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Um gatinho e um caranguejo
Tchibuummmm!!! A última coisa que o gatinho ouviu antes de mergulhar foi a gargalhada de
Asdrúbal, aquele sem-vergonha, moleque, desocupado. Agora era tarde para lamentações.
Rolando que nem pedra, o gatinho já estava quase no fundo do mar.
— Vou morrer! Não sei nadar!
O gatinho tremia de medo, sem coragem nem para abrir os olhos.
— O senhor está passando bem? Não abre os olhos por quê? Estão ardendo?
O gatinho pensou que era sonho: onde já se viu escutar vozes no fundo do mar?
Em todo caso arriscou uma olhadela. Na sua frente estava um caranguejo já velho, de
óculos.
— O senhor se parece um pouco com um amigo que eu tive, o Alípio. Só que ele era um
cachorro e o senhor parece ser um gato.
— S-sim, e-eu… e-eu…
— O senhor é gago, já sei. Não precisa se envergonhar. Gagueira se cura. Pior é esse pelo
todo arrepiado. O senhor já ouviu falar em gumex?
— Há, há, há – riram os mariscos lá atrás.
— Estão rindo de quê, seus burros? O visitante pelo menos tem pelo, bigodes respeitáveis e
uma cauda. E vocês que nem isso têm, hein?
Os mariscos se calaram e o caranguejo piscou um olho para o gatinho.
— Não ligue não. São mal-educados assim mesmo.
— Bem, muito prazer em conhecê-lo, mas agora eu tenho que voltar para a praia porque
senão eu morro afogado, eu não sei nadar e …
De repente o gatinho percebeu que já estava há um tempão embaixo d’água.
Sem sentir, ele tinha perdido o medo durante o bate-papo com o caranguejo. E o que era
mais impressionante, já estava respirando que nem os peixinhos, pela bochecha.
— Nossa! Não é que eu aprendi a respirar embaixo d’água!
— Ora, nada mais fácil. O meu amigo, o cahorro Alípio, além disso também sabia fazer um
ipsilone com a cauda.
— Puxa! Mas que bacana! – O gatinho ensaiou umas cambalhotas de contentamento e
abocanhou três sardinhas que passavm.
— Ei, vamos com calma!
— Desculpe, desculpe. É que eu estou muito contente! Sempre quis aprender a respirar
embaixo d’água e nunca consegui. Nem mesmo molhar a pontinha do rabo, de tanto medo
do mar. Desculpe, mas eu vou correndo contar a novidade lá para a turma.
– Ciau! Apareça quando quiser, ou melhor, sempre que não estiver com fome…
Um amarelo diferente
A margarida que tinha sido homenageada pelos bichos do jardim estava agora mais
crescidinha e já começava a preparar uma flor.
Todos os bichos, ao seu redor, esperavam para ver a flor nova. Mas a margarida, preguiçosa,
não tinha pressa alguma. Quando enfim pôs uma pétala para fora, soltou um suspiro de
satisfação: estava batendo uma brisa tão agradável…
Seu enlevo foi interrompido por uma série de ‘cruzes!’, ‘ahn!’, ‘ais!’, ‘credo!’, ‘virge!’.
Olhando para baixo, a margarida viu uns bichinhos engraçados com cara de espanto.
— Nossa! A margarida tem a mesma cor que o Asdrúbal!
— Ai que susto! – falou a baratinha, que já tinha ensaiado uma corrida.
— Mas até que nela o amarelo fica bonito.
A margarida rapidamente estendeu as outras pétalas e, muito curiosa, logo quis saber quem
era aquele pessoalzinho.
— Muito prazer, sou a lagarta verde. Às vezes como uma folhinha aqui, outra ali, mas de
resto sou de muito boa paz.
— Eu sou a abelha. Eu é que te trouxe lá do jardim do vizinho, quando você ainda era
assinzinha.
Feitas as apresentações, a margarida perguntou quem era esse tal de Asdrúbal. Ficou
horrorizada.
— Ele provavelmente vai querer logo quebrar teu caule ou pintar tuas pétalas de preto. Se
isso acontecer não se preocupe. Existe o Grupo da Resistência, especializado em colar folhas
partidas, pôr tala em asas quebradas. É um grupo de velozes mosquitinhos que nas horas
vagas ficam zunindo nos ouvidos dos monstros.
Rumo à Argentina
Em um canto, a barata de estimação de Asdrúbal esperava pacientemente o seu dono acabar
a arrumação das malas.
Em outro canto, Asdrúbal enrolava seu jogo de teia-de-deixar-aranha-maluca, enquanto
resmungava irritadíssimo: “Argentina! Aposto como é outra droga!”
O pai tinha resolvido fazer a viagem sem falar com ele, logo depois daquele dia em que
chegara pela segunda vez com o nariz vermelho e inchado.
— Meu filho, ande depressa senão a gente perde a carona da frente fria que está voltando
para o Pólo Sul.
— Meu filho, escute o que eu estou dizendo: aqui não é mais possível. As maldades da gente
já não funcionam mais. Todos os bichos já estão cansados de saber todas elas de cor e
salteado. E depois que uma maldade se torna muito conhecida o medo das pessoas diminui.
Todos nós, os monstros, sempre tivemos esse problema: imaginar novas maldades. Já falei
com o Nicósio: vamos prestar exame de doutorado em monstrologia. Quem sabe se com
mais técnica a gente consegue voltar aos dias de glória de antigamente.
A única contente era a barata de Asdrúbal que, muito cínica, só para irritá-lo, cantava
baixinho:
— Corrientes 348, segundo piso…
Asdrúbal deu um pontapé na barata e foi o tempo de saírem todos correndo atrás de um
relâmpago que passava.
O vento-correio
Só as formigas não notaram nada.
Tão acostumadas a andar e trabalhar de cabeça baixa que nem viram a poça d’água
dançando samba ao vento, o sol lançando cada raio de uma cor diferente e todos os bichos
de roupa nova.
Era uma manhã de quarta-feira e deveria estar chovendo, segundo o boletim meteorológico.
Mas o boletim meteorológico se enganou nesse dia e em todos os outros que se seguiram.
Durante um ano fez sol todo dia, pois o vento tinha prometido:
— Em homenagem à partida dos monstros dou minha palavra que doravante espalharei
sempre as canções dos bichos e só trarei boas notícias, boas notícias, boas notícias…
Os bichos ficaram ouvindo o eco.
O vento já estava longe.
Talvez na Argentina, transformado em furacão e alegrando os monstros.
Na Argentina, os monstros neste momento ouviam o assobiar de um vento forte pela janela
da sala de aula:
— Muito bem. Nossa primeira lição é referente a como não se deixar influenciar pela alegria
reinante, este vírus que pode corroer o planeta.
Asdrúbal, sentado em sua carteira, roeu a ponta do lápis, olhou pela janela cinzenta e
suspirou: na Argentina não tinha nenhuma borboleta azul para distraí-lo no intervalo das
aulas.
A VERDADEIRA HISTÓRIA DE ASDRÚBAL, O TERRÍVEL
Primeiro capítulo
O mundo tem muitos monstros. Tem uns mais conhecidos do que os outros, tem os que têm
nome, retrato no jornal, tem os que só são vistos em pesadelos, sem nome nem cara que se
descreva.
Pois no ano de 290 D.A. (D.A. significa Depois de Asdrúbal), na Floresta DumDum, já havia
uns tantos que duvidavam que o monstro Asdrúbal tivesse realmente existido. Muitos
falavam em lenda, outros mais maliciosos diziam que Asdrúbal não passava de um reles
personagem aumentado e glorificado, só e unicamente para servir de herói a uma floresta
sem heróis. Seria Asdrúbal, então, um mito inventado, com a única missão de embasbacar
as gerações vindouras.
Não, meus amigos, não. Como cedo os fatos vieram demonstrar, o monstro Asdrúbal
pertencia àquela categoria dos que têm nome, retrato no jornal, verruga e cacoetes.
Asdrúbal existia, sempre existiu e ainda vai existir por muito tempo.
Verdade seja dita, a bem dos que então duvidavam de sua existência: os fatos precisos que,
nesta época, se sabia a respeito de Asdrúbal eram poucos e ralos.
Sabia-se sua cor: amarela.
Sabia-se seus pés: muitos.
Sabia-se sua voz: horrível.
E isso era tudo o que se sabia a seu respeito. Sabia-se também de seu ódio a borboletas.
Mas mesmo isso havia quem duvidasse. Uma lenda dizia – e muitos acreditavam nela – que
em priscas eras, Asdrúbal teria tido uma rixa muito séria com uma borboleta azul, e que seu
desaparecimento por tantos séculos tinha sido por causa deste aborrecimento.
Podia ser que fosse mesmo só lenda, não vou botar mais lenha nesta fogueira, mas se
conhecendo o caráter do monstro em questão, não só era possível como mesmo muito
provável que tal rixa tivesse mesmo acontecido, e tivesse sido feia.
