Sei sulla pagina 1di 28

CAPÍTULO V

ANÁLISE DE DOCUMENTOS DE DOMÍNIO PÚBLICO

Peter Spink

1. Psicólogos sociais e historiadores

P or que muitos psicólogos sociais ainda tendem a favorecer entrevistas,


questionários e discussões de grupo – o mundo das práticas discursivas
do aqui e agora? E por que, por outro lado, muitos historiadores ainda
suspeitam da utilidade de relatos pessoais, narrativas e outras recordações
orais, preferindo trabalhar com documentos, registros e anotações produzidos
durante o período específico de seus estudos, mesmo quando aquelas outras
técnicas estão potencialmente disponíveis? Peter Burke (1992a) em seu
ensaio sobre a história e a teoria social, incluindo aí a Psicologia Social,
chamou a atenção para o curioso fato de que, mesmo sendo disciplinas
vizinhas, as visões de uma sobre a outra tendem a ser estereotipadas e seu
diálogo quase inexistente. Os historiadores se queixam das exageradas
tendências à teorização do campo social e os teóricos sociais, por sua vez,
reclamam da excessiva preocupação dos historiadores com fatos, datas e
acontecimentos. Consequentemente, não surpreende descobrir que o mesmo
se aplica à confiança sobre as diferentes fontes de dados.
Parte da dificuldade está na falta de conhecimento de um campo
sobre o outro. Na prática, os historiadores não necessariamente colecionam
datas e eventos e, como será mostrado adiante, estão tão avançados quanto
a área social na análise do polissêmico dia a dia. Outra dificuldade reside
nas diferentes tradições sobre método, que se tornam claras ao examinar as
pesquisas feitas por uma e por outra disciplina. A investigação nas ciências
sociais, e especificamente na Psicologia Social, segue quase sempre regras

100
metodológicas enunciadas antecipadamente, incluídas como capítulo ou
seção específica nos relatos. Essa preocupação de explicitar o como não é
encontrada no trabalho de um historiador. Haverá, sim, uma preocupação
em registrar as fontes; mas haverá pouca referência obrigatória ou
reprodução formalizada da discussão sobre o método e sobre o que é
história. Essa discussão existe, mas tende a ocupar seu próprio espaço. O
resultado, normalmente, é um texto elaborado muito mais no estilo daquilo
que Michael Billig (1988) distinguiu como traditional scholarship.
A astúcia individual é aspecto intrínseco da erudição (scholarship)
tradicional. Era óbvio para o scholar tradicional que era preciso ler
amplamente e em tantos idiomas quanto possível. Por meio de
extensas leituras podia ser adquirido o conhecimento amplo e
profundo, assim como a habilidade de fazer conexões entre
fenômenos aparentemente díspares (Billig, 1988:200).
Na sua essência, scholarship reflete um respeito pela diversidade de
formas a partir das quais os processos sociais se fazem presentes e pela
natureza coletiva das tentativas humanas de refletir sobre seu sentido.
Consequentemente, um recorte de jornal, uma fotografia de uma cena de
rua ou o diário oficial de um governo são tão presentativos (no sentido de
que está presente) quanto uma entrevista ou discussão de grupo. Nenhum é
mais representativo do que o outro, todos – por existirem num determinado
momento – têm uma presença, tornando redundante a própria noção da
representatividade. Para os psicólogos sociais em geral, essa aparente
mistura de elementos, fontes e meios serve no máximo para ambientar ou
contextualizar seu trabalho, mas raramente é seu foco; perdemos, em
grande parte, o hábito da especulação e reflexão sobre elementos diferentes
porém potencialmente interligados.
Uma terceira dificuldade na interação com os historiadores decorre do
fato de os psicólogos poderem conversar com o foco de seus estudos e os
historiadores não (em geral, porque há também interseções na área de história
oral ou na psicologia analítica de Jung). Um especialista nas ligas de cidades
da Idade Média ou na Revolução Francesa não pode ouvir as conversas das

101
pessoas na rua e muito menos organizar um grupo focal sobre o feudalismo
ou entrevistar diferentes atores sociais sobre a propriedade das terras e o
direito de associação. Consequentemente, os historiadores tiveram que se
especializar em trabalhar a partir daquilo que acham, independentemente de
língua ou forma. Todos os seus dados são produzidos pelos diferentes
elementos do campo, e no seu tempo, porque não há outra maneira de acessar
os focos de seus estudos. No aqui e agora que representa o foco mais comum
da Psicologia Social, os dados continuam ocorrendo naturalmente; afinal, as
pessoas sempre estão em tempo [para usar a definição de História de Marc
Bloch (1954/1992) –, a ciência de pessoas em tempo]. Mas essas fontes são
frequentemente ignoradas ou relegadas a um segundo plano.
A tentação criada pela possibilidade de poder falar, conversar e
buscar dados novos, recentes ou originais, que pertencem exclusivamente
àquele estudo específico, aliada à valorização da entrevista como parte da
identidade dos psicólogos, sem dúvida contribui. As exigências
disciplinares, quando não sectárias, de discussão e de opção por
determinados métodos e, por que não dizer, a facilidade analítica de reduzir
o campo somente aos dados ativa e explicitamente coletados – assim
podendo ignorar o aparente caos e falta de conectividade entre os múltiplos
elementos presentes – também têm seu papel. O resultado é um processo de
laboratorialização simbólica que leva os psicólogos sociais a fugir do
barulho denso e assincrônico do cotidiano enquanto lugar de estruturação
constante (Giddens, 1979; P. Spink, 1996). Esquecem que as práticas
discursivas, enquanto linguagem em ação, estão presentes de forma ubíqua
tanto nas imagens e artefatos quanto nas palavras.
Os documentos de domínio público refletem duas práticas
discursivas: como gênero de circulação, como artefatos do sentido de tornar
público, e como conteúdo, em relação àquilo que está impresso em suas
páginas. São produtos em tempo e componentes significativos do cotidiano;
complementam, completam e competem com a narrativa e a memória. Os
documentos de domínio público, enquanto registros, são documentos
tornados públicos, sua intersubjetividade é produto da interação com um

102
outro desconhecido, porém significativo e frequentemente coletivo. São
documentos que estão à disposição, simultaneamente traços de ação social e
a própria ação social. São públicos porque não são privados. Sua presença
reflete o adensamento e ressignificação do tornar-se público e do manter-se
privado; processo que tem como seu foco recente a própria construção
social do espaço público. 1

2. Aprendendo com os historiadores

Central à concepção de práticas discursivas é o reconhecimento dos


enunciados construídos intersubjetivamente, a identificação de
regularidades linguísticas nos processos de formação e ressignificação
discursiva e a polissemia como fenômeno que permite a representação
simultânea de ideias diferentes, de saberes e fazeres. São dimensões que se
intercruzam num ponto que é produto e produtor social, em constante
formação, em tempo.
A necessidade, apontada por Mary Jane Spink (1993a), de rejeitar a
noção simples de tempo como algo que avança a cada sessenta segundos,
para poder trabalhar as práticas discursivas enquanto multiplicidade de
fontes de posicionamento em tempos diferentes – o tempo longo, o tempo
vivido e o tempo curto –, oferece a possibilidade de reiniciar o diálogo com
a história. Porque, em oposição ao imaginário disciplinar, essa é também
uma postura assumida por historiadores, para os quais a simples sequência
de eventos é de pouco relevância.
Foi Fernand Braudel quem fez da discussão de tempo uma parte
central de sua argumentação. Braudel foi um crítico severo da história
tradicional dos acontecimentos políticos que chamou de história dos
eventos (événementielle). Ele a considerou superficial e potencialmente
relevante só na medida em que refletia outras forças e processos
subjacentes. É fato que 1066 e 1500 existiram, como também os eventos a

1
Habermas, Jurgen (1984). Mudança Estrutural da Esfera Pública: investigações enquanto
uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.

