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De Volta à Vida

Giselda Laporta Nicolelis


SUMÁRIO

01. Ansiedade

02. Desabafo

03. Reflexões

04. Diálogo

05. Dificuldades

06. Descontrole

07. Novidades

08. Expectativa

09. Controvérsias

10. Tentativas

11. Decisões

12. Coragem

13. A Luz

14. Conflitos

15. Esperança
01. ANSIEDADE

Alandra entra na classe, tentando não ser vista.


-Atrasada de novo? – pergunta a atenta professora de história.
Alandra murmura alguma coisa e senta-se cabisbaixa. Faz
tempo que anda assim: pouca conversa com colegas, nenhuma
atenção com os professores. Ressabiada encolhe-se na carteira feito
caramujo, perdida nos seus pensamentos. Parece estar a quilômetros
dali, num mundo seu, onde os demais são estranhos.
A professora de história continua a dar a aula. Agora está
falando da descoberta da América. A voz de Dona Matilde vem em
flashes até seu pensamento, como a voz de um locutor de jornal da
tevê que a gente deixa ligada enquanto faz outras coisas mais
importantes.
E o que é mais importante para ela, Alandra? A escola – será?
Até pouco tempo, a escola era realmente importante em sua vida. Ela
curtia muito. De repente, o desencanto. Mas não apenas com a
escola; com tudo: os colegas, a casa, a família... a vida!
Mas ainda é tão jovem; só tem catorze anos. Sabe que é
bonita. O espelho não mente: cabelos longos e cacheados, de uma
cor acobreada, incrível. Olhos verdes de gata, como dizem os
garotos, seus fãs. Mas ela não quer saber disso. Não agora, tem
problemas demais na sua curta existência.
A dor agride seu corpo e ela sente o estômago latejar. Não
anda legal; a mãe a levou ao médico e ele diagnosticou gastrite
nervosa. Será que esqueceu de pôr o remédio na mochila? E ainda
por cima aquela droga de dieta!
O rosto da professora vai e volta nos flashes; é até gozado. Ela
fica toda alvoroçada quando dá aula. Parece até que a história fica
uma coisa viva, o passado de volta... fala assim de um jeito como se
fosse íntima detoda aquela gente que descobriu terras, inventou
coisas, lutou em batalhas, tal qual uma feiticeira que tivesse vivido
no passado...
Na sua concha de caramujo, Alandra se encolhe mais ainda.
Queria ela mesma viajar no tempo, deixar de ser a garota de catorze
anos, com gastrite nervosa, que vem para a escola toda manhã e
suporta a presença dos colegas, olhando-a de viés:
-Ficou tão estranha, pô, não fala com ninguém, vive fechada,
parece um ET!
Lá no fundo do coração de Alandra, porém, algo soluça, se
despedaça, pede socorro – bem lá no fundo de sua alma de
adolescente, ela não é nada disso: como gostaria de ser igual a todos
eles, de rir bem alto e franco, contar fofocas, falar de planos, ficar
com os gatinhos do colégio e, principalmente, convidas or colegas
mais queridos: “Vá lá em casa. Apareça pra gente curtir um som, um
filme. Tem uma locadora legal bem na esquina...”.
Por que ela tem de se sentir diferente, fechada dentro da
concha, infeliz e com dor de estômago? E a Dona Matilde, dançando
na sua frente, como uma boneca a quem deram corda? Ela tem uma
verruga bem do lado do nariz. É moça e bonita, aquela verruga não
combina. Agora criou coragem, vai operar na semana que vem.
Alandra fecha os olhos bem devagarinho, até que a professora
vira uma linha na horizontal... uma sanfona fechada. É tão gozado,
que começa a rir sozinha.
Mas a paciência da Dona Matilde é bem grande. Lá de sua
mesa, ela pensa o quanto gosta dessa menina estranha, calada, que
tem no fundo dos olhos verdes um furacão de emoções. Ela também
não desiste fácil. Algo lhe diz que a garota precisa de ajuda.
Aproxima-se, discreta:
-Posso lhe pedir um favor, Alandra?
-Sim. – responde seca a garota.
-Passe lá na sala dos professores, no final das aulas, tá bem?
Quero muito falar com você.
-Ok – diz Alandra. Logo em seguida, a professora já não faz
mais parte dos seus pensamentos. Está ali sentada na carteira e, ao
mesmo tempo, não está. Nem nota o redemoinho à sua volta, porque
bateu o sinal; acabou a aula. A garotada faz um tremendo escarcéu,
parecendo um bando de periquitos soltos na sala.
O pensamento de Alandra também sai voando, como ave de
gaiola, deslumbrada com a liberdade, sem rumo... ave que sempre
retorna à gaiola dourada de onde acabou de fugir e, sem coragem,
fica à sua volta, batendo as asas, desesperada e aflita, encurralada...
Mas não é da escola que ela tenta fugir e não consegue. É da
sua casa. O lugar que deveria ser um lar, mas parece uma prisão.
Não que faltem coisas, o necessário para viver – já foi melhor, não
nega, mas sobrevivem graças ao trabalho da mãe. Não é dessa falta
que ela ressente, o buraco é mais embaixo. Ela está falando de algo
muito mais importante, como segurança, alegria, paz, tranquilidade e
muito, muito amor!
Depois das aulas – que remédio! -, o encontro inevitável com
Dona Matilde, na sala dos professores. Dirige-se para lá, cabisbaixa.
Dá na mesma, não dá? Tá tudo sem graça na sua vida.
Leva um susto: junto com a professora está Dona Salete, a
coordenadora do primeiro grau. Sente-se atraída para uma cilada. O
que querem com ela, afinal?
Dona Salete também é jovem. Tem cabelos negros e compridos
e anda sempre muito bem-vestida, toda vaidosa. É legal, um sorriso
no rosto:
-Oi, Alandra, dá pra gente conversar um pouquinho?
-Ok –resmunga. –Parece até um complô.
Dona Salete pede para ela sentar:
-Quer um cafezinho, um chá, tem bolacha aí...
-Não, obrigada – diz Alandra, preparando-se para o que virá.
Toda pronta para a defesa, como o tamanduá que se levanta nas
patas e se encosta num tronco de árvore, frente ao perigo.
-Você é uma garota muito bonita – diz Dona Salete, tateando o
caminho. –Bonita e inteligente.
-A senhora acha mesmo? –a ironia não escapa à outra.
-Não estou brincando não, Alandra. Acho você bonita e
inteligente. E até bem pouco era uma excelente aluna. Mas você foi
perdendo o interesse pelos estudos e pelos colegas! Os professores
entram na sala e parece que você nem os vê... o que está havendo,
querida?
Alandra levanta os olhos, fixando-os nos de Salete. Eles
parecem amigos. Os de Matilde também.
-Não é nada, não –replica Alandra, tentando blefar e sair pelo
escanteio. Mas as duas não se convencem fácil.
-A gente só quer ajudar você – diz Matilde. –É uma pena que
uma garota tão simpática, cheia de talentos, fique assim tão perdida,
tão...
Ela interrompe, brusca:
-Eu não estou perdida coisa nenhuma. Não ando legal, só isso.
-É algum problema pessoal, aconteceu alguma coisa na sua
casa? –insiste Salete. –A gente tá aqui pra ajudar você, confie em
nós...
-Não tem nada comigo, nem com a minha família –responde
rápido, rápido demais. –Meu pai tá ótimo e minha mãe também.
-Estão ótimos mesmo? –é a vez de Matilde insistir.
-Escutem aqui! –Alandra quase grita. –Não é porque estudo
nesta escola que vocês têm o direito de se intrometer na minha vida
ou na de minha família. Já não disse que tá tudo legal, pô?!
As duas professoras se entreolham. Não sabem mais como
abordar o assunto. Estão cansadas de saber que Alandra passa por
uma fase muito difícil. A mãe da menina viera até a diretoria e se
abrira. Humilhar Alandra com tal revelação seria piorar a situação. A
menina é que precisa confiar nelas.
-Por favor... –Salete agora quase suplica –ajude a gente a
ajudar você. Somos suas amigas; nós lhe queremos bem, confie na
gente!

Como nascem os rios? De uma pequena fonte que, por sua vez,
nasce na montanha – essa pequena fonte se transforma num filete de
água, depois num riacho, até que se forma o rio... assim também dos
olhos de Alandra: primeiro escorre uma lágrima solitária, a primeira,
depois outra e mais outra... até que são muitas que vão surgindo, em
cascata, e a menina agora chora, debruçada sobre a mesa da sala
dos professores, os frágeis ombros sacudidos por soluços...
Salete suspira, aliviada: “Até que enfim!”
-Você acha que estamos agindo certo? –sussurra Matilde,
apavorada.
Mas Salete é experiente, sabe que está a um passo de
conquistar o coração da garota. Ela sorri e diz baixinho:
-Deixa ela chorar, é só o primeiro passo...
E Alandra chora... por um bom tempo. E aquele choro vai lhe
dando um alívio tão grande, como se tirasse dos ombros um peso
enorme, um fardo insuportável. Agora é apenas uma garota de
catorze anos, muito sensível, que precisa de apoio.
Finalmente, rosto banhado em lágrimas, ela diz:
-Por favor, me ajudem, estou desesperada.
Como dois anjos bons, Salete e Matilde se aproximam e a
abraçam. Ficam um bom tempo ali, as três, unidas.
Minutos depois, refeita por um copo d’água, enxutas as
lágrimas, o rosto ainda vermelho e olhos inchados, Alandra se decide:
-Vocês têm um tempo?
-Todos o tempo do mundo, querida –responde Salete.
-Então, por favor, me ouçam.
02. DESABAFO

Alandra toma coragem e começa a falar:


-Minha mãe, vocês conhecem, é a Clarissa. Meu pai nunca veio
aqui no colégio. Ele se chama Otávio. Foi sempre muito bonito, um
gatão. A história de vida dele é meio complicada...
-Se você quiser contar, a gente gostaria de ouvir – diz Salete.
Alandra suspira:
-Parece até novela. Deixe eu contar do começo: a vó Mariana,
mãe do meu pai, era casada com o vô Luis, que bebia muito, desde
muito jovem. Mas ela casou com ele sem saber disso. É que vovó
morava em São Paulo e ele no Rio de Janeiro. Então, quando vô Luis
vinha namorar com ela, não bebia. A família dele também escondeu
isso da minha avó. Só depois de casada é que ela descobriu.
-Deve ter sido terrível –comenta Matilde.
-Foi mesmo. Daí, não tinha mais jeito, porque naquele tempo
falar em separação era uma tragédia na família, nem existia divórcio
ainda. Ela aguentou horrores, até que um dia... ele estava
embriagado, foi atravessar a rua – acabou morrendo atropelado.
-Nossa! –Salete deixa escapar uma exclamação de surpresa.
Mas Alandra continua:
-Nesse tempo, meu pai, o Otávio, como eu costumo chamar
ele, ainda era criança. Vó Mariana deu um duro danado. Aprendeu
alta-costura e virou modista de famílias ricas. Foi então que ela
conheceu o vô Leonardo, que era solteirão; quer dizer, ele não é o
meu avô de verdade, mas foi o único que eu conheci, então chamo
ele de vô.
As professoras estão em silêncio, aguardando o desenrolar da
história. Como diz Alandra, parece mesmo novela.
-Eles se casaram e o vô Leonardo ficou tão ligado ao meu pai
que acabou adotando ele como filho legítimo. Então o Otávio passou
a assinar o nome do padrasto.
-Puxa, que bacana! –diz Salete. –A história está ficando bonita.
-E continuou bonita por uns tempos –completa Alandra. –O vô
Leonardo era comerciante e tinha uma grande loja de artigos
eletrônicos. Estava bem mesmo na vida. A vó Mariana até parou de
costurar pra fora. Mas ele possuía um sócio de muitos anos, no qual
confiava cegamente. Só que um dia... foi o Otávio quem me contou,
o tal do sócio deu um tremendo desfalque na firma, deixando o
coitado do vô Leonardo atolado em dívidas.
Foi a vez de Matilde suspirar:
-Esta vida dá cada volta, não é mesmo? Às vezes parece que
tudo vai tão bem e de repente rola...
-Então começaram os problemas –continua Alandra. –O vô
Leonardo, que sempre foi muito honesto, ficou desesperado. Era
ponto de honra pagar os compromissos. A vó Mariana voltou a
costurar pra ajudar ele, e o Otávio teve de sair do colégio grã-fino,
onde estudava, e ir para uma escola pública. Mudou demais a vida
deles.
-Onde foi que seus pais se conheceram? –pergunta Salete,
tentando entender melhor a história.
-Foi na faculdade de economia, onde eram colegas. Namoraram
o curso inteiro, e só foram casar dois anos depois de formados,
quando conseguiram emprego, porque o vô Leonardo não podia mais
ajudar. Depois de pagar todas as dívidas da firma, fora obrigado a
fechar a loja e ir trabalhar de empregado de um amigo. E a família de
Clarissa também não era rica.
-Então você nasceu, aleluia! –brinca Matilde.
-Três anos depois que eles estavam casados. No começo foi
uma luta mesmo, vocês sabem, a Clarissa trabalha até hoje e é a
nossa sorte, senão...
A garota fica em silêncio e as duas respeitam isso. Esperam que
ela se recupere, porque parece comovida com alguma lembrança.
Minutos depois, ela continua:
-A Clarissa me disse que o Otávio nunca se conformou com o
fato de o pai adotivo ter perdido tudo, por causa do sócio. Era mais
revoltado ainda que o pai; este havia se conformado, apesar de
diminuir o padrão de vida e voltar a viver de salário. O Otávio fora
supermimado, ainda mais por ser filho único; a mudança pra ele foi
terrível.
-Então? –insinua a Salete, tentando perceber a ponta do
iceberg que tanto atormenta a garota ali à sua frente.
-Então –repete Alandra –depois do casamento dos meus pais,
começaram os problemas. Otávio era bom profissional, mas, segundo
Clarissa, tinha seus limites. Foi preterido, em várias ocasiões, na
firma. Esperava uma promoção e bimba! Davam o cargo pra outro
colega, às vezes mais jovem, mais brilhante, vocês entendem? A
competição era muito grande.
-Claro que entendemos –diz Matilde. –Quer profissão mais
difícil que a nossa? Depois seu pai já sofrera tantas decepções, não
é?
-A Clarissa acha que foi demais pra ele, a gota d’água. Toda a
revolta que o Otávio guardava dentro dele veio à tona. E daí, pra
compensar tudo, o desânimo, a frustração, ele começou a beber...
Matilde e Salete se entreolham, mas não dizem nada. Estão a
um passo da verdade. Tomara que Alandra tenha a coragem para se
abrir, pedir ajuda.
A voz da menina fica meio trêmula, mas ela não para de falar:
-Primeiro, ele só bebia de vez em quando, socialmente, como
todo mundo faz. A Clarissa diz que a coisa foi indo devagar, até que
um dia percebeu que... ele estava passando dos limites. Eu tinha uns
quatro anos naquela época, me lembro bem: Clarissa chamou a
atenção do Otávio, disse que ele precisava parar com aquilo; se não
tomasse jeito, ia se transformar num alcoólatra, como o pai biológico
dele...
“Aí o Otávio se descontrolou e gritou, furioso: ‘Já não chegam
os problemas no trabalho e ainda vem você me jogar na cara tudo
isso? Cuide de sua vida e me deixe em paz!’”
“Parei de brincar com minha boneca favorita, ouvindo o pai
gritar pela primeira vez com a mãe, que pediu: ‘Controle-se, você
está assustando a criança!’”
“O Otávio, então, num acesso de fúria, atirou bem longe o copo
e saiu batendo a porta. Mamãe ficou chorando... deitada no sofá da
sala. Cheguei perto dela, dei um abraço apertado, pedi: ‘Não chora,
Clarissa, não chora...’”
“Mas, quanto mais eu pedia, mais ela chorava. Ainda lembro do
seu corpo sacudindo com os soluços. Até que ela me olhou e disse:
‘Desculpe, filhinha, a mamãe vai parar de chorar; não foi nada, viu, o
papai está nervoso, só isso, logo passa...’”
Alandra volta à realidade, ali na sala dos professores.
-Essa é a lembrança mais antiga que tenho da minha vida. Meu
pai gritando com a mamãe, atirando o copo de bebida longe, e ela
chorando. Às vezes, penso que odeio ele. Até preferia que Otávio
morresse a fazer a gente sofrer tanto assim.
_Calma, querida –a voz de Salete soa doce aos ouvidos da
menina.
-Estou bem –responde, fungando, o restinho das lágrimas
fazendo cócegas no nariz.
-Você tem lembranças muito antigas, desde os quatro anos –
admira-se Matilde.
Alandra, de repente, sorri:
-Vocês nem imaginam como o Otávio era bonito. Vestia-se
muito bem. Quando ele estava legal, chegava em casa e me pegava
no colo. Parecia um príncipe. Só que...
-Diga –estimula Salete.
- ... eu não gostava do cheiro de bebida que vinha dele... cada
vez ficava mais forte. Era um cheiro enjoativo, porque ele, nem bem
chegava, logo ia tomando uísque. A Clarissa, então, fazia uma cara
gozada! Não sei se era tristeza ou...
-Já sabemos –diz Matilde. –Ele foi bebendo sem parar... é isso?
Alandra tem um sobressalto:
-Não é assim não, de jeito nenhum. Ele bebia quando chegava
em casa, em festas de família, só isso. A mamãe é que implicava
muito com ele.
-Claro –apazigua Salete. –Beber socialmente é coisa normal...
mas você mesma disse que ele sempre cheirava a bebida.
-É que ele ficava fora o dia inteiro e logo que entrava em casa
tomava uma dose, duas, três... Clarissa não pensava assim. Dizia
que ele bebia no trabalho também, na hora do almoço, essas coisas.
Salete procura não forçar demais as recordações de Alandra,
desviando o assunto:
-Foi aí que nasceu seu irmãozinho?
O rosto da garota se abre num sorriso:
-Foi sim. Vocês conhecem ele. É um amor de garoto, o Cássio.
Quando ele nasceu, eu tinha oito anos. Já era mocinha. Clarissa me
explicou tudo: que ele estava na barriga dela, que a barriga ia
crescer e, depois, quando nascesse, eu ia cuidar dele como fazia com
a minha boneca.
-E você... ficou feliz? –quis saber Matilde.
-Adorei. Quando Clarissa voltou com o Cássio, da maternidade,
eu tinha até arrumado o bercinho da minha boneca preferida. Achei
que ele ia ficar ali. Mas ganhou um berço maior e foi dormir no meu
quarto. Ele chorava muito de noite e o Otávio não tinha paciência.
-Por quê? –pergunta Salete.
-Otávio andava preocupado... tinha brigado lá no emprego
porque descobriram que bebia durante o trabalho. Então descontava
em casa, ficava irritado, gritava com a Clarissa, essas coisas...
-E você, o que fazia? –pergunta Salete, pensando como são
bonitos os cabelos acobreados de Alandra.
-Conversava com o Cássio. Sabe, ele não entendia nada, mas,
mesmo assim, eu falava: “Olhe, não tenha medo, eu sou a mais
velha e cuido de você. Otávio só tá gritando de novo com a Clarissa
porque tá nervoso. No fundo ele é muito legal...”
Salete e Matilde cruzam o olhar... depois olham para Alandra.
Ela continua a falar:
-Eu tinha uma baita inveja do meu irmão, ali, tão pequeno.
Como não entendia, ele então não sofria, né? Eu era um tipo de
segunda mãe, então ele era minha responsabilidade...
-O Cássio é um amor –diz Matilde. –Todo mundo gosta dele, é
uma criança incrível!
-Eu também acho. Ele é como um filhinho meu. Adoro ele –
declara sinceramente Alandra. –Só que, às vezes, ele fica tão
assustado, coitado, que corre para o meu colo...
-Assustado, com o quê? –pergunta Salete.
-Ah, nada! Sabe como é, o Otávio anda mais descontrolado,
pior do que antes. A Clarissa diz que é por causa da bebida. Às vezes,
sem motivo nenhum, fica agressivo, briga com todo mundo. Até
outro dia...
-O que foi?
-Bobagem, Matilde, é que o Otávio estava nervoso, a Clarissa
disse uma coisa que ele não gostou... aí partiu pra cima dela. Foi a
faxineira que se pôs na frente dele, senão acho que ele batia mesmo
na minha mãe...
Salete pega nas mãos da menina. Com a voz mais carinhosa
possível, pergunta:
-Então esse é o seu problema, não é, querida? Seu pai bebe
muito e, por isso, vocês não são felizes: nem você, nem seu
irmãozinho, nem sua mãe, e muito menos seu pai...
Alandra levanta os lindos olhos verdes, onde duas lágrimas
teimam novamente em cair. Um soluço profundo brota de sua
garganta e ela engole em seco. Não quer ou não pode falar. Então,
Salete fala por ela:
-Fique tranquila, minha querida; não precisa dizer mais nada.
Agora que nós sabemos de tudo, prometo que vamos ajudá-la.
Somos suas amigas, confie em nós. O papai está doente, mas ele
ainda pode ficar bom. Você acredita nisso, não acredita?
Num impulso, a garota se agarra à professora, o corpo trêmulo.
03. REFLEXÕES

Hora de saída do colégio. Clarissa já está esperando lá fora.


