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Vazio de quanto amávamos, Nas duas estrofes iniciais, o eu-lírico diz que está resignado diante
do fato de que anoitece e aceita, de braços cruzados, que uma
mais vasto é o céu. Povoações ordem diferente se instale em sua vida. Ao contrário de Camões,
que acreditava num Céu onde as almas seriam eternamente felizes,
surgem do vácuo.
Drummond considera que o céu é vasto e vazio, pois está
Habito alguma? destituído de tudo o que amou. O eu-lírico se questiona se nesse
vácuo há algum lugar que ele possa habitar.
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o poeta preferia calar-se (isto é, fechar-se em si mesmo numa O poema é um soneto de forma italiana (dois quartetos e dois
linguagem hermética). Ele se considera um corpo que já não tem tercetos, com versos decassílabos rimados), forma que era
alma e, portanto, não é mais agitado pelas preocupações e pelas ridicularizada e desprezada no começo do Modernismo, mas que
emoções: “E sem alma, corpo, és suave”. Drummond e outros poetas importantes como Murilo Mendes, Jorge
de Lima e Vinícius de Moraes revalorizaram sobretudo a partir de
1945.
Remissão
se esse travo de angústia nos cantares, a madureza vê, posto que a venda
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Portanto, “ingaia” significaria infeliz e envelhecida. O título “A Ingaia De maneira semelhante ao personagem Brás Cubas no capítulo
Ciência” remete, por oposição, à expressão “Gaia Ciência”, que era final de Memórias Póstumas, Drummond faz uma avaliação
o nome que os trovadores medievais davam à arte de amar e de negativa do legado de sua vida. Ele acredita que tudo o que fez
fazer cantigas, expressão que foi retomado por Nietzsche como será esquecido porque a sua época já não valoriza a poesia
título de uma de suas obras mais importantes. (“esses monstros atuais, não os cativa Orfeu”) e que as pessoas só
se recordarão do seu poema mais famoso “No meio do caminho”,
O poema tem a forma de soneto italiano tradicional. escrito quando ele era ainda jovem.
Legado
Na noite do sem fim, breve o tempo esqueceu não catei o verme nem curei a sarna.
Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti. Dei sem dar e beijei sem beijo.
Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu, (Cego é talvez quem esconde os olhos
uma voz matinal palpitando na bruma Do que restou, como compor um homem
e que arranque de alguém seu mais secreto espinho. e tudo o que ele implica de suave,
De tudo quanto foi meu passo caprichoso de riso, entrega, amor e piedade?
na vida, restará, pois o resto se esfuma,
uma pedra que havia em meio do caminho. Não amei bastante sequer a mim mesmo,
e que conteúdo?
Dão-nos um nome?
na lixa do caminho
Que possuímos?
(Nunca se finda
Comentário
As três primeiras estrofes formulam questões que poderiam ser Teu voo limitado,
enunciadas por qualquer ser vivo e poderiam ser ditas até mesmo
pelas palavras que compõem a poesia (“Que metro serve/ para teu rastro melancólico,
medir-nos?/ Que forma é nossa/ e que conteúdo?”). Essas
tua pobre verônica
perguntas ficam sem resposta. O que temos na última estrofe,
isolado das perguntas por meio de parênteses, é o enunciado de
que o tempo é um mistério inigualável, já que não tem final nem
começo. O tempo é o enigma que está por trás de todas as em mim, que nem pastor,
questões levantadas pelas criaturas. O tempo é infinito e ilimitado,
ao passo que as criaturas têm começo e fim, embora não saibam soube ser, ou serei,
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se incorporam num sopro. de tudo quanto é misto
por onde se atropela Drummond faz uma homenagem ao poeta modernista português
Fernando Pessoa (1888-1935), que se tornou famoso pela
essa ânsia de explicar-me invenção de vários heterônimos (poetas de características
marcantes, mas totalmente fictícios), assim como pelas poesias que
publicou em seu próprio nome.
agora se apascenta
O poema de Drummond é um pastiche, isto é, uma imitação que
à sombra do galpão procura retomar cuidadosamente o estilo de um outro autor. Ao
homenagear Fernando Pessoa, Drummond recriou algumas de
neste sinal: sou anjo. suas características mais evidentes: os paradoxos (“onde nasci,
morri/ onde morri, existo”), o distanciamento intelectual em relação
Comentário às emoções (“desisto/ de tudo quanto é misto/ e que odiei e que
senti”), a problematização da identidade pessoal (“mas não sou eu,
O poeta saúda as criaturas do reino animal, dirigindo-se a elas em
nem isto”) e a concisão densa (orações e versos curtos, mas
segunda pessoa. Os animais representados no Presépio suportam
altamente carregados de sentido).
o peso da terra e do céu em suas formas robustas e rudes. O poeta
se identifica com essas formas e sente que elas se incorporam O poema tem a forma de um enigma que deve ser resolvido pelo
nele: ele assume a limitação do burro e a digestão do boi (que dá leitor. Por isso, quando foi publicado pela primeira vez no
ao feno uma aparência de escultura). Por fim, o poeta consegue suplemento literário do jornal A Manhã em 1949, ele tinha como
superar sua inquietação e consegue ter a serenidade de um anjo. título a seguinte pergunta: “Leitores, de quem é este soneto?”. Era
uma brincadeira em que o leitor seria levado a acreditar que se
O poema é formado por tercetos em versos hexassílabos (seis
tratava de Fernando Pessoa, pelas características indicadas acima,
sílabas).
mas descobriria que o autor era, na verdade, Carlos Drummond de
Andrade. Era como se este “falso Fernando Pessoa” fosse um
heterônimo criado por Drummond.
Sonetilho do falso Fernando Pessoa
Embora seja um pastiche das poesias de Fernando Pessoa, o
Onde nasci, morri. poema trata de problemas importantes para Carlos Drummond de
Andrade. Um deles é o enigma da existência humana: o que
Onde morri, existo. significa ser alguém? Por que existimos e morremos? Qual é o
propósito de tudo isso?; outro é o distanciamento em relação às
E das peles que visto
emoções: Drummond sentia que a maturidade o tornava mais frio;
muitas há que não vi. outro, por fim, é a recusa das identidades tradicionais e
estabelecidas: Drummond sempre quis escapar dos papeis
tradicionais que a sociedade, a época e a família tentaram lhe
impor. Por isso, ele escreve que não é “Fausto nem Mefisto”
Sem mim como sem ti (referência à lenda alemã do sábio Fausto que faz um pacto com o
demônio Mefisto) e que “não sou eu, nem isto”. O poema é,
posso durar. Desisto
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portanto, tão típico de Fernando Pessoa quanto de Drummond. estranhamento consiste em mostrar algo que parece normal e
comum a partir de um ponto de vista inusitado ou surpreendente.
O poema é um sonetilho, isto é, um soneto escrito com versos
curtos ao invés de decassílabos. No caso, os versos são A escolha do boi como o animal que observa os seres humanos
hexassílabos (seis sílabas) rimados. tem muito sentido para Drummond. Em primeiro lugar, o poeta era
filho de fazendeiro criador de gado; em segundo lugar, o boi é um
animal que vive próximo aos seres humanos, mas sem compartilhar
a intimidade doméstica dos cães e gatos, razão pela qual o boi está
Um boi vê os homens
suficientemente distanciado para perceber como os seres humanos
Tão delicados (mais que um arbusto) e correm são estranhos; por último, o boi está associado a tudo o que é
robusto, lento, firme e estável, características que as pessoas
e correm de um para o outro lado, sempre esquecidos costumam associar com limitação e falta de inteligência. Do ponto
de vista humano, o boi seria um animal forte, mas sem esperteza.
de alguma coisa. Certamente, falta-lhes
O poema de Drummond inverte esse ponto de vista. O boi aparece
não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres como um animal sábio, que exerce sua capacidade de observação
e sua inteligência enquanto rumina calmamente. O boi sente, ao
e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,
mesmo tempo, espanto e compaixão ao notar a agitação constante
até sinistros. Coitados, dir-se-ia que não escutam dos seres humanos, a sua fragilidade física, a sua inquietação, a
facilidade com que ficam tristes e melancólicos, o ar sério e sinistro
nem o canto do ar nem os segredos do feno, que têm às vezes, a capacidade de serem cruéis, a dificuldade de
perceberem o que é comum a todos os seres (“parecem não
como também parecem não enxergar o que é visível enxergar o que é visível/ e comum a cada um de nós, no espaço”).
Os seres humanos emitem sons dolorosos de amor, de ciúme, de
e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes
desejo, que expressam a sua carência e sua pobreza interior, “o
e no rasto da tristeza chegam à crueldade. translúcido vazio interior” do ser humano. Para o boi é difícil, depois
de presenciar tudo isso, voltar a ruminar as verdades bovinas. O
Toda a expressão deles mora nos olhos – e perde-se ato de ruminar, no que tem de repetitivo, sereno e pleno, é o oposto
de toda a agitação, inconstância e vazio da vida humana.
a um simples baixar de cílios, a uma sombra.