103
eles associados; entretanto, por si sós, são somente parte dos processos ora
de criação gradativa do Estado na Europa, concluído no século XVII, ora da
redefinição ocidental do outro,2 ainda em disputa. Também Braudel
demonstrava pouco entusiasmo com as versões agregadas da história em
que o tempo é visto como estando convenientemente organizado em
décadas, ou até séculos (interessaria sim, a tendência social de organizar
assuntos em décadas, como por exemplo os swinging sixties). Ele chamou a
atenção em toda a sua obra para a importância de se compreender outros
tempos: os tempos das civilizações e a relação dos seres humanos com seu
ambiente, em que o movimento da história é lento; os tempos dos sistemas
econômicos, dos Estados, das sociedades, das formas de pensamento; e os
tempos dos episódios, como por exemplo a Revolução Francesa, que não é
somente um acontecimento de 1789, mas um período ou fase mais longo de
reconfiguração que é, em si, parte da longa historia ocidental da liberdade
(Braudel, 1989).
Num dos seus ensaios, publicado em 1958, ele traz esse enfoque para a
temática do inconsciente, oferecendo uma clara ponte com a Psicologia Social:
“Os homens fazem a história, mas ignoram que a fazem”. A fórmula
de Marx esclarece de certo modo, mas não resolve o problema. De
fato é, uma vez mais, todo o problema do tempo breve, do
“microtempo”, dos acontecimentos, o que se nos volta a pôr com um
nome novo. Os homens tiveram sempre a impressão, vivendo no seu
tempo, de captar dia a dia o seu desenvolvimento (...). Ainda não há
muito, a linguística acreditava poder deduzir tudo das palavras.
Quanto à história, forjou a ilusão de que tudo podia ser deduzido dos
acontecimentos (...). Todos nós temos a sensação, para além de nossa
própria vida, de uma história de massa, cujo poder e cujo impulso
são, na verdade, mas fáceis de perceber que as suas leis ou a sua
duração (Braudel,1989: 23-24).

2
Todorov, T. (1982). A Conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins
Fontes.

104
Os psicólogos são, antes de mais nada, pessoas, e talvez seja de sua
socialização como pessoas que vem a maior dificuldade na interação com
os historiadores. Boa parte das pessoas que nascem dentro da esfera de
influência – ou hegemonia – da cultura ocidental judaico-cristã vê a história
como algo óbvio e que faz parte do dia a dia; um elemento de nossa
etnometodologia, taken for granted, para usar o termo de Harold Garfinkel
(1967). Algo que todo mundo sabe fazer e nasce fazendo. De fato, sabemos
contar histórias, gostamos de histórias e nossa visão de mundo é histórica.
A Bíblia, que continua sendo um referencial importante para os nossos
valores e práticas sociais, não é um tratado lógico-dedutivo; ao contrário é
uma coletânea de narrativas. Diariamente, também, as crianças continuam
dormindo aos sons de era uma vez…
Infelizmente essa etno versão sobre o que é a História deixa muito a
desejar como guia prático para um estudo mais rigoroso que frequentemente
precisa começar pela desfamiliarização das narrativas existentes. Décadas,
séculos, descobrimentos e termos como tradicional, clássico e origem se
tornam menos confiáveis do que imaginamos. Podemos usar como ilustração
um exemplo retirado do âmbito universitário brasileiro. Em 1955, a
Universidade de São Paulo publicou uma revisão de toda a legislação federal
sobre o ensino superior dos anos 1825-1952.3 Iniciando pela criação
provisória de um curso jurídico na Corte, segue pelos registros de cirurgiões
formados nas escolas de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia até o
reconhecimento dos cursos de Juiz de Fora e o Instituto La-Fayette, em 1952.
O quarto item nesse compêndio é a Lei Imperial de Dom Pedro I, de 11
de agosto de 1827, que criou dois centros de ciências jurídicas e sociais – um
na cidade de São Paulo e outro em Olinda; data que continua sendo lembrada
pelo hábito de pendurar contas em comemoração. Entretanto, mais
interessante talvez sejam as decisões menos lembradas: as de número 88 (15
de maio de 1829), 112 (27 de junho de 1829) e 135 (6 de agosto de 1829),

3
Reitoria da Universidade de São Paulo (1953). Legislação Federal do Ensino Superior
1825-1952. São Paulo: Universidade de São Paulo.

105
seguidas pela decisão 229 (5 de agosto de 1831). Nessas se encontram as
seguintes instruções, em sequência: a proibição de que os estudantes dos
cursos jurídicos façam representações nos teatros públicos (e mesmo
particulares) em tempo letivo; a explicação do aviso sobre representações
teatrais; a determinação de que sejam apontados os estudantes dos cursos
jurídicos que se retirarem das aulas sem a licença do lente; e a decisão sobre a
incúria e desleixo de alguns lentes do Curso Jurídico de São Paulo,
indiferentes à falta de frequência e aprovações iméritas de seus discípulos.
Para aqueles que imaginam que a presença obrigatória em aula é parte
do entulho autoritário do regime militar ou até algo que sempre fez parte da
vida universitária, tais registros seriam suficientes para um alerta em
contrário. Entretanto, enquanto evento, seu sentido permanece um mistério, a
não ser que, com scholarship, lembremos como era a universidade na Idade
Média,4 prestando atenção à sua gradativa construção como instituição,
incluindo aí o papel dos exames e das teses. Isso levaria sem dúvida a uma
outra linha de investigação sobre por que no Brasil se inicia um processo
diferente das demais experiências universitárias, em que, em muitos casos, a
presença em aula continua sendo opcional. Essas Decisões dificilmente
podem ser explicadas unicamente pelo conhecido autoritarismo de Dom
Pedro I. São produtos da discussão e argumentação entre atores
organizacionais e institucionais diferentes sobre a temática de controle e, sem
dúvida, influenciadas pelo conteúdo das tais representações teatrais. Pelo
menos as autoridades foram salvas de uma possível retaliação: somente 150
anos mais tarde os bonecos gigantes apareceriam no carnaval de Olinda.
Para o pesquisador da área social, acostumado a buscar ou consultar
um livro básico sobre método ou metodologia, será difícil aceitar a sugestão
de que a História é algo mais do que aquilo que todos sabem fazer. A visão
da Psicologia Social da História enquanto contexto ou raízes cria uma versão
distorcida desta como algo que se preocupa com acontecimentos que não mais
existem: um território que cuida do passado e termina onde o presente começa.