Mas se tudo isso vem à baila, é porque há motivo. No começo do ano 290 D.A., notícias
daqui e dali começaram a dar Asdrúbal como presente e atuante em festas de família (logo
acabadas), em clareiras da floresta (agora desertos), em livrarias (falidas).
Os jornais, como sempre medrosos, noticiavam as novidades nas últimas páginas, com
títulos pequenos, feitos em letra tremida. Mas, no de boca a boca, não se falava em outra
coisa que não fosse a volta de Asdrúbal, o Monstro Amarelo.
A volta de Asdrúbal, 290 anos depois de seu desaparecimento por causa de uma briga com
uma borboleta azul. E, meus amigos, é incrível, mas mesmo vendo tinha gente que
duvidava, que preferia fechar os olhos e dizer que não viu.
Borboleta Azul Neta era uma dessas. Quando vinham lhe contar sobre a volta de Asdrúbal, o
inimigo de sua avó, ela mudava de assunto e, se insistiam, mudava de flor, ia para outras
bandas pensar em outras coisas. Coisas de borboleta: casulo furado e necessitado de
conserto rápido, formigas nos agapantos, vento em demasia nos campos de margarida.
Mas se Borboleta Azul Neta não acreditava na volta de Asdrúbal, ou melhor, fingia não
acreditar, havia também a elite dos bem informados que davam fé a esses diz-que-me-
disses alarmistas.
A Tartaruga Submarina, a Coruja Russa, o Gato Pardo e Companhia eram os componentes
deste grupo e, certos de que Asdrúbal afinal voltara, tentavam convencer os relutantes.
Em vão. Nessa época ainda muito pouca gente dava ouvidos a eles.
Segundo capítulo
Para entender bem como foi possível os acontecimentos pegarem tanta gente de surpresa,
vamo-nos relembrar em minúcias de um dia em particular.
Dia 42 da estação de primavera do ano 290 D.A.
Tempo bom, domingo, a floresta dorminhoca bocejava um ventinho suave de quando em
vez.
A Floresta DumDum acabava, nesta época, em uma praia de coqueiros e amendoeiras e,
floresta e praia, tinham um riachim de pedrinhas brancas e peixes calmos. Onde a floresta
começava ninguém sabia e, mesmo hoje, passados tantos anos, acontecidas tantas coisas,
ainda não se sabe se este ou aquele tronco velho, se este ou aquele bem-te-vi triste é o
começo legítimo.
A Tartaruga Submarina era tartaruga de mar e morava na praia. O Gato Preto era gato
safado e vivia às custas de uma velhota, a pires de leite fervido e bife de filé mignon na
manteiga, em uma casinha lá longe. A Borboleta Azul Neta era jovem e não tinha moradia
fixa, mudando de casa em casa junto com seus amigos, de tempos em tempos, como fazem
em geral as borboletas.
A Coruja Russa, no seu galho, há muito não dava um pio. A última vez que tinha falado, no
verão anterior, respondera a um comentário trivial sobre o tempo com um:
— Outrossim, outrossim se foi.
Esta frase não foi compreendida pelo educado pardal que, ao passar, tinha tido a ideia de
comentar sobre o calor reinante. E também não foi compreendida pelos que souberam da
história depois. A frase ficou famosa, exemplo de alta filosofia, pérola das letras pátrias e fim
obrigatório de discursos e pronunciamentos sobre economia. ‘Outrossim, outrossim se foi’
passou a ser citada com frequência nas rodas noturnas e estava para sair, em capítulos, um
ensaio crítico com este título no suplemento semanal do Mundão da Floresta, jornalzinho
politiqueiro e polêmico.
Foi a partir deste verão, ou mais precisamente dessa frase, que a coruja ficou famosa na
Floresta DumDum e no mundo. Vem deste episódio a crença de que as corujas em geral são
seres sábios. Como vocês veem, de muito pouca terra crescem as batatadas do
conhecimento.
Mas, voltando à nossa Coruja Russa, ela ficou famosa. E, famosa, não mais tinha precisado
abrir o bico, limitando-se a grunhidos vomitados do alto de sua casa de árvore sobre a
massa, então e sempre, sedenta de saber.
Tanto faz para o decurso da história onde o resto da bicharada morava, se bem que, fique
claro, todos eles fossem bichos de floresta ou, pelo menos, bichos que lá trabalhavam ou
estudavam. Eram bichos comuns, de pelo e de pena, de miado alto e piado assustado. Uma
lista breve: A Anta Nita, o Sapo Nando, o Pássaro Vermelho Real da Costa e Serra, o
Crocodilo Aligátor (um imigrante americano), Madureira… Madureira era um macaco
careteiro morador do bairro do mesmo nome e possuidor de casa de veraneio na praia.
Esses, os habitantes. O local, o ambiente, esse é mais difícil de descrever, pois floresta e
floresta como era a Floresta DumDum é coisa já perdida na memória de cada um. Era
grande, sim, com árvores, é evidente. Mas os cheiros, os sons, disso, infelizmente, não ficou
registro fora dos sonhos que todo mundo tem, mas que variam de noite para noite e de
travesseiro para travesseiro. Qual o sonho mais verdadeiro: o seu? o meu? Da Floresta
DumDum perdemos tudo, exceto as fotografias. E nas fotografias vemos aqui e ali os marcos
históricos, as estátuas dos generais famosos na luta entre Borboleta Azul e Asdrúbal. Temos
fotos do Museu da Floresta nas quais se vê, com certo esforço, o célebre documento de
incitação à guerra, feita pelos Ursos do Berro Forte. Esse documento, feito originalmente em
plaquetas de mel, era todas as noites refeito pelos guardas do Museu, daí os mais céticos
duvidarem de sua autenticidade. E quem começa duvidando de um documento acaba
duvidando de tudo e de todos.
E, em caso de dúvida, o comum é pensar em outra coisa e esquecer o problema.
Foi por isso que, embora Asdrúbal aparecesse amiúde aqui e ali estragando coisas, os bichos
da Floresta DumDum, acostumados que estavam a duvidar de tudo, duvidaram do que viam
e não tomaram nenhuma providência.
No meio, bem no meio da floresta, a toca de Asdrúbal progredia.
Terceiro capítulo
Não que a toca fosse grande. Era mesmo uma toca mixuruca, considerando-se a importância
e periculosidade do morador.
Em volta, o que se encontra em volta de todas as tocas: pedras, se o local for de pedras,
árvores, se for toca de árvore, ou areia, no caso de toca de praia. No caso, era toca de
pedra.
Tão comum, tão toca de todo mundo, que Gato Preto, Tartaruga Submarina, Coruja Russa e
Companhia, eméritos Caçadores de Asdrúbal, não notaram essa simpleza e dirigiram suas
buscas a cavernas mal-assombradas, nuvens carregadas, melancias podres, enfim, a coisas
fantásticas, horrorosas ou pelo menos diferentes. Pois o que mais custa a entrar na cabeça
das pessoas, em casos de aparecimento de Asdrúbal, é justamente essa sua aparência
comum, cotidiana. Asdrúbal ao aparecer vem de mansinho, junto e dentro das coisas de todo
dia. Não se vê.
Qual a graça de um monstro horrível ser tão comum? Não tem graça nem diferença. O que
ninguém sabia, na Floresta DumDum, é que Asdrúbal morava, dormia e comia igual a todos
eles. E foi graças ao seu igualzinho-a-todo-mundo que Asdrúbal conseguiu chegar até o
ponto em que chegou, espalhando o terror e a falta de alegria a absolutamente todos os
bichos da floresta.
A Floresta DumDum só se deu conta da presença incômoda e atuante de Asdrúbal quando o
Monstro Amarelo atacou o local onde pernoitava a Borboleta Azul Neta.
Há versões que dão o despertar de consciência como fruto do Caso dos Papeizinhos. Outros
preferem considerar a Noite dos Urros como o alarme geral. Mas não, a versão correta é a
que fala do ataque à casa onde estava a Borboleta Azul Neta, às cinco horas da tarde do dia
12 de outono do fatídico ano de 290 D.A.
Foi, é necessário que se diga, um ataque mais para o inútil. Borboleta Azul Neta, como
sempre de mudança, só veio a saber que Asdrúbal tinha aparecido em sua antiga residência
duas horas depois. O ridículo desse insucesso é que leva tantas pessoas a acreditar que o
início das hostilidades seja a Noite dos Urros ou o Caso dos Papeizinhos.
A Noite dos Urros é um fenômeno sem explicação. Na noite anterior ao ataque à Borboleta
Azul Neta, alguns bichos ouviram uns urros horrendos por volta da meia-noite. Este fato,
além de insignificante, não merece nosso crédito, pois a maioria dos habitantes da floresta
era incapaz de distinguir trovões de urros horrendos, dada sua falta de experiência neste
último som.
Já o Caso dos Papeizinhos tem argumentos mais fortes e sua importância no despertar de
consciência dos bichos foi real, embora fortuita, como veremos depois.