O poema é feito em versos livres e brancos. A linguagem culta, os
Nada nos pelos, nos extremos de inconcebível fragilidade, numerosos substantivos abstratos e o uso de versos longos que se
aproximam da prosa dão ao poema um aspecto discursivo e
e como neles há pouca montanha,
erudito, que evidencia a sabedoria do boi.
e que secura e que reentrâncias e que
Observação: A maneira como os bois veem os seres humanos é
impossibilidade de se organizarem em formas calmas, também o tema do conto “Conversa de Bois”, do livro Sagarana, de
Guimarães Rosa.
permanentes e necessárias. Têm, talvez,
muito mais que lindas, O poema descreve um pintor que retrata a solidão de um recinto de
mármore, triste e silencioso, onde nem as pombas aparecem, um
essas ficarão. pintor que traça torres desfeitas, o vazio e a falência das
arquiteturas que nunca foram construídas. Trata-se de uma arte
Comentário
vazia, porque não comove. Esse pintor cria imagens irreais
O poema destaca, com notável concisão, a capacidade da memória desesperadoras, que se afastam das coisas terrestres e se dirigem
de eternizar e valorizar o que foi perdido, embora o poeta para o que é escuro e pantanoso (“ó criador de mitos, que sufocam/
reconheça como isso é estranho (“Amar o perdido/deixa desperdiçando a terra, e já recuam/ para a noite, e no charco se
confundido/este coração”). constelam”). Nas veias desse artista, o sangue já não tem força,
suas pupilas estão cheias de tédio e sua “vida é um suspiro sem
Aquilo não deu certo, aquilo que não existe mais, aquilo que não se paixão”.
realizou, aquilo que não podemos mais alcançar tem um forte apelo
para Drummond, mas ele reconhece que se trata de um apelo No poema, o pintor é uma imagem do artista que perdeu a
absurdo e sem sentido (já que aquilo que acabou ou não se vitalidade e que se dedica a mostrar um mundo de formas
realizou não pode ser trazido de volta). Esse é o “sem sentido apelo elaboradas, mas processo de dissolução. Esse pintor corresponde
do Não”. O esquecimento (“olvido”) nada pode fazer para apagar o à imagem que Drummond fazia de si mesmo na época em que
apelo das coisas que se foram. Ou não se realizaram. Enquanto as escreveu os poemas de Claro Enigma. Assim, o poema pode ser
coisas palpáveis e próximas parecem indiferentes e insensíveis, as considerado metalinguístico, uma vez que se refere à própria
coisas findas são mais do que lindas. Elas são eternas. atividade poética do autor.
O poema é composto de quatro estrofes de três versos cada. Os Trata-se de um soneto em versos decassílabos brancos.
versos são redondilhas menores (5 sílabas) rimadas.
Ser
A tela contemplada
O filho que não fiz
Pintor da soledade nos vestíbulos
hoje seria homem.
de mármore e losango, onde as colunas
Ele corre na brisa,
se deploram silentes, sem que as pombas
sem carne, sem nome.
venham trazer um pouco do seu ruflo;
Às vezes o encontro
traça das finas torres consumidas
num encontro de nuvem.
no vazio mais branco e na insolvência
Apóia em meu ombro
de arquiteturas não arquitetadas,
seu ombro nenhum.
porque a plástica é vã, se não comove,
aspira a criar-se. Passarei a vida entoando uma flor, pois não sei cantar
O filho que não fiz e olho para os pés dos homens, e cismo.
Drummond teve uma filha - Maria Julieta, já adulta na época - mas para o homem que não serei.
nunca teve um filho. Esse filho que ele não teve, e que seria adulto
se tivesse nascido, representa os projetos e sonhos que não se Ele talvez compreenda com todo o corpo,
realizaram e que, por isso mesmo, são sempre lembrados e
para além da região minúscula do espírito,
acalentados (conforme o poema “Memória”, o esquecimento não
consegue apagar o apelo das coisas que Não se realizaram ou que a razão de ser, o ímpeto, a confusa
já terminaram). Por isso, esse filho que não nasceu e que só existe
como pensamento ganha a força de algo real, de um ser humano distribuição, em mim, de seda e péssimo.
com quem o poeta pode conversar. O filho que nunca nasceu vai
se fazendo por si mesmo, na mente do poeta.
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Ele é seu próprio irmão, no dia vasto, utópica que tinha sido tão importante na época em que Drummond
escreveu os livros Sentimento do Mundo e A Rosa do Povo.
na vasta integração das formas puras,
A primeira seção do poema parte de uma situação já mostrada nos
sublime arrolamento de contrários poemas anteriores: o poeta sente que seu coração está pulverizado
e cheio de angústia, mas dessa vez ele imagina que, depois de
enlaçados por fim.
tantos pisarem o chão (metáfora da relação dura que os seres
Meu retrato futuro, como te amo, humanos têm com o mundo), é possível que brote ali uma flor
(símbolo de esperança e transformação). Mas o poeta sente que
e mineralmente te pressinto, e sinto não viverá o suficiente para contemplá-la. Tudo o que ele pode
fazer é pensar (“mentar”) a flor e, enquanto ela não vem, fazer
quanto estás longe de nosso vão desenho projetos imaginários de um mundo melhor (“construir de bruma
nosso arco-íris”). Mas tudo isso é fácil demais e não é suficiente.
e de nossas roucas onomatopeias…
Aqueles que dominam o mundo (“nosso donos temporais”) ainda
não perceberam como o futuro está cheio de possibilidades de
III transformação (“ainda não devassaram o claro estoque de
manhãs”). Por essa razão, o poeta não vai desistir de homenagear
Vejo-te nas ervas pisadas. essa esperança (“Passarei a vida entoando uma flor”). O poeta
sabe não será o homem que vai transformar o mundo, mas espera
O jornal, que aí pousa, mente. que esse homem compreenda os sentimentos misturados e
complexos que havia no poeta (“a razão de ser, o ímpeto, a
Descubro-te ausente nas esquinas
confusa/ distribuição, em mim, de seda e péssimo”).
mais povoadas, e vejo-te incorpóreo,
A segunda seção do poema procura imaginar como será esse
contudo nítido, sobre o mar oceano. homem capaz de transformar o mundo. Ele vai nascer e crescer, a
despeito de todas as resistências do mundo e de todas as
Chamar-te visão seria proibições. Ele será diferente dos homens de hoje, por isso, não
poderá ser chamado de filho nem de irmão. Ele vai ser a síntese
malconhecer as visões das formas mais puras e a conciliação de todas as contradições
(“na vasta integração das formas puras/ sublime arrolamento de
de que é cheio o mundo
contrários/ enlaçados por fim”).
e vazio.
Apesar da forte esperança messiânica nesse homem novo (que
tanto pode ser um indivíduo especial quanto uma nova maneira de
Quase posso tocar-te, como às coisas diluculares
ser humano), o poeta sabe que ele está muito longe de chegar (“e
que se moldam em nós, e a guarda não captura, sinto/ quanto estás longe de nosso vão desenho/ e de nossas
roucas onomatopeias...”)
e vingam.
Na terceira seção do poema, o poeta procura à sua volta os sinais
Dissolvendo a cortina de palavras, deste homem que irá transformar o mundo. Ele não está nos jornais
(“o jornal, que aí pousa, mente”), mas é uma presença incorpórea
tua forma abrange a terra e se desata que está em toda parte. Ele não é propriamente uma visão ilusória
como essas de que o mundo está cheio. Ele é quase palpável e faz
à maneira do frio, da chuva, do calor e das lágrimas.
parte das coisas diluculares (isto é, das coisas que vem com o
Triste é não ter um verso maior que os literários, clarear do dia). Por isso, o poeta lamenta não ser capaz de
escrever um verso novo, que esteja à altura desta esperança
é não compor um verso novo, desorbitado, aparentemente absurda (“quimera”), que brota de tudo aquilo que é
humilde e espezinhado neste mundo (“que sobes do chão batido e
para envolver tua efígie lunar, ó quimera da relva pobre”).
que sobes do chão batido e da relva pobre. A presença deste poema no livro Claro Enigma mostra que, apesar
de ter abandonado a poesia engajada e de protesto social,
Comentário
Drummond não aderiu a uma atitude conformista, que ignora as
O poema “Contemplação no banco” não fala da noite nem da injustiças sociais e não acredita na necessidade e na possibilidade
dissolução (temas predominantes em Claro Enigma), mas da de transformação do mundo. Para Drummond, aquilo que ainda
possibilidade de que o futuro e a luz da manhã tragam uma Não se realizou não pode ser ignorado (conforme se diz no poema
transformação do mundo. O poema retoma, assim, a esperança “Memória” e no poema “Ser”, dedicado ao filho que o poeta não
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teve). dessa livre disciplina
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e era toca-lo e colhe-lo, Comentário
mansamente convertendo Na quarta estrofe, o sonho do poeta se realizava pela força sincera
das palavras. Cada verdade dita sem malícia tinha o poder de se
em fonte mesma de luz. abrir como uma flor (símbolo da esperança e da transformação do
mundo).