Procura chegar um pouco mais cedo para evitar aborrecimentos: filas
duplas, discussões com os guardas de trânsito, multas... Faz qualquer
coisa para evitar confusão, ter sossego. Já bastam os problemas em
casa.
Fica observando as crianças e jovens saírem... alvoroçados,
cansados e famintos. Vão entrando nos carros. As mães geralmente
esperam nos volantes. Não é fácil cuidar de um filho. Ainda mais
nessa época de tanta violência. Diferente do seu tempo de estudante,
tudo tão tranquilo. Ia e voltava sozinha do colégio, andava sossegada
pelas ruas – era feliz e não sabia. Agora, as crianças quase nem
tinham infância, trancadas dentro de casa ou na escola, o medo
imperando em cada esquina.
Alandra está demorando para aparecer. Adeus almoço! Precisa
voltar rápido para a firma, tem reunião importante às duas horas.
Espera que dê ao menos para engolir um suco e comer um
sanduíche. O Cássio logo deve aparecer, gosta de ver o sorriso dele...
É um menino tão alegre, meu Deus! Tomara que conserve essa
alegria, que não fique como Alandra. É natural, é a mais velha e
presenciou muita coisa que não devia, o que ela pode fazer? A
situação quase sempre foge ao seu controle.
Talvez devesse tomar uma atitude. Terminar de vez com esse
casamento que já dura tempo demais. E o que será de Otávio? Ela se
considera uma pessoa inteligente, sabe que o marido é um doente,
vítima de uma síndrome. Um tratamento a médio ou a longo prazo
talvez resolva, ou pelo menos controle a doença. Se ao menos Otávio
a escutasse... Está cansada de ver alcoólatras abandonados pela
família, vivendo sob pontes, sujos, semidementes, verdadeiros
farrapos humanos. É isso certamente o que acontecerá se ela o
abandonar. Mas, por Deus, quanto tempo mais aguentará essa vida,
mesmo pelos filhos e pelo amor (seria ainda amor ou tão-somente
pena?) que ainda sente pelo marido? Uma frase lida há muito tempo
marca sua mente como um estigma: "Tu te tornas eternamente
responsável por aquilo que cativas”.
Ela, Clarissa, certamente o cativara. Num tempo que agora
parece tão distante, nos belos dias de faculdade. Lembra, com
saudade, aquele rapaz esforçado e sensível, que jamais levantara a
voz para quem quer que fosse. Sempre gentil, atencioso, trazendo
flores no dia dos namorados. Aquele sorriso maravilhoso:
-Flores para uma flor...
Podia até ser piegas, mas ela gostava. Casou-se por amor. O
dia do seu casamento foi o dia mais feliz da sua vida. Dificuldades
financeiras, mas expectativas tão grandes: uma estrada larga,
felicidade, filhos, carreira bem-sucedida.
Quanto à carreira, não podia se queixar: todos os seus sonhos
se realizaram. É uma profissional bem-sucedida, respeitada. Galgara
todos os postos. Anos na mesma firma. Os chefes a tratam com a
maior consideração. Sabedores de seus problemas familiares, até
psicóloga puseram à sua disposição. Fora algumas vezes; a
terapeuta, uma pessoa simpática, despertara nela pensamentos
objetivos, além de uma série de lembranças...
Ter o conhecimento do problema ajuda, mas absolutamente
não o resolve. Sempre fora uma mulher forte, porém, às vezes,
sentia-se frágil, pequena. Nessas horas, costumava atirar na cara de
Otávio todas as frustrações, pedindo a separação. Ele virava uma
fera: “Se você me largar, te mato! Você não se livra tão fácil assim
de mim. E ainda carregar meus filhos? Você fez um juramento,
lembra-se? Na alegria e na dor, na saúde e na doença...”
Covardia dele: é um fraco. Com certeza, mais um cão que
ladra, mas não morde. Envergonha-se do pensamento, tão logo o
emite. Anda revoltada ultimamente. Será só por medo que não larga
o marido? Ou será... A percepção de Clarissa se abre como uma
corola, tentando interpretar seus mais íntimos pensamentos. Ali,
sozinha no volante do carro... será que abriga uma íntima esperança
de que algum dia aconteça alguma coisa, um milagre! E Otávio se
cure, seja por quais mágicos meios, e volte a ser aquela pessoa que a
conquistou no passado?
A esperança no milagre. Sente os olhos estranhamente secos.
Como as feiticeiras, ela jamais chora. Não se dá ao luxo de chorar.
Pelo menos isso. Tem uma profissão, dois filhos para criar, ainda
mais agora que, depois de sucessivas demissões, Otávio já nem
consegue mais emprego. Ficha suja. Quem quer um alcoólatra para
funcionário? Faltando no serviço o dobro ou o triplo de vezes dos
companheiros e sempre com a aparência relaxada, cheirando a
álcool, barba por fazer, às vezes até cambaleante, falando asneira e
tumultuando tudo? Quem, me diga, quem?
O pior é manter as aparências. Engraçado. Quando um cara é
pobre, beber parece natural; há tanta desculpa: falta de dinheiro,
filho com fome, mulher de novo grávida, aluguel ou prestação da
casa atrasados. A sociedade olha com mais conivência, quase
piedade, como se dissesse: “também, esse infeliz só podia mesmo
beber!”
E no caso de Otávio? Quem terá pena se ela não tentar
esconder de todas as maneiras possíveis e imagináveis? Um cara
bonito, com diploma universitário, bom emprego, família... de
repente, ou talvez não tão de repente assim... de bebedor social
passa a bebedor contumaz. Bebe em qualquer ocasião. Começa na
primeira dose de uísque, a segunda vai de escanteio... depois a
terceira, a quarta... Cada dia aumentando mais, cada ano... como
uma bola de neve, rolando e crescendo na escuridão, até que: eis um
bebedor compulsivo, que não se controla mais, está dependente.
Bebe porque está triste e quer euforia. Depois bebe mais porque não
quer perder aquela euforia, um curto-circuito, um círculo fechado,
uma prisão!
E, assim, finalmente, o cara que ela conhecera e amara, o
rapaz sensível de tempos de faculdade, transformou-se em quê? Num
pária social, um sujeito decadente, sempre lastimoso, deprimido,
meio paranoico, que acha que é perseguido, que ninguém gosta dele,
que é um infeliz. Então deixa de tomar banho, não liga a mínima para
a saúde. É quase uma criança, que ela precisa mandar escovar os
dentes, tomar banho, trocar de roupa, se controlar.
E, ainda por cima, as loucas crises de ciúme: “Você tá me
traindo, vou pôr um detetive pra te seguir, quem é o cara, me diga, é
colega de trabalho? Eu acabo com os dois!”
Quantas vezes, ó Deus! –ela até se arrepia, fica gelada quando
lembra. –Otávio não apareceu no seu serviço, cismado com um dos
diretores ou colegas, fazendo escândalo. Tem de agradecer a
paciência e a solidariedade de todos, que, sabedores do fato (ela fora
obrigada a contar, que vergonha!), tiram de letra, acalmam Otávio,
arrastam-no da frente dela, levam-no para tomar um café forte...
depois o despedem com um tapinha nas costas e um suspiro de
alívio...
Então ela se sente pequena, usada, miserável: o que fez na
vida para merecer uma coisa dessas? Quando o colega volta, depois
de despachar o marido (um bêbado invadindo ambiente de trabalho)
lê em seus olhos a comiseração, a pena, embora por delicadeza ele
não comente nada. Essa é a pior parte: saber, sem dúvida alguma,
que sentem pena dela!
Mas ela não quer pena, quer se livrar de tudo isso, fingir que
nunca encontrara e muito menos amara aquela criatura mesquinha,
fraca, menino mimado que devia ter ficado na saia da mãe, que não
sabe perder, enfrentar as dificuldades da vida. Então bebe, bebe e
bebe e se transforma naquele trapo humano. Droga, mil vezes
droga!!!
Quando chega à noite, em casa – estafada por dentro e por fora
– lá está ele: aparentemente sóbrio, esperando por ela, vendo tevê,
enquanto as crianças a olham medrosas, inquietas... Deixou de beber
por algumas horas para apaziguar a situação. E também a olha com
aquela cara de garoto levado que fez traquinagem. Sorri com os
olhos, que ainda mantêm bem lá no fundo aquele estranho brilho,
mas tão doloroso, tão suplicante, tão infeliz...
Ela então pensa: “O milagre aconteceu, ele se envergonhou, vai
escutar meus conselhos, seguir um tratamento médico, ir aos
Alcoólicos Anônimos, se internar, sei lá, qualquer coisa. Otávio vai
voltar a ser o que era, porque os milagres acontecem e estamos
todos a merecer esse milagre”.
Algumas horas de paz, imitação da vida... ele inquieto, andando
pela casa, como fera acuada, nervoso, fumando um cigarro atrás do
outro, atormentado, se queixando de taquicardia, boca seca, falta de
ar, tonturas... mais miserável que antes, fingindo estar feliz, embora
se sinta ainda mais desgraçado...
Ele conhece os sintomas, como conhece. De cor e salteado, de
frente para trás, como um filme velho, uma história que a gente lê a
vida inteira e não muda. No fim da noite, enjaulado, lá vem a crise de
claustrofobia. Aí pega o casaco, dizendo: “Vou sair, dar uma volta,
tomar ar, não me espere...”
Os milagres são visões, miragens, como um oásis no deserto...
para não beber em casa, na frente dos filhos, dar mais uma de
incompetente e mentiroso, de fraco, vai beber na rua, em algum bar
ainda aberto, o que achar. Qualquer coisa vale para mitigar a sede de
algumas horas de abstenção, pura miragem, e ela sempre
acreditando... talvez precise dessa crença para não enlouquecer de
vez.
Alta madrugada... todos dormindo... ele volta... trôpego,
cambaleante, cheirando a bebida, aquele hálito mortal. Desgrenhado,
falando besteira, querendo força-la a um carinho sem sentido, quase
trágico.
Enfurecida, ela o expulsa do quarto: “Vá dormir no sofá da
sala”. Atira lençol, travesseiro, cobertor... Bate-lhe a porta na cara.
Depois cobre a cabeça, apaga a luz, tenta dormir...
O sono, o único alívio. Fugir de tudo, não pensar. Horas de
calmaria, abençoado sono, que nem sempre vem. Às vezes é
obrigada a tomar um calmante. A voz do médico, compreensiva, mas
firme: “Não abuse, só quando estiver muito ansiosa...”
Sente que chegou ao seu limite: não suporta mais essa
situação. Por que ele não abre a porta, some na madrugada...
resolvendo tudo, sem um único adeus? Por que não morre atropelado
como o pai, que tanto fizera sofrer a pobre Mariana?
“Meu Deus, não me faça ter esses pensamentos, não sou digna,
me perdoe, ele é doente, preciso convencê-lo a se tratar, é um ser
humano, não me deixe pensar assim, me faça dormir. Pelo amor de
Deus, preciso dormir, esquecer...”
Rolando na cama, acordando depois de pesadelos, num dorme-
não-dorme, molhada de suor. No dia seguinte, quando o despertador
toca, chamando-a para a realidade, está exausta, sem forças para
encarar o trabalho, levar as crianças para a escola...
Quando saem, em alegre algazarra, a abençoada alegria do
Cássio – que seria dela sem isso? Otávio ainda está lá, largado no
sofá. Um braço caído, o último copo vazio no chão. Inútil, depois de
mais um dia de bebedeira, de decepção. Ainda insiste em pedir
emprego. Não cansa de ser humilhado, espezinhado.
Ela bate a porta e sai para o mundo, a vida, o sol da manhã!
04. DIÁLOGO

Cássio volta mais falando do que nunca da escola. Está elétrico.


Clarissa quer saber como foi seu dia e, então, ele não para mais de
tagarelar, no banco traseiro do carro.
Já Alandra, como sempre, vem calada, ensimesmada, ao lado
da mãe. Olha a paisagem, como se estivesse a léguas dali. Clarissa
puxa conversa:
-Então, Alandra, tudo bem na escola?
-Mais ou menos – responde a garota.
-Mais pra mais ou mais pra menos? –pergunta Clarissa, numa
brincadeira que mãe e filha costumam fazer.
Alandra fica um instante em silêncio e depois responde:
-As tias me chamaram pra conversar...
-Ah, foi? –Clarissa faz-se de desentendida. –Que tias?
-As de história, a Matilde, e a coordenadora, a Salete. Elas são
legais.
-E sobre o quê foi a conversa? Quer dizer, se você quiser
contar, é claro!
Alandra vira-se para a mãe, meio cismada, querendo descobrir
se Clarissa desconfia de alguma coisa. Mas a mãe sempre fora
sincera com ela. Não havia razão para enganá-la. –Elas queriam
saber por que ando calada e vou indo mal nos estudos –desabafa.
-E você? –Clarissa finge prestar atenção no trânsito.
Alandra não foge à pergunta:
-Eu disse o porquê, me abri com elas. Contei tudo.
-Tudo?
-É, tudo. Me fez bem, sabe? Elas me prometeram segredo.
Alivia um pouco conversar... porque não tem jeito mesmo, tem?
Clarissa não responde, mas sente o coração apertado. Que
respostas pode dar à filha? Ela que também está cheia de perguntas,
de dúvidas? Mas se Alandra aceitou bem a conversa com as
professoras, já é um bom início.
Fora com essa intenção que procurara a direção do colégio: há
meses vem observando que a filha vai mal, o boletim não mente.
Que criança, meu Deus, com aquele drama familiar, iria bem na
escola? Onde encontraria a tranquilidade e o equilíbrio para manter
uma vida normal? Seria um milagre se fosse diferente.
A diretora – mulher de meia idade – fora muito simpática. Mais
que isso, cordial. Entendera perfeitamente os motivos que a levaram
ali. Discutiram por um bom tempo a melhor maneira de as crianças
não serem afetadas. E havia prometido que a coordenadora mais
uma professora de grande estima de Alandra conversariam com ela,
deixando em sigilo a visita da mãe.
Boa ideia ter ido ao colégio. Dirigindo no trânsito engarrafado,
Clarissa se parabeniza. Atacar primeiro ainda é a melhor defesa.
Antes que o colégio a chamasse, ela se adiantara. Não precisa ter
vergonha. A diretora é uma mulher inteligente e entendera que seu
marido, Otávio, é um doente, e como tal deve ser encarado.
Se só contar resolvesse o problema! Seria muito bom. Como
disse Alandra, não tem jeito mesmo – ou teria? Clarissa está disposta
a jogar uma última cartada com Otávio. Esperar a hora certa de
conversar com ele, a sós, longe das crianças. Ele precisa entender
que pode sair daquela situação, ainda está em tempo. Apesar de
tanta bebida, não sofre de nenhum mal físico irrecuperável, esse sim
o verdadeiro milagre. Apenas uma gastrite que, às vezes, o impede
de beber, porque o estômago dói muito. No mais, talvez um
tratamento médico adequado, que aliviasse os sintomas da
abstinência, mais força de vontade.
Pensando assim, parece fácil, um plano perfeito. Mas não é tão
simples. Não é apenas uma questão de força de vontade. Ela já
incorreu nesse engano. Otávio é dependente do álcool.
A coisa tem de ser atacada por diversos ângulos, mas demanda
tempo, dinheiro, paciência...
O farol fecha de repente e ela pisa fundo no freio. Alandra até
reclama:
-Puxa, mãe, que tranco!
Ainda bem que todos no carro usam cinto de segurança,
ninguém discute a necessidade disso.
Acompanha o olhar da filha e dá com uma placa: “Alcoólicos
Anônimos”. Embaixo vem o horário das reuniões.
-Alandra – diz Clarissa, quando o farol abre. –Você estava
prestando atenção naquela placa?
-Bobagem –disfarça a garota. –Li por acaso. É o lugar onde se
reúnem os bêbados, não é?
-Os alcoólicos, você quer dizer. É lá sim. Eles se encontram pra
trocar experiências de vida, se ajudar mutuamente, quando decidem
parar de beber.
-Deve ser chato à beça, não? Um monte de bêbados, só
dizendo besteira.
Outro farol, nova parada. Clarissa contesta a filha:
-Não é isso que você pensa não, Alandra. Os alcoólicos
Anônimos são um grupo muito sério. Foi fundado nos Estados Unidos
e se espalhou pelo mundo... Consegue resultados incríveis com
determinadas pessoas. Tem certas regras, e a principal delas é a total
abstenção à bebida.
Alandra se faz de desentendida:
-A senhora acredita que alguém queira deixar de beber, por
livre e espontânea vontade? O Otávio, por exemplo... ele nunca vai
parar de beber. Garanto que passa longe desses alcoólicos anônimos,
dá até risada. Justo ele, tão onipotente, tão deus...
-É isso que você acha mesmo, Alandra? –cutuca a mãe. –Pois
estava pensando em ter uma conversa definitiva com o seu pai.
Às vezes acho que ele nem é meu pai, coisa nenhuma –
interrompe Alandra, brusca.
-Que bobagem é essa agora, menina? Claro que ele é seu pai
e...
-Meu pai não é esse bêbado que vive todo desmazelado,
suplicando emprego por aí. Ele não é meu pai, eu odeio ele, odeio!
Alandra abre a porta do carro, num supetão, e sai correndo...
Clarissa não sabe o que fazer. As buzinas tocando atrás dela, o farol
agora verde. A muito custo encosta o carro, tira o Cássio do cinto de
segurança, e ambos se põem a correr atrás da Alandra, que já virou a
esquina...
Quando conseguem alcança-la, estão sem fôlego. Alandra
chora, sentada numa pedra. Felizmente entrara numa rua sem saída
e fora obrigada a parar.
O Cássio, de tão assustado, nem diz nada. Segura forte a mão
de Clarissa, olhos arregalados. A mãe pousa a outra mão na cabeça
da filha e fala baixinho:
-Que é isso, meu bem. Eu sei que você é uma garota corajosa.
Nós vamos conseguir, Alandra. Seria maravilhoso se o pai
concordasse em frequentar os Alcoólicos Anônimos... teria apoio e
solidariedade. Veria que não está sozinho com a doença dele.
-Ele não é doente. Ele é, é... –o desespero é tão intenso que a
menina não encontra as palavras. Finalmente, toma fôlego e conclui:
-É um nojento. Eu nem posso levar ninguém em casa, nem
uma amiga, porque ia morrer de vergonha de encontrar ele lá,
jogado, fedendo a bebida. Até já caçoaram de mim, dizendo que
nunca levo ninguém em casa porque o meu pai vira lobisomem na lua
cheia...
Clarissa ri de nervoso:
-Mas filha, isso não é tão terrível assim. Pelo menos você fica
diferente...
Alandra grita:
-Mas é exatamente isso, mãe. Eu não quero ser diferente. Eu
quero ser igual aos meus amigos, que levam os colegas em casa e o
pai chega do trabalho, até neurastênico, mas inteiro, entende? Um
pai que a gente pode respeitar, sacou?
-Saquei –diz Clarissa. –Eu entendo você. E quanto a mim?
Vamos falar de mulher pra mulher, Alandra. Por acaso eu posso levar
alguém em casa, colega de trabalho? Por acaso eu também não
gostaria de ter um marido que pudesse respeitar, apresentar com
orgulho, me diga? Você não está sozinha nisso. O Cássio ainda é
muito criança, mas nós duas sabemos o quanto dói...
Alandra levanta-se decidida:
-O que você pretende fazer? Passar a vida inteira nesse
inferno? Deixar que ele destrua toda a nossa vida?
-Ele é doente, Alandra, não tem consciência do mal que causa,
a nós e a si mesmo. Não consegue parar de beber: é como se desse
um curto-circuito na cabeça dele; precisa de ajuda...
-Mas como, se não aceita ajuda e se acha o dono do mundo, o
maior? Você ainda vem defender o Otávio? Já esqueceu a vergonha
que faz você passar lá no seu emprego, e a vergonha que eu passo
na escola? Odeio ele, queria que ele morresse!
Clarissa abraça a filha, ficam longo tempo abraçadas; até
esquecem o Cássio, que não sai do lugar, estático. Que palavras
poderiam acalmar aquele coração de menina, com tanta revolta,
tamanho ódio?
-Nós vamos fazer alguma coisa, Alandra, prometo. Seu pai
precisa urgente de tratamento. Vou acionar os pais dele, algum
amigo que ainda lhe reste, vou mexer céus e terras para mudar tudo
isso. Mas, por favor, filha, eu peço, não odeie seu pai: ele é doente,
ponha isso na sua cabeça.
Mas Alandra continua na defensiva:
-Eu não pedi pra nascer, mãe, não pedi nada. Só quero ser
igual a todo mundo, ter um pai que eu possa respeitar, apresentar
pros meus amigos. Se não puder ser assim, não quero pai, prefiro ser
órfã. Dê um jeito nisso, por favor, mas depressa, porque eu não
aguento mais!
-Dê um tempo, tá legal? –pede Clarissa. –Um tempo. Vai ser
nossa última tentativa. Se não der certo...
-O quê? –Os olhos de Alandra brilham.
-Vou ter de tomar uma atitude que há muito tempo venho
adiando. Tenha confiança em mim, Alandra, é só o que eu peço.
05. DIFIULDADES

