. Assim a paz, imaginação e pelo poder das palavras. Isso revela uma mudança
importante na atitude de Drummond como poeta. Em seus livros
destroçada.
anteriores, ele tinha exaltado o poder da imaginação como força
que nos leva a superar a opressão, assim como confiava no poder
Vai durar mil anos, ou
das palavras em romper a solidão e despertar solidariedade. Agora,

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o poeta preferia calar-se (isto é, fechar-se em si mesmo numa O poema é um soneto de forma italiana (dois quartetos e dois
linguagem hermética). Ele se considera um corpo que já não tem tercetos, com versos decassílabos rimados), forma que era
alma e, portanto, não é mais agitado pelas preocupações e pelas ridicularizada e desprezada no começo do Modernismo, mas que
emoções: “E sem alma, corpo, és suave”. Drummond e outros poetas importantes como Murilo Mendes, Jorge
de Lima e Vinícius de Moraes revalorizaram sobretudo a partir de
1945.
Remissão

Tua memória, pasto de poesia, A ingaia ciência

tua poesia, pasto dos vulgares, A madureza, essa terrível prenda


vão se engastando numa coisa fria que alguém nos dá, raptando-nos, com ela,

a que tu chamas: vida, e seus pesares. todo sabor gratuito de oferenda

sob a glacialidade de uma estrela,

Mas, pesares de quê? perguntaria,

se esse travo de angústia nos cantares, a madureza vê, posto que a venda

se o que dorme na base da elegia interrompa a surpresa da janela,

vai correndo e secando pelos ares, o círculo vazio, onde se estenda,

e que o mundo converte numa cela.

e nada resta, mesmo, do que escreves

e te forçou ao exílio das palavras, A madureza sabe o preço exato

senão contentamento de escrever, dos amores, dos ócios, dos quebrantos,

e nada pode contra sua ciência

enquanto o tempo, em suas formas breves

ou longas, que sutil interpretavas, e nem contra si mesma. O agudo olfato,


se evapora no fundo do teu ser? o agudo olhar, a mão, livre de encantos,

Comentário se destroem no sonho da existência.

Neste poema há um solilóquio (conversa consigo mesmo), em que Comentário


o poeta se dirige a si mesmo em segunda pessoa. Ele reconhece
que a sua memória (que alimentava sua poesia) assim como sua A maturidade é um presente terrível que, no momento mesmo em
poesia (que era consumida pelos leitores comuns) se tornaram que nos é dado, rouba todo o sabor das coisas mergulhando-nos
parte de uma coisa fria, que é a sua vida e os seus sofrimentos. Ao na frieza de uma lápide funerária (“sob a glacialidade de uma
se perguntar quais seriam esses sofrimentos, o poeta admite que estela”). Apesar das ilusões da vida (que são como uma venda nos
suas angústias e suas dores (que formam a base das elegias – olhos), a maturidade vê que a vida é um círculo vazio e que o
poemas de lamentação) acabaram com o passar dos anos. Sem os mundo é uma prisão. A maturidade sabe exatamente o preço que é
sofrimentos e angústias que o tinham levado a ser poeta (“te forçou preciso pagar pelos amores, pelos ócios e pelos encantamentos
ao exílio das palavras”), a única razão que restou para fazer poesia (“quebrantos”) e nada pode fazer para impedir este conhecimento
é o próprio contentamento de escrever, enquanto o tempo aos nem para mudar a si mesma. Por isso, as capacidades adquiridas
poucos vai-se esvaindo dentro do poeta. com a maturidade como o olhar mais atento (“agudo”) e as mãos
experientes e sem encantos acabam por se destruírem a si
“Remissão”, a palavra que dá título ao poema, significa o perdão mesmas, enquanto sonhamos que existimos nesse mundo.
dado a uma pena que foi imposta a alguém. Na medida em que os
sofrimentos do poeta se gastaram com o tempo, houve uma A palavra “ingaia” é um neologismo formado a partir do prefixo “in”
remissão de sua pena. (negação) e “gaia” (adjetivo que significa “alegre” e “jovial”).

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Portanto, “ingaia” significaria infeliz e envelhecida. O título “A Ingaia De maneira semelhante ao personagem Brás Cubas no capítulo
Ciência” remete, por oposição, à expressão “Gaia Ciência”, que era final de Memórias Póstumas, Drummond faz uma avaliação
o nome que os trovadores medievais davam à arte de amar e de negativa do legado de sua vida. Ele acredita que tudo o que fez
fazer cantigas, expressão que foi retomado por Nietzsche como será esquecido porque a sua época já não valoriza a poesia
título de uma de suas obras mais importantes. (“esses monstros atuais, não os cativa Orfeu”) e que as pessoas só
se recordarão do seu poema mais famoso “No meio do caminho”,
O poema tem a forma de soneto italiano tradicional. escrito quando ele era ainda jovem.

O poema tem a forma de um soneto italiano tradicional.

Legado

Que lembrança darei ao país que me deu Confissão


tudo que lembro e sei, tudo quanto senti? Não amei bastante meu semelhante,

Na noite do sem fim, breve o tempo esqueceu não catei o verme nem curei a sarna.

minha incerta medalha, e a meu nome se ri. Só proferi algumas palavras,

melodiosas, tarde , ao voltar da festa.


E mereço esperar mais do que os outros, eu?

Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti. Dei sem dar e beijei sem beijo.

Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu, (Cego é talvez quem esconde os olhos

a vagar, taciturno, entre o talvez e o se. embaixo do catre.) E na meia-luz

tesouros fanam-se, os mais excelentes.

Não deixarei de mim nenhum canto radioso,

uma voz matinal palpitando na bruma Do que restou, como compor um homem

e que arranque de alguém seu mais secreto espinho. e tudo o que ele implica de suave,

de concordâncias vegetais, murmúrios

De tudo quanto foi meu passo caprichoso de riso, entrega, amor e piedade?
na vida, restará, pois o resto se esfuma,

uma pedra que havia em meio do caminho. Não amei bastante sequer a mim mesmo,

Comentário contudo próximo. Não amei ninguém.


O poeta questiona qual é o legado que irá deixar quando morrer e Salvo aquele pássaro -vinha azul e doido-
como ele será lembrado. Ele acredita que, depois de morto (“na
noite do sem-fim”), rapidamente o tempo se esquecerá dele e vai rir que se esfacelou na asa do avião.
do seu nome como algo insignificante. E por que ele poderia
esperar algo diferente? É inútil se enganar e achar-se importante só Comentário
por ter sido poeta. O fato é que o mundo moderno é habitado por
No soneto “Legado”, Drummond imagina qual seria o seu legado
monstros que não podem ser cativados nem mesmo por Orfeu
como poeta. No soneto “Confissão”, Drummond avalia qual foi o
(personagem mítico que era capaz de encantar com o seu canto
seu legado como ser humano. Ele confessa que nunca amou
qualquer criatura, mesmo os monstros do Inferno). O poeta sabe
suficientemente as pessoas à sua volta, nem se dedicou a ajudá-
que não deixará nenhum poema cheio de alegria (“nenhum canto
las. Ele se contentou em dizer palavras melodiosas, escritas tarde
radioso”) que possa aliviar os sofrimentos das pessoas (“que
da noite, quando já estava sozinho. Ele escreveu sobre amor e
arranque de alguém seu mais secreto espinho”). De tudo o que ele
sobre doação, sem realmente amar e sem realmente dar-se ao seu
fez na vida, ficará apenas a lembrança do verso que fala de “uma
próximo. Ele viveu como alguém que se esconde debaixo da cama
pedra que havia em meio do caminho”.
(“catre”) e, por isso, não enxergou realmente as pessoas. Nessa
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meia-luz em que ele viveu, os tesouros mais preciosos de qual seja o propósito disso.
sentimentos e de bondade desapareceram. Do que restou deles,
como reconstituir um ser humano, no que ele tem de amor e A referência ao “cavalo-marinho” no título parece ser influência do
piedade? O poeta não amou ninguém, nem a si mesmo. Talvez só Surrealismo. Os surrealistas tinham muito apreço por animais de
tenha amado alguma esperança ousada e louca que já se aparência estranha e hábitos surpreendentes, que podiam ser
esfacelou, como um pássaro doido contra a asa de um avião. associados a tudo o que é inexplicável e enigmático. A própria
forma do poema é pouco usual: são quatro estrofes de quatro
O poema é um soneto italiano de versos decassílabos brancos. versos cada uma e cada verso tem quatro sílabas.

Perguntas em forma de cavalo-marinho Os animais do presépio

Que metro serve Salve, reino animal:

para medir-nos? todo o peso celeste

Que forma é nossa suportas no teu ermo.

e que conteúdo?

Toda a carga terrestre

Contemos algo? carregas como se

Somos contidos? fosse feita de vento.

Dão-nos um nome?

Estamos vivos? Teus cascos lacerados

na lixa do caminho

A que aspiramos? e tuas cartilagens

Que possuímos?

Que relembramos? e teu rude focinho

Onde jazemos? e tua cauda zonza,

teu pelo matizado,

(Nunca se finda

nem se criara. tua escama furtiva,

Mistério é o tempo as cores com que iludes

inigualável.) teu negrume geral,

Comentário

As três primeiras estrofes formulam questões que poderiam ser Teu voo limitado,
enunciadas por qualquer ser vivo e poderiam ser ditas até mesmo
pelas palavras que compõem a poesia (“Que metro serve/ para teu rastro melancólico,
medir-nos?/ Que forma é nossa/ e que conteúdo?”). Essas
tua pobre verônica
perguntas ficam sem resposta. O que temos na última estrofe,
isolado das perguntas por meio de parênteses, é o enunciado de
que o tempo é um mistério inigualável, já que não tem final nem
começo. O tempo é o enigma que está por trás de todas as em mim, que nem pastor,
questões levantadas pelas criaturas. O tempo é infinito e ilimitado,
ao passo que as criaturas têm começo e fim, embora não saibam soube ser, ou serei,
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se incorporam num sopro. de tudo quanto é misto

e que odiei ou senti.

Para tocar o extremo

da minha natureza, Nem Fausto nem Mefisto,

limito-me: sou burro. à deusa que se ri

deste nosso oaristo,

Para trazer ao feno

o senso da escultura, eis-me a dizer: assisto

concentro-me: sou boi. além, nenhum, aqui,

mas não sou eu, nem isto.

A vária condição Comentário

por onde se atropela Drummond faz uma homenagem ao poeta modernista português
Fernando Pessoa (1888-1935), que se tornou famoso pela
essa ânsia de explicar-me invenção de vários heterônimos (poetas de características
marcantes, mas totalmente fictícios), assim como pelas poesias que
publicou em seu próprio nome.
agora se apascenta
O poema de Drummond é um pastiche, isto é, uma imitação que
à sombra do galpão procura retomar cuidadosamente o estilo de um outro autor. Ao
homenagear Fernando Pessoa, Drummond recriou algumas de
neste sinal: sou anjo. suas características mais evidentes: os paradoxos (“onde nasci,
morri/ onde morri, existo”), o distanciamento intelectual em relação
Comentário às emoções (“desisto/ de tudo quanto é misto/ e que odiei e que
senti”), a problematização da identidade pessoal (“mas não sou eu,
O poeta saúda as criaturas do reino animal, dirigindo-se a elas em
nem isto”) e a concisão densa (orações e versos curtos, mas
segunda pessoa. Os animais representados no Presépio suportam
altamente carregados de sentido).
o peso da terra e do céu em suas formas robustas e rudes. O poeta
se identifica com essas formas e sente que elas se incorporam O poema tem a forma de um enigma que deve ser resolvido pelo
nele: ele assume a limitação do burro e a digestão do boi (que dá leitor. Por isso, quando foi publicado pela primeira vez no
ao feno uma aparência de escultura). Por fim, o poeta consegue suplemento literário do jornal A Manhã em 1949, ele tinha como
superar sua inquietação e consegue ter a serenidade de um anjo. título a seguinte pergunta: “Leitores, de quem é este soneto?”. Era
uma brincadeira em que o leitor seria levado a acreditar que se
O poema é formado por tercetos em versos hexassílabos (seis
tratava de Fernando Pessoa, pelas características indicadas acima,
sílabas).
mas descobriria que o autor era, na verdade, Carlos Drummond de
Andrade. Era como se este “falso Fernando Pessoa” fosse um
heterônimo criado por Drummond.
Sonetilho do falso Fernando Pessoa
Embora seja um pastiche das poesias de Fernando Pessoa, o
Onde nasci, morri. poema trata de problemas importantes para Carlos Drummond de
Andrade. Um deles é o enigma da existência humana: o que
Onde morri, existo. significa ser alguém? Por que existimos e morremos? Qual é o
propósito de tudo isso?; outro é o distanciamento em relação às
E das peles que visto
emoções: Drummond sentia que a maturidade o tornava mais frio;
muitas há que não vi. outro, por fim, é a recusa das identidades tradicionais e
estabelecidas: Drummond sempre quis escapar dos papeis
tradicionais que a sociedade, a época e a família tentaram lhe
impor. Por isso, ele escreve que não é “Fausto nem Mefisto”
Sem mim como sem ti (referência à lenda alemã do sábio Fausto que faz um pacto com o
demônio Mefisto) e que “não sou eu, nem isto”. O poema é,
posso durar. Desisto
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portanto, tão típico de Fernando Pessoa quanto de Drummond. estranhamento consiste em mostrar algo que parece normal e
comum a partir de um ponto de vista inusitado ou surpreendente.
O poema é um sonetilho, isto é, um soneto escrito com versos
curtos ao invés de decassílabos. No caso, os versos são A escolha do boi como o animal que observa os seres humanos
hexassílabos (seis sílabas) rimados. tem muito sentido para Drummond. Em primeiro lugar, o poeta era
filho de fazendeiro criador de gado; em segundo lugar, o boi é um
animal que vive próximo aos seres humanos, mas sem compartilhar
a intimidade doméstica dos cães e gatos, razão pela qual o boi está
Um boi vê os homens
suficientemente distanciado para perceber como os seres humanos
Tão delicados (mais que um arbusto) e correm são estranhos; por último, o boi está associado a tudo o que é
robusto, lento, firme e estável, características que as pessoas
e correm de um para o outro lado, sempre esquecidos costumam associar com limitação e falta de inteligência. Do ponto
de vista humano, o boi seria um animal forte, mas sem esperteza.
de alguma coisa. Certamente, falta-lhes
O poema de Drummond inverte esse ponto de vista. O boi aparece
não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres como um animal sábio, que exerce sua capacidade de observação
e sua inteligência enquanto rumina calmamente. O boi sente, ao
e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,
mesmo tempo, espanto e compaixão ao notar a agitação constante
até sinistros. Coitados, dir-se-ia que não escutam dos seres humanos, a sua fragilidade física, a sua inquietação, a
facilidade com que ficam tristes e melancólicos, o ar sério e sinistro
nem o canto do ar nem os segredos do feno, que têm às vezes, a capacidade de serem cruéis, a dificuldade de
perceberem o que é comum a todos os seres (“parecem não
como também parecem não enxergar o que é visível enxergar o que é visível/ e comum a cada um de nós, no espaço”).
Os seres humanos emitem sons dolorosos de amor, de ciúme, de
e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes
desejo, que expressam a sua carência e sua pobreza interior, “o
e no rasto da tristeza chegam à crueldade. translúcido vazio interior” do ser humano. Para o boi é difícil, depois
de presenciar tudo isso, voltar a ruminar as verdades bovinas. O
Toda a expressão deles mora nos olhos – e perde-se ato de ruminar, no que tem de repetitivo, sereno e pleno, é o oposto
de toda a agitação, inconstância e vazio da vida humana.
a um simples baixar de cílios, a uma sombra.
O poema é feito em versos livres e brancos. A linguagem culta, os
Nada nos pelos, nos extremos de inconcebível fragilidade, numerosos substantivos abstratos e o uso de versos longos que se
aproximam da prosa dão ao poema um aspecto discursivo e
e como neles há pouca montanha,
erudito, que evidencia a sabedoria do boi.
e que secura e que reentrâncias e que
Observação: A maneira como os bois veem os seres humanos é
impossibilidade de se organizarem em formas calmas, também o tema do conto “Conversa de Bois”, do livro Sagarana, de
Guimarães Rosa.
permanentes e necessárias. Têm, talvez,

certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem


Memória
perdoar a agitação incômoda e o translúcido
Amar o perdido
vazio interior que os torna tão pobres e carecidos
deixa confundido
de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme
este coração.
(que sabemos nós?), sons que se despedaçam e tombam no
campo

como pedras aflitas e queimam a erva e a água, Nada pode o olvido

e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade. contra o sem sentido

Comentário apelo do Não.

Nesse poema, Drummond mostra o que seria a existência humana


sob o olhar de um boi. Ao fazer isso, o poeta lança mão de um
recurso literário importante, que é o efeito de estranhamento. O
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As coisas tangíveis

tornam-se insensíveis por teus condutos flui um sangue vago,

à palma da mão. e nas tuas pupilas, sob o tédio,

é a vida um suspiro sem paixão.

