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MULHERES,
CÂMERAS
E TELAS
REVISTA.CULTURA.GOV.BR
MULHERES,
CÂMERAS
E TELAS
2018
REVISTA.CULTURA.GOV.BR
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Carmen Santos 18/12/17 12:29
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PRESIDENTE DA REPÚBLICA MICHEL TEMER
MINISTRO DA CULTURA SÉRGIO SÁ LEITÃO
SECRETÁRIA-EXECUTIVA MARIANA RIBAS
SECRETÁRIO DO AUDIOVISUAL JOÃO BATISTA SILVA
DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE POLÍTICAS AUDIOVISUAIS ANA PAULA SYLVESTRE
COORDENADORA-GERAL DO CTAV LIANA CORRÊA
COORDENADORA-GERAL DA CINEMATECA BRASILEIRA OLGA FUTEMMA
BURITI FILMES, CABOCLA FILMES, CINÉDIA, COEVOS FILMES, DEZENOVE SOM E IMAGEM,
ESQUINA FILMES, FUNARTE, LIAISON CINÉMATOGRAPHIQUE, MERCÚRIO PRODUÇÕES,
MEMÓRIA CIVELLI PRODUÇÕES CULTURAIS, MIGDAL FILMES, MORENA FILMES,
ORQUESTRA CINEMA STUDIOS, UNIVERSO PRODUÇÃO.
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MULHERES,
CÂMERAS E TELAS
EVA
NIL
ATRIZ (1909-1990)
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ARTIGO
AS REALIZADORAS MULHERES
E O CINEMA BRASILEIRO
CONTEMPORÂNEO
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foto: acervo cinemateca brasileira
mais diversas mulheres. A disseminação da luta femi-
nista criou um ambiente propício, em favor da reaber-
tura e da efervescência cultural no país – que, aliás,
permitiram às mulheres participar de maneira mais
ativa da produção simbólica nacional, e, consequente-
mente, da cinematografia brasileira.
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Enquanto diretoras, elas podem assumir sua voz,
tomando o lugar de fala; portar-se como o sujeito
de suas próprias representações, rasurando
o posto de objeto que lhes foi delegado.
Nas narrativas cinematográficas mais habituais, em O cinema constitui o lugar da transformação, do im-
que o masculino fala sobre/pelo feminino, em muito permanente, do reversível, da experimentação e, por
incomoda o fato de as mulheres serem representadas que não, do questionamento. A mudança substancial
como “o termo negativo da diferenciação sexual, feti- na representação das mulheres, possivelmente, não se
che e espetáculo” e, portanto, constituídas enquanto dará “nem na exterioridade das relações estratégicas
“o substrato da representação, o espelho suspenso (ao poder) nem na interioridade dos estados de domi-
para o homem”15, como se existissem somente enquan- nação, mas traçando uma linha de fuga ‘entre’ os dois,
to uma residual extensão ou o contrário deles, ou seja, através das técnicas e dos dispositivos que impedem
um outro que não é homem. os estados de dominação de fecharem todo espaço de
criação dos possíveis”18.
A possibilidade de as mulheres, quando/se alocadas
no papel de realizadoras de filmes que abordam o femi- As novas visibilidades e “dizibilidades” produzidas
nino, investirem em outras formas de expressão do gê- sobre/por mulheres (minorias ainda subalternizadas)
nero e da sexualidade, atribuindo-lhes novos sentidos podem, na contemporaneidade, conhecer sua transfor-
e repensando as velhas convenções, relaciona-se com mação mais profunda: por um lado, tirando o foco da
o fato de que o cinema, segundo as análises de Teresa ocupação do poder dominante pelas mulheres, isto é,
de Lauretis (1993), funciona ao mesmo tempo como um da passagem das margens ao centro, que, aliás, não
aparato material e uma prática significadora, em que colocaria fim às instâncias de dominação; e, por outro,
os sujeitos sociais são envolvidos, constituídos, mas atentando o olhar para a potência transformadora das
nunca esgotados. tecnologias sociais que, como o cinema, permanecem
sempre abertas à emergência dos devires-minoritários,
A esse respeito, vale sinalizar que nada há de universal dos devires-mulheres.
na configuração das relações de gênero a não ser o fato
de que elas são sempre construídas16. Então, no âm-
bito do cinema dirigido por mulheres, quando este se
abre para a esfera do reconhecimento das múltiplas ex-
pressões femininas, revelam-se novas imagens temá- Texto selecionado no Edital Filme Cultura Edição 63
ticas capazes de enfocar positivamente as diferenças
*EMANUELLA LEITE RODRIGUES DE MORAES é doutora
infindáveis entre/das mulheres. Assim, elas “tornam-
em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia
se minoria não assujeitada a um princípio majoritário (UFBA). Fez doutorado sanduíche em Comunicação e Cultura
quando se engajam na multiplicidade dos devires-mu- na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente
lheres e deixam de se reduzir, mesmo revoltadas, ao é curadora da Mostra Elas - Filmes dirigidos por Mulheres
‘segundo sexo’”17 – em referência à expressão cunhada e pós-doutoranda da Pontifícia Universidade Católica
por Simone de Beauvoir. do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
1. HOBSBAWM, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX: 1914- 11. KAPLAN, E. Ann. A mulher e o cinema: os dois lados da câmera.
1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 305-306. Rio de Janeiro: Rocco, 1995, p. 136.
3. PINTO, Céli Regina J. Feminismo, história e poder. Revista 13. LINS, Consuelo; MESQUITA, Cláudia. Filmar o real: sobre
de sociologia e política, Curitiba, n. 36, v. 18, junho de 2010. o documentário brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro,
Zahar, 2008, p. 38.
4. NAGIB, Lúcia. O cinema da retomada: depoimentos
de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Editora 34, 2002. 14. BUTLER, Judith. Dar cuenta de sí mismo: violencia ética y
responsabilidad. In: ______. Dar cuenta de sí mismo. Buenos
5. Ibid., p. 13. Aires: Amorrortu, 2009.
6. ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema brasileiro contemporâneo (1990- 15. LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA,
2007). In: BAPTISTA, Mauro; MASCARELLO, Fernando Heloísa Buarque de (Org.). Tendências e impasses: o feminismo
(Orgs.). Cinema mundial contemporâneo. Campinas: Papirus, como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 209.
2008. p. 141.
16. MACHADO, Lia Zanotta Machado. Perspectivas em confronto:
7. ARAÚJO, Luciana Corrêa de. Retrospecto em fragmentos. In: relações de gênero ou patriarcado contemporâneo? Série
CAETANO, Daniel (Org.). Cinema brasileiro 1995-2005: Antropologia, Brasília: Departamento de Antropologia/UNB,
revisão de uma década. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, n. 284, 2000. Disponível em: <http://www.compromisso
2005. eatitude.org.br/wpcontent/uploads/2012/08/MACHADO_
GeneroPatriarcado2000.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2014.
8. NAGIB, Lúcia. Além da diferença: a mulher no Cinema da Retomada.
Devires, Belo Horizonte, n. 1, v. 9, jan/jun 2012, p. 19. 17. LAZZARATO, Maurizio. Política da multiplicidade. In: LINS,
Daniel; PELBART, Peter Pál (Orgs.). Nietzsche e Deleuze:
9. LAURETIS, Teresa de. Através do espelho: mulher, cinema e bárbaros, civilizados. São Paulo: Annablume, 2004, p. 150.
linguagem. Estudos feministas, Florianópolis, n. 1, 1º semestre
de 1993, p. 99. 18. Ibid., p. 157.
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ENTREVISTA
há muitos brasis. Todavia, o brasileiro é educa- FILMECULTURA Sua relação com a fotografia é até hoje
do para encarar o seu vasto país sob o prisma do ci- muito forte, e está na raiz do que a levou a se tornar
nema produzido no eixo Rio-São Paulo. Para agravar a uma realizadora. Em que momento você decidiu trilhar
situação, o olhar é marcadamente masculino. Tal situa- o caminho do Cinema?
ção demanda a existência de um cinema de perspecti- JORANE CASTRO A minha proposta, quando fazia fo-
va feminina, mais próximo da linha equatorial e voltado tografia, sempre foi trabalhar com cinema. Não como
para realidades regionais normalmente invisibilizadas. fotógrafa de cinema, mas minha expressão artística
A cineasta paraense Jorane Castro, que também é pes- sempre tinha uma relação com o movimento, com uma
quisadora e professora do curso de Cinema e Audio- narrativa. A fotografia não foi algo que me levou ao ci-
visual da Universidade Federal do Pará (UFPA), é uma nema, mas o paliativo que eu podia naquele momen-
referência desse cinema. to realizar: fazer cinema com imagens fixas. Estamos
falando de uma época em que tudo era analógico, era
Graduada em Cinema pela Université Paris 8, mestre negativo 35mm ou 16mm, então não dispúnhamos de
em Cinema pela Université Paris 7 - Université Paris facilidade de acesso a equipamentos como hoje. Eu
Diderot, Paris, França, além de ter estudado Direção queria fazer cinema e não podia, porque ainda não ti-
de Elenco e Roteiro na Escuela Internacional de Cine nha os recursos técnicos. Veio então a virada do século.
y Televisión (EICTV), em Cuba, Jorane dirigiu 16 curtas- Meus primeiros filmes, como As mulheres choradeiras
-metragens, entre 1995 e 2011, a maior parte pela sua (2001) e Invisíveis prazeres cotidianos (2004), foram
produtora, Cabocla Filmes, criada em 2000. Dentre em película. Enquanto não consegui produzir cinema,
eles, destaca-se Ribeirinhos do asfalto (2011), que con- a vontade era compensada com a cinefilia. Assistia a
ta com a também paraense Dira Paes no elenco. Lançou muitos filmes, escrevia sobre, lia a respeito de direto-
recentemente seu primeiro longa, Para ter onde ir. O fil- res, ia a cineclubes, sessões em horários como dez da
me participou da Mostra Competitiva no Festival do Rio manhã e meia-noite, apesar de ainda ser adolescente.
2016, além de ter recebido prêmios em outros festivais. Nesse sentido, sempre fui pesquisadora de cinema.
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Jorane Castro nas filmagens de Para ter onde ir
Você é motivo de orgulho para o Estado do Pará. Como Em seus filmes, você diria que há uma preocupação
conseguiu espaço no mercado audiovisual e que difi- em desenvolver personagens femininas, destacando
culdades encontrou e ainda encontra, como mulher, a perspectiva da mulher? Em quais trabalhos isso fica
para fazer cinema? mais notório?
Eu levo muito a sério a minha profissão. Acho que quan- Quando eu começo a escrever uma história que vai vi-
do você gosta da atividade que faz, como eu gosto de rar um filme, penso sempre em personagens femininas.
cinema, você tem que buscar formação e informação. Não por não gostar de personagens masculinos. Fiz um
Por isso, eu já havia lançado curtas como As mulheres filme que amo, chamado O time da croa (2014), sobre
choradeiras e Invisíveis prazeres cotidianos quando re- pescadores de Ajuruteua (PA). É só que me sinto mais
solvi estudar em Cuba, onde passei seis meses. Eu me próxima do universo feminino. Por exemplo, quando
formei em cinema na França. Isso porque, na época em escrevo ficção, meu tema é a mulher, porque me sinto
que eu era pré-universitária, não havia escolas de Cine- identificada com a vida feminina. O próprio documen-
ma no Brasil como hoje. tário Mulheres de Mamirauá (2008), que fui convida-
da a dirigir e trata de uma reserva de desenvolvimento
E, sim, é difícil ser mulher no set do cinema porque, por sustentável no Estado do Amazonas, é também um fil-
enquanto, nossas equipes são muito masculinas. Temos me sobre mulheres.
algo em torno de 10 a 15% de mulheres, e o restante é
composto por homens. É engraçado que comigo às ve- Quando me proponho a criar, minha sensibilidade e
zes perguntam: “Você trabalha com o quê?”. Eu respon- minha vivência fazem com que eu possa construir per-
do que trabalho com cinema, e então: “Você é atriz?”. sonagens mulheres mais interessantes do que eu faria
O lugar da mulher no cinema, aquele em que ela pode com personagens homens. Se for para criar um ho-
existir, é o de atriz, o da beleza intocável. Há muitos ca- mem, talvez fique um pouco mais estereotipado. É um
sos de atitudes machistas de pessoas da minha equipe exercício que ainda tenho que fazer. Portanto, numa
em relação a mim, apesar de eu a estar liderando como análise panorâmica, em As mulheres choradeiras são
diretora. Nunca foi fácil, sempre tive que enfrentar pro- três mulheres protagonistas; se você vai mais adiante,
blemas dessa natureza. Mas penso que, se eu fizer ci- em Ribeirinhos do asfalto, que é outra ficção, o univer-
nema como mulher, paraense, e na Amazônia, provavel- so é também de mulheres (a mãe, a filha, a prima, a
mente será mais fácil para as meninas que virão depois amiga que vende flores); aí você chega agora no meu
de mim. Então, talvez eu seja uma desbravadora em longa-metragem, Para ter onde ir, e são, de novo, três
termos políticos de espaço no audiovisual amazônico. mulheres na estrada. Nota-se, então, que o feminino é
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cartaz: guilherme luigi
Além de cineasta, você também é professora e pesqui-
sadora do bacharelado em Cinema e Audiovisual da
Universidade Federal do Pará, a UFPA. Como tem sido
a experiência de lecionar no curso e quais pesquisas
vem desenvolvendo?
Fui convidada pelo professor Afonso Medeiros, da UFPA,
para ajudar a pensar a graduação em Cinema, inaugu-
rada em 2010 e vinculada ao Instituto de Ciências da
Arte. Portanto, me envolvi com o projeto do curso desde
o início. Fui seduzida pelo projeto porque é muito legal
você tentar ajudar as pessoas a fazer cinema na Amazô-
nia, aprender a escrever um roteiro, a dirigir um filme...
Então me encantei com essa possibilidade, fiz concur-
so e entrei na faculdade. É muito bom poder conviver Para ter onde ir está tendo uma carreira interessante. Já
com pessoas que são tão apaixonadas por cinema tanto foi exibido em uns 15 festivais, incluindo países como
quanto eu e tentar orientá-las com a experiência que eu Portugal, França, Espanha e África do Sul, e ganhou
já tenho, que é ao mesmo tempo prática e teórica. Estou um prêmio em São Tomé e Príncipe. Conquistou ainda
dando aula de roteiro e direção, e também faço pesquisa quatros prêmios no Guarnicê. Fiquei muito feliz, parti-
na área que mais me interessa: o lugar da Amazônia no cularmente, com o de melhor direção, porque foi difícil
cinema e o lugar do cinema na Amazônia. Atualmente, alcançar essa linguagem, mas também um processo
estou desenvolvendo um projeto sobre documentários muito formador. E eu encontrei parceiros de trajetória
na Amazônia de 1995 a 2015. muito bons, pessoas que pensam cinema também e que
sei que ainda vão avançar comigo, em novos projetos.
Seu longa, Para ter onde ir (2016), ainda não lançado
em circuito comercial, foi vencedor dos prêmios de me- Vale lembrar que já estamos trabalhando no lança-
lhor direção, melhor atriz coadjuvante, melhor trilha mento do filme no circuito comercial, que ocorrerá em
sonora original e melhor desenho de som no Festival novembro de 2017, por meio da distribuidora O2 Play.
Guarnicê, além de ter sido selecionado para a Mostra Portanto, até o fim do ano, Belém, São Paulo, Rio de
Competitiva Novos Rumos, no 18º Festival do Rio. Fale Janeiro e Recife terão assistido ao longa.
um pouco sobre esse último trabalho, destacando seu
objetivo e a experiência de produção.
Para mim, esse filme é um sonho realizado. Afinal, a Texto selecionado no Edital Filme Cultura Edição 63
gente segue uma carreira no cinema para fazer longa.
*IGOR MESQUITA FERREIRA é de Belém (PA). Advogado
Eu já tinha feito dois longas documentais, mas nunca
pós-graduado em Direito de Família e das Sucessões,
um de ficção, porque é muito mais difícil; envolve mais
fez curso de crítica cinematográfica. É autor dos blogs
custos, mais pessoas, figurino, direção de arte, então o
Dissecando cinema e O grande ecrã contemporâneo.
filme acaba assumindo uma outra dimensão, até eco- Em 2016, recebeu prêmio de melhor crítica de cinema
nômica, que é mais difícil de administrar. no Festival de Audiovisual de Belém (FAB).
CARLA
CIVELLI
MONTADORA, ROTEIRISTA E DIRETORA (1921-1977)
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ARTIGO foto: priscila prade
parece que belchior estava com razão quando Um dia, após um almoço em família, a mãe lhe conta,
disse: “Minha dor é perceber que, apesar de termos feito sem preparação, que seu pai biológico é outro, sendo
tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos ela fruto de um caso com um sociólogo durante um con-
como os nossos pais”. O músico, que morreu em abril gresso em Cuba. A partir desse momento, todo o alicerce
de 2017, acaba de receber uma homenagem com o novo sobre o qual Rosa construíra sua identidade desmorona,
filme de Laís Bodanzky, que leva o mesmo nome de sua forçando-a a reavaliar sua vida.
consagrada canção – imortalizada na voz de Elis Regina
– e se erige a partir do mesmo mote. Até que ponto achamos que nossa identidade é uma
construção inteiramente pessoal? Se as Ciências Sociais,
Produzido pela Gullane, em parceria com a Globo Filmes, a Psicologia e o Direito já reconhecem como verdadeiros
o quarto longa ficcional da diretora paulista já se impõe pais aqueles que criam, se o afeto se sobrepõe ao bioló-
como um dos melhores lançamentos nacionais de 2017. gico, somos parte da família que nos deu amparo e edu-
A cineasta, que estreou na direção de longas com Bicho cação. E quando descobrimos que um ente determinante
de sete cabeças, em 2000, integra a excelente safra de na nossa criação não é o genitor, o quanto isto muda ou
diretoras do cinema brasileiro pós-retomada, que conta podemos permitir que mude em nossa visão autorrefe-
ainda com nomes como Lúcia Murat, Anna Muylaert e rente? A câmera segue Rosa nessa busca por si mesma,
Tata Amaral, entre tantos outros. enquanto tenta não se deixar derrubar pelos seus proble-
mas, tornando-nos cúmplices de sua jornada.
Como nossos pais confirma que a realizadora tem do-
mínio de seus desígnios enquanto artista. O filme foi o Como nossos pais é um libelo feminista, no qual o arco
grande vencedor do Festival de Gramado, com seis Kiki- dramático da protagonista se constrói a partir do em-
tos: filme, direção, atriz (Maria Ribeiro), ator (Paulo Vilhe- poderamento que assume após o impacto da recente
na), atriz coadjuvante (Clarisse Abujamra) e montagem notícia. A homens e mulheres, são atribuídas diferen-
(Rodrigo Menecucci). O roteiro é de Bodanzky em coau- tes responsabilidades, definidas por práticas culturais
toria com Luiz Bolognesi. com base em supostas potencialidades e limitações
de cada gênero.