Obscuridade! Cansaço!
Na quinta estrofe, o sonho tinha a propriedade de existir fora da
Oclusão de formas meigas!
nossa mente e de durar para sempre.
Ó terra sobre diamantes!
Na sexta estrofe, o poeta sonhou que havia um espelho capaz de
Já vos libertais, sementes, refletir o que existe de melhor no mundo, sem o azedume, sem a
frieza, sem o cansaço, sem a obscuridade, sem nada que impeça o
germinando à superfície acesso ao que há de mais delicado (sem a “oclusão das formas
meigas”).
deste solo resgatado!
Na estrofe final, o poeta queria sonhar que tudo não era apenas um
sonho, mas, ao mesmo tempo, ele via todos os sinais de que seu
sonho era irreal: “nas paredes degradadas/na fumaça, na
Sonhava, ai de mim, sonhando
impostura,/no riso mau, na inclemência,/ na fúria contra os
que não sonhara... Mas via tranquilos,/ na estreita clausura física,/ no desamor à verdade,/ na
ausência de todo amor/ eu via, ai de mim, sentia/ que o sonho era
na treva em frente a meu sonho, sonho, e falso.”
nas paredes degradadas, No entanto, é preciso destacar que o fato de que o sonho seja irreal
faz com que ele tenha “o apelo do Não”, isto é, a força das coisas
na fumaça, na impostura, que não se realizaram e, por isso, não podem ser ignoradas ou
esquecidas (como o filho que não nasceu no poema “Ser” ou a flor
no riso mau, na inclemência, do poema “Contemplação no banco”). Isso mostra que havia em
Drummond um conflito não resolvido entre uma visão niilista e
na fúria contra os tranquilos,
desenganada (que prevalece nos poemas) e uma visão utópica e
na estreita clausura física, sonhadora (que persistia, apesar de tudo).
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Cantiga de enganar para um homem se formar.
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Que diz a boca do mundo? Meu bem, assim acordados,
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“Cantiga de Enganar” é irônico e humorístico, pois o poema não é aspirações do Parnasianismo em fazer poesias belas e perfeitas
uma cantiga e nem está enganando ninguém, pois fica claro que com o mesmo cuidado de um ourives:
negar os problemas do mundo é inútil, já que temos que viver no
mundo tal qual ele é. Torce, aprimora, alteia, lima
A frase; e, enfim,
No verso de ouro engasta a rima,
Como um rubim.
Oficina irritada
Quero que a estrofe cristalina,
Eu quero compor um soneto duro
Dobrada ao jeito
como poeta algum ousara escrever. Do ourives, saia da oficina
Sem um defeito.
Eu quero pintar um soneto escuro,
Na sua oficina, Bilac gostaria de ser um ourives que torce e lima as
seco, abafado, difícil de ler. frases; já na sua “oficina irritada”, Drummond gostaria de ser um
pedicuro que faz sofrer o tendão de Vênus, a deusa da beleza.
Todavia, ao contrário da beleza vazia da poesia parnasiana,
Drummond gostaria que seu poema desagradável e difícil de ler
Quero que meu soneto, no futuro,
pudesse capturar, de surpresa, o “claro enigma” (veja a explicação
não desperte em ninguém nenhum prazer. dessa expressão na introdução deste material). Trata-se, portanto,
de usar a agressividade como forma de conhecer e entender o
E que, no seu maligno ar imaturo, mundo e a existência humana.
Opaco
barra-me a vista.
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a vista. e, na sua indiscriminação de crueldade e diamante,
Por ele é que sei do luar. O poeta descreve qual é a sua aspiração no que se refere ao amor.
Ele não quer o amor na forma de adoração: nem a adoração
Não, não me barra maternal (que vive tensa e em pânico), nem a do admirador
fanático (como era a estudiosa alemã Catharina Kippenberg em
A vista. A vista se barra
relação ao poeta Rainer Maria Rilke). Também não quer o amor
a si mesma. sob aqueles disfarces criados pela tradição literária (como a “ninfa
desolada no seu ermo”) nem um amor que valorize mais a vontade
Comentário de amar do que a presença da pessoa amada (“a constante
procura da sede e não da linfa”). O poeta também não quer o amor
Um dos temas de Drummond é que vivemos num mundo opaco, apenas como desejo sexual a ser satisfeito ocasionalmente em
em que não conseguimos decifrar o que está à nossa volta seja lugares clandestinos (“abscôndita, sem nexo, nas hospedarias do
porque há obstáculos (“o edifício barra-me a vista”) seja porque a vento”), tampouco quer o amor como amizade pura entre duas
própria visão humana é limitada demais (“a vista se barra a si almas elevadas e orgulhosas – um amor que só serve para
mesma”). Como já tinha sido dito no poema “Confissão”: “Cego é satisfazer carências melancólicas. Para o poeta, muito melhor é a
talvez quem esconde os olhos/ embaixo do catre”. indiferença com fidelidade, que permite sustentar a vida cotidiana,
que não se preocupa em distinguir o que é ruim e o que é bom na
O poema é formado por cinco estrofes de tamanho irregular, com
vida em comum (“na sua indiscriminação de crueldade e diamante”)
versos livres e brancos.
e que não dá prêmios nem presentes, mas apenas propõe uma
finalidade para a vida em comum (“capaz de sugerir o fim sem a
injustiça dos prêmios”). Trata-se de uma visão resignada do amor,
Aspiração que se dissolve na indiferença e na rotina, afastando-se de
qualquer impulso romântico. Essa visão do amor é coerente com
Já não queria a maternal adoração atitude do poeta no poema “Dissolução”.
que afinal nos exaure, e resplandece em pânico, O poema tem quatro estrofes de quatro versos cada uma. Os
versos são brancos e de medida variável (de 12 a 15 sílabas).
tampouco o sentimento de um achado preciso
amar e malamar,
abscôndita, sem nexo, nas hospedarias do vento,
amar, desamar, amar?
como ainda não quero a amizade geométrica
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
de almas que se elegeram numa seara orgulhosa,
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amar o que o amar traz à praia, uma diferença importante entre o que o poeta gostaria de alcançar
(a “fiel indiferença” de que ele fala no poema “Aspiração”) e aquilo
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha, que realmente acontece (amar e procurar mais amor).
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia? O poema é escrito em versos livres e brancos.
Este o nosso destino: amor sem conta, e, esquecendo a lição que já se esquiva,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas, tornam amor humor, e vago e brando
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa verdades mais secretas e mais nuas.
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
Na primeira estrofe, vemos que o amor, com todos os seus sabem do amor que os punge e que é, pungindo,
percalços (esquecimento, amor infeliz e desamor) é um impulso
inevitável em todos seres humanos, mesmo no momento da morte uma fogueira a arder no dia findo.
(“até de olhos vidrados”). Na segunda estrofe, o poeta declara que
quem ama faz parte do movimento universal de todas as coisas (a Comentário
“rotação universal”) e, por isso, é levado a amar o que vem com o
Neste poema, o eu-lírico busca o amor e deseja se arremessar nele
movimento do mundo (“amar o que o mar traz à praia,/ o que ele
para sentir o frescor da vida no momento em que amanhece.
sepulta, e o que, na brisa marinha,/ é sal, ou precisão de amor, ou
Diferentemente das almas, que vão se distanciando de tudo e que
simples ânsia”). Na terceira estrofe, vemos que é preciso amar
veem no amor apenas um sentimento suave e engraçado (“tornam
(com adoração ou entrega total de si mesmo) tudo o que é áspero,
o amor humor, e vago e brando/ o que é de natureza corrosiva”), o
duro e inóspito. Como afirma o poeta na quarta estrofe, o destino
eu-lírico sabe que o amor é forte e corrosivo, ele sabe que o amor é
do ser humano é amar até aquilo que é inútil ou faz mal e, ainda
capaz de imprimir a sua marca até mesmo na água e nas pedras e
assim, procurar mais amor. Na estrofe final, o poeta radicaliza a sua
que os elementos da natureza, assim encantados e dominados,
visão e conclui que é preciso amar até a falta de amor, amar tudo
nem sabem que é o amor que fez isso com eles.
que não se realizou (“a água implícita, e o beijo tácito”) e amar a
sede infinita de amar. Drummond era leitor frequente de Camões e, neste soneto,
aproxima-se de vários aspectos do poeta português: a atitude de
Observa-se que o poeta não renuncia à visão desiludida que
questionamento e reflexão do eu-lírico (“onde amor, ando
prevalece desde o começo do livro. O amor não é promessa de
indagando”); a ideia de que o amor é uma força que nos domina e
felicidade, não é um ato de liberdade, não nos eleva
nos arremessa para todos os lados, como as ondas do mar; a ideia
espiritualmente, não nos torna melhores. O amor faz parte da
de que as almas vivem num contentamento brando e não são mais
desordem do mundo e não se pode escapar dele. Por isso, existe
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atingidas pelas dores do amor; a ideia de que o amor deixa marcas com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro
profundas no ser e nas coisas; a ideia de que o amor é uma fogo
que arde (retomada no último verso). O próprio fato de ter usado o fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,
soneto italiano tradicional para falar do amor é uma homenagem a
sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.