Mas as coisas findas, Comentário

muito mais que lindas, O poema descreve um pintor que retrata a solidão de um recinto de
mármore, triste e silencioso, onde nem as pombas aparecem, um
essas ficarão. pintor que traça torres desfeitas, o vazio e a falência das
arquiteturas que nunca foram construídas. Trata-se de uma arte
Comentário
vazia, porque não comove. Esse pintor cria imagens irreais
O poema destaca, com notável concisão, a capacidade da memória desesperadoras, que se afastam das coisas terrestres e se dirigem
de eternizar e valorizar o que foi perdido, embora o poeta para o que é escuro e pantanoso (“ó criador de mitos, que sufocam/
reconheça como isso é estranho (“Amar o perdido/deixa desperdiçando a terra, e já recuam/ para a noite, e no charco se
confundido/este coração”). constelam”). Nas veias desse artista, o sangue já não tem força,
suas pupilas estão cheias de tédio e sua “vida é um suspiro sem
Aquilo não deu certo, aquilo que não existe mais, aquilo que não se paixão”.
realizou, aquilo que não podemos mais alcançar tem um forte apelo
para Drummond, mas ele reconhece que se trata de um apelo No poema, o pintor é uma imagem do artista que perdeu a
absurdo e sem sentido (já que aquilo que acabou ou não se vitalidade e que se dedica a mostrar um mundo de formas
realizou não pode ser trazido de volta). Esse é o “sem sentido apelo elaboradas, mas processo de dissolução. Esse pintor corresponde
do Não”. O esquecimento (“olvido”) nada pode fazer para apagar o à imagem que Drummond fazia de si mesmo na época em que
apelo das coisas que se foram. Ou não se realizaram. Enquanto as escreveu os poemas de Claro Enigma. Assim, o poema pode ser
coisas palpáveis e próximas parecem indiferentes e insensíveis, as considerado metalinguístico, uma vez que se refere à própria
coisas findas são mais do que lindas. Elas são eternas. atividade poética do autor.

O poema é composto de quatro estrofes de três versos cada. Os Trata-se de um soneto em versos decassílabos brancos.
versos são redondilhas menores (5 sílabas) rimadas.

Ser
A tela contemplada
O filho que não fiz
Pintor da soledade nos vestíbulos
hoje seria homem.
de mármore e losango, onde as colunas
Ele corre na brisa,
se deploram silentes, sem que as pombas
sem carne, sem nome.
venham trazer um pouco do seu ruflo;

Às vezes o encontro
traça das finas torres consumidas
num encontro de nuvem.
no vazio mais branco e na insolvência
Apóia em meu ombro
de arquiteturas não arquitetadas,
seu ombro nenhum.
porque a plástica é vã, se não comove,

Interrogo meu filho,


ó criador de mitos que sufocam,
objeto de ar:
desperdiçando a terra, e já recuam
em que gruta ou concha
para a noite, e no charco se constelam,
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quedas abstrato? um dia se humanize. E malaxado,

embebido da fluida substância de nossos segredos,

Lá onde eu jazia, quem sabe a flor que ai se elabora, calcária, sanguínea ?

responde-me o hálito, Ah, não viver para contemplá-la! Contudo,

não me percebeste não é longo mentar uma flor, e permitido

contudo chamava-te correr por cima do estreito rio presente,

construir de bruma nosso arco-íris.

como ainda te chamo Nossos donos temporais ainda não devassaram

(além, além do amor) o claro estoque de manhãs

onde nada, tudo que cada um traz no sangue, no vento.

aspira a criar-se. Passarei a vida entoando uma flor, pois não sei cantar

nem a guerra, nem o amor cruel, nem os ódios organizados,

O filho que não fiz e olho para os pés dos homens, e cismo.

faz-se por si mesmo. Escultura de ar, minhas mãos

Comentário te modelam nua e abstrata

Drummond teve uma filha - Maria Julieta, já adulta na época - mas para o homem que não serei.
nunca teve um filho. Esse filho que ele não teve, e que seria adulto
se tivesse nascido, representa os projetos e sonhos que não se Ele talvez compreenda com todo o corpo,
realizaram e que, por isso mesmo, são sempre lembrados e
para além da região minúscula do espírito,
acalentados (conforme o poema “Memória”, o esquecimento não
consegue apagar o apelo das coisas que Não se realizaram ou que a razão de ser, o ímpeto, a confusa
já terminaram). Por isso, esse filho que não nasceu e que só existe
como pensamento ganha a força de algo real, de um ser humano distribuição, em mim, de seda e péssimo.
com quem o poeta pode conversar. O filho que nunca nasceu vai
se fazendo por si mesmo, na mente do poeta.

O poema é composto de cinco estrofes de quatro versos e de um II


distico (estrofe de dois versos). Os versos são brancos e variam
Nalgum lugar faz-se esse homem…
entre quatro e seis sílabas.
Contra a vontade dos pais ele nasce,

contra a astúcia da medicina ele cresce,


Contemplação do banco
e ama, contra a amargura da política.
I
Não lhe convém o débil nome de filho,
O coração pulverizado range
pois só a nós mesmos podemos gerar,
sob o peso nervoso ou retardado ou tímido
e esse nega, sorrindo, a escura fonte.
que não deixa marca na alameda, mas deixa
Irmão lhe chamaria, mas irmão
essa estampa vaga no ar, e uma angústia em mim,
por quê, se a vida nova
espiralante.
se nutre de outros sais, que não sabemos?
Tantos pisam este chão que ele talvez

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Ele é seu próprio irmão, no dia vasto, utópica que tinha sido tão importante na época em que Drummond
escreveu os livros Sentimento do Mundo e A Rosa do Povo.
na vasta integração das formas puras,
A primeira seção do poema parte de uma situação já mostrada nos
sublime arrolamento de contrários poemas anteriores: o poeta sente que seu coração está pulverizado
e cheio de angústia, mas dessa vez ele imagina que, depois de
enlaçados por fim.
tantos pisarem o chão (metáfora da relação dura que os seres
Meu retrato futuro, como te amo, humanos têm com o mundo), é possível que brote ali uma flor
(símbolo de esperança e transformação). Mas o poeta sente que
e mineralmente te pressinto, e sinto não viverá o suficiente para contemplá-la. Tudo o que ele pode
fazer é pensar (“mentar”) a flor e, enquanto ela não vem, fazer
quanto estás longe de nosso vão desenho projetos imaginários de um mundo melhor (“construir de bruma
nosso arco-íris”). Mas tudo isso é fácil demais e não é suficiente.
e de nossas roucas onomatopeias…
Aqueles que dominam o mundo (“nosso donos temporais”) ainda
não perceberam como o futuro está cheio de possibilidades de
III transformação (“ainda não devassaram o claro estoque de
manhãs”). Por essa razão, o poeta não vai desistir de homenagear
Vejo-te nas ervas pisadas. essa esperança (“Passarei a vida entoando uma flor”). O poeta
sabe não será o homem que vai transformar o mundo, mas espera
O jornal, que aí pousa, mente. que esse homem compreenda os sentimentos misturados e
complexos que havia no poeta (“a razão de ser, o ímpeto, a
Descubro-te ausente nas esquinas
confusa/ distribuição, em mim, de seda e péssimo”).
mais povoadas, e vejo-te incorpóreo,
A segunda seção do poema procura imaginar como será esse
contudo nítido, sobre o mar oceano. homem capaz de transformar o mundo. Ele vai nascer e crescer, a
despeito de todas as resistências do mundo e de todas as
Chamar-te visão seria proibições. Ele será diferente dos homens de hoje, por isso, não
poderá ser chamado de filho nem de irmão. Ele vai ser a síntese
malconhecer as visões das formas mais puras e a conciliação de todas as contradições
(“na vasta integração das formas puras/ sublime arrolamento de
de que é cheio o mundo
contrários/ enlaçados por fim”).
e vazio.
Apesar da forte esperança messiânica nesse homem novo (que
tanto pode ser um indivíduo especial quanto uma nova maneira de
Quase posso tocar-te, como às coisas diluculares
ser humano), o poeta sabe que ele está muito longe de chegar (“e
que se moldam em nós, e a guarda não captura, sinto/ quanto estás longe de nosso vão desenho/ e de nossas
roucas onomatopeias...”)
e vingam.
Na terceira seção do poema, o poeta procura à sua volta os sinais
Dissolvendo a cortina de palavras, deste homem que irá transformar o mundo. Ele não está nos jornais
(“o jornal, que aí pousa, mente”), mas é uma presença incorpórea
tua forma abrange a terra e se desata que está em toda parte. Ele não é propriamente uma visão ilusória
como essas de que o mundo está cheio. Ele é quase palpável e faz
à maneira do frio, da chuva, do calor e das lágrimas.
parte das coisas diluculares (isto é, das coisas que vem com o
Triste é não ter um verso maior que os literários, clarear do dia). Por isso, o poeta lamenta não ser capaz de
escrever um verso novo, que esteja à altura desta esperança
é não compor um verso novo, desorbitado, aparentemente absurda (“quimera”), que brota de tudo aquilo que é
humilde e espezinhado neste mundo (“que sobes do chão batido e
para envolver tua efígie lunar, ó quimera da relva pobre”).
que sobes do chão batido e da relva pobre. A presença deste poema no livro Claro Enigma mostra que, apesar
de ter abandonado a poesia engajada e de protesto social,
Comentário
Drummond não aderiu a uma atitude conformista, que ignora as
O poema “Contemplação no banco” não fala da noite nem da injustiças sociais e não acredita na necessidade e na possibilidade
dissolução (temas predominantes em Claro Enigma), mas da de transformação do mundo. Para Drummond, aquilo que ainda
possibilidade de que o futuro e a luz da manhã tragam uma Não se realizou não pode ser ignorado (conforme se diz no poema
transformação do mundo. O poema retoma, assim, a esperança “Memória” e no poema “Ser”, dedicado ao filho que o poeta não

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teve). dessa livre disciplina

O poema é escrito em versos livres e brancos. O título se refere à plenamente floresciam


atitude reflexiva do poeta que contempla o chão, sentado num
banco de praça. permutando no universo

uma dileta substância

Sonho de um sonho e um desejo apaziguado

Sonhei que estava sonhando de ser um ser com milhares,

e que no meu sonho havia pois o centro era eu de tudo

outro sonho esculpido. como era cada um dos raios

Os três sonhos sobrepostos desfechados para longe,

dir-se-iam apenas elos alcançando além da terra

de uma infindável cadeia ignota região lunar,

de mitos organizados na perturbadora rota

em derredor de um pobre eu. que antigos não palmilharam

Eu que, mal de mim! sonhava. mas ficou traçada em branco

nos mais velhos portulanos

Sonhava que no meu sonho e no pó dos marinheiros

retinha uma zona lúcida afogados em mar alto.

para concretar o fluido

como abstrair o maciço. Sonhei que meu sonho vinha

Sonhava que estava alerta, com a realidade mesma.

e mais do que alerta, lúdico, Sonhei que o sonho se forma

e receptivo, e magnético, não do que desejaríamos

e em torno a mima se dispunham ou de quanto silenciamos

possibilidades claras, em meio a ervas crescidas,

e, plástico, o ouro do tempo mas do que vigia e fulge

vinha cingir-me e dourar-me em cada ardente palavra

para todo o sempre, para proferida sem malícia,

um sempre que ambicionava aberta como uma flor

mas de todo o ser temia... se entreabre: radiosamente.

Ai de mim! que mal sonhava.

Sonhei que o sonho existia

Sonhei que os entes cativos não dentro, fora de nós,

10
e era toca-lo e colhe-lo, Comentário

e sem demora sorve-lo, Assim como “Contemplação no banco”, o poema “Sonho de um


sonho” trata da esperança utópica num mundo transformado e
gasta-lo sem vão receio justo. As duas primeiras estrofes descrevem a situação em que o
poeta sonhava: seu sonho era algo extremamente irreal e utópico,
de que um dia se gastara.
enraizado nos mais profundos desejos e esperanças do poeta
(“uma infindável cadeia/ de mitos organizados/ em derredor de um
pobre eu”). No seu sonho, o poeta estava lúcido e alerta e tudo
Sonhei certo espelho límpido parecia possível (“em torno de mim se dispunham/ possibilidades
claras”). O tempo já não causava aflição ao poeta, pois ele viveria
com a propriedade mágica para sempre (“um sempre que ambicionava/ mas de todo o ser
temia...”).
de refletir o melhor,
Na terceira estrofe, descreve-se que, no sonho, todos as criaturas
sem azedume ou frieza
estavam livres, floresciam plenamente e o desejo de comunhão e
por tudo que fosse obscuro, de harmonia estava finalmente apaziguado e alcançava todos os
seres e todas as regiões do universo, mesmo aquelas que nunca
mas antes o iluminando, foram mapeadas.

mansamente convertendo Na quarta estrofe, o sonho do poeta se realizava pela força sincera
das palavras. Cada verdade dita sem malícia tinha o poder de se
em fonte mesma de luz. abrir como uma flor (símbolo da esperança e da transformação do
mundo).
Obscuridade! Cansaço!
Na quinta estrofe, o sonho tinha a propriedade de existir fora da
Oclusão de formas meigas!
nossa mente e de durar para sempre.
Ó terra sobre diamantes!
Na sexta estrofe, o poeta sonhou que havia um espelho capaz de
Já vos libertais, sementes, refletir o que existe de melhor no mundo, sem o azedume, sem a
frieza, sem o cansaço, sem a obscuridade, sem nada que impeça o
germinando à superfície acesso ao que há de mais delicado (sem a “oclusão das formas
meigas”).
deste solo resgatado!
Na estrofe final, o poeta queria sonhar que tudo não era apenas um
sonho, mas, ao mesmo tempo, ele via todos os sinais de que seu
sonho era irreal: “nas paredes degradadas/na fumaça, na
Sonhava, ai de mim, sonhando
impostura,/no riso mau, na inclemência,/ na fúria contra os
que não sonhara... Mas via tranquilos,/ na estreita clausura física,/ no desamor à verdade,/ na
ausência de todo amor/ eu via, ai de mim, sentia/ que o sonho era
na treva em frente a meu sonho, sonho, e falso.”

nas paredes degradadas, No entanto, é preciso destacar que o fato de que o sonho seja irreal
faz com que ele tenha “o apelo do Não”, isto é, a força das coisas
na fumaça, na impostura, que não se realizaram e, por isso, não podem ser ignoradas ou
esquecidas (como o filho que não nasceu no poema “Ser” ou a flor
no riso mau, na inclemência, do poema “Contemplação no banco”). Isso mostra que havia em
Drummond um conflito não resolvido entre uma visão niilista e
na fúria contra os tranquilos,
desenganada (que prevalece nos poemas) e uma visão utópica e
na estreita clausura física, sonhadora (que persistia, apesar de tudo).

no desamor à verdade, O poema é escrito em redondilhas maiores (versos de 7 sílabas),


dispostos em estrofes de tamanho variável. Os versos são, em sua
na ausência de todo amor, maioria, brancos, mas algumas rimas aparecem ocasionalmente.

eu via, ai de mim, sentia

que o sonho era sonho, e falso.

11
Cantiga de enganar para um homem se formar.

O mundo não vale o mundo, Tampouco a respiração

meu bem, de soldados e enfermos,

Eu plantei um pé-de-sono, de meninos internados

brotaram vinte roseiras. ou de freiras em clausura.

Se me cortei nelas todas Não são grupos submergidos

e se todas se tingiram nas geleiras do entressono

de um vago sangue jorrado e que deixem desprender-se,

ao capricho dos espinhos, menos que simples palavra,

não foi culpa de ninguém. menos que folha no outono,

O mundo, a partícula sonora

meu bem, que a vida contém, e a morte

não vale contém, o mero registro

a pena, e a face serena de energia concentrada.

vale a face torturada. Não é nem isto nem nada.

Há muito aprendi a rir, É som que precede a música,

de quê, de mim? ou de nada? sobrante dos desencontros

O mundo, valer não vale. e dos encontros fortuitos,

Tal como sombra no vale, dos malencontros e das

a vida baixa...e se sobe miragens que se condensam

algum som desse declive, ou que se dissolvem noutras

não é grito de pastor absurdas figurações.

convocando seu rebanho. O mundo não tem sentido.

Não é flauta, não é canto O mundo e suas canções

de amoroso desencanto. de timbre mais comovido

Não é suspiro de grilo, estão calados, e a fala

voz noturna de nascentes, que de uma para outra sala

não é mãe chamando filho, ouvimos em certo instante

não é silvo de serpentes é silêncio que faz eco

esquecidas de morder e que volta a ser silêncio

como abstratas ao luar. no negrume circundante.

Não é choro de criança Silêncio: que quer dizer?