Rosa (Maria Ribeiro) é uma mulher de 38 anos que so-
nha ser dramaturga, mas teve que se adaptar à realidade, Nessa abordagem, podemos contrapor duas cenas bre-
isto é, ao sustento do lar e das duas filhas, porque seu ves. Na primeira, o casal Rosa e Dado desperta, e o ma-
marido, Dado (Paulo Vilhena), um antropólogo que reali- rido quer iniciar relação sexual com a esposa, mas ela,
za pesquisas na Amazônia, não possui renda suficiente avessa à investida, levanta para acordar as filhas. O
para ajudar nas despesas da casa, o que leva Rosa a um próximo plano enquadra os dois quartos com as portas
emprego distante daquilo que almejava: ela escreve fôl- abertas e a divisória ao centro, aproximando-se de uma
deres de cerâmica de banheiro. Pertencente a uma famí- edição em split screen: em um dos quartos, Dado está
lia típica de classe média, sua mãe é socióloga e o pai, deitado preguiçosamente; no outro, vemos Rosa acor-
artista plástico. A ligação afetiva com Homero, o pai (in- dando as crianças para irem à escola. Este plano demar-
terpretado por Jorge Mautner), é notadamente mais forte ca bem os papéis culturalmente impostos.
do que com Clarice, a mãe (vivida por Clarisse Abujamra),
que a trata diferente de seu irmão e desmerece sua pro- Na segunda cena, Rosa sai para um passeio de bicicle-
fissão em comparação com a do genro. ta com Pedro (Felipe Rocha), pai de uma das crianças da
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mesma escola que suas filhas. Quando Pedro tira a ca- lugar, pois ali estavam suas filhas – o que é contestado
misa publicamente, privilégio masculino, Rosa aproveita pela jovem. O pressuposto de que, em sua visão, aquilo é
para fazer o mesmo. Afinal, por que as mamas são ero- algo errado, mostra o quanto ela foi ensinada a assimilar
tizadas e o peitoral masculino não? É o começo do em- somente o padrão heteronormativo tradicional de famí-
poderamento da protagonista, quando ela passa a não lia. Detalhes como esses perfazem a solidez e a coesão
aceitar os papéis que a sociedade impõe à mulher. A cena da crítica desenvolvida pelo roteiro.
é embalada pela canção Super mulher, de Jorge Mautner.
Não há truques estéticos. O estilo é naturalista, como se
Com a notícia do caso da mãe, Rosa vê-se forçada a depreende da montagem linear, da fotografia do espanhol
uma reflexão: quer ser como sua mãe e repetir até o Pedro J. Márquez – que aproveita ao máximo a iluminação
que repudia? Ao se apaixonar por Pedro, Rosa, de iní- natural e aposta na discrição da câmera –, e dos diálogos
cio, assume a transgressão da mãe. Mas ela, agora, to- próximos da vida como ela é, elementos que conferem ao
mou as rédeas de sua vida. filme a virtude de abordar temas delicados com leveza.
Cada um dos personagens, ambíguos como nós, tem seus
Desta feita, o filme é sobre identidade, mas também so- erros e acertos, seus vícios e virtudes. Todos tentando so-
bre a dinâmica intergeracional, e incorpora uma crítica à breviver como podem e redirecionar seus sonhos para ru-
estrutura tradicional da família, sugerindo a hipocrisia mos pragmáticos, nos quais eles possam caber.
da monogamia e expondo o arcaísmo desse padrão im-
posto, que ainda carrega muito daquilo que descrevia A matriarca da família era uma jovem socióloga sonha-
Nelson Rodrigues em meados do século passado: o falso dora, da geração revolucionária dos anos 1960, quando
moralismo e uma vida de aparências, importando mais o foi ao congresso em Cuba; na velhice, tornou-se uma
modo como esse arranjo familiar irá se apresentar social- mãe e avó que considera ter tido uma vida satisfatória.
mente do que o bem-estar de seus membros. O câncer que é diagnosticado não a aterroriza. O pai
de Rosa, além de uma figura carismática, é um artista
Em um determinado momento, Rosa lembra de uma talentoso, porém financeiramente irresponsável, rece-
cena de sua infância, durante uma apresentação do pai, bendo empréstimos da filha ou procurando se unir a
quando o flagrara traindo sua mãe com uma mulher mais uma mulher que possa sustentá-lo. Já o pai biológico
jovem. Em uma outra cena, Rosa chega em casa e se de- alcançou o posto de Ministro da Casa Civil, e se sente
para com a irmã adolescente beijando outra menina no mal com a falsidade de seus bajuladores e com as falca-
sofá. Sua reação é dizer a ela que faça aquilo em outro truas que imperam na política. Dado realiza pesquisas
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E AGORA?
ADÉLIA
“PIONEIRISMOS” Assim, no plural, sendo a primeira
mulher negra a dirigir um filme de longa-metragem
no Brasil, em 1984, sobre uma temática ainda pouco
SAMPAIO
abordada, o amor lésbico, e sem recursos públicos.
Na época, você tinha ideia de que, com Amor maldito,
se tornava vanguarda no país?
ADÉLIA SAMPAIO Toquei minha vida acreditando que
seria capaz de realizar filmes e jamais, em tempo al-
gum, desejei ser vanguarda. A síntese era simples –
uma jovem pobre negra com sonhos de se debruçar
em uma janela cinematográfica e, através dela, falar do
que via, pensava e acreditava.
FATOS REAIS Amor maldito conta a história do amor essa porta e me ilumina. Desde esse dia que não paro
entre duas mulheres – a jovem executiva Fernanda de apresentar o filme, debater o tema, visitar quilom-
Maia (Monique Lafond) e a ex-miss, filha de um pastor bos e comunidades negras. Por outro lado, me estarre-
evangélico, Suely Oliveira (Wilma Dias) – e do suicídio ço ao pensar que o filme tem 34 anos e que nada, ou
de uma delas. Qual foi a sua preocupação ao lidar com quase nada, mudou. Isso é triste.
uma história baseada em fatos reais, como construir
essa narrativa com cuidado, respeito e dignidade? A ARCA Como foi a decisão de falar sobre o cinema de
Acho que o cuidado, o respeito e a dignidade têm que mulheres da Retomada no seu próximo curta-metragem?
prevalecer em qualquer tema que abordamos. Essa é Gosto muito de ler a bíblia e, lendo parábolas, me uti-
a minha visão de mundo. Desenvolvi a sinopse e pedi lizo delas para mostrar que o cinema brasileiro no pós-
ao meu amigo José Louzeiro para escrever o roteiro. Já Collor foi reaquecido pelas mulheres, com filmes de
havia decidido quem seriam os atores. Fizemos muitas sucesso de crítica e público. Ainda não rodei porque
rodadas de café na casa do Louzeiro para que, debru- ando às voltas com o meu longa-metragem A barca dos
çados no processo, conseguíssemos reproduzir a vio- visitantes, um período doído e sofrido de 1968 a 1970. O
lência do tribunal. Todas as falas dos advogados são storyboard do Arca está pronto. Vamos ver.
reais, não foram escritas. Copiamos dos autos.
SER MULHER, NEGRA E FAZER CINEMA Infelizmente, a
REDESCOBERTA A partir da pesquisa da professora realidade em 1984 não era tão diferente da de hoje. Como
Edileuza Souza e da divulgação das cineastas Renata é ser mulher, ser negra e fazer cinema no Brasil?
Martins e Juliana Gonçalves, seu filme – e sua história Difícil, sofrido e muito triste. Tem horas que dá medo, mas
– renascem. Como é a recepção do seu longa e de sua um sopro de voz de minha mãe me faz ouvir: “Para cima
cinematografia hoje em dia? do medo, coragem, filha!” E, assim, lá vou eu. Dedico-me
Costumo dizer que me sentia uma velha vassoura a essas andanças e a encorajar meninas negras e brancas
abandonada no fundo de um armário. Edileuza abre a seguir, ter coragem e avançar.
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ATUALIZANDO
apresentando o filme. A partir de Toronto, os convites se filmes estão preservados, de uma produção de mais
multiplicaram e o filme foi exibido nos mais importantes de 1.000. Apenas recentemente sua importância está
festivais internacionais: Berlim, Roterdã, Havana, Bos- sendo reconhecida.
ton, dentre outros. No Brasil, estreou no Festival de Brasí-
lia, conquistando os prêmios de melhor direção, roteiro, No Brasil, as mulheres resistem bravamente ao apaga-
edição de som e menção especial pelo Júri da Unesco. mento. Nossas mulheres cineastas têm destaque na
cena artística brasileira: Lúcia Murat, Anna Muylaert,
Lançado nos cinemas em 1997, Um céu de estrelas foi Carla Camurati, Laís Bodanzky, Marina Person, Julia
produzido em película e suas cópias se encontram de- Rezende, entre muitas outras. Mas tantas outras ci-
terioradas. Apesar disso, é um dos filmes brasileiros neastas estão caindo no esquecimento e não têm seus
mais baixados na internet, por meio de versões não ofi- filmes preservados. Não por acaso, Adélia Sampaio, a
ciais, de baixa qualidade, tiradas de suportes que caí- primeira mulher negra a dirigir filmes de longa-metra-
ram em desuso, como VHS e fita Betacam. Imagino que gem no Brasil, teve sua importância reconhecida ape-
algum – ou alguns fãs – do filme, inconformados com o nas recentemente. Acredito que preservar Um céu de
seu desaparecimento, disponibilizaram-no na internet estrelas também é preservar a memória do cinema bra-
para que ele pudesse ser visto. Assim, o que quero é sileiro e a de um cinema feito por mulheres, que trata
apresentá-lo com a melhor qualidade possível. de questões que nos tocam e importam até hoje, crian-
do representações e referências do nosso universo.
Para comemorar duas décadas de sua estreia, lança-
mos uma campanha de financiamento coletivo para Até hoje, não existem investimentos públicos ou priva-
digitalizar Um céu de estrelas, a partir de um interpo- dos para restauro e/ou digitalização de filmes, o que nos
sitivo adequadamente armazenado e que se encontra deixa de “mãos atadas” quando se fala em preservação
em boas condições. Queremos exibir o filme nas novas da memória do nosso cinema. O financiamento coletivo
plataformas digitais e, para isso, vamos produzir um é hoje uma possibilidade de proporcionar o acesso do
arquivo digital que permitirá que todas e todos possam público ao filme. A partir da sua digitalização, o filme po-
ter acesso ao longa-metragem. Quero que o filme conti- derá ser visto com qualidade nas TVs abertas e fechadas,
nue vivo e comunicando com o seu público! Além disso, e nas plataformas digitais disponíveis ou que venham a
a campanha traz, também, outro significado: preservar ser criadas. Poderá ser programado em mostras e festi-
a memória do cinema brasileiro, uma vez que os filmes vais ou em sessões especiais.
que foram feitos antes da era digital encontram-se “es-
condidos” do público. A campanha de financiamento coletivo é fundamental, e
ainda bem que existe essa possibilidade, mas é urgente a
Não é possível falar em preservação da memória do criação de uma política pública permanente de preserva-
cinema brasileiro sem falar da importância de se pre- ção da memória do cinema, restaurando e digitalizando
servar os filmes feitos por mulheres, que já sofrem um filmes importantes que foram feitos antes da era digital,
sistemático apagamento na história e, consequente- sejam longas ou curtas-metragens, de todos os gêneros.
mente, na do cinema. Para citar um caso exemplar, a
francesa Alice Guy-Blaché, a primeira mulher a fazer *TATA AMARAL é cineasta brasileira e diretora do longa Um céu
filmes narrativos no mundo, teve sua importância apa- de estrelas. Em 2017, realizou o longa Sequestro relâmpago.
gada da história e foi ofuscada pelos contemporâneos *CARU ALVES DE SOUZA é diretora, produtora e roteirista. É sócia
Irmãos Lumière e Georges Méliès. Apenas 350 de seus de Tata Amaral na Tangerina Entretenimento, fundada em 2006.
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ARTIGO
A REFORMULAÇÃO DA Para a psicanalista Maria Rita Kehl, em seu livro Deslo-
camentos do feminino:
REPRESENTAÇÃO DAS O que é específico da mulher, em sua posição tanto
MULHERES NO CINEMA subjetiva quanto social, é a dificuldade que enfren-
INDEPENDENTE NACIONAL
ta em deixar de ser objeto de uma produção discur-
siva muito consistente, a partir da qual foi sendo es-
tabelecida a verdade sobre sua ‘natureza’, sem que
tivesse consciência de que aquela era a verdade do
desejo de alguns homens – sujeitos dos discursos
médico e filosófico que constituem a subjetividade
moderna – e não a verdade ‘da mulher’.1
Cinema/independente/de mulheres
Representações midiáticas
Nas produções cinematográficas de grande orçamen-
Os discursos midiáticos se colocam como distribuido- to pelo mundo, as mulheres, além de não serem re-
res da verdade e como detentores do conhecimento. presentadas em suas complexidades, muitas vezes
A verdade é que certa influência é mesmo inevitável sequer são representadas. As personagens femininas
quando quase todos os olhos do país se voltam para com falas e em posição de protagonismo nas obras
as telas de TVs. É importante ressaltar, também, que ainda existem em número muito inferior aos mascu-
muitos de nossos filmes de maior orçamento e circula- linos, isso quando não existem em função destes. É
ção são produzidos e financiados a partir dos mesmos esse cenário que começa a mudar por meio do cinema
ideais e formatos que norteiam as obras da TV, e aca- independente brasileiro, no qual mulheres estão assu-
bam por reproduzir pontos de vista similares. mindo sets e fazendo seus projetos acontecerem.
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Tate parade
foto: divulgação
Antes, agora, sempre
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Fazer um cinema que traz figuras femininas
reais e diversas é fundamental
para se pensar uma maior liberdade.
mulheres negras – em especial em produções que seu destino – o espaço privado – ao escolher trabalhar
retratam um ambiente periférico e pobre – que repre- com a psiquiatria, e essa relação com a profissão apa-
sentam uma figura matriarcal, que assume a função de rece o tempo todo no filme. Em dado momento, ela e a
cuidar de todo mundo, de cuidar de todos os filhos que filha chegam até a comentar sobre um caso em que a
não são seus, nesse lugar que remete à figura da ama psiquiatra fora acusada de ser responsável pela morte
de leite. Vale a pena citar Kbela novamente. Nele, o lu- de um paciente, acusação que, segundo elas, fora mo-
gar da ama de leite não é ocupado por nenhuma das tivada por uma reação à ousadia de Carmem.
personagens – a temática e a proposta já não permiti-
riam que o destino de mulher negra alguma fosse esse É possível perceber que a produção realizada por mu-
espaço. No filme de Yasmin Thayná, as mulheres até lheres desafia o formato hegemônico da representação
passam por uma experiência que lembra a das perso- de figuras femininas. Fazer um cinema que traz figuras
nagens do filme de Nathália Tereza, no sentido de pas- femininas reais e diversas, que possibilita experiências
sarem juntas por um processo de cura e cuidado, mas variadas e a coexistência de corpos não padronizados
com o acréscimo da experiência coletiva de libertação e não hegemônicos, é fundamental para se pensar uma
de amarras sociais que as prejudicam e cerceiam. maior liberdade. Essas representações não estereoti-
padas podem criar um espaço mais saudável e seguro
As representações de figuras femininas também costu- para a construção da subjetividade não só das mulhe-
mam se ligar à ideia de pertencimento ao espaço privado res, mas de todas as pessoas.
e à incapacidade de lidar com a esfera pública. São ideias
que reforçam, principalmente, a exclusão das mulheres Uma nova forma de representação de figuras femininas
dos espaços de decisão da nossa sociedade. Formas que cria um ambiente propício para pensar e promover a
estão baseadas em uma natureza emotiva e irracional reestruturação de um modelo falido de sociedade, que
atribuída às mulheres e que, além de inviabilizar o exercí- promove a desigualdade e cerceia formas de ser e que,
cio de funções administrativas, de chefia e de gestão por como anunciado pelos trabalhos aqui citados, não será
elas, desvalida aquilo que produzem, tanto no sentido mais tolerado.
da produção material quanto do conhecimento.
Texto selecionado no Edital Filme Cultura Edição 63
O documentário Retrato de Carmem D., de Isabel Joffily, *PE SOBRINHO cursa Comunicação Social na Universidade
é um ótimo contraponto à representação da mulher Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com habilitação em Rádio
domesticada. Ele retrata a psiquiatra gaúcha Carmem e TV. É bolsista no projeto de extensão de Heloísa Buarque
Dametto, de 72 anos, como uma mulher que desafiou o de Hollanda, Universidade das Quebradas.
REFERÊNCIA
ODETE
LARA
ATRIZ E CANTORA (1929-2015)
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CURTAS
foto: divulgação
QUEM MATOU ELOÁ ?
IMAGENS REVISTAS,
OLHARES
RESSIGNIFICADOS
o audiovisual, para mim, é uma urgência. Durante uma semana, as emissoras de TV aberta, que
Acredito que os filmes mais interessantes resultam de operam em concessões públicas, produziram todo tipo
algo forte que irrompe de diretores e roteiristas para de material audiovisual sobre o crime. Matérias, en-
ecoarem no mundo. Às vezes, esse “algo” não está evi- trevistas com o sequestrador, com especialistas, perfil
dente até que o processo do filme seja finalizado e que psicológico de Lindemberg, montagem com fotografias
o mesmo encontre seu público. de Eloá, tudo o que estivesse ao alcance de jornalistas,
repórteres, apresentadores e produtores, para conse-
Em outubro de 2008, a notícia do sequestro de uma guir o tão almejado “furo de reportagem”. Mesmo que
garota em um conjunto habitacional na cidade de San- isso significasse se aproximar terrivelmente do crime ou
to André atraiu a atenção da mídia. Lindemberg Alves, romantizar a violência que estava diante de todos nós.
21 anos, mantinha em cárcere privado a ex-namorada,
Eloá Pimentel, 15 anos, ameaçando matá-la caso ela Descobri que uma infinidade de imagens produzidas
não aceitasse reatar o namoro. durante o crime estavam acessíveis no YouTube e nos
portais das emissoras na rede. Na internet, “Eloá” não
Na época, o Brasil era o sétimo (hoje é o quinto) em um era mais um nome comum. Assim como a imagem de
ranking de países com as maiores taxas de feminicídio. Eloá Pimentel, seu nome adquirira outros significados
A violência doméstica sempre foi uma constante na vida pelo processo midiático que sofrera com o crime. Revi
das mulheres do país. Mas, então, por que aquela notí- as imagens de arquivo que encontrava na internet,
cia ganhava tanta repercussão? Por que os veículos de numa espécie de trabalho “arqueológico”. O processo
comunicação, que cobriam extensivamente o crime, não era nauseante e quase insuportável, mas imprescindí-
mencionavam a expressão “violência contra a mulher”? vel para refletir sobre o significado daquelas imagens.
Nesse ponto, nascia o dispositivo do filme: mulheres
O sequestro, que se iniciara numa segunda-feira, termi- como eu assistiriam e comentariam aquelas imagens,
nou apenas no fim da tarde de sexta-feira, quando po- no esforço de refletir sobre o significado daquela pro-
liciais invadiram o apartamento. Lindemberg disparou dução audiovisual.
quatro vezes, duas delas em Eloá, saiu ileso e foi preso.
Eloá, atingida na cabeça e na virilha, foi levada gravemen- Os desafios estavam postos. Como mostrar ao mundo
te ferida ao hospital e faleceu cerca de 24 horas depois. que aquele tipo de representação da violência sofrida
por Eloá precisava ser urgentemente alvo de reflexão?