4
Le Goff, J. (1988). Os Intelectuais na Idade Média. São Paulo: Editora Brasiliense

106
Felizmente para os psicólogos sociais, algumas das mesmas questões
que geraram na Psicologia uma apreciação das práticas discursivas como
processos de produção de sentido também produziram, embora mais cedo,
uma reflexão sobre formas de pensamento (mentalité) na história,
especialmente na França e na chamada Escola dos Anais – uma referência à
revista Anais de História Econômica e Social fundada em 1929 por Marc
Bloch e Lucien Febvre, entre outros (ver Burke, 1990). A Inglaterra
também produziu novas concepções sobre a história dos processos sociais, a
chamada história de baixo para cima (history from below) em contrapartida
à história de eventos ditos importantes, a história de cima para baixo
(history from above). Ao ver autores como Bloch (1954) e Eric Hobsbawm
(1997) discutindo o que fazem; ou o cuidado com que autores como E. P.
Thompson vão buscar nos relatos e registros locais a compreensão da
cultura popular em seu confronto com o status quo;5 ou como Alain Corbin 6
identifica os múltiplos elementos, conexos e desconexos, que ao longo do
século XVIII contribuíram para inverter as imagens e usos do mar, temos
uma compreensão melhor do que implica o scholarship ao qual Billig se
referiu. Para esses autores a História não é a busca de uma causalidade
simples; A não produz B, ao contrário, muitos elementos e vozes vão se
entrelaçando de formas diferentes. Busca-se a compreensão desses
processos humanos às vezes só reconhecíveis em períodos compridos, e
busca-se também formas em que isso pode ser relatado (ver Burke, 1992b).

3. Os conselhos da arquivista

Em 1977, uma equipe de pesquisa do Tavistock Institute de Londres,


da qual eu fazia parte, elaborou um trabalho retrospectivo sobre as
experiências inglesas de autogestão na organização de trabalho na extração
de carvão no período pós-guerra (1951-1955) que resultaram na elaboração

5
Thompson, E. P. (1993). Customs in Common: studies in traditional popular culture. New
York: The New Press (traduzido pela Cia. das Letras).
6
Corbin, A. (1995). The Lure of the Sea: the discovery of the seaside: 1750-1840. London:
Penguin

107
da teoria sociotécnica de escolha organizacional.7 Parte do estudo envolvia
a tentativa de descobrir se as inovações desenvolvidas pelos mineiros da
mina do vilarejo de Chopwell, no norte da Inglaterra, em negociação com a
gerência local da Companhia Estatal de Carvão (National Coal Board,
NCB), foram experiências isoladas ou se ideias similares tinham sido
adotadas em outras partes da mesma região ou em outras regiões.
Em 1977, muitas das 130 minas que existiam na área de Durham –
incluindo a de Chopwell – já haviam sido fechadas. O que era antes uma
paisagem de fumaça de carvão, chaminés e torres de elevação, com um
transporte público precário, tinha virado uma paisagem de pequenos vilarejos,
morros verdes, rodovias e carros. Os mineiros aposentados que haviam
participado da criação do método chamado de composto (composite) não
lembravam muito de outras experiências, mas conforme eles mesmo
mencionaram, a vida na época centrava-se muito na vila, e uma parte
importante da organização sindical e das negociações eram também locais.
No início da pesquisa, fizemos uma visita à arquivista chefe da NCB
para aprender a forma como os arquivos da companhia haviam sido
organizados e pedir acesso aos mesmos para fins de pesquisa. Sendo o carvão
– especialmente no período pós-guerra – uma parte fundamental da estratégia
energética do país, e estando os campos de carvão espalhados pelo país inteiro,
não foi surpresa descobrir que a organização dos arquivos havia também sido
regionalizada. Por outro lado, por ser uma tecno-burocracia pública com uma
ética de responsabilidade, a NCB guardava todo o material produzido, tais
como relatórios, estudos e registros. Só que a arquivista alertava:
O grande problema com arquivos é que eles nunca são organizados
para responder a perguntas que queremos fazer, especialmente as
perguntas que vocês, investigadores, mais tarde querem elaborar. Ao
contrário, são organizados de acordo com os usos que os depositários
querem fazer deles, de guardar material que não precisam mas que

7
Trist, E.; Higgin, G.; Murray, H. & Pollock, A. (1963). Organizational Choice. London:
Tavistock.

108
pertence à NCB. As categorias que eles usaram são as que eles
precisam para depois retirar, se necessário: por departamento, por
área, por prédio, e sempre por ano e mês, raramente por assunto. Não
serão as categorias ligadas aos conceitos que vocês usam. É um
trabalho de detetive, vocês vão ter que indagar aonde podem estar as
informações úteis para seu estudo.
A ideia parecia interessante, entretanto rapidamente assumiu suas
devidas proporções, quando entramos no grande galpão do arquivo regional
do nordeste do país, do tamanho de seis campos de vôlei, organizado por
subárea geográfica, mina, departamento, administração regional, outros
formatos organizacionais e por ano.
Já tínhamos como ponto de partida os livros de registro de negociações
anuais produzidos pela associação sindical da área de Durham, que emergiram
da visita feita ao vilarejo de Chopwell. Com o fechamento da mina, a
organização local do sindicato havia sido desativada. Seu último secretário
tinha guardado alguns documentos numa caixa de papelão que nos mostrou
durante uma das entrevistas. Ele possuía somente três volumes, mas achava
que os outros talvez ainda existissem no depósito do sindicato do condado. Os
livros registravam os acordos assinados e, às vezes, incluíam menção ao tipo e
método de extração. Palavras como composite ou all-in eram possíveis
indicações de métodos de trabalho semiautônomo e de formas de dividir
igualmente os resultados salariais. Entretanto, o livro anual era somente um
guia geral e refletia apenas as informações enviadas para registro. Os
registros não precisavam ser detalhados e era impossível saber por quanto
tempo um acordo havia sido efetivo. Mas era um início e, entre o depósito –
literalmente – do sindicato e o arquivo regional, conseguimos localizar boa
parte dos volumes anuais. Os resultados apontavam para alguma presença
de auto gestão no condado por volta desse período (1951-1955); mas os
dados eram esporádicos e tivemos pouca confiança na nossa análise.
Infelizmente, após esse início promissor, não conseguimos avançar.
Chegamos à conclusão de que ou éramos péssimos detetives ou não havia
nada para descobrir. Quase no último dia de trabalho na região e com todas as

