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DA CÚNICA DA ANGÚSTIA
(ANGÚSTIA NEURÓTICA, IDSTERIA DE ANGÚSTIA E ENTRADA EM ANÁLISE)

Antonio Godino Cabas

Certamente, o analista que, no curso de sua prática, teve a

ocasião de defrontar-se com a angústia, e não apenas com 0
fenômeno episódico, mas com a crise de angústia propriamente
dita, a crise aguda, sabe bem que ela representa um desafio clínico.
A começar pela premência do pedido e pelas sensações de
ameaça e perigo que dão à demanda um tom de urgência. A seguir, ' '
pela variedade das manifestações que transformam o invólucro
formal em uma apresentação clínica tão irregular como atormentada.
Finalmente, pelos efeitos devastadores para o sujeito que, não raro,
Clovis Eduardo Zanetli mergulha em busca de amparo em soluções de desespero quando já
Psicólogo
CRP-08/09643 não consegue escorar seu alívio nas bízarrías ideativas da crença
delirante ou nas tramas da superstição.
Esse distúrbio vital, transtorno da experiência subjetiva ou,
mais radicalmente, afecção do sujeito, é não apenas causa da
demanda como também razão da cura. Daí que, em torno de seu
tratamento, a históriá da psicanálise registre os mais efetivos
progressos da doutrina tanto quanto os mais marcantes desvios.

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 uma nota clínica
Entretanto, para além do estado afetivo que o paciente
geralmente descreve como uma aflita apreensão, um penoso
mal-estar, uma vaga irrequietude, uma inquietante espera, um
indiscernível desânimo, um desacorçoamento ou até mesmo um
franco desespero - são as formas mais evocadas -, a crise de
angústia propriamente dita é uni fenômeno que eclode ora como
súbita. avalanche ora na forma de golfadas. Em ambos os casos,
afeta o sujeito até o mais íntimo de seu ser e vai muito além dos
dados da sensibilidade. Aguda, brota como um real no corpo e toca
aos limites do subjetivável.
Nessa fronteira, beiral de fim do mundo, a reação do sujeito
já não é de quem confidencia uma dolência e sim o mutismo de
quem se deparou com o indizível ou, então.icórn a dura monoma-
nia de uma queixa. A sensibilidade perde seu valor indicativo e aí
o que conta, o porta-voz, é o corpo que passa a carregar, de fato,
os estigmas desse encontro. Por vezes, como ferimentos de um
tecido que se rasga, por outras, como dano de uma função vital
que não anda.
Evoco, senão as taquicardias do pavor noturno, as crises de
pânico da vigília, os espasmos respiratórios do sobressalto, com
suá. sensação de morte iminente, os enjôos que precedem o reflexo
do vômito e, por fim, a fadiga, o cansaço e a astenia, que dão ao
dia-a-dia uma palidez esvaída. Ou ainda, o circuito da bulimia, da
náusea e da inapetência, fazendo contraponto aos ciclos da cons-
tipação intestinal, dos espasmos estomacais e das diarréias. Isso
para citar um.caso, nem de longe o único,
Simplesmente porque, em suas variações, a crise pode tomar
outras formas como, por exemplo, intensas dores no peito e, então,
co~ base numa dor angina! insidiosa, despertar o fantasma de um
acidente cardíaco ... Não só. O mesmo quadro pode ainda incluir
dores musculares com contraturas das articulações (à maneira das
febres do reumatismo infantil) e inibir grande parte da capacidade
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de movimentar-se. "Sem ação" - diz então o sujeito-, como se
intuísse que a natureza do mal está para além do movimento, na .
perspectiva do ato.
Pois bem, se recapitularmos a coleção esboçada, extrairemos
uma lista nada exaustiva que inclui: taquicardias, náuseas, reflexos
de vômito, constipações intestinal, espasmos estomacais, bulimias,
enjôos, inapetências, espasmos respiratórios, dores de tipo anginal,
dores musculares e articulares., , faltando ainda repertoriar as
oscilações da pressão arterial. Deparamos, no fim, com uma
coleção de alterações. Todos os fenômenos aqui mencionados
correspondem a um desarranjo funcional; denotam _ uma função
vital que não anda. Em contrapartida, o ferimento, o rasgão no
tecido, a lesão propriamente dita surge por acréscimo.
São, por exemplo, as feridas que deixam certas urticárias, ou
senão os danos mais ou menos duradouros que decorrem da
elevada pressão arterial, em que a clínica registra a possibilidade
de uma lesão - cito um exemplo: ventricular - ou a intercorrên-
eia - evoco outro - do aborto espontâneo e da conseqüente
curetagem.