Camões.
converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém Essa tarde de maio foi o momento em que ele sentiu arder
novamente a chama do amor dentro de si, alcançando porções de
que, precisamente, volve o rosto, e passa... sua alma que nunca tinham sido atingidas antes, mas o poeta sabe
que esse sentimento chegou tarde. Assim, tudo o que o poeta
Outono é a estação em que ocorrem tais crises, deseja é que a lembrança dessa tarde de maio dure para sempre,
como prova de que a derrota (a vida madura e o envelhecimento)
e em maio, tantas vezes, morremos.
pode se converter em beleza (na figura de uma jovem que passa).
O poeta sabe que essas crises amorosas são comuns no outono (a
maturidade) e muitas vezes são o último sinal de vida em quem
Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera, envelhece (“e em maio, tantas vezes, morremos”). Ele sabe
também que a renovação produzida pelo amor pode ser apenas
já então espectrais sob o aveludado da casca, uma ilusão (uma “fictícia primavera”) na vida de alguém que se
aproxima da morte. Se alguém encontrasse nas ruas um indivíduo
trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres
envelhecido mas apaixonado, não saberia se ele vai para o
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cemitério ou se vai para o carnaval (“se era um préstito lutuoso, feito de mar ausente e abstrata serra.
arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco”).
Um sino toca, e não saber quem tange Bom dia: mas da distância
a qualquer hora: bom dia. Depois de uma série de poemas de grande densidade emocional e
existencial, a “Canção para álbum de Moça” é um momento de
O tempo é talvez ingrato descontração e leveza. O poeta se encantou com uma moça bonita
e costumava lhe dizer “bom dia”, mas a moça não lhe respondia
e funda a melancolia
nem percebia o quanto havia de carinho naquela saudação. Apesar
para que justifique da ausência de resposta, o poeta insistia em desejar “bom dia”,
mesmo à tarde ou à noite, e já de madrugada ele preparava um
o meu absurdo bom-dia. bom dia para a moça. A moça, no entanto, não compreendia
quanta tristeza e inquietação de envelhecimento (“noite que se
Nem a moça põe reparo, anuncia”) estavam contidas na insistência com que o poeta lhe
dava “bom dia”. Se um dia, ela lhe respondesse, a noite em que ele
não sente, não desconfia
vivia se tornaria realmente um dia claro.
o que há de carinho preso
Este poema sobre o desencontro amoroso é escrito em redondilhas
no cerne deste bom-dia. maiores (7 sílabas). A insistência do poeta é reforçada pela
repetição da saudação “bom dia” e pela rima (-ia), que se repete em
Bom dia: repito à tarde, todos os versos pares, como se fosse um eco da saudação. A
linguagem é simples e leve. O título é uma referência aos antigos
à meia-noite: bom dia. “álbuns de moça”, que eram cadernos ricamente decorados onde
os admiradores deixavam mensagens em versos cortejando a dona
E de madrugada vou
do álbum. Assim como no caso da “Cantiga de Enganar”, o título
pintando a cor do meu dia, “Canção para álbum de moça” é irônico porque não se trata de uma
canção e tampouco o poeta tem proximidade suficiente para
que a moça possa encontrá-lo escrever algo no álbum da moça referida.
noite que se denúncia se, por amor de uma ave, ei-la recusa
se esses raptos terríveis se repetem quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
já nos campos e já pelas noturnas Deus - ou foi talvez o Diabo- deu-me este amor maduro,
portas de pérola dúbia das boates; e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.
esquivo e refolhado, cinza em núpcias, Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e tudo é triste sob o céu flamante e outros acrescento aos que amor já criou.
(que o pecado cristão, ora jungido Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
ao mistério pagão, mais o alanceia), e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.
da natureza ambígua e reticente: Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
ela tece, dobrando-lhe o amargor, e cansado de mim julgava que era o mundo
“Rapto” trata do amor homossexual. O poema parte de um mito que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.
grego: Zeus se apaixonou pelo jovem Ganimedes e, para levá-lo ao
Olimpo, assumiu a forma de uma águia e raptou o rapaz. De acordo
com o poema de Drummond, se uma águia arrebata um jovem
Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
(metáfora da iniciação ao amor homossexual), esse jovem se eleva
aos céus pelo prazer que alcança (“arremate de uma exaustão imensa e contraída como letra no muro
suavíssima”), mas também se degrada. A partir desse momento,
esse jovem passa a recusar o amor heterossexual (“o pasto natural e só hoje presente.
aberto aos homens”) e busca um caminho proibido para satisfazer o
seu amor (“pela via hermética e defesa/ vai demandando o cândido Deus me deu um amor porque o mereci.
alimento/ que a alma faminta implora até o extremo”). Se as
De tantos que já tive ou tiveram em mim,
relações homossexuais se repetem em lugares clandestinos e em
boates, aumentando o sentimento de culpa (atiçado pela o sumo se espremeu para fazer vinho
consciência cristã do pecado associado ao paganismo da prática
homossexual), é melhor as pessoas reconhecerem que se trata ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.
apenas de “outra forma de amar”.
20
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes, de que os amantes dispõem e transforma o medo que sente (o
poeta era casado e estava envelhecendo) em alegria (“o sagrado
e ao vê-los amorosos e transidos em torno, terror converto em jubilação”).
o sagrado terror converto em jubilação. O amor que sente é ambíguo: traz angústia, mas também oferece
carinho. Como esse amor chegou no momento da maturidade, é
preciso amar de um jeito diferente de antes. É preciso dedicar-se
Seu grão de angústia amor já me oferece com seriedade e paciência (“de uma grave paciência/ ladrilhar
minhas mãos”). É preciso torcer para que a doação de ternura não
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia tenha sido estragada pelos anos de ironia. É preciso saber manter
segredo (“Há que amar e calar”). O poeta sente que conseguiu
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura escapar do fluxo inexorável do tempo. Ele sabe que está vivo e que
está na luz, embora a luz esteja declinando, situação que o deixa
e o mistério que além faz os seres preciosos
hesitante: “Para fora do tempo arrasto meus despojos/ e estou vivo
à visão extasiada. na luz que baixa e me confunde”.
Comentário
Drummond volta ao tema do amor que vem na idade madura. Sua A um varão, que acaba de nascer
postura se mantém hesitante e cautelosa: ela agradece por ter um
Chegas, e um mundo vai-se
amor, mas não sabe se foi um presente de Deus ou do Diabo. Com
esse amor, o poeta volta às suas crenças antigas (“aos mitos como animal ferido,
pretéritos”). Ele sente novamente o que sentia no passado, mas
não perdeu a lucidez da maturidade. Ele permanece numa área de arqueja. Nem aponta
indecisão, dividido entre ser ou não ser, mas desejoso de ser e
sentir tudo o que sentia antes (“e talhado em penumbra sou e não um forma sensível,
sou, mas sou”). O poeta julgava que o mundo era vazio, sofrido e
pois já sabemos todos
absurdo, mas agora ele vê novas manhãs, isto é, possibilidades
que ele nunca tinha vivido nem imaginado. Essas manhãs cheias que custa a modelar-se
de esperança estão associadas à imagem da amada (a quem ele
se refere em segunda pessoa: “atrás de tua sombra”). Essa uma raiz, um broto.
imagem sempre esteve lá, mas só agora se fazia evidente, como
uma mensagem que estava escrita num muro, mas não tinha sido E contudo vens tarde.
lida ainda (“imensa e contraída como letra no muro/ e só hoje
Todos vêm tarde. A terra
presente”). Esse amor foi merecido: é como se todos os amores
anteriores tivessem se coagulado numa forma nova e depurada. anda morrendo sempre,
Esse amor veio no tempo certo: exatamente o tempo que leva para
brotar uma rosa num terreno árido, pois quando não há um local e a vida, se persiste,
apropriado, as flores aparecem de maneira imprevisível (“Onde não
há jardim, as flores nascem de um/ secreto investimento em formas passa descompassada,
improváveis”).
e nosso andar é lento,
Agora que tem o seu amor, o poeta junta toda a riqueza de ternura
curto nosso respiro,
21
e logo repousamos mais que o veleiro impróprio,
22
todo este ser em ser, resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na
costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que
adoramos aquilo te chamamos, num momento de simpatia” (capítulo LXXV).
e negação do ser
O Chamado
com dissolver-se em outro
Na rua escura o velho poeta
transmutam-se em moeda
(lume de minha mocidade)
e resgate do eterno.
já não criava, simples criatura
Para amar sem motivo
exposta aos ventos da cidade.
e motivar o amor
na sua desrazão,
Ao vê-lo curvo e desgarrado
Pedro, vieste ao mundo.
na caótica noite urbana,
Chamo-te meu irmão.
o que senti, não alegria,
Comentário
era, talvez, carência humana.