O orvalho do dia 15 de outono trouxe bilhões e bilhões de papeizinhos retangulares, desses
como se de cartão de visitas, só que absolutamente em branco. Eram papéis tampando
buraco no chão, derrubando ninhos de ovos novos. O mar, com a superfície coalhada de
papeizinhos, impedia os peixes de ver o azul claro do céu, limitando-os ao azul escuro do
fundo. Os papeizinhos realmente prejudicaram todos os bichos da floresta. Não foi obra de
Asdrúbal, mas bem que poderia ter sido.
Logo na manhã desse dia houve uma reunião na clareira da Coruja Russa, a qual se limitou a
ensinar aos poucos que até lá tinham conseguido chegar um:
— Deus meu! Deus meu!
O repórter do jornalzinho Mundão da Floresta pegou rapidamente um dos bilhões de
papeizinhos e anotou a volta aparente da Coruja ao seio do Divino, assunto de futuras e
palpitantes reportagens. Mas de resto, o repórter continuou, tanto quanto os outros bichos
presentes, a não saber o que fazer de tantos papeizinhos que causavam problemas cada vez
mais evidentes de ecologia, manutenção da ordem pública e bem-estar social.
Além do fato de serem terríveis em sua total falta de lógica ou, trocando em miúdos, em sua
total falta de letra. Papel sem letra, sem sujo, sem nada, Deus meu! Asdrúbal voltou e isso é
coisa dele!
Mas não era.
Quarto capítulo
Asdrúbal, repetimos, tinha tanto a ver com a história dos papeizinhos quanto qualquer outro
bicho da floresta e, como eles, estava mal-humorado e curioso com o acontecido.
Enquanto a reunião na clareira da Coruja Russa estrebuchava por falta de assunto, Asdrúbal
estava sentado na porta da toca olhando estupidamente um dos papeizinhos. Olhava,
olhava, se esforçava, mas não entendia. E o pior é que Asdrúbal amargurava-se com o
pressentimento de que todos, exceto ele, já sabiam do que se tratava. Um antigo complexo
advindo do hábito de seus colegas do Jardim da Malinfância lhe chamarem Asburro, impedia
Asdrúbal de notar que desta vez não era culpa dele se havia um branco total no papel e na
cabeça. Asdrúbal atoleimava.
Bem ao seu lado estava Companhia.
Ainda não falamos de Companhia. Companhia andava sempre com o grupo formado pela
Tartaruga Submarina, Gato Preto e Coruja Russa e era uma pulga vulgar, gorda e fofoqueira,
mas muito útil como transmissora de informações aos outros três. Companhia devia alguns
favores ao Gato Preto, de quem tirava seu sustento e, em paga disso, procurava sempre
mantê-lo bem informado. Essa pulga serviu de Correio e Telégrafos e de Arquivo Nacional
por bom período da história da Floresta DumDum. Sabia de tudo e o que não sabia
inventava. Exercendo essas atividades com ímpeto e senso de oportunidade, foi considerada
por seus contemporâneos como repórter-modelo. Companhia teria sido mesmo convidada
reiteradas vezes a fazer parte do corpo editorial do Mundão da Floresta mas recusava
sempre alegando solidariedade ao famoso grupo de Gato Preto e seus dois amigos. Uma de
suas frases:
— Não se pode servir a quatro senhores.
Outra de suas frases, menos retumbante mas mais explicativa:
— Mesmo porquê, detesto aquele corpo sem pelo.
Companhia se refere nesta frase ao corpo editorial, mais precisamente ao corpo do Sapo
Nando, coordenador, diagramador, fotógrafo, linotipista e propagandista inconteste do
Mundão. Sapo Nando tinha todas as ações do referido jornal mas nenhum pelo ou outro
atrativo mais contundente que encantasse uma pulga.
Pois era uma pulga, e uma pulga do tipo que descrevemos, que Asdrúbal, ilustre e faceiro,
tinha a seu lado durante a longa travessia pelos mistérios dos papeizinhos em branco. Vista
do alto, Companhia consistia em uma mancha marrom visibilíssima em cima de todo aquele
branco.
Asdrúbal neste momento se agacha, pois a idade já o tinha tornado míope, mas ao
reconhecer na mancha uma reles pulga, suspira de desilusão.
Por breve e delicioso momento Asdrúbal tinha julgado tratar-se de uma mensagem
microgravada, de uma letra, de um sinal, de qualquer coisa que o permitisse entender o
porquê daquela papelada.
Asdrúbal, tendo estado no exterior desde sua luta com a Borboleta Azul e chegado a pouco,
desconhecia muitas coisas novas da Floresta DumDum, incluindo as qualidades de Mata-Hári
da pulga na sua frente. Desavisado, deixou o inseto em paz, e foi graças a essa imprudência
que até hoje muitos atribuem ao Monstro Amarelo a autoria do Caso dos Papeizinhos.
Pois Companhia, quando conseguiu se refazer do susto, foi correndo contar a todos os bichos
o que todos os bichos queriam escutar: Asdrúbal, seguindo um plano diabólico, tinha
espalhado aqueles bilhões de papéis. Em um futuro próximo, assegurava a pulga, Asdrúbal
espalharia finos e mortais lápis pretos n° 2, o que então provocaria o fim do mundo.
Os papeizinhos, como hoje está constatado, foram fruto espúrio de um avião-propaganda
desregulado. E a profecia dos lápis pretos, como vocês bem adivinham, nunca se
concretizou.
Quinto capítulo
Os papeizinhos se desmancharam depois de algumas chuvas e a Floresta DumDum teria
voltado ao normal, não fosse a expectativa de novas e calamitosas experiências. Já então se
tinha passado algum tempo desde o ataque de Asdrúbal à casa da Borboleta Azul Neta, mas
o Caso dos Papeizinhos, mais recente, se encarregara de manter em alerta o espírito do
povo.
Tartaruga Submarina, Coruja Russa, Gato Preto e Companhia estavam no auge de sua
popularidade, fazendo apresentações públicas nas quais a Tartaruga Submarina com uma
bela e recém-descoberta voz de barítono, empolgava a plateia às custas de empostações
dramáticas como a célebre:
Borboleta Azul Neta!
Original e Belo Inseto!
DumDum inteira te defenderá
Dos Amarelos Petelecos!
Sim, mas os chamados amarelos petelecos, desde o ataque à casa da Borboleta Azul Neta,
não tinham mais dado sinal de vida, o que convenhamos gerava uma impaciência e uma
frustração muito grande nos bichos pacatos, mas sedentos de distração.
Asdrúbal tinha consciência de que urgia fazer alguma coisa. Durante todo o período que se
seguiu ao ataque à casa da Borboleta Azul Neta, exceto nos poucos dias de alvoroço durante
o Caso dos Papeizinhos, Asdrúbal passou-o lendo manuais de combate e memórias de
generais famosos. Um dos seus livros de cabeceira era o Estratégia de Waterloo em cinco
lições ilustrado. No exemplar encontrado depois em sua toca, tem esta passagem marcada a
lápis:
“É aconselhável o uso de vinte canhões em arco, cavalos ao centro alinhados pelos do
inimigo. Dar preferência a terrenos em declive com pouca vegetação e não se esquecer da
bandeira, utensílio essencial tanto na retirada estratégica quanto na vitória triunfante.
Expressão a ser usada: aiêê silver!!!”
Gato Preto sabia, informado que fora pela pulga Companhia, que Asdrúbal repetia as
palavras do livro sem pensar, como quem decora o nome das capitanias hereditárias ou a
relação das 24 preposições. Mas, em uma reunião feita às pressas, a cúpula tinha decidido
que esta falta de ímpeto do inimigo não devia ser tornada pública. Só Gato Preto,
Companhia, a Tartaruga Submarina e a Coruja Russa sabiam que Asdrúbal, ou porque
estava mais velho ou por qualquer outro motivo, cumpria os rituais de preparação para a
luta mais por obrigação do que por prazer. Como soubemos de sua própria boca, em um de
seus raros momentos de lucidez, Asdrúbal não estava, nesta ocasião, com a menor vontade
de dar continuidade aos feitos napoleônicos, mas essa falta de vontade lhe produzia um
agudo sentimento de culpa. Era um Asdrúbal, tinha que fazer alguma coisa que se
assemelhasse a uma guerra, a uma maldade, para poder continuar a ter uma razão para
viver.
Mas a verdade é que nos momentos anteriores à Grande Batalha, Asdrúbal se sentia só e
desanimado. E também é verdade que os bichos da Floresta DumDum, embora ansiosos por
uma calamidade qualquer que pingasse emoção em suas vidas, teriam se contentado
perfeitamente com uma enchentezinha, uma praga nas goiabas ou mesmo uma gripe em
alguém famoso.
A Grande Batalha aconteceu abalando a história com suas consequências trágicas, sem que
houvesse ninguém, mas ninguém capaz de dizer que estava realmente disposto a lutar.