O grito ...
Dessa perspectiva, a angústia é a pura expressão de um
sofrimento. Não apenas um mal-estar inefável ou um desarranjo da
sensibilidade, mas um verdadeiro sofrimento; entende-se, -portan-
to, que o pedido de ajuda aproxime-se do desespero. Mas também
entende-se que, amiúde, o analista receba uma demanda que nasce
no esteio da série que vai do cardiologista ao ginecologista,
passando pelo. gastroenterologista e até mesmo pelo otorrinolarin-
gologista, . eventualmente chamado para remediar uma labirintite.
É uma demanda de alívio que espreme as decisões clínicas
para os limites de um querer livrar-se do mal. Em outras palavras,
uma demanda que se faz ouvir ao pé da letra como: um "não
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fJ
querer saber disso". E eis que bem ali, no ponto onde a vontade
de não saber se torna mais aguda e a necessidade de saber mais
peremptória, surge a crise de angústia como um grito de desespero.
Que dizer desse sofrimento?
o sofrimento
Que ele diz respeito à psicanálise, e por várias razões; isso é
um princípio. A primeira delas é que a psicanálise é uma prática
destinada a tratar da vontade de não saber e de suas conseqüên-
cias. Entendamos: do recalque e de seus efeitos. A segunda é que,
seja qual for o alcance do padecimento, ele se apresenta como
causa da demanda, ponto de abertura da experiência analítica. A
terceira é que o discurso analítico define o sofrimento como um
estado de espera, ou melhor, uma forçada latência.
Com efeito, quando uma verdade - digo: "uma verdade" -
pugna em vão por surgir à luz do dia, essa permanência, mais do
que uma espera, é uma pendência. Presa num beco sem saída,
transforma-se em pergunta sem resposta. A aflição, a dor, o
padecimento derivam dessa pendência. Talvez caiba, então, evocar
novamente o desfecho clínico, limítrofe, que é o aborto, para
melhor situar a espera em questão. Não é que o aborto, mesmo
espontâneo, evoca a fazedora de anjos que, ao mandar para os
céus o não-nato, ilustra como é que procede o recalque? Transfor-
mar o não-nato em já morto (sem nunca ter sido) equivale a fazer
do desejo um "já era». Esse avatar de mera delonga no estado do
não-realizado, enfim, essa infindável espera é um paradigma do
sofrimento subjetivo.
Mas, então, a_ psicanálise é parteira? Desde Sócrates, a idéia
do parto surge toda vez que se aborda a questão da verdade. E,
decerto, a verdade conta muito. Mas o sofrimento introduz outra
dimensão, a libidinal. A angústia não se concebe senão em relação
à vida pulsional; uma não vai sem a outra. Assim, enquanto a
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verdade fala da castração, o fim pulsional exige satisfação. Exige
obtém. Sempre. Afinal, se há algo ao que a pulsão nunca renunc·
se em algo ela não cede é 'no que diz respeito a seu alvo de gozá
Desse modo, encarna o inexorável de uma moção que não pod
ser assimilada pelo princípio do prazer. Donde seu potencial d
angústia, que, não raro, evoca a morte. No fim, a psicanálise só ê.
parteira à condição de sabermos que traz à luz não apenas
esperança de uma nova vida, mas também um saber tão difícil
desejar que o usual é que nada se queira saber dele. A partir
é necessário acrescentar que a verdade é cunhada no real.'
É o que mostra a angústia no despertar súbito do pavor
noturno que interrompe o sonho; justamente o sonho, uma reali-
zação do desejo. É o que mostra o aborto em suas duas vertentes:,,
o impossível de suportar que motiva a interrupção da gestação e o'
remorso da angústia moral diante do fato consumado.
Pois bem, essa moção pulsional, cuja meta não se assimila,
é o objeto da psicanálise. É um dos modos do real. Do real
propriamente dito - na experiência subjetiva. Daí que o discurso
analítico vise ao ato absolutamente radical de pôr o sujeito em
contato com o que lhe é mais íntimo, com esse ponto onde vida e
morte, parto e perda se conjugam em um só. Para tanto, mas antes
disso, a psicanálise trata o sofrimento de uma maneira nada ;1
Hq
paradoxal: cria as condições para que a questão mantida até aí em \j
suspense, em pendência, tenha lugar e vez. Tal é a condição para
o levantamento do padecimento. É também o sentido das entrevis-
tas preliminares.