109
entrevistas feitas, decidimos passar uma última vez nos arquivos e por alguma
razão – talvez o cansaço – desisti das minhas buscas organizadas e perambulei
pelos corredores de três metros de altura de documentos organizados por
departamento e data, deixando simplesmente os olhos correrem por onde
quisessem. Parei numa mina que não nos interessava, fechada há muito tempo,
e fui folhear os documentos guardados por volta da época do estudo original.
Dentro de uma caixa intitulada diversos, estava uma cópia de um questionário
anexado a uma carta informando sobre o estudo salarial anual de 1956 e
alertando para o aumento de perguntas feitas naquele ano devido à
necessidade de estudar a estrutura salarial para a indústria como um todo. Abri
o questionário e lá no meio das questões descobri as perguntas que eu não
tinha sabido fazer. Junto com os nomes dos cargos, valor e todos os demais
elementos de uma pesquisa salarial, havia uma referência ao tipo de contrato.
Os contratos eram agrupados em quatro tipos distintos: (a) individual;
(b) por seção (pequenos grupos fazendo a mesma tarefa); (c) all-in (ou
distribuição igual de tarefas entre os membros da equipe); e (d) composite.
Este último vinha acompanhado por uma descrição clara e sucinta do que
significava esse contrato: um agrupamento de pessoas com múltiplas
habilidades, auto gerenciado, com compartilhamento total de ganhos salariais.
O grito de felicidade com o qual chamei os colegas foi acompanhado pelo
reconhecimento da importância da sorte na educação dos pesquisadores.
Finalmente podíamos ter uma visão melhor da presença de métodos
semiautônomos na indústria, pelo menos em 1956, que foi um período
importante no processo de mecanização. Agora era só uma questão de seguir
os traços do estudo salarial anual de 1956, arquivo por arquivo, indo atrás dos
resultados, dos relatórios regionais e dos relatórios finais no arquivo central.
Não foi tão fácil assim, porque muitos dos dados originais – os questionários
de cada mina – tinham sido perdidos ou não depositados; mas, no final,
pudemos determinar que algo em torno de 6% das frentes de carvão tinham
um grau significativo de auto-organização e, mais importante, que isso
variava por região do país, refletindo tradições anteriores de organização e
práticas de negociação. A importância desses dados cresce quando se lembra

110
que os agrupamentos auto-organizados do método composite foram formados
por cerca de quarenta a sessenta pessoas.
O final dessa história, entretanto, não é feliz – especialmente para
aqueles que lutam por melhores condições de trabalho e para o
reconhecimento da competência e capacidade organizativa dos
trabalhadores. Descobrimos que o estudo anual também havia sido usado
para apoiar as negociações entre a NCB e o sindicato nacional dos mineiros
(NUM) para simplificar os nomes dados aos cargos de trabalho na indústria.
No congresso anual do NUM, em 1952, o seu secretário reclamou:
Temos 1.700 diferentes tipos de trabalho ou nomes para diferentes
tipos de trabalho (...) temos que dividi-los de acordo com uma
nomenclatura e reduzi-los para cerca de 300. Por exemplo, temos
mais de 15 nomes para o collier [mineiro de face], a collier (...) a
stripper, a composite worker (...) a filler (...). Todos estes são nomes
para o mesmo trabalho.
Ao ser firmada a revisão da estrutura de cargos para a indústria, junto
com uma nova estrutura salarial, tanto a referência salarial do método
composite quanto o mineiro composto desapareceram. Viraram a categoria
de mineiro F1, com salário individual. A pergunta sobre os saberes e
fazeres refletidos nas palavras locais não foi feita – o momento foi de
consolidação nacional.8

4. Métodos e fontes

Os arquivistas e os historiadores – os guardadores de dados pelo


tempo e os analistas de dados em tempo –, ambos apontam caminhos para a
busca e a interpretação. Os psicólogos sociais não são historiadores nem
arquivistas, mas podem aprender com ambos tanto a variedade de maneiras
de acessar o sentido em produção, quanto a discussão sobre o olhar e analisar.

8
Murray, H. & Spink, P. (1979). Socio-Technical Systems in Mining (1951, 1955, 1969) –
three follow up studies. Report to the Social Science Research Council, London: Tavistock
Institute of Human Relations, doc 2T 204.

111
Versões mais densas e assimétricas de tempo; a valorização daquilo que é
produzido no fazer do cotidiano; a abertura aos possíveis sentidos ou
caminhos do material coletado e os debates sobre textos, narrativas tomadas
como discurso e a representação histórica influenciada por Hayden White
(1987) estão entre os procedimentos que podem ser aprofundados.
Se há um primeiro passo, talvez seja aquele ao qual a arquivista se
referia, ou seja: parar de pensar sobre o que nos interessa e prestar atenção ao
que é criado, guardado ou deixado pela passagem do cotidiano. Feita essa
inversão, começamos a nos tornar conscientes do universo de possibilidades
que existem e da densidade e variedade dos elementos presentes na produção
de sentido. A desfamiliarização do dia a dia se inicia dessa forma, ao parar de
assumi-lo como dado – ou, na expressão dos etnometodologos, taken for
granted – e começar a registrar seus elementos e artefatos.
Os documentos de domínio público são produtos sociais tornados
públicos. Eticamente estão abertos para análise por pertencerem ao espaço
público, por terem sido tornados públicos de uma forma que permite a
responsabilização. Podem refletir as transformações lentas em posições e
posturas institucionais assumidas pelos aparelhos simbólicos que permeiam o
dia a dia ou, no âmbito das redes sociais, pelos agrupamentos e coletivos que
dão forma ao informal, refletindo o ir e vir de versões circulantes assumidas
ou advogadas. Para os grupos profissionais, situados simultaneamente no
institucional e no dia a dia, o mundo das publicações é igualmente rico,
permitindo acesso às coalizões de pensamento e diálogo que Ludwik Fleck
denominou, em 1935 (1979), de coletivos de pensamento – denkkollektiv –
a partir de sua análise sociocultural da construção da sífilis.
Enquanto práticas discursivas, os documentos de domínio público
assumem formas diferentes. Arquivos diversos, diários oficiais e registros,
jornais e revistas, anúncios, publicidade, manuais de instrução e relatórios
anuais são algumas das possibilidades. Tudo tem algo a contar, o problema
maior é aprender a ouvir. A escolha de material pode ser feita a partir de
uma análise inicial do campo, como por exemplo no uso feito por Mary

112
Jane Spink (1994a) do JAMA e da Lancet em seu estudo sobre a
hipertensão; ou pode emergir de forma mais aleatória a partir daquilo que se
apresenta. O acaso é um elemento importante e nunca deve ser descartado;
os pesquisadores no campo da produção de sentido aprendem a ser
catadores permanentes de materiais possivelmente pertinentes.