Sexto Capítulo
Se algum de vocês algum dia tiver oportunidade de falar pessoalmente com Asdrúbal,
entenderá melhor o que significa um monstro envelhecer.
No dia da Grande Batalha, já lá se vão tantos anos, Asdrúbal já estava bem maduro e,
embora vitorioso, não reconheceu em si mesmo a glória dos vencedores. Ele venceu, mas foi
uma vitória ruim.
Os fatos foram os seguintes:
Asdrúbal vinha vindo por onde hoje é a Avenida Engenheiro Pedro Antunes com um
embornal e uma rede de caçar borboletas de sua invenção, muito semelhante às usadas
atualmente. Era manhã do dia 51 de outono de 290 D.A. e chovia.
É quando aparece distraída a Borboleta.
Seu aspecto não era mais o mesmo de algum tempo atrás. Desgrenhada, vencida pela
angústia, os olhos vermelhos e o voar lento. Esse tempo a tinha transformado em uma
neurótica, que via Asdrúbal em tudo que era canto e esperava um ataque em cada esquina.
Se olharam.
Asdrúbal pensou – alto, como é seu hábito: é ela. Tem a mesma cara de louca da avó.
Borboleta Azul Neta pensou: desta vez é ele.
Acontece que tanto Asdrúbal quanto a Borboleta não primavam pela rapidez de raciocínio, e
quando a Tartaruga Submarina, o Sapo Nando, o Macaco Madureira e muitos outros bichos
perceberam o encontro, tanto um quanto outra ainda estavam imóveis, quiçá se esforçando
para dizer alguma tirada brilhante, uma frase épica qualquer que fosse digna de figurar nos
anais da história.
Tiveram tempo e muito todos os bichos da Floresta DumDum para se acomodarem a
contento naquela manhã chuvosa. Sapo Nando fez ponta em dois lápis, a Tartaruga
Submarina acordou o Gato Preto e a Coruja Russa, o primeiro que acabava de ir para cama,
a segunda que não mais saía de lá. Companhia pegou um lugar bem na frente.
A Floresta DumDum, malgrado sua famosa propensão para a paz, estava preparada. O
grande espetáculo podia começar.
“Tomara que tenha bastante sangue”, murmurou Macaco Madureira, esquecido decerto que,
em uma luta entre uma pálida borboleta e um monstro só amarelo, não havia a mínima
chance de que isto acontecesse.
Sétimo capítulo
Antes de descrevermos a luta, preferimos apresentar uma gravura da época sobre o assunto.
Notem bem a preocupação do artista – cujo nome não sabemos, pois ele esqueceu de
assinar a obra – em mostrar a ferocidade dos dois adversários, usando para este fim a
composição circular e o contraste entre luz e sombra.
(reprodução de A batalha de Curuzu, com o título de “O Sururu”)
Oitavo capítulo
No entanto, sabemos por testemunhas oculares e por provas irrefutáveis que a Grande
Batalha entre a Borboleta Azul Neta e Asdrúbal, o Monstro Amarelo, não teve um momento
sequer parecido com a cena mostrada, sendo o ímpeto e a sede de sangue dos adversários
uma contribuição do artista à realidade. Bem que o Macaco Madureira em particular e a
Floresta DumDum em geral gostariam de ter assistido momento tão excitante.
Não. A Grande Batalha foi luta de muita fala e pouco gesto:
— Saia do meu caminho, seu monstro repelente, que está chovendo e eu não posso tomar
chuva.
— Sua … sua imbecil!
— Imbecil não! Imbecil não! Tenho meus direitos!
— Essa borboleta está é muito louca! Ou bebeu! Tá bêbada!
— Bêbada ou não bêbada, eu não arredo pé, tá ouvindo, seu hepatite ambulante? Não
arredo!
— Calma, calma! (Aparte dado pelo Pássaro Vermelho Real da Costa e Serra – logo
neutralizado por violento “não te mete, palerma”, dito pelo Macaco Madureira.)
— Pois se não arreda, azar o seu que cá vou eu!
E foi. Foi e sumiu. A borboleta Azul Neta também sumiu.
Aqui devemos fazer um aparte e explicar para os presentes algumas coisas a mais que
sabemos a respeito de monstros.
Primeiro que eles não morrem, no máximo envelhecem, mas morrer não morrem. Segundo
que eles viajam de um lugar para outro com rapidez incrível. Terceiro: monstros sempre
vencem, mesmo quando parecem estar perdendo. Quarto e último: eles transfomam para
sempre os lugares onde dão suas batalhas.
Ora, a Floresta DumDum já tinha sido palco de duas batalhas de Asdrúbal e nem precisava
que ele tivesse voltado – como voltou – pela terceira vez para que a floresta se
transformasse do jeito que se transformou.
Nono capítulo
Mas vamos por partes: na manhã chuvosa do dia 51 de outono do ano de 290 D.A., os
bichos reunidos na clareira onde estavam até um minuto atrás Asdrúbal e Borboleta Azul
Neta, levaram algum tempo para sair do estado de choque e perceber que os dois
promissores combatentes tinham sumido simplesmente. No começo ficaram desiludidos, mas
depois se consolaram, pois de Asdrúbal ninguém mesmo iria sentir falta e da Borboleta Azul
Neta já se tinha ouvido muita reclamação sobre seus hábitos irregulares e sua mania de
mudar de casa de cinco em cinco minutos.
Mesmo Sapo Nando, furioso porque mal tinha escrito a primeira linha (“a equipe de Mundão
da Floresta esteve mais uma vez no próprio local da tragédia para dar informações realistas
a seus queridos leitores.”), depois se consolou e acabou aproveitando a inspirada frase para
a notícia sobre um pinheiro caído e que, não fora o sumiço de Asdrúbal e Borboleta Azul
Neta, teria passado completamente despercebido.
Os bichos saíram aos poucos da clareira e aos poucos também os acontecimentos saíram das
conversas. Desistiram, ao cabo de alguns dias, de buscas aos desaparecidos, e a vida voltou
ao normal. Quer dizer, não voltou ao normal, modificou-se, mas na época ninguém ainda
percebia que sua vida estava sendo modificada.
A primeira consequência da Grande Batalha na vida da Floresta DumDum foi a proibição
contra as margaridas.
A floresta tinha a vida na maré mansa, embora na lembrança dos bichos ainda fremisse um
medo sempre que um amarelo mais intenso aparecia. Depois foi a vez de rosas amarelas e
sóis intensos ficarem terminantemente proibidos em todo o território florestal.
Algumas outras novidades logo se seguiram, advindas do natural decurso dos
acontecimentos. A venerável anciã Tartaruga Submarina, respeitada por todos, teve uma
queda de pedra, batendo as botas para consternação geral da população local. Verdade seja
dita que nos últimos tempos dera para caducar um pouco, mas, contando-se seus muitos
anos, esse detalhe além de corriqueiro nos parece mesmo inevitável.
Na Rua Gato Preto – outra consequência foi o aparecimento de ruas e endereços completos –
n° 28, apt° 403 fundos, a Coruja Russa, cansada de seu mutismo, começou a dar aulas
particulares de latim e grego para os filhos do Macaco Madureira, pirralhos
impertinentíssimos.
O Sapo Nando foi exilado. Estava em Jasmim do Cabo desde o fim do outono de 290 devido
à sua atitude pouco digna quando da morte de Gato Preto, mas preparava, diziam, sua volta,
retumbante, à floresta.
A morte do Gato Preto não é uma consequência da Grande Batalha, embora tenha
acontecido logo depois. Acontece que o Gato, ao manusear descuidadamente uma arma de
fogo, tinha dado cabo à sua própria vida e a de sua velha protetora, além da vida de mais
cinco bichos que se encontravam por acaso nas redondezas e a de Companhia. Este triste
incidente, aumentado e distorcido, foi narrado com detalhes sangrentos no Mundão e Sapo
Nando, conspurcado editor, foi acusado de provocar pânico na população da floresta com
suas notícias capciosas e alarmistas, sendo banido incontinenti.
A Floresta DumDum, com ruas, sem sol nem flor, com seus bichos mais conhecidos defuntos
ou entregues a ocupações rotineiras, já começava a ter o aspecto que tem hoje, embora com
uma diferença: ninguém sabia, ninguém percebia que as transformações atingiam a floresta
toda, de ponta a ponta.
Enfim, uma última consequência das batalhas que Asdrúbal travou em território da Floresta
DumDum é que hoje não há mais borboletas azuis no mundo, a última de que se tem notícia
é Borboleta Azul Neta, desaparecida desde a Grande Batalha sem deixar herdeiro.
Décimo capítulo
O desaparecimento da Borboleta Azul Neta foi coisa aceita sem maiores perguntas pelos
bichos da floresta. Sumiu e pronto. Eram bichos acostumados a monstros e duendes, a
sumiços e aparições. Hoje nós perdemos esta familiaridade com o fantástico, de modo que
vou dizer a vocês o que, na época do desaparecimento, ninguém se preocupou em saber,
isto é, para onde foi a Borboleta Azul Neta quando sumiu da clareira onde discutia com
Asdrúbal, o Monstro Amarelo.