12
Que diz a boca do mundo? Meu bem, assim acordados,

Meu bem, o mundo é fechado, assim lúcidos, severos,

se não for antes vazio. ou assim abandonados,

O mundo é talvez: e é só. deixando-nos à deriva

Talvez nem seja talvez. levar na palma do tempo

O mundo não vale a pena, - mas o tempo não existe -,

mas a pena não existe. sejamos como se fôramos

Meu bem, façamos de conta num mundo que fosse: o Mundo.

de sofrer e de olvidar, Comentário

de lembrar e de fruir, Nos poemas pessimistas (“Dissolução”, “Remissão”, “A Ingaia


Ciência”, “Legado” e “Confissão”), nos poemas de reflexão
do escolher nossas lembranças existencial (“Perguntas em forma de cavalo-marinho”, “Sonetilho do
Falso Fernando Pessoa” e “Um boi vê os homens”) e nos poemas
e revertê-las, acaso
utópicos (“Contemplação no banco” e “Sonho de um Sonho”),
se lembrem demais em nós. Drummond havia levado o seu questionamento ao extremo. Diante
dessa tensão acumulada, o poema “Cantiga de Enganar”
Façamos, meu bem, de conta representa um ponto de descontração e ironia. O poema tem a
forma de uma série de conselhos em que o poeta recomenda que
- mas a conta não existe - não vale a pena levar os problemas do mundo a sério: “O mundo
não vale o mundo”.
que é tudo como se fosse,
O poeta começa dizendo que ninguém tem culpa dos acidentes que
ou que, se fora, não era.
acontecem ao longo da vida (“um vago sangue jorrado/ ao capricho
Meu bem, usemos palavras. dos espinhos/ não foi culpa de ninguém”); na vida, tudo tem suas
compensações: uma alegria vale tanto quanto uma tristeza (“a face
Façamos mundos: ideias. serena/ vale a face torturada”); os sons que vêm do mundo (sons
do trabalho, do amor, da natureza, das pessoas que nascem,
Deixemos o mundo aos outros, crescem, sofrem e morrem) não significam nada: são apenas ruídos
provocados por encontros fortuitos. Na verdade, não são nem isso,
já que o querem gastar.
pois o mundo não tem sentido e é apenas silêncio. Na verdade,
Meu bem, sejamos fortíssimos nem mesmo o silêncio existe. O mundo é fechado e vazio. O
mundo existe e pronto, mas talvez nem isso. O mundo é apenas
- mas a força não existe - um faz-de-conta. É preciso sermos fortes e tentarmos nos imaginar
vivos, embora saibamos que o mundo é apenas um sonho. Mas
e na mais pura mentira nem mesmo o sonho existe, por isso, o que nos resta é existir
exatamente como se o mundo fosse tal qual ele é. Assim, de
do mundo que se desmente,
negação em negação, o poeta acaba ironicamente aconselhando o
recortemos nossa imagem, interlocutor a viver exatamente como todos vivem: “Sejamos como
se fôssemos/ num mundo que fosse: o Mundo.”
mais ilusória que tudo,
Diferentemente dos poemas anteriores, em que a linguagem era
pois haverá maior falso solene e erudita, no poema “Cantiga de Enganar”, a linguagem é
mais simples. O tom mais descontraído pode ser visto pela maneira
que imaginar-se alguém vivo, informal de se dirigir ao interlocutor, chamando-o de “meu bem”
(palavra que aparece destacada pela disposição gráfica usada nos
como se um sonho pudesse versos 1 e 9). O uso de redondilhas maiores (verso de 7 sílabas)
sem divisão de estrofes faz com que o discurso do poeta se
dar-nos o gosto do sonho?
aproxime do tom coloquial de uma conversa com alguém próximo.
Mas o sonho não existe. Os versos iniciais (“eu plantei um pé-de-sono/ brotaram vinte
roseiras”) remetem às velhas cantigas infantis. O próprio nome

13
“Cantiga de Enganar” é irônico e humorístico, pois o poema não é aspirações do Parnasianismo em fazer poesias belas e perfeitas
uma cantiga e nem está enganando ninguém, pois fica claro que com o mesmo cuidado de um ourives:
negar os problemas do mundo é inútil, já que temos que viver no
mundo tal qual ele é. Torce, aprimora, alteia, lima
A frase; e, enfim,
No verso de ouro engasta a rima,
Como um rubim.
Oficina irritada
Quero que a estrofe cristalina,
Eu quero compor um soneto duro
Dobrada ao jeito
como poeta algum ousara escrever. Do ourives, saia da oficina
Sem um defeito.
Eu quero pintar um soneto escuro,
Na sua oficina, Bilac gostaria de ser um ourives que torce e lima as
seco, abafado, difícil de ler. frases; já na sua “oficina irritada”, Drummond gostaria de ser um
pedicuro que faz sofrer o tendão de Vênus, a deusa da beleza.
Todavia, ao contrário da beleza vazia da poesia parnasiana,
Drummond gostaria que seu poema desagradável e difícil de ler
Quero que meu soneto, no futuro,
pudesse capturar, de surpresa, o “claro enigma” (veja a explicação
não desperte em ninguém nenhum prazer. dessa expressão na introdução deste material). Trata-se, portanto,
de usar a agressividade como forma de conhecer e entender o
E que, no seu maligno ar imaturo, mundo e a existência humana.

ao mesmo tempo saiba ser, não ser.

Opaco

Esse meu verbo antipático e impuro Noite. Certo

há de pungir, há de fazer sofrer, muitos são os astros.

tendão de Vênus sob o pedicuro. Mas o edifício

barra-me a vista.

Ninguém o lembrará: tiro no muro,

cão mijando no caos, enquanto Arcturo, Quis interpretá-lo.

claro enigma, se deixa surpreender. Valeu? Hoje

Comentário barra-me (há luar) a vista.

Este é um dos mais famosos poemas metalinguísticos de


Drummond. De maneira direta e agressiva, o poeta declara sua
intenção de fazer um soneto desagradável, mas que dissesse Nada escrito no céu,
coisas importantes de uma maneira sutil e disfarçada (“E que, no
sei.
seu maligno ar imaturo/ao mesmo tempo saiba ser, não ser”). O
poeta gostaria de usar sua habilidade verbal para torturar a beleza Mas queria vê-lo.
convencional (“há de fazer sofrer/ tendão de Vênus sob o
pedicuro”) e supõe que ninguém iria lembrar deste soneto. O edifício barra-me
Aparentemente ele seria tão inútil quanto um tiro no muro ou um
cão mijando no caos, mas na verdade ele conteria a revelação do a vista.
“claro enigma”, representado simbolicamente pela estrela Arcturo
(que é enigma por ser invisível nos céus do hemisfério sul, ao
mesmo tempo que é clara por ser uma das mais brilhantes nos Zumbido
céus do hemisfério norte).
de besouro. Motor
O título “Oficina Irritada” remete, por oposição, aos versos do
poema “Profissão de Fé” nos quais Olavo Bilac resume as arfando. O edifício barra-me

14
a vista. e, na sua indiscriminação de crueldade e diamante,

capaz de sugerir o fim sem a injustiça dos prêmios.

Assim ao luar é mais humilde. Comentário

Por ele é que sei do luar. O poeta descreve qual é a sua aspiração no que se refere ao amor.
Ele não quer o amor na forma de adoração: nem a adoração
Não, não me barra maternal (que vive tensa e em pânico), nem a do admirador
fanático (como era a estudiosa alemã Catharina Kippenberg em
A vista. A vista se barra
relação ao poeta Rainer Maria Rilke). Também não quer o amor
a si mesma. sob aqueles disfarces criados pela tradição literária (como a “ninfa
desolada no seu ermo”) nem um amor que valorize mais a vontade
Comentário de amar do que a presença da pessoa amada (“a constante
procura da sede e não da linfa”). O poeta também não quer o amor
Um dos temas de Drummond é que vivemos num mundo opaco, apenas como desejo sexual a ser satisfeito ocasionalmente em
em que não conseguimos decifrar o que está à nossa volta seja lugares clandestinos (“abscôndita, sem nexo, nas hospedarias do
porque há obstáculos (“o edifício barra-me a vista”) seja porque a vento”), tampouco quer o amor como amizade pura entre duas
própria visão humana é limitada demais (“a vista se barra a si almas elevadas e orgulhosas – um amor que só serve para
mesma”). Como já tinha sido dito no poema “Confissão”: “Cego é satisfazer carências melancólicas. Para o poeta, muito melhor é a
talvez quem esconde os olhos/ embaixo do catre”. indiferença com fidelidade, que permite sustentar a vida cotidiana,
que não se preocupa em distinguir o que é ruim e o que é bom na
O poema é formado por cinco estrofes de tamanho irregular, com
vida em comum (“na sua indiscriminação de crueldade e diamante”)
versos livres e brancos.
e que não dá prêmios nem presentes, mas apenas propõe uma
finalidade para a vida em comum (“capaz de sugerir o fim sem a
injustiça dos prêmios”). Trata-se de uma visão resignada do amor,
Aspiração que se dissolve na indiferença e na rotina, afastando-se de
qualquer impulso romântico. Essa visão do amor é coerente com
Já não queria a maternal adoração atitude do poeta no poema “Dissolução”.

que afinal nos exaure, e resplandece em pânico, O poema tem quatro estrofes de quatro versos cada uma. Os
versos são brancos e de medida variável (de 12 a 15 sílabas).
tampouco o sentimento de um achado preciso

como o de Catarina Kippenberg aos pés de Rilke.


Parte 2 - Notícias Amorosas

E não queria o amor, sob disfarces tontos


Amar
da mesma ninfa desolada no seu ermo
Que pode uma criatura senão,
e a constante procura de sede e não de linfa,
entre criaturas, amar?
e não queria também a simples rosa do sexo,
amar e esquecer,

amar e malamar,
abscôndita, sem nexo, nas hospedarias do vento,
amar, desamar, amar?
como ainda não quero a amizade geométrica
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
de almas que se elegeram numa seara orgulhosa,

imbricamento, talvez? de carências melancólicas.


Que pode, pergunto, o ser amoroso,

sozinho, em rotação universal, senão


Aspiro antes à fiel indiferença
rodar também, e amar?
mas pausada bastante para sustentar a vida

15
amar o que o amar traz à praia, uma diferença importante entre o que o poeta gostaria de alcançar
(a “fiel indiferença” de que ele fala no poema “Aspiração”) e aquilo
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha, que realmente acontece (amar e procurar mais amor).

é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia? O poema é escrito em versos livres e brancos.

Amar solenemente as palmas do deserto, Entre o ser e as coisas


o que é entrega ou adoração expectante, Onda e amor, onde amor, ando indagando

e amar o inóspito, o áspero, ao largo vento e à rocha imperativa,

um vaso sem flor, um chão de ferro, e a tudo me arremesso, nesse quando


e o peito inerte, e a rua vista em sonho, amanhece frescor de coisa viva.

e uma ave de rapina.

As almas, não, as almas vão pairando,

Este o nosso destino: amor sem conta, e, esquecendo a lição que já se esquiva,

distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas, tornam amor humor, e vago e brando

doação ilimitada a uma completa ingratidão, o que é de natureza corrosiva.

e na concha vazia do amor a procura medrosa,

paciente, de mais e mais amor. N'água e na pedra amor deixa gravados

seus hieróglifos e mensagens, suas

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa verdades mais secretas e mais nuas.
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

Comentário E nem os elementos encantados

Na primeira estrofe, vemos que o amor, com todos os seus sabem do amor que os punge e que é, pungindo,
percalços (esquecimento, amor infeliz e desamor) é um impulso
inevitável em todos seres humanos, mesmo no momento da morte uma fogueira a arder no dia findo.
(“até de olhos vidrados”). Na segunda estrofe, o poeta declara que
quem ama faz parte do movimento universal de todas as coisas (a Comentário
“rotação universal”) e, por isso, é levado a amar o que vem com o
Neste poema, o eu-lírico busca o amor e deseja se arremessar nele
movimento do mundo (“amar o que o mar traz à praia,/ o que ele
para sentir o frescor da vida no momento em que amanhece.
sepulta, e o que, na brisa marinha,/ é sal, ou precisão de amor, ou
Diferentemente das almas, que vão se distanciando de tudo e que
simples ânsia”). Na terceira estrofe, vemos que é preciso amar
veem no amor apenas um sentimento suave e engraçado (“tornam
(com adoração ou entrega total de si mesmo) tudo o que é áspero,
o amor humor, e vago e brando/ o que é de natureza corrosiva”), o
duro e inóspito. Como afirma o poeta na quarta estrofe, o destino
eu-lírico sabe que o amor é forte e corrosivo, ele sabe que o amor é
do ser humano é amar até aquilo que é inútil ou faz mal e, ainda
capaz de imprimir a sua marca até mesmo na água e nas pedras e
assim, procurar mais amor. Na estrofe final, o poeta radicaliza a sua
que os elementos da natureza, assim encantados e dominados,
visão e conclui que é preciso amar até a falta de amor, amar tudo
nem sabem que é o amor que fez isso com eles.
que não se realizou (“a água implícita, e o beijo tácito”) e amar a
sede infinita de amar. Drummond era leitor frequente de Camões e, neste soneto,
aproxima-se de vários aspectos do poeta português: a atitude de
Observa-se que o poeta não renuncia à visão desiludida que
questionamento e reflexão do eu-lírico (“onde amor, ando
prevalece desde o começo do livro. O amor não é promessa de
indagando”); a ideia de que o amor é uma força que nos domina e
felicidade, não é um ato de liberdade, não nos eleva
nos arremessa para todos os lados, como as ondas do mar; a ideia
espiritualmente, não nos torna melhores. O amor faz parte da
de que as almas vivem num contentamento brando e não são mais
desordem do mundo e não se pode escapar dele. Por isso, existe
16
atingidas pelas dores do amor; a ideia de que o amor deixa marcas com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro
profundas no ser e nas coisas; a ideia de que o amor é uma fogo
que arde (retomada no último verso). O próprio fato de ter usado o fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,
soneto italiano tradicional para falar do amor é uma homenagem a
sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.
Camões.

O que é diferente neste poema de Drummond é a sensação de


renovação da vida associada ao começo de sua paixão por Lygia E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito
Fernandes, com quem manteve um caso que iria durar trinta anos.
Num momento em que o poeta achava que sua vida sentimental lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.
estava encerrada e que só lhe restava a “indiferença fiel” (conforme
disse no poema “Aspiração”), o amor vem como “uma fogueira a Nem houve testemunha.
arder no dia findo”.

Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.


Tarde de maio
Quem reconhece o drama, quando se precipita sem máscaras?
Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar
Se morro de amor, todos o ignoram
inferior de seus mortos,
e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.
assim te levo comigo, tarde de maio,
O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;
quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,
não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória
outra chama, não-perceptível, e tão mais devastadora,
das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,
surdamente lavrava sob meus traços cômicos,
perdida no ar, por que melhor se conserve,
e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes
uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.
e condenadas, no solo ardente, porções de minh'alma
Comentário
nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza sem fruto.
“Tarde de Maio” é um dos mais importantes poemas de Drummond
a respeito do amor. Trata-se de um poema elegíaco, isto é, um
Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva, poema de tristeza e lamentação. O poeta fala de uma certa tarde
de maio da qual ele não quer se esquecer e que levará sempre na
colheita, fim do inimigo, não sei que portentos. memória, assim como os primitivos que tem a tradição de carregar
consigo a mandíbula dos seus mortos para lhes dar boa sorte. Esta
Eu nada te peço a ti, tarde de maio, referência aos mortos e à necessidade de carregar o que restou
deles está associada à ideia de que não se deve esquecer as
senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,
coisas que já se foram ou não se realizaram (elas têm o “apelo do
sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de Não”, como diz o poema “Memória”).

converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém Essa tarde de maio foi o momento em que ele sentiu arder
novamente a chama do amor dentro de si, alcançando porções de
que, precisamente, volve o rosto, e passa... sua alma que nunca tinham sido atingidas antes, mas o poeta sabe
que esse sentimento chegou tarde. Assim, tudo o que o poeta
Outono é a estação em que ocorrem tais crises, deseja é que a lembrança dessa tarde de maio dure para sempre,
como prova de que a derrota (a vida madura e o envelhecimento)
e em maio, tantas vezes, morremos.
pode se converter em beleza (na figura de uma jovem que passa).
O poeta sabe que essas crises amorosas são comuns no outono (a
maturidade) e muitas vezes são o último sinal de vida em quem
Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera, envelhece (“e em maio, tantas vezes, morremos”). Ele sabe
também que a renovação produzida pelo amor pode ser apenas
já então espectrais sob o aveludado da casca, uma ilusão (uma “fictícia primavera”) na vida de alguém que se
aproxima da morte. Se alguém encontrasse nas ruas um indivíduo
trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres
envelhecido mas apaixonado, não saberia se ele vai para o

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cemitério ou se vai para o carnaval (“se era um préstito lutuoso, feito de mar ausente e abstrata serra.
arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco”).