Mais-além do principio terapêutico
É que as entrevistas preliminares têm o propósito de desangus-
tiar, ou seja, sustar a pressão do medo. ComÓ? Tomando à letra as
1. J. Lacan, Le séminaire, XVII, C. IV. Paris: Seuil, 1991.
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 duras acusações da angústia moral ou as tendências da demanda na
angústia histérica. Em outras palavras, responsabilizando o sujeito
pela acusação que o supereu impõe ou pelo pedido que a demanda
expõe. Trata-se enfim de pôr o paciente a trabalho, de levá-lo a tomar
para si o encargo da sua análise. Uma disposição que o conduz a se
confrontar com a culpa ou a carência e a assumir sua dívida
inconsciente, a dívida de quem está em falta com o desejo. 5p,;J111i~:c .tl
"Desangustiá-lo sem desculpabilizá-lo" - Lacú{dixit. Não é
coisa que se faça em um só tempo. É o que mostram as entrevistas
preliminares ao desnudar a estrutura elementar da crise. Luta
subjetiva e ensejo de suprimir a angústia pelo expediente da fuga
ou do evitamento - por um lado. Interpretações delirantes feitas
para explicar a origem do desarvoramento - por outro lado.
E é um fato que o sucesso desse trabalho se mede pelos
efeitos. Pela transformação do paciente que, a princípio, apresen-
ta-se preso ao padecimento em alguém disposto a trabalhar em
análise, ou seja, um analisando. O desfecho equivale à saída do
sofrimento e ao correlativo ingresso do sujeito no dispositivo
analítico. Deduz-se que o fim terapêutico, a saída da angústia,
coincide com a entrada em análise. Eis o ponto preciso e crítico
em que a terapêutica e a analítica se encontram para, no ato,
separarem-se.
Acontece que há um mais-além do principio terapêutico; é o
mais-além do princípio do prazer. Ali, a psicanálise.
São pontuações que permitem abrir debate sobre a clínica.
Afinal, a cura freudiana se distingue das outras; sobretudo se
levarmos em conta as críticas francas e abertas que a psicanálise
dirige contra a ambição terapêutica... Concluiremos que o que a
define é a ausência de ambições e o desprendimento do desejo?
Que a psicanálise é uma prática que nada quer e que o psicanalista
é um praticante que nada deseja? Convém duvidar disso. Mesmo
porque ela demonstra uma ambição muito mais radical. Digamos,
uma ambição ... meta psicológica.
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• "Meta psicológica" ... porque o propósito freudiano é desfa-
. zer o recalque que, aliás, · é um destino pulsíonal, A cura
analítica intervém sobre esse avatar e, por extensão, sobre
a pulsão propriamente dita. É o que convencionamos
denominar "o desejo de Freud";
• "Metapsicológica" ... porque o propósito do discurso analí-
tico é de operar com o objeto da pulsão, capaz de causar
i'· iso
o desejo para extrair o traço de gozo. É o que podemos
convir em denominar "o desejo de Lacan".
Em ambos os casos, falar de metapsicologia equivale a dizer
que o campo freudiano é mais-além da psicologia. Toca ao ser.
Sublinho que a angústia, tal como Freud a concebe, é um
destino pulsional e assim sendo ... Que visa a clínica senão à
transformação desse destíno que degrada o desejo e o reduz a
afetar o sujeito, colocando-o num estado em que já não se
reconhece - como sujeito - por ignorar tudo da pulsão que o
habita e quase tudo do desejo que dela decorre?
Por seu lado, o ato analítico, tal como Lacan o escreve,
também tem um objetivo. De intervir no fim pulsional, mais
exatamente na meta de satisfação. No mais, é um ato para o qual
a angústia prepara o sujeito, porque ela é um signo da inoperância
do gozo fixado pela neurose e, no fim, do fracasso do gozo. Tão
radical como os estragos da crise aguda, ela sinaliza a relação com
o desejo. E, se a clínica prova que na origem da angústia está o
objeto da pulsão, o discurso analítico demonstra que deste só uma
coisa perdura: é o desejo. E, porque isso perdura, algo persevera
para além da pendência. Dito de outro modo, perseverar no desejo
é o que permite ao sujeito balizar sua experiência no saber e no
gozo ou, simplesmente, viver.
Daí, a face mais oculta e também a mais resplandescente da
angústia:·sua dimensão ética. Uma face que, de hábito, permanece
oculta porque o fulgor... necessita do ato analítico .
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