Como aconteceu, isso eu não sei nem ninguém sabe, pois é assunto da mais alta técnica
monstrológica, vedada a nós, simples pessoas de cidade reflorestada. Poderíamos falar em
transmutação da matéria, em máquina do tempo, em supersonia ou subvisão. Escolham. O
único que poderia nos elucidar sobre o assunto é o próprio Asdrúbal que riu, sacudindo suas
banhas amarelas, quando lhe perguntei como ele tinha conseguido ir da clareira da Floresta
DumDum até a casa de sua mãe, sem usar nenhum meio de transporte conhecido.
Porque foi na casa da mãe do Asdrúbal que Borboleta Azul Neta passou os dois anos que se
escoaram entre a Grande Batalha e o retorno de Asdrúbal à Floresta DumDum no verão de
292.
Temos em nosso poder o Diário de uma prisioneira, escrito por Borboleta Azul Neta durante
este período e gentilmente cedido por Asdrúbal. Os direitos de publicação já foram
adquiridos por nossa editora e os fascículos deste pungente depoimento logo estarão nas
bancas.
Em primeira mão, vou citar alguns trechos muito elucidativos:
“58 de outono de 290 – Já se passaram sete dias desde “aquilo”. Resolvi escrever um diário
para que as pessoas um dia saibam tudo por que passei, para eu não ter sofrido em vão.
Quando eu vi, naquele dia, Asdrúbal vir em minha direção, senti uma sensação assim por
dentro, uma coisa, um calafrio e fiquei ruim da vista. Passei a enxergar só as cores das
coisas. Asdrúbal não era mais Asdrúbal era só Amarelo, o resto era uma confusão, o chão
branco. Quando acordei já estava aqui com esta mulher horrorosa olhando para mim. Depois
de vários truques e perguntas assim de como quem não quer nada, consegui descobrir que é
a mãe “dele”. Eu sou fogo mesmo para descobrir as coisas… Meu Deus! O que será de mim?
2 de inverno de 290 – Hoje a comida deu uma melhorada. “Ela” preparou um vatapá e de
sobremesa tinha quindim. A situação continua a mesma e eu ainda não sei o que pretendem
de mim. Estou desesperada.
25 de verão de 291 – A saudade das minhas coisas aumenta. Daqui a alguns dias vai fazer
um ano que estou aqui. As condições da prisão são péssimas e a falta de exercício já me fez
engordar três quilos. Asdrúbal cortou a sobremesa e a manteiga mas não adianta que nada
confessarei!
23 de inverno de 291 – Hoje ouvi uns papos estranhos de Asdrúbal. Não entendi bem,
quando entender escreverei.
25 de inverno de 291 – “Ele” agora teima em me torturar com sua presença horripilante
quase todas as manhãs. Não aguento mais esta tensão. Na primeira oportunidade me
suicidarei.
26 de inverno de 291 – Continuo a ouvir palavras estranhas que não ouso entender. Ouvi
uns comentários entre “ele” e “ela” e “ele” dizia que ia embora outra vez. Quando “ele”
entrou no quarto tentei disfarçar a emoção que me dominava e fingi nada saber,
continuando a pintar as unhas do pé como se nada houvera. Mas… sê-lo-á?!”
Três dias depois deste último relato o Diário se interrompe. Provavelmente Asdrúbal
percebeu que sua prisioneira mantinha este documento e se apoderou dele de imediato.
A desesperança, a angústia e o enclausuramento foram provavelmente as causas que
levaram Borboleta Azul Neta a seu leito de morte. Deixou-nos seu triste exemplo, mais triste
ainda se pensarmos que foi dessa maneira idiota que o mundo viu morrer o último exemplar
de borboleta azul.
Ficou seu exemplo que não esqueceremos.
Décimo-primeiro capítulo
Nosso relato chega ao fim. Da Floresta DumDum e da Borboleta Azul Neta nada mais temos
a acrescentar. Acabaram. Quanto a Asdrúbal ainda nos resta comentar seu retorno ao nosso
meio, fato de que muitos de vocês, apesar da pouca idade, ainda devem se lembrar.
Surgiu o boato que Asdrúbal ia chegar na maré das seis. O fato do retorno de Asdrúbal ter se
dado em dia de domingo, não de trabalho foi, como veremos, determinante no desenrolar do
acontecido.
Asdrúbal de fato chegara. Tinha vindo em bloco de gelo, resquício ignóbil e frágil do grande
iceberg sobre o qual pretendera desembarcar glorioso em qualquer lugar que o vento por
bem o aportasse. Duas coisas não previra: o calor líquido a dissolver seu barco e um vento
calhorda levá-lo justo para onde não devia, isto é, para a praia da Floresta DumDum que,
domingo, estava apinhada de gente.
Houve outra imprevidência que o perdeu. Se bem que talvez seja menos imprevidência e
mais crueza do destino. Essa crueza se chama Sapo Nando. É que exatamente o mesmo dia,
o mesmo local e o mesmo vento tinham sido escolhidos pelo conspurcado editor do falido
Mundão da Floresta para voltar de seu longo exílio.
O mínimo que se pode dizer é que tal coincidência transformou o retorno de Asdrúbal no
ponto mais fácil de todo o livro de História Geral pois, é inútil negarmos, a imagem de Sapo
Nando incógnito e de Asdrúbal no bloco de gelo chegando na mesma hora escorregadia de
óleo de bronzear é bem propícia ao riso e às chacotas dos estudantes. Mas, o que se há de
fazer? Foi o destino a empurrar vento e Sapo Nando contra as glórias de Asdrúbal.
Aqui entre nós, acredita-se que Asdrúbal pretendesse na verdade desembarcar em pompa e
honra na Argentina, local que ele conhecera na infância. Mas isso é especulação que não
pode ser provada e que é baseada unicamente no poncho e no livrinho de letra de tango com
os quais Asdrúbal chegou em nossas plagas.
Esta chegada foi exatamente o que se poderia esperar em tais circunstâncias: um fiasco
completo para Asdrúbal, para Sapo Nando e para o bloco de gelo, avidamente chupado por
três crianças calorentas.
O maior prejudicado foi, sem dúvida, Sapo Nando.
De óculos escuros e escura barba postiça, não foi reconhecido por ninguém, o que o obrigou,
lá pelas tantas, a arrancar uns e outra em gesto dramático, berrando:
— Sou eu! Voltei incógnito! Sou o Sapo Nando, mancha das letras pátrias, pária dos homens
de letras! Me prendam! Ou me aclamem!
Recebeu um ou outro abraço envergonhado dos amigos mais chegados de antes de se
perder pelos caminhos da loucura. Sapo Nando, antes tão influente, é visto agora gastando
sua grande fluência verbal pelas ruas, saudando passantes desconhecidos, discursando para
postes e provando na areia da praia seus talentos passados em decassílabos molhados. Uma
lástima.
Para Asdrúbal, passados os primeiros momentos de indecisão, quando não sabia se devia se
atirar de volta a água ou fingir que estava tudo bem, optou pelo último e rumou, sem que
ninguém percebesse, direto para sua ex-toca, transformada em museu. Está lá até hoje, em
cima da tabuleta “Monstro Amarelo”, é bem fácil de achar, logo na entrada à direita. Uma
vez por dia ele faz o seu discurso em português, inglês e espanhol, é pago para isso:
— Senhores e senhoras, eu sou o legítimo Asdrúbal e eis a minha verdadeira história:
“Era domingo de sol no verão de 292, a praia apinhada com o povo a me esperar, mas eu já
naquela época não estava mais para essas coisas. As duas viagens que eu havia feito ao
exterior, a primeira já lá se vão tantos anos, a segunda, em 290 na casa de minha
mãezinha, a meditar e a sofrer os primeiros males de amor, tinham me tirado um pouco da
impetuosidade. Voltara à Floresta DumDum sim, mas desejando um posto calmo – no
máximo de segundo escalão – e não mais o peso da responsabilidade já vivido e
experimentado. Foi isso que fiz ver ao povo que tanto esperava de mim. Foram momentos
dramáticos que exigiram tirocínio e força de vontada para não levar a mim e a DumDum ao
caos.”
— Amores? A que amores o senhor se referiu? – pergunta não raro um visitante estrangeiro.