No entanto, ninguém reconhece o drama de alguém que volta a


amar no momento de envelhecer (“Se morro de amor, todos o E calcamos em nós, sob o profundo
ignoram/ e negam”). Nessas situações, o próprio amor se maltrata e
instinto de existir, outra mais pura
se esconde, com um bicho caçado. Nem mesmo tem certeza se é
amor pois a memória já está gasta. Tudo o que resta é a tristeza, vontade de anular a criatura.
que ajuda a conservar a lembrança desse amor, transformando-o
em como algo definitivo no meio das coisas efêmeras que passam Comentário
(“a imprimir seu selo nas nuvens”).
Esse poema volta ao tom sombrio da primeira parte de Claro
A tarde de maio é uma metonímia que representa todas as Enigma. O soneto pode ser dividido em duas partes: os quartetos
experiências amorosas que ocorrem ao entardecer, no outono da descrevem o momento do fim da tarde (a luz crepuscular, o sino
vida, isto é, no momento em que se aproxima o declínio e a morte. que toca, a hora do sono e do sonho que se aproxima), enquanto
Acostumado com a desilusão e a resignação que a maturidade lhe os tercetos descrevem a situação do casal que contempla o
trouxe, o poeta sabe que esses os amores no outono da vida anoitecer, enquanto os dois reprimem dentro de si mesmos o
muitas vezes são a última despedida antes da morte, ele sabe que desejo de morte (“vontade de anular a criatura”). A palavra “fraga”
a renovação da vida pode ser apenas uma ilusão e que um velho que aparece no título significa rochedo ou penhasco. O título
apaixonado pode ser um tanto ridículo aos olhos dos outros (não se sugere, assim, uma situação extrema: junto a um penhasco (isto é,
sabe se ele vai para o cemitério ou para o carnaval). Por isso, tudo à beira de um abismo) duas pessoas contemplam uma sombra que
o que o poeta pede é a chance de nunca se esquecer da sensação os oprime (“A sombra azul da tarde nos confrange”). Esta sombra
de vida que aquela tarde de maio trouxe para ele. Ela deve que vem com o anoitecer (momento em que tudo se dissolve na
permanecer na memória, mesmo que seja com tristeza por algo escuridão) é a sombra da morte. O fato de que este soneto esteja
que já passou. inserido na parte do livro dedicada ao amor mostra que, para
Drummond, até a ausência de comunicação e de amor é um dos
O poema é composto de quatro estrofes em versos livres. Como se componentes da vida amorosa, como foi dito no poema “Amar”:
trata de versos longos e sem rima, o poema tem um tom de “Amar a nossa falta mesma de amor”.
discurso dirigido à tarde de maio, a quem o poeta se refere na
segunda pessoa (“te levo comigo, tarde de maio”; “eu nada te peço Os elementos que compõem o cenário crepuscular (o anoitecer, a
a ti, tarde de maio”). No entanto, como esse interlocutor abstrato é sombra que baixa, o sino que toca) aparecem sozinhos ou juntos
apenas um pretexto para o poeta fazer reflexões sobre o significado em vários poemas de Claro Enigma, como “Dissolução”, “Cantiga
do amor na maturidade. de Enganar”, “A Máquina do Mundo” e “Relógio do Rosário”.

Fraga e sombra Canção para álbum de moça

A sombra azul da tarde nos confrange. Bom dia: eu dizia a moça

Baixa, severa, a luz crepuscular. que de longe sorria.

Um sino toca, e não saber quem tange Bom dia: mas da distância

é como se este som nascesse do ar. ela nem respondia.

Em vão a fala dos olhos

Música breve, noite longa. O alfanje e dos braços repetia

que sono e sonho ceifa devagar bom-dia à moça que estava,

mal se desenha, fino, ante a falange de noite como de dia,

das nuvens esquecidas de passar. bem longe do meu poder

e de meu pobre bom-dia.

Os dois apenas, entre céu e terra, Bom-dia sempre: se acaso

sentimos o espetáculo do mundo, a resposta vier fria


18
ou tarde vier, contudo Ah, se um dia respondesses

esperarei o bom-dia. ao meu bom-dia: bom dia!

E sobre casas compactas, Como a noite se mudara

sobre o vale e a serrania, no mais cristalino dia!

irei repetindo manso Comentário

a qualquer hora: bom dia. Depois de uma série de poemas de grande densidade emocional e
existencial, a “Canção para álbum de Moça” é um momento de
O tempo é talvez ingrato descontração e leveza. O poeta se encantou com uma moça bonita
e costumava lhe dizer “bom dia”, mas a moça não lhe respondia
e funda a melancolia
nem percebia o quanto havia de carinho naquela saudação. Apesar
para que justifique da ausência de resposta, o poeta insistia em desejar “bom dia”,
mesmo à tarde ou à noite, e já de madrugada ele preparava um
o meu absurdo bom-dia. bom dia para a moça. A moça, no entanto, não compreendia
quanta tristeza e inquietação de envelhecimento (“noite que se
Nem a moça põe reparo, anuncia”) estavam contidas na insistência com que o poeta lhe
dava “bom dia”. Se um dia, ela lhe respondesse, a noite em que ele
não sente, não desconfia
vivia se tornaria realmente um dia claro.
o que há de carinho preso
Este poema sobre o desencontro amoroso é escrito em redondilhas
no cerne deste bom-dia. maiores (7 sílabas). A insistência do poeta é reforçada pela
repetição da saudação “bom dia” e pela rima (-ia), que se repete em
Bom dia: repito à tarde, todos os versos pares, como se fosse um eco da saudação. A
linguagem é simples e leve. O título é uma referência aos antigos
à meia-noite: bom dia. “álbuns de moça”, que eram cadernos ricamente decorados onde
os admiradores deixavam mensagens em versos cortejando a dona
E de madrugada vou
do álbum. Assim como no caso da “Cantiga de Enganar”, o título
pintando a cor do meu dia, “Canção para álbum de moça” é irônico porque não se trata de uma
canção e tampouco o poeta tem proximidade suficiente para
que a moça possa encontrá-lo escrever algo no álbum da moça referida.

azul e rosa: bom dia.

Bom dia: apenas um eco Rapto

na mata (mas quem diria) Se uma águia fende os ares e arrebata

decifra minha mensagem, esse que é forma pura e que é suspiro

deseja bom o meu dia. de terrenas delícias combinadas;

A moça, sorrindo ao longe, e se essa forma pura, degradando-se,

não sente, alegria, mais perfeita se eleva, pois atinge

o que há de rude também a tortura do embate, no arremate

no clarão deste bom-dia. de uma exaustão suavíssima, tributo

De triste, túrbido, inquieto, com que se paga o voo mais cortante;

noite que se denúncia se, por amor de uma ave, ei-la recusa

e vai errante, sem fogos, o pasto natural aberto aos homens,

na mais louca nostalgia. e pela via hermética e defesa

vai demandando o cândido alimento


19
que a alma faminta implora até o extremo; Deus me deu um amor no tempo de madureza,

se esses raptos terríveis se repetem quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.

já nos campos e já pelas noturnas Deus - ou foi talvez o Diabo- deu-me este amor maduro,

portas de pérola dúbia das boates; e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

e se há no beijo estéril um soluço

esquivo e refolhado, cinza em núpcias, Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos

e tudo é triste sob o céu flamante e outros acrescento aos que amor já criou.

(que o pecado cristão, ora jungido Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso

ao mistério pagão, mais o alanceia), e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.

baixemos nossos olhos ao desígnio

da natureza ambígua e reticente: Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia

ela tece, dobrando-lhe o amargor, e cansado de mim julgava que era o mundo

outra forma de amar no acerbo amor. um vácuo atormentado, um sistema de erros.

Comentário Amanhecem de novo as antigas manhãs

“Rapto” trata do amor homossexual. O poema parte de um mito que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.
grego: Zeus se apaixonou pelo jovem Ganimedes e, para levá-lo ao
Olimpo, assumiu a forma de uma águia e raptou o rapaz. De acordo
com o poema de Drummond, se uma águia arrebata um jovem
Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
(metáfora da iniciação ao amor homossexual), esse jovem se eleva
aos céus pelo prazer que alcança (“arremate de uma exaustão imensa e contraída como letra no muro
suavíssima”), mas também se degrada. A partir desse momento,
esse jovem passa a recusar o amor heterossexual (“o pasto natural e só hoje presente.
aberto aos homens”) e busca um caminho proibido para satisfazer o
seu amor (“pela via hermética e defesa/ vai demandando o cândido Deus me deu um amor porque o mereci.
alimento/ que a alma faminta implora até o extremo”). Se as
De tantos que já tive ou tiveram em mim,
relações homossexuais se repetem em lugares clandestinos e em
boates, aumentando o sentimento de culpa (atiçado pela o sumo se espremeu para fazer vinho
consciência cristã do pecado associado ao paganismo da prática
homossexual), é melhor as pessoas reconhecerem que se trata ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.
apenas de “outra forma de amar”.

Apesar dos preconceitos da época e da sua própria formação,


Drummond demonstra tolerância com a homossexualidade. E o tempo que levou uma rosa indecisa
Percebe-se, todavia, que o assunto era incômodo para o autor, que
a tirar sua cor dessas chamas extintas
o aborda através de um mito grego e de uma linguagem alusiva, à
base de eufemismos cultos. A sugestão do poeta (“baixemos era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
nossos olhos”) indica pudor e resignação diante do amor
homossexual, mas também sentimento de vergonha diante da Onde não há jardim, as flores nascem de um
homossexualidade, que seria resultado da “natureza ambígua e
reticente”. Drummond não voltaria a escrever sobre o tema e, secreto investimento em formas improváveis.
muitos anos mais tarde, chegou a dizer que os homossexuais eram
pessoas doentes que precisavam de tratamento médico. No
entanto, o poema “Rapto” nunca foi retirado do livro. Hoje tenho um amor e me faço espaçoso

para arrecadar as alfaias de muitos


Campo de flores

20
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes, de que os amantes dispõem e transforma o medo que sente (o
poeta era casado e estava envelhecendo) em alegria (“o sagrado
e ao vê-los amorosos e transidos em torno, terror converto em jubilação”).

o sagrado terror converto em jubilação. O amor que sente é ambíguo: traz angústia, mas também oferece
carinho. Como esse amor chegou no momento da maturidade, é
preciso amar de um jeito diferente de antes. É preciso dedicar-se
Seu grão de angústia amor já me oferece com seriedade e paciência (“de uma grave paciência/ ladrilhar
minhas mãos”). É preciso torcer para que a doação de ternura não
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia tenha sido estragada pelos anos de ironia. É preciso saber manter
segredo (“Há que amar e calar”). O poeta sente que conseguiu
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura escapar do fluxo inexorável do tempo. Ele sabe que está vivo e que
está na luz, embora a luz esteja declinando, situação que o deixa
e o mistério que além faz os seres preciosos
hesitante: “Para fora do tempo arrasto meus despojos/ e estou vivo
à visão extasiada. na luz que baixa e me confunde”.

O título “Campo de Flores”, assim como a imagem da rosa na


quinta estrofe, remetem à situação de renovação e esperança. Em
Mas, porque me tocou um amor crepuscular, “Contemplação no banco”, o poeta falava da esperança de que
uma flor pudesse brotar no chão tão pisado. Em “Campo de Flores”,
há que amar diferente. De uma grave paciência para surpresa do poeta, a flor brotou na sua vida na forma de um
amor em tempo de maturidade.
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
O poema tem 8 estrofes irregulares e versos livres. O fato de os
tenha dilacerado a melhor doação.
versos serem longos e sem rima confere ao poema um tom de
Há que amar e calar. discurso, que o poeta dirige à amada (referida na quarta estrofe).

Para fora do tempo arrasto meus despojos

e estou vivo na luz que baixa e me confunde. Parte 3 - O Menino e os Homens

Comentário

Drummond volta ao tema do amor que vem na idade madura. Sua A um varão, que acaba de nascer
postura se mantém hesitante e cautelosa: ela agradece por ter um
Chegas, e um mundo vai-se
amor, mas não sabe se foi um presente de Deus ou do Diabo. Com
esse amor, o poeta volta às suas crenças antigas (“aos mitos como animal ferido,
pretéritos”). Ele sente novamente o que sentia no passado, mas
não perdeu a lucidez da maturidade. Ele permanece numa área de arqueja. Nem aponta
indecisão, dividido entre ser ou não ser, mas desejoso de ser e
sentir tudo o que sentia antes (“e talhado em penumbra sou e não um forma sensível,
sou, mas sou”). O poeta julgava que o mundo era vazio, sofrido e
pois já sabemos todos
absurdo, mas agora ele vê novas manhãs, isto é, possibilidades
que ele nunca tinha vivido nem imaginado. Essas manhãs cheias que custa a modelar-se
de esperança estão associadas à imagem da amada (a quem ele
se refere em segunda pessoa: “atrás de tua sombra”). Essa uma raiz, um broto.
imagem sempre esteve lá, mas só agora se fazia evidente, como
uma mensagem que estava escrita num muro, mas não tinha sido E contudo vens tarde.
lida ainda (“imensa e contraída como letra no muro/ e só hoje
Todos vêm tarde. A terra
presente”). Esse amor foi merecido: é como se todos os amores
anteriores tivessem se coagulado numa forma nova e depurada. anda morrendo sempre,
Esse amor veio no tempo certo: exatamente o tempo que leva para
brotar uma rosa num terreno árido, pois quando não há um local e a vida, se persiste,
apropriado, as flores aparecem de maneira imprevisível (“Onde não
há jardim, as flores nascem de um/ secreto investimento em formas passa descompassada,
improváveis”).
e nosso andar é lento,
Agora que tem o seu amor, o poeta junta toda a riqueza de ternura
curto nosso respiro,
21
e logo repousamos mais que o veleiro impróprio,

e renascemos logo. certa cumplicidade

(Renascemos? talvez) entre nosso corpo e água.

Crepita uma fogueira Os metais, as madeiras

que não aquece. Longe. já se deixam malear,

Todos vêm cedo, todos de pena, dóceis. Nada

chegam fora do tempo, é tão rude bastante

antes, depois. Durante, que nunca se apiede

quais os que aportam? Quem e se furte a viver

respirou o momento, em nossa companhia.

vislumbrando a paisagem Este é de resto o mal

de coração presente? superior a todos:

Quem amou e viveu? a todos como a tudo

Quem sofreu de verdade? estamos presos. E

Como saber que foi se tentas arrancar

nossa aventura, e não o espinho de teu flanco,

outra, que nos legaram? a dor em ti rebate

No escuro prosseguimos. a do espinho arrancado.

Num vale de onde a luz Nosso amor se mutila

se exilou, e no entanto a cada instante. A cada

basta cerrar os olhos instante agonizamos

para que nele trema, ou agoniza alguém

remoto e matinal, sob o carinho nosso

o crepúsculo. Sombra! Ah, libertar-se, lá

Sombra e riso, que importa? onde as almas se espelhem

Estendem os mais sábios na mesma frigidez

a mão, e no ar ignoto de seu retrato, plenas!

o roteiro decifram, É sonho, sonho. Ilhados,

e é às vezes um eco, pendentes, circunstantes,

outras, a caça esquiva, na fome e na procura

que desafia, e salva-se. de um eu imaginário

E a corrente, atravessa-a, e que, sendo outro, aplaque

22
todo este ser em ser, resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na
costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que
adoramos aquilo te chamamos, num momento de simpatia” (capítulo LXXV).

que é nossa perda. E morte Em ambos os casos, já se anuncia ao recém-nascido o fardo de


sofrimentos que ele vai ter que passar ao longo da vida.
e evasão e vigília

e negação do ser
O Chamado
com dissolver-se em outro
Na rua escura o velho poeta
transmutam-se em moeda
(lume de minha mocidade)
e resgate do eterno.
já não criava, simples criatura
Para amar sem motivo
exposta aos ventos da cidade.
e motivar o amor

na sua desrazão,
Ao vê-lo curvo e desgarrado
Pedro, vieste ao mundo.
na caótica noite urbana,
Chamo-te meu irmão.
o que senti, não alegria,
Comentário
era, talvez, carência humana.
Neste poema dedicado a um recém-nascido, Drummond descreve
o que é viver neste mundo: o mundo está sempre em crise e a vida
prossegue aos trancos (“A terra~/ anda morrendo sempre/ e a vida,
se persiste/ passa descompassada”); nunca chegamos ao mundo E pergunto ao poeta, pergunto-lhe
na hora certa (“todos chegam fora de tempo”); passamos a vida na
escuridão (“No escuro prosseguimos/ num vale de onde a luz/ se (numa esperança que não digo)
exilou”); os sábios tentam entender o mundo, mas não conseguem
para onde vai — a que angra serena,
(“Estendem os mais sábios/ a mão, e no ar ignoto/ o roteiro
decifram/ e é às vezes um eco/ outras vezes, a caça esquiva/ que a que Pasárgada, a que abrigo?
desafia, e salva-se”); estamos presos e ligados a tudo o que existe
à nossa volta (“Este é de resto o mal/ superior a todos:/ a todos
como a tudo/ estamos presos”)/ querer libertar-se para atingir a
plenitude e a elevação das almas é sonho; adoramos aquilo que A palavra oscila no espaço
nos faz mal e causa nossa perda; acreditamos que a morte, a
um momento. Eis que, sibilino,
negação de nós mesmos, a evasão da realidade podem nos ajudar
a conquistar a salvação e a vida eterna (“transmutam-se em entre as aparências sem rumo,
moeda/ e resgate do eterno”). Enfim, é para amar e ser amado, na
falta de sentido própria do amor, é que o recém-nascido veio ao responde o poeta: Ao meu destino.
mundo. A partir de agora, ele passa a ser mais um companheiro
nesta jornada pela vida. Ele passa a ser mais um irmão.