Chegam em casa. Otávio não está. Ninguém sabe por onde ele
anda. Às vezes passa na casa dos pais ou cisma de procurar
emprego, o que sempre dá em nada.
Clarissa, apressada, porque tem de voltar ao trabalho, pergunta
à faxineira se alguém ligou.
-Não, senhora –é a resposta.
-Me faz um favor, Alandra? –pede a mãe. –Hoje é dia de
reunião e, se eu me atrasar, você dá o jantar pro Cássio, ta bem?
-Tá legal, mãe –garante a menina. –Vá sossegada.
Clarissa come alguma coisa, deixa o dinheiro da faxineira em
cima da geladeira e sai, já atrasada.
“Se não fosse a mãe, nem sei o que seria de todos nós”, pensa
Alandra.
Antes, quando o pai ainda trabalhava e ganhava um salário
razoável, moravam numa casa grande, até com piscina. Era alugada,
mas cheia de conforto, pois fora construída para o dono morar.
Tinham empregada fixa, mensalista, dois carros... Passavam
férias na praia e a vida deles era muito boa. Depois Otávio começou a
beber e perdeu o emprego. Conseguiu outro, e a mesma coisa. Até
que ficou desempregado de uma vez.
A vida deles então se transformou. Foram obrigados a mudar
para uma casa menor, de aluguel mais barato, mas que, ainda assim,
pesava muito no orçamento. Despediram até a empregada. Agora só
havia a faxineira, que vinha uma vez por semana para o serviço mais
pesado. Clarissa não conseguia dar conta de tudo, trabalhando o dia
todo e com todas as responsabilidades da família. O carro do Otávio
ele vendera e nem dera satisfação do dinheiro. Com certeza torrara
em bebida ou pagara dívidas. Ele não gosta de dar satisfação do que
faz e posa sempre de vítima. Os outros, o mundo são os culpados de
tudo, não ele.
Clarissa se desdobra: leva e traz os filhos da escola, pois o
dinheiro não dá para pagar ônibus escolar. Os garotos só continuam
estudando em colégio particular porque Clarissa conseguira bolsa
para eles. Caso contrário, teriam de estudar em escola pública
mesmo. Mas na casa é tudo limitado. Qualquer gasto tem de ser
medido e a fartura de antigamente ficou só na saudade.
Quantas vezes Alandra tem vontade de comer uma ou outra
guloseima, mas nem ousa pedir, para não deixar a mãe mais
aganiada. Contenta-se com o que ela pode fazer, mas, no fundo, se
revolta com aquilo. De que adianta um pai imprestável, com o qual
não se pode contar para nada?
Estremece ao barulho da chave na fechadura. É Otávio
chegando. Ele passa por ela meio aéreo.
-Oi –diz, e sobe para o quarto. Ele nem nota o Cássio. Deve
estar naqueles dias de fossa, de não querer papo com ninguém, ou
então com dor de estômago, gastrite ou úlcera, que não o deixa
beber...
Alandra dá de ombros. A mãe prometera resolver de uma vez
por todas aquilo. Precisa dar um tempo. Distraída, liga o toca-CD
para curtir um cantor de que gosta muito. Também, há quanto tempo
não sobra dinheiro para comprar um CD. Cada mês um novo
problema, agora é o Cássio que precisa de dentista.
De repente... o barulho forte lá em cima. Como se alguma coisa
tivesse quebrado... sobe correndo as escadas, gritando:
-Cássio, Cássio, você está bem?
Mas o Cássio aparece e, por sua vez, grita todo assustado:
-Foi daí, do quarto da mãe, que veio o barulho...
Tentam abrir a porta, mas está emperrada. Alguma coisa está
impedindo. Alandra, aflita, força mais uma vez e ela abre alguns
centímetros. Pelo vão, enxerga o pai caído no chão; a cabeça dele é
que segura a porta.
-O que a gente faz? –choraminga o Cássio, apavorado. –Será
que ele morreu aí dentro?
Um gemido prova que não. Alandra tem de decidir rápido o que
fazer. Grita pela faxineira:
-Luísa, corra aqui, depressa!
Ela vem num segundo. Também ouvira o barulho. Ainda bem
que não tinha acontecido nada com as crianças. Alandra pede:
-Me ajude aqui, que o Cássio tem pouca força. É meu pai que
está caído do outro lado.
Com a ajuda de Luísa, Alandra empurra a porta devagar, para
não machucar a cabeça de Otávio. O Cássio então sugere:
-Quer que eu ligue pra mamãe, pra ela vir? Estou com medo...
-Que ligar o quê! –replica Alandra. –Tirar ela no meio de uma
reunião? A gente dá conta, ta quase abrindo. Vá lá buscar a caixa de
curativos, ande moleque!
O Cássio sai correndo e Alandra e Luísa, usando de todas as
suas forças, conseguem finalmente abrir um vão na porta, por onde
pulam por cima do corpo de Otávio, estendido no chão, sangue numa
das têmporas. Uma escadinha estava armada ao lado do armário.
Provavelmente fora subir e perdera o equilíbrio. Na queda batera a
cabeça.
Com muito custo conseguem levantar Otávio e colocá-lo na
cama. Com a queda, perdera os sentidos. O Cássio já está de volta, a
caixa nas mãos. Alandra lembra:
-Corra lá embaixo, Luísa, traga amoníaco.
Enquanto a moça não volta, fica contemplando o rosto do pai,
ali, desmaiado à sua frente. Ainda é jovem, os cabelos empastados
de suor, e aquele hálito horrível de bebida. A pele está opaca, sem
brilho, e alguns fios de cabelo branco já se destacam. Um homem tão
bonito! Podia ser diferente, meu Deus! Por que se matava aos
poucos, daquele jeito. Será que, no fundo, bem no fundo, ele quer
morrer? Bebendo daquele jeito, se entregando à bebida, não seria
uma forma de suicídio lento? E o que fora procurar lá em cima no
armário? Uma idéia sinistra passa pela sua cabeça, lhe dá arrepios;
bobagem, pensa, estou ficando louca.
Alandra pega o vidro e molha um pouco de algodão com
amoníaco. É só encostar nas narinas do pai, que ele acorda na hora.
Luísa ainda comenta:
-Credo, isso levanta até defundo; eu hein?
Otávio olha ao seu redor, os olhos ainda enevoados, a cabeça
girando... pergunta em voz pastosa:
-Que aconteceu, onde estou?
-Você caiu da escada –diz Alandra. –Ficou desmaiado por uns
tempos. Tá sangrando aí do lado da cabeça, bateu em algum lugar,
na queda... acho que precisa ir a um pronto-socorro, dar uns
pontos...
Otávio tenta se levantar, mas não consegue:
-Que pronto-socorro nada, faça um curativo pra mim. Nossa, to
enjoado!
-É da batida, foi forte. É melhor você ficar deitado; se não
melhorar, chamo a vó Mariana pra gente levar você ao pronto-
socorro...
-Chame a sua mãe! –diz Otávio. –Ela é quem deve me acudir,
ta doendo...
-A Clarissa está numa reunião muito importante e, ainda que
pudesse sair, ia demorar por causa do trânsito. A vó Mariana mora
perto, vem mais depressa.
-Não precisa, não –diz, ríspido, Otávio. –Faça um curativo, eu
me agüento. Quando a sua mãe chegar, a gente resolve.
-O que você estava pegando lá no armário? –pergunta Alandra,
fazendo o curativo.
Otávio olha ressabiado para a filha:
-Não é da sua conta, Alandra. Será que eu preciso dar
satisfação de tudo o que eu faço até pra você?
-Até pra mim, por quê? –replica Alandra, ofendida. –Sou sua
filha, sabe?
-Não me diga! –Otávio responde, agressivo: -Você é igualzinha
à sua mãe. Sempre se metendo na minha vida. Se eu não tivesse
caído da escada, você estaria lá embaixo, ouvindo sua música, e nem
se importaria comigo.
-Claro, você passa e só diz: “oi”. Parece um bicho do mato,
chega quase sempre de teto baixo. Garanto que bebeu a manhã
inteira... não sei como a Clarissa agüenta dormir do seu lado, com
esse cheiro de bebida, me dá até nojo...
Otávio pula da cama, dedo em riste:
-Saia daqui! Chega de agressão. Você é ainda pior que sua
mãe. Ela pelo menos é minha mulher, tem esse direito. Você nem
saiu das fraldas e pensa que é gente! Saia daqui antes que...
-Antes do quê? –enfrenta Alandra. –Você vai me bater? Só falta
isso mesmo. Eu nem devia ter acudido você, devia ter deixado aí
largado no chão, pra aprender a se virar sozinho. Pra você não existe
família, nem mulher, nem filhos, só essa maldita bebida. Por que
você não vai embora de uma vez e deixa a gente em paz?
Talvez fosse o olhar de Alandra, talvez sua voz, ou o espanto
mudo no rosto de Cássio, ou a Luísa encolhida num canto do quarto.
Talvez fosse por tudo isso, ou então por alguma coisa mais, que não
fora dita, nem ouvida, mas que pairava latente à sua volta. Otávio cai
de novo na cama, o estômago ardendo em brasa, a cabeça latejando.
Mas, pior que isso, é o que sente no seu íntimo: é apenas um
estranho ali, que a filha põe porta afora. Sua presença não significa
mais nada, apenas aborrecimento, um peso morto. É isso o que ele
se tornara: um peso morto!
Encolhe-se na cama feito um feto. As mãos entre as pernas, as
lágrimas rolando pelo rosto. O que ele fizera de sua vida? Que
estranha sina a dele. De repente, sua alma parece derreter. Ele
deseja morrer, pena que não alcançara o que pretendia, lá em cima
do armário. Teve uma tontura besta, caiu da escada: a esta hora,
poderia estar livre para sempre...
Cássio se aproxima, estende a pequena mão, afaga-lhe a
cabeça:
-Não chore, pai, não chore, você vai ficar bom. Não liga pro que
a Alandra disse, a gente gosta de você...
Mas Otávio não ouve. Está em outra dimensão. Perdido na noite
escura, numa trilha sem volta... Quando haverá paz? Quando seus
pensamentos deixarão de atormentá-lo? Aquelas vozes que surgem
da escuridão e o perseguem como a um condenado.
Está totalmente só, no seu inferno particular. Se ao menos
houvesse uma luz, um caminho, um sinal! Se ao menos tivesse forças
e conseguisse pedir ajuda.
Gostaria de abrir um buraco na parede e lá se esconder, como
um micróbio, ínfimo, inútil. E de lá nunca mais sair. Até que o
esquecessem e ele virasse pó.
06. DESCONTROLE

À noite, ao voltar do trabalho, Clarissa, apesar de cansada,


ainda tem de levar Otávio ao pronto-socorro, onde lhe dão pontos na
cabeça. O dinheiro, que ela reservara para o início do tratamento
dentário do Cássio, mal dá para pagar a despesa.
Mais tarde, em casa, ela resolve ter uma conversa decisiva com
o marido. Aquela situação não pode continuar. Já não chega a família
sob sua única responsabilidade? Ela nem sabe o que Otávio pretendia
quando subira na escada. Lá em cima do armário ele guardava, há
muito tempo, um revólver. Meio enferrujado, é verdade, mas que
provavelmente ainda funcionava. Ao lado havia uma caixa de balas.
Será que o marido estava tão angustiado, que resolvera acabar com
a própria vida? Ou teria idéias ainda mais sinistras?
Otávio permanece calado, cabeça baixa, amuado. O ferimento
ainda dói, embora o médico tenha lhe dado um analgésico. Apesar de
tudo, teve sorte. Se a batida fosse mais embaixo, talvez não
estivesse ali para contar história.
As crianças já estão dormindo. Clarissa aproveita para
desabafar: afinal, o que ele pretende da vida? Não basta o seu estado
lastimável? Será que não pensa nela, em Alandra, com gastrite
nervosa, indo mal na escola? Motivo de chacota dos colegas? Apenas
o Cássio, por ser ainda criança, parece incólume a esse caos – mas
até quando?
-Você não vê, Otávio, o que está fazendo com a vida de todos
nós? Não liga a mínima nem pra você mesmo? Olha-se no espelho,
veja a que se reduziu. Lembra-se do homem que você era, na
faculdade, no início do nosso casamento? O que foi que mudou, o que
aconteceu?
Otávio não responde, mas Clarissa insiste:
-Não vê que todos nós queremos ajudá-lo? Por que você recusa
ajuda? Não é vergonha precisar de apoio. Existem lugares
apropriados, vários tipos de tratamento...
Otávio levanta a cabeça, azedo:
-Você pensa que estou ficando louco, é isso? Quer me internar?
Pois interne, assim ficará livre de mim de uma vez. Garanto que já
está de olho em algum colega. Admita isso.
Clarissa, tentando ser paciente, senta-se ao lado dele, no sofá.
-Não me venha com chantagem emocional, Otávio. Você é um
homem, não um garoto. Se quisesse simplesmente abandoná-lo, já
teria feito isso há muito tempo. O que me impede? A
responsabilidade é toda minha mesmo...
-Não faço a menor falta, não é? Se é assim, por que quer me
ajudar? Tá com a consciência pesada?
-Não me faça perder o controle –Clarissa esforça-se para não
gritar. –Estou lhe propondo ajuda, sim. Não para interná-lo num
sanatório, não se trata disso. Andei me informando. Há tratamentos
em ambulatórios, onde a pessoa passa o dia, tem ajuda de
psicólogos, e volta à noite pra casa, sem falar nos Alcoólicos
Anônimos que...
Otávio pula do sofá, enfurecido:
-O que você pensa que eu sou? Se acha que vou entrar nesses
lugares, com placa na porta, pra ouvir um monte de baboseiras, está
muito enganada. Prefiro morrer!
-Aliás já tentou, não é? Muito fácil, tão simples, o que você
pretendia! Dar um tiro na cabeça! Que maravilha! Seus filhos iam
adorar a cena. Ficariam marcados pela vida inteira. É isso que você
quer pra eles? Um pai suicida? Que prefere se matar a enfrentar a
vida? Que tipo de homem é você, afinal?
Clarissa cutuca fundo. Está numa guerra sem trincheiras. Está
quase no limite. Não suporta mais aquele estado de coisas. E não fala
apenas por ela. Sua maior preocupação é a tristeza que, dia a dia, vê
dentro dos olhos de Alandra, a menina sensível que se consome entre
o amor e o ódio pelo pai.
Otávio olha-a de frente. Ela não saberia dizer o que há naquele
olhar: dor, raiva, frustração, vergonha. É um olhar terrível, de animal
acuado. Mas alguma coisa ainda brilha lá dentro. Apesar de tudo,
uma faísca de luz.
-Vou mostrar pra todos vocês que ainda sou um homem, que
tenho dignidade...
-Estou pagando pra ver. Palavras não querem dizer nada. É
muito fácil prometer. Há quanto tempo você promete isso...
-Agora é pra valer –diz Otávio. –Vou parar de beber. Daí
arrumo emprego e volto a ser o chefe desta família. Você vai ver. Vou
reconquistar o respeito próprio e o dos meus filhos.
-Sem ajuda, é difícil...
-Claro que é! –Ele parece entusiasmado com a idéia. Mas não
sou um verme, sou uma pessoa. Cheguei ao fundo do poço, confesso.
Ia me matar. Por sorte ou azar, caí da escada. Não agüento mais
tanta frustração, essa vida odiosa. Pensa que não sei que Alandra
que me odeia?
-Ela não odeia você –tenta apaziguar Clarissa -, está apenas
dividida. Quer amá-lo e não consegue, ela não o perdoa. Você não faz
nada pra merecer o seu perdão.
-Vou reconquistar o amor dos meus filhos, prometo –repete ele,
como tentando convencer a si próprio. –E vou começar agora. Não
vai sobrar uma maldita bebida nesta casa...
Como que possuído por uma cólera santa, Otávio dirige-se ao
bar, no canto da sala. Algumas garrafas vazias, outras pela metade.
(Ela bem sabe como ele compra as bebidas. Coisas somem dos
armários: roupas, objetos de uso pessoal, eletrodomésticos. Tudo ele
vende para ter dinheiro suficiente.)
Otávio pega uma garrafa e, num gesto teatral, atira-a na
parede. Clarissa não se mexe no sofá, apenas observa. Quer ver até
onde ele pretende chegar com seu espetáculo. Uma a uma, Otávio
vai atirando as garrafas, que se espatifam contra a parede e os
móveis da sala. Logo o cheiro de bebida se torna insuportável.
Espantados com o barulho, Alandra e Cássio descem correndo
as escadas:
-O que aconteceu, mãe, você está bem? –perguntam,
atordoados.
-Tudo bem, crianças, voltem para a cama. Eu já subo –diz
Clarissa, impressionada por não sentir nenhuma emoção. Está fria,
indiferente, quase estática.
-Estão vendo? –grita Otávio, virando-se para os filhos, que
também, estáticos, no meio da escada, contemplam aquele desordem
toda. –Estão vendo? Quebrei tudo. Não sobrou nenhuma miserável
garrafa. De hoje em diante não bebo mais, nem uma gota de álcool,
juro!
As crianças viram as costas e voltam para os quartos. Ele ainda
fica olhando a escada vazia à sua frente. Virando-se para a mulher,
ainda sentada no sofá, parece não acreditar que seu espetáculo não
surtiu o menor efeito.
-Eles não acreditam! Nem você! Quem vai acreditar em mim? –
diz.
-Não é tão simples assim, Otávio –suspira Clarissa. –Respeito,
confiança não se conseguem da noite pro dia. Você tem que
demonstrar que é realmente digno de crédito.
Ele não responde. Cabisbaixo, sobe as escadas e vai se deitar.
Clarissa ainda fica catando o que restou das garrafas. Só faltava
alguém, ainda por cima, se machucar. Depois, cansada, como se
tivesse carregado um fardo além de suas forças, sobe também as
escadas. Vai direto ao quarto de Alandra, que mais a preocupa no
momento. A menina dorme ou finge dormir. Acha melhor não mexer
com a filha.
Entra depois no pequeno quarto de Cássio, se é que pode ser
chamado de quarto. É uma saleta, adaptada. Mas como Alandra já
está uma mocinha, é justo que tenha um lugar só para ela.
Cássio está acordado. –Quer que conte uma história, querido? –
pergunta Clarissa.
O garoto adora histórias de fadas, com encantamentos,
bruxarias...
-Hoje não, mãe –diz Cássio. –Sente aqui, que hoje eu é que
vou contar uma história pra você.
Clarissa, curiosa, senta-se na beirada da cama. E o Cássio,
muito sério, começa:
-“Era uma vez um príncipe, que morava num castelo muito
bonito, com a princesa, mulher dele, e dois filhos. Mas o príncipe era
muito malvado. Gritava muito, até batia na princesa e também
quebrava coisas. Era tão ruim que acabou perdendo o emprego dele
e todos tiveram que mudar para um lugar muito feio, que nem
castelo era. Os filhos viviam assustados, porque não sabiam até
quando o pai, o tal príncipe, ia ficar daquele jeito”.
“Então, um dia, apareceu uma bruxa muito feia, mas muito
poderosa, que disse assim pra princesa: ‘Olhe, princesa, seu marido é
uma peste, não serve pra nada. Então, quando começar com a
gritaria, o quebra-quebra, você levanta o dedo mindinho: na hora ele
vai virar um sapo. Daí você abre a porta e chuta o sapo pra fora de
casa’.
“A princesa fez direitinho como a bruxa ensinou. Quando o
príncipe chegou, mal humorado, chutando as coisas, ela levantou o
dedo mindinho e pluft: ele virou um sapo horroroso na hora. Então os
três, a princesa e os filhos, abriram a porta da casa deles e chutaram
o sapo pra rua, e ficaram livres dele pra sempre...”
Clarissa fica atônita por uns instantes. Depois comenta: -Triste
essa história. Você não tem pena do sapo, não?
-De jeito nenhum –responde o Cássio. –Ele mereceu. Só tem
uma coisa...
-Qual? –pergunta a mãe, tentando disfarçar a emoção.
-A bruxa também falou que ele só ia ficar como sapo até ficar
bom. O dia em que soubesse se comportar, não gritasse mais, nem
chutasse as coisas... podia voltar, porque virava príncipe de novo.
Mas tava avisado: se marcasse bobeira, a princesa levantava o dedo
mindinho e daí não tinha mais remédio: ele ia ser um sapo nojento
pra sempre...
-E o que você acha? –insiste Clarissa. –O sapo tem alguma
chance de virar príncipe ou ficará sapo pra sempre? O que você
prefere?
-Por mim, podia ficar sapo pra sempre –responde o Cássio.
-Mas se provasse que havia mudado, ficou gente boa, como a
bruxa falou, ele não poderia ter uma segunda chance?
-Tá legal –concorda o Cássio. –A gente dá mais uma chance pro
sapo. Mas, se bobear, a princesa levanta o dedo mindinho e daí ele
vai ser sapo até o fim do mundo e nunca mais ninguém vai querer
saber dele...
-Agora durma, querido –diz Clarissa. –Amanhã você me conta
outra história, ta legal?
-É que essa é a minha preferida –murmura Cássio, quase
dormindo.
07. NOVIDADES