5. As palavras, os dicionários e os jornais diários

Às vezes são as palavras que levam os pesquisadores aos documentos


de domínio público, na busca de compreender as sutis transformações nos
termos e expressões que formam este ou aquele terreno de sentidos. Por
exemplo, mesmo que o termo revolução já tivesse sido usado por
Copérnico (a revolução das orbes celestes) e entrado no discurso político, o
seu derivado revolucionário tem uma origem mais clara: 1789 e os comitês
e tribunais revolucionários da Revolução Francesa.9
Nos primeiros anos do ensino de Psicologia aprendemos que não se
deve procurar as definições nos dicionários – nem mesmo nos dicionários
científicos. Afinal, a definição de algo é uma decisão científica, debatida
nas revistas apropriadas e nos livros autorizados. O que um entende por
representação e o que o outro entende por versão é uma questão de
precisão teórica. Aqui também há muito a ser desaprendido. Dicionários,
especialmente aqueles elaborados com princípios etimológicos e, quando
disponíveis, dicionários dos séculos passados, são fascinantes fontes de
reflexão sobre a produção de sentido, sobre os saberes e fazeres. A presença
muito discutida do termo accountability em concepções da democracia
anglo-saxã só começa a fazer sentido quando se percebe o número de
páginas que ocupa, por exemplo, no Oxford Dictionary e suas raízes nos
relatos honestos sobre contas e eventos. Um bom dicionário não vai
resolver as questões do pesquisador – mas pode ajudar a criar questões.

9
Langins, J. (1996). Palavras e Instituições durante a Revolução Francesa: o caso do ensino
científico e técnico “revolucionário”. In P. Burke & R. Porter (orgs.). História Social da
Linguagem. São Paulo: Editora da UNESP.

113
Erico Renteria10 levantou, como parte de uma pesquisa sobre as noções de
grupo usadas por intervencionistas em dinâmica de grupo, mais de trezentas
palavras referentes à forma de ação coletiva. Mutirão, por exemplo, muito
usado na área urbana para trabalho coletivo, vem do uso anterior para o
auxílio que os lavradores prestam uns aos outros; entretanto, sua
descendência é tupi: moti’rõ.
Junto com os dicionários, os grandes jornais diários são ótima vitrines
para as idas e vindas dos sentidos. Que nome, por exemplo, é dado às pessoas
que povoam o dia a dia: o proletariado de Marx, o crowd, ou as massas cujas
ações levaram Gustave Le Bon a iniciar uma das primeiras reflexões
sociopsicológicas sobre o coletivo em 1895 (Psychologie des foules).
No Diário de Pernambuco de 9 de agosto de 1950 lemos: “Sofreu o
popular violenta agressão”; e no Diário de São Paulo, comemorando o 9 de
Julho de 1954, em destaque na primeira página, sob o título “Festeja o povo
nas ruas a epopeia de 32”, lemos o seguinte: “milhares de pessoas nas vias
centrais dão um aspecto invulgar de movimentação à cidade – centenas de
populares amanheceram nas praças e jardins para assistir a ‘alvorada solene’ e
demais festividades promovidas pela Associação das Emissoras de São
Paulo”. Em 8 de maio de 1968, o mesmo Diário de Pernambuco comenta a
fuga de um louco varrido de um hospital, preso depois por populares.
Entretanto, em 1995, cinco mil pessoas eram esperadas para assistir ao
espetáculo Maracatu, de Chico Rei, no Parque da Independência em São
Paulo (Diário Popular, 2 de dezembro de 1995). O que significa a transição
de popular, enquanto nome de pessoa incógnita, parte do pano de fundo do
dia a dia, para pessoas, povo e povão? Pergunta similar, ao inverso, pode ser
feita para uma palavra recém-chegada ao espaço público: empregabilidade.11

10
Renteria Perez, E. (1997). Grupos e Intervenções Grupais: relações e implicações na
perspectiva de profissionais que trabalham com grupos. Dissertação de mestrado, PUC-SP.
11
Spink, P. (1997). Empregabilidade. In Casali, A.; Rios, I.; Teixeira, J. E. & Cortella M. S.
(orgs.). Empregabilidade e Educação: novos caminhos no mundo de trabalho. São Paulo:
EDUC

114
Os grandes jornais diários tendem a guardar suas edições durante
anos, o que permite aos pesquisadores voltarem a eles de forma mais
ordenada, buscando compreender nas entrelinhas dos movimentos políticos,
econômicos e sociais as sutis, e às vezes não tão sutis, alterações nas
práticas discursivas. Tempo, aqui, não precisa ser medido em anos ou partes
de um século; às vezes, seguir o cronômetro interno das ações (seus
horizontes próprios) pode ser uma fonte de questões e reflexões.
As eleições presidenciais brasileiras de 1994 foram essencialmente uma
disputa entre Luiz Inácio Lula da Silva do PT e Fernando Henrique Cardoso
do PSDB. Um dos temas presentes no espaço público foi a questão de partido.
Em meados de junho daquele ano, o candidato do PT tinha 41% das intenções
de voto contra 19% de seu principal rival do PSDB. No dia 15 de junho a
revista Veja saiu com uma matéria de capa intitulada “Por que o partido de
Lula brilha e assusta”, que serviu de foco para uma série de comentários sobre
a qualidade da pessoa versus a dominação do partido. Independentemente dos
elementos de preconceito, que estarão sempre presentes num confronto de
classes e que são parte intrínseca de toda eleição, a questão da relação
candidato-partido e candidato-partido-aliança remete a uma discussão mais
ampla, sobre a consolidação democrática e a temática de transições.12
Acompanhando o processo eleitoral num dos jornais diários brasileiros
que faz da precisão e da responsabilidade um de seus elementos de identidade
(a Folha de São Paulo), a significação e ressignificação de partido e pessoa
emergiu tanto nos artigos escritos por protagonistas quanto por jornalistas. No
início de agosto, com uma leve vantagem para o candidato do PSDB, os
críticos da candidatura de Lula regularmente produziram textos com uma
densidade alta de uso das palavras PT, Lula e, em terceiro lugar, militância.
Luiz Inácio Lula da Silva era referido desde o início como Lula, enquanto
Fernando Henrique Cardoso era referido como Fernando Henrique Cardoso.
Nesse período também, alguns dos próprios defensores do candidato do PT

12
Przeworski, A. (1989). Como e Onde se Bloqueiam as Transições para a Democracia? In
Moises & Albuquerque (orgs.). Dilemas da Consolidação da Democracia. São Paulo:
Editora Paz e Terra.