O poema é escrito em versos hexassílabos (6 sílabas) e é dirigido E foi-se para onde a intuição,
em segunda pessoa a recém-nascido chamado Pedro. O poema,
o amor, o risco desejado
especialmente em seus versos finais (“Para amar sem motivo/ e
motivar o amor/ na sua desrazão/ Pedro, vieste ao mundo’), pode o chamavam, sem que ninguém
ser comparados com o trecho famoso de Memórias Póstumas de
Brás Cubas, em que o narrador imagina D. Plácida recém-nascida, pressentisse, em torno, o Chamado.
perguntando aos seus pais porque ela veio ao mundo. Os pais dela
responderiam: “Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, Comentário
os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado
Este poema é uma homenagem ao poeta modernista Manuel
para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a
Bandeira, autor de “Vou-me embora pra Pasárgada”, um dos
adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã
poemas mais famosos da literatura brasileira.
23
No poema, há um contraste entre a figura solitária e frágil do velho Comentário
poeta e a firmeza com que ele declara que vai para seu destino,
sem explicar que destino era esse. O poema mostra que, mesmo Drummond (mineiro que vivia no Rio de Janeiro) imagina um
na velhice, Bandeira deixava-se levar “para onde a intuição/ o amor, encontro com o poeta modernista Mário Quintana (que morava em
o risco desejado/ o chamavam”. Esse Chamado (com inicial Porto Alegre). Esse encontro seria pleno de elementos inusitados,
maiúscula para destacar sua importância) só podia ser ouvido por díspares e inverossímeis. Por exemplo: os dois poetas voariam
Manuel Bandeira e mais ninguém. sobre os tetos, na garupa de uma bruxa; depois pintariam uma
romã para matar a fome imaginária. Mário Quintana mostraria a
É importante observar que, na segunda estrofe, ao encontrar o Drummond a casa dos seus poetas favorito: Arthur Rimbaud,
velho Bandeira caminhando sozinho à noite, é Drummond quem William Blake e Camões. As situações mais incongruentes e
sente carência. É ele quem tem a esperança secreta de que espantosas ocorreriam, fora do tempo e do espaço, enquanto junto
Bandeira estivesse indo para Pasárgada. Em outras palavras, é à mesa do bar, o poeta Mário Quintana viajaria na sua imaginação.
Drummond quem precisava de ajuda e consolação. Assim, há uma
diferença muito grande entre Drummond, que começava a Em sua homenagem ao colega, Drummond procura resgatar
envelhecer cheio de hesitações e sem saber que rumo tomar, e o aspectos característicos da poesia de Mário Quintana, como a
velho Manuel Bandeira, que seguia firmemente para seu destino, influência surrealista (evidente nos elementos inusitados e na
ouvindo o Chamado, prova de sua autêntica vocação de poeta. imaginação imprevisível) e o amor de Quintana por poetas
visionários como Rimbaud e William Blake. Além disso, a própria
O poema tem cinco estrofes de quatro versos, com rimas nos forma adotada por Drummond – o poema em prosa ou prosa
versos pares. Os versos têm 8 sílabas. poética -, é uma forma da qual Mário Quintana foi um grande
expoente.

Quintana's bar
Aniversário
Num bar fechado há muitos, muitos anos, e cujas portas de aço
bruscamente se descerram, encontro, quem eu nunca vira, o poeta Os cinco anos de tua morte
Mario Quintana.
esculpiram já uma criança.
Tão simples reconhecê-lo, toda identificação é vã. Em algum lugar -
coxilha? montanha? vai rorejando a manhã. Moldada em éter, de tal sorte,

Na total desincorporação das coisas antigas, perdura um elemento ela é fulva e no dia avança.
mágico: estrela-do-mar - ou Aldebarã?, tamanquinhos, menina
correndo com o arco. E corre com pés de lã.
Este menino malasártico,
Falando em voz baixa nos entendemos, eu de olhos cúmplices, ele
com seu talismã. Assim me fascinavam outrora as feitiçarias da Macunaíma de novo porte.
preta, na cozinha de picumã.
escreve cartas no ar fantástico
Na conspiração da madrugada, erra solitário - dissolve-se o bar - o
poeta Quintana. Seu olhar devassa o nevoeiro, cada vez mais para compensar tua morte.
densa é a bruma de antanho.

Uma teia tecendo, e sem trabalho de aranha. Falo de amigos que


envelheceram ou que sumiram na semente de avelã. Com todos os dentes, feliz,

Agora voamos sobre os tetos, à garupa da bruxa estranha. Para lá de um mundo sem sul nem norte,
iludirmos a fome que não temos pintamos uma romã.
de teu inesgotável país,
E já os homens sem província, despetala-se a flor aldeã. O poeta
ris. Alegria ou puro esporte?
aponta-me casas, a de Rimbaud, a de Blake e a gruta camoniana.

As amadas do poeta, lá embaixo, na curva do rio, ordenham-se em


lenta pavana, e uma a uma, gotas ácidas, desaparecem no poema. Ris, irmão, assim cristalino
É há tantos anos, será ontem, foi amanhã? Signos criptográficos
ficam gravados no céu eterno – ou na mesa de um bar abolido, (Mozart aberto em pianoforte)
enquanto debruçado sobre o mármore, silenciosamente viaja o
poeta Mario Quintana. o redondo, claro, apolíneo

24
riso de quem conhece a morte. A igreja era grande e pobre. Os altares, humildes.

Havia poucas flores. Eram flores de horta.

Não adianta, vê, te prantearmos... Sob a luz fraca, na sombra esculpida

Tudo sabes, sem que isso importe (quais as imagens e quais os fiéis?)

em cinismo, pena, sarcasmo. ficávamos.

E, deserto, ficas mais forte.

Do padre cansado o murmúrio de reza

Giras na Ursa Maior, acaso, subia às tábuas do forro,

solitário, em meio à coorte, batia no púlpito seco,

sem, nas pupilas, flor ou vaso, entranhava-se na onda, minúscula e forte, de incenso,

Mas o jardim é teu, da morte. perdia-se.

Não, não se perdia...

Se de nosso nada possuímos, Desatava-se do coro a música deliciosa

salvo o apaixonado transporte (que esperas ouvir à hora da morte, ou depois da morte, nas
campinas do ar)
- vida é paixão -, contigo rimos,
e dessa música surgiam meninas – a alvura mesma –
expectantes, em frente à Porta!
cantando.
Comentário

O poema lembra o quinto aniversário da morte do escritor


modernista Mário de Andrade, autor de Macunaíma. Mário de De seu peso terrestre a nave libertada,
Andrade e Carlos Drummond foram amigos por cerca de vinte anos
e mantiveram uma intensa troca de cartas sobre a vida e a como do tempo atroz imunes nossas almas,
literatura. O poeta imagina que, depois da morte do amigo, um
flutuávamos
menino travesso (“malasártico”) como um novo Macunaíma, passou
a escrever cartas para compensar a morte do escritor. O poeta no canto matinal, sobre a treva do vale.
imagina também que no imenso país em que Mário de Andrade
morava agora (o Céu), ele ria o riso claro que costumava rir, de Comentário
maneira que não havia sentido em chorar a sua morte. Assim como
aconteceu com o personagem Macunaíma quando partiu deste Numa igreja grande, embora sem atrativos, o poeta percebe que a
mundo, Mário de Andrade passou a fazer parte da constelação da redenção não vem das imagens de santos, nem das palavras
Ursa Maior, morando sozinho entre a multidão de estrelas. Aos que cansadas murmuradas pelo padre, mas sim da música que
ficaram na terra, resta rir com o riso do Mário e esperar a vez junto começou a tocar. Essa música, imagem da claridade e da
à Porta do céu. delicadeza, libertava as coisas de seu peso, tirava as pessoas do
fluxo do tempo e da escuridão da vida.
O poema é formado por sete estrofes de quatro versos cada, com
rimas alternadas. Os versos têm 8 sílabas (medida rara que O título do poema pode ser entendido como referência à cidade de
Drummond usou também no poema “O Chamado”, que presta Mariana (cuja igreja matriz tem um órgão famoso), mas também se
homenagem a Manuel Bandeira). refere ao culto mariano (isto é, ao culto à Virgem Maria), bastante
comum em todo Brasil. Dois importantes poetas mineiros estavam
ligados a Mariana: o poeta árcade Claúdio Manuel da Costa, que
nasceu lá, e o poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens, que
Parte 4 - Selo de Minas morou perto da igreja matriz e que, como simbolista, valoriza a
musicalidade.

Evocação Mariana

25
Estampas de Vila Rica

I - Carmo Mas entro e, Senhor, me perco

Não calques o jardim na rósea nave triunfal.

nem assustes o pássaro. Por que tanto baixar o céu?

Um e outro pertencem Por que esta nova cilada?

aos mortos do Carmo.

Senhor, os púlpitos mudos

Não bebas nesta fonte entretanto me sorriem.

nem toques nos altares. Mais que vossa igreja, esta

Todas estas são prendas sabe a voz de me embalar.

dos mortos do Carmo.

Perdão, Senhor, por não amar-vos.

Quer nos azulejos

ou no ouro da talha, III - MERCÊS DE CIMA

olha: o que está vivo Pequena prostituta em frente a Mercês de Cima.

são mortos do Carmo. Dádiva de corpo na tarde cristã.

Anjos saídos da portada

II - SÃO FRANCISCO DE ASSIS e nenhum Aleijadinho para recolhê-los.

Senhor, não mereço isto.

Não creio em vós para vos amar. IV - Hotel Toffolo

Trouxestes-me a São Francisco E vieram dizer-nos que não havia jantar.

e me fazeis vosso escravo. Como se não houvesse outras fomes

e outros alimentos.

Não entrarei, Senhor, no templo,

seu frontispício me basta. Como se a cidade não servisse seu pão

Vossas flores e querubins de nuvens.

são matéria de muito amar.

Não, hoteleiro, nosso repasto é interior

Dai-me, Senhor, a só beleza e só pretendemos a mesa.

destes ornatos. E não a alma. Comeríamos a mesa, se no-lo ordenassem as Escrituras.

Pressente-se dor de homem, Tudo se come, tudo se comunica,

paralela à das cinco chagas. tudo, no coração, é ceia.

26
perdão por não ser religioso. O poema, escrito em redondilhas
maiores (versos de 7 sílabas), tem um tom solene, marcado pelo
V - Museu da Inconfidência uso da segunda pessoa do plural e pelas apóstrofes dirigidas ao
“Senhor”, imitando as preces. Assim como acontece no poema
São palavras no chão
“Invocação Mariana”, o sentimento de plenitude não vem da
e memória nos autos. religião, mas da arte.

As casas inda restam, “Mercês de Cima” é um curto poema em versos livres, que procura
capturar a ironia triste da situação (uma jovem prostituta como um
os amores, mais não. anjo caído em frente à Igreja). A forma do poema e a sua
capacidade de observação irônica é semelhante às poesias do
modernista Oswald de Andrade, que também se encantou com a
beleza de Ouro Preto.
E restam poucas roupas,
“Hotel Toffolo” também tem a marca da observação irônica e bem-
sobrepeliz de pároco,
humorada de Oswald de Andrade. Apesar de não haver jantar no
a vara de um juiz, hotel, a beleza da cidade era alimento suficiente para a fome do
poeta.
anjos, púrpuras, ecos.
“Museu da Inconfidência” aborda um tema recorrente em
Drummond: o que resta daquilo que passou. Quase tudo o que os
inconfidentes viveram e sofreram desapareceu. O tempo é
Macia flor de olvido, governado pelo esquecimento (“macia flor do olvido”). O que restou
é apenas a história de remorso pelo infortúnio e fracasso dos
sem aroma governas
inconfidentes. É esse remorso que é guardado no Museu da
o tempo ingovernável. Inconfidência.

Muros pranteiam. Só.


Morte das casas de Ouro Preto

Toda história é remorso. Sobre o tempo, sobre a taipa,

Comentário a chuva escorre. As paredes

Os cincos poemas da série “Estampas de Vila Rica” funcionam que viram morrer os homens,
como cartões-postais que registram cenas e lugares da cidade de
que viram fugir o ouro,
Ouro Preto: a Igreja do Carmo (com seu cemitério), a Igreja de São
Francisco (considerada uma das mais belas igrejas barrocas do que viram finar-se o reino,
Brasil), a Igreja das Mercês de Cima (em frente da qual havia um
ponto de prostituição), o Hotel Toffolo (tido como o melhor da que viram, reviram, viram,
cidade na época) e o Museu da Inconfidência (onde são guardados
os autos do processo contra os Inconfidentes e seus objetos já não veem. Também morrem.
pessoais).

“Carmo” aborda um tema importante para Drummond: a


Assim plantadas no outeiro,
persistência daquilo que morreu, daquilo que se foi. “O que está
vivo/ são os mortos do Carmo”. Escrito em redondilha menor menos rudes que orgulhosas
(versos de 5 sílabas), o poeta retoma os avisos colocados na igreja
e no cemitério: “Não pise no jardim”, “Não toques nos altares”, “Não na sua pobreza branca,
beba água desta fonte”. A expressão “os mortos do Carmo”,
repetida no final das estrofes funciona como refrão do poema e azul e rosa e zarcão,
enfatiza a persistência dos mortos, numa cidade histórica como
ai, pareciam eternas!
Ouro Preto.
Não eram. E cai a chuva
“São Francisco” é uma conversa do poeta com Deus. O poeta
reconhece que não é digno da beleza da Igreja de São Francisco sobre rótula e portão.
de Assis, obra-prima do Aleijadinho. No final, encantado com tanta
beleza, como se o céu tivesse baixado até a terra, o poeta pede
27
Vai-se a rótula crivando Minhas casas fustigadas,

como a renda consumida minhas paredes zurzidas,

de um vestido funerário. minhas esteiras de forro,

E ruindo se vai a porta. meus cachorros de beiral,

Só a chuva monorrítmica meus paços de telha-vã

sobre a noite, sobre a história estão mudos e humildes.

goteja. Morrem as casas.

Lá vão, enxurrada abaixo

Morrem, severas. É tempo as velhas casas honradas

de fatigar-se a matéria em que se amou e pariu,

por muito servir ao homem, em que se guardou moeda

e de o barro dissolver-se. e no frio se bebeu.

Nem parecia, na serra, Vão no vento, na caliça,

que as coisas sempre cambiam no morcego, vão na geada,

de si, em si. Hoje vão-se.

enquanto se espalham outras

O chão começa a chamar em polvorentas partículas,

as formas estruturadas sem as vermos fenecer.

faz tanto tempo. Convoca-as Ai, como morrem as casas!

a serem terra outra vez. Como se deixam morrer!

Que se incorporem as árvores E descascadas e secas,

hoje vigas! Volte o pó ei-las sumindo-se no ar.

a ser pó pelas estradas!

Sobre a cidade concentro

A chuva desce, às canadas. o olhar experimentado,

Como chove, como pinga esse agudo olhar afiado

no pais das remembranças! de quem é douto no assunto.

Como bate, como fere, (Quantos perdi me ensinaram.)

como traspassa a medula, Vejo a coisa pegajosa,

como punge, como lanha vai circunvoando na calma.

o fino dardo da chuva

mineira, sobre as colinas! Não basta ver morte de homem

28
para conhecê-la bem. Ai, preto, que ris em mim

Mil outras brotam em nós, Nesta roupinha de luto

à nossa roda, no chão. E nesta noite sem causa

A morte baixou dos ermos, Com saudade das ambacas

gavião molhado. Seu bico Que nunca vi, e aonde fui

vai lavrando o paredão Num cabelo no sovaco

e dissolvendo a cidade. Preto que vivi, chupando

Sobre a ponte, sobre a pedra, Já não sei que seios moles

sobre a cambraia de Nise, Mais claros no busto preto

uma colcha de neblina No longo corredor preto

(já não é a chuva forte) Entre volutas de preto

me conta por que mistério Cachimbo em preta cozinha

o amor se banha na morte.