Alandra entra na escola, dessa vez na hora certa. Diz “oi”, para
Taís, a sua melhor amiga, a única que não implica com ela. São
colegas desde que ela viera morar naquele bairro e entrara no
colégio.
Taís é magrinha e se acha feia. Tem um nariz comprido demais,
que ela pretende operar na primeira oportunidade. Mas precisa
aguardar a idade certa. O médico explicou que é preciso completar o
crescimento do rosto, para não ficar desproporcional. A garota não vê
a hora de isso acontecer; cansou de ser alvo de chacota por parte dos
colegas, que a chamam de “Pinóquio”.
O sofrimento de cada uma as aproximou. Uniram-se contra os
demais. Alandra é supersensível e a colega a compreende. De vez em
quando vai visitar a amiga, mas jamais levaria Taís na sua casa... A
amiga sabe os motivos, entende tal comportamento.
-Tenho novidades –diz Taís, puxando Alandra para um canto no
pátio.
-Boas ou más? –pergunta Alandra, desconfiada.
-Melhor impossível! –entrega a amiga. –Olhe o que me pediram
pra entregar pra você. –Ato contínuo, mostra um papel.
A garota pega o papel, curiosa. Está dobrado em quatro. Abre e
lê: “Quando é que a gente pode ficar, numa boa? Me amarro em
você. Dê sinal verde, gatinha! Edu”.
Um rubor de alegria invade todo o rosto de Alandra:
-Quem é esse Edu, você conhece? –pergunta baixinho, olhando
para os lados.
-Se eu conheço? –A Taís chega até a virar os olhos. –É um
gatíssimo, do segundo grau. Aquele moreno de olhos castanhos. Toda
garota aqui morre por ele. Foi ele quem mandou o recado? Mas que
felizarda! Deixa eu ler...
-Não senhora! –Alandra agarra o papel como se fosse um
tesouro. –É particular, coisa minha. Me conte mais...
-Ora, o gato tem um metro e oitenta, toca guitarra, diz que
está formando uma bando de rock, é ótimo aluno e tem uma voz...
precisa mais?
Alandra está cada vez mais interessada:
-E ele tem alguma namorada, pra valer, você sabe...
-Que eu saiba não – diz Taís toda agitada. –Já ficou algumas
vezes, mas, namorada mesmo, pra valer, nunca vi, não. Só se for
fora do colégio. Um gatão daqueles...
-Obrigada, hein, Taís –diz Alandra, dirigindo-se para a sala de
leitura. Quer curtir sozinha aquele bilhete. Ler, reler, pensar um
pouco sobre o assunto.
Nem tem tempo. Uma voz fala no seu ouvido:
-Recebeu meu bilhete?
Vira-se e dá de cara com o Edu: só pode ser ele! A Taís não
mentiu. Ele é gatíssimo. Lindo de morrer. Alto, mais pra magro,
cabelos escuros encaracolados, bem compridos, quase nos ombros. A
pele é clara, mas os olhos são castanhos, grandes e profundos: um
torpedo!
-Recebi –é só o que consegue dizer.
-Faz tempo que to de olho em você –continua o Edu. –Você é
dez, gatinha. Tem alguma coisa especial. A gente podia ficar por uns
tempos, ver no que dá. Eu, por mim, topo tudo.
Alandra engole em seco, nem sabe o que responder. Mas fora
amor à primeira vista. Aqueles olhos mergulham, entram nela, fazem
cócegas.
-O.k. –diz. –A gente estuda no mesmo colégio. Pode até ser
legal. Mas a gente precisa conversar com mais calma...
-No intervalo, tudo bem? –convida o Edu. –Espero você perto
do barzinho, logo que der o sinal.
Levanta uma das mãos e alisa suavemente os cabelos de
Alandra. Depois sorri e, dando uma piscada, some no corredor.
Naquele dia, Matilde, a professora de história, podia dar a
melhor aula de sua vida, que Alandra certamente não ouviria uma
palavra. Na sua cabeça, em frente a seus olhos, surge a figura de
Edu: os cabelos compridos, escuros e encaracolados, seus olhos
castanhos. O afago no seu cabelo. A piscadinha final. Será possível
que aquele gatão esteja mesmo interessado nela? Vão conversar no
intervalo, dar a maior bandeira. Só quer ver a cara dos colegas.
Quando dá o sinal, sai como um rojão. Pára, ofegante, no meio
do corredor: “Calma, menina!” Toma fôlego, arruma os cabelos,
aquela cascata cor de cobre que lhe cai pelos ombros. Feia nunca
fora. Só faltava a confirmação. E ele ainda dissera que ela é muito
especial: “Ai, céus!”.
O Edu já a espera, ao lado do barzinho, como combinado.
Comprou dois lanches e dois refrigerantes. Sorri, quando ela se
aproxima. Nossa, que boca, que dentes!
-Espero que você goste –diz ele, entregando o sanduíche e a
latinha de refrigerante. –Não comprei diet porque você não precisa
disso, com certeza –fala isso e dá uma olhada rápida, uma geral.
-Obrigada. Vamos sentar ali naquele banco?
-Tá legal.
Por que o intervalo não dura uma eternidade? Por que aquela
maldita sirene teria de tocar? São minutos deliciosos, um abrir de
corações. Edu diz que sua paixão é a música: seu sonho é formar
uma banda de rock, e ele já está tentando. Que estuda guitarra faz
tempo. E quer saber tudo sobre ela: o que faz no tempo livre, se eles
podem se encontrar fora do colégio, ir ao cinema, em algum shopping
ou então curtir uma balada...
Alandra ri, embevecida. Com o canto dos olhos vê as colegas de
classe, cochichando. Até pode imaginar o que dizem: “Imagine só,
um gato como o Edu, no maior papo com a Alandra, que parece um
bicho do mato, ET perdido, é até desperdício...”
Mas o Edu insiste:
-Você está precisando de aulas particulares, sou bom aluno e
posso ir na sua casa, pra dar uma força...
-Na minha casa, não –Alandra reage rápido. –Eu peço pra
Clarissa, a minha mãe, a gente pode até se encontrar fora do
colégio... ela é superlegal, garanto que deixa.
Ficou triste, gatinha? –pergunta Edu, vendo uma sombra passar
pelos olhos da garota.
-Não é nada, não, tô legal. Qualquer dia conto uma coisa pra
você.
-Conta agora.
-Agora não –diz Alandra. –É papo-cabeça; precisa tempo. Mas
gostei de conhecer você. Nossa! Parece que já nos conhecemos a
vida inteira. Adoraria ouvir você tocar guitarra...
-Por isso não –o garoto abre seu lindo sorriso. –Trago a guitarra
amanhã e a gente vai até a sala de música. Eu sou bom, sabe?
-Imagino –Alandra sorri e pensa: “Mas que convencido!”
Edu continua: -Sabe que eu nunca tinha reparado em você,
aqui no colégio? Outro dia, nos cruzamos por acaso, você estava
meio triste, saindo de lá da sala da Salete. Foi aí que eu me toquei.
Você é a gatinha mais linda desta escola!
-Mas eu não quero ser apenas bonita –reclama Alandra. –
Também sou artista, sabe? Faço poemas...
-Uau! Então a gente pode fazer a maior dupla. Eu componho
música e vivo atrás de letristas. Quem sabe a gente se acerta nisso
também, hein?
Alandra concorda:
-Seria superlegal.
-E quando você vai me mostrar seus poemas, hein? –pede Edu,
dando a última mordida no seu sanduíche. Bem a tempo, porque a
sirene toca.
-Qualquer dia –responde Alandra. –Tenho muito ciúme dos
meus poemas. Só escrevo quando estou muito triste.
-E você costuma ficar sempre triste, gatinha? –Edu olha bem no
fundo dos olhos de Alandra.
-Às vezes. Mas agora tenho de ir pra classe. Hoje é dia de
prova. A gente se fala depois, ta legal?
-Posso ligar? –os olhos de Edu pedem, carinhosos.
Alandra dá o número do telefone e ele escreve na palma da
mão.
-Ligo hoje mesmo!
Quando entra na classe, o coração de Alandra canta em festa.
Que dia maravilhoso. Agora é que ela não vai se atrasar nunca mais
para as aulas. Pudera: com um gatinho daqueles à sua espera.
Alandra termina a prova, mas ainda tem duas aulas. Dureza! O
tempo não passa. Está louca para chegar em casa, ficar esperando,
grudada ao telefone, até o Edu ligar. Não vai SAR dali nem que a
vaca tussa. Tomara que o pai não esteja em casa. Ele se pendura no
telefone, falando sei lá com quem.
Falando no pai, algo mudou: desde aquela noite do quebra-
quebra das garrafas, Otávio parece diferente. Não bebe como
antigamente. Pára mais em casa, se alimenta melhor, justo ele que
pulava refeições. A mãe até comentara que ele devia estar anêmico.
Toma banho todos os dias, se veste do jeito de antes, para esperar a
mãe voltar do trabalho. Está se esforçando ao máximo. A Clarissa
dera uma dura nele pra valer.
Quanto tempo isso vai durar? Alandra não sabe responder. Pelo
menos é um consolo passar perto do pai e não sentir aquele cheiro
horrível de bebida.
A mãe também anda ressabiada e não faz comentários. Talvez
se esforce por acreditar que o Otávio mudou de vida – mas cadê
coragem? É preciso muito mais, para restaurar a confiança perdida.
Há quase uma semana que o pai não bebe. Nem sinal de
garrafa pela casa. Ele até saiu uma ou duas vezes, dizendo que ia
procurar emprego.
Será que é um milagre? Será que os milagres existem? Alandra
espanta esses pensamentos. Não hoje! Hoje ela só quer se embalar
nos seus olhos, ainda ouvindo a voz macia do Edu, dizendo aquelas
coisas bonitas, fazendo dela a garota mais feliz da escola.
Na classe, sente os olhares das colegas e os comentários
ferinos, à sua volta: “O Edu pirou! Tanta garota legal e ele foi encarar
essa ostra? Sempre tão fechada, parece que vive na...”
Ela não liga. Não hoje. Que se danem todas elas! Do outro lado
da sala, a Taís, amiga fiel, sorri, acena com a mão, faz o sinal de
vitória. Alandra está vingando as duas; o dia da Taís também vai
chegar quando ela fizer a bendita operação plástica, voltar de nariz
novo, como estrela de cinema.
Alandra está feliz. Perto dali, está o Edu, o garoto mais bonito
do colégio, que passou o intervalo inteiro falando com ela, olhando
dentro dos seus olhos. O céu deve ser assim...
08. EXPECTATIVA

Que dia! Alandra almoça correndo, ajeita a louça em cima da


pia, sobe para o quarto da mãe. Por sorte, o pai não está em casa. O
Cássio tira uma soneca no aperto que ele chama de “quarto”.
Abre uma revista, tentando ler. Mas sua atenção está voltada
para o telefone ali na mesa de cabeceira. E se o Edu ligar e o pai
estiver chegando e atender lá embaixo? Mas se ficar lá embaixo, vai
ser a mesma coisa: o pai pode subir as escadas e atender em cima.
Pelo menos, ali, no quarto, tem mais privacidade, é só contar com a
sorte.
Alandra cansa de esperar e acaba pegando no sono. Acorda
com o Cássio entrando no quarto:
-O que você ta fazendo ai?
-O mesmo que você: dormindo –responde, enfezada. “Por que
o Edu não liga?”
Desce, toma um lanche. O Cássio a segue. Às vezes, ele enche
as medidas. Parece grudado nela. “Acho que sente muito a falta da
Clarissa ou do Otávio; quem pode saber? Ou então é um chato
mesmo”, ela pensa.
-Não tem o que fazer, Cássio?
-Credo, Alandra! Só queria ficar perto de você.
-Estou esperando um telefonema muito importante. Se tocar,
você não entende, de jeito nenhum...
O Cássio arregala os olhos, curioso:
-Arrumou namorado, Alandra?
-Deixe de bobeira, é só um amigo.
-Então eu posso atender.
-Se atender, você me paga...
-Tá bom. –O Cássio faz um muxoxo. –Me conte, Alandra. É
alguém lá da escola?
Alandra puxa o Cássio e põe o irmão no colo. Agrada o queixo
do garoto.
-Você pretende guardar segredo?
-Juro em cruz –diz o Cássio, cruzando os dedos.
-Quem vai telefonar é o Edu, um colega de escola. Ele mandou
um bilhete pela Taís, hoje de manhã.
-Pela Pinóquio?
-Você também! –Alandra se irrita. –Que mania de todo mundo
chamar a Taís de Pinóquio. Deixa ela operar o nariz que vai ficar uma
gata...
-Eu não quero saber do nariz da Taís –insiste o Cássio. –Eu
quero saber do Edu. Você topou?
-Topou o quê?
-Ora, ficar com ele!
-Claro que topei –Alandra dá um beijo no Cássio.
-Quem você quer beijar não sou eu, é o Edu.
-Saia daqui, malandro! –Alandra cai na risada. –Estamos
combinados, então? Bico calado e só eu atendo o telefone nesta casa.
-Tá legal –suspira o garoto. –Vou fazer minha lição de casa.
Cássio é muito compenetrado dos seus deveres. Ninguém
precisa falar nada. É até certinho demais, na opinião de Alandra.
A tarde escorre, e nada de Edu ligar. Alandra faz um pouco de
tudo: toma banho, escuta música, tenta estudar, liga a máquina de
lavar roupa, como Clarissa pediu, faz a lista de compras do
supermercado; que chatice não ter empregada. Precisa ajudar a mãe
nos mínimos detalhes.
De tão desanimada, sente até fome. O estômago começa a
doer. Resolve bater um bolo de chocolate. Não é exatamente o que
deva comer na dieta, mas hoje vale tudo!
Está com a mão na massa, quando o telefone toca: ela ali,
desesperada, largando a tigela, lavando as mãos, e o telefone
tocando –cadê o Cássio que não atende. Daí lembra: pois não fora ela
mesma quem proibira o garoto de atender?
Sai correndo para a sala, nem toma fôlego, levanta o fone do
gancho:
-Alô?
-É Alandra?
-Eu mesma. Quem é?
-Oi, gatinha, prometi ligar, não foi? Desculpe só ligar agora.
Esqueci que eu tinha hora marcada no dentista. Sabe como é, preciso
cuidar do visual...
-Ah, não tem importância, não! –diz Alandra, sentando no
banquinho ao lado do telefone. –Eu estive tão ocupada a tarde inteira
que nem vi a hora passar...
Ficam na conversa... por mais de uma hora. O bolo que se
dane. Deve ter murchado todo, lá em cima da pia. Depois ela dá um
jeito. Nem lembra se pôs fermento. Quando finalmente desliga, está
com a mão adormecida de tanto segurar o fone.
Ainda sorri sozinha, quando a porta da rua abre, de repente, e
Clarissa entra reclamando:
-Que diabo tem esse telefone que não consigo ligar pra cá? Só
dá ocupado!
-Nossa, mãe! –reage Alandra. –Você até me assustou.
Clarissa joga a bolsa em cima da mesa do hall.
-Desculpe, filha, é que tenho péssimas notícias. Venha sentar
aqui na sala, preciso conversar com você.
A essa altura, Alandra já está em pânico. O que pode ter
acontecido? Ela nunca vira a mãe daquele jeito. O Cássio, como
adivinhando tudo, já desce a escada a galope:
-Que foi, mãe?
Sentam junto à Clarissa, que parece aflita. A situação deve ser
mesmo muito grave.
-Fale de uma vez, mãe! –pede Alandra. –Quer matar a gente de
susto?
-Tudo bem, tudo bem –Clarissa tenta se acalmar para não
assustar os filhos. –Não fiquem preocupados, tudo está sob
controle...
-Se você não falar de uma vez, vou ter um troço! –diz Alandra.
-Foi seu pai... ele está internado num hospital...
-Como? Ele parecia tão legal, nem estava bebendo mais. Saiu
de casa hoje, todo arrumado, dizendo que havia pintado um
emprego, lembra?
Clarissa procura ser objetiva:
-Eu sei. Seu pai deixou mesmo de beber por uma semana.
Acontece que o médico explicou que não é tão simples assim. Como o
corpo dele já está dependente do álcool, então reage. Ele teve uma
crise horrível na rua, ficou fora de si... quase foi atropelado. A polícia
o levou para o Hospital das Clínicas. Por sorte, encontraram no bolso
dele o telefone do meu trabalho...
-Que horror! –Alandra nem sabe o que pensar. –E você foi até
lá?
-Fui, claro! Logo que recebi o recado. Ele está num estado
deplorável. Nem devia estar contando essas coisas, o Cássio ainda é
criança, mas acho que vocês têm o direito de saber... afinal é o pai
de vocês.
-Pode falar –diz o Cássio. –A gente agüenta.
-É isso mesmo, filha, a gente tem de agüentar isso juntos.
-O que foi mesmo que o médico falou? –pergunta Alandra,
aturdida. –Não entendi direito.
-O Otávio está passando por uma síndrome de abstinência –
explica Clarissa. –Como parou de beber de repente, houve uma
reação do organismo, chamada de delirium tremens...
-E isso tem cura? –Alandra está comovida. –O que os médicos
disseram?
-Ainda vão fazer vários exames para confirmar o diagnóstico –
continua Clarissa –mas, pelos sintomas, têm quase certeza.
-E ele sai dessa, mãe? –pergunta o Cássio, os olhos
arregalados.
-Ele está sofrendo muito, coitado, mas já foi medicado; em
alguns dias a crise deve passar, se Deus quiser. Ele vai cair num sono
profundo. Segundo os médicos, talvez nem se lembre do que
aconteceu.
-E o que você pretende fazer, mãe? –pergunta Alandra,
abraçando-a.
-Por hoje nada, querida. Vou tomar um banho e cair na cama,
nem sei quem eu sou. Não quero nem pensar no assunto. Quando ele
sair do hospital, a gente vai ter de encarar...
-Sabe o que eu penso, mãe? –Alandra está muito séria. –Eu
acho que ele devia se lembrar de tudo o que aconteceu... Quem sabe
isso mudasse alguma coisa.
-Como assim, Alandra?
-Pense bem, mãe. Se ele esquecer de tudo, esse sofrimento
todo não terá valido nada. Mas... se ele lembrar... talvez tenha tanto
medo que resolva se tratar.
-Eu não tinha pensado nisso –Clarissa fica pensativa. –
Realmente você tem razão. Seria muito melhor que ele se lembrasse.
Ele não iria querer passar por isso novamente, certamente que não...
-O papai vai ficar bom? –insiste o Cássio. –Se ele não ficar bom
de verdade, prefiro que ele fique por lá mesmo.
-Não fale assim, meu filho. Ele é seu pai.
-Eu sei que ele é meu pai, mas já to cheio disso. A gente não
pode internar ele de uma vez, lá no hospital?
-Não é tão simples assim, filho –tenta explicar Clarissa. –Ele vai
ficar internado por uns dias, até ficar em melhor estado; mas internar
pra sempre não é solução...
-Por que não? –pergunta Alandra, apoiando o Cássio. –A gente
ia viver bem melhor, não ia?
-Será? –responde Clarissa. –Eu preferiria que ele se tratasse
num ambulatório ou freqüentasse os Alcoólicos Anônimos; já falamos
nisso outro dia, quando você viu a placa, lembra?
-Então a gente vai ter de agüentar o Otávio mesmo –conforma-
se Alandra. –Quem sabe, um dia esse pesadelo acabe.
09. CONTROVÉRSIAS