— É um detalhe triste de minha vida. – responde invariavelmente Asdrúbal. – Mas um
convívio forçado de dois anos me deu a ilusão de amar um inimigo, ou melhor, uma inimiga,
a Borboleta Azul. Hoje não existem mais, extintas por não se adaptarem ao ambiente de
nossa Nova Floresta, com suas ruas, seu movimento… Mas quem viu pode testemunhar:
eram lindas, lindas…
E o discurso acaba sempre com um urro médio, suficientemente alto para impressionar os
turistas, mas não tão alto que infrinja a Lei do Silêncio. Isso pode dar a impressão que
Asdrúbal, o Monstro Amarelo, é apenas mente uma curiosidade histórica, algo a ser olhado
depois do leque da Imperatriz Leopoldina e antes dos coches da Monarquia. Mas eu queria
avisá-los para que nunca se esqueçam, nunca, que monstros não morrem e que são
terríveis, terríveis!
ASDRÚBAL NO MUSEU
Primeiro Capítulo
Dia chato. Ô diazinho chato, sô!
Asdrúbal bocejava: nada mais chato para um dia chato do que ficar onde ele estava.
Ele estava em um museu.
Não como visitante, como eu ou você estaríamos se fôssemos a um museu; ele estava no
museu como uma Peça Rara. Peça Rara é assim: em uma prateleira, entre outras Peças
Raras. As outras Peças Raras deste museu eram o Gato de porcelana chinesa, o Tratado de
1823, as Dez Capitanias Hereditárias, as Preposições e várias outras. As Preposições, por
exemplo, ficavam arrumadas, como convém, em ordem alfabética. Embaixo da prateleira
onde Asdrúbal estava, havia uma plaquinha: Asdrúbal, o monstro amarelo.
Uma das maiores raivas de Asdrúbal era essa placa, assim simplesinha, só dizendo o que
dizia sem mais nada. Sem dizer seu nome completo que era Asdrúbal, o Terrível. Sem dizer
seu orgulho: Monstro perigoso em extinção, encontradiço outrora na Floresta DumDum. Sem
dizer: Inimigo de borboletas, gatos, corujas, tartarugas, cachorros, sapos, caramujos,
periquitos, valsas, sonhos de valsa e piqueniques em geral. Sem nem mesmo dizer, ao
menos, quantas pernas ele tinha e como o feitio de sua sobrancelha era insinuante e
charmoso. Nada, nada. A plaquinha não dizia nada. E, no entanto, Asdrúbal continuava o
mesmo que, nos bons tempos, fazia o terror da Floresta DumDum com suas aparições
assustadoras.
Asdrúbal continuava tão amarelo quanto antes, se bem que, com a péssima iluminação do
museu, às vezes ele ficava com uma cor meio assim, mais para pastel. Mas por dentro ele
era o mesmo que tinha acabado com a última Borboleta Azul Real Gigante do planeta (isso lá
pelos idos não sei quantos). O mesmo, mesminho, se bem que estivesse agora em um
museu, com esse verniz de coisa importante nos cabelos e esse frio de coisa acabada dando
dormência na ponta dos dedos.
Era Asdrúbal, transformado em Peça Rara.
Vamos ver como isso foi possível.
O emprego no Museu DumDum ia das oito da manhã às seis da tarde, quando então
Asdrúbal dava uma espreguiçada e continuava no mesmo lugar porque, nem todos sabem
disso, o que hoje é museu, antigamente era a toca do Asdrúbal. A toca de Asdrúbal, durante
uma de suas viagens à Argentina, tinha sido transformada em museu por seus inimigos.
Quando Asdrúbal chegou e viu que tinha passado a morar em um museu, resolveu tirar
partido da situação e arranjou esse emprego de Peça Rara.
Bom, então, como dizíamos, era das oito às seis. Das oito às seis Asdrúbal deveria fazer cara
de monstro e barulhos assustadores toda vez que entrasse um visitante. Não era um
emprego difícil e o guarda do museu, por uns tempos, andou muito satisfeito com a nova
aquisição do acervo. Depois é que a coisa desandou. Asdrúbal começou a fazer cara de
monstro e barulhos assustadores mesmo quando não tinha nenhum visitante por perto. Isso
era muito ruim, embora tanto a cara quanto os barulhos fossem o que há de mais perfeito
no ramo. Mas é que a cara e os barulhos de Asdrúbal assustavam as outras Peças Raras do
museu: o Gato de porcelana chinesa, de tanto escutar berro fora de hora, estava ficando
todo rachadinho; as Capitanias Hereditárias não gostavam das caretas e ficavam tentando se
esconder atrás das Frações Decimais. As Preposições, coitadas, volta e meia saíam correndo
de lá para cá, que nem doidas. Consequência: barulhos assustadores e cara de monstro só
quando tivesse visitante na sala. Se não houvesse ninguém, era tratar de ensaiar um
sorrisinho do tipo meigo ou então cantar baixinho uma dessas músicas assim bem bobas, de
namorado. Essa era a ordem! E ordem superior!
Asdrúbal só podia obedecer.
Como se isso não bastasse. Como se fosse pouco, mixaria, café pequeno. Como se sorriso e
musiquinha fossem sopa no mel, como se, Asdrúbal, ainda por cima, em sei lá quanto tempo
de emprego, não tinha visto uma, uminha, nunca, jamais, nem sombra de borboleta! Nada,
nadinha, nem mariposa chulé aparecia por lá. Até mesmo mosca era raro! Convenhamos:
para o célebre Matador de Borboletas Azuis Reais Gigantes, isso era o cúmulo!
Asdrúbal não aguentava mais.
E, nesse dia, nesse, que era um dia chato, para cúmulo dos cúmulos, Asdrúbal notou uma
pontinha verde de bolor no dedo mindinho da sua terceira perna, à esquerda de quem vem,
contando de lá para cá. O que antes era amarelo ouro, puro, da gema, agora tinha um
pontinho verde de bolor. Asdrúbal pigarreou, penteou a sobrancelha com cuspe e cochichou
para sua barata de estimação: “presta atençao que lá vai…”
O que vinha ou o que não vinha nem a barata nem nós nunca ficamos sabendo: aconteceu
um inesperado
O inesperado
– Aiiiii!
(Silêncio)
— Urrrr!
(Silêncio)
— Ahhh!
(Silêncio)
Esse foi o inesperado que, trocado em miúdos, deu-se assim: Asdrúbal, de repente, olha
para a janela e vê o que? Uma Borboleta Azul Real Gigante!!! Quer dizer, não era na verdade
uma Borboleta Azul Real Gigante!!!, era simplesmente uma pipa de papel de seda azul que
Asdrúbal confundiu com sua arqui-inimiga. Confundiu e engoliu, já sentindo gosto de
Floresta DumDum nos dentes e cheiro de bons tempos aqueles.
Engoliu. Engoliu e o dono da pipa, o Raimundinho, lá do lado de fora – que Raimundinho
nunca foi muito de botar o pé em museu -, botou foi a boca no mundo.
— Aiiii! Minha pipa campeã!!
Pipa campeã engolida por Asdrúbal que junto também engoliu um metro e vinte de vareta e
cinco de linha. Linha com pó de vidro, é claro, que Raimundinho era terrível. Linha com pó
de vidro só podia dar ‘urrr!’, é claro. E é claro também que, com tamanha barulhada na sala
das Peças Raras, o guarda veio correndo a tempo de escutar o ‘urrrr!’ bem no ouvido e fazer
um ‘ahhhh!’, esse de susto, que não é qualquer guardinha de museu que aguenta um ‘urrr!’
asdrubaliano nos ouvidos sem morrer de medo, não.
Quer dizer, morrer não morreu, mas dizem que foi daí que começou a doença nervosa dele,
que acabou levando-o ao hospital.
Mas isso é papo para depois. Vamos por partes.
Quando passaram o ‘aiii’ do Raimundinho, o ‘urrr’ do Asdrúbal e o ‘ahhhh’ do guarda,
Raimundinho teve a ideia de ficar freguês. Freguês do guarda que teve que pagar do bolso
dele uma pipa nova para o menino, pois Raimundinho não parava de chorar nem por nada.
— Nunca, ouviu, nunca que eu vou parar de chorar! Buááá … minha pipa!
E era aquela água inundando tudo, fazendo poça bem na passagem, já entrando sala de
Peças Raras adentro e era também aquele barulho infernal de pulmão de 12 anos a todo
vapor.
— Toma! Toma! Estão aqui dez pratas, vai comprar uma pipa nova, mas some!
— Obrigadinho, meu chapa!
“Esse Asdrúbal me paga”, pensou o guarda.
“Esse guarda é um panaca”, pensou Asdrúbal que, já refeito do seu próprio urro,
acompanhava a cena com cara de quem estava achando tudo péssimo.
“Isso é dinheiro paca”, pensou Raimundinho, que aí então achou de ficar freguês.
O plano de Raimundinho era simples: toda a semana, variando o dia (ora uma quinta, ora
uma terça), Raimundinho iria passear com uma pipa azul lá por perto do museu. Asdrúbal
comeria a pipa pensando que era borboleta. Raimundinho botava o pulmão para funcionar. O
guarda soltava mais dez pratas.