Comentário Já não sei onde te escondes

Mais uma vez Drummond retoma o tema da dissolução: as casas Que não me encontro nas tuas
de Ouro Preto também vão desaparecendo, desmanchadas pela
chuva. A própria cidade vai sendo dissolvida pelo tempo. Os seis Dobras de manto mortal
versos finais fazem referência ao poeta árcade e inconfidente
Já não sei, negro, em que vaso
Cláudio Manuel da Costa, que viveu e morreu em Ouro Preto. As
pedras e rochedos aparecem com frequência nas poesias de Que vão ou que labirinto
Cláudio, assim como a melancolia do amor perdido por uma amada
chamada Nise. De mim, te esquivas a mim

O poema é escrito em redondilhas maiores (7 sílabas) sem rima. E zombas desta gelada

Calma vã de suíça e de alma

Canto Negro Em que me pranteio, branco

À beira do negro poço Brinco, bronco, triste blau

Debruço-me, nada alcanço De neutro brasão escócio

Decerto perdi os olhos Meu preto, o bom era o nosso

Que tinha quando criança

O mau era o nosso, e amávamos

Decerto os perdi, com eles A comum essência triste

É que te encarava, preto Numa visguenta doçura

Gravura de cama e padre De vulva negro-amaranto

Talhada em pele, no medo Barata! Que vosso preço

29
Ó corpos de antigamente Dentes de marfim mordente

Somente estava no dom O alvor do riso escondendo

De vós mesmos ao desejo Outra negridão maior

Num entregar-se sem pejo O negro central, o negro

De terra pisada Que enegrece teu negrume

Amada E que nada mais resume

Talvez não, mas que cobiça Além dessa "solitude"

Tu me despertavas, linha Que do branco vai ao preto

Que subindo pele artelho E do preto volta pleno

Enovelando-se no joelho De soluços e resmungos

Dava ao mistério das coxas Como um rancor de si mesmo

Uma ardente pulcritude

Uma graça, uma virtude Como um rancor de si mesmo

Que nem sei como acabava Vem do preto essa ternura

Entre as moitas e coágulos Essa onda amarga, esse bafo

De letárgica bacia A rodar pelas calçadas

Onde a gente se pasmava Famélica voz perdida

Se perdia, se afogava Numa garrafa de breu

E depois se ressarcia De pranto ou coisa nenhuma:

Esse estar e não estar

Bacia negra, o clarão Esse ir como esse refluir

Que súbito entremostravas Dançar de umbigo, litúrgico

Ilumina toda a vida Sofrer, brunir bem a roupa

E por sobre a vida entreabre Que só um anjo vestira

Um coalho fixo lunar Se é que os anjos se mirassem

Neste amarelo descor Essa nostálgica rara

Das posses de todo dia De um país antes dos outros

Sol preto sobre água fria Antes do mito e do sol

Onde as coisas nem de brancas

Vejo os garotos na escola Fossem chamadas, lançando-se

Preto-branco-branco-preto Definitivas eternas

Vejo pés pretos e uns brancos Coisas bem antes dos homens

30
Os bens e o sangue

À beira do negro poço I

Debruço-me; e nele vejo Às duas horas da tarde deste nove de agosto de 1847

Agora que não sou moço nesta fazenda do Tanque e em dez outras casas de rei, q não de
valete,
Um passarinho e um desejo
em Itabira Ferros Guanhães Cocais Joanésia Capão
Comentário
diante do estrume em q se movem nossos escravos, e da viração
Debruçado à beira de um poço, o poeta tenta lembrar o convívio
que tinha com pessoas negras e pobres, quando ele (branco, filho perfumada dos cafezais q trança na palma dos coqueiros
de fazendeiro, de família tradicional com brasão escocês) era
menino. O poeta procura o que restou nele dessa convivência, ele fiéis servidores de nossa paisagem e de nossos fins primeiros,
busca o negro que há nele, que tinha saudades das aldeias de
deliberamos vender, como de fato vendemos, cedendo posse jus e
Angola (“ambacas”), que ele nunca viu, mas que conheceu no
domínio
contato físico com os negros (“aonde fui num cabelo de sovaco”).
e abrangendo desde os engenhos de secar areia até o ouro mais
Esse contato começou na primeira infância, quando o poeta foi
fino,
amamentado por uma ”mãe preta”, e continuou depois com uma
jovem prostituta negra, cujo corpo despertava tanto desejo nele. O nossas lavras muito nossas por herança de nossos pais e sogros
poeta se lembra dos garotos negros na escola, cujo riso muito bem amados
branco ocultava, no entanto, um negrume no fundo da alma: o
rancor de si mesmos (pela condição difícil em que viviam). Porém, q dormem na paz de Deus entre santas e santos martirizados.
além desse rancor, também havia a ternura, as danças, a
participação nas liturgias, a nostalgia de um outro país “onde as Por isso neste papel azul Bath escrevemos com a nossa melhor
coisas nem de brancas/ fossem chamadas”. O tempo passou, esse letra
convívio infantil se perdeu e tudo o que restou na memória do poeta
estes nomes q em qualquer tempo desafiarão tramoia trapaça e
foi “um passarinho e um desejo” (o desejo é certamente aquele que
treta:
sentia pela jovem negra, já o passarinho parece se referir ao
eufemismo infantil para o pênis). ESMERIL PISSARRÃO
O poema mostra que as relações entre brancos e negros na CANDONGA CONCEIÇÃO
sociedade rural e patriarcal do começo do século XX (Drummond
nasceu em 1902) ainda mantinham muitos elementos herdados do E tudo damos por vendido ao compadre e nosso amigo o snr
passado escravista (a “mãe preta”, a submissão dos negros aos Raimundo Procópio
brancos, inclusive no plano sexual, a nostalgia da África, as danças
etc.). Nas lembranças infantis de Drummond, a convivência entre e a d. Maria Narcisa sua mulher, e o q não for vendido, por
brancos e negros era, ao menos superficialmente, de alborque
camaradagem e cumplicidade. No entanto, o poeta percebe que
de nossa mão passará, e trocaremos lavras por matas,
havia algo doloroso na alma dos meninos negros, que era o rancor
pela sua própria condição. O poema, porém, não avança nessa lavras por títulos, lavras por mulas, lavras por mulatas e arriatas,
direção. Seu foco está no desejo sexual que a jovem prostituta
negra despertava nele. que trocar é nosso fraco e lucrar é nosso forte. Mas fique
esclarecido:
Em linhas gerais, o poema de Drummond concorda com a
descrição feita em Casa-Grande e Senzala (1933), do sociólogo somos levados menos por gosto do sempre negócio q no sentido
Gilberto Freyre, que argumentava que, na vida cotidiana das
fazendas, a violência da relação entre senhores brancos e escravos de nossa remota descendência ainda mal debuxada no longe dos
negros era amenizada por várias formas de cumplicidade e pelo serros.
sexo. Atualmente, essa descrição das relações raciais é criticada
De nossa mente lavamos o ouro como de nossa alma um dia os
como uma tentativa de disfarçar os aspectos mais brutais da
erros
condição do negro no Brasil.
se lavarão na pia da penitência. E filhos netos bisnetos
O poema é escrito em redondilhas maiores (7 sílabas) sem rima.
tataranetos despojados dos bens mais sólidos e rutilantes portanto
os mais completos
31
irão tomando a pouco e pouco desapego de toda fortuna o queremos marcado

e concentrando seu fervor numa riqueza só, abstrata e una. a nos negar; depois

LAVRA DA PACIÊNCIA de sua negação

LAVRINHA DE CUBAS nos buscará. Em tudo

ITABIRUÇU será pelo contrário

seu fado extraordinário.

II Vergonha da família

Mais que todos deserdamos que de nobre se humilha

deste nosso oblíquo modo na sua malincônica

um menino inda não nado tristura meio cômica,

(e melhor não fora nado) dulciamara nux-vomica.

que de nada lhe daremos IV

sua parte de nonada Este hemos por bem

e que nada, porém nada reduzir à simples

o há de ter desenganado. condição ninguém.

E nossa rica fazenda Não lavrará campo.

já presto se desfazendo Tirará sustento

vai-se em sal cristalizando de algum mel nojento.

na porta de sua casa Há de ser violento

ou até na ponta da asa sem ter movimento.

de seu nariz fino e frágil, Sofrerá tormenta

de sua alma fina e frágil, no melhor momento.

de sua certeza frágil Não se sujeitando

frágil frágil frágil frágil a um poder celeste

mas que por frágil é ágil, ei-lo senão quando

e na sua mala-sorte de nudez se veste,

se rirá ele da morte. roga à escuridão

abrir-se em clarão.

III Este será tonto

Este figura em nosso e amará no vinho

pensamento secreto. um novo equilíbrio

Num magoado alvoroço e seu passo tíbio

32
sairá na cola e por sua vez perderá tudo e tudo volverá a nada

de nenhum caminho. e secado o ouro escorrerá ferro, e secos morros de ferro

taparão o vale sinistro onde não mais haverá privilégios,

V e se irão os últimos escravos, e virão os primeiros camaradas;

— Não judie com o menino e a besta Belisa renderá os arrogantes corcéis da monarquia,

compadre. e a vaca Belisa dará leite no curral vazio para o menino doentio,

— Não torça tanto o pepino, e o menino crescerá sombrio, e os antepassados no cemitério

major. se rirão se rirão porque os mortos não choram.

— Assim vai crescer mofino,

sinhô! VII

— Pedimos pelo menino porque pedir é nosso destino. Ó monstros lajos e andridos que me perseguis com vossas
barganhas
Pedimos pelo menino porque vamos acalentá-lo.
sobre meu berço imaturo e de minhas minas me expulsais.
Pedimos pelo menino porque já se ouve planger o sino
Os parentes que eu amo expiraram solteiros.
do tombo que ele levar quando monte a cavalo.
Os parentes que eu tenho não circulam em mim.
— Vai cair do cavalo
Meu sangue é dos que não negociaram, minha alma é dos pretos,
de cabeça no valo.
minha carne dos palhaços, minha fome das nuvens,
Vai ter catapora
e não tenho outro amor a não ser o dos doidos.
amarelão e gálico
Onde estás, capitão, onde estás, João Francisco,
vai errar o caminho
do alto de tua serra eu te sinto sozinho
vai quebrar o pescoço
e sem filhos e netos interrompes a linha
vai deitar-se no espinho
que veio dar a mim neste chão esgotado.
fazer tanta besteira
Salva-me, capitão, de um passado voraz.
e dar tanto desgosto
Livra-me, capitão, da conjura dos mortos.
que nem a vida inteira
Inclui-me entre os que não são, sendo filhos de ti.
dava para contar.
E no fundo da mina, ó capitão, me esconde.
E vai muito chorar.

(A praga que te rogo


VIII
para teu bem será.)
— Ó meu, ó nosso filho de cem anos depois,

que não sabes viver nem conheces os bois


VI
pelos seus nomes tradicionais. .. nem suas cores
Os urubus no telhado:
marcadas em padrões eternos desde o Egito.
E virá a companhia inglesa e por sua vez comprará tudo
Ó filho pobre, e descorçoado, e finito,

33
ó inapto para as cavalhadas e os trabalhos brutais primeira pessoa, se dirige aos ancestrais que assinaram o contrato
e declara que é muito diferente deles: “Meu sangue é dos que não
com a faca, o formão, o couro... Ó tal como quiséramos negociaram, minha alma é dos pretos/ minha carne dos palhaços,
minha fome das nuvens/ e não tenho outro amor a não ser o dos
para tristeza nossa e consumação das eras,
doidos”. Com essas palavras, Drummond reafirma a sua posição de
para o fim de tudo que foi grande! “gauche” (pessoa desajeitada, que não se encaixa nos padrões e
vive deslocado dos outros). Em seguida, implora ao capitão João
Ó desejado, Francisco de Andrade que o exclua da lista de seus descendentes,
para que ele não tenha que sofrer a maldição lançada pelos
ó poeta de uma poesia que se furta e se expande antepassados (parte VII). Por fim, o próprio capitão João Francisco
responde que Drummond, inapto para o trabalho no campo, era o
à maneira de um lado de pez e resíduos letais...
descendente desejado, aquele que faria poemas juntando as
És nosso fim natural e somos teu adubo, memórias e os restos do que passou, como acontece com as
coisas que caem e se acumulam nos lagos de piche (“ó poeta de
tua explicação e tua mais singela virtude. . . uma poesia que se furta e se expande/ à maneira de um lago de
pez e resíduos letais...). Era preciso que Drummond recusasse a
Pois carecia que um de nós nos recusasse linhagem da família para cumprir o desígnio de seus ancestrais.

para melhor servir-nos. Face a face O poema mostra que ser poeta, na visão de Drummond, era uma
maldição imposta pelos mortos. Por essa razão, os seus poemas
te contemplamos, e é teu esse primeiro
carregam consigo os vestígios de tudo o que se foi (compare-se
e úmido beijo em nossa boca de barro e de sarro. com o verso inicial do poema “Tarde de Maio”, em que o poeta
deseja levar consigo a lembrança da tarde da mesma maneira que
Comentário os primitivos carregam as mandíbulas de seus mortos).

Este poema une dois temas frequentes em Drummond. O poema “Os bens e o sangue” utiliza vários tipos de verso (p.ex:
versos livres e longos na parte I e redondilhas maiores na parte II).
O primeiro é a sua relação com a família. O poeta era filho de Um aspecto importante é que os discursos dos personagens
fazendeiros e descendente do capitão João Francisco de Andrade, aparecem como falas introduzidas por travessão, como ocorre nos
que descobriu ouro na região de Itabira no final do século XVIII. A textos para teatro.
família foi rica e poderosa, mas acabou perdendo muito do que
tinha por causa de negócios mal sucedidos. Com o passar dos Obs. Na primeira parte, que contém o contrato, Drummond manteve
anos, a exploração de ouro se esgotou e foi substituída pela as abreviações usadas nos documentos antigos como “q” ao invés
mineração de ferro. A atividade pecuária também declinou. Por fim, de que. No primeiro verso da parte VII, as palavras “lajos” e
o próprio Drummond abriu mão da parte da herança que lhe cabia e “andridos” são corruptelas dos sobrenomes Lajes e Andrade, tal
foi viver no Rio de Janeiro, trabalhando como funcionário público. como apareciam nos documentos manuscritos antigos.

O segundo tema é a necessidade que Drummond tinha de dar uma


aparência mítica aos acontecimentos de sua vida e de sua época.
O que é próprio do mito é que, sem ser literalmente verdadeiro, ele Parte 5 - Os lábios cerrados
é simbolicamente significativo e permite uma compreensão mais
ampla do que um relato exato e pessoal. Em vários momentos de
Claro Enigma, Drummond recorre a relatos míticos: é o caso do Convívio
poema “Tarde de Maio” (que não se refere literalmente a algo que
aconteceu num mês de maio, mas sim ao outono da vida) ou do Cada dia que passa incorporo mais esta verdade, de que eles não
poema “Máquina do Mundo” (em que toda a situação é simbólica). vivem senão em nós

Em “Os bens e o sangue”, Drummond cria um relato mítico para e por isso vivem tão pouco; tão intervalado; tão débil.
justificar porque ele se tornou quem ele era. No poema, os
ancestrais de Drummond se reúnem e assinam um contrato para Fora de nós é que talvez deixaram de viver, para o que se chama
deserdar seus descendentes de todas as propriedades da família, tempo.
especialmente um menino que ainda irá nascer (o poeta), que será
E essa eternidade negativa não nos desola.
a vergonha da família, tonto e atormentado (partes I a IV). Alguns
ancestrais pedem piedade para o menino, mas a maldição é Pouco e mal que eles vivam, dentro de nós, é vida não obstante.
mantida (parte V). Os urubus sobre o telhado anunciam outros
males que virão: a vinda de uma companhia inglesa que comprará E já não enfrentamos a morte, de sempre trazê-la conosco.
tudo, o esgotamento das lavras de ouro, o início da mineração de
ferro e a decadência da criação de gado (parte VI). O poeta, em

34
Mas, como estão longe, ao mesmo tempo que nossos atuais que a morte nos acompanha sempre: lidamos com o legado dos
habitantes que já morreram e convivemos com a morte das pessoas que
conhecemos. É por isso que Drummond escreveu poemas como
e nossos hóspedes e nossos tecidos e a circulação nossa! “Aniversário”, lembrando os cinco anos da morte do amigo Mário de
Andrade.
A mais tênue forma exterior nos atinge.
Por ser escrito em versos livres longos e sem rima, o poema
O próximo existe. O pássaro existe,
“Convívio” tem um tom de discurso. Trata-se de um discurso
E eles também existem, mas que oblíquos! e mesmo sorrindo, que reflexivo que pretende ter uma validade universal e não apenas
disfarçados... pessoal. Por isso, o poeta passa da primeira pessoa do singular
para a primeira pessoa do plural: “Cada dia que passo incorporo
mais esta verdade, de que eles não vivem senão em nós”.

Há que renunciar a toda procura.

Não os encontraríamos, ao encontrá-los. Permanência

Ter e não ter em nós um vaso sagrado, Agora me lembra um, antes me lembrava outro.

um depósito, uma presença contínua,

esta é nossa condição, enquanto, Dia virá em que nenhum será lembrado.

sem condição, transitamos

e julgamos amar Então no mesmo esquecimento se fundirão.

e calamo-nos. Mais uma vez a carne unida, e as bodas

cumprindo-se em si mesma, como ontem e sempre.