Após o crime, o que me deixava mais perplexa não era seu Como fazer um filme aludindo a outros produtos au-
desfecho, infelizmente comum para muitas mulheres lati- diovisuais – os programas de TV –, mas subvertendo
no-americanas. Eu estava atônita pelo fato de que eu, e a linguagem utilizada por eles e construindo um pen-
mais 200 milhões de brasileiras e brasileiros, assistimos samento crítico?
ao drama de Eloá por mais de 100 horas, nos mínimos de-
talhes, inclusive os mais sórdidos, e não fomos capazes Em 2013, a Secretaria do Audiovisual do Ministério da
de intervir no final que, já sabíamos, a esperava. Cultura (SAv/MinC) lançou o Edital Carmen Santos de
Cinema de Mulheres, com o objetivo de financiar filmes
Uma inquietude instaurou-se em mim. Uma inquietude de cineastas mulheres que falassem sobre a desigual-
que encontrou consolo e força no texto Eloá - A morte dade de gênero. Não haveria melhor chance para minha
anunciada, escrito pela militante feminista Analba Tei- inquietude, que a essa altura já tinha formato e nome:
xeira. O texto mostrou que havia mais gente, na maioria o curta-metragem Quem matou Eloá? O projeto do filme
mulheres, inquietas com a violência da qual Eloá fora víti- foi selecionado para o edital e, pela primeira vez, tive
ma e, especialmente, com a invisibilização desse tipo de a preocupação de formar uma equipe em que mulheres
violência contra as mulheres nos meios de comunicação. ocupassem as funções principais: Fernanda De Capua,
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produtora; Cris Lyra, fotógrafa; Clara Cervantes, direto- Foram duas diárias de gravação no estúdio A do Depar-
ra de som; Cristina Müller, montadora; Julia Telles, au- tamento de Cinema, Rádio e Televisão da Universidade
tora da trilha sonora. de São Paulo, que apoiou a produção. Estagiários do
curso de graduação em Audiovisual participaram fazen-
A pesquisa foi uma etapa intensa que envolveu uma vas- do assistência na produção e na fotografia, o que re-
ta investigação nos autos do processo criminal – mais sultou numa troca rica de experiências. Nessas diárias,
de 20 pastas arquivadas no Fórum de Santo André –, gravamos as entrevistas em um fundo preto, utilizan-
além da pesquisa de imagens de arquivo que eu já vinha do três câmeras; a projeção dos vídeos foi conduzida
fazendo há alguns anos. Assim, elaborei um argumento sensivelmente por André Menezes. Cada entrevistado
em interlocução constante com Giovanni Francischelli, foi estimulado a fazer comentários instigados por ima-
parceiro, também crítico da mídia, e com quem surgiu a gens, perguntas ou provocações específicas. Além das
ideia da metáfora dos urubus no início do filme. gravações no estúdio, fizemos outras três diárias com
equipe reduzida para captar imagens do centro de São
Os entrevistados deveriam ser pessoas que, ao assisti- Paulo e dos urubus, o que foi particularmente difícil.
rem as imagens televisivas, respondessem criticamente, Tentamos o Parque do Ibirapuera, mas o local que ren-
tecendo comentários a partir de um ponto de vista femi- deu as melhores imagens dos animais foi nos arredores
nista sobre aspectos criminais, jurídicos e de construção do Parque Ecológico do Tietê.
das imagens e narrativas produzidas sobre o crime.
Na montagem, a combinação das imagens voltava a nos
Analba Teixeira, militante feminista da Articulação de desafiar. Esta etapa levou quase quatro meses para ser
Mulheres Brasileiras e do SOS Corpo, autora do texto concluída. Novamente, como fazer referência às ima-
que motivara o filme, também havia pesquisado casos gens de arquivo sem explorá-las de forma sensaciona-
de feminicídio no livro Nunca você sem mim. Esther lista e sem reproduzir os vícios das narrativas da TV?
Hamburger, professora da Universidade de São Paulo, Adotamos o princípio de marcar nossa manipulação nas
pesquisara representações de violência e gênero no imagens de arquivo com um frame black que pudesse
audiovisual. Ana Paula Lewin, advogada e defensora indicar os trechos em que havíamos feito o corte.
pública do Estado de São Paulo, atuava no Núcleo Es-
pecializado de Promoção dos Direitos da Mulher (Nu- No início, fui muito resistente a contar a história do
dem). Elisa Gargiulo, militante feminista, tinha vasta crime em ordem cronológica, temendo, de alguma for-
experiência no audiovisual e na comunicação. Por fim, ma, reproduzir qualquer resquício de sensacionalismo.
Augusto Rossini, promotor de justiça que acompanhara Acredito que isso tenha levado a montadora a organi-
o último dia do sequestro e que, após o crime, prota- zar o filme em blocos que eram hipóteses para respon-
gonizara uma discussão com apresentadores da Rede der à pergunta do título: Quem matou Eloá?
Record sobre a interferência da mídia no caso.
Após dois meses de montagem, decidimos assumir
Durante a pré-produção, a montadora preparou um a cronologia do crime. Esse foi um passo importan-
vídeo com as imagens de arquivo que eu selecionara te, que potencializou a reflexão que o filme pretendia
para serem projetadas no set de gravação para os en- instaurar. Depois de alguns testes de estrutura, decidi
trevistados. Ao mesmo tempo, pedi que toda a equipe “limpar” o excesso das imagens das TVs, priorizando os
lesse o texto Eloá - A morte anunciada para garantir que quadros nos quais os entrevistados aparecem assistin-
estivéssemos todos afinados em relação ao que deve- do a essas imagens projetadas ou apenas olhando para
ria ser a experiência do set e da realização do filme. algo fora de campo, com o áudio que acompanhava as
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CURTAS RAINHA
rainha (2016) é meu sexto filme de curta- apesar de ainda estar dentro dos limites de duração
-metragem e o sétimo da minha carreira de cineasta que definem os filmes de curta-metragem (de modo
independente, iniciada em 2006. E lá se vão 11 anos geral, estipulou-se como “curtas” todos os filmes que
vivendo, trabalhando e respirando cinema profissio- tenham duração inferior a 50 minutos), Rainha já não
nalmente. Quase um milagre, em se tratando de uma tem mais o “tempo” de um curta e aquela percepção de
mulher negra no Brasil. E muito além do ideal, se pen- brevidade das coisas foi ampliada para algo mais gentil
sarmos que, na metade do tempo, muitos homens para com o período da história que é contada. O filme
brancos e mulheres brancas já filmaram seus primeiros se demora sem sofrimento. Por isso, Rainha é a prepara-
e segundos longas, com todos os patrocínios e incenti- ção para o meu primeiro longa. E não somente por uma
vos do Estado. Filmes esses que, na maioria dos casos, questão de “tempo espaçado”, mas, também, porque o
não trazem grandes prêmios nos maiores festivais in- filme aglutina um olhar e uma estética que vem se defi-
ternacionais e sequer figuram no topo das bilheterias nindo, estética que venho buscando nesses últimos 11
brasileiras. São filmes mais falados do que vistos. Mas anos como realizadora de curtas e um média e numa
eu acredito mesmo que o tempo é o senhor da razão. vida inteira como simples observadora das coisas.
Rainha vem coroar uma maturidade de estilo que me Rainha é um filme sobre ser mulher, sobre ser mulher e
prepara para esse desafio ainda maior que está em negra, sobre ser mulher, negra e brasileira, e, sobretu-
iminência – o da realização do meu primeiro longa de do, sobre querer ser A MULHER. Num mundo onde mu-
ficção. Em dado momento, quando estávamos na ilha lheres são objetificadas todo o tempo, seja pela mídia,
de edição, eu e Antoine Guerreiro do Divino Amor – o por homens, pela sociedade e até mesmo pelas pró-
montador-mágico-artista de Rainha – nos deparamos prias mulheres que reproduzem um ciclo de opressões
com o dilema: e agora? Vai ser um longa ou um curta? que as aprisionam, pode ser libertador buscar a sua
Eram muitos fotogramas belíssimos que, injustamente, individualidade e potencializar a sua magnitude num
ficaram de fora do corte final. As imagens captadas com
sensibilidade e paixão por Julia Zakia eram muito mais
fortes do que a indicação do roteiro, avisando em suas
30 páginas que o filme se tratava de um curta-metra-
gem. Mais um curta. Mas e aquelas imagens belas po-
dendo ser usadas também? E aquele tanto de silêncio
e história e música que poderiam ser prolongados? E a
vontade toda de lançar um longa sobre a saga da aspi-
rante a rainha da bateria? E a ansiedade louca em mos-
trar personagens que foram cortados da versão final
por causa da duração do filme? Ficamos eu e Antoine
por, pelo menos, dois dias ruminando se deveríamos
assumir um filme de longa-metragem de, pelo menos,
70 minutos ou se honraríamos a decisão original do ro-
teiro de não ultrapassar o limite de 30 minutos.
desejo de ascensão, na busca pelo brilho. Não há nada e branco, como falei antes, pela parceira Julia Zakia.
de errado em querer brilhar. Todos nós nascemos para É um carnaval sem cores, um carnaval documentado,
isso e desejamos ou, pelo menos, deveríamos desejar neorrealista, atemporal. Um carnaval de sombras, con-
sempre o triunfo. Mas vivemos em uma sociedade mol- trastes, estruturas, realces, brilhos. Um carnaval me-
dada pela culpa cristã que se alinha com hipocrisias. lancólico, porém não triste. Jamais.
Ao mesmo tempo que nossa sociedade venera o triunfo
e os triunfadores, condena os seus aspirantes, princi- Rainha foi rodado integralmente em Cataguases, Minas
palmente quando esses desejam triunfar em voz alta. Gerais, e foi realizado graças ao edital da Usina Criati-
Sobretudo, quando desses aspirantes nada se espera a va de Cinema, do Polo Audiovisual da Zona da Mata de
não ser a queda. E, geralmente, é isso o que se espera Minas Gerais, na categoria diretora convidada, e com
de mulheres jovens, negras, periféricas, cujo destino patrocínio do grupo Energisa, via Lei de Incentivo do
final parece já estar traçado no subconsciente social. Estado do Rio de Janeiro.
Delas, quase nada se espera para além da maternidade
precoce, dos subempregos subservientes e da solidão. *SABRINA FIDALGO é uma premiada realizadora brasileira
natural do Rio de Janeiro. Seus filmes já passaram em
Rita, a moça do filme, a protagonista de Rainha, ousa mais de 80 festivais nacionais e internacionais em
sonhar em alto e bom som. E seu sonho não é nada mo- lugares como Los Angeles e Nova Iorque (EUA), Munique
desto. Rita não quer nada menos do que se tornar a rai- e Berlim (Alemanha), Tóquio (Japão), Praia (Cabo Verde),
nha da bateria da escola de samba de sua comunidade. Maputo e Cabo Delgado (Moçambique), Acra (Gana),
Durante o ano todo ela transforma sua vida em uma – entre outros. Seu último trabalho é o curta-metragem
cada vez mais – árdua via-crúcis rumo a um apogeu que Rainha, que acumula até o momento cinco prêmios,
nunca vem. Ou pelo menos parece nunca vir. A epopeia incluindo o de Melhor Filme pelo Júri Popular do Festival
da nossa heroína foi lindamente fotografada em preto Internacional de Curtas do Rio de Janeiro - Curta Cinema.
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ARTIGO
O TRIUNFO DE GILDA DE ABREU uma é dirigida por mulher: O ébrio, de Gilda de Abreu,
que estreou em 19463. Apesar de os dados não serem
E A BRASILIDADE EM O ÉBRIO muito precisos, estima-se que oito milhões de pessoas
tenham assistido ao filme nos cinemas. A maior parte
dos espectadores na época do lançamento do filme o
fizeram em cinemas de bairro.
Adhemar Gonzaga. Verberena e outra pioneira, a atriz, discute com seu reflexo no espelho, e em cena temos
produtora e diretora Carmen Santos, eram donas de dois Vicentes Celestinos, com o de dentro do espelho
seus próprios estúdios – Cleo de Verberena dos estú- incentivando o de fora.
dios Épica Film, e Carmen Santos do Brasil Vita Filme4.
Outra sequência elogiada retrata a evolução do rela-
A estreia de Gilda atrás das câmeras vinha sendo pro- cionamento de Gilberto com a enfermeira Marieta (Ali-
metida pela Cinédia desde que ela havia protagonizado ce Archambeau). A “corte”, o namoro e o noivado são
e ajudado a filmar algumas sequências de Bonequinha simbolizados pelos presentes que Gilberto envia a ela,
de seda, em 1936. Muitos anos foram gastos na esco- e no frame ficam apenas estes objetos e as mãos de
lha do material a ser filmado. A primeira opção era uma Marieta. A maioria dos críticos elogiou o filme e o traba-
adaptação do romance A viuvinha, de José de Alencar, lho de Gilda como diretora. A revista A Scena Muda se
que acabou sendo preterida em favor da adaptação de refere a Gilda como “vitoriosa artista”5 em sua emprei-
O ébrio, originalmente canção de rádio e depois peça tada e profetiza um novo surto de boas produções do
de teatro, ambas de muito sucesso. Percebe-se a busca cinema nacional, dando aos filmes brasileiros espaço
por um projeto financeiramente seguro, que garantiria que era quase inexistente, já que a revista era tomada
retorno ao estúdio independentemente de ser dirigido por assuntos de Hollywood.
por homem ou por mulher.
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revezes na trajetória do protagonista. Desta forma, com metonímia artística: em pouco tempo se espalhou o
os acontecimentos complexos da trama, O ébrio se apro- boato de que a história de O ébrio era autobiográfica e
xima dos dramas de D.W. Griffith e Douglas Sirk, mas ao Celestino era alcoólatra.
mesmo tempo se distancia deles por uma peculiaridade:
enquanto Gilda de Abreu nos apresenta um malfadado Não há dúvidas de que a radionovela influenciou os te-
protagonista do sexo masculino, os dramas dos outros mas das telenovelas. Vemos uma semelhança formal: a
dois diretores focam em personagens femininas. complexidade dos acontecimentos sucessivos e a pre-
sença de diversos personagens em O ébrio nos faz lem-
Nos anos 1940, as radionovelas se firmavam como en- brar as tramas e os núcleos das telenovelas. Vale men-
tretenimento popular, seguindo a fórmula dos roman- cionar que a primeira “novela das oito” da Rede Globo,
ces folhetinescos que eram sucesso desde o século em 1965, foi uma adaptação de O ébrio, em 75 capítulos.
anterior. A primeira radionovela estreou em 1941, na
Rádio Nacional do Rio de Janeiro9, e era adaptada de A primeira metade de O ébrio é permeada por um forte
uma radionovela transmitida antes em Cuba. Aqui, ve- tema religioso, com destaque para a canção Porta aber-
mos como o melodrama é admirado em toda a América ta, composta especialmente para o filme. Não é de se
Latina, sendo então, uma característica da latinidade e espantar que essa sequência seja popular – e que tenha
não apenas da brasilidade. gerado comoção e pedidos para o projecionista voltar a
fita e repetir a canção. A religião sempre permeou e in-
Por ter sido responsável pelo roteiro, Gilda de Abreu im- fluenciou a vida e os hábitos culturais do brasileiro.
primiu nele um tom intelectual, colocou Gilberto como
personagem e narrador da história, e inseriu diversos Em 1946, segundo o censo do IBGE, o Brasil contava com
termos formais nos diálogos. Assim como na radiono- pouco mais de 41 milhões de habitantes. Destes, 39 mi-
vela, a primazia do texto se faz perceber. O roteiro de O lhões se declararam católicos romanos10. De lá para cá,
ébrio se mostra quase literário, folhetinesco. houve uma transição religiosa no Brasil. Se, em 1946, um
filme com carga religiosa se tornou campeão de bilhete-
E da mesma maneira que os ouvintes projetavam nos ria, 70 anos depois o posto de filme mais assistido da
intérpretes as personalidades de seus personagens história do cinema brasileiro foi tomado por uma película
nas radionovelas, Vicente Celestino foi vítima dessa com completa temática religiosa: Os dez mandamentos.
www.adorocinema.com/slideshows/filmes/slideshow-
126578/#page=11>.
E, em 2016, segundo pesquisa do Datafolha11, 29% da 5. Atividades do cinema brasileiro. A Scena Muda,
população se autodeclarava evangélica – o equivalente Rio de Janeiro, nº 36, p.18, 03 set. 1946.
a mais de 60 milhões de pessoas – e 50% católica.
6. BARROS, João de Deus Vieira. Imaginário
Os maiores sucessos de bilheteria, tanto no século XX da brasilidade em Gilberto Freyre. Edufma, 2009.
quanto no atual século XXI, são populares, não apenas
no sentido de fazerem sucesso, mas principalmente no 7. IBGE. Nomes no Brasil. Disponível em:
sentido de se conectarem ao povo. Veja os maiores su- <https://censo2010.ibge.gov.br/
cessos de bilheteria no Brasil no século XX: além de O nomes/?fref=gc&dti=1642242382706906#/search>.
ébrio, temos os Trapalhões, Mazzaropi e, encabeçando
a lista, Dona Flor e seus dois maridos. 8. MENEGHETTI, Diego. A origem dos 50
sobrenomes mais comuns do Brasil. Disponível em:
Os anos 1950 encontraram um Brasil diferente no que <https://mundoestranho.abril.com.br/especiais/
se refere ao gosto cinematográfico. Ainda havia filmes a-origem-dos-50-sobrenomes-mais-
dramáticos, sobre pobreza e vício, mas os maiores su- comuns- do-brasil/>.
cessos de bilheteria eram as chanchadas – os musicais
à brasileira. Não havia mais espaço para a formalidade 9. BORELLI, Silvia Helena Simões; MIRA,
dos diálogos de O ébrio porque a oralidade informal to- Maria Celeste. Sons, imagens, sensações: radionovelas
mava conta do cinema. Gilda de Abreu fez apenas um e telenovelas no Brasil. Intercom - Revista brasileira
filme nos anos 1950 e, desiludida com o cinema, resol- de ciências da comunicação, v. 19, n. 1, 1996.
veu se dedicar à literatura. O ébrio permanece como
seu maior legado e um filme que é um fiel retrato do 10. IBGE. Estatísticas do século XX. Disponível em:
Brasil dos anos 1940. <https://seculoxx.ibge.gov.br/images/seculoxx/arquivos_
download/populacao/1946/populacao_m_1946aeb_06.pdf>.
Texto selecionado no Edital Filme Cultura Edição 63
*LETÍCIA MAGALHÃES PEREIRA é formada em História, 11. Número de católicos autodeclarados diminui no Brasil, diz Datafolha.
pós-graduada em Comunicação e Marketing em Mídias Disponível em: <https://www.opovo.com.br/noticias/
Digitais, pesquisadora da história do cinema e editora brasil/2016/12/numero-de-catolicos-autodeclarados-
do site Cine Suffragette, sobre mulheres no audiovisual. diminui-no-brasil-diz-datafolha.html>.
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LÁ E CÁ
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foto: divulgação
Alice Guy
PIONEIRAS AMERICANAS
ALICE GUY
Alice Guy-Blaché foi a mais importante realizadora da responsável pelos contatos com clientes e engenhei-
virada do século, e a diversidade da sua produção vai ros de equipamentos fotográficos e de filmagem, Guy
de belas vistas e experimentos visuais, de montagem e viria a ocupar também funções criativas e roteirizar,
narrativas, até a realização de longas-metragens. São produzir e dirigir seus próprios filmes. Em 1896, pro-
atribuídos a ela mais de 1.000 filmes2 produzidos en- duziu o primeiro filme narrativo de ficção da história
tre 1896 e 1922. do cinema: A fada dos repolhos3.