Neste poema dedicado a um recém-nascido, Drummond descreve
o que é viver neste mundo: o mundo está sempre em crise e a vida
prossegue aos trancos (“A terra~/ anda morrendo sempre/ e a vida,
se persiste/ passa descompassada”); nunca chegamos ao mundo E pergunto ao poeta, pergunto-lhe
na hora certa (“todos chegam fora de tempo”); passamos a vida na
escuridão (“No escuro prosseguimos/ num vale de onde a luz/ se (numa esperança que não digo)
exilou”); os sábios tentam entender o mundo, mas não conseguem
para onde vai — a que angra serena,
(“Estendem os mais sábios/ a mão, e no ar ignoto/ o roteiro
decifram/ e é às vezes um eco/ outras vezes, a caça esquiva/ que a que Pasárgada, a que abrigo?
desafia, e salva-se”); estamos presos e ligados a tudo o que existe
à nossa volta (“Este é de resto o mal/ superior a todos:/ a todos
como a tudo/ estamos presos”)/ querer libertar-se para atingir a
plenitude e a elevação das almas é sonho; adoramos aquilo que A palavra oscila no espaço
nos faz mal e causa nossa perda; acreditamos que a morte, a
um momento. Eis que, sibilino,
negação de nós mesmos, a evasão da realidade podem nos ajudar
a conquistar a salvação e a vida eterna (“transmutam-se em entre as aparências sem rumo,
moeda/ e resgate do eterno”). Enfim, é para amar e ser amado, na
falta de sentido própria do amor, é que o recém-nascido veio ao responde o poeta: Ao meu destino.
mundo. A partir de agora, ele passa a ser mais um companheiro
nesta jornada pela vida. Ele passa a ser mais um irmão.
O poema é escrito em versos hexassílabos (6 sílabas) e é dirigido E foi-se para onde a intuição,
em segunda pessoa a recém-nascido chamado Pedro. O poema,
o amor, o risco desejado
especialmente em seus versos finais (“Para amar sem motivo/ e
motivar o amor/ na sua desrazão/ Pedro, vieste ao mundo’), pode o chamavam, sem que ninguém
ser comparados com o trecho famoso de Memórias Póstumas de
Brás Cubas, em que o narrador imagina D. Plácida recém-nascida, pressentisse, em torno, o Chamado.
perguntando aos seus pais porque ela veio ao mundo. Os pais dela
responderiam: “Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, Comentário
os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado
Este poema é uma homenagem ao poeta modernista Manuel
para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a
Bandeira, autor de “Vou-me embora pra Pasárgada”, um dos
adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã
poemas mais famosos da literatura brasileira.
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No poema, há um contraste entre a figura solitária e frágil do velho Comentário
poeta e a firmeza com que ele declara que vai para seu destino,
sem explicar que destino era esse. O poema mostra que, mesmo Drummond (mineiro que vivia no Rio de Janeiro) imagina um
na velhice, Bandeira deixava-se levar “para onde a intuição/ o amor, encontro com o poeta modernista Mário Quintana (que morava em
o risco desejado/ o chamavam”. Esse Chamado (com inicial Porto Alegre). Esse encontro seria pleno de elementos inusitados,
maiúscula para destacar sua importância) só podia ser ouvido por díspares e inverossímeis. Por exemplo: os dois poetas voariam
Manuel Bandeira e mais ninguém. sobre os tetos, na garupa de uma bruxa; depois pintariam uma
romã para matar a fome imaginária. Mário Quintana mostraria a
É importante observar que, na segunda estrofe, ao encontrar o Drummond a casa dos seus poetas favorito: Arthur Rimbaud,
velho Bandeira caminhando sozinho à noite, é Drummond quem William Blake e Camões. As situações mais incongruentes e
sente carência. É ele quem tem a esperança secreta de que espantosas ocorreriam, fora do tempo e do espaço, enquanto junto
Bandeira estivesse indo para Pasárgada. Em outras palavras, é à mesa do bar, o poeta Mário Quintana viajaria na sua imaginação.
Drummond quem precisava de ajuda e consolação. Assim, há uma
diferença muito grande entre Drummond, que começava a Em sua homenagem ao colega, Drummond procura resgatar
envelhecer cheio de hesitações e sem saber que rumo tomar, e o aspectos característicos da poesia de Mário Quintana, como a
velho Manuel Bandeira, que seguia firmemente para seu destino, influência surrealista (evidente nos elementos inusitados e na
ouvindo o Chamado, prova de sua autêntica vocação de poeta. imaginação imprevisível) e o amor de Quintana por poetas
visionários como Rimbaud e William Blake. Além disso, a própria
O poema tem cinco estrofes de quatro versos, com rimas nos forma adotada por Drummond – o poema em prosa ou prosa
versos pares. Os versos têm 8 sílabas. poética -, é uma forma da qual Mário Quintana foi um grande
expoente.
Quintana's bar
Aniversário
Num bar fechado há muitos, muitos anos, e cujas portas de aço
bruscamente se descerram, encontro, quem eu nunca vira, o poeta Os cinco anos de tua morte
Mario Quintana.
esculpiram já uma criança.
Tão simples reconhecê-lo, toda identificação é vã. Em algum lugar -
coxilha? montanha? vai rorejando a manhã. Moldada em éter, de tal sorte,
Na total desincorporação das coisas antigas, perdura um elemento ela é fulva e no dia avança.
mágico: estrela-do-mar - ou Aldebarã?, tamanquinhos, menina
correndo com o arco. E corre com pés de lã.
Este menino malasártico,
Falando em voz baixa nos entendemos, eu de olhos cúmplices, ele
com seu talismã. Assim me fascinavam outrora as feitiçarias da Macunaíma de novo porte.
preta, na cozinha de picumã.
escreve cartas no ar fantástico
Na conspiração da madrugada, erra solitário - dissolve-se o bar - o
poeta Quintana. Seu olhar devassa o nevoeiro, cada vez mais para compensar tua morte.
densa é a bruma de antanho.
Agora voamos sobre os tetos, à garupa da bruxa estranha. Para lá de um mundo sem sul nem norte,
iludirmos a fome que não temos pintamos uma romã.
de teu inesgotável país,
E já os homens sem província, despetala-se a flor aldeã. O poeta
ris. Alegria ou puro esporte?
aponta-me casas, a de Rimbaud, a de Blake e a gruta camoniana.
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riso de quem conhece a morte. A igreja era grande e pobre. Os altares, humildes.
Tudo sabes, sem que isso importe (quais as imagens e quais os fiéis?)
sem, nas pupilas, flor ou vaso, entranhava-se na onda, minúscula e forte, de incenso,
salvo o apaixonado transporte (que esperas ouvir à hora da morte, ou depois da morte, nas
campinas do ar)
- vida é paixão -, contigo rimos,
e dessa música surgiam meninas – a alvura mesma –
expectantes, em frente à Porta!
cantando.
Comentário
Evocação Mariana
25
Estampas de Vila Rica
e outros alimentos.
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perdão por não ser religioso. O poema, escrito em redondilhas
maiores (versos de 7 sílabas), tem um tom solene, marcado pelo
V - Museu da Inconfidência uso da segunda pessoa do plural e pelas apóstrofes dirigidas ao
“Senhor”, imitando as preces. Assim como acontece no poema
São palavras no chão
“Invocação Mariana”, o sentimento de plenitude não vem da
e memória nos autos. religião, mas da arte.
As casas inda restam, “Mercês de Cima” é um curto poema em versos livres, que procura
capturar a ironia triste da situação (uma jovem prostituta como um
os amores, mais não. anjo caído em frente à Igreja). A forma do poema e a sua
capacidade de observação irônica é semelhante às poesias do
modernista Oswald de Andrade, que também se encantou com a
beleza de Ouro Preto.
E restam poucas roupas,
“Hotel Toffolo” também tem a marca da observação irônica e bem-
sobrepeliz de pároco,
humorada de Oswald de Andrade. Apesar de não haver jantar no
a vara de um juiz, hotel, a beleza da cidade era alimento suficiente para a fome do
poeta.
anjos, púrpuras, ecos.
“Museu da Inconfidência” aborda um tema recorrente em
Drummond: o que resta daquilo que passou. Quase tudo o que os
inconfidentes viveram e sofreram desapareceu. O tempo é
Macia flor de olvido, governado pelo esquecimento (“macia flor do olvido”). O que restou
é apenas a história de remorso pelo infortúnio e fracasso dos
sem aroma governas
inconfidentes. É esse remorso que é guardado no Museu da
o tempo ingovernável. Inconfidência.
Os cincos poemas da série “Estampas de Vila Rica” funcionam que viram morrer os homens,
como cartões-postais que registram cenas e lugares da cidade de
que viram fugir o ouro,
Ouro Preto: a Igreja do Carmo (com seu cemitério), a Igreja de São
Francisco (considerada uma das mais belas igrejas barrocas do que viram finar-se o reino,
Brasil), a Igreja das Mercês de Cima (em frente da qual havia um
ponto de prostituição), o Hotel Toffolo (tido como o melhor da que viram, reviram, viram,
cidade na época) e o Museu da Inconfidência (onde são guardados
os autos do processo contra os Inconfidentes e seus objetos já não veem. Também morrem.
pessoais).