Ou talvez existamos somente neles, que são omissos, e nossa


existência,
Pois eterno é o amor que une e separa, e eterno o fim
apenas uma forma impura de silêncio, que preferiram.
(já começara, antes de ser), e somos eternos,
Comentário
frágeis, nebulosos, tartamudos, frustrados: eternos.
O poema afirma que os nossos mortos continuam a viver dentro de
nós, embora não saibamos dizer exatamente como. Essa presença E o esquecimento ainda é memória, e lagoas de sono
tênue mas contínua dos mortos faz parte da condição humana.
selam em seu negrume o que amamos e fomos um dia,
Nesse convívio, eles existem em nós e nós existimos neles.
ou nunca fomos, e contudo arde em nós
Este poema combina três temas importantes de Drummond.
à maneira da chama que dorme nos paus de lenha jogados no
O primeiro é o da família como algo que está incorporado à nossa
galpão.
vida: em nossos traços físicos, em nossos hábitos e em nossa
maneira de pensar. Os nossos ancestrais determinam o que somos Comentário
e o que seremos, conforme Drummond mostrou no poema “Os
bens e o sangue”. Tanto na forma como no conteúdo, o poema “Permanência” é
continuação do poema “Convívio”. Segundo o poema, mesmo
O segundo tema é o do resíduo que fica de tudo o que passou. quando os mortos são esquecidos, eles continuam a existir. “O
Tudo o que já existiu, tudo o que acontece deixa um resto, mesmo esquecimento ainda é memória”. É como se o esquecimento fosse
que seja apenas na memória, mesmo que seja apenas um uma lagoa encantada que preserva no sono os já morreram e tudo
sentimento tênue e difícil de definir. Um dos objetivos de o que já aconteceu. Mas, todas as coisas amadas que acabaram e
Drummond era justamente capturar esse resíduo. todas as pessoas amadas que morreram continuam a arder dentro
de nós.
O terceiro tema é o de que carregamos a morte conosco (como os
primitivos que carregam o maxilar inferior de seus mortos, conforme
diz o poema “Tarde de Maio”). A finitude humana não é apenas o
fato de que cada um de nós morrerá um dia, mas também o fato de Perguntas

35
Numa incerta hora fria por que tanto insistia

perguntei ao fantasma nos mares mais exíguos

que força nos prendia, em distribuir navios

ele a mim, que presumo desse calado irreal,

estar livre de tudo, sem rota ou pensamento

eu a ele, gasoso, de atingir qualquer porto,

todavia palpável propícios a naufrágio

na sombra que projeta mais que à navegação;

sobre meu ser inteiro: nos frios alcantis

um ao outro, cativos de meu serro natal,

desse mesmo princípio desde muito derruído,

ou desse mesmo enigma em acordar memórias

que distrai ou concentra de vaqueiros e vozes,

e renova e matiza, magras reses, caminhos

prolongando-a no espaço onde a bosta de vaca

uma angústia do tempo. é o único ornamento,

e o coqueiro-de-espinho

Perguntei-lhe em seguida desolado se alteia.

o segredo de nosso

convívio sem contato, Perguntei-lhe por fim

de estarmos ali quedos, a razão sem razão

eu em face do espelho, de me inclinar aflito

e o espelho devolvendo sobre restos de restos,

uma diversa imagem, de onde nenhum alento

mas sempre evocativa vem refrescar a febre

do primeiro retrato desse repensamento:

que compõe de si mesma sobre esse chão de ruínas

a alma predestinada imóveis, militares

a um tipo de aventura na sua rigidez

terrestre, cotidiana. que o orvalho matutino

já não banha ou conforta.

Perguntei-lhe depois

36
No voo que desfere, ela iria contando

silente e melancólico, que vou bem, e amo sempre

rumo da eternidade e amo cada vez mais

ele apenas responde a essa minha maneira

(se acaso é responder torcida e reticente,

a mistérios, somar-lhes e espero uma resposta,

um mistério mais alto): mas que não tarde; e peço

um objeto minúsculo

Amar depois de perder. só para dar prazer

Comentário a quem pode ofertá-lo;

O poeta conversa com o fantasma com o qual convive e lhe faz diria ela do tempo
perguntas. Qual força prendia um ao outro? Qual era a razão desse
convívio? Por que o fantasma insistia em provocar pensamentos que faz do nosso lado
sem rumo ou lembranças do morro de Itabira (destruído pela
as chuvas já secaram,
mineração) e dos vaqueiros e vozes da infância na fazenda? Que
razão levava o poeta a remexer nos restos de tudo e nas ruínas do as crianças estudam,
que se foi? A resposta do fantasma foi enigmática: “Amar, depois
de perder”. uma última invenção

Embora a identidade do fantasma não fique clara, percebe-se (inda não é perfeita)
claramente que o poema retoma a ideia de que há um convívio sem
contato físico entre os mortos e os vivos, e de que o poeta não faz ler nos corações,
pode deixar de recordar a infância e de investigar os restos do que
mas todos esperamos
se passou. A resposta enigmática dada pelo fantasma está
relacionada ao que diz o poema “Memória”: “Mas as coisas findas/ rever-nos bem depressa.
muito mais que lindas/ essas ficarão”. Isto é, tudo o que se perdeu
e acabou, continuará a ser objeto de amor. É isto que significa o Muito depressa, não.
verso “Amar, depois de perder”.
Vai-se tornando tempo
O poema é escrito em versos hexassílabos (6 sílabas). As rimas
aparecem ocasionalmente. O verso final, que tem 7 sílabas, é estranhamente longo
destacado por espaçamento gráfico e itálico. Este verso funciona
à medida que encurta.
como uma máxima ou aforismo que condensa a ideia central do
poema. O que ontem disparava,

desbordado alazão,
Carta hoje se paralisa
Bem quisera escrevê-la em esfinge de mármore,
com palavras sabidas, e até o sono, o sono
as mesmas, triviais, que era grato e era absurdo
embora estremecessem é um dormir acordado
a um toque de paixão. numa planície grave.
Perfurando os obscuros Rápido é o sonho, apenas,
canais de argila e sombra,
37
que se vai, de mandar

notícias amorosas Oh meu pai arquiteto e fazendeiro!

quando não há amor Faz casas de silêncio, e suas roças

a dar ou receber; de cinza estão maduras, orvalhadas

quando só há lembrança

ainda menos, pó, por um rio que corre o tempo inteiro,

menos ainda, nada, e corre além do tempo, enquanto as nossas

nada de nada em tudo, murcham num sopro fontes represadas.

em mim mais do que em tudo, Comentário

e não vale acordar Trata-se de mais um poema sobre a permanência dos mortos na
memória. Dessa vez, o poeta sonha com o pai que tinha morrido
quem acaso repousa muitos anos antes. Nos quartetos, o poeta descreve como a figura
do pai lhe aparece no sonho. Nos tercetos, faz-se uma oposição
na colina sem árvores.
entre a eternidade em que vive o pai (“um rio que corre o tempo
Contudo, esta é uma carta. inteiro/e corre além do tempo”) e a vida efêmera e sujeita ao
declínio em que vive o filho (“murcham num sopro fontes
Comentário represadas”).

O poeta imagina como deveria ser a carta que ele escreveria a uma O poema é um soneto italiano tradicional.
pessoa querida já falecida (possivelmente a mãe do poeta, que
tinha morrido poucos meses antes), mandando notícias “do nosso
lado” (isto é, do que acontecia no mundo dos vivos). O poeta
A Mesa
pensa que a carta deveria começar com palavras triviais, mas
carinhosas. No entanto, os versos vão se tornando mais densos e E não gostavas de festa. . .
sérios a partir da segunda metade do poema. Do ponto de vista
estilístico e temático, o poema se aproxima do pessimismo dos Ó velho, que festa grande
poemas iniciais do livro, como “Dissolução” ou “Confissão”.
hoje te faria a gente.
“Carta” é escrito em versos hexassílabos (6 sílabas) sem rima. O
poema combina aspectos de metalinguagem (ao comentar como E teus filhos que não bebem
deveria ser a carta) e de reflexão existencial.
e o que gosta de beber,

em torno da mesa larga,


Encontro
largavam as tristes dietas,
Meu pai perdi no tempo e ganho em sonho.
esqueciam seus tricotes,
Se a noite me atribui poder de fuga,
e tudo era farra honesta
sinto logo meu pai e nele ponho
acabando em confidência.
o olhar, lendo-lhe a face, ruga a ruga.
Ai, velho, ouvirias coisas

de arrepiar teus noventa.


Está morto, que importa? Inda madruga
E daí, não te assustávamos,
e seu rosto, nem triste nem risonho,
porque, com riso na boca,
é o rosto, antigo, o mesmo. E não enxuga
e a nédia galinha, o vinho
suor algum, na calma de meu sonho.
português de boa pinta,
38
e mais o que alguém faria à incontinência dos netos,

de mil coisas naturais sabendo que toda carne

e fartamente poria aspira à degradação,

em mil terrinas da China, mas numa via de fogo

já logo te insinuávamos e sob um arco sexual,

que era tudo brincadeira. tossias. Hem, nem, meninos,

Pois sim. Teu olho cansado, não sejam bobos. Meninos?

mas afeito a ler no campo Uns marmanjos cinqüentões,

uma lonjura de léguas, calvos, vívidos, usados,

e na lonjura uma rês mas resguardando no peito

perdida no azul azul, essa alvura de garoto,

entrava-nos alma adentro essa fuga para o mato,

e via essa lama podre essa gula defendida

e com pesar nos fitava e o desejo muito simples

e com ira amaldiçoava de pedir à mãe que cosa,

e com doçura perdoava mais do que nossa camisa,

(perdoar é rito de pais, nossa alma frouxa, rasgada. . .

quando não seja de amantes). Ai, grande jantar mineiro

E, pois, tudo nos perdoando, que seria esse. . . Comíamos,

por dentro te regalavas e comer abria fome,

de ter filhos assim. . . Puxa, e comida era pretexto.

grandessíssimos safados, E nem mesmo precisávamos

me saíram bem melhor ter apetite, que as coisas

que as encomendas. De resto, deixavam-se espostejar,

filho de peixe. . . Calavas, e amanhã é que eram elas.

com agudo sobrecenho Nunca desdenhe o tutu.

interrogavas em ti Vá lá mais um torresminho.

uma lembrança saudosa E quanto ao peru? Farofa

e não de todo remota há de ser acompanhada

e rindo por dentro e vendo de uma boa cachacínha,

que lançaras uma ponte não desfazendo em cerveja,

dos passos loucos do avô essa grande camarada.

39
ind’outro dia. . . Comer amava casos bandalhos;

guarda tamanha importância depois o tempo fez dele

que só o prato revele o que faz de qualquer um;

o melhor, o mais humano e à medida que envelhece,

dos seres em sua treva? vai estranhamente sendo

Beber é pois tão sagrado retraio teu sem ser tu,

que só bebido meu mano de sorte que se o diviso

me desata seu queixume, de repente, sem anúncio,

abrindo-me sua palma? és tu que me reapareces

Sorver, papar: que comida noutro velho de sessenta.

mais cheirosa, mais profunda Este outro aqui é doutor,

no seu tronco luso-árabe, o bacharel da família,

que a todos nos une em um mas suas letras mais doutas

que a todos nos une em um são as escritas no sangue,

tal centímano glutão, ou sobre a casca das árvores.

parlapatão e bonzão! Sabe o nome da florzinha

E nem falta a irmã que foi e não esquece o da fruta

mais cedo que os outros e era mais rara que se prepara

rosa de nome e nascera num casamento genético,

em dia tal como o de hoje Mora nele a nostalgia,

para enfeitar tua data. citadino, do ar agreste,

Seu nome sabe a camélia, e, camponês, do letrado.

e sendo uma rosa-amélia, Então vira patriarca.

flor muito mais delicada Mais adiante vês aquele

que qualquer das rosas-rosa, que de ti herdou a, dura

viveu bem mais do que o nome, vontade, o duro estoicismo.

porém no íntimo claustrava Mas, não quis te repetir.

a rosa esparsa. A teu lado, Achou não valer a pena

vê: recobrou-se-lhe o viço. reproduzir sobre a terra

Aqui sentou-se o mais velho. o que a terra engolirá.

Tipo do manso, do sonso, Amou. E ama. E amará.

não servia para padre, Só não quer que seu amor

40
seja uma prisão de dois, Restam sempre muitas vidas

um contrato, entre bocejos para serem consumidas

e quatro pés de chinelo. na razão dos desencontros

Feroz a um breve contato, de nosso sangue nos corpos

à segunda vista, seco, por onde vai dividido.

à terceira vista, lhano, Ficam sempre muitas mortes

dir-se-ia que ele tem medo para serem longamente

de ser, fatalmente, humano. reencarnadas noutro morto.

Dir-se-ia que ele tem raiva, Mas estamos todos vivos.

mas que mel transcende a raiva, E mais que vivos, alegres.

e que sábios, ardilosos Estamos todos como éramos

recursos de se enganar antes de ser, e ninguém

quanto a si mesmo: exercita dirá que ficou faltando

uma força que não sabe algum dos teus. Por exemplo:

chamar-se, apenas, bondade. ali ao canto da mesa,

Esta calou-se. Não quis não por humilde, talvez

manter com palavras novas por ser o rei dos vaidosos

o colóquio subterrâneo e se pelar por incómodas

que num sussurro percorre posições de tipo gaúche,

a gente mais desatada. ali me vês tu. Que tal?

Calou-se, não te aborreças, Fica tranquilo: trabalho.

Se tanto assim a querias, Afinal, a boa. vida

algo nela ainda te quer, ficou apenas: a vida

à maneira atravessada (e nem era assim tão boa

que é própria de nosso jeito. e nem se fez muito má).

(Não ser feliz tudo explica.) Pois ele sou eu. Repara:

Bem sei como são penosos tenho todos os defeitos

esses lances de família, que não farejei em ti

e discutir neste instante e nem os tenho que tinhas,

seria matar a festa, quanto mais as qualidades.

matando-te — não se morre Não importa: sou teu filho

uma só vez, nem de vez. com ser uma negativa

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maneira de te afirmar. e em meio a vagos cristais,

Lá que brigamos, brigamos, o cristal deles retine,

opa! que não foi brinquedo, reverbera a própria sombra.

mas os caminhos do amor, São anjos que se dignaram

só amor sabe trilhá-los. participar do banquete,

Tão ralo prazer te dei, alisar o tamborete,

nenhum, talvez. . . ou senão, viver vida de menino.

esperança de prazer, São anjos. E mal sabias

é, pode ser que te desse que um mortal devolve a Deus

a neutra satisfação algo de sua divina

de alguém sentir que seu filho, substância aérea e sensível,

de tão inútil, seria se tem um filho e se o perde.

sequer um sujeito ruim. Conta: quatorze na mesa.

Não sou um sujeito ruim. Ou trinta? serão cinquenta,

Descansa, se o suspeitavas, que sei? se chegam mais outros,

mas não sou lá essas coisas. uma carne cada dia

Alguns afetos recortam multiplicada, cruzada

o meu coração chateado. a outras carnes de amor.

Se me chateio? demais. São cinquenta pecadores,

Esse é meu mal. Não herdei se pecado é ter nascido

de ti essa balda. Bem, e provar, entre pecados,

não me olhes tão longo tempo, os que nos foram legados.

que há muitos a ver ainda. A procissão de teus netos,

Há oito. E todos minúsculos, alongando-se em bisnetos,

todos frustrados. Que flora veio pedir tua bênção

mais triste fomos achar e comer de teu jantar.

para ornamento de mesa! Repara um pouquinho nesta,

Qual nada. De tão remotos, no queixo, no olhar, no gesto,

de tão puros e esquecidos e na consciência profunda

no chão que suga e transforma, e na graça menineira,

são anjos. Que luminosos! e dize, depois de tudo,

que raios de amor radiam, se não é, entre meus erros,

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uma imprevista verdade. que traçou este arabesco

Esta é minha explicação, de flor em torno ao pudim,

meu verso melhor ou único, como se traça uma auréola?

meu tudo enchendo meu nada. quem tem auréola? quem não

Agora a mesa repleta a tem, pois que, sendo de ouro,

está maior do que a casa. cuida logo em reparti-la,

Falamos de boca cheia, e se pensa melhor faz?

xingamo-nos mutuamente, quem senta do lado esquerdo,

rimos, ai, de arrebentar, assim curvada? que branca,

esquecemos o respeito mas que branca mais que branca

terrível, inibidor, tarja de cabelos brancos

e toda a alegria nossa, retira a cor das laranjas,

ressecada em tantos negros anula o pó do café,

bródios comemorativos cassa o brilho aos serafins?

(não convém lembrar agora), quem é toda luz e é branca?

os gestos acumulados Decerto não pressentias

de efusão fraterna, atados como o branco pode ser

(não convém lembrar agora), uma tinta mais diversa

as fína-e-meigas palavras da mesma brancura. . . Alvura

que ditas naquele tempo , elaborada na ausência

teriam mudado a vida de ti, mas ficou perfeita.

(não convém mudar agora), concreta, fria, lunar.

vem tudo à mesa e se espalha Como pode nossa festa

qual inédita vitualha. ser de um só que não de dois?