Dias difíceis. Otávio continua internado. Clarissa vai


regularmente ao hospital e traz notícias. O quadro do delirium
tremens é terrível: uma sudorese intensa; tremores por todo o corpo,
que atingem até a língua; taquicardia, febre. Uma emergência séria,
onde o paciente corre risco de vida.
O pior são as alucinações: Otávio grita que “homenzinhos
liliputianos” invadem seu quarto e o cercam, bebendo, rindo,
cantando...
Certas vezes, crê estar cercado de pequenos animais: cobras,
lagartos, baratas... que sobem pelo seu corpo; em outras... insetos
parecem penetrar-lhe a pele: é um custo impedi-lo de escarificar-se,
tentando livrar-se deles.
Felizmente, os médicos que o assistem têm muita experiência.
Otávio é cercado de todos os cuidados, e está bem medicado.
Clarissa tira até uma licença na firma, para acompanhar o
tratamento. Tem várias conversas com os médicos, que a esclarecem
sobre o assunto. Otávio é submetido a vários testes que confirmam o
delirium: chega a “ler” numa folha em branco e a “segurar” um fio
imaginário...
Finalmente, depois de alguns dias, a fase pior da crise passa.
Como era previsto, Otávio cai num sono profundo. Mas está
debilitado, precisa fazer inúmeros exames clínicos. Querem descobrir
o quanto seu organismo está comprometido pela bebida. Só sairá do
hospital quando estiver mais recuperado, depois de um diagnóstico
completo. Com isso o tempo passa...
Apesar de sentir algum remorso, Alandra vive aquela fase com
tranqüilidade. É um verdadeiro alívio não ter o pai por perto, não ficar
imaginando o que ele aprontaria daquela vez. Com Otávio no
hospital, toda a família, de certa forma, tem uma trégua.
Clarissa se impressiona: os filhos quase não perguntam por
Otávio. Até que ponto a presença do pai era tão opressora que
significava apenas tristeza ou angústia?
Quanto a Otávio, os médicos são taxativos: ele deverá seguir
um tratamento regular que lhe permita a abstinência, sem os seus
efeitos devastadores.
Os exames estão concluídos e, felizmente, o comprometimento
físico ainda é reversível. Não há danos maiores em órgãos vitais. Mas
ele está anêmico, com gastrite, e também hipertenso... Se voltar a se
alimentar regularmente e parar de beber, tem ainda muita chance.
Caso contrário, os prognósticos são imprevisíveis.
Mas ele concordará com isso? É tão fácil fazer planos, decidir
um itinerário de vida. Mas se Otávio discordar, tudo irá por água
abaixo. Clarissa reza para que, dessa vez, por medo, como dissera
Alandra, ele concorde em se tratar.
Na contramão, do drama familiar, Alandra vive momentos
maravilhosos com Edu. Do simplesmente ficar, passaram a
namorados. Não se largam mais, em qualquer oportunidade. No
colégio ou fora dele. Trocam telefonemas diários, bilhetes, são o
assunto predileto na escola. Até Salete comenta, cada vez que cruza
com Alandra:
-Como vai o príncipe encantado?
-Perfeito! –sorri Alandra, lisonjeada por ser alvo de tanta
atenção.
Certa tarde, quando passeavam por um shopping, ele a convida
para tomar um sorvete. Sentam-se numa mesinha, esquecidos do
mundo ao seu redor. Foi então que, quase por acaso, Edu pergunta:
-O que seus pais pensam do nosso namoro?
-O quê? –diz Alandra, distraída.
-Seus pais. Você comentou com eles que a gente tá namorando
pra valer?
Alandra passa à ofensiva:
-Eu é que pergunto: O que seus pais acham disso?
Edu ri:
-Eles não se preocupam muito comigo, não. Já contei que meus
pais são separados? Os dois se casaram de novo. Tenho quatro
irmãos: dois de cada casamento, não é interessante?
-E com quem você mora? –interessa-se Alandra.
-Com meus avós maternos. Quando meus pais se separaram,
eu ainda era muito pequeno. E mamãe, também muito jovem, voltou
a morar com a família. Quando ela se casou novamente, alguns anos
depois, não dava mais pra eu largar dos meus avós. Tinha me
acostumado demais com eles. Eu até chamo eles de pai e mãe...
-E você acha legal morar com eles?
-Legal é... –Edu fez uma pausa –eles são maravilhosos, têm
paixão por mim e sou o favorito deles. Mas, às vezes, fico imaginando
como seria morar com meu pai ou minha mãe, conviver com meus
irmãos. A gente não se vê muito. E você? Ainda não respondeu à
minha pergunta.
-Minha mãe é ótima –diz Alandra. –Pra falar a verdade, ela é
dez. Tem a cabeça aberta, entende? O Cássio, meu irmão, às vezes
me torra a paciência, mas ainda é criança, tem só oito anos...
-E seu pai? Você tem pai, não tem?
-Claro que tenho pai! –reage Alandra. –Ou você acha que nasci
da polinização das abelhas?
O Edu cai na risada:
-Ei, gatinha, que papo é esse? Só tava brincando... é que você
sempre fala na sua mãe, mas nunca ouvi você falar do seu pai.
Pensei até que ele tivesse morrido.
-Não tem muita coisa pra falar...
-Bom, mas me conte um pouco sobre ele. A profissão, o jeito
que ele é... seus pais vivem juntos, não vivem?
Alandra encara Edu. Fica tão séria que o namorado se espanta.
-Eu não gosto muito de falar do meu...
-Por quê? –insiste Edu, curioso. –O que ele tem de diferente
dos outros?
-Por que você quer tanto saber? Que insistência, pô!
-O que tem demais eu querer saber de sua família? Não contei
tudo sobre a minha? Sabe, eu curto muito isso de família, acho
superlegal.
-Jura que se eu contar não muda nada entre a gente? –
pergunta Alandra, ressabiada.
-Mas claro que não, gatinha! O que pode ter de tanto mistério
na vida do seu pai? Ele é mafioso, por acaso? Procurado pela justiça?
-Não brinque, Edu, a coisa é séria.
-Pois então conte de uma vez, senão vou ficar pensando as
maiores loucuras... Esqueceu que sou artista? E artista tem uma
imaginação incrível... daqui a pouco to achando que seu pai é um
extraterrestre!
-Ok –concorda Alandra -, eu conto. Infelizmente... meu pai é
dependente de álcool, é uma doença, sabe? Agora mesmo ele está
internado no Hospital das Clínicas, porque parou de beber por uma
semana, sem acompanhamento médico, e o corpo teve uma reação
terrível, uma tal de delirium...
-...delirium tremens –completa Edu. –Meu avô é psiquiatra. Já
falou nisso várias vezes. É uma coisa terrível mesmo. E ele está
melhor?
-Vai ficar internado por uns dias, depois volta pra casa. Aí vão
começar os problemas de novo...
-Você não quer que ele volte? –Edu fala muito suave, com
carinho na voz.
-Pra falar a verdade –entrega a Alandra –não quero não. Você
nem imagina o que a gente tem passado com meu pai. Nem vale a
pena contar.
-Eu imagino –diz Edu.
-Acho que não. Só quem tem um parente alcoólatra é que pode
sentir o que nós sentimos. É uma vergonha atrás da outra...
-Pera aí! –O Edu toma as mãos de Alandra. –Vergonha por quê?
Você mesma não disse que é uma doença? Claro que é. Por acaso
você teria vergonha se seu pai tivesse por exemplo tuberculose ou
câncer?
-Seria diferente.
-Diferente em quê? Entendo seu sofrimento, mas você mesma
discrimina seu pai. Se ele é doente, precisa se tratar. E precisa mais
ainda do apoio da família, você não acha?
-Você pensa mesmo assim? –Alandra encara Edu, sem acreditar
no que ouve.
-Claro que penso! Você pode até ter muita bronca do seu pai,
entendo isso. Mas não pode simplesmente dar as costas pra ele,
querer que ele fique internado, longe da família, da sociedade. Ele
precisa de apoio pra ter a coragem de se tratar, mudar de vida... sem
isso, Alandra, como é que ele vai conseguir?
-Quantos anos você tem, Edu? –pergunta Alandra, espantada.
-Dezesseis, por quê? Tá me achando careta?
-Pelo contrário, tô achando você amadurecido demais pra sua
idade.
-É que eu já passei por muitas também. Já tive bastante raiva
dos meus pais, porque achava que eles me abandonaram. Depois que
resolvi perdoá-los, tentar entender, me liguei na música... agora tô
legal.
-Então preciso aprender muito com você –diz Alandra. –Porque,
confesso, eu acho que odeio o Otávio...
-Otávio é o nome do seu pai?
-É.
-E você tem vergonha de dizer a palavra pai? Então chama seu
pai pelo nome?
-Mais ou menos isso –confirma Alandra. –Faço de conta o
tempo todo que ele não é meu pai.
-Mas ele é; você não pode mudar isso.
-Eu sei.
-Olha pra mim, gatinha! –Edu pega no rosto da garota, olha
bem nos olhos dela. –A vida é legal, não gaste seu tempo odiando
ninguém, não. Escreva seus poemas, seja otimista, faça como eu.
Tirei de letra... e me sinto bem melhor.
-Eu queria tanto seu assim! –suspira Alandra. –Acordo de
manhã tão desanimada, com vontade de sumir, de ser outra
pessoa...
-De jeito nenhum –ri Edu. –Agora que eu achei você? Com
esses cabelos, esses olhos maravilhosos, gatinha! Você não tem pena
de mim? Como é que vou ficar? Completamente abandonado...
-Você é um amor!
-Concordo!
E ato contínuo beija-a ali mesmo, um beijo com gosto de
sorvete, que acende no coração de Alandra uma chama de
esperança!
10. TENTATIVAS

Há quase duas semanas que Otávio está hospitalizado. Clarissa


visita-o diariamente, mas não leva os filhos. Quer poupá-los de ver o
pai naquele estado. Alandra, na ausência da mãe, cuida da casa e
consola o Cássio.
O garoto anda deprimido. Perdeu até a fome e vive triste pelos
cantos da casa. Até os programas de tevê, que ele tanto curtia, não
tem assistido mais. Alandra faria de tudo para diverti-lo, mas ela
mesma está desanimada. Se não fosse pelo Edu...
Alandra sobe até seu quarto, abre o caderno de poesias. Está
quase cheio. Uma centena delas. Então escreve, perdida no tempo e
no espaço:

Eu sou um pássaro triste


Que vive no meio do espinho
E nunca fez seu ninho
E nunca teve uma casa

Eu sou a flor que chora


Na solidão da montanha
E o céu não me entende
Nem nada me consola

Eu sou o vento que geme


Na imensidão da campina
Por onde vou já nem sei
Onde é que o vento mora?

Será que um dia afinal


Eu vou me encontrar
E na estrada da vida...
Alguém vai me amar?

Alandra

Poderia ser Edu, o garoto bonito de jeito sensível. Mas Alandra


é desconfiada e não acredita facilmente nas pessoas. Já teve muitas
decepções: com os colegas de colégio, com seus comentários ferinos;
com alguns professores mais impacientes. Ainda bem que a Matilde e
a Salete são compreensivas. E a Taís, que boa amiga! E... se fosse
diferente? E se a Taís fosse uma beleza pra ninguém pôr defeito?
Será que ainda seria sua amiga, ou se juntaria à maioria?
Besteira, pensa. O que poderia ser não vale, o que conta é a
realidade, o tempo presente. O mundo de Alandra está assim: o pai
internado no hospital, sob sedativos, saindo de uma crise séria de
abstinência alcoólica; a mãe, de licença no trabalho, mais morando
no hospital do que em casa; e tudo nas costas dela.
O telefone toca, uma, duas, três vezes. Atende sem pressa:
-Alô?
É o Edu:
-Como é, gatinha, vamos dar um rolé por aí?
-Não posso, Edu, tenho de olhar o Cássio. A Clarissa agora vive
no hospital... e a gente não tem empregada, esqueceu?
-Leva o Cássio também -diz o Edu, do outro lado da linha. -Ele
gosta de jogar videogame, não gosta?
-Adora; quem não gosta sou eu.
-Manera, gatinha, a gente divide. Leva o garoto pra jogar um
pouco e, depois, faz o que você quiser. Garanto que vocês estão
precisando sair um pouco.
O Edu ainda não dirige. Tomam o metrô, vão a um shopping
que abriu recentemente. É bom sair. O Cássio se anima, coitado, e lá,
diante da parafernália eletrônica, nem parece o mesmo. Edu até
comenta:
-O garoto tá abalado com a história...
-Demais -confirma Alandra. -Até estranhei, sabe. Ele tão
certinho, o tempo todo. De repente, fica assim. Ainda bem que agora
está se divertindo um pouco.
-Um pouco? -ri o Edu. -Olhe só, o garoto tá em transe... e você,
gatinha, pensou no que eu falei outro dia? A respeito do seu pai?
-Pensei -diz Alandra. Até escrevi mais poesias também.
-E daí? Chegou a alguma conclusão?
-Você tem razão, Edu. O Otávio precisa mesmo de ajuda. Vou
fazer o possível... quem sabe, desta vez, ele cria jeito.
-Assim é que se fala, garota -aplaude Edu. -E agora? Que tal o
maior sorvete do mundo? Depois um cineminha, hein?
Ao ouvir a palavra “sorvete”, Cássio se aproxima todo
sorridente. Que bom ver um sorriso na carinha dele, antes tão
soturna! O Edu realmente é um amor. Está sendo legal demais com
eles.
Mais tarde, quando voltam para casa, já encontram Clarissa.
Ela tirara os sapatos e se estendera no sofá. Parece cansada. Cássio
pega um sanduíche e sobe para o quarto.
-Quer que eu lhe faça um café, mãe? -oferece Alandra.
-Quero, filha, estou moída. Engraçado, a gente não faz nada no
hospital, mas volta cansada como se tivesse carregado pedras. Deve
ser porque não estou acostumada com tanta dor e com tudo o que
vejo por lá...
-E o Otávio? -pergunta Alandra, lá da cozinha, enquanto faz o
café.
-Está bem melhor, os remédios o deixam calmo, graças a Deus.
Parece que nem se lembra do que aconteceu, pelo menos por
enquanto...
-Quando ele sai do hospital? Já falaram alguma coisa?
-Provavelmente a semana que vem. E o Cássio, melhorou?
Estava tão preocupada com ele, mais achei-o mais animado, nem faz
perguntas.
-A gente foi a um shopping novo e ele curtiu muito o
videogame... é criança, ainda, não se preocupe não... Já resolveu o
que vamos fazer com o Otávio, quando ele sair do hospital?
Clarissa sorri. A filha dissera: “O que vamos fazer”, usara o
plural. Está ficando uma moça. Já pode contar com ela. Melhor assim.
Quando a garota chega com o café, puxa-a para perto:
-Sente aqui, filha, vamos conversar.
Alandra senta-se no tapete, põe a cabeça no colo da mãe.
Clarissa acaricia seus cabelos:
-Antes de mais nada, me diga, como vai o namoradinho?
Alandra fica vermelha:
-Vai bem, ele é superlegal. O avô dele é médico. Já contei que
ele mora com os avós maternos, porque os pais são separados?
-Já falou sim -responde Clarissa. -Qual a especialidade do avô
dele?
-Psiquiatra, tem uns cinquenta e poucos anos. A mãe do Edu
casou muito nova, teve ele antes dos dezoito.
-E você está curtindo esse namoro, filha? -insiste Clarissa. -
Você é ainda tão jovem! Vá devagar, tá legal?
Alandra sorri: -Sabe, mãe, antes de namorar o Edu eu não era
ninguém. A turma lá da escola vivia caçoando de mim... Agora é
diferente, parece que ganhei...
-...status? -pergunta Clarissa. -É essa a palavra que você
procura? A gente não vale isso ou aquilo só pela opinião das pessoas
com quem nos relacionamos. A gente vale pelo que realmente é. E
você vale muito, Alandra, nunca se esqueça disso.
-Pra senhora posso valer, até pra mim mesma. Mas praqueles
pestinhas do colégio? Você precisa estar lá pra ver como eles me
tratam, como tratam a Taís... somos ambas discriminadas.
-Porque vocês são diferentes da maioria -continua Clarissa. -
Você, pelo seu jeito mais introvertido; a Taís, por causa do nariz um
pouco maior que o da maioria. Pode ser por outros motivos
também... os diferentes serão sempre discriminados...
-E o que a gente faz? O que podemos fazer pra mudar isso?
-Não ligar -ensina Clarissa. -Aceitar a própria diferença. Vocês
são atingidas porque não se aceitam como realmente são. O dia em
que vocês se aceitarem, não vão dar a mínima pra opinião dos
outros.
-Tem certeza, mãe? Absoluta?
-Não há nada absoluto na vida, minha filha, mas esse é o
caminho, sim. Veja o meu caso. Seu pai é um alcoólatra. Eu
considero o alcoolismo uma doença, porque é uma doença. Então não
me sinto discriminada pelo fato de meu marido ser doente. O que me
dói é vê-lo sem tratamento, é a recusa em assumir a própria doença.
A opinião dos outros já não me incomoda mais...
-Tem certeza, mãe? -desconfia Alandra. -E quando ele vai ao
seu trabalho, faz escândalo, dá o maior vexame? Quando espera a
senhora na porta do médico, do dentista, pra fazer cena de ciúmes?
Tem certeza mesmo de que não guarda nenhum rancor, nenhum...
-...ódio? -Clarissa sorri. -Não digo que não fique revoltada,
quando ele apronta. Porque ele expõe a mim e a si mesmo ao
julgamento dos outros, e isso eu detesto. Mas não me envergonho
dele, da sua doença, se ele aceitar se tratar, eu ainda tenho
esperança...
Alandra toma as mãos da mãe nas suas:
-Eu sei o quanto vocês foram felizes, no passado. Mas não se
iluda, mãe! E se ele não quiser ou não puder, sei lá, se tratar? O que
você vai fazer, me diga?
Clarissa levanta-se num impulso. Fica andando descalça pela
sala.
-Eu disse que não me envergonho do seu pai e não me
envergonho mesmo. Acho que criei uma crosta protetora, sei lá. Ou
então me iludo com isso. Mas não estou sozinha: há vocês dois...
-A gente não tá reclamando, mãe. Como disse o Cássio, a
gente aguenta...
-Será? Eu tenho muito medo que a doença do Otávio traga
sérias consequências pra vocês dois. Por isso vou fazer uma
derradeira tentativa: tentar convencê-lo a se tratar. Impossível que
ele não se sensibilize com o mal causado a ele próprio e aos filhos...
Alandra fica pensativa, por alguns instantes, até encontrar as
palavras para exprimir o que realmente sente.
-Sabe, mãe, por muito tempo, odiei o Otávio. Odiei mesmo, do
fundo do coração, não me envergonho de dizer. Por causa de tudo o
que fez a gente passar. Pra mim ele podia até morrer... Mas de uns
tempos pra cá, comecei a ter pena... você tem razão, ele é doente. A
gente precisa dar uma força, quem sabe assim ele consiga se curar.
Clarissa dá um abraço apertado na filha. Cúmplice do mesmo
sofrimento, das horas de amargura. Tinham chegado a uma
encruzilhada; só Deus poderia dizer o que o futuro reservaria de bem
ou de mal para eles. É agora ou nunca: ela tem a secreta esperança
de que alguma coisa possa ser feita, que mude, definitivamente, o
destino de Otávio e de toda a família.
11. DECISÕES

Recém-saído do hospital, Otávio vagueia pela casa, pensativo.


