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Rogério Junqueira: “Ideologia de gênero” é uma invenção católica que emergiu sob os
desígnios do Conselho Pontifício para a Família, da Congregação para a Doutrina da Fé, entre
meados da década de 1990 e no início dos 2000. Trata-se de um sintagma urdido no âmbito
da formulação de uma retórica reacionária antifeminista, sintonizada com o pensamento e o
catecismo de Karol Wojtyla. A matriz dessa retórica é católica – mais precisamente,
neofundamentalista católica, contrária inclusive a disposições do Concílio Vaticano II.
Lembremos que, ao longo do pontificado do papa polaco, houve uma importante mudança
no registro discursivo da Igreja sobre a ordem sexual. A “Teologia do Corpo”, apresentada
por ele com a colaboração de Joseph Ratzinger e reafirmada por seus sucessores, postula
que as disposições da mulher (como o amor materno, por exemplo) são naturais e próprias
dela e que derivam da sua anatomia e da sua psicologia “particular”. A mulher deixou aí de
ser representada como meramente subordinada ao homem para tornar-se
sua complementar. Ora, isso não implicava um arrefecimento na doutrina. Pelo contrário. O
pontificado marcou-se pela radicalização do discurso da Santa Sé sobre moralidade sexual
(especialmente quanto a aborto, contracepção e homossexualidade) e um virulento ataque
àquilo que se costuma chamar de modernidade. Apresentada por Wojtyla nas
audiências gerais durante os primeiros cinco anos do papado, essa teologia foi reunida
em Homem e Mulher o Criou, de 1984, e encontrou uma de suas mais nítidas formulações
na Carta às Famílias Gratissimam Sane, de 1994.
Dito isso, é importante reter que, não obstante a matriz católica do discurso antigênero, a
ofensiva contra a “ideologia de gênero” passou a contar com adesões de outras
denominações religiosas. Mais do que simples adesão, as igrejas neopentecostais souberam
se apropriar dessa retórica, sobretudo na América Latina.
RJ: Primeiramente, vale sublinhar que, quando se afirma que o sintagma “ideologia de
gênero” é uma invenção católica ou vaticana, não se pretende dizer que sua formulação
tenha se dado apenas entre os muros da Santa Sé ou a partir do envolvimento do mundo
católico em toda a sua diversidade. Muito diferentemente disso, para a construção do
sintagma e da retórica antigênero, além dos dicastérios da Cúria Romana, foram mobilizadas
figuras ultraconservadoras de conferências episcopais de diversos países, movimentos pró-
vida, pró-família, associações de terapias reparativas (de “cura gay”) e think tanks de direita.
Nesse processo, foi marcante a atuação de grupos religiosos radicais estadunidenses e de
membros da Opus Dei e de outros movimentos eclesiais.
Outra figura importante e que também transitou pela América Latina foi o monsenhor Michel
Schooyans, um jesuíta belga que, entre 1959 e 1969, viveu no Brasil, onde foi inclusive
professor na PUC de São Paulo. Esse ferrenho anticomunista se destacou pelas críticas ao
aborto e ao uso de contraceptivos. Em seu livro L’Évangile face au désordre mondial, de
1997 (a edição em português é de 2000), que conta com prefácio de Ratzinger, Schooyans
dedicou amplo espaço à denúncia de um complô da “ideologia de gênero”: os organismos
internacionais estariam à deriva do interesse de minorias sexuais subversivas, promotoras
de uma cultura antifamília, do colonialismo sexual e da ideologia da morte. Nesse livro se
registra um dos primeiros (ou talvez o primeiro) registros do emprego do sintagma no sentido
adotado pelas cruzadas antigênero.
Pouco depois, em abril de 1998, “ideologia de gênero” apareceu pela primeira vez em um
documento eclesiástico: uma nota da Conferência Episcopal do Peru, intitulada La ideologia
de género: sus peligros y alcances, produzida pelo ultraconservador monsenhor Oscar
Alzamora Revoredo, marianista, Bispo Auxiliar de Lima. Esse documento, que se tornou uma
referência na construção do discurso antigênero vaticano, é baseado em um artigo de
O’Leary, figura importantíssima nesse inteiro processo. Ligada à Opus Dei e representante
do lobby católico Family Research Council e da National Association for Research & Therapy
of Homosexuality(que promove terapias reparadoras da homossexualidade), ela mantinha
relações diretas com a Santa Sé, inclusive com Ratzinger. Seu livro The Gender Agenda, de
1997, traduzido em várias de línguas, tornou-se uma das bíblias do movimento antigênero.