Oh que ceia mais celeste Os dois ora estais reunidos

e que gozo mais do chão! numa aliança bem maior

Quem preparou? que inconteste que o simples elo da terra.

vocação de sacrifício Estais juntos nesta mesa

pôs a mesa, teve os filhos? de madeira mais de lei

quem se apagou? quem pagou que qualquer lei da república.

a pena deste trabalho? Estais acima de nós,

Quem foi a mão invisível acima deste jantar

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para o qual vos convocamos e de meu próprio ser desenganado,

por muito — enfim — vos querermos

e, amando, nos iludirmos a máquina do mundo se entreabriu

junto da mesa para quem de a romper já se esquivava

vazia. e só de o ter pensado se carpia.

Comentário

Drummond sempre teve uma relação ambivalente (isto é, de Abriu-se majestosa e circunspecta,
carinho e ressentimento) com a sua família, especialmente com o
pai, com quem teve muitas brigas. No poema “A Mesa”, o poeta sem emitir um som que fosse impuro
imagina uma reunião de toda a família (inclusive do pai e da mãe já
nem um clarão maior que o tolerável
falecidos), para comemorar o aniversário de 90 anos do pai. Essa
reunião, que nunca aconteceu, seria uma ocasião de festa, de
reconhecimento dos laços de família e de superação dos antigos
ressentimentos. Drummond imagina a reação do pai ao ver os filhos pelas pupilas gastas na inspeção
reunidos, descreve a personalidade de alguns deles, inclusive a
sua. Fala da sua filha e da sua mãe. No final, homenageia o pai e a contínua e dolorosa do deserto,
mãe falecidos.
e pela mente exausta de mentar
O poema é uma longa fala do poeta dirigida carinhosamente a seu
pai (em segunda pessoa do singular) e, no final, ao pai e à mãe
(em segunda pessoa do plural). Apesar da sua extensão, o poema toda uma realidade que transcende
é bastante fluido e de fácil compreensão por várias razões: (a) pelo
uso habilidoso da redondilha maior sem rima e sem divisão de a própria imagem sua debuxada
estrofes, que se aproxima bastante do ritmo da fala numa conversa;
(b) pelo vocabulário frequentemente coloquial; (c) pela combinação no rosto do mistério, nos abismos.
do tom descontraído e familiar com o tom emocionado e mais
solene. A mesa referida no título é uma metonímia da família que
se reúne em volta dela. Abriu-se em calma pura, e convidando

quantos sentidos e intuições restavam


Parte 6 - A Máquina do Mundo a quem de os ter usado os já perdera

A máquina do mundo e nem desejaria recobrá-los,


E como eu palmilhasse vagamente se em vão e para sempre repetimos
uma estrada de Minas, pedregosa, os mesmos sem roteiro tristes périplos,
e no fecho da tarde um sino rouco

convidando-os a todos, em coorte,


se misturasse ao som de meus sapatos a se aplicarem sobre o pasto inédito
que era pausado e seco; e aves pairassem da natureza mítica das coisas,
no céu de chumbo, e suas formas pretas

assim me disse, embora voz alguma


lentamente se fossem diluindo ou sopro ou eco ou simples percussão
na escuridão maior, vinda dos montes
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atestasse que alguém, sobre a montanha, e chega às plantas para se embeber

a outro alguém, noturno e miserável, no sono rancoroso dos minérios,

em colóquio se estava dirigindo: dá volta ao mundo e torna a se engolfar,

"O que procuraste em ti ou fora de na estranha ordem geométrica de tudo,

teu ser restrito e nunca se mostrou, e o absurdo original e seus enigmas,

mesmo afetando dar-se ou se rendendo, suas verdades altas mais que todos

e a cada instante mais se retraindo, monumentos erguidos à verdade:

olha, repara, ausculta: essa riqueza e a memória dos deuses, e o solene

sobrante a toda pérola, essa ciência sentimento de morte, que floresce

sublime e formidável, mas hermética, no caule da existência mais gloriosa,

essa total explicação da vida, tudo se apresentou nesse relance

esse nexo primeiro e singular, e me chamou para seu reino augusto,

que nem concebes mais, pois tão esquivo afinal submetido à vista humana.

se revelou ante a pesquisa ardente Mas, como eu relutasse em responder

em que te consumiste... vê, contempla, a tal apelo assim maravilhoso,

abre teu peito para agasalhá-lo.” pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

As mais soberbas pontes e edifícios, a esperança mais mínima — esse anelo

o que nas oficinas se elabora, de ver desvanecida a treva espessa

o que pensado foi e logo atinge que entre os raios do sol inda se filtra;

distância superior ao pensamento, como defuntas crenças convocadas

os recursos da terra dominados, presto e fremente não se produzissem

e as paixões e os impulsos e os tormentos a de novo tingir a neutra face

e tudo que define o ser terrestre que vou pelos caminhos demonstrando,

ou se prolonga até nos animais e como se outro ser, não mais aquele

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habitante de mim há tantos anos, feita pela máquina do mundo era “despicienda” (isto é, digna de
desprezo). Por isso, baixa os olhos, indiferente e cansado
(“incurioso, lasso”), desdenhando aquilo que lhe era oferecido. A
máquina do mundo se recolhe. As trevas já tinham baixado sobre a
passasse a comandar minha vontade
estrada de Minas e o eu-lírico volta a caminhar, pensativo.
que, já de si volúvel, se cerrava
Este poema, um dos mais importantes que Drummond escreveu,
semelhante a essas flores reticentes dialoga com duas obras fundamentais da literatura: a Divina
Comédia, de Dante Alighieri (1321) e Os Lusíadas, de Camões
(1572), além de ser uma reelaboração do poema “No meio do
caminho” (1928), do próprio Drummond.
em si mesmas abertas e fechadas;
Da Divina Comédia, Drummond se aproveitou do tema da jornada
como se um dom tardio já não fora ao anoitecer (o poema de Dante começa com o poeta perdendo-se
ao escurecer no meio do caminho da sua vida). Também adotou a
apetecível, antes despiciendo,
forma de tercetos em versos decassílabos. No entanto,
diferentemente do poema de Dante, que é rimado, Drummond
adotou os versos brancos.
baixei os olhos, incurioso, lasso,
De Os Lusíadas, Drummond usou as inversões sintáticas típicas de
desdenhando colher a coisa oferta Camões (“a quem de os ter usado os já perdera”; “para sempre
repetimos/ os mesmos sem roteiro tristes périplos”), o predomínio
que se abria gratuita a meu engenho. do decassílabo heróico (com acento na 6ª e 10ª sílabas) e o que é
mais importante: a referência ao episódio em que Vasco da Gama,
no alto de uma montanha, vê a máquina do mundo, isto é, o
A treva mais estrita já pousara mecanismo divino que faz o Universo funcionar: “Vês aqui a grande
máquina do mundo/ Etérea e elemental, que fabricada/Assim foi do
sobre a estrada de Minas, pedregosa, Saber, alto e profundo.” (Os Lusíadas, canto X). A diferença é que,
enquanto a máquina de Camões esclarece o que é o mundo e o
e a máquina do mundo, repelida, universo do ponto de vista geográfico e astronômico, a máquina de
Drummond promete desvendar o enigma da vida humana. O que
ela oferece não é um conhecimento científico, mas sim metafísico e
se foi miudamente recompondo, existencial (isto é, um conhecimento a respeito da essência das
coisas e da existência humana). Outra diferença relevante é que
enquanto eu, avaliando o que perdera, Vasco da Gama contempla a máquina do mundo com admiração e
espanto (“Vendo o Gama este globo, comovido/ de espanto e de
seguia vagaroso, de mãos pensas. desejo ali ficou”), ao passo que o eu-lírico de Drummond se mostra
indiferente e fatigado, já que a revelação chegou tarde demais,
quando os seus anseios e curiosidades já não mais existiam. Por
último, enquanto a revelação da máquina do mundo a Vasco da
Comentário
Gama acontece no alto de uma montanha (o que marca a
O eu-lírico caminha numa estrada pedregosa de Minas Gerais ao relevância desse momento), a máquina do mundo de Drummond se
anoitecer. Tudo à sua volta vai se confundindo com a escuridão. oferece ao nível do solo (o que marca a sua irrelevância).
Repentinamente a máquina do mundo se abre e lhe oferece a
O poema de Drummond também é uma reelaboração de “No meio
oportunidade de compreender o mistério da existência, que ele
do caminho” escrito vinte anos antes (“Nunca me esquecerei desse
tantas vezes quisera resolver. Sem emitir nenhum som, a máquina
acontecimento/ na vida de minhas retinas tão fatigadas./Nunca me
do mundo anuncia uma “ciência sublime e formidável” que contém
esquecerei que no meio do caminho/ tinha uma pedra/ tinha uma
a “total explicação da vida”. Numa epifania (uma visão reveladora
pedra no meio do caminho/no meio do caminho tinha uma pedra.”).
repentina), o eu-lírico viu “tudo o que define o ser terrestre”, a
Este poema se tornou um dos mais conhecidos de Drummond pela
variedade de tudo o que existe, os enigmas da vida e o poder da
sua aparente trivialidade (uma pedra no caminho é algo banal e
morte. “Tudo se apresentou nesse relance”. No entanto, o eu-lírico
aparentemente desprezível), pela importância que dá a esse
não respondeu ao apelo maravilhoso, pois já tinha perdido o anseio
encontro entre o eu-lírico e a pedra (“nunca me esquecerei desse
de compreender o mundo e a existência. As suas “defuntas
acontecimento”), pela inexplicável atitude de cansaço do eu-lirico
crenças” (isto é, as ideias e questões que tinha antes) não foram
(“minhas retinas tão fatigadas”), pela redundância (a repetição
capazes de “tingir a face neutra” (isto é, despertar uma reação do
enfática da oração “no meio do caminho tinha uma pedra”) e, enfim,
eu-lírico, que agora era indiferente a tudo isso). Destituído da
pelo coloquialismo do uso do verbo “ter” no sentido de “haver”. Em
curiosidade que tinha anteriormente, o eu-lírico acha que a oferta
“A Máquina do Mundo”, Drummond retoma a situação do eu-lírico
46
que caminha por uma estrada pedregosa, mas dessa vez aquilo em qualquer um mostrando o ser deserto,
que ele encontra é algo realmente extraordinário. No entanto, essa
revelação chegou tarde demais. Agora ele era um “ser
desenganado” e o seu cansaço havia aumentado com o esforço
dor primeira e geral, esparramada,
dos anos (“pelas pupilas gastas na inspeção/ contínua e dolorosa
do deserto/ e pela mente cansada de mentar”) e nada mais lhe nutrindo-se do sal do próprio nada,
causava espanto nem despertava a sua curiosidade. Há ainda um
outro contraste importante entre os dois poemas de Drummond.
“No meio do caminho” usa uma linguagem simples e coloquial e o
verso livre para descrever uma situação trivial, enquanto que “A convertendo-se, turva e minuciosa,
Máquina do Mundo” mobiliza uma linguagem erudita solene e o
em mil pequena dor, qual mais raivosa,
verso decassílabo (a forma mais elevada de metrificação em língua
portuguesa) para narrar o encontro extraordinário – mas sem efeito
- entre o eu-lírico e a máquina do mundo.
prelibando o momento bom de doer,
Por último, não podemos esquecer que Drummond era um grande
admirador de Machado de Assis (que, por sua vez, era leitor a invocá-lo, se custa a aparecer,
assíduo de Dante Alighieri e de Camões). Por isso, é possível dizer
que a máquina do mundo oferecia ao eu-lírico de Drummond a
possibilidade de compreender o sentido da vida, da mesma
dor de tudo e de todos, dor sem nome,
maneira que a Natureza (ou Pandora) o faz para Brás Cubas no
momento do delírio. O niilismo e o cansaço do eu-lírico de ativa mesmo se a memória some,
Drummond são equivalentes ao tédio e ao pessimismo com que
Brás Cubas percebe que as gerações humanas repetiam, uma
após a outra, a mesma vida de sofrimentos sem sentido (“Meu
olhar, enfarado e distraído, viu enfim chegar o século presente, e dor do rei e da roca, dor da cousa
atrás dele os futuros. Aquele vinha ágil, destro, vibrante, cheio de
indistinta e universa, onde repousa
si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miserável
como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros,
com a mesma rapidez e igual monotonia”. Memórias Póstumas de
Brás Cubas, O Delírio). tão habitual e rica de pungência

como um fruto maduro, uma vivência,

Relógio do Rosário

Era tão claro o dia, mas a treva, dor dos bichos, oclusa nos focinhos,

do som baixando, em seu baixar me leva nas caudas titilantes, nos arminhos,

pelo âmago de tudo, e no mais fundo dor do espaço e do caos e das esferas,

decifro o choro pânico do mundo, do tempo que há de vir, das velhas eras!

que se entrelaça no meu próprio choro, Não é pois todo amor alvo divino,

e compomos os dois um vasto coro. e mais aguda seta que o destino?

Oh dor individual, afrodisíaco Não é motor de tudo e nossa única

selo gravado em plano dionisíaco, fonte de luz, na luz de sua túnica?

a desdobrar-se, tal um fogo incerto,


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O amor elide a face... Ele murmura pesquisa, uma busca em que tentamos provar a nós mesmos que a
vida sempre dói (“vivendo, estamos para doer, estamos doendo”).
algo que foge, e é brisa e fala impura. Enquanto faz essas reflexões, o eu-lírico percebe que o sino
silenciou na Praça do Rosário iluminada pelo sol e vê que os
pombos voam, riscando o céu azul. O poema começa com um
O amor não nos explica. E nada basta, movimento de mergulho e introspecção nas trevas e termina com
um movimento de saída e elevação do olhar para a luz. As
nada é de natureza assim tão casta reflexões duram o tempo do tocar dos sinos.

Drummond se aproxima do tema do desconcerto do mundo,


frequente na lírica de Camões. Todavia, enquanto Camões faz uma
que não macule ou perca sua essência oposição entre a realidade terrena imperfeita (o mundo triste e
sofrido em que vivemos) e a realidade celestial perfeita (a felicidade
ao contato furioso da existência.
eterna no Céu), para Drummond não existe nenhuma realidade
além do sofrimento do mundo. O som do sino da igreja não traz
nenhuma esperança e não desperta nenhum desejo de
Nem existir é mais que um exercício transcendência. O som dos sinos apenas marca o tempo que passa
(é o relógio do Rosário), por isso, o poema se aproxima também do
de pesquisar de vida um vago indício, tema do “desengano”, presente nos autores do Barroco: trata-se da
ideia de que tudo está destinado a decair e morrer e de que,
portanto, não vale a pena apegar-se às vaidades e belezas da vida.
a provar a nós mesmos que, vivendo, As reflexões do eu-lírico também são inspiradas claramente em
Schopenhauer, em especial na ideia niilista de que a vida é
estamos para doer, estamos doendo. sofrimento. Ao unir o tema do desconcerto do mundo, do
desengano da vida e o pessimismo de Schopenhauer, o poema de
Drummond se assemelha a muitas reflexões encontradas nas obras
de Machado de Assis.
Mas, na dourada praça do Rosário,
O poema é composto de dísticos (estrofes de dois versos). Os
foi-se, no som, a sombra. O columbário
versos são decassílabos e cada par de versos rima entre si. Do
ponto de vista estilístico, destacam-se a antítese no primeiro verso
(claro o dia/ treva); a associação entre o som do sino e a sombra na
já cinza se concentra, pó de tumbas, primeira e na penúltima estrofe (a treva, do som baixando; foi-se no
som, a sombra); a aproximação fonética por aliteração entre “doer”,
já se permite azul, risco de pombas. “doendo” e “dourada” nas estrofes finais, que produz uma antítese
entre a dor interior e a luz da praça; o jogo com os dois sentidos da
palavra “columbário” (que designa o nicho onde se guardam ossos
e também o viveiro de pombas), o que permite uma antítese entre a
Comentário
morte (representada pelo pó cinzento das tumbas) e a vida
Num dia de sol, ao ouvir o sino que marca as horas da Matriz do (representada pelas pombas que riscam o céu azul). O poema
Rosário, o eu-lírico sente que desce até o fundo da dor de tudo o termina, assim, num impasse entre a vida e a morte.
que existe. O choro do eu-lírico se funde com o “choro pânico” do
mundo, isto é, o choro que envolve todas as coisas (da palavra
grega “pan”, que significa “tudo”). No plano dionisíaco (isto é,
caótico e desordenado) em que vivemos, cada dor individual é um
estimulante (afrodisíaco) que a ajuda a espalhar-se como um fogo,
alimentando-se do próprio nada, da falta de saída, da falta de
esperança. A dor está presente em tudo: é uma dor que vai do rei
até a roca (as pedras e penhascos), é a dor que atinge as coisas
insignificantes e anônimas (“a cousa indistinta e universa”), é a dor
que está presente nos animais e no próprio espaço. Mesmo o amor,
que move tudo e é nossa única fonte de luz, não é capaz de vencer
a dor. Por isso, ele se limita a esconder o rosto (“elide a face”)
enquanto murmura algo que mal se escuta. O amor não tem
capacidade de explicar nada. Ele não pode vencer a dor e acaba
sendo contaminado por ela. O amor perde a sua essência no
“contato furioso da existência”. A própria existência é apenas uma

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