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para conhecê-la bem. Ai, preto, que ris em mim
Mais uma vez Drummond retoma o tema da dissolução: as casas Que não me encontro nas tuas
de Ouro Preto também vão desaparecendo, desmanchadas pela
chuva. A própria cidade vai sendo dissolvida pelo tempo. Os seis Dobras de manto mortal
versos finais fazem referência ao poeta árcade e inconfidente
Já não sei, negro, em que vaso
Cláudio Manuel da Costa, que viveu e morreu em Ouro Preto. As
pedras e rochedos aparecem com frequência nas poesias de Que vão ou que labirinto
Cláudio, assim como a melancolia do amor perdido por uma amada
chamada Nise. De mim, te esquivas a mim
O poema é escrito em redondilhas maiores (7 sílabas) sem rima. E zombas desta gelada
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Ó corpos de antigamente Dentes de marfim mordente
Vejo pés pretos e uns brancos Coisas bem antes dos homens
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Os bens e o sangue
Debruço-me; e nele vejo Às duas horas da tarde deste nove de agosto de 1847
Agora que não sou moço nesta fazenda do Tanque e em dez outras casas de rei, q não de
valete,
Um passarinho e um desejo
em Itabira Ferros Guanhães Cocais Joanésia Capão
Comentário
diante do estrume em q se movem nossos escravos, e da viração
Debruçado à beira de um poço, o poeta tenta lembrar o convívio
que tinha com pessoas negras e pobres, quando ele (branco, filho perfumada dos cafezais q trança na palma dos coqueiros
de fazendeiro, de família tradicional com brasão escocês) era
menino. O poeta procura o que restou nele dessa convivência, ele fiéis servidores de nossa paisagem e de nossos fins primeiros,
busca o negro que há nele, que tinha saudades das aldeias de
deliberamos vender, como de fato vendemos, cedendo posse jus e
Angola (“ambacas”), que ele nunca viu, mas que conheceu no
domínio
contato físico com os negros (“aonde fui num cabelo de sovaco”).
e abrangendo desde os engenhos de secar areia até o ouro mais
Esse contato começou na primeira infância, quando o poeta foi
fino,
amamentado por uma ”mãe preta”, e continuou depois com uma
jovem prostituta negra, cujo corpo despertava tanto desejo nele. O nossas lavras muito nossas por herança de nossos pais e sogros
poeta se lembra dos garotos negros na escola, cujo riso muito bem amados
branco ocultava, no entanto, um negrume no fundo da alma: o
rancor de si mesmos (pela condição difícil em que viviam). Porém, q dormem na paz de Deus entre santas e santos martirizados.
além desse rancor, também havia a ternura, as danças, a
participação nas liturgias, a nostalgia de um outro país “onde as Por isso neste papel azul Bath escrevemos com a nossa melhor
coisas nem de brancas/ fossem chamadas”. O tempo passou, esse letra
convívio infantil se perdeu e tudo o que restou na memória do poeta
estes nomes q em qualquer tempo desafiarão tramoia trapaça e
foi “um passarinho e um desejo” (o desejo é certamente aquele que
treta:
sentia pela jovem negra, já o passarinho parece se referir ao
eufemismo infantil para o pênis). ESMERIL PISSARRÃO
O poema mostra que as relações entre brancos e negros na CANDONGA CONCEIÇÃO
sociedade rural e patriarcal do começo do século XX (Drummond
nasceu em 1902) ainda mantinham muitos elementos herdados do E tudo damos por vendido ao compadre e nosso amigo o snr
passado escravista (a “mãe preta”, a submissão dos negros aos Raimundo Procópio
brancos, inclusive no plano sexual, a nostalgia da África, as danças
etc.). Nas lembranças infantis de Drummond, a convivência entre e a d. Maria Narcisa sua mulher, e o q não for vendido, por
brancos e negros era, ao menos superficialmente, de alborque
camaradagem e cumplicidade. No entanto, o poeta percebe que
de nossa mão passará, e trocaremos lavras por matas,
havia algo doloroso na alma dos meninos negros, que era o rancor
pela sua própria condição. O poema, porém, não avança nessa lavras por títulos, lavras por mulas, lavras por mulatas e arriatas,
direção. Seu foco está no desejo sexual que a jovem prostituta
negra despertava nele. que trocar é nosso fraco e lucrar é nosso forte. Mas fique
esclarecido:
Em linhas gerais, o poema de Drummond concorda com a
descrição feita em Casa-Grande e Senzala (1933), do sociólogo somos levados menos por gosto do sempre negócio q no sentido
Gilberto Freyre, que argumentava que, na vida cotidiana das
fazendas, a violência da relação entre senhores brancos e escravos de nossa remota descendência ainda mal debuxada no longe dos
negros era amenizada por várias formas de cumplicidade e pelo serros.
sexo. Atualmente, essa descrição das relações raciais é criticada
De nossa mente lavamos o ouro como de nossa alma um dia os
como uma tentativa de disfarçar os aspectos mais brutais da
erros
condição do negro no Brasil.
se lavarão na pia da penitência. E filhos netos bisnetos
O poema é escrito em redondilhas maiores (7 sílabas) sem rima.
tataranetos despojados dos bens mais sólidos e rutilantes portanto
os mais completos
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irão tomando a pouco e pouco desapego de toda fortuna o queremos marcado
e concentrando seu fervor numa riqueza só, abstrata e una. a nos negar; depois
II Vergonha da família
abrir-se em clarão.
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sairá na cola e por sua vez perderá tudo e tudo volverá a nada
— Não judie com o menino e a besta Belisa renderá os arrogantes corcéis da monarquia,
compadre. e a vaca Belisa dará leite no curral vazio para o menino doentio,
sinhô! VII
— Pedimos pelo menino porque pedir é nosso destino. Ó monstros lajos e andridos que me perseguis com vossas
barganhas
Pedimos pelo menino porque vamos acalentá-lo.
sobre meu berço imaturo e de minhas minas me expulsais.
Pedimos pelo menino porque já se ouve planger o sino
Os parentes que eu amo expiraram solteiros.
do tombo que ele levar quando monte a cavalo.
Os parentes que eu tenho não circulam em mim.
— Vai cair do cavalo
Meu sangue é dos que não negociaram, minha alma é dos pretos,
de cabeça no valo.
minha carne dos palhaços, minha fome das nuvens,
Vai ter catapora
e não tenho outro amor a não ser o dos doidos.
amarelão e gálico
Onde estás, capitão, onde estás, João Francisco,
vai errar o caminho
do alto de tua serra eu te sinto sozinho
vai quebrar o pescoço
e sem filhos e netos interrompes a linha
vai deitar-se no espinho
que veio dar a mim neste chão esgotado.
fazer tanta besteira
Salva-me, capitão, de um passado voraz.
e dar tanto desgosto
Livra-me, capitão, da conjura dos mortos.
que nem a vida inteira
Inclui-me entre os que não são, sendo filhos de ti.
dava para contar.
E no fundo da mina, ó capitão, me esconde.
E vai muito chorar.
33
ó inapto para as cavalhadas e os trabalhos brutais primeira pessoa, se dirige aos ancestrais que assinaram o contrato
e declara que é muito diferente deles: “Meu sangue é dos que não
com a faca, o formão, o couro... Ó tal como quiséramos negociaram, minha alma é dos pretos/ minha carne dos palhaços,
minha fome das nuvens/ e não tenho outro amor a não ser o dos
para tristeza nossa e consumação das eras,
doidos”. Com essas palavras, Drummond reafirma a sua posição de
para o fim de tudo que foi grande! “gauche” (pessoa desajeitada, que não se encaixa nos padrões e
vive deslocado dos outros). Em seguida, implora ao capitão João
Ó desejado, Francisco de Andrade que o exclua da lista de seus descendentes,
para que ele não tenha que sofrer a maldição lançada pelos
ó poeta de uma poesia que se furta e se expande antepassados (parte VII). Por fim, o próprio capitão João Francisco
responde que Drummond, inapto para o trabalho no campo, era o
à maneira de um lado de pez e resíduos letais...
descendente desejado, aquele que faria poemas juntando as
És nosso fim natural e somos teu adubo, memórias e os restos do que passou, como acontece com as
coisas que caem e se acumulam nos lagos de piche (“ó poeta de
tua explicação e tua mais singela virtude. . . uma poesia que se furta e se expande/ à maneira de um lago de
pez e resíduos letais...). Era preciso que Drummond recusasse a
Pois carecia que um de nós nos recusasse linhagem da família para cumprir o desígnio de seus ancestrais.
para melhor servir-nos. Face a face O poema mostra que ser poeta, na visão de Drummond, era uma
maldição imposta pelos mortos. Por essa razão, os seus poemas
te contemplamos, e é teu esse primeiro
carregam consigo os vestígios de tudo o que se foi (compare-se
e úmido beijo em nossa boca de barro e de sarro. com o verso inicial do poema “Tarde de Maio”, em que o poeta
deseja levar consigo a lembrança da tarde da mesma maneira que
Comentário os primitivos carregam as mandíbulas de seus mortos).