Continua tomando remédios, seguindo orientação médica. Clarissa,
ainda de licença, faz com que ele se alimente regularmente, seguindo
uma dieta severa, por causa da gastrite.
Abalado por esparsas lembranças de crise, que às vezes o
acometem, começa a pensar na sua vida. No que fora antes e no que
se transformara por causa da bebida.
Lembra dos tempos distantes, quando era um jovem promissor,
recém-formado em economia, lutara muito para conseguir o primeiro
emprego e casar-se com Clarissa. O nascimento de Alandra trouxera
muita alegria! De bebedor social, ele virara um bebedor compulsivo,
fazendo da bebida seu motivo primordial de vida.
Aos poucos, mas definitivamente, entrara em decadência. Por
beber, perdera o primeiro emprego, o segundo, o terceiro... virara
quase um pedinte, de porta em porta, tentando nova colocação. Mas
quem daria emprego àquele homem sempre mal trajado, barba por
fazer, hálito recendendo a álcool, olheiras fundas, mãos trêmulas das
ressacas homéricas?
De copo em copo, chegara ao fundo do poço. Desprezado pela
família, rejeitado pelos amigos e colegas, um verdadeiro estorvo.
Clarissa assumira a chefia da casa, tornara-se responsável pelo
sustento da família. E ele, que deveria dividir com ela essas
obrigações, vivia atolado num mundo tenebroso, que o transformara
de um jovem idealista em alguém sem futuro, inútil a si próprio e à
sociedade.
Otávio mira-se no espelho e leva um susto: é um homem
precocemente envelhecido. Com pouco mais de quarenta anos, sua
aparência é a de um velho. Apesar de todos os encargos, Clarissa
está muito mais jovem que ele. Como ainda poderia amar aquela
coisa ambulante, sem vontade própria, dependente do álcool?
Os médicos conversaram muito com ele, durante a internação.
Explicaram que o alcoolismo é uma neurose impulsiva, e que ele
ainda estava em tempo de tratar; caso contrário, poderia morrer por
doenças decorrentes do álcool, que costumam atacar vários órgãos:
coração, pâncreas, fígado, pulmões... ou então por acidentes fatais.
Tudo isso o deixara muito impressionado.
Seu futuro se apresenta sombrio. Ainda que não morra a curto
ou médio prazo, caminhará a passos largos para a demência – e a
amostra fora suficiente para assustá-lo! Isso o levará a ser internado
num manicômio, ao lado de outros infelizes – é o que se costuma
fazer no país, com os alcoólatras considerados irrecuperáveis, ele não
ignora essa triste realidade.
É isso que ele deseja para sua vida? Permanecer nesse poço tão
fundo do qual talvez não haja volta? O que legará à Alandra e ao
Cássio? Que tipo de herança deixará para eles? A de ser filhos de um
alcoólatra, que a sociedade ainda vê não como doente, mas como
mau-caráter, alguém sem honra nem dignidade...
Sente a boca amarga e o coração mais ainda. Se houvesse uma
forma de mudar, de sair daquela prisão e redescobrir a vida. Tomar
de novo seu lugar na família, recebendo em troca o respeito dos
filhos... Mas ele se sente sem forças, fraco, cansado, derrotado.
Se ao menos pudesse pedir ajuda! De onde lhe viria essa ajuda
abençoada? Pensa em Deus, mas logo desiste. Deus parece tão longe
dele, tão alheio a seus problemas e todo seu sofrimento! Por ande
anda esse Deus, que não escuta suas súplicas, não lhe estende a
mão amiga? Talvez, quem sabe, nem exista, seja uma metáfora dos
poetas ou dos teólogos. Apenas uma miragem no deserto...
Clarissa aparece na sala, trazendo um lanche e pergunta:
-Sente-se melhor, Otávio? Ainda as lembranças? Procure
esquecer. O pior já passou...
-Será? -pergunta, olhando para a mulher. Onde Clarissa arranja
forças para cuidar dele, não sentir abjeção por essa figura estranha
que ele se tornou? Será que ainda há amor dentro dela, ou apenas
piedade?
-Quer conversar? -incita Clarissa. -O que tanto você rumina,
andando pela casa?
-Sobre a vida -diz Otávio. -No que eu transformei a minha vida.
Acho que não há mais volta...
-Claro que há; é só você querer -Clarissa senta-se ao lado dele,
no sofá. -Há caminhos, Otávio, mas só você pode tomar a decisão...
-Que caminhos, me diga? Que decisão? Me internar de uma vez
no manicômio. É isso que você quer?
-Você ouviu coisas demais lá no hospital -diz Clarissa. -Nunca
pensei em interná-lo num manicômio. Mas do jeito que as coisas
vão... você não se ajuda! Se ao menos me escutasse...
-Estou escutando agora -diz Otávio. -O que eu poderia fazer pra
não repetir o horror pelo qual passei? Só por uns flashes que me vêm
à memória, já fico apavorado...
-Há vários caminhos, já disse. Você pode fazer um tratamento
no ambulatório de um hospital público. Não é uma coisa
extraordinária, mas já ajuda bastante... você sabe, o ideal seria uma
clínica particular, mas não temos a menor condição.
Otávio abaixa a cabeça, agoniado. Então não se sabe que a
responsabilidade da casa está nas costas da mulher? Que há muito
tempo dá conta de tudo sozinha?
-Além disso -Clarissa procura encontrar as palavras certas -,
também pode frequentar os Alcoólicos Anônimos...
Otávio já ouvira falar naquilo antes. Fora Clarissa quem tocara
no assunto. Agora, parece interessado:
-E adiantaria alguma coisa? Esqueceu que eu tentei me matar
outro dia?
-Tem dado resultado pra muita gente –continua Clarissa. –Só
sei que é gratuito e reúne alcoólicos sob anonimato. A única condição
pra frequentar as reuniões é não beber...
-Você bem viu o que aconteceu quando deixei de beber –replica
Otávio, na defensiva. –Como vou me arriscar a...
-Mas você não está bebendo agora e não tem tido reações,
graças aos remédios. Você está medicado. No ambulatório
continuaria o tratamento e, ao mesmo tempo, frequentaria os
Alcoólicos Anônimos...
_falando assim, parece tão fácil! Só sei que não aguento mais
essa vida. Perdi o respeito da minha família, tenho vergonha de mim
mesmo...
-Só você pode decidir –Clarissa procura ser objetiva. –Não
posso obrigá-lo a nada, só estou apontando caminhos. A vida é sua, e
a decisão também.
-E se eu não quiser? –pergunta Otávio, olhando bem nos olhos
de Clarissa. –E se eu voltar a beber? Você vai me abandonar? Vai
levar meus filhos embora?
-Não sei –responde Clarissa. –Só posso dizer que estou
cansada, Otávio, muito cansada mesmo. De não ter marido e sim um
filho rebelde, que só me causa problemas. Não sei quanto mais
poderei aguentar. Mas não veja chantagem nisso, pelo amor de Deus!
Como eu disse, a escolha é sua. Eu também posso fazer a minha, não
é?
Otávio suplica: -Você iria comigo aos Alcoólicos Anônimos, pelo
menos na primeira vez... só para eu perder o medo?
-Se você quiser ir, prometo que vou –diz Clarissa -, mas pense
bem no assunto. Amanhã você me dá uma resposta. De qualquer
forma, acho conveniente você continuar o tratamento em
ambulatório. Seus remédios são fortes, precisam de controle regular.
-Mas você conseguiu vaga pra mim?
-O doutor Celso está tentando... está se empenhando muito. Se
ele conseguir, você passa o dia lá e, à tarde, volta pra casa. Se quiser
frequentar os Alcoólicos Anônimos, à noite, ainda dá tempo.
-Não sei, tenho tanto medo! –Otávio se encolhe como criança
abandonada, no canto do sofá. –Será que consigo viver sem beber?
Já com a bebida a vida é insuportável! Mas passar por aquilo tudo
outra vez, não aguento, juro que não...
-Acho que chegou a hora da decisão, Otávio –insiste Clarissa,
paciente. –Não consigo mais controlar os sentimentos dos meninos,
eles lutam entre o amor e o ódio por você. Escolha rápido, por favor,
ou pelo menos nos deixe em paz...
Clarissa levanta-se e vai chorar na cozinha. Chegou ao seu
limite. De que adianta tampar o sol com a peneira, a realidade é uma
só: o marido é um alcoólatra; qualquer dia baterá a porta da rua e
talvez nem volte mais... E que será dele, meu Deus? Nem os próprios
pais, antes tão devotados, querem saber do Otávio, depois de suas
recaídas contumazes, dos vexames quase diários. Ela também, como
os filhos, está dividida entre o amor e ódio, desprezo e pena... Ao
menos se acontecesse um milagre, se ele quisesse sair do fundo do
poço e entendesse que é um doente, e doença se trata, se controla,
com coragem e determinação...
Faz tempo que ela não chora. As lágrimas lhe fazem bem,
desopilam seu coração tão apertado. Debruçada sobre a mesa da
cozinha, chora baixinho, por todos aqueles anos perdidos, esvaziados
de alegria, de ternura. Vendo o tempo passar e sempre a mesma
angústia – quando ele vai chegar? Como é que vai chegar? Agressivo,
apático? Quebrando coisas, batendo em alguém, se jogando no
tapete da sala como um fardo em que a gente tropeça, logo de
manhã cedo?
Será que ainda o ama? É possível amar alguém sem respeitá-
lo? Sem sentir orgulho dessa pessoa? Ele é o pai dos seus filhos, o
homem a quem jurou amar para sempre, na alegria ou na tristeza,
na saúde e na doença... Podia, sem remorso, simplesmente
abandoná-lo?
Sempre as mesmas perguntas. Sempre a falta de respostas.
Está cansada daquilo, de rodar em círculos, de se angustiar por uma
culpa que não é dela, e muito menos de Otávio, porque, antes de
tudo, ele é um doente.
Mas como colocar isso na cabeça das pessoas e também dos
filhos? Para a sociedade, ele é um marginal, sem caráter, sem força
de vontade, um pinguço... Como se não houvesse milhões como ele,
em casas iguais à dela, em todas as profissões: professores, médicos,
executivos, jornalistas, artistas... Uma legião de doentes que a
bebida tortura, escraviza, reduz à condição subumana. E quantos
milhões mais em torno desses: filhos, pais, esposas e maridos, uma
grande ciranda de pedra, unida pelo mesmo tormento? Não, ela não
está sozinha. Há milhões de companheiros na mesma situação. Será
que, depois de tudo, está na hora de entregar os pontos? Ou ainda é
preciso lutar, resistir?
Como uma luz, acesa na noite escura, ela ouve os passos de
Otávio atrás dela, sente suas mãos sobre seu cabelo, num afago
medroso. Então ele diz, voz de menino assustado:
-Amanhã a gente vai aos Alcoólicos Anônimos...
12. CORAGEM

Otávio passa a noite em claro... Levanta bem cedo e procura


não acordar Clarissa. Liga para o número que encontrou na lista
telefônica, dos Alcoólicos Anônimos, e pede o endereço mais próximo
à sua casa.
Depois sai de fininho, porque resolveu ir sozinho. Toma o metrô
e logo chega ao seu destino: uma casa de aparência amiga, com uma
singela placa na porta: “Alcoólicos Anônimos”; abaixo, o horário de
funcionamento.
Otávio hesita, mas, criando coragem, entra. É agora ou nunca!
Um homem vem ao seu encontro:
-Posso ajudá-lo?
-Gostaria de saber o que são exatamente os Alcoólicos
Anônimos...
Ele é solícito, porém objetivo.
-Siga-me, por favor.
Passam por uma espécie de auditório, com várias cadeiras
enfileiradas. Na frente, uma mesa. Na parede, de ambos os lados,
dois grandes pôsteres. Chegam a uma sala menor, com um sofá.
-Sente-se, por favor -diz o outro.
Otávio se encolhe num canto do sofá. Agora preferia que
Clarissa estivesse com ele. Sente medo; está perdido como um
garoto que entrou pela primeira vez na escola, enquanto a mãe vai
embora...
-Em que posso exatamente ajudá-lo? -repete o plantonista.
-É sobre mim mesmo que desejo falar, mas não sei como
começar...
O outro procura estimulá-lo:
-Pode me chamar de Gílson. E não precisa dizer seu nome. Seu
anonimato está garantido aqui. Pode até escolher outro nome, do seu
agrado...
-Escolher outro nome? -Otávio se surpreende. -Poderia mesmo?
-Claro -diz Gílson -, se preferir, se for melhor para o senhor.
Para mim, tanto faz saber seu nome verdadeiro ou não, por isso nos
chamamos Alcoólicos Anônimos.
-Desculpe perguntar... o senhor também é...
-Alcoólico? Sou sim. Cem por cento dos que trabalham aqui
também são. Mas, diga-me, por que nos procurou?
-É uma longa história -diz Otávio. Não sei se o senhor estaria
interessado nela.
-Se o senhor quiser contar...
-Posso resumi-la -continua Otávio. -Comecei a beber
socialmente, depois fui aumentando as doses à medida que sofria
decepções pela vida... acho que levei mais pancadas do que podia
aguentar. O álcool me dava a ilusão de viver melhor. Mas não foi isso
que aconteceu. Fui bebendo cada vez mais e não me controlava, não
conseguia parar – com isso perdi empregos, o respeito próprio e o da
minha família, tudo. Aí tentei parar por conta própria: dizem que caí
na rua e fui internado num hospital. Passei quinze dias lá. Agora
estou tomando vários medicamentos. Então, minha mulher me falou
de vocês. Por amor à minha família, como último recurso para
readquirir a dignidade perdida, resolvi vir... O que vocês podem,
afinal, fazer por mim?
Após o desabafo, Otávio está molhado de suor. Tira um lenço
do bolso, enxuga o rosto, as palmas das mãos. O pior já passou. O
que virá a seguir?
-Fique calmo -fala Gílson -, apenas ouça com atenção. O
programa dos Alcoólicos Anônimos é de autoconhecimento. Somos
uma irmandade que trabalha sob três premissas básicas. Primeira: O
alcoolismo é uma doença incurável. Ela só pode estacionar. Segunda:
O alcoolista não vai conseguir isso sozinho, precisa do apoio de
outros alcoolistas, que compartilham suas experiências, forças e
esperanças, visando à recuperação própria e à dos outros. Terceira:
Só parar de beber não basta, é preciso mudar a cabeça, fazer uma
revisão de vida.
-É meio assustador -comenta Otávio, ressabiado.
-Parece, mas não é assim. Nós nos reunimos, no mínimo, uma
vez por semana, naquele salão por onde passamos. Há outras
unidades como esta em vários bairros da capital e por todo o país. A
reunião dura duas horas e não existe diálogo, apenas monólogo. Um
coordenador dos trabalhos apresenta cada participante; este fala por
dez minutos sobre sua experiência de vida e por que resolveu fazer
parte da irmandade. Os outros cento e dez minutos são para ouvir.
Após a reunião, geralmente temos uma pequena confraternização,
com café, bolo, bolachas, pra descontrair, fazer amigos...
-Deixe ver se entendi -Otávio começa a relaxar. -Eu chego, sou
apresentado, falo durante dez minutos. Posso usar meu verdadeiro
nome ou um pseudônimo. E vocês têm fichas, arquivos? Controle dos
membros?
-Não temos controle algum -continua Gílson. -Cada um é livre
pra vir e voltar quantas vezes quiser, e a vida inteira, se for o caso.
Agora, preste atenção: a principal exigência é que venha abstêmio,
não tenha bebido nem um gole antes...
-Mas é essa exatamente a parte que me interessa. -Como vou
conseguir essa tão esperada abstinência? Apenas falando por alguns
minutos e ouvindo o resto do tempo?
-Esse é o mapa da mina -sorri Gílson. -Você se compromete,
como todos nós, a não beber por vinte e quatro horas. O passado já
morreu, o futuro não existe. Você tem pela frente essas vinte e
quatro horas... aqui, agora!
-E no dia seguinte? -interrompe Otávio.
-No dia seguinte, a mesma coisa. Você toma a decisão de não
beber por vinte e quatro horas novamente... e assim todos os dias. O
seu compromisso não é pra vida toda, é por aquelas vinte e quatro
horas. Olhe pra mim: sou um alcoólico ou alcoólatra, tanto faz.
Alcoólico quer dizer que tem álcool, eu até prefiro a palavra
alcoólatra...
-O que adora álcool? -arrisca Otávio.
-Exatamente. Isso é o que a palavra quer dizer, em si. Mas, por
experiência própria, sei que o alcoólatra não adora álcool, ele até
sabe, como no seu caso, o que acarreta para sua vida; o alcoólatra se
amarra no que ele julga que o álcool faz por ele. Na verdade, apenas
exacerba o que o indivíduo já é. Se for agressivo, com a bebida, fica
mais agressivo; se for um carente afetivo, ficará ainda mais carente e
assim por diante...
-Vinte e quatro horas sem beber. Me parece genial! -confessa
Otávio. -Mais alguma coisa que eu deva saber?
-O nosso sistema prevê um apadrinhamento dos novos
membros, quer dizer, um membro mais antigo conhece os dados do
novato, dá o seu número de telefone para uma situação de
emergência, um tipo de apoio adicional...
-Eu tenho de pagar alguma coisa? -insiste Otávio. -Uma taxa,
ou algo assim?
-De jeito nenhum -Gílson é enfático. -Não cobramos taxo
alguma. Nossas reuniões são gratuitas. Recebem homens e mulheres,
adolescentes e velhos. Não estamos ligados a nenhuma religião ou
credo político: somos uma democracia. Também somos
autossuficientes. Se o membro da irmandade quiser colaborar com
alguma coisa, colabora, a seu critério. Claro que despesas existem:
aluguel da sala, compra de lanche, luz, telefone... nos mantemos com
as contribuições voluntárias dos nossos membros, no mundo inteiro...
-E que ajuda maior vocês costumam dar ao membro da
irmandade?
-Vocês diz arrumar emprego, ajudar com dinheiro,
mantimentos etc... Não, não fazemos isso. Não intermediamos nada.
Podemos, em alguns casos, informar onde buscar tratamento; damos
apenas orientação. Não nos responsabilizamos por internações,
cartas de apresentação, nada disso. Nosso trabalho é dirigido para
um só objetivo: Manter-nos sóbrios e ajudar outros alcoólicos a
alcançar a sobriedade. Isso não implica julgamentos morais, nem
pressões. Cada um é livre pra decidir se fica abstêmio ou não. Só
que, para frequentar as reuniões, a condição é estar abstêmio, caso
contrário será convidado a sair.
Gílson levanta-se:
-Venha comigo, quero lhe mostrar uma coisa.
Voltam para o salão, por onde passaram antes. Gílson aponta
para os dois pôsteres na parede:
-Essas são as doze regras pelas quais pautamos nosso
trabalho: nós chamamos de “doze passos”. Leia, por favor.
Otávio, curioso, lê:
1. Admitimos que éramos impotentes perante o álcool, que
tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas.
2. Viemos a acreditar que um poder superior a nós mesmos
poderia devolver-nos à sanidade.
3. Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados
de Deus, na forma em que O concebíamos.
4. Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós
mesmos.
5. Admitimos, perante Deus, perante nós mesmos e perante
outro ser humano, a natureza exata de nossas falhas.
6. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse
todos esses defeitos de caráter.
7. Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas
imperfeições.
8. Fizemos uma relação de todas as pessoas que tínhamos
prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados.
9. Fizemos reparações diretas nos danos causados a tais
pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-lo significasse
prejudicá-las ou a outrem.
10. Continuamos fazendo o inventário pessoal, e, quando
estávamos errados, nós o admitimos prontamente.
11. Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar
nosso contato consciente com Deus, na forma em que O
concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade em
relação a nós, e forças para realizar essa vontade.
12. Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a
esses passos, procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólicos e
praticar esses princípios em todas as nossas atividades.