Guy começou como tipista e datilógrafa na Compa- Em virtude do sucesso do filme, passou a produzir e a
nhia Gaumont em 1894, aos 21 anos, um ano antes dirigir várias películas para a produtora. São da fase de
da fundação da companhia cinematográfica por Leon seu trabalho na Gaumont, por exemplo, os filmes de
Gaumont, em Paris. Logo se tornou a principal encar- peças de dança coloridos à mão, como a série Danse
regada da empresa e foi sob sua direção que a com- serpentine (de 1897 a 1902), Ballet libella (1898),
panhia se expandiu. De secretária, gerente logística, Danse des saisons (1900), entre muitos outros deste
É característica dos filmes desta primeira fase o experi- Durante os dois anos de sucesso, a Companhia Solax
mentalismo tecnológico e de manipulação da imagem. lançou a carreira de vários atores e transformou em es-
Sua relação com técnicos e engenheiros do cinema, trelas artistas como Darwin Karr e Blanche Cornwall, que
como secretária e encarregada da Gaumont, deram a ela estrelaram uma série de melodramas críticos ao sistema
conhecimento técnico dos equipamentos de filmagem e social, como The making of an American citizen (1911), A
dos processos de produção e revelação das películas. man’s a man (1912), The girl in the armchair (1913), e o
Logo Alice começaria a experimentar também em suas filme “multicarretéis” The pit and the pendulum (1913),
narrativas e formas de contar as histórias. de 30 minutos de duração7. Karr e Cornwall também
estrelaram comédias de travessuras como A comedy
A partir de 1906, a cineasta começa a rodar muitos fil- of errors (1912), e Burstop Holmes’ murder case (1913).
mes com a duração de um carretel (cerca de 13 minu- Há também o filme perdido In the year 2000 (1912), em
tos) e narrativas mais sofisticadas. Três exemplos des- que os papéis de gênero masculino e feminino são in-
sa fase são Un complot anarchiste (1906), que conta o vertidos, fazendo uma alusão ao seu filme do período
episódio de um menino salvo pela mãe da execução da Gaumont francesa Les résultats du féminisme (1906).
por soldados franceses; Une héroïne de 4 ans (1906), Boa parte destes filmes de um carretel fílmico foi suces-
filme sobre uma pequena menina que foge da sua mãe, so na época, e Alice e Herbert eram grandes nomes na
vive várias aventuras em um parque e, sozinha, acaba indústria cinematográfica nascente.
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Weber conquistou lugar nas primeiras
organizações profissionais denunciando os papéis
limitados disponíveis para as mulheres no cinema
dos anos 1920 e protestando contra o crescente
clima de hostilidade em relação às diretoras.
Após esses lançamentos, o casal pôde fazer investimen- sociais também são importantes para Guy, como em The
tos em novas tecnologias de filmagem e instalações de making of an American citizen (1911), em que trata a ques-
produção da companhia. Assim, a partir de 1912, come- tão dos imigrantes na América. Em Pierrette’s escapades
çaram a produzir filmes mais longos, utilizando até dois (1900), Arlequim, Pierrô e Colombina interagem em uma
carretéis. Um marco da produtora, Dick Whittington and cena coreografada de intrigas amorosas, em que os dois
his car (1913), tinha três rolos (45 minutos), um orçamen- personagens masculinos são interpretados por mulheres
to de US$ 35 mil e filmagens elaboradas8. Ainda assim, e acabam se beijando no final da película.
a empresa acaba contraindo dívidas, e, em 1913, para
fugir da influência do Banco Seligman, Herbert Blaché Mesmo se considerados apenas os filmes recuperados
funda sua própria companhia, a Blaché Features. Blaché e disponíveis para pesquisa, e os textos publicados em
e Guy se alternam na produção e na direção dos filmes língua inglesa, a importância da obra de Alice Guy para
da nova companhia. No final de 1914, as demandas do a história do cinema, o desenvolvimento da linguagem
mercado passam para cinco ou mais rolos de filmes, cinematográfica e o nascimento da indústria norte-ame-
o que implicava em produções de mais de uma hora ricana já seria inquestionável. No entanto, somente com
de duração. O casal então se une à Popular Plays and investimento em pesquisa e restauro dos seus filmes te-
Players, uma companhia que produzia filmes para distri- remos ideia do tamanho de sua obra.
buidores como Metro, Pathé e World Film. A parceria com
a produtora termina em 1916, quando Alice e Herbert de-
cidem fazer seus próprios negócios de distribuição, com
os mesmos clientes que compravam seus filmes da Po- LOIS WEBER
pular Plays and Players. Neste período, Guy dirige sete
longas-metragens, incluindo Ocean waif (1916)9 e The Por ser de um período posterior, Lois Weber conseguiu
great adventure (1918), estrelado por Bessie Love, para migrar melhor das produções de um ou dois carretéis da
a Pathé Players. Alice continua dirigindo filmes até 1922, primeira quinzena do século XX para os longas-metra-
quando, após se separar de Herbert, volta para a França gens de mais de 60 minutos do final dos anos 1910. We-
com seus dois filhos. Lá, começa a lecionar cinema e a ber iniciou sua carreira como atriz em 1905, na Compa-
escrever revistas e novelas a partir de roteiros fílmicos. nhia Gaumont Americana (dois anos antes da chegada
do casal Blaché), e dirigiu seu primeiro curta-metragem
Apesar de Guy não ser exatamente uma militante das em 1911, A heroine of ‘76, junto com Edwin S. Potter e seu
questões de gênero, e de ter realizado filmes de todo marido, Phillips Smalley, com quem viria a dirigir muitos
tipo, de westerns a comédias de costume, muitos de de seus filmes. Lois Weber foi considerada, junto com
seus filmes apresentam personagens femininas com- D. W. Griffith e Cecil B. DeMille, uma das “três grandes
plexas, de todas as faixas etárias, protagonistas de seus mentes” (e primeiros diretores-autores) da Hollywood
destinos, cômicas e independentes, além de abordarem nascente, apesar de ter sido marginalizada em relação
com sensibilidade temas do universo feminino. Os temas aos seus contemporâneos.
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DOROTHY ARZNER
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PIONEIRAS BRASILEIRAS de um assassinato descoberto após o feriado de car-
naval. Cleo, interpretada por Cleo de Verberena, é a
No Brasil, são raros os registros de nomes femininos esposa do comendador Almeida; envolvida em uma in-
atuantes nos primórdios da produção cinematográfica. trincada trama amorosa, acaba envenenada pelo irmão
Somente a partir dos anos 1960, com a segunda onda de uma noiva traída. O mistério do dominó preto é um
do feminismo, as mulheres passam a ter maior partici- filme considerado perdido, havendo apenas registros
pação tanto na indústria quanto no cinema experimen- escritos da sua existência.
tal. Destacam-se três nomes, atuantes em diferentes
décadas e contextos: Cleo de Verberena, Carmen San- Canção do destino, projeto de 1931, sem indícios de
tos e Gilda de Abreu. conclusão, tinha Plínio de Castro Ferraz como diretor
e roteirista e Cleo de Verberena na produção e elenco.
Não existem registros de lançamento desse filme, tam-
pouco conteúdo examinado, segundo as bases da Ci-
CLEO DE VERBERENA nemateca. Para algumas fontes24, a última participação
de Verberena no cinema brasileiro teria sido como ro-
Jacyra Martins da Silveira, nome de nascimento de Cleo teirista do filme Casa de caboclo, dirigido por Augusto
de Verberena, é considerada pela literatura especiali- de Campos, de 1931.
zada a primeira mulher a comandar os sets de filma-
gem de um longa-metragem no Brasil – O mistério do
dominó preto, de 1931 –, o que nos faz questionar se
antes dela não houve, realmente, outra. CARMEN SANTOS
Por inúmeros motivos – incêndios recorrentes das pelí- Mais profícua na história do cinema brasileiro foi a pre-
culas de nitrato de prata, preservação precária, destrui- sença de Carmen Santos. Guardadas as devidas pro-
ção de acervos individuais, além de reaproveitamento de porções, Santos foi nossa Mary Pickford25. Das três pio-
material –, a pesquisa dos primeiros cinemas brasileiros neiras brasileiras tratadas neste texto, Carmen Santos
sofre de uma limitação quantitativa. Estima-se, segundo certamente foi a mais estudada e historicamente regis-
censo da Cinemateca Brasileira, que apenas 6% dos fil- trada, é a única que possui biografia própria e a mais
mes está preservado. Some-se a isso a insuficiência de citada em textos estrangeiros sobre o início do cinema
registros de época e as poucas pesquisas sobre o tema. brasileiro. Seria impossível esgotar neste artigo suas
contribuições e sua rica biografia documentada no livro
Nossa pioneira brasileira, assim como muitas outras, Carmen Santos: o cinema dos anos 20, de Ana Pessoa26.
tem sua première no mundo dos espetáculos como
atriz, para depois atuar como diretora, produtora e Atriz, produtora, dona de estúdio e militante nas asso-
roteirista. Para produzir seu próprio filme, Verberena, ciações de profissionais e técnicos pelas leis de pro-
junto com seu marido Laes Mac Reni, monta o estúdio teção do mercado interno, a portuguesa radicada no
Épica Film e, aos 21 anos, escreve, dirige e atua no dra- Brasil estreia nas telas, aos 15 anos, em Uruatu (1919),
ma que se passa nas festas carnavalescas paulistas e do americano William Jansen. O filme não chega a ser
tem no elenco Rodolpho Mayer, além de Cleo e Mac lançado comercialmente. No ano seguinte, Carmen San-
Reni23. Seguindo a tradição das mortes de quarta-feira tos viaja para os Estados Unidos determinada a ingres-
de cinzas, o filme se desenvolve a partir da resolução sar na indústria hollywoodiana, já em estágio avançado
de desenvolvimento. De volta ao Brasil, produz e atua No ano seguinte, Santos integra o elenco do marco do
nos longas-metragens A carne (1924) e Mademoiselle cinema nacional Limite, de Mário Peixoto. Já com ex-
cinema (1925), ambos dirigidos por Leo Merten e, se- tensa experiência na produção cinematográfica, em
gundo versões, destruídos em um incêndio27. 1933 funda a empresa Brasil Vox Filme, que logo pas-
saria a se chamar Brasil Vita Filme, após um litígio com
Em 1930, Santos inaugura a parceria com Humberto o estúdio americano 20th Century Fox. O primeiro fil-
Mauro, coproduzindo, junto à Phebo Filmes, Sangue me do estúdio brasileiro foi Onde a terra acaba (2002),
mineiro, no qual também atua. O drama se passa no in- de Octávio Gabus Mendes, coproduzido com o estúdio
terior de Minas Gerais, onde a órfã Carmen vive desven- Cinédia, de Adhemar Gonzaga.
turas amorosas e é salva de uma tentativa de suicídio
por dois primos com os quais vai viver. Sua presença cria Com estúdio próprio, Carmen Santos dedicou-se à ten-
desavenças entre os mancebos, que culminam em sua tativa de consolidar uma produção industrial para o
fuga para o Rio de Janeiro com seu amado Cristovão. De cinema brasileiro, calcada na construção de uma iden-
roteiro folhetinesco, Sangue mineiro foi um sucesso da tidade nacional e impulsionada pelo sucesso dos fil-
época, ficando em segundo lugar no concurso de Melhor mes sonoros americanos, nos moldes do que Gonzaga
Filme Brasileiro de 1930, promovido pelo Jornal do Bra- introduzira com a Cinédia. Nos anos que se seguiram,
sil, e marca a ida de Mauro para a capital do país em bus- a Brasil Vita Filmes produz uma série de curtas-metra-
ca de mais financiamentos para produzir seus filmes. gens documentais dirigidos por Humberto Mauro, como
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a série As sete maravilhas do Rio de Janeiro (1934), GILDA DE ABREU
Pedro II (1935) e Ouro verde (1936), entre outros.
A exemplo de Carmen Santos, Gilda de Abreu também
Dos quatro longas-metragens produzidos pela Bra- exerceu múltiplas funções no cinema: atriz, roteirista,
sil Vita Filmes antes de Santos conseguir realizar seu produtora e diretora. Abreu já era cantora lírica quando
projeto mais ambicioso, Inconfidência mineira (1948), conheceu e se casou com Vicente Celestino, astro musical
do qual assina sua primeira e única direção, apenas dos anos 1930. Em 1936, estreia nas telas atuando em Bo-
Argila (1940), de Humberto Mauro, sobreviveu até os nequinha de seda, filme da Cinédia dirigido por Oduvaldo
nossos dias. Favela dos meus amores (1935) e Cidade- Vianna, que foi considerado como a primeira superpro-
mulher (1936), ambos também de Mauro com Santos dução cinematográfica brasileira29. A sua interferência na
no elenco, e O malandro e a grã-fina (1947), de Luiz de produção, sobretudo nas sequências musicais, desper-
Barros, apesar de terem sido lançados na época, são tou o olhar de Adhemar Gonzaga, diretor do estúdio. Em
tidos como desaparecidos, provavelmente vítimas dos Bonequinha de seda, um marco do cinema nacional, Gil-
recorrentes incêndios dos acervos da época. da faz o papel de Marilda, uma francesa recém-chegada à
alta sociedade carioca, que impressiona todos com seus
O ambicioso projeto de Inconfidência mineira começou modos refinados e seu estilo cosmopolita.
a esboçar-se com a fundação da Vita Filmes, em meados
dos anos 1930. Para contar a sua versão do importante Após o sucesso de Bonequinha, Abreu torna-se rapi-
marco da história brasileira, enquanto produzia e estre- damente uma estrela do cinema, chamada de “Gilda
lava outros filmes, Santos tentou a colaboração dos me- -star”. Logo no ano seguinte, Gonzaga a convida para
lhores diretores da época, com quem estava trabalhan- mais um projeto dirigido por Vianna, Alegria, que não
do, como Mauro e Peixoto. Sem sucesso, a determinada chega a ser concluído.
produtora decidiu assumir a direção do longa-metragem
que, marcado por inúmeras interrupções e substituições Após dez anos sem registros de sua participação no
de equipe, foi lançado em 1948, em meio a um boico- cinema, provavelmente por estar se dedicando aos
te de exibidores, e recebido com frieza pela crítica da palcos, Gilda de Abreu se tornaria a primeira mulher
época28. Após o fracasso de seu projeto mais longevo, a dirigir um longa-metragem falado no Brasil, O ébrio
ela ainda viria a produzir e lançar mais dois longas-me- (1946). A película, escrita e produzida por Gilda e pelo
tragens, ambos dirigidos por Luiz de Barros: Inocência, estúdio Cinédia, estrelada por Vicente Celestino, é um
em 1949, e O rei do samba, em 1952, mesmo ano de sua palco para que o cantor popular exponha seu talento.
morte prematura, decorrente de um câncer. Com todos os elementos melodramáticos que merecia,
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Celestino, não repete o sucesso de seu primeiro filme, REFERÊNCIAS
e Gilda não volta a dirigir até 1977, quando realiza o cur-
ta-metragem Canção de amor, dedicado a seu marido, 1. Universal women: filmmaking and institucional change in
falecido em 1968. Gilda ainda escreveu o longa-metra- early Hollywood, de Mark Garret Cooper, no site <https://
gem Chico Viola não morreu (1955), dirigido por Román wfpp.cdrs.columbia.edu/>.
Viñoly Barreto, uma coprodução argentina da Atlânti-
da Cinematográfica, e Mestiça, a escrava indomável 2. Site oficial Alice Guy, catálogo de filmes Gaumont,
(1973), de Lenita Perroy, com Sônia Braga no elenco. em <http://aliceguyblache.com/sites/default/files/pdfs/
Gaumont_Filmography.pdf>.
A participação desbravadora destas pioneiras do cine-
ma nacional abriu portas para que, a partir dos anos 3. La fée aux choux (1896) ou A fada dos repolhos é um filme de
1950, mais mulheres assumissem a direção dos filmes. 53 segundos que se refere a uma lenda sobre o nascimento
Na sequência, estão as italianas Maria Basaglia, que dos bebês. No filme, uma “fada” dança em um cenário
dirigiu e escreveu quatro longas-metragens na década bem construído, simulando uma plantação de repolhos,
de 1950, e Carla Civelli, com seu recentemente restau- enquanto “colhe” bebês reais e bonecas das plantas.
rado Um caso de polícia (1959). Mais adiante, na déca- Colocando as crianças em destaque – em primeiro plano –
da de 1960, novos nomes despontam, como Ana Caro- e as bonecas ao fundo, Alice compõe uma mise-en scène
lina, Helena Solberg, entre outras. bem elaborada para a época.
Devido ao pouco material disponível sobre nossas pio- 4. O termo sound-on-disc se refere ao processo de filme
neiras, destaco o trabalho precioso das pesquisadoras sonoro que utiliza um fonógrafo ou outra faixa para gravar,
Ana Pessoa, Ana Rita Mendonça, Heloisa Buarque de ou ainda um som playback em sincronia com as imagens
Hollanda e Andrea Ormond, e o de Adilson Marcelino, em movimento.
criador do site Mulheres do Cinema Brasileiro, para a
recuperação destas importantes personagens e o regis- 5. Todos os filmes citados neste texto da fase Gaumont
tro de seus nomes na história do cinema nacional. francesa estão disponíveis no YouTube.
15. Turner Classic Movies: The blot, em <http://www.tcm. 27. Site da Cinemateca Brasileira: goo.gl/aMjkBK.
com/this-month/article/212812%7C0/The-Blot.html>.
28. PESSOA, A. Por trás das câmeras. In: HOLLANDA,
16. Estes dois filmes estão disponíveis com legenda H. B. de. (org.) Realizadoras de cinema no Brasil: 1930/1988.
em inglês em sites de compartilhamento de conteúdo. Coordenação e pesquisa Ana Rita Mendonça
e Ana Pessoa. Rio de Janeiro: CIEC, 1989. p. 133.
17. Antonhy Slide, Silent Feminists, p. 38, em <https://
allangraysimagination.wordpress.com/2009/09/24/ 29. SHAW, L; DENNISON, S. Brazilian national cinema.
women-filmmakers-2/>. Oxon: Routledge Taylor & Francis Group, 2007. p. 64.
18. Com exceção de The people vs. John Doe, 30. Ibid., p. 65.
os outros títulos citados neste texto estão disponíveis para
download em sites de compartilhamento estrangeiros. 31. Ibid., p. 66-67.
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OUTRO OLHA
QUEEROÍNAS,
HEROÍNAS E
PSEUDO-HERÓIS
The mask you live in
em 1981, maureen murdock, psicóloga nor- discorre Maureen em seu livro A jornada da heroína,
te-americana e pesquisadora do feminino inserido no publicado em 1990, levantando questões como: o que
mundo patriarcal, entrevistou Joseph Campbell, refe- é estar lá? Qual é o significado de ser tal personagem
rência no estudo de mitologia, que escreveu, em 1949, maravilhosa? O que é o pseudo-homem?
O herói de mil faces. Murdock questionou as opiniões
do entrevistado acerca das diferenças entre a heroína Em 1994, Murdock publica o livro A filha do herói, cujo
e o herói, e de como a mulher poderia “curar” a se- título, a partir da segunda edição em inglês, foi alterado
paração interna com sua natureza feminina. Esse con- para A filha do pai (em português, foi publicado como
ceito de natureza feminina é baseado em arquétipos A filha do herói e continua assim). Nessa obra, a auto-
junguianos1 que representam figuras simbólicas, parte ra descreve suas experiências em terapia com diversas
de um universo inconsciente comum. Construído. pacientes mulheres, já adultas e bem-sucedidas finan-
ceiramente. Ela relata que suas pacientes, para alcan-
“Durante toda a tradição mitológica a mulher está lá. çarem o sucesso em um mundo centrado na figura do
Tudo o que ela tem que fazer é perceber que ela é o homem, inspiram-se em atitudes consideradas como
ponto de chegada que todos estão tentando alcançar. masculinas, primeiramente representadas pelo pai.