115
produziram textos em que havia muito mais menção às ideias e às qualidades
de Luiz Inácio Lula da Silva enquanto pessoa do que à sua plataforma
partidária. As reportagens da equipe própria da redação da Folha sempre
mantiveram, durante grande parte do processo, e para todos os candidatos, a
disciplina do nome completo seguido pela sigla partidária.
No final de agosto e início de setembro, o candidato do PSDB era cada
vez mais citado como FHC, e as palavras mais comuns nos textos de
comentaristas de todas as inclinações eram PT – Lula e Fernando Henrique
Cardoso – programa FHC. Parecia que as iniciais FHC acabavam por criar seu
próprio símbolo partidário – escondendo os inúmeros interesses já presentes em
sua coalizão. Ao comentar a pesquisa Datafolha do dia 10 de setembro, com
resultados de 45% contra 23%, a Folha abre uma manchete com as palavras
Vantagem de FHC se estabiliza. Nas páginas internas, (Caderno Especial,
Super eleição, p.4), ao discutir os resultados, o comentarista disse:
As regiões Nordeste e Sul, que foram, até o final de julho, os
principais motores da liderança da candidatura Luiz Inácio Lula da
Silva, agora ajudam o seu principal adversário, Fernando Henrique
Cardoso, a consolidar a vantagem sobre o petista.
No restante do texto, de vinte centímetros ou meia coluna, FHC é
mencionado sete vezes, Lula, seis, e em nenhum momento o primeiro é
chamado de peessedebista. Esses recortes não devem ser entendidos como
críticas ao jornal; pelo contrário, demonstram que, mesmo em situações em que
há uma forte ênfase no estilo, o sentido se produz nas entrelinhas das práticas
discursivas. A nossa transição democrática continua, de certa forma, bloqueada.
Trabalhar com jornais, ou outro tipo de mídia estabelecida, requer o
reconhecimento das regras a partir das quais os textos são gerados. Requer
também a disposição de ler e acompanhar aquilo que é escrito dia após dia.
Às vezes é possível identificar uma coluna regular ou uma parte do jornal
que seja mais pertinente ao tópico em estudo, mas mesmo assim é
necessário ampliar o olhar para ver o texto mais amplo dentro do qual o
texto específico está sendo produzido. Essa atenção às dimensões do texto é

116
característica dos analistas de discurso, como Norman Fairclough (1995),
que se agregam em volta da revista Discourse and Society, editada por Teun
A. van Dijk (1997). Os textos utilizados nos artigos são sempre
apresentados em trechos amplos e nunca fragmentados; não é a frase que é
importante, mas o discurso do qual faz parte.
Por exemplo, Fairclough,13 usou anúncios de programas e cursos
universitários, e também anúncios para postos de professor em várias
universidades inglesas, para discutir o que chamou de mercantilização do
discurso público. Dorte Salskov-Iversen14 usou os documentos oficiais de
dois municípios ingleses para continuar essa reflexão na interseção do
discurso gerencial com o da cidadania no contexto local. John Flowerdew
demonstrou como os discursos e documentos públicos do último governador
da colônia britânica de Hong Kong poderiam servir para uma reflexão sobre o
discurso da retirada colonial, dando destaque ao papel da produção de
elementos míticos.15 A mudança radical que representou na Grã-Bretanha o
governo de Margareth Thatcher também estimulou um grande número de
estudos e o trabalho de Louise Phillips,16 que utilizou textos oficiais dos
partidos políticos britânicos, material de jornal e falas de partidários,
apontando para a centralidade da escolha (choice) na construção da retórica
thatcheriana. Da revista Text, da qual saiu a revista Discourse and Society,
vale a pena citar, entre outras, uma referência ao trabalho de Gino Eelen,
analisando documentos das Nações Unidas em relação à temática da
autoridade durante a crise do Congo em 1960,17 e ao de Barbie Zelizer18 sobre

13
Fairclough, N. (1993). Critical Discourse Analysis and the Marketization of Public
Discourse: the universities. Discourse and Society 4, 2, 133-168.
14
Salskov-Iversen, D. (1997). A Discursive Perspective on British Local Government’s
Response to Change: a tale of two cities. Discourse and Society 8, 3, 391-415.
15
Flowerdew, J (1997) The Discourse of Colonial Withdrawl: a case study in the creation of
mythic discourse. Discourse and Society 8, 4, 453-477.
16
Phillips, L.(1996). Rhetoric and the Spread of the Discourse of Thatcherism. Discourse and
Society 7, 2, 209-241.
17
Eelen, G. (1993). Authority in International Political Discourse: a pragmatic analysis of
United Nations documents on the Congo crisis (1960). Text 13, 1, 29-63.
18
Zelizer, B. (1989). “Saying” as Collective Practice: quoting and differential address in the
news. Text 9, 4, 369-388.

117
as práticas de citação utilizadas por jornalistas em diferentes mídias. Como
ela aponta, em observação que tem ramificações bem maiores: “as práticas de
citação são os cartões de crédito do discurso público contemporâneo;
emprestam crédito a quem fala e as utiliza em seus recados” (p. 369).

6. Bricolage

Às vezes não é um documento ou uma série específica de


documentos que importa, mas a presença ubíqua de uma temática em
documentos distintos que serve como sinal para a desfamiliarização inicial.
Quatro pequenos exemplos podem ser utilizados para demonstrar essa
abordagem que junta o olhar do catador com o bricoleur de Lévi-Strauss.
As relações de raça e de gênero continuam sendo campos bastante
pantanosos no cotidiano brasileiro; as tentativas de abordar a questão são
frequentemente rejeitadas como exageradas – em muitos casos nem sequer se
admite que há algo a discutir. Nos últimos quatro anos coletamos alguns
exemplos de documentos de domínio público que demonstram o outro lado do
taken for granted da nossa cordialidade. Primeiro, de Santarém, veio um
anúncio público ou outdoor (também documento) com o título de “Mutirão da
Vacinação 31 de julho a 10 de agosto”,19 assinado pela Secretaria Municipal de
Saúde: Participe da Campanha Municipal de Multivacinação na Grande.
Área do Santarenzinho, para crianças, mulheres e animais domésticos.
O Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo produziu um panfleto
para ajudar os mesários nas eleições presidenciais e estaduais de 3 de
outubro de 1994. Elaborado em forma de quadradinhos, o documento
explica o papel e as tarefas de seis personagens, cada um com um número
na sua camisa – os mesários. Dos seis, cinco são homens, um dos quais
negro com lábios em forma de banana, e uma é mulher, loira de cabelos
soltos, sobrancelhas e busto amplo. Ao analisar o papel de cada
personagem, descobrimos que um vai ficar na porta verificando se o título

19
Fotografado por nossa colega Vera Menegon.

118
do eleitor é daquela zona e seção; o segundo vai verificar o título no
caderno de votação e mostrar onde o leitor deve assinar; um terceiro vai
entregar a cédula eleitoral; um quarto ficará de pé na sala para mostrar onde
fica a urna e levar o comprovante do terceiro para o sexto personagem, que
vai entregá-lo para o eleitor antes de sair; o quinto personagem vai sentar ao
lado da urna e após a primeira votação vai entregar uma segunda cédula; o
quarto personagem vai mostrar de novo o caminho da urna. Talvez não seja
óbvio, a primeira vista, que é a mulher loira que fica com a
responsabilidade da urna; mas, num país que nega problemas raciais, não
deve ser difícil descobrir quem fica de pé na sala mostrando o caminho da
urna e levando os comprovantes de um lado para o outro.
De novo a temática de gênero: em 1997, a agora extinta TELESP
conseguiu a proeza de colocar na frente da conta telefônica do dia das mães
um desenho, provavelmente tirado de uma coletânea de desenhos
computadorizados, de uma mulher loira sentada juntamente com a filha
loira, de tranças compridas, em um sofá de pelo menos cinco lugares (de
estilo norte-americano). Aqui não se trata de uma crítica sobre a falta de
savoir faire político desta ou daquela organização ou instituição pública,
mas de demonstrar o quanto certas temáticas se manifestam de forma
transparente no agir público, sendo consideradas como totalmente normais.
Em todos os casos, a decisão de publicar ou imprimir não foi de indivíduos
mas de uma cadeia decisória e hierárquica em que, sem dúvida, diferentes
ideias e exemplos foram discutidos.
Finalmente vem do Departamento Estadual de Estradas de Rodagem
de São Paulo (DERSA) o programa da operação verão, decorrente dos
problemas criados pelos milhares de carros que saem da área metropolitana
para o litoral paulista nos fins de semana e nos feriados. A história em
quadrinhos tem o título de “Dersinha em operação verão 98”. Os
personagens, pai e mãe com casal de filhos de 7-10 anos, são claramente
brasileiros e seu carro é pequeno, quadradinho e popular. O estilo dos
desenhos é leve e bastante colorido. A família vai passar o fim de semana
na praia. Após calibrar os pneus e colocar o cinto, a viagem começa:

119
filho: Pai, o senhor ligou para o número 0800-555510?
mãe: Ei, vocês dois agora estão falando em código?
pai: Código? Ah, Ah, Ah!
pai: Sim, já liguei, está tudo normal.
mãe: Vocês estão me deixando curiosa, podem explicar melhor?
filho: Claro, mamãe, o número 0800-555510 é do DISQUE-DERSA,
já esqueceu?
mãe: Puxa, é mesmo, mas isso aqui não esqueci (mostrando o
cupom).
filho: O cupom de pedágio!
filha: Já vamos ganhar um tempinho!
No dia seguinte, na praia:
mãe: Está tudo muito gostoso e as crianças estão aproveitando bem,
mas…
pai: Já sei, você está preocupada com a volta, não é?
pai: Eu também estou... e não gostaria de pegar a rodovia muito
cheia.
mãe: Seria muito cansativo se isso acontecesse!
filho: Calma pessoal, a…
filho: Viagem de volta será tranquila!
pai: Ah, já sei o que fazer!
pai (no orelhão): Alô! DISQUE-DERSA? Eu gostaria de saber o
melhor horário para subir…
No carro:
filho: Claro, a DERSA se preocupa com o nosso conforto.
mãe: Puxa, esse pessoal da DERSA sabe mesmo o que faz!

120
pai: E nos ensina os melhores caminhos…
pai: É só telefonar para o DISQUE-DERSA e prestar atenção nas
informações!
filho ou filha: Foi muito legal este fim de semana!
mãe: E como o papai aqui descansou!…
pai: Nem fale!
Quem é Dersinha? A filha que só aparece visualmente ou a mãe que
esquece o número mágico da DERSA e está feliz que o papai descansou? A
função da história é para lembrar o leitor e a leitora do serviço de
informação da DERSA – pelo menos uma de suas versões.

7. Documentos de domínio público seriados

Em seu trabalho sobre hipertensão, Mary Jane Spink (1994a) buscou


localizar em tempo os diferentes elementos identificados nas entrevistas
com um médico clínico geral, a partir de uma análise retrospectiva de
revistas de medicina. As revistas escolhidas foram The Lancet, inglesa, e o
Journal of the American Medical Association (JAMA). Em ambos os casos,
são revistas clássicas nos seus respectivos países, representando – quase que
institucionalmente – a opinião médica da época. A seção das revistas
escolhida para análise foram os editoriais, expressão oficial do corpo
editorial, e o ponto de partida foram os primeiros números existentes na
biblioteca da Faculdade de Medicina da USP – 1899 para a Lancet e 1912
para o JAMA. A escolha prática de iniciar onde era possível teve resultados:
a primeira menção de hipertensão essencial foi encontrada em 1912 no caso
da JAMA e em 1929 no caso da Lancet. A partir disso foi possível seguir as
diferentes perspectivas sobre a hipertensão desde a sua configuração
enquanto doença até sua substituição pela noção de risco.
Usar documentos desse tipo, que têm uma presença no campo de
interesse e que são produzidos regularmente e de forma seriada, é um
excelente caminho para a compreensão da gradativa emergência,

121
consolidação e reformulações dos saberes e fazeres. Não se trata,
lembramos, da busca de uma cronologia ou ponto 0 – porque isso nada mas
seria do que a construção moderna de uma versão narrativizada do tópico
em foco –, mas da identificação dos conflitos e diálogos diferentes que
refletem a processualidade das práticas discursivas. Para a Psicologia, as
revistas oficiais das sociedades e as publicações institucionalizadas, como
por exemplo o Annual Review of Psychology, oferecem muitas
possibilidades, uma vez que conseguimos nos des-familiarizar de seu
conteúdo enquanto psicólogos e perceber que estamos diante de uma prática
discursiva, ou seja, podemos analisar quais são os critérios de revisão
escolhidos e quais as razões dadas por esta ou aquela ênfase ou exclusão.
Documentos seriados e relatórios anuais também fazem parte das
práticas discursivas de uma outra categoria de organizações: os organismos
internacionais. Sendo eles, em muitos casos, produto dos eventos e ideias
que influenciaram a discussão diplomática e profissional sobre a regulação
e a interdependência antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial,
passam a assumir um papel mais ativo enquanto organizações de referência
a partir da configuração do sistema das Nações Unidas.20 Uma busca
cuidadosa dentro da flora e fauna das publicações dessas organizações
demonstrará, entretanto, que nem sempre o publicado e público é aquilo que
parece. Não é incomum descobrir um relatório ou um artigo com uma nota
de rodapé explicando que as opiniões apresentadas são do autor e não da
instituição. O que fazemos nessas circunstâncias?
A resposta mais simples é reconhecer que a nota de rodapé faz parte
da retórica da responsabilização e que qualquer tentativa de associar
diretamente as ideias com a organização terá pouco efeito. Por outro lado,
não há como negar que as ideias, por serem publicadas, representem
práticas discursivas circulantes que são parte da sombra da produção oficial.
É nesse terreno intermediário, do é mas não é que as posições mais visíveis

20
Incluindo as agências específicas (OMS, OIT, UNESCO) e o sistema financeiro
consolidado na reunião de Bretton-Woods (o Banco Mundial e os bancos regionais de
desenvolvimento, como o BID, Banco Interamericano).