-Interessante -murmura Otávio. -Mas me ocorrem duas


perguntas. Primeira: e se o membro do grupo for ateu? A qual poder
superior ele pedirá ajuda?
-Esse poder superior pode ser o próprio grupo, a solidariedade
entre todos -rebate Gílson. -E a segunda pergunta?
-Como é feito esse inventário, em que consiste?
-O inventário é feito por escrito, em particular, na sua casa,
longe daqui. Pode mostrá-lo inclusive a um psicólogo, amigo da
família, a um pastor, padre, rabino, enfim, a uma pessoa ponderada.
Ele pode ser refeito quantas vezes for necessário, depois de uma
recaída, por exemplo.
-Recaída? -assusta-se Otávio.
-Sim, meu amigo, recaídas -Gílson usa o plural. -Elas não
acontecem por mero acaso. Às vezes um membro da irmandade se
sente muito seguro, acha que não é mais um alcoolista. Se afasta,
pensa estar curado, não bebe por dias, meses, até anos... mas repito
o que disse: o alcoolismo é incurável, ele pode apenas ser controlado.
É preciso estar atento. Uma vez alcoólico, sempre alcoólico. É só
começar, tomar o primeiro gole e...
Otávio sorri, tristemente:
-E eu não sei disso? É uma compulsão, mais forte que a
vontade. O que eu não daria pra ser o homem de antigamente,
readquirir o respeito próprio e o da minha família?
-Você pode -diz Gílson. -É só querer. Pense no que
conversamos. Leve estes folhetos para ler com calma. Se quiser
voltar, estamos aqui.
Otávio estende a mão:
-Obrigado pela atenção. Eu vou pensar.
13. A LUZ

Um ano depois...
Otávio lembra-se com emoção da primeira visita aos Alcoólicos
Anônimos, naquela manhã ensolarada, quando saíra de fininho de
casa e deixara Clarissa ainda dormindo. A conversa com Gílson, seu
primeiro contato na irmandade.
A volta para casa... mil pensamentos na sua cabeça. Encontrara
Clarissa ansiosa: “Por que não me esperou? Você foi mesmo? O que
achou?”
Contara tudo a ela; de como fora bem recebido. Sentira-se
quase em casa. E, conhecedor de como funcionava a irmandade,
ficara de pensar...
Aquela a parte mais difícil: tomar uma decisão. Nascer de novo,
não do útero materno, mas de si mesmo: fruta apodrecendo na
fruteira, na qual ainda houvesse um pedaço sadio, onde encontrar
uma seiva nova.
Passara o resto do dia cismarento. Justo ele que não ousava
mais sonhar! De repente, no fundo do túnel, uma luz... era agarrar
ou largar, o que afinal esperava de sua passagem pela Terra, um ser
tão pequeno em relação ao universo, a casa de Deus?
Existiria mesmo esse Deus benevolente, verdadeiro, Pai ou Mãe
– por que não? Deus não tem sexo -, em cujos braços pudesse
entregar sua alma cansada, carente de afetos e cuidados, como
criança perdida na noite escura? Seria tão bom se fosse assim.
Chegar até esse regaço materno, e pedir, na voz mais sincera, tal
qual fonte límpida da montanha: “Me ampare, me socorra, me faça
mudar de vida, me dê forças!”.
Seria bom renascer. Não apenas voltando a ser o homem de
antes: carente, que não suportava nenhuma decepção, vaidoso,
prepotente, egoísta.
Renascer como um homem novo: humilde, tranquilo, sensível
aos seus problemas e aos dos outros; um homem que pudesse se
olhar no espelho toda a manhã e dizer: “Bom dia, eu respeito você,
porque tem dignidade”.
Agora ele tinha certeza: não fora apenas pela mulher ou pelos
filhos que se atrevera a cruzar aquela porta aparentemente
assustadora dos Alcoólicos Anônimos. Porque atrás dela estava a sua
verdadeira história: “Eu sou um alcoólico, sofro de uma doença
incurável, que pode apenas estacionar, mas uma vez alcoólico,
sempre alcoólico, basta tomar o primeiro gole e não me controlo
mais. Mas se eu conseguir não beber por um dia... vinte e quatro
horas é o tempo da minha libertação; hoje, aqui, agora! O passado
não existe mais, o futuro jamais chega, minha luta é com este tempo
presente, a ele pertence todo o meu esforço em direção à
integridade”.
Fora por ele mesmo que entrara ali, que tivera a conversa com
Gílson. O resto, desculpa. Não suportava mais viver daquela forma.
Sem respeito próprio, um homem não é nada, é uma coisa.
Precisava, e quanto, readquirir sua auto-estima, tão avariada nos
anos todos de alcoolismo, de descida da montanha, para um buraco
cada vez mais fundo...
Não seria fácil, sabia... Mas também não era impossível. O que
o impedia de tentar? Pior do que estava, não poderia ficar. Ele já
perdera o amor-próprio, o amor da esposa e dos filhos, a amizade
dos amigos, o emprego: tudo! Faltava apenas perder a vida e, se não
mudasse de rumo, mais dia menos dia também a perderia – mais um
alcoólatra num leito de hospital, num velório, num túmulo e fim.
Fora assim que reunira forças para fazer seu inventário moral,
como Gílson explicara. Fechado no quarto, numa tarde chuvosa, ele
escreveu tantas páginas quantas o permitiram as lágrimas quentes
que rolaram pelo seu rosto.
Quando acabou, estava exausto, mas feliz. Sua vida estava
toda ali, nas páginas manchadas de lágrimas. Mas ainda dava para
ler. Mas a quem as entregaria? Que pessoa seria tão ponderada que
pudesse avaliar o inventário de uma vida?
Foi então que, num insight, lembrou-se de um colega de turma,
quando tivera de frequentar a escola pública, na época em que
Leonardo empobrecera. Revoltado, quase furioso, com o golpe que
lhe tirara o status do qual tanto se orgulhava, Otávio sentou-se pela
primeira vez ao lado do garoto sardento e sorriso aberto: José.
Foram colegas durante anos; quando terminaram o curso, ele
seguiu para a faculdade de economia, enquanto José entrava no
seminário. Desde muito cedo queria ser padre. Ele zombara tantas
vezes de José: “Seu maluco! Na flor da idade, se meter num
seminário! Dou um mês pra você sair de lá correndo...”
Através dos meses, anos, tivera notícias de José. O amigo
telefonava, escrevia, convidou-o para sua ordenação como sacerdote.
Naquela época já bebia, ainda que isso passasse despercebido entre
a família ou no meio social que frequentava. Mas nada escapava a
José, que, dono de uma percepção fantástica, uma vez lhe disse:
-Qualquer problema, amigo, me procure, está bem? Nada
mudou, você sabe que sempre adorei suas histórias malucas...
Por histórias malucas, José se referia aos espetaculares
desabafos de Otávio, sua mania de grandeza, de algum dia ser
milionário, devolver à família tudo que ela perdera; seus
mirabolantes projetos de vingança contra o sócio, que sumira na
poeira e nunca mais dera notícias.
Mas ele, Otávio, abanava a cabeça:
-Sem essa, José, estou legal. Vá curtir teu rebanho de otários,
que gostam de um sermãozinho.
José apenas sorria, não dizendo mais nada. Durante todos
aqueles anos, em que a bebida destruíra praticamente tudo em sua
vida, de amigos só restara José. O único a não lhe dar as costas
(fingindo que não o conhecia na rua), a não fugir quando ele se
aproximava... Em qualquer circunstância, o ombro amigo sobre o
qual podia chorar, a mão estendida sem julgamento moral, apenas
compreensão.
A pessoa certa era José, e foi a ele que entregou seu inventário
de vida. José pediu que ele sentasse, ofereceu um café. Enquanto ele
ficava ali estático, quase com medo... o amigo foi lendo – à medida
que lia, um sorriso se delineava em seus lábios e o cabelo de
moleque parecia mais espetado. Pareciam de novo dois meninos, nos
bancos escolares, a trocar segredos, na inquietação da adolescência.
Quando, finalmente, levantou os olhos, Otávio teve a certeza de
que viera à pessoa certa:
-Estou orgulhoso de você –elogiou José. –Eu sabia que esse dia
chegaria. Você demorou a encontrar Deus, foi difícil sua caminhada.
Mas acho que você, decididamente, agora O encontrou.
-Você acha que ainda tenho chance? –suplicou Otávio,
comovido, feito um menino que, no fundo, ele ainda era.
-Todos nós temos chance, mas precisamos acreditar nisso.
Deus estava em cada curva do caminho, apenas você não O
enxergava. Agora, em companhia Dele, você estará protegido. Ele
será seu escudo.
-Tenho tanto medo! –desabafou Otávio. –Isso me parece maior
do que minhas forças. E se falhar?
-Se você falhar, recomeça do ponto de partida –garantiu José.
–Deus não tem pressa.

Um ano!
Agora, logo de manhã bem cedo, tendo conseguido a bendita
vaga!, Otávio se dirige ao ambulatório, onde passa o dia. Participa de
psicoterapia de grupo e tem informações didáticas sobre sua doença.
O tratamento ainda inclui: ambientoterapia, serviço integrado de
psiquiatria, psicologia, assistência social e terapia ocupacional. O
retorna a casa garante o vínculo familiar.
À noite – no mínimo uma vez por semana -, entra pela porta
dos Alcoólicos Anônimos, como se ali também fosse sua casa. Otávio
sente-se bem entre seus pares, uma irmandade que divide
experiências e se nutre da força de todos, no caminho da esperança
maior: continuar abstêmio.
Há reuniões abertas, nas quais podem participar não-alcoólicos,
amigos e familiares. A única condição é que não quebrem o
anonimato de seus membros. E reuniões fechadas – só para
alcoólicos -, numa das quais falou pela primeira vez, abriu sua alma,
contou suas intimidades, reforçou sua tênue esperança, na
companhia dos irmãos que também torciam por ele...
Eis a palavra certa: irmãos! Nada impede que entre si se
ajudem: na compra de um terno novo, no pagamento de uma
refeição, na solução de alguma dificuldade. A irmandade não se opõe
a isso, desde que seja em nível individual e não seja usado o nome
de “Alcoólicos Anônimos”. Uma corrente de solidariedade permanente
e inquebrantável.
Alguns menos persistentes. Vindo uma, duas, três vezes, de
repente, sumindo. Outros, pertinazes como ele, na busca da
reintegração à sociedade, da face no espelho, da auto-estima, do
autoconhecimento. Uns religiosos, outros ateus... procurando, de um
jeito ou de outro, o poder supremo: a Luz!
Aos poucos... como quando se planta uma semente, a
esperança começa a brotar, aflorando à superfície... “Eu sou um
homem, não um verme. Nasci para ser uma pessoa digna, dotada de
sensibilidade: alguém que possa conviver consigo mesmo e com seus
semelhantes, em paz e harmonia...”
“Meu corpo, não apenas uma massa de músculos e nervos, que
caminha como um cabide ambulante; meu corpo, algo precioso que
contém meu ser interior. A ele devo respeito e devo proteger; planta
rara que me obriga a cuidados diários, estas preciosas vinte e quatro
horas...”
“Hoje não vou beber.” Logo cedo, de frente para o espelho, a
decisão: “Não vou beber! Ontem já passou, amanhã nunca chega.
Poderá haver a tentação de beber um gole amanhã, talvez até beba,
mas até esse amanhã chegar, não me preocuparei com ele. Eu não
vou beber hoje! Esta é a minha fiança, minha garantia. Eu me dedico
ao hoje, como se fosse o dia mais importante da minha vida, o ‘dia
D’, da minha guerra particular contra a doença: o alcoolismo”.
“Não tenho vergonha de ser conhecido como alcoólico; de
encontrar um conhecido que, me vendo agora tão disposto, comente:
‘Não está bebendo mais, Otávio?’ Não me irrito. Apenas respondo:
‘Hoje, garanto que não!’.”
“Pra que me esconder? Por que a vergonha de confessar a
doença? Se eu mesmo me discrimino, como impedir que outros o
façam de forma ainda pior?”
Alguns raros amigos, aos poucos, se reaproximaram, meio
surpresos, a princípio. Depois, confiantes, acabam dando força. Aos
outros, aos que não são capazes de compreender, de que adiantaria
explicar? Por que desperdiçar palavras ao vento? Reconquistando
lentamente a amizade dos filhos – avaliação furtiva de animal
selvagem espreitando, olhares enviesados -, depois, quem sabe, o
dia mágico, Cássio convidando: “Quer jogar bola, pai?”.
Ou Alandra, com seus olhos verdes e profundos, exigindo mais
provas concretas, irrefutáveis; o alvo mais difícil. “Mas chego até
você, filha, me dê esse aval, tenho todo o tempo do mundo pra
reconquistar seu amor, perdido nas trevas de um passado tão
inglório. Devo esperar... mas tenho tanta pressa!”
14. CONFLITOS