Quando uma mulher percebe que personagem maravi-
lhosa ela é, ela não vai se preocupar com o conceito de Ela (a filha do pai/herói) é considerada um sucesso
ser um pseudo-homem”, respondeu Campbell, como de acordo com os padrões da sociedade de cultura
foto: divulgação
patriarcal, focada em atingir resultados e baseada lha. Ela encontra seu tesouro: um diploma, um cargo
em poder. A filha do pai anseia em ser parecida com importante, dinheiro, autoridade. Os homens sorriem,
o seu pai e em ser querida por ele. Às vezes ela até apertam sua mão e dão as boas-vindas ao clube.3
deseja se tornar ele. Ela luta não só por compreen-
der os desejos e sentimentos mais profundos do pai, Muitas mulheres imitaram a jornada da figura he-
mas também por experimentar o tipo de poder e visi- roica masculina porque não havia outras imagens
bilidade que ele sustenta no mundo.2 para imitar – uma mulher poderia ser bem-sucedi-
da em uma cultura homem-centrada ou dominada e
Esse espelhamento cresce com a aprovação exterior, dependente como mulher. Para mudar as estruturas
mas, enquanto se adequam às regras do universo ho- sociais, econômicas e políticas da sociedade, nós
mem-centrado, essas mulheres rejeitam o feminino, precisamos agora de novos mitos e heroínas.4
visto como fraco e representado pela mãe.
Por que interessa à mulher se unir ao clube em uma
A jornada da heroína foca no reencontro da heroína sociedade patriarcal? Por que seria do interesse de
com sua natureza feminina: uma heroína ser reconhecida e bem-sucedida em um
mundo que a oprimiu e oprime as mulheres que não
Nossa heroína coloca sua armadura, levanta sua espa- alcançam os ideais de sucesso designados por uma
da, escolhe seu cavalo mais veloz e parte para a bata- (minoritária) elite masculina branca?
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The mask you live in
A filha do herói responde à questão do pseudo-homem Quando uma mulher decide não jogar mais de acordo
complementando A jornada da heroína, que, por sua com as regras patriarcais, ela não tem um livro de ins-
vez, responde ao Herói de mil faces, de Campbell. O truções que lhe mostre como agir ou pensar. Quando
livro de Campbell é referência, pois introduziu o con- ela decide não mais perpetuar formas arcaicas, a vida
ceito de “monomito” ou “jornada do herói”, que foi se torna excitante – e aterrorizante. [...] É uma jornada
popularizado e simplificado por Christopher Vogler, raramente validada pelo mundo exterior; na realidade,
executivo de Hollywood, em 12 passos básicos para se diversas vezes o mundo exterior sabota e interfere na
escrever um roteiro. jornada [...]. Essa não é uma jornada sobre uma fada
madrinha mostrando uma saída. [...] Quando uma
Um herói de um mundo ordinário se aventura por uma mulher foca no processo da jornada interior, recebe
região de maravilhas sobrenaturais: forças fabulosas pouco reconhecimento e menos aplausos do mundo
são encontradas e uma vitória decisiva é conquistada exterior. As questões que ela levanta sobre valores de
– o herói volta de sua aventura misteriosa com o po- vida faz com que aqueles que estejam empenhados
der de conceder favores a seus semelhantes.5 nas jornadas pelo sucesso se sintam desconfortáveis.6
O herói, então, sai do mundo comum e retorna com di- A jornada da heroína é interior, de descobertas do eu,
nheiro, conhecimento, poderes, como alguém a ser ad- de uma individualidade particular, que mescla valores
mirado, com status. A heroína, depois de sua aventura, arquetípicos masculinos e femininos da forma como
volta para o mundo patriarcal. são entendidos pela sociedade: o masculino sendo a
coragem, a garra, a ambição; o feminino, a conexão
A jornada da heroína: consigo mesma e com os outros, a empatia e o respeito.
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é ouvir um ponto de vista e escolher interagir com um REFERÊNCIAS
universo de narrativas. Se esses pontos de vistas forem
todos similares, estaremos gerando debates rasos em 1. JUNG, C. G. O eu e o inconsciente. In: ______.
um mundo cheio de diversidade. Obras completas. Petrópolis: Vozes, 1981, v. 3.
A jornada da heroína não é questão apenas de represen- 2. MURDOCK, M. A filha do herói. São Paulo:
tatividade. Nem somente de protagonistas femininas. Summus, 1994, p. 5.
Não tem gênero, cor, etnia, cultura ou sexualidade defi-
nida. Trata-se de pensarmos o que queremos ver em per-
3. MURDOCK, M. The heroine’s journey. Boston:
sonagens principais, quem queremos ser, que batalhas
Shambhala, 1990, p. 6, tradução da autora.
lutar e que obstáculos vencer, juntos e individualmente.
HELENA
SOLBERG
DIRETORA, PRODUTORA E ROTEIRISTA (1938-)
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PERFIL
O PODER DO OLHAR – político, frontal e desa- papéis que desempenhavam na vida real. Essa “pra-
fiador da mulher afro-americana na segunda metade ga”, visível em chanchadas como Samba em Brasília
do século XX, tal como coloca Bell Hooks em O olhar (1960) – na qual a loura Eliana Macedo é a passista
opositivo: espectadoras negras1 – é aqui tomado sob que abala a capital – persiste em folhetins como Se-
uma outra ótica. O que se explora neste “perfil” é o nhora do destino (2004), em que o “lourismo” aco-
modo pelo qual esse olhar confrontador distingue a mete da nordestina retirante (Carolina Dickman) à ra-
cinematografia criada por diretoras negras brasileiras inha da bateria (Ludmila Dayer). Duelos entre a loura
neste começo de século XXI. Mais particularmente, Ludmila e morenas não negras (Maria Maya/Thânia
busca-se revelar a função desse olhar na composição Kallil) pelo melhor samba no pé são revisitados em
da autoimagem, em filme e webvídeo, de uma pioneira Rock story (2016), quando Viviane Araújo confronta
do cinema negro feminino no Brasil, autora de Gurufim as louras Laís Pinho e Helga Nemeczyk em cenas em
na mangueira (2000) – média-metragem que inaugura que a negra passista lhes serve de pano de fundo. O
a autorrepresentação da mulher negra brasileira como que pensa e sente a maioria de mulheres afrodescen-
sujeito da narrativa ficcional2. dentes diante dessas imagens? Nosso olhar opositivo
não tentará esconder. A onipotência do homem branco
A menina negra que investiga a câmera que a “captu- para realizar e veicular narrativas audiovisuais é, em
ra”. A criança negra educada entre brancos. A jovem geral, deliberadamente agressiva contra não brancos,
cineasta negra que, na estreia, é desqualificada por e oprime a mulher negra em particular.
seus “pares” como “uma dona de casa que só gosta-
va de novela”. Danddara, mãe e avó afro-carioca de Meu trauma na primeira aula de História sobre escravi-
cinema. Na leitura que Hooks faz de Foucault, o olhar dão foi material para uma cena de Vista minha pele9, do
que agencia resistência à sujeição passiva, no contexto qual sou corroteirista. Não obstante, a pedagogia revo-
de diversas relações de poder, exprime, de um lado, a lucionária do Baby Garden10 faria a única aluna negra
curiosidade que desloca o pai/fotógrafo3 do pedestal; do turno da tarde ser Helena de Tróia em um festival de
de outro, no colégio4, expõe a dor da aluna face à cons- cinema super-8, gravar canção de sua autoria em LP11
ciência da condição sócio-racial. e ser estrela de peças teatrais. Desde a alfabetização,
as escolas que frequentei sempre me empoderaram.
Estudar na escola de vanguarda na Tijuca. Morar em um Infelizmente não bastou para desfazer a autoimagem
prédio pobre em frente ao Morro dos Macacos, em Vila carregada de feiura, vulgaridade e pobreza com que a
Isabel5. Isso no Rio dos anos de chumbo, quando a classe TV brasileira me massacrou.
média negra começa a produzir imagens da mulher negra
livre, rompendo com séculos de iconografia da servidão. Na descoberta da sexualidade, que se deu no mesmo
Hernani Heffner6 situa nos anos 1970 as primeiras ima- ambiente de escolas particulares de elite, com adoles-
gens da família negra, com a chegada do VHS. Todavia, centes brancos, o peso dessa inferioridade estética e o
no cenário da cultura hegemônica, sobravam evidências bullying, que eu fingia achar engraçado, quase me le-
de que ser uma mulher negra era algo ruim. varam ao suicídio, com apenas 16 anos. Foi nessa fase
que tentei me inserir como atriz nas telas brasileiras. O
Na TV, a que eu e minha irmã Valéria tínhamos acesso assédio sexual nos bastidores assustava, mas parecia
controlado por nossos pais, Anjo mau e Escrava Isau- não ser nada demais, já que a violência contra mulheres
ra7 escancaravam A negação do Brasil8, mostrando e meninas é constante no Brasil, e ainda mais corriquei-
que mulher negra não podia protagonizar nem mesmo ra para cidadãs não brancas. Chocava-me o baixíssimo
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foto: acervo pessoal danddara
nível dos personagens disponíveis para mim. Se é que
escravas, meretrizes e domésticas mudas – que vinham
à cena somente para receber ordens, xingamentos e
abuso moral, econômico e sexual – sejam qualificáveis
como tal. Não é preciso procurar muito: da comédia
em que Mazzaropi chama uma empregada negra de
Foto de família, dunas de Cabo Frio / RJ (1972)
“macaca” ao Lord Black de Chico Anysio que ameaça e
ofende com o bordão “Nega Xexelenta, vou dale porra-
da nessa nega” – há exemplos variados. Era impossível
para mim aceitar aquele tipo de trabalho. Certa vez, na
praia em Ipanema, fui abordada por “produtores” que Doeu. Mas sem surpresas. Meu olhar opositivo, des-
me chamaram para ficar nua no cinema. Recusei. Como confiado e questionador, fora treinado desde cedo pelo
desculpa, disse que era menor e meu pai não permi- olhar de minha mãe, Edna, bióloga e cinéfila, que expu-
tiria. “Ele não vai saber, seu rosto nem vai aparecer”, nha conteúdos subliminares de cenas de cinema e te-
responderam. Em 1988 fiz um teste na Globo para ser levisão, destacando representações de gênero e raça.
mucama coadjuvante da Cláudia Abreu. A novela foi Até hoje, ridicularizar estereótipos em filmes e novelas
cancelada por suspeita de plágio, dando lugar a Fera é uma diversão que compartilho com meus filhos, Yan
radical. Me chamaram para o elenco de apoio. Escolhi e Yara, e minha neta mais velha, Sarah. Meu pai pegava
o teatro. Em 1989, fiz minha única participação como mais leve. Acho que ele queria que a gente sonhasse.
atriz de TV em Capitães de areia, minissérie da Band.
Personagem: Neguinha do Areal. Aprendemos a encarar (quase) tudo e todos interrogan-
do: “Onde está a armadilha, o convite à sujeição?”. Na
“Ótimo papel, direção de Walter Lima Jr.”, me conven- história norte-americana, a máquina hollywoodiana
ceram. Cena intensa, três páginas, fora tentada antes tem sido empregada para formatar ou anular identida-
de mim pela atriz Iléia Ferraz, que eu muito admirava, des à conveniência de supremacistas, brancos e ho-
mas o menino que fazia Pedro Bala não soubera in- mens, que controlam a indústria audiovisual.
teragir com uma atriz “tão mulher”. Aos 19 anos, eu
estrelava o infantil Vale a pena12 como uma menina de As representações convencionais da mulher negra
rua. Apesar de já ser mãe desde os 17, convencia como violentavam a imagem. Em resposta a essa agressão,
criança. “Perfeita para o papel”. A ação consistia num muitas espectadoras negras descartaram a imagem,
estupro, em que a Neguinha poupava seu hímen dan- desviaram o olhar, não deram ao cinema importância
do ao agressor a opção do sexo anal. Livre adaptação alguma em sua vida. No entanto, havia aquelas espec-
da obra de Jorge Amado... O diretor orientou o tom tadoras cujo olhar era de desejo e cumplicidade. (...)
dramático do diálogo. Take um. Aplausos. Hora de Todas as mulheres negras com quem eu conversei que
assistir. Ansiedade. Eu, namorado, pipoca e guaraná eram/são assíduas frequentadoras de salas de cine-
descobrimos que a cena fora mutilada. O diálogo qua- ma, amantes de filmes hollywoodianos, atestaram que,
se inexistia. O intenso drama resumira-se a: Neguinha para vivenciar por completo o prazer que tinham com
jogada no chão por adolescente louro alfa do Areal. aquele cinema, tinham de escolher ignorar a crítica,
Corta para close na calcinha rosa florida que surge sob a análise; tinham de esquecer o racismo. E, acima de
a sainha curta. Fim. tudo, não pensavam sobre o machismo.
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foto: acervo pessoal danddara
Fotos de divulgação do show I Am Samba, NY/EUA (1994)
O primeiro passo foi difícil, pelas exigências técnicas da O primeiro século de cinema brasileiro produziu ima-
película 35mm, pela oposição de artistas homens (ne- gens de mulheres negras, à nossa total revelia, e nos
gros e brancos), pela falta de cumplicidade de mulheres confinou à terceira pessoa das narrativas fílmicas. Cem
brancas, pela ausência de mulheres negras no meu meio anos sem liberdade de representar nas telas a própria
social. A realização de Gurufim na mangueira consumiu identidade, de raça e gênero, sob uma perspectiva
quatro anos e R$ 80 mil reais, incluindo os R$ 40 mil do autoral independente. O fato de que Adélia Sampaio
prêmio, doações, permutas e o seguro de vida do meu – primeira mulher negra brasileira a dirigir um longa
pai, Eurico, advogado e boêmio, morto em 1998. de ficção – não tenha querido ou tenha sido, de algum
modo, impedida de quebrar esse tabu em seus filmes,
Tentei esse mesmo projeto três vezes em edital do Mi- faz de Gurufim na mangueira uma doída exceção, sem
nistério da Cultura. Conquistei o prêmio em 1999, após referência anterior no Brasil. Realizei esse filme após
ocultar a identidade de autora negra sob o nome da conhecer, nos EUA, as obras das cineastas negras Julie
produtora Mônica Behague, branca de origem france- Dash e Kasi Lemons. A gana de descascar e desdizer
sa. Não tinha coragem de assumir, nem para mim mes- imagens e valores que nos ofendem ou ignoram o “X”
ma, o desejo de ser cineasta. Queria me projetar como de nossas questões – que senti ao fazer o primeiro fil-
atriz e cantora. Por ironia do destino, às vésperas da me – é comum a todas as cineastas negras que vi em
filmagem tive que optar entre ser estrela ou ser direto- atividade, no boom de câmeras e telas digitais do sécu-
ra. Thalma de Freitas deu show como protagonista! E eu lo XXI. O cinema que fazemos resulta de um olhar que
descobri que escrever e dirigir cinema é a minha cacha- não apenas resiste, mas enfrenta discursos imagéticos
ça. Para criar a viúva de vermelho, à frente do ritual que de dominação. Realizar o Gurufim correspondeu à in-
ressignifica toda uma comunidade, numa obra que P. venção de um lugar. Não pensei nisso até ouvir o Joel
C. Saraceni chamou de “um filme-samba delicioso”14, Zito dizer, naquele painel em Nova Iorque15, que ele era
a dramaturgia se enraizou nos quintais da infância. o sétimo homem negro diretor de cinema, e eu a pri-
As imagens reagiram ao que vira como falso, falho ou meira mulher negra cineasta do Brasil.
apoucado na representação da mulher negra em filmes
como Rio Zona Norte, Natal da Portela, Chica da Silva e A revelação do ineditismo do meu feito expôs motiva-
Black Orpheus, entre outros. E acalmaram o coração. ções de ataques que sofri, durante e depois da minha
estreia. Entre artistas negros, a decepção de ver meu 3. Eurico de Oliveira Rodrigues, autor das fotos
roteiro plagiado foi a pá de cal nas tentativas de per- de família.
tencer a coletivos afirmativos. Não judicializei o con-
flito porque a vitória não compensaria a dor de cau- 4. Baby Garden, escola que usava arte na educação.
sar tamanho estrago no movimento de cinema negro. A foto corresponde ao atual 4º ano (1975).
Tentei sem sucesso me aproximar do Dogma Feijoada.
Não fui convidada para o Manifesto de Recife. Nenhum 5. Bairros da Zona Norte do Rio de Janeiro.
desses grupos tratou questões de gênero. Feministas
cineastas que eu conhecia não tratavam questões ra- 6. Conservador-Chefe da Cinemateca do Museu
ciais. Para ver, pensar e falar da minha arte, mergulhei de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio).
na pesquisa de autoimagem. Nessa conquista de au-
toexpressão, a web é espaço de experimentação. Tudo 7. Ambas as novelas foram
muito leve e coloquial. To whom it may concern16 (vi- ao ar na Rede Globo, em 1976.
deopoema) é o mais recente produto desse exercício.
A obsessão com minha figura cresceu conforme meu 8. A negação do Brasil, de Joel Zito Araújo
olhar opositivo amadureceu, revelando intencionalida- (2000, documentário, 50 min, cor)
des na gênese de tantas, e tão persistentes, imagens/ sobre racialismo na teledramaturgia.
discursos destrutivos em referência à mulher negra
no Brasil. É como se eu precisasse atualizar constan- 9. Vista minha pele, de Joel Zito Araújo
temente a interface pela qual interajo no mundo para (2006, ficção, 26min, cor).
repetir: “EU NÃO SOU A SUA NEGRA”.
10. Denise Mendonça está hoje à frente
Após cem anos de silêncio, a cinematografia das dire- do Instituto Tear, na Tijuca, Rio de Janeiro.
toras negras do Brasil é uma eficaz ferramenta de for-
mação do olhar, disponível para artistas e educadores 11. Brincando de inventar simples versos
de todo país. cantados, LP – 1976.
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16. Publicado em <poemasflorestais.blogspot.com.br>.
Diaspora International Film Festival (ADIFF), em Nova Iorque.
Montagem de Ôrí
CRISTINA AMARAL:
A PERMANÊNCIA DOS VAGALUMES
algumas pessoas luminosas pontuaram a fotográfica. Automática, muito simples, mas que me
minha trajetória e a minha vida dentro e fora do cine- tornou a fotógrafa oficial da família. A fotografia me
ma. A primeira delas foi minha mãe, mulher forte e in- levou ao Curso de Cinema, na Escola de Comunica-
dependente que nos deu (e continua a dar) muito cari- ções e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
nho e nenhuma moleza: “Se tem que estudar, estude”. As aulas do curso de Cinema tinham o encantamento
“Se tiver que fazer algo, faça o melhor possível”. de virem acompanhadas por projeção de filmes. Era o
reencontro com velhos conhecidos meus.
Desde cedo, me contam, os livros me atraíam como
ímãs. Não apenas os livros, qualquer texto escrito. E,
das minhas leituras, eu me recordo de uma revista so-
bre cinema que minha mãe colecionava. Terra em transe
Não me lembro do nome, mas, através dessa revista, to- Paulo Emílio Sales Gomes: por causa dele, mesmo
dos os grandes astros dos cinemas americano e europeu sem conhecê-lo, fizemos uma greve geral na escola.
se tornaram meus conhecidos íntimos – eu sabia o nome Fazia dois meses que as aulas tinham começado, e a
de todos (corretamente, porque meus irmãos mais ve- reitoria da USP tinha recebido ordens da ditadura mi-
lhos me corrigiam na pronúncia), reconhecia suas fotos, litar para não renovar o seu contrato, por considerá-lo
sem nunca ter visto nenhum de seus filmes, porque não subversivo. Mal sabiam que ele, na verdade, era anar-
tinha idade para isso. quista, livre e libertário.