Dois anos depois, sob a batuta do cardeal Trujillo, o sintagma compareceu pela primeira vez
em um documento da Cúria Romana com a publicação de Família, Matrimônio e “uniões de
fato”, em julho de 2000. Nesse ínterim, o colombiano já vinha trabalhando para conduzir a
elaboração do mais amplo, incisivo e polêmico documento sobre o tema. Com efeito, em
2003, sob a égide do Conselho Pontifício para a Família foi publicado o Lexicon: termos
ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas. Trata-se de uma espécie de
dicionário enciclopédico sobre temas relativos a gênero, sexualidade e bioética, para o qual
colaboraram mais de 70 autores conselheiros do Vaticano ou atuantes em suas instituições
de ensino. O Lexicon, a suma teórica do discurso antigênero, ataca vigorosamente todo um
conjunto de valores e referências que se consolidou sobretudo em sociedades secularizadas
e que, ao se afirmarem nas conferências da ONU, disseminava-se pelo mundo. Seus verbetes
tornaram-se textos de iniciação para interessados em aprender sobre a “ideologia de gênero”
e a combatê-la. Suas traduções em português e espanhol saíram no ano seguinte.
Depois disso, como observou Sara Garbagnoli, houve certo silêncio estratégico sobre o tema
por parte desses atores. De fato, entre os anos que antecederam a produção do Lexicon e
os imediatamente após a sua publicação, Ratzinger era quase o único expoente da Igreja a
fazer declarações públicas em relação ao gender. A mudança se deu partir de 2008. Naquele
ano, na condição de papa, ele começou a proferir discursos sobre o tema que, embora
expressassem um ponto de vista típico de uma ideologia religiosa, eram apresentados como
uma manifestação do interesse público universal. O alemão defendia que a reflexão sobre a
identidade sexual e as construções sociais relativas ao gênero poderiam desintegrar o ser
humano, tal qual a ação humana insensata destruiria a natureza. A Igreja teria a
responsabilidade de intervir para impedir isso. Os seus pronunciamentos por ocasião do Natal
em 2008 e, especialmente, o de 2012 parecem ter representado um sinal verde para a
eclosão em moldes transnacionais da ofensiva antigênero.
RJ: Estudiosos sobre o tema apontam que, além de recuperar espaço à Igreja em sociedades
envolvidas em distintos processos de secularização, tal ofensiva visa, muito claramente,
conter o avanço de políticas voltadas a garantir ou ampliar os direitos humanos de mulheres,
pessoas não-heterossexuais, transgêneros e outros dissidentes da ordem sexual e de gênero.
De todo modo, é fundamental reiterar que o processo de mobilização de um ativismo
religioso que levou à elaboração e disseminação do sintagma a partir de alguns setores da
Igreja Católica pode ser entendido como uma reação direta e imediata às discussões
ocorridas para a aprovação dos documentos das Conferência do Cairo e Pequim.
Logo após esses eventos, o Vaticano convocou dezenas de “especialistas” para pôr em
marcha uma ofensiva para reafirmar a doutrina católica e a naturalização da ordem sexual.
A principal intencionalidade desses missionários da “família natural” era e é opor-se a ações
voltadas a legalizar o aborto, criminalizar discriminações e violências em função da
orientação sexual e da identidade de gênero, legalizar o casamento igualitário, reconhecer a
homoparentalidade, estender o direito de adoção a genitores de mesmo sexo, bem como
políticas educacionais de igualdade sexual e de gênero e de promoção do reconhecimento
da diferença/diversidade sexual e de gênero. E nada impede que atores conservadores não
necessariamente religiosos, como partidos ou grupos defensores de políticas neoliberais,
possam aderir ou acionar elementos dessa agenda antifeminista e anti-LGBTI. De fato, há
uma convergência entre neofundamentalismo religioso e neoliberalismo. O lema “Mais
família, menos Estado” tem circulado bastante entre eles.
A “defesa da família” por parte dos setores conservadores e ultraconservadores pode ser
construída nos planos moral e socioeconômico. Flávia Biroli tem chamado a atenção para o
fato de que a restrição do sentido de família em termos moralistas se faz acompanhar do
cultivo de sua concepção como unidade privada. Essa família se vê, então, incumbida de
crescentes responsabilidades à medida que os direitos sociais são precarizados e o Estado
se desobriga em realizar políticas distributivas e de proteção social. A investida contra os
direitos sociais incide especialmente em âmbitos da vida privada assumidos sobretudo pelas
mulheres.
Ao lado disso, vale notar que, ao expandir seus sentidos e dotar-se de caráter
universalizante, assumindo os contornos de um “significante vazio” (tal como entendido por
Ernesto Laclau), “ideologia de gênero” passa a operar como elemento de representação e
articulação de cadeias discursivas e equivalências. Assim, de maneira contingente, no âmbito
de batalhas por hegemonia, o sintagma pode atrair ou aglutinar diversas demandas políticas,
propiciar adesões de atores distintos, ensejar instrumentalizações e revestir os discursos de
aparente coerência. Em muitos países, vemos agremiações políticas de direita de caráter
populista ou nacionalista acionarem-no segundos seus variados propósitos.