122
são formadas e testadas, gerando o que Sabatier e Jenkins Smith (1993)
chamaram de coalizões advocatórias.
Essa dificuldade fica mais visível após a criação dos diversos
relatórios mundiais: saúde (World Health Report), desenvolvimento
humano (PNUD) e o World Development Report do Banco Mundial. Mais
variadas e contundentes no seu conteúdo, as críticas e os debates
apresentados frequentemente são relatados como sendo dos autores e não da
organização: é mas não é.
De fato, os representantes das instituições internacionais estão sendo
coerentes consigo mesmos quando afirmam que os pontos de vista não são
das organizações ou, mais frequentemente, países membros. Mas o que
devem fazer os pesquisadores? Aceitar a ética da citação é necessário, mas
a noção do espaço das versões circulantes é também útil. Um caminho
complementar é ir atrás dos relatórios verdadeiramente declarados como
oficiais, buscando compreender sua lógica e sua forma de composição
como prática discursiva, e seguir pacientemente, um por um, ano por ano,
atento às pequenas modificações que denotam a incorporação de palavras e
ideias. Tal como a criação de um desenho animado em folhas de papel
sucessivas, o ir e vir paciente entre anos e momentos diferentes revela as
dimensões do movimento das perspectivas, narrativas e versões que se
entrelaçam com saberes e fazeres produzindo sentido. A gradativa
hegemonia do Banco Mundial, seu papel na legitimação de perspectivas
individualizadas sobre a pobreza e na criação do modelo good
housekeeping de gestão financeira e governança proposta para os países em
desenvolvimento são parte também de uma produção mais ampla: a da
retórica da globalização. Na área da saúde, por exemplo, os relatórios de
congressos específicos e o próprio Bulletin da Organização Mundial da
Saúde (iniciado em 1946 e ainda em circulação) são algumas dentre as
fontes disponíveis para buscar compreender a construção do espaço
internacional no debate sobre o HIV. Relatórios oficiais de congressos

123
temáticos – sobre habitação ou sobre população e desenvolvimento, por
exemplo – também oferecem pistas importantes de reflexão. 21
Infelizmente, em muitos casos, nossas bibliotecas tendem a não ter
séries completas de certos documentos oficiais. Às vezes os novos meios,
como a Internet, ajudam a identificar fontes, mas nem sempre incluem
material original de mais de cinco anos atrás. A solução é ficar sempre
alerta às possibilidades e lembrar que os documentos nem sempre estão nos
lugares mais óbvios.
Fontes de revisão de material também são úteis, mas não
necessariamente pelas razões mais óbvias. Os serviços de identificação
anual de material produzido numa área específica frequentemente focalizam
os cem ou 150 trabalhos julgados mais relevantes, e não necessariamente
todo o material produzido. Para o pesquisador que está interessado em se
manter atualizado em seu campo, isso pode ser suficiente, mas, para os
analistas da construção de sentido, leva a um outro nível de reflexão: afinal,
o que é relevante?
Estou, há quatro anos, envolvido em um programa de pesquisa sobre
as versões circulantes na produção de sentido dos processos de reforma
administrativa na América Latina desde o período dos anos vinte. Isso
implica um ir e vir constante entre materiais coletados em bibliotecas e
arquivos diferentes, entre narrativas diferentes sobre qual é a história de
reforma e uma apreciação dos processos sociais e políticos dentro dos quais
se inserem. 22 Uma das múltiplas fontes disponíveis sobre a área latino-
americana é o Handbook of Latin American Studies, livro que é produzido
anualmente desde 1935 com pequenos resumos de itens publicados sobre a
América Latina numa variedade de áreas e com atenção específica na

21
Ver, por exemplo, sobre a Conferência das Nações Unidas sobre População e Desenvolvimento
(Cairo, 1994), Margareth Arilha (1999). Masculinidades e Gênero: discursos sobre
responsabilidade na reprodução. Dissertação de Mestrado, PUC-SP.
22
Spink, P. (1998). Possibilidades Técnicas e Imperativos Políticos em 70 anos de Reforma
Administrativa. In Bresser Pereira, L.C. & Spink, P. K. (orgs.). Reforma do Estado e
Administração Pública Gerencial. Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getulio Vargas.

124
produção dos países da região. Cada capítulo portanto é um reflexo daquilo
que é produzido, mas também forma uma narrativa porque seria impossível
itemizar ou identificar todos os materiais produzidos pertinentes a um
determinado tópico em todos os países da América Latina – que por sinal é
uma denominação de origem francesa que data do século XIX. Para
consultar o Handbook, como para consultar qualquer livro de referências, é
portanto necessário trabalhar, ao mesmo tempo, seu conteúdo e as práticas
discursivas que lhe dão sentido – sua forma em tempo.
O Handbook surgiu nos Estados Unidos em 1935 no contexto do
Advisory Committee on Latin American Studies do American Council of
Learned Societies, sem dúvida influenciado pelo já ativo envolvimento
econômico e político nos países da região. O tópico governo foi incluído no
Handbook em 1936 e compilado por um dos bibliotecários da Biblioteca do
Congresso, J. B. Childs. Childs concentrou-se nos relatos dos governos da
região sobre as suas administrações públicas, nas inúmeras mudanças
publicadas na estrutura organizacional e nas palestras públicas sobre a
temática de governo. O resultado é um quadro de governos que fazem as
coisas que todos os governos fazem: organizando, reorganizando,
discutindo eficácia e eficiência, aplicando técnicas – enfim, o dia a dia do
processo administrativo. Na introdução ao capítulo de 1936, ele comenta:
“o interesse na reorganização e eficiência administrativa, comum nos
estados dos Estados Unidos da América, está presente na mensagem do
governador do estado de São Paulo, como também na cidade de São Paulo e
em outras partes da América Latina”.
Durante o período 1937-1946, Childs dividiu a seção de governo com
um professor de ciência política; o primeiro focalizando as mudanças nas
administrações e o segundo, os comentários gerais sobre os problemas de
governo e os desafios a serem enfrentados. Em 1947, quando é publicado o
volume do Handbook para 1944, por falta de espaço foram eliminadas duas
seções: uma sobre as mudanças em administração – coordenada por Childs
– e outra sobre Tratados, Convenções e Atos. A coordenação da área de
governo passa a ser feita exclusivamente por acadêmicos de ciência

125
política, e a grande maioria dos documentos escolhidos para citação passa a
ser análises gerais, escritas por comentaristas. O número de trabalhos
resumidos na língua inglesa sobe de 4% para 11%.
No período pós-Segunda Guerra Mundial e especificamente nos anos
de 1946-1950, a construção social do desenvolvimento e da
ocidentalização23 estava em pleno avanço. Isso é visível tanto em discursos
e documentos de organizações internacionais quanto na fala inaugural do
presidente Truman, dos Estados Unidos da América. No processo, a
América Latina seria reinterpretada como subdesenvolvida mas com
potencial (mais tarde as palavras seriam em desenvolvimento ou emergente)
e seus governos como difíceis e faltando competência. O ponto quatro do
presidente Truman abre um caminho que levaria à Aliança para o Progresso
e o Tratado de Punta del Este (1961). Vale a pergunta: os resumos geram a
versão ou a versão gera os resumos?
Esses pequenos períodos e passagens podem ser poucos para os
historiadores e sem dúvida refletem outras questões e temas. Porém, para os
psicólogos sociais são um passo inicial para a compreensão da ubiquidade
das práticas discursivas produzidas nas interações organizacionais e sociais
que formam o cotidiano barulhento. Talvez seja essa a nossa contribuição
ao espaço interdisciplinar.

23
Sachs, W. (ed.) (1992). The Development Dictionary. London: Zed Books; Latouche, S.
(1996). The Westernization of the World. Cambridge: Polity Press.

126

Potrebbero piacerti anche