Não sei se foi nessa mesma revista que vi, mas me lem- O trote na ECA era uma semana com apresentação de
bro de um faroeste em formato de quadrinho – balõe- atividades artísticas e de palestras de conscientização
zinhos contando a história e os diálogos, as imagens aos calouros. Nesse contato com os veteranos, tivemos
sendo os fotogramas do filme. a noção da importância da pessoa de Paulo Emílio, e a
importância de reagirmos à prepotência de um regime
atroz. A paralisação da Escola deu resultado, e ele foi
recontratado. E a importância de um posicionamento
Amarcord político justo e íntegro ficou impregnada em mim.
Não me recordo qual foi o primeiro filme a que assisti. Paulo Emílio Sales Gomes era como um sol aberto às 8
Mas consigo sentir no corpo a memória da sala cheia horas da manhã. As suas aulas me lavaram os olhos e
de crianças (como eu) berrando e correndo, reagindo me trouxeram a essência do Cinema, que é a Vida. Trou-
e interagindo com as imagens da tela. Até hoje, me xeram-me a consciência do que é a responsabilidade e o
emociona o momento em que as luzes se apagam para vínculo do fazer cinema com o cotidiano e com a realida-
começar a projeção de um filme. Mais tarde, quando de de um país. Ele nos trazia a história, com os primeiros
compramos a primeira TV, lembro-me que só assistia a filmes, os clássicos de Humberto Mauro a Mário Peixoto
filmes-seriados e de longa-metragem. – a produção recente comercial ele nos fazia assistir nas
salas de cinema e depois discutíamos na sala de aula.
Na adolescência, não sei se foi presente de aniver- Assistíamos de Nelson Pereira dos Santos, Glauber
sário ou de Natal, mas um dia ganhei uma máquina Rocha, Paulo Cezar Saraceni às pornochanchadas.
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Bang bang / Blablablá / Jouez encore, payez encore / muito especial para mim naquele momento: Umberto
Crônica de um industrial / Lilian M / Matou a família Martins. Um gênio, um vulcão de criatividade e paixão
e foi ao cinema / O bandido da luz vermelha cinematográfica, que me iluminou o ofício da monta-
gem – antes de qualquer coisa, é preciso paixão e en-
Mas havia também uma produção contemporânea à trega. Além de tudo, um amigo generoso e um exemplo
qual ele deu um espaço que os feudos de poder do cine- profissional. Simultaneamente, continuei montando os
mão brasileiro bloqueavam. A esses filmes eram veta- curtas dos meus amigos. Muitos filmes.
das as fontes de financiamento e as portas de exibição.
As mesmas perguntas – curta de Joel Yamaji. Continua-
Paulo Emílio emprestava as cópias e as exibia para mos até hoje a amizade e a interlocução iniciadas na
nós na sala de aula, muitas vezes acompanhadas de ECA. Monto seus filmes e nos encontramos com fre-
conversas com os realizadores. E foram esses filmes e quência para “passar o mundo a limpo”.
seus autores – principalmente Andrea Tonacci, Carlão
Reichenbach, Luiz Rosemberg Filho, Julio Bressane e Nós de valor, nós de fato – Denoy de Oliveira me fazia rir
Rogério Sganzerla –, com as suas inventividades, ener- o dia inteiro. O seu bom-humor era contagiante, e o seu
gia, rebeldia e sinceridade, que me deram um norte e olhar generoso e humano para com os desvalidos era
uma profunda conexão com esse jeito de estar no mun- comovente. Ficamos muito amigos e eu carrego essa re-
do. Me fizeram entender que mais importante que o lação muito próxima até hoje com a atriz Maracy Mello,
ponto de chegada é a busca. sua doce esposa. Com esse filme, fiz a minha primeira
viagem à Europa.
Tínhamos também as aulas específicas: história do ci-
nema mundial, roteiro, fotografia, som, direção, produ- Ôrí – trabalho de anos, dirigido por Raquel Gerber, que
ção, animação e montagem. deixou uma amizade eterna e uma cumplicidade. Seu
pensamento é amplo, livre e profundo: filosofia e poe-
Foi muito importante para mim ter aprendido todas as sia, onde nada é gratuito. Fizemos belos trabalhos jun-
outras áreas da realização cinematográfica até chegar tas, e estamos prontas para os que vierem. Sabemos
à montagem. No primeiro momento, recuei, achei que que contamos uma com outra.
não daria conta de todas as operações necessárias em
uma moviola, reconhecendo a minha falta de coordena-
ção motora. Depois, resolvi encarar e me enfiava horas
a fio nas salas de montagem (que ficavam abertas o dia Alma corsária
todo). Organizei todas as salas, enquanto me familiari-
zava com o funcionamento da moviola. Gostei. Um dia me tornei montadora de longa-metragem. O
primeiro longa que montei, sozinha e em completo,
E, quando tive o conhecimento e o entendimento do foi o Alma corsária – um presente inesperado. Carlão
trabalho e da função da montagem dentro de um filme, Reichenbach fazia parte daquele grupo de realizadores
fui fisgada totalmente. Achei a minha praia, mas todo que tinha me tocado e inspirado profundamente nas
o aprendizado das outras funções me serve até hoje, é aulas do Paulo Emílio, e eu seguia todos os seus tra-
vital e complementa meu trabalho de montadora. balhos. Bastava saber que ele ia filmar para ficar feliz.
Montei vários curtas na Escola e, ainda durante o curso, Evidente que seria um sonho montar um filme dele,
fui indicada pelo professor de Fotografia, Chico Botelho, mas eu nunca verbalizei esse desejo para ninguém,
para o trabalho de assistência de montagem em um nem para mim mesma. Além disso, eu sabia que ele
longa-metragem. Terminei o curso e continuei fazen- trabalhava com o montador e produtor Éder Mazzini e,
do outros trabalhos de assistência. Um montador foi por uma questão ética, esse desejo morria no segundo
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ENTREVISTA
ELIZA CAPAI E O CINEMA que nos desterritorializa em nossas essências, nos ter-
ritorializa em nossos incômodos. Esse “vai e vem” (tão
COM MULHERES longe e aqui) de sentimentos produz, por um lado, o
estranhamento, o racismo; por outro, a aproximação
pelo gênero1, que nos permite enxergar um problema
de pertencimento que, embora carregue o peso da cor,
transcende raça e etnia por nos identificarmos como
mulheres, muito embora as discussões sobre femi-
nismo e feminismo negro ainda não tenham chegado
a jornalista e cineasta Eliza Capai já percor- àquelas mulheres de Dogon da forma como as estabe-
reu mais de 25 países dirigindo documentários com lecemos no Ocidente.
temáticas sociais e de gênero. Em 2010, foi para o con-
tinente africano, o que culminou em seu longa-metra- O sonho de ser mãe, carregado pelo afeto e diálogo,
gem Tão longe é aqui (2013), com histórias de mulheres em oposição ao desejo da não maternidade, a infelici-
que protagonizam e ressignificam o contexto em que dade ao ver as mutilações e violências, e o desgosto da
vivem. Sob a ótica de uma narradora viajante, determi- condição da vida de algumas meninas. O tema aparece
nada e curiosa, uma carta é enviada para o futuro, para por meio da carta e das cenas filmadas, que usam a
sua filha, com a pretensão de compartilhar essas his- água como recorte. O mar, as ondas, a profundidade
tórias. O longa tensiona o limite entre o documentário e a maternidade em meio a cores e sons tranquilos e
e o road movie. Tão longe é aqui perturba a memória equilibrados resguardam os diálogos travados com sua
existente, permitindo a criação e o resgate de momen- “filha”. Sua intenção é contar a ela sua experiência e
tos e sensações com que as mulheres espectadoras o mundo vivenciado sob a ótica daquelas mulheres. A
conseguem se identificar. convivência com outras meninas e outras mães é rela-
tada pela cineasta por meio da carta como um gênero
No Mali, a cineasta é comparada a uma boneca quan- textual, já que essa forma de linguagem representa um
do crianças negras a identificam com o único brinquedo modo de interação muito íntimo e particular.
que possui pele clara. As filmagens na Etiópia desvelam
os sonhos ao mesclar tabus sociais e enfrentamentos. O longa estreou no Festival do Rio, onde recebeu o prê-
Entre os Dogon, foi vista como sendo a colonizadora. “A mio de Melhor Filme na Mostra Novos Rumos, e atual-
diferença entre eu e você? Você é branca.” – diz Hawa. mente é exibido pelo Canal Curta.
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Tão longe é aqui
FILMECULTURA Como foi a experiência da viagem pelo Você acha que seu trabalho se enquadra em algum mo-
continente africano? O que sentiu durante a conversa vimento recente do cinema brasileiro, considerando a
com aquelas mulheres, especialmente no que se refere forma independente de produção?
às diferenças e proximidades com as mulheres do Mali? Adoraria que me encaixassem! Os críticos criam esses
ELIZA CAPAI Essa viagem me pirou. Fui com um obje- movimentos, mas meu cinema é, sem dúvida, indepen-
tivo muito diferente daquele proposto. Minha família dente. Em relação à viagem para a África, consegui ven-
tem origens portuguesa e italiana. Minha bisavó era ne- der uma série para o canal GNT, em forma de matérias.
gra, descendente de um relacionamento de um escravo Fiquei lá durante sete meses e, quando acabou o di-
com uma índia, então, fui com essa visão de origens e nheiro, voltei. Depois, fiz um financiamento para fazer
pertencimento do nosso país. Mas, quando cheguei lá, o filme, então, é um filme “ultra” independente. Sinto-
fui para lugares nos quais as pessoas não tinham refe- me encaixada nesse movimento que as novas tecnolo-
rências do que é Brasil. Como também não havia televi- gias permitiram. Na faculdade, era impossível pensar
são nesse vilarejo em Dogon, não se tinha ideia de onde que ia fazer um longa sozinha, porque era muito caro,
ficava o país. Quando dizia “sou do Brasil”, eles imagi- e hoje consegui fazer com uma câmera comprada por
navam que Brasil ficava na Europa, junto da França. meio de um programa de TV.
Como é uma mulher Dogon? Qual a diferença entre nós? Como surgiu a ideia de reunir o material e contar a histó-
Essas são perguntas baseadas em um modelo ociden- ria daquelas mulheres?
tal. Essas perguntas são completamente descoladas da- Ao pegarmos o material para fazer o filme, vimos que
quele lugar. Elas fazem parte do nosso mundo, não do era um material muito diverso, que tentava apresentar
mundo delas. quem eram aquelas mulheres e as possibilidades de ser
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ARTIGO
foto: divulgação
Minha mãe é uma peça 2
TESTES DE REPRESENTATIVIDADE:
A MULHER NOS SUCESSOS DE BILHETERIA BRASILEIROS
ao ser convidada para ir ao cinema, uma ami- As perguntas parecem excessivamente simples, e se
ga diz à outra que só assiste a filmes que atendam a poderia pensar que é fácil filmes passarem no teste,
três critérios: “Existem ao menos duas mulheres no fil- mas na realidade não é assim.
me, e elas têm nomes? Elas conversam entre si? Elas
conversam entre si sobre algo que não seja homem?”. Uma análise de 242 filmes da lista Top 250 do IMDb2
revela que somente 79 filmes (32,65%) passam nas
Este diálogo aparece, em 1985, na história em quadri- três perguntas. A lista, que engloba filmes de 1921 a
nhos Dykes to watch out for – The rule1, escrita por Ali- 2010, permite ver que os números melhoram um pouco
son Bechdel, baseada em uma ideia de sua amiga Liz no decorrer dos anos. A representação das mulheres no
Wallace. A partir dessas perguntas, foi elaborado o Teste cinema, porém, ainda é muito pequena. Dos 7.320 fil-
Bechdel-Wallace, conhecido também como a Escala ci- mes da base do site Bechdel test, 4.208 (57,5%) foram
nematográfica Mo, que é o nome de umas das persona- aprovados; 736 (10,1%) passaram nas duas primeiras
gens da comic story. Desde então, passou a ser um teste perguntas; 1.619 (22,1%) passaram na primeira pergun-
utilizado para avaliar a presença de mulheres em filmes. ta; e 757 (10,3%) não passaram em nenhuma pergunta.
Justamente pelos resultados surpreendentes – negati- tem só para serem pares românticos de personagens
vamente – deste teste, apesar do seu caráter simples, homens ou são realmente competentes no que fazem?
surgiram outros medidores que tentam avaliar a repre-
sentação das mulheres nos filmes. Em seu estudo Os Já o Teste Barnett inclui a análise dos personagens
testes que tratam da representatividade de gênero no masculinos para a avaliação dos femininos e busca
cinema e na literatura: uma proposta didática para pen- desmistificar o estereótipo do gênero masculino ligado
sar o feminino nas narrativas, publicado em 20163, as à violência. As perguntas do teste são: “O filme possui
pesquisadoras Carolina Magaldi e Carla Machado ana- pelo menos duas mulheres e dois homens, e o assun-
lisaram três outros testes: o Teste Mako Mori, o Teste to do diálogo entre eles vai além de falar sobre o sexo
Tauriel e o Teste Barnett. Esses testes, ainda que menos oposto? Se há violência, ela é retratada com humor ou
difundidos e populares, têm o mérito de analisarem a falta de seriedade; ou como normal ou aceitável; ou
participação feminina sob diferentes óticas. ainda como se alguém merecesse a violência?”. Nes-
te segundo questionamento, para que o filme passe, é
O Teste Mako Mori tem o objetivo de avaliar a constru- necessário que a resposta seja negativa, demonstran-
ção narrativa da mulher e sua independência em rela- do que o filme não utiliza a violência de forma gratuita,
ção aos personagens masculinos. O teste foi batizado sem a contextualização na narrativa.
em homenagem à personagem Mako Mori do filme
Círculo de fogo. O filme tem 56 atores, sendo apenas Esses três testes possibilitam uma apreciação do pa-
três mulheres, e é reprovado no Teste Bechdel, porém pel da mulher nos filmes, analisando-a como persona-
a personagem feminina em questão segue uma linha gem, permitindo avaliar se a mulher não está presente
dramática que foge dos estereótipos, representando somente para ser amante ou em função do arco narra-
uma mulher forte. tivo do homem.
Nesse teste, para que o filme seja aprovado, é preci- Com o intuito de compreender as diferentes esferas ana-
so que tenha, pelo menos, uma personagem feminina lisadas em cada teste de representatividade no contex-
com arco dramático que não seja apoiado na narrativa to do cinema brasileiro, realizei o estudo A mulher nos
de um homem. filmes nacionais, e apresento uma síntese dos resulta-
dos com exclusividade para a Revista Filme Cultura.
Para analisar o papel da mulher sob outra esfera, sur-
giu o Teste Tauriel, nomeado em homenagem à elfa O objeto de estudo foram as dez maiores bilheterias do
de mesmo nome presente na trilogia cinematográfica Brasil de 1995 a 20164, que, juntas, atingiram mais de
– pois não aparece nos livros – de O hobbit. Para que 60 milhões de espectadores. Além das análises desses
um filme passe no Teste Tauriel, ele deve responder filmes em cada teste de representatividade, foram cru-
positivamente aos questionamentos: “Existe persona- zados os dados de ficha técnica e de elenco principal,
gem mulher? As personagens mulheres existiriam se para que fosse possível avaliar a participação das mu-
fossem homens?”. Ou, em outras palavras: elas exis- lheres também atrás das câmeras.
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RESULTADOS DOS TESTES DE REPRESENTATIVIDADE
DOS DEZ FILMES BRASILEIROS DE MAIORES BECHDEL- MAKO
GÊNERO ANO TAURIEL BARNETT
BILHETERIAS DE 1995 A 2016 WALLACE MORI
7. minha mãe é uma peça comédia 2013 aprovado aprovado aprovado aprovado
9. minha mãe é uma peça 2* comédia 2016 aprovado aprovado aprovado aprovado
10. até que a sorte nos separe comédia 2013 aprovado reprovado aprovado reprovado
TESTES
Dos dez filmes analisados, 70% passam no Teste
Bechdel-Wallace, indicando que as mulheres falavam
de assuntos variados; no entanto, apenas 30% passam
no Teste Mako Mori, devido ao fato de as personagens
femininas ou não terem arco dramático, ou de seus ar-
cos serem baseados no masculino.
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REFERÊNCIAS
HELENA
IGNEZ
ATRIZ, DIRETORA, PRODUTORA E ROTEIRISTA (1942-)
O filme
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Filmo todo mundo, especialmente você ca cena de carinho, quando a mãe cochila vendo TV e
a filha a beija, não vemos o rosto, nem o gesto. É como
Natalia, a mãe, foi a palavra que se fez verbo na boca e se o mistério desse relacionamento fosse tamanho que
nos filmes de Chantal. Nos filmes sobre imigração (D’Est não nos coubesse entendê-lo.
e De l’autre côté), na negação velada da tradição judaica
e na falta de um solo para chamar de seu (Là-bas), na roti- Virginia Woolf, em Um teto todo seu, falava sobre “o fato
na excruciante e lenta da dona de casa (Jeanne Dielman), de que os romancistas têm um jeito de fazer-nos crer que
na afronta aos “bons modos de moça” (Saute ma ville), os almoços são invariavelmente memoráveis por algo
Natalia como que observa, pela janela, a filha a brincar muito espirituoso que se disse ou muito sábio que se
na rua. Chantal narra como quem ergue a voz para tentar fez”1. Em No home movie, muitas cenas de afeto e intimi-
acertar o passo com a mãe, o que os filhos fazem quando dade entre mãe e filha surgem em pequenos momentos,
tentam desafiar os pais. Desafiar revelado no palavrea- como quando se sentam à mesa para almoçar e a má ali-
do da mãe, que afagava após apedrejar, nas cartas lidas mentação da mãe é motivo de briga, sendo usada como
por Chantal (num tom monocórdio e sem muita emoção) leitmotiv para que se desenrole uma conversa sobre a
em News from home. Em 2015, o silêncio. Não se narra o negação do pai de Chantal ao judaísmo e aos campos de
tempo que escorre entre os dedos, se vive. Chantal tenta concentração. É tempo de descobertas: a mãe conta coi-
gravar a imagem da mãe, mesmo já debilitada e desejan- sas que até então a filha não sabia e vice-versa. A mãe diz
do ardentemente dormir. Ao se apoiar em uma espécie para a empregada que não quer comer, nem preocupar a
de pufe, cai. Cai, mas não derruba a câmera. Continua a filha com uma ligação recebida. Ambas consentem no se-
filmar. Há uma consciência do gravar a imagem no tempo gredo. Segredo esse que Chantal só deve ter descoberto
antes de gravá-la na memória da câmera. na hora de editar o filme. A refeição é o momento sagra-
do. É a partilha do pão e da palavra. É o momento em que
A composição dos quadros é milimétrica e precisa, a distância encurta, no qual há maior frontalidade entre
como nas obras de Edward Hopper, nas quais as mulhe- os seres. Todos unidos em um único propósito.
res, imersas em si mesmas, olham para janelas e ruas
como quem busca sentido no mundo a partir de sua A distância diminui quando Chantal volta para casa.
própria alma. Já Chantal busca, na clausura do aparta- Mas a distância entre a vida e a morte da mãe também
mento, o retorno incessante ao ninho, uma forma de se diminui. Não há mais tempo para estar longe. A mãe
aproximar da mãe, de fazer dela seu objeto mais uma dorme, como fazem os idosos quando estão doentes;
vez – desta vez não por meio de narrações, de metáfo- é como se a consciência divina lhes dissesse: “Não há
ras. É o ser Natalia presente. mais tempo”. Temos uma imagem de uma câmera na
mão, com a tela em branco e o barulho da rua. E volta-
mos ao vento barulhento do início, que cessa.