Este poema une dois temas frequentes em Drummond. O poema “Os bens e o sangue” utiliza vários tipos de verso (p.ex:
versos livres e longos na parte I e redondilhas maiores na parte II).
O primeiro é a sua relação com a família. O poeta era filho de Um aspecto importante é que os discursos dos personagens
fazendeiros e descendente do capitão João Francisco de Andrade, aparecem como falas introduzidas por travessão, como ocorre nos
que descobriu ouro na região de Itabira no final do século XVIII. A textos para teatro.
família foi rica e poderosa, mas acabou perdendo muito do que
tinha por causa de negócios mal sucedidos. Com o passar dos Obs. Na primeira parte, que contém o contrato, Drummond manteve
anos, a exploração de ouro se esgotou e foi substituída pela as abreviações usadas nos documentos antigos como “q” ao invés
mineração de ferro. A atividade pecuária também declinou. Por fim, de que. No primeiro verso da parte VII, as palavras “lajos” e
o próprio Drummond abriu mão da parte da herança que lhe cabia e “andridos” são corruptelas dos sobrenomes Lajes e Andrade, tal
foi viver no Rio de Janeiro, trabalhando como funcionário público. como apareciam nos documentos manuscritos antigos.
Em “Os bens e o sangue”, Drummond cria um relato mítico para e por isso vivem tão pouco; tão intervalado; tão débil.
justificar porque ele se tornou quem ele era. No poema, os
ancestrais de Drummond se reúnem e assinam um contrato para Fora de nós é que talvez deixaram de viver, para o que se chama
deserdar seus descendentes de todas as propriedades da família, tempo.
especialmente um menino que ainda irá nascer (o poeta), que será
E essa eternidade negativa não nos desola.
a vergonha da família, tonto e atormentado (partes I a IV). Alguns
ancestrais pedem piedade para o menino, mas a maldição é Pouco e mal que eles vivam, dentro de nós, é vida não obstante.
mantida (parte V). Os urubus sobre o telhado anunciam outros
males que virão: a vinda de uma companhia inglesa que comprará E já não enfrentamos a morte, de sempre trazê-la conosco.
tudo, o esgotamento das lavras de ouro, o início da mineração de
ferro e a decadência da criação de gado (parte VI). O poeta, em
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Mas, como estão longe, ao mesmo tempo que nossos atuais que a morte nos acompanha sempre: lidamos com o legado dos
habitantes que já morreram e convivemos com a morte das pessoas que
conhecemos. É por isso que Drummond escreveu poemas como
e nossos hóspedes e nossos tecidos e a circulação nossa! “Aniversário”, lembrando os cinco anos da morte do amigo Mário de
Andrade.
A mais tênue forma exterior nos atinge.
Por ser escrito em versos livres longos e sem rima, o poema
O próximo existe. O pássaro existe,
“Convívio” tem um tom de discurso. Trata-se de um discurso
E eles também existem, mas que oblíquos! e mesmo sorrindo, que reflexivo que pretende ter uma validade universal e não apenas
disfarçados... pessoal. Por isso, o poeta passa da primeira pessoa do singular
para a primeira pessoa do plural: “Cada dia que passo incorporo
mais esta verdade, de que eles não vivem senão em nós”.
Ter e não ter em nós um vaso sagrado, Agora me lembra um, antes me lembrava outro.
esta é nossa condição, enquanto, Dia virá em que nenhum será lembrado.
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Numa incerta hora fria por que tanto insistia
e o coqueiro-de-espinho
o segredo de nosso
Perguntei-lhe depois
36
No voo que desfere, ela iria contando
um objeto minúsculo
O poeta conversa com o fantasma com o qual convive e lhe faz diria ela do tempo
perguntas. Qual força prendia um ao outro? Qual era a razão desse
convívio? Por que o fantasma insistia em provocar pensamentos que faz do nosso lado
sem rumo ou lembranças do morro de Itabira (destruído pela
as chuvas já secaram,
mineração) e dos vaqueiros e vozes da infância na fazenda? Que
razão levava o poeta a remexer nos restos de tudo e nas ruínas do as crianças estudam,
que se foi? A resposta do fantasma foi enigmática: “Amar, depois
de perder”. uma última invenção
Embora a identidade do fantasma não fique clara, percebe-se (inda não é perfeita)
claramente que o poema retoma a ideia de que há um convívio sem
contato físico entre os mortos e os vivos, e de que o poeta não faz ler nos corações,
pode deixar de recordar a infância e de investigar os restos do que
mas todos esperamos
se passou. A resposta enigmática dada pelo fantasma está
relacionada ao que diz o poema “Memória”: “Mas as coisas findas/ rever-nos bem depressa.
muito mais que lindas/ essas ficarão”. Isto é, tudo o que se perdeu
e acabou, continuará a ser objeto de amor. É isto que significa o Muito depressa, não.
verso “Amar, depois de perder”.
Vai-se tornando tempo
O poema é escrito em versos hexassílabos (6 sílabas). As rimas
aparecem ocasionalmente. O verso final, que tem 7 sílabas, é estranhamente longo
destacado por espaçamento gráfico e itálico. Este verso funciona
à medida que encurta.
como uma máxima ou aforismo que condensa a ideia central do
poema. O que ontem disparava,
desbordado alazão,
Carta hoje se paralisa
Bem quisera escrevê-la em esfinge de mármore,
com palavras sabidas, e até o sono, o sono
as mesmas, triviais, que era grato e era absurdo
embora estremecessem é um dormir acordado
a um toque de paixão. numa planície grave.
Perfurando os obscuros Rápido é o sonho, apenas,
canais de argila e sombra,
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que se vai, de mandar
quando só há lembrança
e não vale acordar Trata-se de mais um poema sobre a permanência dos mortos na
memória. Dessa vez, o poeta sonha com o pai que tinha morrido
quem acaso repousa muitos anos antes. Nos quartetos, o poeta descreve como a figura
do pai lhe aparece no sonho. Nos tercetos, faz-se uma oposição
na colina sem árvores.
entre a eternidade em que vive o pai (“um rio que corre o tempo
Contudo, esta é uma carta. inteiro/e corre além do tempo”) e a vida efêmera e sujeita ao
declínio em que vive o filho (“murcham num sopro fontes
Comentário represadas”).
O poeta imagina como deveria ser a carta que ele escreveria a uma O poema é um soneto italiano tradicional.
pessoa querida já falecida (possivelmente a mãe do poeta, que
tinha morrido poucos meses antes), mandando notícias “do nosso
lado” (isto é, do que acontecia no mundo dos vivos). O poeta
A Mesa
pensa que a carta deveria começar com palavras triviais, mas
carinhosas. No entanto, os versos vão se tornando mais densos e E não gostavas de festa. . .
sérios a partir da segunda metade do poema. Do ponto de vista
estilístico e temático, o poema se aproxima do pessimismo dos Ó velho, que festa grande
poemas iniciais do livro, como “Dissolução” ou “Confissão”.
hoje te faria a gente.
“Carta” é escrito em versos hexassílabos (6 sílabas) sem rima. O
poema combina aspectos de metalinguagem (ao comentar como E teus filhos que não bebem
deveria ser a carta) e de reflexão existencial.
e o que gosta de beber,
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ind’outro dia. . . Comer amava casos bandalhos;
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seja uma prisão de dois, Restam sempre muitas vidas
uma força que não sabe algum dos teus. Por exemplo:
(Não ser feliz tudo explica.) Pois ele sou eu. Repara:
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maneira de te afirmar. e em meio a vagos cristais,
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uma imprevista verdade. que traçou este arabesco
meu tudo enchendo meu nada. quem tem auréola? quem não
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para o qual vos convocamos e de meu próprio ser desenganado,
Comentário
Drummond sempre teve uma relação ambivalente (isto é, de Abriu-se majestosa e circunspecta,
carinho e ressentimento) com a sua família, especialmente com o
pai, com quem teve muitas brigas. No poema “A Mesa”, o poeta sem emitir um som que fosse impuro
imagina uma reunião de toda a família (inclusive do pai e da mãe já
nem um clarão maior que o tolerável
falecidos), para comemorar o aniversário de 90 anos do pai. Essa
reunião, que nunca aconteceu, seria uma ocasião de festa, de
reconhecimento dos laços de família e de superação dos antigos
ressentimentos. Drummond imagina a reação do pai ao ver os filhos pelas pupilas gastas na inspeção
reunidos, descreve a personalidade de alguns deles, inclusive a
sua. Fala da sua filha e da sua mãe. No final, homenageia o pai e a contínua e dolorosa do deserto,
mãe falecidos.