Plano ótimo. A pipa era fácil, Raimundinho fazia três por dia para vender para os garotos
ricos da redondeza. O choro é que não tinha problema mesmo, Raimundinho se garantia. As
dez pratas não eram tão certas, podiam virar cinco, dependendo do salário do guarda, mas
haveria que se tentar. Mas… e se Asdrúbal, enjoado de papel de seda, se recusasse a comer
as pipas? Asdrúbal não tinha feito uma cara muito boa ao engolir a pipa campeã! A pipa,
com gosto ruim, era um ponto falho no plano perfeito de Raimundinho.
Raimundinho pensava de lá em como tornar as pipas irresistíveis para Asdrúbal e o próprio,
do lado de cá, tentava pensar alguma coisa, qualquer coisa. Não conseguindo, voltou a falar
com sua barata de estimação:
— Onde é que a gente estava mesmo? Ah, sim, pois é! Não pense você que eu não sabia que
era uma pipa. Sabia. Comi só de tédio, assim, para passar o tempo… Sabia, sim senhora!
Então eu, Asdrúbal, vou me enganar com uma brincadeira de criança?!
Asdrúbal inventava respostas e poréns. O problema de falar com a barata é que há dois anos
ela não respondia mais. Asdrúbal sabia que ela estava lá, no cantinho, porque se ela tivesse
saído ele teria visto, mas, às vezes, Asdrúbal ficava pensando se ela não tinha morrido.
Asdrúbal sacudiu a cabeça com força para espantar a ideia ruim. Afinal, monstro ou não
monstro, Asdrúbal detestava pensar que estava sozinho no meio daquelas Peças Raras
chatíssimas, que sua amiga e companheira de tantos anos tinha morrido.
Asdrúbal, nos tempos da Floresta DumDum, chamava a barata de “aquela cascuda do
contra”. Já a barata costumava chamar Asdrúbal de “hepatite ambulante”. E era desses
belos diálogos que Asdrúbal sentia falta.
Em vez do saudoso “hepatite ambulante”, o que Asdrúbal escutou naquela hora foi um “ô
pudim! tu prefere papel de seda sabor cola polar ou sabor seiva de alfazema?”.
Asdrúbal, ainda com pipa, vareta e pó de vidro no estômago, e na cabeça uma certa tristeza
por causa da barata, pensou que estava ouvindo coisas, que estava passando mal.
Depois pensou que talvez fosse a barata que afinal voltava a falar! É isso mesmo! Só podia
ser a barata! Pois se não tinha ninguém por perto e as outras Peças Raras eram mudas, era
ela!
– Ô cascuda!!! Você está aí?!
— Cascuda é a vovozinha! Se você não gosta do perfume de alfazema da minha irmã e da
cola polar da minha mãe, então vai dizendo aí do que você gosta!
Irmã? Mãe?! Não, não. Não era a cascuda. E depois, Asdrúbal se lembrou de repente: sua
barata de estimação era argentina e só falava castelhano. Não, não, não era ela.
Mas então quem era?
Asdrúbal estava tentando descobrir o dono da voz quando…
— Ouvi uns barulhos… o que está havendo nesta sala? – Berrou o guarda que, ainda
nervoso, vinha de minuto em minuto na sala das Peças Raras.
– Seu Asdrúbal, faça o favor! Olha a compostura durante o expediente!
O guarda ainda deu mais umas voltinhas e acabou saindo.
Saiu e a voz voltou:
— Ô pudim! Colabora…
Os pensamentos de Asdrúbal
Asdrúbal sacudiu a cabeça com força uma, duas, quatro vezes, até que sentiu aquele arzinho
fresco soprando lá dentro. Nenhum pensamento triste sobre a barata, mas nenhum alegre
trambém. Aliás, resumindo, as sacudidelas tinham tirado qualquer pensamento de dentro da
cabeça dele. O método tinha lá seus inconvenientes, mas Asdrúbal não estava perdendo
grandes coisas em ficar com a cabeça vazia (cá entre nós, mesmo o melhor de seus
pensamentos não valia muito). Depois de algum tempo, os pensamentos foram voltando
para dentro de sua cabeça, devagarinho. O primeiro que chegou foi o dos noves fora:
1 – Pensamento dos noves fora:
As preposições eram 24, porque 24 vezes 2 igual a 48, com um 0 fica 480, noves fora 37
que, somando a data em que estamos, fica igual a 74, que era justamente a idade do único
professor de português que Asdrúbal tinha tido na vida.
2 – Pensamento profundo preferido, também chamado 3P:
O mundo era assim porque não era assado, e se fosse assado, ele, Asdrúbal, também seria
diferente e então ele ia achar que o mundo não era assado mas assim e então não ia
adiantar nada, de modo que, nada adiantando nada, tudo era realmente péssimo.
3 – Pensamentos menorezinhos:
Fogão: o fogão se chama fogão porque a primeira cozinheira do mundo, não estando
acostumada com o fogão, exclamou: “nossa, que fogo enorme!”, jogando uma panela d’água
em cima. Ficou conhecida como a mulher do fogão e o nome pegou.
Galinha: diminutivo de gala, mulher do galo. O nome gala vem da época em que os bichos
eram muito maiores do que os de agora. Com a evolução das espécies animais, os bichos
enormes foram morrendo e da gala original, para mais de cinco coxas, só sobrou mesmo a
nossa galinha de duas coxas.
Tinta: nome que todo mundo diz errado. Na verdade o nome certo é pinta. Por exemplo, nas
frases ‘eu me agasalho com o agasalho’ e ‘eu pinto com a pinta’. Mas é que o povo é mesmo
muito ignorante e vive trocando letra.
Pássaro: outro nome errado. Prova disso é a palavra passarinho, diminutivo de passário e
não de pássaro!
— Esse pessoal não vai à escola e depois fica falando os nomes tudo errado.
E depois desses, muitos outros pensamentos foram entrando de volta na cabeça de
Asdrúbal. Quando os pensamentos acabaram de entrar, a manhã de segunda-feira já tinha
ido embora e na hora do almoço o guarda foi à farmácia comprar remédio para dor de
cabeça.
Pois foi justamente nesta hora que a voz misteriosa tornou a aparecer.
— Ei! E se em vez de vareta eu puser talharim, você jura que come?
Talharim? Vareta? Comer? Comer o quê? Quem estaria falando? Seria para ele mesmo,
Asdrúbal, o Terrível, que a voz estaria se dirigindo?
— Ô gema de ovo, responde!
Era. Era com ele, pelo menos isso Asdrúbal já sabia. Que bom. Faltava só descobrir o resto!
Raimundinho, depois de quase uma semana de esforços para entabular conversação com
Asdrúbal, acabou desistindo e resolveu mudar de tática. Botou uniforme da Escola Pública,
lavou a cara e as unhas e foi lá dentro da sala das Peças Raras para levar um papo franco,
pois se Asdrúbal era monstro amarelo, ele, Raimundinho, era monstro em esperteza. Seria,
então, um papo de monstro para monstro.
Último capítulo
Foram. Não foi um nem dois passantes que se espantaram com aquele menino que tinha
uma sombra tão amarela em um dia nublado que nem sol tinha (o chuvisco do dia anterior
ainda continuava de vez em quando). No começo os dois ainda tiveram uns probleminhas,
pois Raimundinho, com duas pernas, tinha uma sombra com várias.
— Ei, psiu! Anda mais devagar, poxa! Assim vão desconfiar!
— Desculpe! É que enquanto você dá um passo eu dou quatro.
— Pois é! Mas disfarça, disfarça!
Chegaram enfim no oiti.
— Tem oiti?
— O que?
— Tem oiti, lá?
— Lá? Tem. Tem oiti, ipê, quaresmeira, acácia, cambuí, angico branco. A gente vai acabar
conseguindo o dinheiro e aí, quando a gente se mudar, eu vou levar esse oiti daqui para lá.
Ele é de estimação. Sempre que eu quero me esconder das pessoas eu venho aqui.
Sentaram, puseram as meias para secar, afiaram o canivete, tiraram um formigueiro que
estava se formando na raiz do oiti, fizeram um xixi no chão quente do mormaço só para ver
fumacinha saindo da terra. Asdrúbal fez um buraco e tampou com folha (“para o primeiro
cretino que passar por aqui”), falaram um pouco da vida de cada um, mas, sem querer,
como se fosse visgo, o papo ia e voltava para “lá”.
— Asdrúbal, você sabe tirar favo de mel de árvore?
— Então não sei? Você se esquece que eu sempre vivi em floresta?
— Ah é, desculpe.
Depois falaram ainda de como ali, onde hoje tinha o oiti, uma vez, há muito tempo, Asdrúbal
tinha visto um ninho de cobra limpa-campo, a cobra que come as outras cobras. Depois
Raimundinho ensinou como se fazia pipa, só que Asdrúbal não aprendeu.
— O bom de usar é bambu, que é leve.
— A gente usa os que forem ficando amarelos, dos da sebe lá de perto do maracujazeiro.
— Boa ideia.
Ficaram nesse papo mole, falando de “lá” o dia inteiro.