RJ: A desconfissionalização do discurso antigênero tem sido uma das estratégias adotadas
para conferir a essas ofensivas uma feição universalista à altura dos desafios éticos
contemporâneos e evitar que sejam percebidas como uma resposta religiosa tradicionalista
e reacionária. Basta notar os frequentes apelos ou à “Ciência”, especialmente à Biologia, à
Psicologia ou à Psicanálise, sempre de maneira seletiva e inconsistente. Ao lado disso, a
tônica é também afirmar que o discurso antigênero teria bases científicas, contrapondo-o à
enganosa “ideologia” ou à infundada “teoria” do gênero.
Essa desconfessionalização (tal como a entende Romain Carnac) contribui para que grupos
não explicitamente religiosos, políticos e gestores públicos, entre outros, possam somar-se
às hostes da defesa da ordem sexual e da “família natural” e agir orientados, aparentemente,
a partir de princípios legais, técnicos, em favor do interesse público, na luta contra a
“teoria/ideologia do gênero”. No entanto, em todos os casos, mesmo quando não
explicitamente em cena, a matriz religiosa do discurso continua a soprar os papéis.
De toda sorte, ao fazer das questões de gênero e sexualidade uma controvérsia sobre o
“humano” e a sobrevivência da sociedade, os setores mais conservadores da Igreja Católica,
seus sequazes e outros grupos que aderiram a esse discurso, parecem ter encontrado um
meio eficiente de afirmar e disseminar seus valores, recuperar espaços políticos e angariar
mais apoio. Afinal, ao sabor de uma controvérsia astutamente associada à promoção do
pânico moral, a matriz religiosa do movimento antigênero pode ficar ainda menos evidente.
Outra coisa: em alguns países, nota-se a estratégia sutil de empregar o termo gender, em
inglês. O propósito é o de promover um estranhamento e, por conseguinte, o rechaço de
um conteúdo, objetivado como uma “propaganda”, uma imposição do imperialismo cultural
dos Estados Unidos da América, da ONU, da União Europeia e das agências e corporações
transnacionais dominadas por “lobbies gays”, feministas – que juntamente com defensores
do multiculturalismo e do politicamente correto, extremistas ambientalistas, neomarxistas e
outros pós-modernos, garantiriam a hegemonia daquela “ideologia” naqueles ambientes
peculiares. Gender, de tão alienígena e inapropriado, nem encontraria exata tradução.
Dito isso, não se pode esquecer que um dos alvos principais – se não o principal alvo – dessa
ofensiva são as escolas, apresentadas como verdadeiros “campos de reeducação e de
doutrinação” da “ideologia de gênero”. Cruzados antigênero, supostamente em nome da
“defesa das crianças”, empenham-se para obstruir propostas educacionais inclusivas,
antidiscriminatórias, voltadas a valorizar a laicidade, o pluralismo, a promover o
reconhecimento da diferença e garantir o caráter público e cidadão da formação escolar.
Dito isso, cabe insistir: estudiosos do tema apontam que essas grotescas formulações
paródicas atuam como poderosos dispositivos retóricos reacionários que se prestam
eficazmente a instaurar um clima de pânico moral contra grupos social e sexualmente
vulneráveis e marginalizados e a promover polêmicas, ridicularizações, intimidações e
ameaças contra atores e instituições inclinados a implementar legislações, políticas sociais
ou pedagógicas que pareçam contrariar os interesses daqueles que se colocam como arautos
da família e dos valores morais e religiosos tradicionais.
Agora, diante de algo que parece puro nonsense, mas que foi cuidadosamente urdido, as
pessoas familiarizadas com o Feminismo tendem a dizer: não existe “teoria de gênero” ou
“ideologia de gênero”, mas sim Estudos de Gênero e afins. Embora correta, essa afirmação
nos coloca ainda em uma posição meramente defensiva. Dentre as várias alternativas a isso,
pessoalmente prefiro, como fazem Anne-Charlotte Husson, Vanessa Roghi e
Sara Garbagnoli, afirmar: sim, existe “ideologia de gênero”, mas não conforme descrevem
ou denunciam os cruzados antigênero. Existe como invenção vaticana polêmica. Ou seja: é
um sintagma forjado para operar como uma arma política, enquanto dispositivo retórico,
metadiscursivo, paródico e reacionário.
“Teoria de gênero” ou “ideologia de gênero”, portanto, existe sim, mas não corresponde e
nem tampouco resulta do campo dos Estudos de Gênero ou dos movimentos feministas e
LGBTI. É, em vez disso, um dispositivo de origem vaticana urdido especialmente (e não
apenas) para promover uma agenda ultraconservadora, antifeminista e antagônica à
democracia e aos direitos humanos entendidos em bases mais amplas e plurais.
Entender e denunciar como opera o discurso antigênero, identificar quem são os atores
envolvidos nessas ofensivas, seus interesses, formas de financiamento e estratégias,
perceber seus limites e contradições, são passos essenciais para enfrentá-los. Eles não são
invencíveis. Apesar da virulência e da sanha que demonstram, já colecionam derrotas
importantes. Vamos em frente.