É o que responde Chantal para a mãe quando esta lhe Je suis partie
pergunta sobre a câmera mirada para a tela do com-
putador, durante uma conversa pela internet. “Filmo Em Là-bas (2006), Chantal afirma que as mulheres se
para mostrar que o mundo é pequeno”, diz, na sequên- suicidam em todas as partes do mundo, numa espé-
cia. Mesmo assim, a distância física entre as duas é cie de exílio. “Mulheres que sonhavam com algo. Com
perceptível – por mais que a mãe diga que quer tomar o quê? Sem dúvida não sabiam”. Fazia poucos meses
a filha nos braços e niná-la, quando Chantal volta para que Natalia tinha deixado a filha. O testamento. E ainda
casa não há cena de abraços ou beijos efusivos. Na úni- não há resposta para a sua pergunta.
REFERÊNCIAS
1. WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Tradução de Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Círculo do Livro, 1990, p. 15.
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ARTIGO
REPRESENTAÇÃO DE GÊNERO
EM O SOM AO REDOR
E BOA SORTE, MEU AMOR
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foto: pedro sotero
Boa sorte, meu amor
O Barão chegou lá na região por volta de mil oito- dormindo no quarto dos fundos. A mulher oficial do
centos e tal. Pode parecer estranha essa história, Barão só tinha parido um filho dele, o que era uma
mas isso aconteceu há menos de 200 anos atrás. vergonha para a época. E ela sabia que os filhos da
Naquela época os barões costumavam estuprar indiazinha eram filhos do Barão. Mas ela ficava lá,
as indiazinhas escravas e o método contraceptivo no silêncio. O único empecilho real de Dona Dinha
era o enforcamento das escravas logo após o sexo. era esse, a mulher do Barão, porque ela já estava na
Um monte de indiazinha de onze anos foi pro saco casa, dominando pela cozinha. Ela esperou, assim,
assim. E o Barão não era diferente, ele tinha uma uns 30 anos até que a mulher oficial do Barão adoe-
indiazinha. Que depois ficou conhecida com Dona ceu e morreu. Com 70 anos de idade. No outro dia
Dinha, que, ao invés de reagir ao estupro, cedia e após o enterro, Dona Dinha já “tava” dormindo na
dava muito amor ao Barão, como nenhuma outra cama oficial, na casa. Mulher é um bicho muito pa-
mulher havia dado. O Barão a mantinha em seu ciente, Dirceu. E quem é paciente, sempre consegue
galpão à sua disposição, trancada. E o povo ficava o que quer. E a ex-índia, ex-empregada e ex-escrava
no buchicho: “Por que que não morreu ainda?”. Ela era a sua tetravó.
teve um, dois filhos com o Barão assim, no entanto,
ela “tava” lá, isolada. Depois de um tempo, alguns A indígena teve que se submeter ao estupro e viver
anos, ela já tinha cinco filhos com o Barão. Mas aí ti- trancada em um galpão antes de, teoricamente, con-
nha rolado um avanço na relação, ela já era empre- seguir “subir de posto” e passar a ter o direito de ser
gadinha, já morava dentro da casa, cozinhando e empregada da casa, além de ter que esperar mais 30
anos para ser assumida como esposa. E é essa mu- res, que não conseguem dominá-la na história. A par-
lher que dá origem aos herdeiros do lugar. O filme a tir da metade do filme, no momento em que Dirceu é
coloca como uma oportunista, quando, na verdade, o foco narrativo e que Maria está desaparecida, ou-
é questão de sobrevivência aos abusos, estupros e tras personagens femininas querem pertencer a ele. É
assassinatos cometidos pela elite latifundiária. Ela se como se Maria não tivesse o direito de abandoná-lo e,
submete a ficar mais de 70 anos perto de seu agressor assim que o faz, outras querem tomar a sua posição.
para não morrer e para que seus descendentes conse-
guissem ascender socialmente, para que sua história
não se repetisse com suas filhas e filhos.
Sophia e João
Maria não desiste de seus sonhos, ela tem essa op-
ção, muito diferente de uma mulher indígena duran- Em O som ao redor, João também não tem voz ativa dian-
te o período colonial. Ela coloca em primeiro lugar o te de seu avô Francisco. Esse filme também traz uma cena
sonho de ser uma grande pianista. Ela não aceita as do patriarca durante uma refeição, perguntando quando
consequências impostas por seu abusador. Ela vai o casal vai se casar. Mesmo João falando para o avô ir
embora e o filme deixa de mostrá-la porque ele não com calma, quem tem a palavra final é Sophia – é ela
consegue controlá-la. “Ele”, que podemos pensar quem diz “não” à pressão e ao autoritarismo. Nas duas
como sendo Dirceu, como sendo também o cineasta, obras, os “chefes” das famílias pressionam as mulheres,
o roteirista, a equipe, o personagem e os espectado- e não os seus herdeiros, a aceitarem o casamento.
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foto: divulgação
O som ao redor
João é órfão e dá a impressão ao espectador de que é a herança que lhe permite continuar na classe privi-
é mais independente que Dirceu. Ao poucos, porém, legiada e exploradora, de forma atualizada agora para
percebe-se que depende financeiramente dos traba- o meio urbano.
lhos que faz para o avô. Reproduz e atualiza a história
de exploração praticada por sua família no engenho. E
esse personagem não apresenta uma quebra do com-
portamento elitista, mesmo após a jornada de autodes- Juliana e Bia
coberta ao lado de Sophia.
No curta-metragem Eletrodoméstica (2005), Mendon-
Sophia se destaca dos demais personagens, pois, as- ça Filho desenvolve a personagem Bia, que será reto-
sim como Maria é o gatilho para a jornada de herói mada de modo mais trabalhado em O som ao redor.
de Dirceu, Sophia é o de João. Ela é o motivo para o A princípio, essa personagem é construída de forma
caminho de autoconhecimento social dele, levando-o discreta. Tenta-se mostrar as frustrações de uma
a visualizar suas heranças. Ela questiona a classe so- dona de casa e as saídas para contornar essas angús-
cial a que João pertence, o trabalho dele e sua relação tias. Ela está casada, é mãe de um casal de filhos e
com a família. Ela causa um certo constrangimento ao apresenta maneiras inusitadas de contornar o tédio.
perguntar se ele é rico, contribuindo para que João A personagem surpreende em relação ao que se pen-
perceba e reconheça sua posição social. Ela o leva sa socialmente de uma “mulher/classe média/dona
para explorar os arredores do engenho. Esse espaço de casa/mãe”.
A cena que começa a quebrar esses estereótipos é figuras femininas como um recurso narrativo para a jor-
aquela em que Bia recebe a visita do entregador de nada do herói, com uma diferença: em Boa sorte, meu
água, sugerindo desembocar no que poderia ser um amor, se abusa tanto da apropriação do corpo da mulher
clichê pornô da “dona de casa infeliz traindo o marido que ela acaba fugindo do filme, não só de Dirceu; já em
com um homem pertencente a uma classe social mais O som ao redor, o relacionamento acaba, as vidas andam
desfavorecida”. Mas ele tem outro papel em sua vida: e João continua na mesma posição de inércia social.
é o delivery de sua maconha. A maconha é mais uma
peça para o “desvio de conduta” de Bia, que chega ao A contraposição entre Bia e Juliana mais uma vez evi-
auge em uma cena na qual ela se masturba encostan- dencia a diferença discursiva dos dois filmes. Em Boa
do-se à máquina de lavar roupa. Ela usa um símbolo do sorte, meu amor, o filme vai quebrando, humilhando
trabalho doméstico, fatalmente ligado ao trabalho de e diminuindo as personagens femininas, inclusive Ju-
lar, e subverte-o para se dar prazer. liana, sendo inconcebível uma mulher bem sucedida e
feliz. Em O som ao redor, há um aprofundamento nas
Um ponto essencial que evidencia as diferenças discur- histórias e vivências das personagens, e Bia é colocada
sivas entre os filmes é a diferença entre Bia e Juliana, como um símbolo da quebra dos padrões.
esta última da obra de Aragão. O marido de Juliana,
amigo de Dirceu, conta a ele sua concepção de família.
Ele se sente uma criança, com segurança e o respaldo Texto selecionado no Edital Filme Cultura Edição 63
da família. O que poderia ser uma visão feminista ape-
*LARA BARQUETA BIONE é formada em Audiovisual pelo
nas reproduz uma visão patriarcal de família, na qual
Centro Universitário Senac de São Paulo. Este artigo é fruto
um dos membros tem que prover e o outro ser provido. do trabalho de conclusão de curso Identidades culturais
Posteriormente, Juliana conta para Maria como está sa- construídas em ‘O som ao redor’ e ‘Boa sorte, meu amor’.
tisfeita com a vida, pois ganha bem e tem um marido Estuda e atua em diversas áreas: audiovisual indígena, cultura
que está aprendendo a amar. O filme constrói uma mu- imigrante, cultura do sertão, gênero, câmeracorpo, vídeo-carta,
lher autoritária, elitista e fria. Essa personagem e Bia cineclubismo, desenho sonoro e cinema pernambucano.
são interpretadas pela mesma atriz, Maeve Jinkings,
porém são construídas a partir de perspectivas de fe-
minilidade e liberdade opostas.
REFERÊNCIAS
Os personagens masculinos dos dois filmes encontram-
se amarrados aos velhos laços de poder. Já as femininas 1. MULVEY. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER.
estão em processos de fuga, de rebelião e ruptura com A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Ed. Graal,
essa elite latifundiária, que as privilegiava por serem 1983. p. 444.
brancas, mas as mutila e engessa por serem mulheres.
Em diferentes proporções, percebemos o uso dessas 2. BOETTICHER apud MULVEY. Ibid., p. 447.
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UM FILME
VAZANTE
de Daniela Thomas
MANGUE BANGUE DO
BRASIL ESCRAVOCRATA,
VAZANTE EXPÕE O FINO
DA BOSSA NARRATIVA
DE DANIELA THOMAS
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outros lugares estéticos) sua grandeza. Uma grandeza “Eu fiz um filme sobre o amor, e o amor não se verga sob
que lacrou para o longa elogios em sua passagem pela ventos políticos, o amor é e está quando quer”. Vazante
Berlinale, em fevereiro de 2017, e dois Candangos no é, também, uma história de amor, que chega num mo-
próprio certame de Brasília: saiu de lá com os troféus mento de pleitos sobre lugar de voz, sobre representa-
de atriz coadjuvante (Jai Baptista) e direção de arte ções que não permitem alteridades. Normal ser recebido
(para Valdy Lopes). assim: é de sua natureza. É da vocação autoral de uma
realizadora cuja obra cinematográfica flerta com o trági-
Seria leviano chamar de “ataque” as intervenções de co, vide Linha de passe (num gol esperado que não se
parte do público, feitas durante o debate do longa-me- vê), vide Terra estrangeira (num idílico esfumaçado em
tragem, em especial por uma variável de “legitimidade” vapor barato), vide o belo Insolação (no sucateamento
trazida por atores, críticos e realizadores negros que se da utopia). Foram filmes feitos em parceria (dois com
incomodaram com o olhar adotado pela diretora. Mais Walter Salles e o último com Felipe Hirsch), mas com as
leviano ainda seria desqualificar essas intervenções pelo entranhas dela amalgamadas em cada um deles.
tom por vezes “exaltado” (iracundo) de muitas delas. Va-
zante é um filme sobre paixões e Paixões – sobre amores O único cuidado, após o bem-vindo debate deste 17
e crucificações. Logo, é normal que paixões de igual ou de setembro em Brasília – um dia após a exibição do
maior pujança do que as que ele expõe se façam notar. filme no Festival –, é não deixar que as cobranças e
os senões esvaziem a importância do trabalho de Da-
Quando lançou Lili Marlene (1981), o alemão Rainer niela. E isso não apenas por suas múltiplas virtudes de
Werner Fassbinder (1945-1982) foi acusado de estar ali- artesania, de técnica, mas por sua radicalidade ética
mentando a alienação cinéfila numa era de conversão na denúncia da erosão moral – a de ontem e a de hoje.
da História, de espasmos pós-modernos. Sua resposta: Existe nele, à parte da cartografia de práticas escra-
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http://piaui.folha.uol.com.br/o-movimento-branco/
foto: divulgação
Camila Freitas
criamos o Coletivo das Diretoras de Fotografia do Brasil outros dois grupos de mulheres fotógrafas foram criados:
(DAFB), que organiza as profissionais do mercado, forta- o Fotógrafas Brasileiras e o Mulheres da Imagem (YVY).
lece e estimula a participação feminina neste segmento,
cria um espaço para discutir nossas linguagens, técnicas Em agosto de 2017, o DAFB realizou o workshop gratuito
de iluminação, movimentos de câmera e equipamentos, Correção de Cor Para Mulheres da Direção e Equipe de
entre outros assuntos, incluindo as questões que rela- Fotografia, uma iniciativa de Sofia Franco, Diretora Ge-
cionam gênero, sexualidade e cinematografia. ral e Supervisora de Pós-Produção da Quanta Post, em-
presa de pós-produção de imagem de São Paulo, par-
O DAFB nasceu em junho de 2016 em reação a uma pu- ceira do evento. O coletivo convidou mulheres diretoras
blicação, no site de uma das maiores produtoras bra- e assistentes de fotografia, operadoras e assistentes
sileiras, que apontava os novos talentos da fotografia de câmera, para participar de uma aula de quatro horas
nacional. A matéria apresentava o perfil de 19 homens ministrada pela colorista Luisa Cavanagh. Inicialmente
brancos, praticamente todos do eixo Rio-São Paulo. Ne- a ideia era receber duas turmas de dez alunas. Com a
nhuma mulher, nenhum negro. Foram feitas várias críti- alta procura, participaram 40 mulheres, que acompa-
cas à postura da produtora, que afirmou que tinha feito nharam os processos de correção de cor e criação de
buscas, mas não encontrara nenhuma jovem diretora LUTs (Look Up Table, ferramenta digital usada nesses
de fotografia no mercado. processos) em materiais produzidos por elas mesmas.
A partir daí, várias diretoras de fotografia, participantes No mesmo ano, ocorreu outra atividade, desta vez na
do grupo Mulheres do Audiovisual Brasil, começaram a Bucareste Ateliê de Cinema. Quem comenta é Taís Nar-
se comunicar com o intuito de criar uma lista de mulheres di, diretora de fotografia, paulistana e coordenadora do
atuantes no mercado e aprofundar a luta para quebrar o curso de Direção de Fotografia da escola:
preconceito e a invisibilidade que envolvem a presença
de mulheres na cinematografia. Em poucos dias, o coleti- Na minha formação, nunca senti falta de ter mulheres
vo estava formado e o site foi lançado em 8 de março de como modelos profissionais. Na faculdade (Escola de
2017, com cerca de 20 diretoras de fotografia de quatro Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo,
cidades brasileiras. Em seguida, abrimos o site para as ECA-USP), tive uma mulher, Kátia Coelho, como pro-
demais profissionais das equipes de fotografia, da assis- fessora de fotografia. Quando entrei no mercado de
tência de câmera à coordenadoria de pós-produção. trabalho, participei de equipes lideradas por mulhe-
res, como a diretora de fotografia Heloísa Passos ou
Hoje somos 92 mulheres (cis e trans) e homens trans, as assistentes de câmera Fernanda Tanaka e Janice
em 18 cidades: Belo Horizonte (MG), Brasília (DF), Ca- D’Ávila (hoje diretoras de fotografia). Mas, aos pou-
choeira (BA), Campinas (SP), Campo Grande (MS), Curi- cos, fui percebendo que eu tinha sido privilegiada e
tiba (PR), Florianópolis (SC), Goiânia (GO), Jatobá (PE), que muitas das minhas colegas não tinham tido essa
Joinville (SC), Londrina (PR), Mariana (MG), Porto Alegre experiência: a maioria delas tinha feito cursos de cine-
(RS), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA), São ma com professores machistas e que privilegiavam os
Carlos (SP) e São Paulo (SP). O grupo no Facebook já alunos homens. E elas tinham maior dificuldade em
reúne mais de 400 mulheres cis e trans e homens trans. lidar com o machismo presente nos sets.
A invisibilidade das mulheres na fotografia não é prerroga- Por isso, quando tive a oportunidade de coordenar
tiva do cinema. Seis meses após o lançamento do DAFB, o curso da Bucareste, me preocupei em oferecer
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modelos femininos aos alunos. No curso, quase to- Ao cursar a Universidade Federal Fluminense (UFF),
das as aulas são ministradas por mim ou por profes- tive a sorte de ter Andrea Capella como professora.
soras convidadas, e a experiência é ótima. As alunas Andrea influenciou toda uma geração de fotógrafas
sentem-se visivelmente mais livres para participar como a Flora Dias, Camila Freitas, Nina Tedesco, Thaís
quando é uma mulher que lidera o ambiente. Os alu- Grechi, Juliane Peixoto, Mika Nobre, entre outras. Foi
nos também participam e percebo que criam admi- preciso sair da faculdade para me dar conta de que lá
ração e respeito pelas professoras, o que é positivo vivíamos numa bolha, na qual era natural ter mulheres
para empoderar as mulheres com quem eles irão lidando com câmeras e refletores (eletricidade). Hoje
trabalhar no futuro. percebo que, inconscientemente, adquiri posturas
masculinas, seja no trato pessoal como na maneira de
Na segunda edição do curso, tivemos também a opor- me vestir. E percebo que várias outras mulheres igual-
tunidade de oferecer duas bolsas de estudo para mu- mente comentam terem assumido a mesma postura
lheres negras participantes do ‘Empoderadas’. como estratégia para lidar com os colegas, seja nas
equipes internas de câmera, elétrica ou maquinária,
Cauê Monteiro, assistente de câmera carioca, fala sobre como no set em geral.
a dificuldade das pessoas trans no mercado de trabalho.
Outra iniciativa que vale destaque é o site
Creio que hoje, final de 2017, eu seja o único homem http://fotografasdecinema.com.br/, criado a partir da
trans com formação em cinema e fotografia no Rio de pesquisa Mulheres atrás das câmeras: inícios de uma
Janeiro. Isso me exclui de qualquer estatística existen- trajetória, de Nina Tedesco, diretora de fotografia e
te e de muitas oportunidades. Não me enquadro no professora da UFF. O site é um banco de dados em per-
grupo feminino, menos ainda pertenço ao masculino manente construção, que reúne estatísticas e gráficos
dominante das equipes de fotografia. Um fotógrafo sobre as assistentes de câmera, operadoras de câmera,
sem equipe. Uma foto sem fotógrafo. diretoras de fotografia, loggers e video assists nacionais
e suas participações por filmes lançados desde 1981.