e pela mente exausta de mentar
O poema é uma longa fala do poeta dirigida carinhosamente a seu
pai (em segunda pessoa do singular) e, no final, ao pai e à mãe
(em segunda pessoa do plural). Apesar da sua extensão, o poema toda uma realidade que transcende
é bastante fluido e de fácil compreensão por várias razões: (a) pelo
uso habilidoso da redondilha maior sem rima e sem divisão de a própria imagem sua debuxada
estrofes, que se aproxima bastante do ritmo da fala numa conversa;
(b) pelo vocabulário frequentemente coloquial; (c) pela combinação no rosto do mistério, nos abismos.
do tom descontraído e familiar com o tom emocionado e mais
solene. A mesa referida no título é uma metonímia da família que
se reúne em volta dela. Abriu-se em calma pura, e convidando
mesmo afetando dar-se ou se rendendo, suas verdades altas mais que todos
que nem concebes mais, pois tão esquivo afinal submetido à vista humana.
o que pensado foi e logo atinge que entre os raios do sol inda se filtra;
e tudo que define o ser terrestre que vou pelos caminhos demonstrando,
ou se prolonga até nos animais e como se outro ser, não mais aquele
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habitante de mim há tantos anos, feita pela máquina do mundo era “despicienda” (isto é, digna de
desprezo). Por isso, baixa os olhos, indiferente e cansado
(“incurioso, lasso”), desdenhando aquilo que lhe era oferecido. A
máquina do mundo se recolhe. As trevas já tinham baixado sobre a
passasse a comandar minha vontade
estrada de Minas e o eu-lírico volta a caminhar, pensativo.
que, já de si volúvel, se cerrava
Este poema, um dos mais importantes que Drummond escreveu,
semelhante a essas flores reticentes dialoga com duas obras fundamentais da literatura: a Divina
Comédia, de Dante Alighieri (1321) e Os Lusíadas, de Camões
(1572), além de ser uma reelaboração do poema “No meio do
caminho” (1928), do próprio Drummond.
em si mesmas abertas e fechadas;
Da Divina Comédia, Drummond se aproveitou do tema da jornada
como se um dom tardio já não fora ao anoitecer (o poema de Dante começa com o poeta perdendo-se
ao escurecer no meio do caminho da sua vida). Também adotou a
apetecível, antes despiciendo,
forma de tercetos em versos decassílabos. No entanto,
diferentemente do poema de Dante, que é rimado, Drummond
adotou os versos brancos.
baixei os olhos, incurioso, lasso,
De Os Lusíadas, Drummond usou as inversões sintáticas típicas de
desdenhando colher a coisa oferta Camões (“a quem de os ter usado os já perdera”; “para sempre
repetimos/ os mesmos sem roteiro tristes périplos”), o predomínio
que se abria gratuita a meu engenho. do decassílabo heróico (com acento na 6ª e 10ª sílabas) e o que é
mais importante: a referência ao episódio em que Vasco da Gama,
no alto de uma montanha, vê a máquina do mundo, isto é, o
A treva mais estrita já pousara mecanismo divino que faz o Universo funcionar: “Vês aqui a grande
máquina do mundo/ Etérea e elemental, que fabricada/Assim foi do
sobre a estrada de Minas, pedregosa, Saber, alto e profundo.” (Os Lusíadas, canto X). A diferença é que,
enquanto a máquina de Camões esclarece o que é o mundo e o
e a máquina do mundo, repelida, universo do ponto de vista geográfico e astronômico, a máquina de
Drummond promete desvendar o enigma da vida humana. O que
ela oferece não é um conhecimento científico, mas sim metafísico e
se foi miudamente recompondo, existencial (isto é, um conhecimento a respeito da essência das
coisas e da existência humana). Outra diferença relevante é que
enquanto eu, avaliando o que perdera, Vasco da Gama contempla a máquina do mundo com admiração e
espanto (“Vendo o Gama este globo, comovido/ de espanto e de
seguia vagaroso, de mãos pensas. desejo ali ficou”), ao passo que o eu-lírico de Drummond se mostra
indiferente e fatigado, já que a revelação chegou tarde demais,
quando os seus anseios e curiosidades já não mais existiam. Por
último, enquanto a revelação da máquina do mundo a Vasco da
Comentário
Gama acontece no alto de uma montanha (o que marca a
O eu-lírico caminha numa estrada pedregosa de Minas Gerais ao relevância desse momento), a máquina do mundo de Drummond se
anoitecer. Tudo à sua volta vai se confundindo com a escuridão. oferece ao nível do solo (o que marca a sua irrelevância).
Repentinamente a máquina do mundo se abre e lhe oferece a
O poema de Drummond também é uma reelaboração de “No meio
oportunidade de compreender o mistério da existência, que ele
do caminho” escrito vinte anos antes (“Nunca me esquecerei desse
tantas vezes quisera resolver. Sem emitir nenhum som, a máquina
acontecimento/ na vida de minhas retinas tão fatigadas./Nunca me
do mundo anuncia uma “ciência sublime e formidável” que contém
esquecerei que no meio do caminho/ tinha uma pedra/ tinha uma
a “total explicação da vida”. Numa epifania (uma visão reveladora
pedra no meio do caminho/no meio do caminho tinha uma pedra.”).
repentina), o eu-lírico viu “tudo o que define o ser terrestre”, a
Este poema se tornou um dos mais conhecidos de Drummond pela
variedade de tudo o que existe, os enigmas da vida e o poder da
sua aparente trivialidade (uma pedra no caminho é algo banal e
morte. “Tudo se apresentou nesse relance”. No entanto, o eu-lírico
aparentemente desprezível), pela importância que dá a esse
não respondeu ao apelo maravilhoso, pois já tinha perdido o anseio
encontro entre o eu-lírico e a pedra (“nunca me esquecerei desse
de compreender o mundo e a existência. As suas “defuntas
acontecimento”), pela inexplicável atitude de cansaço do eu-lirico
crenças” (isto é, as ideias e questões que tinha antes) não foram
(“minhas retinas tão fatigadas”), pela redundância (a repetição
capazes de “tingir a face neutra” (isto é, despertar uma reação do
enfática da oração “no meio do caminho tinha uma pedra”) e, enfim,
eu-lírico, que agora era indiferente a tudo isso). Destituído da
pelo coloquialismo do uso do verbo “ter” no sentido de “haver”. Em
curiosidade que tinha anteriormente, o eu-lírico acha que a oferta
“A Máquina do Mundo”, Drummond retoma a situação do eu-lírico
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que caminha por uma estrada pedregosa, mas dessa vez aquilo em qualquer um mostrando o ser deserto,
que ele encontra é algo realmente extraordinário. No entanto, essa
revelação chegou tarde demais. Agora ele era um “ser
desenganado” e o seu cansaço havia aumentado com o esforço
dor primeira e geral, esparramada,
dos anos (“pelas pupilas gastas na inspeção/ contínua e dolorosa
do deserto/ e pela mente cansada de mentar”) e nada mais lhe nutrindo-se do sal do próprio nada,
causava espanto nem despertava a sua curiosidade. Há ainda um
outro contraste importante entre os dois poemas de Drummond.
“No meio do caminho” usa uma linguagem simples e coloquial e o
verso livre para descrever uma situação trivial, enquanto que “A convertendo-se, turva e minuciosa,
Máquina do Mundo” mobiliza uma linguagem erudita solene e o
em mil pequena dor, qual mais raivosa,
verso decassílabo (a forma mais elevada de metrificação em língua
portuguesa) para narrar o encontro extraordinário – mas sem efeito
- entre o eu-lírico e a máquina do mundo.
prelibando o momento bom de doer,
Por último, não podemos esquecer que Drummond era um grande
admirador de Machado de Assis (que, por sua vez, era leitor a invocá-lo, se custa a aparecer,
assíduo de Dante Alighieri e de Camões). Por isso, é possível dizer
que a máquina do mundo oferecia ao eu-lírico de Drummond a
possibilidade de compreender o sentido da vida, da mesma
dor de tudo e de todos, dor sem nome,
maneira que a Natureza (ou Pandora) o faz para Brás Cubas no
momento do delírio. O niilismo e o cansaço do eu-lírico de ativa mesmo se a memória some,
Drummond são equivalentes ao tédio e ao pessimismo com que
Brás Cubas percebe que as gerações humanas repetiam, uma
após a outra, a mesma vida de sofrimentos sem sentido (“Meu
olhar, enfarado e distraído, viu enfim chegar o século presente, e dor do rei e da roca, dor da cousa
atrás dele os futuros. Aquele vinha ágil, destro, vibrante, cheio de
indistinta e universa, onde repousa
si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miserável
como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros,
com a mesma rapidez e igual monotonia”. Memórias Póstumas de
Brás Cubas, O Delírio). tão habitual e rica de pungência
Relógio do Rosário
Era tão claro o dia, mas a treva, dor dos bichos, oclusa nos focinhos,
do som baixando, em seu baixar me leva nas caudas titilantes, nos arminhos,
pelo âmago de tudo, e no mais fundo dor do espaço e do caos e das esferas,
decifro o choro pânico do mundo, do tempo que há de vir, das velhas eras!
que se entrelaça no meu próprio choro, Não é pois todo amor alvo divino,
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