Engraçado como são as coisas. Enquanto Otávio bebia, nos


longos anos em que praticamente abandonara a família a seu próprio
destino, Clarissa assumira as responsabilidades, vencera todos os
obstáculos: dinheiro curto, falta de empregada, luta constante para
pagar os estudos dos filhos. Aos poucos, ela se tornara a verdadeira
cabeça do casal. Otávio não podia contribuir com nada. A qualquer
dificuldade, era a ela que Alandra e Cássio se dirigiam. Otávio, dentro
ou fora de casa, nada significava; era até melhor quando saía e
demorava para voltar.
Mas as coisas mudaram quando Otávio ingressou na irmandade
dos Alcoólicos Anônimos. Frequentava-a regularmente, aceitando a
sugestão: “Venha às reuniões”. Dera-se bem lá, fizera amigos,
sentia-se em casa, entre seus iguais, na luta corpo-a-corpo, contra a
bebida. Mantivera-se – salvo raras exceções – geralmente abstêmio.
Além disso, continuava indo ao ambulatório, num vínculo altamente
saudável, o que se traduzira numa saúde regular. A pressão arterial
já estava controlada e ele se viu livre dos constrangimentos de
outrara, quando, embriagado, alternava cenas escandalosas com
terríveis ressacas.
Aos poucos, muito lentamente, surge um novo homem: que
levanta cedo, toma banho, penteia os cabelos, faz a barba, veste-se
com a antiga vaidade, enfim, vai à luta! Quando volta, à tardinha,
vem quase sempre alegre, tagarelando sobre seu dia, querendo saber
dos filhos, puxando prosa.
Como tratar esse novo homem, reintegrá-lo no meio familiar?
De certa forma, é perturbador, ele é um estranho no ninho. Não o
Otávio de antigamente, furioso ou agressivo e totalmente alheio ao
que acontecia à sua volta. Mas um Otávio que teima em ser aceito
em sua nova postura perante a vida. Não o reconhecem nem como
pai, nem como o marido de antes. É claro que mudara para melhor,
mas, assim mesmo, mexe com o relacionamento diário.
Principalmente porque ele também insiste em voltar a ser o chefe da
família, lugar há muito conquistado pela mulher.
Clarissa passa a ter reações conflitantes. Ao mesmo tempo em
que dá graças a Deus por aquele verdadeiro milagre, que faz Otávio
levantar cada manhã abstêmio, sorridente, isso a atemoriza. Porque
já se acostumara com o poder de mando, de decisão, de ser a única
voz a se elevar naquela casa, a não contar nunca com o marido.
Otávio foi uma espécie de lata de lixo onde a família inteira, por
muito tempo, jogou suas desilusões, frustrações, angústias.
E agora ei-lo! Puxando papo no jantar, ansioso para ir à sua
reunião noturna na irmandade. Voltando animado, e, mesmo sem
contar o que se passara, denotando cada vez mais uma consciência
crítica. Às vezes até faz questão de levar Clarissa nas reuniões
abertas, apresenta-a com orgulho aos novos amigos: “Minha mulher,
uma mulher de verdade, ela merece tudo...”
Empenha-se em cumprir um dos doze passos, aquele que diz:
“Fizemos uma relação de todas as pessoas que tínhamos prejudicado
e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados”. Tinham sido
muitos, por longo tempo. Talvez ele deseje, num passe de mágica,
voltar ao passado, em época anterior, quando as mágoas ainda não
estavam tão enraizadas...
O que ele pretende afinal? Mostrar a ela, aos filhos, a todo
mundo que saiu finalmente do fundo do poço? Tudo bem, mas não é
tão simples assim. A rejeição fora forte demais. Ficaram todos
traumatizados pela doença de Otávio; meu Deus, ela sabe que é
doença, mas, assim mesmo, é tão difícil aceitar aquele que se diz um
novo homem, de braços totalmente abertos... É preciso tempo,
paciência, amor. Será que ela ainda o ama? Agora que ele está
melhor, física e psicologicamente, não tem mais as antigas desculpas
para não abandoná-lo, perdido no mundo. Talvez possa até deixá-lo,
sem maiores remorsos, afinal, ele conseguiu até amigos. Quem sabe
com o tempo consiga um emprego. Não de economista, logo no
princípio, mas alguma coisa com que possa se sustentar, não
dependendo dela para tudo.
É isso que quer, agora que pode? Confusa, Clarissa olha Otávio
à mesa, puxando conversa com os filhos, querendo saber da escola,
convidando-os para passear no fim de semana. Logo mais ele pedirá
com certeza:
-Será que você me arruma um dinheiro, pra levar os garotos a
um parque de diversões? Tenho procurado emprego e parece que
dessa vez vai dar certo, logo pago você...
-Vá com calma, Otávio! –pede Clarissa. Depois fica pensativa:
“Por que calma? Ele já não perdera tempo demais?” De que ela tem
medo? De que arrume mesmo um emprego, por mais simples que
seja, não precise de ninguém e fique livre para agir? Claro que,
dependendo economicamente dela, é Clarissa que detém o poder ali
na casa.
Nas menores coisas ele já se intromete: - Clarissa, a Alandra
está namorando. Você conhece o rapaz? Convide ele para jantar aqui
um dia desses, quero levar um papo, saber se ele é legal...
-Por quê? –pergunta, impaciente.
-Ora por quê! Ela também é minha filha, não é? –responde
Otávio, olhando-a de forma indagadora.
-Você descobriu isso só agora, não foi? –critica Clarissa,
abespinhada.
-Infelizmente sim –rebate Otávio. –Mas sempre é tempo, não
é? Ou você preferia que fosse o contrário?
Otávio cutuca fundo na ferida. Clarissa sai da sala e, para
variar, vai chorar sozinha na cozinha. Mas que idiota que é. Deveria
estimular Otávio a continuar daquele jeito. Não era o que tanto
desejara todo o tempo, que o marido se tratasse, parasse de beber,
virasse um novo homem? Mas é justamente isso que assusta, porque
ele quer lhe arrebatar algo duramente conquistado. Invadir sua
privacidade; é um desconhecido que se intromete em seus privilégios
tão duramente alicerçados.
Os filhos também, a seu modo, se ressentem disso. Alandra fica
constrangida quando o pai faz perguntas demais, sugere que ela
convide colegas para vir em casa. Cássio também dá mil desculpas
quando ele o convida para sair, jogar bola, ou simplesmente passear.
Mas Otávio não desiste: quer recuperar a qualquer custo o carinho
dos filhos. Antes pecava por omissão, agora se excede.
Vem atrás de Clarissa na cozinha, senta-se ao seu lado:
-O que estou fazendo de errado, querida? Por favor, me diga,
eu quero tanto acertar!
Clarissa olha Otávio; ele parece sincero. Mãos juntas, quase
suplicantes. Está sendo difícil para ele. Está sendo difícil para todos.
Antes, conhecido como alcoólatra, suas bebedeiras eram tema
constante das conversas. Agora é um ser especial, que resolveu não
beber mais, pelo menos a cada vinte e quatro horas. Ficam
observando-o, como se dissessem: “Quero só ver se ele consegue,
não dura muito...”
Otávio prossegue:
-Você está cansada, eu sei. Por muito tempo deixei tudo nas
suas costas. Nem sei como você me aturou. Podia estar jogado como
tantos, embaixo de uma ponte, mas agora eu prometo...
-Por favor, não prometa nada –interrompe Clarissa. –Você está
indo tão bem. Estou orgulhosa de você, acredite. Preciso de um
tempo, só isso, as coisas mudaram muito...
-E você tem medo disso, Clarissa? –pergunta Otávio, ansioso. –
Será que eu não tenho o direito de voltar a ser o chefe desta família?
-Não é tão fácil –Clarissa levanta-se, enche um copo d’água,
tem a garganta seca. –Foi muito tempo, Otávio. De certa forma esta
família ficou anormal. O pai vivo mas ao mesmo tempo...
-... como se estivesse morto –completa Otávio.
-Eu não quis dizer isso, eu quis dizer ausente. As crianças
dependiam totalmente de mim. Eu só podia contar comigo, mais
ninguém. Até seus pais se afastaram. A sua mudança nos pegou a
todos de surpresa. Claro que é maravilhoso, mas...
-A minha presença constrange vocês, eu não entendo. Pensei
que era isso que todos queriam...
-Claro que é! –Clarissa respira fundo. –Claro que é. Por favor,
vá com calma, não force muito a situação. Todos nós já sofremos
muito. Não queira mudar da noite para o dia tudo aqui dentro, seria
forte demais, principalmente para as crianças. Elas precisam
aprender a...
-... a amar o pai de novo? É isso que você quer dizer? A
respeitar o pai, ter orgulho dele, depois de tanto tempo só sentindo
vergonha, diga, seja sincera!
-É exatamente isso –admite Clarissa. –Não quero enganá-lo. Eu
mesma estou confusa com a nova pessoa que você se tornou...
-Parece incrível! –Otávio levanta-se num impulso. –Quero fazer
uma única pergunta. Seja franca, Clarissa! Você prefere o homem
que fui, alcoólatra, dependente, ou o homem que tento ser agora,
abstêmio, mas independente, que questiona seu poder aqui dentro de
casa?
Clarissa não responde, talvez nem saiba o que dizer. Fica ali,
olhando Otávio, sentindo-se esquisita, vazia por dentro, ela própria
uma desconhecida. O que está acontecendo, meu Deus? Será
possível que ante essas duas hipóteses, tivesse coragem, a loucura
de preferir a...
Volta para a sala, abre a porta, sai para a rua... Precisa
respirar, administrar seus pensamentos, os fatos novos em sua vida.
As questões formuladas por Otávio continuam martelando sua
cabeça, como ferro em brasa.
Caminha por vários quarteirões, quase autômata. O que
significa realmente a casa que deixara para trás? Antigamente tudo
tão claro: o lugar onde era a rainha, a voz absoluta, decisória. E
agora? Estará disposta a dividir com Otávio, o que seria normalíssimo
em outras circunstâncias, tudo o que se refere aos filhos, à família?
O sol está se pondo, bola vermelha no canto do céu... fica
parada, olhando a cena indescritivelmente bela, tranquila. Tudo na
natureza em perfeita harmonia, como o lago que, se está cheio
demais, espera paciente a volta ao seu limite.
Talvez ela deva seguir o exemplo, dar um tempo, reorganizar
seus pensamentos. Pode valer a pena!
15. ESPERANÇA

Aula de história. Matilde, lá na frente, revive o passado, dá-lhe


cores, personaliza, vibra. Alandra está atenta. Aos poucos volta a ser
o que era, como um círculo que se fecha, harmonioso.
Está namorando, há mais de um ano, o Edu. Entendem-se,
falam a mesma linguagem. O amor preenche todos os seus
pensamentos. Há horas em que se sente tão leve que poderia voar...
Eles até compõem canções em parceria: um a música, outro a letra.
Parece que estão juntos há muito tempo e ela se pergunta se
encontrou o outro lado da maçã. Mas é tão jovem ainda, tem toda
uma vida pela frente. O importante é aproveitar cada dia, acordar
com a alegria antecipada de vê-lo na escola, desfrutar seu sorriso
lindo.
Salete aparece na porta da classe e faz um sinal: procurá-la
depois da aula, na sua sala. Isso já não a perturba mais. As
conversas com a coordenadora se tornaram rotineiras. Ela sente-se
bem, protegida. Arrumara mais duas amigas leais: Salete e Matilde.
Taís sorri, do outro lado da sala. Está entusiasmada. Parece
que, finalmente, vai fazer a abençoada plástica no nariz. Nem vê a
hora de mudar de rosto, encarar a vida sem complexos.
A aula termina, Matilde junta suas coisas, dá uma piscada para
Alandra. Logo, as três se reunirão na sala de Salete. Alandra tem
uma boa novidade: o pai continua abstêmio, e faz um mês que
arrumou emprego. Nada de muito especial, apenas uma colocação
num escritório, graças à interferência do amigo José. Mas já é um
começo...
Ela já não sente o antigo ódio pelo pai, se esforça para sentir
respeito por ele. Afinal, Otávio está lutando, tentando. É preciso dar-
lhe forças, um aval, na sua luta diária contra a bebida.
O Cássio também passou de ano e continua tirando de letra o
que acontece dentro de casa. Ele é diferente dela. Sublima, vai por
outro caminho. Talvez seja mais forte ou mais esperto.
Ela é supersensível, suas gavetas estão cheias de poemas que
escreveu nas horas de maior amargura. Tem um ciúme doentio de
suas poesias. Não deixa que ninguém leia; nem mesmo o Edu.
Levanta-se, dirige-se sem pressa à sala de Salete. Deve muito
a ela e também à Matilde, ao carinho de ambas, sua compreensão. É
como se aos poucos tivesse descoberto que o sol brilha cada manhã,
trazendo sempre um sinal de esperança...
Mais tarde, Clarissa espera pelos filhos, na porta da escola. A
mãe também está diferente: agora arruma os cabelos, comprou
roupa nova, uma liquidação lá no shopping, se enfeita mais. Ela e
Otávio têm longas conversas, todas as noites, às vezes até alta
madrugada.
-Tudo bem? –o sorriso da mãe é tranqüilo, suas faces estão
rosadas, por esperar dentro do carro, sob o sol do meio-dia.
-Tudo legal, mãe! –responde, entrando no carro. Logo mais
aparece o Cássio, cheio de energia. Parece um dínamo, sempre com
pacote de doce ou bala. Clarissa, pra variar, dá um pega nele:
-Já não falei que dentista está pra hora da morte? Jogue fora
essa porcaria.
Em casa, tudo na maior calma. Otávio não está, já foi para o
escritório. Só deve chegar à noite, para jantar e, logo em seguida,
hoje é terça-feira, ir à reunião dos Alcoólicos Anônimos que ele
freqüenta uma vez por semana.
A vida mudou. Há mais serenidade, apesar de uma constante
expectativa. Quanto vai durar? Será que é para sempre?
Alandra prefere não pensar, apenas curtir esse novo estilo de
vida. Sente alívio em pensar que o pai finalmente arrumou emprego,
com ordenado fixo – então Clarissa pode respirar um pouco...
Na semana seguinte será seu aniversário. Ela fará quinze anos.
Tanto tempo que não faz festa! Afinal, quem convidaria? Suas
colegas, ainda ressabiadas com ela, agora por inveja por causa do
Edu? A Taís, com certeza; os parentes; os avós... que aos poucos
também voltaram ao convívio familiar. O ideal mesmo seria uma
festa de jovens muito alegre, cheia de música. O Edu podia trazer a
turma dele, o pessoal da banda, aí rolaria um rock, e poderiam
dançar... Sonhar não custa nada, mas deixa pra lá!
Otávio chega eufórico da rua, senta-se para jantar e vai logo
despachando:
-Recebi meu primeiro salário hoje. Sabem o que vou fazer com
ele?
-Ajudar a mãe a pagar as contas –diz o Cássio, muito tranqüilo,
tomando a sua sopa.
-Claro! –Otávio fica meio desconcertado. –Mas tem outra coisa
que quero fazer, estou pensando há muito tempo nisso.
Clarissa e Alandra trocam olhares, lá vem coisa. O que ele
inventaria dessa vez? Otávio percebe, ele é mestre nisso, tem uma
argúcia tremenda:
-Vocês duas aí não precisam ficar se entreolhando, não. Eu
pretendo uma coisa muito simples: dar uma festa de aniversário pra
Alandra, afinal ela vai fazer quinze...
-Bobagem, pai –atravessa Alandra. –Seu primeiro ordenado,
depois de tanto tempo. A mamãe tem muita conta pra pagar, não há
necessidade.
-Como, não há necessidade? –Otávio parece sinceramente
desapontado. –Minha única filha vai fazer quinze anos e eu não posso
dar uma festa? Coisa simples, meu bem. Você convida todo o pessoal
lá da escola, sua avó faz um grande bolo, sanduíches, refrigerantes...
Clarissa entra na conversa:
-Pensando bem, minha filha, seu pai teve uma ótima idéia! Há
quanto tempo você não faz uma festa de aniversário? Vamos pensar
no assunto...
-Eu nem tenho amigos lá na escola –insiste Alandra. –Só
mesmo a Taís e o Edu, claro!
-Você que pensa! –rebate Otávio. –Faça isso por mim, filhota,
você me daria tanta alegria. Você nem pode imaginar!
Do outro lado da mesa, Clarissa pisca para Alandra, como se
dissesse: “Tudo O.K., aceite, eu garanto”. E o Cássio acabando a
sopa, só comenta:
-Vai ser uma chatice; no meu aniversário, eu não quero festa
nenhuma: quero um videogame.
-Seu aniversário ainda está muito longe –ri Otávio. –Quando
chegar perto, a gente conversa. Então, Alandra, vamos dar uma
festa? No próximo domingo... sim ou não?
-Tá legal, pai –concorda Alandra, o coração batendo forte de
emoção e medo ao mesmo tempo.
Alandra nem acredita: dia do seu aniversário! A casa toda
enfeitada, com flores e luzes que o pai logo cedo arrumou, junto com
o Cássio. Vó Mariana já chegou com um bolo tão grande que é um
exagero. Vô Leonardo precisou ajudar a tirá-lo do carro. Em cima
puseram as velinhas cor-de-rosa, a cor preferida de Alandra.
As horas passam rápidas, nos últimos preparativos: fazer
sanduíches, gelar refrigerantes. Alandra está ansiosa, na expectativa.
Convidou todos os colegas de classe. O Edu garantiu que traz a turma
dele. O pai até avisou os vizinhos que vai rolar música alta até a
madrugada.
Oito horas da noite: Alandra na maior aflição. Será que virá
alguém? Se não vier ninguém ela morre, se enfia no primeiro buraco
que encontrar e não sai de lá, nunca mais aparece na escola. E se
vier todo mundo, será que cabe, a sala é tão pequena!
De roupa nova, que Clarissa fez questão de comprar, Alandra
espera, sentada no sofá. As luzes todas acesas realçam o seu rubor.
Está corada de emoção, o coração dispara dentro do peito.

De repente... começam a chegar: vêm como uma cachoeira


barulhenta. O primeiro é o Edu, que desce de um buggy todo pintado
de cores vivas, que um colega mais velho dirige, mais a turma da
banda de rock. Depois são os carros que param na porta, os pais
deixando os filhos, combinando hora de vir buscar. Outros vêm de
moto... Quando finalmente chega a Taís, já encontra a casa cheia.
Alandra nem acredita no que vê, é um milagre, pensava que ninguém
gostasse dela e no entanto...
-Veio todo mundo, né? –comenta a Gladys (uma loirinha
sardenta, sempre de nariz em pé e maquiada como se fosse para
uma festa às sete da manhã, todo dia). –Ainda mais com a canja que
o Edu promete dar...
-Patricinha! –murmura Alandra, mas no fundo está feliz. O
importante é que sua festa de aniversário seja um sucesso. O Edu e
sua banda atacam um rock pra valer, e a turma se espreme na pista
improvisada.
Até que Alandra chega e pede:
-Não vou dançar com o meu gato, não? Afinal a festa é minha!
Edu larga a guitarra, sai dançando com Alandra enquanto
sussurra ao seu ouvido:
-Está feliz, gatinha? Você viu como todo mundo gosta de você?
-Tem dedo seu nisso, malandro –diz Alandra, mas não se
importa. Ainda que soubesse que o Edu planejou tudo, incentivou os
colegas a virem à sua festa, isso é apenas mais uma prova de amor
dele. O resto é resto.
Otávio vai para o meio da sala, uma garrafa de refrigerante e
um copo na mão:
-Quero fazer um brinde a uma garota maravilhosa que para
minha sorte é minha filha! Para Alandra! Que seja muito feliz, a vida
inteira!
Otávio levanta o copo de refrigerante, como se levantasse uma
taça de champanhe. Alandra vai até ele, trocam um abraço apertado.
Num canto, Clarissa sorri, enquanto o Cássio está mais preocupado
com os doces que ele belisca sem parar.
Uma noite e tanto!... São mais de quatro horas quando o último
carro leva o derradeiro convidado, e os vizinhos, pacientes,
finalmente podem dormir. Otávio cai, derreado, na poltrona:
-Contente, minha filha?
-Muito, pai, adorei. Obrigado a vocês dois pela festa. Agora vou
pra caminha que tô morta...
Alandra sobe para o quarto, arranca a roupa, já amarfanhada
de tanto dançar. Joga longe os sapatos, se atira na cama. Está
moída, mas feliz. Antes de dormir, ainda pega uma folha de papel e
escreve um poema. Depois, vencida pelo cansaço, cai no sono.

Mais tarde... Clarissa – depois de pôr um mínimo de ordem


naquela bagunça toda – dá uma passadinha no quarto dos filhos,
para ver se tudo está bem. Cássio dorme atirado de roupa e tudo
sobre as cobertas, agarrado a um prato de doces. Clarissa sorri:
“Malandro...”.
No quarto de Alandra, ela entra devagar, a luz ainda está
acesa. A garota dorme tranqüila, sorriso no rosto, um braço caído
para fora da cama. No chão, uma folha de papel, manuscrita. Clarissa
se abaixa, pega a folha e lê:

Eu era infeliz
Porque me sentia
Como o patinho feio da história de fadas
Que nasceu em casa errada

Agora eu sei
Onde é o meu lugar
Pois não sou uma estranha
No meu verdadeiro lar
Eu quero ser feliz
E acho que já sou
Porque encontrei o amor
E ele também me encontrou

Eu descobri
Que sou um belo cisne
Que pode voar bem alto
E sonhar com as estrelas...

Alandra
Autora e Obra

Giselda Laporta Nicolelis nasceu em São Paulo, SP,


em 27 de outubro de 1938, no bairro da Liberdade. Fez o
primeiro e segundo graus no Colégio São José. Depois se
bacharelou em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação
Cásper Líbero.
Publicou sua primeira história em 1972, e em 1974,
o primeiro livro – ambos pela Editora do Escritor, São Paulo,
SP. Hoje os livros são mais de 100, a maioria para o público
infantil e juvenil, com centenas de edições e em torno de 5
milhões de exemplares vendidos.
Recebeu vários prêmios literários, entre eles o
Prêmio Monteiro Lobato e João de Barro, de literatura
infantil; e o APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e
o Jabuti, de literatura juvenil, este último em parceria com
o escritor Ganymédes José.
De Volta à vida é um livro que aborda um problema da maior gravidade no Brasil: o
alcoolismo.
Calcula-se que quase 12% da população brasileira (mais de 20 milhões de pessoas) seja
dependente de álcool. As conseqüências disso são imensas em termos sociais. São debitados à
bebida: 40% das faltas no trabalho e de 20% a 25% dos acidentes de trabalho; 39% das pessoas
envolvidas em ocorrências policiais; 61% dos acidentes de carros; 75% das vítimas fatais desses
acidentes. Sem falar na porcentagem altíssima de internações hospitalares e em manicômios,
além da desagregação familiar que o alcoolismo causa.
O alcoólatra corre também um grande risco em termos de relacionamento sexual:
pesquisa feita com um grupo de bebedores contumazes revelou que 1% deles estava
contaminado com o vírus HIV, que causa a Aids, por não usar camisinha durante o ato sexual
nem escolher devidamente o parceiro.
O problema ainda se torna maior quando se sabe que, no Brasil, os jovens já começam a
beber, em média, a partir dos 13 anos de idade – apesar de ser proibida por lei a venda de
bebidas alcoólicas a menores de idade, é comum ver barzinhos, em volta de escolas, cheios de
garotos tomando cerveja. O próprio fato de ser jovem já aumenta a probabilidade de tomar
atitudes arriscadas, segundo especialistas no assunto.
Há, atualmente, dois tipos de enfoque para o tratamento do alcoolismo. O tradicional:
prega a completa abstenção; utilizado pelos AA (Alcoólicos Anônimos), com 6.000 grupos no
país, que consideram o alcoolismo uma doença incurável – segundo esse entendimento, após o
primeiro gole, o alcoólico perde totalmente o controle sobre o álcool, e pode beber até cair.
Outro tipo é a política internacional de redução de danos (influenciada pela troca de
seringas para os dependentes de drogas injetáveis), “cujo objetivo é diminuir as situações de
risco nas quais se envolvem os usuários”. Isso inclui beber moderadamente (evitando assim
vexames em público, faltas ao trabalho e à escola, brigas e comportamento sexual de risco); não
beber de estômago vazio (para que o álcool ingerido tenha um efeito menor); e jamais dirigir
embriagado (não causando acidentes, muitas vezes fatais).
Tudo é muito complicado porque as pessoas não são iguais: algumas passam mal com
apenas um pouco de álcool no organismo – são as felizardas que jamais se tornarão alcoólatras.
Há outras mais resistentes ao álcool, que até contam vantagem sobre isso, e precisam consumir
uma quantidade cada vez maior de bebidas alcoólicas, para sentir seus efeitos, como a euforia –
aí reside o perigo: são esses os que poderão se tornar alcoólatras como Otávio e dependerão de
uma porta salvadora – como a dos AA -, para recuperar a dignidade e até mesmo garantir a
própria vida.

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