Bia Marques, diretora de fotografia, carioca e professora
de Cinematografia na Escola Audiovisual Cinema Nosso A dificuldade de permanência no mercado foi um dos
e na Ação da Cidadania, também comenta o assunto: aspectos discutidos no debate Quando o vento faz a cur-
va: mulheres no audiovisual, no âmbito da Semana ABC,
A importância da presença de mulheres como profes- em maio de 2017. Dentre os 175 diretores de fotografia
soras de Cinematografia é algo que demorei a me dar filiados à Associação Brasileira de Cinematografia (ABC),
conta. Creio que essa consciência veio com a fala de apenas dez são mulheres; dentre os 11 operadores de
um aluno de operação de câmera no Senai/Laranjei- câmera, apenas duas são mulheres. Durante o debate,
ras, em 2012. Na formatura, ele me elogiou, confes- as diretoras de fotografia Wilssa Esser e Bárbara Alvarez,
sando ter duvidado da qualidade do curso já na pri- a assistente de câmera Luciana Baseggio e a diretora
meira aula, ao ver uma mulher como professora. Suas Anna Muylaert observaram a discrepância entre a ins-
palavras foram uma surpresa, pois jamais pensei que crição de mulheres nas categorias profissionais e a sua
poderia provocar medo nos alunos pelo simples fato presença na categoria filme universitário, apontando
de ser mulher. Só então me dei conta da importância que tais dados refletem a dificuldade da mulher em se
que é, para nós, mulheres, ter outras mulheres como manter na profissão. Igualmente se constatou que, com-
referência profissional. paradas aos homens, as mulheres demoram mais tempo
na transição de assistente de câmera para diretora de dentro do coletivo, trabalhando com medidas que possi-
fotografia. Outra realidade comentada foi a presença de bilitem a inserção das mulheres no mercado audiovisual
mulheres em produções documentais e de reality shows. brasileiro, mudando os números das estatísticas e dan-
O fato esconde a dura realidade: mesmo quando conse- do as boas-vindas a outras mulheres que queiram exer-
guem furar a barreira do mercado, as mulheres não têm cer essa profissão. Sem trotes e testes de uma antiga es-
acesso às produções de maior orçamento. trutura militar machista. Com paridade e generosidade.
Em outubro de 2017, o DAFB participou do Cine Fest *COLETIVO DAS DIRETORAS DE FOTOGRAFIA DO BRASIL (DAFB)
Luso Mundo, uma mostra de cinema lusófono, em Bru- é um coletivo de mulheres (cis e trans) e homens trans
xelas, na Bélgica. A mostra tem foco nas nuances do que compõem as equipes de direção de fotografia do audiovisual
universo feminino representado pelas realizadoras vi- no Brasil, criado para organizar xs profissionais do mercado
suais ou por filmes que abordem o tema. e fortalecer e estimular a sua participação nesse segmento.
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UM LIVRO
lançado pela editora nVersos, em 2014, o li- em função do marido”. Poucos anos depois, entra para
vro Norma Bengell reúne textos autobiográficos escri- o Teatro de Revista e nasce uma show-girl. Encontra-
tos pela atriz e diretora em diferentes momentos de sua mos, de passagem, outros grandes nomes femininos,
profícua e agitada vida, os quais foram organizados por como Tônia Carrero, Carmen Miranda e Elizeth Cardoso,
sua amiga, Cristina Caneca. que impressionam a jovem vedete.
A obra é dividida em oito capítulos, que oscilam em es- Em 1958, estreia na televisão com o comercial, em esti-
tilo e em formato, mas dão conta de revelar os matizes lo musical, do achocolatado Toddy, ao lado das atrizes
de “La Bengell”. A paixão e a liberdade com que escre- Márcia de Windsor e Branca Ribeiro. Em seguida, inicia
ve dispensam qualquer lógica historicista, misturando na TV Tupi, no programa semanal sobre música popular
ao relato de vida artifícios de uma obra de criação. Há brasileira, sob a direção de Abelardo Figueiredo. Seu
um tom romanesco, tão necessário ao gênero, e que ca- talento como cantora havia sido confirmado com o LP
dencia as expectativas do leitor ao longo da narrativa Ooooooh! Norma, que lhe rendera comparações com a
autobiográfica. Em dado momento, Norma, a atriz, faz cantora americana Julie London.
troça do mundo vivido e do mundo sonhado, como na
canção Cacilda, de José Miguel Wisnik. Durante o Primeiro Festival de Samba-Session na PUC
-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro),
Norma Aparecida Almeida Pinto Guimarães d’Áurea onde os padres a proibiram de cantar, enfrenta a pri-
Bengell, uma das personalidades femininas mais pul- meira polêmica de sua vida pública, estampando man-
santes da cultura brasileira, nasce no carnaval cario- chetes de jornais. Com a ajuda de artistas, acaba por
ca de 1935, de um ímpeto juvenil da jovem Maria da fim se apresentando “de tailleur, luvas e meias, toda
Glória, moça de família abastada, que abdica de tudo vestida de preto, com o corpo coberto da cabeça aos
para casar-se com o imigrante belga, afinador de pia- pés”, interpretando Vinícius de Moraes e Tom Jobim. O
nos, Christian Friedrich Bengell. show foi um sucesso.
Norma tem uma infância marcada por dificuldades fi- Nessa época, Norma tinha – e ainda teria –, inúmeros
nanceiras e pelas constantes brigas dos pais, que ti- homens orbitando a sua volta, como sputniks. Os re-
nham perdido o viço daquele amor rebelde. As obser- latos sobre seus homens são generosos, mas também
vações sagazes sobre o ambiente familiar anunciam os revoltados, e sugerem uma busca intensa por um amor
gestos e posições que, mais tarde, assumiria frente aos utópico. Nos Estados Unidos, descobre o diafragma,
relacionamentos pessoais e à vida profissional. Nesse que lhe daria liberdade, prazer e segurança nos rela-
cotidiano insosso, a menina fugia para o cinema para cionamentos. Mas, por vezes, rendia-se aos “brios ma-
sonhar. Exercitou a rebeldia no seio da família e tam- chistas” de seus amantes e, a cada cerceamento de sua
bém no colégio de freiras, para onde fora mandada liberdade sobre o próprio corpo, concluía que era pre-
pela austera avó francesa. ciso partir. “Todos os meus homens tinham essa mania
de (me) mandar escolher. Pior para eles!”
Aos 16 anos, começa a trabalhar para garantir o susten-
to próprio e da mãe, que havia se separado do marido, Da década de 1960 em diante, realiza o que considera
tornando-se manequim da famosa Casa Canadá. Que- seus primeiros papéis mais sérios, no cinema e tam-
ria ser alguém, em vez de ser de alguém, ainda que, na- bém no teatro. Impressiona na peça Procura-se uma
quela época, a mulher “nascia, crescia, vivia e morria rosa (1961), de Gláucio Gil; e é convidada para substituir
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Manifestação contra a censura, 1968 Vestido de noite, 1976
Odete Lara em O pagador de promessas (1961), de Depois de uma rápida estadia em Hollywood, resolve
Anselmo Duarte. Com acanhamento, aproxima-se de ci- voltar ao Brasil. Em Copacabana, na boate Zum Zum,
neastas ligados ao Cinema Novo, pois não se considera- ouve pela primeira vez a palavra homossexual asso-
va como uma atriz genial, mas com muito instinto. ciada a uma mulher, ao ser apresentada a Gilda Grillo,
que se tornaria sua companheira por sete anos. “Pela
Sua participação em Os cafajestes, de Ruy Guerra, em primeira vez, vivi meu lado feminino numa relação alta-
1962, provoca os setores mais conservadores do país, mente sensual. Ela foi meu idílio”.
com o “primeiro nu frontal do cinema brasileiro”. Não
bastasse a perseguição política, enfrentava, naquele Ao participar do enterro do jovem Edson Luís, em 1968,
momento, a dor de mais um aborto, questão cara a Norma se conscientiza da realidade política do país.
tantas mulheres. A intensidade como reage às frustra- Em uma manifestação, perde a aliança de casamento
ções, sobretudo as pessoais, poderia ser traduzida pe- que mantivera simbolicamente mesmo após o divór-
los versos de Bob Dylan: “she aches just like a woman, cio, e, na Passeata dos Cem Mil, ao se indignar com
but she breaks just like a little girl”. a violência de um policial, não hesita em dar-lhe um
pontapé. A partir de então, sente na carne a persegui-
Norma Bengell não passou incólume pela temporada ção política do período. São muitas as histórias, várias
vivida na Europa. Realizou vários filmes, bons e tam- em tom altamente anedótico – suas “visitas” ao DOPS
bém “classe Z, por uma questão de sobrevivência”. (Departamento de Ordem Política e Social); mais pon-
Nas passagens sobre os bastidores do cinema e seus tapés em policiais; o apoio às mães de presos políti-
jogos de aparência, paira no ar uma inquietação sobre cos; e o atrapalhado sequestro que sofrera na porta do
a permanência da cultura da violência no meio artístico hotel, poucas horas antes de ir ao teatro encenar sob a
e o silêncio que a circunda, a exemplo do recente caso direção de Paulo Autran.
Harvey Weinstein. Quanto Bengell teria a contribuir
nesse debate? A certa altura, confessa: “Hoje sei por Nos anos de chumbo, resiste, sobretudo, através do
que as mulheres, na maioria das vezes, não denunciam trabalho artístico. Sonia Reis, militante política e amiga
seus agressores”. de Norma, costumava provocá-la para aderir à luta ar-
mada, mas a atriz dizia que seu lugar era o palco. Nes-
Na Itália, conhece Gabrielle Tinti, grande amor de sua se período, encena Cordélia Brasil (1968), de Antônio
vida, com quem se casaria de tailleur amarelo, nos es- Bivar; atua em O anjo nasceu (1969), de Júlio Bressane;
túdios Vera Cruz, com produção de Walter Hugo Khouri. e produz a peça O assalto. Anos depois, após o rompi-
Com Tinti, Norma experimenta um casamento moder- mento com Gilda, Norma encontraria uma nova compa-
no: “enquanto um filmava, outro cozinhava e cuidava nheira de vida, com a qual dividiu décadas de amizade,
da casa”. Porém, em 1967, decidem pelo divórcio. afeto e lealdade.
O declínio de sua carreira começaria a partir das *GABRIELA SOUSA DE QUEIROZ é formada em História
acusações de desvios de recursos na produção de e especialista em Arquivologia. Atualmente, coordena
O guarani (1996). A polêmica fabricada e o processo o Centro de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.
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PENEIRA DIGITA
no brasil, aumentam as iniciativas, coletivos e portais de promoção, apoio
e pesquisa sobre a relação entre cinema e gênero, e, em especial, sobre a representação
e a atuação das mulheres no audiovisual. Com a premissa de divulgar alguns desses pro-
jetos, para que possam ajudar pesquisadores e interessados a terem mais informações, e,
assim, fortalecer essa rede do cinema de mulheres no Brasil, apresentamos coletivos que
partem da temática da mulher no audiovisual, com foco na promoção, realização e crítica.
13/12/17 23:47
PRETA, NERD E BURNING HELL VISIONÁRIAS
www.pretaenerd.com.br facebook.com/projetovisionarias
Espaço virtual em que é possível discutir um modo Encontros, cursos e debates sobre a produção
de consumo (“nerdiandade”) tendo em vista a executiva no audiovisual, do ponto de vista feminino.
simultaneidade dos recortes de raça, gênero, classe.
WIFT BRASIL
SÉRIES POR ELAS wiftbrasil.org
seriesporelas.com.br Sociedade cujo foco é dar suporte profissional,
Espaço on-line que adentra o universo das séries a oportunidades de networking e reconhecimento para
partir da perspectiva feminina, escrito apenas por mulheres trabalhando com cinema e televisão no país.
mulheres, voltado para o público em geral.
VALKÍRIAS
valkirias.com.br
Site sobre Cultura Pop, feito por mulheres e para
mulheres, que busca discutir música, cinema, TV,
literatura e games sob uma ótica feminista.
TEREZA
TRAUTMAN
DIRETORA (1951-)
15/12/17 00:12
PROGRAMADOR
foto: divulgação
Desventuras de um dia ou a vida não é um comercial de margarina
CINEMA DE MULHERES
NA PROGRAMADORA BRASIL O catálogo construído por meio de lançamentos
anuais, em 2008, dedicou um programa específico
às mulheres. Intitulado Olhares Femininos (Programa
enquanto uma das principais políticas públi- 102), reúne uma coletânea de curtas dirigidos por mu-
cas de difusão do cinema brasileiro, a Programadora Brasil lheres: Cartão vermelho, de Laís Bodanzky; 3 minutos,
disponibilizou importantes produções feitas por mulhe- de Ana Luiza Azevedo; Messalina, de Cristiane Oliveira;
res. Em seu catálogo, que alcançou 970 filmes e vídeos Desventuras de um dia, ou a vida não é um comercial
organizados em 295 programas (DVDs), cerca de 21% dos de margarina, de Adriana Meirelles; Dalva, de Caroline
títulos são dirigidos ou codirigidos por mulheres. Leone; e Estória alegre, de Claudia Pucci.
São filmes históricos e contemporâneos, entre cur- A partir de 2013, a Secretaria do Audiovisual do
tas, médias e longas-metragens de todos os gêneros Ministério da Cultura (SAv/MinC) passa a incluir em
(animação, documentário, experimental e ficção) e de seus editais o licenciamento prévio das obras audiovi-
todas as regiões do país. Os temas dos filmes são va- suais para a Programadora Brasil. No mesmo ano, a SAv
riados. As mulheres, do mesmo modo que os homens, lança o edital de filmes curtos e médios para realizado-
podem – e falam – sobre tudo. ras, ampliando o espaço para o cinema de mulheres.
Cartão vermelho
6% 6%
10% Experimental Centro-
Longas 12% Oeste
Nordeste
32,5% 45% 8%
Documentário Ficção Sul 72,5%
90% 1,5% Sudeste
Norte
Curtas e médias
16,5%
Animação
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OPA
DADOS E INCENTIVO AO
CINEMA DE MULHERES
há uma relação entre o que se vê represen- 2015, 19% de presença de mulheres na direção (4 pon-
tado nas telas e quem assume as funções por trás das tos percentuais a mais, se comparado aos filmes lan-
câmeras. Assim, é preciso pensar tanto nas funções çados comercialmente para salas de cinema no mes-
de chefia assumidas pelas mulheres no audiovisual mo ano), 23% no roteiro, 41% na produção executiva,
brasileiro, como nas representações dessas mulheres apenas 8% na direção de fotografia e 54% na direção
nas obras produzidas. Afinal, estamos em 2017, e não de arte. Em 2016, os percentuais da presença de mu-
é mais possível aceitar as imensas disparidades de gê- lheres na produção executiva (41%) e na direção de
nero nas nossas mídias. fotografia (8%) permanecem os mesmos, os dados re-
ferentes à direção e ao roteiro apresentam queda de
De 2009 a 20161, a presença das mulheres na direção 2 pontos percentuais (alcançando apenas 17% para a
de filmes de longa-metragem lançados comercialmen- presença de mulheres na direção e 21% nos roteiros)
te em salas de cinema oscilou, tendo como ponto de e os da direção de arte demonstram um acréscimo de
maior produção o ano de 2012, com 24%, e como ano 4 pontos percentuais (58%)3.
com percentual mais baixo o de 2014, com apenas 10%
de filmes com direção apenas de mulheres. Confira os É alarmante perceber que, mesmo com todo um movi-
dados da análise histórica no quadro da página 114. mento para dar visibilidade às mulheres nas diversas
funções no audiovisual, há uma queda no percentual
A partir da análise das obras audiovisuais que emiti- de mulheres na direção de 2015 para 2016. Devemos
ram Certificado de Produto Brasileiro (CPB)2, temos, em analisar, a seu tempo, os dados de 2017.
foto: divulgação
a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura
(SAv/MinC) lançou o seu primeiro edital afirmativo:
Curta Afirmativo: Protagonismo da Juventude Negra na
Produção Audiovisual. O Curta Afirmativo sofreu em-
bargos legais, mas saiu vitorioso. Em 2013, foi lançado
o Edital Carmen Santos – Cinema de Mulheres 2013:
Apoio para Curta e Média-Metragem. Em 2014, a SAv
lançou a segunda edição do Curta Afirmativo, agora
contemplando curtas e médias-metragens. Em 2017,
como uma modalidade do edital de apoio à produção
de curtas-metragens, foi lançada a categoria Carmen
Santos, com a possibilidade de realização de 15 curtas
dirigidos por mulheres.
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e dois infantis. Em relação às temáticas, podemos A escolha do nome do edital se deu para homenagear e
pensar nos seguintes grupos: violência contra a mulher trazer à tona uma mulher muito importante para o cine-
(Atadas; Na minha sopa não; Prelúdio; Os anseios das ma brasileiro e que, como muitas outras, passa desper-
cunhãs; A batalha das colheres e Quem matou Eloá?); cebida pela história oficial. Carmen Santos (1904-1952)
estereótipos de gênero e suas rupturas (A festa da Joa- nasceu em Portugal e viveu no Rio de Janeiro desde
na – infantil; Papéis de Adélia; De menino, de menina; 1912. Estreou como atriz em 1919, no filme Urutau, diri-
Ou isso ou aquilo; Como era gostoso o meu príncipe); gido pelo norte-americano William Jansen.
o que é ser mulher (Família brasileira, Mulher movente;
Viver de mim; e Corpo manifesto); e empoderamento Contudo, ela não se ajustaria aos limites do papel
da mulher negra na infância (Fábula de Vó Ita – infan- de musa sedutora: assumiu as rédeas de sua carrei-
til). Assim, o edital trouxe à tona, inclusive, o questio- ra e engajou-se incansavelmente na construção de
namento sobre o que seria um “cinema de mulheres”. uma cinematografia nacional. Atuou diretamente
Algo que, apostamos, deve fugir de estereótipos de de- na realização de seus filmes, escolhendo projetos,
finições estabelecidas. contratando diretores, produzindo, estrelando e di-
rigindo filmes e companhias. No percurso iniciado
Outro ponto diferencial do edital é que a comissão de com Urutau (1919), de William Jansen, seguiu-se a
seleção foi toda composta por mulheres. realização de mais sete longas-metragens: Sangue
mineiro (1929), de Humberto Mauro; Limite (1930),
Em relação aos projetos contemplados por estado, São de Mário Peixoto; Onde a terra acaba (1933), de Otá-
Paulo configura-se como o local que mais teve propos- vio Gabus Mendes; mais três de Humberto Mauro
tas selecionadas, com nove filmes, seguido do Rio de – Favela dos meus amores (1935), Cidade mulher
Janeiro com três, Minas Gerais com dois, e Amazonas e (1936) e Argila (1942) –, e Inconfidência mineira
Rio Grande do Sul com um cada. (1948), estrelado e dirigido por ela.5
SÉRIE HISTÓRICA
Filmes dirigidos apenas Filmes dirigidos apenas Filmes dirigidos por
por mulheres (%) por homens (%) homens e mulheres (%)
2009 17 82 1
2010 16 77 7
2011 15 78 7
2012 24 72 4
2013 16 80 4
2014 10 87 4
2015 15 77 8
2016 20 78 1
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CINEMATECA D fac-símiles da edição 48 - novembro de 1988
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fac-símiles da edição 48 - novembro de 1988
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fac-símiles da edição 48 - novembro de 1988
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CINEMABILIA foto: acervo cinemateca brasileira
Carmen Santos
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Carmen Santos
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Cartazete de Inconfidência Mineira
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MULHERES,
CÂMERAS E TELAS
foto: divulgação
ANA MARIA
MAGALHÃES
ATRIZ, DIRETORA, PRODUTORA E ROTEIRISTA (1950-)
MULHERES,
CÂMERAS
E TELAS
REVISTA.CULTURA.GOV.BR