E depois de um dia inteiro, cansaram.
Cansaram e ficaram assim, disfarçando, um sem querer olhar para a cara do outro para o
outro não perceber que o papo tinha acabado.
Raimundinho botou as meias, fechou o canivete (“esse é fogo, dá até para matar porco,
cuidado”), inventou uma desculpa besta e foi embora cuidar da vida: comer, dormir, fazer
pipa e estudar de vez em quando mode a mãe não chatear.
Asdrúbal suspirou aliviado: tudo bom, tudo bem, mas esse negócio de ser sombra não dava
muito para ele não. Já estava fazendo cinco horas desde que Asdrúbal tinha saído do museu.
Ele levantou, espreguiçou as pernas e, procurando não olhar para o museu que ficava para
trás, foi andando devagar.
Não foi longe, tropeçou três passos depois em uma coisinha marron:
— Ah, el Hepatite! Aonde piensas que vai?
Era a barata. De mão na cintura e cílio postiço, a barata olhava para Asdrúbal.
— Cascuda! – Asdrúbal se abaixou e cochichou:
— Eu não “pienso”, minha velha, eu só vou. Vou por aí.
E foram.
A festa no museu (quase que eu me esqueço!)
Quase que eu me esqueço de contar como foi que a barata saiu do museu. Depois que
Asdrúbal e Raimundinho foram embora, a barata – que tinha emudecido esse tempo todo só
para chatear o monstro – ficou sem saber o que fazer. As Peças Raras, tendo descoberto que
Asdrúbal não estava mais lá, mandaram chamar o guarda de volta. Doberval veio logo. E,
querendo comemorar não só a saída do mau elemento como também o que ele achava que
ia ser a cura definitiva de sua dor de cabeça, organizou uma festa.
Às oito horas chegaram os convidados, às oito e meia serviram licor de cacau, às nove
tocaram ‘Feito para dançar’ na Eletrola a manivela (uma das Peças Raras convidadas).
Mas ninguém dançou, pois foi o primeiro acorde ir pelo ar que pelo chão apareceu uma
barata gritando: “música! viva para los músicos!” e, soltando uns puns fedorentíssimos,
atravessou o salão. As senhoras desmaiaram enquanto alguns cavalheiros tratavam de fazer
de conta que os puns eram na verdade os fogos de artifício da festa.
Às nove e cinco a festa acabou.
Quando tudo ficou novamente em silêncio, o guarda, já de pijama, achou que ouviu, lá
longe, uns pedaços de tango cantados a duas vozes:
— Adiós muchachos…
É o vento, pensou. E tomou outra pílula para dormir.
Será que nunca as coisas voltariam a ser como antes? choramingou ele.
O TRISTE FIM DE ASDRÚBAL, O TERRÍVEL
Mudança de autor
Não sei dizer como foi que Asdrúbal virou Vasconcelos. Foi virando. Talvez o que primeiro
mudou foi o ombro – mais caído. Ou quem sabe foi o jeito de falar – mais arrastado. O caso
é que Asdrúbal virou Vasconcelos.
Não sei também se isso teve alguma coisa a ver com o livro. Talvez, pois um vasconcelos
entra até na Academia, asdrúbals já fica um pouco mais chato.
O novo Vasconcelos era igual aos outros. Meio barrigudo, meio barbado e meio careca. De
manhã, ele punha um calção, ia comprar pão com a cara ainda vermelha da água – sem
sabão, que é para ninguém dizer que eu estou fazendo versos com a vida alheia.
Vasconcelos tinha lá as manias dele. Gostava de futebol, era Vasco – o que me faz pensar o
que veio primeiro, se o nome Vasconcelos, se a paixão (moderada) pelo Vasco.
Quem gostou da transformação foi a barata. Passava o dia gritando:
— Ô Vasconcelos! Olha aí a porta batendo! – e baixinho – que esse homem não presta para
nada…
— Ô Vasconcelos! Olha aí a campainha, homem! – e baixinho – parece que é surdo…
— Ô Vasconcelos…
Do passado asdrubaliano nem um pio. Até parecia trato: nem ele falava de suas vitórias e
guerras, nem ela falava do ex-noivo milionário e dos seus sucessos nos palcos portenhos
(tinha sido cantora em Buenos Aires, parece).
Mas se ela cantarolava às vezes velhas canções só para deixar ele de mau humor, ele
também, todos os dias, se trancava no banheiro e, com um urro forte, virava Asdrúbal outra
vez no espelho da pia.
— Ô Vasconcelos! Que barulho! Olha os vizinhos pela-mor-de-deus!
Asdrúbal passou a fazer esse exercício só aos domingos.
Asdrúbal tentou também, no começo, dar o urro e virar ele mesmo dentro de sua roupa de
gala (a gala sendo um lindíssimo rabo dourado com estrelinhas fumê que, infelizmente,
nunca resistiam ao impacto).
— E você acha que eu vou passar minha vida costurando essas coisinhas aí para você?!
Asdrúbal passou a virar ele mesmo pelado mesmo.
E com isso, tudo parecia arranjado. Asdrúbal, quero dizer, Vasconcelos, não tinha mais que
se preocupar se estava chamando a atençao, se tinha gente cochichando. Como
Vasconcelos, ele podia se dar ao luxo até de andar de ônibus sem despertar nenhuma
suspeita. O fato de Vasconcelos passar muito tempo no banheiro não causava espécie: tem
muita gente que tem essa mania.
— Ah! eu fico lá dentro muito tempo porque eu gosto de ler o jornal (e de tirar meleca do
nariz…).
— Ah! eu gosto de fazer minha ioga no sossego, antes do banho (e de ficar sem fazer nada
sem ninguém para me chatear também…).
— Ah! eu estava com uma dor de barriga (e com uma vontade danada de ver como é que
meu peru fica quando eu fico de cabeça para baixo…).
— Ah! é que eu fiquei lendo uma revistinha (e ensaiando cara bonita no espelho…).
Pois Asdrúbal estava virando ele mesmo no espelho do banheiro e ele podia dizer qualquer
coisa como desculpa que ninguém ia mesmo estranhar nada. Quem é que não usa uma
desculpinha de vez em quando?
Além da mania de demorar no banheiro, tinha outras coisinhas que poderiam denunciar que
atrás daquele Vasconcelos se escondia um horroroso Asdrúbal. Mas tal qual a demora no
banheiro, eram coisinhas assim pequenas, que ninguém estava muito atento para reparar.
As ordens, por exemplo. Vasconcelos era um cara que gostava de dar ordens.
— Ô Vasconc..
— Fale. Ordeno-te que fale!
— Hum, me passa a batata, por favor.
Ou no fim da tarde, quando Vasconcelos ia até a janela lutar contra as samambaias em
busca de um arzinho:
— Sol! Você tem exatamente aí umas … umas … que horas são, benhê?
— Cinco e meia.
— Exatamente umas duas horas para sumir da minha frente, ouviu?
Vasconcelos sorria satisfeito. Suas ordens seriam obedecidas. Como antes.
Pois é. Tirando uma ou outra coisinha como essa, Asdrúbal tinha virado um Vasconcelos
perfeito, e se não fossem os urros ocasionais no espelho do banheiro, ninguém – nem
mesmo ele mesmo – nunca mais se lembraria que algum dia tinha existido alguém chamado
Asdrúbal.
Vasconcelos e Cucaracha (não é que a barata tenha mudado de nome, não. Ela nunca tinha
tido um e Vasconcelos passou, com o tempo, a chamá-la de Morocha, Cuchinha ou
Cucarachinha) às vezes até faziam visitas.
— O senhor aceita mais um uisquinho, seu Asdrúbal?
— Não, obrigada, o general já tomou o suficiente.
E Vasconcelos sorria amarelo, agradecia com a cabeça, pedia licença e ia ao banheiro.
Sorrir amarelo sempre dava vontade ao Vasconcelos de ver amarelos fortes, totais,
asdrubalianos. No banheiro, pelado, Vasconcelos dava um urro, crescia, gargalhava. Na sala,
Cucaracha se desculpava.
— Não é nada, não. Problemas seríssimos de estômago, coitado. Ele passa os dias inteiros
escrevendo, curvado lá na mesa dele, isso afeta a digestão.
As pessoas concordavam com a cabeça e a vida ia continuando.
O post-scriptum do livro
Quando a barata acordou pela manhã, procurou pelo Vasconcelos e pensou:
“Ai, como é duro ter um ex-monstro como bicho de estimação!”
Botou anúncio no jornal, perguntou para todo mundo, depois de um mês resolveu dar uma
arrumada nas coisas dele e então viu aquela mancha de uma amarelo aguado no último
capítulo do livro. Tinha ficado tão bem.
Ela hesitou em botar a palavra “fim”, mas quando o editor começou a insistir e a dizer
quanto dinheiro ela poderia ganhar com as memórias de Asdrúbal, o Terrível, ela se
resolveu.